Sunteți pe pagina 1din 22

IDEOLOGIA E MEMÓRIA EM FUNCIONAMENTO NO DISCURSO DE EROTILDES: PERSONAGEM DE

INCIDENTE EM ANTARES

Suellen de Fátima Egiert1


Maria Cleci Venturini2

INTRODUÇÃO

O objeto de análise deste trabalho é o discurso de Erotildes, proveniente da obra

Incidente em Antares, um dos romances mais famosos de Erico Verissimo. Esse romance se

constitui de uma gama de personagens e apresenta contrastes fascinantes entre eles, os quais

representam diferentes segmentos da sociedade de Antares, cidade fictícia, onde ocorre o

incidente, narrado na segunda parte do romance, quando sete mortos retornam de seus caixões e

andam livremente pela cidade, falando, reclamando e apavorando a todos. O retorno dos mortos e

o encontro deles com o povo constituem-se como um acontecimento inusitado e fantástico na

cidade.

Trata-se de um ambiente ficcional, onde há uma verossimilhança, em que pese os

elementos do realismo fantástico, a sociedade efetivamente existente e sua divisão em classes

sociais, que sustentam e legitimam o discurso dos personagens, pelos quais o leitor identifica o

contexto político e sócio-histórico do Brasil, notadamente o período da Ditadura Militar, que

impunha silêncio aos brasileiros. Existe, portanto, toda uma história desta cidade fictícia,

permeada por acontecimentos reais da história brasileira, que vai culminar no fatídico incidente do

retorno dos mortos.

Propomos, a partir dessa materialidade ficcional, um estudo do discurso de uma das

personagens do incidente, buscando refletir “[...] sobre a maneira como a linguagem está

materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua” (ORLANDI, 2007, p. 16),

visando, portanto, dar visibilidade ao funcionamento das ideologias no discurso desta

personagem, que na verdade não se constitui como um ser empírico, mas como posição-sujeito

na formação social. Considerando que a “materialidade específica da ideologia é o discurso”,

segundo Orlandi (2007, p. 17), propomos um trabalho configurado na relação língua-discurso-

1
Especialista em Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa, UNICENTRO-PR – su_egiert@hotmail.com.
2
Professora Doutora do Departamento de Letras, UNICENTRO-PR – mariacleciventurini@hotmail.com.
ideologia para pensar de que forma e em que circunstâncias essa personagem/sujeito está

produzindo o seu discurso, está se significando.

Especificamente, procuramos identificar que espaços de memória funcionam no discurso

de Erotildes e observar os mecanismos linguísticos e de legitimação que o constituem. Por meio

da discursividade de Erotildes, pretende-se identificar o funcionamento das ideologias, bem como

os apagamentos, as visibilidades e as contradições que constituem a formação social pela língua

na história.

O estudo em questão apresenta uma nova proposta de análise do discurso a partir do

texto literário, buscando ir além dele, isto é, considerando a exterioridade do discurso nele

contido e os sentidos que nele funcionam, desconsiderando “as questões concernentes aos usos

semânticos e sintáticos colocados em evidência pelo texto” (GADET e HAK, 1997, p. 61) e a antiga

questão “O que o autor quis dizer?”.

Tendo em vista a importância das condições de produção na constituição do sentido de

textos e de discursos, referidos por Orlandi (2007), enfocamos resumidamente, em seguida, a

obra Incidente em Antares, da qual recortamos o discurso de Erotildes, que constitui o corpus de

análise, para posteriormente partirmos para a verificação da fundamentação teórica, que sustenta

nossas análises a partir de sequências discursivas de referência.

CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DA OBRA INCIDENTE EM ANTARES

Escrito por Erico Verissimo durante o Regime de 64 (Ditadura Militar), Incidente em

Antares foi publicado em 1971 com surpreendente receptividade do público e da crítica, tendo

sido considerado de extrema importância para a conjuntura da época devido ao tema que aborda.

Talvez isso se deva à alusão irônica constante no romance sobre a “ignorância cega e alarmante da

censura” (PELLEGRINI, 1996, p. 64) que assolava o território brasileiro na época. Segundo Pellegrini

(idem, 1996, p. 67):

[...] o livro de Verissimo, talvez por descrever uma situação global, como a
da comunidade antarense e suas vicissitudes individuais e político-sociais
coletivas, parece ter vindo de encontro às aspirações do público e da crítica
que, por meio de suas páginas, puderam se ver nos personagens e nas
situações ficcionais como num espelho, que lhe devolvia a imagem
macabra de mortos-vivos insepultos e impotentes em relação à própria
vida e à própria morte.

2
A primeira parte do romance narra a história da hipotética comunidade fronteiriça, desde

o período do Pleistoceno, passando pela longa saga de disputas entre as famílias dos Vacarianos e

Campolargos, até os acontecimentos relacionados ao lançamento da obra Anatomia duma cidade

gaúcha de fronteira, de autoria de um grupo de professores e alunos do Centro de Pesquisas

Sociais, da Universidade do Rio Grande do Sul.

A segunda parte trata especificamente do incidente de 13 de dezembro de 1963, quando

sete mortos, insepultos devido a uma greve geral, da qual até os coveiros participam e que

contemplou a interdição do cemitério local pelos grevistas, levantam-se de seus caixões e

transitam pela cidade, indignados por não terem sido enterrados. Com isso espalham terror e

nojo. Como não ocorrem providências para os enterros, os mortos-vivos visitam seus amigos e

familiares e ainda fazem protesto no coreto da praça central, onde estabelecem um verdadeiro

espetáculo de denúncias em relação “à podridão moral e à corrupção política dos mais eminentes

cidadãos”, de acordo com Pellegrini (ibidem, p. 72), tudo isso diante da população curiosa de

Antares.

Em relação às formações ideológicas, é interessante observar que depois do incidente as

lideranças políticas de Antares propõem uma operação-borracha para apagar da memória dos

sujeitos-cidadãos o terrível incidente. No entanto, a memória não pode ser apagada, apesar de,

pelas visibilidades dadas na formação social, alguns apagamentos ocorrerem, pelos efeitos de

evidência decorrentes do trabalho da ideologia.

O que nos chamou mais atenção, nesse romance, é justamente a posição dos sete mortos

como porta-vozes da liberdade. Ora, neste contexto, os mortos estão livres e os vivos

aprisionados pelas convenções sociais e políticas, pelas máscaras. Como são os mortos que

falam, a operação-borracha torna-se aparentemente mais fácil de ser realizada, já que, pelo

menos em tese, as suas denúncias foram enterradas com eles. Conforme Pellegrini (op. cit., p. 72):

Essa tensão engendra um conflito, no cosmos narrativo, configurado na


reação dos personagens mortos contra a organização social e moral de
Antares. Trata-se, porém, de uma reação relativizada, pois se faz através
dos mortos, que já não se incluem nesse mundo que criticam e sobre o
qual, portanto, não têm nenhuma possibilidade efetiva de modificação.

No romance de Verissimo o real e o imaginário caminham lado a lado, mas somente o

fantástico, com o retorno dos mortos-vivos, rompe com o silêncio dos que desejavam denunciar e

3
contestar. “Temos, então, a história real e a ficção, (ir)real, (im)possível, (im)provável. Dois lados

da mesma moeda” (op. cit., 1996, p. 74). Direcionando estas considerações para o corpus de

análise deste trabalho, vale ressaltar que, como os demais personagens do romance, Erotildes não

é a personagem principal. Aliás, em Incidente em Antares não existem personagens principais, no

entanto, cada um deles representa uma determinada formação discursiva. Temos a matriarca, o

advogado, o jornalista, o bêbado, o político, o juiz, o músico, etc.

Dentre esses tipos sociais, escolhemos a personagem Erotildes, que somente aparece no

romance durante o incidente de 13 de dezembro 1963, apesar de ser uma prostituta antiga da

cidade de Antares, assim como outros que representam as demais formações discursivas da

formação social. Erotildes caracteriza-se como uma das “vítimas da hierarquia social” (op. cit.,

1996, p. 89). Ela reflete as prostitutas que existem no quotidiano real e fala desse lugar, dessa

posição-sujeito. Assim, ressaltamos, na esteira de Pellegrini (op. cit., 1996, p. 79), que neste

romance de Verissimo “história e ficção, mortos e vivos, personagens reais e imaginários não

chegam a ser elementos opostos; são face e o espelho, elementos indissolúveis, complementares

na sua duplicidade”.

Enfocamos, a seguir, os fundamentos da Análise do Discurso e as noções que constituem

os fios estruturantes de nossas análises.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Este trabalho baseia-se nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso (AD) de origem

francesa, desenvolvida por Michel Pêcheux, a partir dos anos 60. Trata-se de uma disciplina de

entremeio, segundo Orlandi (2004, p. 23), “uma disciplina não positiva, ou seja, ela não acumula

conhecimentos meramente, pois discute seus pressupostos continuamente”. É herdeira, segundo

Orlandi (2004, p. 20), dos domínios da Linguística, da Psicanálise e do Marxismo Histórico. No

entanto, não se subordina a nenhuma delas, preocupando-se, ao contrário, em discutir o que elas

deixam de lado. Segundo Orlandi (2004, p. 20), essa disciplina interroga na Linguística a

historicidade que ela deixa de lado, na Teoria Marxista, pergunta pelo simbólico e “se demarca da

Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como

materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele”.

4
O objeto de estudo da Análise do Discurso é, pois, o discurso, vislumbrando-o, conforme

Orlandi (2004, p.15), como “[...] palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do

discurso observa-se o homem falando”, e se centra na língua e em seus efeitos de sentido. Assim,

a língua é um objeto simbólico, “parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da

história”, segundo a mesma autora.

Para o estudo da ideologia no discurso de um sujeito em AD, uma série de

noções/conceitos entrelaçam-se, cruzam-se e se misturam e por isso precisam ser trabalhados.

Iniciamos pela disciplina, a qual, conforme Orlandi (2006, p.14), “[...] fazendo a crítica ao esquema

elementar da comunicação, M. Pêcheux (1997a) vai dizer que o discurso mais do que transmissão

de informação (mensagem) é efeito de sentido entre locutores”. Assim, a noção de sujeito é

central, juntamente com as condições de produção de cada discurso, isto é, as circunstâncias

específicas de enunciação, as condições sócio-históricas, isto é, suas memórias.

No entanto, para trabalhar a ideologia é necessário antes focalizar o sujeito, pois na

perspectiva discursiva ele é fundamental e se constitui como “um lugar determinado na estrutura

social”, de acordo com Pêcheux (1997a, p. 82) e é permeado pela subjetividade, articulada pelo

inconsciente e pela ideologia. Este sujeito é duplamente afetado: pessoalmente e socialmente,

segundo Indurski (2008, p.10-11)

Na constituição de sua psiquê, este sujeito é dotado de inconsciente. E, em


sua constituição social, ele é interpelado pela ideologia. É a partir deste
laço entre inconsciente e ideologia que o sujeito da Análise do Discurso se
constitui. É sob o efeito desta articulação que o sujeito da AD produz seu
discurso. E esta é a natureza da subjetividade convocada por Pêcheux: uma
subjetividade não subjetiva.

O sujeito de que trata a AD é, pois, um sujeito histórico e ideológico, e que, por não ter

consciência disso, tem a ilusão de que é a origem do que diz e que controla o que tem a dizer.

Essas ilusões decorrem dos dois esquecimentos referidos por Pêcheux (1997, p. 173-175) e

retomados por Orlandi em suas várias obras. O esquecimento chamado de nº 2 é da ordem da

enunciação e o esquecimento n° 1 é da ordem do ideológico. Orlandi (2007, p. 35) salienta que “ao

longo do nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas, que indicam que o dizer sempre podia ser

outro”, mas o sujeito tem a ilusão de que isso não acontece. Em relação ao esquecimento nº 1 a

autora destaca que “é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados

pela ideologia”. Esse esquecimento faz com que o sujeito tenha a ilusão de ser a origem do dizer,

5
esquecendo que as palavras só tem sentido, de acordo com a mesma autora, quando “retomamos

sentidos pré-existentes”.

Outro conceito surge a partir da definição de sujeito em AD. Trata-se da noção de forma-

sujeito, que, segundo essa teoria, “é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente

das práticas sociais” (ORLANDI, 2006, p. 18). O sujeito do discurso (ego-imaginário), segundo

Pêcheux (1997, p. 163), “se constitui pelo 'esquecimento' daquilo que o determina” e resulta da

identificação do sujeito com a formação discursiva em que ele se inscreve. A formação discursiva,

segundo Pêcheux (idem, p. 160), é “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a

partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,

determina o que pode e deve ser dito [...]”, e isso significa que o sentido das palavras decorre das

formações discursivas em que são produzidas. Nesse sentido, Orlandi (2002, p. 32) destaca:

O dizer não é propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas


significam pela língua. O que é dito em outro lugar também significa nas
“nossas” palavras. O sujeito, diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem
acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele.
[…] O fato de que há um já-dito que sustenta a possibilidade mesma de
todo dizer, é fundamental para se compreender o funcionamento do
discurso, a sua relação com os sujeitos e com a ideologia.

Assim, verificamos que existem saberes e memórias discursivas que são acionadas no

discurso do sujeito, sem o controle deste. Essa rede de dizeres já-ditos é o interdiscurso, que é

essencial para que uma palavra faça sentido. É a partir dessa historicidade do discurso que o que

o sujeito diz faz sentido para o outro e para ele mesmo.

Ainda segundo Pêcheux (1997a, p. 82), os sujeitos manifestam-se discursivamente a

partir de “lugares determinados na estrutura de uma formação social”, ou seja, de uma posição,

que está representada nos processos discursivos em funcionamento. Essa posição/lugar que o

sujeito ocupa é designada pelas formações imaginárias, ou seja, a imagem que o sujeito e/ou o

seu interlocutor atribui a si e ao outro, “a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do

lugar do outro” (idem, p. 82). Ocorrem, nessa projeção, relações entre a situação e as posições, as

quais, por sua vez, vão interferir nas condições de produção do discurso.

Essas condições de produção do discurso em AD contemplam, segundo Orlandi (2007, p.

30), “os sujeitos e a situação”. O sujeito considerado para as condições de produção em AD é a

posição sujeito discursiva, comentada anteriormente, e a situação é vislumbrada em sentido

6
estrito e em sentido amplo. O sentido estrito compreende as circunstâncias da enunciação, “o aqui

e o agora do dizer, o contexto imediato” (ORLANDI, 2006, p. 15), e o sentido amplo contempla “o

contexto sócio-histórico, ideológico”. Contudo, apesar dessa diferenciação dos sentidos da

situação, “em toda situação da linguagem esses contextos funcionam conjuntamente” (idem,

2006, p. 15).

A instância ideológica, principal foco deste trabalho, existe sob a forma de formações

ideológicas do sujeito, que são perpassadas pelos aparelhos ideológicos de Estado

(atravessamento do modo de produção pela luta de classes) e ao mesmo tempo constituem-se de

ideologias práticas, ou seja, das posições de classe funcionando nas situações concretas (na

Escola, na Família, no Trabalho, etc.), conforme Pêcheux (1997, p. 145-47). Entendemos que os

aparelhos ideológicos de Estado são identificáveis pela forma de governo em que o sujeito está

inscrito e a própria organização social que nele se configura. As formações ideológicas também

determinarão as relações de força e permitirão identificar as ideologias dominantes num processo

discursivo dado. Orlandi (2004, p. 31) redefine a ideologia discursivamente, dizendo:

[...] podemos dizer que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem
ideologia. A ideologia, por sua vez, é a interpretação de sentido em certa
direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em
seus mecanismos imaginários. A ideologia não é, pois, ocultação mas
função da relação necessária entre a linguagem e o mundo. Linguagem e
mundo se refletem, no sentido de refração, do efeito (imaginário)
necessário de um sobre o outro [...] Há uma contradição entre mundo e
linguagem e a ideologia é trabalho dessa contradição.

A formação discursiva “corresponde a um domínio do saber, constituído de enunciados

discursivos, que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente, regulando ‘o

que pode e deve ser dito’” (INDURSKI, 2008). A forma-sujeito, já especificada anteriormente, está

intimamente ligada à formação discursiva e dela também resultam os desdobramentos do sujeito.

A concepção de formação discursiva (FD) é de suma importância para o trabalho que ora

propomos porque, conforme Indurski (2008, p. 11), é através da relação do sujeito com a

formação discursiva que se chega ao funcionamento do sujeito no discurso.

Indurski (idem) afirma, a partir de Pêcheux (1997, p. 161), que “[...] os indivíduos são

‘interpelados’ em sujeitos de seu discurso, pelas formações discursivas que representam ‘na

linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes”. Essa interpelação ocorre

7
pela identificação do sujeito com a FD que o constitui em sujeito. Destacamos, a partir dessas

afirmações, que é por meio do discurso na forma-sujeito, ou seja, da tomada de posição, que a

identificação do sujeito com a formação discursiva se desenvolve.

Essas identificações decorrem dos desdobramentos do sujeito referidos por Pêcheux

(idem, p. 214) a partir de dois termos, quais sejam: o sujeito locutor, responsável pela enunciação

e que responde pelo que é dito no eixo da formulação, que “'toma posição', com total

conhecimento de causa, total responsabilidade, total liberdade, etc.” e o Sujeito Universal, ou

sujeito da ciência relacionado à memória, com o interdiscurso e retorna pelos pré-construídos.

Ainda de acordo com Pêcheux (idem, p. 214), “o sempre-já-aí da interpelação ideológica que

fornece-impõe a 'realidade' e seu 'sentido' sob a forma da universalidade – 'o mundo das coisas' e

articulação ou efeito-transverso [...]”.

Em relação a esses desdobramentos e acerca da constituição do sujeito (forma-sujeito),

Pêcheux refere às modalidades de identificação do sujeito à FD. Inicialmente, o autor refere-se a

duas modalidades, as quais são representadas pelo “bom sujeito” e pelo “mau sujeito”. O primeiro

termo representa o que Indurski (2008, p, 12-13) chama de superposição “entre o sujeito do

discurso e o sujeito universal da formação discursiva”, revelando a plena identificação do sujeito

do discurso com a forma-sujeito da FD. A segunda modalidade, conforme Pêcheux (1997, p. 215),

mostra o funcionamento do mau sujeito:

[...] discurso no qual o sujeito da enunciação “se volta” contra o sujeito


universal por meio da “tomada de posição” que consiste, desta vez, em
separação, (distanciamento, dúvida, questionamento, contestação,
revolta...) com respeito ao que “o sujeito universal” lhe dá a pensar: luta
contra a evidência ideológica, sobre o terreno dessa evidência, evidência
afetada pela negação, revertida a seu próprio terreno.

Indurski (2007, p. 167) salienta que essa segunda modalidade demonstra que o sujeito

não é totalmente assujeitado a uma FD, ao contrário, ele pode inscrever-se em mais de uma FD,

ao mesmo tempo. Nessa segunda modalidade, segundo Indurski (idem), há a contra-identificação,

que ocorre quando o sujeito do discurso, através de uma tomada de posição, contrapõe-se à

forma-sujeito que organiza os saberes da FD com a qual o sujeito do discurso se identifica.

Há ainda, de acordo com Pêcheux, uma terceira modalidade de identificação, em que

ocorre a desidentificação, pela qual o sujeito do discurso recusa os saberes de uma formação

discursiva e sua respectiva forma-sujeito, em um determinado momento e sob determinadas

8
condições de produção, para identificar-se com outra formação discursiva e sua forma-sujeito.

Essa terceira modalidade sinaliza para um rompimento.

O trabalho da interpretação em AD é feito por meio das condições de produção do

discurso, “é caracterizado pela inscrição do sujeito (e de seu dizer) em uma posição ideológica,

configurando uma região particular no interdiscurso, na memória do dizer” (ORLANDI, 2004, p.

100). Assim, a análise que ora propomos pretende mostrar como isso funciona no discurso e que

efeitos de sentidos são produzidos.

ANÁLISE DE SEQUÊNCIAS DISCURSIVAS (SDr)

São dois os momentos do romance recortados em sequências discursivas de referência. A

personagem Erotildes participa e, em ambos, ela já está morta. O primeiro é quando ela visita a

sua amiga, companheira de quarto e de profissão, Rosinha. O outro momento ocorre durante o

protesto dos mortos-vivos no coreto da praça central de Antares. O advogado Cícero Branco, que

é o sujeito porta-voz do grupo, apresenta Erotildes aos antarenses e o sapateiro Barcelona a

designa como “testemunha importante” e anuncia: “Tem a palavra a nossa companheira Erotildes!”

(VERISSIMO, 2006, p. 368).

Transcrevemos e analisamos, em seguida, sequências discursivas de referência (SDr) em

que Erotildes manifesta-se, e levamos sempre em consideração que “o discurso é efeito de

sentidos entre locutores” (ORLANDI, 2007, p. 21).

SDr 1

- Como vais?
- Mais ou menos. E tu?
- Morta.
- Como foi que voltaste?
- Não sei. Mas o doutor Cícero está providenciando pra enterrar a gente. O
grã-
advogado, te lembras? E tu sabes quem está no nosso grupo? Uma grã -
fina, a dona Quitéria Campolargo. Imagina só que chique!
(o negrito é nosso e refere-se ao discurso de Erotildes) (VERISSIMO, 2006,
p. 292)

Erotildes insere-se na Formação Discursiva das Prostitutas e a sua amiga Rosinha

também. A sua posição-sujeito, enquanto marginalizada na sociedade, faz irromper no eixo da

9
formulação outros discursos, que, pelo interdiscurso, correspondem aos pré-construídos e fazem

trabalhar espaços de memória que os atualizam. Quando ela diz que há uma “grã-fina” no grupo

dos mortos e que isso é “chique”, está mobilizando um domínio do saber da sociedade e da

estrutura hierárquica, que a faz sentir-se honrada pelo fato de, mesmo morta, possuir uma dama

em seu grupo, o que não ocorreria se estivesse viva.

Observemos que a prostituta diz “nosso grupo”, ressaltando o efeito de sentido de

identificação, pois a morte os inscreve em uma mesma formação discursiva, apesar de

pertencerem, quando vivos, a classes sociais distintas. A morte de certo modo permite a pertença

a um mesmo grupo, anulando parcialmente a divisão das classes sociais, pois quando os mortos

andam pelas ruas da cidade os personagens pertencentes às esferas menos favorecidas e

prestigiadas da sociedade não assumem a liderança, deixam que Cícero Branco e Dona Quitéria

liderem o grupo.

Na análise da SDr 1, também destacamos o enunciado discursivo “O advogado, te

lembras?” porque mobiliza memórias em relação a Cícero Branco na cidade e também no que se

refere às prostitutas. Dá visibilidade, em primeiro lugar, ao fato de que ele é conhecido em toda a

cidade, é famoso e por isso faz parte do imaginário social de Erotildes e Rosinha. Sinaliza,

também, para o envolvimento dele com uma delas, como cliente. O efeito de sentido, dessa

seqüência, é que as prostitutas, apesar de marginalizadas, conhecem e se relacionam com a

maioria dos antarenses, mesmo os que pertencem a classes sociais dominantes, como é o caso de

Cícero.

O envolvimento das prostitutas com sujeitos dos diversos segmentos da sociedade faz

trabalhar diversos espaços de memória, pois, segundo Orlandi (2006, p. 22), as palavras

significam pelas memórias pelas quais estão impregnadas. As prostitutas, por exemplo,

perpassam a maioria das formações sociais, presentes em diferentes contextos, desde o bíblico,

na figura de Maria Madalena, no episódio em que Jesus impede o seu apedrejamento. Queremos

sinalizar, com isso, que essas figuras são constantes nas sociedades e, embora desprezadas e

desqualificadas, exercem uma função social, muitas vezes apagada e esquecida, mas que

constituem o que Courtine (1999, p. 21) chama de ‘[...] uma repetição que é ao mesmo tempo

ausente e presente na série de formulações: ausente porque ela funciona aí sob o modo do

desconhecimento, e presente em seu efeito, uma repetição da ordem de uma memória lacunar ou

com falhas”.

10
SDr 2

- Como vai o negócio?


- Muito mal. Cada vez pior. Eu sempre digo: o que falta pra Antares é uma
boa guarnição militar.
- Não tens nenhum amiguinho fixe?
- Eu? Nesta cidade? Dou graças quando consigo pescar um homem por
noite. Cobro uma miséria e assim mesmo levo muito beiço. Tu sabes como
é a coisa. Ninguém quer pagar adiantado.
Rosinha baixa a cabeça e conta:
- Ontem de noite uns meninos me agarraram à força em levaram pra um
terreno baldio. Uns cinco ou seis... Primeiro me tiraram toda a roupa, até
me rasgaram um vestido quase novo. Me derrubaram, se puseram em mim,
não houve porcaria que não fizessem comigo. Depois foram embora dando
risadas e não me deram um mísero vintém.
- Conhecidos?
- Alguns acho que conheço de vista. Meninos de boas famílias.
- As vezes são os piores.
- Mas não sei por que fizeram isso, logo comigo! Não precisavam me
agarrar à unha, me maltratar. Se dissessem que estavam sem dinheiro, eu
dava de graça. Mas não. Pareciam uns animais. Em vez de virem um a um,
vinham de dois e até de três. Uns porcos!
(o negrito é nosso e refere-se ao discurso de Erotildes) (idem, 2006, p.
293-294)

Os enunciados discursivos da SDr 2 são interpretados a partir das formações imaginárias

e condições de produção em que são produzidos e também pelos espaços de memória que fazem

funcionar, enquanto memória que atualiza o sentido.

Considerando as condições de produção em sentido estrito (sujeito e circunstância de

enunciação), vemos que a interlocutora de Erotildes é outra prostituta, ou seja, elas identificam-se

em uma mesma FD, o que permite que ela emita os seguintes questionamentos: “Como vai o

negócio?” e “Não tens nenhum amiguinho fixe?”, o que é perfeitamente compreensível para uma

profissional do sexo, que vê a atividade da prostituição como um negócio. Em outras condições de

produção, diante de um interlocutor com outra FD, essa forma de tratar a atividade de prostituição

poderia ser vista de outro modo, mobilizando outros sentidos, que poderiam estar relacionados à

discriminação da atividade dentro da sociedade, ao pecado, à falta de respeito, ou à

promiscuidade, por exemplo.

11
A memória discursiva sobre a Guarnição Militar aciona um entendimento de que sempre

na história os militares sustentaram a profissão das prostitutas. Em algumas batalhas, inclusive, as

prostitutas acompanhavam as tropas durante as missões. Além disso, esta memória também

lembra que os militares recebem bons salários e por isso podem pagar pelo trabalho delas. O

enunciado discursivo retoma esses conceitos presentes no interdiscurso e na memória discursiva

da FD de Prostituta.

A FD das Prostitutas mobiliza a memória relacionada à marginalidade dessas mulheres e

autoriza no discurso de Erotildes e de sua amiga em relação aos “filhos de boa família”, que,

segundo Erotildes, “são os piores”. Os efeitos de sentido, mobilizados nos enunciados em que

Rosinha conta o episódio do abuso que sofreu, são de repetição e continuidade dos maus tratos

imputados às prostitutas como parte da normalidade nas formações sociais. Significa que sempre

foi assim e que não vai mudar. Rosinha e sua interlocutora (Erotildes) se identificam porque estão

inseridas na mesma FD. Há entre elas traços de identificação, o mesmo ocorre em relação à

formação social.

Com a figura abaixo esquematizamos enunciados que constituem as memórias da FD das

prostitutas, as quais legitimam e autorizam o dizer de Erotildes e também a sua atuação na

formação social. Nesse funcionamento, constituem-se como as condições de produção do seu

discurso e da presença dela no grupo composto pelos mortos que retornam para fazer denúncias,

dando visibilidade a memórias apagadas, esquecidas.

Figura 1: Condições de produção no discurso da Formação Discursiva das prostitutas

SDr 3

Erotildes fita na amiga os olhos gelatinosos e diz baixinho:


- Pois eu te digo que estou contente por ter morrido. A gente fica livre pra
sempre de todas essas tristezas e vergonhas.
- Já pensei em morrer. Em tomar veneno. Mas não tive coragem...
- É pecado a gente se suicidar. Vai pro inferno.

12
- Mas o inferno não será aqui mesmo?
De súbito Rosinha desata o choro. Erotildes ergue a mão como para
acariciar a cabeça da amiga, mas hesita em tocá-la.
- Não há de ser nada – murmura. – Não hai bem que sempre dure nem mal
que nunca se acabe, como dizia a minha falecida mãe.
[...]
Encaminha-se para a porta.
- Erotildes? Tu já viste Deus?
A morta se volta:
- Ainda não. Decerto só vou ver Ele quando me enterrarem como cristão.
(o negrito é nosso e refere-se ao discurso de Erotildes) (ibidem, 2006, p.
294-295)

As palavras ditas por Erotildes para consolar a amiga que sofreu abusos e humilhações

também mobilizam espaços de memória do Discurso Moralista. Quando ela diz que está contente

por ter morrido, porque “A gente fica livre pra sempre de todas essas tristezas e vergonhas”

mobiliza sentidos constituídos em outros dizeres, em outros domínios discursivos, que veem as

prostitutas como objetos, como seres que podem ser maltratados ou como pessoas vitimas da

sociedade, da exploração sexual, e a prostituição como uma atividade vergonhosa. As mulheres,

diante de todas essas memórias, que funcionam em torno delas e da atividade que exercem,

entendem que a morte é uma das formas de fugir disso.

O Discurso Religioso, também, é mobilizado no dizer de Erotildes, especialmente quando

ela afirma que suicídio é pecado e que quem se suicida vai para o inferno. Outra manifestação

desse mesmo discurso ocorre no comentário da visão de Deus (só o verá quando for enterrada

como um cristão). Com isso, faz retornar ao eixo da formulação o Discurso Católico sobre a

morte. Apesar de toda uma vida de “pecado”, memórias de dizeres religiosos e de dogmas de fé

que constituem Erotildes irrompem em seu discurso. Nesse sentido, podemos dizer que esse

discurso é perpassado por domínios de saber de conformismo e de esperança, muito comum nas

FDs das classes oprimidas e marginalizadas da sociedade.

O provérbio presente no discurso de Erotildes, quando ela diz que “não há bem que

sempre dure e nem mal que nunca se acabe”, sinaliza ao mesmo tempo para a repetição do senso

comum e de um traço identitário que liga os grupos marginalizados, daqueles que não tem muito

o quê dizer e por isso se utilizam de já-ditos inquestionáveis, trazendo para o discurso efeitos de

verdade e de autoridade. Os sentidos mobilizados neste discurso se relacionam com a ideia de

destino. Trata-se de uma paráfrase, um retorno, ao dizer de sua mãe.

13
SDr 4

Antes de verificarmos o que Erotildes declara em praça pública aos demais antarenses

presentes (centenas de curiosos, vindos de todos os cantos da cidade), ressaltamos que esta

mulher jamais teve a oportunidade de falar em público enquanto viva, e certamente se o fizesse

seria rapidamente censurada, calada pelas autoridades da cidade, pois os dizeres entram em uma

ordem do discurso, o sujeito precisa ser legitimado para poder dizer, segundo Foucault (2004).

A Formação Discursiva de Prostituta e Marginalizada, em que estava inserida enquanto

viva, a colocava numa posição de silenciamento em relação à sociedade e ao poder público. Ela

sabia, pela formação imaginária e pela da forma-sujeito a que se assujeitava, que não podia

manifestar-se em praça pública e denunciar a vida dupla dos integrantes da alta sociedade de

Antares.

Neste sentido, a designação de “testemunha importante” cabe-lhe bem, pois como

marginalizada que sempre foi pela sociedade, esta mulher jamais foi considerada, limitando-se a

“sofrer a história”.

Do fundo do coreto a defunta prostituta caminha até junto de Barcelona.


Vem ajeitando os cabelos, pisando com ar faceiro, alisando a grosseira e
encardida mortalha com as palmas das mãos.
- Os habitantes mais antigos desta cidade – diz Barcelona – devem
lembrar-se do tempo em que Erotildes da Conceição era moça e bonita.
Segundo a crônica policial do molusco Lucas Lesma, hoje em dia ela é
apenas a “decaída Erotildes de Tal”.
- Devo lembrar – intervém Cícero Branco – que os de Tal, família composta
de párias, de marginais, constituem uma das mais antigas estirpes do
Brasil. Suas origens datam do tempo do Descobrimento. Os de Tal são
brasileiros de quinhentos anos. Mas... continue, Barcelona.
- Peço silêncio – diz o sapateiro. – Prestem a maior atenção. Afinem o
ouvido, porque Erotildes tem uma voz fraca. Conte sua história, minha
filha, mas em poucas palavras. Vamos!
- Ora – diz ela –, sou natural do Rincão Verde. Tinha
Tinha quinze anos quando o
meu padrasto se passou comigo. Não houve nada, mas minha mãe, muito
ciumenta, me botou pra fora de casa e então eu vim pra cidade. Como não
sabia ler e não queria ser copeira ou cozinheira nem pedir esmola, caí na
vida. Fui pra cama
cama com o primeiro homem que me prometeu dinheiro...
(o negrito é nosso e refere-se ao discurso de Erotildes) (op. cit., 2006, p.
369)

14
Como podemos observar, trata-se realmente de um depoimento, configurado numa

espécie de julgamento em praça pública. Isso coloca em voga o modo como o dizer foi dito, que

não é indiferente aos sentidos, ao contrário, esse modo de dizer também determina os sentidos

que serão representados. Ou seja, a Formação Discursiva de Erotildes quanto viva é modificada

pela condição de morta-viva. Este acontecimento distancia a sua FD de alguns saberes de sua

forma-sujeito – ocorre uma contra-identificação.

Por estar morta e ser apresentada pelo advogado, figura importante na sociedade de

Antares, Erotildes legitima o seu discurso e isso favorece o distanciamento, a dúvida, o

questionamento, a contestação, a revolta com respeito ao que “o sujeito universal” da FD permite

que seja dito. Ocorre a contra-identificação, mas não o rompimento com o seu domínio do saber.

Ela continua inserida na FD de Prostituta, no entanto essa nova situação a coloca em outra posição

discursiva. Essa nova posição autoriza o discurso que analisaremos a seguir.

Na sequência discursiva, aparece o mecanismo de antecipação. Note-se que Erotildes se

apresenta, conta resumidamente a sua história, destacando principalmente como entrou para a

prostituição e, dessa maneira, justifica à multidão a sua condição. Vemos que o sujeito do

discurso, Erotildes, possivelmente escolheu essa abordagem, mesmo que inconscientemente,

antecipando a forma como os seus interlocutores receberiam o sentido de suas palavras,

considerando os saberes constitutivos da sua FD.

Os efeitos de sentidos produzidos pelas justificativas apresentadas por Erotildes sobre os

interlocutores são de pena e compreensão. Se Erotildes partisse diretamente para as revelações

sobre os seus clientes os efeitos de sentido mobilizados poderiam ser outros. A forma como os

relatos são feitos vai novamente ao encontro da formação imaginária que funciona no discurso de

Erotildes em relação a ela mesma e seus interlocutores, ou seja, o que eu devo dizer ao outro? E o

que eles vão pensar sobre mim? As relações de forças funcionam nesse discurso, pois o lugar de

prostituta do qual Erotildes fala determina, na sociedade hierarquizada em Antares, o significado

de suas palavras, o valor do que ela diz.

Para compreendermos a inscrição do dizer de Erotildes em uma posição ideológica, neste

episódio do romance, precisamos considerar as condições de produção específicas da SDr ora

analisada, as quais serão abordadas tanto em sentido estrito (sujeito e circunstâncias da

enunciação) quanto em sentido amplo (contexto sócio-histórico-ideológico), para

compreendermos como o discurso de Erotildes funciona.

15
Nas circunstâncias de enunciação do discurso de Erotildes, temos que considerar a sua

posição enquanto prostituta e morta-viva. A imagem que os demais antarenses fazem dela em sua

posição e a imagem que ela faz dos demais mortos e dos seus interlocutores vivos (formações

imaginárias). Assim, podemos dizer que a forma como Erotildes direcionou a formulação de seu

discurso, mediante uma introdução do advogado, em forma de depoimento, e o fato dela estar

morta foram determinantes para que os interlocutores ouvissem o que ela tinha a declarar, para

que o seu discurso fosse legitimado.

Questionamos se em outra situação a população de Antares prestaria a atenção no que

essa personagem tinha a dizer, se a considerariam, haja vista ser uma prostituta. É justamente a

sua condição de morta-viva e participante do grupo composto por outros sujeitos-personagens da

sociedade que faz com que o seu discurso seja ouvido e valorizado.

A mobilização da imagem de moça pobre, assediada pelo padrasto quando adolescente e

expulsa de casa aos 15 anos, explicitando quais eram as suas opções para se sustentar naquela

época, rompe com a imagem que uma sociedade como a nossa faz de uma prostituta, nas suas

relações sociais e de poder. Os sentidos mobilizados no discurso de Erotildes referem-se às

condições de produção que explicitamos acima e relacionam-se à memória que acionam e à

formação discursiva do personagem/sujeito.

Os espaços de memória que irrompem nesse discurso são os da mulher que sempre

culpa outra mulher quando é traída pelo marido. No caso de Erotildes, aconteceu isso, a mãe ficou

ao lado do marido, esquecendo a sua posição-mãe. Nesse sentido, a mãe desidentificou-se da sua

FD em relação à posição-sujeito junto à filha.

SDr 5

- E você se lembra quem foi esse homem?


- Naturalmentes.
Naturalmentes.
- Ele está nesta praça? Você o enxerga aqui do coreto?
Erotildes aponta numa direção. Julgando-se indicado, o prof. Libindo
sobressalta-se e protesta, indignado:
- Jamais em toda a minha vida toquei no corpo dessa mulher!
(...)
- Foi aquele ali... o homem
homem da estauta – diz.
Centenas de olhos voltam-se para o busto de bronze que se encontra ao
pé de um dos largos, sobre uma base de granito róseo polido.
- O comendador Leoverildo – exclama alguém – Impossível! Mentira!

16
- Esse mesmo. Me levou pra casa dele. Tudo
Tudo aconteceu na cama do casal.
A esposa do comendador estava na estância com o resto da família. Por
sinal foi numa Sexta-
Sexta-feira Santa. O ano? Deixem ver... 1926?... 1927? Por
aí...
(o negrito é nosso e refere-se ao discurso de Erotildes) (op. cit., 2006, p.

369-370)

A formação imaginária de Erotildes sobre o primeiro homem que lhe ofereceu dinheiro

pela prostituição, a partir das relações sociais, desencadeia um silenciamento em seu discurso.

Quando lhe perguntam quem é esse homem ela hesita em dizer o seu nome, apesar de ter

afirmado que naturalmente lembra-se daquele homem. Provavelmente, o medo de uma

perseguição, que lhe foi imposto quando ainda era viva, silencia o seu discurso. Contudo, como

sabemos, na análise do discurso os silêncios também são passíveis de interpretação, também

produzem sentidos. Trata-se da censura referida por Orlandi (2002a, p. 75), em que o dizer é

proibido, interditado, trata-se do silêncio local: “A relação dito/não-dito pode ser contextualizada

sócio-historicamente, em particular em relação ao que chamamos o “poder-dizer”. Essa citação

explica bem porque Erotildes hesita em dizer o nome do homem que a colocou na prostituição. O

que a impede é a sua inscrição em uma FD, mas como morta, acaba dizendo.

As palavras usadas no discurso de Erotildes, como “naturalmentes” e “estauta”, são

marcas discursivas que, também, mobilizam sentidos relacionados a sua FD, a sua condição

social, ou seja, trazem à tona uma memória de que os marginalizados, como essa personagem,

não falam a língua corretamente, a norma padrão culta. Aqui as formas das palavras significam

para a interpretação do discurso de Erotildes.

Pensemos que mesmo que não se soubesse nada sobre esse sujeito, sobre a sua história

ou sobre as circunstâncias do discurso, apenas analisando a memória que as expressões

“naturalmentes” e “estauta” carregam seria possível dizer que esta personagem/sujeito é de uma

classe social baixa, que provavelmente não tem escolaridade e a partir daí outras interpretações

são possíveis. É nesse espaço existente entre a constituição dos sentidos e a sua formulação que a

ideologia vai sendo destacada.

A formação discursiva de Erotildes, ou seja, sua posição na conjuntura sócio-histórica

dada, determina o que ela pode ou deve dizer ou fazer. Notemos que no seu discurso no coreto da

praça ela oscila entre a sua posição discursiva como viva e como morta, é a contra-identificação

permeando o seu discurso.

17
A posição discursiva como sujeito vivo impede Erotildes de revelar o nome de seu

primeiro cliente/aliciador porque ele era uma pessoa importante da sociedade antarense, uma

figura histórica. Essa revelação poderia trazer consequências desagradáveis para a prostituta,

principalmente numa sociedade com a de Antares, em que muitas coisas são resolvidas pela forma

policial em favor dos mais ricos.

Já na posição discursiva como sujeito morto, Erotildes não deveria temer qualquer

represália em relação às revelações que apresentou, pois enquanto cadáver os poderes da cidade

não poderiam persegui-la ou castigá-la. Os mortos estão livres das conjunturas judiciais.

Inicialmente a personagem hesita em apresentar as revelações e logo em seguida apresenta-as em

detalhes, quando descreve como ocorreu a relação sexual com o comendador Leoverildo.

SDr 6

Barcelona volta-se para Erotildes:


- Me diga uma coisa, menina. Vê alguém mais aqui que andou com você...
quero dizer, gente importante?
- Hã-
Hã-hã. Fui por cinco anos amásia do coronel Vacariano. Ele até montou
casa pra mim. Quando comecei a ficar velha, ele não me quis mais, me
largou e nunca mais me deu um triste vintém.
Tibério Vacariano ergue-se do banco onde está quase deixado e,
espumando na comissura dos lábios, o punho erguido, grita, dirigindo-se à
multidão em torno:
- Não tenho de prestar contas a ninguém de minha vida particular! Não
admito que botem cadeado com chave na minha... no meu... nessa coisa
que hoje em dia chamam de sexo mas que no meu tempo tinha outro
nome. Sou dono de todas as minhas partes!
Rompem gargalhadas nas árvores, mas o resto da multidão se mantém
num silêncio soturno e meio amendrontado.
- Bom – prossegue Erotildes de Tal –, não tive outro remédio senão sair a
pescar homens na rua. Ia com qualquer um. Cheguei a ser mulher de cinco
mil-
mil-réis. Numa noite de agosto apanhei uma chuvarada, comecei a tossir,
fiquei tísica com um febrão danado e uma dor no peito que respondia nas
costas. A Rosinha me contou depois que eu até variei. Vai então me
levaram pro hospital que não me lembro direito o nome.
- O Salvador Mundi – esclarece Cícero. – Ala dos indigentes.
- E ela poderia estar viva – acrescenta Barcelona – se o nosso caridoso
doutor Lázaro tivesse mandado buscar um certo antibiótico que na época
não havia nas farmácias da cidade. Prometeu isso, mas esqueceu. Afinal de
contas, quem é Erotildes de Tal? Que importância pode ter a vida duma
“horizontal”? Se se tratasse dum cliente importante e pagante, a coisa seria
diferente...

18
[...]
- Volte para o seu lugar – diz Cícero Branco a Erotildes, que obedece.
(o negrito é nosso e refere-se ao discurso de Erotildes) (op. cit., 2006, p.
371-372)

Daí em diante é a posição discursiva de morta que prevalecerá, principalmente quando

Erotildes revela que foi amásia do coronel Vacariano. Quanto a esse trecho de seu discurso,

ressaltamos novamente que são as condições de produção que determinam/permitem que ela

faça esse tipo de revelação, pois em outra circunstância, enquanto viva, por exemplo, ela

provavelmente sofreria represálias se dissesse em praça pública que foi amante do coronel

Vacariano, principalmente por ele ser uma figura importante da sociedade antarense, que conta

com o apoio incondicional dos poderes da cidade.

No enunciado discursivo em que Erotildes conta como ela ficou doente e veio a falecer, há

um efeito de sentido que parece responsabilizar o Coronel Vacariano pela morte da prostituta.

Note-se que é porque ele não a quis mais como amante que ela passou a vender-se nas ruas de a

Antares e depois veio a “apanhar a chuvarada” que a deixou doente. Também movimenta uma

memória discursiva em relação aos dizeres de Barcelona, de que os marginalizados, os pobres,

não são respeitados nos hospitais e estabelecimentos de saúde porque não podem pagar por seu

tratamento.

Além disso, os saberes da sociedade são mobilizados nas afirmações de Barcelona para

dizer que a vida de uma prostituta e/ou de um pobre não tem importância. Outro elemento

sinalizador da ideologia da época é o fato de Erotildes não ter sobrenome, nem família. Daí ela ser

chamada Erotildes de Tal, isto é, qualquer uma. No entanto, isso não é próprio das prostitutas,

pois até elas, quando bonitas tem sobrenome. Erotildes tinha sobrenome quando jovem e bonita:

era “da Conceição”, segundo Barcelona, depois é que passou a ser designada como Erotildes de

Tal. Cícero Branco (Verissimo, 2006, p. 369) define os de Tal: “uma família composta de párias,

de marginais, constituem uma das mais antigas estirpes do Brasil. Suas origens datam do tempo

do Descobrimento. Os de Tal são brasileiros de quinhentos anos [...]” A prostituta passou a

designar-se de Tal quando ficou velha e doente. Vemos em funcionamento o domínio da

memória relacionado aos nomes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

19
O objetivo proposto nesse trabalho foi analisar as formações ideológicas do discurso de

Erotildes e o trabalho de memória constituído no processo de formulação e sentido presentes no

eixo da formulação. Nesse processo, interessa também os efeitos de sentido e de memória

decorrentes das condições de produção do texto, principalmente porque se trata de discursos

oriundos de sujeitos-mortos, que retratam o realismo fantástico em funcionamento.

Deve-se destacar, em primeiro lugar, que se trata de uma obra de ficção, a qual está

permeada pela verossimilhança constitutiva do ficcional como realidade, dotando-a de efeitos de

verdade e de autoridade. Possivelmente o autor, Erico Verissimo, dado o contexto sócio-histórico-

político da época, utilizou a volta dos mortos, como estratégia para “poder dizer/falar” acerca das

desigualdades sociais, das relações de poder e dos silenciamentos impostos durante a Ditadura.

Em relação às questões ideológicas, trabalham nesse discurso as evidências de sentido,

dando conta da posição-sujeito ocupada pela prostituta, da desvalorização dela, da importância

da beleza nessa atividade, das humilhações e dificuldades; e também do fato dela, apesar do

contexto em que se insere, conviver com a maioria dos sujeitos-homens da cidade, apesar disso

estar apagado e ser inacreditável para alguns. Essa última evidência de sentido pode ser

verificada, inclusive, pelo fato do advogado, Cícero Branco, que coordena o grupo de mortos e

constitui-se como sujeito porta-voz, relacionar-se com essas mulheres.

Ressaltamos, igualmente, os espaços de memória e discursos que retornam ao eixo da

formulação, irrompendo como memórias que legitimam e atualizam o discurso,, dentre os quais,

destacam-se a religiosidade, os valores morais, as ideologias femininas em relação às prostitutas,

a degradação moral das famílias mais importantes, o imaginário em torno da prostituição (o que

leva uma mulher para a prostituição?), a importância da beleza, o corpo da mulher como objeto,

entre outras.

É importante destacar que o discurso de Erotildes dá visibilidade à visão da atividade de

prostituição pelas próprias prostitutas, pois há, nesse discurso, dois momentos em

funcionamento. No primeiro, ela fala com Rosinha, prostituta e sua amiga. Nesse, a prostituição

aparece como negócio, mas também como sofrimento, principalmente quando os “filhos da elite”

abusam dela e são designados como “porcos”, porque riem, vêm todos juntos e saem sem pagar.

Verificamos que aí constitui-se um imaginário das prostitutas em torno do seu “fazer”, mostrando

que elas, assim como os demais trabalhadores, possuem uma ordem, uma memória do saber, a

partir da qual, constitui-se a identificação e a normalidade.

20
O segundo momento do discurso representa Erotildes falando para o povo da cidade.

Nesse, observa-se em funcionamento as formações imaginárias, quando o sujeito-locutor

antecipa-se ao interlocutor e constitui uma “imagem” do outro e dele mesmo, direcionando o

dizer. Erotildes, por esse funcionamento do imaginário, fala da prostituição e justifica a sua

militância nessa FD, mostrando que não foi uma opção, mas consequência de situações

vivenciadas. Ela só diz o que diz porque está morta, do contrário, o seu dizer não entraria na

ordem do discurso. Ninguém pararia para ouvi-la, seria no mínimo presa. É também nesse

momento que ocorre a contra-identificação no discurso de Erotildes.

Por fim, podemos também dizer que, na verdade, o discurso de Erotildes acaba dando

visibilidade não só às prostitutas, mas também aos pobres, mostrando o tratamento que recebem

em hospitais, à falta de sobrenome, a falta de voz e de lugar na sociedade.

REFERÊNCIAS

INDURSKI, F. e LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina (orgs.) Múltiplos territórios da Análise do


Discurso.
Discurso Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999.

___________Formação
Formação Discursiva: Ela ainda merece que lutemos por ela? In: INDURSKI, F.; FERREIRA,
M. C. L. (Org.). Análise do Discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. São
Carlos: Claraluz, 2007.

___________. Unicidade, desdobramento, fragmentação: a trajetória da noção de sujeito na Análise


do Discurso. In: MITTMANN, S.; GRIGOLETTO, E.; CAZARIN, E. A. (Org.). Práticas discursivas e
identitárias: sujeito e língua. Porto Alegre: Nova Prova, 2008.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: Aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 2


dezembro de 1970.
1970 Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo, Edições Loyola, 2004.

ORLANDI, E. Interpretação: Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.


simbólico Campinas: Pontes,
2004.

___________. Análise de Discurso.


Discurso In: ORLANDI, E; RODRIGUES-LANGAZZI, S. L. (org.). Discurso e
Textualidade. São Paulo: Contexto, 2006.

__________. Análise de discurso: Princípios e Procedimentos.


Procedimentos Campinas: Pontes, 2007.

PELLEGRINI, T. Verissimo: a inesperada subversão.


subversão In: PELLEGRINI, T. Gavetas vazias: ficção e
política nos anos 70. São Carlos: Mercado de Letras, 1996.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.


óbvio Tradução: Enii Pulcinelli
Orlandi (et. al). 3 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.

21
____________ Por uma análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Análise
automática do discurso:
discurso uma introdução á obra de Michel Pêcheux. Tradução: Bethania S. Mariani
(et. al). 3 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997a.

VERISSIMO, E. Incidente em Antares.


Antares São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Recebido em 26 de abril de 2010

Aceito em 24 de maio de 2010

22

S-ar putea să vă placă și