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uma “vicissitude” (De Heusch 2000) de designações que perpassam por questões
relacionadas à raça, língua, religiosidade, economia, política, hábitos, costumes, dentre
tantos outros aspectos que envolvem a vida social. O conceito de “etnia” é bastante
utilizado para se referir a tudo o que diz respeito aos grupos considerados não-
hegemônicos, ou seja, as minorias sociais que pouca representatividade possuem em um
mundo marcado pelos efeitos da colonização e padrões etnocêntricos de cultura impostos
sobre uma realidade de fato plural e diversa. Nesse sentido foram classificadas, por
exemplo, a etnobotânica, etnomedicina, etnomatemática, e todas as outras formas de
“conhecimentos tradicionais” as quais poderiam ser descritas em uma etnografia – a
escrita sobre grupos étnicos. Mas afinal, em que consiste, quem são, e como se definem
os “grupos étnicos”?
A etnografia, método de pesquisa consagrado da Antropologia profissional
instaurada a partir do século XX, se constituiu como uma ferramenta fundamental para a
compreensão da alteridade, ou seja, das diferentes culturas que o homem europeu se
deparou em sua expansão colonialista pelo mundo entre os séculos XIX e XX nas regiões
da África, Ásia e Oceania, cujas populações autóctones receberam o rótulo de
“primitivas” e “selvagens” em contraposição aos “modernos” e “civilizados” europeus.
Neste panorama, De Heusch questiona a abordagem sincrônica levada a cabo pela
Antropologia nascente que buscava, antes de mais nada, identificar a estabilidade dos
sistemas socioculturais de cada grupo social (“os Nuer”; “os Dinka”; “os Trobriandeses”)
desprezando-se, contudo, as fronteiras estabelecidas entre diferentes grupos e as
transformações socioculturais que podem ocorrer devido a um contato intercultural.
Nesse sentido, uma das dimensões que o conceito de “etnia” pode vir a assumir
diz respeito à sua associação com os interesses coloniais, vindo a designar falsas entidades
sociais - identificadas arbitrariamente pela forças colonizadoras dominantes - com o
propósito de manter a segregação e o controle sobre os grupos colonizados. Como afirma
De Heusch a respeito desta crítica sobre o conceito de etnia:
“The ethnie X or Y would merely designate an administrative fiction, that is to
say an arbitrary and static mode of division designed by colonial bureaucracy for
political purposes to check populations in perpetual formation” (: 99, grifo do
autor).
Seria a etnia, então, um “falso conhecimento” que atende aos interesses coloniais?
De Heusch busca provar que não, demonstrando as transformações pelas quais as
definições e usos desse conceito sofreram ao longo do tempo. Em 1960, a abordagem
sincrônica popularizada pelo estrutural-funcionalismo britânico começa a ser questionada
com o desenvolvimento da etnohistória, que nada mais é do que o estudo do passado das
sociedades sem escrita. Considera-se aí todas as dinâmicas históricas subjacentes às
expansões e transformações destas sociedades ao longo do tempo, abordagem esta que,
aplicada aos estudos étnicos, permite desvencilhar o conceito de “etnia” de seu caráter
colonialista fazendo-o migrar para o outro polo da questão, acionado desta vez para
atribuir dignidade às populações oprimidas pelo colonialismo que tanto buscou apagar e
invisibilizar a história e identidade destas populações.
De Heusch não considera, deste modo, que os grupos étnicos sejam invenções
coloniais, pois tal pensamento não leva em consideração o processo histórico através do
qual estes grupos surgiram e se desenvolveram de modo a se identificarem enquanto
“grupo x” ou “grupo y”. A história de cada um desses grupos em suas relações
interculturais pode revelar situações étnicas complexas que revelam toda uma autonomia
que lhes permite uma organização própria não ligada diretamente à dominação colonial,
de modo a estabelecer seu próprios diacríticos. De Heusch busca embasar este argumento
ao demonstrar alguns desenvolvimentos internos de grupos étnicos africanos que, apesar
das peculiaridades próprias de cada caso ocorreram em um terreno marcado pela
interculturalidade que se expressa independentemente do poder colonial.
Assim ocorreu entre o grupo Luba do Congo (Petit 1993 apud. De Heusch 2000),
cujas influências político-culturais incidiram sobre um amplo território geográfico de
mais de 1000km de extensão ocupado por outros grupos culturalmente diversos. Mesmo
que distantes da capital administrativa estes grupos se auto-identificam como
pertencentes à grande nação Luba, não sendo possível definir fronteiras claras entre tais
grupos havendo antes uma continuidade que configura certa “unidade cultural”
constituída por uma estrutura política e familiar comum a toda área de dominação Luba.
Sendo assim, a etnia Luba vem a englobar uma diversidade cultural interna que se articula
em torno de referenciais comuns que fazem emergir um sentimento de pertença coletiva
entre os membros deste grupo.
Seria possível definir uma etnia, deste modo, a partir da incidência de padrões de
vida similares sobre uma mesma “área cultural” (nos termos de Franz Boas)? De Heusch
atenta que um cenário marcado por espaços sociais contíguos exige uma concepção de
“área cultural” mais abrangente que a de Boas, evocando assim a noção de “espaços
sociais” de Georges Condominas, que considera o campo de interação no qual ocorrem
relações sociais marcadas por processos históricos locais e específicos. Nesse sentido, um
mesmo padrão cultural pode vir a receber diferentes sentidos a depender do contexto em
que ocorre, o que vem a problematizar questões ligadas às polaridades como as de
totalidade/diversidade; isolamento/contato cultural.
Deste modo, De Heusch ressalta um outro ponto da interculturalidade que diz
respeito aos diferentes significados que um mesmo conceito pode receber a depender do
contexto em que está inserido, tendo em vista um cenário de trocas, migrações e
empréstimos culturais entre diferentes grupos que estabelecem contato em uma dada
conjuntura. É o caso do conceito de naam encontrado entre os reinos Mamprusi (Gana) e
Mossi (Burkina Faso), que pode designar no primeiro grupo a autoridade em um poder
centralizado (em suas influências políticas e religiosas) e para o segundo grupo uma
autoridade descentralizada e diluída nas figuras dos “mestres da terra”. O termo naam
recebe, assim, diferentes significados derivados das particularidades históricas em que
determinados grupos se relacionam em um espaço social contínuo; cada configuração
social em particular faz surgir fórmulas socioculturais originais que expressam todo o tipo
de combinações em um continuum entre as polaridades mestres da terra/chefes políticos-
religiosos.
É interessante ressaltar, assim, os diferentes modos que as relações interculturais
podem afetar os grupos aí envolvidos. No caso do grande e extenso grupo étnico Luba,
as forças culturais seguem uma direção centrípeta, que vai da margem em direção ao
centro, com clãs que se reconhecem e se organizam, apesar de diferenças internas, como
pertencentes ao mesmo grupo Luba. Por outro lado, o uso difuso do termo naam segue
uma direção centrífuga, quando as forças culturais excedem os limites de uma dada
sociedade seguindo uma direção que vai do centro às margens. Neste caso um mesmo
termo que à primeira vista poderia ser interpretado homogeneamente enquanto um
“padrão cultural” dominante sobre uma localidade específica entra na dinâmica interna
de cada grupo que lhe atribui sentidos por vezes destoantes, como no caso das diferenças
de poder centralizado/descentralizado referentes ao conceito de naam.
Segundo Weber (1991) as relações interculturais que se estabelecem em um
território específico podem gerar efeitos de atração ou repulsão entre os grupos aí
envolvidos. No primeiro caso o que pode ocorrer é uma incorporação de costumes
exógenos à uma dinâmica cultural interna de um grupo específico que vê as suas tradições
se transformarem; uma possível afinidade entre diferentes costumes que se encontram
mediante o contato intercultural sobressai por sobre as fronteiras que demarcam as
diferenças entre os grupos. Tais fronteiras constituem os contrastes culturais que tornam
cada grupo único em relação aos demais, possuindo características exclusivas - no que
diz respeito aos costumes particulares cultivados, aprofundados e ressaltados de forma
cada vez mais intensa - que geram repulsão nos outros grupos.
Deste modo, todo grupo étnico possui, por um lado, diferenças refletidas
externamente, ou seja, seus diacríticos, e por outro lado internamente possuem traços
culturais comuns e homogêneos compartilhados pelos seus membros que possuem, assim,
um mesmo “sentimento de comunidade”. Os diacríticos podem ser ressaltados com a
aproximação entre grupos cujos costumes sejam visivelmente heterogêneos, enquanto a
aproximação entre grupos de costumes comuns vem a fortalecer os “sentimentos de
comunidade” de cada um destes grupos, que podem no limite se tornar um único grupo.
Mas, podem haver casos em que um grupo incorpora elementos culturais exógenos sem
que se alterem os seus costumes tradicionais internos?
Os efeitos da atração cultural entre diferentes grupos tal como definido por Weber
contemplam somente o fenômeno Luba, que se configura, como visto acima, de maneira
centrípeta. Indo da margem em direção ao centro, os costumes Luba englobam uma
diversidade de clãs que tornam-se, assim, unificados. Por outro lado, um caso de atração
intercultural pode ser observado no uso do conceito naam em diferentes contextos;
contudo a transformação cultural que decorre deste fato incide antes sobre os diferentes
sentidos que o conceito passa a possuir nas dinâmicas internas dos grupos que o adotam
do que sobre estas últimas, o que indica uma limitação nas formulações de Weber a
respeito das questões ligadas à interculturalidade.
Seja como for, Weber ressalta que “quase toda forma comum ou contrária do
hábito ou dos costumes pode motivar a crença subjetiva de que existe, entre os grupos
que se atraem ou se repelem, uma afinidade ou heterogeneidade de origem” (Weber 1991:
269-270). Essa questão da “origem comum” de um grupo é um elemento determinante na
conformação de sua etnicidade; como ressalta De Heusch, os grupos étnicos oprimidos
pelo colonialismo sobrevivem e resistem através das gerações ao afirmarem
constantemente as heranças culturais comuns que os distinguem enquanto coletividade.
O reconhecimento étnico de um grupo se dá a partir do momento em que é possível
identificar, através de sua genealogia cultural, o compartilhamento de uma mesma
ancestralidade. A conformação de seus diacríticos – que se transformam recorrentemente
ao longo das gerações - é influenciada pelas relações interculturais que este grupo
estabelece em um dado contexto, o que não nega a importância da ancestralidade – ou
seja, a “procedência comum” - como ponto fundamental de reconhecimento étnico:
“chamaremos grupos “étnicos” aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanças no
habitus externo ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranças de colonização e
migração, nutrem uma crença subjetiva na procedência comum, de tal modo que esta se torna
importante para a propagação de relações comunitárias, sendo indiferente se existe ou não uma
comunidade de sangue efetiva” (Weber 1991: 270)