Sunteți pe pagina 1din 14

PEDAGOGIA DO CÂNONE LITERÁRIO ESCOLAR:

ADEQUAÇÃO E VIOLÊNCIA, REJEIÇÃO E DESEJO


António Branco

à Margarida Vieira Mendes

1. O cânone literário escolar é, por definição, o conjunto de textos que


os programas oficiais consideram de estudo obrigatório, por ser
considerado ilustrativo da excelência e da variedade de um património
nacional merecedor de conservação e perpetuação. No nosso sistema
de ensino, a selecção canónica começa a ganhar visibilidade
tardiamente, no programa de Português do 9º ano, que inclui obras de
Gil Vicente e de Luís de Camões (v. Dgebs 1991b:35), instalando-se
definitivamente nos três anos do Ensino Secundário, com pequenas
variações entre o Português A e o Português B (v. Des 1998). E se a
primeira versão da reforma curricular do Secundário organizava o
ensino e a aprendizagem dos clássicos de forma temática (v. Dgebs
1991a:36 e 97), posteriormente regressou-se, nos programas
reajustados de 1997, a um modelo de organização cronológica (v. Des
1997), por se considerar que seria necessário conciliar o estudo dos
textos literários com o da história literária (C. Ceia 1999:119).

A fixação do cânone por esse meio é especificamente traduzida em


finalidades e objectivos educativos como os que a seguir cito, a partir
dos programas reajustados:

Finalidades (sujeito dos infinitivos: o professor)

[F1]: Proporcionar a aquisição, numa perspectiva


diacrónica e sincrónica, de uma visão panorâmica clara da
Literatura Portuguesa que permita distinguir e caracterizar,
nas suas linhas-mestras, épocas, períodos e correntes da
nossa história literária e nesta situar os autores e obras
lidas com fundamento estético-literário, ideológico e
histórico-cultural. (Finalidade exclusiva do Português A)
(Des 1997:13)

[F2]: Contribuir para a identificação crítica com as


manifestações e as realizações da cultura —regionais,
nacionais e universais— facultando os conhecimentos que
possibilitem o diálogo intertextual com obras do passado e
do presente. (A finalidade correspondente do Português B
enuncia «as realizações da cultura sobretudo literária»)
(Des 1997:13, 81)
[F3]: Proporcionar uma educação literária básica.
(Finalidade exclusiva do Português B) (Des 1997:81)

Objectivos (sujeito dos infinitivos: o aluno)

[O1]: Diversificar as suas experiências de leitura

— utilizar a leitura como fonte de informação para


múltiplas finalidades;

— relacionar o que lê com as experiências, ideias,


sentimentos e valores próprios e de outros;

— reconhecer afinidades e/ou contrastes entre vários


espaços, épocas, géneros e tipos textuais;

— apreciar criticamente diferentes tipos de texto,


recorrendo a critérios pessoais. (Objectivo comum ao
Português A e ao Português B) (Des 1997:14, 82)

[O2]: Desenvolver a competência de interpretação pela


apropriação progressiva de instrumentos linguísticos e
estético-literários. (Objectivo exclusivo do Português A)
(Des 1997:14)

[O3]: Problematizar a natureza e o valor do texto literário


como documento e monumento histórico-cultural e
artístico. (Objectivo exclusivo do Português A) (Des
1997:14)

[O4]: Integrar as realizações linguísticas e as produções


literárias na história e na cultura nacional e universal.
(Objectivo comum ao Português A e ao Português B) (Des
1997:14, 82)

Estes enunciados autorizam algumas inferências:

1. a de que, no Português B, o clássico não tem por finalidade


proporcionar o desenvolvimento profundo e tecnicamente sustentado
da competência da interpretação (O2), nem o de problematizar (ou
seja, pôr em questão, debater, desconstruir e reconstruir) o lugar do
texto no continuum histórico, mas tão-somente, integrá-lo básica e
pacificamente nessa série (contraste-se F1 e F3);

2. a de que, no Português A, não só se pretende, com o estudo da


selecção canónica, o desenvolvimento de uma competência de leitura
aturada e distanciada (O2), mas também a aquisição de saberes que
possibilitem o reconhecimento da duplicidade oximórica (histórica e a-
histórica) do texto literário (F1 e O3).

Cada uma destas breves ilações poderia dar origem a complexas e


interessantes reflexões, já que, no seu todo, apontam para problemas
nucleares da teoria sobre a literatura, de que a produção ensaística
das últimas décadas (para não recuar mais) tem sido espelho prolífero
e difuso. Contudo, este trabalho pretende colocar os problemas do
ponto de vista pedagógico, razão pela qual inibirei a tentação de
digressões excessivamente centradas nas preocupações de quem
pensa a literatura, para dar lugar às de quem se preocupa com o seu
ensino a jovens adolescentes.

E, por isso, parto já para as interrogações que estão no cerne de


muitas das dificuldades detectadas por experientes e dedicados
professores de Português: como poderemos nós, nos dias que
correm, ajudar os clássicos a conquistar, na inteligência sensível dos
alunos, um espaço e uma legitimidade equivalente ao peso que os
programas lhes atribuem? De que forma conseguiremos tornar
interessante o conhecimento do património que os canonizadores
consignaram —sejam eles quem forem, já que os programas de
Português não apresentam a equipa, não assumindo, por isso, que um
cânone é sempre assinado e não uma evidente antologia
universalmente representativa (v. R. Scholes 1992; H. Bloom 1997)?
Regressemos aos programas.

2. Neles falta uma finalidade ou um objectivo que torne consciente,


tanto para professores como para alunos, a relação, muitas vezes
opaca ou artificialmente abduzida, que os clássicos mantêm com a
«cidade da língua» do Portugal contemporâneo, feita dos seus
«subúrbios proletários, as vielas dos bairros antigos, as ruas de
azafamada actividade do comércio e dos serviços, as avenidas e os
largos residenciais, as pracetas de elegante e discreto remanso», para
retomar a belíssima imagem de V. Aguiar e Silva (1999:25). Poder-se-
á considerar que esta ideia está implícita em F2 e O4, mas a sua não
explicitação denuncia alguma despreocupação.

Falta, também, um conjunto de enunciados que promovam a


(re)descoberta do lugar do clássico (que, na forma como entra nos
programas, se enraíza numa mundivisão de elite) no lago da cultura
massificada e revistivo-radio-internetico-videoclipico-televisiva em que
diariamente mergulham professores, alunos e pais de alunos e em
que, indirectamente, correm o risco de se afogar D. Dinis, Fernão
Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda, Luís de Camões, Pe António
Vieira, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Eça de Queirós,
Fernando Pessoa (e que me desculpem todos os outros nadadores
não convocados)...

Faltam, numa palavra, desígnios programáticos que apontem para a


exploração de conexões criteriosas e imaginativas entre os clássicos
da literatura e os actuais produtos culturais efectivamente maioritários
—vulgo, a telenovela, o filme de acção, de amor ou de terror, o slogan
político ou publicitário, o graffiti, o rap, o pop, o rock (mais ou
menos hard), a lenda urbana, a obra-de-sabão (tradução livre desoap
opera), o nacional-cançonetismo marcopaulês-e-afins e tantas outras
espécies dos nossos tempos. Ignorá-las, na escola, cria, de algum
modo, uma redoma ineficaz —a que, inevitavelmente, falecem
paredes que preservem o ambienteestufado (de «estufa»). Ignorá-las
transforma a sala de aula em casa de faz-de-conta-que-o-mundo-não-
existe. Mas ignorá-las é, sobretudo, não cumprir um dos mais nobres
desígnios da educação, fundado numa didáctica a que poderíamos
chamar «platónica» (v. L. Bredella 1989:31-43): fornecermos aos
alunos instrumentos que os auxiliem (em directo e em diferido) a
fazerem escolhas, a não se deixarem manipular assídua, inerte e
excessivamente (advérbio aconselhado pela moderação pragmática),
a tomarem decisões conformes com a sua mais extraordinária
qualidade, a de serem humanos.

Quererei com estas observações defender a subjugação dos clássicos


literários ao elenco dos outros produtos referidos, estratégia educativa
que, aplicada noutros pontos do planeta, originou graves fenómenos
de iliteracia cultural, como os recordados por M. Vieira Mendes para o
caso americano (1992:59)? Não. Na realidade, se fosse poeta,
conceder-me-ia o direito de exercer um exacto desejo de silêncio
(como o de Herberto Helder quando lhe oferecem prémios...). Mas, ao
decidir ser professor, escolhi dar voz a esse desejo, tão paradoxal
possa parecer esta afirmação. Porque, como nos lembra F. Savater,
só vale a pena ser professor se se acreditar na humanidade:

Y es que la enseñanza presupone el optimismo tal como


la natación exige un medio líquido para ejercitarse. Quien
no quiera mojarse, debe abandonar la natación; quien
sienta repugnancia ante el optimismo, que deje la
enseñanza y que no pretenda pensar en qué consiste la
educación. Porque educar es creer en la perfectibilidad
humana, en la capacidad innata de aprender y en el deseo
de saber que la anima, en que hay cosas [...] que pueden
ser sabidas y que merecen serlo, en que los hombres
podemos mejorarnos unos a otros por medio del
conocimiento. (1998:18)

3. Trata-se, por isso, não de excluir da aula os textos literários que


elevamos à condição de obras-primas, não de os subordinar a
interesses culturais que, da nossa perspectiva, podem reduzi-los,
ofuscá-los ou confundi-los, mas, simplesmente, de não dar por
adquiridas, perante os alunos, as «excelências» estética, ideológica,
ética e outras que os nossos olhos tão intimamente neles vislumbram
—envolvendo esta 1ª pessoa do plural a comunidade intelectual
directa ou indirectamente responsável pela selecção canónica e pela
sua administração na sala de aula.

Vivemos numa época concorrencial: os implícitos culturais são


indiscutíveis em praticamente todos os espaços e formas de
comunicação muito abrangentes, excepto na escola. Esta perdeu a
sua respeitabilidade imanente e sacralizante de outros tempos,
cabendo-lhe, agora, a mais difícil e desafiante tarefa de a reconquistar
de outras maneiras, como por exemplo, abrindo clareiras nesse denso
e labiríntico bosque de preconceitos culturais maioritários,
denunciando a nudez do rei, perturbando as certezas dos jovens,
permitindo-lhes o confronto da sua cultura com a cultura dos
antepassados coevos (nós) e vetustos (os mortos). Quererá a maior
parte dos professores de Português, muitos deles jovens mais
próximos dos paradigmas culturais dos seus alunos do que dos gostos
dos seus mestres universitários, participar nesse amplo movimento de
regeneração do ensino dos clássicos? A meu ver, só se estas
considerações atingirem a organização curricular e as metodologias
do ensino universitário que forma os professores de português,
poderão também eles vir a entusiasmar-se com um projecto desta
natureza.

A este propósito, vale a pena abrir parênteses, para contar que um


dos membros da Comissão de Avaliação Externa das licenciaturas de
Línguas e Literaturas Modernas da Universidade em que sou docente
criticou publicamente um programa de Literatura Portuguesa I
(Medieval), por nele se conceder demasiado espaço ao estudo de
narrativas hagiográficas e de narrativas dos Livros de Linhagens. Esse
ilustre professor universitário (e, por isso, canonizador autorizado)
baseou provavelmente a censura no princípio de que, da Idade Média,
só valerá a pena dar a conhecer aos alunos, com algum nível de
profundidade, a poesia trovadoresca e a obra de Fernão Lopes. Os
critérios aduzidos são, no entanto, anacrónicos, porque sustentados
em parâmetros de julgamento estranhos ao que se sabe da recepção
da «literatura» nesse período: se é verdade que as cantigas terão tido
um grande sucesso, no meio cultural aristocrático em que eram
divulgadas, não creio que as crónicas de Fernão Lopes tenham
beneficiado de um acolhimento mais abrangente do que as lendas de
santos, as narrativas linhagísticas curtas ou, até, as narrativas
cavaleirescas da «matéria da Bretanha», para já não falar
dos exempla. A vontade de redução canónica no ensino universitário
pode, não obstante, atingir proporções ainda mais surpreendentes:
num importante manual de Introdução aos Estudos Literários de outro
reconhecido especialista, toda a produção «literária» medieval é
ignorada, sem que nesse capítulo, dedicado ao conhecimento
panorâmico da periodologia literária portuguesa, se explique sequer os
critérios subjacentes a tal omissão (C. Reis 1995:407-486). Introduzi
estas digressões anedóticas, por elas suporem práticas pedagógicas
universitárias que, na minha opinião, também devem ser objecto de
análise, sobretudo no que diz respeito aos seus efeitos pedagógicos
(e, consequentemente, culturais).

E por que motivo elejo como inimigo do estudo dos clássicos da


Literatura Portuguesa (em qualquer nível de ensino considerado) os
preconceitos estético-literários subentendidas nas práticas
pedagógicas vigentes, e a que subjaz a ideia de que o texto clássico
tem uma qualidade óbvia? Porque, se talvez seja verdade que eles
não impediram a aproximação dos jovens do passado à literatura
(quando a população escolar era, também ela, maioritariamente
oriunda de núcleos familiares social e culturalmente minoritários),
estão, nas actuais palavras escritas e ditas de muitos professores (v.
por exemplo L. Jorge 1989), a produzir efeitos em tudo contrários aos
bem-intencionados objectivos educativos acima recordados. Hoje, a
população estudantil, mais livre e informada do que a de gerações
anteriores, possuindo outras competências de literacia não
aproveitadas pelos sistemas de ensino (v. R. Vieira de Castro & M. L.
de Sousa 1999), é também sem disso se tomar sempre consciência,
mais exigente, se considerarmos algumas modorras habitualmente
diagnosticadas por professores (leia-se a obra de D. Pennac 1992,
onde se transporta para o universo ficcional essa experiência) —e,
que, provavelmente, só se apresentam como novas na liberdade com
que se exprimem—, como sintomas de uma reclamação de
entendimento mais profundo, mais afectivo, mais motivado, da
utilidade (não necessariamente numa concepção utilitarista do saber)
das práticas e dos conteúdos lectivos.

Assim, em vez de se chocar com o facto de os alunos não verem ou


não sentirem a beleza do soneto «Pede o desejo, Dama, que vos
veja» (um dos meus grandes amores, confesso), deveria o professor
interrogar-se, seriamente e sem dramatismos, sobre esse
acontecimento escolar, desagradável e desmotivador para todos os
envolvidos. E poderia formular algumas perguntas difíceis: terá sido a
minha vontade de contextualizar o poema numa corrente filosófica
própria, abordando, inclusivamente, os ecos da cantiga de amor nele
presentes, o factor de distanciamento dos alunos? Ou terá sido a
sobrevalorização dos meus instrumentos de análise, da minha própria
mundivisão? Será que o percurso de leitura que lhes propus, partindo
da historicização do texto, passando pela constatação da existência
nele de propriedades expressivas (retóricas, ideológicas), é alheio à
forma como os meus alunos encaram os produtos culturais? E como
se relacionam eles com a cultura que os rodeia, como a abordam,
como se apropriam dela? Como detectam eles a beleza (e que beleza)
e como a valorizam? Que paixões culturais são as suas e porquê?
Que afinidades existirão entre elas e o meu amado soneto? Basta
começar… difícil será interromper este brainstorming. É contudo, um
exercício que vale a pena realizar na companhia dos alunos, tornando-
os partícipes da própria avaliação do processo de aprendizagem. Mas
também resultará fazê-lo com os colegas com quem se trabalha,
numa reflexão colaborativa dentro de parâmetros bem definidos e com
objectivos solidamente estabelecidos (identificar problemas, procurar
soluções, experimentá-las, avaliar resultados e recomeçar). Porque,
volto a afirmar, os pré-adquiridos sobre a literatura são inibidores do
seu ensino e da sua aprendizagem.

O testemunho da relação que o professor mantém com os clássicos,


sobretudo quando apaixonada, sustenta seguramente uma força
carismática potencialmente indutora de entusiasmo (v. S. Doubrovsky
1971; C. Reis 1992), mas já não chega. Paradoxalmente, quanto mais
os poderosos meios de comunicação (em sentido lato) nos projectam
diferidamente em vivências alheias, mais premente se torna o desejo
de experimentar individualmente —e parece ser isso o que os alunos
reclamam da aula de Português: portas para experiências intensas e
individuais de leitura, capazes de fazer regressar a alegria de
aprender à sala de aula. Para isso, o papel do professor será cada vez
menos o de mediar a relação com o texto através da sua própria
sensibilidade, mas de através dela desencadear a leitura inspirada e
sensível dos alunos, levando-os a tocar directamente o texto. Esta
atitude acarreta a perda de um poder baseado em ideais pedagógicos
que encaram o conteúdo como produto a ser adquirido ou inoculado
(v. J. S. Bruner 1960), mas institui o ganho de uma potência,
enquadrável num sistema de ensino mais sinérgico.

4. Não seria justo atacar os fundamentos de algumas práticas culturais


vigentes na sala de aula, sem sequer propor, não digo soluções
(porque não acredito na sua universalidade, nem na sua adequação
fora de contextos específicos), mas caminhos para a implantação de
novas maneiras de agir no ensino dos clássicos literários. Com esse
fim, (re)visitemos um soneto de Camões, que me atrevo a transcrever:

Tanto de meu estado me acho incerto,


que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;


da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando,


Nú ’ hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar ú ’ hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,


respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.

(1994:118, soneto 4)

Para mim, este soneto (como tantos outros poemas de Camões) é um


clássico no sentido dinâmico e aberto dado ao conceito por I. Calvino.
E como ele, creio que vale a pena lê-lo, porque é melhor conhecê-lo
do que não o conhecer (1994:13). No entanto, a atitude de leitura
descrita pelo escritor italiano não é directamente transferível para o
contexto escolar. Pelo contrário, se a escola quiser fazer germinar no
aluno um desejo do clássico semelhante ao de Calvino, terá que
descobrir caminhos que aí conduzam e que tenham em conta o
contexto cultural que esbocei anteriormente. Quer isto dizer que
existirão certamente alunos a quem a beleza das palavras de Camões
toca imediatamente, mas outros haverá a quem este soneto nada
revela, se o professor não os ajudar a descobrir nele alguma
luminosidade especial. Uma das regras deste jogo é admitir que o
soneto tão amado não é universalmente ou obrigatoriamente amável.
E que é possível, depois de muito gasto de energia, que ele volte para
o limbo onde os textos não amados vivem, por os alunos/leitores dele
não se terem apropriado. Esta é a regra mais difícil de respeitar.

O soneto consubstancia verbalmente as sensações e as emoções


provocadas pelo enamoramento, instituindo um ponto de vista de
verdade muito particular. Daí que a maior ou menor eficácia
interpretativa do leitor dependerá do conhecimento do código afectivo
inerente a esse estado. Quer isto dizer que, num mundo suposto em
que não existisse a paixão, o texto tornar-se-ia ilegível ou desviar-se-
ia para registos difíceis de deslindar.

A este propósito, retomo as observações de A. Pais, segundo as quais


uma das dificuldades de leitura da lírica camoniana por parte de
alunos muito jovens advém do facto de não terem uma experiência
madura do amor que lhes permita identificarem-se com os
desconcertos anunciados pela voz poética (1998:14). E esta versada
professora de Português apoia-se no próprio Camões para corroborar
a sua convicção:

E sabei que, segundo o amor tiverdes,


tereis o entendimento dos meus versos!

(1994:117, soneto 1)

Não posso concordar com este raciocínio, nem com o facto de os


versos citados suportarem bem o argumento da autora, porque neles
leio que a capacidade de construir sentido(s) será determinado pela
qualidade (e não extensão, quantidade, madureza) do amor vivido.
Para além disso, está-se mais uma vez a ignorar o contexto cultural
dos neófitos dos dias de hoje, que, pelo menos de forma projectiva e
diferida, convivem desde muito cedo com narrativas e dramatizações
de excessos sentimentais, por via de filmes, situações telenovelescas,
anúncios publicitários e letras de canções. Simultaneamente, também
na sociedade é mais livre a expressão dos afectos, razão pela qual, se
não experimentaram ainda o amor, podem-no ter visto nos olhos e na
febrilidade de pais divorciados, irmãos ou irmãs mais velhas, tios,
primos, amigos, etc.

É, por isso, erro de análise crer-se que os adolescentes não possuem


instrumentos afectivos e intelectuais constituintes de um quadro de
referências suficiente para a interpretação deste soneto. Contudo,
porque a solicitação pública de confissões de experiência amorosa
pode ser inibidora para qualquer um que dela seja alvo e porque
ninguém é capaz de se estudar com rigor, contenha-se esse tipo de
apelo e procure-se possibilidades de empatia, primeiro nível
importante da leitura (J. Thomson 1998), fora do sujeito da
aprendizagem, de modo a libertar o seu discurso e a criar a distância
necessária a uma atitude crítica. Este cuidado preservará as
estratégias de leitura identificativa na dimensão íntima que é a sua.
Pergunte-se, por isso, aos alunos, antes da leitura do poema ou de um
conjunto de poemas tematicamente semelhantes, o que sabem eles
do efeito das paixões nos seres humanos. Aceitem-se os clichés (para
cuja formação uma memória residual e inexacta de poemas como o de
Camões também contribuiu), explore-se o filão, pedindo exemplos,
histórias, imagens, ecos. Não na perspectiva tecnicista de uma
artificial «estratégia de motivação» (termo recorrente nos meios
educativos, embora difícil de encontrar na bibliografia não-behaviorista
sobre psicopedagogia —v. J. M. Canavarro 1999:43-76), mas com
interesse genuíno pelos saberes deles: frequentemente, corporiza-se
nesta nuance a primeira marca de qualidade didáctica da aproximação
aos textos.

Vá-se mais longe. Proponha-se uma investigação sobre as formas de


representação das paixões no mundo em que vivemos: peça-se um
trabalho, metodologicamente controlado, de recolha de materiais que
permitam configurar essas mesmas representações, excluindo do
universo de pesquisa a poesia e a ficção institucional (a saudade só
dói à distância). Não se exclua, dos dados reunidos pelos alunos,
nenhum género nem nenhum discurso, com base em preconceitos
culturais: no acervo por eles reunido, figurarão exemplares
inspiradores, como, quiçá, o reconto do filme de B. Luhrmann,
reescrita de Romeu e Julieta nos EUA dos anos 90 (1996), ou a
cantiga de Sting, «Straight to My Heart» (1987), de que cito uma
estrofe:

But why ever should we care


When there are arrows in the air
Formed by lovers’ ancient art
That go straight to my heart;

outros que o professor não escolheria, por os considerar estética e


filosoficamente medíocres (não defendo uma perspectiva absentista);
mas resultarão de uma acção criadora de energias potenciadoras da
curiosidade científica. Dada a previsível heterogeneidade das recolhas
efectuadas, peça-se aos alunos a classificação dos documentos
reunidos, a sua avaliação. Discutam-se com eles as propriedades, a
função, a qualidade dos vários itens. Promova-se a consciência dos
critérios utilizados na arrumação, na avaliação, na apreciação.

Depois, contraste-se os materiais obtidos por essa via com a poesia


camoniana. Solicite-se aos aprendizes que, incluindo Camões no seu
universo de referência, o situem (no passado e no presente), que o
individualizem, procurando descrever o que torna a sua poesia
diferente do (e parecido com) o mundo que conhecem (neste
parâmetro cabem aspectos histórico-literários e histórico-linguísticos,
estilísticos —retóricos e gramaticais—, filosóficos, éticos, etc.). Neste
momento do estudo, caberá ao professor fornecer trechos ensaísticos
e informação oral «pregnantes» (que magnífica palavra nos ofereceu
M. Vieira Mendes —1997:160) que ajudem os alunos a cumprir essa
tarefa. No fim, exijam-se conclusões estruturadas, a todos e a cada
um.

Uma prática pedagógica como a que acabei de idealizar realiza-se


com tempo e, eventualmente por isso, com uma menor ambição dos
canonizadores no que diz respeito a número de textos clássicos a
serem incluídos nos programas escolares. Neste aspecto, concordo
inteiramente com a perspectiva de V. Aguiar e Silva, quando defende
que não é «terapêutica» a imposição do «ensino abrangente da
história da literatura portuguesa» dos programas actuais, mas que
eles deveriam ser reorganizados com base em «’núcleos de
textualidade canónica’» que lhes reduzam a extensão (1999:27-28).

Tal perspectiva de estudo da literatura força, igualmente, a repensar


os instrumentos de avaliação dos conhecimentos, já que não
pressupõe o comentário ou a análise de texto como finalidade única
do processo de ensino e de aprendizagem, embora não os afaste
obrigatoriamente das práticas pedagógicas.

Apesar das dificuldades que tal mudança acarreta, julgo que valerá a
pena encararmos frontalmente estes problemas e experimentarmos
algumas das alternativas metodológicas já testadas noutras paragens
(cf. M. Hayhoe & S. Parker 1990, J. Thomson (ed.) 1992 e R. Carter &
J. McRae 1996), antes que as clivagens aumentem a melancolia de
que nos falou Margarida Vieira Mendes. Quanto a mim, prosseguirei,
nos labirintos de uma contraditória profissão, a busca de curas para
este mal de amor

Que dias há que n’alma me tem posto


Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e doi não sei porquê.

Janeiro de 1999

Referências
Camões, Luís de (1994), Rimas, texto estabelecido e prefaciado por
Álvaro J. da Costa Pimpão, com apresentação de Aníbal Pinto de
Castro, Coimbra: Almedina.
Luhrmann, Baz (real.) (1996), Romeo & Juliet, USA: 20th Century Fox.

Sting (1987), «Straight to My Heart», … Nothing Like the Sun, Los


Angeles: A&M Records.

Aguiar e Silva, Vítor (1999), «Teses sobre o Ensino do Texto Literário


na Aula de Português», in Diacrítica, 13-14, Universidade do Minho,
1998-1999.

Bloom, Harold (1997), O Cânone Ocidental. Os Livros e a Escola das


Idades, trad., introd. e notas de Manuel Frias Martins, Lisboa: Temas e
Debates.

Bredella, Lothar (1989), Introdução à Didáctica da Literatura, trad. de


Maria Assunção Pinto Correia, Lisboa: Dom Quixote.

Bruner, Jerome S. (1960), The Process of Education, Cambridge, MA:


Harvard University Press.

Calvino, Italo (1994), Porquê Ler os Clássicos?, trad. de José Colaço


Barreiros, Lisboa: Teorema.

Canavarro, José Manuel (1999), Ciência e Sociedade, Coimbra:


Quarteto.

Carter, Ronald e John McRae (eds.) (1996), Language, Literature &


the Learner. Creative Classroom Practice, London/N.Y.: Longman.

Castro, Rui Vieira de e Maria de Lourdes Dionísio de Sousa (1999),


«Hábitos de Leitura dos Estudantes Portugueses», Entre Linhas
Paralelas. Estudos sobre o Português nas Escolas, Braga: Angelus
Novus.

Ceia, Carlos (1999), «A Questão do Cânone Literário», A Literatura


Ensina-se?, Lisboa: Colibri.

Departamento do Ensino Secundário (Des) (1997), Português A e B.


Programas. 10º, 11º e 12º Anos, Lisboa: Ministério da Educação.

— (1998), Ofício/Circular nº138 (Leituras metódicas e obrigatórias e


proposta de planificação para o Português A e B do 11º ano), Lisboa:
Ministério da Educação, 9/10.

Direcção Geral dos Ensinos Básico e Secundário (Dgebs)


(1991a), Português. Organização Curricular e Programa (Ensino
Secundário), Lisboa: Ministério da Educação.
— (1991b), Programa. Língua Portuguesa. Plano de Organização do
Ensino-Aprendizagem, vol. II (Ensino Básico, 3º Ciclo), Lisboa:
Ministério da Educação.

Doubrovsky, Serge (1971), «Le Point de vue du


professeur», in Doubrovsky, Serge e Tzvetan Todorov
(eds.), L'Enseignement de la littérature, Paris: Plon.

Hayhoe, Michael e Stephen Parker (eds.) (1990), Reading &


Response, Milton Keynes/Philadelphia: Open University Press.

Jorge, Lídia (1989), «Espaço para a Literatura nas nossas Escolas», in


Diário de Notícias, Lisboa, 15 de Janeiro.

Mendes, Margarida Vieira (1997), «Pedagogia da Literatura», in


Românica, 6 (História da Literatura), Lisboa: Cosmos.

Pais, Amélia (1998), «O Ensino de Os Lusíadas. Pressupostos e


Práticas», inAA.VV., O Ensino de Camões. Práticas e Propostas (V
Fórum Camoniano), Constância/Lisboa: Centro Internacional de
Estudos Camonianos da Associação Casa-Memória de Camões em
Constância/Cosmos.

Pennac, Daniel (1992), Comme un roman, Paris: Gallimard (Como um


romance, trad. de Francisco Paiva Boléo, Porto: Asa, 1993.)

Reis, Carlos (1992), «Reflexões Genéricas sobre o Estatuto da


Didáctica da Literatura», in O Professor, nº26 (3ª série), Lisboa, Maio-
Junho.

— (1995), O conhecimento da literatura. Introdução aos estudos


literários, Coimbra: Almedina.

Savater, Fernando (199810), El valor de educar, Barcelona: Ariel.

Scholes, Robert (1992), «Canonicity and Textuality», in Gibaldi,


Joseph (ed.),Introduction to Scholarship in Modern Languages and
Literatures, N.Y.: M.L.A.

Thomson, Jack (1998), Understanding Teenagers’ Reading: Reading


Processes and the Teaching of Literature, Norwood, St. Aust.:
Australian Association for the Teaching of English.

— (ed.) (1992), Reconstructing Literature Teaching: New Essays on


the Teaching of Literature, Norwood, St. Aust.: Australian Association
for the Teaching of English.

S-ar putea să vă placă și