Sunteți pe pagina 1din 35

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARATAMENTO DE FILOSOFIA

RELATÓRIO (PARCIAL) DO ALUNO

INICIAÇÃO CIENTÍFICA

BOLSA PUB – 2017-2018

Bolsista: Paulo Fernando Silva Amaral

Orientador: Professor Luiz Sérgio Repa

Departamento: Filosofia

Projeto: Liberdade Absoluta e o Terror da Revolução Francesa na filosofia hegeliana

1 - Introdução

Cabe-nos ressaltar que o direcionamento da presente pesquisa sofreu ligeiras modificações, o que
ocasionou o atraso deste relatório. Até então, pensávamos em abordar o papel da Revolução
Francesa na filosofia hegeliana como um todo, inserindo-nos no debate contemporâneo de
autores que pretendem elucidar o posicionamento de tal evento perante os olhos de Hegel.
Basicamente, a pesquisa tinha como objetivo buscar entender a suficiência, ou não, da revolução
francesa na filosofia hegeliana visto que o papel tanto biográfico quanto teórico da mesma varia
ao longo de suas obras. Entretanto, decidimos investigar um problema que se apresentou mais
delicado para nós: o conceito de liberdade absoluta na Revolução Francesa. Cremos que tal
recorte, mais específico, nos ajudará a entender por um lado, a crítica, explícita ou não, de Hegel
a tal concepção de liberdade, que, por sua vez, tem raízes, em determinadas filosofias, sobretudo,
na filosofia de Rousseau; por outro lado, nos ajudará a entender o papel formativo que tal noção
1
de liberdade tem para a modernidade, ou seja, a partir da concepção dialética da filosofia
hegeliana - em que a ordem de apresentação das figuras da consciência rumo ao Saber Absoluto
possuem um encadeamento lógico, demonstrando a necessidade de cada uma a partir da sua
figura seguinte não como simples evanescente, mas como figura rememorizada, que permanece
em latência nas formas lógicas e históricas subsequentes – buscar entender como tal noção deverá
assumir um papel de necessidade na constituição da sociedade moderna.
Mais especificamente, buscamos investigar a apresentação da Revolução Francesa na
filosofia hegeliana através de um de seus momentos mais significativos, qual seja, a liberdade
absoluta, uma vez que esta seria o principal leitmotiv do processo revolucionário. Para tanto, a
abordagem inicial do trabalho terá foco na sua apresentação conceitual, sobretudo, como exposta
na Fenomenologia do Espírito, no Princípios Filosofia do Direito e na sua Filosofia da História.
Entendemos que a filosofia hegeliana admite um caráter ambivalente frente a tal conceito de
liberdade bem como frente à Revolução Francesa de modo geral. Não à toa, tanto conservadores
e progressistas de esquerda tentaram, desde então, se apropriar da apresentação da Revolução
Francesa por parte de Hegel a fim de encontrar ali, um vínculo ideológico do filósofo que lhe
aproximasse de uma ou outra frente. Neste sentido, almejamos, ao fim desta pesquisa, explicitar
as razões que geram as ambivalências interpretativas produzidas a partir do seu pensamento,
tendo, ao longo deste percurso, a noção de liberdade absoluta como norte conceitual.
O trabalho se dividirá em três partes: a primeira abrangendo as origens lógico-históricas
da liberdade absoluta e seu desdobramento como vontade universal conforme apresentado na
Fenomenologia e seu entrelaçamento com as filosofias imediatamente precedentes do período (as
filosofias do iluminismo, sobretudo as de Rousseau); a segunda parte pretende analisar o papel
que a liberdade absoluta desempenha na Revolução Francesa e seu desencadeamento no Terror;
por fim, analisaremos, de maneira mais ampla, a forma como Hegel tem de pensar a liberdade
absoluta enquanto momento figurador das sociedades modernas e como estas podem apreender
tal experiência interiorizando-a enquanto conceito.

2. Metodologia

O método da nossa pesquisa consiste na leitura e análise de alguns textos hegelianos, bem como o
estudo dos filósofos e comentadores que tentaram entender o tema da importância da Revolução
2
Francesa na filosofia de Hegel, sobretudo a questão da liberdade absoluta. As etapas de nossa
metodologia filosófica serão basicamente: leitura, explicitação, comentário e dissertação. Trata-
se, portanto, do estudo cuidadoso de uma extensa bibliografia juntamente com a elaboração de
textos dissertativos. A análise será direcionada: a) à Fenomenologia Do Espírito de Hegel em
geral e, particularmente, ao seu momento denominado A Liberdade Absoluta e o Terror (§582-
595) b) a outras obras do autor, principalmente à Filosofia da História e aos Princípios Filosofia
do Direito c) pela leitura da bibliografia especializada, artigos e livros de comentadores.

3 - Resultados

3.1. – Precedentes lógico-históricos da Revolução

A análise que apresentaremos aqui abrange a primeira parte do objetivo geral do trabalho
conforme mencionado acima: as origens lógico-históricas da liberdade absoluta e seu
desdobramento como vontade universal, precedendo e possibilitando, assim, a Revolução
Francesa, conforme apresentado na Fenomenologia. A fim de melhor compreender tal conceito,
faremos uso de comentadores especializados bem como de outras obras do filósofo, expandindo,
portanto, a análise a ser realizada.
Primeiramente, cabe-nos recuperar os momentos lógicos precedentes à Revolução tal
como apresentados na Fenomenologia. Lembremos brevemente como a dissolução do mundo da
cultura implicou dois desdobramentos possíveis para a consciência, como tentativa de recuperar
um fundamento valorativo para o Eu: a recuperação da fé emotiva e a pura inteligência (ou puro
entendimento). Tal movimento, que funciona como uma reação contra a perda do fundamento da
cultura, expressa-se, na realidade, como um duplo movimento: a “fuga desse mundo”1 e o
refugiar-se no pensamento. Mas, tais desdobramentos tem a mesma origem, significam ambos “o
mundo inefetivo da pura consciência ou do pensar. Seu conteúdo é o puramente pensado, e o
pensar, seu elemento absoluto”2. Assim, mesmo que apareça como duplo, separado, este
movimento tem uma fonte comum. A pura inteligência é a consciência simples do positivo, do
representar que se lhe contrapõe num mundo objetivo. Assim, seu objeto é o puro Eu,

1
Hegel, G.W.F. Fenomenologia do Espírito, § 529. Daqui em diante, notaremos apenas F.E. e o parágrafo
correspondente.
2
F.E., § 527.
3
consciência-de-si enquanto fonte de conceituar. Mas seu conteúdo é sempre negativo, ela mesma
(tal consciência) não tem conteúdo em si mesma. Por outro lado, tem-se a fé também como pura
consciência, mas como consciência que tem conteúdo de um objeto além-mundo, um outro além
da consciência-de-si (Deus). No entanto, Hegel nos lembra que “segundo o conceito da fé, o
objeto absoluto não é outra coisa que o mundo real elevado à universalidade da pura consciência.
Portanto a articulação do mundo real também constitui a organização do mundo da fé 3”, isso para
mostrar que a fé, apesar de se referir ao Outro além, possuí a mesma estrutura de duplicação da
pura inteligência, pois a negação do mundo se dá a partir dele mesmo.
Mesmo assim a oposição tem lugar. Pois a inteligência coloca a fé como seu oposto a ser
“esclarecida, como um reino de “superstições, preconceitos e erros4”, reino de erros. Ela mesma,
a pura inteligência, se coloca como acima da “má inteligência da multidão” e se põe a combater o
Outro que é a fé. Ora, mas o erro da inteligência ocorre justamente quando ela busca combater a
fé criticando-a, pois para criticá-la precisa, ao mesmo, por este Outro, esta figura que lhe aparece
como o exterior invertido, uma oposição que lhe é constitutiva. Somente assim ela se realiza
como consciência. Ora, mas a intelecção não tem nada fora de si mesma, seu conceito é toda sua
essencialidade, e quando ela se comporta negativamente para com o Outro, só pode ser o
negativo de si mesma, portanto “quando a razão fala de um Outro que ela, de fato só fala de si
mesma; assim não sai de si”; quando ela condena o Outro, ela “só pode condenar o que ela é”.
Por sua vez, a fé experimenta o iluminismo como seu oposto, pois este “não sabe o que diz, não
compreende o assunto quando fala de impostura dos sacerdotes e de ilusão do povo”, o
iluminismo fala “disso como se por um passe de mágica dos sacerdotes prestidigitadores
deslizasse sorrateiramente para dentro da consciência algo absolutamente estranho e Outro em
lugar da essência”. Mas não pode haver engano em tal situação. O engano se dá em formas
individuais de crença, em acontecimentos isolados. Ainda que a fé possa por o fundamento do
seu saber de maneira inadequada (não especulativa), ela não pode enganar-se. Por isso, pergunta
Hegel, de forma crítica: “como pode dar-se impostura e ilusão ali, onde a consciência tem
imediatamente em sua verdade a certeza de si mesma? Onde ela possui a si mesma no seu objeto,
porque nele tanto se encontra como se produz?”5.

3
Ibidem, § 531.
4
Ibidem, §542.
5
Ibidem, §550.
4
Porém, se o Iluminismo segue em suas críticas à fé, deve-se perguntar “agora, que resta?
Que verdade o Iluminismo difundiu em lugar dos preconceitos e superstições?”6. Isso porque se
o Iluminismo concebe todo conteúdo como finitude, como “essência e representação humana”,
logo, a essência absoluta torna-se um vazio, a que não se pode atribuir nem determinações nem
predicados, e a fé, por sua vez, torna-se um Iluminismo insatisfeito, condicionada pela distância
inalcançável para com um fundamento incondicional e absoluto.
Por outro lado, o Iluminismo satisfeito, advindo da essência absoluta tornada vazia, terá
dois caminhos complementares: o deísmo agnóstico de Voltaire e D´Alambert exposto na figura
do être suprême7; e o materialismo de Diderot, La Mettrie, Holbach e Helvetius, pois, uma vez
que é nulo tudo aquilo que se põe como além da certeza sensível, o Iluminismo dá lugar a um
materialismo cujo conceito de matéria é, no fundo, um universal abstrato. Porque pura matéria
aqui “é só o que fica de resto se abstraímos do ver, tocar, gostar, etc” como qualidades da
imaginação. A matéria “é antes a pura abstração e desse modo está presente a pura essência do
pensar, ou o puro pensar mesmo, como o absoluto sem predicado, não diferenciado e não
determinado em si”8. Este puro pensar da abstração é o universal, que aparece de modo invertido
no deísmo agnóstico, e que será o fundamento de um utilitarismo que só se relaciona com os
objetos segundo a forma da utilidade, do que é útil ao gozo do homem: “tudo é para o seu prazer
e recreação; o homem, tal como saiu das mãos de Deus, circula nesse mundo como em um jardim
por ele plantado”9.
A fim de elucidar este movimento, Bavaresco resume a o embate entre Iluminismo e fé,
com o posterior surgimento da utilidade, em três momentos específicos. Assim, em primeiro
lugar, o que para a fé era espírito absoluto, “o Iluminismo o toma como coisas efetivas
singulares”, ou seja, a razão, a pura inteligência não é vazia, pois o seu negativo é, para ela, seu
conteúdo, mas ela toma somente a singularidade limitada”. Em segundo lugar, a verdade positiva
do Iluminismo irá afirmar, face à essência vazia da fé, “o singular como ser em e por si absoluto e
o excluí de toda essência abstrata”10, assim, Hegel afirma que “fundada sobre a inteligência da
nulidade de todas as outras figuras da consciência, e assim, de todo o Além da certeza sensível,

6
Ibidem, §557.
7
Ibidem, §562.
8
Ibidem, §577.
9
Ibidem, §560.
10
BAVARESCO, Agenor. A fenomenologia da opinião pública, p. 69.
5
essa certeza sensível já não é mais um 'visar' [Meinung] mas antes, a verdade absoluta”11. Por
último, a verdade do Iluminismo é constituída pela relação das duas primeiras verdades, ou seja,
das essências singulares com a essência absoluta e, neste sentido, a pura inteligência passar a ter a
“efetividade sensível como essência absoluta”. Ora, tal conhecimento dos objetos singulares
imediatos é, igualmente, um ser em si e para um outro, ou seja, eles são utensílios, e, assim, “o
Iluminismo chega à elaboração do conceito positivo de utilidade”12. De fato, a utilidade universal
pode ser entendida como a figura onde se reconciliam, dentro dela, a idealidade (finalidade e
providencialismo) do mundo da fé e a realidade (interesse e fruição) do mundo da cultura. Daí a
afirmação central:

os dois modos de considerar a relação do finito para com o Em-si, - tanto o positivo quanto o
negativo, - de fato são igualmente necessários; e assim, tudo tanto é em si, como é para um
Outro, ou seja: tudo é útil. Tudo se entrega a outros: ora se deixa utilizar por outros e é para
eles; ora se põe em guarda de novo, e por assim dizer, se torna arisco frente ao Outro: é para
si, e por sua vez utiliza o Outro13.

Entretanto, o inverso também é verdadeiro, ou seja, “como tudo é útil ao homem, assim
também o homem é útil a tudo”. Dessa forma, o homem tem a vocação de, igualmente, “fazer-se
um membro útil à comunidade e universalmente prestativo, Na medida em que cuida de si, na
mesma exata medida deve dedicar-se aos outros; (...). Onde quer que se encontre, está no lugar
certo; utiliza os outros e é utilizado”14. Adentramos, portanto, no terreno de um iluminismo que
se fez universal quando encontrou na categoria de utilidade o seu conceito, possibilitando o
estabelecimento de vínculos universais fundados na relação utilitária da consciência com um
objeto que lhe aparece como exterior. Um Eu universal surge na forma conceitual. Embora ainda
vinculado ao mundo de forma abstrata, cindida, tais vínculos serão fortes o suficiente para
desencadear uma Revolução como veremos mais a frente.

3.2. O momento da liberdade absoluta como vontade geral na Revolução

11
F.E., §558.
12
BAVARESCO, ibidem, p. 69.
13
F.E., §560.
14
F.E., §560.
6
É justamente a partir deste contexto que a análise da Revolução Francesa aparece na obra
hegeliana. Análise que tem de levar em conta o conhecido entusiasmo que levou o jovem Hegel
seminarista em Tübingen, juntamente com Schelling e Holderling, a abraçar a revolução como
marco decisivo e fundamental dos novos tempos do mundo, em que o princípio de subjetividade
passa a fundamentar os modos de racionalização da sociedade em geral. A bem dizer, o princípio
de interioridade, que constitui a liberdade do Espírito, que já fora desperto na esfera do ânimo e
do sentimento por Lutero (por isso ainda inconsciente), ainda não se auto-apreendia como tal.
Torna-se sim um Si universal através da proclamação, pelos franceses, da universalidade de tais
princípios válidos como protocolo geral de racionalização para todas as esferas da vida social e
não mais como interioridade tão somente. Diz Hegel que “Lutero conquistou a liberdade
espíritual e a concreta reconciliação, estabelecendo que aquilo que seria a eterna determinação do
homem deveria acontecer nele mesmo”. No entanto, “o conteúdo daquilo que teve que suceder no
homem e tornar viva a verdade foi aceito por Lutero, por ser algo dado, como a manifestação por
meio da religião”. Agora, com a Revolução, “o princípio fora estabelecido, ou seja, este conteúdo
está presente, pode convencer-me interiormente e atribui tudo a essa razão interior”15. Veremos
como tal proposta é fundamental para Hegel entender como a sociedade pós-revolucionária não
poderia nunca ser uma “volta” à sociedade pré-revolucionária, ainda que contasse com o advento
do império napoleônico. Pois algo novo adveio com tal evento, o conceito de liberdade como
princípio absoluto regulador dos modos de socialização experimentados na Revolução não
poderão ser renegados pela modernidade. Tal princípio deverá ser admitido por qualquer
instituição que possa vir a surgir no período pós-revolucionário.
Indubitável, portanto, a importância central que tal evento encerra na sua filosofia. Daí
uma frase tão impactante para se referir à Revolução Francesa:

nunca desde que o Sol começou a brilhar no firmamento e os planetas começaram a girar ao
seu redor, se havia percebido que a existência do homem está centrada em sua cabeça, isto é,
no pensamento, a partir do qual ele constrói o mundo real. (...) mas só agora ele percebeu que
o pensamento deve governar a realidade espiritual. Assim se deu um glorioso amanhecer.
Todos os seres vivos pensantes comemoraram esta época(...) que estremeceu o mundo como
se só agora tivesse acontecido a verdadeira reconciliação do divino com o mundo16.

15
HEGEL, G.W.F. Filosofia da História (2008), p. 362. Daqui em diante, notaremos apenas F.H. e a
página correspondente.
16
F.H., p. 366.
7
Entretanto, cabe lembrar que quando da escrita da Fenomenologia Hegel não é mais
aquele jovem entusiasta atento às promessas que advinham com o início da revolução. Ele deverá
levar em conta, na sua filosofia, a relação estabelecida entre a prometida liberdade absoluta e o
momento do terror jacobino. Relação que impossibilita a construção de qualquer realidade
política durável como veremos mais adiante. Neste sentido, a colocação de Joachim Ritter resume
o posicionamento de Hegel frente à Revolução:

Assim, a atitude de Hegel em relação à Revolução é dupla: ele adota com entusiasmo o que
com ela entrou na história e, ao mesmo tempo, ele compreende que seus problemas não
foram resolvidos, que seu resvalamento á tirania era necessário. A Revolução colocou o
problema que a época deve resolver. O fato de que ele não foi resolvido deixa a questão de
saber por que, nem a própria Revolução, nem os esforços revolucionários e a restauração nos
anos seguintes não alcançaram a estabilidade política17.

Ora, é esta ambivalência hegeliana frente ao evento da Revolução que deverá definir o
horizonte de análise do presente estudo, cabendo-nos, porém, ressaltar, desde já, a insuficiência
da mesma na formação do Espírito rumo ao Saber Absoluto, pois, se por um lado, como nos
lembra Marcos Müller, tal figura aparece como a “última e a mais alta determinação do espírito
estranhado de si”, ou seja, figura na qual o espírito adquire consciência da sua liberdade absoluta
através da experiência que ele faz da negatividade radical, experiência de acesso, por primeira
vez, à liberdade como seu principio fundamental, alcançando “o saber de que sua relação
essencialmente negativa a si torna-se a ‘essência de toda efetividade’, ‘puro conceito’”; mas, por
outro lado, tal evento tem, no plano lógico-fenomenológico, sua superação na figura do “Espírito
Certo de Si” (da consciência moral), ou seja, tal figura será a última etapa do estranhamento de si
da consciência, antecedendo “imediatamente o refluxo e o retorno completo da efetividade
mundana na interioridade da consciência moral”18, como se, no fundo, aquilo que não encontrara
lugar no plano político da revolução tivesse que encontrar seu lugar na autodeterminação da
subjetividade como fundamentação dos julgamentos morais tal como proposto na figura da
Moralidade. Vejamos, portanto, como se desenvolve a liberdade absoluta no interior do
movimento espiritual e seu papel central positivo/negativo na Revolução Francesa.
Como vimos, da disputa, no alvorecer do Iluminismo, entre a pura intelecção e a fé,
resultou a utilidade como figura de um Eu universal. Ela é fruto de uma consciência que se define
17
RITTER, 1997. Hegel et la révolution française, p. 25.
18 MÜLLER, Marcos. A liberdade absoluta entre a crítica à representação e o terror, 2008, p. 75-76.
8
como sujeito do mundo, a consciência de si, mas que ainda se insere no âmbito do entendimento,
pois ainda se relaciona com o objeto na forma da utilidade (recordando que o útil se define como
um ser-para-outro). Isto é, a consciência do período do iluminismo tem no predicado do “útil”
objetual o seu conceito e, com isso, ela transferiu do “além” (Deus) para o “aquém” a legitimação
de toda realidade existente, portanto, ela ainda opera sob a dimensão da alienação.
No entanto, tal universalidade, que se vincula à consciência-de-si, é o Eu universal, a
identidade do Eu que se determina como puro conceito. Uma subjetividade que se universaliza
quando se dá conta da possibilidade de objetivação do mundo ao seu redor e tem de, ao mesmo
tempo, revogar a “forma da objetividade do útil”, uma vez que ela toma consciência que a
“utilidade é ainda predicado do objeto; não é ela mesma sujeito; ou seja, não é sua efetividade
única e imediata”. Esta passagem no movimento lógico é que abre o campo para a ação da
consciência numa dimensão sócio-política, ou conforme Hegel: “dessa revolução interior surge
agora a revolução efetiva na efetividade, a nova figura da consciência, a liberdade absoluta”19.
Este é, de fato, o momento em que ocorre, a reconciliação dos dois mundos e “o céu
transportadora à terra”. Com isso, esta consciência suprime ou revoga também a sua alienação20.
Temos então que a liberdade absoluta aparece graças a uma “revogação” (Rücknhame) da
forma objetiva do útil. Tal movimento de negatividade do saber constituído até então, e que
suspende essa aparente objetividade do útil, se faz presente justamente porque a consciência, que
havia encontrado seu próprio conceito no útil, se dá conta de que, na verdade, ainda separava o
objeto dela própria, ou se se quiser o em-si do em-si-e-para-si. Ora, ao afirmar-se como algo
distinto dele (objeto) ou relacionar-se com ele apenas pela apropriação, ela mantém a cisão entre
si mesma e suas realizações na sociedade e na história. Por isso, como nos lembra Müller, tal
negatividade (que já atuava na inteligência pura) é designada como Umwälzung, palavra alemã
para revolução que significa o “reviramento” da realidade efetiva21.
Dito em outros termos, a consciência da inteligência pura esclarecida se dá conta de que o
ser-para-si, “ao qual o objeto útil na sua pura alteridade funcional remete”, não é mais apenas
uma autoconsciência singular, tal como fora apresentada nos momentos anteriores em que se

19
F.E., § 582.
20
Bourgeois ao comentar tal percurso lógico, não traça o momento da revogação da figura do útil tal como
apresentamos acima. Antes, ele afirma somente que esta passagem lógica é fruto da “encarnação do Mais-
Além, simples ideal no pensamento do útil”. BOURGEOIS, Bernard, O pensamento político de Hegel, p.
83-84.
21
MÜLLER, ibidem, p. 82.
9
divisava os seus momentos lógicos do em-si e do para-outro, mas uma “autoconsciência
universal, que ‘abarca’ (übergreift) estes momentos dentro de si, ela torna-se, agora, saber do Si
universal”22. Isso porque este Si, sendo ele ser-para-si ao qual retorna o ser para Outro, não é um
Si diverso do Eu, isto é, ele não é um Si que se relaciona a um outro Si oposto que lhe é objeto;
não pode ser um Si singular. Agora, a consciência é “puro conceito” e, portanto Si universal que
abarca os momentos dentro de si. A consciência desta intelecção tornou-se o “contemplar-se do
Si no Si” do espírito, um “absoluto ver-se a si mesmo em dobro”. Ver-se a si mesma duplicada
significa que, por um lado, uma vez tornada “conceito puro”, tal consciência passa a
compreender-se conceitualmente como tal, pois a própria efetividade do objeto é, ela mesma, o
conceito; por outro lado, este seu conceito que-sabe (wissender Begriff) sabe que é a “essência de
toda efetividade”23. Portanto, o sujeito que surge neste momento é o Sujeito universal. Sujeito
que é, antes de tudo, a identidade de um Eu que se determina como puro conceito e pode, por isso
mesmo, contemplar-se. Além disso, como Si, não deixa de ser subjetividade. Mas subjetividade
que agora se universaliza no conceito e se dá conta da possibilidade de objetivação de tudo ao seu
redor (“essência de toda efetividade”).
Retomando o movimento da gênese fenomenológica da liberdade absoluta até aqui, temos
que a mesma pode ser vista como oriunda da efetivação daquela revolução interna apresentada na
intelecção esclarecida24. A consciência dessa liberdade sabe que o mundo da utilidade universal,
momento lógico que lhe é anterior, é tão somente a duplicação, no objeto, do saber que o espírito
alcançou de si no puro conceito, na pura intelecção. Assim, a substancialidade das determinações
do mundo da cultura e do mundo da fé, até então opostas, não têm mais efetividade para o saber
conceitual, mas subsistem apenas por suas relações de utilidade para a intelecção esclarecida.
Logo, os dois mundos estão presentes como “aparência vazia de objetividade”, o que denota o
processo de exaustão da efetividade destes “membros da organização do mundo efetivo e do

22
MÜLLER, ibidem, p. 82.
23
F.E., § 583: “No entanto o ser-para-si ao qual retorna o ser para Outro - o Si - não é um Si diverso do
Eu, um Si próprio daquilo que se chama objeto; porque a consciência, como pura inteligência, não é um Si
singular ao qual o objeto igualmente se contraponha como Si próprio; senão que é o puro conceito, - o
contemplar-se do Si no Si, o absoluto ver-se a si mesmo em dobro. A certeza de si é o sujeito universal, e
seu conceito que-sabe é a essência de toda a efetividade”.
24
F.H., p. 360: “Na religião protestante, o princípio de interioridade surgiu com a libertação religiosa e a
satisfação de si mesma. (…) Também na Igreja Católica, a casuística jesuíta introduziu infinitas pesquisas
(…) acerca da fonte interior da vontade e dos motivos da mesma. Nessa dialética (...) nada restou a não ser
a pura atividade da própria interioridade, o abstrato do espírito, ou seja, o pensamento. O pensamento
considera tudo em forma de universalidade e, por isso, é a atividade e produção do universal”.
10
mundo da fé” perante o utilitarismo universal do iluminismo, pois para ele, de fato, as
determinações destes mundos nada mais “têm de próprio para si; é antes pura metafísica”25.
Como resultado, Hyppolite observa que “a monarquia absoluta já não é admissível como
monarquia do direito divino; não tem mais sentido senão enquanto é útil. A substância
social – para empregar a terminologia de Hegel – ainda é aí, mas seu ser-aí não é um ser em si”26.
Prepara-se já a efetivação da liberdade absoluta como negatividade do Si universal constituído,
na qual subjaz a eliminação de toda ordem e diferenciação, seja ela intelectual, política ou
institucional, (prenúncio, portanto, da Revolução Francesa e do Terror). Mas, justamente, se a
negatividade do Si universal exige, para sua efetivação, o aniquilamento de toda ordem e
diferença, logo, o agir da liberdade absoluta só pode ser um agir negativo.
Agir negativo tornado possível, pois, neste momento da consciência-de-si, que é mais
precisamente a consciência que o Espírito alcança de si mesmo, o “Espírito está presente como
liberdade absoluta”. A consciência-de-si sabe que sua negatividade universal, enquanto “certeza
de si mesma”, “é a essência de todas as 'massas' espirituais, quer do mundo real, quer do supra-
sensível”27, isto significa que ela sabe que sua negatividade é a essência de todas diferenças e
determinações institucionais do mundo objetivo. A consciência desta liberdade absoluta sabe que
“toda realidade é só espiritual” e, mais precisamente, que “o mundo é simplesmente sua vontade,
e essa é vontade universal”28. Chegamos, aqui, ao primeiro ponto chave desta pesquisa, pois
quando Hegel relaciona a liberdade absoluta com a vontade universal, ele remete toda
problemática ao conceito rousseauniano de “vontade geral” (volonté générale).

3.3. A vontade geral em Rousseau – um breve resumo

Nesta altura do trabalho, cabe-nos uma dupla tarefa: apresentar, por um lado, algumas
intepretações, identificadas pela pesquisa, da polêmica apresentação hegeliana do conceito de
vontade universal, inegavelmente como proveniente de Rousseau, na Fenomenologia. Pois, como
veremos, este conceito é chave para o entendimento da interpretação hegeliana da revolução, e
seu desencadeamento no Terror; por outro lado, a partir de uma chave interpretativa assentada,
entender como a Revolução Francesa, segundo a filosofia hegeliana, se apropria do discurso

25
F.E., § 583.
26
HYPPOLITE, Genese e estrutura da fenomenologia do espírito, p. 483.
27
F.E., § 584.
28
F.E., § 584.
11
rousseauniano, sobretudo do seu conceito de “vontade geral”, estabelecendo um paralelo da
influência do pensamento de Rousseau na filosofia hegeliana a partir de outras obras que não a
Fenomenologia.
Na primeira tarefa, gostaríamos de sustentar, aqui, que a apresentação da vontade geral
por Hegel não é uma simples crítica do conceito tal como desenvolvido por Rousseau, sobretudo
no seu Contrato Social. A questão tem alguns vieses a serem identificados. De modo mais amplo,
nossa pesquisa identificou 4 interpretações básicas sobre esta questão.
A primeira interpretação assenta-se numa suposta crítica que Hegel faria ao
contratualismo rousseauista, onde a liberdade se relaciona muito mais com o “viver de acordo
com as leis feitas por si mesmo” tal como elaborado Rousseau. Nesta linha seguem, por exemplo,
Wokler (1998), Suter (1971), Franco (1999, pp. 111-14). Logo, a crítica se daria pelo fato de que
os indivíduos estariam, todavia, comprometidos com seus próprios interesses ainda que sob a
égide de uma vontade universal ou geral. O resultado é a guerra de todos contra todos. Ora,
analisemos, como contraponto, uma passagem de Rousseau presente no livro II do seu Contrato
Social, na qual afirma:

A primeira e a mais importante consequência dos princípios acima estabelecidos está em que
somente a vontade geral pode dirigir as forças do Estado, segundo o fim de sua instituição,
isto é, o bem comum; pois, se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o
estabelecimento das sociedades civis, foi o acordo entre esses mesmos interesses que a tornou
possível. É o que de comum nestes diferentes interesses que forma o laço social; e se não
houvesse nenhum ponto no qual todos os interesses estivessem de acordo, nenhuma
sociedade poderia existir29.

Vemos aqui a distinção clara entre duas figuras: a vontade particular e a vontade geral.
De fato, mais adiante, afirma o filósofo francês que a vontade particular, por sua natureza, tende
mesmo às preferencias e interesses particulares, ao passo que a vontade geral tende ao comum, à
igualdade. Por isso mesmo, “é unicamente sobre este interesse comum que a sociedade deve ser
governada”30. Com base nesta distinção, Rousseau vai mais além e realiza uma segunda
diferenciação, agora em âmbito mais geral, desta vez entre a vontade de todos e a vontade geral.
Diz-nos ele que “há habitualmente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral;
essa se refere apenas ao interesse comum; a outra se refere ao interesse privado, e não é senão a

29
ROUSSEAU, ibidem, livro II, p. 249-50.
30
ROUSSEAU, ibidem, livro II, p. 250.
12
soma das vontades particulares”31. Podemos notar, aqui, um claro distanciamento de Rousseau da
tradição liberal-individualista, que operaria, em última instância, com a noção de vontade de
todos e não de vontade geral. Ora, perante tais esclarecimentos, os defensores de Rousseau
lembrariam Hegel que o filósofo francês já havia feito a distinção entre a vontade geral e a
vontade de todos, sendo esta última uma simples soma de vontades subjetivas atomizadas.
Portanto, a crítica elaborada nesta primeira linha interpretativa não se justificaria.
Uma segunda linha interpretativa alega que a objeção de Hegel a Rousseau se localizaria
na dificuldade dos indivíduos em reivindicar a legitimidade de suas ações políticas como vontade
geral, ou seja, o problema estaria num déficit conceitual em Rousseau que não teria levado em
conta as formas resolutivas para a legitimidade dos indivíduos poderem expressar a vontade geral
sem caírem numa contradição com a vontade particular. Ou seja, não estaria claro como, do
ponto de vista individual, uma autoridade pode reclamar, dentro do Estado, representação da
vontade geral e operar como força política legítima, uma vez que o próprio indivíduo poderia
acusá-la de agir sobre base individual e resistir a tal força. Tal é a interpretação de Hinchman
(Hegel’s Critique of the Enlightenment,1984). Ora, no livro III e IV do Contrato Rousseau já
apresenta alguns modelos de governo que estariam em plena consonância com seu conceito de
vontade geral (achar contraponto em Rousseau).

Há uma terceira linha interpretativa, presente em Robert Stern, Hegel and the
Phenomenology of Spirit, para quem a discussão não passa tanto por Rousseau, ainda que o seu
conceito seja nomeadamente mencionado na Fenomenologia. Assim, o conceito de liberdade
absoluta estaria relacionado com a noção de determinação e indeterminação da vontade. O tipo de
liberdade presente na revolução francesa estaria baseada numa forma de vontade da consciência
em que qualquer particular se mostraria como limitação da verdadeira liberdade, esta somente
satisfeita na universalidade. Este sujeito universal não deixaria lugar para nenhuma
particularidade, desembocando, assim, nas formas do Terror revolucionário. Tudo isso sem
necessariamente haver crítica ou elogio a alguma noção rousseauista32.

De fato, tal interpretação parece bastante pertinente, mas não podemos, de resto,
abandonar completamente a influencia de Rousseau no pensamento de Hegel. Por isso, uma

31
ROUSSEAU, ibidem, livro II, p. 252.
32
STERN, Robert. Routledge philosophy guidebook to Hegel and the Phenomenology of Spirit, p. 161-8.
13
quarta via interpretativa nos revela que a crítica hegeliana à Rousseau se daria porque este último
entenderia a vontade geral como um instrumento de fácil acesso onde cada indivíduo pode se
manifestar em nome de um bem universal. De fato, agora somos remetidos diretamente ao
problema conceitual de vontade geral, pois, aqui, a objeção hegeliana a Rousseau se refere à
possibilidade de cada indivíduo transcender as distorções do seu desejo, o seu interesse pessoal
egoísta bem como a sua posição social num todo em prol de uma doutrina da liberdade onde cada
um pode falar em nome da vontade geral e, assim, agir em nome de todos, de modo que, uma vez
ocorrendo o desentendimento entre os indivíduos, qualquer harmonização se torna impossível,
pois ninguém estaria preparado para aceitar o fato de estar errado à respeito da vontade geral. Tal
é a interpretação, por exemplo, de Shklar, para quem o problema da revolução francesa aos olhos
de Hegel seria que:

Cada indivíduo não apenas decide por si mesmo o que é útil para si, mas também o que é útil
em geral. Cada um se considerará como uma expressão perfeita da vontade geral, a única que
é válida, mas que não pode ser encontrada, exceto na união perfeita de todas as vontades. Isso
impede o compromisso e a submissão. De fato, os dois parecem idênticos agora. Pois, cada
um fala por todos, não só por si mesmo. Aceitar a decisão de outra pessoa é, portanto, trair a
vontade geral, da qual a pessoa é uma parte inseparável e certamente perfeita. A menos que
todos concordem, não há vontade geral; pois cada um considera sua vontade como a vontade
geral correta. Uma vez que o acordo é impossível, dada a multiplicidade de vontades, só a
anarquia é concebível. Qualquer outra coisa é uma limitação da vontade de alguém33.

Por isso, a autora pode concluir relacionando os dois autores de forma enfática. Segundo
ela, “o que resta é uma anarquia das vontades, que Hegel imputou aos ensinamentos de
Rousseau”34.

A interpretação por nós adotada vai num sentido parecido a esta ainda que tenhamos de
levar em conta a discussão de uma subjetividade moderna que tende ao universalismo tal como
apresentado pela terceira interpretação. Justificamos tal escolha metodológica pois i) Nas Lições
sobre a Filosofia da História, Hegel afirma sobre a relação entre a revolução e a filosofia que
“Diz-se que a Revolução Francesa saiu da filosofia que se denominou a filosofia sabedoria
universal, pois ela não é somente a verdade em si e para si, como pura essencialidade, mas
também a verdade na medida em que ela se torna viva em sua mundanidade”. Por isso, não se

33
SHKLAR, J. N. Freedom and Independence: A Study of the Political Ideas of Hegel’s ‘Phenomenology
of Mind’, p. 175-6.
34
Ibid., p. 176.
14
pode contestar que a “Revolução recebeu da filosofia seu estímulo inicial”, mas que, no entanto,
“esta filosofia é somente pensamento abstrato, e não a compreensão concreta da verdade
absoluta, o que constitui uma imensa diferença”35. Admitamos então que a Revolução parte da
Filosofia, mas de uma filosofia abstrata, que toma por base da sua ação política uma
universalidade abstrata da vontade formal; e ii) não podemos desconsiderar as referências,
explicitas ou não, feitas a Rousseau na Filosofia do Direito, como nos conhecidos parágrafos 5,
29 e 258, por exemplo. Seguimos portanto uma linha que vai do Bourgeois à Charles Taylor,
Judith Shklar por exemplo.

Todavia, cabe-nos observar que tal linha interpretativa poderia ser, igualmente às outras,
facilmente desmobilizada, pois, se a afirmássemos tal qual apresentada acima estaríamos
asseverando que Hegel não teria levado em conta o livro II, capítulo III do Contrato onde
Rousseau admite a falibilidade da visão da vontade geral pelo povo e cada indivíduo, enquanto
constituidor do povo, passível de ser enganado (achar citação). Neste mesmo sentido, no livro IV,
capítulo 2, o filósofo francês nos lembra que quando me encontro em minoria numa decisão por
contagem de votos significa que estive equivocado quanto aquilo que eu imaginava ser a vontade
geral, devendo me conformar à decisão democrática e, assim, à “verdadeira” vontade geral,
tornando-me livre (achar citação). Portanto, a interpretação erraria ao alegar que a doutrina da
vontade geral de Rousseau implica dizer que os indivíduos deveriam ver a si mesmos como
habilitados a se pronunciarem em nome de todos e, mais ainda, em condenar Rousseau pela
“anarquia das vontades” da revolução francesa.

À vista disso, nossa interpretação traz uma ligeira variação em relação às acima
mencionadas, pois entendemos que há um problema central a ser considerado, qual seja, a
dissociação entre o conceito rousseauniano propriamente dito e o seu uso pelos jacobinos.
Problema que o próprio Hegel caracterizara como “mal-entendido a respeito da vontade geral”36
quando se refere a Rousseau na sua História da Filosofia e que Marcos Müller interpreta como
“mal-entendido jacobino”. Como nos lembra este último, tanto o liberalismo pós-revolucionário
quanto a experiência jacobina, ainda que com conclusões opostas a partir deste mal-entendido,
compreenderam a universalidade da vontade como “uma totalidade aditiva (Allheit), composta de
35
F.H., p. 365
36
Missverständnis, G.W.F. HEGEL, Vorlesungenüber die Geschichte der Philosophie, in: Werke,
Suhrkamp, Frankfurt, 1970, v. 20, p. 307 apud MÜLLER, Ibidem, 2008, p. 83.
15
vontades singulares”. Assim, são vontades que na “sua singularidade particular permanecem
absolutas, tanto no ponto de partida de construção contratual, quanto na existência de legislar ou
governar diretamente enquanto singulares”37. Trata-se de uma vontade universal que “deve ser
empiricamente universal”, pois se encontra ainda fundada sobre o pressuposto atomístico do
modelo contratual clássico – segundo este modelo, diz-nos Hegel, “os indivíduos devem, como
tal, governar ou, pelo menos, participar do governo”38.

Traçadas as matrizes interpretativas e escolhida a nossa própria, com sua variação


clarificada, lembremos que esta vontade universal não diz respeito a uma vontade particularizada
na forma de uma vontade subjetiva ilimitada, mas sim a um agir da liberdade absoluta enquanto
“substância indivisa”39 do todo. Por essa razão, Hegel nos lembra que a autodeterminação da
vontade e do agir através da liberdade absoluta não nos leva à entificação do particularismo,
como advertido acima, mas sim à vontade geral, ao agir que busca o universal:

Com efeito, a vontade é em si a consciência da personalidade, ou de um 'Cada qual', e deve


ser como esta vontade efetiva autêntica, como essência consciente-de-si, de toda e cada uma
personalidade, de modo que cada uma sempre indivisamente faça tudo; e o que surge como o
agir do todo é o agir imediato e consciente de um 'cada qual'40.

Como se sabe, na sua chave histórica, a reconciliação entre o que possui validade
universal e aquilo que se conjuga no particular, tal como apresentado no conceito de vontade
universal, foi amplamente explorado pelos revolucionários franceses em diversas situações.
Citemos, por exemplo, um discurso de Saint-Just, provavelmente de Fevereiro de 1793, anterior,
portanto, à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de junho 1793. Nela, o pensador
francês declara que “A liberdade é o penhor da felicidade pública e qualquer coisa que você faça,
o povo não é, de modo algum, livre se não for feliz. (...) Tudo o que não tende à felicidade
pública é tirania”41. Frase esta que remete ao primeiro artigo da Declaração de Junho, onde se

37
MÜLLER, Ibidem, p. 83-4.
38
F.H., p. 369.
39
F.E., § 585.
40
F.E., § 584.
41
“La liberté est le gage de la félicité publique et quoique vous fassiez le peuple n'est point libre s'il n'est
pas heureux. Il ne será point heureux si les dilapidations continuent, multiplient le signe et augmentent le
prix des denrées. Tout ce qui ne tend point à la félicité publique est tyrannie”. In VINOT, Bernard. Un
inédit de Saint-Just : le discours de février 1793, p. 6 (tradução nossa).
16
reitera que “O objetivo da sociedade é a felicidade geral”42. De fato, a figura fenomenológica da
liberdade absoluta como vontade geral ganha tal potência na Revolução Francesa que pode Hegel
afirmar sobre a mesma: “Essa substância indivisa da liberdade absoluta se eleva ao trono do
mundo sem que poder algum lhe possa opor resistência”43. Isso porque a vontade universal
representa já uma ultrapassagem da cisão entre a vontade singular e o entendimento, própria da
querela entre empiristas e racionalistas. Ainda nessa lógica, Kojeve explica que, agora, “o homem
já não deve conformar-se ao objeto (o que era o utilitarismo propriamente dito), mas destruí-lo,
transformá-lo”44, corroborando, assim, o agir negativo da liberdade absoluta. O seu elemento de
universalidade transforma-a em algo pensado, e por isso mesmo, algo objetivamente racional.
Pode-se afirmar mesmo que a sua autoalienação desapareceu.
Ocorre, de certa maneira, uma “redução” da vontade geral à vontade de todos singulares.
Marcos Müller denomina tal movimento de “identidade imediata da ‘vontade realmente
universal’ com a ‘vontade de todos os singulares enquanto tais’”. Isso porque a vontade geral é
interpretada, na sua estilização pela Revolução, como vontade da maioria, à qual deve se sujeitar
a vontade da minoria. Entretanto, como a vontade só pode ser efetiva enquanto vontade singular e
consciente de sua singularidade, a vontade universal passa a ser, segundo tal perspectiva, a
vontade de todos os singulares enquanto tais. Como nos elucida Hegel, a vontade universal “não
é o pensamento vazio da vontade que se põe no assentimento tácito ou representado, mas é a
vontade realmente universal, vontade de todos os Singulares enquanto tais”45. Este é o ponto
nevrálgico do referido mal-entendido jacobino, para ficarmos nos termos de Müller.
Charles Taylor resume as condições de uma sociedade efetivada com base na liberdade na
vontade universal. Segundo ele, tal sociedade “tem de ser, inteiramente, uma criação de seus
membros”. Ela deve se constituir de tal modo que, em primeiro lugar, “tudo o que há nela seja
fruto da vontade e da decisão humanas”. Em segundo lugar, essas decisões “têm de ser tomadas
com a real participação de todos”. Ele designa tal condição de participação universal como
“aquela na qual todos têm voz na decisão total”. Essa sociedade, que traz a liberdade absoluta

42
“Le but de la société est le bonheur commun” (tradução nossa). Declaration des Droits de l'homme et du
Citoyen. Disponível em: http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-
constitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-du-24-juin-1793.5084.html . Acesso em: 19 de
mar. 2018.
43
F.E., § 585.
44
KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel, p. 137.
45
F.E., § 584.
17
como vontade universal no seu bojo, diferiria de uma sociedade na qual a sua organização
permitisse que certos grupos pudessem distribuir funções a subgrupos, estes a outros e assim por
diante, sem a necessidade de decisão e participação universal. Por isso, uma terceira condição
desta sociedade seria a “unanimidade de nossa vontade real”, posto que, caso existam diferenças
de visões inconciliáveis nas decisões, de modo que alguns são vencidos na votação e obrigados a
se submeter a outros, a liberdade absoluta perderia espaço para a coação da minoria46.
No fundo, tudo se passa como se o surgimento da figura fenomenologia da liberdade
absoluta efetivada resultasse de uma “má-leitura” da obra de Rousseau por parte dos jacobinos,
pois, como já se mostrou aqui, a diferença entre vontade geral e vontade de todos é bastante clara
no livro II, Capítulo III do seu Contrato Social. Mesmo assim, O Missverständnis parece advir de
passagens específicas, em que Rousseau daria margens a tais interpretações. Assim é o caso
quando, ainda no livro I da mesma obra, o filósofo trata do pacto social. Esse pacto surge da
intenção de conservação daquele estado dito natural em que os homens se encontravam quando
em liberdade. Como há obstáculos para a manutenção de tal estado, os indivíduos se associam
através de um pacto. Logo, a questão central que perpassa toda a obra é formulada da seguinte
maneira: “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a
pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça
portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente”. Este é o problema
fundamental cuja solução é dada pelo Do Contrato Social”47.
Desta forma, a primeira e principal cláusula deste Contrato é a alienação, por parte de
cada associado, de todos os seus direitos em favor da comunidade, da vontade geral, recebendo,
em troca, “cada membro como parte indivisível do todo”. Há uma relação recíproca de entrega de
cada particular ao todo e recebimento, em troca, deste mesmo todo, formado sobre a alienação
total de cada particular. Em outras palavras: “cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e,
como não existe um associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido,
ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem”. Desta
formulação, segue-se que o contrato proposto por Rousseau não se baseia na pessoa particular
contratante, mas na pessoa pública que, através da associação, produz o corpo moral e político,

46
TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna, p. 132-35.
47
Rousseau, ibidem, livro I, p. 243.
18
“composto de tantos membros quanto a assembleia tem de vozes, o qual recebe desse mesmo ato
sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade”48.
Em resumo, o ato de associação produz, ao mesmo tempo, a pessoa pública ou cidadão e
o corpo político. Do ato de associação, o indivíduo, que ganha agora a condição de cidadão,
adquire a “qualidade de participantes na autoridade soberana”, de modo que, bem entendido, ele
supera tanto a limitação de suas tarefas na divisão social do trabalho quanto os seus “interesses
egoístas”, passando a agir “como parte indivisível do todo”49, algo bastante próximo do que
propõe Shklar, como visto acima. É a unlitaralidade deste sujeito, pelo lado jacobino, que parece
causar o mal-entendido. Assim, a partir deste breve esclarecimento podemos compreender a
reconstrução hegeliana da leitura jacobina de Rousseau, concebida, principalmente, sobre a figura
da liberdade absoluta, “de modo que cada uma sempre indivisamente faça tudo; e o que surge
como o agir do todo é o agir imediato e consciente de um cada qual”50. De fato, ainda que
Rousseau tenha diferenciado vontade de todos da vontade geral, a fonte geral desta última ainda
é, em última instancia, o sujeito particular, mesmo que no papel de cidadão (citoyen) que forma a
comunidade. Daí que outras obras hegelianas deverão se encarregar de melhor apresentar os
problemas da filosofia rousseauista, sobretudo a Filosofia do Direito.
Desta maneira, a efetivação da liberdade absoluta possui dois pressupostos: o primeiro é a
identidade, presente no mal-entendido, da vontade universal com a vontade de todos os
particulares enquanto tais; o segundo pressuposto remete ao agir do indivíduo singular que deverá
visar, de igual modo, o agir do todo universal, uma vez consciente de si como parte indivisível
deste todo.
Mas ao reconciliar o agir do indivíduo singular com o “todo universal”, a liberdade
absoluta da consciência-de-si passa a dissolver toda organização social com suas divisões, todas
as massas e estados, posto que, na verdade, é na consciência que estes poderes espirituais, ou
massas espirituais51, têm sua substância - de fato, já está pressuposto, como vimos acima na

48
Rousseau, ibidem, livro I, p. 244.
49
Rousseau, ibidem, livro I, p. 245.
50
F.E., § 584.
51
Cabe-nos agora realizar um breve excurso sobre a noção de massas tal como exposto no parágrafo 585.
Segundo Marcos Müller (2008, p. 85), a “massa” ou “massas” ou ainda as “massas espirituais”, designam
os estamentos que estruturam a sociedade civil e, mais especificamente, as corporações e associações
cooperativas através das quais se organizam os diversos interesses industriais e comerciais. São a
organização socioeconômica por meio da qual se organizam tanto a divisão do trabalho como também a
19
filosofia de Rousseau, a superação dos limites do indivíduo das tarefas na divisão social do
trabalho bem como dos interesses egoístas -. Portanto, a partir do momento que a consciência
singular passou a conceber tais objetos (divisões, massas e estados) “de tal modo que ele (objeto)
não tem outra essência senão que a própria consciência-de-si, ou seja, (enquanto compreende)
que o objeto é absolutamente o conceito” - ou seja, é ela mesma que realiza o universal -, todo o
sistema que se organiza a partir da repartição das massas ruiu. O que tornava o conceito em
objeto existente era sua diferenciação em “massas separadas subsistentes”52, mas quando o objeto
se torna conceito, como é o caso aqui, não há mais nada de subsistente, pois, a “negatividade
penetrou todos os seus momentos”53. Conforme o enunciado especulativo dessa passagem temos:
“ele (conceito) entra na existência de modo que cada consciência singular se eleva da esfera à
qual era alocada, não encontra mais nessa 'massa' particular sua essência e sua obra; ao contrário,
compreende seu Si como o conceito da vontade, e todas as 'massas' como essência dessa
vontade”54. Portanto o agir reconciliado da consciência com o universal só pode efetivar-se num
trabalho que é o trabalho total, ou seja, para o todo.
Taylor também nos ajuda a compreender tal passagem ao afirmar que, na dissolução de
toda a organização social com suas divisões, percebemos como o Estado fundado na vontade
geral não pode conter nada senão estruturas que resultem elas mesmas da decisão produzida pela
vontade geral. “Tudo o mais, contudo – a forma de governo, quem preencherá as funções no
governo, os direitos de propriedade -, tudo é decidido. Não há sequer direitos individuais
arraigados, questões consideradas fora da esfera do governo, como havia em Locke”. Os homens
devem, de fato, reformular as coisas segundo uma liberdade irrestrita e incondicionada, “que
Hegel chama de liberdade absoluta”55. Por outro lado, poder-se-ia interpretar tal momento como
o surgimento, na modernidade, da necessidade de legitimação das suas esferas organizacionais

produção social e a satisfação do sistema de carências presentes sociedade civil em “sistemas particulares”
em que “se repartem os indivíduos” (F.D. § 201). Tal proposição será central, como veremos, para
fundamentar a crítica de Hegel ao mal-entendido da revolução e atacar a inviabilidade da mesma.
52
F.E., § 585.
53
F.E., § 585.
54
F.E., § 585.
55
TAYLOR, ibidem, p. 131-134. Na mesma linha, Kojève (2014, p. 137) lembra que “a realidade do
mundo dado (pré-revolucionário) despareceu. O mundo cristão-burguês real, assim como a ideologia
cristã-burguesa, já não existem – fora das consciências que justificam (e lamentam) ou condenam esse
mundo e sua ideologia desaparecidos. Já não há comunidade (...) O Estado só existe pela ideia dos
particulares, por seus projetos de uma Constituição”.
20
segundo o critério da razão, não cabendo mais a naturalização, seja divina ou não, de nenhuma
instituição por si mesma.
Dessa forma, a efetivação da liberdade absoluta como vontade universal, cuja
negatividade penetrou todos os momentos do âmbito social, tornou-se o extinguir (tilgen) de
todos os estados56, as essências espirituais por onde o todo se articula, do Antigo Regime.
Através desta liberdade absoluta é que a consciência supera (aufheben) seus limites, pois ela
também fazia parte de um destes estados e ali se realizava e consumava seu agir57. Então temos
uma superação em dois momentos. O primeiro sendo a superação de sua própria inserção nas
corporações e hierarquias estamentais, e o segundo sendo toda limitação do agir pelo conteúdo
particular de tarefas ainda limitadas na vida civil, superação essa posta pelo mal-entendido
jacobino de da vontade geral tal como formulada por Rousseau.

3.4.A vontade geral entendida por Hegel num âmbito mais amplo

A fim de entender de modo mais amplo a crítica e o posicionamento de Hegel perante a


noção rousseuaniana de vontade geral passemos, brevemente, à análise de outras obras do
filósofo alemão. Pois uma das chaves para o entendimento de sua filosofia política é a sua relação
com a problemática da vontade geral tal como formulada por Rousseau.
Como dissemos, o jovem Hegel do Seminário de Tübingen fora um entusiasta da
Revolução Francesa58 e grande admirador de Rousseau, especialmente na crítica da sociedade
burguesa-cristã de seu tempo, cujo predomínio do âmbito privado sobre o publico levara à
decadência da “bela eticidade” vivida na Antiguidade clássica, principalmente grega. Assim, no

56
Outro excurso faz-se necessário para definir a noção de estados como apresentado no parágrafo 585. De
acordo com a nota 5 da tradução elaborada por Carlos Morujão et al (2011, p. 101), o termo “estado” é
empregado por Hegel em três sentidos diferentes. Num primeiro sentido, o termo se refere aos “estados”
tal como designados no Antigo Regime, isto é, na separação entre clero, nobreza e povo; num segundo
sentido, o termo se refere ao sentido moderno de classes sociais, que começavam a se apresentar nos
primórdios de revolução industrial de então; por último, “estados” seriam os estados provinciais (ou
parlamentos regionais) do Antigo Regime.
57
Sobre este ponto, divergimos, em parte, da interpretação dada por Kojève (2014, p. 137) quando diz:
“aqui o Antigo Regime já está morto. A propaganda da Aufklärung o matou (...) O Antigo Regime morre
de doença, por contágio e não por assassinato. Esta doença é a propaganda da Aufklärung (…) é o mundo
da liberdade absoluta”. No entanto, nos parece acertada sua leitura que segue: “o que há agora? Já não há
conformismo, visto que não mais nada a se conformar (...) há libertação ao dado que já não existe, mas
ainda não há criação de um mundo novo real. O homem está no vazio total: é a liberdade absoluta”.
58
Ver aeste respeito, LUKÁCS, Georg: The young Hegel: studies in the relations between dialectics and
economics. London: Merlin Press, 1975.
21
período de Berna (1793-1796), ele considera a retomada do modelo político grego fundado numa
comunidade humana solidária projetada no domínio do público sobre o privado 59, onde a
existência em sua totalidade poderia se desenvolver novamente – consideremos que a datação dos
escritos ocorre simultaneamente com os fatos da Revolução Francesa e as possibilidades abertas
pela mesma -, bastante próximo à Rousseau, e, paralelamente, a refundação de uma religião
menos mecânica do que o catolicismo, que mobilizasse tanto a emoção quanto a razão dos povos
e, portanto, que pudesse caminhar justamente com a liberdade dos homens. Daí a sua apreciação
da vida de Cristo como fundador de um princípio superior à simples obediência às leis, à simples
religião positiva60. Entretanto, já no período de Iena (1801-1807) Hegel se dá conta de que no
mundo moderno a esfera da individualidade havia se consolidado de tal maneira que a proposta
de retorno ao modo de organização da pólis greco-romana seria completamente inviável. Ele se
torna parte de um fenômeno mais amplo, inserido numa noção de desenvolvimento lógica que o
perpassa e supera. Uma noção mais apurada de racionalismo concreto, reconciliado com o que
existe, ganha forma no percurso de seu pensamento até a sua fase de Iena, quando escreve a
Fenomenologia do Espírito, sua, por assim dizer, primeira obra sistemática. Nesta, o método de
reconciliação da intuição empírica e do conceito está presente. O método científico do filósofo
não permite que juízos sobre o objeto investigado, realizados a partir de uma exterioridade
subjetiva que se pretende universal, possam se legitimar. Antes, o método apregoa que devemos
mergulhar no objeto que se estuda e deixar que ele mesmo se expresse na sua necessidade
interior, reconhecendo o valor empírico do mesmo, mas elevando-o ao pensamento conceitual
que o apreende sem separação dos dois polos, conforme ilustrado pela seguinte passagem do
prefácio da Fenomenologia: “o conhecimento científico requer o abandono à vida do objeto; ou,

59
A influência rousseauniana em Hegel se faz notar como quando, por exemplo, este último diz que os
cidadãos gregos e romanos “enquanto homens livres, obedeciam a leis que eles mesmos se haviam dado,
obedeciam a homens que eles mesmo haviam designado para o comando (...) não ensinavam nem
aprendiam máximas morais, senão que as exerciam por meio de ações que podiam consideram como
exclusivamente suas. Tanto no mundo público como no privado, cada um era um homem livre e vivia de
acordo com leis próprias”. La positividad de religión cristiana, in Escritos de Juventud, México, Fondo de
Cultura Económica, 1978, p. 150-151.
60
Para tal retomada, Hegel irá abordar Cristo de maneira “humana”, como aquele que prega o imperativo
categórico à humanidade, de forma que cada indivíduo é um ser humano particular e, ao mesmo tempo,
representante da humanidade inteira. Hegel aprecia, de fato, a ação libertadora da religião subjetiva que
põe os homens em movimento quando impelidos por uma vontade livre, impelidos à universalidade, tal
como ele nota na ação de Cristo, porém, condena a religião objetiva, positivada em instituições
incompatíveis com a universalidade e a liberdade, gerando somente coação. Ver a este respeito HEGEL,
G. W. F., Historia de Jesus. Madrid: Taurus Ediciones, 1981.
22
o que é o mesmo, exige que se tenha presente e se exprima a necessidade interior do objeto.
Desse modo, indo a fundo em seu objeto, [o conhecimento científico] esquece aquela vista geral
que é apenas a reflexão do saber sobre si mesmo a partir do conteúdo” 61.
Sendo assim, Hegel dá-se conta, ao longo do tempo, de que na verdade é a partir do jogo
livre de tais particulares que o mundo moderno desenvolve a universalidade, é dizer, a partir da
noção de liberdade individual. Por conseguinte, o filósofo não poderá mais condenar a sociedade
civil – mundo dos interesses particulares, tal como fazia Rousseau sobretudo no seu Discurso
sobre a desigualdade62 -, mas antes, deveria compreender a sociedade civil como momento
essencial da totalidade moderna, que, por sua vez, deverá se consolidar na figura da
universalidade em-si-e-para-si (objetiva e consciente) do Estado.
Ou seja, o Hegel maduro não mais pode contrapor como excludentes o âmbito privado e
público, ou se se quer, o singular e o universal, mas deve mostrar que entre estes dois momentos
há uma mediação dialética da particularidade, presente justamente no espaço da sociedade civil
(bürgerlische Gesellschaft). Ocorre, assim, a “reconciliação com o real” avesso a qualquer
determinação de utopismo moralizante que se baseasse em um dever-ser abstrato e subjetivo. Daí
o desenvolvimento da noção central de eticidade (Sittlichketi), como o “conjunto de obrigações
segundo as quais temos de promover e sustentar uma sociedade fundada na Ideia”. São as
obrigações morais que o indivíduo tem em relação à comunidade da qual faz parte. “Tais
obrigações baseiam-se em normas e usos estabelecidos” geneticamente constituídos na história.
Assim, na eticidade “não há lacuna entre o que deve ser e o que é, entre Sollen e Sein”63, pois o
próprio homem deve fazer parte de uma sociedade para alcançar uma vida mais ampla,

61
F.E., § 53.
62
Segundo Rousseau, a principal causa da degenerescência da sociedade, ou seja, o fundamento da
desigualdade entre os homens, da ruptura da organização social e desencadeador de guerras e crimes é a
propriedade particular; e com ela toda a modalidade egoística do agir que fundamenta a relação humana
de seu tempo bem como a decadência do seu estado de natureza: “O primeiro que, ao cercar um terreno,
teve a audácia de dizer isto é meu e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro
fundador da sociedade civil". ROUSSEAU, J.-J., Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens, p. 80.
63
Além disso, Hegel distingue a noção eticidade do conceito de Moralidade (Moralität), pois com este
último ocorre justamente o oposto. Aqui tem-se a obrigação de realizar algo que não existe e o que deve
ser contrasta com o que é. Tal obrigação se impõe aos sujeitos não pelo fato de eles fazerem parte de uma
comunidade mais ampla, mas pelo fato de eles serem uma vontade racional individual. Tal noção tem
origem kantiana, mas é criticada por Hegel na medida em que Kant identifica a obrigação ética com a
Moralidade e não vai além, pois “apresenta uma noção abstrata e formal da obrigação moral”. O
cumprimento da Moralidade está, portanto, numa eticidade efetivada. TAYLOR, ibidem, p. 107-108.
23
cristalizada, em seu ápice, na figura do Estado64. Procura-se assumir, a partir de tal mediação, a
conciliação entre a liberdade individual, fundada na autonomia do sujeito e reconhecida como
inelutável na modernidade, e a reconstrução de uma ordem social fundada na prioridade do
público, ou universal, sobre o privado. Foi justamente através desta postura anti-utópica que
Hegel pode criticar e conservar a noção de vontade geral de Rousseau. Já vimos que a noção de
vontade geral se afasta da vontade de todos, apropriada pelo liberalismo, mas Hegel deverá, por
um lado, despojá-la do seu vínculo com o arbítrio subjetivo individual tal como apresentado no
“mal-entendido Jacobino”, buscando formulá-la de modo mais concreto e realista. Por outro,
deve despojá-la do formalismo de um mero dever-ser abstrato da Moralidade (ver nota 47).
Num certo sentido, pode-se compreender a totalidade da vontade enquanto liberdade
absoluta como uma tentativa de promover um renascimento da virtude e da liberdade
republicanas tal como experimentado na Antiguidade. Um agir que não estivesse mais cindido
entre o público e o privado da mesma forma como Hegel promovera na sua juventude, mas que
não aparece mais como lugar último no seu pensamento maduro. “Esforço de reavivamento da
polis antiga, o elemento no qual a existência em sua totalidade poderá se desenvolver de novo”,
com que sonhara Hegel, mas agora como momento - espécie de re-encenação da república antiga
- da consciência que busca “a reconciliação desejada do Si e o Ser”, do sujeito e da substância65.
Ora, é no parágrafo 258 da Filosofia do Direito de Hegel, que a ambiguidade do seu
posicionamento frente à Rousseau se faz mais direta e explícita, pois ali ele expõe: “teve
Rousseau o mérito de estabelecer, como fundamento do Estado, um princípio que, não só na sua
forma (como, por exemplo, o instinto social, a autoridade divina) mas também no seu conteúdo,
pertence ao pensamento, é, até, o pensamento, pois é a vontade”. No entanto, segue o filósofo
alemão: “ao conceber a vontade apenas na forma definida da vontade individual (o que mais tarde
Fichte também faz), e a vontade geral não como o racional em si e para si da vontade que resulta

64
Propriamente dito, o Estado não é a figura ápice do sistema hegeliano. Antes, ele é um grau do
desenvolvimento enciclopédico e o seu sentido somente pode ser perfeitamente compreendido pelo duplo
relacionamento dele como o que lhe precede como com o que lhe sucede, tal como apresentado pela
própria metodologia hegeliana. Assim, a figura que lhe sucede é a absolutidade, o conhecimento das artes,
religião e a própria filosofia, que, de fato, pensa todo o processo de desenvolvimento do espírito não
somente no desenvolvimento do estado, mas também na política, história, filosofia etc...Portanto, uma
figura ainda subordinada a um desenvolvimento superior do espírito que finalmente se reconhece a si
mesmo e a sua liberdade na figura do Absoluto, cujo desenvolvimento não cabe a este trabalho
(BOURGEOIS, ibidem, p. 14-16).
65
BOURGEOIS, Bernard, ibidem, p. 38-39; MÜLLER, ibidem, p. 85.
24
das vontades individuais quando conscientes - a associação dos indivíduos no Estado torna-se um
contrato, cujo fundamento é, então, a vontade arbitrária, a opinião e o consenso explicito
deles”66. Hegel reconhece em Rousseau a formulação de vontade determinada por si mesma e,
por isso, pela racionalidade, como princípio básico do Estado plenamente realizado. Entretanto,
uma vez mais a figura do mal-entendido parece se justifica, mas dessa vez a crítica se faz a um
mal-entendido próprio da filosofia rousseauniana. Há uma espécie de hipóstase de um instituto do
direito privado para o campo do direito público, pois ainda que Rousseau tivesse o mérito de não
reduzir à vontade de todos a vontade geral, ele todavia considera sempre essa última vontade
como emanando dos sujeitos particulares, como uma associação mecânica destas vontades.
Charles Taylor ratifica tal interpretação ao afirmar, sobre o referido parágrafo, que,
segundo Hegel, “Rousseau ainda vê a vontade como vontade individual, e entende a vontade
geral não como o ‘elemento absolutamente racional na vontade’ (das an und für sich Vernünftige
des Willens), mas apenas como o elemento comum (Das Gemeinschaftliche) que emerge das
vontades conscientes individuais”. O resultado seria, em última análise, “o Estado baseado em
decisões arbitrárias e no consentimento”67. Novamente tratar-se-ia da confusão de uma vontade
universal que se quer – unilateralmente - empiricamente universal.
Como “correção” ao conceito de vontade geral, Hegel insiste na objetividade
transindividual da vontade geral (ou universal): “é preciso ter presentes os seguintes princípios
fundamentais: a vontade objetiva é o racional em si no seu conceito, quer seja ou não conhecido
do indivíduo e aceito pelo seu livre-arbítrio (...)”68. Isto por que: “saber o que se quer e, ainda
mais, saber o que a vontade em si e para si, a razão, quer só pode ser o fruto de um profundo
conhecimento e de uma intuição que, precisamente, o povo não possui”69. Bem entendidas, essas
afirmações denotam o caráter objetivo da vontade geral enquanto transcendente à ação dos
indivíduos, a suas ações virtuosas e suas vontades singulares - bem como a particularidade dos
povos constituídos na história – para assumir determinações histórico-genéticas que se

66
F.D.§ 258.
67
Cf. Taylor, Hegel e a sociedade moderna, p. 102. Taylor nos afirma ainda, na página 103, que tal
concepção não faz justiça a Rousseau, pois “sua volonté générale certamente pretendia ser mais do que o
elemento comum da vontade particular de todos – e ser algo diferente disso – e a tarefa do contrato não
era harmonizar essas vontades particulares”. Tal injustiça da parte hegeliana, como vimos, se deve em
grande parte ao não levar em consideração a distinção rousseauniana entre a vontade geral e a vontade de
todos.
68
F.D.§ 258.
69
F.D. § 301.
25
desenrolam a partir de uma comunidade de interesses fundadas no Espírito, ou antes no
autoconhecimento deste, e concretamente materializadas no Estado. Este é, por conseguinte, a
forma concreta do aparecer da razão do mundo e, por isso, Hegel o terá como parâmetro
exclusivo para o delineamento de sua filosofia da história, dado que o Estado é o universal real
em um devir histórico que se apresenta sob diversas formas. Mais especificamente, o Estado é a
fundamento concreto das determinações abstratas. Podemos dizer que, se o espírito subjetivo é
ainda conceito não-efetivado, está ainda no elemento da formalidade, a efetivação ocorre quando
o espírito se dá o seu conteúdo, quando se sabe e se faz a si mesmo conceito efetivado, quando se
põe em objetividade. Conforme nos explana Hegel, no parágrafo 469 da Enciclopédia:

A determinação da vontade que é em si é levar à existência a liberdade na vontade formal e,


por isso, o fim dessa última é preencher-se com seu conceito, isto é, fazer da liberdade a sua
determinidade, o seu conteúdo e o seu fim, como também o seu ser-aí. Esse conceito, a
liberdade, só é essencialmente enquanto pensar; o caminho da vontade é fazer-se espírito
objetivo, é elevar-se à vontade pensante, dar-se o conteúdo que ela só pode ter enquanto
pensante.

Portanto, na medida em que o espírito se manifesta como saber, ele se encontra no solo da
universalidade do conceito; e quando ele se determina enquanto vontade é que ele se efetiva.
Uma vez que o Espírito é livre por sua natureza interior, seu movimento de autoconhecer-se
acontece na História e, por conseguinte, a História é o progresso da liberdade, ou do Saber de Si
do Espírito. A “razão” que se desenvolve na história deve se sobrepor aos indivíduos
independentemente da consciência e desejo deles, ainda que estes sejam o “material histórico”
para aquela. O processo da razão ocorre, por assim, por detrás das costas da própria consciência,
como explicitado na introdução da Fenomenologia. Daí a alcunha “astuciosa” da razão aqui
tratada, já que ela deve se valer das paixões singulares dos próprios indivíduos para o seu
desenvolvimento70. Ora, por ser objetivação da vontade substancial do Espírito que se pensa e se

70
Hegel, A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. Na citada Introdução da
Fenomenologia, parágrafo 88, tal processo é resumido da seguinte maneira: “quando o que se apresentava
primeiro à consciência como objeto, para ela se rebaixa a saber do objeto - e o Em-si se torna um ser-para-
a-consciência do Em-si, - esse é o novo objeto, e com ele surge também uma nova figura da consciência,
para a qual a essência é algo outro do que era para a figura precedente. É a essa situação que conduz a
série completa das figuras da consciência em sua necessidade. Só essa necessidade mesma - ou a gênese
do novo objeto - se apresenta à consciência sem que ela saiba como lhe acontece. Para nós, é como se isso
lhe transcorresse por trás das costas. Portanto, no movimento da consciência ocorre um momento do ser-
em-si ou do ser-para-nós, que não se apresenta à consciência, pois ela mesma está compreendida na
26
sabe nos sujeitos e, como o Espírito se realiza na História enquanto progresso da liberdade, o
Estado é a realização da liberdade concreta, a efetivação objetiva do homem na figura do cidadão.
Nessa ordem, há uma inversão, por parte de Hegel, de toda a filosofia política do
entendimento, já que esta pressupõe o Estado a ser realizado através das vontades particulares.
Ou seja, a concepção democrática da política concebe o Estado como “produto das liberdades
individuais, algo que é feito, algo de factício, desprovido de toda majestade, em suma, que não
tem mais nada do Estado como Universal real”. Dessa forma, a vontade universal também se
insere neste âmbito conceitual. No entanto, e aqui se insere a inversão, o Estado não é feito, ele
vem a ser e, ao invés de resultar das decisões das vontades individuais, “é em seu devir que estas
podem desenvolver-se”. O Estado hegeliano não é Estado pelo e por causa do cidadão; ao revés,
é pelo Estado que o cidadão é cidadão, pois o Estado é o universal que ultrapassa o indivíduo e
suas vontades, sem o qual, ele estaria encerrado em sua particularidade natural; por outro lado, a
liberdade subjetiva é o momento pelo qual a vontade que o geral tem do geral se reflete nas
vontades subjetivas. Em suma, “o espírito objetivo é a verdade, isto é, o fundamento real, do
espírito subjetivo”, ou seja, a razão subjetiva não está diante da razão objetiva, ela mesma “é
razão objetiva que, ao interiorizar-se (...) torna-se razão subjetiva”; tal separação seria expressão
inadequada do entendimento 71. Tal é a concepção orgânica de Estado desenvolvida pelo filósofo.
Como vimos, Rousseau partira, pelo menos segundo Hegel, de um pressuposto individual
e atomístico para a formação da vontade geral, de modo ainda contratual, estabelecendo a
oposição entre o singular (privado) e o universal (público). Mas, ao aspirar a uma sociedade que
vai além do conflito e do comportamento com as vontades individuais, Rousseau deve sobrepor o
universal ao singular (de maneira empiricamente e não racionalmente concebida), ainda que,
como devemos notar, este todo não signifique o todo estatal, mas o todo da sociedade-civil. Por
isso mesmo, Bourgeois, ao se referir à Revolução Francesa e à influencia da noção de vontade
geral, afirma que ali ocorre a “absolutização” e “independência” completa da sociedade-civil
como forma do todo universal. De fato, em aparência, a sociedade-civil como âmbito das relações
econômicas constitui um universal, mas um universal abstrato, cuja particularidade sofre a
violência irracional. Portanto, um todo deslocado, pois que deveria, segundo Hegel, ser

experiência”. Dissocia-se o movimento da consciência e seu apreender-se como movimento, que ocorre
por detrás de suas costas.
71
BOURGEOIS, ibidem, p. 93-98.
27
encontrado na totalidade infinita do Estado72 (muito embora o filósofo reconheça a
autonomização da sociedade civil como fenômeno indissociável do mundo moderno), universal
concreto no qual o individuo pode encontrar o seu em-si infinito numa consciência que se
universaliza. Tal asserção pode ser ilustrada através do parágrafo 544 da Enciclopédia, quando
Hegel trata justamente da participação das pessoas privadas nos assuntos do Estado. Lá, ele
retoma a nomenclatura de povo, tão utilizada na revolução francesa, para enunciar que “costuma-
se chamar povo o agregado das pessoas privadas, mas, enquanto tal agregado, ele é o vulgo, não o
povo [vulugus, populus]”. Repara-se que chega a conclusões bastante próximas das
diferenciações entre vontade de todos e vontade geral de Rousseau. Afirma ainda que “é o único
fim do Estado que um povo não chegue à existência, nem ao poder, nem à ação enquanto um tal
agregado”; como se ele enxergasse nessa afirmação toda linha lógica, e problemática, das ações
revolucionárias, pois, “tal situação de um povo é um situação de injustiça, de aeticidade, de
irracionalidade ; nessa situação o povo seria somente como uma potência informe brutal, cega
(...) o qual porém não se destrói a si mesmo como o faria o povo enquanto elemento espiritual” 73.
Assim, esta passagem parece confirmar o sentido de deslocamento que vai da figura do todo tal
como aparecia em Rousseau, e que ocasionara o mal-entendido jacobino, para o todo infinito
racional, que ultrapassa a vontade singular, na figura do Estado, tal como aparece em Hegel.
Ora, quando extintos todos estados e massas espirituais, ou seja, quando “desparecidos
todos os corpos intermediários”, restam apenas “a vontade particular e vontade geral”, mas “a
dominação da vontade particular gerou a anarquia e a manutenção da vontade geral exigiu o
Terror”74. Como a dualidade, em geral, - e aqui a dualidade da vontade particular e da vontade
geral - faz parte do pensamento que ainda se não pensou a si mesmo, Hegel pode ir além de
Rousseau, pois enquanto este contrapõe os domínios reciprocamente excludentes do singular
privado e do universal público (citoyen), cabendo ao segundo a repressão ao primeiro, o filósofo
alemão busca encontrar mediações que, na esfera da sociedade-civil, entendida como domínio do
particular, possam iniciar o processo de formação de um universal para-si autoconsciente. Em
suma, admitindo a inevitável solidez do mundo da propriedade e do direito privado nas
sociedades modernas, a única saída é integrá-lo no organismo do Estado, circunscrevendo-o num

72
BOURGEOIS, ibidem, p. 121-122.
73
HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas, vol. 3, § 544.
74
HYPPOLITE, Jean. Introdução à Filosofia da História de Hegel, p. 100.
28
estado social determinado como parte de um Todo maior que ele mesmo75. O problema todo é
como admitir, no seio do todo Estado uma ordem social cujo funcionamento é, por excelência,
antiestatal. Tal reconhecimento pelo Estado do seu Outro deve constituir pressuposição
necessária na vida moderna76.
Nessa perspectiva, assinala na Filosofia do Direito: “nem o universal tem valor e é
realizado sem o interesse, a consciência e a vontade particulares, nem os indivíduos vivem como
pessoas privadas unicamente orientadas pelo seu interesse e sem relação com a vontade
universal”77, apontando, assim, a necessidade de superação dessa dualidade. Para tanto, o filósofo
lança mão - além das comunas e estamentos - das “corporações”78 (justamente aquelas
extinguidas no começo do processo revolucionário), pois como a “natureza do trabalho na
sociedade civil divide-se em vários ramos” então, o que há “em-si de uniforme nesta
particularidade alcança a existência (...) como algo de comum, e então o fim, no particular
interessado e para o particular orientado, é concebido como universal”79. Esta importante
caracterização das corporações nos permite ver como Hegel introduz, na esfera da sociedade
civil, um elemento cuja vontade não é mais da simples singularidade e ainda não é, tampouco,
plenamente universal, mas é da particularidade. Lembramos que a corporação como classe,
conforme apontando na Nota 52, enquanto querer particular do bem-estar e da universalidade, se
insere entre a classe substancial do agricultor que experimenta o em-si da totalidade natural onde
vive (identidade) e a classe universal de servidores do Estado, que se volta totalmente ao
interesse universal, pelo qual satisfaz também o seu bem-estar particular. Logo, tal figura abrange
a classe industriosa de artesãos, fabricantes e comerciantes entregues à reflexão subjetiva na

75
Em realidade, devemos admitir anteriormente à sociedade civil o âmbito familiar como esfera
pertencente ao mundo ético, mundo onde a vontade se quer como universal no universal. O percurso
apresentado na Filosofia do Direito inclui a família como forma de interação primária da eticidade, ainda
baseada no modelo de sentimento natural do amor entre mãe e filho. O segundo momento é, de fato, a
sociedade civil. Apresentada como sistema de carências em que a satisfação não pode mais provir da
família e se dará através da interação dos interesses egoísticos dos sujeitos em comunicação no sistema de
mercado capitalista. Por fim, no Estado estão presentes as condições para que o indivíduo não se restrinja
a tais interesses individuais mas possa desenvolver racionalmente as condições para levar uma vida
universal, exercendo cargos públicos ou participando da reprodução da coletividade. Sobre este tema, ver
HONNETH, Axel. Sofrimento de Indeterminação: uma reatualização da Filosofia do Direito de Hegel.
São Paulo: Singular, Esfera Pública, 2007.
76
BOURGEOIS, ibidem, p. 76.
77
F.D. § 260.
78
Ver nota 38.
79
F.D. § 251.
29
sociedade civil. Momento este em que a totalidade do universal da vida ética é sempre ameaçada
pela separação do mesmo com o singular. Daí a importância que a corporação adquire no seio da
sociedade civil80.
Igualmente, o parágrafo 289 da mesma obra nos explicita as relações entre sociedade
civil, corporações e Estado da seguinte forma:

como a sociedade civil é o campo de batalha dos interesses individuais de todos contra todos,
assim aqui se trava o conflito entre este interesse geral e os interesses da comunidade
particular e, por outro lado, entre as duas espécies de interesses reunidas e o ponto de vista
mais elevado do Estado e suas determinações. O espírito corporativo, que nasce da
legitimidade dos domínios particulares, no interior de si mesmo, se transforma em espírito do
Estado, pois no Estado encontra o meio de alcançar os seus fins particulares81.

A figura das corporações adquire, portanto, caráter fundamental no campo de mediação


entre as singularidades de interesse puramente privado e a universalidade racional da vontade
geral encarnada no Estado: “No espírito corporativo, que imediatamente implica a ligação do
particular ao universal, é onde se verifica como o poder e a profundidade do Estado radicam-se
nos sentimentos”82. Lembremos que, muito embora o Estado tenha sido apresentado como uma
ultrapassagem da vontade individual, isto não significa que o Estado moderno possa abandonar a
noção de liberdade subjetiva. Na verdade, se por um lado, o Estado, segundo o entendimento,
deva se apoiar na teoria individual-mecanicista, onde a liberdade subjetiva busca erroneamente se
associar para torna-lo efetivo, por outro, o Estado da filosofia política hegeliana deve reconhecer
o papel do arbítrio individual, da liberdade subjetiva e abstrata como momento do Estado
moderno83, posto que esta é a concepção orgânica de Estado que desenvolve o filósofo: o Todo é
imanente às partes que se dizem como seus momentos, seus órgãos.
De igual forma, ainda que as corporações cumpram tal papel de mediação, elas ainda se
submetem ao Estado como tal. Mais uma vez, Hegel não cai numa metodologia mecanicista de
simples soma ou influência dos particulares sobre o universal, risco possível. Devemos sempre
ter em vista, o seu modelo orgânico de Estado. Por isso, as corporações “devem permanecer

80
Ainda que Hegel tenha reconhecido o caráter positivo do trabalho na modernidade na formação da
consciência da liberdade na sua subjetividade, os riscos da crescente diferença social, da formação de um
plebe oriunda do desenvolvimento industrial bem como da perda espiritual dos trabalhadores oriunda de
um processo de crescente especialização (Cf. F.D. §§ 185, 243, 244).
81
F.D. § 289.
82
F.D. § 289.
83
BOURGEOIS, ibidem, p. 94.
30
subordinadas ao Estado, e isso para o próprio bem delas, pois, entregues a seu ponto de vista
particular, elas se condenam a padecer como destino o processo universal que não podem
apreender e dominar”84; com efeito, é nas corporações que o particular pode se enraizar no
universal e este enraizamento cristaliza-se na patriotismo, elemento fundamental para o reflexo e
fortalecimento da unidade orgânica concreta do Estado.
Logo, com a corporação, a relação entre o privado e o público deixa de ser uma relação de
excludência recíproca para se converter numa relação de superação que, ao mesmo tempo,
elimina, conserva e eleva a nível superior. Hegel percebe, ao contrário de Rousseau, a realidade e
a necessidade do pluralismo político-institucional da sociedade moderna. Em visto disso,
assevera Coutinho que o filósofo alemão “ao propor uma ordem constitucional que combina
indissoluvelmente a realidade do pluralismo com a prioridade da vontade”, (...) supera tanto as
formulações unilaterais simetricamente inversas do liberalismo (que nega a vontade geral e o
predomínio do publico) e do democratismo rousseauniano (que nega o pluralismo)”85.
Como conclusão das formulações aqui expostas, sabemos, agora, que o interesse comum
não deve ser concebido de forma dual, enquanto oposto do interesse privado, como abordado por
Rousseau. Precisamos, antes, “supor um campo de mediações que articule dialeticamente o
singular e o universal através do movimento do particular”. Assim sendo, o processo de
universalização que leva à vontade geral não pode ser apresentado como oriundo de um “apelo
ético à virtude dos indivíduos”, de um dever-ser meramente forma e vazio. Antes ele deve ser
concebido “como tomada de consciência86 de interesses que se tornam comuns – ou que tendem
a se universalizar - já a partir da própria realidade objetiva”87. Portanto, um processo diacrônico
do interesse singular-privado até sua conversão - não de forma simples e mecânica - no
reconhecimento do interesse universal concebido racionalmente através da história.
Mais especificamente no que tange à apresentação da liberdade absoluta realizada na
Fenomenologia, apesar da crítica à origem contratualista da vontade universal, que deve ser
empiricamente universal, e malgrado a crítica especulativa ao formalismo em que se baseia o agir
negativo das vontades singulares que visam o universal, Hegel celebra este evento que promove a

84
BOURGEOIS, ibidem, p. 133.
85
COUTINHO, Carlos Nelson. Hegel e a democracia, 1997, p. 9-10.
86
F.H., p. 367: “Essa colisão de vontades subjetivas conduz (...) ao momento da tomada de decisão, que é
o querer interior das leis, não só do costume, mas a conscientização de que as leis e a própria constituição
seriam algo sólido, e que o mais sublime deve dos indivíduos seria subjugar as vontades particulares”.
87
COUTINHO, ibidem, p. 16.
31
referida liberdade. Por isso mesmo, a “luta do formalismo” em torno dessa liberdade deve ser
distinguida do “teor histórico-mundial” desse evento88. É graças à consciência que o espírito
alcança, através da experiência revolucionária, da liberdade como seu princípio e destino, e
graças à efetivação histórica da autoconsciência dessa liberdade que Hegel pode dar o tom
positivo de sua avaliação, resumido num enunciado: “essa substância indivisa da liberdade
absoluta se eleva ao trono do mundo sem que poder algum lhe possa opor resistência”89.

4 - Análise dos resultados

Tentamos, aqui, investigar algumas das origens das supostas ambivalências interpretativas de
Hegel perante a Revolução Francesa. Vimos como ele realiza a re-construção fenomenológica da
liberdade absoluta como vontade universal que se quer empiricamente real e idêntica às vontades
singulares enquanto tais. Uma estilização da compreensão revolucionário jacobina da vontade
geral rousseuaniana, mas que encontra seus fundamentos no próprio percurso interpretativo
hegeliano de tal noção, como apresentado em outras obras suas. Compreensão que, de maneira
geral, é oriunda de um mal-entendido jacobino da vontade geral enquanto formulada de modo
contratual e empírico a partir da estrutura atomística das vontades singulares – daí seu caráter
insuficiente -, mas que, no entanto, possibilita ao espírito ter nela o primeiro acesso à consciência
da negatividade, do seu impulso negativo universal de liberdade.
Percorremos ainda outras obras do filósofo a fim de tentar determinar mais precisamente
seu posicionamento face à noção de vontade geral. Por isso, fez-se necessário um breve excurso
sobre as noções de Estado, sociedade-civil e corporações, apresentadas em outras obras. Estas
noções nos ajudaram a enxergar como Hegel caracteriza a insuficiência de vontade geral
oferecida por Rousseau ainda sob a sombra das vontades particulares, e em razão disso opera um
deslocamento fundamental da noção de universal, localizado não mais da sociedade-civil, mas
agora na figura do Estado. Concomitantemente, há uma inversão da noção de Estado tal como
apresentada na filosofia política, pois este não é mais, em Hegel, um simples produto das
liberdades individuais dos cidadãos. Ele deve, em conformidade com a noção Razão na História,

88
F.H., p. 370.
89
F.E., § 585.
32
se concretizar como universal que ultrapassa e condiciona a formação daqueles. “É pelo Estado
que o cidadão é cidadão”.
Em resumo, a consciência alcançada pelo Espírito, na experiência revolucionária francesa,
pode ser resumida na elevação da liberdade como seu princípio e destinação última, através da
efetivação, ainda que trágica, desta autoconsciência da liberdade. Tal liberdade negativa, sendo
momento do percurso da consciência rumo ao Saber Absoluto, deverá encontrar seu espaço na
modernidade no interior de uma vida social institucionalizada através do Estado, posto que forma
última, vontade geral em-si e para-si, realidade da liberdade concreta.
Nas próximas etapas do trabalho, devemos analisar a crítica da liberdade absoluta à
representação, tal como expõe Hegel nos parágrafos seguintes e, por fim, compreender, de modo
geral, o papel que liberdade absoluta assume na filosofia hegeliana.

5 - Bibliografia

5.1 - Bibliografia básica

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2007.


______. Filosofia da História. Brasília: Universidade de Brasília, 2008.
______. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. Lisboa: edições 70,
1995.

5.2 - Bibliografia complementar

ARANTES, Paulo. Hegel: a ordem do tempo. São Paulo: Hucitec, 2000.


______. Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel. São Paulo: Paz
e Terra, 1996.
BAVARESCO, Agemir. A fenomenologia da opinião pública a teoria hegeliana. São Paulo:
Loyola, 2003.
BOURGEOIS, Bernard. O pensamento político de Hegel. São Leopoldo: UNISINOS, 2000.
COUTINHO, Carlos Nelson. Hegel e a Democracia. Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo. Disponível em:
<http://200.144.254.127:8080/textos/coutinhohegel.pdf>. Acesso em 01/02/2018.
33
HABERMAS, Jürgen. Teoria e práxis: Estudos de filosofia social. São Paulo: Unesp, 2013.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. "A Liberdade absoluta e o terror" - Fenomenologia do
Espírito. Tradução - pp. 98-109. Revista Opinião Filosófica, [S.l.], v. 2, n. 1, Jan/Jun. de 2011.
Disponível em:
<http://periodico.abavaresco.com.br/index.php/opiniaofilosofica/article/view/126>. Acesso em:
10 mar. 2018.
______. Enciclopédia das ciências filosóficas. São Paulo: Loyola, 2011, v. III.
______. La positividad de religión cristiana, in Escritos de Juventud. México: Fondo de Cultura
Económica, 1978.
______. Historia de Jesus. Madrid: Taurus Ediciones, 1981.
HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da fenomenologia do espírito de Hegel. São Paulo:
Discurso Editorial, 1999.
_____. Introdução à filosofia da história de Hegel. Rio de Janeiro: Elfos Ed. 1995.
HONNETH, Axel. Sofrimento de Indeterminação: uma reatualização da Filosofia do Direito de
Hegel. São Paulo: Singular, Esfera Pública, 2007.
KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
LUKÁCS, Georg: The young Hegel: studies in the relations between dialectics and economics.
Tradução: Rodney Livingstone. London: Merlin Press, 1975.
LEBRUN, Gerard. La patience du concept: essai sur le discours hégélien. Paris: Gallimard, 1972.
LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e a tradição liberal. São Paulo: Unesp, 1997.
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2004.
MÜLLER, Marcos. A liberdade absoluta entre a crítica à representação e o terror. Revista
Eletrônica Estudos Hegelianos, Ano 5, nº 9, Dezembro-2008, p. 83.
RITTER, Joachim. Hegel et la revolution française. Paris: Beauchesne, 1997.
ROSENFIELD, Denis. Introdução ao Pensamento Político de Hegel. São Paulo: Ed. Ática, 1993.
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os
homens. Porto Alegre: L&PM, 2017.
______. Du Contrat Social ou Principes du Droit Politique, in: Œuvres Choisies de J.-J.
Rousseau. Édition Garnier Frères, Paris, 1960.
34
SAFATLE, Vladimir. A forma institucional da negação: Hegel, liberdade e os fundamentos do
Estado moderno. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, nº 125, Jun./2012, p. 149-178.
SHKLAR, J. N. Freedom and Independence: A Study of the Political Ideas of Hegel’s
‘Phenomenology of Mind’. Cambridge: Cambridge University Press, 1976.
STERN, Robert. Routledge philosophy guidebook to Hegel and the Phenomenology of Spirit.
Londres: Routledge, 2002.
TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. Tradutora: Luciana Pudenzi. São Paulo:
Loyola, 2005.
VINOT, Bernard. Uninédit de Saint-Just: le discours de février 1793. In: Annales historiques de
la Révolution française, n° 307, 1997. pp. 1-16.

35

S-ar putea să vă placă și