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INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

Campus Vitória – V Semana de Letras do Ifes - Vitória

Organização de texto de Cominucação Oral


Camila David Dalvi

15 de maio de 2018

Título: DOIS AUTORES ENTRE NÓS: AS NARRATIVAS DE NELSON MARTINELLI


FILHO E PAULO BUSTAMENTE JÚNIOR EM SUAS RELAÇÕES COM ASPECTOS
BIOGRÁFICOS

Resumo: Esta comunicação pretende-se um estudo inicial comparativo entre dois


escritores capixabas vinculados ao curso de Letras do Instituto Federal do Espírito Santo
- campus Vitória: Nelson Martinelli Filho, professor doutor do curso, e Paulo Bustamante
Júnior, aluno do primeiro período. O primeiro, com o romance Dupla Cena (2010) já
publicado, é conhecedor e pesquisador de estratégicas autoficcionais de escrita,
percebidas em seus artifícios em todo o romance. Já Paulo – cujos contos analisados,
“Abortado”, “Dei uma voadora no meu patrão” e “Minha mãe sofreu um AVC”, ainda não
foram publicados – apresenta visível talento e promissor caminho a percorrer como
escritor. Nos contos, ainda que não haja intenção de escrita autoficcional, podem-se
entrever traços das experiências biográficas do autor e de suas escolhas políticas.
Traça-se um paralelo entre tais escritores que, ao nosso alcance, podem dialogar
conosco e devem ser divulgados a fim de que se enriqueça a experiência com a
literatura feita por escritores capixabas.

Palavras-chave: dados biográficos; Nelson Martinelli Filho; Paulo Bustamante Júnior.


Se de fato um conjunto importante de textos contemporâneos trabalha com
narradores que se inclinam à indeterminação, à fragmentação, cabe examinar
de perto esse processo em termos de sua continuidade, suas especificidades.
As escolhas recentes feitas pelos escritores ultrapassam influências e
continuações de tendências do início do século XX. Elas estão articuladas com
problemas específicos da contemporaneidade.
Jaime Ginzburg

Esta comunicação resulta de um muito recente interesse como leitora e pesquisadora:


a narrativa capixaba contemporânea. Trata-se de um percurso ainda incipiente em
busca de maior aproximação com as escritas daqueles que estão ao nosso redor, sendo
eles já publicados ou não. Nesse sentido, a escolha das obras literárias em questão
relacionam-se a aspectos afetivos em certa medida, uma vez que Nelson Martinelli
Filho, colega de trabalho aqui no campus e em outras sendas, e Paulo Bustamante
Júnior, caro aluno de primeiro período para quem comecei a lecionar este ano,
despertam-me o interesse de divulgá-los a outros leitores e pesquisadores. Este último,
em especial, viva e visivelmente interessado pela leitura e pela escrita de literatura,
merece ser inserido no círculo de escritores capixabas pela qualidade de seus escritos.
Ambos os escritores colatinenses, Filho e Júnior, atrelados ao curso de letras, de ponta
a ponta, e próximos a nós, circulando pelo campus, apresentam em suas composições,
com suas próprias e diferentes dicções, uma relação mais ou menos próxima com
elementos biográficos.

Iniciemos com Nelson Martinelli Filho em seu romance Dupla Cena, publicado em 2010,
após ter sido selecionado no edital 007/2010 da Secretaria de Cultura do Espírito Santo.
No ano de publicação, o escritor estava em vias de terminar a graduação e iniciar, no
ano seguinte, seu mestrado, cuja pesquisa resultante discute confissão e autoficção em
outro escritor capixaba, Reinaldo dos Santos Neves: cujos alguns aspectos da escrita
são influência para Nelson. Recém-graduado, então, e certamente atento às discussões
contemporâneas acerca da constituição da subjetividade e de sua relação com a escrita
autoficcional, Martinelli escreve/publica um curto romance autoficcional que descreve a
ida de Miguel, Riomar e Benjamim, a tríade de personagens principais, a um evento
literário no Rio de Janeiro, experiência que durou dois dias, o tempo cronológico da
narrativa. Não é segredo que Benjamim (e essa relação é explicitada pelo texto de
orelha do livro), personagem do romance, faz referência a Lucas dos Passos, amigo de
graduação de Nelson. Este é chamado Miguel no texto literário. Ambos são
capitaneados por Riomar, correspondente literário para Wilberth Salgueiro, professor de
literatura da Universidade Federal do Espírito Santo, carioca que há muitos anos vive
em terras capixabas, estudioso de Grande sertão: veredas e de outras obras literárias.
Os três personagens moravam/moram no Espírito Santo, eram vinculados ao curso de
letras da Ufes, eram amigos: de curso, pessoais e de futebol. Riomar, flamenguista, e
Benjamim, tricolor, são apaixonados por futebol – fato verificável com as inspirações
reais para a construção dos personagens – enquanto Miguel deixa clara a sua
indiferença pelo esporte ou mesmo a aversão aos comportamentos muito apaixonados
dos amigos e de todos os outros personagens secundários. Um dos motes da escrita é
também narrar, de maneira engraçada e irônica, a sobrevivência em meio aos excessos
futebolísticos aos quais estava exposto Miguel.

A obra, cheia de tiradas e de muito bom humor, gira em torno de metáforas literárias,
futebolísticas, cariocas, capixabas, sempre regadas a muito chop e conversas e, claro!,
metalinguagens como cascas que se multiplicam e se dão à leitura. Há no romance
dezenas de referências a escritores, a obras literárias e a pensadores da teoria literária,
sejam eles lembrados, insinuados pelas metáforas ou mesmo personagens secundários
da narrativa. Para citarmos alguns exemplos dos trocadilhos martinellianos, observemos
caracterizações de Benjamim – nome escolhido talvez inspirado Walter Benjamin,
pensador muito referenciado pela tríade real, ou mesmo pela riqueza de possibilidade
de desdobramentos do eu, na terminação “mim” – referência a Lucas dos Passos, que
ecoam em algumas passagens brincalhonas que Nelson joga como iscas para
mordermos: “(...) desde que nos conhecemos só o vira a passos lentos, lentíssimos” (p.
19); “Prosdócimo Passos”, um amigo de muitos anos (p. 35); e “Benjamim trazia uma
xícara em cada mão, andando em passos milimétricos” (p. 49).

Há na obra, para além do nome do autor empírico, outros três Nelsons. O primeiro trata-
se de um autor referenciado rapidamente em sua poesia, Nelson Ascher; ou segundo,
trata-se de uma enominação errônea de Riomar ao marido de Caterina (chamado
Nelson por Riomar, mas cujo nome correto era Elson); e, o último e mais recorrente, é
outro personagem, engenheiro, que namorava Alyne, linda mulher sonhada por Miguel
(e a quem o autor dedica a obra). Este último Nelson, incômodo ao personagem
principal, aparece em vários pontos da narrativa faz parte de um sonho estranho que o
personagem-narrador teve e relatou, o que mostra como esse Nelson ficcional povoa a
mente de Miguel, todos frutos da experiência e inspiração de Nelson empírico. A relação
conflituosa com o Nelson engenheiro, assim, é uma das peças pregadas por nosso
escritor – e o que dizer destes fragmentos: “Dormi e não sonhei. Não sonhei com futebol,
nem com Nelson, nem comigo, nem com nada” (p.66); e “mesmo futuro engenheiro,
aquele Nelson poderia estar em meu lugar” (p. 76). Há ainda, para além dessa questão,
momentos em que o desdobramento de personalidade se vê também no momento em
que o narrador autodiegético se coloca em terceira pessoa: “respondeu Benjamim
enquanto Miguel virava a página do jornal” (p. 41).

Notam-se as artimanhas de Martinelli, performático, ao trabalhar mesclando a ficção


com elementos biográficos, características próprias do que de convencionou chamar
autoficção. Nessa seara, não ficam claros os limites entre verdades empíricas
verificáveis e os incrementos da ficção. E é justamente essa nebulosidade ou
indecidibilidade sua característica mais constituidora e potente. Um dos motivos é a
busca por inventividade dos narradores/autores contemporâneos, muito afinados às
crises do que seriam as definições de personalidade/subjetividade. As demarcações de
identidade não são claras, e é difícil precisar o que se pode nomear a verdade do ser,
como se buscava afirmar em um pensamento mais cartesiano, em que esses limites
poderiam ou deveriam ficar mais claros. Esse exercício intrigante e divertido feito por
Nelson, conhecedor de tais estratégias, constitui um questionar sobre os limites entre o
eu real (complexo, nebuloso e inapreensível) em suas vivências factuais e a ficção por
ele criada. Trata-se, portanto, da performance, “arte de fronteira”, estratégia emprestada
as artes plásticas para a literatura, que leva em consideração que “a arte não é, em seu
resultado final, externa ao artista, na medida em que o próprio artista (seu cotidiano, seu
corpo, sua existência material e seu ato de viver/criar) é também matéria-prima da obra”.
O escritor, assim, é sujeito e objetivo de sua escrita, sendo essa relação mais ou menos
visível.

O narrador descentraliza-se, representa as questões da contemporaneidade, tornando-


se não confiável – porque não tem mesmo que ser – deixando de buscar, como coloca
Jaime Ginzburg em seu artigo “O narrador na literatura brasileira contemporânea”
(2012), a plenitude. Tanto é complexo esse jogo que sabemos que houve um evento de
dois dias, inspiração para a escrita martinelliana, mas percebemos que a narrativa é
entrecortada de pensamentos, lembranças e percepções que não fazem parte do ato
de apenas narrar, como se porpõe no início da obra, os fatos dessa aventura carioca. O
fingimento, a brincadeira, as guinadas são planejadas para esse constructo ficcional
elaborado. Examinemos outro exemplo acerca dessas questões. Já assinando como M.
(de Miguel. Ou de Martinelli?), antes mesmo de iniciar a narração, há uma “Nota” e que
Nelson brinca com seu leitor – só com aqueles que acham possível e querem verificar
os elementos empíricos: “O texto que se segue, no entanto, é uma descrição fiel de tudo
o que foi presenciado naqueles dois dias. Com certa obstinação, o leitor mais curioso
poderá averiguar a veracidade da maioria dos dados que comparecem nessas páginas”
(p. 13). Já na página 53, citando uma das conferências assistidas no evento, Miguel
clarifica o tema: “Nosso tema será ´Criação e confissão ou como a ficção transforma a
noção de documento, de registro biográfico e da própria história humana´ (...). O mote
do debate, portanto, tratava dos enlaces e polêmicas em torno da ficção e história
pessoal do autor”. Sobre isso, Miguel reflete e opina, mostrando o cinismo e a clareza
de Nelson Martinelli em nos mostrar que ficção não se trata de verdades/mentiras:

Francamente, eu não sei como os escritores recriam e mentem sobre


suas experiências pessoais com tanta naturalidade, sem travamentos.
(...) Caso eu fosse um ficcionista, não saberia como não ser verdadeiro
sobre os fatos narrados (...). Sou um falso dissimulado (p. 54).

Cabe ainda comentarmos Riomar, personagem que nos remete a Riobaldo – e as


metáforas líquidas de rio, goteiras, pingos, mares etc. não cessam e, profusas, emanam
em fontes e fontes – de Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, obra citada direta
e indiretamente no romance de Martinelli diversas vezes. Tal personagem, Riomar,
referência a Bith, aparece sempre caracterizado como capitão, “líder do bando” ou
termos similares a fim de aproximar carinhosamente a empreitada carioca como uma
saga entre jagunços amigos, que partilham da mesma vivência; no caso do romance
analisado, a acadêmica. Para finalizarmos por agora os poucos dos milhares de
comentários possíveis sobre Dupla cena, retomemos o título. A dupla cena, Espírito
Santo/ Rio de Janeiro, na verdade, pela polissemia e riqueza da obra, converte-se em
múltiplas cenas (conforme nos alerta Wilberth na quarta capa do livro). E cena é uma
referência clara aos palcos do teatro, à representação, ao desdobramento, à
performance a que Nelson Martinelli, sabedor de muitas estratégias ficcionais,
intencionalmente se lança em sua escrita literária, emprestando corpo e criação.

Em outra instância de análises, vamos traçar algumas considerações sobre Paulo


Bustamante Júnior, que, em sua pequena biografia (escrita por ele após minha
solicitação), assim diz:
Paulo Fernandes Bustamante Junior nasceu capixaba, cidade de
Colatina, na primavera de 1989. Entrou em contato com o mundo das
palavras através dos fumettis da Bonelli Comics, pelos quais foi
alfabetizado. Quando adolescente, em sua fase punk, quis dinamitar a
Ilha de Manhattan; percebeu mais tarde, porém, que era mais efetivo ser
um militante comunista. Possui duas narrativas publicadas: uma em
quadrinhos pela revista Capitu e outra em prosa pela Recorte Lírico.
Licenciou-se em Pedagogia no ano de 2016 e hoje cursa Letras no
Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). Mora em Vila Velha, junto com
sua filha Elis. (2018)

É notório em seu breve texto que o colatinense apresenta de relance muitas de suas
fases biográficas. Delas extrai-se uma constante que pode ser vista na atitude, nos
comentários e nos gostos, mesmo os literários, de Bustamante Júnior: a militância, o
engajamento a que se propõe sendo ele um crítico astuto do sistema capitalista em suas
contradições, problemáticas e produções de miséria. É complicado e ao mesmo tempo
simples e prazeroso analisar uma escrita ainda não publicada e um autor que não tem
uma sólida biografia difundida para pesquisarmos. Por acreditar na escrita, no estilo, no
posicionamento político e no futuro literário de Paulo Bustamante que me lanço aqui a
apresentá-lo como uma das várias fases pelas quais o escritor-estudante certamente já
passou e há de passar pelas sendas das letras. A economia e ao mesmo tempo a
densidade do texto biográfico apresentado apontam para o olhar minimalista para
particularidades e para o interesse na coletividade, da qual Paulo é parte.

Vamos a um breve resumo dos contos. O primeiro, “Dei uma voadora no patrão”,
apresenta um narrador-personagem que, tendo sido humilhado pelo patrão na frente
dos colegas de trabalho (e isso não excluiu um pressuposto histórico de sofrimentos no
trabalho massacrante), dá-lhe uma voadora. Depois do feito, o personagem é bem visto
pelos colegas: “Ao sair da loja meus colegas me encaravam com respeito e admiração;
fiz o que muitos queriam ter feito. Era um herói, alçando méritos irrealizáveis e
quebrando a ordem a favor dos injustiçados” (p.1). Sua mulher, Mariluce, humilde, ouviu
a história “Ela riu Depois chorou” (p.2), como fez repetidas vezes diante das dificuldades
que se apresentaram aos personagens após a demissão do marido. A família é
constituída de Mariluce, seu marido e de tia Lurdes, que,, ao saber da notícia, lançou-
se ao seu ritual também: “beijou o santo em sinal de reprovação” (p.2). Tendo prometido
conseguir novo emprego a fim de pagar as contas e comprar uma máquina de lavar
para minimizar os sofrimentos de sua esposa Mari – que já trabalhava desde criança –,
o personagem sai, mas acaba permanecendo num jogo de bocha. Alternando entre
distraído de sua empreitada, com preguiçca de mover-se e focado em melhorar a vida
(principalmente de Mari que já havia passado por um casamento abusivo arranjado), o
personagem segue, é mais uma vez humilhado na entrega de um currículo e, ao final,
temos:
A caminho do morro, o bar do Seu Juquinha explodia num
alvoroço danado de gente, um senhor de chapéu me disse que
naquele dia acontecia o II Campeonato de Bocha do Bar do Seu
Juquinha. Entrei para acompanhar a movimentação, os coroas
do dia anterior estavam lá e me perguntaram se ia participar,
respondi que não, mas eu levava jeito, disseram, a premiação
era uma bufunfa boa e o valor da inscrição apenas quinze reais.
/ Cheguei em casa, depois da competição, contei a novidade pra
Mariluce. Ela riu. Depois chorou. Tia Lurdes beijou santo... (p. 5)

No segundo conto, “Minha mãe teve um AVC”, o narrador, também autodiegético e de


camada pobre da sociedade, eletricista desempregado, conta de sua relação com a
mãe, internada em um hospital após um AVC e já calejada pelos anos de trabalho diante
de uma máquina de costura, que o chama sempre de burro por não aproveitar as
oportunidades na vida. A mãe se referia a Thalita, namorada de classe social mais
elevada (estudante de odontologia e filha de uma deputada), que não gostava de expor
seu namorado há já três anos à família: “Thalita, por alguma razão, me escondia da
mãe. Depois de todo aquele tempo de namoro, minha sogra não me vira mais que duas
vezes.” (p. 6). A namoro está em crise. Nós, leitores, acompanhamos uma das últimas
discussões, quando Thalita confessa o que realmente pensa de Paulo – acha-o sem
ambição, sem vontade de crescer, inútil. “favelado”, “encosto”, “parasita” e inexpressivo
– e obtém dele uma resposta: “patricinha”, “você é um clichê!”. A discussão termina com
os dois abraçados, chorando baixinho em transando depois da tensão. Sempre fazendo
a distinção entre si (e seus semelhantes) e os de melhor espécie, Paulo não deixa fugir
à discussão a luta de classes.

Simples (mas não simplório), sempre em situação de dificuldade – financeira e de


colocação social, e em busca de sobrevivência, tal narrador-personagem, assim como
o do conto anterior, representa aqueles a quem Paulo quer dar relevo: os rebaixados
pelo sistema econômico ao qual todos estamos sujeitos. Bustamante Júnior releva as
características genéricas desses seres humanos que, em sua literatura, causam no
leitor um sufocamento, uma empatia, um sorrio amarelo – alguns poderiam até julgá-los
sob pensamentos conservadores atrelados à ideia de meritocracia deq tão verossímeis
que são. Este sorriso sem graça vem da escrita com alguns relances de um humor
dolorido, das metáforas situadas entre a crueza da realidade e a brincadeira literária.
Nos dois contos mencionados, há uma relação conturbada e afetuosa com um
personagem feminino (esposa e mãe) e uma ausência dolorosa e significativa da figura
paterna – que abandonou a família e, se reaparece, o faz maneira esparsa, servindo
mais para atormentar o personagem principal. No segundo conto, ele menciona o sonho
que tivera de “ser um compositor e músico virtuoso (...), alugar uma casa e aconvidar
meu pai para me visitar” (p. 3, grifos do autor), o que não passava de “um mundinho
florido e ilusório criado pela mente de um jovem inseguro; mundinho para mascarar a
realidade de um operário malremunerado, que provavelmente morreria como a mãe,
explorado numa fábrica até o resto de seus dias” (p. 3). Mais ao fim da narrativa, num
encontro com o pai, ouvimos do personagem: “- Pai, o senhor nunca ligou pra minha
mãe. Por que não dá linha, como das vezes que a deixou se foder sozinha, ralando pra
sustentar meus irmãos e eu?” (p. 9).
Esse narrador (de “Minha mãe teve um AVC”), como o próprio Paulo já confidenciara,
a despeito de sua tentativa de distanciar-se um pouco mais de si, não se descola de sua
vivência como pessoa empírica, de sua relação mesma com a sociedade, das
dificuldades que enfrenta em suas lutas diárias: a biografia, em sua vivência íntima e
pessoal, bem como coletiva, é o mote para a reflexão que, no entanto, ultrapassa o
indivíduo e encontra uma ideologia maior onde muitos Paulos e muitos de nós estamos
situados. Ou seja, integrado à vida pessoal e ao seu compromisso crítico-político (com
a militância comunista) é que surge o escritor de narrativas Paulo Bustamante, implicado
em sua realidade e em seus textos, certo de sua necessária atuação. O desejo, já
deixado de lado, não com certa amargura, dessa voz narrativa de compor músicas
também é visto no terceiro e último conto a ser comentado “O abortado”. O tema da
busca por ser escritor é central nesse curto texto de três páginas: “Ramon Avelar tomou
a decisão na sua 39ª primavera. / Serei um escritor! - bradou de frente ao espelho do
banheiro, na quitinete onde morava. Não mais um passatempo, daquele dia em diante
seria um profissional.” (p. 1). Apenas neste caso temos um nome e uma narrativa
heterodiegética. Há referências a escritores, autores de literatura brasileira, sob o olhar
do personagem conhecido pela onisciência do narrador. Ramon tinha suas opiniões
sobre os cânones literários e estava decidido a tornar-se escritor, a ponto de,
diferentemente dos outros personagens centrais dos outros contos, ter largado o
emprego para dedicar-se a essa empreitada que miseravelmente falha. Paulo também,
incipiente, busca legitimar-se como escritor e, numa espécie de delírio, acredita em sua
grandioso talento a ser reconhecido rapidamente por todos escritores e editores para
quem enviara os manuscritos. Na vida real, Bustamanete Júnior partilha do mesmo
desejo legado aos personagens. Esperamos que esse desejo não esmoreça, é claro!
Depois de receber apenas uma resposta, de Ariano Suassuna, que o ridiculariza por ter
escrito concerteza, eis o que acontece a Ramon:
Enxugou o suor da testa, as mãos tremiam, as pernas vacilavam
ante a iminente decadência, desabou no chão, debatendo-se
compulsivamente, sua cabeça castigava o assoalho da quitinete
e cada pancada era uma humilhação, as surras do pai na
infância (BAM!), a professora de literatura caçoando de sua
dissertação perante toda turma (BAM!), o patrão recusando
pagar a hora extra (BAM!), a ex-esposa parada na porta, de
malas à mão, confessando não suportar mais morar em periferia
(BAM!)... Abortado (p. 3)

Em termos de estilo, a dicção da narrativa contemporânea – crítica, não cartesiana,


descentrada, para usarmos termos de Jaime Ginzburg – lá está, fazendo com que os
leitores sintam as contradições do mundo. Próximo, em alguns aspectos, da crueza de
Rubem Fonseca e dos cenários citadinos, distancia-se deste consagrado escritor por
sua compaixão maior com os pobres e suas dificuldades (sem que se caia na pieguice)
o que nega o cínico e muito erudito escracho fonsequiano. Os narradores de Paulo
sentem (e transmitem ao leitor) indignação, amargura, sem perder o tom irônico, os
cortes estratégicos, os silêncios que gritam e as metáforas contundentes disfarçadas de
despropositadas. Trata-se de personas desempregadas, abortadas – da vida? Do
sistema? Depois de adultos, como permite um discuso conservador? No fragmento a
seguir, de “Minha mãe teve um AVC”, o personagem, de maneira crua e cruel, confronta
hospitais públicos e privados e conclui que aqueles que são economicamente
favorecidos, que detêm poder, estão acima dos outros pobres-diabos:
Mesmo nos hospitais públicos onde a sujeira e a podridão são
visíveis, a estrutura é carcomida e os miseráveis são largados
pelos cantos, defeituosos, moribundos, agonizando em gemidos
lancinantes, sempre há um lugar limpo e aromatizado reservado
aos de melhor espécie. Os doutores, diretores, secretários de
governo. Um lugar para confabularem, fumarem seus cubanos,
beberem martíni, tramarem, rirem e treparem uns com os outros
excitados pelo choro de uma mãe que deu luz a um bebê
natimorto.” (p.4).

A aspereza de Paulo e a leveza de Nelson mostram os dois escritores tão diferentes e


ao mesmo tempo compromissados com a matéria-vida em face da matéria-ficção. Os
inúmeros usos de artifícios e recursos literários para acrescentar elementos e camadas
ao texto autofccional em Nelson correspondem à inevitabilidade de falar da vida, de
maneira crua, sem camadas e adornos: sem recursos, em Paulo. A escrita de
Bustamante Júnior é escassa como a vida dos personagens e a míngua de seus sonhos.
Martinelli Filho compromete-se, também, com a literatura. Ambos são contemplados em
suas manifestações no artigo “O narrador na literatura brasileira contemporânea”, de
Jaime Ginzburg, que trata do deslocamento, do descentramento das vozes narrativas.
No caso de Nelson, poderíamos refletir com Ginzburg: “: É possível narrar hoje? O que
muda para o ato de narrar no contexto pós-colonial? O que significa, na atualidade, com
debates recentes em psicanálise e em lingüística, a ideia de confiabilidade de um
narrador” (p. 201) ou ainda “A configuração da memória, também abrindo mão da ilusão
realista, se torna dissociativa, fragmentária, com a articulação, estudada por Walter
Benjamin, de elementos voluntários e involuntários” (p, 204). No caso de Bustamante,
vemos mais acentuado a seguinte aspecto descrito por Ginzburg:

É comum encontrar na narrativa brasileira contemporânea a


constituição de imagens de vida humana pautadas pela
negatividade, em que as limitações e as dificuldades de
personagens prevalecem com relação à possibilidade de
controlar a própria existência e determinar seu sentido (p. 200)

E ainda:
A principal hipótese de reflexão consiste em que, na
contemporaneidade, haveria uma presença recorrente de
narradores descentrados. O centro, nesse caso, é entendido
como um conjunto de campos dominantes na história social – a
política conservadora, a cultura patriarcal, o autoritarismo de
Estado, a repressão continuada, a defesa de ideologias voltadas
para o machismo, o racismo, a pureza étnica, a
heteronormatividade, a desigualdade econômica, entre outros.
O descentramento seria compreendido como um conjunto de
forças voltadas contra a exclusão social, política e econômica.”
(p. 201)

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