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METAPSICOLOGIA LACANIANA
Os anos de formação
....
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~
~j~l~
UFPR90anos
Reitor
Carlos Augusto Moreira Júnior
Vice-reitor
Aldair Tarcísio Rizzi
~ UFPR
Diretor da Editora da UFPR
Luís Gonçales Bueno de Camargo
Conselho Editorial
Alberto Pio Fiori, André de Macedo Duarte, Fany Reicher,
Izaura Hiroko Kuwabara, José Carlos Cifuentes Vasguez,
Leilah Santiago Bufrem, Manoel Eduardo A. Camargo e Gomes,
Maria Benigna Martinelli de Oliveira, Pedro Ronzelli Júnior,
Sérgio Hcrrero de Moraes, Víctor Manoel Pelaez Alvarez
discurso editorial
Presidente
Caetano Ernesto Plastino
Vice-Presidente
Milton Meira do Nascimento
RICHARD THEISEN SIMANKE
METAPSICOLOGIA LACANIANA
Os anos de formação
hl
discurso editorial
~
UFPR
Copyrig/11 © Discurso Editorial, 2002
ISBN 8S-86590-3S-S
CDD 150
150.19S
~ UFPR
discurso editorial
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Para Sofia
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO:
DO CONHECIMENTO PARANÓICO AO "RETORNO A FREUD" 11
1. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 17
1, 1, UMA MEDICINA AQU~M DO SUJEITO 20
1.2. ALTERNATIVAS PARA A PSIQUIATRIA 32
1.3. O PSIQUIATRA E SUA DOENÇA 39
II, A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 59
11.1. A'PARANÓIA E A PERSONALIDADE 60
11.2. CONSTITUIÇÃO, REAÇÃO, INTERPRETAÇÃO 72
11,3, PSICOGtNESE E QUESTÕES DE M~TODO: O CASO AIM~E 84
11.4, UM ANTEPROJETO DE PSICOLOGIA CIENTfFICA 102
11.5. INGREDIENTES PSICANALfTICOS 134
Ili. O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PA~NÔICO 151
111,l. ABSTRAÇÕES DA PSICOLOGIA 153
111.2. DIRETRIZES POLITZERIANAS 163
111,3, UM MODELO RELATIVISTA PARA A PSICOLOGIA 186
111.4. AS NECESSIDADES DA CLfNlCA 212
111.5, CLINICA E EPISTEMOLOGIA 240
IV. IMAGENS E COMPLEXOS 245
IV.!. A FAMfLIA E SEUS COMPLEXOS 247
IV,2, DUAS FILOSOFIAS DO IMAGINÁRIO 283
JV,3, UMA ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO 309
V. ÁNTROPOLOGIAS LACANIANAS 341
V,l. SELVAGENS, LOUCOS E CIVILIZADOS 344
V,2. FATOS SOCIAIS, FATOS TOTAIS 359
V.3. SUJEITO! DESEJO E NEGATIVIDADE 398
V,4, RESUMINDO: LACAN E A ANTROPOLOGIA 427
VI. UM INCONSCIENTE PARA O SUJEITO 431
VI.!. O INCONSCIENTE DAS ESTRUTURAS 432
Vl.2. A NEUROSE COMO MITO INDIVIDUAL 468
Vl,3. UMA METAPSICOLOGIA LACANIANA 493
CONCLUSÃO 525
BIBLIOGRAFIA 529
ABREVIATURAS
1 Um bom exemplo dessa ferocidade crítica que Lacan costuma despertar é o artigo
de Cornelius Castoriadis, "A psicanálise, projeto e elucidação", onde se lê, a certa
alcura: "Uma coisa é certa: Lacan é um malfeitor. No decorrer da última década,
ele se tornou, além disso - mais grave ainda, diria um esteta - enfadonho" {p. 78).
A literatura devota, além de se manifestar em certos trabalhos pretensamente teó-
ricos, expressa-se cm alguns relatos biográficos francamente apologéticos.
12 RICHARD THE!SEN S!MANKE
2 Essa é a fantasia do "estado final do sistema", analisada por David Macey, que ten-
de a dotar o ensino e a produção de Lacan de uma aura atemporal que nivela to-
dos os desenvolvimentos de seus diversos períodos, a serviço de uma certa mistifi-
cação da teoria. O autor comenta, por exemplo, a mania de muitos lacanianos de
citarem somente ''Écrits, página tal", desconhecendo completamente que se trata
de uma coletânea heterogênea que cobre um amplo período da produção do au-
tor, e não um tratado definitivo da psicanálise lacaniana. Ver Macey, D. Lacan in
contexts, principalmente o primeiro capítulo, "The final state", p. 1-25.
INTRODUÇÃO 13
Não se trata aqui de fazer uma história das influências que con-
cretamente atuaram sobre o jovem Lacan (o que pode muito bem ser
rastreado no material biográfico sobre o mesmo, que começa já ator-
nar-se volumoso), mas de propor uma pergunta sobre que tipo de pro-
blemas se apresentam a um investigador médico, com pretensões de
originalidade teórica, dentro do panorama das discussões que lhe eram
contemporâneas; em outras palavras, de pensar os dilemas inerentes à
medicina, constiruídos ao longo de sua formação histórica, dilemas
que Lacan não poderia deixar de herdar e com os quais não poderia
deixar de se debater. Certamente, não nos está vedado utilizar alguns
nomes próprios como balizas para este percurso lacaniano inicial, mas
o mais importante é compor um quadro teórico, por breve e resumi-
do que seja, que permita tornar inteligíveis as opções que o autor faz
neste momento, quais as questões específicas que busca responder e o
que pode haver de novo, canto na formulação destas questões, quant~J
nas respostas oferecidas. Este esforço preliminar se justifica pelo fato
de que estas escolhas, perfeitamente inaugurais na pesquisa de nosso
autor, vão determinar ou, pelo menos, influir decisivamente em boa
parte do conteúdo e do estilo de seu trabalho posterior. Inversamente,
traços característicos - e que vão fazer escola - de seu perfil teórico
mais tardio podem já ser percebidos em germe nessas primeiras obras.
Pode parecer óbvio, mas vale a pena insistir sobre o caráter es-
tritamente médico da investigação que Lacan empreende em sua tese
de doutorado. Em um autor tão identificado com a psicanálise e com
um trabalho intensivo sobre os textos de Freud - e, em menor grau,
18 RICHARD THEISE.N SiMANKE.
seus textos e seminários mais tardios, pelo menos até aquele momento
em que tomam forma as categorias fundamentais da metapsicologia
lacaniana - o simbólico, o imaginário e o real - e no qual, portanto,
se arremata a elaboração de seu programa de pesquisa mais caracterís-
tico e que é reconhecido como tal. Ogilvie restringe-se ao período
1932-49, pois pretende reconstimir a história inicial da trajetória
lacaniana, para deixar entrever algumas implicações filosóficas de suas
teses - o que se revela no próprio eixo escolhido para sua análise: o
conceito de sujeito. Aqui optou-se, porém - e esta é a segunda diferen-
ça a ser assinalada -, por privilegiar as discussões médicas das quais
parte Lacan. Antes de tudo, para contornar a armadilha de se ler Lacan
como um filósofo 3, coisa que ele certamente não é. Além disso, estas
discussões, mesmo que internas ao campo da medicina, trazem em-
butidas em si as questões filosóficas que atravessam o texto de
Lacan. Vale dizer: as questões efetivas, para além da profusão de refe-
rências, cuja função na teoria ainda está por ser precisada. A medicina
ou, mais precisamente, o processo de formação, os traços distintivos,
assim como a posteridade do discurso médzco tornaram-se, tanto quan-
to a psicanálise, objeto de uma série de interpretações filosóficas, hoje
consagradas (Foucault, Canguilhem, entre outros), às quais se recor-
rerá na continuidade. É justamente pelo fato de Lacan não ser um fi-
lósofo - mas, a princípio, médico psiquiatra e, a seguir, psicanalista -
que a referência à clínica é indispensável para a compreensão de sua
evolução teórica, assim como do estilo de sua teoria. Além disso, é atra-
vés de sua dimensão clínica que a medicina vai estabelecer pontos de
contato com as ciências humanas4, com as quais Lacan vai querer ali-
nhar a psicanálise, opondo-se às tendências psicobiologizantes que
detectava no campo psicanalítico.
Comecemos, assim, nos perguntando que lugar a psiquiatria
ocupa no quadro das ciências médicas, a fim de identificar que opções
se abrem diante do doutorando Jacques Lacan, cujo próprio estilo nos
informa que ele já não se toma por qualquer um e que, portanto, quer
deixar a marca de sua contribuição pessoal na evolução destas ciências.
7 O sentido desta diretriz, que começa a ser lançada em corno de 1953, principal-
mente na conferência sobre Le symbolique, l'imaginaire et /e réei - mas também
em "Le myche individuei du nevrosé" - será discutido à luz dos desenvolvimentos
que a precedem, quase que a título de conclusão do presente trabalho.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 25
8 Esclareçamos, desde logo, que o organicismo só vai adquirir uma conotação nega-
tiva (reducionista), como a que lhe atribui Lacan, quando da sua aplicação à pato-
logia mental. Em Bichar, ao contrário, ele opõe-se a um reducionismo fisicalisra e
trabalha no sentido da preservação da especificidade do fato orgânico e vital. O
caráter vitalista das reses de Bichar é apontado por Canguilhem, que dedica-se ain-
da, em Le normal ef le pathologique e outros textos volcados para os problemas
gerais da biologia, a uma reabilitação filosófica do vitalismo, entendendo-o no sen-
tido da preservação dessa especificidade acima referida.
26 RICHARD THEISEN S!MANKE
10 É interessante observar que esta idéia ressurge, nestes termos, em Freud, quando
define o delfrio.psicótico como um esforço para restabelecer os vínculos perdidos
com a realidade, rompidos pelo processo propriamente patológico da psicose, que
é de feição nardsica. Esta concepção é celebrada como uma das grandes virtudes
da teoria freudiana das psicoses, quando comparada com as abordagens psiquiá-
tricas (ver, por exemplo, Waelhens, A. de. A psicose: ensaio de interpretação anali-
tica e existencial p. 23), e é particularmente apreciada por Lacan, uma vez que
concorda plenamente com sua própria tese de que as psicoses não podem ser re-
duzidas a fenômenos de déficit. Mas é um ponto de vista que parece ser típico de
qualquer concepção dinâmica da doença.
28 RICHARD THE!SEN S!MANKE
nica que isto se dá, e naqueles procedimentos que lhe concernem mais
de perto, como a elaboração de nosografias, a semiologia, etc., que
praticamente supõem uma entificação da doença ou, ao menos, a de-
finição de estruturas mórbidas, que podem ter um caráter dinâmico,
quanto mais tenderem a uma apreensão global, totalizante do doente.
A investigação médica propriamente dita - uma pesquisa de cunho
biológico dos fenômenos que interessam à patologia - permanece to-
talmente à vontade com o ponto de vista quantitativo, assumido como
uma garantia de científicidade. Como sintoma desta situação, conso-
lida-se uma dissociação, digamos, epistemológica entre a clínica (a prá-
tica médica) e a pesquisa (o trabalho de laboratório, por exemplo). A
clínica tem mais a ganhar com uma concepção qualitativa e, mais ain-
da, com uma concepção dinâmica da doença como processo, já que
atenta para o indivíduo doente e sua evolução, e pode aplicar sobre
ele um conhecimento obtido alhures, por outros métodos, visando a
uma cura que, desta forma, não mais contradiz um projeto empírico
de conhecimento. A investigação, por sua vez, será tanto mais médica
(e não meramente biológica) quanto mais se aproximar do terreno da
patologia, podendo até atribuir-se aí, como objeto, uma entidade cha-
mada "doença'', que garanta a sua identidade epistêmica. A questão
de "obedecer ou não" à natureza já não se coloca, pois este trabalho
visa apenas à produção de conhecimento e não aponta - nem imedia-
ta, nem necessariamente - para o problema da intervenção. Em suma,
quanto mais próximo da pesquisa biológica em geral, menos o médi-
co se incomoda com o desvanecimento do objeto "doença''; quanto
mais se aproxima deste objeto - que "omologiza" mais ou menos na-
turalmente-, menos considera o problema clínico da intervenção efi-
caz, que o colocaria diante do paradoxo de converter este objeto no
seu contrário. Isso que chamamos "a medicina'' reparte-se, assim, em
uma clínica (que não é uma ciência, mas uma técnica, uma arte de
curar) e um grupo de autodenominadas "ciências médicas", tributárias
das ciências biológicas e produtoras de um conhecimento autônomo,
aplicável, mas não votado essencialmente à prática.
Tanto Freud quanto Lacan trabalharam contra esta dissociação,
primeiro como médicos e, depois, como psicanalistas. Freud foi leva-
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 31
13 Canguilhem assinala como os ecos da difusão, operada por Com te, do "princípio
de Broussais" repercutem principalmente no domínio da psicologia. Cita, como
exemplo, uma passagem de Renan, que dá bem a medida do quanto este princí-
pio quantitativo serve à psicologia, mas não à medicina. Vale a pena reproduzi-la:
"O sonho, a loucura, o delírio, o sonambulismo, a alucinação oferecem à psico-
logia individual um campo de experiência bem mais vantajoso que o estado regu-
lar. Pois os fenômenos que, neste estado, estão como que apagados por sua tenui-
dade, aparecem nas crises extraordinárias de uma maneira mais sensível por seu
exagero. O físico não estuda o galvanismo nas quantidades ínfimas que a nature-
za apresenta, mas ele o multiplica pela experimentação, a fim de estudá-lo com
mais facilidade, dado aliás que as leis estudadas neste estado exagerado são idênti-
cas às do estado natural. Da mesma forma, a psicologia da humanidade deverá se
edificar sobretudo pelo escudo das loucuras da humanidade, de seus sonhos, de
suas alucinações, que se reencontram à cada página do espírito humano" (Le nor-
mal et /e pathologique, p. 15-6).
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 33
14 Sigo aqui, em linhas gerais, os pontos de vista de Henri Ey- aliás, amigo e cola-
borador de Lacan nos primeiros tempos - expostos principalmente no artigo "Le
développemenc mecanicisce de la psyquiacrie à l'abri du dualisme cartésien".
15 Ele afirma, mais especificamente, que "sobre o plano psiquiátrico [todo dualismo]
não pode senão terminar em uma desvalorização das representações" (ÍAcan: la
formation du concept de sujet, p. 63).
34 RICHARD THEISEN SIMANKE
19 Lacan vai caracterizar, mais tarde, o discurso psicócico por uma ausência de me-
táforas, resultado de uma atenção exclusiva à literalidade das palavras, mecanis-
mo pelo qual se produzem os sintomas. Por esta via, a psicose perpetua-se na con-
dição de paradigma clínico para as teorizações lacanianas, já que traz à tona, por
assim dizer, a essência da linguagem, no modo pelo qual Lacan a concebe a partir
de sua adesão ao estruturalismo. O sentido inicial da fórmula do "conhecimento
paranóico" - que será o foco de nosso terceiro capítulo - designa, contudo, o
apego realista às formações imaginárias que constituem, simultaneamente, o eu e
o campo dos objetos.
20 Ver, por exemplo, Jean Cravreul, A ordem médica, Cap. 8, p. 121-36.
38 RICHARD TI-JEISEN SIMANKE
23 Caberia aqui uma palavra, omitida por razões externas ao presente desenvolvi_-.
mento, sobre as relações de Lacan com os dois nomes mais representativos das
tendências que ele procurará conciliar: Jaspers e Clérambau!c. A doutrina de
Clérambault é citada - e combatida - pelos mais diversos autores (Ey, Dalbiez,
Claude, entre outros), como típica da orientação mecanicista, sendo alvo igual-
mente das críticas lacanianas em sua Tese. Mas o seu interesse maior para a com-
preensão do desenvolvimento da obra de Lacan é o seu posterior reaproveitame~to
quando nosso autor decidir, a partir da sua versão particular das teses psicanalíti-
cas, tomar disd.ncia com relação às abordagens fenomenológicas e "compreensi-
vas" da psicose, que ele assimilara já com reservas à época do seu doutoramento.
Ê evidente que Lacan nunca vai subscrever o organicismo intransigente de
Clérambault, mas sim aproximar o seu automatisme menta/e ao automatisme de
répltition, com que se traduz o Wiederholungszwang (compulsão à repetição)
40 RICHARD THEISEN S!MANKE
25 Cf. Foucault, M. Doenra mental epsicologia, p. 17: "Ora, a psicologia nunca pôde
oferecer à psiquiatria o que a fisiologia deu à medicina: o instrumento de análise
o
que, ·delimitando distúrbio, permitisse encarar a relação funcional desce dano
ao conjunto da personalidade".
42 RICHARD THEISEN SrMANKE
lógico, ter um sentido mais do que metafórico. Essa é uma das razões
pelas quais, mais tarde, Lacan tornar-se-á um dos maiores empreen-
dedores da desmedicalização cabal da psicanálise, despojando as enti-
dades clínicas de sua significação patológica, ao redefini-las em ter-
mos de estruturas da subjetividade, da mesma forma que afasta da
prática psicanalítica sua intenção terapêutica, caracterizando em ter-
mos de um "ganho ético" os resultados da análise. O problema é que,
na verdade, uma psicogênese estrita abandona qualquer ambição
explicativa em geral: uma vez limitada aos fenômenos psíquicos, cuja
definição mesma passa pela significação que adquirem para o sujeito
em questão, a análise psicopatológica passa a identificar explicação com
compreensão e, no final das contas, a contentar-se com esta última.
Fazendo isso, no entanto, ela curiosamente perpetua o abismo dualista
que tantos obstáculos interpôs à psiquiatria: é evidente que, aí, se con-
tinua a conceber a causa como orgânica - a não ser nos casos em que
o espiritualismo latente a certas abordagens fenomenológicas surge
mais à tona -, cuja inacessibilidade a um método psicológico de in-
vestigação conduz à renúncia à explicação e à elevação da compreen-
são à dignidade de objetivo último da análise. A alternativa, assim, para
uma fundamentação psicológica dos fenômenos mórbidos com que a
psiquiatria tem que se haver dá-se entre um associacionismo atomís-
tico, que não passa de uma paráfrase do organicismo, e uma psicolo-
gia com tendências espiritualistas, resultado da transposição das teses
fenomenológicas para o território da psicologia clínica. Renovam-se,
desta maneira, sobre este ponto específico, os velhos impasses do
dualismo, dos quais a psiquiatria parece incapaz de se livrar. Não é
para causar surpresa, então, que as tentativas de revitalizar a psiquia-
tria, entre elas a de Lacan, vão obrigatoriamente ter que passar por
uma crítica epistemológica da psicologia. O fato de que Lacan venha
a propor, explicitamente, uma espécie de terceira via para a resolução
do problema- que se manifesta, por exemplo, nos esforços de estabe-
lecer uma verdadeira causalidade psíquica, na utilização da noção de
formações reacionais, típicas do psicogeneticismo, para a formulação
de um determinismo concreto e científico, etc. - indica, pelo menos,
um certo grau de consciência desta situação.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 43
26 Lacan, na Tese, não percebe ainda o quanto a opção pela psicogênese, levada ao
limite, conduz para fora do campo psiquiátrico propriamente dito. Ele o perceberá
depois, quando então tentará resolver, em terreno psicanalítico, os problemas an-
teriormente propostos. Henri Ey, ao contrário, está plenamente cônscio disto
quando formula o seu "dilema psiquiatricidà'. Ao criticar as saídas equivocadas
deste dilema, que, em geral, exacerbam uma das alternativas, ele faz um comen-
tário irônico, que um leitor de má-vontade poderia muito bem endereçar a Lacan.
Reproduzimo-lo como curiosidade: "Ora, renunciando a ser médico, ele se torna
vingador de ofensas, diretor de consciência, psico-higienista, orientador profissio-
nal, psicotécnico, quando não se engaja em especulações filosóficas, em busca do
44 RICHARD THE!SEN S!MANKE
Tese chega até Lacan como parte de sua herança psiquiátrica31 • Mas,
para que os fatores reacionais possam vir a compor uma estrutura ca-
paz de sustentar uma apreensão globalizante da psicose, será preciso
que se amplie o alcance teórico-clínico atribuído à noção de per-
sonalidade, o que apenas se insinua na concepção de Kraepelin (ou,
mais precisamente, na leitura retrospectiva que Minkowski faz de
Kraepelin, bastante informado pelos debates psiquiátricos que lhe são
contemporâneos).
Ora, este é, talvez, o principal mérito das idéias de Binet e Si-
mon, que este autor recapitula na continuidade. Dentre os postulados
que estes desenvolvem, encontram-se, tanto a diretriz de abordar a psi-
cose enquanto totalidade3 2, quanto a de que, para ultrapassar a mera
descrição sintomática, é preciso referir os fenômenos clínicos à perso-
nalidade tomada como um todo33, isto é, à maneira como o conjunto
da inteligência e do estado mental reagem frente aos sintomas especí-
ficos. É a Lacan que caberá estabelecer a interdependência entre esses
dois fatores, fazendo coincidir a psicose com o desenvolvimento mes-
mo de um~ personalidade. Mas, com esses autores, o conceito de per-
sonalidade já adquire uma importância central em psiquiatria, ao mes-
mo tempo, diga-se de passagem, em que ganha destaque a vertente
35 Já que foi proposto, até aqui, o dualismo "cartesiano" como o horizonte frente ao
qual se trava o debate psiquiátrico, assinalamos a observação de Roland Dalbiez,
que situa, neste contexto, a noção de ambivalência: "Enquanto que um
intelectualismo estático, tal como o originário do cartesianismo, se vê obrigado a
negar a priori a existência de estados psíquicos ambivalentes, uma psicologia dinâ-
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 51
37 Cf. Minkowski, E. "La génese de la notion de schizophrénie ... ", p. 229: "Nasce,
assim, em psicopatologia, a noção de complexo. Daríamos dela, em nossa análise
da esquizofrenia, a seguinte definição: o complexo é, no domínio do psiquismo
m6rbido, um grupo de recordações, de representações ou de idéias, munido de
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 53
cias o que se entende por complexo, cujo conceito é dos mais difundi-
dos entre as concepções psicanalíticas, mas apenas assinalar que a ma-
neira como ele é apreendido pela psiquiatria tende a ser sempre mais
genérica e esquemática do que as elaborações freudianas, não indo
muito além dos traços genéricos presentes na definição dada por
Minkowski. Os complexos nunca desempenharão aí o papel nuclear
que Freud lhes atribuiu na determinação das afecções mentais e da vida
psíquica como um todo. Assim, no momento em que os conceitos
psicanalíticos são admitidos no interior do próprio pensamento psi-
quiátrico, eles o fazem numa formulação vaga, que permitirá uma série
de redefinições posteriores. Mesmo Lacan que, algum tempo depois
da Tese, vai atribuir também aos complexos um papel determinante,
não s6 na formação dos sintomas, mas na constituição da própria per-
sonalidade, não verá muitos problemas em caracterizá-los com muita
liberdade em relação à conceitualização freudiana. Mais que a uma fa-
culdade natural do irrequieto raciocínio lacaniano, talvez se possa atri-
buir isso à formulação imprecisa com que o conceito de complexo in-
gressa no domínio da psiquiatria, por cujos filtros chega até Lacan, e
não, ao menos neste momento, pela via direta dos textos freudianos.
Mas não é apenas a generalidade da apreensão médica desta no-
ção que determina as diferenças, mas também - e talvez principalmen-
te - um aspecto bastante típico e específico deste discurso: o comple-
xo é desprovido aí de qualquer alcance etiológico, prerrogativa do fato
orgânico primário. Se ele comparece, na doutrina de Bleuler, com a
função de complementar a explicação daquele que é o traço clínico
mais saliente destes enfermos - a saber, o autismo, que designa o cará:. ·
ter pouco realista e pragmático do pensamento e das condutas -, .é
para dar conta apenas dos aspectos positivos do conteúdo psicológico
do sintoma. Mas 'é a outra face do fato patológico que é determinante,
aquela que é objeto da análise dica psico-clínica, ou seja, os fatores de
ordem deficitária, muito mais importantes para a preservação doca-
uma carga afetiva considerável e destacado dos laços que deveriam religá-lo nor-
malmente à unidade do devir psíquico do indivíduo".
54 RICHARD THEISEN S!MANKE
39 Minkowski, E. "Recherches sur le rôle des complexes dans les manifescacions mor-
bides des aliénés". Citado por Roland Dalbiez, O método psicanalítico e a doutri-
na de Frettd, vol. 1, p. 256.
56 RICHARD THEISEN S!MANKE
2 PP, p. 23.
62 RICHARD THEISEN SJMANKE
4 Esta definição, que surge na edição de 1899 do Lehrhuch der Psychiatrie e man-
tém-se nas edições subseqüentes, é citada por Lacan no contexto da discussão que
comentamos aqui. Ela limita a paranóia "ao desenvolvimento insidioso, sob a de-
pendência de causas internas e segundo uma evolução contínua, de um sistema
delirante duradouro e impossível de abalar, e que se instaura com uma conservação
completa da clareza e da ordem no pensamento, no querer e na ação" (PP, p. 23).
64 RICHARD THEISEN S!MANKE
8 PP, p. 36.
9 Ogilvie intitula o primeiro capítulo de seu livro, dedicado especificamente à Tese,
"a objetividade do subjetivo", aludindo às dificuldades desta "via estreità' que
Lacan quer abrir (Lacan: la formation du concept de mjet, p. 1O).
68 RICHARD THEISEN SIMANKE
11 Ao qual Lacan acrescenta, como hipótese necessária, a ação do ideal do eu. Estes
termos são creditados à psicanálise e, para dar conta de como estas crises sócio-
vitais podem se converter em um estado de tensão interna, é invocado também o
conceito de Über-lch que, cm Freud, deriva do ideal do eu. Este último conceito
vai, depois, desempenhar um papel fundamental na explicação da paranóia de
auto-punição, que é o objetivo imediato da Tese.
12 PP, p. 41, n. 23. Discutiremos no próximo capítulo a influência politzeriana que
o emprego deste termo denota.
70 RICHARD THE!SEN S!MANKE
influente, biólogo Jakob von Uexküll. Além disso, enquanto não dis-
põe de uma teoria que lhe permita diminuir ainda mais o alcance da
determinação biológica, o que só ocorre quando toma contato com a
idéia da prematuração, Lacan é forçado a dar um alcance ainda restri-
to à sua hipótese psicogênica. Assim, embora se expresse em termos
causais, refere-se apenas à determinação do sintoma, de modo que a
sua causalidade psicológica continua sendo, no fundo, uma patogenia,
não atingindo o fundamento etiológico da enfermidade. Em outras
palavras, o que Lacan faz na Tese é duplicar a explicação causal estrita
(orgânica) com uma abordagem fenomenológica, calcada, no entan-
to, na história concreta e não em um jogo abstrato de significações, a
qual, em certos casos - como o da paranóia, uma psicose considerada
como exclusivamente interpretativa, como uma folie raisonnante -,
pode bastar para a abordagem total pretendida, permitindo economi-
zar a referência a uma base biológica e informando suficientemente a
análise clínica14 . Mas a extensão deste método ao conjunto da psiquia-
tria, sugerida por Lacan, fica ameaçada, ~nquanto não se puderdes-
pojar o orgânico de qualquer poder de explicação positiva, pois esta
abordagem seria tanto mais parcial - um pecado imperdoável do pon-
to de vista lacaniano-quanto mais se endereçasse àquelas afecçóes de
tipo demencial, epiléptico, paralítico, etc. Uma vez, no entanto, que a
metodologia lacaniana tenha assim ampliado a sua esfera de validade,
haverá uma via aberta para a abordagem clínica adquirir um alcance
quase absoluto, já que, tradicionalmente, ela divide com a etiologia
orgânica o campo da explicação psiquiátrica. Com a definição da pa-
ranóia como "fenômeno de conhecimento" que coroa a Tese, esta ex:.
tensão da idéia de clínica vai levá-la a identificar-se com o próprio tra-
balho teórico. É nesse contexto, em que tenta pôr nos seus devidos
17 PP. p. 59.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 75
18 "A partir daí, somos levados ao amplo quadro definido por Claude com o nome
de psicoses paranóicas". PP, p. 200; grifos do autor.
76 RICHARD THEISEN S!MANKE
19 PP, p. 71. Esta noção de reação passional é um elemento importante nas concep-
ções de Clérambault sobre o automatismo mental. Lacan destaca aqui o quanto
este automatismo adquire os contornos de uma lógica impecável: o ponto de parti-
da do delírio (denominado, justamente, "postulado", vinculado aos fenômenos
elementares, determinados organicamente) é caracterizado como um "embrião
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 77
21 PP, p. 85.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 79
22 Vai ser ainda em torno desta noção que Lacan propõe, mais tarde, no ceceiro ano
do Seminário, uma teoria da psicose, onde ela aparece como resultado de uma
falta na constituição simbólica do sujeito; a inspiração psiquiátrica desta noção se
manifesta, ainda aí, quando Lacan toma como ponto de partida uma considera-
ção de Hesnard sobre "o universo mórbido da falta". É verdade que, nesse novo
contexto, a referência à "faltà' tem já um alcance muito maior, e diz respeito ao
problema da constituição do sujeito como um todo.
23 PP, p. 98; grifos do autor.
80 RICHARD THE!SEN SlMANKE
24 Lacan cita, como conclusão deste capítulo de sua revisão da literatura especializa-
da, uma fórmula creditada a Bleulc:r, mas que atravessa as obras de Kretschmer e
Kehrer: "Não existe a paran6ia, mas apenas paranóicos". Escusado assinalar o
quanto esta frase prepara o leitor para a exposição da análise ("total", "individual",
"concreta") de um único caso como comprovação das teses avançadas até então.
A habilidade de Lacan de fazer dos enunciados de seus interlocutores metáfora e
confirmação de suas próprias intuições já aparece, embrionariamente, aqui.
25 PP, p. 126.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 81
26 PP, p. 128.
27 PP, P· 131.
82 RICHARD THEISEN S!MANKE
28 PP, p. 135.
29 PP, p. 138.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 83
déjà vu, adivinhação do pensamento, etc.), Lacan afirma que "a inter-
pretação se apresenta aqui como um distúrbio primitivo da percepção "34.
Ou seja, fenômenos até então considerados alucinatórios·ou pseudo-
alucinatórios são colocados na dependência da interpretação delirante
que, a partir daí, responde pelo distúrbio observado e não apenas rea-
ge a ele secundariamente. Esta inversão do argumento organicista é
tanto mais significativa quanto se verifica no âmbito da consideração
da hipótese organogênica. Como Lacan não está, ainda, totalmente
tranqüilo quanto ao descarte dos fatores biológicos, ele coloca as coi-
sas de modo a que sua definição, a ser formulada, da paranóia como
fenômeno de conhecimento permaneça válida mesmo naquelas situa-
ções onde parece evidente a determinação orgânica, corno é o caso dos
distúrbios puerperais: também eles surgem como efeito da onipresente
atividade cognitiva da interpretação patogênica. É verdade que, ao si-
tuar a interpretação nesse nível tão primitivo da produção dos sinto-
mas, Lacan retira-lhe, em parte, o caráter racional que tendia a ser-lhe
atribuído pelos adeptos da psicogênese, e não só por estes. Lacan per-
cebe muito bem o quanto um intelectualismo estrito na descrição de
afecções como as paranóias e as obsessões é um apanágio da funda-
mentação organicista. Tampouco este detalhe é fortuito, pois, se essa
interpretação perde o caráter de reação a um processo orgânico, ela
precisa ser remetida a uma outra ordem de determinação (do contrá-
rio, estaríamos restritos a algo semelhante à abordagem fenomeno-
lógica jaspersiana) e, para tanto, tem que estar, pelo menos em parte,
fora do controle racional do sujeito. Assim, a "significação pessoal" que
estes distúrbios inequivocamente apresentam não é uma propriedade
primordial de um espírito livre, cuja essência repousa nas relações de
sentido, mas um efeito de "relações de natureza social"35 , o que se evi-
dencia no fato de· que não são quaisquer percepções que sofrem estas
modificações, más sim aquelas referentes a objetos que possuem sig-
38 PP, p. 242.
39 Lacan retoma este argumento numa outra passagem, onde afirma que "ela só con-
seguiu levar a cabo o que escreveu de melhor, e de mais importante, no momento
mais agudo de sua psicose e sob influência direta das idéias delirantes. A queda
da psicose, por outro lado, parece ter acarretado a esterelidade de sua penà' (PP,
p. 289).
90 RICHARD THEISEN SIMANKE
40 PP, p. 244.
41 PP. p. 247. A referência à.fixação não deve levar, ainda, a um cruzamento apressado
de Lacan com as teorias freudianas, já que o conceito tem um sentido bastante
distinto nos dois casos. Mesmo assim, é ao longo desta discussão que Lacan co-
meça a apelar com mais freqüência a conceitos formulados por Freud. Contudo,
como o sentido deste apelo é explicitado no último capítulo da Tese, reservemos
para o final o comentário destas passagens.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 91
42 PP, p. 247.
92 RICHARD THEISEN SIMANKE
só se deve à abertura psicológica de seu método, pois nada implicava esta hipótese
nas primeiras sínteses teóricas dessa doutrina" (PP, p. 251; grifos nossos).
45 PP, p. 252.
46 PP, p. 253.
94 RICHARD THEISEN SIMANKE
49 PP, p. 266.
50 PP, p. 266; grifos do autor.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 97
5B Ver, por exemplo, Hélene Védrine, Le1 grandes conceptions de l'imagi.naire de Platon
à Sartre et Lacan, p. 132. Retornaremos aos modelos antropológicos aproveitados
por Lacan no capítulo V, onde, então, a convergência com uma série de diretrizes
maussianas poderá ser especificada.
59 A saber: "1. Clareza significativa das concepções do delírio; 2. Imprecisão lógi.ca e
espaço-temporal de seu desenvolvimento; 3. ~lorde realidade da expressão que '.
eles dão de um complexo ou de um conflito desconhecidos pelo sujeito; 4. Orga- ·
nização destas concepções por um princípio pré-lógico de identificação iterativa
(PP, p. 297-8; grifos do autor).
102 RICHARD THEISEN S!MANKE
ensão objetiva, tanto da massa anônima dos asilos, quanto dos lumi-
nares da loucura esclarecida. O estudo dessas formas será a tarefa de-
cisiva da ''ciência, ainda nascente, da personalidade" 6º, a cuja funda-
ção provisória é dedicado o último capítulo da Tese.
mação vital socializada. Essa noção tão crucial para o corpus lacaniano
faz assim uma inusitada estréia na teoria. Ela alinhava, aliás, no seu
percurso total, uma heterogênea série de referências, bem ao gosto de
nosso autor, que vai do lugar do desejo na teoria espinozista das afec-
ções, passa por essa escala pragmático-behaviorista e pelo papel cons-
tituti,vo que desempenha na dialética da consciência relida por Kojeve,
até aportar, com toda esta bagagem prévia, no Wunsch freudiano, cujo
sentido só pode, depois de tudo isso, se alterar significativamente.
Mas o que impede realmente que essa aproximação com o com-
portamento animal não desemboque numa nova espécie de reducio-
nismo (menos fisiológico e mais etológico, talvez) é o privilégio con-
cedido ao aspecto social. Em contrapartida, para que a referência
central à ordem social não reconduza a uma abordagem excessivamente
intelectualista e "compreensiva", no sentido fenomenológico, é preci-
so que ela se ampare em uma particular teoria do meio, dentro da qual,
justamente, a definição proposta para o desejo adquire seu pleno sen-
tido, já que se trata de uma teoria que deve fazer convergir o biológico
e o social, pelo menos no caso humano. É essa teoria, então, que arre-
mata a doutrina lacaniana inicial e dá suporte às suas pretensões de
originalidade, a qual consiste, no fundo, em reapresentar, sob um novo
arranjo, elementos presentes em diversas tendências psiquiátricas, que
se alinham naquele espectro que vai de um máximo a um mínimo de
organicidade positiva, de um mínimo a um máximo de compreensi-
bilidade abstrata. O que Lacan espera é que, ao interceptar urna com
a outra estas duas séries, em algum ponto médio, a compreensibilidade
possa ser concreta, e a organicidade - no sentido das ações de um or-
ganismo frente ao meio, principalmente, mas trazendo consigo uma
parte dos processos internos - possa ser compreensível. Esta ênfase no
meio circundante vai marcar toda a obra de Lacan, num contraste
marcante com Freud, cuja concepção da realidade tendia sistematica-
mente a ser reabsorvida no aparelho psíquico. Inclinação que se ma-
nifesta mesmo depois que este meio se metamorfoseia na "estrutura
da linguagem" que, enquanto tal, permanece sempre externa ao sujei-
to, cuja condição neurótica ou psicótica vai depender, inclusive, do
fato <;lele aí ingressar ou não.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 107
nóià. Contudo, a causa eficiente - o "conflito moral com a irmã" - cem um pa-
rentesco maior com o ponto de vista social, nàquilo em que ele define os con-
teúdos possíveis para a psicose e o ambiente das construções reativas; as causas
ocasionais estão mais próximas do ponto de visi:a individual, mas referem-se ape-
nas aos aspectos contingentes do desencadeamento mórbido, aí incluídos proces-
sos orgânicos (o parto e o puerpério de Aimée, por exemplo) e transformações da
situação sócio-vital (o casamento, a mudança do campo para a cidade, etc.); já a
causa especifica está mais próxima do ponto de vista estrutural, já que se refere ao
conjunto das condições predisponentes historicamente constituídas pelo indi-
víduo - mais ou menos aquilo a que Lacan se referia como "a anomalia anterior
da personalidade", que, juncamente com a fixação de desenvolvimento, forma-
vam as causas primeiras da psicose de Aiméé. Cf. Ogilvie, B. Lacan: la formation ·
du concept de sujet, p. 77-85.
71 PP, p. 312; grifos do autor. Bertrand Ogilvie dá destaque a este conceito de ten-
dincía concreta no ·esforço lacaniano de precisar a determinação específica da per-
sonalidade, e o define como "o comportamento de um organismo em presença
de um objeto de seu meio, no qual se concretiza a intenção ou tendência que
caracteriza sua orientação psíquica com relação a este objeto" (Lacan: la formation
du concept de sujet, p. 55). Este conceito ·está intimamente ligado, portanto, ao
papel do meio na determinação da personalidade, que passa, inclusive, pela no-
ção espinozista de paralelismo, no caminho para a conceituação da paranóia como
fenômeno de conhecimento. Retornaremos a isso mais adiante.
110 RICHARD THEISEN S!MANKE
72 PP, p. 313.
73 PP, p. 313; grifos do autor.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 111
74 PP, p. 315; grifos do autor. Para atestar a longevidade do projeto lacaniano que se
esboça aqui, basta lembrar que, no artigo "Some reflections on the ego" (p. 12),
de 1951, Lacan aponta uma "teoria genética do eu" como a tarefa legítima para
"toda psicologia genuína e científica".
75 PP, p. 315; grifos do autor.
76 Lacan: la formation du concept de sujet, p. 45.
112 RICHARD THEISEN SJMANKE
reza. A própria maneira como Lacan vai tentar, mais tarde, "amarrar"
os seus três registros pode ser considerada uma herança desta con-
tradição (além de uma concessão tardia a Espinoza), isto na medida
em que o simbólico se identificar com a cultura, e o mundo da natu-
reza oscilar entre determinações imaginárias e reais (em reflexões pos-
teriores sobre a etologia, Lacan tenta mostrar como o imtinto - isto é,
as tendências herdadas e, por isso, inscritas no real do corpo biológico
- provê uma série de regulações imaginárias para o comportamento
animal) 77 •
Resenhemos, então, rapidamente, alguns passos da evolução do
conceito de meio, para nela situar tanto a posição lacaniana, quanto a
das referências que invoca78 • Essa noção, importada da física newto-
niana para a biologia, guarda aí, durante muito tempo, a significação
mecânica que tinha no seu local de origem (fluido intermediário entre
dois corpos, postulado para dar conta da ação à distância entre enti-
dades físicas distintas). Ê com Buffon- aliás, mentor da abertura dos
Écrits, com o adágio "o estilo é o próprio homem" - que esta concepção
vai cruzar-se com uma outra, que pode ser remontada à Antigüidade
hipocrática: a dos antropogeógrafos, que buscavam explicar a varieda-
de dos tipos humanos {raças, povos, culturas) pelas características físi-
cas do lugar em que habitam. Estes dqis componentes das teorias so-
77 Bento Prado Jr. aponta como a tripartição S/I/R está, curiosamente, a serviço da
superação do dualismo biológico/psíquico e, portanto, de um monismo que
Espinoza inspira a Lacan desde a Tese. Não se trata, no entanto, de um monismo
substancialista, já que esta recusa dá-se no contexto de uma teoria da constitui-
ção dos objetos (ver "Lacan: biologia e narcisismo ou a costura entre o real e o
imaginário", p. 55-6). Por outro lado, o alerta espinozista de que o dualismo le-
vado ao pé da letra conduz a uma proliferação infinita de "substâncias" pode aju-
dar a entender que Lacan tenha recorrido a um complicado modelo topológico -
o famoso "nó borromeu" - para amarrar seus três registros de um modo cm que
cada um faz a conexão entre os outros dois, dispensando instâncias mediadoras
suplementares.
78 Nosso guia, neste percurso, será o artigo de Georges Canguilhem, "Le vivant et
son milieu".
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 113
ser humano não deixa de ser, ela também, um fato biológico. Assim
retocadas, as concepções de Comce sobre o meio podem constituir um
substrato adequado para o determinismo rastreado por Lacan, com o
que fica igualmente corrigida a doutrina de von Uexküll que, se não
deságua num antropomorfismo voluntarista (o que, no plano psiquiá-
trico dificilmente deixaria de redundar em alguma espécie de cons-
ciencialismo), atribui, não obstante, um excessivo peso à posição cen-
tral do sujeito, fundindo de tal maneira organismo e ambiente que
inviabiliza a discriminação de uma instância causal com relação à or-
dem dos efeitos84 • Ainda no domínio de uma teoria do conhecimen-
to, vale assinalar que as posições de von Uexküll se prestam muito bem
para alimentar as críticas posteriores que Lacan vai endereçar a toda
epistemologia de feitio realista: Uexküll, fiel à sua inspiração kantiana,
é muito explícito em afirmar que isto que chama de Umgebung - o
mundo exterior supostamente "dado" - não passa, na verdade, do
Umwelt do homem, que a ciência, no seu afã de objetividade, hiper-
trofia a ponto de erigi-lo em realidade absoluta, num antropocen-
trismo que fere todo compromisso com a verdade factual. Talvez esta
seja uma das razões da notável persistência das menções ao heterodo-
xo biólogo, que se prolongam até a obra mais tardia de Lacan.
A posição de Lacan na Tese pode ser descrita, então, como a de
um vitalista reservado85, e essas reservas lhe vêm mais dos propósitos
Uexküll, Umwelt und lnnenwelt der Tiere, Berlim, 1909. Vê-se que, em nossa co~-:
cepção, aqui de acordo com Aristóteles, o meio humano, no sentido que lhe dá
Uexküll, seria por excdência o meio social humano" (PP, p. 337, nota). Lacan
encadeia imediatamente a essa passagem uma crítica às antropologias individua-
listas, que subentende a necessidade de uma nova; ou seja, uma antropologia
menos como teoria do homem do que como teoria do meio humano.
84 Cf. a crítica de Goldstein às posições de von Uexküll, referidas igualmente por
Canguilhem, "Le vivant et son milieu", p. 144.
85 "Vitalismo", aqui, está sendo empregado no sentido bem amplo que lhe dá
Canguilhem, num artigo em que empreende uma verdadeira reabilitação filosÓ·
fica desta corrente de pensamento: o de qualquer teoria biológica que se oponha
~s "ambições anexionistas das ciências da matérià' {ver "Aspects du vicalisme"),
120 RICHARD THEISEN SIMANKE
listas que ela herda de suas origens. Mas é claro que esta "substância
únicà' - que· comparece, em Espinoza, para dissolver as antinomias
da oposição entre Deus e Natureza - tem que ser reelaborada no nível
mais prosaico da clínica ou, no máximo, da epistemologia que se esbo-
ça nas reflexões de Lacan. É assim que ela passa a designar a existência
social do indivíduo, já convenientemente filiada à própria biologia da
espécie humana: Lacan, convocando desde Uexküll até Aristóteles,
quis deixar hem estabelecido o ponto de vista de que o homem é, por
natureza, um animal social e que, portanto, este caráter constitui, sob
qualquer ponto de vista, a essência do fenômeno humano. O corpo,
são ou doente, é sempre um corpo socializado, e o que se denomina
"psíquico" ou "mental" se converte num fator de adaptação do vital
ao social. Na medida em que processos orgânicos e psíquicos não po-
dem mais ser desvinculados dessa existência social, na medida em que
participam dela necessariamente, sua definição como "modos" desta
recém-fundada "essêncià' torna-se admissível, ao menos no sentido
metafórico que, forçosamente, deve revesçir este transporte abrupto de
questões onto-teológicas para os problemas sublunares da doutrina e
da prática psiquiátrica. No fundo, é a mesma problemática das dis-
cussões em torno do conceito de meio que retorna travestida no novo
vocabulário. Pois o quadro que tentamos delinear da evolução destas
concepções mostra justamente que esta consistiu em transpor para a
relação indivíduo/meio uma reformulação em curso sobre a relação
parte/todo na construção do organismo 87 • Ou seja, por um lado, in-
troduziu-se um ponto de vista que podemos chamar de estrutural na
descrição das funções e da arquitetura orgânica, onde o todo determi-·
na o significado vital das partes (como na obra exemplar de Kurt
Goldstein, A estrutura do organismo, cuja influência estende-se a auto-
res como Cassiret e Merleau-Ponty); por outro lado, o organismo pas-
87 Mais uma vez, é Canguilhem que dá a expressão concisa dessa confluência: "Do
ponto de vista biológico, é preciso compreender que, entre o organismo e o am·
biente, há a mesma relação que entre as partes e o todo no interior do próprio
organismo" ("Le vivant et son milieu", p. 144).
122 RICHARD THEISEN SJMANKE
88 PP, p. 342. A fórmula a que Lacan se refere aqui não é a expressão geral da dou-
trina do paralelismo, mas aquela contida na citação anteposta à Tese como
epígrafe, à qual retornaremos na continuidade.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 123
89 Esta proposição reza: "Uma afecção qualquer de cada indivíduo difere 4-a afecção
de outro, na medida em que a essência de um difere da essência de outro". O·
scholium desta mesma proposição acrescenta: "Segue-se daí que as afecçóes dos
seres vivos que são ditos privados de razão(...) diferem das afecções dos homens
na medida em que sua natureza difere da humanà'. Quanto ao desejo, ao qual se
fará menção abaixo, diz a demostratio: "Mas o Desejo é a natureza mesma ou a
essência de cada um; portanto o Desejo de cada um difere do Desejo de um ou-
tro na medida em que a natureza ou essência de um difere da essência de outro"
(cf. a tradução de Charles Appuhn, p. 192-193). Roudinesco assinala como La-
can, visando preservar a distinção entre discrepat e differt, ignorada por Appuhn,
introduz, na tradução que apresenta ao final da Tese, a idéia de discordância,
familiar às teorias intelectualistas da paranóia, como a de Chaslin (ver Jacques La-
can ... , p. 68-9).
124 RICHARD THEJSEN StMANKE
91 PP, p. 336.
92 É nitidamente a um argumento bergsoniano que Lacan recorre aqui (o que aliás
se confirma numa nota acrescentada a seguir, em que se refere a Matéria e memó-
ria). Da mesma forma que apela para Uexküll para afirmar a continuidade entre
o meio vital e o ineio social, lança mão, agora, de Bergson, para argumentar pela
continuidade entre os comportamentos animais e humanos, embora, na conti-
nuidade, demonstre preferência pelos conceitos do pragmatismo (o de "experiên-
cia neutra'' ou "experiência pura'', denominações jameseanas) para contestar uma
distinção substancial entre sensação e matéria. Lacan parece seguir Bergson até o
ponto em que Minkowski o segue, isto é, até o ponto em que pode segui-lo um
psiquiatra interessado em conservar alguma forma de determinismo psíquico, re-
velando bem a porta de entrada destas alusões.
128 RICHARD THE!SEN SJMANKE
93 PP, p. 337.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 129
94 PP, p. 338.
130 RICHARD THEISEN SIMANKE
% PP, p. 339.
97 PP, p. 338; grifos do autor.
132 RICHARD THEISEN SJMANKE
99 PP, p. 254-65.
100 Melanie Klein, contudo, reforma significativamente o psicogeneticismo estrito
de Abraham, ao propor o seu conceito de posição (primeiro a depressiva e, de-
pois, a esquizo-paranóide), provavelmente o primeiro conceito decididamente
estrutural a firmar-se na teoria psicanalítica.
136 RICHARD THEISEN S!MANKE
gética. Como conciliar, então, o emprego dessa noção com o recuo para
o segundo plano da dimensão afetiva dos distúrbios? São tomadas,
basicamente, duas providências: diluir a significação estritamente se-
xual do conceito e dele extrair certas conotações epistêmicas. Lacan,
de fato, aproveita todo o esforço de Freud para alargar o conceito de
sexualidade e o interpreta no sentido de uma extensão da noção de
libido ao conjunto dos apetites do ser humano. Com isso, consegue
fazê-la equivaler mais ou menos à noção de desejo (no sentido bem
amplo do eros antigo, precisa ele), já parte integrante de seu próprio
instrumental e receptiva às significações sociais em torno das quais
gravita a explicação. Isto tudo, evidentemente, ao preço de esquecer
que a ampliação da esfera sexual pretendida por Freud destinava-se a
mostrar que a sexualidade está presente onde menos se suspeita, e não
que os fenômenos sexuais são casos particulares no universo maior das
motivações humanas. Como é o desejo que governa a atividade inter-
pretativa que dá forma ao nicho social do sujeito, onde se constrói sua
personalidade como fenômeno de conhecimento, este deslocamento
cria a abertura para a inserção da libido na reflexão de índole episte-
mológica que pontua todas as elaborações clínicas de Lacan.
Reflexão que, no entanto, salta abruptamente para o outro ex-
tremo, aquele que considera as estratégias científicas possíveis para a
psicologia: "Quanto à imprecisão relativa do conceito de libido, ela
não deixa para nós de ter seu valor. Tem, com efeito, o mesmo alcance
geral que os conceitos de energia ou de matéria em física, e nessa qua-
lidade representa a primeira noção que permite entrever a introdução
em psicologia de leis de constância energética, bases de toda ciência'' 102•
102 PP, p. 256; grifos do autor. Vê-se que, embora alinhado com um cerco vitalismo,
Lacan não despreza, por isso, o papel da física como ciência exemplar. Essa
contradição - bem como a astúcia que consiste em interpretar tendenciosamen-
te a evolução contemporânea da física como convergindo com o modelo de
ciência que ele mesmo pretende para a psicanálise - são objetos da crítica de
François Roustang em Lacan: de /equivoque à l'impas1e. Retornaremos a isso no
capítulo III.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 139
ios É verdade que Lacan fala de Freud, nesse ponto; como rendo demonstrado a
relação privilegiada desta fase com a gênese dos "instintos sociais" (PP, p. 260). É
preciso ter cm conta, no entanto, que a referência que ele tem de Freud consiste
basicamente em um texto: "Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na
paranóia e na homossexualidade", que ele próprio traduzira para a Revue française
de psychanalyse. Nesse artigo, além de se ocupar com certos fenômenos comuns
às neuroses e psicoses, como o próprio título indica, Freud, de fato, trata de dis-
túrbios que transcorrem no meio sócio-familiar, como o ciúmes, por exemplo.
Vale a pena citar uma passagem, em que são descritos os ciúmes chamados nor-
mais, que, obviamente, inspira Lacan: "Estes ciúmes, por mais que os chame-
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 141
mos normais, de ·modo algum estão totalmente de acordo com a ratio, isto é,
nascidos de relações atuais, proporcionais às circunstâncias efetivas e dominados
sem resíduos pelo eu consciente; com efeito, estão arraigados nas profundezas
do inconsciente, retomam as mais antigas moções da afetividade infantil e bro-
tam do complexo de :Édipo ou do complexo dos irmãos, do primeiro período se-
xual" (Studienausgabe, vol. VII, p. 219; grifos nossos). Observando que a expres-
são "complexo dos irmãos" não é, de forma alguma, freqüente em Freud.
106 PP, p. 261; grifos nossos.
142 RICHARD THEISEN SIMANKE
109 Tanto mais observáveis na medida em que Lacan prossegue no seu trabalho de
tradução dos estágios da libido de uma metapsicologia das pulsões para uma an-
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 145
deste instinto -, Lacan se vangloria de que "tais dados nos foram tra-
zidos diretamente pelo exame dos fatos. O que devemos à psicanálise no
reconhecimento desses fatos se limita à confirmação deles pelos dados ad-
quiridos no estudo das neuroses e pelas correi.ações teóricas estabelecidas
sobre esses dados" 11 º. A contribuição psicanalítica à Tese é restringida,
então, a uma função corroborativa. Mas o privilégio concedido ao
"exame dos fatos" não deve produzir ilusões quanto à isenção do mé-
todo lacaniano: ele já afirmou, com todas as letras - e contra qualquer
empirismo ingênuo-que as doutrinas criam os fatos 111 • Trata-se, por-
tanto, de uma questão eminentemente doutrinária, e a psicanálise é
valorizada na exata medida em que seus dados são assimiláveis a esta
doutrina.
Diga-se, no entanto, a favor de Lacan - e este é um ponto em
que ele se distingue nitidamente de seus colegas psiquiatras - que ele
detecta pelo menos um tópico na teoria psicanalítica que, impróprio
para o consumo médico na sua forma dada, merece, ainda assim, um
esforço no sentido de aperfeiçoá-lo. É verdade que mesmo esta dispo-
sição é movida por uma necessidade intrínseca ao projeto da Tese, mas,
ao propor-se a introduzir modificações na própria doutrina que lhe
chega de Freud, Lacan está sendo levado, mesmo que restrito a este
item específico, a pensar mais como psicanalista do que como psiquia-
tra. Este item, para dizê-lo logo, é a teoria do narcisismo. Pois a impor-
cropologia da família. Nesta passagem, ele, mais uma vez, tenta fazer coincidir a
fase anal-sádica com a da instalação do complexo fraterno. Este propósito fica
bem evidente na formulação dos três complexos básicos, no artigo "La famille",
onde, grosso modo, o complexo de desmame vai corresponder à fase oral, o comple-
xo de intrusão à fase anal, e o complexo de Édipo à fase fálica.
11 º PP, p. 321; grifos nossos.
111 Lacan reiterara isto algumas páginas antes, nos termos bem específicos do seu
projeto de ciência: "Sendo assim definida a ciência da personalidade, pode-se
ver claramente a natureza de nossa tese: ela se sustenta na afirmação doutrinal de
que os fenômenos mórbidos, que a psicopatologia situa dentro do quadro da psi-
cose, dependem dos mltodos de estudo próprios aos fenômenos da personalidade"
(PP, p. 316; grifos do autor).
146 RICHARD THEISEN SIMANKE
113 Lacan emprega aqui a denominação Soi, então corrente, para traduzir o Es
freudiano. A bem da uniformidade da terminologia, adotamos desde já a solu-
ção "isso~ mais adequada para traduzir o Ça que predominará ao longo da obra
de Lacan. O mesmo vale para os termos eu (Moi) e supereu (Sur-Moi) que vimos
empregando.
114 PP, p. 325; grifos do autor.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 149
nalítica passe a ser, para Lacan, um fim em si mesmo, mas, ainda as-
sim, com a proposição de um projeto bastante singular de ortodoxia.
O fato de que esta psicologia almejada deva servir, em primeiro lugar,
às necessidades da clínica das psicoses, dará um colorido peculiar ao
esforço epistemológico de Lacan. A importação de noções clínicas para
esta reflexão é mais ou menos simétrica às digressões epistemológicas
que entremearam-se à investigação da paranóia e antecipa a verdadei-
ra identificação entre o trabalho clínico e o teórico que Lacan virá a
propor posteriormente.
III. O CONHECIMENTO
COMO FENÔMENO PARANÓICO
toda uma corrente utilitarista, que passa por Hume, Adam Smith e os Enciclope-
distas, entre outros, contém ainda um outro princípio, que permanece informula-
do: ''Este principio é a definição do próprio homem como ferramenta. Ao utilitaris-
mo, implicando a idéia de utilidade para o homem, a idéia do homem como juiz
da utilidade; sucedeu-se o instrumentalismo, implicando a idéia da utilidade do
homem, a idéia do homem como meio de utilidade" ("Qu'est-ce que la psycho-
logie?", p. 377-8). Esta é uma obsetvaljâO que permite compreender a facilidade
com que a mecânica dos instrumentos de investigaljâO contamina seu objeto.
6 Cf. o título do primeiro capítulo do livro de Ogilvie: "A objetividade do subjeti-
vo: a via estreita do 'ponto de vista' da pessoà' (Lacan: la formation du concept de
sujet, p. 10).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 155
9 ~também Pierre Gréco que elege as posições comteanas e bergsonianas como re-
presentativas dos impasses epistemológicos da psicologia, no artigo citado, que
acompanhamos em linhas gerais.
10 O método comparativo de Herbart - que visava garantir a objetividade da psicolo-
gia, à falta de um método experimental nem sempre viável - prescrevia a observa-
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 157
verdade, tem uma razão mais profunda, que aponta para o próprio
coração do projeto lacaniano.
Além de conter a bem conhecida condenação metodológica da
introspecção .... que Lacan compartilha e que consiste, de fato, na par-
te do veto positivista que está disposto a aceitar-, a destituição da
psicologia do elenco das ciências positivas prende-se a considerações
epistemológicas: se a contemplação direta do espírito pelo espírito não
pode passar de uma pura ilusão, tudo o que concerne à observação
externa e direta do homem isolado é da alçada da biologia, sendo su-
pérflua a fundação de uma ciência original para disso se ocupar. Numa
palavra, a apreensão objetiva do indivíduo humano só o revela enquan-
to organismo, plano no qual ele não porta nenhuma peculiaridade
decisiva em relação ao mundo animal e, portanto, as ciências biológi-
cas já existentes são perfeitamente adequadas para esta tarefa. Num
outro plano, apenas os fenômenos sociais, em si mesmos, dão-se à
observação na forma objetiva, a consideração dos indivíduos pertur-
bando a positividade do conhecimento sociológico com os ruídos da
subjetividade. "Fisiologia e sociologia constituem exaustivamente a
ciência positiva do homem" 11 , e o que fica excluído nesta recusa, tan-
to num extremo quanto no outro, é a possibilidade de uma ciência do
sujeito: não há razão que se perceba para que uma ciência dos fatos
psíquicos não possa ser tão positiva quanto se queira - o que foi, de
fato, realizado com relativo sucesso por diversas escolas posteriores,
como o behaviorismo ou a Gestalt -, mas sempre ao custo de excluir a
referência ao sujeito, a única capaz de preservar a especificidade epis-
temológica da psicologia, mas definitivamente inefável para uma me-
todologia positiva12 . Daí, a suspeita crônica que paira sobre toda atri-
buição do predicado "científicà' a qualquer psicologia que não seja
apenas uma versão pobre das ciências naturais. Suspeita que um Polit-
zer, por exemplo, a quem retornaremos em breve, enunciou nos termos
mais duros, aos quais Lacan não permaneceu indiferente. Este mal-
estar na psicologia foi criado pelo positivismo e, de certa forma, jamais
dissipado. É Gréco quem nos dá a sua expressão mais sintética: "Esta
é a infelicidade do psicólogo: ele não está jamais seguro de que "faz
ciência". Se o faz, não está jamais seguro de que isto seja psicologià' 13 •
A crítica bergsoniana é, em todos os sentidos, simétrica à do
positivismo, já que parte de um ponto de vista totalmente oposto - a
irredutibilidade da vida interior ao tipo de objetivação proposto pela
ciência - para chegar à mesma conclusão. Se Comte desabonava uma
ciência psicológica por ser supérflua, Bergson a recusava por ser falsa.
É sobre a crítica dos métodos e resultados da psicologia de laborató-
rio, por um lado, e da psicopatologia mecanicista, por outro - já nos
estendemos sobre o modo como a primeira parafraseia a segunda .:...
que ele constrói um sistema votado à preservação da unidade e da ori-
ginalidade do espírito. A complexa elaboração que estabelece a dura-
ção como forma da interioridade constitui, assim, uma crítica simul-
taneamente anti-dementarista e anti-reducionista, endereçada, antes
de tudo, ao associacionismo clássico 14 que, como Lacan muito bem
12 Gréco assinala ainda que, do ponto de vista comteano, esta especificidade episte-
mológica deveria oscilar entre a metafisica e algutl!-a coisa semelhante à análise
literária. Não é para se estranhar, então, que o pensamento lacaniano, ao tentar
garantir a identidade da psicanálise como ciência do sujeito, acabe se inclinando
em direção à primeira, na sua peculiar metapsicologia, e em direção à segunda,
na prática clínica.
l3 ln: "Épistemologie de la psychologie", p. 937.
14 Para não dar um sentido nobre demais ao termo clássico, vale lembrar o comen-
tário de Canguilhem que, além disso, ilustra bem o estado de crise permanente
da psicologia, cujo desenvolvimento nos pinta o curioso quadro da história de
uma ciência feita quase que s6 de rupturas: "Se denominamos psicologia clássica
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 159
aquela que pensamos refutar, é preciso dizer que, em psicologia, há sempre clássi-
cos para alguém" ("Qu'esc-ce que la psychologie?", p. 373).
l5 Cf. Gréco, P. "Épistemologie de la psychologie", p. 932.
160 RICHARD THEISEN SIMANKE
16 Cf. Ganguilhem, G. "Qu'est-ce que la psychologie?", p. 367: "E, com efeito, uma
psicologia apenas pode ser dita experimental em razão de seu método, e não em
razão de seu objeto. Ao passo que, apesar dás aparências, é pelo objeto, mais que
pelo método, que uma psicologia é dita clínica, psicanalítica, social, etnol6gica.
Todos estes adjetivos são indicativos de um único e mesmó objeto de escudo: o
homem, ser loquaz ou taciturno, ser sociável ou insociável".
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 163
18 Maud Mannoni é um dos poucos autores dos círculos mais próximos a Lac:an a
reconhecer, sem muitos problemas, a influência 'decisiva de Politzcr na formula-
ção do projeto lacaniano inicial: "Lacan, a partir de 1932, tirou partido das críti-
cas (e dos erros) de Politzer, dando a seus próprios trabalhos uma orientação qua-
se fenomenológica (muito diferente da orientação mecanicista de Clérambault,
seu mestre). Ele utilizou, assim, a noção de 'drama humano' na psicose, fazendo
do psic6cico a testemunha de um drama que o atravessa" (La théorie comme fic-
tion: Freud, Groddeck, Winnicott, Lacan, p. 131).
19 Para um apanhado das repercussões posteriores da obra de Politzer, ver o artigo
de Bento Prado Jr., "Georges Po!itzer: sessenta anos da Crítica dos fandamentos
da psicologia''.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO l'ARANÔICO 165
que Lacan pode ter tirado de suas idéias, destacam-se dois pontos mais
específicos: primeiro, o processo aberto contra os descaminhos histó-
ricos da psicologia acadêmica, que compõe, juntamente éom a penú-
ria da clínica das doenças mentais sob a bandeira do organicismo,. a
principal motivação para o esforço crítico que Lacan desenvolveu na
Tese; segundo, a proposição de um modo particular de interpretação
da obra de Freud e, num sentido um pouco mais amplo, das teses psi-
canalíticas em geral, que vai orientar longamente a leitura lacaniana,
mesmo num estágio em que o seu encaminhamento já tenha sido com-
pletamente redirecionado. É nas páginas da Tese que o aspecto crítico
do pensamento de Politzer faz sentir mais nitidamente sua presença,
com inovações metodológicas sendo postas por Lacan a serviço da
desmontagem de preceitos dogmáticos profundamente arraigados nas
doutrinas psiquiátricas. Mesmo que o nome de Politzer não seja cita-
do uma vez sequer - para o que se pode imaginar muitas razões, desde
a pouca boa vontade da circunspecta psiquiatria universitária para com
um autor estrangeiro, comunista e francamente mau comportado, até
a já manifesta despreocupação de Lacan em esclarecer suas fontes-,
suas idéias, seu vocabulário e o tom de sua crítica permeiam boa parte
º.
das elaborações lacanianas efetuadas ali 2 Isso, mais as cenas de
policzerianismo explícito que se seguem- com destaque para o artigo
"Au-délà du 'Príncipe de realité"', ao qual retornaremos na sequên-
cia-, fornecem evidências bastantes para que a influência do autor da
Critique... não seja passível de muitas dúvidas. Nos trabalhos posterio-
res à Tese, Lacan vai estar mais ocupado com a tarefa construtiva de .
estabelecer os parâmetros para uma psicologia que possa ser, enfim,
positiva; as indicações politzerianas serão aí decisivas, principalmente
no que diz respeito ao aproveitamento da psicanálise, afinal, a única
corrente "psicológica" efetivamente analisada, tanto por Politzer quan-
to por Lacan. Se é verdade que Politzer aderiu depois, por razões
26 Por exemplo, Lacan, em 1938, abre seu texto sobre a família - no qual engrena,
definitivamente, esta releitura antropológica da psicanálise - afirmando o grupo
familiar como o objeto ideal para ser abordado pelos métodos dessa nova psicolo-
gia: "Esta estrutura cultural da família humana é inteiramente acessível aos mito-
dos da psicologia concreta: observação e análise? Sem dúvida, esses métodos bas-
tam para pôr em evidência traços essenciais, como a estrutura hierárquica da
família,e para reconhecer nela o órgão privilegiado dessa violência do adulto so-
bre a criança, violência à qual o homem deve uma etapa originária e as bases arcai-
cas de sua formação moral" ("La familie" [doravante LF], p. 40-3; grifos nossos).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 169
31 Esta concepção de que "a linguagem faz ato" (uma expressão freqüentemente
empregada por Lacan em anos posteriores) deu margem, inclusive, a algumas ten-
tativas de aproximação entre o significante lacaniano e a teoria dos performativos
de Auscin (ver, por exemplo, o texto de John Forrester, "O que o psicanalista faz
com as palavras: Austin, Lacan e os atos de fala da psicanálise").
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 173
32 Que se tente, a título de exercício, ler com olhos lacanianos a seguinte passagem:
"Ora, é claro que a vida psicológica de um outro s6 nos é dada através de uma
"narrativa" ou de uma "visão". Narrativa, quando se trata de expressão por meio
da linguagem (em todos os sentidos da palavra); "visão" quando se trata de gestos
ou, em geral, de ação" (CFP, p. 92; grifos nossos). Os parágrafos seguintes cami-
nham no sentido da fenomenologia e de um pragmatismo social (à la Habermas,
segundo Prado Jr., no artigo citado, p. 26-7), que são bastante afins com o pri-
meiro Lacan, mas afastam-se daquele que nos é mais conhecido.
174 RICHARD THEISEN SIMANKE
33 Ver CFP, p. 28. E, mais explicitamente, um pouco adiante: "( ... )apenas a psica-
nálise pode dar hoje em dia a visão da verdadeira psicologia, porque ela é já uma
encarnação destà' (CFP. p. 32).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 175
34 CFP, p. 34.
35 CFP, p. 35.
176 RICHARD THEISEN SiMANKE
36 CFP, p. 49.
37 Ver CFP, p. 49, n. 3: "Nós tomamos, a partir daqui, o termo je para designar a
primeira pessoa, e não no sentido técnico que ele cem em Freud".
38 Ver, por exemplo, a seguinte passagem: "O moi é, então, a causa dos fatos de cons-
ciência, ao mesmo tempo que o sujeito da introspecção: o que olha e o que é
olhado. Mais freqüentemente, aliás, o moi é simplesmente o lugar dos fatos psi-
cológicos, no início, e sua síntese, no final. Seja como for, o moi permanece sem-
pre abstrato" (CFP, p. 57).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 177
45 "O método psicanalítico não é, portanto, outra coisa do que uma técnica que per-
mite aprofundar, em conformidade com as exigências da psicologia concreta, as
significações" (CFP, p. 111-2; grifos nossos).
182 RICHARD THEISEN S!MANKE
47 Indo nesse mesmo sentido, Roland Dalbiez, que, depois de Politzer, leva adiante
o processo da metapsicologia, elabora uma demorada demonstração de que a no-
ção de inconsciente só faz sentido dentro de uma concepção realista. Cf. O méto-
do psicanalítico e a doutrina de Freud, Vol. II, p. 9-24.
48 CFP, p. 128.
184 RICHARD THEISEN S!MANKE
49 CFP, p. 134.
so CFP, p. 131; grifos nossos.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 185
52 CFP, p. 225.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 187
58 PR, p. 74.
59 PR, p. 74; grifos do autor.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANOICO 193
60 PR, p. 75; grifos do autor. Este é, de fato, o eixo da crítica à psicologia efetuada
por Merleau-Ponty em Le structure du comportmmt, onde, por exemplo, se inspi-
ra largamente nas teses de Kurt Goldstein sobre a estrutura ou a construção
(Aujbau} do organismo.
194 RICHARD THE!SEN S!MANKE
61 PR, p. 76.
62 PR, p. 76; grifos do autor.
63 PR, p. 76; grifos nossos.
196 RICHARD THEISEN S1MANKE
67 PR, p. 78.
200 RICHARD THEJSEN S!MANKE
74 PR, p. 86.
75 A tonalidade peculiar das idéias de Uexküll a este r~speito transparece em várias
passagens. Por exemplo: "a natureza não poderia mais se desvelar sob nenhuma
figura humana, e cada progresso da ciência apagou dela um traço antropom6rfi-
co" (PR, p. 86). O emprego anti•reducionista destes pontos de vista fica bem ela·
ro quando Lacan aponta como este antropocentrismo trabalha contra uma an-
tropologia em formação, tão indispensável à fundamentação da psicologia:
"Transportar a mesma exigência de redução em uma antropologia em vias de nas-
cer, impô-lo mesmo em seus objetivos mais longínquos, é desconhecer seu objeto
e manifestar autenticamente um antropocentrismo de uma outra ordem, a do
conhecimento" (PR, p. 87; grifos do autor).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 207
78 PR, p. 88.
79 PR, p. 88.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 209
89 LF, p. 42-1.
216 RICHARD THEISEN SIMANKE
90 LF, p. 42-1.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 217
91 LF, p. 42-1.
218 RICHARD THEISEN SIMANKE
95 LF, p. 42-4.
96 LF, p. 42-4.
222 RICHARD THEISEN SIMANKE
97 LF, p. 42-5.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 223
98 LF, p. 42-6.
99 Este texto resulta de uma discussão ocorrida durante as jornadas psiquiátricas de
Bonneval em 1946, que tinha por tema "A psicogênese", e foi publicado inicial-
mente num volume intitulado A psicoglnese e os distúrbios psíquicos. Estes títulos
dão a idéia do quanto as questões aqui discutidas se alinham com as preocupa-
ções iniciais de Lacan.
224 RICHARD THEISEN S1MANKE
100 Propossur la causalité psychique (doravante CP), p. 152; grifos nossos. Como já
observamos, esta crítica a Jackson, através de Ey, é interessante por dar a medida
da distância que separa os projetos iniciais de f reud e de Lacan: para Freud, a
noção funcional de aparelho sempre foi indispensável, sendo a principal marca
da inspiração jacksoniana da metapsicologia; Jacques Nassif, que aborda - sob
uma ótica bem lacaniana, é verdade - as origens da psicanálise freudiana como
uma tomada de consciência teórica das rupturas operadas por nomes como Char-
cot, Bernheim e Jackson em seus domínios espedficos, expressa essa distância
como sendo aquela que separa uma probkmática dos aparelhos, típica de um neu-
rologista, de uma probkmática tÚJs signos, na qual se situa um psiquiatra. Pode-se
sugerir que a réleitura lacaniana de Freud consiste na sua recondução progressiva
da primeira para a segunda. Ver Nassif. J. Freud, l'inconscient, principalmente o
segundo capítulo, "Jackson et le domaine de l'inconscient", p. 105-258.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 225
101 CP, p. 153; grifos nossos. É essa versão específica do cartesianismo psiquiátrico
que Lacan condena; ele retomará, na continuidade, a discussão do organicismo
sobre um pano de fundo cartesiano.
226 RICHARD THE!SEN S!MANKE
I05 "O uso da palavra requer bem mais vigilância na ciência do homem do que em
qualquer outro lugar, pois ele engaja aí o ser mesmo de seu objeto" (CP, p. 161).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 231
normal, isto abriria uma via para expulsar, de uma vez por todas, os
devaneios abstratos dos psicólogos para o registro da superstição e sau-
dar o ingresso da nova ciência nos reinos da positividade.
É evidente que Lacan não se contenta com essas considerações,
à primeira vista bastante saudáveis. O próprio fato delas parecerem não
fazer outra coisa que subir e descer os pratos da balança onde se pe-
sam o espiritualismo abstrato e o materialismo mecânico, surge-lhe
como razão suficiente para ingressar de novo em considerações filosó-
ficas que, aliás, são a tônica da segunda parte deste artigo, indo de
Descartes às insinuações kojevianas que, cada vez mais, vão despontar
sob sua pena. Ele não hesita, mesmo, em sugerir, com relação ao pri-
meiro, um slogan que depois fará escola a respeito de um outro perso-
nagem: "Eu penso, por isso, que a palavra de ordem de um retorno a
º
Descartes não seria supérfluà' 1 8• A justificativa presente para tanto é a
passagem das Meditações... onde o filósofo se refere aos "insensatos ...
ofuscados pelos negros vapores da bílis", que rendeu depois, da parte
de Foucault, duas páginas muito debatidas da Histoire de la folie à l'J.ge
classique em que este discute o porquê da exclusão da loucura do elen-
co das razões naturais de duvidar. 109 Discussão que não é alheia ao
que está em foco aqui, já que diz respeito, justamente, à possibilidade
de atribuir ao louco uma subjetividade pensante, o que, para Lacan,
seria uma condição indispensável para que ele possa conter, de algu-
ma forma, a verdade do sujeito em geral. Embora não se aprofunde
na questão, Lacan não deixa de assinalar o fato surpreendente de que
Descartes não tenha lançado mão de um argumento aparentemente
tão adequado aos seus propósitos.
IOS CP, p. 163; grifos nossos. Esta citação não é meramente anedótica: a simpatia
que Lacan precocemente demonstra com o mote "retorno a... " - que vai fazê-lo
entusiasmar-se de imediato com o "retorno a Saussure" incentivado pela linha
de frente do estruturalismo - é um bom índice da sua propensão a um uso me-
tafórico das teses alheias, que lhe permitirá adotar mesmo aquelas mais distantes
ao seu domínio específico.
109 Ver meu artigo "Lacan: subjetividade e psicose" para uma discussão da relação
dessa passagem com o empreendimento lacaniano inicial.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 233
11 º CP, p. 164.
111 CP, p. 165; grifos nossos. O que se segue são algumas tintas do aproveitamento
lacaniano das idéias de Kojêve, que exporemos aqui exatamente nos termos em
que se colocam e: que interessam à questão do objeto da psicologia. Uma aprecia-
ção mais detalhada desta importante fonte de inspiração para Lacan fica reserva-
da para o Capítulo V. Cabe assinalar, porém, que, se estas observações fazem-se
presentes aqui, é devido à mesma percepção da necessidade de uma fundamen-
tação antropol6gica para a psicologia que vem orientando as formulações
lacanianas desde a Tese.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 235
115 CP, p. 167; grifos nossos. A}-. "palavras da paixão", assim como a "palavra de se-
nhà', são os exemplos prediletos que Lacan usa para mostrar que a significac;ão
da palavra não tem nada a ver com aquilo que ela designa. Ele retoma o caso das
palavras amorosas (''mon petit chou~ por exemplo) na conferência Le symbolique,
l'imaginaire etle réel de 1953.
238 RICHARD THEISEN S!MANKE
116 "O momento de viragem é dado, aqui, pela mediação ou a imediatidade da identi-
ficaej:ão e, para dizer a palavra, pela infatuação do sujeito" (CP, p. 171).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 239
121 "Some reflections on the Ego", p. 12; grifos nossos. Este texto, publicado em
1953 no lnternational Journal ofPsychoanalysis, configura, juntamente com uma
tradução para o inglês de "Le myche individuei du nevrosé", as duas únicas con-
tribuições de Lacan ao órgão oficial da Associação Internacional de Psicanálise.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 243
lacaniana, isso takrez sugira que as linhas de força deste projeto per-
maneceram mais ou menos constantes ao longo do percurso.
Este passo tão significativo no encaminhamento da investiga-
ção de Lacan se organiza em torno do eixo fornecido pela chamada
teoria do estdgio do espelho, proposta em 1936, e que recebe sua for-
mulação mais acabada em 1949, no artigo "Le stade du miro ir comme
formateur de la fonction du Je". Desse modo, a história da construção
da teoria lacaniana do imaginário coincide, grosso modo, com a série
de elaborações sucessivas que o modelo do estágio do espelho recebeu
no período 1936-1949, cada momento dessa evolução estando tam-
bém condicionado pelo campo de aplicação e o tipo de problema ao
qual este modelo foi chamado a contribuir com suas soluções. Af po-
demos listar a formação do eu, a agressividade, a criminologia, a
remodulação da teoria do narcisismo, entre outros, todos de alguma
maneira relacionados com a clínica das psicoses através de seus tópi-
cos subsidiários (identificações alienantes, as idiossincrasias do delí-
rio, a relação com as diversas encarnações do "outro", por exemplo).
Sob certo aspecto, a questão que Freud deixou respondida de modo
inconcluso ao final de sua obra - a formulação de uma explicação
metapsicológica para a psicose - foi a primeira tarefa teórica de enver-
gadura que Lacan se atribuiu ou que, pelo menos, pode ser descrita
nesses termos a partir do momento em que os alvos de sua investiga-
ção inicial passaram a receber expressão em termos psicanalíticos.
Seja como for, essa teoria do imaginário em formação possui
inegáveis conotações antropológicas - aliás, não poderia ser de outra
maneira, dada a importância atribuída à antropologia desde a conclu-
são da Tese -, e isso em dois sentidos: em primeiro lugar, no de que
ela pretende embasar uma teoria da gênese do eu, a qual, à medida que
Lacan for criticando a concepção ortodoxa do ego como mera instân-
cia intrapsíquica objetivada, vai-se convertendo em uma verdadeira
teoria da constituição do sujeito, com todas as implicações e pretensões
filosóficas que uma tal mudança acarreta. É, pois, de uma teoria da
antropogénese que se trata, de uma tese sobre a origem do sujeito hu-
mano em sua especificidade "ontológica". Teremos oportunidade de
verificar, no próximo capítulo, o quanto esta teoria está impregnada
IMAGENS E COMPLEXOS 247
3 Cf. LF, p. 40-3. A inspiração ainda comteana do texto, assim como a distância
que este pretende tomar com relação ao determinismo biol6gico, manifesta-se, já
em sua abertura, na observação de que, no homem, ao contrário dos outros ani-
mais que vivem em sociedade, a famClia é a efetiva uniáade social.
4 LF, p. 40-3.
5 LF, p. 40-3.
250 RICHARD THE!SEN S!MANKE
7 LF, p. 40-3.
8 LF, p. 40-3; grifos :nossos.
9 Ao comentar o artigo sobre a família em seus cursos da Sorbonne, Merleau-Poncy
percebe muito bem que se trata, para Lacan, de substituir efetivamente o conceito
e que a noção de imago vem se colocar no lugar da problemática "representação
inconsciente" freudiana: "Lacan tende a substituir a noção de 'inconsciente' pela
de 'imaginário'. A imago, por exemplo, em vez de ser inconsciente, soterrada em
profundidade, deve ser considerada como uma formação 'imaginária', isto é, proje-
tada diante da consciêncíà' (Merleau-Ponty à la Sorbonne: resumé de cours, p. 109).
252 RICHARD THEISEN S!MANKE
10 LF, p. 40-S.
11 Este objetivo se manifesta explicitamente numa comunicação de Lacan à Socie-
dade Psicanalítica de Paris, onde ele procura mostrar como as impulsões- termo
genérico, que pode recobrir desde os fenômenos do instinto até o Trieb freu-
diano, passando por certas manifestações psicóticas reconhecidas desde longa
data pela psiquiatria - podem ser remetidas aos complexos que organizam o de-
senvolvimento, permitindo assim localizar a origem dos sintomas numa escala
genética sem ter que recorrer aos dados da maturação da libido (ver "De l'impul-
sion au complexe (1938)").
IMAGENS E COMPLEXOS 253
14 LF, p. 40-5.
15 Ver LF, p. 40-5: "Esses efeitos têm características de tal modo distintas e contin-
gentes que elas fonpm a admitir como elemento fundamental do complexo esta
entidade paradoxal: uma representação inconsciente, designada sob o nome de
imago. Complexos e imagos revolucionaram a psicologia, e especialmente a da
família, que se revelou o lugar de eleição dos complexos mais estáveis e mais típi-
cos (...)"; grifos nossos. ·
16 Cf. Merleau-Ponty à la Sorbonne... , p. 109: "A imago, no sentido freudiano, não
significa uma representação sensível, nem atual, mas um centro implícito da
conduta".
256 RICHARD THEISEN S1MANKE
18 LF, p. 40-6. Essa fórmula conciliatória não visa somente a. Freud, mas também às
fontes psiquiátricas (Bleuler, Minkowski), através dos quais a importância do con-
ceito fez-se clara para Lacan. Um uso tipicamente minkowskia.no do termo o de-
nuncia a.qui: ·~sim também as crenças delirantes, nas quais o sujeito a.firma um
complexo como uma realidade objetiva; nós o mostraremos particularmente nas
psicoses familiares" (LF, p. 40-6).
258 RICHARD THE!SEN SIMANKE
19 LF, p. 40-6.
20 LF, p. 40-6.
260 RICHARD THEISEN S!MANKE
21 LF, p. 40-6.
IMAGENS E COMPLEXOS 261
22 Lacan salienta o interesse da criança pela configuração constituída pelo rosco hu-
mano (LF, p. 40-7); é aquilo que René Spitz, em seus estudos sobre a psicanálise
do desenvolvimento precoce denomina "Gestalt privilegiada".
262 RICHARD THEISEN S!MANKE
diz Lacan, o que quer dizer que a imago em geral domina a vida do
homem, para o bem ou para o mal, já que ela precisa ser "sublimadà'
- e sublimada, para Lacan, quer dizer capturada na rede das significa-
ções sociais - para permitir o surgimento de novos complexos, com o
conseqüente engendramento de novas imagos, e assim por diante. É
nesse processo, que nosso autor quer o mais dialético possível, que
consiste o desenvolvimento humano. A não-sublimação da imago23 , nos
termos em que agora se apresenta, é uma tese que já se pode chamar
de metapsicológica, com os devidos cuidados e que explica o fato da
fixação de desenvolvimento, detectada na clínica da paranóia. Em suma,
a sobrevida da imago materna ao longo da história individual faz com
que as sucessivas perdas implicadas pelo crescimento e pela indepen-
dência progressiva da tutela familiar sejam vividas, imaginariamente,
como uma série de novos "desmames". A intenção de subsumir tudo
isso ao crivo da dialética kojéviana se manifesta claramente na conclu-
são de Lacan: "Todo acabamento da personalidade exige esse novo des-
mame. Hegel formula que o indivíduo que não luta para ser reconhe-
cido fora do grupo familiar nunca atinge a personalidade antes da
morte" 24 • Este "acabamento da personalidade" é a versão mais an-
tropogênica que se pode dar à realização do conceito da consciência
de si, cujo processo a Fenomenologia do espírito descreve. Lacan vai,
nesse ponto, bem mais longe que Kojeve, já que empurra a noção até
o domínio _da psicologia individual. De qualquer modo, há pelo me-
nos uma ocasião dentro da vida familiar em que o sujeito pode-se exer-
citar na luta pelo reconhecimento, antes de ser lançado às feras do
mundo social. Esta ocasião é o complexo da intrusão que, em razão da
centralidade que a referência kojeviana começa a assumir, vai ser pro-
posto como o verdadeiro complexo nuclear do desenvolvimento,
desbancando, na concepção lacaniana, o lugar privilegiado que o com-
plexo de Édipo adquirira com Freud.
Mas as seduções da dialética são s6 um aspecto do privilégio de
que o complexo da intrusão desfruta nesse momento. Pelo menos mais
duas razões podem ser detectadas, que não deixam, porém, de articu-
lar-se umas com as outras: a sua maior proximidade com as situações
e os sentimentos sociais e a sua coincidência - cronol6gica, mas tam-
bém estrutural - com o estágio do espelho. O primeiro aspecto se ma-
nifesta logo no subtítulo desta seção ("o ciúme, arquétipo dos senti-
mentos sociais"). A intenção do autor é, portanto, não só articular a
gênese do sujeito com uma certa dinâmicà familiar, mas também mos-
trar como as sedimentações intrapsíquicas dessa dinâmica - as onipre-
sentes imagos - colaboram na produção dos sentimentos sociais. Es-
tes, aliás, os dois modos em que a teorização empreendida neste
período revela o seu compromisso com a antropologia social: quando
propõe uma gênese social do sujeito e quando atribui uma gênese ima-
ginária à sociabilidade.
Ao se concentrar no ciúme, a análise lacaniana visa, em primei-
ro lugar, colocar esse segundo complexo em continuidade com o de
desmame e, assim, afirmar, não só a prevalência e a precocidade25, mas
a presença maciça dos determinantes culturais no funcionamento fa-
26 LF, p. 40-8. Lacan aproveita, mais adiante, para denunciar como a concepção
freudiana do ciúme hesita nesse ponto e permanece presa à idéia darwiniana de
que a luta está na própria origem da vida e ao clidrê do homo homini lupus (LF, p.
40-9). Mais um pecado biologista de Freud, como se vê.
27 A inversão das prerrogativas concedidas a este ou aquele complexo na passagem
de Freud para Lacan faz-se clara aqui. Freud, com o papel "nuclear" que atribuía
ao complexo de Édipo e à temática da castração a ele relacionada, afirmava que o
desmame (ou o nascimento:e outras situações de separação ou perda) s6 poderia
ser vivenciado como uma castração retrospectivamente (nachtriiglich, apres-coup,
como quererá Lacan mais tarde). A perspectiva de Lacan, ao colocar o complexo
fraterno na dependência do complexo de desmame, é, nesse momento, muito
mais genética do que a de Freud.
IMAGENS E COMPLEXOS 265
28 LF, p. 40-9.
29 LF, p. 40-8.
266 RICHARD THE!SEN S!MANKE
33 LF, p. 40-9; grifos nossos. Nunca é demais salientar a freqüência com que Lacan
recorre ao vocabulário da dialética. De fato, ele concebe sistematicamente cada
complexo como uma situação antagônica (tese/antítese) que se resolve numa
imago (síntese). Assim, a oposição lactação/desmame se resolve na constituição
da imago materna; a oposição fraterna, na constituição da imago do outro, e as-
sim por diante.
IMAGENS E COMPLEXOS 269
36 LF, p. 40-10.
IMAGENS E COMPLEXOS 271
37 Ver LF, p. 40-11: "Foi ao descobrir, na análise das neuroses, os fatos edipianos
que Freud trouxe á luz o conceito de complexo". Ou seja, a importância do Édipo
em Freud é que ele foi ocasião de uma descoberta; mas uma análise teórica rigo-
rosa deve demonstrar o seu papel secundário com relação aos complexos mais
arcaicos. Lacan, aqui, segue provavelmente Melanie Klein em suas especulações
sobre as versões precoces e pré-genitais do complexo de Édipo, apenas recusando
esta última denominação àquelas configurações primordiais. Ele será, de certa
forma, mais kleiniano ainda quando, mais tarde, subsumir todo esse desenvolvi-
mento à problemática edípica, com sua teoria dos "crês tempos do Édipo".
272 RICHARD THEISEN S!MANKE
48 LF, p. 40-14.
IMAGENS E COMPLEXOS 281
que Freud expressa suas teses sobre o Édipo, adaptando-as à sua visa-
da antropológica e, em certo grau, culturalista. Va1e a pena citar na
íntegra a seguinte passagem, em que tanto as angústias edípicas, com
suas raízes superegóicas, quanto sua resolução sublimatória, traduzem-
se perfeitamente no novo vocabulário: "Ora, em nosso tempo, menos
que nunca, o homem da cultura ocidental não poderia ser compreen-
dido fora das antinomias que constituem suas relações com a natureza e
com a sociedade: como, fora delas, compreender não só a angústia que
ele exprime no sentimento de uma transgressão prometéica em relação às
condições de sua vida, mas também as concepções mais elevadas com
que vence esta angústia, reconhecendo que é através de crises dialéticas
que ele se cria, a si mesmo e a seus objetos?"5 1•
É o conceito de ideal do eu, formação imaginária pela qual se
efetua a transmissão familiar da cultura, que amarra a vertente antro-
pológica e a vertente psicológica do pensamento de Lacan nesta fase.
Não é por acaso que ele procura distingui-lo, com a maior precisão
possível, do eu, do supereu e também, mais tarde, do "eu ideal", trans-
formando uma oscilação terminológica de Freud em duas instâncias
distintas. O processo formativo de todas essas instâncias gravita em
torno do estágio do espelho, núcleo de toda a constituição da subjeti-
vidade. É o exame, então, do que consiste exatamente este estágio que
vai permitir caracterizar mais de perto o teor e a vocação da teoria la-
caniana do imaginário que ele subsidia.
52 Na verdade, pode-se dizer que há uma dupla vertente nas concepções espinozis-
tas sobre o imaginário: numa, mais tradicional, a imaginação é considerada numa
perspectiva de inferioridade com relação aos poderes do entendimento; na outra,
a pr6pria radicalização da perspectiva racionalista leva ao reconhecimento de uma
''16gica do imaginário" e, conseqüentemente, sua distinção do que seria um puro
erro do espírito (cf. Vedrine, H. Les grandes conceptions de J'imaginaire... , p. 65-
6). Por razões 6bvias, a exposição que se segue dá maior ênfase a esta segunda
vertente.
IMAGENS E COMPLEXOS 285
53 Uma exposição sistemática deste tipo pode ser encontrada no livro de Michele
Bertrand, Spinoza et l'ímaginaire, no qual nos apoiamos para o que se segue. Uma
visão mais resumida do mesmo tema é exposta em Les grandes conceptions de
l'imaginaire... , de Helenc: Védrine, Cap. V, "Puissance et imagination selon Spi-
noza", p. 63-86.
54 A teoria espinozista do conhecimento admite três formas ou níveis do conheci-
mento. O primeiro é o da experiência vaga ou confusa que decorre da interação
do corpo com os outros corpos e opera basicamente com imagens. O segundo se
constrói a partir desse primeiro nível, através da generalização das características
que todos os corpos, quando considerados sob o modo da extensão, têm em co-
mum; formam-se, assim, as "noções comuns" que integram o conhecimento cien-
IMAGENS E COMPLEXOS 287
infinita das interdependências que nos ligam ao resto da natureza, e que não cessam
de afetar, isto é, de modificar as diferentes partes do nosso corpo".
59 Assinale-se, contudo, que, além desse princípio externo de coesão (pressão do
ambiente, choques exteriores, etc.), Espinosa acrescenta um princípio interno,
que diz respeito à essência singular de cada corpo e ao conatus, isto é, o esforço
para perseverar no próprio ser. Lacan, diga-se de passagem, não verá nenhuma
dificuldade em identificar o conatus ao Eros freudiano, o princípio que rege a
combinação de toda as coisas e que se opõe, portanto, ao poder desagregativo da
pulsão de morte.
290 RICHARD THEISEN S!MANKE
ação da alma conduz sempre a uma paixão do corpo, a algo que o cor-
po experimenta passivamente. Em Espinosa, ao contrário, corpo e
alma serripre agem ou $ofrem uma ação concomitantemente, já que
não passam de dois atributos sob os quais se pode conceber o mesmo
todo. É esse liame que se estabelece entre a imaginação e as paixões da
alma- uma vez que a imaginação resulta, em última instância, de uma
afecção do corpo - que permitirá a Espinosa atribuir-lhe uma dinâ-
mica distinta daquela do entendimento, sem, no entanto, desqualificá-
la como forma de pensamento.
Quando, em Descartes, afirma-se a heterogeneidade fundamen-
tal entre extensão e pensamento - e é isso que determina a relação in-
versa entre as paixões e ações do corpo e da alma-, fica aberto o cami-
nho para a consideração daqueles fenômenos do espírito que podem
ser ditos patológicos. Basta invocar, como exemplo, os muito comen-
tados "negros vapores da bile", que obscurecem o cérebro dos insensa-
tos e os fazem imaginar ser reis ou ter um corpo de vidro. Ou seja, a
alma sofre uma ação do corpo que a leva a pensar de maneira anôma-
la, mas como a imaginação não pode ser julgada por outras leis que
aquelas do entendimento, isso só pode conduzir à sua desqualificação:
ela é uma forma pervertida do pensamento. Traduzindo tudo para o
jargão psiquiátrico, é uma concepção deficitária da loucura que se en-
contra em Descartes, e dela a psiquiatria fez-se herdeira ao longo da
sua história. Uma autonomia pelo menos relativa da imaginação com
relação ao entendimento puro é, assim, a primeira condição para que
se possa considerar mesmo a~ mais desvairadas de suas produções como
uma forma válida de pensamento e de cognição.
Acrescente-se, ainda, que, para Descartes, a intelecção em geral
- isto é, o processo pelo qual se concebe uma idéia, se produz uma
representação-é passivo no que interessa à cognição. O componente
ativo do conhecimento é o juízo de adesão ou não a uma asserção ou
um enunciado. Daí que a vontade surja como o fator que induz ao
erro, que, de outra maneira, não se compreende muito bem como po-
deria ocorrer no âmbito do entendimento puro, inspirado com idéias
daras e distintas pela bondade divina. Ora, para Espinosa, o juízo vem
embutido na própria representação, ou seja, perceber e conceber já é,
IMAGENS E COMPLEXOS 291
de alguma forma, julgar; daí que ele se preste muito melhor aos obje-
tivos de Lacan de fazer da própria percepção um fenômeno ativamen-
te cognoscente, uma interpretação da informação sensorial bruta, que
constitui uma realidade, e não apenas a absorve. Em suma, se Lacan
vai recorrer, depois, continuamente a Descartes, em busca de apoio
filosófico para suas elaborações em torno do sujeito do inconsciente,
ele só poderá fazê-lo, consistentemente, após desistir da idéia de uma
determinação e de uma constituição do sujeito de responsabilidade
exclusiva do modo imaginário - isso, é claro, sem entrar no mérito de
sob que condições Descartes vai poder servir de referência depois que
a pedra de toque do empreendimento lacaniano tiver se convertido
no registro do simbólico. Em Descartes, não há um imagindrio pro-
priamente dito, no sentido de uma região da subjetividade animada
por uma lógica e uma legítimidade específicas, mas apenas um "mundo
imaginado" totalmente homogêneo ao pensamento consciente e aos
critérios do intelecto60, onde uma imaginação só será uma represen-
tação ·válida, em vez de um erro, quando Q entendimento mostrar que
ela corresponde fidedignamente àquilo que existe. De outra parte, há
em Espinosa um imaginário que pode ser quase um inconsciente e
cuja dinâmica própria pode ser descrita de modo a afirmar a validade
de suas produções, independentemente de quaisquer critérios de
correspondência.
Em primeiro lugar, porque o imaginário não diz respeito dire-
tamente ao conhecimento das coisas exteriores: "Ele exprime ou, se se
prefere, ele indica - e isso é uma coisa completamente diferente de
explicar - o poder e os limites do nosso corpo" 61 • "Poder", aí, refere-se
ao conatus, enquanto esforço para perseverar na existência, que define
o organismo vivo e o ser em geral; já o "limite" é relativo ao fato de
que o homem - que, como todo ser finito, não pode ser concebido
apenas por si mesmo - é necessariamente uma parte da Natureza. É
62 Po~ exemplo: "É impossível que o homem não seja uma parte da Natureza·e não
possa experimentar outras transformações além daquelas que podem ser conheci-
das apenas por sua natureza e das quais ele é a causa adequada" (Ética, IV, 2).
63 Deixemos de lado a questão - aliás, de pouca relevância - sobre se Lacan apenas
reencontra em Espinosa as premissas de seu método psiquiátrico ou se estas fo-
ram-lhe inspiradas já pelas leituras precoces da Ética que levoµ a cabo ainda na
adolescência.
64 Espinosa explicita as noções de causa adequada e inadequada na Definição I do
Livro III da Ética: "Eu chamo de causa adequada aquela da qual se pode perceber
o efeito claramente e distintamente por ela mesma; eu chamo de causa inadequa-
da ou parcial aquela da qual não se pode conhecer o efeito apenas por elà'. Assi-
nale-se que a idéia de atividade, para Espinosa, está ligada à de caúsa adequada:
diz-se de um ser que ele é ativo em relação a alguma coisa quando ele for a causa
adequada desta coisa.
IMAGENS E COMPLEXOS 293
75 De modo similar a Lacan, Sartre emprega o je" para a face ativa do eu, e o termo
'ínoi"para sua face passiva (em Lacan, isso seria o eu como sujeito e como objeto,
respectivamente), valendo-se do termo "Ego" para o conjunto formado por estes
dois aspectos [cf. Sartre..•, p. 38, nota].
76 Sartre... , p. 41.
IMAGENS E COMPLEXOS 301
bem diferentes sobre o que seja psicologia. Sequer a idéia de que Lacan
pudesse discordar, dadas suas preferências psicanalíticas, de que todo
esse processo se restrinja ao campo da consciência pode ·ser sustenta-
da: já vimos como ele, decididamente, não considerava, nesse perío-
do, que o inconsciente fosse um conceito indispensável à psicanálise.
Sua adesão final ao texto freudiano acabou por levar, bem mais tarde,
à recusa da idéia de que a dialética da consciência conduza ao desenla-
ce alvissareiro encarnado na figura do Sujeito Absoluto; mas, mesmo
depois que o estruturalismo lhe forneceu um conceito aceitável de in-
consciente, Lacan continuou, por bastante tempo, a descrever o pro-
cesso analítico em termos de uma superação do desconhecimento res-
ponsável pela opacidade das relações intersubjetivas que presidem à
constituição do sujeito. Agora, como a infelicidade da consciência de-
corre de seu dilaceramento trágico, isto é, do fato de que as responsa-
bilidades subjetivas encontram-se repartidas e alienadas na figura do
outro, é de novo o problema da alteridade que se coloca aqui ou, mais
precísamente, o problema do reconhecimento do outro como sujeito.
Nesse ponto, a teoria lacaniana do.imaginário está muito mais
próxima de Sartre do que permitiriam supor as críticas acerbas que
endereça depois a esse posicionamento (Lacan vai dizer, por exemplo,
que é um modo perverso de relação com o outro que resulta da con-
cepção de Sartre). Para Sartre, a existência do outro como consciência
se revela ao sujeito na experiência do olhar79 : saber-se olhado pelo ou-
tro revela a um sujeito particular o interesse concreto desse outro pe-
las circunstâncias da sua subjetividade e, assim, converte-se no sinal
da reciprocidade necessária ao jogo das consciências. Se tomamos dis:..
tância, quanto a Lacan, da experiência empírica e contingente da cap-
tação especular, é possível perceber que é o olhar do outro o verdadei-
ro espelho onde se decide a gênese da subjetividade; é porque o espelho
mostra minl;ia imagem do modo como ela é vista pelo outro que o
reflexo pode erigir-se em um primeiro esboço do eu, e esse pequeno
experimento pode surgir como paradigma fundamental da constitui-
80 Essa, aliás, a alternativa que Melanie Klein assume com muita naturalidade - para
ela, a fantasia em geral emerge espontaneamente da frustração pulsional resultan-
te da não satisfação imediata das necessidades or~nicas -, o que não deixa de ser
mais um índice das origens kleinianas da fantasia do corpo fragmentado.
IMAGENS E COMPLEXOS 307
88 Tese que contém a idéia central para a qual converge todo o texto: "A agressividade
é a tendência correlativa de um modo de identificação que nós chamamos de
narcísica e que determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de
entidades característico de seu mundo" ("I.:agressivité en psychanalyse" (doravante
AP], p. 110; grifos nossos).
89 AP, p. 110.
90 AP, P· 111.
91 A dívida de Lacan para com as premissas iniciais de sua pesquisa se manifesta
muito bem no texto "Introduction chéorique aux fonctions de la psychanalise en
criminologie", de 1950. Aí, é mais uma vez retomado o estágio do espelho para
dar conta dessa forma específica de manifestação da agressividade num contexto
316 RICHARD THEISEN SIMANKE
social que é o crime. Essa peculiaridade faz com que o viés antropológico seja muito
mais nítido nesse artigo, aspecto em que ele complementa o exame do problema da
agressividade aqui efetuado.
92 Lacan já cita em Le stade du miroir. .. o artigo de Lévi•Strauss sobre ''l.:éfficacité
symbolique" (SM, p. 91), que inspirará também o seu "Le mythe individuei du
nevrosé", o primeiro trabalho francamente estruturalisca de Lacan.
93 AP, p 112; grifos nossos.
IMAGENS E COMPLEXOS 317
100 SM, p. 91; grifos nossos. Um comentador bastante comedido de Lacan -Mikkel
Borch-Jacobsen - analisa toda a teoria lacaniana do imaginário do ponto de vista
desta idéia do homem-estátua. Ele con'clui pelo caráter perfeitamente assustador
da Weltanschauung lacaniana: "Assim é o mundo descrito por Lacan, tão estranha-
mente petrificado e estático, uma espécie de imenso museu povoado com 'está-
tuas' imóveis, 'imagens' de pedra e 'formas' hieráticas. O mundo que Lacan des-
creve como estritamente 'humano' é simultaneamente o mais inumano dos mundos
possíveis, o mais unheimlich, em todo caso: é o mundo dos duplos freudianos, um
mundo de sombras, onde cada imagem do eu é já um 'sinistro emissário' de sua
morte. Em concordincia com a estrutura fundamental da Vor-stellung objetivante,
o eu assume aqui sua 'pose' para a eternidade, naquilo que Lacan (jogando muito
conscientemente com o radical sta} chama deu~ í'nstantané'(inscantâneo), uma
'instance'(instância), um re/iefdestanm.''(tamanhoconstrastante), um 'estático', uma
'estátua', uma 'estase do ser' (...)" (Lacan, the abolute master, p. 59). Esta mesma vi-
são resulta da compara'?º com Sartre, por um comentador de inclinações terapêu-
ticas, como Betty Cannon, a quem fizemos referência acima. Esta é a raiz da aver-
são que Lacan vai demonstrar ao longo de toda a sua carreira por uma concepção
"terapêutica" da prática psicanalítica, que af revela sua afinidade com o propalado
anti-humanismo de Lacan (cf., por exemplo, Ferry, L. & Renaut, A. Pensamento de
68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo, p. 239).
IMAGENS E COMPLEXOS 321
por uma ciência tão digna quanto as outras, se não mais. Para tanto,
ele, mais uma vez, não vai encontrar melhor argumento que o recurso
aos dados da etologia. Só essa função de sustentáculo epistêmico para
uma pretendida ciência, que, discorrendo sobre um mundo de sím-
bolos e imagens, roça perigosamente as raias da literatura, explica a
persistência dessas referências à psicologia animal numa época perfei-
tamente tardia-por exemplo, a conferência intitulada ''A terceirà', já
na década de 70 - em que o pensamento lacaniano já derivou para
bem longe de seu embasamento original.
Lacan recapitula aqui seus dois exemplos prediletos de como
º
"uma Gestalt [é] capaz de efeitos formativos sobre o organismo" 1 1: a
pomba, cuja ovulação, condicionada à percepção da forma do seme-
lhante, pode ser desencadeada pelo visão de seu reflexo no espelho, e
o caso do gafanhoto, estudado por Chauvin, cujo desenvolvimento
em direção à forma gregária ou solitária de sua espécie, morfologi-
camente diferentes, depende da percepção, num certo estágio precoce
de sua existência, de um indivíduo de uma ou de outra variedade. É
claro que, a essa altura, Lacan já não advoga mais qualquer equipara-
ção entre o caso humano e o animal. O argumento que se trata de
estabelecer é o seguinte: se no animal, cujo condicionamento consti-
tucional pelos determinantes instintivos tem a abrangência necessária
para uma regulação suficiente de comportamento, efeitos morfológi-
cos (forma adulta do gafanhoto) e fisiológicos (ovulação da pomba)
podem ser desencadeados por um estímulo que é da ordem de uma
imagem e, ainda por cima, às vezes, inadequado do ponto de vista das
necessidades de sobrevivência·, imagine-se o caso do homem, onde esta
determinação inata é tão incipiente... Este é, como se vê, um argu-
mento que se pretende definitivo para uma desnaturalização da psi-
cologia e seu alinhamento definitivo com as ciências humanas: a
abordagem do homem pela via do imaginário não deve apenas com-
plementar o estudo das funções neuropsíquicas e do desenvolvimento
este ângulo a pulsão de morte freudiana 1°7, que se insere aí numa bio-
logia compatível com as diretrizes lacanianas, naquilo em que contor-
na um ponto de vista exclusivamente constitucionalista. Talvez se possa
concluir, tendo tudo isso em conta, que Caillois dá a Lacan a oportu-
nidade de passar da biologia do comportamento propriamente dita a
uma concepção do imaginário que afirma a eficácia generalizada da
imagem, estendida ao reino animal, mas preservando a particularida-
de humana que, no entanto, terá que ser justificada por um outro re-
gistro. O reaproveitamento dessas idéias quando se tratar, mais tarde,
de estabelecer uma distinção entre a visão e o olhar, que transportará
toda essa problemática para o contexto das discussões em torno do
registro do real, dá a medida da importância que Roger Caillois man-
tém aos olhos de Lacan num segmento significativo de sua trajetória.
Pois, se o meio humano é o meio social, não há nenhuma rup-
tura em afirmar, na continuidade, que é uma "dialética social que es-
trutura como paranóico o conhecimento humano" 108, com Lacan en-
tende'rido por paranóia mais ou menos ~ mesma coisa que Caillois
designava como psicastenia: esse defeito na subjetivação das instâncias
determinantes que deixa o sujeito clinicamente paranóico como que
imerso na realidade das relações que o constituíram, tomando, à falta
de uma mediação simbólica, o imagindrio pelo real procedimento que
o conhecimento comum reedita a cada passo e que o conhecimento
científico - ou melhor, o realismo científico que Lacan opõe ao rela-
tivismo - eleva ao seu mais alto grau. Mas é essa "dialética social" que
109 Cf. "A terceirà', p. 29; grifos nossos: "Ele, o corpo, se introduz na economia do
gozo (é daí que eu parti) pela imagem do corpo. A relação do homem, do que se
chama por esse nome, com seu corpo, se há algo que sublinha bem que é imagi,-.
nária, é o alcance que toma aí a imagem, e no começo, sublinhei bem isso, é que
era preciso para tal até mesmo uma razão no real, e que é a prematuração de Bolk
- não é minha, é de Bolk, eu nunca procurei ser original, procurei ser lógico -, é
que só há a prem:aturação que a explica, essa preferência pela imagem, que vem
daquilo que ele antecipa de sua maturação corporal, com tudo que isso comporta
(...)". Entre os autores que enfatizam esta permanência da referência ao imaginá-
rio ao longo de toda a obra de Lacan podemos citar Philippe Julien, num livro,
cujo título é, por si só, revelador dessa intenção: O retorno a Freud de Jacques
Lacan: a aplicação ao espelho.
110 SM, p. 93; grifos nossos.
111 "Le temps logique et l'assertion de la certitude antecipé".
328 RICHARD THEISEN SIMANKE
ma, portanto, daquela que Lacan expôs em "La famille", e que parece
vigorar ainda, pela maneira como ele retoma a sua classificação dos
complexos. Além disso, essas fantasias primordiais são elevadas por ela
à categoria de conceitos, mesmo que ao modo impetuoso e pouco sis-
temático da autora. Se Lacan tem reservas às posições kleinianas é que,
já nesse momento, parece-lhe necessário um princípio ordenador ex-
terno ao modo imaginário, mas, no que se refere ao mundo de fanta-
sia que cerca a origem do sujeito e àquele aspecto das simbolizações
primordiais que diz respeito unicamente aos determinantes imaginá-
rios, ele está, em geral, de acordo com Melanie Klein, o que explica o
tom respeitoso com que vai referir-se, mais tarde, às suas idéias, mes-
mo quando a quase totalidade do mérier psicanalítico já estiver na mira
de sua crítica mais intransigente 122•
As considerações sobre a agressividade podem mesmo ser consi-
deradas um dos primeiros motores desta crítica, que vai endereçar-se
tanto aos aspectos técnicos quanto teóricos da análise, desde sempre
indissociáveis para Lacan. Sabe~se que um de seus alvos preferidos era
a tendência do momento de privilegiar a dita "análise das resistências"
como uma tarefa prévia da análise da transferência, como se a oposi-
ção agressiva ao progresso do tratamento fosse um obstáculo a ser re-
movido antes que o trabalho propriamente analítico - a elucidação do
inconsciente tal como ele se manifesta na transferência - pudesse co-
meçar. Ora, a partir do momento em que a agressividade se coloca
como imanente ao sujeito, ela se torna, no que importa à situação ana-
lítica, o objeto privilegiado da análise e o impulso da transferência e
122 O endosso de Lacan das idéias de Klein sobre a natureza agressiva do imaginário
primordial e a filiação de seu conceito de imago do corpo fragmentado às descri-
ções fartamente detalhadas que ela oferece desse funcionamento primitivo do
"mundo interno" são assumidos de modo bastante explícito em algumas passa-
gens. Por exemplo: "Um dos aspectos da ação analCtica é, com efeito, operar a
projeção disso que Melanie Klein chama os maus objetos internos, mecanismo
paranóico certamente, mas, aqui, bem sistematizado, filtrado de cerra forma e
estancado na medidà' (AP, p. 109. Lacan se estende mais sobre este ponto adian-
te. Ver AP, p. 115).
IMAGENS E COMPLEXOS 335
123 AP, p. 107. Lacan é mais taxativo adiante: "Não é, portanto, que seja desfavorá-
vel reativar uma cal intenção [agressiva] na psicanálise" (AP, p. 108).
124 A relação entre o eu (moi) e as resistências é explicitada numa passagem poste-
rior: "Deixemos aqui a crítica de todos os ·abusos do cogito ergo sum, para lem-
brar que o eu (moi), em nossa experiência, representa o centro de todas as resis-
tências ao tratamento dos sintomas" (AP, p. 118; grifos nossos).
336 RICHARD THEISEN SJMANKE
numa "alma" individual. Por tudo isso, "o Eu não está limitado à peri-
feria do corpo, mas se estende a isso que Lévy-Bruhl denomina "per-
tences" [''appartenances'J (por exemplo, os cabelos, as pegadas, as ves-
tes)" 13. Com isso, mais uma vez, Lévy-Bruhl busca oferecer uma
explicação para algo que, em Frazer por exemplo, é simplesmente afir-
mado como uma propriedade inerente ao pensamento dos povos
incivilizados, isto é, a magia simpática, que ocupa um lugar de desta-
que nas formulações daquele autor. Esta agora pode também ser
subsumida à lei de participação, elucidando o modo pelo qual as prá-
ticas mágicas "simpáticas" podem agir à distância sobre os sujeitos,
através de seus pertences 14 •
Estas conseqüências da lei de participação para a questão da
identidade do eu são particularmente interessantes naquilo em que
convergem com as preocupações lacanianas, não só na Tese, mas prin-
cipalmente nas elaborações que se lhe seguem. Em primeiro lugar, o
eu é considerado aí, fundamentalmente, como uma representação da
individualidade atravessada pelos determipantes sociais e não como o
correlato psíquico, mais ou menos "natu~l" da individualidade bioló-
gica do corpo. É isso que permite que o eu simplesmente não coinci-
da com as fronteiras do corpo, mas, ao contrário, se prolongue nos
objetos a ele relacionados, ao mesmo tempo que, em contrapartida, é
penetrado por forças exteriores a ele 15. Em outras palavras, o eu pri-
que uma única observação bem feita pode ter mais valor do que uma
acumulação de fatos heterogêneos 19 - dá para perceber a afinidade
com a metodologia da Tese lacaniana, onde a profusão de pesquisas
epidemiológicas e as estatísticas sobre a dispersão dos distúrbios psi-
quiátricos são preteridos em favor de uma análise exaustiva e "total"
da paranóia de auto-punição de Marguerite Pantaine. Da mesma for-
ma que, em Mauss, nem todo fenômeno social desfruta da proprieda-
de de ser "total" - embora estes sejam os fenômenos aos quais a análi-
se sociológica se aplica de forma mais cabal e, no limite, os objetos
particulares da sociologia devem poder ser associados a esses fenôme-
nos totais, que implicam todo o conjunto das instituições sociais -,
tudo se passa, também para Lacan, como se nem todo transtorno psi-
copatológico possua essa característica de implicar a totalidade da per-
sonalidade e, na verdade, consistir justamente na construção de toda
uma personalidade mórbida, coerente e compreensível, embora dis-
tinta das personalidades ditas normais, distinção essa, aliás, fundada
num critério social. Mas, em todo caso, essas afecções, cuja explicação
exige a consideração da totalidade dos fatores subjetivos (isto é, dos
fatos relativos à personalidade), se prestam particularmente bem a se-
rem abordados por um método destinado a superar o atomismo im-
posto à psiquiatria por sua fundamentação organicista. Esse método,
uma vez delineado, pode, então, ser progressivamente exportado para
as demais regiões da psiquiatria, desde que feitas as adaptações neces-
sárias, como Lacan insinua ao final de sua análise do caso Aimée. Daí
o valor exemplar da psicose paranóica, que vai terminar por elevá-la à
condição de paradigma da subjetividade humana. Esse valor paradig-
19 Por exemplo: "É um erro crer que o crédito ao qual tem direito uma proposição
científica depende estreitamente do número de casos onde se crê poder verificá-
la. Quando uma relação foi estabelecida em um caso, mesmo único, mas metodi-
camente e minuciosamente estudado, sua realidade é certa de um modo diferente
do que quando, para demonstrá-lo, o ilustramos com fatos numerosos mas
díspares, com exemplos curiosos mas confusamente emprestados às sociedades,
às raças, às civilizações mais heterogêneas" (Sociologie et anthropologie, p. 391, ci-
tado por Cazeneuve, J. Socio/ogie de Marcel Mauss, p. 9).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 361
°Cf. Cazeneuve, J. Sociologie de Marcel Maurs, p. 17. E prossegue este autor: ''A
2
25 "Aqui não é mais a sociologia que está em questão. É, por um curioso retorno, a
própria psicologia. Os psicólogos, ao aceitar nossa colaboração, fariam bem talvez
em ~ defender. Com efeito, a parte das representações coletivas - idéias, concei-
tos, categorias, motivos de ações e práticas tradicionais, sentimentos coletivos e
expressões congeladas das emoções e sentimentos - é tão considerável, mesmo na
consciência individual - e nós reivindicamos o seu estudo com tanta energia -,
que, por instantes, nós parecemos querer nos reservar todas as pesquisas nessas
camadas superiores da consciência individual" (Sociologie et anthropologie, p. 289).
E, uma vez estabelecido que é apenas do indivíduo que se ocupa a psicologia:
"parece que a camada da consciência individual seja muito delgadà'. Transparece
aqui um outro aspecto da desqualificação da psicologia, ligado à valorização da
noção de inconsciente na antropologia de Mauss: flagrantemente avessa a uma
definição psicológica, esta noção prende-se às representações coletivas das quais q
indivíduo participa sem necessariamente aperceber-se disso e, por isso mesmo, é
assunto da sociologia e não da psicologia, que fica assim duplamente limitada à
consciência e ao indivíduo. É nessa acepção que Lacan vai incorporar o conceito
de inconsciente, só que ainda mais depurado e formalizado pelo advento do es-
truturalismo. A psicanálise - que reivindica com autoridade o estudo do incons-
ciente - só vai poder então revestir-se, daí em diante, de toda espécie de colora-
ções antropológicas.
26 Cazeneuve assinala, em seu comentário da obra de Mauss, como ela serviu de
padroeira a pelo menos duas grandes correntes da antropologia: o estruturalismo
de Lévi-Strauss e o pluralismo de Georges Gurvitch (cf. Sociologie de Marce/Mauss,
p. 1).
368 RICHARD THE!SEN S!MANKE
sujeito, que não deriva apenas de uma fidelidade ao seu projeto inici-
al, que, sendo psiquiátrico até a raiz dos cabelos, poderia ser renegado
sem maiores problemas, mas da preocupação em demarcar e defender
as fronteiras da psicanálise dentro do panorama das ciências humanas
- no que era o sentido mais moderno do termo na década de 50 -
com as quais ela se alinha; no mesmo espírito, aliás, em que Lacan se
esforçava por defender a especificidade da psiquiatria no conjunto das
ciências da vida, na sua obra inaugural.
A primeira noção psicológica valorizada por Mauss é a idéia de
vigor mental, extraída das teorias de Babinski e Janet, principalmente.
Ela não teria um maior interesse, se Mauss não se referisse aí ao seu
trabalho sobre os efeitos físicos da idéia de morte32, como sendo um
dos casos em que aquela noção psicológica - mais especificamente, o
seu aspecto negativo, isto é, aquilo que se refere aos estados de debili-
dade e astenia - vem a clarificar os termos de um inquérito sociológi-
co. Este escudo vai desfrutar de uma justa celebridade na história pos-
terior da antropologia e o fenômeno investigado por Mauss - a saber,
o fato de que a sugestão resultante da concordância maciça de uma
coletividade quanto ao destino fatal de um de seus membros, quer isso
seja atribuído à feitiçaria ou a qualquer outra causa suposta, possa le-
var à morte real do indivíduo - será retomado por Lévi-Strauss, inclu-
sive em contextos em que este examina o tema da eficácia simbólica,
como se sabe, um tema que será caro a Lacan quando da elaboração
de sua proposta estrucuralista para a psicanálise. Esse poder letal da
sugestão coletiva será significativo também, como se verá adiante, para
a compreensão dos termos em que Mauss aceita da psicologia a incor-
poração da noção de instinto, como uma das contribuições efetivas
dessa ciência. Mas, desde agora, é possível assinalar que esse estudo,
pelo menos sob a forma em que ele é retomado por Lévi-Strauss, pode
perfeitamente ter sugerido a Lacan a via pela qual ele poderia redefinir
também o conceito freudiano de pulsão de morte desde uma perspec-
tiva antropológica. De fato, não deixa de ser notável que Lacan se in-
clua entre os psicanalistas freudianos- juntamente com Melanie Klein,
de cuja psicanálise ele vai seguidamente louvar os méritos, em parte,
por isso mesmo - que incorporam, de forma relativamente tranqüila
o conceito de pulsão de morte, que tanta estranheza causou nos meios
psicanalíticos quando da sua introdução, tendo sido, muitas vezes,
aceito apenas nominalmente, como uma concessão a um capricho
especulativo tardio do velho Freud. Aparentemente, Lacan teria todos
os motivos para rejeitar essa noção; não, é verdade, pelo conservado-
rismo teórico dos demais psicanalistas, que ele mesmo criticou muitas
vezes como mera obtusidade, mas pela formulação fortemente bioló-
gica que ela recebe em Além do princípio do prazer, onde Freud parece
fazer avançar, de um modo um tanto temerário, as fronteiras da psica-
nálise sobre o território da biologia. Por ,tudo isso, a incorporação la-
caniana desse conceito só pode ter transcorrido de modo tão pouco
problemático em função de uma ampla redefinição do mesmo, prin-
cipalmente se recordarmos o empenho da cruzada de Lacan contra o
biologismo e o organicismo psiquiátrico e psicanalítico33 .
este "homem total", que é o objeto final de seu estudo, e fica nítido
que, se essa abordagem deve ser mesmo total, ela deve, aos olhos de
Mauss, incluir também os fatores inconscientes.
Fiel à inspiração comteana comum a todos esses luminares da
sociologia francesa, trata-se, para Mauss de, a propósito das técnicas
do corpo, mostrar como essa sociologia que reivindica para si o estu-
do do "homem total" pula a etapa psicológica do percurso que vai do
cosmo ao homem, de modo que a explicação sociológica se insere, sem
intermediários, na explicação biológica, como quer, aliás, o próprio
sistema de classificação das ciências professado por Mauss. É ao fran-
quear à investigação antropológica esse campo novo, delimitado pela
ação direta do social sobre o vital, que Mauss abre espaço para a con-
sideração dos fatores inconscientes. Essa interface entre o mundo da
vida e a sociedade, onde se decide, entre outras coisas, o uso socializa-
do do corpo 43, funda uma determinação que, por hipótese, está fora
do alcance do sujeito psicológico, tão fora que a psicologia - a "ciên-
cia" desse sujeito - não tem nada a acrescentar à explicação que o so-
ciólogo pode avançar a esse respeito. De fato, ao se perguntar qual é,
afinal de contas, o papel que os fatores psicológicos desempenham
nessa "montagem social" de técnicas enxertadas diretamente sobre o
biológico, Cazeneuve aponta como a resposta de Mauss implica a ne-
gação da possibilidade do psíquico agir como causa 44 . Se não chega a
e, com certeza, a Lacan. Mais especificamente, ele aponta como tudo isso começa
a convergir para o estruturalismo, que será abraçado por Lacan com um com-
preensível entusiasmo na vi,rada dos anos 50: "Dito de outra forma, este estudo
nos põe já sobre a via dos procedimentos operatórios que Mauss tornará mais
visíveis ainda em seu ensaio sobre a dádiva e que serão mais tarde reduzidos a seu
princípio quase matemático pelo estruturalismo" {Sociologie de Marcel Mauss,
p. 64).
Mauss: "t, portanto, a opinião que cria o mágico e as influências que ele
59 Afirma
emanà' (citado por Cazeneuve em Sociologie de Marcel Mauss, p. 69).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 389
tido, como uma representação coletiva, que Mauss vai entender a no-
ção de mana, usada por todos para explicar a religião e o pensamento
primitivo, dando assim início ao processo de "simbolização" dessa no-
ção, que culmina com Lévi-Strauss atribuindo-lhe a característica de
ser um "símbolo zero", ou seja, um elemento puramente formal de
um sistema simbólico e que, ao não significar nada por si só, se erige
em antepassado do significante lacaniano. ·· ~
Mas sem querer entrar muito nos detalhes aa_sociologia religio-
sa de Marcel Mauss, cabe ressaltar apenas os pontbs em que ela reen-
contra a sua sociologia do conhecimento. É Cazeneuve que nos dá a
expressão mais sucinta dessa relação, apontando como o artigo sobre
as classificações "pretendia nos fazer remontar às origens do entendi-
mento, que são, ao mesmo tempo, sociais e religiosas, a religião não
sendo, segundo eles [os autores], senão uma representação da consciên-
cia social, ao mesmo tempo em que ela é uma prefiguração das cate-
gorias da razão" 6º. É sempre, como se vê, a representação coletiva a
pedra· de toque de sua explicação sociológica e o fator unificador dos
diversos setores da sociologia. Tão unificá.dor que rompe completa-
mente com a possibilidade de uma sociologia dos povos primitivos
diferente daquela que se ocupa dos povos civilizados. Por isso, Mauss
reedita periodicamente as críticas a Lévy-Bruhl que, no fundo, se re-
sumem a uma: uma abordagem genética não pode ser uma aborda-
gem total e, por isso, não pode fundar uma explicação sociológica dig-
na desse nome. Seria mais ou menos isso: ao não ser suficientemente
total e abrangente, a abordagem de Lévy-Bruhl vê diferenças muito
marcantes entre fatos que representam tão somente duas formas de'
operação ou de articulação entre os elementos de um mesmo sistema.
No limite, isso vai implicar que não há uma gênese verdadeira, pois
todas as possibilidades estão dadas, de início, num sistema total, cuja
evolução apenas as atualiza. É claro que o que se observa aí são os
60 Sociologie de Marcel Mauss, p. 89. E o autor conclui: "Há, portanto, para Mauss
como para seu tio, uma identidade de tarefa e de domínio entre a sociologia reli-
giosa e a sociologia do conhecimento".
390 RICHARD THEISEN S1MANKE
que envolve não só indivíduos, mas grupos sociais inteiros (clãs, por
exemplo), e onde a dádiva, sua aceitação e sua retribuição são aparente-
mente voluntárias, mas, de fato, obrigatórias, já que prescritas por leis
tácitas que governam o mais profundo do funcionamento da socieda-
de. O próprio fato de que é algo de muito diferente do útil que circula
nessas trocas faz com que Mauss se pergunte que força, afinal, a coisa
intercambiada adquire nesse processo, a ponto de tornar compulsória
a sua devolução. Fica claro que é algo de semelhante ao bom e velho
mana que está sendo proposto aqui, um poder que garante ao objeto
uma certa eficácia social, devido às significações nele depositadas pela
sua participação numa representação coletiva. Parece faltar pouco para
Mauss afirmar o caráter estritamente simbólico dessas trocas, como fará
o estruturalismo, com o qual, no entanto, ele não se confunde total-
mente, nem que seja pelo fato de continuar se concentrando no obje-
to, e não na operação, o que parece reintroduzir na sua análise fatores
subjetivos e psicológicos que são recusados com tanto vigor em outras
partes. Mas deixemos de lado, por ora, esse suposto "estruturalismo
latente" de Mauss, para enfatizar as diferenças ainda presentes, já que
são estas que o aproximam mais dos termos em que Lacan se expressa
nesses tempos pré-estruturalistas, o que ajuda a confirmar Mauss como
mais uma "antropologia lacaniana", e em dois sentidos: como um mo-
delo presente e como antecipador de um modelo futuro.
Em primeiro lugar - e pelo próprio fato de que é característico
do método de explicação sociológica de Mauss a generalização, para
qualquer sociedade, de um princípio observado em uma civilização
primitiva - constitui-se aí uma ambigüidade fundamental, que parece
oscilar entre um evolucionismo implícito e. um estruturalismo incipiente.
Entenda-se: a questão é a de saber se o trânsito de Mauss da informa-
ção etnográfica sobre sociedades primitivas para as civilizações históri-
tudo - gentilezas, festins, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, feiras. Estas
prestações e contra-prestações, malgrado seu caráter obrigatório, se apresentam
como dádivas. É a esse conjunto de fatos que Mauss dd o nome de prestações totais"
(Sociologie de Marcel Mauss, p. 99; grifos nossos).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 393
67 Diz Cazeneuve, na conclusão de seu estudo sobre Mauss, que, não obstante as
diversas leituras posteriores da sua obra, "o importante era, talvez, que primeiro
se denunciava os escolhos de uma sociologia que atomizava o real ou se perdia na
abstração" (Sociologie de Marcel Mauss, p. 126; grifos nossos). Ou seja, Mauss, a
seus olhos, salva a sociologia daqueles mesmos perigos dos quais Lacan, seguindo
as indicações de Politzer, quer salvar a psicologia e a psicanálise.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 397
69 "De modo geral, Kojeve deu uma versão antropológica da filosofia hegelianà'. Cf.
Vincent Descombes em Le même et l'autre: quarante-cinq ans de philosophie ftan-
faÍSe (1933-1978), p. 40; grifos do autor. As páginas que se seguem se apóiam, de
modo geral, na análise feita por esse autor do impacto de Kojeve sobre a filosofia
francesa deste século, no primeiro capítulo da obra citada, intitulado ''1:humani-
sation du néant" (p. 21-63).
ANTROPOLOG!AS LACAN!ANAS 399
77 Essas duas formas de a<;ão constituem aquilo que Descombes chama de "a via.
antropológica" da negatividade em Kojeve. A outra via - a "metafísica'' - passa
pela oposição entre história e natureza em termos de identidade e negatividade:
"A naturer.a, já que esse é o nome do que se produz sem que o homem aja, deve
ser plenamente positiva. O ser natural se define pela identidade (no sentido ordi-
nário e "não-dialético" do termo). A coisa natural- o cascalho, o cão - é o que ela
é e não é nada a não ser isso que sua natureza (sua identidade) lhe ordena ser. Daí
o ensinamento de Kojeve: a história é dialética, a natureza não é" (Le même et
l'autre... , p. 47; grifos do autor). Estas são, por assim dizer, as bases metafísicas da
distinção que Lacan faz entre a conaturalidade do conhecimento animal e o co-
nhecimento humano, cujo caráter "paranóico" consiste em atribuir positividade
a isso que é apenas o resultado da sua ação negadora.
406 RICHARD THEISEN SIMANKE
80 Uma das mais perenes e freqüentes sendo a da "bela alma" (com seus correlatos: a
"lei do coração", o "delírio de presunção", etc.), que expressa, metaforicamente, a
condição paran6ica: a alma que projeta no mundo a desordem que recusa em si
mesma e, da{, afasta-se dele ou tenta impor-lhe a "lei de seu coração", etc.
81 Kojeve, A. lntroduction à la !ecture de Hegel (doravante LH), p. 11.
408 RICHARD THEISEN SIMANKE
s4 LH, P· 11.
85 LH, p. 11. A distinção lacaniana entre o Moi e o }e como operadores gramaticais
do sujeito do enunciado e do sujeito da enunciação, respectivamente, também já
aparece em Kojeve, a esse propósito: "É o Desejo (consciente) de um ser que
constitui esse ser enquanto Eu (Moi) e o revela enquanto cal levando-o a dizer:
"Eu (}e) ..." (LH, p 11). A ressalva "consciente" é um índice, ainda, de um outro
aspecto das dificuldades de Lacan em incorporar o conceito de "inconsciente":
além de todos os vícios apontados anteriormente, ele deve ter-lhe parecido tam-
bém incompatível com esse advento do sujeito.
412 RICHARD THEISEN S!MANKE
86 LH, p. 12.
87 Kojeve prossegue, afirmando que o desejo, sendo a "revelação de um vazio", con-
siste na "presença da ausência de uma coisa", fórmula que Lacan empregará
freqüentemente a propósito da linguagem, permitindo, por a{, a assimilação do
desejo ao funcionamento dessa última, principalmente quanto ao seu aspecto
"metonímico".
88 LH, p. i2.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 413
car, mas mulheres que poderiam ser ou ter sido desejadas pelo pai, e
assim por diante. Também o Édipo será, para Lacan, uma "história de
Desejos desejados", como dizia Kojeve a propósito da história huma-
91 Onde melhor tr~nsparece o que Lacan ente~de, afinal, por "experiência" ao se_. :i'
referir à prática psicanalítica é num de seus exercícios hegelianos mais explícitos,· ;1
pronunciado em um congresso psicanalítico em 1951 e publicado nos Écrits sob fi
o título de "lntervention sur le transfere". O movimento de uma análise - o caso
Dora - é descrito aí como uma sucessão de "inversões dialéticas", seguidos de
novos "desenvolvimentos da verdade", que balizam o progresso do tratamento. É
a partir disso que Lacan insiste em que a prática psicanalítica não deve se guiar
pela convenção de uma regra, mas "segundo as leis de uma gravitação que lhe é
própria e que se chama a verdade. Eis aí, com efeito, o nome desse movimento
ideal que o discurso introduz na realidade. Em resumo, a psfrandlise é uma expe-
rilncía dialética, e esta noção deve prevalecer quando se coloca a questão da natu-
reza da transferência" ("Intervencion sur le transfere", p. 216; grifos do autor).
416 RICHARD THEISEN S!MANKE
93 Um dos mais belos exemplos do emprego metaf6rico que Lacan faz dessas figuras
hegelianas está nas páginas finais do Seminário 1, onde ele emprega a relação Se-
nhor/Escravo - já temperada, é verdade, com um pouquinho de Heidegger- para
descrever a posição subjetiva do neurótico obsessivo. Ver Le séminaire. Livre I:
Les écrits techniques de Freud, p. 315-6.
94 LH, p. 15.
95 LH, p. 15.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 419
96 "É por isso que falar da origem da Consciência de si é necessariamente falar 'da
autonomia e da dependência da Consciência de si, da Dominação e da Servi-
dão"' (LH, p. IS).
420 RICHARD THEISEN S!MANKE
necimento detido; ou, em outros termos, ele forma-e-educa" (LH, p. 29; grifos do
autor). Ou seja, o Desejo do Senhor, ao consumir absolutamente, não deixa nada
de estável atrás de si, que possa ser a matéria de um mundo humanizado. O pro-
duto do trabalho, enquanto símbolo do desejo recalcado do Escravo, constitui
esse mundo. Por aí se compreende como, cruzando Kojeve e Lévi-Strauss, Lacan
consegue conciliar a estrutura simbólica da cultura com o referencial freudiano
centrado na noção de desejo. ,
100 Segundo Paulo Arantes, Lacan reencontra em Kojeve a "revelação de uma crítica
não reducionista da consciência" já presente em Politzer e no "clima de opinião
424 RICHARD THEISEN SIMANKE
fenomenológica da épocà'. :É justamente esse tipo de crítica que Lacan busca nas
páginas da Tese, no esforço de escapar, simultaneamente, ao desvanecimento do
sujeito - e, portanto, da significação - nas mãos do organicismo psiquiátrico e
ao sujeito onipresente do cartesianismo, que, como vimos, trouxe outros tantos
reveses à psiquiatria. A vantagem de Kojeve é, segundo o autor, oferecer "um
ponto de vista original sobre a estrutura da consciência, entendida como processo
de socialização da inst~ncia que diz Eu" ("Hegel no espelho do Dr. Lacan", p. 65;
grifos nossos).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 425
101 A referência hegeliana continua a se fazer presente nesse período, de uma forma
até mesmo mais ruidosa, como uma expressão metafórica da constituição do su-
jeito pelo simb6lico, onde o Outro, agora com maiúscula, deixa de ser uma ima-
gem para se converter numa função. O principal parceiro nessas façanhas passa a
ser Jean Hyppolite, que, agindo inclusive sob encomenda, empreende: uma série
de leituras hegelianizadas de Freud que, no limite, já são umas leituras lacanizadas
de Hegel. Cf. Arantes, P. E. "Hegel no espelho do Dr. Lacan", p. 66).
ANTROPOLOGIAS LACAN!ANAS 427
1 Como afirma François Dosse: "Nesse plano, e mesmo que Lévi-Strauss se distan-
cie e inove, o estruturalismo inscreve-se na filiação positivista de Auguste Comte,
do seu cientismo, e não do otimismo comteano que vê na hist6ria da humanidade
um progresso por etapas da espécie para a idade positiva(...)" (História do estrutu-
ralismo, Vol. 1, p. 34).
UM INCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 433
dade, por exemplo), ela constitui um fato cultural, positivo, intaurador da ordem
social em geral. Essa passagem do fato natural da consangüinidade para o fato cul-
tural da aliança, ao promover a ruptura entre natureza e cultura, constitui a pró-
pria cultura: "A proibição do incesto situa-se, simultaneamente, no limiar da cul-
tura, na cultura e, num sentido, é a própria culturà' (Lévi-Strauss, em Les structures
élémentaires de la parenté, citado em História do estruturalismo, p. 42).
4 Anthropologie structurale, p. 40-41; grifos nossos.
UM INCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 435
gia de método que existe entre as duas disciplinas lhes impõe um de-
ver especial de colaboração" 5• Essa lição será muito bem aprendida por
Jacques Lacan, que a repetirá durante todo o seu momento estrutura-
lista, inclusive lamentando o fato de que Freud não tenha podido se
beneficiar de tantos e tão salutares progressos6 .
É claro que a adoção desse modelo implica, por si só, uma signi-
ficativa redefinição da natureza do fato social, que constitui o objeto
da antropologia. O comportamento social é, em si, um objeto bastan-
te avesso a uma comparação com o fato lingüístico e a submeter-se a
uma análise do mesmo tipo. É essa redefinição que vai resultar na elei-
ção do símbolo como objeto da antropologia e na equiparação da cul-
tura a um conjunto de sistemas simbólicos passíveis de uma descrição
formal nos mesmos moldes que a análise fonológica. Dessas inovações
emergem as características do método estruturalista em antropologia,
na qual o conceito de inconsciente vai receber uma acepção admissível
ao projeto lacaniano, ainda que ao custo de um tal estranhamento com
seu sentido freudiano originário.
Para que essa aproximação funcione, é necessário, ainda, que a
noção de símbolo seja completamente retirada de uma relação, quer
natural, quer convencional, com as coisas e, na verdade, assimilada ao
elemento formal de uma estrutura. Assim, se Lévi-Strauss redescobre,
como a lingüística já o estava fazendo, a distinção saussureana entre o
significante e o significado, ele "adapta-a ao terreno antropológico, ao
atribuir ao significante o lugar da estrutura e ao significado o do sen-
tido, ao passo que em Saussure trata-se, antes, de opor som e concei-
to"7. Essa derivação deve-lhe parecer indispensável para afastar a no:.
ção de símbolo de qualquer conotação realista ou psicológica, trazendo
8 "De Mauss à Claude Lévi-Strauss", p. 150: "Os fatos sociais não são nem coisas
nem idéias, são estruturas". Este texto, escrito inteiramente do ponto de vista de
Lévi-Strauss, já foi considerado como cobrindo exatamente a "origem da proble-
mática do indmsciente na Antropologia Social" (Aragão, L. T. do. "O inconscien-
te em Claude Lévi-Strauss ou a dimensão inconsciente nos fenômenos culturais",
p. 149).
9 Em "La instance de la letcre dans l'inconscient ou la raison depuis Freud", p. 253-
6. A fórmula saussureana do signo é exposta no capítulo sobre a "Natureza do
signo lingüístico", do Cours de /inguistique générafe (p. 97-103).
°Cf. Lepine, Claude. O inconsciente na antropologia de Lévi-Strauss, p. 20. Há, por-
1
tanto, ruptura e não uma diferença de grau entre a linguagem humana e as lin-
guagens animais, que diz respeito, justamente, ao seu caráter formal (ou simbóli-
co) ou expressivo, respectivamente: "A passagem entre o mundo humano e o
mundo animal se situa, em conclusão, no ser humano, no momento da ruptu(a
entre a linguagem expressiva e a linguagem simbólica" (id., ibid., p. 22). Daí a
UM INCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 437
Daí que o homem viva "num meio artificial de símbolos; não reage
diretamente às coisas, mas às idéias que ele tem sobre as coisas; não
pode perceber nada senão através da interposição desse meio simbóli-
co que o afasta da realidade física'' 11 • Pelo que se vê que, na medida
em que Lacan busque aqui subsídios para suas teorias, a idéia de uma
construção social da realidade pode continuar fornecendo a base para
que se atribua uma natureza fundamentalmente cognitiva para os fa-
tos psíquicos em geral e, particularmente, para os fatos psicopato-
lógicos: a própria percepção é uma interpretação - como queriam as
inversões operadas por Lacan, na Tese, em certas concepções psiquiá-
tricas clássicas sobre a paranóia-, já que universalmente mediada por
esse simbolismo onipresente que se substitui à realidade natural.
Mas um outro aspecto dos desenvolvimentos lacanianos, prin-
cipalmente de sua teoria do imaginário, pode ser reencontrado aqui: a
idéia de uma constituição simultânea e recíproca do sujeito e de seus
objetos, estes últimos compreendidos tanto no sentido de objetos do
interesse sexual quanto no de objetos do çonhecimento. Sabemos, con-
tudo, que isso que antes era pensado no imaginário, sob o modelo do
estágio do espelho será, depois, tematizado no simbólico, quando Lacan
acrescentar esse terceiro registro à sua metapsicologia, a partir da ex-
periência estruturalista. Ora, se o estruturalismo pode substituir pelo
· símbolo os antigos objetos da sociologia - o comportamento social dos
sujeitos, basicamente - é porque ele abre uma via para que se passe a
conceber esses próprios sujeitos como constituídos pelo simbolismo.
Melhor dizendo, o sujeito individual passa a ser considerado apenas
como uma ocasião para que o simbolismo social se manifeste, um sim._
bolismo dependente em contraposição ao simbolismo autônomo consti-
tuído coletivamente, como dirá Lévi-Strauss na sua "Introduction à
l' oeuvre de Marcel Mauss". É claro que não é a antropologia social
te, que o ocupará mais à frente, ele extrai do texto de Mauss sobre as
técnicas do corpo passagens que caminham exatamente nesse sentido;
não faltam, por exemplo, referências a "estados psíquicos desapareci-
dos de nossa infâncià', que situam imediatamente o observador "em
plena psicanálise, provavelmente baseante fundada aqui" 19. O exem-
plo selecionado para ilustrar esses estados psíquicos são as modalida-
des do desmame analisados por Mauss naquele ensaio. Pode-se imagi-
nar que essas observações puderam fornecer a Lacan a chave para
pensar o complexo de desmame em termos antropológicos., tal como
ele aparece em "La famille", complementando assim a inspiração mais
evidente que ele tomou em Melanie Klein, que faz das reações imagi-
nárias - em geral, agressivas - à frustração pulsional ocasionada pela
interrupção da lactação um dos pilares de sua versão pessoal da psica-
nálise. Talvez não seja insensato completar, dessa maneira, o quadro
dos empréstimos efetuados por Lacan para compor sua concepção dos
complexos - cuja série, lembremos, descreve o processo de constitui-
ção da subjetividade - atribuindo a essa ~xótica conjunção de Marcel
Mauss e Melanie Klein a matéria-prima 'para a formulação do com-
plexo de desmame, enquanto que o de intrusão provém, flagrantemen-
te de Kojeve e sua antropogênica "luta de puro prestígio". O éomple-
xo de Édipo, cuja autoria freudiana é incontestável, encerra a série e,
ao ocupar essa posição secundária, reforça a idéia de que a releitura
lacaniana de Freud consiste, na maioria das vezes, em atribuir aos con-
ceitos do fundador da psicanálise um lugar determinado no quadro
de uma teoria mais ampla que, do mesmo tempo, os ultrapassa e bus-
ca justificá-los.
. A apreciação desses pontos de contato entre a consideração dos
fenômenos patológicos - em outras palavras, da investigação médica
- e a pesquisa antropológica se amplia quando Lévi-Strauss passa a
comentar o ensaio de Mauss sobre as relações entre a psicologia e a
sociologia, onde, como vimos, essa questão era levantada. O comen-
tário de Lévi-Strauss pode ser considerado uma exploração exaustiva
19 IMM, p. xi.
446 RICHARD THE!SEN SIMANKE
nos que se perceba que as duas ordens não estão, uma com referência
a outra, em uma relação de causa e efeito (qualquer que seja, aliás, a
posição respectiva que se atribua a cada uma), mas que a formulação
psicológica não é senão uma tradução, sobre o plano do psiquismo in-
dividual, de uma estrutura propriamente sociológica" 21 •
É notável como os termos dessa passagem refletem particular-
mente antigas preocupações lacanianas, ao mesmo tempo em que
anunciam aquelas por vir. Já nos detivemos sobre a espécie de proble-
mas ocasionada pelo propósito de formular uma explicação objetiva e
não-reducionista da subjetividade: mesmo essa "causalidade psíquica'',
que deveria substituir-se à causalidade orgânica, se tomada a sério, le-
vava, ela também, à anestesia da face ativa do sujeito, com o eviden,te
prejuízo dos aspectos significativos de suas formações, em benefício
do determinismo procurado. Ora, tudo se passa como se Lacan, a par-
tir de agora, percebesse que a determinação do sujeito não precisa ser,
necessariamente, do tipo de uma causalidade, ou seja, de uma série tem-
poral (diga-se logo: diacrônica) de efeitos que se seguem a suas causas;
ela pode assumir a forma de um efeito de estrutura, que atribui ao
sujeito, entendido como individualidade psicológica, a natureza de
uma tradução dessa estrutura social que o constitui. É claro que isso
não resolve verdadeiramente o impasse. Qualquer forma de determi-
nismo levado às últimas conseqüências traz consigo o mesmo desvane-
cimento do sujeito: trata-se do caso da substituição do velho mecani-
cismo organicista por um novo mecanicismo, no que Bertrand Ogilvie
denomina de "risco estruturalista". Mas, pelo menos provisoriamente,
essa substituição permite a Lacan sonhar com a conciliação das duas -·
exigências antinômicas de seu projeto. Além disso, a idéia de tradução
do social em psicológico oferece ocasião para reacomodar antigos prin-
cípios politzerianos como, por exemplo, o modo de conceber a rela-
ção entre o conteúdo latente e o conteúdo manifesto dos sonhos. A
crítica de Politzer atacava a atribuição de realidade psicológica ao con-
teúdo latente como tributária das ultrapassadas psicologias da repre-
23 IMM, p. xvii.
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 451
24 IMM, p. xix; grifos nossos. Lévi-Strauss prossegue afirmando que mesmo um es-
tado fisiologicamente patológico na origem dos distúrbios meneais não invia-
bilizaria sua concepção, já que constituiria apenas um terreno favorável ou uma
disposição sensibilizadora para certas condutas simbólicas, cuja elucidação só
pode, por hipótese, emergir da interpretação sociológica.
452 RICHARD THEISEN SIMANKE
ramente sociológica dos distúrbios mentais (ou disso que nós considera-
mos como tais) poderia ser elaborada sem medo de ver um dia os fi-
siologistas descobrirem um substrato bioquímico das neuroses. Mes-
mo nessa hipótese, a teoria permaneceria válida''25.
A manutenção desse postulado anti-reducionista só pode-se jus-
tificar, por outro lado, pela concepção particular de cultura que emerge
do estruturalismo de Lévi-Strauss e, particularmente, pela amplitude
quase que desmedida que o simbolismo aí adquire. Essa onipresença
do simbólico impregna, absorve e, na verdade, compõe a substância
mesma desses indivíduos que uma visada ingenuamente empirista tei-
maria em considerar como os elementos de composição da sociedade.
De fato, eles se vêem reduzidos à condição de um mero substrato na-
tural para a inscrição e a operação dos símbolos, da mesma forma, por
exemplo, que os objetos intercambiados nas relações econômicas, cujo
valor é eminentemente simbólico, muito antes de ser monetário. Lévi-
Strauss, efetivamente, encadeia de imediato um verdadeira definição
de cultura a essas considerações anti-reducionistas sobre a doença men-
tal. Diz ela: "Toda cultura pode ser considerada como um conjunto
de sistemas simbólicos, dos quais se colocam em primeiro plano a lin-
guagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciê_n-
cia, a religião. Todos esses sistemas visam exprimir certos aspectos da
realidade física e da realidade social e, mais ainda, as relações que os
dois tipos de realidade entretêm entre si e que os próprios sistemas
simbólicos entretêm uns com os outros" 26 • Essa equiparação entre a
. cultura e um conjunto de sistemas simbólicos permite não só uma rela-
tivização daquilo que é considerado, do ponto de vista médico, uma
doença mental, mas também, no sentido inverso, a afirmação do ca-
ráter normalmente patológico das subjetividades ditas normais: se o
sujeito são de espírito é aquele que se constitui como uma certa arti-
culação simbólica compartilhada, é ele o verdadeiro "alienado", ou seja,
aquele que existe no outro e como um outro, que é o que ele verda-
deiramente designa cada vez que enuncia "eu"27 . Esses dois raciocí-
nios de sentido inverso correspondem àquilo que comparece em La-
can sob a rubrica do conhecimento paranóico em suas duas formulações
- a paranóia definida, na Tese, como um fenômeno de conhecimento e
o conhecimento em geral, definido, depois dela, como um fenômeno
paranóico.
Estas consideraçõe~ vão permitir a Lévi-Strauss, na esteira dessa
desmedicalização da loucura promovida acima, colocar sob suspeita a
própria noção de doença mental, criticando justamente a problemáti-
ca conjunção que ela representa, entre uma noção que só tem sentido
sobre o plano orgânico - a de "doençà' - e outra que é índice de to-
dos os equívocos que assolaram o campo da psicologia, merecendo o
anátema das escolas que a pretenderam científica- a de "mental". Na
medida em que não é a relação mente/corpo que está em pauta aqui,
mas a relação entre o corpo e a ordem social que atua sobre ele, a ques-
tão assume uma forma algo modificada. "Pe fato", diz Lévi-Strauss,
"é a própria noção de doença mental que está em causa. Pois se, como
afirma Mauss, o mental e o social se confundem, seria absurdo, nos
casos em que o social e o fisiológico estão diretamente em contato,
aplicar a uma das duas ordens uma noção (como a de doença) que só
tem sentido na outrà'28 • Nem se cogita considerar o lado "mental" do
problema. Se a noção de "doença" só tem sentido no plano fisiológico
e, portanto, não pode ser exportada para a consideração dos fatos so-
ciais como fazem aqueles que se valem do vocabulário da psicopato-
logia, o "mental" não faz sentido em nenhum dos dois caos e, por con- · ·
seguinte, não faz sentido algum. A que se assiste é, assim, não apenas
27 Cf. IMM, p. xx: "Pois, falando propriamente, é aquele que nós chamamos de são
de espírito que se aliena, já que ele consente em existir em um mundo definível
unicamente pela relação entre o eu e o outro". É, de fato, de Lacan mesmo que
Lévi-Strauss extrai essas conseqüências de seu encaminhamento. Ele cita, em nota,
o artigo "I.: agressivité en psychanalyse", publicado no ano anterior ( 1948).
28 IMM, p. xxii; grifos do autor.
454 RICHARD THEISEN S!MANKE
29 IMM, p. xxiii.
UM INCONSC!llNTE PARA O SUJEITO 455
38 IMM, p. xxxviii.
462 RICHARD THEISEN SIMANKE
caução científica para seu projeto que Lacan está em busca5°, e o rigor
que a investigação estrutural consegue imprimir à pesquisa antropol6-
gica, a expressão quase matemática dos resultados que seu formalismo
permite, vão constituir, daí em diante, o modelo de científicidade a
ser seguido na psicanálise lacaniana. O modelo lingüístico vai ser as-
sumido por Lacan na forma exata pela qual Lévi-Strauss dele se apro-
pria. Embora as referências posteriores se enderecem preferencialmente
a Saussure e, um pouco menos, aJakobson, a ordem real de importân-
cia dos autores é exatamente a inversa: Lacan é conduzido a Jakobson
a partir de Lévi-Strauss, e desse a Saussure, apontado pelo lingüista
russo como o predecessor do estruturalismo. A tão propalada desmon-
tagem do signo saussureano não é mais de que uma redefinição do
mesmo nos termos já propostos por Lévi-Strauss, que desvinculou
significante e significado, para fins de uma abordagem estritamente
formal da questão do parentesco, retomando e ampliando algumas
considerações de Mauss sobre a nomeação, por exemplo, e mostrando
que ·a um conjunto restrito de nomes sã<;> atribuídos os sujeitos nasci-
dos num certo grupo, e não o contrário'. Não se trata de dar nomes
aos bois, mas bois aos nomes: essa a lição ensinada por As estruturas
elementares de parentesco, que exige como condição a célebre primazia
do significante sobre o significado, inexistente em Saussure, por mais
que Lacan o reivindique.
Agora, são essas mesmas concepções de Lévi-Strauss que alimen-
tam uma série de restrições à psicanálise e decretam, inapelavelmence,
que a noção de inconsciente que propõe seja completamente estranha
ao conceito freudiano, s6 isso já baseando para explicar o fato de que
o retorno a Freud lacaniano, permitido pela inclusão do conceito de
inconsciente em seu arsenal te6rico, se revista das peculiaridades e
idiossincrasias que todo mundo conhece. Há, em primeiro lugar, as
°
5 Cf. Dosse, F. História do estruturalismo, p. 137. E, mais adiante: "Lévi-Strauss
serve, pois, de modelo para a conquista da científicidade do discurso psicanalíti-
co, e Lacan inveja-lhe a simbiose que ele conseguiu realizar entre etnologia, lin-
güística, matemáticas e psicanálise" (id., ibid., p. 143).
470 RICHARD THEISEN SIMANKE
51 Por exemplo, em entrevista a François Dosse: "O que Freud fez, na verdade, foi
construir grandes mitos" (História do estruturalismo, p. 138). Ou, em "Le sorcier
et sa magie", texto crucial para a virada estruturalista de Lacan: "Mas a inquietan-
te evolução que tende, desde alguns anos, a transformar o sistema psicanalítico,
de corpo de hipóteses científicas verificáveis experimentalmente em certos casos
precisos e limitados, em uma mitologia difi1Sa compenetrando a consciência do
grupo (...) arrisca de restabelecer rapidamente o paralelismo [entre psicanálise e
magia)" (p. 201-2; grifos nossos):
5l "Está a( a raiz do mal-entendido, pois o inconsciente do antropólogo está muito
distante do inconsciente freudiano, para além das analogias que se possa assinalar
entre a decodificação semântica dos mitos e as técnicas de interpretação psicana-
lítica. Em Lévi-Strauss "o inconsciente é o lugar das estruturas". O inconsciente
lévi-straussiano é definido, portanto, como um sistemas de condicionamentos ló-
gicos, um conjunto estruturante (... ). Esse inconsciente puramente formal, lugar
vazio, puro receptáculo, está bem longe do inconsciente freudiano, definido por
um certo número de conteúdos privilegiados" (História do mruturalismo, p. 140).
53 Dosse aponta como Lévi-Strauss reitera o inconsciente como o objeto específico
da antropologia, reivindicando-o à psicanálise, na medida em que não se trata de
um depositário de conteúdos individuais, mas da função simb6lica que organiza
UM INCONSC!llNTE PARA O SUJEITO 471
lica é expresso nos dois casos, por Lévi-Strauss, pelo recurso ao termo
e ao conceito freudiano de abreação. Tanto o xamã quanto o psicana-
lista são, a seu ver, abreatores profissionais59 , sendo esse um conceito
que lhe permite reafirmar a dependência que os estados afetivos e mes-
mo corporais se encontram com relação à determinação simbólica60 •
Mas é em "eéfficacité symbolique" que essa relação entre a psi-
canálise e o xamanismo é exposta em todas as suas conseqüências. Lévi-
Strauss retoma aí o conceito de abreação, ligando-o ainda mais expli-
citamente à idéia de uma manipulação simbólica do corpo doente, que
pode funcionar porque a relação que os componentes e personagens
simbólicos do canto xamânico, por exemplo, mantêm com a doença
que se trata de curar é uma relação interior aos espírito do doente,
relação entre símbolo e coisa simbolizada, só que essa "coisa simboli-
zadà' não é uma parte do corpo natural, mas é, ela mesma, simbólica,
de modo que Uvi-Strauss pode outra vez recorrer ao vocabulário da
lingüística para se corrigir: uma relação de significante a significado61 ,
59 "Le sorcier et sa magie", p. 199. Logo adiante, Lévi-Strauss afirma que o sucesso
da cura xamanística depende de que o feiticeiro "possa induzir simbolicamente no
doente uma abreaçáo de seu próprio di$túrbio" (p. 199).
60 O modo como Lévi-Strauss concebe essa determinação simbólica, inclusive para
a distinção entre os estados normais e patológicos, será assimilada na íntegra por
Lacan. Por exemplo, no modo como se vale do vocabulário saussureano, já ope-
rando a desmontagem do signo que depois fará escola no lacanismo: "Empres-
tando a linguagem dos lingüistas, nós diremos que opensamento normal sofre sem- ..
pre de um déficit de significado, enquanto que o pensamento dito patológico (. ..)
dispõe de uma pietora de significante" ("Le sorcier et sa magie", p. 200; grifos nos-
sos). Não esqueçamos que Lacan vai sempre caracterizar a psicose como uma
manifestação mais pura do significante enquanto cal, enquanto que a neurose ou
a normalidade se manifestam através de um sintoma que tem a natureza de uma
metáfora, ou seja, o aspecto da linguagem mais comprometido com o significa-
do. O despedaçamento do homem pela linguagem, que vai definir o conceito
lacaniano de castração também se faz presente em termos muito claros: "Despe-
daçado entre esses dois sistemas de referência, aquele do significado e aquele do
significante, o homem ... ", etc. (ibidem, p. 203; grifos nossos).
61 "I..:éfficacité symbolique", p. 218.
476 RICHARD THEISEN S!MANKE
69 MIN, p. 292.
70 Essa noção de mico individual, por outro lado, presta-se bem para expor a distân-
cia que medeia entre Freud e esse Lacan, o primeiro interessado em revelar a pre-
sença do inconsciente na cultura, o segundo, da determinação social no sujeito.
Freud afirmava, por exemplo, que os micos, muito provavelmente, '.'correspondem
a resíduos deformados de fantasias de desejo de nações inteiras, aos sonhos secula-
res da humanidade jovem" ("Der Dichcer und das Phancasieren". ln: Studien-
ausgabe, Vol. X, p. 178). Do "mito como sonho da humanidade" à "neurose como
mico individual": essa a imensa distância a ser transposta para se poder ir de Freud
a Lacan.
UM INCONSCI!NTE PARA O SUJEITO 481
71 MIN, p. 292. Começa aqui, como se vê, também a recusa reiterada de Lacan da
possibilidade de uma metalinguagem, que se expressará depois - em "Subversion
du sujet et dialetique du désir dans le inconscient freudien", por exemplo - na
fórmula "não há Outro do Outro", esse Outro, é claro, já tendo sido reduzido ao
conjunto dos signficantes de uma língua, considerado sincronicamente.
72 Diz Lacan, ainda na abertura do texto: "Essas formações [do vivido dos sujeitos
neuróticos] exigem trazer ao mito edipiano, enquanto que está no coração da ex-
482 RICHARD THEISEN S!MANKE
lher amada), compulsões (ao suicídio, por exemplo), prescrições minuciosas e ri-
tuais (contar o tempo entre o relâmpago.e o trovão), ordens auto-impostas (com-
parecer a um exame, pagar uma dívida), todos permeados por uma seqüência
exasperante de hesitações, dúvidas, mudanças de idéia, inclusive na cena decisiva
de sua neurose - o pagamento de uma dívida a um cerco colega de exército quan-
do, de fato, é à funcionária do correio que ele deve-, cuja configuração, justa-
mente, Lacan descreverá como um mito individual que reproduz a estrutura de
um mito familiar.
75 Por exemplo: Cadmo procura Europa (superestimação), Édipo maca Laio (sub-
estimação}, Édipo casa-se com Jocasta (superestimação), Etéocles mata Polinice
(subestimação), e assim por diante. Há uma outra alternância, que Lévi-Scrauss
descreve como a afirmação/negação da autoctonia do homem. É das equivalên-
cias que se estabelecem entre esses dois pares (do tipo A está para B assim como
C está para D) que emerge o significado do mito (cf. "La scructure des myches",
p. 236-41, principalmente). Daí decorrem também as modificações estruturais
que Lacan se vê compelido a introduzir no Édipo freudiano: a fim de que ele
possa aí mimetizar o procedimento de Lévi-Scrauss, é necessário que o Édipo te-
nha uma estrutura quaternária e não ternária.
484 RICHARD THEISEN SIMANKE
76 Ver Cunha, T. C. "Do mito coleccivo ao mito individual", p. 37-9, para uma
exposição resumida e esquemática dos dois momentos da estrutura mítica da neu-
rose do Homem dos Ratos.
77 MIN, p. 294.
UM INCONSC!llNTE !'ARA O SUJEITO 485
tempo que projeta o colega, ao qual afinal ele não deve nada, na posi-
ção do amigo salvador. Do lado do· objeto do desejo, a senhora do cor-
reio - a quem ele deve, de fato - ocupa a posição da mulher rica, mas
com o mesmo desdobramento imaginário do objeto real do desejo,
no caso uma criada de albergue, pobre, a quem o sujeito dedica um
amor idealizado. Essa a permutação operada com relação à estrutura
originária é, justamente, o que impede que as duas coincidam perfei-
tamente, o que torna o conflito insolúvel no plano imaginário em que
ele se trava. S6 a intervenção do simbólico permitirá colocar em pers-
pectiva os planos imaginário e real da experiência, e reconduzir a dívi-
da a seu verdadeiro destinatário - a funcionária dos correios -, o que
o sujeito fará ao longo de sua análise com Freud, com um prosaico
vale postal, após a imensa trama de hesitações obsessivas que se criou
em torno desse episódio.
Após explicitar o isomorfismo entre as duas estruturas, Lacan
parte para a definição daquela que é a questão central da qual o texto
se ocupa: "Esse cenário fantasísrico se api:esenta como um pequeno
drama, uma gesta, que é precisamente a manifestação disso que eu cha-
mo o mito individual do neurótico "78 • Dentro do espírito do texto, que
é o de preservar a referência ao sujeito, mesmo dentro de uma análise
estrutural, Lacan se apressa em acrescentar que essas relações que com-
põem a estrutura não se apresentam, digamos, in natura, na forma
factual e objetiva na qual foram expostas, mas só adquirem seu valor
próprio em virtude da apreensão subjetiva que o sujeito faz de sua pró-
pria história, que pode, no entanto, ser expressa teoricamente como
essa combinação de relações. Ou seja, Lacan tenta não perder de vista
que trata-se aí de um caso clínico, que os elementos que podem ser
compostos nesse tipo de estrutura foram extraídos laboriosamente de
um sujeito real ao 'longo de um tortuoso processo psicanalítico, que
só pode ocorrer segundo as regras da psicanálise formuladas por Freud,
e não segundo as regras da análise estrutural. De certa forma, é a velha
e politzeriana dissociação entre método e doutrina que retorna aqui,
83 MIN, p. 305.
84 Para Lacan, nesse momento, a relação narcísica é "a segunda grande descoberta
da psicanálise, não menos importante que a função simbólica do Édipo" (MIN,
p. 305), o que revela bem os novos ventos que sopram cm sua teoria: até bem
pouco, o narcisismo era a primeira grande descoberta da psicanálise, aquela que,
acima de todas, valia pena, recuperar e atualizar, ao passo que o complexo de Édipo
UM !NCONSCil!NTE PARA O SUJEITO 491
tida com um cerro ponto de vista psicológico, não era capaz de dar
conta, sozinha, dessa abordagem total, para a qual Lacan recorreu
muito cedo à contribuição da antropologia. As diversas antropologias
nas quais se apoiou serviram, por um lado, para estabelecer a realida-
de social como tão positiva quanto a realidade flsica e, com isso, abriam
uma via para escapar ao abstracionismo da psicologia, que Lacan recu-
sa, calcado em Politzer. Ao mesmo tempo, já que essa era a realidade
humana por excelência, ajudavam a contornar o reducionismo psiqui-
átrico, na exata medida em que constituíam uma antropologia social
em oposição ao paradigma anterior fornecido pela antropologia física.
Tudo isso emparelhado, Lacan encontrava-se em condições de ultra-
passar o elemenrarismo e o atomismo, tanto do organicismo quanto
da psicologia associacionista que o reproduzia, e propor essa visada
coral no fenômeno psicócico e humano em geral. Só que, com Lévi-
Scrauss, que não deixou de reiterar esse aspecto do programa episte-
mológico da antropologia que ele foi buscar em Mauss, Lacan conse-
guiu munir-se de instrumentos que lhe permitiram revisar a tal ponto
a doutrina psicanalítica, que ela, assim como a experiência do sujeito
que promove, aparece como a realização maior desse programa, tal-
vez, justamente, por incluir a perspectiva do sujeito, virtualmente ba-
nido da antropologia. Daí que a fidelidade a Freud se converta no prin-
cipal ponto de apoio para o cumprimento dessa diretriz que, não
obstante, cem uma longa história pregressa na formação do ideário te-
órico lacaniano.
É por isso que a identificação entre a clínica e a teoria, prefi-
gurada desde a definição de fenômeno psicótico como um fenômeno
de conhecimento, pode ser, finalmente, afirmada de modo explícito,
desta vez no que diz respeito à teoria psicanalítica90 . É justamente por
propiciar uma abordagem cocal da realidade humana que a teoria deve
permitir compreender como a matéria-prima dessa realidade é o sim-
bolismo, segundo a lição de Lévi-Strauss, e, portanto, da mesma natu-
90 "Não podemos nos impedir de pensar que a teoria da psicandlíse (e, ao mesmo
tempo, a técnica, que não formam senão uma tínica e mesma coisa)( ... )" (SIR, p. 1).
UM INCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 495
91 SIR, p. 2.
496 RICI-IARD THEISEN S1MANKE
92 SIR, p. 4.
93 SIR, P· 5.
94 SIR, p. 5.
498 RICHARD THEISEN S!MANKE
95 SIR, p. 6.
UM INCONSCl~NTE. PARA O SUJEITO 499
96 SIR, p. 6.
500 RICHARD THEISEN SIMANKE
97 Lacan reitera esse ponto mais à frente, quando, ao discorrer mais especificamente
sobre o comportamento neurótico, comenta como essa distinçao dos aspectos sim-
bólicos e imaginários desse comportamento permite "saber porque se trata sem-
UM INCONSCI~NTE PARA O SUJEITO 501
99 Lacan se refere, por exemplo, aos trabalhos de Lorenz sobre o imprinting e fe-
nômenos associados: "Mas outros comportamentos (cf. os estudos de Lorenz
sobre as funções da imagem no ciclo da nutrição) mostram que o imaginário
desempenha um papel tão eminente quanto na ordem dos comportamentos se-
xuais. E, de resto, no homem, é sempre sobre esse plano, e principalmente sobre
esse plano, que nós nos encontramos diante desse fenômeno" (SIR, p. 8). A co-
nexão evidente que se faz aí é com o complexo de desmame e o papel nele desem-
penhado pela imagem - ou imago - do seio.
UM INCONSCifNTE PARA O SUJEITO 503
mano, vai exigir uma distinção suplementar para dar conta das pecu-
liaridades desce último, por onde se entende um pouco a equivalência
dos mecanismos freudianos com o funcionamento da linguagem que
Lacan vai incorporar mais carde: o ciclo animal pode sofrer desloca-
mentos, mas só o homem será capaz de metonímia.
Fica rapidamente claro, aliás, que, para além da importância que
esses deslocamentos adquirem na elucidação do comportamento se-
xual, a função dessa referência, nesse ponto, é permitir a transição para
a consideração do simbólico: "esses elementos de comportamento ins-
tintivo deslocados no animal são suscetíveis de alguma coisa na qual
nós vemos o esboço disso que chamaremos um 'comportamento simbó-
ºº.
lico"' 1 Não sendo um antropólogo, como Lévi-Srrauss, que se situa
de imediato dentro do campo da cultura, Lacan parece sentir necessi-
dade de fazer gradualmente a transição entre suas idéias iniciais, nas-
cidas dentro de um programa de pesquisa essencialmente médico e,
portanto, comprometido com as ciências da vida, para o novo para-
digma· antropológico que vem instrumenta~· a psicanálise. Nesse senti-
do, esse trabalho é tipicamente lacaniano, nisso que ele se esforça por
conciliar uma pluralidade de referências baseante díspares, sem preju-
ízo dos pressupostos iniciais da teoria, uma mistura de fidelidade e
ecletismo que, de resto, caracterizará praticamente todo o percurso de
Lacan. Já "Le mythe individuei du nevrosé'' deve ser lido muito mais
como um exercício de aplicação de Lévi-Strauss a Freud, assim como
a "Intervention sur le transfere" tem muito de um improviso hegelia-
no sobre o caso Dora, mas nem um nem outro representam um efeti-
vo esforço de integração como o que se observa aqui.
Essas tentativas de integração tomam forma, por exemplo, numa
sutil referência kojeviana nesse movimento que tenra pensar a origem
do simbolismo a partir do mundo animal. Esse caráter simbólico do
comportamento só pode ocorrer, com efeito, no contexto de uma co-
letividade animal, por onde reaparece a idéia de Kojeve de que a re'ali-
dade humana só pode surgir no interior de um rebanho que, no en-
100 SIR, p. 8.
504 RICHARD THEISEN SIMANKE
101 SIR, p. 9.
102 SIR, p. 10.
UM JNCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 505
º
1 3 SIR,p.10.
506 RICHARD THEISEN SIMANKE
104 "Portanto, que resta a dizer? Que não basca que um fenômeno represente um
deslocamento - dito de outra forma, que se inscreva nos fenômenos ímagindrios -
para ser um fenômeno analisável, por um lado, e que, para que ele o seja, é
preciso que ele represente outra coisa que ele mesmo, se posso dizê-lo" (SIR, p.
11). E, mais explicitamente, na seqüência: "o assunto de que eu falo, a saber, o
simbolismo ... ".
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 507
uma vez que tudo tenha sido reduzido a uma troca de palavras, os ele-
mentos imaginários passam a ser encarados como partículas lingüísti-
cas (morfemas, sílabas) de uma linguagem cifrada - Lacan ·dá o exem-
plo do pot [pote] que pode ser empregado para representar a sílaba po
em outras palavras (police, poltron), num contexto que não precisa ter
nada que ver com a imagem que representa o objeto. É mais ou me-
nos a mesma coisa que Freud afirma no capítulo VI da Traumdeutung,
quando diz que as imagens do sonho não devem ser compreendidas
pelo que elas representam imageticamente, mas como caracteres de um
alfabeto desconhecido, que é preciso decifrar; ou seja, o sonho é mui-
to menos um filme ou uma história em quadrinhos e muito mais um
texto hieroglífico. Não é à toa que Lacan retornará insistentemente a
essa passagem freudiana, buscando aí ratificação de seu argumento 1°5.
Esses elementos que aparecem, não só no sonho, mas no dis-
curso do sujeito submetido à análise como um todo, se constituem,
efetivamente símbolos de alguma coisa, não o são no sentido, por
exemplo, em que uma bandeira represem~ um país, ou uma fotogra-
fia, uma pessoa. A natureza do simbolismo que se quer propor é
explicitada então, numa fórmula que poderia ser encontrada quase que
literalmente nos textos de Lévi-Strauss: "trata-se, ainda uma vez e sem-
pre, de símbolos, e de símbolos mesmo muito especificamente organi-
zados na linguagem, portanto funcionando a partir deste equivalente
do significante e do significado: a estrutura mesma da linguagem" 106• Só
há simbolismo, portanto, numa relação interna entre os elementos de
uma linguagem organizada e não numa relação entre uma palavra e
uma imagem, muito menos na relação entre uma palavra ou imagem· ·
e uma coisa. Lacan não vai ao ponto de pronunciar, ainda, aquele que
será o seu mote mais destacado - "o inconsciente está estruturado
como uma linguagem", a sua versão da redução lévi-straussiana do in-
consciente à função simbólica-, mas chega perto, ao apontar o modo
105 Lacan reitera mais à frente: "Não é meu esse termo de que "o sonho é um rebus;
é do próprio Freud" (SIR, p. 12).
106 SIR, p. 11.
508 RICHARD THEISEN S!MANKE
11 º SIR, p. 16. Lacan explicita sua definição logo em seguida: "é esse registro que
nós chamamos as "resistências'"' (SIR, p. 16).
512 RICI-IARD THEISE.N S!MANKE
111 Afirma Lacan, nesse ponto, que "a resistência não é algo como uma simples inér-
cia oposta ao movimento terapêutico, como em física se poderia dizer que a massa
resiste a toda aceleração. :É algo que estabelece um certo laço, que se opõe como
cal, como uma ação humana, àquela do terapeuta; mas isso não quer dizer que
seja necessário que o terapeuta aí se engane. Não é a ele, enquanto realidade, que
o sujeito se opõe; é na medida em que, no seu lugar, é realiuida uma certa ima-
gem que o sujeito projeta sobre eleu (SIR, p. 17).
514 RICHARD THEISEN SIMANKE
titui. Isso na relação amorosa, como foi dito, mas também na relação
agressiva: a palavra "permite, entre dois homens, transcender a relação
agressiva fundamental da miragem do semelhante" 113 • Se a palavra é
ação, como quer Lacan, ela deve cumprir aquele papel de "negativi-
dade-negadora" previsto na antropogênese de Kojeve: negação do dado
e engendramento de uma nova realidade, no caso, humana. É dessa
forma que Lacan, explicitamente, entende as funções mediadoras da
linguagem: "vê-se que não sómente ela constitui essa mediação, más,
da mesma forma, ela constitui a própria realidade" 114 • É para essa nova
versão do problema da constituição que o ocupou cão longamente que
Lacan vai recorrer à noção lévi-straussiana de estrutura elementar: ela
permite fundar a proposição da natureza simbólica - e não mais ima-
ginária - da realidade. Lacan parece estar assimilando a idéia de "ele-
mentar" à de "constitutivo", embora não seja exatamente essa a con-
cepção de Lévi-Srrauss 115 • Mas, de qualquer forma, essa distinção
vai-lhe servir para apontar como, nas estruturas complexas de paren-
tesco da sociedade ocidental, o caráter relativamente frouxo da pres-
crição dos cônjuges faz com que, por um lado 1 o determinismo social
da estrutura não seja muito evidente e, por outro, que haja espaço para
se confundir as relações de parentesco com relações reais. A estrutura
elementar revela melhor a sua natureza simbólica e, quando se tratar,
mais à frente, de retornar ao problema da analisabilidade, essa consta-
tação será importante para expor corretamente o papel da estrutura
edípica. Com efeito, se o sintoma é um fenômeno que se dá inteira-
113 SIR, p. 19. Essa, por exemplo, a função da palavra de senha. Por isso que, para
Lacan, a senha n~o pode ser apenas uma forma convencional de comunicação.
114 SIR, p. 19.
115 Em As estruturas elementares de parentesco, a estrutura elementar, objeto da obra, é
aquela onde o universo dos cônjuges possíveis está muito precisamente prescri-
to, deixando muito pouca margem de escolha para os sujeitos. As estrttturas com-
plexas são aquelas, como as da sociedade européia, que apenas interditam um
certo conjunto de relações, deixando o restante do universo social aberto às es-
colhas matrimoniais.
516 RICHARD THEISEN SIMANKE
116 Por exemplo, refutando certas concepções behavioristas da neurose: "E isso de
que se trata não é o condicionamento de um fenômeno, mas isso de que se trata
nos sintomas é da relação do sintoma com o sistema inteiro da linguagem. Isto é, o
sistema das significações das relações inter-humanas como tais" (SIR, p. 21).
117 "Isso quer dizer que toda relação a dois é sempre mais ou menos marcada pelo
estilo do imagindrio; é que, para que uma relação assuma seu valor simbólico, é
preciso que haja a mediação de um terceiro personagem, que realize, com relação
ao sujeito, o elemento transcendente, graças ao qual sua relação com o objeto pode
ser sustentada a uma cerra distância" (SIR, p. 22). Esse elemento transcendente
é a função simbólica, introduzida pelo terceiro personagem - em geral, represen-
tado como o pai -, mas que não se identifica com ele.
UM INCONSC!ÊNTE PARA O SUJEITO 517
118 "A angústia (... ),·ela está sempre ligada a uma perda, isto é, a uma tramformação
do eu, quer dizer, uma relação a dois a ponto de se desvanecer e à qual deve-se
suceder alguma coisa diferente, que o su.jeito não pode abordar sem i,ma certa ver-
tigem" (SIR, p. 22).
119 A teoria freudiana apresenta, inicialmente, dois aspectos, conforme se trate da
excitação sexual somdtica - caso em que uma descarga inadequada para mais ou
para menos pode levar, alternativamente, a uma neurastenia ou a uma neurose
de angústia - ou da sexualidade psíqttica, que conduz à formação das neuroses de
518 RICHARD THEISE.N SIMANKE
122 Ao pensar a relação entre o simbólico e o imagindrio, nesse ponto, Lacan afirma:
"A questão da constituição temporal da ação hitmana é, ela, inseparável absoluta-
mente da primcirà' (SIR, p. 23).
520 RICI-IARD THEISEN SIMANKE
123 SIR, p. 25. A referência ao objeto como "isso que durou", que se explica pelo
contexto em que aparece aqui, ajuda a compreender o quanto Lacan vai, depois,
insistir em que o objeto do qual se ocupa a psicanálise é, essencialmente, o obje-
to faltante, esse objeto que teve que desaparecer no real, para retornar no simbó-
lico, isto é, retornar no âmbito de um mundo tipicamente humano. Daí as críti-
cas reiteradas à noção de relação de objeto - com indiscutíveis conotações reali~tas
- que predominava na psicanálise oficial, críticas às quais dedicará, entre outros
trabalhos, todo um seminário, nos anos 1956-57 (Le séminaire. Livre IV: La re-
lation d'objet).
522 RICHARD TI·IEISEN S!MANKE
124 "É por isso que, se eu o assinalo aqui, não é evid·entemente sem razão, e a teoria
de Freud teve que avançar até a noção, que ela destacou, de um instinto de morte,
e todos aqueles que, depois disso, puseram a ênfase unicamente sobre isso que é
o elemento "resistência~ quer dizer, o elemento "ação imaginária~ durante a expe-
riência analítica, e anulando mais ou menos a função simbólica da linguagem, são
os mesmos para quem o instinto de morte é alguma coisa que não tem razão de
ser" (SIR, p. 25).
125 Lacan, de fato, dedica o final de sua conferência a uma tentativa de descrever o
movimento da análise a partir de um esquema combinatório um tanto incipien-
te, num exercício que não acrescenta muito ao que foi desenvolvido até aqui. Ele
UM INCONSClÊNTE PARA O SUJEITO 523
freudien". ln: Écrits II. Col. Points. Paris, Seuil, 1971, p. 151-92.
_ _ _. Le séminaire. Livre 1: Les écrits techniques de Freud. Paris,
Seuil, 1975 .
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