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DAVID ARMITAGE

Declaração de
Independência
Uma história global

Tradução
Angela Pessoa

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fon...
FSC"COIQ.498
A marca Fscé a garantiade que a madeira ulilizada na fabricaçllo do papel
deste livro provém de florestas que foram gerenciadas de maneira
ambientalmente correia, socialmente justa e economicamente viável,
além de outras fontes de origem controlada.
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COMPANHIA?!~
Copyright © 2007 by President and FeHows of Harvard College
l odos os direi.tos reservados.

Grafia atualiwda segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Bra>·il em 2009.

Título original
The Declaration of Independence: a Global History
Capa
Victor Burton
Preparaçiio
Osvaldo Tagliavini Filho
Índice remissivo
Luciano Marchiori
Revisão
Carmen S. da Costa
MariseLeal

Dados Internacionais de Catalo~ção na PubJk.açilo (<."1l')


{Câmua Brasileira do Livro. SP, Bra;~il)
Introdução ............................................................................. . 7
Armitage, David
Dedaração de Independência : uma história global ! David
Arrnitage ; tradução: AngcJa Pessoo. - S.1o Pilulo : C'..ompanhia
d<'< l.ctr.is. 20 11.
Y. O Mundo na Declaração de Independência ..................... . 27
7. A Declaração de Independência no Mundo ................ ..... . 57
Tuuro original: The Dcd aration of Jndcpendence : a Global
~fistorr
ISnN 978·85-) 59· 18 16·8
3. Um Mundo de Declarações ................................................ 89

1.Ciência polftica · História -Sét:u!o 11!2. Direito natu ral - Filosofia


3. Direito Natural - Hi<tóri.1 4. f>1ados Urúdos. l)cdaraçilo da Conclusão .............................................................................. .
~,·.
119
lndep<.11dência 5. falados Uni.<los. üeclamçâo da lndt:pcndêock1
- Influência 6. Estados Unidos - Politk:a e goveroo - fílo..~fia í .
t>.·fo"imenlos de Lil.x.1·ração Nadonal ~ História - Fontes L. TI<ulo.
Declarações de independência, 1776-1993 .......................... . 125
f 1-()()993 CDI>-973.3 13
lndic.--e para caliilogo sistcmárko:
r. Estados Unidos : Declaração da independência : História 973.3 13 , ·. "Rascunho Original" de Thomas Jefferson da
Declaração de Independência ....................................... . 133
[20 11]
No Congresso, 4 de julho de 1776. Declaração dos
Todos os direi tos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ t:rDA. Representantes dos Estados Unidos da América,
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
reunidos em Congresso Geral ............................... ........ 139
04532-002 - São Paulo - SP
Telefone ( 11) 3707-3500 [Jeremy Bentham]. Breve Crítica à Declaração ( 1776) ... i44
Fax (11) 3707-3501 Manifesto da Província de Flandres [trechos]
www.companhiadasletras.com.br
(4 de janeiro de 1790) ....... .............................................. 155
Declaração Haitiana de Independência Introdução
(1 2 de janeiro de 1804) .................................................. . 159 ~
:~'
Declaração Venezuelana de Independência .-.;-~
;~.

(5 de julho de 1811) ....................................................... . 164 ·~:

Declaração de Independência da Nova Zelândia


(28 de outubro de 1835) ................................................ . 171
Declaração Unânime de Independência elaborada
pelos Delegados do Povo do Texas
(2 de março de 1836)...................................................... 173
Declaração de Independência dos Representantes
do Povo da Nação Liberiana ( 16 de julho de 1847)....... 178
Declaração de Independência da Nação Tchecoslovaca
(18 de outubro de 1918)............................................... .. 184
Declaração de Independência da República
Democrática do Vietnã (2 de setembro de 1945) ......... 189 Na última carta pública que escreveu antes de sua morte em
Declaração do Estabelecimento do Estado de Israel 1826, Thomas Jefferson apresentou uma visão ampla da
( 14 de maio de 1948)...................................................... 193 Declaração de Independência, documento que ele havia redigido
Declaração Unilateral de Independência (Rodésia do
meio século antes. Ao recusar o convite para comparecer à come-
Sul); (11 de novembro de 1965)..................................... 197
moração do quinquagésimo aniversário da independência ameri-
cana em Washington, o terceiro presidente dos Estados Unidos
APtNDJCE- Decreto de 3 de junho de 1822 (Brasil).............. 202
chamou a Declaração de "um instrumento prenhe do nosso pró-
Carta de d. Pedro 1 a d.João v1 ................................................ 204
prio destino e do destino do mundo". Lamentou que a doença o
Império do Brasil-Ata da aclamação do senhor D. Pedro
impedisse de se reunir "ao restante daquele grupo ilustre que se
imperador constitucional do Brasil, e seu perpétuo defensor,
juntou a nós naquele dia, na ousada e incerta eleição que estáva-
em 12 de outubro de 1822...................................................... 207
Tratado do Rio de Janeiro (1825) ................ .. ........................ 210 mos prestes a realizar por nosso país, entre a submissão e a espada':
Ele teria então
Notas....................................................................................... 215
Agradecünentos ..................................................................... 245 desfrutado com eles o reconfortante fato de que nossos compatrio-
Índice renlissivo...................................................................... 247. tas, depois de meio século de experiência e prosperidade, conti-
nuam a aprovar a escolha que fizemos. Que isso seja, para o mundo
- o que acredito que será (para al.g umas partes em breve, para
outras, mais tarde, e finalmente para todas) - , o sinal para que

7
homens inspiradores rompam os grilhões sob os quais a ignorância década da vida de Jefferson que a Declaração começou a ser vista
e a superstição monacais os têm persuadido a se restringir, e assu- Gomo artigo bem fundamentado de "escrita americanà', celebrado
3
mam as bênçãos e a segurança do autogoverno.1 no país a cada 4 de julho- na ocasião e desde então.
A Declaração de Independência pode ter adquirido um sig-
Jefferson morreu em 4 de julho de 1826, duas semanas nificado especial para os americanos, mas seu poder como símbo-
depois de enviar essa carta. Ele a escrevera em tons de discurso lo foi potencialmente global em extensão, como asseverou a profe-
profético, avaliando passado e futuro à beira da morte . cia de Jefferson em 1826. Mesmo durante a vida do ex-presidente,
Certamente tencionava que a carta viesse a público, e assim logo a Declaração já havia se tornado algo mais prático que um símbo-
ocorreu, em um jornal d e Washington no dia de sua morte. lo: forneceu o modelo, em todo o mundo, para documentos seme-
Contudo, essa não foi a última d as cartas de Jefferson. Um dia lhantes, que declaravam a independência de outros novos Estados.
depois de enviá-la, em 24 de junho de 1826, ele escreveu mais Na ocasião em que Jefferson chamou a Declaração de "instrumen-
duas: uma a seu agente comercial em Richmond, Virgínia, e a to prenhe [ ... ] do destino do mundo", em 1826, cerca de outras
outra a um_negociante em Baltimore, tratando de um carrega- vinte declarações de independência, provenientes do norte e do
me~to de vinho francês que acabara de chegar de Marselha, cujas sul da Europa, do Caribe e da América Espanhola, já haviam se
tanfas alfandegárias precisavam ser pagas.2 juntado à norte-americana. Agora, mais de dois séculos depois de
. ~s últimos pensamentos públicos de Jefferson podem ter 1776, mais da metade dos países do mundo possuem suas próprias
d1scut1do a herança da Revolução Americana, mas suas últimas declarações de independência.
instruções pessoais referiram-se ao estoque de sua adega. Em Muitos desses documentos extraíram sua inspiração direta-
ambos os casos manifestou confiança no futuro. Em ambos tam- mente da Declaração americana, adotando e por vezes adaptando
bém reconheceu que o país recém-nascido vinculava-se a um frases específicas do texto de 1776. Com mais frequência, toma-
mundo mais amplo, seja como exportador de ideias revolucioná- ram-lhe a estrutura como modelo. Muitas dessas declarações
rias, seja como um importador de artigos de luxo. Como Jefferson foram escritas sem a subserviência da reprodução direta, mas
bem sabia, qualquer país independente tinha de ser também inter- todas compartilhavam evidentes semelhânças - seja na motiva-
ção, na linguagem ou na forma-, o que torna possível examiná-
dependente.
Quando da morte de Jefferson, "meio século de experiência e -las coletiva e globalmente.
prosperidade" havia estabelecido a independência americana como Até agora, as declarações d~ independência não foram tratadas
fato político. Cinquenta anos antes, a Declaração havia anunciado como um fenômeno global. 4 As razões para tal são fundamentais
a inde~endência em um momento no qual ela ainda precisava ser para a definição da independência propriamente dita. Em suas raí-
consolidada, achando-se sob vigorosa ameaça da Grã-Bret.anh<t. zes, independência significa separação política, à maneira daquela
Por quase quatro décadas depois de 1776, os americanos valoriza- que os representantes dos Estados Unidos sustentaram contra o rei
ram mais a bem-sucedida realidade da independência que 0 docu- Jorge m em 1776. Em sent,ido mais amplo, independência implica
mento específico que a havia declarado. Foi apenas na última distinção nacional e diferença. Ao longo do tempo, separação e sin-

9
8
Muitas declarações de independência deram origem a seus
guJaridade alimentam a noção de excepcional idade, sobretudo para
um país como os Estados Unidos, nascido da secessão e dotado por próprios campos de análise e discussão. A maioria dessas aborda-
seus visionários de uma missão no mundo. Os autores da Declaração gens tendeu a enfocar as origens diretas dos documentos, e não
seu lugar em histórias mais longas, que dirá mais amplas. Desse
reivindicaram independência apenas para si mesmos, não para
outros. Sua ideia específica e particular de independência assumiria, modo, a Declaração americana é ao mesmo tempo típica e inco-
contudo, uma acepção quase universal após 1776, à medida que 0 mum. É típica no sentido de que muitos estudiosos, desde o século
exemplo americano espalhava-se pelo mundo. x1x, esmiuçaram o seu momento de criação, no verão de 1776, e
A Declaração americana chegou a ser considerada o marco
sua posterior difusão. Esse trabalho revelou uma variedade eston-
inicial de uma história separada de outras histórias nacionais ou teante de possíveis fontes para a linguagem da Declaração e inspi-
imperiais. Analogamente, muitas outras declarações de indepen- rações para sua forma, assim como grande quantidade de infor-
dência em todo o mundo tornaram-se propriedade de comunida- mação a respeito de como foi redigida, editada e publicada. Parte
des particulares que celebraram suas próprias declarações como substancial do trabalho desses estudiosos debateu as várias fontes
alvarás com um status especial no mundo. Quase por definição, é europeias dos artigos da Declaração americana relativos a d ireitos
pouco provável que manifestações escritas de excepcional idade naturais ou ao direito de revolução- seja, por exemplo, o pensa-
sejam comparadas. com outros documentos similares. Assim se mento político inglês, a teoria moral escocesa ou a filosofia suíça.8
provou com as declarações de independência. Esse debate concentrou-se principalmente no segundo parágrafo
Múltiplas declarações de independência foram reunidas, da Declaração e em suas verdades "evidentes por si mesmas"; não
com vistas à comparação, apenas em duas ocasiões. A primeira se ampliou no sentido de avaliar outros elementos na Declaração,
ocorreu em 1955, antes de uma sessão da Organização dos Estados como o significado da independência que esta reivindicava para
Americanos (OEA) em Washington, quando reproduções e tradu- os Estados Unidos. Recuperar esse significado será uma das p rin-
ções das declarações de independência p roduzidas nas Américas e cipais preocupações deste livro.
no Caribe entre 1776 e 1898 foram compiladas em um único vol u- Os americanos têm sido excepcionalmente bem-informados
me.5A segunda surgiu indiretamente da comemoração do bicen- a respeito desse documento-chave de sua história nacional. Eles
tenário dos Estados Unidos em 1976, quando acadêmicos publi- também têm tido a oportunidade ímpar de inteirar-se sobre
caram uma coleção de documentos de independência originários quem, nos Estados Unidos, leu a Declaração, como foi interpreta-
de todo o mundo, e que incluía declarações e vários outros instru- da e com que consequências políticas e legais.9 Nenhuma outra
mentos d e independência, como acordos bilaterais e atos legislati- declaração de independência teve seu legado doméstico rastreado
vos.6Ambos os momentos passaram rapidamente.As compilações de forma tã.o completa ou tão reveladora. O que faltou aos ameri-
que eles deixaram para trás aparentemente não conduziram a canos e a outros interessados no destino da Declaração até o i

reflexões adicionais sobre o que poderia ter sido aprendido


• momento fo i uma tentativa sistemática de investigar sua posteri- 1!!:

levando -se em consideração as declarações de independência dade global, para além dos limites dos Estados Unidos. 10
como um grupo e em evidência.7 Não se pode dizer que a Declaração de Independência esteja

10 11
sozinha entre os marcos da história americana no que tange à via torna mais difícil a produção de narrativas triunfalistas da
ausência de um tratamento global de seu legado. O crescente história mundial, possibilitando também a comparação de etapas
sentimento de autossuficiência dos Estados Unidos e sua apa- distintas da globalização para enxergar o que elas possuíam em
rente hegemonia nos assuntos internacionais durante grande comum e, ainda, as formas pelas quais elas distinguiam-se umas
parte do século xx geraram uma tendência duradoura ao esque- das outras. ' 4
cimento e até mesmo ignorância no que se refere ao impacto Este livro, escrito em um período de aguda consciência da
americano no mundo e, até recentemente, ao impacto do mundo globalização, diz respeito a um outro desses momentos, ocorrido
nos Estados Unidos. Muitas outras nações sofreram formas há mais de dois séculos. A geração de europeus e americanos que
semelhantes de amnésia histórica acerca de seu lugar no mundo. atingiram a maioridade nas décadas anteriores a 1776 foi pratica-
Mas a proeminência dos Estados Unidos nos assuntos interna- mente a primeira na história a ter fácil acesso a uma visão global
cionais chama especial atenção à resistência dos americanos em abrangente de seu lugar no mundo. Essa visão foi o resultado de
considerar sua história em termos globais. O mundo exterior vários fenômenos inter- relacionados: a exploração marítima; o
aos Estados Unidos sempre moldou a imagem do país - assim aprimoramento do comércio interoceânico; a expansão dos impé-
como formou seu passado colonial pré-revolucionário - em rios europeus nos oceanos Atlântico, índico e Pacífico; a difusã.o
consequência da imigraçã.o, da difusão de ideias ou do intercâm- de mapas, histórias e registros de viagem e os vínculos gerados
bio de mercadori'as, além de quase todas as outras formas conce- pela circulação e o intercâmbio de bens e ideias. Tudo isso também
bíveis de interação ao longo de mais de quatrocentos anos. 11 A se expandiu, em grande medida, devido à colossal d isputa entre
crescente consciência dessas interações no passado incitou tanto Grã-Bretanha e França pelo domínio imperial em todo o mundo,
americanos quanto não americanos a "repensar a história ameri- conhecid a pelos americanos como Guerra Franco -Indígena
cana em uma era global". 12 (1754-63) e pelos eu ropeus como Guerra dos Sete Anos ( 1756-
Situar a história americana em uma perspectiva global pode -1763) - um conflito disputado em quatro continentes e através
ajudar a demonstrar que aquilo que hoje denom inamos "globali- de três oceanos. 15 A geração de 1776, portanto, cresceu em um
zação" não é uma condição nova. Como escreveu recentemente mundo pós-guerra decid idamente moldado pela rivalidade impe-
um h istoriador, a mudança para um nível global de análise "revela rial e pela disputa internacional.
a interligação e a interdependência d as mudanças políticas e A visão global dessa geração foi entronizada em histórias
sociais em todo o mundo bem antes do início da fase contemporâ- abrangentes do comércio e da colonização eu ropeus, que surgiram
nea de 'globalização' posterior a 1945". '3 Tal fato também pode nos nos anos próximos a 1776, tais como: Histoire philoS.ophique et
ajudar a entender que a global izaç.'Io não foi um movimento isola- politique des établissements et du commerce des européens dans les
do e desprovido de resistências rumo à integração planetária. deux lnde [História filosófica e política das feitorias e do comércio
Melhor dizendo, tal movimento evoluiu em uma série de fase~ dos Europeus nas Índias ocidentais e orientais] ( 1770), do abade
descontínuas e d istintas que se desenvolveram em diferentes Raynal; Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza
momentos e em diversos locais. Entender a globalização por essa das nações (1776), de Adâm Smith (1776); e History of Arnerica

12 13
[História da América] ( 1777), do historiador escocês William os colonizadores achavam-se capturados nos anos que prepara-
Robertson, para citar apenas as mais célebres. Edmund Burke ram o terreno para 1776. 19
escreveu com entusiasmo sobre a Historyde Robertson: "O Grande Sinais tanto de ansiedade quanto de entusiasmo a respeito
Mapa da Humanidade desenvolveu-se de repente; e não há estados dessas ligações - ser iam correntes ou elos, grilhões ou obriga-
ou Gradações de barbárie, ou formas de refinamento que não ções? - podem ser encontrados até mesmo na Declaração, quan-
tenhamos no mesmo instante sob nossas Vistas'~ 16 Raynal defendia do esta anuncia a intenção dos Estados de ingressar no sistema
com veemência a revolta das colônias britânicas. Smith publicou internacional em termos de igualdade com os outros "poderes da
seu trabalho em parte como uma intervenção no debate sobre o terra". Essas complexas conexões globais e as mudanças decisivas
futuro do "grande império [britânico] no Atlântico oeste. Esse no sistema estatal europeu e no equilíbrio de forças no mundo
império, contudo, existiu apenas na imaginaçã.o'~ Nas páginas de atlântico que elas trouxeram consigo desafiaram os homens do
encerramento de Riqueza das nações, Smith exigiu que "este sonho presente a entender seu mundo de formas inovadoras. Nesse con-
dourado" do império fosse ou concretizado o u completamente texto, parece mais do que apenas uma coincidência o fato de o
1;
abando nado. 17 Para Robertson, a independência americana assi- filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham ter considerado necessá-
nalou definitivamente o fim do sonho. Ele terminou sua História rio, em 1780, d urante a crise da Guerra Americana, cunhar "a
abruptamente com a perda das colônias americanas, e assim se palavra internacional r... ] uma palavra nova, embora - e é isso o
lamentou em 1784: "Infelizmente a América agora está perdida que se espera - suficientemente análoga e inteligível" para des-
para o Império e para mim, e o que teria sido uma boa introdução crever"as transações mútuas entre soberanos propriamente ditos':
20
para o assentamento das Colônias Britânicas, convirá muito mal que ele abrangeu sob o neologismo "direito internacional".
ao estabelecimento de Estados Independentes". 18
As relações globais delineadas nas grandes histórias comer-
ciais e oceânicas por Raynal, Smith e Robertson influenciaram Cada geração obtém a declaração de independência que mere-
vigorosamente os colonos americanos no decorrer da crise impe- ce. Nosso próprio momento global merece uma história global
rial da década de 1770. As fortunas dos proprietários de terras da da Declaração. Essa história pode ser buscada de fora para den-
Virgínia e dos comercíantes de Bosto n achavam-se ligadas ao tro, a fim de gerar perspectivas universais que digam respeito a
destino da Companhia Britânica das Índias Orientais no sul da períodos, locais, pessoas ou objetos pa rticulares; e pode também
Ásia por grandes emaranhados de crédito e débito que percorriam ser escrita de dentro para fora , ou seja, partir daquilo que é local
bancos em Londres e Glasgow, assim como as rotas comerciais que e específico para chegar ao que é mundial e geral. Essas aborda-
transportavam o chá da China em navios da Companhia das gens não são conflitantes, mas sim complementares; na realida-
fndias Orientais para o porto de Boston em dezembro de 1773 so]i de, uma seria impossível sem a outra. É possível perceber o que
os termos estabelecidos pelo Parlamento do Reino Unido. As ori- um quase contemporâneo da Declaração, o poeta inglês William
gens da Revolução Americana n ão podem ser completamente Blake, chamou de " um mundo em um grão de areia". No caso da
en tendidas sem o reconhecimento das redes mundiais nas quais Declaração, isso significa marcas de um mundo mais amplo

14 15
incorporadas em um documento relativamente breve e pungen- inído de agosto de 1776. No Congresso, 55 representantes -
te. Esse documento ganhou vida própria à medida que circulava nove dos quais nascidos na Inglaterra ou na Irlanda, e mais de
em casa e no exterior. Assim, como resultado de suas viagens, urna dezena deles educada fora das colônias (na Inglaterra, na
uma outra espécie de história global emergiu: a história de sua Escócia e na França) - apuseram suas assinaturas no denso
difusão e recepção. Essa história, por sua vez, gerou imitações e exemplar original da Declaração. Para isso, utilizaram um tintei-
equivalentes da Declaração. ro forjado por outro irlandês, Philip Syng Jr., feito de prata
Uma história global também pode ser escrita a partir dos extraída no México ou no Peru. 23
modelos revelados pelo surgim ento e acúmulo de outras d eclara- As primeiras versões públicas da Declaração, portanto, origi-
ções de independência. Neste livro, dedico-me às três abordagens naram-se dessa intersecção entre política e impressão tipográfica,
da história global da Declaração de Independência, examinando assim como da migração de indivíduos e da circulação de merca-
sucessivamente os impactos do mundo na Declaração, os destinos dorias em um mundo atlântico que, no decorrer do século xvm, '
j
da Declaração no mundo de fins do sécuJo xvm e início do século unia cada vez mais a Europa, a Africa e as Américas em um único
XIX, e a miríade de declarações de independência produzidas a sistema econômico e cultural. Se esses sinais do mundo externo às ~
partir de 1776. A Declaração de Ind ependência dos Estados colônias norte-americanas podem ser revelados em um docu-
Unidos não pode deixar de parecer diferente quando inserida em mento revestido de tamanho significado como ícone de america-
tais perspectivas globais múltiplas. n ismo, en tão seguramente vestígios sem elhantes podem ser
Nenhum documento isolado acha-se tão associado àquilo encon trados ao longo dos diversos materiais que constituem a
que significa ser um americano, e poucas palavras podem resumir história americana.
a crença americana de forma tão sucinta quanto os "direitos à vida, Trato a Declaração de Independência alternadamente como
à liberdade e à busca da felicidade". Ainda assim, mesmo em suas acontecimento, como documento e como o começo de um gênero.
primeiras formas relevantes, a Declaração apresentou indícios de Nas palavras de Carl Becker, um de seus prin1eiros estudiosos, a
ligações com um mundo mais amplo. Ela foi impressa pela pri- Declaração como "acontecimento" foi "o auge de uma série de
meira vez em 5 de julho de 1776, como um panfleto de uma única atividades revolucionárias" expressas no "documento em que esse
folha para distribuição e exposição. O impressor d essa versão da acontecimento foi proclamado e justificado ao mundo'~ 24 A histó-
Declaração era um irlandês nativo, John Dunlap, de 29 anos, que ria global da Declaração não terminou em julho de 1776 - na
havia imigrado para a Filadélfia a partir de Tyrone, no condado de verdade, mal havia começado. O documento inaugurou um gêne-
Strabane, em 1757.21 Ele imprimiu a maior parte das cópias em ro de literatura política que persiste até os dias de hoje. Por "gêne-
papel holandês, transportado pela Inglaterra - a origem de gran- ro", tenho em mente uma estrutura de argumen tação e forma
de parte do papel das colônias nesse período. A prensa tipográfica • literária distintas, porém passíveis de serem repetidas. Documentos
e os tipos que empregou provavelmente também haviam sido semelhantes - sejam eles ou não, consciente ou diretamente,
importados da Grã-Bretanha. 22 devedores de um original específico - tornam-se exemplos de tal
A Declaração não seria assinada antes de fins de julho e gênero. Gêneros literários podem ser rígidos como son etos ou

16 17
livres como romances; utopias e constituições, declarações de mas, não raro, com ineficiência e contratempos - o que é, talvez,
direitos e declarações de independência estão entre categorias menos surpreendente. Para alguns, a Declaração pôde ser facil-
semelhantes d e escrita política. Elas fornecem os modelos que mente ignorada; outros, no entanto, pesquisaram-na, refletiram
captam ideias e acontecimentos semelhantes, permitindo-nos sobre ela, ou traduziram-n a minuciosamente a partir de seu idio-
compreendê-los e criticá-los, e, ainda, geram as formas recorrentes ma original. Para outros ainda, a Declaração era um texto subver-
adotadas por documentos que surgem em circunstâncias pareci- sivo em uma época em que traição e revolução podiam ser facil-
das.25 Os gêneros nascem; separam-se e recombinam-se com ele- mente deflagradas tanto por rebeldes quanto por documentos. "A
mentos de outros gêneros; ocasionalmente morrem. Como as independência dos anglo-americanos é o acontecimento mais
ideias que contêm , são tanto móveis quanto mutáveis, e não reco- propicio a acelerar a revolução que deve trazer felicidade à ter ra':
nhecem fronteiras nacionais. observou um crítico da realeza francesa, o abade Genty, em 1787.
A Declaração marcou o nascimento de um novo gênero de E afi rmou ainda: "É no seio dessa república nascente que se acham
escrita política. Parte de sua genialidade - e o principal motivo os verdadeiros tesouros que enriquecerão o mundo". 28 Como que
para seu consecutivo sucesso como modelo a outras declarações para cumprir essa profecia, por mais de dois séculos a Declaração
- era sua promiscuidade de gêneros: uma declaração de indepen- fo rneceu a outros o modelo de que necessitariam para comunicar
dência, uma declaração de direitos e um manifesto. Os parágrafos suas p róprias intenções políticas a "um mundo cândido':
de abertura e conclusão da Declaração - que, respectivamente, Assim que embarcou em sua corrida internacional, a Decla-
começam assim: "Quando, n o curso dos acontecimentos humanos ração libertou-se das circunstâncias de seu nascimento. Ela adquj-
[ ... ]"e "Nós, por conseguinte, representantes dos ESTADOS UNIDOS riu vida própria e torno u-se o modelo para aquilo que, a seu
DA A!v!ÉRI CA [ .. . ] " - constituem a d eclaração de independência tempo, iria se transformar em um gênero global. Antes de 1776,
propriamente dita. O segundo parágrafo - que se inicia com as jamais um documento fora chamado de declaração de indepen-
palavras ainda mais famosas: "Consideramos estas verdades evi- dência - na realidade, a própria Declaração não possuía esse
dentes por si mesmas" - aproximava-se mais do que seria reco- título, e tampouco a palavra "independên cia" aparecia onde quer
nhecido como uma declaração de direitos, sobretudo nas pegadas que fosse em seu texto. No entanto, durante os meses anteriores a
da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão fra ncesa de julho de 1776, os contemporâneos vinham comentando a n eces-
1789. 26 Finalmente, a lista de descontentamentos que compunham sidad e de "autonomia': de uma "declaração de autonomia", ou
a maior parte da Declaração tem as características de um manifes- uma "declaração de independência". Em 8 de julho de 1776,
to que explicava publicamente para o mundo os fundamentos Jefferson enviou "uma cópia da declaração de independência" a
para uma ação revolucionária. 27 J seu amigo da Virgínia, Richard Henry Lee. 29 Não podia haver
'1
.:.1 dúvidas , portanto, de que o documen to promulgado pelo ,
Depois de publicada, a Declaração rapidamente se inseritl. '1

nos circuitos d e troca nacionais e internacionais. Repro duções Congresso Continental e datado de 4 de julho de 1776 era uma
passaram de mão em mão, d e escrivaninha a escrivaninha, de .país "d eclaração" (como este se designava, tanto na versão impressa
1
a país, muitas vezes (para nós) com extraordi nária velocidade, quanto na manuscrita), e que proclamava, acima de tudo, "inde-

1.8 19 1,
l
í
pendência". Uma vez tendo feito isso, e após ter viajado por toda direitos dos Estados, e assim foram entendidas por seus contem-
parte como documento, a Declaração pôde ser imitada por muitos porâneos quando estes se debruçaram sobre as declarações de
outros documentos e comparada a outros tantos que constituem direitos individuais. Assim, um relato da época, em agosto de
o gênero das declarações de independência. 1776, observou que quando a Declaração foi lida pela primeira
Pressões internacionais urgentes forçaram o Congresso a vez para as tropas continentais em Ticonderoga, no oeste da
publicar uma declaração no início do verão de 1776. Como conse- Pensilvânia, "a expressão n o semblante d e cada homem era: 'Agora
quência, a Declaração refletiu uma série d e preocupações sobre nós somos um povo! Nós temos um nome entre os Estados do
segurança, defesa, comércio e imigração. Como d ocumento que mundo!": O primeiro juramento de lealdade emitido pelos novos
anunciava a transformação das treze colônias unidas nos "Estados Estados Unidos pedia aos oficiais, paralelamente, para "reconhecer
Unidos da América", a Declaração assinalou o ingresso desses os ESTAOOS UNIDOS DA AMtRICA como Estados Livres, Independentes d
Estados no que hoje se chamaria comunidade internacional. Seus e Soberanos, e declarar que seu povo, portanto, não deve lealdade 11

autores encaminharam-na "às opiniões dos homens" na lingua- ou obediência a Jorge m, rei da Grã-Bretanha".30
,1
gem diplomática e legal concebi.da para torná-la aceitável a seu Americanos e estrangeiros encontraram vários significados
público fora dos Estados Unidos. A Declaração, por conseguinte, diferentes na Declaração durante as décadas imediatamente pos-
refletiu as concepções cambiantes da comunidade internacional teriores a 1776. Os contextos internacionais cambiantes nesses
do mundo atlântico'. Assim, ela ajudou a transformar essa comu- anos - de guerra, revolução e formação de Estados - ajudaram
nidade ao expandir suas fronteiras em direção ao oeste, penetran - a alterar até m esmo o entendimento americano da mensagem
do na América do Norte, e ao abrir o comércio americano a um central da Declaração, partindo de uma afinnação de soberania
mundo mais amplo fora dos limites previamente estabelecidos como Estado rumo a uma declaração de direitos individuais.
pelas leis do Jmpério britânico. Nesse meio-tempo, a circulação da Declaração fora dos Estados
A Declaração americana, assim como as declarações que a Unidos encorajou um debate mais amplo a respeito dos direitos
sucederam, fo i um documento criador de Estados, não formador dos Estados - especialmente de novos Estados, como os Estados
d e uma nação. Declarava que aquilo que até então haviam sido Unidos - de ingressarem na arena internacional. As reivindica-
colônias dependentes do Império britânico, passavam a ser ções relativas aos direitos individuais no segundo parágrafo da
Estados independentes fora da autoridade do império. Ela o fez Declaração desempenharam um papel pequeno nessas discussões
sem se referir a "americanos" e sem usar a palavra "nação". Em vez mais amplas. Elas não seriam consideradas centrais para um
disso, concentrou-se no surgimento de "um povo" que assumia público internacional até o advento do movimento global em prol
uma posição de igualdade "ante os poderes da terra" e declarou dos direitos civis na segunda metade do século xx.
que "estas Colônias Unidas são, e por direito têm de ser, ESTADOS A enumeração dos direitos das ex-colônias de "praticar todos
LIVRr..S E INDEPENDENTES". As afirmações da Declaração relativas aos
• [os] atos e ações a que os ESTADOS INDEPENDENTES têm direito" chamou
direitos à "vida, à liberdade e à busca da felicidade" achavam-se r
atenção para as características d? Estado no âmbito internacional. A
J
estritamente subordinadas às reivindicações concernentes aos concepção de Estado encontrada na Declaração era hipócrita -

20 21
como ocorre, aliás, em grande parte das definições-padrão de [... ] Além disso, nações e Estados não são a mesma contingência
Estado, classicamente condensadas na Convenção de Montevidéu .[... ] o Estado certam ente surgiu sem a nação. Algumas nações
sobre os Direitos e Deveres dos Estados, de 1933, como a posse de certamente emergiram sem as bênçãos de seu próprio Estado". 34
população permanente, território definido e um governo, além da A história de como o mundo veio a ser tão densamente
capacidade de estabelecer relações com outros Estados. 31 povoado de Estados mal começou a ser contada. 3s Reumr · e anali-
A Declaração confirmou a existência de uma população sar declarações de independência é uma maneira econômica de
("um povo") e aludiu a uma forma de governo, mas não definiu delinear os contornos dessa narrativa muito mais imponente. A
um território. Em vez disso, enfatizou firmemente as posições dos fim de afirmar sua própria soberania, a maior parte dos atuais
Estados Unidos como atores internacionais ao lado de outros Estados do mundo declarou, em algum momento dos dois últimos
atores similares. Minha análise neste livro seguirá esta ênfase na séculos, sua independência das unidades maiores que antes os ;j
Declaração ao destacar a face do Estado voltada para o exterior, e encerravam. Esses Estados buscaram a confirmação de sua posição '!
'!
não aquela voltada para o interior. Portanto, eu subestimo as ao lado de outros Estados semelhantes, justificando sua secessão e,
nações - assim como nacionalismo e identidade nacional - em em alguns casos, sua mescla com outros territórios e povos. Em
busca de uma história que diga respeito às relações de Estados suma, declararam a posse de sua soberania tanto internamente,
com outros Estado~: como foram criados, por meio de qual crité- sobre seu próprio povo, quanto externamente, contra todos os
rio foram reconhecidos e quais foram as consequências de sua outros Estados e povos. Mais de uma centena de declarações de
proliferação. independência foram promulgadas desde 1776, o que assinala a
Os Estados nem sempre foram as unidades primárias da polí- grande transformação política dos últimos dois séculos: o gradual
tica global que vieram a ser na última metade do século xx. Eles 1~
surgimento de um mundo - nosso mundo- de Estados a partir 1

enfrentaram oposição por parte de grandes e pequenas organiza- de um mundo anterior dominado por impérios. Consideradas em
ções políticas que, bem ou mal, integravam-se sob a forma d e série e como um gênero, tais declarações enfatizam m elhor os
impérios. 32 Nos últimos 25 anos do século, os Estados foram rapi- estágios dessa monumental transição do que qualquer outro con-
damente excedidos em termos numéricos por uma proliferação de junto de documentos históricos.
organizações não governamentais e empresas multinacionais. 33 O principal objetivo da Declaração Americana, como o da
Muitas vezes, também tiveram de enfrentar desafios por parte de maioria das declarações de independência promulgadas desde
grupos o u povos subestatais que alegavam serem nações, entend i- 1776, foi explicitar a legalidade da soberania internacional dos
das como comunidades culturais baseadas no recon hecimento Estados Unidos. Assim sendo, em maio de 1825, Jefferson recor-
mútuo da semelhança entre seus integrantes. Apesar disso, não dou que
deveríamos partir do princípio nacionalista de identificar alguns •
Estados que possuem determinadas "nações" como sendo "Estados- um recurso ao tribunal do mundo foi considerado adequado
-nações". Como observou Ernest Gellner, "as nações, tal como os para nossa justificação. Este foi o· objetivo da Declaração de
Estados, são uma contingência, e n ão uma necessidade universal ··1 Jndependência. Não descobrir novos princípios ou novos argu-
~
22
23
mentos nunca antes pensados, não meramente dizer coisas nunca palavras constituíram a mensagem central da Declaração, tanto
como afirmação de soberania quanto de independência.
antes ditas; mas situar diante da humanidade o bom senso da ques-
Era isso o que a Declaração de Independência proclamava:
tão, cm termos tão simples e firmes que obtenham parecer favorá-
que as antigas Colônias Unidas eram agora "os Estad os Unidos da
vel, e para nos justificar na posição independente que somos com-
América" porque eram "estados livres e independentes". Nenhum
pelidos a adotar. Nem aspirando à originalidade de princípio ou
documento na história mundial antes de 1776 fizera tal declaração
opinião, tampouco copiada de nenhum escrito particular e ante-
de soberania em linguagem de independência. Muitos documen-
rior, ela destinou-se a ser uma e.xpressão do espírito americano. 36
tos posteriores fariam exatamente isso. Na verdade, a história
global dos dois séculos posteriores a 1776 demonstraria que criar
Jefferson talvez tenha sido muito modesto em sua avalfação.
um instrumento flexível, com o qual outros povos pudessem
A Declaração foi inovadora de duas maneiras que teriam conse- declarar sua independência, seria uma inovação tão importante à
quências de grande repercussão. Em primeiro lugar, apresentava sua maneira quanto o fora conduzir "os Estados Unidos da
ao mundo "os Estados Unidos da América"; em segundo, inaugu- América" ao cenário mundial em juJho de 1776.
. 1
l•
rava o próprio gênero das declarações de independência. Nenhum
documento público anterior havia empregado a denominação
"Estados Unidos da América': Nos m eses imediatamente anterio- :1
res a 4 de julho de 1776, e até mesmo no texto da Declaração pro-
priamente dita, as entidades políticas representadas no Congresso
Continental haviam sido chamadas geralmente de "Colônias
Un idas". 37 Todavia, o p rimeiro texto impresso do documento
chamava-se, explicitamente, "Uma Declaração dos Representantes
dos Estados Unidos da América, Reunidos em Congresso Geral':
O impresso de John Dunlap destacava apenas três expressões
no texto principal, por meio de letras maiúsculas: "os ESTADOS
UN([)OS DA AMÉRICA" reunidos em "CONGRESSO GEllAL" enquanto se
declaravam "ESTADOS LIVRES E INDEPENDENTES". o manuscrito oficial
1
da Declaração, produzido mais tarde, em julho de l 776, para ser
!
assinado por todos os delegados, destacava essas mesmas palavras.
Elas aparecem em letras itálicas diferenciadas. Este original da.
1
Declaração, atualmente em exposição no Arquivo Nacional, em
Washington, está tão desbotado que essas são quase as úniCas
partes claramente legíveis do texto. Tal fato é oportuno, pois essas

25
24
i.O Mundo na Declaração de
Independência

Tão aparentemente familiares são as palavras da Declaração de


Independência que é fácil esquecer o que ela de fato proclamava. Peça
a um americano para citar as frases de abertura do documento, e ele
provavelmente responderá: "Consideramos estas verdades evidentes
por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que são dota-
dos pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a
vida, a liberdade e a busca da felicidade'~ (Até certos não americanos
saberiam a resposta.) Mas poucos agora parariam para se perguntar
como exatamente tais direitos estavam ligados à independência.
"Verdades evidentes por si mesmas" ; "todos os homens são
criados iguais"; "direitos inalienáveis"; "a vida, a liberdade e a busca
da felicidade": essas são, sem dúvida, palavras sonoras e sentimen-
tos nobres, mas na realidade não são o que a Declaração proclamou
em 1776. Até mesmo Abraham Lincoln, discursando em 1857,
admitiu: "A afirmação de que 'todos os homens são criados iguais'
não foi de nenhuma utilidade no sentido de levar a cabo nossa
separação da Grã-Bretanha; e foi plantada na Declaração não para
isso, mas para uso futuro''. 1

27
A Declaração teria sido um documento sem futuro se hou- Poderes pela Forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-
vesse fracassado em seu objetivo principal de declarar indepen- -lhe a Segurança e a Felicidade.
dência. Ainda, se tivesse sido completamente ignorada (como 0
foi por muitos), se suas reivindicações fundamentais tivessem sido Violações de direitos básicos como vida, liberdade e busca da feli-
terminantemente refutadas (como alguns acharam que se tinha cidade pode.riam justificar a independência somente se fossem
conseguido fazer), e se a independência americana tivesse sido apresentadas como equivalentes a "uma longa série de abusos e
usurpações". Só assim um povo estaria justificado ao buscar"esta-
cortada pela raiz pela forças militares britânicas (como poderia
muito bem ter ocorrido), então talvez hoje poucos recordassem belecer novos guardiões para sua segurança futura". ~ :

A terceira e mais extensa parte da Declaração listava as "repeti-


tajs verdades supostamente "evidentes por si mesmas'~
das injúrias e usurpações" mencionadas, perpetradas por Jorge m,
Para entender o que a Declaração de fato proclamou, seria
como "fatos [... ] submetidos a um mundo cândido': como prova de
útil lembrar a estrutura do documento, pois foi uma proclamação
tal série de abusos. O penúltimo parágrafo afirmava que essas injus-
em forma de justificativa, possivelmente moldada de acordo com
tiças não haviam sofrido reparação por parte de "nossos irmãos bri-
as regras da lógica que Thomas Jefferson - seu primeiro redator
tânicos': de forma que "temos, portanto, de aquiescer na necessidade
- havia aprendido em seus dias de estudante na Faculdade
que denuncia nossa separação, e considerá-los, como consideramos i;.
William and Mary, na Virgínia. 2
o restante da humanidade, inimigos na guerra, amigos na paz".
A Declaração constituía-se de cinco partes. A premissa ini-
A separação da Grã-Bretanha podia justificar-se tanto lógica
cial, conforme enunciada no parágrafo de abertura, era a de que
quanto historicamente. Como consequência, a Declaração con-
"o devido respeito às opiniões dos homens" exigia que " um cluía, em sua quinta e última parte, que "estas Colônias Unidas
povo,,, ao separar-se d e outro, declarasse suas razões para fazê -lo. são, e por direito têm de ser, ESTADOS LIVRES E INDEPENDENTES". Foi
As premissas secundárias, constantes do segundo parágrafo, hoje para ratificar essa conclusão que os representantes reunidos em
mais conhecido, sustentavam ser evidentes por si mesmas as Congresso decidiram que "empenhamos mutuamente nossa vida,
verdades de nossa fortuna e nossa sagrada honra".
Os parágrafos de abertura e fechan1ento da Declaração con-
que todos os Homens são criados iguais, são dotados pelo Criador firmavam claramente a entrada de um novo ator ("um povo") ou
de certos Direitos inalienáveis, entre os quais estão a Vida, a novos atores (treze "ESTADOS LIVRES E INDEPENDENTES") no cenário
Liberdade e a Busca da Felicidade. - Que a fim de assegurar esses mundial. A primeira sentença do documento afirma verdades tão
Direitos, Governos são instituídos entre os Homens, derivando evidentes a respeito do mtmdo que elas aparentemente não care- '[
seus justos Poderes do Consentimento dos Governados; que, sem·- ciam de nenhuma justificativa ou elaboração:
pre que qualquer Forma de Governo se torne destrutiva de tais
Fins, cabe ao Povo o Direito de alterá-la ou aboli-la e instituir ·novo Quando, no Curso dos Acontecimentos humanos, torna-se neces-
Governo, baseando-o em tais Princípios e organizando-lhe os sário a um Povo dissolver os Laços Políticos que o ligavam a outro e

28 29
na Declaração, que havia afirmado que "todos os homens [ ... ] são
assumir, entre os Poderes da Terra, Posição igual e separada a que dota~os pelo Criador de certos direitos inalienáveis, e que, entre
lhe dão direito as Leis da Natureza e as do Deus da Natureza, o estes, estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade" [grifo meu].
Respeito digno às Opiniões dos Homens exige que se declarem as A Declaração especificou os poderes dos Estados - guerra e paz,
causas que o levam a essa Separação. elaboração de tratados e comércio - sem descartar a possibilida-
de de exercer outros poderes semelhantes caso surgisse a necessi-
Embutida nessa sentença, havia uma série de concepções sobre a dade. Com essa precisa - porém flexível - declaração de direitos,
política internacional do século xvm.3 A mais fundamental era a os representantes dos Esta.dos Unidos anunciaram que haviam se
existência de um grupo de entidades políticas ("os poderes da terra") separado da comunidade transnacional do Império britânico para
que interagiam de acordo com certas regras externas ("as leis da ingressar, por seu turno, em uma comunidade internacional de
natureza e as do Deus da natureza"). Elas tinham o direito de fazer Estados soberanos independentes.
isso por duas razões principais: por serem separadas - ou indepen- A Declaração de Independência foi, portanto, uma declara-
dentes- umas da outras, e por equipararem-se umas às outras. Seu ção de interdependência. Ao promulgá-la, os membros do
número não era fechado ou fixo; ocasionalmente, poderia se expan- Congresso demonstraram seu "respeito às opiniões dos homens':
dir para incluir qualquer "povo" coagido a se separar - e que, por Submeteram os fatos de sua justificativa a um "mundo cândido"
conta disso, desejasse reivindicar uma posição de igualdade ante os - o que significava um mundo imparcial - e comprometeram-
poderes existentes. Entretanto, como qualquer público composto de -se a tratar os ingleses "como o restante da humanidade, inimigos
personagens políticas distintas, tal comunidade de poderes terrenos na guerra, amigos na paz". A Declaração pode ter falado em nome
possuía opiniões que precisavam ser conhecidas e respeitadas. Desse dos americanos por intermédio da voz de seus representantes no
modo, seus membros comunicavam-se formalmente por meio de Congresso, mas estes não eram o público ao qual o texto dirigia
documentos públicos tais como a própria Declaração. implicitamente sua argumentação. Esta era, antes, as "opiniões
O parágrafo de encerramento da Declaração enumerava os dos homens", a opinião pública coletiva dos poderes da terra.
direitos desfrutados pelos Estados que haviam conquistado sua O próprio termo "declara.ção" lembrava isso na mesma medi-
independência e igualdade: da. Sem dúvida, a palavra possuía significados técnicos na histó-
ria inglesa do século xv11 e no direito inglês do século xvru. 1

Estas Colônias Unidas são, e por direito têm de ser, F.STADOS LIVRES F. Historicamente, uma declaração era um documento público emi- 1 '•
INDEPENDENTES[ ••• ] e que, como ESTADOS LIVRES E INDEPENDENTES, têm tido por uma entidade representativa como o Parlamento.
pleno poder para declarar guerra, concluir paz, contratar alianças, Portanto, ao chamar o documento de "Declaração'', o Congresso
estabelecer comércio e praticar todos os atos e ações a que os ESTA- Continental insinuou que possuía poder equivalente ao do

DOS INDEPENDENTES têm direito. Parlamento para emitir documentos oficiais. 4 Legalmente, aquilo
que o proeminente advogado inglês do século XVIII, sir William
A lista dos direitos compartilhados pelos Estados era tão indefini- Blackstone, denominara, em 1765, de" declaração, narrativa ou
da quanto o rol de direitos individuais encontrado previamente
31
30
alegação" era a forma "na qual o querelante [em um julgamento [... ] de sua Tomada de Armas" marcou uma virada decisiva na
civilj expõe detalhadamente a causa de sua queixa". Apenas o ter- luta entre a Grã-Bretanha e suas colônias americanas - nesse
ceiro parágrafo da Declaração americana- o registro das queixas caso, 0 movimento dos colonos rumo ao conflito armado for-
contra o rei - correspondia a uma declaração nesse sentido. 5 mal. Isso também havia sido encaminhado ao julgamento do
Na linguagem diplomática da época, declaração significava mundo, com a garantia de que "não mobilizamos Exércitos com
um pronunciamento internacional formal por parte de um órgão propósitos ambiciosos de separarmo-nos da Grã-Bretanha e
oficial, "seja por meio de um manifesto geral, publicado para o estabelecer Estados independentes". Como consequência, o
mundo inteiro; seja por meio de um comunicado a cada corte, Congresso rapidamente despachou o documento ao outro lado
entregue por um embaixador''. 6 Decerto, esse é agora o principal do Atlântico para ser publicado nos jornais de Londres. Os
significado de "declaração" em expressões como "declaração de outros documentos oficiais do Congresso haviam sido endere-
guerra" o u, efetivamente, "declaração de independência".7 A çados, também, ao povo britânico, aos habitantes de Quebec, ao
Declaração de Independência possuía elementos de todas as três povo irlandês, à Assembleia da Jamaica, às Seis Nações da
formas de declaração. Em sua linguagem, forma e objetivo asse- Confederação Iroquesa, à província do Canadá e, ainda, ao lorde
melliava-se mais de perto a "um manifesto geral, publicado para o North e ao rei. Desses comunicados, somente um fora encami-
mundo inteiro''. nhado aos habitantes das colônias propriamente ditas, em
A Declaração foi o auge de uma série de documentos conce- outubro de 1774. E até mesmo esse documento fora redigido
bidos pelo Congresso Continental para "forjar" as "opiniões dos com o desejo expresso de fazer "a mais forte das recomendações
homens" no Império britânico (antes de julho de 1776) e, em da causa deles ao restante da humanidade".9
seguida, no restante do mundo (com a Declaração propriamente A mudança de público implícita da Declaração em julho de
dita). Antes de emitir o documento, o Congresso havia apresenta- 1776 - de comunidades específicas dentro do Império britânico
do cerca de outros quinze documentos oficiais na forma de cartas, ao "mundo cãnclido" como um todo - representava a reivindica-
petições, propostas, palestras e um discurso, mas havia expedido ção principal do movimento em si: que as Colônias Unidas haviam
apenas outra "declaração" como precedente formal da Declaração deixado de ser membros do Império britânico e agora se situavam
de Independência: a "Declaração dos Representantes das Colônias ao lado dos "poderes da terra". Na realidade, durante quase dois
Unidas [ ... J Expondo as Razões e a Necessidade de sua 1omada de anos antes da elaboração da Declaração, o Congresso vinha exer-
Armas", de 6 de julho de 1775. Thomas Jefferson foi um dos pri- cendo grande parte dos direitos reivindicados pelos Estados
meiros redatores dessa declaração prévia, assim como o delegado Unidos no documento. Ele negociara com representantes britâni-
da Pensilvânia, John Dickinson. Nela, eles reconheceram "com - cos, nomeando agentes para dedicar-se a seus interesses na Europa,
promissos de respeito ao resto do mundo, para tornar pública a correspondendo-se com potências estrangeiras e recorrendo a

retidão de nossa causa" e "mostrar à humanidade" o infortúnio de várias espécies de ajuda para a causa revolucionária. 10 Para os
um povo ofendido. 8 partidários da Declaração no Congresso, portanto, "a pergunta
Assim como a Declaração de lndependênc.ia, a "Declaração não era se, mediante uma declaração de independência, devería-

32 33
mos nos transformar no que não somos; mas se deveríamos decla- Colônias Unidas são, e de direito têm de ser, Estados livres e inde-
rar um fato que já existia': 11 pendentes, que estão exoneradas de qualquer vassalagem para
Para alguns, a Decla ração em si era apenas o último de uma com a Coroa Britânica, e que todo vínculo político entre elas e a
série de atos que haviam desfeito o vínculo entre Grã-Bretanha e Grã-Bretanha está, e deve ficar, totalmente dissolvido'~
Colônias Unidas nos meses anteriores a julho de 1776. Em agosto o contexto internacional dessa resolução - efetivamente a
de 1775, Jorge m já havia declarado, por decreto, que os colonos declaração de independência original do Congresso - evidencia-
americanos eram rebeldes e, por conseguinte, achavam-se excluí- va-se a partir do restante da moção de Lee: ":t. oportuno, sem
dos de sua proteção monárquica. O Parlamento confirmara o demora, que sejam tomadas as med idas mais efetivas para a for-
decreto real em seu Ato Proibitivo de dezembro de 1775. John mação de Alianças estrangeiras. Que um projeto de confederação
Adams, escrevendo em março de 1776, alertou um corresponden- seja preparado e transmitido às respectivas Colônias para consi-
te para que não se confundisse a mera liberdade de comércio deração e aprovação". 13
com a independência internacional madura, afirmando que "a A resolução levou à criação de três comitês integrados, que
Independência é um Fantasma de Semblante tão terrível que uma compartilhavam tanto recursos humanos quanto objetivos. Um
Pessoa sensível teria Ataques só de olhá-lo na Cara". Só a dissolu- deles foi encarregado de escrever uma declaração de independên-
ção política. dos vínculos com o império poderia corresponder a cia; o outro, de rascunhar um tratado modelo de comércio e
um passo tão assustador. Além disso, Adams achava que a dissolu- aliança; e o terceiro, de redigir os artigos de confederação. Cada
ção já fora levada a cabo pelo "Ato proibitivo, Ato pirata, Ato um desses documentos foi planejado para ser uma expressão de
defraudador, ou Ato de Independência". "É um completo des- soberania estatal sujeita à lei das nações da época. A Declaração de
membramento do Império britânico", disse Adams. "Retira treze Independência definia essa soberania estatal. O Tratado Modelo
Colônias da Proteção Real, iguala todas as Diferenças e nos torna ida cumpri-la. 14 Os Artigos de Confederação protegiam-na para
independentes, a Despeito de todas as nossas súplicas e Apelos [... J cada um dos treze estados no Artigo II ("Cada estado mantém sua
Mas é muito estranho que os americanos hesitem em aceitar tal soberania, liberdade e independência"), mas limitavam sua
dádiva." 12 Eles não hesitariam por muito tempo. Embora a essa expressão internaciomtl apenas ao Congresso (nos Artigos v1 e IX,
altura fossem rebeldes aos olhos do rei e do Parlamento britânicos, que conferiam ao Congresso "o direito e o poder único e exclusivo
os americanos ainda não eram beligerantes legítimos aos olhos do de decretar a paz e a guerra") .15
resto do mundo. . A necessidade de reconhecimento e assistência por parte de

l
Para transformar uma guerra civil no seio do Império britâ- outras potências europeias tornara-se ainda mais premente desde
nico em uma guerra entre Estados fora do império, era necessário o outono de 1775. Em outubro desse mesmo ano, John Adams
criar organismos legítimos de combatentes - isto é, Estados - a perguntou-se se cortes estrangeiras não reprovariam os emissários
partir de rebeldes e traidores. Foi essa a força motriz por trás da norte-americanos: "Não seriam nossas propostas e nossos repre-
resolução que Richard Henry Lee propôs ao Congresso e~ nome sentantes tratados com de5prezo?': 16 Demodo semelhante, Richard
da delegação de Virgín ia em 7 de junho de 1776: "Que essas Henry Lee observou, em abril de 1776, que "nenhum Estado na

34 35
Europa irá se relacionar ou negociar conosco enquanto nos consi- por exemplo, a delegação da Carolina do Norte foi encorajada a
derarmos sujeitos à Gfrã]-B [retanha ]. A honra, a dignidade e os · "concordar com os DeJegados das outras Colônias em declarar
costumes dos Estados os impedirão até que nos alcemos a povo Independência e estabelecer tratados estrangeiros", e delegados do
independente". 17 Como consequência, era necessário que os colo- condado de Charlotte, na Virgínia, foram instruídos "a repudiar o
nos criassem entidades jurídicas com as quais as potências euro- jugo britânico e tomar parte em tratados comerciais com qualquer
peias pudessem comerciar e formar alianças legitimamente. nação ou nações favoráveis a nossa causa': No mês seguinte, ins-
A apresentação mais abrangente da tese a favor da indepen- truções semelhantes procederam de Malden, Massachusetts, para
dência segundo "os costumes dos Estados" ocorreu em janeiro de expressar"o ardente desejo de nossas almas de que a América possa
1776, nas páginas finais do popular livreto de Thomas Paine, Senso se torna r um Estado livre e independente': e em junho de 1776,
com um. Paine argumentou que "nada pode resolver nossos assun- delegados de Connecticut foram instruídos "a proclamar as
tos com tanta prontidão quanto uma declaração franca e categóri- Colónias Unidas Estados livres e independentes': 19
ca de independência". Somente a independência permitiria que Assim como a Declaração em si, essas instruções uniam fiel-
um mediador negociasse a paz entre os Estados Unidos e a Grã- mente dois argumentos que Paine elaborara fervorosamente em
-Bretanha; se~ tal mediação, "podemos continuar a disputar para seu Senso comum: que as Colônias americanas deveriam ser inde-
sempre". Tratados estrangeiros não seriam obtidos sem ela: a pendentes e que deveriam ser repúblicas não monárquicas, isto é,
França e a Espanha dificilmente apoiariam as colônias se elas lhes "Estados [ ... ] livres". Ao final do século xvr, a palavra "Estado"
pedissem apenas para ajudar na reconciliação com a Grã-Bretanha. havia assumido seu significado reconhecidamente moderno de
As acusações de rebelião também persistiriam se a independência poder político impessoal distinto de seu portador. Na linguagem
não fosse declarada: "Aos olhos das nações estrangeiras, seremos política anglófona, o termo "Estado livre" veio a significar especi-
considerados rebeldes". Além disso, era imprescindível que um ficamente mn regime não monárquico, tal e qual o "Estado Livre e
"manifesto fosse publicado e despachado para as Cortes estran- República" criado após a execução do rei inglês Carlos 1, em 1649.20
geiras': explicando os descontentamentos das colônias, a ausência Como o historiador americano David Ramsay observou no
de reparação e a necessidade de separação, e, "ao mesmo tempo, segundo aniversário da Independência em 1778, "a independência
assegurando a todas essas Cortes nossa disposição pacífica para tem sido a fértil guardiã dos governos formados sobre princípios
com elas e nosso desejo de comerciar com elas". Até que tal mani- semelhantes [... ] Enquanto éramos dependentes da Grã-Bretanha,
festo fosse despachado, "o costume de todas as Cortes está contra nossa liberdade estava fora de questão; pois o que é um Estado
nós, e assim será, até que, pela Independência, tomemos posição •'·
livre, senão aquele que é governado por sua própria vontade?': 21
com as outras Nações".18 " Estados livres e independentes" eram, portanto, os governos

Ao longo da primavera e início do verão de 1776, os a rgu- republicanos, exim idos de qualquer lealdade para com a Coroa
mentos de Paine ecoaram nas inúmeras instruções, discursos e britânica e atuando sob as normas vigentes da lei das nações.
resoluções que os governos locais em todas as colônias enviaram O guia-padrão para essas normas disponível em 1776 era o
para os delegados no Congresso ContinentaJ. Em abril de 1776, trabalho sucinto do jurista suíço Emer de Vattel, O direito das

37
gentes (1758). 22 O compêndio legal de Vattel fora produto das independentes (libres & indépendantes les unes des autres), deve-
etapas iniciais da Guerra dos Sete Anos. Ele o escreveu em francês riam deixar um ao outro no pacífico gozo de sua liberdade. Vattel
- o idioma vigente da diplomacia europeia da época-, mas o argumentou que, pelo fato de serem livres, independentes e
livro foi traduzido para o inglês logo após sua publicação. iguais ( libres, indépendantes, égales), os Estados deveriam ainda
Posteriormente, tornou-se o texto-padrão sobre o assunto na desfrutar de uma perfeita igualdade de direitos. Tais direitos não
Europa e nas Américas por mais de meio século, com o resultado poderiam sobrepujar a lei das nações: todos os Estados podiam
de que suas definições de termos-chave no que agora chamaría- ser livres e independentes (libres & indépendantes), mas conti-
mos de direito internacional e relações internacionais tornaram-se nuavam sendo obrigados a cumprir as leis da sociedade que a
paradigmas no mundo da diplomacia europeia - e, também, natureza havia estabelecido entre eles. 24
cada vez mais, na americana.23 A respeito da lei das nações, nenhum autor antes de Vattel
Vattel tornou a independência fundamental para sua defini- havia enfatizado com tanta consistência - e persistência - liber-
ção de soberania: dade, independência, e interdependência como pré-requisitos dos
Estados em suas relações entre si. Os autores da Declaração ameri-
Toda nação que governa a si mesma, sob qualquer que seja a forma, cana logo adotariam sua reiterada insistência de que os Estados
sem dependência de nenhum pais estrangeiro, é um Estado sobera- eram " livres e independentes" por essência. Ao fazê-lo, endossa-
no. Seus direitos são naturalmente os mesmos que os de qualquer vam o argumento centra l de Vattel, de que "independência é
outro Estado. Essas são as pessoas morais que vivem juntas em uma sempre necessária a todos os Estados"; e, para assegurar tal inde-
sociedade natural sujeita à lei das nações. Para que qualquer nação pendência, "é suficiente que as nações conformem-se ao que U1es
seja admitida nessa grande sociedade, basta que seja verdadeira- é exigido pela sociedade natural e geral, estabelecida entre toda a
mente soberana e independente, isto é, que governe a si mesma sob humanidade': 25 Em seu devido tempo, isso iri a levar à definição
sua própria autoridade e suas próprias leis. moderna elementar, na lei internacional, de independência: "a
capacidade de estabelecer relações com outros Estados': 26
Esses Estados soberanos independentes assumiam as qualidades Não foi por acaso que o conceito de soberania como inde-
das pessoas que os compunham: "Nações - ou Estados sobera- pendência, encontrado na Declaração americana, se assemelhava
nos - sendo compostas de pessoas naturalmente livres e inde- tanto ao de Vattel. Em outubro de 1774, James Madison fora
pendentes ( /ibres & indépendans) e que, antes do estabelecimen- informado de que "Vattel, Barlemaqui, Locke & Montesquie[u]
to das sociedades civis, viviam juntas em estado natural, devem parecem ser os critérios aos quais [o Congresso] recorre seja ao
ser consideradas como se fossem pessoas livres que coexistem estabelecer os direitos das Colônias seja quando surgem contro-
em estado natural". A partir desse fato, Vattel inferiu duas leis vérsias a respeito da Justiça ou propriedade de uma medida".27
abrangentes impostas sobre todos os Estados: que eles deveriam - Pouco mais de um ano depois, em 1775, Benjamin Franklin bus-
contribuir para a felicidade e perfeição de todos os outros cou a última edição do trabalho de Vattel para o Congresso porque
Estados; e que, uma vez sendo Estados mutuamente livres e "as circunstâncias de um Estado nascente frequentemente tornam

39
necessária a consulta à lei das nações': Franklin obteve três exem- "documento inspirador" d e 1320, ou de reiterar essa correlação
plares do livro, despachando um para a Library Company da · uase todos os anos desde então em resoluções tanto da Câ mara
Filadélfia, outro para a biblioteca da Universidade Harvard e o ~uanto do Senado em apoio a marcar o Dia Naci~nal do Tartan
terceiro p ara o próprio Con gresso Continental. (O exemplar do [estampa xadrez típicamente escocesa] em 6 de abril, data em que
Congresso se perdeu, mas os outros dois permanecem nas biblio- a declaração de Arbroath foi assinada.
30

tecas para as quais Franklin os enviou. ) A obra foi imediatamente O Ato de Abjuração holandês (Plakkaatvan Verlatinge), por
proveitosa: como Franklin informo u ao editor de Vattel, C. G .F. meio do qual os Estados Gerais repudiaram sua lealdade ao rei
Dumas, em dezembro de 1775, ela "tem estado constantemente Filipe da Espanha em julho de 158 1, renegara a autoridade real,
nas mãos dos membros de nosso Congresso, por ora em sessão".28 mas recorrera, em lugar dele, a "outro governante poderoso e
A visão d a Declaração de ''Estados livres e independen tes" ao ado- compassivo para proteger e defender estas províncias": era, nesse
tar "a posição a que lhe dão direito as leis da natureza e as do Deus sentido, uma declaração de dependência potencial em relação a
da natureza" comporta uma dívida ostensiva à concepção de Vattel um novo soberano, o duque de Anjou.31 O documento também se
de Estados enquanto livres e independentes sob as leis da natureza. baseava em direitos histó ricos e contratuais assegurados e regular-
Assim, as palavras de Franklin não foram lisonja vã. m ente fortalecidos desde o século XIV, e nã.o em um apelo ao
A relativa J1ovidade, em 1776, da definição d e soberania direito n atural ou outros direitos abstratos para além dos limites
internacional como liberdade e independência é óbv ia quando se da história e de um acordo positivo. Entretanto, o modelo da
compara a Declaração americana com dois docu mentos anterio- Declaração americana - com sua afirmação do direito de livrar-
res denominados, retrospectivam en te, declarações d e indepen- -se da autoridade de um príncipe tirano e sua enumeração de
dência : a Declaração de Arbroath ("a Declaração escocesa de injustiças - ainda se aprox imava bastante do Ato holandês para
Independência"), de 1320, e o Ato de Abjuração holandês ("a que o pró-britânico (e antiamericano) stadtholder holandês
Declaração holandesa de Independência"), de 1581. A Declaração Guilherme v, príncipe de Orange, qualificasse a Declaração, em
de Arbroath dirigia-se, em no me dos condes e barões escoceses, ao agosto de 1776, de nada além "da paródia da proclamação emitida
papa João xxn, encorajando-o a usar sua influência para convencer por nossos antepassados contra o rei Filipe n".32
o rei ingl.ês, Ed uardo 11, a estabelecer negociações de paz com Na melhor das hipóteses, h á apenas provas circunstanciais de
Robert Bruce, o rei escocês. O documento d eclarava a Liberdade da que o Ato holandês ten ha proporcionado um modelo para a
Escócia com base na continuidade histórica da nação escocesa e Declaração americana de 1776.33 Mesm o que assim fosse, a reivin-
na concepção de liberdade extraída do h istoriador romano dicação específica de independência não po dia ser encontrada
Salústio. Su as reivindicações eram, portanto, conservadoras e na declaração ante rior. Ademais, ela não seria conhecid a corno a
defensivas, 29 e o documento nunca foi chamado de declaração d'e declaração de independência h olandesa até bem depois d e sua
independ ên cia escocesa antes do século xx. Esse pedigree recente promulgação original, e na esteira da ascensão da Declaração
não dissuadiu o Congresso dos Estados Unidos de determinar, em americana. Ela não foi assim denominada até a década de 1890. E,
1998, que a Declaração de 1776 fora confeccionada com base no mesmo nesse caso, o termo surgiu nos Estados Unidos e não na

40 41
-Bretanha se empenharia em transformar isso em uma questão são tão parecidas que a história de uma parece mais uma transcri-
europeia': Ele também citou a Córsega e a Polônia como prova de ção da [história] da outra". 46 A luz das frequentes comparações
que "tais negócios tornarnm-se comuns no Velho Mundo". "Toda entre as duas federações, talvez seja si.gnificativo o fato de, nos
a Europa': concluiu ele, "estava interessada em nos reduzir a rebel- séculos xvn e xvm, as Províncias Unidas serem por vezes chamadas,
des, e toda a Europa (ou a maior parte, pelo menos) está interessa- em inglês, de "Estados Unidos''. Decorre daí o fato de o volume de
da em nos apoiar como Estados independentes."42 tratados que o Congresso usou ao redigir o Tratado Modelo incluir
Os adversários da independência haviam aconselhado um o Acordo Anglo-Espanhol de 1667, que se referia exatamente dessa
adiamento, temendo que a secessão através de uma "confederação" maneira aos "estados unidos dos Países Baixos".47
de colônias incentivasse as potências europeias a atacar as colônias Os defensores da independência respaldavam seus argumen-
enfraquecidas. Os defensores da independência no Congresso tos históricos com garantias mais imediatas sobre a situação dos
responderam a essa acusação com outro apelo à história. A unani- assuntos internacionais. Sem uma declaração, reiteravam, seria
midade podia não ser alcançada de imediato, mas "a história da "discrepante para com a sensibilidade europeia que as potências
revolução holandesa, na qual apenas três estados confederaram-se da Europa se relacionem conosco, ou mesmo recebam um embai-
a principio[,] provou que a secessão de algumas colônias não seria xador nosso''. França e Espanha tinham mais a temer com uma
tão perigosa 'orno temiam alguns': 43 vitória britânica na América e um consequente ressurgimento do
A revolta holandesa havia sido a primeira secessão bem-suce- poder inglês do que com o crescente- mas isolado - poder das
dida de uma província em relação a uma monarquia imperial na colônias. Considerações mais práticas ditavam uma ação imediata,
história europeia moderna. Os colonos achavam-se bastante cien- já que "é necessário não perder tempo na abertura de um comér-
tes desse precedente, que havia levado à criação de uma federação cio para nosso povo, que irá querer roupas, e irá querer dinheiro
de Estados livres como a deles mesmos. 44 Como escreveu Abigail também, para o pagamento de impostos". 48
Adams em abril de 1781, depois que as Províncias Unidas declara- Durante o debate no Congresso em 111 de j ulho, John
ram-se a favor da causa americana, "se o antigo espírito batavo Dickinson apresentou argumentos desesperados opondo-se à
ainda existe entre eles, a Grã-Bretanha lamentará o dia em que, declaração de independência, e advertiu contra o perigo de qual-
violando a Lei das Nações, atacou seus domínios indefesos e fez quer manifesto geral porque "as potências estrangeiras não se fia -
recair sobre si [... J a força conjunta de todas as potências neutras". rão em palavras". Em vez disso, recomendou negociações privadas
Ela argumentou que as semelhanças entre as duas causas "irá con- com as potências europeias (sobretudo a França) : "Não devemos
solidar um indissolúvel laço de união entre os Estados Unidos da falar das potências estrangeiras em geral, mas daquelas que espe-
América e as Províncias Unidas, as quais, a partir de uma similari- ramos que nos apoiem".49 No entanto, emissários já haviam sido
dade de circunstâncias, alcançaram, cada qual, a independência, enviados à Europa, e, a essa altura, o sentimento no Congresso era
desprezando o cativeiro e a opressão de um Filipe e de um Jorge''. 45 predominantemente a favor da independência. A resolução de Lee
Seguindo uma linha semelhante, John Adams escreveu aos Estados passou em 2 de julho sem nenhuma dissidência, graças às delega-
Gerais holandeses no mesmo mês: "As origens das duas repúblicas ções da Pensi lvâ nia, Carolina do Sul e Delaware (anteriormente

44 45
dividida), que mudaram seus votos. 50 Em 3 de julho, John Adams independência. O resultado foi uma extraordinária composição
ainda lamentou que a afirmação de independência tivesse sido de bricolagem textual. Na forma, era tanto uma declaração - no
tão adiada ("Poderíamos, antes desta hora, ter consolidado sentido de que a "Declaração[ ... ] de Levantar Armas" também
al ianças com Estados estrangeiros. - Deveríamos ter dominado havia sido uma d eclaração - quanto um manifesto, isto é, uma
Quebec e estar de posse do Canadá"), mas regozijou-se com o minuciosa apresentação de provas para apoiar "um apelo ao tri-
fato de que ela finalmente houvesse ocorrido: "O segundo dia de bunal do mundo", como Jefferson o chamaria em 1825. O cora-
julho de 1776 será a data mais memorável na história da América" ção do manifesto era a lista de acusações que constituía "a histó-
e "deve ser comemorada, corno o Dia da Libertação [ ... ] de um ria do rei da Grã-Bretanha", muitas das quais Jefferson extraíra
extremo a outro deste Continente, deste momento em diante e de seu prefácio.53
para todo o sempre". 51 O relato de Jefferson desta " história de repetidas injúrias e
A posteridade iria julgar que Adams escolhera não apenas o usurpações, todas tendo como objetivo direto o estabelecimento
dia errado, mas também o documento errado como foco para de uma tirania absoluta sobre estes Estados", foi o apogeu de uma
comemorar a independência americana. Na época, a escolha de teoria da conspiração que se desenvolvera ao longo dos documen-
Adams era mais defensável por reconhecer a importância funda- tos oficiais do Congresso desde 1774. O discurso "Aos Habitantes
mental da res?lução de Lee como marco do ponto sem volta. A das Colônias" (outubro de 1774) havia enumerado, entre outros,
Declaração na qual a resolução seria justificada ante as opiniões todos os esquemas legislativos contra as colônias desde "a conclu-
dos homens era tun docwnento completamente secundário. são da úJtima guerra" em 1763 - a saber, a Guerra dos Sete Anos.
A ratificação da Declaração foi precedida por três dias de A prova que o documento apresentou confirmava, para a satisfa-
intenso debate no Congresso a respeito da redação de seu texto. ção do Congresso, "que uma resolução está tomada e, no momen-
Três semanas antes de 4 de julho, o Congresso havia nomeado um to, está sendo posta em execução para aniquilar a liberdade destas
conútê composto por Thomas Jefferson, John Adams, Benjamin colônias, sujeitando-as a um governo despótico'~ 54
Franklin, Roger Sherman e Robert R. Livingston para elaborar O Congresso forneceu sua descrição de uma clara conspira-
uma versão preliminar da Declaração.52 Em 28 de junho, Jefferson ção global- por ter proporções imperiais- a públicos para além
apresentou os frutos do trabalho do comitê ao Congresso, mas o das treze colônias. Havia informado aos habitantes de Quebec, em
rascunho da Declaração foi posto de lado até após a votação da outubro de 177 4, que "o conteúdo do conjunto, despojado de
proposta de Lee. palavras lisonjeiras, é que a Coroa e seus ministros serão tão abso-
O texto que Jefferson apresentou foi redigido sob a imensa lutos ao longo de sua extensa província quanto os déspotas da Ásia
pressão dos assuntos do Congresso e com o auxílio dos demais ou da Áfricà'. No ano seguinte, o Congresso descreveu à Assembleia
membros do comitê. Em parte, ele o concebera com basei;;e m da Jamaica um plano ainda mais abrangente e "premeditado para
uma série de outros materiais pertinentes: o prefácio que havia destruir, em todas as partes do império, a constituição livre pela
escrito para a Constituição da Virgínia; a Declaração de Direitos qual a Grã-Bretan ha havia sido tão longa e justamente afamada":
da Virgínia de George Mason; e a própria resolução de Lee pela

47
Nas Índias Orientais, onde a efeminação dos habitantes prometia eternamente na defensiva, em um mundo povoado em grande
uma conquista fácil, eles julgaram desnecessário encobrir os p rin- : arte por escravos governados por déspotas e tiranos. "Liberdade
cípios t irânicos sob o mais transparente dos disfarces. pé direito básico natural da humamºdad e», exclamava o economis- .
0
J
[... ]Na Grã-Bretanha, onde as máximas de liberdade ainda eram ;- ta político Arthur Young em l 772, "e, no entanto, ao obtermos
conhecidas, mas onde o luxo e a devassidão haviam reduzido a ·~··
> .. uma visão abrangente do mundo, quão poucos dela desfrutam!".
costumeira reverência por elas, o ataque havia sido consumado de Ele calculou que apenas 33,5 milhões de pessoas em uma popula-
forma mais secreta e indireta: empregou-se a corrupção para miná- ção mundial estimada em 775,3 m ilhões não eram "escravos
-las. Os americanos não se acham enfraquecidos pela efeminação, miseráveis de tiranos despóticos [... ] e, desses poucos, uma parcela
como os habitantes da lndia; nem corrompidos pelo luxo, como os tão grande quanto 12,5 milhões é súdita do Império britânico'~ 57
da Grã-Bretanha. Foi, portanto, considerado impróprio atacá-los A mais eloquente declaração desse ponto de vista aparecera
através do suborno, ou através da força ostensiva. no Senso comum de Pa ine, quando ele concluiu seu relato das
injustiças impostas aos americanos com estas provocantes linhas:
Por essas razões, em um "Discurso" em julho de 1775, o Congresso
alertou o povo irlandês para o fato de que a " impo rtante rivalidade Ah, vocês que amam a humanidade! Vocês que se atrevem a opor-se
à qual fo mos conduzidos agora se tornou interessante para todos não apenas à tirania, mas ao tirano, apresentem-se! Cada canto do
os Estados europeus, e afeta particularmente os membros do velho mundo transborda de opressão. A Liberdade tem sido perse-
Império britânico".ss guida em todo o Mundo. Asia e África há muito baniram-na: - a
No conflito americano, cada lado havia acusado o outro de Europa a enxerga como estranha, e a Inglaterra deu seu aviso de
tais objetivos conspiratórios - seja em prol da tiran ia, como sus- partida. Ah!, acolham a fugitiva, e preparem a tempo um abrigo
tentavam os americanos, seja em prol da independência, como para a humanidade.~
rebatiam os ingleses - , mas apenas os americanos lançaram suas
suspeitas sobre uma tela global.56 Eles o fizeram, em parte, para Cinco meses mais tarde, os autores da Declaração compartilha-
angariar apoio de outras bandas do império: se as colônias ameri- riam do julgamento de Paine de que o rei era culpado pelos planos
canas deveriam sucumbir ao despotismo ministerial ou real, quem desonestos contra seus súditos americanos. Todavia, eles não
·.~·
então estaria a salvo, em algum momento, da tiran ia britânica? De copiaram sua retórica apocalíptica, enfocando apenas os detalhes
todo modo, eles não poderiam ter presumido que suas acusações de seu panorama global de tirania abusiva, que se aplicava, sobre-
iriam persuadir os quebequenses ou os irlandeses caso elas care- tudo, às colônias americanas.
cessem de repercussão mais ampla. O inventário central da Declaração no que dizia respeito às
Desde meados do século xv11, o discurso político inglêsL- e " injúrias e usurpações" do rei era deliberadamente inespecífico
mais tarde o britânico - apresentava tradicionalmente as 1iberda- quanto a locais e datas. As múltiplas acusações listadas contra o
des do norte da Europa e de suas colônias americanas como con- monarca poderiam pa rtir de qualquer colônia - ou de todas
dições conquistadas a d uras penas, constantemente sob ataque e elas.s9 Poucas dessas acusações teriam sido completamente novas

49
,.,

para aqueles que haviam acompanhado de perto as guerras de em um crescendo, o terceiro e culminante grupo extrapolava o
panfletos americanas de 1774-6: muitas delas, por exemplo , alcance da administração doméstica e da legislação colonial rumo
haviam aparecido, em 1774, na carta do Congresso destinada aos à esfera da lei das nações. O rei, acusava a Declaração, "pilhou
h abitantes das colônias, e também n o Summary View of the Rights nossos mares, devastou n ossas costas, incendiou nossas cidades e
of British Americ.a, de Jefferson, nesse mesm o an o. 60 No Summary destruiu a vid a de n osso povo". Ele importava mercenários estran-
View, Jefferson as havia registrado no contexto d e um discurso gei_ros para concluir «a obra da morte, d a desolação e da tirania, já
feito para o próp rio rei em nome da Assembleia Legislativa d a iniciada em circunstâncias de crueldade e perfídia raramente
Virgínia e em apoio a uma concepção federal, na qual o rei nada igualadas nas eras mais bárbaras e totalmente indignas do chefe de
.,
mais era do que "o chefe magistrado do Império britânico" com- uma nação civilizada". Ele obrigara "nossos concidadãos aprisio-
posto de múltiplos "Estados", e, entre eles, "os governos distintos e nados em alto-mar" a levantar armas contra seus próprios compa-
independentes" da América britânica.A "temerária sucessão de injú- ·~ triotas e, como prova suprema de seu d espotismo, "incitou insur-
rias" d escrita por Jefferson foi depositada às portas do Parlamento ·:;:. reições domésticas entre nós e procurou instigar contra os

I
- e não do rei - para "provar claramente um plano p remeditado '.~. '
habitan tes de n ossas fro nteiras os índios selvagens e impiedosos,
e sistemático de nos reduzir à escravidão". 61 cuja sabida prática de guerra é a destruição que não distin gue
Em contrapar tida, a litania de abusos constante da Declara- idade, sexo o u condições de existên cia':
ção começava com uma série de ofensas genéricas contra as colô- . O povo britânico não apresentou nenhuma defesa contra
nias, seguida de um conjunto de acusações mais específicas de que essas violações porque não "desautorizaria ta is usurpações, que
o rei aprovara atos legislativos "para sujeitar-nos a uma jurisdição inevitavelmente abalariam nossos vínculos e nosso entendimento"
estranha à nossa Constituição': antes de culminar em uma lista de - ou seja, isolariam as colônias de todas as formas de comércio
ataques físicos e econômicos mais abrangentes aos habitantes das com um mundo mais amplo. Não houve, desse modo, n enhuma
colônias.62 O p rimeiro grupo continha acusações de que o rei alternativa no sentido de suspender os vínculos familiares ante-
havia interferido diretamente nos assuntos coloniais ao obstruir a riores entre britânicos e americanos b ritânicos e substituí-los por
legislação colonial, interromper reuniões de colô nias, desencora- relações entre povos independentes sob a lei das nações: "Temos,
jar a imigração, interv ir no processo judicial e n a liberdade indivi- portanto, de aquiescer diante da necessidade que denuncia nossa
dual e, ainda, impor um exército permanente nas colônias. O separação e considerá-los, como consideramos o restante da
segundo grupo especificava a legislação metropolitana que havia humanidade, inimigos na guerra, amigos na paz".
sido aprovada sem levar em conta as necessidades das colôn ias, Na versão da Declaração por fim ratificada pelo Congresso e
inclusive "suprimindo nosso comércio com todas as partes do ., p ublicada para o mundo, o clímax retórico da longa série de abu-
mundo", "transportan do-nos para além-mar a fim de serm os jul- ~ sos alegados eram as acusações de que Jorge 111 havia tentado pro-

gados por p retensas ofensas" e "abolindo o livre sistema de leis vocar "insurreições d omésticas" - isto é, rebeliões de escravos
inglesas em uma província vizinha" (isto é, Quebec) . · semelhantes às que o governador britânico havia incentivado por
À m edida que as acusações acumulavam-se reto ricamente proclamação na Virgín ia cm 1775 p ara solapar a economia de

50 51
plantation da colônia - e que havia jogado "os índios selvagens e Essa passagem parece duplamente anômala, tanto porque
impiedosos" contra os colonos.63 Jefferson era ele próprio dono de escravos como porque tais
Essas acusações insinuavam que o rei havia efetivamente situado palavras seriam por fim removidas da versão final da Declaração
as colônias para "além do limite" da prática civilizada de guerra, algo pelos representantes dos estados que desejavam dar seguimento
que a lei consuetudinária das nações europeias no século xvm não ao comércio de escravos ou achavam-se comprometidos com
permitia. A Declaração deixava entrever que readmitir a violência e a esse negócio antes de 1776. Como Jefferson relatou, "a cláusula
selvageria ilícitas - por meio das práticas de guerra dos escravos [... ] que condena a escravização dos habitantes da África foi eli-
libertos e indígenas- no interior das fronteiras das próprias colônias minada em complacência com a Carolina do Sul e a Geórgia[ ... ]
era uma afronta a mna ordem internacional emergente e não apenas acredito que nossos irmãos do Norte também tenham se sentido
às sensibilidades de colonos em particular. É claro que tal acusação ' um tanto melindrados sob tais censuras; pois embora eles pró-
·~···
poderia ser facilmente revertida, como demonstraram os britânicos prios possuam muito poucos escravos, ainda assim os têm trans-
durante a Guerra da Independência americana, quando estes acusa- •i portado em consideráveis escalas para outros [estados ]".65 Em
..")
ram igualmente os colonos de empregarem práticas selvagens, con- todo caso, no contexto do primeiro rascunho de Jefferson da
trárias às leis europeias de guerra vigentes.64 Declaração, a passagem marcava o clímax lógico para a série de
No primeiro rascunho de Jefferson da Declaração, a acusação abusos da qual o rei havia sido acusado. 66
final con.tra o rei fazia um apelo ainda mais explícito à lei das Por mais que fosse inadmissível colocar sobre os ombros de
nações e às normas da civilização europeia da época. Jorge III, Jorge III a responsabilidade pessoal pelo comércio de escravos, a
sustentou Jefferson, comparação entre o "o rei CRISTAO da Grã-Bretanha" e os "poderes
·, infiéis" - como os de Marrocos e Argel, que se empenharam em
travou uma guerra cruel contra a própria natureza humana, violando : uma "guerra pirata" contra os europeus, fora das normas da lei das
os mais sagrados direitos à vida e à liberdade de povos distantes que ~. nações - trouxe de volta ao Summary View a acusação de que o
nunca o ofenderam, capturando-os e conduzindo-os como escravos ;, rei havia "preferido as vantagens imediatas de um pequeno núme-
para outro hemisfério, ou sujeitando-os a uma morte deplorável no \ ro de corsários britânicos aos interesses duradouros dos estados
transporte para cá. Essa guerra pirata, opróbrio de poderes infiéis, é a ~americanos e aos direitos da natureza humana, profundamente
guerra do rei CRISTÃO da Grã-Bretanha [ ... ] e para que a essa coleção '·, fendidos por essa prática vergonhosa", ao se recusar a apoiar a
de horrores não faltassem fatos de cunho distintivo, ele agora está . lbolição do comércio de escravos.67
instigando esses mesmos indivíduos a levantar armas entre nós e a . Essa comparação também aludia a uma das iniplicações mais
'·~: quietantes
.
da independência americana: a de que a Marinha

.
comprar a liberdade da qual ele os privou, assassinando o povo sobre
o qual também ele se impôs; assim, paga os crimes antes cometidos ·. ai britânica não mais protegeria a frota mercante americana dos
.
contra as liberdades de um povo com crimes que ele o encoraJa a .. aqu.es dos corsários berberes que saqueavam navios mercantes
cometer contra a vida. de outros. : Mediterrâneo. Quando os Estados Unidos estabeleceram seu
P. . eiro pacto de defesa com a Fr~nça, em fev~reiro de 1778, as

52 53
condições do Tratado Franco-Americano de Amizade e Comércio Para ele, o Poder Legislativo da Virgínia poderia libertar os escra-
incluíam uma cláusula capital que proporcionava proteção fran- vos enviando-os para colonizar as terras do oeste, estando os
cesa para «o benefício, conveniência e segurança dos supracitados habitantes da Virgínia obrigad os a "declará-los um povo livre e
Estados Unidos - e cada um deles, seus súditos, povo e habitan- independente, e estender-lhes nossa aliança e proteção':10
tes, assim como seus navios e bagagens - contra toda violência,
insulto, ataques ou d epredações por parte de [ ... ] p ríncipes e
Estados da Berberia ou seus súdüos".68 ·;:,
O mundo mais amplo concebido na Declaração - tanto em
O mais longo trecho da Declaração cortado pelo Congresso seus rascunhos como na versão final publicada - era um mundo
era provocador não apenas por Jefferson ter igualado os habitantes de povos ligados por formas tanto benignas quanto malignas de
livres da América britânica e os escravizados ao chamar a ambos comércio. Era também uma arena de guerra entre americanos e
de "povo". No parágrafo de abertura de seu primeiro rascunho, ·í;{.
britânicos, assim como entre seus inúmeros aliados e inimigos.

.l
Jefferson havia escrito: "Quando, no curso dos acontecimentos Essa comunidade internacional era povoada, sobretudo, por
humanos, torna-se necessário a um povo [a people] superar a :.·:'ff,.··.:, Estados soberanos que se reconheciam mutuamente, mas era
l
,.
:?:

subordinação em que até então permaneceu", que foi emendado ameaçada por potênc.ias ilegais que atuavam mais como piratas
pelo Congresso para se tornar aquele que é o ma is familiar: - os tradicionais inimigos da humanidade, empenhados em fazer
"Quando, no curso dos acontecimentos humanos, torna-se neces-
'"
·>;!
guerra contra o próprio homem .71 Sob vários aspectos, era um
sário a um povo [one people] dissolver os laços políticos que o mundo reconhecidamente moderno, no qual o comércio e a guer-
ligava m a outro" [grifo meu]. Na Declaração adotada pelo ra são as formas mais evidentes de interação entre povos e Estados
Congresso, somente britânicos e americanos eram chamados de distintos. Mesmo entre os pensadores europeus, essa concepção
"povos" em dois sentidos que ofereciam mútuo respaldo: enquan- de interação entre Estados mal contava um século de existência
to habitantes de dois territórios politicamente constituídos como em 1776. 72 Mas era também um mundo no qual ainda se pod ia
entidades soberanas e também enquanto duas unidades no seio apelar para normas metafísicas - "as leis da natureza e do Deus
da tradicional lei das nações - ou daquilo que os contemporâ- da natureza"-, ao ]ado da "sabida prática de guerra" e de padrões
neos legalmente orientados chamariam d e lei dos povos (o que na culturais como civilidade e barbárie.
lei romana havia sido chamado de jus gentium e que, na linguagem Esse era o mundo no qual os membros do Congresso, por
jurídica francesa e alemã da época, chamava-se droit des gents ou meio da Declaração de Independência, acreditavam estar inserin -
Volkerrecht). A supressão do trecho relacio nado ao comércio de do os Estados Unidos da América. Em seu autojustificado panfleto
escravos e a alteração da frase de abertura da Declaração remove- Observations on the American Revolution (1779), o Congresso
ram assim qualquer igualdade entre africanos e americanps, seja considerava a independência um fato consumado, porém sujeito a
como "povos" ou como vítimas da "subord i n ação'~ 69 No entanto, ataques: "Devemos nos manter preparados para rechaçar a força
seria exatamente nesses termos que Jefferson mais tarde·argumen- com a força sempre que atacados, e responder firmemente a cada
taria a favor da alforria em Notes on the Sta te of Virgínia. (1785 ). violação da lei das nações com incondicional perseverança". Se a

54 55
independência dos Estados Unidos fosse defendida, e a lei das :~· A Declaração de Independência
nações mantida, então os Estados Unidos se tornariam aquilo que
Thomas Paine e outros haviam predito: um refúgio para a huma- (no Mundo
nidade oprimida, um modelo de conhecimento e benevolência, e
um entreposto universal para o comércio do mundo. 73
Essa também seria a visão milenarista que Ezra Stiles, o pre-
gador congregacionalista e reitor da Universidade Yale, prometera
no rescaldo imediato do reconhecimento britânico da indepen-
dência americana em 1783:

Essa grande revolução americana, esse fenômeno político recente


de uma nova soberania surgindo entre as potências soberanas da
terra, será notada e contemplada por todas as nações. A navegação
conduzirá a bandeira americana por todo o mundo e exibirá as
Treze Listr<ts e a Nova Constelação em Bengala e Cantão, no Indo e Nas primeiras décadas após 1776, a Declaração inspirou mais
no Ganges, no Whang-ho e no Yang-tse-kiang [... ] o conhecimento atenção e comentários fora dos Estados Unidos que em casa. Mas
sení trazido para casa e valorizado na América; e sendo aqui digeri- foram poucos os que se ocuparam do segundo parágrafo da
do e conduzido à mais alta perfeição, talvez torne a resplandecer Declaração; na realidade, a maioria se encarregou de refutar as
desde a América para a Europa, a Ásia e a África, iluminando o queixas contra o rei Jorge m ou refletir mais amplamente sobre as
'
mundo com VERDADE e LIBERDAD E. implicações da independência americana para a ordem interna- li
',y,
cional emergente do mundo atlântico de fins do século xvm.
r
•.!!$
. <
~~. 1

Conforme registrou Stiles na segunda edição de seu sermão, The Após 18 15, conflitos partidários domésticos e debates a 'i

United States Elevated to Glory and Honour, publicada dois anos respeito da natureza da independência no exterior geraram a
mais tarde, em 1785, essa visão já estava se tornando realidade, necessidade de que os americanos reabilitassem sua Declaração.
com o retorno aos Estados Unidos dos primeiros navios america- Um documento dirigido às "opiniões dos homens" e a "um
nos do Sudeste asiático, provenientes de Cantão, Macau e Cakutá.74 mundo cândido" precisava curar-se de seus contextos cosmopo-
A Declaração concebera um novo mundo apenas para o exercício litas e tornar-se especificamente americano. Essa tentativa de
da soberania americana. Agora, suas consequências forjariam esse domesticação teria dois efeitos equivalentes e opostos entre si:
mundo, graças à "nova soberania [ ... ] entre as potências soberau.as primeiro, ocultaria dos americanos o significado original da
da terra" que ela havia ajudado a criar.
...
·j~: Declaração como documento internacional - e até mesmo
j global; segundo, asseguraria que, d entro dos Estados Unidos,
apenas defensores da escravidão, partidários da secessão sulista e
críticos anti-individualistas do discurso jurídico fossem capazes modo, seria muito mais um estímulo à reforma que um incentivo
de evocar essa acepção original. à rebelião ou à revolução em qualquer outra parte do mundo. 3
O fa to em si da independên cia americana aos olhos do A Declaração de Independência foi chamada de "documen-
mundo confirmou os efeitos dessa mudança no significado do to apresentado no d iscurso da jus gentium [a lei das nações] e
documento para os americanos. Como o bservou Woodrow não na jus civile [a lei civil]".4 Devido a seu sucesso em obter a
Wilson em 4 de julho de 1914, em um discurso no lndependence independência americana, tal fa to tem sido geralmente n egli-
Hall, na Filadélfia: genciado. Não se reflete muito sobre as declarações de abertura e
conclusão do documento, pois elas passaram a ser entendidas, a
Em um sentido, a Declaração de Independência perdeu sua signifi- posteriori, como conclusão óbvia do processo; pareceram confir-
cação. Perdeu sua significação como declaração de independência mar, de forma duradoura, a independência. Mas, no fim das
nacional [... ] agora ninguém, onde quer que seja, iria se atrever a contas, são as frases mais fundamentais do documento; afirmam
duvidar que somos independentes e podemos preservar nossa que os Estados Unidos pretendiam "assumir, entre os poderes da
independência. Como declaração de independência, portanto, é terra, a posição igual e separada a que lhe dão direito as leis da
um mero documento histórico. 1 natureza e as do Deus da natureza"; definem o que poderiam fazer
uma vez que tivessem alcançado tal objetivo, ou seja, "declarar
Em 1776, a intenção primordial por trás da Declaração de guerra, concluir a paz, contratar alianças, estabelecer comércio e
Independência fora a de afirmar perante a opinião do mundo os praticar todos os atos e ações a que os ESTADOS INDEPENDENTES têm
direitos de um povo organizado em treze Estados de ingressar na direito". O restante da Declaração apresenta apenas o rol dos
arena internacional em condições d e igualdade com outros princípios abstratos sobre os quais se assenta tal posição n a
Estados semelhantes. O s autores da Declaração aspiravam à ordem internacio nal, além de uma descrição das injustiças que
admissão dos Estados Unidos da América em uma ordem interna- haviam forçado os Estados Un idos a assumir uma postura inde-
cional preexistente; assim sendo, haviam formulado seu apelo às pendente entre "os poderes da terra'~
p otências do mundo em termos que essas potências entenderiam Embora amplamente esquecido nos dias de hoje, esse entendi-
e, assim esperava o Congresso, também aprovariam. "Em nossas mento do significado da Declaração prevaleceu, até mesmo entre
transações com os Estados europeus, decerto é importan te não comentaristas am ericanos, por quase meio século depois de 1776.
transgredir, nem estar aquém dessas máximas, pelas quais eles John Adams, por exemplo, escrevendo em 1781, chamou a
regem sua conduta em relação uns aos outros'', explicou James Declaração de "ato m emorável, por meio do qual [os Estados
Wilson em janeiro de 1777.2 Nesse sentido, a Declaração sinalizava Unidos] assumi ram posição igual entre as nações'~ Para um grupo
ao mundo que os americanos pretendiam que sua revoluçi\,P fosse de americanos em Paris, escrevendo a Thomas Jefferson em 4 de
decididamente não revolucionária. Ela iria aceitar as máximas do julho de 1789, o documento era "o ato declaratório que anunciou
estadismo europeu, e não afrontá-las. Tanto quanto possível, obe- ao mundo a existência de um império'~ Segundo David Ramsay, em
deceria às normas regulatórias da política contemporânea e, desse seu History of the American Revolution ( 1789) [História da

59
Revolução americana], era "o ato das colônias unidas para separa- até mesmo para o significado doméstico, americano, da Declara-
rem-se do governo da Grã-Bretanha e declararem sua independên- ção. Sua ascensão ao status de "evangelho americano" e a impor-
cia''. Para John QuincyAdams, discursando no Dia da Independência, tância de seu segundo parágrafo para essa posição consagrada só
em 1821, "a Declaração de Independência, em seu significado pri- ocorreriam quando ficasse claro que as revoluções americana e
mordial, foi meramente um documento ocasional. Foi uma exposi- francesa não eram apenas dois momentos distintos em um único
ção solene ao mundo das causas que compelirarn o povo de uma movimento contra a ordem estabelecida. Nas palavras do escritor
pequena parte do Império britânico a abandonar sua lealdade e contrarrevolucionário alemão Friedrich Gentz - traduzido para
renunciar à proteção do rei britânico - e a dissolver seu vínculo 0 público americano por John Quincy Adams em 1800 - , "a
social com o povo inglês''. Alguns anos mais tarde, do outro lado da Revolução Americana foi, do princípio ao fim, por parte dos ame-
linha divisória, John C. Calhoun concordou com essa posição, e ricanos, meramente uma revolução defensiva; a Revolução Francesa
afirmou: "O ato não foi, na realidade, nada mais do que uma decla- foi, do princípio ao fim, no mais elevado sentido da palavra, uma
ração formal e solene ao mundo de que as colônias haviam deixado revolução ofensiva". Gentz considerava deplorável que os america-
de ser comunidades dependentes para se tornar Estados livres e nos tivessem reivindicado, com "pouca ostentação de palavras", a
independentes''.5 posse de direitos naturais e inalienáveis na Declaração, mas feliz-
A ênfase na capacidade do documento de criar um Estado mente "eles não pernütiram que essas ideias especulativas tivessem
foi em parte·uma resposta americana à crítica contrarrevolucio- influência visível sobre suas medidas e resoluções práticas". A
nária das teorias jusnaturalistas da década de 1770, que prenun- Revolução Americana fora uma revolução legal, dirigida contra
ciou a muito mais veemente ofensiva contra as Declarações de medidas opressivas específicas e não contra princípios monárqui-
Direitos do Homem e do Cidadão na década de 1790 na França. cos tout court. Por ta.is motivos, "não havia, por si só, nada de
A Revolução Francesa lançaria outras sombras sobre a causa da anormal, nada de revoltante, nada claramente irreconciliável com
independência americana. A alegação de alguns revolucionários as máximas da lei das nações e das leis de autopreservação na
franceses de que seu movimento devia sua inspiração aos Estados aliança que a França estabeleceu com eles'~ 7
Unidos fez com que documentos-chaves - tal como a própria As próprias máximas da lei das nações estavam mudando em
Declaração de 1776 - se tornassem suspeitos e perigosos aos fins do século xvm e, com elas, a interpretação da Declaração como
olhos daqueles que temiam a destruição maciça da ordem políti- documento da lei internacional. Foi nesse período que "a lei das
ca e diplomática do mundo atlântico. Embora hoje seja comum nações, longa e inextricavelmente associada à lei da natureza, veio
assemelhar as revoluções americana e francesa e incluí-las em [... ] a ser entendida como lei positiva, criada por Estados sobera-
!
uma "Era da Revolução Democrática" ou "Era das Revoluções" } nos, agindo coletivamente através de meios autorizados, para seus
mais ampla, tal identificação encobre diferenças importantes fins cada vez mais complexos".8 Como observou um comentarista
entre os dois movimentos políticos quando considerados emseu da época, estava "longe de ser possível que a simples lei natural
contexto internacional. 6 :.~ fosse suficiente até mesmo entre os .indivíduos - e menos ainda
Os assuntos internacionais eram um determinante essencial entre as nações, quando estas vêm a se relacionar entre si e comer-

60 61
13
/ na imprensa de Dublin, em 24 de agosto. Na semana seguinte, em
ciar uma com a outra". Os Estados tinham de abrandar a lei natural
~; de agosto, foi divulgada em Madri, e a imprensa holandesa - a
na prática e por meio do consentimento: "A totalidade dos direitos 27
começar pela Gazette de Leyde, de Leiden, de ampla circulação -
e obrigações assim estabelecidos entre duas nações forma a lei
noticiou-a em 30 de agosto; no dia seguinte, surgiu também em
positiva das nações entre si. Chama-se lei positiva, particular ou
Viena.' 4 Em 2 de setembro, um jornal dinamarquês em Copenhagen
arbitrária, em oposição à lei natural, universal e necessária".9 O
publicou uma tradução da Declaração na primeira página. Em 14
próprio Thomas Jefferson condensou o pensamento comum da
de setembro, os leitores tomaram conhecimento do documento em
época ao declarar, em 1793, que "a lei das nações [ ... ] compõe-se
Florença. No mês seguinte, uma tradução alemã completa foi publi-
de três ramos: 1. a lei moral de nossa natureza; 2. os costumes das
15 I·
.,,.1
º
nações; 3. suas convenções especiais". 1 Essas concepções super- cada em um jornal suíço na Basileia.
r.,,
A despeito dessa rápida transmissão inicial através dos canais
postas da lei das nações moldariam de forma decisiva a recepção i
da cultura impressa de fins do século xvm, o progresso da
da Declaração fora dos Estados Unidos nas décadas imediatamen-
Declaração foi de certa forma impedido pelo fato de ter sido ela
te posteriores a 1776.
escrita em inglês. Francês - e não inglês - era o idioma domi-
nante na diplomacia, e o inglês ainda não era uma língua interna-
cional importante, nem mesmo para as pessoas cultas da Europa e
Notícias da independência americana atravessaram imedia-
das Américas. l6 A comunidade mundial de pessoas que falavam
tamente o oceano Atlântico e percorreram a Europa continental
inglês mal passava dos 12,5 milhões de "súditos do Império britâ-
durante o verão e o outono de 1776. Apenas dois meses após o
nico" que Arthur Young estimara em 1772 - ou seja, aproxima-
Congresso ter passado sua resolução, em 2 de julho, o noticiário
damente a população da Áustria (mais de 15 milhões); menos do
da independência havia alcançado Varsóvia. 1 t O itinerário das
que os habitantes da Rússia (cerca de 19 milhões); mais que a
notícias ilustrava a impressionante rapidez das comunicações em
metade da população da França à época (24 milhões); talvez
fms do século XVIII, assim como a malha amplamente desenvolvida
metade dos 28 a 30 milhões de súditos do sultão otomano; e,
de jornais e periódicos, e de espiões e agentes, que se valiam da
ainda, apenas uma fração dos quase 270 milhões de habitantes do
transmissão de tal informação. A novidade propagou-se primeiro
em Londres, e a partir dali foi para a Escócia, Irlanda e Holanda, império Qing em 1776.17
Embora o inglês não contribuísse muito para a difusão da
antes de ser transmitida a terras alemãs, à Escandinávia e ao Sul e
Declaração, em seu devido tempo a independência americana
Leste da Europa, tudo no espaço de apenas oito semanas.
ajudaria a obter a predominância global do idioma. John Adams
O texto da Declaração de Independência apareceu pela pri-
profetizou, em 1780, que "o inglês está destinado a ser, no próxj-
meira vez nos jornais de Londres na segunda semana de agosto de
mo século e nos seguintes, uma língua mundial em sentido mais
1776. 12 Menos de uma semana depois, foi publicado em Edim1'urgo,
amplo que o foi o latim na última era e que o é o francês na
onde o filósofo e historiador (e forte defensor da independência
atual".1ª (Nesse aspecto, é extraordinário o fato de a Declaração
americana) David Hume talvez o tenha lido em 20 de agosto, apenas
nunca ter sido traduzida para o latim - em 1776 ou desde
cinco dias antes de sua morte. A Declaração também foi publicada

62
então.) Dois anos mais tarde, Caleb Whitefoord, o secretário com 0 fato de que a conspiração pela independência, cogitada
escocês aos emissários de paz britânicos em Paris, declarou, ao havia muito tempo, finalmente era posta a nu. Em Staten Island
responder a uma provocação francesa, que "os Estados Unidos com as forças britânicas,Ambrose Serle, o secretário do almirante
iriam transformar-se no maior império do mundo": "Sim, britânico, lorde Richard Howe, exprimiu seu horror pela
senhor, e todos falarão inglês'~ 19 Claro que nem todo mundo, nos Declaração em 13 de julho de 1776: "Proclamação mais insolente,
Estados Unidos, falava inglês. As colônias continham uma m is- falsa e abominável nunca foi produ zida pelas mãos do homem': 25
tura étnica diversificada de holandeses, alemães, franceses e o próprio Howe enviou uma das primeiras cópias da Declaração •
africanos, assim como bretões e irlandeses. Na realidade, as pri- a Londres em agosto de 1776. Ele também recónheceu como a :1
meiras traduções em alemão da Declaração surgiram entre 6 e 9
de julho de l 776, impressas em uma única folha de papel, em um
proclamação havia modificado as relações entre os britânicos e os ~!l
1
colonos quando se reuniu a uma delegação do Congresso que 1
jornal da Filadélfia, em prol da comunidade alemã local. 2º
<1
incluía John Adams, Benjamin Franklin e Edward Rutledge em :)
Na segunda metade de 1776, a Declaração recebeu poucos Staten Island, em setembro de 1776: "Eles mesmos alteraram o ~~ ..:
~ ''
(ou nenh um) comentários diretos na França, Itália, Alemanha, terreno [... J através de sua Declaração de Independência, a qual, se
Polônia, Suíça ou Espanha. O efeito imediato da notícia menos não podia passar despercebida, excluía-o de qualquer tratado[ ... ]
específica da independência na Europa foi ínfimo. 21 Apenas na ele não tinha, nem esperava ter, poderes para considerar as colô-
Inglaterra e ·na Irlanda houve consequências políticas diretas. nias em termos de estados independentes':26
Defensores da causa britânica haviam prognosticado que "a Os transmissores mais eficientes da Declaração através do
Declaração por uma independência deve silenciar totalmente Atlântico não foram os representantes do Congresso, e sim os
quaisquer defensores que [os americanos] possuam na Inglaterra'~ 22 j funcionários civis e militares britânicos na América do Norte.
Alguns dos mais firmes partidários da causa americana talvez r Durante o outono de 1776, esses funcionários enviaram cinco
tenham aplaudido as novidades. Simpatizantes indecisos dos ame- ~ cópias da Declaração para a Grã-Bretanha, onde elas se tornaram,
ricanos recuaram quando o Con gresso sinalizou um claro ponto 'J
~ posteriormente, d ocumentos oficiais. Essas cópias constituem
sem volta no conflito com a Grã-Bretanha.23 Edmund Burke, por t.,. hoje a maior coleção das primeiras tiragens do documento fora
,,,Oi

exemplo, confessou mais tarde, em tom melodramático, que "no ~t dos Estados Unidos.27 Na época, elas parecem não ter provocado
dia em que ouviu pela primeira vez que os Estados americanos r ":1 nenhuma reação governamental imediata. É possível inferir qual
haviam declarado independência, sentiu-se aflito; o fato devastou- í f.'t: deve ter sido a reação pela resposta do ex-governador exilado de
l'
-lhe a alma porque ele entendeu que era uma reivindicação essen- Massachusetts, Thomas Hutchinson, que se encontrava em Londres
.;
cialmente prejudicial a este país, e uma reivindicação da qual a '
~\ exatamente quando chegaram os pormenores da Declaração: "O
Grã-Bretanha nunca conseguiria desembaraçar-se. Nunca! Nunca! :~i: Congresso havia publicado um documento infame, que enumera-
Nunca!". 24 f.;.,. va grande quantidade de falsos atos tirânicos do rei e declarava a
,~

Legalistas ingleses e americanos oponentes da reb~l i ão de !'


~ independência". 28 Em uma deliciosa ironia, Hutch inson havia !~I :
l<'. •'!
1776 desaprovavam o atrevimento dos colonos ou consolavam-se _.~

recebido, em 4 de julho de 1776, um título honorário de Oxford, a "'


1

1
1
mais conservadora das universidades britânicas da época. Poucas ; Letters to Dr. Price, Containing Remarks on hís Observations on the
semanas após tomar conhecimento da Declaração, ele também Nature ofCivil Liberty, the Principies ofGovernment, and the Justice
-~

publicou um dos dois únicos panfletos britânicos em resposta à and Policy of the War with America [Três cartas ao Dr. Price, con-
proclamação - por sinal, como bem deveria ter feito, já que era o tendo comentários sobre suas observações a respeito da natureza
alvo pretendido de algumas das mais graves acusações do docu- da liberdade civil, os princípios de governo e a justiça e a política
mento.29 Hutchinson certamente compartilhava dos sentimentos de guerra com os Estados Unidos] (1776). 33
de Jorge m, que pronunciou um discurso para o Parlamento britâ- Duas versões de Answer to the Declaration surgiram em 1776.
nico em 31 de outubro de 1776, no qual condenava o espírito o gabinete parece ter julgado que a primeira versão foi longe demais,
"audaz e desesperado" dos líderes de suas colônias americanas, tanto ao tentar imaginar as justificativas que os americanos pode-
que haviam "ousado estabelecer suas confederações rebeldes para riam ter tido para publicar sua Declaração, quanto ao permitir-se 1 : i

obter Estados independentes': 30 propor as "linhas gerais de uma contradeclaração", que o rei poderia '; l
·:· (

No Atlântico oeste, censurar a Declaração foi uma resposta apresentar em resposta às afirmações americanas. O gabinete supri-
governamental mais eficaz a suas provocações que tentar contestá- miu o texto inicial de Answer to the Declaration-do qual resta hoje
!,r,;ll
,.
-la. Quando a notícia da Declaração alcançou a colônia britânica
apenas um exemplar - e revisou toda a obra antes que 8 mil exem-
de Nova Escócia, em agosto de 1776, o governador britânico per-
mitiu apenas qud o último parágrafo do documento fosse impres-
plares fossem publicados em inúmeras edições ao longo de 1776.
34
!t .h
so, a fim de que o restante não "lh~s conquistasse (para os rebeldes)
muitos partidários e inflamasse a mente dos leais e fiéis súditos de
Quinhentos exemplares do texto revisado de Answer to the
Declaration foram enviados de Londres à América a fim de instruir (li
1. :
: l .:
as forças britânicas e refutar os argumentos americanos a favor da
Sua Majestade na província':31 Na Grã-Bretanha, porém, o gover-
independência.35
no não podia reagir pública e oficialmente à Declaração, pois isso
Answer to the Declaration era, sobretudo, uma análise deta-
"seria reconhecer aquela igualdade e independência à qual os sú-
lhada e uma contestação das acusações contra o rei. Lind afirma-
ditos, persistindo em sua revolta, não podem deixar de reivindicar
[ ... ] Isso seria reconhecer o direito de outros Estados de interferir
va que os americanos não passavam de indivíduos traiçoeiros, e ··.:
'"
não representantes de Estados, e que, por isso, continuavam a ser
em questões das quais toda intervenção estrangeira deveria ser ·.! i
para sempre eliminada". 32 No entanto, o gabinete de lorde North rebeldes, e não adversários legítimos organizados. Agir de outra
.i:'·
encomendou secretamente uma réplica à Declaração, da qual essas forma seria ridicularizar a ideia de afiliação - sem falar na de ·'
palavras foram extraídas. O autor de Answer to the Declaration of legalidade. Afinal de contas, se os colonos fossem reconhecidos
theAmerican Congress [Resposta à Declaração do Congresso ame- como cidadãos independentes de um Estado estrangeiro, o que J
: 1 ;

1:' ;
~· \f
ricano] (1776) foi John Lind, um jovem advogado e panfletário, poderia impedir que um pirata como o capitão Kidd se resguar-
que antes havia chamado a atenção do governo com seus panflet; s dasse do processo criminal declarando-se independente? "Em
Remarks on the Principal Acts of the Thirteenth Parliament [Obser- vez de pirata culpado", al.ertou Lind, "ele ~eria se tornado o prín- 1 '

1
vações sobre os principais atos do XIII Parlamento J ( 1775) e Three cipe independente; e, uma vez aceito entre as potências 'maríti-

66
mas' - 'aquela posição igual e separada'-, ele também p oderia uma carta, na ed ição de agosto de 1776 de The Scots Magazine,
ter descoberto - 'a que lhe dão direito as leis da natureza e as do reduziu a absurdos as verdades evidentes por si m esmas da
Deus da natureza'." Declaração, afirmando que "essa aristocracia atribui-se o direit o
Por fim, Lind ridicularizou os colonos por s ua hipocrisia ao in aJ ienável d e dizer sandices'~ 39 Dois anos mais tarde, em 1778,
proclamar a igualdade natural de t oda a humanidad e enquan to enquanto punha em verso s toda a Declaração - inclusive as
h aviam fracassado em libertar seus escravos. Tais direitos estavam injustiças - , um obscuro satirista inglês chamado Joseph Peart
longe de ser inal ienáveis, e obviamente não eram naturais se ridicularizou com graça a reivindicação americana:
36
haviam sido negados "a esses seres miseráveis". De m odo sem e-
lhante, Thomas Hutchinson gostaria de "perguntar aos delegados Que todos os homens nascem igualmente livres,
d e Maryland, Virgínia e das Caro linas como seus constituintes E sem dúvida lhes é permitido,
justificavam a privação de mais de 100 mil africanos de seus direi- Pela providência, que lhes sejam outorgados
tos à liberdade, à busca da felicidade e, até certo ponto, à vida, se os (Como escrevem autores versados)
d ireitos deles são também absolutamen te inalienáveis". O aboli- Alguns direitos inalienáveis;
cionista ingl.ês Thomas Day, escrevendo em 1776, foi ainda mais Dentre estes, grandemente salientamos
longe em sua crítica: "Se há uma coisa de natureza verdadeira- A vida, a busca da felicidade
m ente ridícula, é um patriota americano assinando resoluções de E (a melhor das três)
independência com uma das mãos e, com a outra, brandindo um A liberdade desmedida.
açoite sobre seus escravos amedrontados".37 Pois decerto ninguém acredita,
Answer to th.e Declaration foi uma das poucas publicações da Mas ele possui direito indiscutível de viver,
época a comentar as reivindicações de direitos naturais do segun- Sem admitir controle ou repressão,
do parágrafo da Declaração. Dentre os escritores e uropeus o Sempre e desde que considere apropriado. 40
francês duque de La Rochefoucauld d'Enville, escrevendo sob o
disfarce de um banqueiro em Londres, foi o único a considerar a A "Short Review of the Declaration" [Uma breve resenha da
afirmação de que todos os homens fo ram criados iguais com o Declaração ], aliando-se a Answer to th.e Declaration de Lind, tam-
uma verdade estabelecida em todas as religiões. No restante d as bém consi derava tautológicos, redundantes, inconsistentes e
reivindicações por direitos da Declaração, ele n ão enxergou n ada hipócritas os princípios sobre os quais os americanos reivindica-
que pudesse ser interpretado como um desafio aos di reitos gerais vam sua independência. "Se o que eles agora exigem lhes fosse
do Império. lsso estava de acordo com s ua efus iva afirmação d e conferido por alguma lei de Deus'~ vociferou o crítico,
que a Declaração era "o maior acontecimento da campa1~ha, da
própria guerra, e talvez deste século".38 Dentre os oponentes britâ- eles precisariam apenas apresentar a lei, e toda a controvérsia estaria
nicos e Jegalistas, apenas Hutchinson tratou da questão dos direi- terminada. Em vez disso, o que apresentam? O que chamam de
tos, e ainda assim de forma rápida e d esinteressada, ao passo que verdades evidentes por si mesmas f... ] Ao mesmo tempo, para

68

'::·
,.

assegurar tais direitos, apraz-lhes que sejam instituídos governos. de atos positivos de legisladores identificáveis. Nas relações entre
Eles não percebem, ou parecem não perceber, que nada que possa nações, os únicos atos positivos eram as transações entre sobera-
ser chamado de governo jamais foi, ou jamais poderia ser, em qual- nos, que constituíam o corpo do "direito internacional" positivo,
quer caso, exercido, a não ser às expensas de um ou outro d esses tal como Bentham o denominara pioneiramente em 1780. Seu l
1
direitos à vida, à liberdade ou à busca da felicidade.'ll ataque às premissas da Declaração talvez tenha ajudado a aguçar 1

sua percepção de que esse novo termo era necessário para deno-
Esse ataque precoce ao discurso dos direitos naturais indi- minar um acervo legal cada vez mais importante. Se o Congresso
viduais em Answer to the Declaration foi uma contribuição signi- Contin ental fosse reconhecido como órgão executivo legítimo,
ficativa ao discurso contrarrevolucionário de fins do século xv111. então sua Declaração poderia ser interpretada como um ato posi-
A "Short Review" consolidou um vínculo entre as revoluções tivo no âmbito do direito internacional. Porém, isso só poderia
americana e francesa porque seu autor principal não foi Lind, ocorrer se a própria Declaração fosse reconhecida como o ato
mas seu amigo filósofo Jeremy Bentham.42 Bentham havia cola- positivo que outorgara o caráter internacional e soberano ao
borado anteriormente em Remarks, de Lind, e havia preparado Congresso. Como a independência poderia ser declarada, a não
uma análise devastadora (porém não publicada) daquilo que ele ser por um órgão já independente no sentido entendido pela lei
denominava "liberdade negativa" para ser incluída no Three das nações?
Letters to Dr. Price, também de Lind. 43 Até o fim da vida, Bentham Essa seria a essência das discussões jurídicas suscitadas pela
permaneceu crítico dos princípios da Declaração. "Quem pode Declaração nas décadas posteriores a 1776. Por si só, o texto da
deixar de lamentar que uma causa tão racional repouse sobre Declaração não era capaz de estabelecer a independência; podia
razões tão mais apropriadas a gerar objeções do que a removê- apenas anunciar o que já havia sido alcançado por outros meios. A
-las?", queixou-se ele em 1789, referindo-se à Declaração de Declaração tinha, portanto, de realizar a independência americana
Direitos de Virgínia, à Declaração de Mas~achussets e à própria no próprio ato de anunciá-la. Como assinalou o filósofo francês
Declaração de Independência. Quase meio século mais tarde, ele Jacques Derrida em 1976, por ocasião do bicentenário da Inde-
ainda chamava a Declaração de Virgínia de "u ma mescla de con- pendência americana: "A pergunta permanece. Como é criado ou
fusão e absurdo, na qual a coisa a ser provada é, desde o princípio, fundado um Estado; como um Estado se cria ou funda a si mesmo?
. - . d ?"46
tida como fato consumado".44 [... ] Quem assina todas as autonzaçoes a serem assma as ..
O fundamento da crítica de Bentham permaneceu consis- Bentham fizera pergunta semelhante dois séculos antes em seu
tente. Atribuir leis à natureza e extrair direitos naturais de tais leis Fragment ofGovernment [Fragmento de governo], de abril de 1776:
era não apenas um d isparate, mas um "disparate retórico, um "Quando, em suma, deve-se considerar que ocorreu uma revolta, e
.,<?·.

d isparate sobre pernas de pau", como ele escreveu em sua dôra quando [... ] deve-se considerar essa revolta bem-sucedida ao ponto
crítica à Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão fyance- de estabelecer a independência?".47 Ele recusou-se a manifestar sua
sa, quase vinte anos após sua primeira contestação da Declaração opinião, mas a pergunta permaneceu quando, ainda naquele ano,
de Independência. 45 Direitos defensáveis podiam derivar apenas ele aderiu ao ataque de Lind à Declaração.

71
70
A independência americana só poderia consumar-se por meio · atenção às constituições estaduais americanas do que à
ma~ . . ~
do reconhecimento externo, sob a forma de assistência militar pal- própria Declaração nos anos antenores e posteriores a 1789.
Quando finalmente a corte francesa celebrou um tratado de
pável e transações diplomáticas e comerciais. Consequentemente,
aliança com os Estados Unidos, em fevereiro de 1778, logo após
o Congresso instruiu seus representantes em Paris, Si.las Deane,
a decisiva vitória americana sobre as tropas britânicas na batalha
Benjamin Franklin e Arthur Lee, "a obter o quanto antes um reco-
de Sara.toga, fê -lo "para preservar efetivamente a liberdade, a
nhecimento público da independência desses Estados da Coroa e
soberania e a independência absoluta e ilimitada dos supracita-
do Parlamento da Grã-Bretanha pela corte da França".48 O
dos Estados Unidos", dentre outras coisas.52 Logicamente, essa
Congresso considerou particularmente preocupante o longo
era, desde o início, a expectativa do Congresso, que havia criado
silêncio por parte da corte francesa em 1776 (e por mais de um
comitês simultâneos para redigir a Declaração e o Tratado
ano depois disso):O primeiro representante americano em Paris,
Modelo.
Deane, não recebeu a cópia da Declaração que lhe foi enviada em
o efetivo reconhecimento francês da independência ameri-
8 de julho de 1776, com as instruções de "transmitir imediata-
cana através dos tratados de 1778 provocou a imediata denúncia
mente o documento à corte da França e enviar cópias às outras
por parte da Grã-Bretanha. O gabinete encarregou o historiador
cortes da Europa. Talvez seja bom providenciar cópias em francês do Império e membro da Câmara de Comércio, Edward Gibbon,
e conseguir· sua publicação nos jornais oficiais''. Uma segunda de escrever um "memorando justificativo" em francês, revelando
cópia chegou apenas em novembro de 1776, momento em que as a má-fé da corte francesa ao estabelecer uma aliança com "agentes
noticias da independência americana já circulavam havia pelo escusos das colônias inglesas, que assentavam sua pretensa inde-
menos três meses no restante da Europa.49 pendência em algo que não ia além da audácia de sua rebelião".
A essa altura, o público francês podia ter lido uma tradução Gibbon argumentou que a aliança era um repúdio explícito dos
da Declaração na Gazette de Leyde ou outra no Política! and artigos de paz assinados entre a Grã-Bretanha e a França ao final
Hístorical Journal parisiense de 1Ode setembro de 1776. No ano da Guerra dos Sete Anos; era também uma afronta generalizada à
seguinte, mais duas traduções surgiriam no Affairs of England lei das nações, que proibia qualquer potência de oferecer ajuda a
and Arneríca. - um jornal secretamente patrocinado pelo minis- rebeldes nos domínios de outro soberano legítimo. Crer no con-
tro do Exterior francês, o conde de Vergennes - , e outras versões trário seria «introduzir máximas tão novas quanto falsas e perigo-
poderiam ser encontradas nos anos subsequentes em duas cole- sas na jurisprudência da Europa", o que acarretaria outras revoltas
ções de documentos oficiais americanos relacionados a Benjamin nas províncias americanas da França e da Espanha. Os próprios
Franklin e publicados em Paris: a Collectíon ofConstitutional Laws americanos também deveriam ser alertados de que sua "pretensa
ofthe English Colonies (1778), dedicada a ele, e as Constitut,íons of independência, adquirida mediante tantas aflições e tanto san-
tlze Thirteen Colonies of the United States of America (1783 ), que gue", logo se veria sujeita à vontade despótica de uma corte
ele revisou. 50 Ainda assim, embora o marquês de Làfayette e estrangeira.53
outros admirassem a Declaração, os franceses prestaram muito As graves advertências e difamações de Gibbon à indepen-

72 73
dência americana, o radical inglês John Wilkes revidou: "Por que <lido a independência (como, no caso, fez a Grã-Bretanha, e apenas
deve ser 'la déclaration (o uverte) de leur indépendance (préten- por meio do Tratado de Paris em 1783 )?55
due)' ( ... ] após ter sido comemorado o terceiro aniversário da Tais questões relacionadas à independência, à soberania e ao
independance dos Estados Unidos? A independance do país está reconhecimento achavam-se no cerne da lei positiva das nações
suficientemente bem estabelecida quando um príncipe estrangei- que surgiu em fins do século XVIII, e a Declaração - assim como a
ro não consegue nomear um coletor de impostos" - isto é, quan - própria independência americana - foi acolhida sob essa ótica na
do o antigo governante não tinha poderes para nomear nem Europa depois de 1783. Esses aspectos da Declaração tornaram-se
mesmo os funcionários administrativos mais inferiores, pois já 0 foco da discussão que amadureceu rapidamente em torno da
havia perdido o controle efetivo fazia muito tempo. A indepen - teoria do reconhecimento legal dos Estados. A fim de reivindicar
dência americana, argumentou Wilkes, baseava-se não na audácia para os Estados Unidos uma posição igual entre "os poderes da
rebelde dos americanos, mas nos fatos rigorosamente apresenta- terra", os colonos precisavam de algo mais do que a simples afir-
dos na "famosa Declaração de lndependance do memorável 4 de mação de que tais Estados mereciam a independência em virtude
julho de 1776'~ 54 das "leis da natureza e do Deus da natureza". Expoentes modernos
Se o objetivo da Declaração era perm itir que as colônias da lei natural, como Vattel, haviam argumentado que os Estados
rebeldes estabelecessem alianças comerciais e diplomáticas com • 1
de fato possuíam direito de existência, independência e igualdade.
outras potências, tal corno pretendiam Paine e Richard Henry Lee, Mas os meios pelos quais novos Estados poderiam adquirir esse
bem como as declarações locais e o comitê de redação do Congresso direito, caso não o possuíssem previamente, só vieram a ser um
Continental, até que ponto realmente as colônias tornaram-se tópico central do direito internacional no final do século xvm - e,
Estados e os rebeldes adquir iram legitimidade? Os Estados Unidos até certo ponto, em resposta às questões de reconhecimento
ingressaram formalmente no sistema internacional ao estabelecer levantadas pela própria Declaração de Independência.56
a aliança franco-americana; só depois disso é que a questão da A Declaração tornou-se peça importante nos primeiros
independência americana pode ser tratada como um fato interna- debates a respeito do reconhecimento dos Estados. Isso se deveu
cional positivo, ainda que contestado. ao jurista e erudito alemão J. C. W. von Steck em 1783. Até então,
Uma coisa era o fato em si da independência; outra, bem os debates sobre o reconhecimento de Estados no direito público
diferente, era a base sobre a qual a Declaração a pusera em vigor, europeu relacionavam-se aos direitos de sucessão dinástica de
pois somente atos positivos eram passíveis de instituir a soberania. governantes individuais. A abordagem de Steck era original, uma
Se a mera declaração era insuficiente e se o reconhecimento da vez que tratava do reconhecimento e da legitimação não apenas
independência pela Grã-Bretanha era inconcebível, seria então de príncipes, mas de Estados em geral. Seu relato, portanto, enfa-
necessário o reconhecimento da independência por pa rte de uma tizava repúblicas como as Províncias Unidas e os Estados Unidos.
terceira potência (como a França, por exemplo) para garantir a No caso norte-americano, Steck afirmava que a independência
legitimidade? E, ainda, esse reconhecimento por parte de terceiros não havia obtido crédito internacional até ser formal e positiva-
seria inadequado até que o governo metropolitano tivesse conce- mente reconhecida pela Grã-Bretanha. Escrevendo imediata-

74 75
mente após o Tratado de Paris, ele julgou prematuro o reconhe- Ocorreu uma grande revolução - uma revolução feita não pela
cimento francês em 1778 e, por isso, isento de força construtiva, eliminação e substituição de poder em algum dos Estados existen-
pois não fora acompanhado de uma renúncia de direitos por . tes, mas pelo surgimento de um novo Estado, um novo gênero, em
parte da Grã-Bretanha. 57 uma nova parte do globo. Ela gerou uma mudança tão grande em
Em 1789, o professor de direito de Gõttingen G. F. von todas as relações, nos equilíbrios e na gravitação do poder quanto o
Martens ampliou as ideias de Steck para argumentar que, "uma surgimento de um novo planeta no sistema do universo solar.61
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vez que a obediência tenha sido formalmente recusada, e a parte l' !
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recusante tenha tomado posse da independência exigida, a dispu- Uma vez atendido o objetivo imediato da Declaração, os parágra- l~, .i
ta iguala-se às que ocorrem entre Estados independentes", sujeita, fos de abertura e conclusão caíram no esquecimento. Como regis- !...
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entretanto, à importante condição de que a parte ofendida poderia trou em 1786 um solidário observador estrangeiro, o marquês de
legitimamente interpretar qualquer ajuda ou assistência oferecida Condorcet, na França, «a independência [americana] está reco-
ao Estado recém-independente como um ato de guerra: "A condu- nhecida e assegurada; [nossos políticos] parecem encará-la com
ta observada pela Grã-Bretanha[ ... ] após as colônias da América indiferença".62 A essa altura, por ser a independência americana
do Norte terem se declarado independentes talvez sirva para ilus- um fato reconhecido na política internacional, havia pouca neces-
trar esse assui;ito':ss Cerca de cinquenta anos mais tarde, a questão sidade de consultar a carta de direitos na qual ela havia sido origi-
do reconhecimento de Estados, levantada pela independência nalmente declarada.
americana, seria canonizada como uma das principais causes céle- Pouco depois do reconhecimento oficial britânico da inde-
bres do dire.ito internacional moderno, ingressando assim de pendência americana, estudantes europeus de direito público
forma decisiva em sua fase positiva.59 incorporaram a Declaração à moderna lei das nações. O político
britânico e membro da Câmara de Comércio Charles Jenkinson,
por exemplo, incluiu-a em sua coleção de tratados de 1785 e efeti-
A vitória dos americanos em sua guerra de inqependência vamente a empregou para assinalar circunstâncias mais recentes
contra a Grã-Bretanha modificou o status da Declaração fora dos em uma era de assuntos internacionais que se iniciara com o reco-
Estados Unidos. O reconhecimento britânico da independência nhecimento espanhol das Províncias Unidas em 1649: "Por meio
americana em 1783 pelo artigo 1º do Tratado de Paris confirmava dos tratados concluídos em Paris em 1783, outra revolução foi
indiscutivelmente o que a Declaração havia afirmado de forma reconhecida e ratificada, ou seja, a dos Estados Unidos da América':
contenciosa em 1776: "Sua Majestade britânica reconhece os Como um documento equivalente dentro da lei positiva das
supracitados Estados Unidos [... ] como Estados livres, soberanos e nações, Jenkinson a inseriu entre a declaração espanhola de 1771
independentes': e não mais apenas de jàcto, mas de jure. 60 A impor- referente às ilhas Malvinas e o Tratado Franco-Americano de
tância de tal acontecimento nào passou despercebida a Edmund 1778.63 O Summary of the Law of Nations... of the Modem Nations
Burke: of Europe (1789), de Martens, incluía a DecJaração ao lado dos
Artigos de Confederação, que também eram interpretados pelos

76 77
analistas europeus como um acordo internacional do qual partici- ; odo nenhum permanente - sobre o discurso político. No final
pavam treze Estados livres e independentes.64 ;ij0 século xv111, ao menos na Europa, os direitos naturais eram
A primeira geração de advogados na nova república ameri- ~itparentemente "uma ideia cuja hora tinha chegado tarde demais à
cana observou que os Estados Unidos haviam ingressado no sis- ( política para coincidir com sua respeitabilidade füosófica".67 •

tema internacional em uma ocasião especialmente propícia na : As reivindicações por direitos no texto da Declaração em s1
história da lei das nações. Quando produziu o primeiro com- ,;. tiveram pouca participação no discurso político americano nos
pêndio de leis americanas em 1826, por exemplo, James Kent primeiros quarenta anos da República. Das primeiras constitui-
iniciou seus Comentários com a seguinte declaração: "Quando os ções estaduais, cinco delas - Maryland ( 1776), Carolina do Norte
Estados Unidos deixaram de fazer parte do Império britânico e (1776), Pensilvânia (1776), Geórgia (1777) e Carolina do Sul
assumiram o caráter de nação independente, sujeitaram-se a esse (1778) - referiam-se ao f~to de que as colônias haviam sido
sistema de regras que a razão, a moraJidade e os costumes haviam declaradas independentes, mas apenas a Constituição de Nova
estabelecido entre as nações civilizadas da Europa como sua lei York (1777) citava detalhadamente a Declaração em seu preâm-
pública". Ele reconhecia que as opiniões divergiam quanto ao bulo. Muitas dessas constituições estaduais enumeravam vários
fato de a lei das nações ser "um mero sistema de instituições direitos à vida, à liberdade e à propriedade, ou fundamentavam o
positivas" ou "essencialmente o mesmo que a lei da natureza direito da busca à felicidade e à liberdade no pressuposto de que
aplicada ·à conduta das nações". 65 todos os homens haviam nascido iguais e independentes, mas o
A Declaração de Independência elencava antecedentes ecléti- faziam por meio de uma linguagem extraída, na maioria das vezes,
cos na jurisprudência, uma vez que seus autores haviam se esfor- de outros documentos, especialmente do rascunho de George
çado bastante para adequar o documento às normas vigentes da Mason da Declaração de Direitos da Virgínia. 68
ordem internacional de fins do século xvrn . O docu1nento não era :f A primeira imitação da Declaração na América do Norte
nem inteiramente jusnaturalista, nem exclusivamente positivista. afirmava a primazia dos direitos dos Estados sobre os direitos dos
Sua argumentação fundamentava-se em parte na lei natural, mas indivíduos. Inspirados pelo exemplo dos Estados Unidos, os habi-
concluía com a seguinte afirmação positiva: "Todos os atos e ações tantes das concessões de New Hampshire declararam sua inde-
a que os Estados independentes têm direito''. Na segunda metade pendência da Grã-Bretanha e do Estado de Nova York em janeiro
do século xv1u, a autoridade do jusnaturalismo na Grã-Bretanha, de 1777 para formar sua própria "jurisdição ou Estado separa-
França e Alemanha começava a declinar após quase dois séculos do, livre e independente" - a princípio, denominado New
de prevalência.66 Por essa razão, era irônico, até certo ponto, que o Connecticut, mas a partir de junho de 1777 conhecido como
discurso dos direitos naturais individuais - que em sua forma Vermont. 69 "O Estado de Vermont [ ... ] possui direito natural à
moderna surgiu dessa tradição - tivesse se tornado tão ,proemi- independência", argumentou um de seus defensores em 1780.
nente na era das revoluções Americana e Francesa. Somente quan- "Eles declararam ao mundo que são, e de direito devem ser, um
do os fundamentos filosóficos que lhe conferiam sentido vieram a Estado livre e independente." 70
sucumbir, esse d iscurso ganhou hegemonia temporária- mas de Os Estados Unidos recusaram-se a reconhecer a independên-

79
eia de Vermont, pois o fato apresentava um óbvio desafio à inte- revolução soaram suspeitas como as doutrinas "jacobinas" da
gridade territorial dos Estados que haviam substituido as frontei- Revolução Francesa. Seu inventário de reclamações contra o rei
ras e jurisdições das colônias preexistentes. Além de Nova York e Jorge m (que, no final das contas, reinou até 1820) também confe-
do Congresso, outras instâncias partilhavam o medo de uma nova riu ao documento um caráter nitidamente antibritânico, mesmo
fragmentação. Tal como foi observado em uma Convenção das quando a Grã-Bretanha e os Estados Unidos se posicionaram ofi-
Cidades de New Hampshire em 1780, "se todos os distritos assim cialmente contra as ameaças do Diretório francês e, mais tarde, de
se dispusessem, e, por si mesmos, pudessem determinar que não Napoleão. Somente depois da guerra de 1812 é que a Declaração
estão incluídos na reivindicação dos treze Estados [... J logo tería- veio a ser festejada com o mesmo fervor nacional e multilateral
mos mil Estados, todos livres e independentes".71 A oposição a que o 4 de Julho propriamente dito. Foi precisamente nesse perío-
novas demandas por independência e a insistência no princípio do que a Declaração tornou-se um símbolo nacional. As primeiras
legal do uti possidetis - que "determina que os Estados formados impressões e reimpressões do documento foram produzidas para
a partir da descolonização deverão supostamente herdar as fron- exibição em prédios oficiais em 1817. No ano seguinte, em Boston,
te.i ras administrativas coloniais que possuíam no momento da John Trumbull exibiu ao grande público sua pintura da assinatura,
independência" - prenunciaram a persistência quase uniforme, originalmente esboçada em 1786. Em 1823, em Washington, John
na história mundial subsequente, da manutenção da integridade Quincy Adams encarregou William J. Stone, um tipógrafo nascido
territorial àpós a decJaração de independência. 72 O Estado de na Grã-Bretanha, de produzir cópias em velino da versão formal
Vermont, entretanto, permaneceu separado tanto da Grã-Bretanha em pergaminho da Declaração. Duzentas reproduções de luxo
quanto dos Estados Unidos até 1791, quando se tornou a primeira foram distribuídas aos palácios do governo e às instituições de
república independente a associar-se à união americana. ensino superior da nação, assim como aos seus signatários ainda
A linguagem da Declaração de Independência não apareceu na vivos e ao marquês de Lafayette.73
Constituição Federal. Na realidade, a Declaração em si mal foi men- Foi em vista desse renovado interesse que o segundo parágra-
cionada nos debates da Convenção Constitucional; foi lembrada fo da Declaração iniciou seu progresso rumo a tornar-se o cerne
apenas uma vez em O federalista; e, fora isso, raras vezes recorreu-se a ,....
_
do significado da Declaração nos Estados Unidos. Uma vez que a
ela no amplo debate sobre a ratificação da Constituição. Devido a indep endência h avia se tornado um fato incontestável, os ameri-
essas ausência..'> ostensivas no debate público americano, não surpreen- canos tinham pouca necessidade de recordar-se das afirmações da
de queAlexis de Tocqueville não tenha mencionado a Declaração em condição de Estado independente nos parágrafos de abertura e
A democracia na América (1835-40). encerramento da Declaração. Quando a paz com a Grã-Bretanha
Em um período de encarniçadas disputas partidárias entre foi restabelecida e os incidentes subjacentes ao corpo principal da
federalistas e republicanos jeffersonianos, a Declaração parecia Declaração haviam sido esquecidos, todo o conteúdo que restava
um documento perigosamente francófilo, a ntibritânico: e um a ser reverenciado era o segundo parágrafo.
alvará para possíveis revoluções contra todos os governos estabe- A motivação original da Declaração e seu apelo cosmopolita às
lecidos. Suas reivindicações por direitos naturais e pelo direito de "opiniões dos homens" perderam a proeminência para uma vene-

80 81
ração nacionalista do documento como um todo. Prestava-se aten- cão livre, trabalho livre e benefícios de aposentadoria para todos
ção seletiva apenas às suas reivindicações abstratas, e não à sua ~s trabalhadores. Em caráter semelhante, o jornalista inglês George
importância como documento com implicações internacionais. Henry Evans produziu "A Declaração de Independência do Tra-
77 • 1
Somente na década de 1820 é que as alegações de direitos balhador" no mesmo ano. ~ !
naturais do segundo parágrafo "gradualmente eclipsaram por A Declaração tornou-se quase literalmente uma escritura
' .
completo a afirmação do documento sobre o direito à revolução"; americana quando uma revista batista publicou a Declaração de ú

antes disso, a maioria "das citações [americanas] da Declaração Independência da "Coroa e Reino Satânicos" em agosto de 1836,
78
era extraída geralmente de seu parágrafo finaJ".H Em 1831, em reeditada na Colônia do Cabo menos de seis meses depois. Como
viagem aos Estados Unidos, o aristocrata húngaro Sándor Bõlõni que para deter as correntes de circulação cosmopolitas que tais
Farkas captou de forma primorosa a importância do documento declarações ensejavam, integrantes da Convenção Indígena Ame-
para os americanos quando, em seu registro do difundido culto ricana Branca, Anticatólica e Anti-imigração emitiram na Filadélfia,
americano à Declaração, observou que o documento não ostenta- em 4 de julho de 1845, uma Declaração de Princípios configurada a
va nenhum traço das concessões e cartas de direitos monárquicas partir da Declaração, "com o propósito de despertar em seus com-
encontradas na Europa. Em vez disso, "sua linguagem é integral- patriotas a percepção dos males já experimentados provenientes
mente a da lei natural".75 Em sua avaliação, ele fez eco a John •
da intrusão e usurpação estrangeiras." 79 ~ • • t
· J.res anos mais arde, en1
Quincy Adams que, em 1821, distinguiu a Declaração de acordos 19 de julho de 1848, a Convenção de Direitos das Mulheres, reu-
históricos anteriores entre nobres e seus príncipes (como, por nindo-se em Seneca Falls, Nova York, emitiu a mais duradoura de
exemplo, a Magna Carta): "Aqui não houve nenhuma carta impor-
todas essas "cópias" da Declaração no começo do século xix: a
tante _c omo a de Runnimead, difundida e aceita como uma con-
Declaração de Sentimentos de Elizabeth Cady Stanton, que acre-
cessão da generosidade real". 76
ditava que "todos os homens e mulheres eram criados iguais" e
No final da década de 1820, diversos grupos nos Estados
submetia a um cândido mundo a "história de repetidas injúrias e
Unidos começaram a redigir documentos inspirados na Declaração »W
usurpações de parte dos bomens para com as mulheres .
enquanto insistiam em suas próprias reivindicações particulares
Mediante tais cópias, e como resultado de sua consagração
contra uma gama de tiranos e opressores domésticos - e, ocasio-
entre outros monumentos do período da independência, a Decla- j:
naJmente, estrangeiros. É notável o fato de terem sido três britâni-
cos, e não cidadãos americanos de nascimento, a usar a Declaração
dessa forma pela primeira vez. O socialista utópico Robert Owen
ração tornou-se domesticada e americanizada, lida e usada especi-
ficamente para fins nacionais. Pouco a pouco, apenas defensores da r
propôs, em 1829, uma "Declaração de Independência Mental'' para
Libertar os americanos da propriedade privada, da religião organi-
escravidão e da secessão sulista passaram a insistir no fato de que a
mensagem central da Declaração fora sua proclamação de inde- f
zada e do casamento. Em 4 de julho de 1832, na Filadélfia, a escoce- pendência. Eles o fizeram mais para reverter o crescente prestígio
cultural da igualdade, da r~sistência e. do rol de direitos da Declara-
r
sa e seguidora de Owen, Frances Wright, argumentou que a
Revolução Americana estaria incompleta sem garantias de educa- ção do que temendo que eles fossem exigidos por aqueles a quem

82
haviam sido tão claramente negados: os escravizados.81 Como si- lucionário, uma verdade abstrata, aplicável a todos os.homens e
nalizou o propagandista antiabolicionista George Fitzhugh em / >'.>84
a todas as epocas. .
Cannibals A.ll! (1857), a Revolução Americana "não tinha mais a Mas a aplicação dessa "verdade abstrata" aos Estados Umdos
ver com filosofia do que o desmame de um bezerro. Foi o ato de de antes da guerra não era exatamente pacífica, o que foi notado
um povo em busca de independência nacional, e não o projeto pelo abolicionista e negro livre David Walker vinte anos antes de
utópico de filósofos especulativos, procurando estabelecer a igual- Lincoln ter escrito. Walker concluía seu Appeal to the Colored
dade humana e a perfeição social".82 "Todo o absurdo pomposo Cítizens of the World (1829) com um convite aos americanos
em nossa Declaração de Independência sobre os direitos inaliená- brancos a "compararem seu próprio discurso [ ... ] extraído da
veis do homem': argumentou ele mais tarde, durante a Guerra Declaração de Independência com as crueldades e os assassinatos
Civil, "teve tanto a ver com a ocasião quanto um sermão ou oração infligidos por seus cruéis e impiedosos pais e por vocês mesmos a
[tem a ver] com a dentição de uma criança ou o nascimento de nossos pais e a nós".ª 5 O mesmo argumento seria citado com mais
gatinhos."83 energia ainda pelo ex-escravo Frederick Douglass diante de uma
Abraham Lincoln procurou combater tais sentimentos audiência em Rochester, Nova York, em 5 de julho de 1852. Em seu
através de suas repetidas invocações e interpretações da Decla- imponente discurso, "O que o Quatro de Julho representa para o
Escravo?", Douglass declarou à audiência predominantemente
ração antes. e durante a Guerra Civil. Ele o fez ao lembrar que a
branca que aquele dia consagrado era "o aniversário de sua inde-
Declaração continha, de fato, duas mensagens: uma em 1776 e
pendência nacional e de sua liberdade política", e que "a Declaração
outra para o futuro. Lincoln alegou que reduzir a Declaração a seu
de Independência é o ELO da corrente do destino da n ação de
propósito contingente em 1776 era considerá-la letra morta, sem
vocês". Lembrou aos presentes a resolução de Richard Henry Lee,
nenhuma relevância presente. Se o documento fosse simples-
de 2 de julho de 1776, mas deixou de expor com minúcias as rei-
mente uma declaração de independência nacional, sua função
vindicações que haviam conduzido à independência. Em vez disso,
havia sido cumprida décadas antes: "Pois, tendo aquela finalida-
virou dramaticamente o jogo contra seus ouvintes, sustentando
de sido alcançada cerca de oitenta anos atrás, a Declaração não
que aquela festa pertencia a eles e apenas a eles: "Não estou incluí-
possui agora nenhuma utilidade prática; é mera futilidade -
do na esfera desse glorioso aniversário! Sua nobre independência
uma colcha velha abandonada para apodrecer no campo de
revela apenas a incomensurável distância entre nós [ ... ] esse
batalha após a vitória ter sido obtida". Lincoln, ao contrário, Quatro [de] Julho é seu, não meu. Vocês podem regozijar-se, eu
enfatizava que havia uma mensagem universal e duradoura na devo lamentar". As inextirpáveis manchas nacionais da escravidão
Declaração, que podia ser encontrada em seu segundo parágrafo. e do comércio interno de escravos, a fraqueza do movimento
"Todas as honras a Jefferson", escreveu eJe mais tarde, em 1859, abolicionista e a conivência das Igrejas ante a perpetuação da ser-
"ao homem que, sob a pressão concreta de uma luta pela.inde- vidão humana comprovavam que não havia "nação no mundo
pendência nacional por um único povo, teve a calma, a visão e a culpada de práticas mais aterradoras e sanguinárias do que o povo
capacidade de introduzir, em um documento meramente revo- dos Estados Um'dos neste exato momen t o ".86
Douglass procurou golpear com força a consciência dos cantos mais obscuros do globo. Ela traç~ seu caminho sobre e sob
ouvintes ao definir as "inconsistências nacionais" dos Estados os mares, assim como por terra. O vento, as correntes e os relâmpa-
Unidos, tanto no contexto internacional quanto, em última ins- gos são seus agentes estabelecidos. Os oceanos já não dividem, mas
tância, no contexto global. Os americanos brancos, acusou ele, unem as nações. Ir de Boston a Londres é hoje uma viagem de
condenavam prontamente a tirania na Rússia ou na Áustria, mas férias. O espaço acha-se relativamente erradicado. 88
não na Virgínia ou na Carolina. " Derramavam lágrimas pela
Hungria arruinada': mas não as vertiam pelo escravo americano Com esse reconhecimento precoce do que hoje designaríamos
brutalizado. Roíam-se por dentro pela liberdade da França ou da globalização, Douglass anunciou um novo momento na história
Irlanda, "mas são frios como icebergs diante da ideia de liberdade internacional dos Estados Unidos e da Declaração de Indepen-
para os escravizados da América': Ta] era o apego que os america- dência.89 Mesmo 76 anos depois de 1776, os Estados Unidos ainda
nos tinham pela Declaração que chegavam a sustentar "perante 0 não eram uma terra inteiramente livre, mas possuíam ao menos
mundo" que consideravam evidente que todos os homens eram um imperativo moral para pôr em prática, extraído das reivindi-
criados iguais e dotados pelo Criador de certos direitos, entre os cações de seu documento fundador.
quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade. "No entanto, vocês A Declaração era agora conhecida no mundo inteiro, e esse
mantêm firm emente em[ ... ] cativeiro [... ] um sétimo dos habitan- mundo julgaria os Estados Unidos da América segundo os padrões
tes de seu ·país."87 do documento. O comércio e os meios de comunicação uniam os
Talvez quando o mundo parecia maior, as comunicações povos como nunca antes, e um dos efeitos dessa interligação seria
eram mais lentas e as nações, mais autossuficientes, um povo um maior intercâmbio dos discursos político e religioso em todo
pudesse fugir à responsabilidade por tão impressionante hipocri- o globo. 90 Douglass realmente estava correto ao vincular o "estí-
sia, argumentou Douglass. Depois de 1776, e devido à redução do mulo" passível de ser extraído da Declaração às "tendências [de
globo, eles já não podiam se esconder tão facilmente dos olhos grande repercussão ] da época" de eliminar particularismos cultu-
críticos da humanidade: rais e estreitar o contato entre povos distintos. No entanto, logo se
tornaria evidente que ele estava equivocado a respeito de uma das
Ao extrair alento da Declaração de Independência, dos grandes características determinantes da época. As "cidades fortificadas"
princípios que contém e do espírito das Instituições Americanas, podem ter começado a desaparecer em todo o mundo em meados
minha alma também se alegra diante das óbvias tendências da do século x1x, mas os impérios estavam longe de se tornar obsole-
época. As nações de hoje não mantêm as mesmas relações umas tos - na realidade, deu-se exatamente o contrário. Dentre os
com as outras que mantinham tempos atrás. Hoje nenhuma nação líderes mundiais que felicitaram os Estados Unidos no centenário
pode fechar-se para o mundo ao seu redor, e trilhar o mesmo velho da Independência, em 1876, achavam-se o imperador russo,
caminho de seus progenitores sem interferência( ... ] Cidades forti- Alexandre n, o imperador alemão, Guilherme 1, o imperador da
ficadas e impérios saíram de moda. O braço do comén;:io removeu Áustria, Francisco José 1, e o imperador do Brasil, dom Pedro u.91
os portões da cidade fortificada. A inteligência está penetrando os Nesse mesmo ano, o Ato Britânic~ dos Títulos Reais designou a

86
rainha Vitória imperatriz da índia. Um século depois de 1776, era
óbvio que os impérios não haviam batido em retirada; continua-
3. Um Mundo de Declarações
vam a avançar e ganhar terreno em todo o globo.
A Declaração de Independência havia inserido os Estados
Unidos em um mundo de Estados em 1776, mas também introdu-
zira a América em um mundo habitado por impérios - tanto as
grandes unidades territoriais da Eurásia quanto os impérios marí-
timos europeus, que projetavam seu domínio pelos oceanos para
abarcar o planeta inteiro. Durante a primeira metade do século
x1x, uma legião de novas repúblicas nas Américas e outros Estados
emergentes na Europa viriam a se unir aos Estados Unidos. O
mundo de impérios, entretanto, não deixaria de existir até a
segunda metade do século xx. Na ocasião do bicentenário ameri-
cano, em 1976, ele hav ia desaparecido quase que por completo,
embora seus vestígios ainda subsistam entre nós. Sua gradual - A Revolução Americana foi a primeira manifestação de uma
porém acelerada - dissolução seria marcada por uma série de epidemia de soberania que varreu o mm1do nos séculos posterio-
declarações de independência genericamente semelhantes e, não res a 1776. Sua influência difundiu-se primeiramente nos Países
raro, delineadas a partir de um documento que os americanos Baixos e, em seguida, no Caribe, na América espanhola, nos Bálcãs,
vieram a reverenciar como seu, mas que, ao longo do tempo, tor- na África Ocidental e na Europa Central nas décadas anteriores a
nara-se propriedade de toda a humanidade.
1848. Ainda assim, a infecção permaneceu latente até depois da
Primeira Guerra Mundial, quando reapareceu na Europa Central
e no Leste da Ásia. A pandemia seguinte surgiu repentinamente na
Ásia e na África depois da Segunda Guerra Mundial. Após 1989,
outros surtos nos países bálticos, nos Bálcãs e na Europa Oriental
culminaram na dissolução da União Soviética, da Iugoslávia e da
T checoslováquia entre 1990 e 1993.
As declarações de independência achavam-se entre os pri-
meiros sintomas d essa epidemia. Eram também diagnósticos, já
• que muitas vezes definian1 a natureza da moléstia na linguagem da
soberania estatal. Como documentos que anunciavam o surgi-
mento de novos Estados - ou, em alguns casos, o ressurgimento
''
i

;.

de antigos regimes - , elas marcavam a transição da s · · - ; alização foi também um dos mais importantes propulsores
. . . UJeiçao a
um império para a independência ao lado de outros Estad 1 !Estado em todo o mundo. Ao longo dos últ~mos dois s~cul~s
D d os.
es e 1776, mais de cem documentos semelhantes à D 1 . ,, mais, 0 Estado fundiu-se com formas locais de orgamzaça.o
- fi .. ec a-
"tlilítica e identificação emocional para criar um sistema que hoJe
rraçao oram emitidos em nome de grupos regionais ou naciona-
istas,
. _ e um número ainda maior de declarações locais surgiu eIU 'ibrange todo o mundo habitado .
reg10es como a América Central, na década de 1820, na Ch' ;! Ern grande medida, a criação de um mundo de Estados tem
, - m~
apos a revoluçao de 1911, e na Coreia entre 1918 e 1919 ,~ ido obra dos dois últimos séculos - e, sobretudo, dos últimos
. . '' , para
assinalar as aspirações de entidades infraestatais. 2 Algumas dessas · · enta anos 4 O movimento reuniu dois fenômenos importan-
, çmqu · . .
decla.ra~õ~s e~ressavam o anseio por uma independência futura; .· tes: a consolidação de Estados a partir de regimes ou terntónos de
a ma1.ona tndic~va um fait accornpli. Como a própria Declaração menor envergadura e a transformação de impérios em Estados. O
amencana, mmtas delas listavam queixas para justificar a inde- resultado foi um extraordinário padrão de contração - e, em
pendência que reivindicavam; no entanto, eram relativamente seguida, de expansão - no número de regimes desde o final da
poucas as que incluíam uma declaração de direitos individuais Idade Média. Em algumas regiões, podemos distinguir, a longo
equivalen te ao segu11.do parágrafo da Declaração de 1776. Nesse prazo, um padrão de integração cultural e centralização política.
sentido, e~as confirmavam, perante o mundo, a mensagem princi- No Sudeste da Asia, por exemplo, "entre 1340 e 1820, cerca de 23
pal daquele documento: que ele era uma afirmação dos direitos reinos independentes[ ... ] reduziram-se a três". 5 Um padrão seme-
de um Estado entre outros Estados, e não uma lista de direitos de lhante é evidente na Europa, onde unidades políticas distintas
indivíduos contra seus governantes. foram reduzidas de aproximadamente mil no século xrv para
Tomadas em conjunto, as declarações de independência emi- menos de quinhentas no início do século xv1, e, às vésperas da
tidas em todo o globo desde o final do século xvm marcam uma Revolução Francesa, a uma média de apenas 350, incluindo aí os
6
transição importante na história mundial: nesse período, um principados de bolso do Sacro Império Romano.
mundo de Estados surgiu a partir de um mundo de impérios. Hoje Por volta de 1900, a Europa possuía apenas 25 Estados-nações
os Estados possuem autoridade legal P,o r toda a superfície terres- pela mais generosa das estimativas. Em 1945, cinquenta Estados
tre, c~m a principal exceção da Antártida. Os únicos lugares de de todas as partes do mundo reuniram-se na Conferência de San
exceçao - como a baía de Guantânan10 - sao -· ena· d os por Francisco para fundar as Nações Unidas, embora alguns deles -
3
Estad?s. Ao menos potencialmente, os Estados também possuem como índia, Filipinas, B.i elorrússia e Ucrânia - ainda fizessem
autor~dade s~bre todos os habitantes do planeta: ser uma pessoa formalmente parte de um império ou de uma confederação mul-
sem cidadama é perambular por um mundo hostil em busca da tinacional.7 Entre 1950 e 1993, mais de cem novos Estados foram
proteção de um Estado. A disseminação dos Estados sobre a criados por secessão, descolonização ou dissolução. Em 4 de julho
s.upe~fície d~ Terra é um dos efeitos mais negligenciados da globa- de 2006, 192 Estados dividiam a maior parte da superfície da Terra
1,izaçao.' Mmtos de seus críti.cos têm sustentado que a gfobalização e sua população, fazend.o -se representar por uma organização
8
e o maior agente de dissolução da soberania estatal. No entanto, a mundial impropriamente denominada Nações Unidas (ONU) -

90 91
"impropriamente" não porque a ONU está reconhecidamente longe chamado de primeiro momento dos direitos eurasianos, em que
de ser unida, mas pelo fato de seus membros serem formalmente noções de direitos (tanto coletivos quanto individuais) inspiraram
Estados e não nações, as quais existem potencialmente às centenas, pela primeira vez os m ovimentos de independência, autonomia e
e até mesmo aos milhares, em todo o mundo. 9 A rigor, a Orga- liberação em todo o mundo. Na esteira da Revolução Americana,
nização das Nações Unidas deveria cham ar-se "Organização dos escreveu o marquês de Condorcet, "os direitos dos homens foram
Estados Unidos", mas esse n ome já fora adotado pelos represen - nobremente defendidos e expostos sem restrições ou reservas em
tantes de um outro grupo - bastante distinto, aliás - de atores textos que circularam hvremente das margens do Neva até as do
políticos em julho de 1776. Guadalquivir': 13 No início do século X1X, esses textos haviam se
Os Estados engendraram impérios e os impérios desmem- espalhado dos Apalaches até os Bálcãs, Bengala e mais além.
braram-se em Estados. Impérios são estruturas de interferência Os docum entos da Revolução Americana contribuíram
política e econômica que organizam hierarqui.camente suas partes menos para a formação desse período de direitos eurasianos que
componentes. 10 Representam, portanto, as p rincipais condições os documentos revolucio nários franceses de direitos e as tradi-
das quais a soberania pretende escapar.' 1 Soberania denota a ções do liberalismo britânico. No final do século xvm, o patriota
ausência de interferência externa em questões .internas, do mesmo grego republicano Rhigas Velestinlis, por exemplo, convocou
modo que r~quer igualdade formal n as relações com outros levantes contra o despotismo otomano utilizando-se da lingua-
Estados. Inviolabilidade e igualdade acham-se no âmago dessa gem revolucionária fran cesa, que se referia a um povo soberano
concepção de soberania externa. Assim, somente respeitando e seus direitos individua is. Não m uito antes de se tornar o pri-
mutuamente tais requisitos é que os Estados podem assegurar sua meiro mártir do movimento de independência grego em 1798,
própria independência. Por essa razão básica, a "soberania é con- Rhigas Velestinlis redigiu uma proclamação revolucion ária, uma
tagiosa: assim que uma comunidade se torna um Estado, as comu- declaração de direitos e uma constituição para uma futura repú-
nidades vizinhas reagem de forma semelhante': 12 blica helên ica. 14 Esses documentos p renunciaram as reivindica-
ções de direitos da declaração de independência expedida pela
Assembleia Nacional Helênica em janeiro de 1822. 15 Na m esma
Desde 1776, houve quatro momentos historicamente distin- época, o reformista bengalês Rammoh an Roy, parcialmente ins-
tos de proclamações de independência, todos coincidentes com a pirado pelas Revoluções americana e francesa, atacou o despo-
desintegração de impérios: na primeira metade do século x1x, nos tismo da Companhia das lndias Orientais e defendeu os direitos
períodos imediatamente posteriores à Primeira e à Segunda históricos dos índia nos. 16
Guerras Mundiais, e, por fim, entre os anos 1990 e 1993. O primei- A primeira onda de declarações de independência fora dos
ro momento, entre 1790 e 1848, coincidiu com a assim chall'ada Estados Unidos - no Haiti, na América espanhola, Grécia, Hungria
Era das Revoluções - americana, francesa, haitiana e a europeia e Libéria, por exem p.lo - preservou um componente americano
- e englobou o Novo Mundo das Américas, assim como· o Velho identificável. Como Condorcet havia declarado em 1786,
Mundo da Europa. Esse período compreendeu o que poderia ser

92 93
não basta que os d ireitos dos homens estejam escritos em Livros de Arthur Balfour, defendeu essa tendência durante o debate a res-
filósofos e no coração de homens virtuosos; o homem ignorante e peito da cláusula de igualdade racial na Conferência de Versalhes
fraco deve ser capaz de lê-los no exemplo de um grande povo. A em 1919:
Améríca nos deu esse exemplo. O ato que declarou a Independência
americana é uma exposição simples e sublime desses direitos sagra- A afirmação extraída da Declaração de Independência de que todos
dos e há muito esquecidos. 17 os homens foram criados iguais[ ... ) foi uma afirmação do século
xvm que ele não acreditava ser verdadeira. Em certo sentido, ele
Talvez pelo fato de a Revolução Americana ter continuado a ser acreditava ser verdade que todos os homens de uma nação em
uma lembrança vívida nesse período, as declarações de indepen- particular foram criados iguais, mas não que um homem na Afríca
dência promulgadas durante essa fase [entre o final do século xvm Central tivesse sido criado igual a um europeu.20
e o início do século x1x] têm uma divida maior para com o exem-
plo norte-americano do que aquelas que surgiriam mais tarde e A desconfiança quanto às asserções individualistas de direitos
seriam expedidas, por exemplo, ao longo do século xx. ajudou a garantir que, a pa rti r desse momento, as declarações de
O segundo momento significativo para as declarações de inde- independência evitassem em geral tais reivindicações, a não ser
pendência ocorreu após a Primeira Guerra Mundial, com o colapso quando solicitavam explicitamente o apoio americano, como no
dos grandes impérios territoriais dos otomanos, dos Romanov e caso da declaração de independência tchecoslovaca de 1918.21
dos Habsburgo, e também com a proliferação, desde os Bálcãs até a O terceiro grande momento para as declarações de indepen-
Coreia, de demandas por autodeterrninação. 18 Nesse período, rela- dência perdurou de fins da Segunda Guerra Mundial até o apogeu
ções individualistas de direitos abriram caminho para movimentos da descolonização em 1975. O Pacto do Atlântico de 1941 (criado
em prol dos direitos de nações e povos. "Não existe, em lugar explicitam ente para afastar reivindicações anti-imperialistas de
nenhum, o direito de passar povos de soberania em soberania como autodeter minação), 22 a Declaração Universal dos Direitos
se fossem propriedade': declarou Woodrow Wilson ao Senado dos Humanos (1948), a Convenção Europeia dos Direitos Humanos
Estados Unidos em janeiro de 1917. 19 Na fase que se seguiu à (1950) e documentos análogos posteriores, como a Declaração
Primeira Grande Guerra, isso poderia ser verdadeiro ao menos para das Nações Unidas sobre a Concessão de Independência aos Países
partes da Europa, mas não se aplicava ao mundo colonizado fora do e Povos Colonizados (1960), fizeram deste o primeiro momento
Velho Continente e das Américas. - e que ainda se acha em curso - verdadeiramente global de
·.
O auge do nacionalismo europeu do século x1x coincidiu com reivindicação de direitos na história mundial. 23 Durante esse
a expansão e a propagação dos impérios europeus na Eurásia e em período, cerca de setenta novos Estados foram criados a partir de
todo o mundo. Com o imperialismo, man ifestou-se um racismo escombros dos impérios ultramarinos britânico, francês e portu-
hierárquico que se opôs diretamente às reivindicações pefa igual- guês, predominantemente na Africa e na Asia. Às declarações de
dade humana e pelos direitos universais à vida, à liberdade e à independência uniram-se outros instrumentos de independência
busca da felicidade. O ministro britânico das Relações Exteriores, concebidos para extinguir impérios.

94 95
A maioria das dedarações desse terceiro momento sinalizou Enquanto escrevo este livro, um punhado de declarações
não o começo, mas o fim das lutas por libertação das quajs se ori- .· ainda aguarda reconhecimento - como a do Kosovo e a da
ginaram. Com uma maior variedade de precedentes para escolher, · Somalilândia, ambas de 1991, e cada uma refletindo questões
os lideres dos movimentos de independência raras vezes referi- pendentes relacionadas respectivamente à dissolução federal nos
ram-se de forma direta à Declaração americana; em vez disso, Bálcãs e à descolonização no Nordeste africano. 26 Analogamente, a
obtinham inspiração das lutas anticoloniais da época. Para tomar simples possibilidade de uma declaração de independência de
apenas um exemplo desse período: o timing da declaração de Taiwan criaria um con flito inexequível a partir de um dilema
independência do Timor Leste contra o domínio colonial portu- aparentemente insolúvel, dada a firme oposição da China conti-
guês, de 28 de novembro de 1975, foi diretamente inspirado pela nental à secessão do que ela insiste ser ainda uma província da
declaração de independência do MPLA (Movimento Popular de República Popular. De todo modo, a epidemia de soberania parece
Liberação de Angola), de 11 de novembro de 1975, também contra ter entrado, por ora, em um período de remissão geral.
o domínio português e promulgada anteriormente em Luanda,
Angola, naquele mesmo mês. 24 Os circuitos pelos quais as declara-
ções viajavam não mais se originavam exclusivamente da Europa A Declaração de Independência americana foi a primeira na
e dos assentamentos n eoeuropeus das Américas; ao contrário, história a relacionar soberania externa ("pratica r todos os atos e
modelos políticos eram transmitidos por outros impérios - ações a que os ESTADOS INDEPENDENTES têm direito") com indepen-
extraeuropeu~ - para além-mar enquanto eles desmoronavam e dência, e essa equação provar-se-ia influente por tanto tempo
se fragmentavam.· quanto o próprio formato d a Declaração em si. A Revolução
O quarto e mais recente momento das declarações de inde- Americana foi também a primeira revolta separatista bem-sucedi-
pendência foi também o mais conden sado da h istória mundial. da após a concepção de independência de Vattel ter-se tornado
Entre 1990 e 1993, mais de trinta Estados tornaram-se indepen- referência de soberania externa. O sucesso definitivo da afirmação
dentes ou recuperaram sua independência. Com exceção de um de independência dos am ericanos en corajou outros a seguirem
Estado - a Eritreia-, todos eles surgiram do colapso da União seu exemplo, e não apenas ao reivindicar a posição d e Estad o
Soviética, da extinção da Federação Iugoslava ou da dissolução como uma forma de escapar do império, m as também ao declarar
consensual da Tchecoslováquia para formar a República Tcheca e a independência como sinal d e soberania. As primeiras réplicas da
a República Eslovaca. 25 Com uma média de dez declarações de Declaração dentro e fora d.a Europa estabeleceram o padrão para
independência por ano, essa época foi ainda mais explosiva do que a maioria dos documentos posteriores a ela, que adotaram como
as décadas de 1810 e 1820, quando a América espanhola fragmen- modelo suas frases de abertura e encerramento, embora omitindo
tou-se sob o impacto internacional do ataque de Napoleão à as verdades ev identes por s i mesmas do segundo parágrafo.
península Ibérica. Parece pouco provável que haja novamente Esse foi exatamente o caso da primeira réplica da Declaração
uma profusão de declarações de independência comparável a e~as de 1776 fora da América do Norte. O Manifesto da Província de
explosões de primórdios do século XJX e fins do século xx. Flandres, promulgado pelos Estados flamengos em 1790, especifi-

97
cava as queixas contra a monarquia austríaca do imperador José 11 . A Declaração americana também forneceu o modelo básico
A maior parte do manifesto flamengo tratava de reivindicações ara a primeira grande onda de declarações de independência que
históricas a direitos tradicionais, muito semelhantes àqueles que · ~arreu o mundo transatlântico na primeira metade do século xrx.
constituíram a parte principal do Ato de Abjuração holandês dois A declaração haitiana de 1Q de jane.irode 1804- a primeira dessas
séculos antes. Seus autores argumentavam que o ataque por parte declarações nas Américas após 1776 - foi também a exceção que
da Casa da Áustria a tais direitos e o insucesso do imperador em confirmou a regra. O documento haitiano selou a mais bem-suce-
atender às demandas de seus súditos haviam devolvido o povo
flamengo a um estado de natureza na posse de seus direitos natu-
dida rebelião de escravos no hemisfério ocidental ao anunciar a
existência da primeira república negra independente. O primeiro
1
rais de liberdade e independência.27 rascunho da declaração havia sido escrito por "um admirador da
Nesse mesmo ano, uma narrativa em francês da Revolução obra de Jefferson': que moldou o documento na Declaração ame- l
Americana, acompanhada de traduções das constituições dos ricana. No entanto, alguns o consideraram apático demais para
estados e da Declaração de Independên cia, foi publicada em atender a seus objetivos inspiradores. "Para redigir a lei de inde- \!
Gante.28 A versão francesa da Declaração devolveu as afirmações pendência'~ escreveu o negro livre Louis Boisrond-Tonnerre, autor
do parágrafo de encerramento à língua de Vattel, que ajudara a da declaração haitiana revisada,"precisamos da pele de um homem
inspirar a própria Declaraçâo.2'J Foi a partir dessa versão que os branco como pergaminho, de seu crânio como tinteiro, de seu
rebeldes flamengos extraíram sua declaração final: "Diante do Juiz .
sangue como tmta, e d e uma ba1one
. t a como caneta.1" 32
su premo do mundo, que conhece a retidão de nossa causa, solene- Na noite de 31 de dezembro de 1803, o próprio Boisrond-
mente anunciamos e declaramos em nome do povo que esta pro- -Tonnerre redigiu uma nova declaração endereçada ao povo do
víncia é, e por direito deve ser, um Estado livre e independente; que Haiti, na qual proclamava que "é necessário viver independente,
foi eximida de toda submissão ao imperador José n'~ 30 Portanto, o ou morrer. Independência ou morte!". Em absoluto contraste com
Manifesto flamengo combinava a estrutura de um gênero anterior a Declaração americana, que se referira a "irmãos britânicos" no
de protesto político com a afirmação distintiva da Declaração ame- próprio ato de se libertar deles, a declaração haitiana proclamava
ricana de soberania com o independência. Uma avaliação seme- que os habitantes do Haiti não possuíam nenhuma afinidade com
lhantemente sincrética da Declaração tornou-se possível em 1798, os franceses, que os haviam privado da liberdade por tanto tempo:
1.
quando ela apareceu ao lado da Declaração dos Direitos do "O que temos em comum com aquele povo cruel?". Os haitianos
Homem e do Cidadão francesa e da Constituição de 1795, ou, ousaram libertar-se de seu cativeiro e transformaram sua ilha em
ainda, junto de duas co nstituições de 1797: a da República território livre. Assim, era melhor morrer protegendo essa liber-
Cisalpina, criada pelos franceses na Lombardia e na Romanha, e a dade do que viver como escravos novamente: "Jurem, portanto,
da República Liguriana, estabelecida em Gênova também pelos viver livres e independentes, e preferir a morte a tudo aquilo que
.1.1
franceses. Como que para apresentar a Declaração ao vasto 1'6bli- os levaria a recolocá-los sob a opressão".33
co europeu, o texto foi exibido em quatro colunas paralelas, em A declaração de independência do Haiti dirigia-se mais a um
inglês, alemão, francês e italiano.31 público doméstico do que ao cândid~ mundo, e foi proclamada

99
37
diante de uma multidão em Gona"ives, ao norte de Porto Príncipe, , aís de se manter afastado dos embaraços da política extema. O
na manhã de 1Q janeiro de 1804. Com as forças militares francesas, próprio Jefferson já havia começado a fomentar resistência contra
espanholas e britânicas enfileiradas contra eles, os haitianos não ~s impérios ibéricos quando, em 1786, encontrou-se clandestina-
possuíam nenhum apoio ostensivo entre os poderes da terra, e mente em Nimes com José Joaquim Maia e Barbalho, estudante de
tampouco reivindicavam, com tal declaração, o ingresso nesse , medicina brasileiro que atendia pelo pseudônimo de "Vendek".
seleto grupo. Em vez disso, eles sustentavam firme e claramente a Mais tarde, Vendek levaria a Declaração americana ao Brasil.38 A
extinção da escravidão e, portanto, ameaçavam a estabilidade das Declaração parece não ter sido traduzida para o português até
potências escravagistas restantes, como os Estados Unidos. Os 182 J, um ano depois de a metrópole portuguesa ter efetivamente
haitianos declararam o fim de qualquer ligação - política ou sen- declarado a independência do Brasil.39 Quando a independência
timental - com a França e, além disso, afirmaram seu triunfo sobreveio ao próprio Brasil, em 1822, foi declarada oralmente pelo
sobre a escravidão. Nesse contexto, liberdade e independência eram príncipe português transferido, dom Pedro 1, e não deu mostras de
mais do que simples metáforas ou normas abstratas da lei interna-
.. ter sido influenciada pela Declaração americana. 40
cional: eram ideais vívidos e prêmios duramente conquistados. As autoridades hispano-americanas tentaram evitar a disse-
O exemplo haitiano logo provaria que a posse em comum de minação da propaganda anti-imperialista ao boicotar a circulação
declarações de independência não era uma garantia de afinidade da Declaração e outros documentos da Revolução Arnericana. 4 1
j
entre novós Estados. A primeira república nas Américas - os Entretanto, a Declaração foi amplamente transmitida e traduzi-
'
Estados Unidos - não se apressou a reconhecer a segunda, o Haiti. da nas Américas Central e do Sul. Entre 1802 e 1803, Richard
Sob a presidência de Thomas Jefferson, principal autor da Decla- Cleveland e William Shaler, cidadãos da Nova Inglaterra, distribuí-
ração americana, os Estados Unidos recusaram-se formalmente a ram traduções da Declaração e da Constituição dos Estados
aceitar a independência do país caribenho, temendo que o reconhe- Unidos tanto entre os criollos, no Chile, quanto entre os índios, no
cimento apenas incitaria novas rebeliões de escravos no continen- México, "para melhor desenvolvimento do embrião da causa" da
te.34 Só depois de 1862 é que Abraham Lincoln viria a conceder o libertação destes povos. Em 181 1, o colombiano Miguel de Pombo
reconhecimento americano ao Haiti, quase quatro décadas após a prefaciou uma tradução da Constituição dos Estados Unidos com
própria França tê-lo feito em J825. 35 A relutância americana em uma versão da Declaração. No mesmo ano, o exilado venezuelano
admitir um Haiti independente prenunciou acontecimentos poste- Manuel García de Sena traduziu a Declaração e a Constituição ao
riores, como a declaração de independência das Filipinas em 1898, lado de trechos de Senso comum, de Paine, e outros trabalhos. Uma
quando interesses domésticos prevaleceriam sobre o desejo dos década mais tarde, após a restauração, em 1820, da Constituição
Estados Unidos de reproduzir e multiplicar soberanias indepen- espanhola ( 1812), Vicente Rocafuerte, equatoriano exilado na
dentes dentro e fora de seu próprio hemisfério. 36 Filadélfia, também traduziu Paine ao lado dos principais docu-
Em última análise, nas primeiras décadas do sécul~ x1x os :.i' mentos políticos americanos - inclusive a Declaração, que ele
Estados Unidos passaram a dar maior estímulo à disseminação da denominava "verdadeiro decálogo político" - em prol de seus
soberania nas Américas Central e do Sul, apesar das tentativas do compatriotas e outros hispano-americanos. 42

100 101
Tal como esperavam esses ardentes fomentadores do exemplo lo francês. Ela apresentou "fatos autênticos e notórios" relativos às
americano, as primeiras grandes ondas de declarações de inde- desordens que afligiram a monarquia espanhola desde 1808 a fim
pendência, que ocorreram na América espanhola nas décadas de de demonstrar que, pelo fato de a Espanha haver negado à Vene- 'I
1810 e 1820, eram devedoras da Declaração americana. 43 Os anos zuela a devida representação, de haver declarado guerra contra
entre a invasão francesa da Península, em 1808, e a restaur ação da ela, submetendo-a a outras indignidades, as autoridades espanho-
monarquia, em 1814, testemunharam uma série de movimentos a las haviam violado a base contratual de seu relacionamento. A
favor da autonomia entre os reinos espanhóis do Mundo Novo. liberdade e a independência da Venezuela "de assumir entre as
Com o colapso da monarquia dos Bourbon na Espanha, os hispano- potências da terra o lugar de igualdade que o Ser Supremo e a
-americanos argumentaram que a soberania retornara aos diver- natureza nos designam" poderiam então ser recuperadas. Os
sos reinos americanos. Eles puderam eleger representantes para as representantes declararam "solenemente ao mundo que as Pro-
cortes espanholas de 1810 a 1814 e foram incluídos na nação cuja víncias unidas [da Venezuela} são, e devem ser a partir de hoje, de \
i•
soberania foi consagrada na Constituição de Cádiz de 1812, anula- fato e de direito, Estados livres, soberanos e independentes" com o
da com o retorno do rei Fernando v11 ao trono espanhol. Durante poder para "executar todos os demais atos que praticam e execu-
tam as nações livres e independentes".
46 ,\
esses anos, a maioria de seus "líderes exigiu igualdade em vez de . f i ~•

independêucia: eles buscavam a autonomia, e não a separação da Palavras e sentimentos semelhantes podiam ser encontrados
Coroa espanhola". 44 na acta de independencia emitida pela junta de Cartagena, que
11
A principal exceção ao desejo hispano-americano de auto- separou a atual Colômbia formalmente da monarquia espanhola e 1
nomia no lugar de independência durante esses primeiros anos efetivamente das Províncias Unidas de Nova Granada em novem-
foi a Venezuela - a mais próxima, em termos geográficos, de bro de 1811.47 Declarações latino-americanas posteriores sustenta-
todas as capitanias gerais espanholas do Caribe e da Europa e, riam a reivindicação de soberania sem listas abrangentes de queixas
portanto, a mais diretamente afetada pelos acontecimentos polí- - justificativas muitas vezes deixadas a cargo dos manifestos que
ticos ao longo das rotas de comunicação do Atlântico. Quando o acompanhavam ou sucediam as actas de independencia-ou jus-
Congresso Geral da Venezuela reuniu-se em março de 1811, seus tificativas abstratas para a rebelião ou a separação. Assim, em julho
membros juraram defender os direitos da pátria e o rei Fernando. de 1816, as Províncias Unidas do Rio da Prata (Argentina) procla-

.
Contudo, em poucas semanas a pressão popular e as manobras maram-se "uma nação livre e independente de Fernando v11", em
de representantes radicais levaram o Congresso a discutir uma linguagem extraída da Declaração americana, que afirmava a
acta de independencia em 5 de julho de 1811. O Congresso ratifi- retidão de suas intenções e comprometia-se a proteger a vida, as
cou o ato dois dias mais tarde e publicou-o no Dia da Bastilha propriedades e a honra de seus habitantes.48 Dezoito meses mais
em 1811, com o acompanhamento de uma bandeira tricolor
inspirada no pavilhão francês. 45
O débito da declaração de independência venezuelana com o
exemplo americano foi muito maior do que com qualquer mode-
t
.

tt
·-
tarde, em janeiro de 1818, a concisa proclamação de independên-
cia do Chile igualmente anunciava que "o território continental
do Chile e suas ilhas adjacentes constituem, de fato e de direito,
um Estado livre, independente e soberano".49 Ao adotar a língua-

102 103
gem da Declaração americana e aprimorar cadências em sua
estrutura, esses documentos hispano-americanos estabeleceram -antes do século x:x.' a assinalar a separação. bem-sucedida
. de um
povo de outro que já havia declarado sua mdependênc~a, como o
as declarações de independência como gênero que se originou no
exemplo americano. fizera 0 México em uma série de documentos que culnunaram no
''.Ato de Independência do Império [Mexicano ]" (28 de setembro
A profusão de actas de independencia emitidas pelos conse-
de J821). 5'1 Uma posterior declaração de independência, promul-
lhos municipais, juntas regionais, cidades, províncias e reinos da
ada em Alta Califórnia, em 7 de novembro de 1836, exigia que o
América espanhola durante as décadas de 181Oe1820 inspirou-se,
g ·
território fosse considerado " um Estado l"ivre e soberano", mas, ao
sobretudo, nas interpretações espanholas de soberania, que con-
contrário do Texas, a Califórnia não conseguiu estabelecer de
sistiam mais na autonomia de determinados pueblos que na de
imediato sua soberania fora do império mexicano. 55
nações ou Estados específicos. 50 Isso era especialmente evidente
única entre as declarações d e independência anteriores ao
na América Central onde, conforme lamentou o primeiro histo-
século xx, a da Libéria (26 de julho de 1847) consagrou o reconhe-
riador dos movimentos de independência da região em 1832, "os
fanáticos [da Guatemala) instituíram o dogma anárquico de que cimento de "certos direitos naturais e inalienáveis; e, entre esses,
estão a vida, a liberdade e o direito de adquirir, possuir, desfrutar e
os pueblos, ao tornarem-se independentes da Espanha, recupera-
defe nder a propriedade". Essa primeira declaração de indepen-
vam sua liberdade natural e eram livres para formar novas socie-
dência na África foi redigida por Hilary Teague, jornalista e políti-
dades com? lhes conviesse na nova ordem das coisas". 5J Porém,
co afro-americano nascido na Virgínia, e iniciava com a afirmação
nem sempre ficava claro o quão livres e independentes eram tais
de que a República da Libéria era "um Estado livre, soberano e
pueblos ao tomar suas decisões pela independência: o respaldo
independente".56
aparentemente decisivo em Lima a favor de uma d eclaração de
Os comentaristas têm muitas vezes negado que a declaração
independência peruana (15 de julho de 1821), que mais de 3500
liberiana seja devedora da Declaração americana, por não reivin-
pessoas assinaram, tem sido convincentemente atribuído à força,
dicar o direito de rebelião e simplesmente afirmar a real soberania
ao medo e ao interesse próprio, e não a qualquer entusiasmo pelo
governo autônomo externo à monarquia espanhola. 52 da Libéria. 57 A estrutura do documento liberiano, entretanto,
assemelha-se à da Declaração americana ao listar os agravos que
A Declaração americana forneceu o modelo genérico para
outras dedarações de independência na América do Norte, África expulsaram dos Estados Unidos os primeiros colonizadores da
Libéria. Em seguida, o documento descreve de que forma a
e Europa Oriental nas décadas de 1830 e 1840, com a dissolução
Sociedade Americana de Colonização - os primeiros fom enta-
do império mexicano e o início das revoluções no Leste europeu.
A declaração de independência do Texas (2 de março de 1836), dores da colônia - havia gradativamente retirado sua supervisão
por exemplo, asseverou a necessidade "de cortar n ossa ligação para permitir que o povo da Libéria governasse a si mesmo. O
documento dirigia-se "à consideração cândida de um mundo
política com o povo mexicano, e assumir uma atitude indepen-
dente entre as nações da terra" como "uma república livre, sobera- civilizado''. Por fim, fiéis às normas da lei internacional de meados
53
na e independente': Essa declaração seria praticamente ·a única, ' do século xrx, os liberianos usaram o documento para apelar às
·-
"nações da cristandade [... ] a estender-nos o respeito que marca o
104

105
relacionamento amigável de comunidades civilizadas e indepen- : como representante britânico na Nova Zelândia, James Busby
d en t es".58 As circunstancias
· ' · e as normas vigentes podem ter muda- esclareceu dissimuladamente a manobra: "Declarei a independên-
do desde 1776, mas as dívidas da declaração liberiana ao original cia da Nova Zelândia - isto é, minha própria independência
americano eram inquestionáveis. como chefe soberano", pois "o estabelecimento da independência
Nessa época, a declaração de independência húngara (14 de da Nova Zelândia, sob a proteção do governo britânico, seria a
abril de 1849) de Lajos Kossuth, "um documento redigido por maneira mais eficaz de transformar o país em um anexo do
~dvogados políticos húngaros para advogados políticos húngaros", Império britânico (em tudo, menos no nome)". 62 Porém, uma
igualmente afirmou os "direitos naturais inalienáveis [da Hungria J década depois da declaração da Nova Zelândia, o rebelde maori
[... ] de ocupar a posição de Estado europeu independente" e o fato adversário do império, Hone Heke, cuja terra havia sido vendida a
de que, ao lado da Transilvânia, esta "constitui[a] um Estado livre, Busby em 1835, atacou o mastro de uma bandeira britânica, o
independente e soberano". Este documento talvez seja a mais símbolo da soberania imperial, pouco depois de 4 de julho de
extensa declaração de independência já promulgada. Em sua 1844. Heke supostamente conhecia tanto a história inglesa quanto
maior parte, narrava três séculos de história húngara como uma a americana, e talvez tenha se inspirado em parte na independên-
63
sequência de opressões por parte da monarquia dos Habsburgo, cia americana, que ocorrera quase setenta anos antes. O exemplo
sem uma enumeração explícita de direitos ou uma declaração de americano era evidentemente capaz de produzir efeitos opostos.
princípios abstratos a favor da rebelião. No entanto, rogava aber- Esse exemplo circulou pelas colônias de assentadores brancos
tamente a outros Estados europeus por reconhecimento, e, sem das partes restantes do Império britânico durante o século xrx,
dúvida com esse objetivo em mente, o governo húngaro provi- tendo ajudado a infundir a rebelião no Canadá em fins da década
denciou a tradução e a distribuição do documento. 59 Kossuth, o de 1830 e no estado australiano de Vitória na década de 1850,
principal autor da declaração, era de longa data - e permaneceria assim como uma convocação precoce à independência australiana
por muito tempo - grande admirador dos Estados Unidos e de em 1887. Durante as revoltas de 1837 no Alto Canadá, por exem-
sua revolução. 60 Sua proclamação de independência retrib uiu essa plo, o jornalista e político escocês William Lyon Mackenzie reim-
admiração com um documento que constituía uma lisonjeira primiu a Declaração em seu jornal de Toronto, The Constítution, e
réplica, embora carecesse da concisão e da flexibilidade do original ajudou a esboçar uma "Declaração dos Reformadores da Cidade
americano. de Toronto'', que confron tava as vantagens desfrutadas pelos
Como que para validar a equação entre independência e Estados Unidos pós-revolucionários com as dificuldades dos lega-
soberania, foi também nesse momento que os líderes das tribos listas que haviam escapado para o Norte, cruzando a nova fronteira,
maoris unidas da Ilha Norte da Nova Zelândia assinaram uma e acusado o rei britânico, Guilherme rv, com uma lista de queixas
"Declaração de Independência da Nova Zelândia" em 28 d~ outu- que reproduzia a lista de acusações da Declaração antes de para-
bro de 1835.6 1 O documento reconhecia a soberania territorial e a frasear seu penúltimo parágrafo ("Tampouco deixamos de chamar
posse da terra por parte dos maoris apenas para permitir a pene- a atenção de nossos irmãos britânicos [... ] Permaneceram também
tração britânica nas ilhas antes que os franceses as reivindicassem. surdos à voz da justiça e da consanguinidade") .64

106 107
A Declaração parece ter levado muito mais tempo para ser l 887, exigiu uma declaração de independência australiana em um
recebida de forma amistosa na Austrália. Quando, por exemplo, editorial publicado em 4 de julho desse mesmo ano: "Se essa espé-
em uma palestra em 1844, o advogado e crítico dos direitos aborí- cie de loucura vai prevalecer em nossa colônia, já é hora de que os
genes Richard Windeyer, de Sidney, m encionou os direitos indivi- sensatos e os detentores de amo r-próprio ergam suas vozes a favor
duais apresentados "n aquela nobre declaração que proclamou a da separação e da independência". 67 Quando se reuniram pela
independência americana': fê-lo para anunciar q ue estes eram tão . 1 primeira vez em 1891, os pais fundadores da Federação Australiana
óbvios que d iscuti-los "deve ser sempre desnecessário em uma não recorreram uma vez sequer à Declaração americana, embora
comu nidad e tão puramente britânica que n em sequer pensa na tivessem bem diante de si a constituição americana como possível
possibilidade de que aqui seja negado o gozo exequ ível desses modelo para uma constituição australiana. 68 As queixas australia-
direitos por parte de seus irmãos de qualquer raça ou cor''.6 s Uma nas com resp eito à permanente dependência da Grã-Bretanha
década mais tarde, mineradores insatisfeitos nos campos auríferos após a Federação em 1901 e a grande admiração de m u itos dos
de Vitória não foram tão complacentes quanto a seus direitos. Um primeiros estadistas australianos pel.os Estados Unidos poderiam,
grupo d esses trabalhadores construiu a barricada de Eureka em a princípio, ter conduzido a uma declaração de ind ependência,
Ballarat, em dezembro de 1854, a fim de se defender das tropas mas não foi o que ocorreu.69 A Austrália, assim como o Canadá,
enviadas para reprimir a revolta p ela imposição de taxas de licença iria finalmente conquistar a indep endência legislativa da Grã-
para escavàr, dentre outras reclamações. No alto da barricada, foi -Bretanha pelo Esta tu to de Westminster, em 1931. Foi, portanto, o
erguida um a nova bandeira azul e branca, adornada com o Parlamen to imperi al que declarou a independência dos domínios
Cruzeiro do Sul, e, segundo alguns registros, um dos integrantes coloniais, mas ele não apoiaria novos desafios separatistas, como a
leu em voz alta uma "D eclaração de Independência" em 1n de tentativa da Austrália Ocidental d e separar-se da Federação
dezembro de 1854. Nenhum exem plar d essa d eclaração sobrevi - Australiana em 1934 e 1935.7º
veu. Con tudo, quando leu uma rep ortagem sobre o cerco n a bar- Mais reveladoras da influência da Declaração na segunda
ricada de Eureka, Karl Marx detectou a semelhança com o docu- metade do século x1x são as d eclarações d e independência d os
mento americano. Os mineradores de ouro estavam rebelando-se estados da Confederação sulista, que tomaram de forma bastante
"para obter controle sobre os impostos e a legislação", escreveu ele. literal as reivindicações de soberania feitas na Declaração de 1776.
"Aqui vemos, em essência, motivos semelhantes aos q ue conduzi- A "Declaração d e Secessão da Carolina do Sul" (20 de dezembro
ram à Declaração de Independência dos Estados Unidos, salvo de 1860), por exemplo, aproprio u-se tanto da linguagem quanto
que, na Austrália, o conflito é iniciado pelos trabal hadores contra da estrutura da Declaração para justificar o muito mais conciso
os monopolistas ligados à burocracia coloniaJ."66 decreto de secessão do estado. Ela evocava a história d os proble-
A Austrália nunca promulgaria urna declaração formal de mas americanos de 1765 a 1776 para argumentar que os treze
independência em relação à Grã- Bretanha. A femin ista e jo; nalista estados distintos h aviam concordado com a Declaração e, na oca-
republicana Louisa Lawson, refletindo vagamente sobre as come- sião, haviam participado dos Artigos de Confederação em 1778,
morações monarquistas do jubileu de prata da rainha Vitória, em sempre conservando sua soberania independente, que foi então

108
109
!'

confirmada pelo Tratado de Paris em 1783: "Cada colônia conver- seu reino com a Suécia em 1905. Entretanto, isso geralmente foi
teu-se e foi reconhecida pela pátria-mãe como um ESTADO LIVRE, feito não por meio de declarações de independência, mas median-
SOBERANO E INDEP ENDENTE". O documento prosseguia e afirmava te tratados, separação mútua, proclamação e plebiscito. 74
que esses estados participavam da Constituição ainda sujeitos a Durante a segunda metade do século xrx, a independência
dois princípios derivados da própria Declaração: o direito à auto- era associada à soberania e, portanto, tinha mais a ver com o status
nomia e o direito de abolir todo governo que se tornasse destrutivo jurídico que com as identidades nacionais - fossem elas étnicas,
dos fins para os quais havia sido estabelecido. Por tais motivos, linguísticas, históricas ou religiosas. O nacionalismo era uma força
usando a lógica da Declaração para reafirmar a separação da de consolidação e aglutinação em Estados-nações emergentes
união, os redatores afirmaram que "a Carolina do Su.l retomou su.a como a Alemanha e a Itália; as declarações de independência eram
posição entre as nações do mundo como um Estado separado e indícios de fragmentação e separação que denunciavam forças
independente; com inteiro poder para declarar guerra, concluir a centrífugas que se contrapunham à atração cent rípeta formadora
paz, contratar alianças, estabelecer comércio e praticar todos os de nações. Além disso, o auge do nacionalismo europeu coincidiu
atos e ações a que têm direito os Estados independentes':71 No ano com o apogeu do imperialismo fo ra da Europa. A medida que se
seguinte, o Tennessee emitiu uma "Declaração de Independência consolidavam na Europa, os Estados-nações estendiam seu con-
e Decreto de Secessão" (6 de maio de 1861), ao passo que o último trole imperial para mais além: nesse sentido, "a Europa na década
estado a se separar, o Kentucky, também se declarou "um estado de 1870 não era uma Europa de Estados-nações, mas de impérios,
livre e independente" em 20 de novembro de 1861.72 A resposta do passado e do futuro': 75
unionista a essas reivindicações foi simplesmente a de que tais As fo rças por trás da consolidação e da expansão eram
declarações equivaliam a traições aos Estados Unidos, o único incompatíveis com os impulsos que haviam gerado declarações de
governo legitimamente autorizado a exercer a soberania indepen- independência antes de 1850, e que tornariam a gerá-las depois de
dente desde 1787.73 1918.76 Um contraexemplo asiático para essa generalização talvez
A equação independência e Estado, mais que nação, tornou- seja o bastante para ilustrar as diferentes definições de soberania
-se progressivamente clara durante a segunda metade do século existentes em fin s do século XIX. Uma efêmera república de
XIX e ajuda a explicar o fato (que, de outra forma, seria paradoxal) Formosa (Taiwan) foi proclamada em maio de 1895, em parte
de não ter havido praticamente nenhuma declaração de indepen- para evitar a conquista da ilha pelo Japão após a primeira Guerra
dência entre 1849 e 1918-período que, em geral, é associado ao Sino-Japonesa ( 1894-5). Na época, o tradutor americano do
apogeu do nacionalismo europeu. Sem dúvida, inúmeros Estados documento que proclamava a república denominou-o "Declaração
conquistaram sua independência durante esse período, e entre eles Oficial da República de Formosa", mas está claro que isso fo i uma
estão os que emergiram do gradual desmembramento do Império interpretação equivocada da natureza da reivindicação de autono-
o tomano - como a Romênia, a Sérvia, Montenegro (todo~ com mia formulada pelos líderes da efêmera república. Os responsáveis
sua independência reconhecida pelo Tratado de Berlim de 1878), a pela proclamação da república imploraram ajuda *s potências
Bulgária (1908) e a Albânia ( 1913) - e a Noruega, que extinguiu ocidentais, o que só poderia ser obtido se Formosa fosse interna-

110 111
cionalmente reconhecida como autônoma. Todavia, isso n ão Jan Hus no século xv até a promessa wilsoniana de autodetermi-
implicava necessadamente a completa separação da China. A nação no início do século x:x.79
República de Formosa foi proclamada para ser "autodepen dente': Masaryk estava nitidamente implorando pelo ap oio ameri-
e não "independente" (duli) da China, e seu presidente, Tang cano com tais alusões: "A nação tchecoslovaca invoca os princípios
Jingsong, apresentou-se ao povo de Formosa como servo leal d o da Declaração de Independência para sua revolução [ ... ] Os
imperador Qing. Ele, po rtanto, não reivindicou para Formosa a Estados Un idos não podem aceitar o austrianismo, pois este é uma
plena soberania internacional: assim, "esta primeira república negação e uma contradição da Declaração de Independên cia e dos
asiática não surgiu como produto de uma revolução ou como ideais americanos", sinalizou ele em um artigo em The Nation. 80
resultado de um movimen to de independêncía".77 Em contrapar- Uma semana de pois da declaração tcheca, Masaryk presidiu, na
tida, a república asiática seguinte, a Mongólia, iria d e fato nascer Filadélfia, a composição de uma "Declaração de Independência da
de uma revolu ção em 1911, quando, com o iminente colapso da União Centro -Europeia" (26 de outubro de 1918) mais global, e
dinastia Qing, os khans reunidos anunciaram "aos mongóis, rus- assinou-a usando o tinteiro Philip Syng usado p elos signatários da
sos, tibetanos, chineses e a todo o p úblico eclesiástico e secular" o Declaração am eri.cana em 1776.8 1
recomeço de su a independência histórica e sua resolução de não Apelos semelhantes à promessa de autodeterminação inspi-
mais serem gov~rn ados por "autoridades sino-manchus''. 78 raram muitas outras declarações de independên cia desse perío-
do, incluindo a "Proclamação do Estado dos Eslovenos, Croatas
e Sérvios" (29 de outubro de 1918), a declaração d e independên-
O século xx test emunhou dois grandes apogeus de declara- cia irlandesa do Dãil Éireann (2 1 de janeiro d e 1919), a declara-
ções de independência: um se deu no rescaldo da Primeira Guerra ção de independência coreana ( l 2 de março de 19 19) e a declaração
.Mundial; o outro teve início em 1945 e prosseguiu até 1993, com de independência da Estônia (19 de maio de 19 19).82 Foi também
um pequeno h iato entre os anos 1970 e in ício dos anos 1980. O durante esse período que um movimento anticolonial conjunto
colapso dos grandes impérios terrestres europeus durante e após a contra os britân icos imp.l antou pela p rimeira vez desde 1776 a
;E
Primeira Grande Guerra levou ao ressurgimento de nacionalida- linguagem revolucionária da Declaração americana. Em janeiro ,,~
·i
des d esaparecidas a partir dessas cadeias de nações e à criação de de 1930, Mahatma Gandhi esboçou uma decla ração para o
novos Estados para acomodá-las, muitas vezes acompanhados de Congresso Nacional Indiano que afirmava "o inalienável direito
uma declaração de independência. Nesse período, a declaração do povo ind iano [ ... ] d e ter .liberdade e usufru ir dos frutos de seu
mais claramente devedora do exemplo americano foi a "Declaração trabalho, e possuir o indispensável à vida, a fim de obter plenas
de Independência da Nação Eslovaca" (18 de outubro de 1918). O ch ances de crescimento. Acreditamos também que se qualquer
documento foi redigido em Washington por To mas Masaryk••em governo priva um povo de tais direitos e o oprime, o povo possui
tcheco, e revisado em inglês por, dentre outros, Gutzon Borglum, o direito adicional de modificá-lo ou aboli-lo". Por esses mot ivos,
o escultor do monte Rushmore. Ele situava a Declaração america- argumentou Gandhi, "acreditamos[ ... ] que a Índia deva romper
na em uma lin hagem que se estend.ia do protopro testantismo de a ligação com os britânicos e atingir o purna swaraj, ou completa

112
independência", e logo esclareceu sua declaração: o documento enquanto fazia, ao mesmo tempo, um astucioso pedido de apoio
servia "não para declarar independência, mas para declarar que americano para a independência vietnamita do Japão (retrospec-
não nos satisfaremos com nada menos que a completa indepen- tivamente) e da França (futuramente). 86 No entanto, "em outubro
dência, ao contrário do assim chamado Status de Domínio".83 de 1945, ficou claro que o único povo disposto a reconhecer a
Mais tarde, Subhas Chandra Bose declarou o primeiro governo liberdade e a independência do Vietnã era o próprio povo
indiano independente de Azad Hind (Índia Livre), em 21 de vietnamita".87
outubro de 1943, em Cingapura. Tal como o Congresso america- O documento de fins do século xx cuja linguagem mais se
no, o governo provisório de Bose declarou independência para assemelhava à da Declaração americana seria o exemplo que escla-
obter o reconhecimento estrangeiro para um conflito contra o receria, de uma vez por todas, os termos nos quais tais documentos
Império britânico. Portanto, não foi por acaso que ele empregou poderiam ser reconhecidos pela comunidade internacional. Trata-
a linguagem extraída da Declaração americana, ao "empenhar -se da Declaração de Independência Unilateral emitida pelo contro-
nossas vidas e a de nossos companheiros de batalha à causa da vertido governo de minoria branca da Rodésia do Sul em 11 de
liberdade [da fndia], de sua prosperidade e de seu engrandeci- novembro de 1965. Em uma reprodução consciente da Declaração
mento entre as nações do mundo" e declarar "a firme determina- de 1776, o texto iniciava com as seguintes palavras: "Considerando
ção [de seu governo] de buscar a felicidade de toda nação e de que, no curso dos assuntos humanos, a história tem demonstra-
todas as sua's partes'~ 84 do que talvez seja necessário a um povo desfazer as afiliações políti-
A partir desse momento, a declaração anticolonial que segui- cas que o associaram a outro povo e assumir entre as demais nações
ria mais claramente os moldes do documento americano de 1776 o status independente e igual a que tem direito [... ]':88 Entretanto, o
seria a de independência vietnamita de Ho Chi Minh, promulgada documento não incluía nenhuma referência a direitos individuais.
no rescaldo do colapso do império francês na Indochina em 1945. No conflito rodesiano entre o regime minoritário de Ian Smith e o
O documento abria com citações do segundo parágrafo da governo britânico, ambos os lados entendiam o confronto com a
Declaração americana (as quais Ho Chi Minh havia selecionado gigantesca memória das elites imperiais como uma repetição da
com o oficial americano da oss, Archimedes Patti) e da Declaração Revolução Americana. Em março de 1963, mais de dois anos antes
de Direitos do Homem e do Cidadão francesa. 115 Apresentava uma do surgimento da Declaração de Independência Unilateral, o gover-
lista de queixas contra o colonialismo francês provavelmente ins- no conservador de Harold Macmillan havia investigado planos de
pirada nas acusações da Declaração americana contra o rei. Tal contingência militares contra a possibilidade da independência
como o exemplar americano, ela se dirigia tanto ao público inter- wdesiana: o sinistro título do arquivo secreto que continha os
no (para o qual a independência era efetivamente um fait accom- documentos resultantes era "Motim do Chá de Boston':89
pli) quanto a observadores estrangeiros (dos quais o Vietnã <lese- A declaração rodesiana surgiu apenas cinco anos após a
java reconhecimento internacional). Com isso, Ho Chi •Mi.nh, Organização das Nações Unidas ter emitido sua Declaração sobre
admirador de longa data de George Washington, posicionou a a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais
revolução vietnamita em uma tradição revolucionária mais ampla, ( 1960). Nesse documento, a ONU proclamava que "o processo de

114 115
liberação é irresistível e irreversível" e que "todos os povos" - quer internacion al. Os dilem as resultantes da epidemia de soberania
dizer, todos os povos majoritários - "possuem o direito inaliená- que esse fato representa podem ser rastreados pelo menos até a
vel à completa liberdade, ao exercício de sua soberania e à integri- Revolução Am ericana, mas não muito antes disso, pois a associa-
dade de seu território nacional'~ 90 Pelo fato de não refletir o direito ção entre independência e soberania era b astante recente no
democraticamente determi nado à liberdad e e à soberania da momento em que os am ericanos declarar am sua independência
maior parte da população da Rodésia, a Declaração rodesiana não da Grã-Bretanha em 1776.
proporcionava uma base legítima para o reconhecimento da inde- Alguns observadores têm argumentado que as Américas, a
pendência do governo que a havia promulgado.91 começar pela América do Norte britânica em 1776, eram um
Como demonstrou o exemplo rodesiano, o critério para a viveiro de nações muito antes do surgimento das nações que
legítima criação de Estados desenvolvera-se de forma considerável emergiram na segunda m etade do século XIX. Porém , como foi
desde 1776. Declarações de independência como as da Libéria e da demonstrado nesta anál ise da Declaração de Independ ência e
Hungria exigiam um padrão de civilização compartilh ado por daquelas que a sucederam, o h emisfério ocidental na Era das
o utros Estados na Europa e no mundo Atlântico. Depois de Lênin Revoluções pode antes ser considerado um cadinho de Estados:
e Woodrow Wilson terem proclamado suas concepções de autode- "A validade e a generalidade do modelo foram, sem dúvida, con-
terminação nos anos finais da Primeira Guerra Mu ndial, esse firmadas pela pluralidade de Estados independentes".92 Assim,
con ceito tO'rnou-se um padrão em torno d o qual movimentos não seria nenhum exagero d izer que as origens de nosso mundo
secessionistas - como o da Tchecoslováquia - puderam reorga- m o derno de Estados recuam às Américas e, em particular, à
nizar-se. Após a Segunda Guerra Mun d ial, a Organ ização das Revolução Americana. A fil ósofa política Hannah Arendt lamen-
Nações Unidas viria a ~e tornar um árbitro das normas internacio- tou-se: "A triste verdade da questão é que a Revolução Fran cesa,
nais, com o d emonstrou o apelo a um a resolução da ONU na que termin o u em desastre, tornou-se história mundial, ao pas-
Declaração do Estabelecimento do Estado de Israel ( 14 de m aio de so que a Revolução Amer icana, cujo sucesso foi tri unfal, per-
1948), dentre outras fontes. A propagação das discussões sobre maneceu um acontecimento d e importância po uco m ais que
direitos desde 1948 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos local".93 Pelo con trário: a Revol ução Americana foi um aconteci-
apenas intensificaram a pressão internacional para harmonizar mento de importância verdadeiramente global. Para o bem ou
estruturas d e soberania interna com os mecanismos de soberania para o mal, suas consequên cias contagiosas difundiram-se para
externa, assim como ajudaram a acelerar o m ovimento rumo à abarcar o mundo d e Estados que h abitamos - ainda que, por
descolonização desde a Segunda Grande Guerra. ora, sem escapatória.
A partir de 1776, as declarações de independência têm sido,
sobretudo, afirmações de soberania - tan to externa, contra
potências colonizadoras ou conquistadoras, quanto inte~na, já
que definem a fonte de legitimidade de um n ovo Estpdo, bem
como sua reivindicação de território e d e personalid ade jurídica

u6 117
Conclusão

Este histórico da Declaração de Independência investigou as


origens internacionais e os desdobramentos globais de um docu-
mento único, incisivo e eclético. Suas conclusões deveriam posi-
cionar-se ao lado da recente apreciação de um dos principais his-
toriadores da Revolução Americana, segundo a qual a "Declaração
estabeleceu uma filosofia de direitos humanos passível de ser apli-
cada não apenas aos americanos, mas a povos de todas as partes.
Isso foi imprescindível para conceder à Revolução Americana seu
apelo universal". 1 A narrativa aqui registrada relaciona-se mais a
direitos de Estados do que a direitos de indivíduos; associa-se mais
a exigências de reconhecimento de comunidades na esfera inter- .jl
nacional que a reivindicações de cidadãos ou súditos contra seus
governantes. Essas duas avaliações não são necessariamente
incompatíveis. A Declaração menciona tanto os direitos de Estados
livres e independentes quanto os direitos de "todos os homens" à
• "vida, à liberdade e à busca da felicidade". Parte de seu apelo -
seja nos Estados Unidos, seja no restante do mundo - consistiu
na inclusão de ambos os gêneros de direitos em sua argumentação.

119
Mas a imensa importância das afirmações de soberania da dial. É por isso que nenhum Estado hoje em dia denomina-se
Declaração na história de sua recepção e reprodução globais refle- oficialmente um império, embora alguns possuam analistas ou
te com precisão as intenções de seus autores e descreve bem 0 ,. "animadores" políticos que empregam extraoficialmente o dis-
saldo do argumento concebido. curso imperial a seu favor. Ao longo dos dois últimos séculos, o
Nenhum documento pode ter seu sign ificado totalmente critério para o reconhecimento de soberania por parte de outros
restringido pelas intenções de seus criadores. Isso é particular- Estados mudou drasticamente. O gênero declaração de indepen-
mente verdadeiro para um documento que, como a Declaração, dência tem sido flexível o bastante para incluir apelos a defini-
passa a ser visto como ponto de partida de um gênero. O feito de .... ções vattelianas de soberania - a linguagem da "civilização" - ,
Thomas Jefferson em 1776 foi empregar suas habilidades jurídicas concepções wilsonianas de autodeterminação e o florescente
e retóricas para forjar um instrumento cujo intuito era declarar a discurso dos direitos humanos, por exemplo. O quanto esses
independência, sem n enhum modelo prévio para guiá-lo. Os apelos são compatíveis com a afirmação de soberania estatal em
revolucionários, dissidentes e separatistas posteriores não teriam nível internacional continua a ser uma das questões pendentes
:.
!. ~
necessidade de realizar tal salto criativo, já que, com o passar do da ordem mundial contemporânea.
tempo, a quantidade de modelos disponíveis para inspirar suas A inflexibilidade desse dilema torna-se particularmente evi-
declarações iria se multiplicar e se diversificar. Com a proliferação dente na ambivalência fundam ental da própria independência.
e a variedàde também surgiriam revelações mais incisivas de Parece ser uma regra histórica que, uma vez tendo estabelecido
imperativos conflitantes no cerne da própria Declaração, seja sua própria independência, os Estados tornem-se resistentes a
entre povos e Estados, seja entre defensores individuais de direitos novos desafios internos a sua autonomia e integridade: "Em tais
e soberanos que reivindicavam seus próprios direitos ante outros casos, o direito reverte-se em tabu". 2 Essa ambivalência já se evi-
soberanos. Por essas razões, o que tornou a Declaração tão atraen- denciou em 1777, quando os Estados Unidos resistiram à inde-
te no mundo inteiro - a combinação de apelos aos direitos natu- pendência de Vermont. Praticamente a única exceção importante
,. rais e à lei positiva, a suspensão eclética de direitos individuais e à regra desde a Segunda Guerra Mundial foi Bangladesh, que se
'·:
i'l coletivos e a reunião de elementos que se tornariam gêneros dis- separou do Paquistão em 1971 por intermédio de uma proclamação
tintos de argumento político - também transformou seus desdo- de independência, embora sua transição à condição de Estado nã.o
bramentos em um índice revelador dos principais dilemas da his- tenha ocorrido sem grande derramamento de sangue.3 Estados
tória mundial desde 1776. independentes resistem a novas reivindicações de independência
As declarações de independência eram, sobretudo, afirma- principalmente porque o conceito de territorialidade vincula
ções de soberania externa em um universo crescente de sobera- independência a soberan ia: sem território definido não pode
nias semelhantes. Elas foram o produto típico de uma época na haver Estado, e sem Estado não pode haver independência signifi-
qual os Estados identificavam-se cada vez mais como unÍdades cativa, conclui a equação. A territorialidade tem sido há muito
primárias da politica mundial, ao passo que modelos. políticos tempo o núcleo obstinado da soberania: quando dois povos rei-
concorrentes gradativamente perdiam terreno no cenário mun - vindicam o mesmo território, suas declarações de independência

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irreconciliáveis podem competir por reconhecimento, como no ~· ais vigorosos na Indonésia_ou na índia, por exem~lo. ~e ele~
caso de Israel e da Palestina.4 . s m- , ompanhar de declarações de independência, amda e
Enquanto a soberania confinada à condição de Estado conti- ..e farao a~ em aberto. Em nosso mundo de entidades territoriais
a uestao
nuava a ser o suposto entroncamento final da autodeterminação, í.Ull .q damente soberanas que a tudo abarca, talvez restem pou-
havia pouca esperança para muitas minorias internas - especial- ::obstma
. oportumºdad es para declarações bem-sucedidas de Estados -
mente povos nativos - de obter independência sob as definições :·cas
. dependentes. Mesmo em um mundo como este, a ,Declaraçao . .
dominantes do termo. A declaração de independência da Nova in . rá a ser"um instrumento prenhe do nosso propno dest1-
Zelândia (1835) ilustrou essa triste conclusão quando declarou contmua . d " _ não pelas razões
[dos americanos] e do destmo do mun o -
independência em nome dos grupos nativos apenas como base para no Jefferson talvez esperasse, mas por consequenc1as que ele nao
que A •

uma redução de sua autonomia por agentes da Coroa Britânica. poderia prever.
Por isso, cada vez mais os povos nativos têm recorrido a outros ins-
trumentos que não declarações de independência para assegurar
seus direitos e reivindicar autonomia. 5
Essa mudança de estratégia talvez sinalize que as declarações
de independência nunca mais serão tão produtivas quanto o
foram no ·passado. Grupos que procuram promover sua causa
podem agora escolher outras formas de autodeterminação -
como a transferência de autoridade, o governo associado e a
representação política mais ampla-que nã.o reivindiquem terri-
tório ou a aceitação "entre os poderes da terra". É óbvio que exis-
tem contraexempl.os para tal generalização, assim como certa-
mente haverá desmentidos para uma predição de âmbito tão
abrangente. Ainda que as avaliações jurídicas de movimentos
recentes - como, por exemplo, o movimento separatista de
Québec - tenham negado a existência de um suposto direito de
secessão por parte de províncias ou povos, isso não implica que
não ocorrerão tentativas de secessão, mesmo contrariando as
normas jurídicas internacionais vigentes e a resistência dos
Estados existentes. Não é difícil de imaginar a série de desafios
para o império Qing dos séculos XVII e xvrn - que constitui • o
núcleo territorial do Estado chinês - , a fragmentação da
Federação Russa (como na Cbechênia), ou movimentos separatis-

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