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SABERES CIENTÍFICOS,

artigo de revisão
SUJEITADOS E CURRÍCULO:
uma breve análise do filme Narradores de
Javé
Adenaide Amorim Lima*
Denise Aparecida B. Barreto**

RESUMO
Quem sou eu? Quem é você meu caro leitor? Até que
ponto somos aquilo que está documentado? Até que
ponto nossos saberes válidos se limitam àquilo que foi
avaliado, registrado e qualificado? Que saberes,
realmente, formam nossa identidade e nos constitui
enquanto sujeitos? Os saberes documentados nos
valorizam ou nos rotulam? Acreditamos que todos os
saberes, sejam eles formais ou informais, científicos ou
sujeitados são importantes na constituição do sujeito.
Porém, no mundo globalizado, apenas um desses
saberes é valorizado, justamente aquele que pode ser
registrado, documentado e quantificado. Vivemos um
momento em que os sujeitos são classificados e
valorizados de acordo os saberes e habilidades que
possuem, ou seja, vivemos sob a lógica capitalista e
para o mundo globalizado vale o quanto e o que está
registrado sobre você. E quando não há nada
documentado? Como provar e convencer que temos
direito à existência? Qual deve ser o papel da
educação, nesse sentido? Refletiremos estas questões
* Mestranda em Educação no
a partir do filme Narradores de Javé e a partir do drama Programa de Pós-Graduação em
vivido pelos moradores deste povoado fictício, o Vale Educação (PPGEd), da Universida-
de Javé, pretendemos fazer um contraponto com a de Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB). E-mail: adenaideamorim@
nossa realidade, a qual o filme representa. Para tal gmail.com.
tarefa nos basearemos na reflexão de alguns teóricos ** Professora DSc. Titular do
Departamento de Estudos Linguísti-
da filosofia, da sociologia e do currículo como Foucault, cos e Literários – DELL/UESB e
Bauman e Tomaz Tadeu. Professora do Programa de Pós
Graduação em Educação –
PPGEd/UESB. E-mail: deniseabrito
Palavras-chave: Saberes Sujeitados. Globalização. Narradores @gmail.com.
de Javé. Currículo.

1 INTRODUÇÃO

São incontestáveis os benefícios modernidade. Encurtamento das distân-


para a vida humana, de uma forma geral, cias, rompimento de fronteiras, cura de
surgidos com as revoluções científicas e doenças que antes dizimavam popula-
tecnológicas, principalmente a partir da ções, praticidade na vida cotidiana, entre

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tantos outros melhoramentos. No entanto, evoluir, exceto a humanidade do homem


devemos nos perguntar se todos podem que vemos sacrificada em várias
usufruir desses benefícios, o preço que se instituições sociais, como a escola, por
tem a pagar por tudo isso, ou mesmo exemplo, onde cada vez mais cedo o
quem é que está pagando esta conta. Em sujeito imerge na ordem da burocracia e
relação ao custo-benefício questionamos na racionalidade técnico-científica, em
se este vale a pena. Certamente que prol do progresso. Segundo Silva e
pode valer para alguns. Moreira (2011), o sucesso (atualmente
Temos observado, nos últimos resumido ao profissional) do indivíduo na
anos, um crescente movimento por parte vida requer evidências de mérito na
de estudiosos de diferentes áreas trajetória escolar e é para tal objetivo que
(incluindo o cinema), no sentido de fazer o currículo está organizado, ou seja, o
um exame atento do momento currículo existe para selecionar e
(espaço/tempo/história) em que estamos classificar os sujeitos de acordo com os
vivendo. De acordo com Marcondes seus saberes. E ainda, de acordo
(2002), estamos vivenciando uma crise de Machado (2007, p. 121): “O homem do
paradigmas que, certamente, pode ser ponto de vista da economia é um ser cuja
caracterizada como uma mudança vida é procurar escapar, pelo trabalho, à
conceitual, uma crescente insatisfação eminência da morte”. Temos a ilusão de
com os modelos anteriormente que a felicidade será obtida por meio do
predominantes, que ocorre, geralmente, dinheiro e, consequentemente, pela
depois de um período de estabilidade. acumulação de bens.
Nesse sentido, acreditamos que o O filme Narradores de Javé traz,
momento atual é o ponto de partida para também, a reflexão dessa problemática,
a discussão sobre o papel e o lugar apesar de tantas outras já utilizadas em
reservado a humanidade do homem que vários outros trabalhos acadêmicos, seja
parece sufocada e sem espaço/tempo explorando a questão da linguagem, da
para se manifestar e para ser. memória, da tradição oral, escrita, da
Vivemos um momento pleno de política etc, como também o trabalho de
desenvolvimento com as revoluções no Vargas e Moreira (2012) que discute uma
campo das tecnologias, da ciência, da problemática muito próxima com a que
cibernética, da medicina etc. Tudo parece pretendemos, nesse espaço, desenvolver.

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Saberes científicos, sujeitados e currículo: uma breve análise do filme Narradores de Javé

Este artigo tem como objetivo daquela comunidade a considerarem Javé


propor uma discussão-reflexão a partir do um patrimônio histórico.
drama existencial vivido pelo “povo”, no Educados com os saberes
filme Narradores de Javé, sobre a desva- fundamentais para viver em Javé,
lorização de seus saberes autóctones, a “saberes sujeitados” que quase nunca
partir da caracterização desses saberes dependiam da leitura e da escrita, os
por Foucault (2005), como “saberes moradores desse Vale se viram
sujeitados”, e do próprio modo humano de dependentes de tais instrumentos para
vida “não adequado” aos novos tempos. construir o dossiê e se salvarem. Tarefa
hercúlea que reuniu todos, juntamente
2 A GENTE DA COMUNIDADE DO VALE com Antônio Biá, único que possuía,
DE JAVÉ
mesmo que de forma precária, a leitura e
a escrita. Saberes sujeitados é uma
O filme apresenta o drama vivido
expressão foucaultiana para designar um
por pessoas que moraram em uma
conjunto de saberes não conceituais cuja
comunidade denominada Vale de Javé.
definição Foucault esclarece:
Comunidade de pessoas simples que
viveram ali há algumas gerações, e que Por “saberes sujeitados”, eu
entendo igualmente toda uma
apesar das dificuldades se sentiram série de saberes que estavam
felizes em seu cotidiano. Receberam a desqualificados como saberes não
conceituais, como saberes
notícia de que naquele local seria insuficientemente elaborados:
saberes ingênuos, saberes
construída uma hidrelétrica e que eles hierarquicamente inferiores,
saberes abaixo do nível do
teriam que abandonar Javé, forma como conhecimento ou da cientificidade
requeridos […] esse saber que
os habitantes chamavam o Vale, pois em denominarei se quiserem, o “saber
breve aquele local seria inundado pelas das pessoas” (e que de modo
algum um saber comum, um bom
águas que o progresso estaria trazendo. senso, mas, ao contrário, um
saber particular, um, um saber
A chance que essas pessoas local, regional, um saber
diferencial, incapaz de
teriam de salvar Javé das águas seria unanimidade e que deve sua força
apenas à contundência que opõe
organizando um dossiê científico, para a todos aqueles que o rodeiam
provar a importância deste Vale e, assim, (FOUCAULT, 2005, p. 12, grifos do
autor).
induzir as pessoas que não faziam parte

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Michael Apple, a partir dessa mas origina, neste último, uma nova
abordagem de Foucault, relaciona essa maneira de viver e de ser”.
caracterização do saber com o O filme Narradores de Javé retrata,
funcionamento do poder: de forma humorada, o drama de uma
comunidade, que nos faz lembrar de
Foucault lembrou-nos de que se
quisermos compreender como outros sujeitos que se encontraram nas
funciona o poder, basta que
olhemos para as margens, basta mesmas condições, devido a falta dos
que observemos os
conhecimentos, a
saberes necessários que os pudessem
autocompreensão e a luta conduzir ao progresso. Existem pesquisas
daqueles que foram relegados à
condição de “os outros” por realizadas por professores da Universi-
poderosos grupos desta sociedade
(APPLE, 2011, p. 91). dade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB) sobre pessoas que viveram no
São esses “outros” de que fala
local onde hoje é a “barragem de Anagé1”,
Apple, de cujos saberes são aqueles
situada no município de Anagé/BA, que
descritos por Foucault, que caracteriza o
da mesma forma tiveram que sair de suas
povo de Javé.
terras para ceder lugar ao desenvolvimen-
Sobre a obra fílmica em si,
to/interesses da indústria. De acordo
Narradores de Javé, existem vários
Silva:
trabalhos acadêmicos que apresentam
diferentes abordagens, certamente, por [...] caso dos posseiros atingidos
ser um belo filme com enfoques e pela construção da Barragem de
Anagé, que expropriou cerca de
contribuições bastante consideráveis e 800 famílias camponesas,
conforme relato de alguns
significativos. De acordo com Vargas e entrevistados, em sua quase
totalidade posseiros, e que, por
Moreira (2012, p. 165), muitas questões isso, não tiveram o direito a
indenização pelas terras que
“podem ser propostas com base no filme foram alagadas, recebendo
Narradores de Javé e que merecem a apenas as indenizações referentes
às benfeitorias (SILVA, 2011, p.
atenção do pesquisador. De forma 48).

bastante incomum e divertida, a obra leva


O progresso não leva em conta a
a valiosas reflexões”. Para Goytisolo
necessidade do povo, como descreve
(1977, p. 174), “A informação fílmica
suscita não somente um novo tipo de 1
Não tivemos acesso a tal pesquisa: ouvimos o relato de uma
das pesquisadoras da Universidade Estadual do Sudoeste da
representação do mundo e do homem, Bahia – UESB, hoje professora aposentada por essa
instituição.

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uma das pesquisadoras que estudou o mento tecnológico e o chamado


impacto da desapropriação no referido rio. progresso estão sendo confrontados e
Mais uma vez essas pessoas são julgados de forma a priorizar as deman-
“castigadas” em função do progresso. das e o bem estar da supremacia, estão
Essa situação nos remete a Vado, um dos sendo sacrificados e justificando essa
personagens do filme, quando rememora violência em prol de uma maioria.
os planos que os engenheiros haviam Essa postura do capital frente aos
feito para aquele local: saberes do povo simples é o chamado
custo- benefício que o desenvolvimento
Eles, os engenheiros, abriram os
mapa na nossa frente e cobra, sacrificando a vida de uns para
explicaram tudinho nos pormenor,
nas miudeza. Tudo com os “salvar” a vida de outros. No filme, por um
números, as fotos, um tantão
delas! Iam ensinando pra gente os
pequeno espaço de tempo, a comunidade
ganhos e os progresso que a vislumbra a oportunidade de reescrever a
Usina vai trazer. Vão ter que
sacrificar uns tantos pra beneficiar sua história, quando surge uma
a maioria. A maioria, não sei quem
são, mas nóis é que somos os possibilidade de salvar Javé e o seu povo
tantos do sacrifício (ABREU, 2008,
p. 23). da ameaça capitalista, como descreve o
personagem Zaqueu:
A partir deste discurso que retrata o
Eles disseram que só não
drama de todo o povo de Javé, e inundam quando a cidade tem
pensando a dinâmica atual de nossa alguma importância, tem história
grande. Quando tem coisa de
sociedade, é inevitável que nos tombamento e vira patrimônio. Aí
ninguém mexe com ela [...] Só tem
perguntemos o valor da nossa história e uma coisa: Lá, eles me falaram
que só tem validade se for um
memória individual e coletiva. Para trabalho assim... científico
(ABREU, 2008, p. 24-29).
Bauman (1999, p. 8), “O que para alguns
parece globalização, para outros significa
Não basta estar no mundo. O seu
localização: o que para alguns é a
modo de vida e a sua própria vida devem
sinalização de liberdade para outros é
ser justificados segundo normas de um
destino indesejado e cruel”. Na narrativa
sistema que desconhece o que é
fílmica essa crueldade se apresenta,
humanidade, qual o seu valor sentimental,
principalmente, em relação aos saberes
qual a sua afetividade e a sua prática
decorrentes da cultura local que, com a
moral. O desenvolvimento a qualquer
globalização, com o crescente desenvolvi-
custo desconhece o sentido da palavra
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respeito. É nesse sistema que estamos saber tem uma positividade, e é ela que
inseridos e que a todo instante estamos deve ser examinada”, sabemos que tudo
justificando, cientificamente, a nossa depende de quem examinará essa
permanência nele, constantemente nos positividade, e com quais intenções, pois
“globalizando” e nos capacitando para não existe saber neutro, todo saber é
melhor servirmos a essa dinâmica, do político e exige sempre uma tomada de
contrário seremos inúteis e descartáveis. posição por parte do sujeito que o
“O que coisa é científico?” pergunta examina.
Aristeu, e Zaqueu como uma espécie de Partindo desse pressuposto,
líder na comunidade responde: - podemos perceber que o currículo,
“Científico é... é... é coisa assim... com enquanto parâmetro definidor do que
sustança de ciência... versada, assim, nas deve ser ensinado, estabelece-se como
artes e práticas...”. No entanto, surge o verdade, disseminada, sustentado em
primeiro problema apontado por Maria: - uma seleção arbitrária de saberes que
“E como vamo juntar as histórias, se elas favorecem uma minoria que está no
tão na cabeça do povo?” (ABREU, 2008, poder. Segundo Apple,
p. 30).
Na prática talvez isso funcione
Este é o momento, no filme, em mais ou menos da seguinte
maneira “O conhecimento de
que começa toda uma luta, contada de quem vale mais?”. Que essa não é
simplesmente uma questão
forma bastante humorada, para organizar acadêmica fica bastante claro ao
um dossiê científico que, supostamente, se notar que os ataques da direita
às escolas, o clamor pela censura
salvaria Javé das águas. Mas, como e as controvérsias acerca dos
valores que estão e que não estão
colocar em “palavras escritas”, como sendo ensinados, acabaram por
transformar o currículo em uma
documentar, como legitimar, espécie de bola de futebol política.
Quando a isso se acrescenta a
cientificamente, os detalhes das histórias, imensa pressão, exercida sobre o
a variedade de seus saberes, a sistema educacional em muitos
países, para que as metas das
multiplicidade de seus valores, os empresas e das indústrias se
tornem os objetivos principais, se
segredos dos seus amores, enfim, o não os únicos objetivos da
formação escolar, então a questão
colorido da vida de um povo, a ponto de ganha ainda maior relevância
(APPLE, 2002, p. 50).
ser valorizado e reconhecido por outros?
Mesmo concordando com Machado
No entanto, a imposição desses
(2007, p. 160), quando ele diz: “todo

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saberes, politicamente valorizados, não O tempo passou e o povoado de


ocorre de forma pacífica. Eles não são Javé chegou ao fim. Cada membro do
recebidos por todos de forma receptiva e povoado sentiu e interpretou o fim de
ingênua. Há luta, há resistência, há Javé de um modo diferente. Antônio Biá,
conflitos. Isso equivale tanto na ficção único dentre toda aquela gente que sabia
como nos diversos segmentos da nossa ler e escrever, foi nomeado responsável
sociedade. Hoje, essa luta é representa- para “documentar”, no papel, a história do
da, principalmente, pelos movimentos povo de Javé; essa foi a condição imposta
sociais, conforme afirmam Gandin e (após uma antiga difamação, sofrida por
Hypolito (2003). E é essa luta e essa ele, daquele povo que não sabia ler e
capacidade de resistir que oferecem a escrever) para ele ser aceito novamente
esses sujeitos a possibilidade de governar entre a sua gente. No entanto, Antônio
seus destinos. Biá não cumpriu com o combinado e,
O povo de Javé esteve realmente nesse momento, questionamos se ele
disposto a lutar, com todas as armas que olhou para o Vale de Javé com os
possuíam, para salvá-lo, e as suas águas, mesmos olhos dos outros que não faziam
das mazelas do progresso. As palavras do parte daquela comunidade. Eis a sua
personagem Daniel deixam transparecer justificativa para o seu desacordo:
todo esse empenho: “Devia era
Ocês acham que escrever essas
escorraçar a pau e tiro essa gente a histórias vai parar a represa? Não
vai não e sabem por quê? Porque
mando da represa. E quem mais vier! Que Javé é só buraco perdido no oco
do mundo... E daí, que Javé
não vamos entregar nossas casas, nossa nasceu de um povo guerreiro? Se
vida assim...” (ABREU, 2008, p. 135). hoje, isso aqui é um lugar
miserável, de rua de terra, de
Obviamente, não concordamos com a gente apoucada, ignorante, como
eu, como ocês tudinho! O que nós
violência. Entendemos que a fala deste somos é só um povinho
desmilinguido que quase não
personagem pode representar uma escreve o próprio nome, mas
inventa histórias de grandeza pra
explosão de fúria e, ao mesmo tempo, esquecer a vidinha rala, sem
desespero, acompanhado de um futuro nenhum! E ocês crê mesmo
que os homens vão parar a
sentimento de impotência diante do represa e o progresso por um
bando de semianalfabeto? Não
esgotamento de todas as outras vão, não. Isso é fato. É científico!...
(ABREU, 2008, p. 146-147).
possibilidades de salvar Javé.

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Bauman (2009, p. 13) afirma que títulos escolares e acadêmicos. É dessa


na Grécia antiga ser exilado da pólis era forma que estão legitimados, no interior
uma das maiores punições; hoje, após do currículo, os saberes responsáveis
dois milênios, nada mudou. A diferença é pela “fabricação” de indivíduos úteis à
que “os antigos tinham sangue-frio e sociedade. De acordo com Machado
preferiam a conversa franca. Mas os (2007, p. 175), “o poder disciplinar
milhões de sans-papier, expatriados, (também configurado no interior do
refugiados, exilados, em busca de asilo currículo), não destrói o indivíduo; ao
ou de pão e água nos nossos dias [...] contrário, o fabrica. O indivíduo não é o
teriam pouca dificuldade em se outro do poder, que seria anulado por ele,
reconhecer nessa história”. é um de seus efeitos mais importante”.
O povo de Javé não seria povo A prática desse poder disciplinar,
sem seu local de pertencimento, sem na sociedade atual, expõe as suas
Javé. Zaqueu, o líder daquele povo, assim consequências sociais e individuais, ao
acreditou e, em reposta a Antônio Biá, irradiar uma insegurança existencial,
disse: “Nas tuas ideias, Javé pode não restringindo a liberdade de movimento no
valer muito, mas o caso é que Antônio Biá campo dos diversos saberes com
vale menos ainda!” (ABREU, 2008, p. segurança e autonomia, a caracterizar
147). Afinal o que é um povo sem a sua esses saberes como saberes limitados,
história, a sua cultura, sem os seus apesar de bastante aprofundados. De
saberes, sem as suas casas, suas vidas e acordo Goytisolo (1977, p. 25), tomando
seus mortos? como base Comte e Giovanni Gentile, “o
saber em virtude do qual se vai efetuando
a unificação do mundo é o saber
3 CURRÍCULO: dos saberes científicos
aos saberes sujeitados científico, enquanto que as formas de
saber limitadas a determinadas zonas e
Conforme Foucault (2005) estamos determinados grupos sociais são as
vivenciando a era das especializações. religiões, as filosofias e as ideologias
Tempo de saber muito sobre poucos políticas”. Mais adiante o autor diferencia
saberes, cientificamente validados e a relação desses campos com os saberes
empiricamente provados e comprovados. que os constituem. Para ele:
Conhecimentos institucionalizados por

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[...] religiões, filosofias e ideologias povo de Javé, relatado no filme. Esse


políticas pretendem possuir a
verdade, enquanto que a ciência processo, segundo Goytisolo, apresenta-
se caracteriza pelo “reconheci-
mento de sua própria natureza se na passagem do homem como sujeito
hipotética”, que se manifesta “pela
simples busca, apelando a
ao homem como objeto do cientificismo:
colaboração universal”. E disso
deduz que “os valores destinados A ciência, que teve e tem o
a desaparecer são os religiosos, homem como sujeito, considerou-o
metafísicos e ideológico-políticos, também como objeto. Ao elevar a
enquanto os valores do futuro são ciência ao cientificismo, quer dizer,
os científicos e técnicos, destina- ao ocupar o lugar do qual quis
dos – por suposição – a absorver desalojar a metafísica e a filosofia,
as exigências dos valores que este segundo enfoque do homem
declinam, elevando-os ao plano da não pode deixar de ter
universalidade que lhes falta” consequências muito importantes
(GOYTISOLO, 1977, p. 26, grifos (GOYTISOLO,1977, p. 166).
do autor).

Com o predomínio da ciência e seu


Querendo ou não, essas diferentes
monopólio da verdade, as pessoas são
formas sobre as quais os principais
estudadas com a mesma lógica dos
campos de saberes que sustentam a
objetos. Segundo Bauman (2009), os
humanidade se relacionam com os
objetos na modernidade têm uma vida útil
conhecimentos, bem como essa exigência
bastante curta, tendo de ser,
da ciência pela soberania da verdade,
constantemente, descartados e
acabam por afetar completamente a
substituídos por outros. Nota-se que as
nossa compreensão de saberes. Ao nos
pessoas estão caminhando,
submetermos a tais mecanismos, mesmo
sensivelmente, na mesma direção. É esta
que de forma involuntária, somos
a lógica de mercado que tem se
obrigados a viver de modo também
disseminado por todo o mundo, lógica que
científico, com toda a estranheza que
tende a “coisificar” inclusive as pessoas
esse termo pode nos causar.
que serão valorizadas de acordo a sua
Na prática, essa padronização dos
utilidade para o mercado de trabalho.
saberes nos afeta porque há um
Nessa lógica, de acordo França (1996, p.
excessivo planejamento da vida, de forma
143): “Ao sucumbir a um modelo que
geral, onde não há quase espaço para o
assegure uma profissionalização, a
saber naturalmente estabelecido e
educação despolitiza-se, tornando-se
experienciado. Na ausência dessa
mercadoria por meio da qual cada
adequação sofreremos o que sofreu o
indivíduo visa intensificar valores e
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interesses provados. Isto significa que ela conteúdos. Em contrapartida, todo


se torna algo descartável”. conhecimento possui, segundo o mesmo
Por essa razão enfatizamos que autor, um caráter singular, pois a
estamos vivendo uma crise de educação é uma tarefa política: “Todo
paradigmas. Essa crise tem se estendido conhecimento, seja ele científico ou
também para o campo dos saberes ideológico, só pode existir a partir de
caracterizados e exaltados como curricu- condições políticas que são a base para
lares, enquanto saberes estruturantes da que se formem tanto o sujeito quanto os
educação formal. Porém, de forma algu- domínios do saber” (MACHADO, 2007, p.
ma esta crise possui caráter negativo. Ao 177). Por essa razão, existe uma luta, por
contrário, “os períodos de crise são parte de vários educadores, para tornar os
extremante férteis porque abrem novas conteúdos do currículo o mais
possibilidades ao pensamento. Nesse democrático possível. Pois, como
sentido, eles permitem o surgimento de descreve Silva (2007), ele se constitui em
alternativas aos modos de pensar um importantíssimo instrumento político.
anteriores” (MARCONDES, 2002, p. 28- Nenhum saber é destituído de
29). poder, logo não existe saber neutro. Todo
Os saberes condutores da verdade, saber é político e priorizar somente os
no interior do currículo, são predominan- saberes científicos em detrimento dos
temente científicos. Daí surgem duas “saberes sujeitados” é tomar uma posição
questões importantes: A primeira é que os em relação à função e caracterização do
saberes não são exclusividade da ciência, currículo, ou seja, é realizar um ato
como descreve Machado (2007, p. 154): político e repleto de posição.
“O saber não está investido apenas em O grande desafio, hoje, é como
demonstrações, ele também pode estar tornar o currículo mais democrático, uma
em ficções, reflexões, narrativas, regula- vez que ele é um instrumento político a
mentos institucionais, decisões políticas”; serviço do Estado. Por essa razão, os
A segunda é que os saberes sujeitados saberes sujeitados incomodam: porque
também formam nossa identidade. Essas são saberes políticos não apropriados e
duas questões, por si só, exigem dos não controlados pelo Estado. Como esses
educadores uma análise diferenciada do saberes não fazem parte dos
currículo, no momento de seleção de instrumentos de controle do estado eles

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são, constantemente, desvirtuados dos forma qualitativa e quantitativa, tendo em


seus núcleos de racionalidade. vista que é obrigado a avaliá-los.
Segundo Giroux e Simon (2011), “a Como resultado da nossa reflexão
cultura popular poderá revelar aspectos sobre os Narradores de Javé, fica como
de um contradiscurso útil na organização aprendizado a luta e a esperança da
de lutas contra relações de dominação”. E gente de Javé. Ou, nas palavras de
ao citar Bennet justifica: Zaqueu: “Mas como tudo o que já foi é o
começo do que vai ser, conto o que ainda
Uma prática cultural não carrega
consigo a política que a gerou, está por vir” (ABREU, 2008, p. 148). O
como se houvesse sido gravada a
fogo para toda a eternidade; ao filme deixa como mensagem, bastante
contrário, o seu funcionamento
político depende da rede de elucidativa, que as pequenas práticas de
relações sociais e ideológicas em cunho revolucionário resultem em valiosos
que está inserida como
consequência das formas pelas resultados.
quais ela se articula com outras
práticas, em determinada
conjuntura (BENNET apud 4 CONCLUSÃO
GIROUX; SIMON, 2011, p. 125).

Na prática isso não ocorre de forma O filme Narradores de Javé nos


simples. Como exemplo, podemos citar a traz importantes questões para refletirmos
prática do currículo em sala de aula. e reavaliarmos sobre o tempo que
Segundo Machado (2007, p. 177), estamos vivendo. Tempo de incerteza, de
“vivemos cada vez mais sob o domínio do insegurança, de instabilidade, em vários
perito. Mais especificamente, a partir do sentidos. Há uma intensa burocratização
século XIX todo agente do poder vai ser e desvalorização, bem como a
um agente de constituição de saber, negociação da vida humana, de forma
devendo enviar, aos que lhe delegaram assustadora. Questionamos sobre o que
poder, um determinado saber correlativo nos reservará o futuro! Globalização,
do poder que exerce”. Querendo ou não, ciência e capitalismo têm se constituído
o professor, mesmo tendo certa em um tripé que sustenta todo o
autonomia em sua prática em sala de movimento do mundo de forma fria e
aula, ainda assim se constitui em um calculista.
agente de poder, na medida em que Não há como fechar os olhos para
classifica e seleciona seus alunos de o sofrimento “dos outros”. Porém, a saída

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é desconhecida e, por isso, nos prezando pela nossa singularidade, sem


apegamos às diferentes utopias para não perdemos o vínculo com a diversidade e a
perdermos, de uma vez por todas, a pluralidade de saberes. Não há como ir de
esperança de uma humanidade mais encontro a essa natureza. A história do
solidária; uma sociedade onde todos povo de Javé é, em parte, um pouco da
possuam a mesma liberdade de nossa história. E ao sacrificarmos nosso
movimento e de conhecimento, sem hoje com o medo, constante, de padecer
exclusão ou utilização política dos no amanhã, não viveremos em lugar
saberes produzidos e existentes de forma algum.
parcial, pois compartilhamos a ideia de Enquanto sujeitos do conhecimento
que é a diversidade de saberes que questionamos o papel da escola e do
educa e transforma. Segundo França currículo, uma vez que este é um
(1996), é preciso uma nova construção instrumento definidor de saberes. Tem-se
ética que admita a possibilidade histórica buscado construir um novo paradigma
de produção de modos de subjetivação para a educação e, consequentemente, a
diferentes daqueles imprimidos pela defesa de um currículo com saberes mais
ordem social vigente, levando em democráticos, onde a escola não seja
consideração as práticas sociais que apenas definidora do que é válido ou não,
legitimam certos modos de ver, falar, mas que seja articuladora, no sentido de
perceber. Isso significa avaliar os formar grandes potencialidades.
processos institucionais que prendem o Há que se tentar viver uma vida em pró de
indivíduo a uma identidade já dada e a si mesmo e fazer da existência uma obra
códigos estabelecidos. de arte, inventar e reinventar novas
Somos humanos e como seres formas de entendimento entre todos os
humanos devemos reivindicar através da sujeitos.
diversidade de saberes nossa liberdade,

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