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Nº 168


Fevereiro 2010

Fevereiro 2010 Nº 168 R$ 9,50


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CAÇA À
ENERGIA ESCURA

INOVAÇÃO NA
INDÚSTRIA
DA CERÂMICA

UNIVERSIDADES
UNIDAS PELA
BIOENERGIA
PESQUISA FAPESP

ENTREVISTA
ELISALDO CARLINI
MACONHA COMO
REMÉDIO

Cogumelos
iluminam
a floresta
ISSN 1519-8774

9 771519 87700 1 00168


>> ESPECIAL CRODOWALDO PAVAN

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168 FEVEREIRO 2010 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

> CIÊNCIA 92 ENGENHARIA NAVAL


Laboratório da Poli-USP
42 BIOLOGIA CELULAR amplia o estudo
A manipulação da de projetos de navios,
autodigestão celular plataformas
inspira novas e da exploração
estratégias para de petróleo no mar
combater doenças

48 MEDICINA > HUMANIDADES


CASSIUS STEVANI/USP

Efeitos nocivos limitam

REPRODUÇÃO/GILDA DE MORAES ROCHA


potenciais usos
terapêuticos da
curcumina

52 COSMOLOGIA
> CAPA > POLÍTICA CIENTÍFICA Astrônomos e físicos
14 Mecanismo que E TECNOLÓGICA do mundo todo tentam
faz cogumelos desvendar do que são
brilharem leva 26 COOPERAÇÃO feitos 96% do Universo
a método para detectar Com investimentos do
contaminação governo paulista, 58 QUÍMICA
das universidades Fluorescência de
> ENTREVISTA estaduais e da FAPESP, raios X dá acesso à 94 LITERATURA
8 Especialista em será criado o Centro intimidade de pinturas Projeto recupera
psicofarmacologia, Paulista de Pesquisa do século XIX trajeto da criação de
Elisaldo Carlini em Bioenergia Mário de Andrade
diz que é hora de
reconhecer as 30 BIOENERGIA > TECNOLOGIA 100 MÚSICA
qualidades médicas Laboratório em Villa-Lobos deixa
da maconha no Brasil Campinas vai investir 84 ENGENHARIA DE de ser ícone
em gargalos da pesquisa MATERIAIS nacionalista para
do álcool de celulose Inovações nos processos ressurgir como grande
> ESPECIAL e esmaltes especiais compositor moderno
63 CRODOWALDO PAVAN 32 ENSAIOS CLÍNICOS colocam indústria
A contribuição à Rede de pesquisa em paulista de 104 HISTÓRIA CAPA MAYUMI OKUYAMA | FOTO CASSIUS STEVANI/USP

biologia, à política hospitais de ensino revestimentos Os anos no Brasil


científica e tecnológica é ampliada cerâmicos em novo marcaram a vida
ACERVO HANS BURLA/COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

e à difusão da ciência patamar de qualidade e a obra do


34 HOMENAGEM historiador francês
Oscar Sala aliou 88 Parceria entre Fernand Braudel
excelência científica indústrias de Pedreira
à liderança institucional e centro de pesquisa
resulta em ganhos na
produção de produtos
de decoração

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 4 CARTAS 5 CARTA DA EDITORA 6 MEMÓRIA 20 ESTRATÉGIAS 38 LABORATÓRIO
62 SCIELO NOTÍCIAS 80 LINHA DE PRODUÇÃO 108 RESENHA 109 LIVROS 110 FICÇÃO 112 CLASSIFICADOS

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IMAGEM DO MÊS
*

Dino
em cores
Numa descoberta pioneira, paleontólogos
do Reino Unido, da Irlanda e da China
conseguiram vislumbrar a cor de um pequeno
dinossauro bípede e carnívoro, de pouco
mais de um metro de comprimento. Segundo
pesquisa publicada na revista Nature,
o Sinosauropteryx, encontrado na região
de Jehol, no nordeste da China, era laranja
e branco e tinha a cauda listrada. Estruturas
vinculadas à pigmentação de pele e penas,
conhecidas como melanossomos, foram
identificadas em cerdas da cauda de um fóssil
de mais de 100 milhões de anos. Melanossomos
são organelas que contêm cor e são
encontradas na estrutura das penas e pelos
de pássaros e mamíferos. Como integram
uma estrutura rígida de proteína, podem
resistir por centenas de milhões de anos.
A pesquisa, liderada por Mike Benton, da
Universidade de Bristol, também encontrou
melanossomos em partes do corpo de
um fóssil do pássaro primitivo Confuciusornis.
Foram encontrados padrões nas cores
branca, preta e marrom-alaranjada.
JIM ROBINS/UNIVERSIDADE DE BRISTOL

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CARTAS
cartas@fapesp.br

Copenhague tratadas direta e privadamente com eles lizados artigos de Pesquisa FAPESP. Em
mesmos; 4) o Brasil possui um sistema primeiro lugar, queria parabenizá-los
Parabéns pela reportagem “Sob o signo de revisão ética de pesquisa de seres pelas publicações, que aparentam ter
de Copenhague” (edição 166), de Fa- humanos de excelente qualidade. Em um altíssimo grau de qualidade.
brício Marques. O artigo relaciona os relação a outros sistemas nacionais de
efeitos da falta de freios ao problema revisão ética, o sistema CEP’s – Conep Lucas Sales Fidelis
das emissões de CO2 no planeta, que não se subordina ao governo, mas ao Santo André, SP
deveriam ter sido a tônica da confe- Conselho Nacional de Saúde; 5) o siste-
rência. Além de quantificar os efeitos, o ma entende – e o MS também – que sua Nota da Redação: Mais informações na
artigo projeta as consequências sociais principal tarefa é garantir a integridade página 24 desta edição.
sobre as regiões Norte, Centro-Oeste e física e psíquica dos sujeitos da pes-
Nordeste do Brasil, concluindo, muito quisa. A competitividade do Brasil no
sabiamente, pelo aumento do problema mercado mundial de pesquisa clínica Vídeos no site
social nestas regiões brasileiras devido é importante, mas deve subordinar-se
à falta de decisões das nações ricas e àquela tarefa; 6) a Rede Brasileira de Muito bom o vídeo das saúvas na nova
seu desinteresse pelo futuro das regiões Pesquisa sobre o Câncer é também uma área do site de Pesquisa FAPESP (www.
mais pobres. iniciativa conjunta do MCT, através do revistapesquisa.fapesp.br). Agradeço
CNPq, e do MS. o compartilhamento das informações.
Francisco J.B. Sá Que a autora do vídeo, Joana Fava Al-
Salvador, BA Reinaldo Guimarães ves, possa realizar muitos mais.
Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos
Estratégicos/Ministério da Saúde I.R. Hesse
Pesquisa clínica Brasília, DF Guarulhos, SP

Sobre a reportagem “Ensaio de orques- Nota da Redação: Leia reportagem na


tra” (edição 166) gostaria de fazer al- página 32 desta edição. Correções
guns comentários: 1) a pesquisa clínica
para a avaliação de segurança, eficácia A Universidade Hasselt fica na Bélgica
e efetividade de medicamentos talvez Lévi-Strauss e não na Holanda como consta na nota
seja o único campo de pesquisa em “Embalagens animadas”, da seção Linha
saúde no Brasil cujas decisões funda- Pesquisa FAPESP sempre me faz evo- de Produção (edição 167).
mentais não são tomadas no país. São luir na condição humana, de educa-
os escritórios centrais de grandes em- dora, com temáticas atuais, bebendo A palavra lazer foi grafada erroneamen-
presas multinacionais que tomam essas diretamente da mais “saudável” fon- te como laser na nota “Quem faz menos
decisões, segundo as suas prioridades. te que ilumina o universo, a ciência. exercícios físicos” (edição 167).
Temos, portanto, a necessidade de aten- Atrevo-me a dizer que a reportagem
der as prioridades brasileiras. Infeliz- que traz Lévi-Strauss (“A tristeza dos Os povos maias não foram extintos,
mente, a reportagem não foi capaz de trópicos”, edição 166) deixou um gosto como se afirmou erroneamente na
perceber esse aspecto; 2) para tentar de quero mais, e desde já peço desculpa nota “O dia a dia dos maias”, publica-
modificar esse quadro, desde 2005 o pela ousadia, visto que pouco sei sobre da na página 40 da edição 166. Seus
Ministério da Saúde (MS), em coope- diferença, diversidade, estruturalismo, descendentes somam quase 6 milhões
ração com o Ministério da Ciência e alteridade, antropologia, mas, assim de pessoas que vivem no México e em
Tecnologia (MCT), vem construindo sendo, ela poderia ser mais extensa e países da América Central.
a Rede Nacional de Pesquisa Clínica mais “povoada” de olhares.
em Hospitais de Ensino, que hoje reú- O título “Leitor, amigo meu, meu igual,
ne 32 centros nos quais já foram in- Andréia Viviane Correa meu irmão”, que consta da edição 162,
vestidos R$ 52 milhões. A reportagem Igrejinha, RS se refere ao verso “Hypocrite lecteur,
ignorou a iniciativa; 3) a existência da mon semblable, mon frère”, do poema
Rede tem também cumprido o papel de Au lecteur, de Charles Baudelaire.
melhorar o padrão de relacionamento Vestibular da Unicamp
entre os contratantes de ensaios e os
contratados. É preciso institucionali- Sou um estudante em época de vestibu- Cartas para esta revista devem ser enviadas para
zar essa relação, pois até alguns anos lar e já realizei o exame da Universidade o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181
ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP,
atrás pesquisadores utilizavam meios Estadual de Campinas (Unicamp) no CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas
públicos para realizar pesquisas con- qual, na prova de química, foram uti- por motivo de espaço e clareza.

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CARTA DA EDITORA

FUNDAÇÃO DE AMPARO À
PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CELSO LAFER
PRESIDENTE

JOSÉ ARANA VARELA


Matérias luminosas e escuras
VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR Mariluce Moura - Diretora de Redação


CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER,
HORÁCIO LAFER PIVA, HERMAN JACOBUS CORNELIS
VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA
MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA
BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO,
VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

C
ogumelos povoam há muito tempo o imagi- alguns em andamento, outros previstos para ini-
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO
RICARDO RENZO BRENTANI
nário infantil. Mais coloridos ou menos colo- ciar nos próximos anos que procuram desvendar
DIRETOR PRESIDENTE
ridos, eles podem, como nos contos de fada, o que realmente são a energia escura e a matéria
CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
DIRETOR CIENTÍFICO ser muito grandes e servir de abrigo para fadas e escura que, tudo indica, compõem quase 96% do
JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER
DIRETOR ADMINISTRATIVO
gnomos, recordaram-me crianças antenadas. E Universo. Esses dois tipos de, digamos, elementos,
quando luminosos, lembraram-me elas, podem descobertos nos últimos 80 anos, permanecem
funcionar como belas luminárias em labirínticos tão intrigantes, apesar de toda a pesquisa teórica e
formigueiros, a exemplo do que se vê no filme de experimental que têm mobilizado, que não chega a
ISSN 1519-8774
animação Vida de inseto. É certo que cogumelos soar estranho que ainda se possa dizer da energia
CONSELHO EDITORIAL
LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS também alimentaram sonhos juvenis, delírios li- escura em relação à matéria escura que se trata de
(COORDENADOR CIENTÍFICO),
CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ,
CYLON GONÇALVES DA SILVA, FRANCISCO ANTÔNIO
sérgicos rasgados de luz, em décadas inclinadas a “algo que não se sabe muito bem o que é afetando
BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO
ENGLER, JOÃO FURTADO, JOSÉ ROBERTO PARRA,
experiências perceptivas radicais. Mas é mesmo à de alguma forma outra coisa sobre a qual não se
LUÍS AUGUSTO BARBOSA CORTEZ, LUÍS FERNANDES
LOPEZ, MARIE ANNE VAN SLUYS, MÁRIO JOSÉ
fantasia de Vida de inseto que a reportagem de capa tem o menor conhecimento”, conforme escreveu o
ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO
BRENTANI, SÉRGIO QUEIROZ, WAGNER DO AMARAL,
desta edição de Pesquisa FAPESP remete logo nas autor da reportagem, o editor de ciência, Ricardo
WALTER COLLI
primeiras linhas do texto para contar com graça Zorzetto (página 52).
DIRETORA DE REDAÇÃO
MARILUCE MOURA os bons resultados da pesquisa com cogumelos O destaque na seção de política científica e
EDITOR CHEFE
NELDSON MARCOLIN
bioluminescentes que vem sendo empreendida tecnológica vai para a reportagem sobre o Cen-
EDITORES EXECUTIVOS há quase uma década por um grupo da USP. Tal tro Paulista de Pesquisa em Bioenergia (página
CARLOS HAAG (HUMANIDADES),
FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), empenho os levou à descoberta, entre 2002 e 2007, 26), fruto de um acordo de cooperação celebrado
MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA),
RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA) de 12 das 71 espécies de cogumelos luminescentes entre o governo do estado, as três universidades
EDITORES ESPECIAIS
CARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE)
já identificadas em todo o mundo até hoje, o que estaduais paulistas e a FAPESP no último dia de
EDITORAS ASSISTENTES
não é desprezível. Para além do simples encontro 2009. Como relata o editor Fabrício Marques, o
DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES
dos cogumelos, Cassius Stevani e sua turma estão que se busca com essa iniciativa é criar uma for-
REVISÃO
MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO empenhados em entender os mecanismos quími- te base científica para ampliar a competitividade
EDITORA DE ARTE
MAYUMI OKUYAMA
cos que geram a luz desses fungos e, nessa busca, já internacional da pesquisa paulista e brasileira em
ARTE depararam com um potencial uso prático que eles energia obtida de biomassa.
MARIA CECILIA FELLI
JÚLIA CHEREM RODRIGUES podem ter na detecção da contaminação do solo Em tecnologia, duas reportagens combinadas,
FOTÓGRAFOS por metais. Tudo isso é relatado em detalhes pela ambas da editora assistente Dinorah Ereno, mos-
EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN
SECRETARIA DA REDAÇÃO
editora assistente de ciência, Maria Guimarães, a tram a partir da página 84 como a indústria paulista
ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201
partir da página 14. de revestimentos conquistou qualidade com ino-
COLABORADORES
ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), CELSO No processo livre de associação a que tanto nos vações nos processos e esmaltes especiais e, ainda,
MAURO PACIORNIK, DANIELLE MACIEL, EDUARDO
GERAQUE, EVANILDO DA SILVEIRA, JOSELIA AGUIAR, acostumou a poderosa influência de Freud sobre a como a parceria do setor industrial com centros de
LAURABEATRIZ, LUIZ EDMUNDO MAGALHÃES, MARCOS
GARUTI, SALVADOR NOGUEIRA E YURI VASCONCELOS cultura no século XX, os cogumelos alucinógenos pesquisa nesse segmento da cerâmica resultou em
OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM acima mencionados levam naturalmente ao texto considerável redução na perda de produtos, sempre
NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL
que nesta edição trata da maconha – ou melhor, melhores. Para mostrar os efeitos da pesquisa tec-
DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
das razões farmacológicas, alegadas por diferentes nológica sobre o setor, Dinorah, depois de abordar
PARA ANUNCIAR
(11) 3838-4008
grupos de cientistas, para que a maconha seja aceita a cerâmica de Santa Gertrudes, foi até Pedreira,
PARA ASSINAR para uso médico no Brasil. Refiro-me à corajosa cidade na qual é sensível a influência do Centro de
FAPESP@TELETARGET.COM.BR
(11) 3038-1434 entrevista de Elisaldo Carlini, 79 anos, concedida Cerâmica, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e
FAX: (11) 3038-1418
GERÊNCIA DE OPERAÇÕES
ao editor chefe, Neldson Marcolin, e ao editor de Difusão (Cepids) apoiados pela FAPESP.
PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008
e-mail: publicidade@fapesp.br
ciência, Ricardo Zorzetto, em que ele explica em Para concluir, peço atenção à reportagem de
GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO termos científicos e históricos por que, em sua vi- abertura da seção de Humanidades (página 94).
RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3838-4304
e-mail: rute@fapesp.br são, o país precisa deixar de lado a demonização Nela, o editor Carlos Haag trata de um projeto de
IMPRESSÃO
PLURAL EDITORA E GRÁFICA
da maconha e admitir o lado positivo da Cannabis pesquisa em que se busca desvendar o processo
TIRAGEM: 37.300 EXEMPLARES sativa. Carlini, que é, aliás, contra o uso de qualquer de criação literária de Mário de Andrade a partir
DISTRIBUIÇÃO
DINAP
droga para fins recreativos, há 50 anos pesquisa de seus próprios manuscritos e de sua correspon-
GESTÃO ADMINISTRATIVA obsessivamente a ação da Cannabis sobre o orga- dência. De presente para o leitor, esse pequeno tre-
INSTITUTO UNIEMP
FAPESP
nismo humano, daí a autoridade e a tranquilidade cho que dá início à reportagem, no qual o escritor
RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901
ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP
com que ele discorre sobre o tema e os preconceitos discorre sobre seu processo criativo: “Isso corria
SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR
que o cercam, a partir da página 8. É uma prosa de o mês de abril. Peguei um resto de caderno em
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO especial sabor que não se deve perder. branco, e na letrinha penteada dos calmos come-
A seção de ciência tomará mais um pedaço ços de livro comecei escrevendo. Mas logo a letra
desse editorial porque é imprescindível destacar ficou afobada, rapidíssima, ilegível para os outros,
a reportagem que trata da participação de bra- frases parando no meio com ortografias mágicas...”
INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO sileiros na série de experimentos internacionais, Maravilhoso, não?

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MEMÓRIA
Mais de 5 milhões de
pessoas são contaminadas a
cada ano pelo HIV. O médico
Dráuzio Varella (abaixo)

AIDS pede atenção e prevenção

INFLUENZA

AS PESTES
Museu de Microbiologia do Instituto
Butantan inaugura a exposição itinerante
As grandes epidemias | Neldson Marcolin

A
pandemia de gripe suína que assustou o planeta de Alessandra Fernandes Aids e influenza (gripe).
no ano passado trouxe à lembrança um fato que Bizerra e Milene Tino de Os filmes foram feitos pelo
andava esquecido: não importa quanto Franco, a diretora do museu. cineasta André Luiz de
conhecimento, tecnologia e informação estejam “Certamente a Luiz a partir do roteiro das
disponíveis, sempre existirá o risco de epidemias. população e os envolvidos curadoras e são didáticos,
A peste negra (ou bubônica) foi responsável por com a área da saúde repletos de imagens e de
pelo menos 10 epidemias entre 1400 e 1720, devem se preocupar com entrevistas com o próprio
quando se estima que tenham morrido 25 milhões de as epidemias”, diz Isaias Raw, o médico Dráuzio
pessoas no total. A varíola matou e deformou milhões Raw, do conselho Varella e o secretário
na metade do século XVII na Europa. A meningite causou técnico-científico da estadual da Saúde, Luiz
enormes transtornos na saúde pública até a metade dos Fundação Butantan. É dele Roberto Barradas Barata.
anos 1970 no Brasil. A Aids e a gripe – esta de modo a concepção da exposição, Todos usam uma
sazonal – seguem infectando pessoas em todos os países. imaginada há alguns anos linguagem simples para
A exposição As grandes epidemias, que pode ser visitada e concretizada agora com falar de história, saúde,
no Centro de Difusão Científica do Instituto Butantan, em apoio FAPESP/Vitae. Na ciência e, principalmente,
São Paulo, fala de um assunto que continua relevante nos mostra há painéis ilustrados da importância da
dias de hoje. “Queremos informar e alertar o público para e cinco filmes de até vacinação. A exposição,
o perigo que as epidemias representam”, explica Gláucia sete minutos. Cada um deles gratuíta, deverá ser levada a
Colli Inglez, coordenadora do Museu de Microbiologia trata de uma epidemia: outras regiões da capital
do Instituto Butantan e curadora da exposição ao lado peste, varíola, meningite, paulista em breve.

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PESTE NEGRA

A infecção era atribuída aos miasmas


e castigo divino. Em 1894, Alexandre
Yersin e Shibasaburo Kitasatu
identificaram o agente responsável
pela doença, a bactéria Yersinia pestis

A gripe espanhola matou cerca de


40 milhões na primeira metade
do século XX. Hoje, Isaias Raw
(ao lado) defende a vacinação
para prevenir a gripe suína

A epidemia de meningite foi


censurada pelos militares por
dois anos. Segundo Barradas
(abaixo), a vacina foi aplicada
MENINGITE na população paulista em 15 dias

VARÍOLA
FOTOS MUSEU DE MICROBIOLOGIA/
INSTITUTO BUTANTAN

A varíola matou e deformou


milhões, mas foi extinta em
1984. Foi a primeira vez que uma
doença infecciosa foi abolida da
Terra graças à vacinação

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ENTREVISTA

Elisaldo Carlini
O uso medicinal da maconha
Especialista em psicofarmacologia diz que já está mais do que na hora
de reconhecer as qualidades médicas da droga no Brasil

Neldson Marcolin e Ricard o Zorzet to

O
médico Elisaldo Carlini parece mente para tratar dessa questão. Carlini 1888, que guardo até hoje, com a receita
ter uma obsessão como espe- vê grande preconceito contra a maconha, da maconha para vários males. Era uma
cialista em psicofarmacologia, mas aposta que se os pesquisadores insis- terapêutica corrente no mundo todo, in-
área que ajudou a difundir no tirem na direção correta, com o apoio da clusive no Brasil. O simpósio internacio-
Brasil nos anos 1960 depois de ciência, essa aprovação será obtida algum nal terá o título “Uma agência brasileira
uma passagem de quatro anos dia. É preciso ressaltar que esse médico de da Cannabis medicinal?”. A Organização
pelos Estados Unidos, três de- 79 anos é contra o uso dessa e de outras das Nações Unidas (ONU) reconhece que
les na Universidade Yale. O foco de seu drogas para fins recreativos. a maconha pode ser medicamento – ape-
trabalho é procurar entender como a Carlini tem uma atuação social que, sar da proibição da Convenção Única de
Cannabis sativa – a maconha – age no por vezes, ofusca o cientista. Ele é o cria- Entorpecentes, de 1961 – desde que os
organismo humano, seu alvo de pesqui- dor do Centro Brasileiro de Informações países oficializem uma agência especial
sa há 50 anos. Herdou esse interesse de sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) – para Cannabis e derivados nos seus mi-
José Ribeiro do Valle, seu professor de um importante fornecedor de informa- nistérios da Saúde. Já há uns 10 países que
farmacologia na Escola Paulista de Medi- ções para a formulação de políticas de fazem esse uso: Estados Unidos, Canadá,
cina na década de 1950. Desde então tem educação – e da Sociedade Brasileira de Reino Unido, Itália, França, Alemanha,
trabalhado no sentido de desmitificar o Vigilância de Medicamentos (Sobravi- Espanha, Suíça, entre outros.
conceito de que a maconha é uma droga me), em 1990. Entre 1995 e 1997 esteve
maldita, sem utilidade. à frente da Secretaria Nacional de Vigi- ■ Quando e como o senhor decidiu eleger
Nas décadas de 1970 e 1980 liderou lância Sanitária, órgão predecessor da a maconha como objeto de estudo?
no Brasil um grupo de pesquisa publi- atual Anvisa, onde enfrentou a espinhosa — Quando entrei na Escola Paulista de
cando mais de 40 trabalhos em revistas missão de combater a corrupção no setor. Medicina [a EPM, hoje Universidade Fe-
científicas internacionais. Esses resulta- Com sucesso, diga-se. Atualmente está deral de São Paulo (Unifesp)] em 1952. E
dos, juntamente com as investigações de no sétimo mandato como membro do como aluno do 2º ano comecei a me in-
outros grupos internacionais, possibili- Expert Advisory Panel on Drug Depen- teressar pela farmacologia e estagiei com
taram o desenvolvimento no exterior de dence and Alcohol Problems, da Orga- o professor José Ribeiro do Valle. Ele foi
medicamentos à base de Cannabis sativa nização Mundial da Saúde (OMS). Tem o primeiro que fez trabalhos verdadeira-
utilizados atualmente em vários países seis filhos e cinco netos. Em dezembro, mente científicos sobre a Cannabis sativa
do mundo para tratamento da náusea e entre uma reunião e outra, Carlini deu em animais de laboratório no Brasil.
dos vômitos causados pela quimioterapia a entrevista abaixo.
do câncer, para melhorar a caquexia (en- ■ Quais experimentos?
fraquecimento extremo) de doentes com ■ Qual será a proposta do simpósio inter- — Ele procurava saber os tipos de reação
HIV e câncer e para aliviar alguns tipos nacional sobre maconha, que ocorrerá em [comportamental] que os animais apre-
FOTOS EDUARDO CESAR

de dores. Para ele, já está mais do que na maio em São Paulo? sentam quando submetidos aos efeitos da
hora de reconhecer o uso medicinal da — Vamos propor que a maconha seja maconha e queria quantificar a potência
maconha no Brasil. aceita para uso médico no Brasil. Meu dos diferentes tipos dessa planta. Naquela
Em maio deste ano haverá um simpó- avô se formou médico no fim do século época, a psicologia experimental estava
sio internacional em São Paulo especial- XIX e naquela época já usava um livro de pouco desenvolvida no Brasil. Em 1960

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fui para os Estados Unidos com a missão ■ Como o senhor voltou para a EPM? tas. Estamos desenvolvendo o programa
de estudar técnicas mais modernas de — Quando me avisaram que não queriam Planfavi, Planta e Farmacovigilância, e
neuroquímica e psicologia experimental mais pesquisa na Santa Casa. Como não alertamos também para os perigos dos
para introduzir aqui. Foi o que fiz quan- queria apenas dar aula, fui para a EPM produtos naturais.
do retornei, em 1964. e falei com o diretor, professor Horácio
Kneese de Mello. Perguntei se ele aceitava ■ Comparado com o cigarro de nicotina, o
■ O senhor foi logo depois de acabar a que fosse para lá e desse um curso que não cigarro de maconha é pior ou melhor?
graduação? existia lá naquele tempo, de psicofarma- — Tenho dificuldade em dar uma res-
— Não, me formei em 1957 e trabalhei cologia, junto ao curso de farmacologia posta definitiva. Não há dúvida hoje de
como assistente voluntário da farmaco- do Ribeiro do Valle. Ele aceitou e prome- que o cigarro normal é cancerígeno. Nós
logia até 1960 com bolsa da Fundação teu que assim que abrisse a primeira vaga sabemos que a maconha tem também
Rockefeller. Foi quando ganhei outra eu seria efetivado. Dois anos depois isso substâncias cancerígenas. A folha da
bolsa, mas para ir para os Estados Uni- ocorreu. Entrei como professor-adjunto, maconha é coberta por uma camada de
dos. Fiquei lá quatro anos e fiz o mestra- depois me tornei titular. cera que tem naftaleno, antraceno... Se
do na Universidade Yale. Quando voltei esfregarmos o sarro da maconha na pele
não consegui lugar na EPM, apesar dos ■ Lá o senhor continuou os estudos sobre de rato, naqueles que nascem sem pelo,
esforços do Ribeiro do Valle. Fui para a a maconha? o animal passa a ter câncer depois de 50
Faculdade de Medicina da Santa Casa de — Continuei no assunto. Quando estu- semanas da administração. Ocorre que
Misericórdia de São Paulo, que começava damos a história da maconha, é fácil ver não se usa a maconha da mesma forma
a funcionar. que na proibição de seu uso médico não que o cigarro, com a mesma intensidade
há nada de científico, e sim de ideológico. e frequência. Outra diferença é que o ci-
■ Por que o senhor não foi contratado pela Até o início do século XX a maconha era garro tem um efeito bastante sério para
EPM? considerada um excelente medicamento. o coração. Já a maconha não tem esse
— Não havia vagas. Em 1964 eu era ca- Ela era importada da França na forma problema. Com relação à parte clínica
sado, tinha três filhos. Fiquei dois meses de cigarros que se chamavam Grimaldi. existem demonstrações, segundo vários
na EPM e fui para a Santa Casa, de onde Depois, dos anos 1930 em diante, a ma- autores, o que precisa ser confirmado,
saí em 1970. Foi lá que comecei a fazer de conha virou uma droga maldita. O go- que o uso da maconha pode facilitar o
fato meus estudos sobre maconha com verno egípcio chegou a dizer que ela era aparecimento de câncer em certas pes-
testes comportamentais. uma droga totalmente destruidora, que soas se usada de maneira desbragada.
mereceria o ódio dos povos civilizados. Não conseguimos ainda fazer um estudo
O Brasil participou da criminalização epidemiológico suficientemente grande
da maconha por meio de uma mentira como os realizados com o cigarro, em
levada pelo representante brasileiro na que centenas de milhares de pessoas já
Liga das Nações, antecessora da ONU. foram entrevistadas. Para isso é preciso
Em 1925, a Liga das Nações fez a segunda acompanhar muita gente que use con-
Quando conferência internacional sobre o ópio tinuamente a maconha e seja suscetível
com 44 países presentes, entre os quais aos efeitos dela.
estudamos o Brasil. Era para discutir como contro-
lar o ópio, mas o Egito entrou com o ■ O senhor é favorável ao uso da maconha
a história da tema maconha. E o representante bra- como recreação?
sileiro, Ulisses Pernabucano Filho, disse — Não sou. Não sou favorável a nenhum
maconha, que ela era mais perigosa que o ópio no uso de droga para “dar barato”, que altere
nosso país. Isso era, naturalmente, in- a mente sem a real necessidade disso. Mas
é fácil ver que correto. Primeiro porque a maconha é sou muito favorável ao uso da morfina,
muitíssimo menos perigosa que o ópio; por exemplo, como analgésico. Seria um
na proibição segundo, o ópio nunca foi um problema absurdo total proibir o uso da morfina
aqui. O resultado disso é que a Liga das ou do ópio porque podem produzir
de seu uso Nações condenou a maconha. Depois dependência forte. O que não posso é
que a ONU foi criada houve a primeira difundir o uso recreativo da morfina,
médico não Convenção Única de Entorpecentes em mas devo difundir, e muito, o uso da
1961, assinada por mais de 200 países morfina como um agente extremamente
há nada colocando a Cannabis numa lista, junto poderoso para dar qualidade de vida nos
com a heroína, como droga particular- momentos finais de um canceroso que
de científico, mente perigosa. É algo que não tem razão morre urrando de dor, por exemplo. No
científica nos dias de hoje. caso da maconha, há relatos científicos
e sim dizendo que a droga é uma substância de
■ De qualquer forma, é indiscutível que a primeira linha para tratar certas dores.
de ideológico maconha tem efeitos tóxicos. Não dores comuns, como uma dor de
— Claro que tem, como todos os medica- cabeça, de dente ou cólica, mas as mio-
mentos. Não existe nenhum remédio em páticas ou neuropáticas, que envolvem
que a bula diga “Não provoca nenhum músculos e nervos. A esclerose múltipla,
tipo de problema”. Isso vale para as plan- por exemplo, provoca esse tipo de dor.

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E a maconha tem um efeito muito bom ■ Esses trabalhos só serviram para os
para aliviar essas dores. No entanto, aqui outros?
no Brasil não se consegue utilizar esse — Só para o exterior. Foi a mesma coisa
recurso. Em outros países já há esse uso com a Maytenus ilicifolia, a espinheira-
bastante difundido. -santa. Fizemos um trabalho imenso com
ela. Mostramos, em animais de laborató-
■ Mesmo nos Estados Unidos, que vêm de rio e no homem, que tem um efeito pro-
um período recente muito conservador? tetor para o estômago. Publicamos muito
— Lá já existe pelo menos um medica- aqui e no exterior e não conseguimos
mento. Eles sintetizam o delta-9-tetrai- fazer uma patente. O Japão é que pediu
drocanabinol (THC), que é o princípio e conseguiu. O que me frustra mais é que
ativo da maconha, e vendem o composto no pedido de patente japonês está escrito
para o mundo inteiro: Marinol é o nome mais ou menos assim: “... a Maytenus
comercial. Foi inicialmente propagan- ilicifolia, pertencente à família Celastra-
deado para reduzir a náusea e o vômito ceae, é utilizada no folclore brasileiro
induzidos pela quimioterapia do câncer. para o tratamento de úlcera”.
Foi aprovado pela FDA [Food and Drug
Administration, agência norte-americana ■ A história se repetiu.
de controle de alimentos e medicamentos] — Isso é comum. As tentativas oficiais
com uso controlado, como deve ser. de fazer a medicina aceitar no Brasil a
maconha como medicamento vêm antes
■ E é possível importar o medicamento da década de 1990. Em 1995, como secre-
no Brasil? tário nacional da Vigilância Sanitária, eu
— É proibido importar e usar. O interes- coordenava o registro de medicamentos
sante é que o uso terapêutico antináusea no país. Falei para o ministro da Saúde,
foi descoberto acidentalmente por jovens Adib Jatene, que desejava organizar den-
da Califórnia que tinham leucemia, o tro da Vigilância Sanitária uma reunião
câncer sanguíneo. Eles recebiam o qui- para discutir se o delta-9-THC poderia
mioterápico e, aos sábados, saíam para se ser licenciado como medicamento con-
divertir e fumavam maconha. Os jovens delta-9-THC. Essa mistura foi lançada tra náusea e vômito na quimioterapia
passaram a descrever para seus médicos com o nome comercial de Sativex dentro do câncer. Ele concordou e falei com
que não sentiam nem náusea nem vômito de uma bombinha, como as de asma, pa- o presidente do Conselho Nacional de
quando estavam sob o efeito da droga. ra usar direto na boca. Cada dose libera Entorpecentes, Luiz Mathias Flack, que
Os especialistas começaram a investigar, 5 miligramas do delta-9-THC. também aceitou. Os dois abriram a reu-
fizeram trabalhos e demonstraram clara- nião. Mas não conseguimos fazer nada.
mente que havia um efeito antinauseante. ■ Qual a indicação? Os médicos não aceitaram.
Mais tarde estudaram outra consequência — Dores neuropáticas, náusea e vômito
do uso da maconha, chamada popular- da quimioterapia do câncer, caquexia e ■ Qual a razão dessa resistência? Seria o
mente de larica, a fome exagerada que o esclerose múltipla. O interessante é que fato de a maconha ser conhecida como uma
sujeito tem depois de fumar. Dessa vez quem pela primeira vez mostrou que porta de entrada para outras drogas?
também comprovaram os efeitos e pa- misturando canabidiol com delta-9- — Mas nós estávamos falando de medi-
tentearam o medicamento Marinol para THC em determinadas concentrações camento, não de recreação. Organizamos
a caquexia, a perda exagerada de peso que se modula melhor o efeito da maconha outras reuniões, inclusive uma aqui na
ocorre no câncer e na Aids. foi o nosso Departamento de Psicofar- Unifesp, em 2004, com especialistas do
macologia da Unifesp. Daqui se originou exterior. Essa deu um primeiro resultado
■ É possível fazer chá em vez de fumar? o trabalho na Inglaterra. Isso é reconhe- positivo. O general Paulo Yog de Miranda
— Não, porque os compostos que estão cido internacionalmente. O canabidiol Uchôa, da Senad [Secretaria Nacional de
nas folhas não são solúveis. O delta-9- modula o efeito do delta-9-THC, de tal Políticas sobre Drogas], estava presente e
THC é vendido em cápsulas gelatinosas, maneira que o delta-9-THC, na presença aceitou que o governo brasileiro deveria
dada a sua natureza lipídica. Há também do canabidiol, gera menos ansiedade e solicitar à ONU, por meio do Itamaraty,
um canabinoide sintético, chamado Na- age por um tempo maior. que a maconha fosse retirada da lista das
bilone, utilizado no Canadá. E acabou drogas malditas, dado ter sido o próprio
de ser lançado também no Canadá e na ■ Quando vocês demonstraram isso? governo brasileiro quem havia colocado
Inglaterra uma mistura de duas cepas — São estudos da década de 1970 e a maconha nessa situação. Esse pedido
de maconha. Ambas são de Cannabis 1980 com trabalhos publicados na Bri- está sendo encaminhado à ONU.
sativa. Uma delas produz canabidiol, tish Journal of Pharmacology, Journal of
que é o precursor do delta-9-THC. E Pharmacy and Pharmacology e European ■ O senhor não é a favor da legalização da
outra possui alto teor de delta-9-THC. Journal of Pharmacology, revistas de alto maconha de modo geral?
A firma inglesa GW Pharmaceuticals faz nível. Mas nunca conseguimos tirar na- — Sou contra a legalização porque acho
dois extratos dessas plantas. A estratégia da de positivo desses trabalhos aqui no que o ser humano não precisa usar dro-
é misturar os dois, de maneira a ter uma Brasil para gerar algum produto. Não é gas que apenas poluem corpo e mente
quantidade adequada do canabidiol e do prioridade para o país. com objetivos recreativos. Sou a favor da

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mento. Essa é nossa linha atual. O projeto
é longo e deve demorar até ter resultados
mensuráveis. No momento recrutamos
pacientes alcoolistas para participarem
da pesquisa. [A adesão pode ser feita pelo
telefone (11) 5084-1084, com Valéria.]

■ Como o senhor vê a política de redução


de danos, como distribuição de seringas
para viciados?
— Acho muito bom. É algo combatido
por parte da sociedade porque não se re-
conhece que dependência é doença. Para
algumas pessoas, quem tem de receber
seringa é o diabético, e não o “viciado”. O
que não se sabe é que o grau de depen-
dência e sofrimento dele é imenso. Ele
tem de ser tratado como um doente.

■ Podemos dizer que os trabalhos dos anos


1960 sobre privação de sono e agressividade
maconha como medicamento, usado sob ■ Estamos falando de drogas e ainda não de ratos resultaram nas linhas de pesquisa
controle. A descriminalização já existe citamos o álcool. sobre sono e no próprio Instituto do Sono,
no Brasil. Ninguém mais vai preso, nem — O álcool é uma droga psicotrópica. liderado pelo professor Sérgio Tufik?
se faz boletim de ocorrência, se é pego Produz efeito no sistema nervoso central — O Sérgio foi meu aluno na Faculdade
com poucos gramas hoje. A não ser que e gera dependência. Uma droga psicoati- de Medicina da Santa Casa e no dou-
o policial assim queira. va é aquela que age no sistema nervoso, torado. Os primeiros trabalhos sobre
mas não gera dependência porque não privação de sono paradoxal e maconha
■ O senhor fuma? tem propriedades reforçadoras. Já a dro- nós fizemos juntos. Não há dúvida de
— Maconha não. Fumei cigarro normal ga psicotrópica age no cérebro, produz que saiu daqui. Ele é de uma inteligência
durante muito tempo. Parei há mais de seu efeito – analgesia, sono, euforia, ale- incomum e se encaixa naquele perfil raro
20 anos por um motivo curioso, quando gria, relaxamento – e ao mesmo tempo de cientista que vê o que todos veem e
ainda não havia provas cabais dos prejuí- reforça essas sensações no indivíduo. Ele pensa o que ninguém pensou.
zos do fumo. Eu estava no aeroporto de sente bem-estar ou prazer, que é muito
Cumbica, em Guarulhos, recém-inaugu- importante para ele. Facilmente a pessoa ■ Como nasceu o Cebrid?
rado. Tudo era muito novo, o carpete, as se torna dependente. Para mim, o álcool — Eu queria muito conhecer a situação
cadeiras, tudo. Fui pegar um café e deixei é a droga mais terrível que existe no das drogas no Brasil assim que voltei dos
o cigarro na ponta do cinzeiro. Quando mundo. No Levantamento Domiciliar Estados Unidos, mas não conseguia. Já
voltei ele tinha caído e provocado um de 2005, feito pelo Cebrid, foi aplicado tinha começado um esboço do Cebrid na
rombo no carpete novinho. Aquilo me nas 108 maiores cidades do país um Santa Casa e percebi que teria de produ-
deu uma vergonha enorme. Parei de fu- teste para verificar o risco de haver de- zir as informações porque havia poucos
mar depois disso e não sinto falta. pendência do álcool. Deu que 12,3% da dados confiáveis. O jeito foi começar a
população entrevistada corre esse risco. fazer a coleta dos dados para deixá-los
■ O senhor citou a morfina como um me- É gente demais, corresponde a mais de disponíveis em um arquivo. Começa-
dicamento também muito temido pelos 20 milhões de brasileiros. No momento, mos procurando trabalhos sobre abuso
médicos. fazemos um trabalho apoiado pela FA- de drogas em todas as bibliotecas aqui
— Na minha época na Secretaria Nacio- PESP para tentar melhorar a adesão dos de São Paulo. Logo no início do trabalho
nal de Vigilância Sanitária acreditava-se alcoólatras ao tratamento. viemos para a Unifesp e montamos um
que apenas 5% dos pacientes com dor banco de trabalhos de pesquisadores bra-
severa, que precisavam de morfina para ■ Como é esse projeto? sileiros que escreveram sobre isso. Hoje
minorar o sofrimento – gente com câncer — Começamos conversando com o pa- são quase 4 mil, todos disponíveis para
terminal, queimados graves, politrauma- ciente, procurando entendê-lo. Depois quem quiser pesquisar. Boa parte dos tra-
tizados –, recebiam a droga. As razões são expomos quatro opções terapêuticas, in- balhos era antiga e achamos que teríamos
múltiplas e ocorrem no mundo inteiro. clusive com um filme ilustrativo. Deixa- de produzir outros estudos, mais atuais.
Existe um conceito chamado opiofobia. mos que ele vá para casa com um folheto Fizemos o primeiro levantamento entre
O médico não prescreve opiáceos, dos explicativo, pense no que quer fazer, dis- estudantes nas capitais brasileiras e en-
quais a morfina é um exemplo, por medo cuta com a família e finalmente diga para tre meninos de rua em 1987. Repetimos
de induzir à dependência. É óbvio que nós qual seria o melhor tratamento. Ele é em 1989, 1993, 1997, 2004 e devemos
a dependência é horrível, mas não para que vai escolher a técnica que julgar mais fazer mais um neste ano. Esses dados
um doente terminal ou para um poli- conveniente. Temos uma expectativa de são utilizados no Brasil como fonte de
traumatizado. É muito difícil vencer essa que o doente, sendo senhor da situação informações para se elaborarem políticas
fobia dos médicos. que o envolve, possa aderir mais ao trata- públicas educacionais.

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■ Existe um grande interesse sobre os pos- — Não, eles estão a nosso favor. Eles vie-
síveis resultados dos estudos sobre plantas ram até aqui e ficamos três dias com au-
medicinais, especialmente pela enorme toridades públicas. Um dos líderes, que
biodiversidade brasileira. Mas a expectati-
va de achar moléculas ou princípios ativos
Talvez não seja fala melhor o português, nos disse, “que
fique bem claro, se a pesquisa não sai é
que possam virar medicamentos parece
muito difícil de concretizar. Por quê?
a melhor por culpa de vocês brancos, porque nós
queremos”. Estamos nessa briga. É o go-
— De fato é difícil seguir apenas por
esse caminho. Se analisarmos os medi-
estratégia usar verno contra o governo, porque, afinal, a
Unifesp é federal. Nosso projeto já havia
camentos importados que chegam ao
Brasil atualmente, há um número gran-
um princípio sido aprovado pela FAPESP. Fechei ques-
tão em um ponto: queria que os índios
de que é feito não mais pelo princípio
ativo, mas pelo extrato seco da planta.
ativo único. tivessem direito à patente. Como índio
é tutelado pelo Estado e não pode assi-
Acredito que cometemos um erro tático
de procedimento. Nós sempre corremos
Pesquisa com nar nada, tentei interessar a Funai, mas
naquele período mudaram três ou qua-
atrás do princípio ativo da planta. Mas
ela tem dezenas, às vezes centenas de
plantas está tro ministros da Justiça e os respectivos
presidentes da Funai. A solução foi fazer
substâncias e temos de pesquisar cada
uma delas para saber qual é a responsá-
demonstrando um contrato “ético” entre a universidade
e os índios de modo que eles tivessem
vel pelo efeito que desejamos. Quando
se usa um extrato e ele produz o efeito
que a interação assegurados os direitos aos royalties pela
própria universidade. Tudo foi assinado
desejado, está ótimo, não é preciso mais
pesquisar substância por substância. Há
entre – e depois morreu completamente.

também outra vantagem: esses extratos


vêm quase sempre de plantas que fo-
componentes ■ Como foi sua passagem pela Secretaria
Nacional de Vigilância Sanitária, a atual
ram usadas popularmente por séculos
e, provavelmente, não são muito tóxicas.
é a responsável Anvisa?
— A Vigilância Sanitária tinha uma fa-
Talvez, de fato, não seja a melhor estraté-
gia utilizar um princípio ativo isolado e
pelo efeito ma medonha de corrupção, conhecida
nacionalmente. Quando aceitei o convi-
único. A pesquisa com algumas plantas
está demonstrando que a interação entre
desejado te do ministro Adib Jatene, a missão era
moralizá-la e modernizá-la. Pedi a cola-
componentes é a responsável pelo efeito boração dos funcionários para mudar a
desejado. Nosso problema é que não há fama do lugar e acho que fui atendido.
prioridade para esse tipo de pesquisa no Eu recebia muitos presentes, relógios,
Brasil. A começar pelos próprios órgãos — Não se resolveu. Até hoje a situação canetas Mont Blanc, eletrodomésticos e
do governo, que não acreditam nisso e é complicada. Somos acusados de ser decidi não devolvê-los para não criar no-
criam limitações como as impostas pelo ladrões da biodiversidade brasileira. Re- vas inimizades. Eu agradecia e mandava a
CGEN [Conselho de Gestão do Patrimô- centemente recebemos uma carta do secretária colocar em uma estante especí-
nio Genético], do Ministério do Meio Ministério Público querendo uma prova fica. Eram dezenas e dezenas de presen-
Ambiente. O CGEN sem dúvida tem de que não publicamos esse trabalho em tes. Depois levava as pessoas que davam
boas intenções e, como nós, visa prote- nenhuma revista do exterior. Na mesma os presentes para verem o que era a es-
ger nosso patrimônio genético de modo época, centenas de trabalhos de brasileiros tante. No final do ano chamava todos os
que não caia em outras mãos e também, foram publicados por diferentes universi- funcionários da Anvisa e fazia um gran-
como nós, pretende conferir direitos dades brasileiras no exterior em associa- de sorteio com esses presentes. Também
àqueles que são na realidade os donos ção com indústrias estrangeiras e, mais do afastei 15 funcionários e “fechei” de 100
do conhecimento popular. Mas na prá- que isso, há quatro estudos com plantas a 150 laboratórios fantasmas, todos com
tica estabeleceu regras tão estapafúrdias exclusivas do Brasil feitos apenas por uni- registros normais e vários participando
que acabou por impedir que o cientista versidades de fora. E nós fomos escolhidos de concorrências públicas. Isso dá uma
brasileiro trabalhasse com plantas. E há para prestar contas, não sabemos a razão. ideia do nível de desacertos do período.
outro problema: trabalho com plantas Para poder pesquisar uma planta brasilei- Também cancelei mais de 300 registros
dá pouco índice de impacto, o que gera ra, nós, farmacólogos, temos de provar que de farmácias magistrais que faziam as
pouco interesse de outros pesquisadores não estamos fazendo uma bioprospecção. famigeradas fórmulas para emagrecer.
e das agências de fomento. Bioprospecção, por definição, é qualquer Mas adiantou pouco. Saindo o Jatene e
coisa do campo da ciência que pode gerar eu deixando a Vigilância Sanitária tudo
■ Pesquisa FAPESP nº 70, de 2001, publi- no futuro um interesse comercial. Ora, voltou ao que era antes. Felizmente, lo-
cou uma reportagem sobre o trabalho da farmacologia é o estudo de medicamentos, go depois um outro ministro da Saúde
bióloga Eliana Rodrigues, orientado pelo algo que sempre poderá gerar um produto assumiu, foi criada a Anvisa e nos dias
senhor, que havia identificado 164 espécies comercial, mesmo que o pesquisador não de hoje acredito que aquela negra fase ja-
vegetais usadas pelos índios Krahô com fins queira. Pode ser um remédio, um cosmé- mais voltará. O interessante é que, depois
medicinais. Os índios cobraram da Unifesp tico, uma tinta qualquer. de tanta luta, ganhei bastante respeitabi-
uma indenização de R$ 25 milhões. Como lidade entre o pessoal da indústria e na
se resolveu a situação? ■ Vocês são processados pelos índios? própria Vigilância Sanitária. ■

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CAPA

Luzes vivas
N
o filme de animação Vida de inseto, toda a iluminação interna
do formigueiro é feita com cogumelos luminosos. “Há um
tanto de licença poética na criação”, comenta Cassius Stevani,
do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP),
“mas na essência é verdade”. De fato existem cogumelos que
emitem luz, ou bioluminescentes, e muitas formigas cultivam
fungos em suas tocas – mas não desse tipo. Stevani está empe-
nhado em entender o mecanismo químico que gera essa luminosidade
e qual a sua função no organismo. No caminho já encontrou um uso
prático: detectar contaminação por metais no solo.
Bastou meia década para Stevani e colegas descobrirem 12 espécies
de fungos luminescentes no Brasil. Entre elas estão a amazônica Mycena
lacrimans, encontrada por Ricardo Braga-Neto, do Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e uma espécie parecida com um
guarda-chuva invertido que nasce na base de palmeiras como a pia-
çava ou o babaçu, no Piauí. No mundo são 71 espécies, de acordo com
um artigo de revisão feito por Stevani em colaboração com o biólogo
norte-americano Dennis Desjardin, da Universidade Estadual de São
Francisco, na Califórnia, que em março estampará a capa da revista
Mycologia. “Deve haver muito mais espécies por descobrir”, imagina o
químico, “ainda não descritas porque são difíceis de encontrar; pouca
gente anda sem lanterna pela mata em noites sem luar”.
Até 2002 não se tinha notícia de fungos bioluminescentes no Brasil.
Ou melhor, havia uma espécie, descrita no século XIX pelo britâni-
co George Gardner com o nome científico Agaricus phosphorescens

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Mecanismo que faz cogumelos brilharem leva a método para
detectar contaminação | Maria Guimarães

(mais tarde rebatizada como Pleurotus colaboração com a primatóloga Patrí- liderei uma expedição para uma ilha
gardneri), mas hoje os especialistas em cia Izar, do Instituto de Psicologia da na Micronésia, no oceano Pacífico, on-
fungos questionam essa classificação, USP – que ele imediatamente procu- de os cogumelos nunca tinham sido
baseada em espécies semelhantes na rou em busca da pista do cogumelo. documentados; das 128 espécies que
Europa. E ficava difícil corrigir o erro É uma dessas histórias de acaso, em encontramos, sete eram luminescen-
porque a única amostra preservada que informações precisam correr o tes”, conta, deixando claro que os fun-
está num herbário na Inglaterra. mundo antes de chegarem quase ao gos brilhantes são minoria.
Um cogumelo que parece ser da mesmo lugar. O Brasil é promissor porque tem
mesma espécie foi recentemente encon- Deu certo: o dono da propriedade uma imensa área de floresta cujos
trado brilhando na base de uma pal- onde Dorothy e Patrícia trabalhavam, fungos ainda não foram estudados,
meira-piaçava pela primatóloga norte- Marino Gomes de Oliveira, secou ao diz Desjardin. “Sabemos muito pouco
-americana Dorothy Fragaszy, que ter- sol e mandou a Stevani 4 quilogramas sobre os cogumelos do Brasil, então es-
minava a jornada de perseguição aos do cogumelo brilhante. Agora os pes- peramos encontrar muitas novas espé-
macacos mais tarde do que o habitual quisadores estão perto de corrigir a cies, luminescentes ou não.” Ele explica
no Piauí. Fascinada, ela mostrou as identificação, com o exame detalhado também que, para encontrar fungos
fotos a um conterrâneo do Jardim Bo- dos cogumelos pelos micólogos (espe- luminosos, é preciso pensar nisso. A
tânico de Nova York, que entrou em cialistas em fungos) Marina Capelari, maior parte dos micólogos que estu-
contato com Dennis Desjardin, consi- do Instituto de Botânica de São Paulo, dam diversidade de fungos descreve
derado um dos maiores especialistas na e Desjardin. Ele tem se dedicado a ex- os cogumelos durante o dia (quando

FOTOS CASSIUS STEVANI/USP


identificação desses organismos. Este, plorar florestas pouco conhecidas pelo eles também emitem luz, mas o pes-
por sua vez, avisou Stevani. mundo afora, inclusive no quisador não enxerga) e os seca ime-
Bastou ao brasileiro uma pes- “Pleurotus” Brasil, e diz que os esforços diatamente para preservação; é preciso
quisa na internet para desco- gardneri: inéditos de seu grupo têm si- examiná-los primeiro no escuro para
brir que Dorothy estava no redescoberto do responsáveis por muitas determinar se há luminescência e só
Brasil para um trabalho em no Piauí descobertas. “Recentemente depois secar. “Por isso, especulo que

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Mycena
luxaeterna:
luz concentrada
> OS PROJETOS vários dos fungos tropicais ra-
ros sejam luminescentes, mas
nos talos,
ou estipes
Sul, ali estava uma luz ver-
de diferente – constante, ao
1. Estudo da bioluminescência não percebemos ainda.” contrário do pisca-pisca dos
de fungos e suas aplicações Apesar de ainda pouco vagalumes.
em química ambiental conhecidos, há muito tempo que se tem Eram cogumelos, e deram origem
2. Bioluminescência e atividade notícia de cogumelos luminosos. Aris- ao projeto que o pesquisador da USP
farmacológica de cogumelos tóteles, o filósofo da Grécia Antiga, foi o desenvolveu a partir de 2002 com au-
primeiro a relatar o fenômeno há mais xílio da FAPESP no programa Jovem
MODALIDADE
1. Auxílio Regular a Projeto de dois milênios, quando descreveu o Pesquisador. Antes mesmo de o tra-
de Pesquisa brilho vivo e determinou que era dife- balho começar, os fungos luminosos
2. Jovem Pesquisador rente do fogo. Mas os estudos científicos deram prova de não serem restritos ao
sobre esse fenômeno só tiveram início Mato Grosso do Sul. Durante trabalho
COORDENADOR nos anos 1950 e apenas agora come- de campo no Parque Estadual Turístico
CASSIUS STEVANI – IQ/USP çam a contribuir para a compreensão do Alto Ribeira (Petar), no sul do es-
INVESTIMENTO
da bioluminescência nesses organismos tado de São Paulo, o ecólogo João Go-
1. R$ 328.413,09 especialistas em decompor madeira e doy, agora professor na Faculdade de
2. R$ 457.741,18 outros tipos de matéria orgânica. Engenharia São Paulo, foi guiado por
seu mateiro até um fungo luminoso.
Sinalização - O interesse de Stevani Surpreso, avisou o amigo químico, que
pelos fungos brotou de seu trabalho an- assim pôde concentrar suas atividades
terior com vagalumes e outros insetos. de campo no Petar, mais perto de seu
Em 2002, durante uma viagem para co- laboratório.
leta de material com Etelvino Bechara, Algumas dessas espécies estão aju-
renomado especialista em biolumines- dando a desvendar as minúcias da
cência de vagalumes, agora na Univer- bioluminescência de fungos, e para
sidade Federal de São Paulo (Unifesp), isso Stevani conta com a ajuda de três
ele aproveitou para procurar os cogu- doutorandos financiados pela FAPESP.
melos de que Bechara lhe tinha falado. Por meio de exaustivos ensaios quími-
E encontrou: enquanto fixava os olhos cos, o doutorando Anderson Oliveira
na escuridão de uma área de vegetação analisou três espécies da Mata Atlânti-
úmida próxima a uma cachoeira em ca do Petar – Gerronema viridilucens,
meio ao Cerrado em Mato Grosso do Mycena lucentipes e Mycena luxaeterna

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–, além do fungo “Pleurotus” gardneri,
encontrado numa região de Cerrado no
município piauiense de Gilbués. Os re-
sultados mostram, em artigo publicado
em 2009 na Photochemical & Photobio-
logical Sciences, que o mecanismo de
produção de luz é semelhante ao que se
observa nos vagalumes e nas bactérias
bioluminescentes: enzimas chamadas
luciferases oxidam uma substância – ou
substrato, como os químicos preferem
chamar – conhecida como luciferina,
liberando energia na forma de luz.
Oliveira usou o que há de mais mo-
derno nos laboratórios de química, mas
a base do ensaio para caracterizar a rea-
ção enzimática foi descoberta há mais
de um século. Em 1885, o fisiologista
francês Raphaël Dubois esmagou os
órgãos luminosos do vagalume Pyro-
phorus e misturou com água fria. A so-
lução emitiu um brilho verde, que aos Bioluminescence, publicado em 2006 acoplada ao DNA de um organismo
poucos se evanesceu. Era a luciferina pelo farmacêutico japonês Osamu Shi- estudado em laboratório. A proteína
sendo consumida pela reação química, momura, pesquisador do Laboratório luminosa se tornou essencial em mui-
ele concluiu. Em seguida, Dubois aque- Biológico Marinho em Woods Hole, tos laboratórios de genética, aspiração
ceu uma solução semelhante, desinte- nos Estados Unidos. que não está longe da mente de Stevani,
grando as enzimas presentes, sensíveis Shimomura ganhou o Prêmio No- visto que os mecanismos de biolumi-
ao calor. Ao misturar as duas soluções bel de Química em 2008 justamente nescência são semelhantes, mesmo en-
– a fria, onde sobravam as enzimas já por seus estudos com bioluminescên- tre organismos muito diferentes.
sem luciferina, e a quente, que conti- cia: ele isolou em águas-vivas a proteína Isso não quer dizer, porém, que a
nha só a luciferina –, ele viu a mistura fluorescente verde (GFP), que acusa a composição química da luciferina e a
emitir luz. Essa história está no livro atividade de genes específicos quando da luciferase seja semelhantes em in-

Mycena fera:
cogumelos
brilham o
tempo todo,
mas só são
vistos no
escuro

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setos e fungos. “Luciferina é o nome
que damos a qualquer substrato que
dê origem à bioluminescência, mas
as luciferinas de organismos distintos
podem ser moléculas completamente
diferentes”, explica Stevani. Todos os
fungos já estudados por seu grupo, po-
rém, brilham por meio dos mesmos
substratos e das mesmas enzimas,
sugerindo uma origem comum para
todos. Mas nem todos os fungos bio-
luminescentes são parentes próximos,
alerta Desjardin. “Hoje sabemos que há
quatro linhagens de fungos com espé-
cies bioluminescentes, mas elas nem
sempre têm parentesco próximo entre
si”, conta. “Algumas espécies brilhantes Oliveira conseguiu separar do extrato tros pesquisadores e para a sociedade.
de Mycena são mais aparentadas a es- de fungo uma solução contendo a lu- Parece estar no caminho certo: o brilho
pécies sem brilho do que com outras ciferina – ela brilha quando mistura- dos fungos Gerronema viridilucens po-
brilhantes do mesmo gênero.” da a uma solução enzimática. Mas a de ajudar a detectar altos níveis de con-
O grupo da USP está agora à caça substância deve estar em concentração taminação no solo por metais de vários
da estrutura da molécula que faz com muito baixa, porque o químico Anto- tipos, como mostrou Luiz Fernando
que minúsculos cogumelos, às vezes nio Gilberto Ferreira, da Universidade Mendes, outro doutorando de Stevani,
com 0,5 centímetro de circunferência, Federal de São Carlos (UFSCar), não em artigo no prelo na Environmental
se assemelhem a adesivos star fix cola- conseguiu detectá-la por ressonância Toxicology and Chemistry.
dos ao tronco de uma árvore ou como magnética nuclear de prótons. “É pre-
que semeados em meio ao folhedo que ciso extrair uma quantidade maior ou Sensores biológicos - Mendes cul-
recobre o chão da floresta. Ao contrário empregar um equipamento mais sen- tiva o fungo em placas de vidro com
dos fungos, que produzem a própria sível”, planeja Stevani. 35 milímetros de diâmetro, sobre uma
luz, star fix são adesivos fosfo- O químico da USP em- gelatina à base de algas conhecida como
rescentes que armazenam a luz Galhos barcou nessa empreitada por ágar, o meio de cultura mais comum
ambiente e por isso brilham recobertos pura curiosidade científica, em laboratórios biológicos. Depois de
à noite, criando constelações por hifas mas considera essencial en- crescer 10 dias, os fungos ainda não
nos quartos de crianças de to- invisíveis contrar usos práticos que chegaram à forma de cogumelo. Nessa
das as idades. Por enquanto, à luz do dia tragam benefícios para ou- fase eles são compostos por filamentos

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Mycena asterina:
luminescência
restrita ao chapéu
dos cogumelos

Os resultados de Olívia ajudam a


explicar por que os fungos biolumi-
nescentes servem como bioensaio de
toxicidade, mas não elucidam qual seria
o benefício para o fungo de emitir o
brilho esverdeado. Stevani aposta em
hipóteses ecológicas, mostrando foto-
grafias de moscas pousadas em cogume-
los. Como uma lâmpada em torno da
qual voejam insetos diversos, o brilho
verde talvez ajude a atrair insetos. Pode
parecer que não é vantagem anunciar
sua presença aos famintos de plantão,
mas a função dos cogumelos no ciclo
de vida dos fungos é efêmera, como os
frutos das árvores: quando um animal
microscópicos, as hifas, que represen- funciona, agora é preciso encontrar es- come parte do cogumelo, leva junto es-
tam a maior parte do ciclo de vida de pécies mais sensíveis que possam ser poros, as estruturas microscópicas que
qualquer fungo e, em algumas espé- testadas da mesma maneira”, afirma o vão gerar novos fungos se forem depo-
cies, também produzem o brilho verde. químico. sitados em locais propícios. Ou talvez a
O pesquisador mede a luminosidade luz seja um aviso de perigo, no caso de
emitida por cada uma dessas placas e Estratégias - Por consumir oxigênio cogumelos tóxicos, como acontece com
deposita ali uma pequena amostra de em suas reações químicas, a biolumi- animais venenosos de cores vibrantes.
extrato de solo a ser analisado. Depois nescência poderia desempenhar um “O que não é provável é que a biolu-
de 24 horas numa câmara climática, o papel antioxidante que protegeria os minescência de fungos tenha evoluído
fungo passa a emitir menos luz caso a fungos e outros organismos, até mes- para iluminar formigueiros ou servir
amostra esteja contaminada, o que os mo os vagalumes, de espécies reativas como sinalização de voo, como em Vida
químicos interpretam como uma for- produzidas a partir do oxigênio consu- de inseto”, brinca.
ma de dano ao organismo. mido na respiração. Essa proteção do As descobertas do químico deixam
Mendes obteve gráficos que repre- organismo é uma possibilidade para claro que muitos mistérios continuarão
sentam a intensidade da luz emitida na explicar os benefícios de se brilhar em perdidos entre as folhagens enquanto
presença de diferentes concentrações meio à mata. Mas quando é preciso mais biólogos e químicos não resolve-
de 11 metais diferentes – cálcio, sódio, pegar em armas contra um estresse rem apagar as lanternas e contemplar
magnésio, cádmio, cobalto, manganês, oxidativo intenso, o grupo de Stevani a escuridão da floresta, por vezes sal-
potássio, lítio, zinco, cobre e níquel – mostrou que o organismo dos fungos picada de verde. ■
e indicam a toxicidade da amostra privilegia reações mais especializadas
analisada. O trabalho já rendeu uma em cumprir essa função e desliga a lu-
patente registrada no Brasil sobre o uso minescência. É o que indica o trabalho > Artigos científicos
dos fungos em ensaios de toxicidade ainda não publicado de Olívia Domin-
ambiental. Basta medir a intensidade de gues, também aluna de doutorado de 1. DESJARDIN, D. et al. Luminescent
luz que emana do fungo para estimar Stevani. Ela verificou que na presença Mycena: new and noteworthy species.
quanto desses metais está numa forma de metais em concentrações elevadas Mycologia. no prelo.
2. MENDES, L.F. STEVANI, C.V. Evaluation
que pode ser absorvida e utilizada pelos as células dão preferência a usar a co- of metal toxicity by a
seres vivos. “Não se trata de medir a enzima NADPH para produção de modified method based on the fungus
concentração total das substâncias quí- glutationa reduzida, que evita a ação Gerronema viridilucens bioluminescence
micas, isso não teria significado bio- deletéria dos metais. Como a glutatio- in agar medium. Environmental
lógico nem utilidade prática”, ressalta na reduzida compete por recursos com Toxicology and Chemistry.
Stevani. O problema é que Gerronema as enzimas que produzem a lumines- v. 29, p. 320-26. 2010.
3. OLIVEIRA, A.G. e STEVANI, C.V.
viridilucens é pouco sensível, talvez cência, o fungo aos poucos se apaga. The enzymatic nature of fungal
exatamente porque vive no solo e está É por isso que os fungos do bioensaio bioluminescence. Photochemical &
adaptado mesmo a condições adver- de Mendes perdem a luminosidade em Photobiological Sciences. v. 8,
sas. “O que importa é que o bioensaio solo contaminado por metais. p. 1.416-21. Out. 2009.

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>> ESTRATÉGIAS MUNDO

PARCEIROS Colaborações entre cientistas


POR TODA PARTE de diferentes países nunca fo-
ram tão frequentes, segundo
relatório divulgado pela nor-
te-americana National Science Foundation, e o exemplo mais
forte dessa tendência vem da União Europeia. Entre os artigos
científicos produzidos em 2007 pelos países do bloco, a metade
teve coautorias internacionais, nível duas vezes maior que o
dos Estados Unidos ou da Índia. No caso das nações europeias,
trata-se do resultado de políticas que estimularam a integração
de seus cientistas. “Mas o fenômeno está espalhado pelo mundo
inteiro e permeia todas as disciplinas”, disse à revista Nature Loet
Leydesdorff, especialista em cienciometria da Universidade de
Amsterdã. András Schubert, editor da revista Scientometrics,
explica a tendência pelo crescimento de um tipo de esforço de
pesquisa, conhecido como Big Science, que requer investimen-
tos gigantescos e atuação de vários países – consórcios para
sequenciamento de genomas e o acelerador de partículas LHC
são exemplos recentes. Mas Schubert lembra que a queda no
custo das comunicações e as facilidades propiciadas pela internet
também tiveram um efeito dramático na aproximação de cien-
tistas. “A grande motivação dos cientistas é o reconhecimento
de seu trabalho. As colaborações internacionais são uma forma
de difundir suas ideias em círculos cada vez maiores”, afirma. O
Brasil, que não foi citado no relatório, produziu em coautoria 30%
de seus artigos indexados na base Thomson Reuters em 2006.

para desenvolver projetos 2035, o Himalaia perderá


e receberão dela US$ 8 toda a sua cobertura de
> Inovação desenvolver uma abordagem milhões em capital semente. gelo. O presidente do IPCC,
aberta mais pluralista. Temos de Witty disse que a empresa Rajendra Pachauri, admitiu
ter a mente aberta e tentar não desistiu de investir em o equívoco e teve de
A gigante farmacêutica coisas novas”, afirmou. drogas contra a malária. desmentir rumores de que
GlaxoSmithKline (GSK) De acordo com a estratégia, Segundo ele, há pelo menos renunciaria. A informação
colocará em domínio qualquer pesquisador cinco remédios em testes. foi recolhida de
público cerca de 13.500 ou empresa terá acesso uma reportagem da revista
princípios ativos com algum a estruturas químicas e a New Scientist, de 1999,
potencial para se tornarem dados relacionados a mais > O IPCC na e teve como fonte uma
drogas contra a malária. de 13,5 mil compostos que defensiva
O executivo-chefe Andrew podem ter atividade contra
Witty disse que a empresa o parasita Plasmodium Voltaram a sofrer críticas
decidiu flexibilizar sua falciparum. A empresa os métodos adotados pelo
política de propriedade também vai criar um Painel Intergovernamental
intelectual trabalhando “laboratório aberto” num de Mudanças Climáticas
dentro do conceito de centro de pesquisa sediado (IPCC) para prever
inovação aberta, a fim na Espanha. Nele, 60 os efeitos do aquecimento
de resolver problemas pesquisadores selecionados global. Os relatórios do
de pesquisa complexos. serão autorizados a usar painel divulgados em 2007
“Estamos tentando a infraestrutura da GSK erraram ao dizer que, até

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entidade ambientalista, Pesquisadores norte-ame-

RASTROS DA CATÁSTROFE
o WWF. Em dezembro, o ricanos e franceses pro-
IPCC viveu outra crise: gramaram visitas ao Haiti
uma polêmica sobre e-mails nas semanas seguintes ao
divulgados por hackers em terremoto de 12 de janei-
que pesquisadores do ro em busca de dados que
painel pareciam desdenhar ajudem a explicar o de-
evidências importantes sastre. De acordo com a
(mas que, diga-se, revista Nature, Eric Calais,
acabaram incorporadas geofísico da Universidade
aos relatórios). A química Purdue, viajou para o Haiti
Pauline Midgley, que com o geólogo Paul Mann,
participará da elaboração da Universidade do Texas,
dos relatórios de 2014, para trabalhar na análise
disse ao blog da revista das marcas produzidas pe-
Science que será reforçado lo sismo, que matou mais
o treinamento dos cientistas de 170 mil pessoas e teve Escombros de catedral em Porto Príncipe
do painel para ajudá-los 7 graus de magnitude na

MARCELLO CASAL JR/ABR


a conviver com pressões escala Richter. Mann des-
e a “lidar com artigos creveu em 1995 a falha geológica de Enriquillo, a origem projeto, mas teme por seu
contrários à visão do sismo. Já Calais divulgou um trabalho em 2008 apon- futuro. “É que os governos
consensual”. Mudanças no tando uma tensão perigosa na falha haitiana, suficiente acabam não investindo o
processo de revisão deverão para produzir um terremoto de 7,2 graus de magnitude. que prometem em projetos
garantir que os comentários Os dados de campo obtidos pela dupla irão abastecer um de longo prazo”, afirmou.
de todos os especialistas modelo que tentará calcular as áreas de maior tensão entre
sejam considerados. Para as placas tectônicas e os locais com maior risco de sofrer
Kevin Trenberth, cientista novos terremotos. Sismólogos das universidades de Nice > Equador quer
envolvido na polêmica e Brest, na França, desembarcaram no Haiti com sismó- mais doutores
dos e-mails, tais medidas grafos portáteis. Da Universidade de Miami, Tim Dixon e
são desnecessárias. Falk Amelung já estudam dados obtidos por um radar do A Secretaria Nacional de
“Os processos do IPCC satélite japonês Advanced Land Observing para detectar Ciência e Tecnologia do
funcionam bem”, afirmou. deformações da superfície antes do terremoto. Equador (Senacyt) lançou
um programa de bolsas
de pós-graduação voltado
> Sob o sol megawatts (MW). tecnologia capaz de a reforçar a formação dos
marroquino Dependente do petróleo de produzir eletricidade docentes e pesquisadores.
fora, Marrocos quer reduzir convertendo a energia solar Dos 27.737 professores
O governo de Marrocos em 12% suas importações em calor de alta de universidades públicas
anunciou o plano de do óleo. O projeto ocupará temperatura. O custo e privadas do país, 6.933
desenvolver um grande áreas em cinco diferentes estimado é de US$ 9 bilhões são mestres e apenas 358 são
projeto de energia pontos do país, num total e, segundo o governo, doutores. Serão investidos
solar térmica destinado de 10 mil hectares, e usará está prevista a participação US$ 6 milhões para reduzir
a produzir 38% da sistemas de energia solar da iniciativa privada. o déficit de doutores em
eletricidade do país em térmica concentrada “O projeto ajudará o país 29 universidades públicas.
2020, o equivalente a 2 mil (CSP, na sigla em inglês), a reduzir suas emissões de Cada instituição deverá
gases causadores do efeito indicar 10 professores para
estufa. Serão 3,7 milhões a Senacyt, que fará a seleção
ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

de toneladas de carbono final – neste ano haverá


a menos por ano”, disse à 87 bolsas. Cada uma delas
agência SciDev.Net Said valerá cerca de US$ 70 mil,
Mouline, diretor do Centro cobrindo despesas com
para o Desenvolvimento matrículas e mensalidades,
de Energias Renováveis de gastos com pesquisa,
Marrocos. A especialista seguro saúde, edição
argelina Fatiha Bouhired da tese e passagens aéreas,
elogiou as ambições do entre outros.

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>> ESTRATÉGIAS MUNDO

> Controle de Uma fraude agitou a co-

CIÊNCIA DUVIDOSA
qualidade munidade científica chi-
nesa. Editores da revista
Três anos após aderir britânica Acta Crystallo-
à União Europeia, a Bulgária graphica Section E des-
trabalha para melhorar seu cobriram que são falsas
desempenho científico, mas 70 estruturas de cristais
um projeto de lei que busca publicadas pelos pesqui-
aperfeiçoar o ambiente sadores Zhong Hua e Liu
de pesquisa atraiu protestos Tao, da Universidade Jing-
dos próprios cientistas. gangshan, na província de
A lei propõe o fim de uma Jiangxi. A falsificação foi
comissão que concede graus flagrada por um software
acadêmicos e supervisiona capaz de sinalizar erros
as universidades. Em seu ou características quími-
lugar, cada instituição seria cas incomuns. O progra-
responsável pela concessão ma identificou grande
de seus diplomas, como número de estruturas
acontece no resto da Europa. cristalinas que não fazia
Alguns pesquisadores dizem sentido quimicamente e
que a medida vai eliminar os graus mais elevados. a verificação indicou que os pesquisadores mudaram um ou
o controle de qualidade dos “Concordamos que este mais átomos de um composto existente, apresentando o re-
trabalhos de doutoramento sistema é arcaico”, disse sultado como novo. Hua e Tao foram demitidos. Universidades
e pós-doutoramento, tido à revista Nature Oleg chinesas frequentemente oferecem prêmios em dinheiro e
como essencial nas novas Yordanov, físico do Instituto auxílios-moradia, entre outras vantagens, para pesquisadores
universidades. A Bulgária de Eletrônica em Sofia. que publicam em revistas de impacto – e a pressão parece
tinha apenas quatro “Mas é preciso garantir estar crescendo. Um estudo da Universidade de Wuhan estima
universidades em 1990. um mínimo de qualidade.” que o mercado da chamada ciência duvidosa, que envolve
Agora elas são 53. Um grupo contratar desde quem escreva um artigo até quem simule
denominado Movimento pesquisas inexistentes, foi da ordem de US$ 150 milhões em
Civil de Apoio à Ciência e à > Em grade 2009 - cinco vezes o montante de 2007.
Educação da Bulgária pediu e em nuvem
ao Parlamento mudanças no
projeto, como a criação de A Unesco, braço das pesquisadores dos países computadores em uma
um esquema de credenciamento Nações Unidas para a ciência, africanos e árabes, rede para trabalhar em um
das universidades antes de cultura e educação, está garantindo a eles acesso mesmo problema científico,
permitir que elas ganhem ampliando um esquema que a redes científicas enquanto a computação em
autonomia para conceder busca reduzir o êxodo de internacionais e a recursos nuvem permite o acesso a
computacionais. A Brain aplicações recentes da web e
Gain Initiative, fruto a bancos de dados. Segundo
ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

de uma parceria com a a agência SciDev.Net, dois


fabricante de computadores projetos da Universidade de
Hewlett-Packard, permite Ouagadougou, de Burkina
aos pesquisadores colaborar Faso, vão beneficiar-se desse
com especialistas de todo o esquema: a modelagem do
mundo através de recursos movimento de poluentes na
da computação em grade bacia de drenagem do rio
e em nuvem. A computação Sourou e a implementação
em grade combina o poder de uma rede de computação
de processamento de vários de alto desempenho.

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>> ESTRATÉGIAS BRASIL

O Instituto de Pesquisas Tec-

ALERTA NAS ENCOSTAS

FOTOS ROOSEWELTPINHEIRO/ABR
nológicas (IPT) e o Instituto
Nacional de Pesquisas Espa-
ciais (Inpe) estudam uma par-
ceria para monitorar o risco de
deslizamentos de terra em me-
trópoles e cidades serranas. O
projeto, que ainda está em dis-
cussão no âmbito do governo
paulista, seria baseado num
sistema de alerta ancorado
em previsões e modelos clima-
tológicos desenvolvidos pelo
Inpe e na expertise do IPT na
avaliação de risco de desliza-
mentos – o instituto é o braço
técnico do plano de prevenção
de riscos que identifica áreas
ameaçadas em municípios de
São Paulo. Um dos desafios Morro da Carioca, em Angra dos Reis: deslizamentos em janeiro
do projeto é criar sistemas
robustos de coleta de dados,
capazes de monitorar as chuvas e o movimento das encostas reconhecer pesquisas intitulado “Cardiomiopatia
continuamente, para abastecer os modelos. O Inpe tem ex- seminais”, afirma Galvão. induzida por ácido
periência no estudo da dinâmica dos deslizamentos de terra Os candidatos devem ser 3-nitropropiônico (3-NP)
que ocorrem em períodos de muita chuva em áreas da serra indicados por pelo menos em camundongos – possível
do Mar. Mas, para viabilizar o projeto, seria necessário coletar cinco cientistas de renome. modelo de estudo para
uma quantidade bem maior de dados sobre as característi- As indicações serão a doença de Huntington
cas das áreas de risco, a fim de desenvolver novos modelos. analisadas pela Comissão (DH)”, foi escolhido entre
Outros pontos a serem desenvolvidos são a integração das do Prêmio, integrada por 83 inscritos. O estudo
informações das duas instituições – avaliando, por exemplo, pesquisadores. O ganhador, tem apoio da FAPESP
dados sobre chuvas intensas em sobreposição à situação das que vai receber R$ 20 mil, na modalidade bolsa de
encostas da região atingida pela água – e a estratégia de será conhecido em maio. doutorado e está sendo
divulgação dos alertas para a população em risco. orientado por Antonio
Augusto Coppi, responsável
> Trabalho pelo Laboratório de
> Contribuição área. Segundo o diretor premiado Estereologia Estocástica e
seminal do centro, Ricardo Galvão, Anatomia Química (LSSCA)
a ideia é premiar O doutorando Fernando da Faculdade de Medicina
O Centro Brasileiro de contribuições pontuais Vagner Lobo Ladd, da Veterinária e Zootecnia da
Pesquisas Físicas (CBPF), no de excelência no campo da Universidade Federal de Universidade de São Paulo
Rio de Janeiro, recebe até física. “A intenção do prêmio São Paulo (Unifesp), ganhou (FMVZ-USP). A doença
19 de março indicações é reconhecer descobertas e o Prêmio José Carlos de Huntington é uma
de nomes para a primeira desenvolvimentos singulares Prates 2009, concedido pela moléstia neurodegenerativa
edição do Prêmio CBPF de que tenham impulsionado instituição aos melhores hereditária que afeta
Física, que será concedido a o conhecimento na área de trabalhos apresentados principalmente o sistema
um pesquisador de fora dos física. Por essa razão ele não durante o 12o Congresso do nervoso central e atinge
quadros da instituição que será concedido para coroar Programa de Pós-graduação cerca de 50% dos filhos de
tenha realizado trabalho cientistas pelo conjunto em Morfologia, realizado pais e mães portadores
científico de excelência na da obra, mas sim para em dezembro. O trabalho, da desordem.

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>> ESTRATÉGIAS BRASIL

Todas as 12 questões da prova


REFERÊNCIA PARA ESTUDANTES

de química da segunda fase do


vestibular da Universidade Es-
tadual de Campinas (Unicamp),
ministrada no dia 11 de janeiro,
foram formuladas a partir de
reportagens de Pesquisa FA-
PESP. Desde 1987, quando o
vestibular da Unicamp deixou
de ser unificado, foi a primeira
vez que a universidade baseou
sua prova de química em ape-
nas uma fonte de informação. Reportagens que
As questões exploraram um inspiraram a prova
da Unicamp
pouco da diversidade de temas
científicos expostos na publica-
ção. A primeira pergunta, por
exemplo, foi formulada com base numa reportagem > Torres espetadas 320 metros de altura e
publicada no número 163 da revista, de setembro de na floresta quatro com 60 metros, vão
2009, que trata da descoberta de estrelas da Via Láctea permitir o desenvolvimento
com núcleo quase totalmente cristalizado. A segunda Até o ano que vem, cinco de pesquisas ligadas,
foi inspirada num texto da edição 146, de abril de 2008, torres serão instaladas por exemplo, à avaliação
que fala de um sistema de reciclagem de lâmpadas fluo- na Reserva Florestal de do grau de influência da
rescentes. A terceira é baseada em reportagem da edição 163, São Sebastião do Uatumã, Amazônia nos processos
que enfoca as pesquisas sobre o etanol de segunda geração. no Amazonas, equipadas químicos e físicos da
A formulação de uma prova baseada numa única publicação com instrumentação atmosfera do planeta,
não tem precedentes em vestibulares, de acordo com Carlos tecnológica para em especial a emissão
Alberto Ciscato, coordenador de química do curso pré-vestibular experimentos científicos e absorção de gases
Intergraus, de São Paulo. Segundo ele, a iniciativa se enquadra e monitoramento contínuo causadores do efeito estufa,
numa tendência de contextualizar as questões. “Nenhuma prova da atmosfera. Trata-se do ou ao papel da floresta no
deixa mais as questões soltas e uma forma de contextualizá- Programa Amazonian ciclo hidrológico da região
-las é usar textos da imprensa ou de livros”, afirma ele. Segundo Tall Tower Observatorium e do mundo. De acordo
Renato Pedrosa, coordenador da Comissão Permanente para (ATTO), que terá com seus organizadores, o
os Vestibulares da Unicamp (Comvest), a ideia partiu da banca investimentos de € 8 programa fará da Amazônia
FOTOS EDUARDO CESAR

de professores que formulou o exame. “Normalmente não faze- milhões, divididos entre um dos principais centros
mos isso”, afirma Pedrosa. “Mas Pesquisa FAPESP é uma boa o ministério brasileiro da
revista de divulgação científica, é da FAPESP, que é do estado Ciência e Tecnologia (MCT)
de São Paulo e não tem fins lucrativos. Esperamos que, com e o governo da Alemanha.
esse gesto, os jovens Estão envolvidos no
conheçam a revista.” projeto a Secretaria de
Ele explica que essa Estado de Ciência e
deve ter sido a pri- Tecnologia do Amazonas
meira e a última vez (Sect), a Universidade
que uma prova da Uni- do Estado do Amazonas
camp se baseou numa (UEA), o Instituto Max
única fonte. Afinal, a Planck de Química, da
universidade não pode Alemanha, e o Instituto
dar pistas de onde vai Nacional de Pesquisas
retirar as ideias para da Amazônia (Inpa).
suas provas. As torres, uma com

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mundiais de medidas Pró-Reitoria de Pesquisa
e observações científicas e formada por professores
em estudos atmosféricos e pesquisadores da FCM,
de regiões tropicais. do Instituto de Biologia
A reserva Uatumã, de (IB), da Faculdade
400 mil hectares, situa-se de Odontologia de
a 250 quilômetros Piracicaba (FOP) e outros
da capital Manaus. pesquisadores convidados,
AGENDA O programa Biota-FAPESP te- foi convocada para
MOVIMENTADA rá uma agenda movimentada elaborar uma lista de até
> Indicações para em 2010 para acompanhar o 10 nomes de cientistas.
o Nobel Ano Internacional da Biodiver-
sidade, declarado pelas Nações Unidas. No dia 22 de maio, o
A Universidade Estadual Biota vai realizar um evento em São Paulo para comemorar > Centro de pesquisa
de Campinas (Unicamp) o Dia Internacional da Biodiversidade, com a participação de no Brasil
foi convidada a indicar Thomas Lovejoy, biólogo conservacionista que introduziu
concorrentes ao Prêmio o termo “diversidade biológica” nos anos 1990. Ele atual- A gigante General Electric
Nobel de Medicina mente dirige o Centro Heinz para Ciência, Economia e Meio (GE) anunciou que abrirá
ou Fisiologia de 2010. Ambiente. O foco do evento será a terceira edição do Global um centro de pesquisa e
O convite, inédito na Biodiversity Outlook, publicação da Convenção sobre Diver- desenvolvimento (P&D) no
instituição, foi recebido sidade Biológica que avalia a situação atual e tendências Brasil, voltado para as áreas
por meio da Faculdade de da biodiversidade. Dois workshops internacionais do Biota de petróleo e gás, energia
Ciências Médicas (FCM). estão previstos. Um deles, no final de fevereiro, abordará o e aviação (turbinas), que
“A Unicamp ser vista como tema “Metabolômica no contexto dos sistemas biológicos”. concentram os principais
uma instituição credenciada No início de dezembro, o programa sediará outro workshop negócios da empresa
para a indicação de para marcar o final do Ano Internacional da Biodiversidade e no país. Ainda não foram
candidatos ao Nobel é sinal o início do Ano Internacional das Florestas (2011). Em outu- definidos o investimento
de reconhecimento da bro, representantes do Biota vão acompanhar em Nagoia, no no centro de pesquisa, que
qualidade do trabalho Japão, a Conferência das Partes sobre Diversidade Biológica deverá gerar 300 empregos,
de nossos pesquisadores, (COP 10). “Os países terão que demonstrar o que fizeram e a sua localização.
particularmente da FCM. para atingir compromissos assumidos em abril de 2002”, As negociações para
Isso é motivo de orgulho”, diz o coordenador do Biota-FAPESP, Carlos Joly. Outro ob- receber a unidade
disse ao Jornal da Unicamp jetivo, segundo Joly, é definir o regime internacional que vai concentram-se em Minas
o pró-reitor de Pesquisa da regulamentar o acesso a recursos genéticos e repartição de Gerais, Rio de Janeiro e
instituição, Ronaldo Pilli. benefícios, negociação que se arrasta há vários anos. São Paulo, estados onde se
Para o diretor da FCM, José localizam fábricas
Antônio Rocha Gontijo, um brasileiras da empresa.
dos motivos da indicação a FCM publicou 4.318 nacionais, além da Será a quinta unidade de
da faculdade é a repercussão artigos e resumos em publicação de livros e P&D da GE no mundo, que
internacional de suas periódicos internacionais e patentes. Uma comissão mantém centros na China,
pesquisas. De 2004 a 2008, mais de 5 mil em periódicos coordenada pela Índia, Alemanha e Estados
Unidos, e a primeira na
América Latina. “Com
uma forte base industrial,
LAURABEATRIZ

universidades de primeira
linha e importantes
clientes das mais diversas
indústrias, o Brasil é a
escolha lógica para a nossa
próxima instalação”, disse o
executivo-chefe da empresa,
Jeff Immelt, que visitou o
Brasil em janeiro. Segundo
Immelt, a GE investe
anualmente US$ 6 bilhões
em pesquisa no mundo.

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>
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

COOPERAÇÃO

Esforço multiplicado
Com investimentos conjuntos do governo paulista,
das universidades estaduais e da FAPESP, será criado
o Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia

Fabrício Marques | ilustrações Marcos Garuti

N
o último dia de 2009 o governo do estado de vênio veio em resposta a uma proposta amadurecida
São Paulo, a FAPESP e as três universidades pelas universidades e pela FAPESP, que foi apresentada
estaduais paulistas celebraram um acordo de ao governo estadual. “A Fundação e as universidades
cooperação que marcou o lançamento do Cen- estaduais paulistas discutiram longamente a ideia de se
tro Paulista de Pesquisa em Bioenergia, uma implantar um centro de pesquisa em bioenergia, sediado
iniciativa que busca criar uma base científica nas três universidades”, diz Brito Cruz, que coordenou
para ampliar a competitividade da pesquisa a proposta. “O governo estadual aprovou a proposta
paulista e brasileira em energia obtida de biomassa. Pelo formatada, dedicando os recursos orçamentários para
convênio, a Secretaria de Ensino Superior do estado uso na infraestrutura necessária. O plano apresentado
vai repassar R$ 18,4 milhões para as universidades de previa investimentos do governo estadual para infraes-
São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp) e trutura, pela FAPESP para projetos de pesquisa e pelas
Estadual Paulista (Unesp), que serão usados para a cons- universidades para admissão de professores”, afirmou.
trução de laboratórios, eventuais reformas e compra de Os R$ 18,4 milhões do convênio assinado em de-
equipamentos. As universidades, por sua vez, se compro- zembro correspondem ao investimento do governo es-
meteram em contratar pesquisadores em diversas áreas tadual para a primeira fase da implantação do centro. O
da pesquisa em bioenergia, que trabalharão em conjunto governador de São Paulo, José Serra, afirmou durante
com os pesquisadores já atuantes neste campo nas três a inauguração do Laboratório Nacional de Ciência e
instituições, num esforço integrado. Já a FAPESP assu- Tecnologia do Bioetanol (CTBE), no dia 22 janeiro, que
miu a missão de selecionar e financiar os projetos em os recursos para o Centro Paulista de Pesquisa em Bioe-
bioenergia vinculados ao centro, além de participar da nergia deverão superar R$ 150 milhões, o que projeta
coordenação de seu conselho superior, cuja sede será na um investimento superior a R$ 50 milhões para cada
Fundação. “O Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia uma das partes.
vem complementar os esforços no país para a criação Os novos laboratórios deverão ter um caráter multi-
de conhecimento e tecnologia em bioenergia, reforçan- disciplinar e envolver pesquisadores de áreas como agro-
do a parte de ciência básica e a formação de recursos nomia, química, biologia, física, matemática, engenharia
humanos, objetivos nos quais nossas três universidades e ciências sociais. “A aglutinação de competências das
estaduais são excelentes”, explica o diretor científico da universidades é o forte desse projeto e o objetivo é que
FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. o Brasil avance no que diz respeito ao conhecimento em
O formato do novo centro, que foi alvo de discus- bioenergia”, diz o reitor da Unesp, Herman Voorwald.
sões ao longo de todo o ano de 2009, é baseado numa Para o reitor da Unicamp, Fernando Costa, a experiên-
partilha de investimentos e de responsabilidades. Cada cia pode definir um modelo novo de fazer pesquisa. “A
um dos três atores envolvidos – governo, universidades parceria entre universidades, governo e FAPESP é uma
e FAPESP – vai investir montantes equivalentes. O con- experiência inovadora”, diz. “Temos agora o desafio de

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procurar os melhores pesquisadores, aqui no Brasil ou
no exterior, para preencher as vagas que serão criadas”,
afirma Costa. Segundo o reitor da USP, João Grandino
Rodas, a parceria prevista no centro revela uma abertura
das universidades a demandas da sociedade. “O fato de
a universidade ser autônoma não significa que ela deva
se fechar em seus próprios interesses. A bioenergia é um
desses temas que precisam reunir esforços de todos os
segmentos possíveis, pois tem impacto tanto na quali-
dade de vida das pessoas quanto no desenvolvimento
do país. E o avanço na pesquisa nesse campo vai render
benefícios para a sociedade e também para nossos alu-
nos e professores”, disse o reitor.
O físico José Goldemberg, reitor da USP entre 1986
e 1990, ressalta que a arquitetura do novo centro dá
uma resposta aos desafios mapeados pela Comissão
de Bioenergia do governo paulista, coordenada por ele
entre 2007 e 2008. “Ficou claro para a comissão que a
expansão da produção do etanol no estado exigia um
aumento de produtividade e que era necessário avançar
em pesquisa para desenvolver novas tecnologias”, diz
Goldemberg. Segundo ele, foram aventadas outras pos-
sibilidades para enfrentar o problema, como a criação
de um instituto estadual de bioenergia. “Creio que essa
solução foi interessante, pois vai trazer pessoal novo para
a pesquisa em bioenergia e envolve os pesquisadores das
universidades nesse esforço. Não é só o governo que
está colocando dinheiro”, disse. Segundo Franco Lajolo,
vice-reitor da USP que assumiu a reitoria interinamente
no final de 2009 e participou das negociações do novo
centro, a iniciativa é “um jogo em que todos os partici-
pantes vão ganhar”. O essencial, segundo ele, é garantir
que não faltem recursos para as próximas etapas do

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centro. “A colaboração entre universidades, governo e
FAPESP vai ampliar nossa capacidade de resolver gran-
des problemas em bioenergia, condição fundamental
para não perdermos a nossa competitividade.”
A pesquisa em bioenergia vem crescendo no país,
principalmente em São Paulo, estado que concentra boa
parte da produção de cana do país, e envolve iniciativas
federais, estaduais e do setor privado. O Centro Paulista
de Pesquisa em Bioenergia, de acordo com seus ideali-
zadores, quer diferenciar-se de iniciativas já existentes
mirando em avanços na fronteira do conhecimento, asso-
ciados à formação de recursos humanos qualificados.

Pós-graduação - Uma das ambições do novo centro,


cuja viabilidade ainda está sendo avaliada, é criar um
programa conjunto de pós-graduação envolvendo as
três universidades. As três instituições têm tradição em
estudos de bioenergia, sobretudo na área de agronomia,
com destaque para a USP e a Unesp, na de conversão
de biomassa, que é bem desenvolvida na Unicamp, e
em genômica, no âmbito do Programa FAPESP Sucest
(Sugar Cane Est), que mapeou os fragmentos de genes
funcionais da cana. Mais conhecido como Genoma Ca-
na, este projeto foi iniciado em 1999 por cerca de 240
pesquisadores liderados pelo professor Paulo Arruda,
da Unicamp, com financiamento da FAPESP e da Coo-
perativa dos Produtores de Açúcar e Álcool do Estado
de São Paulo (Coopersucar). Depois de 2003, Glaucia
Mendes Souza, do Instituto de Química da USP, assumiu
a coordenação do Sucest e iniciou o Projeto Sucest-FUN,
composto por uma rede de pesquisadores dedicados
à análise funcional dos genes da cana e à identifica-
ção de genes associados a determinadas características
agronômicas.
O centro também promoverá a ampliação do número
de pesquisadores trabalhando no campo da bioenergia
no estado de São Paulo. Na fase de implantação, as três
universidades deverão contratar 17 docentes e pesquisa-
dores. Esse número deve chegar a cerca de 50, à medida
que novos investimentos no centro forem feitos pelo
governo. Um mapeamento dos profissionais atuantes
nas três instituições paulistas foi realizado pelo Comitê
de Pesquisa em Bioenergia, que organizou a proposta do
centro, composto pelo diretor científico da FAPESP, Car-
los Henrique de Brito Cruz, e pelos professores Antonio
Roque Dechen, da Escola Superior de Agricultura Luiz de
Queiroz, da USP, Nelson Ramos Stradiotto, do Instituto
de Química da Unesp, e Luís Augusto Barbosa Cortez, da
Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp.

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O Brasil tem tradição em pesquisa em bioenergia, mas há limitação de recursos
humanos em áreas como motores automotivos e biorrefinarias

No mapeamento foram consultados insumos químicos e polímeros verdes, em julho de 2008 com o objetivo de
456 docentes e pesquisadores, sendo estimulando a substituição de petró- avançar em ciência básica e em desen-
que 365 deles, ou 80% do total, respon- leo por etanol como matéria-prima. volvimento tecnológico relacionados à
deram ao questionário. A conclusão foi “A meta do centro não é simplesmente geração de energia obtida de biomassa.
que existe um número significativo de produzir mais combustível com custos Além de buscar a competitividade eco-
pesquisadores das três universidades menores, mas produzir riqueza a partir nômica do biocombustível brasileiro, o
que desenvolvem pesquisa em bioener- do conhecimento. Se quisermos que centro tem uma meta socioambiental,
gia e que a capacitação concentra-se na a biomassa seja sucedânea dos com- que é produzir conhecimento capaz de
produção de biomassa e nos processos bustíveis fósseis, precisamos torná-la melhorar os indicadores de sustentabi-
industriais ligados à produção de bioe- lucrativa como o petróleo, investindo lidade da cadeia produtiva da cana-de-
nergia. “A presença brasileira no âmbito em novas aplicações, como a geração de -açúcar. “A estratégia fundamental do
das publicações científicas é grande na energia e a alcoolquímica, que ampliam centro é aumentar o número de cien-
área de agronomia e de desenvolvimen- a renda para o setor e a sociedade”, afir- tistas em áreas de ciência básica rela-
to de variedades da cana, mas não é tão ma Cortez. cionadas aos temas do Programa Bioen
expressiva em outras áreas”, diz Cortez, da FAPESP em São Paulo”, disse Brito
da Unicamp. “Precisamos investir em Vantagem competitiva - A base cien- Cruz, diretor científico da Fundação.
pesquisa para que o Brasil busque a tífica produzida pela iniciativa busca “É muito significativo que o governo
liderança em todas as áreas, pois não ajudar o Brasil a competir com outros estadual tenha aprovado a proposta da
basta ser forte em apenas algumas de- países, notadamente os Estados Unidos, FAPESP e das universidades, garantin-
las”, afirma. na transição para as tecnologias de se- do apoio adicional com investimento
Há um número relativamente baixo gunda geração, aquelas que prometem direto, para um programa de pesquisas
de pesquisadores que atuam, por exem- extrair energia de celulose. O Brasil, que organizado pela Fundação”, afirmou.
plo, na área de motores automotivos, o dispõe da tecnologia mais eficiente de Os programas de pesquisa do cen-
que coloca um problema para o futuro etanol de primeira geração, extraída da tro deverão compreender as mesmas
dos motores flexíveis para álcool e gasoli- sacarose da cana-de-açúcar, tem uma áreas previstas na criação do Bioen, e
na – eles só existem atualmente no Brasil, vantagem competitiva na corrida da tec- que envolvem toda a cadeia produtiva
não são alvo de investimentos vultosos nologia de segunda geração, que é uma da cana-de-açúcar. São elas a produção
pelas filiais das montadoras e tendem a enorme disponibilidade de biomassa, na da biomassa para bioenergia, a pesquisa
perder competitividade para os motores forma de bagaço e palha de cana. Tais de meios de produção de bioenergia, as
a gasolina e diesel, cujo desenvolvimento substratos correspondem a dois terços biorrefinarias e alcoolquímica, a área
é impulsionado pelas matrizes dos fabri- da energia disponível na cana e hoje são de aplicação em motores automotivos
cantes de carros. “Com a identificação aproveitados na queima e geração de e, por fim, os aspectos de sustentabili-
dos pontos de estrangulamento, podere- eletricidade. Mas o país não tem inves- dade, como os impactos econômicos,
mos definir melhor onde alocar recursos tido tanto quanto seus competidores na sociais e ambientais do uso da bioener-
humanos, reforçando áreas já existentes superação dos desafios tecnológicos que gia. Cada uma dessas linhas de pesquisa
e suprindo lacunas nas menos pesqui- persistem – hoje ainda não há tecnologia promoverá iniciativas nas áreas de edu-
sadas”, afirma Antonio Roque Dechen, economicamente viável para extração cação e de difusão, a fim de estimular
da Esalq-USP. Para Nelson Stradiotto, da de energia de celulose. Para vencer esses a transferência para a sociedade do
Unesp, a ampliação do contingente de desafios e buscar conquistas de impac- conhecimento produzido.
pesquisadores e o estímulo à formação to, o centro investirá em pesquisa bási- Duas áreas consideradas fundamen-
de doutores permitirão que o país con- ca, deixando para outras iniciativas já tais para ampliar a produtividade da
te com uma nova geração de cientistas existentes a preocupação com avanços cana são as dos mecanismos que envol-
trabalhando em temas de fronteira num incrementais. A pesquisa aplicada e o vem a fotossíntese na cana-de-açúcar
horizonte de 10 anos. “Temos que pensar desenvolvimento tecnológico realizados e a das relações funcionais da genômi-
alto, pois é isso que os Estados Unidos no centro deverão acontecer em coope- ca da cana. No caso da fotossíntese, a
estão fazendo hoje”, afirma. ração com o setor privado. ambição é conhecer melhor o processo
Outra área que conta com um nú- O novo centro vai incorporar-se ao pelo qual a planta fixa o carbono, con-
mero limitado de pesquisadores é a de esforço do Programa FAPESP de Pes- vertendo a energia solar em energia
biorrefinarias, que busca desenvolver quisa em Bioenergia (Bioen), lançado química. Tal processo é reconhecido

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boa complementaridade nas ações
e objetivos da pesquisa básica e suas
aplicações”, afirma.
A coordenação do centro caberá
a um conselho superior, sediado na
FAPESP e composto por sete membros:
um representante da FAPESP, um de
cada universidade, um do governo es-
tadual e dois de empresas do setor do
açúcar e do álcool. Esse conselho irá de-
terminar a orientação geral do centro,
acompanhar o processo de implantação,
estimular a integração de esforços das
três universidades e propor parcerias.
Para assessorar o conselho superior será
formado um conselho científico consul-
tivo internacional, que se reunirá uma
vez por ano para avaliar cientificamente
os programas e os resultados alcança-
dos. O conselho científico será consti-
tuído por pelo menos seis especialistas
de renome internacional, atuantes em
pesquisa básica nas áreas correlatas com
as atividades do centro.
como de baixa eficiência e, no caso da sociais está diretamente relacionada à Está em desenvolvimento um acor-
cana-de-açúcar, não tem despertado definição de uma nova agricultura da do de colaboração com a Unesco, o bra-
a curiosidade dos pesquisadores. Em cana, que comece por entender a fo- ço das Nações Unidas para Educação,
relação à genômica, a intenção é criar tossíntese e a genômica da cana e passe Ciência e Cultura, que prevê o status de
vias de manipulação genética para ob- pela redefinição das mais importantes centro associado à Unesco na categoria
ter variedades adaptadas a diferentes etapas que levarão à aceitação do etanol II (centros de pesquisa não administra-
ambientes de produção, como clima, de cana-de-açúcar como um combus- dos pela Unesco e reconhecidos por ela
disponibilidade de água, fertilizantes tível líquido efetivamente renovável e como de classe mundial). O objetivo
e tolerância a herbicidas. Ainda hoje, com atributos ambientais inequívocos, é garantir um maior relacionamen-
a obtenção dessas variedades é feita principalmente quanto à sua capacidade to internacional. O recrutamento de
com base em técnicas tradicionais de de mitigar os gases de efeito estufa”, diz bons alunos e pesquisadores no exte-
melhoramento genético. Antonio Roque Dechen, da Esalq-USP. rior também é considerado estratégico
A inspiração para o novo centro por auxiliar o conjunto de políticas que
Sustentabilidade - A pesquisa em sus- vem da experiência de países como compõem a chamada agenda de diplo-
tentabilidade, um tema que se tornou Austrália, Estados Unidos, África do macia brasileira do etanol: ao mesmo
tão essencial quanto o da produtivida- Sul, Espanha e França, mas talvez as tempo que promove a liderança tecno-
de, também será intensificada. “Para principais referências sejam os dois lógica do Brasil também ajuda a garan-
o desenvolvimento da bioenergia no centros criados pelo Departamento de tir mercados de outros países.
Brasil, é fundamental associarmos os Energia dos Estados Unidos (DOE, na O matemático Jacob Palis, presiden-
esforços pelo aumento de produtivida- sigla em inglês). Um deles, o National te da Academia Brasileira de Ciências
de ao objetivo da sustentabilidade. Só a Renewable Energy Laboratory (NREL), (ABC) e da Academia de Ciências do
bioenergia sustentável terá um futuro é voltado a pesquisas de conversão de Mundo em Desenvolvimento (TWAS),
no século XXI”, afirma Brito Cruz. No biomassa em energia. O outro, o Oak elogiou o caráter internacional do cen-
campo da agricultura, existem temas Ridge National Laboratory (ORNL), tro e disse que a TWAS tem interesse
emergentes como a utilização de téc- dedica-se mais à pesquisa envolvendo em estabelecer parcerias com a inicia-
nicas de plantio direto, já usadas nas a produção da biomassa. Tais centros tiva. “O novo centro poderá propiciar
culturas do milho e da soja, mas ainda desenvolvem pesquisa conjunta com a formação de pesquisadores não só do
uma novidade na cana-de-açúcar, para centros de pesquisa ligados a várias Brasil, mas também de outras nações,
reduzir a compactação do solo causada universidades norte-americanas. “Es- em particular da África, que dispõe
pela colheita mecanizada. A proibição tes centros no exterior, notadamente de áreas degradadas que poderiam ser
das queimadas nos canaviais abrirá os do DOE, envolvem forte colaboração destinadas à produção do etanol”, afir-
campos de pesquisa relacionados à fer- com boas universidades americanas e ma. “Será interessante haver um fluxo
tilidade do solo, o uso de herbicidas e podem nos servir de modelo”, diz Cor- de doutores e pós-doutores de países
questões relativas à biodiversidade. “A tez, da Unicamp. “Em conjunto com em desenvolvimento para o novo cen-
melhoria de indicadores ambientais e a iniciativa privada, pode haver uma tro”, diz Palis. ■

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>
BIOENERGIA

Centro iremos levar o álcool para vender no


mundo inteiro”, afirmou.
Para o governador de São Paulo, Jo-

avançado sé Serra, o centro será um espaço propí-


cio para colaboração entre os governos
federal e estadual. “Para nós, a criação
do CTBE é uma notícia grata e se soma
ao esforço de pesquisa feito no estado
Laboratório em Campinas vai investir em gargalos no campo da bioenergia”, disse Serra.
“Na prática, a integração já existe. To-
da pesquisa do álcool de celulose dos os três diretores do centro são pes-
quisadores de universidades estaduais
paulistas. Um é pesquisador da USP e

F
oram inauguradas em Campi- cooperação com o Imperial College, da os outros dois da Unicamp”, afirmou.
nas (SP), no dia 22 de janeiro, Inglaterra, e a Universidade Lund, da Serra citou a criação do Centro Paulista
as instalações do Laboratório Suécia, com os quais desenvolverá pes- de Pesquisa em Bioenergia, no final de
Nacional de Ciência e Tecno- quisas conjuntas. Também foi celebrado 2009, que irá integrar os pesquisadores
logia do Bioetanol (CTBE), um um acordo com a Empresa Brasileira de das três universidades e contratar novos
centro de pesquisa voltado para Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em pesquisadores em temas de fronteira,
o desenvolvimento do etanol torno de estudos no campo da susten- no âmbito do Programa FAPESP de
de segunda geração, aquele produzido tabilidade da cultura da cana. Pesquisa em Bioenergia (Bioen).
a partir da celulose. O laboratório foi Presente à inauguração, o presiden- Segundo o diretor científico do
concebido em 2007 e já contou com te Luiz Inácio Lula da Silva ressaltou a CTBE, Marcos Buckeridge, a abran-
R$ 69 milhões de investimentos do go- importância do CTBE para que o Brasil gência dos trabalhos do novo centro
verno federal. Algumas pesquisas em dê um novo salto tecnológico. “Espero coincide com a do Bioen, que deverá
andamento têm apoio da FAPESP, num que este laboratório possa utilizar todo contribuir com o laboratório e também
montante de R$ 2 milhões, segundo o seu potencial para que a gente possa se beneficiar da sua infraestrutura. “Es-
Marco Aurélio Pinheiro Lima, diretor transformar o etanol no combustível tá em formação um sistema brasileiro
do CTBE. Além de desenvolver proje- mais utilizado do mundo”, disse. Lula de bioenergia que reunirá os trabalhos
tos de pesquisa relacionados a todas lamentou o aumento no preço do etanol de uma elite de especialistas espalha-
as etapas de produção do etanol, o combustível e criticou os usineiros que dos pelo país”, anuncia Buckeridge, que
centro tem a ambição de oferecer uma reduziram a produção de também dirige o Institu-
plataforma que possa ser utilizada por álcool para fabricar mais Laboratório to Nacional de Ciência e
pesquisadores de todos os lugares do açúcar. “Se a gente passar do CTBE, em Tecnologia do Bioetanol
Brasil, e também da América Latina, para o mundo a ideia de Campinas: fôlego e é membro da coordena-
em moldes semelhantes aos do uso das que não estamos dando para o sistema ção do Bioen. ■
instalações do Laboratório Nacional conta sequer do nosso de pesquisa em
de Luz Síncrotron (LNLS). O LNLS, mercado interno, nós não bioenergia Fabrício Marques
o CTBE e o Laboratório Nacional de
Biociências (LNBio) dividem o mesmo

EDUARDO CESAR
campus em Campinas e são coordena-
dos por uma instância que acaba de ser
criada pelo governo federal, o Centro
Nacional de Pesquisa em Energia e Ma-
teriais (CNPEM).

Desafios - Segundo o diretor Marco


Aurélio Lima, a ideia de criar o laborató-
rio surgiu de um estudo que levantou os
desafios da produção brasileira de eta-
nol para os próximos 15 anos. Uma das
metas era responder o que o país preci-
saria fazer para produzir etanol capaz de
substituir 10% da gasolina consumida
no planeta no ano de 2025. “Muitos dos
gargalos identificados demandam inves-
timentos em ciência para resolvê-los”,
diz Lima. O centro firmou acordos de

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>
ENSAIOS CLÍNICOS

Demandas do SUS
Rede de pesquisa em hospitais de ensino é ampliada

O
s ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia anunciaram
no final de 2009 a ampliação da Rede Nacional de Pesquisa
Clínica em Hospitais de Ensino (RNPC), cuja estrutura
passou de 19 para 32 centros espalhados pelo país. A rede,
criada em 2005, tem um duplo objetivo. De um lado, busca
institucionalizar a pesquisa clínica em hospitais de ensino
de vários lugares do país, fazendo com que ganhem com-
petência na realização em ensaios clínicos, uma expertise que, até
pouco tempo atrás, se limitava a instituições hospitalares de grandes
metrópoles. De outro, dá ênfase a demandas da saúde pública, testan-
do medicamentos, procedimentos e dispositivos para diagnóstico de
doenças de interesse do Sistema Único de Saúde (SUS). “A ideia da
rede é dar uma chance ao SUS de ter estudos clínicos que atendam
a suas necessidades”, diz o secretário de Ciência, Tecnologia e Insu-
mos Estratégicos do Ministério da Saúde, Reinaldo Guimarães. “Até
poucos anos atrás, a contratação de protocolos de estudos clínicos
pelas empresas farmacêuticas era habitualmente realizada em padrões
privados, diretamente com um pesquisador, sem nenhuma interven-
ção institucional, a despeito de as pesquisas usarem infraestrutura e
pessoal das instituições públicas. Com a colaboração de universida-

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des e hospitais, essa prática tende a ser instituições brasileiras e é coordena- desenvolvimento de experiência mul-
residual hoje em dia”, afirma. do por Eduardo Moacyr Krieger, do ticêntrica na rede de pesquisa clínica,
Segundo Guimarães, a rede não pre- Instituto do Coração da FMUSP. Con- treinando profissionais para a elabora-
tende atrapalhar a relação direta entre siste no estudo de 2 mil pacientes por ção de projetos e coleta de dados para
laboratórios farmacêuticos e pesqui- um período de 12 meses em que as responder a questões de pertinência
sadores, mas oferecer uma alternativa diretrizes de tratamento são seguidas social, de interesse do gestor em saúde
institucional que tenha como meta o utilizando medicamentos e infraes- e não de corporações farmacêuticas”,
interesse público. “A apropriação das trutura da rede SUS para identificar diz Guimarães.
tecnologias envolvidas em testes clíni- os pacientes resistentes ao tratamen- Um dos novos centros a aderir à
cos não é habitualmente prevista nos to convencional com até três drogas rede é o Hospital Nossa Senhora da
protocolos contratados por empresas contra a hipertensão. Outro projeto Conceição (HNSC), de Tubarão (SC).
farmacêuticas”, diz. “Nesses casos, a de destaque é o Prever – Prevenção de Segundo Daisson José Trevisol, que é
equipe recebe um protocolo pronto e eventos cardiovasculares em pacientes integrante do Departamento de En-
fechado, adquire os dados dos pacien- com pré-hipertensão e hipertensão ar- sino e Pesquisa do HNSC e coorde-
tes e os envia para uma central fora do terial. O objetivo deste estudo, coorde- na a unidade hospitalar de ensino da
país. O aprendizado é pobre.” Segundo nado pelo professor Flavio Fuchs, da Universidade do Sul de Santa Catari-
um levantamento do Departamento de Universidade Federal do Rio Grande na (Unisul), instituição comunitária
Ciência e Tecnologia do Ministério da do Sul, é comparar, por meio de en- e sem fins lucrativos, a expectativa é
Saúde, entre 2006 e 2007 foram inicia- saio clínico, a eficácia da associação de ampliar as possibilidades de pesquisas
dos 942 projetos de pesquisa clínica em duas drogas, a clortalidona e a amilo- clínicas tanto da universidade quanto
16 centros dos 19 então participantes da rida, em baixas doses, na prevenção de do hospital, treinando e equipando os
rede. Foram financiados pelo SUS 113 doença cardiovascular e hipertensão núcleos de pesquisa. “Esperamos tornar
deles, 380 por agências federais e esta- arterial sistêmica em pacientes com a pesquisa autossustentável, permitin-
duais de fomento e 337 por empresas pré-hipertensão arterial. Também do que nossos alunos aprendam a pes-
privadas. Nos três primeiros anos de busca comparar a eficácia da droga quisar e que nossos professores tenham
operação a rede teve investimentos de losartana com a associação de clorta- a possibilidade de publicar artigos em
R$ 35 milhões. Não estão previstos re- lidona e amilorida, na prevenção de revistas internacionais de impacto na
cursos adicionais para a sua expansão. eventos cardiovasculares em pacientes comunidade científica”, afirmou. ■
com hipertensão arterial severa. “Esses
Tradição - A RNPC reúne instituições dois projetos demonstram interesse no Fabrício Marques
com tradição em ensaios clínicos, como
o Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina da Universidade de São
Paulo (FMUSP), cujo comitê de ética
em pesquisa recebe cerca de mil proto-
colos de pesquisa por ano para avaliar
e cuja adesão à rede resultou no apri-
moramento da estrutura já existente, a
unidades hospitalares que começaram
recentemente a participar de ensaios.
Um exemplo é o Hospital Universitário
João de Barros Barreto, da Universidade
Federal do Pará, que, com os recursos
financeiros recebidos por meio da rede,
desenvolveu uma unidade de pesquisa
clínica integrada a outros centros de
investigação da universidade. “Essa in-
tegração é saudável. Com o trabalho em
rede, as instituições mais tradicionais
repassam sua experiência para as de-
mais”, diz Reinaldo Guimarães.
Um dos exemplos de pesquisa de
interesse do SUS realizada pela rede
é um estudo que busca identificar
pacientes com hipertensão resisten-
FOTOS EDUARDO CESAR

te, entre as diversidades regionais da


população brasileira, e determinar a
melhor abordagem terapêutica para
este subgrupo. O estudo envolve 25

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>
HOMENAGEM

Entre o laboratório
e o gabinete
Oscar Sala aliou excelência científica à liderança institucional
Neldson Marcolin


comum pesquisadores mudarem a direção de uma extraordinária geração de físicos brasileiros.
suas atividades principais com o passar dos “Já tinha lido um pouco sobre radiação cósmica e
anos. Alguns optam por se tornarem gestores fiz algumas perguntas a ele, que perguntou o que
de ciência e tecnologia e acabam absorvidos eu fazia e, afinal, me convenceu a sair da Poli e a
pela burocracia de tal maneira que raramen- entrar para a Física.” As experiências faziam parte
te voltam a frequentar laboratórios ou salas da expedição liderada pelo norte-americano Arthur
de aula. Mas há uma classe de cientistas que Compton, que visitou o Brasil em 1941. No mesmo
consegue conciliar todas as diferentes atividades com ano Sala começou como aluno da Física e se formou
a mesma aptidão e qualidade durante a maior parte em 1945. Ainda estudante, colaborou com o Exér-
da vida. Oscar Sala foi uma dessas invulgares perso- cito brasileiro construindo transmissores portáteis
nalidades da ciência brasileira, a julgar por todos os usados na campanha na Itália durante a Segunda

ACERVO IF/USP
depoimentos sobre ele. Morto no dia 2 de janeiro em Guerra Mundial.
consequência de uma parada cardíaca, aos 87 anos, Em 1946 tornou-se assistente da cadeira de físi-
foi um dos principais físicos do país e um gestor com- ca geral e experimental, regida por Marcello Damy
petente e importante, intimamente
ligado à história da FAPESP como
seu diretor científico, entre 1969 e
1975, e presidente, entre 1985 e 1995.
Deixou esposa, Rosa Augusta, três
filhos e seis netos.
Oscar Sala nasceu em Milão, na
Itália, de pai brasileiro e mãe italia-
na. Veio com a família para Bauru,
no interior paulista, aos 2 anos. For-
mou-se em música no conservatório
da cidade, mas optou por cursar en-
genharia na Escola Politécnica. Sua
passagem para a física se deu duran-
te o período de férias em Bauru. “No
campo de aviação havia uma grande
movimentação com os balões que
eram soltos a grandes altitudes para
medirem a radiação cósmica. Um
dia estava lá e comecei a conversar
com um senhor, que era justamente
o Gleb Wataghin”, contou Sala em
entrevista a Amélia Império Ham-
burger, publicada no livro Cientistas
do Brasil (SBPC, 1998). Wataghin,
russo radicado na Itália, foi um dos
professores estrangeiros que ajuda-
ram a consolidar a Universidade de Os físicos: Ernst Hamburger (em pé), Sérgio
São Paulo (USP), responsável por Mascarenhas, Damy, José Goldemberg e Sala

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Sala em julho
de 1977,
ano da reunião
da SBPC
na PUC-SP,
invadida pela
polícia

de Souza Santos, outro discípulo


de Gleb Wataghin. No mesmo ano
ganhou bolsa da Fundação Rocke-
feller e foi estagiar na Universidade
de Illinois, nos Estados Unidos, sob
a orientação de Maurice Goldha-
ber, para trabalhar com física de
nêutrons. Em 1948 mudou-se para
a Universidade de Wisconsin, no
mesmo país, e projetou com Ray
Herb o acelerador eletrostático, do
tipo Van de Graaff, para ser instalado
na USP. Esse foi o primeiro equipa-
mento a utilizar feixes pulsados para
estudos sobre reações nucleares com
nêutrons rápidos, importante para a
pesquisa na área de energia nuclear.
E, já em 1972, montou no Instituto
de Física da USP o projeto parcial do
acelerador Pelletron, que substituiu
o Van de Graaff.

CLAUDINE PETROLI/AGÊNCIA ESTADO


Ação e reação - “Sala percebia bem
o momento em que as coisas acon-
teciam e sabia como reagir a elas”,
diz o físico e historiador Shozo Mo-
toyama, do Centro Interunidade de
História da Ciência da USP. Assim,
por exemplo, logo depois da Segun-
da Guerra Mundial, percebendo a
importância que a física nuclear
experimental poderia ter no Brasil,
empenhou-se para consolidá-la. Soube escolher bem Nos anos 1960 conquistou a cátedra de física
os aceleradores de partículas adequados ao magro nuclear e começou a atuar de modo sistemático em
orçamento brasileiro em ciência e tecnologia, mas organizações do Brasil e do exterior para tratar de
capazes de contribuir com resultados científicos rele- temas relacionados à sua especialidade e de assuntos
vantes naquele momento histórico. Foi dentro dessa relativos à política científica e tecnológica. Integrou o
percepção que montou o Van de Graaff na década de Comitê Internacional sobre Estrutura Nuclear (Kin-
1950 e o Pelletron nos anos 1970. Em torno dessas gston, 1960) e o Conselho Deliberativo do Conselho
máquinas formaram-se pelo menos duas gerações de Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-
físicos nucleares brasileiros. “Em 1981, Sala recebeu gico (CNPq, 1964-1968), entre vários outros orga-
o Prêmio Moinho Santista graças, em grande parte, nismos. Foi, ainda, um dos fundadores e o primeiro
a esses trabalhos”, afirma Motoyama. presidente da Sociedade Brasileira de Física (1966).

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Sala e César Lattes,
um dos descobridores
do méson-pi:
interação

que participaram do programa foram


bem-sucedidos. A participação de Os-
car Sala não se limitou à proposta do
plano. “Ele montou um comitê externo
com três cientistas estrangeiros presi-
didos pelo norte-americano Marshall
Nirenberg, Prêmio Nobel de Medicina
(1968), que veio várias vezes ao Brasil.
Esse comitê acompanhava o progresso
dos diferentes grupos entrevistando-os
um a um”, lembra o bioquímico. “Co-
mo esse era um projeto para a cidade
de São Paulo havia uma distribuição
racional de equipamentos entre os di-
versos grupos.” O Bioq-FAPESP resul-
tou na formação de dezenas de proje-
tos, grupos e laboratório, envolvendo
aproximadamente duas centenas de
Em 1969 o então diretor científico autonomia da Fundação. “Sala soube pesquisadores, além do intercâmbio
da FAPESP, Alberto Carvalho da Silva, protegê-la com sabedoria e firmeza de com cientistas estrangeiros e a vinda de
foi afastado do cargo pelos militares. ingerências políticas”, lembra. professores visitantes, de acordo com o
O presidente do conselho superior livro Prelúdio para uma história – Ciên-
da Fundação, Antonio Barros Ulhôa Grandes projetos - No ano em que se cia e tecnologia no Brasil, organizado
Cintra, ex-reitor da USP, fez um apelo tornou diretor científico ele apresentou por Shozo Motoyama (Edusp/FAPESP,
a Sala para que assumisse a diretoria. um plano para apoiar grandes proje- 2004).
“Ele me disse que se não aceitasse a tos, aprovado pelo conselho superior O projeto para a área de meteoro-
FAPESP seria fechada”, contou Sala a da FAPESP. De acordo com a ata do logia foi outra iniciativa importante
Amélia Hamburger para Cientistas do conselho de 1969, o objetivo era “desti- da diretoria científica daquele período.
Brasil. “Durante mais de um ano fui à nar 30% do total da verba de amparo à Como esse campo se encontrasse em
casa do Alberto todas as semanas, pa- pesquisa ao custeio de projetos através estado precário no começo dos anos
ra discutir diretrizes, e criamos uma dos quais possam ser resolvidos ou bem 1970, apesar da importância estratégica
amizade muito grande.” Com habili- equacionados importantes problemas para a agricultura, a FAPESP financiou
dade, firmeza e bons contatos, o físico de determinadas áreas”. A partir dessa a vinda de James Weiman, do Departa-
conseguiu manter o regime militar a data a nova política de apoio resultou mento de Tecnologia da Universidade
uma boa distância da Fundação, sem em Iniciativas e Projetos Especiais. de Wisconsin, nos Estados Unidos. Wei-
atrapalhar sua rotina. “O interessante Uma das consequências imediatas man analisou a situação e recomendou
é que ele formou uma dupla influente foi o Plano para Desenvolvimento da a instalação de um radar meteorológi-
com o Alberto Carvalho da Silva duran- Bioquímica na Cidade de São Paulo, o co. Iniciado em 1974, o Projeto Especial
te muitos anos”, afirma Amélia. Bioq-FAPESP, com 14 projetos cientí- denominado Radasp foi instalado no
“Sala foi diretor científico em um ficos e investimento inicial de US$ 1 Instituto de Pesquisas Meteorológicas,
momento muito delicado. Sua atuação milhão, previsto para três anos. da Fundação Educacional de Bauru,
foi decisiva no processo de consolida- “O Bioq eliminou hierarquias, depois incorporado à Universidade
ção dos ideais da Fundação”, diz Celso principalmente a científica: elabora- Estadual Paulista (Unesp). Os resulta-
Lafer, presidente da FAPESP. “Ele teve va projetos quem queria e ganhava dos surgiram imediatamente – os jor-
enorme influência no bom desenvol- quem podia ou fazia um bom proje- nais paulistas passaram a usar os dados
vimento da FAPESP na diretoria cien- to”, conta o bioquímico Walter Colli, das previsões do tempo publicadas e a
tífica e na presidência da instituição”, pesquisador do Instituto de Química disseminar essas informações. “Pesqui-
corrobora o diretor científico Carlos da USP, dirigido por ele em duas oca- sador emérito, Sala muito contribuiu
Henrique de Brito Cruz. José Fernando siões (1986-1990 e 1994-1998). “Uma para o desenvolvimento científico do
Perez, ex-diretor científico (1993-2005) grande quantidade de jovens montou estado de São Paulo e do Brasil”, diz o
e atual presidente da empresa Recepta os seus laboratórios de pesquisa, ela- diretor administrativo da FAPESP, Joa-
Biopharma, diz que o físico foi “um borando relatórios e publicando tra- quim José de Camargo Engler. “Convivi
campeão” na permanente afirmação da balhos.” De acordo com Colli, todos os e trabalhei com ele como conselheiro

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e, depois, como diretor administrati- portância que teria a informatização Núcleo de Informação e Coordenação
vo, num relacionamento sempre muito e a conexão em rede para a pesquisa e do Ponto BR (NIC.br).
cordial e respeitoso.” direcionou a Fundação para essa linha”, Além das relações delicadas enfren-
Oscar Sala deixou a diretoria cien- avalia Shozo Motoyama. tadas no período como diretor científi-
tífica em 1975. Mas voltou à Fundação “A atuação de Sala foi decisiva quan- co da FAPESP, entre 1973-1979 Sala foi
em 1985 como presidente do conselho do a FAPESP garantiu inicialmente o presidente da Sociedade Brasileira pa-
superior e tomou a frente do processo acesso da comunidade de física de São ra o Progresso da Ciência (SBPC). Sua
de informatização da FAPESP. O obje- Paulo, via e-mail, ao Fermilab, dos Esta- principal realização foi conseguir com
tivo era desenvolver bancos de dados dos Unidos”, diz o ex-diretor científico que a tradicional reunião anual não
e sistemas de gerenciamento de bolsas José Fernando Perez. “Foi a partir dessa deixasse de ocorrer. A de 1977, proibi-
e auxílios concedidos. Seu apoio foi semente que a Fundação se tornou re- da inicialmente pelo governo federal
importante para algo que começava a ferência para a internet brasileira. Até de se realizar em Fortaleza, ocorreu na
surgir com força no Brasil: as discus- há bem pouco tempo a FAPESP foi Pontifícia Universidade Católica de São
sões a respeito da conexão brasileira responsável pela atribuição de domí- Paulo (PUC-SP) e foi especialmente
às redes internacionais, precursoras nios da rede, até mesmo para a inter- conturbada, com a invasão do campus
da internet, que ainda engatinhava na net comercial.” Segundo o engenheiro pela polícia. “Ele presidiu a SBPC com
década de 1980. Foi criado o programa eletrônico Demi Getschko, convidado ousadia e habilidade em um período
Rede ANSP (Academic Network at São por Sala para integrar o Centro de difícil da vida brasileira, resistindo ao
Paulo), um dos principais pontos de Processamento da FAPESP, em 1986, a arbítrio e defendendo o desenvolvi-
conexão da internet com o exterior e própria parceria com o Fermilab só foi mento da ciência no Brasil”, diz Bri-
responsável pela interligação das redes possível graças aos contatos do então to Cruz. “Mais ainda, Sala foi um dos
acadêmicas universitárias, institutos e presidente. “Foi ele quem bancou todo grandes cientistas brasileiros, aliando
centros de pesquisa paulista. “O seu o projeto, montou a equipe e apoiou excelência científica e liderança institu-
senso de oportunidade funcionou tudo aquilo”, disse à Agência FAPESP cional e sendo um modelo de carreira
mais uma vez quando percebeu a im- Getschko, hoje diretor presidente do para gerações mais jovens.” ■

FOTOS ACERVO DA FAMÍLIA

Sala trabalhando com colaborador: escolha correta de máquinas, adequada ao orçamento da C&T brasileira

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>> LABORATÓRIO MUNDO

A história de que o físico in-

A MAÇÃ DE NEWTON
glês Isaac Newton teria con-
cebido a lei da gravitação uni-
versal ao observar a queda de
uma maçã de uma árvore tem
sido ora negada, ora alimenta-
da. A mais recente indicação
de que pode realmente ser
verdadeira foi a publicação
on-line, pela Royal Society, de
Londres, das 100 páginas do
manuscrito do físico William
Stukeley, Memórias da vida de
Newton. É a primeira descri-
ção da experiência de Newton
com a maçã mais famosa da
Na internet: ciência. Um trecho: “Depois
manuscrito do jantar, fomos ao jardim e
conta origem tomamos chá, sob a sombra
da lei da
de algumas macieiras. Ele me
gravitação
universal contou que estava antes na
mesma situação quando a noção de gravidade veio à mente
dele. Foi em decorrência da queda de uma maçã, e ele sentou-
-se contemplativamente. Por que deveria aquela maçã sempre
REPRODUÇÃO

cair perpendicularmente em direção ao solo, pensou ele”.


Publicados em 1752, os textos de Stukeley eram consulta-
dos apenas por acadêmicos. Os manuscritos são um dos sete
documentos históricos a ganhar a internet como parte das
celebrações dos 350 anos da Royal Society, uma das mais
importantes sociedades científicas do mundo.
> Riscos de cesáreas departamento de pesquisa
desnecessárias e saúde reprodutiva da
OMS, sediada em Genebra, 27,3% dos 107.950 partos > O cheiro da
Um levantamento da Suíça. Publicado em janeiro realizados em nove países – fertilidade
Organização Mundial na revista Lancet, esse Camboja, China, Índia,
da Saúde (OMS) sobre trabalho indicou que Japão, Nepal, Filipinas, Sri Por muito tempo a fertilidade
saúde materna indicou que o risco de internação era Lanka, Tailândia e Vietnã. das mulheres era tida
o risco de morte é maior de 6% entre as mulheres A OMS recomenda que como oculta, ao contrário
para mulheres submetidas submetidas a cesáreas as cesáreas não ultrapassem das outras fêmeas primatas
a cesárea sem indicações sem indicação médica 15% do total de partos, que anunciam o período
médicas do que para e de apenas 0,6% nas por causa da possibilidade receptivo com cores
aquelas em que esse que fizeram parto normal. de trazer riscos à saúde do e comportamentos típicos.
procedimento cirúrgico Os casos de transfusão bebê e da mãe quando Mas dados recentes
é realmente necessário. de sangue e de bebês realizadas sem necessidade. mostraram que, mesmo que
As cesáreas devem ser prematuros internados Entre os países analisados, não tenham consciência
realizadas somente quando em unidades de terapia a China apresentou a disso, os homens sentem algo
há indicação médica, intensiva também eram proporção mais alta de no cheiro de uma mulher no
de acordo com o estudo mais comuns quando cesáreas, com 46,2% período fértil (Psychological
coordenado por as cesáreas eram eletivas. do total de partos, seguida Science). Os norte-americanos
Metin Gülmezoglu, do As cesáreas representaram pelo Vietnã, com 35,6%. Saul Miller e Jon Maner,

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da Universidade Estadual

NOÇÃO MATEMÁTICA
Nos laboratórios da

J.M. GARG/WIKIMEDIA COMMONS


da Flórida, pediram a Universidade de Tü-
mulheres que usassem uma bingen, Alemanha,
mesma camiseta para dormir Sylvia Bongard e An-
por três dias, que depois dreas Nieder geraram
apresentaram a jovens imagens com poucos
voluntários. O achado veio ou muitos pontos e
da comparação do nível de ensinaram a macacos
testosterona desses rapazes rhesus as noções de
antes e depois de cheirarem “mais de” ou “menos
as camisetas femininas: de”. Variando a dispo-
esses teores aumentaram sição dos pontos para
com a exposição ao garantir que a distri-
odor de uma mulher por Macacos: conceitos de “mais” e “menos” buição e a densidade
volta do dia da ovulação. não interferissem na
É o primeiro estudo a percepção, os pesqui-
demonstrar alterações calor e salinidade nos sadores mostraram que os macacos distinguiam "mais" e
fisiológicas nos homens oceanos Atlântico e "menos", um conceito matemático básico. A capacidade de
em resposta ao período fértil Pacífico, de acordo com diferenciarem placas com mais ou menos pontos se deve
feminino, um mecanismo um estudo do National à ativação de neurônios do córtex pré-frontal, que podem
importante em aumentar Center for Atmospheric representar com flexibilidade regras matemáticas altamen-
as chances de fertilização. Research (NCAR) te abstratas. De acordo com o experimento, esses circuitos
(Nature Geoscience). neuronais do córtex dos rhesus podem ter sido adaptados ao
As temperaturas de verão longo da evolução dos primatas como resultado do processa-
> Estreito regula o variaram de amenas a frias mento de números em sistemas matemáticos formais (PNAS).
clima na Terra em algumas regiões Para os dois pesquisadores, esses achados elucidam os me-
da América do Norte canismos neurobiológicos de operações numéricas e abrem
As oscilações dos níveis e Groenlândia, fazendo com caminho para uma melhor compreensão do processamento
do mar no estreito de Bering que blocos de gelo das regras matemáticas básicas no cérebro de primatas.
podem ter ajudado a regular se expandissem ou
os padrões do clima encolhessem, modificando
global durante a era do gelo, o nível do mar em todo o Esse fluxo é importante ao aquecimento global atual,
há mais de 100 mil anos. planeta. Embora pequeno – para regular a força de uma evidenciam a complexidade
Aberturas e fechamentos atualmente 80 quilômetros corrente marinha do sistema climático da
contínuos do estreito que entre a Rússia e as ilhas do conhecida como circulação Terra e o fato de que
separa a América do Norte oeste do Alasca –, o estreito meridional, que dirige mudanças aparentemente
da Ásia, em consequência da permite que as águas o calor dos trópicos aos insignificantes podem levar
flutuação dos níveis do mar, circulem do Pacífico Norte polos. As conclusões desse a mudanças climáticas
influenciaram as correntes ao Atlântico Norte, mais estudo, mesmo que não radicais, especialmente no
marinhas que transportavam salgado, pelo oceano Ártico. digam respeito diretamente Ártico ou nas proximidades.

NASA

Bering: extensão do gelo afeta nível do mar e clima no planeta inteiro

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>> LABORATÓRIO BRASIL

na revista Antiquity no final

CDC/JANICE HANEY CARR E JEFF HAGEMAN


Um estudo em hospitais

ASSÍDUAS EM HOSPITAIS
paulistas detectou uma al- de 2009, ainda não sabem
ta prevalência de bactérias se as construções tinham
resistentes a antibióticos. finalidades defensivas ou
Em geral, 31% das varieda- cerimoniais. Elas indicam
des de Streptococus aureus que sociedades regionais
se mostraram resistentes organizadas e densamente
à oxacilina, antibiótico povoadas viveram
bastante usado contra es- nessa região entre os anos
sa bactéria causadora de 1250 e 1378, antes da
infecção hospitalar, e a chegada dos colonizadores
maioria das bactérias mul- europeus, em uma região
tirresistentes sobrevive- de ocupação antes
ram a três medicamentos considerada improvável.
(clindamicina, ciprofloxa-
cina e levofloxacina), de
acordo com um estudo de > Vinhos com mais
Streptococcus aureus: pouco suscetível a antibióticos Ana Gales e Helio Sader, gosto e aroma
da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp), em Reforçar o teor de taninos
> Círculos perfeitos colaboração com pesquisadores de hospitais do Distrito fez com que vinhos
sob a Amazônia Federal, Florianópolis e Santa Catarina. Segundo os autores, Cabernet Sauvignon
os achados enfatizam a importância de inclusão de drogas cultivados na região de
Sinais do que poderia ter ainda eficazes contra variedades multirresistentes, como Bento Gonçalves, no Rio
sido uma civilização antiga a vancomicina, linezolida e daptomicina, desde o início do Grande do Sul, ganhassem
desconhecida pode estar tratamento de infecções hospitalares. Detalhado na revista em aroma e sabor, de
emergindo no rastro de Brazilian Journal of Infectious Diseases, esse levantamento acordo com um estudo
árvores caídas da Amazônia. consistiu em análises de 3.907 amostras de bactérias co- realizado por Vitor Manfroi,
Duas centenas de lhidas de pacientes tratados em quatro hospitais paulistas da Universidade Federal do
entre janeiro de 2005 e setembro de 2008, como parte de
um programa internacional de vigilância antimicrobiana que
MAURO CELSO ZANUS/EMBRAPA UVA E VINHO
SANNA SAUNALUOMA

inclui 120 centros médicos nas Américas, Europa e Ásia.

construções geométricas essas figuras geométricas


definidas como geoglifos, escavadas no solo da
em forma de quadrados, floresta estão a distâncias
retângulos e círculos variáveis de dois a cinco
perfeitos, unidos por quilômetros de rios e
estradas muradas, vieram geralmente próximas a
à tona em uma região da fontes de água fresca. Martti
Floresta Amazônica no Pärssinen, do Instituto
estado do Acre, próxima Iberoamericano de
da fronteira do Brasil com a Finlândia, na Espanha,
Bolívia. Espalhando-se por Denise Schaan, da
250 quilômetros ao longo Universidade Federal
do eixo da atual BR 317, do Pará, e Alceu Ranzi, da
Universidade Federal do
Geoglifos no Acre: bem Acre, os especialistas que
antes dos europeus apresentaram os geoglifos

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E.W.ROBINSON/REPRODUÇÃO DE NATURALIST ON THE RIVER AMAZONS

Morder
ou fugir?
Depende do
tamanho dos
próprios teiús

Rio Grande do Sul (UFRGS), empresas fez as análises ENERGIA Símbolos de preguiça por ficarem
publicado na Ciência Rural. sensoriais. A acidez e a SOLAR estirados ao sol, os lagartos na ver-
Manfroi e outros maciez foram menores nas dade estão mais próximos de baterias
especialistas da UFRGS, amostras que receberam solares. Incapazes de aquecer o cor-
Embrapa Uva e Vinho e tanino de castanheira, que po sem fonte externa de calor, eles precisam lagartear para
da Universidade Federal de levou a um vinho com mais acumular energia para a vida cotidiana, que inclui fugir de
Pelotas (UFPel) aplicaram corpo que o tratado com predadores. Em busca de entender a relação entre compor-
dois taninos comerciais – tanino de quebracho. tamento anti-predatório, temperatura ambiente e tamanho
o de quebracho, de origem Os vinhos com tanino do corpo, a bióloga Tiana Kohlsdorf, da Universidade de São
argentina, e o de castanheira, de quebracho tendiam a Paulo (USP) em Ribeirão Preto, coordenou um trabalho com
italiano – em três dosagens apresentar mais amargor teiús, lagartos que chegam a ter 1,5 metro de comprimento.
diferentes em três que os de castanheira. O risco ficou por conta do mestrando Fábio Cury de Barros,
momentos distintos – O objetivo do uso do tanino, que fez as vezes de predador dando tapinhas junto à base da
dois dias, oito dias e quatro autorizado pela legislação cauda dos lagartos – o que lhe rendeu algumas mordidas. Os
meses após o esmagamento internacional sobre vinhos, resultados, publicados em janeiro na revista Animal Behaviour,
das uvas. Um grupo de é facilitar a precipitação de mostram que a estratégia de defesa dos teiús varia conforme
14 avaliadores do grupo proteínas em excesso e o tamanho e a temperatura a que estão submetidos. Jovens
de degustação da Embrapa auxiliar na clarificação. com menos de 100 gramas sempre fogem, mesmo quando
Uva e Vinho e enólogos de Há relatos de taninos estão frios e não conseguem correr (neste caso se afastam
usados também para devagar). Já os adultos, de quase 1 quilograma, só correm
melhorar aromas e gostos e quando estão quentes. No frio, compensa mais enfrentar o
estabilizar a cor dos vinhos. predador com uma dolorosa mordida.

> Memórias da Pontifícia Universidade de atividade do c-fos


que ficam Católica do Rio Grande do no hipocampo, a área do
Sul. Testes com ratos que cérebro mais ligada ao
A memória de longo prazo guardaram más memórias armazenamento de
é um mistério para os de uma caixa em que memória, 12 horas depois,
neurocientistas: o que faz levavam choques nas patas seeguido de síntese
com que fique gravada no mostraram um novo papel proteica 24 horas depois.
cérebro? O enigma está para o c-fos, uma protína Os pesquisadores viram
mais perto da solução, relacionada à aquisição que essa atividade tardia
graças a pesquisadores de memória (PNAS). só acontece se o choque
do Brasil e da Argentina Não basta entrar em ação tiver sido de intensidade
coordenados por Jorge logo após o acontecido, suficiente para gerar uma
Medina e Iván Izquierdo, como de fato acontece; memória de longo prazo.
para que a memória se A descoberta abre caminhos
Cabernet Sauvignon: consolide no longo prazo, para a pesquisa sobre a
dose extra de tanino é preciso um segundo pico persistência da memória.

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>
CIÊNCIA

BIOLOGIA CELULAR

AUTOFAGIA
PARA A
SOBREVIVÊNCIA
A manipulação da autodigestão
celular inspira novas estratégias
para combater doenças
Carlos Fioravanti

S
omos todos autofágicos – e isso é bom. A todo
momento nossas células se digerem e se renovam,
desfazendo e reaproveitando proteínas, por meio
de um mecanismo biológico chamado autofagia.
Vista antes apenas como um processo de morte
celular, essa forma de autodestruição seletiva de
componentes celulares mostra-se agora como um
artifício de sobrevivência dos organismos – só quando não há
mais conserto possível é que as células se apagam. Como apa-
rentemente pode ser acelerada ou retardada, a autofagia tor-
nou-se uma estratégia nova para combater doenças e prolongar
a vida das células, cujo interior deve guardar tanto movimento
quanto os quadros do artista plástico Jackson Pollock.
De imediato, a autofagia está abrindo perspectivas de apli-
cações novas para velhos medicamentos. Por exemplo, o lítio,
usado para tratar pessoas com transtorno bipolar de humor,
marcado por saltos repentinos da euforia à depressão profunda,
pode ser útil para deter o mal de Alzheimer, uma forma de de-
generação dos neurônios que tende a se agravar com o envelhe-
cimento. A cloroquina, além de aplacar a malária, pode ajudar a
combater tumores. A rapamicina, antibiótico usado para evitar
Jackson a rejeição de órgãos transplantados, prolongou a longevidade
Pollock, de um grupo de camundongos, em comparação com outro
Number 3, grupo, que seguiu o curso normal do envelhecimento.
1949: Tiger “Estabelecer a segurança de usos e acertar as dosagens de
novas aplicações de medicamentos já aprovados é bem mais
fácil do que começar tudo do zero”, argumenta Soraya Sou-
bhi Smaili, professora da Universidade Federal de São Paulo

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REPRODUÇÃO

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A AUTOFAGIA TEM UM PAPEL DUPLO: AJUDA A SOBREVIVER
E A ELIMINAR CÉLULAS DE TODO TIPO, SAUDÁVEIS OU TUMORAIS

(Unifesp), à frente de um dos poucos pesquisa já haviam indicado que as morte das células. Sob sua orientação,
grupos de pesquisa nessa área no país. células tumorais podem adquirir re- Eduardo Chiela comparou os efeitos
Cláudia Bincoletto, também professora sistência aos estímulos que induzem à de resveratrol e da temozolomida, um
da Unifesp e pesquisadora da equipe de morte celular. Uma das características dos principais medicamentos usados
Soraya, mostrando por que essa estraté- típicas da célula tumoral é justamente a contra gliomas que, já se sabia, pode
gia de busca de novos remédios poderia capacidade de escapar da morte celular induzir à morte por autofagia. O es-
ser conveniente para países de recursos geneticamente programada. tudo, em fase final de redação, indi-
financeiros limitados como o Brasil, Como a apoptose e a autofagia se cou que o ingrediente da casca de uva
acrescenta: “Drogas novas são muito relacionam, uma estimulando ou frean- (principalmente as escuras) estimula
mais caras que as mais antigas”. do a outra, Massaro adotou a estratégia os dois mecanismos de morte celular,
inversa: acrescentou um composto que a autofagia e a apoptose, em culturas
bloqueia a autofagia, o 3-metil-adenina de células humanas tumorais.

T ambém há espaço para a pes-


quisa de remédios novos. Na Unifesp,
Cláudia estuda os efeitos promissores
ou 3-MA, à cultura de células tumorais
humanas. O 3-MA ampliou o efeito do
4-NC e a morte dos tumores aumen-
tou 30%, provavelmente estimulando
outro mecanismo de morte celular, em
Em um estudo anterior, Lauren Za-
min, Guido Lenz e outros pesquisadores
da UFRGS avaliaram os efeitos do res-
veratrol e da quercetina, outro compo-
nente da uva e de outras frutas: a casca
de compostos derivados do elemen- comparação com o grupo de células que de uva contém cerca de 50 a 100 micro-
to químico paládio sobre a autofagia receberam apenas o 4-NC. Na Unifesp, gramas por grama de resveratrol e 40 de
como forma de combater tumores. com outros compostos, Cláudia Binco- quercetina; o vinho tinto, cerca de 7 a 13
Ela tem verificado que a possibilida- letto chegou a resultados semelhantes, de resveratrol e 7,4 de quercetina. Uma
de de regular a autofagia por meio de que indicam que a autofagia não induz combinação das duas substâncias fez
compostos químicos pode ser um ca- à morte, mas à sobrevivência das células células de glioma de ratos entrarem em
minho para aumentar a eficiência de – portanto, quando inibida, compostos senescência, processo de envelhecimen-
compostos antitumorais, diminuindo a antitumorais tornam-se mais efetivos. to irreversível que pode culminar em
dosagem e os efeitos indesejados sobre “Essa tem sido uma estratégia defendida autofagia e do qual as células normais
outras células. por muitos grupos em busca de novos se valem como forma de evitar que se
Em um estudo recém-concluído tratamentos contra tumores”, comenta tornem cancerosas. Sob o efeito dessas
na Universidade de São Paulo (USP), Soraya. duas substâncias, as células tumorais se
Renato Massaro, orientado por Silvya “Agora nosso desafio é encontrar agigantaram e depois se romperam.
Maria-Engler, testou um composto ex- a dosagem que elimine apenas as cé- Os testes prosseguem em animais e
traído de raízes e folhas de um arbusto lulas tumorais, sem lesar as normais”, reforçam o papel duplo do resveratrol,
da Mata Atlântica, a pariparoba, contra diz Silvya. Segundo ela, alterar os ní- que, de modo inverso, apresenta um
uma linhagem de células humanas de veis normais de autofagia em células efeito antienvelhecimento em células
tumor de cérebro que cresciam em um saudáveis poderia gerar desequilíbrios saudáveis. “O resveratrol parece perce-
meio de cultura apropriado, mantido nos processos genéticos ou respostas ber quando uma célula é saudável ou
em laboratório. Os resultados que ele inflamatórias indesejadas. A equipe tumoral”, observa Lenz. “Não será fácil,
colheu indicaram que esse composto, o da USP havia indicado em 2008 que mas temos muito interesse em prosse-
4-nerolidilcatecol ou 4-NC, pode esti- o 4-NC pode estimular a apoptose de guir a pesquisa, à medida que os resul-
mular a autofagia nesse tipo de tumor, células de tumor de pele ou melanoma tados em ações sejam positivos, rumo a
chamado glioma, e acionar os caminhos mantidas em cultura de células. aplicações em seres humanos.” Outros
bioquímicos que levam não só à reci- estudos já haviam descrito o resvera-
clagem, mas também à morte celular. trol como um composto capaz de deter
Os gliomas se originam das chamadas
células glias, muito mais numerosas no
cérebro que os neurônios.
Massaro observou que o 4-NC
também reduzia a capacidade de as
N a Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), a equipe de
Guido Lenz tem estudado os efeitos
outros tipos de tumores, estimular a
autofagia e deter o envelhecimento.
“A autofagia representa um enfoque
promissor para tratar melanomas (cân-
ceres de pele)”, comentou Damià Tor-
células tumorais invadirem o espaço do resveratrol, composto natural en- mo, pesquisador do Centro Espanhol
das células sadias. Era um bom sinal. contrado na casca de uva, frutas ver- de Pesquisa sobre Câncer, em Madri, em
O problema é que outros grupos de melhas e amendoim, sobre a vida e a uma apresentação em janeiro na USP.

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Ele coordenou a construção de uma es-

MIGUEL BOYAYAN
trutura sintética de RNA (ácido ribo-
nucleico) que aciona proteínas específi-
cas e promove autofagia, como descrito
em um artigo de 2009 na revista Cancer
Cell. Tormo trabalha também em sua
empresa nascente, a BiOnco Tech, para
levar adiante o desenvolvimento dessa
molécula, que se mostrou eficaz para
deter o crescimento de tumores de pele,
que com frequência se tornam resis-
tentes a medicamentos, nos primeiros
experimentos realizados em cultura de
células e em camundongos genetica-
mente modificados.

M esmo com novas substân-


cias com efeitos promissores e aparen-
temente de baixa toxicidade, não será
fácil prosseguir. Em primeiro lugar, por
causa das dificuldades para desenvolver
novos medicamentos no Brasil. Em se-
gundo lugar, por conta do próprio papel
– igualmente duplo – da autofagia, que
ajuda a sobreviver ou a eliminar tan-
to as células normais quanto as tumo-
rais. Em vários estudos, observa Gui-
do Kroemer, pesquisador do Instituto
Gustaf Rouassy de Paris, mostrou-se
que a autofagia pode ter funções dife-
rentes, de acordo com o tipo de célu-
la. Em neurônios, células do coração e
outros tipos de células que se repro-
duzem normalmente, esse mecanismo
poderia ajudar na limpeza, eliminando
resíduos, além de preparar a célula para
a morte por apoptose. Em células que
se multiplicam de modo descontrolado
– ou seja, com potencial para formar
tumores –, a autofagia poderia favorecer
a sobrevivência e, portanto, a eventual
resistência a compostos ou estímulos
externos usados contra elas.
Reconhecida nos anos 1970 por
Daniel Klionsky, pesquisador da Uni-
versidade de Michigan, Estados Unidos,
a autofagia passou quase três décadas
vista apenas como uma forma, inicial-
mente sem muita importância, de a
célula se livrar de si
mesma. Por essa ra- Antitumorais
zão, foi chamada de à mão:
morte celular pro- a casca de
gramada tipo 2 para uva contém
diferenciar da apop- resveratrol
tose, ou morte tipo 1, e quercetina

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Faxina no 0h 1h

interior
das células

muito mais estudada. “Pode-se dizer gia acionam a produção de proteínas, de grandes bolsas, chamadas vacúolos
que a autofagia antecede a morte ce- que aos poucos se encaixam formando autossômicos, que levam adiante a
lular ou que é cruzada à morte celular, membranas que cercam os componen- transformação de resíduos em matéria-
mas hoje não é mais correto afirmar- tes celulares a serem desmontados antes -prima para moléculas novas. Segun-
mos que a autofagia seja um tipo de de causarem problemas. Em seguida, do Lenz, aparentemente é o número
morte celular”, comenta Soraya. movida por outras proteínas especí- de mitocôndrias eliminadas por esses
Os genes que controlam a autofagia ficas, a membrana se funde com os vacúolos que marca o momento em
começaram a ser identificados em 1997, lisossomos, compartimentos da célula que a célula sai da fase da reciclagem
inicialmente em leveduras, organismos ricos em enzimas que rotineiramente para a da destruição completa. O pro-
unicelulares, empregados na fabricação fragmentam proteínas. blema é encontrar esse limite. Ou, em
de pão, vinho, cerveja e álcool combus- termos práticos, descobrir quantas
tível. A partir dos genes, os especialistas mitocôndrias uma célula precisa per-
conheceram quais são e como intera-
gem as proteínas que levam adiante esse
mecanismo flexível de reciclagem de
componentes celulares. Além de des-
montar o que não está funcionando di-
O s lisossomos digerem proteínas
defeituosas celulares mais lentamente
que outro mecanismo de limpeza celular
der – uma célula possui em média 200
mitocôndrias – para entrar no caminho
irreversível da morte celular.
O conhecimento sobre essa linha
de desmontagem celular, à medida
reito, a autofagia tem outras funções ao chamado proteossomo. Embora mais que encorpava, levantou as primeiras
longo do desenvolvimento das células, lentos, os lisossomos podem eliminar possibilidades, hoje mais concretas, de
nem sempre levando à morte. É neces- estruturas celulares maiores, quando intervir nessa cadeia de reações bioquí-
sária, por exemplo, para as leveduras se danificadas ou deficientes, principal- micas para prolongar a vida das células
reproduzirem e para as larvas de insetos mente as mitocôndrias, compartimen- sadias e reduzir a das tumorais. Em um
se transformarem em pupas. tos celulares que convertem a energia estudo publicado em fevereiro de 2008
“Hoje vemos que a autofagia está obtida dos alimentos em moléculas de na revista PNAS, pesquisadores italianos
mais para sobrevivência e resistência ATP, fundamentais para a manutenção mostraram que o lítio, aplicado durante
do que morte celular”, observa Soraya. das células. Na Unifesp, sob orientação 15 meses em um grupo de 44 pessoas,
“Diante de um estímulo agressor ou de de Soraya, Juliana Terashima irrigou poderia adiar a progressão da esclerose
um defeito celular, a célula pode entrar células com um composto conhecido lateral amiotrófica, uma doença neuro-
em autofagia como uma tentativa de pela sigla FCCF, extremamente tóxico degenerativa.
reparo e só quando não há mais con- para as mitocôndrias. Em resposta, as Um mês antes uma equipe da Uni-
serto é que entra em processo de morte células entraram em autofagia, que, versidade de Cambridge havia mostrado
celular.” Vários estudos sugerem que os uma vez acionada, ajudou a remover na Human Molecular Genetics as possi-
genes e as proteínas que estimulam a as mitocôndrias que haviam sido da- bilidades de uso do lítio e da rapami-
autofagia podem bloquear a apoptose, nificadas pelo composto. cina, combinados, para tratar a doença
ou o contrário, a partir de estímulos Ao participar da linha de desmon- de Huntington, outra enfermidade com
muito bem definidos, estabelecendo as- tagem celular, os lisossomos permitem perda contínua da funcionalidade dos
sim uma conversa cruzada entre esses às células construir novas moléculas neurônios. “A autofagia parece remover
dois fenômenos. mesmo quando não são abastecidas os agregados de proteínas malformadas,
Quando recebem estímulos internos por matéria-prima habitual, vinda que atrapalham o funcionamento das
ou externos, as duas dezenas de genes já dos alimentos. A fusão das membra- células nervosas e estão presentes em
identificados que controlam a autofa- nas com os lisossomos leva à formação doenças neurodegenerativas como a de

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JULIANA TERASHIMA E SORAYA SMAILI/ UNIFESP
2h 4h Células do cérebro (astrócitos)
recebem um marcador de
autofagia fluorescente, que
no início (0h) se distribui de
modo homogêneo. A aplicação
de um composto tóxico para
mitocôndrias provoca autofagia,
marcada pela concentração
de pontos fluorescentes.
A concentração de pontos
indica que as células, por
autofagia, estão removendo
as mitocôndrias danificadas.

Huntington, Parkinson e Alzheimer”, estimular esse tipo de limpeza celular. “Não acredito que os novos antitu-
observa Soraya. Segundo ela, estudos “Recebendo menos glicose”, comenta morais apenas estimulem a autofagia”,
realizados em seu laboratório com Soraya, “a célula vai produzir menos comenta Lenz. “Seria arriscado. A saída
células de pacientes com Huntington energia pelas vias metabólicas habi- talvez seja algo, como o resveratrol, que
mostraram que estimular a autofagia tuais, mas também produzirá menos possa ter múltiplos alvos e ativar mais
pode retardar o aparecimento da morte resíduos que aceleram o envelhecimen- de um processo bioquímico que leve à
celular por apoptose. to, além de estimular a autofagia, que morte dos tumores, inclusive por au-
Uma célula que se limpou por meio pode remover mitocôndrias e proteínas tofagia.” Mesmo que novos compostos
da autofagia pode viver mais, de acordo malformadas”. não cheguem logo, a capacidade de in-
com um estudo realizado nos Estados Em um artigo publicado em 2006 duzir ou bloquear a morte celular deve
Unidos e publicado na Nature em julho na Cancer Cell, Melanie Hippert, Pa- tornar-se uma característica dos medi-
de 2009. Para chegar a essa conclusão, trick O’Toole e Andrew Thorburn, da camentos em geral, ajudando a explicar
os pesquisadores cuidaram de cerca de Universidade de Colorado, em Den- como atuam no organismo – muitos
3 mil ratos idosos, com uma idade equi- ver, Estados Unidos, reconhecem que medicamentos antitumorais já em uso,
valente a 60 anos em seres humanos. a manipulação da autofagia deve ser por sinal, podem induzir à autofagia.
Administraram rapamicina, composto útil para deter a evolução de tumores Pode ajudar também a retomar mui-
que estimula a autofagia, a uma parte e aumentar a eficiência dos tratamen- tas pesquisas interrompidas. “Fármacos
dos animais e esperaram todos morrer tos contra câncer. O problema é que a que falharam em testes clínicos talvez
naturalmente, de cinco a sete meses de- autofagia tem um papel duplo: pode precisem ser revisitados”, cogita Silvya
pois. Os camundongos que receberam inibir ou favorecer o crescimento de Stuchi Maria-Engler, da USP, “porque
rapamicina apresentaram um tempo tumores, dependendo das circunstân- podem se tornar excelentes se usados
de vida de 28% a 38% maior que os do cias. Por essa razão, a autofagia poderia com outros, capazes de induzir ou ini-
grupo que não recebeu nada. ser estimulada para evitar a formação bir a autofagia”. ■
de tumores em pessoas com risco de
câncer, mas reduzida se um tumor já

E
> Artigos científicos
tiver se estabelecido no organismo.
Depois de encontrar um composto 1. ZAMIN, L.L. et al. Resveratrol and
sse experimento impressionou adequado, o desafio seguinte será defi- quercetin cooperate to induce
pela grandiosidade, já que o número de nir a melhor dosagem, para que apenas senescence-like growth arrest in C6 rat
animais raramente é tão elevado, mas as células tumorais morram. Chi Dang, glioma cells. Cancer Science. v. 100,
sua aceitação não foi consensual – e da Universidade John Hopkins, Estados n. 9, p. 1.655-62. 2009.
2. HIPPERT, M.M. et al. Autophagy in can-
muitos pesquisadores argumentaram Unidos, relatou em janeiro de 2008 na cer: good, bad, or both? Cancer Research.
que os camundongos podem ter vivi- Journal of Clinical Investigation que a v. 66, n. 19, p. 9.349-51. 2006.
do mais por outras razões ou que esse cloroquina, um antimalárico, pode aju- 3. HARRISON, D.E. et al. Rapamycin fed
resultado não é o bastante para associar dar a prevenir a evolução de tumores. late in life extends lifespan in genetically
o controle da autofagia ao prolonga- Ele advertiu, porém, que o uso prolon- heterogeneous mice. Nature. v. 460,
mento da vida celular. De todo modo, gado desse composto, que inibe a au- p. 392-5. 2009.
4. TORMO, D. et al. Targeted activation
os mecanismos de funcionamento da tofagia e estimula a apoptose, pode ter of innate immunity for therapeutic induc-
autofagia tornam-se mais claros. Ou- efeitos colaterais ainda não previstos, já tion of autophagy and apoptosis in melano-
tros experimentos sugeriram que a que o conhecimento sobre o equilíbrio ma cells. Cancer Cell. v. 16, n. 2, p. 103-14.
simples privação de nutrientes pode celular ainda é rudimentar. 2009.

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>

MEDICINA

O veneno
do
remédio
Efeitos nocivos limitam potenciais
usos terapêuticos da curcumina

Salvad or No gueira

A
curcumina, substância encontrada no pó amarelo-
-alaranjado extraído da raiz da curcuma ou aça-
frão-da-índia (Curcuma longa), aparentemente
pode ajudar a combater vários tipos de câncer, o
mal de Parkinson e o de Alzheimer e até mesmo re-
tardar o envelhecimento. Usada há quatro milênios
por algumas culturas orientais, apenas nos últimos
anos passou a ser investigada pela ciência ocidental, com
resultados surpreendentes em alguns casos e alarmantes em
outros. Estudos conduzidos na Universidade de São Paulo
em Ribeirão Preto (USP-RP), interior do estado, indicam que
em dosagem baixa a curcumina previne danos no material Curcuma: usado
genético das células provocados por compostos tóxicos. Em como tempero,
teores elevados, porém, a curcumina pode até matá-las. extrato obtido do
Recentemente a curcumina vem sendo tratada como açafrão-da-índia
panaceia pelos meios de comunicação ávidos por dicas de é rico em
curcumina
saúde. Corante rotineiro na indústria alimentícia, ela está
presente nos mais diversos produtos, de biscoitos a sorvetes,
de sopas a margarinas. Também é a base de condimentos
como o curry. Na Índia, aliás, seguindo a dieta típica do país,
as pessoas chegam a consumir ao redor de dois gramas de
curcumina por dia. Nos países ocidentais, onde a quanti-
dade nos alimentos é bem menor, a expectativa de que a
curcumina possa melhorar a qualidade de vida e prevenir
doenças a transformou num suplemento alimentar.

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WWW.SXC.HU

Mas alguns pesquisadores alertam: protetor contra o câncer, e só foi dito tentando observar redução de danos
vale a pena levar em conta um velho di- que quanto maior o consumo, maior a na estrutura dos cromossomos e de-
tado segundo o qual a diferença entre o proteção”, afirma Lusânia. “Mas a gente pois na sequência do próprio DNA”,
remédio e o veneno está na dose – uma sabe, pelos dados disponíveis, que não conta a pesquisadora. Os testes foram
adaptação do que teria escrito no sécu- é bem assim.” Pesquisadores da Univer- feitos tanto com células (in vitro) como
lo XVI o médico, botânico e alquimista sidade de Sevilha também alertaram em animais (in vivo) para verificar se a
suíço Paracelso. É basicamente isso que para o risco-benefício da curcumina curcumina, com atividade antioxidante
vêm sugerindo as pesquisas realizadas como agente terapêutico. já demonstrada, também evitaria mu-
pelo grupo de Lusânia Maria Greggi O interesse inicial do grupo de tações no material genético celular.
Antunes, pesquisadora da Faculdade de Ribeirão era estudar o potencial anti- Essas pesquisas iniciaram-se mais
Ciências Farmacêuticas da USP em Ri- mutagênico da curcumina, ou seja, sua de 10 anos atrás e hoje formam um
beirão Preto. “Foi muito divulgado no capacidade de diminuir danos e altera- corpo que justifica o alerta. Nos pri-
final do ano passado, até em programas ções no material genético (DNA) das meiros testes, o grupo de Lusânia usou
de TV, que a curcumina teria um efeito células. “Começamos nossos estudos uma cultura de células de ovário de

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hâmster chinês, esco- A essa altura, estava

LUCIEN MONFILS/WIKIMEDIA COMMONS


lhidas pelos cromosso- mais claro que o efei-
mos grandes. Depois de to da curcumina nem
tratar as células com o sempre era protetor.
quimioterápico bleo- Mas por quê? Aparen-
micina, de conhecido temente, após uma de-
poder mutagênico e terminada dose, a subs-
usado contra leucemia, tância passava a contri-
e com radiação, também buir para a formação de
capaz de induzir danos radicais livres, em vez
no material genético, os de impedi-la. O meca-
pesquisadores aplicaram nismo molecular exato
em três grupos de célu- ligado a esse efeito, po-
las concentrações dife- rém, ainda está longe
rentes de curcumina. de ser esclarecido. E o
A expectativa era que a mais intrigante é que os
substância encontrada experimentos da equipe
na curcuma reduzisse as de Lusiânia com ratos
alterações nos cromos- não permitiram verifi-
somos. Mas aí veio a sur- car as mesmas proprie-
presa. As doses menores dades nocivas vistas nos
(2,5 e 5 microgramas de estudos com células em
curcumina por mililitro) cultura.
produziram um efeito Parecem ser duas
antimutagênico, en- as razões para o fato de
quanto a dosagem mais os estudos in vivo não
alta, 10 microgramas mostrarem os mesmos
por mililitro, provocou Em flor: açafrão-da-índia, nativo do sul da Ásia
efeitos danosos dos tes-
a reação contrária: mais tes in vitro. A primeira é
mutações do que as ob- que a chamada biodis-
servadas nas células não ponibilidade da cur-
tratadas com curcumina. cumina, a capacidade
Ante esses resultados, concluiu-se que tes concentrações. Como nos estudos de o organismo a absorver, é bastante
nem sempre a curcumina produz um com as células de ovário, usaram doses baixa. Isso significa que as doses ad-
efeito benéfico. Uma quantidade gran- variadas da curcumina para avaliar um ministradas pelo grupo de Lusânia aos
de demais pode ter um efeito oposto ao possível efeito protetor. Os resultados animais podem ter sido baixas demais
de concentrações menores. É o remédio foram basicamente os mesmos: nas para provocar algum efeito deletério.
se transformando em veneno. concentrações menores, a curcumina A segunda razão é que no organismo a
ajudou a proteger as células da ação curcumina é metabolizada no intesti-
Neuroproteção - Mais recentemente, deletéria da quimioterapia. Mas, nas no, antes mesmo de entrar na corrente
alguns trabalhos começaram a sugerir doses mais altas, o efeito se inverteu e os sanguínea, e depois novamente no fí-
que a curcumina, além de suas pro- danos foram ainda maiores que os ob- gado, o que terminaria por protegê-lo
priedades antioxidantes – ela reduz a servados entre as células tratadas com de uma eventual dose excessiva dessa
formação de radicais livres prejudiciais cisplatina, mas não com curcumina. substância.
às células –, também poderia apresentar
um efeito neuroprotetor, o que a torna-
ria uma potencial candidata a combater
doenças neurológicas hoje incuráveis,
como Parkinson ou Alzheimer. O far-
macêutico Leonardo Mendonça, do Como um cometa
grupo de Lusânia, também colocou A sequência de imagens
essa assertiva à prova em 2009, com ao lado mostra danos
um estudo in vitro feito com células de no material genético de
rato denominadas PC12, originárias célula de fígado
da glândula adrenal e precursoras de provocados por compostos
neurônios. mutagênicos
Para induzir os danos às células, os
pesquisadores usaram cisplatina, um
quimioterápico agressivo, em diferen-

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células são submetidas em laboratório. tamente na bexiga, via uretra, de forma
> O PROJETO O grupo também pretende investigar que as concentrações que chegam ao tu-
quais genes a curcumina ativa e desa- mor são suficientes para afetá-lo. Quan-
Neurotoxicidade induzida pelo tiva dentro das células, numa tentativa do a administração é por via oral, isso
quimioterápico cisplatina: de elucidar o mecanismo molecular por se torna mais difícil, em razão da pouca
possíveis efeitos citoprotetores
trás de efeitos tão diversos. capacidade de absorção do organismo.
dos antioxidantes da dieta
curcumina e coenzima Q10 Se por um lado a questão da do- Essa constatação ajuda a explicar por
sagem e a da toxicidade preocupam, que muitos pesquisadores dizem que as
MODALIDADE por outro, alguns estudos, feitos por pessoas não deveriam se animar muito
Auxílio Regular a Projeto brasileiros inclusive, mostram resulta- em incluir curcumina na dieta por seus
de Pesquisa dos animadores do uso da curcumina potenciais efeitos medicinais.
contra certos tipos de câncer. Mas, de novo, nem mesmo como
COORDENADORA
LUSÂNIA MARIA GREGGI ANTUNES – O grupo do urologista Miguel Srou- medicamento, com uso específico e
USP-RP gi, da Faculdade de Medicina da USP, dosagem controlada, a curcumina é a
tem trabalhado com a perspectiva de solução para todos os males. Um estudo
INVESTIMENTO usar a curcumina contra tumores de realizado pelo americano Mark Miller,
R$ 117.914,06 próstata e de bexiga. Nas culturas de da Universidade Wake Forest, e apre-
células em laboratório, eles observaram sentado em novembro de 2009 em um
um efeito impressionante: a curcumina congresso em Ouro Preto, interior de
levou as células dos tumores ao suicídio Minas Gerais, mostrou que, em testes
Ante essas dúvidas, a equipe vol- – acionou a apoptose, a morte celular contra câncer de pulmão feitos com
ta à bancada em 2010 com o objeti- autoinduzida. O resultado é particu- camundongos transgênicos, a curcu-
vo de criar um modelo in vitro que larmente surpreendente se levar-se em mina agravou o problema, em vez de
esteja mais próximo do que se vê in consideração o fato de que os tumores combatê-lo.
vivo. “Estamos começando o estudo em geral são formados por células que O desafio agora é decifrar precisa-
com células que conseguem fazer essa sofreram mutações e se recusam a mor- mente como a curcumina age no or-
metabolização e que devem permitir rer, multiplicando-se furiosamente. ganismo, para compreender como ela
comparar melhor os resultados [in pode, em alguns casos, fazer bem, e em
vitro com os in vivo]”, explica Lusânia. Ação localizada - No estudo do cân- outros, mal. “Ainda estamos muito lon-
LABORATÓRIO DE BROMATOLOGIA E NUTRIÇÃO E NUTRIGENÔMICA/FCFRP-USP

Caso esse esforço seja bem-sucedido, cer de bexiga, a equipe de São Paulo foi ge de entender os mecanismos exatos
deve se tornar possível começar a es- mais longe: realizou uma série de expe- de ação da curcumina”, explica Kátia.
pecular sobre qual seria a dosagem rimentos in vivo, com camundongos. “Por isso mesmo ainda precisamos de
máxima segura para ingestão oral por Os testes mostraram um efeito locali- muitas outras pesquisas.” ■
seres humanos. Hoje os estudos só são zado contra as células cancerosas, sem
capazes de mostrar que, depois de uma danos colaterais nos animais. “Está nos
determinada quantidade, a curcumi- planos fazermos no futuro próximo > Artigos científicos
na faz mal. Mas, como quase todos os testes clínicos com a curcumina con-
testes foram in vitro, não permitem tra o câncer de bexiga, possivelmente 1. MENDONÇA, L.M. et al. Evaluation of
calcular a dosagem ameaçadora para para ser usada como segunda linha de the cytotoxicity and genotoxicity of curcu-
min in PC12 cells. Mutation Research. v.
um organismo. Isso porque a ingestão tratamento”, explica Kátia Leite, pes-
675, p. 29-34. 2009.
de alguns gramas de curcumina resul- quisadora do grupo de Srougi. 2. LEITE, K.R.M. et al. Effects of curcumin
ta em concentrações muito baixas no A vantagem no caso dos tumores de in an orthotopic murine bladder tumor
sangue, medidas em nanogramas, bem bexiga é a facilidade de aplicação direta model. International Brazilian Journal of
menos do que a quantidade a que as da curcumina. É possível injetá-la dire- Urology. v. 35, p. 599-607. Set./Out. 2009.

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>
COSMOLOGIA

Ricard o Zorzet to

Universo
A
Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) divulgou
no final de janeiro uma imagem mostrando a concentração
de galáxias a diferentes distâncias em uma pequena região
do Universo. Cada ponto colorido da imagem (veja ao lado)
Astrônomos e corresponde a um agrupamento com centenas a milhares de
físicos do mundo galáxias – cada uma delas formada por centenas de bilhões de
estrelas e uma quantidade elevada de gás muito quente. São o
todo tentam que os astrônomos chamam de aglomerados de galáxias, as estruturas
desvendar do em equilíbrio de maior dimensão e massa já identificadas no Cosmo.
Calculando o número de corpos celestes que podem existir ali, fica di-
que são feitos fícil imaginar que eles contribuam para compor apenas 4,6% de tudo
96% do Cosmo o que existe no Universo. O restante, na verdade quase tudo, não pode
ser visto. Os outros 95,6% são formados, de acordo com a vasta maioria
dos físicos e dos astrônomos, por dois tipos de elementos descobertos
apenas nos últimos 80 anos: a matéria escura e a energia escura, sobre as
quais quase nada se sabe além do fato de que precisam existir para que o
Universo seja como se imagina que é. Alvo de uma série de experimentos
internacionais que contam com a participação de brasileiros, alguns já
em andamento e outros previstos para iniciar nos próximos anos, essa
forma de matéria e de energia não absorve nem emite luz e, portanto, é
invisível ao olho humano.
Nenhum equipamento em atividade até o momento foi capaz de
detectá-las diretamente. Mas os físicos preveem a existência das duas
em seus modelos de evolução do Cosmo, e os astrônomos inferem
a presença delas a partir de assinaturas que deixam na estrutura do
Universo, identificáveis em imagens como essa produzida pela ESA,
resultado do Levantamento sobre a Evolução Cosmológica (Cosmos)
– esse projeto usa os maiores telescópios em
terra e no espaço para vasculhar uma região
do céu do tamanho de oito luas cheias. Aquarela cósmica:
cada círculo
Foi apenas no último século que a com-
representa
preensão do Universo se complicou tanto. Na um agrupamento
década de 1920 o astrônomo norte-ameri- de galáxias,
cano Edwin Hubble percebeu que o Cosmo as mais próximas
era formado por grandes agrupamentos de em azul e as
estrelas – as galáxias – e que elas estavam se mais distantes
afastando umas das outras. A constatação de em vemelho

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XMM-NEWTON/ESA/COSMOS

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que o Universo estava se expandindo chamada de energia escura –, fazia o “Nunca nossa ignorância foi quanti-
levou físicos e astrônomos a reverem Cosmo crescer a velocidades cada vez ficada com tamanha precisão”, comen-
suas ideias, pois até então acreditava-se maiores como um lençol de borracha ta o astrônomo Laerte Sodré Júnior,
que ele fosse estático e finito. puxado pelas pontas. da Universidade de São Paulo (USP),
Estudando as galáxias, o astrônomo Poucos cientistas duvidam hoje da referindo-se aos cálculos mais aceitos
búlgaro Fritz Zwicky, considerado por existência da matéria escura e da ener- hoje da quantidade de matéria escura e
muitos um mal-humorado, notou em gia escura, também conhecidas como de energia escura existentes no Cosmo:
1933 que elas precisariam de 10 vezes a componente escura do Universo. O 22,6% e 72,8%, respectivamente. Há
mais massa do que tinham para se uni- principal desafio – muitos pesquisa- quase 30 anos Sodré estuda os aglome-
rem em aglomerados apenas pela atração dores a consideram uma das questões rados de galáxias, que reúnem cerca de
gravitacional, a força proposta por Isaac mais importantes a serem resolvidas – é 10% das galáxias existentes e podem ser
Newton para explicar a atração de cor- determinar a natureza de ambas, ou seja, compreendidos como sendo as metrópo-
pos de massa elevada a distâncias muito o que de fato as compõem. les cósmicas: assim como as metrópoles
grandes, como os planetas e as estrelas. Sobre esse ponto, físicos e astrôno- da Terra, são poucas, mas têm dimensões
A massa que não se conseguiu enxergar mos nada sabem com segurança. Quan- absurdas e são muito populosas.
foi chamada de matéria escura. A energia do muito, têm bons palpites. E, como Com base em informações sobre
escura só seria proposta cerca de 70 anos os demais habitantes do planeta, devem aglomerados de galáxias e outros as-
mais tarde, quando os grupos de Adam continuar às escuras até que uma ava- tros muito antigos e distantes, os físi-
Riess e Saul Perlmutter, que investiga- lanche de dados sobre mais agrupamen- cos teóricos Élcio Abdalla, Luis Raul
vam supernovas, estrelas que explodiram tos de galáxias e Abramo e Sandro Micheletti, todos
passando a emitir um brilho milhões de outras estrutu- do Instituto de Física (IF) da USP, em
Colisão de titãs:
vezes mais intenso, estavam se afastando ras do Universo parceria com o físico chinês Bin Wang,
o choque de dois
de nós cada vez mais rapidamente. O mais antigas do aglomerados de decidiram recentemente verificar se os
Universo não se encontrava apenas em que as observa- galáxias separou dados dessas observações astronômicas
expansão, mas em expansão acelerada. das hoje comece a matéria comum confirmavam uma ideia apresentada
Algo desconhecido, uma espécie de força a alimentar seus (rosa) da matéria anos antes por outro brasileiro, o físico
contrária à da gravidade – mais tarde computadores. escura (azul) Orfeu Bertolami, pesquisador do Ins-
tituto Superior Técnico de Lisboa, em
Portugal. Quase uma década atrás, pou-
co depois de identificadas as primeiras
HST/CXC/NASA

evidências de que a energia escura exis-


te, Bertolami propôs que, se a matéria
escura e a energia escura interagissem,
como havia sugerido o astrônomo ita-
liano Luca Amendola, essa influência
mútua deixaria sinais em estruturas
muito grandes do Cosmo, a exemplo
dos aglomerados de galáxias.

Partículas - Para quem não está habi-


tuado, pode parecer estranho imaginar
que algo que não se sabe muito bem
o que é afete de alguma forma outra
coisa sobre a qual não se tem o menor
conhecimento. Mas não é o que os fí-
sicos pensam. Seja qual for a natureza
da matéria escura e da energia escura,
espera-se que o comportamento de am-
bas na escala do infinitamente peque-
no (o mundo das partículas atômicas)
influencie o mundo do infinitamente
grande. Por isso, conhecer a interação
entre elas – e delas com a matéria visível
– pode ajudar a compreender como e
em quanto tempo o Universo se for-
mou e se tornou o que é, possibilitando
inclusive a existência de vida. “Se acre-
ditarmos minimamente no modelo pa-
drão da física de partículas, que explica

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NASA/WMAP SCIENCE TEAM
A expansão do Cosmo
Há 13,7 bilhões de anos uma explosão colossal, o Big Bang, gerou toda a matéria e a energia existentes no
Universo, além do próprio tempo. À medida que expandia e esfriava, o Cosmo sofreu influência de elementos
como a matéria escura e a energia escura, que predominaram em diferentes fases de sua evolução

Formação de mais estrelas, planetas Início da expansão acelerada


Formação dos átomos e e aglomerados de galáxias sob ação por influência da energia
emissão de radiação cósmica Era de das matérias comum e escura escura (9,5 bilhões de anos)
de fundo (380 mil anos) trevas (2 bilhões de anos)

Fase
inicial de
inflação

satélite
Grande WMAP
explosão

Surgimento das primeiras


estrelas e galáxias sob
influência da matéria escura
(400 milhões de anos)

Expansão desde o Big Bang


13,7 bilhões de anos

a composição da matéria bariônica [a mações obtidas durante anos por meio acordo com esse modelo, a energia es-
matéria comum, composta de prótons, da observação de quasares, núcleos de cura liberaria radiação e se converteria
nêutrons e elétrons, e formadora das es- galáxias muito brilhantes e antigos; em matéria escura – uma consequência
trelas, dos planetas e de tudo o mais que supernovas, estrelas que explodiram e da famosa equação E=m.c2, segundo a
se conhece] e, como as partículas que passaram a emitir uma luz milhões de qual, em determinadas condições, ma-
a formam interagem entre si, não há vezes mais intensa que o normal; e da téria pode se transformar em energia e
motivo para duvidar que também possa radiação cósmica de fundo em micro- energia em matéria.
existir interação entre a matéria escura -ondas, uma forma de energia eletro-
e a energia escura”, afirma Abdalla. magnética produzida nos instantes ini- Interação - Mas não era o suficiente.
Inicialmente Abdalla, Micheletti e ciais após o Big Bang, a explosão inicial Com o físico Luis Raul Abramo, Ab-
Bin Wang, da Universidade Fudan, em que gerou o Universo e o próprio tempo dalla aprimorou o modelo e, dessa vez,
Xangai, elaboraram um modelo rudi- 13,7 bilhões de anos atrás. procurou uma assinatura da interação
mentar no qual descreveram a matéria Mesmo sem determinar o modo co- entre energia escura e matéria escura
escura e a energia escura com proprie- mo a matéria escura e a energia escura nas informações obtidas de 33 aglome-
dades semelhantes às de líquidos e ga- interagiam – apenas supuseram que a rados de galáxias, 25 deles estudados
ses como a água e o ar – os físicos os interação ocorreria –, eles verificaram anos atrás em detalhes por Laerte Sodré
chamam de fluidos, materias formados que, ao resolver essas equações mais e Eduardo Cypriano, pesquisadores do
por camadas que se movimentam conti- as formuladas por Einstein na teoria Instituto de Astronomia, Geofísica e
nuamente umas em relação às outras e, da relatividade geral, obtinham um Ciências Atmosféricas (IAG) da USP.
nesse deslocamento, podem se deformar Universo semelhante ao que se conhe- Em colaboração com Sodré, Abdalla,
reciprocamente. Na construção do mo- ce hoje: em expansão acelerada, com Abramo e Wang usaram três métodos
delo, uma série de equações matemáticas tudo o que existe nele se afastando conhecidos para estimar a quantidade
que tentam descrever o que aconteceu cada vez mais rapidamente, segundo de matéria (massa) dos aglomerados
no passado e predizer o que ocorrerá artigo apresentado em junho de 2009 de galáxias. Se não houvesse interação,
no futuro levou em consideração infor- na Physical Review D. Na interação, de os resultados teriam de ser iguais ou,

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HIGH-Z SUPERNOVA SEARCH TEAM/HST/NASA
do Instituto de Física Teórica da
Universidade Estadual Paulista
(IFT-Unesp), criaram um mo-
delo de interação entre matéria
escura e energia escura que tam-
bém as tratava como fluidos. No
trabalho – feito em parceria com
Luca Amendola, do Observatório
Astronômico de Roma, o autor da
ideia de interação entre esses ele-
mentos –, a dupla brasileira levou
em consideração tanto informa-
ções sobre supernovas como so-
bre a radiação cósmica de fundo.
Feitas as contas, concluíram que
essa conversão não deve ocorrer,
de acordo com artigo de 2007 na
Physical Review D.
Com as informações disponí-
veis hoje sobre as estruturas do
Universo, porém, fica difícil sa-
ber quem tem razão. “Há poucos
dados e eles são fragmentados”,
comenta Cypriano, astrônomo
do IAG-USP. “Necessitamos de
dados homogêneos e em gran-
de quantidade.” Por esse motivo,
mais de uma dúzia de projetos
internacionais de grande porte já
passaram pelo menos do estágio
Nos confins do Universo: massa de cada aglomerado é grande”, co- de planejamento.
observação de supernovas, menta Abramo. “Esse modelo terá de ser O estudo da estrutura e da evolução
explosões estelares como testado por alguns anos. Analisamos 33 das galáxias leva boa parte dos físicos
esta (ponto brilhante abaixo aglomerados de galáxias, mas, para ter e astrônomos a darem por certo que
da galáxia), revelou expansão
segurança, teríamos de avaliar de cente- a matéria escura de fato existe – e que
acelerada do Cosmo
nas a milhares deles”, afirma Sodré, que sua composição será descoberta em
atualmente negocia com astrônomos e breve, talvez em até uma década. “Se
físicos espanhóis a participação brasilei- for composta por partículas frias de
no mínimo, muito próximos. Já se a ra no projeto Javalambre Physics of the massa muito elevada, vários modelos
matéria escura se transformasse em Accelerating Universe Survey (J-PAS), de física de partículas preveem que
energia escura, ou vice-versa, um desses destinado a entender melhor as proprie- poderá ser produzida no Large Ha-
valores, sensível a essa conversão, dife- dades da energia escura e a evolução das dron Collider [LHC]”, afirma Abramo.
riria dos demais. No trabalho publicado galáxias medindo com mais precisão a Instalado na fronteira da Suíça com a
em 2009 na Physics Letters B, eles afir- que distância se encontram. França, o LHC começou a funcionar
mam que há uma possibilidade real, em fase experimental no final de 2009
ainda que pequena, de que a interação Estruturas do Universo - Abdalla, que e deve lançar, umas contra as outras,
de fato ocorra, com a energia escura se teve a iniciativa de verificar os sinais partículas atômicas viajando a veloci-
convertendo em matéria escura. dessa interação alguns anos atrás, sabe dades próximas à da luz, desfazendo-
Mesmo o próprio grupo vê esse re- que muitos discordam de sua proposta. -as nos seus menores componentes. Já
sultado com cautela, porque há uma sé- “Uma vez um referee [revisor científico] a resposta para a natureza da energia
rie de incertezas na medição das massas mal-educado disse que esse trabalho escura deve levar bem mais tempo, pois
dos aglomerados de galáxias. Algumas era especulação ao quadrado”, lembra depende de levantamentos extensos das
dessas técnicas dependem de que esses o físico da USP. “Mas, se estivermos cer- galáxias e estrelas encontradas em di-
agrupamentos estejam em equilíbrio e tos e essa interação for bem definida, ferentes regiões do céu.
não interajam com outras galáxias ou poderá ser verificada em experimentos Um desses levantamentos, previsto
aglomerados. Mas isso é pouco prová- de física de partículas.” para começar no segundo semestre de
vel porque a massa dos aglomerados é Há cerca de cinco anos os físicos 2011, é o Dark Energy Surgey (DES),
muito elevada e atrai tudo o que está teóricos brasileiros Gabriela Camargo do qual devem participar cerca de 30
por perto. “A incerteza na medição da Campos e Rogério Rosenfeld, ambos brasileiros (entre pesquisadores, estu-

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NASA/ESA/STSCL
dantes e técnicos) de instituições no A cruz de Einstein:
Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande galáxia no centro da
do Sul. Esse projeto pretende usar uma imagem curva o
supercâmera digital – com capacida- espaço e transforma
em quatro um único
de de produzir imagens de altíssima
quasar, comprovando
resolução (500 megapixels), 40 vezes efeito previsto pelo
maior do que as das câmeras comuns físico alemão
– acoplada ao telescópio Blanco do
Observatório Interamericano de Cerro
Tololo, no Chile, para coletar ao longo
de quatro anos informações de apro- fases para tentar descobrir
ximadamente 400 milhões de galáxias. o que é a energia escura”,
“Queremos estudar a distribuição de explica o astrônomo do
massa dos aglomerados de galáxias a Observatório Nacional.
diferentes distâncias”, conta Luiz Al- Os mais simples já termi-
berto Nicolaci da Costa, astrônomo do naram e o DES é da fase
Observatório Nacional (ON), no Rio três. “Com o DES, espera-
de Janeiro, coordenador da participa- mos restringir os candida-
ção brasileira no DES. Dependendo da tos a energia escura”, conta
massa total do Universo e da existência Nicolaci.
ou não de interação entre matéria es- Uma das mais cotadas é a chamada seguido de 120 zeros] maior do que a
cura e energia escura, pode haver um energia do vácuo, que, ao contrário do observada pelos astrônomos”, comenta
número maior ou menor desses aglo- que se pensa, não é vazio. O vácuo é rico Élcio Abdalla.
merados a determinadas distâncias. em partículas muito fugazes que sur- Pode ser também que a energia es-
gem e desaparecem antes que possam cura seja uma espécie de fluido desco-
Força repulsiva - Mesmo antes de o ser detectadas e poderiam fornecer a nhecido, chamado pelos astrônomos de
experimento começar, Nicolaci sabe que força antigravitacional que faz os cor- quintessência, em alusão aos quatro ele-
ele não trará uma resposta definitiva so- pos celestes se afastarem. Para a física de mentos que se acreditava que compu-
bre a natureza da energia escura, a força partículas, a força do vácuo é o corres- nham o Universo (ar, água, fogo e terra).
repulsiva, uma espécie de antigravidade, pondente à constante cosmológica, ter- Ou ainda, que ela não exista, e os efeitos
que faz os objetos se afastarem a velo- mo que Albert Einstein acrescentou às atribuídos a ela sejam consequência de
cidades cada vez maiores no Universo. equações da relatividade geral para que o Universo não ser homogêneo como se
“No início desta década um grupo in- sua teoria representasse um Universo imagina e a Via Láctea se encontrar em
ternacional de pesquisadores se reuniu estático. “Mas essa seria uma solução uma região contendo muito pouca ma-
e tentou delinear os experimentos mais feia, porque a densidade de energia do téria. O astrofísico Filipe Abdalla, pes-
adequados a serem realizados em quatro vácuo teria de ser 10120 [o número um quisador da University College London
e filho de Élcio
Abdalla, tra-
balha em dois
MPE/V.SPRINGEL

Em 12 bilhões
de anos: sob a experimentos
ação da matéria mais avançados,
escura, gás se que integram a
aglomera e quarta fase da
forma estrelas busca da ener-
e galáxias gia escura e só
(áreas brilhantes),
devem começar
que passam
a se afastar
a funcionar em
empurradas pela alguns anos: o
energia escura do satélite Eu-
clid e o do te-
lescópio de mi-
cro-ondas Square Kilometre Array, a
ser construído na África do Sul ou na
Austrália. “Se for alguma incorreção nas
equações de Einstein, que explicam bem
a atração gravitacional nas galáxias”, co-
mentou Filipe durante uma visita a São
Paulo em agosto de 2009, “esses experi-
mentos nos permitirão saber”. ■

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>
QUÍMICA

Segredos debaixo
da tinta
Fluorescência de raios X dá acesso
à intimidade de pinturas do século XIX
Maria Guimarães

D
urante mais de um século, a jovem retratada nay por meio de fluorescência de raios X, que revela
pelo pintor Eliseu Visconti no quadro Gio- os átomos que compõem as camadas de tinta, e de
ventú escondeu um estudo para outra obra radiografias computadorizadas. O objetivo central era
de arte do mesmo autor, Recompensa de São caracterizar os pigmentos usados por cada pintor e
Sebastião. A revelação vem do trabalho ar- integrar essas informações num banco de dados que
queométrico da química Cristiane Calza, pes- ficará à disposição de restauradores, conservadores,
quisadora do programa de pós-graduação estudantes de arte e pesquisadores.
em engenharia da Universidade Federal do O trabalho foi possível porque no doutorado
Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ). Em vez Cristiane desenvolveu um sistema portátil de
do estereótipo do laboratório repleto fluorescência de raios X sob medida para
de tubos de ensaio e substâncias fu- analisar obras de arte e arqueológicas. É
megantes, seu ambiente de traba- uma caixa um pouco maior do que um
lho é em meio a obras de arte de livro, que ela pode levar ao museu e
todos os tempos, desde as pin- já carregou até o Peru, para analisar
turas que decoram sarcófagos ouro pré-colombiano. Obras muito
do Egito Antigo até quadros do grandes ou valiosas (o quadro Pri-
século XIX, passando por tangas meira missa, de Victor Meireles, uma
de cerâmica do povo marajoara das obras estudadas pela especialista,
– que ocupou a ilha de Marajó, está segurada em US$ 3 milhões) não
no Pará, entre os séculos V e XIV. podem ser transportadas para labora-
Ao examinar pinturas até o detalhe tórios equipados com o aparelho comum
dos átomos com auxílio das técnicas de de fluorescência de raios X.
fluorescência de raios X e de radiografias, “A técnica não é invasiva e não causa dano
ela põe a nu segredos que se escondem debaixo às obras de arte”, frisa a pesquisadora. O aparelho
da tinta, caracteriza os pigmentos que compunham a lança um feixe focalizado de raios X num círculo de
paleta de cada pintor e aponta retoques e desgastes nas meio centímetro e produz um processo conhecido como
telas, orientando futuros trabalhos de restauração. efeito fotoelétrico: enquanto se movimentam para res-
Convidada a analisar obras do Museu Nacional de tabelecer o equilíbrio, os elétrons também emitem raios
Belas Artes, no Rio de Janeiro, Cristiane – que sempre X, que o equipamento detecta e reproduz na tela do
teve uma queda por arqueologia, história e artes plás- computador na forma de curvas de emissão de energias.
ticas – se apaixonou pela pintura brasileira do século A energia emitida é característica para cada elemento
XIX e acabou por analisar 33 quadros de artistas como químico e, de posse dessa informação, Cristiane pode
Rodolfo Amoedo, Eliseu Visconti e Félix Émile Tau- inferir o pigmento usado naquele ponto do quadro.

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CRISTIANE CALZA/COPPE-UFRJ
Suscipsusto exeu feum inut ersit nulput veliqui corba feum inut ersit nulput

Pedro Américo:
equipamento
portátil
esquadrinha o
quadro Moisés
e Jocabed

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CRISTIANE CALZA/COPPE-UFRJ

REPRODUÇÃO
Eliseu Visconti:
sob a tinta de
Gioventú
(acima), um
esboço de
Recompensa de
São Sebastião

O importante é que alguns pigmentos são reveladores sitos artísticos à base desse pigmento,
da época em que foi feita a pintura. De aparência semelhan- indicando que os quadros foram reto-
te, o que distingue a tinta usada são os elementos químicos cados no século XX.
que a compõem – e que a pesquisadora da Coppe consegue Cristiane caracterizou a paleta de
enxergar. O branco de zinco, usado até hoje, começou a pigmentos usada por oito pintores do
ser produzido no século XVIII, mas só em 1835 chegou a século XIX em 12 quadros. Os resulta-
um preço acessível para a maior parte dos pintores; já o dos já estão aceitos para publicação na
branco de titânio surgiu apenas no século XX. Um ponto revista especializada Applied Radiation
azul analisado por fluorescência de raios X pode revelar a and Isotopes e mostram, por exemplo,
presença de átomos de ferro ou de cobalto, por exemplo. No que Eliseu Visconti e Henrique Bernar-
primeiro caso, o pintor usou o pigmento azul da prússia, delli usaram azul de cobalto, enquanto
criado em 1704; o segundo indica azul de cobalto, em uso Pedro Peres adotou o azul da prússia.
desde 1807. Os pigmentos de ocre não ajudam: desde a E confirmam algumas coisas que já se
pré-história colorem as pinturas rupestres de cavernas e são sabia informalmente, como o fato de
usados até hoje. “São pigmentos baratos, obtidos a partir os brasileiros do século XIX fazerem
de terras argilosas”, explica Cristiane. Outros pigmentos, tons de vermelho misturando vermelho
por outro lado, hoje são proibidos por serem cancerígenos, ocre e vermilion. Saber isso será fun-
como aqueles à base de mercúrio, arsênio e chumbo. damental para que restauros futuros
Na análise, a pesquisadora analisa múltiplos pontos empreguem pigmentos semelhantes
para caracterizar os quadros e evitar que retoques em perío- aos originais, sempre que ainda pos-
dos posteriores levem a erro. “Se virmos grandes extensões sam ser adquiridos.
de um pigmento mais recente do que a data suposta de
produção da obra, sabemos que é uma falsificação”, conta. Camadas expostas - Achados mais
Remendos de rasgos na tela também são reveladores: a tela intrigantes vieram do exame do quadro
é restaurada com uma mistura de carbonato de cálcio, ou Gioventú, que rendeu a Eliseu Visconti
crê, com cola de peixe. Por cima, aplica-se uma camada de uma medalha de prata na Exposição
tinta branca antes de retocar o quadro. A tinta branca ajuda Universal de Paris em 1900. Uma radio-
a datar a restauração, porque alguns pigmentos brancos grafia computadorizada – semelhante à
são muito característicos de determinadas épocas. É o que usada por radiologistas para investigar
revela o branco de titânio que Cristiane encontrou nas telas ossos fraturados em pacientes – revelou
O último tamoio e Busto da senhora Amoedo, pintados por outra pintura oculta pela jovem repre-
Rodolfo Amoedo em 1883 e 1892, respectivamente. De sentada no quadro. É, sem dúvida, um
acordo com artigo de 2009 na X-Ray Spectrometry, só em estudo para outra pintura, a também
1921 entrou no mercado uma tinta adequada para propó- premiada Recompensa de São Sebastião,

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que ganhou a medalha de ouro na Ex- junto com o então mestrando Renato Freitas, a química da
posição Internacional de Saint Louis, Coppe examinou 400 fragmentos das tangas que vestiam a
nos Estados Unidos, em 1904. Nas região púbica das mulheres da ilha de Marajó. O elemento
imagens de raios X o anjo coroando de mais abundante nas peças de cerâmica é o ferro, explicando
louros o São Sebastião amarrado a uma a cor avermelhada do barro usado. A caracterização, publi-
árvore aparece ainda com mais nitidez cada em 2009 na X-Ray Spectrometry, indica matéria-prima
do que a moça de Gioventú. O pintor de mais de uma origem: os marajoaras talvez usassem argila
parece ter mudado de ideia depois do de várias fontes para produzir suas tangas, ou as diferenças
estudo porque, em vez de louros, no podem indicar que o acervo estudado foi produzido em
quadro terminado o anjo põe uma au- tribos distintas. Seria necessário associar os dados quími-
réola sobre a cabeça do santo. cos a informações arqueológicas para entender melhor a
A radiografia, realizada em cola- história desse povo tão pouco conhecido.
boração com os colegas Davi Oliveira A análise de fragmentos de sarcófago egípcio e de te-
e Henrique Rocha, mostrou também cido usado para envolver uma múmia também revelou a
que o quadro está num ótimo esta- utilidade potencial da técnica de fluorescência de raios X.
do de conservação, só com pequenas Além de caracterizar os pigmentos usados – que se reve-
regiões de desgaste da tela em alguns laram coerentes com o que estava disponível na época –,
pontos próximos à moldura. “Isso é Cristiane indica em artigo de 2008 na Applied Physics A que
bastante comum, pois nessa região a o tecido, de origem bem documentada, é da mesma época
tela sofre um desgaste maior devido ao dos fragmentos de sarcófagos que examinou.
estiramento do tecido e ao atrito com a Capaz de contribuir para elucidar mistérios do passado,
madeira do chassi e da moldura. Essas Cristiane está com a agenda lotada de solicitações, entre
áreas não aparecem a olho nu, pois a museus e construções históricas que passam por reforma.
pintura foi restaurada anteriormente Ela conta com a ajuda do agora doutorando Renato Freitas
cobrindo os buraquinhos com massa – que talvez passe a repartir o trabalho quando ficar pronto
e tinta”, detalha Cristiane. Detectar o novo equipamento, ainda menor do que o atual. ■
falhas encobertas pela tinta pode ser
de grande ajuda para os trabalhos de
conservação e restauro da pintura. > Artigos científicos
A análise de fluorescência de raios
1. CALZA, C. et al. Characterization of Brazilian artists palette
X do mesmo quadro permitiu carac- from the XIX century using EDXRF portable system. Applied
terizar a paleta usada por Visconti, Radiation and Isotopes. no prelo.
considerado a ponte entre os séculos 2. CALZA, C. et al. Analysis of the painting Gioventú (Eliseu
XIX e XX por ser um pioneiro do im- Visconti) using EDXRF and computed radiography. Applied
pressionismo no Brasil. No véu amare- Radiation and Isotopes. no prelo.
lo que cobre a menina, a presença de
ferro e chumbo revelam que ele usou
branco de chumbo, que deixou de ser

CRISTIANE CALZA/COPPE-UFRJ
usado no século XX, misturado com
amarelo ocre. Na vegetação do fundo se
revelam as misturas com que o artista
criou diferentes tons de verde: viridian,
óxido de cromo, amarelo ocre e azul
de cobalto.
Em mergulhos num passado mais
distante, Cristiane já avaliou também
tangas marajoaras e peças egípcias do
acervo do Museu Nacional do Rio de
Janeiro. A cerâmica marajoara é con-
siderada uma das mais sofisticadas re-
presentações da arte pré-colombiana e,

Rodolfo Amoedo:
Estudo de mulher,
pintado sobre
branco de chumbo

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Biblioteca de
Revistas Científicas
disponível na internet
www.scielo.org

Notícias
■ Literatura Tiemi Nagao-Dias, Ana Carla Pereira, Michelly Freitas e Silva
e Janete Elisa Soares Lima, da Universidade Federal do Ceará,
Saudosismo de Gilberto Freyre Eugenie Desiree Rabelo Néri e José Wilson Accioly, do Hospital
Universitário Walter Cantídio.
No artigo “Saudosismo e crítica so-
cial em Casa-grande & senzala: a arti- Brazilian Journal of Pharmaceutical Sciences – vol. 45 –
culação de uma política da memória nº 3 – São Paulo – jul./set. 2009
e de uma utopia”, Alfredo César Melo,
da Universidade de Chicago, Estados
Unidos, procura analisar a retórica de ■ Biologia
Casa-grande & senzala, de Gilberto
Efeitos do pisoteio
REPRODUÇÃO

Freyre, fora da moldura dualista na


qual a obra costuma ser avaliada. Pa-
ra isso, Melo demonstra como partes O aumento da atividade turística em áreas costeiras nas últimas
da obra, díspares nos seus princípios décadas faz necessária a adoção de estratégias de manejo para
constitutivos (por exemplo, trechos reduzir os impactos gerados às comunidades de costões rochosos.
memorialistas, análises antropológicas), articulam-se para propor A região costeira do Sudeste brasileiro possui bons exemplos de
ao leitor de então um pacto da memória, no qual eram relembra- degradação causada pelo turismo e desenvolvimento industrial.
das liricamente as experiências do Brasil rural, ao mesmo tempo Dentre os diferentes distúrbios causados pela visitação, o pisoteio
que eram refutados por meio de retórica científica os estereótipos tem sido estudado de forma intensa e pode representar uma fonte
racistas produzidos pelo mesmo Brasil rural. De um lado, de significativa de impacto para as comunidades da zona entremarés.
acordo com Melo, procura-se aproveitar essa dimensão afetiva da No projeto “Impactos do pisoteio humano na fauna de um costão
vida privada, enquanto, de outro, descartam-se os preconceitos rochoso do litoral de São Paulo, no Sudeste brasileiro”, de M.N.
produzidos por aquele mesmo mundo – há um decantamento da Ferreira e S. Rosso, do Instituto de

WWW.JAXSHELLS.ORG/822E.HTM
memória, uma dialética sutil entre lembrança e esquecimento. Biociências da Universidade de São
Paulo, foi aplicado um desenho de
Estudos Avançados – vol. 23 – nº 67 – São Paulo – 2009 blocos randômicos para avaliar
experimentalmente os efeitos de
duas intensidades de pisoteio na
■ Medicina riqueza, diversidade, densidade,
recobrimento e biomassa da fau-
Alergia à penicilina na de um costão situado na praia
do Obuseiro, em Guarujá (SP). Os
O teste cutâneo para alergia imediata à penicilina é o único blocos foram alocados em dois po-
teste validado internacionalmente, sendo que sua grande utilidade voamentos diferentes, dominados,
reside na avaliação de pacientes com história positiva de alergia respectivamente, pela classe de
à penicilina. O teste positivo para determinantes principais e crustáceo Chthamalus bisinuatus (Cirripedia) e pelo molusco
secundários da penicilina apresenta um valor preditivo positi- Isognomon bicolor (Bivalvia, foto). O pisoteio foi aplicado durante
vo de 50% e valor preditivo negativo de 99%. O Ministério da três meses, simulando a temporada de férias no Brasil, e os blocos
Saúde disponibiliza um protocolo para o preparo dos reagentes, foram monitorados nos nove meses seguintes. Os resultados in-
uma vez que eles não estão disponíveis comercialmente. Como dicaram que Chthamalus bisinuatus é vulnerável aos impactos do
esse protocolo não apresenta muitos detalhes sobre o cuidado pisoteio. Estratégias de manejo devem envolver o isolamento de
relativo às etapas de preparo das soluções, os autores do artigo áreas sensíveis, a construção de passarelas, a educação dos visitantes
“Implementation of a penicillin allergy skin test” se propuseram e o monitoramento das comunidades impactadas.
a operacionalizar o teste, avaliando de forma crítica e minuciosa
cada etapa, de forma que outros profissionais possam reprodu- Brazilian Journal of Biology – vol. 69 – nº 4 – São Carlos –
zi-lo de maneira mais segura e eficaz. Os autores são Aparecida nov. 2009

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no site da Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

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Crodowaldo
PAVAN NO LABORATÓRIO OAK RIDGE, 1966 | ACERVO COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

PAVAN
A contribuição à biologia,
à política científica e
tecnológica
e à difusão da ciência

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Um ambiente favorável à genética
Crodowaldo Pavan contribuiu de modo marcante para o avanço da ciência no Brasil
E VAN I LD O DA S I LVEI R A

E m 2009 o Brasil perdeu um de seus mais des-


tacados cientistas. Vítima de falência múltipla
de órgãos e sistemas, causada por um câncer e um
O impulso decisivo na verdade ocorreu, no en-
tanto, em 1943, com a chegada ao Brasil de ninguém
menos do que Theodosius Dobzhansky, russo natura-
infarto anteriores, o biólogo e geneticista Crodowaldo lizado norte-americano, responsável pela unificação da
Pavan morreu no dia 3 abril, aos 89 anos, no Hospital teoria da evolução de Charles Darwin com a genética
Universitário da Universidade de São Paulo (USP), na mendeliana. “Dobzhansky estava no auge de sua car-
qual fez a maior parte de sua bem-sucedida carreira. reira, era um deus”, lembra Luiz Edmundo Magalhães,
Nascido em Campinas, graduado em história natural professor titular de genética e evolução e ex-diretor
pela USP em 1941, Pavan foi um dos fundadores da do Instituto de Biociências da USP, que foi o primeiro
genética no Brasil. Ao longo de uma trajetória cien- aluno de doutorado de Pavan. “O seu livro Genetics and
tífica de mais de meio século, realizou descobertas the origin of species, lançado pela Columbia University
importantes, que resultaram em trabalhos publicados Press, em 1937, foi um grande sucesso.”
com repercussão internacional, além de ter formado A história da vinda de Dobzhansky para a USP é
dezenas de pesquisadores no Brasil e nos Estados bem conhecida e foi contada várias vezes por Pavan.
Unidos e dirigido algumas das instituições científicas Em parte ela se deveu à Segunda Guerra Mundial.
mais prestigiadas do país. Na época a Fundação Rockefeller apoiava pesquisas
Para o geneticista Francisco Salzano, da Universi- científicas em vários países. Por causa do conflito, ela
dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a his- não podia mais financiar pesquisadores da Europa,
tória de Pavan, que foi seu orientador no doutorado, Ásia e África. Então se voltou para a América Latina.
em 1955, está intimamente associada à da genética Seu representante no continente, Harry Miller Jr.,
no Brasil. “É impossível falar de uma sem recorrer à procurou Dreyfus para propor que ele fosse estagiar
outra”, diz Salzano, que assumiu, em dezembro do um ano nos Estados Unidos, por conta da fundação.
ano passado, a cátedra Crodowaldo Pavan do Insti- A princípio, o brasileiro aceitou. Mas depois disse
tuto Mercosul de Estudos Avançados, da Universida- que não poderia ir, pois seus assistentes, Rosina de
de Federal da Integração Latino-Americana (Unila), Barros e o próprio Pavan, eram muito jovens e não
localizada em Foz do Iguaçu (PR). “Mas ele também teriam condições de tomar conta de seu laboratório
contribuiu marcantemente para o desenvolvimento pelo período de um ano. Miller Jr., assim, propôs a
da genética em nível mundial, por meio de pesquisas vinda de Dobzhansky, o que foi aceito com entusias-
das mais importantes.” mo por Dreyfus.
O biólogo André Perondini, professor titular do O russo-americano impôs, no entanto, uma con-
Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, do dição para vir ao Brasil: queria conhecer a Amazônia
Instituto de Biociências da USP (IB-USP), lembra que e ficar pelo menos dois meses lá fazendo pesquisa. O
a entrada de Pavan – de quem foi orientando na pós- que também foi aceito. Coube a Pavan acompanhá-
graduação – no mundo acadêmico, em 1938, coincidiu -lo. Magalhães lembra que Dobzhansky havia sido
com um período de especial importância no desenvol- um dos primeiros pesquisadores a usar moscas do
vimento da genética no Brasil. Ele diz, num obituário gênero drosófila (a mosca-de-frutas, organismo-
de Pavan escrito com seu colega do IB João Morgante, -modelo para o estudo em genética), como mate-
também professor titular e aluno de Pavan na gradua- rial experimental de pesquisa para os estudos de
ção, que o ensino dessa ciência começou no Brasil em evolução, o que se tornou uma grande moda na
1918, na então chamada Escola Agrícola de Piracicaba. época, adotada em todos os principais centros de
Em seguida, em 1927, foi a vez da Faculdade de Medi- pesquisa do mundo. “Foi assim que o uso desses in-
cina da USP e, em 1933, do Instituto Agronômico de setos nas pesquisas foi introduzido no Brasil”, conta.
Campinas (IAC). “Mas o grande impulso foi dado com “Dobzhansky ensinou os conhecimentos básicos de
a criação da cátedra de biologia geral, ocupada pelo drosófila, a sistemática e a criação das espécies em
professor André Dreyfus, na Faculdade de Filosofia, laboratório.”
Ciências e Letras (FFCL) da USP, em 1934”, conta. “A Pavan soube como ninguém tirar proveito desses
ela se somou a cátedra de citologia e genética geral, ensinamentos e da proximidade com o pesquisador
comandada pelo professor Friedrich Gustav Brieger, russo-americano. “Em 1943 ele já tinha os seus dois
na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz primeiros trabalhos de pesquisa publicados, ambos
(Esalq), da USP, campus de Piracicaba, em 1936.” em colaboração com Dobzhansky”, conta Magalhães.

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“Um deles, sobre sistemática, saiu em um bo- 2008, Thomas F. Glick, professor de história A entrada
letim do Departamento de Biologia Geral [da da Universidade de Boston, diz que um mês
FFCL]. O outro, sobre os cromossomos das depois de chegar ele ministrou um curso so- de Pavan
espécies brasileiras de drosófila, foi publicado bre evolução que se tornaria um marco na
nada mais, nada menos do que no Proceedings genética brasileira. “As aulas eram dadas no no mundo
of the National Academy of Sciences (PNAS), Departamento de Química da USP”, escreve acadêmico,
uma das revistas nas quais é mais difícil de con- Glick. “Cerca de 20 estudantes se matricu-
seguir aceitação de trabalho para publicação. laram, mas a maioria dos biólogos também em 1938,
Essa foi, sem dúvida, uma excelente estreia. E assistia às aulas, assim como representantes
bastante rápida também.” de outras entidades locais, como o Instituto coincidiu
Biológico, um grupo que incluía Henrique
Entusiasmo da Rocha Lima, Clemente Pereira e Zeferino com um
Mas Pavan não foi o único beneficiado. Dessa Vaz. O curso influenciou todos os biólogos de período
época até pelo menos 1962 a Fundação Rocke- São Paulo. De Piracicaba e Campinas vieram
feller financiou os estudos de vários pesquisa- Carlos Krug e Friedrich Brieger, respectiva- de especial
dores, os primeiros dos quais faziam parte do mente, cada um trazendo consigo de 15 a 20
grupo pioneiro da genética no Brasil. Além de de seus estudantes.” importância
Pavan, em torno do líder do grupo, Dreyfus, O próprio Pavan se refere a esse curso, nu-
orbitavam nomes como Antonio Brito da ma entrevista publicada no livro 50 anos do
para a
Cunha e Newton Freire-Maia, ambos da USP, CNPq contados pelos seus presidentes, organi- genética
Antonio Lagden Cavalcanti e Chana Malogo- zado por Shozo Motoyama (FAPESP, 2002).
lowkin, do Rio. E à frente dessa empreitada da “Após um mês de sua chegada, [Dobzhansky] no mundo
Fundação Rockefeller no Brasil estava o pró- ministrou um curso extraordinário, com du-
prio Dobzhansky. Chana, hoje morando em ração de um mês e frequentado por cerca de
Israel, lembra bem da influência dele. “Posso 100 intelectuais de São Paulo, Campinas e Pi-
até dizer, sem medo de errar, que foi ele, com o racicaba”, contou. “Para esse curso, ele escrevia
seu entusiasmo, que formou o primeiro grupo a sua aula, o Dreyfus traduzia para o portu-
de jovens geneticistas no Brasil”, afirma. guês, o Brito da Cunha e eu o ouvíamos falar
O prestígio de Dobzhansky se fez notar e corrigíamos a sua dicção. Dessa forma, deu
logo após sua chegada. Num artigo publi- aula em português. Quando havia qualquer
cado na Revista Brasileira de Cultura, em dúvida, falava em inglês.”
ACERVO HANS BURLA/COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

Pavan ao
volante do Ford
Mercury com
Brito da Cunha
ao lado e
Sophie
Dobzhansky
(atrás) durante
trabalho de
campo no litoral

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De acordo com Pavan, foi assim que se de 12 horas por dia, com prazer, disposição e A partilha do
abriu uma nova fase da genética no Brasil, afinco, mesmo nos sábados e domingos”, lem-
na qual Dreyfus também teve um papel fun- bra Chana. “Era comum que aos domingos, conhecimento
damental, pois era uma pessoa que adorava de manhã, se desse uma passada pelo depar-
ensinar, aprender e transmitir conhecimentos tamento, tivesse encontros com colegas e se e a integração
e nunca guardava uma descoberta apenas para programasse para a próxima semana”, acres-
si. Pavan costumava dizer que em vez de tirar centa Magalhães. “À noite, também era cos- do grupo
proveito da presença do Dobzhansky só para tume trabalhar. Na verdade, o departamento pioneiro
seu grupo, como é comum entre muitos cien- era como se fosse a nossa própria casa. Havia
tistas, Dreyfus fazia questão de compartilhá-la, uma grande harmonia entre todos os mem- criaram as
convidando pesquisadores de vários lugares do bros que, naquele tempo, não eram muitos.
país. “Ele deu carta branca para Dobzhansky Ao todo, umas 15 pessoas.” bases para
e, não só isso, colocou-o em contato com o
pessoal da Esalq e com o IAC”, lembrou Pavan, Impacto que a
em 50 anos do CNPq. “Na verdade, formáva- O próprio Dobzhansky também trabalhava genética
mos um grupo.” lá quando estava no Brasil – ele fez seis visitas
Era um grupo coeso, unido no gosto co- ao país entre 1943 e os anos 1960. O impacto animal se
mum pela genética e pelas pesquisas, que não dessas visitas para a genética do Brasil pode
se importava de trabalhar muito. Era comum ser medido pelo número de publicações dos desenvolvesse
eles frequentarem o Departamento de Biologia brasileiros que trabalhavam com o russo. Foi
Geral da FFCL, que ficava num prédio, hoje o que fez o pesquisador José Franco Mon- no Brasil
extinto, na alameda Glete, na região central te Sião em sua dissertação de mestrado em
de São Paulo, depois do expediente. “No labo- história da ciência Theodosius Dobzhansky e
ratório, todos nós trabalhávamos muito mais o desenvolvimento da genética de populações
ACERVO LUIZ EDMUNDO MAGALHÃES

Pavan em seu
gabinete nos
anos 1950,
no sótão do
departamento,
na alameda
Glete

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de Drosophila no Brasil: 1943-1960, apresentada em se encontrava entre as 10 mais desenvolvidas no
2008 na Pontifícia Universidade Católica de São Pau- mundo. Para Magalhães, Pavan, sem dúvida, teve
lo (PUC-SP). Ele constatou que antes de 1943 não papel importante nesse desenvolvimento. “Foi um
houve nenhuma publicação de autores brasileiros grande promotor do progresso científico, especial-
sobre genética de populações com drosófilas. Já entre mente da genética, área em que exerceu uma grande
1943 e 1948 (período entre a primeira e a segun- influência, de certa forma decisiva, desde o início
da visita de Dobzhansky) foram encontradas 12. de sua carreira”, diz.
O pesquisador com maior número de publicações Perondini e Morgante lembram que Pavan publi-
foi Pavan, com seis trabalhos, dos quais três como cou mais de 100 trabalhos científicos e ajudou a for-
autor individual e três com colegas do grupo ou com mar um contingente de pesquisadores que também
Dobzhansky. orientaram muitos outros num efeito multiplicador.
Foi esse compartilhamento do conhecimento “Dessa forma, ele deixou para trás sua linhagem de ‘fi-
e a integração do grupo pioneiro que criaram as lhos, netos e bisnetos científicos’”, dizem. “Sua morte
bases para o desenvolvimento da genética animal abriu uma lacuna na comunidade científica brasilei-
no Brasil. Essa integração foi tão bem-sucedida ra, mas o que fica é a certeza de seu enorme legado
que o grupo cresceu e aglutinou pesquisadores de como ser humano, como um homem da ciência e
outros estados, como Rio Grande do Sul, Rio de como aquele que foi responsável em grande parte
Janeiro, Paraná e Bahia. Nos 15 anos seguintes a pelo desenvolvimento da ciência, em particular da
genética no Brasil adquiriu tal maturidade que já genética no Brasil.” ■

A institucionalização da pesquisa
Dreyfus, Dobzhansky e Pavan foram importantes para o desenvolvimento da genética
E VANI L D O DA S I LVEI R A

O biólogo Luiz Edmundo Magalhães costuma di-


zer que seu orientador teve três anjos da guarda
ao longo da carreira: André Dreyfus, Harry Miller
da cadeira de biologia geral na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras (FFCL) da recém-criada Universi-
dade de São Paulo e a de citologia e genética geral
Jr. e Theodosius Dobzhansky (leia artigo na página na Escola Superior Luiz de Queiroz (Esalq), com a
76). Parafraseando Magalhães, pode-se dizer que a chegada de Friedrich Gustav Brieger da Inglaterra.
genética animal no Brasil teve quatro, se não anjos da Em sua dissertação de mestrado em história da
guarda pelo menos grandes impulsionadores: os três ciência, o biólogo José Franco Monte Sião nota que
citados por ele mais o próprio Pavan. Eles não foram nesse período inicial o desenvolvimento da genética
os primeiros a realizar pesquisa na área no país, mas
seguramente estão entre os que mais contribuíram
para desenvolvê-la e, mais do que isso, para institu-
ACERVO COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

cionalizá-la. De uma forma ou de outra, os quatro


estiveram envolvidos na criação de cursos, cátedras,
linhas de pesquisa e associações que congregam os
geneticistas do país, como a Sociedade Brasileira de
Genética (SBG), por exemplo.
De acordo com o geneticista Francisco Salzano, a
fundação da SBG, em 1955, foi o ponto culminante
de um processo que havia começado pelo menos 37
anos antes. Ele se refere ao início, em 1918, do ensino
da genética na então Escola Agrícola de Piracicaba
por três pioneiros: Carlos Teixeira Mendes, Otávio
Domingues e Salvador de Toledo Piza. Outra data
importante é 1927, quando André Dreyfus deu aulas
desse campo da ciência pela primeira vez na Faculdade
de Medicina de São Paulo. Um pouco mais tarde, em
1933, Carlos Arnaldo Krug ministrou um curso rápido
de genética no Instituto Agronômico de Campinas
(IAC). Também merece destaque a criação, em 1934, Dreyfus (óculos escuros) e Dobzhansky (atrás)

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Hampton no Brasil estava concentrado em três centros e didática e, através da sua influência, para a
Carson (esq.) de pesquisa: IAC, Esalq e FFCL da USP. “Po- própria instalação material de seus laborató-
e Edmundo demos dizer que nessa época as pesquisas em rios”, conta.
Magalhães genética no Brasil estavam divididas em duas Segundo Brito da Cunha, a admiração por
(de camisa linhas”, diz. “Uma delas se concentrava no me- Dreyfus e a confiança nele depositada levaram
branca) em
lhoramento vegetal e era encontrada no IAC e Harry M. Miller Jr., da Fundação Rockefeller,
pesquisa de
campo em
na Esalq. A segunda linha, ligada aos estudos não só a trazer para o laboratório da FFCL
Mongaguá, dos animais, basicamente invertebrados, foi Theodosius Dobzhansky, como também a
nos anos adotada pelo grupo da USP.” financiar a compra de equipamentos e a pes-
1950 Nessa segunda linha, um papel de destaque quisa do laboratório. “Dreyfus, Dobzhansky,
coube a Dreyfus. Médico formado pela Facul- seus amigos e colegas Brieger, em Piracicaba,
dade de Medicina do Rio de Janeiro, natural Krug, no Instituto Agronômico de Campinas,
de Pelotas (RS), veio para São Paulo em 1927 e Harry M. Miller Jr. são os primeiros res-
quando foi nomeado assistente na Faculdade ponsáveis pelo desenvolvimento da genética
de Medicina. Era um dos membros do gru- moderna no Brasil.”
po que fundou a USP. Geneticista de cultura
ampla, era menos um pesquisador – embora Tempo integral
tenha publicado trabalhos científicos, inclu- Também colaborou para esse desenvolvimen-
sive em parceria com Dobzhansky – e mais to a adoção do regime de tempo integral, em
um aglutinador e incentivador do grupo que 1947, nas instituições de pesquisa do estado
montou em torno de si no Departamento de de São Paulo. Até então, para sobreviver, os
Biologia Geral da FFCL. professores precisavam dar aulas em diversos
Em um artigo publicado na revista Estudos lugares, o que dificultava as atividades cien-
Avançados, em 1994, Antonio Brito da Cunha, tíficas propriamente ditas. O tempo integral
que foi um de seus assistentes, fala do papel contribuiu para a consolidação da genética – e
dos três anjos da guarda de Pavan na institu- outras áreas também – como ciência estabe-
cionalização da genética no Brasil. “[Dreyfus] lecida. Dreyfus, por exemplo, pôde largar as
recebeu, no seu departamento, docentes de outras faculdades e se concentrar apenas na
vários laboratórios do Brasil e do exterior, FFCL para se dedicar à pesquisa. Por interfe-
contribuindo para a sua formação científica rência da Fundação Rockefeller, que exigia que

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os laboratórios e pesquisadores que financiava A institucionalização da genética não se limi-
trabalhassem em tempo integral, os estados do tou a São Paulo, no entanto. Em 1951 foi criado em
Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro Curitiba o primeiro centro brasileiro de pesquisa em
também passaram a adotar esse regime. genética humana, organizado por Newton Freire-
Na mesma época Pavan voltou dos Esta- Maia. Em 1959 foi a vez da disciplina de genética
dos Unidos e passou a se dedicar, junto com humana na Faculdade de Medicina da USP, tendo por
Dobzhansky, a planejar um grande projeto professor Pedro Henrique Saldanha. Na SBG, Pavan
de pesquisas com drosófilas para ser realiza- era o presidente no biênio 1958-60. “Mais uma vez
do no Brasil. Segundo Magalhães, o cientista Pavan foi procurado por Miller, que propôs a ele que
russo-americano estava interessado em es- se interessasse pelo desenvolvimento da genética hu-
tudar espécies brasileiras de drosófilas, que mana, área essa que estava começando a se firmar no
têm variabilidade muito grande em compa- cenário mundial”, conta Magalhães. “Pavan recusou,
ração com as que existem nos Estados Unidos, mas pediu que a Rockefeller concedesse três bolsas de
que são mais uniformes. Foi assim que ficou estudo para o exterior, para geneticistas brasileiros
acertada a realização do projeto com vários se especializarem em genética humana.”
participantes não só do Brasil, mas também Foi o que aconteceu. Os três escolhidos foram
de fora para ser realizado entre 1948 e 1949 Freire-Maia e Salzano, dois drosofilistas, e Pedro
com apoio financeiro da Rockefeller. Além de Henrique Saldanha, do Rio de Janeiro, que já ha-
Dobzhansky e Pavan, ela financiou a expansão via se mudado para São Paulo e iniciado, por conta
do grupo da USP, trazendo Antonio Cordeiro, própria, pesquisas em genética humana. Nessa oca-
de Porto Alegre, Chana Malogolowkin e An- sião, Oswaldo Frota-Pessoa, outro drosofilista, agora
tonio Geraldo Lagden Cavalcanti, do Rio de também trabalhando em genética humana, já estava
Janeiro, Hans Burla, da Suíça, e Martha Wedel, com bolsa nos Estados Unidos. “Quando retornaram
da Argentina. ao Brasil, Pavan, como presidente da SBG, criou a
Comissão de Genética Humana, para promover o
Mudança de ritmo desenvolvimento dessa especialidade, com auxílio
Por esse e outros trabalhos, Simon Schwartz- financeiro da Rockefeller”, lembra Magalhães. “Pode-
man diz, em seu livro Um espaço para a ciên- -se, pois, afirmar que a origem e o desenvolvimento
cia – A formação da comunidade científica no desse ramo da genética também foram frutos da visão
Brasil, que Dobzhansky é lembrado como e do empenho de Pavan.” ■
uma pessoa extremamente dinâmica e mudou
o ritmo mais lento dos brasileiros com suas
constantes solicitações de viagens de estudo,
ACERVO HANS BURLA/COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

recursos e equipamentos. “Dreyfus não só


não competiu com ele como se tornou seu
principal defensor e ponto de apoio”, escre-
ve Schwartzman. O autor lembra ainda que
vários dos seus estudantes e assistentes fo-
ram completar seus treinamentos nos Estados
Unidos. “Formou-se uma rede de geneticistas
(trabalhando não só em São Paulo, mas em
Porto Alegre, em Brasília e no Paraná) espe-
cializados em genética médica, genética das
populações humanas e citogenética”, diz.
Segundo Magalhães, passada a grande
agitação causada pela realização desse pro-
jeto, o Departamento de Biologia Geral da
FFCL voltou à calma, mas agora com mais
entusiasmo. O projeto havia sido um sucesso
e o departamento era visto com grande res-
peito. “Era um departamento bastante jovem
e que, em pouquíssimo tempo, apresentava,
inquestionavelmente, um nível internacional”,
lembra. “É verdade que a participação de Do-
bzhansky foi muito importante, determinan-
do o padrão científico do grupo, mas a equipe
de brasileiros, liderada principalmente por
Pavan, soube dar a resposta certa ao desafio
que enfrentava.” Dobzhansky, em foto de Hans Burla

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A queda de um dogma
Pavan demonstrou que o número de genes não é constante nas células
E VAN I LD O DA S ILV EIRA

C omo costuma ocorrer com muitas des-


cobertas científicas, a mais importante
realizada por Crodowaldo Pavan foi por acaso.
constatou que havia multiplicação dos genes
nessa região, com síntese de DNA”, explica Ma-
galhães. “Com essa descoberta, ficava rejeitado
Em uma de suas excursões para coletas de dro- o dogma de que a quantidade de DNA em uma
sófilas (a mosca-de-frutas, organismo modelo célula era constante.”
para pesquisa em genética), no fim dos anos Trata-se de um mecanismo conhecido hoje
1940, numa plantação de bananas em Monga- como amplificação gênica, pelo qual, em de-
guá, no litoral sul de São Paulo, Pavan deu um terminadas células e em momentos específi-
chute numa bananeira caída e, embaixo dela, cos do desenvolvimento, alguns genes fazem
descobriu um bolo do que supôs ser vermes. cópias adicionais, além da simples duplicação
O hábito e o instinto de cientista o fizeram do filamento do cromossomo, como ocorre
levá-los para o laboratório. Descobriu que, na na divisão celular normal. Quando descreveu
verdade, eram larvas de uma mosca do gênero o fenômeno da amplificação gênica, Pavan
Rhynchosciara, que mais tarde lhe permitiria também elaborou uma interpretação para ele.
descobrir o fenômeno da amplificação gênica, Ela passa pelo fato conhecido de que para o
que derrubou um dogma da biologia, a cons- funcionamento das células cada gene é res-
Foi com a tância do DNA. ponsável pela produção de um determinado
Rhynchosciara As larvas eram da espécie Rhynchosciara produto, e isso é feito, em certo momento, pela
que Pavan angelae (hoje conhecida como R. americana). transcrição de RNAs específicos.
descobriu o Segundo Luiz Edmundo Magalhães, elas se
fenômeno da revelaram um excelente material para pes- Ponto culminante
amplificação quisa, por várias razões. “As larvas têm gran- De acordo com Perondini, esse processo trans-
gênica des cromossomos nas células das glândulas corre com determinada taxa por unidade de
salivares”, explica. “Além disso, todas, de cada tempo e dificilmente poderia ter a velocidade
bolo, são descendentes de uma única fêmea; aumentada dentro das condições normais do
apresentam hábito gregário e se desenvolvem corpo do indivíduo. “Assim, suponha que em
sincronicamente.” André Perondini lembra determinados momentos da vida de um orga-
que por causa dessa última característica Pa- nismo fosse necessária uma quantidade muito
van costumava dizer que analisar amostras de grande de um determinado produto gênico”,
um grupo delas em dias sucessivos era como diz ele. “Como aumentar essa produção? Po-
assistir a um filme de um fenômeno. deria ser pelo aumento da duração do processo
As pesquisas subsequentes realizadas por ou da taxa de transcrição do gene. Ambas as
ele e colaboradores com a Rhynchosciara ren- situações são muito difíceis de ocorrer. Outro
deram uma série de artigos científicos publi- modo seria aumentar o número de cópias do
cados nos anos seguintes. O mais importante gene (amplificação), fazendo, assim, com que o
deles, assinado com sua colaboradora Marta RNA necessário fosse produzido em maior
Breuer, foi publicado em 1955. O texto re- quantidade, na mesma unidade de tempo.”
velava uma descoberta revolucionária, um Apesar de ser revolucionária – ou por
marco histórico da biologia, pois derrubava causa disso mesmo –, a descoberta de Pavan
um paradigma da ciência. demorou oito anos para ser aceita pela comu-
Até então se acreditava que o número nidade científica. “Durante esse período, eu
de genes e, consequentemente, a quantida- apresentava os dados e o pessoal dizia: ‘Os seus
de de DNA eram constantes nas células de dados valem, mas isso é uma exceção. É um
cada espécie de ser vivo. Pavan observou na inseto’”, contou em entrevista que consta do li-
FÁBIO SIVIERO E EDSON DE OLIVEIRA

Rhynchosciara o aparecimento de determi- vro Cientistas do Brasil (CNPq, 1998). “Até que
nadas formações em pontos específicos dos verificaram que certos genes se multiplicam
cromossomos politênicos (cromossomos gi- mais do que outros no cromossomo, que isso
gantes que aparecem nas células das glândulas não era exceção e acontecia até no homem.”
salivares da mosca), que cresciam muito, e as As pesquisas com a Rhynchosciara foram
chamou de pufes. “Estudando a formação o ponto culminante da carreira científica de
desses pufes com uma técnica especial, ele Pavan. Antes disso, ele realizou pesquisas com

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outras espécies de animais. A primeira delas de cromossomos, genitália e do padrão do
EDUARDO CÉSAR

foi o bagre-cego, Typhlobagrus kronci, que corpo de um grande número de espécies tro-
vive nas cavernas de Iporanga (SP), sobre o picais”, explica Perondini. “Depois o trabalho
qual escreveu sua tese de doutorado, concluí- progrediu com análises de correlações entre
da em 1944. espécies e ambiente, tamanho da população e
Após o doutorado, o geneticista se dedicou distribuição geográfica dos diferentes grupos
às pesquisas com drosófilas, influenciado por de espécies.”
Theodosius Dobzhansky, que veio a primeira Em meados dos anos 1970, Pavan demons-
vez ao Brasil em 1943. “O grupo do qual Pavan trou interesse por uma nova área de pesquisa.
fazia parte fez um levantamento das espécies Ele sugeriu a alguns cientistas que estavam
nativas de drosófilas de praticamente todo desenvolvendo pesquisas em genética básica
o Brasil”, conta Perondini. “Foi um trabalho que começassem a usar como modelo insetos
muito importante na época em que o estu- de interesse econômico, isto é, que causam da-
do populacional de drosófilas estava ainda nos a seres humanos ou prejuízos à agricultura Drosófilas,
começando.” e pecuária, por exemplo. Assim, até o fim de moscas-de-
Nos anos seguintes, num primeiro mo- sua vida continuou ligado ao laboratório. Em -frutas:
mento, o seu trabalho foi direcionado basica- seus últimos anos, por exemplo, ele voltou sua organismo
mente no sentido de coleção, catálogo e descri- atenção a outro problema biológico de grande modelo para
ção das espécies brasileiras dessa mosca. “Isso importância, o papel das bactérias na fixação pesquisa em
genética
resultou em um detalhamento da descrição do nitrogênio. ■

Influências e desdobramentos
Brasil tem vários grupos trabalhando na fronteira do conhecimento
E DUARD O G ER AQU E

N o dia 7 de março de 1953, Francis Crick


(1916-2004) e James Watson (1928) en-
traram para a história da ciência. Resultado
sador da Universidade de São Paulo (USP) e
um dos líderes da área de genética no país nos
dias atuais. Nos anos 1970, o atual cientista da
da pesquisa feita pela dupla: a estrutura da USP assistiu a aulas de Pavan na graduação.
molécula do DNA tem a forma de uma dupla “Na década de 1950, apenas dois anos depois
hélice. A revolução genética, que abria espaço do trabalho de Watson e Crick, Pavan já fa-
para caminhos inimagináveis, como o Projeto zia biologia molecular de primeira linha com
Genoma Humano, na década de 1990, estava seus estudos sobre a replicação do DNA”, diz
só no início. Apenas dois anos depois do fa- Menck. “Isso em uma época que ainda mal
moso artigo da dupla de cientistas, em 1955, sabíamos que o DNA era realmente a molécula
Crodowaldo Pavan publicava um trabalho que guarda a informação genética.” Para ele,
sobre replicação in vivo de DNA, na revista um olhar para os anos 1950 a partir de hoje
alemã Chromosoma. realmente reforça a ideia de pioneirismo de
Atualmente, mais de 50 anos depois, em Pavan. “É importante destacar que a genética
qualquer laboratório de genética do mundo feita por ele era realmente avançada naquele
minimamente equipado existe o chamado tempo, pelo menos no país.”
PCR (reação em cadeia da polimerase, na sigla O bioquímico Hugo Armelin, professor
em inglês). Essa técnica amplifica a molécula do Instituto de Química da USP, também es-
de DNA in vitro. Por ela ser algo extrema- tudou a fundo o trabalho de Pavan feito na
mente básico, o estudante de biologia, ainda segunda metade dos anos 1950. Ele concorda
durante a graduação, aprende a fazer o pro- com Menck que aquele estudo era realmente
cedimento. Esse método serve, por exemplo, importante para a história da biologia mo-
para a identificação de organismos genetica- lecular feita no país. “Em minha opinião, o
mente modificados. E para muitos outros que trabalho mais importante dele é a descoberta
envolvem o estudo dos genes. dos pufes de DNA em cromossomos politê-
“Os trabalhos com replicação de DNA do nicos [gigantes].”
Pavan, obviamente, são aqueles que mais cha- Apesar de ter acompanhado o trabalho
mam a atenção”, afirma Carlos Menck, pesqui- do pesquisador Pavan, Armelin ressalta que

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não recebeu influência direta ou indireta dele. O 1950 e 1960. Como explica a geneticista da USP Lygia
bioquímico era do grupo do professor Francisco da Veiga Pereira, uma das protagonistas da primeira
Lara, também da USP. “O trabalho desenvolvido e linhagem de células-tronco embrionárias do país, se
publicado na segunda metade dos anos 1950 foi sim Gregor Mendel praticamente inaugurou o que se co-
o ponto de partida para os projetos do laboratório nhece hoje por genética clássica, Watson e Crick, com
do professor Lara. Mas a abordagem científica entre a revolução que fizeram, criaram as bases modernas
os dois grupos, a partir daí, foi diferente. E os tra- da genética molecular. “Em vez dos cruzamentos
balhos, nos anos 1960, se desenvolveram de forma entre os descendentes com base apenas na observa-
totalmente independente entre os dois laboratórios”, ção dos fenótipos [as características do indivíduo a
ressalta Armelin. partir de seus genes], os cientistas passaram a estudar
As pesquisas sobre amplificação gênica, de forma também o próprio gene”, diz Lygia.
específica, ou sobre a genética molecular, de uma for- A genética clássica, baseada praticamente no mé-
ma mais geral, não apenas ajudaram na formação de todo da tentativa e erro, apesar de existir até hoje,
pessoas. Esses caminhos acabaram influenciando os deixou o campo de batalha aberto para a entrada
projetos de pesquisa de outros laboratórios. Processo da genética molecular. A consequência atual disso,
que, no aspecto macroscópico, culminou com novas segundo Lygia, são pelo menos dois desdobramentos
abordagens e linhas de pesquisa também inovadoras. científicos bastante definidos. “Passou a ser possível
Com seu trabalho, Pavan estava sem saber solidifi- estudar os genes que estão produzindo um deter-
cando um dos pilares da genética nacional. minado fenótipo, e não apenas o contrário, e, além
disso, surgiram os transgênicos, que são organismos
Na fronteira que receberam pelo menos um gene de outra espécie
O Brasil hoje tem vários grupos de pesquisa traba- para se chegar a uma determinada resposta previa-
lhando na fronteira do conhecimento da genética. mente programada”, compara Lygia, também uma
Parte disso deve-se ao que foi semeado por Pavan e admiradora de Pavan.
vários de seus contemporâneos e discípulos como Esses são dois dos alicerces científicos que permi-
Francisco Salzano e Ernesto Paterniani, nos anos tem ao mundo discutir hoje, por exemplo, a biologia

IMAGENS: CORTESIA DE ANDRÉ LUIZ PERONDINI/IB-USP

Artigo sobre a amplificação gênica, de 1955, e anotação de Marta Breuer sobre pufes da Rhynchosciara

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LABORATÓRIO DE LYGIA DA VEIGA PEREIRA/IB-USP
sintética – nada mais do que a construção de se saber a posição sempre veemente de Pavan Neurônios (dir.)
um organismo totalmente novo, a partir dos em relação ao tema. Desde que os aspectos de formados a
genes já devidamente estudados e identifi- segurança fossem considerados, ele era a favor partir de células
cados. No caso pelo menos dos organismos das experiências com os transgênicos. Afinal, pluripotentes
geneticamente modificados, por exemplo, é lá atrás, nos anos 1950, os estudos pioneiros (esq.): pesquisas
inovadoras
só consultar os arquivos das últimas reuniões sobre amplificação gênica contribuíram, de
no século XXI
anuais da Sociedade Brasileira para o Progres- alguma forma, com o que se busca atualmente
so da Ciência (SBPC), de 2008 para trás, para nos laboratórios de genética do país. ■

Reforço para a política de C&T


Pavan atuou em diversas frentes na defesa da pesquisa nacional
N E L DSO N M AR CO LI N

C argo vitalício na Universidade do Texas,


família adaptada à vida em Austin, pres-
tígio científico no exterior. Ainda assim, em
cientistas, em 1974. Na volta a São Paulo, em
1975, encontrou o país ainda sob o governo
militar e a universidade à procura de liberdade
1975 Crodowaldo Pavan decidiu voltar para de expressão e reivindicação.
São Paulo, depois de sete anos nos Estados De suas conversas com o físico Alber-
Unidos. “Analisei a situação e achei que po- to Luiz da Rocha Barros e com o sociólogo
deria fazer mais pelo Brasil estando aqui do José Jeremias de Oliveira Filho surgiu a As-
que lá”, disse ele posteriormente. O geneticista sociação dos Docentes da USP (Adusp), em
retomou o trabalho na Universidade de São 1976, recriando de certo modo a Associação
Paulo (USP), mas ampliou consideravelmente de Auxiliares de Ensino que, embora ainda
seu espaço de atuação ao mergulhar nas ques- existisse no papel, havia deixado de atuar pe-
tões da política científica e tecnológica como las pressões do regime. “Esses três formaram
nunca havia feito antes. o núcleo inicial ao qual se juntaram outros
“Do ponto de vista meramente institucio- professores influentes, como Simão Mathias
nal, Pavan teve uma participação pequena até e Antonio Candido”, conta. Para Motoyama,
meados dos anos 1970, embora tenha integra- uma das características de Pavan era a ousadia.
do o primeiro Conselho Superior da FAPESP, “Ele nunca teve medo de propor e fazer o que
de 1961 a 1963”, explica o físico e historiador achava correto, mesmo quando as dificuldades
Shozo Motoyama, do Centro Interunidade pareciam muito grandes, como era o caso nos
de História da Ciência da USP. Um pouco anos 1970.”
antes do retorno ao Brasil, ele participou da Por 10 anos, de 1975 a 1985, Pavan coor-
fundação da Academia de Ciências do Esta- denou o Programa Integrado de Genética, que
do de São Paulo com Sérgio Mascarenhas, tinha apoio do Conselho Nacional de Desen-
Oscar Sala e Shigueo Watanabe, entre outros volvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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ELIZABETH LEE/ESTAÇÃO CIÊNCIA

Estação Ciência, em São Paulo: um centro interativo para jovens aprenderem ciência

A finalidade era ampliar os auxílios para a pesquisa e camente o ‘dono’ do Congresso – ajudando-nos com
discutir as prioridades e as áreas a serem exploradas os líderes partidários para que nossas proposições
em genética no Brasil. “Tratava-se de um programa fossem aceitas”, disse ele em entrevista. Pavan se or-
integrado no qual se discutia o que estava sendo fei- gulhava de ter concedido mais bolsas no país nos
to, o que havia sido feito e o que deveria ser feito”, três primeiros anos à frente do CNPq do que nos
contou ele em depoimento para o livro 50 anos do 30 anos anteriores. Quando ele iniciou sua gestão,
CNPq contados pelos seus presidentes. eram por volta de 13 mil bolsas por ano; quando
De 1981 a 1984 o geneticista foi diretor presidente saiu, deixou a concessão anual de 44.110 bolsas, no
do conselho técnico administrativo da FAPESP e teve mínimo, estabelecida por lei. A agência federal con-
participação importante na recuperação econômi- seguiu também aumentar seu valor ao vinculá-las ao
ca da Fundação, debilitada pelo atraso no repasse salário de professores das universidades federais. Um
governamental das verbas, que, por sua vez, eram doutorando ganhava 70% do salário do professor-
corroídas pela alta inflação. No mesmo período, por -assistente doutor, por exemplo.
três mandatos, de 1981 a 1986, presidiu a Socieda-
de Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Consolidação
Pavan soube utilizar os dois cargos em instituições Durante a Constituinte, em 1988, o CNPq convocou
importantes que ocupava simultaneamente e sua os pesquisadores para elaborar propostas. Para cada
reconhecida capacidade de mobilização para, jun- trecho que se pretendia inserir na Carta Magna nas
to com professores das três universidades públicas questões de ciência e tecnologia havia um grande
paulistas e pesquisadores dos institutos de pesquisa trabalho de preparação de textos e de convencimento
do estado de São Paulo, promover o simpósio “Crise, pessoal dos deputados constituintes. “As discussões
universidade e pesquisa” na Assembleia Legislativa. mais importantes se referiam à universidade, ao es-
Como resultado da pressão política, o então depu- paço de pesquisa em territórios (como no subsolo e
tado Fernando Leça propôs uma emenda que obri- na Amazônia) e às relações entre produção científica
gava o governo a fazer os repasses em duodécimos e propriedade intelectual”, conta Luiz Curi, chefe de
(mensalmente) no próprio ano da arrecadação. Antes gabinete adjunto e depois assessor especial da presi-
o pagamento deveria ser feito em quatro parcelas dência do CNPq na época de Pavan. Depois da Cons-
anuais, o que ocorria com cerca de dois anos de atra- tituição aprovada, começou outro trabalho: manter a
so. A Emenda Leça terminou aprovada em 1983. “A vigilância e a pressão no momento da definição das
liderança de Pavan foi importante nesse episódio”, emendas orçamentárias, não apenas para evitar que
lembra Motoyama. a pesquisa perdesse verba, mas para garantir dinheiro
O geneticista estava no seu terceiro mandato na para outros projetos.
presidência da SBPC quando foi convidado por Rena- “Pavan consolidou a política de ciência e tecnolo-
to Archer, primeiro ministro do então recém-criado gia no Brasil”, diz Curi. De acordo com ele, também
Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), para assu- deu muita atenção às políticas estratégicas de C&T,
mir a presidência do CNPq, em 1986. Pavan deixou a abrindo espaço para as discussões sobre questões
SBPC e por cinco anos comandou a principal agência relativas à inovação, como novos materiais, quími-
de fomento à pesquisa do país. “Antes disso, ele foi ca fina, informática e necessidade de pesquisa em
um importante apoiador da criação do MCT”, teste- fármacos. “Não foi ele quem realizou tudo isso, mas
munha o presidente da FAPESP, Celso Lafer. passou a lidar com esses temas, que se relacionavam
No CNPq Pavan tratou de recuperar verbas pa- à inovação”, esclarece. “Com Pavan, a política como
ra bolsas e pesquisas agindo não só no âmbito do marco de uma ação de Estado foi aprofundada.”
governo, mas amealhando apoio no Congresso Na- Nos cinco anos que ficou no CNPq, Pavan con-
cional. “Nós tínhamos o Ulysses Guimarães – prati- viveu com cinco ministros de Ciência e Tecnologia

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diferentes e mudanças no status da autarquia continuidade aos programas de populariza- Pavan se
– o MCT tornou-se secretaria especial por um ção da ciência para jovens. O generoso espaço
período e depois voltou a ser ministério. “Ele sempre foi bem aproveitado na montagem de orgulhava,
tinha grande representatividade na comunida- exposições e eventos e as novas tecnologias
de científica brasileira, visibilidade internacio- foram utilizadas para tornar mais atraente o em seus
nal e uma agenda muito positiva para a C&T, aprendizado científico dos jovens. A atual di- três primeiros
com resultados concretos”, diz Luiz Curi. “Era retora, Roseli de Deus Lopes, assumiu em 2008
muito difícil tirá-lo do cargo, mesmo quando e começou um projeto de resgate da memória anos à frente
o ministro não gostava dele.” do centro de modo a dar visibilidade a essa
Duas outras iniciativas ajudaram a marcar história. “Os registros estão todos aqui, mas do CNPq, de
a gestão naquele período, ambas realizadas em senti falta de um livro, de depoimentos grava-
1987. Uma delas foi a criação do Laboratório dos em vídeo e de exposições sobre o que já foi a instituição
Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), instalado feito”, diz. Hoje visitam o local mais de 400 mil ter concedido
em Campinas, para pesquisar novas proprie- pessoas por ano, entre estudantes e público em
dades físicas, químicas e biológicas existentes geral. “É importante que essas pessoas possam mais bolsas
em átomos e moléculas. É o único do gênero saber quem foi e o que fez Crodowaldo Pavan
existente na América Latina e o primeiro ins- e quais os frutos de um centro de divulgação no país do
talado no hemisfério Sul. científica como este.”
A segunda foi o desenvolvimento de um que nos
centro de ciências para a juventude como Novos projetos 30 anos
vinha surgindo em vários outros países na Em 24 de junho do ano passado, no aniversá-
época, batizada de Estação Ciência. “O pro- rio de 22 anos da Estação e dois meses depois anteriores
fessor Pavan me chamou para coordenar o da morte de Pavan, foi feita uma homenagem
projeto e pediu para consultar cientistas de a ele e inaugurada a obra A mosca do professor
todo o Brasil com o objetivo de buscar ideias Pavan, do artista plástico José Roberto Aguilar.
e a concordância da comunidade científica”, Neste ano estão previstos um seminário e ou-
conta a professora de história Nely Robles Reis tros projetos sobre a memória do centro, que
Bacellar, primeira diretora da Estação Ciência. contam com a colaboração dos ex-diretores
O CNPq conseguiu com o governo de São Ernest Hamburger, Wilson Teixeira, Saulo de
Paulo a concessão de galpões no bairro da Barros e do atual vice-diretor Mikiya Mura-
Lapa, tombados pelo Conselho de Defesa do matsu, além de Nely, que já doou material e
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artís- deu seu depoimento sobre o início do projeto
tico e Turístico (Condephaat) e começou os e iniciativa de Pavan.
trabalhos de arquitetura e museologia para Nas décadas de 1990 e 2000, fora do gover-
adequar o local a um centro de ciência sem no, o geneticista continuou suas pesquisas em
descaracterizar os prédios. “O Pavan achou genética – que nunca abandonou –, mas sua
a localização ótima porque ficava próxima atuação institucional e política esteve voltada
do terminal de ônibus, de trem e do metrô mais para a divulgação científica e populari-
e facilitava a visitação de estudantes, o que zação da ciência. Em 2001 ajudou a fundar a
efetivamente ocorreu”, conta. Associação Brasileira de Divulgação Científica
Quando o governo de José Sarney termi- (Abradic) como decorrência de seu trabalho
nou, em 1990, Pavan saiu do CNPq e Nely no Núcleo José Reis de Divulgação Científica
da Estação Ciência. A USP negociou com a da Escola de Comunicações e Artes da USP,
agência federal a encampação do centro e deu onde foi um dos coordenadores. ■

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Reminiscências
do tempo das drosófilas
Homenagem póstuma a Crodowaldo Pavan
L U I Z E D M UND O M AG A LHÃ ES (*)

C reio que não houve, até a data de hoje, na


história da ciência brasileira, nenhum pes-
quisador que tivesse um currículo tão cheio de
trutor de biologia e, depois de formado, terceiro
assistente. Iniciou imediatamente seu doutora-
do, tendo Dreyfus como orientador.
realizações, com tão grande número de sucessos, Em 1942 Dreyfus foi procurado pelo repre-
como o do Crodowaldo Pavan. sentante da Fundação Rockefeller para a Amé-
Ele foi uma pessoa de muita sorte na sua rica do Sul, Harry Miller Jr. Com o evento da
vida profissional. Teve, digamos assim, três anjos Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939, os
da guarda da melhor qualidade, que sempre o países que recebiam auxílio financeiro da fun-
orientaram e o ajudaram muito, o que não quer dação não tinham mais condições de continuar
dizer, de forma alguma, que Pavan não tivesse fazendo pesquisa. Por esse razão, a fundação
trabalhado muito e se dedicado integralmente havia decidido passar a investir na América do
à sua vida profissional para conquistar tudo o Sul. Miller queria saber se Dreyfus estaria inte-
que conquistou. Os anjos foram André Dreyfus, ressado em ser ajudado, talvez recebendo uma
que o orientou no início da carreira, Harry Mil- bolsa de estudos para se aperfeiçoar nos Esta-
ler Jr., que, por 20 anos, deu suporte financeiro dos Unidos. Pavan, que estava acompanhando
para pesquisas, e Theodosius Dobzhansky, seu Dreyfus nesse encontro, vibrou de entusiasmo
segundo orientador e colaborador até 1956. com essa oportunidade de receber auxílio finan-
André Dreyfus, o catedrático do Departa- ceiro da Rockefeller. O assunto ficou para ser
mento de Biologia, do curso de história natu- decidido em uma próxima reunião, que ocorreu
ral da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras algum tempo depois. Dreyfus se recusava a ir
da Universidade da São Paulo (USP), foi um para fora do Brasil e preferiu que um professor
grande intelectual. Oriundo do Rio Grande do estrangeiro viesse para cá, o que seria bem mais
Sul, foi estudar medicina no Rio de Janeiro. produtivo. Após uma longa discussão, Miller
Conta a história que, para se sustentar, ofere- acabou concordando, como conta muito bem
cia um curso de histologia que, de tão bom e Pavan numa rica entrevista, muito interessante,
famoso, era frequentado até pelos próprios do- publicada em 2002 no livro 50 anos de CNPq
(*) Luiz Edmundo centes da Faculdade de Medicina. Ficou muito contados pelos seus presidentes.
Magalhães é professor famoso e sua fama logo extrapolou a cidade do Miller, então, tomou a iniciativa de sugerir
titular de genética e Rio. Era considerado um excelente didata e, o nome do eventual professor que seria convi-
evolução e ex-diretor além disso, foi um homem sempre atualizado dado a trabalhar na Biologia: “Vou falar com
do Instituto de Bio- que acompanhava de perto o desenvolvimento o professor Theodosius Dobzhansky!”.
ciências da USP. Foi
científico, especialmente nas áreas biológicas. Ele já estava no auge de sua carreira. Era
reitor e doutor honoris
causa da Universidade
Assim que se formou, foi convidado para vir um deus! O seu livro Genetics and the origin
Federal de São Carlos, lecionar na Escola Paulista de Medicina. Foi of species, lançado pela Columbia University
professor visitante do um dos poucos brasileiros, naquela época, a Press em 1937, teve, na primeira edição, duas
Instituto de Estudos ocupar uma cátedra na recém-criada Facul- impressões, uma em 1937 e outra em 1939; uma
Avançados da USP e dade de Filosofia da USP, justamente a cátedra segunda edição, em 1941 viria a ser seguida por
professor visitante da de biologia geral que compreendia o ensino da três reimpressões, duas em 1947 e outra em 1949.
Unifesp. Este trabalho genética e evolução. Foi um grande sucesso. Além disso, Dobzhansky
foi feito a convite da Foi ele quem aconselhou o jovem estudante foi um dos principais pesquisadores que intro-
Sociedade Brasileira de Pavan a ingressar no curso de história natural da duziram a drosófila como material experimental
Genética e apresentado USP, num encontro ocasional, no final de uma de pesquisa para os estudos de evolução e gené-
no simpósio “A pre-
conferência proferida por Dreyfus no anfiteatro tica de populações, o que se tornou uma grande
sença de Crodowaldo
Pavan na genética bra-
da Biblioteca Municipal, em São Paulo. E foi isso moda, adotada em todos os principais centros
sileira: memorial”, du- que Pavan fez, desistiu de ingressar na Politéc- de pesquisa do mundo. Ele era o papa!
rante o 55o Congresso nica para fazer o curso de história natural, onde Miller convenceu Dobzhansky a alterar a sua
Brasileiro de Genética, se licenciou e se bacharelou, em 1941. programação e aceitar o convite de vir ao Brasil.
em setembro de 2009 Nessa época, Pavan já havia se ligado ao O professor, porém, fez uma exigência: queria
(Águas de Lindoia). Departamento de Biologia, sendo primeiro ins- coletar na Amazônia. Assim em 1943 ele veio

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para o Departamento de Biologia Geral, então diferentes regiões. Foi assim que ficou acertada
instalado na alameda Glete. a realização do projeto com vários participan-
Coube a Pavan a tarefa de acompanhar o tes, não só do Brasil mas também de fora para
ilustre visitante em suas viagens pelo Norte. ser levado a efeito entre 1948/49, tudo com o
Foi uma excelente oportunidade para se fir- suporte financeiro da Fundação Rockefeller.
mar uma grande amizade entre os dois. Pavan Desse projeto resultaram nove publicações en-
gostava muito de fazer excursões; além do mais tre 1950/51.
era uma pessoa extremamente gentil e sabia Participaram do grupo de trabalho, além de
muito bem agradar a quem ele queria. Não é Dobzhansky, Pavan, Antonio Brito da Cunha,
pois de admirar que tivesse cativado completa- Antonio Cordeiro, do Rio Grande do Sul, An-
mente Dobzhansky que só se referia a ele como tonio L. Cavalcanti e Chana Malogolowkin, do
“Pavanzinho”. Rio de Janeiro, Sophie, a filha de Dobzhansky,
Foi assim que o uso das drosófilas nas pes- Martha Wedel, da Argentina, Hans Burla, da
quisas foi introduzido no Brasil, um campo de Suíça, Boris Spasky, que ficou trabalhando na
estudos ainda completamente virgem entre nós, Columbia University, e a alemã Marta Breuer,
Pavan, Brito
o que significa grandes facilidades e sucesso ga- técnica da Biologia. da Cunha
rantido. Dobzhansky ensinou os conhecimentos Em 1949 Newton Freire-Maia e Pavan pu- (em pé),
básicos de drosófila, a sistemática e a criação blicaram “Introdução ao estudo da drosófila”, Dobzhansky
das espécies em laboratório. Em 1943 Pavan um trabalho de divulgação, na revista Cultus, e sua filha,
já tinha os seus dois primeiros trabalhos de do Ibecc. Era uma obra de caráter didático, des- Sophie, na
pesquisa publicados, ambos em colaboração tinada a estudantes do curso secundário, mas Vila Atlântica
com Dobzhansky. Um deles sobre sistemática,
publicado em um boletim do Departamento
de Biologia, e outro, sobre os cromossomos das
ACERVO COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

espécies brasileiras de drosófila, publicado nada


mais, nada menos que no PNAS – Proceedings
of the National Academy of Sciences, uma das
revistas mais difíceis de se conseguir aceitação
de trabalho para publicação. Essa foi, sem dú-
vida, uma excelente estreia. E bastante rápida
também. A visita de Dobzhansky ao Brasil foi
relativamente curta, seis meses, mas não signifi-
cou que a cooperação entre ele e o departamento
tivesse acabado. Ao contrário. Na volta para
os Estados Unidos, Dobzhansky levou amos-
tras de espécies brasileiras, principalmente de
D. willistoni e D. prosaltans, para preparar
com elas linhagens com letais balanceados, que
seriam usadas nas pesquisas para determinar
a frequência de genes letais e estéreis em popu-
lações naturais.
Pavan, que concluiria o seu doutorado em
1944, recebeu da Fundação Rockefeller uma
bolsa de pós-doutorado de 19 meses. Ficou tra-
balhando, em 1945/46, parte no laboratório de
Dobzhansky, na Columbia University, seis meses
na Universidade do Texas, em Austin, e ainda
fez visitas a várias universidades do Canadá
patrocinadas pelo consulado canadense.
A partir daí, após a sua volta, Pavan e
Dobzhansky passaram a planejar um grande
projeto para ser realizado no Brasil. É preciso
lembrar que Dobzhansky estava extremamente
interessado em realizar pesquisas com espécies
brasileiras de drosófila, que exibem uma gran-
de variabilidade em comparação com as dos
Estados Unidos, que são bastante uniformes.
Era, pois, muito importante para o seu trabalho
científico ter dados comparativos dessas duas

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ACERVO HANS BURLA/COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

seus colegas de profissão e com a atenção


dos leigos. Todos sabiam que a sua doen-
ça era grave e que, a qualquer momento, o
pior poderia acontecer. Nesse caso, a cátedra
ficaria vaga e, pela legislação vigente, a mes-
ma até hoje, entraria em concurso público
imediatamente.
Foi assim que surgiu uma forte pressão
sobre Pavan para a eventual necessidade de
enfrentar o concurso. Dreyfus foi quem mais
o estimulou a se preparar rapidamente, a
fim de poder vir a ocupar o seu lugar como
professor catedrático. Era importante ter o tí-
tulo de livre-docente para ter chance no con-
curso. Era considerado difícil, um dos mais
importantes marcos da vida acadêmica, o que
significava maturidade científica ou, melhor
dizendo, intelectual. Aceitar esse desafio fez
com que Pavan passasse a se dedicar exclusiva
e intensamente ao preparo desse concurso,
que teve lugar em 1951.
Dreyfus, Chana, Dobzhansky, Martha Wedel, Antonio Cordeiro (sentados), O estado de saúde de Dreyfus não apre-
Hans Burla e Antonio Cavalcanti (em pé): época de grande entusiasmo sentava melhora significativa, mas ele não
deixava de comparecer ao departamento e
de participar, inclusive, de aulas. Com um
que fez enorme sucesso, mesmo entre professores secun- dos derrames que sofrera, ficou semiparalítico do lado
dários e estudantes de universidade. A edição se esgotou direito. Embora estivesse dispensado de ministrar as
e foram feitas cópias avulsas. Essa publicação ajudou suas aulas, lá ia ele assistir às de seus substitutos e não
a definir a vocação profissional de muitos alunos, que, se continha, cada vez que a exposição não lhe agradava.
por isso, se encaminharam para o curso de história Sem nenhuma cerimônia, interrompia o mestre e ele
natural. Considero essa uma relevante prestação à causa próprio passava a expor o tema, escrevendo no quadro-
do ensino, tão desamparado no Brasil. -negro, com grande dificuldade, com a mão esquerda.
Passada a grande agitação causada pela realização do Frequentemente Pavan interrompia a aula assistida
projeto conjunto com os vários participantes do Brasil e por Dreyfus para medir a sua pressão arterial, com me-
do exterior, o Departamento de Biologia voltou à calma, do que viesse a ocorrer uma forte alteração. As turmas
agora com o moral mais elevado. O projeto havia sido um eram pequenas e havia uma relação muito estreita entre
sucesso em todos os sentidos e o nome do departamento alunos e docentes, de modo que esses acontecimentos
era visto com grande respeito e, talvez, com uma ponta de eram aceitos com a máxima naturalidade. Éramos uma
ciúmes. Era um departamento bastante jovem e que, em família!
pouquíssimo tempo, apresentava, inquestionavelmente, Infelizmente não houve jeito e, em fevereiro de 1952,
um nível internacional. É verdade que a participação Dreyfus faleceu, causando uma enorme consternação
de Dobzhansky foi muito importante, determinando em toda a comunidade acadêmica. Ele era um excelente
o padrão científico do grupo, mas há de se considerar didata, dono de vasta cultura humanística e científica,
que a equipe de brasileiros, liderada principalmente por realmente uma pessoa muito especial que irradiava
Pavan, deu a resposta certa ao desafio que enfrentava. simpatia. Sua morte foi muito pranteada.
Foi um período de trabalho intenso, de grande entusias- Como era esperado, Pavan foi alçado ao cargo de
mo, principalmente pelo intercâmbio intelectual entre professor catedrático pro-tempore até que o concurso
os seus componentes. Vivia-se a ciência e, para os bons viesse a ser realizado. Como candidato ao cargo passou
pesquisadores, nada pode ser melhor e mais gratificante a se dedicar integralmente ao preparo do concurso. Sua
do que isso. tese se chamou “Relações entre populações naturais de
Terminada essa etapa, quando se esperava um Drosophila e o meio ambiente”. Um aproveitamento
período de paz e tranquilidade, eis que surgiu, para integral de quase todas as coletas que havia feito nas
todos, uma grande preocupação. O querido mestre, o inúmeras excursões em várias partes do Brasil.
grande condutor de todo o processo, o professor Dreyfus, Um concurso público é sempre um risco, ninguém
começou a apresentar um sério problema de saúde. pode estar seguro do que irá acontecer. É, pois, sempre
Sua pressão sanguínea ficou alta e ele ficou sujeito a bom prevenir. Pavan achou que, se Dobzhansky, um
derrames, o que vez ou outra ocorreu, obrigando-o a voto seguro para ele, estivesse presente fazendo parte
se internar no Hospital das Clínicas, onde foi cuida- da banca, poucos examinadores teriam a petulância
dosa e carinhosamente tratado pelos vários amigos, de ir contra a sua posição.

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A faculdade não se opôs a incluí-lo na banca. Bahia, e Mirtes Nilo Bispo, de Pernambuco. Os Pavan foi um
Expirado o prazo de inscrição dos candidatos demais membros eram todos do Departamento
ao concurso, constatou-se, com certo alívio, que de Biologia. catedrático
apenas Pavan estava inscrito. Só isso já era me- O projeto teve início em 1956. Infelizmente
tade da batalha ganha. esse não foi um bom momento. Logo no início bastante
O concurso foi longo, com várias provas e dos trabalhos, quando a equipe toda se reuniu,
diversas cerimônias às quais, mais tarde, em houve um sério desentendimento de ideias en- liberal, que
carta aos amigos, Dobzhansky se incumbiu de tre Frydenberg e Dobzhansky, que causou um não quis fazer
fazer uma crítica ferina. O resultado foi um grande mal-estar. Era difícil compreender que
grande sucesso, Pavan foi aprovado e se tornou um jovem pesquisador, recém-doutorado, ti- uso das
o professor catedrático mais jovem da USP, em vesse a petulância de se contrapor ao célebre e
1953, com apenas 33 anos. Não houve nenhum famoso velho professor Theodosius Dobzhansky, prerrogativas
favor na aprovação do candidato. Pavan, em- tão reverenciado no mundo todo. Não tenho
bora bastante jovem para concorrer a uma cá- dúvida de que, no caso, o jovem dinamarquês autoritárias
tedra, havia cumprido tudo o que é necessário estava coberto de razão. A afirmativa da época, do cargo. Foi
para atender às exigências do concurso. Além que Dobzhansky fez em sua defesa, era que ele
do mais, se fôssemos considerar os possíveis can- só reconhecia dois tipos de pesquisa científica: um período
didatos, salvo talvez o professor Antonio Brito as pioneiras e as não pioneiras. As pioneiras
da Cunha, que fidalgamente abriu mão do seu eram boas e as outras não. A pesquisa propos- pacífico,
direito de se inscrever, não havia mais ninguém ta era pioneira e, consequentemente, era uma
capacitado ao cargo. A justiça foi feita. boa pesquisa. É claro que esse argumento não agradável
No tempo da alameda Glete, o expediente se sustentava, como foi provado na prática, pois e produtivo
de trabalho era de segunda a sexta-feira, das os trabalhos realizados tiveram resultados que
8 até as 18 horas e, aos sábados, das 8 às 12 nem foram publicados. Esse episódio poderá ser
horas, frequentemente estendido até as 18 ho- mais bem esclarecido por alguém com pendor
ras. Além disso, era comum que aos domingos, pela história das ciências. Aliás, eu penso que
de manhã, se desse uma passada pela Biologia um dia deveria haver uma reavaliação crítica
para encontrar os colegas e se programar para da obra de Dobzhansky, que foi tão importante
a semana seguinte. À noite também era costu- em nível mundial para os estudos da teoria da
me trabalhar. Na verdade, o departamento era evolução.
como se fosse a nossa própria casa. Havia uma Findo esse período do projeto multi-ins-
grande harmonia entre todos os membros que, titucional, as coisas voltaram ao normal. O
naquele tempo, não eram muitos. Ao todo, umas tempo da alameda Glete estava com os seus
15 pessoas. Depois foi aumentando. dias contados. As obras da Biologia na Cidade
Pavan foi um catedrático bastante liberal, Universitária estavam prestes a terminar. Em
que não quis fazer uso das prerrogativas auto- 1960 o departamento se mudou para lá, mas
ritárias do cargo. Pode-se dizer que esse foi um nunca mais foi o mesmo. ■
período extremamente pacífico, agradável e pro-
dutivo. As pesquisas com drosófila continuavam
agora com um objetivo a mais, estudar o efeito
ACERVO COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

das radiações em populações naturais. Pavan


e Dobzhansky empreenderam a realização de
um novo projeto no departamento, com a par-
ticipação de vários pesquisadores estrangeiros.
Dobzhansky tinha em mente testar algumas
hipóteses novas que ele havia levantado e, para
isso, necessitava de várias populações naturais
isoladas. Pavan lhe ofereceu as ilhas de Angra
dos Reis, um verdadeiro paraíso. Mais uma vez
a Rockefeller foi acionada e arcou com o finan-
ciamento completo do projeto.
Além de Dobzhansky, foram convidados os
seguintes pesquisadores do exterior: Charles
Birch, da Austrália, coautor com Andrewartha
de uma obra recém-publicada The distribution
and abundance of animals, que se tornou muito
famosa pelas informações coligidas; Bruno Bata-
glia, da Itália, e Ove Frydenberg, da Dinamarca.
Do Brasil foram convidados Cora Pedreira, da Prédio da alameda Glete, onde funcionou o Departamento de Biologia

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>> LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

Na busca por fontes de energia

PAINÉIS CINTILANTES
MURAT OKANDAN/SANDIA

renováveis cada vez mais efi-


cientes, pesquisadores do La-
boratório Nacional Sandia, dos
Estados Unidos, criaram um ti-
po de célula solar fotovoltaica
de dimensões micrométricas
que poderá trazer soluções
mais eficientes do que as exis-
tentes no mercado. A grande
vantagem do novo dispositivo,
que lembra minúsculas partí-
culas cintilantes usadas em
decoração conhecidas como
glitter, é que ele emprega 100
vezes menos silício para pro-
duzir a mesma quantidade de
energia elétrica. Os primeiros
testes mostraram uma eficiên-
cia de conversão da energia
solar em elétrica de 14,9%,
Representação artística de microcélulas solares de silício índice que varia nos módulos
solares comerciais de 13% a
20%. As microcélulas solares
> Biocombustível também chamada de têm entre 14 e 20 micrômetros de espessura – cerca de um
da fotossíntese alga azul ou azul-esverdeada. quinto da espessura de um fio de cabelo – e são 10 vezes mais
Os pesquisadores, liderados finas do que as células solares convencionais. Por serem tão
Uma bactéria geneticamente pelo professor James Liao, pequenas, além de compor painéis solares, essas microcélulas
modificada foi criada na primeiro aumentaram poderiam ser usadas em superfícies de veículos, prédios e
Universidade da Califórnia a quantidade da enzima roupas. Segundo seus inventores, o processo de fabricação
em Los Angeles (Ucla), RuBisCo da cianobactéria, usa o mesmo princípio dos dispositivos microeletromecânicos,
nos Estados Unidos, para que responde pela conhecidos pela sigla Mems, o que permitirá ter controles inte-
consumir dióxido de ligentes e sistemas de armazenamento de energia na forma de
carbono (CO2) e liberar chip, facilitando a integração com a rede de energia elétrica.
o combustível líquido
isobutanol, que apresenta
um bom potencial como fixação de CO2. Depois > Sequência
substituto da gasolina. juntaram genes de outros expressa
A conversão é feita pela microrganismos para
energia do sol, por meio construir uma bactéria O trabalho de sequenciar
da fotossíntese. O ponto de que consumisse dióxido genes poderá se tornar mais
partida para chegar a esse de carbono e, pela rápido e barato segundo
novo método de produção fotossíntese, produzisse um grupo de pesquisadores
de combustível foi a o gás isobutiraldeído. das universidades de Boston
utilização da cianobactéria A bactéria pode produzir o e de Nova York, nos Estados
Synechococcus elongatus, isobutanol diretamente, mas Unidos, e da Universidade
os pesquisadores decidiram, Bar-llan, em Israel. Eles
por enquanto, usar um desenvolveram um método
UCLA

Cultura de
bactéria modificada catalisador para converter que usa uma quantidade
geneticamente o gás em isobutanol. reduzida de DNA, além de

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eliminar a fase de ampliação > Memória
dessa molécula. Sob a flexível
coordenação do professor
Amit Meller, de Boston, Uma memória flash

FUJITSU LABORATORIES
a equipe possibilitou a totalmente feita de
detecção de moléculas de polímero acaba de ser
DNA por meio da passagem inventada por um grupo
delas através de nanoporos de pesquisadores da
de nitreto de silício Universidade de Tóquio,
presentes em uma estrutura no Japão, do Instituto Max
semelhante a um chip. Planck, na Alemanha,
A tecnologia utiliza campos e da Universidade de Linz,
elétricos para colocar longos na Áustria. Esse tipo de
cordões de DNA em memória eletrônica é Futuro
nos transistores
poros de quatro usada em câmeras digitais,
de grafeno
nanômetros de largura pen-drives e tocadores
como se fosse uma de MP3. A nova tecnologia,
agulha passando um fio baseada em transistores O grafeno, material semicondutor feito de folhas de

CIRCUITOS AVANÇADOS
num tecido. Nos orifícios orgânicos, utiliza compostos carbono com apenas um átomo de espessura, é a
são detectadas as bases à base de carbono sobre aposta da empresa japonesa Fujitsu para a produção
químicas que compõem substratos plásticos, finos de circuitos eletrônicos. Esse material é considerado
um gene sem a necessidade e flexíveis. A novidade abre por muitos pesquisadores como o sucessor do silício
de ampliar as moléculas. caminho para a produção quando os limites de miniaturização dos atuais com-
Os pesquisadores preveem de dispositivos eletrônicos ponentes microeletrônicos forem atingidos. A Fujitsu
que o sequenciamento flexíveis como os tocadores conseguiu comprovar a viabilidade de fabricar chips de
de um genoma com esse de música. Os pesquisadores grafeno em escala industrial empregando equipamen-
método passe de 800 para demonstraram que o tos e processos normalmente utilizados pela indústria
8 mil pares de base em protótipo – um conjunto de semicondutores, como, por exemplo, a técnica de
cada molécula de DNA. de 26 por 26 células de deposição de vapor químico em baixa temperatura.
memória – mantém Os pesquisadores da empresa reduziram a tempera-
os dados armazenados
EDUARDO CESAR

tura de fabricação do grafeno dos habituais 800ºC a


mesmo na ausência de 1.000ºC para 650ºC, o que permitiu a construção de
energia, como acontece com transistores sobre vários substratos. Uma importante
as memórias produzidas característica do grafeno, material descoberto apenas
de semicondutores em 2004 na Inglaterra, é sua elevada mobilidade de
inorgânicos como o silício. elétrons comparada com o silício. Essa característica
Outra vantagem das poderá proporcionar uma nova geração de transistores, bem
memórias orgânicas mais rápidos do que os atuais. O uso do grafeno pode ser tanto
frente às tradicionais é em camada única (uma espécie de folha de átomos de carbono)
a possibilidade de serem quanto em multicamadas, sempre em escala nanométrica.
processadas em baixas
temperaturas.
na China, consiste de uma é detectada por um aparelho
tira de papel impregnada que apresenta o resultado
> Sensor de papel de nanotubos de carbono em apenas 12 minutos.
e nanotubos e de anticorpos para a O sensor tem o tamanho
toxina microcistina-LR de uma caixa de fósforos e
A detecção de produzida por bactérias sua sensibilidade se equipara
microrganismos na água e que pode ser danosa ao à de outras técnicas como
potável ganhou um fígado. Quando o papel é espectrometria de massa.
novo sensor. O invento mergulhado num corpo de O dispositivo pode detectar
criado por uma equipe água contaminada, a toxina outras toxinas com a
de pesquisadores da se une aos anticorpos, troca do anticorpo. Agora
Universidade de Michigan, afetando a condutividade os inventores buscam
DNA: sequenciamento nos Estados Unidos, dos nanotubos. Essa parceiros para colocar
rápido sem ampliação e da Universidade Wuxi, alteração da condutividade a tecnologia no mercado.

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>> LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

“Coincidência, acidente, aca-

APARECEU O MICKEY

OSWALDO ALVES/IQ-UNICAMP
so ou não, a verdade é que
nano Mickeys estão lá e eles
estão sorrindo”, é assim que
o professor Oswaldo Alves,
do Instituto de Química (IQ)
da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), se refe-
re à inusitada figura que apa-
receu em um experimento e
foi identificada por meio de Nanofio com
um microscópio eletrônico nanopartículas
de transmissão. Coordena- de prata e
a figura inusitada
dor do Laboratório de Quími-
ca do Estado Sólido (LQES) e
vice-coordenador do Instituto
Nacional de Ciência, Tecnolo-
gia e Inovação em Materiais das Nações Unidas (Unesco)
Complexos Funcionais, Alves e Agência Internacional
viu as imagens dos ratinhos de Energia Atômica
depois de preparar em uma autoclave nanofios de vanadato > Óptica em (IAEA). Mendonça
de prata (AgVO3) decorados com nanopartículas de prata, uma desenvolvimento ganhou o prêmio de
nanoestrutura com ação antibacteriana quando incorporada a US$ 1 mil e convite para
vários materiais como plásticos, tecidos e tintas. Um close em Um prêmio internacional uma palestra no congresso
uma parte do nanofio revelou a imagem de Mickey Mouse, famo- para pesquisadores com da ICTP que acontece
so personagem de Walt Disney. “Um deles estava direcionado menos de 40 anos que se neste mês de fevereiro na
para a frente e permitiu uma melhor visualização, mas existem destacam pelos estudos Itália. O reconhecimento
outros envolvendo nanopartículas de prata”, diz Alves. O nano na área de óptica em países é pelas pesquisas do
Mickey se perfila ao lado de outras nanofiguras que se formam em desenvolvimento foi professor na área de óptica
espontaneamente como os nanotubos ou são construídas por conquistado pelo professor de pulsos ultracurtos
pesquisadores como nanopinças, nanorrádios, nanocarros e Cleber Renato Mendonça, de laser, que inclui a
nanosseringas. “A diferença é que a fama do Mickey pode con- do Instituto de Física de produção de estruturas
tribuir para popularizar a nanotecnologia, especialmente entre São Carlos da Universidade nanométricas (leia
as crianças”, diz Alves, que contou no experimento com o aluno de São Paulo (USP). O reportagem na edição 165
de doutorado Raphael Dias Holtz e com o professor visitante Prêmio Gallieno Denardo de Pesquisa FAPESP).
Antônio Gomes de Souza, da Universidade Federal do Ceará, 2010 foi oferecido pela
ambos financiados pela FAPESP. Para a ciência, segundo Alves, Comissão Internacional
IFSC-USP

a figura do rato famoso faz surgir novas perguntas. “Ela nos para a Óptica (ICO, na
traz algumas questões inerentes à nanoescala: é o nanomundo sigla em Inglês) e pelo
imitando o macromundo ou o macromundo que imita o nano- Centro Internacional de
mundo? O Mickey é uma imagem acidental? Como podemos Física Teórica Abdus Salam
controlar e entender essa auto-organização? Nós conhecemos (ICTP), com sede em
muito pouco sobre os mecanismos que levam à formação des- Trieste, na Itália, e mantido
ses sistemas. O que sabemos é que repetindo o experimento o pelo governo italiano,
Mickey aparece. Isso é importante porque a reprodutibilidade Organização Cultural,
pode levar à fabricação controlada de sistemas complexos.” Científica e Educacional
Para o professor Oswaldo Alves, o aparecimento do Mickey é
no mínimo curioso e parece anunciar a chegada de sistemas
de nanoestruturas e sistemas de nano-objetos. “Ciência e arte Pulsos ultracurtos
estão novamente de mãos dadas.” de laser moldam objetos

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Robodek: o Prêmio Finep de Inovação
conhecimento na categoria Pequena
em hardware Empresa. A caixa, baseada
e software
em compostos com
nanopartículas de prata,
evita a contaminação de
produtos odontológicos.
“A atividade antimicrobiana
não permite contaminações
XBOT

cruzadas, quando o
dentista, ao manusear os
> Caixinha pinos, leva bactérias para
antimicrobiana a caixa onde estão peças
que serão usadas por outros
> Auxiliar Uma embalagem plástica pacientes”, diz Lygia Madi,
didático para acondicionar pinos gerente de desenvolvimento
para reconstrução de produtos da empresa.
Sobre quatro rodas, o movimento e, por meio de dentes com propriedades A caixa foi desenvolvida
Robodek se movimenta de um software, transmite antimicrobianas que em uma parceria da equipe
suavemente e pode ser útil para o robô a informação”, eliminam bactérias de pesquisa da Angelus
tanto como uma ferramenta diz Antônio Valério Netto, e fungos foi apresentada com pesquisadores
didática em projetos de diretor de tecnologia da pela empresa Angelus, da Universidade Federal de
pesquisa e aprendizado Cientistas. Em janeiro de Londrina, no Paraná, São Carlos e Universidade
sobre programação e já existiam pedidos para o que em dezembro ganhou Estadual de Londrina.
maquinário robótico como robô de seis universidades,
em serviços de segurança como as federais de Sergipe,
ou mesmo para levar carga Campina Grande (PB) e Uma esfera microscópica de polímero, menor que um grão de
de até 10 quilos. Ele é Viçosa (MG). O Robodek sal, capaz de interromper o fluxo de sangue para um tumor é a
uma criação da empresa é fruto de um projeto proposta de pesquisadores do Laboratório de Modelagem, Si-
Cientistas Associados, iniciado em 2007 mulação e Controle de Processos do Instituto de Pós-Graduação
de São Carlos, no interior do programa Pesquisa e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do
paulista, para outra empresa Inovativa em Pequenas Rio de Janeiro. “Interrompido o fluxo de sangue, o tumor morre
são-carlense, a Xbot, Empresas (Pipe) da FAPESP. ou diminui de tamanho”, diz o doutorando Marco Oliveira. A
que fará a fabricação e técnica, chamada de emboliza-
comercialização desses ção, já é utilizada em oncologia
robôs. O conceito do e ganha agora a possibilidade
MINÚSCULAS GUERREIRAS
MARCO OLIVEIRA/COPPE-UFRJ

Robodek é o de ser uma de nacionalização com novos


plataforma em que é materiais e processos de pro-
possível uma programação dução para ser oferecida no
de acordo com as mercado brasileiro a preços
necessidades educativas, menores que a importada. A
de pesquisa ou comercial. patente da esfera foi deposi-
Entre as facilidades que tada no Instituto Nacional de
apresenta há a possibilidade Propriedade Industrial (INPI)
de ser controlado de forma em parceria com a empresa
remota por meio de um carioca First Line Medical que
smartphone. “O robô participou do projeto coor-
possui um acelerômetro denado pelo professor José
[sensor que mede a Carlos Pinto. Foram realizados
velocidade] e outros testes com pacientes humanos
sensores como bússola GPS, com bons resultados. O pró-
temperatura e umidade, ximo passo é incorporar um
além de ultrassom e medicamento quimioterápico
infravermelho. Quando nas esferas, para potencializar
o celular é movido, o a ação da técnica no tratamen-
acelerômetro capta esse Esferas capazes de combater um tumor to de tumores.

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>TECNOLOGIA

ENGENHARIA DE MATERIAIS

Requinte sobre a
matéria-prima
Indústria paulista de revestimentos
conquista qualidade com inovações nos
processos e esmaltes especiais
Dinorah Ereno | fotos Eduard o Cesar

O
Brasil tornou-se o segundo maior fabricante mundial de
revestimentos cerâmicos, segmento que engloba pisos e
azulejos, ao atingir a produção de 713 milhões de metros
quadrados em 2008, à frente de tradicionais fabricantes
como Itália e Espanha e atrás apenas da China. Desse to-
tal, 485 milhões de metros quadrados foram produzidos
no estado de São Paulo, sendo que 400 milhões de metros
quadrados, correspondentes a 56% da produção nacional, saíram
dos fornos de empresas do Polo Cerâmico de Santa Gertrudes, que
abrange, além da cidade de Santa Gertrudes, os municípios de Cor-
deirópolis, Araras, Iracemápolis, Ipeúna e se estende por Rio Claro,
Limeira e Piracicaba. “A grande vantagem da região, representada
por 47 empresas do setor cerâmico, está na excelente qualidade da
matéria-prima, uma argila de cor vermelha que é plástica, portanto
fácil de ser moldada, e refratária ao mesmo tempo”, diz o engenheiro
José Octavio Armani Paschoal, especialista em cerâmicas especiais e
presidente do Centro Cerâmico do Brasil (CCB), instituição certifi-
cadora de qualidade criada pela Associação Nacional dos Fabricantes
de Cerâmica para Revestimento (Anfacer).
O fato de a região ter uma argila de primeira linha é uma vanta-
gem indiscutível, mas para que ela chegasse a ocupar um lugar de
destaque no cenário nacional foi preciso um trabalho sistemático de
pesquisa e desenvolvimento realizado por pesquisadores paulistas
com apoio da FAPESP na modalidade Consórcios Setoriais para
Inovação Tecnológica (Consitec). O projeto envolveu desde a escolha
de matérias-primas mais adequadas até a criação de novas tintas e
esmaltes especiais de alta dureza e resistência ao desgaste.
Quando o projeto teve início, no final de 2001, o produto cerâmi-
co para revestimento da região apresentava baixa qualidade técnica.

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Forno para ensaios do laboratório do Centro Cerâmico do Brasil

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Processo de produção cerâmica automatizado: etapas de prensagem e esmaltação de peças

“Atualmente, pelo menos 98% de cada A produção de porcelanato – produ- das conquistas contabilizadas ao final
lote produzido se enquadra na classe A, tos cerâmicos especiais que englobam do projeto em agosto de 2009. “Quando
o que significa que as peças não apre- desde pastilhas até peças de grandes di- o projeto teve início, apenas três em-
sentam defeito nenhum”, diz Paschoal, mensões com alto valor agregado usada presas paulistas fabricavam pastilhas de
pesquisador recentemente aposentado em pisos e placas para fachadas de edifí- porcelana, que são peças de pequenas
do Instituto de Pesquisas Energéticas e cios – pelas indústrias paulistas foi uma dimensões para decoração e revesti-
Nucleares (Ipen). Em 1997, no máximo mento”, diz a pesquisadora Ana Paula
50% do que era produzido pelas cerâmi- Margarido Menegazzo, superintendente
cas paulistas podia ser classificado como do CCB e coordenadora de duas linhas
classe A. O restante era classificado como > O PROJETO
de pesquisa no projeto. “Quando foi fi-
classe B – peças com pequenos defeitos nalizado, 13 empresas já fabricavam o
Consórcio setorial da indústria
na superfície – ou C, com defeitos mais de cerâmica para revestimento porcelanato.” O produto divide-se em
graves. Na época, o Brasil produzia 200 do estado de São Paulo: inovação duas categorias: porcelanato técnico, de
milhões de metros quadrados de re- tecnológica e competitividade - altíssima qualidade, que concorre com
vestimentos cerâmicos por ano. Santa nº 01/10783-5 as pedras naturais e não tem esmalte na
Catarina respondia por 70% do total superfície, e o esmaltado.
MODALIDADE
produzido e São Paulo por 30%. “Como Das sete linhas de pesquisa conduzi-
Programa Consórcios Setoriais
a cerâmica tinha um bom preço, mesmo para Inovação Tecnológica das durante o Consitec, três tiveram co-
com as perdas as empresas conseguiam (Consitec) mo foco o porcelanato e contemplaram
se manter.” Uma situação bem diversa da o desenvolvimento de matérias-primas
enfrentada hoje, com todas as indústrias COORDENADOR para fabricação dessas peças, o estudo
fabricando produtos com padrão inter- JOSÉ OCTAVIO ARMANI PASCHOAL – da tecnologia de processo de fabricação
nacional. “Como a margem de lucro ho- Ipen/CCB e a formulação de esmaltes especiais. As
je é pequena, com grande concorrência INVESTIMENTO
outras linhas de pesquisa envolveram
no setor, a empresa corre risco de fechar R$ 586.715,13 (FAPESP) desde inovações na área de ensaios para
se mais do que 2% das peças apresenta- avaliação de produtos, como o desen-
rem defeitos”, diz Paschoal. volvimento de uma metodologia para

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lução, é preciso fazer uma adaptação a presidência do CCB em 1997 em fun-
dos insumos utilizados nessa tarefa”, diz ção da sua experiência no Ipen. “Nessa
Eduardo Quinteiro, gerente de projetos época, a influência de Santa Catarina
do CCB e coordenador de quatro linhas era muito grande.”
de pesquisa no projeto Consitec. Prova disso é que, mesmo com uma
No caso dos esmaltes decorativos argila totalmente diferente da encontra-
para formar os desenhos de um piso da em Santa Catarina, fácil de moldar
ou azulejo, por exemplo, eles têm que mas sem resistência mecânica, as cerâ-
ser depositados no ponto exato e não micas da região de Santa Gertrudes du-
podem se espalhar. “As empresas pau- rante algum tempo utilizaram um pro-
listas de cerâmica trabalham com uma cesso similar, baseado no italiano. “Em
técnica decorativa que utiliza poucas ca- Santa Catarina, é preciso adicionar na
madas de tinta para formar os desenhos produção materiais estruturantes como
com a melhor resolução possível”, diz feldspato e quartzo, exigindo processo
Quinteiro. Durante o projeto foi feito de moagem úmido e posterior retirada
ainda um mapeamento das diferenças de água por secagem ”, explica Paschoal.
de tonalidade observadas pelo olho hu- A argila vermelha que aflora próximo à
mano, que serviu como referência para superfície na região de Santa Gertrudes
a elaboração de uma metodologia pa- já apresenta a resistência mecânica do
ra melhorar o uso das tintas cerâmicas produto final. “Isso muda completa-
utilizadas pelas indústrias do setor. mente as características do processo, que
é feito por moagem a seco”, diz Paschoal.
Certificação cerâmica - Alguns en- Em vez de várias etapas, basta uma úni-
saios foram feitos nos laboratórios do ca. Isso significa um custo industrial em
Centro Cerâmico do Brasil e outros torno de 50% mais baixo do que o das
no Laboratório Interdisciplinar de cerâmicas do Sul do país.
Eletroquímica e Cerâmica (Liec) da Além da tecnologia da fabricação,
Universidade Federal de São Carlos como parte do projeto Consitec, foi feito
(UFSCar), nos laboratórios da Escola um levantamento dos produtos fabri-
Politécnica da Universidade de São cados em todo o território nacional.
Paulo e no Ipen, parceiros no projeto. “Com base nessas informações elabo-
Embora tenha sido criado em 1993 ramos, junto com o setor, uma norma
verificação da espessura da peça que como organismo certificador, só com técnica específica para o porcelanato, a
diminuiu as diferenças de resultados o apoio do projeto Consitec e outros da NBR 15.463, publicada em 2007”, diz
entre os laboratórios, pesquisas na Finep e do CNPq, o CCB pôde exercer Ana Paula. A norma contém requisitos
área de tecnologia de assentamento de plenamente essa função, quando de técnicos obrigatórios e exigidos em todo
revestimento cerâmico, até um estudo um único laboratório transformou-se o mundo como resistência mecânica,
do escoamento das tintas dos materiais em um centro de inovação tecnológica resistência ao desgaste, a produtos quí-
usados na decoração dos revestimentos em cerâmica. “Fizemos trabalhos de micos e baixa absorção de água. “Essa
cerâmicos, área da mecânica chamada levantamento de qualidade e de ajuste norma, pioneira no mundo, já foi apre-
de reologia. “Esse estudo é necessário das empresas para que elas conseguissem sentada ao Comitê Internacional ISO
porque, como as técnicas de aplicação atender às normas e pudessem receber a 189, que trabalha com normas mundiais
de decoração estão em constante evo- certificação”, diz Paschoal, que assumiu para revestimento cerâmico.” ■

Porcelanatos decorados produzidos por indústrias de Santa Gertrudes

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>
Cerâmica
competitiva
Parceria entre indústrias e centro
de pesquisa resulta em produtos
com menos perdas e mais qualidade
Dinorah Ereno, de Pedreira

N
a cidade de Pedreira, localizada a 130 quilômetros de
São Paulo, as principais ruas de comércio ostentam
em suas vitrines uma grande variedade de objetos de
decoração feitos de cerâmica, como miniaturas, pra-
tos, copos e pinguins coloridos em vários formatos
e tamanhos também conhecidos como produtos de
louça. “Praticamente toda a cidade vive em função da
cerâmica”, diz o professor Elson Longo, coordenador do Centro
Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos
(CMDMC), um dos 11 Centros de Pesquisa, Inovação e Difu-
são da FAPESP, que desenvolve há quatro anos um projeto de
parceria com 29 empresas do município para que elas possam
produzir peças de melhor qualidade, baseadas no conhecimento
acadêmico, com o mínimo de perdas no processo produtivo. “Co-
meçamos fazendo um controle da qualidade da matéria-prima”,
diz a pesquisadora Shirley Cosin, convidada pelo CMDMC para
coordenar o projeto na cidade de Pedreira e que durante 28 anos
trabalhou na indústria cerâmica.
No início desse processo, por exemplo, as empresas recebiam
a argila com excesso de ferro magnético. “Quando a argila tem
ferro em sua composição as peças ficam com pintas pretas e
com um defeito no centro da peça chamado de coração negro,
Canecas
que só aparece após o processo de queima”, explica Longo, do depois de
Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) secas, antes
de Araraquara. Para avaliar se a argila tem realmente resíduos de irem
de ferro são necessários alguns ensaios feitos no Laboratório para a etapa
Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec) da Uni- de queima
versidade Federal de São Carlos (UFSCar), ligado ao CMDMC. no forno
FOTOS EDUARDO CESAR

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Porcelanas recebem filetes de tinta à base de ouro (esq.) e canecas são moldadas na prensa

“Por amostragem, se alguns lotes de de áreas de várzea. “Esbarramos em um


> O PROJETO argila não estiverem adequados aos grande problema, que é a falta de qua-
parâmetros previamente estabelecidos lidade do produto, composto por 30%
Centro Muldisciplinar para no ato da compra, eles são devolvidos de umidade, 20% de turfa e de 10% a
o Desenvolvimento de Materiais
ao fornecedor”, diz Shirley. 15% de areia”, diz Longo. Ou seja, ape-
Cerâmicos - nº 98/14324-0
Outro problema recorrente encon- nas 40% da matéria-prima comprada
MODALIDADE trado era o tamanho da granulometria por um preço que varia de R$ 500,00
Centro de Pesquisa, Inovação do quartzo e do feldspato, matérias-pri- a R$ 600,00 a tonelada é efetivamen-
e Difusão (Cepid) mas que, junto com a argila e o caulim, te aproveitada. Como para o produto
compõem a massa básica usada para fa- atingir outro patamar de qualidade é
COORDENADOR
bricação das peças cerâmicas. Os forne- preciso adotar técnicas apropriadas de
ELSON LONGO – Unesp
cedores nunca respeitavam o tamanho extração e beneficiamento – o que leva
INVESTIMENTO dos grãos estipulado pelas indústrias. tempo –, a alternativa encontrada pelos
R$ 1 milhão por ano (FAPESP) “Em vez de grânulos menores, chama- pesquisadores foi sugerir às empresas
dos tecnicamente de malha 200, eles que passassem a comprar uma argila im-
recebiam os de malha 80”, relata Shirley. portada da Inglaterra, com preço idên-
Isso causava sérios problemas, porque tico ao da nacional, que já está sendo
grãos maiores causam defeitos nas pe- usada por outras empresas no Brasil. “A
ças cerâmicas. “Desde que foi instituído vantagem da matéria-prima importada
um controle do material recebido pelas é a qualidade, que resulta em redução
empresas, houve uma grande melhora”, de etapas no processo produtivo”, diz
diz Shirley. “Antes a argila que vinha era Shirley. “Não é preciso moer nem lavar a
completamente cinza e hoje já chega argila, basta pesar e jogar no moinho.”
branca, mais apropriada para a pro-
dução de cerâmica artística.” Queima econômica - Como a argila
Toda a argila utilizada em Pedreira é pura, há também um ganho no pro-
é comprada de um único fornecedor, cesso de queima. “A queima, que era
da cidade de São Simão, também no feita entre 1.280 e 1.320 graus Celsius,
interior paulista, de onde ela é extraída dependendo da quantidade do quartzo

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uma grande encomenda”, diz Shirley. eram de tamanhos maiores. “Passamos
O diretor e proprietário da empre- a fazer um controle sobre o tamanho
sa Porcelanas Lu, Valdemir Pansani, das partículas e resolvemos o proble-
relata que com o apoio do projeto ma”, diz. Recentemente, uma das fábri-
conseguiu reduzir as perdas de 40% cas começou a apresentar problemas de
para 10%. “Esse projeto veio na hora descolamento em 80% dos cabos das
certa, porque eu estava enfrentando canecas após o processo de colagem,
muitas dificuldades e a empresa corria que é feito manualmente. “Isso ocorria
sério risco de fechar”, diz Pansani. A porque a mistura não tinha homoge-
partir do momento em que foi feita neidade”, relata. Ou seja, o processo de
uma triagem do material, as perdas já fazer a cola na viscosidade correta não
foram reduzidas. “O trabalho de acom- era seguido à risca.
panhamento e controle da massa e do A ideia de trabalhar em colaboração
esmalte melhorou muito a qualidade com o centro cerâmico partiu do pre-
do produto e, com isso, consegui ser feito Hamilton Bernardes Junior, que
mais competitivo.” resolveu propor a parceria ao conhecer
os bons resultados de um projeto seme-
Trabalho ininterrupto - A empresa, lhante desenvolvido com as cerâmicas
fundada em 1986, tem 80 funcionários de Porto Ferreira. Além dos 29 parti-
que se revezam em várias funções durante cipantes do projeto, outras centenas
24 horas por dia. Um dos carros-chefe de pequenas e microempresas do se-
da Porcelanas Lu são os pinguins, pro- tor cerâmico também se beneficiam do
duzidos em 70 modelos diferentes, que conhecimento repassado. Na avaliação
vão desde o tradicional até os mestres- dos envolvidos no projeto, essa parceria
-cucas, músicos e famílias. A empresa não tem data para terminar, porque o
fabrica ainda miniaturas, canecas com conhecimento técnico transferido para
logotipos de empresas, jogos de xícaras, as empresas tem que ser constantemen-
vasos e pratos decorativos. O objetivo te reavaliado. “Mesmo com os avanços
do empresário, que também tem duas técnicos obtidos após quatro anos do
lojas que vendem os produtos que fa- acordo firmado com a prefeitura da
que vinha na argila, agora é feita com brica na cidade, é reduzir as perdas para cidade, ainda há muita coisa a ser fei-
uma temperatura constante de 1.200 cerca de 5%. ta”, diz Longo. Para este ano, a Câmara
graus”, diz Shirley. O ganho de 80 graus Após o processo de queima, as pe- Municipal aprovou uma verba de R$ 70
na temperatura representa uma signifi- ças são decoradas com decalques ou mil para o projeto. Uma das ideias em
cativa economia nos custos do processo. estampadas pela técnica da serigrafia. gestação é a criação de uma coopera-
A diminuição da temperatura também Esses processos também são acompa- tiva para produção de massa cerâmica
significa peças com menos retrações e, nhados de perto pelos pesquisadores. composta de argila e os demais com-
consequentemente, defeitos. “Um dos pigmentos utilizados para ponentes, o que resultaria em ganhos
No início, as indústrias ficaram imprimir desenhos nas peças estava no processo industrial. “Com a criação
reticentes com a ideia de importar a provocando uma série de defeitos”, re- de uma central de produção, o empre-
argila, mas aos poucos foram aderin- lata Shirley. Isso porque o pigmento era sário não teria mais que se preocupar
do. “Depois de testes piloto realizados comprado como se tivesse partículas com a qualidade da matéria-prima”,
com pelo menos 16 empresas foi feita microscópicas, mas na realidade elas diz Longo. ■

Canecas feitas sob encomenda e outras peças cerâmicas são decoradas com adesivos

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>

Laboratório amplia o estudo de


projetos de embarcações para exploração
de petróleo | Evanild o da Silveira
ENGENHARIA NAVAL

ENSAIO MARINHO
A
o longo da costa brasileira, no Pontifícia Universidade Católica do Rio rias. De acordo com o professor Ka-
fundo do oceano, repousam de Janeiro. Fazem parte ainda da Galileu zuo Nishimoto, do Departamento de
grandes depósitos de gás e pe- outras 10 universidades e instituições Engenharia Naval e Oceânica da Poli e
tróleo, principalmente na Re- de pesquisa. coordenador do TPN, com a capacidade
gião Sudeste do país onde tudo A ampliação e modernização do dos flaps de absorverem ondas e não
indica que foram encontradas TPN atende às novas demandas surgi- refleti-las, é possível também simular
grandes reservas na camada das principalmente com o anúncio da condições de mar infinito, como se o
pré-sal. Retirá-los de lá requer estrutu- descoberta de petróleo e gás da camada tanque não tivesse laterais e as ondas
ras flutuantes – plataformas e navios – e abaixo do sal existente no fundo do mar se propagassem sem reflexão. Os flaps,
sistemas submarinos com tecnologia de em 2007. O sistema computacional do ventiladores e outros sistemas permitem
última geração e muito caros. Para saber laboratório ganhou um novo cluster, representar, além de ondas, as principais
se vão funcionar a contento e se o di- um aglomerado de computadores, com condições ambientais que agem sobre
nheiro investido não será perdido, esses 1.792 processadores que trabalham em navios e plataformas marinhas, como
equipamentos antes de serem construí- paralelo. Para abrigar esse novo recur- correntezas e ventos, desde uma leve
dos e lançados ao mar precisam passar so, além do tanque físico, foi erguido brisa até furacões. Além disso, também
por testes de validação em tanques vir- um edifício com uma área construída é possível reproduzir a dinâmica das
tuais formados por computadores e em de cerca 1.600 m² e acomodações para linhas de ancoragem – cabos fixados no
tanques de provas físicos semelhantes mais de 80 pesquisadores. No total, fo- solo marinho que mantêm a plataforma
a piscinas, duas formas de experimen- ram investidos R$ 9,5 milhões, dos quais no lugar – e dos risers, dutos rígidos, de
to que estão reunidas desde dezembro R$ 9 milhões vieram da Petrobras e o aço ou flexíveis, que levam o óleo extraí-
na Escola Politécnica da Universidade restante da Financiadora de Estudos e do até a plataforma de produção.
de São Paulo (Poli-USP). Batizado de Projetos (Finep). Apesar das vantagens, esse tipo de
Tanque de Provas Numérico (TPN), o O tanque físico, chamado de Ca- tanque também tem alguns inconve-
laboratório virtual da Poli existe desde librador Hidrodinâmico (CH-TPN- nientes. Além de custos elevados, ele
2002 por meio de uma parceria com a USP), tem 14 metros (m) por 14 m de tem limitações físicas para simular situa-
Petrobras. Em 2006, o TPN se tornou lado e 4 m de profundidade e é dotado ções que ocorrem em ambientes com
um dos quatro nós da Rede Temática de de geradores e absorvedores de ondas grande profundidade, não permitindo
Computação Científica e Visualização, (flaps). No total são 148 deles, dispos- reprodução fiel da dinâmica de todo o
conhecida como Rede Galileu – os ou- tos ao longo de todo o perímetro do sistema. Para melhor representar condi-
tros três estão nas universidades fede- tanque, em que é possível criar ondas ções em ambientes com profundidades
rais do Rio de Janeiro e de Alagoas e na multidirecionais, regulares ou aleató- ao redor de 3 mil metros ou mais seria

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EDUARDO CESAR
Tanque físico
construído
na Poli-USP:
simula situações
ambientais como
ondas e ventos

necessário um tanque de dimensões in- opção por esse sistema foi feita em 2002 desafio, porque elas sofrem deformações
viáveis fisicamente. Ou os modelos das quando foi criado o TPN. “Decidimos e podem colapsar a coluna de perfura-
embarcações e das plataformas ficariam que, em vez de investir em supercom- ção”, explica Nishimoto. “Para cada poço
tão pequenos que comprometeriam a putadores especializados, o melhor seria é preciso criar um modelo numérico,
representação física e a análise em escala desenvolver um cluster com desempe- que simule as condições do mar, do solo
real. Para superar essas limitações exis- nho semelhante e a um custo muito e calcule a dinâmica das embarcações
tem os tanques virtuais ou simuladores menor”, conta Nishimoto. Hoje a capa- envolvidas na exploração.”
numéricos, que é o caso do TPN. Tra- cidade de processamento do TPN é de Os testes realizados no TPN geram
ta-se de um programa computacional 55 teraflops, o que significa 55 trilhões uma quantidade de dados tão grande
capaz de representar matematicamente de operações matemáticas por segundo. que é quase impossível analisá-los por
as mesmas condições geradas por um Só para comparar, os computadores pes- processos convencionais. Para resolver
tanque de provas físico, com a vantagem soais mais velozes existentes não chegam esse problema foi criado o TPNView,
de não haver as restrições dimensionais a 0,1 teraflops. Flops significa floating um programa de computador de visua-
e obter os resultados com maior rapidez point operations per second ou operações lização, baseado em técnicas de com-
e precisão. Além disso, o simulador nu- de ponto flutuante por segundo. putação gráfica em tempo real, que
mérico calcula a dinâmica das unidades As simulações realizadas no TPN possibilita uma representação precisa
flutuantes, dos esforços e tensões nas serão fundamentais para o sucesso da do ambiente em realidade virtual. Ele
linhas de amarração e nos risers. exploração das reservas petrolíferas alia a visualização em três dimensões
da camada pré-sal, segundo Luiz Le- (3D) e ferramentas de análise de dados
Tarefa veloz - O cluster de computado- vy, gerente de métodos científicos do como estatísticas, gráficos e diagramas.
res é capaz de realizar centenas de simu- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Apesar da sofisticação do TPN, ele não
lações de diversas condições ambientais (Cenpes) da Petrobras. “As reservas estão substitui o tanque de provas físico. Um
em questão de minutos. Nishimoto ex- muito longe da costa e em grande pro- complementa o outro e é justamente es-
plica que um cluster de computadores é fundidade, o que torna um desafio sua se trabalho conjunto que torna o labora-
um agregado de processadores dedica- exploração”, diz. “No TPN será possível tório da USP raro no mundo. “Existem
dos, que resolvem uma tarefa única de realizar uma série de cálculos e simula- muitos tanques físicos na Noruega, na
forma cooperativa e integrada. Assim, as ções.” Além das simulações convencio- Holanda e no Japão, porém não existe
operações de cálculo são subdivididas e nais da exploração de óleo e gás, a Rede um laboratório que acople tanque físico
distribuídas por todos os processadores Galileu também poderá representar os com numérico com cluster do porte de
que compõem o grupo, tornando a re- processos de perfuração das camadas de 55 teraflops. Assim hoje o TPN torna-se
solução dos problemas mais rápida. A sal. “Perfurar essas camadas é um grande único no mundo.” ■

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>
HUMANIDADES
LITERATURA

Nas entranhas
da invenção
Projeto recupera trajeto da criação de Mário de Andrade

Carlos Haag

‘I
sso corria o mês de abril. Peguei um res- vulgada em um banco de dados, um catálogo
to de caderno em branco, e na letrinha analítico (catálogo raisonné) dos manuscritos
penteada dos calmos começos de livro literários e um índice dos títulos de todas as
comecei escrevendo. Mas logo a letra áreas, acompanhado de uma cronologia da
ficou afobada, rapidíssima, ilegível para criação e da publicação. “A novidade do catá-
os outros, frases parando no meio com logo é que se tenta montar o trajeto de cria-
ortografias mágicas em que tanto eu bo- ção. Os pesquisadores vão poder examinar o
tava um ípsilon na palavra ‘caderno’, como um manuscrito no fac-símile e vão contar com a
hífen em ‘jardim’, eu escrevia com fogo. Tudo trajetória montada no dossiê, bem como com
vinha dócil, pressentido com ardor apaixonado, as notas de pesquisa que justificavam os ca-
numa adoração de mim, da minha possível in- minhos tomados na organização e todas as
teligência, como poucas vezes me tenho gozado outras informações encontradas”, avisa Telê.
assim tão fácil nesta vida”, descreveu Mário “Será um celeiro de pesquisas.” A classificação,
de Andrade (1893-1945) sobre seu processo no catálogo e no índice, prolonga-se na pro-
criativo. Como seria igualmente fácil a vida dos dução de cópias em fac-símile escaneadas e na
REPRODUÇÕES DO LIVRO A IMAGEM DE MÁRIO; FOTOBIOGRAFIA DE MÁRIO DE ANDRADE/MÁRIO, 1938

pesquisadores envolvidos em recriar esse pro- microfilmagem de todos os fólios, como um


cesso hoje se houvesse mais textos como esse, recurso extra para salvaguardar os documen-
tão explícito sobre o labor da gestação de um tos do uso pelos pesquisadores. Tudo virá em
livro. Daí a importância do projeto temático detalhes: dimensão do papel usado, que tipo
sediado no Instituto de Estudos Brasileiros da de caneta foi empregado na escrita do poe-
Universidade de São Paulo (IEB-USP), Estudo ma ou na correção de um texto, a cor etc. “Há
do processo de criação de Mário de Andrade nos mesmo o caso interessante do poema em que
manuscritos de seu arquivo, em sua correspon- as dobras feitas mostram que Mário andou
dência, em sua marginália e em suas leituras, com ele no bolso, indicando que o mostrou
apoiado pela FAPESP, coordenado pela profes- para outras pessoas, que estava preocupado
sora Telê Ancona Lopez. “O que se pretende é com sua escrita e assim por diante, um mis-
descobrir como se deu toda a organização de tério que pode ser resolvido pelo pesquisador
uma invenção em busca do processo criativo. interessado em crítica genética e na vivência do
O IEB centraliza a maior parte dos dossiês de documento. Esse tipo de análise também nos
fólios deixados pelo escritor. A partir de todo permite datar documentos por meio da com-
esse material vai ser possível recuperar o trajeto paração da filigrana do papel etc.”, afirma Telê.
de uma criação”, explica a pesquisadora. Outro resultado do projeto é a parceria com a
O objeto de estudo são 102 manuscritos editora Agir, que está publicando a obra com-
em posse do IEB-USP e a classificação será di- pleta de Mário de Andrade a partir de edições

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feitas pela equipe do temático e que já
resultaram em novas versões de Amar,
a leitura de uma dada obra e esclare-
cer o trajeto criativo de Mário, fazendo Mário, nos
verbo intransitivo, Macunaíma, Obra então da biblioteca do escritor o seu
imatura, Os contos de Belazarte, entre locus creationis, o espaço criativo por
outros, e que vai trazer, em maio, na excelência, o caldeirão onde colocará os exemplares
nova edição de Poesias completas uma ingredientes capazes de gerar a mistura
série de poemas inéditos de Mário, que “ideal”, por mais efêmera que seja.
o escritor havia pensado em publicar, Um conceito importante na criação de trabalho,
mas descartou na versão final. de Mário são os “exemplares de traba-
lho”, como eram apelidados os manus-
assume
M
ário era um constante revisor de critos de textos impressos de livros ou
si mesmo em suas obras, sempre periódicos em que ele cristalizava novas
ocupado em dar uma última mão versões das obras ao colocar suas rasu-
de tinta em seus escritos e deixando um ras criativas com tinta preta ou a grafite, a pena de
espaço para mais um retoque futuro. lápis vermelho ou azul. Os exemplares
Assim, o seu imenso arquivo pessoal de trabalho juntam-se a notas, versões,
de fólios deixados para a posteridade, planos etc. nos dossiês que os conser- Sísifo até
reveladores de uma criação sempre vam. Após enviar para a editora o texto
em movimento, nunca terminada, ze- escrito e receber de volta as provas, o
losamente guardada. “O escritor, um escritor se punha a rabiscar nos seus o final da
arquivista de si mesmo, identificou e exemplares de trabalho as modifica-
separou conjuntos documentais no ções que desejava. “Crítico austero do
fundo que compôs durante sua vi-
da, armazenando-os em uma estante
próprio labor, Mário, nos exemplares
de trabalho, assume sua pena de Sísifo
sua vida
e uma grande cômoda na sua casa à até o final da sua vida. Em 1944, na capa
rua Lopes Chaves, em São Paulo. Na de um Macunaíma da reedição Mar-
série Manuscritos Mário de Andrade, tins daquele ano, em cujos cadernos
os documentos do processo criativo nem sequer passou a espátula, anota
abrigam trajetos a serem decodificados apressado, fechando parênteses que não
nos dossiês de inéditos, os maiores e abriu: ‘Exemplar corrigido para servir a
mais ricos montados pelo escritor em futuras reedições/M.’”, diz a pesquisa-
envelopes verdes e pastas de cartolina, dora. Ao mesmo tempo, o esforço com
estas por sua vez reaproveitadas, como os exemplares de trabalho nem sempre
nos conta a sobreposição de cabeça- era passado adiante. “É curioso perce-
lhos rabiscados”, conta Telê. “Itinerários ber que ao poupar os exemplares de
são decodificados ou estabelecidos por trabalho, passando a limpo as rasuras
via da análise e interpretação sujeita em outra cópia do livro, esta endere-
a percalços e enganos. Esse trabalho, çada ao prelo, o copista Mário, que as-
na realidade, deve sempre se lembrar sim age interessado talvez no confronto
que os dossiês não integralizam mate- com o texto na nova edição, cochila ou
rialmente o processo criativo, tanto o cumpre com displicência a tarefa. O
do artista das letras e das artes como cotejo das rasuras nos exemplares de
o do ensaísta nas ciências humanas. trabalho de Amar, verbo intransitivo e
A criação ultrapassa dossiê, arquivo Macunaíma com os respectivos textos
e, sobretudo, a própria materialidade, na segunda edição aponta a ausência de
ao jogar, neste último ponto, com a certas reformulações”, observa Telê.
psique do escritor.” Daí o trabalho da Nesse ponto é possível perceber
equipe em cruzar um manuscrito com a noção assumida por Mário em sua
outras fontes do arquivo como cartas criação da rasura, não como correção Gabinete
(o IEB-USP concentra a maior cole- (salvo nos casos em que a gramáti- de trabalho de
ção de correspondência ativa e passiva ca ou a coerência são feridas), e sim Mário na rua
do autor de Macunaíma), entrevistas, como nova possibilidade descoberta Lopes Chaves,
outros manuscritos, marginália de li- durante o processo criativo, acima da São Paulo,
vros, enfim, tudo o que possa iluminar noção pragmática de certo ou errado, outubro de 1945

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ARQUIVO SPHAN (SÃO PAULO) FOTO DE GERMANO GRAESER
em especial em projetos literários como em coisas como o emprego do “pra” que “As cartas são o espaço onde ele en-
os dele que têm o movimento e a o amigo prefere na sua forma “para”. Na contra o entendimento de processos,
inacabilidade como traços essenciais. página de rosto do exemplar rasurado caminhos, escolhas, algo como um diá-
Nesses casos, o exemplar de trabalho escreve: “A edição deverá obedecer à or- rio de produção de Mário. Ao mesmo
aparece como manuscrito de obra, do- tografia oficial brasileira... do momen- tempo, ao contar algo dele, ele suscita
no de uma tipologia e uma dinâmica to” com a mesma tinta em que corrige no outro uma reação: é um work in pro-
em todas as áreas de atuação de um o “intransitivo”, agora grafado com “s” gress. Não se trata de uma obra fechada,
polígrafo como o autor de Macunaí- e não com “z”. Assim a segunda fase da mas há espaço para o outro que dialoga
ma. Um exemplo notável é novamente criação toda acontece nesse exemplar com ele dar palpites, intervir no pro-
Amar, verbo intransitivo, criado e re- rasurado e acontece entre 1942 e 1943 cesso criativo de Mário”, explica Mar-
criado entre 1927 e 1944 por Mário e com Mário já um nome conceituado cos Antonio de Moraes, do IEB-USP,
fruto de sua correspondência e amizade nas letras brasileiras. “Vem um ami- coordenador associado do temático,
com Pio Lourenço Correa, o tio Pio, em go para revermos as provas do futuro responsável pela correspondência do
verdade um primo e amigo com quem Amar, verbo intransitivo, que sai bem autor de Macunaíma. “Está claro que
manteve intensa troca de cartas entre remodelado. Vamos ver se melhora certas palavras, certos vocativos, por
1917 e 1945. As rasuras no exemplar um bocado”, escreve ao crítico Álvaro mais que me psicanalise, não consigo
de trabalho do livro, lançado na fase Lins em 1944, mostrando a importân- descobrir donde vieram. Mas vibram
heroica do modernismo, mostram um cia da correspondência mais uma vez como palavras, são expressões-palavras
escritor menos afoito na sua defesa do na consolidação do entendimento da que me parecem sugestivas e por isso
freudismo e do cientificismo e mais fle- trajetória da sua criação, assim como deixei elas assim mesmo”, escreveu
xível em aceitar as sugestões do tio Pio fora com o tio Pio. Mário em carta a Carlos Lacerda. “Ele

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reconhece que não sabe por que fez is- critos que revelam seus diálogos com to mais fluido com o paulista Camargo
so ou aquilo, mas o desejo de conhecer compositores e, mais importante, a sua Guarnieri, músico favorito de Mário,
o mecanismo de criação impõe-se ao coautoria, verdadeira parceria em obras com quem gostava de ouvir discos em
escritor, ao recusar a ideia do proces- musicais como a ópera Malazarte e a sua casa e de quem foi um interlocutor
so criativo domesticado. Mário parece inacabada Café, em que sua participa- privilegiado. Pedro Malazarte, como já
impor a moral do artista verdadeiro: o ção não se restringiu ao libreto, mas se disse, teve, na sua concepção, para
ser fatalizado, consciente de sua técni- também se refletiu na construção mu- além do libreto, a coautoria de Mário e,
ca expressiva e insaciável pelo conheci- sical. “Da mesma forma em que há um agora, graças às pesquisas do temático,
mento dos subterrâneos de si e sua arte espaço ocupado pela escrita literária, feitas por Flávia, descobriu-se o apro-
ou, como escreve a Drummond, ‘Faz há um Mário que se ocupa da escri- fundamento dessa parceria em duas
uns dois anos ou pouco mais que eu me ta musical, o Mário musicólogo que melodias inéditas colhidas pelo escri-
apaixonei pelo fenômeno da criação es- além de pensar versos pensa a música tor em 1927, em sua primeira viagem
tética’”, explica o pesquisador. O diálogo e quer o desenvolvimento de uma es- pelo país, e ofertadas ao músico (que as
mais intenso inicia-se com Bandeira e tética nacional”, observa Flávia Toni, guardou em seu arquivo nos originais
depois transfere-se para Drummond do IEB-USP, coordenadora adjunta do de Mário) e as usou na ópera.
quando a conversa com o primeiro so- temático responsável pelos manuscritos “Também há muitas análises de qua-
bre os mistérios da criação parece estar musicais. Além da coautoria nos gran- se todas as óperas de Carlos Gomes, o
se esgotando. “Principiei dando atenção des projetos musicais de compositores que mostra uma vontade não apenas de
mais cuidadosa aos meus processos de como Camargo Guarnieri ou Mignone, atuar sobre o seu presente, mas também
criação. Não pra modificar coisa nenhu- Mário também expressou sua criação de tentar entender o passado, acom-
ma, não por conhecer a menor insince- por meio da música. “Há uma partitura panhar a criação da ópera no Brasil”,
ridade nos meus processos de criação, em que se pode ver o desenho do que fala Flávia. Para a pesquisadora, Má-
mas para verificá-los”, escreveu ainda seria a Pequena história da música e em rio parecia repetir, na música, a mesma
para Lacerda. outra há um poema inédito composto busca feita em meados dos anos 1920,
“Localiza-se na correspondência de após ele ler a música para piano. Exis- quando da escrita de Gramatiquinha da
Mário uma constelação de depoimentos tem três músicas, tentativas tímidas, fala brasileira. “Ele pretendia dar conta
que permitem ao estudioso da crítica ge- de composições populares, compostas do passado ao futuro musical brasileiro,
nética acompanhar o tortuoso processo por Mário, mas podem existir outras”, construir um dia uma ‘gramática’ da
de produção de um texto em suas di- diz Flávia. construção musical brasileira, ou seja,
versas etapas”, nota Marcos. Ao mesmo usar determinadas construções sonoras

É
tempo, continua o pesquisador, Mário nas cartas, porém, que o escritor para criar música, da mesma forma que
atuou diretamente sobre o processo de inspira os amigos a criar. Numa se usavam palavras para criar versos.” O
criação de artistas como Di Cavalcanti, delas, conta a pesquisadora, ar- temático vai igualmente recuperar um
Brecheret, Mignone, Guarnieri, Anita ranja uma forma bastante peculiar de diálogo perdido nas cartas. Sempre que
Malfatti, Cícero Dias, entre outros. “Ele “arrancar” de Villa-Lobos as Cirandas recebia cartas com informações para
e os artistas plantam no terreno da carta “de caso pensado, sabendo que ia dar o seu Dicionário de música, nos anos
a expressão essencial de seu trabalho, certo”, usando como argumento um 1930, o escritor colocava a correspon-
desenhos como expressão lúdica e esbo- compositor chileno, Humberto Al- dência na seção de manuscritos em vez
ços de obras em processo ou concluídas, lende, compositor das Doze Tonadas, de na de cartas, já que essas entravam
desejando compartilhar o trabalho de melodias populares para piano, feitas no processo de criação. Agora esse fluxo
invenção e, ao mesmo tempo, aspiran- para serem tocadas por alunos. será restabelecido.
do a eventuais sugestões do amigo que “Sei que isso é bem elementar para Por fim, a marginália dos livros co-
muitas vezes atuou como crítico de arte você e nem ousaria pedir algo assim pa- mo manuscrito. “O que se percebe é
na imprensa. A carta torna-se território ra um compositor da sua estatura, mas um diálogo, já que leitura anotada, um
da criação e o processo de autoria se es- nem imagino quem no Brasil, além do movimento na pesquisa do artista que
facela na criação a quatro mãos na troca nosso grande Villa, seria capaz de com- se desenrola em consonância com suas
de experiências, versos, ideias etc. Isso por algo no estilo do Allende.” O peixe obsessões, subentende crítica, seleção
é totalmente moderno e o instrumento musical morde a isca e em breve saem e assimilação. A marginália em Mário
são as cartas”, diz Marcos. as Cirandas nos moldes desejados por é seara e celeiro convivendo paralelos
Mas, polígrafo exemplar, o arquivo Mário, cujo nacionalismo, na contra- ou fundidos nos arquivos da criação”,
de Mário também guarda a sua paixão mão do de Villa, preconizava melodias analisa Telê. “As notas marginais au-
pela música com partituras anotadas, mais folclóricas, como as das Cirandas, tógrafas fazem parte do percurso do
cartas a compositores, textos sobre algo que era difícil de se arrancar do universo da criação de outros textos e,
crítica musical, entre outros manus- compositor carioca. O diálogo era mui- na medida em que se enquadram no

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percurso da escritura, duplicam a na-

MÁRIO, 1932/FOTO DE GILDA DE MORAES ROCHA


tureza documental do livro. Assim, ao
texto impresso da biblioteca soma-se
o manuscrito. Transformando ou se-
lecionando, nas margens, a matéria do
autor, tecendo comentários em uma
leitura crítica lateral, o escritor promo-
ve uma coexistência de discursos. Esse
diálogo exibe o texto nascente que se
defronta com uma criação no estágio
final, isto é, o livro alheio oferecido ao
público.” A marginália pode funcio-
nar, no caso do escritor como matriz
implícita, quando se depara com um
livro de anotações autógrafas, mas que,
ainda assim, se sabe que influenciou o
trabalho de Mário, como, por exemplo,
Les villes tentaculaires precedées de Les
campagnes hallucinées, de Emile Verha-
eren, matriz confessada em cartas não
apenas do título, mas do conteúdo de
Paulicéia desvairada.

T
udo isso não passaria de mera in-
vestigação fria e impessoal se não
servisse ao autor e a seus leitores.
Para tanto há a bela história de Os con-
tos de Belazarte, que revela a necessida-
de de acompanhar a criação sempre em
movimento de Mário, nunca termina-
da com seus muitos e infindos exem-
plares de trabalho. Em 1968, em ple-
na ditadura militar, Valentim Faccioli,
estudante de direito e revisor de uma
editora, viu um livrinho cor de vinho
calçando a mesa em que trabalhava.
Ao pegá-lo viu que era um boneco de
Belazarte (que, entre outros contos,
trazia “O besouro e a rosa”) cheio de
anotações feitas a lápis que julgou feitas
pelo autor. Preso, perdeu o emprego e
abandonou a universidade. Anos mais
tarde, já professor da USP, resolveu en-
tregar o livrinho para o IEB-USP, que,
agora se sabe, é um documento impor-
tantíssimo, um exemplar de trabalho
com anotações de Mário de Andrade.
Para felicidade do escritor, as correções
chegaram em tempo. ■

Mário em foto de
1932: corrigindo suas
obras sempre

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AGÊNCIA ESTADO

MÚSICA

Muito além da
vitória-régia e do vatapá

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>

C
om boa dose de raivosa ironia, sempre citado como um gigante da mais livres e, em 1923, o grande marco
Mário de Andrade desancava música do século XX, mas nunca me- foi a viagem a Paris, onde estabelece um
certo tipo de brasileirismo receu o cartão VIP dos compositores diálogo com a música dos modernos,
musical que via permeado de seminais, como Stravinsky, Schoen- em especial com Stravinsky. A tercei-
“sensações fortes, vatapá, jaca- berg, Varèse ou Messiaen, que geram ra fase, nos anos 1930, é a da volta ao
ré, vitória-régia”. Infelizmente teorizações e reverberam na linguagem Brasil, quando, aparentemente para ga-
para muitos, o interesse pela dos compositores do século XXI. Em rantir a sobrevivência, em pleno regime
música de Heitor Villa-Lobos (1887- geral, Villa-Lobos é o filho da nature- varguista, o compositor incorporou a
1959) estaria justamente na proximi- za, que cavoucou a terra e encontrou o imagem que se queria dele como um
dade com que o compositor, pleno de talismã da identidade nacional, que o símbolo da cultura brasileira. A partir
ritmos e melodias, teria chegado dessa tornou maior entre os maiores de uma de 1948, a fase final, quando recebe o
exótica mistura, aparentemente uma arte que intuímos ser importante, mas diagnóstico do câncer, Villa, para fa-
receita tipicamente brasileira que ele que ainda não nos pertence”, concorda zer frente às despesas crescentes com
dominaria bem com sua genialidade o violonista Fábio Zanon, professor do tratamentos de saúde, passa a atender
intuitiva de arrancar da terra o que era Royal College of Music e autor de uma encomendas e a se apresentar nos EUA
nacional. “É preciso rebater a ideia de recém-lançada biografia do composi- e na Europa.
que o maior ou o único mérito da obra tor. Efetivamente, enquanto seus con- Tantas fases e tantas mudanças não
musical de Villa-Lobos esteja em seu temporâneos merecem análises infin- seriam uma tarefa de amador, tampou-
caráter nacional, identificável pela uti- das, Villa ganhou um lugar periférico co de um autodidata casual. “Quem vê
lização de melodias folclóricas e even- em que figura como caso exótico, um Villa como um compositor de pouca
tuais usos de ritmos e instrumentos de latino-americano cuja intuição teria técnica, que comporia sua música tal
música popular brasileira. Outro ponto levado às vezes a resultados sublimes, qual a anarquia idealizada de selvas tro-
importante é demonstrar que as qua- mas quase sempre desiguais. “Ele, po- picais, que teria pouquíssimo domínio
lidades de certas obras do compositor rém, teve várias mudanças de estilo em da forma e das estratégias composicio-
não são resultados de mero casuísmo, sua vida que deixam entrever não um nais da tradição, parte de uma visão
mas de um labor composicional sinto- ‘dândi tupiniquim’, mas um compositor quase sempre baseada em gagues plan-
nizado com os problemas importantes que se autoimpunha uma pesada carga tadas pelo próprio Villa-Lobos, ou que
no tempo em que foram compostas e de trabalho e estudo, o que contradiz simplesmente tentam fundamentar-se
que ainda instigam os músicos de ho- o mito em torno de seu autodidatismo em uma falta de conhecimento quan-
je”, observa Paulo de Tarso Salles, da e facilidade, no mau sentido, de inven- to às obras e aos compositores com os
ECA-USP, autor de Villa-Lobos: proces- ção”, analisa Salles. Entre 1900 e 1917, quais a música de Villa-Lobos dialoga-
sos composicionais (Editora Unicamp, temos o jovem compositor em sua fase va”, avalia o compositor e pesquisador
264 páginas, R$ 50). inicial adotando modelos franceses e Sílvio Ferraz, da Unicamp. “Seus diá-
“Villa-Lobos é muitas vezes consi- wagnerianos, buscando ser reconhecido logos foram marcados por encontros:
derado como o ‘maior compositor das pelos músicos e críticos brasi- Bartók, Varèse, Milhaud,
Américas’, mas esse rótulo ainda carece leiros. A partir do contato em Revueltas. Todos defensores
Compositor
de substância, pois sua obra tem um 1917 com o compositor Da- em seu labor: de uma estética musical de
mérito maior do que o mero exotismo rius Milhaud, a cantora Vera diálogo com cunho experimental. Villa
e trouxe real contribuição à música do Janacopoulos e o pianista Ar- os grandes dialogava com esses com-
Ocidente, embora poucos estudiosos thur Rubinstein, todos no Rio nomes positores que, por sua vez,
se debrucem efetivamente sobre essas de Janeiro, a música de Villa musicais do traziam, assim como ele,
questões”, avisa o pesquisador. “Ele é apresenta formas e estruturas seu tempo muito da força musical dos

Villa-Lobos deixa de ser ícone nacionalista para ressurgir como grande


compositor moderno | Carlos Haag

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aspecto da multifacetada obra do mais
REPRODUÇÃO DO LIVRO A IMAGEM DE MÁRIO; FOTOBIOGRAFIA DE MÁRIO DE ANDRADE/VILLA-LOBOS, RIO DE JANEIRO, 1941

importante compositor brasileiro, cuja


música seja possuidora de atributos
suficientes para que, através dela, seja
possível estudar algumas das técnicas
de composição em voga na primeira
metade do século XX. As partituras de
Villa revelam, além da óbvia preocu-
pação com uma identidade nacional, a
inquietação do compositor em relação a
procedimentos que se tornaram acadê-
micos, destituídos de significação para
a música de seu tempo”, observa. “Isso
se traduz em sua concepção peculiar de
forma, em que os sons circulam sem a
tradicional noção do desenvolvimento
beethoveniano, mas de acordo com suas
potencialidades acústicas.” O pesquisa-
dor, analisando os processos composi-
cionais de Villa-Lobos, agrupou-os em
três grandes modos de transformação
do material composicional.

A
ntes de mais nada, é preciso reco-
nhecer que a melodia, nota o pes-
quisador, é um item secundário na
composição villa-lobiana, uma questão
complicada num país com uma tradi-
ção tão forte na canção popular, em que
a linha melódica é tão importante. Daí o
primeiro processo com as transforma-
ções obtidas a partir de simetrias, que se
tornam progressivamente assimétricas
ou balanceadas pela ocorrência de “aci-
dentes”. Essas transformações ocorrem
como resultado da superposição entre
“figura” e “fundo”, com a funcionalida-
de da figuração melódica interagindo
sobre um fundo textural mais ou menos
estático. A melodia villa-lobiana tem
um papel “acidental” de transformação
da textura. Assim, a música de Villa ga-
nha uma implicação notadamente tex-
Villa na povos de seus países. Que força seria tural, ou seja, todos os componentes da obra geram uma
dedicatória essa? Não aquela que se imita facil- sonoridade indivisível, um universo de timbres que são
a Mário de mente, numa simplificação melódica agregados sem uma hierarquia preestabelecida. “As ciran-
Andrade avisa à qual muitos acabaram por ceder, das para piano ilustram soberbamente essa questão: nelas
que não é mas a força sonora, a força inventiva as melodias folclóricas não são ‘harmonizadas’, mas sim
samba, mas desses povos, no modo de cantar, de inseridas em um ‘ambiente sonoro’ que lhes confere um
Bach tocar um instrumento e na maneira sentido retórico, metafórico.” Esse conceito de ambiente
como a música é feita com aparente sonoro, continua Salles, é constantemente afirmado em
facilidade e rapidez. Villa foi um com- suas obras sinfônicas, nas suas densas orquestrações. “Em
positor genuinamente brasileiro, no sentido de que teve Uirapuru se descortina qual o recorte do compositor: não
de inventar o Brasil musical que lhe cabia.” Daí o aspecto se trata de uma reprodução naturalista da melodia ca-
acumulativo e não excludente da pesquisa de Salles, que racterística do pássaro. O ‘canto do uirapuru’ criado por
revela ainda mais a riqueza musical do compositor. “Não Villa é uma melodia abstrata, um ‘hiperpássaro’. O que o
pretendi substituir a já tão bem conhecida apreciação atraiu foi a série simétrica de intervalos que é submetida
da identidade nacional presente na obra de Villa-Lobos. a vários processos de alargamento e distorção. Villa se
Meu objetivo foi apenas complementá-la com mais um comprazia em tornar assimétrica a cuidadosa simetria

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inicial. A simetria para ele era como um estágio instável destinada a ficar à margem da modernidade, preferindo
da composição”, analisa. discursar em torno da sua originalidade racial.”
Outro processo são os ziguezagues que ocorrem A ligação entre Villa-Lobos e o nacionalismo, lembra
em vários pontos de suas texturas, em vários gêneros Salles, era das mais problemáticas, encarnado na figura
musicais, como projeção de determinados elementos, emblemática de Mário de Andrade. Afinal, o naciona-
sonoridades, timbres, que estabelecem um novo estatuto lismo brasileiro privilegiava o rural em detrimento do
do motivo, desvinculado de sua função temporal-formal urbano e o vínculo de Villa com o choro carioca, além de
para tornar-se um elemento quantitativo na consecução urbano, destoava da orientação para os temas folclóricos.
e fruição da obra. Na Bachianas nº 5, no martelo (2o “Apenas ocasionalmente, como na série das Cirandas,
movimento), está na própria melodia cantada pela so- ouvem-se melodias folclóricas. Ou em obras didáticas,
prano sobre o texto de Manuel Bandeira. No Choros nº 2, como as Cirandinhas, para piano, ou o Guia prático”,
para clarineta e flauta (dedicado a Mário de Andrade, nota o pesquisador. “O folclore sou eu”, gostava de dizer
em época em que a amizade entre eles ainda não se rom- o compositor. Quando Vargas indicou um interventor
pera), o ziguezague é empregado para operar mudanças para São Paulo e Villa manteve-se a seu lado, inclusive
de registro entre os instrumentos. No Noneto, a mesma dedicando o Quarteto de cordas nº 5, obra nacionalis-
técnica tem implicações estruturais, anunciando mu- ta com temas folclóricos, Mário rompeu de vez com o
danças seccionais e timbrísticas. Um terceiro processo compositor. O quarteto além de tudo trazia trechos de
composicional são as transformações por turbulência, uma melodia gaúcha, o que fez o autor de Macunaíma
resultantes sobretudo de procedimentos rítmicos ou perder as estribeiras e chamar o músico, em carta a um
timbrísticos, em que Villa gera sonoridades saturadas amigo, de “lambe c.” do regime. Mário preferiu como
pelos elementos constituintes da textura, desencadeando discípulo do seu nacionalismo o compositor Camargo
processos irreversíveis de expansão ou contração das Guarnieri. O elemento nacional, porém, não era o que
unidades métricas. Em síntese, ele usava a densidade do mais interessava a Villa, embora tenha marcado forte-
ritmo para controlar a saturação sonora da textura. Em mente a carreira do compositor, talvez “culpa” do próprio
Rude poema para piano, ouve-se como o ritmo saturado Villa, que, durante o Estado Novo, por interesse pessoal,
parece proporcionar diversas “erupções” ao longo do nota Salles, por questões de sobrevivência, tenha deixado
tempo. Ritmo e tempo parecem coordenar as ações em que se tomasse como verdade o que todos gostariam que
suas figurações de ostinato (linha melódica repetitiva ele fosse: o arauto da nação.
em torno da qual outras camadas melódicas evoluem).

E
No Choros nº 8, obra sinfônica que, nota o pesquisador, ssa imagem ficou tão forte que mesmo músicos foram
Stravinsky poderia ter assinado, Villa usou 36 ostinatos, consumidos por ela e taparam os ouvidos diante da
os quais são superpostos, justapostos, montados e des- música de Villa-Lobos. Foi o caso do compositor
montados para gerar adensamentos texturais. vanguardista e pesquisador da USP Willy Correa de Oli-
“Desse modo pode-se perceber que a música de Villa veira, antigo detrator de Villa, que apenas recentemente
dialogava com a de seus contemporâneos, como Stra- voltou atrás em suas críticas ao “nacionalista sem valor”
vinsky, Bartók, Varèse, por exemplo. Todos eles operavam para, hoje, ver o autor de Uirapuru com olhos renovados.
num território ainda inexplorado dos sons, acima e além “Pensar Villa como compositor nacionalista é reduzi-lo.
dos manuais de composição formal de seu tempo”, afirma É pensar tacanho, reacionário: mesquinhamente fim de
Salles. “É preciso escutar um Villa-Lobos muito além da século XIX. Revela ignorância ou avaliação incorreta
apreensão de suas melodias ou dos ritmos sincopados dos de sua obra. Autêntico compositor do século XX, Villa-
chorões, elementos superficiais que dão a ele cor local, -Lobos foi homem do seu tempo, como Ives, Schoenberg,
mas não são os aspectos mais instigantes de suas obras. Stravinsky, Bartók, Webern. O arrojo de Villa na con-
A série de Choros, por exemplo, é uma ampliação de fecção de imagens abstratas em movimento é de tal im-
possibilidades sonoras latentes em toda a música popular portância que se pode emparelhá-lo com o Schoenberg
brasileira, não apenas a partir de parâmetros como altura maduro, com o último Scriabin, com Debussy, Varèse
e ritmo (melodia), mas essencialmente do timbre e de e até Webern. Para gaúdio de todos, Villa consta de um
todas as propriedades atreladas a esse aspecto tão com- programa ideal, possível, focando a música do século XX
plexo do som como afinação, ressonância, difusão etc.”. no que houve de mais criativo, efetivo: em um mundo
O mesmo aconteceu com as Bachianas, observa Salles, sem língua musical erudita falada, onde cada voz fosse
que deram a Villa o rótulo de “fértil melodista” e pra- um testemunho necessário do homem como ser criador,
ticamente sepultaram o interesse especulativo por suas sobrevivendo em ambiente adverso, hostil, agressivo.”
criações. “Villa-Lobos não foi menos inquieto e capaz do Foi com ele que o Brasil entrou, pela primeira vez, na
que outros compositores em buscar e encontrar soluções música do século XX e, desde então, pouco se aventurou
interessantes para os problemas de composição musical por esses caminhos, já que o compositor não deixou
que não se enquadram apenas na questão de identidade “herdeiros” musicais. “As novas gerações de compositores
racial. Sendo brasileiro, foi tachado prematuramente de têm muito a aprender com os procedimentos técnicos de
‘ingênuo’ por ter tido a audácia de se lançar a uma aven- suas obras”, nota Salles. “Villa criou uma possibilidade
tura criativa sem precedentes e sem um manual escrito de música brasileira, em vez de ser criado por ela. Ele
por um europeu. A América Latina por essa ótica está ‘tornou-se’ folclore”, completa Zanon. ■

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>
HISTÓRIA

BRASIL À FRANCESA
Os anos brasileiros, entre as décadas de 1930 e 1940, marcaram
a vida e a obra do historiador francês Fernand Braudel
Joselia Aguiar

‘P
ara quem se via acuado entre a historiografia con- adotivo e o jovem se uniram para criar O Mediterrâneo e
vencional, a vulgata marxista e o sociologismo, as raízes de uma nova forma de fazer história. “Se os no-
Braudel foi uma autêntica libertação. Ali estava vos leitores não perceberem com nitidez a novidade que
finalmente um historiador que nem tinha o ranço a obra representou em sua época, isso talvez se deva, de
de uma nem o reducionismo da outra nem o dou- certo modo, ao fato de o próprio Braudel ter influenciado
trinarismo do terceiro; e que, munido dos instru- sucessivas gerações que aderiram à Escola dos Annales, da
mentos da erudição mais recente, era capaz, como qual fez parte. Uma escola que renovou a historiografia,
os grandes historiadores do século XIX, de dar corpo, alma aproximando-a das ciências sociais, e fez surgir novos
e vida a largas fatias do passado”, escreveu o historiador temas e horizontes. Tratava-se, naquele tempo, de um
pernambucano Evaldo Cabral de Mello. O elogio dá uma tipo de narrativa histórica incomum.”
noção do encantamento que gerações experimentaram Ao iniciar o doutorado, o período escolhido por Corrêa
há cinco décadas com a leitura de O Mediterrâneo, obra Lima foi justamente dos anos brasileiros de Braudel, deci-
monumental de Fernand Braudel (1902-1985) e do peso sivos para toda sua obra. Foi nessa época, por exemplo, que
da influência do historiador francês. O que poucos sabem elaborou parte do mesmo O Mediterrâneo. A tese de Corrêa
é que o seu pensamento, incluindo-se a criação dessa sua Lima investiga desde a chegada das missões francesas que
obra máxima, foi gestado durante sua estada no Brasil contribuíram, nos anos 1930, para a fundação da USP até o
durante os anos 1930 e 1940. Essa temporada tropical de período imediatamente posterior à volta para a França, em
Braudel é o tema do estudo do historiador Luis Corrêa que esteve por cinco anos numa prisão nazista. “A França
Lima, paulista, radicado no Rio de Janeiro, da PUC-RJ, era considerada a líder da latinidade e a sua cultura, o
autor de Fernand Braudel e o Brasil – Vivência e brasilia- caminho seguro da modernidade e do progresso verda-
nismo (1935-1945), recém-lançado pela Edusp, resultado deiro. Oferecia simultaneamente tecnologia e humanismo,
de sua tese de doutorado pela Universidade de Brasília laicidade e religião. Por isso acreditava-se que a França
(UnB), em que analisa justamente o impacto que o país poderia nos salvar da ‘barbárie’ de uma civilização mera-
teve sobre o intelectual francês e vice-versa. mente industrial. Os conflitos ideológicos naquela época
“Para ele, foi uma mudança de perspectiva. A partir do eram bastante fortes, e a presença francesa correspondia ao
contato com a sociedade brasileira e sua história, Braudel projeto da elite paulista de educar a juventude nos ideais
conseguiu imaginar a Europa do Antigo Regime”, expli- democráticos, longe do fascismo”, explica Corrêa Lima.
ca o pesquisador. “Além disso, ele foi muito importante Entre as dificuldades da empreitada, houve a própria
para o Brasil e para a USP, pois ajudou a formar toda a vastidão da obra de Braudel a ser lida: como exemplo,
segunda geração de professores da universidade.” País considere-se que seus dois livros principais somam cinco

O jovem
Braudel em
foto tirada
quando de
sua estada no
Brasil

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DIVULGAÇÃO EDUSP

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De volta à França, Braudel foi um dos responsáveis
pela divulgação da obra de Gilberto Freyre

volumes e mais de 3 mil páginas. A tanto, o fazia imaginar o passado dis- e não se deixa aprisionar em uma fór-
segunda, conforme Corrêa Lima, foi tante da Europa. “Foi no Brasil que ele mula”, acrescenta.
quanto à questão específica que que- ‘vestiu a camisa’ da renovação historio- Depois da Segunda Guerra Mundial,
ria pesquisar: Braudel e o Brasil. “Será gráfica preconizada pelos Annales, com ao finalizar sua tese, Fernand Braudel
que haveria material suficiente para se um conjunto de intuições que confi- foi autorizado a substituir a tese secun-
escrever uma tese? Ou o assunto se esgo- guraram o seu Mediterrâneo e fizeram dária por dois artigos já publicados so-
taria em um capítulo ou pouco mais?”, dele um grande historiador, ao mesmo bre os espanhóis na África do Norte. E
perguntava-se. Tal dúvida lhe provocou tempo original e herdeiro de Lucien Fe- foi assim que o ensaio sobre o Brasil
angústia por muito tempo. A terceira bvre”, argumenta Corrêa Lima. do século XVI permaneceu inacaba-
dificuldade foi o acesso aos arquivos do. Pouco a pouco, seus interesses de
de Braudel na França. “Foi uma longa Coroas - Quando aqui esteve, entre pesquisa se voltaram para o conjunto
espera até que as portas se abrissem”, 1935 e 1937, Braudel elaborava sua te- da América Latina, e mais tarde para
conta. Entre as felicidades, houve a de se de doutorado sobre o Mediterrâneo a história mundial da vida material e
encontrar documentos inéditos, conser- no tempo de Filipe II. A obra o ocupou do capitalismo. Desse modo, ele nunca
vados pela viúva do historiador, então por aproximadamente 20 anos. Como mais retomou o ensaio. Braudel pen-
com 87 anos, em seu apartamento em exigência da universidade francesa, era sava que, para terminá-lo, precisaria
Paris. Como resultado, a obra de Corrêa preciso também preparar uma tese se- consultar os arquivos de Portugal, que
Lima se concentra particularmente em cundária, na qual o material pesquisado na época não estavam organizados.
anos que são pouco abordados nas duas na pesquisa principal poderia ser reuti- Em seu período brasileiro, Brau-
maiores biografias do autor, escritas lizado. Escolheu, então, estudar o Brasil del conviveu com intelectuais, formou
por Pierre Daix, na França, e Giuliana do século XVI, que chegou a fazer parte historiadores e até hoje fomenta novas
Gemelli, na Itália. do reino de Filipe II quando da união leituras e pesquisas. Com três grandes
Discreto, pesquisador incansável, das coroas ibéricas. amigos manteve a correspondência:
com fama de excelente professor, Fer- Na historiografia de Braudel, como João Cruz Costa e Eurípedes Simões de
nand Braudel iniciou sua trajetória co- explica Corrêa Lima, certas realidades Paula, professores da USP, e o jornalista
mo historiador no final dos anos 1920. coletivas ou inanimadas atuam de mo- Júlio de Mesquita Filho. Como discípu-
Nas duas décadas seguintes viveria fora do coerente como se fossem um sujeito: las, destacam-se Alice Canabrava, Cecí-
da França. De início, parte para a Argé- tornam-se “personagens”. Isso se dá, por lia Westphalen e Maria Luíza Marcílio.
lia, onde o mar lhe provoca a primeira exemplo, com o mar Mediterrâneo, que Durante o regime militar, empenhou-
grande inspiração. O acaso o traz ao se transforma em personagem em sua -se em libertar da prisão seus amigos e
Brasil: o suicídio de um professor titu- história da Europa, e também com a conhecidos. Braudel usou seu prestígio
lar que já havia sido nomeado para o imensidão do Brasil, seus fatores geográ- internacional como intelectual francês e
cargo. Traz tanto material de pesquisa ficos, imprescindíveis para compreen- escreveu cartas aos presidentes militares
que, ao se instalar em São Paulo, precisa der sua história. “Braudel escolheu uma brasileiros. Assim, como conta Corrêa
alugar um outro quarto de hotel. perspectiva bem definida para focalizar Lima, ele conseguiu tirar da cadeia Caio
Dizia Braudel que “se tornou in- o Brasil: uma Europa americana, ou seja, Prado Jr., Milton Santos, João Cruz Cos-
teligente” quando conheceu o Brasil. uma civilização europeia na América. E, ta e Yedda Linhares. Aos alunos, futuros
Para entender tal afirmação é preciso, de modo especial, a única Europa tropi- professores, recomendava simplicidade,
antes, conhecer aquilo que caracteriza cal e subtropical em todo o mundo com que resulta de clareza.
sua obra: trata-se, como destaca Corrêa certa envergadura”, afirma o historiador De volta à França, Braudel foi um
Lima, da busca da longa duração, ou brasileiro. dos responsáveis pela divulgação da
seja, das permanências e das realidades Tal perspectiva fez Braudel lançar obra de Gilberto Freyre. Contribuiu
duradouras nos processos históricos, outro olhar sobre o passado brasileiro com pesquisadores como a historiadora
tanto nas relações do ser humano com e, desse modo, captar as interações do greco-baiana Katia de Queiros Mattoso,
o meio quanto nas formas de vida co- país com o oceano. Braudel, porém, que assumiria pela primeira vez a cáte-
letiva e nas civilizações. No Brasil ele cedeu em parte a um etnocentrismo dra de história do Brasil da Sorbonne,
encontrou um país novo, de dimensões inaceitável, diz Corrêa Lima. “De qual- e o etnofotógrafo Pierre Verger, que
continentais e natureza tropical, uma quer maneira, ele teve a humildade e a dedicou ao historiador a sua tese Fluxo
sociedade em formação contrastando grandeza de reconhecer que a história e refluxo e teve nele seu grande incenti-
com o Velho Continente, que, no en- brasileira, como toda a história, é vida vador na volta à academia –Verger havia

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Fernand Braudel em 1980:

ROGER VIOLLET/AFP
no Brasil conviveu com
intelectuais, formou
historiadores e até hoje
fomenta pesquisas e ideias

abandonado o Liceu ainda na juven-


tude. Com seus pares franceses, Brau-
del formou uma geração de grandes
historiadores: Jacques Le Goff, Le Roy
Ladurie, Marc Ferro e Georges Dubys.
Até os anos 1950, foi responsável por
cursos e conferências sobre a América
Latina. Quando a USP completou 50
anos, em 1984, teve o convite para vir
para participar das comemorações. Co-
mo seus principais amigos brasileiros
já haviam falecido, disse que seria um
desgosto muito grande vir ao Brasil e
não poder reencontrá-los.
Nos últimos anos, têm-se multipli-
cado estudos sobre intelectuais france-
ses que viveram no Brasil no mesmo
período. Estudam-se não somente sua
influência no Brasil, como também a -graduação, que começam a desencavar saborosas reunidas, a pesquisa meticu-
influência do Brasil em suas obras. Au- coisas muito específicas. Por exemplo: a losa e a felicidade em documentar como
tores como Lévi-Strauss, Roger Bastide associação entre Sérgio Buarque e a nova o “distanciamento” experimentado aqui
e Pierre Verger têm sido objeto de pes- história francesa, muito difundida nos no Brasil se tornou um rito de passagem
quisa acadêmica, de reedições e, muitas anos 1990, começa a conviver com es- para a formação de Braudel. “Distan-
vezes, de primeiras edições. “Quanto a tudos que apontam outras fontes de ciamento” que resultaria do contato
Braudel, creio que a tendência é a de inspiração bastante diferentes ou mes- com outra realidade, diferente da sua.
crescimento de estudos críticos sobre mo antípodas, como a sociologia alemã, Absorvido pela pesquisa, localizada em
o autor, na medida em que os campos as leituras italianas do historiador ou outra época, Corrêa Lima afirma que
da história da historiografia e da teoria as referências vindas da história literá- também experimentou algo parecido.
da história estão se consolidando no ria”, exemplifica. Certo dia, após passar várias horas con-
Brasil, campos esses que não eram nada versando com a viúva de Braudel, teve
fortes nos anos 1990, quando fiz minha Diversidade - Corrêa Lima diz que, um estranhamento ao sair à rua, num
graduação. Vale dizer: há uma retoma- ante a abrangência da obra de Braudel dia normal de primavera, com jovens,
da mais reflexiva, um pouco diferente – o mundo mediterrânico, a cultura crianças e idosos circulando pelas calça-
da antiga fonte de inspiração para no- material, os primeiros séculos do ca- das. “Nada havia de especial. Entretanto
vos ‘métodos’ e ‘abordagens’”, explica pitalismo, a França –, há muito ainda a tive a sensação de estar vindo de outro
Henrique Estrada Rodrigues, professor ser estudado. E hoje, em que se interessa planeta, de um mundo que não tinha
da Universidade Federal de Ouro Preto, por outros temas como história da Igre- nada a ver com o que os meus olhos
autor de artigo recente sobre o diálogo ja e diversidade sexual, a contribuição viam. Nunca havia tido esta sensação
entre Braudel e Lévi-Strauss. de Braudel continua bastante valiosa. antes. O que me aconteceu foi estar tão
Autor de uma tese de doutorado so- “Ele ensina a identificar permanências absorvido em um passado distante no
bre Sérgio Buarque de Holanda, Estrada e mudanças na vida coletiva e nas ci- tempo e no espaço que o presente me
Rodrigues diz que a visão que se tem, vilizações e a buscar um ‘concubinato’ causou um enorme estranhamento. Era
hoje, da influência francesa no Brasil tem entre diversos saberes. A perspectiva como se eu retornasse de um arreba-
mudado. “Cada vez mais existem outras histórica é muito útil para enfrentar tamento”, recorda. “É claro que tudo
importantes referências intelectuais, co- posturas intransigentes e para enxergar isso é recriação do historiador a partir
mo a alemã ou a inglesa, que relativi- o novo que se avizinha”, afirma. dos vestígios de que dispõe. Mas pode
zam um pouco a importância francesa, Em uma resenha sobre o livro de acreditar: a história tem uma força e um
sem, claro, desmerecê-la. Isso se deve Corrêa Lima, publicada na revista Carta poder envolvente de nos transportar pa-
também a uma especialização cada vez Capital, o historiador Elias Thomé Sali- ra mundos distantes, ainda que apenas
mais acentuada dos programas de pós- ba, professor da USP, elogiou as histórias através da imaginação.” ■

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RESENHA

A exuberância da barbárie
Estudo recupera pensamentos sobre a natureza brasileira
Fernando Amed

A
s discussões mais ou menos recentes É assim que podemos tomar contato com os escritos de
acerca da teoria da história, espe- Mateus de Albuquerque, Rodolfo Teófilo, Alberto Rangel,
cialmente em sua vertente anglo- Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, Fábio Luz e
-americana, têm nos acostumado a um Júlia Lopes de Almeida, dentre outros. Percebemos então que
certo estado de impasse, como se não o conceito de natureza não se ancora em nenhuma baliza
fosse mais possível conceber produtos de mais segura. A partir dos marcos cronológicos situados pela
pesquisas que venham a nos mobilizar historiadora, observa-se que a natureza brasileira, de um
no exame de supostas evidências, dos ponto de vista mais tributário das concepções deterministas,
preconceitos que se estabelecem no en- já foi vista como fornecedora de um perfil diferenciado, o
torno de determinados conceitos e, en- que demarcaria um certo caráter nacional. Outro tipo de
fim, no encetamento das suspeitas acerca sentimento é aquele em que a exuberância natural brasileira
Natureza das linearidades que vêm a compor a se coloca como um obstáculo quase que intransponível.
e cultura historiografia e a literatura. Assim, Alfredo d’Escragnole Taunay, na Retirada de Laguna,
no Brasil A esse respeito, o livro Natureza e parecia apontar que o nosso principal inimigo não eram
(1870-1922) cultura no Brasil (1870-1922), de Lucia- os paraguaios liderados por Solano López, mas sim toda
Luciana Murari na Murari, traz contribuições para que espécie de intempéries interpostas pela fauna e flora selva-
percebamos os riscos da aderência irre- gens do Brasil. Percepção diferenciada, especialmente mais
Alameda fletida às últimas vagas de pensamento sofisticada e sutil, é a que perfizeram autores enfeixados no
Editorial, 2009 num mundo que se deseja globalizado. terceiro capítulo, que possui como subtítulo o sentimento
474 páginas Tendo como suporte uma rica oferta de de sertão na alma brasileira. Trata-se de reminiscências, no
R$ 50,00 fontes, que variam “da prosa de ficção e mais das vezes regionais, que buscavam recompor as qua-
não ficção, a crítica literária, a historio- lidades existentes no modo de vida sertanejo. Finalmente,
grafia e o ensaísmo político e social”, a Alberto Torres, Monteiro Lobato e Júlia Lopes de Almeida
pesquisadora terminou por nuançar a oferecem exemplos quanto às projeções para o futuro. Ou
utensilagem mental do campo intelectual seja, assimilaram as dificuldades consideradas inerentes à
brasileiro quando remetido às diferentes natureza brasileira, mas se colocaram como proponentes
concepções acerca da natureza. quanto ao que poderia ser feito para colocá-la a favor do
A opção pelo recorte cronológico, progresso do país.
como a autora aponta, também cum- A obra de Murari recupera um repertório necessário para
priu a função de checagem quanto ao que adentremos os complexos sentimentos embutidos no
tipo de produção escrita que se fazia conceito de natureza, bem como lança luz à tensão ainda
num momento ofuscado pelo aparato presente entre civilização e barbárie. A pesquisa fornece
modernista – de produção e recepção subsídios para que reflitamos sobre a permanência de orien-
– que se estabeleceu a partir das alusões tações, que parecem se configurar na percepção de que temos
ao ano de 1922. Assim, destoando de um um compromisso adiado com o futuro e que dependemos
coro que parece somente se mobilizar de opções corretas para que consigamos cumprir aquilo que
pelos marcos associados às vanguardas nos parece predestinado. A quebra de continuidade para
modernas e que, quando muito, faz con- com as chaves históricas e literárias mais consagradas abre
cessões às obras de Machado de Assis, espaço para que recuperemos nossa identidade para com
Joaquim Nabuco ou Euclides da Cunha, dilemas percebidos na virada para o século XX.
por entender que nelas já se encontra
uma espécie de protomodernismo, Lu-
ciana Murari nos brindou com citações Fernando Amed, doutor em história pela FFLCH da USP, pro-
de autores abandonados pela rendição fessor da FAAP e do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo
inconteste às linhas do tempo histórico e autor de As cartas de Capistrano de Abreu: sociabilidade e vida
ou literário. literária na belle époque carioca.

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LIVROS

Invenções de si em histórias Moçambique: identidade,


de amor: Lota e Bishop colonialismo e libertação
Nadia Nogueira José Luís Cabaço
Editora Apicuri Editora Unesp
264 páginas, R$ 42,00 360 páginas, R$ 49,00

Este trabalho, vencedor do Prêmio Arco- José Luís Cabaço entende as políticas de
íris de Direitos Humanos, conta a história identidade como expressão de um dese-
de amor de duas mulheres, Lota Macedo nho político subordinado a um poder que
Soares e a poetisa Elizabeth Bishop, no Rio se pretende hegemônico. Além de se valer
de Janeiro dos anos 1950 e 60. Dessa forma, de autores como Althusser, Bourdieu, Hall
busca resgatar o silêncio histórico a que e Derrida, o livro é um retrato da própria
estiveram submetidas as relações homoe- vivência colonial e das lutas de indepen-
róticas femininas, bem como desconstruir dência das quais Cabaço foi testemunha
o discurso médico legal, que diagnosticou e agente, nos mostrando assim como foi
as mulheres envolvidas em tais relações forjada a identidade moçambicana.
como nocivas ao convívio social. Editora Unesp (11) 3242-7171
Editora Apicuri (21) 2533-7917 www.editoraunesp.com.br
www.apicuri.com.br

São Paulo: metrópole das utopias


Machado de Assis e a crítica
Maria Luiza Tucci Carneiro (org.)
internacional Lazuli Editora/Companhia Editora
Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta Nacional
(orgs.) 512 páginas, R$ 49,00
Editora Unesp
280 páginas, R$ 36,00
Os artigos reunidos neste trabalho versam
sobre a história da repressão e da resis-
Os professores Benedito Antunes e Vicente tência na cidade de São Paulo. A partir
Motta organizam neste livro uma reunião de da investigação de documentos do acervo
alguns textos do simpósio “Caminhos cruza- do Deops/SP, historiadores reconstituem
dos: Machado de Assis pela crítica mundial”, a trajetória política de personagens que,
realizado em 2008, no qual diversos estudio- por “pensarem diferente” ou se distingui-
sos internacionais de Machado, como Rober- rem pela etnia, religião ou classe social,
to Schwarz, Jean M. Massa, K. David Jackson, criaram estratégias de burlar a vigilância
Amina di Muno, entre outros, apresentaram e a censura institucionalizadas.
suas críticas e olhares sobre o autor.
Lazuli Editora/Companhia Editora Nacional
Editora Unesp (11) 3242-7171 (11) 2799-7799
www.editoraunesp.com.br www.ibep-nacional.com.br

Sartre no Brasil: expectativas O império por escrito


e repercussões Leila Mezan Algranti e Ana Paula Megiani
Rodrigo Davi Almeida Alameda Editorial
Editora Unesp 608 páginas, R$ 78,00
136 páginas, R$ 32,00
O desafio deste livro é escrever uma histó-
Rodrigo Almeida aborda em seu livro os ria da leitura no mundo ibérico, quando
significados históricos e políticos da visita a ideia corrente é a de que neste universo
de Jean-Paul Sartre e Simone Beauvoir ao nunca houvera uma forte tradição de co-
Brasil em 1960, que marcou uma geração municação escrita. A pesquisa é feita a par-
FOTOS EDUARDO CESAR

de intelectuais, entre eles José Arthur Gia- tir de documentos de papel fundamental
notti, Ruy Fausto e Bento Prado Jr.. na difusão dos valores imperiais.
Editora Unesp (11) 3242-7171 Alameda Editorial (11) 3012-2400
www.editoraunesp.com.br www.alamedaeditorial.com.br

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...
FICÇÃO

… ssssssss

Celso Mauro Paciornik

E
nte se expande em inquieta exultação. memória absoluta das eras em todos seus infinitos rodeios
Escoa o tempo ondulante aos solavancos por ex- enlaces desenlaces. Expansão se compraz comove e infla
tensões dobras refluxos. A emanação se arroja para com a cósmica carga da acumulação abissal. Nada que
fora para longe a bolha esferoidal infla inexoravelmente foi está ausente, tudo que é se distende retesa no esforço
insuflada pelo avanço irreprimível agora bem mais rápido condensado da busca.
que a expansão geral das coisas para o princípio e o fim, Quantidades ínfimas e cósmicas, abstrações voláteis e
o centro e o extremo. densas, certezas sólidas e fugazes, dúvidas atrozes, credos
Ente reordena persistentemente as massas esvoaçan- inconstantes e impotentes se recombinam e reconfiguram
tes de sua emanação sobrepondo subpondo envolvendo no avanço incessante, mistérios engendrando mistérios,
contrapondo entretecendo dados equações sensações a memória organizada do caos.
memórias teorias significados em novas combinações Ente estremece sob os impulsos de um prazer mui-
estimulantes prazerosas aflitivas inquietantes. to antigo, feito o espanto no achado de uma solução de
Emanar preenche expande excita apavora engolindo problema excruciante e o defrontar-se nos solavancos da
tempos e espaços e outras tantas coisas inapreensíveis expansão com as demais emanações no cosmos.
rumo ao extremo e ao âmago da expansão cósmica. Uma recordação insistente de matéria mortal entre-
Emanar é a maneira inelutável, a potência em plenitude meia o deleite das equações se propondo e se resolvendo
carregada de probabilidades possíveis e impossíveis inci- nas urdiduras do tempo. Razão virou crença e vice-versa;
dentes acasos encontros, insuflada pelo sopro primitivo matéria continha limitava e expandia e transmutava ener-
da rocha. gia e espírito em novas singularidades vitais. Angustiante
A memória da emanação revasculha incansável os mistério de uma suspeita de explosão primordial se eno-
turbilhões do acúmulo onipresente; incontrolável sen- vela agora com novas provisórias certezas sobre antes e
sação de ancestral riso infantil percorre as reverberações depois do princípio singular, antes do princípio, depois
do avanço. do fim, o que é o meio, é meio?
Ente sente. Agora.
Ente infere compara deduz separa recombina noções A emanação se aferra ao presente da jornada ine-
certezas lembranças harmonias em novas percepções e lutável.
possibilidades, as memórias de pó e vento e pedra e fon- Outras emanações no percurso traziam bagagens pare-
te se interpenetram agora com sobressaltos primais dos cidas apenas apreensíveis, o espaço temporal de cada uma
primeiros viventes espasmos multiplicadores da bactéria, favorecia enleios e trocas provisórias e depois se rompiam
lágrimas uivos espantos de primitivos êxtases, dúvidas e desfaziam-se os enlaces mas a emanação persistia ainda
angustiantes de primeiras inferências, vento assobiando que levemente alterada. Ente sente.
em frestas, marulho de águas, farfalhar de folhas, estrondos Emanar é um perpétuo reordenar de lembranças e
de vulcões, tormentas silvos rugidos grasnidos trinados sensações noções certezas dúvidas lembranças longínquas
combinam-se e transformam-se com novas vibrações em de um balé de rochas celestes rodopiando em torno de
harmonias mais e mais extasiantes. um astro radiante, de moléculas inertes transmutando-
Ente condensa na fina crosta inconsútil da bolha a -se em moléculas instáveis irrequietas, em criaturas vitais

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NASA J.P. HARRINGTON (U.MARYLAND) AND K.J. BORKOWSKI (NCSU)
e angustiadas numa busca incessante de perpetuidade, ecoa desde o vazio central da expansão até a superfície
engendrando formas meios sistemas controles domínio tensa inconsútil do avanço.
e expansão, destruindo e reerguendo grupos e moradas,
crescendo minguando adaptando-se depurando con- sens, sense, senso, sentido, sinn, , , ,
flitos em acomodações e acertos, escapando à extinção , , , smysl, fornuft, zin...
prognosticada do rochedo natal para outras rochas cada
vez mais distantes até o triunfo provisório mas estável De repentino horror ente estremece na suspeita da
de ente – condensação expansiva da matéria pensante da proximidade do limiar da expansão. Intuição lhe instiga
rocha primitiva natal emanando agora mais rápido que uma suspeita de vazio, um vazio onde sentido não se cria
a expansão celestial. em nenhuma acepção, o enfim da busca seria o fim da
Ente sente. Em alguma porção da emanação emerge emanação da expansão o estouro ou esvaziamento inevi-
uma noção de orgasmo. A busca já não parece infinita tável da bolha, memória absoluta do sopro interior.
eterna interminável. A busca é apenas compulsão essência Das revoltas vastidões vibrantes das entranhas da ema-
mesma da emanação expansiva, as fronteiras do encontro nação, na irremissível solidão da sobrevivência, antigo eco
supremo parecendo se acercar perigosamente. de antiquíssima estrofe de um consultor de números e
A superfície tensa da emanação estremece. estrelas ecoando vibrações musicais inda mais ancestrais
Ente ausculta a iminência de um desfecho de busca, reverbera como um augúrio.
de um confronto com o limiar da expansão.
Agora ente abarca na perpétua emanação a tão ansiada With Earth’s first Clay They did the Last Man’s knead,
busca do extremo, o confronto com o limite, a angústia And there of the Last Harvest sow’d the Seed;
natural da plenitude potente se faz pavor do encerra- And the first Morning of Creation wrote
mento da busca, se confunde com o persistente deleite What the Last Dawn of Reckoning shall read. *
da expansão.
Razão e fé matéria e energia abstração e concretude
alegria e dor espaço e tempo ordem e caos ser e não ser * [O último dos mortais fê-lo a Argila primeira./ Da última safra então
materialidade e transcendência, dicotomias espalhadas lançou-se a sementeira./ E escreveu o primeiro Albor da Criação/ O
nos desdobramentos pregressos do ente se entrelaçam e que lerá um dia a Aurora derradeira]. Tradução de Jamil Almansur
se dissipam na iminência do desfecho. Haddad do rubai (quarteto) atribuído a Omar Khayyam (c.1040
A bolha se distende à beira do paroxismo do estouro. – c.1125) e traduzido para o inglês pelo poeta Edward Fitzgerald
A emanação se pergunta o que será a busca como (1809-1883).]
surdamente já vinha se perguntando desde a consciência
primordial na caverna dos tempos até o surgimento
do ente.
Uma algaravia irreprimível de noções se entretece nas Celso Mauro Paciornik é formado em Letras pela USP e
vastidões rarefeitas das entranhas da emanação expansiva tradutor de obras de William Faulkner, Joseph Conrad, Daniel
em vibrações desarmônicas. Uma algaravia arrebatadora Defoe, entre outras.

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CONCURSO: Instituto Brasileiro de Museus


Comitê de Busca para o cargo
VAGAS PARA O MUSEU LASAR SEGALL de Diretor Geral do CNPEM
?
1 Museólogo
O Centro Nacional de Pesquisa em Energia e
?
1 Técnico em assuntos educacionais Materiais (CNPEM), anteriormente denominado
?
1 Analista administrativo Associação Brasileira de Tecnologia de Luz
Síncrotron (ABTLuS), anuncia a formação de um
inscrição: até 23 de fevereiro Comitê de Busca para o cargo de Diretor Geral da Instituição.
www.funcab.org/site/index.php
Integram o Comitê de Busca:
Rogério Cezar de Cerqueira Leite - Presidente do Conselho de
Administração e do Comitê de Busca
Carlos Henrique de Brito Cruz - Diretor Científico da FAPESP
Celso Pinto de Melo - Presidente da Sociedade Brasileira de Física e
Professor Associado do Departamento de Física da Universidade Federal
de Pernambuco
João Evangelista Steiner - Professor Titular do Instituto de Astronomia,
Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP
Pedro Wongtschowski - Membro do Conselho de Administração

Os candidatos interessados devem enviar currículos para Rui Henrique


Pereira Leite de Albuquerque, secretário executivo do Comitê de Busca, pelo
e-mail albuq@abtlus.org.br. As entrevistas com os candidatos começam dia
15 de fevereiro deste ano.

Com sede em Campinas, São Paulo, o Centro


Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais
(CNPEM), do Ministério da Ciência e Tecnologia,
congrega o Laboratório Nacional de Luz
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Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE) e o
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