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Da instituição total à construção da realidade social: considerações metodológicas

de pesquisa aplicada no espaço intramuros daPRISÃO

Marisol de Paula Reis

Professora Universidade Federal do Acre/AC;


Doutoranda em Sociologia na Universidade de Brasília;
Pesquisadora, especialista em violência urbana com enfoque em Segurança Pública e
Sistema Penitenciário;
Professora Assistente I da Universidade Federal do Acre.

Publicado em: 11 Dez de 2009.

I – Introdução

Pensando-se em termos de limites e potencialidades de pesquisa aplicada no interior de uma


instituição total[1], cumpre realçar que este estudo não será capaz de trazer respostas
conclusivas e fechadas para questões de natureza mais propositiva. Em outro sentido, o que
se está propondo é, com base na minha experiência acadêmica e profissional com o sistema
penitenciário, trazer à tona a exposição de descobertas, de erros e de acertos, ansiedades e
angústias sentidas no decorrer da pesquisa, geralmente ausentes nos relatos contidos na
literatura acadêmica, que tratam dos processos de investigação, de métodos e de
procedimentos técnicos, adotados com certo distanciamento em relação ao objeto, como se
a proximidade com o sujeito da pesquisa pudessem pôr em risco o rigor da abordagem
científica.

O que se pretende com essa discussão? Seguindo o raciocínio de Adorno (1991) a idéia
central é de que a objetividade do conhecimento científico dispõe tanto da observância de
regras e prescrições técnicas – não se pode ignorá-las - como também, de um diálogo
permanente com o contingente, com o inesperado, com os fatos inusitados e imponderados.
Essa linha de raciocínio busca dar visibilidade ao que, muitas vezes, parece desprovido de
sentido e de importância no trabalho de campo.

A despeito disso, há aqui a tentativa de reproblematizar a relação entre sujeito e objeto nas
Ciências Sociais, colocando em foco um sujeito em ação e, também, a ação do sujeito. A
idéia é contribuir para, ao colocar questões pertinentes para a análise, aumentar e
aprofundar o mais possível o conhecimento sobre o sistema penitencário e sobre suas
dinâmicas e práticas no interior das sociedades.

Até recentemente, de modo mais ou menos hegemônico, e ainda hoje, com certa freqüência,
as análises que privilegiavam o foco no sujeito eram alvo de muitas criticas, como se elas
fossem necessariamente associadas a uma abordagem idealista que se negaria a por em
foco os jogos de dominação e os interesses dos poderes dominantes. Sob essa
argumentação reducionista, acabava-se por promover a "morte do sujeito", soterrado por
um determinismo absoluto dos processos sociais, de tal forma que "o individuo torna-se (...)
um ser falado, um ser agido ele nunca e um ser falante nem o autor de seus atos"(Enríquez,
1994: 24).

Em outro sentido, estudos recentes têm tentado situara temática social em outros termos.
Mudanças ocorridas na sociedade contemporânea alteraram profundamente as formas de
percepção do social. A complexidade e heterogeneidade passam a estar cada vez mais
presentes na fala dos cientistas sociais, trazendo a tona novas questões, colocando próximo
o pesquisador do sujeito observado, que promulgam juntos a produção do conhecimento.
Essa vertente de discussão se distancia de uma percepção unificada do social na qual a
maioria dos indivíduos partilha conteúdos e valores básicos de uma consciência comum, e
registra a existência de novas sociabilidades, no plural, condizentes com as novas
possibilidades de estruturação do social. Conforme observou Porto,

"tal realidade sugere que as sociedades contemporâneas não comportam um processo de


socialização mas produzem e são produzidas por distintas formas de sociabilidades que, no
mais das vezes, se circunscrevem e abrangem grupos, camadas, etnias, raças, não tendo
vigência no conjunto da sociedade"(Porto, 1999: 5).

A necessidade de dar voz ao sujeito, aqueles que vivem sua experiência concreta de vida,
recoloca sob novas bases o lugar de onde falam os pesquisadores, a sua posição como
interlocutores entre o real e a explicação cientifica, as relações intersubjetivas que vão se
formando no decorrer da pesquisa etc.A recuperação de velhos temas sob novas
abordagens, ao lado de problemáticas emergentes ampliou o campo de visibilidade do
social[2].

Os estudos das representações sociais estão cada vez mais incorporados nas análises e na
interpretação dos fenômenos sociais, nas formas de ser, pensar e agir dos agentes sociais.
As representações estão presentes não apenas nas ações e nas falas daqueles que estão na
condição de objetos de estudo, mas também na (re)construção que o pesquisador faz sobre
os temas aos quais convergem as suas reflexões criticas, apontando para uma cadeia de
causas entrecruzadas, situando-se no cruzamento do social, cultural e⁄ou simbólico. A
despeito disso,

"A validade de se entender o conhecimento do senso comum não passa pelo crivo de uma
verdade universal, mas sim, pelos significados e implicações que esse conhecimento produz
sobre o sujeito em sua vida cotidiana. E através dele que se forma um conjunto de
referencias comuns, que possibilita a comunicação entre os sujeitos, na medida em que lhes
permite compreender e significar a realidade e, desta forma, torna-se a base comum por
meio da qual os sujeitos se posicionam e agem diante dos fenômenos que se lhes
apresentam no cotidiano. Uma vez que as representações sociais orientam condutas, e
fundamental ao sociólogo conhece-las para conhecer a natureza da sociedade" (Reis, 2001:
66).

A própria preferência, pelo pesquisador, de se adotar este ou aquele quadro teórico, as


categorias de análise, o arcabouço conceitual etc, se dá no interior de um conjunto de
representações que ele tem sobre a sociedade, a cultura e os valores sociais. Sobre esse
aspecto, torna-se elucidativa a observação de Dal Rosso quando afirma que há uma relação
forte, causal entre a visão teórica de que um pesquisador esta imbuído e a forma de
operacionalização do seu trabalho:

"O pesquisador possui um determinado esquema mental para interpretação dos fenômenos
sociais, que ao nível menos reflexo se confunde com as categorias de interpretação
correntemente usadas. Outras vezes, o pesquisador traz seus próprios pressupostos ao nível
da reflexão consciente" (Dal Rosso, 2006: 18).

Mas, diante dessa constatação, partindo da idéia de que o investigador participa da realidade
social que investiga, prossegue Dal Rosso “pode ele constituir objetividade na pesquisa? Qual
é o grau de controle que o pesquisador pode exercer sobre os próprios pressupostos
teóricos? Deve ele deixar-se influenciar, “contaminar” pelos elementos internos à sua
ideologia e preferências?” (idem, ibid: pp. 19-20).

A resposta, segundo o autor, está na maneira de enfrentar o problema operacionalmente,


visto que, os pressupostos lógico-teóricos estão enraizados na sua seleção, bem como, na
própria significação das conclusões tiradas. Para Dal Rosso, é preciso captar reflexamente as
implicações de uma posição ou outra, para que o investigador tenha condições de situar-se e
medir as conseqüências de seus passos.

Pois bem. A discussão ora proposta está inserida nesse mesmo campo de reflexões. No
entanto, é importante enfatizar que, quando se está em presença de questões tão complexas
para as análises sociológicas como é o caso da criminalidade e de seus desdobramentos, é
difícil para o pesquisador não ser, em certos momentos, surpreendido por sentimentos
confusos, contraditórios e, algumas vezes, pré-concebidos.

Por um lado, não dá para não ficar perplexo diante da perversidade com que certos crimes
são cometidos. Noticiados amplamente pela mídia escrita e televisiva, a barbaridade e
requintes de crueldades na prática criminosa incitam na população um sentimento coletivo
de ódio e de vingança que reflete diretamente nas opiniões sobre o tratamento penal a ser
dado à população carcerária: regime de segurança máxima, aperfeiçoamento dos métodos
policiais, endurecimento da lei, enrijecimento na aplicação das penas, adoção da pena de
morte etc.

Por outro lado, faz-se importante que o pesquisador tenha controlesobre suas convicções
pessoais para não ser contaminado por tais opiniões ou reações públicas que, a despeito de
ser manifestação de sentimentos socialmente arraigados, trazem também embutidos forte
conteúdo valorativo que estão para além do mundo do crime e da criminalidade e que dizem
respeito às dificuldades que têm a sociedade em lidar com suas diferenças e desigualdades,
tais como, o estigma da prisão, o preconceito contra o pobre, o negro e os que moram em
favelas, o desconhecimento dos direitos e das leis, etc.

II - Especificidades da pesquisa em ambientes prisionais

Feitos esses esclarecimentos, convém comentar, ainda que em linhas gerais, sobre a minha
experiência acadêmica e profissional com questões relativas ao sistema penitenciário
nacional. Nesse particular, vale ressaltar, que os primeiros contatos mantidos com o
ambiente penitenciário ocorreram durante a realização do mestrado, a partir de pesquisa
desenvolvida sobre a reincidência penitenciária no Distrito Federal, entre os anos de 1999 e
2000.

Após defender a dissertação em 2001, fui trabalhar no Departamento Penitenciário Nacional


do Ministério da Justiça, onde estive até março de 2006. Não é demais afirmar, que este
período de intensa atividade profissional e conhecimento in locu da realidade penitenciária
em diversos estados, foi o mais fecundo e provocador das reflexões sociológicas que
atualmente norteiam as minhas indagações, sobretudo, apoiadas na necessidade de se
compreender uma realidade que, dada a sua complexidade, esconde múltiplas facetas as
quais se pretende aprofundar.

Durante o período em que estive no Ministério da Justiça, fui coordenadora do Programa


Nacional de Capacitação de Pessoal do Sistema Penitenciário, Gerente do projeto de
melhorias na gestão do sistema penitenciário do estado de São Paulo e, também, uma das
responsáveis por inspeções eventuais em estabelecimentos penitenciários estaduais. Tais
responsabilidades colocaram-me frente afrente com a realidade penitenciária, e
possibilitaram-me, além do conhecimento da estrutura física intramuros, o diálogo
transversal com os Agentes de Segurança Penitenciária, a Direção, os Secretários de Justiça
e de Administração Penitenciária, assim como, o contato com os presos.

Em razão disso, é possível afirmar que, o olhar que hoje se lança à questão penitenciária, é o
olhar de um pesquisador que busca na equação do binômio: vida acadêmica-profissional-
acadêmica aliar um arcabouço de conhecimento que entrelaça a prática empírica e a teoria
ou, em outras palavras, o equilíbrio entre a realidade concreta produzida por atores sociais,
por um lado, e as ferramentas teórico-metodológicas imprescindíveis à investigação dessa
mesma realidade, por outro lado.

Nesse aspecto particular, toma-se novamente de empréstimo a crítica de Dal Rosso (2006)
quando menciona o desdém generalizado nas escolas de formação pelas questões empíricas,
convertendo a sociologia a uma ciência lógica ou sintética. Nessa linha de raciocínio, teorizar
converte-se num raciocínio construído completamente alheio à realidade social e sujeito a
fantasia e imaginações. Dal Rosso quer, dessa forma, chamar a atenção, à impossibilidade
de se separar argumentos empíricos de seus pressupostos teóricos básicos. Ao contrário
dessa lógica que submete a teoria num pensar abstrato absoluto, argumenta o autor

“os pressupostos lógico-teóricos estão enraizados na seleção do problema na maneira de


enfrentá-lo operacionalmente e, diria mais, na própria significação das conclusões tiradas.
Nesse sentido, é importante captar reflexamente, através da sociologia do conhecimento, as
implicações de uma posição ou outra. Desta maneira, terá o investigador condições de
situar-se e medir conseqüências de seus passos”. (Dal Rosso, 2006:20).
Vale acrescentar ainda que, para investigar a realidade e compreender a sua especifidade, é
necessário que o pesquisador tenha uma certa dose de feeling, ou seja, uma “intuição
investigativa” que lhe permitacapturar não apenas o que é dito pelos informantes, ou o que
está formalmente prescrito pela instituição, mas também, as interdições da fala, o silêncio
ou a recusa a certas respostas, o olhar ou o riso irônico a certas indagações, a mudança no
tom de voz etc.

Para Becker (1997), o estudo de praticantes de crimes e delitos requer cautela, visto que, a
situação particular em que se encontram os sujeitos-informantes pode levar à omissão de
algumas informações com receio de que as suas opiniões se tornem publicamente
conhecidas: “Devido ao fato de que a atividade em questão é geralmente estigmatizada e
tem grande probabilidade de ser passível de punição legal, aqueles que se dedicam a ela não
tornam o fato publicamente conhecido ou facilmente acessível” (Becker, 1997: 153).

No mesmo sentido, também adverte Becker que, ao pesquisador é preciso ter uma certa
cautela em relação às informações que lhes são fornecidas pelos sujeitos-desviantes, visto
que, no espaço intramuros, eles não estão operando em condições normais, reagindo a
controles totalmente diferentes, e pensar que, ao contar as suas histórias de vida, podem
usar o pesquisador para influenciar as autoridades penitenciárias e judiciais:

“Claramente, os estudos que usam populações encarceradas devem reconhecer as limitações


que este estratagema introduz. Este estratagema não deve ser usado simplesmente por ser
conveniente, mas apenas quando alguma razão mais poderosa de de possibilidade
estruturalmente restrita de acesso o exija”(idem, ibid: 157).

Sob esse aspecto, vale acrescentar que, em um ambiente austero, autoritário e segregado
tal como o da prisão, a ausência de laços de confiabilidade torna-se uma de suas
características fundamentais. Conforme destacou Adorno (1991, 1p.) “desconfianças,
astúcias e idiossincrasias fazem parte do universo prisional carcerário”. Nesse aspecto
particular, compreende-se que tal característica não pode ser desconsiderada pelo
pesquisador, pois, se assim o proceder, estará incorrendo ao erro de deformar a realidade e,
ao mesmo tempo, não captar a real magnitude do problema.

Para penetrar no universo prisional e dar-lhe visibilidade, é necessário ao pesquisador


compreendê-lo criticamente, isto é, descrevê-lo, analisá-lo e descobrir as suas “facetas”, a
sua razão de ser, o seu modo de funcionamento, as relações que o mantém. Requer, ainda,
conforme observou Adorno (1991), o estabelecimento de uma relação de alteridade, de
modo que o pesquisador conheça o ponto de vista do outro e o julga, com fundamento em
instrumental teórico-metodológico, respeitando-o em suas particularidades culturais e
históricas sem, contudo, deixar-se capturar pela lógica do outro.

Esse exercício demanda a combinação da paixão com o senso de responsabilidade pela


pesquisa, por um lado, pois “nada é digno do homem como homem a menos que ele possa
empenhar-se na sua realização com dedicação apaixonada”(Weber, 1971: 161), e, também,
uma certa eqüidistância do pesquisador em relação ao sujeito da pesquisa. Faz-se necessário
que o pesquisador esteja atento para não ser seduzido pelas artimanhas da fala do
entrevistado quando colocado na situação de escuta, visto que, não poucas vezes, a
entrevista torna-se um momento com forte dose de apelo emocional.

A despeito disso e, durante estudo realizado com a população presa no Distrito Federal, em
2001, não poucas vezes me flagrava sensibilizada com a situação de vida do sujeito
encarcerado. Não se pode deixar de mencionar que, por detrás de uma existência socializada
no mundo do crime, em que se combinavam crimes violentos e diferentes modalidades,
descortinava-se um mundo eivado em profundas desigualdades sociais, violência física e/ou
simbólica, pobreza etc. Em razão disso, torna-se difícil manter-se indiferente quando se
defronta com os mais distintos e chocantes relatos de vidas dilaceradas, submetidas à
violência e às atrocidades cotidianas.

No entanto, depois de muito trabalho executado junto à população penitenciária em diversos


estados, durante o período em que estive no Departamento Penitenciário Nacional, busquei
aperfeiçoar as minhas habilidades enquanto pesquisadora, sobretudo, no contato com os
sujeitos da pesquisa[3]. Isso quer dizer que buscava manter a imparcialidade quando
conversava com os presos, com os guardas, com os funcionários administrativos, com os
técnicos e com os dirigentes: não me apresentar como “igual ao preso”, nem tampouco
como pertencente à equipe dirigente da instituição, sobretudo, pelo risco de atrair para a(s)
pesquisa(s) dificuldades diversas, tais como, boicotes, armadilhas e suspeição sobre as
minhas intenções. Para garantir a qualidade do trabalho, era necessário estabelecer uma
relação de mútua confiança, em sentido transversal, com o internado e a equipe dirigente:
diretores, técnicos, agentes de segurança e a população presa.

Outro ponto a ser considerado diz respeito à construção do objeto da pesquisa. Quando
realizei os meus primeiros contatos com a população carcerária, buscava seguir, com grande
rigor acadêmico, as prescrições contidas nos livros de metodologia científica que ensina-nos
a recortar de modo preciso a realidade a ser investigada. Via de regra, recomenda-se definir
com clareza o sujeito no tempo e no espaço, os objetivos a serem perseguidos com a
investigação, o campo empírico sobre o qual a observação será feita, as técnicas aplicadas à
coleta de dados que devem estar em acordo com os propósitos a serem alcançados, a
análise e interpretação conectadas com o eixo teórico-metodológico e conceitual, o plano de
trabalho etc (Becker, 1991).

Sem desconhecer a real importância que tais regras assumem no processo investigativo,
vale ainda acrescentar, que elas não devem ser consideradas como um fim em si mesmas.
Isso quer dizer que o ato de investigar é um ato de descoberta contínua, dinâmica e
interativa. A investigação põe à luz situações desconhecidas, caminhos ainda não trilhados,
novas indagações. Dessa forma, no campo das ciências sociais, o recorte teórico e empírico
serve como eixo-guia ao trabalho do pesquisador, pois que, o objeto vai sendo construído ao
longo do processo de investigação. O objeto é aqui entendido como o campo das relações
sociais no qual, ao final, revela toda a sua complexidade e especificidade, não percebidas no
início da pesquisa, e possibilitando-nos reinterrogar sobre as nossas certezas e descobertas.

É nesse movimento que a pesquisa percorre entre a definição do tema e a construção do


objeto. Nesse processo, reconhece-se a importância de se recolher o maior número possível
de informações que pareçam necessárias, bem como, os fatos imponderados, não relatados,
nem verbalizados pela equipe dirigente e pelo internado. Parafraseando Dal Rosso (2006:
38) para se fazer a passagem do teórico para o empírico, é necessário ao
pesquisador “deduzir conclusões (...) e implicações testáveis empiricamente” que “consiste
na forma de buscar se a prática atesta como verdadeiro ou falso o conhecimento contido na
hipótese”formulada. Prática aqui entendida não tanto como “critério de verdade mas
especialmente como fazer a ligação entre o conhecimento e a realidade”.

Nesse sentido, vale estar atento aos fragmentos das falas da equipe dirigente, aos diálogos
informais mantidos entre presos e ASP’s (agente de segurança penitenciária), à relação da
direção com a equipe técnica, com os ASP’s e com os presos, à dinâmica interna da prisão no
que diz respeito à segurança, controle e disciplina, à postura corporal e expressões faciais de
ASP’s e presos diante de certas indagações, às visitas dos familiares, às visitas íntimas, à
reguralidade do banho de sol dos presos, ao acesso dos presos às oficinas de trabalho, aos
relatos de violência física e emocional, às condições físicas das celas de castigo e/ou
tamporão, às condições de trabalho dos ASP’s, ao atendimento médico-psicológico para
presos e ASP’s, às queixas dos funcionários, etc. Nada disso deve ser desprezado em uma
pesquisa sobre a instituição total, posto que, tais informações estão imbricadas de
significados.

III - Relato de pesquisa

Por oportuno, farei aqui um breve relato da minha pesquisa sobre a reincidência
penitenciária no Distrito Federal. Quando a realizei, entre 1999 e 2000, deparei-me com
limitaçãoes que a priori não eram por mim percebidas. O estudo foi centrado em torno das
representações sociais sobre o fenômeno, a partir da ótica dos sujeitos executores do crime:
presos reincidentes na prática de crimes de furtos e roubos.

A pesquisa ocupou-se de conhecer o perfil social do reincidente penitenciário a fim de


investigar a sua identidade social. Não poucas vezes, a literatura existente, especificamente
aquelas inspiradas nas teses lombrosianas[4], tende a caracterizar o sujeito reincidente
como aquele que possui atributos sociais natos, distintos dos atributos característicos da
população carcerária como um todo. Há, ainda, a idéia corrente de que a reincidência na
prática de crimes de furtos e roubos seja motivada pela situação de pobreza em que se
encontra boa parte da população carcerária.

Em linhas gerais, pode-se dizer que a identidade social reincidente não se constitui
unicamente como uma percepção inconformada com as condições materiais de existência,
que estabelecem uma relação causal entre pobreza e criminalidade, mas que se trata de
uma identidade construída no interior de uma complexa trama nal qual incidem
representações sobre a prisão, a polícia, a justiça, a periculosidade e outras. A identidade
social é, assim construída no contato permanente com o circuito polícia-justiça-prisão e
todas as implicações, objetivas e subjetivas, material e simbólica, que
este vínculo social acarreta. Pretendeu-se, portanto, avaliar essa hipótese.

Nesse sentido, a etapa inicial foi fazer levantamento acurado da bibliografia e leituras
pertinentes ao tema. Verificou-se neste momento a primeira dificuldade no que diz respeito à
construção do objeto: a existência de parco material bibliográfico sobre o assunto.

Pôde-se, assim, constatar, que no campo das pesquisas sociológicas, pouca atenção era
dispensada ao assunto. Naquela época, encontrei algumas menções sobre a reincidência
penitenciária em estudos de Paixão (1983; 1991; 1995), Ramalho (1983), Coelho (1997),
Leal (1995), e um estudo mais pormenorizado de Adorno (1986, 1989, 1991) sobre a
reincidência penitenciária no estado de São Paulo. A maior parte da bibliografia situava-se no
campo do direito, nos preceitos normativos que caracterizam o fenômeno. Tal dificuldade
revelou-se, no entanto, útil aos propósitos da pesquisa: seguindo a literatura jurídica,
definiu-se a reincidência em termos jurídico-legal, diferenciando a reincidência genérica da
reincidência penitenciária[5] e identificando os sujeitos da pesquisa a partir da definição
contida na Lei.

Outra tarefa importante foi o contato com as autoridades responsáveis pela segurança
pública e sistema penitenciário no Distrito Federal, afim de adentrar as unidades
penitenciárias e realizar as entrevistas. Havia dois caminhos a seguir: o primeiro seria por
meio de autorização do Juiz da Vara de Execução Criminal do Distrito Federal (VEC). Esta
opção era, em princípio, a mais demorada, pois, ficava-se aguardando a resposta do Juiz e
isso poderia se estender por semanas. O segundo caminho seria por intermédio do Diretor
das unidades penitenciárias, o que simplificaria os trâmites burocráticos e possibilitaria o
acesso em menor período de tempo. Escolheu-se, no entanto, a primeira alternativa. O
acesso foi viabilizado por meio de carta remetida ao Juiz da VEC por orientador do
Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília explicando os objetivos da pesquisa.
Para a nossa surpresa, a resposta positiva veio rápida e sem nenhuma ressalva.

Logo em seguida, a carta de autorização foi encaminhada às diretorias das unidades


penitenciárias do Complexo Penitenciário de Brasília – Centro de Internamento e
Reintegração, Núcleo de Custódia e Penitenciáia Feminina (Colméia). No dia marcado,
comparecia-se na unidade e sempre era submetida à rotina de inspeção, de vigilância e de
revista - corporal e pertences pessoais, feita manual e/ou eletronicamente. Apresentava-se
também a carteira de identidade que ficava retida na portaria até o retorno do visitante.

Adentrar uma instituição prisional não é, via de regra, uma experiência agradável. O
ambiente sugere rudeza, violência, desumanidade. Nas prisões do Brasil, de modo geral,
prevalecem os aglomerados humanos amontoados em celas insalubres e pequenas, pouco
iluminadas, paredes cinzentas e mofadas, odor fétido, presos com diversos tipos de doenças
- respiratórias, gástricas, de pele, DST’s - ociosidade, funcionários mau humorados e
despreparados. Devido ao fato de ser um locus propício à corrupção e mortes, prevalece a lei
do silêncio, entre presos e funcionários, sendo comum o posicionamento de quenada se vê,
nada se ouve, nada se diz.

O rito de passagem da liberdade para o aprisionamento é algo que merece ser mencionado.
De modo geral, quando a pessoa chega ao estabelecimento penal, passa por um setor, o da
inclusão. Nele, despoja-se de todos os seus pertences pessoais, inclusive os documentos que
o acompanha. A carteira de identidade é substituída pela Identidade Criminal. Cortam-lhe o
cabelo e a barba, vestem-no com um uniforme da instituição. Por fim, o preso é
encaminhado a uma cela, ritual descrito por Goffman ao analisar o modo pelo qual, nas
instituições totais, se concretiza a deterioração da identidade social. Conforme se observa
nessa passagem,

“Nas instituições totais há uma outra forma de mortificação; a partir da admissão, ocorre
uma espécie de exposição contaminadora. No mundo externo, o indivíduo pode manter
objetos que se ligam aos seus sentimentos do eu – por exemplo, seu corpo, suas ações
imediatas, seus pensamentos e alguns de seus bens – fora do contato com coisas estranhas
e contaminadoras. No entanto, nas instituições totais, esses territórios do eu são violados; a
fronteira que o indivíduo estabelece entre seu ser e o ambiente é invadida e as encarnações
do eu são profanadas”(Goffman, 1961:31).

Além do mais, as prisões são instituições muito pouco permeáveis a mudanças e inovações.
A título de ilustração, convém mencionar o setor administrativo que, dentre outras
atribuições, zela pelos processos judiciais dos presos, encaminhando-os às Varas de
Execução Criminal. Não poucas vezes, constatava-se nos estados por mim visitados, a
precária organização do prontuário criminal, bem como, a ausência de serviço informatizado
e/ou pessoal qualificado para operar um microcomputador. O resultado disso eram processos
desviados e/ou perdidos, o que culminava com atrasos consideráveis no serviço prestado ao
preso e, conseqüentemente, com o inchaço das prisões.

Feitas essas observações, é importante assinalar que, os primeiros contatos com a unidade,
representaram para mim um momento decisivo para o bom andamento da pesquisa, visto
que, era preciso expor os motivos da visita à equipe dirigente, sublinhar a importância da
pesquisa, os benefícios que traria à sociedade e, sobretudo, que não se pretendia difamar a
unidade na qual se estava investigando.

Cumprida essa etapa, o passo seguinte era identificar os presos reincidentes em furtos e
roubos e, dentre esses, os possíveis entrevistados. Os dados sobre a ficha criminal dos
presos foram obtidos no Prontuário Criminal de cada unidade prisional. Feita a consulta nos
autos dos processos de cada um e, com base na definição
da reincidência penitenciária contida na Lei, selecionou-se uma quantidade de presos para a
realização das entrevistas. Tal procedimento permitiu-me total autonomia para que
escolhesse os entrevistados, ao mesmo tempo em que afastou a possibilidade de uma
“escolha prévia” ou de qualquer interferência por parte da instituição prisional.

Durante as visitas, percorriam-se todos os pavilhões, alas administrativas, setores de


educação, de profissionalização e as oficinas de trabalho da penitenciária. Objetiva-se, com
isso, conhecer a estrutura organizacional da instituição e os procedimentos necessários para
o estabelecimento de diretrizes para a coleta de informações. Solicitei que todas as
entrevistas com os presos ocorressem em local reservado e sem a presença do agente de
segurança penitenciária, a fim de se evitar constrangimentos e recusas de informações por
parte dos entrevistados.

Tal solicitação tornou-se, no entanto, um pedido difícil de ser cumprida, pois, conforme
ressaltou um agente de segurança penitenciária, ficar a sós com a pessoa presa poderia
fragilizar a segurança da unidade e pôr em risco a minha segurança pessoal. Nesse sentido,
não seria facultado ao pesquisador autonomia para manter com o entrevistado uma relação
independente da mediação de um funcionário. Comentei com o agente que era preciso, no
entanto, encontrar um “meio termo” diante dessa situação.

No presídio masculino, todas as entrevistas foram realizadas no auditório do CIR e, durante


os depoimentos, sempre havia um policial por perto que manteve a vigilância do
entrevistado, porém, com certa distância, geralmente circulando pelo corredor.

Já no presídio feminino – Colmeia – as entrevistas foram realizadas em uma pequena oficina


de trabalho artesanal (local onde algumas detentas confeccionavam tapetes, bordados,
pinturas em cerâmica, velas entre outros), mais especificamente, em uma pequena sala de
aula, que manteve-se “trancada” durante a realização da entrevista. Segundo uma policial
civil, este procedimento de “trancar” a porta no momento da entrevista foi uma “atitude
preventiva”, para evitar a fuga da interna entrevistada e, também, para a minha própria
segurança. Desse modo, o contato direto com algum funcionário da prisão não acarretou
limitações às atividades de coleta de informações.

A pesquisa buscou explorar a conduta reincidente a partir do contato da pessoa presa com as
diversas instituições da sociedade: polícia, justiça, prisão, família, mídia, etc., com o
propósito de desvendar a magnitude do fenômeno, e verificar a formação da identidade
social de sujeitos em contatos reiterados com os órgãos de controle e repressão ao crime.

Optou-se por uma abordagem qualitativa válida em estudos que trabalham com um pequeno
número de informantes e que visam mais ao aprofundamento que à generalização, além da
ênfase na investigação de aspectos subjetivos dos fenômenos sociais. Nessa linha de
abordagem, foram utilizadas as técnicas de entrevistas em profundidade e, também,
de história de vida tecida na fala dos depoentes.

Conforme observa Trivinos(1987), a pesquisa em profundidade é utilizada quando o


pesquisador procura obter informações do entrevistado de forma espontânea e com a maior
riqueza de detalhes possível. De modo geral, essa técnica é empregada quando se trata de
assuntos de natureza complexa, envolvendo valores individuais e tradições. As perguntas,
neste caso, são resultantes não só da teoria que orienta a ação do pesquisador, mas também
de toda informação que já se recolheu sobre o fenômeno social que lhe interessa.

Em sentido complementar, afirma também Camargo (1984) que, na “história de vida”, há


uma busca de reconstrução de toda a história do sujeito através de diários, memórias,
autobiografias e, inclusive, de sua história oral. A história de vida objetiva possibilita uma
descrição significativa da experiência individual, bem como de suas representações e, desse
modo, agrega tanto os aspectos conscientes quanto inconscientes da vida social do sujeito.

Em consonância com a abordagem escolhida para investigar o fenômeno da reincidência


penitenciária, elaborou-se um roteiro de perguntas com 48 itens, estruturado de acordo com
as preocupações fundamentais desse estudo, a partir de eixos temáticos definidos.

Na primeira parte do roteiro, procurou-se explorar a representação do entrevistado sobre


alguns aspectos relacionados ao chamado “mundo do crime”, referindo-se a essas questões
a partir de um contexto social mais abrangente. Objetivou-se, com estas perguntas, saber o
que pensa o entrevistado e o significado atribuído a determinadas categorias que estão
presentes em sua realidade cotidiana. Nesta parte do roteiro, as perguntas foram norteadas
a partir dos seguintes quesitos: crime, periculosidade, reincidência em furtos e roubos,
drogas, prisão, polícia, justiça pobreza, discriminação social, família, trabalho, mídia e
movimentos religiosos, sempre buscando articular tais questões com a conduta reincidente.
Como pano de fundo, pretendeu-se saber de que forma, as representações que regem a
percepção dos entrevistados contribuíam para a formação de uma identidade social e,
consequentemente, para a sua inserção reiterada no crime.

O segundo eixo foi centrado no relato de experiências concretas de vida, sempre buscando
estabelecer a relação vida anterior/vida no presídio. Entretanto, é importante esclarecer, que
não se pretendeu fazer a “história de vida” no sentido de esgotar todas as informações sobre
a vida do entrevistado, mas de buscar, através das observações de sua história, relacionar
alguns aspectos dessa “trajetória pessoal” com as hipóteses e reflexões contidas no estudo.
O roteiro procurava fixar de maneira ampla o direcionamento da entrevista evitando-se uma
conversa por demais dispersiva, permitindo o aprofundamento de vários temas da entrevista
sem, contudo, perder de vista o eixo de investigação.

Ao todo, foram realizadas 14 entrevistas no período entre 11/04/00 e 19/05/00, registradas


em quase 40 horas de gravação que foram depois transcritas e revisadas. A extensão dessas
sessões foi determinada pela maior ou menor desenvoltura do entrevistado e pela densidade
maior ou menor dos relatos contidos em sua história de vida. Contudo, todas as entrevistas
foram feitas em uma única sessão.

Para que fosse possível estabelecer uma relação de confiança mútua e o depoente se
inclinasse a contar a sua experiência de vida, foram dispensadas horas de conversa, no
início, aparentemente desprovidas de interesse e, em seguida, mais direcionadas aos
propósitos da pesquisa. Cada entrevistado foi envolvido em sucessivas entrevistas que
duravam entre 3 e 4 horas, até que determinado assunto se esgotasse e se avançasse rumo
a outro.

Com relação ao número de entrevistas, o critério se estabeleceu no decorrer da pesquisa à


medida que o material colhido ia tomando forma. Como essa pesquisa não se baseia em
dados quantitativos nem estatísticos, foi feito um número de entrevistas suficiente para
configurar um padrão estruturalmente invariante das informações coletadas. Quando as
entrevistas evidenciaram esse padrão, tornando-se repetitivas e confirmando as anteriores,
considerou-se suficiente o número de entrevistas já realizadas.

O uso do gravador facilitou o trabalho de captação das informações, além de evitar o risco de
distorção da fala dos informantes. Mas, sempre que havia inibição ao uso deste instrumento
por parte do entrevistado, em algumas das questões contidas no roteiro de entrevistas,
interrompia-se o uso do gravador fazendo rápidas anotações, transcrevendo o relato, tão
logo terminada a entrevista, enquanto ainda estavam presentes na memória as informações
coletadas. No entanto, de modo geral, buscava-se transmitir segurança ao interlocutor
quanto às intenções e quanto à garantia do anonimato, para que as entrevistas seguissem
normalmente.

Procedimentos metodológicos e técnicos dessa natureza tornam muito complexos a análise.


Além da transcrição dos depoimentos de forma integral, com a anotação dos silêncios, das
hesitações, das resistências e reticências do depoente, era importante, também, que o
material fosse lido e relido várias vezes, a fim de cercar todas as informações das relações
sociais detectadas nos depoimentos, entre as quais, as relações dos presos com os
familiares, com os “amigos”, com os companheiros de cela, com a polícia, com a justiça e a
prisão etc., pois, eram estas dentre outras informações que me permitiram desvendar a
identidade social reincidente e, conseqüentemente, seu contato estreito com o mundo do
crime.

Também foi realizada uma entrevista com uma ex-psicóloga do CIR – Centro de
Internamento e Reeducação, e uma entrevista com o ex-diretor da FUNAP (Fundação de
Amparo ao Trabalhador Preso) sobre as atividades desenvolvidas por esta instituição no
Complexo Penitenciário de Brasília.

Seminários e encontros sobre a questão de criminalidade e dos presídios compuseram


material complementar da presente reflexão, além de fontes bibliográficas que continham
estudos e pesquisas, servindo, em alguns momentos, de diretrizes aos procedimentos
adotados no trabalho de campo.

Dessa pesquisa constou, ainda, um questionário que englobou dados objetivos de


identificação pessoal, aí compreendido o perfil sócio-econômico e institucional da pessoa
entrevistada. Incluíam-se aí informações pessoais, cor, escolaridade, estado civil, religião,
cidade de origem, trabalho antes da prisão, situação de moradia antes da prisão, instituição
penal de procedência, infrações cometidas, número de infrações cometidas etc. Todas essas
informações foram checadas com aquelas contidas nos processos criminais.

A abordagem empírica buscou associar a objetividade dos dados estatísticos e dos


documentos institucionais com a apreensão das representações sociais da pessoa reincidente
nas entrevistas realizadas. Buscou-se com este procedimento uma adequada caracterização
do sujeito pesquisado, delimitando os contornos mais gerais revelados nas falas individuais,
essenciais à realização do trabalho de investigação.

O depoimento dos entrevistados, no entanto, possibilitou o acesso a uma infinidade de


outras questões sociologicamente relevantes quando se busca investigar sujeitos na condição
de infratores da lei. Estas questões estiveram presentes na multiplicidade de informações
adquiridas através dos informantes ao se referirem a si mesmos, aos companheiros de
presídio, à equipe dirigente, à família, à religião, ao trabalho, dentre outras.

Considerando a riqueza de informações que um estudo dessa natureza propicia, a decisão


sobre as partes das entrevistas a serem utilizadas para a elaboração da dissertação foi
marcada por dúvidas. O que deve ser publicado? Que fala é mais importante? Que fala se
ajusta melhor aos propósitos deste trabalho? Será que uma fala não publicada não poderia
revelar outras facetas do fenômeno que passaram despercebidas? Buscou-se resolver essa
questão de duas formas: em relação à primeira, decidiu-se publicar longos trechos das
entrevistas. Acredita-se que tal material venha a ser útil para outras pesquisas e outras
interpretações.

A segunda forma refere-se à própria natureza do trabalho. Ele era, fundamentalmente, uma
interpretação, as falas não estavam apenas sendo reproduzidas, mas recontextualizadas, as
histórias estavam sendo reconstruídas nos marcos estabelecidos por um trabalho acadêmico.
A esse respeito, comenta Velho (1986) que:

“É importante frisar que, mesmo quando apresento resumos de histórias de vida, produto de
entrevistas gravadas e anotadas, não estou, em nenhum momento, transcrevendo direta e
simplesmente gravações ou copiando anotações. De fato, estou produzindo um texto que é
de minha responsabilidade enquanto autor. Os cortes que faço, os indivíduos que privilegio,
tudo isso delineia o âmbito de arbitrariedade em que se move o pesquisador-ator.(...) Por
outro lado, como autor do texto, assumo, sem dúvida, um papel de demiurgo, cortando
falas, agrupando-as segundo meus critérios, resumindo, sintetizando, intervindo. O próprio
fato de destacar temas e conteúdos imprime a marca do interventor” (Velho, 1986:19-20).

Entretanto, se por um lado, os recortes feitos e as interpretações propostas são marcas


pessoais, por outro lado, houve também uma busca pela objetividade na investigação como,
por exemplo, a tentativa feita pelo pesquisador de deixar evidentes os meios utilizados para
a realização da pesquisa, o roteiro que norteou a entrevista, os textos e autores que
auxiliaram na formação do esquema teórico, os limites da pesquisa, as questões que se
tornaram relevantes, e as dificuldades para a realização da pesquisa. Isto fez com que o
compromisso com a objetividade e a coerência interpretativa estivesse presente como um fio
condutor invisível ao longo de toda a pesquisa.

IV - Conclusão

A partir das considerações feitas anteriormente, é possível então apontar as principais


conclusões metodológicas da experiência de pesquisa aplicada no espaço intramuros da
prisão.

O ambiente penitenciário é um local que traz em seu bojo profundas contradições. Esta
característica tem a ver com a sua própria natureza: ao mesmo tempo em que elas devem
retirar de circulação indivíduosinfratores por um período de tempo determinado a fim de
punir a prática ilegal e impedir novos acessos a meios ilícitos de ação, elas devem também
promover a reconstrução moral desses indivíduos para que regressem ao convívio social
preparados para enfrentar novos desafios sem, contudo, retornar às práticas criminosas.

Tal peculiaridade desta instituição total faz com que ela seja reconhecida por seu rótulo
marcadamente estigmatizante no sentido atribuído por Goffman (1975). Isso quer dizer que
a prisão possui um “atributo diferenciador profundamente depreciativo”, em outras palavras,
um “status proativo desfavorável” (p. 13) expresso nos padrões de estereótipos vigentes,
pré-concepções afirmadas com relação a determinados indivíduos ou grupos sociais.

Nesse particular, vale ressaltar que, no início da pesquisa sobre a reincidência penitenciária,
ainda imbuída de pré-concepções a respeito da população aprisionada, o interesse principal
girava no sentido de verificar se havia uma relação importante
entre pobreza e criminalidade. A idéia inicial era de que a prática reiterada em crimes contra
o patrimônio[6] poderia ser explicada por problemas que o segmento mais pobre da
sociedade enfrenta em decorrência de fatores de natureza econômica, tais como,
desemprego, privação de oportunidades, desigualdade social, má distribuição de renda etc.

No entanto, na medida em que se foi aproximando da realidade de sujeitos encarcerados,


bem como, acumulando leituras e ordenando as idéias a respeito dessa problemática,
percebeu-se o quanto estava simplificando o fenômeno e, sobretudo, correndo o risco
de ocultarfacetas de uma realidade muito mais complexa do que, à primeira vista, se podia
imaginar. Embora dispondo de parco material bibliográfico sobre a temática da reincidência
penitenciária, os estudos sobreviolência urbana[7] trouxeram novas idéias a respeito da
criminalidade, fato que veio, paulatinamente, a contribuir para essa (des)contrução das
causas do crime e de condutas criminosas.

Com base nessa experiência é possível concluir, primeiramente que, para penetrar no
universo penitenciário, imbrincado de artimanhas e contradições, e dar-lhe visibilidade, é
necessária certa dose de controlesobre as convicções individuais para poder desvendar tal
realidade em toda a sua complexidade. Olhar para os sujeitos de pesquisa, especialmente
quando estes não fazem parte do universo social do pesquisador, tal como os sentenciados
e/ou condenados pela justiça, pode induzi-lo ao risco de se deixar levar pelo que lhe é mais
aparente, dando a este um estatuto de verdade que, conforme revelou a pesquisa, não fazia
conexão com a realidade. Constatou-se, no entanto, que se deve estar atento para separar
as suas opiniões, embutidas de conteúdo valorativo, as avaliações relacionadas à sua posição
social e econômica, do conhecimento científico, que deve estar comprometido, sobretudo,
com o desvendamento da realidade.

Em segundo lugar, considera-se que, na pesquisa científica, os seus objetivos e hipóteses


são que determinam a opção pelo método de entrevistas. É na tentativa de responder
questões de um passado (re)memorizado que se fazem as escolhas de quem o pode narrá-
lo. Nessa linha de raciocínio, a análise das representações sociais baseadas em entrevistas
em profundidade com os reincidentes penitenciários revelou-se ferramenta útil para a
caracterização dos principais elementos que definem o modus operandi desses indivíduos,
centradas nas falas sobre si mesmos, vindas de um sujeito incitado a se narrar e a entrar
num diálogo particular, num verdadeiro “exercício espiritual”, conforme observa Bourdieu,
(1997: 704): “eu diria naturalmente que a entrevista pode ser considerada como uma forma
de exercício espiritual, visando a obter pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão
do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida”.

Atribuiu-se às técnicas de “entrevistas em profundidade” e, concomitantemente, de “história


de vida” dos sujeitos-informantes todo um rigor metodológico dentro dos marcos
estabelecidos por um trabalho acadêmico. Nesse sentido, toda entrevista individual trazia à
luz uma quantidade de valores, definições e atitudes dos reincidentes penitenciários.
Constatou-se que as histórias de vida, por mais particulares que fossem, eram também
reveladoras de práticas sociais, das formas com que tais indivíduos se inseriam e atuavam
no mundo.

Após o período de realização das entrevistas, distanciando-se do objeto para poder refletir e
escrever sobre essa experiência rica, tensa e desafiante, o interesse fundamental foi
respondido, qual seja, o dedesvendar, através da fala dos sujeitos,fatos e representações
que se apresentavam como potencializadores da conduta criminosa. Não é tarefa fácil
abordar experiências de sujeitos que fazem a sua própria história e apreender o significado
que atribuem às situações que vivenciam dentro e fora das prisões. Estas histórias revelam
certa regularidade, mas não se reduzem às estatísticas oficiais, pois estão imbricadas de
experiência pessoal, portanto, intransponível.

Em terceiro lugar, vale mencionar, analisar a história do presente por meio da biografia é
assumir que a própria trajetória dos indivíduos se transforma em rica fonte de pesquisa. Ter
feito o entrecruzamento entre a biografia individual com as instituições da sociedade, ou
seja, os pontos de ligação entre a história bibliográfica de indivíduos que enveredaram pelo
mundo do crime, e as relações sociais que foram se constituindo ao longo de suas trajetórias
de vidas, permitiram-me constatar que, é nesse entrecruzamento que residem os principais
mecanismos de produção e de manutenção da reincidência penitenciária.

A trajetória bibliográfica dos reincidentes penitenciários indicou que, de modo geral, não
existe uma “natureza” ou “alma” perigosa, pervertida, inadequada para o convívio social. A
carreira criminosa tem a ver com fatores plurais que se entrecruzam ao longo do processo de
socialização do indivíduo, e que não pode ser entendida se condicionada unicamente às
condições materiais de existência. Dentre esses fatores, destacou-se o contato reiterado que
o reincidente estabelece com as agências de controle e repressão ao crime – polícia, justiça e
prisão – o estigma da delinqüência e da periculosidade, o uso de drogas e alcoolismo etc. A
identidade social reincidente é, portanto, construída no interior de uma complexa trama, na
qual incidiam representações sobre as diversas instituições da sociedade.

Finalmente, vale ressaltar, o fato de ter conhecido um mundo distinto do meu, ajudou-me a
compreender melhor, enquanto pesquisadora, a importância do movimento entre o
pesquisador e os sujeitos da pesquisa, entre as dimensões objetiva e subjetiva e, ainda,
entre senso comum e conhecimento científico. Assim, ao levantar algumas questões
metodologicamente elucidativas para a compreensão do objeto, não se buscou respostas
definitivas sobre o tema, mas indicar pistas capazes de acrescentar novos elementos
explicativos à discussão do fenômeno. Apreender o significado da reincidência penitenciária
na perspectiva do sujeito, colocando em foco os elementos que ele coloca de si mesmo,
permitiu compreender um conjunto de fatores que têm contribuído para a manutenção da
criminalidade em nossa sociedade.

Com a exposição acima, busquei demonstrar o quão tortuoso e incerto é o caminho de uma
pesquisa. Pesquisar é, antes de tudo, descobertas, inquietações das certezas e convicções,
ligação entre a paixão e a razão. Sabe-se que, sem as ferramentas teórico-metodológicas
não se pode avançar rumo ao conhecimento científico. Mas é certo também, que é preciso
criar, utilizar-se da intuição e da imaginação sociológica, sentimentos esses que se colocam
entre o real e o imaginário, o pessoal e o social. Tais articulações possibilitam que a pesquisa
científica transforme nossas convicções frente às questões contemporâneas, respondendo
nossas dúvidas e apontando caminhos novos e distintos daqueles os quais estamos
acostumados a lidar.

V - Bibliografia

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Documentos Oficiais

CÓDIGO PENAL BRASILEIRO – Decreto n.º 2.848 de 7 de dezembro de 1940, atualizado


pela Lei n. 6.898, de 30 de março de 1981. Ed. Saraiva, São Paulo, 1984.

[1]Goffman define instituição total como "um local de residência ou trabalho onde um
grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla
por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”
(1961: 11).

[2] A despeito disso, no campo de investigação sobre a violência e a criminalidade, devem-


se mencionar os estudos de Misse (1995); Adorno (1991; 1995); Adorno & Bordini (1986);
Paixão (1983; 1991; 1995); Ramalho (1983); Zaluar (1996), Porto (1999; 2000), dentre
outros autores que abordam, sob novo enfoque, a problemática do sistema penal e da
segurança pública, enunciando as lacunas que comprometem a garantia de direitos
individuais.
[3] Convém esclarecer que, durante o meu trabalho no DEPEN, realizei várias inspeções nas
penitenciárias dos Estados, que incluíam, dentre outros procedimentos, a aplicação de
questionários e de entrevistas junto aos presos e funcionários. Pesquisas também foram
realizadas por mim como subsídio de informações sobre o sistema penitenciário nacional:
elaboração de indicadores de avaliação do sistema penitenciário nacional, perfil dos agentes
penitenciários e população presa identidade étnico-racial.

[4] Adorno (1995) aponta as limitações no tocante ao conceito de periculosidade social,


pressuposto o qual, segundo o autor, traz embutida a representação de uma natureza
delinqüente distinta da natureza humana: “O conceito de (periculosidade) contém não
poucas limitações, mal escondendo propósitos ideológicos, inspirados em teses lombrosianas
a respeito da criminalidade nata. Não obstante tais limitações, ainda têm-se um conceito de
larga aceitação tanto do senso comum, como em certos círculos profissionais e (científicos).
Não poucos juristas dele se valem quando cuidam de sustentar a tese da reserva de penas
restritivas de liberdade, para determinadas categorias de delinqüentes. Evidentemente, o
problema reside em identificar critérios de periculosidade (neutros), isto é, que não apelem
arbitrariamente a representações imaginárias acerca do suposto potencial de perigo
suscitado por alguns delinqüentes, como, muitas vezes, ocorre inclusive com chancela do
saber especializado do perito profissional” (Adorno, 1995: 144).

[5]O artigo 44 do Código Penal Brasileiro (1984) faz a seguinte definição: Por reincidente
penitenciário compreende-se o indivíduo: a) que tenha sido condenado e cumprido pena de
prisão em qualquer estado brasileiro, ou, ainda, fora do Brasil pela prática de crimes
defurtos e roubos, e que tenha obtido liberdade; b) que, posto em liberdade, tenha cometido
novo(s) delito(s) em furtos e roubos; c) que, por força do(s) novo(s) delito(s), tenha sido
condenado, retornando ao sistema penitenciário para cumprir nova pena. Considera-se ainda
a reincidência penitenciária a partir do “tempo determinado” pela Legislação Penal Brasileira,
a saber, aquele indivíduo que, posto em liberdade, tenha praticado furtos e roubos em
período inferior a 10 anos.

[6] Designação do Código Penal para os delitos cometidos contra a propriedade, entre os
quais, se agregam os crimes de furtos e roubos.

[7] Partiu-se do conceito adotado por Santos que define a violência como “um ato de
excesso que sugere uma situação que envolve o uso da força, seja ela física, de coerção ou
de algum outro meio que possa influir no comportamento alheio”. Incluem-se aí agressões
físicas, homicídios, furtos, roubos, dentre outros. José Vicente Tavares Santos, “A violência
como dispositivo de excesso de poder” in Revista Sociedade e Estado, ed. UnB, 1995, p. 287.

REIS Marisol de Paula Da instituição total à construção da realidade social: considerações


metodológicas de pesquisa aplicada no espaço intramuros da prisão Disponível em:
www.ibccrim.org.br.

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