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recluso
Desinibido entre amigos, expansivo no exterior, fechado no Brasil, escritor nega reclusão
e só se chateia com a celebridade
O cinema Leblon estava vazio àquela hora do dia, e o diretor Tony Vanzolini não
escondeu sua frustração quando viu sua poltrona preferida ocupada por um homem de
boné.
- Zé Rubem!
A obstinação com que Fonseca preserva sua intimidade desconcerta até fãs como o
repórter Luiz Carlos Azenha. Ele estava na Alemanha quando da queda do Muro de
Berlim e resolveu entrevistar um casal que falava português. O homem se identificou
como José Fonseca e alegou que não podia tirar o boné por causa de um machucado na
cabeça. No Brasil, os parentes e amigos de Rubem Fonseca assistiram atônitos pela TV
Manchete a um certo José Fonseca dizer que aquele era um momento histórico. Só no
dia seguinte Azenha descobriu que tinha entrevistado o homem que não dá entrevistas.
Não faltam teorias para explicar seu recolhimento. Ele mesmo, numa conversa com
amigos, disse que não era recluso, apenas se chateava com a celebridade. "Ainda bem
que não sou célebre. Fico pensando em pessoas realmente célebres, como Chico
Buarque. Um dia saí de casa e tive uma queda de pressão. Para não cair, porque achei
que ia desmaiar, me apoiei numa árvore e sentei num cubo de metal baixinho que tinha
em volta para protegê-la. Pus a cabeça entre as mãos e fiquei descansando. Aí chega
uma mulher e pergunta: 'Você não é o Rubem Fonseca?'. Eu me curei logo. Moral da
história: ela chegou em casa e deve ter dito: 'Encontrei o Rubem Fonseca bêbado, na
sarjeta, saiu cambaleando.'"
Aos 18 anos, levou os originais de seu primeiro livro para uma pequena editora que
ficava num sobrado da Rua das Marrecas, no Centro. Quando voltou, algum tempo
depois, ouviu do editor uma lição de moral: pessoas que escrevem literatura de primeira
não usam nomes feitos, nem criam esses tipos de personagens. Fonseca pediu de volta
o livro, o homem disse que ia procurar e nunca mais se achou o manuscrito. O escritor
contou a um amigo: "O dono da editora, que era pequena e durou pouco, ficou muito
consternado, jurando que nunca havia perdido um original, e eu tentei consolá-lo,
dizendo que ele não se preocupasse, que eu escreveria outro. Demorei 20 anos para
isso. Durante esse tempo, fiquei apenas lendo com enorme furor."
O primeiro livro, "Os prisioneiros", saiu somente em 1963, quando Fonseca tinha 38
anos e era diretor da Light. Foi publicado graças a Gumercindo Rocha Dórea, dono da
GRD, que conta:
- Na Light, Zé Rubem tinha uma secretária, Fernanda, que um dia me disse: "Ele tem
uns contos na gaveta."
- Logo no primeiro conto, falei: "Esse nem adianta eu ler até o fim. Vou ler no livro."
- Falei: "Olha, um anjo misterioso me deu os originais de seu livro." Irritado, ele
desabou uma catadupa de termos próprios da sua literatura.
Uma semana depois, mais calmo, concordou com o livro, mas exigiu que a capa fosse
feita pelo filho Zeca, de 6 anos. A "Os prisioneiros" se seguiu "A coleira do cão", e o
sucesso fez com que Dórea não conseguisse mais segurar Fonseca, que teve livros
editados pelas editoras Artenova, Francisco Alves, Olivé, Nova Fronteira e, desde 1988,
Companhia das Letras.
Como ele não gosta de dar publicidade a seus atos, poucos sabem que ajudou a criar o
Corredor Cultural do Rio, que presidiu a Fundação Rio - a convite do amigo Israel Klabin,
então prefeito do Rio - sem receber qualquer remuneração pelo trabalho e que foi
responsável pela troca do nome da Rua Montenegro por Vinicius de Moraes, em
Ipanema. O jornalista Carlos Leonam sugeriu a idéia e Fonseca falou com Klabin. "Teve
gente que não gostou, mas o Vinicius merecia a homenagem", justificou.
Fonseca nasceu em Juiz de Fora, filho de imigrantes portugueses que moravam no Rio.
Seu pai, Alberto Augusto, era gerente do magazine Parc Royal e sua mãe, Julieta de
Mattos, estilista da loja A Moda. Mudaram-se para Minas, onde abriram o magazine Paris
n'América. Mas o negócio não deu certo e tiveram que voltar para o Rio, quando
Fonseca tinha 8 anos. Julieta dizia que ele aprendeu a ler sozinho aos 4 anos. Obcecado
com leitura, arrumava truques para despistar a mãe, que tinha medo de que ele não
dormisse e ficasse doente. No Portal Literal, onde escreveu cinco capítulos da vida de
José - na verdade uma autobiografia disfarçada - Fonseca diz: "Assim, para poder ler,
José esperava que ela e o seu pai dormissem, utilizando-se de vários truques para
manter-se acordado: andava dentro do quarto de um lado para o outro; deitava nu no
chão frio do ladrilho."
Seu primeiro emprego foi aos 12 anos, como entregador de uma pequena oficina de
bolsas e carteiras de couro. O trabalho permitiu-lhe circular pela cidade toda. Fonseca
cursou direito. Era advogado criminal e tinha clientes muito pobres, a ponto de certa vez
ter recebido uma galinha como pagamento. Para sustentar o escritório, trabalhava como
revisor do "Jornal do Brasil". Mais tarde, quis fazer concurso para juiz. Como não tinha
ainda cinco anos de formado, um colega de faculdade sugeriu que fizessem exame para
comissário de Polícia. Era uma forma de esperar pelo concurso, ao mesmo tempo em
que aprendia direito penal e processo penal. Mas acabou desistindo de ser juiz e largou
a polícia após nove meses. A curta experiência foi usada mais tarde em seus livros.
- Ele fez poucas diligências, mas foi o suficiente para ficar escrevendo até hoje sobre
isso, tentando expurgar uma realidade que foi tão marcante - diz a filha, Bia.
O escritor morou duas vezes nos EUA. A primeira, quando ganhou, com mais nove
policiais, um concurso. Mais tarde, fez mestrado em Boston, como professor-assistente
da Escola Brasileira de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas, com bolsa
das Nações Unidas.
Viúvo - sua mulher, Thea, morreu em 1997 - é pai de Bia, dona da editora Capivara,
Zeca, fotógrafo, e Zé Henrique, diretor. Há dois anos, passou alguns dias internado por
conta de uma perfuração no estômago. Também parou de beber e reduziu o número de
charutos - hoje só fuma de vez em quando. Mantém a boa forma com caminhadas pelo
calçadão. Fonseca sempre cultivou o físico. Foi capitão do time de basquete infanto-
juvenil do Flamengo, tinha pesos em casa, costumava subir os nove andares do prédio
da Light de escada, nadava e malhava muito antes que virasse moda.
- De vez em quando ele fala: "Zeca, vamos pagar 20?". E faz as 20 flexões, com orgulho
- diz o filho Zeca.
Em sua casa, um busto serve de cabideiro, onde põe sua coleção de bonés - presente
preferido dos amigos. O curioso é que o busto retrata o próprio Fonseca e foi feito por
Thea. Vascaíno, deixou de ir aos estádios e prefere se refugiar no cinema. Gosta de
escrever com a televisão ligada na MTV e, em matéria de leitura, diz-se um onívoro. Lê
o que aparece na frente, mas as leituras preferidas são poesia e bula de remédio. Marçal
Aquino é um de seus escritores brasileiros preferidos. A leitura só tem rival no cinema,
uma paixão que começou cedo. Sua babá namorava um lanterninha e aproveitava-se da
sala escura para namorar, deixando Fonseca sentado por horas diante das imagens. Foi
um dos primeiros críticos de cinema da "Veja" e tem mantido a média de um filme por
dia, sem distinção de gênero. Dia desses, disse a um amigo:
"Ele anteviu esse estado de colisão social em que nos encontramos no país. Não me
perdôo até hoje de não lhe ter feito justiça com 'A grande arte'"
JÔ SOARES, Humorista
"É meu melhor amigo. Sigo seu exemplo, sempre. Em todos os aspectos, no literário e
no humano. Quando não sei o que fazer, olho para ele, e vou em frente"
Fonte: O Globo