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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

MILENA LEITE PAIVA

A DIREÇÃO DE ARTE NO AUDIOVISUAL BRASILEIRO:


UMA ABORDAGEM SOBRE SUBURBIA

CAMPINAS
2015
MILENA LEITE PAIVA

A DIREÇÃO DE ARTE NO AUDIOVISUAL BRASILEIRO:


UMA ABORDAGEM SOBRE SUBURBIA

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual


de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do
tìtulo de Mestra em Multimeios.

ORIENTADOR: GILBERTO ALEXANDRE SOBRINHO

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA
ALUNA MILENA LEITE PAIVA, E ORIENTADA PELO
PROF. DR. GILBERTO ALEXANDRE SOBRINHO.

CAMPINAS
2015
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Maria Nivaldina Nascimento Leite e Aroldo Araújo Leite, pelo amor e
incentivo aos estudos.
À Cilene Canda e Anderson Paiva, por despertarem o meu interesse pela pesquisa
acadêmica.
À Fundação de Amparo À Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), por financiar e
acompanhar o desenvolvimento desta pesquisa.
À CAPES, pela Bolsa Emergencial de Pesquisa obtida no perìodo inicial do curso.
Ao Professor Doutor Gilberto Alexandre Sobrinho, pela orientação dedicada e precisa.
Aos Professores Doutores Esther Império Hamburger e Március César Soares Freire
pela gentileza e disponibilidade em participar da minha Banca de Defesa e por toda a atenção
dispensada a esta dissertação.
Ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios, por acreditar no potencial deste estudo.
À Rede Globo de Televisão e ao Globo Universidade, em especial a Juan Crisafulli,
pelo apoio a esta pesquisa.
Ao professor e diretor de arte Luiz Fernando Pereira, pelo depoimento instigante e
valioso a esta investigação.
À minha querida amiga Thaìs Vanessa Lara, por compor comigo uma dupla de “ratas de
biblioteca” e pelas nossas infindáveis conversas “acadêmicas”.
Aos demais colegas do Instituto de Artes, Felipe Bonfim, Álvaro André Zeini Cruz,
Regiane Ishii, Renan Chaves, Carol Manabe, Janaìna Welle, Viviana Echávez Molina, Lilian
Bento, Letizia Nicoli, Jennifer Jane Serra, entre outros nomes, pelos momentos vividos e
conhecimentos compartilhados.
Aos bibliotecários do Instituto de Artes, Carlos Eduardo Gianetti e Silvia Shiroma, pelo
atendimento sempre eficiente e gentil.
Aos amigos Renato Kuteken, Rayane Floriano e Sabrina Areco, e aos demais vizinhos
da Casa do Sol, pelo acolhimento e apoio mútuo e, principalmente, pelas inesquecìveis rodas
de conversa nas tardes e noites de Barão Geraldo.
E, por fim, agradeço ao universo, pela oportunidade de realizar o que amo: pesquisar;
pelos caminhos percorridos através desta pesquisa de mestrado e pelas pessoas especiais que
conheci nesta fase da minha vida tão fecunda e especial.
RESUMO

Esta dissertação apresenta uma sistematização dos conceitos e das práticas da direção de arte
na produção audiovisual brasileira, com especificidade na teledramaturgia, tendo como
corpus a minissérie Suburbia (2012), dirigida por Luiz Fernando Carvalho para a Rede Globo
de Televisão. A abordagem apresentada contempla um levantamento de dados teóricos e
empìricos oriundos do universo produtivo da direção de arte, assim como um mapeamento de
produções acadêmicas focadas nesta temática, para posteriormente traçar um entendimento
dos processos da função na cadeia produtiva de uma emissora de televisão, em especial no
contexto institucional da Rede Globo. Com base neste repertório, a pesquisa então se
direciona a uma definição do “lugar” da direção de arte no processo criativo do diretor Luiz
Fernando Carvalho, em cuja obra os principais elementos estruturantes do projeto de arte – a
cenografia, o figurino e a maquiagem – são potencializados pela experimentação visual de
linguagens. Para corroborar as constatações alcançadas, o estudo é finalizado com a análise da
visualidade construìda em Suburbia, considerando as relações conceituais entre narrativa,
encenação e direção de arte, e as suas projeções visuais nas imagens da minissérie. Este
trabalho traz uma compreensão da direção de arte como um campo de pesquisa autônomo, por
se tratar de uma das principais instâncias estéticas da imagem audiovisual, responsável pela
concepção material dos espaços da diegese e atuante na construção de camadas de
significação nos quadros fìlmicos e televisivos.

Palavras-chave: Direção de arte; Audiovisual; Cinema e televisão; Luiz Fernando Carvalho.


ABSTRACT

This thesis presents a systematization of the art direction concepts and practices in the
Brazilian audiovisual production, with specificity in television drama works, with the research
corpus the miniseries Suburbia (2012), directed by Luiz Fernando Carvalho for Globo
Network TV. The presented approach includes a survey of theoretical and empirical data
derived from the production universe of art direction, as well as a mapping of focused
academic productions on this theme, to subsequently draw an understanding of the role's
processes in the supply chain of a television station, particularly in the institutional context of
Globo Network. Based on this repertoire, the research is directed towards a definition of the
'place' of art direction in the director Luiz Fernando Carvalho's creative process, whose work
on the main structural elements of the art project - the scenery, the costumes and the makeup -
are enhanced by the visual experimentation of languages. To corroborate the findings reached,
the study ends with an analysis of the visuals built in Suburbia, considering the conceptual
relations between narrative, staging and art direction, and its visual projections in the
miniseries images. This work brings an understanding of the art direction as a research field
by itself, since it is one of the main aesthetic instances of audiovisual image, being
responsible for the material design of the spaces of diegesis, and being active in the building
of layers of meaning in filmic and television pictures.

Key Words: Art direction; Audiovisual; Cinema and television; Luiz Fernando Carvalho.
SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................................. 1
1. A direção de arte: conceitos e práticas ............................................................................... 5
1.1. Direção de arte e encenação ......................................................................................... 15
1.2. Direção de arte: conceito e projeto ............................................................................... 21
1.3. Paleta de Cores ............................................................................................................. 25
1.4. Cenografia..................................................................................................................... 30
1.5. Figurino......................................................................................................................... 36
1.6. Maquiagem ................................................................................................................... 38
1.7. Efeitos Especiais ........................................................................................................... 40
1.8. Premissas teóricas da análise visual ............................................................................. 42
2. O “lugar” da direção de arte na direção autoral de Luiz Fernando Carvalho ............ 50
2.1. A direção de arte na teledramaturgia da Rede Globo ................................................... 54
2.2. O atual panorama da direção de arte na Rede Globo.................................................... 63
2.3. A direção de arte e o percurso criativo de Luiz Fernando Carvalho ............................ 74
3. A direção de arte da minissérie Suburbia ...................................................................... 105
3.1 Considerações sobre a narrativa de Suburbia ............................................................. 108
3.2 O projeto de arte da minissérie ................................................................................... 118
3.2.1 Pesquisa e Referências visuais............................................................................. 119
3.2.2 Paleta de Cores .................................................................................................... 123
3.2.3 Cenografia, Figurino e Caracterização ................................................................ 123
3.3. Direção de arte e visualidade em Suburbia ................................................................. 124
Considerações Finais ............................................................................................................ 137
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 139
APÊNDICE ....................................................................................................................... 143
1

Introdução

Esta pesquisa nasce de um fascìnio pessoal pela matéria das visualidades. Construìda a
partir de bases teóricas e empìricas, representa uma tentativa de compreensão das criações
visuais humanas que, através de uma apropriação sensorial das luzes, cores, formas e texturas
do mundo tangìvel, se propõem a representá-lo, deformá-lo ou simplesmente reinventá-lo em
recortes espaciais particularizados. A imagem audiovisual pertence a esta linhagem criativa.
As imagens sonoras em movimento e os seus “efeitos de realidade” capturam violentamente
“as cores do mundo”, iludem e rendem os sentidos humanos de tal forma que hoje, podemos
constatar, somos seres audiovisuais, completamente cativos destas linguagens.
Desta conjuntura deriva o fato de vivermos em contextos sociais, concretos ou virtuais,
imageticamente saturados, onde observamos uma acelerada banalização da produção e da
reprodução de imagens, sejam estas privadas, publicitárias, televisivas ou cinematográficas.
Isto não impede, entretanto, que o poder da imagem de transcender o cotidiano e tecer novas
leituras sobre a subjetividade humana ainda se mantenha, sobretudo nas obras artìsticas. Não
seria este, então, o papel da arte? O de fragmentar, deslocar e reorganizar os sentidos da nossa
trajetória existencial, construindo narrativas e visualidades que delineiam novos olhares sobre
a realidade sensìvel e sobre nós mesmos?
Uma das principais instâncias estéticas das imagens cinematográficas e televisivas, a
direção de arte se alinha a esta assertiva ao cooperar na criação de pontos de vista particulares
sobre histórias, seres e espaços. Atuando no processo de configuração de formas audiovisuais
singulares, a função, uma das bases criativas do fluxograma profissional da produção
audiovisual, é a responsável pela transcriação de diretrizes textuais em conceitos,
materialidades e visualidades, sendo a sua matéria-prima principal o mundo concreto
acessado e manipulado pelas sistemáticas da pesquisa e do projeto e reconfigurado pelos
elementos compositivos do espaço diegético: cenário, figurino e maquiagem. A direção de
arte pode ser definida como o principal alicerce plástico da imagem, já que o posterior
registro fotográfico de uma cena está direcionado de certa forma pelas suas bases visuais.
O reconhecimento da importância da função na feitura audiovisual, associado à
constatação da quase inexistência de um campo de pesquisa acerca da direção de arte, nos
estimulou a empreender um estudo que contribuìsse para a ampliação de um repertório de
dados sobre este universo produtivo, tanto em suas questões conceituais quanto práticas. A
estruturação de uma abordagem da função no contexto da produção audiovisual brasileira
mostrou-se, assim, fundamental. Para Aumont (2003, p. 25), o termo audiovisual “(...) designa
2

(...) as obras que mobilizam, a um só tempo, imagens e sons, seus meios de produção, e as
indústrias ou artesanatos que as produzem”. Esta definição contempla uma gama de produtos
midiáticos produzidos para serem veiculados não somente pelas telas tradicionais, mas
também por aparelhos celulares, webcams, internet etc. A abordagem aqui apresentada se
restringe às narrativas ficcionais concebidas nos contextos produtivos do cinema e da
televisão, interessando-nos os seus dispositivos, processos padrões de produção e exibição.
Entende-se que as particularidades da linguagem cinematográfica são referenciais aos demais
formatos, e que, por isso, as obras televisivas mantem um estreito diálogo com os seus
procedimentos, tanto estéticos quanto produtivos.
É preciso não perder de vista, contudo, que a televisão brasileira, por conta do seu
alcance geográfico, social e ideológico, teve durante muito tempo um papel destacado em um
processo de “formação audiovisual” das massas. E que apesar do aumento no consumo de
produtos narrativos para a web, somos um paìs ainda marcado pela influência estética de uma
intensa carga de narrativas televisuais. Entender a construção das visualidades televisivas em
seus pormenores processuais e estéticos mostra-se assim uma investigação premente, tanto
quanto uma abordagem da direção de arte neste contexto produtivo.
A minha formação no campo das artes visuais e das artes aplicadas, propiciada por uma
graduação em Design Visual teve um papel fundamental no desenvolvimento desta pesquisa.
Os estudos da História da Arte, da Estética e da Linguagem Visual e o aperfeiçoamento
técnico nas áreas do desenho, da composição plástica e do projeto gráfico contribuìram para a
apreensão de um repertório teórico e prático essencial na construção de um olhar especìfico
sobre as imagens audiovisuais, deslocado de uma decodificação restritiva somente às
narrativas textuais e imersivo na estrutura visual dos quadros. A este estudo da estética da
imagem se articulou ainda um interesse profissional pelas práticas produtivas na área do
cinema e da televisão, em especial pelos processos criativos da direção de arte, um
conhecimento que é então adquirido em cursos, inicialmente na Academia Internacional de
Cinema e posteriormente em aulas com a diretora de arte Vera Hamburger em São Paulo.
Todo este aprendizado será reiterado pela experiência na realização de curtas.
Daì, então, decorre a ideia de uma investigação sobre o “lugar” da direção de arte no
processo criativo do diretor Luiz Fernando Carvalho. Partindo da concepção de que o
conjunto da sua obra evidencia um forte investimento em visualidades que agregam densidade
estética aos discursos propostos, objetivamos traçar um entendimento do espaço ocupado pela
direção de arte no seu percurso como diretor, em especial nos seus trabalhos na produção de
teledramaturgia da Rede Globo de Televisão. Nas suas minisséries em particular, a percepção
3

de uma direção de arte que aflora na superfìcie da imagem nos arrebata intuitivamente para a
relevância de uma leitura dramática e simbólica dos elementos materiais estruturantes da
espacialidade cênica. São trabalhos que evidenciam uma aposta em projetos de arte
conceitualmente coesos que junto a uma forte estrutura de encenação corroboram a
construção de atmosferas únicas. Todas essas obras mantem ainda traços estéticos recorrentes
que ressaltam um processo criativo de contornos autorais.
Nos resultados finais alcançados nestas produções, observa-se um respeito tanto à
essência dramática do texto quanto aos processos e às demandas das suas equipes técnicas do
departamento de arte, de fotografia, elenco, preparação de atores, montagem, e etc. Sem
preconceitos midiáticos, o diretor demonstra entender e acreditar no potencial estético da
televisão, não somente em termos comunicacionais, mas principalmente educativos. Pelas
suas mãos a produção televisiva toma contornos de obras de arte e promove importantes
reflexões que passam tanto por questões existenciais e ideológicas, quanto por estéticas,
sociais e ambientais.
Assim, escolhemos como objeto de pesquisa a minissérie Suburbia. Com tendências
realistas, em negação ao artificialismo e aos grafismos das produções anteriores de Luiz
Fernando Carvalho, o projeto de arte da minissérie é construìdo por outra chave conceitual. A
direção de arte ainda se instaura na superfìcie da imagem, mas a sua expressividade resulta do
forte investimento em um elemento cênico em especial: a cor. E não à toa. Suburbia de certa
forma traz “novas cores” ideológicas à programação televisiva. A obra não somente aposta no
protagonismo de personagens negros como propõe uma representação ìmpar do subúrbio
carioca, marcado pela violência e pela desigualdade, mas também pelo colorido e riqueza das
manifestações culturais e religiosas afrodescendentes.
Nesta dissertação todos esses conhecimentos e percepções se entrelaçam. O texto final
está estruturado em três capìtulos concebidos de forma a permitir uma ordenação lógica e
objetiva do conjunto de ideias sistematizadas e dos resultados alcançados durante o percurso
de desenvolvimento da pesquisa. Inicialmente apresentamos uma sistematização dos dados
conceituais, teóricos e empìricos que envolvem o tema e o campo de pesquisa abordado, e a
partir disso traçamos as premissas da análise a ser realizada. Já em um segundo momento,
discorremos sobre as particularidades do contexto especìfico onde se localiza o nosso objeto
de estudo, as implicações decorrentes desta inserção nos moldes formais próprios à sua
linhagem criativa para, por fim, realizarmos a análise proposta.
No primeiro capìtulo, apresentamos uma exposição didática dos conceitos e das práticas
que norteiam o universo da direção de arte na produção audiovisual brasileira, tendo como
4

base uma revisão bibliográfica realizada sobre o tema, tanto de abordagens teóricas quanto
empìricas, e um mapeamento de produções acadêmicas que contemplam este campo de
pesquisa. Todo este repertório é então correlacionado ao conceito de encenação
cinematográfica proposto por Aumont (2005), considerando a sua relação estrutural com os
elementos da direção de arte. Por fim, somamos a esta estruturação teórica um apanhado de
conceitos da teoria da imagem, acessados nos trabalhos de Butruce (2005), Aumont (1993;
2004), Block (2010), Dondis (2007) e Arnheim (2004), que serão aplicados na análise visual.
O segundo capìtulo traz uma abordagem histórica concisa da direção de arte no contexto
da teledramaturgia brasileira, em especial na Rede Globo de Televisão. Considerando que a
busca por uma compreensão do “lugar” da direção de arte no processo criativo de Luiz
Fernando Carvalho demandou um entendimento consistente das particularidades processuais e
técnicas da função na televisão, traçamos um panorama do seu desenvolvimento desde os
primeiros anos das transmissões televisivas no paìs até a sua atual configuração na cadeia
produtiva da referida emissora. Por conta dos poucos tìtulos bibliográficos disponìveis sobre o
tema, parte dos dados sistematizados é resultante também de observações e de registros
fotográficos realizados em uma pesquisa de campo na Central Globo de Produção (Projac),
quando visitamos as instalações e os departamentos da emissora ligados à área de arte.
A partir daì, traçamos então o percurso do diretor na teledramaturgia da Rede Globo,
focando em um diagnóstico da relação do seu processo criativo com os elementos da direção
de arte, em suas particularidades formais e potencialidades narrativas. Construìmos, assim,
um painel analìtico das suas principais produções a partir das projeções conceituais e técnicas
da direção de arte nas visualidades construìdas. Toda a discussão proposta foi alicerçada ainda
por relatos pessoais do diretor acerca dos seus processos de criação nas obras, cujos dados
foram acessados nos livros e nos making of‟s dos produtos, e por pesquisas acadêmicas já
realizadas sobre o trabalho do diretor, como a de Collaço (2013), que é dedicada a uma
compreensão do seu processo criativo.
E por fim, no terceiro capìtulo apresentamos a análise da visualidade de Suburbia, que
se sustenta na sistematização de dados e de teorias realizada nos capìtulos anteriores, e em
uma investigação dos processos criativos de Luiz Fernando Carvalho e da equipe de arte na
produção, além de ser substanciada por uma pesquisa de campo realizada no bairro de
Madureira. A abordagem será focada na relação conceitual entre a narrativa e o projeto de arte
da minissérie e na sua expressividade nos espaços pictóricos das imagens.
5

1. A direção de arte: conceitos e práticas

Nos domìnios das narrativas audiovisuais, a direção de arte é uma das instâncias
criativas do projeto estético que define a visualidade de uma obra cinematográfica ou
televisiva1. Responsável pela transcriação de diretrizes textuais em materialidade cênica, a
função atua em conjunto com a direção de fotografia para definir as bases da linguagem visual
da obra - a criação de atmosferas, climas, texturas e cores - que delineadas espacialmente nas
imagens corroboram, assim, a construção de universos diegéticos verossìmeis e a
caracterização das personagens que ocupam e interagem nestes espaços. No contexto das
práticas produtivas, os processos e técnicas envolvidos na função apontam para a elaboração
de um conceito visual adequado à proposta de encenação indicada pelo roteiro (ou outra fonte
textual) e pela direção, e a sua expressão na plasticidade da imagem fìlmica ou televisiva. Em
sìntese: “A direção de arte é a regente maior de toda a estética do filme, da “arte”, do visual. É
ela quem dá a linguagem plástica de determinado filme.” (PEREIRA, 1993, p. 34).
Segundo Hamburger (2014), a primeira creditação da direção de arte no cinema
brasileiro se deu no filme O Beijo da Mulher Aranha (1985), de Hector Babenco, no qual a
função foi assinada pelo diretor de arte Clóvis Bueno, a cenografia por Felippe Crescentti e o
figurino por Patrìcio Bisso. Anteriormente, as demandas relacionadas à concepção da
materialidade e visualidade fìlmicas eram exercidas e creditadas principalmente aos
cenógrafos, que podiam atuar tanto na criação de cenários, quanto na produção de figurino e
de maquiagem. Um dos principais profissionais deste perìodo anterior, citado pela autora, é
Pierino Massenzi, reconhecido pelos seus projetos cenográficos para filmes da Companhia
Cinematográfica Vera Cruz2, entre eles Tico-tico do fubá (1952) e Ângela (1952).

Segundo pode-se apurar, a adoção da função deu-se, pela primeira vez, em 1985,
quando Clóvis Bueno, contando com Felippe Crescentti na cenografia e Patrìcio
Bisso nos figurinos, assinou a direção de arte do filme O beijo da mulher aranha,
dirigido por Hector Babenco. No mesmo ano, Adrian Cooper figurou com o mesmo
tìtulo nos créditos de A marvada carne, de André Klotzel, tendo como colaboradores
Beto Mainieri e Marisa Guimarães, respectivamente, cenógrafo e figurinista.
Atualmente, a formação do departamento de arte, sob a coordenação desse
profissional, tornou-se constante na estrutura da produção cinematográfica
brasileira. (HAMBURGER, 2014, p. 19)

1
A direção de arte está presente em gêneros diversos da programação televisiva, nas diferentes categorias de
informação, entretenimento e educação. Trata-se de uma área de amplo alcance para o audiovisual, no
entanto, vamos nos limitar ao estudo da Direção de Arte em narrativas ficcionais em que há uma produtiva
interface entre cinema e televisão.
2
“Um dos mais importantes profissionais do perìodo anterior à direção de arte, Pierino atravessou diferentes
momentos e escolas do cinema brasileiro entre as décadas de 1950 e 1960. Influenciou com seu trabalho
gerações de cineastas pelo primor técnico embasado no sólido conceito de uma cenografia intrinsecamente
ligada à dramaturgia.” (HAMBURGER, 2014, p. 57)
6

Na televisão, apesar de até hoje a instituição da direção de arte nas produções não ser
uma constante, já há um registro de creditação à função na novela Os Imigrantes de 1981,
produzida e veiculada pela Rede Bandeirantes. Na obra, os trabalhos de direção de arte,
cenografia e figurino são assinados conjuntamente por Gianni Ratto, Augusto Francisco e
Luiz Fernando Pereira3. Contudo, acreditamos que o maior desenvolvimento da função se deu
de fato nas produções cinematográficas, cujos processos têm fortes influências na indústria
televisiva, conforme nos deteremos no próximo capìtulo.
Em uma produção audiovisual, o diretor de arte é o profissional responsável por
coordenar toda a equipe do Departamento de Arte e principalmente por conceber e executar o
projeto de arte: uma sistematização dos conceitos e determinações técnicas que vão orientar
todo o processo de criação da visualidade de uma narrativa fìlmica ou televisiva, em
alinhamento aos prazos estabelecidos no cronograma e às limitações de ordem orçamentária;
e que compreende desde a definição da paleta de cores, alinhada ao desenho da luz, até o
planejamento técnico da cenografia, do figurino, da maquiagem - conceitualmente ampliada
pelo termo visagismo4 (maquiagem, cabelo e gestualidade) - e dos efeitos especiais. Como
define Vera Hamburger (2014, p.18):

Quando falamos em direção de arte, estamos referindo-nos à concepção do ambiente


plástico de um filme, compreendendo que este é composto tanto pelas caracterìsticas
formais do espaço e objetos quanto pela caracterização das figuras em cena. A partir
do roteiro, o diretor de arte baliza as escolhas sobre a arquitetura e os demais
elementos cênicos, delineando e orientando os trabalhos de cenografia, figurino,
maquiagem e efeitos especiais. Colabora, assim, em conjunto com o diretor e o
diretor de fotografia, na criação de atmosferas particulares a cada novo filme e na
sua impressão de significados visuais que extrapolam a narrativa.

A concepção de um projeto de arte eficiente prescinde de uma minuciosa pesquisa do


universo a ser abordado: o contexto histórico, cultural e social a partir do qual se desenvolve a
narrativa, e seus desdobramentos nos comportamentos, gestualidades, costumes e aspectos
materiais retratados. A imersão na subjetividade das personagens e das ações descritas no
roteiro, além de uma extensa iconografia acessada em livros, filmes e revistas de arte, são
importantes fontes de inspiração para a criação do conceito visual que articula os planos da
narrativa ficcional, através da correlação estilìstica das atmosferas e da materialidade cênica
das imagens, definindo o que chamamos de visualidade. Para Barnwell (2013, p. 106) o

3
Informação concedida em depoimento pelo diretor de arte, professor e pesquisador Luiz Fernando Pereira,
podendo ser constatada no seguinte endereço eletrônico http://novelaosimigrantes.blogspot.com.br/.
4
Termo adotado recentemente nas produções cinematográficas brasileiras, originado da palavra francesa
visage/visagism que significa rosto.
7

conceito é “(...) o princìpio unificador que cria coerência na identidade visual do filme. [...]
Esses conceitos adicionam profundidade ao filme e operam em um nìvel metafórico e visual”.
Nas etapas da realização de um filme ou de um produto televisivo, o trabalho do
diretor de arte se inicia no perìodo da pré-produção, quando a leitura e a decupagem do roteiro
e as reuniões com a direção e a direção de fotografia vão determinar as primeiras impressões e
orientações sobre a visualidade da obra (na televisão, este processo frequentemente conta com
a interferência conceitual do autor: o escritor da novela ou série). A partir da definição das
referências visuais e dos dados coletados nas pesquisas, a direção de arte tem, então, subsìdios
para elaborar o conceito visual e construir o projeto de arte. Finalizado o perìodo de
planejamento e conceituação, objetiva-se que durante a produção todas as ideias e indicações
do projeto de arte sejam concretizadas. O storyboard5, os mood boards6, as maquetes, esboços
e desenhos criados segundo as determinações projetuais articulam conceitualmente a
linguagem visual pretendida e orientam o trabalho de toda a equipe do Departamento de Arte.

A partir de um trabalho de grande entrosamento entre o diretor, o diretor de arte e o


diretor de fotografia, que juntos formam a “cúpula do filme”, a “diretoria”, ou seja, o
que chamamos de triunvirato, vamos ter o perfil do filme, a “cara” do filme, suas
tonalidades, suas marcas, seus contornos, sua estética, o produto final. (PEREIRA,
1993, p. 12)

No atendimento a estas demandas projetuais, e considerando-se que a definição e a


atuação da equipe de cinema/vìdeo/televisão pode variar a cada projeto, o diretor de arte atua
em relação direta com o cenógrafo, o figurinista, o maquiador/visagista, o técnico em efeitos
especiais, o continuìsta, o designer gráfico, o produtor de arte e o produtor de locação. Cada
um desses profissionais é responsável pelo processo de criação da sua área especìfica e, a
depender do tamanho da produção supervisiona outros profissionais com funções adjacentes:
o cenógrafo concebe o projeto de cenografia, seleciona e produz os objetos de cena, e
supervisiona um ou mais assistentes, além do cenotécnico, do marceneiro, do produtor de
objetos e do pintor de arte; o figurinista desenha os trajes das personagens e supervisiona um
ou mais assistentes, além da costureira e da camareira; o maquiador/ visagista produz o cabelo
e a maquiagem das personagens; o técnico em efeitos especiais atua no set criando “truques”
mecânicos para cenas em que as ações são “extraordinárias” ou de risco, como no caso das

5
O storyboard pode ou não ser criado pela Arte, sendo normalmente realizado por um desenhista especializado a
partir das orientações do diretor, do diretor de arte e do diretor de fotografia.
6
“Os mood boards (quadros de referência) são montados usando esboços e páginas retiradas de revistas; tudo
isso ajuda a ilustrar o conceito e o clima geral. Isso geralmente inclui indicações de aspectos estilìsticos do
design e comunica ao restante da equipe de que maneira o designer gostaria que fosse a aparência do filme”.
(BARNWELL, 2013, p. 117)
8

explosões e tiros; o continuìsta é encarregado de assegurar a continuidade do cenário e dos


objetos de cena para evitar que seus itens apareçam ou desapareçam de um frame para outro;
o designer gráfico cria a comunicação visual necessária para compor cenários e ações; o
produtor de arte7 é o responsável por administrar todo o orçamento destinado ao
Departamento de Arte; e o produtor de locação, por procurar e selecionar locações, ou seja,
espaços arquitetônicos previamente existentes adequados à encenação proposta. Porém este
último normalmente integra a equipe de produção e atua subordinado às decisões do produtor
executivo, ainda que a partir das indicações do diretor de arte. Todos estes especialistas
trabalham em conjunto para cumprir as proposições visuais estabelecidas no projeto de arte.

A pelìcula irá registrar e fixar o trabalho de Direção de Arte. Portanto, é aqui que
mais se faz necessário sua constante atuação, sua presença ativa em todos os
detalhes, o acompanhamento e a atenção deverão ser redobrados, pois tudo ficará
registrado. Um bom Diretor de Arte não se faz notar somente por seus projetos e
desenhos, mas também pela sua presença no “set” de filmagens, por seu apoio à
direção e por sua participação direta nas soluções de problemas que, com certeza,
aparecerão nessa etapa. (PEREIRA, 1993, p. 64)

Contudo, apesar da grande demanda criativa incumbida à equipe de arte no contexto


das práticas audiovisuais, ainda é possìvel constatar no meio certa minoração da importância
dos processos da direção de arte na construção da linguagem de um filme ou programa
televisivo. O diretor de fotografia é com frequência o mais solicitado e valorizado no set de
filmagem, detendo neste momento o domìnio conceitual no registro das imagens enquanto o
papel conceptivo do diretor de arte nesta etapa é, por vezes, negligenciado.

(...) os fotógrafos realizam um processo de conversão de uma cena que já é


encontrada pronta. Eventualmente pode-se até modificar alguns elementos, mas no
geral, não se pode simplesmente trocar a cena por outra diversa. De certa forma, o
fotógrafo já está condicionado pelo cenário que lhe é apresentado. [...] Isso significa
que boa parte do conceito da imagem do filme já foi estabelecido. A intervenção do
fotógrafo será para transformar tal conceito em informações definitivas com relação
a cor, contraste, profundidade, mas não informações em termos do sentido básico da
cena, em sua natureza. (BUTRUCE, 2007, p.125)

Este status se reflete ainda no perìodo da pós-produção e de finalização da obra.


Normalmente a equipe de arte tem o seu trabalho encerrado ao fim das filmagens e da
chamada “desprodução” da arte (quando os cenários são desmontados e os objetos cênicos são
retirados do set) e o diretor de arte não participa da etapa de edição/montagem, de produção
de efeitos visuais e de tratamento das imagens. A maior parte destes profissionais só visualiza
o resultado final do seu trabalho quando da estreia e veiculação da obra.

7
Na televisão, a função do produtor de arte corresponde ao do produtor de objetos.
9

No entanto, numa situação a ser revista, a participação do diretor de arte nessa etapa
ainda não é uma prática adotada pelas produções nacionais. Coloristas, modelistas
de 3D e especialistas em efeitos digitais seguem as orientações do diretor e do
fotógrafo, muitas vezes com forte interferência no trabalho anteriormente concebido.
(HAMBURGER, 2014, p. 24)

Ademais, embora o investimento nos conceitos da direção de arte seja essencial em


qualquer formato de produto audiovisual, geralmente os resultados alcançados pela função
são reconhecidos somente em determinados gêneros, como em narrativas “de época”, por
evidenciar uma reconstituição de ambientes, indumentária e arquitetura de perìodos históricos
especìficos, e em ficções cientìficas, musicais e fantásticas, nas quais é perceptìvel a aposta
em visualidades extravagantes. Neste sentido, esta pesquisa busca questionar as perspectivas
conceituais e profissionais acerca dos processos da direção de arte, ao defender que a parcela
expressiva que cabe à função nas etapas da realização audiovisual não é tão limitada, cabendo
ao diretor de arte metaforizar e projetar sentidos estéticos que extrapolam os clichês
cinematográficos8. Assim, entende-se que a materialidade manipulada pela direção de arte se
configura como elemento essencial no arranjo compositivo da imagem fìlmica e televisiva,
nos diversos gêneros narrativos, incorporando camadas de significação à narrativa visual e
essência formal à encenação. Pretende-se estabelecer uma relação dialógica entre os processos
empìricos do fazer audiovisual e os conceitos teóricos articulados pela análise fìlmica,
apontando nos elementos da arte a inscrição de uma intensa carga de significados.
Ressaltamos que o conceito de metáfora aqui empregado se alinha ao proposto por
Aumont (2001, p.85) no seu Dicionário Teórico e Crítico de Cinema, que a define como “um
tropo (uma figura de retórica) fundado na „transferência‟ de uma noção ou de uma coisa para
outra noção ou coisa, por substituição de um termo por outro”, e se aplica neste trabalho à
especificidade de determinadas representações visuais construìdas na obra que, alicerçadas em
metáforas visuais, expressam significados e simbologias inerentes à narrativa.
O argumento desta pesquisa é que o uso eficaz dos processos e das técnicas investidas
para a configuração plástica da encenação, aliado à concepção da direção de fotografia, pode
enfatizar a dramaticidade dos elementos visuais e, juntamente à sonoridade e à narrativa,
tornar-se essencial para a fruição da obra. O projeto de arte pode representar, portanto, uma
importante etapa na construção de narrativas audiovisuais, e deve dialogar intensamente com
a proposta estética do diretor, abrangendo os diversos gêneros e estilos narrativos. Para
Pereira (1993, p. 8), por meio da direção de arte

8
Como clichês cinematográficos, entendemos as fórmulas ou estereótipos visuais consagrados principalmente
por produções audiovisuais estritamente comerciais, de fácil absorção pelos diversos públicos.
10

(...) pode-se estabelecer caminhos a serem seguidos que irão caracterizar o desenho
geral do filme, dando subsìdios tanto para o diretor, o fotógrafo e o montador,
resultando um trabalho de conjunção, de união que se traduzirá em mais uma das
texturas do filme. Cada filme, um universo em si, é elaborado e pensado como uma
única peça: o diretor de arte cria e traduz, através do trabalho visual, as concepções
do diretor sobre determinado roteiro.

É importante pontuar que o cinema industrial dos Estados Unidos traz um avanço na
área quando cria e formaliza a função de Production Designer9, um profissional que
corresponderia conceitualmente ao diretor de arte no sistema de produção audiovisual
brasileiro, mas que no âmbito das etapas práticas e projetuais da produção americana tem uma
interferência criativa ampliada. O termo Production Design foi criado pelo produtor David O.
Selznick para o filme “... E o vento levou” (1939), de forma a enfatizar a importância do
projeto de arte construìdo por William Cameron Menzies, que segundo Selznick, extrapola a
sua função de diretor de arte ao conceber a visualidade do filme plano a plano e ao participar
ativamente de todo o processo de construção da imagem audiovisual. O projeto de arte de “...
E o vento levou” é até hoje considerado um dos mais complexos e relevantes da
cinematografia mundial.

Os termos “decoração de interiores”, “direção de arte” e “design de produção”


ilustram a evolução do conceito de se elaborar visualmente um filme. Na primeira
cerimônia do Oscar, em 1927, já existia a categoria “decoração de interiores” que,
em 1947, passou (e continua) a ser “direção de arte”. “Design de Produção”
(production design) surgiu com o filme “... E o vento levou”. (COUTO, 2004, p. 07)

Na estrutura norte-americana, o production designer tem uma atuação essencialmente


conceitual e de estreita parceria projetual com o diretor, o diretor de fotografia e o produtor
executivo, e, além disso, supervisiona os diretores de arte, profissionais que neste contexto
tem uma atuação mais prática relacionada à execução dos projetos no set. O designer participa
de todas as etapas da produção, interferindo amplamente no planejamento da sua linguagem
visual desde o perìodo da pré-produção até a pós-produção, supervisionando inclusive as
etapas da montagem, de efeitos visuais e de tratamento da imagem.
Com base nas particularidades do sistema de produção audiovisual americano, muitos
pesquisadores brasileiros se dedicaram a estudos sobre a direção de arte que acabam traçando
paralelos conceituais e processuais entre as funções, ou ainda estabelecem uma relação entre a
direção de arte e o campo do design a partir do production design. Alguns autores inclusive
propõem uma tradução do referido termo para o português como design de produção, como é
possìvel ser constatado nos seguintes trabalhos: O design do filme (COUTO, 2004) que

9
Traduzido para a lìngua portuguesa como Design de Produção.
11

emprega o termo design de produção em sua abordagem e apresenta uma investigação sobre a
aplicação do conceito de design no cinema e nas suas relações com a tecnologia; Design e
linguagem cinematográfica: narrativa visual e projeto (MACHADO, 2011), um trabalho que
aponta na prática projetual do production design uma aproximação entre o design e a
linguagem cinematográfica; e Um lugar para ser visto: a Direção de arte e a construção da
paisagem no cinema (JACOB, 2006) que não sistematiza conceitos de design, mas considera
a direção de arte como “base estruturante do trabalho fotográfico” a partir da análise dos
filmes Dogville (2003) e A Vila (2004), obras na realidade construìdas sob as perspectivas
projetuais do production design.

Design de produção (production design) é o termo que define a visualidade do filme.


A “atmosfera” geral é formada, principalmente, pela coordenação entre cenografia,
luz e figurino. A concepção cuidadosa desse conjunto enriquece a experiência
cinematográfica. A criação de um “pedaço de espaço” na tela do cinema pode ser
potencializada com a utilização de camadas de significado que comunicam
visualmente aspectos da narrativa. (COUTO, 2004, p. 8-9)

Nesta pesquisa, consideramos que as duas funções, a direção de arte (conforme a


definimos no Brasil) e o production design, são conceitualmente correspondentes, mas devido
às diferenças estruturais e organizacionais dos sistemas de produção em que estão inseridas,
articulam perspectivas projetuais e profissionais distintas. Alguns autores acreditam inclusive
que com os avanços da tecnologia digital no cinema brasileiro, a função de diretor de arte irá
se expandir para a de production designer, agregando ferramentas do design à produção
audiovisual nacional. Como explica Baptista no seu artigo O Design de Produção em Jackie
Brown, de Quentin Tarantino (2010, p. 10):

Nossa hipótese central é que as novas tecnologias de finalização da imagem


favorecem a mudança de uma direção de arte tradicional, onde cenários e objetos
eram organizados para ser captados por uma câmera, para um conceito de Design de
Produção, onde cenários e objetos continuam sendo organizados antes da filmagem,
porém são objeto de importantes transformações na etapa de pós-produção.

Esta dissertação considera que o estudo da direção de arte abrange um amplo campo
de pesquisa que relaciona diversos elementos do universo das artes visuais, da comunicação,
da moda, do design, do teatro, da arquitetura e do cinema para contemplar as especificidades
envolvidas na construção de visualidades e estéticas audiovisuais. Embora acreditemos que
alguns princìpios do design estejam presentes nas perspectivas teórica e empìrica da função,
principalmente nas ideias de conceito e projeto, este trabalho não pretende aprofundar esta
relação, pois isto demandaria tempo e espaço não disponìveis. Iremos considerar aqui o
12

conceito de direção de arte como é entendido nos processos da realização audiovisual


brasileira, e nos deteremos nas teorias do cinema e da análise da imagem audiovisual para
trazer uma discussão sobre a potencialidade expressiva da direção de arte na construção da
encenação fìlmica e televisiva.
No que concerne às diretrizes conceituais e processuais da direção de arte brasileira,
há, contudo, poucos trabalhos referenciais para um estudo sobre o tema. As publicações em
lìngua portuguesa dedicadas à temática são escassas e a maioria dos livros, artigos e manuais
técnicos disponìveis está publicada em lìngua estrangeira, tratando de experiências e
conceitos resultantes, principalmente, de práticas da indústria cinematográfica norte-
americana e do cinema europeu10. No contexto dos estudos sobre audiovisual no Brasil, um
levantamento de publicações indica uma escassez de pesquisas sobre a direção de arte e a
constatação de uma quase supressão dos seus domìnios como um campo de estudo.
Das investigações já realizadas diretamente sobre o tema, um dos trabalhos pioneiros é
a dissertação de Luiz Fernando Pereira A direção de arte: construção de um processo de
trabalho (1993), que traz uma abordagem empìrica, estruturada a partir das experiências do
autor como diretor de arte, cenógrafo e figurinista em filmes nacionais da década de oitenta.
Além desta pesquisa, consideramos outra importante referência acadêmica a dissertação de
Débora Lúcia Vieira Butruce intitulada A Direção de arte e a imagem cinematográfica. Sua
inserção no processo de criação do cinema brasileiro dos anos 1990 (2005), que traça uma
discussão sobre o papel conceitual da direção de arte na estruturação da imagem
cinematográfica e da sua conjuntura histórica no cinema brasileiro, com foco em uma
alteração no status da função a partir de filmes brasileiros realizados na década de 1990. Das
publicações mais recentes, destacamos aqui o livro Arte em Cena: a direção de arte no
cinema brasileiro (2014) da diretora de arte Vera Hamburger, uma obra que se configura
como a primeira publicação a sistematizar de forma didática as diretrizes conceituais e
técnicas da direção de arte no contexto da produção cinematográfica brasileira, a partir das
experiências da autora e do seu diálogo com outros profissionais da área11.

10
Entre outras publicações, destacam-se os tìtulos: Le décor du film (BARSACQ, 1970), Décors du Cinéma: les
studios français de Méliès a nous jours (DOUY, 1993); What an Art Director Does. An introduction to
Motion Picture Production Design (PRESTON, 1994); The Filmaker’s Guide to Production Design
(LOBRUTTO, 2002); e Production Design: Architects of the screen (BARNWELL, 2004). Dessa última
autora, foi recentemente lançado no Brasil o livro Fundamentos da Produção Cinematográfica
(BARNWELL, 2013), que dedica um capìtulo a uma abordagem empìrica sobre a função Production Design.
11
Sobre o livro Arte em Cena: a direção de arte no cinema brasileiro, ver resenha da minha autoria publicada
em: http://www.asaeca.org/imagofagia/index.php?option=com_content&view=article&id=460%3Aarte-em-
cena-a-direcao-de-arte-no-cinema-brasileiro&catid=56%3Anumero-10&Itemid=174 .
13

No que concerne à produção televisiva, uma das referencias desta pesquisa é o livro
Cenário televisivo: linguagens múltiplas fragmentadas (2009) de João Batista Freitas
Cardoso, resultante da pesquisa do autor acerca das particularidades históricas e técnicas da
cenografia na televisão. Além desta, outra publicação fundamental para a abordagem aqui
proposta é o livro Entre tramas, rendas e fuxicos (MEMÓRIA GLOBO, 2007) que embora
não acadêmico apresenta dados empìricos relevantes sobre os processos e práticas da criação
de figurinos na Rede Globo.
Constatamos que há, portanto, uma limitação de fontes de pesquisa sobre a direção de
arte no contexto brasileiro e uma premência acadêmica na estruturação de investigações
teóricas e empìricas convergentes à temática. Por isso, além das referências citadas, para o
direcionamento teórico deste trabalho consideramos também o livro Production Design:
Architects of the screen (BARNWELL, 2004) e Fundamentos da Produção Cinematográfica
(BARNWELL, 2013), que embora estejam focados nas práticas projetuais do Production
Design, traz um arranjo conceitual alinhado aos objetivos deste estudo.
E é neste sentido que tomando como ponto de partida o domìnio dos conceitos
pertinentes a uma compreensão da direção de arte em produtos narrativos ficcionais
cinematográficos e televisivos, onde se verificam fortes pontos de contato, que a presente
dissertação estrutura uma investigação sobre o papel da direção de arte no processo de
realização de obras da teledramaturgia brasileira, focando especificamente na minissérie
Suburbia (2012), dirigida por Luiz Fernando Carvalho para a Rede Globo de Televisão.
Diretor de cinema e televisão, Carvalho tem um longo percurso na direção de produtos
de teledramaturgia e é reconhecido por construir narrativas visuais que rompem com os
padrões tradicionais, destacando-se do conjunto de suas produções, as novelas: Renascer
(1993), O Rei do Gado (1996), Esperança (2002) e Meu pedacinho de chão (2014); e as
minisséries, Os Maias (2001), Hoje é dia de Maria (2005), primeira e segunda jornadas, A
Pedra do Reino (2007), Capitu (2008) e Afinal, o que querem as mulheres? (2010). No
cinema, assina a direção do curta-metragem A Espera (1986), o longa-metragem Lavoura
Arcaica (2001), além do documentário Que teus olhos sejam atendidos (1997).
A partir dos conceitos e práticas da direção de arte, propomos uma análise da
visualidade construìda em Suburbia, com o intuito de demonstrarmos a relevância criativa e
qualitativa da função na construção de narrativas audiovisuais e, consequentemente, como
campo de estudo autônomo. A escolha desta obra como objeto de estudo se fundamenta na
perspectiva autoral das produções realizadas por Luiz Fernando Carvalho e nos processos
criativos investidos na construção do estilo do diretor, compreendendo que um forte
14

diferencial da sua direção está no entendimento da potencialidade da direção de arte como


elemento de renovação da linguagem televisiva e como uma dimensão rica em significação,
essencial na estruturação da encenação e na produção de sentido na obra.
As minisséries do diretor, em particular, se caracterizam como percursos estéticos
originais, cujos projetos de arte revelam um uso criativo da materialidade cênica. A profusão
de citações e o uso de recursos pouco comuns na teledramaturgia geram uma rica
intertextualidade por dialogar com dinâmicas visuais caracterìsticas de outras formas de
expressão artìstica, como o cinema de animação, a ópera, a arte popular e o teatro. O apuro
visual dos seus trabalhos revela ainda uma busca quase obsessiva por alta qualidade técnica e
estética e expressa um amplo domìnio conceitual conquistado por um árduo processo de
trabalho que envolve muita pesquisa e inovação, em todos os campos da criação. Isso se deve,
sobretudo, a uma intensa preparação do elenco e da equipe técnica no que Fernando Collaço
(2013, 17-8) define como período laboratorial da pré-produção:

Os primeiros contornos desse projeto estético podem ser ilustrados mediante a opção
por uma metodologia de extensão e intensificação do perìodo laboratorial de suas
obras. Essa prática facultativa de pré-produção de um produto audiovisual consiste
em um pontapé inicial do processo, uma imersão do elenco e equipe envolvida no
roteiro e na temática que será trabalhada. O laboratório fornece inicialmente aos
envolvidos um panorama amplo sobre o universo da narrativa, buscando abordar
aspectos históricos, sociais e polìticos que tocam a trama, além das múltiplas
referências com os quais se pretende dialogar no decorrer do processo. A visão geral
sobre a produção serve como um guia de criação para os diferentes núcleos da
produção.

Este estudo considera que a construção de visualidades nas minisséries dirigidas por
Luiz Fernando Carvalho está estritamente vinculada a sua percepção estética, e entende a
criação dos conceitos visuais das suas obras como um processo autoral com total ressonância
na atuação das equipes de arte e nos projetos de arte desenvolvidos, o que constitui um traço
convergente da sua produção audiovisual. Portanto, o conjunto das minisséries dirigidas por
Carvalho para a Rede Globo será considerado também como referência ao estudo, assim
como serão relevantes, os estudos sobre a especificidade da direção de Luiz Fernando
Carvalho, como o desenvolvido por Collaço (2013) que analisa o processo criativo do diretor
na minissérie Capitu (2008), e por Pucci Jr (2011, p.98), estudioso da televisão brasileira, que
afirma: “Pode-se ver Luiz Fernando Carvalho como um autor, com recorrências temáticas ou
estéticas de um produto para o outro, autorrevelando a própria essência, em confronto com as
pressões da indústria televisiva”.
15

Este primeiro capìtulo da dissertação é dedicado a uma sistemática dos conceitos e dos
processos da direção de arte. Dividido em subitens, inicialmente apresentamos uma discussão
sobre as relações estruturais entre direção de arte e encenação na construção de visualidades
fìlmicas e televisivas, tendo como base teórica as ideias desenvolvidas por Jacques Aumont
no livro A encenação cinematográfica (2005). Nos próximos subitens, apresentamos uma
descrição das principais etapas criativas de um projeto de arte, base estruturante das práticas
da direção de arte. No último subitem, traçamos as premissas teóricas que irão sustentar a
análise visual do nosso objeto de estudo a ser apresentada no terceiro capìtulo.
Com o intuito de exemplificar esta abordagem, realizaremos ainda análises pontuais de
visualidades construìdas em minisséries do diretor Luiz Fernando Carvalho. Estas produções
não são o objeto de estudo direto desta pesquisa, mas consideramos pertinentes estas
anotações por entendermos que a inserção de questões especìficas sobre o seu processo de
criação contribui para um entendimento das etapas de construção de um projeto de arte.
Destas inserções analìticas, pretendemos estruturar um conteúdo de considerável relevância
para o encaminhamento desta abordagem, o que não seria alcançado caso optássemos por
utilizar exemplos externos ao presente estudo.

1.1. Direção de arte e encenação

Podemos definir a encenação ou mise-en-scène12 como as escolhas formais de um


realizador/diretor sobre o conjunto de procedimentos formado pelo ponto de vista da câmera,
pela iluminação, pelo espaço cênico, pelo figurino, pela caracterização (visagismo) e pela
atuação e gestualidade dos atores, objetivando a estruturação de um discurso fìlmico ou
televisivo; o que implica, portanto, em decisões relativas à localização da câmera e da duração
de planos, em “organizar as deslocações, os movimentos, a „coreografia‟ dos corpos dos
atores, os ritmos de elocução, os olhares” e “pensar na cenografia, no guarda-roupa e nas
iluminações” (AUMONT, 2005, p. 51). Nos processos da realização audiovisual, a encenação
é construìda como uma tradução do roteiro e como a substância formal do fabrico de mundos
artificiais, coerentes ao discurso narrativo e suficientemente verossìmeis para capturar os
sentidos do espectador.

12
É recorrente nos estudos audiovisuais brasileiros, a opção pelo uso da palavra mise-en-scène (termo originário
da tradição cinematográfica francesa) ao invés de encenação.
16

A encenação é, pois, nem mais nem menos, o instrumento que permite construir, a
partir dos elementos do mundo (mesmo que totalmente teatrais), a apresentação
convincente de uma história, que nos permite recebê-la com prazer, compreendê-la e
atribuir-lhe um estatuto ontológico muito particular (o da simulação lúdica, ou
ficção). Definição enganadora? Sim e não. Tem contra si a sua evidência aparente;
mas insiste, justamente, no logro que pode constituir essa evidência, e o necessário e
permanente regresso à consciência do fabrico, como parte do contrato que o
espectador deve celebrar com o filme (AUMONT, 2005, p.163)

Este estudo traz um entendimento da encenação como a base estruturante dos conceitos
e práticas da direção de arte, considerando esta uma relação fundamentada em aspectos
conceituais e empìricos da feitura fìlmica, com importantes desdobramentos na composição
da imagem e da visualidade audiovisual. Na medida em que os processos circunstanciados na
construção da materialidade cênica estão estritamente ligados às definições do diretor acerca
da proposta cênica de transcrição do texto ficcional em realidade sensìvel, a direção de arte
pode ser interpretada como a função que alimenta as premissas materiais da encenação, pois,
se o roteirista e o realizador idealizam universos diegéticos, cabe ao Departamento de Arte
materializá-los. Como base teórica-chave desta investigação, determinamos o alicerce
conceitual estruturado nas discussões de Jacques Aumont (2005) acerca da encenação
cinematográfica13, para, a partir das suas considerações, alcançarmos uma instrumentalização
para a análise do corpus desta pesquisa.

A encenação como “lìngua” do cinema, enquanto forma espontânea de apresentar


mundos possìveis – e, ao mesmo tempo, portanto, como o próprio exercìcio da arte.
Mas isto significa também que é um instrumento formal, que não fabrica apenas
imagens credìveis de mundos, sequências de acontecimentos de ficção – mas que
produz também algo como estruturas, mais ou menos abstratas [...] as principais
opções que se oferecem ao encenador têm consequências imediatas sobre o universo
diegético, sobre os sentimentos que nos serão sugeridos, sobre as nossas reações,
mas são também os parâmetros das estruturas possìveis. (AUMONT, 2005, p.163)

Para Aumont (2005), a encenação, como um conceito associado ao princìpio do cubo


cenográfico teatral criado sob uma perspectiva datada do teatro, se fundamenta em um ponto
de vista sobre personagens que dialogam e se deslocam em tempo e espaço definidos; e se
materializa no palco italiano, composto por um cenário em que os atores, caracterizados como
personagens, se movimentam e gesticulam no tempo narrativo, e podem entrar ou sair de cena
por bastidores à direita e à esquerda. Esta caixa, aberta apenas em um dos seus lados, permite
que o espectador na plateia possa assistir à cena, que emoldurada por um quadro, se estrutura,
por fim, em uma composição essencialmente pictórica.

13
AUMONT, Jacques. O cinema e a encenação. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2005.
17

Oriundo das tradições pictórica e teatral, o cinema ficcional herdou, desde as suas
origens, esta estrutura de encenação como sustentáculo narrativo, concebendo a disposição
dos planos como quadros. Mas, se no primeiro cinema a encenação fìlmica era essencialmente
teatral, caracterizada pelo enquadramento fixo e por uma atuação caricata do elenco, com a
estruturação da linguagem cinematográfica e as transformações formais advindas de novas
concepções da feitura fìlmica alcançadas pelo desenvolvimento dos dispositivos técnicos de
produção, pela experimentação de realizadores engajados e pelo surgimento de estilos
particulares de encenação, o cinema desenvolveu e conquistou uma encenação com feições
próprias, adaptada às suas especificidades.
Desde A saída dos operários da fábrica (1895), contudo, explica Aumont, quando os
Lumière decidiram pelo ângulo do qual iriam filmar os operários saindo da fábrica, o cinema
já dava indicações de possuir uma perspectiva cênica própria, pois se a estrutura do palco
teatral condiciona a um ponto de vista fixo sobre a encenação, no registro fìlmico o realizador
cinematográfico tem liberdade de escolher onde montar a câmera para capturar o ponto de
vista que melhor convém na sua representação da narrativa.

[...] a encenação de cinema, oriunda da do teatro, conservou, apesar de todas as suas


transformações, a noção genérica de um condicionalismo ligado ao ponto de vista;
mas, por outro lado, a natureza profundamente documental do cinema leva-o a
mimar a liberdade mais total do ponto de vista, porque se trata sempre de sugerir –
mesmo e, sobretudo nos filmes fantásticos – que um filme é a exploração de um
mundo por um observador que, sobre nós, tem apenas uma superioridade, a da
ubiquidade. (AUMONT, 2005, p.51)

A encenação pode ser entendida, assim, como um ponto de vista. O ponto de vista de
um realizador sobre um determinado recorte de mundo, estruturado, segundo Aumont, a partir
de três pontos de sustentação: o espaço, o tempo e o acaso, cabendo ao cineasta gerir estas
unidades no seu percurso criativo. O espaço seria, assim, o espaço cênico que abriga a
encenação; o tempo, o “molde de ponto de vista-duração” 14; e o acaso, os acontecimentos ou
ações inesperadas que poderiam vir a surgir no momento da filmagem, sendo normalmente
associado ao desempenho dos atores.
A direção de arte manipula essencialmente dois dos pontos acima descritos: o espaço e
o tempo. A concepção do espaço cênico, em todas as suas nuances, é de inteira
responsabilidade do Departamento de Arte, cabendo diretamente ao cenógrafo e à sua equipe
projetar materialmente as representações espaciais definidas no roteiro através da construção
de estruturas tridimensionais concretas e da seleção de objetos cênicos, sempre em

14
AUMONT, 2005, p. 158
18

conformidade às orientações do diretor. Já o tempo, é manipulado nos processos da direção de


arte segundo duas perspectivas. Primeiro, na representação temporal da narrativa a partir da
materialidade cênica construìda, e segundo, na representação das suas mudanças, que pode
não somente ser expressa pelas intervenções da iluminação sobre a cenografia, mas também
pelos desgastes temporais gravados nas estruturas materiais da cena, alcançados
principalmente pela manipulação de texturas e da paleta de cores.
O processo de estruturação da encenação esteve durante muito tempo atrelado ao que
Aumont denomina de planificação, método de escrita do roteiro criado no contexto das
práticas do studio system hollywoodiano. Surgido na época de ouro da indústria
cinematográfica dos Estados Unidos, este método consiste no planejamento sistemático e
meticuloso das cenas, articulando, “a história, mas já contada em pequenos pedaços, cada um
dos quais corresponde, pelo menos potencialmente, a um plano, a uma unidade de
filmagem”,15 de forma a facilitar o trabalho dos realizadores no perìodo das filmagens. A
planificação referencia diretamente a já citada encenação teatral, caracterizada por uma inteira
dependência ao texto literário, e deve sintetizar um ponto de vista especìfico sobre a narrativa,
expressando, por vezes, a sua essência discursiva. Como explica o autor: “[...] uma “boa”
planificação é a que sabe associar a lógica e a inventividade, a coerência dos pontos de vista e
a sua variedade, a continuidade do olhar e a sua expressividade” 16.

A grande maioria dos cineastas, pelo menos os que trabalham na indústria,


preocupa-se especialmente com o domìnio e com o cálculo. Se o studio system de
Hollywood previa a possibilidade de ensaios com os actores, era certamente para
permitir que o realizador aperfeiçoasse as suas ideias de encenação, confrontando-se
com a prova dos corpos e dos cenários efectivos – mas era também para evitar as
derrapagens, para limitar o imprevisto, para que o resultado obtido fosse tão
próximo quanto possìvel do resultado esperado. (AUMONT, 2005, p.170)

Para a direção de arte, a perspectiva industrial do cinema representou uma maior rigidez
e controle dos processos criativos, e o estabelecimento de regras e sistemas de atuação
profissionais. O formato exigiu a organização produtiva e funcional das equipes e dos ofìcios
que favoreceu o surgimento de nomenclaturas e termos apropriados para as práticas da
função. Além disso, com o desenvolvimento do studio system, observou-se um
aprimoramento tanto nos métodos de construção de cenários quanto no desenho e na
confecção de figurinos e nas técnicas de maquiagem. Neste esquema de produção, o trabalho
da equipe da arte tendia a ser condicionado ao ponto do vista do texto e da direção.

15
Ibid, p. 52
16
Ibid, p.52
19

O cinema norte-americano, o primeiro a criar um sistema de produção, tomou por


base a representação naturalista do mundo real, o mundo observado através de uma
janela. Era o studio system norte-americano, onde todos os cenários eram
construìdos em estúdio e as paisagens reproduzidas por pintura ou projeção. Como
resultado, o diretor tinha o controle total da realidade criada, ao mesmo tempo que o
que estava por trás das câmeras era totalmente invisìvel ao espectador. A palavra de
ordem era “parecer verdadeiro”. Esse naturalismo de base conferia uma sensação de
realidade aos gêneros projetados na tela: o faroeste, o musical, o filme de gângster.
(AYRES, 2011, p.86)

No entanto, quando ao final da segunda guerra mundial surge o neorrealismo


italiano, essas estruturas de produção são completamente repensadas. O movimento, que
marca um momento-chave da história do cinema, questiona as produções fìlmicas realizadas
até então e defende uma concepção da encenação enquanto um gesto autônomo do realizador.
Esta nova perspectiva da criação cinematográfica institui uma mudança radical no
pensamento do cinema e doravante a estrutura cênica deixa de ser tão milimetricamente
calculada e dominada pelas asserções do texto, dando ao ator uma maior liberdade de criação
sobre diálogos e gestualidades. Além disso, o surgimento de equipamentos mais leves
possibilitou a realização de filmagens longe dos estúdios fechados e controlados, e assim o
espaço cênico passou a ser o próprio mundo real: os realizadores saìam às ruas e capturavam
seus “recortes de mundo” sem tantas amarras técnicas, engajados em retratar a realidade
social e econômica da sua época, propondo uma estética mais documental e construindo o que
Aumont define como segundo cinema.
Influenciados por estes ideais neorrealistas, jovens crìticos da revista francesa Cahiers
du Cinema, entre eles, Jean Luc Godard e François Truffaut, que posteriormente viriam a ser
diretores de destaque da Nouvelle Vague francesa, criam na década de 1950 a chamada
política dos autores, uma perspectiva ideológica que define o fazer cinematográfico como
uma arte de expressão da individualidade do realizador, agora entendido como um autor. Os
textos exaltavam a especificidade da encenação de grandes diretores do cinema clássico,
como Orson Welles e Alfred Hitchcock, e ao propagarem o ideal da autoria no cinema, não só
valorizavam o trabalho solitário do artista que pensava a encenação fìlmica, como também o
inseria na mesma categoria de valor da literatura e da pintura.

No inicio, o cinema não tinha qualquer termo para designar o homem responsável
pelo carácter do filme. Com o crescimento das ambições artìsticas e da
especialização das tarefas, o vocabulário desenvolveu-se e diversificou-se, segundo
dois eixos – o do oficio e o da arte: havia, de um lado, o realizador e encenador; do
outro, cineasta e, depois, autor. (AUMONT, 2005, p. 20)
20

O movimento neorrealista e a política dos autores influenciaram toda uma geração de


crìticos e cineastas e transformaram substancialmente o ideal da encenação cinematográfica.
No Brasil, esta nova conjuntura propiciou o surgimento do Cinema Novo, movimento de
vanguarda da década de 1960 que teve no cineasta Glauber Rocha um dos seus maiores
expoentes, e que propôs por meio de sua estética da fome uma produção fìlmica adaptada às
condições materiais do subdesenvolvimento latino-americano. Os filmes cinemanovistas,
realizados a partir da máxima de Glauber “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, se
particularizaram por uma encenação estruturada na opacidade do discurso e no
experimentalismo para representar politicamente questões nacionais, propondo uma reflexão
crìtica sobre problemáticas sociais do paìs.

A encenação, nos anos 30, era uma disciplina de ferro, que decorria do respeito total
exigido por um texto; em certas circunstâncias, podia-se retocar o texto, mas a
encenação continuava a ser secundária. Nos anos 50, o advento de formas
cinematográficas nas quais se fazia a economia do tempo da encenação
propriamente dita, a evolução para uma leveza cada vez maior, por um lado, e cada
vez mais sofisticação dos meios técnicos, por outro, transformaram profundamente o
caráter daquilo a que se continua a chamar de “encenação”. (AUMONT, 2005,
p.173)

Alteradas as convenções estruturais da encenação, mudanças significativas se


processaram também nos domìnios da direção de arte, principalmente no que concerne a uma
percepção profissional sobre as suas práticas. Este estudo não se propõe a dar conta das
minúcias históricas envolvidas neste processo, mas apontar nestas transformações algumas
alterações significativas. Inicialmente é fácil imaginar que a partir destes filmes que
questionavam conceitualmente a estrutura dos estúdios, os realizadores passaram a
compreender a cenografia, o figurino e a maquiagem de forma completamente diversa. Como
explica Butruce (2007) “A artificialidade, para eles, da cenografia de estúdio, contrapõe-se ao
desejo de apreender a realidade tal como ela é” e, ademais, “[...] o diretor é quem estará no
cerne do processo criativo, havendo uma certa negligência em relação às outras funções que
pudessem contribuir com a criação, como a direção de arte”. À encenação nas ruas se opunha
todo o aparato cenográfico do studio system, os figurinos e acessórios glamorosos, e a
maquiagem densa. Agora o mundo e a sua materialidade natural era o cenário que comportava
a encenação fìlmica. Os figurinos seguiam uma tendência ao improviso, assim como a
produção de maquiagem e cabelo, e as equipes de arte perdem espaço no processo de
concepção e realização das imagens cinematográficas.
21

No contexto da produção audiovisual contemporânea, após o declìnio deste modelo


ideológico, o conceito de encenação adquire um novo sentido. Para Aumont (2005, p.177)
“[...] a falência deste programa estético deixou o encenador e a encenação livres de qualquer
dependência – e órfãos de qualquer projecto artìstico particular”. Hoje não há regras estéticas
definitivas. Cada realizador segue o seu próprio modelo de encenação, e os sistemas técnicos
que melhor convém à sua narrativa. Mas nesta equação contemporânea, a liberdade de
estruturação do ponto de vista não cria necessariamente autores. A encenação estaria
onipresente nas produções atuais, mesmo nas documentais, porém de forma pontual, sem
inventividade.
Este estudo considera Luiz Fernando Carvalho como um realizador que se destaca neste
panorama. As suas obras demonstram uma perspectiva particular de estruturação da
encenação que conduz a narrativas audiovisuais originais e inovadoras no contexto televisivo.
E, neste sentido, podemos defini-lo como um autor, com um estilo recorrente no conjunto da
sua produção. Para uma conceituação de estilo, utilizamos aqui como referência o conceito
definido por David Bordwell (2013, p.17), assim elaborado:

No sentido mais estrito, considero o estilo um uso sistemático e significativo de


técnicas da mìdia cinema em um filme. Essas técnicas são classificadas em domìnios
amplos: encenação (encenação, iluminação, representação e ambientação),
enquadramento, foco, controle de valores cromáticos e outros aspectos da
cinematografia, da edição e do som. O estilo, minimamente, é a textura das imagens
e dos sons do filme, o resultado de escolhas feitas pelo(s) cineasta(s) em
circunstâncias históricas especìficas.

Esta pesquisa pretende definir o “lugar” da direção de arte no estilo de Carvalho,


realizando uma investigação sobre os processos de criação das visualidades das suas obras e
uma análise das especificidades do projeto de arte de Suburbia. Nos próximos subitens
apresentamos uma sistematização dos conceitos e das práticas que norteiam a estruturação de
um projeto de arte, em suas relações teóricas com os estudos de Aumont.

1.2. Direção de arte: conceito e projeto

No âmbito dos processos da direção de arte, conceito e projeto são palavras-chave. A


concepção da materialidade cênica fìlmica ou televisiva resulta de práticas recorrentes nas
produções audiovisuais, mas que se relacionam inteiramente às premissas conceituais
particulares do projeto de arte. Esta perspectiva projetual pode ser definida, como já dito,
22

como uma sistematização dos conceitos e determinações técnicas que vão orientar todo o
processo de criação da visualidade de uma narrativa fìlmica ou televisiva, em alinhamento aos
prazos estabelecidos no cronograma e às limitações de ordem orçamentária; compreendendo
desde a definição da paleta de cores, alinhada ao desenho da luz, até o planejamento técnico e
conceitual da cenografia, do figurino, da maquiagem e dos efeitos especiais. A partir dessas
diretrizes, e com base na proposta da encenação, a direção de arte concebe visualidades de
mundos ficcionais, mas totalmente crìveis.
A composição da imagem ficcional, seja estática ou em movimento, sempre carrega
em si o registro de um processo de criação pautado na manipulação de materialidades
especìficas para expressar uma ideia ou sentido, que aqui definimos como conceito visual. Em
uma obra audiovisual, o conceito visual norteia todo o processo de construção da
materialidade cênica, tornando-se essencial para a estruturação da encenação, e agregando
novas camadas de significação à composição imagética. Operando no nìvel subjetivo e
metafórico das obras, a força conceitual das imagens de um filme ou produto televisivo é
expressiva nos seus planos, concebendo a obra como um produto de linguagem visual única.
Como explica Barnwell (2004, p.52, tradução nossa): “Sem conceito não há um projeto total,
apenas elementos de configurações distintas. Portanto, uma função do designer é evocar a
ideia que vai unir todos os elementos em um todo compositivo”. Assim, a criação conceitual é
uma etapa essencial do projeto de arte, pois uma visualidade construìda sob um forte conceito
promove a imersão do espectador na diegese, estruturando a narrativa por um sentido abstrato
que permeia a atmosfera das cenas.

Após a pesquisa, o designer projeta o conjunto de elementos que atuam e criam


sentido junto ao roteiro, fortalecendo o produto final. O conceito pode ser muito
variado, extraìdo de uma conexão feita pelo designer com o roteiro, e como tal uma
resposta excepcionalmente individual. Não há um modo certo ou errado de
conceituar, apenas a percepção de algo que se possa trabalhar com um maior êxito,
que tende a ser aquilo que nós recordaremos […] (BARNWELL, 2004, p. 53,
tradução nossa)

Segundo Aumont (2005, p.164,166), “a obsessão pela estrutura e pela estruturação


começou muito cedo na história do cinema”, e se manifestou inicialmente na plasticidade e
nos grafismos da composição do quadro fìlmico principalmente na época do cinema mudo. O
autor cita os filmes alemães do inìcio da década de 1920 como obras que evidenciam esta
tentativa de estreitamento da relação formal entre cinema e pintura, ao buscarem na estética
do expressionismo pictórico, as principais referências para a estruturação das suas imagens; o
que “resulta certamente em formas simples e surpreendentes, mas que a sua própria natureza
23

de imitação limitava a efeitos superficiais”. Já os cineastas soviéticos são mais convincentes


“e menos pictóricos” quando tentam desenvolver regras de enquadramento e composição do
quadro que são especificamente cinematográficas. Na década de 1960, Noël Burch propõe
uma abordagem formalista, buscando um entendimento acerca das “estruturas” próprias da
encenação cinematográfica que “pensa menos em fenômenos de composição na superfìcie do
quadro do que numa espécie de composição musical, no tempo, no que diz respeito à
sucessão, ao encadeamento e às relações entre os planos”.
Consideramos neste estudo, a proposição de uma estruturação da encenação a partir do
conceito visual, definindo-o como um elemento subjetivo que interrelaciona planos, tanto no
que tange aos aspectos materiais quanto aos compositivos, e constrói a visualidade. Esta
criação conceitual perpassa não somente as asserções projetuais da direção de arte, mas se
complementa nos processos da direção de fotografia, que é a responsável pelo posicionamento
e deslocamento da câmera e pelas relações estabelecidas entre iluminação e paleta de cores.
A direção de arte é a responsável por construir o conceito visual que irá nortear toda a
criação do Departamento de Arte. Correlacionando visualmente desde a escolha da paleta de
cores até a construção do projeto cenográfico e a caracterização das personagens, esse
processo deve se fundamentar no entendimento das diretrizes dramáticas do texto, na
compreensão do ponto de vista do diretor sobre a narrativa, na percepção particular do diretor
de arte e em uma intensa pesquisa de referências visuais.
As indicações da estrutura da encenação da obra a partir do roteiro é um método ainda
recorrente nas produções audiovisuais brasileiras, e se integra inteiramente aos processos
produtivos da direção de arte. A descrição formal das cenas aliada ao storyboard apresenta
uma articulação de dados narrativos essenciais para a criação dos conceitos. Uma das
primeiras etapas do processo criativo do diretor de arte consiste em realizar uma decupagem
do texto e desta análise extrair as principais indicações cênicas sobre personagens e ações, e
as definições de espaço-tempo que irão orientar a construção do projeto de arte.
E neste ponto, a determinação da época em que se passa a narrativa traz questões
cruciais à representação. Se a narrativa se contextualiza na contemporaneidade, o processo de
criação da direção de arte poderá ser mais simples, pois possivelmente a equipe de arte terá
menos restrições na seleção dos elementos materiais para a composição do espaço cênico. No
entanto, se a história retratar épocas remotas, como nas narrativas sobre o passado ou o futuro,
novas necessidades emergem para a encenação. Na produção das narrativas “de época” a
equipe de arte provavelmente deverá se debruçar em pesquisas históricas bem mais
especìficas e detalhadas de processos, materiais e visualidades do perìodo (buscando
24

referências visuais principalmente em livros, revistas e filmes), demanda que em algumas


produções determina a contratação de profissionais apenas para esta função. Além disso, as
necessidades materiais do projeto provavelmente implicarão em mais custos de produção,
principalmente no que se refere à comercialização de antiguidades e de materiais raros, além
da contratação de mão-de-obra especializada para serviços muito especìficos.
Conceitualmente cabe ao diretor e ao diretor de arte decidir: pela reconstituição
histórica rigorosa (o que implicaria em uma fidelidade à arquitetura, roupas, objetos e móveis
do perìodo); ou retratar apenas o espìrito da época, ou seja, representar a atmosfera visual do
perìodo, mas não se ater aos detalhes de uma materialidade datada. Já as narrativas
ambientadas no futuro permitem uma maior liberdade de criação no set, pois a direção de arte
terá menos implicações quanto à autenticidade visual, já que não existem certezas quanto às
condições futuras. Seja qual for o contexto temporal representado, a etapa da pesquisa de
referências visuais será essencial, pois, se bem realizada, acrescenta profundidade e
intensidade visual às imagens.

Mas se o roteiro é ambientado no passado ou no futuro, o designer tem que pensar


muito cuidadosamente sobre as opções disponíveis. Se o filme for ambientado no
passado, a filmagem em locação vai exigir que qualquer coisa que não seja daquela
época seja removida, como postes de eletricidade e linhas amarelas nas estradas. A
pesquisa histórica ajudará a informar o designer sobre a aparência de uma época
específica. Assistir a outros filmes ambientados no mesmo período também
permitirá que o designer veja como eles foram representados. (BARNWELL, 2013,
p. 115)

Contudo, as diretrizes conceituais da direção de arte são fundamentadas não somente


no texto, mas, sobretudo, no diálogo construìdo entre o diretor de arte e o realizador. O nìvel
do entrosamento entre ambos pode definir todo o percurso criativo do Departamento de Arte e
ter importantes desdobramentos na visualidade da obra. Este estudo pressupõe que em
projetos audiovisuais mais autorais, o estilo do diretor tem influência direta na criação do
conceito visual da obra, sendo quase inteiramente o responsável pela criação dos conceitos, e
que, em alguns casos, pode determinar um intenso investimento nos elementos da direção de
arte como um meio de expressão. Luiz Fernando Carvalho se encaixa neste perfil de diretor.
Como um autor, o conjunto das suas obras revela um estilo pessoal que potencializa
conceitualmente as construções materiais da direção de arte e a estruturação da encenação,
dilatando a força expressiva das imagens.
Capitu, minissérie dirigida por Carvalho e veiculada pela Rede Globo no ano de 2008,
é, por exemplo, uma obra de força conceitual. Adaptada do livro Dom Casmurro (1900), do
escritor Machado de Assis, é perceptìvel no resultado final alcançado nas imagens o intenso
25

processo de pesquisa e imersão do diretor e da sua equipe no universo literário do escritor e na


conjuntura histórica, de fatos, hábitos e costumes sociais, da arquitetura, dos objetos e da
indumentária da época retratada na obra; enfatizando, todavia, as suas projeções na
contemporaneidade. Com base na análise da sua narrativa, e nas informações coletadas a
partir do material suplementar ao produto de teledramaturgia, livro e making of, este estudo
considera que o conceito visual articulado para a construção da visualidade da minissérie se
baseia na essência da obra de Assis, sintetizada na frase extraìda do seu texto literário “A vida
é uma ópera”, que, como viés conceitual determina como principais referências visuais para a
direção de arte o universo operìstico, o contexto social do advento da modernidade no Rio de
Janeiro e suas reverberações no texto de Machado de Assis. No segundo capìtulo desta
dissertação iremos apresentar dados, conceitos e ideias que nortearam o processo criativo de
Luiz Fernando Carvalho e da sua equipe e seus resultados formais na visualidade da obra.

Figura 01. Conceito visual em Capitu: “A vida é uma ópera”.


Fonte: Capitu, 2008. (Frame)

1.3. Paleta de Cores

Na concepção de visualidades cinematográficas ou televisivas, a paleta de cores pode


ser definida como a composição cromática que estrutura formas e texturas da materialidade
cênica, e se constitui como uma camada expressiva essencial na construção da encenação e na
criação da atmosfera e do clima da narrativa, interferindo diretamente na plasticidade da
26

imagem audiovisual. A escolha da paleta de cores deve estar relacionada ao conceito visual
que se pretende expressar e é uma das etapas mais importantes da criação do projeto de arte,
já que definir as cores de um filme ou minissérie é definir o elemento visual que perpassa toda
a construção da direção de arte, desde a cenografia e a luz, até a maquiagem e efeitos
especiais. Para a análise a ser apresentada nesta dissertação, iremos considerar, sobretudo, as
particularidades plásticas da cor e a sua potencialidade em estimular sensações especìficas no
espectador, considerando a sua inserção nos processos criativos da direção de arte e os
princìpios que regem a veiculação da cor pelos meios audiovisuais.
É importante pontuar, contudo, que enquanto fenômeno óptico a cor não tem
existência material17. A cor ou matiz é uma sensação visual resultante do estìmulo fìsico da
luz (radiação eletromagnética) sobre o olho humano e corresponde a comprimentos de onda
do espectro luminoso, sendo sete os matizes principais identificados na decomposição da luz
branca: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta; as cores do arco-ìris. Como
explica Guimarães18 (2000, p. 12):

O estímulo físico ou meio, carrega consigo a materialidade de uma das fontes, ou


causas da cor – a cor-luz ou cor-pigmento. O cérebro – e o órgão da visão como sua
extensão – é o suporte que decodificará o estímulo físico, transformando a
informação da causa em sensação, provocando, assim, o efeito da cor.

As principais caracterìsticas que determinam a aparência de uma cor são o matiz


(coloração definida pelo comprimento de onda), o croma (saturação ou pureza da cor) e o
valor (luminosidade ou o quanto a cor se aproxima do branco ou do preto) 19. As cores podem
ser classificadas em cor-luz (incidência dos raios luminosos), que tem como cores-primárias o
vermelho, o verde e o azul violeta, e em cor-pigmento (substâncias corantes opacas) que tem
como cores-primárias o ciano, o magenta e o amarelo. O cinema e a televisão, cada qual com
as suas particularidades técnicas, são mìdias que se caracterizam pela reprodução de imagens
compostas por cores-luz. Assim, é possìvel afirmar que nos processos criativos da direção de
arte, a equipe de arte manipula os dois tipos de cores: cores-pigmento, no figurino, na
cenografia e na maquiagem, e cores-luz, na relação entre iluminação e espaço cênico. O
resultado final, o desdobramento das construções materiais da arte nas imagens da obra é
visualizado em cores-luz.

17
O que se percebe como a cor de uma coisa ou objeto é a reflexão da luz sobre a quìmica da matéria.
18
Ver: GUIMARÃES, Luciano. A cor como Informação. A construção biofísica, lingüística e cultural da
simbologia das cores. São Paulo: Annablume, 2000.
19
GUIMARÃES, 2000, p. 54.
27

A cor-luz (luz colorida) é a radiação luminosa visível que tem como síntese aditiva a
luz branca. Sua melhor expressão é a luz solar, por reunir de forma equilibrada todos
os matizes existentes na natureza. [...] A cor-pigmento é a substância material que,
conforme sua natureza, absorve, refrata e reflete os raios luminosos componentes da
luz que se difunde sobre ela. É a qualidade da luz refletida que determina a sua
denominação. O que nos leva a chamar um corpo de verde é a sua capacidade de
absorver quase todos os raios da luz branca incidente, refletindo para nossos olhos
apenas a totalidade dos verdes. (PEDROSA, 2010, p.20)

Mas independente de qual tipo de cor está sendo manipulada, para uma concepção
eficiente da linguagem visual de uma obra é essencial que se invista na harmonização das
cores que compõem os elementos visuais da materialidade cênica. Em um arranjo cromático,
a interação entre as cores pode acarretar diferentes e inesperados sentidos na visualidade
construìda, como intensos contrastes entre figura-fundo, e diferentes sensações, como as de
temperatura, proporcionadas pelo uso de cores quentes (matizes da faixa amarelo-laranja-
vermelho) ou cores frias (matizes da faixa verde-azul). Cabe a Direção de arte saber explorar
a potencialidade expressiva das cores, sem limitações criativas e ideológicas pré-concebidas.

Embora tenha-se feito muitos testes de cores e luz, precisa-se ficar muito atento
neste momento, pois vai acontecer aqui a mescla de todos os elementos visuais,
cenário, figurino, representados pelas cores-pigmento, e iluminação, representada
pela cor-luz. O Diretor de Arte e o Diretor de Fotografia devem estar em grande
afinidade para resolverem quaisquer problemas que envolvam tal formalização.
Muitas vezes será necessário trocar alguma roupa ou mudar alguma gelatina para se
chegar à harmonia entre cores e iluminação. (PEREIRA, 1993, p. 72)

A observação destes aspectos é determinante para a definição da paleta de cores. O uso


da cor em uma obra audiovisual demanda planejamento e conhecimento acerca dos seus
aspectos técnicos, culturais e sensoriais, pois a manipulação eficiente da sua expressividade e
dos seus significados amplia a potencialidade estética das imagens, e podem direcionar a
construção do sentido da narrativa. Como afirma Barnwell (2013, p. 112): “O designer de
produção tem todo o espectro de cores para escolher, e suas escolhas podem influenciar como
o público vivencia o clima, a atmosfera e a emoção em uma cena”. Cada projeto estrutura a
sua paleta de cores conforme os seus próprios conceitos, e o que pode parecer simplesmente
inadequado para uma determinada narrativa se encaixa perfeitamente em outra.

Uma composição cromática, como toda experiência visual, é dinâmica. As cores


apresentam características de peso, distância e movimento que, combinadas à
proporção e localização das formas, constroem uma informação complexa cuja
totalidade provoca reações diversas no observador (GUIMARÃES, 2000, p.75).

Entretanto, é fundamental salientar que a construção social das cores e dos seus
significados não pode ser entendida como algo pré-definido ou padronizado. Longe dos
28

clichês e das fórmulas prontas veiculadas por manuais de uso ou sites focados na temática, o
significado de uma cor pode variar drasticamente a depender do contexto visual. No processo
de pré-produção, as pesquisas da direção de arte devem dar conta de aprofundar estas
questões conforme o contexto social e temporal a ser abordado na narrativa, e a escolha da
paleta de cores deve estar alinhada a estas informações e ao conceito visual proposto.
A paleta de cores da minissérie Hoje é dia de Maria, por exemplo, traz uma associação
cromática direta da obra com a visualidade do sertão brasileiro, contexto sociocultural da
narrativa. O uso da cor remete a terra, sol e calor, e ao colorido das festas, das feiras regionais
e da arte populares. Há uma predominância dos tons terrosos, de amarelos e laranjas, com
fortes pinceladas de vermelhos saturados. As cores são essenciais para a concepção do
universo narrativo construìdo a partir de elementos visuais oriundos do imaginário nacional
da cultura popular, construindo camadas de significação ligadas subjetivamente aos
sentimentos e emoções das personagens.

Figura 02. Paleta de cores de Hoje é dia de Maria: cores terrosas.


Fonte: Hoje é Dia de Maria, 2005. (Frame)

Já na minissérie Afinal, o que querem as mulheres?, as escolhas da direção de arte em


relação à paleta de cores não apresenta uma associação tão evidente. De forma geral, as
imagens apresentam uma profusão de cores quentes saturadas que correlacionam espaços e
objetos aos figurinos e a caracterização das personagens e à plasticidade das pinturas da
personagem Lìvia. As cores ora são empregadas harmoniosamente pelo contraste entre
figurinos e maquiagens coloridas, frente a espaços neutros ou, de forma oposta, por espaços
29

extremamente coloridos ocupados por personagens visualmente neutros. Assim, a


manipulação das cores na minissérie determina uma visualidade expansiva que remete ao
dinamismo visual da contemporaneidade, sendo possìvel observar uma criação cromática livre
de amarras simbólicas pré-definidas.

Figura 03. Paleta de cores de Afinal, o querem as mulheres: cores saturadas.


Fonte: Afinal, o que querem as mulheres?, 2010. (Frame)

A direção de arte, por meio dos seus esquemas conceituais e processuais, extrai desta
contingência ideológica toda a riqueza visual para a concepção de universos ficcionais. Tintas,
tecidos, fitas, corantes naturais, resinas, madeiras e maquiagens são algumas das matérias-
primas multicores que nas mãos da equipe de arte são transformadas em visualidade. Na
atualidade, o desenvolvimento cientìfico e os avanços tecnológicos só favoreceram o
surgimento de novos processos e ferramentas que potencializam o emprego das cores nas
artes e nos meios de comunicação, cabe ao audiovisual tomar partido destas inovações.
Por fim, após a leitura e a decupagem do roteiro e da definição das principais
referências visuais, do conceito visual e da paleta de cores a equipe de arte já terá o alicerce
fundamental para a construção da visualidade De uma obra fìlmica ou televisiva. Inicia-se
então a etapa da concepção da materialidade cênica propriamente dita, em que a direção de
arte deverá dar conta de compor o set de filmagem com os elementos que darão suporte
material à encenação. Aqui que se encaixam os trabalhos de cenografia, figurino, maquiagem
e efeitos especiais.
30

1.4. Cenografia

Uma das principais diretrizes projetuais da direção de arte, a cenografia é uma


concepção técnica originária dos palcos teatrais que se pauta na projeção e na montagem do
espaço cênico que irá, não só abrigar a encenação, mas representar estruturas espaciais
tridimensionais como paisagens, cidades e habitações. No campo estético das produções
audiovisuais a criação do espaço cênico deve se relacionar conceitualmente ao roteiro fìlmico
e televisivo, à proposta de encenação indicada pela direção e ao conceito visual definido pelo
diretor de arte, cooperando sensorialmente para a criação de atmosferas.

Continuo defendendo o conceito de espaço cênico considerado como uma atmosfera


que atua no espetáculo de forma sensorialmente dramática. Ataco violentamente o
decorativismo gratuito, tudo o que procura agradar, o pleonástico, o adjetivado, o
pomposo, enfim tudo o que se sobrepõe pretensiosamente à correta interpretação do
texto e do espetáculo que o intermedia. (RATTO, 2001, p. 19)

A projeção e a construção do espaço cênico compreendem uma correlação visual e


material entre iluminação, cenários e objetos, e deve se fundamentar na proposição de
interpretações textuais que se expressam visualmente nas formas, cores e texturas articuladas
espacialmente, corroborando assim a criação da visualidade e dos seus desdobramentos
formais nas imagens da obra. „O componente mais visìvel do conjunto visual do filme é o que
delimita e define o espaço de ação, ou seja, o cenário, que funciona como uma espécie de
“âncora” para os outros elementos‟ (COUTO, 2004, p. 8).

A cenografia pode ser considerada uma composição em um espaço tridimensional –


o lugar teatral. Utiliza-se de elementos básicos, como cor, luz, formas, volumes e
linhas. Sendo uma composição, tem peso, tensões, equilíbrio ou desequilíbrio,
movimento e contrastes. (MANTOVANI, 1989, p. 6)

No contexto das práticas audiovisuais, o cenógrafo é o profissional responsável pela


concepção e execução do projeto cenográfico, e suas ações devem estar alinhadas às
demandas do roteiro e às orientações do diretor de arte e do diretor geral, além de seguir as
determinações práticas impostas por limitações de cronograma e de orçamento. Nas etapas da
realização fìlmica ou televisiva, a equipe de cenografia poderá variar em tamanho e funções, a
depender do meio e da dimensão do projeto audiovisual realizado, e normalmente é formada
não somente pelo cenógrafo, mas também por seus assistentes, pelo produtor de objetos, pelo
pintor de arte, pelo cenotécnico e pelo marceneiro, entre outros profissionais. No meio
cinematográfico normalmente as equipes são montadas a cada novo projeto e são compostas
31

por profissionais freelancers da área, enquanto que nas emissoras de televisão costuma-se ter
um quadro fixo de funcionários para atuar nas produções.
Nas etapas iniciais da concepção e projeção cenográfica a leitura e a decupagem do
roteiro são procedimentos fundamentais, pois é a partir da observação das principais questões
e indicações espaciais do texto que o cenógrafo irá formatar as suas primeiras impressões do
projeto. A atenção à descrição formal do roteiro para as cenas, seja em uma produção de
cinema ou de televisão, permite apreender as principais unidades dramáticas normalmente
articuladas na narrativa: o desenvolvimento da ação por uma ou mais personagens no contexto
de um espaço em particular de uma determinada época. Além disso, é possìvel se observar
nesta fase as principais indicações referentes às particularidades da linguagem audiovisual
(como movimento de câmera, ângulos e enquadramento), também importantes para o
entendimento da espacialidade proposta pelo texto.
As informações extraìdas são então compiladas em listagens técnicas que abarcam um
levantamento das principais necessidades materiais da cenografia. Com base nestes dados, e a
partir das definições do conceito visual e da paleta de cores propostas pelo diretor de arte, o
cenógrafo tem então subsìdios para criar o projeto cenográfico. Independente se a cena ocorre
em um ambiente natural ou arquitetônico, interno ou externo, cabe à cenografia encontrar as
soluções ideais para atender às determinações espaciais descritas no roteiro.

O designer desmembra o roteiro em locações, ambientes internos e externos e


perìodos de dia e noite. A partir de cada um desses elementos, ele pode ver quantos
ambientes são necessários para o filme – de somente um até quantos o orçamento
permitir. Para cada ambientação, um novo desmembramento é produzido para todos
os itens que aparecem durante a ação. Além desses itens essenciais, o designer lista
tudo o que quer ver em cada ambiente para apoiar as personagens e a história, como
móveis e decoração. (BARNWELL, 2013, p.102)

Inicialmente, é preciso entender o(s) perfil(s) da(s) personagem (s): a sua condição
socioeconômica, descrição fìsica, personalidade e profissão, e o que a motivou a participar de
tal ação, além da época em que se passa a narrativa, para que destes pontos possamos
entender a sua relação emocional e funcional com o espaço descrito. Esta relação
personagem-espaço-tempo definirá conceitualmente a materialidade cenográfica, desde o uso
da paleta de cores e texturas no espaço, até os aspectos formais e visuais dos objetos cênicos.
Se bem produzido, cada elemento da composição cênica irá expressar o tipo de relação
proposta entre personagem e espaço e colaborar na construção da atmosfera para a encenação.
Cada unidade cenográfica carregará em si um significado próprio, e toda a composição em
conjunto determinará novas camadas de significação na superfìcie da imagem audiovisual.
32

Um designer deve criar sets, prédios, cidades ou até mesmo mundos inteiros,
conectando-os à narrativa do filme. Em um sentido prático, ele constrói um lugar
para que a ação aconteça e, em um sentido criativo, ele torna esse lugar apropriado
para o filme e as personagens que vivem lá. (BARNWELL, 2013, p. 101)

Além dessas definições, é essencial também o ajuste do projeto cenográfico à encenação


proposta pelo diretor. Se a direção conceber uma encenação realista, a cenografia terá um
perfil complemente diferenciado de uma encenação que tende ao artificialismo. A construção
dos cenários e a definição dos elementos que o compõem seguirá assim uma funcionalidade
visual e material com a encenação, e este aspecto é determinante no trabalho da equipe
técnica e na atuação do elenco, além de ser essencial para as interpretações do público.

O primeiro nìvel do design do espaço é o estabelecimento do local. Em seguida a


ambientação do local de acordo com a situação sócio-econômica-cultural. Depois
entra a personalidade do usuário daquele espaço. O quarto nìvel incorpora elementos
que dizem respeito a aspectos da narrativa, indicando, sutilmente ou não,
sentimentos ou ações futuras. O quinto nìvel diz respeito à interpretação pessoal do
espectador em relação ao espaço visto na tela. Ele pode perceber todos os nìveis de
significado adicionados ao espaço e ainda identificar outros de acordo com a sua
interpretação pessoal, ou simplesmente ficar no nìvel básico, do cenário como
simples pano de fundo para a ação. (COUTO, 2004, p.9)

Todas as determinações conceituais deste perìodo de planejamento do projeto cênico


são normalmente articuladas pelos mood boards, esboços e desenhos do cenógrafo e dos seus
assistentes, e, por vezes, são sintetizadas em maquetes tridimensionais, reais ou virtuais. A
depender do orçamento da produção, é ainda recorrente o uso de softwares de pré-
visualização como o Pre-Viz, que possibilitam a concepção virtual de toda a estrutura visual e
espacial do set, assim como a caracterização e a deslocação dos atores. Esses recursos visuais
serão essenciais na orientação do trabalho da equipe de cenografia. No momento da
transposição do projeto cenográfico para a realidade concreta, o cenógrafo e a sua equipe
seguem os desenhos espaciais definidos neste perìodo de conceituação.

O Pre-Viz é um software que cria sets e atores virtuais em um computador. Esse


estúdio virtual oferece um storyboard em tempo real e adequado à lente, com
movimentos que podem ser editados em conjunto, como um filme finalizado.
Existem vários programas disponìveis que permitem construir sets virtuais ou inserir
as medidas das locações, adicionar atores em movimento e escolher posições de
câmera e lentes adequadas.
Sequências de ação complexas para filmes com efeitos especiais normalmente são
testadas no Pre-Viz, para que os problemas possam ser resolvidos durante a
preparação. (BLOCK, 2010, p. 275)
33

Contudo, é importante considerar as divergências estruturais entre a construção


cenográfica no teatro e na produção audiovisual. Enquanto na montagem teatral todo o espaço
construìdo é delimitado à encenação e concebido para ser visualizado em sua totalidade pela
plateia e por apenas um ângulo de visão, nas obras audiovisuais o espaço cênico é
representado por diferentes ângulos, enquadramentos e zooms. O que implica na concepção
de um cenário adaptado para o deslocamento da câmera, com espaços mais amplos e
estruturas móveis, como paredes e janelas falsas. Assim, as particularidades da linguagem
audiovisual impõem uma concepção cenográfica ajustada aos seus processos especìficos.

A consciência da natureza da imagem cinematográfica impõe ao designer algumas


condições especiais. Primeiro, sua característica temporal: todo o quadro deve ser
composto a todo instante e de forma completa; o projeto cênico deve considerar a
todo momento o movimento do olhar da câmera, e portanto, a evolução temporal do
espaço projetado. O segundo aspecto é a sucessão de mudanças de planos, deve-se
considerar a possibilidade de organizar essas mudanças em função da plasticidade
dos “conjuntos enquadrados”, e assim criar uma rede estrutural. (MACHADO, 2011,
p. 75)

No contexto das produções audiovisuais, a construção do cenário pode ser pensada


segundo duas opções de execução: estúdio ou locação. A opção pela montagem do set de
filmagem em estúdio costuma acarretar menos problemas para a produção, pois a estrutura do
estúdio possibilita um maior controle do ambiente de filmagem. Para a cenografia, esse tipo
de montagem permite a construção de um espaço cênico com maior precisão às descrições do
roteiro, além de facilitar a logìstica de ferramentas, equipamentos e materiais. A desvantagem
é que este processo demanda um tempo maior de trabalho, pois todo o cenário necessitará ser
erguido do zero. Já ao optar pela locação, a equipe de cenografia ganha mais tempo, pois a
estrutura material básica já estaria pronta. No entanto, perde em fidelidade às determinações
espaciais do roteiro, além de estar mais suscetìvel à interferência de circunstâncias externas à
produção, principalmente as referentes à iluminação e à acústica.

Há prós e contras em ambas as escolhas, mas frequentemente os designers preferem


construir porque eles podem ter um controle exato dos ajustes necessários, ao passo
que em locações muitas vezes há uma conflito de imagens que pode confundir e
prejudicar o conceito de design. (BARNWELL, 2004, p. 19, tradução nossa)

A partir das indicações projetuais e sob a supervisão do cenógrafo, uma variada equipe
de profissionais atua na construção do cenário propriamente dito. Deste quadro de atuação
prática destacam-se duas funções: o cenotécnico e o pintor de arte. O cenotécnico é quem
realmente põe “a mão na massa”, manipulando madeiras, pregos e tintas. O pintor de arte,
34

como o nome já diz, é o responsável pelas pinturas de superfìcies com efeitos, como o de
texturização e de envelhecimento, por exemplo. Além dos especialistas na construção do
cenário, também atua na composição do espaço cênico outra equipe de profissionais: a de
produção de objetos, conduzida pelo produtor de objetos e seus assistentes. A partir das
definições conceituais do diretor de arte e do cenógrafo, estes profissionais tem a tarefa de
preencher todo o cenário com objetos e mobiliário.
No contexto da narrativa, o objeto cênico deve expressar a relação da(s) personagem (s)
com o espaço da encenação, podendo dar indicações sobre a sua personalidade e experiências
pessoais, além de transmitir sentimentos que cooperam na criação da atmosfera e do clima da
narrativa. A valorização destes itens como elementos materiais que trazem significados para a
visualidade da obra só contribui para criar novos sentidos narrativos e para promover a
imersão do espectador na obra, aprofundando o conceito visual proposto.
Portanto, demonstra-se ser inevitável e essencial a interferência material-metafórica do
objeto nos processos da encenação, cabendo à direção de arte, a partir das pesquisas de
referências realizadas, selecionar e compor os objetos cênicos que melhor dialogam com a
narrativa. Assim uma das primeiras ações do produtor de objetos será estruturar, a partir da
leitura e da decupagem do roteiro, uma listagem de objetos de cena segundo as indicações
descritivas de cenários e ações; um levantamento que abrange desde os props20, o mobiliário,
os objetos gerais até os adereços21. Definido o perfil das personagens, da ação, do espaço e da
época, a equipe fará então uma pesquisa visual e estética para compor esses objetos e
apresentará ao cenógrafo e ao diretor de arte. Se aprovados, esses itens poderão ser
comprados, alugados ou emprestados em brechós ou lojas especializadas. Adquiridas as
peças, inicia-se a etapa do dressing, momento em que é realizada a composição e a decoração
do espaço cênico para as filmagens. Após, segue-se a etapa da desprodução, perìodo em que
todos os cenários e objetos cênicos são desmontados e retirados do set.
No projeto cenográfico concebido para a minissérie Hoje é Dia de Maria, sempre
citado pelo seu caráter experimental e por romper com os moldes naturalistas das produções
televisivas contemporâneas, a potencialização cênica de objetos e adereços contribui para a
estruturação de uma encenação inovadora, fundamentada no que Collaço (2013) denomina de
artificialismo explícito, um procedimento recorrente no estilo de Luiz Fernando Carvalho.

20
Pertences das personagens
21
Os adereços são objetos cênicos com caracterìsticas especìficas, imaginados e concebidos especialmente para
uma narrativa em particular.
35

O termo escolhido remete à adoção de um tom não-realista para a composição dos


elementos da encenação da minissérie, com partes da visualidade e sonoridade do
discurso da obra demonstrando de forma explícita sua condição enquanto objetos
artificiais, aproximando-se da representação cênica de cenários e objetos sobre um
palco único. Ao optar por esta estratégia, sublinha-se o tom farsesco e dialoga-se,
principalmente, com o teatro mambembe de palcos improvisados em espaços
públicos. (COLLAÇO, 2013, p.32)

A visualidade construìda na minissérie, cuja perspectiva conceitual referencia o


universo visual do sertão e da cultura popular brasileira, e transita pela ludicidade dos contos
infantis, direciona o trabalho da equipe de cenografia da minissérie, que concebe objetos e
adereços que extrapolam a sua funcionalidade na narrativa e constroem novas camadas de
significação na encenação. A opção pela representação artificial do mundo da pequena Maria
orienta o trabalho do artista plástico Raimundo Rodrigues, que transforma parte do lixo
reciclável da Rede Globo em materialidade cênica, ao compor, entre outros elementos,
cavalos de fibra de vidro em tamanho real através da reutilização de retalhos de tecidos e de
marmitas de alumìnio.

Figura 04. Adereço cênico de Hoje é Dia de Maria: novas camadas de significação.
Fonte: Hoje é Dia de Maria, 2005. (Foto Still)

O mesmo princìpio artificialista orienta o trabalho do grupo mineiro de teatro de


bonecos Giramundo na confecção dos tìteres que encarnam as criações do sitio e também no
“pássaro incomum” (o “Amado”, que na forma humana é interpretado por Rodrigo Santoro).
Adereços que se alinham ao conceito visual da minissérie, na medida em que remetem às
formas e cores do artesanato nordestino brasileiro. Todos os animais contracenam com as
36

personagens como seres reais: os cavalos são “cavalgados” pelos atores em cena e os patos
“brincam” com a menina Maria; e assim ganham força expressiva, contribuindo para a
opacidade do discurso construìdo e para o distanciamento do telespectador da narrativa.
Nos processos de composição da imagem audiovisual, a cenografia pode ser então
definida como o espaço que abriga a encenação, que formado por estruturas arquitetônicas ou
ambientes naturais articula objetos e adereços que trazem uma estreita relação com a
narrativa, com as ações e com a construção psicológica das personagens, interferindo
diretamente na encenação e no registro imagético. Concluìmos, portanto, que a partir do
intenso trabalho de composição da cenografia é possìvel alcançar a materialização do mundo
imaginário concebido pelo roteiro e dos mundos particulares de cada personagem, um
processo conceptivo que articula visualmente cenário, figurino e caracterização, sempre em
alinhamento ao desenho da luz e à paleta de cores.

1.5. Figurino

Definimos como figurino, as roupas e acessórios que vestem os atores em cena,


articulando valores e significados que sustentam a construção psicológica e visual de
personagens, e a criação de sentido na narrativa ficcional. O termo figurino se refere, assim,
aos trajes produzidos para a composição da encenação e abrange os conceitos de vestuário e
de indumentária; o vestuário se referindo ao conjunto de peças de roupas usuais e a
indumentária ao vestuário especìfico de uma época e cultura.
Nos processos da direção de arte cinematográfica, a concepção do figurino se alinha às
diretrizes conceituais do projeto de arte, e deve estabelecer uma relação formal e cromática
com o espaço cênico de forma a articular uma estrutura compositiva que se desdobra na
visualidade e nas imagens da obra. Como elemento de estruturação da encenação fìlmica e
televisiva, o desenho do figurino deve seguir a proposta conceitual do diretor, tornando
verossìmil o seu ponto de vista e a construção do discurso visual pretendido.

O designer trabalha diretamente com o figurinista para que a aparência e o clima do


ambiente e dos figurinos combinem. Se há uma paleta de cores específica, então
figurinos e ambientes deve seguir essa paleta. As roupas de uma personagem
fornecem muita informação, desde a sua personalidade até a sua situação financeira.
A pesquisa é essencial para se conseguir um guarda-roupa que apoie a personalidade
e a situação de cada personagem. (BARNWELL, 2013, p.124)
37

O figurinista e a sua equipe, assistentes, camareira e costureiras, são os responsáveis


pela concepção e execução do projeto de figurino da obra, que deve propor uma leitura
especìfica do perfil psicológico das personagens no contexto sociocultural e espacial-temporal
da narrativa e estar condicionada às demandas práticas de orçamento e cronograma. “Em um
filme com um grande orçamento, figurinos extravagantes são possìveis. Por outro lado, atores
de filmes com orçamento baixo podem precisar trazer itens adequados de seus próprios
guarda-roupas”. (BARNWELL, 2013, p.124)
A decupagem do roteiro é uma das etapas iniciais do processo criativo. A partir deste
procedimento, a equipe de figurino acessa as principais indicações cênicas para a concepção
dos trajes, e após a pesquisa de referências estabelece a diretriz conceitual que irá nortear o
desenho dos croquis, a escolha dos tecidos e demais materiais e a confecção ou compra das
peças. O figurino deve ser composto sob a intenção de movimento do ator, pois, a depender
da dinâmica cênica, a roupa pode interferir nos seus deslocamentos e gestualidades, ou até
mesmo aprisionar os seus movimentos.
A criação do conceito deve se ater à essência do texto e às orientações do projeto de
arte, e se fundamentar em uma intensa pesquisa de referências visuais. Livros, revistas de
moda, fotografias, entre outros itens, articulam uma iconografia fundamental neste processo.
Quanto à contextualização de época, o figurino deve corresponder aos princìpios narrativos
estabelecidos e pode se orientar pelas seguintes linhas de representação: realista, com
exatidão de época; para-realista, referenciada a uma época, mas com estilizações; ou
simbólica, sem qualquer compromisso com épocas.

O segredo da arte de fazer figurinos é a transformação. Ou a reapropriação, um


termo comum no vocabulário do figurino, o que implica retrabalhar os códigos da
moda e os símbolos da indumentária com o único intuito de traduzir para os
telespectadores quem é aquela pessoa do outro lado da tela e o universo em que ela
vive [...] daí o uso de licenças poéticas, tão comuns no trabalho dos figurinistas.
Como nos generosos decotes presentes no figurino de muitas mocinhas fictícias de
séculos passados e que costumam gerar controvérsias entre os estudiosos. Mais do
que uma cópia fiel de documentos históricos, o que importa é comunicar.
(MEMÓRIA GLOBO, 2007, p.15)

Estruturadas as referências, a equipe monta os mood boards e as ideias são sintetizadas


em croquis. As roupas, a depender do perfil da produção, são confeccionadas, compradas ou
alugadas. A próxima etapa será a prova do figurino no corpo do ator para se detectar
necessidades de ajustes e alterações de corte, largura ou comprimentos. Após, são feitos os
testes das peças junto ao cenário e a iluminação, que podem determinar exclusões ou
alterações cromáticas. Finalizada a filmagem, todas as peças serão retiradas do set.
38

O figurino da minissérie Capitu se encaixa no tipo de representação que definimos


como para-realista. O conceito visual articulado na obra referencia o contexto social
brasileiro do século XIX, como já dito, mas os trajes traçam uma representação da
indumentária da época alinhada aos procedimentos do artificialismo explícito (COLLAÇO,
2013) proposto pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, se caracterizando por uma visualidade
próxima à época retratada, mas livremente adaptada às metáforas visuais propostas na obra.

Figura 05. Figurino da minissérie Capitu: veìculo das metáforas visuais da obra.
Fonte: Capitu, 2008. (Frame)

A criação de figurinos articula uma composição visual de linhas, cores, texturas, volume
e movimento, a partir de uma perspectiva conceitual que sublinha e aprofunda a construção da
personagem. A sua expressividade na obra se dá no arranjo formal com os demais elementos
da materialidade cênica, estabelecendo uma relação de figura-fundo com o cenário e objetos
que pode ser de contraste ou harmonização. A sua relação com a maquiagem é crucial, pois se
define em um diálogo essencial para a elaboração da caracterização das personagens, como
veremos no subitem a seguir.

1.6. Maquiagem

O frame apresentado na figura 05 retrata umas das cenas finais da minissérie Capitu,
selecionada para a análise por evidenciar um arranjo material composto por figurino,
39

maquiagem e cabelo, cuja articulação formal promove uma caracterização radical da


personagem Bentinho e conduz a uma estruturação metafórica da encenação. Nesta imagem
observa-se uma potencialização da caracterização, ou visagismo, em sua estreita relação com
o figurino, o que insere complexidade visual na narrativa.
O termo visagismo se origina da palavra francesa visage, que pode ser traduzido como
rosto, e nos procedimentos da direção de arte se refere a uma ampliação conceitual da
maquiagem, que passa a englobar a produção de cabelo, de próteses e máscaras com o intuito
de se alcançar uma caracterização necessária à construção das personagens. Assim como o
espaço cênico e o figurino, o visagismo pode se tornar um dos aspectos estruturantes da
encenação por propor interferências visuais na cena e agregar expressividade à visualidade
construìda na obra. Na televisão o visagismo corresponde à função da supervisão de
caracterização que assim como no cinema é a responsável pela criação da imagem da
personagem e é pensada em conjunto com o figurino.

Os responsáveis pelos cabelos e a maquiagem dos atores são os supervisores de


caracterização, cuja equipe trabalha em íntima parceria com os figurinistas para que
os projetos tenham unidade visual. Os estudos acompanham a mesma linha de
pesquisa que norteia a elaboração e escolha das roupas. Não se pode imaginar um
trabalho dissociado do outro. Livros, revistas, fotos, publicações importadas,
catálogos de moda, muitas são as fontes de referência dos profissionais.
(MEMÓRIA GLOBO, 2007, p.32)

O visagista, ou o supervisor de caracterização, junto com assistentes são os profissionais


responsáveis por compor fisicamente uma personagem a partir da realização de interferências
visuais no rosto, no cabelo e no corpo do ator. A sua atuação compreende a manipulação de
maquiagens, perucas, acessórios de cabelo, máscaras, próteses, lentes de contato, entre outros
materiais, para a concepção, não somente de penteados e maquiagens com fins estéticos, mas
também de transformações mais radicais como envelhecimento, rejuvenescimento, mudanças
nas silhuetas dos atores, além de ferimentos e cicatrizes. A depender da produção, o visagista
pode atuar diretamente com o técnico de efeitos especiais mecânicos, sendo o responsável
pela criação do sangue cenográfico e por sua aplicação no corpo dos atores em cena de tiros,
por exemplo.
O processo criativo do visagista envolve desde o levantamento das necessidades da
maquiagem pela decupagem do roteiro até a realização de pesquisas de referências visuais
para a caracterização de cada personagem, buscando-se um entendimento aprofundado sobre
o seu perfil psicológico e condição sociocultural e econômica no contexto espaço-temporal da
narrativa. Assim como nas demais funções já conceituadas, a definição de época e de
40

procedimentos narrativos trará questões cruciais na caracterização das personagens, além das
determinações de orçamento e de cronograma. O visagista juntamente com o diretor de arte, e
com base nas diretrizes conceituais do projeto de arte, deverá optar pelos procedimentos que
melhor convém à proposta cênica da obra. Todos os visuais criados para as personagens
deverão ser aprovados a partir de prova de maquiagem nos atores, seguido por testes do seu
arranjo visual com os figurinos.
Na indústria cinematográfica dos Estados Unidos, a atuação destes profissionais é bem
fomentada e valorizada. A equipe de caracterização é responsável por construir
transformações incrìveis nos atores, tornando-os, por vezes, irreconhecìveis quando
caracterizados como as personagens. Além de contar com materiais e técnicas mais
avançadas, atualmente, com o desenvolvimento da computação gráfica e dos efeitos visuais
da pós-produção, o trabalho destes profissionais se expandiu para a etapa da pós-produção,
momento em que os retoques nas imagens permitem alcançar transformações ainda mais
radicais. Estas experiências ainda são restritas a produções de imensas estruturas e
orçamentos, e cuja construção da visualidade é norteada pela perspectiva projetual do
production design, que abrange desde a etapa da pré-produção até a pós-produção. Na
produção audiovisual brasileira, mais artesanal, ainda estamos em um estágio anterior, embora
seja possìvel se atingir ótimos resultados com a criatividade e o recurso disponìveis.

1.7. Efeitos Especiais

Neste subitem iremos apresentar um breve apontamento acerca de outro elemento que
consideramos relevante na concepção do projeto de direção de arte: os efeitos especiais
mecânicos, que embora não seja compreendido por Aumont (2005) como uma das bases
estruturantes da encenação, ao serem inseridos nos processos técnicos da feitura audiovisual
se configuram como importantes atributos de sentidos visuais.
Os efeitos especiais mecânicos abrangem as técnicas de produção de ações e estruturas
cênicas das filmagens, que podem envolver riscos, como explosões e tiros, ou representações
fantásticas, como a confecção e articulação dos corpos de seres imaginários, além de situações
“extraordinárias”, como uma chuva de sapos, por exemplo. O técnico em efeitos especiais é o
profissional responsável pela função, e a depender da produção, pode atuar junto ao visagista.
Seus processos estão condicionados ao roteiro, à estrutura da encenação e ao conceito visual,
além de se alinhar ao orçamento e ao cronograma.
41

Um efeito especial é uma imagem criada por meio de meios técnicos. Há dois tipos
diferentes de efeito especial: os efeitos visuais, que usam processos fotográficos
especiais (criados pela câmera), e os efeitos mecânicos ou ópticos, que são criados
na frente da câmera. [...] Os efeitos especiais têm sido usados nas telas desde os
primórdios do cinema. Os tradicionais incluem fundos pintados, maquetes, planos de
efeito com vidro, planos de efeito com máscara, projeção frontal e retroprojeção.
(BARNWELL, 2013, p.122)

Na produção audiovisual brasileira os processos da direção de arte abrangem somente


os efeitos especiais mecânicos. Os efeitos visuais são da responsabilidade de equipes
especializadas na área atuantes na etapa da pós-produção. Atualmente, com os avanços
tecnológicos da computação gráfica, a criação de efeitos visuais tem sido cada vez mais
aprimorada, com ótimos resultados alcançados no cinema e na televisão. “No Brasil, os
baixos orçamentos das produções dificultam o desenvolvimento nessas áreas, que envolvem
altos custos, além de muito tempo e experimentação. Mesmo assim, formam-se, a cada ano,
equipes especializadas de alto nìvel técnico” (HAMBURGER, 2014, p. 51). As etapas da
produção de efeitos visuais e da finalização da imagem normalmente não seguem as
orientações do diretor de arte, apenas aos direcionamentos do diretor e do diretor de
fotografia, embora promova interferências significativas no âmbito criativo da equipe de arte,
como na paleta de cores22, por exemplo.

Figura 06. Efeitos especiais mecânicos em A Pedra do Reino: cavalos esguicham fogo e fumaça em cena.
Fonte: A Pedra do Reino, 2007. (Foto Still)

22
O colorista é o profissional responsável pela correção da cor das imagens no perìodo da pós-produção.
42

1.8. Premissas teóricas da análise visual

Após a sistematização dos conceitos e das práticas que norteiam o universo da direção
de arte no audiovisual brasileiro, neste subitem apresentamos as premissas teóricas que
sustentam uma concepção desta função, não somente como o planejamento técnico de
processos produtivos profissionais, mas como uma das principais instâncias estéticas da
imagem audiovisual. Na feitura cinematográfica e televisiva, a direção de arte se caracteriza
como uma atividade de caráter multidisciplinar que articula um amplo repertório material e
visual do cinema e do teatro, mas também de áreas criativas correlatas, tais como as artes
visuais, a arquitetura, o design, as artes gráficas, a moda e a história da arte; incorporando
nessa articulação noções técnicas como o desenho, a pintura, o artesanato e a costura, além de
parâmetros teóricos e processuais. Trata-se de uma ampla gama de referências e de aplicações
que empregada sob as diretrizes do projeto de arte materializa o universo narrativo de uma
obra audiovisual, contextualizando, dimensionando e “vestindo” espaços e personagens para
compor visualmente os quadros, e, por fim, imprimir significados na imagem.
Com base nisso, e seguindo o propósito deste capìtulo de traçar uma base teórica
pertinente à análise a ser desenvolvida, estruturamos uma abordagem das diretrizes visuais
que regem este amplo campo de pesquisa ainda em construção e dos pontos de contato entre a
direção de arte audiovisual e o universo formal da comunicação visual e das artes visuais (de
onde inclusive se origina a terminologia aplicada à função). É importante enfatizar, porém,
que se trata de uma introdução à referida discussão, pois não temos tempo e nem espaço para
aprofundarmos tais questões, cabendo aqui somente a estruturação concisa de um quadro
teórico relevante a uma projeção conceitual da direção de arte de uma função empìrica do
fazer audiovisual a uma instância estética da imagem.
Inicialmente constatamos, com base no levantamento bibliográfico realizado, que
poucos são os teóricos e os trabalhos acadêmicos no campo do cinema e da televisão que se
propõem a traçar paralelos formais entre o audiovisual e as demais artes visuais, o que
inclusive explica a quase inexistência de pesquisas ou a superficialidade das abordagens que
tocam nestas temáticas ou em temáticas relacionadas, tal como a direção de arte. Diante deste
panorama, consideramos então necessário um levantamento de obras que já trazem um
direcionamento nesta discussão. A essência teórica do presente estudo deriva, assim, das
ideias desenvolvidas por Jacques Aumont acerca das relações formais entre o cinema e a
pintura (2004) e das especificidades das imagens visuais (1993); das orientações didáticas de
Bruce Block (2010) sobre as estruturas expressivas da narrativa visual; no repertório
43

conceitual construìdo por Rudolf Arnheim (2004) e por Donis A. Dondis (2007) acerca da
linguagem visual; e ainda na pesquisa desenvolvida por Butruce (2005) acerca do papel da
direção de arte na criação da imagem cinematográfica.
Ao traçar um paralelismo histórico e plástico entre o cinema e a tradição pictórica,
Aumont (2004) define Lumière23 como “o último pintor impressionista”, pois, para o autor, ao
inventar o cinema, mais especificamente o dispositivo cinematográfico, e ressaltar os seus
efeitos de realidade, tal personalidade traz a resolução de um problema pictórico, pois
computa o real de forma impecável, enquanto os pintores mais virtuosos se esmeravam tanto
em termos de tempo quanto de técnica para alcançar este objetivo. Segundo o teórico, a
pintura, especialmente a pintura acadêmica do século XIX, tinha como principais questões de
representação: o impalpável, como a luz atmosférica, por exemplo; o irrepresentável, tal
como as nuvens; e o fugidio “(...) enfim, o infinitamente lábil, e portanto, em profundidade, a
irritante questão do tempo.”24. O cinematógrafo resolve visualmente estes problemas. Os
efeitos de realidade são alcançados principalmente por conta da natureza técnica do cinema de
registro e reprodução automática da realidade, uma possibilidade inicialmente viabilizada com
a invenção da fotografia, mas ampliada com as imagens cinematográficas, tanto que após a
sua popularização, os pintores vanguardistas, do inicio do século XX, não mais se dedicarão a
pintar realisticamente os elementos e fenômenos da natureza, mas passam a ironizá-los ou
parodiá-los em suas obras, vide as pinturas de Salvador Dalì e Magritte.

É tudo isso que o cinematógrafo vira de cabeça para baixo, que ele ultrapassa
definitivamente com seus efeitos de realidade, inocentes, e inocentemente perfeitos.
A atmosfera continua aì impalpável, e, se se quiser, irrepresentável; mas não deixa
de estar presente no cintilar das folhas (agitadas pelo vento, pelo ar, concluem
infalivelmente os crìticos: é mesmo o vento que eles querem ver). Mas sobretudo, é
claro, o fugidio é enfim fixado, e sem labor. É de acordo com o trabalho pictórico
que se mede o melhor do milagre do cinematógrafo: ele substitui, com efeito, as
centenas de folhas duramente pintadas, uma por uma, em um Théodore Rousseau,
pelo aparecimento imediato de todas as folhas. E além do mais, elas se mexem...
(AUMONT, 2004, p.36)

Além de concretizar os anseios estéticos da pintura, o cinema se alinha ainda à tradição


pictórica nos aspectos formais que tangem a representação visual. Para Aumont, contudo, o
principal objetivo da sua pesquisa não é tratar de uma descendência ou de uma transposição
de formas, mas sim de “estimar o lugar que o cinema ocupa, ao lado da pintura e com ela, em

23
No seu livro, o autor se refere aos pioneiros do cinema apenas como Lumière e não define no texto se é uma
referência a Auguste ou a Louis Lumière, ou a ambos.
24
AUMONT. O olho interminável: cinema e pintura. Cosac e Naify: São Paulo, 2004, p. 35.
44

25
uma história da representação, em uma história, portanto, do visìvel” . E é neste ponto que
inserimos aqui a direção de arte. Como este campo estético atua na construção de
visibilidades? Em quais domìnios os seus elementos - a paleta de cores, a cenografia, o
figurino e a maquiagem - se inserem expressivamente na representação e na estruturação da
imagem audiovisual?
A imagem é definida neste contexto teórico como um objeto visual que carrega em si
uma representação de espaço e tempo a partir das intenções dramáticas de uma narrativa. Este
espaço e tempo são de natureza diegética e o trabalho de representação atua na transformação
destes elementos diegéticos em imagem26. Para Aumont (1993), a “(...) diegese é uma
construção imaginária, um mundo fictìcio que tem leis próprias mais ou menos parecidas com
27
as leis do mundo natural, ou pelo menos com a concepção, variável, que dele se tem” .
Consideramos aqui que a visualidade é uma expressão da diegese construìda na obra, e se
alinha a uma determinada opção estética de manipulação dos componentes visuais básicos da
imagem, com vistas à construção de uma plasticidade particular. Esses componentes visuais
básicos seriam: espaço, linha, forma, tonalidade, cor, movimento e ritmo28, que
essencialmente constituem ou se articulam aos elementos da direção de arte.

Esses componentes visuais são encontrados em todas as imagens que vemos, sejam
elas fixas ou em movimento. Os atores, as locações, os acessórios, os figurinos e os
cenários são formados por esses componentes visuais. Um componente visual
transmite estados de ânimo, emoções, ideias e, mais importante ainda, proporciona
estrutura visual às imagens. (BLOCK, 2010, p.01)

Como instância imagética, a direção de arte sustenta a representação a partir da


concepção de um arranjo de elementos cênicos dotados de linhas, formas, cores e texturas,
cuja interação formal ocupa e define o espaço da encenação, inserindo movimento e ritmo na
narrativa visual e estruturando os quadros audiovisuais, sua atmosfera e expressividade. Esses
quadros criados em parceria conceitual com a direção de fotografia determinam a linguagem e
a estrutura visual da obra que será inscrita na composição da imagem.

Ao desdobrar para a prática da criação cinematográfica o conceito de que sua


estruturação é conformada em dois nìveis, pode-se afirmar que ao primeiro nìvel
corresponderia o trabalho da direção de arte e ao segundo nìvel o trabalho da direção
de fotografia. Estas práticas integram um intrincado processo que configura como a
imagem cinematográfica será vista em sua forma final, ou seja, sua visualidade (...)
(BUTRUCE, 2005, p. 20)

25
Ibid, p. 45.
26
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993, p. 259.
27
Idem.
28
BLOCK, Bruce. A narrativa visual: criando a estrutura visual para o cinema, TV e mídias digitais;
tradução Cláudia Mello Belhassof. São Paulo: Elsevier, 2010.
45

Para os fins desta abordagem, iremos considerar um entendimento do nìvel de interação


dos elementos de um projeto de arte no âmbito das três dimensões formais principais da
representação audiovisual: espaço da representação, luz e cor e quadro fílmico. O espaço é
um conceito complexo compreendido como um produto da percepção humana. Trata-se de
uma construção baseada na nossa interação visual com o mundo real e concreto, na qual
espaço e tempo estão entrelaçados, pois a percepção espacial não é contìnua, mas se relaciona
a uma ocupação em volume por um corpo móvel, o que se traduz em profundidade. Assim, o
espaço não é “(...) um percepto, como são o movimento ou a luz, ele não é visto diretamente,
e sim construído, a partir de percepções visuais, como também cinésicas e táteis” 29.

(...) o espaço é uma “categoria fundamental de nosso entendimento” (Kant), aplicada


à nossa experiência do mundo real. Do ponto de vista perceptivo, o espaço refere-se
sobretudo à percepção visual e à percepção “háptica” (percepção ligada ao tato e aos
movimentos do corpo); dessas duas percepções, é aliás a segunda que nos dá o
essencial de nosso “sentido do espaço”, e a vista aprecia sempre o espaço em virtude
de sua ocupação por um corpo humano móvel. (AUMONT, 1993, p.220-1)

Ocupado por objetos, o espaço se transforma então em um lugar, dotado de uma


linguagem especìfica. No contexto de uma produção audiovisual, as equipes de cenografia e
da produção de objetos são as responsáveis pela concepção do desenho e da materialidade do
espaço da encenação, construindo uma representação especìfica do universo delineado pela
narrativa e pelas indicações do roteiro. Assim, as suas ações práticas corroboram diretamente
a construção do espaço diegético da obra. „Se a cena é, em primeiro lugar, uma construção,
uma “skêné”, a cenografia é, antes de tudo, a arte de desenhar em perspectiva essas
construções, e geralmente, todos os lugares habitáveis‟ 30.
O campo é o recorte do espaço imaginário em três dimensões que é delimitado pela tela
ou quadro. “O quadro é, antes de tudo, limite de um campo (...). O quadro centraliza a
representação, focaliza-a sobre um bloco de espaço-tempo onde se concentra o imaginário, ele
é a reserva desse imaginário (...) ele é o reino da ficção (...)” 31. A imagem cinematográfica e
televisiva é definida, assim, por uma realidade espacial dupla, já que envolve a percepção de
um espaço tridimensional interno ao espaço bidimensional do quadro. Ainda que consciente
da ilusão de tridimensionalidade criada, o espectador aceita a imagem audiovisual como real.

Dupla realidade, já que o olho percebe ao mesmo tempo o espaço plano da


superfìcie da tela e a visão parcial sobre um fragmento de espaço “em
profundidade”, produzido, entre outras coisas, pelo emprego da perspectiva. Dupla

29
AUMONT, 2004, p. 142.
30
Ibid, p. 159.
31
Ibid, p. 36.
46

realidade, já que ambos os espaços são realmente percebidos, e, até certo ponto,
percebidos como reais. (AUMONT, 2004, p.144)

Para Aumont (1993), “A representação do espaço nas imagens planas (pintura, foto,
filme) só pode reproduzir alguns (...) traços da visão do espaço, em particular, (...) os relativos
à profundidade”. A perspectiva, técnica de projeção oriunda da pintura, é uma forma
simbólica da experiência espacial humana e é empregada na concepção das imagens no intuito
de se criar a ilusão de profundidade. Mas, ainda segundo o autor, nem a profundidade e nem a
perspectiva são o espaço “(...) Primeiro porque este se dirige de modo coordenado a nossas
sensações visuais e táteis; depois porque, mesmo no interior do visìvel, a expressão icônica do
espaço mobiliza muitos outros fatores além da perspectiva (em particular todos os efeitos de
luz e de cores)” 32.
Para Arnheim (2004), a luz cria o espaço, pois “Todos os gradientes têm a capacidade
de criar profundidade e os gradientes de claridade se encontram entre os mais eficientes. Isto é
válido para os conjuntos espaciais, tais como interiores e paisagens, mas também para objetos
isolados” 33. A luz é a responsável por definir a composição tonal da imagem, ou seja, o brilho
dos seus elementos estruturantes, delineando, expondo formas e contornos, aplainando ou
ressaltando volumes e texturas, e, sobretudo, definindo a atmosfera geral. Manipulada pela
produção, através dos recursos técnicos e artifìcios da iluminação, a depender do seu desenho
esta interfere tanto visualmente na concepção do espaço da representação, quanto pode definir
significados e sentidos na narrativa visual da obra.

(...) este espaço estruturado primeiramente pela direção de arte, ou seja, o espaço
cenográfico, sofre a ação de um elemento durante seu registro que atua de maneira
significativa nesta operação: a luz. A luz que incide sobre este espaço e seus objetos
constituintes determinará uma relação de consonância com a direção de arte ou não.
A direção de arte visa uma intenção plástica, de certa forma inerente dado seus
elementos de trabalho, essencialmente visuais, que pode ser desestruturada ou não
de acordo a uma determinada atuação da iluminação. (BUTRUCE, 2005, p.32)

Para Aumont (2004), a luz pode apresentar três funções na representação: a função
simbólica, que relaciona a concepção de luz da imagem a um sentido subjetivo; a função
dramática, ligada a uma estruturação formal do espaço como cênico; e a função atmosférica
“(...) que não passa, talvez, de um longìnquo bastardo da função simbólica, lá onde esta se

32
AUMONT, 1993, p.228.
33
ARNHEIM, Rudolf. Arte & percepção visual. Uma Psicologia da Visão Criadora. Tradução de Ivonne
Terezinha de Faria. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.
47

torna fraca demais, já não responde a uma codificação forte, facilmente compreensìvel”34.
Essas três funções podem, contudo, coexistir na estruturação de um mesmo quadro.
Segundo Block (2010), nos processos produtivos a tonalidade pode ser controlada por
três maneiras: pelo controle da reflexão dos valores tonais reais dos objetos, aspecto que
compreende o campo da direção de arte; pelo controle de incidência pela iluminação; e pela
exposição, através dos ajustes de câmera e lente. No caso especìfico do controle tonal ser de
total responsabilidade da direção de arte durante todo o perìodo da produção, a iluminação
deve ser plana, evitando-se sombras. “Deve haver a mesma quantidade de luz em toda parte,
porque a escala de cinza será controlada pelo valor real de brilho dos objetos e não pela
35
iluminação” . A estruturação da composição tonal de uma imagem está relacionada,
portanto, às escolhas da paleta de cores.

Se uma produção requer um visual escuro, pinte sua cena com tons escuros, vista
roupas de cores escuras, use apenas objetos de cores escuras e remova todos os
objetos claros da tomada. A escuridão das imagens será determinada pela escuridão
dos objetos existentes na tomada. A produção será escura, porque tudo que será
filmado é escuro. Um ator não pode usar uma camisa branca; ela deve ser cinza ou
preta. Em contraposição, para criar um visual claro, remova todos os objetos escuros
e substitua-os por objetos claros. Para dar a uma produção um visual contrastante,
use apenas objetos muito escuros e muito claros nas tomadas. (BLOCK, 2010,
p.129)

A luz e a cor praticamente definem a visualidade de uma obra audiovisual.


“Estritamente falando, toda a aparência visual deve sua existência à claridade e cor. Os limites
que determinam a configuração dos objetos provêm da capacidade dos olhos em distinguir
entre áreas de diferentes claridade e cor”36. As cores interagem diretamente com a luz
construìda para o espaço cênico e seus valores de matiz, brilho e saturação corroboram a
estruturação espacial através da criação de nuances, contrastes e afinidades formais e
texturais. Assim, a luz e a cor são elementos de grande relevância na estruturação do espaço
da representação, embora haja outros aspectos que definam diferenças perceptivas e
compositivas, determinando diferentes formatos e sentidos.
É preciso considerar ainda a coexistência de três tipos de espaços em uma obra
audiovisual acabada: o espaço arquitetônico, aquele oriundo do mundo natural ou construìdo
artificialmente para a obra e que será posteriormente recortado pela câmera e pela montagem,
e que remete ao trabalho da cenografia; o espaço pictórico, proveniente do registro

34
AUMONT, 2004, p. 175
35
BLOCK, 2010, p. 129.
36
ARNHEIM, 2004, p.323.
48

fotográfico, um elemento estruturante do quadro ou frame; e o espaço fílmico, um espaço


virtual e ilusório construìdo a partir da estruturação da encenação e da montagem, sendo o
espaço construìdo após a filmagem. A abordagem visual que propomos, será realizada a partir
de uma análise das estruturas materiais dos espaços arquitetônicos da obra (considerando
ainda informações referentes aos processos produtivos), tendo como base os recortes
estabelecidos no seu espaço pictórico, ou seja, a composição dos frames.
Em sua abordagem, Block (2010) considera que o espaço (pictórico) em uma produção
audiovisual pode apresentar quatro subcomponentes: o espaço profundo, o espaço plano, o
espaço limitado e o espaço ambìguo. O profundo se define pela ilusão da tridimensionalidade
na tela bidimensional, sendo que uma das principais informações de profundidade é a
perspectiva com a ênfase em planos longitudinais, na diferença do tamanho dos objetos, nas
separações tonais, cromáticas e texturais, nos movimentos dos objetos, de câmera dolly in/out,
travelling à esquerda/direita e grua para cima/para baixo e no foco, entre outros aspectos. O
espaço plano traz informações contrárias ao espaço profundo, pois “enfatiza a qualidade
bidimensional da superfìcie da tela” e se pauta no emprego dos planos frontais, na constância
do tamanho dos objetos e em movimentos de câmera panorâmica, tilt e zoom.
O espaço limitado combina as caracterìsticas dos dois tipos de espaços anteriores,
evitando duas informações de profundidade: planos longitudinais e movimento do objeto
perpendicular ao plano da imagem. Já o espaço ambìguo se baseia em uma desestruturação
visual do espaço, que “ocorre quando o espectador é incapaz de entender o verdadeiro
tamanho ou a relação espacial entre os objetos que estão na imagem”. Para o referido autor, é
interessante considerar ainda o espaço na sua relação com a tela ou o quadro, tais como a
relação de aspecto (relação de tamanho da largura e altura do quadro), as divisões de
superfìcie da tela e a tensão entre espaço fechado (campo) e espaço aberto (fora do campo),
fatores que interferem diretamente na estruturação visual de uma obra.
A função da direção de arte é a responsável por compor a matéria visual do espaço da
representação, e se transforma em instância imagética na medida em que as suas escolhas são
a essência estrutural da composição do quadro. A direção de fotografia faz o registro desta
estrutura formal criada, e ainda que interfira em alguns pontos durante a filmagem, a
linguagem visual criada pelo projeto de arte será a essência da visualidade da obra por ser
sublinhada pela relação da encenação com a paleta de cores, a cenografia, o figurino e a
maquiagem, estando todos estes elementos intrinsecamente ligados à narrativa, mas
construindo cada um deles suas narrativas particulares.
49

Neste primeiro capìtulo, apresentamos uma sistematização dos conceitos e das práticas
que norteiam os processos criativos da direção de arte, além de uma abordagem teórica das
premissas que regem este campo de pesquisa, com o intuito de construir um repertório
conceitual imprescindìvel à análise da visualidade do objeto de estudo desta pesquisa. O
nosso objetivo especìfico foi discorrer sobre papel do projeto de arte na estruturação da
encenação e da imagem audiovisual, considerando a proposição estética de obras de
teledramaturgia dirigidas Luiz Fernando Carvalho.
No próximo capìtulo, partiremos para a contextualização midiática desta pesquisa no
universo da televisão brasileira, mais especificamente no da Rede Globo de Televisão,
estabelecendo uma relação do meio com os processos da direção de arte e buscando entender
como esta conjuntura se expressa no estilo do referido diretor.
50

2. O “lugar” da direção de arte na direção autoral de Luiz Fernando Carvalho

Neste capìtulo, apresentamos uma abordagem do papel e da relevância conceitual dos


processos da direção da arte nos projetos audiovisuais do diretor Luiz Fernando Carvalho,
buscando uma compreensão do perfil do diálogo estabelecido entre o realizador, o diretor de
arte e os demais integrantes da equipe de arte na concepção da visualidade das suas obras
televisivas, e um entendimento das circunstâncias da inserção dos seus processos autorais no
contexto industrial da teledramaturgia da Rede Globo de Televisão.
É importante pontuarmos que a construção de visualidades no âmbito das narrativas
televisivas demanda uma concepção produtiva especìfica, que diverge relativamente da
produção cinematográfica, não somente pela natureza da imagem televisual, mas, sobretudo,
no que se refere à estruturação da encenação. Na televisão, de uma forma geral, os elementos
que estruturam a encenação - a cenografia, o figurino e a maquiagem – podem adquirir
contornos diferenciados, tanto devido ao caráter da representação cênica quanto ao ritmo de
produção próprios do meio.
A direção de arte no contexto televisivo, além de ser concebida a partir de uma
perspectiva industrial da função, organizada funcionalmente por departamentos e acervos
exclusivos e pela composição de um quadro fixo de funcionários da arte, se fundamenta ainda
em processos técnicos especìficos ao meio, indissociáveis das particularidades da linguagem
televisiva; o que se aplica às práticas da construção dos espaços cênicos no contexto das
cidades cenográficas e dos estúdios televisivos ou a uma maquiagem adaptada à imagem de
alta definição, com ressalvas principalmente ao uso da cor, essencial na concepção visual das
narrativas e que deve ser planejado especificamente para a composição da imagem televisual.
Convém considerar, ainda, o fato de que esses produtos audiovisuais devem ser
concebidos visualmente de forma a atingir a uma audiência considerada “dispersa”, na medida
em que o público televisivo normalmente não se concentra apenas em assistir à programação
da TV, mas realiza outras atividades em paralelo, como rodas de conversa em famìlia,
atividades domésticas ou ações interativas com outros meios de comunicação, como a
internet, o que demanda estratégias de linguagem diferenciadas das do cinema, por exemplo,
cuja fruição envolve todo um ritual de concentração e imersão nas imagens.
Demonstrou ser coerente, portanto, para o prosseguimento desta pesquisa, discorrermos
sobre as particularidades da mìdia televisiva, mas focando principalmente nos aspectos que
tangem à especificidade do repertório técnico e conceitual que define os processos inscritos
nos domìnios da direção de arte no meio, considerando a sua projeção no percurso histórico e
51

social do desenvolvimento da teledramaturgia da Rede Globo.


Atualmente, a televisão ainda é o principal veìculo de informação e de entretenimento
para a maior parte da população brasileira, e a sua importância social se reflete não somente
na sua influência sobre os gostos, opiniões e hábitos de consumo populares, mas
principalmente no intercâmbio simbólico estabelecido entre a programação televisiva e a
sociedade: “A televisão na sociedade e a sociedade na televisão não existem como meros
reflexos de um no outro, mas como balizas dinâmicas, intercambiáveis, negociáveis e em
disputas. É uma dialética que não se pode perder” (RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO,
2010, p.08). E, nesse sentido, os produtos de teledramaturgia da Rede Globo, cuja construção
de significados é pautada nesta mediação entre produtores e receptores, são os que mais se
destacam qualitativamente no cenário televisual brasileiro. Considerando que o nìvel
alcançado nestas produções resulta de um longo processo histórico que remonta às origens
teatrais, radiofônicas e cinematográficas da dramaturgia televisiva, entendemos que a
compreensão deste recorte da história da televisão no Brasil é essencial para a realização de
uma análise sobre as produções televisivas contemporâneas.

Hoje onipresente, a televisão era uma incógnita quando sua primeira transmissão foi
ao ar, em setembro de 1950. Ao longo de sua existência, foi se firmando como a
mìdia de maior impacto na sociedade brasileira. Ela é a principal opção de
entretenimento e de informação da grande maioria da população do paìs. Para
muitos, é o único. Suas imagens pontuam – mobilizam em muitas formas – a vida e
as ações de milhares de pessoas. A televisão faz parte, enfim, da vida nacional. Ela
está presente na estruturação da polìtica, da economia e da cultura brasileiras.
(RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 07)

A primeira transmissão televisiva em território brasileiro ocorreu em 18 de setembro de


1950, e marcou a inauguração da TV Tupi de São Paulo, emissora que integrou o primeiro
oligopólio da informação do Brasil, os Diários Associados, de propriedade do jornalista e
empresário Assis Chateaubriand. Inicialmente com um quadro técnico formado
majoritariamente por profissionais oriundos do rádio, a televisão se configurou como um
formato hìbrido entre este meio e o cinema, pois, devido à sua natureza audiovisual, buscou
referências nas imagens cinematográficas, mas em essência se caracterizou como uma
sucessão midiática do rádio com contornos cênicos dos espetáculos teatrais e circenses,
mantendo como traços principais a ênfase na linguagem verbal, o investimento nas narrativas
novelescas e a determinação dos núcleos familiares brasileiros como principal público-alvo.
No inìcio das transmissões, os programas televisivos já tinham no patrocìnio
publicitário o seu principal suporte financeiro, e as imagens, em preto-e-branco, eram exibidas
ao vivo, com uma programação sempre veiculada à noite e com intervalos longos entre os
52

programas. Com o aumento nas vendas de receptores e a ampliação da grade de programação,


a televisão se molda cada vez mais à rotina doméstica, e assim como o rádio, o televisor
conquista um espaço cativo nos lares brasileiros.

Em São Paulo, nos dias que se seguiram ao da inauguração, paulatinamente é


colocada no ar a programação da emissora: musicais, teleteatros, programas de
entrevistas e um pequeno noticiário, “Imagens do Dia”. As transmissões ocorriam
entre as cinco da tarde e às dez da noite, com grandes intervalos entre os programas,
para que pudessem ser preparados para ir ao ar, sempre ao vivo. Ainda em novembro
de 1950 é autorizada a concessão da TV Record de São Paulo e da TV Jornal do
Comércio de Recife. (RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 20)

Na primeira década de história da televisão, embora a TV Tupi de São Paulo já


houvesse, em 1951, produzido e exibido a primeira telenovela brasileira Sua Vida me
pertence, dirigida por Walter Foster, o principal sucesso da grade de programação televisiva
eram os teleteatros, um formato dramatúrgico veiculado principalmente pela TV de
Vanguarda, programa da TV Tupi, que se caracterizava como peças teatrais adaptadas de
clássicos do cinema, do teatro e da literatura, filmadas e exibidas na ìntegra para o público.
Realizados por profissionais, atores e cantores do rádio e do teatro, os teleteatros marcam um
perìodo de intensa experimentação da linguagem televisual, e de uma conjuntura cênica
pautada na improvisação e em processos televisivos ainda em construção, já que a
especificidade do meio era praticamente desconhecida pela maior parte dos realizadores.

[...] não há dúvidas de que o teleteatro, nas duas primeiras décadas de instalação da
TV brasileira, foi o desbravador do desconhecido terreno da linguagem televisiva.
Os pioneiros traziam técnicas oriundas do rádio e do cinema para aplicá-las à TV.
Foi um lento aprendizado atrás das câmeras, no qual mergulharam profissionais
oriundos de várias áreas da comunicação. Atuavam como bandeirantes que
experimentaram diversas linguagens estéticas até descobrirem como fazer televisão
[...] O teleteatro, de certa forma, carregou consigo uma tendência que ainda persiste
na nossa televisão, qual seja, a de fazer a simbiose entre as obras-primas da literatura
ou do teatro à comoção de maiores e heterogêneas plateias. (RIBEIRO;
SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 38)

A década de 1960 é marcada por uma renovação da estrutura televisiva nacional. Os


“profissionais da televisão” começam a dominar os processos e práticas televisivas e os
teleteatros vão sendo gradativamente substituìdos por programas criados especificamente para
a nova mìdia: “produções cuja viabilidade estava ligada de forma indissociável a esse novo
veìculo”37. Antigas práticas são abandonadas, enquanto outras vão sendo criadas e adaptadas
às particularidades da linguagem televisiva. As telenovelas ganham espaço na programação e

37
RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 60
53

se tornam diárias, e mais populares. Com a chegada do videoteipe, os programas passam a ser
gravados; o que permite um maior planejamento das filmagens e diminui a margem de
imprevistos. A TV começa a se popularizar e as pesquisas conseguem traçar o perfil do seu
público-alvo, tornando possìvel medir o ìndice de audiência da sua programação. A televisão
se consolida, nesta década, como um veìculo de comunicação de massa.
A TV Excelsior de São Paulo, fundada em 1960, é, neste ponto, a pioneira entre as
outras emissoras em transformar o modo de se fazer televisão no paìs, quando, a partir de uma
visão empresarial inovadora, cria um slogan e logotipo institucional, reestrutura a sua grade
de programação, estabelecendo dias e horários fixos dos programas, e exibe a primeira novela
diária da televisão brasileira. Além disso, oferece melhores salários para os atores e equipe
técnica e implanta os departamentos especializados em cenografia e figurino. A criação destes
departamentos é a primeira iniciativa até então de profissionalizar a área de direção de arte no
meio televisivo brasileiro. Antes, as produções televisivas, marcadas pelo improviso,
buscavam nas práticas do teatro as suas principais referências para a construção dos cenários e
para o desenho de figurinos, concepções nem sempre adequadas ao novo meio. A partir da TV
Excelsior, todos os processos passam a ser pensados exclusivamente para a linguagem
televisiva e os profissionais passam a se especializar na área. “Finalmente, a TV Excelsior
implantou na televisão brasileira uma mentalidade profissional que pressupunha o
rompimento com o tipo de produção artesanal”38.
Ao mesmo tempo, o rompimento com as antigas formas de produção trouxe renovações
de linguagem para a teledramaturgia. A telenovela Beto Rockfeller (1968), escrita por
Cassiano Gabus Mendes e exibida pela TV Tupi, representou, neste sentido, uma ruptura na
linguagem televisiva da época, por investir no realismo e em diálogos coloquiais, e em uma
narrativa próxima ao cotidiano do público, em um contexto em que os padrões tradicionais da
dramaturgia eram definidos por enredos artificiais e fantásticos. O sucesso da produção levou
a que as outras emissoras seguissem na mesma direção.

A ideia de que a dramaturgia de televisão havia chegado ao ridìculo, nos anos 1960,
só faz sentido se levarmos em conta que a referência utilizada para pensa-la era o
teatro consagrado. Esse é o momento, então, que a ficção – aquela feita pelos
profissionais vindos do rádio – começa a, deliberadamente, se distanciar do teatro,
em especial aquele consagrado, e a se aproximar do “povo” e da “realidade”.
(RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 70)

38
Ibid, p. 54
54

Em 26 de abril de 1965, é inaugurada a TV Globo. Inicialmente marcada por uma


programação popularesca de programas de auditórios e pelo investimento nos tradicionais
teleteatros, a partir da década de 1970, a emissora promove uma renovação estética na
linguagem televisiva, quando, sob a perspectiva do chamado “padrão globo de qualidade”,
cria uma reestruturação inovadora na sua grade de programação, segue e constrói tendências
de sucesso na teledramaturgia e investe seriamente em tecnologia apropriada ao meio
televisivo39; o que possibilita que hoje, ao completar cinquenta anos de existência, a emissora
sustente uma imensa estrutura organizacional. Atualmente, a teledramaturgia da Rede Globo é
reconhecida e premiada internacionalmente pela qualidade técnica das suas produções, e a
telenovela, o seu principal produto, é o programa responsável pela maior parte da audiência
da emissora. Trata-se de uma indústria mantida por um ritmo acelerado de produção e por
toda uma estrutura de apoio ao seu quadro de profissionais, inclusive no que concerne aos
processos da direção de arte, nosso interesse neste estudo.
Nos subitens a seguir, iremos aprofundar as questões apontadas nesta breve introdução,
com a preocupação de traçar, como já dito, o percurso histórico da teledramaturgia da Rede
Globo, mas focando essencialmente no desenvolvimento dos conceitos e processos da direção
de arte neste contexto institucional, apontando, inclusive, as nomenclaturas e estruturas
próprias da função no meio televisivo. Com base nesta sistematização, pretendemos ainda
delinear a trajetória profissional do diretor Luiz Fernando Carvalho na teledramaturgia da
Rede Globo, para que, a partir deste panorama, possamos entender a sua inserção no âmbito
da indústria televisiva e definir o “lugar” da direção de arte nas suas obras.

2.1. A direção de arte na teledramaturgia da Rede Globo

Inaugurada na década de 1960, a Rede Globo investiu nos seus primeiros anos de
transmissão em um modelo de produção tradicional e na reprodução de fórmulas televisuais
consagradas à audiência popular – e ao mercado de consumo que esta representava -, tais
como programas de auditório, de variedades e jornalìsticos pautados no sensacionalismo e na

39
„A televisão brasileira, e principalmente a do Rio de Janeiro, se consolida com base na ideia de que o “fazer
televisão” é fazer programas “ajustados à rotina de horários de trabalho e de lazer de uma casa”. Daì que o
“público” por excelência da televisão é a “famìlia”. Esse é um detalhe da maior importância. Quando a TV
Globo, nos anos 1970, se consolida como a maior emissora no Brasil, graças ao projeto de integração
nacional promovido pelo regime militar, ela estende a ideia de que a televisão é um “produto familiar” em
nìvel nacional‟. (RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 64).
55

exploração do chamado “mundo cão”, e nas cada vez mais populares telenovelas e seriados;
dando inicio à sua produção de teledramaturgia já em 1965, quando veiculara os seus
primeiros produtos: o seriado Rua da Matriz, dirigido por Otávio da Graça Mello e inspirado
na novela inglesa Coronation Street (1960); e a novela Ilusões Perdidas, com texto de Enia
Petri e direção de Lìbero Miguel e Sérgio Brito.

Quando surgiu, a emissora seguiu um modelo mais tradicional de produção.


Procurou se identificar de forma mais direta com o público popular que, naquele
momento, já tinha condições de dispor de aparelhos de televisão. Com essa
proposta, investiu numa dramaturgia tradicional e contratou diversos “animadores de
auditório” – como eram conhecidos os apresentadores dos programas de variedades.
(RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 110)

Entre as produções desta fase inicial predominou o gênero conhecido como “capa e
espada”: tramas de forte apelo melodramático adaptadas de clássicos da literatura universal
por Glória Magadan, a então diretora de dramaturgia da emissora. Essas obras apresentavam
narrativas fantásticas e fantasiosas, contextualizadas em espaços e épocas distantes da
realidade dos telespectadores brasileiros, e que, embora ainda fossem veiculadas em preto-e-
branco, se caracterizavam por uma visualidade luxuosa e extravagante, expressiva nos
aspectos formais dos desenhos do figurino, da cenografia e da maquiagem. Entre as principais
produções do perìodo, podemos citar as novelas Eu compro esta mulher (1966), O Sheik de
Agadir (1967) e A Última Valsa (1969).

Figura 07. O Sheik de Agadir


Fonte: Memória Globo
56

Adaptações de clássicos da literatura universal e tramas fantasiosas ambientadas em


terras distantes davam o tom visual das histórias. Como as tramas não tinham uma
época definida e outras eram marcadamente fantásticas, não havia o compromisso de
reproduzir fielmente um perìodo histórico, embora houvesse uma tentativa de seguir
a linha e o corte da roupa de época, usando códigos visuais de identificação,
subordinados aos recursos e improvisos já comuns nessa fase. Muitas anáguas e
babados compunham os vestidos das atrizes, alguns repletos de detalhes aplicados
aos tecidos, como bordados, fitas, laços, rendas e outros adereços. “Era uma fase
rica visualmente, de muitos panos, brilho e luxo”, conta a atriz Yoná Magalhães.
[...]. (MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 41)

As produções “capa e espada” exigiram da emissora um considerável investimento nos


recursos e processos da direção de arte. Segundo Cardoso (2009, p. 42), “a dramaturgia da
época – que fazia muito uso de referências de ambientes externos de outros paìses – levou a
TV Globo a iniciar a produção de cenários mais complexos”. Neste perìodo a Rede Globo
ainda não havia estruturado departamentos especìficos para a área e o seu quadro de
funcionários era composto principalmente por profissionais oriundos do rádio e do teatro, que
ainda se adaptavam aos procedimentos e às potencialidades da linguagem televisiva, e que,
por vezes, acumulavam as funções de cenógrafos e figurinistas. “[...] o figurinista ainda era
um profissional em formação. Não era raro um único profissional assinar o guarda-roupa e os
cenários de um programa. A área de figurino, aliás, era vinculada à cenografia”40.

A partir desse momento, a emissora passou a investir a cada ano na produção de uma
dramaturgia televisiva, concentrando, consequentemente, grande parte dos esforços
na pesquisa dos elementos cenográficos. O gênero passou a ser, na TV Globo, o
grande laboratório de experiências cenográficas (CARDOSO, 2009, p. 41).

A falta de estrutura adequada e o ritmo frenético da indústria televisiva impuseram aos


profissionais de figurino e cenografia a aprendizagem e o domìnio do “como fazer televisão”
a partir da prática e da experimentação diária, dos improvisos e da criação de soluções visuais
rápidas. Na novela O Homem Proibido (1968), por exemplo, sob a direção de Daniel Filho e a
supervisão de cenografia de Mário Monteiro, os cenógrafos Leila Moreira e May Martins
montaram no próprio terraço do prédio da emissora o cenário das cenas ambientadas nas ruas
da Índia, contexto espacial da trama. Já para a novela A Cabana do Pai Tomás (1969), as
necessidades da encenação e a complexidade dos cenários, exigiram que TV Globo
construìsse dois estúdios especialmente para a produção.

40
MEMÓRIA GLOBO. Entre tramas, rendas e fuxicos: o figurino na teledramaturgia da TV Globo. São
Paulo: Globo, 2007.
57

Na área de figurino, Arlindo Rodrigues foi o principal responsável por vestir as mais
importantes estrelas da época, como Glória Menezes, Leila Diniz e Yoná Magalhães. “Arlindo
é quem ditava o estilo das roupas, maquiagens e penteados dos atores da teledramaturgia da
TV Globo em seus primórdios [...] assinou os figurinos – e muitas vezes os cenários – da
maioria das novelas produzidas na emissora nessa época”41. Neste perìodo inicial os
profissionais ainda não contavam com instalações e estruturas de guarda-roupas e de acervo
adequadas, mas “[...] cerca de 90% dos figurinos eram confeccionados na própria emissora, e
raramente as roupas eram alugadas ou compradas. Excepcionalmente, faziam-se encomendas
a algum ateliê de costura”42.

O acervo de roupas, calçados e acessórios, da forma organizada como é mantido


hoje, não existia nessa época. Nos primeiros anos, os figurinistas tinham de se virar
com um guarda-roupa geral, localizado a um corredor próximo a um dos estúdios,
com três andares de roupas penduradas e uma escada móvel para facilitar a procura
de peças. No final dos anos 1960, passaram a contar com um anexo ao prédio da
emissora, no Jardim Botânico (zona sul do Rio), que juntava a sala de costura no
térreo, e um guarda-roupa no andar superior. Por falta de local adequado para
guardar os figurinos, muitas vezes as roupas eram doadas. Sörensen jura que havia
dias em que a Rocinha, a maior favela do Rio, estava “vestida de novela”.
(MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 47-8)

Na área de caracterização, o principal nome era o do maquiador Eric Rzepecki, um


polonês que imigrou para o Brasil na década de 1940 e trabalhou nos estúdios
cinematográficos da Cinédia, Atlântida, Vera Cruz e Herbert Richers, e em outras emissoras
de televisão, antes de ser contratado para a TV Globo, onde atuou das décadas de 1960 a
1980. “Sua estreia na emissora foi em 1967, apenas dois anos depois de sua inauguração, com
a novela Sangue e Areia adaptação de Janete Clair do romance homônimo de Blasco Ibañez.
Na produção, com o uso de pesada maquiagem, fez com que a atriz Arlete Salles, então com
22 anos, parecesse uma mulher de 45”43.
Em 1969, com a estreia da novela Véu de Noiva, de Janete Clair, e Verão Vermelho, de
Dias Gomes, uma nova proposta narrativa, de abordagem realista, deu inìcio a uma
reestruturação estética das produções de dramaturgia da TV Globo. Seguindo a tendência
iniciada com a novela Beto Rockefeller, da TV Tupi, a emissora demite Glória Magadan e
passa a investir em produções que retratam a realidade contemporânea brasileira, traçando
assim as bases para a consolidação do paradigma realista/naturalista da teledramaturgia
televisiva. Para Cardoso (2009, p. 43), Beto Rockefeller “[...] tornou-se um marco na televisão
41
MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 40
42
Ibid, p. 42
43
Disponìvel em: http://memoriaglobo.globo.com/perfis/talentos/eric-rzepecki/trajetoria.htm. Acesso em: 21.
Out. 2014.
58

por utilizar, como pano de fundo para a trama, referência do cotidiano das pessoas e
ambientações cenográficas naturais. A telenovela começou a ter, então, uma linguagem
própria”. As equipes de arte da emissora necessitaram acompanhar o novo conceito.

Figura 8. Véu de Noiva, de Janete Clair.


Fonte: Memória Globo

Seguindo essas novas diretrizes, a figurinista Marìlia Carneiro, que chegou à Rede
Globo em 1973, cria um conceito de figurino inovador. As roupas das personagens, além de
serem confeccionadas na emissora, passam também a ser acessadas no mercado da moda, o
que contribui para uma projeção ainda maior de realismo na teledramaturgia. „Calcados na
realidade, nos anos 1970 os figurinistas foram aprendendo a trabalhar com o que se costuma
chamar de “vivência”, tentando aproximar os figurinos do cotidiano vivido fora da tela. A
estética urbana e naturalista tomou conta de novelas e seriados‟44.

A figurinista achava que se perdia muito tempo com a confecção de roupas e teve
carta branca para fazer um garimpo pelo mercado da moda. [...] “Tive oportunidade
de fazer o link da moda com o figurino, porque eu vinha desse universo, e as pessoas
que estavam na emissora tinha outra formação. Era tudo mais enfeitado, talvez
porque eles lidassem mais com a época do que com o cotidiano”, afirma Marìlia,
que lançou na TV Globo uma nova função: a de caçadora de tendências. Na época, a
novidade provocou resistência, mas acabou sendo adotada na produção de histórias
contemporâneas. (MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 54)

44
MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 54
59

O figurinista Carlos Gil e o diretor de arte e artista plástico Carlos Haraldo Sörensen,
profissionais considerados fundamentais na criação dos figurinos da TV Globo, chegaram à
emissora no inicio destas mudanças, que implicaram também na valorização de uma maior
simplicidade na caracterização das personagens. “Com um colete de couro, compus o João
Coragem” 45, relata Sörensen se referindo ao figurino da novela Irmãos Coragem, escrita por
Janete Clair e dirigida por Daniel Filho e exibida em 1970.
Essa produção se destaca também por apresentar a primeira cidade cenográfica da
Rede Globo46, construìda numa área de 5.000 m² 47
na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio.
Era o inìcio da implantação deste tipo de projeto cenográfico nas suas produções. Apesar dos
problemas técnicos iniciais, após a experiência, os cenógrafos e cenotécnicos tornaram-se
mais instrumentados na concepção e execução dos projetos, e outras cidades cenográficas
foram construìdas para produções posteriores, configurando-se atualmente como uma forte
tradição da teledramaturgia da emissora.

Para Daniel Filho (2001: 255-260) os cenógrafos, nesse momento, ainda não
dominavam completamente as técnicas necessárias para construções desse porte.
Como resultado disso, a cidade desabava semanalmente, e os acabamentos não eram
feitos de forma adequada, gerando uma série de problemas na captação de imagem e
som. (CARDOSO, 2009, p. 44)

A proposta de reestruturação da teledramaturgia foi ainda mais intensificada quando


todos os esforços da Rede Globo estiveram voltados para a consolidação do chamado “padrão
globo de qualidade”, uma perspectiva que trouxe mudanças significativas na programação e
grandes investimentos em tecnologia e na profissionalização dos funcionários. Essas
mudanças institucionais foram iniciadas já em 1966, um ano após a inauguração da emissora,
quando Roberto Marinho nomeou Walter Clark como o diretor-geral da TV Globo e Joe
Wallach como responsável pelas finanças, e juntos esses executivos implantaram uma
administração de foco estritamente empresarial. Em 1967, Clark contrata José Bonifácio de
Oliveira Sobrinho, o Boni, para o cargo de diretor da área de programação/produção, e a sua
gestão se destaca pela implementação de significativas mudanças formais e estruturais na
grade de programação da emissora, e no conteúdo e na estética dos programas, que
posteriormente influenciaram na consolidação da TV Globo como lìder de audiência.

45
MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 49
46
A primeira cidade cenográfica do Brasil, e da América do Sul, foi construìda pelo cenógrafo Pierino Massenzi
(1925 -2009) nos estúdios da Companhia Cinematográfica Vera Cruz para as gravações do filme Tico-tico no
fubá (1952). (HAMBURGER, 2014)
47
CARDOSO, João Batista Freitas. Cenário televisivo: linguagens múltiplas fragmentadas. São Paulo:
Annablume; Fapesp, 2009.
60

Juntos, Boni e Clark estruturam na emissora uma grade de programação, segundo o


conceito já utilizado pela TV Excelsior. Seguiam os princìpios de horizontalidade e
de verticalidade: o primeiro consistia na reserva de horário para determinados
programas ao longo da semana, e o outro dizia respeito à organização diária em
diferentes faixas de horários: de manhã, programação infantil; à tarde, programas
femininos; e à noite, telejornal e telenovelas. Essas práticas permitiram a
sistematização e o aumento da venda de espaço publicitário, além da fidelização do
público. [..] As mudanças propostas por eles levaram a TV Globo ao primeiro lugar
na audiência e foram, aos poucos, consolidando a sua liderança absoluta. (RIBEIRO;
SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 112)

Na década de 1970, a telenovela se estabelece como o principal produto comercial da


programação da TV Globo e as produções passam a ser veiculadas na grade da emissora em
faixas de horário definidas por público-alvo e perfil das tramas: a faixa das 18h fica reservada
a histórias leves e românticas, além das tramas de épocas; a das 19h é direcionada às
comédias; e a das 20h, que hoje passou para as 21h, para os dramas mais densos. Durante um
perìodo havia ainda as novelas da faixa das 22h, reservadas a propostas teledramatúrgicas
mais inovadoras e experimentais, um espaço posteriormente ocupado pelas minisséries.
Em 1973, a inauguração das transmissões televisivas em cores promove outra revolução
de linguagem na televisão brasileira e uma remodelação de todo o pensamento dos
profissionais da arte, que agora tinham que adaptar as suas criações ao novo padrão estético e
tecnológico. A primeira produção de teledramaturgia exibida em cores foi a novela O Bem-
Amado (1973), um desafio para cenógrafos, figurinistas e maquiadores, que após muitas
tentativas e erros, conseguiram adequar visualmente os elementos cênicos às especificidades
das imagens coloridas. “Os figurinos e maquiagens saltavam aos olhos em cores berrantes,
principalmente tonalidades fortes para o vermelho, imediatamente banido dos manuais”48.
Toda a concepção de figurinos e cenários foi repensada conforme as limitações do uso da cor
no veìculo, assim como a maquiagem, que nas novelas em preto-e-branco eram
supercarregadas, e com o surgimento das imagens coloridas tiveram que ser amenizadas.

O novo “padrão” se firmou através de um processo pulverizado, mas teve um marco


simbólico: o inìcio das transmissões regulares em cores, em 1973, com a telenovela
“O Bem Amado” de Dias Gomes. O projeto vinha sendo encampado pela Globo há
algum tempo. Já em 1970, a emissora já havia enviado engenheiros, técnicos,
coreógrafos e maquiadores à Alemanha para estudarem o uso da cor na televisão.
(...) Uma vez estabelecida a televisão colorida, a Globo soube muito bem encarnar o
sìmbolo do progresso que ela trazia. A emissora abusava de videografismos, das
edições velozes baseadas em planos curtos, de chromakey para realizar pirotecnias
visuais e de figurinos bastante coloridos. (RIBEIRO, 2010, p.123)

48
MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 81.
61

Figura 09. O Bem-Amado: primeira telenovela transmitida em cores.


Fonte: Memória Globo

Já na década de 1980, o grande destaque da teledramaturgia da Rede Globo foram as


minisséries, um formato fechado que permitiu às equipes de arte um trabalho mais apurado de
pesquisa e concepção artìstica e se consolidou como o principal produto de experimentação de
linguagem e processos produtivos. A primeira minissérie da emissora foi Lampião e Maria
Bonita (1982), da autoria de Aguinado Silva e Doc Comparato, uma obra que se destaca pela
concepção de figurino e caracterização das personagens. “Pesquisas detalhadas sobre a
indumentária de Lampião e Maria Bonita serviram de referência para a caracterização dos
personagens”49. A minissérie foi premiada com medalha de ouro no Festival Internacional de
Cinema e Televisão de Nova York50

As minisséries são uma das grandes novidades da década de 1980, a começar por
Lampião e Maria Bonita, a pioneira. Os figurinistas passam a trabalhar com
produções requintadas e mergulham em pesquisas históricas para a caracterização
dos personagens, saìdos da literatura ou representativos de momentos marcantes da
história do Brasil. Um dos destaques é Grande Sertão: Veredas, cujos figurinos
foram idealizados pelo próprio diretor Walter Avancini. (MEMÓRIA GLOBO, 2007,
p.39)

49
MEMÓRIA GLOBO. Guia ilustrado TV Globo: novelas e minisséries. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2010.
50
MEMÓRIA GLOBO, 2010, p.249.
62

Figura 10. Lampião e Maria Bonita: primeira minissérie da TV Globo.


Fonte: Memória Globo

A década de 1990 é marcada pela inauguração do Projac, a Central Globo de Produção


(CGP), um complexo integrado de prédios administrativos, estúdios, cidades cenográficas,
acervos e departamentos da Rede Globo, considerado atualmente o maior centro de produção
televisual da América Latina, ocupando uma área total de 1 milhão e 650 mil m² no bairro de
Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. O Projac reuniu em um mesmo espaço toda a infraestrutura
de apoio à produção dos programas de entretenimento da emissora, encubando todas as etapas
da criação das produções de teledramaturgia. Já nos anos 2000, a grande novidade foi a
introdução da digitalização na televisão e o surgimento da imagem HD, que determinou uma
adequação nos processos da direção de arte ao novo padrão tecnológico. Atualmente a
imagem HD está entrando em processo de obsolescência, e abre espaço para imagem 4k, de
resolução quatro vezes maior.
Em 2015, ao completar cinquenta anos de existência, a Rede Globo já construiu, ao
longo da sua história, uma enorme estrutura institucional de atendimento às necessidades das
equipes de arte, estruturando departamentos e acervos exclusivos para as áreas de figurino,
cenografia, caracterização e efeitos especiais, e dando subsìdios para que os profissionais
melhor se adaptem ao surgimento de novos padrões e recursos tecnológicos. No próximo
subitem iremos discorrer sobre as atuais especificidades da direção de arte televisiva no
contexto da teledramaturgia da emissora, considerando as suas particularidades conceituais e
processuais na construção de visualidades ficcionais.
63

2.2. O atual panorama da direção de arte na Rede Globo

A direção de arte é uma função originada essencialmente de necessidades decorrentes


dos processos produtivos cinematográficos. A adoção do termo no cinema brasileiro, no inicio
da década de 1980, introduz uma nova perspectiva profissional no meio, com a reestruturação
hierárquica das equipes e uma revisão de processos, o que resulta em ganhos qualitativos na
concepção das imagens e na conceituação estética de visualidades. A televisão posteriormente
se referencia neste padrão funcional, ajustando-o às particularidades das suas estruturas
organizacionais. Interessa-nos neste estudo uma compreensão desta configuração da direção
de arte no contexto televisivo e, sobretudo, da sua inserção nos padrões processuais e técnicos
da produção de teledramaturgia da Rede Globo de Televisão, para, a partir desta investigação,
apontarmos as suas projeções nas minisséries do diretor Luiz Fernando Carvalho.
Neste sentido, apresentamos neste subitem uma abordagem das particularidades da
direção de arte televisiva na atualidade, considerando as suas proximidades e divergências
com a direção de arte cinematográfica. É importante pontuar, contudo, que as informações
aqui descritas foram coletadas e sistematizadas a partir da consulta a bibliografia, acervos e
sites especializados em televisão, mas com especial foco na infraestrutura institucional da
Rede Globo, contexto de produção do objeto de análise desta pesquisa, além de resultar de
observações obtidas por pesquisa de campo realizada nas instalações desta emissora 51. Os
dados podem, portanto, divergir dos padrões de outras redes de televisão.
Com base no estudo realizado, observamos inicialmente que embora assinaladas, as
distinções formais entre as linguagens do cinema e da televisão não determinam uma
diferença conceitual da direção de arte, já que em ambos os meios a função é concebida como
atividade projectual de criação de visualidades. Assim, embora no cinema a direção de arte
possa alcançar um espaço maior de refinamento e experimentação se comparado ao da
televisão, com raros casos de projetos de arte televisivos que se destacam pela criatividade e
originalidade52, as diferenças mais perceptìveis entre os dois meios são aquelas relativas à
estrutura de atuação profissional, na qual nomenclaturas, hierarquias e processos de trabalho
podem divergir consideravelmente.
No contexto especìfico do audiovisual brasileiro, enquanto os princìpios comerciais da
televisão determinam uma organização mais industrial do trabalho da equipe de arte,

51
Pesquisa de campo realizada no PROJAC, a Central Globo de Produção, no dia 27.10.14, com visita guiada a
estúdios de gravações, cidades cenográficas, acervo de figurinos e departamento de efeitos especiais.
52
É importante destacar que a Direção de Arte representa um dos principais incrementos da experimentação de
linguagem nas narrativas seriadas televisivas.
64

estruturada por um quadro fixo de funcionários e pelo acesso a estúdios, acervos e


departamentos exclusivos, no cinema, as equipes, contratadas a cada novo projeto, não
contam com uma estrutura permanente de instalações, materiais e mão-de-obra, e seus
processos são definidos por uma perspectiva mais artesanal da produção.
Na pesquisa realizada acerca dos processos produtivos da teledramaturgia da TV Globo,
verificamos, no entanto, que não existe uma nomeação regular do cargo de diretor de arte nas
produções, sendo a função mencionada na ficha técnica de algumas obras e omitida em
outras. A listagem de funções técnicas apresentada no Guia Ilustrado TV Globo: novelas e
minisséries53 reforça esta constatação, quando ao apontar as atribuições dos profissionais que
atuam no set (interessando-nos aqui os oriundos do campo da arte), não menciona o cargo do
diretor de arte, mas somente o do cenógrafo, do cenotécnico, do produtor de arte, do
contrarregra, do figurinista, do camareiro, do maquiador e do cabeleireiro, do supervisor de
caracterização e do continuísta. Entendemos neste estudo que apesar da instituição da função
da direção de arte nos programas de teledramaturgia da TV Globo ser irregular, é perceptìvel a
lógica conceitual da atividade nas produções da emissora, ainda que a linguagem visual de
muitas destas obras resulte de projetos visuais fragmentados.
Embora seja especifico da direção de arte dirigir e alinhar as equipes de arte a partir de
perspectivas criativa e estética, além de orçamentária e cronológica, possibilitando assim a
construção de um projeto de arte integrado, o corriqueiro no contexto televisivo é que, não
havendo a nomeação deste cargo, caiba ao diretor da obra, não somente pensar na
estruturação da encenação, mas se responsabilizar também por nivelar esteticamente os
trabalhos de cenografia, figurino e caracterização a partir dos conceitos visuais previamente
estabelecidos. Este acúmulo de funções pode, porém, tornar o trabalho de concepção visual da
obra televisiva deficitário, sujeito a reprodução de padrões “prontos” ou sem força e coerência
expressiva e conceitual, um problema que pode vir a ser agravado ainda mais devido ao
imediatismo imposto pelo ritmo produtivo da televisão.

Os diretores dizem que uma de suas principais funções é harmonizar o grupo,


respeitando as individualidades. Em termos de criação artìstica, a delicadeza está em
saber conceituar as diversas áreas e buscar uma unidade estética entre elas, sem
tolher o potencial de criatividade de cada um.
Durante as gravações, as funções do diretor são múltiplas. Além de dirigir os atores,
é ele quem pensa no melhor enquadramento da cena, incluindo a alternância das
câmaras e dos planos, mais abertos ou fechados. Ainda é o olhar do diretor que cuida
para que cenário, figurino e iluminação estejam em harmonia e respeitem a
linguagem da produção. (MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 11)

53
MEMÓRIA GLOBO. Guia Ilustrado TV Globo: novelas e minisséries. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
65

Atualmente pode-se entrever, contudo, uma ampliação de espaço para o diretor de arte
na TV, na medida em que o surgimento da imagem em alta definição demanda um
aprimoramento das equipes televisivas e requer maiores cuidados com a concepção imagética.
Já é possìvel inclusive vislumbrar em uma gama de produções recentes a nomeação de
diretores de arte, tanto em obras oriundas do contexto experimental das minisséries - este é o
caso de Hoje é Dia de Maria, que tem a direção de arte creditada a Lia Renha, e de Suburbia,
com direção de arte de Mário Monteiro - quanto em produções irrestritas a este campo – nas
novelas Lado a lado (2012), de Dennis Carvalho, e Império (2014), de Aguinaldo Silva,
ambas também assinadas pelo diretor de arte Mário Monteiro. Assim, a direção de arte
televisiva parece estar se estruturando e se encaixando na hierarquia de funções da Rede
Globo, e embora se organize, na maioria das obras, por uma cadeia de produção industrial,
cumpre premissas conceituais análogas às do cinema, atuando inclusive na construção de
visualidades instigantes, catalizadoras de significados extratextuais.
Segundo consta no Guia da TV Globo54, o processo de concepção de um produto de
teledramaturgia da emissora segue como etapas produtivas a elaboração de sinopse, a pré-
produção, a produção, a pós-produção e o lançamento. O recorrente é que no perìodo da pré-
produção, após a escrita da sinopse e dos primeiros capìtulos ou episódios (ou de todo o texto
no caso de minisséries, unitários e especiais), o autor (denominação que aqui se refere à
autoria do texto narrativo) e o diretor da obra determinem juntos a forma como a história será
contada através das imagens, definindo os conceitos que irão nortear a sua estética e que serão
repassados para o restante da equipe.

[...] vem a fase de pré-produção. Autor e diretor, juntos, definem como aquela
história será contada através das imagens. Quanto maior é a afinidade artìstica dessa
dupla, maiores são as chances de o projeto ser bem-sucedido. A partir daì, as
escolhas conceituais – por exemplo, que estética terá a obra – são transmitidas às
equipes de cenografia, produção de arte, figurino, caracterização, fotografia e efeitos
visuais, que começam a fazer as pesquisas especìficas de suas áreas. Paralelamente,
ocorre a escalação do elenco e a seleção de locações externas. (MEMÓRIA
GLOBO, 2010, p. 8)

Observamos então que “a criação na teledramaturgia surge essencialmente a partir da


parceria entre autor e diretor”55, o que aponta uma participação efetiva do dramaturgo na
concepção visual do produto televisivo e sugere uma diferença substancial ao que ocorre na
produção cinematográfica brasileira, na qual o roteirista, não sendo o próprio diretor, de uma

54
MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 8
55
MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 11
66

forma geral, pode dar indicações estéticas no texto, porém não interfere diretamente nos
processos de concretização da obra. No cinema, o diretor é o autor da obra e a sua estética
resulta da parceria entre a direção, a direção de fotografia e a direção de arte, um tripé
profissional que conceitua e direciona a criação da visualidade fìlmica; cabendo aqui, no
entanto, uma relativização destes processos de acordo com o perfil da produção.
Assim, é na etapa de pré-produção de uma novela ou minissérie, que a equipe de arte
tem acesso aos conceitos e ideias definidas pelo autor e diretor, e sob estas orientações segue
para a pesquisa de referências visuais, de iconografia, de técnicas e de materiais, e para a
construção de esboços, maquetes e protótipos, sempre em alinhamento com a estética
proposta. Após este perìodo de reuniões, de conceituação e de pesquisa, parte-se então para a
etapa de produção, que ocorre de dois a três meses antes da estreia da obra e se caracteriza
como o momento da montagem dos cenários e de seleção de objetos de cena, confecção ou
compra de figurinos, de definição da maquiagem e penteados das personagens e de
planejamento dos efeitos especiais, além das gravações propriamente ditas, com o
envolvimento dos demais profissionais atuantes no set. Neste perìodo é prevista ainda a
realização dos ensaios e provas com o elenco e equipes, e de testes com os elementos cênicos
construìdos ou adquiridos, considerando a sua relação expressiva no conjunto, com a paleta de
cores e com a iluminação.
É importante destacar que a produção de teledramaturgia atual demanda um intenso
rigor estético na concepção formal de cenários, figurinos e maquiagens, na medida em que a
influência visual destes elementos na composição imagética foi intensificada com a alteração
do padrão televisivo do analógico para o digital e com o inìcio da veiculação das imagens em
alta definição, que favorecem uma maior percepção dos detalhes, texturas e acabamentos do
quadro televisual, e determina assim novos parâmetros técnicos e processuais para as equipes.
Logo após as gravações das cenas, o material capturado segue para a pós-produção,
etapa que contempla a edição e sonorização das imagens, os ajustes e tratamentos de cor e de
textura, e da produção de efeitos visuais, além da criação das aberturas dos programas. Com
os avanços tecnológicos das ferramentas digitais da computação gráfica, as técnicas da pós-
produção tem interferido cada vez mais nos processos da equipe de arte televisiva,
principalmente no que concerne a concepção da paleta de cores e da iluminação, e nos
procedimentos das áreas de cenografia, caracterização e efeitos especiais, pontos que
voltaremos a discutir no decorrer deste texto.
A Rede Globo produziu e veiculou nos últimos anos uma série de produções marcadas
por uma intensa estetização da imagem, promovida principalmente pelo uso de modernas
67

câmeras digitais e pela manipulação e experimentação das potencialidades expressivas das


visualidades. A novela Meu Pedacinho de Chão (2014) se encaixa neste conjunto de
produções. Dirigida por Luiz Fernando Carvalho, a obra apresenta uma estética instigante e
inovadora para o formato, pautada por uma radicalização do uso expressivo da materialidade
cênica, da paleta de cores e dos efeitos visuais.

Figura 11. Efeitos visuais na novela Meu Pedacinho de Chão


Fonte: TV Globo

Finalizado o produto, contando um mês para a sua estreia tem inìcio a etapa das
campanhas de lançamento, que contempla a criação de peças publicitárias impressas e
digitais, a realização de eventos promocionais e a divulgação do produto nas mìdias sociais,
em reportagens e nas chamadas na própria emissora. “Por fim, essa roda continua a girar
durante todo o perìodo de exibição das produções, que varia de seis a oito meses para as
novelas e de uma semana a três meses para as minisséries, aproximadamente”56. As
minisséries são um caso especifico de produções que vão ao ar após o produto estar
completamente acabado, com todas as etapas de criação finalizadas, sem intervenções
posteriores por questões de conteúdo ou audiência.
Neste processo de produção, as equipes atuam convencionadas às particularidades da
linguagem televisiva, ao chamado padrão globo de qualidade e sob as diretrizes dos
departamentos e acervos da Central Globo de Produção. Com infraestrutura e tecnologia para

56
MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 9
68

atender a todos os programas de entretenimento da emissora, a CGP disponibiliza para as


equipes de arte os acervos de figurinos, de peças cenográficas e de contrarregra, as fábricas de
cenários e de costura de figurinos, um departamento de efeitos especiais e uma central de pós-
produção, equipadas com ilhas de edição, sonorização e estações de efeitos visuais, além do
acervo digital da emissora, onde estão os arquivos de imagens, de processos de pesquisas e de
projetos já realizados, que poderão vir a auxiliar na concepção dos novos.

Figura 12. Vista aérea da CGP / Projac


Fonte: TV Globo

A cenografia na Rede Globo se pauta principalmente pela montagem de cenários nos


estúdios e nas imensas cidades cenográficas da emissora, opções projetuais que permitem um
maior controle dos processos produtivos e cuja logìstica se encaixa na dinâmica industrial da
televisão. Os cenários em estúdio, por exemplo, são montados e desmontados diariamente
para que as instalações possam atender ao fluxo das gravações, e as cidades são construìdas
para as produções, sendo desmontadas após a finalização das filmagens. A opção por locações
é mais pontual. Para a realização dos projetos, as equipes contam com a infraestrutura do
Projac, com suas três cidades cenográficas, que totalizam uma área de mais de 160 mil metros
quadrados e dez estúdios acusticamente tratados e equipados com recursos avançados de
iluminação, além da fábrica de cenários, o acervo de peças cenográficas e o acervo digital.

Além das cidades cenográficas, são construìdos, por novela, de 40 a 80 cenários que
reproduzem os interiores dos espaços.
69

Ao longo de uma semana de gravação, mais de 20 ambientes são montados e


remontados no piso de pinho abrasivo dos estúdios, o que permite o “prega e
desprega” diário da madeira.
Na fábrica de cenários, são produzidos, por ano, cerca de 60 mil m² de cenários e 86
mil m² de cidade cenográfica, em área projetada. (MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 20)

Nos últimos anos, o uso das ferramentas da computação gráfica permitiu inovações na
área de cenografia. A utilização do digital backlot, recurso tecnológico que possibilita a
criação de cenários virtuais para compor visualmente as cenas, solucionou os transtornos
logìsticos e os custos de deslocamento decorrentes da necessidade de gravação de cenas em
lugares ou paìses distantes do Projac. A técnica consiste na captação de imagens em locações
reais, com profundidade de campo e textura análogos ao ambiente real, e na sua inserção nas
imagens, artificialismo praticamente imperceptìvel para o público. “Essas técnicas aplicadas
na pós-produção dependem do uso do cromaqui nas gravações, um painel geralmente na cor
verde ou azul que permite a posterior inserção de imagens pela computação”57. Há, portanto, a
coexistência na televisão de dois tipos de cenários, a que Cardoso (2009, p. 54) define como
cenários corpóreos, construìdo com recursos materiais como madeira, ferro, tecidos e etc,, e
cenários virtuais construìdos digitalmente por computação gráfica.
Em termos conceituais e funcionais, o cenário televisivo, mesmo submetido às
convenções das representações televisuais, apresenta ainda uma configuração que remonta às
suas origens teatrais e cinematográficas: conceitualmente alinhada às premissas do texto
narrativo e à encenação. Nas práticas televisivas os espaços cênicos são construìdos de forma
a permitir o deslocamento de duas ou mais câmeras grandes e pesadas, além dos seus
adicionais técnicos, como fios, cabos e monitores (uma realidade em processo de
transformação com a introdução de câmeras digitais avançadas na rotina da emissora). Esses
espaços têm ainda o seu alcance comunicacional minorado na maior parte das produções,
devido principalmente a composição do quadro televisivo, no qual prevalecem os primeiros
planos de rostos dos atores ou detalhes dos seus corpos, com foco essencialmente nas suas
expressões, nos seus gestos e nas suas falas. Segundo Cardoso (2009, p. 18):

A edição dinâmica das cenas, que leva o telespectador em minutos de um lugar a


outro – ambientes internos, regiões distantes ou, até mesmo, épocas distintas -,
somada à importância que se dá ao diálogo nesse gênero faz que, como ressalta
Machado, o primeiro plano comande o recorte dos quadros (1995:50). Essa
tendência interferirá diretamente na escolha das padronagens e texturas de
composição das formas do cenário, assim como fará que o cenógrafo passe a se
preocupar com as partes, com os detalhes. Dependendo do enquadramento da cena,
um pequeno detalhe pode trazer, por meio da figura da sinédoque, o cenário para o
primeiro plano.

57
MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 18
70

Já o processo de criação dos figurinistas tem etapas e diretrizes análogas ao das


produções cinematográficas, porém está sujeito às práticas e ao ritmo acelerado da cadeia de
produção televisiva. Envolvendo muita pesquisa e criatividade, a concepção dos trajes se
alinha à narrativa e à caracterização das personagens, em conformidade com os
direcionamentos conceituais do diretor e do autor da obra, mas está submetido também à
conjuntura mercadológica da televisão, determinante na reprodução de padrões e valores
estéticos, de acordo com interesses comerciais. Os figurinos podem ser confeccionados na
própria emissora, acessados no acervo (reaproveitamento ou reforma de peças antigas) ou
comprados, e neste caso, as peças adquiridas seguem, na maior parte das produções, as
últimas tendências da moda, ou ditam modismos de forte influência no consumo do público.

Figura 13. Acervo de Figurinos da Rede Globo


Fonte: Memória Globo

Cada personagem da novela ou da minissérie tem um guarda-roupa criado conforme o


seu perfil social e estatura, composto por um determinado número de peças, que podem ser
repensadas ou renovadas, a depender do seu desgaste natural, do percurso narrativo das obras
e do seu número de capìtulos. “Um guarda-roupa básico é o ponto de partida da montagem do
enxoval dos personagens [..] Nas histórias contemporâneas, o figurinista cria um repertório de
roupas com o que está disponìvel no mercado, montando araras e prateleiras de sapatos que
contemplam vários tamanhos e medidas”58.
Na infraestrutura do Projac estão disponìveis às equipes um acervo com “cerca de 200
mil itens de figurino, entre roupas, calçados, bolsas, cintos, chapéus, echarpes, lenços,

58
MEMÓRIA GLOBO, 2010, p. 139
71

gravatas, óculos e bengalas”59, e uma fábrica de costura, onde são confeccionados os trajes e
são realizados o tingimento e desgastes das peças, dando-lhes vivência. “A média é de 1.340
peças por mês. Tramas de época são freguesas assìduas [...] Nos últimos anos, são as
minisséries que lideram os pedidos de confecção: cerca de 80% de seus figurinos são
confeccionados na fábrica”60.

Vestidos, calças, camisas, paletós, saias, casacas, transformação de adereços. A


fábrica de costura da TV Globo segue o ritmo das indústrias de produção em série,
mas com uma caracterìstica peculiar: as peças são únicas e exclusivas, feitas sob
medida para vestir mocinhos e vilões de diferentes tramas e épocas. Pelas mãos dos
talentosos costureiros e alfaiates dessa fábrica atìpica já passaram diversos tecidos,
modelos e modelagens dos programas da teledramaturgia [...] (MEMÓRIA GLOBO,
2007, p. 151)

Ligada à cenografia, a função da produção de arte é a responsável por selecionar os


objetos que irão compor os cenários, equivalendo na televisão ao que na produção
cinematográfica se denomina de produção de objetos. Embora desempenhe papéis similares, o
produtor de arte encontra na infraestrutura da Rede Globo, com seu acervo de contrarregra e
sua fábrica de cenários, condições estruturais favoráveis à construção dos projetos propostos.
A depender da narrativa e das referências definidas, principalmente em produções históricas,
poderá ser ainda necessário se buscar objetos em estabelecimentos externos, como brechós e
antiquários. Assim como o trabalho de figurino, a produção de arte na teledramaturgia está
submetida à lógica comercial da televisão, sendo por vezes veìculo publicitário de marcas e
produtos através de estratégias do merchandising.
Quanto à maquiagem televisiva, o supervisor de caracterização é o profissional
responsável por pensar o conceito da maquiagem e do penteado dos atores, conforme a
proposta de composição visual das personagens e o direcionamento estético do autor e do
diretor. Após a chegada da imagem de alta resolução, as preocupações desses profissionais
foram ampliadas, já que o rosto do ator e seus cabelos se destacam nas imagens televisivas, e
teve inicio ao uso da maquiagem com airbrush “(...) técnica que cria um plano uniforme e
confere suavidade ao rosto, fazendo desaparecer as sombras e os inchaços dos olhos”61 em
conjunto com um emprego corretivo da luz. O desenvolvimento das técnicas de efeitos visuais
trouxe também consequências para área, na medida em que através da computação gráfica é
possìvel realizar intervenções nas imagens dos atores, como correções e transformações na
pele, rejuvenescimento ou envelhecimento, entre outras.

59
Ibid, p. 159
60
Ibid, p. 152
61
Ibid, p. 82
72

Neste processo de concepção de visualidades televisivas, as equipes de arte devem estar


atentas ainda às particularidades expressivas próprias do veìculo. É preciso considerar que a
imagem televisual é veiculada em dimensões inferiores às do cinema e que há no meio um
predomìnio de composições com pouca profundidade de campo, com figuras em primeiro
plano. Portanto, os elementos da caracterização e do figurino permanecem como figuras, e o
cenário como fundo. Essas imagens se dirigirem ainda para públicos dispersos, o que
determina a criação de estruturas visuais que atraiam a atenção do telespectador, mas também
um cuidado redobrado nas escolhas estéticas, evitando-se os exageros e a poluição visual.
Assim, o uso de formas, cores, texturas e padronagens na televisão é um ponto que
demanda muita atenção. Com o inicio das transmissões em cores na década de 1970, os
profissionais da TV tiveram muito problemas com a definição da paleta de cores e de texturas,
e a partir dessas primeiras experiências, muitas cores e padronagens tornaram-se proibidas. O
uso do vermelho em cenários e figurinos foi proibido porque a cor se expandia na tela, assim
como o branco, que por isso passou a ser substituìdo pelo bege. Proibiram-se ainda os padrões
de linhas, bolas e xadrez, além do conjunto de cores e estampas em uma mesma composição.
Hoje, com os avanços tecnológicos, algumas dessas proibições foram descartadas.

A palavra “proibido” não existe no figurino de dramaturgia da televisão. Mas a regra


básica é fugir do moiré, porque as tramas do tecido provocam um efeito de ondas
que confunde o olho do público. Linhas e grafismos muito próximos e estampas
muito contrastantes e pequenas – como o pied de-poule (tecido em quadriculado
geométrico, imitando os dedos dos pés de galinhas) e o pied-de-coq (tecido
semelhante ao pied-de-poule, com efeitos geométricos maiores) – podem borrar a
imagem, isto é, dar uma leitura ruim. Isso ocorre devido ao processo ótico da
televisão, que, no entanto, ficou mais sofisticado com os avanços tecnológicos.
(MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 86)

Os processos, conceitos e práticas descritas nos parágrafos anteriores se aplicam à


feitura da maior parte das produções de teledramaturgia da Rede Globo, nos seus diversos
formatos. Há, no entanto, diretores que preferem atuar a partir de processos criativos
particulares. “Diante de tantas possibilidades, há diretores que têm saudades da adrenalina da
televisão ao vivo, outros que gostam do frenesi do ritmo industrial de produção e, ainda, os
que preferem confeccionar as obras de forma mais artesanal”.62
Aqui se encaixa o diretor Luiz Fernando Carvalho. No conjunto das suas produções é
possìvel vislumbrar não somente opções conceituais e estéticas inovadoras, que seguem uma
perspectiva experimental, e por vezes radical da construção da materialidade cênica,
determinando a impressão de traços autorais nas suas obras; mas também os resultados

62
MEMÓRIA GLOBO, 2010, p.12
73

visuais de um uso diferenciado das técnicas e processos produtivos da direção de arte


televisiva. Das minúcias dos detalhes à composição das imagens, as equipes seguem uma
opção metodológica diferenciada da lógica industrial televisiva, pautada por práticas
artesanais, aproximadas aos procedimentos cinematográficos.
Tanto que, no ano de 2013, Luiz Fernando Carvalho obteve da Rede Globo um espaço
exclusivo no Projac para o seu núcleo de produção, denominado por ele de “teveliê”, um
galpão onde, segundo o diretor, criação e formação se conjugam. Neste espaço, o seu grupo
de colaboradores trabalha sob o estìmulo de um intenso rigor técnico e estético, em diálogo
com as diversas linguagens artìsticas, e de forma inclusiva: não há divisões de salas e setores,
e as reuniões da criação e ensaios podem ocorrer tanto nas mesas de trabalho como entre as
costureiras e bordadeiras; o que permite a concepção de projetos integrados entre as diversas
áreas criativas. Este formato produtivo reflete, sobretudo, um ponto de vista particular do
diretor sobre a função da produção da dramaturgia na televisão brasileira, pois, ao investir na
construção de processos mais “lentos” e meticulosos, antenados à experimentação estética e
às linguagens audiovisuais contemporâneas, as suas obras corroboram não só a transformação
de conceitos e processos no âmbito organizacional da Rede Globo, mas também em uma
renovação de discursos e visualidades na teledramaturgia nacional.
No subitem a seguir, com base em um levantamento da sua produção audiovisual,
pretendemos discorrer sobre a trajetória profissional de Luiz Fernando Carvalho na Rede
Globo, com o intuito de alcançarmos uma compreensão das suas perspectivas pessoais sobre o
“fazer televisão” e das condições da sua inserção neste contexto produtivo.

Figura 14. Atriz posa entre costureiras em ensaio fotográfico no “teveliê”


Fonte: TV Globo (Foto: Leandro Pagliaro)
74

2.3. A direção de arte e o percurso criativo de Luiz Fernando Carvalho

Considerado atualmente um dos diretores mais inventivos e inovadores da televisão


brasileira, Luiz Fernando Carvalho apresenta um percurso criativo inusitado dentro da Rede
Globo de Televisão. Da experiência dos seus primeiros trabalhos na emissora, concebidos nos
moldes tradicionais da produção de teledramaturgia, o diretor imerge em uma reflexão acerca
do fazer televisivo e propõe, continuamente, inovações estéticas e conceituais nas suas obras,
estruturando, a partir destas, novos processos de criação, para além dos formatos e padrões
televisuais. Uma perspectiva criativa que conquista progressivamente uma ampliação de
espaços na tevê, tanto estruturais quanto discursivos. Os seus últimos trabalhos, reconhecidos
pela crìtica especializada como produtos singulares no ininterrupto fluxo da programação
televisiva, não somente subvertem os limites da linguagem televisual tradicional, ao promover
uma experimentação de narrativas, estéticas e visualidades, como ainda discutem de forma
original temáticas de relevância social e cultural.
O caráter artìstico e autoral dessas obras, que se destacam no universo da dramaturgia
industrial e comercial em que estão inseridas e, sobretudo, o pouco alcance em números de
audiência de grande parte destas produções, estimulam ainda questionamentos sobre a
liberdade criativa do diretor e os seus “privilégios” no âmbito da cadeia produtiva da
televisão, o que representa para muitos uma chancela institucional da Rede Globo para
justificar o chamado “padrão globo de qualidade”, além de um investimento da emissora em
produtos de competitividade na disputa por prêmios internacionais. “Queridinho” dos crìticos,
dos intelectuais e dos acadêmicos, o fato é que as suas produções desempenham uma
importante função na conjuntura midiática contemporânea: suscitar questionamentos sobre o
real papel da televisão frente às demandas da sociedade brasileira.
Com base nestes dados, estruturamos neste subitem um panorama da trajetória
profissional de Luiz Fernando Carvalho na referida emissora, destacando as suas principais
fases, influências e produções. Além do entendimento das particularidades dos ciclos de
“invenção” e “reinvenção” do seu processo criativo e das suas posturas ideológicas frente à
produção de teledramaturgia, pretendemos compreender ainda o seu pensamento acerca da
construção de visualidades na tevê, principalmente no que se refere aos aspectos que tangem
aos processos da direção de arte, que consideramos aqui relevantes na construção do seu estilo
e de um determinado status dos seus projetos no contexto institucional da Rede Globo.
Após a compreensão das particularidades processuais e técnicas da direção de arte
televisiva e do seu percurso de desenvolvimento no decorrer da história da teledramaturgia da
75

Rede Globo, consideramos então termos alcançado neste estudo um repertório teórico e
empìrico fundamental para construirmos um entendimento das condições da inserção do
diretor Luiz Fernando Carvalho neste contexto industrial e analisarmos o quanto a direção de
arte das suas produções refletem estas variáveis produtivas. Assim, neste subitem iremos
também discorrer sobre os projetos de arte desenvolvidos nas suas obras, mas com um foco
principal no conjunto das minisséries que dirigiu.
É importante pontuarmos que o conteúdo sistematizado está estruturado a partir de uma
descrição das escolhas do diretor e das equipes de arte nas produções e na definição do
conceito visual desenvolvido em cada uma delas, priorizando, nesta análise, os dados
empìricos referentes aos processos de concepção e fabrico dos elementos da cenografia, do
figurino e da caracterização, além das suas reverberações na encenação e na visualidade das
obras. Não pretendemos aqui apresentar uma análise visual ampliada de cada uma dessas
produções, principalmente por conta do tempo e do espaço disponìvel; com exceção
obviamente de Suburbia, objeto de análise desta pesquisa, cuja narrativa, processos criativos
da direção e da equipe de arte, e visualidade serão pormenorizados no terceiro capìtulo.
Considerando ainda os objetivos propostos para esta pesquisa, o intuito de lançarmos
um olhar sobre a direção de arte destas minisséries está não somente em uma busca do
entendimento da relação conceitual da função com a estruturação da encenação e das
visualidades, mas também em pontuarmos de qual modo cada uma dessas obras isoladamente
representa uma postura estética diferenciada no percurso da construção do estilo do diretor
Luiz Fernando Carvalho, e como a relação do diretor com a direção de arte se articula neste
processo. Não podemos afirmar, no entanto, que estas obras foram produzidas dentro de uma
lógica evolutiva, em que a estética da produção mais recente nega a da anterior ou que há um
crescimento qualitativo a cada nova produção. As minisséries simplesmente dialogam,
podendo, por vezes, se referenciar, se opor ou se complementar. Mas cada uma delas detém o
seu espaço e valor neste conjunto de estéticas diversas.
Ao defendermos neste estudo o diretor Luiz Fernando Carvalho como um autor no
âmbito da produção industrial televisiva, se faz necessário definir como os projetos de arte das
suas obras expressam essa perspectiva autoral. Assim, se a autoria se revela na forma singular
e, por vezes inovadora, de como o realizador estrutura a encenação, os elementos da direção
de arte alimentam essas premissas conceituais, refletindo as suas opções visuais e estéticas ao
manipular criativamente ou mesmo subverter linguagens. Nesse sentido, Carvalho é um
diretor que visualiza a potencialidade criativa de todas as matérias que ocupam o espaço da
encenação. Sejam a atuação e a coreografia dos corpos dos atores, a fotografia ou os
76

elementos da cenografia, do figurino ou da caracterização, com seu repertório de cores,


texturas e padronagens, todos tem uma participação efetiva no processo da criação
audiovisual. São todos coautores63, e essa coautoria faz das suas obras o resultado de uma
articulação criativa intensa, que dá liga e coesão às visualidades construìdas.

Figura 15. O diretor Luiz Fernando Carvalho


Fonte: TV Globo

Luiz Fernando Carvalho de Almeida nasceu no Rio de Janeiro, no dia 28 de julho de


1960. Cineasta e diretor de televisão, a sua relação com a imagem surgiu desde cedo. Ainda
na infância demonstrou ter aptidão para o desenho, chegando, inclusive, na adolescência, a
realizar trabalhos de ilustração para jornais, centros acadêmicos e revistas, como o semanário
O Pasquim. Na universidade cursou Arquitetura e, posteriormente Letras. O interesse pelo
audiovisual surge nessa época de estudante, quando estagia em produções de cinema. Cinéfilo
e assìduo frequentador da cinemateca do MAM - RJ, as suas primeiras influências estéticas
foram os grandes diretores do cinema nacional e mundial.

Cinemateca do MAM. Rato de Cinemateca do MAM. Pegava meu onibusinho,


atravessava o Aterro, ia com uma cadernetinha e ficava lá, duas, três sessões
seguidas; uma assistindo pela câmera, outra assistindo pelo som, outra assistindo só
sobre a montagem, outra para a fotografia... Passava o dia por ali...” (CAVALHO,
2001, p.20)

63
Afirmativa do diretor em palestra proferida no dia 12/11/14 sobre a novela Meu Pedacinho de Chão dentro da
programação do Festival Internacional de Televisão 2014, realizada na FAAP (Fundação Alves Penteado) em
São Paulo.
77

A trajetória de Luiz Fernando Carvalho na Rede Globo teve inìcio na década de 1980,
época em que a crise na produção cinematográfica nacional e a escassez de novas produções,
o levaram a migrar do cinema para a televisão. Integrando a equipe do projeto Usina de
Teledramaturgia da Rede Globo de Televisão, estreou na emissora como assistente de direção
das minisséries O Tempo e o Vento (1985), de autoria de Doc Comparato e direção de Paulo
José, e Grande Sertão: Veredas (1985), uma adaptação da obra homônima de Guimarães
Rosa, dirigida por Walter Avancini. Sobre esta fase inicial, assim declara o diretor:

Então chegou o dia em que esses trabalhos foram rareando, rareando, e caìmos
naquela crise conhecida, onde uma grande quantidade de cineastas migrou para a
televisão ou para a propaganda. Eu fui parar naquele núcleo da Globo Usina, que era
um núcleo, digamos assim, da nata do que poderia se chamar de televisão. Não era
um núcleo formado apenas por técnicos da televisão, era composto também por um
número grande de profissionais vindos do cinema: Zé Medeiros, Dib Lutfi, Walter
Carvalho [...] Entrei como assistente de direção das minisséries e Quartas Nobres.
(CARVALHO, 2001, p. 16)

Após esses primeiros trabalhos, Carvalho atuou em diversas produções da emissora,


entre minisséries, unitários e telenovelas. Subordinado inicialmente a outros diretores, ou
mesmo envolvido em codireções, o diretor foi se aprimorando através da experiência prática e
adquirindo o domìnio da linguagem televisiva64. São desta fase, em ordem cronológica, as
novelas Vida Nova (1988), Tieta (1989), Gente Fina (1990), a minissérie Riacho Doce (1990),
além do unitário Os Homens Querem Paz (1991) e da novela Pedra Sobre Pedra (1992). “[...]
então você trilha um caminho dentro da televisão como dentro de uma indústria mesmo. Você
vai passando por vários diretores, sendo co-diretor de vários diretores, vai lidando com vários
procedimentos. E você vai se exercitando lá dentro [...].”65
A sua estreia na direção geral de uma telenovela será em Renascer (1993), obra de
grande sucesso de crìtica e audiência, com texto de autoria de Benedito Ruy Barbosa. Logo
depois, notadamente um diretor já experiente, assina respectivamente a direção geral dos
unitários Uma Mulher Vestida de Sol (1994) e A Farsa da Boa Preguiça (1995), das
telenovelas Irmãos Coragem (1995), O Rei do Gado (1996), da minissérie Os Maias (2001) e
da telenovela Esperança (2002), passando posteriormente a dedicar um longo perìodo
somente à produção de minisséries: Hoje é Dia de Maria (2005), primeira e segunda jornadas,
A Pedra do Reino (2007), Capitu (2008), Afinal, o que Querem as Mulheres? (2010) e

64
Luiz Fernando Carvalho também realizou trabalhos de direção para a extinta Rede Manchete, as novelas
Helena (1987) e Carmen (1987/88), esta última em direção conjunta com José Wilker e Denise Saraceni.
65
CARVALHO, Luiz Fernando. Sobre Lavoura Arcaica, Ateliê Editorial, SP, 2001, p.18.
78

Suburbia (2012). Em 2013, dirige para o Fantástico o especial Correio Feminino e após, o
especial de final de ano Alexandre e outros heróis. Em 2014, o diretor retorna à produção de
telenovelas realizando Meu Pedacinho de Chão, com texto de Benedito Ruy Barbosa. No
perìodo de finalização desta pesquisa, a minissérie Dois Irmãos, baseada na obra de Milton
Hatoum, se encontrava em processo de produção.
A partir dos interesses deste estudo, cuja análise está centrada nos processos de
construção de visualidades, selecionamos aqui, deste conjunto de produções, as obras que
consideramos representativas na formação profissional do diretor e na construção do seu
estilo na televisão, apontando, em cada uma delas, as nuances de uma fase especial na
trajetória de Luiz Fernando Carvalho e, principalmente, uma postura diferenciada do diretor
acerca da concepção visual de produtos de teledramaturgia. Para fins de embasamento desta
abordagem, convém incluir ainda, junto à listagem realizada anteriormente, o longa-metragem
Lavoura Arcaica (2000), que embora seja um produto oriundo de processos estritamente
cinematográficos, tem grande relevância no quadro de produções artìsticas do diretor, por
exercer uma forte influência nas suas produções televisivas realizadas posteriormente, tanto
em termos estéticos quanto produtivos.
A minissérie Grande Sertão: Veredas, dirigida por Walter Avancini, um dos primeiros
trabalhos de assistência de direção de Luiz Fernando Carvalho na tevê é uma obra
determinante na sua formação televisiva, justamente por proporcionar a sua primeira
experiência na direção de um programa. „Num determinado dia, lá no meio do sertãozão, ele
(Avancini) tinha acabado de dar o almoço, reuniu toda a equipe e o elenco: “Olhem, estou
indo embora, o Luiz Fernando vai fazer o resto” [...]‟66. Para além da sua formação prática na
concepção e produção de imagens audiovisuais, os frutos positivos desta experiência inicial
de Carvalho na tevê se evidenciam, sobretudo, na sólida influência de Avancini na perspectiva
criativa e profissional do diretor frente ao exercìcio televisivo e, possivelmente, nas suas
reflexões acerca do papel social da televisão.

Avancini foi uma figura importante também na minha formação prática, porque veio
nesse momento em que eu buscava fazer essa transfusão entre cinema e televisão, o
que eu poderia receber como ensinamento de uma linguagem e de outra, sem ser
preconceituoso: “Ah, televisão é ruim, cinema é bom...” Eu não acredito nisso. No
caso especìfico da dramaturgia, eu percebo que existem coisas boas tanto num
veìculo quanto no outro, e coisas ruins num quanto noutro. (CARVALHO, 2001, p.
18)

66
CARVALHO, 2001, p. 17
79

Profissional remanescente dos programas de rádio e atuante na televisão brasileira


desde os seus primórdios, já que a sua estreia (como ator) em um programa televisivo se deu
justamente no dia 18 de setembro de 1950, na TV Tupi de São Paulo, Walter Avancini (1935-
2001), que é considerado um diretor pioneiro no propósito de trazer inovações à linguagem
televisiva, teve a sua estreia na direção de novelas somente em 1965, na TV Excelsior, com A
indomável, de autoria de Ivani Ribeiro. A partir de então, o diretor construiu uma extensa
carreira na direção de produtos de teledramaturgia, na qual se destacam obras marcantes e
exponenciais da experimentação estética na tevê, como Beto Rockfeller, da TV Tupi, e o
unitário poético Morte e Vida Severina (Rede Globo, 1981).
Na Rede Globo, Avancini estreou em 1972, substituindo Daniel Filho na direção da
novela Selva de Pedra67. Na década de 1980, o diretor se dedicou à produção de minisséries
que alcançaram grande repercussão junto aos telespectadores e sucesso de crìticas, entre elas,
Anarquistas, Graças a Deus (1984), baseada no romance de Zélia Gattai, Rabo de Saia
(1984), de autoria de Walter George Durst, além da já citada Grande Sertão, Veredas, uma
obra que considera de grande importância na sua carreira.

Realmente, eu me preparei muito para realizar Grande sertão, e esse trabalho foi,
sem dúvida, o meu grande momento, um momento em que consegui sintetizar toda a
minha experiência como diretor e realizador de televisão.
[...] Para perceber o grande sertão do Guimarães era preciso ter o olhar mágico que
ele teve. [...] descobrir toda a magia do Grande sertão no fragmento de uma luz
filtrada através das folhas das árvores, no ruìdo cantante de um riacho, no voo de um
pássaro sobre os campos, enfim, numa série de fragmentos que refletem todo o
encantamento do Grande sertão [...] (AVANCINI, 2004, p. 170)

No que se refere aos processos da direção de arte, é possìvel apontar nas produções
dirigidas por Avancini, uma preocupação do diretor com a dimensão prática e criativa do
projeto de arte e, neste sentido, com a linguagem visual construìda nas obras. A criação do
projeto de arte resultava da realização de minuciosas pesquisas sobre o universo a ser
retratado na narrativa, para, a partir destas referências, investir-se na construção de projetos de
cenografia, figurino e caracterização calcados na vivência sobre a temática abordada, ou seja,
concebidos a partir de um forte laço conceitual entre texto, realidade e imaginário social, sem
distorções ou exageros visuais supérfluos.
Sobre o seu processo criativo, assim relata a figurinista Marilia Carneiro, se referindo
ao processo de criação do figurino da novela Gabriela (1975): “[...] Walter Avancini não

67
Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/perfis/talentos/walter-avancini/trajetoria.htm. Acessado em:
20de janeiro de 2015.
80

suportava muitos enfeites, gostava de representar a vida como ela é. Ele queria vivência.” 68.
Na minissérie Rabo de Saia, é a paleta de cores dos trajes das personagens que ganha
destaque na narrativa, ganhando autenticidade e protagonismo em determinadas cenas: “As
cores do figurino de Quequé (Ney Latorraca), sempre de terno de linho e chapéu-panamá,
mudavam de acordo com o perfil de cada esposa”69. Já em Grande Sertão: Veredas, a
preocupação com a visualidade da obra era tamanha, que o próprio diretor foi o responsável
pela idealização e escolha dos materiais para a confecção dos figurinos.

Figura 16. Grande Sertão Veredas: figurinos idealizados por Walter Avancini.
Fonte: Memória Globo

Assim como Avancini, Luiz Fernando Carvalho extrai da pesquisa e da vivência das
suas equipes sobre o roteiro e o universo temático da obra, tal como da experimentação da
linguagem televisual e da direção de arte, a chave para a construção narrativa e visual das suas
produções, o que reflete não somente as particularidades do processo criativo do diretor, mas,
sobretudo, a sua visão particular sobre a teledramaturgia. Carvalho demonstra estar totalmente
comprometido com a ideia de qualidade, por acreditar ser a televisão um importante
instrumento educacional, cabendo aos profissionais da tevê conceber produtos de relevância
sociocultural. Um dos principais traços dos seus trabalhos é, inclusive, a adaptação de textos
literários, cujas narrativas e imagens são construìdas de forma a instigar no público o valor

68
MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 56
69
Id., 2010, p. 256
81

artìstico da literatura. “Sinto que se faz necessário aos artistas e aos especialistas que
70
trabalham na televisão pensarem numa nova missão para a televisão” e que “Esta nova
missão estaria, no meu modo de sentir, diretamente ligada à educação, a uma reeducação a
partir das imagens e dos conteúdos” 71.
A visualidade de Renascer, o seu primeiro trabalho na direção geral de uma telenovela
já é, neste sentido, um resultado das indagações do diretor sobre a função e a qualidade das
representações concebidas e veiculadas pela televisão. Sobre o seu processo criativo na obra,
Carvalho explica que estava “... mergulhado na questão da brasilidade, da necessidade de
colocar na televisão alguma coisa menos estereotipada, mais humanizada, com mais verdade,
72
privilegiando o rosto local...” . As escolhas formais das equipes de fotografia e de arte da
novela refletem esta premissa conceitual, além de se alinharem à proposta da direção de
investimento no refino e na experimentação da linguagem televisiva, o que se evidencia na
concepção fotográfica das imagens e dos movimentos de câmera. Já a estruturação do projeto
de arte é pautada essencialmente pela pesquisa, definindo, deste modo, a vivência sobre o
universo temático do texto como o conceito que direciona todo o processo de concepção da
visualidade, e que confere densidade à narrativa.

Esta trama tinha como cenário a região cacaueira de Ilhéus, no sul da Bahia, e um
protagonista cujo visual lembrava a velha imagem dos coronéis baianos, vestido
com roupas de linho claro e botas de couro. [...] Os trabalhadores das lavouras de
cacau, por sua vez, traziam estampada a rudeza da vida no campo, com uma
caracterização que valorizava o tom curtido da pele e roupas carregadas de vivência,
como jeans e chapéus de couro surrados. Assim se vestia o jovem herói João Pedro
(Marcos Palmeira), o filho mais novo e rejeitado de José Inocêncio. (MEMÓRIA
GLOBO, 2007, p. 244)

E se nas produções televisivas de Luiz Fernando Carvalho realizadas até então, já é


possìvel vislumbrar uma obsessão do diretor pelo caráter verossìmil das narrativas visuais
construìdas, em Lavoura Arcaica o investimento no conceito de vivência é radicalizado.
Baseado no livro homônimo do escritor Raduan Nassar publicado em 1975, um texto de
intenso lirismo e densidade psicológica, o filme apresenta a narrativa em primeira pessoa das
memórias e angústias de André, jovem que se rebela contra as tradições cristãs e patriarcais
impostas por seu pai e foge da fazenda onde vive com a famìlia de origem libanesa.
Considerado uma obra-prima do cinema nacional, Lavoura Arcaica é o resultado de
um processo criativo cuidadosamente planejado. No perìodo da pré-produção, Luiz Fernando

70
CARVALHO, 2001, p. 31
71
Ibid, p.31
72
Ibid, p. 29
82

Carvalho seguiu a opção por uma extensão e intensificação das etapas de pesquisa e do
período laboratorial, que são estruturados segundo dois momentos: inicialmente o diretor
realizou, juntamente com a sua produtora e com o próprio Nassar, uma viagem ao Oriente
Médio, especificamente ao Lìbano e à Sìria, com o objetivo de empreender uma imersão no
universo cultural sugerido no texto literário e desse modo coletar referências para a produção
do filme. O registro audiovisual da viagem resultou no documentário Que teus olhos sejam
atendidos (1997), exibido pelo canal de televisão GNT.
Já em um segundo momento, após reunir uma série de referências materiais, visuais e
gestuais conforme as indicações da narrativa, o diretor investiu na intensificação da
preparação conceitual e técnica do elenco e da equipe de produção, conduzindo todos os
profissionais envolvidos no projeto a um confinamento na fazenda/ locação do filme por três
meses. Nesse perìodo, os atores executaram todas as tarefas atribuìdas às suas personagens, de
forma a promover uma apropriação dos tipos pelas relações estabelecidas no cotidiano: a
rotina diária do elenco envolvia a lida com a terra, com as plantações e com os animais, além
do uso de trajes, objetos e utensìlios da época retratada e da participação em oficinas teóricas
de temáticas relevantes à composição das cenas e de aptidões especìficas.
Toda a filmagem foi realizada ainda sem roteiro prévio e as cenas foram construìdas a
partir de uma leitura direta do texto do livro e da experimentação cênica coletiva. “Eu ficava
com eles, trabalhando junto com eles, ora observando, anotando as movimentações, ora
estimulando fisicamente os acontecimentos, criando situações... porque as improvisações, elas
eram muito ricas enquanto mise-en-scène, os atores não paravam de criar imagens.”73, explica
o diretor. Neste processo de criação, subjetivo e colaborativo, esquematizado por Luiz
Fernando Carvalho, o diretor de fotografia Walter Carvalho, a diretora de arte e cenógrafa
Yurika Yamasaki e a figurinista Beth Filipecki se dedicaram à criação de uma visualidade
fìlmica que avança o nìvel expressivo recorrente na maior parte das produções
cinematográficas nacionais.
Em diálogo com o desenho da fotografia, caracterizado por intensos contrastes de luz e
sombra, o projeto de arte, um retrato dos hábitos e costumes de imigrantes libaneses no
contexto rural, cristão e patriarcal do Brasil da década de 1940, não se atem apenas a uma
reconstituição de época, mas atua ainda na concepção visual e material da atmosfera lìrica do
livro, enfatizando a opção estética por uma linguagem extremamente sensorial, sobretudo na
composição dos espaços, das texturas e do figurino. Todos os processos técnicos de seleção,

73
CARVALHO, 2001, p.111-12
83

confecção e produção de materiais, trajes e objetos foram desenvolvidos de forma artesanal,


seguindo o tempo da criação coletiva estimulada pelo diretor.
A intenção da direção não era só retratar, copiar ou documentar, mas promover uma
vivência daquele universo retratado. “[..] Este trabalho ajudou a criar um clima que deu
densidade ao filme, contribuiu para o próprio entendimento do filme. De alguma forma isso
vai ser passado para o espectador74, relata Yamazaki. A criação visual teve como principais
referências, não somente a cultura árabe, mas também as pinturas do poeta e artista plástico
brasileiro Jorge de Lima, a pintura tenebrista espanhola e as pinturas de El Greco, Caravaggio,
Tiziano, Van Gogh, Degas, Munch, Millet e Cézanne75.

A questão da visualidade e tal tem a ver com essa necessidade de criar uma
fabulação [...] E essa fabulação tornará também invisìvel o aparato técnico da
captação das imagens, tornando a “costura do terno” invisìvel, o que, em outras
palavras, significa que você precisa encontrar uma alma pra imagem, pra que ela se
sustente, senão ela fica ali, didática, explicativa, não se sustentará enquanto vida,
não ficará de pé sozinha, tomba, cai. Esta é a questão mais difìcil para mim. Como
pôr uma imagem de pé, e ela ficar ali, viva! (CARVALHO, 2001, p. 104)

Após mais de uma década de atuação na cadeia produtiva da indústria televisiva, a


implementação desta lógica de criação colaborativa e de um ritmo artesanal de produção em
Lavoura Arcaica76 se originou principalmente das reflexões do diretor sobre os seus trabalhos
na teledramaturgia baseadas em variáveis conceituais como repetição e inovação. O resultado
alcançado neste processo fìlmico possivelmente acabou o estimulando a repensar a dinâmica
dos seus projetos e a sua postura criativa frente à concepção audiovisual.

Agora, o que isso talvez represente na minha trajetória como diretor... talvez uma
estafa em relação à televisão. Chegou um momento em que realmente eu não
consegui sair de uma certa convenção que eu havia proposto.
[...] O que eu propunha dava o tal retorno pra TV, o Ibope, mas eu parei por aì. Não
consegui mais me renovar dentro disso. Me senti repetindo, me copiando.
(CARVALHO, 2001, p. 30)

Acreditamos neste estudo que a partir de Lavoura Arcaica inicia-se um perìodo de


revisão e reinvenção na produção artìstica de Luiz Fernando Carvalho, que irá se refletir
posteriormente nas proposições estéticas e nos processos de criação de todo o conjunto das
suas minisséries. Fora a investidura na pesquisa e na vivência, nas suas próximas produções
serão recorrentes a extensão e a intensificação do período laboratorial (COLLAÇO, 2013) de
pré-produção, o emprego de processos colaborativos de criação artìstica, o sólido

74
Declaração extraìda do Making of do filme acessado no DVD de Lavoura Arcaica.
75
CARVALHO, 2001, p.101.
76
O diretor assina não somente a direção, mas também o trabalho de montagem do longa-metragem.
84

investimento na experimentação de linguagens, além da inscrição de um ritmo


cinematográfico nas produções, com a valorização e a amplificação expressiva dos elementos
da direção de arte.
O nìvel estético alcançado em Lavoura Arcaica, além dos prêmios conquistados
nacional e internacionalmente, contribuiu ainda para o reconhecimento e a valorização da
obra no meio da crìtica especializada, como coloca Mattos: “A soma de admiração,
perplexidade e objeções angariada à época do lançamento reflete o diálogo oblìquo do filme
com a cultura brasileira, sua posição singular de objeto sagrado em meio ao trânsito de
produtos.”77. E esta conjuntura provavelmente contribuiu para a criação de um “status” do
diretor na Rede Globo e para a viabilização de seus projetos experimentais na emissora.

Figura 17. Lavoura Arcaica: projeto de arte sensorial.


Fonte: Lavoura Arcaica, 2001. (Frame)

Após dedicar um perìodo da carreira à realização de Lavoura Arcaica, Luiz Fernando


Carvalho retorna à televisão e dirige, em 2001, a minissérie Os Maias, uma coprodução da
Rede Globo de Televisão com a emissora portuguesa SIC (Sociedade Independente de
Comunicação). Da autoria de Maria Adelaide Amaral, a partir do livro homônimo do escritor
Eça de Queiroz, a obra discorre sobre a trajetória de uma tradicional famìlia lisboeta e traça
uma crìtica social às tradições e aos valores morais da decadente aristocracia portuguesa do
século XIX, construindo uma história de vaidades, paixões e mortes.
77
MATTOS, Carlos Alberto em CARVALHO, 2001, p.7.
85

Com um processo de produção diverso ao desenvolvido em Lavoura Arcaica, adaptado


às especificidades técnicas e às estruturas industriais da dramaturgia televisiva, o elenco e a
equipe de arte de Os Maias contaram com um imenso aparato cênico disponibilizado pela
Rede Globo e com vultosos recursos para a criação e execução de sofisticados projetos de
figurino, cenografia e caracterização. Sob a condução do diretor de arte Mário Monteiro, e
alinhado ao conceito de vivência e às minuciosas pesquisas de referências visuais, materiais e
comportamentais do contexto espaço-temporal da narrativa, o seu projeto de arte cumpriu as
diretrizes realistas da direção na reconstituição impecável de Portugal do século XIX.
Com o intuito de fomentar e assinalar o realismo da minissérie, o projeto cenográfico,
assinado pelos cenógrafos Danilo Gomes, Ana Maria Mello e Mauricio Rohlfs, se pautou na
ambientação de grande parte das cenas na própria Lisboa e em outras cidades de Portugal,
entre as quais, Coimbra e Sintra. Segundo o site Memória Globo78, as seis primeiras semanas
das gravações foram realizadas em locações portuguesas e, por isso, Os Maias é considerada a
primeira produção da Rede Globo a passar um perìodo tão extenso fora do Brasil. Outra parte
das sequências foi gravada também no Rio de Janeiro, tendo como cenários o Theatro
Municipal, o Palácio do Catete e o Museu do Açude, entre outros.
Alinhado a essas diretrizes realistas do projeto de arte e da cenografia, o projeto de
figurino criado por Beth Felipeck teve o propósito de construir um retrato da indumentária da
referida época. Os trajes cênicos foram inteiramente confeccionados na própria oficina de
costura da Rede Globo e algumas peças e adereços foram comprados em Londres, Espanha e
Portugal. Já a equipe de caracterização, sob a supervisão de Marlene Moura, e contando
também com a contribuição da maquiadora inglesa Joan Hills79, foi a responsável por
transformações radicais nos atores, investindo-se no tingimento de cabelos e no uso de lentes
de contatos, e em cabelos volumosos, bigodes e cavanhaques (visagismo masculino),
compondo as personagens conforme o usual no contexto temporal da narrativa.

A indumentária dos atores seguiu as detalhadas descrições de Eça de Queiroz. As


roupas das atrizes contavam com crinolina (armação), blusa de baixo, calçola,
botina, espartilho, vestido, luvas, bolsinha, leque e adereços de cabelo. As dos
homens compunham-se de sobrecasaca, capote, cartola, luvas, bengala, botas, calça,
camisa, gravata e colete80.

78
Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/os-maias/producao.htm
Acessado em: 21de março de 2015.
79
Para conhecer o trabalho da maquiadora Joan Hills, acessar: http://www.imdb.com/name/nm0385130/
80
Disponível em http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/os-maias/figurino-e-
caracterizacao.htm Acessado em: 21de março de 2015.
86

Toda a linguagem visual desta obra resultou de um sensìvel trabalho de conjunção entre
a plasticidade realista concebida pela direção de arte e a fotografia definida por um intenso
contraste de luz e sombra (de aproximação à estética de Lavoura Arcaica). A visualidade de
Os Maias foi concebida de forma a construir uma atmosfera cênica de contornos operìsticos,
potencializada principalmente pela paleta de cores, figurinos e desenhos espaciais, em
conjunto com a atuação dos atores. Esta particularidade conceitual aponta para uma tendência
estética que será ainda mais radicalizada nos trabalhos posteriores do diretor Luiz Fernando
Carvalho: o investimento cênico em elementos da representação teatral.

Figura 18. Os Maias: visualidade de contornos operìsticos.


Fonte: Os Maias, 2001. (Frame)

É importante pontuar, contudo, que embora a direção de arte em Os Maias revele o


resultado de um projeto primoroso, essencial na composição das personagens e na
estruturação da encenação, é somente a partir das minisséries posteriores do diretor que será
possìvel observar uma maior experimentação das potencialidades expressivas deste campo
estético, dando continuidade a algo já estabelecido. A minissérie Hoje é Dia de Maria,
primeira e segunda jornadas (exibidas em 2005), pode ser definida, nesse sentido, como o
trabalho mais emblemático dessa fase de reestruturação de seu processo criativo.
Concebida a partir da obra de Carlos Alberto Soffredini e com texto escrito por Luiz
Fernando Carvalho em parceria com Luìs Alberto de Abreu, a narrativa da minissérie associa
os contos e as cantigas de roda da cultura popular brasileira ao imaginário infantil e à
87

linguagem dos sonhos, para traçar a trajetória mágica de Maria: a menina que migra do sertão
em busca das “franjas do mar”. Na primeira jornada, a protagonista vivencia as mais diversas
experiências e provações, é guiada pela Virgem Maria, enfrenta o Diabo, se torna mulher e
conhece o amor verdadeiro. Já na segunda jornada, a menina Maria encontra o mar, mas se
perde na cidade grande, onde conhece as grandes mazelas da humanidade.
A partir de uma imersão conceitual neste universo simbólico, Luiz Fernando Carvalho
propõe uma minissérie de perfil totalmente experimental, que vai além das convenções
televisivas e extrapola os padrões visuais até então construìdos na televisão e nas suas
produções anteriores. Substanciada por elementos estéticos da linguagem teatral e pela
concepção de uma materialidade cênica composta por elementos originais para uma
encenação televisiva, pautados no artificialismo e por um intenso diálogo criativo com
diferentes linguagens artìsticas, como o artesanato, o circo, os folguedos, as artes plásticas e a
animação, Hoje é Dia de Maria inova em termos de teledramaturgia. E, no que concerne a
visualidade da obra, o diferencial da minissérie de Luiz Fernando Carvalho está
essencialmente na densidade do conceito visual proposto.
A opção por uma estruturação não-realista da encenação e, para tanto, dos elementos da
direção de arte, cenários, figurinos e caracterização, está inteiramente alinhada à concepção
cênica do diretor, que definiu a linguagem visual da obra a partir de um mergulho vivencial no
texto e nas atmosferas e repertórios ideológicos que este articula. „“A infância me interessa
pelo primeiro olhar, o que me leva para o plano dos mitos, dos arquétipos” [...] “Não poderia
abordar esse tema de forma naturalista. E estou propondo ao espectador um jogo, um
exercìcio com as visibilidades.”81. Toda a configuração cênica de base artificialista, desde a
atuação e gestos dos atores até a fotografia e a materialidade concebidas, extrai do improviso
do teatro mambembe os elementos para a construção de um grande palco improvisado de
teatro no espaço midiático da tevê, o que impulsiona a construção de uma visualidade
original. “Eu digo que Hoje é Dia de Maria é o teatro mais antigo do mundo. A questão é
como esse teatro mais antigo, como esse circo, dialoga com algo novo que é a linguagem
eletrônica, a linguagem da televisão”. 82
No processo de criação da minissérie, o ritmo da produção se distanciou da lógica
industrial da televisão e se caracterizou por uma perspectiva artesanal dos processos
produtivos. No período laboratorial da pré-produção, uma etapa de peso na concepção da

81
PIZA, D. Um cineasta no paìs da infância. In: O Estado de São Paulo, 15.11.04.
Disponìvel em: http://www.danielpiza.com.br/interna. asp?texto=1764. Acessado em 05 de abril de 2011.
82
Depoimento extraìdo do Making of da minissérie acessado no DVD de Hoje é dia de Maria.
88

obra, foram meses de ensaios e de preparação corporal e vocal dos atores.


Concomitantemente, todos os profissionais envolvidos na confecção da materialidade cênica,
tiveram tempo para pesquisar, desenhar e executar figurinos, objetos, adereços e cenários,
concebendo projetos tecnicamente bem elaborados. O projeto de arte da minissérie, sob a
direção de arte de Lia Renha, constitui-se em um elemento fundamental na criação do mundo
propositalmente fantástico e lúdico proposto pela direção, sendo totalmente concebido sob o
vetor conceitual do artificialismo explicito (COLLAÇO, 2013), da experimentação e da
expressividade cênica. “A gente precisa começar um conceito e perseguir ele até as últimas
consequências... e dar certo”83, explica Renha.
A obra teve como principais referências visuais a iconografia da cultura popular
brasileira, as particularidades formais da arte popular e os hábitos e costumes do povo
sertanejo, além dos trabalhos de artistas e pensadores brasileiros, entre os quais, Câmara
Cascudo, Mário de Andrade, Portinari e Silvio Romero. E ainda, em citações à cultura
universal, a minissérie reúne elementos visuais oriundos do universo dos sonhos, da literatura
e da magia dos contos de fadas, além de transitar entre os mundos mágicos de Cinderela e de
Alice no paìs das Maravilhas, pelas aventuras de Dom Quixote e pelo improviso cênico da
commedia dell`arte. Na paleta de cores de Hoje é Dia de Maria há um predomìnio dos tons
terra e ocres, com fortes pinceladas de cores quentes, como amarelos, laranjas e vermelhos,
em referência à luz e à visualidade sertaneja.
Embora contasse com a disponibilidade de toda a estrutura técnica da Central Globo
de Produção, Luiz Fernando Carvalho optou por realizar as gravações de Hoje é Dia de Maria
fora do Projac, e montou toda a estrutura de produção em um terreno externo ao complexo de
estúdios (em uma área também de propriedade da Rede Globo). Neste espaço, foi montado
um grande domo de lona (reutilizado do Festival Rock in Rio) de 26 metros de altura e 55 de
diâmetro, e dentro deste construìdo todo o cenário. Ao redor dos 170 metros do perìmetro da
cúpula foi instalado ainda um grande ciclorama de 10 metros de altura com pinturas das
paisagens cênicas feitas à mão. “Assim posso construir os planos, fugir do linear, ter uma
perspectiva livre como numa pintura em movimento. Todos os elementos do quadro ganham
função. [...]”84, diz Carvalho. O projeto cenográfico da minissérie foi criado por Lia Renha e
João Irênio. Todos os ateliês de arte foram montados no espaço exterior do domo.

83
Depoimento extraìdo do Making of da minissérie acessado no DVD de Hoje é dia de Maria.
84
PIZA, D. Um cineasta no paìs da infância. In: O Estado de São Paulo, 15.11.04.
Disponìvel em: http://www.danielpiza.com.br/interna. asp?texto=1764 Acessado em 05 de abril de 2011
89

A ideia de usar o domo, a cúpula, a sucata de um palco de show de rock em vez de


um estúdio tradicional é a ideia de trabalhar em um espaço que não fosse a realidade
em si, mas que se constituìsse como sendo a representação emocional de uma
determinada realidade, assim como os sonhos 85.

Outro diferencial da produção foi o emprego de materiais recicláveis para a elaboração


de objetos, adereços e figurinos. Nesta alçada, Luiz Fernando Carvalho contou com a atuação
do artista plástico Raimundo Rodriguez, cujo trabalho artìstico é pautado no reaproveitamento
de sucatas e materiais descartados, que na minissérie foram reutilizados criativamente para a
composição da materialidade cênica, tais como restos de papeis, fibra de vidro, embalagens de
alumìnio, retalhos, tampinhas de garrafa, serragem, entre outros. Este é o caso, por exemplo,
das traquitanas dos cavalos montados nas cenas, que criados com madeira e fibra de vidro,
foram revestidos com resìduos de tecidos, alumìnio e serragem. Na segunda jornada, há uma
reutilização de objetos antigos, principalmente brinquedos, que são reavivados no contexto
narrativo da obra. Como já citado no primeiro capìtulo desta dissertação, em Hoje é dia de
Maria ocorre ainda um investimento cênico na interação dos atores com tìteres e bonecos,
essenciais na criação do tom artificial da encenação da minissérie. Estes artefatos foram
criados pelo teatro de bonecos Giramundo.
Já a concepção dos figurinos da minissérie, um trabalho da figurinista Luciana Buarque,
impressiona pelo apuro visual e pela pujante riqueza simbólica. A primeira jornada teve como
principal referência temporal o século XIX, além de épocas históricas anteriores, e a segunda
jornada, o século XX em diante. Assim como o ocorrido na produção de arte, na criação dos
trajes da minissérie também é possìvel vislumbrar o uso de materiais recicláveis. Um dos
destaques nesta área é o figurino de papel criado por Jum Nakao para a Maria adulta, usada na
sequência em que esta abandona o Prìncipe no altar (primeira jornada). Outro traje que
merece ser citado é o de Dom Chico Chicote, na segunda jornada, cuja confecção envolveu o
uso de restos de metais e retalhos, e teve como principal referência o trabalho do artista
plástico Bispo do Rosário86; há ainda o traje de Alonsa, personagem vivida por Leticia
Sabatella, que foi construìdo com papeis de bala descartados e pedaços de plásticos, entre
outros materiais. A caracterização das personagens, sob a supervisão de Vavá Torres, buscou
também as suas referências na expressividade teatral, se alinhando à paleta de cores, ao
figurino e à proposta experimental da minissérie.

85
Depoimento extraìdo do Making of da produção acessado no DVD de Hoje é dia de Maria.
86
Sobre o artista, acessar: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10811/arthur-bispo-do-rosario.
90

Figura 19. Hoje é dia de Maria, segunda jornada: figurino confeccionado com papeis de bala.
Frame: Hoje é Dia de Maria, 2005. (Still)

Por fim, consideramos neste estudo que o diferencial de Hoje é dia de Maria está
principalmente na linguagem visual estruturada pela composição de planos e esquemas da
encenação criada por Luiz Fernando Carvalho, que não resulta de um simples esteticismo,
mas do seu processo criativo, responsável por não somente adaptar de forma original o texto,
como articular todos os elementos sob um conceito visual unificador, rico em simbologias e
significados que envolvem e tocam o imaginário social e cultural dos telespectadores. A
minissérie obteve sucesso de crìtica e de público, e abriu portas para a realização de outros
trabalhos inovadores do diretor no âmbito da Rede Globo de Televisão.
O direcionamento estético construìdo em Hoje é Dia de Maria será o cerne da nova fase
criativa do diretor na televisão. A partir desta produção, Luiz Fernando Carvalho se dedicará a
projetos cuja essência narrativa visual se fundamentará no diálogo entre o teatro e a
linguagem televisiva, sob as premissas conceituais do artificialismo explícito. Este é o caso
das minisséries A Pedra do Reino e Capitu, obras pertencentes ao Projeto Quadrante, que
idealizado e coordenado por Luiz Fernando Carvalho, tinha por objetivo a realização de
adaptações de obras literárias de diferentes regiões do Brasil, buscando a construção de uma
reflexão sobre a cultura brasileira através da teledramaturgia.
O projeto contemplava a realização de quatro minisséries, a partir dos seguintes textos
literários: Romance D'A Pedra do Reino e do Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano
Suassuna (Paraíba); Dom Casmurro, de Machado de Assis (Rio de Janeiro); Dois Irmãos, de
91

Milton Hautom (Amazonas); e Dançar Tango em Porto Alegre, de Sérgio Faraco (Rio Grande
do Sul). Suspenso devido aos baixos ìndices de audiência, somente as duas primeiras
minisséries foram produzidas em um primeiro momento. Luiz Fernando Carvalho retomou o
Projeto Quadrante em 2014, com a produção da minissérie Dois Irmãos.

Com o projeto, o diretor objetiva resgatar textos de destaque da literatura brasileira,


visando aproximá-los do veículo de comunicação de massa mais presente nos lares
do país, a televisão, adotando para isso o uso de narrativas seriadas através de um
formato consolidado, as minisséries, balizadas principalmente por uma visão
renovada da obra, um viés educativo, uma aproximação visual com a geografia das
cidades representadas nos livros e por um modus operandi que passa pela
incorporação ao elenco e equipe de produção de um efetivo majoritariamente
constituído por mão-de-obra proveniente do local onde a trama se passa e é gravada.
(COLLAÇO, 2013, p. 07)

A minissérie A Pedra do Reino, veiculada pela emissora em 2007, foi gravada na cidade
de Taperoá, interior da Paraìba. Seguindo os princìpios produtivos estabelecidos pelo Projeto
Quadrante, a base de produção da minissérie foi toda montada na cidade e mobilizou a
economia e a mão-de-obra local e da região: artesãos, costureiras, bordadeiras, músicos,
marceneiros, pedreiros, mamulengueiros, artistas plásticos, entre outros profissionais; além de
contar com um elenco composto, em sua grande parte, por atores nordestinos. Estruturada por
uma narrativa circular, a minissérie se caracterizou ainda por uma estética marcada pelo uso
excessivo de grafismos, texturas e sonoridades, sob as diretrizes cênicas do artificialismo
explícito e da experimentação formal da linguagem televisiva. O projeto de arte da obra, cuja
direção de arte foi assinada por Raimundo Rodriguez (que já havia trabalhado com o diretor
Luiz Fernando Carvalho em Hoje é dia de Maria), teve as suas principais referências visuais
extraìdas do universo sertanejo e da essência ibérica/medieval da obra de Ariano Suassuna.
A partir desta perspectiva estética, o projeto cenográfico, assinado por João Irênio,
resultou do conceito criado por Luiz Fernando Carvalho de construção de uma cidade- lápide,
que assimilou referências visuais de cemitérios da região para conceber uma atmosfera de
morte e eternidade, se alinhando, desta forma, ao imaginário do texto de Suassuna. Concebida
como um espaço desenterrado por uma escavação, na montagem da cidade, a pavimentação
original de Taperoá foi coberta por areia e as fachadas originais das casas ocultadas por
tapadeiras que articulavam visualmente o conceito proposto pela direção. “[...] é como se
tivéssemos transformado em fachada aqueles pequenos oratórios que toda casa simples do
terceiro mundo traz em algum canto mágico da casa”87, explica Carvalho. Toda a cidade
cenográfica demorou em torno de 25 dias para ser erguido.

87
Relato extraìdo do Making of integrado ao DVD da minissérie.
92

Outro aspecto fundamental na concepção artificialista da minissérie, a produção de


objetos seguiu a mesma proposição do realizado em Hoje é dia de Maria, cuja inovação
esteve na ressignificação de sucatas e materiais recicláveis, recursos pouco usuais na
encenação televisiva. Na composição da materialidade cênica de A Pedra do Reino, tanto na
criação dos adereços quanto na composição dos trajes das personagens, foram reaproveitadas
latas de tinta usadas, tampinhas de garrafa, chapa de fotolito, metal, palitos de picolé, além de
elementos regionais, como ossos, sisal, palha, carnaúba, couro, entre outros.
O projeto de figurino, concebido pela figurinista Luciana Buarque (que também já vinha
de experiências anteriores com o diretor), teve como principais referências as artes, as cores e
as texturas da Idade Média. Considerando ainda os universos particulares de cada
personagem, foram criados trajes tanto com tecidos nobres como a seda quanto por tecidos
próprios da região, como algodão e rendas. Entre as peças confeccionadas para a minissérie,
destacamos aqui o figurino da personagem Margarida, que teve uma máquina datilográfica
acoplada ao corpete (criado em gesso), pesando em torno de sete quilos e meio. Dialogando
com os cenários e os figurinos, a caracterização dos atores, supervisionada por Vavá Torres,
seguiu também a estética medieval e a plasticidade das maquiagens circenses e teatrais.

Figura 20. A Pedra do Reino: visualidade com referências à Idade Medieval.


Fonte: A Pedra do Reino, 2007. (Still)

Já a segunda produção do Projeto Quadrante, a minissérie Capitu, veiculada pela Rede


Globo no ano de 2008, foi toda gravada na cidade do Rio de Janeiro. Neste trabalho, o diretor
93

mantem a sua aposta em uma configuração cênica não realista e artificialista, substanciada
pela sua pesquisa acerca da linguagem teatral - iniciada em Os Maias e evidenciada aqui,
sobretudo, pela concepção de um espaço único de encenação e de uma materialidade cênica
de contornos operìsticos -, e define este direcionamento estético como uma homenagem à
seguinte frase de Machado de Assis: “A realidade é boa, o realismo é que não presta para
88
nada.” . Para Luiz Fernando Carvalho, a minissérie não é uma adaptação do livro Dom
Casmurro, de Assis, mas uma aproximação ao referido texto literário e ao conjunto da obra do
escritor. “Costumo dizer que não acredito em adaptações, acho que as adaptações sempre são,
de certa forma, um achatamento da obra, um assassinato do texto original.” 89.
As principais diretrizes conceituais da produção se originam, assim, de uma crença na
essência atemporal da obra do escritor que, enfatizada esteticamente, se torna expressiva nos
anacronismos que permeiam os planos de Capitu, desde os elementos materiais até a atuação
do elenco (além de se evidenciar na sua sonoridade), e no forte investimento do diretor no
caráter existencial e trágico da dúvida e da transitoriedade do tempo, ou seja, aspectos
narrativos presentes no livro que definem todo o esquema de encenação da minissérie. Neste
processo criativo, as principais referências visuais são os comportamentos e os costumes
sociais do século XIX e o advento da modernidade no Rio de Janeiro - abordado em
construções imagéticas que remetem ao surgimento do trem e do cinema, e à popularização da
ópera -, junto a uma evocação estética de movimentos artìsticos do inìcio do século XX, o
surrealismo e o dadaìsmo, que, segundo o diretor, têm forte diálogo com o texto de Machado
de Assis e o inspiram na sua opção pelo emprego de “[...] assemblages, colagens, repetições,
afiches, cartazes, cartelas e com a proposta de distanciamento entre obra e espectador” 90.
Este conjunto de elementos visuais é então articulado cenicamente a dispositivos
deslocados da contemporaneidade, que determinam novos sentidos narrativos na obra e
contribuem para a concepção de uma visualidade de pleno diálogo com o século XXI. Assim,
dentre as cenas construìdas na minissérie, é possìvel ao telespectador assistir a um suntuoso
baile do século XIX, cujo estranhamento estético se dá pelo fato dos convidados acessarem a
música através de modernos fones de ouvidos; e já em outras sequências, vislumbrar planos
que assumem a tatuagem (contemporânea) da atriz que interpreta Capitu adolescente (Leticia
Persiles), em total conflito cronológico com o traje da personagem com inspiração na
indumentária de época. Tais direcionamentos definem implicações estéticas no trabalho de

88
CARVALHO, Luiz Fernando. O processo de Capitu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008, p. 76
89
CARVALHO, 2008, p. 75
90
Ibid, p. 80
94

concepção da materialidade cênica da obra e interferem diretamente na sua visualidade,


corroborando a opacidade do discurso audiovisual proposto. Todo este repertório material e
visual é sensivelmente articulado sob o ponto de vista particular de Luiz Fernando Carvalho,
que concebe a minissérie como um grande espetáculo de ópera, tanto nas escolhas referentes à
paleta de cores e ao desenho da luz, quanto nos espaços, nos trajes e na caracterização dos
atores. Sob uma nova perspectiva de linguagem, o diretor cria e estrutura na obra a encenação
de uma ópera-bufa no espaço midiático da televisão brasileira.

A ópera teve um papel nessa aproximação que proponho. Machado era um


apaixonado pela ópera, ele escreveu e afirmou que a vida é uma ópera bufa com
entremeios sérios, com alguma música séria... Quando Machado afirma isso, ele está
também querendo refletir sobre o mundo das aparências, onde muitas vezes a
verossimilhança conta mais do que a própria verdade. Esse é o mundo das máscaras,
é o mundo da ópera como metáfora do mundo social. (CARVALHO, 2008, p. 77)

Figura 21. Criação espacial sob as diretrizes do artificialismo explícito em Capitu.


Fonte: Capitu, 2010. (Frame)

Atuando novamente ao lado do diretor, Raimundo Rodriguez assina a cenografia e a


produção de arte da minissérie. Todas as cenas foram gravadas em um único espaço cênico, o
salão de um palacete abandonado no centro do Rio de Janeiro. Neste ambiente, os cenários
foram criados sem divisões por paredes ou portas fixas (estas são móveis e deslocadas pelos
próprios atores conforme as necessidades das cenas), esvaziados e compostos por poucos
objetos, permitindo a liberdade de improvisação de atuação e de movimento dos atores em
cena. Trabalhando sob a ideia do artificialismo explícito, as paredes do imóvel foram cobertas
por camadas de papel, para se criar e evidenciar as texturas de ruìnas.
95

No centro da cidade, na rua do Passeio, em frente ao Passeio Público e ao lado da


Escola Nacional de Música, encontrei um cenário, que é um palácio. Praticamente
em ruínas, decadente e abandonado, infelizmente, mas que serviu como uma luva às
nossas necessidades de produção da minissérie. Estou falando do Automóvel Clube
do Brasil. Quando percebi que o orçamento da minissérie não possibilitaria gravar
nas diversas ruas e casarões antigos que eu havia pensado e pesquisado, o velho
palácio em ruínas passou a representar um pouco da alma da história de Dom
Casmurro, se não um pouco da própria visão machadiana, e então me pareceu
interessante contar a história toda lá dentro, encenando todos os ambientes e
situações. (CARVALHO, 2008, p. 82)

Já o figurino da minissérie, criado por Beth Filipeck, traz referências da indumentária


do século XIX e se caracteriza por desenhos alinhados à dramaticidade da ópera, mas
modernizados nos cortes, ornamentos e efeitos visuais artificialistas. Um dos destaques é o
figurino da protagonista Capitu, que na infância vestia roupas claras e em tons pastel, com
aplicações de flores e folhas, em uma alusão às suas brincadeiras no quintal. Na fase adulta, a
personagem veste trajes e acessórios em cores quentes e com formas que ressaltam o seu
perfil enigmático e a sua feminilidade. “As roupas de Capitu foram cortadas obliquamente, tal
como seu olhar enviesado de cigana. O volume de seus vestidos se expandia em novas cores
91
através de efeitos especiais”. . Em atuação complementar ao figurino, os responsáveis pela
caracterização foram Marlene Moura, Rubens Libório e Deborah Levis, que, entre outras
ações, envelheceram o ator protagonista/narrador a partir de técnicas da maquiagem teatral,
definindo ares de cinema mudo à minissérie.
Após a suspensão do Projeto Quadrante, a próxima produção de Luiz Fernando
Carvalho na Rede Globo será a minissérie Afinal, o que querem as mulheres?, exibida pela
emissora entre novembro e dezembro de 2010. Embora ainda seja possìvel vislumbrar, na sua
estrutura de encenação, elementos oriundos das linguagens concebidas nas produções
anteriores do diretor, principalmente no que concerne ao conceito de artificialismo explícito,
norteador de parte das suas cenas, esta minissérie já apresenta, porém, uma concepção
audiovisual que rompe parcialmente com a sua fase teatral. A sua visualidade, mais próxima
às estruturas da encenação televisiva, se fundamenta em um hibridismo de linguagens,
articulando elementos formais dos videoclipes, da animação e da publicidade, além de um
forte diálogo com as artes visuais contemporâneas.
Escrita por João Paulo Cuenca com coautoria de Michel Melamed e Cecìlia Giannetti, e
texto final do próprio Carvalho, a obra apresenta a história de André (Michel Melamed), um
pesquisador que se propõe a responder, na sua tese de doutorado, à famosa pergunta do

91
Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/capitu/figurino-e-
caracterizacao.htm. Acessado em: 25de março de 2015.
96

psicanalista Sigmund Freud a qual se refere o tìtulo da minissérie. O protagonista é


apaixonado por sua esposa Lìvia (Paola Oliveira), uma artista plástica que termina este
relacionamento devido à falta de diálogo entre os dois.
Segundo o site Memória Globo92, o conceito de hiper-realidade norteou todo o trabalho
das equipes de arte e de fotografia da minissérie, que tiveram como principais referencias
visuais a iconografia da pop art, em especial da pintura de Andy Warhol, o universo kitsch e a
fotografia erótica de David LaChapelle. A paleta de cores da obra policromática, expressiva
na composição dos planos e em total diálogo com o desenho da luz, foi extraìda das pesquisas
visuais realizadas, e se configura como um importante elemento narrativo das cenas. Assim
como a cenografia, assinada por João Irênio, que se caracteriza por uma detalhada
composição conceitual de espaços. O cenário construìdo para a casa da mãe do protagonista
André, por exemplo, se pauta na disposição excessiva de objetos e elementos decorativos
oriundos da estética kitsch, tais como anões de jardim, samambaias e flores de plástico,
concebendo-se, dessa forma, um quadro fìlmico irreverente e instigante. Observa-se que,
nesta produção, há um retorno de Luiz Fernando Carvalho aos estúdios televisivos, o que é
inclusive sinalizado na narrativa por cenas que assumem a presença fìsica da câmera e da voz
off do diretor, imprimindo um caráter metalinguìstico à obra.

Figura 22. Afinal, o que querem as mulheres?: cenário com referências ao universo kitsch.
Fonte: Afinal, o que querem as mulheres?, 2010. (Frame)

92
Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/seriados/afinal-o-que-querem-as-
mulheres-/cenografia-e-arte.htm Acessado em: 20de abril de 2015.
97

Já o projeto de figurino criado por Beth Filipecki, segue a proposição estética da


minissérie e se caracteriza por combinações criativas de formas e cores. Os trajes e adereços
são desenhados conforme o perfil de cada uma das personagens e sob as diretrizes de um
meticuloso trabalho de criação artìstica, cujos significados extrapolam o seu papel de
composição das personagens, tornando-se, por vezes, um elemento dramático das cenas, e
central na estruturação dos planos. Em uma determinada sequência do casamento de Lìvia
com o Homem Perfeito, por exemplo, observa-se um alto grau de interação entre a
personagem e o seu traje (um véu de material plástico) que metaforicamente a aprisiona,
conforme o delìrio amoroso do protagonista André. Dialogando com todo este repertório e
com toda a visualidade construìda na obra, a caracterização das personagens, realizada
por Rubens Libório, se pauta, nas personagens femininas, pelo realce dos penteados e traços
faciais, principalmente os olhos, sob o prisma do erotismo e da sensualidade.
Com base nesta sistematização de informações, podemos concluir que a partir de Hoje é
dia de Maria, seguindo nas minisséries posteriores do diretor, A Pedra do Reino, Capitu e
Afinal, o que querem as mulheres, é perceptìvel a implementação de uma nova postura
estética de Luiz Fernando Carvalho frente à construção de visualidades na produção
televisiva, que se reflete, sobretudo, em um intenso investimento nos processos da direção de
arte, cujos elementos ganham relevância expressiva e protagonismo na composição dos
planos. Isso se deve, principalmente, às estruturas de encenação destas obras, que, por
seguirem percursos não realistas fundamentados no artificialismo explícito, abriram espaço
para uma maior experimentação nos diversos campos da criação visual.
A minissérie seguinte Suburbia, de 2012, já representa, porém, uma ruptura estética
frente a este conjunto de produções. Seguindo uma proposta cênica que se referencia na
linguagem documental cinematográfica, com influências estéticas, inclusive, do cinema novo,
nesta obra o diretor volta a se aproximar do realismo, e embora crie uma visualidade ainda
alimentada pelas experiências criativas vivenciadas nas últimas minisséries, se distancia
totalmente do artificialismo explícito. Uma nova diretriz conceitual que se reflete nos
processos da direção de arte, que, assinada por Mário Monteiro, aposta em projetos de
cenografia, figurino e caracterização de forte correlação visual com a realidade social
retratada na obra: o subúrbio carioca.

Se eu for fazer uma reflexão sobre os meus últimos dez anos, encontro ali uma
tendência muito forte, uma pesquisa com o teatro, com a ideia da representação, do
mundo como representação: Hoje é Dia de Maria, A Pedra do Reino, até mesmo
Capitu, que foi encenada em um só lugar, e ainda Os Maias, em que já havia uma
busca de um espaço operìstico com os pés-direitos dos cenários, a forma como eu
98

enquadrava, a luz teatral, a presença da ópera na trilha sonora. Por definição, eu


chamaria esse perìodo de “tetralogia teatral” que vai desde Os Mais até Capitu, no
qual, misturando várias linguagens – teatro, cinema, literatura, folguedos populares,
circo, ópera, investiguei esses limites da representação na televisão, me apoiando
nessas convenções não televisivas, mas acreditando que a televisão é uma mistura de
tudo isso. [...] Ao pensar Suburbia, de certa forma, sim, eu já estava fazendo uma
autocrìtica em relação àquele perìodo. (CARVALHO; CADERNO GLOBO
UNIVERSIDADE, 2012, p. 82-3).

Ao propor uma representação televisual da cultura e das condições de vida das


populações negras suburbanas, a obra reflete ainda o comprometimento do diretor com o que
acredita ser do papel social e educacional da televisão. Escrita por Luiz Fernando Carvalho,
em parceria com o escritor Paulo Lins, apresenta a história de Conceição, uma moça negra, de
beleza escultural e com talento para a dança, que enfrenta na infância a miséria e a exploração
do trabalho nas carvoarias do interior de Minas Gerais, mas foge para o Rio de Janeiro em
busca de melhores condições de vida. A sua narrativa aponta para questões caras à sociedade
brasileira, tais como escravidão, racismo e violência, fomentando, dessa forma, discussões e
debates crìticos sobre as temáticas abordadas. A escolha de Suburbia como objeto de análise
desta pesquisa se justifica tanto pelo discurso construìdo quanto pelo papel de ruptura que esta
obra desempenha na carreira do diretor. Pretendemos, assim, no terceiro capìtulo desta
dissertação, entender o processo de criação da minissérie, principalmente a articulação entre
narrativa e direção de arte, e suas reverberações na visualidade da obra.

Figura 23. Suburbia: proposta estética fundamentada no realismo.


Fonte: Suburbia, 2012. (Still)
99

Todavia, em 2013, com a montagem do teveliê, ocorre uma reorganização dos processos
produtivos do Núcleo de Teledramaturgia de Luiz Fernando Carvalho. Neste novo contexto
espacial, os resultados finais alcançados nas obras se particularizam como decorrentes de um
processo em que toda a equipe - figurinistas, cenógrafos, produtores, animadores, músicos,
atores, costureiras, maquiadores, e etc. - atuaram de forma conjunta e colaborativa na criação
da sua narrativa, do primeiro ao último capìtulo. O ateliê, projetado sem paredes, foi
concebido sob o conceito de eliminação de hierarquias e de imposições criativas, no qual os
processos de criação, ensaios e reuniões são abertos a toda equipe, permitindo e estimulando
que todos os profissionais envolvidos no projeto opinassem criativamente em todas as áreas
da feitura audiovisual. “Aqui no galpão sou apenas um alquimista, um sujeito que recolhe
tudo isso e busca um sentido estético”93, declara o diretor.

[...] Aprendendo uns com os outros, todos atuam como coautores da obra a ser
realizada, tornando assim o aprendizado um momento lúdico e rigoroso que seguiu
até o último capìtulo da novela. Ao estimular profissionais de diferentes áreas a
trabalharem num mesmo espaço, o diretor potencializou a criação de ideias e
soluções para dar forma nova à Meu pedacinho de chão, incentivando sempre o
cruzamento dos conhecimentos e da criatividade de cada integrante da equipe.
(CARVALHO, 2014, p. 3-4)

As primeiras produções inteiramente concebidas no teveliê compreendem a série


Correio Feminino (veiculada na grade do Fantástico) e o especial Alexandre e outros heróis,
ambos os programas exibidos em 2013, além da novela Meu Pedacinho de Chão, exibida em
2014. Baseado nos textos jornalìsticos de Clarice Lispector escritos sob o pseudônimo de
Helen Palmer, nos quais a escritora aborda temáticas direcionadas ao público feminino, como
amor, casamento e beleza, o seriado Correio Feminino apresenta uma visualidade concebida
sob as diretrizes conceituais do artificialismo explícito e inspirada na estética da propaganda
de moda dos anos 1960. No programa, o diretor cria uma estrutura de encenação que assume a
artificialidade do estúdio televisivo e articula uma materialidade cênica inspirada nos hábitos,
comportamentos e objetos da referida época. “Naqueles anos, predominava um tipo de
anúncio com fotografias muito coloridas. A ideia é resgatar o visual dos anúncios daquela
época e dar tridimensionalidade à propaganda, numa homenagem aos designers do passado e
numa tentativa de revelar uma outra Clarice para além da imagem da grande escritora.”,
define Luiz Fernando Carvalho. O figurino foi criado a partir de uma parceria entre Luciana
Buarque e Thanara Schönardie e a produção de arte é creditada a Marco Cortez.

93
CARVALHO, Luiz Fernando. Meu pedacinho de chão. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p.4.
100

Figura 24. Correio Feminino: proposta de artificialismo explìcito.


Fonte: Correio Feminino, 2013. (Still)

Em Alexandre e outros heróis, uma adaptação do livro de contos de Graciliano Ramos,


o diretor aposta em uma encenação de contornos realistas. As gravações foram realizadas na
cidade de Pão de Açúcar, no sertão alagoano, a terra do escritor, e teve como locação uma
casa antiga às margens do rio São Francisco. Com a direção de arte assinada por Raimundo
Rodriguez, o especial constrói um retrato do universo sertanejo na década de 1940, e a partir
destas demarcações são concebidos os projetos do figurino, creditado a Luciana Buarque, e a
produção de arte, assinada por Mario Cortez. A caracterização, criada por Rubens Libório, dá
o tom imaginativo e cômico à obra. Na paleta de cores há um predomìnio de cores terrosas
para as cenas do presente da narrativa, e de tons claros, acentuados pelo emprego de luz
branca difusa e do contraluz, para as lembranças da infância do protagonista Alexandre.

Figura 25. Paleta de cores de Alexandre e outros heróis: cores terrosas.


Fonte: Alexandre e outro heróis, 2013. (Foto de divulgação)
101

Já a telenovela Meu Pedacinho de Chão, de autoria de Benedito Ruy Barbosa, demarca


uma dilatação do nìvel experimental das produções de Luiz Fernando Carvalho. Apontada
como uma das visualidades mais extravagantes e inovadoras da teledramaturgia brasileira, a
obra transcende os limites da experimentação e do hibridismo de linguagens até então
construìdos pelo diretor, que retoma a sua pesquisa sobre a linguagem teatral e reúne
elementos estéticos de todas as suas produções anteriores, principalmente o artificialismo
explícito. A visualidade de Meu pedacinho de chão mantém inclusive fortes referências à
minissérie Hoje é dia de Maria, mas as supera em termos de expressividade cênica,
concebendo uma encenação marcada pelo uso ousado e transgressor de formas, cores e
sonoridades. O que evidencia, sobretudo, uma radicalização dos processos da direção de arte,
decorrente possivelmente da ampliação criativa e discursiva proporcionada pelo teveliê.

Figura 26. Meu Pedacinho de Chão: radicalização expressiva da direção de Arte.


Fonte: Meu Pedacinho de Chão, 2014. (Foto de divulgação)

A pesquisa sobre o imaginário infantil é o que dá o tom visual à novela, cuja


plasticidade remete a ludicidade e a poesia pueril. A obra teve como principais referências as
pinturas surrealistas pop americanas, o Vaudeville, a Commedia Dell‟Arte, a Ópera, os
mangás japoneses, as histórias em quadrinhos, os contos de fadas, o circo e o Bang Bang;
uma miscelânea imagética determinante na criação de um conceito coeso e denso que
direciona todo o processo de composição das personagens e da cenografia, do figurino, da
caracterização, da animação, da montagem e da trilha sonora: “[...] equipe e atores receberam
102

de seu „maestro‟ conceitos que passavam pela fábula, pela memória da infância de cada um da
equipe, pelos brinquedos antigos e pela atemporalidade dos contos de fadas”94.
A estruturação da encenação se articula, assim, a esta premissa conceitual para
materializar o universo narrativo construìdo pelo texto: uma pequena vila rural situada no
interior do Brasil, na qual os acontecimentos são narrados pelo ponto de vista de uma criança.
Na obra, este contexto espaço-temporal é estilizado e a cidade cenográfica da novela toma as
feições de um mundo “de brinquedo”, cujas peças teriam sido criadas e montadas pelo
menino/protagonista. Toda a materialidade cênica é então pensada de forma a expressar a
ideia de artificialidade, definindo-se o plástico e a sucata como as principais matérias-primas
da produção. A maior parte dos elementos compositivos de cenários, objetos de cena e
figurinos resultam do reaproveitamento de lixo e artefatos em desuso, por vezes da própria
emissora, reciclados pela equipe de arte dentro do teveliê. Os espaços da cidade cenográfica
montada no Projac são compostos, entre outros elementos, por árvores forradas de crochês
multicoloridos, jardins de flores de plásticos e construções revestidas por latas de alumìnio,
recortadas com diferentes formas e cores a depender do perfil do morador/ personagem. Para
Meu pedacinho de chão o diretor mantem dois cenários montados nos estúdios da emissora do
inicio ao final da novela, o que em si representa uma situação inusitada, já que estes tipos de
cenários são normalmente montados e desmontados diariamente.
Já o trabalho de figurino e caracterização cooperou intensamente na composição das
cenas e das personagens. Os trajes, concebidos pela estilista e figurinista Thanara Schönardie,
foram um dos principais destaques da produção. Os desenhos e cortes inovadores foram
pensados a partir de um forte conceito de design que seguiu uma opção pelo uso de materiais
originais à encenação televisiva, tal como o plástico, em suas diversas variedades. O processo
de criação das peças determinou ainda a necessidade da execução de procedimentos técnicos
incomuns a costureiras e bordadeiras, que precisaram costurar e alinhavar não apenas tecidos,
mas também canudos, papéis de bala, papel celofane, entre outros materiais. O resultado final
visto na tela encanta e deslumbra os telespectadores, refletindo uma concepção de figurino
ousada e criativa, que revela o empenho de toda a equipe.

O departamento de figurino foi primordial no processo de criação de todos os


setores da novela. A tal ponto que, a pedido do diretor, a mesa de trabalho das
costureiras, modelistas, bordadeiras e contra-mestras foi instalada na parte central do
galpão de criação. Todos os dias, todos os olhos de todas as pessoas da equipe de
Meu Pedacinho de Chão passavam ali e viam profissionais desfiando celofane,
bordando com canudos, recortando tapetes de borracha e aplicando balas e doces em
sapatos femininos. Era uma área de intensa experimentação, produção e criatividade,

94
CARVALHO, 2014, p.5
103

que alimentou de alguma maneira todos os setores da novela – da cenografia à


animação, das artes plásticas à edição, da produção de arte ao elenco. (CARVALHO,
2014, p. 27)

Diante da trajetória de Luiz Fernando Carvalho na Rede Globo, entendemos, por fim,
que as linguagens visuais concebidas nas suas obras resultam de uma intensa parceria entre o
diretor e a suas equipes de arte, pouco diversificadas no panorama das suas produções. Assim
como, os nìveis estéticos alcançados resultam de seus questionamentos sobre a essência da
produção teledramatúrgica e de uma notável subversão da estrutura industrial televisiva, que o
leva a expandir os limites de recursos, espaços e formatos da representação. Trabalhando com
diretores de arte ou exercendo ele próprio indiretamente a função em simultaneidade com a
direção geral, o fato é que é perceptìvel uma valorização estética e um empoderamento da
materialidade cênica nas suas obras: os cenários não são simples panos de fundo, e sim
coadjuvantes das cenas, assim como os figurinos e as maquiagens deixam de ilustrar e passam
a significar, corroborando a construção de atmosferas únicas. A direção de arte é, assim, um
dos principais instrumentos nas mãos criativas deste autor, que inquieto e em busca de novos
pontos-de-vista narrativos, brinda os telespectadores a cada nova produção com visualidades
que acolhem e estimulam a sensibilidade, e que o refletem como um artista atuante na
construção de marcos estéticos da televisão brasileira.
Neste sentido, para concluir, recordemos uma frase de autoria do poeta Jorge de Lima
(1893-1953), e sempre citada por Carvalho em seus depoimentos, por ser usada como um
estìmulo poético aos atores no processo de preparação e dos ensaios, mas que parece resumir
bem a essência do processo criativo do diretor tanto em obras televisivas quanto em
cinematográficas: “Como conhecer as coisas, senão sendo-as?”. No conjunto da obra de Luiz
Fernando Carvalho, ser o outro, seja ele, alma ou matéria é essencial. A materialização de uma
fábula resulta de um mergulho vivencial sobre o texto, que é “dissecado” em todas as suas
potencialidades e particularidades estéticas, visuais, sonoras e materiais; para que então seja
materializado a partir de uma criação artìstica compartilhada, alimentada não somente por
suas experiências de vida, mas também as das suas equipes.

Mas então, quando você reúne esse grupo todo, a linguagem fica sendo um conjunto
de coisas que você viveu até então na sua vida, conjunto do que você ouviu, do que
você leu, do que você experimentou – é um conjunto muito vasto e amórfico
mesmo, da sua experiência de vida, orientado pela necessidade de expressar tudo
isso que você viveu até o momento de bater a claquete. Bateu a claquete, você faz de
tudo isso a tua arte e traduz: “Vai! Pula!” (CARVALHO, 2001, p. 18)
104

Todo este trabalho de “afinação de orquestras” resulta, portanto, de um processo de


criação particular do diretor, pautado no perfeccionismo, na experimentação estética e na
“vivência”. Seja qual for o universo a ser construìdo, este será uma equação destes três
fatores, que juntos definem o estilo de Luiz Fernando Carvalho. E cabe à direção de arte,
nesta conjuntura, uma carga substancial de potência sensìvel e criativa para a concepção de
materialidades e de nuances ìmpares, e o que é mais interessante, resultantes de processos
dilatados e singulares, concebidos no âmbito da produção de teledramaturgia da Rede Globo:
um sopro artesanal na célere indústria televisiva.

Neste segundo capìtulo, apresentamos uma sistemática histórica e empìrica dos


conceitos e das práticas que norteiam os processos criativos da direção de arte no contexto da
indústria televisiva, em especial na Rede Globo de Televisão. Todo este repertório foi traçado
de forma a construirmos uma abordagem da direção de arte no percurso criativo de Luiz
Fernando Carvalho na teledramaturgia, buscando-se tanto um entendimento da sua trajetória
na referida emissora quanto do espaço ocupado pela direção de arte nas suas obras.
A partir das conclusões alcançadas, partiremos então para a análise da visualidade de
Suburbia, que produzida sob os moldes particulares do processo criativo do diretor se integra
assim ao conjunto de produções analisado. Mas, embora se alinhe aos seus direcionamentos
processuais, principalmente à ideia da vivência sobre a narrativa e da experimentação de
linguagens, a obra traz também rupturas estéticas frente a esta linhagem criativa, o que é
evidenciado pela direção de arte, como será discutido no próximo capìtulo.
105

3. A direção de arte da minissérie Suburbia

Neste capìtulo, apresentamos a análise do objeto de estudo desta pesquisa, a minissérie


Suburbia, como o resultado do percurso investigativo realizado neste trabalho, que teve como
principal objetivo abordar os conceitos e as práticas da construção de visualidades a partir da
função da direção de arte. Tendo como base o repertório teórico e conceitual sistematizado
nos capìtulos anteriores, partimos da perspectiva empìrica dos processos da direção de arte no
contexto da teledramaturgia da Rede Globo de Televisão e do entendimento do “lugar” da
direção de arte no processo criativo de Luiz Fernando Carvalho, para realizar, assim, a análise
da visualidade de Suburbia, considerando a sua relação com o texto e a estrutura de
encenação construìda.
Para tanto, no primeiro momento deste processo analìtico, nos deteremos em uma
interpretação da narrativa da obra para compreendermos as escolhas estéticas e a estrutura da
encenação propostas pela direção, e os seus desdobramentos no projeto de arte e na
visualidade da minissérie. Exibida em oito capìtulos pela Rede Globo, entre novembro e
dezembro de 2012, Suburbia, como já dito, focaliza parte do contingente social vinculado à
população afro-brasileira, principalmente no Rio de Janeiro: a vida comunitária nos subúrbios,
as condições precárias de trabalho, a violência policial e do tráfico de drogas, a religiosidade
sincrética e uma série de manifestações culturais ligadas à música e à dança. E, neste sentido,
para além das perspectivas criativas dos autores sobre a narrativa, mostrou-se relevante
também nesta abordagem, um entendimento das particularidades da realidade urbana retratada
e do imaginário social circunscrito na representação do negro na televisão, em especial na
teledramaturgia, tendo como base as discussões propostas no livro A Negação do Brasil: o
negro na telenovela brasileira (2004), de Joel Zito Araújo, sem, contudo, nos aprofundarmos
teoricamente nestas questões, já que este não é o objetivo deste trabalho.
Situando ainda a realização desta minissérie no atual panorama da televisão brasileira,
em que se evidencia uma série de transformações processuais do meio, em decorrência da
incursão para a convergência técnica e estética da linguagem televisiva com o cinema,
podemos relacionar a criação do argumento desta minissérie com uma tendência recorrente na
produção cinematográfica nacional, que é a de retratar, através de narrativas documentárias ou
ficcionais, acontecimentos vivenciadas por moradores de morros, favelas e subúrbios
dominados pelo tráfico de drogas; uma proposta que teve inìcio na década de 1990 com o
filme Notícias de uma guerra particular (1999), dos cineastas João Moreira Salles e Kátia
Lund, e que tem no filme Cidade de Deus (2002), dirigido por Fernando Meirelles e Kátia
106

Lund, baseado no livro homônimo de Paulo Lins, um dos seus principais expoentes.
Em Suburbia, uma obra considerada de ruptura com a linha conceitual das minisséries
anteriores do diretor Luiz Fernando Carvalho, há uma aposta na experimentação de
linguagens a partir da criação de uma estética predominantemente cinematográfica, pautada
pela opacidade no discurso audiovisual e no uso dos meios técnicos de produção, com fortes
traços do cinema moderno, como a câmera na mão e jump cut’s95. O realismo96 proposto se
pauta ainda por uma intensa carga de lirismo que permeia esteticamente os planos e se
circunscreve principalmente na concepção espacial e cromática das cenas, corroborando a
criação de uma atmosfera de contornos sensoriais.

A ficção televisiva brasileira está em rápido processo de transformação, rumo a um


paradigma narrativo e de composição audiovisual imprevisìvel até há pouco mais de
uma década, quando a crìtica e os estudos acadêmicos não davam mostras de que se
pudesse distanciar muito do que até então se fazia. As minisséries dirigidas por Luiz
Fernando Carvalho são casos privilegiados para detectar o processo. Hoje é dia de
Maria (2005), A Pedra do Reino (2007) e Capitu (2008) romperam com o prescrito
em manuais de realização televisiva, quase sempre aristotélicos e narrativamente
clássicos. Não que essas minisséries sejam os únicos produtos a destoar, mas são os
frutos mais bem-sucedidos da decantação de experiências e trocas entre televisão,
cinema e outras artes, midiáticas ou não. Em conjunto com produtos de outros
realizadores, inclusive de telenovelas, as minisséries de Luiz Fernando Carvalho
abrem possibilidades antes negligenciadas. Suburbia é mais um passo nesse sentido.
(PUCCI JR; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p. 47)

Para contextualizar Suburbia na estrutura institucional e discursiva da teledramaturgia


da Rede Globo, é importante considerar também que a minissérie - um formato narrativo que
se enquadra no gênero das narrativas seriadas por ser estruturado em capìtulos e blocos e
exibida em dias distintos - é um produto que ocupa um espaço privilegiado na programação
da referida emissora, marcado por uma tendência à experimentação da linguagem televisiva e
por produções com propostas narrativas inovadoras, que mantêm uma forte relação com a
estética e o rigor da criação cinematográfica97. Como define Balogh (2002, p.127):

95
Raccord entre dois planos quase idênticos, entre os quais a distância espaço-temporal é muito fraca.
(AUMONT; MARIE 2001)
96
Utilizamos a ideia de realismo, próxima à consideração ao chamado realismo crìtico (XAVIER, 2005, p. 64);
“Em geral, tais propostas combinam-se com a tentativa de romper o mecanismo de identificação,
estabelecendo-se certos procedimentos cujo objetivo é produzir o distanciamento crìtico do espectador. Neste
caso, fica evidente também a inspiração de Brecht, o que não significa uma garantia de realização de um
cinema que se poderia definir como brechtiano. Tal cinema não tem ainda claramente equacionadas suas
próprias condições de possibilidade e, consequentemente permanece extremamente discutìvel a validade
desta qualificação, mesmo quando aplicada a filmes saturados de procedimentos ditos de distanciamento”
97
É importante pontuarmos que, devido, provavelmente, a uma confusão na conceituação e no emprego de
terminologias para a programação televisiva, é recorrente que Suburbia seja definida pela Rede Globo em
produtos associados à obra como um seriado, o que entendemos como o equìvoco, já que a sua estrutura
narrativa linear, dividida em capìtulos inter-relacionados, é bem caracterìstica de uma minissérie.
107

Como se trata de um conjunto de obras de acabamento mais apurado e estrutura


mais coesa e menos esquemática do que as demais obras ficcionais da TV, são
frequentes os momentos em que a minissérie pode se tornar um espaço para testar os
limites do televisual e enfrentar o desafio de inovar a linguagem ou de ultrapassar as
próprias servidões da linguagem televisual.

Neste capìtulo, definiremos quais foram as principais referências visuais que orientaram
a estruturação da direção de arte de Suburbia e como estas se expressam no seu projeto de
arte, considerando como principais pontos de investigação: conceito visual, paleta de cores,
cenografia, figurino e caracterização. A partir deste repertório, e com base nas premissas
teóricas definidas no primeiro capìtulo desta dissertação, analisaremos as camadas de
significados construìdas no seu discurso audiovisual, além do nìvel de interação dos
elementos da arte com a estrutura da encenação. Embora a metodologia investida neste estudo
houvesse previsto ainda, para fundamentar as conclusões alcançadas, um mapeamento do
processo criativo da direção e da equipe de arte, e dos desdobramentos destas escolhas
formais na obra a partir não somente da análise fìlmica, mas também da realização de
pesquisas de campo e de entrevistas, infelizmente não foi possìvel obter os depoimentos do
diretor Luiz Fernando Carvalho e dos demais profissionais atuantes no projeto, devido
principalmente às suas agendas comprometidas.
No entanto, para suprir à demanda por estes dados, contamos com as informações
disponibilizadas tanto pelo site Memória Globo, quanto pelo próprio Site Oficial da
Minissérie98, mas principalmente pela edição n.2 do Caderno Globo Universidade99, que com
o tema “Subúrbios e identidades”, estruturou uma discussão sobre a história e a cultura do
subúrbio a partir da sua representação na minissérie Suburbia100. Esta publicação da Rede
Globo traz uma sistematização dos depoimentos do diretor Luiz Fernando Carvalho, do
escritor Paulo Lins e de parte do elenco sobre o processo de concepção e de feitura da
minissérie, e estes relatos, de suma importância para a discussão aqui desenvolvida, foram
essenciais para um entendimento estrutural visual da obra e para a realização da análise
pretendida. A pesquisa de campo realizada no bairro de Madureira, principal contexto espacial
da minissérie, se mostrou também fundamental neste processo analìtico, pois a imersão no
universo social e cultural da narrativa possibilitou a elucidação dos percursos visuais
definidos pelas pesquisas da equipe de arte na criação da visualidade da minissérie.

98
http://gshow.globo.com/programas/suburbia
99
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE. Subúrbios e identidades. Vol.1, n.2. Rio de Janeiro: Globo, 2013.
100
A referida publicação apresenta como tema de capa “Subúrbios e identidades”, que tem como subtìtulo: “Um
olhar multidisciplinar sobre a história e a cultura do subúrbio e sua representação na construção do imaginário
social brasileiro. Uma reflexão com base na minissérie Suburbia”.
108

3.1 Considerações sobre a narrativa de Suburbia

Escrita por Luiz Fernando Carvalho em coautoria com o escritor Paulo Lins, e a
colaboração de Carla Madeira, Suburbia é originalmente baseada nas memórias afetivas de
Carvalho sobre uma mulher negra, Betânia, com quem conviveu, por muitos anos, no seu
cìrculo familiar, e cuja história de vida inspirou a narrativa da minissérie101. Dessa simbiose,
entre a referência pessoal do diretor e a experiência literária de Lins, surge Conceição, a
menina cuja trajetória é traçada em conformidade com a intenção dos autores de construir
uma representação social da população negra brasileira, e que, não à toa, traz no seu nome,
uma homenagem a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, santa padroeira do Brasil que
alimenta forte devoção, historicamente, por parte da população afro-brasileira, e cuja
representação iconográfica é de uma negra.

“[...] grande parte das histórias que Suburbia narra são casos reais de uma mulher
negra que conviveu comigo por praticamente 25 anos e que foi uma espécie de mãe
negra que eu tive. Essa mulher era analfabeta. Foi uma menina que fugiu, assim
como a do seriado, de trabalhos forçados, uma relação quase escravocrata no interior
de Minas Gerais. E aqui no Rio ela foi passando por aquelas agruras todas e foi
vencendo”. (CARVALHO; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, p.81).

Suburbia se destaca no atual panorama da produção audiovisual brasileira por estar


entre as poucas produções televisivas a abrir espaço para o protagonismo de personagens
negros (a minissérie apresentou um elenco majoritariamente afrodescendente e contou com
dois importantes nomes do rádio, do teatro e do cinema nacionais, Rosa Marya Colin e
Haroldo Costa, este último um dos precursores do Teatro Experimental do Negro fundado na
década de 1940) e, sobretudo, por construir uma representação verossìmil da vida da
população negra residente em territórios urbanos marginalizados, os subúrbios e as favelas,
com um especial enfoque na valorização das suas manifestações religiosas e culturais; além
de tocar em problemáticas sociais que atingem diretamente a estes grupos, e que são
decorrentes, em parte, do racismo e da discriminação.
101
Segundo consta no site Memória Globo: “Suburbia era uma ideia antiga. Luiz Fernando Carvalho contou que
estava trabalhando sobre outro texto, quando lhe foi pedido um projeto para entrar no ar em 2012. Ele abriu a
gaveta e se deparou com as anotações sobre a vida de Betânia, uma mãe preta que teve por mais de 25 anos.
Betânia começou a trabalhar como faxineira na casa do diretor, mas logo se tornou fundamental na sua vida, pela
carga de afeto que nutriam um pelo outro. Negra, analfabeta, mas cheia de vida e inteligência, rememorava a sua
trajetória de vida com muitas riquezas de detalhes. Um dia, ele começou a anotá-las, sem ter a menor noção do
que faria com aquilo tudo. No inicio deste ano, encontrou os escritos, que já eram, em si, uma sinopse. A ideia
antiga de tematizar o subúrbio ganhou, então, um personagem central. Betânia morreu em 2009.” Disponível em:
http:// http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/seriados/suburbia/curiosidades.htm. Acessado
em: 06 de novembro de 2013.
109

Suburbia é um projeto, acima de tudo, sobre a escravidão e a cultura. Nossa


preocupação é discutir a situação do negro no Brasil hoje, depois de 400 anos de
escravidão, 300 de colonização, e o valor da cultura que os descendentes de escravos
criaram e preservaram para se estabelecerem dentro da sociedade – ainda que
lentamente.
A inclusão plena deveria ter ocorrido pelo trabalho nas lavouras, na pecuária, na
construção das cidades ou através do ensino, mas a escola pública – que o negro
frequenta – também não funciona como deveria. A integração se dá pela cultura.
Cultura vista não só como entretenimento, mas como um pilar de sobrevivência de
um grupo social. É por meio dela que o negro consegue se manter unido para
encarar todos os desmandos que sofreu e sofre ao longo da história. (LINS;
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p.55)

Para Joel Zito Araújo (2004), a origem da ideologia do branqueamento nos finais do
século XIX e, posteriormente, da teoria da miscigenação racial nos anos 1930 do século XX a
partir das ideias perpetradas por Casa-grande & senzala (1933), do antropólogo Gilberto
Freire, de onde se originou ainda o mito da democracia racial brasileira, tem nas suas
consequências ideológicas uma relação direta com a supressão e deturpação da imagem do
negro e do mestiço na publicidade e nas mìdias, principalmente na televisão. A telenovela, em
especial, um dos principais produtos culturais brasileiros, de forte diálogo popular e de
reconhecida influência no cotidiano e na formação dos valores sociais do público, se pauta na
reprodução de fórmulas narrativas alienadas da realidade social do paìs, ao tratar de enredos
baseados nos gostos e modos de vida das elites, com um predomìnio quantitativo de
personagens brancos, oriundos, em sua maioria, da classe média alta, e de personagens negros
concebidos de forma caricaturada ou estereotipada.
Ao ator afrodescendente normalmente são atribuìdos papeis considerados coadjuvantes,
subalternos ou subservientes a personagens brancos, como empregadas domésticas,
motoristas, operários e escravos, ou bem secundários e mesmo marginais, como favelados,
mendigos, assaltantes e prostitutas, por exemplo; o que determina a criação e reprodução de
estereótipos racistas. Para Araújo, esta conjuntura ideológica, que se propaga até os dias
atuais, teve consequências negativas impactantes na construção da identidade racial do povo
negro brasileiro, afetando a autoestima destes indivìduos e suscitando uma postura social de
rejeição à estética, à cultura e à religiosidade de origem afro-brasileira.

Durante o Carnaval, a televisão brasileira, em dezenas de horas de imagens


transmitidas dos desfiles carnavalescos nos sambódromos do Rio de Janeiro e de
São Paulo, apresenta, para todo o paìs e para o turista estrangeiro, um “espetáculo da
miscigenação” e da participação dos negros na sociedade brasileira, semelhante
àquele espetáculo que nos finais do século XIX chamou a atenção dos viajantes
europeus que desembarcaram por aqui. Entretanto, durante o ano inteiro, a
telenovela brasileira e os comerciais continuam confirmando a vitória simbólica da
ideologia do branqueamento e da democracia racial brasileira. (ARAÚJO, 2004, p.
34)
110

Figura 27. O ator Haroldo Costa no cenário da minissérie.


Fonte: Suburbia, 2012. (Foto Still)

As minisséries, assim como as telenovelas, tendem a seguir estas mesmas premissas


ideológicas. Suburbia, no entanto, apresenta outra assertiva. Estando os autores engajados em
fugir aos estereótipos e aos exotismos que rondam este tipo de representação para construir
uma diegese realista, focada no modo de vida da população negra residente no subúrbio de
Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro, a produção da minissérie investiu em uma
concepção audiovisual fundamentada em uma minuciosa pesquisa acerca de dados e
materialidades concretas, buscando, dessa forma, na realidade corpórea, os principais
referenciais para a composição dos espaços e das personagens. O objetivo era construir um
discurso com densidade humana e vivencial, e o fato, inclusive, de Paulo Lins ser o coautor da
obra definiu também um novo status ao discurso, já que o seu olhar de dentro do universo
social retratado legitima as escolhas e as formas de representação concebidas na obra.

De Cidade de Deus (1997) a Desde que o samba é samba (2012), Paulo Lins se
dedica a mesclar observação etnográfica com elaboração narrativa ficcional. Sua
experiência biográfica enriquece a etnografia, transmitindo ao olhar reflexivo um
sabor testemunhal, ao mesmo tempo que confere ao testemunho densidade analìtica.
Por isso, seus escritos são tão ricos e fortes. Por isso, sua linguagem promove
empatia sem perder a acuidade crìtica, jamais. (SOARES; CADERNO GLOBO
UNIVERSIDADE, 2013, p. 41)

Contextualizada entre o inìcio e meados da década de 1990, perìodo de forte


instabilidade na economia brasileira, a narrativa de Suburbia une amor e drama social a
referências da história, do cinema e da literatura brasileira, em uma abordagem televisual de
111

temáticas como escravidão, racismo e violência, na qual os autores se apropriam do espaço


sensorial do subúrbio carioca para contextualizar, através da musicalidade, dos costumes e da
religiosidade da população afrodescendente brasileira, uma égide da identidade negra. O
universo suburbano é, neste sentido, concebido na minissérie como um território simbólico
circunscrito em intensa cor, poesia e espiritualidade, e formatado pelo contraste social de duas
coordenadas espaciais: a de um subúrbio bucólico, inspirado em uma época em que ainda
mantinha contornos rurais, com ruas de terra, casas grandes de muro baixo, quintal, galinheiro
e pomar, no qual os moradores valorizavam as relações de compadrio baseadas na ajuda
mútua e na união de todos como a uma grande famìlia fraterna (um aspecto que, embora
atenuado, ainda se estende até os dias atuais); e a outra, a do novo subúrbio, corrompido pelas
ilusões do consumo, pela violência e pela disputa de poder pelo tráfico de drogas.

No subúrbio, o seu espaço nunca se limita essencialmente à sua casa. Ele se estende
para a rua em frente, a praça, até mesmo para o quintal do vizinho. [...] Em suma, há
um sentimento democrático espontâneo. Isso é uma percepção de um modo de vida
que certamente em alguns pontos pode ter se adulterado. Porque a pressão que existe
hoje do consumo, oferecendo outros significados para a felicidade, que vai desde
comprar determinado carro ou uma bolsa de marca, promove o aparecimento de um
novo suburbano, um sujeito hìbrido, fruto das contradições do progresso econômico.
(CARVALHO; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p.56)

Para Paulo Lins, é neste espaço urbano oprimido pelas contradições sociais que a
cultura afro-brasileira é germinada, preservada e ganha força expressiva, não somente como
entretenimento, mas também como elemento de ascensão, união e resistência racial para a
população negra. “O que querìamos mostrar em Suburbia era isso: que a cultura assegura a
ascensão social do povo negro e a união em si. Foi o que discutimos para criar a trajetória da
102
personagem” . Assim, se em sua superfìcie folhetinesca, a trama de Suburbia beira as
convenções das novelas e dos contos de fadas: a história de uma menina ingênua e virgem,
que sofre com os percalços da vida e com a maldade dos seus inimigos, até conseguir realizar
o seu sonho: casar com o homem que ama e ter filhos (e até mesmo nesta opção narrativa é
possìvel identificar uma reivindicação de espaços na dramaturgia para o protagonismo negro,
já que normalmente os papéis de mocinhas meigas e recatadas são destinados a protagonistas
brancas), uma imersão em sua narrativa evidencia um ponto de vista extremamente crìtico.
Nascida no sertão de Minas Gerais, Conceição passou a infância ao lado do pai, da mãe
e do irmão em um espaço social marcado pela extrema carência material e pela necessidade

102
LINS, Paulo. Cultura como arma de resistência. In: CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE. Subúrbios e
identidades. Vol.1, n.2. Rio de Janeiro: Globo, 2013, p. 56.
112

da famìlia de sujeição ao trabalho quase escravo nas carvoarias. “[...] toda famìlia trabalhava
nos carvão, era todo dia, sem descanso, de sol a sol, no meio daquela fuligem toda.”. 103 Neste
recorte narrativo, apresentado no prólogo da minissérie, já é possìvel apontar para um dos
seus temas principais: a escravidão. O perìodo da escravatura, que marca a história dos negros
e que ainda tem reverberações na atualidade social do Brasil, é evocado neste retrato das
estruturas precárias de trabalho no paìs, replicantes de valores racistas e excludentes. Sob os
contornos de uma atmosfera atemporal e onìrica, que evidencia a ancestralidade dos
problemas sociais abordados, a menina, que perde a infância nas extensas horas de trabalho,
vive o peso de uma realidade de opressão e de aflições, embora encontre no afeto e na fé
maternal em Nossa Senhora Aparecida o sustentáculo da sua força e esperança. Com
Rapunzel, a sua égua branca e cega, mas que enxerga no escuro, cria uma parceria de
aventuras fantásticas, exercitando o pouco que lhe resta da sua imaginação infantil.
Certo dia, porém, a morte do filho mais velho, vìtima de um acidente nos fornos, leva a
sua mãe, zelosa pelo futuro da menina, a incentivá-la em uma fuga de trem até a cidade do
Rio de Janeiro, para que tente a sorte na “cidade do pão de açúcar” e deixe para trás esse
mundo de agruras e dificuldades. Ao chegar à cidade, Conceição se descobre em um universo
de novas e intensas cores, mas que, porém, se inscreve na mesma lógica opressiva anterior e
reserva para a protagonista uma série de “provações”: a prisão injusta como “trombadinha”, a
rotina de abandono e violência em uma instituição para menores infratores e, logo após, o
trabalho precário como babá e empregada doméstica para uma famìlia da Zona Sul da cidade,
quando é vìtima de uma tentativa de estupro pelo seu patrão. Situações a que é socialmente
submetida principalmente pela cor da sua pele. O tema da escravidão retorna então à narrativa
nos seus reflexos sociais mais visìveis. Inicialmente no descaso do governo com as crianças
de rua abandonadas à própria sorte, em sua grande maioria negra, e nas condições precárias
das instituições que acolhem jovens infratores, também majoritariamente negros e, em
sequência, na relação patriarcal e desigual entre patrões e empregados domésticos.

A intervenção maternal de uma intelectual exporá as contradições brasileiras mais


agudas, materializadas na perversa instituição que é o emprego doméstico. A
proteção maternal traz consigo seu avesso. A sombra da generosidade é o cativeiro
inconsciente de si. A marca ostensiva da violência virá com o estupro dentro de casa.
O sexo que abre portas para a mulher belìssima cumpre papel de algoz, bloqueando
sua passagem e aniquilando perspectivas. Não é o sexo a fonte da violência, por
óbvio, mas a cultura machista, associada ao racismo e ao preconceito social.
(SOARES; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p.44)

103
Texto da personagem extraìda da narrativa da minissérie.
113

É somente ao chegar à Madureira que Conceição encontra realmente um lar. No espaço


social do subúrbio, onde prevalece uma luta constante pela sobrevivência e o enfrentamento
diário das contradições sociais, é colocado ao telespectador o outro lado da moeda. Os
estereótipos das personagens negras - os trabalhadores, os marginais, os operários e as
empregadas domésticas - agora são seres humanos de carne e osso e têm raìzes, antepassados,
e, principalmente, sonhos e identidade cultural. Na casa da famìlia do Sr. Aloisio, “uma
famìlia negra organizada, com a força da cultura e da religião tomando conta de uma estrutura
104
familiar” , a protagonista vivencia a intensidade de um laço ancestral, afetivo e identitário.
A sua trajetória, a partir de então, será pautada pelo autoconhecimento e, sobretudo, pelo
reconhecimento das suas origens, desveladas pela estética, pela música, pelas danças e pela
religiosidade da população afrodescendente do subúrbio; retratado aqui como um contexto
urbano de expressiva diversidade cultural, mas marcado por intensos contrastes, não somente
sociais e econômicos, mas principalmente morais. Do segundo capìtulo ao último, a narrativa
da minissérie propõe, assim, um deslocamento de olhares na televisão brasileira, passando a
focar nos perìmetros urbanos situados para além da linha de trem.

Quando chega ao Rio de Janeiro, Conceição vai viver a escravidão atual,


trabalhando como babá, empregada doméstica. Em seguida ela se encontra: vai para
uma sociedade onde consegue, depois de tanto tempo, se unir, se reunir para cantar,
dançar e ter, acima de tudo, aconchego familiar. Aquilo que Nietzche diz, em
Demasiado humano, sobre a “alegria de entender o que o outro quer dizer”.
Conceição terá a estabilidade social por meios da cultura, em Madureira, terra do
samba, terra do funk. (LINS; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p.56)

O Sr. Aloìsio, torneiro mecânico aposentado e amante de música clássica, vive em


Madureira com a esposa Mãe Bia, a rezadeira do bairro, e os seus cinco filhos: a evangélica
Vera, os adolescentes Lorival e Maria Rosa, o mestre de obras Moacyr e a sua esposa Bete, e a
dona de casa Amelinha e o marido Lila, além dos netos Andreisse e Leandro. Amiga de Vera,
Conceição foi acolhida na famìlia após a sua fuga da casa da patroa, a intelectual Sylvia,
devido à tentativa de estupro do seu marido, Cássio, como já relatado. A moça é então
registrada pelo patriarca e passa a integrar a Famìlia Santos, na qual as relações, apesar das
diferenças de crenças e interesses, são pautadas no amor, no respeito e na união.
A musicalidade negra originária de Madureira dará o tom a esta nova fase da história da
protagonista ao lado da famìlia do Sr. Aloisio. Recém-chegada no bairro, Conceição logo é
iniciada pelos mais jovens no universo musical do funk, ritmo que despontava com força nos
anos 1990. No funk, a moça então se destaca pelo seu talento para a dança e pela sua beleza, e
104
LINS; CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p. 57
114

desbanca Jéssica, dançarina profissional dos bailes e bicampeã do concurso de Miss Subúrbio.
Convidada pelo empresário Costa para dançar com a dupla musical Lulu e Dudu, Conceição
adota o nome artìstico de “Suburbia”, e passa a ser apontada como a próxima rainha do
subúrbio. A protagonista brilha nos palcos, mas desperta também a inveja e o desejo de
vingança da sua antagonista Jéssica, que com a ajuda do namorado, o traficante Tutuca,
investe na violência para retomar o seu lugar nos bailes. Por este viés narrativo, a minissérie
retrata os esquemas e a massificação de uma nova cultura musical suburbana, ainda nascente
no inìcio da década de 1990, evidenciando a linha tênue que separa a diversão dos bailes funk
da corrupção policial, da prostituição e da violência ligadas ao tráfico; uma problemática
social decorrente principalmente das desigualdades sociais e da luta injusta entre opressores e
oprimidos nestes espaços.

Figura 28. Conceição como “Suburbia” em baile funk de Madureira.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

E é, no contexto efusivo do baile funk, que Conceição conhece Cleiton, seu par
romântico na trama. Morador de um morro de Madureira e amigo da Famìlia Santos, Cleiton é
um rapaz honesto, trabalhador e estudioso, mas marcado por uma tragédia familiar.
Abandonado pelo pai ainda na barriga materna, ele perde posteriormente também o irmão,
inocente, em uma troca de tiros entre traficantes, o que acarreta a depressão e a dor da sua
mãe Margarida e a sua completa entrega ao alcoolismo. Com a sua estrutura familiar desfeita,
o rapaz é perturbado por fortes sentimentos de rejeição e de vingança, que se intensificam
com o passar do tempo. E é por conta das suas questões emocionais que o romance com
Conceição toma rumos inesperados.
115

Embalado pelas canções de Roberto Carlos, o namoro que inicialmente se baseava na


confiança e no companheirismo, se desfaz não somente em decorrência dos acessos de ciúmes
de Cleiton em relação ao trabalho de Conceição como dançarina, mas, sobretudo, pela sua
ansiedade para com os desejos da namorada, que pretende manter-se virgem até o casamento.
Ao tentar abusar sexualmente de Conceição, o rapaz vivencia o fim do romance e, conflitado,
toma atitudes impensadas que o levam a se envolver em uma briga com Tutuca, a quem é
então atribuìdo o assassinato do seu irmão. Jurado de morte pelo agora seu inimigo pessoal,
Cleiton acaba então por assassiná-lo, torna-se chefe do tráfico de drogas do morro e se
envolve em um relacionamento com Jéssica.

Figura 29. Cleiton nos braços da mãe Margarida.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

A história de Cleiton representa mais uma das facetas sociais de um subúrbio marcado
pela violência e pelos desvios morais. Assim como Margarida, diversas mães negras, com
baixa escolaridade e precárias condições de trabalho e renda, são abandonadas pelos
companheiros e se vêm sozinhas para manter financeiramente e emocionalmente os seus lares.
Ao enfrentamento diário das necessidades materiais junta ainda o medo e a dor originados da
insegurança instaurada nas comunidades onde vivem, estando seus núcleos familiares sujeitos
a perderem filhos e parentes, direta ou indiretamente, pelo domìnio do tráfico de drogas. A
inserção do tráfico nos morros é retratada, assim, como um problema social que resulta não
somente na violência fìsica, mas também na violência moral e afetiva. Por outro lado, as
circunstâncias que levam um jovem ao tráfico podem passar tanto pela carência material
quanto por questões emocionais, originárias de uma desestruturação familiar.
116

Assim, na trama construìda em Suburbia o antigo e o novo subúrbio se entrelaçam nas


circunstâncias do romance entre Conceição e Cleiton. No desfecho da sua narrativa, no
entanto, não há espaço para prognósticos pessimistas, mas sim para uma grande reverência à
população negra brasileira, tanto à sua força ancestral quanto à sua capacidade de renovação
frente às dificuldades impostas no subúrbio de hoje. No penúltimo capìtulo, a Famìlia Santos
comemora o aniversário de oitenta anos do Sr. Aloisio, e as cenas trazem o cerne não só de
uma homenagem aos artistas negros, mas de uma celebração do legado cultural da população
afrodescendente de raìzes no subúrbio brasileiro. A festa coloca em cena a musicalidade dos
integrantes da velha guarda das escolas de samba Portela e Império Serrano, ambas oriundas
de Madureira, em uma roda de samba no quintal da casa da famìlia. Em sequência, as
personagens protagonizam uma roda de jongo comandada pelo Grupo Cultural Jongo da
Serrinha e pela a sua matriarca Tia Maria do Jongo. A cena traz a sonoridade marcante de um
ponto de jongo de origens ancestrais, cuja letra se alinha ao discurso ideológico da minissérie:
“Pisei na pedra, a pedra balanceou/ levanta meu povo, cativeiro se acabou”105.

Figura 30. Roda de jongo com o Grupo Cultural Jongo da Serrinha em Suburbia.
Fonte: Suburbia, 2013. (Frame)

Mas se de um lado, o subúrbio antigo reina na casa da Famìlia Santos, do outro, Cleiton,
ao ser alvejado pela polìcia, torna-se vìtima de um espaço urbano que cresce sob o estigma da
opressão, da injustiça e das desigualdades. Recorrendo ao que podemos definir como uma

105
Acessado em: http://jongodaserrinha.org/pontos-de-jongo/
117

solução narrativa de tendências fantásticas, os autores optam, no entanto, pela ressurreição da


personagem, que se redime dos seus erros e encontra a paz e a felicidade na religião,
reerguendo ainda a sua mãe Margarida, que ao ver o filho vivo, deixa o vìcio e redescobre o
sentido da vida. A redenção espiritual de Cleiton reafirma a ideia da religiosidade como um
dos pilares existenciais do povo negro e dos moradores dos subúrbios brasileiros, que
habitados tanto por evangélicos, católicos ou praticantes do candomblé, são definidos pelas
diferenças e pelo sincretismo religioso.
E a mocinha da história tem o seu final feliz. Conceição ganha uma grande baile de
noivado no qual, ao lado do homem que ama e junto aos seus familiares e amigos, vê seus
sonhos serem realizados. Assim como em Hoje é dia de Maria, a nossa protagonista supera as
adversidades da sua jornada pela coragem e pela fé. Mas se a menina Maria saiu do sertão
para conhecer o mar, a pequena Conceição deixa o mundo de desejos cativos e conquista a
sua liberdade de sonhar, o reconhecimento das suas raìzes e da sua identidade cultural. E
através da dança, inicialmente pelo funk e depois pelo samba, se torna a rainha do subúrbio,
contexto onde a cultura negra encontra um espaço sólido. A protagonista, por fim, agradece a
Nossa Senhora Aparecida as graças alcançadas.

Figura 31. Conceição é coroada a rainha de bateria da escola de samba do bairro.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)
118

3.2 O projeto de arte da minissérie

Neste subitem, apresentamos as principais diretrizes conceituais e técnicas do projeto de


arte de Suburbia, a partir da definição do conjunto de referências visuais que norteou os
processos de criação da equipe de arte da minissérie e suas implicações na composição da
paleta de cores e nos projetos de cenografia, de figurino e de caracterização. Em termos
conceituais, a direção de arte da obra, assinada por Mário Monteiro, se alinha ao texto e à
estrutura de encenação proposta por Luiz Fernando Carvalho, para conceber uma
materialidade cênica calcada no real, cujos elementos articulam um registro material do
contexto espaço-temporal da narrativa, evitando o artificialismo explícito, e em adequação à
estética cinematográfica adotada, assumindo ainda uma tendência ao lirismo e à poesia visual,
conforme a intenção ideológica da narrativa.
É importante pontuar, neste sentido, que devido a esta proposição de cunho documental,
a produção se particularizou por ter uma base e logìstica totalmente extra Projac, e por esse
motivo, não conta com peças cênicas, tais como trajes e objetos, disponibilizados no acervo
da emissora. Portanto, por não ter sido possìvel realizar uma observação e registro de
materiais resultantes da produção, as informações aqui sistematizadas se originam tanto de
uma interpretação baseada na análise fìlmica, quanto de imagens e dados da produção
divulgados pela equipe e pela emissora. No próximo subitem, todo este repertório será
analisado no âmbito do discurso fìlmico, buscando-se, a partir desta análise, definir a
correlação formal entre a direção de arte e a visualidade da obra.

Figura 32. Mood board de Suburbia.


Fonte: Suburbia, 2012. (Divulgação)
119

3.2.1 Pesquisa e Referências visuais

Imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida

Desde a primeira até as últimas sequências da minissérie, a imagem de Nossa Senhora


Aparecida é citada visualmente em Suburbia. Seja na força espiritual das rezas, bênçãos e
cânticos religiosos maternos, na pequena imagem guardada com cuidado por Conceição nos
primeiros dias da sua chegada ao Rio de Janeiro, nas suas orações em um pequeno altar
pessoal ou na delicadeza de um pingente. Seja ainda na evocação direta do traje da sua
coroação como rainha da escola de samba ou simplesmente pela difusão das cores da imagem
nos elementos componentes da materialidade cênica da obra. Permeando desde os objetos
cênicos e a pintura de cenários, até os trajes das personagens, a padroeira do Brasil inspira a
criação da obra; definindo tanto o nome da protagonista até a estruturação da sua visualidade.
Esta referência se evidencia, inclusive, na HQ106 criada a partir do programa, no qual uma das
ilustrações das páginas iniciais é justamente a da santa, que tem as suas cores pinceladas nos
desenhos, delineando e estruturando toda a composição gráfica.

Figura 33. Ilustração na HQ de Suburbia.


Fonte: Suburbia, 2012.

106
Suburbia/ texto e ilustrações de Pedro Franz; adaptação da obra de Paulo Lins e Luiz Fernando Carvalho. - -
Rio de Janeiro: Retina 78, Aeroplano Editora, 2012. 64p. : il., color.
120

Zona Norte do Rio na década de 1990 e na contemporaneidade

A definição do contexto espacial e temporal de uma narrativa direciona toda a etapa de


pesquisa de uma produção, determinando, assim, as escolhas da cenografia, do figurino e da
maquiagem. Em Suburbia, a proposta de encenação fundamentada no realismo exigiu das
equipes uma maior atenção ao caráter verossìmil destas opções materiais e visuais. Neste
sentido, para a definição da linguagem visual das personagens e dos espaços da encenação, os
profissionais envolvidos no projeto realizaram um mergulho nos hábitos e costumes dos
moradores da Zona Norte do Rio de Janeiro, em especial do bairro de Madureira, extraindo
desta região as principais referências arquitetônicas e materiais para a criação dos cenários,
dos figurinos e da caracterização. Devido ao fato da narrativa se passar nos anos 1990, a
pesquisa foi direcionada aos elementos de época, mas sem abrir mão de registros visuais
destes espaços na contemporaneidade.

A fotografia de Walter Firmo

Walter Firmo é um fotógrafo nascido no subúrbio do Rio de Janeiro no ano de 1937,


que, formado no fotojornalismo, se dedicou, a partir da década de 1960, a viajar pelo paìs e
retratar a população negra de diferentes cidades, subúrbios e periferias brasileiras com o
intuito de valorizar a expressividade e as cores das suas manifestações culturais e religiosas. O
conjunto da sua obra revela um tratamento estético particular sobre a identidade e o corpo do
povo negro, tratando-se de uma iconografia dotada de autêntica força expressiva.

O Brasil é um desvario de cor. É ornamento, é febril, alucina. Fazer fotografia


brasileira é tirar partido deste patrimônio. É ignorar os tons pastéis e endeusar os
verdes e os rosas, nacionalizando os temas. É esquecer o olho europeu e o americano
e valorizar o que é nosso. (FIRMO; 1989, p. 5).

Os seus registros coloridos, iluminados e espontâneos do subúrbio carioca, assim como


a sua representação da estética negra, inspiraram diretamente Luiz Fernando Carvalho na
concepção visual de Suburbia, na qual é possìvel apontar citações explìcitas da sua obra
fotográfica, o que pode ser atestado pelo seguinte depoimento do diretor:

Todos os subúrbios são um único subúrbio, vejo todas as periferias se encontrando,


articulando os mesmos sistemas morais, de sobrevivência e justiça. Refletindo sobre
essas questões, você encontra uma produção de imagens de tremendo valor estético,
como é o caso do Walter Firmo, que me inspirou explicitamente. (CARVALHO;
CADERNOS GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p. 80).
121

A história de vida do escritor Paulo Lins

O escritor Paulo Lins nasceu em 1958, na cidade do Rio de Janeiro, e entre as suas
principais produções literárias se destacam os livros Cidade de Deus (1997) e Desde que o
Samba é Samba (2012). Não somente pela a sua experiência literária acerca das temáticas
abordadas em Suburbia, mas, sobretudo por ser negro e oriundo da comunidade de Cidade de
Deus, tendo vivenciado desde cedo as contradições sociais e a violência do tráfico de drogas,
assim como as manifestações culturais e religiosas presentes neste contexto urbano, a
trajetória e experiências de vida do escritor serviu de referência e orientação, não apenas para
a criação da narrativa da minissérie, mas também para a concepção da sua materialidade
cênica e da sua visualidade. O seu olhar testemunhal serviu, assim, de base para as escolhas
formais e processuais da direção e da equipe de produção da obra.

A história de vida dos atores

A história de vida dos atores, em sua maioria de origem nos subúrbios cariocas, serviu
de inspiração para a composição dos comportamentos, atitudes e gostos das personagens, e
ainda para a concepção visual dos espaços da encenação. Destacamos aqui um trecho do
depoimento da atriz Dani Ornellas, que na minissérie interpreta a personagem Vera, a filha
evangélica do Sr. Aloìsio, no qual ela descreve a sua casa de infância localizada no subúrbio
de Duque de Caxias. Acreditamos que o seu relato pessoal serviu de inspiração direta à equipe
de cenografia para a criação da casa da famìlia do Sr. Aloisio.

Nossa casa foi mudando. Porque nossa famìlia foi crescendo e meu pai precisou
construir uma casa, no mesmo quintal, que era um terreno grande. A gente até
brincava, chamava de “quilombo dos Ornellas”, porque morava uma negada, a
famìlia inteira.
Meu quintal tinha galinheiro, horta, árvore frutìfera. Era o nosso refúgio. O portão
ficava aberto e a gente se frequentava, as pessoas se conheciam. A Baixada
Fluminense da minha infância tinha muita poesia. De poder brincar na rua, de
decorar a rua para a Festa Junina, fazer bandeirinha, enfeitar na Copa do Mundo.
(ORNELLAS; CADERNOS GLOBO UNIVERSIDADE, 2013, p. 100).

Durante o perìodo de produção de Suburbia, parte do elenco cedeu relatos pessoais das
suas histórias de vida para o Museu da Pessoa107, instituição virtual e colaborativa, que
mantem um acervo com depoimentos de mais de 15 mil entrevistados.

107
Para acessar ao acervo do Museu da Pessoa: http://www.museudapessoa.net
122

A musicalidade negra

O investimento em uma sonoridade marcante é um dos principais traços das produções


de Luiz Fernando Carvalho. A trilha sonora de Suburbia é composta principalmente por
músicas de apelo popular, alinhadas ao universo temático da minissérie, e contempla desde
canções de Roberto Carlos (a sua fase dos anos 1970), passando por um repertório da Black
Music, do samba, do jongo, até aos maiores sucessos do Funk carioca dos anos 1990.
O Funk, por ser originário do subúrbio e ter alcançado evidência nacional no perìodo
em que é contextualizada a narrativa, além de ter uma forte influência na linguagem e na
estética da juventude pertencente a esta região da cidade, é um elemento chave na obra, e por
isso tem o seu peso dramático ampliado ao nortear a concepção de elementos da materialidade
cênica. A Black Music também inspira a narrativa visual de Suburbia, o que é evidenciado na
composição gráfica e sonora da vinheta de abertura da minissérie, de forte referência à
Cultura Black (consideramos importante assinalar aqui este dado visual, apesar deste trabalho
não estar vinculado à função da direção de arte).
A musicalidade negra de raiz também define a visualidade de determinadas cenas.
Considerado o berço do samba no Rio de Janeiro, no bairro de Madureira há duas grandes
escolas: a Portela e a Império Serrano. É também originário do bairro o Jongo da Serrinha,
grupo cultural que preserva o ritmo do jongo: uma dança de roda e de umbigada que remete
aos escravos. A pesquisa acerca da história e da visualidade da musicalidade negra foi
essencial na instrumentalização da equipe de arte com um repertório imprescindìvel na
resolução das demandas decorrentes dos seus processos de criação.

Fig. 34. Referência a Black Music na vinheta de abertura da minissérie.


Fonte: Suburbia, 2012.
123

3.2.2 Paleta de Cores

A paleta de cores da minissérie é composta predominantemente pelos matizes azul,


vermelho, amarelo e verde, que são empregados tanto em saturação como em atenuação
(principalmente ascendente), com um especial predomìnio da cor rosa. Há também inserções
das cores secundárias laranja e violeta. Esta composição interage na maior parte das cenas
com a incidência de luz branca difusa ou determina o cromatismo de luzes artificiais.
Neste estudo, consideramos que a definição desta paleta de cores tem origem
principalmente nas cores da imagem de Nossa Senhora Aparecida, e mantêm fortes relações
com o cromatismo e à luminosidade da fotografia de Walter Firmo e do bairro de Madureira.
As cores das imagens são resultantes ainda de um competente trabalho de tratamento e
correção realizado pelo colorista Sergio Pasqualino, alinhado aos propósitos estéticos da
direção. No próximo subitem iremos analisar a articulação entre paleta de cores, direção de
arte e visualidade na minissérie.

3.2.3 Cenografia, Figurino e Caracterização

O projeto cenográfico de Suburbia é assinado pelos cenógrafos Isabela Urman, Kaká


Monteiro e João Irênio. O direcionamento realista e documental da obra determinou a criação
de cenários em locações externas, fora dos estúdios do Projac, evitando-se uma representação
notoriamente cenográfica. As principais locações da minissérie são oriundas da cidade de
Quem Quem, em Minas Gerais (prólogo); da cidade do Rio de Janeiro, nos bairros de
Madureira, Oswaldo Cruz, Quintino, Curicica e Tijuca (representação do bairro de
Madureira); e na Ilha de Paquetá (representação da casa da Famìlia Santos). A produção de
arte é creditada a Marco Cortez e Lara Tausz.
Assinado por Luciana Buarque, os figurinos de Suburbia seguiram o objetivo de retratar
o modo de vestir dos moradores de Madureira. A figurinista, inclusive, fez compras em lojas
do bairro, investindo em roupas de intenso colorido. No entanto, algumas peças produzidas
fogem a esta perspectiva, por terem sido criadas em alinhamento às construções metafóricas
propostas na narrativa visual da obra, conforme citaremos no próximo subitem.
Já o trabalho de caracterização na minissérie, sob a supervisão de Fabìola Gomes e
Bárbara Santos, se pautou no naturalismo e na valorização dos traços e da estética negra. Em
determinadas cenas retrata a visualidade funk, caracterizando as personagens com o brilho, as
cores e a sensualidade das maquiagens dos bailes.
124

3.3. Direção de arte e visualidade em Suburbia

Neste subitem, apresentamos a análise da visualidade de Suburbia, considerando a sua


inter-relação com a narrativa, a estrutura de encenação e as particularidades do projeto de arte
da minissérie. Com base nas premissas teóricas definidas no subitem 1.8 do primeiro capìtulo
desta dissertação, a análise aqui apresentada se fundamenta em uma investigação da
linguagem visual construìda na obra, focando na articulação estética entre cor, luz, cenários,
figurinos e caracterização, e nas suas implicações na construção do espaço da representação.
Todo este repertório é analisado tanto em suas particularidades técnicas, decorrentes dos
processos práticos da produção, quanto nas suas especificidades teóricas e conceituais,
buscando-se, a partir das conclusões alcançadas, uma definição da parcela expressiva destes
elementos na atmosfera e na estrutura visual da composição dos quadros construìdos na obra.
Enquanto nas suas produções anteriores, principalmente Hoje é Dia de Maria, A Pedra
do Reino e Capitu, Carvalho constrói uma representação calcada nas premissas da cena
teatral, e sob o conceito do artificialismo explícito, em Suburbia o diretor opta por conceber
um universo diegético assentado no real, estruturando uma encenação fundamentada em um
tratamento realista da narrativa e na opacidade do discurso audiovisual, com referências a
procedimentos estéticos do cinema moderno. E neste sentido, os elementos da direção de arte,
enquanto estruturantes das cenas e coadjuvantes das ações, seguem a proposição estética do
diretor e as necessidades da diegese por ele criada.
Assim, diferente das minisséries citadas, onde se observa uma construção cênica
estilizada tanto no uso de materiais e na aplicação de cores e texturas, quanto na criação de
formas inusitadas - princìpio ainda mais radicalizado na novela Meu pedacinho de chão
(2014) - o projeto de arte de Suburbia segue diretrizes realistas ao optar pela montagem dos
cenários em locações reais, pela composição de um figurino essencialmente análogo ao
vestuário usual do contexto social retratado e pela maquiagem de proposta naturalista, o que
colabora para que a representação da vida da protagonista Conceição tenha o peso da
realidade tangìvel, conceitualmente extraìda da realidade social brasileira.

[...] a minha preocupação permanente foi a de fazer uma aproximação com o real de
forma mais epidérmica, menos cenográfica, menos oficial, menos industrializada,
digamos assim. Ao fazer uma aproximação mais documental, você estaria arrastando
com esse olhar uma série de crìticas ao contexto da sociedade em relação a essas
minorias. E, de uma forma muito espontânea, acaba incluindo uma reflexão social
dentro da dramaturgia, trazendo para o texto uma função social importante: um
vìnculo. [...] Suburbia conta uma trajetória folhetinesca, mas ela não se exime de
sublinhar certas passagens, certas condições desse ser humano excluìdo. E aì vem
125

toda a questão dos negros, da famìlia dos negros, de um elenco formado de negros,
de um elenco desconhecido... (CARVALHO; CADERNO GLOBO
UNIVERSIDADE, 2013, p.81)

Suburbia é uma obra que se propõe a retratar visualmente a atmosfera social de um


espaço urbano em particular; não somente em suas nuances econômicas, sociais e culturais,
mas também espaciais sob uma concepção diegética de intensa carga subjetiva. Pois, embora
a tendência realista defina esteticamente a minissérie, a estruturação da narrativa visual da
obra, construìda a partir do olhar e dos sentimentos da protagonista/narradora, permite em
determinados domìnios da linguagem, certas soluções visuais que podem ser consideradas
como não realistas, com tendências artificialistas. Esses desvios estéticos no discurso
construìdo interferem diretamente nas escolhas da direção de arte e da fotografia, agregando
complexidade à visualidade da obra, sobretudo na sua composição cromática, já que a
manipulação de luz e cor converge em direção oposta ao realismo108.
Assim, embora a materialidade cênica da minissérie revele um intenso investimento em
pesquisas sobre o contexto sociocultural da narrativa, a sua força expressiva e o seu
diferencial estético está principalmente na manipulação da paleta de cores, responsável por
definir uma visualidade original perpassada por um intenso lirismo. A relação entre cor e
espaço é, neste sentido, a base da narrativa visual de Suburbia, e promove uma estetização
expressiva das imagens, assegurando a coesão do conceito visual construìdo. Trata-se, no
entanto, de uma concepção formal que não se prende a definições simbólicas pré-
estabelecidas e que está associada efetivamente à narrativa e às interações entre personagens,
ações e contextos espaciais, determinando, assim, a criação de uma significação singular que
norteia todo o discurso audiovisual.
Nesta análise, interpretamos que a composição cromática da minissérie é inspirada,
como já dito, tanto nas cores de Madureira e na imagem de Nossa Senhora Aparecida, quanto
no colorido das fotografias de Walter Firmo. Mas é importante salientar, que não somente na
composição cromática da obra é explìcita a referência às imagens de Firmo. Os quadros de
Suburbia revelam ainda uma forte referência à sua iconografia, e são estruturados, por vezes,
como citações aos seus quadros fotográficos, evidenciadas não somente pelas cores, mas pela
concepção dos espaços da representação (Fig. 35 e 36).

108
Parte desta análise já resultou na publicação do artigo Cores suburbanas na visualidade televisiva: uma
análise dos processos da Direção de Arte na minissérie Suburbia de Luiz Fernando Carvalho na I Jornada
Internacional Geminis – Entretenimento Transmìdia e na participação no XVIII Encontro da Sociedade
Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual - SOCINE com a apresentação do trabalho A Suburbia de
Luiz Fernando Carvalho: Direção de Arte e mise-en-scène.
126

Fig. 35. Citações visuais em Suburbia.


Fonte: Casa do Maestro Pinxinguinha em Ramos (WALTER FIRMO, 1968); Suburbia, 2012. (Frame)

Fig. 36. A chegada de Conceição no Rio de Janeiro


Fonte: Rio de Janeiro, 1980 (WALTER FIRMO); Suburbia, 2012. (Frame)

Com base na análise das imagens da minissérie, é possìvel afirmar ainda que a cor
adquire um status de personagem na obra, exercendo um protagonismo visual nas cenas e na
composição dos quadros. Com uma paleta de cores composta como já dito: pelo predomìnio
do azul, vermelho, amarelo e verde, que interagem na maior parte das cenas com a incidência
de luz branca difusa; a visualidade da obra evidencia, para além de uma expressividade
cromática, a relação da cor com a narrativa por definir particularidades dramáticas às
sequências e traduzir as emoções e o ritmo dos acontecimentos vividos pela protagonista. O
emprego desses matizes, ou das suas variações tonais, nos elementos materiais é
predominante; pincelando figurinos, cenários e objetos, e se integrando à encenação. O que se
configura como um reflexo do trabalho visual da direção de arte e da direção de fotografia na
composição dos planos109.
Identificamos na estrutura visual de Suburbia, quatro tendências cromáticas que atuam
em conformidade com o conteúdo articulado nas cenas e com a proposta de encenação do
diretor: no prólogo, a representação da infância de Conceição, as sequências intercalam cores
terrosas ao predomìnio luminoso do azul; na chegada da protagonista ao Rio de Janeiro, é

109
É preciso ainda considerar o trabalho de pós-produção digital de correção das cores das imagens.
127

notável uma alteração brusca na paleta de cores, que agora ganha um colorido carnavalesco;
nas cenas que retratam o subúrbio, a profusão de cores se mantem, mas com um predomìnio
dos tons pastéis, ou seja, há uma atenuação cromática ascendente (clareamento); nas demais
cenas, há uma saturação das cores e luzes, intensificada em cenas especìficas.
No prólogo, a pobreza e a exploração vividas pela menina Conceição se expressa nos
planos por uma atmosfera sombria e “queimada”. A paleta é composta por cores terrosas e
cobreadas, que delineia toda a materialidade cênica. A casa pobre nos arredores dos fornos de
carvão e os figurinos são concebidos em tons rústicos que se camuflam na paisagem hostil em
que vive a famìlia. Há, no entanto, uma oscilação cromática marcante, o emprego do azul em
sequências especìficas aliado ao uso da luz difusa e do contraluz que parece sublinhar neste
inìcio da história uma atmosfera atemporal e sobrenatural.

Fig. 37. Paleta de cores do prólogo: predominância do azul e de cores terrosas e cobreadas.
Fonte: Arquivo de Photoshop

Após a sua fuga do sertão, Conceição acorda em um vagão de trem no Rio de Janeiro e
outra fase da história se inicia. A virada no percurso narrativo de Suburbia é então expressa
por uma nova demarcação estética na visualidade da minissérie: a concepção da paleta de
cores e da luz muda em contraste com as imagens anteriores. Nestas sequências os planos são
estruturados por uma profusão cromática que delineia os cenários e os figurinos, enfatizada
pelo carnaval, perìodo em que a cidade está colorida e as pessoas fantasiadas. Estes quadros
evidenciam a interferência da materialidade cênica na composição visual da obra, devido à
expressividade das cores saturadas que definem os trajes das figuras em cena.
128

Fig. 38. Paleta de cores da chegada de Conceição ao Rio de Janeiro: contraste cromático com o prólogo
Fonte: Arquivo de Photoshop

Já a visualidade da maior parte das sequências que retratam o bairro de Madureira segue
a opção conceitual da direção de arte de retratar um subúrbio colorido e iluminado, e, por
vezes, com certo ar bucólico, estruturando, desta forma, uma atmosfera de contornos lìricos.
A composição cromática das cenas é caracterizada por tons “pastéis”, que definem o
tratamento visual dos espaços, figurinos e objetos, ainda mais atenuados pela incidência de
uma luz branca e difusa; o que estrutura uma visualidade arrebatadora, que parece traduzir o
fascìnio da protagonista com o novo lar. Esta opção estética define principalmente as
sequências da rua e da casa da famìlia do Sr. Aloisio, mas também marca as cenas da casa de
Cleiton no morro, podendo se estender a outros espaços de ação destes personagens.

Fig. 39. Paleta de cores composta por tons “pastéis”: concepção de um subúrbio lìrico.
Fonte: Arquivo de Photoshop
129

Fig. 40. Predomìnio da cor rosa nas sequências da procissão de São Benedito em Madureira.
Fonte: Arquivo de Photoshop

Se opondo a esta concepção estética, na maior parte das sequências que se passam em
espaços cênicos diversos aos citados, é possìvel observar uma saturação dos matizes. Em
algumas destas cenas, a intensificação cromática, de cores-pigmento e de cores-luz, parece se
relacionar tanto ao ritmo quanto a carga dramática da narrativa. Assim ocorre, por exemplo,
nas cenas que retratam a efervescência dos bailes funks e do ensaio da escola de samba do
bairro, em especial, na cena da coroação de Conceição como rainha de bateria.

Fig. 41. Cores saturadas na coroação de Conceição como rainha de bateria.


Fonte: Arquivo de Photoshop
130

De uma forma geral, os espaços cênicos de Suburbia se estruturam visualmente, na


maior parte dos planos, como espaços profundos (BLOCK, 2010) desenhados pelo forte uso
da perspectiva. A narrativa audiovisual é, assim, estruturada por quadros que evidenciam a
profundidade de campo, sendo compostos por linhas e planos longitudinais que dirigem o
olhar para a espacialidade dos cenários. E os elementos estruturantes destes espaços,
fortemente alinhados à narrativa, definem novos sentidos nas cenas e expressam o conceito da
minissérie para, consequentemente, intensificar a experiência visual.
A concepção dos cenários em locações reais, tanto dos espaços arquitetônicos quanto
das paisagens, se alinha a proposta documental da direção, embora a intervenção material e
cromática da direção de arte nos ambientes seja essencial para uma articulação destes espaços
com a visualidade da obra. Alguns espaços cênicos da minissérie mantêm, porém, um
conceito visual próprio, particularizado na estrutura da narrativa, sendo este o caso das terras
do sertão de Minas Gerais e da instituição para menores infratores. Já outros espaços mantem
uma relação cromática entre si, alinhada a uma identidade visual geral da obra; sendo este o
caso da casa da intelectual Sylvia, do posto de gasolina onde Conceição trabalha junto com
Cleiton, do quarto de motel visitado pelo casal e da casa de shows onde são realizados os
bailes funk. Há ainda várias inserções de paisagens reais de Madureira na obra, como, por
exemplo, as imagens da linha do trem e das passarelas do bairro que intercalam as imagens
pela montagem ou contextualizam as cenas.

Fig. 42. Cores saturadas e identidade visual em Suburbia.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)
131

Fig. 43. Conceição e Vera transitam pela passarela de Madureira.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

Para uma análise formal dos cenários principais de Suburbia, além das tendências
cromáticas identificadas na visualidade da minissérie, devemos considerar ainda a concepção
da narrativa de um subúrbio marcado pelos contrastes sociais e econômicos, que se expressa
no projeto cenográfico da obra pela representação material e visual de um espaço suburbano
estruturalmente dìspar. De um lado há um subúrbio que ainda mantem aspectos rurais, de
casas espaçosas com calçadas, jardins e quintais, de espaços abertos ao convìvio entre
vizinhos e amigos, por conta da relação de compadrio ainda existente na vizinhança. Em
oposição a esta concepção espacial, há os morros, onde as construções se caracterizam como
habitações precárias, cerradas e dispostas desordenadamente no espaço comunitário, e que
mantêm ainda marcas materiais da insegurança decorrente do domìnio do tráfico de drogas.
Analisaremos aqui os espaços pictóricos de imagens que trazem uma representação de
dois cenários em particular: o da casa do Sr. Aloìsio e o da casa de Cleiton e Margarida.
Inspirada na casa do músico Pinxinguinha, a partir do registro fotográfico de Walter Firmo
(Fig. 35), a casa da Famìlia Santos é antiga e espaçosa, tem muro baixo, jardim com flores e
vasos de plantas, varanda, além de janelas de madeira sem grades. A construção arquitetônica
é sólida e bem planejada. O quintal é amplo, com terra batida, árvores frutìferas e galinheiro,
onde a famìlia se reúne para comemorações e datas festivas.
O interior da casa é simples e amplo, e os cômodos são bem divididos. As paredes são
coloridas, e a pintura de cada cômodo é definida por uma cor especìfica. O tratamento visual
do cenário se alinha à paleta de cores da minissérie e segue a tendência cromática dos tons
“pastéis” e da incidência da luz branca e difusa, que iluminam e ampliam os ambientes, e
132

definem certa atmosfera bucólica e lìrica ao ambiente. A concepção do cenário da casa se


alinha, assim, ao conceito da representação do subúrbio antigo, onde a maior parte da
população, mesmo com simplicidade, vivia em construções mais confortáveis, com mais áreas
verdes e com mais segurança.

Fig. 44. Varanda da casa da Família Santos: representação bucólica de um subúrbio antigo.
Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

A produção de arte segue estas mesmas diretrizes. Os ambientes internos da casa são
compostos por uma profusão de objetos e utensìlios, que preenchem de cores e simbolismos
os espaços da encenação. Este repertório material contextualiza a trama espacialmente e
temporalmente, e ainda traz indicações socioculturais das suas personagens. Mas, embora a
minissérie retrate os anos 1990, é possìvel identificar neste conjunto tanto objetos mais
antigos quanto mais contemporâneos; não somente para pontuar o fluxo natural dos desgastes
e das aquisições materiais, mas principalmente para apontar uma percepção especial sobre o
tempo alinhada ao conceito visual construìdo pela direção de arte.
O cenário delineia uma atmosfera que remete a história de vida de Sr. Aloisio e de Mãe
Bia, suas crenças e ideais, com peças marcadas por uma intensa carga de valores e
significados. Outros objetos remetem aos seus antepassados como os retratos de famìlia
emoldurados nos quartos e na sala da casa. Todos esses elementos são sìmbolos de uma
postura ideológica construìda em Suburbia de reconhecimento e valorização da história e da
ancestralidade da população negra brasileira.
133

Fig. 45. Retratos de família na sala de estar da Família Santos.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

Ao mesmo tempo, a narrativa visual da obra indica um processo de desgaste e


transformação neste espaço. Nos fundos da casa, no entorno do quintal, foram construìdos
dois “puxadinhos” onde vivem os filhos já casados, e uma escada que leva às suas lajes, onde
as crianças tomam banho de mangueira. Estas construções já determinam uma ruptura com a
estética e o desenho original da casa. Além disso, no quintal há um excesso de objetos, entre
sucatas e móveis antigos, abandonados nos cantos ou utilizados de forma improvisada. Com
estas soluções visuais, a direção de arte parece apontar não somente para a obsolescência
destas peças, mas também para o modelo de vida que tanto estes itens quanto a estrutura da
casa representam. O antigo aos poucos já cede espaço para o novo subúrbio.

Fig. 46. Excesso de objetos descartados no quintal da Família Santos.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)
134

Representativa deste novo subúrbio, a casa de Cleiton e da sua mãe Margarida já traz
uma concepção espacial totalmente diversa. Não somente a situação financeira da famìlia,
mas também o fato da residência estar situada em um morro dominado pelo tráfico, já
determina a criação de um cenário representativo destas condições materiais e sociais nas
quais as personagens estão inseridas. Internamente, o “barraco” da famìlia tem um espaço
bastante reduzido, com poucos e pequenos cômodos, que apontam para uma falta de
planejamento arquitetônico. As paredes não têm reboco ou pintura, e o chão é de cimento
batido. Os móveis são bem simples, assim como os utensìlios domésticos. Na fachada da casa,
assim como na parte interna, ainda falta acabamento geral. A janela e a porta, ambas de um
material mais moderno, provavelmente de alumìnio e vidro, são gradeadas, o que aponta para
a cultura do medo e da insegurança na qual os moradores estão inseridos. Na janela da casa
estão pendurados pequenos vasos de flores improvisados, feitos com lata de alumìnio e
plástico. Diferente da casa da Famìlia Santos, falta espaço e natureza neste ambiente.

Fig. 47. Fachada da casa de Cleiton no morro em Madureira.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

O trabalho de produção de arte é também muito cuidadoso na composição dos


ambientes internos, preenchendo o espaço com cores e objetos, que dialogam com as
condições materiais da famìlia e com a sua história. Amante da Black Music, Cleiton tem um
cantinho na casa que traduz a sua personalidade e os seus interesses. A atmosfera geral do
cenário, no entanto, remete a dor de uma famìlia desfeita pela violência. As fotos de famìlia
colocadas no espelho da casa sublinham estas marcas emocionais nas imagens.
135

Fig. 48. Criação de sentidos pela produção de arte.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)

No que concerne ao figurino e à caracterização, estes seguem as mesmas diretrizes


documentais propostas para a concepção cênica da minissérie e se alinham às tendências
cromáticas já definidas. Como peças mais representativas desta proposta de retratar a
materialidade suburbana são as roupas cotidianas dos mais jovens, que remetem tanto a uma
estética do funk quanto à moda do inìcio dos anos 1990. De uma maneira geral, no entanto, as
roupas das personagens não demarcam uma caracterização rìgida de época, remetendo mais a
uma atmosfera atemporal, de forte diálogo com a estética suburbana atual.

Fig. 49. Figurinos de forte diálogo com a estética suburbana contemporânea.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)
136

É possìvel apontar ainda nos trabalhos das equipes de figurino e de caracterização de


Suburbia, cuja orientação segue um projeto visual de tendências realistas, algumas soluções
visuais que recaem na poesia visual e, em direção oposta, no artificialismo; uma tendência já
apontada no inicio deste subitem. O traje criado para a coroação de Conceição como rainha da
escola de samba é um exemplo desta proposição (Fig. 31). A devoção da protagonista a Nossa
Senhora Aparecida, que é evocada desde a primeira sequência da minissérie e, de certa forma,
delineia todas as suas imagens através da paleta de cores, está sintetizada neste desenho de
figurino, cuja força expressiva e formal alude à representação iconográfica da santa. A peça
traz uma intensa carga de significação, que remete à história de vida de Conceição, suas
crenças e fé, e se alinha a proposta dos autores de reconhecimento da história da população
negra e de valorização da sua cultura.
Já os trajes do baile de noivado de Conceição e Cleiton revelam um trabalho apurado da
equipe de figurino, tanto na criação de desenhos, quanto na escolha de materiais e na
confecção que determinam um resultado estético mais singularizado e, sobretudo, mais cênico
e artificialista. As peças e adereços, e a caracterização das personagens se aproximam,
inclusive, de projetos de arte realizados em trabalhos anteriores do diretor Luiz Fernando
Carvalho norteados pela pesquisa da linguagem teatral, embora em Suburbia não haja um
direcionamento conceitual ao artificialismo explícito. Nestas cenas finais, a expressividade
dos elementos da direção de arte corrobora a construção da atmosfera lìrica pretendida, um
desfecho visual que dialoga com a visualidade dos bailes dos contos de fadas.

Fig. 50. Baile de noivado de Conceição: atmosfera de contos de fadas.


Fonte: Suburbia, 2012. (Frame)
137

Considerações Finais

Esta pesquisa circunscreve o universo criativo da direção de arte em limites tênues.


Parte do amplo contexto da produção audiovisual brasileira e se desvia ao âmbito industrial da
cadeia produtiva televisiva, para traçar um panorama dos seus processos e potencialidades
estéticas, sempre alinhadas ao papel criativo da função na construção de imagens ficcionais.
Seus termos funcionais, no entanto, parecem não se engessar totalmente às especificidades
dos distintos meios audiovisuais, mas, ao contrário, são sempre passìveis de novos diálogos e
de serem revistos, distendidos ou transformados. Afinal, ao que parece, a tentativa de
delimitar ou rotular processos criativos não tem efeito, pois no ato de criar há sempre um
impulso de avanço a novas direções estéticas.
Assim como no cinema, a direção de arte e os seus profissionais na televisão também
tendem a seguir a este impulso da renovação. A história da direção de arte televisiva reforça
esta assertiva. Ainda que englobe processos mais automatizados e um ritmo de produção mais
opressivo, a serviço de narrativas mais tradicionais, a televisão ainda assim consegue
subverter as suas próprias regras e redefinir os seus próprios padrões visuais. A conjuntura
operacional da produção de teledramaturgia tem suas imposições estéticas, não se pode negar,
mas tem também as suas brechas, cabendo aos artistas mais obstinados encontrá-las.
Um destes artistas é o diretor Luiz Fernando Carvalho. O seu gênio inovador está
justamente em perceber e transcender esses limites da linguagem televisiva, construindo
novas possibilidades estéticas e discursivas. E a direção de arte tem “lugar” de destaque nesta
sua obstinação estética. O entendimento dos processos de criação das suas obras corrobora
esta constatação. Realistas ou não, de traços teatrais ou cinematográficos, as suas produções
de teledramaturgia revelam um reconhecimento da força expressiva e conceitual do projeto de
arte, transcriando textos e discursos audiovisuais densos e coesos. Neste processo, as equipes
de arte vêm seus espaços e recursos criativos ampliados, com expressividade dilatada nos
resultados finais das obras.
E assim prossegue em Suburbia. Através da análise visual das suas imagens apontamos
nas “entrelinhas” do discurso audiovisual proposto, os elementos da direção de arte, em
diálogo com a fotografia, como mecanismos de construção de sentidos nas imagens. As
configurações dos quadros evidenciam um cuidadoso trabalho de estruturação imagética,
focada na criação de uma ligação estrutural entre a sua visualidade e a narrativa de forte teor
social. Suburbia é, assim, uma obra original, cujo discurso transcende os limites ideológicos e
138

midiáticos no qual está inserido, e vai além das restrições ao promover uma invasão de cores
suburbanas na visualidade televisiva.
Este estudo se encaixa em um propósito maior de contribuir para a concepção da
direção de arte como um campo de pesquisa autônomo, cujo repertório de conhecimentos
coopera para o desenvolvimento de teorias, conceitos e percursos metodológicos próprios.
Para Butruce (2005) a direção de arte possui “uma autonomia técnica, estética e conceitual
frente ao todo cinematográfico, que lhes permitem serem tomadas como objeto diferenciado”.
Uma perspectiva que se alinha ainda a um questionamento sobre a desvalorização dos
processos profissionais da direção de arte nas rotinas dos sets e dos estúdios, e,
principalmente, da quase omissão, no âmbito das crìticas e dos trabalhos acadêmicos, das
formas e relações estruturais dessa instância conceptiva da imagem audiovisual,
intrinsecamente relacionada ao campo das artes visuais e das artes aplicadas. Diante deste
cenário, é possìvel pensar, então, na existência de uma “limitação” de olhares, que podem e
devem ser ampliados em novas direções visuais. É essencial na experiência de assistir a um
filme ou o programa televisivo, olhar e realmente ver, ir além das suas indicações textuais e
imergir nas suas matérias visuais, buscando sentidos velados.
A televisão é outro contexto carente de explorações e abordagens. Este perìodo
dedicado ao desenvolvimento da pesquisa evidenciou o número reduzido de trabalhos que são
dedicados a este universo temático, em parte devido a preconceitos estéticos, sociais e
polìticos. Mas, por que não pensar a televisão? Apontar sim os seus problemas, mas também
reconhecer as suas conquistas e papéis sociais? Concordo com Luiz Fernando Carvalho
quando este diz que vê coisas boas sendo produzidas tanto no cinema quanto na televisão.
Sim, as produções estão sendo realizadas e o fluxo nunca é interrompido. Trata-se de um
panorama de grande repercussão social, que não deve ser ignorado ou simplesmente rotulado.
É importante assistir, analisar e de alguma maneira investigar percursos e prerrogativas de
mudanças, tendo a pesquisa acadêmica o seu papel neste território em constante construção.
Esta pesquisa não se esgota aqui. No percurso investigativo realizado foi possìvel
detectar novas possibilidades investigativas acerca da direção de arte no contexto do
audiovisual brasileiro. As inovações tecnológicas impõem a cada época novos desafios a este
campo profissional, assim como a conjuntura produtiva do cinema e da televisão está em
constante transformação, sempre assimilando novas técnicas, processos e perspectivas
projetuais. Demonstra assim ser essencial o estudo da direção de arte, entendendo-a como
uma função centrada não somente na estruturação de visualidades, mas também como uma
das esferas criativas da construção de imaginários sociais no audiovisual.
139

REFERÊNCIAS

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IMAGEM EM MOVIMENTO

HOJE é dia de Maria. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: Globo Marcas;
Som Livre, 2004-2006. 3 DVD.

CAPITU. Direção: Luiz Fernando Carvalho. Produção: Projeto Quadrante. Rio de Janeiro:
Globo Marcas; Som Livre, 2008. 2 DVD .
142

AFINAL, o que querem as mulheres?. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro:
Globo Marcas; Som Livre, 2011. 2 DVD .

A PEDRA do reino. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: Globo Marcas; Som
Livre, 2007. 2 DVD.

LAVOURA Arcaica. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: Europa Filmes,
2004. 1 DVD.

OS MAIAS. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: Globo Marcas; Som Livre,
2001. 4 DVD.

SUBURBIA. Direção: Luiz Fernando Carvalho. Texto: Paulo Lins e Luiz Fernando Carvalho.
Direção de fotografia: Adrian Teijido. Direção de arte: Mário Monteiro. Figurino: Luciana
Buarque. Cenografia: João Irênio, Isabela Urman e Kaka Monteiro. Caracterização: Fabíola
Gomez e Bárbara Santos. Efeitos visuais: Rafael Ambrosio. Efeitos especiais: Marcos Soares.
Produção de arte: Marco Cortez e Laura Tausz. Direção musical: Mariozinho Rocha. Edição:
Marcio Hashimoto. Supervisão executiva de produção: Tatynne Lauria e Willian Barreto.
Núcleo Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: Globo Marcas; Som Livre, 2013. 2 DVD
(360min), widescreen, color.
143

APÊNDICE

Produção audiovisual de Luiz Fernando Carvalho na Rede Globo

Inicio dos anos 1980


Projeto Usina de Teledramaturgia da Rede Globo de Televisão
Assistência de Direção

1985
Minissérie: O Tempo e o Vento, da obra de Érico Verìssimo.
Assistência de Direção: Luiz Fernando Carvalho.
Direção: Paulo José.

1985
Minissérie: Grande Sertão: Veredas, da obra de Guimarães Rosa.
Assistente de Direção: Luiz Fernando Carvalho.
Direção: Walter Avancini.

1988/89
Telenovela: Vida Nova, de Benedito Ruy Barbosa.
Direção: Luiz Fernando Carvalho e Ronaldo Boury.

1989/90
Telenovela: Tieta, de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares.
Direção: Luiz Fernando Carvalho, Reinaldo Boury e Ricardo Waddington.
Diretor Geral: Paulo Ubiratan.

1990
Minissérie: Riacho Doce, de Aguinaldo Silva.
Direção: Luiz Fernando Carvalho e Ronaldo Boury.
Diretor Geral: Paulo Ubiratan.

1990
Telenovela: Gente Fina, de Luìs Carlos Fusco.
Direção: Luiz Fernando Carvalho, Milton Gonçalves e Lucas Bueno.
Direção Geral: Gonzaga Blota.

1991
Unitário: Os Homens Querem Paz, de Péricles Leal.
Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

1992
Telenovela: Pedra sobre Pedra
De Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares.
Direção: Luiz Fernando Carvalho, Carlos Magalhães, Gonzaga Blota e Paulo Ubiratan.
Direção Geral: Paulo Ubiratan.
144

1993
Telenovela: Renascer, de Benedito Ruy Barbosa.
Direção: Luiz Fernando Carvalho, Mauro Mendonça e Emìlio di Biasi.
Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

1994
Unitário: Uma Mulher Vestida de Sol, adaptação da obra de Ariano Suassuna.
Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

1995
Telenovela: Irmãos Coragem, de Janete Clair.
Direção: Luiz Fernando Carvalho, Carlos Araújo, Ary Coslov e Reynaldo Boury.
Direção Geral: Reynaldo Boury.

1995
Unitário: A Farsa da Boa Preguiça, da obra de Ariano Suassuna.
Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

1996
Telenovela: O Rei do Gado, de Benedito Ruy Barbosa.
Direção: Luiz Fernando Carvalho, Carlos Araújo, Emìlio di Biasi e José Luìs Villamarin.
Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

2001
Minissérie: Os maias, de Maria Adelaide do Amaral.
Direção: Emìlio di Biasi e Del Rangel.
Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

2002
Telenovela: Esperança, de Benedito Ruy Barbosa.
Co-Direção: Luiz Fernando Carvalho, Carlos Araújo, Emilio di Biasi e Marcelo Travesso.
Direção geral: Luiz Fernando Carvalho e Carlos Araújo.

2005
Minissérie: Hoje é Dia de Maria, primeira e segunda jornadas.
Da obra de Carlos Alberto Soffredini.
Autoria: Luiz Fernando Carvalho e Luìs Alberto de Abreu.
Direção: Luiz Fernando Carvalho

2007
Minissérie: A Pedra do Reino, da obra de Ariano Suassuna.
Autoria: Luiz Fernando Carvalho, Luìs Alberto de Abreu e Braulio Tavares.
Direção: Luiz Fernando Carvalho.

2008
Minissérie: Capitu, da obra de Machado de Assis.
Texto: Euclydes Marinho.
Colaboração: Daniel Piza, Luìs Alberto de Abreu e Edna Palatnik.
Texto Final e Direção: Luiz Fernando Carvalho.
145

2010
Minissérie: Afinal, o que Querem as Mulheres?
Texto: João Paulo Cuenca, Cecìlia Giannetti e Michel Melamed.
Texto Final e Direção: Luiz Fernando Carvalho.

2012
Minissérie: Suburbia
Texto: Luiz Fernando Carvalho e Paulo Lins.
Colaboração: Carla Madeira.
Direção: Luiz Fernando Carvalho.

2013
Série exibida no Fantástico: Correio Feminino
Da obra de Clarice Lispector.
Texto: Maria Camargo.
Colaboração: Carla Madeira.
Direção: Luiz Fernando Carvalho.

2013
Especial: Alexandre e outros heróis
Das obras de Graciliano Ramos.
Texto: Luiz Fernando Carvalho e Luìs Alberto de Abreu.
Direção: Luiz Fernando Carvalho.

2014
Telenovela: Meu Pedacinho de Chão, de Benedito Ruy Barbosa.
Texto: Luiz Fernando Carvalho e Luìs Alberto de Abreu.
Direção: Luiz Fernando Carvalho, Carlos Araújo, Henrique Sauer e Pedro Freire.
Direção Geral: Luiz Fernando Carvalho.

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