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CONHECIMENTOS ESPECÍFICOS

APOSTILAS OPÇÃO

intervenção prática consciente que resulta em um produto


objetivo que não existia anteriormente.

A consciência nada mais é do que uma capacidade


específica do homem, pois ele pode responder aos seus
crescimentos formulando novas perguntas e criando
finalidades.
O que promove a transformação do sujeito e do objeto é a
consciência histórica do sujeito, que, de acordo com Marx,
1. fundamentos teórico- refere-se ao reconhecimento do homem nos produtos
metodológicos, ético-políticos, artísticos.
técnico-operativos do Serviço Basta extrairmos da história, a forma como os homens
Social; descobriram o fogo, que nada mais foi do que formas de
alternativas por ele encontradas, com possibilidades de
escolhas. Fazer surgir fogo com pedras passa a se tornar
BIBLIOGRAFIA existente o que antes nem pensava-se em existir.
Quando essas alternativas são criadas, elas começam a ter
5. BARROCO SILVA, Maria Lúcia. Ética – Fundamentos valor, sendo avaliadas de acordo com a função do trabalho, das
Sócio históricos. 3ª Edição. São Paulo, Cortez, 2015. necessidades sociais. Os objetos são avaliados como úteis,
inúteis, válidos ou não válidos.
14. GUERRA, Yolanda; BACKX, Sheila; Santos, Cláudia M.
(orgs.). A dimensão técnico operativa no Serviço Social: A liberdade de criar é dividida em dois aspectos: positivo e
desafios contemporâneos. Rio de Janeiro: Ed. UFJF; Capes, negativo. Na positiva, está-se livre para algo, na negativa, está-
2012. se livre de algo.
Novas formas de práxis são valorizadas como a arte,
19. MIOTO, Regina C. T. Perícia Social – proposta de um filosofia, práticas educativas, religiosas, políticas.
percurso operativo. In: Revista Serviço Social e Sociedade. N.
67. Especial Temas SocioJurídicos. São Paulo: Cortez Editora, Esses fundamentos levam à ética, que é compreendida
2001. como um momento de práxis humana em seu conjunto. Com o
desenvolvimento das conquistas materiais e espirituais do
5. BARROCO SILVA, Maria Lúcia. Ética – Fundamentos gênero humano, chega-se a liberação das capacidades
Sócio históricos. 3ª Edição. São Paulo, Cortez, 2015. humanas, que são concebidas por Karl Marx como a riqueza
humana, produto material e espiritual das conquistas
O conhecimento que visa superar o que consta na produzidas pela humanidade.
aparência necessita de um prequestionamento em face da
realidade, levando a motivações teóricas, éticas e políticas, que A forma como o capitalismo predominou, deslanchando-
se direcionam a uma prática social voltada à transformação da se, demonstra o grande avanço histórico para o
realidade. desenvolvimento da sociedade.
Para Marx, na alienação do trabalho, o homem se torna
Desde os filósofos gregos, compreende-se que o mais pobre em função da riqueza que produz, criando
conhecimento trata da busca de fundamentos de determinada mercadorias, se tornando uma mercadoria qualquer. O
postura, como uma atitude de quem em face do mundo, se trabalho e seu produto produzido surgem ao trabalhador
admira e começa a buscar explicações para a realidade vivida, como poderes que o dominam.
entendo que o ser humano pode vir a ser de outra forma. Os
gregos denominam isso de admiração. Nas atividades individuais e coletivas, exige-se uma
situação harmônica entre as pessoas, porém isso não acontece,
A ética pode ser entendida como modo de ser socialmente elas produzem e se dissociam das demais.
determinado, como um processo de autoconstrução do ser A alienação é sentida quando estamos diante da
social. O ser social vem da natureza e suas capacidades são propriedade privada e divisão social do trabalho, que são
formadas no seu processo de humanização, demonstrando a situadas como determinações fundantes da alienação, assim
historicidade de sua existência. como ocorre com o sistema de trocas, valorização da posse e
dinheiro.
A história é dotada de uma existência independente dos
homens. Os homens, através de suas relações entre si e com a Na sociedade alienada, segundo Marx, o homem busca no
natureza são portadores da objetividade sócio histórica. E dinheiro os meios de satisfazer suas necessidades egoístas,
nesse aspecto, podemos considerar que o ser social tornando-se pobre como ser humano.
fundamenta-se em categorias ontológico-sociais, tendo em O dinheiro, que tem seu poder de troca, funciona como
vista que o modo de ser que os caracterizam são construções uma mediação entre indivíduo e suas necessidades egoístas,
histórico-sociais. entre o que ele não tem, mas pode vir a ter.

As atividades humanas e dos animais se diferenciam, já que E quanto às mercadorias?


estes últimos possuem atividades limitadas, instintivas, já os
homens, pensam racionalmente, projetam, transformam os Na sociedade capitalista, as mercadorias fundam-se na
sentidos, de forma livre e crítica. estratégia de trabalho assalariado, instituído sob a
propriedade privada dos meios de produção, que pertencem
Nota-se que a consciência no trabalho e na práxis dos ao capitalista e divisão social do trabalho.
homens, tratam da falsa ideia de que a materialidade se sua A mercadoria nada mais é do que o objeto, que por suas
intervenção prática não leva a subjetividade. Fala-se de propriedades pode satisfazer necessidades espirituais ou
trabalho ou de práxis material quando se está diante de uma

Conhecimentos Específicos 1
APOSTILAS OPÇÃO

materiais dos homens, com valor determinado por suas modos de vida de forma mecânica e crítica. Para tanto,
propriedades naturais e por sua utilidade. devemos entender o campo da alienação moral.
Um objeto será uma mercadoria quando os valores de uso
são reproduzidos de modo repetitivo, visando satisfazer Na alienação moral há princípios e valores universais
necessidades sociais, devendo as mercadorias serem trocadas. abstratos, apropriados pelos indivíduos em cada formação
O trabalho de diversos indivíduos não é considerado na social concreta, de modo particular.
troca, tratando-se apenas de um trabalho abstrato. Os A moral está ligada contraditoriamente ao
diferentes trabalhos são abstraídos da mercadoria e seu valor desenvolvimento humano-genérico e à sua alienação, já que as
passa a ser medido, quantitativamente, em razão do tempo formas de reprodução de valores ético-morais se orientam por
médio gasto na produção. valores e princípios sociais e humano-genéricos.

No processo de compra e venda das mercadorias Na filosofia e reflexão crítica, entendemos que a filosofia
encontramos um processo de circulação mercantil simples, em demonstra o conhecimento genérico alcançado pela
que o produtor vende uma mercadoria e recebe dinheiro que humanidade, como autoconsciência, permitindo que os
será empregado na compra e venda de outra mercadoria com homens se apropriem desse desenvolvimento humano sob a
valor de usos para vender no mercado, reiniciando o processo. forma de uma exigência genérica, saindo de sua singularidade.

No capitalismo, a força de trabalho é transformada em A universalidade filosófica precisa dos conhecimentos


mercadoria, como objeto da alienação do trabalhador. Na científicos voltados para as dimensões particulares da
relação de compra e venda da força do trabalho, trabalhador e realidade, na mesma proporção que a ciência precisa de uma
capitalista trocam equivalentes (salário por trabalho). base filosófica para não perder a perspectiva da totalidade.
Assim, a filosofia é o lugar de nascimento da ética como
Eis que fetiche e expropriação do trabalho possuem a conhecimento ético ou filosofia moral.
mesma relação social. O fetichismo é a modalidade de Quando a ética se realiza como saber histórico, tem por
alienação no capitalismo desenvolvido. finalidade um conhecimento radical e totalizante, que podem
Assim, podemos entender que a sociedade capitalista voltar-se para a crítica da moral cotidiana, com o
avançada caracteriza-se pela reprodução do fetiche da forma desvelamento da alienação moral, os fundamentos e os
mercadoria em todas as relações e dimensões da vida social, significados dos valores.
isso implica na universalização da coisificação e da
mercantilização das relações sociais, pendendo concluir que o No capítulo 3, desta obra, estuda-se a história e sociedade,
fetiche da forma mercadoria não se restringe à esfera da quais são os sujeitos ético-políticos.
produtividade, mas passa a dominar todas as esferas da vida
social, adentrando na totalidade das atividades e dimensões Foram fortes influenciadores na cultura e conhecimentos
sociais, seja subjetiva ou objetivamente. da humanidade, os gregos, como já vistos anteriormente, como
autores da filosofia, pois coube a eles a construção dos
A reprodução social das objetivações ético-morais, primeiros ensinamentos e sistematizações éticas, que não se
estudadas no Capítulo 2, desta obra trata do conjunto dos separavam da participação da sociedade.
modos de ser ético-morais desenvolvidos historicamente Em Sócrates, surgiu a noção grega de autodomínio, como
pelos homens, a partir de determinado estágio de organização decisão que não se submete a uma lei externa, e sim, aos
do trabalho e da vida social, sendo assim conhecido como domínio moral interno do sujeito.
campo das objetivações ético-morais
A ética cristã sofria forte influência na cultura ocidental,
O sujeito ético-moral é aquele socialmente considerado baseando-se nas verdades reveladas por Deus, através da
capaz de responder por seus atos em termos morais, bíblia e outros documentos religiosos. Os pensadores Santo
significando a capacidade de discernimento entre valores, que Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram com que a filosofia
quer dizer o mesmo que ter senso ou consciência moral. de Platão fosse retomada à luz dos dogmas cristãos,
Na ação moral consciente, o sujeito assume que os outros decorrendo formas de pensar que existiram durante toda a
podem ou não sofrer as consequências de seus próprios atos, Idade Média.
assim, a moral refere-se ao respeito ao outro, enquanto a
responsabilidade em relação aos outros, diz respeito aos Maquiavel foi o responsável por inaugurar a teoria política
resultados das ações para outros indivíduos. moderna. Em sua obra “O Príncipe”, escrita em 1.513,
defendeu-se a tese de que o poder político se depara com
Consciência e liberdade compõem todas as formas de situações das quais se torna necessário assumir determinadas
realização ético-morais. A moral objetiva-se como sistema atitudes que não seriam admitidas pela esfera moral privada.
normativo reprodutor dos costumes, vinculando-se ao
indivíduo singular e sua vida cotidiana e como conexão entre Do humanismo nascente ao individualismo burguês, os
motivações do indivíduo singular e exigências éticas humano- valores adquirem densidade histórica, sendo que o homem é
genéricas. tratado como indivíduo autônomo, em função de sua
racionalidade e mobilidade social.
Nenhuma sociedade consegue se reproduzir sem normas
de convivência, nenhum grupo trabalha ou realiza atividades Nas teorias políticas de Maquiavel, Hobbes, Locke e outros,
compartilhadas sem definir algumas regras básicas para assim como na filosofia moderna, com os pensadores Rosseau,
divisão de responsabilidades, sem criar critérios de valor e Kant, Hegel e Marx, compreendemos que o espaço público não
princípios para avaliar seus compromissos. é mais tratado como um lugar do bem comum, mas sim, como
O agente moral coloca em movimento diferentes valores e o lugar onde a liberdade política da cidadania se choca com a
várias orientações de valor, contudo nem todos são morais, luta pelos interesses.
pois pode soar diferente para outras pessoas, como é o caso
das crenças religiosas. Na filosofia moderna, a partir do racionalismo de
Na vida cotidiana, o homem pensa em si e não no coletivo, Descartes, a liberdade foi considerada como eixo central de
quando se responde apenas ao “eu”, interioriza-se valores e investigação filosófica. Posteriormente, Thomas Hobbes,

Conhecimentos Específicos 2
APOSTILAS OPÇÃO

defende a ideia de que o homem é mau e egoísta por sua 2. Platão


natureza ou em suas famosas palavras: o homem é o lobo do Era discípulo de Sócrates e inaugurou uma das matrizes
homem. A partir desse egoísmo natural, os homens teriam que marcam o pensamento filosófico e a cultura ocidental, que
decidido abrir mão de sua liberdade natural originária para é o idealismo filosófico. Com sua teoria das ideias, Platão
viver em sociedade, transferindo seus direitos naturais, responde a problemática posta no seu tempo por Parmênides
através de um contrato. e Heráclito.

No século XVII, o inglês John Locke funda a teoria liberal, Para Platão há dois mundos: o mundo sensível, onde tudo
onde os homens têm direitos naturais, como o direito à vida, à se transforma, é relativo e transitório e o mundo inteligível ou
liberdade, à propriedade. das ideias, onde tudo é perfeito, imutável. No mundo das ideias
existem ondas perfeitas, que nada mais são do que as ideias ou
No século XVIII, Jean-Jacques Rousseau buscou equacionar fundamentos de tudo o que existe no mundo sensível. No
a questão da liberdade, criando uma resposta diversa de seus mundo sensível, encontramos cópias imperfeitas dos modelos
contemporâneos, baseava-se na ideia do contrato social, existentes no mundo das ideias, aqui as coisas se transforma.
porém discordava-se do ponto de vista até então defendido de Para ele, o conhecimento é uma recordação, isso se explica
que os homens eram egoístas por natureza, pois para ele havia através da Alegoria da Caverna, em que o filósofo é como
uma natureza humana boa e generosa. alguém que saiu da caverna escura, em que todos vivem
aprisionados, sem contato com a luz, apenas com a sombra
Karl Marx aponta críticas radicais à sociedade burguesa, projetada na parede.
mostrando que a liberdade e a igualdade prometidas com as
revoluções burguesas não podiam se realizar de forma Luz = verdade
universal. Na Declaração dos Direitos do Homem são Sombra = senso comum
apresentadas liberdades e outros direitos, considerados como
direitos universais, entretanto eles não merecem esses status, 3. Aristóteles
por se verem subordinados à propriedade privada, direito esse Permitiu que pudéssemos refletir sobre questões que
considerado natural e inalienável. perdem a sua atualidade com o decorrer do tempo, portanto é
considerado um dos clássicos, na história da filosofia e da
O projeto político de Marx possui uma ética revolucionária, cultura humana. Dentre as descobertas desse filósofo, vale
que valoriza a sua teoria política da revolução, pois se trata de destacar a concepção de que a ética e a política se tratam se um
uma ética voltada teleologicamente à emancipação humana, saber prático, já que é um tipo de conhecimento de depende da
tendo como base o conceito de riqueza humana. nossa ação, reflexo dos nossos atos.

Façamos um estudo separado dos importantes Para ele, a ética é uma decisão humana acerca do que é
filósofos: possível decidir. A capacidade ética do ser humano é revelada
através de seu conhecimento das paixões e instintos.
1. Sócrates Ele vê o homem como um ser político e social, um ser
Para ele, a filosofia é inseparável do nascimento das racional que pode controlar suas próprias paixões.
cidades gregas, a partir do ano 800 a.C, quando os primeiros
pensadores (pré-socráticos) indagavam sobre a origem do Encontra na virtude, o termo médio entre dois vícios ou
mundo. Anaximandro, Tales de Mileto, Demócrito e extremos. O equilíbrio era um valor para os gregos, que não
Anaxágoras ofereceram diversas respostas que se separavam suas noções de beleza e de ética, entendendo que a
encaminharam para duas linhas de compreensão: vida ética deveria supor uma vida bela e harmoniosa.

- a linha de Heráclito de Éfeso - filósofo que defendia que 4. Tomás de Aquino


tudo muda, de que o mundo está em constante transformação. Elaborado por Tomás de Aquino com o objetivo de
Para ele, o fogo é o princípio do mundo. oferecer uma interpretação racional às verdades da revelação,
o tomismo ou filosofia aristotélico-tomista é um sistema
Frases famosas de Heráclito: “Não nos banhamos duas filosófico-teológico em que parte do dogma da existência de
vezes no mesmo rio”. Deus é tratado como fim último da existência humana.

- a linha de Parmênides de Eléia – filósofo que defendeu Por isso, a razão humana subordina-se à fé e à revelação.
o princípio da permanência como fundamento do mundo, para Não compete à razão humana demonstrar o que Deus revelou,
ele, as coisas não mudam, permanecem em seus princípios já que esta deixaria de ter sentido, mas a razão pode servir à
fundamentais, imutáveis. fé, demonstrando seus pressupostos, quais sejam: Deus existe,
é uno.
Sócrates, Platão e Aristóteles buscaram instituir uma
forma de conhecimento capaz de superar o conhecimento São Tomás defendia que existia uma lei eterna que governa
empírico e de se distinguir por sua fundamentação rigorosa. todo universo e se encontra na mente divina e da qual decorre
Sócrates entende que a filosofia não ensina a verdade, apenas uma lei natural. Da lei eterna decorrem as leis divinas e as leis
ajuda a revelá-la humanas, as divinas são reveladas aos homens, sendo justas e
A filosofia de Sócrates consistia na garantia do necessárias.
aperfeiçoamento do sujeito por meio de seu Defendia a existência de três espécies de lei: eterna ou
autoconhecimento. Assim, um dos princípios metodológicos e divina, natural e humana e a lei moral.
éticos deste filósofo era: conhece-te a ti mesmo.
Mais do que ensinar as pessoas que encontrava pela rua, Quando se obedece às leis morais, os homens realizam sua
Sócrates opunha-se à democracia ateniense e concebia a ética essência, aproximando-os de Deus. Isto acontece porque como
como um conhecimento crítico e político. as leis morais são derivadas de Deus, tratam-se de leis
Foi acusado de corromper os costumes e condenados à humanas que são voltadas ao bem e contam com a confirmação
morte. dada pela revelação que determina as virtudes e deveres
derivados do Bem Supremo.

Conhecimentos Específicos 3
APOSTILAS OPÇÃO

O conceito da pessoa humana é fundamental para a ou da lei moral e do mundo empírico. Ele considera os homens
filosofia cristã, pois permite identificar todos os homens a uma como seres históricos, sendo determinados pela cultura e
essência comum – Deus, princípio e fim da existência humana instituições sociais, como é o caso da família.
e fonte da dignidade de todo ser humano.
Hegel entende que a liberdade é possível apenas na
Em contrapartida às virtudes, a ética cristã tem como base sociedade burguesa e o Estado é a instância de efetivação da
os pecados capitais que determinam quais os vícios, como por liberdade e da universalidade concreta, remetendo à eticidade
exemplo os sete pecados capitais. ou moralidade objetiva.

5. Jean Jacques Rousseau 8. Jean-Paul Sartre


A problemática enfrentada por Rosseau está contida entre Sua filosofia é inseparável da sua vida, no contexto do pós
o indivíduo e a sociedade, tendo como suposto o direito à guerra, em Paris. Foi fundador da Revista Tempos Modernos e
liberdade e à igualdade. Para este filósofo, a liberdade é um dedicou-se a várias atividades intelectuais: além da filosofia,
direito natural inalienável, onde os homens nascem livres, se produziu obras de literatura, teatro, escreveu romances,
renunciarem à liberdade estarão renunciando à sua novelas, biografias.
humanidade.
É considerado por muitos um dos três grandes filósofos da
Liberdade e soberania são princípios ético-políticos, sendo liberdade.
que a soberania se fundamenta na vontade geral. A liberdade é o elemento que alimenta a totalidade das
A consciência do dever a tendência ao bem são inatas e não obras sartrianas, revelando-se como eixo de sua vida,
se apresentam como obrigação externa, e sim, como enquanto preocupação filosófica e moral. Em suas obras há
consciência da própria natureza humana, reveladas na conflitos, quando seus personagens precisam fazer algumas
educação como autodeterminação ou autonomia. escolhas, ficando em contradição com a questão da liberdade.
A autonomia nada mais é do que uma decisão interna, uma
lei que vem do coração, com traços da bondade original, Encerrada essa apresentação dos filósofos, passamos a
contudo se corrompeu com o dever de poder parecer, apresentar o modo capitalista de se comportar.
distinguindo-se dos Iluministas, que defendiam que a razão
era fundadora da autonomia. O modo de ser capitalista funda-se em uma sociedade
regida pela mercadoria, que produz comportamentos
6. Immanuel Kant coisificados, expressos na valorização da posse material e
Busca uma resposta ética para o antagonismo entre a espiritual.
defesa da liberdade e a luta por interesses privados. A sua A coisificação das relações humanas transforma escolha,
saída é transcendental, já que sua ética permanece fiel aos capacidades, sentimentos, afetos e valores em objetos de
princípios universais, tornando-se incompatível com a vida desejo e posse. Aqui, inverte-se o valor da existência humana e
empírica. das coisas ao fetichar os objetos, dotando-os de humanidade e
A doutrina do imperativo categórico é baseada no transferindo suas virtudes aos compradores.
princípio da universalidade, onde uma norma é moral quando
pode ser universalizável, quando ultrapassa os casos Coisas materiais se expressam como qualidades humanas,
particulares e os interesses. Para Kant, uma ação só é moral ao que quando consumidas, passam a dar sentido à existência.
ultrapassar os casos particulares e os interesses, apenas fala- Dessa forma, meio e fim da vida humana acabam se
se em ação moral quando se é independente de objetos invertendo, pois as finalidades da existência adquirem o
externos, móveis empíricos. sentido de utilidade enquanto coisas.
Dessa forma, podemos dizer que necessidade e liberdade
se separam, de modo que o mundo empírico compreende o A sociedade burguesa, completamente egocêntrica, sente
espaço da necessidade, enquanto que a liberdade compreende mais necessidade de gastar, não consegue saciar seus desejos
o espaço das ações humanas. facilmente.
O consumo de objetos materiais passar a ser uma exigência
Kant entende que o homem é por natureza, um ser egoísta, de integração social que fornece identidade social,
movido por sentimentos, impulsos, sede de vingança. A satisfazendo carências emocionais. A mercantilização da
vontade não é livre, já que por sermos seres naturais, somos moral é reproduzida pelo indivíduo singular, no âmbito da
submetidos a essas forças que não dominamos, pois se tratam vida cotidiana, por suas tendências já assinaladas por nós.
de forças movidas por leis externas.
O que dizer do conservadorismo moral?
7. Georg W. Friedrich Hegel
Hegel trata da liberdade como uma introdução à alguns Na primeira metade do século XIX, na Europa, viveu-se um
pressupostos de sua compreensão dialética. A dialética, para momento marcado por lutas democrático-populares, que
esse filósofo é constituída tanto do movimento real como do promoveram um rearranjo das forças conservadoras lideradas
método filosófico que permite a sua apropriação nacional. pela burguesia.
A reação conservadora se apresenta como inimiga dos
Todas as coisas são negativas por terem ao mesmo tempo ideais iluministas, sendo que a reação conservadora se
uma realidade imediata, ou seja, o que elas são e o que podem apresenta em finais do século XIX, articulada em torno de
vir a ser. A existência apenas será compreendida quando for tendências românticas restauradoras do passado feudal, que
aprendida em sua negatividade. tem como referência fundamental o pensamento de Edmund
Burke, na Inglaterra.
A negatividade é considerada por ele um componente
ontológico da realidade e do método dialético, pois é um O conservadorismo, como o próprio nome diz,
estado de privação que força o sujeito a procurar remédio. fundamenta-se na valorização do passado, da tradição, da
Seu sistema ético trata do desenvolvimento da cultura e autoridade baseada na hierarquia e na ordem, negando a
das atividades conscientes dos homens. Eis que dessa maneira, democracia, a liberdade, a igualdade, a indústria...
não aceita a separação kantiana entre o campo e a liberdade

Conhecimentos Específicos 4
APOSTILAS OPÇÃO

A estrutura da vida cotidiana tende a ser alienada, porém A Dimensão técnico-operativa do exercício
não é necessariamente alienada, de forma absoluta e imutável. profissional
Existem objetivamente, de acordo com uma série de
determinações, possibilidades de uma vida cotidiana não YOLANDA GUERRA
alienada e de uma vida que tenha uma margem de mobilidade
na qual a cotidianidade possa ser suspensa para dar lugar a Introdução
atividades não alienadas ou menos alienadas.
Parte-se do pressuposto de que o exercício profissional do
Um importante momento revolucionário aconteceu com a assistente social recebendo as determinações históricas,
Revolução Russa e três personagens mereceram destaque estruturais e conjunturais da sociedade burguesa e
para discutir os valores e o ethos socialistas. São eles: Vladimir respondendo a elas consiste em uma totalidade de diversas
I. Lênin, Rosa de Luxemburgo e Anton Makarenko. Cada um dimensões que se autoimplicam, se autoexplicam e se
deles teve uma existência completa, lembrando Goethe. determinam entre si. Tais dimensões, em razão da diversidade
Eles ainda, são representativos de uma práxis político- que as caracteriza, constituem-se como “síntese de múltiplas
revolucionária que se vincula aos ideário socialista, a um determinações”, ou seja, caracterizam-se como unidade de
projeto de emancipação humana teleologicamente orientado elementos diversos, que conforma a riqueza e amplitude que
pelas ideias de Marx, Rosseau, de tantos outros pensadores e caracteriza historicamente o modo de ser da profissão, que se
revolucionários, homens e mulheres que, ao longo da realiza no cotidiano.
humanidade, lutaram e continuam lutando pela liberdade. Estando em sistemático processo de totalização, as
dimensões que conformam a profissão não são formas fixas,
Para Lênin, a moral decorre da consciência de classe, assim tampouco podem ser consideradas de maneira autônoma,
é uma forma ideológica e objetivação, seja em sua configuração mas, ao contrário, são instâncias interatuantes, ainda que
burguesa ou proletária. Desse modo, a construção de uma possa haver, em situações determinadas, na realização de
consciência de classe é também o processo de formação de determinada competência e/ou atribuição profissional, o
uma nova moral, processo que começa a se constituir no predomínio de uma sobre a outra. Tais dimensões, dado o nível
capitalismo. de complexidade da própria realidade social na qual o
Lênin destaca a força moral vinda da solidariedade assistente social atua, bem como das sequelas da chamada
internacional, do Partido e de sua vanguarda, através da questão social, as quais fornecem os objetos de intervenção
incorporação da disciplina e de outros valores morais que a profissional, também se complexificam e se aperfeiçoam, pois
exemplo da honra e da abnegação dão forças para enfrentar as é somente assim que a profissão torna-se capaz de dar
privações materiais. respostas qualificadas às diferentes e antagônicas demandas
que lhe chegam. Apesar do reconhecimento de que as
Eis que os valores disciplina, fidelidade, firmeza, sacrifício, dimensões só existem em relação umas às outras, a dimensão
heroísmo e justiça tem por finalidade a revolução, sendo que o técnico-operativa é a forma de aparecer da profissão, pela qual
moral está entrelaçada com a consciência de classe. é conhecida e reconhecida. Dela emana a imagem social da
Lênin ressalta que a força moral veio da solidariedade profissão e sua autoimagem. Ela encontra-se carregada de
internacional, do Partido e de sua vanguarda, por meio da representações sociais e da cultura profissional. É a dimensão
incorporação da disciplina e de outros valores morais, que a que dá visibilidade social à profissão já que dela depende a
exemplo da honra e da abnegação dão forças para enfrentar as resolutividade da situação, que, às vezes, é mera reprodução
privações materiais. do instituído, e outras, constitui a dimensão do novo. Não é
supérfluo lembrar que a dimensão técnico-operativa vela a
Feitas essas considerações, podemos concluir que esta dimensão político-ideológica da profissão, como aquela pela
obra tem por objetivo situar essas mediações sob o ponto de qual o Serviço Social atua na reprodução ideológica da
vista do serviço social, da ética e da política, com as lutas e sociedade burguesa ou na construção da contra-hegemonia. O
conquistas enfrentadas pelos assistentes sociais. que se pretende enfatizar é que a intervenção de natureza
Estudou-se o pensamento crítico e uma ética que pretende técnico-operativa não é neutra: ela está travejada da dimensão
ser orientada através do pensamento de Marx, já que a reflexão ético-política e esta, por sua vez, encontra-se aportada em
ética tem como origem a filosofia. Não se deve esquecer da fundamentos teóricos, donde a capacidade de o profissional
contribuição e Aristóteles e Hegel para o conhecimento ético vir a compreender os limites e possibilidades não como algo
da humanidade. interno ou inerente ao próprio exercício profissional, mas
como parte do movimento contraditório constitutivo da
A profissão serviço social tem fundamentos e mediações própria realidade social.
éticas e políticas, cujas determinações históricas se dão
através da demanda que se lhe põem, como profissão Não obstante, a dimensão técnico-operativa, que se
socialmente necessária e legitimada na divisão social do constitui no modo de aparecer da profissão, como profissão
trabalho. interventiva no âmbito da chamada “questão social”, a qual
esconde seus fundamentos econômicos e políticos, apesar de
Do ponto de vista dos valores éticos e dos princípios necessária, se considerada de maneira autônoma, é
políticos, o Código baseia-se em um projeto profissional insuficiente para dar respostas qualificadas à realidade social.
democrático, que tem como fundamentos: Refletir sobre esta dimensão, suas possibilidades e limites no
- a liberdade como valor ético central e as demandas a ela contexto das respostas às demandas e requisições sócio
inerentes: emancipação, autonomia; profissionais presentes na realidade social e a racionalidade
- a democracia; que lhe é conexa é nosso objetivo.
- a equidade e a justiça social;
- o pluralismo; 1. O Serviço Social na divisão sócio técnica do trabalho:
- a não-discriminação. resultado de múltiplas determinações
Referências:
Pela forma de inserção sócio profissional na divisão social
BARROCO SILVA, Maria Lúcia. Ética – Fundamentos Sócio e técnica do trabalho, o espaço reservado ao Serviço Social,
históricos. 3ª Edição. São Paulo, Cortez, 2015. como um ramo de especialização do trabalho coletivo, é o de

Conhecimentos Específicos 5
APOSTILAS OPÇÃO

dar respostas, buscar prontamente soluções à pluralidade de sujeitos (Netto, 1996a) - apoiam-se em um projeto de
questões que lhes são colocadas, para o que necessita de sociedade, em um conjunto de proposições teóricas, em
fundamentos teórico metodológicos, conhecimentos e saberes valores e princípio éticos e dão uma determinada direção
interventivos, habilidades técnico profissionais, estratégica à intervenção profissional.
procedimentos teórico- metodológicos e de uma perspectiva
ética com clara orientação estratégica. É a sua inserção na Assim, a definição sobre o que e como fazer, tem que ser
divisão social e técnica do trabalho da sociedade capitalista, articulada ao porque fazer (significado social da profissional e
sua localização na estrutura sócio-ocupacional e a sua sua funcionalidade ou não ao padrão dominante), ao para que
funcionalidade na sociedade burguesa, construída no espaço fazer (indicando as finalidades/teleologia do sujeito
de mediação entre classes e Estado, que atribui à intervenção profissional) e ao com o que fazer: com que meios, recursos e
um caráter político. através de que mediações ou sistema (s) de mediações.
Na realização das suas atribuições sócio profissionais, o Nesta perspectiva de se entender as dimensões que dão
profissional intervém através das políticas e/ou serviços forma e conteúdo à profissão, há que se considerar que elas só
sociais, na criação de condições favorecedoras da reprodução se realizam no espaço do cotidiano, e por isso encontram neste
da força de trabalho ocupada e excedente, a partir das formas peculiar espaço sua explicação racional, donde a necessidade
de regulação social capitaneadas pelo Estado burguês, cuja de interpretá-lo à luz de uma teoria que seja capaz de revelar
natureza contraditória é permeável aos interesses da classe como se constitui este espaço, de que modalidade de
e/ou segmentos da classe trabalhadora. intervenção ele demanda, que dimensões devem ser acionadas
em resposta aos seus desafios.
O exercício profissional como parte do trabalho coletivo
produzido pelo conjunto da sociedade, opera a prestação de 2. Características do cotidiano e as dimensões da
serviços sociais que atende a necessidades sociais e reproduz profissão
a ideologia dominante. No atendimento dos objetivos
imediatos, a dimensão técnico-operativa é mobilizada. Sua Estamos considerando que há uma relação intrínseca entre
instrumentalidade11 está na “resolutividade”, ainda que a dinâmica do cotidiano e uma modalidade de intervenção
apenas momentaneamente e em nível imediato, das demandas sócio-profissional que requisita ações instrumentais.
apresentadas. A legitimidade social de uma profissão Como uma das esferas da vida social, o cotidiano é o lugar
encontra-se nas respostas que ela dá às necessidades da reprodução dos indivíduos, sendo por isso um espaço
histórico-sociais num determinado tempo e espaço. ineliminável e insuprimível. Diz Heller: “A vida cotidiana é a
É na realização da dimensão técnico-operativa da vida de todo homem. (...) Ninguém consegue indentificar-se
profissão que o assistente social legitima e constrói uma com sua atividade humano-genérica a ponto de poder
determinada cultura, um ethos profissional. É através da desligar-se inteiramente da cotidianidade (1989, p. 17). No
dimensão técnico-operativa que o assistente social articula um cotidiano os homens tanto adquirem quanto exercitam os seus
conjunto de saberes, recriando-lhes, dando-lhes uma forma conhecimentos, as suas habilidades, ideias, sentimentos (idem,
peculiar e constrói um “fazer” que é socialmente produzido e ibidem), de modo que, “é adulto quem é capaz de viver por si
culturalmente compartilhado ao tempo em que os vários atos mesmo a sua cotidianidade” (idem, p. 18).
teleológicos dos profissionais resultam na criação/renovação
de novos modos de ser desta cultura. Neste sentido afirmamos que, não obstante a se considerar
o cotidiano como uma mediação elementar entre o particular
É no desenvolvimento da dimensão técnico-operativa que e o universal, pelas suas características, pela sua estrutura, ele
o profissional constrói; reproduz códigos de orientação e um limita as possibilidades de os homens se concentrarem
conjunto de valores e normas. Esta cultura profissional, como inteiramente nas atividades que realizam, tendo em vista suas
indicou Netto (1996) incorpora objetos, objetivos, valores, características:
racionalidades, técnicas, instrumentos, conhecimentos,
teorias. 1. heterogeneidade: as demandas do cotidiano são
Apesar da sua relevância, a tematização da dimensão essencialmente diversas, o que exige do sujeito que oriente sua
técnico-operativa tem sido negligenciada pela atual produção atenção total às mesmas. Dada a esta diversidade, a vida
acadêmica, pela formação profissional e pelo debate da cotidiana ocupa integralmente a atenção dos sujeitos;
categoria, daí considerarmos necessário resgatá-lo dando-lhe 2. espontaneidade: é a “característica dominante da vida
o merecido espaço na cena contemporânea. Tal lacuna se cotidiana” (Heller, 1989:29). Em razão desta característica, os
explica (mas não se justifica) pelo receio de incorrer nos sujeitos se apropriam de maneira espontânea (e naturalizada)
velhos ranços do Serviço Social tradicional. Visando enfrentar dos costumes, dos modos e comportamentos da sociedade,
este debate penso que o melhor caminho é aquele que busca donde sua capacidade de reproduzir as motivações
questionar as possibilidades e limites da dimensão técnico- particulares e as
operativa frente às atribuições e competência sócio-
profissionais e políticas dos assistentes sociais, indicando a 3. imediaticidade: as ações desencadeadas na vida
necessária articulação desta dimensão com as demais cotidiana tendem a responder, fundamentalmente, às
(teórico-metodológica, ético política, investigativa e demandas imediatas da reprodução social dos sujeitos;
formativa), buscando estabelecer uma unidade entre as
múltiplas e diversas dimensões da profissão. 4. superficialidade extensiva: considerando as
Partimos da premissa de que para atender às necessidades características das demandas do cotidiano, os sujeitos acabam
próprias do cotidiano da vida dos sujeitos que buscam os por encaminhá-las de maneira superficial, dado que a
serviços e as políticas sociais, o nível de instrumentalidade da prioridade da vida cotidiana está em responder aos fenômenos
dimensão técnico-operativa da profissão é suficiente. Tais as na sua extensão e amplitude e não na sua intensividade, ou
respostas instrumentais, dadas pelos assistentes sociais, as seja, o cotidiano dificulta o esforço intenso, concentrado e
quais atuam sobre determinado nível da realidade - o da contínuo.
alteração de algumas variáveis do contexto da vida dos

1 Lembro que a instrumentalidade da profissão depende


daadequadautilização dos meios orientada aos fins visados. Como diz Chauí: Fins
éticos exigem meios éticos (Chaui, 1994, p. 339)

Conhecimentos Específicos 6
APOSTILAS OPÇÃO

Tais características adquirem particularidades no necessariamente que operar uma modificação na situação, nos
cotidiano profissional dos assistentes sociais. A aspectos objetivos e/ou subjetivos. Para o que o profissional
heterogeneidade se expressa através das diversas e tem que manipular algumas variáveis de contexto (Netto,
antagônicas demandas com as quais trabalhamos2. 1991). Refere-se, portanto, a forma pela qual a profissão
responde ao atendimento das necessidades sociais,
Outra característica da cotidianidade profissional é a condicionadas que são pelo contexto social (pelas dimensões
espontaneidade. Dado que as demandas que são colocadas ao do espaço e do tempo), donde a particularidade operatória da
profissional e apreendidas de maneira imediata e de maneira profissão.
quase irrefletida, o exercício profissional passa a se restringir Dadas a estas características, nem sempre nos
ao cumprimento de rotinas institucionais, metas de perguntamos sobre as implicações éticas e políticas de tais
produtividade, critérios de elegibilidade e o profissional passa respostas, nem sobre o espaço de autonomia que nos reserva
a responder mecanicamente no âmbito das determinações da este mesmo cotidiano, menos ainda sobre as novas
instituição. perspectivas que nos são dadas ao acionarmos a dimensão
Ao espontaneismo alia-se a imediaticidade, enquanto uma investigativa, pois que nos chega como demanda é a solução
das formas de intervir sobre o cotidiano, reforçando um tipo (ainda que restrita, parcial, temporária, pontual, fragmentária)
de resposta que tenha em si mesmo certa resolutividade e que da problemática apresentada, tratada como objeto de
expresse uma utilidade (bem ao gosto do pragmatismo) no intervenção, e não o conteúdo, a qualidade, as implicações
âmbito da reprodução social, ou seja, na reprodução dos éticas e políticas e/ou a possibilidade das respostas
sujeitos individuais e coletivos e das formas de sociabilidade profissionais.
hegemônica do mundo burguês. Do cotidiano também emana Isso porque na vida cotidiana o pragmatismo na ação e no
um determinado tipo de ação que tem como característica a pensamento tornasse imperativo, posto que ela:
superficialidade extensiva, tendo em vista também o tipo de
demandas que a ele se apresenta. Tendo como determinações “requisita dos indivíduos respostas funcionais as situações
tais características, do cotidiano emana uma positividade tal que não demandam o seu conhecimento interno, mas tão
que se confunde com a realidade em si. Tal positividade foi somente a manipulação de variáveis para a consecução de
exemplarmente demonstrada por Kosik (1976) que a trata resultados eficazes —o que conta não é a reprodução veraz do
como “pseudoconcreticidade”. processo que leva a um desfecho pretendido, porém, o desfecho
Isso porque é no cotidiano — tanto dos usuários dos em si” (Netto, 2000, p.68 – grifos meus).
serviços quanto dos profissionais — no qual o assistente social
exerce sua instrumentalidade, que imperam os imediatismos. Aqui comparece em toda sua ex pressão a dimensão
O imediatismo como uma característica própria do cotidiano, técnico-instrumental, a qual, apartada das demais dimensões,
que implica na ausência de apreensão das mediações, só pode torna-se presa fácil do pragmatismo.
ser enfrentado através desta via: da apreensão das mediações Ocorre que o nível do cotidiano é o nível do senso comum.
que constituem os processos sociais e os vinculam a outros, já Para a consciência comum, que atua nas demandas do
que estes só se explicam no seu movimento de constituição, na cotidiano, a atividade prática contrapõe-se à teoria, ou, como
sua historicidade e na relação com os outros processos que se se costuma ouvir, na prática a teoria é outra. Esta passa a ser
movimentam numa perspectiva de totalização. considerada desnecessária ou como um entrave à prática,
compreendida como sinônimo de atividade, resultando na
A dinâmica, as requisições e as condições objetivas sobre prática irrefletida.
as quais a intervenção se realiza não são as mais adequadas à A prática irrefletida (e somente ela), que analisa e intervém
reflexão, donde muitos profissionais se limitam a realizar suas no cotidiano profissional, que não ultrapassa o nível da
tarefas. Mas o cotidiano profissional também não facilita a imediaticidade do cotidiano, que responde às necessidades da
percepção das demais dimensões da profissão. Tudo se passa mera reprodução individual, estabelece uma radical distância
como se o exercício profissional fosse isento de teoria, de uma entre a elaboração teórica e a intervenção profissional. Ao
racionalidade, da necessidade de se indagar sobre a realidade, mesmo tempo em que opera uma ruptura entre meios e fins,
de valores éticos e de uma direção política e social. fortalece a concepção de que não importam os meios, desde
Dadas as características acima mencionadas, o cotidiano que os fins sejam alcançados. Assim, do fato de, no âmbito do
profissional é pleno de requisições de cumprimento de cotidiano, nosso conhecimento estar voltado para as
normas, regulamentos, orientações ou decisões de superiores necessidades práticas, o pragmatismo infere que a verdade
os quais impõem ao profissional a necessidade de respostas às depende da utilidade, adequação e funcionalidade das
mesmas. respostas aos fins buscados: o verdadeiro é o útil44.
Neste contexto, a prioridade é de responder aos
fenômenos não importa como, disto resultando um conjunto Reduzir o fazer profissional à sua dimensão técnico-
de respostas profissionais rápidas, ligeiras, irrefletidas, instrumental significa tornar o Serviço Social meio para o
instrumentais, baseadas em analogias, experiências, senso alcance de quaisquer finalidades.
comum, desespecializadas, formais, modelares, em obediência Tendo como critério de verdade o êxito, a eficácia da ação
a leis e superiores, sem a qualificação necessária para prática do homem, a correspondência do pensamento com
distingui-las de respostas atribuídas por leigos33. seus resultados, o alcance dos objetivos, a profissão fica
É inegável que o Serviço Social é uma profissão restrita a uma de suas dimensões: a dimensão técnico-
fundamentalmente operativa. instrumental. Ela é necessária para garantir a eficácia e
O que dá esse caráter instrumental à profissão, para além eficiência operatória da profissão - a sua razão de ser - ou o
do espaço que ocupa na divisão social e técnica do trabalho, é espaço ocupacional na divisão social e técnica do trabalho.
o tipo de resposta dada à sociedade: resposta que tenha

2 Tendo em vista esta determinação do cotidiano, nem sempre é feita a 4 Gostaria de insistir que toda ação, estando os sujeitos conscientes ou não,

distinção entre as diversas demandas presentes na intervenção, dentre as quais, é sempre teleológica e orientada por formulações teórico-metodológicas
a demanda imediata, mediata, aparente, real, institucional, do usuário, da (racionalistas ou irracionalistas, materialistas ou idealistas, conservadoras,
profissão, urgente, emergente. modernizadoras ou revolucionários) que nos direcionam à manutenção da
3 Fica evidente a indistinção entre prática profissional e ação social, tal como ordem social ou à sua transformação.
a profissão no Brasil, na sua trajetória profissional, equivocadamente, tem sido
concebida, em razão do seu vínculo histórico com a Igreja Católica.

Conhecimentos Específicos 7
APOSTILAS OPÇÃO

É usual na vida cotidiana a requisição de respostas profissional nos procedimentos teórico- metodológicos
funcionais. Esta é a esfera da vida social mais propensa à escolhidos e nas finalidades a serem alcançadas, de outro,
alienação, tendo em vista os mecanismos e demandas de quando um profissional atua apenas na base da confiança ele
hierarquia, imitação, espontaneismo, probabilidade, desconsidera qualquer referência que transcenda o nível da
pragmatismo, economicismo, o uso de precedentes, juízos sua individualidade. A confiança, porque fundamentada em
provisórios, mimese, ultrageneralização, alguns dos quais crenças e certezas a priori, muitas vezes induz o profissional a
serão desenvolvidos a seguir (Cf. Heller, 1994). uma apreensão imediata e viciada da realidade e a
Na dimensão técnico-instrumental, procedimentos de procedimentos que se supõem inquestionáveis. A confiança
ultrageneralização, com base na experiência, na empiria, com evita a dúvida, o questionamento, a negação do dado fixo, que
vistas à manipulação de variáveis do contexto dos usuários são são elementos fundamentais para se apreender o real em toda
frequentemente adotados pelos assistentes sociais. Tais sua dinâmica e processualidade. Por isso, a confiança muitas
procedimentos pautam-se em uma forma de captar a realidade vezes induz a crenças e superstições, assim como induz a
e de intervir sobre ela. algumas certezas que não correspondem aos fatos. De outro
modo, diz Heller:
Nesta forma, a centralidade nas experiências anteriores
obscurece o que a realidade em questão apresenta como novo. “quando – num dado momento da vida cotidiana – o
Baseia-se nos pressupostos teórico-metodológicos de indivíduo começa a refletir acerca de uma superstição que
estender os resultados da observação de alguns casos ao compartilhava, ou de uma tese que assimilou da integração de
conjunto dos casos possíveis, comum ao método positivista. que faz parte, passando a supor que nem uma nem a outra são
Estes procedimentos carregam a contradição, pois, se de um aceitáveis porque contradizem a experiência, e, logo após,
lado, são fundamentais para nos permitirem tal orientação, começa a examinar o objeto posto em questão comparando-o
ainda que básica, na interpretação da realidade, por outro, são com a realidade, para terminar recusando-o, em tal momento, o
nefastos no que diz respeito a conhecer as particularidades de referido indivíduo elevou-se acima do decurso habitual do
determinadas situações, posto que pressupõem que os pensamento cotidiano, ainda que apenas em tal momento”
resultantes de uma determinada situação, produto de (idem, 34, grifos meus).
determinada experiência, possam ser validados para todas as
demais. Também é comum no cotidiano a apreensão da realidade
Ao adotarmos os procedimentos de ultrageneralização no por analogia, buscando categorizar e tipificar os objetos,
exercício profissional não nos atentamos para os supostos sujeitos e processos sociais por comparação entre as
teórico-metodológicos que estão presentes neste semelhanças e diferenças. Considerando que no contexto da
procedimento. Este procedimento pressupõe o “bem vida cotidiana “temos que subsumir o singular, de modo mais
conhecido”, ou seja, que já conhecemos as situações e que este rápido, sob alguma universalidade; temos de organizá-lo em
conhecimento pode ser validado para outros casos, negando a nossa atividade, no conjunto de nossa atividade vital
natureza dialética tanto do ser quanto do conhecimento sobre cotidiana” (idem, p. 35), Heller nos indica que neste
os ser - os quais encontram-se em permanente processo de procedimento recorre-se à analogia, a qual tem o papel de nos
constituição.Hegel nos diz: orientar. Aqui podemos comparar os fatos, situações atuais
“O bem-conhecido em geral, justamente por ser bem- com outras já vividas, pessoas, buscando suas semelhanças.
conhecido, não é reconhecido. É o modo mais habitual de Porém, para um exercício profissional qualificado, faz -se
enganar-se e de enganar os outros: pressupor no conhecimento necessário que o assistente social, a partir da analogia
algo como já conhecido e deixá-lo tal como está” (HEGEL, 1999, (utilização de procedimentos iguais, por supor que as
p. 37). situações sejam semelhantes, o que pressupõe a comparação
de situações diferentes) adote o procedimento de negá-las,
Este procedimento considera, ainda, o sujeito como mero concebendo que a situação contempla muito mais
receptáculo do fato social que lhe é anterior, exterior e determinações do que as expressas na mera aparência do
superior (Cf. Durkheim, 1984). Esse sujeito contido nesta similar, de modo que a questione e a transcenda, dirigindo-se
pressuposição estaria recebendo o conhecimento sem ao conhecimento da realidade como totalidade concreta,
interagir com ele, posto que com base nestes pressupostos, interpretando e analisando a situação historicamente dada.
trata-se de um sujeito abstrato, a-histórico, imutável, mero
receptor dos fatos sociais. Na afirmação a seguir residem os Outros dois procedimentos próprios do cotidiano que
limites do pensamento e da ação cotidianos: condicionam o exercício profissional e, muitas vezes,
empobrecem a dimensão técnico-instrumental são: o uso dos
“o pensamento cotidiano orienta-se para a realização de precedentes no conhecimento das situações e a imitação. O
atividades cotidianas e, nessa medida, é possível falar de primeiro significa que já existem exemplos e estudos sobre as
unidade imediata de pensamento e ação na cotidianidade (quer situações que podem ser levados em consideração na
dizer, sem que se apreendam as mediações, YG). apreensão do novo. Ora, uma coisa é o assistente social
conhecer o estado da reflexão e da produção teórica a respeito
As ideias necessárias à cotidianidade jamais se elevam no da situação na qual ele se encontra, dos objetos sobre os quais
plano da teoria, do mesmo modo como a atividade cotidiana sua ação incide; conhecer a experiência e os estudos
não é práxis. A atividade prática do indivíduo só se eleva ao anteriores; a outra é considerar as experiências precedentes
nível da práxis quando é atividade humano-genérica como o modelo para a intervenção na realidade naquele
consciente, unidade viva e muda de particularidade e momento histórico.
genericidade, ou seja, na cotidianidade, a atividade individual O segundo tipo de procedimento problemático na
não é mais do que uma parte da práxis, da ação total da profissão é a imitação: agimos em razão do conhecimento e das
humanidade, que construindo a partir do dado, produz algo experiências anteriores, do comportamento de outros, de um
novo, sem com isso transformar em novo o já dado. “(Heller, padrão que deu certo em situações anteriores ou para outros
1989, p. 32, o grifos são meus -YG). sujeitos. Agimos à base da imitação de outras situações e
experiências (nossas ou de outros).
Outro procedimento que é recorrente tanto na Ambos os procedimentos podem ser superados
cotidianidade quanto na sua suspensão momentânea é a dialeticamente no próprio exercício profissional (trata-se
confiança. Se, de um lado, faz-se necessária a confiança do daquela superação que questiona e se lança a um nível

Conhecimentos Específicos 8
APOSTILAS OPÇÃO

superior) pela dimensão investigativa, que exige a pesquisa momentaneamente em uma atividade e tendo naquele
concreta de situações concretas. A busca pelo novo, momento a sua individualidade subsumida por interesses
procedimento da razão dialética, tanto em termos do particulares, ainda que, ao final, nem sempre redunde no
conhecimento quanto da ação, enfrenta tais procedimentos estabelecimento de vínculos com o gênero humano.
no/do cotidiano, constituindo-se como o antídoto à mera Não obstante a dimensão técnico-instrumental ser a mais
reprodução e manutenção da mesmice. atingida pelos procedimentos próprios da cotidianidade, as
Também na dimensão formativa estes procedimentos se demais dimensões também são atravessadas por eles.
colocam como entraves, por exemplo, na realização de uma O pensamento e a ação do cotidiano afetam
supervisão que se baseie nas questões concretas da realidade profundamente a dimensão teórico-metodológica, mas, ao
concreta. mesmo tempo, contém as suas possibilidades.
Ora, se podemos conceber, orientados por Heller, que não
há cotidiano sem estes procedimentos, de outro lado, afirma A presença dos fundamentos do pragmatismo
esta autora, “as formas necessárias da estrutura e do atravessando a ciência moderna, a utilização de analogias,
pensamento da vida cotidiana não devem se cristalizar em remetem a aplicação da teoria à realidade. Cabe, pois, aos
absolutos, mas tem de deixar ao indivíduo uma margem de profissionais preparados o papel de desvelar a realidade
movimento e possibilidade de explicação” (1989, p. 37). partindo da analogia, mas transcendendo-a. Aqui, há que se
reconhecer os limites e possibilidades do conhecimento
Muitos profissionais se ressentem de não identificar qual é acumulado. Este não deve se constituir em modelo, fôrma ou
a teoria que os orienta, o que os leva a negar a sua existência guia imediato para a ação.
na perspectiva de considerar que “na pratica a teoria é outra” O conhecimento sobre os fundamentos é essencial para
(a este respeito ver: Guerra, 1995; Forti e Guerra, 2009 e desvelar e submeter à crítica o senso comum.
Santos, 2010). A dimensão teórico-metodológica nos capacita para operar
Aqui há que se considerar que o cotidiano profissional se a passagem das características singulares de uma situação que
realiza pela inserção do assistente social na execução terminal se manifesta no cotidiano profissional do assistente social para
das políticas sociais, cujo formato limita ou potencializa a sua uma interpretação à luz da universalidade da teoria e o retorno
ação profissional. Neste sentido, o padrão atual de políticas a elas. O conhecimento adquirido através deste movimento
sociais privatista, mercantilista e assistencialista, que possibilita sistematizações e construções teórico-
fragmenta, segmenta e setoriza as necessidades e categorias metodológicas que orientam a direção e as estratégias da ação
sociais, predispõe um tipo de intervenção: pontual, focalizada, e da formação profissional (dimensão formativa), bem como
imediata, burocrática, miméticas, repetitiva, pragmática e permite aprofundar os fundamentos teóricos que sustentam
eminentemente instrumental, exigindo pouca qualificação as intervenções profissionais.
para responder às demandas imediatas, condicionando o Tal dimensão tem que ser articulada à dimensão
exercício profissional às características e dinâmica do investigativa. Esta é uma mediação fundamental, posto que
cotidiano e se limitando a ele. Além disso, a ausência de permite uma revisão dos fundamentos técnicos, teóricos e
precisão entre necessidade e demanda, a indeterminação da ético-políticos que orientam a profissão, conduzindo seu
distinção entre as demandas que polarizam a intervenção avanço no sentido de que aponta tendências e permite uma
profissional, acrescida da insuficiência de recursos, do corte antecipação, a reconstituição de objetos de intervenção, a
nos orçamentos das políticas sociais, da redução da ação do apreensão de demandas emergentes, a reconfiguração das
Estado na implementação das mesmas, da descontinuidade e demandas: ela é a dimensão do novo. É através desta dimensão
constante mudança nas diretrizes políticas (porque ficam à que se pode fazer a crítica ontológica do cotidiano. A dimensão
mercê das flutuações e interesses da política econômica ou do investigativa permite também a produção de conhecimentos
que está em conformidade com a acumulação/valorização do voltados para os interesses dos setores populares que são os
capital), enseja os procedimentos mais adequados ao modo de usuários das instituições as quais nos vinculamos.
ser do cotidiano. Aqui, a dimensão técnico-operativa tende a se
restringir ao simples cumprimento de normas, regulamentos, Ora, sabemos que sua inserção na divisão social e técnica
objetivos institucionais, papéis já estabelecidos, respostas pré- do trabalho da sociedade capitalista, sua localização na
concebidas no âmbito da política social estatal, ou, ao estrutura sócio-ocupacional das políticas sociais e a
contrário, pode se constituir no espaço da análise concreta de construção de sua funcionalidade no espaço de mediação entre
situações concretas, posto que na vida cotidiana há sempre, as classes sociais e o Estado franqueiam à intervenção um
como já dito, uma “margem de movimento e possibilidade” caráter político. Dada a esta dimensão da profissão, o
(idem, ibidem). profissional redimensiona o alcance e estabelece os limites da
intervenção, bem como o estatuto das suas técnicas, objetos e
Por isso, não obstante a esta tendência de mera repetição objetivos. É também nesse contexto, forjado pela forma como
do cotidiano, há os profissionais que mesmo não retornando à o Estado capitalista implanta e implementa as políticas sociais,
universidade, tem uma intervenção social, militância política e no enfrentamento das expressões da chamada questão social,
até partidária, e nesses contextos refletem sobre sua pratica que os assistentes sociais - trabalhadores assalariados - serão
profissional. Estes são momentos de suspensão com o os responsáveis por facilitar ou não o acesso da população aos
cotidiano profissional, de elevação e estabelecimento de serviços sociais (tendo em vista manter a força de trabalho
vínculos humano-genéricos, condições de possibilidades para apta para a produção e reprodução do sistema).
a genericidade. Pode não analisá-la do ponto de vista O reconhecimento social da profissão está na capacidade
acadêmico, mas pensa-a em termos de relevância social, de do profissional em modificar algumas variáveis do contexto
suas implicações sócio-politicas, de modo a ter claro valores e social dos usuários, buscando alterá-lo, ainda que
princípios bem como o projeto de sociedade que o orienta. momentaneamente (Cf. Netto, 1996a, p. 93). Aqui, a prática
Os sujeitos profissionais na realização de suas profissional é resultante da adequação entre a mobilização de
competências e atribuições5 detêm a possibilidade de recorrer informações prescritas nas leis e outros dispositivos jurídico-
ao procedimento de suspensão temporária do cotidiano, pela formais que regulamentam as políticas sociais, identificados,
via do processo de homogeneização, concentrando-se total e equivocadamente, como “teorias”, e da sua efetivação, através

5 Relativas à Lei 8662/93 que dispõe sobre a profissão de assistente social

e dá outras providências, a qual contempla as habilidades, competências e


conhecimentos necessários à profissão. Ver CRESS-7ª. Reg. 2006.

Conhecimentos Específicos 9
APOSTILAS OPÇÃO

da execução de atividades vinculadas a planos, programas e investigativa. Para tanto, um conjunto de conhecimentos,
projetos, identificadas como prática profissional, cujos competências, saberes práticos e interventivos, habilidades e
resultados paliativos somente adiam e deslocam a contradição valores se colocam, no sentido de serem desenvolvidos do
geradora da chamada questão social, permitindo a ponto de vista prático-profissional, visando a inserção do
manutenção e reprodução das suas expressões. Assim, como assistente social no mercado de trabalho. Dentre estas
considera Iamamoto (1997): habilidades estão: a compreensão do significado social e
histórico da profissão no contexto das transformações
“o assistente social é solicitado não tanto pelo caráter societárias, apreendendo como na particularidade sócio-
propriamente técnico especializado de suas ações, senão, antes profissional incidem tais transformações; o desenvolvimento
e basicamente, por suas funções de cunho educativo, sócio-histórico da profissão tendo em vista os contextos e
moralizadora e disciplinador (...) o assistente social aparece conjunturas nacionais e internacionais; a identificação das
como profissional da coerção e do consenso, cuja ação recai em demandas e requisições sócio-profissionais e políticas, as
um campo político." (Iamamoto, 1997, p. 145). distinguindo entre demandas institucionais, do usuário e da
profissão, a formulação de respostas profissionais de conteúdo
Não obstante a estas determinações que configuram a critico que sejam capaz de problematizar as propostas
dimensão política da profissão, na qual o Serviço Social se integradoras, reformista, modernizadoras e restauradoras,
constitui como uma das técnicas ou tecnologias sociais, não se dentre elas o anti-capitalismo romântico; a capacidade de
pode subestimar o papel do sujeito. Toda intervenção propor, formular, executar e avaliar programas, projetos e
profissional é uma ação teleológica que implica uma escolha políticas sociais na área social, identificando seus limites e
consciente das alternativas objetivamente dadas e a possibilidades concretas; a capacidade de contribuir para a
elaboração de um projeto no qual o profissional lança luzes organização e mobilização dos usuários; a realização de
sobre os fins visados e busca os meios que, a seu juízo, são os pesquisas que subsidiem a formulação de indicadores, de
mais adequados para alcançá-los. Toda intervenção encontra- políticas sociais bem como que qualifiquem a intervenção
se imbuída de um conjunto de valores e princípios que profissional; a competência para desenvolver atividades de
permitem ao assistente social escolher. É no cotidiano supervisão, assessoria e consultoria a instituições pública,
profissional, tenha consciência ou não, que o assistente social privadas e juntos aos movimentos sociais em matéria
se depara com demandas e interesses contraditórios e com um relacionada às políticas sociais e à garantia dos direitos civis,
leque de possibilidades, o que lhe permite exercitar a sua políticos e sociai s da coletividade; dentre outras (Cf. Diretrizes
autonomia, que sempre será relativa6. Ao fazer suas escolhas, Básicas para a formação profissional e Lei de Regulamentação
no que se refere às finalidades estabelecidas e aos meios da Profissão, ABESS, 1997). Com base nestes conhecimentos e
(condições, instrumentos e técnicas) para alcançá-las, que capacidades pode-se avaliar a importância da dimensão
resposta dar e em que direção, o assistente social exerce sua formativa num contexto de aligeirame nto da educação7.
dimensão ético-política, a qual preocupa-se com os valores (de Foi dito que nas Diretrizes Básicas da Formação
que valem as respostas dadas) e com a direção social das Profissional a relação entre dimensão interventiva e dimensão
mesmas (que conjunto de forças está sendo contemplado nas investigativa constitui-se em um dos princípios organizativos
respostas). Mas não o faz sem conflitos éticos que são próprios da formação e exercício profissionais, de modo que ela tem no
dos homens e mulheres que partilham desta experiência estágio supervisionado um espaço privilegiado, embora não o
contraditória de viver no mundo burguês. único. Este espaço de formação, por se tratar do cotidiano
Assim posta a questão temos que a dimensão ético-política, profissional, se constitui das características próprias do
teórico-metodológica e investigativa se interpõem e se cotidiano aqui evidenciadas. Porém, é necessário que pela
articulam estreitamente à dimensão técnico-instrumental, já dimensão8
que a realização desta exige o conhecimento mais correto formativa a experiência de estágio permita a capacitação
possível das finalidades, dos resultados, das condições de estudantes para investigar o campo, analisá-lo
objetivas sobre as quais a ação incide, dos meios e das criticamente, problematizar o contexto sócio-institucional e o
possibilidades de realização e dos valores a eles subjacentes. significado sócio-histórico do trabalho profissional;
Portanto, o conhecimento advém da análise da realidade e, por desenvolver sua capacidade argumentativa e vislumbrar as
isso, tanto precede quanto acompanha a intervenção. Nesta estratégias de enfrentamento e resistência9.
concepção, o conhecimento não se constitui em receituário da Aqui se coloca a necessidade de utilização de instrumentos
prática profissional, tampouco esta pode se confundir com a e de procedimentos que possibilitem a apreensão da realidade
realidade social ou com um conjunto de atividades empíricas. para além da imediaticidade. Apenas para citar alguns: a
Aqui, a relação teoria e prática como unidade do diverso, a pesquisa e análise permanente e sistemática da instituição,
escolha dos meios (o método, as técnicas e os instrumentos) a que tem que ser relacionada com uma análise histórica da
serem utilizados pelo profissional e das mediações que ele conjuntura à luz dos aspectos estruturais e das determinações
deverá acionar na sua intervenção, se dará em função das universais do capitalismo, elaboração do plano de estágio e de
condições objetivas e de suas finalidades e os instrumentos, um projeto de intervenção, o investimento em atividades de
técnicas e estratégias serão estabelecidas no interior do registro e sistematização da prática. Estes constituem-se em
projeto profissional6, o que exige uma formação profissional procedimentos e habilidades indispensáveis a serem
qualificada. desenvolvidas no espaço do estágio.

A dimensão formativa referenciada nas Diretrizes Básicas Com estas reflexões pretendeu-se demonstrar que o
da Formação Profissional dos Assistentes Sociais brasileiros exercício profissional configura-se pela articulação de
tem, dentre seus princípios organizativos, a articulação dimensões e se realiza sob condições objetivas e subjetivas
orgânica entre a dimensão interventiva e a dimensão historicamente determinadas, as quais estabelecem a

6 Diz Lukács que toda práxis social, “é uma decisão entre alternativas” donde “Ensino” à Distância, sobre os quais não me é possível aprofundar. Para uma
pode-se inferir que as práticas profissionais, como uma dimensão menos discussão sobre a configuração atual da formação profissional e seus impactos
desenvolvida desta, também o são. na cultura profissional, ver Guerra, in: Revista Serviço Social e Sociedade n. 104,
7 Essa forma de compreender os meios interdita qualquer possibilidade de 2010.
se pensar em modos de operar definidos a priori, por meio de modelos ou 9 É essadinâmica do cotidiano que tem parametrizado a vida social como

tipologias de diagnóstico e de intervenção. um todo, incidindo sobre a configuração da formação profissional na qual os
8 Refiro-me à Universidade operacional e ao profundo processo de sujeitos envolvidos se adaptam aos imediatismos, facilitismos, volatilidade,
precarização do ensino, que tem como sua mais alta expressão o chamado rapidez, flexibilidade, na qual há o predomínio da razão instrumental.

Conhecimentos Específicos 10
APOSTILAS OPÇÃO

necessidade de a profissão responder às demandas da controle da ordem social, bem como sua particularidade de
sociedade através de requisições sócio profissionais e atuar diretamente nas sequelas engendradas pela exploração
políticas, delimitadas pela correlação de forças sociais que do trabalho pelo capital. É o caráter operativo-instrumental do
expressam os diversos projetos de sociedade e se refratam nos Serviço Social, o tipo de demanda e a modalidade de
projetos profissionais. atendimento a ele atribuída - a necessidade de que a profissão
Assim considerado o exercício profissional vê-se que ele venha a dar tanto respostas em nível das necessidades
incide no cotidiano das classes sociais na busca da sua imediatas quanto àquelas que modificam imediatamente as
modificação, ainda que em caráter emergencial, imediato, variáveis do contexto social promovendo resultados, ainda
pontual e relativo, não alcançando as determinações que imediatos, pontuais, superficiais - que mantém a
estruturais, resultando na reincidência da demanda, que em impressão (que é mera aparência e, como tal, necessária) de
geral são remetidas à responsabilidade dos próprios sujeitos. que o acervo técnico-instrumental possibilita ao Serviço Social
Há, portanto, uma funcionalidade dessa prática profissional ao um estatuto de profissão, e, consequentemente, nele se
padrão de produção e reprodução social, insistimos, tenha o localizaria a “especificidade” do Serviço Social1313 frente às
assistente social consciência ou não. práticas caritativas de assistência e ajuda ao próximo,
É na realização das suas atribuições e competências que a desenvolvidas por indivíduos movidos por uma necessidade
dimensão técnico-operativa não apenas se explicita como pessoal de justiça social e em face das outras profissões. Mas,
aparece de forma autonomizada das demais. concorre ainda para o descolamento da dimensão técnico-
operativa das demais dimensões o fato de que o referencial
Não obstante, todo fazer precisa de um conhecimento ídeo-cultural e teórico-metodológico que a informa, conectado
existente e requisita um novo conhecimento. Necessita de um com necessidades instrumentais, não vai além delas. As
conjunto de pressupostos e orientações não apenas de demandas cada vez mais instrumentais exigem uma
natureza teórica, mas, também baseado em outros tipos de racionalidade também instrumental e teorias que respondam
saberes instrumentais e na experiência, que nem pode ser a elas; e mesmo quando se pretende a utilização das teorias
descartada tampouco venerada. Necessita, também, de sociais clássicas, estas são convertidas em teorias de resultado
componentes valorativos que permitam a escolha dentre as (Guerra, 1995).
alternativas concretamente existentes, e tudo isso dará a É evidente que há varias concepções de Serviço Social em
direção social do exercício profissional que nem é neutro nem disputa no interior da categoria, as quais se articulam com
tem caráter finalístico. Por isso, ainda que se trate de uma projetos profissionais e de sociedade. Da forma de conceber a
profissão eminentemente (mas não exclusivamente) profissão infere-se suas funções sociais, o seu que fazer. Neste
interventiva, cabe resgatar a natureza teórica e investigativa âmbito, podemos perceber que na imagem social da profissão,
das atribuições privativas e competências profissionais10, de bem como na sua autoimagem, há uma clara incorporação da
modo que o Serviço Social tem se apropriado das ciências noção (equivocada) de Serviço Social como Técnica Social ou
sociais (muitas vezes de maneira eclética) e daí retirado e Tecnologia (conjunto de técnicas) destinada a solucionar
reformulado um conjunto de “modos de operar” necessários à problemas imediatos no sentido de administrar conflitos,
concretização de suas ações. Pela própria natureza da adaptar indivíduos ao meio e construir a sociabilidade
profissão corremos o risco de tributar a nossa competência à adequada às necessidades e interesses da ordem burguesa.
utilização de procedimentos técnico-operativos Como dito, para tanto, a razão instrumental é suficiente. Neste
superdimensionando o papel e o lugar do instrumental- âmbito, conhecimentos e valores acabam sendo subsumidos
técnico profissional. Com isso estamos reeditando uma ao fazer imediato do assistente social, o que os tornam reféns
tendência denominada de metodologismo, que, criticada da razão instrumental.
desde a década de 70, se recicla através dos anos. Ainda mais, Por se tratar de mera aparência, este tipo de explicação
corremos o risco de incorrer no oportunismo acerca do que legitima o Serviço Social como profissão é
teóricometodológico, ou seja, lançar mão de um referencial insuficiente, havendo, pois, que se passar da mera aparência e
teórico eclético, com o argumento de que somente assim se apanhar a totalidade: as racionalidades enquanto formas de
pode responder à complexidade e ao sincretismo da ser, pensar e agir dos processos sociais e das práticas
realidade11. profissionais. Dito de outro modo, é preciso conhecer por
Cabe refletir sobre quais as razões que contribuem para dentro a racionalidade do capitalismo14, a qual tem nas teorias
que os assistentes sociais atribuam aos instrumentos e as positivistas15 as premissas e os argumentos para sua
técnicas de intervenção profissional o estatuto de legitimidade justificação, sendo responsável tanto pela apreensão da
da profissão? O que faz com que as (mal) chamadas realidade como “pseudoconcreticidade”, pelo enrijecimento
“metodologias de ação” e o instrumental técnico-operativo na forma, na aparência da realidade, pela fragmentação entre
sejam concebidos como variável dependente do seu “suposto” as profissões interventivas e as intelectuais, bem como,
estatuto científico12? conforme mencionado, pela falsa concepção de Serviço Social
Pelo que estamos demonstrando, a nosso modo de ver, a como técnica de resolução de problemas e de mudança
resposta encontra-se na própria natureza do Serviço Social: comportamental.
sua inserção na divisão social e técnica do trabalho como Ao problematizar a dimensão técnico-operativa, o
profissão fundamentalmente interventiva esconde o seu assistente social pode refletir sobre o tipo de racionalidade
verdadeiro significado sócio-histórico como profissão que, na
ordem burguesa, se constitui em uma das estratégias de

10 Cf. a Lei 8662/93, mencionada na nota 3. intervenção e/ou no estatuto de suas técnicas e não no que, de fato, legitima as
11 Chamo a atenção para o avanço das teorias sistêmicas, numa reedição profissões na divisão sociotécnica do trabalho: a existência de demandas
sofisticada do neopositivismo, presente nas novas e antigas formulações das histórico-sociais institucionalizadas e na capacidade das profissões de
políticas sociais, do que decorre a utilização de metodologias de trabalho com responderem a elas (Cf. Netto, 1996a).
famílias, dentre outras, apoiadas na falsa argumentação de eficácia e eficiência 13 A este respeito ver Montaño, 2007.

técnica. 14 Por racionalidade do capitalismo estamos entendendo a racionalidade


12 Não cabe neste espaço a retomada da discussão sobre a relação intrínseca predominante que está subjacente às formas de ser, pensar e agir na ordem
e equivocada que os profissionais estabelecem entre o estatuto teórico- social capitalista. Ela possui duas características fundamentais: o formalismo e a
metodológicos e o estatuto profissional, aliás, original e brilhantemente abstração. Ela é a lógica necessária à manutenção da ordem social.
realizada por Netto na obra publicada em 1992, a qual nos serve como referência 15 Cito as que mais exercem influência no Serviço Social: a sociologia

neste ensaio. O que entendemos ser necessário é situar o leitor nas positivista, o estrutural funcionalismo, a teoria sistêmica, o estruturalismo, o
consequências de se considerar que o fundamento de existência de uma pragmatismo, o neopositivismo lógico.
profissão supostamente reside no sistema de saber que referencia sua

Conhecimentos Específicos 11
APOSTILAS OPÇÃO

acionada tendo em vista sua instrumentalidade16. Pode Nesta perspectiva, o perfil de assistente social é o do
identificar, por exemplo, no cotidiano profissional, a lógica técnico adestrado que se limita à racionalidade do capitalismo
fordista e gerencial expressa nas políticas sociais através da e a aplicação acrítica de técnicas e instrumentos sem a clareza
adoção acrítica dos critérios da racionalidade instrumental, dos fins a que sua intervenção visa, menos ainda do projeto
muitas vezes assumidos de maneira imperceptível e profissional que implementa.
inconsciente. Essas passam a ser analisadas segundo uma A formação profissional se caminhar nesta direção de se
lógica pragmática e produtivista que conforma valores: restringir ao atendimento do modelo de política social
rentabilidade, alcance de metas de produtividade, eficácia e assistencializada, da qual a PNAS é exemplar, corre o risco de
eficiência como critérios para referenciar a análise e se limitar a formar profissionais que dominam as técnicas, os
intervenção no cotidiano da vida dos usuários. Dentre as instrumentos, as habilidades do “como fazer”, pautada na
diversas expressões desta racionalidade podemos identificar a justificação das demandas do mercado de trabalho e na
tendência de classificar e categorizar a condição social dos concepção de que trata-se de uma profissão voltada à mudança
sujeitos, para serem inserido em uma das políticas/programas comportamental e às atividades emergenciais. Corre-se o risco
sociais fragmentadas, a qual demandará a utilização de de investir na formação de um profissional que aparentemente
instrumentos específicos (no “eterno retorno” as práticas de sabe fazer, mas não conhece o significado social deste fazer,
caso, grupo, comunidade). Essa racionalidade também se suas implicações éticas e políticas, seus resultados ou a
reflete, muitas vezes, na utilização do instrumental tradicional, ausência deles, de modo que corre-se o risco de o assistente
especialmente nas entrevistas e nas visitas domiciliares, na social ser reduzido a um mero ‘técnico’, delegando a outros as
medida em que ao utilizar estes instrumentos o profissional atribuições e competências que lhe são próprias.
adota um perfil fiscalizador. A nosso ver, há uma hipertrofia da
racionalidade instrumental-burocrática na atual configuração Por outro lado, temos vivenciado o total descaso e
das políticas sociais, as quais acabam sendo implementadas abandono da discussão sobre a questão da instrumentalidade,
pela via de procedimentos formais-abstratos. da racionalidade da técnica, do alcance na utilização de
Desvendar a estrutura do cotidiano é um procedimento instrumentos, estratégias e táticas de natureza técnica e
intelectivo necessário para problematizar a concepção política. Ao negligenciar a técnica e não dimensionar
instrumental da intervenção profissional - compreendida adequadamente o lugar, o papel e o alcance do instrumental
como um conjunto de técnicas e procedimentos metodológicos técnico-operativo no contexto do projeto ético-político
- e a de cotidiano, como o lugar onde se “aplica” a teoria, de profissional corre-se o risco de o assistente social não realizar
modo a questionar a premissa de que o Serviço Social se as suas competências em responder às demandas que a
realiza mediante uma prática “tecnificada” ou “teorizada”. sociedade lhe coloca por absoluta falta de conhecimento dos
meios e mediações a serem mobilizadas para tal.
A questão que se coloca é saber: Quais os riscos de Parece-me que o que nos falta tanto no exercício quanto na
proceder a uma análise endógena da profissão, analisando formação profissional é assegurar a unidade das dimensões da
suas dimensões a partir de si mesmas? No que resulta uma profissão, garantindo a autonomia das mesmas sem, contudo,
análise que autonomiza as dimensões da profissão autonomizá-las, na perspectiva de manter, por meio de
privilegiando umas sobre outras? múltiplas mediações, a unidade do diverso. Concordando com
Iamamoto (1998) estou convencida de que “é necessário
3. De volta ao ponto de partida formar um profissional versado no instrumental técnico-
operativo, capaz de realizar ações profissionais, aos níveis de
Foi dito que é no cotidiano profissional que as dimensões assessoria, planejamento, negociação, pesquisa e ação direta,
da profissão se atravessam, se entrecruzam, mas também se estimuladoras da participação dos usuários na formulação,
confrontam, a todo momento, conformando uma unidade de gestão e avaliação de programas e serviços sociais de
elementos diversos e, ainda, que há momentos em que uma qualidade” (p. 144). É necessário investir em estratégias e
dimensão se sobrepõe à outra. táticas socioeducativas de organização e mobilização dos
Considerou-se também que a profissão não se explica por sujeitos com os quais trabalhamos na perspectiva de que eles
si mesma, e, por isso, necessita da análise lógica do estágio do se organizem como sujeitos coletivos. Estamos cientes de que
desenvolvimento do capitalismo, das relações sociais, do do direcionamento dado a formação profissional resultará ou
modelo de Estado, da condição da política social, em especial não numa capitulação à razão instrumental.
da política de assistência social, já que pelo modelo adotado ela Por isso penso ser necessário ao profissional acionar uma
vem condicionando um exercício profissional que fica restrito racionalidade que permita desenvolver uma
à aplicação de normas vinculadas a administrar a concessão de instrumentalidade inspirada na razão dialética, que seja capaz
benefícios, rotinas, baseado em critérios seletivos, de construir novas competências e legitimidades, que permita
quantitativos e condicionalidades, em uma racionalidade da ao profissional dar novas respostas qualificadas em oposição
calculabilidade, em procedimentos formais, manipulatórios. as tradicionais respostas instrumentais, de maneira
Tais ações, absorvem o exercício profissional convertendo-o e comprometida com valores de uma sociedade emancipada.
o reduzindo a um conjunto de ações instrumentais, visando
fins imediatos. Aqui, as ações exemplares são as que se Referências Bibliográficas
relacionam com a implementação do BPC, averiguação do
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realização de entrevistas, concessão de benefícios, dentre CRESS 7ª. Reg. Assistente social: ética de direitos.
outras atividades. Coletânea de Leis e Resoluções. 4ª. Ed. Rio de Janeiros: CFESS,
2006.

16 Instrumentalidade considerada como a capacidade que a profissão permite-lhes modificar as condições causais/objetivas de surgimento e
adquire, ao longo de sua trajetória sóciohistórica, de alcançar os objetivos existência da profissão na ordem burguesa madura e sua funcionalidade a ela.
propostos, de se materializar em resultados, donde advém seu reconhecimento Por isso, a instrumentalidade se refere à adequação meios e fins (Cf. Guerra,
social. Cabe enfatizar que tal capacidade, fruto do fazer dos assistentes sociais, 2000).

Conhecimentos Específicos 12
APOSTILAS OPÇÃO

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Barbosa e Flávio R. Kothe. (Livro I, Vols. 1 e 2. São Paulo: Nova configurações e necessidades advindas do mercado de
Cultural, 1985 (A e B). trabalho. As tendências de mudanças do espaço profissional
estariam condicionadas pela redução da demanda de

Conhecimentos Específicos 13
APOSTILAS OPÇÃO

atividades, pelo imbricamento entre novas e tradicionais profissional, à medida que colocam em movimento ações
demandas dentro de um universo muito mais complexo e pautadas nas competências e atribuições privativas do
heterogêneo de usuários. Para o autor, o enfrentamento dessas Assistente Social nos diferentes espaços sócioocupacionais.
questões se faria através da construção de novas Ao debater as competências e atribuições dos Assistentes
competências, e não pela perspectiva corporativa, isso sem Sociais presentes na Lei 8.662/1993, que serve de base para o
ignorar as exigências do mercado. Porém, as respostas seriam instituto legal da profissão no Brasil, Iamamoto (2001)
diferentes quando considerados os projetos profissionais reafirma que tais competências e atribuições não podem ser
coexistentes. desvinculadas dos processos sócio-históricos, mas devem ser
Nessa perspectiva, o neoconservadorismo tenderia a consideradas no trato das novas demandas profissionais e do
incorporar as demandas do mercado como determinantes da redimensionamento do espaço profissional decorrentes das
formação profissional, enquanto a direção social estratégica, configurações da sociedade contemporânea: a “radicalização
construída no início dos anos de 1990, conectaria as das desigualdades”, as múltiplas disparidades, a primazia do
sinalizações do mercado à análise crítica macrossociocultural capital financeiro e a recessão econômica mundial que
e aos valores e objetivos da profissão. O primeiro projeto imprimem transformações significativas nas relações Estado-
tenderia a priorizar a referência “instrumental-operativa”, e o Sociedade. As demandas profissionais e o reordenamento do
segundo estaria pautado no investimento, na pesquisa e na espaço profissional estão intrinsecamente atrelados aos
apropriação da teoria social moderna, de modo a buscar processos de reestruturação produtiva que envolvem a
alternativas e a definir prioridades. No quadro das desregulamentação do trabalho e a organização dos
transformações societárias típicas do capitalismo tardio, das trabalhadores, bem como estão marcados pelas lutas políticas
demandas do mercado de trabalho e da cultura profissional, travadas entre projetos societários antagônicos.
dentre as projeções realizadas por Netto (1996, p. 124) para a Dentro desse quadro, o reajuste curricular realizado, no
profissão, está a indicação “da necessidade de elaborar ano de 2000, pelo curso de Serviço Social da Universidade
respostas mais qualificadas (do ponto de vista operativo) e Federal de Santa Catarina (UFSC), apresentou desafios
mais legitimadas (do ponto de vista sociopolítico) para as significativos aos professores responsáveis pela
questões que caem no seu âmbito de intervenção operacionalização da proposta elaborada. Tal reajuste estava
institucional”. relacionado ao Núcleo de Fundamentos do Trabalho
Com isso, o autor sinaliza que “as possibilidades objetivas Profissional e impôs uma nova lógica de formação profissional.
de ampliação e enriquecimento do espaço profissional [...] só As demandas advindas do processo de ensino referente ao
serão convertidas em ganhos profissionais [...] se o Serviço exercício profissional, e o desenvolvimento de um projeto de
Social puder antecipá-las”. Ele indica, ainda, que tais pesquisa sobre as ações profissionais dos Assistentes Sociais
possibilidades tenderão a estar permeadas “por tensões e têm-nos levado a refletir intensamente sobre o tema e a
conflitos na definição de papéis e atribuições com outras esboçar propostas que possam contribuir para o
categorias socioprofissionais”. aprofundamento da discussão em torno da dimensão técnico-
Essas afirmações têm sido corroboradas, de maneira geral, operativa da profissão e dos desafios que esse movimento
por Assistentes Sociais de diferentes países da América Latina. coloca no âmbito da formação profissional (MIOTO;
Alguns enfatizam os impactos das transformações do mundo NOGUEIRA, 2003).
do trabalho no Serviço Social;17 outros discutem a intervenção Por isso, o presente artigo apresenta-se como produto de
profissional na sua vinculação com a questão social;18 e outros um processo investigativo construído a partir da pesquisa
defendem a necessidade de uma discussão sobre o tema, não bibliográfica, da observação da prática dos assistentes sociais
somente a partir de uma perspectiva externa, mas, também, e do processo de ensino-aprendizagem em disciplinas
interna à profissão.19 ministradas em cursos de graduação em serviço social. A
Portanto, mesmo tomando como ponto de partida a experiência com a Residência Multiprofissional em Saúde da
realidade brasileira, acreditamos que propor a reflexão sobre Família também merece ser mencionada pela frutífera
a dimensão técnico-operativa20 do Serviço Social, através do interlocução interdisciplinar sobre o aprendizado in loco.
estudo das ações profissionais, pode contribuir com o debate
latino-americano e fomentá-lo. A dimensão técnico-operativa do Serviço Social em foco:
No Brasil, os marcos indicadores da importância desse sistematização de um processo investigativo Revista Textos &
debate explicitaram-se no final da década de 1990, através do Contextos Porto Alegre v. 8 n.1 p. 22-48. jan./jun. 2009 Este
processo de reflexão desencadeado e coordenado pelo artigo trata especificamente de focar a dimensão técnico-
Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), a partir dos operativa da profissão, através das ações profissionais, sem
problemas enfrentados por agentes fiscais e pelas Comissões perder de vista a articulação com as dimensões
de Fiscalização (COFIs) para identificação das competências teóricometodológicas e ético-políticas, além do debate
profissionais e para a distinção das atribuições privativas do presente e já consolidado no âmbito do Serviço Social. Ele
assistente social. Essas reflexões também foram promovidas pretende auxiliar o estudante de Serviço Social a compreender
através das Oficinas Nacionais de Formação Profissional o universo de trabalho do Assistente Social de forma orgânica
propostas pela Associação Brasileira de Ensino em Serviço e integrada, de modo a dimensionar as ações profissionais no
Social (ABESS) e Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa contexto das construções teórico-éticas da profissão na
em Serviço Social (ABEPSS), visando à implementação das contemporaneidade.
novas diretrizes curriculares, cujo eixo central reside no Essa proposta implica enfrentar três grandes desafios. O
trabalho profissional (CADERNOS ABESS 7, 1997; CADERNOS primeiro consiste na articulação entre a dimensão
ABESS 8, 1998; TEMPORALIS 1, 2000; CFESS, 2002). Tais macrossocietária referente ao reconhecimento do terreno
debates demonstram o caráter vital que o exercício sóciohistórico sobre o qual a profissão se movimenta, e à
profissional adquire como espaço revelador do projeto dimensão profissional que compreende as respostas técnico-

17 Sobre esta discussão, consultar: BENITO, L. S.; CHINCHILLA, M. M. 19 Sobre essa perspectiva, ver LÓPEZ, P. A. V. Que implica pensarse la

Flexibilización laboral y desprofesionalización del Trabajo Social. CD-Rom profesión hacia dentro, sin perder de vista el afuera? CD-Rom Seminário de
Seminário de Trabajo Social. Costa Rica, 2004. Trabajo Social. Costa Rica, 2004.
18 Para aprofundar este debate, consultar PAGAZA, M. R. La intervencion 20 A dimensão técnico-operativa, de acordo com as diretrizes curriculares

profesional em relaciòn a la cuestion social: escenarios emergentes e estratégias para os Cursos de Graduação em Serviço Social no Brasil, propostas pela
de intervención. CD-Rom Seminário de Trabajo Social. Costa Rica, 2004. Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), forma,
junto com as dimensões teórico-metodológicas e ético-políticas, o pilar da
formação profissional para o exercício da profissão dos assistentes sociais.

Conhecimentos Específicos 14
APOSTILAS OPÇÃO

profissionais dos Assistentes Sociais (IAMAMOTO, 1999). O Assistentes Sociais reside em um conjunto de fatores que as
segundo refere-se ao rompimento com as clássicas dicotomias tornam altamente variáveis, imprevisíveis e sujeitas a
entre a dimensão teórico-metodológica e a dimensão técnico- contínuas transformações. Dentre esses fatores estariam: os
operativa (teoria versus prática), entre o individual versus o tipos de demandas que requerem modalidades operativas
coletivo e outras mais. Finalmente, no âmbito da formação flexíveis e personalizadas; a quantidade e a
profissional, o rompimento com a ilusão de que a apropriação multidimensionalidade dos problemas sociais dos quais
dos conteúdos das disciplinas de Fundamentos da Vida Social sempre emergem novas demandas e necessidades; a
e Fundamentos Sócio-Históricos da Sociedade Brasileira multiplicidade de contextos institucionais em interação com
combinadas com a apropriação dos instrumentos técnico- os seus constantes conflitos de competências e coordenação; a
operativos é suficiente para o estudante e para o próprio incerteza em relação aos recursos devido à grande variação da
Assistente Social realizarem as mediações necessárias ao seu disponibilidade dos recursos públicos; e a complexidade das
processo de trabalho. Isso significa adotar a perspectiva respostas somada à incerteza sobre seus efeitos, dado o
dialética, rompendo com as tradicionais lógicas lineares de grande número de variáveis intervenientes e da dificuldade
pensamento. em controlá-las.
Estamos cientes dos riscos que corremos ao realizar uma Aliado a esses fatores que estão articulados, pode-se dizer
proposta dessa natureza, e consideramos a sua incompletude que o processo interventivo não se constrói a priori, ao
e os problemas ainda não resolvidos, dos quais é portadora. contrário, faz-se no seu próprio trajeto, e essa construção não
Porém, a decisão de publicá-la parte do desejo de suscitar depende só do Assistente Social, mas também dos outros
o debate em torno do campo operativo da profissão e da crença sujeitos envolvidos, dentre eles, o espaço sócio-ocupacional no
que a produção teórica hoje existente no Serviço Social e o qual o profissional está inserido e os destinatários das ações
amadurecimento do debate permitem-nos enfrentar a questão nele desenvolvidas. Dessa forma, as ações se revestem de
do “fazer profissional” com uma consistência teórico-ética inúmeras características que dificultam a sua própria
ímpar. Esta proposta pretende enfrentar, sem reduzir a apreensão e composição em termos de organização e
dimensão técnico-operativa, ao universo das estratégias e produção do trabalho e do conhecimento.
técnicas e espera contribuir para o fortalecimento da Esse quadro permite entender que o movimento que tem
identidade profissional em que está calcada, sido realizado está sobre um terreno movediço e inexplorado,
fundamentalmente, na sua dimensão interventiva. Diante da apesar dos reconhecidos esforços da profissão e dos avanços
diversidade de espaços sócio-ocupacionais dos assistentes produzidos sobre o exercício profissional, especialmente nos
sociais e das diferentes formas de apropriações possíveis últimos anos. Para Iamamoto e Carvalho (1982, p. 80-81),
nesses espaços, essa identidade, muitas vezes, aparece de [...] a existência de uma relação singular no contato direto
forma díspar e “irreconhecível” entre si e em relação à com os usuários – “os clientes” – [...] reforça um certo espaço
profissão.21 para atuação técnica, abrindo a possibilidade de se reorientar
a forma de intervenção, conforme a maneira de se interpretar
A dimensão técnico-operativa do Serviço Social em foco: o papel profissional. A isso acresce outro traço peculiar ao
sistematização de um processo investigativo Revista Textos & Serviço Social: a indefinição ou fluidez do “que é” ou “do que
Contextos Porto Alegre v. 8 n.1 p. 22-48. jan./jun. 2009 faz” o Serviço Social, abrindo ao assistente social a
bagagem teórica acumulada ao enraizamento da profissão na possibilidade de apresentar propostas de trabalho que
realidade” sem reduzir esse debate ao tecnicismo. ultrapassem meramente a demanda institucional. Tal
Para tanto, este artigo tem como base o material característica apreendida, às vezes, como estigma profissional,
bibliográfico e empírico da pesquisa, no qual, no primeiro pode ser reorientada no sentido de ampliação de seu campo de
momento, realizam-se algumas observações sobre o tema em autonomia, de acordo com a concepção social do agente sobre
pauta com o intuito de caracterizar o problema. Na sequência, a prática.
faz-se referência aos elementos que norteiam a construção de Nessa condição é que se busca delinear a questão da
uma resposta desejada para ele e segue-se para a discussão da dimensão técnico-operativa. A partir de algumas observações
ação profissional como uma chave importante para desvendar realizadas nos campos da produção bibliográfica e do exercício
o fazer profissional, e também a forma como ele se articula no e da formação profissional, é possível constatar que o debate
contexto do atual projeto. Finalmente, discutem-se algumas em torno da operatividade do Serviço Social tem se
contribuições decorrentes da sistematização realizada. caracterizado pela escassez, quando comparado às dimensões
teóricometodológicas e ético-políticas, e sobre o próprio
1 A dimensão técnico-operativa: observações campo de incidência do Serviço Social (as políticas sociais e os
analíticas direitos de forma geral) (IAMAMOTO, 1999; SIMIONATO,
2004). Além disso, importantes estudos sobre o exercício
Discutir a dimensão técnico-operativa do Serviço Social profissional demonstram a sua desconexão com o atual
implica reconhecer a sua complexidade dada pela diversidade projeto profissional.22
de espaços sócio-ocupacionais nos quais os profissionais
transitam e pela própria natureza das suas ações nos Os textos produzidos sobre as questões técnico-operativas
diferentes âmbitos do exercício profissional, como, por têm, de maneira geral, se concentrado na discussão das bases
exemplo, a proposição e formulação de políticas sociais, o do projeto ético-político e na necessidade de transformação da
planejamento, gestão e articulação de serviços e programas intervenção profissional, mencionando apenas nas suas
sociais, ou o atendimento direto aos usuários em diferentes últimas páginas os processos de construção das ações
instituições e programas sociais (MIOTO, 2000). profissionais. Essa postura, ao privilegiar a sua adesão às
Toso (1998) afirma, enfatizando o âmbito da atenção transformações estruturais, à discussão da garantia dos
direta aos usuários, que a complexidade das ações dos direitos e à luta pelo acesso aos serviços, não tem abordado em

21 No percurso de nossa pesquisa, encontramos discursos de profissionais sociais em hospitais do Rio de Janeiro; a análise de Guerra (2000) que demonstra
que, ao se alinharem à determinada área de intervenção, não se identificavam na como tem prevalecido, no contexto da prática profissional, a lógica da razão
sua prática com colegas que operavam em outras áreas. Afirmavam, em seus instrumental; e as observações de Sant‟Ana (2000) no estudo sobre a prática
discursos, que não estavam “fazendo Serviço Social”, dada a natureza das profissional de assistentes sociais em instituições públicas e privadas que
funções que desempenhavam no momento. atendem crianças e adolescentes.
22 Nesse sentido, dentre várias obras, destacam-se as seguintes: a pesquisa

realizada por Vasconcelos (2002) sobre as práticas profissionais dos assistentes

Conhecimentos Específicos 15
APOSTILAS OPÇÃO

profundidade o conjunto de conhecimentos específicos que tradicionais da profissão (ex.: levantamento socioeconômico,
circundam o “fazer profissional” e que poderiam qualificar as encaminhamentos) de forma mais ou menos atomizada em
ações dos assistentes sociais. relação ao projeto profissional.
Nos campos da produção bibliográfica e do exercício A consequência significativa de privilegiar “indicadores
profissional, observa-se que a abordagem da intervenção externos” é o fortalecimento daquilo que pode ser chamado de
profissional realiza-se pelos diferentes sujeitos a partir dos “perspectiva de área”, bem como, a fragilização do debate
indicadores: (a) dos espaços sócio-ocupacionais que se sobre a dimensão técnico-operativa que é comum a todas as
diferenciam desde a natureza desses espaços (públicos ou áreas. No momento em que há a “filiação” por áreas, parece
privados), até as próprias instituições (judiciárias, prevalecer a tendência de um eterno descrever das ações dos
hospitalares, de creches) (DE MARCO, 2000; ANDRADE, 2000; Assistentes Sociais a cada novo espaço ocupacional que se
SOUSA, 2000; CESAR, 1999; PAZ, 1999; COUTO, 1999); (b) das abre.23
funções tradicionalmente desempenhadas pelos assistentes Além disso, parece obstruir também as possibilidades de
sociais, tais como, parecer social, plantão social, levantamento discussão entre os profissionais que, embora exerçam a
socioeconômico (SARMENTO, 2000; SILVA 2000); (c) de profissão em áreas diferentes, desenvolvem ações de uma
classificações a partir da sistematização ou análise das ações mesma natureza. Por exemplo, o Assistente Social que trabalha
que estão sendo realizadas em áreas de inserção do Serviço com Conselhos de Direitos na área da Criança e do Adolescente
Social – exemplo importante disso é a pesquisa de Costa teria possibilidades muito maiores de adensar a discussão
(2000) na área da saúde; (d) das diferentes políticas sociais teórico-metodológica, aprofundando as reflexões sobre o
(saúde, habitação, assistência social) (VASCONCELOS, 2000; “fazer profissional”, com colegas que também trabalham em
BRAVO 1996); (e) da população-alvo da atenção do assistente Conselhos de Direitos na área da Seguridade Social do que com
social, como idoso, mulheres, crianças e adolescentes. profissionais que trabalham no atendimento de adolescentes
Particularmente, no campo do exercício profissional, além em cumprimento de Medida socioeducativa.
dos indicadores destacados, encontramos outro: a definição do
exercício a partir dos instrumentos técnico-operativos A segunda observação é de natureza semântica. No
(entrevistas, relatórios, encaminhamentos, visitas contexto da profissão, os Assistentes Sociais utilizam
domiciliares, etc.). Esse assunto pode ser facilmente verificado denominações diferentes para nomear ações de uma mesma
na pesquisa feita pelo conjunto CFESS/CRESS, em 2002, sobre natureza, e, uma mesma denominação para nomear ações de
as atribuições e competências das(os) Assistentes Sociais. naturezas diferentes. Isso foi evidenciado anteriormente
Também no campo do exercício profissional, outra forma através do exemplo do termo orientação.
de caracterizar o “fazer profissional” é nomear a ação Finalmente, a terceira observação relaciona-se, por um
profissional como orientação. Orientação tem se caracterizado lado, a certa tendência de dar como óbvios os fundamentos ou
como um termo genérico que não indica, a priori, a natureza os conteúdos das ações profissionais, encarando a realização
da ação que se quer desenvolver. de certas ações como rotina, e acreditando na existência de um
Por exemplo, em um mesmo campo de intervenção, como consenso sobre elas; por outro, a prevalência de certa
a saúde, a orientação às famílias de dependentes químicos indistinção relacionada às ações que, por serem revestidas de
reveste-se de um caráter diferente da orientação sobre mesmo caráter, são realizadas sem as distinções necessárias
planejamento familiar, pois demandas diferentes remetem a quando são desenvolvidas em espaços diferentes e com
objetivos específicos diversos e, por isso, implicam um objetivos diferentes, para atender demandas diversificadas.
conjunto de conhecimentos também específicos que requerem Em ambos os casos, naturalizam-se as ações ao tomá-las como
procedimentos metodológicos diferentes. Significa dizer que óbvias dentro de uma rotina institucionalizada da profissão,
definir apenas como orientação a interferência realizada pelo ou sem distingui-las em termos de objetivos e determinações
Assistente Social, sem discutir o campo ao qual a ação está relacionados aos espaços sócio-ocupacionais e às demandas
vinculada, os seus objetivos e os instrumentos dessa postas pelos usuários aos assistentes sociais. O debate teórico
orientação, não permite o aprofundamento do debate sobre a em torno delas acaba atravancado, e, consequentemente,
especificidade da ação à luz do objeto da profissão e do projeto ocorre o empobrecimento da própria ação. As ações
ético-político. Tal indistinção leva, ainda, o profissional a ter socioeducativas podem ser tomadas como um exemplo de tais
dificuldades no âmbito do diálogo e na construção de ocorrências.
propostas interdisciplinares. As ações socioeducativas, apesar de amplamente
Observa-se que, na ânsia de qualificar as suas ações, o reconhecidas como estruturantes do Serviço Social,24 no
Assistente Social acaba procurando formação em outras áreas cotidiano do exercício profissional, são definidas, na melhor
profissionais, o que, muitas vezes, o leva a aderir das hipóteses, apenas em relação à direção dada pelo projeto
epidermicamente a determinados modelos teóricos sem ético-político. Não é incomum, nessa situação, prevalecer certo
conseguir estabelecer diálogos entre eles e o conhecimento da pensamento mágico de que basta postular os pressupostos da
área do Serviço Social. Isso parece levar ao empobrecimento autonomia, da emancipação e da participação para que as
da profissão em determinados setores, especialmente àqueles ações socioeducativas na perspectiva do projeto ético-político
que atendem as demandas tradicionais do Serviço Social, se autorrealizem.
demandas essas vinculadas, especialmente, ao exercício Na maioria das vezes, as ações socioeducativas são pouco
profissional em instituições, ou, como indicou Netto (1996), na decodificadas em relação às diferentes orientações teóricas
execução terminal das políticas sociais. sobre elas e ao próprio processo de sua realização; mais ainda,
não são discutidas as diferentes implicações e os objetivos que
Diante desse cenário, três observações detiveram nossa possuem quando realizadas em campos ou processos
atenção. A primeira relaciona-se ao fato de que o “fazer interventivos distintos, como nos movimentos organizativos
profissional” se define prioritariamente por indicadores que da sociedade civil e aqueles realizados diretamente com os
são “externos” à profissão, ou seja, ele toma como base as áreas usuários em contextos institucionais.
(ex.: saúde, educação), os usuários (ex.: idosos, crianças, As observações realizadas e todos os problemas daí
adolescentes), os instrumentos que são comuns também a decorrentes reforçam a necessidade do reconhecimento da
outras profissões (ex.: entrevista, visita domiciliar), ou funções intricada discussão sobre a dimensão técnico-operativa da

23 Essa observação pode ser verificada em ampla medida nos trabalhos 24 Sobre o caráter educativo da profissão, consultar Yazbek (2000); Cardoso

apresentados em eventos da área e também nos Trabalhos de Conclusão de e Maciel (2000); Iamamoto (1982; 1994).
Curso.

Conhecimentos Específicos 16
APOSTILAS OPÇÃO

assistência social, e que está relacionada à complexidade e à e os balizamentos para suas relações com as instituições, os
multiplicidade das próprias ações profissionais. Isso faz com usuários e outras profissões.26
que elas se tornem objeto de difícil apreensão, num vasto
espectro de espaços sócio-ocupacionais. Iamamoto (1999) considera que o projeto profissional
Ao enfocar a dimensão técnico-operativa, é necessário consiste na articulação entre a dimensão macrossocietária
reconhecer que ainda não se conseguiu articular uma referindo-se ao reconhecimento do terreno sócio-histórico
linguagem comum em relação ao “fazer profissional” capaz de sobre o qual a profissão se movimenta considerando seus
materializar amplamente o projeto profissional e sua direção limites e possibilidades, e a dimensão profissional que
ético-política. Apesar do avanço espetacular que a profissão compreende as respostas técnico-profissionais dos
obteve através do rompimento com a tradicional “metodologia Assistentes Sociais. Estas expressam como são apropriadas e
do Serviço Social (caso, grupo e comunidade)” e que permitiu redefinidas pela categoria a realidade e as imposições
uma nova compreensão da profissão no contexto da divisão macrossocietárias.
sociotécnica do trabalho,25 ainda nos defrontamos com uma Assim, “a configuração social da profissão depende
diversidade de discursos sobre o “fazer profissional”, decisivamente das respostas dos agentes profissionais nesse
definidos, prioritariamente, a partir de elementos “externos” à contexto, articuladas em torno do projeto profissional de
profissão. Particularmente, esta situação é altamente caráter ético-político” que se encontra compromissado com a
problemática quando os assistentes sociais trabalham em Cidadania, porque prima pela defesa dos Direitos na sua
equipes multiprofissionais, nas quais o campo do social tem totalidade, pela sua ampliação legal e sua consolidação
sido cada vez mais objeto de estudo e intervenção de outras material, na qual os indivíduos sociais passam a ser
profissões (WIESE, 2002). “reconhecidos como sujeitos de valores, de interesses, de
Finalmente, no campo da formação profissional, no demandas legítimas, passíveis de serem negociadas e
contexto do ensino de graduação, é possível observar dois acordadas” (IAMAMOTO, 1999, p. 20-78).
centros de tensão que se vinculam à coexistência de duas A profissão é entendida no contexto das relações sociais e
orientações para o processo formativo, expressas na definição de seus mecanismos de poder econômico, político e cultural
e nas inter-relações da supervisão de campo e de supervisão em que o projeto profissional do Serviço Social foi construído.
acadêmica. Isso significa dizer que “as ações humanas sempre são
Quanto às orientações do processo formativo, o campo do orientadas por objetivos, metas e finalidades”, têm em sua
debate e da capacitação para a dimensão técnico-operativa base necessidades e interesses e referem-se sempre a um
revela o confronto entre um projeto de formação profissional projeto que “é uma antecipação ideal da finalidade que se quer
generalista10 e um projeto de formação especialista. Isso alcançar empregando os valores que a legitimam e a eleição
transparece à medida que o debate e a orientação relacionados dos meios para alcançá-la” (NETTO, 2005, p. 272).
ao trabalho profissional estão vinculados à Os projetos profissionais são construídos por um sujeito
compartimentalização em áreas, ou aos projetos vinculados a coletivo – a categoria profissional – e contêm uma dimensão
determinados temas que tendem a ser direcionados, em maior política27 que se expressa tanto em sentido amplo (quando
ou menor grau, para as especialidades. Um exemplo disso é o esses projetos se relacionam com os projetos societários),28
fato de a formação técnico-operativa estar fortemente calcada quanto em sentido restrito (quando se refere às perspectivas
nos programas de estágio, e estes, por sua vez, estão particulares da profissão), constituindo-se, ainda, em
orientados para as especificidades dos campos de intervenção. estruturas dinâmicas, porque respondem “às mudanças no
Em relação à supervisão, observa-se que nesse processo, sistema de necessidades sociais sobre o qual a profissão opera
além das indistinções ainda presentes relacionadas ao objeto [...] Frente a isso, os projetos profissionais igualmente se
da supervisão de campo e da supervisão acadêmica, há a renovam, se modificam” (NETTO, 2005, p. 275).
tendência ao reforço de uma formação especialista, à medida
que tem aumentado (não sem razão) a escolha de supervisores A intervenção profissional é apreendida em movimento
acadêmicos vinculados à área de conhecimento pertinente ao dentro do processo histórico, profundamente condicionada
campo de estágio escolhido. Com isso, a definição das ações pelas relações entre as classes na sociedade e direcionada
profissionais a partir de indicadores exteriores, somada às tanto para as condições materiais, quanto para as condições
especificidades dos diferentes campos, traz à tona a questão da sociais de vida da classe trabalhadora.
própria formação generalista versus a formação especialista. Reconhece-se, portanto, que as ações dos Assistentes
Com base nessa problematização, assenta-se o debate Sociais têm efeito no processo de reprodução da força de
sobre a dimensão técnico-operativa. Seu ponto de partida trabalho através da prestação de serviços sociais, mas também
reside no projeto profissional, na Lei que regulamenta a através de uma dimensão social, na qual incidem sobre o
profissão e nas políticas sociais tomadas, aqui, como o campo campo do conhecimento, dos valores, dos comportamentos e
privilegiado para o exercício profissional. da cultura, produzindo efeitos reais na vida dos sujeitos apesar
dos seus resultados nem sempre se corporificarem como
2 O atual projeto profissional e a Lei 8662/93 coisas materiais (IAMAMOTO, 1999).
A aprovação do Código de Ética, em 1993, consolida a
O projeto profissional, de acordo com Netto (2005, p. 95), hegemonia do projeto éticopolítico29 orientado para a
é construído coletivamente pela categoria profissional e transformação, para a defesa intransigente dos direitos
representa a autoimagem de uma profissão. Nele estão os humanos e para uma conduta radicalmente democrática. O
objetivos, funções e os requisitos teóricos, práticos e Código sustenta que a ética “deve ter como suporte uma
institucionais para o exercício da profissão, bem como a ontologia social: os valores são determinações da prática
prescrição de normas para o comportamento dos profissionais social, resultantes da atividade criadora e tipificada no

25 Para maior estudo, consultar Iamamoto e Carvalho (1982). portanto, “uma imagem de sociedade a ser construída, que reclamam
26 O projeto de formação profissional de caráter generalista no Brasil está determinados valores para sua justificação e que privilegiam certos meios
definido nas diretrizes curriculares para os cursos de Serviço Social. (materiais e culturais) para concretizá-la”.
27 Essa dimensão envolve relações de poder, mas que não estão diretamente 29 Barroco (2005a) considera que é a partir das discussões nacionais que

voltadas ao posicionamento partidário que o indivíduo possa tomar (BARROCO, levaram a aprovação do novo Código que a ética passou a ser reconhecida
2005; IAMAMOTO, 1999; NETTO, 2005). explicitamente como componente fundamental do projeto profissional. A ética é
28 Para Netto (2005, p. 272-273), trata-se de um tipo específico de projeto compreendida como “reflexão teórica e como ação livre orientada ao humano
coletivo, seu traço peculiar reside no fato de se “constituir em projetos genérico” (p. 231).
macroscópicos, em propostas para o conjunto da sociedade”, apresentam,

Conhecimentos Específicos 17
APOSTILAS OPÇÃO

processo de trabalho” (CFESS, 1997, p. 15). Ao considerar o implementação, execução e avaliação de políticas sociais junto
trabalho como categoria central na (re)produção da vida a órgãos da administração pública, direta ou indireta,
social, o Código revela a base objetiva de constituição das empresas, entidades e organizações populares. Prevê ainda as
ações profissionais que, para Barroco (2005, p. 201), implicam ações de pesquisa que subsidiam o exercício profissional, o
“capacidades que, a partir da práxis, objetivam a sociabilidade, planejamento, a organização e os estudos socioeconômicos.
a consciência, a liberdade e a universalidade do ser humano Alia-se a esse entendimento a compreensão de que o
genérico”. campo das políticas sociais é privilegiado para a intervenção
A hegemonia conquistada não significa que este projeto profissional,30 quer seja no âmbito da formulação e proposição
esteja completo, ou que seja unânime, conforme alerta Netto legislativa, do planejamento, da execução e gestão da proposta,
(2005, p. 291), quer seja através da mobilização para a inclusão, na agenda
pública, do debate sobre demandas da população que
[...] por uma parte, não se desenvolveram suficientemente implicam o Controle Social e a ampliação dos Direitos que,
suas possibilidades, por exemplo, no domínio dos indicativos consequentemente, geram a necessidade de formular novas
para a orientação de modalidades de práticas profissionais propostas de políticas públicas, particularmente de políticas
(nesse terreno se tem muito que fazer); por outra parte, a sociais.31
ruptura do quase monopólio do conservadorismo no Serviço
Social não suprimiu as tendências conservadoras e 3 As ações profissionais e os processos interventivos
neoconservadoras pelo contrário [...] a heterogeneidade dos no Serviço Social
coletivos profissionais propicia, em condições de democracia
política, a existência e a disputa entre projetos diferentes. Ter como foco a dimensão técnico-operativa, entendida
como o espaço de trânsito entre o projeto profissional e a
Reconhece-se a legitimidade da disputa ideopolítica, uma formulação de respostas inovadoras às demandas que se
vez que a categoria profissional faz parte de “um campo de impõem no cotidiano dos assistentes sociais implica destacar
relações heterogêneas onde indivíduos diferentes estão em categorias que possibilitem realizar esse trânsito. Propõe-se
interação”, expressando “origens e expectativas sociais então, neste trabalho, adotar a ação profissional como o vetor
diversas, condições intelectuais distintas, comportamentos e fundamental para o desvelamento dos processos do fazer
preferências teóricas, ideológicas e políticas variadas etc.” profissional. Sua eleição vincula-se ao entendimento de que a
Além disso, a categoria profissional “é uma unidade não ação é a menor unidade de análise, e, ao mesmo tempo,
identitária, uma unidade de elementos diversos; nela estão condensa todas as dimensões constitutivas do exercício
presentes projetos individuais e societários diversos e, profissional.32
portanto, ela é um espaço plural do qual podem surgir projetos
profissionais diferentes” (NETTO, 2005, p. 276). Nessa Aliados a tais considerações, trabalhamos com a hipótese
compreensão, é legítimo que exista, em toda categoria de que as ações profissionais se constroem de forma
profissional, um campo de tensões e de lutas, e que a afirmação encadeada e em processo, não sendo dadas a priori. Nessa
de um projeto profissional no seu interior não suprime essas formulação, entende-se ação profissional como um
divergências e contradições.
[...] conjunto de procedimentos, atos, atividades pertinentes
Nesse sentido, o projeto ético-político pode ser entendido a uma determinada profissão e realizadas por
como um processo que se apresenta em contínuo movimento sujeitos/profissionais de forma responsável, consciente.
e que tem a liberdade como seu valor central. Liberdade, na Portanto, contém tanto uma dimensão operativa quanto
compreensão destacada por Netto (1996), de escolher entre uma dimensão ética, e expressa no momento em que se realiza o
alternativas concretas de intervenção. A competência ético- processo de apropriação que os profissionais fazem dos
política dos Assistentes Sociais não fica restrita apenas à fundamentos teórico-metodológico e ético-políticos da profissão
vontade política e à adesão a valores, mas se refere à em determinado momento histórico. São as ações profissionais
capacidade desses profissionais de torná-los concretos através que colocam em movimento, no âmbito da realidade social,
da apreensão, como uma unidade, das dimensões éticas, determinados projetos de profissão. Estes, por sua vez, implicam
políticas, intelectuais e práticas (IAMAMOTO, 1999). Tal diferentes concepções de homem, de sociedade e de relações
competência que está contida no Código de Ética é sociais (MIOTO, 2001 apud LIMA, 2004 p. 61).
determinada pelos valores de liberdade e de justiça social
articulados à democracia (CFESS, 1997). Isso implica Ao decompor essa definição, considera-se que a ação
desenvolver ações estratégicas e antenadas com as condições profissional contém diferentes elementos, que, em interação,
objetivas da realidade, no intuito de ampliar os limites da lhes dão direção e materialidade. Para fins didáticos, podem
cidadania inscrita na sociedade capitalista atual. ser destacadas duas ordens de elementos: os condicionantes e
No escopo desse projeto profissional é que ganha sentido os estruturantes.
a Lei 8.662/93. Seu artigo 4º indica as competências dos Como elementos condicionantes da ação profissional,
Assistentes Sociais relacionadas à prestação de serviços considera-se o projeto profissional, que expressa uma direção
diretos à população e às instituições. Dentre elas, destacam-se: ético-política calcada em uma determinada matriz teórico-
a) a orientação social a indivíduos, grupos e à população; b) a metodológica e que orienta os profissionais dentro de um
assessoria e o apoio aos movimentos sociais em relação às projeto societário. Expressa os valores que condicionam a
políticas sociais, no exercício e na defesa dos direitos civis, finalidade das ações profissionais. Junto ao projeto
políticos e sociais da coletividade; c) a elaboração, profissional está a natureza dos espaços sócio-ocupacionais,

30 Definir as políticas sociais como sendo o campo de intervenção econômico-sociais das sociedades. Essa interferência deve ser gerida em prol da
privilegiado dos assistentes sociais, não significa desconhecer toda a equidade e da justiça social. Somente através do Estado e de suas políticas
complexidade e contraditoriedade que cerca o debate sobre a relação entre socioeconômicas é que a Cidadania pode ser ampliada, consolidada, garantida e
Política Social e Serviço Social na atual tendência de configuração da proteção efetivada de uma forma desmercadorizada (LAURELL, 1997).
social. Porém, essa é uma discussão que extrapola o âmbito desse trabalho. 32 Ao tomar a ação profissional como a base deste debate, contrapomo-nos
31 Entendem-se as políticas sociais como direitos socioeconômicos à ideia de tratar o fazer como sinônimo de construção de estratégias e táticas
corporificados em um conjunto de medidas e instituições que devem, para o exercício profissional, ou ainda de metodologias de ação. Essas ideias têm
obrigatoriamente, estar voltadas para a produção do bem-estar social e para a sido fortemente veiculadas à categoria profissional e têm levado inúmeros
viabilização de serviços sociais; por isso, são consideradas como um “dever do profissionais a buscá-las em outras áreas de conhecimento, sem estabelecer o
Estado”, porque somente a esse é conferido o poder de interferir nas relações devido diálogo interdisciplinar.

Conhecimentos Específicos 18
APOSTILAS OPÇÃO

pois, espaços de naturezas diferentes, como de natureza Realizadas tais escolhas, é preciso definir, ainda, os
pública e de natureza privada, incidem e condicionam de recursos necessários para a implementação da abordagem
formas diferentes os objetivos das ações profissionais e a escolhida, por exemplo, a implementação da abordagem
própria autonomia profissional.33 As demandas/necessidades grupal implica a utilização da reunião como um instrumento
dos usuários também são condicionadores da definição da de sua viabilização, que, por sua vez, pode recorrer a diversos
ação profissional, pois são elas que norteiam os objetivos da outros recursos no momento da sua efetivação, tais como,
ação a ser desenvolvida e desencadeiam o processo no qual se técnicas de dinâmica de grupo.
articulam os elementos condicionantes e estruturantes. O movimento que se tem em mente consiste na articulação
Os elementos estruturantes da ação profissional podem dialética entre as três dimensões referentes ao Serviço Social:
ser entendidos como aqueles que dão sustentabilidade a toda teórica, ética e técnica. São considerados: o
e qualquer ação: o conhecimento/investigação, o conhecimento/investigação da realidade na qual se intervém;
planejamento, a documentação, os objetivos, as formas de o planejamento e a documentação do processo de trabalho; os
abordagens dos sujeitos a quem se destinam as ações, os objetivos, as formas de abordagens dos sujeitos a quem se
instrumentos técnico-operativos e outros recursos. destina a ação; os instrumentos técnico-operativos e outros
recursos implicados na ação. O esquema da Ilustração 1
O conhecimento/investigação refere-se ao corpo de permite-nos visualizar esse movimento encadeado:
conhecimentos já construídos e relacionados à realidade; ao
campo sócio-ocupacional, no qual os Assistentes Sociais estão
inseridos, e aos sujeitos destinatários da ação profissional.
Destaca-se que esses conhecimentos sempre estão conectados
às matrizes teórico-metodológicas presentes na profissão. O
conhecimento pressupõe, necessariamente, a existência de
uma atitude investigativa que permite a compreensão das
particularidades existentes nos diferentes campos de exercício
profissional, como na definição de ações profissionais que
melhor respondam às demandas e necessidades postas pelos
sujeitos.
Ilustração 1 – Ação profissional em movimento:
O planejamento é outro elemento do qual a ação
articulação entre as dimensões teóricas, éticas e técnicas do
profissional não pode prescindir, pois é ele que permite
Serviço Social. Fonte: Mioto, 2006.
projetar a própria ação, a partir do conhecimento obtido da
realidade, da proposição de objetivos, da escolha de formas de
A operacionalização da ação implica articular os
abordagem e de instrumentos operativos.
conhecimentos entre o universal, o particular e o singular, ou,
Salienta-se que essa projeção e as definições que dela
segundo Iamamoto (2005, p. 95), deve-se estabelecer “a
decorrerem devem estar coerentes com a matriz teórico-
relação indivíduo/sociedade; as relações entre as
metodológica eleita como norteadora do exercício
macroanálises e microssituações enfrentadas no cotidiano
profissional.
profissional”. É a partir das demandas postas pelos sujeitos,
Por fim, a documentação não pode ser negligenciada na
sejam elas de caráter coletivo ou singular, que o Assistente
ação profissional, pois ela é essencial, tanto para o processo de
Social, a partir da finalidade assumida como horizonte para
conhecimento/investigação da realidade, como para a sua
suas ações, define tanto o objetivo como o caráter da ação a ser
sistematização e seu planejamento. Pelo fato de as ações dos
empreendida, localizando-a dentro dos limites e
Assistentes Sociais estarem calcadas, basicamente, no uso da
possibilidades colocados pela natureza dos espaços
linguagem, a visibilidade da intervenção realizada só é obtida
sócioocupacionais.
quando ocorre o registro eficiente da ação. Além disso, os
Essa definição é realizada através da investigação e do
registros permitem congregar dados que podem resultar em
conhecimento das necessidades da população, expressas pelas
avanços, tanto no momento em que se analisa a intervenção,
suas demandas e pela realidade particular de suas condições
procurando estabelecer novas prioridades, reconhecer as
de vida, e em diálogo com o corpo de conhecimentos já
demandas, dentre outros, quanto no momento de reflexão
produzidos sobre as particularidades das situações e
crítica da realidade, dos espaços sócio-ocupacionais e de seus
coerentes com a matriz teórico-metodológica que direciona
processos de trabalho, no intuito de ampliar o escopo de
determinado projeto profissional.
conhecimentos sobre a profissão e a sociedade.
No escopo dessa discussão, destaca-se que a pesquisa deve
É importante ter em mente que esses elementos se
ser inerente ao exercício profissional, e que não é possível o
articulam com outros que também são estruturantes da ação
desenvolvimento de um trabalho consistente e consequente
profissional, a saber: os objetivos34 definidos e as abordagens
sem planejamento e documentação.
para a aproximação com a realidade e com os sujeitos
Diante disso, considerando que as ações profissionais
destinatários da ação, que se realizam através dos
condensam e expressam toda a formulação teórica, ética e
instrumentos técnico-operativos e de seus recursos. A escolha
técnica da profissão, não é possível concebê-las de forma
das abordagens vincula-se, principalmente, aos objetivos
isolada. O estudo realizado a partir da observação e da
propostos para a ação. Grosso modo, elas podem ser
descrição do exercício profissional de assistentes sociais de
classificadas em coletiva, grupal e individual. Alguns dos
diferentes espaços sócio-ocupacionais, da produção
instrumentos viabilizadores da realização dessas abordagens
intelectual da área de Serviço Social e da própria Lei de
são, por exemplo, a entrevista, as reuniões, as assembleias, os
Regulamentação da profissão, permite compreender as ações
encaminhamentos, ou ainda, combinações desses
profissionais de forma articulada em eixos ou processos
instrumentos, como a visita domiciliar, a entrevista familiar, o
interventivos na medida em que se diferenciam ou se
trabalho com redes e outros.
aproximam entre si. Para tanto, considera-se a existência de

33 Para aprofundamento da discussão sobre espaços profissionais e abstratas, ideais, de longo alcance e estão mais ligadas a valores, não permitindo
autonomia profissional, consultar Iamamoto (1999; 1994) e Couto (1999). avaliação direta; enquanto que os objetivos são concretos, reais, de alcance em
34 Os objetivos não devem ser confundidos com as finalidades. Estas se tempo determinado e estão ligados ao mundo dos bens e serviços, permitindo
referem mais às diretrizes políticas gerais, à filosofia de ação. Para Mioto e avaliação direta.
Nogueira (2006), as finalidades apresentam as seguintes características: são

Conhecimentos Específicos 19
APOSTILAS OPÇÃO

três eixos ou de três processos, a saber: processos político- Nesse contexto, as ações socioeducativas são aqui
organizativos, processos de planejamento e gestão e processos destacadas, mas apresentam especificidades quanto aos seus
socioassistenciais. objetivos, uma vez que intencionam o diálogo
A partir disso, postula-se que esses processos, na problematizador e a coletivização de demandas individuais.
perspectiva do atual projeto profissional, por um lado, estão Lima (2006) aponta que a mobilização e a organização
dialeticamente articulados e ancorados na dimensão constituem-se nos seus principais objetivos, sendo que a
investigativa. Por outro lado, a sua compreensão depende de assessoria é outra ação importante para efetivar a organização
mediações teóricoinstrumentais35 capazes de dar sustentação da população em torno de seus interesses, e como sujeito de
às construções teórico-metodológicas e éticopolíticas, seu próprio desenvolvimento.
subsidiando o trabalho propriamente dito, ou seja, aquele que Conhecer os sujeitos, explicitar a complexidade e o
se realiza através de um leque de possibilidades representadas conjunto de dificuldades que permeiam as demandas
pelas ações profissionais, o modus operandi. encaminhadas ao Assistente Social, e refletir conjuntamente
sobre o objeto da ação profissional, é fundamental para
Os processos aqui propostos são compreendidos como garantir um processo na direção da autonomia e da
meios de subsidiar e dar legitimidade à formulação de agendas participação.
públicas propositivas que respondam as
demandas/necessidades concretas dos usuários, bem como, 3.2 Processos de gestão e planejamento
alimentar um processo de construção coletiva de
reivindicação, afirmação e efetivação de Direitos. Pautam-se Correspondem ao conjunto de ações profissionais
pela perspectiva dos Direitos e da Cidadania, cuja lógica está desenvolvidas com enfoque no planejamento institucional
centrada no usuário como sujeito capaz de ascender à como instrumento de gestão e gerência de políticas e serviços.
autonomia no âmbito das relações sociais, pois o reconhecem Essas ações são ligadas: (a) à gestão das diversas políticas
como ser político que desenvolve sua participação em sociais das instituições e dos serviços congregadores de tais
diferentes espaços. políticas, e (b) à gestão e ao planejamento de serviços sociais
Sinalizar para os Direitos e para a Cidadania significa em instituições, programas e empresas. Nesse âmbito, os
retomar os princípios éticopolíticos do atual projeto objetivos das ações intencionam construir práticas efetivas de
profissional, cuja finalidade apreendida para as ações intersetorialidade, ou de gerir as relações interinstitucionais;
profissionais reside em construir um processo emancipatório e no planejamento profissional estão as ações cujos objetivos
que oportunize aos indivíduos perceberem-se como sujeitos buscam sistematizar e racionalizar as ações profissionais. São
em sociedade, capazes de questionamentos sobre a ordem ações que organizam a intervenção dita específica,
social estabelecida e de reivindicar Direitos, pretendendo a localizando-a no processo coletivo de trabalho em equipes
satisfação de suas necessidades, sejam elas materiais ou multiprofissionais (MIOTO; NOGUEIRA, 2006).
culturais. A intenção dessa retomada consiste em efetivar e De acordo com Mioto e Nogueira (2006), fazem parte dos
ampliar a Cidadania sem abdicar da busca pela transformação objetivos dessas ações: criar protocolos entre serviços,
social. Tal finalidade representa, para o Serviço Social, um programas e instituições no conjunto das políticas sociais que
horizonte paradigmático a ser perseguido, isto é, as ações servem de base tanto para o trabalho do Assistente Social,
profissionais refletem um compromisso ético, sendo parte do como para a equipe da qual é parte; e consolidar bases de
exercício e da formação profissional a incumbência de dados e informações, alimentadas pela documentação do
construir as mediações, no momento da operacionalização, processo interventivo do Assistente Social (diário de campo,
que as aproximem da sua concretização (LIMA, 2006). fichas, estudos, relatórios). Trata-se de ações que os
Nessa perspectiva, realiza-se uma breve aproximação das Assistentes Sociais desenvolvem em cargos gerenciais e
possibilidades que se apresentam ao trabalhar com a ideia das administrativos, no âmbito das políticas sociais de instituições
ações profissionais vinculadas aos três processos públicas ou privadas, bem como na gestão e no planejamento
interventivos propostos: processos político-organizativos, do setor de Serviço Social no âmbito das instituições e dos
processos de planejamento e gestão, processos programas, envolvendo a organização de seu “fazer
socioassistenciais. profissional”.
Esse processo dá visibilidade às ações desenvolvidas, que
3.1 Processos político-organizativos há muito são consideradas mera burocracia institucional, mas
que contribuem com a qualidade e efetivação dos serviços,
As ações articuladas nesse eixo privilegiam e incrementam influenciando as instâncias decisórias e as de gestão e
discussões e as encaminham para a esfera pública. Seu foco planejamento das políticas públicas e das instituições, como
principal consiste em dinamizar e instrumentalizar a também, interferindo nas formas de realizar a ação
participação dos sujeitos, sempre respeitando o potencial profissional, e buscando a melhor maneira de executá-las
político e o tempo dos envolvidos. As ações consideram frente às demandas/necessidades dos usuários.
sempre as necessidades imediatas, mas prospectam, a médio e
a longo prazos, a construção de novos padrões de 3.3 Processos socioassistenciais
sociabilidade entre os sujeitos,36 porque estão guiadas pela
premissa da democratização dos espaços coletivos e pela Correspondem ao conjunto de ações profissionais
criação de condições para a disputa com outros projetos desenvolvidas diretamente com usuários nos diferentes
societários. A universalização, a ampliação e a efetivação do campos de intervenção a partir de demandas singulares. Sua
acesso aos Direitos são debatidas nos mais diferentes espaços, lógica reside em atender o usuário como sujeito, visando
especialmente de Controle Social, nos quais são questionadas responder a essas demandas/necessidades numa perspectiva
as relações estabelecidas no espaço socioocupacional, na de construção da autonomia do indivíduo nas relações
comunidade e nas mais diferentes instituições. institucionais e sociais, remetendo-o à participação política em

35 Trata-se aqui do conjunto de teorias referentes a determinado campo de exercício profissional. Concentramo-nos no âmbito da intervenção profissional
conhecimento. Teorias estas que podem possibilitar a conexão/mediação entre voltada para a relação assistente social, serviços e população. De acordo com os
o marco teórico paradigmático e aproximação com a realidade particular e apontamentos realizados por Martinelli em conversa pessoal, em 2006, “a
singular. formação profissional e a pesquisa no seu „sentido estrito‟ também podem
36 A adoção desses três eixos como articuladores das ações profissionais não constituir eixos de intervenção profissional”
esgotam todas as possibilidades de debate, de definição e de apreensão do

Conhecimentos Específicos 20
APOSTILAS OPÇÃO

diferentes espaços, dentre os quais se incluem: as próprias vinculam. Por outro lado, pode ajudar o estudante e o
instituições, os programas, serviços, conselhos de direitos, profissional a compreenderem e refletirem sobre sua
movimentos de base sócio comunitária e os movimentos intervenção de forma integrada, ao localizar concretamente o
sociais na sua diversidade. Esses espaços envolvem ações de alcance das ações que pretendem realizar no escopo desses
diferentes naturezas, difíceis de distingui-las entre si durante diferentes processos. Pode-se dizer, também, que as ações
a execução, pois estão em constante interação. No entanto, a ganham certa particularidade a partir dos processos aos quais
partir dos objetivos primordiais das ações que compõem esse se vinculam, porque estão atentas às demandas/necessidades
processo, torna-se possível sua caracterização, de modo a que se quer atender, por exemplo, uma ação que poderia ser
aprofundar os marcos referenciais que ajudam na sua de assessoria tem estatuto diferente quando realizada no
consecução e que facilitam a conexão dialética entre elas. âmbito dos processos político-organizativos, e quando
Essa caracterização possibilita aprofundar o conhecimento realizada no âmbito da gestão e do planejamento.
sobre as particularidades operacionais de cada ação e melhor A terceira observação refere-se à questão da identidade
qualificá-las. Assim, considera-se que, nos processos profissional. Espera-se que o aumento de discussões
socioassistenciais, estão presentes ações de natureza qualificadas sobre as ações profissionais possa contribui para
socioterapêutica, socioeducativa, socioemergencial e o fortalecimento da identidade profissional, que reverteria a
pericial.37 favor de um distanciamento cada vez maior do protótipo da
“identidade atribuída”, postulado por Martinelli (1989, p.
4 Algumas considerações sobre a resposta esboçada 110).
Esse trabalho consiste em uma sistematização possível,
Tecer considerações sobre uma proposta que busca pensar dentre tantas outras que poderiam e podem ser efetuadas.
a dimensão técnico-operativa é tarefa difícil, dado o conjunto Trata-se de uma sistematização das ideias exploradas ou
de dúvidas e incertezas que estão contidas nesse esboço. inexploradas nos textos lidos e relidos sobre o exercício
Aventuramo-nos a expor algumas contribuições que podem profissional do Assistente Social e na observação, direta e
qualificá-la, visando agregar mais elementos ao debate, pois, indireta, de seu cotidiano profissional. A preocupação central
ao realizar esse trabalho de sistematização, foi possível é reiterada aqui e consiste na necessidade de ampliar o debate
observar o esforço que profissionais e intelectuais têm e o entendimento da dimensão técnico operativa, atentando
dedicado para o enraizamento do projeto ético-político da para as formas de conduzir qualificada e coerentemente às
profissão, dentro de um cenário sociopolítico muito escolhas profissionais no âmbito do paradigma crítico-
desfavorável. dialético. Assim, considerar relevante a coerência e a dialética
A primeira contribuição deste artigo refere-se à ideia de entre pensamento e ação implica reconhecer que o como fazer
que as ações profissionais – ao conterem em si as dimensões é peça fundamental no debate que busca garantir essa relação
teóricas, éticas e técnicas, e ao estarem articuladas aos três e consolidar a legitimidade do atual projeto profissional.
processos propostos – permitem uma leitura do “fazer Finalizando, acredita-se que grande parte das descrenças
profissional” sob diferentes ângulos, e que, ao correlacioná- atribuídas às intenções e aos resultados das ações
los, é possível referenciar as ações nos diferentes espaços profissionais reside na incoerência presente entre aquilo que
socio-ocupacionais. se diz ou o que se pretende fazer e aquilo que realmente se faz
As ações profissionais passam a ser entendidas para além ou em como se faz, uma vez que a opção por determinados
dos espaços e das áreas/campos onde são realizadas, sendo procedimentos (abordagens, instrumentos, técnicas e outros
vinculadas sobremaneira ao projeto profissional. A adoção dos recursos) é determinada pelo contexto e pelo conteúdo a ser
processos, como orientadores das ações profissionais, indica mediado para se alcançar a finalidade prospectada. O como
uma perspectiva de transversalidade à medida que eles podem fazer das ações está diretamente relacionado à escolha do
ser identificados em qualquer campo profissional de inserção paradigma, implicando o reconhecimento, em dado período
de Assistentes Sociais. Aliados a isso, são processos que histórico, da sua validade argumentativa e a sua capacidade de
encontram referência na Lei 8.662/93 e, indiretamente, no responder concretamente às questões colocadas pela
Código de Ética. realidade. É através da clareza na compreensão e na
A segunda observação trata da possibilidade de proposição do como se constrói uma intervenção profissional
potencializar o debate no interior da profissão, direcionando a menos improvisada e mais legítima teoricamente, via que
busca por referenciais teóricos compatíveis com a matriz permite demonstrar a coerência pela qual é possível resgatar
teórica que orienta o projeto profissional e considerando os valores e realizar mudanças.
diferentes processos. Nessa perspectiva, pretende-se
qualificar o diálogo dos Assistentes Sociais com outras Referências
profissões. As condições para esse diálogo são fundamentais,
dada a sua inserção em equipes multiprofissionais, ANDRADE, J. B. T. de. Desenvolvimento sustentado e meio
especialmente aquelas pautadas por projetos político- ambiente. Cadernos Capacitação em Serviço Social e política
profissionais compatíveis com o atual projeto do Serviço social, mod. 04. Brasília: CEAD, p. 187-196, 2000.
Social, como, por exemplo, o caso do projeto da Reforma BARROCO, M. L. S. Ética e Serviço Social: fundamentos
Sanitária. Nesse, profissionais de outras áreas vêm ontológicos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
consolidando uma gama de conhecimentos relacionados à ______ . Los fundamentos socio-históricos de la ética.
intervenção na área social. BORGIANNI, E.; GUERRA, Y.;
Além disso, a ideia dos três processos possibilitaria, por MONTAÑO, C. (org.). Servicio Social critico: hacia la
um lado, a adoção de uma perspectiva tridimensional das construcción del nuovo proyeto éticopolítico profesional. São
ações profissionais, em contraposição à manutenção de uma Paulo: Cortez/ Biblioteca Latinoamericana de Servicio Social,
perspectiva unidimensional, dada essencialmente pelos 2005a. p. 223-247.
espaços sócio-ocupacionais aos quais os assistentes sociais se

37 A discussão sobre os processos socioassistenciais nos tem instigado à porém, é efetivada à medida que se observa que os assistentes sociais têm
continuidade da reflexão e do debate, pois parece ser o campo no qual se realizado ações dessa natureza no cotidiano profissional, particularmente,
apresentam as maiores dificuldades de enraizamento do projeto ético-político, quando vinculados a determinadas áreas. Portanto, merecem ser debatidas
uma vez que se verifica uma alta influência de projetos de cunho conservador e quanto à natureza, às finalidades, às abordagens e aos instrumentos (teóricos e
uma grande inserção dos profissionais em equipes multiprofissionais. A operativos) a serem utilizados.
postulação das ações socioterapêuticas pode parecer estranha à primeira vista,

Conhecimentos Específicos 21
APOSTILAS OPÇÃO

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Conhecimentos Específicos 22
APOSTILAS OPÇÃO

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Brasília: CEAD, p. 111-124, 2000. programático exigido no edital de abertura do concurso
SIMIONATTO, I. . Os desafios na produção do público.
conhecimento em serviço social. Revista Temporalis. Porto Pois bem, a partir de vários encontros, Congressos,
Alegre, PUCRS, n. 9, p. 20-28, 2005. Seminários e reuniões envolvendo os mais variados
SOUSA, P. C. de. O cooperativismo. Cadernos Capacitação segmentos da sociedade com o objetivo de discutir o real papel
em Serviço Social e Política Social, mod. 04. Brasília: CEAD, p. das Famílias nas Políticas Públicas, constatou-se a necessidade
241-253, 2000. de inserir a Família no centro de atenções sociais.
TOSO, L. Intenzionalità e Limite: due dimensione di un No decorrer do tempo, devido a importância de trabalhar
percorso. Animazione Sociale, Milano, Gruppo Abelle, n. 28, a família como núcleo de relações sociais, foram criadas
1998. diversos programas e projetos destinados ao atendimento das
VASCONCELOS, A. M. A prática do Serviço Social: cotidiano, FAMÍLIAS.
formação e alternativas na área da saúde. São Paulo: Cortez, No entanto, a família não deve ser vista tão somente como
2002. estratégias de Políticas Públicas, gerando assim diversos
______ . O trabalho do assistente social e o projeto questionamentos quanto a eficiência e eficácia de tantos
hegemônico no debate profissional. programas governamentais instituídos por meio de políticas
Cadernos Capacitação em Serviço Social e política social, públicas, sem levar em consideração o fortalecimento das
mod. 04. Brasília: CEAD, p. 125- 137, 2000. competências familiares, ou até mesmo se os programas e
WIESE, M.L. Representação Social do Binômio projetos criados atendem as reais necessidades das famílias
Saúde/Doença e sua relevância para o Serviço Social. In: Anais brasileiras.
VIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social. Neste aspecto, objetivando discutir exatamente estes
Juiz de Fora: UFJF, v. 1, 2002. temas, no ano de 2002 em São Paulo foi organizado um
YAZBEK, M. C. Os fundamentos do Serviço Social na seminários destinado a enfrentar tais problemáticas.
contemporaneidade. Cadernos Capacitação em Serviço Social A partir de então foi editado a obra literária “Famílias:
e política social, mod. 04. Brasília: CEAD, p. 19-34, 2000. Laços, Redes e Políticas Públicas” organizado por Ana Rojas
A dimensão técnico-operativa do Serviço Social em foco: Acosta e Maria Amalia Faller Vitale, que, a partir das
sistematização de um processo investigativo Revista Textos & exposições do mencionado Seminário, editou a presente obra
Contextos Porto Alegre v. 8 n.1 p. 22-48. jan./jun. 2009 trabalhando os conteúdo apresentados naquela ocasião pelos
principais especialistas que pesquisam ou atuam com famílias
Bibliografia consultada e políticas públicas, os quais abordaram em suas explanações
palestras referente aos seguintes eixos temáticos:
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR - “Vida em Família”,
10520: informação e documentação: citações em documentos: - “Trabalhando com Famílias” e
apresentação. Rio de Janeiro, 2002. - “Famílias e Políticas Públicas”
______ . NBR 6023: informação e documentação: O primeiro eixo temático “Vida em Família” corresponde a
referências: elaboração. Rio de Janeiro, 2002. uma incursão pelas diversas e constantes transformações da
______ . NBR 6024: informação e documentação: numeração vida familiar, contribuições necessárias e indispensáveis para
progressiva das seções de um documento escrito: a discussão sobre a situação atual das famílias pobres em
apresentação. Rio de Janeiro, 2003. nossa sociedade.
A mudança dos laços familiares constitui o centro dessa
discussão. Para melhor acompanhar essas mudanças da
2. políticas Públicas e Serviço família em nossa sociedade, o caminho que foi traçado e
Social; seguido pelos participantes do Seminário transcritos no livro
foi o de se considerar as dimensões de gênero e de geração.
O cerne das discussões e explanações girou em torno da
BIBLIOGRAFIA ideia de que a família mostra-se o espaço de mudanças já
perceptíveis no convívio e no confronto entre gênero e
1. ACOSTA, Ana Rojas, VITALE, Maria Amália Faller. gerações.
Família: Redes, Laços e Políticas Públicas. São Paulo: 6ª ed. Cynthia A. Sarti, em seu artigo intitulado “Famílias
Cortez, 2015. Enredadas” faz uma análise sobre as mudanças na concepção
e no padrão da família brasileira nas últimas décadas,
12. FLEURY, Sonia. Redes de Políticas: Novos Desafios para especialmente com as mais recentes inovações tecnológicas
a gestão pública. Administração em Diálogos, São Paulo, v.7, em reprodução humana e a difusão do exame de DNA (que
pp77-89, 2005. Disponível em: permite a identificação de paternidade) alteraram o panorama
revistas.pucsp.br/index.php/rad/article/download/671/468 das famílias e a forma que eram conduzidas, pois essas formas
de intervenção tecnológica é fundamental no que se refere a
22. SALES, Mione Apolinário, MATOS, Maurílio Castro, laços e responsabilidades familiares, sendo certo que tais
LEAL, Maria Cristina. Política Social, Família e Juventude: Uma mudanças abalam um modelo idealizado existente e o tornam
questão de direitos. São Paulo: Cortez e UERG Editoras, 2016; bastante elástico e dinâmico.
Neste contexto afirma a autora:
Por se tratar de um material complementar, verifica-se “As mudanças são particularmente difíceis, uma vez que as
desnecessário conceituar “Políticas Públicas” e “Serviço experiências vividas e simbolizadas na família têm como
Social”, diante do fato de tais elementos já terem sido referência, a respeito desta, definições cristalizadas que são
abordados em momento oportuno no material didático. socialmente instituídas pelos dispositivos jurídicos, médicos,
O grande desafio proposto no presente conteúdo é psicológicos, religiosos e pedagógicos, enfim, pelos dispositivos
justamente analisar Política Pública e Serviço Social dentro de disciplinares existentes em nossa sociedade, os quais têm nos
alguns contexto específicos tais como: Família e Laços meios de comunicação um veículo fundamental, além de suas
Familiares, Atendimento em Rede, Gestão Pública e Políticas instituições específicas. Essas referências constituem os
Sociais. “modelos” do que é e como deve ser a família, ancorados numa

Conhecimentos Específicos 23
APOSTILAS OPÇÃO

visão que a considera como uma unidade biológica constituída Constata que apesar de diversas tentativas e previsões
segundo leis da “natureza”, poderosa força simbólica.” sobre o seu desaparecimento, as quais não se concretizaram, a
Especificamente no que diz respeito às famílias família continua sendo a mediação entre o indivíduo e a
consideradas pobres, para quem se dirigem as políticas sociedade, assistindo-se hoje ao enaltecimento dessa
sociais, é importante levar em consideração a sua própria instituição.
concepção de família e os significados específicos que estas Quanto a afetividade, o autor assim afirma: “A afetividade é
mudanças trazem sobre ela. um meio de penetrar no que há de mais singular na vida social
Sob esta ótica garante a autora do artigo: coletiva, pois ela constitui um universo peculiar da configuração
“As mudanças familiares têm, assim, sentidos diversos para subjetiva das relações sociais de dominação.”
os diferentes segmentos sociais, e seu impacto incide de formas O autor propõe um confronto entre Família e Afetividade,
distintas sobre eles, porque o acesso a recursos é desigual numa demonstrando os perigos e oportunidades da adoção, da
sociedade de classes. Portanto, para abordar o tema das famílias família e da afetividade na prática ético-política, sugerindo
e das políticas sociais, não se pode partir de um único alguns cuidados e medidas que devem ser adotadas para
referencial.” minimizar os perigos de se trabalhar o valor afeto, levando-o a
[...] potencializar o desejo de construir em conjunto a liberdade e
“A família pobre, constituindo-se em rede, com ramificações a felicidade de estar em conjunto, transformando a família em
que envolvem o parentesco como um todo, configura uma trama uma infinidade de singularidades, elencando as principais,
de obrigações morais que enreda seus membros, num duplo senão vejamos:
sentido, ao dificultar sua individualização e, ao mesmo tempo, 1. Em primeiro lugar, eleger o valor afeto na ação social
viabilizar sua existência como apoio e sustentação básicos. com famílias pobres. As ações comunitárias e políticas
Entre as relações familiares, é sem dúvida a que ocorre entre públicas planejam ações como se os pobres não tivessem
pais e filhos que estabelece o vínculo mais forte, em que as necessidades elevadas e sutilezas psicológicas. Isto significa
obrigações morais atuam de forma mais significativa. Se, na olhar a família que sofre e não a família de risco ou a família
perspectiva dos pais, os filhos são essenciais para dar sentido a incapaz.
seu projeto de casamento, “fertilizando-o” — para não serem 2. Trabalhar o valor afeto não é ajudar as pessoas a se
uma árvore seca e outras tantas metáforas que exemplificam a sentirem um pouco melhor em sua pobreza ou gastar energia
analogia da família com a natureza —, dos filhos esperasse o para ocultar a dor ou para manter a família unida a qualquer
compromisso moral da retribuição dos cuidados.” custo. Todas essas medidas redundam na cristalização do
Conforme a autora se, em toda a sociedade brasileira, a sofrimento. O objetivo é potencializar as pessoas para
família é um valor alto, entre os pobres sua importância é combater o que causa o sofrimento.
central e precípua, e não tão somente como rede de apoio ou 3. A concepção de afetividade aqui adotada desloca o
ajuda mútua, indo muito mais além. político para o campo da ética e ambos aos afetos, enfatizando
Neste sentido, a família, para eles, constitui-se em uma que a vida ética começa no interior das paixões. Os afetos são
referência simbólica fundamental que organiza e ordena sua espaços de vivência da ética, pois qualificam as ações e as
percepção do mundo social, dentro e fora do mundo familiar. relações humanas.
Assim, é importante, na formulação de políticas sociais, 4. Mais do que analisar a influência da estrutura familiar,
manter o foco no núcleo familiar, entendida em sua dimensão deve-se questionar pela afetividade que une a família gerada.
de rede. O grande desafio é criar famílias crioulas, amebas, geralmente
No mundo simbólico dos pobres, a família precede os fundadas em identidades múltiplas inacabadas, que se
indivíduos, e a vulnerabilidade de um de seus membros reinventam para que se tornem:
implica enfraquecer o grupo como um todo. a) representantes das necessidades humanas, com
É necessário e urgente considerar as desigualdades de legitimidade e competência para levar, às esferas de
gênero, socialmente instituídas e agravadas nos grupos sociais negociação pública global, as angústias sinceras dos diferentes
desfavorecidos, bem como “desenredar os fios”, mas sempre domínios sociais, e para enfrentar a feudalização do planeta
levando em conta que desigualdades se configuram em causada pelo princípio de mercado;
relações, dentro de um mundo de significação próprio que b) lugares com calor, porto seguro de onde se sai e aonde
precisa ser levado em conta. Sendo assim, no que se refere às se chega.
famílias pobres, como escutar o discurso daqueles a quem se 5. Nessa práxis, cabe negar a política de afetividade
dirigem as políticas sociais, os pobres, e situá-lo no contexto dominante, na dimensão epistemológica, cultural e
que lhe dá significado, ou seja, o contexto de quem emite o intersubjetiva. Em lugar da capacidade para suportar o
discurso, e não necessariamente o de quem o analisa. sofrimento e não exprimir as emoções, deve-se atuar nos
A autora finaliza seus argumentos com a seguinte frase, mecanismos sociais de inibição do desejo de liberdade e da
que sintetiza o tema proposto: “...nas políticas sociais trata-se sensibilidade ao sofrimento, recuperar a capacidade de afetar
de transformar o lugar do outro na sociedade. No entanto, como e ser afetado.
condição prévia a essa transformação, trata-se de mudar o 6. O planejamento das ações deve se orientar pela
lugar em que nos colocamos perante os demais.” concepção de que só a razão não é força capaz de dominar a
Bader Sawaia em seu artigo “Família e afetividade: a paixão. Só uma paixão mais forte domina outra mais fraca. Em
configuração de uma práxis ético-política, perigos e contrapartida, a paixão, sozinha, sem o intelecto, torna a
oportunidades” defende a importância e os riscos da adoção pessoa escrava do campo sensorial; e só a força das emoções
da família e da afetividade como estratégias de uma ação não produz uma obra de arte: “Por si só, nem o mais sincero
emancipadora que permita enfrentar e resistir à profunda sentimento é capaz de criar arte; para tanto, ele precisa
desigualdade social modelada pelo neoliberalismo e a um ultrapassar-se” (Vygotsky, 1925-1998). Daí decorre que o
conjunto de valores individualistas. projeto coletivo não pode desconsiderar o gozo individual,
O objetivo é defender a “importância da adoção da família tampouco exigir sacrifícios remetendo ao futuro a satisfação
e da afetividade como territorialidade e estratégia da ação (paradigma da redenção).
emancipadora que permite enfrentar e resistir à profunda O autor assim encerra suas conclusões:
desigualdade social modelada pelo neoliberalismo, bem como ao “Em síntese, a práxis ético-política com famílias atua nas
Zeitgeist (espírito de época), uma composição de valores emoções para se contrapor ã pobreza e à dominação. Como fala
intimistas, individualistas, e de lógica fundamentalista.” Espinosa, a política nasce do desejo humano de libertar-se do
medo, da solidão: “Só as pessoas livres e felizes são gratas umas

Conhecimentos Específicos 24
APOSTILAS OPÇÃO

as outras e estão ligadas por fortes laços de amizade. As servis Essa nova concepção se constrói, atualmente, baseada mais
ligam-se por recompensa, medo” (1957, livro IV), ressaltando o no afeto do que nas relações de consanguinidade, parentesco ou
caráter ético e político dos afetos. casamento. É construída por uma constelação de pessoas
São esses os pressupostos que nos fizeram eleger, como interdependentes girando em torno de um “eixo comum”. Seja
estratégia e espaço da práxis ético-política, a família e a qual for sua configuração, as estruturas familiares reproduzem
afetividade, e a definir como seu alvo o “desejo do comum”, a as dinâmicas sócio-históricas existentes. Assim, movimentos da
disposição de viver em comum, que, segundo Espinosa, é a divisão social do trabalho, modificações nas relações entre
disposição de viver em paz, sem pôr fim aos seus conflitos e aos trabalhador e empregador, bem como o desemprego, estão
desejos contrários e sem a necessidade de pactos políticos ou presentes e influenciam seu sentido e direção.
éticas normativas (Chauí, 2003).” Segundo o autor adentrar no mundo adulto significa
O artigo denominado “Ser criança: um momento do ser desprender-se do seu mundo infantil, tarefa difícil que deverá
humano” da autora Heloiza Szymanski analisa as mudanças na acontecer de forma gradativa e para a qual o adolescente nem
forma como as crianças são vistas pelos adultos ao longo da sempre está preparado, pois a aceitação, ou não, das
história e as consequências na formulação de modelos de instabilidades desta fase evolutiva, bem como a forma pela
desenvolvimento humano e práticas educacionais. qual os adolescentes são acolhidos, determinará a qualidade
Para a autora: “Muitas vezes, teme-se que o dialogar com do novo cunho de inter-relações.
uma criança ou um adolescente ameace a autoridade. Não é o Necessário refletir que, no cotidiano das famílias de baixa
caso, pois o que se persegue é a instauração de um pensar crítico, renda, instala-se outro círculo vicioso difícil de ser rompido: a
com sensibilidade e abertura para compreender o outro, além falta de políticas públicas empurra os jovens pobres para
da confiança em sua capacidade de compreensão e comportamentos socialmente excludentes; quanto mais
disponibilidade para criar novas soluções, dentro dos excluídos, menos as políticas atuais são eficazes sem atingir
fundamentos éticos da educação. Trata-se de transmitir mudanças de comportamentos necessárias para sua inclusão
conhecimentos e uma interpretação do mundo. Isso não significa social.
ausência de conflitos, e é na sua superação que se realiza a dupla Nesse contexto, a autora defende a ideia de que a
função de proteger a criança e o mundo.” formulação das políticas requer conhecimentos diversos na
Neste contexto, chama a atenção para a perda da perspectiva multidimensional, a fim de proporcionarem ações
responsabilidade dos adultos pelo mundo ao qual trouxeram emancipatórias e que possibilitam reais conquistas de direitos.
as crianças, e para os reflexos decorrentes na família e na Entretanto, de acordo com a autora, em sua maioria, as
escola. políticas atuais caracterizam-se por determinarem ações
Silvia Losacco analisa o jovem e o contexto familiar. emergenciais, assistencialistas, localizadas e descontínuas, ou
Partindo do pressuposto de que é necessário situar o eixo do seja, propostas com formatos pontuais seguem “fórmulas” que
discurso em “famílias”, na sua pluralidade, mostra que é vêm prontas, muitas vezes desconhecendo os reais desejos e
preciso aprofundar a reflexão sobre o que é ser jovem, também as necessidades daqueles jovens em particular.
em um contexto de diversidade e complexidade, e sobre como Quanto aos programas e propostas de atendimento ao
se têm estabelecido os laços dos jovens com outros jovens, dos jovem, conclui a autora:
jovens com suas famílias e dos jovens com a sociedade. “A proposta prioriza um contexto que humaniza, através do
Dessa forma contextualiza a autora: exercício de ouvir, de acolher, de considerar, de trocar. Tem no
“Quando se pensa na relação do jovem e de seu contexto profissional coordenador um catalisador/facilitador do fazer
familiar há que se aprofundar também a reflexão do que é ser emergir os conflitos, as possibilidades de diálogos. Esse
jovem. São igualmente múltiplas as compreensões sobre o coordenador é, necessariamente, um co-partícipe das
entendimento do que seja ser jovem. Muitas têm sido as possibilidades de novos encaminhamentos das questões e das
investidas para esta definição. Apesar de ser uma noção transformações. Favorece o desvelamento dos valores e das
construída socialmente, que não pode ser definida segundo dissonâncias i impressas nas atitudes relacionais entre jovens e
critérios exclusivamente biológicos, psicológicos, jurídicos ou adultos, como, por exemplo: a autoridade e o autoritarismo, a
sociológicos, a juventude tem limites mínimos e máximos, e esses liberdade e a bagunça, a autonomia e o individualismo.
limites variam em cada conjuntura histórica.” Proporciona o questionar, o divergir, o estar à vontade para
Daí surge o seguinte questionamento: Quais as redes que debater, assegurando-se da importância do aprender a pesar as
têm sido tecidas para o seu atendimento e quais políticas estão diferentes alternativas e do poder de escolha entre uma coisa e
sendo operacionalizadas, ou não, em direção aos jovens e às outra. Formas que levam a escolhas livres, mas com
suas famílias? responsabilidade. Liberdades e responsabilidades que devem
Em seu artigo “O Jovem e o Contexto Familiar” traz crescer juntas, num mesmo eixo, na busca da construção da
reflexões da participação dos homens no contexto do ato de cidadania.”
cuidar e demonstrar carinho, tendo como foco principal os Encerrando o primeiro eixo temático, Maria Amalia Faller
processos de socialização para a masculinidade. Vitale em sua obra “Avós: Velhas e Novas Figuras da Família
O autor afirma: Contemporânea” aborda a importância figura dos avós,
Na atualidade, a família deixa de ser aquela constituída emergidos como protagonistas nas cenas das relações
unicamente por casamento formal. Hoje, diversifica-se e familiares.
abrange as unidades familiares formadas seja pelo casamento Attias-Donfut e Segalen (1998), estudiosas da dimensão
civil ou religioso, seja pela união estável; seja grupos formados geracional, apontam, com base em uma extensa pesquisa,
por qualquer um dos pais ou ascendentes e seus filhos, netos ou realizada na sociedade francesa, que “os avós, os grandes
sobrinhos, seja por mãe solteira, seja pela união de esquecidos da sociedade, são as novas figuras familiares de
homossexuais (mesmo que ainda não reconhecida em lei). nosso tempo”. Para as autoras, as separações conjugais, a
Acaba, assim, qualquer discriminação relacionada ã estrutura recomposição familiar, a monoparentalidade, entre outros
das famílias e se estabelece a igualdade entre filhos legítimos, temas da vida em família, suscitam interesse dos
naturais ou adotivos. pesquisadores e dos meios de comunicação, enquanto os avós,
Situando a estrutura familiar dentro de um contexto apesar de tão numerosos hoje, despertam menor atenção.
histórico e social, o autor avalia as diversas formas pelas quais De acordo com Maria Faller “as mudanças dos laços
as relações de gênero se processam e como a paternidade foi familiares e a vulnerabilidade que atinge as famílias demandam
exercida em diferentes momentos históricos. novos papéis, novas exigências para essas figuras, personagens
que ganham relevo não só na relação afetiva com os netos, mas

Conhecimentos Específicos 25
APOSTILAS OPÇÃO

também como auxiliares na socialização das crianças ou mesmo ser criança, sem que seus pais assumissem essas dimensões da
no seu sustento, mediante suas contribuições financeiras. No vida como algo importante. Como em muitos outros programas,
Brasil, essa temática tem sido, entretanto, pouco debatida, tanto as famílias eram objeto da assistência social, e não sujeitos de
nos estudos sobre as questões da família contemporânea como processos. Os processos e as ações haviam sido decididos por
naqueles que pesquisam e tratam do envelhecimento.” outros para que elas cumprissem.
Enfocando as relações intergeracionais e de gênero, Essa realidade era constatada diariamente pelos atores
indaga-se qual o papel por eles desempenhado nas famílias de diretos do programa — como monitores, professores,
hoje, dentro de um contexto de mudanças dos laços familiares, sindicalistas — e, ao mesmo tempo, levantada como ponto
a lhes demandar novos papéis e novas exigências, aumentando crítico de sua sustentabilidade social por avaliadores externos
exponencialmente o número de avós que detém a guarda dos que visitavam a experiência.”
netos, conforme observa a autora: Apesar das adversidades, o autor demonstra alguns
“Nesse quadro geral da guarda, eles continuam a ter resultados positivos da intervenção, elencando algumas
responsabilidades na criação dos netos. O aumento do número conquistas:
de crianças que vivem com os avós é fato. A pobreza, o
desemprego, o aumento da desigualdade social, a insuficiência - No âmbito dos agentes:
das políticas públicas e sociais podem ter levado ao aumento de Há registro de novas lideranças, reveladas pelo projeto. Os
sua contribuição na rede familiar. A precária condição em que agentes são pessoas simples, que se sentem valorizadas na
vivem os netos tende a mobilizá-los na direção de lhes prestar relação mais ampla da sociedade e da própria comunidade,
atendimento. Os avós cuidadores", com sua pouca descobrindo seu papel de dinamizadores, de mobilizadores de
aposentadoria, procuram ajudar nas dificuldades da família. processos sociais e, desse modo, de educadores.
Existem trocas informais na rede familiar a serem consideradas,
e os idosos integram o sistema de apoio mútuo, em especial nas - No âmbito das famílias:
famílias pobres. Convém lembrar que essas trocas não se dão 1 Há uma grande mudança cultural em relação à:
sem tensões no seio da família.” a) Compreensão do papel da escola na vida das crianças,
De acordo com pesquisa de Perfil dos Idosos Responsáveis com consequente incentivo para que a frequentem;
por Domicílio no Brasil (IBGE — Censo 2000) aponta que as b) Valorização da jornada ampliada;
pessoas com 60 anos ou mais constituem 8,6% da população. c) Avaliação do trabalho infantil como um malefício, e o
O estudo revela que os idosos chefes de família passaram de consequente dever de evitá-lo e combatê-lo;
60,4%, em 1991, para 62,4%, em 2000. Desse universo, 54,5% d) Descoberta do direito de fiscalização do funcionamento
vivem com os filhos e são a principal fonte no sustento destes. da jornada ampliada e da escola, quanto a merenda, presença
No entanto, sua renda é menor que a dos chefes de família do de professores, temas trabalhados, processo geral.
resto do país. e) Atitude de assumir o programa como direito e dever seu
Neste contexto, conclui a autora que “o desenvolvimento de e não como dádiva do Estado ou dos políticos;
pesquisas sobre os laços intergeracionais que estão no cerne das f) Postura cidadã de construção do desenvolvimento da
questões familiares, com foco nos avós, contribui, sem dúvida, região.
para uma melhor apreensão das dinâmicas familiares. Estas 2. Observa-se uma maior participação das famílias em
ajudarão a compreender sua presença como novas e velhas processos de:
figuras das famílias contemporâneas. E, finalmente, por meio - Qualificação profissional que melhore e potencie sua
das relações intergeracionais, podemos examinar o desenho das geração de renda;
fronteiras familiares, hoje condição essencial para a discussão - Reivindicação de seus direitos e de serviços básicos (há
das políticas sociais.” manifestações frequentes sobre a pontualidade dos
O segundo eixo temático “Trabalhando com Famílias” pagamentos, contando com mais de 800 pessoas; há ida das
focaliza as diversas metodologias do trabalho com famílias. As famílias, através de sindicatos e associações para debater com
frentes temáticas apresentadas demonstram elementos os gestores do programa os problemas identificados nas
comuns quanto elementos que se opõem na implementação de comunidades; há realização de seminários onde se debate
programas voltados para as famílias pobres. violência familiar, água de qualidade, etc.).
Naidison de Quintella Baptista descreve o projeto Agente 3. Nota-se uma maior filiação e participação em sindicatos,
de Famílias — desenvolvido pelo Movimento de Organização associações, grupos de mulheres, as quais pressionam as
Comunitária (MOC) e o Unicef, no Programa Estadual de entidades que as representam para que cobrem melhores
Erradicação do Trabalho Infantil, na área sisaleira da Bahia — serviços, fiscalizem programa, etc.
e uma metodologia de trabalho social com famílias. 4. Há uma maior disposição em assumir o programa como
O projeto aplica-se à área rural, região semiárida da Bahia, seu, com a responsabilidade de mantê-lo em funcionamento,
onde a pobreza, miséria e a falta de oportunidades de vida de cobrar dos poderes públicos pontualidade nos pagamentos
digna impedem as famílias de “dizerem sua palavra” e e qualidade dos serviços.
ocuparem seus espaços de cidadãos.
A coordenação é feita pelo Movimento de Organização - No âmbito do Peti:
Comunitária (MOC), organização não-governamental sediada a) Registra-se um aumento no número de parcerias e
em Feira de Santana, na Bahia, que atua há 35 anos na região. corresponsabilidades, e o programa obtém mais sucesso à
Na última década, vem sendo desenvolvida uma intensa medida que melhora o entendimento que cada parceiro tem do
parceria com O Fundo das Nações Unidas para a Infância seu papel nessa ação. O fato de as famílias entenderem o
(Unicef), especialmente no âmbito do trabalho pelos direitos programa, seus direitos e deveres, faz que estas desempenhem
das crianças melhor seus papéis e que o poder público seja cobrado e
Entretanto, conforme expõe o autor grandes desafios são fiscalizado pelos cidadãos, beneficiários dos serviços.
enfrentados cotidianamente para a manutenção do programa, b) Há maior zelo pelos bens públicos.
como alerta o autor: c) Observa-se que as famílias, através de suas
“O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil trazia e organizações, passam a sugerir e a exigir pautas e processos
traz, para as famílias cadastradas, alguns dilemas e questões. do próprio poder público — exemplo: que a merenda seja
Sem solucioná-los, o próprio programa tendia a ser comprada das próprias famílias e não fora do município,
assistencialista e paternalista. A partir da concessão de uma incremento importante à geração de renda; que há
bolsa, oferece-se à criança oportunidades de brincar, estudar, qualificação para professores, monitores e merendeiras.

Conhecimentos Específicos 26
APOSTILAS OPÇÃO

- No âmbito do município: Nessa política, a família tem centralidade, vista como grupo
Percebe-se que a mentalidade cidadã, que cresce e se que não só precisa de proteção social, mas que processa
espalha, interfere no desenvolvimento municipal, uma vez que proteção. As que carecem de proteção são as que se encontram
se começa a exigir serviços de maior qualidade, transparência fora de mecanismos e sistemas de segurança social obtidos pela
nas ações, resultados dos investimentos. via do trabalho, pela via do acesso às políticas públicas (saúde,
Conclui-se que essa mesma mentalidade interfere no educação, cultura, habitação, saneamento básico, etc.) e/ou
desenvolvimento na medida em que as pessoas se avaliam e pela via da inserção em relações sociofamiliares.
atuam como responsáveis por ele, não transferindo todas as Para o grupo de famílias empobrecidas, a rede de proteção
responsabilidades ao poder público. social envolve benefícios monetários, na forma de renda mínima,
A partir da leitura da obra é possível constatar a ou benefícios em espécie, tais como cestas básicas,
importância fundamental da unidade familiar, seja qual for o medicamentos, vale-transporte, etc. Envolve, igualmente,
entendimento que dela se tenha, em qualquer processo de serviços de proteção, dos quais os mais comuns referem- se aos
mudança social. Por ela passam as decisões e a maioria dos chamados “serviços de pronto atendimento” (plantões sociais),
processos culturais básicos que podem contribuir para que ofertam escuta, encaminhamento a serviços das demais
mudanças ou enraizar procedimentos, constituindo-se de base políticas, ajuda psicossocial e/ou advocatícia; serviços de
fundamental para a implementação de quaisquer políticas fortalecimento de competências e vínculos sociocomunitários —
públicas voltadas para a área social. tais como grupos de convivência e autoajuda,
Rosamélia Ferreira Guimarães e Silvana Cavichioli Gomes microempreendimentos voltados ã melhoria da habitação, da
Almeida em sua obra “Reflexões sobre o trabalho social com renda, da ampliação do universo informacional e cultural —; de
famílias” tratam de indicações metodológicas para o trabalho conquista e participação em serviços públicos e de melhoria da
com famílias pobres, a partir de pesquisas e trabalhos de vida em comunidade.
intervenção realizados em diferentes realidades sociais. No decorrer da demonstração da realidade e aplicação do
Dentre suas abordagem destaca-se essencialmente o programa de transferência de renda em âmbito municipal, as
trabalho de pesquisa realizado com famílias carentes, autoras identificam ser de grande importância a atuação das
afirmando: redes de proteção social, descrevendo seu caráter essencial
Essas famílias estão diante do desafio de enfrentar, sem para a viabilização do programa de superação da pobreza,
nenhuma proteção social, carências materiais e financeiras. trazendo ao texto relatos de famílias atendidas, permitindo
Convivem, além disso, com graves conflitos relacionais. Essas algumas reflexões baseadas nos históricos das famílias
dificuldades já são suficientes para caracterizar a situação por beneficiárias do programa.
elas vivida como de violência social. A essas dificuldades somam- E assim, concluem suas experiências relativas ao programa
se episódios cotidianos de violência urbana, originados pelos desenvolvido:
grupos do narcotráfico e do crime organizado, compondo um “O agir institucional pode tornar-se perverso quando ignora,
quadro de acúmulo e potencialização da violência familiar. Em neutraliza ou obscurece a dimensão de política pública da
outras palavras, as famílias pobres são o microcosmo da proteção social. A ação institucional, nesse caso, despolitiza as
contradição social e o paiol de conflitos que, no mais das vezes, demandas do “pobre”, tomando-o indivíduo portador de
eclodem em múltiplas formas de violências. Contraditoriamente, carências psicossociais ou desqualificando-o como frágil
descrevem uma epopéia hercúlea e solitária contra a enorme merecedor de compaixão. Nessa condição, a ação transmuta-se
pressão social e econômica que joga a favor de seu em tutela, não garantindo ao atendido a voz e a vez na
estilhaçamento e da eliminação física de seus membros. interlocução institucional — arena pública de acolhimento de
E assim, concluem as autoras que no Brasil as pesquisa suas demandas.
devem ser aprofundadas não só no tocante aos avanços e Políticas e programas de proteção social são movidos por
estudos realizados e já aplicados em outras partes do mundo, processos. Processos emancipatórios processam autonomia;
mas devem sobretudo inspirar-se no modelo das políticas processos compensatórios ou tutelares processam dependência,
sociais e programas constitucionalmente previstos, ou seja, as com pouco impacto na superação da pobreza.”
propostas e programas de trabalho com as famílias brasileiras Regina Maria Giffonni Marsiglia em seu artigo “Famílias:
devem priorizar métodos que lhes permitam sair do local que Questões para o Programa de Saúde da Família” destaca a
hoje ocupam para um ambiente solidário e facilitador de implantação do Programa de Saúde da Família no Sistema
formas de enfrentamento das adversidades econômicas, Único de Saúde (SUS), seus pontos positivos e as
sociais e políticas. possibilidades de desenvolvimento de experiências
O artigo seguinte, escrito em conjunto por um grupo de inovadoras em diversos municípios.
pesquisadores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Em se tratando do Programa de Saúde da Família, as
Serviço Social da PUC-SP, composto por Ana Rojas Acosta, equipes devem questionar-se, em primeiro lugar, se sua
Maria Amalia Faller Vitale e Maria do Carmo Brant de unidade de trabalho são famílias mesmo, ou se, ao cadastrarem
Carvalho, relata e avalia o Programa de Renda Mínima pessoas que moram no mesmo domicílio, não estão
desenvolvido na cidade de São José dos Campos, descrevendo trabalhando com unidades residenciais (Bruschini, 1989), ou
o perfil do município, derivando algumas hipóteses avaliativas com arranjos domiciliares. (Medeiros e Osório, 2001).
em relação à rede municipal de proteção social e a inserção da As equipes devem ainda avaliar, ao final da fase de
família junto a ela. cadastramento, quais os tipos de composição familiar
Para ilustrar o artigo, traz-se o relato da equipe encontrados em cada unidade residencial, ou os arranjos
responsável pelo Programa de Garantia e Renda Mínima e de domiciliares engendrados para o enfrentamento da
Geração de Emprego e Renda da Prefeitura de São José dos sobrevivência diária — e pensar quais os possíveis
Campos. desdobramentos desses tipos de composição para a saúde de
Para melhor compreensão, o Programa Municipal de seus membros. A dinâmica familiar/ou residencial poderia ser
Renda Mínima é necessário tecer algumas considerações das apreendida com o aprofundamento dos vínculos da equipe
autoras a respeito: com as famílias, através das visitas domiciliares periódicas e
“A proteção social, nesse âmbito, é compreendida como o das orientações que fazem parte do PSF.
alcance de mínimos sociais de sobrevivência e inclusão, capazes A autora afirma:
de assegurar a seu público-alvo a superação de um patamar de Muito tem sido feito para a preparação das equipes de saúde
vulnerabilidade que o mantém excluído dos mais elementares da família, considerando-se que elas devem dominar outros
bens, serviços e redes sociorrelacionais. conhecimentos, desenvolver novas habilidades e atitudes que

Conhecimentos Específicos 27
APOSTILAS OPÇÃO

facilitem a formação de vínculos dos profissionais com as A necessidade de inovação tecnológica na área social deve
famílias que atendem. Mas pouco ainda se faz para prepará-los permitir subsidiar instrumentais para uma efetiva avaliação,
para as abordagens de família, como se isso fosse decorrente de em que se coloquem em relação os percentuais de cumprimentos
um talento inato de cada um ou das experiências pessoais, ou, de metas físicas ou financeiras junto aos processos que foram
ainda, que a questão não fosse objeto de conhecimento produzidos, ou seja, os resultados e as mudanças que os
especializado. programas provocam na realidade na qual incidem, no seu
Ilustrando o artigo, são apresentadas, ao final, as compromisso efetivo com a melhoria da qualidade de vida dos
experiências da implantação do Programa de Saúde da Família cidadãos beneficiários dos diversos programas e serviços
nos municípios de Itapeva e de Nhandeara, cidades públicos. Desta maneira, acredita-se que a ferramenta
respectivamente de médio e pequeno portes do Estado de São informacional ora apresentada — SIGS — facilita esta ação.
Paulo. Ilustrando o artigo, são apresentados, ao final, a
Encerrando o segundo eixo, Ana Rojas Acosta e Marcelo A. experiência e relatos de casos da Prefeitura do Município de
Santos Turine apresentam os contextos e os objetivos do Santo André na implantação do Programa Mais Igual de
Sistema de Informação de Gestão Social (SIGS) aplicados no complementação de renda familiar, de autoria de Cid Blanco e
monitoramento e avaliação de programas de complementação Valéria Gonelli, e um panorama dos programas de apoio à
de renda, ou seja, uma plataforma computadorizada com família no âmbito do Estado de São Paulo, formatados como
acesso na Internet que possibilita a avaliação e o subsídios financeiros de complementação de renda, escrito
monitoramento de programas de complementação de renda, por Luci Junqueira e Nelson Guimarães Proença.
surgido na parceria entre o Instituto de Estudos Especiais da Finalizando os eixos temáticos propostos, a terceira parte
PUC-SP e a Secretaria de Inclusão Social e Habitação da aborda as relações propriamente ditas entre as famílias e as
Prefeitura do Município de Santo André. políticas públicas a partir da abordagem de educação,
Trata-se de uma ferramenta computacional na Internet que economia e formulação de indicadores de acompanhamento
disponibiliza um Cadastro Único de perfil social/econômico da dessas políticas, para acompanhar suas execuções bem como
família, auxiliando o monitoramento dos diversos aspectos do eficácia dos programas e projetos colocados em pratica.
programa, desde o perfil das pessoas e da família até uma Denise Neri Blanes discute a formulação de indicadores de
ferramenta gerencial que aponta as fragilidades e as acompanhamento e avaliação de programas/políticas
potencialidades de um programa social, tanto no aspecto de voltados a famílias em situação de pobreza, ressaltando o
aplicação e uso de recursos quanto na verificação das metas e desafio em se estabelecer indicadores quantitativos e criar
objetivos alcançados. formas de medir adequadamente os indicadores qualitativos.
De acordo com os autores, o conhecimento tornou-se um Conceitualmente indicador é um fator, ou um conjunto de
dos principais fatores de superação e combate de fatores, que sinaliza ou demonstra a evolução, o avanço, o
desigualdades, de agregação de valor, de criação de emprego desenvolvimento rumo aos objetivos e às metas do projeto.
qualificado e de propagação do bem-estar (Terra, 2001). A Trata-se de instrumento importante para controle da
evolução científica e tecnológica tornou o conhecimento e o gestão, tanto na administração pública como na administração
tempo um importante diferencial competitivo para as privada. São como fotografias de determinadas realidades
empresas, a sociedade e os governos. sociais; tiradas de uma mesma localidade, em tempos
A Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) define como diferentes, permitem acompanhar as mudanças ocorridas no
destinatários da assistência social os grupos sociais em risco e “objeto” que se está avaliando (Kayano e Caldas,).
situação de vulnerabilidade e pobreza (crianças, adolescentes, Neste contexto indicador social é uma medida em geral
jovens, idosos e pessoas portadoras de deficiência – grupos de quantitativa, dotada de significado social substantivo, usado
risco). para subsidiar, quantificar ou operacionalizar um conceito
Dessa forma, o objetivo das políticas públicas de social abstrato, de interesse. Do ponto de vista metodológico,
Assistência Social é garantir os mínimos sociais necessários segundo Cardoso (1998), “a construção de indicadores tem
para os segmentos da população mais necessitados, por meio como premissa básica uma teoria previamente desenvolvida,
de redes de proteção/promoção social que articulem que qualifica o problema e as hipóteses relevantes e, ainda, uma
benefícios, serviços, projetos e programas sociais, adequação rigorosa entre o quadro conceituai e as informações
considerando como unidade de atuação a família. disponíveis”.
Assim, a política de proteção e de inclusão social tem como Dada tais explicações, a autora defende a necessidade de
um de seus focos de intervenção os programas de formulações de indicadores de acompanhamento e avaliação
complementação de renda das famílias, nas diversas de programas/políticas voltados a famílias em situação de
modalidades; Bolsa-Escola, Renda Mínima, Auxílio-Educação, risco afirmando em suas conclusões que:
Bolsa-Alimentação, Erradicação do Trabalho Infantil e o Dependendo de onde estivermos, dependendo do que
Auxílio-Gás, dentre outros. acreditarmos, dependendo das ferramentas e das estratégias
Nesta direção, a ferramenta informacional SIGS é uma das que estiverem à nossa disposição, poderemos escolher este ou
novas tecnologias da área de sistemas de informação que aquele indicador, esta ou aquela variável como a mais
surge para auxiliar processos gerenciais de programa sociais, significativa para dizer se houve ou não melhoria na
e segundo os idealizadores do sistema temos: sociabilidade dos jovens que vão ao teatro, para dizer se houve
Em resumo, o SIGS tem como foco principal o cadastro único ou não aumento da auto-estima de um membro do grupo
de famílias e o seu monitoramento durante a permanência no socioeducativo do Programa de Renda Mínima.
programa, desde o perfil do público beneficiário até a gestão dos A avaliação e a construção de indicadores é um processo de
insumos, passando pela identificação de fragilidades e valoração; eles identificam os processos e os resultados,
potencialidades operacionais e, finalmente, pela avaliação dos comparam dados de desempenho, julgam, informam e propõem
resultados em vista das metas estabelecidas. soluções segundo um referencial, um acúmulo, um
Assim o SIGS oferece um conjunto de serviços posicionamento político e ideológico. Não é uma tarefa fácil,
administrativos e sociais customizados à realidade do aliás, é sempre muito polêmica.
programa social da organização, devendo manter, Mirela de Carvalho, Ricardo Paes de Barros e Samuel
sigilosamente, todas as informações armazenadas. Franco discorrem sobre a construção de um indicador
Finalizando o artigo, em suas considerações finais, assim denominado índice de Desenvolvimento da Família (IDF), que
concluem os autores: seja sintético nos moldes do IDH, mas que ao mesmo tempo
supere algumas limitações deste e de outros índices similares,

Conhecimentos Específicos 28
APOSTILAS OPÇÃO

podendo ser calculável para cada família (e não apenas para podemos, porém, exaurir esse potencial protetivo sem lhe
regiões geográficas) e facilmente agregado para diferentes ofertar um forte apoio. Há aqui uma mão dupla a ser garantida.
grupos demográficos. Esse raciocínio se aplica às demais políticas na relação com
De acordo com o texto: “a ideia de construir um indicador a família. Por exemplo, às políticas de saúde: a família é sujeito
escalar que sintetize todas as dimensões relevantes da pobreza coletivo que opera na saúde de seus membros, mas não basta
é antiga. Não obstante, tomou verdadeiro impulso apenas após alçá-la à parceria. É preciso produzir saúde para e com a
a criação do índice de Desenvolvimento Humano (IDH) pelo família.
Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD), Sua importância na esfera pública ainda suscita
no início da década de 1990. Hoje, o IDH rivaliza com desconfianças, mas é fato que a família, em sua condição de
indicadores de pobreza que se baseiam na insuficiência de renda esfera de vida íntima, lugar de encontro humano, de construção
a primazia para ordenar a situação social de países, regiões, de história de vida, de reposição de valores e exercício de poder
políticas sociais, bem como para avaliar o progresso no combate moral sobre o imediato, é interface necessária na esfera pública.
à pobreza.” “
Entretanto, segundo os autores o Índice de Ilustrando o artigo, Afonso Celso Renam Barboa e Laura
Desenvolvimento Humano possui algumas limitações, dentre Affonso de Castro Ramo trazem a experiência do Programa
elas são destacadas três deficiências fundamentais: Bolsa-Escola da Prefeitura do Município de Belo Horizonte por
a) a seleção arbitrária dos indicadores e dos pesos meio de relatos de casos, assim como suas metodologias de
utilizados para criar o indicador sintético; trabalho com as escolas e as famílias.
b) nem o IDH nem seus similares estarem adaptados de Ladislau Dowbor encerra esta coletânea discorrendo de
modo o a serem calculados para cada família, em geral, eles são forma crítica sobre a economia da familiar, analisando as
estimados apenas para áreas geográficas. relações familiares sobre a ótica econômica e em face das
c) Enquanto muitos indicadores de pobreza para um país mudanças ocorridas na estrutura familiar.
se igualam à média ponderada dos correspondentes De acordo com as fontes de pesquisa do autor:
indicadores estaduais, no caso do IDH nacional não se pode “Em termos econômicos, a fase ativa da nossa vida,
obter equivalente média. tipicamente dos 16 aos 64 anos, pode ser vista como produzindo
Em suma, o objetivo da mencionada obra literária é um excedente: produzimos, nesta idade, mais do que o
demonstrar como é possível construir um índice sintético que, consumido, e com isto podemos sustentar filhos e idosos,
por um lado, compartilhe com o IDH e com seus similares a eventuais deficientes, doentes ou pessoas da família, mesmo em
vantagem de levar em consideração diversas dimensões da idade ativa, que não tenham como se sustentar. Em outros
pobreza, para além da insuficiência de renda; por outro lado, termos, a economia da família permite, ou permitia, uma
que apresente, assim como os índices tradicionais, a redistribuição interna entre os que produzem um excedente e O
capacidade de poder ser construído para cada família S que necessitam desse excedente para sobreviver”
individualmente e ser facilmente agregado. Ladislau Dowbor analisa a questão sob o prisma da
Assim, os autores defendem a ideia de um índice de poupança familiar, e a relação de trabalho ressaltando o papel
desenvolvimento calculado com base no nível da família, o da família na economia, afirmando:
índice que ora é apresentado (Índice de Desenvolvimento da No Brasil, com 17 milhões de trabalhadores, o mundo rural
Família - IDF), além de possibilitar esse cálculo, tem ainda representa o maior setor empregador do país. A indústria
características que permitem que ele seja fácil e aditivamente tem uns 9 milhões de trabalhadores, o comércio por volta de 7
agregável, de forma que se obtenha o grau de desenvolvimento milhões." Mas o mundo do nosso convívio é hoje essencialmente
de qualquer grupo demográfico, sendo apresentado urbano, e, nas cidades, são relativamente raras as ocorrências
ilustrações, gráficos e tabelas que justificam a eficácia e de continuidade profissional, salvo no caso de pequenas
aplicabilidade do IDF. empresas familiares. Não há mais coincidência entre o espaço
Maria do Carmo Brant de Carvalho em sua obra “Famílias residencial e o espaço de trabalho, e cada vez mais a casa é para
e Políticas Públicas” reflete sobre algumas das dimensões onde se volta cansado à noite, e de onde saem de manhãzinha,
entre a família e as políticas públicas, as quais revelam funções sonolentos, pais e filhos para a labuta diária. Há subúrbios que
correlatas e imprescindíveis ao desenvolvimento e à proteção constituem, hoje, cidades dormitório, mas de forma geral as
social dos indivíduos. nossas casas viraram casas-dormitório.
Neste sentido inicia seu artigo literário afirmando que são [...]
várias as dimensões das relações entre a família e as políticas Em termos econômicos, a família constitui um processo, uma
públicas, exemplificando com o fato de que o exercício vital das sucessão de situações que compõem a nossa reprodução social.
famílias é semelhante às funções das políticas sociais. Se todos os elos dessa reprodução não estão assegurados — se
Defende suas argumentações no fato de que o “Estado e a temos, por exemplo, uma juventude desorientada ou
família desempenham papéis a similares, em seus respectivos desesperada, e a dramática mortalidade adolescente por
âmbitos de atuação: regulam, normatizam, impõem direitos de assassinatos —, isto faz parte de uma processo que não assegura
propriedade, poder e deveres de proteção e assistência. Tanto a própria lógica, tornou-se descontínuo, por mais que tenhamos
família quanto Estado funcionam de modo similar, como filtros belos hospitais de cinco estrelas para os executivos atualmente
redistributivos de bem-estar, trabalho e recursos (Souza, 2000)”. empregados. A perda do controle sobre as poupanças vai ter um
Em um mundo marcado por profundas transformações, é efeito direto sobre a forma de a família organizar sua
ressaltada a exigência da partilha de responsabilidades na participação nas atividades produtivas, no mundo do trabalho,
proteção social entre Estado e Sociedade, descartando-se pois reduz dramaticamente seu espaço de opções. Nesta fase de
alternativas tão somente institucionalizadoras. globalização, o que o liberalismo está gerando é, rigorosamente,
Analisa ainda as relações existentes entre a família e a a perda de liberdade econômica, e qualquer casal que tenta
esfera pública, vista como indutora de relações mais fechar as contas e planejar o seu futuro, e o dos seus pais e filhos,
horizontais, valor democrático sempre esperado da vida sente-se crescentemente angustiado.
pública, e assim conclui: Dentre suas argumentações, o autor finaliza sua obra com
“Independentemente de alterações e mudanças substantivas a análise de que a família deve auxiliar na reconstrução da
na composição e nos arranjos familiares, a família é um forte situação econômica, social, urbanístico, trabalhista, cultura
agente de proteção social de seus membros: idoso, doente que a viabilize, sendo insuficientes os discursos e ideológicos
crônico, dependentes, crianças, jovens, desempregados. Não de que a família é o esteio da sociedade, para tanto é preciso
viabilizar a própria sociedade desnorteada a qual se encontra,

Conhecimentos Específicos 29
APOSTILAS OPÇÃO

sendo inegável, sob esse prisma, que a transformação da implica que haja um relacionamento hierárquico entre eles e
família pertence a um conjunto de mudanças mais amplas, que cada nível atua como unidade semi-autônoma.
nos faz repensar o processo de rearticulação do nosso tecido A posição de poder está diretamente relacionada à
social. influência que cada membro tem na viabilidade mesma da
rede, pois as organizações confiam umas nas outras para
Outra obra literária de grande importância para a temática alcançar objetivos próprios e, nesse sentido, o poder de uma
de políticas públicas brasileiras é denominada “Redes de organização aumenta à medida que sua participação se torna
Políticas: Novos Desafio para a Gestão Pública” da autora essencial para a preservação da rede.
Sônia Fleury, que trabalha com o conceito de rede e seus Além disso, o gestor está envolvido em diversas redes, que
reflexos nos novos moldes de Gestão Pública. se sobrepõem ou influenciam mutuamente. A autora define
Inicia sua obra afirmando que o termo “rede” tem sido algumas variáveis para analisar as características de cada tipo
utilizado em diferentes disciplinas, e na gestão governamental de rede. Essas variáveis são:
é vista como um tópico emergente de junção das disciplinas de - “compatibilidade dos membros”, que corresponde aos
política e administração, citando Marando e Florestano, como níveis de congruência de valores e de concordância sobre os
um novo modelo estratégico de gestão de políticas, ou ainda objetivos. Nesse aspecto, o desafio está em conciliar o objetivo
como uma nova forma governamental. da rede com os objetivos particulares dos membros;
De acordo com Börzel (1997), todas as disciplinas que - “ambiente de mobilização de recursos”, que corresponde
trabalham com as redes de políticas compartilham um à disponibilidade de fundos e o tipo de controle sobre esses
entendimento comum no qual elas são vistas “como um recursos;
conjunto de relações relativamente estáveis, de natureza não- - “ambiente social e político”, que corresponde às bases de
hierárquica e independente, que vincula uma variedade de poder e ao padrão de conflitos.
atores que compartilham interesses comuns em referência a A autora considera o conflito como uma consequência
uma política, e que fazem intercâmbio de recursos para inevitável na relação de interdependência e deve ser
perseguir esses interesses compartilhados, admitindo que a aproveitado em seus aspectos construtivos, como o
cooperação é a melhor maneira de alcançar as metas comuns”. “ajustamento” de poder e de recursos entre as organizações;
Miller (1994) considera que nem o modelo tradicional de A complexidade do fenômeno das redes de políticas pode
administração pública, baseado na cultura da racionalidade ser espelhada nas diferentes paradoxos envolvidos em sua
técnica e dos controles e coordenação hierárquica, nem a análise, alguns dos quais foram apontados por Loiola e Moura
teoria econômica da escolha racional, fruto da motivação (1996, p. 58) ou por outros autores, senão vejamos:
baseada na racionalidade utilitária, são capazes de - organizações/indivíduos (JOHN, 1999): muitos autores
compreender o fenômeno atual das redes de políticas. identificam as redes como relações de interdependência entre
Para entender o fenômeno das redes, Miller propõe a organizações, mas outros autores chamam atenção para o fato
abordagem do construtivismo social, baseado no método de que essas relações se dão entre indivíduos que atuam
fenomenológico. É através da interação dos participantes na dentro daquelas organizações e criam vínculos entre si;
rede de políticas que as impressões e experiências ganham - transitoriedade/permanência: as relações entre os
significado, para além dos interesses egoístas individuais. diferentes atores ou nós da rede apresentam-se em padrões
Nesse caso, a ênfase deixa de ser na perseguição dos objetivos mais ou menos estáveis, o que as diferencia tanto de formas
comuns para enfocar o processo comunicacional, por meio do mais casuísticas quanto da formalização burocrática do
qual os membros da rede compartilham um conjunto de Estado. Essas estruturas flexíveis transformam-se com a
valores, conhecimentos e percepções dos problemas. dinâmica da própria rede,
Castells (1998) chega a formular a proposta de um estado- - cooperação/competição, solidariedade/conflito: as
rede, para designar o formato atual das políticas públicas, cuja redes estruturam-se como ações conjuntas de cooperação em
estrutura e funcionamento administrativo assumem as torno de um problema e uma solução compartilhados, o que
características de subsidiariedade, flexibilidade, coordenação, não exclui a existência de singularidades e conflitos. Mais que
participação cidadã, transparência, modernização tecnológica, um consenso prévio, o que existe é a negociação de interesses
profissionalização dos atores e retroalimentação e competitivos;
aprendizagem constantes. - igualdade/diversidade: os diferentes atores envolvidos
Traçado o contexto abordado pela autora, a mesma afirma: em uma rede resguardam sua diversidade ainda quando se
“Se na perspectiva societária privilegia-se a visão das redes igualam como parte de uma estrutura conjunta;
como processos mobilizatórios que geram conexões solidárias, - racionalidade instrumental/ racionalidade comunicativa
na perspectiva que privilegia a gestão das redes (na terminologia de Junger Habermas): a ação coordenada e
intergovernamentais e interorganizacionais, reconhecesse que interdependente requer a construção do consenso
a complexificação do sistema intergovernamental significou um comunicativo, mas a gestão das redes de políticas implica a
aumento das inter-relações em todos os níveis de governo e da ação instrumental que vincula, racional e eficazmente, meios a
sociedade, alterando o modelo de gestão das políticas públicas. fins acordados;
As redes intergovernamentais e interorganizacionais são vistas - construção/desconstrução: a dinâmica flexível das redes
como “estruturas de interdependência envolvendo múltiplas permite a permanente construção e desconstrução tanto de
organizações ou partes, em que uma unidade não é meramente padrões de interações como dos próprios nódulos que
o subordinado formal” compõem a rede.
Para Mandell (1990), no modelo de gestão estratégica Diante desse panorama, dado as informações colhidas dos
“intra-organizacional” o controle é baseado na autoridade diversos autores citados no artigo literário, temos:
legítima que parte da hierarquia. Com relação à estrutura de “Em resumo, o fenômeno das redes apresenta pelo menos
poder, as estratégias dependem da habilidade de a duas facetas que provocam uma mudança no tratamento das
administração do topo traçar as decisões, delegar e controlar questões político-administrativas. Por um lado, trata-se de
o processo de implementação. Além disso, as ações do reconhecer a complexificação tanto da sociedade como do
administrador estão delimitadas a um contexto organizacional Estado, no sentido de uma maior diversificação, especialização
específico. Diferentemente, na rede “interorganizacional” o funcional, aumento do número de atores envolvidos e de
controle não é uma relação preponderante. Ainda que seus recursos necessários para o enfrentamento dos problemas. Essas
membros representem os diferentes níveis de governo, não características geram um maior grau de incerteza, na medida
em que nenhum dos participantes pode antever os resultados e

Conhecimentos Específicos 30
APOSTILAS OPÇÃO

controlá-los isoladamente, necessitando reconhecer os No entanto, algumas das características das redes são
interesses dos demais parceiros, admitir os conflitos e gerenciá- também apontadas como limitadoras de sua eficácia ou
los em situações de mútua interdependência. Nesse sentido, a gerando problemas e dificuldades para sua gestão, tais como:
gestão de redes apresenta-se como uma modalidade • as redes de políticas apresentariam novos desafios para
administrativa mais compatível com uma sociedade plural e garantir a rendição de contas (accountability) em relação ao
democrática, em que o exercício do poder público cada vez mais uso dos recursos públicos, pelo fato de envolverem numerosos
se dá de forma descentralizada e com menor protagonismo do participantes governamentais e privados;
governo central. • o processo de geração de consensos e negociação pode ser
Por outro lado, os estudos sobre redes, ao admitir os demasiadamente lento criando dificuldades para enfrentar
paradoxos acima enumerados, indicam uma mudança questões que requerem uma ação imediata;
metodológica importante na abordagem dos fenômenos • as metas compartilhadas não garantem a eficácia no
administrativos, bem como na relação entre níveis cumprimento dos objetivos já que as responsabilidades são
governamentais e na relação entre Estado e sociedade. Abre-se muito diluídas;
assim, uma nova agenda de pesquisas e a necessidade de • a dinâmica flexível pode terminar afastando os
trabalhar-se a questão das políticas de uma forma mais participantes dos objetivos iniciais ou comprometer a ação da
desconcentrada. As rearticulações que se processaram, em anos rede pela deserção de alguns atores em momentos cruciais;
recentes, entre Estado, sociedade e mercado, implicaram novas • os critérios para participação na rede não são explícitos e
estruturas institucionais e de poder, que requerem um novo universais e podem provocar marginalização de grupos,
paradigma para análise da administração das políticas instituições, pessoas e mesmo regiões, podendo deixar a política
públicas.” apenas nas mãos de uma elite;
Gestão de Redes: em busca de um paradigma: • as dificuldades de controle e coordenação das
Diante das informações trazidas pela autora, é possível interdependências tende a gerar problemas de gestão das redes.
concluir que o ambiente de inserção da administração pública Os limites e possibilidades das Redes e Políticas Sociais se
caracteriza-se por transformações estruturais que impactam dão a partir do seu aumento exponencial devido a dois macro
amplamente a eficácia e eficiência da atividade estatal. fenômenos: Os processos de descentralização e
É consenso entre os diversos autores o fato de a natureza democratização que marcam as sociedades nas últimas
desse Estado ganhar novos contornos tanto como instância de décadas.
regulação social ou ator político que fixa objetivos para o bem Quanto aos processos de descentralização, é certo que
comum, quanto arena decisória, onde são construídas as provocam uma fragmentação inicial da autoridade política e
políticas ou provedores de bens e serviços públicos essenciais administrativa do Estado, pois geram formas novas de
aos cidadãos. coordenação que buscam garantir a eficácia da gestão das
As formas tradicionais de organização e gestão estatal políticas públicas. O perigo para as autoridades locais é
fundamentadas no paradigma burocrático são consideradas decorrente da perda da coesão garantida pelos sistemas
pela literatura sobre redes como insuficientes e inadequados centralizados e pelo fortalecimento da autonomia e
para a gestão das funções do Estado diante de seus novos independência funcional das unidades sem o desenvolvimento
desafios (AGRANOFF e MCGUIRE, 1999; MANDELL, 1999a.; de contrapesos que garantam a integração do sistema de
KOPPENJAN e KLIJN, 2004). políticas e a agregação e coerência necessárias ao êxito dos
Por seu turno, a sequência de atos para atender novas governos locais (PRATCHETT, 1994).
demandas reside na necessidade de desenvolver um novo Para Cole e John (1995), o interesse em adaptar o conceito
paradigma de gestão que possa ser adequado e eficiente e de redes de políticas para estudar padrões de governança local
capaz de prover o Estado com bases mais sólidas de ação. reside no reconhecimento da multiplicidade dos atores locais
Neste sentido, e objetivando alcançar um novo paradigma que são dependentes uns dos outros e cuja cooperação pode
para a gestão de redes, a autora enumera diversas ajudá-los a enfrentar pressões externas, reduzir as incertezas
características vantajosas e outras limitadoras com a e aumentar a eficiência em suas ações políticas.
implementação da rede: Dessa forma, a autora finaliza em suas conclusões
a) dada a pluralidade de atores envolvidos nas redes, é afirmando:
possível a maior mobilização de recursos e garante-se a A emergência de redes de políticas representaria a tentativa
diversidade de opiniões sobre o problema; de criação de novas formas de coordenação, que fossem capazes
b) devido à capilaridade apresentada pelas redes, a de responder às necessidades e características do contexto atual,
definição de prioridades é feita de forma mais democrática, em que o poder apresenta-se como plural e diversificado.
envolvendo organizações de pequeno porte e mais próximas dos As redes de políticas sociais são um instrumento
da origem dos problemas (SALAMON, 1995); fundamental para a gerência das políticas sociais em contextos
c) por envolver, conjuntamente, governo e organizações democráticos, permitindo a construção de novas formas de
não-governamentais, pode-se criar uma presença pública sem coletivização, socialização, organização solidária e
criar uma estrutura burocrática (SALAMON, 1995); coordenação social. Nesse sentido, as redes transcendem o papel
d) devido à flexibilidade inerente à dinâmica das redes, elas de um mero instrumento gerencial, na medida em que permitem
seriam mais aptas a desenvolver uma gestão adaptativa que gerar relações baseadas na confiança (capital social) e
está conectada a uma realidade social volátil, tendo de articular processos gerenciais horizontalizados e pluralistas (esfera
as ações de planejamento, execução, retroalimentação e pública democrática).
redesenho, adotando o monitoramento como instrumento de Assim, não é possível imaginar as redes políticas como um
gestão, e não de controle; instrumento social capaz de solucionar todos os problemas no
e) por serem estruturas horizontalizadas em que os campo das políticas públicas, no entanto, elas podem ser
participantes preservam sua autonomia, os objetivos e compatíveis com distintas orientações políticas em relação aos
estratégias estabelecidos pela rede são fruto dos consensos direitos sociais e ao papel fundamental do Estado, do mercado
obtidos por meio de processos de negociação entre seus e da sociedade.
participantes, o que geraria maior compromisso e É necessário dessa forma levar em conta as limitações das
responsabilidade destes com as metas compartilhadas e maior redes de políticas no desenvolvimento de determinadas
sustentabilidade. funções públicas de caráter exclusivamente estatal.

Conhecimentos Específicos 31
APOSTILAS OPÇÃO

bolsa de valores de Nova York e queda dos preços do café no


3. seguridade Social e mercado internacional, grandes transformações ocorreram no
Assistência Social; Brasil com foco num possível desenvolvimento econômico por
meio da diversificação de seu parque industrial
 Esse processo foi acelerado quando, por ocasião da
BIBLIOGRAFIA Segunda Guerra Mundial. A entrada do Brasil na guerra
possibilitou uma mudança de qualidade ao seu processo de
3. BAPTISTA, Myrian V. Algumas reflexões sobre o sistema desenvolvimento industrial. A partir da declaração oficial de
de garantia de direitos. Revista Serviço Social e Sociedade. N. guerra contra o “eixo”, o país recebeu dos Estados Unidos
109. São Paulo: Cortez Editora, 2012. recursos para a implementação da Companhia Siderúrgica
Nacional, de Volta Redonda — a primeira produtora de aço do
26. SARTI, Cyntia Andersen. A família como Espelho: um país —, fundada em 1941, e para a criação da Companhia Vale
estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo: Cortez Editora, do Rio Doce, em Itabira, em 1942 — que garantiria o
2012; suprimento de ferro para a nascente Companhia Siderúrgica
Nacional.
28. YAZBEK, Maria Carmelita. Classes Subalternas e  Surgiu então um Estado Nacional com efetivas
Assistência Social. São Paulo, Cortez Editora, 8ª edição. condições para ampliar seu parque industrial, surgindo a
demanda de assumir a responsabilidade dos direitos sociais
O propósito da elaboração do presente material de estudo relacionados ao trabalho urbano. Entretanto, tais direitos
complementar é analisar a Seguridade Social e Assistência sociais estavam relacionados aos direitos individuais, e não
Social sob a ótica dos autores Myrian V. Baptista “Algumas coletivos.
Reflexões sobre o Sistema de Garantias e Direitos”, Cortez  A luta pelos direitos humanos no Brasil ganhou força
Editora – 2012, Cyntia Andersen Sarti “A Família como social e política a partir do enfrentamento à ditadura militar,
Espelho: Um Estudo Sobre a Moral dos Pobres, Cortez Editora que teve seu início em 1964 se aprofundando em 1969, com o
– 2012 e Maria Carmelita Yazbek “Classes Subalternas e Ato Institucional nº 5. O golpe militar de 1969 iniciou na
Assistência Social” Cortez Editora, 8ª Ed. história brasileira um período com marcantes características
Iniciando nossa análise, temos a obra “Algumas Reflexões tais como o rompimento das alianças de classe e consenso
sobre o Sistema de Garantias e Direitos” pela autora Myrian V. ideológico vigentes, cessou os fundamentos do processo de
Baptista que inicia sua abordagem remetendo aos aspectos mobilização social ascendente, rompeu as alianças com os
históricos da construção social dos direitos das pessoas a trabalhadores, considerando-os inimigos pois entendiam que
partir de suas relações com a sociedade resultantes de um suas reivindicações atentavam contra o modelo econômico
processo histórico dinâmico de conquistas sociais e imposto.
consolidação de oportunidades emancipatórias da dignidade
humana. Nesse novo contexto histórico assistiu‑se, de forma
Tal processo de consolidação de direitos passa por alguns intensa, grave à violação dos direitos políticos da população
momentos históricos determinantes na evolução social tais que foram reprimidos e os direitos econômicos e sociais,
como: na Inglaterra, a Magna Carta de 1215, que limitou o expropriados.
poder real; a Revolução Inglesa de 1640; a instituição do Foram reprimidos os sindicatos e presos os líderes
habeas corpus em 1679; a Declaração de Direitos de 1689; nos sindicais. Os direitos de organização, de expressão e de
Estados Unidos, a Declaração de Direitos de Virgínia, em 1776 privacidade foram desconsiderados, ao mesmo tempo que
e, no mesmo ano, a Declaração da Independência norte‑ outros direitos passaram a ser sistematicamente violados.
americana; na França, a Declaração dos Direitos do Homem, no Foi a partir desse momento que a discussão sobre direitos
contexto da Revolução Francesa de 1789; a Revolução Russa, passou a ganhar a conotação que tem hoje: de direitos
em 1917; na Organização das Nações Unidas — ONU, a humanos e sociais, incorporados ao discurso democrático e,
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, após a conforme foi se aprofundando a degradação das condições de
Segunda Guerra Mundial — marco do início da adoção convivência nas grandes metrópoles (especialmente nas suas
internacional de instrumentos de proteção de direitos; a periferias), passou, cada vez mais, a funcionar como marco de
Revolução Cubana de 1950; e o Concílio Vaticano Segundo. denúncia da falta de condições de segurança individual.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 Quando, na virada dos anos 70 para os anos 80, o ciclo
trouxe à tona, em debate de âmbito mundial, uma concepção expansivo da economia perdeu força e o regime militar
de direitos humanos fundamentada em sua universalidade desgastou‑se, com a consequente entrada do país em um
(tendo como base a ideia de que é a condição de pessoa o único período que se caracterizou pela transição democrática.
requisito para a titularidade desses direitos, na perspectiva de O marco mais significativo dessa transição foi a instalação
que o ser humano é essencialmente moral, dotado de de uma Assembleia Nacional Constituinte (a qual coube a
unicidade existencial e de dignidade) e em sua missão de definir a natureza de uma eventual Constituição),
indivisibilidade (relaciona‑se ao fato de que, pela primeira que propiciou grande mobilização popular: a sociedade
vez, os direitos civis e os direitos políticos compõem uma brasileira ansiava por uma Constituição que levasse à
unidade interdependente com os direitos econômicos, sociais superação das leis do regime de arbítrio e direcionasse o país
e culturais). para a democracia e para o estado de direito.
No Brasil, a evolução das questões relativas aos Direitos A partir de então, a partir de conquista da sociedade
Humanos foi crescente e gradativa, conforme os diferentes brasileira, com a queda do regime militar instituiu-se no país a
momentos históricos. Essa diversidade foi determinando atual Constituição da República Federativa do Brasil em 1988,
características próprias na perspectiva e na ação da sociedade chamada à época de “Constituição Cidadã”, que definiu normas
em relação aos direitos. constitucionais programáticas, finalidade e programas de ação
 Até os anos 1930, o Brasil voltava-se para o futura para a melhoria e desenvolvimento das condição sociais
atendimento estrito dos interesses das oligarquias e e econômicas da população, bem como traçando diretrizes que
considerava as questões sociais que se colocava à sociedade conduzem nossa Nação até os dias atuais.
em relação aos problemas decorrente do não acesso da maior Fato marcante é a intensa participação popular no
parte da população aos bens e serviços. A partir da crise processo de implantação do novo modelo constitucional, criou
mundial de 1929 (crise econômica que acarretou a quebra da condições favoráveis para que o Brasil tivesse uma

Conhecimentos Específicos 32
APOSTILAS OPÇÃO

Constituição Democrática e comprometida com a supremacia suporte aos sujeitos para o enfrentamento das vicissitudes
do direito social e a promoção da justiça. A partir de então o cotidianas. Na operação em rede, o que define a qualidade das
Brasil passou a ter o dever jurídico-constitucional de relações vai além da organização e do intercâmbio de serviços:
promover a justiça social. tem que contar com a disposição dos participantes de atuarem
O artigo 6º da Carta Magna expressam os constituintes o integradamente tendo em vista o objetivo comum.”
que deve ser considerado como direitos sociais: educação,
saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção A partir de uma reflexão sobre a dimensão da dinâmica
a maternidade e infância, assistência aos desamparados. histórica do Sistema de Garantia de Direitos, tendo por
Neste contexto, o artigo 194 eleva os direitos a saúde, referência os processos permanentes de mudança que incidem
previdência e assistência social compõe um conjunto sobre as relações de sociedade, pode‑se perceber que são
integrado de ações de iniciativas dos poderes públicos e da muitos os espaços que precisam ser engajados para a garantia
sociedade, denominado seguridade social. de direitos.
No entanto, apesar de ser uma Constituição democrática, Nesse sentido, percebe‑se também que os eixos a ser
preocupada com a segurança dos direitos sociais, o maior articulados devem ir além daqueles propostos; há necessidade
problema da Constituição Federal de 1988 é a sua de contemplar também os eixos específicos de instituição do
aplicabilidade e concretização, muito embora não lhes faltem direito e de sua disseminação. Desta forma, o sistema de
mecanismos jurídicos. Carece no entanto garantias garantia de direitos teria que contemplar, na sua configuração,
constitucionais de implementação, diante da dependência de cinco eixos assim expostos pela autora da obra:
vontade política e sobrecarga Estatal para implementar tais
direitos. A) da instituição do direito:
De acordo com a autora da obra em comento: Este eixo diz respeito à instância na qual o “direito legal” é
“A garantia de direitos, no âmbito de nossa sociedade, é de instituído e onde é estabelecido o sistema normativo,
responsabilidade de diferentes instituições que atuam de acordo configurado pelas leis e regras que norteiam as relações da
com suas competências: as instituições legislativas nos sociedade (sejam elas constitucionais, complementares e
diferentes níveis governamentais; as instituições ligadas ao ordinárias, sejam resoluções em decretos legislativos) cuja
sistema de justiça — a promotoria, o Judiciário, a defensoria função é de responsabilidade do Poder Legislativo;
pública, o conselho tutelar — aquelas responsáveis pelas
políticas e pelo conjunto de serviços e programas de B) da sua defesa:
atendimento direto (organizações governamentais e não Caracteriza‑se por ser a via do acesso à justiça, ou seja, de
governamentais) nas áreas de educação, saúde, trabalho, acesso às instâncias públicas e aos mecanismos jurídicos de
esportes, lazer, cultura, assistência social; aquelas que, proteção legal dos direitos humanos instituídos (gerais e
representando a sociedade, são responsáveis pela formulação de especiais), tendo por responsabilidade assegurar, em
políticas e pelo controle das ações do poder público; e, ainda, concreto, a sua impositividade e exigibilidade.
aquelas que têm a possibilidade de disseminar direitos fazendo Nele, são realizadas atividades jurisdicionais de natureza
chegar a diferentes espaços da sociedade o conhecimento e a organizacionais, processuais e procedimentais, no sentido de
discussão sobre os mesmos: a mídia (escrita, falada e televisiva), assegurar a efetividade e a eficácia da garantia de direitos.
o cinema e os diversificados espaços de apreensão e de discussão Situam‑se nesse eixo as ações judiciais realizadas nas
de saberes, como as unidades de ensino (infantil, fundamental,
Varas da Infância e da Juventude; nas Varas Criminais
médio, superior, pós‑graduado) e de conhecimento e crítica especializadas; nos Tribunais do Júri; nas Comissões Judiciais
(seminários, congressos, encontros, grupos de trabalho). No de Adoção; nos Tribunais de Justiça; nas Corregedorias Gerais
entanto, essas ações têm sido historicamente localizadas e de Justiça, das Coordenadorias da Infância e da Juventude dos
fragmentadas, não compondo um projeto comum que permita a Tribunais de Justiça.
efetividade de sua abrangência e maior eficácia no alcance dos
principais objetivos por elas buscados.” C) da sua promoção:
Um princípio norteador da construção de um sistema de Esse eixo se situa no campo da formulação e operação das
garantia de direitos é a sua transversalidade. A organização e políticas sociais, onde são criadas as condições materiais para
as conexões desse sistema complexo supõem, portanto, que os direitos a liberdade, a integridade e a dignidade sejam
articulações intersetoriais, interinstâncias estatais, respeitadas e as necessidades básicas atendidas.
interinstitucionais e inter‑regionais. Em suma, na perspectiva Nesse eixo são operadas ações que têm como base
de sistema, a organização das ações governamentais e da diagnósticos situacionais e institucionais e diretrizes gerais
sociedade, face a determinada questão‑foco, precisa ser que se efetivam, principalmente, com a criação,
concebida e articulada como uma totalidade complexa, implementação e qualificação/fortalecimento de
composta por uma trama sociopolítico operativa: um sistema serviços/atividades; de programas/projetos, específicos e
que agrega conjuntos de sistemas espacial e setorialmente próprios; e de políticas sociais em geral. Essas ações são
diferenciados. operadas por entidades de atendimento, governamentais e
A articulação dessa rede relacional fundamenta-se na não governamentais.
clareza dos profissionais nela participantes, de que nenhuma
de suas instituições pode alcançar seus objetivos sem a D) do controle de sua efetivação:
contribuição e o alcance de propósitos das outras, nessa O controle social do direito é campo preferencial e peculiar
perspectiva, essa rede deve ser tecida na própria dinâmica das das organizações representativas da população, isto é, da
relações entre as organizações cujos atos, face à garantia dos sociedade civil organizada para o exercício desse controle,
direitos, passam a ser interdependentes, tendo em vista a principalmente por meio de instâncias não institucionais de
potencialização dos recursos para alcance desse objetivo. articulação (fóruns, frentes, pactos etc.) e de construção de
Neste sentido elenca a autora algumas modalidades da alianças entre organizações sociais.
rede: Além das organizações da sociedade civil, esse eixo opera
“Existem modalidades diversas de rede. Temos a rede também a partir de instâncias públicas colegiadas próprias, em
construída para integração de serviços de diferentes instituições que, na maior parte das vezes, é assegurada a paridade da
objetivando a realização de atendimentos de situações participação de órgãos governamentais e de entidades sociais,
específicas, as redes familiares e as redes de vizinhança que, na tais como os conselhos de direitos, os conselhos setoriais de
maioria das vezes, responsabilizam‑se por cuidados e dão formulação e controle de políticas públicas, os órgãos e

Conhecimentos Específicos 33
APOSTILAS OPÇÃO

poderes de controle interno e externo de fiscalização contábil, constante abordagem do pensamento social brasileiro que
financeira e orçamentária. minimiza a pobreza e seus sujeitos a uma condição negativa.
Assim, para a autora, a permanência dos valores
E) de sua disseminação (responsável pela última estratégia tradicionais dos pobres não se configura em impedimento de
referida na deliberação: a mobilização social em favor da mudança, sugere tão somente uma forma própria de se
garantia de direitos). relacionarem diante da sociedade, tendo em vista que a família
No contexto do Sistema de Garantia de Direitos, o eixo da surge como o meio pelo qual a adaptação ao mundo social se
disseminação do direito (que objetiva preparar a sociedade viabiliza, como afirma a autora Sarti “o próprio substrato de sua
como um todo para vivenciar a cidadania e, especificamente, identidade social”.
discutir, contextualizar, em uma perspectiva crítica, a garantia Durante o trabalho de pesquisa, a autora identifica que as
desses direitos) está ensaiando ainda seus primeiros passos. famílias carentes mantém os padrões e valores tradicionais
No entanto, esse eixo é de importância fundamental por revelando marcante característica patriarcal com o homem no
deter as condições necessárias para operar atividades de papel central e sugere a reiteração de hierarquia no ambiente
formação continuada tendo em vista a construção de uma familiar seja entre homem e mulher, adultos e crianças. Sem
cultura de cidadania, na qual a exigibilidade e o respeito aos adentrar em discussão sobre sexualidade ou
direitos humanos sejam princípios fundamentais. machismo/feminismos, a autora constata em sua pesquisa a
A inclusão de mais esse eixo poderá constituir‑se em uma manutenção dos moldes onde o homem é o chefe de família,
estratégia primordial, por um lado, para difundir uma cultura responsável pelo sustento e proteção e a mulher como dona de
de promoção, defesa e garantia de direitos e, por outro, para casa, cuidando dos afazeres domésticos, numa aparente
mobilizar a sociedade em favor da efetivação desses direitos relação de complementaridade.
em parceria com os demais eixos do sistema, de modo Assim, Sarti demonstra que o papel do provedor é próprio
articulado, integral e integrado. Poderá viabilizar também um das atribuições masculinas, já o trabalho da mulher está
enfrentamento positivo de muitas das dificuldades que se intimamente relacionado a partir do lugar dela no universo
colocam para a materialização de propostas inovadoras, já familiar, sem no entanto, descartar que estas mulheres
experimentadas em outros espaços nacionais (ou mesmo exercem cumulativamente trabalho externo remunerado.
internacionais), fornecendo condições para a construção de Neste contexto, a autora demonstra que nessa perspectiva, o
argumentos favoráveis à superação de conservadorismos na trabalho remunerado não se configura obrigatoriamente em
subjetividade da sociedade brasileira. uma forma de afirmação individual para a mulher, pois o
A autora conclui sua obra citando Marilena Chaui: processo de individualização é dependente de uma rede de
“...o maior problema da democracia numa sociedade de relações, somente podendo ser compreendido quando o
classes é o da manutenção de seus princípios — igualdade e universo do trabalho (tanto dos homens quanto da mulheres
liberdade — sob os efeitos da desigualdade real”. O pobres) forem analisados sob a ótica de seu valor moral, a
enfrentamento dessas dificuldades se fará com a conciliação partir de um modelo de relações de obrigações próprias ao
desses princípios com o princípio da legitimidade do conflito e ambiente familiar.
com a introdução da ideia de que, graças aos direitos, “os Tal molde familiar no entanto não constitui regra e tão
desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político pouco significa que famílias pobres constituem-se em um
para reivindicar a participação nos direitos existentes e núcleo definido, pelo contrário, suas relações estabelecem
sobretudo para criar novos direitos. Estes são novos não ramificações que envolvem a rede de parentesco como um
simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque todo, fundamentado na existência de apoio e sustentação
são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, básico.
como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os Por fim, a obra A Família como Espelho: Um Estudo Sobre a
fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade”. Moral dos Pobres” avança os limites das relações
intrafamiliares, pois busca compreender a forma como os
A autora Cyntia Andersen Sarti, em sua obra “A Família pobres se situam no ambiente social, discutindo a forma que
como Espelho: Um Estudo Sobre a Moral dos Pobres” moradores da periferia constroem fronteiras e limites
devidamente organizado em cinco capítulos traz ao leitor o simbólicos de diferenciação entre si. Confiança e
conteúdo de uma trajetória de pesquisa iniciada em meados de solidariedade, dentro deste contexto, são fundamentais no
1979 a partir do convívio com alguns moradores da periferia estabelecimento dessas relações.
de São Paulo buscando entender e identificar quais categorias
morais com que os pobres organizam e dão sentido ao mundo Maria Carmelita Yazbek, por meio de sua obra “Classes
social do qual estão inseridos. Subalternas e Assistência Social” trabalha as políticas sociais e
Sarti se refere em sua obra a categoria “família pobre” no assistenciais demonstrando as estratégias contraditórias de
singular, a partir de um ponto de vista determinado, referindo- gestão estatal da pobreza e das classes subalternas, afirmando
se a um grupo específico de pobres, deixando claro as que a política social brasileira tem funcionado do forma
diferentes particularidades que envolvem tal temática nas ambígua na perspectiva da acomodação das relações entre o
ciências sociais, e assim, ao resgatar os sujeitos pobres, revela Estado e a Sociedade, sendo marcada por escassa efetividade
uma faceta da pobreza em sim, com importante contribuição social diante da subordinação aos interesses econômicos, e de
aos estudos relacionados à temática, demonstrando a outro lado, verifica-se crescente dependência de grandes
condição peculiar das famílias carentes a partir da exploração segmentos da população que carecem de intervenção estatal
do trabalho pelo capital, ou pela ausência de reconhecimento no atendimento de suas demandas, principalmente quanto as
de seus direitos garantidos constitucionalmente. condições de vida no espaço urbano.
De acordo com a autora, o resultado deste tipo de Isso ocorre substancialmente pela falta de investimento no
abordagem é a “desatenção para a vida social e simbólica dos setor social, o que acarreta a pouca efetividade das políticas
pobres no que ela representa enquanto positividade concreta, a públicas voltadas a este segmento, citando o Sposati para
partir da qual se define o horizonte de sua atuação no mundo melhor compreensão:
social e a possibilidade de transposição desta atuação para o “As políticas sociais brasileiras, e nelas, as de assistência
plano propriamente político.” social, embora aparentem a finalidade de contenção da
Neste contexto Sarti alerta para a relatividade da categoria acumulação da miséria e sua minimização através da ação de
da pobreza para a impossibilidade de limitá-la a um eixo de um Estado regulador das diferenças sociais, de fato não dão
classificação de única interpretação, se contrapondo a uma conta deste efeito. Constituídas na teia dos interesses que

Conhecimentos Específicos 34
APOSTILAS OPÇÃO

marcam as relações de classe, as políticas sociais brasileira tem Outro traço marcante entre a classe mais carente são as
conformado a pratica gestionária do Estado, nas condições de formas de moradia. A multidimensionalidade das questões
reprodução da força de trabalho, como favorecedoras, ao que afetam a extrema pobreza apresenta dificuldades de
mesmo tempo, da acumulação de riquezas e da acumulação da moradia, apresentando diversidade em seus modos de morar,
miséria social”. com a identificação de sub-habitações.
As políticas governamentais brasileiras no setor social A autora afirma que a escolha das favelas predomina no
acabam por reiterar o perfil marcante das desigualdades no pequeno universo pesquisado por ela. As favelas organizam-se
país e mantem essa área de ação submersa e paliativa, pois são pela ocupação de áreas públicas ou privadas onde crescem
políticas sociais que tem-se caracterizado pela subordinação a habitações extremamente precárias, localizadas geralmente
interesses econômicos e políticos. em terrenos de difícil acesso (íngremes, sobre barrancos, à
Neste contexto verifica-se que os investimentos na área beira de córregos, sob viadutos) e predominantemente
social parecem cada vez mais vinculados ao desempenho geral localizadas nas periferias das cidades, constituindo
da economia, abrindo assim caminho para a política assentamentos habitacionais sem qualquer infraestrutura,
assistencialista e de precário padrão, obtendo assim resultado socialmente desvalorizados, agravando ainda mais as
maior subordinação de grande parcela da população a condições de sobrevivência das famílias em situação de
distribuição de pequena retribuição estatal, quando não se pobreza.
pode estruturar verdadeiras políticas sociais com reais Paralelamente aos impactos devastadores e visíveis dessas
objetivos de compensar, por meio da via política, as fraquezas precárias condições de habitação e saneamento, observa-se
sociais. ainda que muito se tem a desejar sobre a distribuição de
Yazbek afirma que: “as políticas assistenciais, apresentam, equipamentos e serviços básicos de saúde, educação,
portanto, uma forma historicamente modificável, de acordo com transporte que afetam diretamente na qualidade de vida da
as características das relações que se estabelecem na estão população pobre, marcando assim a exclusão social e estatal
estatal da reprodução da força de trabalho. São, como o de uma grande parcela da sociedade que não obtém do Estado
conjunto das políticas públicas e particularmente das políticas as mínimas condições de viver e sobreviver.
no campo social, estratégia reguladora das condições de A autora Yazbek assim esclarece:
reprodução social. Enquanto regulação, obedecem ao padrão “Quando se trata de usuários de serviços assistenciais, o que
mais geral das estratégias reguladoras que peculiarizam a se constata muitas vezes é uma dependência quase que exclusiva
economia capitalista na sociedade brasileira.” dos serviços sociais públicos em suas estratégias para
Diante da real pobreza, exclusão e subalternidade, o sobreviver. Buscam estes serviços para suprir necessidades
assistencial possui limites bem definidos, a precariedade das materiais de consume e para enfrentar outras dimensões
condições de vida do público alvo das ações assistenciais e o significativas de seu dia-a-dia.”
caráter cumulativo de sua exclusão demonstram que reverter [...]
esse processo necessita radicais modificações não só nos “Os serviços assistenciais tanto compreendem ações de
conjuntos de políticas públicas, mas na própria estrutura da ajuda imediata individualizada, em geral com características de
sociedade. pronto socorro social, que destinam ao demandatários recursos
Neste sentido e seguindo o raciocínio da autora, ela assim como cotas alimentares, medicamentos, auxílios financeiros e
afirma: provisão de documentos, entre outros, como se efetivaram
“A violência da pobreza constitui parte de nossa experiência através de uma rede de serviços e bens ‘produzidos de forma
diária na sociedade brasileira contemporânea. Os impactos compensatória, para as classes subalternas: creches, núcleos de
destrutivos do sistema vão deixando marcas exteriores sobre a atendimento sociocomunitários à criança e adolescente,
população empobrecida: o aviltamento do trabalho, o internatos, programas de educação supletiva e
desemprego, a debilidade da saúde, o desconforto, a moradia profissionalizante, asilos, centro de reabilitação, programas de
precária e insalubre, a alimentação insuficiente, a ignorância, a provisão de habitação, ações comunitárias, etc’. (Sposati e
fadiga, a resignação, são alguns sinais que anunciam os limites Falcão, 1985). É necessário assinalar, portanto, que os
da condição de vida dos excluídos e subalternizados da programas da área de assistência não se reduzem á distribuição
sociedade. Sinais que muitas vezes se ocultam a resistência e a de auxílios materiais ou orientações; são também programas de
capacidade dessa população de lutar cotidianamente para formação profissional e de geração de renda, programas
sobreviver. Sinais que muitas vezes expressam também o quanto socioeducacionais e de atendimento a grupos específicos como
a sociedade pode tolerar a pobreza sem uma intervenção direta portadores de deficiência, idosos, crianças e adolescentes, entre
para minimizá-la ou erradica-la.” outros. As ações assistenciais podem significar tanto a tutela e a
Durante o trabalho de construção da obra a autora reiteração da subalternidade, quanto um lugar de
entrevista alguns relatos de pessoas escolhidas reconhecimento e de acesso ao protagonismo. E mais ainda,
aleatoriamente, e que demonstraram suas condições de vida e pode ser tudo isso junto.”
as representações da população alvo dos serviços A condição de usuário dos programas e serviços
assistenciais, buscando relatos sobre a realidade dessas assistenciais é marcada por um conjunto de estigmas, são
pessoas marcadas pela destituição e subalternidade em que as marcas impostas que desqualificam, submetem e configuram
diversidades, as particularidades, as circunstancias, enfim, uma imagem fragmentada dos assistidos perante as práticas
revelam fragmentos de um lugar social. institucionais. Esse caráter discriminatório que, via de regra,
Da análise conjunta dos depoimentos colhidos a questão conduz as intervenções estatais de natureza assistencial
do trabalho se impõe, entre as mais claras evidencias para a marcadas pela escolha dos mais necessitados submete
compreensão da vida social, constatando-se que a busca por vontades e condutas. Trata-se portanto de uma submissão
melhores condições de trabalho está intimamente relacionado constituída a partir de uma rede de necessidades e
com a melhoria na qualidade de vida e fuga dos serviços humilhações, desqualificando o usuário perante a instituição.
estatais assistenciais, sendo revelada importante e triste Na construção de suas relações com os serviços sociais, o
realidade do trabalho que se inicia desde a infância. usuário do assistencialismo aprende a se relacionar com as
O que fica evidenciado pelos relatos é que o enfrentamento instituições bem como com seu quadro de profissionais, em
da pobreza não passa apenas pela necessária redistribuição de particular com os assistente sociais, entendendo suas
renda, mas sobretudo pela questão política econômica que proposições e limitações.
favorece o mercado de trabalho sem perder de vista a Por fim, ressalta-se que no presente trabalho, a autora
redistribuição de direitos. busca alternar, por um lado, a dinâmica instituinte das prática

Conhecimentos Específicos 35
APOSTILAS OPÇÃO

sociais e assistenciais adotadas pelo Estado em sua missão estabelece na divisão social do trabalho, pois se particulariza
reguladora e, por outro, as representações dos assistidos sobre em diversos campos de trabalho e em representações que se
as condições em que vivem e sobre a assistência que recebem. modificam conjunturalmente;
O resgate das experiências e representações dos
subalternos permite, sob novas óticas, não apenas entender o Características do processo de prática do assistente social,
panorama dos usuários dos serviços socieassistenciais e suas se faz complexo, plural e diversificado, do que a literatura
estratégias para obter auxílio mesmo que parcial do Estado, profissional do que acostumada a concebê-lo, sobretudo por
mas sobretudo, ampliar as interpretações das práticas desconsiderar as mediações sociais e organizacionais que se
assistenciais constituídas em um conjunto de providencias e processam nas relações sociotécnicas do mercado de trabalho.
medidas que acabam por oferecer um serviço provisório e
paliativo diante de sua fragmentação em face a real demanda. A prática profissional é legitimada, justificada por meio de
Finaliza a autora da obra: várias formas de legalização que se estende sobre si uma
“No conjunto destas reflexões emerge a necessidade de cobertura protetora de interpretações cognitivas e normativas
repensar o serviço social profissional enquanto uma das e de mecanismos de controle social tornados necessários pela
mediações fundamentais na prestações de serviços assistenciais sua historização e objetivação.
aos subalternos. Para que sua crítica acerca da política social e
assistencial e de sua própria intervenção não se configure como Desafios a profissão estão voltados a ampliar suas
um discurso genérico e abstrato, sobretudo, no que se refere à possibilidades, articulação e sua intervenção com o
cidadania dos assistidos, é necessário em primeiro lugar movimento de outras categorias profissionais e sintonizando
reconhecer seus limites. Ultrapassar as aparências que suas ações com as forças sociais que operam na sociedade para
escamoteiam o fato de que entre as políticas assistenciais e seus reverter as políticas e as estratégias que conduzem a
objeto há um enorme fosso, que é o próprio caráter estrutura da barbarização da vida social.
geração da pobreza, exclusão e subalternidade de seus
usuários.” A relação teoria/método: baseado diálogo profissional
com a realidade Myirian Veras Baptista

4. prática profissional x prática O conhecimento e a prática profissional se respaldam em


social x prática institucional x concepções de mundo que têm como fundamento teorias
sociais – expressões abstratas do movimento da sociedade, das
avaliações; relações entre os homens e deles com a natureza as quais
estruturam as bases da ciências humanas e sociais e seus
BIBLIOGRAFIA métodos;

4. BAPTISTA, Myriam V. e BATTINI, Odária (orgs.). A Objetivo: Instrumentar o diálogo profissional com a
Prática Profissional do Assistente Social. São Paulo, Veras prática;
Editora, 2015.
A PRÁTICA DO ASSISTENTE SOCIAL38: TEORIA, AÇÃO, Submeter a crítica teórica a abordagem do real, os
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO Myriam Veras Baptista instrumentos e técnicas; Para a análise da estrutura do
Odaria Battini pensamento e da ação dos assistentes sociais, é importante ter
presente a maneira como são apreendidos a questão do ser, o
Prática Social/Profissional: a natureza complexa das seu processo de conhecimento da verdade e o modo de
relações profissionais cotidianas Myriam Veras Baptista. A perceber e atuar sobre a realidade;
prática social é uma categoria teórica que possibilita o
conhecimento e a explicitação do processo pelo qual se A perspectiva marxiana explica as relações entre os
constitui e se expressa o ser social, e da dinâmica da homens como determinadas pelo processo histórico concreto,
construção histórica do mundo humano social. PRÀXIS (modo tendo por base as relações de produção: problematiza a forma
de ser, agir, domínio de suas atividades). Transforma o mundo como as relações sociais se apresentam- mediatizadas por
social e natural para o mundo humano coisas, por instituições, o que ao mesmo tempo que revela
situações reais imediatas, encobre múltiplas relações sociais,
Trabalho (categoria ontológica) historicamente determinadas, cuja apreensão se faz a partir da
reprodução do concreto, por meio do pensamento.
PRÀXIS Diversidade de práticas sociais, a partir das
diferenças de sua transformação, produção, criação e Teoria Social construída por Marx, conhecimento das
elaboração; Trabalho (categoria ontológica). É pelo trabalho relações de sociedade não se configura como um quadro
que o homem transforma a natureza para si próprio, através explicativo da realidade, mas como expressão abstrata de seu
da MEDIAÇÃO, para a produção de seus instrumentos. movimento. Unidade entre sujeito e Objeto; Conhecimento
Prática Social se expressa pelas relações sociais resultante de cada representação como pressuposição;
estabelecidas pelo homem, através do trabalho, que tem como
característica o plano sociopolítico (dimensão histórica); No pensamento marxista, a lógica dialética é assumida
Vontade; jogo de poder; ser particular e ser individual; como método para análise concreta de fatos reais, entendendo
como método não um conjunto de técnicas de intervenção,
A relações que configuram a prática profissional nem um aparato de categorias analíticas, mas como a maneira
de pensar as relações dos homens na sociedade, tendo por
A prática profissional situa-se no âmbito das relações ponto de partida a análise crítica de dados factuais;
sociais concretas de cada sociedade, constituiu uma dimensão
historicamente determinada pela prática social; O trabalho Na tradição crítico dialética, o método não desvincula da
profissional como partícipe de processos de trabalho, se teoria: a opção metodológica implica a opção teórica. O
inserindo como trabalho coletivo e trabalhador assalariado; Se conhecimento se desenvolve a partir da situação social vivida,

38 http://slideplayer.com.br/slide/354970/

Conhecimentos Específicos 36
APOSTILAS OPÇÃO

em que o sujeito tende a se comportar de modo ontológico, necessidades sociais, as quais, por meio de um conjunto de
como ser social. Constituição Ontológica mediações, convertem-se em requisições à prática
profissional;
Não existe método sem objeto;
Somente com a clareza sobre a natureza e o significado
Estudar a dinâmica de um fato social, apreender e social da profissão, o que faz o serviço social é que nos permite
compreender e explicar sua processualidade e suas avançar para que o que pode e o que deve fazer; A relação
transformações, é necessário relacioná-lo ao movimento de entre teoria e prática como unidade do diverso, a escolha dos
seu contexto histórico-social, construído, no diálogo com o meios( o método, as técnicas e os instrumentos ) a serem
objeto, categorias de análise. utilizados pelo profissional e das mediações que ele deverá
acionar na sua intervenção se dará em função das suas
Atitude Investigativa e prática profissional Odária finalidades e do instrumento e técnicas serão estabelecidos no
Battini interior do projeto profissional;

Mudanças na literatura que acompanhou o histórico Importância a redefinição e reconstrução crítica das
conjuntural dos processos sociais, para deles extrair demandas profissionais, através da capacitação contínua e
potenciais propostas de trabalho, transformando-as em regular que possa preparar técnica, teórica, ética e
alternativas profissionais. Apreensão das dimensões teórico- politicamente os profissionais para conhecer, intervir e
metodológica, ético-política e técnica-operativa; A transformar a realidade;
metodologia que informa a prática cotidiana no serviço social O Serviço Social e a construção dos direitos sociais
converte-se em questão teórico-metodológica e ético-política, Maria Carmelita Yasbeck
o que permite ao assistente social apreender o modo de ser e
de se reproduzir do ser social historicamente dado e propor O texto tem como foco o trabalho do assistente social, na
modalidades de intervenção com vistas as respostas ás perspectiva da concretização de direitos e na construção da
demandas socioprofissionais; esfera pública democrática, em um difícil contexto que vem
interpelando o serviço social, sob vários aspectos, diante das
Desafios: integração entre os fundamentos teórico-
metodológicos e a pesquisa concreta de situações concretas novas manifestações e expressões da questão social,
que figuram como objeto de trabalho desse profissional; A resultantes de transformações estruturais do capitalismo
importância da atitude investigativa; (descoberta, contemporâneo, aos processos de redefinição dos sistemas de
ultrapassagem do aparente, evidencia a essência dos proteção social; Precarização do mercado de trabalho;
fenômenos, nos seus nexos e conexões); Mudanças do sistema de seguridade social (contexto
histórico);Mudanças das manifestações da questão social;
Suporte ao exercício profissional

A dimensão investigativa da prática do serviço social tem Atuação do serviço social frente as políticas sociais
seu suporte na práxis de conhecimento que, como a própria contemporâneas;
prática material ou produtiva, também cria trabalho humano
e humanizado, na medida em que se produz condições para a Entre a democracia e a luta pela construção dos direitos, é
capacidade de expressão e objetivação humanas, em um grau sempre uma disputa; (envolve questões de subordinação do
superior. Suporte ao exercício profissional social ao econômico); “O social constrangido pelo econômico.
O social refilantropizado e despolitizado e despublicizado”;
A teoria não trata apenas de pensar o fenômeno como
mera atitude contemplativa, mas dirige o pensamento a uma Política Social como mediação fundamental para a realização
mudança real, no sentido de dissolver o conteúdo existente em do direito;
seu interior em uma perspectiva superadora; A unidade entre
teoria e prática é perseguida sempre em um processo Importância do projeto ético político;
histórico-social; a prática é concebida como prática humana;
Transversalidade entre o projeto ético político e atuação
A dimensão investigativa voltada para a construção do
conhecimento tem como elemento constitutivo a relação na política social; “construir o político na política social”;
sujeito de conhecimento/objeto científico; A mediação é a
condição que opera a práxis; A atitude investigativa implica em O lugar da prática profissional no contexto das lutas dos
procedimento analítico intelectual para a reconstrução do assistentes sociais no Brasil Odária Battini. A reflexão tem
objeto de intervenção profissional, sistematização da prática; objeto central a prática profissional operada pelos assistentes
sociais no atendimento às demandas que lhe são postas;
O conhecimento crítico na reconstrução das demandas
Demandas: particularidades da questão social, expressas pela
profissionais contemporâneas Yolanda Guerra
vivência dos sujeitos que buscam serviços profissionais nos
Compreender o serviço social na contemporaneidade, é diferentes espaços sócio ocupacionais nas diversidades dos
necessário a compreensão da lógica do sistema capitalista, campos de atuação; Transformações teóricas e metodológicas
suas contradições internas, suas crises e sua necessidade de da profissão; Mudanças no processo de trabalho.
revolucionar constantemente com suas bases materiais e
ideológicas; Demandas profissionais: expressões da questão Sentido e direcionalidade da ação profissional: projeto
social;
ético-político em serviço social Maria Lúcia Martinelli.
Considerar a dimensão teórico-metodológica, pautada em Concepção sócio histórica da profissão; A importância do
um conhecimento crítico, a que nos permite reconhecer os projeto ético político e sua interface; A interface com os
princípios, os fundamentos da ordem burguesa e as marcos legais da profissão.
programáticas de ação utilizadas pelo grande capital, suas

Conhecimentos Específicos 37
APOSTILAS OPÇÃO

3. Marcas históricas do estudo social


“O perito, enquanto detentor de um saber, foi o
5. laudos, relatórios e pareceres; personagem chamado a dar esse respaldo, ou seja, chamou-se
um profissional especialista3 em determinada área do
conhecimento, para o estudo, a investigação, o exame ou a
BIBLIOGRAFIA vistoria de uma situação processual, com o objetivo de
oferecer subsídios técnico-científicos que possibilitassem ao
9. FÁVERO, Eunice. T. O Estudo Social – fundamentos e magistrado a aplicação da lei com maior segurança, reduzindo-
particularidades de sua construção na Área Judiciária. In. se a possibilidade da prática de erros ou de injustiças.”
CFESS (org.). O Estudo Social em Perícias, Laudos e Pareceres “O assistente social, ao iniciar o trabalho no âmbito da
Técnicos Debates atuais no Judiciário, no Penitenciário e na Justiça da Infância e da Juventude, em São Paulo – nos idos dos
Previdência Social. 11ª ed. (revista/atualizada), 2ª R. São anos 1940 – passou a ocupar o espaço do perito da área social,
Paulo: Cortez Editora, 2016. atuando inicialmente como estagiário ou como membro do
Comissariado de Vigilância. Num período em que se
17. MAGALHÃES, Selma Marques. Avaliação e Linguagem evidenciava o agravamento e tentativas de controle das
Relatórios, Laudos e Pareceres. Veras Editora, 2011; sequelas da questão social e se ampliava a ocupação de
espaços institucionais pelo Serviço Social, o assistente social,
O Estudo Social – fundamentos e particularidades de com formação generalista na área social, passou a ter, na
sua construção na Área Judiciária Justiça da Infância e da Juventude, espaço privilegiado de ação,
o que fez com que, progressivamente, deixasse de atuar junto
“O estudo social39, tão presente no cotidiano da ao Comissariado e ocupasse, no final desses anos 1940, espaço
intervenção ao longo do processo histórico do Serviço Social, formal de trabalho no então denominado Juizado de Menores
em especial no campo sócio-jurídico1, parece ter sido de São Paulo.”
redescoberto, nos últimos tempos, com um objeto de “A necessidade do perito, enquanto profissional – de
investigação sistemática, questionamentos, polêmicas e diversas áreas, que oferece conhecimentos científicos para
debates.” subsidiar a decisão judicial, foi prevista também na Legislação
“Ainda que o meio sócio jurídico, em especial o judiciário, Civil, sendo regulada no Código de Processo Civil (Negrão, arts.
tenha sido um dos primeiros espaços de trabalho do assistente 145 a 147). Legislação esta que na atualidade respalda a
social2, só muito recentemente é que particularidades do fazer nomeação ou solicitação de assistente social para oferecer
profissional nesse campo passaram a vir a público como objeto conhecimentos da área ao aplicador da justiça, para ações que
de preocupação investigativa.” tramitam nas Varas da Família e das Sucessões e Varas Cíveis.”
“Pode-se firmar que o processo de sistematização de “Verifica-se que, nesse processo histórico, o Serviço Social,
conhecimento a respeito dessa realidade – sobre seu objeto, mais especificamente no que se refere à atuação junto à Justiça
objetivos, instrumentos etc. – principalmente no que se refere da Infância e Juventude e também da Família, e das Sucessões,
ao sistema judiciário, ainda é inicial.” e Cíveis, teve como base a metodologia operacional do ‘Serviço
“Neste âmbito, muitas questões devem ser consideradas, Social de casos individuais’, desdobrando (p.22) originalmente
como, por exemplo, pensar se o assistente social deve atuar nas etapas de ‘estudo, diagnóstico e tratamento’, ou
apenas como perito, ou de sua intervenção deve ter uma ‘investigação – diagnóstico e intervenção’. No que diz respeito
dimensão mais ampla, articulada à rede social, sobretudo junto sobretudo à operacionalização do processo de intervenção,
à infância e à juventude, conforme o próprio ECA dispõe.” pode-se dizer que essa metodologia até hoje se faz presente, e
de maneira predominante, nesse campo, resguardadas as
2. Intervenção judiciária e questão social diferentes orientações teóricas que direcionaram a ação do
“Isso significa que, para o debate a respeito da realidade de assistente social ao longo dos anos.”
vida dos sujeitos, e da intervenção do Serviço (p. 17) Social “A globalidade da situação em estudo, todavia, era limitada
nesses espaços do Judiciário – o que parece não ser diferente ao predomínio do ser/indivíduo à coletividade, não se
com relação ao conjunto dos espaços de intervenção dos colocando a dimensão de totalidade4 como base para a análise,
trabalhadores do campo sócio jurídico – é necessário ver, influenciada, à época, sobretudo pelo pensamento positivista.”
claramente, como ponto de partida, que a questão social “Assim, Guerriero (1985), ao tratar do estudo social a
atravessa o cotidiano dos sujeitos aí atendidos – em todas as partir de sua experiência no contexto judiciário, apontava que
suas dimensões. Questão social que se apresenta como ‘base’ o objeto do estudo social é o processo social, sinalizando que o
fundante do Serviço Social enquanto trabalho especializado, e contexto, e não o fato, era priorizado na análise.”
conceituado como ‘...conjunto das expressões das “No que diz respeito à forma de realização do estudo social,
desigualdades que aparecem com a sociedade capitalista e que esclarecia que se concretizava por meio de entrevistas, visitas
tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais domiciliares e contatos com colaterais, instrumentos que
coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, tinham no relacionamento um elemento ‘constante e
enquanto a apropriação do seu produto mantém-se privada, dinâmico’, considerado fundamental para o processo de
monopolizada por uma parte da sociedade’, como destaca estudo.”
Iamamoto. (1998:27).” “Em outro estudo a respeito do Serviço Social no Judiciário
“A qualificação, para acompanhamento e análise crítica das (Adducci, 1982), o termo laudo social não aparece, tal como em
relações sociais com as quais o assistente social lida no Guerriero. O destaque é dado ao relatório social, como
trabalho, torna-se fundamental para a proposição de ações expressão do estudo social, tanto na Justiça da Infância e
inovadoras que venham a contribuir para alterações nessa Juventude como na Família.”
realidade, tanto no nível da intervenção direta, quanto no “As referências históricas à forma e conteúdo do estudo
âmbito das políticas social, (...)”. social e conhecimentos acumulados por meio da intervenção
profissional e da pesquisa, permitem afirmar que o modelo de
abordagem individual, em especial as etapas
metodológicas/operativas de investigação e diagnóstico

39 http://www.trabalhosfeitos.com/ensaios/o-Estudo-Social-
F%C3%A1vero/701851.html

Conhecimentos Específicos 38
APOSTILAS OPÇÃO

contempladas pelo estudo social, direcionou o trabalho do (p. promotor público, seja o psicólogo, enfim, ao olhar de outros
27) assistente social na instituição judiciária ao longo de sua profissionais com os quais o assistente social interage, direta
história.” ou indiretamente.”

4. O estudo social na contemporaneidade Parte II – 1. Procedimentos e instrumentos em


“O estudo social se apresenta, atualmente, como suporte questão: síntese informativa
fundamental para a aplicação de medidas judiciais dispostas “O estudo social, a perícia social, o laudo social e o parecer
no Estatuto da Criança e do Adolescente e na legislação civil social fazem parte de uma metodologia de trabalho de domínio
referente à família. A solicitação ou determinação para que específico e exclusivo do assistente social.”
seja realizado, via de regra, se dá diretamente a assistentes “Perito, como já visto, reporta-se a profissional que detém
sociais servidores do Poder Judiciário ou a assistentes sociais um conhecimento especializado, dado por sua área de
nomeados como peritos, ou por meio de profissionais que formação.”
atuam em organizações que têm seu objeto de trabalho de “Mas o que é solicitado ao profissional assistente social não
alguma forma vinculado à instituição judiciária.” é o conhecimento jurídico, ou a interpretação da lei, mas o
“Observa-se que para o desenvolvimento deste trabalho, conhecimento específico do (p. 42) Serviço Social, de forma
geralmente o assistente social estuda a situação, realiza uma que sua apresentação, por meio do estudo social, contribua
avaliação, emite um parecer, por meio do qual muitas vezes para a justa aplicação da lei.”
aponta medidas sociais e legais que poderão ser tomadas.” “Quando o assistente social é solicitado a oferecer um
“Por meio de observações, entrevistas, pesquisas laudo, um parecer social, cabe a ele, portanto, definir os meios
documentais e bibliográficas, ele constrói o estudo social, ou necessários para construí-los (...).”
seja, constrói um saber a respeito da população usuária dos
serviços judiciários.” 2. Estudo social
“O relatório social e/ou o laudo ou o parecer social, que “O estudo social é um processo metodológico específico do
apresentam com menor ou maior detalhamento, a Serviço Social, que tem por finalidade conhecer com
sistematização do estudo realizado (ou da perícia social, como profundidade, e de forma crítica, uma determinada situação ou
definido geralmente neste espaço), transformam-se em (p. 43) expressão da questão social, objeto da intervenção
instrumentos de poder.” profissional – especialmente nos seus aspectos
“Ao se tomar como referência definições dos termos perito, socioeconômicos e culturais.”
perícia e laudo, emergem e perpassam em todas elas conceitos “Vale reafirmas, contudo, que de sua fundamentação
relacionados ao ‘saber’. O perito é o sujeito (p. 29) ‘sábio’, rigorosa, teórica, ética e técnica, com base no projeto da
‘hábil’, ‘especialista em determinado assunto’. A perícia é profissão, depende a sua devida utilização para a garantia e
traduzida como ‘vistoria ou exame de caráter técnico e ampliação de direitos dos sujeitos usuários dos serviços
especializado’5. O laudo, por sua vez, registra por escrito, e de sociais e do sistema de justiça.”
maneira fundamentada, os estudos e conclusões da perícia. Ou
seja, registra um saber, e saber especializado, relacionado a 3. Perícia social
uma área de formação profissional.” “A perícia, no âmbito do judiciário, diz respeito a uma
“O conteúdo significativo do estudo social, expresso em avaliação, exame ou vistoria, solicitada ou determinada
relatórios ou no laudo social, reporta-se à expressão ou sempre que a situação exigir um parecer técnico ou científico
expressões da questão social e/ou à expressão concreta de de uma determinada área do conhecimento, que contribua
questões de ordem psicológica, como a perda, o sofrimento ..., para o juiz formar a sua convicção para a tomada de decisão.”
que culminou numa ação judicial (...).” “A perícia, quando solicitada a um profissional de Serviço
“No espaço judiciário, o assistente social, geralmente, é Social, é chamada de perícia social, recebendo esta
subordinado administrativamente a um juiz de direito – ator denominação por se tratar de estudo e parecer cuja finalidade
privilegiado nessas instituições, na medida em que sua ação é subsidiar uma decisão, via de regra, judicial. Ela é realizada
concretiza imediatamente a ação institucional.” por meio do estudo social e implica na elaboração de um laudo
“A imersão num cotidiano tenso, complexo e, via de regra, e emissão de um parecer.”
autoritário, torna permanente o desafio dos profissionais no “Dependendo da solicitação e/ou determinação, o perito
que se refere ao exercício da liberdade e da criatividade (...).” poderá responder a quesitos, geralmente formulados pelas
“A dimensão mais ampla deste desafio é resistir à tensão e partes envolvidas na ação ou pelos advogados/defensores que
à alienação que o rotineiro ambiente de trabalho propicia e as representam, devendo fazê-lo sempre em consonância com
fazer das singularidades, operadas no cotidiano, espaços de as prerrogativas, princípios e especificidades da profissão.”
garantia e ampliação de direitos (...).”
“(...), o trabalho realizado comporta um conteúdo e é 4. Relatório social
guiado por uma intencionalidade, com vistas a um resultado.” “O relatório social, como documento específico elaborado
“Essas normas e fundamentos dizem respeito aos meios por assistente social, se traduz na apresentação descritiva e
necessários de serem dominados para o competente exercício interpretativa de uma situação ou expressão da questão social,
profissional. Dominar os meios implica no domínio de um enquanto objeto de intervenção desse profissional (p. 45), no
poder. Poder dado pelo saber profissional, que, no caso do seu cotidiano laborativo.”
Judiciário, soma-se ao poder inerente à natureza institucional, “Via de regra esse documento deve apresentar o objeto de
que é um poder de julgamento, de decisão a respeito da vida estudo, os sujeitos envolvidos e a finalidade à qual se destina,
dos sujeitos.” os procedimentos utilizados, um breve histórico,
“Na construção do estudo social, não se pode perder de desenvolvimento e análise da situação.”
vista que mesmo quando se trabalha com apenas um usuário,
ele é um indivíduo social, e a realidade social que condicionou 5. Laudo social
a sua história, bem como o fato que motivou a realização do “O laudo é utilizado no meio judiciário como mais um
estudo, devem ser trazidos à tona por competência do elemento de ‘prova’, com a finalidade de dar suporte à decisão
assistente social.” judicial, a partir de uma determinada área do conhecimento,
“(...) Portanto, o estudo social envolve uma dimensão de no caso, o Serviço Social.”
totalidade que deve ser expressa nos registros que o expõem
ao conhecimento do outro, seja o juiz, seja o defensor, seja o

Conhecimentos Específicos 39
APOSTILAS OPÇÃO

“Enfim, o laudo oferece elementos de base social para a dirigir à ele com uma linguagem rebuscada e totalmente
formação de um juízo e tomada de decisão que envolve formal que ele pode não compreender.
direitos fundamentais e sociais.”
6. Parecer social Quando a criança se insere no contexto escolar, passa a
“O parecer social diz respeito a esclarecimentos e análises, aprender a ler e escrever e a comunicação passa a ter normas
com base em conhecimento específico do Serviço Social, a uma padrão para ser utilizada, passa a obedecer regras que até
questão ou questões relacionadas a decisões a serem tomadas. então eram desconhecidas e aprende uma nova forma de
Trata-se de exposição e manifestação sucinta, enfocando-se comunicação: a leitura e a escrita. A partir de então, adquire-
objetivamente a questão ou situação social analisada, e os se o conceito do que é certo (norma culta/padrão da língua) e
objetivos do trabalho solicitado e apresentado; a análise da o que é errado (forma coloquial/ informal de se falar).
situação, referenciada em fundamentos teóricos, éticos e
técnicos, inerentes ao Serviço Social – portanto, com base em As normas aprendidas na escola vão dar uma visão de
estudo rigoroso e fundamentado – e uma finalização, de regra, de algo a ser seguido e respeitado, então a linguagem
caráter conclusivo e indicativo. No âmbito do Sistema usada com os amigos e com a família, passa a ser errada quanto
Judiciário, o parecer pode ser emitido enquanto parte final ou às regras ortográficas, enquanto a linguagem culta, aquela que
conclusão de um laudo, bem como enquanto resposta à segue um padrão, passa a ser a ser a correta, já que se utiliza
consulta ou a determinação da autoridade judiciária a respeito das normas e regras.
de alguma questão constante em processo já acompanhado
pelo profissional.” Portanto, a linguagem escrita, geralmente é culta, denota
uma preocupação maior em se seguir regras, em obedecer às
Avaliação e Linguagem Relatórios, Laudos e Pareceres normas padrão de linguagem, diferente da fala. A exceção são
as novas tecnologias de comunicação, as redes sociais que
Selma Marques Magalhães exigem uma maior rapidez na digitação, no estabelecimento da
comunicação entre as pessoas e muitas vezes oferecendo
Quanto ao uso da linguagem como podemos avaliar espaços limitados para que a pessoa possa escrever,
suas variadas formas? expressando suas ideias, se comunicando com outras. Esse
novo modo de se comunicar, muitas vezes dificulta o uso da
Segundo a autora Selma Marques Magalhães40 “há uma linguagem culta até mesmo na forma escrita, porque causa
heterogeneidade de linguagens, as quais apresentam uma confusão, visto que a pessoa se acostuma a criar novas
variações e complexidades diferenciadas, conforme as formas de escrever e abreviar as palavras, que depois não sabe
particularidades do contexto no qual vão se processando as qual é a maneira correta de se utilizar a linguagem. Em
interações sociais”. redações, é cada vez mais comuns se encontrar frases do tipo
“vc vai psar lê em ksa hj?” ou “no fds vcs vao fz o q?”, e de tanto
Há uma pluralidade no uso das palavras, que de acordo utilizarem-se de tais expressões, na hora de redigir um texto
com o contexto no qual são pronunciadas ou com o avaliativo ou escrever uma carta que exige o uso padrão da
lugar/região onde ocorre a comunicação, elas adquirem linguagem, a pessoa acabe se confundindo e cometendo tais
significados próprios e distintos, como por exemplo, o erros, mas de uma forma geral, a escrita tende a ser mais
português falado no Brasil, é diferente do falado em Portugal formal e rebuscada.
ou Angola. A linguagem adquire características próprias do Os gestos, vestimentas, maneira de olhar, de se expressar,
local onde é falada, veja só, no Brasil a utilização da palavra o linguajar de cada grupo, as formas, placas, enfim, tudo o que
“bicha” é considerada um termo pejorativo e ofensivo, mas em nos envolve, representam uma maneira de se comunicar, de
Portugal, a utilização de tal palavra serve para designar uma estabelecer uma linguagem própria pessoal.
fila.
O mesmo acontece com a linguagem poética, literária e a
As regiões de um país também terão suas próprias prosa, que muitas vezes se utilizam de verbetes, utiliza-se de
expressões e linguagens, que para outras pessoas que não se erros propositais e da linguagem informal, por ser criativa e
inserem naquele contexto, parecerão sem nexo. livre, enquanto a linguagem culta se apresenta de forma mais
coerente, clara e lógica, como por exemplo, na linguagem
A linguagem possui significado plural e multidimensional, utilizada em laudos, pareceres e relatórios, ou numa carta
onde para se comunicar, os homens utilizam-se de símbolos solicitando uma vaga de emprego ou uma bolsa universitária.
organizados em códigos e linguagens e se condiciona ao meio
no qual se insere, para desenvolver sua linguagem, sua forma Uma linguagem considerada culta em determinada
de se expressar. situação ou localidade, pode não ser vista assim por pessoas
que não se inserem naquele mesmo contexto, assim como a
Ao falarmos com amigos e pessoas mais próximas, do linguagem informal pode ser compreendida como a linguagem
nosso convívio, é comum utilizarmos da linguagem coloquial, padrão, correta de determinados grupos ou segmentos. É
de gírias, sem nos preocuparmos com as normas gramaticais, preciso se respeitar o contexto, a finalidade, o destinatário da
mas como profissionais, ao nos reportarmos aos nossos mensagem, para então se avaliar e decidir a linguagem a ser
superiores, a chefes, juízes, prefeitos, promotores, médicos, utilizada em casa situação.
enfim, a pessoas mais instruídas, a quem devemos respeitar e
tratar de forma mais formal, não utilizaremos termos A sociedade muda constantemente, as pessoas evoluem,
informais, haverá uma maior preocupação com a língua culta, assim como as palavras, que passam a ter significações
com a utilização correta das normas de linguagem, enfim, com próprias e distintas em cada momento histórico, em cada
a formalidade da comunicação. Com o usuário, que está ali a situação ou em cada realidade na qual são inseridas.
procura de um atendimento, não vamos usar palavras de baixo
calão, impróprias e ofensivas, mas também não podemos nos Para que haja uma avaliação das suas variadas formas, é
preciso primeiramente conhecer o contexto no qual se

40http://www.trabalhosfeitos.com/ensaios/Avalia%C3%A7%C3%A3o-e-

Linguagem-Relat%C3%B3rios-Laudos-e/572371.html (Adaptado)

Conhecimentos Específicos 40
APOSTILAS OPÇÃO

inserem a finalidade com a qual são utilizadas, a realidade dos passar dos anos. O modo de se falar no período do Brasil
indivíduos envolvidos naquele processo de comunicação e o colônia, era diferente da atualidade. De acordo com quem se
desígnio da linguagem, para então se ter uma clara visão de fala, essa arquitetura pode ser mais ou menos elaborada, para
todo o contexto, conhecer as várias formas de linguagem e permitir a comunicação.
conhecer o sentido e a significação da linguagem, no contexto
em que são utilizadas, como mostrado anteriormente. Existe a estrutura, mas esta permite as variações
arquitetônicas. Se uma pessoa convive unicamente com outras
A autora compara a linguagem à “estrutura” e pessoas menos letradas, que não conhecem a norma culta da
“arquitetura” de uma casa. linguagem e utilizam-se de uma linguagem própria para se
comunicar, ela tende a ter um refinamento menor, enquanto
Pautada nas concepções de Bechara (2000, p.12) que que uma pessoa que convive cada vez mais com pessoas
coloca que “... Na língua prevalecem as normas, e nas normas intelectuais, ela adquire um maior refinamento, sua
não há a rigor normas cultas e normas incultas…” a autora arquitetura se torna mais intelectualizada, mais aprimorada.
procura substituir os conceitos sobre correto e incorreto, por
outros que exprimissem melhor as variações linguísticas, A língua apresenta variações, assim como na arquitetura,
então faz uma comparação à estrutura e arquitetura de uma mas é necessário uma estrutura, normas comuns à todos, para
casa. possam se entender, se comunicar e até mesmo criar, inovar e
fantasiar, como fazem os poetas, os escritores e também os
Quando se faz uma construção, a estrutura da casa músicos, com a linguagem. Se não existisse uma estrutura, uma
necessita de uma maior rigidez, de ser mais sólida, pois é ali norma, o que iria se modificar, se transformar?
que a casa começa a sair do papel e é a estrutura que torna a
construção mais forte, que possibilita às pessoas viverem ali É por isso que a autora estabelece a comparação entre a
em segurança, protegidas contra as condições adversas do linguagem e a estrutura e arquitetura de uma casa.
tempo, clima, de acidentes, enfim, a estrutura é o início, é onde
a construção será feita e, portanto ela é rígida, é concreta e é Por que se faz necessário o conhecimento de um
também a base para se fazer a arquitetura. contexto social no qual o usuário está inserido quando se
usa a comunicação oral?
Com a estrutura pronta, a pessoa pode sonhar, pode
fantasiar, pode criar ambientes de acordo com seus planos e Faz-se necessário conhecer o contexto social no qual o
sonhos e realmente, no que tange à arquitetura, vemos obras usuário está inserido quando se usa a comunicação oral,
incríveis, que realmente parecem dar um aspecto de sonho ao justamente para compreender o que ele está tentando dizer.
lugar, de irreal, de tão elaborado e planejado que são feitas e é
com isso que a arquitetura se preocupa, com a ambientação, De acordo com seu contexto social, ele pode falar de uma
com a variação, com proporcionar aquilo que o cliente deseja, maneira mais culta, usar termos mais coerentes, distintos, com
de acordo com seus ideais, com seu contexto, com sua um linguajar mais refinado e coeso, demonstrando uma
realidade, possibilidades e também de acordo com a história. intelectualidade maior e exigindo que a pessoa fale com ele da
Por exemplo, atualmente, as casas ganham uma arquitetura mesma maneira.
mais moderna, com vidros por todos os lados, formatos
inovadores e muita sofisticação. No passado, a arquitetura era Em outras situações, o indivíduo pode estar inserido em
totalmente diferente. As casas eram de telhas, grandes e com um contexto social menos intelectualizado, mais simplório,
janelas de madeira muito altas. pauperizado, em uma área rural, enfim, em um ambiente mais
simples, onde as pessoas de seu convívio se utilizam de uma
A linguagem também pode ser entendida sob esse linguagem própria, coloquial, com verbetes de significação
ângulo. local e pessoal e pode acontecer desse indivíduo utilizar-se de
termos esdrúxulos e impropérios, sem a intenção de ofender
Existem normas estabelecidas para se tentar estabelecer ao seu interlocutor, mas meramente porque está habituado a
uma comunicação comum, coerente e clara entre todas as falar daquela forma, a se utilizar de tais termos e pronuncias.
pessoas. Essas normas são como a estrutura de uma
construção, elas são sólidas, vigoram gramaticalmente e são Uma palavra dita por um indivíduo inserido num contexto,
colocadas como as normas cultas da linguagem, mas na pode ter outro significado para indivíduos de um contexto
verdade, são uma estrutura que torna possível as variações, diferente, como já colocado na primeira questão. Por exemplo,
porque sem essa estrutura, a arquitetura não teria nexo, as em uma favela, alguém grita “os macacos estão subindo o
pessoas não se entenderiam, ficaria algo vago, sem sentido, morro” ou “os alemães estão chegando”. Esse linguajar
cada pessoa teria seu modo de se comunicar e as pessoas de geralmente quer dizer que a polícia está chegando na favela,
regiões diferentes não conseguiriam talvez se entenderem, que estão se aproximando, enquanto que para alguém que
porque não tem uma estrutura sólida, rígida, comum à todos. mora próximo a florestas ou que não são daquele contexto, “os
Então as normas seriam essa estrutura, porque são macacos estão subindo o morro” significa que algum primata
necessárias para se permitir as variações, para possibilitar que está subindo algum tipo de morro ou “os alemães estão
arquitetura transforme o ambiente. chegando”, significa que imigrantes da Alemanha, cidadãos ou
A arquitetura então representa as variações linguísticas, turistas alemães, estão chegando a algum lugar.
de acordo com o contexto social do indivíduo, com o seu grupo
de relacionamentos, com o seu grau de instrução, com seu A realidade vivenciada pelas pessoas, se expressa no seu
trabalho, com todas as condições sociais que o transformam e modo de agir, de se vestir e também no modo de falar. Se você
vão moldando sua personalidade, que vão possibilitando não conhece o contexto social do usuário, pode ser que
interações com as pessoas e com os meios. Ela permite criar, durante um atendimento, um usuário se utilize de um
inovar, construir novas formas de se comunicar, de se palavrão, de um termo ofensivo, sem perceber que está
expressar e utilizar a linguagem, adequando-a ao seu contexto desrespeitando o profissional, que ficará ofendido e pode não
e necessidades, de acordo com que se fala, com o que se quer querer atendê-lo, sem compreender que de acordo com suas
transmitir e com o momento histórico vivenciado, que assim vivencias, ele aprendeu a falar daquele jeito e não pretendia
como as construções, a linguagem também se modifica com o ofender.

Conhecimentos Específicos 41
APOSTILAS OPÇÃO

As gírias e os linguajares próprios precisam ser Nas interações interprofissionais, um discurso direto, onde
compreendidos e até mesmo traduzidos pelo profissional, as pessoas estão frente a frente, possibilita uma interação mais
porque ajudam a identificar o grupo social no qual o usuário se informal e atuante e o profissional pode intervir
insere e representam indícios importantes para o profissional. imediatamente. Em grande parte do tempo, é o usuário o
locutor, enquanto o profissional é o seu interlocutor.
Um mineiro vai se utilizar da expressão uai, que parece
totalmente sem sentido para os paulistas, que dão uma O discurso indireto ocorre de forma escrita e, portanto, é
entonação maior quando pronunciam a letra R nas palavras, mais passivo. A comunicação ocorre entre o autor e o leitor e
enquanto que para os cariocas, a letra S é falada mais soprada. não se dá de forma física, contando com a interpretação de
Os gaúchos se utilizam da expressão chê, enquanto os baianos quem lê o que se escreveu, para estabelecer a comunicação,
falam mais vagarosamente e de forma mais arrastada. E assim para se fazer entender. Não oferece a oportunidade de
por diante. interromper a leitura para melhor se expressar ou explicar o
que não foi entendido, evitando equívocos. Um texto oferece
Quando se fala com adultos, as pessoas geralmente ainda várias interpretações, de acordo com a análise de quem
utilizam um linguajar mais apropriado para adultos, enquanto o lê. O autor não está presente para melhor se fazer entender
que a fala com crianças é mais simples, com mais palavras no e a linguagem é mais técnica, formal, culta, identificada com
diminutivo e também com a utilização da fantasia, do uma linguagem que pode identificar a área de competência
imaginário, para que ela compreenda. profissional do seu locutor.

Nas palavras da autora, “... quando se usa a comunicação As comunicações escritas, em especial aquelas realizadas
oral como instrumento de trabalho, faz-se necessário o por profissionais graduados, demonstram a particularidade
conhecimento não só das peculiaridades do contexto social da profissional e institucional de quem escreve.
s classes ou grupos em que ela se efetiva, mas também dos
signos que são expressos por meio da linguagem utilizada Existe aí, um locutor e vários interlocutores, visto que o
nesse contexto”. texto escrito, pode ser lido por várias outras pessoas.
Professores, médicos, assistentes sociais, psicólogos,
Ainda nas palavras da autora, “sozinha a palavra é neutra; advogados, enfim, os profissionais de diversas áreas,
só ganha conotação ideológica num contexto de comunicação”. transmitem a sua identidade profissional, através dos textos,
relatórios e laudos que redigem.
O profissional não vai se utilizar de um linguajar complexo,
que não permitirá que o usuário compreenda o que ele está Na linguagem indireta, considerando um grau mais
dizendo, mas também não vai começar a utilizar as mesmas elevado de formação de seu locutor, não se adentra na
expressões e gírias que os usuários utilizam, por exemplo, ao linguagem coloquial, no censo comum, na utilização de gírias e
trabalhar com adolescentes, que “criam” uma linguagem impropérios.
própria, com palavras que só eles conseguem entender. Ele
deve compreender essas palavras, esses linguajares e não Essa linguagem escrita e indireta é a mais utilizada no
adota-las em seu cotidiano de trabalho, da sua comunicação. espaço forense, visto que neste espaço, trabalha-se com autos
e processos diversos e conta-se com a análise de profissionais
Se o indivíduo não consegue compreender o que o de outras áreas para se chegar a um parecer definitivo, que é
profissional está lhe falando, ele deve explicar sua fala e tentar feito pelo juiz, após analisar todos os fatos, relatórios e
fazê-lo compreendê-lo e não sair falando como ele, usando as pareceres constantes no processo.
mesmas expressões, gírias e até mesmo palavras de baixo
calão. A justiça é aqui considerada em seu sentido universal e
toda a história dos usuários, faz parte do processo judicial.
Na perspectiva de que não há o correto e o incorreto no que Portanto, a comunicação escrita, é de extrema importância ao
tange à comunicação, mas várias variações da língua de acordo contexto judicial.
com o contexto sociocultural da pessoa. O profissional não
deve criticar o linguajar de seus usuários, mas respeitar e Entretanto, estes processos podem se complementar,
compreendê-lo, buscando os dados de que necessita para a sua porque para conhecer uma determinada realidade, o
avaliação. profissional precisa pesquisar, investigar, dialogar com os
indivíduo e quando ele chega a alguma conclusão e precisa
Respeitar, não significa que o profissional e o usuário irão passar suas observações a outro profissional, ao juiz por
se tornar os melhores amigos, mas sim estabelece uma relação exemplo, ele escreve um relatório, baseado no que o indivíduo
de respeito entre o profissional da instituição e o usuário que lhe disse, no que ele percebeu com seus diálogos e
ali chegou necessitando de atendimento. observações, então ele se torna o locutor de seu locutor, para
um novo interlocutor, no caso, o juiz.
As diferenças existentes entre um discurso direto e
indireto. Relatórios, laudos e pareceres, só podem ser feitos, a partir
de investigações, de visitas domiciliares e também do diálogo,
O discurso direto expressa uma interação dinâmica, ativa, do discurso direto.
onde as pessoas estão cara a cara e além das palavras,
percebem a entonação, os gestos e o olhar da (s) outra (s) Os tipos de avaliação existentes e em qual contexto
pessoa (s) e então ocorre uma melhor compreensão, que elas devem ser utilizadas.
permite que a subjetividade e as emoções, fiquem mais
evidenciadas e sejam melhor percebidas e compreendidas. Se analisarmos calmamente perceberemos que existem
Ocorre um contato mais próximo entre o locutor e o vários tipos de avaliação, de acordo com o que se quer avaliar.
interlocutor, as dúvidas são esclarecidas mais facilmente, Há as avaliações escolares, para avaliar de tempos em tempos
evitando confusões no entendimento do que se quer o aprendizado dos alunos, as monografias ao final de cursos de
transmitir. graduação e especialização, também avaliam o desempenhos
dos estudantes e o que aprenderam ao longo do curso. Há

Conhecimentos Específicos 42
APOSTILAS OPÇÃO

ainda as avaliações para se tirar a habilitação, para se É preciso muito cuidado para que a avaliação não seja um
examinar um paciente, para ingressar na academia, para fazer veredicto, ela é um parecer, então muito cuidado.
compras no supermercado ou numa loja qualquer, a avaliação
de desempenho dos funcionários de uma certa empresa, a Ela é resultado de um estudo, de um diagnóstico, pelos
avaliação de currículos, para se escolher os candidatos mais quais se abrem novas possibilidades, novos caminhos a serem
ligados às especificações do cargo e exigências da instituição, percorridos.
enfim, a avaliação está sempre presente no nosso cotidiano e
são diversos os tipos de avaliação. Até mesmo a auto avaliação
tem sido usada com frequência, para analisar como as pessoas 6. análise e fundamentação das
enxergam a si mesmas sob determinado ponto.
relações sociais no âmbito das
Entretanto, a autora trabalha com dois tipos de avaliação: instituições e dos movimentos
a avaliação informal e a avaliação formal. populares;
Na avaliação informal, não há um saber teórico, um
embasamento, o avaliador é levado pelo senso comum, por
aquilo que ele gosta ou não gosta. Há ainda quem não tem a BIBLIOGRAFIA
mínima fundamentação crítica e simplesmente não gosta, nem
se interessa em conhecer primeiro para depois julgar. 2. AGUINKY, Beatriz G.; ALENCASTRO, E. H. Judicialização
da Questão Social: rebatimentos nos processos de trabalho dos
A avaliação aqui não acontece profissionalmente, ou seja, assistentes sociais no Poder Judiciário. Revista KATÁLYSIS v. 9
num contexto profissional específico. As pessoas levam em n. 1 jan./jun. 2006 .Florianópolis SC: UFSC, 2006. Disponível
consideração aquilo que sabem para julgar, o interesse maior em: http://www.scielo.br/pdf/rk/v9n1/a02v9n1.pdf. Acesso
ou menor por algum fato ou evento, o contexto social no qual em: 18.10.2016.
se desenvolveu, suas emoções e sociabilidade e também os
aspectos singulares do indivíduo, para avaliarem, para Judicialização da questão social: rebatimentos nos
decidirem sobre alguma coisa. processos de trabalho dos assistentes sociais no Poder
Judiciário
Essa avaliação é utilizada para avaliar pessoas, situações,
eventos, fatos, decidir sobre qual produto comprar, qual o Handling social problems in the courts: repercussions for
melhor caminho para se trafegar, qual casa ou carro adquirir, social assistants in theJudiciary Branch
em que banco abrir uma conta, enfim, é utilizada em situações
cotidianas, que não exigem do avaliador um conhecimento Resumo
mais aprofundado sobre o que se está avaliando, uma teoria
que embase sua avaliação, um estudo mais crítico e minucioso Embora sejam inegáveis as conquistas civilizatórias dos
para avaliar e decidir. Elas baseiam-se no juízo de valor e direitos humanos, seu reconhecimento e sua
direcionam seu agir e suas escolhas. operacionalização têm demandado, além de lutas históricas,
de modo cada vez mais intenso, a interpelação do Poder
Já a avaliação formal, é profissional, tem um objetivo Judiciário. O fenômeno da judicialização da questão social
específico, exige um direcionamento teórico-metodológico do ocorre em uma superposição de responsabilidades do
profissional para se agir, para tomar decisões, cujos valores se Judiciário às demais instâncias da esfera pública. Esta forma de
alicerçam em valores pessoais e sociais do avaliador. Ela tem acesso à justiça se dá, via de regra, de forma individual e por
critérios estabelecidos, que buscam alcançar uma finalidade, um segmento seletivo de sujeitos – os que conhecem ou
independente dos meios utilizados. Esses critérios norteiam a conseguem acessar este canal jurídico. Mas a efetivação dos
ação profissional, servem de referência à leitura que o direitos dependerá de outros fatores que não somente o seu
profissional deverá fazer do objeto a que se pretende avaliar, reconhecimento, como a capacidade de atendimento e de
relacionando-os diretamente com os objetivos mais imediatos financiamento à demanda apresentada. Diante deste quadro,
do processo avaliativo, determinados pelo contexto discute-se este processo de efetivação de direitos que, ao
institucional onde se processa a interação entre o usuário e o privilegiar cada vez mais a via judicial, rebate no
profissional. descomprometimento do Estado com o enfrentamento da
questão social e na despolitização da esfera pública. Esta
Essa avaliação é utilizada por profissionais, no cotidiano conjuntura adversa desafia os assistentes sociais a fazerem
institucional. São usadas para se tomar decisões importantes, sentido ético-político em suas respostas profissionais às
como por exemplo, o médico a usa para saber se o paciente demandas de judicialização da questão social que se
pode ser operado, o assistente social a usa para decidir se o apresentam cotidianamente ao Poder Judiciário.
usuário se enquadra nos critérios de determinados
programas, o juiz para decidir sobre um caso, enfim, ela é Palavras-chave: questão social, direitos, políticas
profissional, tem uma finalidade específica e exige rigor, públicas, judicialização.
competência, embasamento teórico e metodológico para ser
feita e não apenas o julgamento de valores e questões pessoais Abstract
do avaliador. É parte do cotidiano profissional e não de uma
rotina. Although the civilizing conquests of human rights are
undeniable, their recognition and enactment have required, in
Ela é feita com o objetivo de intervir ou de produzir addition to increasingly intense historic struggles, the
conhecimento, onde ao final chega-se a um parecer técnico e involvement of the Judicial Branch. The judicial treatment of
onde uma determinada pesquisa, uma certa avaliação, instiga social issues overlaps the responsibilities of the Judiciary with
outros profissionais a procurarem sobre o assunto, a fazer a other public institutions. Access to justice takes place, as a rule,
sua própria avaliação, pautados na conclusão que outra pessoa individually and by a select group of subjects – those who
chegou, não se trata unicamente de uma certeza. know how to access this legal channel. But the effective
enactment of rights depends on other factors that include not

Conhecimentos Específicos 43
APOSTILAS OPÇÃO

only its recognition, but the capacity to attend to and finance constituindo a partir de uma realidade histórica particular, na
the demand presented. Given this situation, this paper qual transcorreram os períodos colonial, imperial, chegando ao
discusses the process of the effective enactment of rights, republicano.
which by increasingly emphasizing judicial channels, leads to
a reduced commitment of the State as a whole, to face social Com o advento das constituições brasileiras, a partir de
issues and toward the depoliticization of the public sphere. 1824, o Estado de Direito vai sendo conformado,
This adverse situation challenges social assistants to take an incorporando, ainda, as grandes convenções internacionais
ethical-political direction in their professional responses to que traduzem as diferentes gerações de direitos, desde os
the demands of judicialization of the social question that is direitos civis, reconhecidos no século XVIII, passando pelos
presented daily to the Judicial Branch. direitos políticos, instituídos no século XIX, pelos direitos
econômicos e sociais, datados do início do século XX e
Key words: social question, rights, public policies, judicial culminando com os direitos de solidariedade, que surgem no
involvement. final da primeira metade do século XX (RITT, 2002).

Beatriz Gershenson Aguinsky Cabe ressaltar que o ano de 1988 constitui um importante
Doutora em Serviço Social pela PUCRS. Bacharel em marco na afirmação dos direitos humanos para a sociedade
Direito. brasileira. Naquele ano ocorre a promulgação da atual
Professora e Coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Constituição Federal, considerada, pelo seu processo de
Estudos em Ética e Direitos Humanos, Faculdade de Serviço construção, assim como pelos seus avanços no campo dos
Social da PUCRS. direitos humanos, como Constituição Cidadã.
Assistente Social do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul.
Entretanto, no ano seguinte à promulgação desta
Ecleria Huff de Alencastro Constituição, é eleito presidente do Brasil Fernando Collor de
Assistente Social. Melo, candidatura está forjada pelos interesses do grande
Doutoranda em Serviço Social na PUCRS. Professora do capital, tendo, a partir do Consenso de Washington, a
Curso de Graduação em Serviço Social da UNISINOS. incumbência de introduzir no país o ideário neoliberal.

Introdução Assim fazendo, a partir de 1990, Collor coloca o Estado a


serviço das reformas ditadas pelo reordenamento do capital
Este artigo tem como objetivo discutir a judicialização da internacional, subvertendo e negando a lógica constitucional
questão social como uma tendência, hoje em tela, na de defesa de direitos, alterando, inclusive, o seu conteúdo, sob
construção social de respostas às desigualdades sociais e à o argumento de inscrever o Brasil na modernidade e no
efetivação de direitos humanos que reconhece, no Poder primeiro mundo, mesmo que sob o preço da fragilização e
Judiciário, a institucionalidade privilegiada, não raro em desproteção social de sua população, advindas dos processos
detrimento de um compromisso mais efetivo do Estado e da de desregulamentação, flexibilização e privatização (NETTO,
esfera pública, em seu sentido mais amplo, para com as 1999).
demandas de direitos da população. Para tanto, em um
primeiro momento contextualiza-se o processo contraditório Neste sentido, as políticas sociais são operadas de forma
de afirmação dos direitos na sociedade brasileira e, no fragmentada, focalizada e com níveis de financiamento que
momento seguinte, discute-se as diferentes posições acerca da impedem a sua efetivação, tal como concebido no processo
supervalorização do Poder Judiciário no trato dos constituinte e na própria Carta Magna.
desdobramentos da questão social. Finalizando, são Mesmo após o impeachement de Collor, a população
tematizadas as mudanças processadas, por conta da brasileira, sobretudo os segmentos mais vulnerabilizados do
Constituição Federal de 1988, na esfera judiciária. São ponto de vista socioeconômico, não logrou ver suas demandas
questionadas as repercussões da centralidade desta instância enfrentadas pelo Estado. Ao contrário, o governo seguinte, de
estatal, carregada, muitas vezes, de autocracia e moralismo na Fernando Henrique Cardoso, ao longo de seus oito anos de
gestão de conflitos e nas mediações com a realidade concreta, mandato, procedeu à viabilização operacional das
analisando o quanto suas respostas individuais e focalizadas, a recomendações do Consenso de Washington, alargando as
demandas que são coletivas e estruturais, reverberam em um bases do modelo neoliberal e globalizante.
imaginário coletivo de concepção do Sistema de Justiça quanto Conforme destaca NETTO (1999, p.79-80), “a
à ideia de acesso à justiça em seu sentido mais amplo. Este inviabilização da alternativa constitucional da construção de
quadro é analisado em suas repercussões enquanto desafios um Estado com amplas responsabilidades sociais, garantidor
concretos à competência das respostas profissionais dos de direitos sociais universalizados, foi conduzida por FHC
assistentes sociais que atuam junto ao Poder Judiciário. simultaneamente à implementação do projeto político do
grande capital” e acrescenta que
1 O desafio da afirmação dos direitos na sociedade [...] um projeto desta envergadura e significação, colidindo
brasileira com a ordem constitucional e com as aspirações da massa
trabalhadora [...] só seria viável se pensado num lapso temporal
A luta pela conquista de direitos no Brasil tem seu marco mais largo que o de um só mandato presidencial [...]. Por isto
no próprio movimento de ocupação deste solo por europeus e mesmo, a questão da reeleição foi, no plano político, uma
no processo de resistência dos índios que aqui viviam e, mais questão crucial: somente a segurança de poder disputar um
tarde, dos negros trazidos como escravos do continente segundo mandato poderia garantir a consecução do projeto.
africano.
Neste sentido, reflete Couto (2004, p.76): Findo o governo de Fernando Henrique Cardoso, temse a
eleição de um candidato que se apresentava como
Os 500 anos de Brasil foram marcados por inúmeras representante dos interesses da maioria da população
transformações no que se refere tanto à formação do Estado brasileira, embora o conjunto de alianças forjadas, tendo em
brasileiro como à constituição da sociedade civil. Com vista a conquista do poder, denunciasse a ausência de uma
características peculiares e permeadas de fatores que maior coerência com a base de onde partiu tal candidatura.
conformaram a sociedade brasileira, os direitos [...] foram se

Conhecimentos Específicos 44
APOSTILAS OPÇÃO

Na atual conjuntura, no governo Lula, renovam-se os contidas em instrumentos internacionais de direitos humanos,
desafios pela afirmação de direitos já que, sob a batuta do são essenciais para a concretização plena e não discriminatória
capital internacional, um sem fim de concessões são feitas a dos direitos do homem [...].
favor da reprodução infinita dos interesses de acumulação, em
detrimento da garantia de condições de vida digna à maioria Piovesan (2003, p. 149, 157), afirma que “é fundamental
da população brasileira. adotar medidas para assegurar maior justiciabilidade e
exigibilidade aos direitos econômicos, sociais e culturais” e
2 As demandas históricas por afirmação de direitos: a que a efetivação destes direitos “não é apenas uma obrigação
centralidade do Poder Judiciário em questão moral dos Estados, mas uma obrigação jurídica, que tem por
fundamento os tratados internacionais de proteção”,
Tendo por um lado a ampliação dos direitos positivados na justificando sua defesa de que a pobreza constitui-se em uma
Constituição Federal de 1988, mas por outro, sua negação pelo violação dos direitos humanos. Reforçando esta tese, Lima
Estado em diferentes instâncias administrativas, um novo Júnior (2002, p. 658-659) afirma que:
fenômeno aparece na esfera pública- aqui concebida como
campo de disputa de diferentes interesses sociais, [...] a exigibilidade (inclusive enquanto justiciabilidade – a
demandados novos padrões de relação entre o Estado e a possibilidade de exigir direitos face ao Poder Judiciário) é, hoje,
sociedade civil – denominado por juristas como “judicialização um imperativo na teoria e na prática dos direitos humanos.
dos conflitos sociais” ou ou, ainda, “judicialização da política” Afinal, as declarações de direitos, as Constituições e as leis de um
(VIANNA et al., 1999; SORJ, 2000; ESTEVES, 2005; MELO, modo geral deixam de possuir qualquer significação prática se
2005). Este fenômeno caracteriza-se pela transferência, para o não tiverem a possibilidade de efetiva aplicação.
Poder Judiciário, da responsabilidade de promover o
enfrentamento à questão social, na perspectiva de efetivação Entretanto, este autor (p.663) defende que “o caminho
dos direitos humanos. Vianna et al. (1999, p. 42) refere que a legal não esgota as possibilidades de realização de direitos” e
sociedade civil, especialmente os setores mais pobres e que há outra forma que se impõe à efetivação dos direitos
desprotegidos, “depois da deslegitimação do Estado como humanos, que é dada pelas políticas públicas. E falar em
instituição de proteção social, vêm procurando encontrar no políticas públicas é falar em um movimento maior àquele
judiciário um lugar substitutivo, como nas ações públicas e nos operado pelos três poderes que compõem o Estado. Pressupõe
Juizados Especiais, para as suas expectativas de direitos e de falar em sociedade civil organizada, em atores sociopolíticos,
aquisição de cidadania”. Nesta mesma direção, Esteves (2005, que, na condição de sujeitos históricos, buscam, através de um
p.16), coloca que: processo de luta, a construção de uma nova história, de uma
nova sociedade, com justiça.
Muitas das vezes, é a própria atividade governamental
realizada pelo executivo que impede a consolidação dos direitos Reconhecendo a importância do Poder Judiciário para a
sociais, a sociedade passa a incumbir o judiciário na tarefa de garantia dos direitos individuais e coletivos, a discussão que
possibilitar a efetividade dos direitos sociais e realização da ora é proposta refere-se à responsabilidade do Estado em
cidadania social. responder as demandas colocadas pela questão social, sem
que haja um privilegiamento do Poder Judiciário, em
O autor antes citado defende ainda, utilizando Garapon detrimento da responsabilização inicial dos Poderes
(1999 , p. 227-228), que “se no século XIX, da ordem liberal, Legislativo e Executivo, instâncias fundamentais para a
houvera uma preponderância do legislativo, e no século XX, normatização, definição e execução das políticas públicas, que
sob a égide da providência, foi a vez do executivo, o século XXI são os instrumentos de reconhecimento e viabilização dos
caminha para ser o da supremacia do judiciário”. direitos. Mais ainda, sem colisão ou desconsideração com os
mecanismos históricos de controle social e de participação da
A própria Declaração de Viena, datada de 1993, em seu art. sociedade organizada na garantia de direitos.
27, determina que:
Sempre que houver o desrespeito aos direitos positivados,
Enfraquecidas as formas de reivindicação social através do o Poder Judiciário tem, não somente a atribuição legal, mas a
diálogo parlamentar possibilitado pela cidadania política, obrigação ética de interpelar a instituição que for, para que a
através do qual se reconheceram direitos que foram positivados lei seja cumprida. Entendemos, entretanto, que este ente
mas não adquiriram eficácia, e da constatação de que, muitas estatal teria uma ação infinitamente mais impactante e
das vezes, é a própria atividade governamental realizada pelo transformadora nas relações sociais se agisse na prevenção
executivo que impede a consolidação dos direitos sociais, a dos conflitos sociais, detendo- se mais ao interesse coletivo do
sociedade passa a incumbir o judiciário na tarefa de possibilitar que ao despacho de ações ingressadas, via de regra de forma
a efetividade dos direitos sociais e realização da cidadania individual e por um reduzido segmento da população que
social. conhece os seus direitos e possui condições de acessar o
Sistema de Justiça. Se, por um lado, comemora-se o ingresso de
O autor antes citado defende ainda, utilizando Garapon ações judiciais que exigem a garantia de direitos, por outro,
(1999, p. 227-228), que “se no século XIX, da ordem liberal, tem-se a realidade do esgotamento da capacidade de resposta
houvera uma preponderância do legislativo, e no século XX, a estas ações que tendem a ser, em larga escala, coincidentes,
sob a égide da providência, foi a vez do executivo, o século XXI pelo Sistema de Justiça.
caminha para ser o da supremacia do judiciário”. A própria
Declaração de Viena, datada de 1993, em seu art. 27, Esta, inclusive, é a preocupação de Esteves (2005, p.14)
determina que: quando considera que “ou os magistrados assumem o papel de
guardiões da Constituição e garantidores da cidadania, ou no
Qualquer Estado deverá dispor de um quadro efetivo de futuro, talvez próximo, o judiciário seja colocado no rol das
soluções para reparar injustiças ou violações dos direitos instituições desacreditadas pela sociedade e termine como
humanos. A administração da justiça, incluindo departamentos peça de retórica e legitimadora da desigualdade social”. Cabe
policiais e de promoção penal e, nomeadamente, a questionar, todavia, se a forma de assim fazê-lo não poderia
independência do poder judicial e estatuto das profissões ser outra, aproximando-se dos demais poderes,
forenses em total conformidade com as normas aplicáveis comprometendo-os em sua responsabilidade, participando de

Conhecimentos Específicos 45
APOSTILAS OPÇÃO

diferentes fóruns de construção e deliberação de políticas possivelmente, à tomada de consciência do fenômeno ora, ou
públicas. ainda, em curso, que se refere ao agravamento da questão
social entendida por Iamamoto (1999, p. 27), como
Neste sentido e posicionando-se de forma contrária à
defesa da judicialização dos conflitos sociais, Melo (2005, p.1) [...] o conjunto das expressões das desigualdades da
coloca que sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a
produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se
A judicialização do país traz um enorme prejuízo à mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus
sociedade e enriquecimento da classe jurídica em face de frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da
conflitos infindáveis que poderiam ser resolvidos de outra forma. sociedade.
É óbvio que há o aspecto cultural, onde se confunde Judiciário
com Justiça, mas esta não pode ser monopólio de um grupo, Nesta perspectiva, conforme, com propriedade, coloca
todos podem fazer justiça, principalmente a conciliatória. O Melo (2005, p. 5-6), “precisamos encontrar soluções e não
Executivo faz justiça quando emprega bem as verbas, o apenas identificar problemas, sendo que a questão não é
Legislativo faz justiça quando faz boas leis, o Ministério Público apenas jurídica, mas também política e social”, e transferir
também faz justiça quando fiscaliza e não é omisso, a igreja faz para o Poder Judiciário a atribuição de responder aos
justiça, a escola faz justiça. E o Judiciário faz injustiça também, desdobramentos da questão social pode ser positivo na
quando realiza concursos sem critérios de correção medida em que a força da lei será aplicada, entretanto, se esta
publicamente definidos, quando promove os que agradam a prática for maciça será, possivelmente, ineficaz e injusta, pois
cúpula, quando não participa da vida dos pobres, quando privará do direito àqueles que não recorrerem a esta esfera
impede a fiscalização da sociedade [...]. estatal.

O referido autor adverte que, para efetivar o monopólio do 3 O Serviço Social e a defesa dos direitos humanos e da
judiciário, a sociedade é impelida a crer que “o acesso à Justiça justiça social
é apenas acesso ao Judiciário. Mas acesso à justiça não é apenas
‘entrar’ é também ‘sair’ com a solução definitiva”. Assim, A defesa de direitos humanos e de justiça social tem sido
segundo ele, “o que se veda ao cidadão é o exercício violento historicamente construída pelo Serviço Social e expressa
do seu direito” (MELO, 2005, p. 2). através de seu Código de Ética Profissional, tendo a edição de
1993 reafirmado, de forma veemente, esse compromisso.
Outro aspecto desta judicialização, segundo este autor (p. Conforme Paiva e Sales (1996, p.178),
2-3), refere-se à administração do país por instituições
jurídicas autocráticas e sem respaldo popular e acrescenta: O Código de Ética de 1993, como o foi também o de 1986, não
se pretende somente corporativo, mas tenciona assegurar
[...] em geral decidem individualmente de acordo com vínculos com as prioridades da sociedade. Dessa maneira, o
interesses pessoais e dizem estar fazendo justiça social, a melhor atual Código se propõe a estabelecer nexos com essas
justiça social é a preventiva e feita com a participação do povo. prioridades, as quais vão estar bem expressas por meio de
A maioria dos ‘juristas’ não sabe como obter um auxílio reclusão, princípios e valores. A perspectiva é, então, buscar fortalecer
ou pensão por morte ou uma assistência social junto ao INSS, uma clara identidade profissional articulada com um projeto de
pois somente conhecem o processo judicial (MELO, 2005, p. 2-3). sociedade mais justa e democrática.

Nesta linha de argumentação, de que justiça não se vincula Desta forma, o Código de Ética Profissional do Assistente
diretamente ou necessariamente ao Poder Judiciário, Melo Social, expressa em seu artigo segundo, a “defesa intransigente
(2005, p. 5) também afirma que dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo”.

[...] justiça não pode ser monopólio dos juristas, Para tanto, torna-se fundamental o entendimento de
principalmente dos ‘práticos judicialistas’. Justiça é democracia, direitos humanos como universais, indivisíveis,
e onde houver democracia haverá justiça, mas esta não é interdependentes e inter-relacionados (consoante art. 5º da
romântica, pois democracia é confronto [...]. Na verdade a Declaração de Viena1 , 1993). Implica reconhecê-los como um
reforma jurídica será feita por bem ou por mal, é melhor que seja conjunto de direitos – civis, políticos, econômicos, sociais,
por bem e que a classe jurídica participe deste momento, culturais, incluindo também os direitos à solidariedade, à paz,
deixando o comportamento de apenas interpretar as leis e ao desenvolvimento e a um ambiente sadio.
passar a influenciar o legislativo para fazer boas leis, a função
do jurista é muito mais nobre, não é mero despachante judicial Convém ressaltar que a busca pela efetivação destes
[...]. direitos implica em um processo de enfrentamento de
interesses divergentes, fundamentalmente econômicos, que se
E é exatamente esta a concepção de Justiça Social que processam nos âmbitos nacional e internacional.
defendemos, apoiando-nos, ainda, em Aguiar (1995) que toma
como pressuposto o fato de a regra fundamental ser o conflito Já o quinto princípio do Código de Ética Profissional do
e a harmonia, ou seja, a exceção. Emergindo, assim, a Assistente Social expressa o “posicionamento em favor da
necessidade da justiça ser concebida como um dever- ser equidade e justiça social, que assegure universalidade de
respaldado no compromisso com a construção de “uma ordem acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas,
social que garanta a cada um o direito que lhe é devido” bem como sua gestão democrática”.
(AGUIAR, 1995, p. 44), lastreado, segundo este autor, na
parcialidade. Paiva e Sales (1996, p.190), ao comentarem este princípio,
mais especificamente a questão da justiça social, expressam
A construção da justiça, nesta perspectiva, e na de que esta
qualquer segmento com ela comprometido, exige a formatação
de um processo qualificado, que passa, necessariamente, pelo [...] fala da necessidade imperiosa de se atribuir a cada um o
aprofundamento do conhecimento acerca da realidade, em que é seu, no sentido do respeito à igualdade de direitos e aos
uma perspectiva de totalidade. Tal desvelamento levará, indivíduos. Ela tenta corrigir as insuficiências e problemas

Conhecimentos Específicos 46
APOSTILAS OPÇÃO

decorrentes do modo de os homens se organizarem e organizadora do terreno do agir social por parâmetros legais,
produzirem a sua própria vida. Logo, numa sociedade como a constrói uma aparente igualdade para a efetivação de interesses
capitalista, a justiça figura sempre como um ideal a ser subjetivos [...]; mas isso se dá à base da abstração das
perseguido, cuja objetividade se assenta, de um lado, sobre a desigualdades dos interesses em luta, e que dizem da mediação
legalidade, com todo o seu signo controverso, e, de outro, sobre material-econômica da vida social”(AGUINSKY, 2003, p.271).
a igualdade.
Se o próprio da ótica da legalidade da moral é um ethos
Portanto, justiça constitui-se em um “devir” e um campo, moralizador da vida social pelo qual o Direito regula as
por excelência, para trabalhar a sua construção refere-se à luta relações sociais através de uma homogeneidade lógica nos
por direitos humanos, uma luta que, necessariamente se trava conflitos e contradições, o que resulta é que este ethos
na esfera pública e em uma dimensão maior que aquela reproduz a vida social como particularidade em disjunção a
expressa pelo Sistema de Justiça. Já para Aristóteles, “havia possíveis mediações ao que, da questão social, o direito liberal
diferença entre o justo e o legal (lei escrita). A lei do equitativo não diz, antes, abstrai (AGUINSKY, 2003).
era superior, pois poderia corrigir a própria lei escrita”
(CAOVILLA, 2003, p.21). O que as práticas jurídicas convencionais fazem
movimentar em repressão à contradição e ao conflito
É fundamental ter clareza de que o legal nem sempre se submetido à decisão do Poder Judiciário, através da legalidade
associa ao justo e nem tampouco que o justo alcança-se da moral, joga dialeticamente para inscrever a história como
meramente pela via legal. A ausência de um Estado que possibilidade do que falha nas práticas jurídicas. É no coração
enfrente as desigualdades e a exclusão social não terá resposta desta falha que os assistentes sociais inscrevem seu exercício
“milagrosa” junto ao Poder Judiciário. Neste sentido, Fávero, profissional no campo jurídico. No centro dessa “tensão
Melão e Jorge (2005, p.33) afirmam: dialética é que se desenham as possibilidades do assistente
social tecer subversões no instituído dessas práticas por
Em alguns espaços do Poder Judiciário, [...] funções sociais se gestos de interpretação da contradição, pondo-se a agir ao
expressam mais n i t i d a m e n t e, como aqueles nos quais participar da interface do discurso jurídico” (AGUINSKY, 2003,
tramitam as ações relativas à infância, juventude, família e p. 275) com uma perspectiva ampliada de acesso e garantia de
criminais. Nessa realidade, expressões da ausência, insuficiência direitos.
ou ineficiência do poder Executivo na implementação de
políticas sociais redistributivas e universalizantes se Dentre os desafios que se apresentam aos assistentes
escancaram, na medida em que, além de litígios e demandas que sociais, através de uma leitura atenta desta realidade, que se
requerem a intervenção judicial, como regulamentação de apresenta no cotidiano de seu exercício profissional no Poder
guarda de filhos, violência doméstica, adoção etc., cada vez mais Judiciário, destaca-se a necessidade de investimento no
se acentua uma ´demanda fora de lugar’ ou uma ´judicialização’ desenvolvimento de competências em resposta à
da pobreza, que busca no judiciário solução para situações que, judicialização da questão social. Argumenta-se a favor de uma
embora se expressem particularmente, decorrem das extremas competência para o desenvolvimento de um trabalho
condições de desigualdades sociais. interdisciplinar, que se comprometa com a viabilização de
direitos sociais invisíveis à jurisdição pela ótica da legalidade
Neste sentido, cabe ao profissional de Serviço Social da moral. Vale dizer, competências capazes de articular as
procurar desvelar o cenário em que está inserido e o conjunto “demandas dos usuários dos serviços jurídicos às políticas
de projetos societários que estão em jogo, desenvolvendo uma públicas e à universalização de direitos em oposição ao que a
postura e uma práxis que supere a tendência, resultado do reprodução do cotidiano como particularidade tende a
acúmulo de demandas, da adoção de um “tarefismo” transformar em problemas morais, defeitos individuais ou
burocrático, moralizante e que não enfrenta as condições que ‘casos de boa vontade [...]’”(AGUINSKY, 2003, p.275). Tais
originam os processos judiciais. Processos esses que, em competências são mediações de sentido ao trabalho dos
grande medida, expressam particularidades da questão social, assistentes sociais ao se colocarem intencionalmente em um
necessitando, conforme, Barroco (2001, p.69), “compreender movimento de resistência à injunção potencialmente
o ethos profissional como um modo de ser construído a partir violadora e opressiva dos mecanismos do direito, levada a
das necessidades sociais e das demandas postas efeito através do monopólio da coerção pelo Estado.
historicamente à profissão e nas respostas ético-morais dadas
por ela nas várias dimensões que compõe a ética profissional”. Considerações finais

Finalmente, pode-se considerar que o potencial de O Poder Judiciário vive hoje um momento diferenciado
materialização do Projeto Ético-Político Profissional dos daquele que historicamente lhe foi atribuído. Se até há pouco
assistentes sociais, no exercício profissional junto ao Poder menos de duas décadas, seu papel era eminentemente
Judiciário, guarda direta relação com o reconhecimento das controlador e coercitivo, a partir da Constituição Federal de
particularidades desta referência institucional como um 1988, com o avanço, por um lado, no plano da conquista de
espaço de lutas de interesses distintos, submetido a critérios direitos humanos e, por outro, com a responsabilização do
de legitimação que dizem de uma disputa das formas de se Ministério Público em garantir a defesa dos direitos de
dizer (ou não dizer) tanto o Direito, quanto a sociedade. E o cidadania, o judiciário passa a ser chamado para responder a
que está em luta neste campo tem “no ideal liberal da um conjunto de demandas sobre as quais não possuía uma
sociedade capitalista contemporânea o hegemônico. Os maior aproximação ou mesmo vinculação, excetuando-se
mecanismos de legitimação deste ideário são ideológicos e se casos em que havia a opção pessoal de determinados juristas.
materializam nas práticas jurídicas por diferentes critérios,
dentre eles critérios morais” (AGUINSKY, 2003, p. 270). O No entanto, a tendência em curso de judicialização da
critério do agir moral que letigima o ideal liberal na questão social, ao transferir para um poder estatal, no caso o
institucionalidade do Poder Judiciário é o da “legalidade da Judiciário, a responsabilidade de atendimento, via de regra
moral” (FLICKINGER, 1995). individual, das demandas populares – coletivas e estruturais,
nas quais se refratam as mudanças do mundo do trabalho e as
Esse critério tem uma dupla face perversa: ao restringir a expressões do agravamento da questão social – ao invés de
racionalidade do Direito (liberal) a uma posição meramente fortalecer a perspectiva de garantia de direitos positivados,

Conhecimentos Específicos 47
APOSTILAS OPÇÃO

pode contribuir para a desresponsabilização do Estado,


sobretudo dos Poderes Legislativo e Executivo, com a GARAPON, A. O juiz e a democracia. Rio de Janeiro: Revan,
efetivação destes direitos, através das políticas públicas. 1999.

Assim procedendo, cabe questionar se o que se está IAMAMOTO, M. O Serviço Social na contemporaneidade:
construindo é a justiça social em seu sentido amplo, através do trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 1999.
acesso ao Poder Judiciário. Tal acesso não garante
necessariamente a resolução do problema, uma vez que há LIMA JÚNIOR, J.B. O caráter expansivo dos direitos humanos
entraves que independem da boa vontade de operadores de na afirmação de sua indivisibilidade e exigibilidade. In:
justiça e que dizem respeito ao papel do Estado e do seu
atrelamento aos interesses ditados pelo capital. No anverso PIOVESAN, F. (Coord.). Direitos humanos, globalização
deste acesso, não havendo o enfrentamento deste status quo, econômica e integração regional: desafios do direito
reproduz-se, em verdade, a injustiça social. Isto porque a constitucional internacional. São Paulo: Max Limond, 2002,
justiça social se constrói coletivamente, no interior da esfera p.651- 667.
pública, em um movimento contraditório onde se encontram
presentes diferentes interesses em disputa pela direção da MELO, A. L. A. A judicialização do Estado brasileiro, um
sociedade. caminho antidemocrático. Disponível em <http://
www.kplus.com.br>. Acesso em 30 maio 2005.
Finalizando, não se trata de negar a importância ao acesso
à justiça em seu sentido estrito. Entretanto, importa NETTO, J. P. FHC e a política social: um desastre para as
reconhecer que esta via não poderá dar conta, sozinha, do massas trabalhadoras. In: LESBAUPIN, Ivo (Org.). O desmonte
enfrentamento à questão social, que é histórica e estrutural, da nação. Petrópolis: Vozes, 1999, p.75-89.
demandando um movimento maior que possui, junto à esfera
pública, seu palco privilegiado de disputa. Desta forma, há que PAIVA, B. A.; SALES, M. A. A nova ética profissional: práxis e
se empreender uma práxis de acesso à justiça em seu sentido princípios. In: BONETTI, D. A. et al. Serviço Social e ética: convite
amplo, sem uma análise reducionista e ingênua de que a justiça a uma nova práxis. São Paulo: Cortez/CFESS, 1996, p.174- 208.
será outorgada pelo Estado, como um ator neutro e
comprometido com o bem comum. Este compromisso PIOVESAN, F. Pobreza como violação de direitos humanos.
pertence à sociedade, ou à sua maioria. E os assistentes sociais In: WERTHEIN, J.; JOVCHELOVITCH, M. Pobreza e desigualdade
que realizam seu processo de trabalho junto ao Poder no Brasil: traçando caminhos para a inclusão social. Brasília:
Judiciário, além de leitura atenta desta realidade, são UNESCO, 2003, p.135-162.
desafiados a contribuir com o que, da esfera pública, é
abstraído nas formas de operar e de responder às práticas RITT, E. O Ministério Público como instrumento de
jurídicas convencionais. democracia e garantia constitucional. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2002.
Recebido em 19.10.2005.
Aprovado em 08.12.2005. SORJ, B. A nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Zahar,
2000.
Referências
VIANNA, L. W. et al. (Orgs.). A judicialização da política e das
AGUIAR, R. A. R. de. O que é justiça: uma abordagem relações sociais no Brasil. Rio de janeiro: Revan, 1999.
dialética. São Paulo: Alfa-Omega, 1995.
Nota
AGUINSKY, B.G. Eticidades discursivas do Serviço Social no
campo jurídico: gestos de leitura do cotidiano no claro-escuro 1 A Declaração de Viena está disponível em: <http://
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Conhecimentos Específicos 48
APOSTILAS OPÇÃO

vez uma agenda de compromissos que incluiriam ações


7. Serviço Social e relacionadas a essa área. A partir de 2002, vários Conselhos
interdisciplinaridade; Regionais de Serviço Social do Brasil começaram também a
criar suas Comissões Sociojurídicas que seriam, então,
compostas por membros de direção e assistentes sociais que
BIBLIOGRAFIA atuam no Tribunal de Justiça, no Ministério Público, nas
instituições de cumprimento de medidas socioeducativas e no
10. FÁVERO, Eunice. T.; GOIS, Dalva A. (Orgs.) Serviço sistema prisional. O primeiro a fazê‑lo foi o Cress/7ª Região‑
Social e temas sociojurídicos: debates e experiências. RJ, então presidido por Hilda Correa de Oliveira, e tendo
Coletânea Nova de Serviço Social. Rio de Janeiro: LúmenJuris, significativo protagonismo de colegas daquela gestão que
2014. trabalhavam (e ainda trabalham) na área, como Andreia C. A.
Pequeno (Tribunal de Justiça), Tânia Dahmer Pereira e
29. Revista Serviço Social e Sociedade, Nº 67, Temas Newvone Ferreira da Silva (Sistema Prisional). Andreia
Sóciojurídicos, São Paulo, Cortez Editora, 2001. Pequeno relata também que em novembro de 2003 foi
realizada uma Oficina Temática no 2º Congresso Paranaense
Para entender o Serviço Social na área sociojurídica41 de Assistentes Sociais e, naquele mesmo ano, "houve a
incorporação, na grade curricular do curso de graduação da
1. O uso da expressão "sociojurídico" no Serviço Social Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio
brasileiro: como tudo começou de Janeiro, de uma disciplina sobre o campo sociojurídico"
O termo "sociojurídico" foi vinculado pela primeira vez ao (Pequeno, 2004, p. 11). Depois disso, já estando na direção do
Serviço Social brasileiro no momento de composição do Conselho Federal de Serviço Social, compondo a gestão de
número 67 da revista Serviço Social & Sociedade, editada em 2002‑2005, sob a lúcida presidência de Lea Braga, pude
setembro de 2001, quando inaugurava‑se a série de Números contribuir, juntamente com um grupo de colegas do CFESS e
Especiais desse periódico. A elaboração do referido número do Cress/Paraná, com a organização do I Seminário Nacional
ocorreu após solicitação do editor, José Xavier Cortez, de que a do Serviço Social no Campo Sociojurídico, que ocorreu em
assessoria editorial da área (pela qual eu já respondia na 2004, em Curitiba. A realização desse seminário havia sido
ocasião), fizesse um projeto para a edição de números uma deliberação do Encontro Nacional CFESS/Cress realizado
especiais da revista voltados especificamente para temas com em Salvador, em 2003, a partir de uma proposta encaminhada
os quais os assistentes sociais estão confrontados diretamente ao CFESS pelo Cress/7ª Região (Pequeno, idem).
em seu cotidiano profissional. Na época (como até hoje),
Cortez vinha recebendo várias solicitações de que os livros, Anoto que foi talvez naquele momento de organização do I
bem como o periódico editado por sua editora, contemplassem Seminário que se utilizou pela primeira vez a expressão
temas e demandas com os quais os assistentes sociais viam‑se "Serviço Social no campo sociojurídico". Foge‑me totalmente
envolvidos em sua prática diária. E muitas das solicitações à memória se a direção do CFESS chegou a debater ou não, na
partiam de assistentes sociais que atuavam na área ocasião, se a melhor expressão seria "campo" ou "área". A
sociojurídica. proposta enviada pelo Cress/7ª Região foi incorporada para
ser levada ao Encontro Nacional, tendo sido ali votada sem
Foi quando sugeri ao Conselho Editorial que analisasse a grandes questionamentos sobre a terminologia.
possibilidade de iniciar a referida série com artigos
relacionados à área penitenciária e judiciária, atingindo, com O que recordo com muita clareza é que, tanto nós do CFESS,
essa publicação, tanto os assistentes sociais que fazem os quanto os colegas do Cress/RJ tínhamos a preocupação de não
laudos periciais para juízes das Varas da Infância e Juventude incentivar nenhuma ideia de que haveria um Serviço Social
(e que trabalham com casos de adoção, violência contra próprio dessa área, algo, por exemplo, como um "Serviço Social
crianças, ato infracional de adolescentes etc.) e também das Sociojurídico". Ao contrário, tínhamos a firme convicção de
Varas de Família e Sucessões (casos de disputa de guarda de que seria necessário sempre explicitar o entendimento de que
filhos, interdições de idosos ou doentes mentais, entre outros), a profissão é uma só e atua em diferentes espaços sócio‑
quanto aqueles que trabalham dentro do sistema prisional. No ocupacionais, entre eles os que têm interface com o jurídico.
momento da escolha para o melhor termo a compor o
chamado "olho de capa" do referido número, o Conselho O I Seminário Nacional realizado em Curitiba, em 2004, foi
Editorial fez várias sugestões, e a opção foi pela expressão então de grande importância, não só por seu pioneirismo, mas
"Temas Sociojurídicos". Foi assim, portanto, a primeira vez pela qualidade da contribuição trazida pelas reflexões de
que ocorreu a vinculação do termo "sociojurídico" ao Serviço assistentes sociais da área e de palestrantes bastante próximos
Social brasileiro. da temática. Porém o mais importante foi o conteúdo da
agenda política ali deliberada que, conforme relato de Eunice
Em seguida, ocorreria o 10º Congresso Brasileiro de Fávero, recomendava, entre outros pontos:
Assistentes Sociais, no Rio de Janeiro, e seus organizadores
pensaram em criar naquele CBAS, pela primeira vez na história que o Conjunto CFESS/Cress incorpore a denominação
de nossos congressos, uma seção temática, ou um painel "campo das práticas sociojurídicas"; e fomente a articulação de
específico, para aglutinar os profissionais que trabalham no comissões do campo sociojurídico em todas as regiões" com o
sistema penitenciário e no Judiciário, e consultaram‑me sobre objetivo de "discutir e sistematizar as atribuições,
a expressão adequada para nomear a referida seção, ao que competências e aspectos éticos a partir do interior do projeto
sugeri que poderiam também utilizar o termo sociojurídico, ético‑político, o que certamente incentivaria a produção de
para chamar a atenção de todos os colegas que trabalham nos conhecimentos a respeito das práticas desenvolvidas nas
espaços sócio‑ocupacionais que têm interface com o universo diversas áreas. (Fávero, 2012, p. 123)
jurídico. Ali, no 10º CBAS, além de ter sido lançado o n. 67 da
revista Serviço Social & Sociedade, elaborou‑se pela primeira

41 Elisabete Borgianni, retirado do site:


http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
66282013000300002.

Conhecimentos Específicos 49
APOSTILAS OPÇÃO

Fávero lembra ainda que: 2. Serviço Social no "campo" ou na "área"


O CBAS de 2001, mais os de 2004 e 2007, também sociojurídica? A partir de que bases delimitar o que
definiram políticas para esse campo, sendo que a Agenda do compõe essa área?
12º, realizada em Foz do Iguaçu em 2007, explicitava como
compromissos: Quem primeiro trouxe‑nos uma tentativa de definição
mais "arredondada" foi Eunice Teresinha Fávero, quando
"Discutir politicamente os temas das violências, visando colocou que "o campo (ou sistema) sociojurídico diz respeito
superar a fragmentação das práticas, a naturalização da ao conjunto de áreas em que a ação social do Serviço Social
barbárie, a eliminação e criminalização dos pobres; pensar a articula‑se a ações de natureza jurídica, como o sistema
indissociabilidade da discussão das violências do projeto ético penitenciário, o sistema de segurança, os sistemas de proteção
‑político do Serviço Social"; "promover a reflexão sobre a e acolhimento, como abrigos, internatos, conselhos de direitos,
ampliação dos espaços de trabalho no campo sociojurídico; dentre outros" (Fávero, 2003, p. 10). Em outra ocasião, a
refletir sobre o investimento no Estado Penal em detrimento mesma autora fez elucidativa interpretação do papel social
do Estado Social, e priorizar práticas de prevenção; explicitar cumprido pelas instituições ou organizações próprias do
a denominação Serviço Social no Campo Sociojurídico e não sociojurídico: "[...] organizações que desenvolvem ações, por
Serviço Social Sociojurídico; compreender o estudo social e a meio das quais aplicam sobretudo as medidas decorrentes de
perícia social com objetivos de efetivação de direitos — aparatos legais, civil e penal, e onde se executam
avançar em sua construção interdisciplinar e na relação teoria determinações deles derivadas" (Fávero, 2012, p. 122‑123). E
x prática"; "lutar e agilizar gestões para consolidação da rede a mesma completou: "[...] nessas áreas, direta ou
nacional de proteção especial (Creas). (Agenda, 12º CBAS, indiretamente, trabalhamos com base normativa legal e em
apud Fávero, 2012, p. 124; grifos meus) suas interpretações pelos operadores jurídicos" (Idem).

Foram os profissionais da área sociojurídica que estavam No II Seminário Nacional, procurei também dar uma
presentes no CBAS de Foz do Iguaçu que solicitaram ao CFESS contribuição no sentido de definir melhor esse "campo" ou
a organização de outro evento específico, o que redundou no II área e propus que o Serviço Social brasileiro o perspectivasse
Seminário do Serviço Social Sociojurídico, realizado em 2009 de forma mais ampliada e profunda, avançando em relação ao
em Cuiabá.2 que todos vínhamos fazendo, que era pensá‑lo basicamente a
partir das organizações ou instituições que o compõem. Sugeri,
Além desses fatos, penso ser pertinente também resgatar na ocasião, que buscássemos compreender melhor o que é
aqui a importância de vários eventos realizados por colegas esse "jurídico" de que tanto estávamos falando e recuperei
em diferentes pontos do Brasil, preocupados com a temática uma das ideias correntes no mundo jurídico que me parece
da atuação do assistente social nessa área. Entre eles destaco muito elucidativa, segundo a qual o jurídico é, antes de tudo, o
um que ocorreu em Natal (RN), no ano de 2002, denominado lócus de resolução dos conflitos pela impositividade do Estado.
Serviço Social e Assistência Sociojurídica na Área da Criança e E ressaltei, naquele momento, que essa característica, por si só,
do Adolescente: Demandas e Fazer Profissional, promovido já coloca grandes desafios éticos e políticos para a intervenção
pela base de pesquisa Trabalho Profissional e Proteção Social, do assistente social (Borgianni, 2012, p. 167). Na oportunidade
sob a coordenação da professora doutora Maria Célia Nicolau. chamei a atenção para algo que marca muito o trabalho de
qualquer assistente social — ou de outro trabalhador que
Destaco a importância daquele evento de Natal, entre tenha que desempenhar suas funções de "perito" nesse
tantas outras iniciativas, pelo fato de os organizadores terem "campo" —, que são as determinações complexas que emanam
convidado a professora Marilda Iamamoto para ali fazer uma das polaridades antitéticas próprias da esfera jurídica, por
conferência, que meses depois seria transformada pela autora exemplo, aquelas que considero uma das mais marcantes:
em valioso texto, publicado sob o título "Questão social, família garantir direitos em um espaço ou sistema que é também
e juventude: desafios do assistente social na área aquele onde se vai responsabilizar civil ou criminalmente
sociojurídica", como posfácio do livro Política Social, família e alguém (Idem, p. 167‑168).
juventude: uma questão de direitos, organizado por Mione
Sales, Maurílio C. de Matos e Maria Cristina Leal, publicado em Também naquele II Seminário, o promotor de Justiça
2004 pela Cortez Editora e lançado por ocasião do I Seminário Wanderlino Nogueira Neto fez observações que nos ajudam a
Nacional, de Curitiba. Ao que eu saiba esse foi o primeiro texto pensar nosso trabalho nessa área. São pontuações com
de uma das principais pesquisadoras brasileiras do Serviço significativo conteúdo heurístico, principalmente porque
Social dedicado a essa temática, embora Marilda nunca tenha feitas por alguém do universo jurídico. O dr. Wanderlino
atuado na área. Note‑se que nesse texto a autora usará sempre iniciou sua conferência colocando que o tema para o qual havia
a terminologia "área ou esfera sociojurídica", e não "campo", sido convidado a falar interessaria tanto a seu coletivo "na
porém sem entrar no mérito dessa questão terminológica (cf. esfera da proteção jurídico‑social dos direitos humanos,
Iamamoto, 2004, p. 261‑314).3 quanto aos/às assistentes sociais com atuação na esfera da
proteção sociojurídica dos direitos socioassistenciais". E em
Essa, digamos, "percepção" dos assistentes sociais seguida pontuou:
brasileiros de que era necessário olhar com mais cuidado e
profundidade para os desafios que estão postos aos que atuam Aqui estou eu, um operador da Defesa dos Direitos
na área sociojurídica — à qual a revista Serviço Social & Humanos, a falar para operadores/as do Serviço Social:
Sociedade, bem como o conjunto CFESS/Cress conseguiram ambos/as a atuarem, cada qual a seu modo, na garantia do
captar e dar voz —, é tributária do próprio movimento da acesso ao Valor‑Justiça, tanto em sistemas de políticas
história recente em nosso país, que engendrou tanto uma públicas, quanto no sistema de justiça. Isto é, a fazer do acesso
crescente judicialização dos conflitos sociais, quanto a
a esses dois sistemas públicos, um "direito do cidadão e um
justiciabilidade dos direitos sociais. Veremos isso com mais
dever do Estado". Essas definições dos nossos campos de ação
detalhes adiante, mas antes cabe refletir sobre o que compõe
— assemelhados mas não iguais —, já balizam inicialmente
essa área que tem interface com o direito e com o universo
nosso enfoque para tratar do sucesso, do insucesso e das
jurídico.
limitações ou possibilidades de enfrentamento da questão
social, em seu aspecto estrutural, via judicializações

Conhecimentos Específicos 50
APOSTILAS OPÇÃO

conjunturais e pontuais de conflitos de interesses e de no sentido de implantar regras e normas que, ao fim e ao cabo,
demandas, nas relações sociais. (Nogueira Neto, 2012, p. 23) formariam o chamado "império das leis", a partir do qual as
relações singulares e coletivas poderiam ser reguladas. O
Temos então, até aqui, o registro das pouquíssimas Estado apareceria aí, então, como o elemento garantidor da
tentativas de definição ou de delimitação do que caracteriza a chamada "paz social" frente aos "naturais" conflitos de
atuação do assistente social nesse campo ou área que tem interesses de uma sociedade formada por indivíduos que
interface com o jurídico. seriam iguais em termos das oportunidades que a sociedade
pode oferecer‑lhe e diferentes em suas capacidades de usufruí
Avancemos, portanto, na reflexão utilizando‑nos das ‑las. A partir dessa visão idílica e falseadora do real, legalidade
mesmas bases teórico‑metodológicas e históricas que dão e legitimidade formariam os pressupostos formais do
sustentação ao projeto ético‑político do Serviço Social chamado estado de direito, segundo o qual "o homem" seria o
brasileiro, ou seja, a perspectiva crítico‑ontológica com que centro e a razão do "sistema social".
Marx analisou o mundo burguês e que restou tão bem
explorada por Georg Lukács em suas reflexões a partir dos Essas são definições ou explicações que, algumas delas
anos 1930 (essa perspectiva foi abordada em Borgianni, reais (no caso da de Bourdieu, que citei anteriormente), ou
1997). mistificadoras neste segundo caso, parecem levar‑nos apenas
ao vestíbulo do conhecimento, não fornecendo a clareza sobre
2.1 "Campo jurídico" — um conceito pouco elucidativo as concretas determinações dessas esferas de objetivação do
De forma sintética, podemos dizer que campo jurídico é um ser social que são o universo jurídico e o direito.
conceito que foi formulado por Pierre Bourdieu, que o define
como determinado espaço social no qual os chamados 2.2 A perspectiva lukacsiana para pensar o Direito e o
"operadores do direito" — magistrados, promotores e universo jurídico
advogados — "concorrem pelo monopólio do direito de dizer A aproximação mais fecunda com as questões próprias
o Direito" (Bourdieu, apud Shiraishi Neto, 2008, p. 83; dessa esfera pode ser alcançada se a análise partir dos
Gaglietti, 1999, p. 84‑85). fundamentos crítico‑analíticos ou teórico‑metodológicos que
emanam da perspectiva crítico‑dialética e ontológica de Marx,
Essa é uma definição que, em sua imediaticidade, parece apontada com tanta profundidade por Georg Lukács.
refletir de fato algo que pode ser observado quando se
trabalha nessa área: há um indiscutível e permanente debate Em obra sintética e esclarecedora, Vitor Bartoletti Sartori
do cotidiano do universo jurídico, entre juízes, promotores e (2010) se propôs a pensar o Direito a partir dessa perspectiva.
advogados, que buscam os elementos que melhor permitam, a Em virtude de sua clareza e fidelidade à fonte lukacsiana é que
cada um, dizer o Direito, diante das questões ou dos conflitos utilizarei muitas passagens literais dessa obra, citando
jurídicos com os quais se confrontam. somente as páginas de onde foram extraídas. Recorrerei
também às análises feitas por outros autores, como E.
Isso até incita‑nos a levantar algumas perguntas: — Até Pasukanis (1977), e R. Carli (2012), para demarcar elementos
que ponto esse é um campo específico e/ou privado dos centrais sobre o direito e a política como duas das importantes
chamados "operadores do Direito?", Qual seria a peculiar e centrais objetivações do ser social.
contribuição do Serviço Social nesse campo jurídico, espaço
onde se disputa o direito de dizer o Direito? O que teriam a Por tratar o Direito como parte de uma totalidade
aportar a esse espaço os assistentes sociais que se querem histórica, calçando suas análises nas categorias fundamentais
coerentes com o projeto ético‑político da profissão? São do método de Marx, é que Lukács consegue avançar em relação
perguntas que tentarei responder mais adiante. a inúmeros autores que se debruçaram sobre esse tema nos
últimos dois séculos e que, por vezes, ficam aprisionados nos
Contudo, para avançar um pouco mais, é preciso recuperar limites do idealismo ou do positivismo.
o significado também do Direito e de universo jurídico que, à
primeira vista, parecem construções sociais que foram sendo Nessa direção, é pertinente resgatar, logo de início, que
erguidas no processo do desenvolvimento do ser humano Lukács, ao tratar das objetivações do homem no processo de
através da história. Construções que aparentemente teriam sua constituição enquanto ser social, ressalta que o mesmo
tido o escopo de afastar os homens progressivamente de suas desenvolve duas formas de pôr teleológico: aquela voltada
"barreiras naturais", fazendo com que superassem seus diretamente para a transformação da natureza e aquela
"sentimentos inatos de vingança" e também as formas voltada para, digamos, o influenciar de outros homens. É o que
instintivas — e por vezes bárbaras — de resolução de ele denomina de teleologias primárias e secundárias — ambas
conflitos. intimamente ligadas entre si. Assim, falando de modo
resumido, enquanto o trabalho em sentido estrito é uma
Sob essa perspectiva, que eu diria "ingênua", o direito e o posição teleológica primária — e eternamente necessária —,
universo jurídico teriam sido construídos como um conjunto pela qual os homens se apropriam dos elementos da natureza
de regras que objetivam deveres e prerrogativas, bem como para produzir os meios de sua subsistência, as posições
delimitam quem deve garanti‑los (especialistas, magistrados, secundárias são aquelas que visam "extrair um determinado
promotores, advogados). Todo esse processo ocorreria ao comportamento coletivo" (cf. Carli, 2012, p. 9).4
longo de uma caminhada linear e rumo à construção de um
sistema de ordenações normativas em que um ente superior No exemplo translúcido de Carli:
aos interesses individuais e privados — o Estado — também
teria sido erguido com a responsabilidade de equilibrar ou o trabalho significa a transformação de pedras e madeiras
"pacificar" relações conflituosas entre os indivíduos. em instrumentos [...], já outras esferas do ser social, como a
política, por exemplo, não transformam a natureza; procuram
É bastante comum ver análises "históricas" sobre a agir sobre a sociedade. As posições secundárias não agem
evolução do direito ou do "estado de direito" que refletem esse sobre a natureza, mas sim sobre um grupo de homens. A ação
tipo de visão simplista e mecanicista, segundo a qual a política é uma posição teleológica secundária precisamente
civilização teria marchado decididamente no curso da história porque procura extrair um determinado comportamento de
um coletivo. Um partido político procura, em suas ações,

Conhecimentos Específicos 51
APOSTILAS OPÇÃO

produzir uma reação específica de indivíduos determinados, A relação da gênese do direito com o desenvolvimento das
seja para a conservação da ordem estabelecida ou para sua formas econômicas mercantis, bem como, naturalmente, com
transformação (Idem). as formas políticas que se erguem a partir dessa base material
— o Estado burguês que dá sustentação às profundas
E Carli recolhe de Lukács uma observação sobre a política desigualdades de classes que daí surgem, por exemplo —, é
que cabe também para o direito: vista com clareza por Lukács, assim como já estava presente
na tese seminal de E. Pasukanis sobre o significado do direito
Com o desenvolvimento histórico posterior, isto é, com o numa sociedade cujas relações fundamentais são baseadas em
surgimento das sociedades classistas, as posições teleológicas processos nos quais os produtores do trabalho humano ficam
secundárias tornam‑se formas de ideologia, que são as igualados na forma de mercadoria. De fato, como demonstrado
modalidades de comportamento através das quais os homens genialmente por Marx, a forma mercadoria "esconde" o real
se fazem conscientes dos conflitos postos e "neles se inserem valor que tem o trabalho humano — enquanto produtor de
mediante a luta" (p. 18). possibilidades novas diante da natureza e dos outros homens
—, sob o manto alienante e fetichizante do valor de troca e das
Resumindo, tanto o direito como a política são vistos por equivalências mistificadas que esse processo metabólico
Lukács como expressões das teleologias secundárias. Aquelas produz.
que, diferentemente dos atos teleológicos voltados para a
transformação da natureza para obtenção dos meios de vida Outrossim, deve‑se observar mais uma vez que a análise
— e que estão englobadas nas crescentemente complexas e lukasciana, na esteira de como procedera Marx na relação com
mediadas relações econômicas —, expressam as mediações seus objetos de estudo, não separa artificiosamente os
que se criam e se institucionalizam a partir de atos teleológicos elementos de uma totalidade concreta. Eles perspectivam o
secundários, dando as formas da totalidade social no universo desenvolvimento do ser social burguês sempre como um
burguês. processo unitário. Por isso, para Lukács era impossível pensar
o direito e suas categorias centrais sem resgatar aquelas que
Ressaltando que "secundário" nesse contexto não quer fazem parte do desenvolvimento unitário — e contraditório —
dizer menor ou de menor importância, mas apenas o lugar que da sociedade do capital, como propriedade privada, divisão
ocupa em meio à totalidade social, Sartori aponta que o Direito social do trabalho, classes sociais, Estado etc. Desse modo, tão
é um complexo que não possui caráter fundante, mas que não ou mais importante do que apenas localizar a gênese histórica
pode ser dissociado daquela esfera do ser social na qual ele do direito no surgimento da sociedade de classes é conseguir
produz seus meios de vida — a esfera econômica (cf. Sartori, captar as forças contraditórias — ou as "negatividades" que
2010, p. 94). lhe conferem o movimento — que operam em seu interior,
bem como os processos que as encobrem.
Assim é que Lukács, ao se indagar sobre o "lugar" do
Direito na práxis social, observa que ele tem importante papel Nesse sentido, foi Pasukanis quem conseguiu, a partir das
nas esferas relacionadas à reprodução social, configurando‑se contribuições de Marx, descrever um dos (senão o principal)
como uma mediação que é própria da sociedade burguesa — e vínculos problemáticos que se estabelecem entre a forma
que somente aí se desenvolve enquanto tal com toda a sua jurídica e a mercantil:
completude. Ou seja, embora em tempos pretéritos tenham
existido variadas formas de regulação dos conflitos humanos, Marx nos mostra a condição fundamental, enraizada na
bem como de "reparação de danos", e de responsabilização estrutura econômica da própria sociedade, da existência da
daqueles que os causaram a alguém ou a alguma coisa,5 aquilo forma jurídica, isto é, da unificação dos diferentes rendimentos
que realmente pode ser denominado com a expressão direito do trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes. Ele
só surge em determinado estágio da trajetória do ser social ao descobre, assim, o profundo vínculo interno existente entre a
longo da história e quando estão presentes outras forma jurídica e a forma mercantil. Uma sociedade que é
determinações peculiares àquele estágio. constrangida, pelo estado de suas forças produtivas, a manter
uma relação de equivalência entre o dispêndio de trabalho e a
O que o filósofo magiar demarcará então, com muita remuneração, sob uma forma que lembra, mesmo de longe, a
precisão, assim como já o fizera Marx, é que somente quando troca de valores‑mercadorias, será constrangida, igualmente,
presentes categorias históricas como classe social e Estado é a manter a forma jurídica. Somente partindo desse momento
que surge a ideia de direito como "conjunto de normas fundamental é que se pode compreender porque toda uma
jurídicas de acordo com as quais a sociedade se organiza com série de outras relações sociais reveste a forma jurídica.
a finalidade de manter a ordem e o convívio social" (Sartori, (Pasukanis, apud Sartori, 2010, p. 109; grifos meus)
2010, p. 9).
A partir de perspectiva semelhante, Lukács destacou como
Assim, a aparência do direito como algo acima dos os processos de circulação de mercadorias vieram a favorecer,
interesses antagônicos das classes sociais, como um "sistema ao longo da história do ser social burguês, o surgimento de
autossuficiente calcado na cientificidade dos especialistas e na sistematizações e reflexões teóricas e doutrinárias abstratas e
precisão do reflexo jurídico, supostamente capaz de captar as gerais que serviram para a regulação das trocas comerciais e
necessidades sociais como um todo" (Sartori, 2010, p. 107), só para a produção capitalista em geral.
se resolve em determinada quadra histórica: justamente
aquela que faz nascer também as reificadas relações burguesas O filósofo húngaro consegue então capturar, pela análise,
de produção, regidas pelo capital. Aliás, F. Engels já havia as contradições fundamentais que se estabelecem no interior
mostrado como o surgimento de especialistas dessa área e a da economia — enquanto expressão de teleologias primárias,
autonomia relativa que o complexo jurídico vai adquirindo são como vimos — e do direito — expressão clara de teleologias
produtos do desenvolvimento social. Segundo o próprio de tipo secundário — bem como na relação entre essas duas
Bourdieu, em "uma carta dirigida a Conrad Schmidt, Engels esferas de obje–tivação do ser social. Nesse processo, o direito
observa o aparecimento do direito enquanto tal, ou seja, como vai se revelando também como elemento mistificador das
'esfera autônoma', acompanhando os progressos da divisão do reais formas antagônicas das relações sociais no mundo
trabalho que levam à constituição de um corpo de juristas burguês e até como indutor de novas mistificações. É do
profissionais" (Bourdieu, 1999, p. 101). processo de equalização de relações entre desiguais, que

Conhecimentos Específicos 52
APOSTILAS OPÇÃO

ocorre na troca mercantil, que Lukács, segundo Sartori, extrai O fato de o direito ter um caráter de classe e de ser
a ambiguidade do conceito de justiça no mundo burguês. O sustentado por um Estado, também ele dominado por
filósofo húngaro capta toda a complexidade desse processo e, interesses de classe majoritárias, tem as maiores
segundo Sartori, chega a apontar o direito como um dos consequências na vida das pessoas, principalmente quando
sustentáculos da desigualdade em qualquer sociedade que não "julgadas" por algum "crime", ou por algum ato ilícito, pois elas
rompa com a forma de propriedade privada (ou estatal) dos estarão, no limite, à mercê dessa discricionariedade de classe,
meios de produção. O resgate da reflexão luckasciana ainda que isso se dê com muitas e complexas mediações.
contribui, portanto, para a desmistificação daquela visão
segundo a qual o direito poderia ordenar e coordenar Mas é importante reafirmar que o direito não é algo
interesses conflitantes que se manifestam na vida social. O que monolítico, constituído por tendências unilineares que
aparece, então, com todas as suas nuances, é a característica apontam em uma única direção de dominação classista; pelo
que o direito e o ordenamento jurídico adquirem, ao longo do contrário, é um processo social permeado de contradições —
desenvolvimento do ser social, de tornarem‑se escoras embora pretendendo‑se isentas delas. Nas palavras de Lukács,
complexas de uma ordem societária injusta — e ela mesma
reprodutora de desigualdades — fornecendo‑lhe uma O funcionamento do Direito positivo se apoia [...] sobre o
aparência de igualdade.6 seguinte método: manipular um turbilhão de contradições de
modo tal que dele surja um sistema, não só unitário, mas
Mas falar em reprodução das relações sociais na sociedade também capaz de regular praticamente, tendendo ao ótimo, o
capitalista é falar em contradições e antagonismos, o que nos contraditório acontecer social, de sempre se mover com
leva, já de início, à consideração de que o direito, também ele, elasticidade entre polos antinômicos [...], a fim de sempre
é atravessado por essas negatividades e torna‑se reprodutor reproduzir — no curso de contínuas alterações do equilíbrio
mesmo dessas relações. Por isso é muito importante resgatar no interior de um domínio de classes em lenta ou rápida
como Lukács, ao afirmar o conteúdo de classe do direito, não transformação — as decisões e os estímulos às práticas sociais
deixa de apontar o complexo de processos contraditórios que, mais favoráveis àquela sociedade. (Lukács, apud Sartori, 2010,
justamente por isso, esse direito carrega em seu interior, o que p. 115; grifos meus)
oportuniza a problematização de sua aparente neutralidade. O
filósofo húngaro reafirma, sobretudo, que nenhum desses Em outros termos, o direito é também permeável à atuação
processos decorre de qualquer teleologia estranha ao mundo das forças que pretendem nele incidir em busca de novos
dos homens: antes resultam da práxis concreta do ser social e ordenamentos das relações sociais, e não só à manutenção do
por eles podem ser também transformados. estado de coisas. É o que abordaremos no item sobre a
justiciabilidade dos direitos sociais.
Nesse sentido, embora o direito seja um direito de classe
— vale dizer, de classe dominante —, esse conteúdo de classe Mas antes é preciso responder à questão inicial: qual é,
não pode ser apartado do complexo social total e das então, a melhor forma para referirmo‑nos ao Serviço Social
mediações que surgem permanentemente em seu interior, a quando o assistente social atua na interface com o jurídico e
partir das negatividades que se impõem. E nosso autor faz com o direito?
notar, nesse processo, que as abstrações próprias do direito
garantem que princípios como liberdade, dignidade etc., 2.3 Afinal, Serviço Social no "campo" ou na "área"
convivam com aqueles que são próprios da sociedade que é sociojurídica (ou "jurídico‑social")?
regida pelo valor de troca e pelo trabalho assalariado — como À luz de toda a reflexão precedente, proponho que, em vez
competição e impessoalidade, por exemplo. de "campo sociojurídico" ou "jurídico‑social", adotemos a
terminologia área sociojurídica.
Segurança jurídica e "imparcialidade" são valores muito
caros à necessidade de reprodução da sociedade regida pelo Justifico: em primeiro lugar, não seria "campo", naquele
capital. Cumprem um papel fundamental na construção de sentido de Bourdieu, porque não estamos disputando
uma aparência fetichizada ou até reificada de relações de (corporativamente) com magistrados, promotores ou
desigualdade que não podem aparecer enquanto tais. E todos advogados, nesse espaço ou nessa área, o direito de dizer o
os intrincados processos societários que subjazem ao direito e direito (ainda que seja o direito social!). Antes, é preciso ver
ao universo jurídico têm que ficar subsumidos para que ele tais operadores ou especialistas do direito como
possa cumprir suas funções na sociedade e inserir‑se na vida trabalhadores que, tal qual os assistentes sociais, psicólogos,
normal de todos os homens. O fato de aparentemente ser uma educadores etc., estão subordinados à mesma lógica do
esfera autossuficiente, e que apenas especialistas podem assalariamento de suas atividades, ainda que com diferenças
dominar seus códigos e linguagem, tem a ver precisamente bastante acentuadas (que têm a ver com aquilo que Lukács e
com aquilo que Lukács identificou e nomeou como o "novo Engels observaram sobre os "especialistas" do direito), que
fetichismo": vale a pena a qualquer momento aprofundar pela análise.

O novo fetichismo [...] consiste no fato de que o Direito é O que está dado como desafio e possibilidade aos
tratado [...] como um campo fixo, compacto, determinado com assistentes sociais que atuam nessa esfera em que o jurídico é
univocidade "lógica" e, desta forma, é objeto de pura a mediação principal — ou seja, nesse lócus onde os conflitos
manipulação não somente na práxis, mas também na teoria, se resolvem pela impositividade do Estado — é trazer aos
onde é entendido como um complexo fechado na própria autos de um processo ou a uma decisão judicial os resultados
imanência, autossuficiência, acabado em si, que apenas é de uma rica aproximação à totalidade dos fatos que formam a
possível manejar corretamente mediante a lógica jurídica. tessitura contraditória das relações sociais nessa sociedade,
(Lukács, apud Sartori, 2010, p. 96) em que predominam os interesses privados e de acumulação,
buscando, a cada momento, revelar o real, que é expressão do
Autonomia, especialistas e instituições que o sustentam movimento instaurado pelas negatividades intrínsecas e por
também fazem parte das requisições básicas para que o direito processos contraditórios, mas que aparece como "coleção de
possa existir na sociedade de desiguais e que produz fenômenos" nos quais estão presentes as formas
cotidianamente a desigualdade. mistificadoras e fetichizantes que operam também no

Conhecimentos Específicos 53
APOSTILAS OPÇÃO

universo jurídico no sentido de obscurecer o que tensiona, de Nesse sentido, a existência da lide, que significa "pretensão
fato, a sociedade de classes. resistida" (cf. Delfino, 2013) e de um processo judicial (seja ele
civil, criminal, penal ou da área dos direitos da infância e
A partir das expressões cotidianas mais singulares e juventude e dos relativos aos direitos humanos e aos direitos
aparentemente desprovidas de mediações sociais concretas é sociais) é um demarcador quase que obrigatório para
que os assistentes sociais que atuam nessa área têm que considerarmos que se está em face ou não do universo
operar e trabalhar para reverter a tendência reprodutora da sociojurídico. Assim, tanto o assistente social que atua em uma
dominação, da culpabilização dos indivíduos e da vigilância de instituição de acolhimento de crianças e adolescentes, que
seus comportamentos. estão sob a medida protetiva de acolhimento institucional (um
abrigo), como aquele que atua em uma Vara de Infância, ou em
Em resumo: se o direito — que só surge quando também uma Defensoria Pública, estará atuando no universo
se completam os requisitos históricos para o surgimento da sociojurídico ou na interface com ele. Isso é fácil de perceber.
sociedade de classes — é um dos sustentáculos de uma ordem
produtora e reprodutora de desigualdades, ele também tem Também os assistentes sociais que atuam como agentes
em suas entranhas um incessante movimento de contrários. E fiscais nos Conselhos de Fiscalização Profissional (conjunto
para não esquecer as certeiras lições de Iamamoto a respeito CFESS/Cress) e em suas diretorias fazem parte do universo
do significado social de nossa profissão, é justamente por isso sociojurídico, uma vez que os conselhos profissionais são
que o Serviço Social pode operar no universo jurídico, optando tribunais de ética e têm o poder de determinar juridicamente
por fortalecer um ou outro polo dessas contradições, tema do (ou seja, pela impositividade do Estado) quem pode ou não
próximo item de nossa reflexão. exercer a profissão de assistente social ou se deve ter esse
exercício suspenso ou não por força de decisão emanada dos
Em segundo lugar, vejo que a prioridade ontológica aqui é julgamentos éticos, à luz das legislações pertinentes. Mais
do "social", e não do "jurídico", uma vez que as teleologias complexo é delimitar até que ponto os assistentes sociais que
primárias que põem a questão social como expressão da luta estão atuando nos Centros de Referência em Assistência Social
de classes — ou, mais precisamente, as disputas permanentes (Cras) e/ou nos Centros Especializados de Referência em
do capital contra o trabalho na busca de maior exploração, e Assistência Social (Creas) estariam atuando também nas
do trabalho contra capital na resistência a esse processo de fronteiras desse universo.
exploração (e tudo que daí recorre) —, essa luta, esse conflito
é que põe ao ser social a necessidade da instituição de Pode‑se dizer, sem medo de errar, que dependerá de cada
teleologias secundárias, como o direito, o universo jurídico e a caso. Os casos que são atendidos no âmbito da política de
política, conforme já vimos. assistência social e até da saúde podem, sim, ter interface com
essa área. Basta pensar em um caso de violência doméstica ou
Assim, sociojurídico expressa com mais precisão do que abuso sexual de criança que vai ser atendido por profissionais
jurídico‑social o que o Serviço Social quer nominar como de toda a rede de proteção de direitos, ou em um caso de
espaço onde se põem demandas que têm uma especificidade proteção pela Lei Maria da Penha. Enquanto aquele caso
histórica em relação a outras áreas. Vale dizer: justamente estiver "judicializado", ou constituir‑se em uma lide
porque a questão social é a expressão da luta de classes, da ("pretensão resistida", conforme vimos anteriormente),
alienação do trabalho, da necessidade que o capital tem de pertencerá ao universo sociojurídico. Ou seja, sua
manter a propriedade privada (que, essa sim, é uma categoria resolutividade, além de todas as iniciativas de proteção social
jurídica) etc., e que gera o movimento da história e de todas as e psicológica, também será tributária de uma decisão judicial.
demais objetivações do ser social no mundo burguês, ela tem
prioridade ontológica em relação às objetivações que se Após ter demarcado minimamente essas fronteiras, cabe
plasmam a partir de teleologias secundárias como o direito e a apontar, ainda que brevemente, o potencial que está reservado
política. aos assistentes sociais nessa área.

Por entender o "social" — ou essa partícula sócio — como 3. Judicialização das expressões da questão social e
expressão condensada da questão social, e dela emanarem justiciabilidade dos direitos sociais no Brasil: espaço
continuamente as necessidades que ensejarão a intervenção importante para o trabalho de assistentes sociais que
de juristas, especialistas do direito, de agentes políticos e seus atuam no sociojurídico
partidos etc., assim como, por ser espaço contraditório no qual
os assistentes sociais atuam — buscando defender tanto o Vários autores têm se debruçado sobre a tendência, que
projeto ético‑político da profissão como seus direitos como vem se desenvolvendo nos últimos anos no Brasil, de se levar
trabalhadores — é que defendo que passemos a utilizar a ao Poder Judiciário, ou à área jurídica, centenas e milhares de
expressão Serviço Social na área sociojurídica. casos que poderiam, ou deveriam, ser respondidos no âmbito
da esfera política.
Assim, em termos sintéticos e simples, pode‑se dizer que
o trabalho do assistente social na área sociojurídica é aquele Alguns deles mostram que após as importantes conquistas
que se desenvolve não só no interior das instituições estatais trazidas pela Constituição de 1988 (também ela fruto de
que formam o sistema de justiça (Tribunais de Justiça, grandes embates sociais, como sabemos), instalou‑se uma
Ministério Público e Defensorias), o aparato estatal militar e de forte tendência neoliberal de desmonte e contrarreformas do
segurança pública, bem como o Ministério de Justiça e as Estado, fazendo com que as políticas não fossem capazes de
Secretarias de Justiça dos estados, mas também aquele que se atender às demandas societárias e aos quesitos de proteção de
desenvolve nas interfaces com os entes que formam o Sistema direitos sociais determinados pela Constituição. Tampouco o
de Garantias de Direitos (cf. Conanda, 2006) que, por força das movimento social e os sindicatos, centrais sindicais e
demandas às quais têm que dar respostas, confrontam‑se em entidades representativas dos trabalhadores tiveram força
algum momento de suas ações com a necessidade de resolver suficiente para fazer valer esses direitos para amplas parcelas
um conflito de interesses (individuais ou coletivos) lançando da população brasileira.
mão da impositividade do Estado, ou seja, recorrendo ao
universo jurídico. Tal panorama levou a que o Poder Judiciário passasse a ser
o depositário das demandas sociais dos segmentos mais

Conhecimentos Específicos 54
APOSTILAS OPÇÃO

fragilizados e subalternizados da sociedade, na busca de fazer transformação de delitos comuns em crimes hediondos; isso
valer os direitos sociais trabalhistas, de proteção de crianças, para não falar da forte campanha pela redução da idade penal.
idosos etc. Ou seja, aquilo que pela pactuação política não está Alguém já denominou tal processo como próprio de uma era
sendo possível conquistar em nosso país, desde Collor, na qual impera um "populismo punitivo". Nunca como hoje as
Fernando Henrique, passando por Lula e agora Dilma — "prisões da miséria" (na lúcida caracterização de Löic
porque os interesses econômicos e financeiros das elites Wacquant) estiveram tão abarrotadas. E pior: desde
dominantes determinam claramente os rumos do Estado Washington, com sua política de tortura para obter confissões
brasileiro —, está se buscando no Poder Judiciário, pois, sem na luta "contra o terrorismo", e a administração forçada de
muitas alternativas, a população não tem como reivindicar alimentos a presos em greve de fome em Guantânamo, até a
fácil acesso a direitos básicos de cidadania. criminalização dos movimentos sociais em várias partes do
mundo, assiste‑se a uma regressão brutal nas tentativas de
José Paulo Netto, em 1999, já apontava, em lúcida análise implementação das proteções lastreadas no direito dos
sobre o governo Collor, como o Estado estava sendo colocado direitos humanos.
a serviço dos reordenamentos impostos pelo projeto político
do grande capital internacional, "subvertendo e negando a Nesse passo de nossa reflexão é pertinente abordar
lógica constitucional de defesa de direitos" e levando a uma também o fato de que direito e lei não se confundem, sendo o
"inviabilização da alternativa constitucional da construção de primeiro sempre muito mais amplo e complexo do que a
um Estado com amplas responsabilidades sociais, garantidor própria lei ou do que as estruturas burocráticas que se
de direitos sociais universalizados" (cf. Netto, 1999). formaram para garantir seu cumprimento. Como bem coloca
Wanderlino Nogueira Neto, o direito origina‑se sempre nas
E também como outros autores, Beatriz Aguinsky e Ecleia relações sociais (ou "na rua") e só posteriormente é que é
Huff de Alencastro apontaram que, em todos os governos que objetivado em leis. Tal dinâmica supõe, inclusive, a
vieram depois de Collor, as políticas sociais passaram a ser possibilidade de questionamento do próprio direito que foi
fragmentadas, focalizadas e a ter sérios problemas de cristalizado em uma lei. Em outros termos, é esse processo que
financiamento, o que acabou por impedir sua implementação possibilita a negação de vigência de uma lei, "colocando‑a
objetiva (cf. Aguinsky e Huff de Alencastro, 2006, p. 19‑26). como contrária ao Direito" (Nogueira Neto, 2012, p. 30‑31).
Por isso, os autores citados podem afirmar que ao mesmo
tempo em que houve a ampliação dos direitos positivados na Mas outro aspecto da judicialização das expressões da
Constituição Federal de 1988, ocorreu sua negação em questão social que também ganha bastante importância na
diferentes instâncias administrativas, o que acabou por gerar atualidade é o chamado "controle judicial das políticas
esse fenômeno na esfera pública, que é o que alguns juristas e públicas". Essa tendência vem se desenvolvendo com força e
cientistas sociais estão chamando de "judicialização dos diz respeito às iniciativas da sociedade civil organizada para
conflitos sociais" ou, ainda, "judicialização da política". cobrar judicialmente que o Poder Executivo cumpra com o seu
dever de implementar ações previstas nas legislações
Tal fenômeno, segundo Aguinsky e Huff de Alencastro orçamentárias que destinam recursos às políticas sociais de
(Idem), caracteriza‑se pela transferência, para o Poder proteção à infância e adolescência, deficientes, velhice, contra
Judiciário, da responsabilidade de promover o enfrentamento a violência doméstica etc. Tal alternativa é complexa porque
à questão social, na perspectiva de efetivação dos direitos envolve a chamada "separação dos poderes" e as vedações
humanos. Argumentam as autoras que a profunda e constitucionais de interferência de um poder sobre outro, e
persistente deslegitimação do Estado como esfera de proteção vem ganhando cada vez mais relevância em nossa sociedade,
social dos mais subalternizados fez com que o Poder Judiciário principalmente nessa quadra histórica em que se está diante
ou o sistema de justiça como um todo passasse a ser procurado da omissão do Estado ou do não cumprimento de preceitos
por esses segmentos para que os direitos e atributos de constitucionais que dispõem sobre aspectos vitais à existência
cidadania sejam efetivados. Alguns pesquisadores chegam a dos indivíduos e grupos vulnerabilizados. Nesse processo,
afirmar que o enfraquecimento da política e das esferas de verifica‑se que as cortes de justiça têm sido cada vez mais
resolução pública dos conflitos e das reivindicações sociais, e pressionadas a se pronunciar sobre casos em que governantes
o fato de o próprio Poder Executivo muitas vezes se colocar vetam artigos de leis ou praticam atos que ferem preceitos
como violador de direitos por seus atos ou omissões perante a fundamentais que garantiriam recursos financeiros mínimos
ganância do capital, fez com que a sociedade passasse a às políticas sociais (saúde, educação etc.). É o que ocorre, por
incumbir o Judiciário da tarefa de possibilitar a efetivação dos exemplo, quando governantes vetam leis orçamentárias (cf.
direitos sociais. Nogueira Neto, 2012, p. 39‑41).
Pertinente, então, parece ser a definição de judicialização,
Assim, tem‑se, neste campo do controle jurisdicional das
dada por Aguinsky e Huff de Alencastro, como a "tendência em
políticas públicas — ou naquele que Piovesan e Vieira (2013)
curso de transferir para um poder estatal, no caso do
chamam de justiciabilidade dos direitos sociais —, um enorme
Judiciário, a responsabilidade de atendimento, via de regra
potencial de trabalho para os assistentes sociais, que podem
individual, das demandas populares — coletivas e estruturais,
oferecer importantes subsídios às decisões dos tribunais de
nas quais se refratam as mudanças do mundo do trabalho e as
justiça para a efetivação de direitos de amplas parcelas da
expressões do agravamento da questão social — em vez de
população que foram alijadas do acesso aos bens produzidos
fortalecer a perspectiva de garantia de direitos positivados, [o
socialmente ao longo de séculos de dominação burguesa no
que] pode contribuir para a desresponsabilização do Estado,
País. Como bem coloca Wanderlino Nogueira Neto (2012, p.
sobretudo dos poderes Legislativo e Executivo, com a
45),
efetivação desses direitos, através de políticas públicas"
(Aguinsky e Huff de Alencastro, 2006, p. 25).
"[...] nessa fronteira com as políticas públicas sobressaem
os hard cases, na expressão de Ronald Dworkin, que pedem,
Face perversa da judicialização dos conflitos da sociedade
brasileira é também a crescente onda de encarceramento de para sua solução, argumentos firmados em paradigmas ético‑
pessoas pertencentes aos extratos mais vulnerabilizados da políticos [...] e na alta sensibilidade judicial e no seu
população (e cada vez mais jovens), bem como os apelos comprometimento com os direitos humanos, com o
midiáticos pelo recrudescimento das penas e pela

Conhecimentos Específicos 55
APOSTILAS OPÇÃO

desenvolvimento humano autossustentado e com a dos direitos fundamentais consagrados no Capítulo 5 da


democracia". Constituição.

Como abordei linhas atrás, há uma enorme contradição no 4. Alguns desafios da intervenção dos assistentes
capitalismo entre o sistema produtivo e a organização estatal sociais na interface com o Direito e com o universo
e jurídica das relações sociais, gerando‑se no interior desta jurídico
contradição inúmeras outras, que acabam sendo o húmus para
o trabalho de um assistente social quando este se coloca na O Serviço Social brasileiro construiu, nos últimos trinta
direção ética e política da ampliação e concretização de anos, um projeto profissional que o coloca em uma perspectiva
direitos, e não no fortalecimento do polo da "responsabilização de resistência à exploração capitalista. Um projeto que tem
criminal". Em outros termos, o âmbito daquilo que Piovesan e potencial para capacitar os profissionais para um desempenho
Vieira denominam de justiciabilidade dos direitos sociais pode qualificado nos diversos campos onde atua, iluminando‑os
ser considerado um espaço privilegiado para a atuação do para que articulem suas ações cotidianas a sujeitos coletivos
assistente social hoje. Basta observar, por exemplo, o que também se mostrem empenhados tanto no acesso a
manancial de contradições que surgem no cenário jurídico a direitos como na busca da construção de outra ordem
partir do momento em que o movimento social fez insculpir no societária. Esse projeto contém um conjunto de referências
texto da Constituição Federal o famoso artigo 6º, que trata dos técnicas, teóricas, éticas e políticas para o exercício
direitos sociais.7 De fato, esse é um dos artigos mais profissional, e está lastreado na perspectiva crítica e
importantes da Constituição para os assistentes sociais em seu ontológica de análise da realidade social, tendo como
trabalho cotidiano, uma vez que é o que permite a exigibilidade pressuposto que a sociedade burguesa gera limites
daquilo que deve ser considerado prioritário nas políticas intransponíveis para se alcançar a real emancipação do ser
públicas e que até oferece os argumentos concretos sobre a social.
necessidade de construção de uma nova organização
societária. Mas no interior desse mesmo projeto há o reconhecimento
de que as lutas por direitos e pela democratização radical das
Diferente do que ocorre com direitos civis e políticos, a formas de exercício do poder político têm considerável
arena da exigibilidade dos direitos sociais é aquela em que o potencial para a resistência à barbarização imposta pelo
universo jurídico tem que buscar soluções políticas e capitalismo em sua fase atual, bem como podem contribuir
administrativas que, ao fim e ao cabo, questionam as formas para o avanço de propostas coletivas que busquem uma nova
de acumulação, bem como acirram as disputas pelo fundo organização societária.
público. É como se o artigo 6º tivesse o potencial de deslocar
os cidadãos que hoje se encontram na fila dos réus (como A profissão viveu, nas três últimas décadas, um rico
devedores, ladrões de baixa periculosidade e pequenos movimento teórico e político que plasmou interpretações
traficantes etc.) para a fila dos requerentes de direitos perante competentes e elucidativas acerca de inúmeros temas de
o Estado. É também o artigo que permite aos assistentes interesse para a sociedade e para outras áreas de produção do
sociais contribuírem com promotores de justiça e defensores conhecimento próximas ao Serviço Social. É assim que ela tem
públicos para que estes façam, perante as cortes, a denúncia hoje uma interlocução profícua e instigante com a Psicologia,
daquilo que Canotilho chamou da "ditadura do caixa vazio". com as Ciências Sociais em geral, com a Educação, e,
notadamente, com o universo jurídico (principalmente no que
Em resumo, temos que com a Constituição de 1988, com o tange às questões de efetivação de direitos de crianças e
capítulo dos direitos sociais e também das novas funções do adolescentes, idosos, mulheres etc.), bem como com as várias
Ministério Público, bem como com a criação de novas ações profissões do campo da Saúde e da Assistência Social.
jurídicas,8 o assistente social que atua nessa área ganha a Um dos elementos propiciadores desses avanços (não o
possibilidade de "dar os argumentos concretos e tangíveis único, obviamente) foi a elucidação do significado social da
àqueles que vão, no interior do universo jurídico e no curso profissão no mundo burguês, por meio das seminais análises
dos processos judiciais, "dizer o direito social" (cf. Piovesan e de Marilda Iamamoto que, já à partida, advertia‑nos de que o
Vieira, op. cit.). significado social da profissão só poderia ser profunda e
verdadeiramente apreendido se a análise fosse capaz de
A Constituição de 1988 trouxe também aos assistentes integrar e, ao mesmo tempo, ultrapassar os elementos
sociais da área sociojurídica a possibilidade de demonstrarem, internos do Serviço Social, ou seja — sua trajetória histórica, a
com dados concretos extraídos de estudos sobre a realidade ação dos profissionais nos diversos campos de atuação, os
de cada município onde vivem os cidadãos, das prisões onde parâmetros legais que construiu etc. —, situando‑o no
estão encarcerados, ou das instituições que têm que defendê‑ contexto da totalidade social e das relações mais amplas que o
los — e, principalmente, do contato cotidiano com a população condicionam. Segundo a autora, foram essas relações que,
que é alvo ou credora da Justiça —, como o não cumprimento afinal, acabaram atribuindo ao Serviço Social particularidades
dos preceitos fundamentais da Constituição lesam a vida e os em relação a outras profissões. Em outros termos, Iamamoto
direitos de parcelas significativas da sociedade. Mas para isso mostrou‑nos que, para compreender o que é e como se
é preciso que haja assistentes sociais conscientes de seu papel. desenvolveu o Serviço Social enquanto profissão —, ou seja
Profissionais que sejam bem formados do ponto de vista como atividade assalariada, com competências específicas e
crítico analítico e que se disponham a perguntar atribuições privativas, e cujos profissionais são requisitados
insistentemente por que o universo jurídico tende a ser mais por instituições, empresas ou organizações em geral —, era
eficaz e célere quando se trata de defender o direito preciso entender, primeiramente, como se dá o processo que
constitucional à propriedade e não apresenta a mesma Marx denomina produção e reprodução das relações sociais no
celeridade e assertividade no que diz respeito ao direito à mundo burguês, uma vez que a profissão é impensável sem a
dignidade e à proteção física e moral de condenados, com inserção nessas relações.
relação à tortura e maus-tratos nas prisões, por exemplo?
Afinal, ambos — o direito à propriedade e o direito do cidadão Foi assim, pois, que Marilda observou que, além de o
de não ser agredido pelo Estado que deveria proteger sua movimento de reprodução do capital recriar continuamente a
integridade quando sob sua custódia —, são iguais na esfera apropriação do trabalho excedente sob a forma da mais‑valia,
ele cria e reproduz, em escala ampliada, os antagonismos das

Conhecimentos Específicos 56
APOSTILAS OPÇÃO

relações sociais por meio das quais efetiva‑se a produção. existem inter‑relacionadas. É isso inclusive que viabiliza a
Nesse mesmo processo, segundo Iamamoto, possibilidade do profissional colocar‑se no horizonte dos
interesses das classes trabalhadoras. (Iamamoto, in Iamamoto
[...] reproduz‑se a contradição entre igualdade jurídica de e Carvalho, 1982, p. 75; grifos meus)
livres proprietários, e a desigualdade econômica que envolve
a produção social, contraposta à apropriação privada do Essa afirmação do caráter contraditório do exercício de
trabalho alheio, ou seja, recriam‑se os antagonismos dessas qualquer assistente social foi a contribuição maior à
relações e o véu ideológico que as envolve, encobrindo sua compreensão dos reais desafios que estão colocados aos
verdadeira natureza. (Iamamoto, 2007, p. 253) profissionais em sua prática cotidiana. De fato, ela expressa um
divisor de águas em relação a análises que se fixam em
Após ressaltar, então, que a criação de uma unilateralidades ou em posições voluntaristas. Essa
superpopulação trabalhadora — sempre disponível para ser constatação ontológica tem o potencial de mostrar a qualquer
recrutada — faz parte da particularidade do regime capitalista profissional que sua ação pode tanto favorecer os interesses
e que os salários dos trabalhadores ficam à mercê da regulação do capital quanto os do trabalho, pode reforçar iniciativas
desfavorável a seus interesses (justamente em virtude da conservadoras, porque coladas à imediaticidade das relações
existência daqueles trabalhadores sobrantes), Iamamoto alienadas, ou buscar resistir e romper com as formas
mostra que é a partir dessa factualidade ontológica que se autoritárias, desumanizadas e antidemocráticas que brotam
consubstancia a questão social no mundo burguês. continuamente do solo burguês, seja em uma instituição, seja
em uma organização não governamental, ou na assessoria a
Assim, uma parcela significativa dos assistentes sociais movimentos sociais.
brasileiros desenvolveu a compreensão de que a questão
social não é apenas a expressão da pauperização relativa da Daí também decorre o caráter essencialmente político da
classe trabalhadora sob o domínio do capital, significando, ação profissional, "uma vez que ela se explica no âmbito das
principalmente, o conjunto de reivindicações dos próprias relações de poder da sociedade" (Yazbek, 1999, p.
trabalhadores por seus direitos e pelo seu reconhecimento 91).
enquanto classe. Ela é também a expressão da intermediação
do Estado nessas relações conflituosas que se estabelecem Naturalmente, a possibilidade de a profissão colocar‑se na
entre trabalhadores e empresariado. Nesse cenário, como já perspectiva do reforço dos interesses da população
colocado anteriormente, o Estado e suas instituições que trabalhadora, com a qual atua, depende mais de um projeto
formam o Poder Judiciário, o Poder Executivo e o Legislativo profissional coletivo do que da volição individual dos
passa a ter um papel fundamental na regulação das relações assistentes sociais. É esse projeto que pode orientar
sociais antagônicas próprias do mundo burguês.9 permanentemente as ações dos profissionais em seus diversos
campos de trabalho.
É então, nesse complexo de determinações, em cujo centro
opera a mediação do Estado capturado pelo capitalismo Assim, pode‑se afirmar que a partir dessas contribuições
monopolista, que Iamamoto localiza a gênese e o significado que iluminam ou fornecem os elementos fundamentais a partir
do Serviço Social como uma profissão que — inscrita na dos quais os assistentes sociais podem fazer a crítica
divisão social e técnica do trabalho, e tendo como "matéria‑ ontológica das contradições sociais que se expressam em seu
prima" as expressões da questão social —, se integra "ao cotidiano, é possível e necessário fazer a análise de como a
processo de criação das condições indispensáveis ao profissão vem se desenvolvendo e delineando nos diversos
funcionamento da força de trabalho e à extração da mais‑ espaços sócio‑ocupacionais, incluídos os que pertencem à
valia", embora não participe diretamente da produção de área sociojurídica. Essa tarefa é urgente para todos nós que
mercadorias e do valor (Iamamoto, 2007, p. 256). partilhamos do projeto ético‑político da profissão e supõe
enorme esforço teórico para captar as complexas
Por estar inserido e por ser fruto mesmo dessas relações determinações que aí comparecem. Evidentemente, não tenho
entre o capital e o trabalho, e participar das respostas que o a menor pretensão de aqui dar conta nem mesmo do começar
Estado e a sociedade têm que dar aos antagonismos de classe, essa tarefa. Alguns assistentes sociais já iniciaram estudos que
o Serviço Social também adquire um caráter eminentemente poderão potencializar muito nossos conhecimentos das
contraditório. E com essas análises Iamamoto alcançará todas especificidades próprias desse espaço de intervenção
as premissas que lhe permitiram formular o que chamei, em profissional (ver, especialmente, Fávero, 1990; Colmán, 2004;
outro lugar, de a Grande tese (ver Borgianni, 2008): Alapanian, 2008; Torres, 2005; Dahmer, 2012; Tejadas, 2012).

Como as classes sociais só existem em relação, pela mútua É necessário e urgente pesquisar a gênese e os processos
mediação entre elas, a atuação do assistente social é de criação e reprodução do Serviço Social em todos os espaços
necessariamente polarizada pelos interesses de tais classes, sócio‑ocupacionais que formam o universo sociojurídico
tendendo a ser cooptada por aqueles que têm uma posição (sistema prisional, ministério público, defensorias, sistema
dominante. –Reproduz, também, pela mesma atividade, socioeducativo, tribunais de justiça etc.), para conhecer, de
interesses contrapostos que convivem em tensão. Responde fato, o que está se passando aí em seu interior e se possa
tanto a demandas do capital como as do trabalho e só pode avançar em propostas coerentes ou que expressem nosso
fortalecer um ou outro polo, pela mediação de seu posto. projeto ético‑político a partir da "análise concreta de
Participa tanto dos mecanismos de dominação e exploração situações concretas".
como, ao mesmo tempo e pela mesma atividade, de respostas
a necessidades de sobrevivência da classe trabalhadora e de Aqui, o que posso então é apenas apontar, à luz dos
reprodução dos antagonismos desses interesses sociais, fundamentos precedentes, alguns dos desafios cruciais com os
reforçando as contradições que constituem o móvel da quais os assistentes sociais se deparam nessa área.
história. A partir dessa compreensão é que se pode estabelecer
uma estratégia profissional e política para fortalecer as metas Inicialmente, destacaria o universo de questões que se
do capital ou do trabalho, mas não se pode excluí‑los do põem aos profissionais que atuam no interior das instituições
contexto da prática profissional, visto que as classes só do sociojurídico, pelo simples fato de, como visto, o jurídico

Conhecimentos Específicos 57
APOSTILAS OPÇÃO

configurar‑se como a esfera de resolução dos conflitos pela sociedade em geral, mas problemas e questões jurídicas, o que
impositividade do Estado. São questões de ordem ética e é muito diferente.
política que surgem nesse universo e das quais não se pode
"escapar", sendo necessário enfrentá‑las com coerência. A chamada "tutela jurisdicional" protege bens jurídicos,
Contribui para alargar esse desafio a crescente criminalização que são mediações criadas socialmente e representam aquilo
da pobreza e a judicialização das expressões da questão social. que uma sociedade definiu que deve ser protegido pela lei e
Tais determinações se impõem hoje no cotidiano profissional pela coercitividade do Estado. Por exemplo, assim como o bem
nas prisões, nos tribunais, nas unidades de internação de jurídico protegido pela criminalização do homicídio é a vida, o
adolescentes, de forma avassaladora. Têm também expressão bem jurídico protegido pela criminalização do roubo é a
objetivada em todo um novo marco legal de caris conservador propriedade. E esses dois "bens" são de naturezas
e que é fruto de articulações de parte da sociedade civil que vê essencialmente diferentes. Sem o primeiro, não há nenhuma
no encarceramento, no recrudecimento das penas e na relação social, pois a vida, obviamente, tem prioridade sobre
redução da idade penal, as formas reificadas e fetichizadas de qualquer outra determinação para o ser social; mas a segunda,
reparação das vítimas da crescente violência urbana que foi a propriedade, é apenas e tão somente uma criação humana,
gerada no processo histórico de superexploração do trabalho uma abstração jurídica. A propriedade é um bem jurídico do
e concentração de poder e renda nas mãos de uma elite mundo burguês.
minoritária numericamente, mas poderosíssima econômica e
politicamente. Porém a "propriedade" não pode ser atingida ou
fragilizada porque faz parte da sustentação da ordem natural
Já o aviltamento mercantil que atingiu o ensino superior no criada pelas relações burguesas de produção. Por isso é que a
Brasil nas últimas décadas pode provocar verdadeira tragédia lei, no caso dos conflitos fundiários, ao fim e ao cabo, acaba
profissional no desempenho que é exigido dos assistentes protegendo sempre a propriedade, e não necessariamente o
sociais nessa área que lida diretamente com os destinos das proprietário. Isso porque a propriedade aqui adquire um papel
vidas das pessoas. De fato, nessa área, decide‑se se alguém vai muito mais importante do que apenas o de ser o direito de
ser privado de liberdade, ou se vai perder a guarda de um filho, usufruto de um bem por alguém. Ela significa condição de
se vai poder ou não adotar uma criança ou conviver com um existência de uma relação social de exploração de homens
idoso. sobre outros homens. Mesmo que, em alguns casos, busque‑se
até argumentar pela função social da propriedade, será aquele
Essa é uma esfera muito diferente daquela que é própria outro sentido dela que prevalecerá sempre. Vê‑se isso na
da execução das políticas sociais. A começar pelo fato de que maioria dos processos de desocupação de terrenos ocupados
na área sociojurídica não se trabalha contando com a mediação pela população carente de moradia.
dos benefícios socioassistenciais. A mediação, via de regra,
passa pelas interpretações que os profissionais fazem de Tendo isso consciente, nenhum assistente social poderia
problemas, situações e conflitos que estão judicializados, ter dúvidas, por exemplo, se fosse chamado a atuar em
portanto aguardando uma decisão judicial, e não uma decisão desocupações, de qual postura profissional e ética deveria ter.
ou um encaminhamento administrativo ou político. Nessas A justiça ou o universo jurídico "deixados a si mesmos"
instituições do sociojurídico, como bem notou Colmán, o atuarão sempre nesse sentido: de restituir a "ordem das
assistente social depara‑se com demandas que "são coisas", embora, como vimos, uma ordem produtora — e
apresentadas de forma individualizada, como conflitos entre tendencialmente reprodutora de desigualdades. Se os homens
partes, com litígios, cabendo [ao Judiciário] aplicar as leis e mulheres que adquirem consciência desse processo não
existentes, estabelecendo as punições cabíveis e atuarem no sentido de incrustar nele elementos de
encaminhando soluções para as situações de conflito" negatividade (resistências, oposições etc.), ele se moverá
(Alapanian, 2008, p. 16). E aqui já podemos demarcar uma sempre nessa direção, e as mediações que serão produzidas
primeira armadilha ou desafio que se põe ao assistente social serão sempre aquelas que servem à reiteração da ordem.
em seu cotidiano: superar a aparência dos fenômenos com os
quais vai trabalhar; tal aparência é a de problemas jurídicos, E aqui podemos apontar mais um dos desafios que estão
pois, como vimos, na realidade também carregam conteúdos postos para os assistentes sociais que atuam nessa área: a
de cunho eminentemente político e social, e nessas outras tendência de incorporarem, como sendo atribuição de sua
esferas é que também deveriam ganhar sua resolutividade. profissão, ou de seu fazer profissional, os instrumentos de
"aferição de verdades jurídicas", como o são o exame
Por isso, não se pode perder de vista, nem por um instante, criminológico ou a inquirição de vítimas ou testemunhas, sob
nesse cotidiano que tende a reiterar a aparência reificada da a eufemística ideia da "redução de danos".
processualidade societária, que quem atua na área
sociojurídica está confrontando o tempo todo com as E aí, nesses espaços nos quais vem imperando a lógica da
contradições que surgem ou se renovam reiteradamente a judicialização das expressões da questão social e da
partir da relação tensa entre as determinações próprias da criminalização das parcelas mais subalternizadas da
sociedade que é regida pelo capital e o buscar da "justiça". Na população, o que tem que ser defendido como sendo próprio
definição oficial, por exemplo, como exposta por Edson Sêda, o de nossa intervenção é o estudo social (ver Fávero, 2003). O
Poder Judiciário é "um poder da República que só atua quando que é próprio de nossa intervenção é o estudo social, que, a
provocado em sua jurisdição, para resolver conflitos de forma partir de aproximações possíveis, deve buscar reproduzir as
definitiva. Nas hipóteses em que um juiz se manifesta, sua determinações que constituem a totalidade sobre a qual somos
decisão deve ser cumprida, para que haja a estabilidade chamados a emitir um parecer técnico. Como já exposto, para
necessária à sociedade organizada e ao bem comum" (Sêda, essa reprodução ser o mais fiel possível, devemos ser capazes
2007, p. 53; grifos meus). de capturar, pela análise, as mediações fundamentais que dão
forma à realidade sobre a qual estamos pesquisando e as
Ora, evidentemente isso é apenas a face imediata e negatividades que lhe dão o movimento.
aparente do Poder Judiciário, aparência que se desvanece
quando começamos a pesquisar seu real significado na Esse trabalho de pesquisa em nada se assemelha à
sociedade burguesa. O que o Poder Judiciário resolve "de reprodução imediata e superficial do existente, ou à
forma definitiva" não são os problemas das pessoas ou da reprodução literal das palavras de um presidiário, que está

Conhecimentos Específicos 58
APOSTILAS OPÇÃO

sendo entrevistado por nós, ou de um casal que está em litígio as demandas e as práticas institucionais sem questioná‑las,
pela guarda de um filho em uma Vara de Família. Por ser‑nos apenas reproduzindo respostas fiscalizadoras dos
demandado, nessa esfera, um estudo de situações complexas, comportamentos, e criminalizadoras dos sujeitos que são alvo
nosso trabalho, também ele, torna‑se de alta complexidade, o da ação judicial, passam a não se ver, eles mesmos, como
que, a bem da verdade, nos impediria de fazer um laudo ou um trabalhadores, e não participam dos movimentos próprios da
parecer a partir de um contato de vinte minutos com alguém. classe trabalhadora, de seus sindicatos, de suas entidades
Mas em muitos locais é isso que nos está sendo exigido. representativas, de seus fóruns de debates. É comum hoje
vermos muitos e muitos profissionais afirmando coisas do
A armadilha está em o assistente social ir se tornando tipo: "não participo desse ou daquele movimento porque são
prisioneiro do possibilismo mais ordinário: se só é possível movimentos políticos, e minha atuação é técnica e não
fazer isso, então vamos fazer, pois, caso contrário, o preso política...". Tem‑se até a impressão de que esses colegas se
ficará sem um laudo e não poderá progredir de regime... O consideram como uma "elite" que não está sujeita aos mesmos
assistente social passa a considerar que aquilo é uma forma de constrangimentos societários que a classe trabalhadora em
"redução de danos". geral sofre. E presas fáceis dos processos de alienação, muitos
assistentes sociais não conseguem dar o passo seguinte, ou até
É o mesmo raciocínio que se usa para justificar a atuação simultâneo, às suas intervenções profissionais, que é o passo
junto a crianças vítimas de violência sexual: para garantir que da participação nos movimentos coletivos e organizados de
a criança não tenha que ser ouvida várias vezes sobre a sua classe.
violência sofrida, passo a admitir que ela seja ouvida de uma
forma que também viola seus direitos e traz danos à sua vida Para finalizar, é importante destacar que a atuação de um
psíquica, como vários especialistas já apontaram. E pior: assistente social nessa área não pode estar a serviço da
contribuo para reforçar a visão de que a saída está no culpabilização, da vigilância dos comportamentos ou dos
encarceramento dos pretensos agressores, em um cenário no julgamentos morais. Tampouco pode servir ao engodo de
qual a prisão só tem servido para tornar homens e mulheres grande parte das instituições jurídicas que, em virtude da
muito piores do que quando entraram para o sistema precarização e do desmonte que em seu interior foi
prisional. promovido, ficam apenas fazendo "os processos judiciais
andarem" com atos meramente burocráticos e
E aqui entramos em mais uma das armadilhas que estão burocratizantes.
postas no cotidiano de quem trabalha na esfera do chamado
sistema de justiça: nessa área há um risco enorme de o Nosso trabalho tem que ser no sentido da oposição a esse
assistente social deixar‑se envolver pela "força da autoridade" estado de coisas, na resistência às mais diferentes formas de
que emana do poder de resolver as questões jurídicas pela alienação, questionando e adensando nossos estudos sociais
impositividade, que é o que marca o campo sociojurídico, e com os dados da realidade; levando para o interior dos autos
"encurtar" o panorama para onde deveria voltar‑se sua visão dos processos o direito que vem "da rua", "dizendo o direito da
de realidade, deixando repousar essa mirada na chamada lide, rua" e dos movimentos sociais que também exigem justiça.
ou no conflito judicializado propriamente dito; passando a agir
como se fora o próprio juiz, ou como um "terceiro imparcial", Nosso papel não é o de "decidir", mas o de criar
mas cuja determinação irá afetar profundamente a vida de conhecimentos desalienantes a respeito da realidade sobre a
cada pessoa envolvida na lide. Por exemplo, em um processo qual vai se deliberar naquilo que se refere à vida de pessoas. E
em que alguém está sendo acusado de negligência para com há importantes espaços para isso no interior desse universo,
uma criança, seja o pai ou a mãe: a decisão judicial buscará uma vez que até mesmo os juristas mais conservadores sabem
"recompor o direito da criança que foi violado", podendo, no que a situação de fato impera sobre qualquer direito.
limite, alijar ou esse pai ou essa mãe, ou ambos, do poder
familiar sobre essa criança. O assistente social, diferentemente
de um juiz ou de um promotor, diante de um caso assim, terá
que olhar para a totalidade da problemática e suas 8. Direitos Humanos;
consequências, e não só para a proteção dos direitos da criança
que, sem dúvida, será o foco da atenção do juiz.
BIBLIOGRAFIA
O mesmo ocorre quando estamos lidando com problemas
relacionados a uma denúncia de abuso sexual. Para um juiz da 6. BRITES, Cristina M.; FORTI, Valéria (orgs.). Direitos
área criminal, o que estará em seu foco de atenção será a Humanos e Serviço Social: Polêmicas, Debates e Embates. Rio
reconstituição de uma verdade jurídica para a incriminação do de Janeiro: Lúmen Juris, 2013.
suposto abusador. Por isso, para ele são tão importantes as
provas. Já o foco de trabalho de um assistente social terá que O livro Direitos Humanos e Serviço Social: Polêmicas,
ser muito mais amplo e profundo, para que possa atuar Debates e Embates, organizado pelas autoras Cristina M.
visando a proteção de direitos de todos os envolvidos. Sobre Brites e Valéria Forti, trata-se de uma coletânea de diversos
isso é importante ter contato com as pesquisas e a literatura textos onde alguns autores são convidados a refletir sobre as
especializada que já começa a surgir sobre o tema, polêmicas, debates e embates que versam sobre os direitos
principalmente aquelas que vêm discutindo de forma crítica os humanos e o serviço social.
chamados depoimentos especiais, ou escutas especiais, de Os direitos humanos, expressão que encerra concepções
crianças vítimas de abuso sexual (ver AASPTJSP/Cress/9ª heterogêneas e até antagônicas, são pelos autores tomados
Região, 2012; Azambuja, 2011), esta última uma importante enquanto um campo epistemológico e de luta social
promotora de Justiça que buscou seu doutoramento na área de estratégica, no horizonte de construção de uma ordem social
Serviço Social para abastecer‑se das reflexões realizadas em libertária, no contexto de um campo de disputa de projetos
nossa área de conhecimento. societários. (…) os direitos são construções históricas fruto de
lutas protagonizadas por classes e grupos populares contra a
Deve‑se chamar a atenção, ainda, para outro desafio que exploração, a repressão, a tortura, o arbítrio, a violência, a
se põe no cotidiano dos assistentes sociais: ao assumir para si discriminação, a desproteção social, a degradação ambiental e
contra a dependência econômica e política de povos e países.

Conhecimentos Específicos 59
APOSTILAS OPÇÃO

Nesse sentido, os direitos humanos constituem direitos 2º- não cabe assumirmos compromisso com os Direitos
conquistados coletivamente, podendo ser considerados como Humanos, pois são incompatíveis com as teorias críticas à
patrimônio da humanidade. sociedade capitalista e, portanto, com o pensamento dos
autores marxistas — não se inscrevem na perspectiva de
Vejamos o capítulo do livro elaborado por Valéria Forti: construção de uma nova ordem social;
“Direitos Humanos e Serviço Social: notas para o 3º- apenas compreendendo a possibilidade da constituição
debate42”. de uma nova formação social por meio de uma lógica
evolucionista — desenvolvimento contínuo, progressivo e
Como amplamente difundido no meio profissional, o linear —, seria concebível a defesa dos Direitos Humanos, sua
Código de Ética é um documento destacado face ao exercício ampliação e universalização.
profissional do Assistente Social. Diante do exposto, recorreremos ao percurso ético no
Pode-se dizer que significa um “instrumento” que lhe Serviço Social, para melhor situarmos os atuais compromissos
possibilita fundamento, referência e norte. Nele encontram-se profissionais, vinculados ao que ora é chamado de Projeto
valores e diretrizes que representam os compromissos Ético-Político e, por meio disto, formularmos algumas
assumidos pelo Serviço Social nas últimas décadas e que lhe considerações relacionadas com os Direitos Humanos.
prestam referência para o exercício profissional cotidiano. Diferentemente do que por vezes é mencionado por alguns
Logicamente, há articulação entre todos os elementos que estudiosos, o Serviço Social não é mera consequência da
compõem este documento, mas, por ora sobrelevamos uma de qualificação pela ampliação de conhecimentos teóricos das
suas indicações face aos seus Princípios Fundamentais: a ações que, mediante a filantropia e o assistencialismo, se
defesa dos Direitos Humanos, o que, em linhas gerais, torna-se dirigiam à “questão social”. É uma profissão que emerge em
recorrente nos objetivos dos Assistentes Sociais, sejam eles dado momento do desenvolvimento capitalista — a era dos
mencionados verbalmente, na literatura profissional ou na monopólios — em resposta aos interesses burgueses, ou
documentação do seu trabalho cotidiano. Comumente isso melhor, atendendo à requisição burguesa, mas tendo suas
pode ser apreciado mediante a sentença: “O meu objetivo ações dirigidas aos trabalhadores, haja vista a configuração
profissional é a defesa e/ou a efetivação de direitos”, essa é a dos conflitos de classe que caracterizaram essa época, em que
referência que aparece frequentemente como fundamento e já eram presentes o movimento operário e a constituição de
direção das ações dos Assistentes Sociais. Contudo, raros são partidos de massa. Aspectos que inviabilizavam a manutenção
os momentos em que menções deste tipo vêm acompanhadas da ordem social por meio de ações que visassem ao controle
das concepções, do rumo profissional, das dimensões técnico- social de modo assistemático e pontual, assim como se
operativas e ético-políticas que comportam. Ou seja, raras são caracterizassem apenas pelo cunho caritativo ou pela mera
as vezes em que se esclarecem as condições, as finalidades, os repressão explícita, como a policial, por exemplo. Daí, a
meios e os modos que permitirão a materialização do trabalho interferência do Estado, viabilizando a imbricação orgânica do
profissional visando ao referido fim. E isso é imprescindível, econômico e do político.
evidentemente, pois o mero discurso não é suficiente, por mais Aos Assistentes Sociais coube a implementação e a
elaborado e bem articulado que seja, para assegurar, execução das políticas sociais alinhadas com a lógica de
conquistar ou ampliar direitos, assim como preconizado pelo expansão do capitalismo. Portanto, lhes couberam ações
Código de Ética atual — um documento cuja representação é incompatíveis com qualquer perspectiva que não estivesse
destacada face ao atual Projeto Profissional do Serviço Social consoante seja com o conservadorismo seja com o
brasileiro. Diante disso, é oportuno lembrarmos que reformismo.
abstrações nesse campo podem servir para obscurecer a Emergindo como profissão a partir do background
desumanização tão presente, de várias formas, em nosso acumulado na organização da filantropia própria à sociedade
cotidiano. burguesa, o Serviço Social desborda o acervo das suas
Essa compreensão nos torna clara a necessidade de não protoformas ao se desenvolver como um produto típico da
nos permitirmos ser conduzidos à “armadilha” do discurso que divisão social (e técnica) do trabalho da ordem monopólica.
proclama valores radicalmente humanistas, mas não é capaz (...) desenvolveu-se se legitimando precisamente como
de elucidar as bases concretas de sua objetivação histórica interveniente prático-empírico e organizador simbólico no
(IAMAMOTO, 2007, p. 229). âmbito das políticas sociais (NETTO, 2001, p. 79).
Dessa maneira, sem qualquer pretensão de esgotar um No Brasil, a emersão do Serviço Social ocorreu na década
tema de tamanha complexidade, mas levando em conta que de 1930, no contexto da chamada Revolução de 30, que
discussões no campo dos Direitos Humanos devem ser favoreceu a ampliação e a consolidação das bases industriais
travadas, particularmente no âmbito do Serviço Social, tendo no País em detrimento da economia agro-exportadora, após a
em vista a busca de elucidação de algumas polêmicas ascensão de Getúlio Vargas ao poder.
presentes no meio profissional a respeito do tema, nos Nesse contexto, o Serviço Social emerge e inicia seu
propomos a trazer alguns aspectos para reflexão. Para isso, percurso com perspectivas idealizadas das condições
partiremos de alguns pontos, elencados a seguir, cujas objetivas da vida social, materializando o obscurecimento da
polêmicas tocam o atual projeto profissional que se tornou sua dimensão política, efetivando a perspectiva de apelo moral
conhecido como Projeto Ético-Político do Serviço Social, a no trato das expressões da “questão social”.
partir de 1998. Um projeto cujos valores e diretrizes são O que foi dito pode ser percebido no primeiro Código de
progressistas e democráticos e que se dirige à contribuição Ética Profissional do Serviço Social, aprovado em 29/9/1947,
profissional, considerando os seus limites, para a construção ao focalizarmos os deveres a serem observados pelos
de uma nova ordem societária. Assistentes Sociais:
1º- Os debates sobre os Direitos Humanos são Cumprir os compromissos assumidos, respeitando a lei de
desimportantes, não merecem atenção e investimento Deus, os direitos naturais do homem, inspirando-se sempre,
acadêmico, uma vez que circulam em torno de questão em todos os seus atos profissionais, no bem comum e nos
circunscrita ao mundo burguês, se tratam de meras dispositivos da lei, tendo em mente o juramento prestado
“abstrações do universo da sociabilidade burguesa”; diante do testamento de Deus.

42 Disponível em: http://osocialemquestao.ser.puc-


rio.br/media/13artigo.pdf.

Conhecimentos Específicos 60
APOSTILAS OPÇÃO

Respeitar no beneficiário do Serviço Social a dignidade da torno da funcionalidade do Serviço Social, tendo em vista a
pessoa humana, inspirando-se na caridade cristã (1948, p. 41). superação do subdesenvolvimento (NETTO, 1991).
No decurso do processo histórico-social, a partir das A operacionalização dos programas e projetos de
condições que configuram a realidade brasileira e mundial, a Desenvolvimento de Comunidade foi questionada, iniciando
busca de cientificidade torna-se imprescindível para os no contexto latino-americano, o processo de “erosão da
Assistentes Sociais, o que fez com que fossem, paulatinamente, legitimidade do Serviço Social Tradicional” (NETTO, 1991).
influenciados por vertentes teóricas em voga na época, Esse foi um Movimento importante na profissão, pois
especialmente os pressupostos do funcionalismo adotado pelo viabilizou a absorção, por uma parcela de profissionais, de
Serviço Social norte-americano. novos aportes teóricos. A análise crítica da sociedade burguesa
Entretanto, nesse movimento, não houve extinção do possibilitou que uma parcela dos profissionais
ideário neotomista, operando-se, nos períodos em que as problematizasse o papel do Assistente Social na sociedade
concepções desenvolvimentistas têm hegemonia no Brasil e no capitalista e as demandas a ele dirigidas. Isso redundou em
continente latino-americano, uma conjugação dessa vertente alterações nas concepções adotadas de Homem/Sociedade e
funcionalista com tal ideário. Isso significou a continuidade Estado, fundamentando um diferente referencial teórico e
das concepções acríticas e ahistóricas no Serviço Social, ético para a profissão, que só veio a ser objetivado em um
apagando dos seus conhecimentos os conteúdos e debates Código de Ética profissional duas décadas depois, em 1986.
críticos acerca dos conflitos, das contradições, ou melhor, dos Apesar da significância do referido Movimento face às
elementos determinantes da “questão social”. forças presentes no âmago da profissão, no Brasil a
O Código de Ética de 1965 mostra as influências da referida prevalência do posicionamento conservador permaneceu por
conjugação: um amplo espaço de tempo, o que relacionamos aos limites
Ao assistente social cumpre contribuir para o bem comum, impostos pela realidade brasileira na época e às possibilidades
esforçando-se para que o maior número de criaturas humanas definidas pelo acúmulo de conhecimento intelectual dos
dele se beneficie, capacitando indivíduos, grupos e profissionais no período.
comunidades para sua melhor integração social (p. 7). Alinhado à expansão do capitalismo internacional, em
O assistente social estimulará a participação individual, 1964, o golpe militar instaurou a ditadura no Brasil. Com isso,
grupal e comunitária no processo de desenvolvimento, a história brasileira tomou rumos muito árduos, pois a
propugnando pela correção dos desníveis sociais (p. 7). obstrução dos canais de participação popular e a supressão de
Não obstante, entre a década de 1940 e meados da década direitos implicaram no desmantelamento de um patrimônio
seguinte, a economia brasileira ter tido um considerável conquistado por meio de anos de lutas sociais no País. Um
crescimento. Iamamoto e Carvalho explicitam que, processo que afetou o percurso histórico do Serviço Social. Fez
(...) a deterioração das relações de troca, o esgotamento refluírem as iniciativas de rompimento com o
das reservas em moeda forte e o endividamento externo conservadorismo na profissão, o que suscitou alterações no
crescente — a partir de 1955, e a luta pela definição das opções seu interior que se delimitaram ao rearranjo da sua forma
tendo em vista criar condições favoráveis à expansão tradicional —uma modernização que assegurou o
econômica, nos marcos do “capitalismo dependente”, são conservadorismo —, em consonância com as diretrizes da
elementos das condições concretas em que se engendra a política estatal pós-1964.
ideologia desenvolvimentista (...) (1985, p. 346). Diante do clima repressivo e autoritário, os Assistentes
Desse modo, a ideologia desenvolvimentista, dominante Sociais, basicamente, refugiaram-se em discussões que
no governo Kubitschek, embora propagasse a viabilidade de priorizavam a metodologia profissional, buscando a
desenvolvimento econômico com justiça social, apontando modernização do aparato instrumental, e construíram a
para a direção de uma ampla alteração econômico-social que denominada Perspectiva Modernizadora do Serviço Social
redundaria em desenvolvimento, implicou em uma (NETTO, 1991).
renegociação da dependência (1982, p. 150). Nesse período, a Contudo, não pode ser esquecido o fato de que forças
presença marcante do capital estrangeiro no País foi tomada críticas e resistentes ao autoritarismo estiveram presentes no
como essencial à possibilidade de desenvolvimento, à solução período, inclusive no Serviço Social. Nesse sentido,
dos problemas tradicionais na sociedade brasileira. emblemático é o exemplo da importante experiência
Apesar de tal ideologia se vincular a questões que afetavam acadêmica desenvolvida na Universidade Católica de Minas
o horizonte profissional dos Assistentes Sociais, apenas alguns Gerais, no início da década de 1970 — o Método B.H.
desses profissionais se envolveram com isso — aqueles que se Para Netto, essa experiência representou (...) a construção
relacionaram com experiências em programas e projetos de de uma alternativa global ao tradicionalismo. Este é o traço
Desenvolvimento de Comunidade. Essas foram atividades que mais visível da explicitação do projeto da ruptura que se
adensaram a influência norte-americana no Serviço Social plasmou na atividade da Escola de Serviço Social da
brasileiro, haja vista o apoio para a capacitação técnica e o Universidade Católica de Minas Gerais (...). O ‘método’ que ali
patrocínio de organismos internacionais, a exemplo da OEA e se elaborou foi além da crítica ideológica, da denúncia
da Unesco. epistemológica e da recusa das práticas próprias do
Entretanto, na profissão, em consonância com o contexto tradicionalismo, envolvendo todos estes passos, ele coroou a
da década de 1960, emergiu um movimento crítico sua ultrapassagem no desenho de um inteiro projeto
denominado Movimento de Reconceituação Latino-Americano profissional (...) (1991, p. 248 - 249).
do Serviço Social. Esse Movimento trouxe à tona críticas ao As diretrizes conservadoras, sob forma diferente ou, se
Serviço Social tradicional, ou seja, ao conservadorismo preferirmos, a “perspectiva modernizadora”, podem ser
historicamente plasmado na profissão e, em consequência, à verificadas no Código Profissional de 1975, consolidando a
lógica capitalista. hegemonia dos modernizadores:
Em patamares e dimensões diferentes e específicos, além Exigências do bem comum legitimam, com efeito, a ação do
dos países latino-americanos, as indagações e críticas se Estado, conferindo-lhe o direito de dispor sobre as atividades
fizeram presentes em todos aqueles países e regiões em que a profissionais — formas de vinculação do homem à ordem
profissão contava com um nível avançado de inserção na social, expressões concretas de participação efetiva na vida da
estrutura sócio-ocupacional. No Brasil, consideramos que os sociedade (p. 6).
desdobramentos desse Movimento no percurso histórico do O valor central que serve de fundamento ao Serviço Social
Serviço Social se iniciam relacionados com as questões do é a pessoa humana.
cenário latino-americano da década de 1960, pois giram em

Conhecimentos Específicos 61
APOSTILAS OPÇÃO

Reveste-se de essencial importância uma concepção Destaca-se, também, uma postura em defesa de direitos,
personalista que permita ver a pessoa humana como centro, antes não observada, na disposição sobre os deveres dos
objeto e fim da vida social (p. 7). Assistentes Sociais:
Dentre os princípios: Subsidiariedade — que é elemento Denunciar, no exercício da profissão, às organizações da
regulador das relações entre os indivíduos, as instituições ou categoria, às autoridades e aos órgãos competentes, qualquer
as comunidades, nos diversos planos de integração social (p. forma de agressão à integridade física, social e mental, bem
8). como abuso de autoridade individual e institucional (p. 11).
Embora indubitáveis o avanço e a importância do citado
Nas relações com instituições: respeitar a política Código, haja vista a evidente busca de rompimento com o
administrativa da instituição empregadora (p.13). conservadorismo na profissão, não podemos deixar de
Esse é o transformismo que absorve os Assistentes Sociais destacar que seja partícipe das questões intrínsecas aos
tradicionais, adequando-os aos novos tempos, lhes desdobramentos históricos do Movimento da década de 1960,
inviabilizando as possibilidades de crítica, tanto à sociedade mesmo que represente a sua vertente de inspiração mais
na qual a profissão se insere, quanto às suas próprias bases crítica.
ideopolíticas. A esse respeito, cabe-nos, ilustrativamente, considerar o
Quanto a isso, vale complementarmos com o pensamento pensamento de Iamamoto acerca do marxismo da
de Iamamoto: reconceituação:
O positivismo tende, pela sua natureza, a consolidar a Embora contraposto ao conservadorismo profissional,
ordem pública, pelo desenvolvimento de uma sábia mantém com ele (...) uma linha de continuidade. É esse elo que
resignação, ante as conseqüências das desigualdades sociais, faz com que a reconceituação não ultrapasse o estágio de uma
apreendidas como fenômenos inevitáveis. O Serviço Social busca de ruptura com o passado profissional. (...). As junções
defende-se dessa resignação, encobrindo-a por meio de uma de um marxismo positivado e de uma ação política idealizada
visão do homem, norteadora das ações dos profissionais, são as novas capas de um velho e sempre mesmo problema
pautada pelos princípios filosóficos neotomistas, na defesa de que perpassa a trajetória do Serviço Social, segmentando o
uma natureza humana abstrata: a pessoa humana, dotada de campo cognitivo do campo dos valores implicados na ação
dignidade, sociabilidade e perfectibilidade, postulados profissional, redundando em uma atualização às avessas, dos
essenciais do Serviço Social (tais como sustentados no dilemas postos pela herança conservadora do Serviço Social
‘Documento de Araxá’, de 1967). Preserva-se, no campo dos (1998, p. 223 - 224 - 225).
valores, a liberdade dos sujeitos individuais, deslocados da Em seu último Código de Ética, datado de 1993, o Serviço
história (1998, p. 222). Social buscou assegurar e ampliar as conquistas profissionais
A sociedade brasileira retoma os rumos da democracia impressas no código anterior.
política, haja vista a crise do modelo econômico acelerado, Ou seja, o Código de Ética Profissional vigente expressa
batizado de “milagre econômico. Os anos finais da década de revisão do Código de 1986, que objetivou o refinamento das
1970 e os anos da década de 1980 foram palco da reinserção suas referências para o exercício profissional, isto é, realizou
dos movimentos sindicais, políticos e populares no país, uma espécie de depuração dessas referências mantendo o
lutando pela redemocratização e pela defesa de diversos sentido do Código precedente (1986).
interesses concretos da vida cotidiana. O último Código de Ética representa a direção dos
E esse foi um processo que contou com a participação da compromissos assumidos pelo Serviço Social nas últimas
Igreja católica que, no espírito da teologia da libertação, décadas do seu percurso histórico — portanto, representa o
constituiu as Comunidades Eclesiais de Base, a participação de Projeto que passou a ser chamado Projeto Ético-Político do
entidades de diferentes categorias profissionais e várias Serviço Social, a partir de 1998. Nele pode-se observar uma
outras representações e entidades sociais. Os Assistentes perspectiva crítica à ordem socioeconômica estabelecida e, em
Sociais foram, também, sujeitos históricos nesse processo, o consequência, a defesa dos direitos dos trabalhadores. Sua
que lhes oportunizou o experimento de significativos avanços composição comporta 11 Princípios Fundamentais, entre os
no plano intelectual e em nível organizativo, sendo a quais, sucintamente, destacamos: defesa dos Direitos
hegemonia da perspectiva modernizadora colocada em Humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo, ampliação e
questão, em favor da retomada do veio de inspiração (mais) consolidação da cidadania, compromisso com a qualidade dos
crítica e progressista do Movimento de Reconceituação. Isso serviços públicos prestados à população, posicionamento em
fez com que contássemos, a partir de 1986, com um Código de favor da equidade e da justiça social, empenho na eliminação
Ética Profissional que pode ser visto como um marco na busca de todas as formas de preconceito, articulação com as
do rompimento com o conservadorismo. Um Código que entidades do Serviço Social e com os movimentos de outras
supera as reflexões éticas obscurecidas pelas construções categorias, e com a luta geral dos trabalhadores (CFESS, 1993).
idealizadas da realidade e que, desse modo, pode ser É possível avaliarmos que o Código de 1993 firmou
percebido com uma espécie de “divisor de águas” no percurso importantes valores e diretrizes para o exercício profissional,
da ética na profissão. Situa a ética no campo dos os quais divergem daqueles que vêm sendo propagados e
condicionantes históricos, contemplando as implicações dos efetivados em alinhamento com a ordem econômica
interesses de classe e se mostra representante da perspectiva internacional.
crítica que caracteriza o segmento profissional que captou a Fato que nos possibilita afirmar que seja um Código de
dimensão político-ideológica que marcou a origem da Ética Profissional do Serviço Social que, diferentemente do que
profissão e caracteriza a sua história. é marcante na maior parte da história dessa profissão, coloca-
O que mencionamos pode ser observado na própria se em contraposição com os interesses e valores prevalecentes
introdução do referido Código de 1986: na ordem do capital.
Inserida nesse movimento, a categoria de Assistentes Diante do que viemos expondo, retomamos os aspectos
Sociais passa a exigir também uma nova ética que reflita uma iniciais da nossa discussão e salientamos que os Direitos
vontade coletiva, superando a perspectiva ahistórica e acrítica, Humanos têm sua gênese nas lutas burguesas pelo declínio do
onde os valores são tidos como universais e acima dos absolutismo feudal e da consequente realidade traçada pelos
interesses de classe. A nova ética é resultante da inserção da privilégios da nobreza parasitária e do clero à época. Assim,
categoria nas lutas da classe trabalhadora, consequentemente, não se pode negar os avanços decorrentes da perspectiva de
de uma nova visão da sociedade brasileira (...) (p. 7). autonomia, ou seja, das leis como produto da razão humana, se
comparada à lógica da heteronomia — preponderante no

Conhecimentos Específicos 62
APOSTILAS OPÇÃO

mundo feudal — e da possibilidade de Direitos Humanos (civis haja vista o voto censitário definindo tal participação na
e políticos). Porém, lembrando que, comumente, a Revolução direção do Estado.
Francesa é tida como o marco da emersão dos Direitos No entanto, pode-se dizer que, a partir do século XIX, os
Humanos, tomamos como base o pensamento de Trindade direitos que foram conquistados tendo a burguesia à frente
(2011), para destacar alguns aspectos do legado liberal neste como força social revolucionária, tomaram outros contornos,
sentido. ou seja, iniciaram o percurso em função dos interesses dos
trabalhadores que, destituídos dos meios de produção,
Os Direitos Humanos dos liberais: passaram a lutar por melhores condições de vida e trabalho, o
1. inspiravam-se no direito natural. Mesmo com que incluiu a luta contra o voto censitário. Ademais, a partir da
concepções diversas, o jusnaturalismo alicerçava os interesses segunda metade do século XX, setores mais oprimidos das
da classe que comandara a transformação revolucionária e, sociedades também engrossaram a luta pela ampliação dos
portanto, conformava uma noção individualista e abstrata de direitos civis, a exemplo de lutas como as contra a
homem — um homem socialmente descontextualizado e discriminação racial, de gênero e de idade, contra a tortura,
ahistórico; pela expressão da diversidade sexual, pela preservação do
2. representaram o triunfo ideológico e legal de uma meio ambiente etc. Enfim, são movimentos cujas conquistas
concepção não-universal de ser humano, ou seja, uma esbarram na crise contemporânea do capital que, por meio do
concepção restrita a matriz branca, masculina, rica ou próxima ideário neoliberal, opera significativos retrocessos face aos
disto e de padrão civilizatório eurocêntrico; direitos dos trabalhadores.
3. operaram uma cisão ideal no indivíduo. De um lado, o A crise contemporânea do capital promove a atrofia do
“homem”, assim considerado na sua vida concreta e cotidiana Estado e das políticas sociais, responsabilizando os
na “sociedade civil”, esfera “privada” na qual tem existência trabalhadores pela queda na sua taxa de lucro.
real. De outro, o “cidadão”, um construção político-jurídico Isso repercute, inclusive, na vida dos trabalhadores dos
que, formalmente, “igualaria” as pessoas nas suas relações com países que não são parte das chamadas economias centrais,
o Estado —, pois este, esfera “pública”, alegadamente “neutra”, que contavam com o Estado de Bem-Estar Social, ou seja,
que não levaria em conta as contradições atuantes na repercute, também, em países que já mereciam ser observados
sociedade civil; pelo prejuízo aos Direitos Humanos, às conquistas
4. consagram, acima de tudo, as garantias sem civilizatórias, pela fragilidade de seus recursos no que se
transigências da propriedade privada — aos que refere à política social.
conseguissem obter por quaisquer meios que fossem; Para enfrentar a crise capitalista, que se inicia nos anos
5. não obstante exaltarem a igualdade perante a lei — a 1960-1970, o capitalismo internacional processa um
igualdade civil —, pois supressão dos estados ou ordens, nessa movimento de reestruturação produtiva e lança mão do
perspectiva, na prática, essa igualdade formal coexistiria, sem ideário neoliberal. Quanto a isso, Dias esclarece que,
qualquer problema moral, com a brutal desigualdade social Para fazer frente a esta crise, o capitalismo articula e põe
que o capitalismo (triunfante) alastrava pela Europa, com a em cena uma dupla solução: o neoliberalismo e a
renovada inferioridade (inclusive, legal) das mulheres, com a reestruturação produtiva. Estas duas estratégias constituem a
redução à subserviência dos povos não- europeus, com o mesma processualidade. O capitalismo, ‘superados’ os
tráfico negreiro e com o massacre dos indígenas americanos; principais obstáculos à sua continuidade, entre eles, o
6. asseguram a liberdade individual, mas não para todos. desmonte objetivo dos Estados ‘socialistas’, coloca em questão
Cada um que dela tirasse o melhor proveito na luta pela vida. o chamado Bem-Estar Social. Os capitalistas liberam-se de
A instituição do binômio legal — igualdade/liberdade — todo e qualquer compromisso com a satisfação das
permitiu que emergisse a figura jurídica do “sujeito de necessidades reais da população e de ampliação da cidadania.
direitos”, viabilizando a livre contratação, imprescindível à Para tal, levaram a extremos a ideia de liberdade do mercado
sociedade capitalista; (1998, p. 49).
7. tornaram os direitos políticos, que eram privilégios dos Como podemos facilmente inferir, esse processo tem
estamentos, direitos dos ricos ou, ao menos, daqueles um tanto implicações contundentes no que se refere aos direitos dos
abastados, por meio do voto CENSITÁRIO; trabalhadores e aos mecanismos de regulamentação da
8. não comportavam os direitos econômicos, sociais e relação entre o capital e o trabalho, o que se traduz em
culturais. Esses sequer apareciam como hipóteses para os significativos prejuízos face aos direitos arduamente
pensadores liberais. As lutas dos trabalhadores foram as conquistados pelos trabalhadores em terras brasileiras. Uma
responsáveis pela emersão histórica dessas dimensões dos lógica que, em favor do capital, cada vez mais avilta o trabalho
Direitos Humanos. e defende o mercado como instituição perfeita, capaz de
Como foi dito, os Direitos Humanos, do ponto de vista resolver os problemas socioeconômicos das sociedades atuais.
liberal, na sua dimensão original, cuja forma clássica Desse modo, a sociedade brasileira, caracterizada pelo
consolidou-se a partir da Revolução Francesa, limitaram-se processo industrial tardio e periférico, sem a experiência do
aos direitos civis e políticos e corresponderam às necessidades Estado de Bem-Estar, apesar dos avanços das forças sociais, a
mais gerais das relações sociais do modo de produção que exemplo do sindicalismo em final da década de 1970 e nos
vinha se firmando, o capitalismo. Tencionando assegurar o anos 1980, foi atravessada, nas últimas décadas, por um
livre contrato, os direitos civis, por meio da defesa da processo que significou perdas substanciais de direitos para a
supremacia individual, serviram como qualificadores das classe trabalhadora.
relações entre os indivíduos, assim como comportaram a Marilda Iamamoto explicita que a perspectiva neoliberal,
igualdade formal necessária à equivalência de valores nas com hegemonia ideológica mundial, em vez de impulsionar a
trocas de mercadorias e à condição jurídica entre os produção em favor da ampliação das taxas de crescimento
contratantes dessas trocas, comportaram a propriedade como econômico, favoreceu o crescimento especulativo da
forma jurídica correspondente à apropriação privada dos economia, recrudescendo as desigualdades sociais e o
meios de produção, da mais-valia e das mercadorias em geral desemprego. Colocou o mercado como dimensão prioritária na
e também a segurança como garantia estatal do cumprimento regulação das relações econômicas, identificando e
dos contratos e das normas estatais. propagando o Estado como o responsável pelas desgraças que
Os direitos políticos serviram como qualificadores dos afetam a sociedade capitalista, o que vem conformando um
indivíduos burgueses face à participação na direção do Estado, Estado cada vez mais submetido aos interesses econômicos e

Conhecimentos Específicos 63
APOSTILAS OPÇÃO

políticos dominantes, cuja prevalência é a financeirização da gênese, as possibilidades e os limites do campo dos direitos na
economia (1998, p. 35). sociedade capitalista. Longe da compreensão dos Direitos
Por conseguinte, sem que esmiucemos as particularidades Humanos limitada ao legado liberal (originário), entendemos
desse processo em curso, podemos considerar que este, que trabalhar em prol da defesa, da efetivação e ampliação
caracterizado pela ofensiva neoliberal e pela reestruturação desses direitos, de acordo com os pressupostos do nosso
produtiva, promova a “flexibilização” do trabalho em favor da Código Profissional, significa não restringi-los aos que sofrem
economia de mercado. Com isso, verificamos os intensos atentados em sua vida privada e/ou em seu patrimônio.
ataques ao Estado e aos mecanismos reguladores da relação Diferentemente disso, significa apreciá-los e efetivar ações
entre o capital e o trabalho, a implantação de novas formas de profissionais competentes e compatíveis com concepção
organização e gestão da força de trabalho e de novas ampla que tem como referência todos os afetados pelas
tecnologias. Ou seja, mediante os cortes nas políticas sociais, a violações dos direitos (humanos), a exemplo dos vitimados
terceirização e a polivalência, como exemplos, nos deparamos pelos acidentes de trabalho, pelo desemprego, pela
com um Estado “enxuto” — considerando-se (os) mecanismos desregulamentação do trabalho, pelos baixos salários, pelos
de proteção social — e com empresas “enxutas” e crimes financeiros, pela violência doméstica, pela ação
competitivas, onde os trabalhadores empregados são repressiva do Estado (inclusive a repressão policial), pelos
submetidos à “flexibilização” dos seus direitos, à produção de sistemas penitenciários, de saúde e educacional, grande parte,
“qualidade” e a desregulamentação do trabalho, e os demais ineficientes e/ou desqualificados, pelo latifúndio, pelos crimes
(trabalhadores) engrossam as fileiras dos “desnecessários” ao na internet, ou seja, assumirmos, verdadeiramente,
mercado. Portanto, deparamo-nos com sérios prejuízos e compromisso face às vítimas das misérias da nossa sociedade.
complicações nas condições de vida e trabalho de significativo E, conforme Marques (2011), isso significa termos a
contingente populacional do nosso País, os quais, em grande compreensão de que — sem desconsiderarmos os limites, ou
parte, vêm sendo evidenciados, pelo acirramento das melhor, sem abstrações — a materialização dos Direitos
diferentes faces da chamada “violência” no cotidiano. Humanos na sociedade de classes pode ser caminho para o que
Apesar das análises que possam referir-se a melhorias face ainda precisamos alcançar se pretendemos liberdade real,
ao explanado, as questões que abordamos encontram-se, igualdade de fato e fraternidade na prática.
indubitavelmente, presentes na sociedade brasileira, o que
afeta sobremaneira o Assistente Social. Isto porque, além de Referência:
experimentar, tal como os demais trabalhadores assalariados,
as adversidades das injunções da referida lógica, sobressaem 6. BRITES, Cristina M.; FORTI, Valéria (orgs.). Direitos
os fatos de historicamente esse profissional ser um Humanos e Serviço Social: Polêmicas, Debates e Embates. Rio
trabalhador, cujo maior empregador é o Estado; ser vinculado de Janeiro: Lúmen Juris, 2013.
às expressões da “questão social” e às políticas sociais, voltado
para a classe subalterna, e ter construído um Projeto
Profissional dissonante das diretrizes que descrevemos. Isso
pode ser verificado por meio da consulta aos Princípios
9. Famílias - transformações e
Fundamentais do último Código de Ética Profissional dos configurações;
Assistentes Sociais, que, como dissemos, inclui a defesa
intransigente dos Direitos Humanos.
Reafirmamos estar diante de um Projeto Profissional do BIBLIOGRAFIA
Serviço Social brasileiro cujas diretrizes — progressistas e
democráticas — são consoantes com os interesses da classe 31. Revista Serviço Social e Sociedade, Nº 71, Especial,
trabalhadora e colidentes com as diretrizes impostas pelo Famílias, São Paulo: Cortez Editora, 2002.
projeto capitalista internacional, em sua relação com o projeto
nacional, assim como tão bem nos esclareceu, desde meados VIVER EM FAMÍLIA COMO EXPERIÊNCIA DE CUIDADO
da década de 1990, o prof. J. Paulo Netto (1996). E desse modo, MÚTUO:
além de caber indagarmos quanto ao sentido que vem DESAFIOS DE UM MUNDO EM MUDANÇA
tomando a História (humana), nos cabe observar as atuais Heloisa Szymanski
diretrizes éticas que referenciam a ação do Serviço Social e,
por conseguinte, a relação desta profissão com os Direitos Este texto, compreende-se como família, uma associação
Humanos, uma vez que temos um projeto profissional que traz de pessoas que escolhe conviver por razões afetivas e assume
à reflexão as contradições postas pela ordem instituída e no um compromisso de cuidado mútuo e, se houver, com crianças,
seu horizonte vislumbra a perspectiva de construção de uma adolescentes e adultos. Essa com sideração abrange um
nova ordem societária. grande número de possibilidades que, há séculos, já vêm sendo
No nosso entender, retornando aos três pontos levantados vividas pela humanidade, a despeito das definições “oficiais”
no início do presente texto, consideramos que isso significa de grupo lumiliui (Kaslow, 2001; Sarnara, 1992; Sarti, 1992;
captarmos que os debates sobre os Direitos Humanos, além de Segalen, 1981; Szymanski, 2001). Kaslow (2001) cita nove
importantes e merecedores da nossa atenção e do nosso tipos de composição familiar que podem ser consideradas
investimento acadêmico, tornaram-se imprescindíveis, uma “família”:
vez que, diferentemente de situá-los como 1) família nuclear, incluindo duas gerações, com filhos
elaborações/proposições que desvirtuam o pensamento biológicos;
crítico, que são reducionistas e dissonantes do horizonte de 2) famílias extensas, incluindo três ou quatro gerações;
construção de uma nova formação social, nos cabe apreciá-los 3) famílias adotivas temporárias (Foster);
como meios para viabilizar rumos profissionais que visem 4) famílias adotivas, que podem ser bi raciais ou
assegurar as conquistas arduamente alcançadas pelos multiculturais;
trabalhadores, cotidianamente ameaçadas e prejudicadas em 5) casais;
prol da lógica do “lucro a qualquer custo”. Ou seja, não 6) famílias mono parentais, chefiadas por pai ou mãe;
significam, necessariamente, elaborações pouco substanciais e 7) casais homossexuais com ou sem crianças;
que desvirtuam e/ou distorcem o pensamento crítico à ordem 8) famílias reconstituídas depois do divórcio;
vigente, como, por exemplo, os entendimentos que se 9) várias pessoas vivendo juntas, sem laços legais, mas
inscrevem em uma lógica evolucionista ou que não captam a com forte compromisso mútuo” Kaslow (2001: 37).

Conhecimentos Específicos 64
APOSTILAS OPÇÃO

Tal diversidade obriga a se mudar o foco da estrutura da afetam a dinâmica familiar como um todo e, de forma
família nuclear, como modelo de organização familiar, para a particular, cada família conforme sua composição, histórica e
consideração das novas questões referentes à convivência pertencimento social.
entre as pessoas na família, sua relação com a comunidade Os modos de vida nas famílias contemporâneas vêm se
mais próxima e com a sociedade mais ampla. transformando, num tempo histórico e social, criando novas
As mudanças na composição familiar, sua visibilidade e o articulações de gênero e gerações, elaborando novos códigos
aceite da sociedade (como, por exemplo, a legalização da união e, ao mesmo tempo, mantendo um certo substrato básico de
entre homossexuais) exigem que se leve em conta o reflexo gerações anteriores, como lembra Motta (1998). A condição de
daquelas na sociedade mais ampla, nas formas de se viver em pobreza crescente acarreta a utilização de novas estratégias
família e nas relações interpessoais. O mesmo é válido para as para lidar com a mesma, que são, por sua vez, “atravessadas
famílias nucleares, que também têm de assimilar o impacto por fatores como as relações de gênero e geração que [...]
dessas transformações. Para compreendê-las e desenvolver modificam os referenciais de sociabilidade atualmente
projetos de atenção à família, o ponto de partida é o olhar para presentes entre as populações pobres urbanas” (Guimarães,
esse agrupamento humano como um núcleo em tomo do qual 1998: 97). Há, portanto, reflexos no modo de ser com o outro,
as pessoas se unem, primordialmente, por razões afetivas, na expressão da solicitude, quando a família é submetida a
dentro de um projeto de vida em comum, em que condições tão adversas que, longe de constituí-la em um
compartilham um cotidiano, e, no decorrer das trocas núcleo de satisfação das necessidades básicas do indivíduo,
intersubjetivas, transmitem tradições, planejam seu futuro, mal possibilitam que ela atue como um fator de proteção
acolhem-se, atendem os idosos, formam crianças e contra a indigência e a miséria (Guimarães, 1998).
adolescentes. A questão da violência doméstica não pode estar separada
As trocas afetivas na família imprimem marcas que as da do alcoolismo e consumo de drogas, que têm efeitos
pessoas carregam a vida toda, definindo direções no modo de devastadores nas famílias e que não podem ser analisados fora
ser com os outros afetivamente e no modo de agir com as de um quadro de referência da sociedade mais ampla.
pessoas. Esse ser com os outros, aprendido com as pessoas Igualmente a escalada do crime e violência tem espalhado o
significativas, prolonga-se por muitos anos e frequentemente terror e é responsável pela maior parte das mortes entre
projeta-se nas famílias que se formam posteriormente. jovens nas camadas empobrecidas da população, tanto no
Numa família, a linguagem, a metalinguagem, o modo de Brasil como nos EUA (McCarthy, 1994). O tráfico de drogas e a
compreensão das experiências vividas e as disposições delinquência não aterrorizam somente os bairros das
afetivas predominantes orientam um ser com o outro que irá periferias pobres, mas também os de classe média e alta, estas
se configurar de diferentes maneiras. Esse modo de proceder também envolvidas no tráfico, como consumidores. As
entre os membros de uma família refere-se, numa perspectiva quadrilhas controlam a vida de bairros inteiros e oferecem o
existencial, ao cuidado ou solicitude, que pode ser vivida tanto “trabalho” que a sociedade nega aos jovens. Em resposta a essa
de modo deficiente como autêntico. ameaça, os pais, em especial os das camadas empobrecidas da
Por autêntica entende-se aquela solicitude com o outro em população, assumem práticas educativas cada vez mais
que se: punitivas e violentas, na crença de que evitarão que seus filhos
“antecipa a ele em sua existencial possibilidade de ser. Um sejam cooptados pelo tráfico de drogas (Szymanski, 2002).
modo em que não se protege o outro, mas que, antes disso, se Essa relação com o contexto mais amplo também se dá com
faz com que ele se volte para si mesmo autenticamente, como a intervenção junto às mesmas, que deve ser pensada sem a
pela primeira vez. Este modo de solicitude pertence pretensão fantasiosa de ser agente de mudanças sociais
essencialmente ao autêntico ‘cuidar’ — isto é, para com a amplas, mas sem cair no imobilismo decorrente do
existência do outro e não para ‘o que’ ele cuida; ele salva o pensamento que algo só poderá ser feito pelas famílias após a
outro para torná-lo transparente a si mesmo em seu cuidar e transformação da sociedade. É possível, e já se inicia em nosso
para torna-lo livre para si “(Heidegger, 1981: 41). meio, a elaboração de programas de atenção às famílias
envolvendo várias instituições que as atendam direta ou
Pais e mães compreendem sua tarefa socializadora das indiretamente, aliados a programas sociais de cunho mais
mais diferentes maneiras e assumem essa incumbência amplo. Em todas as camadas sociais, a família não tem mais o
conforme os modos de ser que foram desenvolvendo ao longo monopólio da socialização da criança, em especial, graças à
de suas vidas. Aqueles não ocorrem em um vazio, mas situados entrada da mulher no mercado de trabalho, o que
social e historicamente. Uma família de uma pequena responsabiliza a sociedade a buscai novos caminhos de
comunidade rural, com padrões de conduta moral atenção à família.
estabelecidos a partir de uma ideologia incorporada ao longo Um aspecto fundamental a ser lembrado refere-se à forma
de anos de submissão, vive as relações intrafamiliares de de envolvimento das famílias nesses programas, que não deve
modo muito diferente de uma família paulista de classe média, ser passiva, no mero recebimento dos benefícios, mas na
adaptada aos padrões de individualismo, competitividade da forma participante da responsabilidade partilhada. Devem ser
vida social e no isolamento da família nuclear. respeitados os valores e culturas dos participantes, sem,
Nesse quadro geral, entretanto, não há uma uniformidade, entretanto, deixar de disponibilizar lhes informações advindas
pois as famílias buscam uma adequação entre os valores de pesquisas nas áreas sociais, de saúde e educação que os
herdados, os partilhados com os pares e os novos valores, que ajudem na tarefa de socialização que lhes cabe.
vêm de seu contato com outras informações e com outros
segmentos da sociedade. Um exemplo dessa adequação, ao foi PERSPECTIVAS JURÍDICAS DA FAMÍLIA:
o depoimento de uma mãe que dizia fingir bater no filho, para O NOVO CÓDIGO CIVIL E A VIOLÊNCIA FAMILIAR
não ouvir as admoestações da vizinhança de que não era Silvia Pimentel
severa na educação de seus filhos. O cuidado com o filho era
permeado pela “satisfação” que tinha que dar à vizinhança. O Novo Código Civil inova na medida em que elimina
Ao se pensar na família hoje, deve-se considerar as normas discriminatórias de gênero, como, por exemplo, as
mudanças que ocorrem em nossa sociedade, como estão se referentes à chefia masculina da sociedade conjugal; à
construindo as novas relações humanas e de que forma as preponderância paterna no pátrio-poder e à do marido na
pessoas estão cuidando de suas vidas familiares. Como foi administração dos bens do casal, inclusive dos particulares da
apontado, as trocas intersubjetivas na família não podem ser mulher; à anulação do casamento pelo homem, caso ele
vistas isoladamente. As mudanças que ocorrem no mundo desconheça o fato de já ter sido a mulher deflorada, e à

Conhecimentos Específicos 65
APOSTILAS OPÇÃO

deserdação de filha desonesta que viva na casa paterna. Inova uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de
também ao introduzir expressamente conceitos como o de família.
direção compartilhada, em vez de chefia masculina da
sociedade conjugal; como o de poder familiar compartilhado, Do reconhecimento dos filhos ilegítimos -» do
no lugar da prevalência paterna no pátrio-poder; substitui o reconhecimento dos filhos
termo “homem”, quando usado genericamente para referir ao O NCC/02(03), art. 1.607, estabelece que o filho havido
ser humano, pela palavra “pessoa”; permite ao marido adotar fora do casamento pode ser reconhecido pelos pais conjunta
o sobrenome da mulher; e estabelece que a guarda dos filhos ou separadamente.
passa a ser do cônjuge com melhores condições de exerce-la, e Em consonância com o ECA/90, avança no sentido do
em alguns outros aspectos. respeito ao ser humano, rejeitando o tratamento de ilegítimo
Contudo, o Novo Código Civil ainda contempla alguns presente no art. 355 do CC/ 16. Outro avanço significativo do
conceitos e valores anacrônicos. A título de exemplo, NCC/02(03) diz respeito à guarda do filho reconhecido. Em
ressaltamos no artigo 1.573, VI, o fato de que “conduta seu art. 1.612 estabelece que este ficará sob guarda do genitor
desonrosa” possa ensejar ação de separação por parte de que o reconheceu, e se ambos os reconheceram e não houver
qualquer um dos cônjuges. Sob a aparência de uma acordo, sob a de quem melhor atender aos interesses do
neutralidade ideológica quanto ao gênero, a expressão menor.
“conduta desonrosa” apresenta¬-se como passível de ser Vale reproduzir o art. 360 do CC/16, pelo qual o filho
atribuída a ambos os sexos. Contudo, tradicionalmente, reconhecido, enquanto menor ficará sobre o poder do
expressões alusivas à honra e à honestidade, em nossa progenitor que o reconheceu e se ambos o reconheceram sob
legislação civil, estão carregadas de conotações pejorativas e o poder do pai.
discriminatórias quanto a sexualidade das mulheres.
Até 1962, as mulheres casadas eram consideradas Violência familiar e direitos
relativamente incapazes e colocadas juridicamente ao lado dos Estudos e pesquisas revelam que a violência contra a
silvícolas, pródigos e menores púberes. Corrigindo tal situação mulher ocorre sobretudo no espaço doméstico familiar. E,
e atendendo os reclamos da dinâmica social e à doutrina como são assustadores os números das agressões sofridas por
dominante, o Estatuto da Mulher Casada (Lei n° 4.121 de mulheres e meninas no próprio lar — local onde deveriam
29.08.62) revogou esta disposição. No entanto, esta revogação sentir-se mais seguras —, apresentarei algumas considerações
não significa uma equiparação de direitos. sobre os aspectos jurídicos desta problemática.
Com ligeira reformulação, o Código Civil ainda vigente, de O princípio constitucional da igualdade entre homens e
1916, mantém, em seu art. 233, o texto original que atribuiu ao mulheres está contemplado também no âmbito das relações
marido a chefia da sociedade conjugal, acrescentando, apenas domésticas e intrafamiliares, trazendo consequências no
que ele exerce esta chefia com a colaboração da mulher, no plano da legislação infraconstitucional, em especial no campo
interesse comum do casal e dos filhos. do direito de família e penal. O art. 226, § 5o da Constitui Vão
Como já mencionado, a discriminação de gênero existente estabelece que “os direitos e deveres referentes à sociedade
no CC/16 ocorre, primordialmente em relação à mulher conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
casada. A superioridade masculina, na relação do casamento, Em relação ao tema da violência, a principal conquista jurídica
expressa neste artigo, é o paradigma que tem justificado a das mulheres no Brasil está consignada no artigo 226, § 8 o, da
grande parte das discriminações existentes na legislação civil Constituição, o qual dispõe: “O Estado assegurará a assistência
brasileira. à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando
Não é difícil descobrir na figura da chefia masculina da mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas
sociedade conjugal, reminiscências do Direito Romano e das relações”.
velhas ordenações do reino.
Pelo Novo Código Civil, art. 1.565, o homem e a mulher, A lenta evolução ocorrida em nosso país teve como marco
pelo casamento assumem mutuamente a condição de a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu normas de
consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da igualdade material entre homens e mulheres, inclusive no
família. Pelo art. 1.567, a direção da sociedade conjugal cabe casamento. Entretanto, o princípio constitucional que deveria
ao marido e a mulher que a exercerão sempre no interesse do orientar todo o ordenamento jurídico brasileiro não foi
casal e dos filhos. imediatamente incorporado à legislação civil
infraconstitucional.
União estável O Novo Código Civil ainda guarda alguns resquícios da
Anteriormente à CF/88, o que havia no direito brasileiro concepção patriarcal que informava o CC/16, evidenciando a
em relação à companheira era uma posição da mais absoluta ausência de uma plena compreensão do princípio de igualdade
discriminação. Em termos jurisprudenciais, se algum direito previsto na Carta Magna. A adequada interpretação desse
lhe era conferido, isto ocorria a partir de uma figura do direito princípio conceitua, por exemplo, a violência contra a mulher,
comercial, “sociedade de fato” ou a partir de construções verificada especialmente nas relações familiares como uma
jurídicas francamente constrangedoras, como, por exemplo, a expressão e uma consequência da discriminação.
da concessão de alimentos por serviços prestados! A real compreensão e incorporação social e normativa da
Em termos legislativos, o CC/16, o que há é uma expressa concepção dos direitos das mulheres como direitos humanos
proibição a seus direitos. O art. 1.719 proíbe o testador casado implica, necessariamente, mudanças de valores e práticas
de nomear sua concubina como herdeira ou legatária. culturais. Envolve, ainda, a real compreensão e incorporação
Mais do que relevante foi a aprovação de duas leis, do novo paradigma do justiça social e equidade na ordem
regulamentando o art. 226, § 3o, da CF/88, que reconhece a político-jurídica e socioeconômica interna, para que, no plano
união estável entre homem e mulher como entidade familiar. legal, das políticas públicas e da aplicabilidade da lei, possam
A Lei n° 8.971, de 29.12.94, que regula o direito dos ser implementados, de forma adequada, os princípios de
companheiros a alimentos e a sucessão e a Lei n° 9.278, de igualdade e não-discriminação proclamados na Constituição
10.5.96, que lhe é mais abrangente ao regulamentar o Federal de 1988, na convenção pela eliminação de todas as
dispositivo constitucional. Dentre alguns pontos desta última formas de discriminação contra a mulher, bem como nos
lei, destaco os seguintes: reconhece como entidade familiar a vários instrumentos jurídicos internacionais ratificados pelo
convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e Brasil.

Conhecimentos Específicos 66
APOSTILAS OPÇÃO

FAMÍLIAS MONOPARENTAIS: INDAGAÇÕES O percentual de crianças de 0 a 6 anos, que estão se


Maria Amalia Faller Vitale desenvolvendo em domicílios com responsáveis mulheres —
que ganham até dois salários — é de 56,6% mulheres.
Inúmeros são os desafios que permeiam a vida da família É importante não esquecer que grande parte dessas
contemporânea. Podemos pensar em temáticas como mulheres chefes de família estão em situação monoparental.
violência intra e extrafamiliar, desemprego, pobreza, drogas e Assim, as relações entre mulheres e pobreza constituem as
tantas outras situações que atingem dolorosamente a família e raízes de efeitos perversos sobre a vida familiar.
desafiam sua capacidade para resistir e encontrar saídas. Por A dimensão da pobreza se aprofunda quando vinculamos
outro lado, as mudanças sociais construídas, em especiais, ao monoparentalidade, sexo e etnia.
longo da segunda metade do último século, têm redefinido Famílias monoparentais femininas e pobreza acabam, de
progressivamente os laços familiares. O impacto desses um lado, por construir outro estigma, o de que as mulheres são
desafios e dessas mudanças sobre o cotidiano das relações menos “capazes” para cuidar de suas famílias ou para
familiares acaba sendo absorvido pelo profissional que administrá-las sem um homem. De outro, é apontado que as
trabalha com famílias, na medida em que também os vive, mulheres, hoje, ganharam maior independência e, portanto,
resultando dessa proximidade o desenrolar de um processo podem assumir suas famílias. No entanto, enquanto houver a
peculiar e, por vezes, perturbador. associação maciça entre monoparentalidade e pobreza — e os
A família, como aponta a maior parte daqueles que a dados do Censo 2000 confirmam, em especial quando
pesquisam ou com ela trabalham, é uma realidade com a qual distribuída por regiões do país — acaba por fortalecer-se
temos bastante intimidade, pois afinal todos temos uma muito mais a adjetivação dessas famílias como vulneráveis ou
família, ou, pelo menos, um “modelo relacional (familiar) de risco do que como potencialmente autônomas.
internalizado”, como já assinalava Laing (1972). Essa Os estigmas nos impedem, na maioria das vezes, de
intimidade do conceito de família pode causar confusão entre perceber as possibilidades e os recursos que famílias
a família com a qual trabalhamos e nossos próprios modelos monoparentais buscam construir.
de relação familiar. Acercamo-nos da família do outro a partir Tratar das famílias monoparentais é, portanto, abordar
de nossas próprias referências, de nossa história singular. O seus vínculos, suas relações com uma rede familiar que não
resultado disso é que tendemos a trabalhar com as famílias coincide necessariamente com as fronteiras da casa.
desconhecendo as diferenças ou, pior, em muitas situações As crianças destas famílias podem ser criadas entre dois
transformamos essas diferenças em desigualdade ou lares, elas vão e voltam entre o lar de origem e o lar de
incompletude. acolhimento, não há uma ruptura dos laços, mas sim uma
Assim, tratar de temáticas da família contemporânea é dualidade de vínculo e de estada; outras crianças, no entanto,
incursionar por complexas questões e por realidades ficam por um longo tempo em lares de parentes; outras são
reconhecidamente em transformação. Dentre as mudanças doadas para famílias substitutas. Assim, a circulação de
que afetam os laços familiares, pretendo destacar a crianças pode parecer tanto em momentos em que a mãe está
configuração das famílias chamadas monoparentais, alvo de só com os filhos ou quando encontra um companheiro que não
atenção de profissionais da área da saúde, de serviço social, da quer os filhos da antiga relação. Quando isso acontece, a mãe
psicologia, entre outros. Os lares monoparentais são aqueles espera, muitas vezes, com o passar do tempo, trazer de volta.
em que vivem um único progenitor com os filhos que não são Esta circulação, como já foi dito, tem por base tanto aspectos
ainda adultos. Atender essas famílias no processo de terapia vinculados à sobrevivência quanto aspectos culturais no que
familiar, seja dos segmentos genericamente chamados de se refere as trocas recíprocas na redes sociais (Attias-Donfut e
médios — em clínica particular —, seja dos segmentos pobres Lapierre, 1997, Sarti, Ponseca, 1987).
— em uma organização não-governamental —, foi se tornando O modelo contemporâneo ocidental tem valorizado a
cada vez mais frequente. Do lugar de terapeuta familiar tenho família nuclear residindo de forma independente com relação
procurado entender as relações, os sentimentos e a lógica às famílias de origem. No entanto, no caso das famílias
dessas famílias nos contextos sociais em que vivem. Para tal, monoparentais, as fronteiras entre estes grupos nem sempre
busco, aqui, melhor compreender algumas das implicações da são nítidas. Estas fronteiras parecem se redesenhar.
monoparentalidade e pontuar algumas indagações básicas, É bom lembrar que o sistema de trocas familiares é
pois nos deparamos com uma realidade instigante. marcado por laços de solidariedade, mas também pelo
A expressão “famílias monoparentais” foi utilizada, conflito. Assim, nessa teia de relações enquanto cada um “dá o
segundo Nadine Le faucher, na França, desde a metade dos que tem” para enfrentar os percalços do cotidiano, outros
anos setenta, para designar as unidades domésticas em que as podem se sentir prejudicados por este mesmo sistema. As
pessoas vivem sem cônjuge, com um ou vários filhos com redes de solidariedade não são uma instância linear esvaziada
menos de 25 anos e solteiros. de contradições.
No Brasil, é só no Censo Demográfico de 1980 que a A monoparentalidade tem sido problematizada até aqui no
categoria chefe passou a designar a pessoa (homem ou quadro das relações de redes familiares. Convém enfatizar que
mulher) responsável pelo domicílio ou pela família. (Barroso e a rede social e as trocas intergeracionais, ou seja, as
Bruschini, 1981). solidariedades familiares, ajudam a existência destas famílias.
Famílias chefiadas por mulheres podem, à primeira vista, Mas estas devem ser refletidas na relação com o encolhimento
se confundir com famílias monoparentais femininas. No da responsabilidade do Estado e com a ausência de políticas
entanto, as famílias chefiadas das por mulheres não são públicas consistentes ante questões sociais que se expressam
necessariamente monoparentais no sentido atribuído por no âmbito familiar. Assim, as mudanças dos laços familiares
Lefaucheur (1997). necessitam serem focalizadas na relação com as mudanças da
A noção de monoparentalidade tem ficado associada não esfera pública, o que não significa simplificar as dinâmicas
só a sexo, mas também à pobreza. Os dados de nossa sociedade desta relação.
fortalecem essa correlação. O Censo 2000 aponta que a média A proteção oferecida pelas pessoas, grupos envolvidos com
da renda dos homens chefes de família é de R$ 827,00, o cotidiano destas famílias, em especial parentes e amigos,
enquanto a das mulheres é R$ 591,00. Mas para 5,5 milhões de tem, sem dúvidas, limitações. E quanto mais os circuitos de
mulheres chefes de família o rendimento mensal não apoio são frágeis, mais exigências são postas para estas
ultrapassa R$ 276,00. famílias.
A intenção de abordar as famílias monoparentais é
seguramente pon¬tuar inquietações e indagações que foram

Conhecimentos Específicos 67
APOSTILAS OPÇÃO

sendo alinhavadas no processo de estudo e na proximidade — EM NOME DOS FILHOS, A FORMAÇÃO DE REDES DE
pela construção do vínculo terapêutico — com estes grupos SOLIDARIEDADE:
familiares. ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DO CASO ACARI
A monoparentalidade é um estado em aberto. Por esta Rita de Cássia Santos Freitas
razão deve ser considerada na sequência, em suas
permanências e recomposições. Assim, pensar E sempre difícil falar, problematizar sobre o tema família;
monoparentalidade é pensar famílias monoparentais e não um afinal, existe algo mais presente em nossas vidas? A família
único modelo: as famílias monoparentais são protagonistas de aparece, na maioria das vezes, como algo tão próximo, tão
histórias peculiares marcadas pelos diversos contextos “natural” que é bastante difícil lembrar sua dimensão social e
sociais. Isso nos mostra que não é possível analisar as famílias histórica e aceitarmos o fato de que o mundo nem sempre foi
monoparentais como um universo específico ou um grupo esse que conhecemos, nem todas as famílias são iguais às
homogêneo. nossas e que mesmo esse mundo (onde há muito deixamos de
As famílias monoparentais podem ter uma situação de vida nos sentir seguros) está em constante transformação.
mais frágil do que as famílias consideradas clássicas. Os efeitos A história da sociedade em que vivemos está repleta de
desta situação, no entanto, tendem a ser minimizados para os modelos de famílias, que correspondem a diferentes papéis
filhos segundo a condição sócio econômica e cultural do chefe para homens e mulheres. Dentro desses papéis, aprendemos a
de família, segundo o vínculo mantido com o pai ou a mãe não pensar e a nos reconhecer. A divisão sexual dos papéis é uma
residente, de acordo com os laços sociais que a família realidade que vem sendo questionada pelas mulheres (mas
conserva (Singy, 1996), e na medida da eficácia das políticas também por homens) há alguns anos. A família
familiares. contemporânea, que a literatura especializada chama de
É bom destacar que as famílias monoparentais masculinas moderna, intimista, nuclear, é uma realidade que vem
têm tido pouca visibilidade e esta lacuna obscurece, em parte, constantemente sendo questionada em nosso dia-a-dia, o que,
os pontos até aqui levantados. Sabemos pouco sobre estas por implicação, tem demandado a revisão desses modelos.
famílias e seu estudo permitiria aprofundar a vinculação entre Na construção desses papéis, historicamente, coube às
monoparentalidade e gênero, no sentido de ampliar a mulheres o espaço privado, o mundo da casa. Ser mãe foi o
discussão sobre igualdade sexual e vida familiar. Ao não se principal papel para as mulheres nos discursos que a igreja e a
discutir monoparentalidade masculina, parece se cristalizar a medicina social estabeleceram. Esse papel foi enfatizado,
ideia de que os homens são incapazes como cuidadores da dotando a maternidade de uma aura divina — é dessa maneira
família. que a mulher, de um lado, se recupera do pecado de Eva; e, de
outro, cumpre o que seria sua função “natural”, uma vez que
O TRABALHO DA MULHER, RELAÇÕES FAMILIARES E seu corpo é construído visando a maternidade. É por meio dos
QUALIDADE DE VIDA órgãos genitais que as mulheres se diferenciam dos homens
para a medicina (e, depois, também para a psicanalise). Uma
Virginia Paes Coelho das grandes transformações presentes na constituição desse
ideal de família foi o sentimento da infância. Desde o século
Este texto propõem-se a analisar alguns fatores que estão XVIII, a criança passa a ocupar um lugar central no núcleo
repercutindo na qualidade de vida das trabalhadoras das áreas familiar. Em torno dos filhos passa a girar a família, e à mulher
urbanas, com reflexos nas relações familiares. Em meio a coube a tarefa de materná-lo, educá-lo, e cuidar dele para que
perdas e ganhos, nem sempre tão visíveis, que emergem da se tomasse um adulto disciplinado e ordeiro.
maior inclusão da mulher no mercado de trabalho hoje, novas
formas de viver em família vem sendo delineadas, influindo FAMÍLIA E PROTEÇÃO SOCIAL:
nas identidades dos membros do grupo e modificando QUESTÕES ATUAIS E LIMITES DA SOLIDARIEDADE
comportamentos. FAMILIAR
Esta percepção está sedimentada na pesquisa que a autora
realizou sobre mudanças nos padrões de conduta feminino nas Dalva Azevedo Gueiros
últimas décadas, tendo a família como principal agente de
socialização. No estudo, ela trabalhou com histórias familiares Neste texto a autora pretende apresentar uma
de duas gerações, buscando apreender como mulheres, contribuição para pensarmos a família ante suas
pertencentes aos segmentos médios e nascidas na década de configurações atuais e as responsabilidades que lhes tem sido
1960, construíam o presente e projetavam o futuro. As atribuídas como alternativa de proteção social.
histórias das famílias de origem e de constituição das Temos observado que, à medida que o Estado restringe sua
narradoras foram coletadas na perspectiva de análise participação na “solução” de questões de deter minados
comparativa, entre passado e presente, buscando informações segmentos — como, por exemplo, crianças, adolescentes,
sobre possibilidades futuras de mudanças na educação idosos, portadores de deficiências e pessoas com problemas
feminina e masculina. crônicos de saúde — a família tem sido chamada a preencher
A pesquisa utilizou como metodologia a História Oral, esta lacuna, sem receber dos poderes públicos a devida
trabalhando com memórias femininas que, no processo de assistência par tanto.
rememorarem suas experiências vividas em família e por meio No nosso cotidiano profissional, frequentemente
de outros agentes socializadores, revelaram aspectos deparamos com situações que nos levam imediatamente a
importantes na construção de subjetividades. pensar nos recursos disponibilizados pelas políticas sociais em
Duas questões nortearam este enfoque: de um lado, prol da proteção social da população em situações ou
conhecer como os fatos políticos, econômicos e culturais momentos de maior vulnerabilidade. Recentemente,
influíram na organização de suas famílias de origem e como realizando o estudo social de um caso de três crianças, que
estas os absorveram e reproduziram na socialização dos filhos. haviam sido abrigadas, verificamos que a família dessas
De outro, interessava saber como mulheres que viveram num crianças era composta pelo avô materno, quatro filhas deste e
período de autoritarismo político, com posterior nove netos (filhos das quatro filhas que com ele viviam), todos
enfrentamento desse contexto pela organização da sociedade residentes numa habitação pequena e em precárias condições;
civil, incorporaram as transformações que ocorreram na nesta família, os adultos que trabalham o fazem na condição de
sociedade brasileira. prestadores de serviços eventuais, sem vínculo empregatício
(serviços domésticos, coleta e venda de papelão). Nenhuma

Conhecimentos Específicos 68
APOSTILAS OPÇÃO

das crianças mantinha vínculo efetivo com seu genitor e A FAMÍLIA NA AMAZÔNIA: DESAFIOS PARA A
algumas delas nem tinham o nome dele em sua certidão de ASSISTÊNCIA SOCIAL
nascimento. Aquelas cuja figura materna permanecia na casa
gozavam do direito à convivência familiar. Entretanto, as três Carlos Alberto Batista Maciel
crianças cuja genitora havia sido recentemente presa foram
abrigadas por solicitação do avô, que alegou ao Conselho O propósito do autor é sugerir alguns elementos para a
Tutelar falta de condições para cuidar delas, graças à sua difícil discussão da família na contemporaneidade, enfocando, em
condição socioeconômica, sua idade avançada (56 anos) e a particular, a realidade da Região Norte.
necessidade de trabalhar, pois não contava com nenhuma Enquanto Amazônia legal, este território geográfico
proteção social (benefício previdenciário ou outros). Este nos compreende os estados do Acre, Roraima, Rondônia, Amapá,
parece ser um caso que ilustra bem as decorrências da Tocantins, Pará, Amazona e, parcialmente, os estados do
desproteção social em que vive a população brasileira, Maranhão e Mato Grosso.
especialmente aquela mais pauperizada. A Amazônia representa mais de 50% do território
E importante termos clareza das questões mais relevantes nacional, possui aproximadamente 11 milhões de habitantes,
vivenciadas pelas famílias com as quais trabalhamos. 20% da água doce do plane tia possui recursos e riquezas
Tomando como referência a situação ilustrada anteriormente, energéticas e minerais enormes, uma flora e fauna rica e
observamos que alguns aspectos aí presentes, como: ausência exuberante, e 62,4% da população vive nas cidades e 37,6% no
de qualquer suporte por parte da esfera pública para interior. No entanto, é uma região pobre apesar da riqueza
enfrentamento de situações limites (neste caso a prisão da expressa em suas potencialidades econômicas (Castro, 1994),
genitora de três das crianças); a ausência do pai, recaindo pois sua riqueza historicamente não foi destinada para si, mas
sobre a mãe toda a responsabilidade sobre sua prole; e o para os outros.
agrupamento de vários “núcleos” familiares num só, com Por esse motivo, a Amazônia não pode ser vista do ponto
condições mínimas de sobrevivência, são recorrentes nas de vista natural, mas do ponto de vista histórico, como uma
família em situações de maior vulnerabilidade. confluência das ações objetivas do homem social sobre ela nos
Este panorama, comum à prática dos assistentes sociais, diversos momentos de sua construção. Pensar a Amazônia de
nos parece retratar a ausência de políticas de proteção social à forma natural é idealizar uma região como um locus sagrado,
população das sociais de baixa renda, em consequência do tanto para o bem quanto para o mal, obliterando assim as
condições de conhecê-la em suas potencialidades e limitações.
retraimento do Estado neste campo.
Isto impede que seja realizada na região uma ação planejada
Tendo presente a responsabilidade da esfera pública no que tenha a substância da realidade concreta em sua
que se refere a políticas sociais de caráter universal, que fundamentação e da legitimidade social daqueles que a
efetivamente respondam às demandas socialmente colocadas, constroem.
nosso intuito é discutir questões relativas à família, pois, como Ao refletirmos sobre a família na Amazônia, deparamos
aponta Yazbek, esta tem sido assumida como uma das com alguns problemas. O principal deles é que não possuímos
alternativas para o enfrentamento de determinadas dados estatísticos sobre a região que permitam mapear a
multiplicidade de informações a respeito das famílias
expressões da questão social, sendo, então, inevitável que no
amazônicas.
nosso cotidiano profissional deparemos com difíceis situações Para tanto, a assistência social, enquanto política pública,
nas quais contamos somente com o suporte familiar para necessita amealhar mais informações sobre as famílias na
responder a questões relacionadas à infância, à adolescência, região amazônica, com o objetivo de realizar um ação concreta
a portadores de deficiências ou de doenças crônicas. que atenda às reais expectativas destas famílias, e não os
Entretanto, embora a família esteja sendo assumida como uma interesses clientelistas e paternalistas ainda fortemente
das importantes alternativas á redução do Estado em suas presentes na região.
Assim constituída, a assistência social remeteria à
intervenções no campo social e tomada como parceira nas
construção de propostas substanciadas no conhecimento da
parcas políticas sociais existentes, o Serviço Social, no realidade das famílias amazônicas, para que estas fossem
cotidiano de sua prática profissional, parece estar ainda traduzidas em respostas concretas e objetivas frente às
dedicando pouco investimento no intuito de conhecê-la, necessidades reais desse segmento populacional, e não em
mesmo diante das inúmeras transformações que nela vêm se necessidades fictícias e idealizadas pelas práticas e políticas
processando na atualidade. tradicionais na região.
Conceber a família em suas múltiplas configurações e
OS SABERES CONSTRUÍDOS SOBRE A FAMÍLIA NA
formas de organização, apreendendo suas particularidades ÁREA DA SAÚDE MENTAL
como pertencentes a diferentes camadas sociais, parece-nos
um desafio importante para os profissionais de Serviço Social Lucia Cristina dos Santos Rosa
e áreas afins.
A família, ao longo da história moderna, foi-se O objetivo deste texto é realizar um balanço histórico da
caracterizando como um espaço de inserção e apoio para o produção teórica acerca da relação da família com o portador
de transtorno mental (PTM), destacando as principais
indivíduo, embora não se negue também a existência nela da
vertentes no interior dos saberes da área da saúde mental,
reprodução da desigualdade e da violência. Além disso, nas excetuando o campo das terapias familiares, pela sua
últimas décadas, a sociabilidade familiar parece estar sendo multiplicidade e pelos limites deste artigo.
ainda mais valorizada, talvez porque o trabalho — assumido No plano teórico inicialmente, é o alienismo que constrói a
historicamente como o principal representante de integração inteligibilidade da relação do portador de transtorno mental
e de acesso à cidadania, apesar de sua dimensão de exploração com sua família, a partir da sociedade moderna/burguesa. No
— está deixando de fazer parte da vida de muitos indivíduos, interior desta perspectiva, dois entendimentos polarizadores
predominam: o da família ameaçada pela eclosão da
especialmente na condição de emprego, em decorrência de
enfermidade, portanto, sofrendo suas consequências ou
políticas neoliberais, adotadas no Brasil a partir do final da causadora da emergência do transtorno mental, assim
década de 1980 e intensificadas na década de 1990. culpabilizada por sua etiologia. O segundo entendimento

Conhecimentos Específicos 69
APOSTILAS OPÇÃO

prevalece historicamente na maioria das abordagens teóricas A tarefa explícita é o motivo da própria constituição do
da área da saúde mental. Nos anos 1970, tal tendência diminui, grupo e, junto a esta, a tarefa implícita é elaborar as ansiedades
sem ser eliminada. A partir dos avanços teóricos da leitura básicas (paranoides de ataque e depressivas de perda) que
feminista e marxista há uma complexificação da compreensão operam como resistência à mudança.
do grupo familiar e de sua dinâmica. Contemporaneamente, a O grupo passa por momentos de pré-tarefa, tarefa e
inclusão do grupo familiar nos projetos terapêuticos dos projeto. A pré- tarefa é um momento de confusão, quando os
serviços de saúde mental; a assunção de sua condição de integrantes do grupo estão centrados em si mesmos, quando
parceira e co-responsável dos serviços e a exigência de evitam trabalhar a tarefa, como, por exemplo, discutir a
constituição de uma nova pedagogia institucional em sua separação dos pais. Nesse momento, estão interferindo as
abordagem atravessam a construção de uma nova relação ansiedades que funcionam como obstáculo, os medos de perda
entre o louco e a sociedade. e ataque frente ao desconhecido. É o momento de resistência
A abordagem da família no campo dos saberes em saúde à mudança.
mental, como explicitado, foi determinada pelas condições Ao superar esses medos, o grupo entra na tarefa,
históricas ocidentais e do país e, sobretudo, pela configuração centrando-se na ação. O momento de mudança e de
que ganhou a política de assistência psiquiátrica baseada no transformação é denominado projeto. Deve- se ressaltar que
modelo hospitalocêntrico. A partir dos anos 1980, o processo esses momentos não são estanques nem lineares. Ao contrário,
de redemocratização do país e o movimento da reforma sucedem-se momentos de idas e vindas, resultado de
psiquiátrica também tiveram influência marcante na maior resistências a mudanças.
visibilidade da família na área da saúde mental. É evidente a Uma das conclusões é a de que o trabalho com grupos
presença organizada dos familiares na área da saúde mental, possibilita e contribui para a ampliação do conhecimento da
sobretudo a partir dos anos 1990. realidade atual, em termos da constituição da família, levando
A portaria n° 251/GM, de 31 de janeiro de 2002, que os profissionais e instituições a atuar de acordo com essa
estabelece diretrizes e normas para a assistência hospitalar realidade.
em psiquiatria e reclassifica os hospitais psiquiátricos Por outro lado, a atenção direta junto aos grupos de
constitui mais um dispositivo na mudança das relações entre famílias favorece a expressão de sua vivência cotidiana, em
os serviços de saúde mental e a família à medida que prevê, no termos de sua estrutura, colaborando para que não se sintam
desenvolvimento dos projetos terapêuticos, o preparo para o marginalizadas e deslocadas face à realidade. Ao mesmo
retomo à residência/inserção domiciliar e uma abordagem tempo, é construída com eles uma nova concepção de família
dirigida à família no sentido de garantir orientação sobre o como locus onde existem afetos, solidariedade e
diagnóstico, o programa de tratamento, a alta hospitalar e a responsabilidade.
continuidade do tratamento. A possibilidade de estar em grupo favorece, enfim, a
A família, sobretudo na fase inicial da eclosão do reconstrução de histórias da vida, é o espaço de revivescência
transtorno mental, tem um papel fundamental na construção dos sentimentos e emoções que estavam reprimidos e
de uma nova trajetória para o seu ente enfermo, mas seus possibilita ressignificar acontecimentos e situações. As
recursos emocionais, temporal e econômico têm de ser bem famílias no grupo podem assim reencontrar e recriar, por
direcionados pelos trabalhadores e serviços de saúde mental. meios dos projetos, uma nova história.

FAMÍLIAS: UMA EXPERIÊNCIA EM GRUPO


Rosamélia Ferreira Guimarães 10. Relações de Gênero e
Intergeracionais;
Este artigo trata de uma análise sobre abordagem grupai e
sua operacionalização com famílias pobres, a partir de uma
experiência de supervisão de equipe no PRMSA — Programa BIBLIOGRAFIA
de Renda Mínima no município de Santo André (SP).
Nascemos, crescemos e nessa vivência somos partícipes da 15. IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na
vida em grupo, seja em família, na escola, entre amigos, no Contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São
trabalho etc. Todavia, o fato de participarmos no nosso Paulo: Cortez Editora, 1999;
cotidiano de vivências grupais, durante toda a nossa vida, não
significa que temos os instrumentos necessários para Este livro, O Serviço Social a contemporaneidade: trabalho
desenvolvermos trabalhos com grupos. Muito pelo contrário, formação profissional reafirma em vigor o espaço intelectual
será fundamentalmente a partir dos estudos na área da de vanguarda ocupado pela autora, incorporando temáticas e
psicologia e da sociologia que se levantarão os instrumentos questões a agenda profissional contemporânea - constituintes
teóricos e analíticos que tomarão os grupos como objeto de de dois nós emblemáticos fundamentais: os impactos, sobre o
estudo, de intervenção e como mediação terapêutica. Serviço Social, as transformações societárias em curso e as
Paia Zimerman (1997: 75-6), a classificação geral dos alternativas para a formação de assistentes sociais -Marilda as
grupos, fundamentada nos critérios das suas finalidades, situa num patamar teórico e analítico inusual, conduzindo o
divide-se em dois grandes ramos operativos e psicoterápicos. seu equacionamento por vias originais e polêmicas.
Segundo o autor, os grupos operativos devem muito a Pichon- O livro vem a público, congrega um conjunto de ensaios
Rivière, que os introduziu e sistematizou. Esses grupos cobrem articulados em torno da análise do Serviço Social na cena
os seguintes campos: ensino-aprendizagem, institucionais, contemporânea, no marco das céleres transformações que
comunitários e terapêuticos. vêm alterando a economia, a política e a cultura na sociedade
Já os grupos psicoterápicos são divididos em: brasileira. Sob a égide do capital financeiro, a nova face da
psicodramático, sistêmicos, cognitivo-comportamental e internacionalização da economia - a globalização -
psicanalítico. redimensiona a divisão internacional do trabalho, em um
Nos grupos de famílias no PRMSA trabalhamos com alguns contexto de crise de larga duração que, desde a década de
referenciais do grupo operativo de Pichon-Riviere. Assim 1970, vem atingindo a expansão capitalista. Na
serão aqui discutidos os principais conceitos utilizados nessa contratendência desses processos, desencadeia-se uma ampla
perspectiva, principalmente: pré-tarefa, tarefa, projeto, reestruturação produtiva - incorporando os avanços da ciência
enquadre, comunicação e aprendizagem. e da tecnologia de ponta - acompanhada de mudanças nas
formas de gestão da força de trabalho. Alia-se uma radical

Conhecimentos Específicos 70
APOSTILAS OPÇÃO

alteração das relações entre o Estado e a sociedade, mais burguês, ao ponto de ser mais burguês que os burgueses
condensada na "Reforma do Estado", conforme protagonistas (capitalistas industriários e companhia), pois,
recomendações de políticas de ajuste das economias os burgueses protagonistas (burguês na definição marxista)
periféricas, preconizadas pelos organismos internacionais. Um almejam o lucro, mas, geram emprego, renda, produzem,
dos resultantes dessas políticas concentracionistas de capital, assumem altos riscos (e muitos perdem), enquanto que o
renda e poder no país tem sido o agravamento da questão Estado só ganha, sempre ganha. Se o Estado quer aumentar ou
social, que tem no desemprego e no subemprego suas mais ampliar sua receita, apenas “determina” isto, portanto, jamais
nítidas expressões. Verifica-se uma precarização do conjunto perde, jamais quebra, possui plenas condições de auto-
das condições de vida de segmentos majoritários da população regulamentação as custas do que e de quem for. O Estado se
brasileira, quadro esse agravado com a retração do Estado em tornou um feroz algoz da sociedade, tributando a tudo e a
suas responsabilidades sociais, justificada em nome da "crise todos pesada e implacavelmente, e oferecendo serviços
fiscal". precaríssimos, violentando a tudo e a todos, prestigiando e
Algumas análises são procedentes, conforme constada na valorizando apenas a sua clientela interna direta, com belos
página 34; “Estado para quem?” O Estado não é exatamente a salários e carreiras, chegando em transformar um concurso
representação do povo que o forma? Dominados? Quem por público – que praticamente só burgueses são aprovados - para
quem? Onde o marco divisor do burguês e do proletário, do uma vaga de emprego em um verdadeiro nepotismo, um quase
capital e do social? Quem é quem? Dicotomizar em meras duas prêmio de loteria para os já “burgueses”, porquanto, já
classes antagônicas e buscar um denominador comum não atingimos patamares de concorrência de mais de um milhão
seria a mesma coisa que procurar o divisor do dia e da noite? de inscritos para menos de mil vagas, e isso não se dá apenas
Dia e noite, aonde? De que ponto na Terra observaríamos “tal pelo desemprego, e sim porque o “servidor público”
fenômeno? Se daria em algum momento, se é que seria atualmente é entre todos, entre todas as classes o mais servido
possível se dar em um momento específico? Onde começa um pelo público - servidor público talvez seja o termo mais
e onde termina o outro? Uma análise macro para compreensão paradoxal da atualidade. Neoliberalismo pode não ser o
dos fatores envolventes faz sentido para uma compreensão melhor caminho, mas, estatização também já tem se mostrado
genérica abstrata, ainda que com o intuito de nortear os não ser. Estado, ao menos no Brasil, tem se parecido muito
aspectos que “influenciam” os sujeitos envolvidos, mas, buscar mais a um império medieval do que a um Estado brasileiro
propostas, resoluções de problemas específicos em cima disso como deveria ser.
seria a mesma coisa que tentar descobrir o dia e a hora exata A reversão conservadora e a regressão neoliberal que
de falecimento de um indivíduo com base na erodiu as bases dos sistemas de proteção social e redirecionou
perspectiva/expectativa de vida de seu grupo social. Desta as intervenções do Estado, na esfera da produção e
forma, análises macros e minuciosas generalistas no tocante às distribuição da riqueza social, trazem graves implicações para
questões sociais, em seus incontáveis aspectos gerados pelas o tecido social em geral e para as relações de trabalho em
circunstâncias e situações individuais me parece ser algo particular, dando à "questão social" novas configurações e
próximo da plenitude da ilógica, ultrapassando os limites da expressões entre as quais destacamos a insegurança e a
alógica, uma vez que a questão social é grandiosamente vulnerabilidade do trabalho e a penalização dos trabalhadores.
variável em seus aspectos, considerando os grupos, suas
regionalidades, suas políticas, suas ideologias e comunidades
locais. Parece-me que passou completamente despercebido
pela autora que o avanço tecnológico jamais poderia ser 11. casamento e separação;
tomado como responsável por alguma mudança de cunho
classifista, dentro de uma sociedade. Seria a mesma coisa que
atribuir à arma de fogo os assassinatos, como se não existisse BIBLIOGRAFIA
o ato decisório do possuidor do dedo que puxa o gatilho,
conjuntamente com todos os demais envolvidos diretos e 16. MALDONADO, Maria Tereza. Casamento, Término e
indiretos na decisão, inclusive nas decisões tomadas pelas Reconstrução. Editora Intregare, 2009.
representações políticas da sociedade, pois, Estado não deve
ser tomado apenas como um ente “extra-terrestre”, quando Nesta obra, Maria Tereza trata do casamento até os
muito à serviço dos capitalistas (ou burgueses, para valorizar problemas enfrentados com o término e tentativa de
Marx, enquanto ainda não instituirmos um novo tipo de igreja reconstrução. Em meio a separação muitos sentimentos são
para suas ideias dogmatizadas). Elucidando, em mais simples despertados, sejam no casal quanto nos filhos, atingindo
e direta análise, o Estado é exatamente aquilo que toda a familiares e amigos.
sociedade em seu conjunto estabelece, seja pela ação de A autora se baseou em um relato de 400 pessoas que foram
instituí-lo, seja pela omissão de permitir sua instituição como entrevistadas para colaboração com a publicação do livro,
tal o é, abrangendo inexoravelmente todas as atitudes onde foram encontrados sentimentos de tristeza, raiva e
fomentórias de sua instituição. mágoa. Durante a permanência conjugal, os sonhos e
Sem dúvida, como dito na página 78, há de chocar o idealizações acabaram sendo perdidos e daí os pontos
individualismo, com vistas ao coletivismo. Mas, negativos começam a ganhar forças, a ponto de perder os mais
corporativismo não seria sinônimo de individualismo, ainda nobres sentimentos de um casal.
que um individualismo grupal, uma vez que desconsidera
todos os demais grupos e classes? Como extinguir um O remédio encontrado é a reconstrução da vida, através de
problema ao mesmo tempo que se cria este exato problema? novos projetos, sonhos e renovação dos laços amorosos.
Como discutir e propor igualdade sobre o trabalho se coloco o Chega-se à separação pelo desgaste que avassala a pessoa,
meu trabalho acima de todas as considerações? mágoas são engolidas e acumuladas e na maioria das vezes, em
A tentativa de valorizar o Estado – falido ou quase falido meio a esse caminho, acaba se transformando em rancor,
para os usuários – e ao mesmo tempo contestar brigas que não acabam nunca e acabam refletindo no(s)
sistematicamente o tal neoliberalismo me parece uma filho(s).
proposta completamente utópica. O neoliberalismo vem
ganhando expansão não porque “magos neoliberalistas” vem O que faz com que muitos casais, ainda que infelizes vivam
hipnotizando a sociedade com suas ideias, e sim porque tem na aparência de um bom casamento é a tentativa de mostrar
sido perceptível o quanto o Estado vem se tornando cada vez

Conhecimentos Específicos 71
APOSTILAS OPÇÃO

para a sociedade que tudo está bem, ainda que na realidade o se diz sentimento e passamos a encontrar vícios, sejam de
casamento esteja acabado. convivência, rotinas, modismos.
Buscar o novo, reconstruir uma vida, traz medo e desafios,
Maria Teresa Maldonado trata desse assunto, na seguinte é um espécie de presidiário que quando posto em liberdade,
afirmação:43 não reconhece a própria luz do sol. Ter que se reencontrar
dentro de si, viver sem o outro, ainda que essa seja a solução
“O que mantém tantos casais infelizes juntos, mais razoável passa a ser um ato desastroso.
amargurando-se, machucando-se, remoendo mágoas? Como
argumenta Maria Tereza, o casamento pode ser o início do fim, Geralmente as mulheres acabam se saindo melhor,
já que “é comum buscar no outro um messias que vai nos conforme comprovam estudos, pois são mais racionais e
resgatar de dificuldades”. Quando esta expectativa se desfaz, o sensatas. São elas que na maior parte das vezes tentam
frágil laço afetivo desmobiliza-se. resgatar o casamento, tomando iniciativas, tentando pôr
Há casais que se mantêm juntos por conveniência ordem na bagunça que virou o matrimônio, mas se todo
econômica ou social. Há ainda aqueles que suportam o esforço for em vão, elas se sentem seguras para pedirem a
casamento em uma idealização que não correspondeu à separação e pegam os homens desprevenidos, pois para eles
realidade. “Na visão mágica dos contos de fada (‘e aí se sempre dá para ir “empurrando com a barriga”.
casaram e viveram felizes para sempre’), a ideia do amor
eterno e da indissolubilidade do matrimônio reforça uma Hoje podemos dizer que toda mulher trabalha e se
imagem estática do vínculo, como se o casamento viesse com sustenta, daí o motivo para elas não terem medo de levarem
selo de garantia”. Em outros casos, exemplifica Maria Tereza, uma vida sem marido, já que sua condição financeira é boa, o
o casamento é vivido como um “teatro da perfeição”: o casal que diferencia da mulher de anos atrás, que trabalhava apenas
representa papéis de perfeição ditados por regras que não em casa, vivia para os filhos e maridos
correspondem aos reais anseios de cada participante. É o
conhecido “casal perfeito”, vivendo um faz-de-conta que pode Para Maria Tereza Maldonado “é crescente o número de
cair por terra. Nestes jogos – em que o amor nem sempre é o mulheres que tomam a iniciativa da separação sem a
protagonista – outros elementos contracenam: poder, status, concordância do homem, sobretudo quando têm meios de se
pressões externas, desejos de infelicidade, inveja e incômodo.” sustentarem financeiramente".

Já no início do namoro, casamento começa-se a descobrir O momento da tomada de decisão da separação é de


de fato quem é o companheiro, pelas atitudes, comportamento. adiamento, já que internamente esta decisão já foi tomada,
Mais o que faz com que o casamento aconteça é a esperança entretanto por isso em prática está longe de acontecer,
em pensar que com o casamento as coisas podem mudar, mas levando ao desgaste.
com o decorrer do tempo, nota-se que isso não acontece e se
chega a desilusão e canseira. Quando os casais decidem de fato se separar, cada um vai
Durante os relacionamentos, deve-se ir trabalhando aos ter um tipo de atitude. Nesse sentido, Maria Tereza Maldonado
poucos o defeito do outro, tentando retirar aquilo que traz:45
desagrada, com a ajuda da família e até mesmo de um bom
profissional na área. “Diante do abismo inevitável, os casais reagem de
maneiras distintas. Uns antecipam-se e tomam a decisão sem
Muitos comparam a separação conjugal como uma morte um diálogo aprofundado, outros entram em consenso, e
de alguém que ama, já que fica um espaço vago, que antes era outros, ainda, submetem os parceiros a dominações e ameaças
preenchido por alguém, aos que passam por isso, pode-se na esperança de que o vínculo se mantenha. Há os que, por
dizer que são pessoas que não aguardavam a separação ou impossibilidade de admitiras dificuldades, “ruminam”
ainda outros que preferem passar por momentos de secretamente a decisão sem dar ao outro a chance de saber o
dificuldades no casamento e manter esse vínculo. que se passa. Em muitos casos, a separação vai sendo
construída ao longo de anos, acumulando mágoas e
Ainda vivemos em uma sociedade arraigada, que nota na alimentando o ódio.
separação, principalmente nas cidades pequenas, um círculo Em outros, a separação adquire clima de terror. No
de preconceitos, que por causa disso, se tornam alvos de entanto, como lembra Maria Tereza, imagina-se que a exclusão
fofocas, além das piores atrocidades verbais. do parceiro, que representa o mal, levará diretamente ao fim
dos problemas, sem assumir responsabilidades pelos conflitos
Quais seriam as transformações causadas na vida de e pelas queixas.”
um casal com a separação:
Como em uma rivalidade, na separação temos os dois lados
“O rompimento de um vínculo afetivo causa da moeda, a vítima e o algoz. Como geralmente um dos
transformações profundas na vida de um casal. A sensação de cônjuges toma a inciativa de se separar este é o vilão da
desequilíbrio, a perda do lugar seguro e os pesares com o história, que não pensou na família, reflexo social.
anúncio do fim. Como mostra a autora, “a convivência envolve Quem sai de casa e começa a pagar pensão acaba sendo o
a formação de hábitos, rotinas, modos de vida e valores maior vilão de todos para os filhos, pois estes irão pensar que
comuns. Logo, a separação acarreta um rompimento de tudo a culpa é da parte que abandonou o lar, deixando os que
isso, provocando mudanças em hábitos, estilos de vida, valores ficaram à mercê, quando na verdade não é nada disso.
pessoais”.44
Como se nota, a separação desestrutura o casal que deixa Como o que mantia os vínculos do casal era a convivência
de se sentir seguro, pelo fato da perda, de depositar no outro a no mesmo ambiente, eles não acham que precisam mais
sua confiança, seus medos. Neste ponto, partimos daquilo que manter o respeito ou outro sentimento sincero em prol do
casal separado e dos filhos.

43 MALDONADO, Maria Tereza. Casamento, Término e Reconstrução. 45 MALDONADO, Maria Tereza. Casamento, Término e Reconstrução.

Editora Integrare, 2009. Editora Integrare, 2009.


44 MALDONADO, Maria Tereza. Casamento, Término e Reconstrução.

Editora Integrare, 2009.

Conhecimentos Específicos 72
APOSTILAS OPÇÃO

Vejamos o que Maria Tereza Traz a respeito:46 Neste sentido, Maria Tereza Maldonado:

“Como ocorre comumente, apenas um dos dois assume a “Da mesma forma como são influenciados pela decisão dos
dianteira e comunica a decisão. Dá-se, então, um jogo de vítima pais, as crianças podem, por vezes, gerar transtornos no
e algoz no qual quem anuncia a separação passa a ser tratado contexto da separação. Como a autora explicita, o rompimento
como vilão. Neste jogo de representações, o casal perde de do casamento modifica a distribuição de poder entre os
vista as responsabilidades mútuas diante do vínculo em membros da família e muitas alterações de comportamento
deterioração e podem vir à tona comportamentos antes podem ocorrer. Em algumas famílias, o rompimento do
impensados: violência, depreciação do outro, barganha, matrimônio gera perda de contato entre irmãos, ódios,
negociações, ameaças, desrespeito, desvalorização. Instala-se chantagens, cobranças, disputas pelo amor dos pais e dos
um jogo destrutivo.” filhos.”48

O capítulo 5 dessa obra, aborda os sentimentos que ficam Como já dissemos anteriormente, a separação é sentida
depois da separação: pelos amigos e familiares, principalmente por aqueles que
“Alívio, horror, depressão, perplexidade, euforia, vivem ao redor dos filhos.
atordoamento, embotamento, confusão, desorganização da Basta pensar nos casos práticos de pais que se separam,
conduta, culpa, tristeza, a coexistência e a alternância de sendo que apenas um deles leva consigo os filhos, quando o pai
sentimentos diferentes e intensos são a tônica do período pós- ou a mãe achar um novo companheiro, haverá naturalmente
separação. É um momento em que “tudo oscila, um afastamento dos avós e tios por exemplo, por mais que haja
principalmente, entre a confiança e a falta de confiança”, um guarda compartilhada, isso é típico de acontecer.
verdadeiro caleidoscópio de sentimentos, lembranças e
amarguras.” A nova família que é agregada na vida desse filho pode
causar ou não novos conflitos, modificações de hábitos entre
Nota-se que há um emaranhado de sentimentos, que se os filhos. A problemática está contida nos laços parentais com
confundem, medo, insegurança, raiva, todos efeitos da pós- a nova família, que tenta colocar incutir na cabeça do filho que
separação. E como conseguir se libertar disso? o pai ou mãe que deixou a casa não merece mais seu amor.
Difícil, porém cada um precisa achar o jeito para se libertar
de suas dúvidas, para não serem lançadas ao abismo e se virem “Toda a reorganização social, econômica e psicológica
prejudicadas no seio social e no familiar. gerada pela separação necessita de uma revisão das metas e
dos valores, já que a separação pode implicar em suspensão
“O impacto da separação é vivido também por aqueles que das metas e dos valores antes compartilhados. A nova fase
cercam o casal, em especial, os filhos. A recepção da notícia iniciada pelo rompimento deflagra também um período de
pode interferir na dinâmica familiar, no compromisso reconstrução. É quando nos perguntamos: “Valeu a pena? O
amoroso com os filhos, e as consequências podem marcar que quero da vida?” A nova fase pode ser marcada por
profundamente a criança. Com a separação, é comum que haja profundas inseguranças, levando a medos, descontroles,
uma reestruturação do círculo de amizades e novas ânsias de viver novas emoções. Como mostra a autora, é um
companhias passam a fazer parte da vida dos ex-maridos. momento delicado, quando precisamos “construir um código
Quem não conhece situações em que, numa separação, os pessoal, passar da etapa de fazer a própria vida para a etapa
amigos do casal tomam o lado de um dos envolvidos e cortam de fazer-se”.49
relações com o outro? Familiares, filhos e amigos podem,
nestes casos, assumir papel de mediadores ou catalisadores da
separação entre o homem e a mulher.”47 12. Noções de Direito de Família e
No auge dos conflitos, pai e mãe podem deixar de perceber Sucessões sobre as áreas de
ou atender as necessidades amorosas dos filhos, que passam a atuação de Serviço Social;
se questionar sobre o amor que os pais têm por eles, uma vez
que o amor vivido entre pai e mãe cai por terra. Para a autora,
é importante que as crianças saibam que suas necessidades
BIBLIOGRAFIA
básicas continuarão a ser atendidas. Afinal, a separação dos
pais implica também uma reorganização de sentimentos e
27. SIMÕES, Carlos. Curso de Direito do Serviço Social.
hábitos da criança. É comum percebermos efeitos de excesso e
BBSS Vol. 03. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2014.
ausência (de amor, sustento, carinho e presentes). De que
forma anunciar o rompimento aos filhos? Como passar a eles
A assistência social faz parte da instituição político-
que pai e mãe viverão separados, mas o amor e a atenção pelos
constitucional, que se relaciona com a seguridade social, como
filhos continuarão intactos?
dever do Estado, através das chamadas políticas públicas.
Para tanto, se faz mister que o assistente social conheça as
Ainda segundo a autora, os pais que se afastam e perdem
políticas e funcionamento do Estado, sejam em âmbito federal,
contato com os filhos, apenas para satisfazer seu desejo de
estadual ou municipal.
vingança contra a mãe, sobrecarregam ainda mais a cabeça e
os sentimentos da prole. Com o intuito de fazer com que a mãe
Segundo Carlos Simões, tanto na Administração Pública,
se arrependa de ter pedido a separação, quem mais senti são
quanto na área privada, há um conceito de atividade-fim que
os filhos, que pensam que devem ficar do lado de um dos pais
irá indicar o porquê do órgão estatal ter sido criado.
e com isso vai sendo tomado por um sentimento de baixa
Compreende-se por atividades-fins aquelas prestadas
autoestima, carência afetiva, que pode desencadear a falta de
pelos servidores, enquanto as outras que estiverem vinculadas
personalidade do filho e atos de violência.

46 MALDONADO, Maria Tereza. Casamento, Término e Reconstrução. 48 idem

Editora Integrare, 2009. 49MALDONADO, Maria Tereza. Casamento, Término e Reconstrução. Editora
47 MALDONADO, Maria Tereza. Casamento, Término e Reconstrução. Editora Integrare, 2009.
Integrare, 2009.

Conhecimentos Específicos 73
APOSTILAS OPÇÃO

são conhecidas como atividades-meios, que é o caso dos Porque a desconcentração ocorre no âmbito de uma
serviços de segurança, vigilância e limpeza. mesma pessoa jurídica, surge relação de hierarquia, de
O assistente social faz parte da atividade-fim. subordinação, entre os órgãos dela resultantes. No âmbito das
entidades desconcentradas temos controle hierárquico, o qual
Quanto à organização da Administração Pública, esta pode compreende os poderes de comando, fiscalização, revisão,
ser dividida em direita e indireta. punição, solução de conflitos de competência, delegação e
avocação.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA
Concentração (extinguir órgãos)
A Administração Pública Direta é o conjunto de órgãos Trata-se da técnica administrativa que promove a extinção
públicos vinculados diretamente ao chefe da esfera de órgãos públicos. Pessoa jurídica integrante da
governamental que integram. Não possuem personalidade administração pública extingue órgãos antes existentes em
jurídica própria, patrimônio e autonomia administrativa e sua estrutura, reunindo em um número menor de unidade as
cujas despesas são realizadas diretamente através do respectivas competências. Imagine-se, como exemplo, que a
orçamento da referida esfera. secretaria da fazenda de um município tivesse em sua
Assim, ela é responsável pela gestão dos serviços públicos estrutura superintendências, delegacias, agências e postos de
executados pelas pessoas políticas via de um conjunto de atendimento, cada um desses órgãos incumbidos de
órgãos que estão integrados na sua estrutura. desempenhar específicas competências da referida secretaria.
Sua competência abarca os diversos órgãos que compõem Caso a administração pública municipal decidisse, em face de
a entidade pública por eles responsáveis. Exemplos: restrições orçamentárias, extinguir os postos de atendimento,
Ministérios, Secretarias, Departamentos e outros que, como atribuindo às agências as competências que aqueles exerciam,
característica inerente da Administração Pública Direta, não teria ocorrido concentração administrativa.
possuem personalidade jurídica, pois não podem contrair
direitos e assumir obrigações, haja vista que estes pertencem Diferença entre Descentralização e Desconcentração:
a pessoa política (União, Estado, Distrito Federal e As duas figuras dizem respeito à forma de prestação do serviço
Municípios). público. Descentralização, entretanto, significa transferir a
A Administração direta não possui capacidade execução de um serviço público para terceiros que não se
postulatória, ou seja, não pode ingressar como autor ou réu em confundem com a Administração Direta, e a desconcentração
relação processual. Exemplo: Servidor público estadual lotado significa transferir a execução de um serviço público de um
na Secretaria da Fazenda que pretende interpor ação judicial órgão para o outro dentro da Administração Direta,
pugnando o recebimento de alguma vantagem pecuniária. Ele permanecendo está no centro.
não irá propor a demanda em face da Secretaria, mas sim em
desfavor do Estado que é a pessoa política dotada de Serviços Públicos
personalidade jurídica para estar no outro polo da lide.
Serviços públicos são aqueles serviços prestados pela
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA INDIRETA Administração, ou por quem lhe faça às vezes, mediante regras
previamente estipuladas por ela para a preservação do
São integrantes da Administração indireta as fundações, as interesse público.
autarquias, as empresas públicas e as sociedades de economia A titularidade da prestação de um serviço público sempre
mista. será da Administração Pública, somente podendo ser
Essas quatro pessoas são criadas para a prestação de transferido a um particular a execução do serviço público. As
serviços públicos ou para a exploração de atividades regras serão sempre fixadas unilateralmente pela
econômicas, com o objetivo de aumentar o grau de Administração, independentemente de quem esteja
especialidade e eficiência da prestação do serviço público. executando o serviço público. Qualquer contrato
O Poder Público só poderá explorar atividade econômica a administrativo aos olhos do particular é contrato de adesão.
título de exceção em duas situações previstas na CF/88, no seu
art. 173: Para distinguir quais serviços são públicos e quais não,
- para fazer frente à uma situação de relevante interesse deve-se utilizar as regras de competência dispostas na
coletivo; Constituição Federal. Quando não houver definição
- para fazer frente à uma situação de segurança nacional. constitucional a respeito, deve-se observar as regras que
O Poder Público não tem a obrigação de gerar lucro quando incidem sobre aqueles serviços, bem como o regime jurídico
explora atividade econômica. Quando estiver atuando na ao qual a atividade se submete. Sendo regras de direito
atividade econômica, entretanto, estará concorrendo em grau público, será serviço público; sendo regras de direito privado,
de igualdade com os particulares, estando sob o regime do art. será serviço privado.
170 da CF/88, inclusive quanto à livre concorrência. O fato de o Ente Federado ser o titular dos serviços não
significa que deva obrigatoriamente prestá-los por si. Assim,
CONCENTRAÇÃO E DESCONCENTRAÇÃO tanto poderá prestá-los por si mesmo, como poderá
promover-lhes a prestação, conferindo à entidades estranhas
Desconcentração (Criar órgãos) ao seu aparelho administrativo, titulação para que os prestem,
Mera técnica administrativa de distribuição interna de segundo os termos e condições fixadas, e, ainda, enquanto o
competências mediante criação de órgãos públicos. Pressupõe interesse público aconselhar tal solução. Dessa forma, esses
a existência de apenas uma pessoa, pois os órgãos não serviços podem ser delegados a outras entidades públicas ou
possuem personalidade jurídica própria. privadas, na forma de concessão, permissão ou autorização.
Ocorre desconcentração administrativa quando uma Assim, em sentido amplo, pode-se dizer que serviço
pessoa política ou uma entidade da administração indireta público é a atividade ou organização abrangendo todas as
distribui competências no âmbito de sua própria estrutura funções do Estado; já em sentido estrito, são as atividades
afim de tornar mais ágil e eficiente a prestação dos serviços. exercidas pela administração pública.
Desconcentração envolve, obrigatoriamente, uma só pessoa
jurídica.

Conhecimentos Específicos 74
APOSTILAS OPÇÃO

Tem como componente, o Poder Discricionário, que é capacidade de desempenho por sua conta e risco, com prazo
aquele em que a lei confere à Administração a prática de certos determinado. Essa capacidade de desempenho é averiguada
atos ou contratos com algumas liberdades confiadas. na fase de habilitação da licitação. Qualquer prejuízo causado
a terceiros, no caso de concessão, será de responsabilidade do
Nos casos de serviços temos a concessão e a permissão, concessionário – que responde de forma objetiva (art. 37, § 6.º,
que são regulados pela Lei 8.987/1995. da CF) tendo em vista a atividade estatal desenvolvida,
respondendo a Administração Direta subsidiariamente. É
Para a execução das tarefas em prol da sociedade há admitida a subconcessão, nos termos previstos no contrato de
funções precípuas do Estado e da iniciativa privada. Via de concessão, desde que expressamente autorizada pelo poder
regra, admite-se que compete ao Estado prover a educação concedente. A subconcessão corresponde à transferência de
pública, segurança e administração da Justiça, arrecadação de parcela do serviço público concedido a outra empresa ou
impostos. As tarefas a serem executadas com o setor privado consórcio de empresas. É o contrato firmado por interesse da
varia de país para país, de acordo com as tendências de cada concessionária para a execução parcial do objeto do serviço
um. O Estado poderá acompanhar, fiscalizar e até mesmo concedido.
intervir no que o setor privado esteja executando no lugar do
Estado. No contrato de concessão, figurará como titular dos bens o
próprio Estado e destinatário final o particular. A partir do
Surgiram várias parcerias da Administração Pública momento em que os interessados realizam a transferência
através dos variados instrumentos de cooperação entre a dessas faculdades, configura-se o contrato de concessão,
Administração e particulares para que tenha eficiência nas intitulado como contrato administrativo. As concessões estão
atividades públicas e aumento da qualidade. Podemos citar as passando por maiores transformações, em decorrência de leis
parcerias público-privadas (Lei n. 11.079/2004), concessões e recentes.
permissões de serviço público (Lei n. 9.897/99), termos de Os contratos de concessão são divididos em dois grupos:
parceria firmados com organizações da sociedade civil de
interesse público (9.790/99), contratos de franquia etc. 1º Concessões de serviços públicos;
2º Concessões de uso de bem público.
As parcerias realizadas entre os setores público e privado
são fundamentais para garantia de viabilização de políticas O primeiro tem como objeto a delegação da execução de
públicas, através da escassez de recursos públicos que são serviços públicos a pessoa privada. Tem como escopo a
destinados para prover as demandas sociais existentes no descentralização que será constituída através do instrumento
Brasil. Os acordos bilaterais entre a iniciativa privada e o contratual. O concessionário terá a seu cargo o exercício da
Poder Público permitem a viabilização de investimentos atividade pública
economicamente rentáveis aos parceiros privados e
estratégicos para os Estados. Por sua vez, as concessões de uso de bem público visam
consentir que a pessoa privada utiliza-se de bem pertencente
O Estado poderá delegar seus serviços aos particulares por a pessoa de direito público.
meio da permissão e concessão de serviço público:
Os concessionários diferentemente do que acontece com
As concessões de serviços públicos e de obras públicas e as as concessões de serviço público, tendem a executar atividades
permissões de serviços públicos reger-se-ão pelos termos do de caráter público e de caráter privado, dependendo da
art. 175 da Constituição Federal, pela lei 8.987/95, pelas destinação do uso do bem público que for autorizada.
normas legais pertinentes e pelas cláusulas dos indispensáveis
contratos. Vamos conferir a redação do artigo 175 da As concessões podem ser agrupadas em duas categorias:
Constituição Federal:
- concessões comuns;
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, - concessões especiais.
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre
através de licitação, a prestação de serviços públicos. As concessões comuns são reguladas pela Lei nº 8987 de
Parágrafo único. A lei disporá sobre: 1995 (Lei das Concessões), já as concessões especiais são
I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias regidas pela Lei 11.079 de 2004.
de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua
prorrogação, bem como as condições de caducidade, Características do contrato de concessão:
fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II - os direitos dos usuários; - Bilateral: gera obrigações para ambos os contratantes;
III - política tarifária;
IV - a obrigação de manter serviço adequado. - Comutativo: são equivalentes e previamente
identificadas as obrigações das partes;
Note-se que o dispositivo não faz referência à autorização
de serviço público, talvez porque os chamados serviços - Intuitu personae: o serviço que foi delegado não pode ser
públicos autorizados não sejam prestados a terceiros, mas aos atribuído a terceiros, sem que ocorra o prévio consentimento
próprios particulares beneficiários da autorização; são do concedente;
chamados serviços públicos, porque atribuídos à titularidade
exclusiva do Estado, que pode, discricionariamente, atribuir a - Formal: as obrigações e vontades instituídas aos
sua execução ao particular que queira prestá-lo, não para contratantes devem ser formalizadas.
atender à coletividade, mas às suas próprias necessidades.
Os contratos de concessão devem conter algumas
Concessão de serviço público: É a delegação da cláusulas essenciais e devido a esse caráter não podem ser
prestação do serviço público feita pelo poder concedente, relegadas, nem se ausentarem do instrumento contratual.
mediante licitação na modalidade concorrência, à pessoa Mediante a ausência dessas cláusulas que sejam essenciais ao
jurídica ou consórcio de empresas que demonstrem contrato e a sua menção e a inobservância do que estabelece a

Conhecimentos Específicos 75
APOSTILAS OPÇÃO

lei, será decretada a invalidade contratual feita pela vínculo precário do ajuste aumentaria consideravelmente os
Administração ou pelo Judiciário. riscos do permissionário.

Intervenção da Concessão Atualmente, no entanto, a distinção entre as duas


modalidades de delegação de serviços públicos, nos moldes
A lei 8987 prevê que o poder concedente poderá intervir supracitados, não pode subsistir, especialmente pela
na concessão, com a finalidade de assegurar a adequação na contratualização da permissão de serviço público.
prestação do serviço, além de cumprir com as normas
contratuais, regulares e legais. O art. 175 da CRFB, ao tratar das concessões e permissões
de serviços públicos, exige a precedência da licitação (“sempre
A intervenção é considerada como ato unilateral, através de licitação”), o que, de início, afasta a costumeira
discricionário, precário, pode ser feito de forma onerosa ou discricionariedade da permissão. Tanto para a concessão
gratuita. quanto para a permissão, o poder público deverá realizar o
Direitos e Obrigações dos Usuários procedimento licitatório com o intuito de efetivar os princípios
da moralidade e da impessoalidade, entre outros.
O artigo 7º da lei nº 8987/1995 compreende:
Da mesma forma, o art. 175, parágrafo único, I, da CRFB
Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de utiliza a expressão “contrato” ao fazer referência à concessão
setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários: e à permissão de serviços públicos. Na forma da norma
I - receber serviço adequado; constitucional em comento, a lei deverá dispor, por exemplo,
II - receber do poder concedente e da concessionária do “regime das empresas concessionárias e permissionárias
informações para a defesa de interesses individuais ou de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de
coletivos; sua prorrogação, bem como as condições de caducidade,
III - obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre fiscalização e rescisão da concessão ou permissão”.
vários prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as
normas do poder concedente. O caráter contratual da permissão de serviço público teria
IV - levar ao conhecimento do poder público e da sido corroborado pelo art. 40 da Lei n.º 8.987/1995, que define
concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, a permissão “contrato de adesão”.7 É verdade que essa
referentes ao serviço prestado; definição legal de permissão de serviço público é repleta de
V - comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos incorreções técnicas, o que obscurece a real intenção do
praticados pela concessionária na prestação do serviço; legislador.
VI - contribuir para a permanência das boas condições dos
bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços. Após fixar o caráter contratual da permissão, a norma
utiliza expressões que são reservadas pela doutrina aos atos
Art. 7º-A. As concessionárias de serviços públicos, de direito administrativos, tais como a “precariedade” e a
público e privado, nos Estados e no Distrito Federal, são “revogabilidade unilateral”. Ora, o ato administrativo é que, em
obrigadas a oferecer ao consumidor e ao usuário, dentro do mês princípio, pode ser considerado precário e revogável. O
de vencimento, o mínimo de seis datas opcionais para contrato administrativo, ainda que possa ser alterado
escolherem os dias de vencimento de seus débitos. unilateralmente pelo poder público, não deve ser considerado
Parágrafo único. (VETADO) precário, mas sim mutável. A precariedade traz consigo a ideia
de que as alterações implementadas pelo poder público devem
Concessão x Permissão de Serviço Público 50 ser aceitas pelo administrado e não são, em regra, passíveis de
indenização, o que não ocorre com as eventuais mutações
Tradicionalmente, a concessão e a permissão (alterações) unilaterais dos contratos, que devem ser
representavam duas hipóteses distintas de delegação negocial acompanhadas da respectiva revisão para preservação do
de serviços públicos. A doutrina e a jurisprudência princípio da manutenção do equilíbrio econômico e financeiro
costumavam apontar as seguintes distinções: do ajuste. Por fim, em vez de revogação, o ideal seria referir-se
à rescisão do contrato.
a) quanto à formalização da delegação: a concessão seria
formalizada por contrato administrativo, enquanto a Permissão de Serviço Público: É a delegação a título
permissão seria efetivada por meio de ato administrativo precário, mediante licitação feita pelo poder concedente à
discricionário e precário. pessoa física ou jurídica que demonstrem capacidade de
b) prazo e indenização: a concessão, como ocorre em desempenho por sua conta e risco.
qualquer contrato administrativo, deveria ter prazo A Lei n. 8.987/95 é contraditória quando se refere à
determinado e a sua extinção, antes do termo final e sem culpa natureza jurídica da permissão: menciona que é “precária”,
do concessionário, geraria direito à indenização do particular; mas que será precedida de “licitação”, o que pressupõe um
ao revés, a permissão não possuía, em regra, prazo contrato e um contrato não pode ser precário.
determinado, e a sua revogação não gerava indenização. Em razão disso, diverge a doutrina.
c) vulto dos investimentos necessários à exploração dos Para Hely Lopes Meirelles, Maria Sylvia Zanella di Pietro e
serviços: a concessão era utilizada para os serviços públicos Celso Antônio Bandeira de Mello, concessão é uma espécie de
que exigissem significativos investimentos por parte do contrato administrativo destinado a transferir a execução de
concessionário, já que o contrato garantiria ao particular um serviço público para terceiros; permissão é ato
maior segurança jurídica (os direitos e deveres das partes administrativo unilateral e precário.
estariam insculpidos nas cláusulas contratuais); a permissão Nada obstante, a Constituição Federal iguala os institutos
era recomendável para os serviços públicos que não quando a eles se refere (art. 223, §§ 4.º e 5.º):
envolvessem investimentos vultosos do permissionário, pois o

50 Oliveira, Rafael Carvalho Rezende, Administração Pública, Concessões e

Terceiro Setor, editora: Método, 3ª edição, 2015.

Conhecimentos Específicos 76
APOSTILAS OPÇÃO

Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar conta a mulher, cria-se a Lei Maria da Penha, que estabelece
concessão, permissão e autorização para o serviço de procedimentos e juizados especiais criminais, para diminuir a
radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio violência doméstica e familiar.
da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. A Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), retirou dos
[...] Juizados Especiais Criminais, regidos pela Lei 9.099/1995, a
§ 4º O cancelamento da concessão ou permissão, antes de competência para julgamento dos casos que envolvam essa lei,
vencido o prazo, depende de decisão judicial. retirando assim o cumprimento de penas pecuniárias
§ 5º O prazo da concessão ou permissão será de dez anos (pagamento de cestas básicas) para pagamento de penas,
para as emissoras de rádio e de quinze para as de televisão. aumentando a pena de prisão para três meses a três anos, com
a agravante de um terço, se a mulher for deficiente.
Direitos Humanos e Direitos Sociais
Diferentemente do que ocorre em outros crimes, tornou-
A Constituição Federal elegeu um conjunto de valores se nula a desistência do processo, pela mulher, quando estiver
éticos, que são considerados fundamentais pra a vida nacional, na delegacia, exigindo que assim o faça apenas perante o juiz.
a maior parte dos quais se expressa no reconhecimento dos
direitos humanos.51 Geração dos Direitos

A instituição dos Códigos de Ética profissional submete-se O termo geração de direitos engloba uma sucessão de
aos valores constitucionais, esses materiais são manifestações etapas, como uma espécie de processo evolutivo dos direitos
de implementação infraconstitucional dos direitos humanos. anteriores.
Os direitos fundamentais possuem natureza declaratória, Os direitos fundamentais dizem respeito a conquista das
onde são reconhecidos direitos essenciais aos cidadãos. liberdades políticas com a Revolução Francesa, que é chamada
de direitos de primeira geração.
Direitos Sociais A luta em conquistar os direitos individuais ou de
liberdade ocorreu nos séculos XVII e XVIII e os documentos
A Lei 8.742/1993, mais precisamente em seu artigo 4º, II, dessa época ficaram conhecidos como Declaração dos Direitos
trata da universalização dos direitos sociais, concernentes aos do Homem e do Cidadão, na Revolução Francesa de 1.789 e
princípios da assistência social. Declaração dos Direitos do Estado da Virgínia, na
Independência dos EUA, em 1.776. Foi através desses
Essa lei faz ir mais além, pois ultrapassa o ponto documentos que exprimiu-se a vontade do povo em lutar
institucional. Os direitos da seguridade social estão inseridos contra a opressão que sofria por parte dos governantes.
no artigo 6º da Constituição Federal: Os direitos civis deixam de ser concebidos como
manifestação da vontade divina e a responsabilização passa
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a aos governantes que devem garantir tratamento igualitário a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a todos, com base no princípio da liberdade e da igualdade.
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Evolução dos Direitos Fundamentais
Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90,
de 2015) Os direitos fundamentais foram aos poucos reconhecidos
pelos textos constitucionais e pelo ordenamento jurídico dos
Direito e Cidadania países de forma gradativa e histórica, sendo que seu estudo
pode ser sintetizado da seguinte forma, mediante análise das
Os antigos Códigos instituíam deveres ao povo, entretanto, gerações52 dos direitos fundamentais:
não asseguravam direitos, desse modo o papel da lei era
mandar e proibir, criando limites da conduta das pessoas para 1) Direitos de primeira geração: Surgidos no século XVII,
adequá-las a comunidade. O rei era o detentor máximo do eles cuidam da proteção das liberdades públicas, ou seja, os
poder, inexistindo a representação dos interesses individuais direitos individuais, compreendidos como aqueles inerentes
e coletivos junto ao soberano. ao homem e que devem ser respeitados por todos os Estados,
como o direito à liberdade, à vida, à propriedade, à
Surge uma nova era que começa a se preocupar mais com manifestação, à expressão, ao voto, entre outros (direitos
os direitos, com a germinação do liberalismo. civis e políticos). São limites impostos à atuação do Estado.
Foi com a Revolução Industrial e com o desenvolvimento
da força do trabalho que o mundo começou a se desenvolver e 2) Direitos de segunda geração: Correspondem aos
com isso as variadas formas de violência, como por exemplo, direitos de igualdade, significa um fazer do Estado em prol dos
as guerras, desemprego, abandono de crianças, racismo, menos favorecidos pela ordem social e econômica. Passou-se
levando-se a uma contradição entre os interesses individuais a exigir do Estado sua intervenção para que a liberdade do
e as necessidades públicas. homem fosse protegida totalmente (o direito à saúde, ao
trabalho, à educação, o direito de greve, entre outros). Veio
Os princípios da igualdade, liberdade e universalidade dos atrelado ao Estado Social da primeira metade do século
direitos são considerados fundamentos da nova ordem social, passado. A natureza do comportamento perante o Estado
contradizendo-se com o antigo regime estatutário. serviu de critério distintivo entre as gerações, eis que os de
Baseados na Convenção sobre Eliminação de todas as primeira geração exigiam do Estado abstenções (prestações
formas de discriminação contra as mulheres, na Convenção negativas), enquanto os de segunda exigem uma prestação
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência positiva53 (direitos econômicos, sociais e culturais).

51 SIMÕES, Carlos. Curso de Direito do Serviço Social. 3ª edição. São Paulo: direitos se complementam jamais se excluem. Ressalte-se que podem ser
Cortez, 2009. encontrados em provas ambas as expressões gerações e dimensões
52 Existem autores que utilizam a denominação para a evolução dos direitos indistintamente, devendo serem tidas como sinônimas.
fundamentais com o uso da expressão “dimensão”, e não “gerações”. A 53 Os direitos de segunda geração, ao invés de se negar ao Estado uma

exclusão do termo geração seria em virtude da impossibilidade de uma atuação (cunho negativo), exige-se dele que preste políticas públicas, tratando-
dimensão dos direitos “apagarem” a dimensão anterior, uma vez que os se, portanto de direitos positivos, impondo ao Estado uma obrigação de fazer,

Conhecimentos Específicos 77
APOSTILAS OPÇÃO

3) Direitos de terceira geração: Os chamados de O Estado Democrático de Direito


solidariedade ou fraternidade, voltados para a proteção da
coletividade. As Constituições passam a tratar da preocupação O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência
com o meio ambiente, da conservação do patrimônio histórico de reger-se pelo Direito e por normas democráticas, com
e cultural, etc. (direitos transindividuais, difusos e eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito
coletivos). A partir destas, vários outros autores passam a das autoridades públicas aos direitos e garantias
identificar outras gerações, ainda que não reconhecidas pela fundamentais, proclamado no caput do artigo 1º da
unanimidade de todos os doutrinadores. Constituição Federal de 1988, sendo que a norma máxima
adotou, igualmente em seu parágrafo único, o denominado
4) Direitos de quarta geração: Segundo orientação de princípio democrático, ao afirmar que “todo poder emana do
Norberto Bobbio, a quarta geração de direitos humanos está povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
ligada à questão do biodireito. Referida geração de direitos diretamente, nos termos desta Constituição” 54.
decorreria dos avanços no campo da engenharia genética, ao Deste modo, observa-se que é característica essencial do
colocarem em risco a própria existência humana, por meio da Estado Democrático de Direito a soberania popular.
manipulação genética. O termo "Estado democrático de direito" conjuga dois
Por outro lado, o Professor Paulo Bonavides, afirma que conceitos distintos que, juntos, definem a forma de
em razão do processo de globalização econômica, com mecanismos tipicamente assumidos pelo Estado de inspiração
consequente afrouxamento da soberania do Estado Nacional, ocidental. Cada um destes termos possui sua própria definição
existe uma tendência de globalização dos direitos técnica, mas, neste contexto, referem-se especificamente a
fundamentais, de forma a universalizá-los parâmetros de funcionamento do Estado Ocidental moderno.
institucionalmente, sendo a única que realmente interessaria Em sua origem grega, "democracia" quer dizer "governo do
aos povos da periferia, citando como exemplos: o direito à povo". No sistema moderno, no entanto, não é possível que o
democracia, à informação e ao pluralismo. povo governe propriamente (o que significaria uma
democracia direta). Assim, os atos de governo são exercidos
5) Direitos da quinta geração: Em que pese por membros do povo ditos "politicamente constituídos", por
doutrinadores enquadrarem os direitos humanos de quinta meio de eleição.
geração como sendo os que envolvam a cibernética e a No Estado Democrático Brasileiro, as funções típicas e
informática. Paulo Bonavides, vê na quinta geração o espaço indelegáveis do Estado são exercidas por indivíduos eleitos
para o direito à paz, chegando a afirmar que a paz é axioma pelo povo para tanto, de acordo com regras pré-estabelecidas
da democracia participativa, ou ainda, supremo direito da que regerão o pleito eleitoral. O aspecto do termo "de Direito"
humanidade. refere-se a que “tipo de direito” exercerá o papel de limitar o
Vale observar que, ainda que se fale em gerações, não exercício do poder estatal.
existe qualquer relação de hierarquia entre estes direitos, No Estado democrático de direito, apenas o direito positivo
mesmo porque todos interagem entre si, de nada servindo um (isto é, aquele que foi codificado e aprovado pelos órgãos
sem a existência dos outros. Esta nomenclatura adveio apenas estatais competentes, como o Poder Legislativo) poderá
em decorrência do tempo de surgimento, na eterna e constante limitar a ação estatal, e somente ele poderá ser invocado nos
busca do homem por mais proteção e mais garantias, com o tribunais para garantir o chamado "império da lei". Todas as
objetivo de alcançar uma sociedade mais justa, igualitária e outras fontes de direito, como o Direito Canônico ou o Direito
fraterna. natural, ficam excluídas, a não ser que o direito positivo lhes
atribua esta eficácia, e apenas nos limites por ele
estabelecidos.
Neste contexto, destaca-se o papel exercido pela
Constituição. Nela delineiam-se os limites e as regras para o
exercício do poder estatal (onde se inscrevem os chamados
"Direitos e Garantias fundamentais"), e, a partir dela, e sempre
a tendo como baliza, redige-se o restante do chamado
"ordenamento jurídico", isto é, o conjunto das leis que regem
uma sociedade.
Nota-se que é imprescindível no Estado democrático de
direito a existência de uma Constituição. No entanto, não
devemos restringir o elemento democrático à limitação do
poder estatal e a democracia ao instituto da representação
Nazismo x Nacionalismo
política, uma vez que o princípio democrático não se reduz a
um método de escolha dos governantes pelos governados.
O Estado nação se sobrepõe aos direitos da pessoa e da
Nos dias atuais o Estado Democrático de Direito tem um
vontade da coletividade através do nazismo. Com a ideologia
significado de fundamental importância no desenvolvimento
do Estado nazista alemão eliminou-se a diversidade e
das sociedades, sendo um dos fundamentos essenciais de
pluralidade sociais, que são massificadas na ideia da
organização das sociedades políticas do mundo moderno,
superioridade do povo.
tendo em vista que é um sistema institucional em que há
Com o nazismo, eliminou-se a sociedade aberta, de modo
previsão e proteção aos direitos fundamentais.
que a livre circulação de informações é uma forma de espelho
Diante de todo o exposto, em linhas gerais, podemos
da população, que visa corrigir erros. O cidadão perdeu seu
definir como requisitos para a caracterização de um “Estado
direito de propriedade pessoal e social, sindicatos foram
Democrático de Direito”: o império das leis; a forma federativa
proscritos e o Partido Nacional Socialista, como as tropas de
de Estado; o enunciado de garantia de direitos individuais;
assalto foram consideradas intangíveis pela jurisdição
governo legitimamente eleito pelo povo.
ordinária.

correspondendo aos direitos à saúde, educação, trabalho, habitação, previdência 54 Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 21ª Ed. São Paulo: Jurídico

social, assistência social, entre outros. Atlas, 2007. p 125

Conhecimentos Específicos 78
APOSTILAS OPÇÃO

Seguridade Social respeito a repartição equitativa de poderes pela União,


Estados e Distrito Federal e Municípios, segundo as
A seguridade social, instituída pela Constituição Federal, competências e atribuições privativas dos entes federativos.
em garantia ao direito à saúde, previdência e assistência social,
considerando-se fundamental à estabilidade da sociedade Dessa forma, o controle popular se dá por meio de
democrática. conselhos, um mecanismo relativo eficiente de controle das
Desde a Constituição de 1.824 várias foram as definições verbas sociais. A participação popular é uma das condições
até se chegar a nossa atual Constituição de 1.988, de modo que essenciais da descentralização, estando predeterminada pela
o conceito de seguro social restringe-se à previdência social, repartição, pela repartição, instituída pela LOAS, das
com a regulamentação da Lei nº 8.212/1991 – Lei Orgânica da competências federal, estadual e municipal.
Seguridade Social.
A Lei Orgânica do Município de São Paulo prevê várias
A seguridade constitui uma instituição político-estatal, instâncias de participação direta da população, como por
com a participação das entidades da sociedade civil, através de exemplo, os Conselhos de representantes nas administrações
convênios ou consórcios administrativos com o Poder Público, regionais, depois regulou-se o Conselho Municipal da Saúde e
com o objetivo da ação social, que na assistência social tribuna popular.
assegure à população os chamados mínimos sociais.
Os Conselhos derivam do modelo constitucional brasileiro
Princípios de organização do Estado democrático de direito, sob regime
federativo, fundado na descentralização político-
De acordo com o Art. 193 da CF/88, a ordem social tem administrativa e na participação popular, por isso, os
como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar conselhos municipais possuem prioridade.
e a justiça sociais. Dentre os capítulos que compõem o Título
da Ordem Social na CF, temos a descrição da seguridade social, Conselhos Municipais de São Paulo
tida como o conjunto integrado de iniciativas geradas pela
sociedade em conjunto com poder público, que visa assegurar A primeira instituição de assistência social na prefeitura de
saúde, assistência e previdência social, em respeito ao São Paulo foi a Comissão de Assistência Social do Município
disposto no artigo 194 da Constituição Federal. (Casmu), de 1951, que foi gerada pela migração nordestina,
A seguridade social possui alguns princípios que a que resultou na intervenção política de natureza
norteiam, sendo um dos mais importantes o princípio da assistencialista. Foi sucedida pelo Departamento de Serviço
Solidariedade, o qual impõe uma obrigação social, qual seja Social (DSS), que se envolvia em ações mediadas por
todos contribuíram para a mantença da seguridade social. A programas habitacionais, de formação de mão-de-obra,
aplicação do princípio da solidariedade, impõe a todos os educação de base e dotação de recursos sociais.
segmentos sociais — Poder Público, empresas e trabalhadores
— a contribuição na medida de suas possibilidades. Posteriormente, passou-se a Secretaria de Bem Estar
Outro importante princípio é o da universalidade da (Sebes), em 1.972, que implantou os Núcleos de Capacitação e
cobertura e do atendimento, significando que qualquer Ocupação Profissional, que instituiu convênios com empresas,
pessoa poderá gozar do direito de cobertura quando cumprir como por exemplo o metrô. Depois, instituiu-se o Programa de
certos requisitos previstos pelo ordenamento jurídico e em Atenção à População com Problemas de Subsistência, que
determinada circunstância, sendo direito de todos que vivem centralizou os convênios de serviços sociais e foram gestados
no território nacional receber proteção do tripé da seguridade diretamente pela Sebes.
social através da universalidade do atendimento.
Pelo Princípio da Uniformidade e equivalência dos SUS (Sistema Único de Saúde)
benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, a CF
de 1988 reafirmou o princípio da isonomia, consagrado no O SUS é um sistema universal que permite que toda a
caput de seu art. 5º, no inc. II, do parágrafo único, do art. 194, população brasileira, de qualquer classe social possa usufruir,
garantindo uniformidade e equivalência de tratamento, entre ainda que os que não utilizem-no, possam se beneficiar,
urbanos e rurais, em termos de seguridade social. através de campanhas de vacinação, ações de prevenção e
Considerando que deve o legislador buscar na realidade vigilância sanitária.
social e selecionar as contingências geradoras das
necessidades que a seguridade deve cobrir, visando a Há obrigatoriedade em assegurar o direito a todos os que
prestação que garanta maior proteção social, maior bem-estar, ali comparecerem serem atendidos, sem exigir carências.
recaindo sobre as prestações que, por sua natureza, tenham É formado por várias instituições dos três níveis de
maior potencial para reduzir a desigualdade, concretizando a governo e pelo setor privado, que dele participa através de
justiça social, é o que pressupõe o Princípio da Seletividade contratos e convênios para a realização de suas finalidades
e distributividade na prestação dos benefícios e serviços. públicas.
Já a aplicação do Princípio da irredutibilidade do valor
dos benefícios impõe que benefícios — prestações Controle Social do SUS
pecuniárias — não podem ter o valor inicial reduzido, sendo
capaz de suprir os mínimos necessários à sobrevivência com O Controle Social no SUS é um dos principais instrumentos
dignidade, e, para tanto, não pode sofrer redução no seu valor para promover a democratização da saúde, propiciando a
mensal. participação efetiva da sociedade na busca da garantia dos
direitos conquistados constitucionalmente.
Participação Popular Ao refletir os graus de mobilização, organização e da
consciência dos direitos, alcançados pela Sociedade nos anos
É uma forma de controle social, para a garantia dos direitos 1980, a Constituição Federal consagrou a Participação da
sociais, superando-se o controle técnico burocrático. A Comunidade, ao lado da Descentralização e da Integralidade,
assistência social deve ser administrada de forma como diretriz da rede regionalizada e hierarquizada que
descentralizada, de acordo com os limites da legislação constitui o SUS (Art. 198). Ao regulamentar os dispositivos
federal. Contudo, o conceito de descentralização não diz Constitucionais sobre o SUS, a Lei nº 8.080/90, no seu Art. 7º

Conhecimentos Específicos 79
APOSTILAS OPÇÃO

refere a Participação da Comunidade entre os princípios do desenvolvidas por diversos atores: associações, movimentos,
SUS obrigados em lei, e a Lei n. 8.142/90, cria as Conferências profissionais, fóruns, setor público, conselhos etc.
de Saúde a serem realizadas a cada quatro anos, de caráter Por fim, deixo uma súplica: devemos instituir e
propositivo, de diretrizes para a formulação de políticas de proporcionar condições para que a democracia participativa
saúde na esfera de governo correspondente, e os Conselhos de se efetive na prática e que a sociedade civil se torne
Saúde, de caráter deliberativo, com as atribuições de atuar: na protagonista nesse processo de controle social em políticas
formulação de estratégias, e no controle da execução da públicas de saúde, pleiteando constituir um Brasil, como
política de saúde, também em cada esfera de governo. Dispõe referência mundial, em boas práticas na área de fiscalização e
também, que metade dos delegados nas conferências e dos controle social em saúde. (ROLIM; CRUZ; SAMPAIO, 2013).
conselheiros nos conselhos, devem provir das entidades que
representam os usuários, e a outra metade, das que Previdência Social
representam os profissionais de saúde, os prestadores de
serviços e o governo (Gestores). A previdência social também é conhecida como seguro
social. Isso porque ela é, de fato, um verdadeiro seguro, que
Participação da comunidade na gestão do SUS atua cobrindo a manutenção de nossa condição social nos
casos em que ocorrer alguma contingência-necessidade que
Participação da comunidade: é uma forma de controle possa abalá-la. Assim, quase que da mesma forma que em um
social que possibilita a população, através de seus seguro convencional, através de contribuições, caso ocorra
representantes, definir, acompanhar a execução e fiscalizar as uma contingência a ser coberta, o seguro deverá cobri-la.
políticas de saúde. Por ser social, o que ela protege é a capacidade da pessoa
A Lei n. 8.142/90 (BRASIL, 1990) instituiu duas “instâncias de assegurar sua própria manutenção, para que ela não perca
colegiadas” para a participação da comunidade na gestão do sua condição social. Quando eventos como doença, idade,
SUS em cada esfera de governo: prisão ou outra contingência por ela coberta puder impedir a
- Conferência de Saúde; e pessoa de obter seu sustento, esse seguro entrará em ação.
- Conselho de Saúde. Isso é a previdência social, um seguro que cobre, mediante
Dessas instâncias, participam os seguintes segmentos da contribuições, a manutenção da condição social dos segurados
sociedade: usuários dos serviços de saúde, prestadores de e seus dependentes.
serviços, profissionais de saúde e representantes do governo.
Num estudo sobre a participação popular e o controle A Previdência Social no Brasil é composta por três regimes:
social como diretriz do SUS, Rolim, Cruz e Sampaio (2013) a) Regime Geral de Previdência Social (RGPS): operado
fazem a seguinte conclusão: pelo INSS, uma entidade pública e de filiação obrigatória para
O Brasil, país de grandes desigualdades sociais, tem os trabalhadores regidos pela CLT;
passado por importantes avanços em sua história recente, b) Regime Próprio de Previdência Social (RPPS):
especificamente no setor saúde. Na década de 1980, por força instituído por entidades públicas –Institutos de Previdência ou
de ampla e diversificada mobilização social, passou de um Fundos Previdenciários e de filiação obrigatória para os
longo período de ditadura para a construção de um modelo servidores públicos titulares de cargos efetivos da União, dos
democrático, processo que culminou com a Constituição Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; e
Federativa de 1988 consagrando e assegurando a ideia da c) Regime de Previdência Complementar: operado por
democracia com a participação da sociedade civil no controle Entidades Abertas e Fechadas de Previdência Complementar,
e na gestão de políticas públicas (controle social), por meio da regime privado, com filiação facultativa, criado com a
participação popular nos espaços dos Conselhos, das finalidade de proporcionar uma renda adicional ao
Conferências e das audiências públicas, que além de permitir trabalhador, que complemente a sua previdência oficial.
que o povo desempenhe seu poder de maneira indireta,
mediante representantes eleitos, consente que este exerça seu O RGPS é único, vinculando os trabalhadores brasileiros de
poder diretamente, por meio de plebiscitos, referendos e modo geral (empregados, autônomos etc.). Ele é disciplinado
projetos/ações de iniciativa popular. no art. 201 da CF/88. Já os RPPS são vários, um por ente
No entanto, o que se observa é que a participação e o federado (sua criação é facultativa). Se o ente federado não
controle social não estão efetivados em plenitude. Contribui possuir RPPS, o servidor será filiado ao RGPS. Além do mais,
para isso a falta de informação e a existência de interesses somente será filiado a RPPS o servidor ocupante de cargo
múltiplos para que a população não saiba que possui direitos público efetivo, e não os comissionados, temporários ou
e que pode exigi-los. empregados públicos. A esses, aplica-se o RGPS.
O controle social não é do Estado ou da sociedade civil, mas
das classes sociais. Por isso é contraditório, pode ser de uma Regime Geral de Previdência Social.
classe ou de outra, pois a sociedade civil enquanto momento
do Estado é um espaço de luta de classes pela disputa de poder. O Regime Geral de Previdência Social (RGPS) é o principal
É a partir desta concepção de Estado – com a função de manter regime previdenciário na ordem interna, abrange
o consenso além da sua função coercitiva –, quando incorpora obrigatoriamente todos os trabalhadores da iniciativa privada,
as demandas das classes subalternas, que se abre a ou seja: os trabalhadores que possuem relação de emprego
possibilidade de o Estado ser controlado por essas classes, a regida pela Consolidação das Leis do Trabalho (empregados
depender da correlação de forças existente entre os segmentos urbanos, mesmo os que estejam prestando serviço a entidades
sociais organizados na sociedade civil. paraestatais, os aprendizes e os temporários), pela Lei nº
É preciso que o controle social aconteça na prática, para 5.889/73 (empregados rurais) e pela Lei Complementar nº
que não fique apenas em lei e que a sociedade civil ocupe de 150/2015 (empregados domésticos); os trabalhadores
modo pleno e efetivo esses diversos espaços de participação autônomos, eventuais ou não; os empresários, titulares de
social. firmas individuais ou sócios gestores e prestadores de
A sociedade no acompanhamento/fiscalização/ serviços; trabalhadores avulsos; pequenos produtores rurais e
participação da gestão pública em saúde se faz de forma pescadores artesanais trabalhando em regime de economia
importantíssima, pois pela primeira vez na história reuniram- familiar, e outras categorias de trabalhadores, como
se experiências exitosas na área do controle social. Vieram a garimpeiros, empregados de organismos internacionais,
público iniciativas relevantes que antes estavam isoladas, sacerdotes, entre outros.

Conhecimentos Específicos 80
APOSTILAS OPÇÃO

Havendo regime próprio, o servidor NÃO poderá se filiar Nos termos do artigo 2º do Decreto nº 7.556/2011, as
ao regime geral, no entanto, não havendo esse regime, a gerências executivas são unidades descentralizadas, vamos
filiação ao regime geral é obrigatória. Só há dois regimes de observar:
cunho obrigatório:
a. O RGPS (Regime Geral de Previdência Social); Art. 2º O INSS tem a seguinte estrutura organizacional:
b. O Regime Próprio dos Servidores Públicos. [...] IV - unidades descentralizados:
a) Superintendências-Regionais;
É possível acumular aposentadoria do Regime Próprio, b) Gerências-Executivas;
com aposentadoria do Regime Geral, sempre que o c) Agências da Previdência Social;
trabalhador exercer duas ou mais atividades abrangidas por d) Procuradorias-Regionais;
esses regimes. Por exemplo: Professores, que lecionam em e) Procuradorias-Seccionais;
escolas públicas e escolas privadas (concomitantemente), f) Auditorias-Regionais; e
possuem direito aos dois regimes previdenciários. Podendo g) Corregedorias-Regionais.
ainda, se assim desejar, contribuir para o regime de
previdência privada, gozando, dessa forma, de três Observe que há critérios especiais de nomeação
aposentadorias no futuro. estabelecidos no artigo 4º do Decreto nº 7.556/2011:

Nos termos do art. 201 da Constituição Federal (CF), o Art. 4º As nomeações para os cargos em comissão e as
Regime Geral de Previdência Social (RGPS) deve prestar: designações para as funções comissionadas e funções
- a cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e gratificadas integrantes da estrutura regimental do INSS serão
idade avançada; efetuadas em conformidade com a legislação vigente.
- a proteção à maternidade, especialmente à gestante; § 1º Os Gerentes-Executivos serão escolhidos dentre os
- a proteção ao trabalhador em situação de desemprego servidores ocupantes de cargos efetivos, pertencentes ao quadro
involuntário; de pessoal do INSS, a partir de processo de seleção interna que
- o salário-família e o auxílio-reclusão para os observará o mérito profissional e as competências requeridas
dependentes dos segurados de baixa renda; para o exercício da gerência, mediante adesão espontânea dos
- a pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao servidores, observadas a forma, as condições e os requisitos
cônjuge ou companheiro e dependentes. definidos em portaria ministerial.
§ 2º O provimento de cargos em comissão e designação para
O RGPS é regido pela Lei nº 8.213/91, intitulada “Plano de funções comissionadas e gratificadas de integrantes das
Beneficios da Previdência Social”, sendo de filiação Superintendências-Regionais, das Gerências-Executivas e das
compulsória e automática para os segurados obrigatórios, Agências da Previdência Social, fixas e móveis, recairá,
permitido ainda, que pessoas que não estejam enquadradas exclusivamente, em servidores ocupantes de cargos efetivos
como obrigatórias e não tenham regime próprio de pertencentes ao quadro de pessoal do INSS, observadas as
previdência, se inscrevam como segurados facultativos, normas complementares definidas em ato do Presidente do
passando a ser filiados ao RGPS. INSS.
A lei que regula o RGPS é composta por normas de direito § 3º Observado o disposto no § 1º, serão exigidos para a
público, que estabelecem direitos e obrigações entre os designação das funções de Gerente-Executivo e Gerente de
indivíduos beneficiários do regime e o Estado, gestor da Agência da Previdência Social, inclusive de seus respectivos
Previdência Social. substitutos, os requisitos mínimos de capacitação definidos em
Denomina-se prestações previdenciárias as obrigações de ato do Presidente do INSS. (...)
dar e de fazer da Previdência Social para com os segurados e
seus dependentes. Não permanece a cargo do INSS a fiscalização das
Uma vez ocorrida a hipótese de que trata a norma, é contribuições sociais destinadas aos terceiros.
obrigação do ente previdenciário conceder a prestação
prevista em lei, nos estritos ditames do que ali esteja A Receita Federal do Brasil (RFB) acumula as
determinado. Ao beneficiário, por seu turno, não comporta a competências atuais da Receita Federal, com a competência
renúncia do direito à prestação que lhe é devida, salvo se visa para planejar, executar, acompanhar e avaliar as atividades
outra, que lhe seja mais benéfica. Contudo, o beneficiário terá relativas à tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e
direito aos benefícios a partir da data do requerimento, sendo recolhimento das contribuições previdenciárias das empresas,
retroativo apenas nos casos expressos em lei. dos trabalhadores e dos empregadores domésticos. Passou
A gestão do RGPS é realizada pelo Instituto Nacional do também a ser responsabilidade da RFB a fiscalização das
Seguro Social - INSS, autarquia federal responsável pela contribuições devidas a terceiros, assim entendidas outras
concessão e manutenção dos beneficios e serviços do RGPS. entidades e fundos, bem como a contribuição para o salário-
A estrutura organizacional do INSS, disciplinada pelo educação. Assim, passa a ser competência da RFB a
Decreto nº 7.556, de 24 de agosto de 2011., contempla fiscalização, de forma geral, das contribuições previdenciárias.
Gerências Regionais, Gerências-Executivas, Agências da
Previdência Social, Auditorias e Corregedorias Regionais, Regimes próprios de previdência social.
Procuradorias Regionais e Seccionais, bem como as Agências
de Benefícios por Incapacidade e de Atendimento de O Regime de Previdência dos Servidores Públicos,
Demandas Judiciais. As competências dessas unidades são denominado Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) tem
detalhadas na Estrutura Regimental do INSS, disciplinada pela suas políticas elaboradas e executadas pelo Ministério da
Portaria nº 296, de 09 de novembro de 2009. Previdência Social (MPS). Neste Regime, é compulsório para o
A gerência executiva gerencia, supervisiona, organiza e servidor público do ente federativo que o tenha instituído, com
comanda a execução das ações das Agências da Previdência teto e subtetos definidos pela Emenda Constitucional nº
Social; assegura o controle social, em especial por meio da 41/2003. Excluem-se deste grupo os empregados das
manutenção dos Conselhos de Previdência Social. No âmbito empresas públicas, os agentes políticos, servidores
das procuradorias, representa judicial ou extrajudicialmente o temporários e detentores de cargos de confiança, todos
INSS e as instituições de que seja mandatário ou com as quais filiados obrigatórios ao Regime Geral.
mantenha convênio.

Conhecimentos Específicos 81
APOSTILAS OPÇÃO

Os regimes próprios são instituídos e organizados pelos Regulamentação do setor: O legislador optou por criar
respectivos entes federativos de acordo com as normas órgãos distintos para regulamentar cada um dos setores de
estabelecidas na Lei nº 9.717/98, que iniciou a previdência complementar. Assim, no segmento de
regulamentação desses regimes. A partir da instituição do previdência fechado, a função de órgão regulador é realizada
regime próprio, por lei, os servidores titulares de cargos pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, por
efetivos são afastados do Regime Geral de Previdência Social – intermédio do Conselho de Gestão da previdência
RGPS. Complementar. No segmento de previdência aberta, a função
de órgão regulador é realizada pelo Ministério da Fazenda, por
Regime de previdência complementar. intermédio do Conselho Nacional de Seguros Privados.

Além desses regimes que filiam compulsoriamente os Fiscalização: No segmento de previdência fechada, a
trabalhadores, temos o Regime Complementar de Previdência função de órgão fiscalizador é realizada pelo Ministério da
Social, que é de ingresso facultativo. Observe que a filiação a Previdência e Assistência Social, por intermédio da Secretaria
algum plano de previdência complementar não tira o caráter de Previdência Complementar (SPC). No segmento de
de obrigatoriedade da filiação ao regime básico. Ela pode ser previdência aberta, a função de órgão fiscalizador é realizada
privada ou pública, podendo a privada ser aberta ou fechada e pela Susep.
a pública somente fechada.
Qualquer pessoa pode se filiar a uma entidade aberta de Carência: Os planos de previdência fechada possuem
previdência complementar privada, diferentemente do carência mínima de 60 contribuições mensais. Os de
segmento fechado, que é de ingresso restrito às pessoas que previdência aberta têm carência variável, portanto o
compõem determinado grupo (como empregados de consumidor deve se assegurar previamente dessa exigência
determinada empresa). As entidades fechadas de nos contratos a serem firmados.
previdência complementar privada também são conhecidas
como fundos de pensão. Assim, uma pessoa que já é filiada ao Revisão de cláusulas contratuais: As cláusulas
RGPS pode, facultativamente, contribuir para o fundo de contratuais de um plano de previdência complementar podem
pensão de sua empresa e tornar sua aposentadoria superior ao ser revistas. É um direito básico do consumidor, previsto no
teto do INSS. inciso V, artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor, a
Já as entidades fechadas de previdência complementar modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam
pública são destinadas aos entes federados que limitam a prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos
aposentadoria de seus servidores ao teto do INSS. Nesse caso, supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
o servidor poderá, facultativamente, contribuir sobre o que
falta para a entidade fechada de previdência complementar Portanto, esquematizando os regimes previdenciários
pública e obter a equiparação de valores entre aposentadoria temos:
e remuneração. No caso da União, essa entidade é o Fundo de
Pensão dos Servidores Públicos Federais – FUNPRESP. Regimes Previdenciários
As Entidades Fechadas de Previdência Complementar Regimes Básicos Regime Complementar
atuam sob a forma de fundações de direito privado ou de Regime Regimes Entidades Privadas Entidades
sociedade civil e não possuem fins lucrativos, logo, todos os Geral Próprios Públicas
recursos aplicados são revertidos para o próprio fundo. São (RGPS) (RPPS) Abertas Fechadas Fechadas
acessíveis exclusivamente a empregados vinculados a algum
empregador (patrocinador) ou a associados/membros de Previdência Complementar no Brasil
pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial
(instituidor). No Brasil, a Lei Eloy Chaves, de 24 de janeiro de 1923, foi o
marco inicial da previdência social, consolidando o sistema
Plano de previdência complementar: É um contrato de com a criação da caixa de aposentadorias e pensões dos
adesão entre o consumidor e uma empresa de previdência ferroviários. Após sua publicação, outras empresas foram
aberta ou fechada, que têm por objeto a prestação de serviços contempladas e seus empregados também passaram a ser
de gestão financeira dos recursos depositados pelos segurados da previdência, primeiro por meio das
participantes, com a finalidade de promover a capitalização de denominadas caixas de aposentadorias e pensões e,
valores para a formação de uma reserva de capital em nome posteriormente, por intermédio dos institutos de
do aderente, o qual terá o direito de, após um prazo aposentadorias e pensões (os IAPs).
contratado, receber prestações mensais continuadas e Por sua vez, a Previdência Complementar Brasileira
vitalícias. Como tais prestações teoricamente servirão para passou por diferentes fases, sendo a primeira (anterior à Lei
complementar a aposentadoria recebida pelo consumidor, n.º 6.435, de 15 de julho de 1977) associada às grandes
passaram a receber a denominação de planos de previdência empresas estatais da qual é exemplo a PREVI (à época CAPRE),
complementar. fundada em 1904 por empregados do Banco da República do
Os fundos de previdência não são garantidos por recursos Brasil.
dos Governos Federal, Estadual ou Municipal. Estes fundos não A segunda fase surgiu com a edição da Lei n.º 6.435, de
contam com qualquer garantia de recursos provenientes, seja 1977 - primeiro marco legal regulamentador do setor -
direta, seja indiretamente, dos entes públicos. Pelo contrário, aprovada em um ambiente de incentivo ao mercado de
a lei veda expressamente qualquer operação de socorro com capitais, tendo como uma das finalidades disciplinar os fundos
recursos federais, estaduais ou municipais. de pensão como captadores de poupança popular de maneira
Deste modo, o consumidor que desejar aderir a estes a carrear investimentos para a Bolsa de Valores, estando
planos deve estar ciente que não tem qualquer garantia por portanto no mesmo contexto da revisão da legislação sobre
parte do setor público de efetivamente receber de volta os sociedades anônimas (Lei n.º 6.404, de 15 de dezembro de
recursos que está depositando para capitalizar o fundo e que 1976).
está vulnerável a problemas de mercado financeiro e de má
gestão dos recursos aplicados. A terceira fase (modernização normativa) teve início com
a Emenda Constitucional n.º 20, de 15 de dezembro de 1998,
que modificou o texto do art. 202 da Constituição Federal. A

Conhecimentos Específicos 82
APOSTILAS OPÇÃO

nova redação estabeleceu a edição de duas leis Art. 204. As ações governamentais na área da assistência
complementares: uma prevista no caput do mencionado social serão realizadas com recursos do orçamento da
dispositivo, que introduz normas gerais sobre a Previdência seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e
Complementar, materializada na Lei Complementar n. º 109, organizadas com base nas seguintes diretrizes:
de 29 de maio de 2001; e outra, prevista no § 4º do art. 202, I - descentralização político-administrativa, cabendo a
que dispõe sobre as normas específicas para disciplinar a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a
relação entre a administração pública direta e indireta e suas coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas
respectivas entidades fechadas de Previdência Complementar, estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de
sobretudo no que se refere à governança e custeio, assistência social;
concretizada na Lei Complementar n.º 108, de 29 de maio de II - participação da população, por meio de organizações
2001. O ilustre doutrinador Leonardo André Paixão interpreta representativas, na formulação das políticas e no controle das
da seguinte maneira este fato: “O movimento de modernização ações em todos os níveis.
da legislação que rege a Previdência Complementar teve início Parágrafo único. É facultado aos Estados e ao Distrito
com a Emenda Constitucional n.º 20, de 15.12.1998. Esta Federal vincular a programa de apoio à inclusão e promoção
emenda deu nova redação ao art. 202 da CF, que tratava de social até cinco décimos por cento de sua receita tributária
outro tema, dedicando-o inteiramente à Previdência líquida, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de:
Complementar. Fez-se a opção por disciplinar a Previdência I - despesas com pessoal e encargos sociais;
Complementar dentro do título da Ordem Social da CF”. II - serviço da dívida;
III - qualquer outra despesa corrente não vinculada
Na sequência do aperfeiçoamento da legislação veio a diretamente aos investimentos ou ações apoiados.
Emenda Constitucional n.º 40, de 29 de maio de 2003, que deu
nova redação ao artigo 192 que trata do sistema financeiro A assistência social é uma política do Estado e tem como
nacional, suprimindo do dispositivo que integra o Título da finalidade inserir a população no sistema de bem-estar
Ordem Econômica a referência a seguros, previdência e brasileiro. Os objetivos que definem o campo a que a
capitalização. Deste modo, sob o prisma constitucional, a seguridade social atribui natureza específica da assistência
Previdência Complementar tornou-se um tema evidentemente social e referência do conceito legal de serviços assistenciais,
inserido no âmbito social. no campo dos serviços sociais.
A assistência social entra no texto constitucional, com a
Por último, mencione-se que a Emenda Constitucional n.º característica de cartas políticas, caracterizando-se pela
41, de 19 de dezembro de 2003, alterou o art. 40 da Carta vontade política dos constituintes.
Magna, estabelecendo nos parágrafos 14 a 16 a possibilidade Com a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e
de criação, por lei ordinária, de um regime de Previdência Combate à Fome, nele integrada à Secretaria Nacional de
Complementar para o servidor público de cargo efetivo. Assistência Social e a implementação do SUAS, a gestão da
política nacional de assistência social tornou efetivo o
Atualmente, a Constituição Brasileira prevê três regimes programa constitucional.
de previdência: regime geral de previdência social (art. 201);
regime de Previdência Complementar (art. 202); e os regimes A assistência social, na história foi eleita como uma das três
próprios dos servidores públicos efetivos (art. 40), que instituições políticas fundamentais para a seguridade social,
incluem a possibilidade de um sub-regime (misto) específico juntamente com a saúde e a previdência social. Isso revela à
de Previdência Complementar na forma prevista nos superação do assistencialismo, da filantropia e da
parágrafos 14 a 16 acima referidos. hermenêutica social progredindo para a profissionalização da
atividade pública, tanto no atendimento às necessidades
Assistência Social básicas da população como a situação de risco e
vulnerabilidade social, com a reconstituição das relações
A assistência social encontra-se disciplinada nos artigos familiares e profissionais.
203 e 204 da Constituição Federal. É destinada aos Difere-se da saúde que tem natureza universal e da
hipossuficientes, ou seja, àqueles que dela necessitam, previdência social, que se restringe aos segurados, pelo fato da
independente de contribuição. Direciona-se, portanto, àquelas assistência ir ao encontro da população em risco e
pessoas que estão fora do mercado de trabalho, sem proteção vulnerabilidade social. Trata-se de um direito que não precisa
previdenciária e em condições indignas de vida. Interagem de contribuição, assim como o direito da cidadania.
com os dois outros subsistemas, completando-os, em busca da
realização de princípios constitucionais fundamentais, como a O assistencialismo predominou na origem da formação do
dignidade da pessoa humana, o bem-estar e a justiça social. serviço social, o processo de sua institucionalização acadêmica
Vejamos os referidos dispositivos da Constituição Federal: e disciplinar originalmente apresenta-o como prática social de
cunho filantrópico. Atualmente, a assistência social tem
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela natureza institucional e profissional, configurando-se como
necessitar, independentemente de contribuição à seguridade múnus publico.
social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à Família e Inclusão Social
adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; Na família encontramos certa pluralidade de relações
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; interpessoais e diversidades culturais, que precisam ser
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de reconhecidas e respeitadas, por meio de vínculos
deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; comunitários, de acordo com o grupo social que se encontra.
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à
pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não A convivência familiar vai além do mero rendimento de
possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la renda per capita, para se fixar no núcleo afetivo, não apenas
provida por sua família, conforme dispuser a lei. por laços consanguíneos, mas ainda por relações de gênero. O
poder público somente irá interferir quando for constatada a
desagregação social, total ou parcial, com a finalidade de

Conhecimentos Específicos 83
APOSTILAS OPÇÃO

recompor a sua funcionalidade ou por meio de família Na LOAS, a assistência social é qualificada subjetivamente,
substituta. do ponto de vista do cidadão; na LOAS, objetivamente, como
política de Estado, a serviço da população.55
Atualmente, encontramos nas famílias um sentimento
sentimentos contraditórios, marcados por conflitos, de toda a O conceito de assistência social, vinculam-se ao
ordem, principalmente pelo exacerbado consumismo, seja nas fundamento constitucional do próprio processo de exclusão
famílias mais pobres, quanto nas que têm mais condições social e compromisso com a institucionalização da cidadania,
financeiras. como direito constitucional, considerando-se a integração na
Muitos valores mudaram, como hoje é difícil manter um família e no trabalho.
filho, os pais pensam em ter um filho ou até mesmo nenhum e
além disso, o divórcio tem se tornado comum no seio familiar, Tanto a LOSS como a LOAS declaram que o direito à
que não notamos mais uma luta pela manutenção do assistência independe de contribuição. A LOAS, entretanto,
casamento. torna explícito o caráter político dessa isenção ao declarar a
assistência como um direito do cidadão e dever do Estado.
São nesses casos que entra a assistência social, para
proteger, prevenir e reestabelecer a inclusão igualitária de A CF/88 promoveu a assistência como instituição política
todos os membros da família. Para isso, o assistente social estatal e não o serviço social, assim como a saúde e não a
precisa fazer em estudo da base da família, sua estrutura, medicina, educação e não o ensino e assim por diante. A
analisando as situações que geram conflitos. assistência como instituição de nível constitucional, propiciou
o reconhecimento de sua natureza de política pública.
Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS
O artigo 1º da LOAS divide-se em duas partes, uma define
Estado e Políticas Públicas a assistência como política securitária, para prover os mínimos
sociais e a segunda parte, referida às ações sociais, integradas
O plano nacional e o sistema único de assistência social com essa finalidade.
visa integrar as políticas assistenciais, entre os três níveis O Conselho Nacional de Segurança Social (CNSS) foi
federativos e com as demais políticas sociais, para assegurar extinto, sendo que as atribuições ficaram a cargo do CNAS, que
que a eficácia das ações atinja plena integração social, inaugurou uma nova fase, diversa da que existia na tradicional
principalmente com programas de qualificação profissional. CNSS.

A Lei 9.533/1997, autorizou o Executivo federal a Contudo, a assistência social integra-se inicialmente, ao
conceder apoio financeiro a municípios que instituam Ministério do Bem-Estar Social – MBES, como órgão
programas de garantia de renda mínima e associações coordenador da política nacional da seguridade social. A Lei
socioeducativas, como o programa Bolsa-Escola, Programa 10.869/2004 extinguiu o MAS, incluindo a assistência social,
Nacional de Acesso à Alimentação, Bolsa Família. sendo que o CNAS geriu o Plano Nacional e o Fundo Nacional
A eficácia dessas políticas, a partir da LOAS, passa a exigir de Assistência Social.
um novo padrão de relacionamento dentre os entes
federativos, no que diz respeito ao papel das administrações Sistema Único de Assistência Social (SUAS)
estaduais e sua co-responsabilidade, tendo em vista as
políticas implantadas e dirigidas pelo governo federal. O SUAS é o sistema que consolida a Política Nacional de
Assistência Social, e tem como funções assistenciais: a
proteção social, a vigilância social e a defesa dos interesses
O artigo 1º da LOAS institui como direito subjetivo público. socioassistenciais.
A assistência é um dever do Estado e de acordo com o Fórum O Plano Nacional de Assistência Social, instituiu a criação
da Assistência Social da Penitenciária Universidade Católica de do SUAS, como um modelo de gestão pública, descentralizado
São Paulo, no âmbito dos debates da I Conferência da e participativo, tendo como base o território e a família. O
Assistência Social da Cidade de São Paulo, a LOAS é a lei que objetivo é a integração de todos os entes interessados na
assegura a assistência à população, como um direito da política nacional de assistência social, gestores, conselheiros
cidadania. em um processo participativo e democrático, com base na
relação unificada entre Estados e municípios.
Representou a maioridade jurídica da assistência social, Através do artigo 5º da LOAS, pode-se prever a
instituindo o seu estatuto como política pública de Estado, descentralização político-administrativa para os Estados, DF e
integrada a seguridade social, inicialmente no âmbito do ex- municípios, a participação da população, por intermédio dos
MBES, atualmente no Ministério do Desenvolvimento Social e conselhos e a primazia da responsabilidade do Estado, na
do Combate à Fome – MDS. condução da política de assistência social, em cada esfera de
governo.
Institui o Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS e
os conselhos estaduais e municipais, uma inovação do Centro de Referência de Assistência Social - CRAS
princípio democrático da CF/88 de participação direta da
população, nas decisões do Poder Executivo. O CRAS é um equipamento estatal, com base territorial,
localizado em áreas de vulnerabilidade social, atingindo a um
Segundo a Lei, a assistência tem por finalidade assegurar a total de até mil famílias, com a finalidade de organizar,
prestação das necessidades básicas, com base nas políticas coordenar e executar os serviços de proteção social básica da
públicas, com a participação da comunidade. Para a redução política assistencial.
dos níveis de pobreza são previstas estratégias de criação de
programas de geração de trabalho e renda, com proteção à O objetivo é uma referência local de assistência social,
maternidade, as crianças e aos adolescentes. concretizando os direitos sociaassistenciais, ofertando e

55 SIMÕES, Carlos. Curso de Direito do Serviço Social. 3ª edição. São Paulo:

Cortez, 2009.

Conhecimentos Específicos 84
APOSTILAS OPÇÃO

coordenando, em rede, as ações que previnam situações de ou do governador ou prefeito, de acordo com o nível federativo
risco social, através de desenvolvimento de potencialidades e em que é requerida, a pedido ou ex officio.
do fortalecimento dos vínculos familiares e comunicatários.
Possui isenção de tributos municipais, estaduais ou
Entidades e Organização de Assistência Social federais de acordo com o nível da Federação em que tiver sido
reconhecida, podendo receber subvenções do mesmo Poder.
A Administração Pública assegura o desenvolvimento de Se forem recebidas doações de particulares, estas são
ações sociais, em parceria com a sociedade civil, por meio de dedutíveis da renda bruta, para fins de imposto de renda.
convênios com entidades e organizações de assistência social.
A lei 8.662/1993, por sua vez, atribui ao assistente social a Entidades de Fins Filantrópicos
competência para formular e executar políticas sociais nas
organizações de sociedade civil. A filantropia, aconteceu através das Santas Casas de
Misericórdia. O primeiro vínculo encontrado de natureza geral
Com a implantação do SUAS, as entidades da sociedade se deu com a instituição do Conselho Nacional de Serviço
civil passaram a integrar-se um sistema único de natureza Social (CNSS), que era encarregado de dar opiniões sobre o
pública. recebimento de subvenções sociais.
O Conselho Nacional de Assistência Social, ao constituir as Essa situação se estendeu até a Constituição de 1988, que
redes socioassistenciais do SUAS, visam implementar o PNAS, instituiu a Seguridade Social
de acordo com necessidade de estabelecer parâmetros
fundamentais que ficassem delimitados, assim, essas A fiscalização dessas entidades cabia ao conselho
entidades e organizações teriam suas atividades em municipal de assistência social em que se localizavam e que
reciprocidade de ações inseridas na rede de proteção básica e deviam ser inscritas.
especial, com foco voltado para a família, de modo articulado e Começaram a surgir denúncias de irregularidades feitas
integrado. por universidades particulares, planos de saúde privados e
entidades pseudofilantrópicas, que usavam a lei para usufruir
A própria Constituição adota diversas denominações dos privilégios legais, sem se preocuparem em darem os
acerca das entidades e organizações sem fins lucrativos, benefícios que prometiam.
incluindo as filantrópicas. As variadas denominações ocorrem O desvio de recursos públicos era gritante e como a LOAS
por expressarem diferentes finalidades estatutárias dessas e a instituição do CNAS, a chance desses desvios ocorrerem
entidades. acabou diminuindo, já que o conselho desdobra-se nos Estados
e tem ramificações nos municípios, em sua função
Para que as entidades e organizações assistenciais fiscalizadora. Além disso, a idoneidade de seus membros passa
funcionem corretamente é necessário que se faça a inscrição a ser assegurado, em princípio, pela Procuradoria Geral da
no conselho municipal de assistência social ou do Distrito República, que organizou sua eleição.
Federal, ao qual compete a fiscalização de suas atividades,
independentemente de receberem recursos diretamente da Com a instituição da assistência social, saúde e educação
União, Estados, DF ou municípios. Essa inscrição se faz como políticas públicas e de seus destinatários sob a ótica da
obrigatória em todos os municípios em que as entidades ou cidadania, a filantropia passou a ser concebida quando as
organizações tenham autuado, independentemente da empresas ou entidades promovem-na através de seus
inscrição originária de sua sede ou atividade principal. próprios recursos privados, para instituir ação social.

A inscrição, nada mais é do que o reconhecimento da Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público
natureza de assistência social dos serviços, programas, – OSCIPs
projetos e se constitui em requisito essencial para sua
vinculação ao SUAS. OSCIP é um título fornecido pelo Ministério da Justiça do
Brasil, cuja finalidade é facilitar o aparecimento de parcerias e
Titulação das Entidades e Organizações convênios com todos os níveis de governo e órgãos públicos
(federal, estadual e municipal) e permite que doações
As entidades e organizações classificam-se de acordo com realizadas por empresas possam ser descontadas no imposto
a sua natureza jurídica, devendo-se observar que geralmente de renda. OSCIPs são ONGs criadas por iniciativa privada, que
possui características de várias naturezas a serem examinadas obtêm um certificado emitido pelo poder público federal ao
em seus estatutos ou contrato social. comprovar o cumprimento de certos requisitos, especialmente
aqueles derivados de normas de transparência
Tratam-se de associações ou fundações que, além de suas administrativas. Em contrapartida, podem celebrar com o
características, agregam uma ou várias qualificações. Os poder público os chamados termos de parceria, que são uma
títulos ou qualificações concedidos pelo Poder Público às alternativa interessante aos convênios para ter maior
entidades e organizações são: utilidade pública, entidades agilidade e razoabilidade em prestar contas.
filantrópicas, entidades beneficente de assistência social, Uma ONG (Organização Não-Governamental),
organização de sociedade civil de interesse público e essencialmente é uma OSCIP, no sentido representativo da
organizações sociais. sociedade, OSCIP é uma qualificação dada pelo Ministério da
O registro permite o acesso a fundos e o recebimento de Justiça no Brasil.
subvenções e convênios com o CNAS. A lei que regula as OSCIPs é a nº 9.790, de 23 março de
1999. Esta lei traz a possibilidade das pessoas jurídicas
a. Entidades de Utilidade Pública: são entidades sem fins (grupos de pessoas ou profissionais) de direito privado sem
lucrativos, cuja utilidade é declarada pública pelo governo fins lucrativos serem qualificadas, pelo Poder Público, como
federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal. Uma Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público - OSCIPs
entidade pode ser reconhecida em determinado nível e poderem com ele relacionar-se por meio de parceria, desde
federativo, ainda que não seja nos demais. A declaração de que os seus objetivos sociais e as normas estatutárias atendam
utilidade pública dá-se por decreto do Presidente da República os requisitos da lei.

Conhecimentos Específicos 85
APOSTILAS OPÇÃO

Um grupo recebe a qualificação de OSCIP depois que o patrimônio; de igual modo, os excedentes financeiros
estatuto da instituição, que se pretende formar, tenha sido decorrentes de suas atividades;
analisado e aprovado pelo Ministério da Justiça. Para tanto, é b) finalidade social em qualquer das áreas previstas na lei:
necessário que o estatuto atenda a certos pré-requisitos que ensino, saúde, cultura, ciência, tecnologia e meio ambiente;
estão descritos nos artigos 1º, 2º, 3º e 4º da Lei nº 9.790/1999. c) possuir órgãos diretivos colegiados, com a participação
de representantes do Poder Público e da comunidade;
Quem tomou iniciativa para implementação desta lei foi o d) publicidade de seus atos;
Conselho da Comunidade Solidária que explicitou os e) submissão ao controle do Tribunal de Contas dos
princípios norteadores em face às entidades filantrópicas e de recursos oficiais recebidos (o que já existe);
utilidade pública. f) celebração de um contrato de gestão com o Poder
A OSCIP caminha ao lado das entidades filantrópicas e Público, para a formação da parceria e a fixação das metas a
beneficentes de assistência social e com eles não se confunde. serem atingidas e o controle dos resultados.

Organizações Sociais - OSs Qualificar uma entidade como organização social é ato
discricionário do poder Público, devendo realizar o exame da
Nas áreas de ensino, saúde, educação, pesquisa científica, conveniência e oportunidade da decisão, cabendo esta ao
cultura, preservação do meio ambiente, entre outros, Ministro ou titular do órgão supervisor ou regulador da área
encontramos a atuação dessas organizações. de atividade da entidade.
As OSs passarão a exercer serviços públicos que eram
atribuídas à administração direta estatal, a qual apenas passa Parceria Público Privada – PPP
a supervisioná-los através de um contrato de gestão, em que
serão descritas as respectivas atribuições, responsabilidades e No estado de São Paulo as PPP’s foram instituídas pela Lei
obrigações. 11.688/2004 e regulamentada pelo Decreto 48.867/2004,
com a Companhia Paulista de Parcerias, empresa estatal que
OBS: No Estado de São Paulo elas atuam nas unidades de tem como finalidade a viabilização em projetos de
saúde. infraestrutura.

A Administração Pública pode outorgar um título ou As parcerias público-privadas surgiram como instrumento
qualificação à uma entidade privada, sem fins lucrativos, para regulador dos diversos setores da sociedade, uma nova
que ela possa receber alguns benefícios por parte do Poder modalidade de concessão, criadas com o objetivo de incentivar
Público, tais como dotações orçamentárias, isenções fiscais, o investimento privado em obras públicas de infraestrutura
entre outros. Assim, o título concedido é de Organização Social, estratégica, mediante a garantia de retorno do capital
cujo a finalidade da entidade deverá ser em prol do interesse investido ao parceiro privado, corrigindo as distorções
da comunidade. provocadas com a ingerência direta do Estado no setor
Importante frisar que o termo organização social é muito econômico.
genérico, sendo que ambas palavras possuem significado No Brasil, apesar de abrir um campo largo para a criação
muito abrangente. Contudo, nota-se que foi a denominação de projetos, o regime de PPP tem limites na Lei de Licitações,
que o legislador optou por usar, substituindo o termo utilidade na Lei de Concessões e na Lei de Responsabilidade Fiscal.
pública, que passou a ter conotação pejorativa, graças à Portanto, o sucesso dos contratos de PPP depende de uma
entidades que diziam ter interesse público, mas atendiam estabilização legal e regulatória, que reduza os riscos e ofereça
somente à particulares. garantias consistentes ao capital privado, para que a confiança
O assunto está disposto na Lei 9.637/1998 (na íntegra ao na sustentabilidade do crescimento possa auxiliar no
final deste tópico), que informa que o Poder Público poderá estabelecimento de uma política industrial consistente e em
qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de uma estabilidade institucional no plano político-social.
direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sociais
sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao Em poucas palavras, pode-se dizer que a parceria público-
desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do privada nada mais é do que o contrato administrativo de
meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos os requisitos concessão que tem como finalidade a execução do serviço
previstos nesse mesmo diploma56. público, precedida ou não de obra pública. Sua remuneração
O objetivo na criação da organizações sociais foi a será por meio de tarifa paga pelo usuário e contraprestação
possibilidade de transferência para as mesmas, de certas pecuniária do parceiro público.
atividades que são exercidas pelo Poder Público e que
poderiam ser melhor executadas pela iniciativa privada, De acordo com a lei da PPP, as parcerias podem ser de dois
dispensando a necessidade de concessão ou permissão. tipos: 57
O Código Civil elenca quais são as pessoas jurídicas de
direito privado (Art. 16, I), como sendo sociedades civis, Concessão Patrocinada: As tarifas cobradas dos usuários da
religiosas, científicas, literárias e até mesmo as fundações. concessão não são suficientes para pagar os investimentos
Para que possam ser consideradas organizações sociais, o feitos pelo parceiro privado. Assim, o poder público
importante é que se ajustem aos requisitos da lei, mesmo que complementa a remuneração da empresa por meio de
tenham sido recém criadas especificamente para este fim. contribuições regulares, isto é, o pagamento do valor mais
imposto e encargos.
Os requisitos básicos para o enquadramento como
organização social são: Concessão Administrativa: Quando não é possível ou
conveniente cobrar do usuário pelo serviço de interesse
a) não podem ter finalidade lucrativa e todo e qualquer público prestado pelo parceiro privado. Por isso, a
legado ou doação recebida deve ser incorporado ao seu remuneração da empresa é integralmente feita por pelo poder
público.

56AZEVEDO, Eurico de Andrade. Organizações Sociais. Disponível em: 57 http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2012/04/parceria-


http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista5/5rev6.htm, publico-privada-ppp
Acesso em: 02/06/2015

Conhecimentos Específicos 86
APOSTILAS OPÇÃO

Trabalho Voluntário privado começou a ajudar nas questões sociais, através das
inúmeras instituições que compõem o chamado terceiro setor.
Os trabalhos voluntários tiveram início no Brasil, nas Ou seja, o terceiro setor é constituído por organizações sem
igrejas e hospitais. fins lucrativos e não governamentais, que tem como objetivo
Sua instituição legal ocorreu com a Lei 9.608/1998, que gerar serviços de caráter público. Os principais personagens
define o trabalho voluntário como atividade não remunerada, do terceiro setor são:
que pode ser prestada por qualquer pessoa física a entidade A) Fundações: São as instituições que financiam o terceiro
pública de qualquer natureza ou instalações privadas de fins setor, fazendo doações às entidades beneficentes. No Brasil,
não lucrativos. temos também as fundações mistas que doam para terceiros e
Devido a isso, não há que se falar em vínculo empregatício ao mesmo tempo executam projetos próprios.
ou ônus previdenciários, trabalhistas e outros, já que não há B) Entidades Beneficentes: São as operadoras de fato,
remuneração. cuidam dos carentes, idosos, meninos de rua, drogados e
alcoólatras, órfãos e mães solteiras; protegem testemunhas;
Mãe Social ajudam a preservar o meio ambiente; educam jovens, velhos e
adultos; profissionalizam; doam sangue, merenda, livros,
A lei 7.644/1987 autorizou as instituições sem fins sopão; dão suporte aos desamparados; cuidam de filhos de
lucrativos ou de utilidade pública as crianças abandonadas e mães que trabalham; ensinam esportes; combatem a violência;
que funcionem sob o sistema de casas-lares a utilizar mães promovem os direitos humanos e a cidadania; cuidam de
sociais, que tenham no mínimo 25 anos de idade e cursem o cegos, surdos-mudos; enfim, fazem tudo.
primeiro grau. C) Fundos Comunitários: As empresas doam para o
A casa-lar define-se como a unidade residencial de até 10 Fundo Comunitário, sendo que os empresários avaliam,
crianças, que fique sob a responsabilidade de uma mãe social, estabelecem prioridades, e administram efetivamente a
que resida nesse lar. Para fins previdenciários, as crianças são distribuição do dinheiro. Um dos poucos fundos existente no
consideradas seus dependentes e seu contrato de trabalho Brasil, com resultados comprovados, é a FEAC, de Campinas.
deve ser registrado na CTPS. D) Entidades Sem Fins Lucrativos: Infelizmente, muitas
Trabalho Temporário entidades sem fins lucrativos são, na realidade, lucrativas ou
atendem aos interesses dos próprios usuários. Um clube
No trabalho temporário, os servidores são contratados por esportivo, por exemplo, é sem fins lucrativos, mas beneficia
um período certo e determinado, por força de uma situação de somente os seus respectivos sócios.
excepcional interesse público. Não são nomeados em caráter E) ONGs Organizações Não Governamentais: Nem toda
efetivo, que tem como qualidade a definitividade – (art. 37, inc. entidade beneficente ajuda prestando serviços a pessoas
IX, da Constituição Federal). diretamente. Uma ONG que defenda os direitos da mulher,
fazendo pressão sobre nossos deputados, está ajudando
O trabalho temporário é regulado pela Lei nº 6.019/74 - é indiretamente todas as mulheres.
aquele prestado por pessoa física a uma empresa para atender
à necessidade transitória de substituição de seu pessoal A profissão e a lei do Assistente Social
regular e permanente ou a acréscimo extraordinário de
serviços. O vínculo empregatício do trabalhador temporário O assistente social é regulado pela lei 8.662/1993, que tem
não se dá com a empresa tomadora de serviços, mas sim com como finalidade o controle de procedimentos e a natureza dos
a empresa de trabalho temporário. serviços profissionais, através dos quais se realizam os
Essa modalidade de contratação tem como objetivo princípios constitucionais da assistência social, que diz
atender a serviços extraordinários de serviços (época de respeito à saúde, educação, previdência social e outra
Páscoa e Natal), além de atender à necessidade transitória de atividades sociais.
substituição de pessoal regular e permanente.
O contrato do trabalhador temporário deve ser feito de Muitos se enganam com o momento em que se torna um
forma escrita, além de constar expressamente a causa que assistente social. Quando se forma na faculdade oficialmente
enseja sua contratação. reconhecida, ganha-se o título de bacharel em serviço social,
Quanto ao prazo, este não poderá exceder 3 meses, caso no entanto, quando faz-se o registro no CRESS, é que se pode
seja a mesma empresa tomadora e o mesmo empregado, salvo de fato qualificar o assistente social.
autorização conferida pelo órgão local do Ministério do Em casos de cancelamento, o assistente social não perde
Trabalho e Previdência Social. No aludido instrumento deve seu título universitário.
constar expressamente o prazo que vigerá o contrato, data de
início e término da prestação de serviço. A disciplina e fiscalização do exercício profissional fica a
cargo do Conselho Federal de Assistentes Sociais – CFAS e aos
Estagiários Conselhos Regionais de Assistentes Sociais – CRAS, criando
regras para sua constituição e funcionamento, determinando a
O estagiário é considerado ato educativo escolar. É uma publicação do Código de Ética profissional, que foi publicado
forma de integração entre o que a pessoa aprende na escola e na Revista Social, nº 48, ano VII, São Paulo.
aplica na prática na empresa.
Distingue-se o estagiário do aprendiz: O estagiário não é A atual regulamentação se deu com a Lei 8.662/1993, onde
empregado, desde que cumpridas as determinações da Lei Nº o artigo 24, revoga a Lei 3.2052/1957.
11.788/08. O aprendiz sempre será empregado, tendo
contrato de trabalho (artigo 428 da CLT). Trata-se de uma A profissão teve origem no Brasil, através das ações sociais
espécie de contrato de trabalho especial. de cunho católico, que cresceram com a intervenção privada
ou do Estado, principalmente a partir de 1940.
Terceiro Setor
Sob a égide sindical, os assistentes sociais são uma
O primeiro setor é o governo, que é responsável pelas categoria de profissionais liberais e sua organização é
questões sociais. O segundo setor é o privado, responsável formulada pelo critério da identidade profissional, como
pelas questões individuais. Com a falência do Estado, o setor

Conhecimentos Específicos 87
APOSTILAS OPÇÃO

acontece com as demais categorias liberais, que engloba os São competências do CRESS:
médicos, advogados.
Art. 10. Compete aos CRESS, em suas respectivas áreas de
O Sindicato de São Paulo se extinguiu em virtude da jurisdição, na qualidade de órgão executivo e de primeira
decisão da Central Única dos Trabalhadores, de filiação instância, o exercício das seguintes atribuições:
sindical por ramo econômico ou de atividade e não I - organizar e manter o registro profissional dos Assistentes
profissionalização. Sociais e o cadastro das instituições e obras sociais públicas e
Grande parte dos assistente sociais trabalham no setor privadas, ou de fins filantrópicos;
estatal, sendo que a maior parte se concentra na área da saúde. II - fiscalizar e disciplinar o exercício da profissão de
Eles atuam não somente nas ações assistenciais, mas também Assistente Social na respectiva região;
nas diversas políticas públicas na esfera estatal, sobretudo III - expedir carteiras profissionais de Assistentes Sociais,
municipal e no setor privado. fixando a respectiva taxa;
IV - zelar pela observância do Código de Ética Profissional,
Segundo a Lei 8.662/1993, constituem competências do funcionando como Tribunais Regionais de Ética Profissional;
assistente social: V - aplicar as sanções previstas no Código de Ética
Profissional;
Art. 4º Constituem competências do Assistente Social: VI - fixar, em assembleia da categoria, as anuidades que
I - elaborar, implementar, executar e avaliar políticas sociais devem ser pagas pelos Assistentes Sociais;
junto a órgãos da administração pública, direta ou indireta, VII - elaborar o respectivo Regimento Interno e submetê-lo a
empresas, entidades e organizações populares; exame e aprovação do fórum máximo de deliberação do
II - elaborar, coordenar, executar e avaliar planos, conjunto CFESS/CRESS.
programas e projetos que sejam do âmbito de atuação do
Serviço Social com participação da sociedade civil; O CFESS é o órgão normativo de grau superior desse
III - encaminhar providências, e prestar orientação social a sistema, não tem competência para as funções executivas de
indivíduos, grupos e à população; suas deliberações.
IV - (Vetado); É uma espécie de tribunal de ética superior, de segunda e
V - orientar indivíduos e grupos de diferentes segmentos última instância administrativa para resolver os recursos
sociais no sentido de identificar recursos e de fazer uso dos oriundos dos regionais. O profissional que não estiver
mesmos no atendimento e na defesa de seus direitos; conformado com a decisão que fora proferida, poderá
VI - planejar, organizar e administrar benefícios e Serviços demandar sua reforma à instância ordinária da Justiça Federal.
Sociais;
VII - planejar, executar e avaliar pesquisas que possam Compete ao CFESS, de acordo com a Lei 8.662/1993:
contribuir para a análise da realidade social e para subsidiar
ações profissionais; Art. 8º Compete ao Conselho Federal de Serviço Social
VIII - prestar assessoria e consultoria a órgãos da (CFESS), na qualidade de órgão normativo de grau superior, o
administração pública direta e indireta, empresas privadas e exercício das seguintes atribuições:
outras entidades, com relação às matérias relacionadas no I - orientar, disciplinar, normatizar, fiscalizar e defender o
inciso II deste artigo; exercício da profissão de Assistente Social, em conjunto com o
IX - prestar assessoria e apoio aos movimentos sociais em CRESS;
matéria relacionada às políticas sociais, no exercício e na defesa II - assessorar os CRESS sempre que se fizer necessário;
dos direitos civis, políticos e sociais da coletividade; III - aprovar os Regimentos Internos dos CRESS no fórum
X - planejamento, organização e administração de Serviços máximo de deliberação do conjunto CFESS/CRESS;
Sociais e de Unidade de Serviço Social; IV - aprovar o Código de Ética Profissional dos Assistentes
XI - realizar estudos socioeconômicos com os usuários para Sociais juntamente com os CRESS, no fórum máximo de
fins de benefícios e serviços sociais junto a órgãos da deliberação do conjunto CFESS/CRESS;
administração pública direta e indireta, empresas privadas e V - funcionar como Tribunal Superior de Ética Profissional;
outras entidades. VI - julgar, em última instância, os recursos contra as
sanções impostas pelos CRESS;
As competências são qualificações profissionais de âmbito VII - estabelecer os sistemas de registro dos profissionais
geral, que são reconhecidas por esta lei, para a realização de habilitados;
serviços. Nas competências privativas VIII - prestar assessoria técnico-consultiva aos organismos
públicos ou privados, em matéria de Serviço Social;
CFESS e CRESS IX - (Vetado).

Os CRESS detêm a representatividade da categoria em sua Tanto o CFESS e os CRESS receberam delegação do poder
respectiva jurisdição administrativa. do Estado para cobrança de taxas, contribuições e
emolumentos dos profissionais.
Para a constituição de um CRESS, foi exigida a prévia Dentre os privilégios dos conselhos, podemos citar as
instalação de uma delegacia seccional, com a inscrição de, no prerrogativas processuais da Fazenda Pública, com a
mínimo, 500 profissionais, em exercício regular (inscrições impenhorabilidade de bens e rendas, imunidade fiscal.
não canceladas ou suspensas).
Os assistentes sociais são regidos pela CLT, contudo,
Além de sua função fiscalizadora e disciplinar, o CRESS discute-se no Judiciário, a condição de servidores públicos,
funciona como tribunal de ética da primeira instância, que se com ingresso por meio de concurso público de títulos e provas,
limita à jurisdição de sua base territorial. Possuem renda em regime estaturário.
própria, independente de dotação orçamentária estatal.
No campo das perícias sociais, os estudos do Serviço Social,
os estudos, laudos e perícias levam em consideração o conflito
social, que é feito pela autoridade administrativa ou judiciária,
seja de caráter coletivo quanto grupal.

Conhecimentos Específicos 88
APOSTILAS OPÇÃO

O estudo social possui caráter genérico, podendo se limitar


a descrição e análise de dados econômicos, demográficos,
familiares, de gênero.
13. direitos fundamentais da
O laudo pericial, por sua vez, é um estudo social que, além criança e do adolescente;
da descrição e análise, apresenta um parecer conclusivo, que
leva a uma solução do conflito.
BIBLIOGRAFIA
A ética profissional e o assistente social
32. Revista Serviço Social e Sociedade Nº 83. São Paulo:
O Código de Ética do assistente social resulta por Cortez, 2005.
determinação da lei profissional, de um ato de auto regulação
da categoria, através de seu órgão máximo, de representação, Por um sistema de promoção e proteção dos direitos
instituindo valores éticos que devem presidir a autonomia humanos de crianças e adolescentes
profissional. A Resolução 273/93 controla a conduta ético-
profissional do assistente social. O texto procura analisar as possibilidades de
enfrentamento das múltiplas formas de violação de direitos de
O Código de Ética deve ser interpretado como uma norma crianças e adolescentes, no Brasil, a partir da perspectiva dos
não contraditória, por sua própria natureza, já que se trata de direitos humanos e da institucionalização de um sistema de
um sistema que unifica e hierarquiza valores. promoção e proteção desses direitos. Numa linha
emancipadora, propõe-se que a partir dos marcos referenciais
Uma das finalidades do código de ética é assegurar ao dos direitos humanos, procure-se promover a construção da
profissional o exercício de suas prerrogativas. O desagravo equidade e da igualdade, na diversidade geracional (assim
público surge como modo de proteção e se trata do como, de gênero, raça/etnia, orientação sexual, localidade
profissional, que no exercício da profissão, sofre ofensas ou geográfica). Justifica-se a necessidade de se institucionalizar e
constrangimentos de uma pessoa física ou jurídica e vai em fortalecer um sistema de garantia de direitos em favor da
público se defender em prol da profissão. Trata-se de ofensa infância e da adolescência.
que, embora dirigida a uma pessoa determinada, sai desse
limite e atinge a própria profissão. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de
Menores: descontinuidades e continuidades
Um dos deveres mais visados é o sigilo profissional, que
restringe as informações obtidas no exercício da profissão. O O artigo introduz uma visão crítica do surgimento do
assistente social não pode divulgar fatos, que tenham sido Estatuto da Criança e do Adolescente, localizado nos marcos
relatados pelos usuários ou beneficiários, relativos a da programática neoliberal, tendo por base o esgotamento
privacidade de sua função. histórico-jurídico e social do Código de Menores de 1979, o
A violação do sigilo, além de constituir uma infração ética qual não respondia mais ao projeto político-ideológico das
é também crime contra a liberdade individual “novas” forças políticas que emergiam pós-ditadura militar.
Penalidades Jovens e oportunidades: a desnaturalização da cidade
desigual
De acordo com o artigo 24, da Resolução 273/1993, são
penalidades; O artigo debate alguns aspectos do desenvolvimento de
políticas voltadas para a juventude hoje. Seu objetivo é
Art. 24. As penalidades aplicáveis são as seguintes: demonstrar a implicação da dimensão do espaço como um dos
a) multa; elementos fundamentais para a compreensão das demandas
b) advertência reservada; dos jovens atualmente. Parte-se da perspectiva de que a
c) advertência pública; questão da relação entre juventude e cidade precisa ser
d) suspensão do exercício profissional; considerada em qualquer ação que pretenda superar práticas
e) cassação do registro profissional. reiterativas da submissão e penalização dos jovens pobres por
Parágrafo único. Serão eliminados dos quadros dos CRAS, suas duras condições de vida. Grande parte destas reflexões
aqueles que fizerem falsa prova dos requisitos exigidos nos baseia-se em uma experiência de trabalho com jovens em
Conselhos. desenvolvimento.
Para a aplicação das penalidades leva-se em conta os Adolescência, violência e sociedade punitiva
antecedentes profissionais do infrator e as circunstâncias em
que ocorreu a infração. A violência e a criminalidade, de que são vítimas e
protagonistas os jovens das periferias das grandes cidades
Referência brasileiras, é abordada no contexto da sociedade
contemporânea, centrada no consumo, e não na produção, em
SIMÕES, Carlos. Curso de Direito do Serviço Social. 3ª que o Estado desloca sua função de bem-estar social para a
edição. São Paulo: Cortez, 2009. segurança penal, sendo que a responsabilidade pelos
BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. infortúnios gerados pela exclusão do trabalho torna-se
Sistema Único de Saúde. Brasília: CONASS, 2007. individual e privatizada. São características da sociedade
ROLIM, Leonardo Barbosa; CRUZ, Rachel de Sá Barreto punitiva, em que a criminalidade da juventude tem causas
Luna Callou; SAMPAIO, Karla Jimena Araújo de Jesus. dinâmicas e complexas – estruturais, psicossociais e
Participação popular e o controle social como diretriz do individuais – vistas em caráter complementar, mas que
SUS: uma revisão narrativa Saúde em Debate. Rio de Janeiro, apontam para a necessidade de ampliação do Estado social,
v. 37, n. 96, p. 139-147, jan./mar. 2013. por meio de políticas públicas e da garantia de direitos.

Conhecimentos Específicos 89
APOSTILAS OPÇÃO

As relações político-administrativas entre os O programa família de apoio foi formalizado como política
conselhos tutelares pública de acolhimento em Franca/SP, a partir da
promulgação da Lei nº 152 que o instituiu no ano de 2002.
O artigo aborda o tema da democratização das relações A sua instituição não se deu de uma só vez; ao contrário, foi
Estado/sociedade, da ampliação da esfera pública e da disputa sendo implementado pela junção de vários fatores e forças
pelo poder decisório na arena das deliberações políticas, sociais locais que se aglutinaram em torno de objetivos
Elegemos os Conselhos Tutelares como objeto de estudo, para comuns. Assim, a formalização legal apenas chancelou um
demonstrar as possibilidades de democratização em suas trabalho que de fato já estava delineado institucionalmente e
relações sociopolíticas com o Poder Executivo. Partimos da em funcionamento no município e Comarca de Franca desde o
proposta de descentralização político-administrativa do ano de 1998 como alternativa na proteção de crianças e
Estado brasileiro, enquanto processo de democratização adolescentes sub judice.
previsto na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da O processo de implementação partiu de diretrizes gerais e
Criança e do Adolescente (ECA). O que está em pauta neste posteriormente foi se adequando às especificidades
estudo são as reais possibilidades de flexibilização de uma apresentadas. Mas é preciso observar que as condições para a
burocracia historicamente centralizadora e autoritária na efetivação do trabalho de acolhimento não estavam
formulação das políticas públicas e as estratégias que os inteiramente dadas. Desde então os debates estabelecidos em
Conselhos Tutelares do município vêm utilizando para torno dessa questão buscaram superar a relação meramente
apropriar-se dos espaços de participação e controle político formal entre as esferas de atuação vigente no início do
junto às políticas setoriais de abrigamento para crianças e Programa.
adolescentes. Optamos pela análise das categorias A realidade demonstrada tanto pelo Conselho Tutelar (CT)
flexibilização burocrática e participação e controle social, quanto pelo Poder Judiciário indicou a priorização do trabalho
entendendo-os como componentes básicos do processo de com “famílias de apoio”, prática de acolhimento já instituída na
descentralização político-administrativa. comunidade. Elevada ao protagonismo central avaliou-se que
essas famílias reuniam os requisitos preceituados pelo
Mídia e consumismo na infância: crivagens da Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É a partir dessas
violência invisibilizada considerações que também evidenciam a oportunidade desse
recurso, ou seja, ação que não demandaria a criação de novas
O artigo tem como tema central a questão do consumo estruturas ou investimentos de alto custeio.
desenfreado entre as crianças e os jovens brasileiros. Aponta- No plano institucional, estratégias foram criadas e
se o papel da mídia, principalmente por meio da televisão, mecanismos implementados para instituí-la como política
como instrumento de incentivo ao consumo inadequado, pública de acolhimento, ocorrendo uma gradual evolução do
considerando que a frequência de horas em frente deste aparato jurídico-administrativo sustentado pela busca de
eletroeletrônico vem se ampliando rapidamente. Em relação à sistematização e regulamentação do trabalho em todas as
violência apresentada pela mídia, destaca-se a influência das instancias formais: Executivo, Legislativo e Judiciário.
cenas no imaginário infantil, caracterizado pela fragilidade da Noticia reportagem local que, “quase vinte anos de ação de
estrutura ainda em processo de formação. Estudos recentes voluntariado separam a sistemática que o Programa família de
apontam que a mídia vem investindo no público infantil como apoio adquiriu ao longo do tempo”. Pode-se, assim identificar
excelente mercado de consumidores. Frente às novas no percurso histórico do Programa Família de Apoio, um
configurações da questão social, instiga-se, neste ensaio, a avanço nas discussões, reflexões, alargamento das propostas
discussão sobre o comprometimento dos jovens expostos ao iniciais e conquista de novos e significativos espaços local e
estímulo ao consumo como forma de obter prazer, e as regional.
diferentes formas de violência que se apresentam nesta Em termos de estrutura organizacional, a Secretaria de
prática diária de assistir televisão. Assistência Social do Município (SAS) propôs uma
metodologia de trabalho fundada na perspectiva da co-
A maternidade na adolescência: e a (des)proteção participação de todos os envolvidos no processo de
social acolhimento, respeitando-se as peculiaridades e a
competência de cada uma das instâncias envolvidas. Os
O artigo postula discutir a questão da marcos de realizações e consolidação institucional, efetivadas
gravidez/maternidade na adolescência, a partir da área da na implementação do Programa na realidade de trabalho,
saúde. Dentro dessa perspectiva, é tematizada inicialmente, denotam o alto poder de dinamismo e articulação, por vezes
por meio de uma revisão de literatura, a gravidez e a contraditórias entre as esferas de atuação.
maternidade na adolescência, que vem subsidiar o debate Há, no artigo, mais do que um olhar retrospectivo, a
sobre a questão da proteção social à maternidade na comprovação da interlocução viva ocorrida. Converte-se no
adolescência. produto expressivo, legítimo e histórico que configura o
programa “Família Acolhedora”, narrado pelos próprios
Aproximações ao conceito de negligência sujeitos significativos envolvidos nesse processo, o que, sem
dúvida, possibilitou a organização, legalização, legitimação e
O texto realiza aproximações ao conceito de negligencia publicização desse tipo de abordagem.
tendo em vista superar a fragilidade que tem permeado sua Delineamos aqui os marcos da implantação do Programa
utilização nos diagnósticos norteadores de práticas por meio das ações implementadas ao longo da década de
profissionais, principalmente aquelas que dizem respeito aos 1990 até o ano de 2004, os passos empreendidos para sua
cuidados com crianças e adolescentes. Considerando a organização e as linhas de ação.
negligência de uma perspectiva que procura abranger a sua
complexidade, o texto introduz na responsabilidade dos Da repressão à educação
cuidados necessários, além da família, os demais parceiros
determinados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pela O livro de Carmen Craidy e Liana Gonçalves Medidas
garantia de seus direitos – a sociedade e o Estado. socioeducativas. Da repressão à educação, editado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2005 traz uma
Instituição do programa família de apoio na direção de relevante pesquisa sobre adolescentes que cumpre medidas
política de acolhimento socioeducativas, conforme o disposto no Estatuto da Criança e

Conhecimentos Específicos 90
APOSTILAS OPÇÃO

do Adolescente, no Rio Grande do Sul, mas em particular sobre As medidas de proteção à criança ou ao adolescente são
os que passaram (757 egressos) pelo Programa de Prestação aplicáveis sempre que seus direitos sofrerem ameaça ou
de Serviços à Comunidade (PSC) na Universidade Federal do violação, seja por ação ou omissão da sociedade ou do Estado,
Rio Grande do Sul. Sabemos que não é fácil encontrar e ouvir por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável, ou por sua
egressos de um programa para sua avaliação, e o esforço feito própria conduta.
para isto já torna o texto relevante e pioneiro.
As autoras se preocuparam em documentar o trabalho com Tais medidas são regidas por princípios especificados no
boa informação de dados estatísticos e com referências ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
discurso dos adolescentes em uma pesquisa qualitativa. Os
dados confirmam outras pesquisas (inclusive a que fizemos Art. 100. [...]
sobre penas alternativas aplicadas a adultos) que mostram Parágrafo único. São também princípios que regem a
que a sanção em meio aberto, contrariamente à prisão, tem um aplicação das medidas:
índice de eficácia maior. Propiciam as trocas sociais e a I - condição da criança e do adolescente como sujeitos de
responsabilidade. Os dados da pesquisa citada constataram direitos: crianças e adolescentes são os titulares dos direitos
que em 55,86% das situações, os jovens tiveram como única previstos nesta e em outras Leis, bem como na Constituição
medida socioeducativa a PSC cumprida na Universidade e Federal;
44,14% tiveram mais de uma passagem pelo Juizado da II - proteção integral e prioritária: a interpretação e
Infância e da Juventude. Entre os reincidentes, 17,46% o aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser
fizeram após a passagem pelo PSC, o que é uma percentagem voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que
muito inferior à constatada entre os que passam pelas prisões. crianças e adolescentes são titulares;
A pesquisa também salienta a dura trajetória de vida III - responsabilidade primária e solidária do poder
desses adolescentes que fazem parte dos “sem”, dos “out”, dos público: a plena efetivação dos direitos assegurados a crianças
excluídos das condições sociais dignas: pobreza, sem escola e a adolescentes por esta Lei e pela Constituição Federal, salvo
(37,66% não estudam) ou sem uma escola adequada (embora nos casos por esta expressamente ressalvados, é de
tenham escolaridade), vivendo em famílias com dificuldades e responsabilidade primária e solidária das 3 (três) esferas de
sem a presença de pais, com membros envolvidos na governo, sem prejuízo da municipalização do atendimento e
criminalidade, sem emprego ou vivendo de biscates, muitas da possibilidade da execução de programas por entidades não
vezes aliciados pelas drogas. A grande maioria está sancionada governamentais;
por delitos contra o patrimônio (roubo e furto representam IV - interesse superior da criança e do adolescente: a
37,5%), seguidos de porte ou uso de drogas (17,23%) e delitos intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e
no trânsito (12,39%). direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da
A pesquisa revela que a maioria dos adolescentes consideração que for devida a outros interesses legítimos no
pesquisados “convive com a morte no cotidiano de suas vidas, âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso
pois é difícil encontrar algum deles que, em um momento ou concreto;
outro “não faça referência a alguém próximo que já morreu e V - privacidade: a promoção dos direitos e proteção da
quase sempre de morte violenta”. Coloca-se a questão da criança e do adolescente deve ser efetuada no respeito pela
violência na sociedade que já analisamos dentro de um intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada;
contexto político de impunidade e descaso pelos direitos VI - intervenção precoce: a intervenção das autoridades
humanos e a cidadania, de exploração econômica, de competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo
autoritarismo, de valorização do transgressor como herói, de seja conhecida;
consumismo e de hedonismo, que implica a negação do outro VII - intervenção mínima: a intervenção deve ser exercida
como sujeito de respeito e como convivente. A visão proposta exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja
pelo livro é de que “a violência surge pela falta de perspectivas, indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da
de insegurança, que é fruto de mudanças no padrão criança e do adolescente;
civilizatório e nas formas de viver decorrentes de mudanças, VIII - proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve
como as tecnológicas, as das formas de produção e as das ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a
relações de trabalho e no significado das instituições sociais, criança ou o adolescente se encontram no momento em que a
entre as quais a família e a escola, pilares da vida pessoal e base decisão é tomada;
da vida coletiva”. IX - responsabilidade parental: a intervenção deve ser
O livro conclui, pelos depoimentos recolhidos, que no efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para
programa de PSC da UFRGS forma fundamentais: sentir-se com a criança e o adolescente;
aceito, sem discriminação; aprender regras e conhecer um X - prevalência da família: na promoção de direitos e na
ambiente organizado e aprender coisas novas e ver mais proteção da criança e do adolescente deve ser dada
possibilidades para a própria vida, “numa perspectiva prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na
pedagógica de valorização do educando que se dá quando se sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível, que
ele se sente produtivo, útil, aceito, exigido, integrado num promovam a sua integração em família substituta;
ambiente organizado onde as regras são claras, tem acesso a XI - obrigatoriedade da informação: a criança e o
novos conhecimentos e encontra uma perspectiva de vida”. É adolescente, respeitado seu estágio de desenvolvimento e
o que falta a boa parte das organizações de aplicação das capacidade de compreensão, seus pais ou responsável devem
medidas socioeducativas nesse nosso país. ser informados dos seus direitos, dos motivos que
determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;
XII - oitiva obrigatória e participação: a criança e o
14. medidas específicas de adolescente, em separado ou na companhia dos pais, de
proteção à criança e ao responsável ou de pessoa por si indicada, bem como os seus
pais ou responsável, têm direito a ser ouvidos e a participar
adolescente; nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e
de proteção, sendo sua opinião devidamente considerada pela
O Estatuto traz a previsão de um rol de medidas específicas autoridade judiciária competente, observado o disposto nos §§
de proteção o artigo 101. O rol do dispositivo é meramente 1º e 2º do art. 28 desta Lei.
exemplificativo, numerus apertus.

Conhecimentos Específicos 91
APOSTILAS OPÇÃO

Na aplicação das medidas de proteção, a autoridade deve do adolescente. Ademais, caso não haja paternidade definida,
ponderar as necessidades pedagógicas das mesmas, dando será instaurado procedimento destinado a sua averiguação.
preferência àquelas que fortaleçam os vínculos familiares e
comunitários. Referências:

Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/d


art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre ireito/medidas-de-protecao-da-crianca-e-do-
outras, as seguintes medidas: adolescente/61072
I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante
termo de responsabilidade;
II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; 15. colocação em família
III - matrícula e frequência obrigatórias em
estabelecimento oficial de ensino fundamental; substituta - guarda-tutela-
IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio adoção;
à família, à criança e ao adolescente;
V - requisição de tratamento médico, psicológico ou
psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; BIBLIOGRAFIA
VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de
auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; 8. FÁVERO, Eunice Teresinha. Questão Social e perda do
VII - acolhimento institucional; Poder Familiar. São Paulo: Veras Editora;
VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar;
IX - colocação em família substituta. O texto do livro de Fávero denominado “Questão Social e
perda do Poder Familiar58” nos leva a refletir sobre as
Das medidas elencadas no art. 101, o acolhimento mudanças ocorridas no pós-guerra e o impacto causado no
institucional e o acolhimento familiar são medidas provisórias contexto sócio familiar, diante de um processo de
e excepcionais. Elas devem ser utilizadas apenas como meio de industrialização, onde milhares de famílias deixaram o campo
transição para reintegração familiar. No entanto, quando essas em busca de melhores condições de trabalho nas cidades, o
não forem possíveis, deverão ser adotadas as condutas para que ocasionou aglomeração sem planejamento e
colocação da criança ou adolescente em família substituta. aumento significativo nas expressões da questão social.
Nesses casos, logo após o acolhimento da criança ou do Este livro tem como tema central o rompimento dos
adolescente, a entidade responsável pelo programa de vínculos pela perda do poder familiar. Desvela uma situação
acolhimento institucional ou familiar deverá elaborar um de violência social determinada pela ausência de políticas
plano individual de atendimento, cujo objetivo é reintegrar a públicas redistributivas e compensatórias de apoio às famílias
criança ou adolescente a sua família originária. em situação de pobreza. Evidencia a necessidade de mudanças
nas práticas cotidianas dos profissionais que atuam junto a
Para o acolhimento familiar ou institucional deverá ser esse segmento da população, notadamente os do judiciário.
dada preferência ao local mais próximo à residência dos pais Fávero ressalta que através da valorização do capital a
ou do responsável e, como parte do processo de reintegração partir da exploração da força de trabalho – do proletariado
familiar, sempre que identificada a necessidade, a família de (decorrente do capitalismo) em detrimento do humano, é que
origem será incluída em programas oficiais de orientação, de ocorre a ampliação das desigualdades sociais e a exploração do
apoio e de promoção social, sendo facilitado e estimulado o trabalhador (já que o sistema capitalista visa à obtenção de
contato com a criança ou com o adolescente acolhido. lucros). O autor menciona as mudanças relevantes ao longo da
história nos padrões estabelecidos à família, como a inserção
Após esse processo, se ficar constatada a possibilidade de da mulher no mercado de trabalho, o crescimento da demanda
reintegração familiar, o responsável pelo programa de por educação e a substituição do trabalhador no mercado de
acolhimento familiar ou institucional fará imediata trabalho por maquinários.
comunicação à autoridade judiciária, que dará vista ao De acordo com a autora Fávero (2007), a perda do poder
Ministério Público, pelo prazo de 5 (cinco) dias, decidindo em familiar não é um fato novo e não é um fenômeno apenas do
igual prazo. sistema capitalista. No entanto, em consequência do
desemprego, exposição constante a ambientes de elevado
Em contrapartida, se for constatada a impossibilidade de violência urbana e a falta de recursos próprios e públicos para
reintegração da criança ou do adolescente à família de origem, arcar com as necessidades básicas de educação, saúde,
após seu encaminhamento a programas oficiais ou moradia, transporte, entre outras, fazem com que as
comunitários de orientação, apoio e promoção social, será manifestações da questão social tenham determinadas
enviado relatório fundamentado ao Ministério Público, com a atitudes de proteção ao filho.
recomendação para a destituição do poder familiar, Assim, a falta de recursos financeiros é o maior motivo
destituição de tutela ou guarda. para os pais entregarem ou abandonarem seus filhos. Segundo
as pesquisas de Fávero, não foi verificada nenhuma suspensão
As medidas protetivas podem ser aplicadas de forma do poder familiar por pessoas que tivessem a condição
isolada ou cumulativa, e também podem ser substituídas a socioeconômica estável e confortável. No entanto, as relações
qualquer tempo, a depender das circunstâncias concretas. de violência onde há um histórico de pobreza são fatores
decisivos para uma suspensão familiar.
Quando necessário, as medidas de proteção devem ser É necessário ter consciência que muitos indivíduos são
acompanhadas da regularização do registro civil da criança e vítimas de um sistema que se torna antagônico na medida em
que ampara a minoria e exclui a maioria, deixando os

58 FÁVERO, Eunice Teresinha. Questão Social e perda do Poder Familiar. São Thais Peinado Berberian. Serviço Social e avaliações de negligência: debates
Paulo: Veras Editora; 2007. no campo da ética profissional. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65,
Ana Margarida Linhares Soares; Izabel Herika Gomes Matias jan./mar. 2015
Cronemberger. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR COMO UMA EXPRESSÃO DA https://www.skoob.com.br/questao-social-e-perda-do-poder-familiar-
QUESTÃO SOCIAL. VII Jornada Internacional de Políticas Públicas, 2015. 282444ed316608.html

Conhecimentos Específicos 92
APOSTILAS OPÇÃO

indivíduos fragilizados não só no âmbito material, mas possibilidade do desenvolvimento dessa prática na direção da
também emocional. contribuição para mudanças na realidade”. Por isso, é
A obra apresenta de forma clara e inteligente a posição importante sempre lutar para efetivar ações que causem
social que se encontra o quadro familiar na nossa sociedade. transformações positivas, respeitando as particularidades de
Com um evidente problema social decorrente da pobreza e na cada família.
falta de distribuição correta das rendas, acabamos tendo
várias mudanças significativamente ruins nos quadros
familiares. 16. Convivência Familiar e
Neste contexto, famílias inteiras não conseguem mais
oferecer a seus membros a Comunitária;
proteção e o amparo de que necessitam, não por incapacidade Acolhimento Institucional e
ou negligência, mas pela desresponsabilização do Estado que Familiar;
atende majoritariamente aos interesses do capital, levando as
famílias a adotar mecanismos de sobrevivência. Uma delas é o
abandono ou a entrega de um filho que consequentemente
ocasionará a perda do poder familiar. BIBLIOGRAFIA
Famílias que vivem e convivem em condições-limite de
vida e sobrevivência, muitas vezes perpassadas pelo 13. FRANCO, Abigail A. P. O acolhimento familiar e as ações
uso/abuso de drogas, desemprego/subemprego, exposição às voltadas à proteção e promoção dos direitos de crianças e
diversas manifestações de violência, fragilidade dos vínculos adolescentes. In FÁVERO, Eunice. T.; GOIS, Dalva A. (orgs.)
familiares, entre outros desdobramentos da questão social, Serviço Social e temas sociojurídicos: debates e experiências.
frequentemente são questionadas pelos profissionais acerca Coletânea Nova de Serviço Social. Rio de Janeiro: Lúmen Juris,
da capacidade protetiva em relação a suas crianças e 2014.
adolescentes, ocupando então um lugar de completa
responsabilização pela oferta de cuidados e serviços a esses 24. RIZZINI, Irene (coord); Rizzini, Irma; Naiff Luciene;
sujeitos, sem trazer para o debate a fundamental presença do Baptista, Rachel. Acolhendo Crianças e Adolescentes:
Estado como provedor de um sistema de garantia de direitos. experiências de promoção do direito à convivência familiar e
Nesse contexto, passamos a observar um direcionamento comunitária no Brasil. Cortez, 2007.
profissional que tende a desvalorizar as condições reais
existentes que interferem na capacidade dessas famílias de A perspectiva crítica que fundamenta esta coletânea de
proteger suas crianças e, com isso, uma tendência a qualificar textos é tensionada pela denúncia de violação de direitos,
essas situações como situações de negligência. Conforme posição que impulsiona a construção coletiva de
problematizado por Fávero (2007, p. 161): possibilidades e de efetivação de direitos. Adotando a
O poder saber profissional pode ter direcionamentos problematização historicizada, expõe a tendência
distintos, a depender da visão de mundo do profissional e de criminalizadora, moralizadora e punitiva da sociedade
seu (des) compromisso ético. [...] A culpabilização pode brasileira, exigindo muito mais que as aparentes inovações
traduzir-se, em alguns casos, em interpretações como legislativas e “aperfeiçoamento” institucional. Propiciando a
negligência, abandono, violação de direitos, deixando visibilidade dos sujeitos cujas condições expressam
submerso o conhecimento das determinações estruturais ou particularidades da violência, potencializa a crítica propositiva
conjunturais, de cunho político e econômico, que condicionam nesses espaços de afirmação e negação de direitos. Ao
a vivência na pobreza por parte de alguns sujeitos envolvidos enfrentar dialeticamente as violações provocadas pela lógica
com esses supostos atos. do capitalismo contemporâneo, o conjunto de reflexões adota
Para Fávero, o ato de entregar, abandonar ou retirar uma a defesa da liberdade, posição que entendemos dar direção
criança do pai e da mãe tem determinações interligadas à para a busca de superação dessa realidade.
sobrevivência e ao não acesso aos direitos historicamente Esta Coletânea representa um significativo e valioso
conquistados, pois pensar em família é considerar a família em contributo ao debate crítico do Serviço Social na área
sua realidade social, na qual está presente os vínculos de sociojuridica, a partir de temáticas tão ricas, diversas e
sobrevivência e de convivência, para além dos vínculos complementares que buscam pensar os desafios da profissão
consanguíneos. na contemporaneidade. Representa também resistência ao
Para Fávero (2007), a melhor forma de transformar a pensamento e práticas conversadoras de naturalização e
sociedade em um ambiente mais justo é através da luta pela culpabilização dos sujeitos, sobretudo pela consistência
ampliação de oportunidades, minimização da questão social e teórico-prática, no sentido radical de palavra, por produzir
a percepção de que soluções como a destituição do poder mudanças no cotidiano do trabalho do Assistente Social. O eixo
familiar não estão protegendo, mas sim criando problemas articulador do conjunto dos textos entrelaça, compreende e
que só poderão vir à tona depois de muitos anos, aumentando explica: a produção da desigualdade social e o Serviço Social
um problema que deveria ter sido solucionado no início. na relação particular com as práticas punitivas e
Com isso, refletir, questionar e analisar os fatos é a melhor discriminatórias; a criminalização da pobreza e a dinâmica da
forma de agir, tendo como objetivo minimizar os riscos para os omissão, ameaça e violação dos direitos independentemente
indivíduos, pois através do questionamento é possível da geração, em um contexto de barbárie protagonizado pelo
desvelar o que está além do aparente. É preciso entender que Estado brasileiro; e, concomitantemente, os autores
a destituição do poder familiar só ocorre em casos extremos e, enfrentam esse assunto mostrando a inoperância das
por isso, compreender o que causa a perda do poder familiar é reformas preventivas, reafirmando a defesa intransigente dos
importante para se desenvolver um trabalho preventivo direitos humanos e abrindo possibilidades para liberdades.
(FÁVERO, 2007).
Fávero (2007, p. 20) endossa a discussão, quando Rizzini, 2007
descreve: “[...] a contaminação do olhar, em razão da vivência
ou do envolvimento, é menos significativo do que a Considerações relevantes sobre o livro59: RIZZINI, Irene
(coord); Rizzini, Irma; Naiff Luciene; Baptista, Rachel.

59 Baseado em: Renata Maria Coimbra Libório. Resenha. SER Social, Brasília,

v. 14, n. 31, p. 513-520, jul./dez. 2012

Conhecimentos Específicos 93
APOSTILAS OPÇÃO

Acolhendo Crianças e Adolescentes: experiências de promoção podem apresentar temporariamente, dificuldades de atender
do direito à convivência familiar e comunitária no Brasil. as necessidades básicas de seus filhos. No tocante a esse
Cortez, 2007 assunto, é fundamental que se desfaça um equívoco muito
comum no entendimento da capacidade de famílias expostas a
O livro coordenado pela prof ª Dra Irene Rizzini, docente situação de pobreza: elas não devem ser vistas como incapazes
do Departamento de Serviço Social da PUC-RIO e Diretora do de criar seus filhos e devido a isso eles estariam sendo melhor
CIESPI, nasceu a partir de um convite feito pelo UNICEF-Brasil protegidos longe de suas famílias, consideradas
para a realização de uma pesquisa que levantasse as iniciativas “desestruturadas”, discurso ainda presente nas falas de muitos
existentes em nosso país que visassem à promoção da profissionais que trabalham com crianças e adolescentes.
convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes. No decorrer do livro argumenta-se sobre a importância de
O ponto central do livro refere-se ao direito de todas as fazermos o possível para evitar a retirada de uma criança ou
crianças e adolescentes de crescerem em família, na adolescente do convívio com sua família de origem, e para que
comunidade e sem violência, seguindo os paradigmas possamos defender essa posição, é imprescindível olharmos
enunciados desde a Constituição Federal de 1988. para as competências das famílias na criação de seus filhos;
Cabe destacar a importância da produção da Profª Irene para isso não podemos ignorar que torna-se um grande
Rizzini no tocante a discussões sobre políticas públicas na área desafio para uma família, cuidar bem de seus filhos quando a
da infância e às dimensões históricas da institucionalização em elas não são acessíveis políticas públicas que assegurem
nosso país, de forma que o presente livro apresenta uma certa condições mínimas de vida digna: emprego, renda e apoio para
continuidade à publicação de “A institucionalização de quando necessitarem. Portanto, nossa compreensão não deve
crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente” ser a que reforça a incapacidade da família, mas devemos nos
(2004). voltar para a fragilidade das redes de apoio e proteção às
O objetivo principal do livro “Acolhendo crianças e famílias que necessitam maior atenção das políticas públicas
adolescentes” é possibilitar a reflexão sobre essas iniciativas de inclusão social.
em curso no Brasil, a partir da escuta dos profissionais que as A forma de compreender essas intricadas relações
desenvolvem, considerando que muitos estejam propondo e fundamenta as ações de muitos profissionais nas tomadas de
desenvolvendo formas de acolhimento inovadoras, decisões sobre o afastamento ou manutenção das crianças e
provocando mudanças no rumo do atendimento em nosso adolescentes junto a suas famílias de origem, portanto, um
país, se contrapondo às práticas de institucionalização do ponto inicial a ser considerado.
passado. As autoras deixam claro os pressupostos que norteiam a
As autoras não buscam respostas e caminhos únicos para pesquisa realizada e as discussões apresentadas no decorrer
solucionar questões relativas ao acolhimento de crianças e do livro e que são muito pertinentes para aqueles que se
adolescentes, mas esperam que as iniciativas pesquisadas e defrontam cotidianamente com problemática tão árdua e que
apresentadas no livro possam inspirar novas práticas que exige profissionalismo e sensibilidade.
apostem no fortalecimento dos vínculos familiares. O contexto Dentre os pressupostos destaca-se: a criança e o
da publicação da obra, em 2007, era bastante propício em adolescente precisam de uma família que os acolha, tendo
função da intensidade dos debates em torno das diretrizes do direito a essa convivência, sendo que as famílias precisam de
“Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de condições básicas para acolher e criar seus filhos, portanto,
Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar a quando tais condições são precárias, o Estado tem obrigação
Comunitária”, aprovado em dezembro de 2006. de apoiar a família nesse papel. Quando as tentativas de
O livro divide-se em 3 partes, sendo a primeira delas mantê-las sob os cuidados de sua família de origem ou extensa
dedicada à discussão sobre “A família como direito se tornam inviáveis, devem existir alternativas de acolhimento
fundamental”, na segunda parte, intitulada “Acolhendo a elas, que visem lhes dar segurança e estabilidade para seu
crianças e adolescentes”, são apresentadas e analisadas as desenvolvimento. As autoras condenam as práticas
iniciativas que promovem a convivência familiar e centenárias de institucionalização de crianças e adolescentes
comunitária das crianças e adolescentes, a partir de 3 devido sua condição de pobreza, devendo o abrigamento ser
modalidades de acolhimento e na última parte, “Enfrentando visto como a última medida.
os desafios: rumo a políticas públicas” as autoras sintetizam os O quadro mais amplo de desigualdade econômica vivido
principais impasses, desafios e caminhos visando a garantia do por muitas famílias em nosso país, é a base sobre a qual
direito fundamental de crianças e adolescentes à convivência residem os problemas relativos a questão do acolhimento das
familiar e comunitária, enfatizando a indispensabilidade da crianças que tem seus direitos violados não só pela própria
formação de redes de proteção às crianças, adolescentes e família mas pelo Estado, que pode ser negligente e omisso,
famílias em situações de adversidades. quando não oferece políticas públicas e redes de proteção às
Inicialmente são apresentadas algumas perguntas que famílias que dela necessitam. O uso do termo “acolhimento”
guiam a o tema principal do livro, que embora sejam marca as diferenças entre as experiências relatadas no livro
aparentemente simples, na verdade envolvem muitas que prestam cuidados temporários às crianças e adolescentes
variáveis e são de muita complexidade, e que considero o eixo fora de casa, mas que buscam promover seu direito a conviver
principal sobre o qual se assentam as preocupações das com sua família e na sua comunidade, em comparação com as
autoras: “como garantir o direito de crianças e adolescentes à práticas de institucionalização que predominaram no passado,
convivência familiar e comunitária” em um país que sempre e que se caracterizavam como prática de “confinamento e
valorizou práticas de institucionalização como forma de segregação social”.
resolver os problemas sociais? Frente a situações de violação Na parte inicial do livro, as autoras descrevem os aspectos
de direitos das crianças e adolescentes, “o que podemos fazer metodológicos da pesquisa, que contou com uma ampla
para evitar que sejam afastados de suas famílias e revisão de literatura, buscando as iniciativas em
comunidades desnecessariamente”, considerando práticas desenvolvimento no Brasil que promovessem a convivência
equivocadas de institucionalização do passado? familiar e comunitária das crianças e adolescentes, que se
Respostas a essa questão não podem abrir mão de uma caracterizassem como inovadoras, bem como contou com
compreensão que reconheça as profundas desigualdades de entrevistas semiabertas com as equipes que atuavam nos
renda e de oportunidades de vida digna em nosso país, que programas em foco. Foram contatadas pelos pesquisadores 30
pode gerar situações de precariedade nas condições de vida de iniciativas governamentais e não governamentais,
uma parte significativa da população, atingindo famílias que distribuídas em 16 municípios nos Estados de Rio de Janeiro,

Conhecimentos Específicos 94
APOSTILAS OPÇÃO

São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Pernambuco, Pará, convivência familiar e comunitária e um dos maiores desafios
Paraná e Rio Grande do Sul. relaciona-se aos casos que envolvem crianças e adolescentes
com deficiências, quando as dificuldades e demandas
Na parte II do livro, as autoras apresentam 3 modalidades multiplicam-se.
possíveis de apoio e acolhimento, verificadas nas
iniciativas pesquisadas: Nos capítulos finais, na Parte III, intitulada “Enfrentando os
a) a modalidade “apoio à família no cuidado a criança e desafios: rumo a políticas públicas” as autoras discutem no
adolescente em situações adversas – acolhendo as famílias”, capítulo 6 sobre a importância de haver ações articuladas em
inclui as experiências de apoio às famílias que não tiveram rede, de forma a promover um bom funcionamento do sistema
seus filhos afastados do convívio familiar, abrangendo de garantia de direitos, tendo em vista que uma das maiores
atendimento das famílias em serviços variados; tais iniciativas dificuldades apontadas pelas equipes, consistia exatamente na
mostram que quando as famílias são inseridas em uma rede de falta de articulação entre os atores; além disso, um trabalho
proteção social , pode haver reversão do quadro, evitando-se a mais coletivo pode evitar descontinuidades impostas pela
separação. O objetivo principal das iniciativas nessa gestão pública. No último capítulo, é feita uma síntese das
modalidade é o acolhimento às famílias, assentado na ideia e principais ideias e são apresentados os impasses identificados
atitude de acolher e fortalecer os elos entre as crianças/ e desafios a serem enfrentados e repensados, relacionados a
adolescentes, suas famílias e o meio a que pertencem. No necessidade de articulação e interdisciplinariedade de ações e
capítulo 3 são apresentados o foco, os objetivos, as respostas (enfrentar os conflitos entre as iniciativas e as
metodologias desenvolvidas, os profissionais envolvidos e os posturas do Judiciário e Conselhos tutelares; os
desafios encontrados. encaminhamentos equivocados; lacunas da capacitação dos
b) no Capítulo 4 são apresentadas as experiências profissionais envolvidos), gestão e execução (clareza de
intituladas como “acolhimento familiar” que visam garantir o responsabilidades e atribuições), continuidade de políticas
direito a convivência familiar e comunitária, nos casos em que públicas e a questão do acolhimento de crianças e adolescentes
as crianças e adolescentes precisam ser afastadas do convívio com deficiência. Além disso, as autoras apontam os caminhos
com sua família de origem, buscando mantê-los em ambiente para subsidiar políticas e práticas que promovam o direito a
familiar provisório, que pode ocorrer na casa de familiares ou convivência familiar e comunitária, que ressaltam a
de outras famílias que se disponham a acolhê-las necessidade de articular ações e decisões, estabelecimento de
(modalidades de acolhimento realizado por programas diálogo e reflexão crítica das práticas (constituir espaços de
oficiais). Ressalta-se que as famílias “acolhedoras” devem ser troca de experiências) e registro e avaliação das ações,
preparadas e acompanhadas como uma proposta de uma utilizando-se das pesquisas como subsídios às políticas
política pública, devendo receber incentivos financeiros. Uma públicas, aspectos que pode ser incrementado através da
das preocupações relativas a tal modalidade de acolhimento, parceria com as universidades.
relaciona-se a promoção de trabalho conjunto que englobe 3 Esse livro é de importância incontestável para aqueles
agentes principais: a criança/adolescente, sua família de profissionais e gestores de políticas públicas voltadas às
origem e a família que acolhe, considerando que o objetivo crianças, adolescentes e famílias em situações adversas, para
final é a reinserção das crianças e adolescentes na família de que através do conhecimento possibilitado pelo livro, eles
origem. As autoras apresentam em detalhes os profissionais encontrem subsídios para elaboração de políticas e práticas
envolvidos nas iniciativas, os aspectos legais envolvendo a que privilegiem a permanência de crianças e adolescentes
guarda das crianças e adolescentes, formas de financiamento a junto a suas famílias de origem.
metodologia de trabalho, explicitando uma sistematização das Há um trecho retirado das páginas finais do livro e que
etapas do processo de acolhimento familiar, que possibilitam sintetiza a tônica do mesmo: “Por isso, por repetidas vezes
uma boa compreensão sobre as formas de implantação de falamos em fortalecimento destes elos (entre membros da
propostas dessa natureza, podendo subsidiá-las. família). E aqui, gostaríamos de deixar marcada a seguinte
c) modalidade de “acolhimento institucional”, apresentada afirmação: em geral, as ações que conduzem ao afastamento da
no capítulo 5, abarcando iniciativas nas quais crianças e criança de casa são inadequadas e pouco efetivas na superação
adolescentes são enviadas para uma instituição, quando foram das dificuldades que levaram a situação de vulnerabilidade.
esgotados todos os esforços para mantê-la em sua casa, tendo Condições dignas de vida e formas consistentes de suporte
como objetivo principal desenvolver estratégias que garantam para a criação de filhos poderiam evitar separações
o seu retorno o mais rápido possível para um ambiente desnecessárias e fortalecer os elos entre
familiar. São descritas experiências de abrigos crianças/adolescentes, família e meio a que pertencem”
(governamentais ou não, que se contrapõe a grandes (p.128).
internatos e orfanatos do passado) que possuem esse perfil
(diferente das propostas de institucionalização passadas que Veja alguns dos pontos principais da obra: RIZZINI,
não visavam o retorno às famílias de origem) bem como Irene (coord); Rizzini, Irma; Naiff Luciene; Baptista, Rachel.
iniciativas cujo objetivo é auxiliar abrigos no reordenamento Acolhendo Crianças e Adolescentes: experiências de promoção
institucional e reintegração familiar. Um entendimento que do direito à convivência familiar e comunitária no Brasil.
perpassa as iniciativas dessa modalidade é que os abrigos Cortez, 2007
devem ter caráter provisório e excepcional. Dentre os desafios
enfrentados pelas iniciativas, destacam-se: risco de Rizzini (2007)60 aponta que Brasil historicamente a
descontinuidade do atendimento, em razão de mudanças política de atendimento à infância e ao adolescente em
políticas, que afetam prioritariamente abrigos que contam situação de abandono vem sofrendo diversas transformações.
com subsídios governamentais; falta de retaguarda para A implantação da política de atendimento mudou
atendimentos específicos na rede pública (psicoterapia, uso gradualmente passando do domínio da igreja para entidades
abusivo de drogas); problemas de articulação na rede de filantrópicas até se tornar responsabilidade do estado.
atendimento; dificuldades maiores em contemplar os Segundo Rizzini (2007) a promoção de ações efetivas de
adolescentes, principalmente a partir de 15 anos, devendo-se inserção social se constitui em um objetivo permanente, para
pensar em novas alternativas pois eles também têm direito à

60 RIZZINI, Irene (coord); Rizzini, Irma; Naiff Luciene; Baptista, Rachel. Ana Maria Augusta dos Santos. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE
Acolhendo Crianças e Adolescentes: experiências de promoção do direito à CRIANÇAS E ADOLESCENTES: MUDANÇAS NA HISTÓRIA BRASILEIRA. III
convivência familiar e comunitária no Brasil. Cortez, 2007. simpósio Mineiro de Assistentes Sociais.

Conhecimentos Específicos 95
APOSTILAS OPÇÃO

que o abrigo seja realmente uma medida protetiva de caráter ano o Brasil assiste pela TV, horrorizado, na unidade
excepcional e transitório. Imigrantes, a rebelião dos adolescentes que culminou com a
Rizzini (2007) relata sobre as importantes mudanças na destruição de muros, 58 pessoas feridas e 16 mantidos reféns
dinâmica familiar, ocasionada pelas rápidas transformações por 18 horas, além de um cruel grand finale: o assassinato de
políticas, econômicas e sociais: as novas organizações quatro adolescentes pelos próprios internos, sendo três
familiares são de menor tamanho, aumentou-se o percentual queimados vivos e um decapitado.
de famílias chefiadas por mulheres, há maior número de
mulheres no mercado de trabalho e a necessidade de novos Em junho do ano 2000 o Brasil para em frente à TV
arranjos para o cuidado das crianças, o aumento da distância novamente. Em cena, como num filme de Hollywood, um
entre a casa e o trabalho gera menor tempo de presença dos ônibus estacionado em plena via pública cercado de policiais e
pais e há modificações na dinâmica dos papéis parentais e de uma multidão de curiosos. O protagonista do drama mudo que
gênero. se desenrola em plena “sessão da tarde” é Sandro, um jovem
Segundo Rizzini (2007) a família possuiu um lugar sobrevivente da chacina da Candelária condenado por furtos e
privilegiado de proteção e pertencimento para seus membros, assaltos, que esbraveja contra os policiais, simula um
inclusive para o público infantil e juvenil. Porém, embora assassinato em frente às câmeras e toma uma simples
persista uma tendência à idealização da família, ela aparece professora migrante como sua refém e escudo. Após quatro
também como um espaço passível de conflitos e contradições. horas ininterruptas de negociações o país assiste atônito à
Em situações nas quais a criança ou adolescente necessite ser desastrada ação do esquadrão de elite da polícia, a morte da
retirado de sua residência, deve ser encaminhado para refém e do sequestrador, que foi asfixiado na viatura onde
instituições que visem e possibilitem o seu retorno à família de ficou preso após ser capturado.
origem ou, em última instância, a sua inserção em família
substituta. Estes dois episódios lancinantes da história recente do
Rizzini (2007) relata sobre experiências no Brasil que Brasil são analisados com consistência e profundidade pela
permitem e estimulam a convivência familiar e comunitária. A pesquisadora e professora Mione Apolinario Sales em seu livro
proteção de crianças e adolescentes que tiveram seus direitos (In)visibilidade perversa: adolescentes infratores como
violados ou que se encontram em situação de risco é um metáfora da violência (Cortez, 2007). Fruto de sua tese de
direito que não se contrapõe à eventual necessidade de doutorado em sociologia apresentada à USP, o livro nos brinda
acolhimento institucional, sendo possível manter a meta de se com a análise rigorosa levada a cabo pela autora da profusão
preservar os vínculos familiares: Estas experiências nos de textos (e demais fontes, tais como documentários) que
permitiram vislumbrar uma rica amostragem de práticas que versavam sobre os incidentes que circularam na imprensa nos
estimulam à convivência familiar e comunitária no Brasil. A dois períodos investigados. Afastando-se de uma discussão
proteção de crianças e adolescentes, cujos direitos foram simplista, a autora se vale de diversas estatísticas de órgãos
violados ou que se encontram em situação de “risco”, é um governamentais ou não e penetra com espantosa erudição na
direito que não se contrapõe à eventual necessidade de argumentação de Sérgio Adorno e outros pensadores
acolhimento institucional e mostra que é possível ter como brasileiros e internacionais pra compor, com cores fortes, o
meta a vida em família (Rizzini, 2007, p.88). quadro de “cidadania escassa” em que expressiva parcela da
Conforme Rizzini (2007) em situações que forem população, a saber, sua camada mais jovem e pobre, se vê
detectadas violações de direitos da criança ou adolescente, enredada cotidianamente. Esta “quase-cidadania” perversa
primeiramente deve–se iniciar o acompanhamento da família, joga com a dialética do visível-existente-verdadeiro e do
através de encaminhamento da rede de proteção da criança e invisível-inexistente-falso e se insinua de forma especialmente
do adolescente. A medida de proteção ocorre quando se esgota insidiosa entre os adolescentes oriundos das classes menos
todas as possibilidades de apoio, os quais não forem favorecidas, demandando para muitos destes uma decisão
correspondidos pela família. tanto mais injusta por que imperativa: a “escolha” entre
continuar invisível e, por conseguinte, inexistente nessa massa
amorfa de jovens desvalidos que devem se contentar com
17. Adolescente em Conflito com subemprego e humilhações cotidianas várias, ou então se
a Lei; individualizar pelo aparecimento, “apareço logo existo”. Esta
aparição, muitas vezes pela via do delito, da revolta e da
violência, argumenta Sales, deve ser entendida tanto em seus
BIBLIOGRAFIA meandros psicológicos individuais quanto em sua dimensão
coletiva, dentro de um contexto sócio-político de
23. SALES, M.A. (In) visibilidade perversa: adolescentes recrudescimento de um Estado policial-penal e a lógica do
infratores como metáfora da violência. São Paulo: Cortez, individualismo e do consumismo levado às últimas
2007. consequências numa economia neoliberal.
Sales recorre à Hannah Arendt e Michel Foucault para
Às vésperas do Natal do ano de 1998 houve um incêndio, levantar a questão da visibilidade como condição humana
provavelmente criminoso, numa das unidades de internação fundadora da ontologia do sujeito na modernidade e da
de adolescentes autores de ato infracional, a FEBEM Tatuapé, construção de uma esfera pública geradora de socialibilidade
na zona leste de São Paulo. O saldo trágico desta ocorrência foi e espaço privilegiado da ação política. A originalidade da
de 22 adolescentes feridos e um morto. Posteriormente, no análise impetrada pela autora reside, entretanto, no fato de
curso das investigações, descobriu-se que as chamas foram sua percepção, amparada em Maria Rita Kehl, Eugênio Bucci e
ateadas pelos próprios monitores da instituição e que o Guy Debord, dentre outros, de que esta esfera pública,
adolescente falecido, num ato de desespero, havia especialmente no caso brasileiro, é constituída pelos meios de
voluntariamente deixado se consumir em holocausto nas comunicação de massa, com notória importância para o papel
labaredas, sem esboçar qualquer reação e gritando tão da televisão, e que esta, por sua vez, é tributária da lógica do
somente para seus companheiros “vamos morrer todos espetáculo que rege as economias capitalistas em sua fase
juntos!”. Entre maio e setembro de 1999, 1412 internos tardia.
fugiram das unidades paulistas naquele que foi um ano
paradigmático com relação aos recordes de fuga, violências e
denúncias de maus-tratos. Em fins de outubro daquele mesmo

Conhecimentos Específicos 96
APOSTILAS OPÇÃO

Em sua análise do farto material jornalístico produzido a imposição de uma punição objetiva-se demonstrar ao
sobre os dois episódios em foco, Sales desvenda a operação de adolescente que há responsabilidades e consequências das
“reatualização naturalizadora” da vinculação entre as camadas atitudes que toma.
pobres e violência, que alça os adolescentes autores de atos Guilherme Freire de Melo Barros traz em sua obra “Direito
infracionais à condição de metáfora da violência urbana e do da Criança e do Adolescente” o conceito de medidas
caos societário que se apresenta na sociedade brasileira pelo socioeducativas elaborado por Wilson Donizeti Liberati: “A
menos nos últimos 25 anos. Tratados muitas vezes como medida socioeducativa é a manifestação do Estado, em resposta
“bárbaros” e desajustados, estes adolescentes se vêem presos ao ato infracional, praticado por menores de 8 anos, de natureza
num círculo vicioso perpétuo de denegação de seus direitos, e jurídica impositiva, sancionatória e retributiva, cuja aplicação
seus atos supostamente impunes fornecem subsídios à objetiva inibir a reincidência, desenvolvida com finalidade
retórica conservadora de recrudescimento das medidas pedagógica-educativa. Tem caráter impositivo, porque a
punitivas em detrimento de iniciativas de cunho educacional e medida é aplicada independente da vontade do infrator - com
da redução da maioridade penal, além de constituírem exceção daquelas aplicadas em sede de remissão, que tem
poderoso alimento à milionária indústria da segurança finalidade transacional. Além de impositiva, as medidas
privada. socioeducativas têm cunho sancionatório, porque, com sua ação
ou omissão, o infrator quebrou a regra de convivência dirigida
Em (In)visibilidade perversa: adolescentes infratores a todos. E, por fim, ela pode ser considerada uma medida de
como metáfora da violência Sales reconstitui, com natureza retributiva, na medida em que é uma resposta do
fidedignidade e talento literário, os acontecimentos de 1999 e Estado à prática do ato infracional praticado”.
2000 e nos remete à atmosfera daqueles dias tenebrosos,
traçando, desta forma, o fio que os une, a saber, a violência O ECA prevê as medidas socioeducativas nos artigos 112 a
como condição encontrada pelos sujeitos, individual ou 125.
coletivamente, de aceder à existência, ainda que de forma
efêmera e trágica. Nas trajetórias de Sandro ou dos Capítulo IV
adolescentes internos na antiga FEBEM, encontramos toda Das Medidas Sócio-Educativas
uma história de miséria, sofrimento, violência(s) e exclusão Seção I
social que se perpetuam hodiernamente, diante de nossos Disposições Gerais
olhos. Implacável, porém, é a hegemonia do espetáculo, pois o
show não pode parar: os atores se foram, voltaram aos Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a
camarins, ou melhor, ao anonimato, os adolescentes internos autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as
continuam sofrendo com maus-tratos e desrespeitos de toda seguintes medidas:
ordem no Brasil e Sandro foi enterrado como um indigente I - advertência;
num cemitério carioca, e continuará esquecido até a aparição II - obrigação de reparar o dano;
de um novo “ator-monstro”. III - prestação de serviços à comunidade;
IV - liberdade assistida;
Mione Apolinario Sales nos presenteia em seu livro com V - inserção em regime de semi-liberdade;
suas reflexões substanciais acerca de um tema espinhoso que VI - internação em estabelecimento educacional;
desconcerta e confunde opiniões que se pretendam formadas. VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.
Inscrito numa lógica da militância inconteste e intransigente § 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua
dos direitos das crianças e adolescentes assim como capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da
preconizados no ECA, a obra se torna desde já referência infração.
indispensável e serve de dinamite para implodir os consensos § 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será
francamente excludentes e preconceituosos em torno da admitida a prestação de trabalho forçado.
discussão sobre a melhor forma de tratamento conferido aos § 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência
adolescentes em conflito com a lei. mental receberão tratamento individual e especializado, em
local adequado às suas condições.
Referência bibliográfica:
SALES, Mione Apolinario. (In)visibilidade perversa: Art. 113. Aplica-se a este Capítulo o disposto nos arts. 99 e
adolescentes infratores como metáfora da violência. São 100.
Paulo: Cortez, 2007. 360p.
Art. 114. A imposição das medidas previstas nos incisos II a
VI do art. 112 pressupõe a existência de provas suficientes da
autoria e da materialidade da infração, ressalvada a hipótese de
18. Medidas Socioeducativas; remissão, nos termos do art. 127.
Parágrafo único. A advertência poderá ser aplicada sempre
que houver prova da materialidade e indícios suficientes da
BIBLIOGRAFIA autoria.

25. SOUSA, Charles T. Práticas punitivas e Serviço Social: Seção II


reflexões sobre o cotidiano profissional no campo Da Advertência
socioJurídico. In FÁVERO, Eunice. T.; GOIS, Dalva A. (orgs.)
Serviço Social e temas sociojurídicos: debates e experiências. Art. 115. A advertência consistirá em admoestação verbal,
Coletânea Nova de Serviço Social. Rio de Janeiro: LúmenJuris, que será reduzida a termo e assinada.
2014.
Seção III
Medidas Socioeducativas Da Obrigação de Reparar o Dano
1- Noções Gerais.
Art. 116. Em se tratando de ato infracional com reflexos
A aplicação de medida socioeducativa é consequência da patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que
prática de um ato infracional praticado pelo adolescente. Com

Conhecimentos Específicos 97
APOSTILAS OPÇÃO

o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do § 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo
dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima. sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão
fundamentada, no máximo a cada seis meses.
Parágrafo único. Havendo manifesta impossibilidade, a § 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação
medida poderá ser substituída por outra adequada. excederá a três anos.
§ 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o
Seção IV adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semi-
Da Prestação de Serviços à Comunidade liberdade ou de liberdade assistida.
§ 5º A liberação será compulsória aos vinte e um anos de
Art. 117. A prestação de serviços comunitários consiste na idade.
realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período § 6º Em qualquer hipótese a desinternação será precedida
não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, de autorização judicial, ouvido o Ministério Público.
hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem § 7º A determinação judicial mencionada no § 1o poderá ser
como em programas comunitários ou governamentais. revista a qualquer tempo pela autoridade judiciária. (Incluído
Parágrafo único. As tarefas serão atribuídas conforme as pela Lei nº 12.594, de 2012)
aptidões do adolescente, devendo ser cumpridas durante Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada
jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados, domingos quando:
e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave
frequência à escola ou à jornada normal de trabalho. ameaça ou violência a pessoa;
II - por reiteração no cometimento de outras infrações
Seção V graves;
Da Liberdade Assistida III - por descumprimento reiterado e injustificável da
medida anteriormente imposta.
Art. 118. A liberdade assistida será adotada sempre que se § 1º O prazo de internação na hipótese do inciso III deste
afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, artigo não poderá ser superior a 3 (três) meses, devendo ser
auxiliar e orientar o adolescente. decretada judicialmente após o devido processo legal. (Redação
§ 1º A autoridade designará pessoa capacitada para dada pela Lei nº 12.594, de 2012)
acompanhar o caso, a qual poderá ser recomendada por § 2º. Em nenhuma hipótese será aplicada a internação,
entidade ou programa de atendimento. havendo outra medida adequada.
§ 2º A liberdade assistida será fixada pelo prazo mínimo de
seis meses, podendo a qualquer tempo ser prorrogada, revogada Art. 123. A internação deverá ser cumprida em entidade
ou substituída por outra medida, ouvido o orientador, o exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado
Ministério Público e o defensor. ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade,
compleição física e gravidade da infração.
Art. 119. Incumbe ao orientador, com o apoio e a supervisão Parágrafo único. Durante o período de internação, inclusive
da autoridade competente, a realização dos seguintes encargos, provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas.
entre outros:
I - promover socialmente o adolescente e sua família, Art. 124. São direitos do adolescente privado de liberdade,
fornecendo-lhes orientação e inserindo-os, se necessário, em entre outros, os seguintes:
programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência social; I - entrevistar-se pessoalmente com o representante do
II - supervisionar a frequência e o aproveitamento escolar do Ministério Público;
adolescente, promovendo, inclusive, sua matrícula; II - peticionar diretamente a qualquer autoridade;
III - diligenciar no sentido da profissionalização do III - avistar-se reservadamente com seu defensor;
adolescente e de sua inserção no mercado de trabalho; IV - ser informado de sua situação processual, sempre que
IV - apresentar relatório do caso. solicitada;
V - ser tratado com respeito e dignidade;
Seção VI VI - permanecer internado na mesma localidade ou naquela
Do Regime de Semi-liberdade mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável;
VII - receber visitas, ao menos, semanalmente;
Art. 120. O regime de semi-liberdade pode ser determinado VIII - corresponder-se com seus familiares e amigos;
desde o início, ou como forma de transição para o meio aberto, IX - ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio
possibilitada a realização de atividades externas, pessoal;
independentemente de autorização judicial. X - habitar alojamento em condições adequadas de higiene e
§ 1º São obrigatórias a escolarização e a profissionalização, salubridade;
devendo, sempre que possível, ser utilizados os recursos XI - receber escolarização e profissionalização;
existentes na comunidade. XII - realizar atividades culturais, esportivas e de lazer:
§ 2º A medida não comporta prazo determinado aplicando- XIII - ter acesso aos meios de comunicação social;
se, no que couber, as disposições relativas à internação. XIV - receber assistência religiosa, segundo a sua crença, e
desde que assim o deseje;
Seção VII XV - manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local
Da Internação seguro para guardá-los, recebendo comprovante daqueles
porventura depositados em poder da entidade;
Art. 121. A internação constitui medida privativa da XVI - receber, quando de sua desinternação, os documentos
liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade pessoais indispensáveis à vida em sociedade.
e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. § 1º Em nenhum caso haverá incomunicabilidade.
§ 1º Será permitida a realização de atividades externas, a § 2º A autoridade judiciária poderá suspender
critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa temporariamente a visita, inclusive de pais ou responsável, se
determinação judicial em contrário. existirem motivos sérios e fundados de sua prejudicialidade aos
interesses do adolescente.

Conhecimentos Específicos 98
APOSTILAS OPÇÃO

Art. 125. É dever do Estado zelar pela integridade física e Pode ser aplicada pelo prazo máximo de 6 meses, a ser
mental dos internos, cabendo-lhe adotar as medidas adequadas estabelecido de acordo com a gravidade do ato infracional.
de contenção e segurança. As tarefas serão cumpridas durante jornada máxima de
oito horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em
Para a aplicação das medidas socioeducativas o juiz deve dias úteis (art. 117, parágrafo único).
observar alguns requisitos:
- a capacidade do adolescente de cumpri-la; 2.4- Liberdade Assistida (arts. 118 e 119, ECA).
- as circunstâncias; e É a mais rigorosa das medidas.
- a gravidade do ato praticado (art. 112, § 1°).
O adolescente que cumpre liberdade assistida é
Atenção! A lei nº 12.594/12 (Lei do Sinase) regulamenta a acompanhado pela equipe interdisciplinar de uma entidade de
execução das medidas socioeducativa. atendimento, responsável por promover socialmente o
adolescente e sua família, supervisionar sua frequência e
O ECA permite que haja cumulação das medidas e ainda a aproveitamento escolar, diligenciar acerca de sua
substituição das medidas a qualquer tempo. Para a profissionalização e inserção no mercado de trabalho.
substituição das medidas é preciso uma análise mais
cuidadosa, sob pena de ferir o princípio do contraditório. A O prazo mínimo de duração será de 06 meses. Não há
substituição de medida mais grave por outra de menor previsão de prazo máximo.
gravidade pode ser realizada sem maiores problemas. Porém, Acerca do prazo máximo, o STJ consolidou no sentido de
o contrário não é permitido. Para imposição de medida mais fixar o limite máximo de 3 anos - em aplicação por analogia da
gravosa é preciso oportunizar a manifestação do adolescente, previsão de tempo máximo de internação (art. 121, § 30).
na forma da súmula 265 do Superior Tribunal de Justiça:
i. O art. 118, § 2°, da Lei n.0 8.069/90 não estabeleceu o
Súmula 265. É necessária a oitiva do menor infrator antes prazo máximo de duração da liberdade assistida, mas tão-
de decretar-se a regressão da medida sócio-educativa. somente a duração mínima, a qual pode ser prorrogada até o
limite de 3 (três) anos, pela aplicação subsidiária do art. 121, §
Para a aplicação da medida socioeducativo é necessário a 3°, da mesma Lei. (HC 172.017/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, 5ª
comprovação da autoria e da materialidade, ou seja, é Turma, julgado em 05/ 05/2011, D]e 18/05/2011)
preciso instaurar uma relação jurídica processual em
contraditório, com garantia de ampla defesa para que, ao final, 2.5- Semiliberdade (art. 120, ECA).
diante da comprovação da prática de ato infracional seja Consiste em medida que priva a liberdade do adolescente.
imposta medida socioeducativa. O prazo máximo de cumprimento é de 03 anos.

O adolescente deve ser liberado compulsoriamente do 2.6- Internação (arts. 121 a 125, ECA).
cumprimento de quaisquer medidas aos 21 anos (art. 121, § É a mais gravosa das medidas.
5°). Se estiver internado, deve ser colocado em liberdade. Sujeita-se aos princípios da brevidade, excepcionalidade e
respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Com o advento do Código Civil de 2002 que reduziu a
maioridade para 18 anos discutiu-se se o encerramento das Essa medida não se submete a prazo certo. O juízo, em sua
medidas socioeducativas também deveriam ocorrer quando o sentença, se limita a impor a medida de internação.
adolescente completasse essa idade. O Superior Tribunal de Periodicamente, no máximo a cada seis meses, o
Justiça pacificou o entendimento de que a medida adolescente tem o direito de ter reavaliada sua medida.
socioeducativa pode ser exigida até os 21 anos de idade.

As medidas socioeducativas por terem viés punitivo 19. Criança e Adolescente


também se submetem aos prazos prescricionais, no caso das vitimizados;
medidas elas seguem as regras previstas no art. 109 do Código
Penal.
Vitimação e vitimização de crianças e adolescentes:
2- Medidas em espécie. expressões da questão social e objeto de trabalho do
Serviço Social61
2.1- Advertência (art. 115, ECA).
É a medida mais branda e consiste numa admoestação Resumo – A violência sexual contra crianças e
verbal. adolescentes constitui-se em uma das expressões da questão
Pode ser aplicada independentemente de prova cabal social e, portanto, objeto de trabalho do Serviço Social. Para
acerca da autoria. compreender esta violência, enquanto uma das formas de
vitimizar a população infantojuvenil, tanto pelo abuso como
2.2- Obrigação de Reparar o Dano (art. 116, ECA). pela exploração sexual, há que se considerar as
Tendo o ato infracional reflexos patrimoniais o transformações da família no decorrer da história e as novas
adolescente deverá reparar os danos da vítima. configurações desta na sociedade atual, levando em conta o
processo de vitimação no qual a mesma está inserida, ou seja,
2.3- Prestação de Serviços à Comunidade (art. 117, num contexto marcado pela violência estrutural, constitutiva
ECA). da sociedade burguesa. Estas transformações que marcam a
A prestação de serviços comunitários consiste na família no decorrer de sua história estão significativamente
realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período relacionadas às mudanças sociais, políticas, econômicas e
não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, culturais que ocorrem na sociedade e por isso torna-se
hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem necessário analisar o processo de vitimização da população
como em programas comunitários ou governamentais.

61 Artigo recebido em 10.07.2008. Aprovado em 22.11.2008.

Conhecimentos Específicos 99
APOSTILAS OPÇÃO

infanto-juvenil, atrelado ao de vitimação dos mesmos e de suas que se impõem às famílias; mudança dos hábitos e dos
famílias. costumes, entre outros, contribuem para o entendimento dos
novos “modelos” de família que estão se (re)formando. A
Introdução partir deste entendimento de que a família não pode mais ser
concebida como uma totalidade homogênea, mas sim, como
A violência sexual contra crianças e adolescentes sempre um universo de relações diferenciadas, o que se pretende aqui
esteve presente na história destes sujeitos. Embora pareça ser é apresentar a origem e os novos “modelos” de família que
um problema contemporâneo, é fruto de um processo estão se constituindo.
histórico que colocou a criança em lugar de desprivilégio e Nessa perspectiva, tem-se que a família surgiu como um
desatenção. Historicamente, a família, a sociedade e o poder grupo social delimitado e identificável, cujas dinâmicas
público pouco se importaram com esta situação, para a qual internas sempre tiveram relação com o contexto social mais
davam pouca atenção e visibilidade. Fato que se justifica por amplo ao qual, por sua vez, pertencem. Os estágios
não ter sido a criança considerada como sujeito de direitos e importantes na história da família tiveram lugar muito antes
merecedora de proteção. Somente com a Constituição Federal de se fazerem registros escritos, cabendo destacar que a
de 1988 e com a implantação do Estatuto da Criança e do mudança fundamental ocorrida com a família se deu no início
Adolescente, em 1990, em consonância com a Convenção das do período e/ou estágio da civilização, em que a família passa
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, as diversas formas a se organizar sob a forma matriarcal, desconhecendo o papel
de violência praticadas contra crianças e adolescentes, bem do pai na reprodução. “O matriarcado [...], seria uma
como as demais ações que violam os direitos desses sujeitos decorrência natural da vida nômade dos povos primitivos, pois
ganharam maior visibilidade, e o Estado passou a prestar enquanto os homens [...] tinham que sair à procura de
assistência a essa população que, desde sua existência, foi alimento, as mulheres ficavam nos acampamentos com os
vítima da violência, seja ela física, sexual, psicológica ou por filhos” (OSÓRIO apud ZIMERMAN, 1997, p. 52). Em
negligência. decorrência disso, as mulheres também tinham o direito de
No que se refere à violência sexual contra crianças e propriedade e certas prerrogativas políticas.
adolescentes (uma das formas de vitimizar a população Com as mudanças advindas do desenvolvimento da
infanto-juvenil), há que se considerar o processo de vitimação agricultura, no século XVIII, deuse origem à família
no qual as famílias destes sujeitos estão inseridas, ou seja, num patriarcal,62 “fundada sobre a autoridade absoluta do patriarca
contexto marcado pela violência estrutural, constitutiva da ou “chefe de família”, que em geral vivia num regime
sociedade burguesa. Com relação a isso, é imprescindível a poligâmico, com as mulheres habitualmente isoladas ou
análise das mudanças e transformações que, ao longo da confinadas em determinados locais” (OSÓRIO apud
história, vem ocorrendo com a família, sendo a maioria delas ZIMERMAN, 1997, p. 53). O patriarcado iniciou-se quando os
reflexo das alterações que, a partir de um contexto mais amplo, homens, acasalados com mulheres, decidiram proteger as
vão se apresentando na sociedade. Nesse sentido, torna-se propriedades deles, garantindo a linha de herança. Assim, o
necessária também a identificação das múltiplas expressões matriarcado foi derrubado por razões econômicas.
da questão social vivenciadas pelas famílias de crianças e Esta passagem do matriarcado para o patriarcado deu
adolescentes vitimizadas pela violência sexual, na forma de origem à monogamia,63 vinculada ao desenvolvimento da ideia
abuso e exploração sexual, contribuindo para a análise da de propriedade ao longo do processo civilizatório. Na
relação existente entre os fenômenos de vitimação ou monogamia, a fidelidade conjugal é condição para o
violência estrutural e vitimização, ambos entendidos como reconhecimento de filhos legítimos e a transmissão
formas de violência. hereditária da propriedade, bem como o estabelecimento da
coabitação exclusiva, demarcando o território da
As transformações da família no decorrer da história e parentalidade. Esses elementos, ainda hoje, configuram o tipo
as novas configurações desta na sociedade atual de família considerada ideal no mundo ocidental (OSÓRIO
apud ZIMERMAN, 1997).
Falar sobre as transformações que vêm ocorrendo com a Conforme Engels (2002), a família monogâmica surgiu sob
família no decorrer da história requer pensar nas mudanças a forma de escravidão de um sexo pelo outro, representando o
que, a partir de um contexto mais amplo, vão se apresentando primeiro antagonismo de classes que apareceu na história,
na sociedade na qual as mesmas estão inseridas. Suas pois o sexo feminino sofria a opressão do sexo masculino. Além
mudanças, ao longo da história, estão significativamente disso, a monogamia iniciou, juntamente com a escravidão e as
relacionadas às mudanças sociais, políticas, econômicas e riquezas privadas, um período que, segundo Engels, dura até
culturais. os dias de hoje, no qual “cada progresso é, simultaneamente,
Na Idade Moderna, devido às alterações e mudanças um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de
socioeconômicas que foram ocorrendo no mundo, muitas uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros”
delas, devido à introdução do sistema capitalista de produção (ENGELS, 2002, p. 78).
e ao processo de globalização, muitos aspectos foram e estão
se refletindo hoje, na contemporaneidade, na organização A monogamia nasceu da concentração de grandes riquezas
familiar e, como consequência, novos arranjos familiares estão nas mesmas mãos – as de um homem – e do desejo de
se constituindo como uma forma de manifestação de uma nova transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos deste
sociedade. homem, excluídos os filhos de qualquer outro. Para isso era
Fatores como a saída da mulher para o mercado de necessária a monogamia da mulher, mas não a do homem;
trabalho; as novas necessidades de consumo, impostas na tanto assim que a monogamia daquela não constituiu o menor
maioria das vezes pelo mundo globalizado e desenvolvimento empecilho à poligamia, oculta ou descarada, deste. Mas a
do capitalismo, que desde as décadas de 1970 e 1980 vêm revolução social iminente, transformando pelo menos a
refletindo no cotidiano da vida das pessoas; os novos valores imensa maioria das riquezas duradouras hereditárias – os

62 “Denominamos família patriarcal, genericamente, a família na qual os 63 “Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais,
papéis do homem e da mulher e as fronteiras entre o público e o privado são mas econômicas, e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a
rigidamente definidos; o amor e o sexo são vividos em instâncias separadas, propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. [...] os únicos
podendo ser tolerado o adultério por parte do homem e a atribuição de chefe objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a
da família é tida como exclusivamente do homem” (GUEIROS, 2002, p. 107). procriação de filhos que só pudessem ser seus para herdar dele” (ENGELS,
2002, p. 77).

Conhecimentos Específicos 100


APOSTILAS OPÇÃO

meios de produção – em propriedade social, reduzirá ao exemplo do Brasil que somente com a Constituição de 1988,
mínimo todas essas preocupações de transmissão por herança homem e mulher são assumidos com igualdade no que tange
(ENGELS, 2002, p. aos direitos e deveres na sociedade conjugal.64 No que diz
89). respeito aos direitos civis, a constituição estabelece, entre seus
vários artigos e capítulos, que todos são iguais perante a lei;
Ao fazer esta retrospectiva da história da família, pode-se homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
evidenciar que até o século
X a família não tinha hegemonicamente expressão, nem Em termos de casamento e família, é somente na segunda
mesmo em termos de patrimônio. Somente no século XV, as metade do século XX [...] que o casamento se firma, pelo menos
crianças (especificamente os meninos) passam, para os setores médios urbanos, como uma escolha mútua,
gradativamente, a ser educadas em escolas e “a família começa baseada em critérios afetivos, sexuais e na noção de amor,
a se concentrar em torno delas, garantindo, entre outras configurando-se, assim, a importância do indivíduo e da esfera
coisas, a transmissão de conhecimentos de uma geração à privada (GUEIROS, 2002, p. 109).
outra por meio da participação das crianças na vida dos
adultos” (GUEIROS, 2002, p. 105). Como citado anteriormente, a família sofreu e sofre muitas
Do século XIV até o século XVII, mudanças são processadas influências das mudanças sociais mais gerais que ocorrem na
na família medieval. A mulher vai perdendo gradativamente sociedade; contudo foi, principalmente nas três últimas
seus poderes, culminando com a formalização da incapacidade décadas do século XX, que algumas questões relacionadas ao
jurídica da mulher casada e a soberania do marido na família, casamento e à família começaram a ser debatidas, como
no século XVI. relações de gênero; redefinição dos papéis masculinos e
“Assim, a mulher perde o direito de substituir o marido em femininos; papéis públicos e privados; comportamento sexual
situações nas quais ele se ausenta, ou é considerado louco, e definido segundo o sexo; constituição da mulher como
qualquer ato seu tem efeito legal apenas se autorizado pelo indivíduo e construção da individualidade e da identidade
marido” (GUEIROS, 2002, p. 106). pessoal (GUEIROS, 2002, p. 109).
Ao reforçar o poder do homem sobre a mulher, é
estabelecida a desigualdade entre o homem e a mulher, o que Nas últimas décadas do século XX, com a família conjugal
pode ser evidenciado pelo fato de a escolaridade passar a fazer moderna instituída, outras mudanças ocorreram e foram
parte da vida dos meninos desde o século XV, quando começa incorporadas pela Carta Constitucional de 1988, não só pelos
a idade moderna, e para as meninas, somente no final do novos arranjos familiares que foram se constituindo, mas
século XVIII e início do século XIX. principalmente pelo contexto social, político e econômico que
Nesse período, paralelamente ao fortalecimento do poder contribuiu para a instituição destes novos modelos de família.
do marido, passa-se a valorizar os laços de família e, a partir de As novas feições assumidas pela família estão intrínseca e
então, começa o desenvolvimento da família moderna dialeticamente condicionadas às transformações societárias
(GUEIROS, 2002). É também no século XVIII que se processa a contemporâneas, ou seja, às transformações econômicas e
separação entre família e sociedade, enfatizando a intimidade sociais, de hábitos e costumes e ao avanço da ciência e da
familiar, ou seja, as casas passam a ter cômodos com tecnologia. Nesse cenário, certas necessidades da economia
separações para assegurar a privacidade dos indivíduos na capitalista provocaram mudanças na família, entre estas, o fato
própria família. Aspectos como a saúde e a educação passam a de a família tornar-se uma unidade de consumo e uma nova
ser neste século as maiores preocupações dos pais, bem como ideologia de lazer encorajar a família a consumir cada vez
a igualdade entre os filhos, até então desconsiderada, pois mais. Os novos produtos que vão surgindo nas fábricas e
privilegiava-se apenas um deles e geralmente o primogênito indústrias, rápidas mudanças de estilo contribuem para
(GUEIROS, 2002). fomentar uma ideologia de consumismo com efeitos
Diante disso, tem-se que dos séculos XVI e XVII não havia profundos no lar. O movimento das mulheres, resistindo às
separação rigorosa entre público e privado. As famílias viviam formas tradicionais de diferenciação de papéis sexuais que
nas ruas, nas festas, não se isolavam. A família não tinha função restringiam a esposa ao lar e à subserviência aos homens,
afetiva e socializadora; era constituída visando apenas à fazendo com que estas começassem a exigir uma oportunidade
transmissão da vida, à conservação dos bens, à ajuda mútua e igual de trabalho e igualdade de salário, também é fator que
à proteção da honra e da vida em caso de crise (AZEVEDO; contribui para com as mudanças da família, bem como aquelas
GUERRA, 2007). introduzidas na Constituição Federal.
Nesse contexto, há que se destacar que as mudanças da
família medieval para a família do século XVII e para a família O crescimento dos divórcios, a diminuição dos índices de
moderna se limitavam às classes abastadas, e, a partir do casamento formal, a redução do número de filhos e do desejo
século XVIII, essas mudanças passam a abranger todas as das mulheres de tê-los, aparecem como outros aspectos
camadas sociais. significativos da família contemporânea e, por sua vez,
favorecem novas configurações e a torna mais complexa. As
A partir da segunda metade do século XIX, o processo de relações intergeracionais aparecem, hoje, como algo a ser
modernização e o movimento feminista provocam outras decodificado e administrado pela família contemporânea, uma
mudanças na família e o modelo patriarcal, vigente até então, vez que a cultura dos jovens se expressa com conteúdos bem
passa a ser questionado. Começa, então, a se desenvolver a diferentes daqueles vividos por seus pais, provocando, assim,
família conjugal moderna, na qual o casamento se dá por um embate entre eles (GUEIROS, 2002, p. 110).
escolha dos parceiros, com base no amor romântico, tendo
como perspectiva a superação da dicotomia entre amor e sexo Outros aspectos podem ser destacados para expressar o
e novas formulações para os papéis do homem e da mulher no crescimento dos novos arranjos familiares, como: a função de
casamento (GUEIROS, 2002, p. 107). provedor não é mais somente atribuída ao homem, pois a
inserção feminina no mercado de trabalho cresce cada vez
Contudo, muitos traços da família patriarcal estiveram mais em virtude da própria crise do emprego; a chefia da
presentes e ainda persistem na família conjugal moderna, a família também não cabe mais só ao homem, basta verificar o

64 Termo utilizado para fazer referência à relação marido e mulher: este termo não é mais utilizado, já que o casamento não se dá mais somente
casamento. A partir do novo Código Civil, aprovado em 15 de agosto de 2001, entre homem e mulher.

Conhecimentos Específicos 101


APOSTILAS OPÇÃO

crescimento das famílias monoparentais com chefia feminina; sociedade. Por isso, conhecer a família da qual se fala, bem
os vínculos de aliança e consanguinidade não são como compreender sua inserção e o papel social que a ela está
imprescindíveis dentro do processo de formação de uma sendo atualmente destinado, é de fundamental importância
família; as famílias não mais se constituem exclusivamente para os profissionais que com ela trabalham.
pela união de um homem e uma mulher, o que pode ser Diante desse entendimento, o próximo item irá definir e
percebido com a formação de famílias de casais homossexuais abordar a violência sexual na forma de abuso e exploração
(CALDERÓN; GUIMARÃES, 1994). sexual atrelado aos fenômenos de vitimação e vitimização,
De acordo com a Política Nacional de Assistência Social evidenciando que a violência está relacionada a um contexto
(PNAS) implantada em 2004, a família, independentemente maior, em que um conjunto de fatores sejam eles sociais,
dos formatos ou modelos que assume, é mediadora das econômicos, culturais, entre outros, favorecem a sua
relações entre os sujeitos e a coletividade, bem como geradora ocorrência, principalmente, quando se sabe que são as famílias
de modalidades comunitárias de vida. Entretanto, não se pode as atingidas por esses fatores e, diante disso, sentem-se
desconsiderar que ela se caracteriza como um espaço incapacitadas para proteger seus filhos.
contraditório, cuja dinâmica cotidiana de convivência é
marcada por conflitos e geralmente, também, por Violência sexual contra crianças e adolescentes:
desigualdades, além de que, nas sociedades capitalistas, a expressão da questão social e objeto de trabalho do
família é fundamental no âmbito da proteção social. Como Serviço Social
destaca o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do
Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Antes de aprofundar a discussão sobre a violência sexual e
Comunitária, a família é preconizada e reconhecida pela mais especificamente sobre abuso e exploração sexual, há que
legislação brasileira vigente, como estrutura vital, lugar se reconhecer e entender as mais variadas formas de violência
essencial à humanização e à socialização da criança e do que se apresentam na sociedade, evidenciando que ela não é a
adolescente, espaço ideal e privilegiado para o mesma de um período a outro e que, contemporaneamente,
desenvolvimento integral dos indivíduos (BRASIL, 2006). esta se situa no cruzamento do social, do político, do
Contudo, destaca-se que, para a família poder econômico e do cultural, do qual ela exprime correntemente as
desempenhar todas essas funções e/ou garantir todos os transformações e a eventual desestruturação. Atualmente, a
direitos fundamentais aos membros que a compõe, de forma que determina as demais formas de manifestação, é a violência
especial crianças e adolescentes, a mesma precisa ser causada pelas mutações da sociedade e que, no presente,
reconhecida em suas inúmeras dificuldades, sendo que estas trazem a marca do individualismo moderno, com a
não podem ser traduzidas como “incapacidades” da família decomposição dos princípios de ordem (LEAL; CÉSAR, 1998).
para desempenhar o seu papel. Essas dificuldades precisam Destaca-se que a violência, em suas diferentes expressões,
ser vistas sim, como consequência de um Estado que durante faz parte do cotidiano. Em todas as classes sociais, ela
muito tempo e ainda hoje desenvolve políticas paternalistas permanece e se desenvolve, roubando a vida de milhares de
voltadas para o controle e a contenção social, principalmente pessoas, especialmente crianças e adolescentes, que, por
para a população mais pobre, evidenciando um total descaso vezes, ainda são considerados à margem de qualquer poder na
pela preservação de seus vínculos familiares e a real superação vida familiar e social. “A violência, presente nas relações
de suas dificuldades e vulnerabilidades. individuais, manifesta-se ainda com maior força no projeto
Desse modo, considerando as diferentes ideias e político, social e econômico hegemônico que exclui dois terços
entendimentos sobre família, é possível atribuir a este grupo da humanidade de participar da alegria dos bens que produz”
um conceito que leva em conta não somente seus aspectos (SANTOL et al., 1997, p. 5).
naturais, como o número de indivíduos que a compõe e como Adorno sugere que
se organizam, mas também fatores externos que estão
relacionados a esta instituição. É necessário pensar que as [...] a violência é uma forma de relação social; está
novas formas de organização familiar, que para muitos dão um inexoravelmente atada ao modo pelo qual os homens
novo sentido para a palavra família, estão diretamente produzem e reproduzem suas condições sociais de existência.
relacionadas às mudanças e transformações societárias, seja Sob esta ótica, a violência expressa padrões de sociabilidade,
no aspecto social, cultural, religioso, político ou econômico, modos de vida, modelos atualizados de comportamentos
mas que acabam influenciando no cotidiano das famílias e nas vigentes em uma sociedade e em um momento determinado
formas de organização da mesma. Assim, pode dizer-se que as de seu processo histórico (ADORNO apud SCOBERNATTI,
famílias expressam aquilo que a sociedade como um todo está 2005, p. 82).
vivenciando, ou seja, novos valores, novas formas de relação
social e de produção, decorrentes do sistema capitalista Esta violência, que no cotidiano é apresentada como abuso
vigente na sociedade. sexual, psicológico ou físico, tanto de crianças e adolescentes,
As novas configurações familiares necessitam, portanto, como de adultos, é, pois, uma articulação de relações sociais
ser debatidas e analisadas para verificar o que isso representa gerais e específicas, ou seja, de exploração e de forças
para os indivíduos e mesmo para a sociedade, pois, com a crise desiguais nas situações concretas. Não pode, assim, ser vista
no mundo do trabalho, as famílias ganham novos contornos e como se fosse resultante de forças da natureza humana ou
especificidades. Famílias inteiras veem-se abaladas pelo extranaturais, ou um mecanismo autônomo e independente de
desemprego estrutural; os pais perdem seus postos de determinadas relações sociais. Esta violência manifesta uma
trabalho; mulheres inserem-se ao mercado do trabalho, não relação de poder que se exerce pelo adulto ou mesmo não
para complementar a renda familiar, mas porque são as adulto, porém mais forte, sobre a criança e o adolescente, ou
principais responsáveis pelo orçamento doméstico. Tudo isso mesmo adulto, num processo de apropriação e dominação não
cria, no cotidiano das famílias, uma situação de precarização só do destino, do discernimento e da decisão livre destes, mas
da capacidade de manter atendidos e protegidos os seus de suas pessoas enquanto outro (LEAL; CÉSAR, 1998).
membros, tanto adultos como crianças e, por estarem diante Ao fazer esta aproximação do conceito de violência, tem-se
do desafio de enfrentar, sem nenhuma proteção social, que são ações e/ou omissões que podem cessar, impedir, deter
carências materiais e financeiras, políticas sociais públicas ou retardar o desenvolvimento pleno dos seres humanos,
devem ser gestadas com vistas à reinserção deste grupo social, principalmente quando esta violência for praticada contra
incluindo esta população marcada pela exclusão social, crianças e adolescentes, que, por estarem em uma condição
decorrente de um novo processo de desenvolvimento da peculiar de desenvolvimento, precisam de cuidado e proteção.

Conhecimentos Específicos 102


APOSTILAS OPÇÃO

A violência no contexto familiar não é uma questão nova, como uma totalidade, onde a estrutura econômica determina,
ela atravessa os tempos e se constitui em uma relação em última instância, o desenvolvimento das demais formas de
historicamente construída a partir das relações de poder, vida. Contudo, há uma relação dialética entre a consciência e a
gênero, etnia e de classe social. Em outras palavras, a violência vida material que se interpenetram, o que traduz, também, a
intrafamiliar é uma expressão extrema de distribuição perspectiva de totalidade. Essa compreensão macro e micro é
desigual de poder entre homens e mulheres, de distribuição condição para discutir e analisar as grandes modificações e
desigual de renda, de discriminação, de raça e de religião. Além expressões da questão social vivenciadas pela atual família
disso, esta representa brasileira, bem como as dificuldades vivenciadas pelas
mesmas, contribuem para, além da incapacidade de garantir
[...] todo o ato ou omissão praticado por pais, parentes ou os direitos fundamentais de vida de crianças e adolescentes, o
responsáveis contra a criança e/ou adolescente, que, sendo desencadeamento de agressão física e sexual destes sujeitos.
capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima, Conforme Santos (2004), a violência sexual contra crianças
implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de e adolescentes tem origem nas relações desiguais de poder.
proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, Dominação de gênero, classe social e faixa etária, sob o ponto
isto é, uma negação do direito que a criança e adolescente têm de vista histórico e cultural, contribuem para a manifestação
de serem tratados como sujeitos e pessoas em condições de abusadores e exploradores. A vulnerabilidade da criança,
peculiares de desenvolvimento (GUERRA apud sua dificuldade de resistir aos ataques do abusador são
SCOBERNATTI, 2005, p. 83). condições que favorecem a ocorrência da violência sexual.
Abuso sexual e exploração sexual são, então, duas
Esta violência intrafamiliar constitui-se historicamente em classificações que se interrelacionam e que dão forma à
fator desencadeador de outros tipos de violência. Dentre as violência sexual. A primeira caracteriza-se pelo ato ou jogo
formas de abusos intrafamiliares estão presentes: sexual em que o adulto submete a criança ou o adolescente
negligências,65 abusos físicos,66 abusos psicológicos67 e abusos numa relação do poder desigual, para se estimular ou
sexuais.68 Neste momento, porém, enfatizar-se-á o estudo da satisfazer-se sexualmente, impondo-se pela força física, pela
violência sexual, na forma de abuso e exploração sexual ameaça ou pela sedução, com palavras ou com oferta de
infantil. presentes (SCOBERNATTI, 2005). Além disso, pode ser
Antes de abordar essas duas formas de violência, é entendido como uma situação de ultrapassagem (além,
importante ressaltar que ambas constituem um fenômeno que excessiva) de limites: de direitos humanos, legais, de poder, de
perpassa todas as classes sociais, requerendo uma abordagem papéis, do nível de desenvolvimento da vítima, do que esta
histórica da questão, que é oriunda de toda uma estrutura sabe e compreende, do que o abusado pode consentir, fazer e
desigual da sociedade brasileira, e pautada não só pela viver, de regras sociais e familiares e de tabus. E que as
dominação de classes, como também pela imperante situações de abuso infringem maus tratos às vítimas
dominação de gênero e raça e, ainda, nas relações de (FALEIROS, 2000, p. 15).
autoritarismo estabelecidas entre adulto/criança. A sociedade
vai construindo, ao longo de sua história, barreiras físicas, Já a exploração sexual é caracterizada pela relação sexual
culturais, sociais e morais, que resultam na exclusão em massa de crianças ou adolescentes com adultos, mediada por
de grande parte da população. Essa exclusão constitui-se na dinheiro ou troca de favores. Essa prática tem sido
base da violência (HAZEU; FONSECA, 1998). milenarmente denominada de prostituição (SANTOS, 2004).
Vários fatores podem ser destacados como facilitadores da A grande maioria dos casos de abuso sexual acontece com
violência, o que pode ser observado a seguir: pessoas próximas da vítima, e por isso é necessário elencar
alguns indicadores em relação à família incestogênica; ao
Os fatores sociais, como a miséria e o desemprego e as más agressor, que tanto pode ser a mãe como o pai; ao
condições de vida e sobrevivência são fatores que podem companheiro(a) do agressor(a) e à vítima de incesto. Estas
facilitar a ocorrência dos maus-tratos e do abuso sexual, características são apontadas por Forward e Buck (2005). Com
devido à presença de um montante de frustrações presente relação à família, tem-se que estas são vistas como estruturas
nessas situações, que excede, muitas vezes, a capacidade de fechadas em que seus componentes têm pouco contato social,
buscar soluções criativas e construtivas. Na classe popular, os principalmente a vítima. A obediência à autoridade masculina
maus-tratos são mais visíveis, chegam com mais frequência é incontestável, tem um padrão de relacionamento que não
aos serviços públicos de atendimento, e também por isso a deixa claras as regras de convivência e a comunicação não é
atuação junto a esse público fica facilitada. Por mais difícil que aberta, o que facilita a confusão da vítima e,
seja a intervenção, é aqui que se visualizam maiores consequentemente, o complô do silêncio (como revelar o que
possibilidades de atendimento e proteção à criança. Mas é fato não se consegue definir, o que não se comenta, o que “não
que a ocorrência de violência intrafamiliar é encontrável em aconteceu”, o que não “existe”?). As formas de manifestação de
qualquer classe social (SANTOS et al., 1997, p. 23). carinho e afeto, quando existem, são erotizadas. Muitas vezes
a vítima assume funções de mãe, tais como o cuidar de crianças
Diante disso, pode-se evidenciar que a violência, de forma menores, os afazeres domésticos etc. Também pode ser
geral, é resultado de uma realidade construída socialmente, colocada pela família como promíscua, sedutora e mentirosa.
levando-se em conta as relações que os homens mantêm entre Crê que o contato sexual é forma de amor familiar; conta
si e com a natureza. Essa realidade social deve ser apreendida

65 “[...] se expressa pela indiferença e pela rejeição afetivas, manifestadas por rejeição total. É muito difícil ser documentado e diagnosticado, porque não
humilhações, depreciações constantes que bloqueiam os esforços de deixa nenhum sinal visível” (SCOBERNATTI, 2005, p. 90).
autoaceitação da criança; ou ainda pode ser caracterizada pela omissão dos 68 “É definido como qualquer interação, contato ou envolvimento da criança
pais ou responsáveis em garantir os cuidados e satisfação das necessidades da ou adolescente em atividades sexuais que ela não compreende, não consente,
criança e do adolescente, sejam elas primárias – alimentação, higiene e violando assim as regras legais da sociedade. [...] significa todo ato ou relação
vestuário – e secundárias – escolarização, saúde e lazer – ou terciárias – afeto e sexual erótica, destinada a buscar prazer sexual. A gama de atos é bastante
proteção” (SCOBERNATTI, 2005, p. 87). ampla, abrangendo atividades: sem contato físico – voyeurismo, cantadas
66 “[...] está geralmente associada a uma forma de punição ou disciplina e, com obscenas, etc.; com contato físico, implicando graus diferentes de intimidade
frequência, se encontra a marca do instrumento utilizado na agressão tais que vão dos beijos, carícias nos órgãos sexuais até cópulas (oral, anal, vaginal);
como: cintos, fivelas, cordas, correntes, dedos e dentes, bem como sem emprego da força física; mediante emprego da força física”
queimaduras, hematomas e fraturas” (SCOBERNATTI, 2005, p. 88). (SCOBERNATTI, 2005, p. 99-100).
67 “Esse tipo de abuso está presente em todas as formas de violência, embora
possa ocorrer isoladamente e variar desde a desatenção ostensiva até a

Conhecimentos Específicos 103


APOSTILAS OPÇÃO

estórias alegando outro agressor para proteger membro da situações estressantes que, direta ou indiretamente,
família (FORWARD; BUCK, 2005, p. 19). acarretam danos ao desenvolvimento infantil (BRASIL, 2006,
p. 27).
Sobre o agressor, os mesmos autores destacam que
geralmente é homem, pai, padrasto, parente ou pessoa que Como consequência, estas famílias, submetidas à condição
tem proximidade ou afeição para com a vítima e é de sua de vida precária, sem garantia de alimento, de moradia, de
confiança. O agressor incestuoso tem, frequentemente, em seu trabalho, de assistência à saúde e de todos os serviços que
histórico de vida, situações de vitimização física ou sexual. “A definem uma vida minimamente digna no mundo
relação de poder, dominação e opressão é o que move este contemporâneo, sentem-se incapacitadas para proteger os
agressor” (FORWARD; BUCK, 2005, p. 19). seus membros, em especial crianças e adolescentes. Com isso,
Quanto ao adulto não abusador que para os autores refere- aumentam também as possibilidades de a população infanto-
se à mulher, mas não necessariamente seja só ela, pois pode juvenil tornar-se vítima de violência sexual, tanto do abuso
ser esta a autora do abuso, é possível evidenciar que na como da exploração sexual.
maioria das vezes apresenta-se submissa ao companheiro, Ao considerar a importância da família no que diz respeito
mas ao mesmo tempo desempenha um papel de à garantia dos direitos fundamentais das crianças e
superprotetora deste. Ajuda a manter o complô do silêncio, adolescentes, enquanto lugar essencial à humanização e à
justificando, ou encobrindo o que acontece. Também socialização desses sujeitos, bem como um espaço privilegiado
apresenta histórico de vitimização na infância, inclusive para o desenvolvimento integral dos mesmos, conforme
frequentemente como vítima de abuso sexual. Com poucos previsto no ECA, é necessário pensar que as enormes
recursos para proteger a criança, quando o faz tem desigualdades sociais presentes na sociedade e a crescente
dificuldades em manter esta proteção, pois ela própria pode exclusão do mercado formal de trabalho incidem diretamente
estar sendo vítima de agressões deste companheiro na situação econômica das famílias e inviabilizam o
(FORWARD; BUCK, 2005, p. 19-20). provimento de condições mínimas necessárias à sua
sobrevivência, acarretando inclusive a fragilização dos
Por último, tem-se que a vítima é, na maioria das vezes, vínculos familiares e uma maior vulnerabilidade da família
menina, mas também há registros e relatos de meninos que (GUEIROS; OLIVEIRA, 2005, p. 119).
foram vítimas de incesto. Forward e Buck (2005, p. 20)
ressaltam que “quando o abuso sexual começa muito cedo, a Com relação a tudo isso, é possível evidenciar que o abuso
criança pode entender que aquilo que está acontecendo é uma e a exploração sexual, violência cometida contra crianças e
forma de carinho, às vezes, a única forma de contato sem adolescentes, estão diretamente relacionados à questão social,
agressões físicas que ela pode experimentar vindas daquele ou seja, aos fatores e circunstâncias que os constituem e dão
homem”. forma. Esta (a violência), por sua vez, se aprofunda e se torna
mais complexa a cada dia que passa, pois as desigualdades
Como bem evidencia Scobernatti (2005, p. 165), crianças e econômicas, sociais, políticas e culturais geradas pelo
adolescentes expostos à violência intencional e repetitiva capitalismo, também assumem novas e maiores proporções.
aprendem estes padrões como verdades, e estas verdades Nessa perspectiva, compreender o abuso e a exploração
internas, padrões mentais representacionais afetivos, serão sexual requer considerar aspectos e dificuldades de diferentes
mediadores de suas relações sociais. naturezas, ou seja, dificuldades culturais, sociais, econômicas
e de relações interpessoais, o que permite aproximar-se dos
Dentre as mais diversas variáveis relacionadas às causas conceitos de vitimação ou violência estrutural e vitimização,
dos abusos encontram-se desde problemas de saúde mental, que caracterizam as diferentes formas de violação de direitos,
tais como dependência e abuso de álcool e outras drogas, tanto de crianças e adolescentes como se suas respectivas
problemas neurológicos, genéticos, história familiar passada famílias.
ou presente de violência doméstica; ocorrência de A violência estrutural recebe definições e conceitos de
perturbações psicológicas entre os membros das famílias; o vários autores, cabendo aqui destacar alguns. Maldonado
despreparo para a maternidade e/ou a paternidade de pais (1997) faz referência à violência estrutural como sendo aquela
jovens, inexperientes ou sujeitos a uma gravidez indesejada; a caracterizada por condições extremamente adversas de vida,
adoção de práticas educativas muito rígidas e autoritárias; o que geram uma imensa população de pessoas vivendo na
isolamento social das famílias que evitam desenvolver miséria, com fome, habitação precária ou até mesmo
intimidade com pessoas de fora do pequeno círculo familiar; a deficiente, dificuldade de acesso ao mercado de trabalho,
ocorrência de práticas hostis, desprotetoras ou negligentes em sofrendo no cotidiano a violação sistemática dos direitos
relação às crianças, e fatores situacionais diversos que humanos. Para Boulding (1981) a violência estrutural oferece
colocam as famílias frente a circunstâncias não antecipadas e um marco à violência do comportamento, pois se aplica tanto
que podem atuar como estressores ou facilitadores para o às estruturas organizadas e institucionalizadas da família
desencadeamento dos abusos. Contudo, são as consequências como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que
da desigualdade social e da pobreza que têm como resultado, conduzem à opressão de determinadas pessoas a quem se
conforme o Plano Nacional de Promoção, Defesa e Garantia do negam vantagens da sociedade.
Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Nessa perspectiva, tem-se que a violência estrutural pode
Comunitária: a produção de crianças vitimadas pela fome, por ser entendida como um processo de vitimação, ou seja, são as
ausência de abrigo ou por morar em habitações precárias, por consequências da desigualdade social e da pobreza que têm
falta de escolas, por doenças contagiosas, por inexistência de como resultado “a produção de crianças vitimadas pela fome,
saneamento básico, que refletem diretamente na relação entre por ausência de abrigo ou por morar em habitações precárias
crianças, adolescentes e violência no cotidiano de famílias [...], por inexistência de saneamento básico, que refletem
brasileiras. Essa situação de vulnerabilidade, denominada diretamente na relação entre crianças, adolescentes e
vitimação, pode desencadear a agressão física e/ou sexual
contra crianças e adolescentes, haja vista que a cronificação da
pobreza da família contribui para a precarização e
deterioração de suas relações afetivas e parentais. Nesse
sentido, pequenos espaços, pouca ou nenhuma privacidade,
falta de alimentos e problemas econômicos acabam gerando

Conhecimentos Específicos 104


APOSTILAS OPÇÃO

violência no cotidiano de famílias brasileiras” (BRASIL, 2006, Nesse sentido, para pensar a família de hoje, há que se
p. 54).69 considerar as mudanças que ocorrem em nossa sociedade,
Dessa forma, entende-se que a vulnerabilidade social pode pois “as famílias refletem os problemas dos contextos mais
ser um fator determinante para o desencadeamento da amplos em que vivem” (KASLOW apud SZYMANSKI, 2002, p.
agressão física e/ou sexual de crianças e adolescentes, haja 18), e dentro da perversidade dessa dinâmica social burguesa,
vista que as consequências trazidas pelas desigualdades a convivência familiar se fragiliza, dificultando, inclusive, a
sociais geradas pelo mundo capitalista contribuem também permanência de crianças e adolescentes em suas famílias, pois
para a precarização e deterioração de suas relações afetivas e os próprios pais estão negligenciados e abandonados, quando
parentais. se sabe que a capacidade de cuidado e proteção dos grupos
Mesmo não sendo a pobreza fator determinante para a familiares depende da qualidade de vida que eles têm no
ocorrência da violência, a mesma gesta um processo contexto social em que estão inseridos.
cumulativo de fragilização social, em que a trajetória de grande Assim, torna-se necessária a implementação de políticas
número de crianças e adolescentes privados de comida, de públicas que visam ao fortalecimento das famílias, buscando a
casa, de proteção, de escola, com acentuação das relações superação de vulnerabilidades que condicionam a ocorrência
violentas intrafamiliares, também facilitadas pelo alcoolismo, da vitimização de seus membros, bem como das demais
pelo desemprego e pela frustração social, favorecem este necessidades que as impedem de ter uma vida digna e,
processo de fragilização e consequentemente a ocorrência da principalmente, de desempenhar o seu papel enquanto
violência. A família, diante de situações de risco social e protetoras de crianças e adolescentes.
vulnerabilidades geradas por todo este processo, submetida à
condição de vida precária, sem garantia de alimento, de Considerações finais
moradia, de trabalho, de assistência à saúde e de todos os
serviços que definem uma vida minimamente digna no mundo Ao finalizar esta discussão, destaca-se que a efetivação da
contemporâneo, sentindo-se desprotegida pelo Estado, no que proteção e garantia dos direitos de crianças e adolescentes,
tange a um sistema de proteção social que tenha a família assim como a superação das situações que violam seus
enquanto centralidade, também compromete suas direitos, requer pensar na forma como o Estado, a família e a
responsabilidades, principalmente aquelas que dizem respeito sociedade estão se articulando com vistas a garantir esta
à garantia do direito à convivência familiar e comunitária de proteção.
crianças e adolescentes. Com isso, aumentam também as Atualmente, entendendo que a garantia dos direitos
possibilidades de a população infanto-juvenil tornar-se vítima fundamentais de crianças e adolescentes está diretamente
da violência. relacionada às condições de existência de sua família e ao
A vitimização refere-se, então, à violência inerente às contexto social em que a mesma está inserida, a política de
relações interpessoais adulto- criança. “A vitimização – assistência social deve centrar suas ações na família,
enquanto violência interpessoal – constitui uma exacerbação considerando as novas configurações assumidas por esta e
desse padrão. Pressupõe necessariamente o abuso, enquanto principalmente as dificuldades e vulnerabilidades que
ação, ou omissão de um adulto, capaz de criar dano físico ou permeiam o seu cotidiano marcado por profundas
psicológico à criança” (AZEVEDO; GUERRA, 2007, p. 35). desigualdades. Não se trata de conceber um modelo ideal de
Crianças vítimas dessa violência têm aprisionado suas família, mas sim de enfatizar a capacidade que a mesma tem de
vontades e desejos, estando submetidas ao poder do adulto, a exercer a função de proteção e socialização de suas crianças e
fim de coagi-la a satisfazer os interesses, as expectativas ou as adolescentes.
paixões deste. Como destaca Amaro (2003), a vitimização se A partir disso, as políticas, programas, projetos e serviços
refere a uma visão/ação no mundo centrada e organizada sob continuados que até então são e/ou eram ofertados aos
a ótica do adulto. Na relação de poder adultocêntrica, as usuários de forma isolada, fragmentada, ou seja, para a criança
necessidades e os direitos das crianças e adolescentes são e o adolescente, ao idoso, ao portador de deficiência, entre
submetidos a uma condição hierarquicamente inferior aos dos outros usuários da política de assistência social, devem ser
adultos, chegando a uma valorização oscilante, destinados à família como um todo, levando em conta o seu
associados/transformados em “adultos em miniatura”. contexto e sua realidade. Dessa forma, os sujeitos até então
Desta forma, sabendo que todas as formas de violência atendidos de forma isolada, passam a ser considerados e
vitimizam crianças de todas as classes sociais, é importante percebidos enquanto integrantes deste grupo social. Assim,
destacar que, embora haja certa sobreposição entre crianças entende-se que, para a criança e o adolescente serem
vitimadas e crianças vitimizadas, o processo de vitimação protegidos, sendo-lhes garantidos e assegurados todos os
atinge exclusivamente filhos de famílias economicamente cuidados que lhes são de direito, é necessário que a família
desfavorecidas, enquanto o processo de vitimização ignora tenha condições de sustentabilidade para tal, ou seja, para que
fronteiras econômicas entre as classes sociais, sendo ela consiga desempenhar suas funções, é necessário que as
absolutamente transversal, de modo a cortar verticalmente a dificuldades e expressões da questão social que perpassam o
sociedade (AZEVEDO; GUERRA, 2007, p. 15-16). cotidiano das mesmas, decorrentes da violência estrutural que
vítima milhares de famílias brasileiras, também sejam
Portanto, por ser o abuso e a exploração sexual de crianças superadas e tenham as suas necessidades satisfeitas, pois são
e adolescentes uma das expressões da questão social, estes fatores que na maioria das vezes determinam a
diretamente relacionada ao contexto mais amplo vivenciado ocorrência de situações que violam os direitos dos demais
pela sociedade, que no decorrer da história vem se sujeitos integrantes da família e de forma particular, as
transformando e gerando profundas desigualdades sociais, crianças e adolescentes, por sua condição peculiar de
tem-se que esta violação dos direitos infantis também está crescimento e desenvolvimento.
ligada ao processo de fragilização pelo qual passam inúmeras Pontua-se que o rompimento da violência contra crianças
famílias. e adolescentes não é um processo de fácil resolução e que
apresenta resultados imediatos. Diante disso, políticas

69 Para o Plano Nacional de Promoção, Defesa e Garantia do Direito de relações afetivas e parentais. Nesse sentido, pequenos espaços, pouca ou
Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, “essa situação nenhuma privacidade, falta de alimentos e problemas econômicos acabam
de vulnerabilidade, denominada vitimação, pode desencadear a agressão física gerando situações estressantes que, direta ou indiretamente, acarretam danos
e/ou sexual contra crianças e adolescentes, haja vista que a cronificação da ao desenvolvimento infantil” (BRASIL, 2006, p. 54).
pobreza da família contribui para a precarização e deterioração de suas

Conhecimentos Específicos 105


APOSTILAS OPÇÃO

públicas devem ser implantadas a fim de garantir direitos O livro é dividido em três partes. Inicialmente, há a
humanos, seja de crianças e adolescentes, bem como de suas preocupação de se tecer um esclarecimento sobre a infância,
famílias, com o intuito de romper as situações de violência por especificamente nos aspectos do desenvolvimento em termos
elas vivenciadas. de constituição do seu Eu, além da relação da criança com a
família e destas com outros grupos sociais.
Referência: Destaca as principais características do funcionamento de
Jaina Raqueli Pedersen. Extraído do site: um grupo, sua evolução dentro do processo de
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/articl desenvolvimento infantil e a importância tanto de fatores
e/viewFile/5677/4130, acesso em 30/03/2017. individuais, quanto dos sociais, na constituição da
personalidade de um indivíduo.
Toda essa análise é feita com base na abordagem teórica
20. Violências e Violência do psicodrama, J. L. Moreno, explicitando conceitos como
Doméstica; espontaneidade, matriz de identidade, papéis, entre outros.
Nessa mesma direção, ainda são apresentados os fatores
relacionados com a vitimização da criança e do adolescente e
BIBLIOGRAFIA como se dá o desenvolvimento de seu Eu quando a violência
ocorre.
11. FERRARI, Dalka C.A.; VECINA, Tereza C.C. Fim do Como as principais abordagens teóricas trabalhadas
Silêncio na Violência Familiar. Edição 3º. São Paulo, Editora dentro do CNRVV, são a psicodramática e a psicanalítica, os
Agora, 2002. mesmos aspectos citados acima sobre o desenvolvimento
infantil são analisados na perspectiva de Freud e de outros
30. Revista Serviço Social e Sociedade, N. 70, Violência. São estudiosos de destaque nessas vertentes teóricas.
Paulo, Cortez Editora, 2002. Houve também a preocupação de traçar um perfil das
crianças e adolescentes que foram encaminhados ao CNRVV,
20. MIOTO, Regina Célia. Para que tudo não termine em apresentando suas percepções sobre a violência e como se
“um caso de família”: aportes para o debate de violência dava a organização social dessas pessoas, ressaltando
doméstica. Revista Katálises, v.6, n.1, p.96 – 103, jan./jun. diferenças de gênero nas respostas aos diversos pontos
2003. investigados.

Caminhos para o combate e prevenção à violência Na Parte II do livro, as autoras aprofundam as análises
intrafamiliar70 sobre as ocorrências da violência intrafamiliar, a respeito dos
fatores que a constituem, as diferentes configurações que
Ferrari, Dalka C. A., Vecina, Tereza C. C. (2002). O Fim do assume, entre outros, tendo como base os casos trabalhados
Silêncio na Violência Familiar - Teoria e Prática. São Paulo: pelos psicólogos do CNRVV.
Editora Ágora. É verificado quem são os principais agressores e as
consequências geradas pela violência, na construção da
Diante das crescentes denúncias de violência ocorridas personalidade das vítimas; Bem como realiza-se ainda uma
dentro da própria família, o pensamento das referidas autoras, descrição relevante dos aspectos que determinam o grau e o
no livro “O Fim do Silêncio na Violência Familiar - Teoria e tipo de consequência que poderá ser gerada, como o tipo de
Prática”, representa uma oportunidade para, enquanto relação estabelecida entre agressor e vítima, a gravidade do
cidadãos e profissionais, ter-se conhecimento do que vem ato, o tempo que durou, sendo de grande importância, a
sendo feito e do que pode ainda ser realizado tanto para o discussão sobre os motivos que levam a mulher a se manter
enfrentamento como para a prevenção desse fenômeno tão conivente com a situação de violência e que estabelecem o seu
complexo. aprisionamento na relação com o agressor.
Por sua vez, esta obra se caracteriza por ser uma das As autoras expõem os motivos pelos quais crianças e
pioneiras, em nível nacional, na temática proposta, no sentido adolescentes se mantêm calados diante da violência cometida
de reunir conceitos teóricos e a práxis do profissional de contra eles, além da apresentação das características gerais e
Psicologia, esta última evidenciada pelo relato das diferentes mais comuns encontradas nos agressores.
experiências de intervenção dos profissionais envolvidos. Com o crescente aumento da violência também dentro das
Trata-se da organização de vários textos produzidos pelos escolas, por parte dos alunos aos seus colegas e professores,
psicólogos que atuam no CNRVV (Centro de Referência às houve a preocupação, de se traçar um breve histórico sobre o
Vítimas de Violência), com sede em São Paulo, sobre as uso da violência física dentro dos programas educacionais
atividades que realizam neste Centro, que compreende desde utilizados ainda hoje, com o objetivo de bem educar a criança.
a intervenção psicoterapêutica junto à vítima, ao agressor e à Discutem-se, ainda, os fatores que poderiam explicar o
família, até a realização de pesquisas, palestras, oficinas, aumento da violência nas escolas. Nessa mesma direção segue
fóruns, debates, entre outras, visando a superação desse o artigo “A Questão do Disciplinamento Corporal”, de Gisela O.
problema pelas pessoas que o vivenciam e o esclarecimento da Mattos, que acrescenta dados históricos sobre o caminho
sociedade como sistema envolvente. trilhado tanto pela escola quanto pelos pais e responsáveis,
Segundo a linha de pensamento das autoras, supõe-se ser com o uso da violência física como instrumento disciplinador,
provável que o motivo para a escolha do título do livro tenha sendo destacada a importância de se mudar a realidade atual
se dado em função de ser o complô do silêncio, um dos da família que ainda comporta o uso da agressão física como
principais fatores que colaboram para a produção e modo de educar com eficiência.
manutenção da violência dentro da família, silêncio mantido Em outro momento, também é chamada a atenção para a
tanto por parte da vítima como das testemunhas, como se pode importância da creche, como uma das instituições em que há
verificar ao longo dos textos apresentados. grande visibilidade da criança e de sua família, tornando
possível a identificação de casos de violência intrafamiliar,

70 SANTOS, Ana Cláudia Wendt dos; MORE, Carmem Leontina Ojeda Universidade Federal de Santa Catarina - Paidéia, 2006, 16(35), 437-439.
Ocampo. Caminhos para o combate e prevenção à violência intrafamiliar. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/paideia/v16n35/v16n35a14.pdf.

Conhecimentos Específicos 106


APOSTILAS OPÇÃO

além de ser um local propício ao desenvolvimento de desse problema, no sentido de passarem a adotar um
atividades para a interrupção e prevenção desse fenômeno. atendimento mais digno e responsável aos pacientes.
Sobre o trabalho de prevenção, sugere-se, entre outras
Ao longo da leitura dos textos, o pensamento das autoras coisas, uma ampla conscientização social sobre a violência
identifica que uma das configurações que a violência assume é intrafamiliar, tanto através da mídia, como por palestras,
a do abuso sexual e nesta encontra-se implícito a relação com debates, oficinas. Várias dessas tarefas já são realizadas dentro
a sexualidade, tanto por parte do abusador quanto da vítima. do CNRVV, a partir de vários critérios expostos no livro, tanto
Em função disso, foi feita uma descrição sobre como o para a criação dos chamados polos de profilaxia, como para a
homem veio desenvolvendo a sua relação com a sexualidade sua efetivação e continuação.
ao longo da história, as implicações e desdobramentos que
esta relação teve, como a visão distorcida do abusador, a Outro aspecto fundamental tratado no combate e
respeito da sexualidade e os abusos sexuais cometido contra prevenção à violência é a criação de redes interinstitucionais e
crianças e adolescentes prejudica o seu desenvolvimento com a comunidade, por se tratar de uma intervenção mais
pleno. rápida e eficaz.
E destaca-se uma das ações sugeridas para a prevenção É realizada, ainda, uma tentativa de se quebrar o mito de
desse tipo de violência, que foi a do questionamento continuo, que deixar a criança na família é sempre a melhor opção,
junto à sociedade dos seus padrões de comportamento e somando-se a este o da mãe que ama incondicionalmente, em
costumes, além de uma educação sexual que vise a discussão detrimento de mantê-lo temporariamente num abrigo até que
da construção histórica e sócio-cultural da sexualidade. a situação de violência familiar se resolva.
Estes mitos são problematizados, pois nem sempre a
Outro fator destacado pelas autoras refere-se aos casos de família tem sido o lugar mais seguro e apropriado para a
violência intrafamiliar, observando-se a alternância de papéis criança se desenvolver. Esclarece que a possibilidade de
entre agressor e vítima; baseado em conceitos psicanalíticos, é abrigamento é um direito conquistado por toda criança e
discutido o principal fator, de acordo com as autoras, que adolescente e uma alternativa entre várias, sendo o
explicaria o aprisionamento de uma pessoa em tal dicotomia. encaminhamento ao abrigo apresentado como uma medida
protetiva e com finalidade terapêutica, para não ser vivida
Para complementar a análise feita sobre o fenômeno da como uma punição por jovens e crianças.
violência intrafamiliar, a Parte III do livro é dedicada aos textos No que diz respeito à análise da obra como um todo,
que abordam os tratamentos psicoterápicos e as atividades de considera-se que os aspectos de cuidado ao próprio
prevenção e pesquisa realizadas dentro do CNRVV. profissional da Psicologia que trabalha nestes contextos e com
Há todo um relato das dificuldades encontradas, dos a temática da violência intrafamiliar, mereceria uma reflexão
avanços conquistados, descrições impressionantes de abusos por parte dos que ali atuam, por entender que ela é densa e
cometidos, ressaltando a importância da criação de redes de que, comprovadamente, tem um impacto no processo de seu
recursos para as famílias e da formação de equipes trabalho.
interdisciplinares, com profissionais capacitados para lidar
com o assunto. As autoras Dalka Ferrari e Tereza Vecina, registram suas
Dentro do trabalho de psicoterapia, são destacados pelas experiências e análises sobre o fenômeno da violência
autoras, os principais aspectos a serem abordados no intrafamiliar, resultando numa obra com uma riqueza de
atendimento à vítima de violência, o grau de risco que se informações e análises sobre o assunto que encaminha o leitor
encontra, como é realizado o trabalho em equipe para a constatação dessa realidade, e que hoje já apresenta
interdisciplinar, como e porque há o encaminhamento para diversas possibilidades para o seu enfrentamento e superação.
oficinas de trabalho, sobre a avaliação do caso, etc.
Ainda nesse sentido, descreve-se os relatos de sete casos Para que tudo não termine como um "caso de família":
de crianças que foram abusadas sexualmente, destacando os aportes para o debate sobre a violência domestica71
sintomas encontrados nas mesmas, o tipo de abuso cometido,
o perfil da família das vítimas, entre outros aspectos O artigo tematiza as relações entre família e violência
relevantes para quem deseja trabalhar com essa problemática. considerando que, quando se trata de violência, as famílias, ora
A apresentação desses relatos evidencia a complexidade de se como vítimas, ora como culpadas, têm papel de destaque nos
atender crianças que foram abusadas sexualmente e a forma dramas da sociedade contemporânea. A partir da discussão de
de ser encaminhado o tratamento para a superação do alguns dados sobre a violência no âmbito da família e do
problema. consenso existente sobre a necessidade de realizar ações que
As autoras complementam que não é difícil encontrar contenham o problema, debate-se os paradigmas que
profissionais com dificuldades no atendimento orientam a interpretação do tema em pauta. Os eixos
psicoterapêutico aos agressores de violência familiar. No paradigmáticos evidenciados são o da normatividade e
sentido de maior esclarecimento, apresenta-se a postura que o estabilidade e do conflito e transformação. A partir destes se
profissional deve assumir nesses casos e quais os principais constrói como caminho de interpretação o eixo
procedimentos a serem realizados no processo de tratamento interdisciplinar crítico.
do agressor. Com esta discussão pretende-se fornecer subsídios para o
debate sobre os processos de intervenção profissional na área
Dentre demais estudos deste contexto, vale destacar a da violência doméstica, mesmo trabalhando na perspectiva da
discussão feita a respeito dos desdobramentos gerados pela defesa das vítimas, são colocadas em movimento diferentes
omissão do profissional da Psicologia, com relação à denúncia formas de analisar as relações família e violência.
de casos de violência intrafamiliar, geralmente justificada pelo
receio de quebra do sigilo profissional. Introdução
As autoras fazem um convite aos psicólogos para que
reflitam sobre a postura que tomada pelos mesmos diante No final do século XX, a questão família e violência ganhou
ampla visibilidade no âmbito do debate sobre os direitos

71 MIOTO, Regina Célia Tamaso. Para que tudo não termine como um "caso n. 1 Jan./Jun. 2003 Florianópolis SC 96-103. Disponível em:
de família": aportes para o debate sobre a violência domestica. KATÁLYSIS v. 6 https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/viewFile/7122/6623.

Conhecimentos Específicos 107


APOSTILAS OPÇÃO

humanos. Entrou inclusive de modo definitivo para o circuito realidade de que a casa é, como sempre foi, também um lugar
da mídia. Tanto os jornais como a televisão têm colocado de risco.
quotidianamente matérias sobre problemas que até há pouco Sobre isso as estatísticas são claras.
tempo (duas décadas pelo menos) apareciam apenas de forma Por exemplo, Em 1988, na região sudeste, a mais
episódica. desenvolvida do país e com características de uma sociedade
As imagens têm sido pródigas em mostrar que, quando se moderna, 567.635.000 pessoas sofreram agressão física,
trata de violência, a família se faz presente em todas as cenas. sendo 55,23% homens e 44,77% mulheres. Das agressões
Nós assistimos diariamente inúmeros dramas familiares, de contra as mulheres 62,29% foram praticadas por parentes e
diferentes ângulos. pessoas conhecidas e 48,31% das agressões sofridas pelos
Como por exemplo, o drama das famílias que vivem uma homens também foram praticadas por parentes e conhecidos.
situação de sequestro e o drama da família dos Além disso, as mulheres entre o casamento e a idade
sequestradores; o drama das crianças abandonadas pelas suas madura (50 anos) são agredidas em casa, geralmente por
famílias e o drama das famílias com o desaparecimento de seus parentes. Quando se trata de agressão física, a ameaça para as
filhos; o drama das mulheres, crianças e adolescentes mal mulheres não está na rua, mas na própria casa e se caracteriza
tratados por seus pais e companheiros e o drama dos pais como um episódio inscrito em dinâmicas próprias da vida
frente aos atos infracionais ou o suicídio de seus filhos; o privada. (SOARES et al., 1996).
drama daqueles que passam horas na frente de um presídio A movimentação em torno da defesa dos direitos de
em rebelião sem notícias de seus familiares e o drama das cidadania e o compromisso de intelectuais, juristas,
famílias dos agentes carcerários em mãos dos amotinados, o operadores sociais, trabalhadores da saúde, com a questão
drama das famílias cujos filhos morrem "pela pátria" e o drama desembocou na estruturação de uma área multidisciplinar de
das famílias vítimas da guerra. conhecimento e de intervenção social, a qual denominamos de
Dessa forma, através de imagens dolorosas de situações violência doméstica. Seu objeto é a violência que ocorre no
sem limites aparentes, vai se traçando o "mapa da barbárie e âmbito privado, decorrente da violação de direitos na relação
da crueldade". Com isso, esses problemas vêm sendo entre os seus membros.
introduzidos no imaginário de nossa sociedade, provocando, Não é por acaso que se tem trabalhado com a noção de
sem dúvida, reações positivas. violência contra.
A consciência coletiva é colocada frente a fenômenos que Esta violência, segundo Barudy (1998), é construída
contrastam com uma ética, senão corrente, pelo menos através de interações ativas ou passivas. As interações ativas
desejada. Os discursos e as imagens solicitam uma reflexão dão origem ao que o autor denomina de maltrato ativo ou
sobre a questão e estimulam a crítica e a vigilância social. violência por ação. Refere-se aos comportamentos e discursos
Assim, a família é colocada cada vez mais na berlinda. que implicam o uso da força física, sexual e/ ou psicológica,
Ora como culpada, ora como vítima, ora como violenta, ora que, por sua frequência e intensidade, geram danos.
como protetora, a família vai se transformando cada vez mais As interações passivas, que constituem a negligência ou
em objeto de intervenção de um número cada vez maior de violência por omissão, referem-se à omissão de intervenções
profissionais das mais diferentes áreas. ou de discursos necessários para assegurar o bem-estar de
Esses profissionais, chamados a apresentar soluções para membros em situação de dependência (particularmente
as situações de violência, nem sempre se dão conta que suas crianças). Para o autor a distinção entre maltrato ativo e
ações colocam em movimento determinadas formas de passivo permite distinguir dois mundos de relações que
análises sobre a relação família e violência construídas a partir redundarão em "carreiras" diferentes para as vítimas.
de diferentes concepções de sociedade e de família.
Pensando justamente nos processos de intervenção
profissional com famílias é que aceitamos o desafio de
trabalhar este tema através do debate de diferentes
concepções que norteiam as ações profissionais relacionadas
a situações familiares que envolvem violência.
Sem dúvida, trata-se de um assunto abrangente, complexo
e polêmico. Por isso, estamos cientes que o caminho que
percorremos para o tratamento do mesmo é um dentre os
muitos possíveis e em decorrência disso tem limites e
problemas.
Apesar disso, esperamos poder contribuir para o debate, à
medida que tentaremos dar visibilidade a algumas leituras
sobre a temática numa perspectiva interdisciplinar.

A construção da violência doméstica como campo de A título de ilustração, pesquisa sobre agressividade de
conhecimento multidisciplinar e de intervenção social adolescentes em escolas do Rio Grande do Sul apontou para a
estreita relação entre esses comportamentos e a presença de
A tematização das relações entre família e violência, na castigos físicos na história desses adolescentes.
atualidade, teve como porta de entrada a intensa mobilização Em se tratando de crianças e adolescentes, tais atos
da sociedade civil, especialmente do movimento feminista na causam um duplo dano. Duplo porque a violência impetrada
década de 70 e do movimento em torno da defesa dos direitos atinge seres humanos em desenvolvimento, cujas
das crianças e dos adolescentes na década de 80, que características são a dependência e a vulnerabilidade, e
culminaram com conquistas no Brasil como: a inclusão do comprometem o futuro adulto que a criança e o adolescente
parágrafo 8 do artigo 226 da Constituição Federal que coíbe a irão se tornar. (FERREIRA; SCHRAMM, 2000).
violência doméstica, a promulgação do Estatuto da Criança e Tais comprometimentos têm sido exaustivamente
do Adolescente-ECA, a criação das delegacias de mulheres e de descritos na literatura, destacando que crianças maltratadas
outros instrumentos. por seus pais tendem a se tomar pais maltratantes, a
A publicização da violência que ocorre no âmbito apresentar comportamentos delinquentes, dentre outros
doméstico, obrigou-nos a entrar em contato com a triste sintomas.

Conhecimentos Específicos 108


APOSTILAS OPÇÃO

A esses dados, outros vão sendo relacionados como Com isso, as famílias são colocadas na base dos
àqueles referentes aos agressores e à realidade das famílias. comportamentos violentos, à medida que não desempenha ou
Quanto a isso, por exemplo, Soares (1996) nos diz que de um falha no desempenho de seu papel institucional de agência de
total de 168 agressões cometidas contra mulheres por seus socialização.
maridos ou companheiros, em 140 os agressores estavam em Sobre isso, os trabalhos, acerca de grupos, que apresentam
estado de embriaguez. A pesquisa sobre o perfil dos comportamentos violentos, têm sido pródigos em referências.
adolescentes, autores de atos infracionais no estado de Santa Os estudos sobre delinquência juvenil da Escola de Chicago,
Catarina, apontou que parcela razoável desses atos é cometida preponderante nos Estados Unidos nas décadas de 50 \ 60,
sob o efeito de drogas (33,16%), e 44, 39% dos adolescentes teriam como hipótese central que a delinquência é resultado
têm algum familiar (pai ou irmão) que usa ou usou drogas. do afrouxamento dos vínculos que une o adolescente à
Nesse percentual não foi incluído o álcool que é mais usual sociedade, ou seja, ausência de integração e controle,
(VIEIRA, 1999). especialmente primário (CUSSON, 1996).
Estas informações têm colocado a sociedade em estado de As pesquisas sobre uso abusivo de drogas também têm
alerta, e nos possibilitam pensar que as relações entre família revelado estreita relação com processos de desinserimento
e violência não podem ficar restritas aos atos cometidos entre familiar e social, isso sem entrar particularmente na área da
os membros da família, envolvem também a violência que seus criminalidade.
membros cometem contra si mesmos (suicídio, abuso de Esse tipo de análise é facilmente identificado através das
drogas) e os atos cometidos por seus membros em outros descrições que se fazem das famílias de sujeitos com
espaços sociais. Tudo isso vai rebater novamente na família. comportamento patológicos. Por exemplo, Fréchette e Le
Porém, se existe consenso na constatação dos fatos e na Blanc, em 1987 descreveram as famílias de jovens
afirmação de que alguma coisa deve ser feita, este consenso se delinquentes reincidentes, considerando uma grande base
esvai, especialmente quando discutimos o que fazer e o como empírica, nos seguintes termos:
fazer. Pois nesse momento, diferentes interpretações sobre o Reina nestas famílias um estado generalizado de
fenômeno são colocadas em movimento e condicionam negligências, os pais não estabelecem uma disciplina clara e se
respostas muito diferentes. mostram mais ou menos interessados ao ir e vir da evolução
Então, quais seriam estas interpretações? de seus filhos; os outros membros da família são pouco ligados
entre si e pouco preocupados com o destino comum [...]. Os
Os caminhos para a interpretação do fenômeno pais dos delinquentes crônicos têm a tendência de serem
passivos, deixam passar um grande número de erros [...] são
Tendo como referência os trabalhos de Seppilli&Guaitini inconstantes. (CUSSON, 1996, p.378, 380).
(1974), de Cozzi&Nigris (1996), a violência ou os atos A inter-relação estabelecida nesses estudos, calcada no
violentos nas sociedades capitalistas podem ser analisados a papel institucional ou funcional da família e dos atos de
partir de duas grandes correntes teóricas. violência como comportamentos individuais, parece, por um
Uma ancorada no eixo da normatividade \estabilidade e lado, ter desfocado uma discussão da família no contexto de
outra no eixo do conflito \transformação. uma sociedade em transformação. Por outro lado, fortalecido,
direta ou indiretamente, unia visão da família como produtora
O eixo da normatividade/ Estabilidade de comportamentos patológicos ou mesmo de uma família
patológica.
A primeira tem ancoragem no pensamento de Durkhein. Esta ideia estaria embutida, por exemplo, na categoria de
Trabalha com a ideia de que a sociedade é um todo integrado "famílias desestruturadas", largamente utilizado tanto na
e o consenso ideológico-moral é um pressuposto da existência literatura como nos relatórios técnicos de serviços.
social do homem. Por isso toda a análise caminha em direção Geralmente, essa categoria tem servido para designar aquelas
de tratar a violência como expressão de comportamentos famílias que falham nas suas funções institucionais, de
individuais não correspondentes às normas vigentes na socialização, cuidado e proteção de seus membros.
sociedade, vinculados às diferentes posições sociais. O seu
aparecimento é decorrente de defeitos no processo de O eixo do conflito e da Transformação
integração social dos indivíduos ou de uma ausência de
controle sobre os indivíduos. A segunda corrente teórica, do conflito/transformação,
Nessa perspectiva tem lugar toda a teoria de Parsons que parte do princípio que o consenso ideológico-moral não é algo
evidencia a importância causal das normas, valores e dado a priori e nem existe enquanto totalidade. Ele é o
expectativas para a conservação da sociedade. Tal evidência se resultado dos processos de luta e manutenção do poder que
exprime através da concepção dos quatro sistemas sociais, a envolvem necessariamente a imposição de concepções sobre
saber: expectativa e desempenho de papéis; organização dos o bem e o mal, o normal e patológico. Dessa forma a violência
papéis em comunidade; estruturação de direitos e deveres; é pensada como um processo radicado nos conflitos e nas
adesão aos valores. Nesse contexto o sistema social é definido contradições dos sistemas sociais, e é entendida não mais
como algo especificamente relacional, o cultural como o como relacionada aos comportamentos não funcionais em
conjunto de símbolos e significados, radicados num sistema relação às normas, mas como disfuncionais em relação ao
normativo. Ou seja, em códigos que gerariam comportamentos funcionamento do sistema social. Portanto, como afirmam
apropriados de "sujeitos competentes". Busoni e Falteri (1980), os processos de integração dos
Em outros termos é a predominância da visão de violência indivíduos não constituem uma tendência natural, mas a
como expressão de delinquência. (COZZI; NIGRIS, 1996). consequência de processos de controle promovidos pelas
A visão institucional de família está calcada basicamente classes hegemônicas aos quais se opõem classes ou grupos
na concepção de que a família seria um microssistema que portadores de outros "desenhos" de ordem social. Dessa
apenas reproduz os fundamentos do macrossistema social. forma, os atos de violência não podem ser explicados como
A visão funcional estaria vinculada à família, pensada uma inadequação de uma casual ineficácia dos processos de
através de um modelo (família nuclear), constituído de quatro integração social. Mas ao contrário, a falência dos processos de
status-papéis típicos (marido-pai; mulher-mãe; filho-homem; integração social, se explicam a partir das contradições
filha-mulher) e das suas relações estruturais que são forjadas próprias da estrutura econômica, social e cultural e da
de forma a serem funcionais à estabilidade interna e às emergência de formas diversas ou antagônicas de consciência
relações de adaptação com a sociedade (DONATI, 1989). social.

Conhecimentos Específicos 109


APOSTILAS OPÇÃO

Em se tratando da associação entre violência e família os polos hegemônicos diversos, ao longo de seu curso de vida,
posicionamentos são muito diferentes. Enquanto o eixo da condicionados pela própria organização econômica e social da
normatividade/estabilidade, ao centrar a análise dos atos de distribuição dos recursos. Essas vivências estariam
violência nas condutas individuais devido a problemas no particularmente relacionadas aos processos de mobilidade
processo de integração e controle social, coloca a família no social em senso estrito (mudança de classe, de profissão), aos
centro do processo de produção da violência. Ao passo que a processos de mobilidade territorial (processos migratórios) e
vertente orientada pela base do conflito e da transformação às rápidas transformações do contexto sociocultural das
coloca a geração dos comportamentos violentos como famílias e dos indivíduos. Todas essas vivências, mediadas pela
decorrentes da própria estrutura social. Isso nos remete à ordem psíquica, expressam de formas particulares conflitos
discussão do que os autores como Chauí, Minayo, Baronti e que têm profundas raízes nas contradições sociais e culturais.
outros têm denominado de violência estrutural. De acordo com o autor, os fenômenos relacionados a
Nessa perspectiva, Baronti (1978), a partir de seu estudo normalidade\patologia merecem abordagens metodológicas
sobre a função do estereótipo do criminoso em diversos integradas (cultural, social, psíquica), para não se incorrer no
períodos da história italiana, considera a violência como um risco do reducionismo. Ou seja, transpor para o campo
subsistema social, e ela se revela de diferentes formas no exclusivamente econômico fenômenos de natureza psíquica,
mundo social que a qualifica. ou questões sociais para o campo exclusivamente psíquico.
A definição da violência, nas suas mais diversas Isso poderia significar trabalhar na perspectiva de um
manifestações e implicações, embora realizada de forma naturalismo psicológico, no qual a psique é posta como sempre
contextualizada é condicionada historicamente e definida igual, ou seja, relacionada aos mesmos conflitos e às mesmas
através das relações de produção e dos modelos de instâncias, sem serem tocadas pelos processos históricos,
comportamento econômico, social e interpessoal. sociais e culturais.
O autor postula que o subsistema da violência ocupa um A respeito disso, são interessantes os estudos sobre o
lugar central no contexto da sociedade e é constituído papel desempenhado pela realidade histórica na organização
basicamente por três tipos. O primeiro refere-se à violência do psiquismo. Segundo Violante (1997), os acontecimentos,
implícita nas próprias relações de produção sob a lei da bem como os discursos e as injunções que foram impostos aos
acumulação capitalista, através da qual se mantém a pais durante a infância, inclusive a posição de excluído,
hierarquia de privilégios e de segurança e para as quais se explorado, de vítima que a sociedade impõe ao casal ou à
rende positiva a exploração, a desocupação, os riscos no criança, são tão importantes quanto os que atingiram o corpo
trabalho e os processos migratórios. Porém, esses fenômenos da criança.
são vistos como consequências necessárias para a
continuidade do processo de desenvolvimento e
correspondentes aos níveis de progresso de cada sociedade, e,
portanto "naturais". Em poucas palavras seria a violência
econômica, que não aparece no momento em que se realiza,
mas se explicita através de seus efeitos.
O segundo tipo de violência, identificada como atual,
corresponde à manifestação dos conflitos e \ ou reações das
classes subalternas em relação às condições dominantes, que
são expressos de formas individuais ou coletivas. Enquanto o
primeiro tipo se define como violência econômica, a violência
atual pode ser definida como extra econômica. O terceiro tipo
de violência é definido como violência de esbarramento, ou
seja, através de ações seletivas evidencia a atenção social
sobre alguns fenômenos de conflito como a razão mesmo da
desordem e da violência. Assim se canaliza os conflitos, de
forma confusa em modelos explicativos. Dentre esses canais,
estaria aquele constituído pelas formas de absorção e
desativação dos conflitos no âmbito de situações particulares
onde a violência é mais tolerada, ou seja, a violência doméstica.
Pela análise contundente de Baronti (1988) a família seria
um espaço de manifestação da chamada violência estrutural e,
mais que isso, ela teria um papel importante no processo de
absorção e desativação dos conflitos sociais. Sob essa ótica As histórias das famílias estudadas evidenciaram uma
também poderia ser explicado o direcionamento do interesse trajetória de crises decorrentes de sucessivas avaliações
social sobre essa questão. negativas de suas condições de vida e de constantes tentativas
de mudanças que acabavam redundando em novas crises. As
O caminho da perspectiva interdisciplinar crítica histórias explicitavam claramente a exposição da família a
campos de experiências contraditórios que não lhe permitiam
Essa perspectiva se constrói, calcada no eixo teórico do organizar o próprio processo de integração e assim se iniciava
conflito e da transformação, considerando a violência como uma história de sintomas (alcoolismo, violência conjugal,
um processo radicado nos conflitos e nas contradições dos negligência e maus tratos a crianças e adolescentes, atos
sistemas sociais, porém não perdendo de vista a perspectiva infracionais). (BRANDÃO, 1997; MIOTO, 1994; SOARES et al.
cultural e psicológica. 1996).
Como nos assinala Seppillli (1974, 1996) as condutas Outros estudos sobre as dinâmicas familiares têm
violentas, que se instauram no espaço doméstico, têm sua base demonstrado que os acontecimentos próprios do curso de vida
nos conflitos vividos pelas famílias decorrentes de modelos das famílias — como nascimentos, mortes, envelhecimento,
culturais (valores, normas, papéis) reciprocamente casamentos, separações — e as demandas individuais de seus
contraditórios enquanto matrizes de respostas alternativas a membros produzem contínuas transformações no caráter dos
uma mesma situação. A produção de situações dessa natureza vínculos familiares, na natureza das competências, nas
seria originada na vivência de campos de experiências ou atribuições de autoridade e de poder, nas formas de inserção

Conhecimentos Específicos 110


APOSTILAS OPÇÃO

dos grupos familiares na sociedade. Por isso, os momentos de


transição provocados pelas vicissitudes da vida familiar
também colocam as famílias em situação de vulnerabilidade,
que pode ser maior ou menor dependendo das condições
sociais e da qualidade de vida (MIOTO, 1997).
Barudy (1998) ao analisar famílias que maltratam suas
crianças afirma que o maltrato aparece de duas formas: como
expressão de crises no ciclo vital ou como organizador das
relações familiares (maltrato transgeracional). No caso das
crises familiares, o maltrato aparece à medida que a tensão
intrafamiliar aumenta, em momentos de transição por
acontecimentos internos ou externos, e o contexto social não
oferece recursos materiais ou psicossociais que permitam
manejar a crise. Assim a tensão aumenta e com ela o perigo
para os seus membros mais frágeis.
Aumenta ainda mais em relação àquelas crianças que têm Encontram-se de frente com sujeitos determinados, que
maiores exigências de cuidados (portadores de necessidades são os da família, e com as "provas materiais" da violência
especiais). cometida. Nesse momento, tanto o Estado como a Sociedade
O estudo de histórias de adultos implicados em maus- estão fora e, mais que isso, exigem soluções. Assim se constrói
tratos permite, segundo o autor, detectar um conjunto de o palco para a família, e em nome da defesa dos direitos das
circunstancias familiares e sociais presentes em duas ou três vítimas da violência familiar, o cerco vai se fechando
gerações. Esses grupos, vão ao longo do tempo, elaborando perigosamente ao seu redor. Dessa forma, vai se construindo o
uma produção ideológica acerca da cultura familiar, esta estereótipo da família violadora de direitos e sobre ela recai
entendida como um sistema de crenças, comportamentos e toda ordem de sanções.
padrões de interação, que estão na base da perpetuação da Dentro desse palco é que os profissionais desenvolvem
violência. suas ações, colocando em movimento determinada concepção
Tendo em conta as contribuições trazidas, especialmente sobre as relações entre família e violência (MIOTO, 2001).
pela vertente de análise que contempla a noção de conflito e A segunda observação refere-se ao fato que a intervenção
transformação, podemos dizer que aos atos de violência que se profissional pautada na ideia de totalidade e contradição
manifestam nas famílias, ou são praticados por seus membros requer o desenvolvimento da capacidade de operar
em outros espaços e contra si mesmos, expressam conflitos metodologicamente a dialética do singular-universal-
instaurados numa dinâmica familiar construída através de particular (PONTES, 2000).
uma história repartida e ambivalente em relação a campos de Assim, não basta nomear e saber da existência dos
experiências diversos numa sociedade extremamente elementos implicados na construção do fenômeno e nem
contraditória e desigual. apenas as teorias explicativas que lhe dão sustentação. É
Nesse contexto a família não consegue se articular como necessário um conhecimento profundo do objeto sobre o qual
espaço de mediação entre os indivíduos e o contexto social e, se trabalha, para que se possa captar todas as inter-relações
portanto, as diversas formas de violência, nela expressas, possíveis entre as diferentes dimensões e a forma como elas se
extrapolam os processos de definição de culpados e doentes articulam.
dentro desse pequeno espaço. Extrapolam também o exercício Somente assim vão se estabelecer as condições para o
do controle dessas situações (seja através do sistema legal, desenvolvimento de ações profissionais numa perspectiva
seja através de técnicas psicossociais) tendo em vista apenas a crítica.
supressão das condutas violentas ou da "patologia familiar",
calcada na "culpa do infrator".
Nesse sentido Barudy (1998, p. 33) afirma que num 21. Medidas de Proteção e a
contexto de pobreza, querer detectar as crianças maltratadas
pelos seus pais sem esforços para melhorar as condições de
Tutela de idosos em situação de
vida das famílias, só serve para aplacar a consciência daqueles risco;
que são responsáveis pelas injustiças estruturais, ao mesmo
tempo que mistifica os conflitos sociais que facilitam essa
violência. BIBLIOGRAFIA

Considerações finais 18. Minayo, M.C e Coimbra Jr, C.E.A. Antropologia, Saúde e
Envelhecimento. Fiocruz Ed, 2011 – Introdução; Cap I
Envelhecimento e Saúde: experiência e construção cultural –
A discussão efetuada, a partir das interpretações colocadas
Elizabeth Uchôa, Josélia O. A. Firmo e Maria Fernanda F. de
sobre as relações família e violência, aliada à ideia que a forma
Lima-Costa; Cap II Envelhecimento e Sentimento do Corpo –
de interpretação adotada pelos profissionais que trabalham
Alda Britto da Motta; Cap III O Idoso em Processo de
essas questões estão na base de todo percurso interventivo,
Demência: o Impacto na Família – Célia parreira Caldas;
levam-nos a uma conclusão sob a forma de duas rápidas
observações:
Antropologia, saúde e envelhecimento
A primeira concerne ao fato que a violência doméstica é um
fenômeno multicondicionado, em cuja dinâmica estão
Introdução
articulados aspectos sociais, econômicos, políticos,
psicológicos, culturais que não podem ser tratados de forma
isolada e nem complementar. Entre a Liberdade e a Dependência: reflexões sobre o
Por isso o processo de intervenção profissional, nesse fenômeno social do envelhecimento
campo, pressupõe reconhecer a complexidade do objeto de
Maria Cecília de Souza Minayo & Carlos E. A. Coimbra Jr.
trabalho numa perspectiva de totalidade e o terreno
contraditório sobre o qual as ações profissionais se
Reinauguração
desenvolvem.
Nossa idade – velho ou moço – pouco importa.

Conhecimentos Específicos 111


APOSTILAS OPÇÃO

Importa é nos sentirmos vivos e alvoroçados mais uma vez, cadenciada, o andar mais vagaroso ou trôpego, a queda
e revestidos de beleza, a exata beleza que vem dos gestos inexorável dos músculos e a fragilidade dos movimentos. Esse
espontâneos e do profundo instinto de subsistir enquanto as retrato, que é feio em relação aos padrões de beleza que
coisas em redor se derretem e somem como nuvens errantes no adotam o jovem como símbolo, costuma receber um veredicto
universo estável. Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos de quem o produz e de quem o contempla. É o veredicto que
gulosos a um sol diferente que nos acorda para os assinala a velhice como problema e como doença.
descobrimentos. Esta é a magia do tempo. Nosso interesse foi tentar ir além; fazer novas perguntas,
Esta é a colheita particular que se exprime no cálido abraço olho no olho dos que estão em plena estrada, ‘na chuva para se
e no beijo comungante, no acreditar na vida e na doação de vivê- molhar’, e que por isso resistem ao rótulo que a sociedade quer
la em perpétua procura e perpétua criação. lhes impor. Mais que isso, entender também os véus que
E já não somos apenas finitos e sós. cobrem a destinação antecipada ao lugar social estereotipado
Carlos Drummond de Andrade que o aparente cuidado social lhes reservou: o ‘recolhimento
Somos sempre o jovem ou o velho em relação a alguém. interior’ (eufemismo para o afastamento do trabalho); a
‘inatividade’ (rotulação dos aposentados e aposentadas); a
Pierre Bourdieu ‘prevenção das possíveis doenças’ (medicalização da idade) ou
as ‘festinhas da terceira idade’ (infantilização dessa etapa da
Existe uma praxe na antropologia segundo a qual o vida).
pesquisador deve explicitar as razões, as condições e o Foi dessa vontade de encontrar um espaço alternativo de
processo de suas investigações. Esse relato das condições de reflexão, em que várias possibilidades pudessem emergir –
seu trabalho permite ao leitor relativizar seus achados e produzindo uma compreensão mais real das vivências, dos
localizar sua perspectiva – por conseguinte, também se desejos e da avaliação de sua situação que essa vasta camada
posicionar. Por isso, consideramos de bom tom apresentar os da população brasileira faz de si própria –, que surgiu a ideia
motivos que nos levaram a organizar um livro sobre o de organizar este livro. Não optamos pela realização de uma
‘envelhecimento’ que cruzasse os olhares da antropologia e pesquisa original de cunho etnográfico, mas sim por reunir em
das ciências da saúde. uma oficina de trabalho um pequeno grupo de pesquisadores
Pelas regras de classificação dos ciclos da vida que vigoram estudiosos do assunto. Essa oficina foi realizada no Rio de
em nossa sociedade, o Brasil precocemente entrou na rota do Janeiro, em agosto de 2000, e contou com a participação de
envelhecimento populacional. Nessa estrada que acolhe os todos os que integram esta coletânea.
caminhantes grisalhos e sulcados pela vida, o trânsito vai aos
poucos ficando congestionado, a ponto de já serem mais de 31 No colóquio, estabelecemos os rumos da presente
mil os brasileiros remanescentes do século XIX. É cada vez publicação, que, em seu conjunto, amadureceu com base em
maior a população que, parafraseando o poeta, vai críticas, comentários e sugestões formuladas pelos
reinaugurando, ano a ano, seu frágil projeto de felicidade após participantes. A partir daí, muitas perguntas puderam ser
os 60, “entre o gasto dezembro e o florido janeiro, entre a feitas, num processo de aprofundamento sucessivo que
desmistificação e a expectativa, tornando a acreditar, a ser começou de forma intuitiva: será que estamos errados na
bons meninos e, como bons meninos, reclamando a graça dos resistência aos rótulos dominantes? Será que, por influência
presentes coloridos” (Andrade, 1966:56). da época, estaremos sendo vítimas da ideologia-mito da eterna
O Brasil dobrou o nível de esperança de vida ao nascer em juventude, esse vírus que corrói a humanização do
relativamente poucas décadas, numa velocidade muito maior envelhecimento e da morte? Ou será, ao contrário, que os
que os países europeus, os quais levaram cerca de 140 anos próprios limites do ciclo e do curso da vida estão se
para envelhecer. Para se ter ideia do que isso significa, a desfazendo, por causa do fenômeno irrefutável do aumento da
esperança de vida ao nascer dos brasileiros era de 33,7 anos esperança de vida a partir da segunda metade do século XX,
em 1900; 43, em 1950; 65, em 1990; chega quase a 70 anos na aqui e em todo o mundo?
entrada do novo século; e prevê-se que ultrapasse os 75 anos A medida da curiosidade deu lugar à ideia de transformar
em 2025 . De 1950 a 2025 terá crescido 15 vezes, quando o tais perguntas em questões teóricas sobre as descobertas que
restante da população terá conseguido um incremento de 5 o ‘envelhecimento à brasileira’ estão suscitando. Com certeza,
vezes. Apesar de todo esse incremento, a maioria das pessoas as constatações poderão servir de baliza para essa grande
nessa faixa etária está entre os 60 e os 69 anos, constituindo faixa da população que hoje marcha não numa estrada sem fim
ainda menos de 10 % da população total (Veras, 1995), quando e sem sentido, mas para a larga porteira aberta de uma fazenda
na Europa, por exemplo, são as faixas acima de 70 anos as que de colheitas. Nesse espaço de movimento e construção,
mais crescem. No entanto, um país já é considerado ‘velho’ continuam a existir não apenas os frutos, mas a semente, o
quando 7% de sua população são constituídos por idosos. plantar, a alegria dos brotos e todos os prazeres, dores e
A previsão dos demógrafos é de que no ano 2020 existam sofrimentos do ceifar, como em qualquer etapa da vida.
cerca de 1,2 bilhão de idosos no mundo, dentre os quais 34
milhões de brasileiros acima de 60 anos, que, nesse caso, Mas com enormes diferenças: é simultaneamente o tempo
corresponderão à sexta população mais velha do planeta, do orgasmo da vida e da liberdade e o tempo da medida do
ficando atrás apenas de alguns países europeus, do Japão e da possível e da dependência. Tudo concomitante e tudo
América do Norte. Por tudo isso, é muito importante ouvir a diferenciado pela trajetória individual. É isso que Ana Bassit,
“lógica interna desse grupo socioetário” e contar com ele para Alda Motta e Rita Heck & Esther Jean Langdon mostram em
a realização de seus anseios e para a construção de um padrão seus respectivos capítulos. Também é isso que já haviam
de vida que lhes seja adequado. evidenciado Lins de Barros (2000), Debert (2000), Peixoto
(2000) e Motta (2000) , dentre outros, em estudos sobre essa
O que nos chamou a atenção, ao programarmos o trabalho questão social no Brasil.
aqui apresentado, é que, até o momento, quase sempre outros Esses autores vêm nos ensinar que, como muitas outras
atores têm falado pelos idosos. Se a focalizá-los existem vários questões na sociedade ocidental, o assunto da velhice foi
tipos de lentes, as fotografias das câmeras curiosas costumam ‘estatizado’ e ‘medicalizado’, transformando-se ora em
não ir além de luzes, sombras e cores que as aparências problema político, ora em ‘problema de saúde’, seja para ser
revelam. E como os que observam são parte da perspectiva regulado por normas, seja para ser pensado de forma
que adotam, o que fica das imagens são a contundência dos preventiva, seja para ser assumido nos seus aspectos de
sinais de desgaste dos corpos, os vincos nas faces, a voz mais

Conhecimentos Específicos 112


APOSTILAS OPÇÃO

disfunções e distúrbios que, se todos padecem, são muito mais serem consideradas, a necessidade de desnaturalizar o
acentuados com a idade. fenômeno da velhice e considerá-la como uma categoria social
No que concerne à saúde, em torno da geriatria se e culturalmente construída.
estabeleceu um grande mercado consumidor, refinando os
instrumentos e as medidas que rotulam o cotidiano da Se, por um lado, o ciclo biológico próprio do ser humano
existência dos idosos. A seu lado desenvolveram-se normas assemelha-se ao dos demais seres vivos – todos nascem,
preventivas fundadas no uso nem sempre crítico da ‘teoria do crescem e morrem –, por outro, as várias etapas da vida são
risco’, tão problemática quando tenta, por meio de médias, social e culturalmente construídas. Isto é, as diversas
justificar propostas preventivistas. Dessa forma, desconhece- sociedades constroem diferentes práticas e representações
se a complexidade dos sujeitos, criando-se uma estética da sobre a velhice, a posição social dos velhos na comunidade e
vida referenciada em proibições e regras gerais. A pergunta nas famílias e o tratamento que lhes deve ser dispensado pelos
necessária é a seguinte: será que não existe possibilidade de mais jovens. É isso que Parry Scott analisa em seu capítulo,
introduzir, na receita do que é saudável, o ingrediente ‘prazer numa instigante abordagem comparativa sobre o processo de
de viver’ como mote central dessa última e decisiva etapa da envelhecimento no Japão e no Brasil. O autor reafirma a ideia
existência? Dizemos isso porque talvez seja esta a maior e mais de que, para se entender o lugar social dos idosos, é preciso
contundente descoberta que este livro poderá trazer como compreender a forma como a sociedade organiza a estrutura,
contribuição da antropologia. as funções e os papéis de cada grupo etário específico.
Os estudos antropológicos demonstram que a infância, a
É complexo o tema do envelhecimento, pois complexos são adolescência, a vida adulta e a velhice não constituem
todos os processos vitais experimentados desde o nascimento, propriedades substanciais que os indivíduos adquirem com o
a infância e a adolescência até a vida adulta. Recusamo-nos não avanço da idade cronológica. Pelo contrário: o processo
a reconhecer a complexidade, mas sim a colocar como farinha biológico, que é real e pode ser reconhecido por sinais
do mesmo saco envelhecimento, doença, privação, externos do corpo, é apropriado e elaborado simbolicamente
dependência, tristeza e frustração. por meio de rituais que definem, nas fronteiras etárias, um
Aqui se trabalha para executar um movimento que positive sentido político e organizador do sistema social. Como
o envelhecimento como um tempo produtivo específico da lembram Ariès (1981) e Elias (1990), essas fronteiras e suas
vida, emocional, intelectual e social, superando assim os apropriações simbólicas não são iguais em todas as sociedades
estigmas da discriminação. Pois é essa discriminação nem na mesma sociedade, em momentos históricos
internalizada que frequentemente leva os idosos a uma atitude diferenciados – nem num mesmo tempo, para todas as classes,
de negação, buscando parecerem mais jovens para serem todos os segmentos e gêneros.
aceitos e acolhidos, obscurecendo suas características, seus
atributos e sua identidade (Lins de Barros, 2000). A No interior das diferenciações, no entanto, os estudos
positivação da identidade do idoso significa, por um lado, antropológicos revelam aspectos estruturais fundamentais, de
reconhecer o que há de importante e específico nessa etapa da tal forma que é possível transcender particularismos culturais
vida para desfrutá-lo; por outro, compreender, do ponto de e encontrar alguns traços comuns do fenômeno que poderiam
vista desse grupo social, os sofrimentos, as doenças e as ser considerados universais.
limitações com toda a carga pessoal e familiar que tais O antropólogo Leo Simmons (1945), por exemplo, analisou
situações acarretam, embora nunca tratando tais a situação dos velhos em 71 sociedades indígenas, tomando
acontecimentos dolorosos e tristes como sinônimos de velhice. por base os seguintes parâmetros: formas de subsistência;
O envelhecimento não é um processo homogêneo. Cada direitos de propriedade; atividades econômicas; vida
pessoa vivencia essa fase da vida de uma forma, considerando doméstica; organização política; conhecimento das tradições;
sua história particular e todos os aspectos estruturais (classe, valores e crenças e integração na família e no sistema de
gênero e etnia) a eles relacionados, como saúde, educação e parentesco. Embora seu estudo possa fazer jus a críticas de
condições econômicas. Os capítulos que integram este livro que seja demasiadamente generalista, ele aponta questões
demonstrarão que os fatores que contribuem mais e melhor interessantes para o que seriam “os desejos universais dos
para diferenciar a vivência do envelhecimento são as redes de velhos nessas sociedades”. Considerando o conjunto dos
apoio social e comunicação, com ênfase na solidariedade grupos estudados, segundo Simmons, todos os velhos desejam
familiar. viver o máximo possível; terminar a vida de forma digna e sem
O que torna a velhice sinônimo de sofrimento é mais o sofrimento; encontrar ajuda e proteção para a progressiva
abandono que a doença; a solidão que a dependência. Assim, diminuição das capacidades; continuar a participar das
nesta introdução, quatro aspectos centrais serão enfatizados, decisões que envolvem a comunidade; prolongar, ao máximo,
pois traduzem a síntese do pensamento dos autores: o conquistas e prerrogativas sociais como propriedade,
envelhecimento como híbrido biológico-social; o autoridade e respeito.
envelhecimento como problema; o envelhecimento como
questão pública; o velho como ator social. A manipulação de categorias etárias, no entanto, é outro
fenômeno comumente observado, geralmente exigindo um
O ENVELHECIMENTO COMO HÍBRIDO BIOLÓGICO- investimento político de definição de poderes para cada ciclo
SOCIAL da vida, no estabelecimento de direitos, deveres e privilégios
(Bourdieu, 1983). Sobre esse tema, Debert diz que “categorias
“O que é envelhecimento?”, pergunta Veras (1995:25) em e grupos de idade implicam a imposição de uma visão de
seu livro País Jovem com Cabelos Brancos, para em seguida mundo social que contribui para manter ou transformar as
responder: “Velhice é um termo impreciso. (...) nada flutua posições de cada um em espaços sociais específicos” (Debert,
mais do que os limites da velhice em termos de complexidade 2000:53).
fisiológica, psicológica e social”. O mesmo autor diz, numa No mesmo sentido, apesar de os desejos ‘universais’ dos
tentativa de conceituação, que “do ponto de vista cultural, a idosos citados por Simmons (1945) estarem todos voltados
velhice deve ser percebida diferentemente em um país com para sua inclusão afetiva nos contextos sociais, Riffiotis
uma expectativa de 37 anos de vida, como Serra Leoa, e outro (2000), também estudando o lugar do velho entre diferentes
de 78 anos de vida, como é o caso do Japão” (1995:26). etnias africanas, assinala que em todas elas existe a ideia de
Assim como Veras, os estudiosos que têm seus textos aqui que os jovens querem que os anciãos morram. Mais que isso,
publicados apresentam, como uma das primeiras questões a existem rituais por meio dos quais a sociedade adulta os

Conhecimentos Específicos 113


APOSTILAS OPÇÃO

separa radicalmente da convivência nas aldeias, quase sempre dificuldades de convivência entre as várias gerações que cada
abandonando-os em cavernas ou outros lugares distantes do vez se distanciam mais culturalmente, numa sociedade em que
convívio de seu povo. Essas mesmas sociedades que os os padrões de comportamento também têm mudado
segregam, porém, igualmente colocam à prova os jovens aceleradamente, como mostra o trabalho de Cornelia Eckert.
adultos que os substituirão no governo da comunidade, para
que fiquem evidentes as dificuldades que sentirão sem o apoio Também para a medicina e para a saúde pública, o
da experiência dos velhos. Os mitos demonstram que, em face envelhecimento tem se apresentado como problema. As
dos dilemas de difícil solução, os novos dirigentes sucumbirão mudanças na pirâmide populacional, que vai alargando seu
se não trouxerem, em seu socorro, algum daqueles anciãos ápice numa média de 2,5% de crescimento anual, geram
abandonados em cavernas para morrer. Assim, o saber preocupações para o sistema de saúde, porque mesmo sem ter
ancestral dessas sociedades evidencia a importância da solucionado os problemas sanitários relativos à infância, à
conciliação e do reconhecimento intergeracional na obtenção adolescência e aos trabalhadores, ambos terão de se equipar
do equilíbrio necessário à organização social. para dar respostas eficientes relativas à prevenção de
enfermidades e à atenção aos enfermos idosos.
O ENVELHECIMENTO COMO PROBLEMA Por isso, em geral, os formuladores de políticas no Brasil
referem-se ao ‘custo social da população idosa’, calculado
No imaginário social a velhice sempre foi pensada como como três vezes mais alto que o da população em geral (Veras,
uma carga econômica – seja para a família, seja para a 1995). Demonstram também que esse custo mais elevado
sociedade – e como uma ameaça às mudanças. Essa noção tem onera, sobretudo, o sistema de saúde, pois o crescimento da
levado as sociedades a subtraírem dos velhos seu papel de esperança de vida, historicamente, vem acompanhado, no
pensar seu próprio destino. No entanto, nunca faltaram mundo inteiro, de um aumento das doenças crônicas não
exceções a tais práticas, o que pode ser exemplificado com o infecciosas, como diabetes melito, distúrbios cardiovasculares,
reconhecimento pelas sociedades indígenas da figura do pajé articulares, respiratórios e de movimento; doenças
ou xamã ancião ou, nas sociedades ocidentais, dos poderosos, incapacitantes, como demência senil, doença de Alzheimer,
ricos e famosos quando gozam de saúde física, mental e doença de Parkinson; além do incremento das ocorrências de
econômica. As exceções, porém, não podem esconder as depressões e de falhas cognitivas.
grandes dificuldades socioeconômicas que os idosos, Os capítulos escritos por Célia Caldas e Paulo César Alves
particularmente os pobres, sofrem nos mais diferentes exemplificam a dimensão dos sofrimentos de grupos
contextos de vida. Por isso mesmo, a velhice é por eles específicos de idosos e de seus ‘cuidadores’, quase sempre
autoassumida como ‘problema’, na mesma medida em que familiares, que os acompanham até o final da vida. Esses
sofrem por causa dela e o imaginário social assim a define. sofrimentos costumam ser muito mais dramáticos para a
população pobre, que acaba lotando os asilos públicos e
A forma mais comum de discriminação cultural tem sido o conveniados, quase todos em situação de flagrante abandono
estigma de ‘descartável’, ‘passado’ ou ‘peso social’. Como muito ou padecendo, cronicamente, da falta de equipamentos e de
bem aponta Guimarães, “nos dicionários emocionais da pessoal especializado.
população, velhice é sinônimo de decadência, de decrepitude e No Rio de Janeiro (capital com a maior proporção de idosos
de perda de dignidade” (Guimarães, 1997:7). no país), Veras (1995) observou que 17% da sua amostra
O trabalho de Uchôa e colaboradores que integra este consideravam sua saúde ruim ou muito ruim, e os casos de
volume evidencia, empiricamente, a forma negativa de distúrbio mental eram mais frequentes nesse grupo. Embora
concepção do envelhecimento por parte dos moradores de 82,5% das pessoas entrevistadas se dissessem saudáveis ao
uma cidade do interior mineiro, em contraposição às visões responderem a questões auto referidas, os problemas de
muito mais generosas que os idosos têm de si próprios. Os saúde foram mencionados como prejudicais à qualidade de
pesquisadores demonstram a distância entre a observação sua vida cotidiana. Cerca de 64,4% delas apresentavam
externa e o conceito formulado por eles, mesmo em situação morbidades múltiplas. Ora, esses dados podem ser lidos sob
de enfermidade e de dependência física. A visão depreciativa duas faces: de um lado, para esse grupo etário, os transtornos
dos mais velhos tem sido, através dos tempos modernos, da velhice não são considerados ‘doenças’; de outro, servem
alimentada profundamente pela ideologia ‘produtivista’ que para dimensionar o tamanho dos problemas a serem
sustentou a sociedade capitalista industrial, para a qual, se enfrentados pelo sistema de saúde na esfera da prevenção e do
uma pessoa não é capaz de trabalhar e de ter renda própria, de tratamento.
pouco ou nada serve para sua comunidade ou seu país.
No Brasil, o fenômeno do envelhecimento até pouco tempo O estudo de Veras chama a atenção, igualmente, para o
atrás vinha sendo tratado como questão da vida privada, por peso das condições socioeconômicas adversas, da pouca
representar ônus para a família, como assunto de caridade instrução e da escassez de atendimento no recrudescimento
pública, no caso dos pobres e indigentes, e, de forma bastante dos problemas físicos e mentais na velhice. O fato de 60% da
reducionista, como questão médica. É claro que essa visão população idosa hoje serem compostos por mulheres indica
continua confirmada pelas práticas sociais de cuidado com os também a necessidade de um atendimento diferenciado por
idosos. Mas o rápido crescimento dessa faixa da população gênero. No conjunto, Veras (1995) assinala nesse grupo etário
passou a preocupar também muitas outras instituições sociais. do Rio de Janeiro elevada prevalência de distúrbios
No caso da família, por exemplo, nos últimos cinquenta cardiovasculares e articulares; deficiências visuais e auditivas
anos, houve profundas transformações no seu desenho e distúrbios mentais, como depressão e problemas cognitivos.
demográfico, nos seus ambientes, na sua composição e no seu No caso brasileiro, a ideia de que os velhos constituem um
tamanho, pari passu com a acelerada urbanização. Na medida problema social vem sendo construída sobremodo pelo
em que diminuem os espaços residenciais e o número dos Estado. Na sociedade ocidental contemporânea, o Estado é o
membros que entram no mercado de trabalho, grande regulador do curso da vida, do nascimento à morte,
comparativamente aumentam os que se retiram. Criam-se passando pelas fases de escolarização, de atividade no
novas demandas de cuidados, necessidades de adaptação da mercado de trabalho e de aposentadoria. Por causa disso, a
arquitetura das casas, isolamento dos parentes em asilos, ou idade cronológica é um princípio cultural de extrema
maior exigência de dedicação dos mais novos para relevância no moderno aparato jurídico-político, que
proporcionar melhor qualidade de vida aos que se tornam concentra no indivíduo a atribuição de direitos e deveres; e no
dependentes. Sem falar no fato de que não são poucas as mercado de trabalho, a base da economia. Essa forma de

Conhecimentos Específicos 114


APOSTILAS OPÇÃO

organização difere, por exemplo, das comunidades indígenas e todas as dimensões do mundo doméstico, do trabalho e,
camponesas fundadas economicamente na unidade familiar. também, do consumo.
Para Wright Mills (1974), um dos mais importantes
A ideia do ‘envelhecimento como problema’ se expressa na problemas para a sociologia é a compreensão do movimento
constante divulgação dos déficits nos cálculos da previdência de transformação de um fato particular em questão pública. No
social, uma vez que o direito à aposentadoria (um direito dos caso do envelhecimento, isso supõe enfatizar o sentido das
idosos) se universalizou. O discurso sobre o ‘peso social que mudanças que esse grupo social, crescente em número, em
hoje os velhos constituem’ tem nessa instância pública um vigor e em organização, provoca na reorganização do poder,
lugar entronizado. É reforçado pela ideia de que a situação do do trabalho, da economia e da cultura, atribuindo novo
aumento dessa população é insustentável com a manutenção significado ao seu espaço tradicionalmente percebido como o
do direito universal da aposentadoria. Portanto, o aparato do da decadência física e da inatividade. Como questão pública, o
Estado tende a ver de forma catastrófica as próprias fenômeno do envelhecimento deve ser focalizado
instituições político-sociais que criou para atender os idosos. positivamente para o desenvolvimento humano. Portanto,
Veras (1995:23) aponta assim a dimensão do problema: pensar a velhice como questão pública é bem diferente de
Uma vez que mais da metade da população idosa do Brasil tratá-la como problema social.
terá entre 60 e 69 anos, as decisões relativas à idade de
aposentadoria, disponibilidade e direito à pensão, assim como Seguindo o pensamento de Mills (1974), é importante
outras questões relacionadas à força de trabalho, afetarão descobrir quais seriam os formuladores de um novo sentido
significativamente a economia brasileira no próximo século. do envelhecimento e que interesses têm nessa destinação, uma
vez que quem o formula publicamente ocupa, geralmente,
Talvez o dilema dos formuladores de política seja posição privilegiada para fazê-lo e para representar os
exatamente a impregnação, em seu horizonte mental, da ideia interesses dos outros. Há que descartar os agentes tradicionais
de envelhecimento como problema, sobretudo no sentido ou é preciso compreender sua mudança de enfoque? No caso
econômico de apropriação de bens e serviços por um número dos idosos, os porta-vozes mais legitimados têm sido os
cada vez maior de pessoas mais velhas. Ora, essa ideia de especialistas da geriatria, seja pela apropriação do avanço da
falência da previdência social, da qual usufruem os idosos, ciência, seja pelo próprio reconhecimento social da sua prática
como a grande vilã da política social no país deve ser médica. Mas também no interior desse grupo, as certezas são
relativizada. Pelo menos é o que mostra estudo recente do poucas, como ressalta Guimarães (1997:7):
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre a
universalização de direitos sociais no Brasil. Os pesquisadores todos sabem que a gerontologia e seus diversos ramos têm
constataram que mais da metade das aposentadorias e sido até então uma ciência tímida, adolescente; um barco
pensões da Previdência Social, na zona rural das regiões Sul e carente de bons timoneiros e do sopro dos melhores ventos.
Nordeste, é dirigida a mulheres viúvas, solteiras ou separadas. Ainda assim, o conhecimento científico tem possibilitado
Vivendo sem companheiros, elas são responsáveis pelo avanços consideráveis que tornam factível um envelhecimento
sustento da casa e dos dependentes, contando apenas, para a saudável a ponto de podermos antever o próximo século como o
sobrevivência sua e do grupo, com esse benefício. século dos velhos. Nossa responsabilidade tende a aumentar na
No Nordeste, 58,6% das mulheres aposentadas e mesma proporção da importância atual e futura de nossa
pensionistas são chefes de família. No Sul, 49,4% delas o são. atuação.
Embora a quantia recebida do INSS seja mínima, pelo fato de
essas idosas rurais terem acumulado, ao longo de suas vidas, Ora, se não é apenas a geriatria (que tende a focalizar as
uma série de desvantagens como a dupla jornada e o trabalho doenças consideradas próprias da idade) a grande líder da
sem remuneração, a extensão da aposentadoria rural a essas transformação do idoso em ator político, seu papel não pode
mulheres, depois da Constituição de 1988, mudou sua deixar de ser reconhecido, juntamente com a combinação de
trajetória, ao reconhecer seu direito de cidadania e sua vários outros atores da história social no pós-Segunda Guerra
autonomia financeira. Mundial. A expressão mais cabal desse seu papel na
O estudo do Ipea conclui que a aposentadoria rural hoje é redefinição de espaços é a ideia contemporânea de terceira
um fator essencial de redução da pobreza no campo. Isso idade, uma nova construção social acrescentada às etapas da
também mostra o trabalho de Rita Heck, que integra esta vida, referida entre a vida adulta e a velhice propriamente dita.
coletânea, no caso do interior do Rio Grande do Sul. Mas essa Nomeando a população entre 60 e 75 anos na Europa, onde a
autora evidencia que, além do significado econômico de esperança de vida vem alcançando 80 e 90 anos, essa
subsistência, a liberação financeira (ainda que muito modesta) ‘invenção’ se socializou no mundo. Veio a reboque de grandes
vem acompanhada de um sentido cultural de independência avanços científicos na área de prevenção e tratamento de
da tutela familiar, sobretudo para as mulheres, trazendo-lhes doenças crônicas, estabelecendo parâmetros cada vez mais
uma qualidade e uma alegria de vida como nunca tiveram em definidos do desenvolvimento humano e conquistando
outras etapas da existência. Os exemplos acima referem-se, de descobertas que se concretizam em tecnologias de tratamento
forma muito particular, ao envelhecimento em situações de reconhecidamente eficazes e precisas.
pobreza e privação, mas, mesmo assim, aqui se expressa um
significado positivo dessa etapa da vida, apontando para uma É interessante notar que a maioria dos medicamentos mais
visão diferenciada em relação aos estereótipos sociais. modernos, por meio dos quais a indústria farmacêutica mais
lucra, estão voltados para o ‘envelhecimento com qualidade de
O ENVELHECIMENTO COMO QUESTÃO PÚBLICA vida’ ou para manter o mito da imortalidade ou da eterna
juventude, com base em pesquisas farmacológicas e genéticas
Na sociedade ocidental, não somente o ciclo da vida é de ponta.
socialmente padronizado como também seu curso passa, cada Seria uma simplificação e um reducionismo dizer que o
vez mais, a ser regulado pelo Estado, a despeito das grande propulsor das transformações do papel atual do idoso
potencialidades e dos problemas de cada um. A infância, a na sociedade seja o mercado, mas não convém desconhecer
adolescência e a juventude são tempo de escolarização; a idade seu lugar. É preciso lembrar que a ‘terceira idade’ é uma nova
adulta é o tempo associado à procriação e à participação no categoria social que designa o envelhecimento ativo e
mercado de trabalho; a velhice, o tempo da aposentadoria. independente. Geralmente, essa etapa da vida se compõe de
Essa institucionalização crescente das fases da vida envolve uma população disposta – quando tem condições econômicas

Conhecimentos Específicos 115


APOSTILAS OPÇÃO

mínimas para fazê-lo – à “ociosidade criativa” (De Masi, 2000) imagem e delineando uma preciosa etapa da vida, portadora
e à prática de múltiplas atividades físicas e culturais. Assim, de uma ética e de uma estética próprias.
torna-se impossível desconhecer o seu papel como
‘consumidora’, pois crescem pari passu a constatação desse Num estudo recente, Simões (2000) reconstruiu a história
fenômeno demográfico, o turismo, a moda, a cosmética, a da constituição do movimento dos aposentados brasileiros.
medicina de reabilitação e a fisioterapia, a indústria de Com os termos ‘luta’, ‘mobilização’ e ‘nova categoria’
alimentação específica, novos padrões de construção, uma estruturando seu discurso ordenador desde o início dos anos
literatura específica, além de todas as práticas, instituições e 80 e culminando na segunda metade dos anos 90, os idosos se
agentes voltados para esse público cativo e em expansão. reuniram e foram para as ruas reivindicar reconhecimento de
A chamada ‘terceira idade’ se diferenciaria da quarta, de 75 seus direitos previdenciários, aumento das aposentadorias e
a 85; ou da quinta, compreendendo os velhos acima desse participação na gestão de seus interesses, com assento nos
patamar (Peixoto, 2000), como os países europeus já vêm conselhos nacionais de Saúde e de Seguridade Social.
classificando – sobretudo porque os sintomas e expressões de Na liderança da ‘maior categoria do país’, encontravam-se
dependência física e mental vão se acentuando e são muito antigos líderes sindicais e de movimentos sociais. Nesse
mais frequentes nas últimas duas faixas, em que os serviços se embate, os idosos brasileiros, nas duas últimas décadas,
concentram no desenvolvimento de medicamentos, inauguraram um espaço próprio de ação, de cidadania e de
residências, equipamentos e pessoal especializado para inclusão. Modificaram o cenário da organização social e se
atendimento médico e social. estabeleceram como um grupo de interlocução política – os
velhos elegem, destituem, dialogam, denunciam, recorrem à
Na verdade, a situação da ‘terceira idade’ e do acelerado Justiça, incomodam e se fazem ouvir. Transformaram-se, como
envelhecimento populacional, no Brasil e no mundo, inclui-se obra própria, em atores sociais e em atores políticos.
nos temas a gosto da globalização e da cultura que é produzida O estudo de Simões (2000) faz uma distinção interessante.
neste novo momento histórico, sobretudo pelas mudanças que Ao mesmo tempo que cresce e se estrutura o movimento dos
provoca e pelas potencialidades que encerra. Como um aposentados, também se incrementam e se multiplicam os
fenômeno sobre o qual ainda há pouca reflexão, necessita, para grupos e os movimentos da chamada ‘terceira idade’. Os
sua compreensão, de uma perspectiva construtivista, em que líderes dos aposentados não gostam muito dessas outras
as teorias e as propostas englobem os próprios atores delas formas de expressão. Costumam dizer que as iniciativas da dita
destinatários. Mas, tomada como questão pública, ela é uma ‘terceira idade’ não são dirigidas a interesses da coletividade e
espécie de ‘ícone’ dos avanços que a sociedade alcançou, atendem apenas a anseios individuais, oferecendo atividades
mesmo tendo em conta todas as diferenças entre países culturais como as ‘universidades abertas’, os grupos de
desenvolvidos e subdesenvolvidos, entre classes, gêneros e encontro, de lazer, de solidariedade, de atividades físicas e de
etnias. excursões, entre outros.
Ora, olhando a efervescência dos dois movimentos,
No caso nacional, a terceira idade revela os seguintes constata-se que não há contradição entre eles, mesmo porque
avanços positivos: o controle de muitas doenças infecto- os grupos de atividades culturais devem congregar pessoas
contagiosas e potencialmente fatais; a diminuição das taxas de que participam do movimento de aposentados e vice-versa.
fecundidade; a queda da mortalidade infantil, graças à Mas há diferenças de ênfase: os movimentos socioculturais
ampliação das redes de abastecimento de água e esgoto; o costumam reunir muito mais mulheres que homens, e os dos
aumento da cobertura vacinal e da atenção básica à saúde; a aposentados, mais homens que mulheres. Ambos, porém,
acelerada urbanização; a universalização da previdência social revelam a busca do ‘protagonismo’ de ‘uma nova categoria’ –
e as profundas transformações nos processos produtivos e de como revelam Ana Bassit, Rita Heck & Jean Langdon, Alda
organização do trabalho e da vida. Motta e Elizabeth Uchôa e colaboradores – que acotovela os
Todas essas mudanças, na realidade, induzem a que se jovens adultos, exigindo a abertura de espaço e novos arranjos
coloque em pauta uma nova datação e um novo imaginário nas estruturas de poder.
sobre as etapas da vida até então vigentes e utilizadas para
marcar os rituais de passagem, assim como os direitos e É preciso reconhecer que, do ponto de vista econômico, os
deveres públicos e privados. O envelhecimento como questão idosos e, de forma destacada, ‘a terceira idade’ se configuram
pública retira esse tema do domínio individual e privado sem hoje como um mercado crescente e cada vez mais promissor
negá-lo, colocando-o num âmbito muito mais abrangente: na no mundo dos bens de consumo, da cultura, do lazer, da
esfera da grande política e das políticas sociais. É preciso que, estética, dos serviços de prevenção, atenção e reabilitação da
daqui para a frente, não nos esqueçamos de que, no Brasil, esse saúde. Do ponto de vista sociológico, constituem um
grupo etário reúne e reunirá uma população maior que emergente ator social, com poder de influir nos seus destinos,
qualquer sindicato de categoria e até mesmo que qualquer pela sua significância numérica e qualitativa, por meio da
central sindical. construção de leis de proteção, de conquista de benefícios e
pela presença no cenário político, no qual valem seu voto e sua
O IDOSO COMO ATOR SOCIAL representação. Como um novo construtor de cultura, o idoso
tem papel insubstituível porque, radicalizando as novas
Por mais incrível que possa parecer, há duas categorias situações, nada poderá ser como antes, sob pena de sua
sociais opostas e em construção olhando para o futuro do país. exclusão moral e social do projeto para o futuro do país.
A primeira é a ‘juventude’, essa etapa entre a adolescência e o
mundo adulto que, exatamente pela força de expansão da Os chamados ‘tempos pós-modernos’ trouxeram à pauta
expectativa de vida e das exigências escolares, cada vez tende algumas questões culturais que favorecem um novo
a ampliar seu tempo e a criar uma identificação específica. A pensamento sobre a ‘terceira, quarta ou quinta idade’. A
segunda é a velhice, que não pode ser nominada nem tratada primeira é a relativização da centralidade da categoria
como há 50 anos, quando a expectativa de vida era apenas de ‘trabalho’ tal como foi pensada no mundo ocidental e na
43 anos. Portanto, este último e mais novo ator individual e sociedade industrial – em que, como assinala Weber (1985),
coletivo está redefinindo as relações familiares; construindo a foi considerado ‘vocação’ e, como lembra Marx (1978), acabou
medida de sua participação social; influenciando os rumos da sendo um fator de alienação e despersonalização. Hoje a
política e, em consequência, criando, a partir de si, uma nova sociedade está mais aberta para outras formas de identificação
e madura para a crítica do ‘homem unidimensional’ que fez do

Conhecimentos Específicos 116


APOSTILAS OPÇÃO

trabalho para sobreviver seu único objetivo possível de vida. ou Terceira Idade? Estudos antropológicos sobre identidade,
Cada vez mais se admitem outras formas de pertencimento memória e política. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
social e tempo para o ócio criativo, possibilidade que vem DE MASI, D. O Ócio Criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
junto com a perspectiva de diminuição da jornada de trabalho, ELIAS, N. O Processo Civilizador: uma história dos costumes.
como previu Marx (1984) em A Ideologia Alemã. A noção de Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
‘consumidor cidadão’ e a expansão das redes de comunicação, GUIMARÃES, R. M. Ciência, tempo e vida. Arquivos de
lazer e cultura estão contribuindo para dar força à produção e Geriatria e Gerontologia, 1 (1):7-9, 1997.
ao reconhecimento de outras possibilidades de identificação. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA.
Em segundo lugar, e em consequência de uma abertura Universalização de Direitos Sociais no Brasil: previdência rural
propiciada, sobretudo, pelas tecnologias de comunicação e nos anos 90. Brasília: IPEA, 2000.
informacionais, vem se ampliando o respeito ao pluralismo de LINS DE BARROS, M. M. (Org.) Velhice ou Terceira Idade?
comportamentos e de atividades, o que, em consequência, Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política. 2
acaba por romper estereótipos ideológicos e .ed. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
comportamentais. Por fim, do ponto de vista cultural, observa- MARX, K. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
se uma valorização da subjetividade em todos os níveis do 1978. Livro I.
mundo da vida, da ciência e da política. MARX, K. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1984.
MILLS, W. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar,
Ao questionar a ideia do trabalho remunerado como a 1974.
única forma de realização social e ao colocar em foco outras MOTTA, A. B. Chegando pra idade. In: LINS DE BARROS, M.
formas de estar no mundo e na sociedade, os tempos atuais M. (Org.) Velhice ou Terceira Idade? Estudos antropológicos
permitem aos idosos, como nunca antes, construírem sua nova sobre identidade, memória e política. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV,
identidade sob uma ótica de trabalho não obrigatório, mas de 2000.
utilidade e de sentido. Isso propicia outros espaços de PEIXOTO, C. Entre os estigmas e a compaixão e os termos
expressão a serem inventados e desfrutados, contrapondo-se classificatórios: velho, velhote, idoso, terceira idade. In: LINS
à pecha de ‘descartáveis’ ou à própria referência a si mesmos DE BARROS, M. M. (Org.) Velhice ou Terceira Idade? Estudos
como ‘inúteis’. antropológicos sobre identidade, memória e política. 2.ed. Rio
A maior abertura para o pluralismo de ideias, de Janeiro: FGV, 2000.
comportamentos e atitudes configura, para esses homens e RIFFIOTIS, T. O ciclo vital contemplado: a dinâmica dos
essas mulheres, o espaço menos preconceituoso para seus sistemas etários em sociedades negroafricanas. In: LINS DE
desejos e possibilidades de realizações, retirando de suas BARROS, M. M. (Org.) Velhice ou Terceira Idade? Estudos
testas a tarja repressora, na qual está escrito que ser velho é antropológicos sobre identidade, memória e política. 2.ed. Rio
colocar o pijama de avô ou o chinelinho de avó, contar histórias de Janeiro: FGV, 2000.
do passado, parar de ousar e preparar-se para a morte. SIMÕES, J. A. Velhice e espaço político. In: LINS DE BARROS,
Na verdade, não sem dor e conflitos, os papéis sociais estão M. M. (Org.) Velhice ou Terceira Idade? Estudos antropológicos
mudando e podem mudar mais, à medida que os idosos se sobre identidade, memória e política. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV,
coloquem como atores das transformações com que sonham. 2000.
Quase tudo está por fazer. As vivências, em maior SIMMONS, L. W. The Role of the Aged in Primitive Society.
profundidade, da própria subjetividade permitirão aos velhos New Heaven: Yale University Press, 1945.
afrontarem as repressões provocadas tanto pelas próprias VERAS, R. P. País Jovem com Cabelos Brancos. Rio de
necessidades do trabalho quanto pelos constrangimentos Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
familiares, sendo mais autênticos e mais felizes. WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
São Paulo: Pioneira, 1985.
Por fim, as novas possibilidades de comunicação, de
viagens, de participação grupal, de ampliação da cultura, do Capítulo I
cultivo de diferentes formas de lazer permitem também uma
existência mais saudável. Mesmo nos bairros e nas condições ENVELHECIMENTO E SAÚDE
em que vivem os mais pobres, é possível dar um novo sentido
e articular atividades de encontro, comunicação e afeto. Para Envelhecimento e Saúde: experiência e construção
tudo isso, é importante mudar a ideia de que velhice é doença, cultural
substituindo-a por uma nova visão de um tempo no qual se Elizabeth Uchôa, Josélia O. A. Firmo & Maria Fernanda
pode optar com menos constrangimentos pelo rumo que se F. de Lima-Costa
quer dar a esta última etapa da vida, produzindo dela uma
síntese criadora. Essa autoria, para a qual não estão definidos O envelhecimento populacional não é mais uma
os caminhos a priori, cabe ser inventada, tal qual tem sido feito preocupação apenas dos países desenvolvidos, onde este
pelos movimentos citados aqui. Dessa forma, a contribuição fenômeno foi observado inicialmente. Hoje, é nos países em
específica dos idosos será um bem para a sociedade e desenvolvimento que se verificam os maiores índices de
estabelecerá os contornos de seus próprios interesses, num mudanças (UNO, 1985; Waters et al., 1989). No Brasil, o
mundo cheio de outros poderosos interesses. crescimento da população idosa é cada vez mais relevante, em
termos tanto absolutos quanto proporcionais (Berquó, 1999).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Entre 1950 e 1991, a proporção de indivíduos com 60 ou mais
anos de idade aumentou de 3,5% para 7,3%, e a proporção
ANDRADE, C. D. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Aguilar, daqueles com 65 anos ou mais aumentou de 1,7% para 4,5%
1966. (FIBGE, 1950/ 1991). Em 1991, o número total de indivíduos
ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de idosos (65+) no país já ultrapassava os 7 milhões, e a
Janeiro: Guanabara, 1981. estimativa para o ano 2025 é que o número de idosos
BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. São Paulo: Marco ultrapasse os 30 milhões (Berquó, 1999; Veras, 1997).
Zero, 1983.
DEBERT, G. G. A antropologia e os estudos dos grupos e das A situação no Brasil faz eco no panorama mundial,
categorias de idade. In: LINS DE BARROS, M. M. (Org.) Velhice caracterizando-se, entretanto, por algumas particularidades.
Contrariamente aos países desenvolvidos, onde o aumento da

Conhecimentos Específicos 117


APOSTILAS OPÇÃO

esperança de vida resultou de melhoria considerável das cidade de Bambuí (MG), assim como as estratégias por elas
condições de vida das populações, no Brasil muitos indivíduos desenvolvidas para tentar enfrentá-los.
estão hoje vivendo por mais tempo sem, necessariamente,
dispor de melhores condições socioeconômicas ou sanitárias UMA ABORDAGEM INTERPRETATIVA DO
(Kalache, 1990 , 1991). Além disso, em um país tão marcado ENVELHECIMENTO
por desigualdades, como o Brasil, o processo do
envelhecimento pode reforçar desigualdades em termos da Objeto ambíguo em nossos sistemas de referência, a
qualidade de vida e do bem-estar entre diferentes estratos da velhice foi tratada a partir da segunda metade do século XIX
população, contribuindo para aumentar a chance de exclusão como uma etapa da vida caracterizada pela decadência e pela
dos idosos (Berquó, 1999). ausência de papéis sociais (Debert, 1999). Inicialmente
delimitado por estudos biológicos e fisiológicos, o
Assim, no contexto brasileiro, o acelerado crescimento da envelhecimento foi fundamentalmente associado à
população idosa faz surgir um grande desafio: como garantir deterioração do corpo e, a partir daí, utilizou-se essa mesma
uma sobrevivência digna a todos aqueles que tiveram suas grade de leitura para guiar pesquisas focalizando outras
vidas prolongadas em anos? A busca de soluções adequadas dimensões (Corin, 1985). Apenas recentemente, essa visão
exige a inclusão do envelhecimento da população brasileira sobre a velhice como um fato orgânico foi perdendo sua força
como um elemento fundamental na elaboração das novas e a velhice e o envelhecimento passaram a constituir objetos
políticas e na agenda de investigações científicas do novo de reflexão da antropologia.
milênio. Uma abordagem antropológica das questões relativas à
No âmbito da saúde, o envelhecimento populacional é um velhice e ao envelhecimento deve, desde o início, situá-las em
fenômeno que gera novas demandas para os serviços e contextos sociais e culturais específicos. Segundo Corin
aumentos substanciais nos custos de programas (Neugarten, (1985), a antropologia deve interrogar sobre o papel de fatos
1967; Birren, 1983; Fournier, 1989; Ducharme, 1992; Veras, socioculturais mais gerais na construção de uma
1992), exigindo o conhecimento de problemas prioritários e o representação da velhice enraizada nas ideias de deterioração
desenvolvimento de ações visando à sua resolução. e perda. De acordo com essa autora, trata-se de investigar a
Entretanto, mesmo reconhecendo que o envelhecimento interação entre parâmetros culturais, traços individuais e
das populações é uma das questões mais relevantes na agenda marcadores biológicos na construção de representações da
de estudos contemporâneos (Veras, Coutinho & Coeli, 1997), velhice e do envelhecimento.
os estudos epidemiológicos com base populacional são ainda
raros no Brasil e até recentemente (Lima-Costa et al., 2000) Duas tendências principais reagrupam os estudos
restritos a grandes metrópoles, como São Paulo (Ramos, 1986; antropológicos sobre o envelhecimento; tendências que são
Ramos & Goihman, 1989; Blay, Mari & Ramos, 1989; Ramos et elas mesmas um reflexo da evolução conceitual e metodológica
al., 1993; Najas et al., 1994) e Rio de Janeiro (Veras et al., 1989; em antropologia (Corin, 1982; Létourneau, 1989). A primeira
Veras, Coutinho & Nery Jr., 1990; Veras & Coutinho, 1991; caracteriza-se por uma abordagem estática dos fenômenos
Veras & Murphy, 1991; Veras, 1992). socioculturais. Ela reagrupa estudos, privilegiando a
investigação de fatores que determinam a posição social dos
Estudos epidemiológicos são imprescindíveis para a idosos em diferentes sociedades e procurando analisar o
identificação dos problemas prioritários, dos grupos de impacto do desenvolvimento social sobre o estatuto das
pessoas mais vulneráveis a esses problemas e dos fatores de pessoas idosas (Corin, 1982; Fry, 1980; Keith, 1980;
proteção e risco que lhes são associados, de modo a orientar Létourneau, 1989). Nesses estudos, a diminuição do prestígio
decisões relativas à distribuição de recursos e à definição de e a deterioração do estatuto dos idosos foram associadas ao
prioridades. São ainda mais raros estudos que possam processo de modernização (Cowgill & Holmes, 1972). A
informar sobre a maneira como as pessoas idosas residentes segunda tendência caracteriza-se pelo aparecimento de
no Brasil tentam dar significado a esse período de suas vidas e estudos holísticos; neles, o pesquisador tenta penetrar o
sobre a forma como limitações e perdas (frequentes nessa fase interior de uma cultura e descobrir como dados relativos ao
da vida) são integradas à experiência de vida. Muito pouco se envelhecimento são organizados e adquirem significado
conhece sobre a maneira como essas pessoas percebem seus (Létourneau, 1989; Corin, 1982).
problemas de saúde e agem diante deles ou quais são os
fatores (econômicos, sociais e culturais) que podem Um conjunto de estudos publicados por Meyerhoff & Simic
influenciar percepções e ações nesse campo. (1978) ilustra de maneira exemplar a emergência dessa nova
tendência em antropologia. Nele, são analisados os aspectos
Para ultrapassar o estado atual de conhecimentos, é estruturais, culturais e experienciais do envelhecimento em
preciso levar-se em conta que o envelhecimento é vivido de cinco sociedades distintas. O envelhecimento é abordado,
modo diferente de um indivíduo para outro, de uma geração pelos diferentes autores, como um fenômeno universal que
para outra e de uma sociedade para outra. Essa diversidade de gera problemas comuns, mas que podem ser vividos e
experiências nos convida a distinguir entre os elementos resolvidos diferentemente nas diversas culturas. Esse
intrínsecos ao processo do envelhecimento e aqueles mais conjunto de estudos nos convida a examinar os problemas
diretamente ligados às características do indivíduo, à dinâmica específicos do envelhecimento e as estratégias adaptativas
social e às políticas públicas vigentes. Nessa perspectiva, utilizadas pelos idosos em termos de uma articulação entre as
particularidades culturais e processos lógicos predominando capacidades do indivíduo e os recursos do meio.
em cada contexto emergem como elementos essenciais para a
elaboração de políticas mais adequadas às características das Arcand (1989) introduz, em perspectiva similar, uma
populações a serem atendidas. interessante reflexão sobre o papel dos modelos culturais no
Estudos antropológicos tornam-se imprescindíveis para aparecimento de problemas ligados ao envelhecimento.
investigar as condições de vida dos idosos e identificar os Segundo o autor, os cuiva, população indígena da Colômbia,
fatores sociais, culturais e econômicos que intervêm positiva tentam negar, de todas as formas, o envelhecimento que se
ou negativamente na qualidade de vida desta população. Aqui, inscreve na própria natureza do ser vivo. Preocupados com os
a abordagem antropológica foi utilizada para investigar os ideais de igualdade e homogeneidade que estruturam a sua
problemas encontrados por mulheres idosas vivendo na sociedade, os cuiva evitam tudo que possa provocar uma
ruptura social. Para Arcand, o modelo cuiva é quase uma

Conhecimentos Específicos 118


APOSTILAS OPÇÃO

inversão do modelo ocidental, no qual a sociedade se dá todos gravadas, transcritas e digitadas. A leitura atenta e sistemática
os meios para acentuar a distinção entre as diferentes fases da do conjunto de entrevistas permitiu a identificação de algumas
vida. categorias organizadoras e a construção de grades de
codificação (Corin et al., 1992; Uchôa & Vidal, 1994). Após a
Essa segunda tendência na abordagem do envelhecimento transcrição e informatização de todas as entrevistas, os textos
coincide com o desenvolvimento da corrente interpretativa foram marcados no computador com a ajuda do software
em antropologia e, nela, a questão do significado passa a Qualittat (Demicheli & Uchôa, 1998), em função de categorias
ocupar lugar central. Geertz (1973), que se situa na origem definidas nas referidas grades. A partir daí, as categorias de
dessa corrente, considera a cultura como um universo de informação recorrentes foram identificadas, e seu conteúdo
significados que permite aos indivíduos de um grupo analisado. Finalmente, foram analisadas as interações entre as
interpretar a própria experiência e guiar suas ações. Esta diferentes categorias de informação.
definição ressalta a participação essencial da cultura na
construção de todos os fenômenos humanos: percepções, RESULTADOS
emoções e ações.
Nos estudos construídos nessa perspectiva, a abordagem No conjunto de entrevistas com os informantes-chave, a
estática dos fenômenos culturais é substituída por uma velhice e o envelhecimento foram associados a distintos níveis
abordagem processual. O envelhecimento não é mais encarado de problemas. No campo da saúde, há referência ao
como um estado ao qual o indivíduo se submete passivamente, aparecimento das doenças crônicas. Na área econômica, há
mas como um fenômeno biológico ao qual o indivíduo reage referência à diminuição da renda e a um concomitante
com base em suas referências pessoais e culturais (Corin, aumento dos gastos, particularmente em função dos
1982; Marshall, 1986, 1987). Esta é a abordagem adotada no problemas com a saúde. Há também referência, em quase
presente trabalho. todas as entrevistas, ao declínio funcional levando à
incapacidade progressiva de exercer as atividades cotidianas e
A ABORDAGEM METODOLÓGICA à perda da autonomia. No âmbito das relações sociais, há
referência a um comprometimento da inserção social; mortes
Com o objetivo de penetrar no universo das mulheres de parentes e amigos e aposentadoria favorecem a diminuição
idosas vivendo em Bambuí, foram utilizados dois métodos da rede social, a perda de papéis sociais, a marginalização e o
complementares de coleta de dados. Em um primeiro isolamento.
momento, foram realizadas entrevistas individuais com dez De maneira geral, todos esses problemas convergem para
informantes-chave (dez idosos e dez adultos com idades entre um conjunto de perdas diversas, todas elas implicando um
35 e 45 anos) sobre as condições de vida dos idosos residentes aumento progressivo da dependência e a exigência de
em Bambuí. Buscou-se identificar informantes que, por sua diferentes níveis de suporte. Esses são os elementos centrais
inserção na comunidade, estivessem em situação de falar do discurso dos informantes-chave. A imagem da velhice
sobre ela. Em um segundo momento foram reconstruídas 30 desenhada por eles é bem negativa: carência afetiva,
histórias de vida com mulheres idosas (60 anos de idade ou econômica, inutilidade, dependência, desamparo,
mais) selecionadas em função de sua inserção em grupos: dez marginalização e deterioração da saúde aparecem como
pertencentes a grupos de terceira idade, dez a grupos elementos constitutivos desta fase da vida.
religiosos e dez que não pertenciam a nenhum desses grupos. Quando são focalizadas as histórias de vida, surgem
imagens bem mais positivas da velhice e do envelhecimento.
Nas entrevistas com informantes-chave, foram Nenhuma das mulheres entrevistadas, sejam quais forem suas
investigados a percepção das condições de vida dos idosos, a características, reconhece seu momento de vida como
inserção dos idosos no campo familiar, os problemas inteiramente negativo ou definido apenas por perdas e
principais (econômicos, de saúde, afetivos), as estratégias limitações. É preciso ressaltar que o grupo de mulheres
utilizadas para enfrentar estes problemas (recurso aos entrevistadas é bastante heterogêneo. Treze tinham entre 60
parentes, amigos, vizinhos ou outros; recurso aos serviços da e 69 anos e 13 entre 70 e 80 anos; apenas quatro tinham mais
saúde, recurso aos grupos religiosos, recurso aos grupos de de 80 anos e somente uma mais de 90. A maioria delas era
terceira idade) e a percepção das expectativas e dos viúva, com filhos e baixa escolaridade. Dez disseram nunca ter
comportamentos de diferentes categorias de pessoas em tido filhos, cinco nunca ter se casado e apenas uma afirmou ter
relação aos idosos. feito curso superior. Doze dizem viver com a aposentadoria de
um salário mínimo; dez afirmam possuir bens e não ter
Para a reconstrução das histórias de vida, focalizou-se o problemas financeiros; o restante reagrupa situações
projeto inicial de vida, a situação atual, a inserção no campo intermediárias entre esses dois extremos.
familiar e social e a situação econômica nas diferentes fases da D. Joaquina é um senhora de 94 anos que vive acamada há
vida, os acontecimentos significativos (transformações alguns meses. Ela nos conta que quebrou uma perna e dois
decorrentes e estratégias utilizadas), os problemas principais meses depois quebrou a outra, mas, surpreendentemente,
na atual fase da vida (de saúde, econômicos, afetivos) e as define sua saúde como “muito boa”. D. Maria tem 80 anos e diz
estratégias utilizadas para enfrentá-los (recurso a parentes, que sempre teve problemas de coluna e que agora arranjou
amigos, vizinhos ou outros; recurso aos serviços médicos; uma artrose: “Mas nada sério, nunca tive nenhuma fratura e só
recurso aos grupos religiosos; recurso aos grupos de terceira tomo remédio para fortalecer o coração”. D. Norma diz que seu
idade etc.), a percepção das atitudes e dos comportamentos de problema é o coração: “Sou ofendida pelo barbeiro e de uns
diferentes categorias de pessoas (parentes, amigos, anos para cá tenho um ressecamento na boca, mas eu trabalho,
profissionais, outros) em relação aos idosos, a avaliação do lavo a roupa da casa, passo, passeio muito, como bem, durmo
impacto de atitudes e de comportamentos específicos sobre a a noite inteira, não preocupo com o que vem lá da frente...”. D.
qualidade de vida e as expectativas quanto à velhice e ao Ana tem 70 anos e conta que tem angina e já fez angioplastia,
envelhecimento e a avaliação da situação atual. mas afirma que passa bem porque é obediente e quer “viver
muito”. Problemas de saúde, em maior ou menor grau,
As entrevistas com informantes-chave foram realizadas aparecem em quase todos os relatos. Entretanto, a avaliação
pelos autores, e as reconstruções das histórias de vida foram da mas, a aposentadoria representa também para elas um
realizadas por uma senhora de 68 anos, líder de um grupo de mínimo de autonomia: poder de decidir onde e com o que
terceira idade em Belo Horizonte. Todas as entrevistas foram gastá-la.

Conhecimentos Específicos 119


APOSTILAS OPÇÃO

O isolamento não é identificado pelas idosas de Bambuí das mulheres bambuienses se reconhece nesse discurso. O
como um elemento constitutivo de suas vidas. D. Joaquina diz conjunto de suas histórias de vida mostra, ao contrário, que
que, apesar de viúva, não se sente só. Tem muitos amigos, perdas e limitações existem, mas que isto não é específico da
sempre tem um de seus filhos com ela e uma vez por semana velhice e que, além disso, o impacto real de tais perdas pode
todos os seus filhos se reúnem em seu quarto. D. Maria tem 75 ser mediado por diferentes elementos do contexto.
anos e diz que não sai muito por sua opção própria, mas sente- A confrontação entre os dois tipos de dados analisados
se perfeitamente amparada pela família, com a qual pode opõe de maneira radical a definição externa e negativa do
contar em qualquer situação: “Se faltar dinheiro, é só falar. Não envelhecimento que é dada pelos informantes-chave e a
passo falta de nada. Na doença, eles me acodem. Em festas, sou maneira pela qual as mulheres idosas de Bambuí tentam
a primeira a ser convidada”. O papel da família é também aqui atribuir significado a este período de suas vidas. Também fica
apontado como fundamental, mas as associações comunitárias evidente a oposição entre o caráter homogeneizador que
ou religiosas têm igualmente um papel muito importante. marca o discurso dos informantes e a heterogeneidade de
Em vários relatos, é possível identificar uma busca ativa de experiências que caracteriza as histórias de vida.
redes de solidariedade extrafamiliares. D. Ana afirma que Corin (1985) explicita claramente a relevância dessa
“quem mora sozinha tem que agradar as pessoas”. Ela diz não situação, chamando a atenção para a conjugação entre
se esquecer disso e ter sempre gente por perto. A cada dia da parâmetros externos (socais e culturais) e internos na
semana, ela participa de uma atividade comunitária. Vê muitas construção de uma relação individual com o envelhecimento.
pessoas e tem muitos amigos. Diz que sua vida é cheia e que se Assim, uma definição cultural de velhice descrita em termos
sente feliz. A rotina de D. Vilma também era assim, mas seus negativos (perda, falta do que é valorizado socialmente)
problemas de saúde vieram modificá-la: “Ultimamente não imporia do exterior uma certa marginalização às pessoas
posso andar. Não sirvo para ficar em qualquer lugar. Então eu idosas. Segundo a autora, seria igualmente a partir dessa ideia
fico mais é em casa”. A vida de D. Aparecida também mudou de perda (de papéis sociais, de capacidades intelectuais) que
bastante depois que teve um derrame e suas idas à igreja se estruturariam os programas destinados aos idosos.
foram interrompidas. De maneira geral, a participação nos GognalonsCaillard (1979) sugere que essa acentuação da visão
grupos de terceira idade ou outras associações comunitárias é deficitária do envelhecimento, que predomina no Ocidente,
vista como um verdadeiro “remédio contra o isolamento”, mas estaria ligada à maneira pela qual a velhice se situa na
para participar é preciso ter saúde. contracorrente de uma sociedade centrada na produção, no
rendimento, na juventude e no dinamismo.
Analisando a relação entre projeto inicial e situação atual, Nos últimos anos, uma perspectiva crítica e, sobretudo, a
é possível enquadrarmos o conjunto de histórias de vida em adoção de uma abordagem holística do envelhecimento
três subgrupos. Em um primeiro grupo, o projeto inicial foi favoreceram a emergência de um consenso sobre a
perfeitamente realizado: “Eu sonhava ter uma casa com um necessidade de “quebrar preconceitos” (Veras, 1997), “rever
quintalzinho para plantar. Com toda a luta, com todo o estereótipos” (Debert, 1999) , “abandonar pressupostos”
sofrimento, eu hoje tenho o que sonhei”. Em um segundo (Sant’Anna, 1997) ou, mais precisamente ainda, “desconstruir
grupo, a situação atual contradiz o projeto inicial: “A única a velhice” (Guedes, 1999). Nesse contexto, passa-se a
coisa que eu queria era casar e ter filhos. Hoje eu sou solteira, interrogar a atitude alarmista e seu fundamento básico: uma
mas minha vida é boa”. E em um terceiro grupo, o projeto visão negativa e homogeneizadora do envelhecimento. Surge,
inicial foi totalmente modificado: “Meu ideal era estudar... então, em torno da noção de terceira idade, um movimento de
Meus projetos foram modificados. Casei e logo comecei a criar transformação de representações e práticas relativas à velhice
família”. e ao envelhecimento. E, certamente, serão as iniciativas se
Entretanto, não é possível estabelecer uma correlação inserindo nesse movimento que contribuirão para uma
precisa entre qualquer um dos padrões (realização, transformação da realidade de todos os dias e, com ela, das
contradição e modificação) e uma avaliação mais ou menos representações da velhice e do envelhecimento.
positiva da própria vida. Parece ser mais na capacidade de Entretanto, Debert (1999) chama a atenção para os perigos
superar eventos dolorosos, redefinir prioridades e integrar inerentes à exacerbação desta tendência contemporânea e seu
mudanças do que no alcance de uma meta preestabelecida que papel nos “processos de reprivatização” da velhice. Para a
se fundamenta uma avaliação positiva. Não é incomum, autora, a ideia de que a eterna juventude é um bem que pode
mesmo nos casos em que há contradição entre o projeto inicial ser conquistado e é a base de algumas iniciativas e práticas
e a situação atual, que as mulheres bambuienses definam a destinadas aos idosos que negam a velhice, a doença e a morte,
terceira idade como a melhor fase de suas vidas. transformando-as em responsabilidade individual. Segundo
A análise dessas histórias deixa claro que existe uma ela, a velhice não deve ser dissociada da doença e da morte. As
relação extremamente complexa entre os vários níveis de histórias de vida aqui analisadas também apontam nesta
problemas identificados pelas mulheres idosas e as estratégias direção: não adianta negar, o importante é integrar todos os
por elas desenvolvidas para enfrentá-los. Nos exemplos recursos disponíveis (individuais e coletivos) em um processo
citados, fica claro que um problema de saúde pode ser no qual compensação pela incapacidade, redefinição de
exacerbado ou minimizado pela inexistência ou existência de prioridades e adaptação à situação permitam aos idosos
suporte familiar ou comunitário, ou que a situação financeira continuar, mesmo quando têm graves problemas de saúde.
pode exacerbar ou aliviar as consequências de um problema
de saúde. Assim, parece ser constitutiva da própria definição REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
de problema a existência ou não de recursos para solucioná-lo.
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ser velho significa ser só, viver precariamente, ser inútil,
dependente, desamparado, marginalizado e doente. Nenhuma

Conhecimentos Específicos 120


APOSTILAS OPÇÃO

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Iorque: John Wisley & Sons, 1967. um nível suficiente de concretude, nem se alcança o ângulo de
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health status and social support of elderly people from different neles corpos classificatoriamente naturais, ao mesmo tempo
socioeconomic strata living in the community, 1986. Ph.D. simbolicamente descorporificados e mudos. Certamente por

Conhecimentos Específicos 121


APOSTILAS OPÇÃO

isso, a promessa de algo novo é a sensação que me proporciona Entretanto, a ainda majoritária terceira idade começa a ser
uma oficina de antropologia, saúde e envelhecimento. muito lucrativa para uma série de organizadores/gestores de
Que posso oferecer nela? Reflexões resultantes de estudos atividades, produtos e serviços para esta faixa etária – que,
e pesquisas, empreendidos nos últimos seis anos, sobre esse entre programas de lazer que incluem cursos, festas e viagens
heterogêneo segmento social que são os idosos. Teoricamente, para uma ‘velhice saudável’, “põem em circulação o dinheiro
essa heterogeneidade remete necessariamente a uma dos velhos” – como expressou, de modo severo, Ariès
definição de categorias de análise mais determinantes e (1993:53) – mas, contraditoriamente (e felizmente) põem
elucidativas nos sistemas de relações sociais – gênero, também em circulação social os próprios velhos, grande parte
idade/geração e classe social – em suas especificidades e deles ‘sem lugar’ na sociedade contemporânea. Repõem-nos,
também mútuas articulações. Há, ainda, outras que remetem porém, nos interstícios dela (Britto da Motta, 1998 , 1999b). E
diretamente ao âmbito dos modos de vida, interesse central ao mesmo tempo deixam neles a sensação de estar mais vivos
nos projetos, tais como vivências, experiências e e, às vezes, alegres.
representações. No cotidiano, entretanto, as ‘idades’ ainda são percebidas
No que concerne à metodologia, trabalhei em anos principalmente como parte do passar do tempo, mimetizando
anteriores na documentação e na análise das atividades, em como duração e ritmo os ciclos da natureza e as estações, o que
programas ou grupos ‘de convivência’, de idosos ‘jovens’ (até é expresso no corpo das pessoas. Diz-se completar ‘quinze
75 anos), de ambos os sexos e diferentes classes sociais, em primaveras’, estar ‘na flor da idade’ ou ‘ainda viçosa aos 50
Salvador, com atenção tanto aos modos de vida das pessoas anos’, ‘bem conservado(a)’, ‘no inverno da vida’ etc. Expressa-
como às propostas de organização dos grupos e à forma como se um tempo ‘da natureza’ em trajetórias pelo mundo da
os idosos se situam neles. cultura no capitalismo.
Foram quatro diferentes tipos de grupos: três organizados
e um altamente informal. Um congregando pessoas de Se a atuação do indivíduo deixa de corresponder à
camadas médias e altas da sociedade; os outros reunindo classificação bioetária socialmente esperada, dá-se um
idosos das classes populares. ‘escândalo lógico’ e, adiante, o ‘infrator’ será punido. Com
Esses grupos, em suas atividades e pausas entre elas, remissões de cruel mau gosto, como “está conservado(a) em
também constituíram o foco de observação direta, formol”, com o ridículo ( “velhas peruas”) ou a censura. A
participante quando houve a possibilidade, com registros em própria literatura veicula imagens cruéis da velhice,
diário de campo, além de longas entrevistas individuais feitas especialmente a das mulheres. García Márquez (1987:317) é
nos locais dos encontros, em número próximo de cem. um exemplo, num livro que fala de amor:
No momento, em outro projeto, acompanho, num Os homens floresciam numa espécie de juventude outonal,
movimento exploratório, os mais velhos, com idades em geral pareciam mais dignos com as primeiras cãs, se tornavam
muito superiores a 80 – agora individualmente, em suas casas, engenhosos e sedutores, (...) enquanto que suas murchas esposas
onde a observação e as entrevistas estão sendo feitas. Homens tinham que se aferrar ao braço deles, para não tropeçarem até
e mulheres de diversos estratos sociais. O trabalho ampliou-se na própria sombra.
no segundo semestre de 2001, para permitir uma base Repare-se nas metáforas sazonais e no ‘castigo’, que é
comparativa entre a condição social e existencial dos mais sempre diferente segundo o sexo/gênero: “Poucos anos
‘jovens’ e a dos de idade mais avançada e, se possível, quebrar depois, no entanto, os maridos despencavam (...) no precipício
um pouco do mistério que cerca os muito velhos. de uma velhice infame do corpo e da alma...” (García Márquez,
1987:317).
VELHICE, NATUREZA E CULTURA O livro inteiro é, na verdade, um libelo contra a velhice,
como destruidora do corpo e da ‘alma’. O personagem médico,
Da mesma forma como sempre as mulheres foram ligadas de forma escondida e inútil, leva adiante sua luta pessoal:
à ‘natureza’, como forma de dominação e controle – e toda a
fase inicial do feminismo dos anos 60/70 foi um enorme Levantava-se com os primeiros galos, e a essa hora
movimento de esclarecimento e recusa a esse determinismo começava a tomar seus remédios secretos: brometo de potássio
bioideológico –, assim ainda é feito com ‘os velhos’. Mas de para levantar o ânimo, salicilatos para as dores dos ossos em
maneira diferente – e pior. É como se eles estivessem numa tempo de chuva, gotas de cravagem de centeio para as vertigens,
dimensão não produtiva e terminal da natureza – resíduos da beladona para o bom dormir. Tomava alguma coisa a cada hora,
natureza, objetos de necessário descarte. Não se reproduzem sempre às escondidas, porque em sua longa vida de médico e
mais, não produzem trabalho e bens materiais (ou não se mestre foi sempre contrário a receitar paliativos para a velhice:
permite que produzam, segundo os cânones do capitalismo). achava mais fácil suportar as dores alheias que as próprias.
Em suma, não reproduziriam a sociedade. Portanto, ‘não (García Márquez, 1987:321)
pertencem’ a ela. Até o ponto da análise de Birman (1995:43), A referência à imagem do corpo, no entanto, pode ser a
“este lugar impossível que a modernidade ocidental construiu mais dura:
para a velhice, (...) [onde] a individualidade deixa de existir”. Atreveu-se a explorar com a ponta dos dedos seu pescoço
A modernidade capitalista construiu uma visão segmentar flácido, o peito encouraçado de varetas, as cadeiras de ossos
das idades: periodiza as gerações, constrói e ‘desconstrói’ carcomidos, as coxas de corça velha... Tinha os ombros
‘idades’, quase a cada século inventa mais uma. Primeiramente enrugados, os seios caídos, e as costelas forradas de um pelame
a infância e a juventude, no pré-capitalismo socialmente pálido e frio como o de uma rã. (García Márquez, 1987:417)
indiferenciadas da idade adulta (Ariès, 1978); bem mais É evidente que essa aproximação desmesurada que se faz
recentemente (década de 60), inventa uma ‘terceira idade’, do velho com a natureza não corresponde a uma integração
inserção de um novo período entre a maturidade e a velhice, social/natural ou a uma superação da dicotomia
ao mesmo tempo negação desta (Lenoir, 1979). corpo/espírito da cultura ocidental, mas, ao contrário, a um
Em seguida, logo reconhecida a incapacidade de dar conta alargamento de fosso que torna a ‘natureza’ ‘unipresente’ e
da atual longevidade dos mais velhos, talvez afastada da ‘final’.
imagem, atualmente idealizada, dos idosos dinâmicos e
alegres dos grupos de ‘terceira idade’, inventa-se uma A cultura, no entanto, também está inscrita no corpo, ao
inescapável ‘quarta idade’, prenunciadora ainda de uma mesmo tempo condicionando e transformando a natureza.
quinta... E estas, quase ninguém quer estudar ou conhecer...1 Não atua, sabemos, de modo homogêneo no interior de uma
sociedade e em determinado período histórico. É conformada

Conhecimentos Específicos 122


APOSTILAS OPÇÃO

por determinados sistemas de relações sociais em seus modos não pode brincar ou ter expressões corporais, que logo dizem:
de realização, que se constituem, ao mesmo tempo, em ‘Que velho gaiato!’ ‘Isso não é coisa de velho!’
dimensões básicas da vida social e da sua análise, como as
relações de classe, de gênero e entre as gerações (Britto da Às vezes as pessoas fazem concessões e expressam um
Motta, 1999a). esteticismo abstrato, comentando a beleza de um rosto
Por isso, os corpos, além de sua forma e ‘natureza’ humana, “marcado pelo tempo”, “um pergaminho”. Mas ninguém quer
diferenciam-se em cada período histórico no seu existir ter essa ‘beleza’, essa aparência associada ao desgaste e à
biossocial – como corpos de homem ou de mulher, de jovem proximidade da morte.
ou de velho – e de classe social, com diferentes práticas. No imaginário social, o envelhecimento é um processo que
Boltanski analisa, como expressão geral, o corpo em sua concerne à marcação da ‘idade’ como algo que se refere à
percepção e uso conforme a situação de classe: ‘natureza’, e que se desenrola como desgaste, limitações
À medida que se sobe na hierarquia social, que cresce o nível crescentes e perdas, físicas e de papéis sociais, em trajetória
de instrução e que decresce correlativamente e que finda com a morte. Não se costuma pensar em nenhum
progressivamente o volume de trabalho manual em favor do bem; quando muito, alguma experiência. Nenhum ganho,
trabalho intelectual, o sistema de regras que regem a relação nessa ‘viagem ladeira abaixo’.
dos indivíduos com o corpo também se modifica: quando sua As perdas são tratadas principalmente como problemas de
atividade profissional é essencialmente uma atividade saúde, expressas em grande parte na aparência do corpo, pelo
intelectual, não exigindo nem força nem competência física sentimento em relação a ele e ao que lhe acontece:
particulares, os agentes sociais tendem primeiramente a enrugamento, encolhimento, descoramento dos cabelos,
estabelecer uma relação consciente com o corpo e a treinar ‘enfeiamento’, reflexos mais lentos, menos agilidade... Mas são
sistematicamente a percepção de suas sensações físicas e a expressas muito mais pelos outros do que pelos próprios
expressão de suas sensações... (Boltanski, 1979:168) velhos.
Esse autor analisa também um aspecto interessante – mas
ainda motivo de muita discussão – da situação de gênero: as Há, naturalmente, da parte dos próprios idosos, a clara
mulheres, que teriam “um consumo médico maior do que os percepção desse processo – tanto o do corpo como o da reação
homens”, consomem também mais produtos farmacêuticos; social a ele. Existem queixas, moderadamente, ou a referência
queixam-se mais do que os homens de perturbações à ‘normalidade’ do que acontece, principalmente em relação a
digestivas, “dores indeterminadas”, enxaquecas e outras dores – na coluna, nas pernas, ‘nos quartos’, nos braços... Há,
“doenças vagas”; “escutam-se mais do que eles, da mesma também, quase uma ‘naturalidade’ sobre isso, e não apenas nas
maneira que os membros das classes superiores se escutam classes populares, entre os menos assistidos. O ator Paulo
mais facilmente que os membros das classes populares e Autran, em recente entrevista a um programa de televisão e
mantêm, mais frequentemente do que os homens, uma relação em meio a animados comentários sobre seu mais novo
sensitiva com o corpo” (Boltanski, 1979:174). trabalho, definiu: “Ser velho é sentir uma dor a cada dia”.
Essas referências à dor ou a problemas de saúde, nas
Há, entretanto, outras dimensões ou nuances das relações entrevistas que fiz, são sempre matizadas por um certo fair-
sociais e ligadas não apenas ao gênero, que não podem ser play, uma ‘filosofia do cotidiano’ – ‘isso é da velhice’ – que
analisadas mais amplamente senão como relações e alcança até o limite da ambiguidade. Vejam-se D. Marta, 72
socializações ligadas ao poder social – são, sobretudo, as anos, e o Sr. Manoel, 73.
idades/gerações. No exercício desses mecanismos de poder São ativos e participam de grupos de idosos. Eles falam
social (Bourdieu, 1983), constroem-se preconceitos que têm sobre o sentimento da ‘idade’:
mais diretamente a ver com a disputa, entre as idades, pelos Eu quase morri, e vivi. Depois tomei muito remédio. Agora
postos de trabalho no mercado, mas também, e em outro me acho feliz da vida. Não fico mais doente, só gripe. O que me
extremo, com a aversão possível aos que, já mais velhos, não ataca mais é a coluna. (D. Marta)
possam manter as competências sociais de controle corporal: Eu senti e sinto, cada dia mais. A gente sente aquele
“Degrees of loss impair the capacity to be counted as a desânimo no corpo. Eu me sinto tão alegre que não pensei que
competent adult...” (Featherstone, 1991:376) e, não por ia viver tanto. (Sr. Manoel)
último, o medo ou recusa à ideia de morte... E de quem, em
princípio, está mais perto dela (Britto da Motta, 1998). Surpreendentemente, os de idade mais avançada também
Todos esses diferenciais referem-se, evidentemente, aos não têm grandes queixas. Mesmo o Sr. Pedro, com 100 anos e
corpos em suas múltiplas manifestações ou expressões: uma perna quebrada, conta que viveu bem e é feliz. D. Brígida
linguagem, apresentação física (roupas, penteados, pintura, revela que só se deu conta da ‘idade’ aos 95 anos, quando
adereços), gestos etc. começou a ter tonturas. Até então, trabalhava com a enxada.
O ‘gestual humano’, por exemplo, como ação biocultural – Curiosamente, a que relata mais sintomas é a vigorosa e
postura do corpo e meio de comunicação instantânea –, é incansável D. Lalu:
particularmente diferente segundo idades e gerações. No caso A gente sente dores nos braços, na coluna, a pressão vai
dos idosos, isso é enfatizado; o comportamento corporal é ficando alta, dores nas pernas, a gente sente que é uma droga!
demandado de fora, para que se coadune com o modelo Deu-me a impressão de que falava não por si, mas por um
cristalizado do preconceito social. Deles não se espera vigor, coletivo. Suas palavras pareciam bem distanciadas das minhas
leveza nem dinamismo. Até os próprios velhos entram nesse anotações no diário de campo, porque, ao conhecê-la, eu havia
ageism, embora, atualmente, cada vez mais resistam a ele. anotado: “É uma senhora de ótimo porte, aparentando bem
Maria Pureza, de 61 anos, participante de uma associação de menos que os seus 86 anos”. E ao fim do dia que passei em sua
bairro, define ‘velho’ segundo esse modelo tradicional e por casa:
isso não se reconhece nele: Saímos, logo depois do almoço, para a gruta, onde ela vai
Velho é uma pessoa que anda assim... [Curva o corpo.] Eu cerca de duas vezes por dia. É um percurso razoavelmente
sou uma mulher de idade. [Endireita o corpo, olhando para a longo e enladeirado, muitos sobe-e-desce, que ela percorreu
frente.] bem, andando na frente, sem demonstrar qualquer cansaço,
Osvaldo, 62 anos, de uma faculdade da terceira idade, enquanto os mais moços ficavam de fôlego curto e pernas, em
reage: alguns momentos, reclamando...
Encontramos barreiras impostas pela própria sociedade,
que diz que você já está velho para determinadas coisas. Você

Conhecimentos Específicos 123


APOSTILAS OPÇÃO

Que resistência têm os idosos diante dos limites e perdas? Também é objeto de atenção e especulação o fato de que
Por um lado, essa naturalidade assinalada e, por outro, uma não se envelhece de modo homogêneo, nem de vez (Britto da
dissociação até certo ponto confortadora: Motta, 1998). Dalva, uma senhora que se aproximava dos 60
anos, colecionou, sempre com sentimento de estranheza, esse
As pessoas, principalmente as das classes populares, estão rol modelar de segmentadas considerações médicas sobre seu
sempre diferenciando corpo e mente, corpo e sentimentos, corpo, num período de três anos:
atordoadas pelo fato de que as perdas e limitações se dão Que beleza! Seu joelho tem 20 anos! (Ortopedista olhando,
primeiro na aparência e pequenas diminuições de encantado, uma radiografia)
possibilidades físico/funcionais do corpo, enquanto ‘por
dentro eu ainda sou a mesma’. Sua mama! A senhora já fez plástica? Não? Mas está muito
São muitos os depoimentos desse teor nas minhas bem! (Primeiro ginecologista)
pesquisas. Vários outros são relatados por Beauvoir (1980), Sua mama é de uma mulher de 40 anos! (Segundo
como também reunidos por Featherstone (1991), que propõe ginecologista)
a expressão ‘máscara do envelhecimento’ (mask of ageing) Sua tensão é de broto! A vagina... tem sua idade. Seria bom
para ilustrar uma situação e um sentimento, muito fazer reposição hormonal... (Terceiro ginecologista)
generalizados, de se ter uma espécie de máscara imposta ao Claramente saudável, ainda assim não escapou da projeção
corpo que esconderia a identidade mais profunda da pessoa, a do modelo da juventude, do traçado da trajetória cronológica,
qual continuaria sendo essencialmente a mesma da juventude. nem da sugestão de intervenção também ‘adequada’ à idade.
Um depoimento especialmente expressivo de tal Contudo, essa percepção segmentada não é simplesmente
estranhamento foi recolhido, ainda por Featherstone, do ‘pós-moderna’, social e sem motivação existencial direta. A
escritor inglês J. B. Priestley, aos 79 anos: vida é curta e as mudanças corporais se processam
rapidamente, por isso, há sempre um sentimento de
É como se, descendo a Avenida Shaftesbury como um homem brusquidão na (auto)percepção do envelhecimento. Ao
jovem, eu fosse subitamente raptado, arrastado para um teatro mesmo tempo, o envelhecimento, como anteriormente
e obrigado a receber o cabelo grisalho, as rugas e outras mencionado, não se processa de modo homogêneo – nem
características da velhice, e empurrado para o palco. Atrás da cronológica, nem física, nem emocionalmente (Debert, 1988;
aparência da idade eu sou a mesma pessoa, com os mesmos Britto da Motta, 1998). Há sempre partes, órgãos ou funções
pensamentos de quando eu era mais jovem. (Featherstone, do corpo que se mantêm muito mais ‘jovens’, ‘conservados’ ou
1991:379)2 sadios do que outros. Assim como no terreno dos sentimentos
Esse sentimento, nada incomum, demonstra bem a e das representações, “a velhice nunca é um fato total.
dificuldade de construção da identidade de velho. Se a Ninguém se sente velho em todas as situações” (Debert,
formação das identidades de idade ou de geração já é difícil, 1988:62). Nem diante de todos os projetos. A literatura tem a
porque são condições mutáveis rapidamente no tempo – a clara percepção disso, que Marina Colasanti expressa na
cada ano se tem uma nova idade; a cada dez ou vinte anos se é dimensão do poema:
classificado numa outra geração (Britto da Motta,1999a) –, Pensei entrar na velhice por inteiro como um barco ou um
pior a fixação da identidade de velho, porque indesejada e cavalo Mas me surpreendo jovem, velha e madura ao mesmo
dúplice, ou ambígua, principalmente quando referida ao tempo.( Colasanti, 1994:106)
corpo: a aparência ‘desgastada’, seu funcionamento não D. Georgina, de uma associação de moradores, também
totalmente sincronizado e a mente – ou a essência dos afirma, poeticamente:
sentimentos – ‘jovem’. Nem me lembro que tô velha. Chego no espelho, vejo minha
Um equilíbrio difícil, que me leva a propor ampliar a cabeça [branca], minhas pelanca, mas por dentro eu converso
enunciação de Ferreira, segundo quem “É no campo relacional com as meninas da minha rua.
que se estabelecem os limites entre juventude e velhice (...) O maior aliado do preconceito contra os velhos pode vir,
Pensar-se a si próprio é, na velhice, um duplo exercício, pois à mesmo, das assertivas e prescrições ‘científicas’. Se por um
medida que o sujeito se define, o faz por contraste com o outro” lado há o discurso teórico de médicos mais lúcidos de que
(Ferreira 1995:429). Diria eu: também com aquele ‘outro’ que velhice não é doença; se Veras (1994), por exemplo, afirma ter
é o seu eu jovem. encontrado, em sua pesquisa no Rio de Janeiro, uma população
idosa em que mais de 80% são saudáveis; por outro lado,
Curiosamente, é também o recurso à máscara, desta vez ‘da encontra-se, a cada passo, o discurso explícito da doença ou
juventude’, que encontro expresso na experiência de campo, da(s) perda(s) como próprias da velhice. Sugerido, ou posto de
quando uma mulher relata, indignada, o repetido abuso, por fora, é incorporado frequentemente pelos idosos como
parte dos motoristas de ônibus, em Salvador, de não pararem expectativa de processo ou até acontecimento inarredável.
no ponto quando quem nele está é um idoso. Gomes (1997) fez ilustrativo estudo de uma situação dessas,
Queria ter uma máscara, uma máscara de jovem, para que com idosos atendidos em um ambulatório de geriatria, em
ele parasse. Aí [acompanha a fala com os gestos] eu retirava a Salvador.
máscara e lhe ‘dava’ língua...
É ainda Featherstone (1994:50) que, em outro trabalho, Todos referiam-se à ‘perda da memória’, mas nenhum
lembra que “a construção das identidades depende da apresentava distúrbios orgânicos que justificassem a queixa. A
construção das imagens do corpo”. Fecha-se o ciclo... pesquisa revelou a expectativa medrosa do esquecimento
No campo científico, as expressões podem não ser muito como ‘normal’ na velhice, até o ponto de nenhuma falha,
diferentes daquelas do cotidiano. Os corpos são, cada vez mais, nenhum esquecimento, comum em qualquer idade, poder
loteados pelas especialidades médicas e afins, segundo passar com tranquilidade. Trabalhos em grupo, jogos e
aparelhos e sistemas fisiológicos... E idades. O corpo dos velhos exercícios mnemônicos devolveram muito da autoconfiança
é o corpo ‘diferente’, comparado – em desvantagem – com o perdida.
modelo de corpo e beleza jovens vigente na sociedade, Não se pretende ignorar as diferenças fisiológicas reais do
manipulável para se aproximar deste. Uma série de corpo do idoso, em comparação com o dos jovens, mas não
profissionais cuida desse aspecto: ‘alimentação saudável’, raro se exageram as diferenças, que nem sempre pesam muito
exercícios físicos, ainda mais eficazes se realizados ‘sob para o negativo. Em participação observante em oficina ‘para
orientação especializada’ em academias ou com um personal a terceira idade’ na Escola de Dança da UFBa, acompanhei,
trainer, dança de salão, moda mais jovem etc. durante um mês de férias, outro experimento bem-sucedido –

Conhecimentos Específicos 124


APOSTILAS OPÇÃO

no qual, como costuma acontecer nos grupos, os homens não Movimentam-se, homens e mulheres, em sentidos
estavam. Vi os agradecimentos e o suave chorar de saudade de diferenciados, conforme suas trajetórias de vida: os homens,
uma convivência e um trabalho estimulantes, em que fora para o lazer e o ‘descanso’ (Britto da Motta, 1997) ou, em bem
possível a descoberta de que o corpo respondia a movimentos menor número, para atividades públicas políticas,
de que já não se julgavam capazes. E não por enfermidade, mas principalmente o movimento dos aposentados (Pereira et al.,
porque era a expectativa ‘normal’. 1992; Simões, 1994); as mulheres, para atividades de mais
clara liberação existencial, de lazer e cultura (Debert, 1994;
O velho – e seu corpo – é também visto como desvalido, Britto da Motta, 1998). Mas todos tendo, em comum, a
eterna clientela para as técnicas da assistência social. Embora intensificação ou retomada de uma universalmente desejada
comece a mudar esse tipo de atitude, dela ainda se encontram sociabilidade (Britto da Motta, 1999b; Peixoto, 1997).
expressões flagrantes e fortes, até no campo educacional,
frequentemente informado por preceitos da gerontologia, a Nesse movimentar-se, seu uso do corpo é retomado em
exemplo da Proposta para a Universidade da Terceira Idade da bases mais plenas. Numa aparente contradição, saem do
PUCCamp. Se aí o idoso já não aparece como desvalido, mas aprisionamento da ‘natureza’ socialmente (im)posta para – aí,
como alguém capaz de participar da sociedade, ao mesmo sim! – usarem, ou pelo menos representarem, o corpo de
tempo o perfil traçado é, mais que tradicional, desanimador: maneira mais natural ou – até o ponto em que a cultura
“discriminado, inativo, vivendo em condições precárias e ocidental permita – menos fragmentada: andam, dançam,
situação de perda” (PUCCamp, 1991:11) . O que tem sido alegram-se (Britto da Motta, 1997).
também, por muito tempo, o discurso do Estado e dos Mas em novo processo contraditório, são também instados
criadores e gestores das políticas públicas, muitos deles a submeter o corpo às já referidas ‘técnicas corporais’ (Mauss,
também gerontólogos. 1974) de ginástica e ‘alimentação adequada’ para alcançar
Pesquisa realizada em Campinas por Guerrero (1994) uma ‘velhice sadia’... e uma participação privilegiada no
sobre a referida ‘universidade’ chega, entretanto, a conclusões mercado de consumo.
bem mais otimistas:
Curiosamente, as especialidades médicas e afins que
A Universidade para a 3a Idade mobiliza um público que se haviam realizado o já referido ‘loteamento’ do corpo das
apresenta como muito ativo. (...) Estamos muito distantes do pessoas vêm retomando um movimento de ação total sobre
idoso em crise, solitário, inativo, vivendo em condições precárias esses corpos – não pelo simples retorno do clínico, cuja falta
(...) tal como (...) é tratado na Proposta de Ação [da PUCCamp]... sempre se lamentou, mas, de maneira abarcante, pelo ramo
( Guerrero, 1994:50) mais recente da geriatria – a qual, aliás, se duplica como
Nas próprias ciências sociais, em pioneiros trabalhos sobre espécie de clínica geral, não apenas com frequência crescente,
a velhice, ainda se pontuou essa desvalia, mesmo no belo e mas sobretudo porque se espraia em espesso ‘receituário’ para
profundo estudo de Ecléa Bosi: “A mulher, o negro, combatem se viver a velhice ‘com qualidade’ e com tanto zelo que
pelos seus direitos, mas o velho não tem armas. Nós é que preconiza as primeiras visitas a partir dos 35 anos...
temos de lutar por ele” (Bosi, 1987:39). Receituário que vem gerando uma expectativa social
Diante de perspectivas desse tipo, os velhos não teriam compressora sobre os que ‘não obedecem’, que deveriam
qualquer dinamismo ou poder. Sequer gestão do próprio sentir-se culpados por estar perdendo a oportunidade de se
corpo. ‘prevenir’ do envelhecimento, pois hoje, mais do que nunca, ‘só
Mas o momento, agora, começa a ser outro. Há todo um é velho quem quer’...
processo de mudança em curso, como já estamos vendo.
Há, entretanto, experiências pedagógicas valiosas com
De forma nada surpreendente, as referências ao idosos, visando a contrabalançar as técnicas de dominação
envelhecimento e ao corpo são, ainda quando não explícitas, social, como assinalaram Lobato e Mendes (1993), na Escola
feitas sobretudo às mulheres. Não apenas porque, do ponto de de Dança da UFBa, ao encontrarem os corpos dos velhos,
vista da idade, no curso da vida, elas vão-se tornando bem mais principalmente de velhas, ‘fragmentados’ pela imagem social
numerosas que os homens (60% a 80% da população idosa, de recusa a eles. Depondo sobre esse exercício reconstrutor,
dependendo do estágio de envelhecimento e do país em Lobato (1993) detalhou em entrevista:
questão e apesar de o estresse contemporâneo contribuir para Com os jovens, se trabalha do corpo inteiro para as partes.
aproximar essas cifras), mas principalmente porque do ponto Com as idosas, que perdem a imagem do corpo como um todo,
de vista do gênero as mulheres sempre foram, por causa da reação da sociedade, se fez o caminho inverso:
tradicionalmente, avaliadas pela aparência física e pela partimos da parte para o todo; partimos das extremidades.
capacidade reprodutiva. Em suma, pelo estado do seu corpo: Primeiro os pés, porque pisam e sustentam o corpo, e em seguida
pela beleza que possa exercer atração, pela saúde que permita as mãos, muito usadas no trabalho.
reproduzir, pela docilidade de um corpo que se deixe moldar Os homens não se interessam em participar desses
para tudo isso e também pela domesticidade, objeto trabalhos, informou Lobato. Preferem reunir-se em outros
permanente de gestão social. Na velhice, muitos desses lugares e atividades, como evidenciou a pesquisa. E em um
circuitos se perdem e elas se sentem, declaradamente, mais desses lugares vamos encontrá-los.
livres (Britto da Motta, 1997, 1998) (embora, na sociedade de
consumo, eles retornem, tentem retornar à consideração e à Em uma praça de um bairro periférico de Salvador, como
ação dos ‘especialistas’). em muitas outras praças da cidade, reúne-se diariamente um
grupo de homens idosos, quase todos aposentados, para
Se é verdade que as novas gerações já começam a ter conversar e ver o movimento dos passantes. Ouvi-los é uma
diferentes vivências sociais – do corpo mais livre à experiência oportunidade privilegiada de checar ou superar noções
amarga e prematura da ‘inatividade’, do desemprego –, os preconcebidas a respeito dos velhos. Num dos bancos dessa
corpos de quem tem mais idade estão ainda mais diretamente praça, jovens pintaram a frase: “Cuidado: banco do pau mole”.
manipulados pelas estranhas estruturas da reprodução Os idosos fazem piadas com quem se senta lá (até com o jovem
capitalista – descartados como força de trabalho e entrevistador da nossa equipe), sem aparentemente estarem
pretensamente dessexuados, mas teimosamente sexuados; preocupados com a pecha, mas nas suas falas, dentro e fora das
trabalhando ( às vezes não reconhecidamente) e entrevistas, demonstram estar muito voltados para o sexual
movimentando-se, hoje resistem. (Ribeiro Júnior, 1995). Com alguma tristeza e risos

Conhecimentos Específicos 125


APOSTILAS OPÇÃO

compensatórios, falam sobre as mulheres que já não NOTAS


conseguem conquistar (“Me respeita, velho”) como perda.
Medem, ainda, suas possibilidades, talvez ampliando-as um 1. Meu principal problema na pesquisa com os de idade
pouco: mais avançada é, justamente, de ordem informativo-
bibliográfica.
Sexualmente, dá para três vezes por semana; quando tá 2. No original: “It is as though, walking down Shaftesbury
jovem, ele quer todo dia. ( Antônio, 68 anos ) Avenue as a fairly young man, I was suddenly kidnapped,
Referem-se, também, à vida dos outros: rushed into a theatre and made to don the grey hair, the
A mulher daquele ali [aponta] disse: ‘Tem mais de cinco wrinkles and the other attributes of age, then wheeled on
anos que não ‘dorme’ comigo’. stage. Behind the appearance of age I am the same person, with
Criticam os companheiros, mas também as mulheres: the same thoughts, as when I was younger.”
O homem, na velhice... se encolhe muito. A mulher quer se
‘espalhar’, mas não pode. A mulher não se acha velha, fica REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
falando para os outros que os maridos não dão pra nada...
João, 58 anos, vendo a moça bonita que passa, ri: ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de
Ser velho é isso. Só fica olhando. Janeiro: Zahar, 1978.
As idosas, fiéis à trajetória feminina tradicional, costumam ARIÈS, P. Une histoire de la vieillesse? Communications,
silenciar sobre sua sexualidade. Claro, se antes era tabu, se não 37:47-54, 1993.
tinham o hábito dessa confidência, por que se sentiriam à BIRMAN, J. Futuro de todos nós: temporalidade, memória
vontade agora? e terceira idade na psicanálise. In: VERAS, R. (Org.). Terceira
Instadas a falar, suas declarações são de renúncia ou Idade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, Unati/Uerj, 1995.
desesperança: BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova
Eu sou uma senhora de idade, fico no meu lugar. (Maria Fronteira, 1980.
Pureza, 61 anos) BOLTANSKI, L. As Classes Sociais e o Corpo. Rio de Janeiro:
Já sei o gosto, já me agradei. Mas meu marido era muito Graal, 1979.
ciumento. (...) Eu quero é poder me divertir... (Augusta, 92 BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São
anos) Paulo: T. A. de Queiroz, Edusp, 1987.
Hoje eu já tô velha, ninguém olha. (Matilde, 72 anos) BOURDIEU, P. A juventude é apenas uma palavra. In:
BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco
Quando admitem o impulso sexual vivo, frequentemente o Zero, 1983.
remetem aos laços ( indissolúveis até na morte) do casamento BRITTO DA MOTTA, A. Terceira idade: gênero, classe social
: e moda teórica. In: COSTA, A. A. & ALVES, I. (Orgs.) Ritos, Mitos
Se meu velho estivesse vivo, eu estaria funcionando. e Fatos. Salvador: Neim/UFBa, 1997.
(Hercília, 85 anos) É raro este tipo de comentário: BRITTO DA MOTTA, A. Chegando pra idade. [Niterói:
Os homens velhos, em relação ao sexo, estão ‘pimba’. Já a REUNIÃO DA ABA, 19, 1994]. In: LINS DE BARROS, M. M. (Org.)
mulher, mesmo de bengala, sente prazer e não nega fogo Velhice ou Terceira Idade? Estudos antropológicos sobre
nunca. (Nadir, 75 anos) identidade, memória e política. Rio de Janeiro: Fundação
Percebe-se, nas próprias citações, o lugar afetivo-social de Getúlio Vargas, 1998.
onde falam os representantes de cada gênero, correspondendo BRITTO DA MOTTA, A. Não Tá Morto Quem Peleia: a
às expectativas sociais que sempre houve em relação a eles ou pedagogia inesperada nos grupos de idosos, 1999a. Tese de
nunca houve em relação a elas. Os homens falam da Doutorado, Salvador: Faculdade de Educação, Universidade
preocupação com o desempenho e a liberação do prazer. As Federal da Bahia.
mulheres, da cobrança de ‘seriedade’; do alívio em relação ao BRITTO DA MOTTA, A. Sociabilidades de Gênero e Geração:
marido autoritário, a ponto de não desejar outro e até abdicar idosos no limiar do século XXI. Porto Alegre: CONGRESSO
da vida sexual; ou simplesmente do desejo de uma liberdade BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 10, 1999b.
antes nunca experimentada; ou, enfim, da situação, extrema e COLASANTI, M. Rota de Colisão. Rio de Janeiro: Rocco,
sempre lamentada, de não ser desejada sequer pelos homens 1994.
da sua própria geração. DEBERT, G. G. Envelhecimento e representação da velhice.
No ‘inverno’ da vida, os homens ainda tentam (re)produzir Ciência Hoje, 8:60-68, 1988.
‘tempestades’ afetivosexuais; as mulheres silenciam ou DEBERT, G. G. Gênero e envelhecimento. Estudos
‘congelam’ ciosamente (ou cansadas, pelo muito que foram Feministas, 2(3):33-51, 1994.
manipuladas em sua trajetória de vida) a sexualidade; a FEATHERSTONE, M. & HEPWORTH, M. The mask of ageing
‘platéia’ acha graça (afinal, ‘quem gosta de velho é and the postmodern life course. In: FEATHERSTONE, M.;
reumatismo’). HEPWORTH, M. & TURNER, B. S. (Eds.). The Body: social
Agora estamos, finalmente, no limiar de um process and cultural theory. Londres: Sage Publications, 1991.
reconhecimento social dos idosos, seja por uma imagem social FEATHERSTONE, M. O curso da vida: corpo, cultura e
de dinamismo que eles vêm construindo, seja pela sua imagens do processo de envelhecimento. In: DEBERT, G. (Org.)
participação em grupos (Britto da Motta, 1999a), seja pela Antropologia e Velhice. Campinas: IFCH/Unicamp, 1994.
constante visibilidade a eles dada pela imprensa. Entretanto, (Textos didáticos, 13).
ainda que estejam progredindo muito, continuam pouco FERREIRA, M. L. M. O retrato de si. In: LEAL, O. F. (Org.)
inseridos nos grandes circuitos das relações sociais. São ainda, Corpo e Significado. Porto Alegre: Editora da Universidade,
como expressou Birman (1995:43), “sujeito em suspensão”. 1995.
Na expectativa de um lugar que possa ser novo e mais FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977.
satisfatório e que dependerá precipuamente da consolidação GARCÍA MÁRQUEZ, G. O Amor nos Tempos do Cólera. Rio de
de uma identidade coletiva de idosos que apenas começaram Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
a construir, principalmente nos seus grupos, e de uma ação GUERRERO, P. A Universidade para a 3a Idade da PUC de
política que se imponha à sociedade. Campinas e a Experiência do Envelhecimento, 1994. Trabalho
final de Graduação, Campinas: Unicamp.
GOMES, M. Q. de C. Esquecimento e Envelhecimento:
representações e cotidiano, 1997. PósGraduação em

Conhecimentos Específicos 126


APOSTILAS OPÇÃO

Gerontologia Social, Salvador: Centro de Estudos e Pós- pessoa que torna-se demente e se afastam. O aumento da
Graduação Olga Mettig. despesa também é fator preocupante para a família.
LENOIR, R. L’invention du troisième âge: constitution du Mendes (1995) aponta que, geralmente, as decisões de
champ des agents de gestion de la vieillesse. Actes de la assumir os cuidados são mais ou menos conscientes, e os
Recherche en Sciences Sociales, 1:26-27, mar./abr.1979. estudos revelam que, embora a designação do cuidador seja
LOBATO, L. & MENDES, A. C. A Dança como Fator de informal e decorrente de uma dinâmica, o processo parece
Reintegração do Idoso no Universo obedecer a certas regras, refletidas em quatro fatores:
Social Ativo. Salvador: Escola de Dança da UFBa, 1993. parentesco – com frequência maior para os cônjuges,
(Mimeo.) antecedendo sempre a presença de algum filho; gênero – com
MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp, predominância para a mulher; proximidade física –
1974. (As técnicas corporais, II) considerando quem vive com a pessoa que requer os cuidados;
PEIXOTO, C. De volta às aulas ou como ser estudante aos proximidade afetiva – destacando a relação conjugal e a
60 anos. In: VERAS, R. (Org.) Terceira Idade: desafios para o relação entre pais e filhos.
terceiro milênio. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, Unati, 1997. Os cuidadores principais são os sujeitos desta investigação.
PEREIRA, I. A. et al. Idosos em Movimento: a conquista de Em direção a eles, busquei abrir-me e realizar este esforço de
um direito, 1992. Trabalho final de Graduação. Salvador: analisar as suas necessidades como pessoas que cuidam de
Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia e Ciências outra pessoa que é idosa e vivencia um processo demencial.
Humanas, UFBa. A dinâmica da atenção ao idoso que vive um processo de
PUCCAMP. A Universidade para a Terceira Idade na demência tem toda uma estrutura específica que difere da
PUCCamp: proposta e ação inicial. Campinas, 1991. assistência ao idoso sem comprometimento cognitivo.
RIBEIRO JÚNIOR, R. L. Os Idosos da Praça. Relatório Vivenciar um processo que apresenta um curso de
preliminar de pesquisa. Coord.: Alda Britto da Motta. Salvador: deterioração progressiva pode ter efeitos devastadores nas
Neim/UFBa, jan.1995. pessoas afetadas e em seus familiares.
SIMÕES, J. A. A Maior Categoria do País: notas sobre a O idoso e sua família necessitam de uma rede de apoio
constituição do aposentado como ator político. Caxambu: ampla, que inclui desde o acompanhamento ambulatorial da
ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 18, 1994. pessoa doente até o suporte estratégico, emocional e
VERAS, R. & CAMARGO JÚNIOR, K. R. Idosos e institucional para quem cuida.
universidade: parceria para a qualidade de vida. In: VERAS, R. A demência tem assumido maior importância como
Terceira Idade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, Unati/Uerj, problema de saúde pública devido ao aumento da população
1994. envelhecida em todo o mundo, particularmente na faixa etária
acima dos 80 anos. Por ser um processo geralmente
Capítulo III irreversível e para o qual não há perspectiva de intervenção
medicamentosa nem indicação de institucionalização, é
O IDOSO EM PROCESSO DE DEMÊNCIA fundamental que a família e a comunidade aprendam a
conviver e lidar com uma realidade cada vez mais comum: a
O Idoso em Processo de Demência: o impacto na existência de pessoas em processo demencial.
família Hoje, a demência é reconhecida como uma síndrome
caracterizada por deterioração intelectual que ocorre em
Célia Pereira Caldas adultos e é tão severa que interfere no desempenho social da
pessoa. Ocorrem alterações cognitivas que incluem distúrbios
Embora a grande maioria das pessoas envelheça sem de memória, linguagem, percepção, práxis, habilidade de
grande comprometimento cognitivo, é importante considerar desempenhar o autocuidado, capacidade de solucionar
que, no âmbito da assistência à saúde do idoso, uma especial problemas da vida cotidiana, pensamento abstrato e
atenção deve ser dada às pessoas que vivenciam um processo capacidade de fazer julgamentos.
demencial. Na verdade, essa assistência é principalmente Este estudo trata, portanto, de pessoas em uma situação
prestada pela família, centrada na figura do cuidador principal. muito particular. Seu objeto são as experiências e vivências
O cuidador principal é aquele que tem a total ou a maior dos cuidadores. Seu objetivo é compreender o significado de
responsabilidade pelos cuidados prestados ao idoso cuidar nessa situação, com toda a sua carga emocional, física,
dependente, no domicílio. Os cuidadores secundários são os material e social.
familiares, voluntários e profissionais, que realizam atividades A questão norteadora do estudo é: qual o significado de
complementares. Usa-se a denominação ‘cuidador formal’ cuidar de uma pessoa idosa com a qual se tem vínculos
(principal ou secundário) para o profissional contratado familiares? Essa questão emergiu da minha prática de
(auxiliar de enfermagem, acompanhante, empregada atendimento ambulatorial aos idosos em processo demencial.
doméstica etc.) e ‘cuidador informal’ para os familiares, Esta abordagem inclui uma avaliação da estrutura de suporte
amigos e voluntários da comunidade. e cuidado, avaliações periódicas da evolução da doença, da
Em relação ao cotidiano dos cuidadores, Witmer (1990) qualidade da relação cuidador-idoso e do cuidado prestado,
afirma que, à medida que a pessoa vai desenvolvendo um além de realização de trabalhos com grupos que operam com
processo demencial, há uma mudança de papéis dos membros cuidadores.
da família. Se o doente é um dos pais, os filhos adultos Tornou-se evidente, tanto na literatura especializada
assumem a função de decidir e assumir as responsabilidades quanto no que eu observava em meu cotidiano profissional,
dos pais. O filho adulto torna-se cuidador e ficará que especial atenção deveria merecer o cuidador quando este
sobrecarregado com essa função, que se soma às atribuições papel era exercido por um familiar. E nem sempre a
familiares e a seu emprego. intervenção profissional obtinha sucesso no suporte à
Frequentemente os familiares vêem-se limitados, e os assistência ao idoso.
sentimentos de desespero, raiva e frustração alternam-se com Esse familiar é o principal responsável pelos cuidados e
os de culpa por ‘não estar fazendo o bastante’ por um parente assume a maior parte da carga física e emocional. Por ter uma
amado. A rotina doméstica altera-se completamente. relação com o idoso anterior ao processo demencial, esse
Geralmente há uma perda da atividade social da família. cuidador demonstra de diversas formas a dificuldade de
Muitos amigos não entendem as mudanças ocorridas com a aceitar a transformação daquele ente querido que

Conhecimentos Específicos 127


APOSTILAS OPÇÃO

progressivamente vai assumindo um outro modo de ser, a responsabilidade tem sido da família, então o idoso já traz
embora o mesmo corpo tão conhecido permaneça. esta expectativa e a família não a questiona. Nesse contexto
Portanto, minha própria trajetória profissional levou-me tradicional, o cuidado familiar faz parte da cultura. Quando não
ao momento de buscar ampliar a compreensão do significado cumpre essa função adequadamente, a família sofre sanções
desse cuidar. Este trabalho teve a motivação de fundamentar sociais, pois é considerada negligente e/ou irresponsável.
minha prática por meio da compreensão, aprofundando o meu Adicionalmente aos imperativos culturais, existem os
nível de reflexão. preceitos religiosos. Muitas religiões no mundo, se não todas,
sustentam a noção da responsabilidade da família pelos idosos
CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO DOS DEPOENTES (assim como por outros membros dependentes). As religiões
orientais, por exemplo, enfatizam a norma da piedade filial, as
A investigação foi desenvolvida com cuidadores religiões judaico-cristãs instruem seus seguidores a honrar
acompanhados na unidade ambulatorial da Universidade seus pais e suas mães.
Aberta da Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio de As mulheres da família têm sido a maioria entre os
Janeiro (Unati/Uerj) – programa de extensão que mantém cuidadores de idosos. Isso vem sendo constatado na maioria
atividades socioeducativas e culturais para idosos, além de dos países. Parte da explicação desse fato está na tradição. No
dois ambulatórios de atenção à saúde do idoso. passado, as mulheres permaneciam dentro da casa, o que as
O estudo baseia-se nos depoimentos de 18 pessoas que tornava disponíveis para essa atividade.
cuidam de familiares idosos em processo demencial. Foram Embora o relacionamento entre os idosos e suas famílias
realizadas entrevistas individuais no período de abril a julho varie de uma cultura para outra, a maioria das sociedades
de 1998. O interesse não foi apenas saber o que pensam ou a valoriza a interação entre as gerações como uma das bases da
sua opinião, mas também o que sentem e como construção da cultura.
experienciam/vivenciam a situação de cuidadores. Embora o cuidado familiar seja um aspecto importante da
Os depoimentos foram colhidos por meio de entrevista cultura, não se aplica a todos os idosos. Existem idosos que não
guiada pela seguinte pergunta: – como você se sente cuidando têm família. Esses idosos podem não ter se casado, ser viúvos
do Sr. ou da Sra. ...... nesse processo de demência? e/ou não ter filhos. Os filhos de alguns idosos podem ter
O grupo de depoentes é composto por 17 mulheres e um morrido ou mudado para longe de seus pais. Nos Estados
homem. Este dado reflete o predomínio de mulheres Unidos, por exemplo, muitos idosos mudam-se para áreas do
assumindo a tarefa de cuidar dos familiares idosos apontado país com climas amenos (e com muitos serviços de apoio a
pela literatura. Na ocasião em que os dados foram colhidos, eles). Em outros países, como no México e no Egito, os
essas eram as famílias acompanhadas pelo serviço. membros jovens da família costumam sair do país em busca de
Todas as pessoas entrevistadas cuidam de familiares que oportunidades de emprego, deixando as gerações anteriores
se encontravam em um estágio intermediário, porém, com um sozinhas ou vivendo entre seus contemporâneos.
tempo de cinco a dez anos de evolução, o que significa que Há idosos cujas famílias são muito pobres para provê-los
todos os pacientes já estavam no final desta fase, começando a de cuidado adequado. Outros têm familiares que precisam
apresentar alguns sinais de deterioração na área de linguagem trabalhar e não podem fazê-lo em horário parcial ou deixar o
e/ou motora que apontavam para o início da fase avançada da mercado de trabalho para cuidar deles. Além disso, há os
doença. idosos que perderam o contato com as famílias ao longo dos
Apenas três famílias têm uma renda familiar entre oito e anos.
dez salários mínimos; as demais situam-se numa faixa de dois Embora geralmente as famílias cuidem de seus parentes
a cinco salários mínimos. Nenhuma família tinha idosos, situações de convulsão social, fome, doença
disponibilidade financeira para arcar com os custos de disseminada, conflitos internos e guerras, entre outros
contratar uma pessoa (um cuidador formal) para auxiliar nos eventos catastróficos, podem alterar os sistemas tradicionais
cuidados. de cuidado.
Entre os depoentes, havia 15 donas-de-casa, duas Outra razão por que a família não pode ser vista como a
mulheres que ainda trabalhavam fora, ambas auxiliadas pelos única estrutura para o cuidado das pessoas idosas é a
filhos para cuidar de seus familiares doentes quando se qualidade do relacionamento com seus parentes. Muitos
ausentavam, e o homem do grupo era aposentado. argumentos em favor da obrigação que os filhos têm de cuidar
A idade dos pacientes variava entre 67 e 89 anos, sendo dos pais são baseados na crença de que existe um bom
50% entre 67 e 79 e 50% entre 80 e 89 anos. A idade dos relacionamento entre as gerações. É evidente que tal
depoentes variava entre 36 e 78 anos: havia nove pessoas suposição pode ser facilmente desafiada pela existência de
entre 36 e 50 anos, quatro entre 51 e 69 anos e cinco entre 60 conflitos permanentes, por situações de abandono do lar por
e 80 anos. um dos cônjuges e desarmonia familiar resultante de
Quanto à relação de parentesco entre os depoentes e os incompatibilidade de personalidades, de valores e de estilos de
doentes, predominam filhas (e um filho) cuidando de mães – vida entre os jovens e os mais velhos.
oito pessoas. Havia também cinco esposas cuidando de seus Portanto, embora tradicionalmente os idosos tragam a
maridos e quatro mulheres cuidando respectivamente de expectativa de serem cuidados por seus filhos, e os filhos
sogra, sogro, irmã e avó. adultos não tenham dúvidas sobre a sua responsabilidade
pelos pais, estas expectativas e desejos vêm mudando.
O CUIDADO FAMILIAR E A ATENÇÃO AO IDOSO: Certamente existem evidências da quebra de
ASPECTOS SOCIAIS, CULTURAIS E POLÍTICOS responsabilidades tradicionais como consequência da
urbanização. A maior influência da urbanização certamente é
É característica de todos os países do mundo que o cuidado a transformação das estruturas familiares de famílias extensas
dos idosos seja feito por um sistema de suporte informal. Esse em famílias nucleares, o que diminui a disponibilidade de
sistema inclui família, amigos, vizinhos e membros da parentes para cuidar dos mais velhos.
comunidade. Geralmente, é uma atividade prestada Outra questão a se destacar é que muitas pessoas não
voluntariamente, sem remuneração. A família predomina querem ser dependentes de seus filhos adultos ou de outros
como alternativa no sistema de suporte informal. membros da família. Esse fato muitas vezes gera a demora da
De acordo com Kosberg (1992), existem muitas própria família em constatar que precisa assumir a assistência
explicações para o cuidado familiar dos idosos. Certamente a ao seu parente idoso.
influência da tradição histórica é importante. Se na sociedade

Conhecimentos Específicos 128


APOSTILAS OPÇÃO

Um cuidado que se apresenta de forma inadequada, este se torne mais dependente. Entretanto, essa rede de
ineficiente ou mesmo inexistente é observado em situações suporte não existe em nosso país.
nas quais os membros da família não estão dispostos, estão Um dos aspectos importantes dessa rede é a formação de
despreparados ou sobrecarregados por essa responsabilidade. recursos humanos preparados para lidar com a família do
Em tal contexto, existe a possibilidade concreta de serem idoso, particularmente do idoso mais dependente, como
perpetrados abusos e maus-tratos. Portanto, é necessário aquele que vivencia o processo de demência.
lembrar que, embora a legislação e as políticas públicas A recente Política Nacional de Saúde do Idoso (1999)
afirmem e a própria sociedade considere que os idosos devem reconhece a importância da parceria entre os profissionais da
ser assistidos pela família (por razões morais, econômicas ou saúde e as pessoas que cuidam dos idosos, apontando que esta
éticas), não se pode ter como garantido que a família prestará deverá possibilitar a sistematização das tarefas a serem
um cuidado humanizado. realizadas no próprio domicílio, privilegiando-se aquelas
Os padrões tradicionais de funções familiares parecem relacionadas à promoção da saúde, à prevenção de
estar se desmontando diante das transformações sociais, incapacidades e à manutenção da capacidade funcional do
econômicas e demográficas. Como consequência, mudam os idoso dependente e do seu cuidador, evitando-se assim, na
valores culturais em relação aos idosos em geral e ao cuidado medida do possível, hospitalizações, internações em asilos e
familiar do idoso, em particular. outras formas de segregação e isolamento.
Para acompanhar o fluxo de tais mudanças, são A demência precisa ser reconhecida como uma importante
imprescindíveis programas e serviços para os idosos. Tais questão da saúde pública. Seu impacto sobre a família e a
recursos são urgentemente necessários, pois muitos idosos sociedade não pode ser subestimado. Os distúrbios
isolados, dependentes e abandonados necessitam de demenciais são a principal causa de incapacidade e de
alternativas à assistência familiar de que não dispõem. Embora dependência na velhice.
se constate, em muitos países, uma apreensão quanto à Em estudo realizado em três bairros do Rio de Janeiro
possibilidade de, ao oferecerem alternativas públicas, (Copacabana, Méier e Santa Cruz), Veras (1994) indicou, após
contribuírem para legitimar e encorajar o abandono das análise dos resultados, que há muitos fatores de risco
responsabilidades pela família, é preciso considerar que uma associados à deficiência cognitiva: a natureza marcadamente
forma de o Estado garantir aos cidadãos de qualquer idade os dependente da idade que caracteriza a demência, a
seus direitos sociais é reconhecer a necessidade e implantar predominância de mulheres (como resultado do fator idade,
estruturas de apoio aos idosos e suas famílias por meio de uma pois as mulheres têm maior expectativa de vida), a acentuada
parceria entre governo, comunidade local, vizinhança, ONGs, importância dos fatores socioeconômicos e a associação com a
setor privado e organizações religiosas. incapacidade de desempenhar as atividades cotidianas. Esses
Beauvoir (1990) afirma que o status da velhice é imposto fatores, associados, deveriam ser suficientes para deflagrar um
ao homem pela sociedade à qual pertence. A sociedade lhe crescimento da preocupação da saúde pública com o
destina um lugar e um papel, e o indivíduo que envelhece é problema.
condicionado pela atitude prática e ideológica da sociedade em O aumento do número de casos de demência relacionado
relação a ele. A autora destaca também que a velhice difere de diretamente ao aumento da expectativa de vida na população
acordo com o contexto social em que viveu e vive o indivíduo. já torna a questão um problema da saúde pública. Além disso,
Assim, não existe uma velhice, mas há velhices: masculina e não há justificativa, a princípio, para defender a
feminina; uma dos ricos, outra dos pobres; uma do intelectual, institucionalização de idosos que vivenciam um processo
outra do funcionário burocrático, ou do trabalhador braçal. demencial. E mesmo que a institucionalização fosse uma
Destacando o Brasil como uma sociedade heterogênea, prática aceitável na assistência ao idoso demente, há o fato de
Veras (1994) acrescenta que, apesar de o país ter uma das dez que a internação institucional não garante atendimento
maiores economias do mundo, a distribuição da riqueza se correspondente à satisfação de suas necessidades (Duarte,
caracteriza pela iniquidade e pela concentração de recursos 1991). É necessário, portanto, que a sociedade esteja
nas mãos de relativamente poucos. Isso se reflete nas preparada e que existam meios para lidar com os seus
condições de vida dos cidadãos idosos, gerando um grande cidadãos idosos que desenvolvem um processo de demência
contingente de pessoas cuja fragilização econômica termina na comunidade.
por intensificar a fragilização da saúde, considerando que as Ao analisar as possibilidades de suporte social e de saúde
condições de vida determinam a capacidade de se manter uma para a família de um idoso que vivencia um processo de
reserva fisiológica suficiente para garantir a homeostase na demência, constata-se logo que existem poucas instituições
velhice. voltadas para este campo. Dentre as públicas, destacam-se as
Portanto, tratar um país como o Brasil pela média – isto é, universidades. É importante citar a existência de grupos
considerando uniforme sua estrutura social, econômica e voluntários nos quais os próprios cuidadores promovem
demográfica – é um erro metodológico e de graves encontros com o objetivo de ajuda mútua.
consequências para o planejamento, por distorcer a realidade,
impedindo sua correta apreensão. Para planejar e/ou legislar O PROCESSO DEMENCIAL
sobre a questão da assistência ao idoso, é importante
considerar os diferentes contextos sociais, econômicos e De acordo com Barclay (1993), demência é uma síndrome
culturais nos quais estão inseridos os cidadãos mais velhos de clínica de deterioração das funções corticais superiores,
nossa sociedade. Certamente, as ciências sociais, incluindo memória, pensamento, orientação, compreensão,
particularmente a antropologia, têm muito a contribuir nesse cálculo, capacidade de aprendizagem, linguagem e julgamento
esforço. ou discernimento. Ela ocorre com manutenção da consciência
O governo brasileiro instituiu a Política Nacional do Idoso, e com severidade suficiente para interferir nas funções sociais
regulamentada pelo Decreto no 1.948 , de 13 de julho de 1996 e ocupacionais do indivíduo. O termo ‘deterioração’ implica a
(Brasil, 1997, 1999). Uma das diretrizes dessa política redução de habilidades previamente conhecidas e
recomenda que o atendimento ao idoso deve ser feito por estabelecidas.
intermédio de suas próprias famílias, em detrimento do A demência tem causas primárias e secundárias. Cassel
atendimento asilar. Para assumir tal responsabilidade, a (1990) cita como causas primárias as doenças de Alzheimer,
família necessita de uma rede social e de saúde que constitua Pick, Huntington, Parkinson, paralisia supranuclear
um suporte para lidar com seu familiar idoso à medida que progressiva, degeneração espino-cerebelar, calcificação
idiopática dos gânglios da base, degeneração estriato-nigral,

Conhecimentos Específicos 129


APOSTILAS OPÇÃO

xantomatose cérebro-espinhosa, leucodistrofia deixam a pessoa subitamente desorientada. Esse estado gera
metacromática. grande angústia e agitação para aquele que está
As causas secundárias são os acidentes vasculares desenvolvendo um processo de demência e para o cuidador.
cerebrais; traumatismos; condições intracranianas; distúrbios É frequente, também nessa fase, que a pessoa fique
endócrinos e metabólicos; estados de deficiência de vitamina bastante deprimida, pois como ainda está lúcida a maior parte
B12, vitamina B6 e ácido fólico; infecções; intoxicações e do tempo, percebe seu estado mental se deteriorando. Essa
desordens psiquiátricas como esquizofrenia, mania e consciência a deixa muito triste, o que se manifesta em um
alcoolismo. crescente isolamento ou recusa a participar de reuniões
Caso o processo demencial seja secundário a alguma outra familiares ou sociais.
doença, seguem-se o tratamento específico da causa e o Nessa etapa da evolução da doença, os profissionais que
acompanhamento subsequente, com avaliação da melhora e acompanham a pessoa devem procurar envolver a família na
da evolução. Quando a causa não é tratável, investe-se no assistência, enfatizando a necessidade de compreensão do que
acompanhamento das doenças concomitantes, como sente o idoso, a partir do entendimento do diagnóstico e
hipertensão arterial, diabetes, disfunção tireoidiana e outras, prognóstico da patologia.
na tentativa de retardar o processo. Também é necessário que nessa fase se oriente a família
Dentre as causas citadas, as mais frequentes são a doença em relação às medidas de controle da ansiedade e da agitação.
de Alzheimer (causa primária) e a vascular (causa secundária). Podem-se trabalhar com o idoso técnicas de orientação para a
Estima-se que a doença de Alzheimer afeta de 3% a 5% das realidade, para estimulá-lo a se manter consciente de
pessoas acima de 65 anos, chegando a atingir 40% após os 85 informações orientadoras corretas. A reabilitação cognitiva
anos. Seu início se dá normalmente após os 50 anos, com nesse início do processo demencial contribui para retardá-lo.
predominância nas mulheres. Encontramos na literatura A segunda fase, ou fase intermediária, é caracterizada pelo
diversas classificações de estágios de evolução da patologia, aumento do grau de dependência, na medida em que a pessoa
variando entre três e sete fases. Para o que nos interessa, que já necessita de supervisão e ajuda para o autocuidado. Ela
é o cuidado, a divisão em três fases é suficientemente didática passa a ter grande dificuldade para manter adequadamente a
para a compreensão do problema: sua higiene pessoal. Como sua capacidade de julgamento ou
• Estágio inicial: estão presentes anomia, pobreza de discernimento se encontra prejudicada, a pessoa passa a
vocabulário, dificuldade de aprendizado e memória, apresentar comportamento inadequado e aumenta a
dificuldade construcional, julgamento ou discernimento necessidade de atenção à segurança. A casa precisa ser
empobrecido. As funções motoras e sensoriais continuam adaptada para isso. Surgem mudanças marcantes no
normais. comportamento, o que exige a presença de acompanhante
• Estágio intermediário: contínua redução de todas as para ir a qualquer lugar. Frequentemente o doente inventa
funções intelectuais, afasia com erros parafásicos palavras e histórias e não reconhece pessoas. Apresenta
(substituição incorreta ou sem sentido), compreensão pobre, também desorientação espaço-temporal, podendo
memória recente e remota bastante reduzida; capacidade desconhecer inclusive a sua própria casa. É frequente
prejudicada de cálculo e cópia. Os pacientes são usualmente acontecer, quando estão agitados e ansiosos, de pedirem para
indiferentes à sua condição. Estão presentes sintomas voltar para sua casa, referindo-se ao local onde passaram a
depressivos. As funções motora e sensorial se mantêm infância ou a juventude.
intactas. Pode haver agitação e perambulação. A família costuma sofrer bastante nessa etapa não só pela
• Estágio final: perda total das habilidades cognitivas. necessidade de exercer vigilância permanente e controle da
Ocorre mutismo, polilalia (repetição), ecolalia. Também a pessoa, mas também pela letargia e indiferença afetiva que a
incontinência fecal e urinária está presente. Os membros pessoa apresenta. Os familiares se entristecem e geralmente se
tornam-se rígidos, flexionados, e pode haver mioclonia. sentem impotentes e já não sabem como agir. Na verdade, é
Barclay (1993) afirma que o comprometimento vascular- necessário que os familiares aprendam uma nova forma de
cerebral é a segunda causa mais comum de demência, lidar com o seu idoso.
ocorrendo em cerca de 30% das pessoas afetadas. Seu Embora o idoso apresente indiferença afetiva a estímulos
diagnóstico é feito com base nas características do processo que no passado a teriam motivado, mantém uma afetividade
demencial, que evolui em degraus, com distribuição das inalterada, ou seja, ela necessita e aceita com satisfação
alterações cognitivas de forma desigual, sintomas e sinais carinhos, afagos, abraços e palavras carinhosas de qualquer
neurológicos focais e evidências de doença neurológica pelo pessoa, mesmo que não a esteja reconhecendo. Por isso, quem
exame físico e anamnese. desempenha o papel de cuidador principal é a ‘âncora’ do
idoso. Sua segurança e tranquilidade dependem da percepção
EVOLUÇÃO DO PROCESSO DEMENCIAL E ASPECTOS que tem da segurança e da tranquilidade que o cuidador
IMPORTANTES NA ABORDAGEM DOS PROFISSIONAIS DA principal lhe transmite.
SAÚDE Os profissionais responsáveis pelo acompanhamento
deverão enfatizar nessa fase a prevenção de acidentes, as
A fase inicial da doença pode passar de forma orientações sobre alimentação e medicação, o estabelecimento
despercebida. Ocorrem episódios de lapsos de memória, que de rotinas para as eliminações fisiológicas e o reconhecimento
muitas pessoas conseguem compensar ou disfarçar por meio de outros códigos de comunicação, pois o idoso já não
de estratégias como o uso de agendas ou outras formas de consegue expressar verbalmente o que está querendo ou
auxílio à memória. No entanto, progressivamente, a pessoa sentindo. É preciso desenvolver a habilidade de se comunicar
passa a ter dificuldades para tomar decisões e fazer planos, com ele utilizando outros códigos.
torna-se cada vez mais vagarosa ao falar e compreender, perde Muitos idosos, principalmente aqueles que foram bem
progressivamente a capacidade de manter a atenção, ter ativos no passado, poderão sentir necessidade de caminhar, o
iniciativas e fazer cálculos. Então, passa a evitar interação que chamamos de ‘perambulação’. Nesse caso, não se pode
social, pois já está com dificuldade de participar de uma impedi-los, apenas verificar que não o estejam fazendo
conversação. compulsivamente além das suas forças e que haja proteção
Sua memória começa a falhar, de forma que, inicialmente, ambiental. Se não houver condições de o idoso caminhar
as informações recentes se perdem e, progressivamente, as dentro de casa e precisar ir para a rua, deve estar
antigas também. Já nessa fase podem ocorrer situações de acompanhado e usar alguma forma de identificação.
pânico, geralmente causadas pelos lapsos de memória, que

Conhecimentos Específicos 130


APOSTILAS OPÇÃO

A fase final é marcada pela dependência total da pessoa. Há atenções. Muitas vezes essa pessoa assumia no passado o
necessidade de cuidados integrais no leito permanente, devido papel de provedor ou responsável pela família. Os cuidadores
à perda da atividade psicomotora. Nesse momento, os apontam claramente como é doloroso vivenciar essa mudança:
profissionais da equipe de enfermagem deverão orientar os Agora eu me sinto recompensada, porque ela fez tanto isso
cuidadores para prestarem os cuidados básicos, priorizando o por mim. Eu fui criada com ela. Tenho mãe, tenho pai, mas eu
conforto e o afeto. É importante manter o suporte familiar. e meu irmão fomos criados com ela. Tudo que estamos fazendo
Toda a equipe profissional deve estar apoiando a família que por ela, hoje, ela fez pela gente ontem: ela deu banho, ela deu
vivencia as perdas progressivas e a iminência da morte. vacina, levou para o médico, né? Hoje, a gente faz a mesma
coisa por ela e com bastante paciência; antes eu não tinha
RESULTADOS: A ANÁLISE DAS UNIDADES DE muita, não, mas agora eu tenho. Graças a Deus, pedi tanto a
SIGNIFICADO Deus que me desse paciência... Não quero ficar assim que nem
ela, mas também não quero maltratar.
Com a análise desenvolvida, buscou-se produzir um saber A mudança e a aceitação da situação são um processo
sobre o cotidiano dos cuidadores com base em suas próprias desencadeado a partir do momento em que o cuidador toma
falas. As unidades de significado foram analisadas/tratadas de consciência do diagnóstico e a doença vai se configurando
modo a garantir que esse ente, sujeito do estudo, pudesse mais real a cada dia, com o avançar dos sintomas. Mesmo que
“mostrar-se em si mesmo e por si mesmo, isto é, mostrar o ser- já venha percebendo que o seu familiar está ficando diferente,
aí em sua cotidianidade mediana, tal como ela é antes de tudo está perdendo a memória, agindo de forma inusitada, o
e na maioria das vezes” (Heidegger, 1995:44). momento em que o cuidador ouve do profissional que o seu
Os resultados do estudo evidenciam, como traços gerais, familiar tem uma síndrome demencial é um instante único. É
que o cuidador apresenta-se como pessoa que: um choque. Ele é forçado a encarar a realidade dolorosa que já
- vivencia grande sofrimento por conviver com a intuía:
progressão do processo demencial de seu familiar; Ele era um professor muito respeitado. Tinha sido diretor
- consegue desenvolver o cuidar enfrentando grandes da escola e passou a ser relapso com os seus compromissos. Eu
dificuldades, porque não vê outra saída; achava que era malandragem, mas como eu era professora
- apresenta um grande cansaço ao cuidar do familiar idoso também, passei a ajudá-lo e aí percebi que algo errado estava
de quem se ocupa intensamente; acontecendo com ele. Levei a um médico especialista, que
- precisa ter muita paciência para lidar e cuidar de seu diagnosticou doença de Alzheimer. Eu não levei a sério no
familiar idoso que está desenvolvendo um processo de início, até o dia em que ele foi à padaria sozinho, se perdeu e
demência; precisou da ajuda de um porteiro de um prédio vizinho para
- está tensa, cansada e limitada no seu lazer porque assume retornar para casa.
a obrigação de cuidar de seu familiar, que apresenta grande
dependência; Eu cuido de uma pessoa que tem 84 anos hoje. Há cinco ou
- reconhece a necessidade de ser cuidado também, porque seis anos, essa pessoa começou com uma demência. Para mim
enfrenta dificuldades pela intensidade da ocupação de seu foi muito angustiante, muito sofrido, muito triste, porque eu
tempo e de suas emoções. tinha um filho de seis anos na época. Aí os anos foram
passando e o tratamento dos médicos, as pessoas que foram
PRIMEIRA UNIDADE DE SIGNIFICADO: O CUIDADOR responsáveis pelo tratamento, me deram força bastante, me
VIVENCIA GRANDE SOFRIMENTO ajudaram, e eu fui amadurecendo...
POR CONVIVER COM A PROGRESSÃO DO PROCESSO O sofrimento irá acompanhar toda a trajetória de cuidado
DEMENCIAL DE SEU FAMILIAR até a morte do familiar, porém, a forma de conviver com a
situação muda de tom com a experiência. No início, é a
Os cuidadores vivenciam o processo demencial de seu angústia pelo diagnóstico e pela irreversibilidade:
familiar idoso como uma despedida gradual da vida para a Ela é muito agitada, sempre foi por natureza. E agora, por
morte. Têm consciência disso e sofrem. É um sofrimento causa da doença, piorou. Eu me sinto angustiada. Eu acho que
gerado pela lembrança e pela constatação de que a pessoa está o que eu sinto é o que o meu marido sente: é aquela angústia,
se tornando cada vez mais dependente. A personalidade do porque nós queremos ajudá-la a se recuperar e essa doença
familiar no passado é recordada a todo momento e eles sentem parece que não tem recuperação, né? (...) É justamente isso que
saudades do tempo em que a pessoa era ativa e independente. eu estou dizendo. É o idoso que tem essa doença, então vai
Eu me sinto sem Deus, numa terra sem lei, injustiçada. É tendo uma regressão até chegar à posição fetal. Então eu acho
sério! Porque eu acho que não tem a quem atribuir certo angustiante. A gente fica triste...
destino, ou se for uma má alimentação, ou um... azar, mas acho Depois do impacto e da aceitação do diagnóstico, vem a dor
ela não merecia um fim desses. É isso que dói. Não é por assistir à perda das habilidades cognitivas, principalmente
autopiedade minha, não, é a dor do porquê esse destino para a perda da capacidade de julgamento ou discernimento. Eles
ela. Eu estou muito me questionando. Sei lá, acho que a vida foi relatam que é muito triste ver seu familiar tendo um
muito injusta com ela. Ela não merecia isso, não. Que o comportamento inadequado e fazendo coisas que jamais faria
problema não é... eu estou, aos poucos, tomando consciência se não estivesse desenvolvendo um processo de demência:
de como cuidar etc. e tal, mas a minha maior dificuldade... Por Está meio difícil, mas tem que saber entrar no meio deles,
que com ela, cara? não levar tão a sério, entender aquela doença. Uma hora ele
O cuidador vai se despedindo daquilo que o seu familiar foi está como uma criança, uma hora ele fala coisas que não têm
e sempre sentirá saudades da antiga maneira de ser, mas irá nexo. A gente tem que se adaptar àquele mundo; é meio difícil.
aos poucos aprendendo a reconhecer e a amar essa ‘nova Ao chegar à fase de perda da linguagem, ele enfrenta o
pessoa’, a cada dia mais dependente e indefesa. O cuidador desafio de conseguir se comunicar com seu familiar, sente falta
tende a se sentir responsável por sua vida, por seu bem-estar. basicamente de poder conversar. Mas a essa altura, o cuidador
É uma responsabilidade nascida do sofrimento e da dor. possivelmente já desenvolveu outros códigos não verbais de
comunicação:
O cuidador também tem de mudar completamente a Eu gostaria de ter uma certeza do que ela sente. Ela sente
tradição relacional própria da dinâmica e da estrutura muitas dores, que eu sei, e ela não pode passar isso para mim,
familiar; os papéis são trocados. Com o processo demencial, para dizer o que ela teme, o que ela sente, porque eu conheço,
aquele que sempre cuidou passa agora a ser o centro das no semblante dela eu sei quando ela está com dor.

Conhecimentos Específicos 131


APOSTILAS OPÇÃO

É interessante observar que os cuidadores relatam, mesmo aprende e até faz bem aquilo, porque não tem jeito, né? É o que
sabendo que o idoso talvez não esteja entendendo aquilo que eu fazia com ele, anos assim, anos!
dizem, que continuam falando com o idoso. Sentem a Ao enfrentar o processo demencial, o cuidador se esforça
necessidade do diálogo com a pessoa que ali está, mesmo que permanentemente para superar as dificuldades por ele
a possibilidade do diálogo por meio da linguagem falada não desencadeadas. Ao se dar conta de que consegue cuidar, ele
exista mais: não deixa de sofrer, de sentir a dor. Ele passa a compreender a
pessoa de que está cuidando e vivencia o processo demencial,
Olha, eu acho que, devido ao tempo, eu já encaro assim aceitando-o e exercitando a paciência.
como se ela fosse uma pessoa normal. Às vezes eu falo para ela, Eu peço muita força a Deus para que ele me dê paciência.
e a minha filha diz: ‘Mãe você está fazendo pergunta para a Aí eu digo sempre, né, tem que ter paciência que ele – até as
vovó, conversando com ela?! A senhora não está vendo que a pessoas acham graça! – que ele não pediu para ficar assim,
vovó não está escutando nada?’ Mas tem hora que ela está coitado... Quer dizer que eu tenho que ter paciência com ele,
ouvindo, sim, não todos os dias, mas tem dia que você levanta, que assim como é ele, podia ser eu, estar no estado dele. Aí me
você olha para ela, ela te olha nos olhos, assim, não fala. Ela sinto assim. Às vezes, eu fico um pouco nervosa de ver certas
olha assim às vezes, dá um sorriso, muito assim sem graça, mas coisas que ele faz. É mais ou menos isso.
dá. Então, a gente sabe que ela não fala, não se expressa, não
emite som nenhum, mas que lá no seu eu, né, ela deve refletir Ao aceitar a doença, ele percebe que a única coisa a fazer é
alguma coisa, só não pode, claro, falar. trabalhar para tornar o futuro melhor, mais leve para ambos.
Ele busca deixar de reagir contra a sua realidade e aceita o
Na fase de perda da atividade motora, quando o seu sofrimento que ela causa. Ao aceitá-lo, deixa de reagir contra e
familiar fica restrito ao leito, totalmente dependente de se prepara ativamente para cuidar melhor. Então, dá um passo
cuidados integrais, o sofrimento do cuidador está mais ligado além da aceitação e se equilibra:
à iminência da morte e por vê-lo tão inerte, tão imóvel no leito: Fico cansada... ao mesmo tempo que eu fico cansada, mas
Hoje eu já queria, eu já quero, eu já fico pensando, se não depois esqueço, nem estou mais cansada, não sinto mais nada,
seria melhor essa pessoa sair desse sofrimento. Porque é não sinto mesmo. Não sinto mais. É só naquela hora assim, mas
muito sofrimento, cuidar de uma pessoa assim... ver a pessoa depois fico descansada, mesmo. Tudo de novo, não tem nada,
se acabar aos poucos. Já está se transformando até numa não sinto mesmo. Só aquela hora assim, depois que eu dou
angústia eu ver aquela pessoa se acabar, se acabando aos banho nela, cuido dela, aí depois eu fico mais descansada,
poucos e eu sem poder fazer nada e querendo aliviar a dor, o parece até mentira, mas é verdade, não me sinto mais... Depois
mal-estar que acomete essa pessoa. que passou... e agora? Agora eu vivo com ela, né? Agora é a
Apesar da consciência de que a morte representará o mesma coisa que nada; nadinha, nadinha.
descanso para ambos, o cuidador sofre porque continua
sentindo falta daquilo que o idoso fazia e foi. A morte é então o Os depoimentos apontam que os cuidadores sentiram que
afastamento total, determinando que aquilo que o seu familiar não poderiam optar entre cuidar ou não cuidar. Eles
foi acabou. Ele segue não aceitando a perda da antiga maneira simplesmente tiveram de cuidar. Não havia opção. Não há
de ser de seu ente querido, porém essa nova maneira de ser é saída. Os motivos são imperativos:
a única ponte com o passado. E é exatamente esse vínculo que Então a gente aprende e até faz bem aquilo, porque não
o cuidador tem com a pessoa que foi no passado que mantém tem jeito, né? É o que eu fazia com ele, anos assim, anos!
o afeto e a dedicação do cuidado: Aí eu parei de ficar discutindo em cima do que está
Às vezes me perguntam: ‘Por que você não interna o João?’ acontecendo. Está acontecendo. Como está acontecendo com
E eu digo: ‘Eu não interno o João porque ele foi o meu outras pessoas, coisas até piores. Nós temos uma trajetória.
companheiro e até hoje ele é meu companheiro’. Eu sento ao Esse negócio de livre-arbítrio... não há. Já há uma trajetória
seu lado, eu seguro a sua mão, ele segura a minha e a gente está marcada que a gente tem que passar.
junto. É uma trajetória de vida que a gente tinha que passar.
Há então a possibilidade de uma transformação na E assim nós vamos cuidando dele. Você vendo que ali não
qualidade desse amor. Um amor e um reconhecimento tem jeito, mas que é viver, no correr do dia. Eu estou me
nascidos do sofrimento, pois durante aqueles anos eles sentindo bem.
viveram como uma unidade cuidador-idoso, numa relação de Mesmo que o cuidador demonstre que não teve escolha,
interdependência e amor. alguns deles aceitam o desafio de assumir o cuidado com muita
coragem e procuram estar bem. Procuram viver com maior
SEGUNDA UNIDADE DE SIGNIFICADO: CONSEGUE qualidade de vida e buscam possibilidades de ser felizes
DESENVOLVER O CUIDAR cuidando do seu familiar e convivendo com ele:
ENFRENTANDO GRANDES DIFICULDADES, PORQUE Minha vida é uma luta. Muitas vezes eu desanimo. Eu tenho
NÃO VÊ OUTRA SAÍDA muita coisa pra contar... tenho muita coisa. A gente vai
crescendo... todo aquele sofrimento... às vezes eu penso: isso
O cuidador espanta-se pelo que é capaz de fazer: como não é justo... Agora que eu e o João... a gente podia aproveitar...
aguenta fazer tudo o que faz e sentir-se disposto a continuar sair... aí ele está assim... não é justo pra ele, nem pra mim. Mas
cuidando? Compreende que é possível cuidar bem, mesmo ninguém pode julgar se seria melhor ou pior. Aí eu parei de
enfrentando muitas dificuldades. Consegue vencer o ficar discutindo em cima do que está acontecendo. Está
desespero e a angústia, mesmo que muitas vezes pense não ser acontecendo. Como está acontecendo com outras pessoas,
capaz: coisas até piores. Nós temos uma trajetória. Esse negócio de
É difícil, viu? A gente faz o que pode, né? Porque, por livre-arbítrio... não há. Já há uma trajetória marcada que a
exemplo, às vezes a gente vê uma coisa assim: ‘Ah! Eu não gente tem que passar. Se eu fosse contar minha vida... eu já fui
aguentaria fazer isso, não’, mas a gente está naquele problema, muito pobre... mas me formei, fiz faculdade... Às vezes eu olho
o problema automaticamente a gente aprende e faz bem. A meu apartamento e não acredito que consegui chegar tão
pessoa que está de fora é diferente. Até diz: ‘Eu não faria isso, longe. Eu consegui muito... e de repente, eu fui tão longe para
não!’ Mas se a gente está ali naquele problema, e é uma pessoa chegar a isso... De repente a minha vida foi pra nada. Às vezes
como um pai, como uma mãe, um filho, um marido, a gente não me perguntam: ‘Por que você não interna o João?’ E eu digo:
tem como dizer que não vai fazer aquilo! Então a gente ‘Eu não interno o João porque ele foi o meu companheiro e até
hoje ele é meu companheiro’. Eu sento ao seu lado, eu seguro

Conhecimentos Específicos 132


APOSTILAS OPÇÃO

a sua mão, ele segura a minha e a gente está junto. É uma Mas eles mesmos revelam que também não sabiam que
trajetória de vida que a gente tinha que passar. poderiam suportar tanto. Relatam que a sua capacidade de
suportar o esforço vai aumentando à medida que a
Quando as pessoas apontam um motivo concreto para necessidade surge. Quando os cuidadores contam seu
estarem cuidando do seu familiar idoso, demonstram cotidiano em depoimentos, relatam tal carga de trabalho que
fundamentalmente que tinham de assumir tal posição ativa e chamam a atenção de quem escuta. É impressionante a
conscientemente. Isso não significa que estejam totalmente frequência com que perdem noites de sono, sendo que
engajadas e satisfeitas por terem assumido este papel. precisam estar bem despertos e atentos a cada dia, pois a
As razões apontadas são sempre ligadas ao significado da demanda de trabalho só vai aumentando:
pessoa, o que ela fez ou representou anteriormente, num Eu me sinto arrasada, né? Arrasada! Porque, às vezes, tem
tempo que é passado. O cuidador marca o pretérito como dia que ele não quer água. Aí eu digo para a minha filha: ‘Olhe,
ponto de partida para o fato de se colocar disponível e, ao eu vou deixar de dar água a ele’, porque ele se molha todo, ele
estabelecer este marco, possibilita que esse exercício o me cospe água no rosto, ele enche a boca – ôôôôôôôô, pão!... Aí
transforme a cada dia. a pessoa também tem um limite. Se eu fosse novinha, tudo
Essa vinculação parece determinar que o cuidado se torne bem, mas também eu estou velha, né? E tem hora que é muito
um ato consciente. E essa disposição determina que o idoso já difícil! Uma coisa de louco! Mas é a raiva, mais a água no... (...)
não ‘ocupa um lugar’ na vida do cuidador; ele passa Você sabe que a gente pouco dorme.
simplesmente a ser uma pessoa que vivencia um processo O cansaço está presente todo o tempo e por toda a
demencial como parte da sua própria vida: trajetória. À medida que a doença vai avançando, vai deixando
de ser predominantemente físico. As demandas concretas de
Eu devo essa obrigação a ela, é uma questão de gratidão, seu cotidiano não permitem um descanso absoluto. É do
entendeu? Devo muito essa obrigação a ela. Mesmo que eu não esforço de superar a fadiga física e existencial que se constitui
devesse eu cuidaria dela, mas é mais um motivo por que eu dou a próxima unidade de significado: o exercício da paciência.
muita atenção a ela, aos dois, mas mais a ela. Ela tratava tão
bem da minha mãe, que ela colocava, eu me lembro disso, que QUARTA UNIDADE DE SIGNIFICADO: É NECESSÁRIO
ela colocava um babadouro igual a criança velha, para ela não TER MUITA PACIÊNCIA PARA
se sujar na hora da refeição. Ela foi muito amorosa com a LIDAR E CUIDAR DE SEU FAMILIAR IDOSO QUE ESTÁ
minha mãe. Então, é um dos motivos... um dos motivos, não, é DESENVOLVENDO UM PROCESSO DE DEMÊNCIA
o motivo principal, né? Eu tenho... Eu não posso deixar ela, de
forma nenhuma, na mão, que é assim que se diz vulgarmente. Os cuidadores demonstram que a paciência precisa estar
Então eu tenho que cuidar dela, gratidão. como um pano de fundo, permeando sua experiência. Caso
Portanto, o cuidado motivado pela vinculação anterior com contrário, tudo se desequilibra: o idoso, a família e a casa, a
o idoso é um processo que vai da mera ocupação com os partir do descontrole do próprio cuidador:
afazeres do dia-a-dia, como a higiene e a alimentação, até um Minha vida virou um inferno. Eu estou praticamente me
estado de busca de participação na existência do ente querido. separando do meu marido. Virou tudo de cabeça pra baixo... Eu
Independentemente de este falar ou entender racionalmente o estou num estresse muito grande agora.
que está acontecendo, o cuidador se sente gratificado A paciência tem relação com a capacidade de aceitar a
simplesmente por se encontrar ali naquele momento, doença como uma realidade da qual não se pode fugir. Quando
compartilhando a vida do seu familiar. o cuidador resiste a enfrentar essa realidade ou se revolta, não
Ele consegue estender esse sentido do cuidar e passa a se abre para a possibilidade de superar o sofrimento que a
compreender o mundo do seu familiar idoso que vivencia o doença traz a ele próprio e ao seu familiar:
processo demencial, amplia a sua compreensão da vida,
passando a entender melhor as pessoas, e isso o transforma. O Eu me sinto sem Deus, numa terra sem lei, injustiçada. É
cuidador abre-se para uma nova dimensão. sério! Porque eu acho que não tem a quem atribuir certo
destino, ou se for uma má alimentação, ou um... azar, mas acho
Assumir-se como responsável pelo que ocorre com o idoso ela não merecia um fim desses. É isso que dói. Não é
não é sentir-se uma vítima do destino ou da sorte. É autopiedade minha, não, é a dor do porquê esse destino para
compreender o problema. É conseguir enxergar as ela. Eu estou muito me questionando. Sei lá, acho que a vida foi
possibilidades de ‘com-viver’ com o processo demencial. É muito injusta com ela. Ela não merecia isso, não. Que o
deixar a postura de espectador e se envolver no cuidado. É problema não é... eu estou, aos poucos, tomando consciência
também se deixar cuidar, se deixar transformar pelo cuidar: de como cuidar etc. e tal, mas a minha maior dificuldade... Por
Hoje, com seis anos de luta, eu já me sinto mais tranquila, que com ela, cara?
mais madura, eu cresci muito. Eu já vejo a vida de uma maneira O exercício da paciência traz a possibilidade de não temer
diferente. A vida não é como a gente quer fazer, a vida é como o processo degenerativo. Possibilita ao cuidador reconhecer e
acontece. O dia-a-dia da gente... ninguém programa o dia de descrever todas as dificuldades vivenciadas, mas também
amanhã... a noite de hoje... tudo vai correndo lentamente, refletir sobre elas. O cuidador adquire flexibilidade. Parece que
dependendo do que vier, das situações, dos problemas... e é o exercício da paciência vai preparando o cuidador para
assim que eu estou vendo. enfrentar todo o processo demencial, que consiste numa
transformação permanente e progressiva:
TERCEIRA UNIDADE DE SIGNIFICADO: AO CUIDAR DO A família é muito grande, mas quem pode olhar ela mesmo
FAMILIAR IDOSO DE QUEM SE OCUPA INTENSAMENTE, O são poucos. Então, a gente vai fazendo. Ela tinha a mania de
CUIDADOR APRESENTA UM GRANDE CANSAÇO ficar a noite toda no banheiro lavando a mão. Esfregava tanto
que até esfolava. Ela sofria muito com isso, porque a gente
O cansaço que o cuidador sente é avassalador. E o pior é deixava, né? Não se dormia com ela, porque ela se levantava e
que não há uma perspectiva de repouso a curto prazo. Isso ia para o banheiro. Foram anos e anos assim. Muitos anos. E a
porque o que eles sentem não é apenas físico: é um cansaço gente com a paciência até hoje. Nós temos paciência e vamos
total, existencial. O desabafo de um deles representa muito ter até o dia que Deus quiser, que Deus der saúde.
bem essa situação:
Ah! Tem dia que enche o saco, que eu estou cheia, sem Outro aspecto do exercício da paciência é a aceitação do
memória, cuidar de casa, cuidar de filho e cuidar de sogro... ritmo do idoso. A pessoa que vivencia um processo demencial

Conhecimentos Específicos 133


APOSTILAS OPÇÃO

tem um ritmo totalmente próprio e sem possibilidade pequenos... [Ao fundo, a mãe grita seu nome.] Tá vendo? Tá me
comparativa com os parâmetros de um indivíduo da mesma chamando... é assim o tempo todo. Os outros não podem dar a
idade em plena capacidade cognitiva. Seus horários, as assistência que ela precisa, porque a assistência pra ela tem
manifestações de suas necessidades e vontades são totalmente que ser o dia todo e a noite toda, então eu nem durmo mais na
atípicos; muitas vezes, ilógicos. Tudo exige paciência para minha casa. A gente tem que ficar de plantão.
aceitar e compreender esse comportamento. O que o cuidador percebe como grande limitação, na
Quando não se tem paciência, força-se o idoso (que já não verdade, é a impossibilidade de organizar um esquema de
pode entender racionalmente o que está se passando) a suporte para seu idoso. E mesmo que consiga estruturar um
caminhar no mesmo passo do cuidador. A perda de controle da eficiente sistema de apoio, ele não se desliga de seu familiar,
situação, do idoso e do meio ambiente só causa mais ainda que esteja longe, passeando:
sofrimento a todos. Portanto, ter paciência é buscar percorrer Eu não queria internar, porque eu sei que não é uma boa...
junto com o idoso todo o processo demencial, do princípio ao Agora, nós estamos vendo o que é melhor para poder me dar
fim, sem queimar etapas. Cada dia é um dia diferente. O que chance de viver, porque eu só vivo em função dela. Não saio.
pode acontecer é sempre imprevisível. Hoje, pra vir aqui, meu irmão teve que deixar de trabalhar para
Quando exercitam a paciência, os cuidadores demonstram ficar com ela. E eu saio e fico preocupada, se ela está bem em
compreender o processo vivenciado pelo idoso como o seu casa, se não está. Então eu não saio tranquila. Não saio.
próprio caminho e se dispõem a acompanhálo lado a lado. Não
é possível forçá-lo a trilhar outro caminho. O cuidador com A vida do cuidador, embora tenha sempre novos desafios
dificuldade para acompanhar o ritmo do idoso acaba tentando com a situação de seu familiar doente, precisa ser totalmente
fazer o contrário: que o idoso o acompanhe, o compreenda – o planejada e organizada no que concerne a todas as atividades.
que vai se tornando um processo interacional totalmente Esse fato limita um pouco a possibilidade de quebra de rotinas
insuportável. ou mudanças de planos:
A paciência dá sabedoria, dizem os sábios. Só que a Não saio, não passeio, porque não vou deixar ela. Quando
vivência dos cuidadores anuncia que não é o tempo que traz a é passeio que eu posso levá-la, eu levo, mas tem passeios que
sabedoria. É a compreensão e a aceitação do ritmo do outro não levo. Agora, quando passeio, ela fica uma coisa na rua, quer
que resultam num modo de ser próprio dos sábios: sentar, quer fazer xixi, quer tudo! Às vezes, quero dar uma
Está meio difícil, mas tem que saber entrar no meio deles, volta, mal saiu, assim, quer sentar, não fica... Em casa, ela anda
não levar tão a sério, entender aquela doença. Uma hora ele atrás de mim no corredor, e quando sai na rua, é esse
está como uma criança, uma hora ele fala coisas que não têm problema!
nexo. A gente tem que se adaptar àquele mundo; é meio difícil. Os desejos do cuidador ficam bastante limitados pelo que
Eu me sinto... Eu me sinto bem, até! Não sei se é porque eu já é possível realizar. A consciência dessa limitação gera grande
lidei com bastante idosos, então eu me sinto bem. Mas tem insatisfação. Só é possível enfrentá-la passando pelos
pessoas que não têm paciência e tem que ter bastante processos já descritos anteriormente: aceitação, exercício da
paciência e amor para cuidar dessas pessoas, bastante amor; e paciência e superação.
levar na brincadeira. Na hora da brincadeira, é brincadeira;
hora séria é séria. E assim nós vamos cuidando dele. Você SEXTA UNIDADE DE SIGNIFICADO: O CUIDADOR
vendo que ali não tem jeito, mas que é viver, no correr do dia. RECONHECE A NECESSIDADE DE SER CUIDADO TAMBÉM
Eu estou me sentindo bem. PORQUE ENFRENTA DIFICULDADES PELA INTENSIDADE
O enfrentamento de ritmos diferentes (o do cuidador e o DA OCUPAÇÃO DE SEU TEMPO E DE SUAS EMOÇÕES
do familiar que desenvolve processo de demência) no
cotidiano da relação desgasta o cuidador, mesmo o que oferece Os cuidadores demonstram ter consciência de que se não
total dedicação, deixando-o no limite de suas próprias forças. estiverem bem de saúde não poderão suportar a intensidade
Ele então se mostra como pessoa que está precisando de da ocupação de cuidar. Mesmo que não estejam tendo tempo
atenção, como veremos a seguir. para atender a si próprios adequadamente, preocupam-se com
isso e apontam o desejo de receber atenção:
QUINTA UNIDADE DE SIGNIFICADO: O CUIDADOR ESTÁ Claro que isso está matando a gente, eu e minha irmã
TENSO, CANSADO E LIMITADO NO SEU LAZER PORQUE estamos nos arrasando. Eu tenho problema sério de coluna, eu
ASSUME A OBRIGAÇÃO DE CUIDAR DE SEU FAMILIAR QUE tenho problema de estômago, de pressão, então está acabando
APRESENTA GRANDE DEPENDÊNCIA comigo, mas mesmo assim eu vou ficando até o dia que Deus
quiser, que enquanto eu ficar em pé eu vou fazendo. Ah, vou!
A limitação que o cuidador sente não é apenas a Tanto é que às vezes, quando a gente pede para um outro
impossibilidade de ir e vir sem dar satisfações; é a consciência irmão ficar e ninguém pode, então tá bem, eu fico, vou ficando,
de que qualquer descuido ou falha pode determinar o vou dobrando, e a gente trata ela com carinho...
agravamento do doente, porque este, sim, é que está privado Apesar das preocupações consigo mesmo, para o cuidador
da liberdade de autodeterminação. E o pior é que toda essa é difícil manter um equilíbrio entre a ocupação de cuidar de
dedicação não garante que consiga a reversão da situação do seu familiar idoso e o seu próprio cuidado, pois ele não dispõe
seu ente querido e não vai evitar a sua morte: de estruturas de apoio nem familiares, nem comunitárias e
Ah! Tem dia que enche o saco, que eu estou cheia, sem muito menos institucionais:
memória, cuidar de casa, cuidar de filho e cuidar de sogro... Meus irmãos e eu tivemos uma reunião pra decidir o que
Tem dia que eu queria viajar, num carnaval, num ano novo, não fazer. Eu queria até internar, porque eu não estava aguentando
tem nem por que, por que ele vai ficar com quem? A filha nem mais, e aí conversaram e não chegaram a conclusão nenhuma,
esquenta. Às vezes passa assim, nem entra lá dentro para ver aí achamos melhor colocar uma pessoa pra me ajudar pelo
ele. Quer dizer: tudo isso vai agravando na mente dele. menos a cuidar dela, as outras coisas eu faço. Nós estamos
O idoso que desenvolve um processo de demência é uma procurando, só que é muito caro. O pessoal pede muito. Eu já
pessoa que vai progressivamente se tornando totalmente estou esgotada.
dependente do cuidador, como já foi evidenciado. Muito cedo
o cuidador percebe que vai precisar se responsabilizar por Eu estou num estresse muito grande agora. E outra coisa:
essa outra vida: a gente não encontra uma pessoa que ajude porque, por mais
Embora a gente saiba que a minha família é muito grande, boa vontade que você tenha, você fica cansada. Eu fico todos os
mas todos têm problema – trabalham fora, têm filhos meus fins de semana com ela. Então isso é muito cansativo.

Conhecimentos Específicos 134


APOSTILAS OPÇÃO

Os depoimentos demonstram que muitos cuidadores que os atende, é preciso estender a atenção para além destas
chegam a situações-limite por falta de apoio material, físico e manifestações emocionais e atingir as suas demandas
emocional. Algumas vezes por não perceberem seus próprios objetivas.
limites, outras vezes por absoluta falta de opção: não há com
quem contar para ajudá-los. O que os cuidadores familiares revelam é que, mais do que
Eu me sinto sensibilizada com o problema dele, tenho pena compreensão, precisam de apoio estratégico e institucional,
dele e tem hora que eu me aborreço, porque eu também tenho pois suas necessidades não são apenas de ordem emocional.
vários problemas. Eu tenho artrite. Agora eu estou melhor, eu São necessidades objetivas e subjetivas, como a de poder
tenho estado melhor, mas eu não saía da crise, porque eu tenho contar com estruturas confiáveis para acompanhar o seu
glaucoma, eu não posso usar remédio que tem cortisona, esse familiar idoso e atender a eles próprios, que se esgotam e
remédio forte, né? necessitam de atenção. A solução seria a existência de
estruturas sociais e institucionais para apoiar o cuidado ao seu
O cuidador exercita com seu familiar uma atenção que o familiar idoso.
ocupa todo o tempo, no cotidiano. É uma situação em que se Atualmente, além de tais estruturas não existirem, os
assume tudo pelo outro e em que se cria dependência, e não há profissionais da área da saúde ainda demonstram outras
como evitar que isso aconteça à medida que a doença avança. dificuldades, que incluem problemas na detecção dos casos de
Mas também o cuidador sente a necessidade de desenvolver demência, o desconhecimento sobre como lidar com o idoso
consigo mesmo uma atenção que o faça amadurecer e crescer em processo demencial e de como apoiar a sua família.
como pessoa. Muitas vezes, tal necessidade é maior do que a
de desenvolver um cuidado com o próprio corpo cansado. Os cuidadores demonstraram também que, com toda a
dificuldade e mesmo sem apoio, conseguem cuidar fazendo
CONSIDERAÇÕES FINAIS adaptações que geram grandes custos materiais e
comprometem a sua saúde física e mental. Mas fica
Meu propósito, ao me lançar a este estudo, foi o de evidenciado que, se tivessem apoio profissional que os
compreender o que o cuidador revelou: facetas do significado auxiliasse a descobrir as melhores estratégias para lidar com
de cuidar de um familiar idoso que vivencia um processo seu familiar, além de suporte material, institucional e/ou
demencial. comunitário, teriam a possibilidade de prevenir maior
Nesta investigação, foi possível demonstrar que é desgaste de sua saúde e qualidade de vida, garantindo ao idoso
fundamental para a atenção ao idoso que seus familiares sejam uma assistência adequada e livre de riscos.
vistos nas suas singularidades. É como seres singulares que
precisam ser ouvidos, suas necessidades detectadas e, a partir REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
deste diagnóstico, receber cuidados.
BARCLAY, L. Clinical Geriatric Neurology. Pennsylvania:
Os cuidados a serem prestados aos familiares dos idosos
Lea e Febiger, 1990.
em processo demencial devem garantir apoio à sua
desgastante tarefa. Esse apoio não significa apenas transmitir BEAUVOIR, S. A Velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
informações sobre a doença e orientações gerais sobre o 1990.
cuidado. Não se podem considerar os cuidadores meros BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social.
cumpridores de orientações padronizadas. Pois, quando se Plano Integrado de Ação Governamental para o
tratam pessoas como objetos de prescrições, anulam-se as Desenvolvimento da Política Nacional do Idoso. Brasília:
possibilidades de serem elas mesmas livres para tomar Secretaria de Assistência Social, 1997.
decisões e exercitar a criatividade.
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde do
É preciso que os profissionais da saúde compreendam que
o fato de os cuidadores cumprirem as prescrições e Idoso. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 237-
orientações não significa que as necessidades do idoso estejam E:20-244, 13 de dezembro 1999.
plenamente atendidas. O ideal é que tais pessoas participem CALDAS, C. P. O Sentido do Ser Cuidando de uma Pessoa
das decisões sobre os rumos da assistência ao idoso, sabendo Idosa que Vivencia um Processo Demencial, 2000. Tese de
que contarão com o suporte técnico. Doutorado, Rio de Janeiro: Escola de Enfermagem Anna Nery,
Quando os cuidadores contam com uma estrutura de apoio Universidade Federal do Rio de Janeiro.
institucional, estratégico, material e emocional, têm a
CASSEL, C. et al. Geriatric Medicine. 2.ed. Nova Iorque:
possibilidade de exercer o cuidado e permanecer inseridos
socialmente sem imobilizar-se pela sobrecarga determinada Springer, 1990.
pela difícil e estafante atenção ao doente em processo DUARTE, M. J. R. S. Internação Institucional do Idoso:
demencial. assistência à saúde em geriatria no setor público, 1991. Tese de
Doutorado, Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública,
Um cuidador que recebe apoio adequado busca aprender e Fundação Oswaldo Cruz.
descobrir novas estratégias para lidar com o seu ente querido,
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
reduzindo os desencontros entre as necessidades de ambos.
Com isso, é possível que aprenda a fazer ajustes no seu KOSBERG, J. I. (Ed.) Family Care of the Elderly. Newbury
cotidiano e não anule as suas próprias possibilidades de Park: Sage Publications, 1992.
continuar a ter uma vida própria. MENDES, P. B. M. T. Cuidadores: heróis anônimos do
O estudo evidencia que a família precisa receber atenção cotidiano, 1995. Dissertação de Mestrado, São Paulo: Pontifícia
específica dos profissionais da saúde. E lidar com essa clientela Universidade Católica de São Paulo.
exige um conhecimento que inclui aspectos teóricos e VERAS, R. P. País Jovem com Cabelos Brancos: a saúde do
metodológicos da forma de abordá-la levando em conta sua
idoso no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
estrutura e sua dinâmica próprias. Esse tipo de conhecimento
ainda é muito precário na área da saúde em nosso país. WITMER, D. M. Geriatric Nursing Assistant. Nova Jersey:
Embora muitas vezes o desespero, a angústia, o turbilhão Prentice-Hall,1990.
de emoções que emergem da vivência dos cuidadores possam
se apresentar como prioridades para o profissional da saúde

Conhecimentos Específicos 135


APOSTILAS OPÇÃO

alcoólatras), os viciados em tóxicos, as pessoas que por causa


transitória ou definitiva não puderem exprimir vontade os
22. Tutela e Curatela pródigos. Como visto, não há mais menção às pessoas com
discernimento mental reduzido e aos excepcionais, tidos agora
como plenamente capazes pelo sistema.
A tutela e a curatela, constituem institutos de direito Reafirme-se, como dito quanto à tutela, que a curatela não
assistencial para a defesa dos interesses dos incapazes, se confunde com a representação e com assistência por ser
visando à realização de atos civis em seu nome. instituto geral de administração de interesses de outrem. A
curatela também não se confunde com a tutela, pois a última
A diferença substancial entre as duas figuras é que a tutela visa à proteção de interesses de menores, enquanto a primeira,
resguarda os interesses de menores não emancipados, não à proteção dos maiores.
sujeitos ao poder familiar, com o intuito de protegê-los.
Referências Bibliográficas:
Por seu turno, a curatela é categoria assistencial para a
defesa dos interesses de maiores incapazes, devidamente DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual
interditados. Ou seja, exatamente com o intuito de proteger Civil. 19ª edição. São Paulo: Atlas, 2016.
pessoas que, conquanto maiores, não têm “capacidade de
regência” ou a tem diminuída, foi criado o instituto de direito TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 7ª edição. Rio de
civil denominado curatela, que consiste no “encargo público, Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.
conferido, por lei, a alguém, para dirigir a pessoa e administrar
os bens dos maiores, que por si não possam fazê-lo”.
O artigo 1767 do Código Civil, com redação dada pelo
Estatuto da Pessoa com Deficiência, determina quais são os 23. Guarda
sujeitos à curatela.
Observa-se sobre o Levantamento da Curatela, que, em
concordância com o Artigo 756 do Novo Código de Processo BIBLIOGRAFIA
Civil, a curatela pode ser levantada a qualquer tempo, desde
que cessada a causa que a determinou. 21. Peiter, Cynthia. Adoção- vínculos e rupturas : do abrigo
Disposições comuns à Tutela e à Curatela → Artigos 759 à família adotiva. Ed Zagodoni, 2011.
a 763 do Novo CPC
Guarda dos filhos
Os artigos 759 a 763 do CPC/2015 disciplinam a
nomeação, o compromisso e as responsabilidades dos tutores Quando a sociedade conjugal ou a união estável termina,
e curadores, bem como as garantias que devem prestar para ou quando os pais não vivem juntos, é necessário que se
acautelar os bens que serão confiados à sua administração. determine com quem permanecerá a guarda dos filhos
Preveem, também, a sua remoção no caso de menores ou incapazes.
descumprimento dos encargos que lhe são atribuídos pela lei A matéria aplica-se tanto aos casos de divórcio, separação
e sua dispensa no caso de cessão das funções. judicial e dissolução da união estável (artigo 1584, I, do CC)
quanto aos casos de anulação ou declaração de nulidade do
Da Tutela casamento (art. 1587 do CC).
Historicamente, somente se discutia o tema com relação ao
Quanto à tutela, reafirme-se que seu grande objetivo é a fim do casamento, e a guarda era atribuída ao cônjuge
administração dos bens patrimoniais do menor. Enuncia o “inocente” – conceito discutido nos casos de desquite e de
artigo 1.728 do Código Civil que os filhos menores são postos separação judicial.
sob tutela com o falecimento dos pais, ou sendo estes julgados Posteriormente, houve alterações na matéria, mas a
ausentes ou em caso de os pais decaírem do poder familiar. guarda continuava sendo predominantemente unilateral, ou
Conforme leciona Maria Helena Diniz, há na tutela um seja, concedida a apenas um dos pais, cabendo ao outro o
múnus público, ou seja, uma atribuição imposta pelo Estado direito de visita.
para atender a interesses públicos e sociais. A partir da alteração promovida no Código Civil pela Lei nº
Sem prejuízo do que consta do CC/2002, o ECA (Lei 11.698/2008, a matéria ganhou nova disciplina, com o
8069/1990) consagra no seu artigo 28 que a tutela é uma das estabelecimento da guarda compartilhada.
formas de inserção da criança e do adolescente em família Recentemente, a matéria ganhou novíssima disciplina, com
substituta. as alterações trazidas pela Lei nº 13.058, de 22 de dezembro
São partes da tutela: o tutor, aquele que exerce o múnus de 2014, a qual entrou em vigor na data da sua publicação, em
público; e o tutelado ou pupilo, menor a favor de quem os bens 23 de dezembro de 2014. A nova lei alterou os artigos 1583,
e interesses são administrados. 1584, 1585 e 1634 do Código Civil.
Nos procedimentos amigáveis, a questão atinente à guarda
Da Curatela dos filhos deverá, necessariamente, ser contemplada no
acordo. A chancela judicial, contudo, estará a depender dos
A curatela igualmente é instituto de direito assistencial, termos do referido acordo, devendo-se atentar para os
para a defesa dos interesses de maiores incapazes. Assim como interesses do menor.
ocorre com a tutela, há um múnus público, atraído pela lei. São De qualquer forma, a parte despojada da guarda dos filhos
partes da curatela o curador e o curatelado. terá direito à visitação, a ser definida pelos próprios consortes
Estão sujeitos à curatela os maiores incapazes. Sabendo-se em acordo ou pelo juiz (art. 1589 do CC).
que, não existem mais absolutamente incapazes maiores, por
força das alterações eu foram feitas no artigo 3º do Código Civil Da Adoção
pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015).
Sendo assim, a curatela somente incide para os maiores A Adoção constitui forma tradicional de parentesco civil.
relativamente incapazes que, na nova redação do artigo 4º da Tentando consolidar o tratamento anterior relativo ao tema, o
codificação material, são os ébrios habituais (no sentido de

Conhecimentos Específicos 136


APOSTILAS OPÇÃO

Código Civil de 2002 instituiu um capítulo próprio a respeito angústias vividas, que remetem a lutos ligados a figuras de seu
do instituto entre seus artigos 1618 a 1629. passado e a premente necessidade de uma apropriação da
Assim, com a codificação privada deixou-se de existir família permeada por elementos de transicionalidade. Assim,
aquela antiga divisão da adoção em adoção plena ou busca proporcionar reflexões no cuidado com as crianças em
estatutária (regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, processo de adoção, tanto por parte dos profissionais como
para menores) e adoção simples ou restrita (regida até então dos pais adotivos.
pelo CC/1916, para maiores).
Porém, frustrando essa tentativa de unificação legal, foi Adoção - vínculos e rupturas: do abrigo à família
promulgada a Lei 12.010, em 3 de agosto de 2009, conhecida adotiva72
como Lei Nacional da Adoção ou Nova Lei da Adoção.
A nova norma revogou vários dispositivos do CC/2002 que Autora: Cynthia Peirer Editora: Zagodoni, São Paulo, 2011
tratavam da adoção (artigos 1620 e 1629), alterando, ainda, os Resenhado Por: Denise Salomão Goldfajn
artigos 1618 e 1619 da atual codificação.
Atualmente, a matéria ficou consolidada no Estatuto da Há boas razões para ler o livro de Cynthia Peiter: Adoção -
Criança e do Adolescente, que do mesmo modo teve vários dos vínculos e rupturas: do abrigo a família adotiva. A primeira e
seus comandos alterados. mais urgente é que há pouca literatura sobre o tema.
Na verdade, nota-se que não há mais dispositivos no O livro de Peiter trata da adoção tardia, ou adoção de
CC/2002 regulamentando o instituto. crianças maiores, como a autora prefere chamar. À partir da
O seu artigo 1618 do CC determina que a adoção de experiência clínica da autora em casos de adoção, lemos sobre
crianças e adolescentes será deferida na forma prevista pelo o atendimento à Joana, uma menina de quatro anos, órfã e em
ECA. transição para uma nova família.
Ademais, o seu artigo 1619 modificado é claro ao enunciar A autora fez um estudo abrangente das relações
que a adoção de maiores de 18 anos dependerá da assistência institucionais que afetam o setting e a relação analista-
efetiva do Poder Público e de sentença constitutiva, aplicando- paciente, e de todas as instâncias sociais que permearam esse
se, no que couber, as regras gerais da mesma Lei (ECA). encontro entre paciente e analista - abrigo, profissionais,
Em suma, o que se percebe é que a matéria de adoção, famílias. O resultado é que esse livro nos fornece uma
relativa a menores e a maiores, passou a ser consolidada no fotografia multidimensional de como está o processo de
ECA. adoção de crianças maiores em nosso país.
Pois bem, vejamos três conceitos doutrinários de adoção: A segunda razão para ler esse livro, que acredito ser a mais
prevalente, é termos em mãos um excelente exemplo de
A adoção é o ato jurídico solene pelo qual, observados os pesquisa clínica psicanalítica, onde a autora, como analista,
requisitos legais, previstos na Lei 8069/90, artigos 39 a 52-D, mantém-se fiel à função de investigadora dos processos
alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de psíquicos, primeiramente na díade paciente analista, onde
parentesco consanguíneo ou afim, vínculo fictício de filiação, prioriza a observação daquilo que chama de "movimentos
trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, psíquicos," e que entendo como o acolhimento pela analista do
geralmente, lhe é estranha. (Maria Helena Diniz); constante movimento da paciente de construir e romper
A adoção é modalidade artificial de filiação que busca imitar vínculos afetivos.
a filiação natural. Daí ser também conhecida como filiação civil, É a partir do acolhimento desse movimento que o par
pois não resulta de uma relação biológica, mas de manifestação analítico cria um lugar seguro para que a paciente possa
de vontade, conforme o sistema do Código Civil de 1916, ou de investir em suas imagos parentais, o que assegura o
sentença judicial, conforme o atual sistema. (Sílvio de Salvo crescimento psíquico da paciente e facilita sua transição - seja
Venosa); em seu crescimento emocional, seja na transição para uma
nova família. Todo esse processo não se dá sem grande
A adoção é um ato jurídico em sentido estrito, cuja eficácia angústia. Os temas humanos mais contundentes se
está condicionada à chancela judicial. Cria um vínculo fictício de apresentam no relato desse caso clínico; abandono, luto,
paternidade-maternidade-filiação entre pessoas estranhas, reconstrução. Para isso a autora nos ajuda a pensar,
análogo ao que resulta da filiação biológica. (Maria Berenice mostrando-nos o caminho através das ideias de Winnicott,
Dias). Green e outros autores de escolas psicanalíticas relacionais.

Referências Bibliográficas: Peiter ressalta:


A narração do material clínico que parece nos envolver em
DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual uma atmosfera afetiva, nos emociona, mas também nos ensina
Civil. 19ª edição. São Paulo: Atlas, 2016. ... Podemos estudá-lo na investigação dos movimentos psíquicos
vividos por uma criança nesse período de transição; ou podemos
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 7ª edição. Rio de refletir sobre as consequências dos rompimentos de vínculos
Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. entre crianças de tenra idade e os desdobramentos na
realização de novos vínculos. Mas podemos também aprofundar
Segue abaixo, a bibliografia referente ao presente tema, conhecimentos sobre alternativas de intervenção clínica junto a
sugerida pelo edital do concurso específico: circunstâncias especiais, buscando atender a uma demanda de
casos mais ligados a problemáticas sociais de nosso país. O caso
21. Peiter, Cynthia. Adoção- vínculos e rupturas: do abre perspectivas também para uma reflexão sobre práticas de
abrigo à família adotiva. Ed Zagodoni, 2011 outras áreas afins, levando conhecimento da clínica
psicanalítica a outras disciplinas Que também se ocupam do
A autora Cynthia Peiter traz na obra Adoção- vínculos e tema da adoção. (Peiter, 2011, p. 43)
rupturas: do abrigo à família adotiva, o olhar da clínica
psicanalítica com crianças para o momento de sua transição do O relato do caso termina, mas a autora prossegue em sua
abrigo para a família adotiva. Aponta para as possíveis investigação observando os mesmos movimentos psíquicos de

72 GOLDFAJN, Denise Salomão. Disponível em:


http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v45n82/v45n82a18.pdf. JORNAL de
PSICANÁLISE 45 (82), 249-252. 2012.

Conhecimentos Específicos 137


APOSTILAS OPÇÃO

vincular e romper, agora em torno da dupla paciente/analista, primordial inerente ao papel da família com anfitriã da criança
ou seja, analisando as instâncias sociais que lidam com a recém-chegada. (Peiter, 2011, p. 96).
inserção da criança maior em seu processo de adoção. O
mesmo olhar clínico da analista dentro do consultório com Ainda acompanhando o movimento psíquico de vincular e
Joana é usado na desconstrução de pré-conceitos que romper, um último capítulo é dedicado às fantasias dos pais de
acometem essas crianças, socialmente vistas como revelar e elaborar as narrativas na adoção, como e quando
abandonadas, embora muitas vezes se sintam acolhidas em contar e conversar com os filhos adotivos sobre adoção e sua
seus abrigos transitórios, tendo que romper com esses vida pregressa:
vínculos primários para refazer novos vínculos familiares.
A autora questiona: uma criança que é deixada, Assim, a elaboração de narrativas que integram passado e
necessariamente não é somente abandonada, mas ela tem que presente trazem significados àquilo que foi vivido por pais e
lidar com a construção de uma família dentro de si. A mãe que filhos, mas, acima e tudo, permitem uma vinculação afetiva na
abandona pode ser a mesma mãe que permite que outro cuide nova rede familiar que permitirá construções de outras
daquilo que ela não pode cuidar. histórias. (Peiter, 2011, p. 120).
Há pressa em acelerar um processo de adoção, que muitas
vezes independe do tempo cronológico, mas dependerá Uma terceira razão para ler esse livro é o mero prazer de
principalmente de cada criança e de seu amadurecimento se deixar levar pela leitura curiosa. Esse é um livro bem escrito
frente a tantas rupturas traumáticas por elaborar. e com um projeto gráfico agradável. Por ser bem escrito, é um
Peiter, além de relatar o caso Joana, utiliza outras vinhetas livro de fácil leitura, embora não menos sofisticado em ideias.
clínicas para ilustrar que o acompanhamento psicanalítico Não se trata de um livro leve, pois o tema mobiliza, uma vez
dessas crianças é fundamental para facilitar o processo de que somos todos adotados e adotantes em termos dos vínculos
adoção, preparando a criança e a nova família para um enlace que fazemos e rompemos a cada dia.
menos turbulento. O impacto dos "movimentos psíquicos" permanece após a
A autora mostra como o entendimento da dinâmica dessas leitura desse livro. Esse impacto me levou a divagar sobre os
crianças em sua condição jurídica e social pode oferecer primórdios da psicanálise de crianças onde Anna Freud,
subsídios para que programas de ação social nessa área sejam Esther Bick, John Bowlby e Winnicott constituíram suas
desenvolvidos. Por exemplo o papel do terapeuta, que como teorias, a partir de suas observações sobre o valor e o cuidado
afirma Peiter, deve ser o lugar do Intermediário: que se deve ter para que os vínculos emocionais possam se
estabelecer.
A figura do terapeuta, como afirmei, passa a ser Foi a partir da observação de crianças órfãs,
representante e memória de um passado, e simultaneamente institucionalizadas, traumatizadas pela guerra que esses
aponta para um futuro fazendo a mediação entre dois autores puderam formular as primeiras ideias sobre a
momentos importantes da história da criança. Assim também importância da formação dos vínculos emocionais e criar
com a figura do profissional intermediário que faz a preparação teorias instrumentais para a compreensão do funcionamento
descrita. Trata-se de um lugar bastante especial, no qual se humano, inaugurando assim a psicanálise relacional como
instala um vínculo que paradoxalmente fala de separação e entendemos hoje.
união. t. também um lugar que sustenta uma passagem Como Cynthia Peiter faz em seu livro, também eles se
permitindo o compartilhamento de angústias com um adulto perguntaram, o que tem a psicanálise a contribuir para
que reassegura urna continuidade e sustenta possíveis melhorar as políticas sociais de atendimento a essas crianças?
experiências que poderiam ser vividas catastroficamente.
(Peiter, 2011, pp_ 82-83)

Resenhas 24. Guarda Compartilhada


O entendimento e atenção a essas fases de construção e
elaboração são importantes para que a adoção tenha sucesso, Após cuidar da separação judicial – agora retirada do
assegurando o crescimento da família adotiva e da criança sistema – e do divórcio, o Código Civil determina as regras
adotada. referentes à “Proteção da Pessoa dos Filhos”.
Uma outra contribuição importante da pesquisa de Peiter Sobre esse tema, o Código Privado traz disposições
é o estudo das motivações psíquicas que levam uma família a importantes, nos artigos 1583 e 1584. Tais artigos foram
adotar uma criança. profundamente modificados pela Lei 11.698, de 13 de junho
Os dados revelados por essas pesquisas apontam para a de 2008, que entrou em vigor em 16 de agosto de 2008, ou seja,
predominância de dois perfis adotantes. Um grande grupo que sessenta dias depois de sua publicação.
traz motivações ligadas a tentativas de contornar a Sucessivamente, houve nova alteração por meio da Lei
impossibilidade de procriação biológicas ... portanto, 13.058, de 22 de dezembro de 2014, originária do Projeto de
narcísicas. Lei 117/2013, aqui denominada como Lei da Guarda
Outro grupo, que busca adotar crianças maiores e, em um Compartilhada Obrigatória.
percentual significativo, relaciona seu desejo com motivos
considerados, pelos pesquisadores, altruístas, ... de ajuda e A questão da Guarda Compartilhada
colaboração social. (Peiter, 2011, p. 95).
Segundo o art. 1583 do Código Civil, a guarda será
Conforme Peiter, famílias que têm por motivação um unilateral ou compartilhada. A lei cuidou, ademais, de
preenchimento narcísico têm um lugar psíquico melhor conceituar cada uma dessas espécies:
estabelecido para a criança:
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.
As concepções do filho como continuidade de si, como (Redação dada pela Lei nº 11.698, de 2008).
herdeiro e prolongamento da própria existência, que trazem § 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um
resíduos do narcisismo perdido dos pais, podem facilitar o só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e,
processo identificatório entre pais e crianças. Assim exercem por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o
função essencial no estabelecimento do período idílico, de ilusão

Conhecimentos Específicos 138


APOSTILAS OPÇÃO

exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob Art. 1º Os arts. 1.583 e 1.584 da Lei nº 10.406, de 10 de
o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. janeiro de 2002 – Código Civil, passam a vigorar com a
seguinte redação:
Como já explanado, é dado aos pais dispor sobre a guarda “Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.
dos filhos, na ação de divórcio, de separação judicial, de § 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um
dissolução de união estável ou, ainda, em medida cautelar de só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, §5º)
separação de corpos (artigos 1584, I, e 1585 do CC), cabendo ao e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o
juiz decidir, atentando para as necessidades específicas do filho exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam
e para a distribuição de tempo necessária ao convívio deste com sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos
o pai e com a mãe (art. 1584, II, do CC). comuns.
§ 2º A guarda unilateral será atribuída ao genitor que
Segundo a nova redação do §2º do art. 1584 do Código revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente,
Civil, dada pela Lei nº 13.058/2014, “quando não houver mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores:
acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar;
encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder II – saúde e segurança;
familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se III – educação.
um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a § 3º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a
guarda do menor”. detenha a supervisionar os interesses dos filhos.
§ 4º (VETADO).” (NR)
Cabe destacar, para fins de comparação, a redação anterior “Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá
do dispositivo, dada pela Lei nº 11.698/2008: “quando não ser:
houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por
aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada”. Veja-se qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio,
que o texto atual, além de contemplar a hipótese de guarda de dissolução de união estável ou em medida cautelar;
unilateral no caso de um dos pais declarar que não deseja a II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades
guarda, omitiu o “sempre que possível” do preceito anterior, o específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo
que nos faz concluir que a guarda compartilhada será a regra, necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.
só podendo ser afastada em casos excepcionais. § 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e
à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua
Recebendo o pedido de atribuição da guarda, seja em ação importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos
autônoma ou em caráter incidental, o juiz designará audiência genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas.
de mediação e conciliação, em que deverá informar aos pais qual § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto
o significado da guarda compartilhada, alertá-los sobre sua à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda
importância, sobre a similitude dos direitos e deveres atribuídos compartilhada.
a ambos e sobre as sanções impostas pelo descumprimento de § 3º Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os
suas cláusulas (art. 695 do CPC/2015 c/c art. 1584, §1º, do CC). períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de
Com relação ao direito de visita, veja-se que a Lei nº ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-
12.398/2011 acrescentou o parágrafo único ao art. 1589, o qual se em orientação técnico-profissional ou de equipe
preceitua que “o direito de visita estende-se a qualquer do avós, interdisciplinar.
ao critério do juiz, observados os interesses da criança ou do § 4º A alteração não autorizada ou o descumprimento
adolescente”. imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada,
Fixadas as regras relativas à guarda, se houver alteração poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu
não autorizada ou se for verificado o descumprimento detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência
imotivado de cláusula estabelecida na sentença, seja a guarda com o filho.
unilateral ou compartilhada, o juiz poderá reduzir o número de § 5º Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob
prerrogativas atribuídas ao infrator (art. 1584, §4º). a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que
Destaque-se que a nova redação, atribuída pela Lei nº revele compatibilidade com a natureza da medida,
13.058/2014, revogou a parte final do texto, que previa a considerados, de preferência, o grau de parentesco e as
possibilidade de redução do número de horas de convivência relações de afinidade e afetividade.” (NR)
com os filhos.
Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos 60
Referências Bibliográficas: (sessenta) dias de sua publicação.

DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual Brasília, 13 de junho de 2008; 187º da Independência e
Civil. 19ª edição. São Paulo: Atlas, 2016. 120º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 7ª edição. Rio de LEI Nº 13.058, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2014
Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.
Altera os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei nº 10.406,
Seguem abaixo as Leis referentes ao assunto abordado: de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para estabelecer o
significado da expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre
LEI Nº 11.698, DE 13 DE JUNHO DE 2008 sua aplicação.

Altera os arts. 1.583 e 1.584 da Lei nº 10.406, de 10 de A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o
janeiro de 2002 – Código Civil, para instituir e disciplinar a Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
guarda compartilhada.
Art. 1º Esta Lei estabelece o significado da expressão
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o “guarda compartilhada” e dispõe sobre sua aplicação, para o
Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: que modifica os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei no
10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

Conhecimentos Específicos 139


APOSTILAS OPÇÃO

VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento


Art. 2º A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o
Civil), passa a vigorar com as seguintes alterações: sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
“Art. 1.583. ... VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16
... (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa
§ 2º Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o
filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com consentimento;
o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
interesses dos filhos. IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os
I - (revogado); serviços próprios de sua idade e condição.” (NR)
II - (revogado);
III - (revogado). Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base
de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos Brasília, 22 de dezembro de 2014; 193º da Independência
interesses dos filhos. e 126º da República.
...
§ 5º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a DILMA ROUSSEFF
detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para
possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre
será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação
de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações 25. Alienação Parental
que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica
e a educação de seus filhos.” (NR)
“Art. 1.584. ... Alienação Parental
...
§ 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto De acordo com a Lei nº 12.318/2010, “considera-se ato de
à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a alienação parental a interferência na formação psicológica
exercer o poder familiar, será aplicada a guarda da criança ou do adolescente promovida ou induzida por
compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança
magistrado que não deseja a guarda do menor. ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância
§ 3º Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao
períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.
ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear- Como as ações de família envolvem não apenas aspectos
se em orientação técnico-profissional ou de equipe jurídicos, mas, também, aspectos psicológicos, é ideal que
interdisciplinar, que deverá visar à divisão equilibrada do quando o processo envolver discussão sobre fato relacionado a
tempo com o pai e com a mãe. abuso ou a alienação parental, um especialista auxilie o
§ 4º A alteração não autorizada ou o descumprimento magistrado ao tomar o depoimento do incapaz que tenha sido
imotivado de cláusula de guarda unilateral ou compartilhada vítima do ato (art. 699). A disposição sobre o tema no Novo CPC
poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu colabora com o aperfeiçoamento da atividade judicante, além
detentor. de evitar a revitimização do incapaz.
§ 5º Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob
a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda a pessoa que Vejamos outros aspectos processuais relacionados ao tema:
revele compatibilidade com a natureza da medida,
considerados, de preferência, o grau de parentesco e as → A alienação parental pode ser reconhecida
relações de afinidade e afetividade. incidentalmente ou em processo autônomo (art. 4º da Lei nº
§ 6º Qualquer estabelecimento público ou privado é 12.318/2010);
obrigado a prestar informações a qualquer dos genitores sobre
os filhos destes, sob pena de multa de R$ 200,00 (duzentos → O juiz pode, desde que de forma incidental em um processo
reais) a R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia pelo não já instaurado, reconhecer, ex officio, os atos de alienação
atendimento da solicitação.” (NR) parental. Exemplo: durante a instrução em ação de divórcio o
“Art. 1.585. Em sede de medida cautelar de separação de juiz percebe que um dos genitores está dificultando o contato a
corpos, em sede de medida cautelar de guarda ou em outra criança ou adolescente com o outro genitor (art. 4º da Lei nº
sede de fixação liminar de guarda, a decisão sobre guarda de 12.318/2010);
filhos, mesmo que provisória, será proferida
preferencialmente após a oitiva de ambas as partes perante o → O reconhecimento da alienação poderá ocorrer em
juiz, salvo se a proteção aos interesses dos filhos exigir a qualquer momento do processo;
concessão de liminar sem a oitiva da outra parte, aplicando-se
as disposições do art. 1.584.” (NR) → A prova pericial nesse tipo de demanda é ampla. O
“Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a laudo terá base em ampla avaliação psicológica ou
sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que biopsicossocial, conforme o caso, compreendendo, inclusive,
consiste em, quanto aos filhos: entrevista pessoal com as partes, exame de documentos dos
I - dirigir-lhes a criação e a educação; autos, histórico do relacionamento do casal e da separação,
II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos cronologia de incidentes, avaliação da personalidade dos
termos do art. 1.584; envolvidos e exame da forma como a criança ou adolescente se
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para manifesta acerca de eventual acusação contra genitor (art. 5º
casarem; da Lei nº 12.318/2010);
IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para
viajarem ao exterior; → O prazo para entrega do laudo pericial é de 90 dias,
V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para podendo ser prorrogado exclusivamente por autorização
mudarem sua residência permanente para outro Município; judicial (art. 5º, §3º). O juiz deve, então, ao aplicar o art. 465 do

Conhecimentos Específicos 140


APOSTILAS OPÇÃO

Novo CPC (“o juiz nomeará perito especializado no objeto da deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de
perícia e fixará de imediato o prazo para a entrega do laudo”), tutela ou guarda.
observar o prazo designado na legislação especial;
Art. 4º Declarado indício de ato de alienação parental, a
→ Constatada a prática de atos de alienação parental, o juiz requerimento ou de ofício, em qualquer momento processual,
poderá, cumulativamente ou não, adotar as medidas previstas em ação autônoma ou incidentalmente, o processo terá
no art. 6º da Lei nº 12.318/2010, quais sejam: I – declarar a tramitação prioritária, e o juiz determinará, com urgência,
ocorrência de alienação parental e advertir o alienador; II – ouvido o Ministério Público, as medidas provisórias
ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor necessárias para preservação da integridade psicológica da
alienado; III – estipular multa ao alienador; IV – determinar criança ou do adolescente, inclusive para assegurar sua
acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial; V – convivência com genitor ou viabilizar a efetiva reaproximação
determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada entre ambos, se for o caso.
ou sua inversão; VI – determinar a fixação cautelar do domicílio Parágrafo único. Assegurar-se-á à criança ou adolescente e
da criança ou adolescente; VII – declarar a suspensão da ao genitor garantia mínima de visitação assistida, ressalvados
autoridade parental. Note que não há previsão de os casos em que há iminente risco de prejuízo à integridade
desconstituição do poder familiar, mas apenas de sua física ou psicológica da criança ou do adolescente, atestado por
suspensão. profissional eventualmente designado pelo juiz para
acompanhamento das visitas.
Referências Bibliográficas:
Art. 5º Havendo indício da prática de ato de alienação
DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual parental, em ação autônoma ou incidental, o juiz, se
Civil. 19ª edição. São Paulo: Atlas, 2016. necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial.
§ 1º O laudo pericial terá base em ampla avaliação
Segue abaixo a legislação pertinente: psicológica ou biopsicossocial, conforme o caso,
compreendendo, inclusive, entrevista pessoal com as partes,
LEI Nº 12.318, DE 26 DE AGOSTO DE 2010 exame de documentos dos autos, histórico do relacionamento
do casal e da separação, cronologia de incidentes, avaliação da
Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei personalidade dos envolvidos e exame da forma como a
no 8.069, de 13 de julho de 1990. criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual
acusação contra genitor.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o § 2º A perícia será realizada por profissional ou equipe
Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: multidisciplinar habilitados, exigido, em qualquer caso,
aptidão comprovada por histórico profissional ou acadêmico
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a alienação parental. para diagnosticar atos de alienação parental.
§ 3º O perito ou equipe multidisciplinar designada para
Art. 2º Considera-se ato de alienação parental a verificar a ocorrência de alienação parental terá prazo de 90
interferência na formação psicológica da criança ou do (noventa) dias para apresentação do laudo, prorrogável
adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, exclusivamente por autorização judicial baseada em
pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a justificativa circunstanciada.
sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor
ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de Art. 6º Caracterizados atos típicos de alienação parental ou
vínculos com este. qualquer conduta que dificulte a convivência de criança ou
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação adolescente com genitor, em ação autônoma ou incidental, o
parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da
constatados por perícia, praticados diretamente ou com decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla
auxílio de terceiros: utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou
I - realizar campanha de desqualificação da conduta do atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso:
genitor no exercício da paternidade ou maternidade; I - declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o
II - dificultar o exercício da autoridade parental; alienador;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com II - ampliar o regime de convivência familiar em favor do
genitor; genitor alienado;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de III - estipular multa ao alienador;
convivência familiar; IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais biopsicossocial;
relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, V - determinar a alteração da guarda para guarda
médicas e alterações de endereço; compartilhada ou sua inversão;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança
familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a ou adolescente;
convivência deles com a criança ou adolescente; VII - declarar a suspensão da autoridade parental.
VII - mudar o domicílio para local distante, sem Parágrafo único. Caracterizado mudança abusiva de
justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou endereço, inviabilização ou obstrução à convivência familiar, o
adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com juiz também poderá inverter a obrigação de levar para ou
avós. retirar a criança ou adolescente da residência do genitor, por
ocasião das alternâncias dos períodos de convivência familiar.
Art. 3º A prática de ato de alienação parental fere direito
fundamental da criança ou do adolescente de convivência Art. 7º A atribuição ou alteração da guarda dar-se-á por
familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas relações preferência ao genitor que viabiliza a efetiva convivência da
com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral criança ou adolescente com o outro genitor nas hipóteses em
contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos que seja inviável a guarda compartilhada.

Conhecimentos Específicos 141


APOSTILAS OPÇÃO

Art. 8º A alteração de domicílio da criança ou adolescente


é irrelevante para a determinação da competência relacionada
às ações fundadas em direito de convivência familiar, salvo se
decorrente de consenso entre os genitores ou de decisão
judicial.

Art. 9º (VETADO)

Art. 10. (VETADO)

Art. 11. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 26 de agosto de 2010; 189º da Independência e


122º da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Anotações

Conhecimentos Específicos 142

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