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RESUMO ABSTRACT
Este trabalho aborda a construção discursiva do This work explores the discursive construction
gênero na publicidade. Nosso objetivo será ana- of gender in advertising. Our aim will be to
lisar as relações de gênero em anúncios publica- analyze gender relations in advertisements pub-
dos em revistas, verificando as feminilidades em lished in magazines in order to examine fem-
relação às masculinidades. Assim, os fundamen- inineness in relation to masculineness. Thus,
tos teóricos e metodológicos da pesquisa envol- the theoretical and methodological foundations
vem os conceitos de gênero propostos por Scott involve the concepts of gender proposed by
(1995) e Bourdieu (2005), o modelo de análise Scott (1995) and Bourdieu (2005), the critical
crítica de discurso em três níveis (prática social, discourse analysis model in three levels (social
prática discursiva e texto) segundo Fairclough practice discursive practice and text) according
(2001) e o signo ideológico segundo Bakhtin/ to Fairclough (2001) and the ideological sign
Voloshinov (1979). O estudo da linguagem de- according to Bakhtin/Voloshinov (1979). The
monstra assimetrias de gênero e ocorrência de study of language demonstrates gender asym-
estereótipos que ainda persistem no contexto metries and the occurrence of stereotypes that
social. still persist in social context.
Palavras-chave: Gênero; Publicidade; Análise Keywords: Gender; Advertising; Critical dis-
crítica do discurso. course analysis.
1
Esta pesquisa integra dissertação de mestrado da autora, intitulada Relações de Gênero na Publicidade: palavras e imagens constituindo identidades, já
defendida. Pesquisa com apoio CAPES.
² Graduada em Comunicação Social, Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre em Letras, Estudos Linguís-
ticos e doutoranda na mesma área pela UFSM, Brasil. E-mail: grazifk@yahoo.com.br.
cussão da condição feminina e, sobretu- que diz respeito à divisão das atividades
do, a contestação ao patriarcalismo. humanas em geral, não pode ser justi-
O que está em jogo é uma ten- ficada pelo argumento das especificida-
tativa de reconstrução da identidade des biológicas.
feminina, o que é corroborado por Cas- Como explica Colling:
tells (1999, p. 237), segundo o qual o
objetivo subjacente a todo o movimento A história do gender das norte-ame-
consiste em “desconstruir a identidade ricanas, do genre francês, do genere
feminina, destituindo as instituições so- italiano, do geschlecht alemão, e do
ciais das marcas de gênero”. gênero português, tem um só obje-
Durante esse processo de repen- tivo: introduzir na história global a
sar as condições sociais das mulheres, dimensão da relação entre os sexos,
foram geradas muitas elaborações teóri- com a certeza de que esta relação não
é um fato natural, mas uma relação
cas, dentre elas, a concepção de gênero social construída e incessantemente
como categoria de análise sócio-histó- remodelada, efeito e motor da dinâ-
rica. A partir do trabalho fundador de mica social (COLLING, 2004, p. 28).
Scott (1995) – publicado nos Estados
Unidos em 1986, na França em 1988, e
Então, a categoria gênero surgiu
pela primeira vez no Brasil em 1990 –,
para se contrapor ao apelo biológico do
a teoria dos gêneros privilegiou o enfo-
sexo devido à necessidade de um outro
que da condição de mulheres e homens
conceito que englobasse os fatores so-
no contexto de relações de poder, apro-
ciais que compunham a questão. No de-
ximando-nos, assim, da realidade da or-
bate sobre as disparidades entre homens
dem social. Desse modo, foi destacado
e mulheres, o argumento biológico fun-
que gênero é categoria relacional, ou
ciona como uma armadilha, pois é algo
seja, abrange as relações sociais entre o
que não podemos mudar, colaborando
feminino e o masculino, de forma que
para a naturalização das desigualdades
um gênero só adquire sentido em rela-
e fazendo a questão parecer irreversível.
ção ao outro.
De acordo com Paulson (2002, p.
Seguindo a mesma linha, Bour-
32), o conceito provocou o questiona-
dieu (2005, p.34) afirma que “tendo
mento da “ideologia do determinismo
apenas uma existência relacional, cada
biológico que vê uma relação de cau-
um dos dois gêneros é produto do traba-
salidade direta entre sexo e gênero, e
lho de construção diacrítica, ao mesmo
também ultrapassar a negação de toda
tempo teórica e prática que é necessário
relação entre esses fatores tão comuns
à sua produção como corpo socialmente
no discurso acadêmico sobre o gênero”.
diferenciado do gênero oposto”.
Pereira (2004, p. 195) considera
A utilização do gênero como
que o gênero trouxe importantes con-
referência às diferenças socialmente
tribuições à produção do conhecimento,
construídas levou ao entendimento de
iniciando pela ruptura com o determi-
que as distinções entre o feminino e o
nismo biológico e instituindo uma defi-
masculino não são fatos naturais, pelo
nição sociocultural, conforme explica-
contrário, são forjadas pelos indivíduos
mos anteriormente. Além disso, outras
em sociedade e perpassadas pela cultu-
contribuições são apontadas pela autora:
ra. São naturais as diferenças corporais
- O gênero pode ser utilizado
ou biológicas, por exemplo, é natural o
como categoria analítica sob diversas
fato de que as mulheres tenham os fi-
perspectivas disciplinares;
lhos, mas é sociocultural o fato de que
- O gênero reforça a corrente não
elas e somente elas sejam encarregadas
essencialista dos estudos de identidade;
de cuidá-los ou educá-los. Isso significa
- O gênero redefiniu processos de
que a desigualdade entre os sexos, no
Verificamos que há um “eu” mas- chefe na selva, e que esse toque corres-
culino, sujeito implícito de “fui gravar” ponde ao rugido de um tigre, o que é
e “já volto”. Isso significa que existem, reafirmado na imagem do visor do ce-
no texto, dois participantes masculinos: lular, onde há um tigre como ícone e
o “eu” implícito, que sabemos ser um a identificação “chefe”. Consideramos
homem devido à imagem presente no que essa combinação do texto verbal
anúncio, e o “chefe”, que percebemos com a imagem também produz uma
ser homem pelo uso do pronome pos- metáfora implícita, pois o sujeito da
sessivo masculino “meu”. oração afirma, através da ação represen-
Analisamos a palavra “chefe”, tada, que seu chefe é um tigre.
cujo sentido no contexto de uso somen- No sentido figurado, é chamado
te pode ser compreendido ao lermos a de tigre o homem sanguinário, bárbaro
imagem em conjunto com o enunciado e cruel, conforme a definição encontra-
verbal. Na imagem, observamos que o da no dicionário (FERREIRA, 1999,
sujeito masculino foi gravar o toque do p.1958). Sendo assim, compreendemos
que, segundo o ponto de vista do sujeito para o espaço urbano, trajada para andar
do enunciado, o chefe é bravo como um em uma cidade. Já o homem represen-
tigre, zanga-se facilmente, é assustador, tado no anúncio seguinte, saiu da nor-
provoca medo. malidade de seu trabalho e se encontra
Apesar de o sentimento de medo, deitado sobre um tronco de árvore, a
aversão ou antipatia de um funcionário fim de alcançar o tigre. A mulher grava
em relação a seu chefe ser comumente o cacarejo de uma galinha, que está po-
manifestado, tanto por homens, quanto sicionada praticamente no seu mesmo
por mulheres, percebemos que o subs- nível de altura, enquanto que o homem
tantivo “chefe” aparece no anúncio cuja inclina-se, deita-se, estica-se para al-
representação é masculina. Isso prova- cançar sua meta, o tigre posicionado no
velmente ocorre porque a identificação nível do chão.
do homem com o campo de atuação pro-
fissional, e a identificação das mulheres 6 Considerações finais
com assuntos afetivos sejam formas que
fazem parte do imaginário coletivo, cul- Conforme visto, anúncios de um
turalmente produzido e reproduzido. Da mesmo produto, que compõem a mes-
mesma forma que o chefe referido tam- ma campanha publicitária, constroem
bém é um homem. discursos de gênero diferentes para
O termo “galinha”, referente representações femininas e representa-
ao anúncio anterior, pode ser aplicado ções masculinas. Isso opera no sentido
como ofensa tanto a homens, quanto a de reafirmar que mulheres e homens
mulheres. No entanto, ele foi utilizado ocupam lugares e papéis diferentes, ou
especificamente no texto cujo sujeito seja, reafirmar as diferenças socialmen-
representado é uma mulher, e cujo indi- te construídas.
víduo considerado “galinha” é homem. O estudo da linguagem nos tex-
Partindo do pressuposto de nosso traba- tos corrobora a afirmação de Marodin
lho, de que o signo é ideológico e de que (1997) de que o gênero abrange as ex-
as construções discursivas estão ligadas pectativas sociais, prescrevendo papéis
a um contexto de produção e recepção, que diferem para os respectivos gêneros
jamais ocorrendo de maneira arbitrária, e de acordo com o momento sociocul-
uma provável justificativa para essas di- tural e histórico. Outro ponto que de-
ferenças observadas em ambos os anún- preendemos das análises é a noção de
cios provém dos discursos de gênero gênero como categoria relacional, ou
circulantes na sociedade. seja, que só adquire sentido nas relações
Ao longo dos tempos, o pensa- sociais, conforme um se constrói em re-
mento racional tem sido associado aos lação ao outro (SCOTT, 1995; BOUR-
homens, enquanto que a emoção é asso- DIEU, 2005).
ciada às mulheres, uma crença cultural A concepção de discurso como
que, mesmo nos dias atuais, persiste. prática social implica que os sujeitos
Assim, ainda que gravar o rugido de um agem por meio da linguagem, e que
tigre seja expressar um sentimento em textos e estruturas sociais interagem
relação ao chefe, chamar de galinha al- dialeticamente. Dessa maneira, consta-
guém com quem se teve um relaciona- tamos que as práticas discursivas e as
mento pessoal é uma atitude muito mais práticas sociais conectam-se à medida
afetiva ou emocional que uma provoca- que as construções ou os discursos de
ção do ambiente de trabalho. gênero são afetados ou atravessados por
Nas imagens de ambos os anún- orientações culturais e ideológicas que
cios, também verificamos distinções. A circulam na esfera social.
mulher representada está em uma pose O vínculo entre linguagem e so-
que pode ser considerada como normal