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INCIDENTE EM ANTARES
INTRODUÇÃO
Incidente em Antares, um dos romances mais famosos de Erico Verissimo. Esse romance se
constitui de uma gama de personagens e apresenta contrastes fascinantes entre eles, os quais
incidente, narrado na segunda parte do romance, quando sete mortos retornam de seus caixões e
andam livremente pela cidade, falando, reclamando e apavorando a todos. O retorno dos mortos e
cidade.
sociais, que sustentam e legitimam o discurso dos personagens, pelos quais o leitor identifica o
impunha silêncio aos brasileiros. Existe, portanto, toda uma história desta cidade fictícia,
permeada por acontecimentos reais da história brasileira, que vai culminar no fatídico incidente do
personagens do incidente, buscando refletir “[...] sobre a maneira como a linguagem está
personagem, que na verdade não se constitui como um ser empírico, mas como posição-sujeito
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Especialista em Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa, UNICENTRO-PR – su_egiert@hotmail.com.
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Professora Doutora do Departamento de Letras, UNICENTRO-PR – mariacleciventurini@hotmail.com.
ideologia para pensar de que forma e em que circunstâncias essa personagem/sujeito está
na história.
texto literário, buscando ir além dele, isto é, considerando a exterioridade do discurso nele
contido e os sentidos que nele funcionam, desconsiderando “as questões concernentes aos usos
semânticos e sintáticos colocados em evidência pelo texto” (GADET e HAK, 1997, p. 61) e a antiga
obra Incidente em Antares, da qual recortamos o discurso de Erotildes, que constitui o corpus de
análise, para posteriormente partirmos para a verificação da fundamentação teórica, que sustenta
Antares foi publicado em 1971 com surpreendente receptividade do público e da crítica, tendo
sido considerado de extrema importância para a conjuntura da época devido ao tema que aborda.
Talvez isso se deva à alusão irônica constante no romance sobre a “ignorância cega e alarmante da
censura” (PELLEGRINI, 1996, p. 64) que assolava o território brasileiro na época. Segundo Pellegrini
[...] o livro de Verissimo, talvez por descrever uma situação global, como a
da comunidade antarense e suas vicissitudes individuais e político-sociais
coletivas, parece ter vindo de encontro às aspirações do público e da crítica
que, por meio de suas páginas, puderam se ver nos personagens e nas
situações ficcionais como num espelho, que lhe devolvia a imagem
macabra de mortos-vivos insepultos e impotentes em relação à própria
vida e à própria morte.
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A primeira parte do romance narra a história da hipotética comunidade fronteiriça, desde
o período do Pleistoceno, passando pela longa saga de disputas entre as famílias dos Vacarianos e
sete mortos, insepultos devido a uma greve geral, da qual até os coveiros participam e que
transitam pela cidade, indignados por não terem sido enterrados. Com isso espalham terror e
nojo. Como não ocorrem providências para os enterros, os mortos-vivos visitam seus amigos e
familiares e ainda fazem protesto no coreto da praça central, onde estabelecem um verdadeiro
espetáculo de denúncias em relação “à podridão moral e à corrupção política dos mais eminentes
cidadãos”, de acordo com Pellegrini (ibidem, p. 72), tudo isso diante da população curiosa de
Antares.
lideranças políticas de Antares propõem uma operação-borracha para apagar da memória dos
sujeitos-cidadãos o terrível incidente. No entanto, a memória não pode ser apagada, apesar de,
pelas visibilidades dadas na formação social, alguns apagamentos ocorrerem, pelos efeitos de
O que nos chamou mais atenção, nesse romance, é justamente a posição dos sete mortos
como porta-vozes da liberdade. Ora, neste contexto, os mortos estão livres e os vivos
aprisionados pelas convenções sociais e políticas, pelas máscaras. Como são os mortos que
falam, a operação-borracha torna-se aparentemente mais fácil de ser realizada, já que, pelo
menos em tese, as suas denúncias foram enterradas com eles. Conforme Pellegrini (op. cit., p. 72):
fantástico, com o retorno dos mortos-vivos, rompe com o silêncio dos que desejavam denunciar e
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contestar. “Temos, então, a história real e a ficção, (ir)real, (im)possível, (im)provável. Dois lados
da mesma moeda” (op. cit., 1996, p. 74). Direcionando estas considerações para o corpus de
análise deste trabalho, vale ressaltar que, como os demais personagens do romance, Erotildes não
entanto, cada um deles representa uma determinada formação discursiva. Temos a matriarca, o
Dentre esses tipos sociais, escolhemos a personagem Erotildes, que somente aparece no
romance durante o incidente de 13 de dezembro 1963, apesar de ser uma prostituta antiga da
cidade de Antares, assim como outros que representam as demais formações discursivas da
formação social. Erotildes caracteriza-se como uma das “vítimas da hierarquia social” (op. cit.,
1996, p. 89). Ela reflete as prostitutas que existem no quotidiano real e fala desse lugar, dessa
posição-sujeito. Assim, ressaltamos, na esteira de Pellegrini (op. cit., 1996, p. 79), que neste
romance de Verissimo “história e ficção, mortos e vivos, personagens reais e imaginários não
chegam a ser elementos opostos; são face e o espelho, elementos indissolúveis, complementares
na sua duplicidade”.
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Este trabalho baseia-se nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso (AD) de origem
francesa, desenvolvida por Michel Pêcheux, a partir dos anos 60. Trata-se de uma disciplina de
entremeio, segundo Orlandi (2004, p. 23), “uma disciplina não positiva, ou seja, ela não acumula
entanto, não se subordina a nenhuma delas, preocupando-se, ao contrário, em discutir o que elas
deixam de lado. Segundo Orlandi (2004, p. 20), essa disciplina interroga na Linguística a
historicidade que ela deixa de lado, na Teoria Marxista, pergunta pelo simbólico e “se demarca da
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O objeto de estudo da Análise do Discurso é, pois, o discurso, vislumbrando-o, conforme
Orlandi (2004, p.15), como “[...] palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do
discurso observa-se o homem falando”, e se centra na língua e em seus efeitos de sentido. Assim,
Iniciamos pela disciplina, a qual, conforme Orlandi (2006, p.14), “[...] fazendo a crítica ao esquema
elementar da comunicação, M. Pêcheux (1997a) vai dizer que o discurso mais do que transmissão
perspectiva discursiva ele é fundamental e se constitui como “um lugar determinado na estrutura
social”, de acordo com Pêcheux (1997a, p. 82) e é permeado pela subjetividade, articulada pelo
O sujeito de que trata a AD é, pois, um sujeito histórico e ideológico, e que, por não ter
consciência disso, tem a ilusão de que é a origem do que diz e que controla o que tem a dizer.
Essas ilusões decorrem dos dois esquecimentos referidos por Pêcheux (1997, p. 173-175) e
enunciação e o esquecimento n° 1 é da ordem do ideológico. Orlandi (2007, p. 35) salienta que “ao
longo do nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas, que indicam que o dizer sempre podia ser
outro”, mas o sujeito tem a ilusão de que isso não acontece. Em relação ao esquecimento nº 1 a
autora destaca que “é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados
pela ideologia”. Esse esquecimento faz com que o sujeito tenha a ilusão de ser a origem do dizer,
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esquecendo que as palavras só tem sentido, de acordo com a mesma autora, quando “retomamos
sentidos pré-existentes”.
Outro conceito surge a partir da definição de sujeito em AD. Trata-se da noção de forma-
sujeito, que, segundo essa teoria, “é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente
das práticas sociais” (ORLANDI, 2006, p. 18). O sujeito do discurso (ego-imaginário), segundo
Pêcheux (1997, p. 163), “se constitui pelo 'esquecimento' daquilo que o determina” e resulta da
identificação do sujeito com a formação discursiva em que ele se inscreve. A formação discursiva,
segundo Pêcheux (idem, p. 160), é “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a
partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,
determina o que pode e deve ser dito [...]”, e isso significa que o sentido das palavras decorre das
formações discursivas em que são produzidas. Nesse sentido, Orlandi (2002, p. 32) destaca:
Assim, verificamos que existem saberes e memórias discursivas que são acionadas no
discurso do sujeito, sem o controle deste. Essa rede de dizeres já-ditos é o interdiscurso, que é
essencial para que uma palavra faça sentido. É a partir dessa historicidade do discurso que o que
partir de “lugares determinados na estrutura de uma formação social”, ou seja, de uma posição,
que está representada nos processos discursivos em funcionamento. Essa posição/lugar que o
sujeito ocupa é designada pelas formações imaginárias, ou seja, a imagem que o sujeito e/ou o
seu interlocutor atribui a si e ao outro, “a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do
lugar do outro” (idem, p. 82). Ocorrem, nessa projeção, relações entre a situação e as posições, as
quais, por sua vez, vão interferir nas condições de produção do discurso.
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estrito e em sentido amplo. O sentido estrito compreende as circunstâncias da enunciação, “o aqui
e o agora do dizer, o contexto imediato” (ORLANDI, 2006, p. 15), e o sentido amplo contempla “o
situação, “em toda situação da linguagem esses contextos funcionam conjuntamente” (idem,
2006, p. 15).
A instância ideológica, principal foco deste trabalho, existe sob a forma de formações
ideologias práticas, ou seja, das posições de classe funcionando nas situações concretas (na
Escola, na Família, no Trabalho, etc.), conforme Pêcheux (1997, p. 145-47). Entendemos que os
aparelhos ideológicos de Estado são identificáveis pela forma de governo em que o sujeito está
inscrito e a própria organização social que nele se configura. As formações ideológicas também
[...] podemos dizer que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem
ideologia. A ideologia, por sua vez, é a interpretação de sentido em certa
direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em
seus mecanismos imaginários. A ideologia não é, pois, ocultação mas
função da relação necessária entre a linguagem e o mundo. Linguagem e
mundo se refletem, no sentido de refração, do efeito (imaginário)
necessário de um sobre o outro [...] Há uma contradição entre mundo e
linguagem e a ideologia é trabalho dessa contradição.
que pode e deve ser dito’” (INDURSKI, 2008). A forma-sujeito, já especificada anteriormente, está
A concepção de formação discursiva (FD) é de suma importância para o trabalho que ora
propomos porque, conforme Indurski (2008, p. 11), é através da relação do sujeito com a
Indurski (idem) afirma, a partir de Pêcheux (1997, p. 161), que “[...] os indivíduos são
‘interpelados’ em sujeitos de seu discurso, pelas formações discursivas que representam ‘na
linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes”. Essa interpelação ocorre
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pela identificação do sujeito com a FD que o constitui em sujeito. Destacamos, a partir dessas
afirmações, que é por meio do discurso na forma-sujeito, ou seja, da tomada de posição, que a
(idem, p. 214) a partir de dois termos, quais sejam: o sujeito locutor, responsável pela enunciação
e que responde pelo que é dito no eixo da formulação, que “'toma posição', com total
Ainda de acordo com Pêcheux (idem, p. 214), “o sempre-já-aí da interpelação ideológica que
fornece-impõe a 'realidade' e seu 'sentido' sob a forma da universalidade – 'o mundo das coisas' e
duas modalidades, as quais são representadas pelo “bom sujeito” e pelo “mau sujeito”. O primeiro
termo representa o que Indurski (2008, p, 12-13) chama de superposição “entre o sujeito do
do discurso com a forma-sujeito da FD. A segunda modalidade, conforme Pêcheux (1997, p. 215),
Indurski (2007, p. 167) salienta que essa segunda modalidade demonstra que o sujeito
não é totalmente assujeitado a uma FD, ao contrário, ele pode inscrever-se em mais de uma FD,
que ocorre quando o sujeito do discurso, através de uma tomada de posição, contrapõe-se à
ocorre a desidentificação, pela qual o sujeito do discurso recusa os saberes de uma formação
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condições de produção, para identificar-se com outra formação discursiva e sua forma-sujeito.
discurso, “é caracterizado pela inscrição do sujeito (e de seu dizer) em uma posição ideológica,
100). Assim, a análise que ora propomos pretende mostrar como isso funciona no discurso e que
personagem Erotildes participa e, em ambos, ela já está morta. O primeiro é quando ela visita a
sua amiga, companheira de quarto e de profissão, Rosinha. O outro momento ocorre durante o
protesto dos mortos-vivos no coreto da praça central de Antares. O advogado Cícero Branco, que
designa como “testemunha importante” e anuncia: “Tem a palavra a nossa companheira Erotildes!”
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- Como vais?
- Mais ou menos. E tu?
- Morta.
- Como foi que voltaste?
- Não sei. Mas o doutor Cícero está providenciando pra enterrar a gente. O
grã-
advogado, te lembras? E tu sabes quem está no nosso grupo? Uma grã -
fina, a dona Quitéria Campolargo. Imagina só que chique!
(o negrito é nosso e refere-se ao discurso de Erotildes) (VERISSIMO, 2006,
p. 292)
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formulação outros discursos, que, pelo interdiscurso, correspondem aos pré-construídos e fazem
trabalhar espaços de memória que os atualizam. Quando ela diz que há uma “grã-fina” no grupo
dos mortos e que isso é “chique”, está mobilizando um domínio do saber da sociedade e da
estrutura hierárquica, que a faz sentir-se honrada pelo fato de, mesmo morta, possuir uma dama
pertencerem, quando vivos, a classes sociais distintas. A morte de certo modo permite a pertença
a um mesmo grupo, anulando parcialmente a divisão das classes sociais, pois quando os mortos
prestigiadas da sociedade não assumem a liderança, deixam que Cícero Branco e Dona Quitéria
liderem o grupo.
lembras?” porque mobiliza memórias em relação a Cícero Branco na cidade e também no que se
refere às prostitutas. Dá visibilidade, em primeiro lugar, ao fato de que ele é conhecido em toda a
cidade, é famoso e por isso faz parte do imaginário social de Erotildes e Rosinha. Sinaliza,
também, para o envolvimento dele com uma delas, como cliente. O efeito de sentido, dessa
maioria dos antarenses, mesmo os que pertencem a classes sociais dominantes, como é o caso de
Cícero.
O envolvimento das prostitutas com sujeitos dos diversos segmentos da sociedade faz
trabalhar diversos espaços de memória, pois, segundo Orlandi (2006, p. 22), as palavras
significam pelas memórias pelas quais estão impregnadas. As prostitutas, por exemplo,
perpassam a maioria das formações sociais, presentes em diferentes contextos, desde o bíblico,
na figura de Maria Madalena, no episódio em que Jesus impede o seu apedrejamento. Queremos
sinalizar, com isso, que essas figuras são constantes nas sociedades e, embora desprezadas e
desqualificadas, exercem uma função social, muitas vezes apagada e esquecida, mas que
constituem o que Courtine (1999, p. 21) chama de ‘[...] uma repetição que é ao mesmo tempo
ausente e presente na série de formulações: ausente porque ela funciona aí sob o modo do
desconhecimento, e presente em seu efeito, uma repetição da ordem de uma memória lacunar ou
com falhas”.
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e condições de produção em que são produzidos e também pelos espaços de memória que fazem
enunciação), vemos que a interlocutora de Erotildes é outra prostituta, ou seja, elas identificam-se
em uma mesma FD, o que permite que ela emita os seguintes questionamentos: “Como vai o
negócio?” e “Não tens nenhum amiguinho fixe?”, o que é perfeitamente compreensível para uma
produção, diante de um interlocutor com outra FD, essa forma de tratar a atividade de prostituição
poderia ser vista de outro modo, mobilizando outros sentidos, que poderiam estar relacionados à
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A memória discursiva sobre a Guarnição Militar aciona um entendimento de que sempre
prostitutas acompanhavam as tropas durante as missões. Além disso, esta memória também
lembra que os militares recebem bons salários e por isso podem pagar pelo trabalho delas. O
da FD de Prostituta.
autoriza no discurso de Erotildes e de sua amiga em relação aos “filhos de boa família”, que,
segundo Erotildes, “são os piores”. Os efeitos de sentido, mobilizados nos enunciados em que
Rosinha conta o episódio do abuso que sofreu, são de repetição e continuidade dos maus tratos
imputados às prostitutas como parte da normalidade nas formações sociais. Significa que sempre
foi assim e que não vai mudar. Rosinha e sua interlocutora (Erotildes) se identificam porque estão
inseridas na mesma FD. Há entre elas traços de identificação, o mesmo ocorre em relação à
formação social.
discurso e da presença dela no grupo composto pelos mortos que retornam para fazer denúncias,
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- Mas o inferno não será aqui mesmo?
De súbito Rosinha desata o choro. Erotildes ergue a mão como para
acariciar a cabeça da amiga, mas hesita em tocá-la.
- Não há de ser nada – murmura. – Não hai bem que sempre dure nem mal
que nunca se acabe, como dizia a minha falecida mãe.
[...]
Encaminha-se para a porta.
- Erotildes? Tu já viste Deus?
A morta se volta:
- Ainda não. Decerto só vou ver Ele quando me enterrarem como cristão.
(o negrito é nosso e refere-se ao discurso de Erotildes) (ibidem, 2006, p.
294-295)
As palavras ditas por Erotildes para consolar a amiga que sofreu abusos e humilhações
também mobilizam espaços de memória do Discurso Moralista. Quando ela diz que está contente
por ter morrido, porque “A gente fica livre pra sempre de todas essas tristezas e vergonhas”
mobiliza sentidos constituídos em outros dizeres, em outros domínios discursivos, que veem as
prostitutas como objetos, como seres que podem ser maltratados ou como pessoas vitimas da
diante de todas essas memórias, que funcionam em torno delas e da atividade que exercem,
ela afirma que suicídio é pecado e que quem se suicida vai para o inferno. Outra manifestação
desse mesmo discurso ocorre no comentário da visão de Deus (só o verá quando for enterrada
como um cristão). Com isso, faz retornar ao eixo da formulação o Discurso Católico sobre a
morte. Apesar de toda uma vida de “pecado”, memórias de dizeres religiosos e de dogmas de fé
que constituem Erotildes irrompem em seu discurso. Nesse sentido, podemos dizer que esse
discurso é perpassado por domínios de saber de conformismo e de esperança, muito comum nas
O provérbio presente no discurso de Erotildes, quando ela diz que “não há bem que
sempre dure e nem mal que nunca se acabe”, sinaliza ao mesmo tempo para a repetição do senso
comum e de um traço identitário que liga os grupos marginalizados, daqueles que não tem muito
o quê dizer e por isso se utilizam de já-ditos inquestionáveis, trazendo para o discurso efeitos de
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Antes de verificarmos o que Erotildes declara em praça pública aos demais antarenses
presentes (centenas de curiosos, vindos de todos os cantos da cidade), ressaltamos que esta
mulher jamais teve a oportunidade de falar em público enquanto viva, e certamente se o fizesse
seria rapidamente censurada, calada pelas autoridades da cidade, pois os dizeres entram em uma
ordem do discurso, o sujeito precisa ser legitimado para poder dizer, segundo Foucault (2004).
viva, a colocava numa posição de silenciamento em relação à sociedade e ao poder público. Ela
sabia, pela formação imaginária e pela da forma-sujeito a que se assujeitava, que não podia
manifestar-se em praça pública e denunciar a vida dupla dos integrantes da alta sociedade de
Antares.
marginalizada que sempre foi pela sociedade, esta mulher jamais foi considerada, limitando-se a
“sofrer a história”.
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Como podemos observar, trata-se realmente de um depoimento, configurado numa
espécie de julgamento em praça pública. Isso coloca em voga o modo como o dizer foi dito, que
não é indiferente aos sentidos, ao contrário, esse modo de dizer também determina os sentidos
que serão representados. Ou seja, a Formação Discursiva de Erotildes quanto viva é modificada
pela condição de morta-viva. Este acontecimento distancia a sua FD de alguns saberes de sua
Por estar morta e ser apresentada pelo advogado, figura importante na sociedade de
que seja dito. Ocorre a contra-identificação, mas não o rompimento com o seu domínio do saber.
Ela continua inserida na FD de Prostituta, no entanto essa nova situação a coloca em outra posição
apresenta, conta resumidamente a sua história, destacando principalmente como entrou para a
prostituição e, dessa maneira, justifica à multidão a sua condição. Vemos que o sujeito do
sobre os seus clientes os efeitos de sentido mobilizados poderiam ser outros. A forma como os
relatos são feitos vai novamente ao encontro da formação imaginária que funciona no discurso de
Erotildes em relação a ela mesma e seus interlocutores, ou seja, o que eu devo dizer ao outro? E o
que eles vão pensar sobre mim? As relações de forças funcionam nesse discurso, pois o lugar de
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Nas circunstâncias de enunciação do discurso de Erotildes, temos que considerar a sua
posição enquanto prostituta e morta-viva. A imagem que os demais antarenses fazem dela em sua
posição e a imagem que ela faz dos demais mortos e dos seus interlocutores vivos (formações
imaginárias). Assim, podemos dizer que a forma como Erotildes direcionou a formulação de seu
discurso, mediante uma introdução do advogado, em forma de depoimento, e o fato dela estar
morta foram determinantes para que os interlocutores ouvissem o que ela tinha a declarar, para
essa personagem tinha a dizer, se a considerariam, haja vista ser uma prostituta. É justamente a
sociedade que faz com que o seu discurso seja ouvido e valorizado.
expulsa de casa aos 15 anos, explicitando quais eram as suas opções para se sustentar naquela
época, rompe com a imagem que uma sociedade como a nossa faz de uma prostituta, nas suas
Os espaços de memória que irrompem nesse discurso são os da mulher que sempre
culpa outra mulher quando é traída pelo marido. No caso de Erotildes, aconteceu isso, a mãe ficou
ao lado do marido, esquecendo a sua posição-mãe. Nesse sentido, a mãe desidentificou-se da sua
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- Esse mesmo. Me levou pra casa dele. Tudo
Tudo aconteceu na cama do casal.
A esposa do comendador estava na estância com o resto da família. Por
sinal foi numa Sexta-
Sexta-feira Santa. O ano? Deixem ver... 1926?... 1927? Por
aí...
(o negrito é nosso e refere-se ao discurso de Erotildes) (op. cit., 2006, p.
369-370)
A formação imaginária de Erotildes sobre o primeiro homem que lhe ofereceu dinheiro
pela prostituição, a partir das relações sociais, desencadeia um silenciamento em seu discurso.
Quando lhe perguntam quem é esse homem ela hesita em dizer o seu nome, apesar de ter
perseguição, que lhe foi imposto quando ainda era viva, silencia o seu discurso. Contudo, como
produzem sentidos. Trata-se da censura referida por Orlandi (2002a, p. 75), em que o dizer é
proibido, interditado, trata-se do silêncio local: “A relação dito/não-dito pode ser contextualizada
explica bem porque Erotildes hesita em dizer o nome do homem que a colocou na prostituição. O
que a impede é a sua inscrição em uma FD, mas como morta, acaba dizendo.
marcas discursivas que, também, mobilizam sentidos relacionados a sua FD, a sua condição
social, ou seja, trazem à tona uma memória de que os marginalizados, como essa personagem,
não falam a língua corretamente, a norma padrão culta. Aqui as formas das palavras significam
Pensemos que mesmo que não se soubesse nada sobre esse sujeito, sobre a sua história
“naturalmentes” e “estauta” carregam seria possível dizer que esta personagem/sujeito é de uma
classe social baixa, que provavelmente não tem escolaridade e a partir daí outras interpretações
são possíveis. É nesse espaço existente entre a constituição dos sentidos e a sua formulação que a
dada, determina o que ela pode ou deve dizer ou fazer. Notemos que no seu discurso no coreto da
praça ela oscila entre a sua posição discursiva como viva e como morta, é a contra-identificação
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A posição discursiva como sujeito vivo impede Erotildes de revelar o nome de seu
primeiro cliente/aliciador porque ele era uma pessoa importante da sociedade antarense, uma
figura histórica. Essa revelação poderia trazer consequências desagradáveis para a prostituta,
principalmente numa sociedade com a de Antares, em que muitas coisas são resolvidas pela forma
Já na posição discursiva como sujeito morto, Erotildes não deveria temer qualquer
represália em relação às revelações que apresentou, pois enquanto cadáver os poderes da cidade
não poderiam persegui-la ou castigá-la. Os mortos estão livres das conjunturas judiciais.
detalhes, quando descreve como ocorreu a relação sexual com o comendador Leoverildo.
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[...]
- Volte para o seu lugar – diz Cícero Branco a Erotildes, que obedece.
(o negrito é nosso e refere-se ao discurso de Erotildes) (op. cit., 2006, p.
371-372)
Erotildes revela que foi amásia do coronel Vacariano. Quanto a esse trecho de seu discurso,
ressaltamos novamente que são as condições de produção que determinam/permitem que ela
faça esse tipo de revelação, pois em outra circunstância, enquanto viva, por exemplo, ela
provavelmente sofreria represálias se dissesse em praça pública que foi amante do coronel
Vacariano, principalmente por ele ser uma figura importante da sociedade antarense, que conta
No enunciado discursivo em que Erotildes conta como ela ficou doente e veio a falecer, há
um efeito de sentido que parece responsabilizar o Coronel Vacariano pela morte da prostituta.
Note-se que é porque ele não a quis mais como amante que ela passou a vender-se nas ruas de a
Antares e depois veio a “apanhar a chuvarada” que a deixou doente. Também movimenta uma
não são respeitados nos hospitais e estabelecimentos de saúde porque não podem pagar por seu
tratamento.
Além disso, os saberes da sociedade são mobilizados nas afirmações de Barcelona para
dizer que a vida de uma prostituta e/ou de um pobre não tem importância. Outro elemento
sinalizador da ideologia da época é o fato de Erotildes não ter sobrenome, nem família. Daí ela ser
chamada Erotildes de Tal, isto é, qualquer uma. No entanto, isso não é próprio das prostitutas,
pois até elas, quando bonitas tem sobrenome. Erotildes tinha sobrenome quando jovem e bonita:
era “da Conceição”, segundo Barcelona, depois é que passou a ser designada como Erotildes de
Tal. Cícero Branco (Verissimo, 2006, p. 369) define os de Tal: “uma família composta de párias,
de marginais, constituem uma das mais antigas estirpes do Brasil. Suas origens datam do tempo
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O objetivo proposto nesse trabalho foi analisar as formações ideológicas do discurso de
Deve-se destacar, em primeiro lugar, que se trata de uma obra de ficção, a qual está
político da época, utilizou a volta dos mortos, como estratégia para “poder dizer/falar” acerca das
desigualdades sociais, das relações de poder e dos silenciamentos impostos durante a Ditadura.
da beleza nessa atividade, das humilhações e dificuldades; e também do fato dela, apesar do
contexto em que se insere, conviver com a maioria dos sujeitos-homens da cidade, apesar disso
estar apagado e ser inacreditável para alguns. Essa última evidência de sentido pode ser
verificada, inclusive, pelo fato do advogado, Cícero Branco, que coordena o grupo de mortos e
formulação, irrompendo como memórias que legitimam e atualizam o discurso,, dentre os quais,
a degradação moral das famílias mais importantes, o imaginário em torno da prostituição (o que
leva uma mulher para a prostituição?), a importância da beleza, o corpo da mulher como objeto,
entre outras.
prostituição pelas próprias prostitutas, pois há, nesse discurso, dois momentos em
funcionamento. No primeiro, ela fala com Rosinha, prostituta e sua amiga. Nesse, a prostituição
aparece como negócio, mas também como sofrimento, principalmente quando os “filhos da elite”
abusam dela e são designados como “porcos”, porque riem, vêm todos juntos e saem sem pagar.
Verificamos que aí constitui-se um imaginário das prostitutas em torno do seu “fazer”, mostrando
que elas, assim como os demais trabalhadores, possuem uma ordem, uma memória do saber, a
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O segundo momento do discurso representa Erotildes falando para o povo da cidade.
dizer. Erotildes, por esse funcionamento do imaginário, fala da prostituição e justifica a sua
militância nessa FD, mostrando que não foi uma opção, mas consequência de situações
vivenciadas. Ela só diz o que diz porque está morta, do contrário, o seu dizer não entraria na
ordem do discurso. Ninguém pararia para ouvi-la, seria no mínimo presa. É também nesse
Por fim, podemos também dizer que, na verdade, o discurso de Erotildes acaba dando
visibilidade não só às prostitutas, mas também aos pobres, mostrando o tratamento que recebem
REFERÊNCIAS
___________Formação
Formação Discursiva: Ela ainda merece que lutemos por ela? In: INDURSKI, F.; FERREIRA,
M. C. L. (Org.). Análise do Discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. São
Carlos: Claraluz, 2007.
21
____________ Por uma análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Análise
automática do discurso:
discurso uma introdução á obra de Michel Pêcheux. Tradução: Bethania S. Mariani
(et. al). 3 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997a.
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