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VII INTERNATIONAL

MEETING ON SKEPTICISM

A CRÍTICA CÉTICA DE SCHULZE AO PROJETO DE UMA FILOSOFIA


CRÍTICA
Oscar Cavalcanti de Albuquerque Bisneto

O pensamento cético de Schulze tem seu ponto de partida naquilo que se


configura, segundo ele mesmo, como o resultado dogmático das investigações da
filosofia crítica, independentemente do fato de ser a figura de Kant ou a de Reinhold 1
(1757-1823) o verdadeiro alvo de suas investidas céticas2. Mesmo porque o
Aenesidemus, sua obra mais conhecida, publicada anonimamente em 1792, em última
instância, nada mais é do que uma irrestrita declaração de guerra contra a filosofia
crítica em geral, isto é, quer seja na forma que lhe empresta a Crítica da Razão Pura
kantiana, quer seja na forma da Filosofia Elementar (Elementarphilosophie)
reinholdiana (BEISER, 266). Além disso, como observou Beiser, o autor do
Aenesidemus demonstra a todo momento estar consciente do fato de que é precisamente

1
TRATA-SE DO MAIS PROEMINENTE DIFUNDIDOR DA FILSOFIA CRÍTICA. COM SUA
FILOSOFIA ELEMENTAR, DEFENDEU UMA APRESENTAÇÃO MAIS SISTEMÁTICA DA
FILOSOFIA CRÍTICA, QUE DEVERIA SE BASEAR NUM ÚNICO PRINCÍPIO AUTOEVIDENTE, O
PRINCÍPIO DA CONSCIÊNCIA. MENCIONAR QUE SE TRATA DO PRINCIPAL
POPULARIZADOR E DEFENSOR DA FILOSOFIA CRÍTICA, TENTANDO ENCONTRAR PARA A
MESMA UM PRINCÍPIO INCONDICIONADO PARA TODO O EDIFÍCIO DA CRÍTICA,
TORNANDO-A INCÓLUME AOS ATAQUES DOS CRÍTICOS. O SURGIMENTO DO
AENESIDEMUS DE SCHULZE REPRESENTARIA, SEGUNDO BEISER, O MOTIVO PELO QUAL
A SUA FILOSOFIA, A FILOSOFIA ELEMENTAR, TERIA CAÍDO NO OSTRACISMO
FILOSÓFICO... Para mais, cf. BONACCINI, 52.
2
Ou seja, não ignoramos que suas criticas eram também lançadas contra a filosofia elementar
(Elementarphilosophie) de Reinhold. Porém, frisa Beiser, “embora o Aenesidemus seja principalmente
uma polêmica contra Reinhold, ele ainda contém uma extensa bateria de objeções contra Kant. Estas são
de fato as objeções mais importantes do arsenal de Schulze. Enquanto a polêmica contra Reinhold lida
apenas com uma única formulação da filosofia crítica, os argumentos contra Kant dizem respeito à
empresa da filosofia crítica como um todo” (BEISER,280). Falaremos sobre suas críticas a Reinhold
quando abordarmos a dívida de Schulze em relação ao princípio da consciência reinholdiano.

1
a figura de Kant a que está por trás da Filosofia Elementar de Reinhold3, e que o
filósofo de Königsberg é o pai genuíno da filosofia crítica (BEISER,280). Melhor,
então, observar a questão pelo ângulo de que o seu alvo é a filosofia crítica em toda a
sua extensão4.

A ser assim, embora o título de Aenesidemus escolhido por Schulze para dar nome
ao seu primeiro trabalho denuncie por si só sua filiação ao antigo cético Enesidemo 5
(séc. I a. C.), o motivo do profundo impacto filosófico ocasionado pelo seu surgimento
está diretamente ligado à sua filiação a outro cético, David Hume6 (1711-1776). Como
bem lembra Cassirer, a problematização do conhecimento imposta pelo pensamento
humeano7, largamente conhecida como o problema de Hume8, encontra-se presente nas
principais censuras endereçadas por Schulze aos alicerces sobre os quais se assenta toda
a filosofia crítica kantiana. Por isso, grosso modo, o núcleo duro de sua crítica a Kant
consiste em afirmar que este não havia superado o ceticismo de Hume9.

Noutras palavras, a filosofia transcendental kantiana, de acordo com o cético


prussiano, não apenas não teria refutado o ceticismo humeano, como ainda, ao não
seguir fielmente os princípios que adotou como ponto de partida, acabara convertendo
sua doutrina num novo tipo de dogmatismo. Pois a Crítica da Razão Pura

3
Para mais sobre a posição de Schulze sobre a interpretação de Reinhold da filosofia crítica, cf. Bárbara
Assis Viana da Silva, com seu trabalho Aenesidemus: as objeções de Schulze à leitura de Reinhold da
Filosofia Crítica, 2013 (DISSERTAÇÃO DE MESTRADO-USP).
4
Não obstante isso, quando tratarmos das contradições, apontadas por Schulze, que envolvem o conceito
de coisa em si, com sua respectiva visão representacionista do mundo, o alvo será claramente Kant.
Quando, porém, abordarmos a teoria dos fatos da consciência schulzeana, o alvo será o Princípio da
Consciência de Reinhold.
5
Cético este a quem é atribuída, pela grande maioria dos estudiosos, a autoria, dentre outras obras, dos
dez primeiros tropos céticos da suspensão do juízo, cuja autoria Hegel havia atribuído equivocadamente a
Pirro de Élis. Para mais, cf BROCHARD, 257. a autoriaque é tido como autor, dentre outras obras, é tido,
pela grande maioria dos estudiosos, como o autor, como reforça Victor Brochard, dos dez primeiros
tropos céticos da suspensão do juízo, cuja autoria Hegel havia atribuído equivocadamente a Pirro de Élis
(BROCHARD, 257).
6
Embora Vieweg afirme que “as raízes fundamentais da sképsis ‘artificiosa’ de Schulze não descansam
na tradição cética de Hume” (VIEWEG, 12), é difícil, pelas razões que veremos logo adiante, não
entender seu ceticismo senão como uma continuação, ao menos em parte, do empirismo cético humeano,
sobretudo quando pensamos nas censuras schulzeanas ao uso transcendente da categoria de causalidade,
pela filosofia crítica, obviamente inspiradas na tese humeana de que o nosso conceito de causa se funda
apenas no hábito. No entanto, sua tese da validade absoluta do conhecimento imediato, através dos fatos
da consciência, remonta de fato às teses do filósofo escocês Thomas Reid....
7
Segundo Cassirer, com a vantagem de ele agora estar munido, através do ceticismo de Schulze, da
instrumentalização categorial própria da filosofia crítica (CASSIRER,... ). Ademais, vale sublinhar que
parte da reputação adquirida por Schulze foi devido à sua raríssima capacidade de entendimento amplo e
profundo da Crítica da Razão Pura.
8
De fato, se é verdade que quando pensamos no problema de Hume pensamos imediatamente no
problema da indução, não é menos verdadeiro, contudo, que a polêmica em torno da objetividade do
princípio de causalidade está aí de todo incluída...
9
LOCAL NO ENESIDEMO ONDE ELE AFIRMA ISSO...

2
“busca de fato refutar o ceticismo humeano
pressupondo simplesmente como certas e já
comprovadas as mesmas proposições cuja
credibilidade fora o alvo de todas as dúvidas
céticas de Hume” (SCHULZE, AENESIDEMUS,
100).

Evidentemente, apresentadas dessa forma, tais censuras devem soar um tanto


obscuras. Por isso, uma breve reconstrução conceitual da problemática filosófica na
qual esteve envolvida a doutrina kantiana parece aqui importante acima de tudo para
que as objeções schulzeanas possam ganhar um pouco mais em termos de clareza.

De modo geral, mesmo numa breve leitura da primeira Crítica kantiana, salta aos
olhos o fato de que as categorias do entendimento, desde que aplicadas aos fenômenos
dados numa intuição sensível, possuem decerto validade objetiva, funcionando assim
como legítimas condições de possibilidade de toda e qualquer experiência de objetos. A
par disso, o que destes últimos conhecemos nada mais é do que aquilo que lhes
emprestamos, de modo que as coisas em si mesmas, isto é, o objeto em si mesmo na
total ausência de nossas faculdades cognitivas – sensibilidade/intuições e
entendimento/conceitos –, ser-nos-iam totalmente incognoscíveis. Da coisa em si, não
obstante sua absoluta incognoscibilidade para nós, seres finitos, conhecemos apenas,
como se depreende do que foi dito acima, o seu fenômeno, enquanto produto da ação
causal da coisa em si sobre a nossa sensibilidade10.

10
Há uma passagem na Crítica que ilustra bem a contradição apontada por Schulze, na medida em que
afirma que o “entendimento limita a sensibilidade e, ao adverti-la de que não deva aplicar-se às coisas em
si, mas apenas aos fenômenos, pensa um objeto em si, mas apenas como objeto transcendental que é a
causa do fenômeno, mas que não pode ser pensado nem como grandeza, nem como realidade, nem como
substância, etc., (porque estes conceitos exigem sempre formas sensíveis em que determinam um objeto).
É por isso que ignoramos totalmente se está dentro ou fora de nós e se seria anulado conjuntamente com a
sensibilidade ou se, abolida esta, permaneceria. É-nos lícito, se quisermos, dar a esse objeto o nome de
númeno, porque a sua representação não é sensível. Porém, como não podemos aplicar-lhe nenhum dos
nossos conceitos do entendimento, esta representação mantém-se para nós vazia e serve apenas para
delimitar as fronteiras do nosso conhecimento sensível e deixar livre um espaço que não podemos
preencher, nem pela experiência sensível, nem pelo entendimento puro (KANT, B344-345). Para mais, cf.
BONACCINI,. Há, como é sabido, toda uma discussão em torno do fato de que Schulze teria confundido,
ainda que inadvertidamente, o conceito de condições de possibilidade com o de causalidade, o que
deitaria a perder o valor total de suas objeções a Kant... Por outro lado, cabe também salientar o caráter
ambíguo presente nas assertivas kantianas, o que daria margem a ambas interpretações.... Em todo caso,
como estamos apenas apresentando, bastante resumidamente, o modo como Schulze se insere no cenário
filosófico do idealismo alemão, não é nossa intenção aqui aprofundar tal querela, já que fugiria muito do
nosso escopo.

3
Eis, de forma concisa, em que consiste o arcabouço teórico traduzido na
revolução copernicana levada a cabo por Kant no conhecimento filosófico, colocando
fim desse modo àquilo que parecia ser um eterno conflito entre os sistemas metafísicos
dogmáticos. Porque estes, na medida em que se aventuravam no conhecimento dos
objetos, bem como dos princípios objetivos que os regem, sem um prévio exame das
suas reais condições de possibilidade, acabavam por fazer um uso transcendente das
categorias, isto é, aplicavam as categorias do entendimento às coisas em si mesmas, e
não aos fenômenos, como prescrevera Kant. Nesse sentido, se os metafísicos sempre
confundiam uma condição necessária do pensamento com uma condição necessária das
coisas em si mesmas11, as antinomias nas quais todos eles se enredavam não eram senão
uma consequência inevitável de tal confusão. Portanto, ao demonstrar que os fenômenos
não se confundem com meras aparências, como havia acreditado toda a tradição
metafísica, e que, ao contrário, possuem decerto validade objetiva, contanto que se
conformem a nossos conceitos e intuições, Kant teria oferecido a um só tempo a mais
acabada refutação do ceticismo e um fundamento sólido para a filosofia encetar, enfim,
o caminho seguro da ciência.

Acontece, porém, que a própria filosofia transcendental traz na sua base um


equívoco que em nada difere daquele que fora cometido, segundo Schulze, por toda a
tradição metafísica. No caso específico da filosofia kantiana, o mencionado equívoco
reside no uso ilegítimo de uma categoria em particular, a de causalidade, como ponto de
partida para o processo de construção de um conhecimento a priori dos objetos. O que
deitou a perder a coerência interna do edifício crítico, e isso de tal maneira que Hume

“exigiria do autor da Crítica que ele explicasse


com que direito ele aplicou o princípio de
causalidade para fundar a filosofia crítica, e que ele
prestasse contas da maneira pela qual esta filosofia
chegou imediatamente, no começo da elaboração
do seu sistema, a considerar um evento, a saber, a
existência em nós de proposições sintéticas
necessárias, como efeito de uma causa diferente
desse evento” (SCHULZE, AENESIDEMUS,
102).

11
Como veremos logo adiante, o núcleo duro da censura schulzeana à filosofia crítica reside justamente
aqui, isto é, em confundir o que se apresenta como uma condição necessária do pensamento como sendo
como uma condição necessária da realidade, como algo inerente à objetividade. Ora, aquilo que deve ser
pensado como necessário não participa necessariamente da existência, de modo que esse salto ontológico
da ordem do pensar para a ordem do ser é totalmente injustificado.

4
Ao que tudo indica, a tarefa – preconizada pelo idealismo transcendental – de
fazer o discurso filosófico encetar de modo definitivo o caminho seguro e constante da
ciência, por dois motivos básicos, parece não ter sido bem executada. Em primeiro
lugar, porque ela não realizou uma verdadeira dedução do princípio de causalidade,
incorrendo assim numa clara petição de princípio. Em segundo, porque fez um uso
transcendente desse mesmo princípio, excedendo assim os limites da experiência ao
aplicar a categoria de causalidade à coisa em si, ou seja, porque transgrediu o limite
para ela imposto pela própria crítica da razão.

No que tange exclusivamente ao primeiro motivo, cumpre ressaltar que se o


princípio de causalidade constitui a premissa de que parte a Crítica da Razão Pura,
então esta, antes de qualquer outra coisa, deveria fornecer uma verdadeira dedução
desse princípio, uma prova convincente de sua validade objetiva, de modo a mostrar que
tal princípio não se funda no hábito, como diria Hume. Ora, aquilo cuja validade está
sendo colocada em questão deve, antes de ser pressuposto como válido na base de
sustentação do sistema, ser objeto de explicação, de justificação. Acontece, porém, que
a mencionada dedução – justificação – não ocorre, segundo Schulze, em lugar algum da
Crítica.

Como sublinha Cassirer, a causalidade, enquanto função sintética a priori, deriva


espontaneamente da identidade do espírito12 (Gemüt), quando na verdade já está
implícita, dogmaticamente, no conceito de espírito mesmo. Com efeito, para se chegar a
essa categoria não temos outro caminho senão o de nos perguntar pela origem dos
juízos sintéticos a priori, isto é, aplicar à totalidade deles o conceito de causa, o qual,
por outra parte, apenas pode ser concebido como parte desta totalidade
(CASSIRER,87). Exatamente por isso, de acordo com o próprio Schulze,

12
Embora o termo Gemüt seja geralmente traduzido entre nós por ‘mente’ ou ‘ânimo’, entendemos que o
termo ‘espírito’, utilizado pelo tradutor do livro de Cassirer para a língua espanhola, ao menos nesse
contexto não comprometeria o sentido proposto pela crítica de Schulze à filosofia crítica. Para mais sobre
o papel que o conceito Gemüt desempenha no interior do criticismo, bem como sobre qual seria sua
melhor tradução para o português, cf. Valerio Rohden, 2009: A função transcendental
do Gemüt na Crítica da razão pura revista Kritérion..

5
“antes que seja possível perguntar com razão quais
são as fontes e as causas do nosso conhecimento, é
necessário assegurar que tudo o que é real tem um
fundamento e uma causa, e que nosso
conhecimento, em particular, não é senão, quanto a
todas as suas determinações, o efeito de causas
especiais” (SCHULZE, AENESIDEMUS, 137).

Ou seja, a dedução tenta provar que as categorias – entre as quais está incluída a
de causalidade – aplicam-se à experiência unicamente sob a condição de o sujeito
transcendental ser o legislador da natureza. Mas assumir que este sujeito é o legislador
da natureza, que cria as leis às quais a natureza deve se conformar, já pressupõe a
aplicação da categoria de causalidade, portanto uma relação causal (BEISER, 281).
Numa palavra, a dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento – ou
categorias em geral – levada a cabo por Kant não refuta o ceticismo de Hume, mas
apenas pressupõe como de todo válido o que este último precisamente colocara em
questão, a saber: o princípio de causalidade.

Já o segundo motivo, que também inviabilizaria epistemologicamente a doutrina


kantiana, reside no fato de o filósofo de Königsberg infringir os limites cognitivos
impostos pela própria crítica. De acordo com Bonaccini, a tese da afecção dos objetos
externos é problemática, sobretudo na medida em que estes nos são absolutamente
incognoscíveis. A Crítica da Razão Pura “nega o conhecimento das coisas em si
mesmas, mas aceita a realidade de objetos exteriores a nós que afetam os sentidos e
provocam representações” (BONACCINI, 84); o que soa absurdo, porque, ainda
segundo Bonaccini, “se a dedução transcendental das categorias é correta, é falso que
todo conhecimento comece com a ação de objetos sobre o espírito” (BONACCINI, 85).
Aliás, estes são, no que diz respeito ao sujeito, completamente incognoscíveis, de tal
modo que deles não posso afirmar se existem e, caso existissem, tampouco posso
afirmar o que quer seja sobre suas propriedades constituintes. Numa palavra, frisa
Schulze, daquilo que me é absolutamente incognoscível nada posso afirmar ou negar a
seu respeito (SCHULZE,...)

O que significa que Kant não só não refuta o ceticismo humeano, posto que não
oferece uma prova legítima da objetividade do princípio de causalidade, como ainda
aplica este mesmo princípio à coisa em si; haja vista que, segundo o autor da Crítica da
Razão Pura, ela – i.é, a coisa em si – agiria causalmente sobre a nossa sensibilidade. De

6
modo que a coisa em si, enquanto elemento causal, poria em atividade o nosso aparelho
cognitivo transcendental – composto basicamente pela díade sensibilidade e
entendimento –, dando origem assim às nossas representações. Mas como, observa
Schulze,

“o conceito de causa não se relaciona com nada


nos objetos de que se diz agirem sobre nosso
espírito, e não pode ser tirado de nenhuma
experiência, seja ela externa ou interna, não se
pode atribuir–lhe nenhuma realidade fora das
representações humanas”. [...] “A conexão
necessária, que deriva da essência da causa e do
efeito, não tem portanto absolutamente nenhuma
existência no seio dos objetos reais que nós
consideramos como causas e efeitos. Ela não existe
senão na sucessão das representações de certos
objetos que percebemos em muitas ocasiões
imediatamente uns após os outros, e ela é o
produto tão somente das determinações recebidas
pouco a pouco por nossa imaginação ao longo da
sucessão de suas atividades” (SCHULZE,
AENESIDEMUS,.87-88..).

Em termos práticos, deduz-se que, se a pretensa legitimidade do princípio de


causalidade se funda apenas no hábito, e se o mundo noumenal nos é totalmente
incognoscível, então com qual direito Kant aplica esse mesmo princípio às coisas em si
mesmas, já que, segundo ele mesmo, elas agiriam causalmente sobre a nossa
sensibilidade? Schulze está apenas denunciando aqui o fato de que a filosofia crítica
teria assumido, inadvertidamente, como substrato do sistema algo que, como reza a
própria cartilha da Crítica, não poderia ser tomado como substrato de absolutamente
nada, a coisa em si. Nota-se agora que, aliado à categoria de causalidade, a pedra
angular da filosofia crítica, em cujo seio repousa todo o sistema transcendental, não é
senão o conceito de coisa em si13. E o problema basilar consiste então na afirmação de
Kant de que a coisa em si, ainda que totalmente incognoscível, age causalmente sobre a
nossa sensibilidade.

A ser assim, e seguindo aqui fielmente o raciocínio do autor do Aenesidemus,


aquele que atribui às coisas em si mesmas ‘poderes’ ou ‘faculdades’, ou ainda enxerga

13
Sobre isto, cf. Bonaccini, Kant e o problema da coisa em si no idealismo alemão...

7
que elas estariam unidas pela relação de causalidade, desloca para o mundo noumenal
propriedades que só poderíamos encontrar nas nossas representações dos objetos, as
quais, por seu turno, em nada coincidem com estes quando considerados em si
mesmos14 (SCULZE, AENESIDEMUS,...). Nesse caso, parece oportuno parafrasear
aquela emblemática afirmação de Jacobi15, segundo a qual sem a pressuposição da coisa
em si, não se pode entrar no sistema kantiano, mas com essa pressuposição, não se pode
permanecer nele (JACOBI,...).

Diante disso, Schulze conclui seu vasto repertório de censuras à filosofia crítica
defendendo a tese de que uma filosofia que procura o conjunto total das condições de
possibilidade do conhecimento empírico, ao mesmo tempo em que parte do princípio de
que não pode transpor minimamente os limites da experiência, cai presa fácil e
necessariamente de um círculo vicioso, dado que o conjunto total das condições de
possibilidade da experiência sob hipótese alguma pode se configurar como objeto de
investigação de uma tal filosofia, simplesmente porque tais condições, se de fato
existem, não ocorrem, nem podem ocorrer, em nenhuma experiência sensível16. Donde,
portanto, a sua asseveração de que a posição filosófica mais coerente com o criticismo é
justamente aquela que encerra o ceticismo. Ou melhor, como lembra Beiser, o resultado
último e inevitável da filosofia crítica não é senão o próprio ceticismo de Schulze17.

14
Como veremos um pouco adiante, num livro publicado em 1801, intitulado Crítica da Filosofia
Teórica, Schulze parte da mesma tese para inviabilizar as pretensões cognitivas da filosofia especulativa,
a saber, que as nossas representações dos objetos nada nos comunicam com certeza sobre os objetos
mesmos.
15
PEQUENA NOTA EXPLICATIVA SITUANDO O PENSAMENTO DE JACOBI EM RELAÇÃO À
FILOSOFIA DE KANT, NO CONTEXTO DO IDEALISMO ALEMÃO. CF. BONACCINI, KANT E O
PROBLEMA DA COISA EM SI NO IDEALISMO TRANSCENDENTAL...
16
A investigação transcendental busca os ‘fundamentos’ da experiência, e os fundamentos da experiência
não são precisamente os objetos dela (SCHULZE,...).
17
Ou seja, tudo deve estar submetido à crítica da razão, inclusive a própria crítica da razão. Assistimos
assim, com o ceticismo schulzeano, ao surgimento da primeira censura generalizada à teoria do
conhecimento. Esta disciplina, caso deseje permanecer fiel aos princípios de que parte, deve se converter
em ceticismo. Segundo Beiser, “o Aenesidemus de Schulze introduz uma forma nova e radical de
ceticismo na filosofia moderna, quando afirma que, até o presente momento, nada se demonstrou com
certeza sobre as origens e condições do conhecimento. O que agora cai sob a dúvida cética não é apenas a
pretensão da metafísica de conhecer as coisas em si mesmas, mas também a pretensão da epistemologia”
[i.é, filosofia crítica] “de conhecer as origens e condições do conhecimento. (...) Schulze sustenta que o
resultado último e inevitável do criticismo kantiano é seu próprio ceticismo. Se há, na verdade, uma tese
central única do Aenesidemus, então é a de que o criticismo deve se tornar ceticismo” (BEISER, 268-
270). Como dissemos anteriormente, Schulze é acusado por alguns autores de ter confundido o conceito
de causalidade, que é um conceito de primeira ordem, com o princípio de condições de possibilidade, que
seria de segunda ordem. Independentemente disso, já que estaríamos adentrando uma querela que nos
conduziria para bem longe do nosso escopo principal, há uma passagem schulzeana na qual ele sustenta
que a filosofia é um discurso sobre o ser, isto é, sobre a realidade, de modo que, caso não se encontre na

8
Crítica da Razão Pura teses que digam respeito à realidade, ao ser, então ela não teria relevância alguma
para o discurso filosófico. ENCONTRAR A PASSAGEM E MELHORAR A ARGUMENTAÇÃO...

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