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Richard Theisen Simanke

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METAPSICOLOGIA LACANIANA

Os anos de formação
....
.........
~

~j~l~
UFPR90anos
Reitor
Carlos Augusto Moreira Júnior
Vice-reitor
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~ UFPR
Diretor da Editora da UFPR
Luís Gonçales Bueno de Camargo
Conselho Editorial
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Maria Benigna Martinelli de Oliveira, Pedro Ronzelli Júnior,
Sérgio Hcrrero de Moraes, Víctor Manoel Pelaez Alvarez

discurso editorial
Presidente
Caetano Ernesto Plastino
Vice-Presidente
Milton Meira do Nascimento
RICHARD THEISEN SIMANKE

METAPSICOLOGIA LACANIANA

Os anos de formação

hl
discurso editorial
~
UFPR
Copyrig/11 © Discurso Editorial, 2002

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sem a autorização prévia da editora.

Projl!to l!ditorial: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP


Direção l!dítorial: Caetano Ernesto Plastino
Coordenação: Floriano Jonas Cesar
Projl!IO gráfico e editoração: Logaria Brasil
Capa: Camila Mesquita
Rl!visão: Maria José Constantino Petri
Tiragem: 1.000 exemplares

Ficha catalográfica: Sonia Marisa Luche11i CRB/8-4664


S588 Simanke, Richard
Metapsicologia lacaniana: os anos de formação I
Richard Theiscn Simankc - São Paulo: Discurso
Editorial; Curitiba: Editora UFPR, 2002.
537 p.

ISBN 8S-86590-3S-S

!. Psicologia 2. Metapsicologia 3. Jacques Lacan


(1901-1981) I. Título

CDD 150
150.19S

~ UFPR
discurso editorial
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Para Sofia
AGRADECIMENTOS

Quero expressar o meu reconhecimento, antes de tudo, ao Prof.


Paulo Eduardo Arantes, pela orientação paciente e atenta da tese de
doutoramento da qual resultou este trabalho; aos professores Franklin
Leopoldo e Silva, Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Oswaldo Giacóia
e Luiz Roberto Monzani pela leitura cuidadosa, pelas valiosas suges-
tões e correções e pela atenção dispensad~ quando da defesa da mes-
ma no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da USP. À CAPES,
que financiou o projeto original, assim como à Universidade Federal
de São Carlos, que ofereceu as condições para a sua continuação, após
o início de minhas atividades docentes naquele estabelecimento. Gos-
taria de mencionar, em conjunto, meus colegas, professores e fun-
cionários, do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências
da UFSCar, pelo suporte concedido no mesmo período.
Estendo esse reconhecimento a todas as pessoas que contribuí-
ram com uma sugestão ou uma crítica para consolidação desse traba~
lho e àquelas que, afetivamente, sustentaram sua realização. Finalmen-
te, agradeço a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP) pelo auxílio concedido para esta publicação, com especial
referência a sua Assessoria Científica, a cuja generosa avaliação real-
mente espero que este trabalho esteja à altura.
SUMJ\_RIO

INTRODUÇÃO:
DO CONHECIMENTO PARANÓICO AO "RETORNO A FREUD" 11
1. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 17
1, 1, UMA MEDICINA AQU~M DO SUJEITO 20
1.2. ALTERNATIVAS PARA A PSIQUIATRIA 32
1.3. O PSIQUIATRA E SUA DOENÇA 39
II, A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 59
11.1. A'PARANÓIA E A PERSONALIDADE 60
11.2. CONSTITUIÇÃO, REAÇÃO, INTERPRETAÇÃO 72
11,3, PSICOGtNESE E QUESTÕES DE M~TODO: O CASO AIM~E 84
11.4, UM ANTEPROJETO DE PSICOLOGIA CIENTfFICA 102
11.5. INGREDIENTES PSICANALfTICOS 134
Ili. O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PA~NÔICO 151
111,l. ABSTRAÇÕES DA PSICOLOGIA 153
111.2. DIRETRIZES POLITZERIANAS 163
111,3, UM MODELO RELATIVISTA PARA A PSICOLOGIA 186
111.4. AS NECESSIDADES DA CLfNlCA 212
111.5, CLINICA E EPISTEMOLOGIA 240
IV. IMAGENS E COMPLEXOS 245
IV.!. A FAMfLIA E SEUS COMPLEXOS 247
IV,2, DUAS FILOSOFIAS DO IMAGINÁRIO 283
JV,3, UMA ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO 309
V. ÁNTROPOLOGIAS LACANIANAS 341
V,l. SELVAGENS, LOUCOS E CIVILIZADOS 344
V,2. FATOS SOCIAIS, FATOS TOTAIS 359
V.3. SUJEITO! DESEJO E NEGATIVIDADE 398
V,4, RESUMINDO: LACAN E A ANTROPOLOGIA 427
VI. UM INCONSCIENTE PARA O SUJEITO 431
VI.!. O INCONSCIENTE DAS ESTRUTURAS 432
Vl.2. A NEUROSE COMO MITO INDIVIDUAL 468
Vl,3. UMA METAPSICOLOGIA LACANIANA 493

CONCLUSÃO 525
BIBLIOGRAFIA 529
ABREVIATURAS

AP: Lacan, J. 'Tagressivité en psychanalyse".


CFP: Politzer, G. Critique des fondements de la psychologi,e.
CP: Lacan, J. "Propos sur la causalicé psychique".
IMM: Lévi-Strauss, C. "Introduction à l'oeuvre de Marcel Mauss".
LF: Lacan, J. "La famille".
LH: Kojeve, A. lntroduction à la lecture de Hegel.
MIN: Lacan, J. "Le mythe individuei du nevrosé".
PC: Lacan, J. "Imroduccion théorique aux fonctions de la psychanalyse
en criminologie".
PP: Lacan, J. De la psychose paranoi'aque dans ses rapports avec la perso-
nalité (citada no texto simplesmente como Tese, com maiúscula).
PR: Lacan, J. ''.Au-delà du 'Principe de réalité"'.
SIR: Lacan, J. Le symbolique, l'imagi,naire et le réel.
SM: Lacan, J. "Le stade du miro ir comme formaceur de la fonction
duJe".
INTRODUÇÃO

DO CONHECIMENTO PARANÓICO AO "RETORNO A FREUD"

A obra polêmica de Jacques Lacan costuma despertar, com mui-


ta freqüência, dois tipos de atitudes opostas: ou a adoração devota do
discípulo, que adere à doutrina antes de compreendê-la (ou que re-
nuncia à compreensão para melhor adorá,la), ou uma crítica feroz, que
rejeita em bloco a produção do autor, em· nome de algum pecado im-
perdoável, conceituai ou de caráter1. Ambas as atitudes são francamen-
te passionais e nenhuma delas, portanto, se presta a uma apreensão
objetiva da teoria. É verdade que a produção lacaniana apresenta uma
série de idiossincrasias, decorrentes, em parte, do seu caráter prepon-
derantemente oral, pelo menos na origem, o que a deixa exposta às
contingências da retórica, mas também de um estilo peculiar cuja obs-
curidade tendeu a se agravar com o tempo. Uma abordagem de seu
pensamento que se queira ponderada tem, assim, que encontrar ins·-·
trumemos para colocar em perspectiva as idiossincrasias do autor, que

1 Um bom exemplo dessa ferocidade crítica que Lacan costuma despertar é o artigo
de Cornelius Castoriadis, "A psicanálise, projeto e elucidação", onde se lê, a certa
alcura: "Uma coisa é certa: Lacan é um malfeitor. No decorrer da última década,
ele se tornou, além disso - mais grave ainda, diria um esteta - enfadonho" {p. 78).
A literatura devota, além de se manifestar em certos trabalhos pretensamente teó-
ricos, expressa-se cm alguns relatos biográficos francamente apologéticos.
12 RICHARD THE!SEN S!MANKE

permitam fazer ressaltar as questões centrais e as linhas de força do


projeto teórico que Lacan protagoniza ao longo de sua trajetória.
O principal desses instrumentos é a recuperação da perspectiva
histórica, freqüentemente escamoteada pelo próprio Lacan2, que pode
elucidar a gênese dos problemas com os quais a sua investigação vai-se
ocupar, permitindo distinguir a que fim se subordinam os conceitos
forjados ao longo do percurso da teoria, assim como o que motiva as
eventuais reformulações que estes venham a sofrer. Dessa forma, pode
tornar-se possível, na consideração dos estágios mais avançados do tra-
balho lacaniano, penetrar através das sucessivas camadas de expedien-
tes retóricos que se acumulam sobre os conceitos e, nos casos mais fe-
lizes, dispor de um padrão de medida para discriminar entre aquilo
que não passa de uma frase de efeito ou de ocasião - cuja presença
num ensino fundamentalmente oral não tem nada de muito grave,
afinal; o problema é a sacralização indiscriminada da palavra domes-
tre, que coloca tudo em pé de igualdade - e aqueles desenvolvimentos
que dizem respeito, mais de perto, às questões efetivas que se colocam
em cada momento.
Foi essa diretriz que se procurou seguir no presente trabalho,
que se ocupa do período inicial do percurso de Lacan, justamente a
fim de aí identificar a constituição de uma problemática que, por mais
que seja reelaborada posteriormente, conserva um alto grau de fideli-
dade à sua formulação original, se descontados, é claro, os diferentes
modos de expressão invocados pelo autor ao longo do tempo. A cons-
tatação desta continuidade entre momentos à primeira vista tão dis-
tintos do itinerário intelectual de Lacan - sua tese de doutorado em

2 Essa é a fantasia do "estado final do sistema", analisada por David Macey, que ten-
de a dotar o ensino e a produção de Lacan de uma aura atemporal que nivela to-
dos os desenvolvimentos de seus diversos períodos, a serviço de uma certa mistifi-
cação da teoria. O autor comenta, por exemplo, a mania de muitos lacanianos de
citarem somente ''Écrits, página tal", desconhecendo completamente que se trata
de uma coletânea heterogênea que cobre um amplo período da produção do au-
tor, e não um tratado definitivo da psicanálise lacaniana. Ver Macey, D. Lacan in
contexts, principalmente o primeiro capítulo, "The final state", p. 1-25.
INTRODUÇÃO 13

psiquiatria em 19323 e a proclamação do "retorno a Freud" em 1953,


por exemplo - tornou possível, pelo menos em parte, deslindar um
pouco a trama de referências convocadas para instrumentar sua pes-
quisa, cuja heterogeneidade - além da irresponsabilidade que muitos
detectam no emprego de noções extra-psicanalíticas - é uma das pe-
culiaridades do estilo lacaniano que motiva uma boa parte das reações
aversivas. É possível verificar que muitos personagens insistentemente
citados cumprem um papel muito menos efetivo na composição do
corpus lacaniano do que outros, mais discretos. Freqüentemente, cer-
tos nomes pr6prios e o vocabulário que eles trazem consigo prestam-
se tão somente a expressar, metaforicamente, noções emergentes de
uma reflexão que parte de premissas diversas, em contextos muitas
vezes longínquos.
Aliás, uma hipótese que norteou, embora indiretamente, a lei-
tura que se tentou aqui, é a de que, se há alguma consistência teórica
por trás da multiformidade do pensamento de Lacan, ela só pode se
sustentar no âmbito de uma concepção 17Jetafórica da teoria, que pode,
então, justificar o uso bastante livre que o· autor faz das referências mais
díspares. Essa concepção elabora-se paulatinamente no decorrer desse
período inicial da obra, mas define seus contornos mais precisamente
no Lacan dos anos 50 que em virtude do âmbito desse trabalho, não
será aqui tratado 4 • O que se pretendeu aqui foi resgatar, na origem, as
questões que serão trabalhadas dessa forma na fase mais típica da in-
vestigação lacaniana, ao mesmo tempo em que se formulam as pre-
missas que exigirão que se conceba deste modo a teoria adequada às
necessidades da psicanálise. Se a teoria, assim concebida, não deve de~
generar, efetivamente, numa pseudo-literatura - de gosto, aliás, duvi-
doso-, ela tem que se exercer sobre um conjunto de fatos muito pre-
cisamente identificados, cuja natureza requeira esse tipo de tratamento
te_órico. Esse conjunto de fatos é exatamente aquilo que se designa,

3 Doravante designada no texto apenas como é'Tese", com maiúscula.


4 Um primeiro desenvolvimento em torno dessa idéia pode ser encontrado em meu
trabalho ''.A letra e o sentido do 'retorno a Freud' de Lacan: a teoria como metáfora".
14 RICHARD THEISEN S!MANKE

tanto em psicanálise quanto em psiquiatria, como clínica, no sentido


da prática a que essas disciplinas se propõem, assim como dos fenô-
menos sobre os quais essa prática se aplica. O que se constata é que
um compromisso com essa dimensão clínica - com uma certa con-
cepção dessa dimensão, cujo sentido é preciso explicitar - é essencial
para a saúde do empreendimento lacaniano. Sempre que a teoria per-
der de vista essa dimensão, de fato, se arriscará a cair naquele estilo
pseudo-literário que se mencionou acima. Uma concepção da teoria
como um sistema de metdforas, acoplada a uma concepção dessa teoria
como metdfora da clínica: esses os dois componentes de uma espécie
de "metaceorià' lacaniana, que só será tematizada e, ainda assim, de
forma dispersa, bem mais tarde, mas que se revelam, embrionaria-
men te, nos temas abordados e nas opções teóricas efetuadas pelo pri-
meiro Lacan, desde as origens estritamente médicas de sua investiga-
ção. A compreensão das condições que presidem essa estréia - que
passam, diga-se logo, muito longe da psicanálise freudiana - é o pri-
meiro dos requisitos para uma apreensão adequada do processo de
constituição de seus conceitos. Trata-se, aqui, por tudo isso, de um
trabalho sobre Lacan, e não de um trabalho lacaniano, na medida em
que o que se tentou fazer foi elucidar o sentido de um projeto e, de
forma alguma, identificar-se com ele.
Se o estilo de Lacan vai evoluir, cada vez mais, na direção de
uma concepção da teoria como metáfora, não é menos verdade, con-
tudo, que o primeiro movimento de seu pensamento está animado de
uma sincera intenção científica. Trata-se do período que se estende das
investigações iniciais sobre a paranóia até a primeira formulação ex-
plícita da teoria dos "três registros", contemporânea ao lançamento do
programa do "retorno a Freud", do qual talvez se possa dizer que de-
sencadeia o processo de apropriação metafórica do texto freudiano.
Esses três registros (o simbólico, o imaginário e o real) vão conformar
as categorias fundamentais daquilo que se pode chamar a metapsico-
logia !acaniana, claro que guardando a devida distância com o sentido
que o termo tem em Freud. É verdade que já se manifesta aqui um
uso bastante livre de uma série de referências teóricas um tanto sur-
preendentes num psiquiatra - e, depois, psicanalista - em formação,
INTRODUÇÃO 15

mas o projeto manifesto de Lacan é colocá-las a serviço de uma refle-


xão epistemológica que ·-,isa propor uma cientificidade apropriada aos
fenômenos psicológicos. Este trabalho antecipa, assim, algumas
idiossincrasias que vão se tornar mais evidentes no período posterior,
e dá o tom particular do tipo de teoria que defende, neste estágio, para
a psicandlise. Se esta não é o ponto de partida, nem o foco imediato de
suas preocupações, vai, contudo, rapidamente concentrar seus esfor-
ços de dar uma formulação adequada ao campo da clínica das pertur-
bações mentais. É sobre o terreno psicanalítico que Lacan vai trans-
portar os problemas e orientações que lhe foram sugeridos - ou que se
lhe impuseram- quer pela tradição com a qual debate, quer pelas par-
ticularidades do objeto clínico com que se defronta: a paranóia e, num
sentido mais amplo, a psicose.
Os modelos assimilados por Lacan, neste primeiro período, con-
vergem para o que se pode chamar de uma teoria do imagi,ndrio (cujo
sentido antropológico será explicitado a seu tempo). É ela que aglutina
e tenta dar coerência - assim como um horizonte e uma finalidade
explicativa comum - às referências extra-psicanalíticas (e extra-psiquiá-
tricas, ainda na Tese) que começam a multiplicar-se. Ao mesmo tem-
po, a percepção dos limites dessa teoria, concomitante a uma renova-
ção dos modelos antropológicos nos quais Lacan se inspira, dão
margem à introdução do que ele denomina o registro do simbólico,
em cujo contexto se proporá o retorno a Freud. O percurso dessa
reconstituição do movimento inicial da obra lacaniana parte, assim,
de uma recapitulação de certas questões relativas às ciências médicas
como um todo (Capítulo I), a fim de nelas situar o passo teórico inicial
de Lacan, em seu doutorado em psiquiatria (Capítulo II). A partir do
programa que é aí formulado, passa-se para o debate epistêmico em
torno da psicologia em que o autor se envolve nos anos que se seguem
à Tese, onde a definição da paranóia como fenômeno de conhecimen-
to lá proposta vai ser revertida numa concepção sobre a "estrutura pa-
ranóica do conhecimento humano", cujo sentido dá o tom da episte-
mologia lacaniana (Capítulo III). Essa reflexão epistemológica subsidia
a proposição, então, de uma teoria do imaginário- centrada na noção
de estágio do espelho - que se oferece como uma alternativa ao proje-
16 RICHARD THEISEN SIMANKE

to de uma psicologia científica e concreta (Capítulo IV). O caráter


antropológico dessa teoria - condição para o cumprimento das exi-
gências de rigor científico requeridas para essa nova psicologia - dá
ocasião para a recapitulação das relações de Lacan com diversos mo-
delos antropológicos, que comparecem de uma forma ou de outra em
seus trabalhos {Capítulo V), a qual conduz à figura decisiva de Lévi-
Strauss, através do qual Lacan se introduz no estruturalismo, assimi-
lando conceitos antropológicos - acima de todos, o de inconsciente -
que vão-lhe permitir, finalmente, definir seu programa em termos es-
tritamente freudianos {Capítulo VI), ainda que o retorno a Freud que
propõe nesse momento tenha como preço uma reformulação em am-
pla escala do sentido dos conceitos freudianos, na qual, justamente, as
suas concepções sobre a natureza do saber psicanalítico vão-se fazer
sentir mais nitidamente.
I. DILEMAS DA PSIQUIATRIA

Não se trata aqui de fazer uma história das influências que con-
cretamente atuaram sobre o jovem Lacan (o que pode muito bem ser
rastreado no material biográfico sobre o mesmo, que começa já ator-
nar-se volumoso), mas de propor uma pergunta sobre que tipo de pro-
blemas se apresentam a um investigador médico, com pretensões de
originalidade teórica, dentro do panorama das discussões que lhe eram
contemporâneas; em outras palavras, de pensar os dilemas inerentes à
medicina, constiruídos ao longo de sua formação histórica, dilemas
que Lacan não poderia deixar de herdar e com os quais não poderia
deixar de se debater. Certamente, não nos está vedado utilizar alguns
nomes próprios como balizas para este percurso lacaniano inicial, mas
o mais importante é compor um quadro teórico, por breve e resumi-
do que seja, que permita tornar inteligíveis as opções que o autor faz
neste momento, quais as questões específicas que busca responder e o
que pode haver de novo, canto na formulação destas questões, quant~J
nas respostas oferecidas. Este esforço preliminar se justifica pelo fato
de que estas escolhas, perfeitamente inaugurais na pesquisa de nosso
autor, vão determinar ou, pelo menos, influir decisivamente em boa
parte do conteúdo e do estilo de seu trabalho posterior. Inversamente,
traços característicos - e que vão fazer escola - de seu perfil teórico
mais tardio podem já ser percebidos em germe nessas primeiras obras.
Pode parecer óbvio, mas vale a pena insistir sobre o caráter es-
tritamente médico da investigação que Lacan empreende em sua tese
de doutorado. Em um autor tão identificado com a psicanálise e com
um trabalho intensivo sobre os textos de Freud - e, em menor grau,
18 RICHARD THEISE.N SiMANKE.

com uma série de disciplinas e correntes intelectuais com as quais fler-


tou ou às quais aderiu realmente nos anos subseqüentes-, muitos de
seus discípulos ou comentadores sucumbem às tentações da ilusão re-
trospectiva e procuram ver na Tese um compromisso muito maior com
as idéias freudianas 1• Especulação, neste caso, não só desencaminha-
dora, como vazia, já que Lacan, como veremos, presta contas com bas-
tante detalhe, na conclusão de sua tese, daquilo que julgou apropria-
do extrair das doutrinas psicanalíticas, ao mesmo tempo em que
fornece a justa medida da distância que o separa destas doutrinas. Por
outro lado, fica claro que esta incorporação de elementos freudianos
está subordinada a um projeto teórico bastante preciso, cujas linhas
de força, contudo, emanam de outro lugar. A escolha ou a recusa des-
tes elementos está determinada por este projeto, que é tão psiquiátri-
co quanto deve ser uma tese acadêmica nessa área.
Este modo de compreender as origens do pensamento lacani;mo,
assim como a validade de tomá-lo como·ponto de partida, foram-nos
inicialmente sugeridos pelo livro de Bertrand Ogilvie, Lacan: la for-
mation du concept de sujet2, cuja lição adotamos em linhas gerais. Duas
diferenças, contudo, merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, o
presente trabalho pretende reconstituir o percurso de Lacan, senão até

1 Elisabeth Roudinesco, por exemplo, em sua biografia de Lacan, não hesita em ir


contra o testemunho do próprio biografado para afirmar o caráter freudiano da
Tese: "Que Lacan não seja freudiano do mesmo modo nos anos 30 e nos anos 70
não implica, como ele acredita, que não tenha sido conscientemente freudiano
em 1932" (Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamen-
to, p. 83). No entanto, é justamente essa consciência que Lacan possuía do teor
das idéias psicanalíticas e da distância que as separavam de suas próprias elabora-
ções que impede que sua obra inaugural possa ser considerada "freudiana", ou que
ele assim a concebesse, a não ser nos segmentos restritos e subordinados que ele
deliberadamente concedeu à psicanálise.
2 Diz Ogilvie: "(...) parece, ao contrário, que Jacques Lacan, médico psiquiatra fran-
cês de formação tradicional, começa por se colocar uma série de questões teóricas
novas, não a partir da psicanálise, mas a partir da própria psiquiatria, assim como
da filosofia" (op. cit., p. 7).
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 19

seus textos e seminários mais tardios, pelo menos até aquele momento
em que tomam forma as categorias fundamentais da metapsicologia
lacaniana - o simbólico, o imaginário e o real - e no qual, portanto,
se arremata a elaboração de seu programa de pesquisa mais caracterís-
tico e que é reconhecido como tal. Ogilvie restringe-se ao período
1932-49, pois pretende reconstimir a história inicial da trajetória
lacaniana, para deixar entrever algumas implicações filosóficas de suas
teses - o que se revela no próprio eixo escolhido para sua análise: o
conceito de sujeito. Aqui optou-se, porém - e esta é a segunda diferen-
ça a ser assinalada -, por privilegiar as discussões médicas das quais
parte Lacan. Antes de tudo, para contornar a armadilha de se ler Lacan
como um filósofo 3, coisa que ele certamente não é. Além disso, estas
discussões, mesmo que internas ao campo da medicina, trazem em-
butidas em si as questões filosóficas que atravessam o texto de
Lacan. Vale dizer: as questões efetivas, para além da profusão de refe-
rências, cuja função na teoria ainda está por ser precisada. A medicina
ou, mais precisamente, o processo de formação, os traços distintivos,
assim como a posteridade do discurso médzco tornaram-se, tanto quan-
to a psicanálise, objeto de uma série de interpretações filosóficas, hoje
consagradas (Foucault, Canguilhem, entre outros), às quais se recor-
rerá na continuidade. É justamente pelo fato de Lacan não ser um fi-
lósofo - mas, a princípio, médico psiquiatra e, a seguir, psicanalista -
que a referência à clínica é indispensável para a compreensão de sua

3 O exemplo mais impressionante desta via de abordagem é o livro de Alain


Juranville, Lacan e a filosofia. Parece-nos, contudo, que o lugar da filosofia na obra
de Lacan (isto é, o papel que desempenham suas reiteradas citações e referências à
hist6ria da filosofia) s6 pode ser corretamente avaliado tendo em vista suas posi-
ções muito particulares diante da psicanálise, entendida como uma disciplina de
vocação essencialmente clínica. Do modo como Juranville expõe suas idéias, pare-
ce que Lacan dedicou-se apenas a um insistente debate filosófico com Freud e com
metade do panteão da filosofia ocidental. Trata-se, aqui, em suma, de tentar ler
Lacan como ttm psicanalista - mais precisamente, como um teórico da psicandlise -
e não como fil6sofo, lingüista, ou o que quer que seja.
20 RICHARD THEISEN S!MANKE

evolução teórica, assim como do estilo de sua teoria. Além disso, é atra-
vés de sua dimensão clínica que a medicina vai estabelecer pontos de
contato com as ciências humanas4, com as quais Lacan vai querer ali-
nhar a psicanálise, opondo-se às tendências psicobiologizantes que
detectava no campo psicanalítico.
Comecemos, assim, nos perguntando que lugar a psiquiatria
ocupa no quadro das ciências médicas, a fim de identificar que opções
se abrem diante do doutorando Jacques Lacan, cujo próprio estilo nos
informa que ele já não se toma por qualquer um e que, portanto, quer
deixar a marca de sua contribuição pessoal na evolução destas ciências.

1.1. UMA MEDICINA AQUÉM DO SUJEITO

Em épocas posteriores, Lacan vai atribuir à ciência em geral o


desmerecimento da dimensão subjetiva do conhecimento. Esta cen-
sura se torna mais compreensível, se levamos em conta o seu progra-
ma inicial de formulação de uma ciência da subjetividade, com o qual
se situava na contracorrente do processo histórico que elevou a inves-
tigação médica à categoria de ciência e que trouxe como conseqüência
- talvez, como condição sine qua non - a recusa de tudo que concerne
à subjetividade do paciente; em outras palavras, sua redução à condi-
ção de objeto. Talvez a recapitulação dos passos desse processo permi-
ta compreender melhor a situação das ciências médicas - e, em parti-

4 Este ponto de vista é exposto por Foucault, em O nascimento da clinica, onde a


medicina clínica, primeiro momento no pensamento ocidental em que o indiví-
duo humano concreto é feito objeto de um saber positivo, é, por isso, situada na
origem das chamadas ciências do homem. Além dele, Granger, em Pensée formei/e
et sciences de l'homme, fala do "pólo clínico" comum a todas as ciências humanas -
o fato de que o conhecimento produzido por elas aponta sempre para uma prática
ou uma intervenção possível.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 21

cular, da psiquiatria - que emoldura a formação de Lacan e contra que


aspectos desse quadro ele precisou se insurgir na elaboração de sua pri-
meira aventura teórica na Tese. Sintetizemos rapidamente, para tanto,
a análise foucaultiana em O nascimento da clínica, a fim de deixar mais
claro como a realização das ambições científicas da medicina condu-
ziu a uma concepção de doença que traria obstáculos incontornáveis à
formulação de um conceito de psicose; mais especificamente, das
afecções de tipo paranóico, que Lacan elegeu como objeto de sua re-
flexão inicial5.
Assim, num primeiro momento - inventário preliminar, prévio
à constituição de uma ciência-, a medicina teria tomado como mo-
delo a História Natural que, na euforia classificatória que passou do
século XVII para o XVIII, tinha empreendido o levantamento da pro-
fusão de espécies botânicas e animais tornadas conhecidas pela explo-
ração dos novos continentes, a qual revelara um mundo muito mais
complexo e multiforme aos olhos habituados apenas à Europa. Nas-
cia, assim, uma medicina das classificaçõ,es, que concebia seus objetos,
as doenças, como espécies naturais passíveis de serem ordenadas ao
modo dos seres vivos. Se essa orientação trazia consigo uma emiti.cação
da doença - que habitaria o organismo de uma maneira mais ou me-
nos misteriosa, mas sem confundir-se com ele -, ela teve o mérito,
segundo Foucault, de, pela primeira vez, fazer da observação (ou seja,
do "olhar médico", cuja arqueologia ele pretende traçar nessa obra), o
método das disciplinas médicas, em oposição aos procedimentos
especulativos da medicina dos sistemas. Isso porque a classificação de-
via buscar seus critérios nos sinais visíveis que as entidades mórbidas
ocasionam na superfície dos órgãos afetados. Mas a contradição que

5 É preciso esclarecer que se faz aqui um aproveitamento particular da análise de


Foucault, com ênfase na constituição de um conceito de doença, crucial para as
tentativas de propor a medicina como uma ciência de pleno direito. O objetivo de
Foucault é muito mais descrever a formação do discurso médico, referido às práti-
cas institucionais que lhe deram origem, passando bem ao largo da discussão so-
bre a ciencificidade ou não desse discurso.
22 RICHARD THEISEN SIMANKE

se instala entre um método observacional e um objeto eminentemen-


te invisível acaba por levar à superação deste paradigma médico (se é
lícito usar aqui esta expressão) e propicia o surgimento da medicina
clínica, que demarca como objeto da observação o próprio paciente,
ou seja, o indivíduo concreto e a evolução de seus sintomas. É aí que
Foucault assinala como o homem se torna, pela primeira vez, objeto
de um saber que se pretende positivo. Mas o indivíduo doente não é a
doença, e a medicina se priva, assim, de seu objeto específico. A solu-
ção só viria com a anatomia patológica, cujo surgimento é mais ou
menos precisamente datado pela publicação do Tratado das membra-
nas (1802), de Xavier Bichar. A doença é, então, identificada com um
processo real de alteração dos tecidos; o olhar passa a ser um instru-
mento perfeitamente adequado à investigação da transparência deste
objeto bidimensional (o tecido ou membrana tem a natureza de uma
superfície), em contraste com a opacidade do órgão, cuja espessura
escondia a essência da doença "ontologizada", visada pela medicina
classificatória. O método anátomo-clínico preconizado por Bichar pro-
cede retroativamente: a dissecação de cadáveres revela as alterações
tissulares que explicam os sintomas observados in vivo. Segue-se, qua-
se que naturalmente, uma desqualificação do método clínico isolado:
a prática de "tomar notas à cabeceira dos doentes" só pode produzir
confusão, já que não permite vincular os sintomas a um substrato real
que os justifique. A fala do paciente, queixa subjetiva e desencami-
nhadora, é preterida em benefício do silêncio do cadáver. A medicina
se dá um objeto adequado ao seu instrumento, às custas da subjetivi-
dade do paciente, considerado, a partir daí, como uma espécie de ca-
dáver em potencial e, assim, potencialmente inerte, em sua objetivi-
dade ideal.
A concepção de doença que decorre das posições de Bichat con-
segue, deste modo, integrar e conservar as conquistas da evolução que
a precede: a medicina continua sendo uma ciência da observação 6, e o

6 Com Claude Bernard, vai ser atribuída à medicina a possibilidade de adquirir


também um caráter experimental. Mas Bernard era o primeiro a reconhecer que a
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 23

novo mundo de conhecimento que se abre à investigação anatômica


ocasiona, inclusive, uma reativação do pensamento classificatório que
caracterizara o século anterior, com os resultados de um método reno-
vado fornecendo as bases para as novas nosografias. A doença conti-
nua sendo entendida como um processo, assim como ocorria na me-
dicina clínica. Mas lá tratava-se de um processo ideal, inferido a partir
da história concreta do paciente, que era, enquanto tal, o único obje-
to imediatamente acessível à observação. Com Bichat, as alterações
observadas nos órgãos decompostos em diferentes tipos e camadas de
tecido são a doença. Na verdade, "órgão" torna-se aí um conceito abs-
trato, quase um construto: o que existe de real são os tecidos, que se
espessam, desdobram, enrolam-se, superpõem-se, etc., formando o que
a análise anatômica mais grosseira dos primeiros dissecadores -
Morgagni, o pioneiro, por exemplo - recortava como órgãos. São os
tecidos, portanto, que passam a constituir os elementos de composi-
ção efetivos e as unidades funcionais do organismo. São eles que se
tornam então, legitimamente, os verdadeiros objetos, tanto da anato-
mia quanto da fisiologia, objetos que tê~ a vantagem de não oferecer

distinção entre observação e experimentação não é absoluta: a experimentação pode


ser considerada como uma observação induzida ou como a criação de certos dis-
positivos que permitam uma observação mais acurada. No sentido inverso, os pró-
prios processos patológicos observáveis chegaram a ser defendidos como uma es-
pécie de experimentos espontâneos do organismo {Com te é um dos que se expressa
assim). Embora privilegie a fisiologia à anatomia {ele chega à falar de autópsias
fisiológicas, para designar aquelas que se destinam a verificar os determinantes de
certos processos vitais, e não apenas a existência ou não de alterações materiais
nos tecidos), Bernard não chega a divergir realmente da revolução instaurada por
Bichar: ele mais a completa do que se opõe a ela. Ambos, inclusive, vão-se inserir
no movimento que propõe uma definição apenas quantitativa para o patológico e
para sua distinção do normal. Ver, por exemplo, o primeiro capítulo de Introdu-
ção à medicina experimental ("Da observação.e da experiência", p. 19-50). A ques-
tão das relações quantitativas entre o normal e o patológico é uma parte impor-
tante do livro de Georges Canguilhem, Le normal et le pathologique, ao qual
retornaremos a seguir.
24 RICHARD THEISEN S!MANKE

nenhuma espessura a ocultar a verdade do fato patol6gico - a lesão -,


de serem totalmente permeáveis ao olhar. Malgrado alguns reveses na
abordagem de distúrbios que transcorrem sem deixar lesões visíveis (o
problema das febres; depois, todo tipo de perturbação funcional,
endócrina, alérgica, etc. - isto para não abandonar o terreno da medi-
cina orgânica}, este paradigma teve uma carreira vitoriosa nas ciências
.
médicas, e só bastante recentemente estas ouderam tomar um certo
distanciamento, de modo a poder lançar sobre este momento crucial
de sua formação um olhar mais crítico.
Não é difícil perceber o quanto este desenvolvimento leva a prá-
tica médica para longe da psicanálise que, no entanto, dela emerge.
Aqui não é o lugar de se estender sobre as inversões e reorientações
que Freud teve que empreender para tornar viável uma concepção do
psiquismo tal como ele veio a propor. Haverá oportunidade para tan-
to quando da discussão imprescindível que terá que ser feita, compa-
rando os projetos originais de Freud e Lacan, a fim de medir o grau de
reinterpretação do texto freudiano exigido pela diretriz do "retorno a
Freud"7• Basta assinalar que estes projetos divergem profundamente
quanto a pontos essenciais, nem que seja apenas pelo fato de Freud
partir da investigação neurol6gica e Lacan da prática psiquiátrica. É
preciso, por isso, conduzir a presente discussão das condições que vi-
goraram ao longo do processo de formação das ciências médicas em
geral para o campo, mais restrito, da psiquiatria, tentando, assim, cir-
cunscrever mais de perto o horizonte doutrinário diante do qual se
colocou o jovem Lacan em seu debate com a tradição.
Uma primeira conseqüência, que, desde já, chama atenção, é
que, a partir da revolução anátomo-patológica, impôs-se, como mo-
delo explicativo para todas as especialidades médicas, existentes e por
existir, o mais estrito organicismo. Não é apenas uma relação de causa

7 O sentido desta diretriz, que começa a ser lançada em corno de 1953, principal-
mente na conferência sobre Le symbolique, l'imaginaire et /e réei - mas também
em "Le myche individuei du nevrosé" - será discutido à luz dos desenvolvimentos
que a precedem, quase que a título de conclusão do presente trabalho.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 25

e efeito que se estabelece entre lesão e doença, mas de identidade: a


lesão é a doença, é tudo o que pode haver de real e verdadeiramente
objetivo na doença. Os sintomas manifestos não passam de efeitos,
sinais que traduzem a essência da doença no nível clínico e, por isso
mesmo, expostos às vicissitudes da subjetividade (tanto do paciente,
quanto do médico, diga-se de passagem), cujos descaminhos a análise
anatômica tem por função corrigir. É verdade que este organicismo
generalizado não tardará a sofrer restrições aqui e ali, mas ele perma-
necerá longamente, senão como padrão efetivo e imediatamente reali-
zável para a explicação médica, ao menos como ideal a ser alcançado.
Certamente, é à psiquiatria que este organicismo vai colocar as maio-
res dificuldades, ora negando a realidade de seu objeto próprio - a
doença mental -, ora assimilando-o às patologias de origem orgânica,
deixando esta especialidade no incômodo lugar de uma medicina das
aparências8 •
Mas, antes de passar às atribulações da psiquiatria, há um outro
aspecto, que decorre das inovações de B!chat e concerne ao conjunto
das disciplinas médicas, que merece ser discutido. Sua concepção da
doença como processo, que prolonga e aperfeiçoa aquela que era a da
clínica, permite que a anatomia patológica escape à entificação da
doença, que caracterizava as classificações. Aquelas, de fato, compu-
nham sistemas de entidades abstratas, quase metafísicas, em nada
consonantes com a atual identificação da doença com um processo
orgânico real. Mas, se a doença não se destaca mais da realidade do
corpo, surge a questão sobre o que distingue um processo orgânico

8 Esclareçamos, desde logo, que o organicismo só vai adquirir uma conotação nega-
tiva (reducionista), como a que lhe atribui Lacan, quando da sua aplicação à pato-
logia mental. Em Bichar, ao contrário, ele opõe-se a um reducionismo fisicalisra e
trabalha no sentido da preservação da especificidade do fato orgânico e vital. O
caráter vitalista das reses de Bichar é apontado por Canguilhem, que dedica-se ain-
da, em Le normal ef le pathologique e outros textos volcados para os problemas
gerais da biologia, a uma reabilitação filosófica do vitalismo, entendendo-o no sen-
tido da preservação dessa especificidade acima referida.
26 RICHARD THEISEN S!MANKE

qualquer e um processo patológico. Trata-se, em outras palavras, de


uma pergunta sobre as fronteiras entre a fisiologia e a patologia. O
próprio Bichat vai insinuar a idéia - que será desenvolvida, populari-
zada e, mesmo, elevada à categoria de dogma por nomes como
Broussais, Comte e Bernard - de que os fenômenos fisiológicos e pa-
tológicos não se distinguem senão por sua intensidade. Sigamos, en-
tão, em linhas gerais, o estabelecimento e as conseqüências desta con-
cepção quantitativa das relações entre o normal e opatológico, adotando
como guia a análise efetuada por Georges Canguilhem.
Curiosamente, é uma necessidade clínica que vai impulsionar
esta concepção. O conhecimento médico, sejam quais forem as bases
em que se funde, está subordinado às exigências de uma prática.
Canguilhem fala de uma espécie de "otimismo médico" que condicio-
na a investigação, ou seja, a crença na possibilidade de uma interven-
ção eficaz. As representações ontológicas da doença caminham neste sen-
tido: o que pode ser localizado pode, ao menos em princípio, ser objeto
de uma ação eficiente. Quer esta representação tenha um caráter posi-
tivo - o mal, de alguma forma, habita o corpo, como nas teorias da
infecção e nas parasitoses em geral - ou negativo - algo falta para o
pleno exercício das funções orgânicas, como nas doenças carenciais,
raquitismo, avitaminoses, anemia, etc. - esta condição se verifica: o
que entrou pode ser expulso, o que saiu pode ser reposto. É na ação
do médico que se depositam as esperanças desta correção. Como diz
Canguilhem, esta concepção "não espera nada de bom da natureza por
ela mesma"9 • O caso é diferente para as representações dinâmicas da
doença, cujo melhor exemplo é a medicina hipocrática, nas quais a
doença resulta de um desequilíbrio interno; e a cura coincide com seu
restabelecimento. Aí se concebe a natureza como tendendo para a or-
dem e a homeostase. É uma concepção totalizante que percebe o or-
ganismo como profundamente integrado ao meio no qual subsiste, de
modo que a tendência natural deste meio em direção ao equilíbrio não

9 Le normal et le pathologique, p. 12.


DILEMAS DA PSIQUIATRIA 27

pode deixar de repercutir sobre o corpo doente e, na verdade, a pró-


pria doença manifesta passa a ser vista como um conjunto de reações
que se esforçam pelo seu restabelecimento. Em outras palavras, os fe-
nômenos patológicos observáveis já são, em si mesmos, tentativas de
cura 10 • É por esta via que as teorias dinâmicas da doença buscam sa-
tisfazer o ideal do otimismo médico.
Mas um ponto em comum pode ser detectado entre estas duas
representações do mal: ambas concebem a doença como uma "situa-
ção polêmica", ou seja, como um conflito entre o organismo e o agen-
te invasor (ou faltante) num caso, ou do organismo consigo mesmo,
no esforço de retornar ao estado de equilíbrio perdido, no outro caso.
Para dizê-lo de uma outra maneira, ambas entendem as relações entre
o sadio e o doente, entre o normal e o patológico, como comportando
diferenças qualitativas, isto é, como consistindo em dois estados qua-
litativamente distintos e que, por isso, estabelecem este ripo de rela-
ção antagônica. Ora, a representação dinâmica da doença até pode
tolerar este fato, já que deposita suas e,speranças de cura numa ação
espontânea da natureza, mas as concepções oncológicas vêem-se dian-
te de um impasse: espera-se do médico que ele possa reverter esta dis-
tinção qualitativa, converter um estado em outro que dele difere em
natureza, quando todos os ditames do empirismo, desde suas origens
baconianas, prescrevem que só se pode conhecer a natureza obedecen-
do-a, isto é, identificando e descrevendo suas leis e nunca opondo-se
a elas. Observe~se que, numa ciência empírica da natureza, toda mu-

10 É interessante observar que esta idéia ressurge, nestes termos, em Freud, quando
define o delfrio.psicótico como um esforço para restabelecer os vínculos perdidos
com a realidade, rompidos pelo processo propriamente patológico da psicose, que
é de feição nardsica. Esta concepção é celebrada como uma das grandes virtudes
da teoria freudiana das psicoses, quando comparada com as abordagens psiquiá-
tricas (ver, por exemplo, Waelhens, A. de. A psicose: ensaio de interpretação anali-
tica e existencial p. 23), e é particularmente apreciada por Lacan, uma vez que
concorda plenamente com sua própria tese de que as psicoses não podem ser re-
duzidas a fenômenos de déficit. Mas é um ponto de vista que parece ser típico de
qualquer concepção dinâmica da doença.
28 RICHARD THE!SEN S!MANKE

dança de estado se explica com referência a um fator que pode variar


quantitativamente; para dar um exemplo bem trivial, as mudanças no
estado físico da matéria (sólido, líquido, gasoso) reduzem-se a uma
variável quantitativa especificada, no caso, a energia cinética. O médi-
co encontra-se, portanto, numa posição que contraria os princípios
fundamentais da ciência, situação complicada para uma medicina que
aspira a ser reconhecida como tal.
Daí que o ponto de vista quantitativo pareça trazer a solução
ideal: ele permite conciliar uma exigência clínica de intervenção com
uma ambição científica. Uma vez que se esvazia a diferença de quali-
dade entre o estado de saúde e o de doença, o conhecimento da varia-
ção em intensidade dos processos fisiológicos pode, concebivelmenre,
fornecer os meios para a redução (ou aumento) desta intensidade, que
resultará, então, naquilo que, clinicamente, se conhece como cura. Este
é o espírito da contribuição de Broussais11 , desenvolvida e elevada à
categoria de princípio filosófico por Augusto Comte. Seu ponto de
partida é a idéia, bastante difundida, de que o fato vital básico é a
excitabilidade da matéria viva. O crescimento da excitação acima de
um certo patamar configura a irritação, conceito que funda uma pa-
tologia, desde então, "subordinada ao conjunto da biologia" (Comte).
Obtém-se, assim, um conceito de doença que escapa à oscilação entre
uma representação ontológica e uma representação dinâmica da enfer-
midade, um conceito que se opõe a este bloco formado pelas distin-
ções qualitativas, propondo uma curva contínua que vai do patológi-
co inferior (as diversas formas de astenia, todas as doenças designáveis
J>elo prefixo hipo, por exemplo) ao patológico superior (os males co-
meçados em hiper, hipertensão, hipertireoidismo, etc.), passando por
um estado intermediário ideal, que configura a saúde. Não é difícil
perceber que só dentro desta perspectiva esta última se identifica com
o conceito matemático e estatístico de norma. Boa parte da argumen-

11 O título da obra magna de Broussais, De l'irritatíon et de la folie, já revela o alcan-


ce que pretende dar a este princípio, estendendo-o até o domínio da patologia
mental.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 29

tação de Canguilhem dedica-se a corrigir esta distorção de considerar


"normal" como o contrário de "patol6gico" (com a conseqüente iden-
tificação deste último com o anormal), quando seu antônimo eviden-
te é o estado de saúde ou de bem-estar orgânico, que não é passível de
uma quantificação padronizada, já que alude inevitavelmente a uma
norma individual e, mais do que isso, a uma atividade normativa do
próprio organismo. Aqui não é o lugar de se estender sobre as sutile-
zas desta análise, mas cabe ressaltar como decorre daí que, mesmo no
nível da medicina orgânica, não é possível excluir os fatores concernen-
tes à individualidade do paciente, que atravessa os conceitos de saúde,
cura e doença, sem os quais não faz sequer sentido falar-se em uma
medicina. Adiantando um pouco do que se segue, é possível perceber
como a proposta lacaniana de "reintrodução do sujeito'' na prática psi-
quiátrica - mais que isso: a defesa do papel ativo que este sujeito de-
sempenha na construção de um meio circundante vital e social, a par-
tir do qual se determinam as estruturas de personalidade mórbida ou
normal - está ligada, sim, a um projeto de preservação da psiquiatria
como especialidade autônoma, mas, numa perspectiva mais ampla, diz
respeito também à própria identidade da medicina como um todo.
Porém uma outra ordem de problemas é introduzida, ainda, pela
concepção quantitativa. Se garante a sobrevivência do organicismo
como um modelo explicativo médico, alinhado com a especificidade
das ciências da vida, por outro lado ela põe em risco a autonomia da
medicina dentro do quadro destas ciências, já que, no limite, é o pró-
prio conceito de doença qu~ se esvazia, assimilado a uma contingên-
cia dos processos fisiológicos em geral. A subordinação do patológico
ao biol6gico, saudada por Comte como o ingresso da medicina no clu-
be seleto das ciências positivas, toma, assim, o aspecto de uma pura e
simples dissolução. Pode-se imaginar esta ameaça pairando como uma
espécie de espada de Dâmocles sobre a evolução da medicina, o que
acaba levando a um recrudescimento das concepções ontológicas e,
também, dinâmicas, que preservam a diferença qualitativa do objeto
médico (Canguilhem aponta como, mesmo as representações contem-
porâneas da doença não deixam de oscilar entre estas duas possibili-
dades). Mas é preciso observar que é principalmente no campo da clí-
30 RICHARD Tl-!EISEN S!MANKE

nica que isto se dá, e naqueles procedimentos que lhe concernem mais
de perto, como a elaboração de nosografias, a semiologia, etc., que
praticamente supõem uma entificação da doença ou, ao menos, a de-
finição de estruturas mórbidas, que podem ter um caráter dinâmico,
quanto mais tenderem a uma apreensão global, totalizante do doente.
A investigação médica propriamente dita - uma pesquisa de cunho
biológico dos fenômenos que interessam à patologia - permanece to-
talmente à vontade com o ponto de vista quantitativo, assumido como
uma garantia de científicidade. Como sintoma desta situação, conso-
lida-se uma dissociação, digamos, epistemológica entre a clínica (a prá-
tica médica) e a pesquisa (o trabalho de laboratório, por exemplo). A
clínica tem mais a ganhar com uma concepção qualitativa e, mais ain-
da, com uma concepção dinâmica da doença como processo, já que
atenta para o indivíduo doente e sua evolução, e pode aplicar sobre
ele um conhecimento obtido alhures, por outros métodos, visando a
uma cura que, desta forma, não mais contradiz um projeto empírico
de conhecimento. A investigação, por sua vez, será tanto mais médica
(e não meramente biológica) quanto mais se aproximar do terreno da
patologia, podendo até atribuir-se aí, como objeto, uma entidade cha-
mada "doença'', que garanta a sua identidade epistêmica. A questão
de "obedecer ou não" à natureza já não se coloca, pois este trabalho
visa apenas à produção de conhecimento e não aponta - nem imedia-
ta, nem necessariamente - para o problema da intervenção. Em suma,
quanto mais próximo da pesquisa biológica em geral, menos o médi-
co se incomoda com o desvanecimento do objeto "doença''; quanto
mais se aproxima deste objeto - que "omologiza" mais ou menos na-
turalmente-, menos considera o problema clínico da intervenção efi-
caz, que o colocaria diante do paradoxo de converter este objeto no
seu contrário. Isso que chamamos "a medicina'' reparte-se, assim, em
uma clínica (que não é uma ciência, mas uma técnica, uma arte de
curar) e um grupo de autodenominadas "ciências médicas", tributárias
das ciências biológicas e produtoras de um conhecimento autônomo,
aplicável, mas não votado essencialmente à prática.
Tanto Freud quanto Lacan trabalharam contra esta dissociação,
primeiro como médicos e, depois, como psicanalistas. Freud foi leva-
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 31

do quase a afirmar que a situação analítica é o verdadeiro laboratório


da psicandlise 12 , ou seja, que o lugar da produção e da aplicação do
conhecimento psicanalítico coincidem. Já Lacan, que vai dar uma ex-
tensão inaudita ao conceito de clínica, leva a solidariedade entre téc-
nica e teoria ao ponto da identidade, como teremos oportunidade de
verificar. Sua definição da paranóia como fenômeno de conhecimen-
to (que vai, depois, reverter na tese epistemológica do "conhecimento
como fenômeno paranóico") é sua primeira elaboração original que
caminha no sentido desta identidade. Daí que a eleição da paranóia
como primeiro objeto de reflexão não seja, de modo algum, irrelevante
para a elucidação do projeto lacaniano como um todo. Mas, antes de
chegarmos à paranóia, é necessário passar, num nível mais genérico,
pelo lugar ocupado pela psiquiatria e pela patologia mental neste qua-
dro evolutivo das ciências médicas, bem como pelos problemas parti-
culares que esta evolução colocou a esta especialidade.

12 Principalmente no que diz respeito às esperanças de oferecer uma demonstração ..


da realidade do inconsciente, permitindo ao conceito que ultrapasse a condição
de uma hipótese útil, capaz de introduzir coerência onde a percepção consciente
só detecta lacunas e obscuridade. Por exemplo, em Das Unbewume: "Se fica de-
monstrado, então, ·que podemos construir sobre a hipótese do inconsciente uma
prdtica através da qualpossamos influir com êxito sobre o curso dos processos comcien-
tes, de modo a atingir cercos fins, teremos obtido, com esse êxito, uma prova in-
constestdvel da existência daquilo que foi suposto" (p. 126, grifos nossos). É Juranville
que acentua o caráter estritamente experimental desta prova (cj Lacan e a .filoso-
fia, p. 27), provavelmente para enfatizar a diferença com a demonstração deduti-
va que teria sido empreendida por Lacan, o que constitui um exagero nos dois
casos, pois ambas as tentativas se dão dentro dos marcos de um método clinico.
32 RICHARD THEISEN SIMANKE

1.2. ALTERNATIVAS PARA A PSIQUIATRIA

A posição da psiquiatria nesta rede de alternativas que se ofere-


ce às disciplinas médicas vai-se revelar, com efeito, das mais proble-
máticas. E ela se complica justamente na medida em que seu objeto,
ao desbordar sobre o domínio indefinido do mental, vai maximizar as
dificuldades que cercam a fixação de um conceito de doença que lhe
permita subsistir como uma especialidade autônoma. Ela tem mais a
perder, por causa disso, com a adesão a um princípio quantitativo de
distinção entre o normal e o patológico: se, no caso da medicina orgâ-
nica, a continuidade estabelecida por este princípio terminava por apa-
gar a fronteira com o fisiológico, no caso da psiquiatria, ela arrisca dis-
solver-se numa psicologia geral1 3, afastando-se mesmo do domínio da
biologia, que fundamenta os demais ramos da medicina. Assim, num
primeiro momento, o compromisso com um modelo organicista vai
significar para a psiquiatria a garantia de seu pertencimento ao campo
da medicina. Mas com isso - e dada a natureza "mental' de seu objeto
- ela vai entrar em cheio nos dilemas que cercam os dualismos de tipo

13 Canguilhem assinala como os ecos da difusão, operada por Com te, do "princípio
de Broussais" repercutem principalmente no domínio da psicologia. Cita, como
exemplo, uma passagem de Renan, que dá bem a medida do quanto este princí-
pio quantitativo serve à psicologia, mas não à medicina. Vale a pena reproduzi-la:
"O sonho, a loucura, o delírio, o sonambulismo, a alucinação oferecem à psico-
logia individual um campo de experiência bem mais vantajoso que o estado regu-
lar. Pois os fenômenos que, neste estado, estão como que apagados por sua tenui-
dade, aparecem nas crises extraordinárias de uma maneira mais sensível por seu
exagero. O físico não estuda o galvanismo nas quantidades ínfimas que a nature-
za apresenta, mas ele o multiplica pela experimentação, a fim de estudá-lo com
mais facilidade, dado aliás que as leis estudadas neste estado exagerado são idênti-
cas às do estado natural. Da mesma forma, a psicologia da humanidade deverá se
edificar sobretudo pelo escudo das loucuras da humanidade, de seus sonhos, de
suas alucinações, que se reencontram à cada página do espírito humano" (Le nor-
mal et /e pathologique, p. 15-6).
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 33

cartesiano, e é possível mostrar como este posicionamento traz, no seu


rastro, uma teoria mecanicista da gênese dos distúrbios mentais,
retornando, por este caminho, a um modo de conceber·as entidades
clínicas que reedita as representações ontológicas da doença 14.
De fato, a posição peculiar da psiquiatria no panorama das ciên-
cias médicas faz, por si só, que esta não possa prescindir de uma dis-
cussão sobre a natureza de seu objeto. Assim, a reflexão psiquiátrica,
isto é, qualquer elaboração teórica que concerna às doenças mentais,
parece exigir, para toda questão que se coloque, uma discussão prévia
de feitio epistemológico, o que, pelo menos, torna mais compreensí-
vel que Lacan recheie com elas sua tese, tendência que se prolongará,
mais tarde, em suas elaborações a propósito da psicanálise. Desde a
obra, neste sentido, inaugural de Cabanis (Rapports du physique et du
moral - 1802), o cartesianismo, segundo Ey, habitaria a psiquiatria,
importando uma problemática da qual os demais ramos da medicina
podem perfeitamente prescindir. Não é ocioso assinalar como esta
impregnação introduz a perspectiva reduçionista, que Lacan vai pro-
curar demolir: Ogilvie, por exemplo, destaca como; em psiquiatria,
qualquer forma de dualismo acaba, mais cedo ou mais tarde, condu-
zindo a uma desvalorização da esfera propriamente psicológica dos fe-
nômenos clínicos 15. Esta observação também ajuda a compreender por
que Lacan - leitor de Espinoza desde a adolescência - vai-se inspirar
em sua filosofia monista, inspiração cujo primeiro e mais force indício
é a epígrafe da Tese, extraída da Ética.
O fio condutor do comentário de Henri Ey, no artigo que acom-
panhamos, é a idéia de que o "cartesianismo" - grafado assim, entre -
aspas, para designar uma doutrina que o autor remete mais a Male-

14 Sigo aqui, em linhas gerais, os pontos de vista de Henri Ey- aliás, amigo e cola-
borador de Lacan nos primeiros tempos - expostos principalmente no artigo "Le
développemenc mecanicisce de la psyquiacrie à l'abri du dualisme cartésien".
15 Ele afirma, mais especificamente, que "sobre o plano psiquiátrico [todo dualismo]
não pode senão terminar em uma desvalorização das representações" (ÍAcan: la
formation du concept de sujet, p. 63).
34 RICHARD THEISEN SIMANKE

branche e outros filósofos subseqüentes do que a Descartes 16 - cons-


titui-se, ao mesmo tempo, em condição e obstáculo para a psiquiatria:
ele serviu à causa psiquiátrica ao dar autonomia ontológica ao mental,
mas a engajou também, a partir disso, em uma série de impasses. Em
primeiro lugar, porque, tal como se encontra formulado, este "men-
tal" de forma alguma se presta a uma descrição científica. Opondo-se
essencialmente à extensão, a alma é, por isso mesmo, incondicionada:
tudo nela é simultâneo, atual, cada ato do espírito o implica como um
rodo (deve passar por aí o parentesco que Ey percebe com as aborda-
gens fenomenológicas). Nada há, portanto, no âmbito exclusivo da
·substância pensante, que se possa demarcar como o domínio das cau-
sas, ao qual remeter a explicação. De resto, mesmo saindo do terreno
metafísico para o da psicologia objetiva, qualquer tipo de causalidade
totalmente interna ao psíquico - isto é, qualquer teoria psicogenética
. estrita - vai ter que ser recusada em nome da especificidade do pato-
lógico. Ao encerrar-se a explicação apenas no domínio das causas psí-
quicas, não se pode mais falar de enfermidade, a não ser num sentido
muito metafórico. Os erros da alma podem ser pecados, podem ser
uma hybris da vontade, mas nunca doenças mentais.
A alternativa para se poder formular uma ciência psicológica,
tão indispensável para a psiquiatria quanto a fisiologia o é para a me-

16 Ey considera que as especulações cartesianas nas Meditações podem ser situadas


"na origem do movimento fenomenológico, que coloca o pensamento como um
modo de existência em si e pa,ra si" (Ey, H. "Le dévéllopement mécaniciste de la
psychiatrie à l'abri du dualisme carcésien", p. 53, nota). Merleau-Ponty também
faz suas restrições à identificação pura e simples do cartesianismo com a filosofia
de Descartes. Inclusive, G. Lébrun, em uma nota à tradução brasileira das Medi-
tafóes (p. 136), sobre a passagem da Sexta Meditação em que Descartes reconhe-
ce a união de fato entre alma e corpo (ela não está aí apenas "como um piloto em
.seu navio", etc.), para além da sua separação de direito, sugere que A
Fenomenologia da percepção pode ser encarada como um longo.comentário desta
passagem. Toda esta atmosfera que cultiva um Descartes menos cartesiano do que
se suspeitava até então talvez ajude a tornar menos estranha a insistência com que
Lacan vai procurar aproximar o sujeito cartesiano e o inconsciente.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 35

dicina orgânica, é estabelecer relações de causa e efeito entre o orgâni-


co e o psíquico, o que, cedo ou tarde, desemboca, ora num materialis-
mo estrito, no qual os fenômenos do espírito são relegado!i à condição
de aparências (epifenomenismo), ora numa das diversas versões do
paralelismo psicofísico, em que esta relação causal é escamoteada pela
proposição de uma psicologia que mimetiza o mecanicismo e o
atomismo da concepção cartesiana dos organismos. A emergência des-
tas psicologias sensualistas e associacionistas, ao fornecer à psiquiatria
um modelo psicológico mecanicista, permite, então, em sentido in-
verso, o retorno a uma posição reducionista. O emparelhamento de
um psiquismo mecânico com um organismo mecânico, apesar da in-
terdição formal que o paralelismo institui a qualquer forma de
interação entre eles, cria condições para que, aos poucos, se retorne,
por diversos rodeios, à afirmação, assumida ou não, de uma relação
causal ponto por ponto (principalmente no campo psiquiátrico, já que
a psicologia pode ater-se apenas ao seu lado do paralelo): não falta-
ram, por exemplo, teorias iatromecânicas .da loucura, em que se ima-
ginavam nervos percutidos, enrijecidos, desgastados, rompidos ou não,
como as cordas de um piano, e coisas do gênero 17 • Assim, a inviabili-
dade de uma ciência empírica da mente enquanto tal, dentro dos
parâmetros do cartesianismo, conduz, quase que inexoravelmente, a
uma explicação organicista, onde se conjugam os aspectos do
mecanicismo, do atomismo e, como conseqüência, do reducionismo.
Segundo Ey, estes traços se repartem, nas teorias psiquiátricas, em uma
semiologia atomística (os sinais observados apontam para distúrbios
psíquicos parciais que, por sua vez, são correlacionados com d~nos·
orgânicos localizados ou localizáveis em princípio), uma etiologia me-
cânica (tese correlata ao pressuposto diagnóstico anterior: são as lesões
localizadas e seus efeitos que se compõem, mecanicamente, nas mani-
festações mais complexas da doença) e uma nosografia das entidades
clínicas (herdada da patologia orgânica, conforme a discussão prece-

17 Um interessante apanhado destas concepções pode ser encontrado no livro de


Isaías Pessoti, A loucura e as épocas. Ver, principalmente, p. 131-3.
36 RICHARD THEISEN S!MANKE

dente). Pelo que se vê, em acréscimo aos seus impasses específicos,


quando a psiquiatria adere ao organicismo, arca com aqueles oriun-
dos deste outro domínio.
Cabe observar que a Tese lacaniana operará uma revisão de to-
dos estes parâmetros instituídos para a psiquiatria por esta concepção
que se tornou hegemônica nas últimas décadas do século XIX. Ao
atomismo semiológico, Lacan vai opor uma visada da doença como
fenômeno total cuja filiação é preciso, ainda, traçar. Esta orientação,
por si só, acarretará uma inversão do argumento psiquiátrico, com o
privilégio que será atribuído aos fenômenos secundários, reativos e/ou
interpretativos das conseqüências diretas do dano primário de nature-
za orgânica (os chamados "fenômenos elementares"), por exemplo, na
relação entre os delírios e as alucinações. Quanto à gênese mecânica
dos sintomas, é o próprio Henri Ey que assinala o quanto esta
patogenia não passa de uma tradução em termos psíquicos das lesões
supostas pelas teses etiológicas precedentes. Usando, como bom discí-
pulo de Hughlings Jackson, o exemplo da afasia, ele qualifica as teorias
mecanicistas desta última como meras paráfrases do atomismo semio-
lógico subjacente, denundando a atribuição injustificada de realidade
aos diagramas empregados para conceber os distúrbios da linguagem,
ou seja, a pretensão de localizar átomos de linguagem sobre estes es-
quemas construídos para representar a atividade cerebral co.ncomitante
à produção da fala e à sua recepção e compreensão 18 . Em outras pala-
vras, trata-se de uma paráfrase, em termos patogênicos. (centros de fala,
fibras de condução, lesões, etc.) daquilo que é observado clinicamen-
te. Lacan - já na Tese, mas fazendo também disso uma diretriz para
suas pesquisas posteriores .,.... critica este realismo dos objetos clínicos, pró-
prio do que denomina o "hiperobjetivismo" da visada reducionista dos

18 Lembrando que o primeiro impulso da teorização freudiana consistiu justamente


na crítica do localizacionismo mecanicista das teorias da afasia, visando aos ex-
cessos dos diagram makers, conforme expressou-se Henry Head, ao resenhar, na
abertura de sua obra de síntese, Aphasia and kindred disorders ofspeech, tanto as
teorias clássicas quanto as de seus crfticos, entre os quais pode-se incluir Freud.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 37

fenômenos de personalidade. Pode-se ver aí, embrionariamente, uma


concepção do conhecimento médico como materialização de metdfo~
ras, que vai fazê-lo merecer o epíteto de "paranóico" 19 , éstendido de-
pois ao conhecimento humano em geral. Forçando um pouco a ima-
ginação, é possível chegar perto de captar, ao menos, a inspiração
inicial para um itinerário que conduzirá a uma espécie de metafa.rização
da teoria, dando o tom peculiar do estilo teórico de Lacan pelos anos
seguintes afora. Ou seja, trata-se de propor uma teoria que deve tor-
nar-se homogênea ao que descreve; dito de outro modo, uma teoria
metafórica que representaria adequadamente o que, no nível clínico
(o do sintoma), se produz por uma "causalidade metafórica'', confor-
me a formalização do conceito de metáfora, empreendida nos moldes
da teoria lacaniana do significante. Esta digressão antecipatória serve,
aqui, para insinuar o quanto estes desenvolvimentos mais tardios, que
formarão o cerne do lacanismo, estão em continuidade com o anti- .
reducionismo e o anti-objetivismo que Lacan professa ainda no inte-
rior do campo médico. Por outro lado, '..não é difícil perceber que a
tendência a essa "coisificação" dos objetos é perfeitamente solidária
com a ontologia da doença que passou a predominar na nosografia
psiquiátrica. A posição epistemológica de Lacan contra esta tese - sem-
pre lembrada quando se trata de opor psicanálise e medicina20 - tem
também suas raízes na discussão tipicamente médica que cerca sua es-
tréia como teórico dos novos tempos em psiquiatria.

19 Lacan vai caracterizar, mais tarde, o discurso psicócico por uma ausência de me-
táforas, resultado de uma atenção exclusiva à literalidade das palavras, mecanis-
mo pelo qual se produzem os sintomas. Por esta via, a psicose perpetua-se na con-
dição de paradigma clínico para as teorizações lacanianas, já que traz à tona, por
assim dizer, a essência da linguagem, no modo pelo qual Lacan a concebe a partir
de sua adesão ao estruturalismo. O sentido inicial da fórmula do "conhecimento
paranóico" - que será o foco de nosso terceiro capítulo - designa, contudo, o
apego realista às formações imaginárias que constituem, simultaneamente, o eu e
o campo dos objetos.
20 Ver, por exemplo, Jean Cravreul, A ordem médica, Cap. 8, p. 121-36.
38 RICHARD TI-JEISEN SIMANKE

Resumindo, verifica-se que do cruzamento entre a medicina e o


'1ualismo cartesiano que ocorre sobre o campo psiquiátrico, derivado
da própria natureza mista do objeto "doença mental" em questão, nas-
ce uma doutrina das entidades clínicas, segundo um argumento que
se pode expressar mais ou menos assim: a medicina lida com doenças;
ora, uma doença não pode, por definição, ser do espírito; portanto, só
pode ser do corpo. A doença mental não é, então, verdadeiramente
mental, mas sim uma doença orgânica com efeitos aparentes sobre o
nível mental (epifenomenismo), importando, por isso, todos os parâ-
metros que definem a doença para a patologia orgânica (mecanicismo,
atomismo, ontologização). A demência paralítica converte-se no pro-
tótipo das entidades psiquiátricas, pois, nela, o modelo explicativo
organicista funciona do modo mais satisfatório possível. O modelo da
paralisia vai ser, assim, exportado para as outras afecções, concebidas
como outras tantas entidades autônomas (já que são "realidades em
si"), dando margem às preocupações essencialmente nosográficas da
psiquiatria dica "clássica". Contudo, ·a categoria das psicoses vai funcio-
nar como uma espécie de peça de resistência contra esta ontologização
generalizada dos quadros clínicos: Ey aponta como a noção de psicose
é, por si só, contraditória com a idéia de entidade21 • Não é de surpre-
ender, então, que Lacan abra sua Tese retomando a distinção clássica
entre o grupo das demências e o grupo das psicoses22, nem que privi-
legie este segundo domínio, selecionando como alvo de análise sua
afecção mais representativa, a psicose paranóica, folie raisonnante por
excelência, que se oferece como paradigma para o campo psiquiátrico
como um todo, no extremo oposto daquele representado pela demên-
cia paralítica.
Nosso próximo passo, nessa preparação de terreno para a abor-
dagem da obra inaugural de Lacan, deve ser, então, considerar mais

21 Ey, H. "Le dévéllopement mécaniciste de la psychiatrie à !'abri du dualisme car-


césien", p. 63.
22 De la psychose paranoi'aque dans ses rapports avec la personalité (doravante PP),
p. 13.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 39

de perco a noção de doença mental e o modo como a psiquiatria défi-


ne suas categorias, a fim de dar uma idéia mais precisa 40 panorama
dentro do qual Lacan vai pinçar o objeto específico de sua reflexão 23 •

1.3. O PSIQUIATRA E SUA DOENÇA

Como já foi apontado acima, a natureza peculiar do objeto da


psiquiatria tende a colocar em risco, não só a sua autonomia como
especialidade médica, mas a sua própria pertença ao campo da medi-
cina. Seu objeto sendo a doença mental, se deve ser "mental" em to-
dos os sentidos, deixa de ser um problema médico e passa a constituir
assunto apenas da psicologia. Se não é mental, só pode ser "orgânica",
já que toda essa discussão se crava dentro dos marcos do dualismo.
Trata-se, portanto, já que é ''doença'', de. um problema médico, mas
surge a questão sobre o que a diferencia dentro do espectro da patolo-
gia geral. O dilema da psiquiatria parece oscilar, assim, entre a exclu-
são total e a absorção pura e simples na medicina, em sua definição
mais ampla.

23 Caberia aqui uma palavra, omitida por razões externas ao presente desenvolvi_-.
mento, sobre as relações de Lacan com os dois nomes mais representativos das
tendências que ele procurará conciliar: Jaspers e Clérambau!c. A doutrina de
Clérambault é citada - e combatida - pelos mais diversos autores (Ey, Dalbiez,
Claude, entre outros), como típica da orientação mecanicista, sendo alvo igual-
mente das críticas lacanianas em sua Tese. Mas o seu interesse maior para a com-
preensão do desenvolvimento da obra de Lacan é o seu posterior reaproveitame~to
quando nosso autor decidir, a partir da sua versão particular das teses psicanalíti-
cas, tomar disd.ncia com relação às abordagens fenomenológicas e "compreensi-
vas" da psicose, que ele assimilara já com reservas à época do seu doutoramento.
Ê evidente que Lacan nunca vai subscrever o organicismo intransigente de
Clérambault, mas sim aproximar o seu automatisme menta/e ao automatisme de
répltition, com que se traduz o Wiederholungszwang (compulsão à repetição)
40 RICHARD THEISEN S!MANKE

Todo o problema parece consistir, portanto, em definir o lugar


e a função dos fatores psicológicos na produção e no desenvolvimento
das doenças mentais. As tentativas de equacionar este problema vão-
se estender, então, do mais puro epifenomenismo, que caracteriza as
versões extremas do organicismo, até as teses psicogeneticistas (ou
psicogênicas, como Lacan prefere se expressar na Tese), que atingem o
seu ponto máximo nas psiquiatrias compreensivas ou fenomeno-
lógicas. Numa ponta, aproximamo-nos da dissolução da psiquiatria
na psicologia; na outra,. de sua incorporação à medicina geral, às cus-
tas de sua especificidade "mental". Mas este problema é incontornável,
devido à própria natureza dos fenômenos envolvidos e, além desta for-
mulação genérica, ele se reparte numa série de tópicos menores que
reeditam a cada vez o dilema fundamental- o que Henri Ey, em um
outro artigo que também acompanhamos aqui, chama de "dilema
psiquiatricidà'24 . Cabe detalhá-los um pouco mais, antes de verificar
de que maneira estes problemas subsidiários se manifestam ·ao longo
do processo de definição das entidades psiquiátricas.

freudiano, já convenientemente relido à luz de uma mecânica combinatória do


significante, herdada do estruturalismo. As idéias de Clérambault, portanto, não
só se destacam pelo valor paradigmático com respeito ao organicismo, mas tam-
bém por fornecerem uma medida do grau de ressignificação de que Lacan é ca·
paz, quando resolve reabilitá-las mais tarde. Em suma, Lacan inspira-se aberta·
mente, de início, na psiquiatria fenomenológica de Jaspers, para rebater, na Tese,
o organicismo, abandonando-a depois que o estruturalismo lhe ensina a renún-
cia ao primado do sentido; simultaneamente, ele~a à condição de seu "único mes-
tre em psiquiatria" o mesmo Clérambault repudiado anteriormente com toda a
facção organogênica e mecanicista. No entanto, o interesse pela obra de Cléram·
bault tendo-se reacendido mais recentemente - o que se manifesta numa expres-
siva publicação e republicação de trabalhos de e sobre o autor - e sendo a obra de
Jaspers extensa e ultrapassando em muito as fronteiras da psiquiatria, seria inviável
abordá-las aqui com o cuidado a que fazem jus. Esse comentário será objeto de
um trabalho à parte, atualmente em fase de elaboração.
24 Ey, H. "La position de la psychiatrie dans le cadre des sciences médicales (la no-
tion de maladie mencale)", p. 69.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 41

Um aspecto diz respeito à dependência em que a psiquiatria se


coloca em relação à psicologia, mesmo em suas versões mais organicis-
tas, pois, ainda aí, é necessário, pelo menos, descrever estes epife-
nômenos que sinalizam, no nível clínico, o diagn6stico e a interven-
ção. Esta dependência é simétrica àquela em que a patologia orgânica
se encontra com relação à fisiologia e, da mesma forma que a psiquia-
tria importa os impasses deste domínio quando segue o organicismo,
ela se sobrecarrega aqui com uma nova série de problemas que cercam
a pr6pria psicologia. Não é necessário relembrar, neste momento, a
longa série de percalços que a psicologia enfrentou em suas tentativas
de afirmação científica- teremos oportunidade de fazê-lo quando da
abordagem dos esforços lacanianos de reforma da psicologia -, mas,
de qualquer maneira, é fácil compreender por que esta última, imersa
· em seus pr6prios impasses, nunca conseguiu fornecer à psiquiatria a
mesma base relativamente segura que a fisiologia empresta à patologia
orgânica 25, fator que não deixou de levar água ao moinho do
organicismo.
É evidente que as deficiências da· psicologia revelam-se tanto
mais prejudiciais, quanto mais nos aproximamos daquele extremo em
que passam a vigorar as teses psicogeneticistas. É perfeitamente coe-
rente, portanto, que Lacan, após enaltecer, ao longo da Tese, as vanta-
gens da psicogênese, tenha concluído com o anteprojeto de uma "ciên-
cia da personalidade", que nada mais é do que uma psicologia renovada
,:e suficientemente "concreta'' para estar à altura das necessidades mé-
' dicas e psiquiátricas. O problema é que a hipótese psicogenética, leva-
da às suas últimas conseqüências, mina a base do pr6prio modelo
explicativo médico, centrado no conceito de doença que, como já vi-
mos, não pode, uma vez restrito a um domínio exclusivamente psico-

25 Cf. Foucault, M. Doenra mental epsicologia, p. 17: "Ora, a psicologia nunca pôde
oferecer à psiquiatria o que a fisiologia deu à medicina: o instrumento de análise
o
que, ·delimitando distúrbio, permitisse encarar a relação funcional desce dano
ao conjunto da personalidade".
42 RICHARD THEISEN SrMANKE

lógico, ter um sentido mais do que metafórico. Essa é uma das razões
pelas quais, mais tarde, Lacan tornar-se-á um dos maiores empreen-
dedores da desmedicalização cabal da psicanálise, despojando as enti-
dades clínicas de sua significação patológica, ao redefini-las em ter-
mos de estruturas da subjetividade, da mesma forma que afasta da
prática psicanalítica sua intenção terapêutica, caracterizando em ter-
mos de um "ganho ético" os resultados da análise. O problema é que,
na verdade, uma psicogênese estrita abandona qualquer ambição
explicativa em geral: uma vez limitada aos fenômenos psíquicos, cuja
definição mesma passa pela significação que adquirem para o sujeito
em questão, a análise psicopatológica passa a identificar explicação com
compreensão e, no final das contas, a contentar-se com esta última.
Fazendo isso, no entanto, ela curiosamente perpetua o abismo dualista
que tantos obstáculos interpôs à psiquiatria: é evidente que, aí, se con-
tinua a conceber a causa como orgânica - a não ser nos casos em que
o espiritualismo latente a certas abordagens fenomenológicas surge
mais à tona -, cuja inacessibilidade a um método psicológico de in-
vestigação conduz à renúncia à explicação e à elevação da compreen-
são à dignidade de objetivo último da análise. A alternativa, assim, para
uma fundamentação psicológica dos fenômenos mórbidos com que a
psiquiatria tem que se haver dá-se entre um associacionismo atomís-
tico, que não passa de uma paráfrase do organicismo, e uma psicolo-
gia com tendências espiritualistas, resultado da transposição das teses
fenomenológicas para o território da psicologia clínica. Renovam-se,
desta maneira, sobre este ponto específico, os velhos impasses do
dualismo, dos quais a psiquiatria parece incapaz de se livrar. Não é
para causar surpresa, então, que as tentativas de revitalizar a psiquia-
tria, entre elas a de Lacan, vão obrigatoriamente ter que passar por
uma crítica epistemológica da psicologia. O fato de que Lacan venha
a propor, explicitamente, uma espécie de terceira via para a resolução
do problema- que se manifesta, por exemplo, nos esforços de estabe-
lecer uma verdadeira causalidade psíquica, na utilização da noção de
formações reacionais, típicas do psicogeneticismo, para a formulação
de um determinismo concreto e científico, etc. - indica, pelo menos,
um certo grau de consciência desta situação.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 43

É claro que as hipóteses psicogenéticas só podem, sensatamen-


te, reivindicar validade com relação às psicoses, ou seja, aquelas
afecções em que a determinação orgânica não é direta e imediata.
Mesmo aí, contudo, a maioria dos autores procedeu com prudência
na tarefa de delimitar o papel complementar dos fatores orgânicos e
psicológicos, ao longo do processo histórico de constituição dos di-
versos quadros de psicose. Este processo mesmo pode ser descrito
como a progressiva consciência da necessidade de inclusão dos fatores
psíquicos na explicação destes quadros, já que, antecipemos, se o dano
orgânico podia verossimilmente explicar os aspectos degenerativos,
confusionais, deficitários, numa palavra, os aspectos negativos da
fenomenologia clínica dos quadros, seus aspectos positivos - os fenô-
menos característicos da doença - permaneciam relegados ao acaso.
É, pois, este caráter parcial da explicação estritamente organicista, ao
menos nessa classe de afecções, que engaja os pesquisadores na
elucidação dos processos psicológicos que levam à constituição de es-
truturas meneais patológicas, renovando passo a passo o problemático
conceito de doença mental. Um olhar de relance sobre alguns momen-
tos cruciais que ilustram a evolução destas concepções pode servir para
mostrar como a tese lacaniana insere-se harmoniosamente neste pro-
cesso: as rupturas que ela instaura, se as há, são perfeitamente internas
ao domínio psiquiátrico, e uma série de reorientações será ainda ne-
cessária para que as diretrizes aí articuladas possam vir a ser aclimatadas
à psicanálise26 •

26 Lacan, na Tese, não percebe ainda o quanto a opção pela psicogênese, levada ao
limite, conduz para fora do campo psiquiátrico propriamente dito. Ele o perceberá
depois, quando então tentará resolver, em terreno psicanalítico, os problemas an-
teriormente propostos. Henri Ey, ao contrário, está plenamente cônscio disto
quando formula o seu "dilema psiquiatricidà'. Ao criticar as saídas equivocadas
deste dilema, que, em geral, exacerbam uma das alternativas, ele faz um comen-
tário irônico, que um leitor de má-vontade poderia muito bem endereçar a Lacan.
Reproduzimo-lo como curiosidade: "Ora, renunciando a ser médico, ele se torna
vingador de ofensas, diretor de consciência, psico-higienista, orientador profissio-
nal, psicotécnico, quando não se engaja em especulações filosóficas, em busca do
44 RICHARD THE!SEN S!MANKE

Nossa história pode - e, na verdade, deve - ter como fio condu-


tor a gênese da noção de esquizofrenia27, não só porque esta se con-
funde com a própria evolução da categoria das psicoses em psiquia-
. tria, mas também porque é dentro dos quadros da esquizofrenia que
vão se definir os contornos da psicose paranóica. Como se sabe, é com
Kraepelin que a demência precoce, esboçada por Morel28 , se amplia e
se sistematiza até assumir o aspecto de uma verdadeira entidade
nosográfica, englobando uma série de afecções descritas por outros
autores (hebefrenia, catatonia e, inclusive; a demência paranóide), que
têm em comum a especificidade do estado terminal, cuja descrição,
no entanto, não é muito precisa. Ora, em Morei, o que caracterizava a
demência precoce era, além da precocidade, a rapidez da evolução, que
conduzia, inevitavelmente, a um estado demencial real. Se Kraepelin
é pouco preciso ao descrever o estado terminal das diversas sub-
afecções da· sua demência precoce, é porque elas apresentam algumas
diferenças incômodas, mas que são suplantadas por um traço caracte-

absoluto, fazendo malabarismos com as palavras, brincando com bolhas de sabão


e colando etiquetas nas quais ele mal crê, pois "seu reino não é deste mundo".
Ora, enfim, ele se desvia de tantas dificuldades e mistérios para se refugiar em um
diletantismo delicado e desabusado" ("La position de la psychiatrie ... ", p. 73).
27 A referência básica não podendo deixar de ser o texto clássico de Minkowski, "La
génese de la notion de schizophrénie et ses caracteres essentiels (une page d'histoire
contemporaine de la psychiatrie"), publicado no primeiro número de Évolution
psychiatrique.
28 Cabe reproduzir aqui o alerta de Paul Bercherie contra a difundida tendência a se
atribuir a Morel a paternidade da histórica categoria da demência precoce, ten-
dência da qual parece participar o próprio Minkowski, no texto que acompanha-
mos aqui: "Convém assinalarmos, a esse respeito, que a atribuição a Morel da
primeira individualização da demência precoce de Kraepelin, por parte dos
alienistas franceses do início do século XX, baseou-se apenas numa homonímia
(e num sólido chauvinismo): Morel falou numa demência de aparecimento pre-
coce, que espreitaria os hereditários e os histéricos, e não numa entidade mórbida
que, diga-se de passagem, não figurou em sua nosologia" (Os fundamentos da cli-
nica: história e estrutura do saber psiquidtrico, p. 117).
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 45

dstico comum que as distingue, em bloco, de outras entidades clíni-


cas, como a paralisia geral, a demência senil ou a epilepsia. Numa pa-
lavra, este grupo de afecções distingue-se justamente daquelas em que
é mais evidente a determinação orgânica (as demências verdadeiras,
principalmente), o que, no nível clínico, reflete-se, de imediato, em
um maior otimismo no prognóstico: Kraepelin diagnosticou como
demência precoce uma série de _casos de evolução positiva, levando,
por vezes, até a cura, o que seria impensável numa demência real, cujo
processo degenerativo é irreversível. Com isso, surge a necessidade de
propor um processo fundamental comum a todas as sub-afecções, que
dê •conta, tanto da similaridade do estado terminal em quadros tão
díspares, quanto do afastamento progressivo dos traços originais des-
critos para a demência precoce: a precocidade do desencadeamento; a
rapidez da evolução e o desenlace fatal. É fácil perceber que os dois
primeiros traços já introduzem a suspeita de uma determinação psico-
lógica do quadro, já que se espera de uma demência verdadeira que.
comece tardiamente, à medida que se debilita o sistema nervoso, e que
evolua na velocidade relativamente lenta exigida por um processo real
de destruição das células nervosas. Apenas a deterioração terminal
aproxima, portanto, esta entidade do grupo das demências. Ora, a
partir do momento em que Kraepelin põe em dúvida o pessimismo
absoluto do prognóstico e relativiza o aspecto deficitário do quadro
(tanto na evolução, quanto no desenlace), ele está introduzindo um
argumento quase que definitivo a favor da determinação psicológica:
o processo fundamental subjacente, necessário para alinhavar as di-
versas formas de manifestação da demência precoce, terá que ser bus:.."
cado no âmbito psíquico.
Como se vê, são já as exigências da clínica que guiam o pensa-
mento psiquiátrico em direção à psicogênese, o que não deve causar
surpresa, já que os fatos .clínicos com que esta especialidade se defron-
ta são fenômenos psicológicos. Henri Ey já apontava em seus artigos
como foram sempre os clínicos que, na história da. psiquiatria, forma~
ram a frente de resistência aos avanços do organicismo. Em Kraepelin,
é a necessidade de completar a síntese do quadro da demência preco-
ce, de dar uma unidade à pluralidade de manifestações que ela englo-
46 RICHARD TI-:IEISEN S!MANKE

ba, que vai orientar a investigação para as funções psíquicas essenciais


que, nelas, encontram-se prejudicadas. É assim que ele vai ser levado
a ensaiar - apenas ensaiar, já que ele é mais um clínico que um teórico
e dedica um espaço reduzido a esta reflexão - a descrição do "quadro
psíquico geral desta enfermidade" (''das allgemeine psychische
Krankheitsbild'J}. 9), que vai comportar dois grandes grupos de distúr-
bios: o enfraquecimento das motivações afetivas e a perda da unidade
interior, ou seja, da capacidade de síntese. Como ambos podem ser
remetidos à perturbação dos processos ideativos, dos conceitos e de
suas articulações, quase que naturalmente a noção de unidade da per-
sonalidade emerge como o pano de fundo indispensável, sobre o qual
estes distúrbios podem definir-se e adquirir sentido. Qualquer seme-
lhança com o projeto lacaniano na Tese não é mera coincidência, já
que ele, de certa forma, representa a culminação de uma tendência
que aqui começa a se esboçar, mas apenas através de uma longa série
de estágios intermediários, que ainda é preciso ilustrar.
Pois, se a síntese buscada por Kraepelin implica enveredar pelo
plano psicológico, ela exige, em contrapartida, uma teoria eficiente da
personalidade humana tomada em seu conjunto e dos fatores essenciais
do psiquismo, a qual ainda está por ser formulada. Esta deficiência,
que repercutirá até a tese de Lacan - tardia do ponto de vista da evo-
lução da psiquiatria e já tendo sido considerada por alguns a última
grande tese do pensamento psiquiátrico contemporâneo -, faz com
que, em Kraepelin, a riqueza clínica de sua classificação das diversas
formas da demência precoce não ultrapasse nunca o plano sintomáti-
co, enquanto que é· apenas sobre um pano ·de fundo psicológico am-
pliado e sistemático que a noção geral desta enfermidade pode vir a
tomar forma. É interessante notar que Minkowski 30 não deixa de dar
ouvidos a uma certa nota dissonante que surge no momento em que

29 Cf. Minkowski, E. "La génese de la notion de schizophrénie... ", p. 203.


30 /d., ibid., p. 207.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 47

o ponto de vista psicogênico insinua-se no próprio âmago das formu-


lações psiquiátricas: mesmo que fosse alcançada uma classificação pu-
ramente psicológica - transcendendo, portanto, o plano exclusivamen-
te sintomático - e que aos fatores psíquicos se atribuísse um papel
primordial, de maneira a compor com eles uma etiologia eficaz, estes
fatores teriam ainda que passar pela prova da clínica, já que não é pos-
sível desconhecer o objetivo prático da "ciência" psiquiátrica, que re-
quer uma previsão da evolução subseqüente, que seja capaz de susten-
tar uma terapêutica. Levando em conta a forte estranheza entre a
abordagem psicológica estrita e a noção mesma de patologia, é possí-
vel intuir o desconforto que começa a se instalar no exato instante em
que se constata o caráter imprescindível dos fatores psicológicos para
qualquer explicação médica, que se queira completa, desta que passa-
rá a ser a matriz de todas as entidades psiquiátricas que não se redu-
zem a moléstias simplesmente degenerativas, isto é, das psicoses. Ao fim
e ao cabo, Lacan, ao tomar o partido do psicogeneticismo, malgrado
seus esforços de inaugurar uma "terceira via" (esforços que vão invo-
car até a heterodoxia politzeriana), acabará enveredando por um cul-
de-sac doutrinário, do qual só sairá vestindo definitivamente as cores
da psicanálise, a qual, deixando de operar teoricamente com o concei-
to de doença, passa ao largo desse dilema.
De qualquer modo, as considerações de ordem psicológica pa-
recem, por si sós, trazer consigo a necessidade de levar em conta, como
complementação à análise dos aspectos deficitários do processo mór-
bido, os fatores de ordem reacional que constituem o conteúdo positi..: .
vo das manifestações clínicas da psicose, assinalando-se, aqui, que essa
noção de conteúdo da psicose receberá um destaque especial já a partir
da abordagem bleuleriana da esquizofrenia. No limite deste desenvol-
vimento, Lacan será capaz de identificar a totalidade da psicose para-
nóica a uma estrutura reacional deste tipo, não deixando de ser signi-
ficativo que o conteúdo da psicose, em Bleuler, seja explicado pelo
recurso ao conceito de complexo, que define a área de superposição
entre as teses freudianas e as da escola de Zurique. Assim, parece que
mesmo uma parte do modesto papel que a psicanálise desempenha na
48 RICHARD THEISEN SIMANKE

Tese chega até Lacan como parte de sua herança psiquiátrica31 • Mas,
para que os fatores reacionais possam vir a compor uma estrutura ca-
paz de sustentar uma apreensão globalizante da psicose, será preciso
que se amplie o alcance teórico-clínico atribuído à noção de per-
sonalidade, o que apenas se insinua na concepção de Kraepelin (ou,
mais precisamente, na leitura retrospectiva que Minkowski faz de
Kraepelin, bastante informado pelos debates psiquiátricos que lhe são
contemporâneos).
Ora, este é, talvez, o principal mérito das idéias de Binet e Si-
mon, que este autor recapitula na continuidade. Dentre os postulados
que estes desenvolvem, encontram-se, tanto a diretriz de abordar a psi-
cose enquanto totalidade3 2, quanto a de que, para ultrapassar a mera
descrição sintomática, é preciso referir os fenômenos clínicos à perso-
nalidade tomada como um todo33, isto é, à maneira como o conjunto
da inteligência e do estado mental reagem frente aos sintomas especí-
ficos. É a Lacan que caberá estabelecer a interdependência entre esses
dois fatores, fazendo coincidir a psicose com o desenvolvimento mes-
mo de um~ personalidade. Mas, com esses autores, o conceito de per-
sonalidade já adquire uma importância central em psiquiatria, ao mes-
mo tempo, diga-se de passagem, em que ganha destaque a vertente

31 A absorção lacaniana dessas teses é, no entanto, mais sutil e nuançada. Embora


empregue a noção de complexo ao justificar a eficácia patogênica das relações de
Aimée - sua paciente na Tese - com a irmã, ele não se restringe ao uso genérico
que a escola de Zurique faz desse conceito, mas o elabora num sentido que, mes-
mo se afastando da acepção freudiana, ao propor uma estrutura de relações efe-
tivamente vividas, comporta o germe das teorizações mais originais efetuadas em
"La familie", de 1938. Ainda assim, seu apelo mais explícito à psicanálise- nota-
damente à noção de superego - destina-se mesmo a dar conta dos conteúdos do
delírio; no caso, os temas persecut6rios e auto-punitivos, essenciais à sua doutrina
da paranóia. '
32 "~ preciso, ao contrário, 'tomar a alienação em seu conjunto, em bloco, a fim de
confrontar continuamente suas diversas partes"' ("La génese de la nocion de schi-
zophrénie... ", p. 209}.
33 Ibidem, p. 210-1.
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 49

intelectual dos distúrbios psicóticos. A vantagem deste conceito é imu-


nizar, ao menos parcialmente, a abordagem psicogenética em forma-
ção contra o dementarismo de uma psicologia herdeirá das diversas
variantes do associacionismo e seu histórico comprometimento dissi-
mulado com o reducionismo. Uma psicologia que emerja deste tipo
de análise das manifestações mórbidas terá que partir da totalidade em
direção aos fenômenos elementares em que se decompõe o distúrbio.
Daí a estabelecer uma relação de determinação da parte pelo todo é
um passo, na contracorrente exata da causalidade organicista. Se a idéia
de reação - tour de force das teses psicogenéticas em geral - começa,
desde Kraepelin, a se equiparar em importância com o exame dos as-
pectos puramente deficitários do processo mórbido, ela agora pode
assumir a forma de uma reação global de um indivíduo frente ao dano
patológico primário. Porém, com isso, não se avança ainda muito além
de uma concepção que afirma uma etiologia orgânica determinando
uma patogenia psíquica reativa. É o que defende, por exemplo, bem
mais tarde e de modo mais sofisticado, o .organo-dinamismo de Henri
Ey, que continua sendo, assumidamente," um organicismo34 • Falta ve-
rificar, então, o que foi preciso ocorrer entrementes para que Lacan
chegue, em sua Tese, a localizar a própria etiologia da psicose sobre o
plano psíquico.
Após passar, em sua reconstituição da história da esquizofrenia,
pelas idéias de Chaslin - cuja concepção das "loucuras discordantes"
intensifica o relevo dado aos distúrbios intelectuais das psicoses, com
destaque para a "loucura paranóide delirante" e a "loucura verbal", que
'.

34 A idéia de Ey- mais consciente do que Lacan, neste ponto, da incompatibilidade


irredimível entre.a hipótese psicogenética e a abordagem médica da psicose - é
que é possível ser organicista sem ser mecanicista. Daí o seu organo-dinamismo,
baseado nas concepções funcionais e dinâmicas de Hughlings Jackson. Lacan per-
cebe bem o quanto esta concepção continua suscetível às recriminações que ca-
bem ao organicismo em geral, como demonstram as críticas intransigentes - quase
violentas - que endereça ao amigo no artigo "Propos sur la causalité psychique"
(originalmente, uma intervenção num colóquio que tinha por tema, justamente,
a psicogênese das psicoses}. Ver Lacan, J. Écrits, p. 151-62.
50 RICHARD THEISEN SJMANKE

Lacan prezará especialmente, ao lado das folies raisonnantes de Sérieux:


e Capgras - Minkowski parte para o comentário do conceito de
esquizofrenia de Bleuler, cuja formulação, de certa maneira, termina
de preparar o terreno para as elaborações lacanianas, uma vez que os
termos bleulerianos sejam parcialmente destituídos de sua conotação
constitucional, para o que tanto Minkowski quanto Lacan vão recor-
rer às abordagens fenomenológicas. As teorias de Bleuler têm a virtu-
de de conceder pesos equivalentes ao aspecto psico-clínico - tentativa
de conciliação -da explicação psicológica indispensável com as exigên-
cias terapêuticas da intervenção médica - e ao aspecto psicanalítico,
que aproveita cerras idéias freudianas e tenta dar conta dos compo-
nentes temáticos do delírio.
A novidade do aspecto psico-clínico em Bleuler é que o proces-
so mórbido não atinge as faculdades psíquicas elementares, mas sim a
sua capacidade de concatenação. Esta estratégia permite conservar o
caráter estritamente patológico do processo: uma vez que os fatos psí-
quicos elementares se mantêm, sua Spaltung pode ser remetida a uma
causa orgânica e/ou constitucional, que dá sentido à própria noção de
esquizofrenia, como "divisão da mente". Esta dissociação explica, en-
tão, não só os distúrbios do pensamento - sua incoerência aparente, a
ausência de valor pragmático - como também a rigidez afetiva do
esquizofrênico, colocada na dependência dessa perturbação, já que a
afetividade não pode mais se deslocar ao longo das cadeias associativas
rompidas. Como em Kraepelin, os distúrbios do afeto são recondu-
zidos a um problema que atinge o universo dos conceitos, idéia que se
perpetua em Lacan, mesmo em suas formulações mais tardias. No
mesmo golpe, explica-se o fenômeno da àmbivalência35 , com o que
uma acepção lógica (afirmar e negar simultaneamente um atributo a

35 Já que foi proposto, até aqui, o dualismo "cartesiano" como o horizonte frente ao
qual se trava o debate psiquiátrico, assinalamos a observação de Roland Dalbiez,
que situa, neste contexto, a noção de ambivalência: "Enquanto que um
intelectualismo estático, tal como o originário do cartesianismo, se vê obrigado a
negar a priori a existência de estados psíquicos ambivalentes, uma psicologia dinâ-
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 51

um mesmo objeto) vem se-acrescentar à acepção afetiva que o concei-


to já possuía em Freud. Aliás, toda essa filiação às idéias psiquiátricas
q~e se pode traçar para Lacan, ajuda a tornar compreensível a distân-
cia, muitas vezes dissimulada, que mantém em relação a certos pontos
de vista freudianos. No caso presente, esta distância revela-se no fato
de que a dimensão afetiva do psiquismo tenha sido sempre secundária
na evolução do pensamento lacaniano, enquanto que um dos pontos
de ruptur_a de Freud para com certas concepções ·da doença mental,
contemporâneas aos primeiro passos da formação de uma psicopato-
logia psicanalítica, consistiu justamente na atribuição de um caráter
afetivo a transtornos tidos como puramente intelectuais, por exem-
plo, as obsessões e, mais significativamente, a paranóia36 •
Mas, retornando a Bleuler, é com os cpnceitos mencionados aci-
ma (Spaitung, autismo do pensamento, ambivalência) que ele, a seu
modo, realiza o projeto - esboçado, mas não cumprido por Kraepelin
-de ultrapassar o plano sintomático e abordar a esquizofrenia pela via
dos seus distúrbios característicos, que, lá e aqui, não podem prescin-
dir da descrição psicológica. Feito isso, no encanto, a extensão inédita
que a demência precoce já assumia no Lehrbuch der Psychiatrie am-

mica é obrigada a reconhecê-los. Com a noção de ambivalência começa já a psi-


canálise a penetrar na clínica" (O método psicanalítico e a doutrina de Freud, Vol.
1, p. 245).
36 Freud debate explicitamente com as concepções psiquiátricas da insânia obsessi-
va e da paranóia já no Manwcrito H, de 1895. A diferença é que Freud está em-
penhado em propor uma concepção totalmente psicol6gica e hist6rica destas e
de outras afecções, que possa embasar uma terapêutica psíquica causal, e não ape-
nas sintomática.' O principal esteio desta concepção é a noção de conflito,
indissociável da referência ao afeto. Na psiquiatria, como a causa é orgânica, o
distúrbio manifesto pode ser somente intelectual, sintoma da incapacidade acar-
retada pela lesão. Se há conflito e afeto na psicose, ele surge apenas secundaria-
mente (desespero pela sua condição, frustração diante de seu estado deficitário,
etc.). Além disso, vê-se por aí que esta é mais uma das inversões que Lacan terá
que fazer na Tese, já que a atribuição de um caráter intelectual à psicose está pro-
fundamente identificada com a hipótese de uma determinação orgânica.
52 RICHARD THEISEN SIMANKE

plia-se ainda mais. Os conceitos bleulerianos, seguindo as tendências


das noções psicológicas, transbordam sobre o domínio do normal.
Estabelece-se uma escala progressiva, que pode ir, por exemplo, da ri-
gidez esquizofrênica à ambivalência cotidiana, renovando, sobre o ter-
reno psicológico, a concepção quantitativa das relações entre normal
e patológico, que, como vimos, é avessa ao estabelecimento de um só-
lido conceito de doença em geral, e para cada entidade clínica em par-
ticular. Estas noções tornam-se não só aptas a descrever um segmento
cada vez maior da psicopatologia, mas também a abarcar a quase tota-
lidade da personalidade, inclinação exemplificada em todo um capí-
tulo reservado à chamada "esquizofrenia latente". A distinção entre a
personalidade mórbida e a personalidade sadia acabará por se conver-
ter em um problema apenas decidível com recurso a considerações de
ordem antropológica, o que fica evidente na Tese lacaniana. A identi-
ficação virtual da estrutura mórbida com o próprio conceito de perso-
nalidade que vai ocorrer aí é bem representativa da habilidade de Lacan
em mesclar elementos provenientes das escolas francesas e alemãs de
psiquiatria na confecção de suas teorias (sem contar, é claro, as
referências extra-psiquiátricas).
Contudo, para além de' sua orientação geral, é nos desenvolvi-
mentos de Bleuler sobre o conteúdo da psicose que se manifesta um
componente decididamente psicogênico. Na mesma medida em que
a Spaltung explicava a feição deficitária da esquizofrenia, ao mesmo
tempo em que aludia mais ou menos diretamente a um dano de natu-
reza orgânica, o conteúdo positivo das manifestações delirantes vai
exigir, para sua elucidação, a noção freudo-junguiana de complexo, apta
a responder pelos aspectos representacionais dos sintomas e cuja defi-
nição engloba tanto o déficit primário quanto suas conseqüências rea-
tivas no nível psíquico 37 • Não é necessário expor com maiores minú-

37 Cf. Minkowski, E. "La génese de la notion de schizophrénie ... ", p. 229: "Nasce,
assim, em psicopatologia, a noção de complexo. Daríamos dela, em nossa análise
da esquizofrenia, a seguinte definição: o complexo é, no domínio do psiquismo
m6rbido, um grupo de recordações, de representações ou de idéias, munido de
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 53

cias o que se entende por complexo, cujo conceito é dos mais difundi-
dos entre as concepções psicanalíticas, mas apenas assinalar que a ma-
neira como ele é apreendido pela psiquiatria tende a ser sempre mais
genérica e esquemática do que as elaborações freudianas, não indo
muito além dos traços genéricos presentes na definição dada por
Minkowski. Os complexos nunca desempenharão aí o papel nuclear
que Freud lhes atribuiu na determinação das afecções mentais e da vida
psíquica como um todo. Assim, no momento em que os conceitos
psicanalíticos são admitidos no interior do próprio pensamento psi-
quiátrico, eles o fazem numa formulação vaga, que permitirá uma série
de redefinições posteriores. Mesmo Lacan que, algum tempo depois
da Tese, vai atribuir também aos complexos um papel determinante,
não s6 na formação dos sintomas, mas na constituição da própria per-
sonalidade, não verá muitos problemas em caracterizá-los com muita
liberdade em relação à conceitualização freudiana. Mais que a uma fa-
culdade natural do irrequieto raciocínio lacaniano, talvez se possa atri-
buir isso à formulação imprecisa com que o conceito de complexo in-
gressa no domínio da psiquiatria, por cujos filtros chega até Lacan, e
não, ao menos neste momento, pela via direta dos textos freudianos.
Mas não é apenas a generalidade da apreensão médica desta no-
ção que determina as diferenças, mas também - e talvez principalmen-
te - um aspecto bastante típico e específico deste discurso: o comple-
xo é desprovido aí de qualquer alcance etiológico, prerrogativa do fato
orgânico primário. Se ele comparece, na doutrina de Bleuler, com a
função de complementar a explicação daquele que é o traço clínico
mais saliente destes enfermos - a saber, o autismo, que designa o cará:. ·
ter pouco realista e pragmático do pensamento e das condutas -, .é
para dar conta apenas dos aspectos positivos do conteúdo psicológico
do sintoma. Mas 'é a outra face do fato patológico que é determinante,
aquela que é objeto da análise dica psico-clínica, ou seja, os fatores de
ordem deficitária, muito mais importantes para a preservação doca-

uma carga afetiva considerável e destacado dos laços que deveriam religá-lo nor-
malmente à unidade do devir psíquico do indivíduo".
54 RICHARD THEISEN S!MANKE

ráter mórbido dos fenômenos, como já vimos. A noção de complexo


ajuda a consolidar uma definição estrutural da enfermidade psíquica,
já que se opõe naturalmente às psicologias atomistas das quais a psi-
quiatria tanto tem a se queixar. Contudo, fazendo isso, ao mesmo tem-
po em que reforça a referê~cia obrigatória à personalidade como tota-
lidade psíquica, o ponto de vista estrutural privilegia o sistema atual
de relações significativas, em detrimento de um ponto de vista analíti-
co e histórico. Entende-se: é o quadro clínico presente que faz-se ob-
jeto da atenção médica, que não tem nenhuma inclinação para pers-
crutar o passado em busca de um determinismo psíquico, como é o
caso de Freud, que foi levado a recorrer às vicissitudes da memória
para justificar uma causalidade psicológica ou metapsicológica. Com
isso, o complexo é aproximado da ordem dos acontecimentos vivi-
dos38, quase que assimilado a ela, passando a designar um conjunto
de reações frente a certas situações vitais, cuja constituição não é de-
terminada pela lógica interna destas reações, mas pela capacidade de
resposta do organismo diante de um meio mais ou menos favorável.
Cabe lembrar aqui que era justamente na limitação das possibilidades
de reação ocasionada pelo déficit capacitário que Canguilhem busca-
va apoiar uma distinção entre saúde e doença que levasse em conta a
atividade normativa individual do organismo. Nada impede, portan-
to, que se inspecione a história do sujeito atrás da significação de seus
sintomas - como no comovente caso da velha senhora, esquizofrênica

38 É num contexto em que opõe a noção de complexo às teses atomíscicas da psico-


logia tradicional que Minkowski faz contrastar a' dimensão do "acontecimento"
aos "fatores desprovidos de vidà' em que aquela psicologia fundava suas expli-
cações, temperando tudo com um pouco de bergsonismo: "As interpretações es-
táticas e imóveis dão lugar ao dinamismo da vida. É 'o acontecimento' que se
encontra agora no centro, 'o acontecimento' que, em razão mesmo de sua im-
portància vital, emerge do oceano cinza do devir, 'o acontecimento', que é um
componente real de nosso eu vivente. Nós não decompomos mais a personalida-
de humana; aproximamo-nos, ao contrário, de seu aspecto imediato. Nossa psi-
cologia se torna cada vez mais humana e pessoal" ("La génese de la notion de
schizophrénie... ", p. 234).
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 55

crônica, cujo gesto estereotipado das mãos revelou a encenação do ato


de costurar sapatos, alusão a um antigo amor frustrado por um sapa-
teiro, relacionado à eclosão de sua doença -, mas a explkação causal
apela para um dano orgânico, que pode se agravar com o tempo, como
no caso da demência, cuja relação, porém, com o estado deficitário é
sempre atual.
A precedência do fator orgânico é bem ilustrada por uma frase
de Minkowski que vale a pena mencionar. Em um artigo que versa
justamente sobre o papel dos complexos na doença mental, após lem-
brar - e concordar - com a natureza orgânica que Bleuler atribui ao
fato patológico primordial, diz ele: "Para empregar uma metáfora, os
complexos preenchem o vazio cavado pela desordem inicial, mas são
incapazes, por si sós, de cavá-lo"39. Para que Lacan possa, depois, pro-
por uma concepção que vá mais longe na via da psicogênese, terá que
modificar a maneira de compreender a própria constituição do indi-
víduo humano, descentrando-o mais radicalmente da determinação
natural, mediante uma teoria da gênese,social da personalidade, que
começa a ser formulada já na Tese. Mas, ~í. o papel reservado aos fato-
res orgânicos ainda é, como veremos, ambíguo: a tese da dependência
do sujeito tem seu alcance restrito à esfera metodológica ou epistemo-
lógica, onde responde pelo determinismo específico dos fenômenos
de personalidade, que é um dos alvos visados. Logo a seguir, no en-
tanto, com os primeiros desenvolvimentos relativos ao estágio does-
pelho e, principalmente, no artigo sobre os complexos familiares, essa
idéia evoluirá até atingir uma significação, por assim dizer, ontogené-
tica: o indivíduo humano se constitui essencialmente como um ser
social, esse tecido de relações interiorizado nos momentos cruciais de
sua história, passando a formar sua própria substância. Isso porque ele
carece, originariamente, de uma determinação biológica eficaz. Para
justificar esse ponto, Lacan aproveita as idéias do embriologista Louis

39 Minkowski, E. "Recherches sur le rôle des complexes dans les manifescacions mor-
bides des aliénés". Citado por Roland Dalbiez, O método psicanalítico e a doutri-
na de Frettd, vol. 1, p. 256.
56 RICHARD THEISEN S!MANKE

Bolk sobre a prematuração - e conseqüente dependência - do filhote


humano ao nascer, em comparação com o que ocorre no mundo ani-
mal, idéias que repercutirão ainda no período mais tardio de sua
obra40 • Não é difícil perceber como esse conceito é essencial para a
evolução dos pontos de vista de Lacan a partir de suas bases psiquiá-
tricas. Com ele, o "vazio" orgânico não precisa mais ser cavado por
um processo mórbido; ele é originário, e seu "preenchimento" pelos
complexos coincide, desde então, com o próprio nascimento do sujei-
to, em sua especificidade humana, abrindo caminho, inclusive, para a
"constituição do sujeito pela linguagem.", que apregoarão as fórmulas
mais clássicas do lacanismo. Lacan pode, então, conservar as preten-
sões materialistas que defende na Tese, em constraste com as concep-
ções fenomenológicas puras. A opção pela compreensão deixa de ser
uma escolha arbitrária por um dos lados das dualidades tradicionais: é
a própria realidade biológica do homem que priva o orgânico de sua
eficácia explicativa. Doravante, nenhuma lesão poderá cavar um bu-
raco maior do que aquele dado desde a origem, que faça diferença para
a determinação real dos fenômenos, quer mórbidos, quer normais.
Mas essa reflexão algo errática, que vai sem muitos problemas
da clfnica à metafísica, passando por considerações epistemológicas,
cem seu ponto de origem em questões bastante específicas da clínica
psiquiátrica da paranóia, afecção que se revelou historicamente refra-

°Cf. Ogilvie, B. Lacan: la formaiion du concept de sujet, p. 11 O: "Este contexto,


4
muito diferente, do mundo humano, são os trabalhos de Bolk, segundo Lacan,
que o descrevem de maneira definitiva. Desde 1926, Bolk havia descrito o ser
humano como um ser fundamentalmente inacabado, apoiando-se, ao mesmo
tempo, sobre a lentidão e o atraso extremo de seu desenvolvimento (sua neotenia)
e sobre o caráter inacabado de seus traços anatômicos; isso que, em outras espéci-
es, pertence ao estágio transitório do feto estabilizou-se no homem, de tal manei-
ra que a hominização aparece como uma fetalização: 'O homem é, do ponto de
vista corporal, um feto de primata que chegou à maturidade sexual'. Na linha de
Darwin, ele mostra, portanto, que a estrutura social, na medida em que ela enco-
bre esta neotenia pela permanência da família, faz parte das condições naturais
de existência e de reprodução do ser humano".
DILEMAS DA PSIQUIATRIA 57

tária às explicações organicistas e tendia, por isso, a arrastar a psiquia-


tria ao terreno movediço da psicogênese, onde ela arriscava sua auto-
o
nomia. Nosso próximo passo, então, será reconstituir movimento
que, na Tese lacaniana, conduz à conceitualização da paranóia como
"fenômeno de conhecimento", que vai permitir sobrepor- quase iden-
tificar - a reflexão clínica e a epistemológica, esta última, por sua vez,
trampolim para as teorizações mais ambiciosas que Lacan empreende-
rá subseqüentemente.
II. A PARANÓIA
COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO

Ambição teórica, contudo, já é o que não falta na tese de dou-


torado de Lacan. Manifestamente, ela se propõe a descrever, explicar e
justificar a proposição de uma nova entidade psiquiátrica- a paranóia
de auto-punição-, esboçando, para tanto, uma metodologia de análi-
se, que se pretende, não só inédita, como eficaz na orientação
diagnóstica e terapêutica, e cuja validade para outras áreas da prática
psiquiátrica é insinuada no final. Isso já não seria pouco. Mas, extrain-
do todas as conseqüências do projeto explicitamente apresentado, é
possível descrevê-lo como uma tentativa de reformar em ampla escala
a própria psiquiatria, indo direto ao âmago de seus impasses: uma ver-
são própria da dualidade alma/corpo, com que ela se enfrenta ao ten-
tar definir um objeto médico sobre o plano psicológico. É verdade que
o debate não desce, aí, a tais profundidades metafísicas, embora Lacan
não deixe de ressalvar a pertinência de fazê-lo, mas desenvolve-se prin~
cipalmente em torno de questões epistêmicas concernentes à alterna-
tiva compreensão/ explicação que, por sua vez, reflete aquele dualismo
renitente no que éoncerne à delimitação das diversas ciências. Isto não
é de surpreender, num psiquiatra que busca encontrar seu lugar pe-
rante um organicismo consagrado e as psiquiatrias fenomenológicas
emergentes, que assumem declaradamente seu lugar do lado da natu-
reza ou do espírito, respectivamente. Que este projeto, nos termos em
que é formulado, não é realizável sobre o campo psiquiátrico é algo
que vai-se evidenciando pouco a pouco, à medida em que progridem
60 RICHARD THEISEN S!MANKE

as elaborações lacanianas. Sua transposição, ao fim e ao cabo, para o


domínio da psicanálise pode ser entendida como tomada de consciên-
cia desta inviabilidade, mas também como conseqüência da atenção
às peculiaridades do objeto clínico em pauta, que não podiam ser ig-
noradas, ap6s a sua imersão nas considerações epistemol6gicas que
Lacan inaugura.

11.1. A PARANÓIA E A PERSONALIDADE

Partamos, porém, da paranóia. Duas características das descri-


ções psiquiátricas deste quadro. chamam a atenção: primeiro, a difi-
culdade hist6rica para sua delimitação; segundo, sua localização final
nos antípodas das demências e de outras afecções assemelhadas, cuja
determinação orgânica é mais evidente. Lacan mesmo abre o primeiro
capítulo de sua tese relembrando a extensão inaudita que o termo teve
em certa época de sua difusão na psiquiatria alemã, a ponto de repre-
sentar a maioria absoluta dos diagn6sticos de patologia mental. Além
disso, em boa parte da literatura, era possível verificar-se uma transi-
ção contínua da catatonia aos delírios interpretativos puros, ou seja,
das manifestações mais tipicamente clemenciais às mais "intelectuais" 1•
Talvez não seja insensato apontar um parentesco entre esta dificulda-
de de delimitação e o perfil q1:1e a paran6ia adquire ao cabo deste pro-
cesso: enquanto se considera a sintomatologia de um ponto de vista
deficitário, a distinção entre as manifestações m6rbidas fica necessaria-
mente prejudicada. Por este enfoque, desordem é desordem, confusão
é confusão, enfim, loucura é loucura, já que não se espera nenhuma
determinação positiva para estes fenômenos, mas apenas a desorgani-
zação aleat6ria que se segue ao dano orgânico. À falta de uma teoria

1 Cf. Dalbiez, R. O método psicanalítico e a doutrina de Freud, p. 278.


A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 61

sobre a psicogênese destes sintomas, o diagnóstico diferencial fica re-


legado à observação despreparada daquilo em que todos os quadros
coincidem: as alterações das funções psíquicas que constituem a
fenomenologia clínica de toda a nosografia da qual se ocupa a psiquia-
tria. Não é de se espantar, portanto, que a restrição do sentido do ter-
mo "paranóià' deva-se principalmente a Kraepelin, correlativa, segun-
do Làcan, à "renovação das concepções sobre a demêncià' 2, isco é, à
introdução efetiva dos fatores psicogênicos na consideração da demên-
cia precoce, que vai levar a uma completa redefinição do termo cunha-
do por Morei, simultaneamente levando-o a designar uma entidade
verdadeira e afastando-o das significações propriamente clemenciais.
De qualquer modo, a paranóia acabou ficando definida como uma
psicose unicamente interpretativa. Suas manifestações são, com isso,
restritas ao campo psíquico, onde um olhar informado pelas concep-
ções psicogênicas já é capaz de distinguir a perfeita coerência das for-
mações delirantes, o que exclui a possibilidade de um déficit capaci-
tário significativo. Até o objeto imediat!) da interpretação delirante é
redefinido, passando-se a falar de. uma ·"alucinação psíquicà', diver-
gindo já das alucinações verdadeir:as, organicamente determinadas, que
integravam o elenco dos fenômenos elementares, por exemplo, na
síndrome do automatismo mental. Estas peculiaridades vão fazer com
que as questões relativas à psicogênese cresçam em importância quan-
do se trata da paranóia, mesmo que se tenha que arcar com todas as
dificuldades que essa abordagem traz à psiquiatria. $e Lacan elege esta
afecção como objeto de sua obra inaugural, é porque ele vê nela a opor-
tunidade de firmar a eficácia e o alcance da explicação psicológica, con-
tribuindo, assim, para o combate ao organicismo em que se engajava
parte da geração de psiquiatras a que pertencia. Mas, ao mesmo tem-
po, não deixa de perceber os perigos desta estratégia, se empreendida
dentro dos marcos da psicologia tradicional. Daí, a pretensão de fim-
dar uma nova metodologia de análise, histórica, psicológica, porém

2 PP, p. 23.
62 RICHARD THEISEN SJMANKE

determinista, materialista e concreta, que permita conservar a valida-


de e a cientificidade da explicação médica. Se compararmos outra vez
esse projeto com o de seu colega Henri Ey- que oferece sempre um
bom contraponto, já que compõe com Lacan duas soluções comple-
tamente divergentes a partir de uma mesma problemática inicial -
tudo se passa mais ou menos da seguinte maneira: para o primeiro é
necessário e possível continuar sendo organicista, desde que se renove
esta concepção, para não recair no reducionismo e no mecanicismo;
para o segundo, é necessário e possível abraçar a tese da psicogênese,
desde que se reforme a psicologia, a fim de que esta não conduza a
uma abordagem unicamente compreensiva e apague a dimensão pa-
tológica dos eventos clínicos. Com o colapso do empreendimento pos-
terior de reforma da psicologia, é compreensível que a psicanálise te-
nha-se oferecido como única alternativa restante para a conservação
dos parâmetros iniciais da investigação.
Assim, se Lacan começa sua tese retomando a distinção entre as
demências e as psicoses, é para afirmar como estas últimas primam
pela "ausência de qualquer déficit detectável" 3, de modo que a sua ca-
racterização como distúrbios específicos da síntese psíquica passa, de
saída, a significar, não que a capacidade de síntese esteja prejudicada,
mas que estes quadros constroem, à sua maneira, uma síntese (isto é,
uma personalidade) que difere da normal. A ascensão, ao mais alto
grau, do conceito de personalidade - ascensão que, aliás, acompanhou
passo a passo o crescimento em importância dos fatores psicogênicos
na explicação psiquiátrica - opõe-se, assim, ao paralelismo que se es-
tabelecia entre o déficit capacitário e a lesão orgânica. É esse para-
lelismo que Lacan recusa e recusará muitas· vezes ao longo da Tese, e
não a base biológica dos fenômenos de personalidade (agora, quase
sinônimos dos fenômenos clínicos das psicoses): esta base existe, mas
ela não é capaz de dar conta da coerência destes fenômenos, cuja ex-
plicação deverá ser buscada em outro lugar, como se verá adiante. Por

3 PP, p. 13; grifo do autor.


A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 63

isso, trazer para o primeiro plano os fatores sintéticos da personalida-


de não é renunciar ao determinismo e à explicação causal, mas reforçá-
los, já que, a partir daí, é possível dar conta de algo que a determina-
ção orgânica deixa de fora.
Ora, ria paranóia, estes fatores vêm naturalmente à tona, a par-
tir do momento em que fica estabelecido que, nela, o distúrbio inte-
lectual é primitivo, ou seja, está na origem da enfermidade e não sur-
ge apenas como conseqüência secundária da evolução demencial ou
de perturbações afetivas. Desde a canônica definição kraepeliniana4,
por uma curiosa inversão do argumento considerado válido até então,
exclui-se a suposição de uma causa orgânica soberanamente determi-
nante. Esta servia para explicar a evolução demencial; como esta não
se verifica, abandona-se a hipótese de uma determinação orgânica di-
reta, muito embora essa inversão tão taxativa deva-se, provavelmente,
mais a Lacan do que a Kraepelin. Vale a pena assinalar que a sobreva-
lorização da clínica que vai distinguir as elaborações lacanianas pode
ser retraçada até aqui. Numa abordagem organicista, a apreensão clí-
nica da psicose complementava e era corrigida pela identificação da
causa orgânica. A partir do momento em que se renuncia a esta últi-
ma, toda a explicação terá que derivar do estudo da evolução do qua-
dro (lembrando que este era o método por excelência da medicina
clínica, tal como foi descrita por Foucault). As bases orgânicas da per-
sonalidade - de que Lacan não abdica - tornam-se genéricas, decor-
rentes do fato de que esta totalidade psíquica constitui-se ao longo da
história de um organismo vivo, mas elas não mais explicam a coerên-
cia interna dos elementos desta síntese, nem a diferença entre as per--
sonalidades mórbidas e sadias. Tudo isso vai ter que ser buscado no

4 Esta definição, que surge na edição de 1899 do Lehrhuch der Psychiatrie e man-
tém-se nas edições subseqüentes, é citada por Lacan no contexto da discussão que
comentamos aqui. Ela limita a paranóia "ao desenvolvimento insidioso, sob a de-
pendência de causas internas e segundo uma evolução contínua, de um sistema
delirante duradouro e impossível de abalar, e que se instaura com uma conservação
completa da clareza e da ordem no pensamento, no querer e na ação" (PP, p. 23).
64 RICHARD THEISEN S!MANKE

âmbito de uma explicação antropológica. Este aspecto, então, da teo-


ria que Lacan começa a desenvolver aparece como conseqüência da
necessidade de se considerar, tanto a personálidade quanto a paranóia,
como "fenômenos totais". ·
Esta ênfase no fenômeno total - que alude, em Lacan, desde à
influência de Minkowski até a certas palavras de ordem do surrealismo
- é invocada para contrastar diretamente com a noção de fenômenos
elementares, um dos pontos-chave da análise organicista, onde fazem a
conexão da etiologia orgânica com a sintomatologia psíquica. Assim,
no caso mais típico, que é o da alucinação verdadeira, esta surge como
conseqüência direta de uma alteração cerebral que, atuando sobre as
bases neurofisiológicas da percepção, faz o sujeito "ver coisas", inde-
pendentemente, tanto dos objetos efetivamente presentes no ambiente
circundante, quanto da sua vontade. O delírio surgiria então, secunda-
riamente, como um discurso desencaminhado por este funcionamento
anômalo da representação. Apenas nos casos mais favoráveis, este delí-
rio teria um caráter "interpretativo", ou seja, consistiria num esforço
para dar coerência ao caos instaurá.do pela lesão. A noção de fenômeno
total opõe-se, portanto, tanto ao aspecto dementarista, quanto ao re-
ducionismo orgânico da concepção contrária - já se mencionou acima
como os dois andam sempre emparelhados. A partir do momento em
que se retira da paranóia a referência a um dano orgânico, é quase que
obrigatório dar relevo à personalidade, entendida como totalidade psi-
cológica, e, mais do que isso, fazer da "interpretação" o mecanismo
fundamental da constituição desta totalidade: como não há mais uma
percepção espúria que justifique o delíriq, toda a estrutura reacional
que forma a personalidade, mórbida ou sadia, tem que ser pensada
como resultando de uma interpretação da realidade imediata do sujei-
to, vital e social no caso humano. No sentido inverso, dá-se uma rela-
tivização da função normativa da realidade, que vai permitir pensar a
psicose como a construção de uma personalidade em bases diferentes
das "normais", e não apenas como uma alteração ou um desvio em
relação a estas - idéia longeva no corpo da obra de Lacan, repercutin-
do até nas formulações em torno da metáfora paternas.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 65

Assim, após recapitular as características que lhe interessam do


perfil clínico historicamente elaborado para a paranóia, Lacan vai de-
dicar-se ao exame do conceito de personalidade, para, num terceiro
momento, lançar mão das concepções da paranóia que a consideram
como o "desenvolvimento de uma personalidade". Apenas de posse
desses instrumentos, Lacan empreende a crítica das teorias organogê-
nicas da paranóia, o que justifica o título, dado a esta primeira parte,
de "colocação teórica e dogmdtica do problema". É preciso lembrar,
no entanto, que ele monta sua tese segundo os modos tradicionais da
pesquisa médica; a segunda parte, inteiramente dedicada ao caso
Aimée, corresponderia à parte empírica da pesquisa, que deveria ter
valor comprobatório. Na verdade, a própria escolha e a análise do caso
é completa e assumidamente guiada pelas hipóteses que deveria vali-
dar. Mas, de volta à personalidade - noção que considera "extrema-
mente complexà' - Lacan vai salientar como mesmo o senso comum
lhe atribui as propriedades da síntese, das quais decorrem, quase que
naturalmente, a intencionalidade e a respQnsabilidade, a partir daí to-
madas como constantes mais ou menos universais para os mais varia-
dos conceitos de personalidade. É claro que a seleção destes traços -
como quase nada, aliás, na Tese de Lacan - não deixa de estar intima-
mente ligada com os termos do seu projeto: a idéia de síntese, com a
análise global que se opõe ao dementarismo psiquiátrico; a intenciona-
lidade, com o sentido; e a responsabilidade, com a tensão entre ativida-
de e determinismo, os quais Lacan pretende conciliar, a fim de manter
sua abordagem dentro das fronteiras da ciência médica6. A metafísica

5 Apesar disso, talvez·seja válido interrogarmo-nos se o conceito de Nome-do-Pai


não deixa de propor uma concepção que é, em certo sentido, normativa para a
distinção entre o psicótico e o não-psicótico, mesmo que se trate de uma norma
relativizada pelo contexto lingüístico e cultural. Seja como for, aqueles em que o
Nome-do-Pai encontra-se "forcluído" não participam de uma ordem à qual os
demais sujeitos pertencem.
6 Numa passagem posterior, dentro do contexto das atribuições forenses do psiquia-
tra - entrando, portanto, em cheio no problema da responsabilidade-, Lacan alu-
66 RICHARD THEISEN SIMANKE

tradicional absorveria estes traços, substancializando a especificidade


do humano em conceitos como espírito, alma ou razão. Nosso autor
passa em sobrevôo por estas questões, às quais dedica algumas longas
notas de rodapé, de estilo próximo ao verbete enciclopédico. Mesmo
assim, não deixa de referir-se elogiosamente à concepção aristotélica
da alma como forma do corpo, sintoma do desconforto crônico dos
psiquiatras com um dualismo de substâncias, que Lacan reconhece
muito bem. As abordagens da personalidade dentro da psicologia cien-
tífica caem, segundo ele, freqüentemente na armadilha de- esforçan-
do-se por ignorar a metafísica, a fim de melhor depurar sua noção -
admitir sub-repticiamente implicações muito mais perniciosas, ou seja,
justamente o dualismo implícito nas teses organicistas. Uma outra for-
ma de equívoco seria levar tão longe a ascese científica a ponto de es-
vaziar completamente a significação do sujeito, reduzido ao "lugar de
uma sucessão de sensações, desejos e imagens" 7. Trata-se, já aqui, de
recusar o ponto de vista empirista, uma vez que, para Lacan, a "tendên-
cia inaugurada por Hume" é totalmente avessa à valorização dos fatos
da subjetividade na determinação e na explicação dos dados clínicos.
Na verdade, muito mais que de uma crítica filosófica, trata-se de ata-
car uma postura empirista muito identificada com os automatismos
organicistas e com o realismo clínico que essa doutrina propõe. No
entanto, Lacan valoriza o lugar de destaque que o pragmatismo
jameseano (que se alimenta, lembremos, de uma versão extrema- "ra-
dical" - do empirismo) dá à personalidade e menciona A análise da
mente de Bertrand Russel, obra inspirada em James, da qual extrairá,
no último capítulo da Tese, a sua "definição objetiva de desejo", em-
bora não cite ali a fonte.

de ao determinismo dentro de uma concepção de ciência que parece, nesse ponto,


baseante conservadora: "A última palavra da ciência é prever, e se o determinismo,
o que nós acreditamos, se aplica em psicologia, ele deve nos permitir resolver o
problema prático que cada dia se coloca para o especialista a propósito dos para-
nóicos (... )" (PP, p. 298).
7 PP, p. 35.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 67

As psicologias da introspecção, por sua vez, que, à primeira vista,


tentam apreender imediatamente a subjetividade do psíquico, fracas-
sam em fornecer uma visão segura da função intencional que a define,
uma vez que não dispõem de instrumentos para medir o afastamento
entre o eu real e o eu ideal8 • Esta observação é interessante, porque
antecipa uma característica dos primeiros movimentos de Lacan den-
tro da psicanálise, que ele procurará munir com uma teoria (da clínica
e do sujeito) baseada na oposição entre o real e o imaginário. Mas,
dentro da discussão epistemol6gica que alinhava a Tese de ponta a
ponta, ela depõe a favor da necessidade de um método, no pleno senti-
do da palavra, de um método objetivo que permita, por mais parado-
xal que isso seja, abordar os fenômenos da subjetividade9. É com vistas
a este método que Lacan vai tentar conciliar as exigências das análises
compreensivas e explicativas da personalidade e da psicose. Para tan-
to, tem que entrar em cena um fator evolutivo, mas não se trata mais
aqui da evolução do quadro, como na clínica psiquiátrica convencio-
nal, onde o recurso à anamnese visa ape~as detectar, em estado nas-
cente na vida pregressa do paciente, os aspectos patol6gicos que com-
põem a enfermidade atual. O que Lacan propõe, em continuidade
com o ponto de vista de que a psicose consiste no desenvolvimento de
uma personalidade, é a consideração do desenvolvimento da pessoa, ou
seja, de sua hist6ria concreta, onde se verifica a ocorrência de certos
eventos determinantes, na forma de crises, às quais o sujeito reage com
maior ou menor êxito, fazendo da evolução da personalidade uma su-
cessão de "estrutura reativas típicas". Note-se que o conceito de rea-.
ção, pr6prio das abordagens psicogênicas em geral, sofre aqui uma
ampliação considerável, passando a responder pela constituição nor-
mal da personalidade, na medida mesma em que se dispensou a idéia
de um fato orgânico específico para a psicose. A tese lacaniana, naqui-

8 PP, p. 36.
9 Ogilvie intitula o primeiro capítulo de seu livro, dedicado especificamente à Tese,
"a objetividade do subjetivo", aludindo às dificuldades desta "via estreità' que
Lacan quer abrir (Lacan: la formation du concept de mjet, p. 1O).
68 RICHARD THEISEN SIMANKE

lo em que ela se recusava a abrir mão totalmente da referência biológi-


ca, torna-se agora clara: a base orgânica da personalidade éformada pe-
los fatos vz.'tais do desenvolvimento. As reações constitutivas do psíquico
respondem a estes fatos, a estas crises que são ocorrências do desen-
volvimento. Mais tarde, os complexos substituirão e englobarão estas
crises, mas, embora continuem durante algum tempo concebidos
como eventos concretamente vividos (um tanto distantes, portanto,
do conceito freudiano), seu meio passa a ser, eminentemente, a reali-
dade social. A realidade biológica vai primar, cada vez mais, pela au-
sência, ao que vem responder o conceito bolkiano de prematuração -
contraparte da extensão maior que a noção de estrutura reacional ad-
quire já na Tese-, substituindo a lesão localizada por um "vazio orgâ-
~,, . . ., .
mco ongrnano.
A idéia de compreensão é admitida, então, na análise objetiva da
personalidade, pelo argumento de que a passagem de um para outro
destes estágios do desenvolvimento é compreensível para o observa-
dor externo, já que eles compõem uma evolução verdadeira, ou seja,
um processo onde as etapas anteriores determinam e são, de alguma
maneira, absorvidas nas posteriores, e não uma série descontínua de
reações a fatos evolutivos específicos, que discordaria da visão
totalizante que Lacan, justamente, está querendo estabelecer comes-
tas fórmulas. É, pois, uma "lei evolutiva'' que preside à "síntese psico-
lógica'', dando a estas relações de compreensão - termo importado da
psiquiatria fenomenológica de Jaspers - "um valor objetivo certo" 10•
A idéia de intencionalidade não cabe, contudo, nesta análise objetiva

10 PP, p. 39. Estas considerações, que já beiram à epistemologia, preparam, neste


momento da Tese, a introdução da idéia de que a paranóia pode ser concebida
como o desenvolvimento de uma personalidade e de que, por isso, ela 1) não é
um fenômeno de déficit e 2) pode ser considerada como um fenômeno de conheci-
mento. As conseqüências maiores destas considerações serão tiradas no anteproje-
to de uma "ciência da personalidade" que ocupa a última parte da Tese, ou seja, é
o seu capítulo explicitamente epistemol6gico. Lacan, por enquanto, não abando-
nou o terreno clínico, o que, por si s6, já denota o quanto as duas coisas se mistu-
ram para ele.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 69

de um desenvolvimento regular que, por mais compreensível que seja,


deve ser submetido às exigências do determinismo científico. Ela só
pode ser objeto, portanto, de uma apreensão exclusiva'mente feno-
menológica, onde a experiência interior do eu 11 vai-se revelar como
resultado de uma organização subjetiva daquelas reações psicovitais
descritas pela primeira estratégia de análise. A idéia é que essas reações
são globais em cada momento do desenvolvimento e podem ser
explicadas objetivamente a partir da crise evolutiva vital que tentam
resolver; mas a personalidade (cujo porta-voz é o eu) é a síntese atual
de todas estas estruturas reacionais, e só pode ser apreendida fenome-
nologicamente. Aquilo a que se reage deixa de ser, portanto, um fenô-
meno elementar, efeito pontual de uma causa orgânica localizada, para
se converter em uma situação complexa, já em si mesma psíquica, vi-
tal e social, e que, por isso, dá margem, não a uma reação isolada, mas
a uma estrutura reacional. A organização destas numa totalidade psi-
cológica denominada personalidade ganha, então, uma significação
existencial e cem que ser pensada como obra de uma subjetividade ati-
va, ainda que determinada na origem.
A explicação total da psicose deverá apelar, assim, para esse con-
junto de fatores, com os quais Lacan pretende estabelecer uma conti-
nuidade entre a ordem humana (o "ponto de vista da pessoà', como
ele se expressa, inclusive situando aí o lugar de uma "psicologia con-
creta"12) e a ordem biológica. Não é de surpreender que Lacan se refi-
ra e demonstre apreço a escudos genéticos psicológicos (os de Janet,
por exemplo) e antropológicos, como as teses de Lévy-Brühl sobre a

11 Ao qual Lacan acrescenta, como hipótese necessária, a ação do ideal do eu. Estes
termos são creditados à psicanálise e, para dar conta de como estas crises sócio-
vitais podem se converter em um estado de tensão interna, é invocado também o
conceito de Über-lch que, cm Freud, deriva do ideal do eu. Este último conceito
vai, depois, desempenhar um papel fundamental na explicação da paranóia de
auto-punição, que é o objetivo imediato da Tese.
12 PP, p. 41, n. 23. Discutiremos no próximo capítulo a influência politzeriana que
o emprego deste termo denota.
70 RICHARD THE!SEN S!MANKE

mentalidade primitiva e o pensamento pré-lógico dos selvagens. Em-


bora ele reconheça, ainda na Tese, a necessidade de uma antropologia
não-individualista para fundamentar o determinismo esperado para os
fenômenos subjetivos, s6 mais tarde vai perceber que uma antropolo-
gia desce tipo implica também o abandono do ponto de vista históri-
co e evolutivo, quando então substituirá alegremente Lévy-Brühl por
Lévi-Strauss, passando, é claro, por algumas mediações. A partir daí,
vai conceber a determinação do sujeito partindo de uma ordem
sincrônica, atemporal, identificada com a cultura e a linguagem, na
qual o indivíduo ingressa no instante em que vem ao mundo, como
mero organismo deficiente. Mas, neste primeiro momento, a conjun-
ção entre uma visada evolutiva (objetiva} e uma apreensão fenome-
nológica (compreensiva) sedimenta-se em uma teoria da gênese social
da personalidade, primeira versão dos esforços posteriores em torno do
problema da constituição do sujeito, e para onde, agora, todos esses
fatores convergem: "Essa gênese social da personalidade explica o ca-
ráter de alta tensão que assumem, no desenvolvimento pessoal, as re-
lações humanas e as situações vitais que fazem parte delas. Ela fornece,
muito provavelmente, a chave da verdadeira natureza das relações de
compreensão "13 •
Tendo obtido assim, imbricando questões de método e ques-
tões de doutrina, uma definição de personalidade que lhe parece sufi-
cientemente objetiva para satisfazer os requisitos da cientificidade e
suficientemente "humanà' para escapar ao reducionismo, resta a Lacan
definir o conceito de psicogenia em psicopatologia e demarcá-lo em
relação ao domínio da causalidade orgânica, antes de retornar à clíni-
ca das psicoses paranóicas. Numa palavra, este conceito se refere à coe-
rência com que são organizados os mecanismos de natureza orgânica
que formam a base da personalidade, conforme foi descrito acima. Fica
claro que a eficácia do dispositivo teórico de Lacan depende, ainda,
de uma renovação das concepções sobre o organismo e de sua relação
com o meio, para o que recorrerá, ainda na Tese, ao excêntrico, porém

13 PP, p. 42; grifos nossos.


A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 71

influente, biólogo Jakob von Uexküll. Além disso, enquanto não dis-
põe de uma teoria que lhe permita diminuir ainda mais o alcance da
determinação biológica, o que só ocorre quando toma contato com a
idéia da prematuração, Lacan é forçado a dar um alcance ainda restri-
to à sua hipótese psicogênica. Assim, embora se expresse em termos
causais, refere-se apenas à determinação do sintoma, de modo que a
sua causalidade psicológica continua sendo, no fundo, uma patogenia,
não atingindo o fundamento etiológico da enfermidade. Em outras
palavras, o que Lacan faz na Tese é duplicar a explicação causal estrita
(orgânica) com uma abordagem fenomenológica, calcada, no entan-
to, na história concreta e não em um jogo abstrato de significações, a
qual, em certos casos - como o da paranóia, uma psicose considerada
como exclusivamente interpretativa, como uma folie raisonnante -,
pode bastar para a abordagem total pretendida, permitindo economi-
zar a referência a uma base biológica e informando suficientemente a
análise clínica14 . Mas a extensão deste método ao conjunto da psiquia-
tria, sugerida por Lacan, fica ameaçada, ~nquanto não se puderdes-
pojar o orgânico de qualquer poder de explicação positiva, pois esta
abordagem seria tanto mais parcial - um pecado imperdoável do pon-
to de vista lacaniano-quanto mais se endereçasse àquelas afecçóes de
tipo demencial, epiléptico, paralítico, etc. Uma vez, no entanto, que a
metodologia lacaniana tenha assim ampliado a sua esfera de validade,
haverá uma via aberta para a abordagem clínica adquirir um alcance
quase absoluto, já que, tradicionalmente, ela divide com a etiologia
orgânica o campo da explicação psiquiátrica. Com a definição da pa-
ranóia como "fenômeno de conhecimento" que coroa a Tese, esta ex:.
tensão da idéia de clínica vai levá-la a identificar-se com o próprio tra-
balho teórico. É nesse contexto, em que tenta pôr nos seus devidos

14 Na verdade, pode-se falar de uma análise em três níveis: o da causalidade orgâni-


ca, que se refere às bases biológicas da personalidade; o da causalidade psicoginica,
que passa pelo determinismo objetivo constituído ao longo da história individual;
e o da análise fenomenológica, que tenta dar conta dos aspectos intencionais da
personalidade.
72 RICHARD THEISEN S!MANKE

lugares os fatores orgânicos e mentais que estão presentes nas psico-


ses, que Lacan tem a oportunidade de recusar explicitamente o "falso
paralelismo psicofísico" 15 , que gosta de encarnar na figura de Taine.
Esta crítica, que vai ser reiterada de quando em quando ao longo da
obra, abre espaço para a proposição, ao final, do "verdadeiro parale-
lismo", através do qual se pode tentar, mais à frente, elucidar o que há
de inspiração espinozista na Tese.

11.2. CONSTITUIÇÃO, REAÇÃO, INTERPRETAÇÃO

Se as considerações em torno do conceito de personalidade com-


portam traços de discussões epistemol6gicas, é porque elas tocam de
perto os problemas gerais da psicologia pura, uma disciplina tradicio-
nalmente difícil de definir enquanto ciência. O fato, contudo, de que
este tipo de considerações continue a se fazer presente quando Lacan
retorna, com os resultados da discussão da personalidade, ao tema mais
restrito das concepções sobre a paranóia, é indicativo da proximidade
entre epistemologia e clínica psiquiátrica, a qual não deixa também de
ter uma origem histórica, não sendo apenas uma invenção lacaniana.
Este momento da argumentação desenvolvida na Tese dedica-se a in-
corporar o que foi obtido até então ao .projeto de uma abordagem "to-
tal" da psicose paranóica, que agora recapitula (sempre seletivamente,
segundo as conveniências) as concepções desta última como "desen-
volvimento de uma personalidade". Trata-se, mais precisamente, de
especificar de que modo esta classe de distúrbios afeta toda a persona-
lidade, idéia que já se insinuava nas referências até então basicamente
descritivas à paranóia (psicose intelectual, interpretativa, sem déficit,
sem lesão evidente, onde mesmo a perversão da realidade dá-se de for-
ma ordenada, e assim por diante). Isto tem que ser alcançado mos-

l5 PP, p. 45, n. 32 e 47.


A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 73

trando-se que a construção dos delírios sistematizados pode ser des-


crita a partir dos mesmos elementos que a análise anterior isolou para
a formação da personalidade: a "tripla função estrutural", que Lacan
desdobra em 1) um desenvolvimento, 2) uma concepção de si mes-
mo, 3) uma certa tensão nas relações sociais 16 • Confirmações parciais
desta concepção serão rastreadas nos mais diversos segmentos da lite-
ratura psiquiátrica, mas sua ratificação final repousa na minuciosa aná-
lise do caso Aimée, no qual parece caber como uma luva.
O primeiro passo para firmar a tese lacaniana sobre as relações
entre psicose e personalidade é recusar a idéia de que a primeira sim-
plesmente "herda" tendências do desenvolvimento pré-mórbido da
segunda. Esta hipótese, além de dar força para as especulações em tor-
no da constituição paranóica, que Lacan criticará adiante, tende a con-
ceber os fenômenos patológicos como resultado da hipertrofia de um
caráter já previamente anormal, ou seja, recai naquela concepção quan-
titativa da relação normal/patológico, a que já se fez referência. Ora,
se este ponto de vista revelou-se avesso à constituição de verdadeiras
entidades clínicas (isto é, a uma omologfa da doença), ele é incompa-
tível, igualmente, com a proposição de uma concepção estrutural da
patologia: se a estrutura mórbida não é mais, a rigor, um distúrbio da
personalidade, mas toda uma personalidade distinta das consideradas
normais, esta diferença só pode ser pensada como qualitativa, mesmo
porque, por aí, vai-se a passos largos em direção a uma relativização
dos conceitos de norma e de realidade, à qual se atribui geralmente
uma função normativa, que deixam de ser o ponto fixo a partir do
qual se demarca normalidade e patologia. Mais que isso, essa "heran:.
ça das tendências" afigura-se para Lacan como um truísmo, quando
se destina a dar conta da origem dos conteúdos delirantes, pois, seja
qual for a teoria etiológica em jogo, é evidente que a matéria-prima
para o delírio só pode provir da experiência anterior do paciente. Por

16 PP, p. 56. Estes componentes da personalidade correspondem aos pontos de vista


individual, estrutural e social, respectivamente, que Lacan vai propor, ao final,
como integrantes de uma explicação integral e concreta da psicose.
74 RICHARD THEISEN StMANKE

isso, a concepção kraepeliniana da paranóia surge, a seus olhos, como


um progresso, ao deslocar a análise dos conteúdos para a evolução do
quadro, enfatizando o ponto de vista clínico, o que geralmente resulta
na valorização das teses psicogênicas. Além de autor da definição que
pareceu a quase todos expor a essência da paranóia, Lacan descobre
em Kraepelin, mesmo que em regiões acessórias de seu sistema, argu-
mentos para a sua teoria (que é, na verdade, o que se ocupa em expor,
nas entrelinhas dessas revisões bibliográficas): o modo como, por
exemplo, certas situações sociais - é citada a de professor, o sujeito
continuamente exposto à observação dos outros - favorecem a eclosão
dos conflitos que estão na origem do delírio persecutório. Comentá-
rio perfeitamente marginal que, para nosso autor, redunda numa con-
firmação cabal de sua própria tese: "Eis aqui uma gênese que nos reme-
te ao núcleo das funções da personalidade: conflitos vitais, elaboração
íntima destes conflitos, reações sociais" 17• Por toda a parte, Lacan per-
cebe em Kraepelin a afirmação de uma psicogênese, no entanto ingê-
nua, que, justamente, vai ser depois reformulada a partir de certos con-
ceitos freudianos. É o que ocorre, entre outros casos, com a explicação
do delírio de grandeza pela preservação da exuberância e da impetuo-
sidade da juventude, sem a adequação dos fins aos instrumentos dis-
poníveis que caracteriza a evolução normal. Em Freud, tanto o delírio
quanto a impetuosidade juvenil se explicam nos marcos da teoria do
narcisismo, que Lacan explicitamente incorpora em suas concepções.
Mas não com o fardo de sua fundamentação metapsicológica, já que,
para Freud, trata-se, antes de tudo, de um conceito inscrito nas vicis-
situdes internas da libido - sua abordagem pela via da identificação
não fica completamente resolvida-, sendo esse um dos "defeitos" que
Lacan buscará corrigir nas retomadas posteriores do conceito, inclusi-
ve com a teoria do estágio do espelho. De qualquer modo, as conside-
rações de Kraepelin continuam tendo o valor de aludirem a uma situ-
ação social. De posse destes dois elementos, Lacan poderá projetar

17 PP. p. 59.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 75

diretamente o narcisismo sobre os acontecimentos significativos da


história individual.
Estabelecida, a seu ver inquestionavelmente, a psicogenia da pa-
ranóia em Kraepelin, Lacan volta-se para a escola francesa que, afinal,
definiu esta categoria nos termos em que ele a aborda: aparentemente
a denominação "psicose paranóicà' deve-se a Claude 18 e tem a vanta-
gem evidente de esquivar-se aos resquícios de significações organicistas
veiculadas pela demência precoce kraepeliniana. É aí que a concepção
de um delírio de interpretação vai tomar forma, sendo sempre vincula-
do intimamente à paranóia, protótipo das folies raisonnantes introdu-
zidas por Sérieux e Capgras, em quem Lacan se inspira diretamente.
Com eles, a paranóia define-se, não mais apenas pela forma do delírio
(sistematizado, impenetrável, irreversível, etc.), mas também por uma
fançáo cognitiva bastante precisa deste último - interpretar a realidade
circundante do enfermo-, o que representa um passo decisivo no ca-
minho que leva à caracterização da paranóia como fenômeno de co-
nhecimento, que é o que Lacan tem em mente. Tanto mais que Sérieux
e Capgras, ao contrário de outros autores; recusam-se a distinguir, for-
malmente, a interpretação mórbida da normal. Mas o empecilho que
esta concepção, em outros aspectos tão útil ao empreendimento
lacaniano, apresenta é que toda essa análise, exclusivamente psicogê-
nica até aqui, é restringida em seu alcance pela hipótese constitucional
na qual se apóia. Ora, a "constituição paranóicà' pode ser entendida
de duas maneiras: numa, ela substitui a idéia de uma organogênese
específica do quadro por uma tendência constitucionalmente deter-
minada, que propicia o surgimento da enfermidade manifesta, desde
que cumpridas certas condições de ordem histórica e psicológica; em
outra, ela se converte em uma categoria puramente descritiva de um
certo conjunto de traços que podem ser atualizados numa formação
patológica, isso quando não se quer entrar no mérito da discussão so-

18 "A partir daí, somos levados ao amplo quadro definido por Claude com o nome
de psicoses paranóicas". PP, p. 200; grifos do autor.
76 RICHARD THEISEN S!MANKE

bre a determinação última da doença. Tanto num caso como no ou-


tro, esta idéia é nociva aos objetivos de Lacan. O primeiro, além de
ter um pé no determinismo orgânico, frustra, na prática, o desígnio
de fazer equivaler a formação da psicose e da personalidade, já que
esta "constituição" s6 pode ser entendida como uma personalidade
prévia à eclosão da enfermidade, com a qual mantém afinidades evi-
dentes, mas que não é a psicose. O segundo caso, que comporta este
mesmo inconveniente, tem o agravante de dar somente um sentido
descritivo aos determinantes da paranóia, contrariando, assim, o es-
forço para propor uma etiologia específica (e psíquica) que possa ser
uma causalidade em sentido forte.
É em busca da superação do incômodo apelo à constituição pa-
ranóica que Lacan vai voltar-se para os fatores reacionais. O problema
é que, principalmente na psiquiatria francesa, constituição e reação
tendiam a formar, inclusive devido à influência de Sérieux e Capgras,
duas linhas de análise perfeitamente paralelas: a primeira, explicando
a interpretação delirante e os aspectos intelectuais da psicose; a segun-
da, cingindo-se aos aspectos afetivos, organizados em torno da noção
de reação passional. A estratégia de Lacan aqui será, outra vez,
redefinir, assimilar, fundir, ou seja, subsumir o primeiro fator ao se-
gundo, passando a considerar a interpretação como uma forma parti-
cular de reação, a qual, no mesmo golpe, acumula um colorido
intelectualista mais forte do que tinha e, além disso, passa a explicar a
própria interpretação, economizando a referência aos fatores consti-
tucionais. Essa assimilação é tão rápida e completa que, logo a seguir,
ao referir-se à reação passional propriamente dita, Lacan já a mencio-
na como "o outro mecanismo reacional da paran6ià' 19 , a interpreta-
ção delirante já tendo se convertido sub-repticiamente no primeiro. A

19 PP, p. 71. Esta noção de reação passional é um elemento importante nas concep-
ções de Clérambault sobre o automatismo mental. Lacan destaca aqui o quanto
este automatismo adquire os contornos de uma lógica impecável: o ponto de parti-
da do delírio (denominado, justamente, "postulado", vinculado aos fenômenos
elementares, determinados organicamente) é caracterizado como um "embrião
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 77

conclusão de toda essa discussão é a insuficiência da "constituição pa-


ranóica" como fator explicativo, embora não se possa negar que
corresponda a uma certa realidade clínica, uma série de traços obser-
váveis que continuam, no entanto, a requerer elucidação. Lacan torna
a voltar-se, por isso, para a escola alemã, que privilegia os fatores
reacionais, na tentativa de propor uma determinação psicogênica para
a paranóia.
Já sabemos como a psiquiatria germânica, com nomes como
Kraepelin e Bleuler {e, principalmente, através da leitura que deles faz
Minkowski) forneceu elementos significativos para a doutrina lacania-
na em gestação. Mas, agora, o caso é um pouco diferente: Lacan tem
em vista a derrubada da hipótese insatisfatória da constituição. Ora,
embora anuncie que, com suas concepções sobre a afetividade e os
complexos, entre outras, a doutrina de Bleuler, por exemplo, "con:clui
º,
rigorosamente pela psicogênese da paranóia" 2 Lacan é obrigado a re-
conhecer que ela se conserva, em muitos pontos, ainda próxima às te-
ses constitucionalistas. Ele recorre, ent~o, a uma série de autores
(Friedrnann, Gaupp, por exemplo) nos quais os fatores reacionais têm
um desempenho mais autônomo e decisivo. Este recorrido circuns-
tancial conduz, pouco a pouco, à caracterologia de Kretschmer, este
sim uma referência importante neste momento.
Por quê? Antes de tudo, pelo fato de que, embora seu conceito
de caráter ainda admita uma base orgânica para as psicoses, em
Kretschmer, a elucidação das manifestações clínicas do delírio pren-
de-se, aos olhos de Lacan, a variáveis puramente psicogênicas, não só
quanto aos sintomas e sua evolução, mas também, e principalmente;
quanto às causas. De fato, Kretschmer distingue três elementos entre
as causas determinantes do delírio: o caráter, o acontecimento vivido
e o meio social. Aqui, no caso, é um caráter denominado "sensitivo",

lógico", a partir do qual deduzem-se, rigorosamente, todas as anomalias das idéias


e das condutas. Não é à toa que La:can ressuscita, mais tarde, esta doutrina, que
vai lhe parecer tão afim com o logicismo estruturalista.
20 PP, p. 81.
78 RICHARD THEISEN SIMANKE

que propicia a emergência do "delírio de relação", próprio a algumas


formas de paranóia, mas generalizável para as demais. O caráter é uma
estrutura psicológica calcada em bases biológicas; os outros dois fatores
são exclusivamente históricos e psicossociais. Como, em Kretschmer,
os vários tipos de caráter que descreve (primitivo, expansivo, astênico,
sensitivo, etc.) definem-se por reações psíquicas globais aos acontecimen-
tos vividos, basta, para Lacan reencontrar aí sua própria concepção, que
ele imagine que estes tipos psicológicos são também constituídos pe-
las reações aos fatos que transcorrem no meio biossocial, em vez de
pré-existirem a estes, por uma espécie de determinação natural não-
tematizada. O problema é que, nem Kretschmer, nem Lacan (por mais
que este se esforce) dispõem de um argumento suficientemente force
para demitir a base orgânica de sua função etiológica primordial. Mas
o orgânico vai, no entanto, convertendo-se cada vez mais na peça que
sobra após a minuciosa montagem do quebra-cabeça da psicose. Como
Lacan não quer resolver a questão por decreto, embarcando de vez na
abordagem compreensiva e fenomenológica, que se recolhe de boa
vontade aos territórios do espírito, ele não recuará do fundamento or-
gânico da psicose e da personalidade, por mais remoto que este setor-
ne, enquanto não dispuser de um argumento biológico para fazê-lo, o
que só ocorrerá ao longo das formulações hesitantemente psicanalíti-
cas que se seguem à Tese.
A conseqüência imediata dessas afinidades percebidas por ele
entre as concepções de Kretschmer e as suas próprias é que Lacan co-
meça a detectar e a recolher, aqui e ali, elementos que concordam con-
sigo ou com aquelas idéias que está disposto a incorporar. Assim, essa
estrutura em que consiste o caráter dito sensitivo "compreende-se por
si mesma'' (Kretschmer), com o que se faz ligação direta com as "rela-
ções de compreensão" Oaspers), impedindo que se possa considerá-lo
uma mera disposição constitucional, mas sim "uma personalidade em
toda a sua complexidade"21 • O acontecimento envolvido na etiologia
da psicose passa a ser descrito como uma Erlebnis (um termo de explí-

21 PP, p. 85.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 79

citas conotações fenomenológicas), caracterizando uma "experiência''


original e determinante, que revela ao sujeito sua própria "insuficiên-
cia". Eis-nos reconduzidos à vivência da falta (que, na' evolução do
pensamento lacaniano, vai ser tematizada sucessivamente no real, no
imaginário e no simbólico), a qual, desde as mais estreitas concepções
organicistas, é suposto governar a produção das psicoses22 • Mas, como
à falta orgânica nunca corresponde, de modo estável, uma falta no psí-
quico - ao contrário, desde este ponto de vista deficitário, os efeitos
são sempre mais ou menos aleatórios -, o problema para Lacan, daí
por diante, vai ser retirar este conceito do plano orgânico e negativo
da lesão, para conceder-lhe uma eficácia positiva na determinação da
psicose e, um passo além, do sujeito, redefinindo-a à luz de uma série
sempre renovada de pressupostos teóricos.
Aliás, Lacan justifica, assumidamente, o espaço dado às teorias
kretschmerianas - espaço surpreendente para uma abordagem
cara~terológica e, portanto, comprometida forçosamente com algum
constitucionalismo - por essa concordân~ia regionalizada com as suas
diretrizes de pesquisa: "Demos amplo lugar a esta descrição, porque
ela nos parece uma das expressões elaboradas do ponto de vista que
expomos neste capítulo, ou seja: a paranóia considerada como reação
de uma personalidade e como momento de seu desenvolvimento"23 . Por-
que a concepção de Kretschmer reserva aos fatores biológicos uma ação
apenas sobre o caráter - isto é, uma ação indireta na causação da psi-
cose, através de um mediador que Lacan já se julga capaz de despojar
da significação constitucional-, ela pode ser aceita como "inteirame~~

22 Vai ser ainda em torno desta noção que Lacan propõe, mais tarde, no ceceiro ano
do Seminário, uma teoria da psicose, onde ela aparece como resultado de uma
falta na constituição simbólica do sujeito; a inspiração psiquiátrica desta noção se
manifesta, ainda aí, quando Lacan toma como ponto de partida uma considera-
ção de Hesnard sobre "o universo mórbido da falta". É verdade que, nesse novo
contexto, a referência à "faltà' tem já um alcance muito maior, e diz respeito ao
problema da constituição do sujeito como um todo.
23 PP, p. 98; grifos do autor.
80 RICHARD THE!SEN SlMANKE

te psicogênica''. Visto de outro modo, pode-se dizer que nosso autor


encontra aí um lugar inofensivo para alocar os determinantes orgâni-
cos, de maneira que, para todos os efeitos práticos, torne-se possível
prosseguir no intento de formular uma causalidade específica para os
fenômenos subjetivos da personalidade. A própria ambigüidade da
atuação do caráter nos momentos prévios à eclosão da psicose oferece
um argumento a mais para colocar sob suspeita a noção de constitui-
ção e para o seu progressivo esvaziamento, que é o objetivo quase de-
clarado de Lacan nesse vai-e-vem entre a psiquiatria francesa e alemã24 .
Antes de retornar aos franceses e ao veio intelectualista das apreensões
da paranóia, ele revisa ainda, a bem da imparcialidade, algumas con-
cepções organogênicas da psicose. Mas, para encurtar o assunto, assina-
le-se apenas que a idéia básica dessa revisão é a de que os fatores orgâ-
nicos apregoados são sempre hipotéticos, ficando o que há de objetivo
(ou de concreto) nessas análises contido somente no esrudo da evolu-
ção dos casos, isto é, na abordagem clínica, mais uma vez soberana.
O retorno às "análises francesas do automatismo psicológico na
gênese das psicoses paranóicas" 25 , por sua vez, tem uma finalidade bem
clara: retomar aquele que Lacan considera o problema psicológico
maior da paranóia, ou seja, a interpretação, uma vez que a passagem
da báscula lacaniana pelos psiquiatras alemães tenha firmado e gene-
ralizado o caráter reacional dos fenômenos psicóticos. Pois, se o
automatismo era a pedra de toque do organicismo nacional, cujo ex-
poente maior é Clérambault, a crítica deste organicismo consistia, via
de regra, em recusar, um tanto quanto a priori, a determinação orgâ-

24 Lacan cita, como conclusão deste capítulo de sua revisão da literatura especializa-
da, uma fórmula creditada a Bleulc:r, mas que atravessa as obras de Kretschmer e
Kehrer: "Não existe a paran6ia, mas apenas paranóicos". Escusado assinalar o
quanto esta frase prepara o leitor para a exposição da análise ("total", "individual",
"concreta") de um único caso como comprovação das teses avançadas até então.
A habilidade de Lacan de fazer dos enunciados de seus interlocutores metáfora e
confirmação de suas próprias intuições já aparece, embrionariamente, aqui.
25 PP, p. 126.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 81

nica dos sintomas automáticos e centrar a análise nas manifestações


clínicas que, descoladas de sua base biológica, podiam apresentar-se
como puros fenômenos intelectuais. Essa, como vimos, 'era uma con-
seqüência quase inevitável do organicismo. Só que Lacan quer ir um
pouco mais longe e encontrar uma determinação objetiva para estes
fenômenos fora da esfera orgânica; daí, a importância que atribui aos
aspectos reacionais. Sua estratégia, agora, será acentuar o caráter flexí-
vel da noção de automatismo mental - ela recobre uma variedade bas-
tante ampla de fatos clínicos - e, a partir desta "ambigüidade funda-
mental do termo automático" 26, propor que a única maneira de dar-lhe
uma definição positiva é pensá-lo sobre o pano de fundo composto
pelos fenômenos de personalidade, totalidade capaz de dar sentido aos
distúrbios que o automatismo define. Com isso, ele pretende inaugu-
rar uma abordagem do automatismo - característica irrecusável das
psicoses, desde um ponto de vista descritivo - que escape ao demen-
tarismo crônico das leituras organicistas: a ascensão ao primeiro plano
da referência à personalidade implica uma explicação da parte pelo
todo, e não o contrário, esperando Lacari poder purgar, assim, as aná-
lises não-reducionistas que passa a revisar dos resquícios atomísticos
que possam ainda conter. Essas análises, que se atêm em geral aos fa-
tos clínicos, poderão fornecer, então, mais um argumento contra a hi-
pótese constitucional.
Assim, a descontinuidade entre o delírio e a personalidade an-
terior do sujeito, destacada, por exemplo, por autores como Mignard
e Petit, não vai mais significar uma desagregação patológica, mas a for-
mação de um segundo sistema de sentimentos e tendências que pode
ser entendido como uma nova personalidade delirante27• O automatis-
mo, aqui, serve para justificar um determinismo psicológico que parte
de uma estrutura de personalidade característica do quadro clínico
considerado. Não se poderia esperar mais em termos de uma causali-

26 PP, p. 128.

27 PP, P· 131.
82 RICHARD THEISEN S!MANKE

dade específica para a psicose, ainda com a vantagem suplementar de,


pensando-a à parte da personalidade pré-mórbida, esquivar-se a priori
de uma leitura deficitária, que só poderia resultar de uma comparação
com aquela. A concepção da psicose como o desenvolvimento de uma
personalidade é, assim, essencial para que Lacan possa cumprir seu
desígnio de não mais encarar a sintomatologia paranóica como fenô-
menos de déficit. Ao mesmo tempo, ele se vê obrigado a recusar con-
cepções genéticas como a de Janet, à primeira vista tão apropriada, por
perceber nela - com razão, aliás - um excessivo apelo a fatores de or-
dem energética, que trazem consigo uma "concepção organicista do
psiquismo" e, conseqüentemente, a proposição de uma "causalidade
biológicà' para os distúrbios mentais 28 . Lacan, diga-se de passagem,
sempre se sentiu incômodo com este tipo de explicação energética,
mesmo a freudiana, que lhe parecia excessivamente biologizante. Ele
não vai descansar, enquanto não fizer da movimentação das Besetzun-
gen uma simples metáfora da lógica do significante. Contudo, ainda
na Tese, essa preocupação se revela no tratamento que dá ao conceito
de libido, reduzindo-o a um operador teórico. Por outro lado, o fato
de que esta revisão dos automatismos é concluída por uma referência
às posições de Minkowski em torno da noção de "estrutura das pro-
priedades da consciência mórbidà' 29 - que não difere muito, no fun-
do, daquela definição de complexo que citamos no capítulo anterior
- dá bem a medida da via intermediária que Lacan quer traçar: ele
assinala como este tipo de pesquisa se fundamenta no trabalho dos
fenomenólogos que, no entanto, empregam um método puramente
filosófico, apenas ocasionalmente tomando por objeto os fenômenos
psicopatológicos. A distância que guarda em relação a estas pesquisas
- não se julga em condições de dar sequer uma idéia do método de
que se trata - bem sinaliza a incompatibilidade entre uma abordagem
puramente compreensiva e a noção mesma de patologia. O emprego

28 PP, p. 135.
29 PP, p. 138.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 83

muito particular que Minkowski faz destas concepções consiste justa-


mente em adaptá-las à prática psiquiátrica. Ele surge, assim, como uma
das inspirações mais sólidas da tese lacaniana, restando' apenas a di-
vergência quanto ao papel que ainda pode ser atribuído aos fatores
orgânicos. Mas, como sabemos, é justamente a sua intransigência
quanto à psicogênese que vai conduzir a pesquisa lacaniana para fora
da psiquiatria.
Lacan, contudo, vai buscar ainda um outro instrumento teóri-
co na psiquiatria fenomenológica, mais especificamente, em Jaspers:
o conceito de processo psíquico, talvez mais crucial na Tese do que as
propaladas "relações de compreensão": é ele que permite que estas úl-
timas se convertam em operadores válidos para a análise objetiva pre-
tendida, e não apenas em ferramentas da apreensão fenomenológica.
De que modo? Em primeiro lugar, o processo escapa ao desenvolvimen-
to da personalidade que pode ser expresso em termos de relações de
compreensão. Ele rompe aquela continuidade compreensível da histó-
ria individual, em que cada momento sub~ume e integra os anteriores.
Por outro lado, essa ruptura difere completamente daquela instituída
pela lesão orgânica, que sempre se dá sob o modo da desagregação.
Assim, o processo psíquico desencadeado com a eclosão da doença,
num mesmo golpe, explica o surgimento de uma nova personalidade
na psicose e preserva a significação patológica desce fato, ao introduzir
uma nova realidade psíquica que é apenas parcialmente compreensí-
vel em termos fenomenológicos. Essa nova realidade está intimamen-
te vinculada a um evento vivido, que pode ser considerado determi-.
nante e inscrito numa relação causal com a modificação ocorrida. Ess~
relação, porém, nunca é pontual, já que dá margem a uma reação glo-
bal capaz de instaurar uma nova totalidade psíquica. O conceito de
processo complementa, assim, o de reação que, sozinha, sempre pode
ser recortada do todo, considerada isoladamente e, portanto, tornada
redutível ao evento desencadeante em sua determinação material. O
processo, ao contrário, parte dessa crise localizada e se desdobra numa
série de reações encadeadas que, na verdade, constituem um novo
desenvolvimento, conduzindo à formação da personalidade mórbida.
Ou seja, trata-se de um conceito cuja utilidade é a de permitir a Lacan
84 RICHARD THE!SEN S!MANKE

equacionar o problema da continuidade ou descontinuidade entre a


personalidade pré-mórbida e a psicose: ele introduz uma desconti-
nuidade apta, ao mesmo tempo, a afastar a hipótese constitucional e a
justificar o caráter patológico atribuído à nova situação, sem apelar,
no entanto, a um dano orgânico, que só poderia produzir um estado
desagregativo, o único que uma visada reducionista seria capaz de
explicar.
Esse mosaico que Lacan compõe com as idéias selecionadas de
seus antecessores e contemporâneos adquire, com isso, contornos su-
ficientemente perceptíveis. Há mais elementos que poderiam ser reca-
pitulados, mas os aqui citados devem bastar para delinear, por uma
sorte de efeito gestáltico, o panorama teórico que o autor quis traçar.
Esse panorama insinua a teoria que só será tematizada no capítulo fi-
nal, junto a considerações de ordem mais geral, onde Lacan ensaia seus
primeiros vôos doutrinários. Mas é na interpretação do caso Aimée
que essa doutrina começa a tomar forma. Vale a pena lançar um olhar
de relance sobre esta análise, cuja intenção corroborativa não esconde
um certo parti pris teórico que será sistematizado na última parte.

11.3. PSICOG~NESE E QUESTÕES DE MÉTODO:


O CASO AIMÉE

Ainda que alguns queiram ver em Aimée a Anna O. de Lacan, a


relação deste último com sua paciente inaugural é completamente dis-
tinta. Na história de Anna O., encontramos um clínico geral (Breuer)
perplexo diante de manifestações cujas razões lhe escapam, mas com
perspicácia suficiente para permitir que a paciente conduza em parte
seu próprio tratamento, acumulando uma experiência que pôde ser
teoricamente metabolizada por um jovem neurologista (Freud) de pre-
ocupações mais abrangentes. Com Aimée, tudo se passa de modo
muito diverso: ela é triada dentro de um serviço de atendimento, em
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 85

meio a "uns quarenta casos", vinte de psicoses paranóicas, por um psi-


quiatra em formação profundamente envolvido em debates doutriná-
rios, dentro dos quais toma posição, antes de buscar ativamente a com-
provação clínica de que necessita para fazer passar suas idéias no meio
médico que habita. Em suma, Aimée, para Lacan, representou um argu-
mento, não uma descoberta. Ele, aliás, o admite explicitamente, quando
diz que o principal motivo de sua escolha "é o caráter particularmente
demonstrativo do caso"3º, que expõe um tipo clínico (seu mecanismo,
sua patogênese, suas relações com a personalidade) do feitio requerido
pela teoria em formação. O estilo desse confronto inicial do autor com
o universo dos fatos não deixa de ser representativo da maneira como
vai se relacionar com a clínica ao longo de toda sua obra: embora reco-
nheça, sem sombra de dúvida, o quanto a referência à clínica é essen-
cial à psicanálise (assim como para o seu projeto psiquiátrico inicial),
sua preocupação nunca foi fundar uma clínica - ele já a encontrou
muito bem fundada por Freud ou por seus antecessores médicos -,
mas sim propor uma teoria da clínica. Tir~ndoAimée (que ele não tra-
tou verdadeiramente) e umas poucas observações diretas isoladas, os
"casos clínicos" de Lacan são, basicamente, as cinco grandes psicanáli-
ses freudianas, além dos exemplos literários (Hamlet, Atália, Antígona,
entre outros). Há boas razões para crer que, do ponto de vista da teo-
ria da clínica que aí se elabora, não existe nenhum motivo para distin-
guir essencialmente uns dos outros.
Nenhuma surpresa, portanto, em que Lacan explore abundan-
temente a produção literária de Aimée, o que lhe valeu a celebração
por parte dos meios surrealistas. Contudo, por mais interessante que -
seja o relato e a análise minuciosa do caso, não vale a pena reproduzi-
los aqui, o que só poderia ser feito de modo resumido, enquanto que
seu valor consiste justamente no detalhe com que se desenvolve ades-
crição deste único exemplo de uma legítima "paranóia de auto-puni-
ção". Os itens mais chamativos, de qualquer modo, são bem conheci-

30 PP, p. 151; grifo nosso.


86 RICHARD THE!SEN S!MANKE

dos: a relação persecutória que se estabelece com os editores e as cor-


tesãs, que reproduz uma rivalidade originária com a irmã; delírios so-
bre atentados tramados contra o filho, alvo da inveja fraterna, que vi-
savam atingi-la indiretamente; a fixação amorosa no príncipe de Gales;
o atentado à faca contra uma atriz em frente ao teatro; por fim, a re-
missão rápida do quadro, após o encarceramento, que satisfez os seus
desejos de auto-punição e propiciou uma cura relativa. Qualquer
resumo mais detalhado que isso apenas revelaria o quanto este caso
confirma as teses de Lacan, o que já sabemos31 • Passemos direto à inter-
pretação teórica do caso, onde os componentes parciais desta confir-
mação começam a se articular numa doutrina.
Essa discussão começa pela consideração dos chamados "fenô-
menos primitivos ou elementares" e da hipótese de que a psicose que
eles determinam possa representar um "processo organo-psíquico" 32 •
Ora, sabemos que a noção de processo é emprestada de Jaspers, onde
tem uma significação puramente clínica e analítica. Portanto, ao colo-
car esta interrogação, nesses termos, Lacan já está excluindo a priori a
organogênese. Sua pergunta é, nesse sentido, apenas retórica. Ainda
mais que a idéia de fenômeno elementar é flagrantemente subvertida:
é a interpretação que será considerada "o mecanismo elementar que
parece regular o crescimento do delírio" 33 , quando, para a doutrina
clássica, esta consistia em um fenômeno secundário, acrescido aos efei-
tos diretos da lesão. Por exemplo, quando interpreta os sintomas
puerperais de sua paciente (o mundo inteiro mudara ao seu redor du-
rante a amamentação; ela e o marido tornaram-se estranhos um ao
outro; isso e mais os sentimentos de estranheza frente ao ambiente,

31 O relato do caso se estende, na Tese, das p. 148 a 205. Um resumo eficiente é


dado por Ogilvie {Lacan: la formation du concept de sujet, p. 18-20). Um relato
mais detalhado das atribulações de Marguerite Pantaine·encontra-se na biografia
de Lacan de Elizabeth Roudinesco (Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de
um sistema de pemamento, p. 47-59).
32 PP, p. 207.
33 PP, p. 207.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 87

déjà vu, adivinhação do pensamento, etc.), Lacan afirma que "a inter-
pretação se apresenta aqui como um distúrbio primitivo da percepção "34.
Ou seja, fenômenos até então considerados alucinatórios·ou pseudo-
alucinatórios são colocados na dependência da interpretação delirante
que, a partir daí, responde pelo distúrbio observado e não apenas rea-
ge a ele secundariamente. Esta inversão do argumento organicista é
tanto mais significativa quanto se verifica no âmbito da consideração
da hipótese organogênica. Como Lacan não está, ainda, totalmente
tranqüilo quanto ao descarte dos fatores biológicos, ele coloca as coi-
sas de modo a que sua definição, a ser formulada, da paranóia como
fenômeno de conhecimento permaneça válida mesmo naquelas situa-
ções onde parece evidente a determinação orgânica, corno é o caso dos
distúrbios puerperais: também eles surgem como efeito da onipresente
atividade cognitiva da interpretação patogênica. É verdade que, ao si-
tuar a interpretação nesse nível tão primitivo da produção dos sinto-
mas, Lacan retira-lhe, em parte, o caráter racional que tendia a ser-lhe
atribuído pelos adeptos da psicogênese, e não só por estes. Lacan per-
cebe muito bem o quanto um intelectualismo estrito na descrição de
afecções como as paranóias e as obsessões é um apanágio da funda-
mentação organicista. Tampouco este detalhe é fortuito, pois, se essa
interpretação perde o caráter de reação a um processo orgânico, ela
precisa ser remetida a uma outra ordem de determinação (do contrá-
rio, estaríamos restritos a algo semelhante à abordagem fenomeno-
lógica jaspersiana) e, para tanto, tem que estar, pelo menos em parte,
fora do controle racional do sujeito. Assim, a "significação pessoal" que
estes distúrbios inequivocamente apresentam não é uma propriedade
primordial de um espírito livre, cuja essência repousa nas relações de
sentido, mas um efeito de "relações de natureza social"35 , o que se evi-
dencia no fato de· que não são quaisquer percepções que sofrem estas
modificações, más sim aquelas referentes a objetos que possuem sig-

34 PP, p. 209; grifos nossos.


35 PP, p. 212.
88 RICHARD THE!SEN S!MANKE

nificação afetiva (família, colegas, vizinhos, etc.). Logo, "a estrutura


desces sintomas, bem integrados à personalidade, reflete sua gênese so-
cial"36, que era o que se pretendia demonstrar.
Mas isso é apenas o começo. A interpretação foi deslocada para
o momento desencadeador do delírio, mas resta explicitar, por um
lado, como ela reage a eventos determinantes na história individual e,
por outro, como ela constrói, a partir daí, uma estrutura complexa,
cujo caráter reacional vai permitir fundar o determinismo peculiar da
personalidade e da psicose. Isso se faz pela investigação das relações
entre o delírio e a história da paciente, onde as noções psicanalíticas
vão revelar sua utilidade para Lacan, se bem que, como veremos mais
adiante, ele não deixe nunca de fazer reparos ao significado dos ter-
mos, em conformidade com as suas opções. Lacan dá destaque, nesta
fase de sua investigação, a dois fatores: a "relação dos surtos delirantes
com os acontecimentos que cocam no conflito central da personalida-
de de Aimée" e "a evolução de seu caráter sob a influência do delí-
rio"37. O emparelhamento destes dois fatores como que arremata o
ostracismo progressivo a que foi submetida a idéia de constituição pa-
ranóica: os delírios não interpretam mais uma distorção causada pela
doença, mas reagem a "eventos determinantes", que o são justamente
por tocarem no "conflito central'' da personalidade da paciente, per-
sonalidade que, por sua vez, veio-se constituindo pouco a pouco, me-
diante uma série progressiva de reações desse tipo. Toda essa descrição
é animada, como se vê, por um certo espírito "dialético", como Lacan
já então aprecia se expressar. Mas a reação que tem um resultado pro-
priamente delirante tem um valor diferenciado no calvário da consti-
tuição da personalidade, pois configura a fixação do desenvolvimento, a
partir da qual se ramificam as manifestações clínicas posteriores da
psicose. Estas manifestações, cujo ponto de origem situa-se já dentro
de um processo formador da personalidade, vão moldar, elas mesmas,
uma nova personalidade, que poderá ser dita mórbida, já que evolui,

36 PP. p. 212; grifos nossos.


37 PP, p. 234.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 89

daí em diante, "sob a influência do delírio". Apesar de garantir assim


o caráter mórbido da personalidade psicótica, atendendo ao objetivo
lacaniano de não cruzar, por enquanto, as fronteiras da psicopatologia
médica, esta estrutura complexa que daí resulta é, não obstante, inte-
ligível (o que a torna, num outro vocabulário, compreensível), nem
que seja pelo fato dela ser, em si mesma, intelecção: embora as expan-
sões imaginativas do delírio possam alcançar somente um rendimento
inferior em eficácia, como quer Janet, isso não passaria de um proble-
ma estatístico - menor desempenho com relação a uma média - não
implicando, de forma alguma, um fenômeno que fosse deficitário por
natureza. Tais devaneios, ao contrário, representam "um contato in-
tuitivo positivo com o real"38 , exemplificado pelos escritos literários
de Aimée, cuja recusa reiterada por parte das editoras ajudou a ali-
mentar a vertente persecutória de seu delírio. Vê-se bem o propósito
da análise detalhada destes escritos no corpo da tese de Lacan: eles são
uma _preciosa evidência material para a hipótese que contesta a valida-
de da noção de constituição paranóica, que só pode relegar seus efei-
tos à condição de fenômenos de déficit39 ~ No mesmo espírito, a ina-
daptação soc:ial que resultava desta constituição é apresentada agora
como efeito dos diversos distúrbios psíquicos que têm em comum sua
origem reativa, a partir dos quais se compõe a estrutura mórbida: esta
inadaptação converte-se na rubrica do próprio processo de gênese so-
cial da personalidade psicótica.
Em suma, se Lacan relata, assim longamente, a história de sua
paciente, é para um propósito eminentemente negativo. Esse relato ser-
ve, antes de tudo, para recusar a tese da constituição paranóica e suas
conseqüências deficitárias (incapacidade social e intelectual) e para fir-

38 PP, p. 242.
39 Lacan retoma este argumento numa outra passagem, onde afirma que "ela só con-
seguiu levar a cabo o que escreveu de melhor, e de mais importante, no momento
mais agudo de sua psicose e sob influência direta das idéias delirantes. A queda
da psicose, por outro lado, parece ter acarretado a esterelidade de sua penà' (PP,
p. 289).
90 RICHARD THEISEN SIMANKE

mar a idéia de que a análise deve visar exclusivamente aos fenômenos


de personalidade, se quer evitar os descaminhos que conduzem aos
becos sem saída da psiquiatria. É aí, aliás, que se inserem as extensas
referências a Janet e a Kretschmer, referências um canto surpreenden-
tes, quando se pensa que são autores comprometidos com pomos de
vista antagônicos, em muitos aspectos, ao encaminhamento lacaniano.
Mas o que ocorre é a extração de uma espécie de denominador co-
mum entre os dois, aproveitando, no caso de Janet, sua concepção es-
trutural (que não discorda, em forma, com a caracterologia de
Kretschmer), deixando de fora suas conotações deficitárias e aqueles
aspectos de sua energética que tendem ao organicismo; do lado de
Kretschmer, trata-se de, ignorando a base orgânica inerente às abor-
dagens caracterológicas, destacar sua concepção dindmica e evolutiva,
que se atém à história do sujeito, abrindo caminho para se pensar
numa formação psicológica ou psicossocial da estrutura, o que, em
Janet, só podia ser remetido a um defeito congênito. O que falta, por-
tanto, é explicitar o aspecto positivo da tese facaniana, que versa justa-
mente sobre a natureza desta gênese e, acima de tudo, sobre a "nature-
za do distúrbio inicial que, em nosso caso, vicia o desenvolvimento da
º.
personalidade"4 A essa exposição afirmativa de suas idéias Lacan en-
cadeia, imediatamente, as considerações sobre o método que lhe per-
mitiu formulá-las, abrindo espaço para a reflexão epistemológica que
esteve, em geral, latente às discussões precedentes, mas que, agora, vai
ocupar cada vez mais o primeiro plano.
Mas essa nova fase da exposição, que pretende situar uma "ano-
malia de estrutura" e uma "fixação de desenvolvimento" 41 como as

40 PP, p. 244.
41 PP. p. 247. A referência à.fixação não deve levar, ainda, a um cruzamento apressado
de Lacan com as teorias freudianas, já que o conceito tem um sentido bastante
distinto nos dois casos. Mesmo assim, é ao longo desta discussão que Lacan co-
meça a apelar com mais freqüência a conceitos formulados por Freud. Contudo,
como o sentido deste apelo é explicitado no último capítulo da Tese, reservemos
para o final o comentário destas passagens.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 91

causas primeiras da psicose, não é levada ainda ao nível de generali-


dade exigido por uma discussão propriamente epistêmica. Lacan vai
concentrar-se aqui no ponto específico da paranóia de áuto-punição,
tipo clínico que ele pretende descrever e do qual o caso Aimée consti-
tuiria o protótipo, o exemplo ideal. Do ponto de vista das ambições
maiores do autor, pode-se dizer que a proposição desta categoria in-
troduz-se como uma espécie de fator de cautela: trata-se de uma for-
ma clínica em que as hipóteses até então formuladas verificam-se de
modo particularmente claro, e isso justifica a elaboração de uma me-
todologia própria para a sua abordagem. Depois, tanto as idéias dire-
trizes quanto o método serão generalizados: primeiro, para a totalida-
de virtual do campo psiquiátrico; a seguir, para a experiência normal
ou sadia, fazendo com que o método timidamente esboçado para o
recém-criado sub-setor das paranóias auto-punitivas se revele, no seu
alcance maior, como o anteprojeto de uma "ciência da personalidade"
ou, para dizê-lo logo, de uma psicologia renovada.
A principal e mais evidente vantag~m da nova entidade é que os
mecanismos de auto-punição, cuja prevalência é detectável na constru-
ção da personalidade de Aimée, são perfeitamente exemplares de uma
determinação psicogênica atuando na origem de uma estrutura pato-
lógica. Mais que isso: estes mecanismos, assim descritos, reintroduzem,
de imediato, o sujeito como pólo dos processos patogênicos, como
origem e alvo, no caso, o que fecha o ciclo da repetição paranóica. Ao
mesmo tempo, destacam o caráter intencional destes processos, valo-
rizando a dimensão significativa do fenômeno clínico e justificando o
imperativo metodológico da compreensão. Embora Lacan não deixe
de discutir as intenções conscientes que se revelam à análise do delí-
rio, ele se preocupa constantemente em preservar o caráter objetivo
desta análise ("esforcemo-nos por lançar sobre o caso estudado um
olhar tão direto, tão nu, tão objetivo quanto possível..."42). As duas
acepções do termo "sentido" - significação e direção - são invocadas

42 PP, p. 247.
92 RICHARD THEISEN SIMANKE

para sugerir que não se trata tanto da intencionalidade abstrata dos


fatos de consciência, como de uma intencionalidade das condutas, que
vai permitir que a observação do comportamento animal seja entro-
nizada, mais tarde, como parâmetro de objetividade para a descrição
clínica. Mas, desde já, objetividade e compreensão não devem excluir-
se, sob pena de mutilar a visada "total" da afecção em foco. Ou me-
lhor, da doente, pois é preciso reter, ainda, a vocação individualizante
da clínica: "Observemos, pois, a conduta de nossa paciente, sem medo
de compreendê-la demasiado ... "43.
A velha máxima de que a natureza da cura revela a natureza da
doença é usada para fazer notar que a rapidez obtida na remissão dos
sintomas de Aimée é um argumento definitivo contra qualquer hip6-
tese tóxica (o cafeinismo da paciente, por exemplo) ou organogênica
em geral. O ataque pretensamente homicida, que a levou ao encarcera-
mento, demonstrou ser dirigido, ao fim e ao cabo, contra a própria
paciente. Realizados, pela privação de liberdade, seus desejos auto-pu-
nitivos, o alívio assim conseguido da obsessão passional ocasiona uma
queda brusca da atividade delirante. Lacan quer passar a idéia de que
nenhuma outra hipótese além da sua poderia dar conta destas remis-
sões súbitas, lançando mão, portanto, do antigo argumento anti-
organicista que, já em Kraepelin, insinuava que a mera possibilidade
de cura interditava a definição da demência precoce como uma de-
mência verdadeira. Por outro lado, o tema da auto-punição e dos sen-
timentos de culpa concomitantes parece estabelecer os primeiros la-
ços mais explícitos entre as teses lacanianas e a psicanálise. É verdade
que não com Freud diretamente e sempre com as ressalvas de costu-
me44. Ap6s remeter, entre outros, aos trabalhos de Hesnard e Laforgue,

43 PP, p. 249; grifo nosso.


44 Há uma ressalva ilustrativa, que denuncia a influência velada de Politzer sobre
Lacan, quando este subscreve a possibilidade de uma dissociação método/doutri-
na dentro da psicanálise, uma das implicações da leitura que Politzer faz de Freud:
"Que esses fatos se impusessem primeiramente aos praticantes da psicanálise, isto
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 93

psicanalistas da primeira geração francesa, sobre a auto-punição e ao


estudo psicanalítico de Alexander sobre a Gesamtpersõnlichkeit, Lacan
conclui: "O que nos parece, com efeito, original e precios'o em tal teo-
ria [a dos mecanismos de auto-punição] é o determinismo que ela
permite estabelecer em certos fenômenos psicológicos de origem e de
significação sociais, daqueles que definimos como fenômenos de
personalidade" 45.
Já a família, a cujos "complexos" o autor dedicará um estudo
mais tarde, é apontada, nesse momento, como veículo dessas signifi-
cações sociais e como campo de batalha onde se travam as crises consti-
tutivas da personalidade. Mas trata-se aqui da instituição familiar real,
sem nada que lembre o valor estritamente simbólico que vão adquirir
depois os personagens do drama edipiano. Sabe-se que, nisso, Lacan
irá muito além de Freud: o pai se reduz a uma metáfora e a mãe, a
uma espécie de função, num sentido quase matemático, os dois jun-
tos permitindo "calcular" o lugar do sujeito, na posição de incógnita,
e assim por diante. Se na Tese, porém, é reconhecida aos perseguido-
res de Aimée "sua significação puramente simbólica'', é porque eles são
símbolos de um protótipo, cujo poder afetivo "é dado por sua exis-
tência real na vida da doente"46 . Simbolismo, para Lacan, quer dizer,
nesse momento, uma relação direta entre a fantasia delirante e os fa-
tos da história individual, o que não tem nada a ver com as maquina-
ções formais do significante. O lugar de destaque que ocupa a irmã,
nessa constelação psíquica, prenuncia o papel central que vai ser atri-
buído ao complexo de intrusão no artigo sobre a família, onde, por ain~
da outras razões que será preciso explicitar oportunamente, ele é pen-
sado como mais decisivo para o processo de constituição do que o
próprio complexo de Édipo. É verdade que trata-se aqui da irmã mais

só se deve à abertura psicológica de seu método, pois nada implicava esta hipótese
nas primeiras sínteses teóricas dessa doutrina" (PP, p. 251; grifos nossos).
45 PP, p. 252.
46 PP, p. 253.
94 RICHARD THEISEN SIMANKE

velha, mas, de qualquer modo, introduz-se a função etiológica da ri-


validade fraterna na causação das psicoses47 .
Mas essa referência à história concreta, se proporciona um fim-
damento adequado para vincular o delírio à realidade psicossocial e
biológica da paciente - afastando-se de uma explicação metapsico-
lógica, ao modo freudiano, condenada pela crítica politzeriana -, não
é suficiente para dar conta da exagerada dimensão dos perseguidores.
A explicação dessa "expansão imaginativà', como disse Lacan há pou-
co, precisa recorrer a um conceito que dê conta dos aspectos imaginá-
rios da produção delirante que, afinal de contas, lhe confere o seu ca-
ráter patológico. O conceito invocado, então, é novamente o ideal do
eu, antes um argumento contra a eficácia metodológica da intros-
pecção e agora permitindo articular, aproximando-se desta vez de
Freud, o delírio de grandeza e o de perseguição: as figuras persecutórias
- escritoras, atrizes, cortesãs - são sucessivas encarnações do seu ideal,
amadas e odiadas simultaneamente, contra as quais se desencadeia seu
acting-out homicida.
O que transparece aqui é que, para completar a sua teoria da
psicogênese da paranóia, torna-se, enfim, apropriado o recurso aos
dados da psicanálise. São eles que vão permitir especificar a tese
lacaniana que, por enquanto, é apenas reiterada na sua formulação
geral: é a personalidade auto-punitiva que dá um alcance especial a
distúrbios orgânicos e a certos acontecimentos que seriam inócuos para
um outro sujeito. Portanto, a totalidade do distúrbio só tem sentido
em função da estrutura da personalidade, ou seja, trata-se de um qua-
e
dro efetivamente psicogênico, tudo segue-se daí. Tampouco é sur-
preendente que Lacan lance mão, nesse ponto, de informações psica-
nalíticas, se recordarmos que a fórmula básica para a caracterização

47 Numa passagem posterior, Lacan se expressa de modo ainda mais semelhante ao


texto "La familie": "Quanto à gênese histórica da psicose, nossa análise nos reve-
lou seu núcleo no conflito moral de Aimée com sua irmã. Este fato não alcança
todo o seu valor à luz da teoria que determina a fixação afetiva de tais sujeitos no
complexo fraterno?" (PP, p. 261; grifos do autor).
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 95

positiva da paranóia de auto-punição reza que a anomalia de estrutura


da qual adoece a personalidade de Aimée é o resultado de uma fixação
de desenvolvimento, sendo fixação um conceito de inegável autoria
freudiana. Assinale-se, contudo, mais uma vez, que a assimilação deste
conceito e de outros a ele relacionados se dá com as modificações ne-
cessárias à sua integração na arquitetura lacaniana. Como retornare-
mos, mais adiante, sobre o estilo da relação entre Lacan e Freud na
Tese, basta deixar estabelecido, por enquanto, que o conjunto parti-
cular de noções que é agora introduzido no encadeamento das idéias
lacanianas - basicamente, a noção de supereu e aquelas a ela vincula-
das, como identificação, narcisismo, ideal do eu - tem a função de
retirar os mecanismos de auto-punição de uma referência à "consciên-
cia moral" ou ao "imperativo ético" em sentido tradicional, o que re-
dundaria numa versão excessivamente intelectualista da psicose. Ao
contrário, o que Lacan pretende ter feito é precisar a significação mór-
bida do fenômeno "por toda uma série de correlações clínicas que a teo-
ria prevê" 48 , teoria aqui querendo dizer a sua própria, alimentada sele-
tivamente pela psicanálise. O último passo da análise do caso Aimée
vai ser partir dessas "correlações clínicas" em direção a um certo nú-
mero de considerações de método que resultam de seu estudo. Mais
precisamente, trata-se agora de descrever as linhas gerais do tipo clíni-
co da paranóia de auto-punição, saindo um pouco da consideração
exclusiva desse caso concreto e individual, e extrair dessa descrição
conseqüências metodológicas que possam, eventualmente, ter um al-
cance mais amplo para a prática e a teoria psiquiátricas. As elabora-
ções com pretensões efetivamente epistemológicas ficam reservadas
para o último capítulo, onde Lacan vai enfim arriscar-se no terreno
movediço da psicologia.
Antes de ·tudo, é negado o objetivo de acrescentar uma nova
entidade à já saturada nosografia psiquiátrica. De fato, a proposição
de uma entidade clínica, no sentido forte da palavra, significaria, para

48 PP, p. 265; grifos do autor.


96 RICHARD THEISEN SIMANKE

Lacan, retornar a uma ontologia da doença e àquele hiperobjetivismo


imputado à orientação reducionista, que engendra seus objetos e pas-
sa, então, a se comportar perante os mesmos como se consistissem em
realidades autônomas. Com a paranóia de auto-punição, nosso autor
quer introduzir uma rubrica de valor apenas convencional, uma de-
nominação que agrupe um certo conjunto de fenômenos aptos a ilus-
trar sua tese. Relembrando que a psiquiatria, enquanto "medicina do
psíquico", tem, forçosamente, por objeto, as reações totais do ser hu-
mano - em contraste com a neurologia, que visa aos distúrbios par-
ciais resultantes das alterações nervosas, conforme já vimos Henri Ey
afirmar acima, - Lacan sente-se autorizado a trazer para o primeiro
plano as reações de personalidade, deixando, desde agora, uma mar-
gem para a generalização dessas observações ao conjunto desse ramo
da ciência médica. Percebe-se, de imediato, onde pretende chegar: uma
investigação clínica, conduzida com o necessário rigor e atenção às par-
ticularidades dos fenômenos em foco, abre caminho, não apenas para
uma visada não-reducionista dentro da psiquiatria, mas também para
uma reformulação da psicologia - capaz, inclusive, de escapar ao veto
comteano, aludido expressamente aqui49 -, pois esta deixaria de ser
uma extrapolação desnecessária que, do lado da biologia, nada acres-
centasse ao conhecimento dos organismos e, no extremo oposto, per-
vertesse a explicação sociológica com a redução do fato social às con-
tingências das intenções dos indivíduos. Ao contrário, no momento
em que a reação psicológica encontra o "plano que lhe é próprio", ela
deixa de ser um complexo decomponível em mecanismos físico-quí-
micos e vitais, para ser um ''simples por sua direção e por sua signifi-
cação"50, do mesmo modo que a reação vira:l. É interessante assinalar
que o próprio Comte condena a redução do biológico ao químico,
numa mesma passagem em que recusa a redução da sociologia à psi-

49 PP, p. 266.
50 PP, p. 266; grifos do autor.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 97

cologia51 . Lacan encontra aí uma brecha para propor que, no homem,


a reação vital, ela mesma, é um fato complexo, embora seja um todo
indivisível no seu plano próprio de objetivação, porque é atravessada
pelas determinações sociais. Fazer desse fato complexo o objeto de uma
psicologia é justamente reconhecer sua especificidade e, de modo al-
gum, perverter a explicação sociológica, já que a ordem social é a ins-
tância autônoma (a variável independente, se quiser) à qual se fará re-
curso para encontrar o determinismo específico dos fenômenos de
personalidade. Em outras palavras, se Lacan se filia a diretrizes com-
teanas, não é tanto para resguardar a positividade da sociologia, mas
para fazer desta positividade a garantia da possibilidade de uma psico-
logia científica.
Para chegar a esta restauração dos direitos científicos da psico-
logia, Lacan escalona uma análise em três níveis: um clínico, que é a
descrição pragmática de um quadro psiquiátrico, a paranóia de auto-
punição; outro, metodológico, sobre sua abordagem clínica e teórica;
e, por fim, a reflexão epistemológica que ?rremata a Tese. A descrição
clínica simplesmente enumera aqueles tráços inventariados ao longo
do desdobramento do caso Aimée (início brutal e remissão súbita do
delírio; desqualificação dos fenômenos elementares e ênfase na siste-
matização das formações delirantes; idéias de grandeza, ciúme e per-
seguição; erotomania; papel da identificação com o perseguidor), con-
cluindo com indicações diagnósticas, prognósticas, profiláticas e
terapêuticas. O curioso é que a maior parte destes traços é descrito de
um modo que sugere a sua pertinência, não só à paranóia, mas às psi-

5 I Trata-se de uma i:iassagem do Systeme de politique positive, citada por Bertrand


Ogilvie (Lacan: la formation du concept de sujet, p. 59-60): "A decomposição da
humanidade em indivíduos propriamente ditos não constitui senão uma análise
anárquica, tanto irracional como imoral, que tende a dissolver a existência social
no lugar de explicá-la, já que não se torna aplicável senão quando a associação
cessa. Ela é tão viciosa em sociologia quanto o seria, em biologia, a decomposição
química do indivíduo, ele mesmo, em moléculas irredutíveis, cuja separação não
ocorre jamais durante a vida".
98 RICHARD THEISEN S!MANKE

coses em geral, principalmente no que toca às condições etiológicas e


patogênicas. Vejamos, a título de exemplo, um parágrafo de tom mais
conclusivo: "Na etiologia imediata da psicose, encontramos freqüente-
mente um processo orgânico falho (intoxicação, distúrbio endócrino,
puerperalidade, menopausa), quase constantemente uma transforma-
ção da situação vital (perda de um lugar, de um ganha-pão, aposenta-
doria, mudança de meio, mas sobretudo casamento tardio, divórcio e,
efetivamente, perda de um dos pais), muito freqüentemente um acon-
tecimento com valor de trauma afetivo. Revela-se, o mais das vezes,
uma relação manifesta entre o acontecimento crítico ou traumático e
um conflito vital que persiste há vários anos. Esse conflito, de forte
ressonância ética, está muito freqüentemente ligado às relações parentais
ou fraternas do sujei to"5 2•
Quando passa para o nível dos "métodos e hipóteses de pesqui-
sa sugeridos por nosso escudo"53, Lacan, igualmente, restringe-se, na
prática, a uma exposição enumerativa dos tópicos pertinentes, que só
o capítulo final tentará sintetizar numa doutrina. Esta estratégia de
exposição prende-se à intenção de fazer passar o caráter objetivo de
sua análise. O autor reafirma seu propósito de levar a cabo tão somente
um estudo clínico pormenorizado, que "se·mantivesse completamen-
te isento de qualquer sistema preconcebido" 54 , embora seja evidente
que a doutrina se constitui passp a passo com a análise do caso, e até a
precede, pelo menos em parte. Isso, aliás, será assumido cabalmente
no capítulo final.
Antes de mais nada, é destacada a relevância da história ~fetiva
do paciente. Já assinalamos como este aspecto da investigação difere
da anamnese psiquiátrica típica: não se trata simplesmente de garim-
par índices semiológicos que apóiem o diagnóstico, mas de buscar fa-
tores dinâmicos que tenham um efetivo peso causal. É flagrante, con-·
tudo, o quanto esta anamnese renovada está distante,. ainda,, das

52 PP, p. 270-1; grifos do autor.


53 PP, p. 280.
54 PP, p. 280.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 99

construções psicanalíticas. Quando se refere, mais uma vez, ao papel


preponderante desempenhado pela irmã mais velha de Aimée, por
exemplo, Lacan menciona, en passant, como esta foi, durante algum
tempo, o substituto da mãe, mas não dá praticamente nenhum peso a
esta substituição: o complexo de Édipo aparece numa posição perfei-
tamente coadjuvante, toda a ênfase estando colocada no conflito real
com a irmã, que presidiu à eclosão do delírio. Igualmente, quando é
levantado o problema da relação da psicose com a situação familiar
infantil dos doentes e suas anomalias, deixa-se entrever o quanto a Tese
inaugura um viés que vai ser, por muito tempo ainda, mais antropoló-
gico do que psicanalítico. O mesmo acontece com as referências à "fre-
qüência de uma anomalia similar à do sujeito no progenitor do mes-
mo sexo" ou dos "delírios a dois': que reúnem mãe e filha, pai e filho" 55 ,
com as quais se atribui um sentido antropologizado mesmo a concei-
tos como o de identificação: não é de constelações intrapsíquicas que
Lacan está falando, mas de relações que se dão no interior da institui-
ção familiar. O precipitado psíquico destas relações (o eu ideal, o
supereu), por mais importantes que sejam ·para a elucidação final dos
sintomas, são secundários com relação à determinação efetiva do qua-
dro. O que se renova aqui é a tradicional bipartição psiquiátrica entre
a etiologia e a patogênese. Esta concepção se prolonga, como já vi-
mos, na sua abordagem dos complexos familiares, em 1938, numa fase
bem mais psicanalítica do autor. Tudo se passa como se Lacan visse na
antropologia- numa cerca versão da antropologia, mais precisamente
- um solo comum em que psiquiatria e psicanálise pudessem encon- .
trar sua fundamentação. Trata-se, em suma, de conceder um lugar pri- ·
vilegiado na explicação para a influência do meio - o que sempre foi
complicado em Freud, devido à preponderância atribuída às fantasias
inconscientes-, particularmente, esse meio dotado de "um valor vital
eletivo como é o meio parental"56, dentro do qual se forma um cerco

55 PP, p. 284; grifos do autor.


56 PP, p. 285.
100 RICHARD THEISEN SIMANKE

repertório de situações reacionais típicas, que não são nada mais do


que os futuros complexos familiares. Esta relação particular com a psi-
canálise fica clara no modo como é enunciado, na seqüência, o que
nosso autor efetivamente espera da contribuição freudiana: "Um mé-
todo como este irá satisfazer, além disso, nossas preferências médicas.
Num domínio onde se trata, antes de mais nada, de curar sintomas,
ele nos abre, com efeito, uma esperança terapêutica tanto maior quan-
to maior aparecer no psiquismo o domínio do reflexo condicionado"57 .
A outra ordem de fatos que faz duplo com a história afetiva é,
muito tradicionalmente, definida como a das funções de representação
próprias à estrutura clínica em pauta, sem nada que denuncie qual-
quer aproximação com a concepção necessariamente dinâmica da re-
presentação que se encontra em Freud. Quando Lacan faz equivaler
essas funções de representação às formas conceituais do pensamento
psicótico, está, evidentemente, preparando o terreno para a caracteri-
zação das construções paranóicas como fenômenos de conhecimento.
Ao mesmo tempo, é introduzida a idéia de que, se essas funções de
representação do pensamento delirante não devem ser concebidas
como fenômenos de déficit - o que, afinal de contas, é o programa da
Tese -, então é preciso procurar sua determinação, não pelo lado da
neurologia, que só pode descrevê-las parcial e negativament~, mas sim
pelo lado da sociologia. Aí, entram em cena, novamente, as idéias de
Lévy-Brühl sobre o pensamento primitivo (ou pensamento pré-lógi-

57 PP, p. 286; grifos nossos. Além de afirmar explicitamente um desígnio médico


no aproveitamento da psicanálise, esta passagem reitera a preferência pelo méto-
do, em detrimento da doutrina, cuja origem, já vimos, data de Politzer, e que
teve uma longa progênie. Num ttecho anterior, Lacan já incluíra a psicanálise na
consideração das esperanças terapêuticas para a psicose, onde se reproduz a mes-
ma preferência: "A técnica psicanalítica conveniente para estes casos ainda não
está, segundo o testemunho dos mestres, madura. Aí está o problema mais atual
da psicanálise, e é preciso esperar que ela encontre sua solução. Pois uma estagna-
ção dos resultados técnicos no seu alcance atual acarretaria logo o depreciamento
da doutrina".
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO }Ql

co), cujas características parecem bem descrever os modos psic6ticos


de cognição, além de inseri-los numa escala evoludva, na qual se pode
localizar a fixação de desenvolvimento determinante. Uvy-Brühl pa-
rece ser, assim, a referência antropológica central da Tese, embora, de
um modo mais sutil e indireto, as idéias de Marcel Mauss já aí come-
çam a se fazer presentes58 . É verdade que, mal acabada a Tese, Lacan
pressente as limitações dessa antropologia e enuncia a necessidade de
uma outra, mais adequada a seus propósitos.
A descrição das características deste pensamento pré-lógico pros-
segue num contexto em que Lacan, sempre com o objetivo de afastar
as concepções deficitárias da psicose, se preocupa em enaltecer as fa-
culdades criadoras dos "paranóicos de gênio", cujo principal exemplo
é Rousseau, que, aliás, após cruzamento de Lacan com Kojeve, vai
comparecer nos textos com certa freqüência, como exemplar da figura
hegeliana da "bela alma". Assim, a estrutura conceituai particular do
delír~o revela uma deficiência do princípio de contradição, o desco-
nhecimento do princípio de identidade, ,_enfim, a ausência da lógica
do pensamento normal formalizada nos princípios aristotélicos. Des-
sa análise decorrem os "quatro princípios"59 que definem, alternativa-
mente, a lógica do delírio, dos quais Lacan não deixa de afirmar que
explicam também as transformações da percepção, enterrando de vez
a distinção entre os fenômenos elementares e a interpretação secundá-
ria, subsumindo ambos aos modos da cognição psicótica. A aceitação
das formas paranóicas de conhecimento permitiria, então, a compre-

5B Ver, por exemplo, Hélene Védrine, Le1 grandes conceptions de l'imagi.naire de Platon
à Sartre et Lacan, p. 132. Retornaremos aos modelos antropológicos aproveitados
por Lacan no capítulo V, onde, então, a convergência com uma série de diretrizes
maussianas poderá ser especificada.
59 A saber: "1. Clareza significativa das concepções do delírio; 2. Imprecisão lógi.ca e
espaço-temporal de seu desenvolvimento; 3. ~lorde realidade da expressão que '.
eles dão de um complexo ou de um conflito desconhecidos pelo sujeito; 4. Orga- ·
nização destas concepções por um princípio pré-lógico de identificação iterativa
(PP, p. 297-8; grifos do autor).
102 RICHARD THEISEN S!MANKE

ensão objetiva, tanto da massa anônima dos asilos, quanto dos lumi-
nares da loucura esclarecida. O estudo dessas formas será a tarefa de-
cisiva da ''ciência, ainda nascente, da personalidade" 6º, a cuja funda-
ção provisória é dedicado o último capítulo da Tese.

II.4. UM ANTEPROJETO DE PSICOLOGIA CIENTÍFICA

Numa passagem com que abre a seção mais assertiva da interpre-


tação do caso Aimée, Lacan enuncia uma descrição de sua metodologia
que contém, de modo sintético, praticamente todos os elementos de
sua doutrina em formação. Reproduzimo-la aqui para servir de ponto
de partida para o comentário do projeto epistemológico lacaniano, que
se pode entender como a elaboração por extenso dos itens desta des-
crição: "Observamos a conduta de um organismo vivo: e este organis-
mo é o de um ser humano. Enquanto organismo, apresenta reações
vitais totais, que, sejam quais forem seus mecanismos íntimos, têm em
comum um caráter orientado para a harmonia do conjunto; enquanto
ser humano, uma proporção considerável dessas reações ganha seu sen-
tido em função do meio social, que desempenha no desenvolvimento
do animal-homem um papel primordial. Essas funções vitais sociais,
que caracterizam, aos olhos da comunidade, diretas relações de com-
preensão, e que, na representação do sujeito, estão polarizadas entre o
ideal subjetivo do eu e o juízo social de outrem, são aquelas mesmas
que definimos como funções da personalidade" 61 •
Aliás, já que se falou numa "doutrina em formação", é bom as-
sinalar o quanto o tom do capítulo final da Tese difere dos demais.
Até aqui, Lacan introduziu um sem-número de medidas de cautela,

6o PP, p. 291; grifos do autor.


6! PP, p. 247; grifos do autor.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 103

enfatizando sempre o caráter tentativo e exploratório da investigação,


a provisoriedade das conclusões, o teor meramente convencional ou
descritivo das novas denominações sugeridas. Agora, entretanto, a ên-
fase passa a ser colocada sobre um "ponto de vista" que deve orientar
rodos estes procedimentos, e cujo caráter doutrinário é afirmado com
todas as letras: "É por isso que afirmamos abertamente aqui: nossa tese
é, antes de tudo, uma tese de doutrina" 62 • Isso não quer dizer, porém,
que as hesitações anteriores tenham sido meros subterfúgios retóricos;
elas o foram também, é verdade, mas apenas até certo ponto. O caso é
que toda a investigação desenvolvida até então partiu de certos a priori
teóricos, cujo caráter doutrinário é assumido agora, e que se trata, do-
ravante, de tornar explícitos. Todavia, a hesitação se justifica pelo es-
tado inacabado desta doutrina, que se testa e se elabora no decorrer da
própria investigação (entenda-se: não a formulação das teses, mas a
verificação de sua eficácia concreta). Assim, a meditação sobre os fa-
tos foi guiada por estes princípios metodológicos, que se articulam, de
modo ainda provisório, num conjunto não de todo coerente, e isto
aconselha o grau adotado de cautela quanto à interpn:;tação dos fatos
e o esforço para "restringi-los a um plano tão concreto quanto permite
a objetivação clínica"63. Nesta última parte da Tese, então, o objetivo
será retomar estes fatos e tentar dar uma formulação mais sistemática
às hipóteses que deles emanam, num procedimento que não é, contu-
do, ingenuamente empirista, uma vez que estes fatos foram conscien-
temente selecionados, segundo as intuições primeiras da doutrina64 •

62 PP, p. 307; grifos do autor.


63 PP, p. 307; grifos nossos.
64 Lacan se afasta explicitamente deste tipo de empirismo, que já recu~ara antes em
nome da conservação das prerrogativas do sujeito: "É o postulado que cria a ciên-
cia, e a doutrina, o fato (....) É nesse plano que pretendemos defender nossa tese"
(PP, p. 308, nota). Este convencionalismo é, ele mesmo, uma medida cautelar
contra o hiperobjetivismo julgado malsão da visada organicista e vai conduzir às
investigações posteriores sobre os modos de produção dos objetos, quer da libi-
do, quer da ciência.
104 RICHARD THEISEN SIMANKE

É, pois, uma empresa de síntese, não de descoberta, e suª-"arquitetura,


bem como o viés assumidamente epistêmico, revelam como, para La-
can, uma epistemologia do campo psiquiátrico é uma sistematização
- ou, por que não dizer, uma demonstração - de teses clínicas singu-
lares, num sentido não de todo avesso ao que a metapsicologia tem
em Freud. De fato, essa epistemologia tateante em que culmina a Tese
é o germe da futura metapsicologia lacaniana, que dela herda bem mais
do que o mero espírito eclético.
Quais são, então, os elementos dessa doutrina? Em primeiro lu-
gar, o item inicial da versão ainda metodológica do projeto citada aci-
ma - o que prescreve a "observação da conduta de um organismo vivo"
- não deve, evidentemente, dar a impressão de qualquer compromis-
so com o organicismo. A primeira providência de Lacan, aqui, é reite-
rar suas reservas anteriores quanto a essa doutrina, quer ela assuma a
forma mais sutil da "constituição paranóica'', quer no sentido forte de
uma efetiva organogênese do mental. Mas isso não impede que o pon-
to de partida deva ser a observação do comportamento dos organis-
mos. Se essa última expressão lembra a obra inaugural de Skinner, não
é totalmente por acaso, mesmo que ela só tenha sido publicada em
1938: o behaviorismo é mencionado como modelo de um materialis-
mo não-mecanicista a ser seguido65, embora Lacan só pudesse conhe-
cê-lo em sua versão watsoniana. Este quesito se destina, além disso, a
interceptar a necessidade de compreender estas condutas em sua di-
mensão intencional com uma característica concreta, que evite a sus-
peita de um certo abstracionismo, que poderia ser lançada sobre uma ·
abordagem fenomenológica típica. O resultado é uma definição dife-
rente para o termo "compreensão" quando aplicado à psiquiatria: dar
seu sentido humano às condutas observadas, valendo-se, no entanto,
de critérios objetivos para reconhecer, nestas condutas, as relações sig-
nificativas que explicam o quadro. Com isso, é devolvida ao ''soi-disant
organicista'' a acusação de crer nos fantasmas da psicologia, pois é este

65 PP, p. 309, nota. O outro modelo mencionado é o materialismo histórico.


A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 105

que, professando a má metafísica, substancializa os fenômenos obser-


vados, portando-se como se constituíssem objetos em si. Com estas
observações, Lacan pretende lançar as sementes de uma psicologia que
possa estar à altura das necessidades da psiquiatria.
Em que consistem, porém, estes "critérios puramente objetivos",
aos quais se deve recorrer para dar garantias de objetividade às rela-
ções de compreensão? São, antes de tudo, esses signos "muito exterio-
rizados, muito típicos, muito globais", que podemos distinguir, prin-
cipalmente, no comportamento animal. Mais tarde, ap6s desistir de
seu projeto de reforma da psicologia e apostar todas as esperanças de
uma apreensão positiva da subjetividade na psicanálise stricto sensu,
Lacan vai continuar afirmando que a etologia talvez seja a única psi-
cologia aceitável como ciência, embora deixe escapar justamente a face
subjetiva dos fatos psíquicos. Mas esse argumento, que vai então ser-
vir para desqualificar a psicologia, tem aqui a função exatamente opos-
ta de afirmar a possibilidade de uma ciência objetiva da personalida-
de. A título de exemplo, é proposta o que. seria uma definição objetiva
de desejo: ciclo de comportamento que parte de oscilações orgânicas
gerais, passa por uma agitação motora mais ou menos dirigida, até que
uma experiência vital ativa ou passiva restitui o equilíbrio afetivo e o
repouso motor, quando então se diz que o desejo foi satisfeito. E não
por acaso: a determinação última da psicose de Aimée já tinha sido
localizada no seu desejo de auto-punição que, na sua caracterização
como um "ciclo de comportamento" 66, podia ser pensado como uma

66 Uma descrição do desejo como ciclo de comportamento é apresentada por


Bertrand Russel e'm A análise da mente, obra que Lacan já citou, elogiosamente,
na Tese, mas não aqui. Parece evidente, no entanto, que esta passagem foi a fonte
de inspiração lacaniana: sua definição emprega praticamente os mesmos· termos,
com a diferenc;:a de reservar um lugar nela para "certas fantasias", que pod_em ou
não acompanhar os aspectos puramente motores do ciclo de comportamento,
introduzindo neste um certo componente representacional, embora ·contingente.
Para conferir, ver Bertrand Russel, A análise da mente, p. 50-1. A "definição obje-
tivà' de Lacan está em PP, p. 311.
106 RICHARD THEISEN S!MANKE

mação vital socializada. Essa noção tão crucial para o corpus lacaniano
faz assim uma inusitada estréia na teoria. Ela alinhava, aliás, no seu
percurso total, uma heterogênea série de referências, bem ao gosto de
nosso autor, que vai do lugar do desejo na teoria espinozista das afec-
ções, passa por essa escala pragmático-behaviorista e pelo papel cons-
tituti,vo que desempenha na dialética da consciência relida por Kojeve,
até aportar, com toda esta bagagem prévia, no Wunsch freudiano, cujo
sentido só pode, depois de tudo isso, se alterar significativamente.
Mas o que impede realmente que essa aproximação com o com-
portamento animal não desemboque numa nova espécie de reducio-
nismo (menos fisiológico e mais etológico, talvez) é o privilégio con-
cedido ao aspecto social. Em contrapartida, para que a referência
central à ordem social não reconduza a uma abordagem excessivamente
intelectualista e "compreensiva", no sentido fenomenológico, é preci-
so que ela se ampare em uma particular teoria do meio, dentro da qual,
justamente, a definição proposta para o desejo adquire seu pleno sen-
tido, já que se trata de uma teoria que deve fazer convergir o biológico
e o social, pelo menos no caso humano. É essa teoria, então, que arre-
mata a doutrina lacaniana inicial e dá suporte às suas pretensões de
originalidade, a qual consiste, no fundo, em reapresentar, sob um novo
arranjo, elementos presentes em diversas tendências psiquiátricas, que
se alinham naquele espectro que vai de um máximo a um mínimo de
organicidade positiva, de um mínimo a um máximo de compreensi-
bilidade abstrata. O que Lacan espera é que, ao interceptar urna com
a outra estas duas séries, em algum ponto médio, a compreensibilidade
possa ser concreta, e a organicidade - no sentido das ações de um or-
ganismo frente ao meio, principalmente, mas trazendo consigo uma
parte dos processos internos - possa ser compreensível. Esta ênfase no
meio circundante vai marcar toda a obra de Lacan, num contraste
marcante com Freud, cuja concepção da realidade tendia sistematica-
mente a ser reabsorvida no aparelho psíquico. Inclinação que se ma-
nifesta mesmo depois que este meio se metamorfoseia na "estrutura
da linguagem" que, enquanto tal, permanece sempre externa ao sujei-
to, cuja condição neurótica ou psicótica vai depender, inclusive, do
fato <;lele aí ingressar ou não.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 107

Consideremos, primeiro, os fatores sociais, antes de verificar


qual teoria, mais ou menos explícita, do meio humano justifica sua pre-
ponderância numa análise que se pretende perfeitamente objetiva.
Antes de tudo, a objetividade, no sentido que tem para Lacan, pren-
de-se à possibilidade de levar a cabo uma abordagem total da psicose.
É exata e deliberadamente uma concepção oposta à objetividade da
psiquiatria organicista, onde a análise seria tanto mais objetiva quanto
mais lograsse êxito em pulverizar o fenômeno em seus componentes
elementares e irredutíveis, considerados portadores das determinações
últimas. Assim, a valorização dos fatores sociais e dos fenômenos de
personalidade, bem como de seu correlato metodológico - a compre-
ensão -, decorre da própria exigência de uma apreensão total do fato
psicótico em sua complexidade67• O mesmo ocorre com a decisão de
fundar suas conclusões na interpretação exaustiva de um único caso,
o que acaba resultando em fazer um pouco de "psicologia na primeira
pessoa", como diria Politzer: seu método prescreve a consideração de
todas as variáveis em ação num único sujeito, e não a perseguição de
uma única variável (um fenômeno elementar, um fato isolado, por-
tanto) ao longo de toda uma população, como nas estatísticas da
epidemiologia mental que tanto abasteceram de dados a psiquiatria.
O que a psicose de Aimée ratifica desta teoria é, em primeiro
lugar, que ela manifesta uma série de fenômenos inexplicáveis (isto é,
incompreensíveis) enquanto isolados, mas que tomam sentido ao in-
tegrar-se em uma estrutura, a qual, uma vez em movimento - e este
movimento transcorre na história individual, ele é o desenvolvimento
-, compõe um ciclo perfeitamentt assimilável ao que acaba deserdes-'
crito. A noção de ciclo de comportamento harmoniza, desta maneira,
os aspectos estruturais e evolutivos da personalidade, que Lacan coar-

67 Lacan o diz taxativamente. Citamos: "Tal é a chave compreensiva que aplicamos


ao caso da doente Aimée, e que, mais do que qualquer outra concepção teórica,
pareceu-nos responder à realidade do fenômeno da psicose, o qual deve ser en-
tendido como a psicose tomada em sua totalidade e não neste ou naquele acidente
que dela se possa abstrair" (PP, p. 311; grifos do autor).
108 RICHARD THEISEN S!MANKE

denara com dificuldade, importando os conceitos de estrutura e pro-


cesso psíquico da fenomenologia e cruzando-os com os de reação e
interpretação da escola francesa. Mais que isso, é exatamente de um
des~jo que se trata no caso Aimée, e de um desejo cuja satisfação só
pode ser alcançada numa situação social, pois a punição buscada é fi-
nalmente conseguida com a transgressão das leis estabelecidas e o con-
seqüente encarceramento. É claro que este é apenas o aspecto mais
evidente: a origem do desejo é também localizada numa situação so-
cial, só que privada e familiar- a rivalidade com a irmã. Tudo se passa
como se esses psicóticos não pudessem se "contentar" com o sentimen-
to de culpa que atormenta o neurótico, exigindo a satisfação de seu
desejo auto-punitivo esta espécie de objetivação das instâncias supere-
góicas. E é por transcorrerem num ambiente social que os ciclos obje-
tivos de comportamento podem ser abordados em termos de relações
de compreensão, o que garante a essa ordem de fenômenos a "sua es-
sência humanamente compreensfvel" 68 e sua caracterização como fe-
nômenos de personalidade. Já embutidos nesta descrição, estão os três
pontos de vista que Lacan propõe para a abordagem da personalida-
de, e pode-se ver como todos eles participam da definição de ciclo de
comportamento, tal como foi fixada: o ciclo compõe-se de "momen-
tos únicos da história e da intenção individual" 69 , que ele articula numa
estrutura ao expor a interdependência entre as partes. Mas estas estru-
turas são também momentos típicos do desenvolvimento e, portanto,
são próprias do animal humano e não deste ou daquele indivíduo, e
próprias também do comportamento deste organismo particular, des-
ta espécie, num meio também individualizado. Sendo esse meio pró-
prio essencialmente um meio social obtém-se. o terceiro pólo que, jun-
tamente com o individual e o estrutural tenta·m delimitar o fenômeno
de personalidade70.

68 PP, p. 313; grifos do autor.


69 PP, p. 313; grifos do autor.
70 Não se deve confundir estes três pontos de vista com a "teoria das três causas" (a
expressão é de Ogilvie) que define a elaborada etiologia lacaniana para a para-
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO · 109

Ora, o ciclo de comportamento como tal tem uma intenciona-


lidade própria, que está além da intencionalidade da consciência indi-
vidual, e é composta, digamos assim, pelas determinações .biológicas e
históricas do indivíduo, atravessadas ambas pela realidade social ime-
diata, onde tudo se gesta e para onde, ao fim e ao cabo, apontará a
investigação. Assim, se, em Aimée, a punição final é "o próprio objeto
de uma tendência manifestada em todo o ciclo"71 , essas tendências são
tanto mais concretas, quanto mais se prendem a essa intencionalidade
das condutas que transcende a decisão autônoma do sujeito, desde
então determinado ou, para usar a expressão de Ogilvie, dependente.
Mas esta determinação é, reconhecidamente, biológica e histó-
rica também, o que se traduz, aliás, no recurso lacaniano aos dados da
etologia e da psicanálise, respectivamente. Por que, então, colocar todo

nóià. Contudo, a causa eficiente - o "conflito moral com a irmã" - cem um pa-
rentesco maior com o ponto de vista social, nàquilo em que ele define os con-
teúdos possíveis para a psicose e o ambiente das construções reativas; as causas
ocasionais estão mais próximas do ponto de visi:a individual, mas referem-se ape-
nas aos aspectos contingentes do desencadeamento mórbido, aí incluídos proces-
sos orgânicos (o parto e o puerpério de Aimée, por exemplo) e transformações da
situação sócio-vital (o casamento, a mudança do campo para a cidade, etc.); já a
causa especifica está mais próxima do ponto de vista estrutural, já que se refere ao
conjunto das condições predisponentes historicamente constituídas pelo indi-
víduo - mais ou menos aquilo a que Lacan se referia como "a anomalia anterior
da personalidade", que, juncamente com a fixação de desenvolvimento, forma-
vam as causas primeiras da psicose de Aiméé. Cf. Ogilvie, B. Lacan: la formation ·
du concept de sujet, p. 77-85.
71 PP, p. 312; grifos do autor. Bertrand Ogilvie dá destaque a este conceito de ten-
dincía concreta no ·esforço lacaniano de precisar a determinação específica da per-
sonalidade, e o define como "o comportamento de um organismo em presença
de um objeto de seu meio, no qual se concretiza a intenção ou tendência que
caracteriza sua orientação psíquica com relação a este objeto" (Lacan: la formation
du concept de sujet, p. 55). Este conceito ·está intimamente ligado, portanto, ao
papel do meio na determinação da personalidade, que passa, inclusive, pela no-
ção espinozista de paralelismo, no caminho para a conceituação da paranóia como
fenômeno de conhecimento. Retornaremos a isso mais adiante.
110 RICHARD THEISEN S!MANKE

o peso explicativo nos fatores sociais? A resposta, à época da Tese, res-


tringe-se apenas às conveniências epistêmicas; mais tarde, Lacan dará
à cultura e à linguagem uma função crucial, não só na determinação,
mas também na constituição do sujeito, a tese da dependência pas-
sando a ter um alcance, por assim dizer, ontogenético. O fato é que o
ponto de vista individual que se apresenta em primeiro lugar à intui-
ção, é inutilizável cientificamente; ou seja, o interdito aristotélico, le-
vantado no momento clínico da reflexão, é reincorporado tranqüila-
mente no seu momento mais doutrinário. O ponto de vista estrutural
a herança mais tipicamente fenomenológica da doutrina lacaniana,
estaria mais próximo de uma "consideração metafísica das essências"
do que do ''determinismo existencial que define toda ciência''72 . Já o
ponto de vista social "nos oferece, ao contrário, uma dupla tomada
científica: nas estruturas mentais de compreensão que engendra de
fato, ele oferece uma armadura conceitua! comunicável; nas interações
fenomenais que apresenta, ele oferece fotos que têm todas as proprie-
dades do quantificdvel pois são moventes, mensuráveis, extensivos. Ai
estão duas condições essenciais a qualquer ciência, portanto a qual-
quer ciência da personalidade. Eis por que, ao definir a personalidade,
demos toda ênfase ao ponto de vista social (... )"73 • Com isso, pratica-
mente conclui-se o projeto epistêmico lacaniano, no nível de elabora-
ção em que se encontra na Tese. Restam a fazer basicamente dois ti-
pos de desenvolvimentos complementares para detalhar o plano geral
de sua nova ciência: tecer algumas considerações sobre a noção de meio,
que vão especificar o estilo do determinismo proposto para a persona-
lidade, e estabelecer o lugar preciso da informação psicanalítica incor-
porada à doutrina, a qual visa, justamente, ao objeto desta determina-
ção, o sujeito, e suas condições individuais, históricas e - por que não
dizer? - biológicas. Mas, no que diz respeito à pretendida "ciência da
personalidade", sua definição ~stá pronta: "Essa ciência, conforme
nossa definição da personalidade, tem por objeto o estudo genético das

72 PP, p. 313.
73 PP, p. 313; grifos do autor.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 111

funções intencionais, nas quais se integram as relações humanas de or-


dem social"74 . E conclui o autor: "Essa é uma ciência positiva"7 5.
Porém, esta "ciência positiva", para ser fundada, exige a identi-
ficação de seu modo de racionalidade própria, que, como faz notar Ogil-
vie76, é uma palavra de ordem comteana. De fato, na discussão dopa-
pel do meio na determinação dos fenômenos de personalidade, Lacan
vai-se posicionar a meio caminho numa evolução histórica que leva
de uma concepção mecanicista das relações organismo/meio a uma
outra, que privilegia a atividade do ser vivo, o qual molda seu ambiente
através de um comportamento intencional, orientado pelos valores
vitais. Esta posição se identifica, em linhas gerais, com a de Augusto
Comte, como veremos. Isto porque Lacan precisa equilibrar sua pro-
posta na trilha delgada entre a necessidade de um determinismo, que
funde a positividade de sua ciência da personalidade, e a exigência de
um certo grau de atividade eficaz do organismo, que justifique- e dote
também de uma base biológica - o valor explicativo da reintrodução
da noção de sujeito operada na Tese, que,, por sua vez, decorre do pro-
pósito de não ignorar a dimensão significativa do fato mental, no es-
forço de escapar ao modelo reducionista. O jogo de cintura requerido
para levar adiante este projeto avaliza, em certa medida, a pluralidade
das referências que se cruzam neste tópico, levando a uma espécie de
casamento insólito de Espinoza com von Uexküll, atravessado por um
viés positivista que vai de Comte ao behaviorismo, passando pelo
pragmatismo americano. Curiosamente, o que se elabora aqui é uma
concepção que afirma a continuidade entre o meio humano e o meio
animal, em flagrante contradição com aquela que vigorará após o com-
promisso estruturalista, que privilegia a ruptura entre cultura e natu-

74 PP, p. 315; grifos do autor. Para atestar a longevidade do projeto lacaniano que se
esboça aqui, basta lembrar que, no artigo "Some reflections on the ego" (p. 12),
de 1951, Lacan aponta uma "teoria genética do eu" como a tarefa legítima para
"toda psicologia genuína e científica".
75 PP, p. 315; grifos do autor.
76 Lacan: la formation du concept de sujet, p. 45.
112 RICHARD THEISEN SJMANKE

reza. A própria maneira como Lacan vai tentar, mais tarde, "amarrar"
os seus três registros pode ser considerada uma herança desta con-
tradição (além de uma concessão tardia a Espinoza), isto na medida
em que o simbólico se identificar com a cultura, e o mundo da natu-
reza oscilar entre determinações imaginárias e reais (em reflexões pos-
teriores sobre a etologia, Lacan tenta mostrar como o imtinto - isto é,
as tendências herdadas e, por isso, inscritas no real do corpo biológico
- provê uma série de regulações imaginárias para o comportamento
animal) 77 •
Resenhemos, então, rapidamente, alguns passos da evolução do
conceito de meio, para nela situar tanto a posição lacaniana, quanto a
das referências que invoca78 • Essa noção, importada da física newto-
niana para a biologia, guarda aí, durante muito tempo, a significação
mecânica que tinha no seu local de origem (fluido intermediário entre
dois corpos, postulado para dar conta da ação à distância entre enti-
dades físicas distintas). Ê com Buffon- aliás, mentor da abertura dos
Écrits, com o adágio "o estilo é o próprio homem" - que esta concepção
vai cruzar-se com uma outra, que pode ser remontada à Antigüidade
hipocrática: a dos antropogeógrafos, que buscavam explicar a varieda-
de dos tipos humanos {raças, povos, culturas) pelas características físi-
cas do lugar em que habitam. Estes dqis componentes das teorias so-

77 Bento Prado Jr. aponta como a tripartição S/I/R está, curiosamente, a serviço da
superação do dualismo biológico/psíquico e, portanto, de um monismo que
Espinoza inspira a Lacan desde a Tese. Não se trata, no entanto, de um monismo
substancialista, já que esta recusa dá-se no contexto de uma teoria da constitui-
ção dos objetos (ver "Lacan: biologia e narcisismo ou a costura entre o real e o
imaginário", p. 55-6). Por outro lado, o alerta espinozista de que o dualismo le-
vado ao pé da letra conduz a uma proliferação infinita de "substâncias" pode aju-
dar a entender que Lacan tenha recorrido a um complicado modelo topológico -
o famoso "nó borromeu" - para amarrar seus três registros de um modo cm que
cada um faz a conexão entre os outros dois, dispensando instâncias mediadoras
suplementares.
78 Nosso guia, neste percurso, será o artigo de Georges Canguilhem, "Le vivant et
son milieu".
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 113

bre o meio vão desembocar em Comte, resultando numa reflexão so-


bre o peso relativo que se deve dar à ação do meio sobre o organismo e
à ação recíproca do organismo sobre o meio. Numa conGepção estri-
tamente mecanicista, esta questão é vazia, já que a atividade do orga-
nismo é pensada sempre como uma resultante das forças que do meio
incidem sobre ele. Mas uma teoria biológica geral do meio, tal como
Comte se empenha em formular, tem que levar em conta, particular-
mente, o caso humano, onde a eficácia da ação na modificação do
ambiente é mais ou menos evidente. Canguilhem ressalta como Comte
esteve a ponto de chegar a uma concepção dialética das relações entre
organismo e meio, mas recua, em proveito da acepção mecanicista do
conceito: se bem que, em teoria, não se possa pensar numa modifica-
ção do organismo, imposta pelo sistema ambiente, que não resulte, ao
fim e ao cabo, num impacto sobre o meio, provocado justamente pe-
las alterações nos padrões de comportamento, esta ação do organismo
é considerada como desprezível no cômputo geral dos fatores
explicativos. Se a espécie humana constitu,i uma exceção, é porque tor-
nou-se, historicamente, capaz de uma ação coletiva orientada para um
fim comum, mas seu caso não pode, de forma alguma, ser estendido
aos seres vivos em geral. A teoria comteana do meio - pelo menos no
Cours de philosophie positive - vai pender em direção ao ponto de vista
mecânico (análise de variáveis físicas, peso, pressão do ar e da água,
movimento, calor, etc.), sob o qual, evidentemente, a ação do orga-
nismo sobre o meio é negligível na prática. O vitalismo, que Comte
herda de Bichat e que se manifesta, ainda que tortuosamente, no Sys-
teme de politique positive e em outras obras, está, em sua teoria do meio,
segundo Canguilhem, "deliberadamente recalcadà' (embora, diríamos,
presumido como uma espécie de possibilidade teórica).
Portanto, à que Lacan pode encontrar em Comte, no que diz
respeito a uma teoria do meio, é a satisfação da exigência de um deter-
minismo próprio ao seu problema, já que o organismo, cujo compor-
tamento se trata de explicar, "é o de um ser humano", como vimos
acima, e, para este caso, o fundador do positivismo apresenta todas as
ressalvas necessárias, quer na admissão da eficácia modificadora da ação
coletiva, quer na condenação de um reducionismo que pudesse recon-
114 RICHARD THEISEN SIMANKE

duzir a explicação sociológica de volta para o psicológico, equiparável


à redução do vital aos fatores físico-químicos. Mas isso só resolve par-
te do problema, uma vez que Lacan, comprometido com a vertente
individualizante da clínica médica, tem que achar um espaço em seu
método para as motivações estritamente individuais, que se. conver-
tem em condutas intencionais dentro deste meio social no qual vive o
homem e que, por isso, têm que possuir um relevo próprio, irredutível
à "ação coletivà' - um problema semelhante ao que enfrentará para
conservar a referência ao sujeito no interior do modelo estruturalista,
que, a propósito, quanto a isso, não deixa de ser positivista. Além dis-
so, um médico está menos autorizado que ninguém a contentar-se com
uma explicação sociológica que, mais do que a explicação psicológica,
esvazia a significação patológica dos fenômenos em foco. Sua doutri-
na tem que mergulhar suas raízes nos fatos vitais (por mais que queira
eleger o social como determinação adequada), cujo conjunto consti-
tui o terreno sobre o qual pode-se pensar a medicina, seja qual for a
concepção que se faça dela. E, se esta doutrina deve romper com o
mecanicismo, ela tem que apoiar-se numa visão das relações orgânis-
mo/meio que vá além da análise de variáveis físicas, preservando ova-
lor específico da ação do ser vivo, sem, contudo, hipertrofiar o signifi-
cado desta ação a ponto de comprometer o papel do meio como
instância determinante.
Ora, na continuidade, a evolução das concepções sobre o meio,
tal como Canguilhem a reconstitui, revela que a progressão se dá no
sentido de atribuir um papel cada vez mais central - de fato, o papel
de um centro organizador - ao organismo. Passa-se a representar este
último como estruturando seu ambiente imediato, não, evidentemen-
te, no sentido de que o constitui fisicamente, mas sim no de que opera
uma espécie de recorte no meio físico, que forma então um ambiente
específico com o qual o organismo efetivamente se relaciona e ao qual
reage, com exclusão das demais fontes possíveis de estímulo. É quase
como se o próprio esforço para fazer do meio um conceito biológico, a
partir da significação que tinha originalmente na física, exigisse esta
evolução, já que uma teoria puramente mecânica do meio - que, de
resto, corresponde, a uma teoria mecânica do organismo animal, tal
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 115

como se depreende do cartesianismo - praticamente priva a biologia


de seu objeto específico, negando ao ser vivo a possibilidade de uma
ação diferenciada, ao considerá-lo como um mero corpo· entre outros
corpos. Esta evolução não deixa de ter, assim, afinidades nítidas com
o projeto lacaniano, que busca reintroduzir o sujeito como, pelo me-
nos, um dos pólos da explicação psiquiátrica, da qual ele tinha sido
banido por este mesmo mecanicismo. O que se trata de ultrapassar,
portanto, é esta propagação da interpretação mecanicista da composi-
ção dos organismos e de seu funcionamento enquanto partes que agem
em conjunto (ou seja, as variações em torno do animal-máquina} para
a explicação dos movimentos do organismo com relação ao meio, aí
incluídos os demais seres vivos; em outras palavras, a exportação do
modelo mecânico da fisiologia para a etologia animal. Esta trajetória
atravessa, com diversos matizes, o pensamento de Lamarck e Darwin,
desembocando no behaviorismo, que, por mais que Lacan tente
propô-lo como exemplo de um "materialismo não-mecanicista'', é, ao
menos na versão watsoniana (a única qµe Lacan poderia conhecer),
um perfeito herdeiro disso que Canguilhem chama de um "cartesia-
nismo exorbitante"79 • A superação deste tipo de teorias vai-se dar, no
que interessa a Lacan, em correntes psicológicas como a Gestalttheorie
e em algumas concepções biológicas bastante heterodoxas, como as
de Jakob von Uexküll, cuja influência, aliás, sobre a Gestalt (mas não
só sobre ela) é mais ou menos evidente. As referências a Uexküll vão
participar longamente da história do pensamento lacaniano, e a teoria

79 O mecanicismo watsoniano manifesta-se, principalmente, no emprego que faz


da noção de reflexo, assimilada da reflexologia russa, o que vai colocá-lo igual-
mente sob os golpes da crítica merleau-pontyana ao elementarismo psicológico
em Le structure du comportment: É curioso notar que a noção de reflexo perfaz
um trajeto inverso ao das teorias do meio: este último nasce como uma concep-
ção mecanicista e evolui no sentido de valorizar as peculiaridades do fato vital; já
o reflexo origina~se no interior de uma concepção vitalista das propriedades
irredutíveis da matéria viva, antes de ver-se apropriado por uma fisiologia e, de-
pois, por uma psicologia mecanicista, como demonstra Canguilhem em La
formation du concept de réflexe aux XVI' et XVII' siecles.
116 RICHARD THEISEN SIMANKE

da forma comparece nitidamente nas elaborações sobre a fase does-


pelho e, de modo mais geral, na reforma lacaniana da psicologia, ins-
pirada por Politzer, além de configurar um dos usos possíveis da no-
ção de estrutura no campo psicológico.
É inicialmente a etologia humana que complica a via de mão
única que vai do meio ao organismo: capaz de uma ação coletiva, so-
cializada pelos instrumentos da representação (tanto da ação quanto
do fim a ser alcançado), o homem, ser histórico, se torna ele mesmo
um fator geográfico, um construtor de configurações geográficas, que
lhe compõem um meio cada vez mais artificial, ao qual cem que ser
remetida qualquer tentativa de propor um determinismo para as ações
que transcorrem neste meio, doravante especificamente humano. Mas,
para que uma cal teoria do meio possa ser efetivamente biológica, é
preciso mostrar que o caso humano não consiste numa honrosa exce-
ção, e sim que, mesmo do ponto de vista escritamente vital, o indiví-
duo não é cão passivo diante das influências ambientes como sugere a
abordagem mecanicista. Na medida em que entram em jogo os valo-
res vitais - e a introdução da noção de valor é a estratégia maior para
se contestar o reducionismo físico-químico-, o organismo tem que
ser pensado como operando uma seleção ativa entre as possibilidades
de estimulação que o meio oferece, segundo suas necessidades próprias,
e esta seleção edifica um meio próprio, dentro do qual o comporta-
mento do organismo adquire uma coloração particular, correlativa ao
significado de que cada estímulo pode revestir-se para cada espécie
animal. Em suma, os organismos não vivem num mundo físico igual
para todos (embora se possa conceber um mundo que corresponda à
soma total das possibilidades de estimulação), mas num mundo pró-
prio, construído em função do valor de sobrevivência que cada ele-
mento selecionado adquire ao convergir com as necessidades da espé-
cie. Assim, na Gestalt, por exemplo, Koffka vai distinguir entre um
meio de comportamento e a entourage meramente geogrd.fica, que
corresponde ao mundo físico 80• Esta distinção é, por sua vez, herdeira

°Cf., por exemplo, Kurt Koffica, Princípios de psicologia da Gestalt, p. 39-52.


8
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 117

das idéias de von Uexküll, a quem Lacan se refere explicitamente na


Tese e que é talvez quem leva mais longe este novo ponto de vista.
A presença de uma tal referência na, até então, bastante circuns-
pecta tese lacaniana talvez cause surpresa, se não se leva em conta a
importância e a posição movediça que o conceito de meio ocupa no
sistema lacaniano. Reputado como excêntrico, ferozmente anti-dar-
winista, von Uexküll é uma figura ímpar nos meios biológicos de sua
época, o que não impediu que suas idéias tivessem uma longa descen-
dência, que não se restringiu a Lacan. Sua teoria traz para o primeiro
plano a idéia de que cada organismo habita um mundo próprio (Um-
welt), do qual constitui um centro ativo, ou seja, ao qual estrutura a
partir das características de sua organização interna. Este Umwelt se
opõe à Umgebung, que corresponde ao meio geográfico de Koffka. Não
é difícil perceber que esta concepção se situa nos antípodas da tese
mecanicista, já que atribui uma autonomia quase absoluta ao sujeito
biológico na construção de seu Umwelt; o ser vivo torna-se aí, nas pa-
lavras de Canguilhem, não uma máqui~a, em que movimentos cor-
respondem a excitações, mas um maquínista, que executa operações
guiadas por sinais provenientes do meio81 . A partir disso, deixa de ser
surpreendente a desenvoltura com que Uexküll utiliza expressões co-
mo sujeito, significado e compreensão nas suas descrições do compor-
tamento animal, embora acautele-se contra o antropomorfismo atra-
vés da noção de ciclo-de-fonção 82 , que não deixa de ter afinidades com

81 Canguilhem, G., "Le vivanc et son milieu", p. 144.


82 Uexküll apresenta-se sempre muito à vontade com o emprego do vocabulário in-
tencional em biologia: os animais são sujeitos de seus mundos próprios, não s6
no sentido de que suas ações aí não são mecânicas, como também de que são
condição de existência de cada Umwelt particular (uma espécie de kantismo com
sujeito empírico...); por este fato mesmo, a explicação biológica passa necessaria-
mente por uma doutrina do significado. A acusação antropomórfica que lhe pode-
ria ser endereçada é contornada por este conceito de ciclo-de-função, que descreve
as séries conexas de ações e reações entre o sujeito animal e os estímulos do meio
(por exemplo: o sentido químico altamente especializado do carrapato, que de-
tecta a aproximação de animais de sangue quente e desencadeia seu comporta-
118 RICHARD THElSEN SIMANKE

o "ciclo de comportamento" que Lacan extrai da definição pragmatista


de Bertrand Russel.
Que benefícios Lacan pode esperar de uma tal teoria? O pri-
meiro e mais óbvio é que ela lhe permite dar um lastro biológico para
sua pretendida restauração dos direitos do sujeito na explicação médi-
ca das psicoses. Significado, valor, intenção deixam de ser termos atre-
lados unicamente a uma visada fenomenológica o'u, mesmo, apenas
sociológica do homem e de seus transtornos mentais, o que põe em
risco, como já vimos, a própria especialidade psiquiátrica. Tudo se pas-
sa como se Lacan aperfeiçoasse o ponto de vista comteano através de
von Uexküll, estendendo ao ser vivo em geral a atitude ativa frente ao
meio que aquele reservara ao homem e permitindo, em última instân-
cia, que o animal humano tomado enquanto organismo (afinal este é
o objeto da medicina), e não apenas enquanto ser histórico e social,
tenha suas ações tornadas eficazes na organização de um mundo pró-
prio, de modo que as variáveis subjetivas não sejam somente a nota
discordante na apreensão dos fenômenos patológicos. Mas ao mesmo
tempo, no sentido inverso, isso permite que a existência social do ho-
mem seja colocada em continuidade com sua existência biológica, fa-
zendo com que os fatores sociais envolvidos na produção dos quadros
clínicos possam ser trazidos para dentro da esfera de ação da medici-
na, sem degenerar numa mera sociologia da doença mental: o Umwelt
do homem é, por natureza, um meio social83 ; a existência social do

menta reprodutivo e parasítico, e assim por diante). O anti-elementarismo desta


noção fica bem claro quando se nota que, para Uexküll, o reflexo, de forma algu-
ma, é o elemento de composição das reações complexas, mas, ao contrário, é tão
somente o ciclo-de-função reduzido a sua expressão mais simples. Ver, por exem-
plo, Jakob von Uexküll, Dos animais e dos homens (acompanhado do ensaio sobre
A doutrina do significado).
83 Operar esta convergência é, explicitamente, a justificativa da menção que Lacan
faz a Uexküll: "Uma escola de biologia de importincia capital elaborou em seu
pleno valor essa noção de meio próprio a um ser vivo dado; o meio, definido por
esta doutrina, parece de tal modo ligado à organização espedfica do indivíduo
que, de certa forma, faz parte dele. Cf. os trabalhos fundamentais de Jacok von
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 119

ser humano não deixa de ser, ela também, um fato biológico. Assim
retocadas, as concepções de Comce sobre o meio podem constituir um
substrato adequado para o determinismo rastreado por Lacan, com o
que fica igualmente corrigida a doutrina de von Uexküll que, se não
deságua num antropomorfismo voluntarista (o que, no plano psiquiá-
trico dificilmente deixaria de redundar em alguma espécie de cons-
ciencialismo), atribui, não obstante, um excessivo peso à posição cen-
tral do sujeito, fundindo de tal maneira organismo e ambiente que
inviabiliza a discriminação de uma instância causal com relação à or-
dem dos efeitos84 • Ainda no domínio de uma teoria do conhecimen-
to, vale assinalar que as posições de von Uexküll se prestam muito bem
para alimentar as críticas posteriores que Lacan vai endereçar a toda
epistemologia de feitio realista: Uexküll, fiel à sua inspiração kantiana,
é muito explícito em afirmar que isto que chama de Umgebung - o
mundo exterior supostamente "dado" - não passa, na verdade, do
Umwelt do homem, que a ciência, no seu afã de objetividade, hiper-
trofia a ponto de erigi-lo em realidade absoluta, num antropocen-
trismo que fere todo compromisso com a verdade factual. Talvez esta
seja uma das razões da notável persistência das menções ao heterodo-
xo biólogo, que se prolongam até a obra mais tardia de Lacan.
A posição de Lacan na Tese pode ser descrita, então, como a de
um vitalista reservado85, e essas reservas lhe vêm mais dos propósitos

Uexküll, Umwelt und lnnenwelt der Tiere, Berlim, 1909. Vê-se que, em nossa co~-:
cepção, aqui de acordo com Aristóteles, o meio humano, no sentido que lhe dá
Uexküll, seria por excdência o meio social humano" (PP, p. 337, nota). Lacan
encadeia imediatamente a essa passagem uma crítica às antropologias individua-
listas, que subentende a necessidade de uma nova; ou seja, uma antropologia
menos como teoria do homem do que como teoria do meio humano.
84 Cf. a crítica de Goldstein às posições de von Uexküll, referidas igualmente por
Canguilhem, "Le vivant et son milieu", p. 144.
85 "Vitalismo", aqui, está sendo empregado no sentido bem amplo que lhe dá
Canguilhem, num artigo em que empreende uma verdadeira reabilitação filosÓ·
fica desta corrente de pensamento: o de qualquer teoria biológica que se oponha
~s "ambições anexionistas das ciências da matérià' {ver "Aspects du vicalisme"),
120 RICHARD THEISEN SIMANKE

deterministas que decorrem de seu compromisso positivista do que das


intenções manifestas de desbancar a organogênese de seu papel de viga-
mestra das explicações psiquiátricas (já que suas opções teóricas lhe
permitem, justamente, pôr em-continuidade o vital, o mental e o so-
cial). O caráter insatisfatório, para seu projeto, tanto da tese mecani-
cista quanto das posições abertamente vitalistas sobre a relação indiví-
duo/ meio dão a pista para se compreender por que toda esta reflexão
está atravessada pela concepção espinozista do paralelismo, que é
invocada textualmente nessas passagens, justificando a presença ines-
perada de uma epígrafe extraída da Ética na abertura de uma tese aca-
dêmica em psiquiatria.
Com efeito, toda a discussão efetuada destina-se a contextuali-
zar a definição lacaniana da personalidade, para a qual tinha sido pro-
posta uma "gênese social", com relação aos processos orgânicos, por
um lado, e ao papel essencial atribuído ao meio, por outro. Diz Lacan:
"(...) a personalidade não é "paralela" aos processos da neuraxe, nem
mesmo apenas ao conjunto dos processos somáticos do indivíduo: ela
o é à totalidade constituída pelo individuo e por seu meio ambiente pró-
prio"86. O que isto quer dizer? Em suma, que a parte não é paralela à
outra parte - com o que se contorna não só o problema da relação
como também o da hierarquia entre elas -, mas sim ao todo, o que
equivale a dizer que, por mais que estas partes difiram entre si (como
a personalidade e o organismo, digamos, para colocar nos termos da
Tese o cansativo problema mente/corpo), elas diferem apenas enquan-
to modos de apresentação de uma mesma realidade essencial. Essa ver-
são psiquiatrizada do monismo de Espinoza, num plano bem geral,
tem atrativos evidentes para um médico suficientemente ousado para
reivindicá-lo; basta lembrar a gestação da psiquiatria sob os auspícios
do cartesianismo e todos os percalços causados pelos postulados dua-

portanto, um nome cabível a qualquer projeto anti-reducionista dentro do cam-


po médico.
86 PP, p. 337; grifos do autor.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 121

listas que ela herda de suas origens. Mas é claro que esta "substância
únicà' - que· comparece, em Espinoza, para dissolver as antinomias
da oposição entre Deus e Natureza - tem que ser reelaborada no nível
mais prosaico da clínica ou, no máximo, da epistemologia que se esbo-
ça nas reflexões de Lacan. É assim que ela passa a designar a existência
social do indivíduo, já convenientemente filiada à própria biologia da
espécie humana: Lacan, convocando desde Uexküll até Aristóteles,
quis deixar hem estabelecido o ponto de vista de que o homem é, por
natureza, um animal social e que, portanto, este caráter constitui, sob
qualquer ponto de vista, a essência do fenômeno humano. O corpo,
são ou doente, é sempre um corpo socializado, e o que se denomina
"psíquico" ou "mental" se converte num fator de adaptação do vital
ao social. Na medida em que processos orgânicos e psíquicos não po-
dem mais ser desvinculados dessa existência social, na medida em que
participam dela necessariamente, sua definição como "modos" desta
recém-fundada "essêncià' torna-se admissível, ao menos no sentido
metafórico que, forçosamente, deve revesçir este transporte abrupto de
questões onto-teológicas para os problemas sublunares da doutrina e
da prática psiquiátrica. No fundo, é a mesma problemática das dis-
cussões em torno do conceito de meio que retorna travestida no novo
vocabulário. Pois o quadro que tentamos delinear da evolução destas
concepções mostra justamente que esta consistiu em transpor para a
relação indivíduo/meio uma reformulação em curso sobre a relação
parte/todo na construção do organismo 87 • Ou seja, por um lado, in-
troduziu-se um ponto de vista que podemos chamar de estrutural na
descrição das funções e da arquitetura orgânica, onde o todo determi-·
na o significado vital das partes (como na obra exemplar de Kurt
Goldstein, A estrutura do organismo, cuja influência estende-se a auto-
res como Cassiret e Merleau-Ponty); por outro lado, o organismo pas-

87 Mais uma vez, é Canguilhem que dá a expressão concisa dessa confluência: "Do
ponto de vista biológico, é preciso compreender que, entre o organismo e o am·
biente, há a mesma relação que entre as partes e o todo no interior do próprio
organismo" ("Le vivant et son milieu", p. 144).
122 RICHARD THEISEN SJMANKE

sou a ser considerado parte essencial do meio no qual habita, já que


este último torna-se uma função da atividade deste organismo, e não
mais uma fonte perfeitamente neutra de estímulos füicos, à qual o ser
vivo faz frente como pode-esta a tese que, como vimos, encontra sua
culminação em von Uexküll, para quem o ser vivo e seu meio chegam
a compor uma totalidade orgânica indissociável. Assim se, por muito
tempo, a relação organismo/meio era concebida segundo um para-
lelismo equiparável ao paralelismo mente/corpo - aquele que se dá
entre duas séries essencialmente heterogêneas, cuja conexão é sempre
problemática -, esta relação é agora concebida como um paralelismo
entre a parte e a totalidade da qual participa e que, por definição, a
inclui (o Umwelt, por exemplo), o que alude diretamente ao "verda-
deiro paralelismo» espinozista, tal como Lacan o incorpora. Como,
para nosso autor, nunca foi problema transformar analogia em identi-
dade, nada mais justo que ele aponte a espantosa "congruência dessa
fórmula com o fundamento de nossa tese" 88 •
Essa referência a um paralelismo à moda de Espinoza, que sur-
ge nas páginas finais da Tese, permite compreender a escolha de sua
epígrafe - escolha que não é inócua, já que coloca todo o empreendi-
mento sob seu brasão-, para além das predileções adolescentes que
seu autor manifestou pela Ética. No nível mais geral possível, essa re-
ferência é perfeitamente compatível com um trabalho animado por
uma firme intenção anti-reducionista. O problema, para Lacan, era
conciliar esse anti-reducionismo com a identificação de uma espécie
de causalidade capaz de garantir a cientificidade positiva de sua dou-
trina da personalidade. Nada melhor para isso dCl que um monismo
que afirma a homogeneidade essencial das séries envolvidas, como con-
trapeso a um reducionismo que pressupõe a heterogeneidade das subs-
tâncias, mais o subseqüente privilégio de uma delas, no caso, da maté-
ria. Quando Lacan elege o social como instância final de determinação

88 PP, p. 342. A fórmula a que Lacan se refere aqui não é a expressão geral da dou-
trina do paralelismo, mas aquela contida na citação anteposta à Tese como
epígrafe, à qual retornaremos na continuidade.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 123

está, no fundo, tão somente apregoando, em alto e bom tom, as prer-


rogativas da totalidade sobre as partes, ou da substância sobre seus
modos, o que, feitas as traduções necessárias, está muito dé acordo com
a metafísica espinozista. Elaborado por extenso o seu projeto, a cita-
ção que o encima converte-se na sua expressão condensada. Quase que
se poderia falar, na relação da conclusão da Tese com sua epígrafe, de
um efeito de apres-coup tão ao gosto das especulações lacanianas pos-
teriores em torno da retroação simbólica.
Mas a escolha daquela passagem específica revela uma astúcia
mais sutil, que penetra nas minúcias das elaborações efetuadas por
nosso autor. Ao optar pela proposição LVII da terceira parte da Éti-
ca89 - a parte que trata da origem e da natureza das afecções - Lacan
está se posicionando o mais próximo possível do terreno da psicolo-
gia. Ora, no scholium desta mesma proposição, Espinoza faz diferir as
afecções humanas e animais segundo a medida em que a natureza ou
a essência destes últimos difere da natureza do homem, uma observa-
ção que não pode deixar de interessar alg1:1.ém que, por todas as razões
expostas acima, está disposto a não isolar completamente o homem
do mundo dos fatos vitais, mas, ao contrário, identificar o que o dis-
tingue no interior deste universo de fatos. Mais que isso, é o Desejo
que é apresentado como definindo a essência ou a natureza mesma de

89 Esta proposição reza: "Uma afecção qualquer de cada indivíduo difere 4-a afecção
de outro, na medida em que a essência de um difere da essência de outro". O·
scholium desta mesma proposição acrescenta: "Segue-se daí que as afecçóes dos
seres vivos que são ditos privados de razão(...) diferem das afecções dos homens
na medida em que sua natureza difere da humanà'. Quanto ao desejo, ao qual se
fará menção abaixo, diz a demostratio: "Mas o Desejo é a natureza mesma ou a
essência de cada um; portanto o Desejo de cada um difere do Desejo de um ou-
tro na medida em que a natureza ou essência de um difere da essência de outro"
(cf. a tradução de Charles Appuhn, p. 192-193). Roudinesco assinala como La-
can, visando preservar a distinção entre discrepat e differt, ignorada por Appuhn,
introduz, na tradução que apresenta ao final da Tese, a idéia de discordância,
familiar às teorias intelectualistas da paranóia, como a de Chaslin (ver Jacques La-
can ... , p. 68-9).
124 RICHARD THEJSEN StMANKE

cada indivíduo, uma vez que se trata da afecção mais primordial na


hierarquia espinozista das paixões. Portanto, o homem vai-se distin-
guir dentro do conjunto dos seres vivos na medida em que o seu dese-
jo apresentar características próprias. Se lembrarmos que é um desejo
de auto-punição, só pensável numa situação social, que vai especificar
a psicose de Aimée e, por extensão, todo o quadro clínico que Lacan
propõe com base na interpretação de seu caso exemplar, é possível per-
ceber como a citação da Ética faz-se ilustrativa das idéias-mestras da
tese lacaniana, articulando-se com a definição - apresentada apenas a
título de exemplo, mas, de forma alguma, casual - do desejo como
um ciclo de comportamento, bem como com o conceito de ciclo-de-
função da etologia de Uexküll. Tudo isso levado em conta, a diretriz
de atribuir seu sentido humano às condutas observadas passa a signi-
ficar uma determinação de caracterizar diferencialmente o desejo hu-
mano, isto é, compreender o ciclo de condutas e reações em que ele
consiste sobre o fundo deste meio muito particular que é o Umwelt
do animal humano, cuja natureza é ser um meio eminentemente so-
cial. A especificidade do humano deve deixar de ser procurada no rei-
no exclusivo de uma alma (de uma mente, ou de uma razão, se se quer)
substancializado e cortado do mundo da vida e da matéria (pratica-
mente sinônimos, num cartesianismo que não reserva à natureza se-
não uma apreciação puramente mecânica), passando a residir numa
propriedade das afecções mais primordiais: como o desejo é, doravante,
uma série conexa e cíclica de comportamentos que têm seu palco no
meio próprio a cada espécie, é o meio relativamente artificial que o
a
homem se faz que vai explicar, partir de agora, as idiossincrasias do
chamado fenômeno humano. A personalidade, enquanto precipitado
das reações que visam à adaptação do indivíduo ao seu meio sócio-
vital circundante terá seus "componentes" definidos como fenômenos
de conhecimento, já que o meio de que se trata é constituído basica-
mente pelos signos e emblemas compartilhados, de cuja apreensão
cognitiva depende o modo de inserção do indivíduo neste contexto.
Num mesmo golpe, este agrupamento eclético de referências (cujas
articulações, no entanto, parecem fazer bastante sentido aos olhos de
nosso autor) estabelece o caráter cognitivo dos fatos clínicos da psico-
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO }25

se, a atividade relativa do indivíduo frente ao seu meio próprio e a


necessidade de uma abordagem antropológica desses fatos, exigida
pelas particularidades ambientes. Resta-nos, assim, para ·concluir, ar-
regimentando todos esses desenvolvimentos, explicitar um pouco mais
a definição lacaniana da psicose e da personalidade em geral como fe-
nômenos de conhecimento.
É exatamente no contexto da discussão do paralelismo que essa
tese é explicitada, muito embora ela tenha permanecido subjacente à
boa parte das elaborações sobre a psicose, com destaque para a
reformulação do conceito de interpretação delirante. De fato, o pró-
prio viés compreensivo que Lacan quer introduzir, assim como sua
maior simpatia pelas teorias intelectualistas, quase que já bastam para
caracterizar os sintomas como atos cognitivos. É como se todo o pro-
blema para Lacan, até aqui, tenha sido o de achar um lugar para a
compreensão dentro de um esquema gnoseológico que se quer deter-
min~sta e materialista; a alternativa evitada seria simplesmente abra-
çar, de modo incondicional, a psiquiatria fenomenológica. Dá para
entender, então, que essa tese só possa ser enunciada cabalmente após
a elucidação do papel do meio na causação dos estados psíquicos hu-
manos, mórbidos ou sadios. Em primeiro lugar, porque, para poder
ser considerada um ato cognitivo em todos os sentidos (isto é, equi-
parável àqueles ditos normais) a interpretação delirante tem que dei-
xar de ser pensada como uma reação compensatória de uma desorga-
nização da percepção, que é, em última instância, orgânica, para passar
a ter como objeto a própria realidade exterior; em suma, trata-se de
descartar a idéia de um dz'stúrbio intelectual, em proveito de uma ati~
vidade intelectual própria da psicose. Ora, ficou estabelecido que a re-
alidade humana é, antes de tudo, uma realidade social e que, para qual-
quer ser vivo, o ·meio que ele pode vir a "conhecer" é estruturado a
partir da própria atividade do organismo. Com isso, a atividade cog-
nitiva e representativa em geral adquire, através de um argumento bi-
ológico, um caráter construtivo, deixando de ser apenas um espelho
mais ou menos infiel de uma realidade dada; daí Lacan ter afirmado,
a certa altura, que a própria percepção é uma interpretação. O que a
interpretação delirante faz, afinal de. contas, é construir para o psicóti-
126 RICHARD THEISEN S1MANKE

co um Umwelt que não coincide com a representação social da reali-


dade vigente no grupo a que pertence. Esta discorrMncia - mais o fato
de que ela não é subjetivamente assimilável como tal, sendo apreendi-
da, por exemplo, na forma persecutória - é o único critério que per-
mite atribuir um caráter patológico a quaisquer destes fenômenos de
personalidade. Não por acaso, Lacan retoma, neste contexto, a noção
psiquiátrica das loucuras discordantes, deixando insinuar-se aí este novo
sentido. Após tudo isso, a interpretação promovida pelo delírio se con-
verte numa relação cognitiva direta com o meio circundante, além do
que - e esta é a segunda razão pela qual esta discussão teve que passar
pelas nuances da teoria do meio adotada por Lacan - esse meio ao
qual o sujeito reage é, ele mesmo, entendido como a construção in-
terpretativa efetuada por uma coletividade ao longo de sua história,
cujo desacordo com os determinantes da história individual do doen-
te instaura um conflito (Lacan diz em algum lugar da Tese: um confli-
to de valores, um conflito ético), que só se equaciona pela reconstru-
ção delirante.
Mas por que uma tal concepção da psicose tem que, forçosa-
mente, apelar para a noção de paralelismo? Ora, já verificamos que,
no nível mais geral, este apelo vem se opor aos modos mecanicistas de
conceber a relação organismo/meio. Descendo um pouco mais aos
detalhes, percebe-se que este paralelismo de estilo espinozista é con-
traposto ao "paralelismo psiconeurológico", ao "falso paralelismo psi-
cofísico", enfim, a todas essas noções clássicas, para as quais Lacan es-
colhe Taine90 como porta-voz maior, que reproduzem, no campo da
psicologia, uma relação mecânica e· atomista entre fatos psíquicos e
orgânicos, trazendo de roldão o dualismo, o reducionismo e congê-
neres. A partir da recusa de toda essa tradição da "má metafísica'' psi-

90 É curioso que seja Taine quem dê um sentido genérico e abstrato ao conceito de


meio, mais ou menos na inesma forma como ele é retomado por Comce, repre-
sentando um passo decisivo na superação do sentido plural que o conceito tinha
na física e nas suas primeiras aparições na ciência biol6gica (cf. Canguilhem, G.
"Le vivant ec son milieu", p. 130 e 139).
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 127

quiatrizada, a primeira providência de Lacan é repensar o "mecanis-


mo fisiológico de todo conhecimento" 91 , para além dessa duplicidade
ilusória entre o corporal e o mental e do elementarismo, que a acom-
panha: o cérebro não registra e armazena imagens, mas sim os movi-
mentos do corpo próprio e as impressões oriundas do meio. Na medi-
da em que esse comportamento torna-se complexo - e ele é tanto mais
complexo quanto maiores são as possibilidades de resposta frente aos
estímulos, que atinge seu ápice no homem-, o "alcance diferido" que
ele assim adquire vai configurando uma intenção 92 e, se os processos
intencionais passam a ser eles mesmos "armazenados" pelo cérebro
(numa linguagem menos fisiológica: passam a integrar a experiência
individual), isto não difere qualitativamente do registro das condutas,
mas apenas se situa numa altura superior de uma escala crescente de
complexidade. A própria intencionalidade assim obtida interdita que
esse comportamento complexo possa consistir apenas num emaranha-
do de respostas independentes: ela compõe uma estrutura de compor-
tamento que, pensada dinamicamente,~ aquele mesmo ciclo de com-
portamento que dava um caráter concreto à compreensão proposta por
Lacan. Como esse ciclo de comportamento se identifica com o ciclo-
de-função de Uexküll, onde justamente o organismo e os aspectos ati-
vos da Umgebung entram alternadamente como termos, a idéia de
meio é incorporada à própria definição "fisiológica" do conhecimento.

91 PP, p. 336.
92 É nitidamente a um argumento bergsoniano que Lacan recorre aqui (o que aliás
se confirma numa nota acrescentada a seguir, em que se refere a Matéria e memó-
ria). Da mesma forma que apela para Uexküll para afirmar a continuidade entre
o meio vital e o ineio social, lança mão, agora, de Bergson, para argumentar pela
continuidade entre os comportamentos animais e humanos, embora, na conti-
nuidade, demonstre preferência pelos conceitos do pragmatismo (o de "experiên-
cia neutra'' ou "experiência pura'', denominações jameseanas) para contestar uma
distinção substancial entre sensação e matéria. Lacan parece seguir Bergson até o
ponto em que Minkowski o segue, isto é, até o ponto em que pode segui-lo um
psiquiatra interessado em conservar alguma forma de determinismo psíquico, re-
velando bem a porta de entrada destas alusões.
128 RICHARD THE!SEN SJMANKE

Se todo esse alicerce biológico para o conhecimento não deve


comprometer os intuitos compreensivos da Tese, é fácil entender que
ele só se possa harmonizar com um paralelismo como esse que é adap-
tado de Espinoza, no qual o social (o psíquico, o humano, seja qual
for o termo empregado) pode alcançar o estatuto de uma realidade no
sentido forte da palavra e, com ele, o conhecimento que daí se origi-
na: "Somente esta concepção legítima do paralelismo permite dar à
intencionalidade esse fundamento no real que seria absurdo lhe ver
recusado em nome da ciência. Somente ele permite dar conta tanto
do conhecimento verdadeiro como do conhecimento delirante" 93 • O
problema evidente que esta elevação do delírio ao mesmo patamar do
conhecimento verdadeiro cria para uma especialidade médica - no
caso, a psiquiatria - é, mais uma vez, o desvanecimento da diferença
entre o normal e o patológico, com todos os efeitos letais que amea-
çam os psiquiatras toda vez que eles tentam se destacar da medicina
orgânica. A única solução que Lacan encontra dentro de todo esse
quadro por ele composto é conclamar o critério do assentimento social
próprio a cada agrupamento humano para dar conta da distinção en-
tre o delírio e as formas de conhecimento consideradas válidas. E é
também levando-se em conta todos os desenvolvimentos anteriores
que este critério deixa de parecer tão ingênuo como sugere a sua
enunciação, assim, fora de contexto; isto é, ele não quer dizer, sim-
plesmente, que seria louco todo aquele que discordasse da opinião da
maioria. Em primeiro lugar, este "assentimento social" remete à res-
salva comteana à sua própria teoria ainda mecanicista do meio, onde
a exceção humana só se justifica pela eficácia da ação coletiva. Só que,
do ponto de vista lacaniano, depois de passar por von Uexküll e asso-
ciados, esta ação não só modifica um meio dado, como também cons-
trói um meio humano dotado da mesma autonomia e solidez do meio
natural. É de encontro a este meio que se debate o psicótico, fazendo
com que a desadaptação toque, num extremo, as raias do político e,

93 PP, p. 337.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 129

no outro, praticamente converta a patogênese em ontogênese: é todo


um sujeito - ou uma personalidade - que se constitui sob o signo des-
ta atopia no jogo dos lugares sociais. É preciso, portanto, não confim-
dir assentimento social, no sentido lacaniano, com uma espécie de
aprovação pública das condutas, o que cercearia a loucura no plano
dos confrontos ideológicos. Esta pode até ser a posição de cercos
antipsiquiatras, mas cercamente nunca foi a de Lacan, embora ele es-
teja perfeitamente consciente das raízes jurídicas das doutrinas psiqui- ·
átricas. Além do mais, esta estratégia para fazer o corte entre a cogni-
ção patológica e a cognição sadia localiza o ponto em que deve-se
introduzir uma fundamentação antropológica para a psiquiatria.
No entanto, com tudo isso, um tal critério permanece externo
ao plano clínico onde é preciso exercer-se o diagnóstico, o qual tem
que se ater às variáveis concernentes ao indivíduo. Para tanto, faz-se
necessário identificar o modo como essa inadequação social se insere
na história individual e aí age eficazmente. É claro que essa necessida-
de vaÍ guindar para o primeiro plano o microcosmo familiar, onde são
inoculados no indivíduo os valores do grupo e se gestam e encenam
os conflitos mais pregnantes. Lacan novamente lança mão, para estes
fins, do conceito de tendência concreta, sem o qual todas as boas in-
tenções gnoseológicas da Tese ficariam excessivamente atreladas a uma
fenomenologia vaga e, ainda por cima, prejudicada por uma tradução
parcial de suas teses em termos biológicos. Esta noção de tendência
concreta ("determinado comportamento da unidade viva frente a um
objeto dado"94) vem também responder, no nível individual, pela dis-
tinção entre o normal e o delirante, o que, no plano social, se resolvia ·
pelo critério do assentimento. Em outras palavras, o que diferencia,
digamos, um inconformista de um psicótico é que este último desco-
nhece a falta de adequação desta tendência concreta, que engendra ci-
clos de comportamento animados de uma intencionalidade própria,
com as necessidades do grupo ao qual pertence. Este desconhecimento

94 PP, p. 338.
130 RICHARD THEISEN SIMANKE

pode muito bem, então, ser sicuado na origem do sentimento de per-


seguição, da erotomania e de outros itens da sintomatologia paranói-
ca, por exemplo. Esta é a forma como a noção de inconsciente ingres-
sa, pela primeira vez, no esquema lacaniano, já que o conceito, na
formulação que se encontra em Freud, é incompatível com as premis-
sas da Tese (e, aliás, será avesso, durante mais tempo do que se pensa,
ao encaminhamento teórico de Lacan). Esta méconnaissance será, nos
anos que se seguem, formalizada em termos hegelianos, para caracte-
rizar a alienação do sujeito com relação às imagos que o constituem.
Assim, a discordância da psicose se deve a que o delírio expres-
sa, "sob as formas da linguagem forjadas pelas relações compreensíveis
de um grupo"95 , uma tendência estrangeira à realidade social do gru-
po em questão; estranheza esta devida a uma fixação do desenvolvi-
mento que cristaliza formas primitivas do pensamento, as quais, acei-
táveis pelo grupo para um certo estágio da evolução individual,
tornam-se desarmônicas com estas expectativas ao se perpetuarem além
de um dado período. Recapitulemos: a reivindicação infantil de Aimée
em torno da publicação de seus escritos; a fixação amorosa; a rivalida-
de fraterna que, sem condições de ser assumida como tal, segue a via
tortuosa das identificações iterativas, etc. E é a antropologia de Lévy-
Brühl - e não o Freud de Totem e tabu, por exemplo - que é convocada
a explicar por que, dados um selvagem, uma criança e um adulto oci-
dentais que pensam do mesmo modo, são normais os dois primeiros,
e psicótico o último. O paralelismo lacaniano funciona justamente em
relação às tendências concretas assim constituídas: os sintomas men-
tais são paralelos a estas tendências, e esta é tão somente uma nova
forma de dizer que são paralelos à totalidade indivíduo/meio, pois é
exatamente isto que elas significam. E, se sua natureza concreta per-
mite a Lacan equiparar os fenômenos de personalidade aos sintomas
físicos (quanto ao grau de objetividade, bem entendido), sem apelar
para os decretos reducionistas, essas tendências podem, por outro lado,

95 PP, p. 337; grifos do autor.


A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 131

garantir para estes fenômenos seu caráter intencional, razão mais do


que suficiente para que nosso autor tenha-se preocupado tanto em
preservar uma certa dose de intencionalidade ainda sobre o plano vi-
tal. Por tudo isso, "o ciclo de comportamento revelado pela psicose é,
digamo-lo ainda, o essencial"96.
O terreno está aplainado, portanto, para reordenar todos esses
problemas no "plano de rigor gnoseológico que lhes convém". A cita-
ção que se segue pode ser considerada a verdadeira conclusão da Tese,
já que é para onde convergem as linhas de força de sua argumentação
e a partir de onde se anunciam as elaborações epistemológicas que es-
tão por vir: "Com efeito, tende-se muito, no estudo dos sintomas men-
tais da psicose, a esquecer que eles são fenômenos de conhecimento e
que, como tais, não poderiam ser objetivados no mesmo plano dos
sintomas físicos: enquanto estes, com efeito, são diretamente objeti-
vados pelo processo do conhecimento, o próprio fenômeno do conhe-
cimento só poderia ser objetivado indiretamente, por suas causas ou
por seus efeitos, que ressaltam sua ilusão o~ sua legitimidade"97. É com
vistas, principalmente, à justificação desta ·tese de que a paranóia é um
fenômeno de conhecimento que Lacan fez convergir, como acabamos de
ver, sua noção de tendência concreta com o paralelismo "verdadeirc:>"
de Espinoza, e toda a variedade de conceitos até então mobilizada ser-
ve para indicar como, assim concebidos, os fatos clínicos não podem
senão revestir-se deste valor cognitivo no qual o autor quer fundar a
originalidade de sua proposta. No fundo, esse desvio tangencial à
metafísica - à boa metafísica, entenda-se, distinta da mauvaise, ou seja,
as variações do dualismo que alimentam a proposta reducionista -visa· ·
recaracterizar a impenetrabilidade do delírio paranóico, já reconheci-
da como o principal critério diagnóstico desde a definição célebre de
Kraepelin, como ·efeito de uma coerência conceituai de solidez dia-
mantina, que é justamente o que o impede de ser considerado um fe-

% PP, p. 339.
97 PP, p. 338; grifos do autor.
132 RICHARD THEISEN SJMANKE

nômeno de déficit. Esta mesma inovação explica a inusitada curabi-


lidade destes casos, impensável se a causa fosse uma degeneração or-
gânica, uma ve:z. que todo sistema conceituai, por mais arraigado que
seja, é, em princípio, passível de revisão. É ainda em função da neces-
sidade de dar conta da reversibilidade, às vezes espantosa, dos quadros
paranóicos que a noção de desejo foi chamada, pela primeira vez, a
ocupar uma posição de destaque na intrincada tapeçaria Iacaniana,
explicando a cessação da atividade delirante de Aimée pelo esvazia-
mento de sua causa motriz. Além disso, esta é uma noção sobrema-
neira adequada a uma abordagem psicogênica que se queira concreta,
uma vez, é claro, que tenha sido redefinida nos termos objetivos de
um ciclo de comportamento: o desejo é o nó que ata a gnoseologia
patológica de Lacan ao mundo vital.
Esse atrelamento é indispensável, aliás, para não esvaziar com-
pletamente a significação dos fatores orgânicos, passo que, sabemos,
Lacan não dá na Tese, ainda que, mais tarde, chegue bem perto disso,
abrindo caminho para que, nas versões mais exacerbadas do lacanismo,
"somático" quase se transforme em sinônimo de "psicossomático". Mas
aqui ele pretende, de qualquer modo; que seu recém-fundado método
permita, ao menos, determinar por exclusão, mas de forma inequívo-
ca, a ação dos fatores não-psicogênicos das psicoses. Mesmo assim,
pelo menos uma parte destes fatores até então tidos como primitivos e
constitucionais vai poder ser integrada no seu esquema: "Mas, por
outro lado, muitos destes fatores, que a doutrina das constituições nos
aponta como elementos irredutíveis e que parecem tão artificialmente
forjados, aparecerão, dados os· progressos destas pesquisas, como re-
presentando um momento evolutivo ou um estágio de organização
compreensível das pulsões vitais do indivíduo. A partir daí, será con-
veniente considerar os comportamentos fundados nessas pulsões co-
mo psicogênicos, na medida em que se tratar de reações socializadas
. d"lVl'dUO (•••)"98 •
dO ln

98 PP, p. 340; grifos do autor.


A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 133

Este, portanto, o sentido da tese final da obra: os sintomas psi-


cóticos são fenômenos de conhecimento na medida em que eles, assim
como a personalidade e o psíquico em geral, são signos de um traba-
lho mais ou menos bem sucedido de adaptação do indivíduo ao meio;
trabalho em parte ativo, em parte reativo, o que permite fundar na or-
dem sócio-vital uma instância de determinação que escapa aos peca-
dos do reducionismo por constituir-se em homogênea ao determina-
do, para o que contribuem os rudimentos de uma teoria da gênese social
da personalidade, que engendra, por assim dizer, a substância do indi-
víduo humano. Essa tese da gênese social permite, ainda, incluir no
esquema um fator evolutivo, de modo a dar conta do fracasso relativo
em haver-se com as exigências do grupo, que reveste de um caráter
patológico as estruturas reacionais assim constituídas. É verdade que,
com isso, o critério do assentimento social invocado por Lacan, intro-
duz uma normatividade extrínseca, que se opõe à norma vital indivi-:
dual do delírio, a qual, justamente, permite entendê-lo como uma es-
trutura conceituai perfeitamente válida, exceto pela carência d.o
sancionamento social. Por esta via, a dimensão antropológica faz uma
entrada mais ou menos definitiva no pensamento lacaniano, de um
modo tal que este jamais se desvencilhará de uma certa concepção
normativa da distinção entre o psicótico e o não-psicótico pelo me-
nos. Se, por aí, se anuncia o tom da epistemologia lacaniana que parte
da Tese, a noção de uma fixação de desenvolvimento aponta a direção
em que Lacan irá buscar recursos a uma certa informação psicanalíti-
ca. Que a psicanálise não é uma referência essencial para a Tese (e nem
o será ainda por algum tempo), prova-o o fato de que é perfeitamente
possível descrever o movimento geral da obra, como se fez até aqui,
praticamente sem mencionar conceitos psicanalíticos. Para denotar a
peculiaridade desta relação inicial de Lacan com Freud é que reserva-
mos, na apreciação da Tese, um lugar quase que de apêndice para o
comentário dos dados aí presentes que têm sua origem na psicanálise.
Origem apenas, pois é possível perceber que Lacan faz deles um uso
muito particular e completamente subordinado às linhas de força de
seu projeto, impondo-lhes, já nesse momento, uma série de redefi-
nições significativas.
134 RICHARD THEISEN S!MANKE

II.5. INGREDIENTES PSICANALfTICOS

Pode-se balizar o percurso da apropriação de conceitos psica-


nalíticos por parte da Tese lacaniana, situando-a entre-a. incorporação
matizada da noção de libido e os primeiros germes de uma reformula-
ção da teoria freudiana do narcisismo, que se prolonga nos anos
seguintes e constitui o eixo da elaboração das primeiras figuras de uma
metapsicologia propriamente lacaniana. Esta relação seletiva com a
psicanálise acompanha, em linhas gerais, aquela que é a de Minkowski
e, antes dele, de Bleuler: visa dar conta do conteúdo da psicose e preen-
cher as lacunas da etiologia orgânica. Por exemplo, Lacan vai recorrer
ao narcisismo e à sua dinâmica das identificações, que se arremata com
a formação do supereu, para explicar a especificidade dos conteúdos
persecutórios presentes no delírio, propondo, inclusive, para um
subgrupo das psicoses paranóicas a denominação de "psicoses do
Supereu". Contudo, é possível perceber ao menos um esforço de sua
parte no sentido de alargar este papel restrito atribuído aos conceitos
freudianos e inscrevê-los na própria fórmula do mecanismo da para-
nóia, sem que, no entanto, isso baste para conceder a Freud uma posi-
ção dominante na gestação de suas idéias inaugurais: este esforço
lacaniano, se o há, é decorrência de seu firme propósito de levar tão
longe quanto puder a hipótese psicogênica, com o que ele não faz se-
não seguir um.a tendência possível - e, aliás, na ordem do dia - dentro
das configurações do campo psiquiátrico que presidiram sua forma-
ção. Mas é nos domínios da antropologia que, pelas razões já levanta-
das, devem ser buscados os fundamentos desta psicogênese, e não por
entre as sombras do inconsciente, ainda por muito tempo estrangeiras
ao pensamento de Lacan. E os conceitos psicanalíticos serão tanto mais
palatáveis ao seu projeto quanto mais facilmente consigam admitir esta
revisão antropológica, como é o caso dos complexos e imagos e, mais
tarde, do inconsciente das estruturas, com evidente prejuízo para o
inconsciente pulsional freudiano.
É em vista disso que, já nas páginas da Tese a eles dedicados, os
conceitos freudianos vão sofrer, quase que automaticamente, uma tor-
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 135

ção nesse sentido. Por exemplo, Lacan se detém em referências freu-


dianas, pela primeira vez de modo mais sistemático, na segunda seção
da última parte do caso Aimée99 , onde se propõe a ler, à luz da teoria
freudiana da libido, sua própria interpretação dos mecanismos auto-
punitivos da paranóia como fixações de desenvolvimento. A alusão é
quase inevitável, já que o conceito de fixação é uma das pedras angu-
lares das nosografias derivadas de Freud, principalmente depois da sis-
tematização efetuada por Abraham (e assimilada, em linhas gerais, por
Klein 100) que vincula cada quadro clínico investigado pela psicanálise
a uma das fases ou subfases do desenvolvimento da libido. Assim, por
menos que Lacan pretenda uma explicação estritamente psicanalítica
da psicose, a própria formulação de uma patogênese centrada em al-
gum conceito de fixação cria a oportunidade para um debate com a
teoria da libido; lembremos que, nessa última parte da interpretação
de seu caso corroborativo, Lacan quer propor uma "anomalia de es-
trutura'' e uma "fixação de desenvolvimento" como as causas primei-
ras da psicose de sua paciente. É claro que,_a concepção de fixação que
está sendo introduzida tem um matiz completamente diverso da de
Freud, e se refere a situações históricas efetivamente vividas - há uma
Erlebnis por trás de cada sintoma - no interior do meio familiar. É
por isso que, a bem de encontrar um argumento suplementar a favor
de seus pontos de vista, Lacan não vai poder deixar de ensaiar aqui
suas primeiras traduções do vocabulário de Freud, adequando-o às suas
próprias intenções.
De fato, é para rebater uma crítica desfavorável colocada na boca .
de um interlocutor hipotético que o conceito de libido vai ser invoca..:
do inicialmente. Mais precisamente: ninguém discordaria da caracte-
rização da psicose como uma anomalia de personalidade; todas as

99 PP, p. 254-65.
100 Melanie Klein, contudo, reforma significativamente o psicogeneticismo estrito
de Abraham, ao propor o seu conceito de posição (primeiro a depressiva e, de-
pois, a esquizo-paranóide), provavelmente o primeiro conceito decididamente
estrutural a firmar-se na teoria psicanalítica.
136 RICHARD THEISEN S!MANKE

doutrinas psiquiátricas dizem isso, de uma ou de outra maneira. Mas


o que impede que a auto-punição que especifica esta anomalia seja mais
do que uma simples rubrica descritiva, que enuncia os traços gerais do
distúrbio, mas sem fornecer-lhe uma explicação causal? Ora, já vimos
que nem Lacan consegue ainda descartar totalmente um fundo orgâ-
nico para a enfermidade, por mais remoto e inespecífico que este pos-
sa ser. Esta questão pode, então, ser transfigurada de modo a incluir
quase todos os itens do programa lacaniano. Ficaria mais ou menos
assim: onde encontrar um fator evolutivo, capaz de ser inscrito nos fa-
tos de personalidade constituídos por séries de reações frente a situações
sociais, e que, não obstante, guarde alguma relação com a realidade
biológica do indivíduo, mas que, de preferência, não seja da natureza
de uma lesão ou de uma disfunção incapacitante em qualquer grau?
Assim aplicada sobre a realidade biológica do corpo, a fixação de de-
senvolvimento que explica a anomalia descrita poderia funcionar, para
todos os efeitos do método, como uma causa efetiva do distúrbio ob-
servado, e nosso autor estaria de posse de qualquer coisa semelhante a
uma psicogênese materialista, que é a ambição nuclear de seu empreen-
dimento. É, naturalmente, a sexualidade que surge como a candidata
mais forte ao encargo de âncora vital da explicação lacaniana da psi-
cose e, note-se bem, por razões bem distintas das concepções iniciais
de Freud, onde ela servia para dar conta da temporalidade específica
do trauma. Isso de forma alguma contraria o espírito da argumenta-
ção, principalmente se recordarmos que, desde o início, os fatores
orgânicos que Lacan admitia na formação da personalidade eram as
bases biológicas do desenvolvimento. Todos . os caminhos levam, por-
tanto, à teoria da libido, mas, para aí poder ingressar, esta vai ter que
se harmonizar com as premissas maiores da doutrina. Isso quer dizer,
antes de tudo, que o conceito mesmo de libido deve poder vincular-se
aos fenômenos de personalidade: "É aqui que vamos demonstrar o al-
cance científico da doutrina freudiana, na medida em que ela relacio-
na uma parte importante dos distúrbios mentais ao metabolismo de
uma energia psíquica chamada libido. A evolução da libido na doutri-
na freudiana parece corresponder, com muita precisão, em nossas fór-
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 137

mulas, a esta parte, considerável na experiência, dos fenômenos de per-


º
sonalidade, cujo fundamento orgânico é dado pelo desejo sexual" 1 1•
O valor do conceito de libido, para Lacan, é, numa- linha dera-
ciocínio mais uma vez. politzeriana, dar um valor concreto - e, por
isso mesmo, potencialmente eficaz do ponto de vista causal - àquilo
que as psicologias tradicionais só conseguem apreender de modo abs-
trato ou, no melhor dos casos, descritivo. Mas a sua filiação aos fenô-
menos de personalidade quase que automaticamente realimenta a ver-
tente intelectualista da concepção lacaniana da psicose, da qual Lacan
é tributário por herança e por opção, embora tome todas as precau-
ções para arrancar este estilo de abordagem dos parâmetros da "cons-
tituição paranóica" e situá-lo no âmbito de uma teoria psicogênica tão
intransigente quanto possível. A distância que ele guarda com relação
a Freud, no próprio ato de incorporar um de seus conceitos, é bem
ilustrada pelos comentários subseqüentes, onde, após renegar a ener-
gética janeciana, mais explicitamente biologista que a de Freud, vai
valor1zar o "racionalismo mórbido" de Minkowsk.i e conjurar seu "mes-
tre e amigo" (sic), Dr. Pichon, com uma citação de Chescerton que é a
perfeita antítese de uma metáfora literária empregada por Freud justa-
mente a propósito da paranóia. Diz ela: "O louco não é, em absoluto,
o homem que perdeu a razão; o louco é aquele que perdeu tudo, me-
nos sua razão". Freud, no "Manuscrito H", cita uma passagem do Emí-
lia Galotti, de Lessing, justamente para ilustrar sua hipótese que re-
mete a paranóia a um transtorno afetivo, em oposição às concepções
psiquiátricas vigentes, que a consideravam, juntamente com a insânia
obsessiva, um distúrbio tão somente intelectual. É a seguinte: "Quem·
não perde a razão em cercas circunstâncias, é porque nenhuma razão
cem para perder". Ou seja, a indiferença do psicótico frente aos movi-
mentos da afetivi"dade é um sinal, não de uma autonomia da razão,
mas de sua perda cocal.
Este intelectualismo manifesto não impede, contudo, que Lacan
perceba que o conceito de libido é, antes de tudo, uma noção ener-

IOl PP, p. 255; grifos do autor.


138 RICHARD THEJSEN S!MANKE

gética. Como conciliar, então, o emprego dessa noção com o recuo para
o segundo plano da dimensão afetiva dos distúrbios? São tomadas,
basicamente, duas providências: diluir a significação estritamente se-
xual do conceito e dele extrair certas conotações epistêmicas. Lacan,
de fato, aproveita todo o esforço de Freud para alargar o conceito de
sexualidade e o interpreta no sentido de uma extensão da noção de
libido ao conjunto dos apetites do ser humano. Com isso, consegue
fazê-la equivaler mais ou menos à noção de desejo (no sentido bem
amplo do eros antigo, precisa ele), já parte integrante de seu próprio
instrumental e receptiva às significações sociais em torno das quais
gravita a explicação. Isto tudo, evidentemente, ao preço de esquecer
que a ampliação da esfera sexual pretendida por Freud destinava-se a
mostrar que a sexualidade está presente onde menos se suspeita, e não
que os fenômenos sexuais são casos particulares no universo maior das
motivações humanas. Como é o desejo que governa a atividade inter-
pretativa que dá forma ao nicho social do sujeito, onde se constrói sua
personalidade como fenômeno de conhecimento, este deslocamento
cria a abertura para a inserção da libido na reflexão de índole episte-
mológica que pontua todas as elaborações clínicas de Lacan.
Reflexão que, no entanto, salta abruptamente para o outro ex-
tremo, aquele que considera as estratégias científicas possíveis para a
psicologia: "Quanto à imprecisão relativa do conceito de libido, ela
não deixa para nós de ter seu valor. Tem, com efeito, o mesmo alcance
geral que os conceitos de energia ou de matéria em física, e nessa qua-
lidade representa a primeira noção que permite entrever a introdução
em psicologia de leis de constância energética, bases de toda ciência'' 102•

102 PP, p. 256; grifos do autor. Vê-se que, embora alinhado com um cerco vitalismo,
Lacan não despreza, por isso, o papel da física como ciência exemplar. Essa
contradição - bem como a astúcia que consiste em interpretar tendenciosamen-
te a evolução contemporânea da física como convergindo com o modelo de
ciência que ele mesmo pretende para a psicanálise - são objetos da crítica de
François Roustang em Lacan: de /equivoque à l'impas1e. Retornaremos a isso no
capítulo III.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 139

Numa palavra, o conceito freudiano vê-se reduzido a uma espécie de


convenção, um operador teórico que permite formalizar a abordagem
de certos fenômenos nos parâmetros da racionalidade científica. As-
sim desnaturalizada, a libido vai poder cerrar fileiras com a cruzada de
Lacan contra o naturalismo psiquiátrico no ponto que lhe é mais sen-
sível, a saber, o de uma concepção ao mesmo tempo ingênua e dog-
mática da realidade, que faz obstáculo à tese lacaniana de uma cons-
trução social do mundo humano, através dos instrumentos cognitivos
da interpretação: Lacan vai destacar "o papel capital das fixações li-
bidinais na elaboração do mundo dos objetos no sentido mais geral" 1º3.
Tudo somado, pode-se chegar a compreender como, no futuro, ele será
capaz de operar uma curiosa assimilação dos objetos da libido aos ob-
jetos do conhecimento, mobilizando sua hipótese construtivista con-
tra todos os evolucionismos que parecem, dogmaticamente, supor um
mundo dado ao qual os sujeitos têm um acesso gradual e progressivo
(aí incluídos Lévy-Brühl e Abraham, citados elogiosamente na Tese,
com a companhia de Brunschvicg, Piaget, Ferenczi ... ) 104•
Mas este tema do objeto permite introduzir a consideração da-
quela que será a pedra de toque da primeira grande reinterpretação
lacaniana de Freud: a teoria do narcisismo. Em primeiro lugar pelo con-
traste e pela complementariedade que se estabelecem entre as fixações
narcísicas e as fixações objetais; mas, acima de tudo, pelo papel decisi-
vo que o narcisismo começa já a desempenhar na explicação da gêne-
se concomitante dos objetos e da personalidade. É verdade que esta
função é ainda difusa e vai-se distribuir por temas específicos relativos
aos aspectos clínicos das psicoses, principalmente porque Lacan con-·
sidera necessário que um intenso estudo objetivo dos fatos - tarefa a
ser cumprida por monografias psicopatológicas como a sua - venha a
lançar luz sobre a estrutura do "obscuro período do narcisismo". Mes-
mo assim, é o narcisismo secundário que vai explicar a formação dos

l03 PP, p. 257; grifos do autor.


104 Cf. a análise de Bento Prado Jr. em "Lacan: biologia e narcisismo ... ", p. 56
e 58-9.
140 RICHARD THEISEN S!MANKE

mecanismos auco-punivos e a origem do supereu, peças-chave no que-


bra-cabeça da paranóia lacaniana, depois de os estágios mais primiti-
vos da evolução libidinal terem sido afetados por esta diferenciação
inicial do mundo dos objetos operada pelos complexos de Édipo e ~e
castração. Como em Freud, toda relação objetal posterior vai ter que
passar pelo crivo superegóico, se bem que haja indícios em Freud de
que é justamente este intermediário que falta na psicose; a concepção
de Lacan, por outro lado, parece estar aqui mais próxima da de Mela-
nie Klein, que remete a psicose à relação do eu com um superego sá-
dico e hipertrofiado.
Esta preferência pela fórmula kleiniana e congêneres se mani-
festa, ainda, nas tentativas de fazer coincidir o estágio sádico-anal da
libido com o surgimento do "complexo fraterno", em que deposita suas
esperanças de expor a psicogênese do caso Aimée. De fato, no esque-
ma de Abraham, é este o ponto de fixação da paranóia, permitindo
justificar, por exemplo, as conexões que aí se estabelecem entre os sen-
timentos persecutórios e a homossexualidade latente. Observando que
é neste período que se verifica a erotização dos objetos fraternos, Lacan
consegue identificar uma constelação tipicamente problemática da di-
nâmica familiar - uma situação social, portanto - com um dos estági-
os da evolução libidinal, a qual, em Freud tem uma determinação for-
temente endógena, isto é, da constituição biológica, mesmo que com
a intermediação das fantasias 105. Desde que esta aproximação tenha
sido realizada com sucesso, poucos obstáculos restam para que a "gêne-

ios É verdade que Lacan fala de Freud, nesse ponto; como rendo demonstrado a
relação privilegiada desta fase com a gênese dos "instintos sociais" (PP, p. 260). É
preciso ter cm conta, no entanto, que a referência que ele tem de Freud consiste
basicamente em um texto: "Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na
paranóia e na homossexualidade", que ele próprio traduzira para a Revue française
de psychanalyse. Nesse artigo, além de se ocupar com certos fenômenos comuns
às neuroses e psicoses, como o próprio título indica, Freud, de fato, trata de dis-
túrbios que transcorrem no meio sócio-familiar, como o ciúmes, por exemplo.
Vale a pena citar uma passagem, em que são descritos os ciúmes chamados nor-
mais, que, obviamente, inspira Lacan: "Estes ciúmes, por mais que os chame-
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 141

se histórica da psicose", no caso Aimée, possa ser atribuída a um confli-


to moral com a irmã que não se resume a um confronto de ideologias
conscientes: Lacan reafirma que este conflito só ganha peso explicativo
- ou seja, capacidade de explicar alterações tão radicais na personali-
dade - à luz de sua teoria que o remete a uma fixação afetiva no "com-
plexo .fraterno': E, uma vez feitas todas essas conversões; arremata nos-
so autor: "Enfim, acreditamos ser possível encontrar a regressão libidinal
típica na estrutura mesma do delírio de Aimée" 106• A isso segue-se uma
transcrição um tanto longa do caso Aimée nos termos da célebre aná-
lise freudiana das memórias de Schreber, mostrando, nesse vocabulá-
rio renovado, que aí se encontram todos os itens maiores de seu pre-
decessor ilustre: a série de inversões proposicionais que servem para
recusar a pulsão homossexual, a erotomania, os temas de ciúme, as
idéias de grandeza, e assim por diante. Tudo isso se conclui pela con-
firmação das afinidades entre a fixação narcísica, a defesa contra a ho-
mossexualidade e a formação do supereu, que vão ser rematizadas no-
vamente no tom mais doutrinário do último capítulo da Tese.
Lacan, de fato, reserva uma seção bem demarcada em seu capí-
tulo conclusivo para um acerto de contas entre sua doutrina e a psica-
nálise. Fazendo isso, em primeiro lugar, segue a atitude da vanguarda
psiquiátrica na qual se inseria, a qual não recusava a priori as inova-
ções psicanalíticas, assimilando-as com maiores ou menores reservas,
conforme o caso, e explicitando as condições dessa assimilação. E, des-
de as primeiras linhas, Lacan deixa claro que se trata, não de um pon-
to de partida, mas de uma importação tardia a uma doutrina gestada

mos normais, de ·modo algum estão totalmente de acordo com a ratio, isto é,
nascidos de relações atuais, proporcionais às circunstâncias efetivas e dominados
sem resíduos pelo eu consciente; com efeito, estão arraigados nas profundezas
do inconsciente, retomam as mais antigas moções da afetividade infantil e bro-
tam do complexo de :Édipo ou do complexo dos irmãos, do primeiro período se-
xual" (Studienausgabe, vol. VII, p. 219; grifos nossos). Observando que a expres-
são "complexo dos irmãos" não é, de forma alguma, freqüente em Freud.
106 PP, p. 261; grifos nossos.
142 RICHARD THEISEN SIMANKE

de longa data nos debates de sala de plantão; seu interesse é detectar o


alcance da assimilação entre psicose e personalidade, que sua doutrina
prescreve, para o método que ela pretende embasar. Ora, trata-se de
um método de investigação alicerçado numa hipótese tão estritamen-
te psicogênica quanto possível; um método, portanto, de natureza tal,
que a psicanálise pode, legitimamente, candidatar-se a ser sua precur-
sora. Cioso como é de sua originalidade teórica, não é difícil imaginar
que, nesse acerto de contas, trata-se, para Lacan, de afirmar antes uma
distância que uma convergência. Se essa convergência existe, ela deve
ser efeito da natureza geral do método e dos fatos aos quais este se
aplica, e nunca de uma similaridade das premissas teóricas. Eis por-
que "é, com efeito, como um concurso imposto pelos fatos que é preciso
considerar o socorro que parecemos tirar dos dados da psicanálise" 107 •
E reitera a seguir: "ao constatar este concurso dos fatos, fomos levados
º
apenas pela exigência de nosso próprio método" 1 8 •
Lacan divide, um tanto didaticamente, estes dados entre três
grupos: dados de observação, de técnica e de doutrina. Quanto aos da-
dos de observação, trata-se basicamente da importância atribuída à es-
fera sexual, até então, negligenciada em psiquiatria. Como não pode-
ria deixar de ser, depois de toda a torção imposta ao conceito de libido
que acabamos de examinar, esta proeminência da sexualidade é rapi-
damente dissolvida na doutrina lacaniana: ela é a base do anti-prag-
matismo das relações familiares, amorosas, conjugais, etc., que se cons-
tata nas anamneses dos psic6ticos. Assim, quando Lacan enuncia o
segundo ponto a ser resgatado - o determinismo etiológico do conflito -
este já se encontra convenientemente reconduzido à esfera social, e ele
pode se dar ao luxo de esquecer que, em Freud, o conflito é, antes de
tudo, um conflito pulsional, fundamentado num dualismo das pul-
sões, que teve várias versões, mas que Freud sempre se recusou a aban-
donar. Por isso, se a sexualidade pode ser a mola impulsora de um con-
flito, este último só se torna uma causa eficaz do fenômeno psicótico

I07 PP, p. 318; grifos nossos.


108 PP, p. 319; grifos nossos.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 143

ao se exteriorizar numa situação familiar; em suma, para Lacan, a se-


xualidade humana não é essencialmente problemática, mas a família
sim. Portanto, se esse conflito, inscrito no domínio das causas, tem
um valor patogênico - isto é, uma ação efetiva na produção da sinto-
matologia manifesta dos quadros-, isto se deve à sua ligação com a
história afetiva infantil do paciente (este o terceiro ponto a ser redes-
coberto em Freud pela psiquiatria), onde desponta, mais uma vez, o
papel nuclear desempenhado pelo complexo fraterno.
Os dados da técnica psicanalítica ocupam uma posição secun-
dária nessa discussão. Embora Lacan, na linha politzeriana, valorize
explicitamente o método psicanalítico em detrimento da doutrina,
como uma proposta defensável em termos de psicologia concreta, ele
o trata aqui como um procedimento adequado estritamente ao trata-
mento das neuroses, sentindo-se na obrigação de recusar a "semântica
do comportamento" inaugurada pela psicanálise em nome de uma evi-
dência clínica - a clareza significativa dos sintomas psicóticos, aliás
reconhecida pelo próprio Freud - e de uma premissa teórica - a exi-
gência de que as relações de compreensão sejam apreendidas imediata
e concretamente nas próprias condutas, interditando a utilização das
relações simbólicas em que a psicanálise traduz a experiência de seus
pacientes. Resta o fenômeno das resistências, aceito num plano bem
geral, sem nenhuma menção ao contexto transferencial em que o con-
ceito é abordado na técnica freudiana. Lacan, aliás, fará dele depois
um dos pontos-chave de sua demolição do freudismo ortodoxo.
Resta um último ponto: que empréstimo foi ou poderia ter sido
feito à doutrina própria da psicanálise? Este é, com certeza, o tópico
mais delicado, e Lacan deter-se-á nele com mais pormenor. Primeiro,
porque este sempre foi o aspecto mais dificilmente assimilável para as
disciplinas que disputavam com a psicanálise um território semelhan-
te no domínio dos fatos (isto é, a psiquiatria e as diversas psicologias,
basicamente): em sua forma mais decantada - a metapsicologia - a dou-
trina freudiana parecia a uns excessivamente reducionista e biologi-
zante, e a outros, excessivamente abstrata e, mesmo, mitológica, da
mesma forma que, mais tarde, quando da sua exploração filosófica,
parecerá demasiado cientificista para os hermeneutas e demasiado
144 RICHARD THEISEN SIMANKE

metafísica para os cientistas. Por mais excêntrico que possa parecer o


posterior método lacaniano de leitura da obra freudiana, ele teve pelo
menos o mérito de denunciar a falsidade deste maniqueísmo, ainda
que ele reapareça aqui e ali em sua concepção da psicanálise, que distin-
gue entre um bom e um mau Freud, e de propor a indissociabilidade
entre técnica e teoria, a partir de uma aceitação integral do texto, mes-
mo que às custas de uma ampla substituição das premissas, que leva a
uma profunda ressignificação das fórmulas. Mas, por enquanto - e
até fazer do "retorno a Freud" seu estandarte -, Lacan subscreve a ne-
cessidade de uma revisão dos pontos obscuros da doutrina, que não
estão à altura de uma técnica de sucesso comprovado.
Enfim, nosso autor reduz a dois postulados o empréstimo dou-
trinário que pôde fazer a Freud: existência de uma tipicidade do desen-
volvimento e a de um fator de equivalência ou medida comum entre os
fenômenos de personalidade. Ora, estes dois postulados se resumem a
um, e este um, na prática, a nenhum. Expliquemo-nos: este fator de
equivalência - a energia psíquica - é aquilo que Freud denominou de
libido, justamente o conceito que dá conta de qualquer coisa seme-
lhante a uma tipificação do desenvolvimento que possa haver na psi-
canálise: os famosos estágios libidinais (oral, anal, fálico e genital).
Mas, ao fazer deste único postulado, então, que é a libido, tão somen-
te um operador teórico, isto é, uma convenção científica que permite
medir as relações entre fenômenos tão variegados quanto os da perso-
nalidade, Lacan o está simplesmente esvaziando de qualquer signifi-
cação positiva e, ao reivindicá-lo sob esta forma como o único ponto
de contato entre sua doutrina e a freudiana, está afirmando, de fato, a
perfeita disjunção entre as duas teorias. Isto é,,aliás, explicitado na con-
tinuidade: após reconhecer que a teoria psicanalítica permite uma in-
tuição mais fácil destes postulados, ao materializar tanto esta "energia
psíquica'', quanto o desenvolvimento - a primeira, no conteúdo con-
creto do instinto sexual, e o segundo, nas organizações observáveis 109

109 Tanto mais observáveis na medida em que Lacan prossegue no seu trabalho de
tradução dos estágios da libido de uma metapsicologia das pulsões para uma an-
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 145

deste instinto -, Lacan se vangloria de que "tais dados nos foram tra-
zidos diretamente pelo exame dos fatos. O que devemos à psicanálise no
reconhecimento desses fatos se limita à confirmação deles pelos dados ad-
quiridos no estudo das neuroses e pelas correi.ações teóricas estabelecidas
sobre esses dados" 11 º. A contribuição psicanalítica à Tese é restringida,
então, a uma função corroborativa. Mas o privilégio concedido ao
"exame dos fatos" não deve produzir ilusões quanto à isenção do mé-
todo lacaniano: ele já afirmou, com todas as letras - e contra qualquer
empirismo ingênuo-que as doutrinas criam os fatos 111 • Trata-se, por-
tanto, de uma questão eminentemente doutrinária, e a psicanálise é
valorizada na exata medida em que seus dados são assimiláveis a esta
doutrina.
Diga-se, no entanto, a favor de Lacan - e este é um ponto em
que ele se distingue nitidamente de seus colegas psiquiatras - que ele
detecta pelo menos um tópico na teoria psicanalítica que, impróprio
para o consumo médico na sua forma dada, merece, ainda assim, um
esforço no sentido de aperfeiçoá-lo. É verdade que mesmo esta dispo-
sição é movida por uma necessidade intrínseca ao projeto da Tese, mas,
ao propor-se a introduzir modificações na própria doutrina que lhe
chega de Freud, Lacan está sendo levado, mesmo que restrito a este
item específico, a pensar mais como psicanalista do que como psiquia-
tra. Este item, para dizê-lo logo, é a teoria do narcisismo. Pois a impor-

cropologia da família. Nesta passagem, ele, mais uma vez, tenta fazer coincidir a
fase anal-sádica com a da instalação do complexo fraterno. Este propósito fica
bem evidente na formulação dos três complexos básicos, no artigo "La famille",
onde, grosso modo, o complexo de desmame vai corresponder à fase oral, o comple-
xo de intrusão à fase anal, e o complexo de Édipo à fase fálica.
11 º PP, p. 321; grifos nossos.
111 Lacan reiterara isto algumas páginas antes, nos termos bem específicos do seu
projeto de ciência: "Sendo assim definida a ciência da personalidade, pode-se
ver claramente a natureza de nossa tese: ela se sustenta na afirmação doutrinal de
que os fenômenos mórbidos, que a psicopatologia situa dentro do quadro da psi-
cose, dependem dos mltodos de estudo próprios aos fenômenos da personalidade"
(PP, p. 316; grifos do autor).
146 RICHARD THEISEN SIMANKE

tância da noção de fixação como inspiração para o encaminhamento


da jovem doutrina lacaniana é rapidamente emparelhada com a
constatação da insuficiência da elaboração freudiana daquela moda-
lidade que mais de perto concerne à psicose, ou seja, a fixação narcí-
sica. Lacan, aliás, diagnostica com muita perspicácia os pontos que
ficaram mal resolvidos em Freud: a distinção entre narcisismo e auto-
erotismo, que, após demarcarem-se com certa nitidez, voltam a con-
fundir-se com a introdução da segunda tópica; a origem da libido
narcísica (o eu ou o isso?) - este, por sinal, um conceito comprometi-
do pela própria inclusão na categoria maior do Eros, que dilui, ao
menos em parte, a distinção entre a sexualidade e a auto-conservação;
a natureza última do eu, dividida entre a percepção-consciência e as
funções inconscientes, das quais dão testemunho sua participação na
patologia; enfim, o caráter dos mecanismos patogênicos do eu (trata-
se de um desinvestimento ou de um superinvestimento libidinal?). Nada
de surpreendente, então, que seja insinuada a idéia de que a teoria freu-
diana não só possa, como deva ser completada para bem servir a uma
concepção renovada do campo das psicoses: as brechas do conceito
freudiano, ao mesmo tempo, permitem e convidam à sua impregna-
ção pelos termos da doutrina lacaniana. De fato, Lacan chega mesmo
a enunciar explicitamente, como um projeto que ele efetivamente
empreenderá nos anos seguintes, a sua disposição para a reforma desta
teoria: "Quanto a nós, pretendemos retomar o estudo desse domínio
[do narcisismo], segundo uma doutrina cujas premissas nós definimos,
e pelo método científico comum, quer dizer, fundamentando-nos na
observação dos fatos e nos postulados epistemológicos que, em qual-
quer ciência, conferem seu valor às correlações observadas" . 112
Há, porém, uma razão bem mais imediata que motiva este em-
preendimento: a afinidade reconhecida pelo autor entre sua doutrina
e a concepção que a psicanálise se faz da "gênese das funções de auto-
punição''; em outras palavras, o valor do conceito de Supereu para sua
concepção da paranóia. A fórmula freudiana do supereu, além de sua

112 PP, p. 322-3.


A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 147

pertinência evidente ao tema da auto-punição, possui, para Lacan, o


mérito suplementar de ter sua gênese muito claramente vinculada a
uma situação social e familiar (precipitado das identificações parentais,
herança do complexo de Édipo, etc.), ao contrário do conceito de Eu
que padece de uma ambigüidade mortal entre sua definição em ter-
mos de tendências concretas (ou seja, certas estruturas de comporta-
mento, cuja gênese pode ser rastreada nos fatos do desenvolvimento)
e seu conceito abstrato como sujeito do conhecimento. É verdade que
a percepção desta ambigüidade está muito filtrada pelas preocupações
particulares de Lacan - é difícil imaginar Freud, o mais intransigente
dos deterministas, sequer concebendo algum parentesco entre o seu
Ich e o Ego cartesiano -, mas, por isso mesmo, ela é bem reveladora do
contexto em que devem ser assimilados estes. conceitos: Lacan propõe
uma concepção da psicose como fenômeno de conhecimento, mas de
um conhecimento que deve-se constituir com um grau suficiente de
autonomia em relação ao sujeito para comportar uma ordem possível
de determinação. Ora, nada mais avesso aisso do que um eu pensante
originário, fundamento da relação cogniti~a do sujeito com seus obje-
tos. Há duas providências, então, a serem tomadas: pensar a constitui-
ção das estruturas conceituais a partir de determinantes extra-indivi-
duais - por isso a necessidade de uma antropologia anti-individualista
- e contestar a primazia do sujeito do conhecimento através de uma
teoria de sua gênese, ou seja, da constituição histórica do eu. Haverá
oportunidade de mostrar como estes dois projetos convergem na obra
subseqüente de Lacan, e é justamente aí, para resolver o problema da
gênese do eu, que se fará necessária uma teoria do narcisismo com suas·
arestas bem aparadas.
Em contrapartida, o supereu tem sua origem descrita, em Freud,
em termos que Lacan considera bem mais positivos, e isso quer dizer,
basicamente, que sua gênese identificatória é manifestamente aponta-
da. Ora, afirmar a gênese identificatória é, para Lacan, afirmar apre-
cedência dos objetos socialmente representativos sobre as instâncias
da subjetividade; daí que ele vá tanto se empenhar na correção de mira
do conceito de narcisismo, cujo fundamento, com Freud, sempre os-
cilou entre as vicissitudes da libido, que apontam para uma origem
148 RICHARD THEISEN S!MANKE

interna a espontânea, e o problema da identificação, que implica a re-


lação com os objetos. São esses os fins a que se propõe a teoria do es-
tágio do espelho: munir com uma visada antropológica uma teoria
excessivamente dependente, para os propósitos de nosso autor, de va-
riáveis psicofisiológicas. Feito isso, será possível deslindar a origem do
próprio eu em meio a esta dinâmica de identificações que engendram
o sujeito, com o que, no mesmo golpe, Lacan reduz a pó qualquer
pretensão de equivalência entre a instância freudiana e o sujeito do
conhecimento definido em termos filosóficos e cerceia a autonomia
deste sujeito com uma determinação calcada no meio social, tornan-
do ocioso o apelo a quaisquer hipóteses constitucionais, que sempre
lhe causaram aversão. Ele, aliás, demonstra explicitamente sua antipa-
tia pela explicação apenas tópica - diferenciação da superfície do isso 113
em função do contato com a realidade exterior - dada por Freud para
a origem do eu, que a seus olhos devia insinuar um insuportável apelo
à maturação. Quanto ao supereu, a idéia de que ele se forma como
uma reincorporação ao aparelho psíquico de uma parte do mundo ex-
terior, do qual este se diferenciara ao longo de sua história, está sufici-
entemente próxima aos cânones de sua doutrina para ser adotada sem
problemas, principalmente porque "essa reincorporação incide sobre os
objetos cujo valor pessoal do ponto de vista genético social em que
nós mesmos definimos este termo, é maior (... )" 114• Lacan, ao contrá-
rio de Freud, não tem nenhuma dificuldade em pensar esta reincorpo-
ração em termos narcisistas e, assim, localizar o supereu na origem de
uma afecção "narcísicà' como a paranóia de auto-punição: esta rein-
corporação satisfaz ao isso, que nela encontra uma compensação par-
cial para a perda progressiva dos objetos parentais. Trata-se, pois, de

113 Lacan emprega aqui a denominação Soi, então corrente, para traduzir o Es
freudiano. A bem da uniformidade da terminologia, adotamos desde já a solu-
ção "isso~ mais adequada para traduzir o Ça que predominará ao longo da obra
de Lacan. O mesmo vale para os termos eu (Moi) e supereu (Sur-Moi) que vimos
empregando.
114 PP, p. 325; grifos do autor.
A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 149

"uma introjeção libidinal no sujeito, que permite a Freud definir todo


o processo com o termo narcisismo secundário "11 5.
Situado nessa intersecção do mundo dos objetos sociais com as
condições econômicas do comportamento sexual, o conceito de
supereu, com as pequenas mudanças de ênfase promovidas por Lacan,
torna-se quase que uma noção exemplar da imensa síntese pretendida
pelo autor: ele permite, com efeito, enraizar as funções intencionais
no mundo da vida, ao produzi-las a partir das tensões energéticas cau-
sadas pela repressão social, ao mesmo tempo em que ilustra, no plano
intrapsíquico, um dos "fundamentos vitais do conhecimento" (sic), que
uma visada mais etológica descreveria como comportamento imitativo
(ou seja, no fundo, Lacan está dizendo que a identificação correspon-
de, no nível psíquico, à imitação observada no comportamento ani-
mal). De quebra, reforça o determinismo social e familiar da gênese
da personalidade, além de introduzir o "ponto de vista da pessoà' (um
dos. slogans da Tese ... ) no âmago mesmo da apreensão cognitiva dos
objetos, já que Lacan recorre outra ve~ à antropologia evolutiva de
Lévy-Brühl para afirmar que, no pensamento "primitivo", um antro-
pomorfismo característico sugere que todo conhecimento seja, ini-
cialmente, um conhecimento de pessoa, e que, a partir das posições
subjetivas engendradas pelas identificações, é que se dá acesso ao co-
nhecimento de objeto.
Uma noção tão conveniente não poderia ser desprezada, e sua
utilidade certamente deve ter alimentado a esperança de que a psica-
nálise pudesse vir a melhor municiar, futuramente, a incipiente "ciên-
cia da personalidade" de Lacan. Os trabalhos mais importantes de
Lacan, de agora em diante, já terão sempre por foco mais explícito a
psicanálise. Mas, como se verá, o projeto de reformas anunciado na
Tese vai visar, antes de tudo, à formação de uma psicologia adequada
à ordem de fenômenos aqui demarcada. A psicanálise passará, aos pou-
cos, de fornecedora independente de conceitos psicológicos ao status
de modelo de uma psicologia concreta, antes que a investigação psica-

I !5 PP, p. 325; grifos do autor.


150 RICHARD THEISEN S!MANKE

nalítica passe a ser, para Lacan, um fim em si mesmo, mas, ainda as-
sim, com a proposição de um projeto bastante singular de ortodoxia.
O fato de que esta psicologia almejada deva servir, em primeiro lugar,
às necessidades da clínica das psicoses, dará um colorido peculiar ao
esforço epistemológico de Lacan. A importação de noções clínicas para
esta reflexão é mais ou menos simétrica às digressões epistemológicas
que entremearam-se à investigação da paranóia e antecipa a verdadei-
ra identificação entre o trabalho clínico e o teórico que Lacan virá a
propor posteriormente.
III. O CONHECIMENTO
COMO FENÔMENO PARANÓICO

Num artigo publicado na revista Le Minotaure 1, já no ano se-


guinte ao do aparecimento da Tese, Lacan apontava, como condição
para uma abordagem psiquiátrica fecunda dos problemas relativos à
criação artística - mais especificamente, o problema do estilo-, a mes-
ma guinada em direção ao concreto que lhe parecera ser exigida pelo
estudo da personalidade e de seu papel na produção dos sintomas pa-
ranóicos. A principal contribuição a exemplificar este caráter concreto
das mais recentes inovações psiquiátricas são justamente as análises
pormenorizadas dos "escritos inspirados" dos loucos, e Lacan propõe-
se a indicar, neste artigo, "em termos necessariamente mais abstratos,
que revolução teórica eles trazem à antropologia"2 •
Ora, a leitura da Tese permite ver claramente que um viés antro-
pológico deve, necessariamente, atravessar a "ciência da personalidade"
cuja fundação é ali anunciada. É claro que não se trata de qualquer
antropologia e, ao longo da Tese, Lacan demonstra I'lão saber ainda
muito bem qual é; mas, de todo modo, o projeto de uma reforma da
psicologia, implicado pela exigência de dar um caráter concreto à nas-

1 "O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da


experiência". Publicado originalmente em junho de 1933, no primeiro número
da Le Minotaure. Republicado em Primeiros escritos sobre a paranóia, como anexo
à Tese.
2 "O problema do estilo ... ", p. 375; grifos nossos.
152 RICHARD THEISEN S!MANKE

cente ciência da personalidade, vai-se fazer acompanhar, desde o início,


pela esperança de uma reviravolta teórica na antropologia que possa
lhe fornecer uma fundamentação adequada. Ainda no artigo citado,
nosso autor automaticamente encadeia uma crítica à "psicologia de
escola'' à sua afirmação das conseqüências revolucionárias do ingresso
da literatura patológica sob os refletores da psiquiatria: o erro siste-
mático desta psicologia- que decorre, aliás, das abstrações de labora-
tório -, é o desconhecimento da realidade do homem, por onde já se
percebe por que sua reforma passa pela antropologia, que, em princí-
pio, deve fazer dessa realidade seu objeto. Este desconhecimento é efei-
to da mesma atitude realista que pensa preservar as qualidades huma-
nas sob o enfoque psicológico, mas que apenas deixa-as dissolverem-se
num objetivismo herdado de toda uma tradição reducionista, na qual
elas são relegadas a epifenômenos dispensáveis de um mecanismo físi-
co-químico, apenas ele efetivamente real. Portanto, a inspiração co-
mum tanto da psicologia, quanto da antropologia que Lacan vai per-
seguir nos anos subseqüentes, será uma concepção do conhecimento
a que se proíbe, de saída, qualquer compromisso realista; isto é, um
conhecimento cuja garantia repousasse na fidelidade a uma realidade
dada. É esta epistemologia que começa a se esboçar nas reflexões que
procuram fundar uma psicologia apropriada à interpretação da perso-
nalidade psicótica. A mesma imbricação entre questões clínicas e epis-
temológicas, que já se fazia notar na Tese, caminha agora no sentido
inverso: a clínica da paranóia, sobretudo, vai abastecer de noções no-
vas a psicologia lacaniana emergente. Se, antes, Lacan fora levado a
afirmar a equiparação do conhecimento paranóico ao conhecimento
normal, esta aproximação assume, agora, um outro aspecto: é o co-
nhecimento humano, em geral, que se comporta de uma maneira mais
ou menos patológica, introduzindo na apreciação do real uma fixidez
ilegítima, o que vai fazê-lo merecer o epíteto de "paranóico" ao cabo
de uma série de desenvolvimentos. O hiperobjetivismo organicista - e
cientificista, em geral, ao menos para uma certa concepção de ciência
- vai ser situado muito aquém de suas pretensões científicas e, na prá-
tica, assimilado ao conhecimento comum. O pacto da ciência com a
verdade só poderá ser cumprido através de uma terapêutica doutrina
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 153

da constituição concomitante do sujeito e dos objetos do conhecimen-


to humano, que deverá purgar a psicologia de seus infortúnios histó-
ricos e equacionar os "problemas, para sempre insolúveis, de toda an-
tropologia que não estiver liberada do realismo ingênuo do objeto"3.

III.1. ABSTRAÇÕES DA PSICOLOGIA

Quais são, então, os pecados desta "psicologia de escola'' que é


preciso reformar? Segundo o diagnóstico lacaniano, ainda em "O pro-
blema do estilo ... "4, ela é culpada por "votar uma confiança ingênua
ao pensamento mecanicista'', devido ao seu surgimento tardio no pa-
norama das ciências positivas, onde sucumbiu à sedução dos resulta-
dos promissores obtidos pelas ciências físicas. A partir deste
compromisso acrítico com uma postura naturalista, a psicologia teria
falhado em reconhecer o caráter artificiàl, no sentido de construído
pelo próprio homem, da "natureza'' que contém e determina seu obje-
to, ou seja, nos termos da Tese, ela viu-se condenada a desconhecer
sistematicamente a especificidade do meio humano. Como conseqüên-
cia metodológica deste desconhecimento, dá-se a confusão entre as
condições artificiais do laboratório e aquelas que definem a realidade
própria na qual se gesta o psiquismo humano. Numa palavra, a psico-
logia passa por alto, por um lado, a determinação cultural do ambien-
te humano e, por outro - mas, talvez, por isso mesmo -, é incapaz de
perceber as distorções introduzidas por um dispositivo experimental,
ele mesmo mecanicista, no comportamento de seu objeto5. Este diag-

S "O problema do estilo... ", p. 380.


4 Ver loc. cit., p. 375-6.
5 Canguilhem assinala, ao rastrear as origens hisc6ricas da psicologia experimental -
mais especificamente, da psicologia "como ciência das reações e do comportamen-
to" - até a biologia do comportamento do século XIX que, além de derivar de
154 RICHARD THEISEN SIMANKE

nóstico formulado por Lacan expõe, de modo bastante precoce, uma


série de tópicos que se farão objeto da epistemologia da psicologia ao
longo do século. É possível, assim, situar nosso autor num movimen-
to bem mais amplo de tomada de consciência dos impasses que até
hoje barram a afirmação da psicologia como ciência. A fim de con-
textualizar as elaborações lacanianas, vale a pena, então, fazer um bre-
ve inventário destes impasses.
Uma parte deles, pelo menos, é insolúvel, pelo próprio fato de
que tentar propor uma "ciência da subjetividade" - ou seja, uma psi-
cologia que restitua os plenos direitos da realidade humana integral-;-
significa dar-se um sujeito como objeto, o que é auto-contraditório, seja
qual for a equação que se tente. Todos os projetos nesse sentido terão
que admitir alguma margem de imprecisão na delimitação de um dos
termos, porque, levada às últimas conseqüências de rigor, a via estrei-
ta onde se equilibra uma possível "objetividade do subjetivo" 6, reduz-
se a proporções infinitesimais. Por exemplo, uma leitura, com inten-
ções críticas, da situação experimental de laboratório, mesmo no caso
aparentemente menos problemático da psicologia animal, pode seg1,1ir
dois caminhos: o primeiro revela a imposição de uma objetividade ar-
tificial ao sujeito do experimento - senão no dispositivo prático, ao
menos na análise dos resultados -, objetividade em geral sobrecar-
regada com pressupostos mecanicistas e atomistas, que são escamotea-

toda uma corrente utilitarista, que passa por Hume, Adam Smith e os Enciclope-
distas, entre outros, contém ainda um outro princípio, que permanece informula-
do: ''Este principio é a definição do próprio homem como ferramenta. Ao utilitaris-
mo, implicando a idéia de utilidade para o homem, a idéia do homem como juiz
da utilidade; sucedeu-se o instrumentalismo, implicando a idéia da utilidade do
homem, a idéia do homem como meio de utilidade" ("Qu'est-ce que la psycho-
logie?", p. 377-8). Esta é uma obsetvaljâO que permite compreender a facilidade
com que a mecânica dos instrumentos de investigaljâO contamina seu objeto.
6 Cf. o título do primeiro capítulo do livro de Ogilvie: "A objetividade do subjeti-
vo: a via estreita do 'ponto de vista' da pessoà' (Lacan: la formation du concept de
sujet, p. 10).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 155

dos pelas questões de método; o segundo caminho leva a interpretar o


sucesso de certos experimentos em confirmar as hipóteses de pesquisa
como uma prova da capacidade de um sujeito de se adaptar à lógica
do experimentador, que, afinal, é quem propõe as categorias em que
se formula o problema. Em ambos os casos, o que se vê é uma proje-
ção do objetivo sobre o subjetivo, ou vice-versa, mas nunca uma obje-
tivação fidedigna dos fatos da subjetividade, mesmo que esta seja en-
tendida num sentido bastante amplo para incluir a intencionalidade
do comportamento animal, tal como Lacan já se expressava na Tese.
Aliás, estas duas vias revelam aspectos complementares da mesma im-
pregnação metafísica da psicologia experimental. A crítica merleau-
pontyana do elementarismo das teorias do reflexo mostra muito bem
como este resulta de um antropomorfismo da situação de laboratório,
cujo artificialismo inocula nos resultados os pressupostos subjacentes
à ciência humana7 . A outra face desta impregnação se manifesta numa
interpretação antropomórfica explícita dos dados mais singelos da psi-
cologia animal, como referir-se aos resultados de um experimento so-
bre a discriminação de formas geométricas como o "desenvolvimento
do conceito de triangularidade (sic) em ratos" 8, e outros abusos seme-

7 Em Le structure du comportment, Merleau-Ponty inclusive coloca no mesmo barco


a interpretação localizacionista das patologias neurológicas e a situação experimen-
tal, que praticamente impõe ao animal aquele comportamento dissociado: é este,
portanto, o "comportamento de laboratório, onde o animal é colocado em uma·
situação antropomórfica, já que, em lugar de defrontar estas unidades naturais que
são um acontecimento, uma presa, ele é adstrito a certas discriminações, deve rea-
gir a certos agente~ físicos e químicos que só têm existência separada na ciência
humanà' (op. cit., p. 45). Ou, mais explicitamente: "Assim, o reflexo, efeito de
uma dissociação patológica, característica não da atividade fundamental do ser
vivo, mas do dispositivo experimental do qual nós nos servimos para estudá-lo
(...) não pode ser considerado como o elemento constituinte do comportamento
animal senão por uma ilusão antropomórfica" (ibidem, p. 47-8).
8 O exemplo é de Pierre Gréco. Ele cita outros títulos de monografias experimen-
tais, tais como Aspectos quantitativos da evolução dos conceitos ou Racioclnio em ra-
tos brancos, e assim por diante (ver "Épistémologie de la psychologie", p. 928-9).
156 RICHARD THEISEN S!MANKE

lhantes. É por isso que, por uma questão de consistência filosófica,


autores tão diversos quanto Comte e Bergson foram levados a recusar
taxativamente a possibilidade de uma psicologia científica9. A influên-
cia, direta ou indireta, que Lacan sofreu destes dois autores revela, para
além das evidências imediatas da clínica das doenças mentais, as fon-
tes filosóficas de sua percepção dos infortúnios da psicologia, que ele
vai tentar sanar nos anos que se seguem à Tese.
O veto positivista à psicologia é tanto mais interessante para a
compreensão do encaminhamento lacaniano quando se percebe que
seu teor é preservar a originalidade e a irredutibilidade dos fatos sociais
aos fatos biológicos e psicológicos: Lacan, invertendo de certa forma o
argumento de seu predecessor, vai depositar as esperanças de uma psi-
cologia científica justamente nessa constituição de uma antropologia
"anti-individualista", termo ainda um tanto vago com que, na Tese,
ele designa uma ciência do social autônoma com relação às variáveis
psicológicas no sentido tradicional. A justificativa que dá para rebe-
lar-se, nesse ponto, contra a inspiração comteana que ele mesmo ad-
mite é creditar a radicalidade desta exclusão da psicologia ao fato de
Comte só conhecer as correntes introspeccionistas, assim como o in-
telectualismo abstrato de certas escolas, que não passava, no fundo,
de uma versão laica da psychologia rationalis pré-kantiana. Mas o fato
é que Comte teve oportunidade de conhecer algumas tentativas de
proposição de uma psicologia objetiva, que se aproximasse tanto quan-
to possível ao modelo das ciências naturais, como o ensino de Herbart,
na mesma Kõnigsberg onde Kant promulgara a dupla sentença con-
tra a psicologia racional e a empírica, que repercutiria até sobre a for-
mação da metapsicologia freudiana {o conceito de Verdrãngung, por
º.
exemplo, é de nítida inspiração herbartiana) 1 O veto positivista, na

9 ~também Pierre Gréco que elege as posições comteanas e bergsonianas como re-
presentativas dos impasses epistemológicos da psicologia, no artigo citado, que
acompanhamos em linhas gerais.
10 O método comparativo de Herbart - que visava garantir a objetividade da psicolo-
gia, à falta de um método experimental nem sempre viável - prescrevia a observa-
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 157

verdade, tem uma razão mais profunda, que aponta para o próprio
coração do projeto lacaniano.
Além de conter a bem conhecida condenação metodológica da
introspecção .... que Lacan compartilha e que consiste, de fato, na par-
te do veto positivista que está disposto a aceitar-, a destituição da
psicologia do elenco das ciências positivas prende-se a considerações
epistemológicas: se a contemplação direta do espírito pelo espírito não
pode passar de uma pura ilusão, tudo o que concerne à observação
externa e direta do homem isolado é da alçada da biologia, sendo su-
pérflua a fundação de uma ciência original para disso se ocupar. Numa
palavra, a apreensão objetiva do indivíduo humano só o revela enquan-
to organismo, plano no qual ele não porta nenhuma peculiaridade
decisiva em relação ao mundo animal e, portanto, as ciências biológi-
cas já existentes são perfeitamente adequadas para esta tarefa. Num
outro plano, apenas os fenômenos sociais, em si mesmos, dão-se à
observação na forma objetiva, a consideração dos indivíduos pertur-
bando a positividade do conhecimento sociológico com os ruídos da
subjetividade. "Fisiologia e sociologia constituem exaustivamente a
ciência positiva do homem" 11 , e o que fica excluído nesta recusa, tan-
to num extremo quanto no outro, é a possibilidade de uma ciência do
sujeito: não há razão que se perceba para que uma ciência dos fatos
psíquicos não possa ser tão positiva quanto se queira - o que foi, de
fato, realizado com relativo sucesso por diversas escolas posteriores,
como o behaviorismo ou a Gestalt -, mas sempre ao custo de excluir a
referência ao sujeito, a única capaz de preservar a especificidade epis-
temológica da psicologia, mas definitivamente inefável para uma me-

ção inter-racial, assim como de doentes orgânicos e mentais, constituindo aquilo


a que Ribot, bem mais tarde, se referia como uma "experimentação natural" (cf.
Pierre Gréco, "Épistemologie de la psychologie", p. 934). O próprio Comte che-
gou a se referir à doença mais ou menos nestes termos, mas num contexto deriva-
do da psicopatologia de Broussais.
11 Gréco, P. "Épistemologie de la psychologie", p. 936.
158 RICHARD THEISEN S1MANKE

todologia positiva12 . Daí, a suspeita crônica que paira sobre toda atri-
buição do predicado "científicà' a qualquer psicologia que não seja
apenas uma versão pobre das ciências naturais. Suspeita que um Polit-
zer, por exemplo, a quem retornaremos em breve, enunciou nos termos
mais duros, aos quais Lacan não permaneceu indiferente. Este mal-
estar na psicologia foi criado pelo positivismo e, de certa forma, jamais
dissipado. É Gréco quem nos dá a sua expressão mais sintética: "Esta
é a infelicidade do psicólogo: ele não está jamais seguro de que "faz
ciência". Se o faz, não está jamais seguro de que isto seja psicologià' 13 •
A crítica bergsoniana é, em todos os sentidos, simétrica à do
positivismo, já que parte de um ponto de vista totalmente oposto - a
irredutibilidade da vida interior ao tipo de objetivação proposto pela
ciência - para chegar à mesma conclusão. Se Comte desabonava uma
ciência psicológica por ser supérflua, Bergson a recusava por ser falsa.
É sobre a crítica dos métodos e resultados da psicologia de laborató-
rio, por um lado, e da psicopatologia mecanicista, por outro - já nos
estendemos sobre o modo como a primeira parafraseia a segunda .:...
que ele constrói um sistema votado à preservação da unidade e da ori-
ginalidade do espírito. A complexa elaboração que estabelece a dura-
ção como forma da interioridade constitui, assim, uma crítica simul-
taneamente anti-dementarista e anti-reducionista, endereçada, antes
de tudo, ao associacionismo clássico 14 que, como Lacan muito bem

12 Gréco assinala ainda que, do ponto de vista comteano, esta especificidade episte-
mológica deveria oscilar entre a metafisica e algutl!-a coisa semelhante à análise
literária. Não é para se estranhar, então, que o pensamento lacaniano, ao tentar
garantir a identidade da psicanálise como ciência do sujeito, acabe se inclinando
em direção à primeira, na sua peculiar metapsicologia, e em direção à segunda,
na prática clínica.
l3 ln: "Épistemologie de la psychologie", p. 937.
14 Para não dar um sentido nobre demais ao termo clássico, vale lembrar o comen-
tário de Canguilhem que, além disso, ilustra bem o estado de crise permanente
da psicologia, cujo desenvolvimento nos pinta o curioso quadro da história de
uma ciência feita quase que s6 de rupturas: "Se denominamos psicologia clássica
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 159

percebeu, faz uma síntese formidável de todos os equívocos contem-


porâneos e pretéritos da psicologia. A descendência bergsoniana pode
ser identificada em todo o esforço fenomenológico de reforma e críti-
ca da psicologia e da psicopatologia: não é insensato colocar aí nomes
como Merleau-Ponty e Sartre, Binswanger e Jaspers. Se incluirmos,
ainda, o imenso esforço conciliatório de um Minkowski, por cuja via
esta problemática desaguou, com todo seu impacto, sobre a estréia de
Lacan na arena doutrinária da psiquiatria, é possível perceber a
pertinência do viés bergsoniano em sua reflexão epistemológica, o que
justifica algumas referências explícitas e esparsas, mas que também re-
percute no tom mais geral do projeto. Pois, se Lacan não fica alheio,
por exemplo, à psicologia fenomenológica de Sartre, ao longo da ela-
boração de sua teoria do imaginário, expõe-se também, por esta via, à
tese bergsoniana, mas também comteana, de que uma ciência do su-
jeito enquanto tal só pode ser metafísica, já que Bergson identificava,
na prática, psicologia e metafísica, ao propor a intuição como método
comuin a ambas. O apelo à psicanálise passa a soar, então, como uma
espécie de recurso in extremis para preservar, ao menos em parte, a
cientificidade inicialmente exigida, mesmo que sobre um plano dife-
rente de objetivação, que vai apostar suas fichas no rigor formal da
lingüística e da antropologia estruturais. O que é importante reter, no
entanto, é que a "reintrodução do sujeito", na Tese, praticamente exi-
giu de Lacan a formulação de uma psicologia que pudesse dar conta
da subjetividade, com o que um autor situado no cruzamento de ten-
dências tão antagônicas quanto Bergson e o positivismo não pôde dei-
xar de arcar com o peso de uma dupla interdição: se há em Comte·
uma concepção de ciência que interdita todo o acesso ao sujeito, o
que há em Bergson é uma concepção do sujeito que interdita toda
abordagem científica15. O que Lacan faz na Tese é partir de uma série

aquela que pensamos refutar, é preciso dizer que, em psicologia, há sempre clássi-
cos para alguém" ("Qu'esc-ce que la psychologie?", p. 373).
l5 Cf. Gréco, P. "Épistemologie de la psychologie", p. 932.
160 RICHARD THEISEN SIMANKE

de inovações metodológicas, que exploram o fato de que tanto Bergson


quanto Comte só levavam em conta o método experimental da físico-
química analítica. Ele vai, depois, apelar até mesmo para um modelo
relativista, emprestado à física e aplicado à psicologia de um modo
meio enviesado. Mas, ao enveredar por estas considerações epistemo-
lógicas indispensáveis para a fundamentação de uma metodologia
nova, ele vai chocar-se de frente com os paradoxos que envolvem qual-
quer abordagem objetiva do subjetivo, simpatizando cada vez mais
com a psicanálise, cuja singular fundamentação consegue, de alguma
forma, fazer destas ambigüidades seus pressupostos.
De fato, dificilmente passaria despercebido a alguém mergulha-
do neste debate a contribuição original, ainda que não isenta de con-
tradições, que a psicanálise pode trazer. Quando Lacan restitui as prer-
rogativas do sujeito, na Tese, ele o faz movido pela constatação de que
desconhecer a dimensão significativa dos sintomas psicóticos é redu-
zi-los a epifenômenos dos processos neurais e, no limite, privar a pró-
pria psiquiatria de uma posição diferenciada no quadro das ciências
médicas; ou seja, ele passa a tratar o sentido como um fato, embora
esta seja apenas uma outra maneira de enunciar o dilema fundamen-
tal da objetividade do subjetivo. Ora, a psicanálise representa um
exemplo notável de apreensão objetiva do sentido; ela faz do sentido
dos fenômenos psíquicos o objeto de uma investigação animada do
mais puro espírito determinista. E, se Lacan lhe faz reparos, na Tese e
depois, é por ela permanecer, a seus olhos, ainda demasiado presa a
pressupostos biológicos, que é preciso dispensar, além de conservar
algo do ranço metafísico da psicologia abstrata. Para tanto, ele vai lan-
çar mão de duas estratégias distintas: uma estratégia de substituição,
que propõe alternativas para os conceitos freudianos mais inclinados
ao biologismo, e uma estratégia de ressignificação, que dá novas
acepções aos termos empregados por Freud, a partir de uma funda-
mentação extra-psicanalítica. Estes dois procedimentos são aplicados
conjuntamente, mas, de modo geral, o primeiro predomina nas ela-
borações em torno da teoria do imaginário, onde noções como as de
imaginário e imago substituem as de inconsciente e pulsão, por exem-
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 161

plo, ao mesmo tempo que determinam redefinições de conceitos como


o de narcisismo e libido; o segundo passa a prevalecer mais para o final
da década de 40, firmando-se, com a pregação do "retorno a Freud",
como a estratégia fundamental da teorização lacaniana.
Mas, de certa forma, o aproveitamento lacaniano dos dados da
psicanálise reproduz o modo como foram rebatidas as interdições à
constituição de uma psicologia científica: ele é bem sucedido, na ex-
tensão em que se exerce ainda a influência politzeriana, na valorização
do método, no qual convergem todas as virtudes da psicologia concreta,
da mesma forma que, no início, Lacan tentava desvencilhar a psicolo-
gia de seu duplo veto através de considerações de ordem metodológi-
ca. Todavia, quando se trata de reformular a doutrina, todos os
impasses anteriormente apontados retomam, fazendo impor-se cada
vez mais a idéia de que, se Freud conseguiu contornar obstáculos em
que outros tropeçaram, é porque seus conceitos não são definidos em
termos psicológicos (nem neurofisiológicos, diga-se de passagem), só
fazendo sentido no contexto desta reflexão muito peculiar que é a
metapsicologia. É só na sua formulação metapsicológica que um con-
ceito tão essencial como o de representação inconsciente pode-se fazer
alvo da interpretação psicanalítica e, mesmo, adquirir algum sentido
que não seja uma contradição em termos. Por isso, enquanto insistir
na fundação de uma nova psicologia, Lacan vai propor as imagos -
precipitados identificatórios das relações sócio-vitais que constituem
os complexos - como os objetos apropriados à sua ciência em forma-
ção e, quando incorporar o conceito de inconsciente será na acepção ·
anti-psicológica que esta noção adquire na antropologia estrutural com
a substituição da noção de representação pela de estrutura, a partir da
qual tentará constituir a "sua'' metapsicologia particular. Da mesma
forma, se a psicologia fenomenológica surge, num primeiro momen-
to, como capaz de fundamentar o método compreensivo importado
da psiquiatria de Jaspers e outras assemelhadas, tomar-se-á cada vez
mais claro que este método é tudo que Lacan pode esperar deste tipo
de abordagem, cuja deriva do empírico em direção ao eidético fá-la
imprópria para o embasamento de uma prática de intervenção clíni-
162 RICHARD THEISEN SIMANKE

ca. Se a fenomenologia prestou grandes serviços a Lacan na crítica de


uma psicologia acadêmica esclerosada, deixou-o desarmado diante da
tarefa positiva de propor uma nova teoria psicológica mais de acordo
com os requisitos do concreto.
O fato de que é pela via metodológica que Lacan consegue dar
uma nova fórmula aos velhos problemas da psicologia esclarece seu
compromisso com uma epistemologia não realista: foi esta maneira
de conceber o conhecimento científico que firmou, progressivamen-
te, o ponto de vista de que o conceito de uma ciência depende mais
de seu método que de seu objeto - ou, como se expressa Lacan na
Tese, o reconhecimento de que os métodos criam os fatos. É notável,
contudo, que a crítica da psicologia de laboratório - cuja definição
passa, flagrantemente, por questões de método - conduza à adoção de
um modelo clínico, que tem como condição um novo conceito de
objeto, capaz de abarcar a totalidade do indivíduo humano, o que só
pode ser alcançado numa elaboração abertamente doutrinal 16• Como
conseqüência, questões de método e de doutrina vão permanecer sem-
pre sobrepostas no pensamento de Lacan, o que, como vimos, é visí-
vel já na Tese e prolonga-se na virtual identificação entre clínica e teo-
ria que assistimos na obra posterior.
De qualquer modo, estes progressivos dissabores marcam o iti-
nerário já mencionado das aventuras epistemológicas de Lacan, que
passa da psicanálise como municiadora de uma psicologia médica à
psicanálise como modelo de uma psicologia geral e concreta. Como,
em ambos os casos, os próprios termos do projeto exigem a preserva-
ção da referência à subjetividade, como condição de inteligibilidade
da face significativa e intencional dos fatos, psíquicos, a falência deste

16 Cf. Ganguilhem, G. "Qu'est-ce que la psychologie?", p. 367: "E, com efeito, uma
psicologia apenas pode ser dita experimental em razão de seu método, e não em
razão de seu objeto. Ao passo que, apesar dás aparências, é pelo objeto, mais que
pelo método, que uma psicologia é dita clínica, psicanalítica, social, etnol6gica.
Todos estes adjetivos são indicativos de um único e mesmó objeto de escudo: o
homem, ser loquaz ou taciturno, ser sociável ou insociável".
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 163

empreendimento vai apontar a psicanálise enquanto tal como única


alternativa para uma teoria objetiva - e não mais puramente metafísi-
ca - do sujeito e para a sobrevivência dos itens essenciais do projeto
lacaniano inicial.

III.2. DIRETRIZES POLITZERIANAS

Mesmo que seja possível remontar a problemática com que


Lacan se defronta a propósito da psicologia a Bergson e Comte, estes
dois autores comparecem aqui mais como emblemas de duas faces do
dilema científico da psicologia do que como influência concreta. Se
esta existiu, foi sempre através de vias indiretas - Bergson através de
Minkowski, Comte através de Maurras, como sugere Ogilvie 17 - e
necessariamente matizada pelo transporte.de questões filosóficas para
o interior da clínica psiquiátrica. Além disso, esta influência só pôde
produzir efeitos em Lacan no que diz respeito ao momento crítico e,
por assim dizer, desconstrutivo da tarefa a que se propunha, já que
ambas as filosofias concluem pela negação da possibilidade de uma
psicologia que atenda os padrões de científicidade estabelecidos. A ins-
piração para a tarefa positiva de fundação de uma ciência psicológica
à altura das necessidades clínicas da psiquiatria e de uma abordagem
concreta da realidade humana vai ter que ser buscada em outro lugar..
É, de fato, no turbulento pensamento de George~ Politzer que Lacan
vai apoiar-se inicialmente. Embora a obra fundamental de Politzer,
como o próprio n~me indica, proponha-se, antes de tudo, a uma crí-
tica - das mais virulentas, aliás - dos fundamentos da psicologia, ela
ao menos acena com a possibilidade futura de uma psicologia concreta,
erigida sobre os escombros da psicologia acadêmica lançada por terra.

17 Cf. Lacan: la formation du concept de sujet, p. 59.


164 RICHARD THEISEN S!MANKE

Projeto jamais realizado, é verdade, como também não o foram as sin-


ceras intenções lacanianas que iam no mesmo sentido, mas mesmo
estas desistências reiteradas são representativas das afinidades entre os
dois desenvolvimentos. Além disso, a referência a Politzer é significa-
tiva, porque ela determina, nitidamente, o estilo inicial da relação de
Lacan com a psicanálise, marcada pela dissociação método/doutrina
que se manifesta, como vimos, já nas páginas da Tese 18 . A história da
relação de Lacan com a psicanálise, nesses primeiros tempos, é a his-
tória da aceitação progressiva das teses merapsicológicas, relegadas por
Politzer ao ostracismo, junto com os destroços da psicologia tradicio-
nal. De fato, a evolução do pensamento dos dois autores mostra uma
progressiva superação daquela dicotomia inicial: Politzer, no sentido
de uma rejeição integral da psicanálise; Lacan, no de uma reivindica-
ção intransigente de ortodoxia freudiana, ainda que em termos muito
particulares, como se sabe.
O trabalho de Georges Politzer é notável em vários sentidos. Ele
é, de fato, um dos primeiros a colocar a palavra de ordem do concreto
na pauta do dia, com um livro que alinhava-se tão bem com este novo
espírito emergente nas letras francesas que não deixou de ter uma sig-
nificativa progênie ao longo do tempo, sendo alvo de sucessivas reto-
madas, nem sempre fiéis à sua inspiração original, mas que não podiam
evitar de tê-lo como ponto de referência 19 • Mas, quanto ao proveito

18 Maud Mannoni é um dos poucos autores dos círculos mais próximos a Lac:an a
reconhecer, sem muitos problemas, a influência 'decisiva de Politzcr na formula-
ção do projeto lacaniano inicial: "Lacan, a partir de 1932, tirou partido das críti-
cas (e dos erros) de Politzer, dando a seus próprios trabalhos uma orientação qua-
se fenomenológica (muito diferente da orientação mecanicista de Clérambault,
seu mestre). Ele utilizou, assim, a noção de 'drama humano' na psicose, fazendo
do psic6cico a testemunha de um drama que o atravessa" (La théorie comme fic-
tion: Freud, Groddeck, Winnicott, Lacan, p. 131).
19 Para um apanhado das repercussões posteriores da obra de Politzer, ver o artigo
de Bento Prado Jr., "Georges Po!itzer: sessenta anos da Crítica dos fandamentos
da psicologia''.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO l'ARANÔICO 165

que Lacan pode ter tirado de suas idéias, destacam-se dois pontos mais
específicos: primeiro, o processo aberto contra os descaminhos histó-
ricos da psicologia acadêmica, que compõe, juntamente éom a penú-
ria da clínica das doenças mentais sob a bandeira do organicismo,. a
principal motivação para o esforço crítico que Lacan desenvolveu na
Tese; segundo, a proposição de um modo particular de interpretação
da obra de Freud e, num sentido um pouco mais amplo, das teses psi-
canalíticas em geral, que vai orientar longamente a leitura lacaniana,
mesmo num estágio em que o seu encaminhamento já tenha sido com-
pletamente redirecionado. É nas páginas da Tese que o aspecto crítico
do pensamento de Politzer faz sentir mais nitidamente sua presença,
com inovações metodológicas sendo postas por Lacan a serviço da
desmontagem de preceitos dogmáticos profundamente arraigados nas
doutrinas psiquiátricas. Mesmo que o nome de Politzer não seja cita-
do uma vez sequer - para o que se pode imaginar muitas razões, desde
a pouca boa vontade da circunspecta psiquiatria universitária para com
um autor estrangeiro, comunista e francamente mau comportado, até
a já manifesta despreocupação de Lacan em esclarecer suas fontes-,
suas idéias, seu vocabulário e o tom de sua crítica permeiam boa parte
º.
das elaborações lacanianas efetuadas ali 2 Isso, mais as cenas de
policzerianismo explícito que se seguem- com destaque para o artigo
"Au-délà du 'Príncipe de realité"', ao qual retornaremos na sequên-
cia-, fornecem evidências bastantes para que a influência do autor da
Critique... não seja passível de muitas dúvidas. Nos trabalhos posterio-
res à Tese, Lacan vai estar mais ocupado com a tarefa construtiva de .
estabelecer os parâmetros para uma psicologia que possa ser, enfim,
positiva; as indicações politzerianas serão aí decisivas, principalmente
no que diz respeito ao aproveitamento da psicanálise, afinal, a única
corrente "psicológica" efetivamente analisada, tanto por Politzer quan-
to por Lacan. Se é verdade que Politzer aderiu depois, por razões

20 As referências ao "concreto" ou, ainda mais explicitamente, à "psicologia concre-


tà', podem ser encontradas em PP, p. 3, 315, 319 e 323, por exemplo (a lista não
é exaustiva).
166 RICHARD THEISEN SIMANKE

ideológicas, à psicologia oficial do stalinismo, a desistência de Lacan


de levar adiante o projeto de uma psicologia concreta talvez possa ser
creditada à percepção de que as duas outras correntes candidatas a
preto-fundadoras - o behaviorismo e a Gestalt - não eram, afinal de
contas, tão imunes aos equívocos recorrentes da psicologia, ao menos
para os parâmetros lacanianos, o que é evidenciado, mais tarde, por
Merleau-Ponty, em Le structure du comportment21 •
A tese básica de Politzer é que a psicologia dita científica - isto
é, o conjunto das várias psicologias que passaram a se autodenominar
científicas a partir da adoção de uma miscelânea de métodos experi-
mentais- não faz outra coisa além de apresentar, sob um novo disfar-
ce, as mesmas noções abstratamente elaboradas da psicologia esco-
lástica. Ao fazer isso, elas cometem todos os erros a que pode conduzir
o compromisso não assumido com uma certa atitude metafísica: ado-
tam uma postura realista, que trata os fatos psicológicos como coisas,
no que, parecendo atender aos requisitos da objetividade científica,
não fazem senão reeditar o substancialismo da alma; incorporam, por
isso, o "mito da dupla natureza do homem" 22, um dualismo que, no
plano científico, significa a submissão humilde aos parâmetros das ci-
ências da matéria; procedem, à cobertura de um experimentalismo de
segunda mão, por um método pur~mente nocional - isto é, abstrata-

21 Merleau-Ponty mostra como o behaviorismo de Watson {ele não se refere a


Skinner), ao incorporar a noção de reflexo, numa acepção muito próxima à da
reflexologia russa, arca com todo o e/ementarismo mecanicista embutido neste con-
ceito. Quanto à Gestalt, ele deixa bem claro como ela incorre no equívoco realis-
ta, criticado tanto por Politzer quanto por Lacan, com a perspectiva reducionista
que o acompanha: numa teoria da forma, diz Merleau-Ponty, o isomorfismo entre
as formas perceptivas e as formas físicas, afirmado por Koffka e Wercheimer, só
pode redundar em identidade.
22 Critique des fandements de la psychologie {doravante CFP), p. 19. O chamado
behaviorismo lógico de Gilbert Ryle chega a fórmulas semelhantes pela via da
análise lógica do vocabulário da psicologia. Ver, por exemplo, o primeiro capítu-
lo do seu The conceptofmind, intitulado "Descarte's myth", que aborda o dualismo
e suas conseqüências mecanicistas sob a figura do "fantasma na máquinà'.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 167

mente téorico - que elabora o renitente mito cartesiano (e, no fundo,


para Politzer, a mitologia religiosa do cristianismo). Tudo isso fica
muito bem expresso por um dos melhores achados retóricos da Criti-
que... : "É preciso que se compreenda: os psicólogos são científicos como
os selvagens evangelizados são cristãos"23 •
O antídoto para esta situação catastrófica só pode ser encontra-
do numa ''orientation vers le concret"24 , isto é, em direção à verdadeira
psicologia, que não pode desconhecer o sentido muito particular que
adquire a vida dramdtica do homem, e que pretende, ao mesmo tempo,
ser concreta e preservar a referência ao sentido das ações humanas,
como condição para escapar do formalismo abstrato da psicologia "da
Escola''. O próprio Politzer adverte contra as ressonâncias românticas
· que poderiam advir do emprego do termo drama. Porém, para com-
preender o caráter efetivamente concreto de sua proposta, é preciso
detalhar um pouco mais as nuan~as de seu programa epistemológico,
antes de tentar apreender o modo como, dentro dele, se encaixa a psi-
canálise. Este programa, de fato, não aspirava a ser mais do que uma
tarefa preliminar, que permitisse, ao lançar as bases para a purgação
daquilo que a psicanálise, o behaviorismo e a Gestalt ainda deviam
aos cânones da psicologia tradicional, criar condições para a conver-
gência destas três escolas na fundação de uma nova disciplina. O con-
teúdo desta epistemologia politzeriana pode ser resumido em três tó-
picos: a perspectiva da primeira pessoa, o alcance metodológicb da
narratividade e a teleologia da ação 25 • Estes itens tornam-se tanto mais
interessantes quando se percebe o quanto são perfeitamente afins com
o encaminhamento lacaniano, posto em curso quase que na seqüên~
eia, se pensarmos nas datas de publicação da Critique... e da Tese: 1928
e 1932, respectivamente. Só que, para Lacan, depois do artigo de 1936
sobre o princípio de realidade, já não se tratava mais tanto de fundar

23 CFP, p. 18; grifos do autor.


24 CFP, p. 23. A semelhança com o título da obra quase contemporânea de Jean
Wahl Mr.r le concret, 1929) não é mera coincidência.
25 Cf. o artigo supracitado de Bento Prado Jr., p. 19.
168 RICHARD THE!SEN SIMANKE

uma psicologia renovada, quanto de fornecer à psicanálise os instru-


mentos dos quais, no seu entender, ela carecia para tornar-se, ela mes-
ma, esta nova ciência psicológica; ou seja, Lacan encontra-se, desde
então, no segundo estágio daqueles que distinguimos acima para des-
crever a evolução de seu compromisso com a psicanálise. Ele vai crer,
a partir daí, que uma releitura da obra de Freud desde um ponto de
vista antropológico deva bastar para atender aos requisitos do concre-
to estabelecidos na Critique... 26 •
A introdução da perspectiva da primeira pessoa é uma conseqüên-
cia direta da crítica da abstração e do formalismo psicológicos: ao não
efetuar a delimitação do fato psicológico sobre o terreno que é pró-
prio à sua investigação, a psicologia condena-se a trabalhar com um
objeto ilusório; sem uma base na experiência para definir a identidade
deste objeto, ela acaba submetendo-o a um método - experimental
ou introspectivo, não importa -cujas premissas derivam das ciências
da natureza. Isso ao preço de desconhecer a característica mais distin-
tiva da experiência psicológica, ou seja, que ela comporta essencial-
mente um sentido para um sujeito. Ao contrário, a principal exigên-
cia do método de uma ciência natural é que ele se aplique sobre algo
que é da ordem de uma coisa, de um elemento do real. Mas o objeto
da psicologia, assim especificado, não pode passar de uma paródia dos
fatos físicos ou, mesmo, biológicos; a aplicação do método experimen-
tal a um tal objeto só pode resumir-se a uma fachada de um exercício
puramente nocional que reproduz o estilo metafísico da psicologia
racional. Este equívoco é compartilhado pelas psicologias introspec-

26 Por exemplo, Lacan, em 1938, abre seu texto sobre a família - no qual engrena,
definitivamente, esta releitura antropológica da psicanálise - afirmando o grupo
familiar como o objeto ideal para ser abordado pelos métodos dessa nova psicolo-
gia: "Esta estrutura cultural da família humana é inteiramente acessível aos mito-
dos da psicologia concreta: observação e análise? Sem dúvida, esses métodos bas-
tam para pôr em evidência traços essenciais, como a estrutura hierárquica da
família,e para reconhecer nela o órgão privilegiado dessa violência do adulto so-
bre a criança, violência à qual o homem deve uma etapa originária e as bases arcai-
cas de sua formação moral" ("La familie" [doravante LF], p. 40-3; grifos nossos).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 169

cionistas que, sob a alegação de preservar a autenticidade de seu ob-


jeto, substancializam ainda mais explicitamente a vida interior, reedi-
tando a mitologia da alma. Em suma, a abstração e o formalismo no-
cional ou impõem-se mais ou menos diretamente, ou ocultam-se por
trás de justificativas oriundas da metodologia experimental, conduzin-
do, quer ao realismo metafísico da substância, quer ao realismo cien-
tífico do objeto, soterrando, em ambos os casos, as significações indi-
viduais que constituem o sujeito humano sob uma avalanche de
conceitos preestabelecidos.
Portanto, não se trata apenas, para Politzer, de afirmar que a ex-
periência psicol6gica tem um sentido - a psicologia clãssica já lhe atri-
buíra uma carga até excessiva dos mesmos-, mas de acrescentar que
este sentido é estritamente individual, é uma modulação interna do
eu e o exprime na exata medida em que esse eu se afirma como singu-
laridade em cada um de seus atos significativos. Esta homogeneidade
entre o sujeito e o sentido de suas ações é o que confere à perspectiva
da primeira pessoa seu caráter concreto, no sentido de que ela define
o que efetivamente ocorre nisso que se considera como um fato psí-
quico. O que quer dizer, ainda, que ela o descreve integralmente, sem
amputar a significação individual como tributo a uma científicidade
epidérmica. A abordagem na "terceira pessoà', que caracteriza a atitu-
de objetiva das ciências físicas, é condenada como um desconhecimen-
to da característica mais distintiva da natureza do homem 27 .

27 Vejamos uma passagem particularmente ilustrativa de Politzer: "Aliás, não apenas


a abstração se reencontra em todas as teorias, mesmo psicol6gicas, do sonho, mas
ela constitui a démarche fundamental de toda a psicologia clássica. Esta investiga,
com efeito, processos, por assim dizer, "autônomos", porque são descritos não
em termos de ações da primeira pessoa, mas em termos de mecanismo; ela traba-
lha com noções que correspondem aos fatos psicológicos considerados fora de sua
relação constitutiva com a primeira pe1soa, e que servem, em seguida, de ponto de
partida para tentativas de explicações mecânicas, onde não se emprega senão es-
quemas em terceira pessoa, e onde a primeira pessoa não reaparece jamais" (CFP,
p. 50, grifos nossos). E, logo a seguir, em tom conclusivo: "A característica mais
evidente dos fatos psicológicos é a de ser em primeira pessoa" (CFP, p. 51).
170 RICHARD THEISEN SIMANKE

Mas a constatação de que a abstração leva à exclusão do sujeito


não basta para afirmar que a sua reintrodução, por si só, seja garantia
para uma atitude concreta. Lacan mesmo já se apercebera, na Tese,
que a valorização das variáveis subjetivas podia conduzir, com facili-
dade, a uma interpretação espiritualista da condição psicótica, o que o
levou a temperar o requisito da compreensão com os rigores objetivos
da observação etológica. No caso de Politzer, esta faceta de sua crítica
da psicologia poderia aproximá-lo do estilo do bergsonismo (que ele
execrava) e precipitá-lo na celebração das potencialidades metafísicas
da "vida interior" que animava a filosofia dominante de sua época28 •
Mas, embora também manifestasse simpatias nítidas pelo behavioris-
mo de Watson, a estratégia maior de Politzer para precatar-se contra
as abstrações de uma visada subjetivista não será, como no primeiro
Lacan, inspirar-se na objetividade da psicologia animal, mas sim valo-
rizar um aspecto que se evidencia, mais do que em qualquer outra par-
te, na psicanálise: as virtudes concretas da narrativa como método de
acesso à subjetividade29 • Com isso, ele evidentemente antecipa uma
tomada de posição lacaniana mais tardia e, se chega a essa concepção
da experiência psicanalítica como um fenômeno de linguagem antes
de Lacan, isto é um sinal bem claro de que a psicanálise ocupa na Cri-
tique... um lugar muito mais central do que aquele que lhe será con-
cedido no doutoramento lacaniano, cujo caráter médico aposta mais
numa retificação dos critérios da observação clínica. É verdade que,
em Politzer, a linguagem nunca vai contaminar a substância mesma
dos fatos (ao contrário de Lacan que, depois, definirá o recalque como
um fenômeno de linguagem, o inconsciente como estruturado-como

28 Cf. Prado Jr., B., "Georges Politzer... ", p. 23.


29 Por exemplo, referindo-se a Freud: "Freud deve, portanto, substituir a intros-
pecção pela narrativa. O fato psicológico sendo o segmento da vida de um indi-
víduo singular, não é a matéria e a forma de um ato psicológico que são interes-
. santes, mas o sentido deste ato, e isto só pode ser esclarecido pelos materiais que o
próprio sujeito fornece por uma narrativa" (CFP, p. 90; grifos nossos). E, concluin-
do: "Enfim, o método da narrativa é objetivo( ... )" (CFP, p. 91; grifos nossos).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 171

uma linguagem, o sujeito como "parlêtre': e assim por diante), perme-


necendo restrita à condição de um instrumento de conhecimento. Isso
pode ser considerado como um indicador da intenção mais decidida-
mente epistemológica de Politzer, pouco afeito aos devaneios
ontológicos com que Lacan se compraz a certa altura. Mas é também
revelador do modo como Lacan vai tentar superar a dicotomia entre o
método e a doutrina freudiana inaugurada pela Critique... : por um es-
forço para impregnar a metapsicologia colocada sob suspeita com a
saúde de um método celebrado como inovador e quase inatacável. No
entanto, de todos os componentes do programa politzeriano, este é,
com certeza, o que mais se afasta da perspectiva de Lacan, por mais
que anuncie, numa fórmula genérica, algumas palavras de ordem de
sua doutrina posterior. Pois, para Politzer, de pouco valeria todo o es-
forço lacaniano para substituir os termos da metapsicologia: é à inten-
ção metapsicológica como um todo, nisso em que ela pretende des-
vendar alguma espécie de realidade por trás do sentido do relato, que
ele endereça sua verve. Substância ou estrutura, faculdades ou meca-
nismos, toda a especulação sobre a natureza última da vida interior
parece-lhe tão ruim quanto qualquer outra e, no caso da psicanálise,
uma perversão de sua ruptura original com os fantasmas da psicologia
("é na direção de uma psicologia sem vida interior que nos orienta a
psicanálise", diz ele, textualmente3º).
Com seu terceiro item, contudo, Politzer situa-se novamente
numa posição bem próxima da primeira atitude lacaniana. No caso
da narrativa, Lacan inicialmente a pretere em favor de uma observação
meio fenomenológica, meio etológica, voltada para o discernimento·
da intencionalidade das condutas, para defender, mais tarde, uma re-
ferência central à linguagem na instrumentação psicanalítica, mas só
ao preço de substancializá-la de alguma maneira, ao convertê-la na
matéria-prima do inconsciente, com o recurso ao formalismo estrutu-
ralista tendo, ainda, o efeito colateral de sobrecarregar sua versão da
metapsicologia com um novo mecanicismo, do qual ela terá dificul-

30 CFP, p. 117; grifos nossos.


172 RICHARD THEISEN S!MANKE

dades para se desvencilhar. Mas tanto a observação do comportamen-


to quanto o apelo estrito à materialidade da língua têm um objetivo
bem claro: contornar o solipsismo e a inefabilidade que ameaçam um
objeto de análise definido em termos de um ato significativo exclusi-
vamente subjetivo, singular e irrepetível. É essa mesma função que vai
desempenhar, para Politzer, a atenção concedida à teleologia da ação: a
narrativa não se define apenas em termos de uma função discursiva,
cujo sentido se oculta nos meandros de um sujeito enclausurado, mas
tem uma natureza essencialmente dramdtica, expressando-se, por isso,
através das ações dos indivíduos em situação social. Este é o aspecto
da Critica... mais evidentemente incorporado por Lacan ao aparato
teórico de sua Tese, sendo largamente empregado na descrição das cri-
ses sócio-vitais de Aimée, que determinam o conteúdo de suas forma-
ções delirantes. Porém, mesmo depois, esta ênfase no drama estará
presente, por exemplo, no modo como Lacan trabalha os complexos
no texto de 1938, não só o Édipo freudiano, como aqueles de sua pró-
pria autoria (o de desmame, inspirado em Melanie Klein, e o de intru-
são, que introduz na rivalidade fraterna elementos da luta hegeliana
das consciências, já convenientemente "dramatizada" por Kojeve).
Mesmo quando toda a ênfase passar a recair sobre os elementos for-
mais da linguagem, com os personagens dos antigos dramas sendo re-
duzidos à condição de significantes - como o "Nome-do-Pai", por
exemplo -, alguma conotação dramática permanecerá atrelada ao fim-
cionamento do modo imaginário, além de o significante comparecer
à sessão analítica essencialmente como um ato, principalmente no que
tange à interpretação do analista - única concepção, aliás, em que a
unidade mínima de uma análise formal da linguagem poderia ter ~1-
guma eficácia concreta no contexto de uma intervenção clfnica31 • Este

31 Esta concepção de que "a linguagem faz ato" (uma expressão freqüentemente
empregada por Lacan em anos posteriores) deu margem, inclusive, a algumas ten-
tativas de aproximação entre o significante lacaniano e a teoria dos performativos
de Auscin (ver, por exemplo, o texto de John Forrester, "O que o psicanalista faz
com as palavras: Austin, Lacan e os atos de fala da psicanálise").
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 173

problema, aliás, do acesso à subjetividade alheia subjaz à insistência


com que Lacan retorna a elaborações em torno do conceito de outro,
teorizando-o sucessivamente no imaginário e no simbólico. Se consi-
derarmos que estas duas definições querem dizer, basicamente, que há
duas coisas que, vindas do outro, alcançam o sujeito - a imagem do
outro e a palavra do Outro (com maiúscula, como quer a grafia laca-
niana) -, é possível até mesmo especular sobre alguma possível ori-
gem politzeriana para esta intuição, justamente no que se refere às ca-
pacidades conjuntas da "narrativa'' e da "visão" de propiciarem acesso
à alteridade 32. Se bem que, em Lacan, os privilégios da "imagem" pres-
crevem com a entrada em cena do significante e o conseqüente afasta-
mento da etologia clínica, que ele antes propunha, e da fenomenologia
de estilo sartreano que alimentara suas propostas de renovação da psi-
cologia e da psicanálise: o imaginário cumprirá, doravante, uma fun-
ção de ocultamento da verdade do sujeito e a linguagem, apenas, uma
função de revelação.
· Qual é, então, a atitude que este quadro geral da epistemologia
politzeriana - descrita esquematicamente aqui - prescreve para o con-
tato direto com os textos de Freud? A diretriz geral desta leitura é fácil
de formular: reconhecimento do avanço do método em.direção ao
concreto e reservas intransigentes para com a metapsicologia, consi-
derada herdeira de todos os tropeços da psicologia clássica. Mesmo ao
instituir esta dissociação, a obra de Politzer é inaugural, já que ela se
prolonga, numa formulação ainda mais explícita, no livro de Roland
Dalbiez, O método psicanalítico e a doutrina de Freud - livro muito

32 Que se tente, a título de exercício, ler com olhos lacanianos a seguinte passagem:
"Ora, é claro que a vida psicológica de um outro s6 nos é dada através de uma
"narrativa" ou de uma "visão". Narrativa, quando se trata de expressão por meio
da linguagem (em todos os sentidos da palavra); "visão" quando se trata de gestos
ou, em geral, de ação" (CFP, p. 92; grifos nossos). Os parágrafos seguintes cami-
nham no sentido da fenomenologia e de um pragmatismo social (à la Habermas,
segundo Prado Jr., no artigo citado, p. 26-7), que são bastante afins com o pri-
meiro Lacan, mas afastam-se daquele que nos é mais conhecido.
174 RICHARD THEISEN SIMANKE

aplaudido, aliás, por Édouard Pichon, outro dos "mestres ocultos" de


Lacan e um dos mentores de sua identificação entre os processos in-
conscientes e os mecanismos da linguagem-, através do qual alcança
até a monumental releitura hermenêutica de Paul Ricoeur em De
t'interpretation, de forma bem mais nuançada, é verdade, já nos anos
60. Cabe agora, portanto, comentar alguns pontos específicos da Cri-
tique... que se ocupam diretamente dos textos freudianos, a fim de ilus-
trar sua estratégia de leitura, naquilo que ela informa os procedimen-
tos lacanianos, contemporâneos ou futuros.
Em primeiro lugar, a psicanálise é considerada manifestamente
por Polirzer como a mais importante das três tendências que colabo-
ram na construção da psicologia concreta. Pois, se a virtude da Gestalt
é partir da forma antes que dos elementos "sem significação e amorfos"
e a do behaviorismo é substituir o comportamento observável pela
mitologia da "vida interior", seu mérito é, ainda, principalmente ne-
gativo - desbancar os cânones envelhecidos da psicologia -, ao passo
que a psicanálise, não somente "nos dá a visão verdadeiramente clara
dos erros da psicologia clássicà', como também "nos mostra desde ago-
ra a psicologia nova em vida e em ação"33. Com essas e outras obser-
vações que vão no mesmo sentido, Politzer abre caminho para que a
psicanálise possa ser considerada a verdadeira matriz da nova psicolo-
gia, posição esra que Lacan vai encampar um pouco mais tardiamen-
te, como veremos. Mas, para que esta possa advir, é preciso salvar a
psicanálise dos próprios psicanalistas e até mesmo de Freud: são os
próprios partidários da revolução psicanalítica que reincorporam em
sua doutrina os obsoletos conceitos da "psicologia da Vorstellung". Daí
que: "Se os psicanalistas colaboram assim com seus adversários para a
canalização da revolução psicanalítica, é que eles conservaram, no fun-
do deles mesmos, uma "fixação" ao ideal, às categorias e à terminolo-
gia da psicologia clássicà'34. Difícil não distinguir aqui o mesmo tom

33 Ver CFP, p. 28. E, mais explicitamente, um pouco adiante: "( ... )apenas a psica-
nálise pode dar hoje em dia a visão da verdadeira psicologia, porque ela é já uma
encarnação destà' (CFP. p. 32).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 175

que Lacan vai empregar depois em sua cruzada contra os "psicólogos


do ego", aos quais ele acusa pelo seu projeto, aliás explícito, de recon-
duzir a psicanálise ao seio da "psicologia geral". É verdade que Lacan
vai poupar Freud desta recriminação generalizada aos psicanalistas,
embora, antes dos anos 50, sua leitura do fundador da psicanálise con-
serve o mesmo estilo revisionista de Politzer. Mas, mesmo qu,ando ten-
tar fazer da letra freudiana a única garantia de seriedade teórica para a
psicanálise, isto vai implicar quase sempre uma ampla substituição das
"categorias" e da "terminologia" freudianas: Lacan vai reconhecer,
muitas vezes, "a maneira pela qual Freud exprime suas descobertas na
linguagem e nos esquemas tradicionais"35, e sua peculiar ortodoxia só
é justificável a partir de uma complexa reflexão metateórica sobre a
natureza do saber psicanalítico.
Fica bastante claro, também, que as obras de Freud que Lacan
vai privilegiar num primeiro momento são as mesmas que ganham
destaque na Critique... , principalmente a Traumdeutung. Por quê? Pela
razão evidente de que é nessas obras que transparece, sem sombra de
dúvida, o compromisso da psicanálise com o sentido dos fatos psíqui-
cos, o qual fica parcialmente escamoteado na reflexão metapsicológi-
ca, que penderia de volta a uma abordagem formal. Esta é, para Polit-
zer, a verdadeira descoberta da psicanálise. Ao afirmar que o sonho tem
um sentido, por exemplo, Freud subverte a nossa visão comum de
mundo, da mesma forma que o físico ao nos revelar ·os segredos da
matéria e da energia, ao passo ·que o psicólogo tradicional dá mostras
de estar sempre traduzindo o conhecimento comum num vocabulário
cada vez mais técnico e abstrato, que não lhe acrescenta nada de novo.
Mais que isso, Freud demonstra como só se apreende a significativi-
dade intrínseca e irrecusável do sonho considerando-o, não como um
fato psicológico objetivamente dado à observação, mas como a modu:..
lação de um eu que aí se exprime enquanto singularidade. Se, antes de
tudo, é o método da psicanálise que deve ser valorizado, isto se d.á por-

34 CFP, p. 34.
35 CFP, p. 35.
176 RICHARD THEISEN SiMANKE

que a técnica da interpretação "é precisamente a arte de religar o sonho


ao sujeito que o sonhou"36. Esta psicologia "na primeira pessoa" para
a qual tende a crítica politzeriana chega, inclusive, a prenunciar adis-
tinção entre o je e o moí que Lacan vai buscar depois nas páginas da
gramática de Pichon e Damourette. Politzer faz observar que emprega
o termo 'Je" para designar a primeira pessoa, e não a instância intrapsí-
quica da segunda tópica freudiana3 7 , e emprega o "moi" quando se refe-
re ao modo abstrato como o eu é abordado na psicologia clássica38 . Se
lembrarmos que é o moí que traduz ordinariamente o Ich freudiano e
que é sobre a metapsicologia que recai a acusação de reaproximar a
psicanálise das démarches nocionais e formalizantes da psicologia tradi-
cional, fica claro que são as mesmas opções teóricas que sustentam,
em Politzer e em Lacan, esta distinção terminológica: para este último,
o je será o operador do sujeito no plano discursivo, e o moi consistirá
no precipitado de suas identificações imaginárias - e, com a impreg-
nação hegeliana, alienantes-, que o reduzem à condição de objeto,
tanto na teoria quanto na formação clínica dos sintomas, dos quais
não se distingue em essência (como afirma um dos mais conhecidos
aforismos lacanianos dos anos 50: "O eu (moi) é um sintomà').
Mas se o sonho ou outro fenômeno psíquico qualquer exprime
o sujeito, é porque ele consiste justamente num ato desse eu, que, caso
a psicologia queira mesmo ser uma ciência empírica, só pode ser o eu
do individuo particular, e não um êmulo do ego cogito, isto é, o sujeito
abstrato das filosofias racionalistas e idealistas. Daí a importância da
noção de drama, que encontra, para a psicanálise, uma alternativa às

36 CFP, p. 49.
37 Ver CFP, p. 49, n. 3: "Nós tomamos, a partir daqui, o termo je para designar a
primeira pessoa, e não no sentido técnico que ele cem em Freud".
38 Ver, por exemplo, a seguinte passagem: "O moi é, então, a causa dos fatos de cons-
ciência, ao mesmo tempo que o sujeito da introspecção: o que olha e o que é
olhado. Mais freqüentemente, aliás, o moi é simplesmente o lugar dos fatos psi-
cológicos, no início, e sua síntese, no final. Seja como for, o moi permanece sem-
pre abstrato" (CFP, p. 57).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 177

dicotomias consagradas pelo pensamento filosófico (realismo/idealis-


mo, por exemplo), com as quais ela, flagrantemente, não se dá muito
bem. Além disso, imerge o sujeito no mundo da vida, sém o que ele
dificilmente escaparia a mais uma formulação metafísica: "Ora, o ato
do indivíduo concreto é a vida, mas a vida singular do indivíduo sin-
gular, em resumo, a vida, no sentido dramático da palavra"39 • E a este
sentido ativo e dramático do funcionamento subjetivo - que Lacan
vai tentar preservar até mesmo num sujeito resumido a um. efeito de
linguagem, na sua acepção mais formal - vem-se juntar outra consi-
deração ainda, que revela mais uma afinidade do projeto politzeriano
com o pensamento de Lacan: Politzer reconhece que todo esse enca-
minhamento não basta para fornecer uma "fórmulà' da psicologia (isto
é, trata-se, por enquanto, de uma espécie de propedêutica epistemo-
lógica), mas, de qualquer modo, esta incursão preliminar pelas sutile-
zas de uma teon'a do conhecimento serve, ao menos, para mostrar a so-
lidariedade desta última com certas exigências da psicologia, pois 'o
conhecimento tampouco pode ser explicado pelos esquemas na terceira pes-
soa"4º. Fórmula esta que não pode ter deixado de sensibilizar um teó-
rico da psiquiatria interessado em reintroduzir a referência ao sujeito
numa reflexão que se orienta para conceitualizar os fatos clínicos da
paranóia como "fenômenos de conhecimento". Mesmo após tomar
distância dos problemas da psiquiatria, a tese simétrica do "conheci-
mento paranóico" vai estar na base da aplicação de métodos inspira-
dos na clínica ao trato de questões teóricas e da fundação de um estilo
de reflexão que congrega a psicopatologia, a epistemologia e a meta-
psicologia numa doutrina sobre a natureza do saber- e de seu manejo
- que serve à psicanálise.
No entanto, se é verdade que a psicanálise promove uma defini-
ção nova do fato psicológico, como diz Politzer, é preciso explicitar
ainda qual é a característica distintiva destes atos subjetivos de signifi-
cação que, por um lado, lhes confere seu aspecto concreto e vital e,

39 CFP, p. 61; grifos do autor.


°CFP, p. 60; grifos nossos.
4
178 RICHARD THEISEN S!MANKE

por outro, precisa comportar algum grau de generalidade, se a inter-


pretação do sentido destes dramas em primeira pessoa deve poder con-
vergir em qualquer coisa que seja da ordem de uma teoria. A resposta
é dada pela própria tese fundamental da obra magna de Freud: o so-
nho - e os atos psíquicos em geral - são, antes de tudo, realizações de
desejos. É justamente esta generalidade que assegura o efeito mais sur-
preendente da tese freudiana, que Politzer valoriza como índice de uma
descoberta verdadeira em psicologia. Várias vezes, ao longo da Traum-
deutung, Freud reconhece o direito do leitor a uma dupla surpresa: não
só devida a que o sonho tenha, afinal, um sentido, mas também por-
que este sentido consiste univocamente em uma realização de desejo.
E, nesta ênfase colocada sobre a noção de desejo, entrecruzam-se, mais
uma vez, a descoberta freudiana original e os requisitos particulares
do pensamento de Lacan e de Politzer. Para este último, é a referência
ao desejo que permite conceder um caráter concreto ao sentido doso-
nho captado na interpretação, pois trata-se de um fator que emerge
de uma situação vital e histórica estritamente individualizada e apon-
ta para uma ação no sentido de sua satisfação, mesmo que esta ação
seja o ato significativo singular em que consiste um sonho. Este pode-
ria ser descrito, em termos politzerianos, como a encenação privada do
drama humano do desejo, satisfazendo assim, item por item, as exigên-
cias impostas para a renovação da psicologia e para a redefinição do
fato psicológico 41 . Quanto a Lacan, sabe-se como o desejo veio ocu-
par um lugar central na Tese, exemplar mesmo, de uma definição ob-
jetiva para os fatos psíquicos, antes ainda que o contato com o novo
hegelianismo cultivado no seminário de Kojeve o levasse a situá-lo no
ponto de origem da constituição do sujeito,' lugar que ele nunca mais
desocupará. Inclusive, naquilo que interessava mais imediatamente a

41 Cf. CFP, p. 72: "Mais precisamente, para Freud, o pensamento do sonho é um


desejo concreto, não somente por seu conteúdo individual, mas ainda pelo fato
de que é um desejo psicologicamente real e, por a(, o 'eu" (je] permanece constante-
mente presente no sonho" (grifos do autor). Ou ainda: "Em uma palavra, pela teo-
ria do sonho-desejo, o sonho se torna um ato" (CFP, p. 78; grifos do autor).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 179

Lacan - a clínica das enfermidades meneais -, a Critique... reconhece


que são estes passos dados pela psicanálise rumo à psicologia concreta
que permitem a Freud ir adiante do ponto onde se detive,a a psiquia-
tria, embaraçada pela nosologia realista que derivava de seu compro-
misso com o organicismo e que fora o principal alvo da argumentação
lacaniana, quando tentou propor uma nova concepção dos quadros
clínicos como "estruturas reacionais": "O estudo das neuroses não é,
em Freud, como na psiquiatria clássica, um estudo das neuroses em si,
dessas maravilhosas entidades nosológicas que os indivíduos não fa-
zem senão encarnar(... ), mas, ao contrário, cada neurose é como um
ato individual que é preciso explicar enquanto individual"42 • Difícil
não perceber aí o tom da crítica lacaniana às diversas ontologias da
doença; mais uma evidência a favor, portanto, do ponto de vista de
que, se a contribuição psicanalítica chega à Tese filtrada, do lado da
psiquiatria, pelas idéias de Bleuler e Minkowski, ela chega, do lado da
crítica epistemológica da psicologia, claramente filtrada por Politzer.
· Esta aposta decidida no individual e no concreto, permitida pelo
papel nuclear atribuído ao desejo, cria condições ainda - no que diz
respeito ao exercício do método psicanalítico que, afinal, é o que im-
porta - para a ultrapassagem de uma teoria da significação que per-
manece mais ou menos implícita nos procedimentos da psicologia tra-
dicional. Para esta última, toda significação só pode, no fundo, ser
convencional já que ela não faz senão reencontrar, em toda a extensão
da análise psicolôgica, a mesma sobrecarga de significados já prontos,
que emanam de seus pressupostos metafísicos. Politzer não perde a
oportunidade de assinalar como este "postulado da convenciona/idade
da. significação"43 tem nítidas afinidades com o realismo psicológico
(e, por aí, com a abstração e o formalismo), pois concebe a linguagem
como um repertório de nomes que se aplicam a objetos, os quais exis-
tem em si e naturalmente distintos uns dos outros. Em outras pala-
vras, o mesmo atomismo que assistimos acompanhar toda a evolução

42 CFP, p. 83-84; grifos do autor.


45 CFP, p. I 04; grifos nossos.
180 RICHARD THE!SEN S!MANKE

mecanicista da psiquiatria, bem como de suas paráfrases psicológicas,


prolongar-se-ia nesta concepção da linguagem onde os nomes extra-
em sua significação elementar de uma relação convencional com as
coisas (ou com seus duplos anímicos: as imagens), só então compon-
do significações complexas, na medida em que mimetizam, no plano
lingüístico, os processos associativos que, da combinação de sensações
simples, engendram os complexos representacionais. Ora, já vimos
que, para Politzer, o imperativo do concreto não é cumprido apenas
pela atenção concedida à face significativa dos fatos psicológicos. Uma
significação só é concreta se for individual; transpondo-se isso para a
exploração metodológica da narrativa, obtém-se que esta só revelará o
sujeito que a sustenta se forem visadas, não as significações convencio-
nais dos termos e conteúdos (do sonho, por exemplo), mas o sentido
particular que estes elementos adquirem para o indivíduo em questão.
É dessa maneira - só dessa maneira, aliás - que Politzer admite enten-
der o preceito freudiano de partir do conteúdo manifesto em direção ao
conteúdo latente do relato do sonho: o primeiro seria o veículo das sig-
nificações convencionais, e apenas o segundo seria portador do senti-
do privado que se afirma em ato no discurso que o sujeito promove a
respeito de seu sonho. Esse é o único sentido em que a idéia de um
"conteúdo latente" pode ser aceita no esquema politzeriano: a identi-
ficação que Freud faz deste com os "pensamentos oníricos" será
criticada como a reintrodução de uma realidade psicológica oculta por
trás do relato, restaurando, em parte, o realismo intolerável da objeti-
vação psicológica. É quase desnecessário dizer o quanto essas conside-
rações concordam com o modo como Lacan vai pensar a linguagem,
ao introduzi-la no próprio coração da doutrina psicanalítica, embora
seja preciso reconhecer que há fontes mais importantes que antecipam
e preparam sua adesão à visada estruturalista, expressa em termos
saussureanos44 • A relação de exterioridade que ele estabelecerá entre o

44 Das quais, as mais importantes são o movimento surrealista e as relações entre a


linguagem e o inconsciente exploradas por :Édouard Pichon. Cf. Macey, D. Lacan
in contexts, Cap. V. "Linguistics or linguisterie", p. 121·76.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 181

significante e o significado - esta a sua interpretação da tese saussurea-


na da arbitrariedade do signo, aliás emprestada a Lévi-Strauss - proi-
birá a atribuição de uma significação, não só convencioaal, como de
qualquer significação estável, a um elemento de composição da lín-
gua. Qualquer espécie de "nominalismo" - isto é, qualquer concepção
que remeta a origem do significado a uma relação com o referente ou
a imagem - será percebido como excessivamente próximo ao realismo
imputado pela psiquiatria e pela psicologia clássica aos fatos da subje-
tividade, o que levará, futuramente, a uma recusa taxativa da noção
de expressão, que lhe parece implicar esse nominalismo, na concepção
lacaniana do simbolismo.
Eis, portanto, uma outra maneira de formular a revolução ope-
rada pelo método psicanalítico: ele consiste, justamente, numa técnica
capaz de sondar o discurso - e não as profundezas da alma, como,
segundo Politzer, Freud insiste em se expressar - em busca das signifi-
cações não-convencionais que sustentam o seu sentido concreto, em
vez daquele superficialmente percebido numa situação pública45. Ao
contrário, o método introspeccionista, ao pretender explorar a intimi-
dade, só consegue projetar, sobre uma "vida interior" de conotações
mitológicas, a convencionalidade de uma linguagem tecnificada ao
extremo pelo discurso psicologizante. Mas· esta sondagem dá-se, no
entender de Freud, por um procedimento que ele propôs-se a chamar
de "associação livre", e, sob o olhar de Politzer, o termo "associação"
está tão firmemente vinculado a tudo o que de mais pernicioso a psi-
cologia produziu, que ele não pode deixar de ver aí o passo em falso
que, no interior do próprio método tão celebrado como arauto da psi_;
cologia concreta, denuncia o retorno em direção a um formalismo abs-
trato e impessoal. É claro que não se pode recriminar a Politzer não
ter percebido as acepções muito particulares que termos como "repre-
sentação", "associação", "realidade", entre outros, adquirem sob a pena

45 "O método psicanalítico não é, portanto, outra coisa do que uma técnica que per-
mite aprofundar, em conformidade com as exigências da psicologia concreta, as
significações" (CFP, p. 111-2; grifos nossos).
182 RICHARD THEISEN S!MANKE

de Freud; essas nuances escaparam a comentadores bem mais recentes


dos mesmos textos, e o próprio Lacan aí derrapou diversas vezes, jul-
gando necessário substituir por outros os conceitos que só conseguia
compreender num sentido muito tradicional. Para o autor da Criti-
que... , com a referência sempre presente às associações, Freud se
realinha com os princípios do associacionismo e abandona a inspira-
ção de seu próprio método 46 : esta referência lhe aparece como que
abrindo as portas do método psicanalítico à doutrina metapsicológi-
ca, que sustenta a realidade - psíquica, que seja - dos conteúdos re-
presentacionais do inconsciente, produzindo uma nova versão do
substancialismo que afeta as concepções da interioridade, o qual havia
sido expulso no momento mais original das descobertas fundadoras.
É bem conhecido o processo movido pela Critique... contra a
metapsicologia: toda a armação teórica que se erige em torno das con-
quistas alcançadas sobre o divã é vista como minada, desde os alicer-
ces, pela sobrevivência das abstrações psicológicas, o que leva Politzer
a concluir seu livro decretando a morte da metapsicologia diante do
futuro promissor da psicologia concreta. Freud teria percorrido, em
seus textos mais doutrinários, o inverso do caminho a que fora con-
duzido pela inspiração concreta e original da psicanálise. Porém, mais
do que o tom geral destas invectivas, interessa, para uma reconstituição
da contribuição politzeriana à evolução do pensamento de Lacan, al-
guns pontos específicos dos argumentos invocados, principalmente
aqueles que giram em torno do conceito de inconsciente. De fato, é
notório que Lacan relutou, por muito tempo, em incorporar essa no-
ção perfeitamente axial da psicanálise freudiana aos seus dispositivos
teóricos. Esta relutância pode ser creditada, ~m parte, às dificuldades
intrínsecas que o conceito de inconsciente oferece a uma elaboração
tipicamente psicológica; mas o fato de que, nas páginas de sua Criti-
que... , Politzer consegue alinhar o inconsciente com tudo que Lacan
julgava condenável nas abordagens psiquiátricas da doença mental
parece suficiente para localizar ali um ponto de apoio para uma recusa

46 Cf. CFP, p. 116.


O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 183

um tanto surpreendente, à primeira vista, em alguém que se encami-


nha cada vez mais para o reconhecimento dos méritos do aparato
conceituai freudiano. Lacan não devolverá ao inconsciente seu lugar
de direito na plêiade das noções metapsicológicas enquanto não con-
seguir retirá-lo completamente do contexto em que ele se sustenta em
Freud.
Não é de se estranhar que Politzer demore-se na crítica do con-
ceito de inconsciente, devido à própria posição basilar que ele ocupa
na metapsicologia: rejeitá-lo é, de certa forma, rejeitar em bloco a re-
flexão metapsicológica, que aí retorna, de uma maneira ou de outra.
Se o recurso aos princípios de associação marca a mudança de rumo
do pensamento freudiano e determina o retorno aos cânones tradicio-
nais da psicologia, não é por uma mera coincidência com o vocabulá-
rio associacionista: a associação é um processo que se dá entre represen-
tações e, para Politzer, não há outra concepção possível para estas do
que a de componentes reais, objetivos, substanciais - e, por isso mes-
mo, impessoais - da vida mental. É, pois, de novo, o pecado mortal
do realismo, que condena a noção de inconsciente47 . Freud não se te-
ria contentado em pensar a diferença entre os conteúdos manifestos e
latentes a partir da veiculação de significações convencionais ou pes-
soais, num caso e no outro. A obrigação de fornecer uma teoria psico-
lógica dos processos psíquicos leva-o a substancializar os conteúdos
latentes ("Já que o conteúdo latente é real..." 48), a identificá-los - no
caso do sonho, sempre o fenômeno exemplar - com os pensamentos
oníricos, supondo assim uma vida mental interna, anterior e indepen-
dente do discurso e do drama que a expressam. Deste modo, se o con~
teúdo manifesto é incompreensível, é porque algo falta, e este "algo"
está em outro lu~ar (a "outra cena"), ou seja, no inconsciente, a partir

47 Indo nesse mesmo sentido, Roland Dalbiez, que, depois de Politzer, leva adiante
o processo da metapsicologia, elabora uma demorada demonstração de que a no-
ção de inconsciente só faz sentido dentro de uma concepção realista. Cf. O méto-
do psicanalítico e a doutrina de Freud, Vol. II, p. 9-24.
48 CFP, p. 128.
184 RICHARD THEISEN S!MANKE

de onde funciona como causa eficiente do que ocorre à superfície da


consciência; daí que Politzer considere a representação tópica como
solidária a esta concepção realista do conteúdo latente49 • Se a censura
é um conceito descritivo que dá conta do fenômeno da deformação
onírica, conceito que mede a distância formal entre o manifesto e o
latente, o recalcamento é invocado como um fator efetivamente causal
que repele para os porões do inconsciente os conteúdos indesejáveis.
Como resultado, a consciência passa a ser definida como um órgão de
percepção, simultaneamente externo e interno, em ambos os casos cap-
tando a existência de entidades reais: os objetos do mundo físico e as
representações que habitam o aparelho psíquico. Até a conhecida pas-
sagem em que Freud se compara a Kant para justificar a dificuldade
de conhecer a "coisa" interior do inconsciente é convocada para dar
testemunho de seu vício realista. Assim, é o fracasso de Freud em com-
preender a narrativa em termos de uma relação de conhecimento que
o sujeito entretém com seus próprios comportamentos que o conduz
a conceber "por um lado, um mundo de entidades psíquicas inconscien-
tes, e a fazer, por outro lado, da consciência um órgão de percepção"5º.
Aqui não é o lugar, certamente, para defender Freud desta des-
tituição sistemática de seus Grundbegriffe. Cabe assinalar, contudo,
apenas para dar alguma voz ao acusado, que as coisas, de maneira al-
guma, se passam de forma tão simples. A consciência não é, para
Freud, um olho diplópico dedicado à contemplação dos objetos inter-
nos e externos, já que ele é muito explícito em afirmar que a conscien-
tização depende dos laços associativos com as representações de pala-
vra e que, portanto, passa necessáriamente pela linguagem. Além disso,
uma complexa teoria da representação, construída pacientemente des-
de os primórdios da reflexão freudiana e cujas sutilezas estão a reque-
rer ainda uma atenção maior, definitivamente nos impede de concebê-
las como fantasmas vagando pelos abismos obscuros da mente. Nosso
objetivo principal, no entanto, é expor os efeitos dessas críticas sobre

49 CFP, p. 134.
so CFP, p. 131; grifos nossos.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 185

as elaborações lacanianas. Tudo se passa, mais ou menos, da seguinte


maneira: o que Politzer retém da distinção entre o manifesto e o latente
é sua caraterização como duas modulações do discurso, que se orde-
nam entre um p6lo convencional e um pólo, por assim dizer, idiolé-
tico. É justamente esta concepção que Lacan procurará conservar -
mesmo sem conceder, inicialmente, um privilégio muito pronunciado
à linguagem -, recusando conceitos como os de inconsciente e pulsão
até o ponto em que perceba neles traços quaisquer de um realismo
psicobiológico. Eles s6 reingressarão na metapsicologia lacaniana quan-
do seu sentido derivar no rumo de uma definição na e pela linguagem,
com o Unbewussteessencialmente pulsional de Freud identificando-se
com o inconsciente formal e categorial das estruturas da cultura e da
linguagem. Lacan vai reiterar muitas vezes, por exemplo, que o pró-
prio recalque só pode ser concebido como um fato de linguagem, o
que significa incluí-lo no extenso rol dos efeitos de estrutura .
. Enfim, a conclusão do percurso politzeriano, que vai dos lou-
vores às antecipações concretas da psicanálise até as acusações à voca-
ção reacionária da metapsicologia, só pode ser o estabelecimento des-
sa dicotomia fundamental que, desde então, fez escola: "É bem
verdade, portanto, que a psicandlise apresenta uma dualidade essencial.
Ela anuncia, pelos problemas que se coloca e a maneira pela qual ela
orienta suas investigações, a psicologia concreta, mas ela a desmente, a
seguir, pelo caráter abstrato das noções que emprega - ou que cria - e
os esquemas dos quais se serve. E pode-se dizer, sem paradoxo, que
Freud é tão surpreendentemente abstrato em suas teorias, quanto é con-
creto em suas descobertas"5 1• Deixando de lado a questão de saber se
esta ênfase na descoberta não entra em contradição com a intransi-
gente atitude anti-realista reiterada ao longo de toda a obra, já que
sinaliza uma concepção do conhecimento centrada no objeto e não
no método, esta conclusão prescreve um programa bastante preciso
para quem quiser explorar os mananciais psicanalíticos em busca de
suprimentos para uma ciência psicológica: aceitar as descobertas como

5! CFP, p. 216; grifos nossos.


186 RICHARD THEISEN S!MANKE

questões de fato, mas admitir que estão a exigir um tratamento teóri-


co que lhes faça justiça. Esta atitude será, de certa forma, a de Lacan
ao longo de toda a sua trajetória: não fundar uma clínica ou circuns-
crever um novo domínio de investigação, mas dar de ambos uma for-
mulação teórica adequada. Não há descobertas em Lacan, mas a elabo-
ração de sucessivos modelos explicativos, que pretendem respeitar a
especificidade do campo de fenômenos delimitado por Freud. Mais
imediatamente, no que diz respeito às suas reflexões epistemológicas
dos anos 30 e 40, o encaminhamento lacaniano está quase que literal-
mente antecipado na Critique... , quando seu autor observa que o psi-
canalista, ao refazer o trajeto da psicanálise à psicologia, só pode ex-
pressar-se nos termos e nas categorias já consolidados por esta última,
mas, já para quem parte da psicologia para a psicanálise, é irrecusável
a novidade e a irredutibilidade das descobertas psicanalíticas aos es-
quemas antigos 52 , restando em aberto a tarefa de formular-lhes os no-
vos parâmetros, numa espécie de tomada de consciência de suas rup-
turas epistêmicas. É esse modo de visar a psicanálise - como horizonte,
e não como ponto de partida-que vai permitir a nosso autor ensaiar
essa revitalização julgada necessária dos termos da doutrina, o que vai
contar alguns passos rumo à formação de seu estilo teórico pessoal.

111.3. UM MODELO RELATIVISTA PARA A PSICOLOGIA

O artigo "Au-delà du 'Principe de realité"' é o primeiro traba-


lho de Lacan, após a Tese, que se afasta nitidamente da problemática
centrada nas questões da clínica médica relativas à paranóia. Mesmo
que os escritos anteriores estivessem impregnados pelas variegadas pre-
ocupações teóricas e estéticas do jovem psiquiatra, todas essas perma-
necem subordinadas à necessidade de introduzir na clínica das doen-

52 CFP, p. 225.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 187

ças mentais os instrumentos conceituais exigidos para a consumação


de um programa de investigação, cujos contornos começam, nesse mo-
vimento, a ganhar maior nitidez. Nesse contexto, o artigo de 1936
apresenta uma dupla novidade: empenha-se numa reflexão epistemo-
lógica que se endereça à totalidade dos problemas cruciais do campo
psicológico - ou, ao menos, àqueles que são percebidos como tais a
partir das premissas estabelecidas anteriormente - e toma, pela pri-
meira vez, a psicanálise como uma referência central, em torno da qual
deve girar o trabalho de saneamento da psicologia dita científica. É
importante ressaltar, contudo, que, mesmo catapultada para o primei-
ro plano das elaborações lacanianas, a psicanálise permanece, ainda,
submetida às exigências mais gerais de um programa de pesquisa que
se constituiu à sua revelia. Seu destaque aqui é, inclusive, provisório,
já que Lacan prevê duas seqüências (ou uma seqüência em duas par-
tes) para seu trabalho, que deveriam abordar temas mais próximos à
Gestalttheorie e à fenomenologia5 3. Em suma, o papel concedido à obra
de Freud, nessa tarefa de higienização teórica de uma ciência até en-
tão insalubre, é exatamente o mesmo que lhe é consignado por Politzer,
cuja influência transparece especialmente nesse texto, que chega a
mimetizar o destino histórico do projeto politzeriano: as seqüências
previstas jamais foram escritas, assim como as continuações da Criti-
que... , que deveriam compor, com ela, o inventário dos "materiais para
uma psicologia concretà'.
Mas, além dessas semelhanças de forma e destino, o encaminha-
mento genérico do pensamento de Lacan nesse texto lembra o q.e
Politzer pelo fato de concentrar-se numa critica da psicologia e num
elogio do método freudiano. Dito de outro modo, a crítica das doutri-
nas envelhecidas. das psicologias clássicas- agrupadas, aqui, sob a ru-
brica do associacionismo - vai encontrar seus melhores argumentos

53 O artigo conclui anunciando que a crítica do "Princípio de realidade", que cons-


titui seu objetivo, exige a abordagem dos temas da realidade da imagem e das for-
mas de conhecimento, que constituiriam as duas seções de um artigo subseqüente
(Au-delà du "Principe de réalité" [doravante PR]. p. 92).
188 RICHARD THEISEN SJMANKE

no enfoque do psiquismo propiciado pela aplicação aos seus fenôme-


nos do método psicanalítico, mesmo que a doutrina que sustenta este
método tenha que sucumbir sob os mesmos golpes desferidos contra
as teorias mais arcaicas. Lacan situa-se, ainda nesse momento, na po-
sição de um crítico da teoria freudiana. Embora em plena formação
analítica, sua relação com a psicanálise permanece externa; ele debruça-
se sobre a doutrina para medir-lhe o alcance e a eficácia concreta, ten-
do em vista um projeto muito mais amplo e de outra natureza. O pró-
prio tom com que abre o artigo o insinua: "Para o psiquiatra ou o
psicólogo, que se inicia, em nossos anos 30, no método psicanalítico... "54.
A dicotomia entre método e doutrina que Politzer inaugura torna per-
feitamente aceitável alguém instrumentar-se no primeiro sem aderir à
segunda. Tendo tudo isso em vista, é preciso reconhecer que, se na
Tese Lacan partia de um ponto de vista estritamente psiquiátrico, ele
enuncia agora suas hipóteses do lugar de um crítico e de um reforma-
dor da psicologia vigente, reforma essa, como vimos, exigida pelas con-
dições de uma clínica psiquiátrica verdadeiramente eficaz. Mesmo que
a psicanálise compareça com certo vigor nesses dois momentos de sua
elaboração, isso não quer dizer, de maneira nenhuma, que é a partir
dela que as questões em foco são formuladas; o que significa, ainda,
que as respostas que ela possa ser conclamada a fornecer terão que se
adequar a parâmetros externos e modificar-se segundo suas exigências.
Daí que a contribuição psicanalítica à renovação da psicologia
só possa ser parcial· "A psicologia nova não reconhece somente à psi-
canálise o direito de cidadania (... )"5 5. E parcial em dois sentidos: não
só no de que há mais ingredientes na receita de uma psicologia
palatável do que aqueles fornecidos pelo dispensário psicanalítico, mas
também no de que apenas uma parte desse conjunto de práticas e dou-
trinas chamado "psicanálise" merece a atenção do reformador. É a in-
versão dessas duas "parcialidades" que vai compor o perfil da atuação
lacaniana em anos posteriores: a psicanálise em bloco, um todo indis-

54 PR, p. 73; grifos nossos.


55 PR, p. 73.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 189

sociável de técnica e teoria, passa a guardar uma relação de absoluta


exterioridade - e conseqüente irredutibilidade - ao campo psicológi-
co. Porém, nesse momento, a ação da psicanálise sobre o projeto epis-
temológico de Jacques Lacan é da ordem de uma incidência, e traçar a
rota desta incidência é o objetivo manifesto desse artigo.
Para dizê-lo ainda de outro modo, trata-se, para Lacan, de cons-
truir um modelo de cientificidade possível para a psicologia - possível
enquanto purificado das antinomias cruamente denunciadas por
Politzer e, ao mesmo tempo, capaz de cumprir os requisitos expostos
no anteprojeto que fecha a Tese-, modelo que pode ser estendido à
psicanálise, na medida em que o segmento cientificamente válido do
conhecimento psicanalítico puder ser incorporado à nova ciência. O
nome desse modelo é anunciado logo no título daquela que deveria
ser a primeira parte do artigo, mas que acabou sendo a única: "A psi-
cologia se constitui como ciência quando a relatividade de seu objeto
é colocada por Freud, ainda que restrita aos fatos do desejo"5 6• De al-
guma maneira, elucidar o percurso deste texto é desvendar as nuanças
e os excessos desse modelo relativista que· está sendo proposto para a
psicologia e, por extensão, para a psicanálise, além do modo como ele
atende àqueles requisitos já muito bem estabelecidos de antemão.
Mas é bom deixar bem claro, desde o início, que é de um mode-
lo que se trata. Um crítico bastante contundente do lacanismo, como
François Roustang, por exemplo, não vê aí senão os primórdios de uma
astúcia retórica que se perpetuará ao longo de toda a obra de Lacan, e
que consiste em fazer aproximações injustificadas com modelos im-
portados dos mais diversos ramos do saber, com o único fim de angá~
riar prestígio para uma pretensa "ciência psicanalíticà', assim como
para seu principal artífice57. Embora a análise do crítico, mesmo que
de má vontade, seja freqüentemente mais objetiva que a do discípulo,
a animosidade do dissidente deixa escapar, aqui, que o próprio apelo à
noção de modelo proíbe a adoção ou a exigência de uma concepção

56 PR, p. 73; grifos nossos.


57 Ver Lacan: de !equivoque a !'impasse, p. 25.
190 RICHARD THEISEN SIMANKE

realista da teoria. Quando Roustang descreve a trajet6ria lacaniana


como o esforço de constituição de uma "ciência do real", isso parece
implicar em um compromisso realista que está em completo desacor-
do mesmo com a inspiração originária e ainda psiquiátrica da Tese.
Ao contrário, quando Lacan for levado a fazer do registro do real o
pivô de suas elaborações mais tardias, este vai afastar-se tanto dos pa-
râmetros do realismo que vai beirar a inefabilidade metafísica. Assim,
se é verdade que ele começa, desde já, a tomar liberdades talvez exces-
sivas com idéias alheias, é mais útil para a compreensão do movimen-
to da teoria perguntar-se de que maneira as f6rmulas e os modelos as-
similados - e o modo como o são - vêm atender às necessidades de
uma teoria que tenta ser fiel ao seu objeto, ainda que não o seja talvez
às fontes primárias de seus conceitos. As premissas iniciais da investi-
gação lacaniana parecem indicar que o melhor modo de conceber a
evolução de seus pontos de vista é, justamente, como um processo su-
cessivo de incorporação, fusão e exclusão - ainda que, muitas vezes,
implícito - de diferentes modelos, o que é apenas outra maneira de
dizer que a teoria se constitui como a construção de sucessivos sistemas
de metdforas, em torno de alguns princípios tenazmente defendidos.
De qualquer modo, mesmo que não com toda a má-fé que lhe
foi imputada, é manifesta, nesse texto, a intrepidez intelectual com
que Lacan efetua intempestivos cruzamentos temáticos, que de forma
alguma são naturais ou decorrentes dos contextos e dos autores dos
quais provêm. Nada na proposição da psicologia como "ciência na pri-
meira pessoà' em Politzer - uma ciência, portanto, relativa aos fatos
do eu (je) - autoriza, de fato, uma aproximação, mesmo ret6rica, com
a "relatividade restrita" einsteiniana que ecoa no título citado. Além
do mais, a "restrição" aí mencionada é um termo bastante equívoco,
que parece aludir a uma contribuição apenas parcial de Freud na cons-
trução da nova psicologia, concentrando-se exatamente naquilo que
diz respeito ao desejo, que Politzer valorizava como sendo o fator que
concede o caráter de um ato à narrativa assumida na primeira pessoa,
e que Lacan, por essa época, já deve ter aprendido a apreciar, em vista
da função antropogênica que ele desempenha na leitura kojeviana da
Fenomenologia do espírito. Se, na Tese, o desejo era um fator determi-
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 191

nante suficientemente enraizado no mundo da vida para ser concreto


e suficientemente ativo no plano das relações sociais para ser com-
preensível, a partir dessa releitura ele se tornará um elemep.to essencial
numa doutrina da constituição do sujeito, que encabeça a face positi-
vamente teórica do árduo progresso de Lacan em suas tentativas de
psicologia. Mas, no âmbito da reflexão ainda crítica e epistemológica
de ·~u-delà du 'Principe de realité"', o desejo cumpre uma função
igualmente crucial, já que vai encarnar, ao final do texto, o fator de
relatividade segundo o qual medir as vicissitudes do conhecimento
humano, entrementes estabelecidos como objeto válido da atenção
investigativa dessa nova psicologia, da mesma maneira que ames o fora,
sob sua forma "paranóica", da atenção clínica da psiquiatria.
Na origem do encaminhamento que conduz a essas conclusões,
encontra-se, assim como em Politzer, uma crítica acerba ao associacio-
nismo que, ao ser revestido com a súmula dos vícios das psicologias
presentes e pretéritas, serve para fornecer a imagem em negativo da
ciência que está por vir. Isso porque a conjuntura dentro da qual deve
ser pensado o surgimento da revolução freudiana é aquela formada
pelas idéias psicológicas então em voga, o que, como na Critique... ,
deixa entreaberta a possibilidade de recusar a metapsicologia, em tudo
aquilo que ela herdar dessas doutrinas. Quando, no contexto dessa
crítica, Lacan afirma, en passant, a propriedade de se aplicar o método
histórico ao estudo dos fatos de conhecimento, pode-se ver aí o esbo-
ço da aproximação entre clínica e teoria que vai marcar seu pensamen-
to, uma vez que era esse, essencialmente, o procedimento para a
elucidação do sentido dos sintomas paranóicos. Isso não quer dizer·
que nosso autor se perca em elucubrações sobre qualquer coisa seme-
lhante às "motivações afetivas do conhecimento", mas o fato de o pro-
cedimento clínico e a reflexão teórica poderem coincidir em forma vai
permitir que seu parentesco seja levado ao ponto da identidade, a par-
tir do momento em que um formalismo cada vez mais estrito for-se
instalando na doutrina psicanalítica de Lacan. No caso da psicologia,
a aplicação desse método - se assim se pode chamar a consideração
retroativa, numa perspectiva histórica, do funcionamento de uma ciên-
cia dada- revela que suas reivindicações de objetividade (experimen-
192 RICHARD THE!SEN S!MANKE

tal, de preferência) e sua profissão de fé materialista esbarram numa


ausência pura e simples de positividade5 8, Essa falta- o tom da crítica,
aqui, é tipicamente politzeriano - prende-se à impossibilidade de ul-
trapassar, na formulação dos problemas, os postulados tacitamente
admitidos pelo senso comum, a não ser ressuscitando uma terminolo-
gia e uma série de categorias (sensações, juízos, crenças, imagens, etc.)
que derivam, em última instância, da psicologia escolástica, na qual a
metafísica intuitiva do leigo receberia uma formulação expressa. É esse
apelo incontornável, por falta de alternativas, a uma ordem de
transcendência na explicação psicológica que mina na base sua reivin-
dicação científica, ao roubar-lhe a positividade na demarcação do ob-
jeto, sem a qual nenhuma disciplina podia ser admitida no Olimpo
comteano que coroa a evolução das formas de conhecimento. Daí que
todas as doutrinas psicológicas tenham fracassado em propor "uma
concepção objetiva da realidade pslquica" 59 , a qual seria, justamente,
a contribuição maior da psicanálise. Ir "além do princípio de realida-
de", como Lacan pretende nesse texto, significa, portanto, ultrapassar
o que resta de realismo ingênuo - e, em certo sentido, normativo - na
doutrina freudiana, ressaltando a relatividade subjetiva, mas concreta,
instaurada pelo conceito de realidade psíquica na apreensão dos fatos
psicológicos - realidade que, lembremos, é definida na Traumdeutung
como a realidade do desejo. Ao contrário, o passado metafísico croni-
camente reeditado na história da psicologia leva à busca de uma ga-
rantia de verdade para o conhecimento; o que quer dizer, exatamente,
desconhecer seu caráter relativo, tendo em vista a relatividade do pró-
prio real ao qual se aplica, o apelo aos avanços mais recentes da física
teórica servindo para insinuar que não é só a realidade psíquica que é
"relativa". Trata-se, pois, para Lacan, de opor àfanção do verdadeiro
que domina o associacionismo aquilo que "algumas escolas contem-
porâneas" descrevem como fanção do real; não se explica aqui muito
bem que escolas são essas, mas "função do real" é um termo recorren-

58 PR, p. 74.
59 PR, p. 74; grifos do autor.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANOICO 193

te em Janet e em certas tendências da psiquiatria francesa. Essa ex-


pressão denota, geralmente, uma concepção do real como síntese,
como uma função psíquica que pode estar mais ou menós prejudica-
da no caso patológico. Numa vertente mais intelectualista da psiquia-
tria, ela reinterpreta a alienação mental em termos do prejuízo dessa
função tipicamente cognitiva, no lugar da concepção que vê na perda
de realidade do psicótico a dificuldade de aceder a um real dado, devi-
do a um mau funcionamento, organicamente determinado, dos apa-
relhos neurofisiológicos da percepção. Mais uma vez, a ênfase nessa
"função do real" serve para conduzir Lacan para longe do realismo e
do objetivismo comuns à psicologia clássica e à psiquiatria organicista.
Toda a tese associacionista repousaria, segundo Lacan, em dois
postulados: o de engrama e o de ligação associativa. O engrama é um
postulado mecanicista - uma modificação hipotética do córtex cere-
bral que resulta da recepção do estímulo oriundo da percepção e res-
ponde pela conservação dos traços de memória -, ao qual a escola
acres~enta, mais ou menos disfarçadamep.te, uma acepção atomista,
ao encará-lo como o ekmento psico-flsico· por excelência, o que abre
espaço para a suposição de uma produção passiva deste elemento. Em
suma, o estímulo físico deixa uma marca na superfície cortical, ponto
onde, misteriosamente, se converte em sensação - átomo psíquico -,
ao ser lido por um não menos misterioso olhar interior a que se deno-
mina "consciêncià'. Desnecessário frisar o quanto o bom e velho dua-
lismo se manifesta aqui, numa versão pretensamente científica. Mas,
para Lacan, nesse momento, é mais importante sublinhar que essas.
duas suposições derivadas dos postulados fundamentais do associado~
nismo não são, de forma alguma, necessárias: uma interpretação ma-
terialista não exclui a possibilidade de se pensar à "atividade do sujeito
na organização da forma" 6º, e um realismo da forma não traz, forço-

60 PR, p. 75; grifos do autor. Este é, de fato, o eixo da crítica à psicologia efetuada
por Merleau-Ponty em Le structure du comportmmt, onde, por exemplo, se inspi-
ra largamente nas teses de Kurt Goldstein sobre a estrutura ou a construção
(Aujbau} do organismo.
194 RICHARD THE!SEN S!MANKE

sarnente, consigo a redução atomística. A psicologia da Gestalt, justa-


mente, embora continue admitindo uma produção passiva das formas
perceptivas - é uma propriedade primitiva da percepção que ela se dê
como estrutura, dispensando qualquer intervenção subjetiva -, que
espelham assim as formas físicas efetivamente presentes no real, recu-
sa completamente a subsistência isolada do elemento, que passa a ser
apenas uma abstração intelectual feita a partir das estruturas percebi-
das de fato.
Quanto à noção de ligação associativa, além de incorrer no equí-
voco atomista, ao supor o estabelecimento de associações entre ele-
mentos singulares preexistentes e de generalizar, sem muito critério, o
conhecimento obtido do estudo das "reações do ser vivo" - as teorias
do reflexo, por exemplo - para os fenômenos mentais, ela comete uma
flagrante petição de princípio, ao fazer a associação depender primaria-
mente da "forma mental da similitude": uma vez que a similitude s6
pode ser estabelecida através da comparação - e, portanto, da associa-
ção - entre duas representações, ela não pode ser chamada a explicar
as condições que determinam essa associação. Tudo isso serve, natu-
ralmente, para afirmar a prevalência inicial da estrutura, cujas leis s6
. podem ser desvendadas por um outro tipo de análise - o que Lacan
denomina análise fenomenológica -, de natureza totalmente diversa da
obsessiva pesquisa de laboratório, que visa isolar o simples da sensa-
ção. Em suma, o que está sendo dito é que, para resgatar a consistên-
cia da realidade psíquica, para além de qualquer correspondência com
uma realidade física dada, é imprescindível, mas não suficiente, en-
dossar o ponto de vista estrutural: a Teoria da Forma, que o recupera
com especial vigor dentre as diversas escolas psicológicas, fá-lo de tal
maneira que o torna perfeitamente compatível com o realismo e a re-
dução, em última instância, da forma psíquica à forma física, o que
acaba por condenar novamente o sujeito à passividade, reanimando
talvez, mas não superando, a "psicologia na terceira pessoa''. Como
antídoto para um e outro tropeço é que se faz recurso à análise feno-
menológica, a qual, não obstante, considerada de maneira isolada, ar-
risca a sacrificar o concreto a uma autonomia espiritual do sentido.
Esta espécie de cobertor curto da psicologia, que ora deixa descoberto
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 195

o aspecto materialista e determinista, ora o significativo e pessoal -


ambos consistindo, se seguimos Politzer, em condições para o concre-
to - faz com que Lacan formule expressamente a pergunta que, afinal
de contas, é a mesma que ele está tentando responder: "a própria ob-
jetividade, não é impossível de se atingir em psicologia?" 61 •
Qualquer resposta que ele lhe possa dar deve conduzir direta-
mente ao âmago do problema do conhecimento, menina dos olhos de
suas tentativas de renovar as concepções psiquiátricas da paranóia. O
vício teórico do associacionismo teria sido filiar-se a toda uma tradi-
ção empirista para dar conta desse problema central para qualquer psi-
cologia, ao menos do ponto de vista lacaniano. Ao colocar as funções
do intelecto na dependência dos dados dos sentidos, essa escola "re-
duz a ação do real ao ponto de contato da mítica sensação pura"62 . O
real não pode passar, aí, do "ponto cego do conhecimento", que se
constrói a partir do jogo associativo constituinte das representações
complexas, o qual transcorre integralmente do lado de cá do paralelo
psicofísico. Por isso, contra todas as expectativas, o conceito de liga-
ção associativa, na forma pouco elaborada com que comparece na teo-
ria, "veicula uma teoria forçosamente idealista do conhecimento"63'.
O que Lacan quer propor delineia-se claramente como a contraparti-
da exata dessa concepção: a realidade pensada como um tecido de re-
lações e de reações sociais, que são, elas mesmas, processos de conhe-
cimento de um meio humano permeado por todas as características
de um animal social, consciente de si e, para antecipar onde tudo isso
desemboca, desejante. Frente a um real que é, em si mesmo, uma tra-
ma de relações cognitivas, a apreensão do mundo pode, sem muitos
problemas, assumir a forma da identificação mental, como se verá
adiante. Inversamente, o "materialismo ingênuo" professado pela psi-
cologia no seu afã' de ser ciência, além de sobrecarregar-se com o mau

61 PR, p. 76.
62 PR, p. 76; grifos do autor.
63 PR, p. 76; grifos nossos.
196 RICHARD THEISEN S1MANKE

passo idealista que tentava contornar, acaba concebendo os fenôme-


nos de conhecimento sob o modo de uma construção feita a partir de
reações elementares, que não são, por si só, cognitivas -dependem da
consciência para sê-lo -, mas registro passivo ou resposta automática à
estimulação exterior. Daí a reduzir, no movimento retrógrado da ex-
plicação, o complexo ao elementar e o psíquico ao físico-químico é
um passo fácil de dar. O fato de que Lacan, nesse ponto, conjure mais
uma vez a figura emblemática de Taine, como vulgarizador dessa con-
cepção, é bem representativo da medida em que são as questões con-
frontadas na Tese que continuam em jogo aqui. O associacionismo,
tal como acaba de ser caracterizado, é uma formidável síntese de to-
dos os pecados repudiados no doutorado lacaniano: é uma doutrina
dualista, idealista, espiritualista até, que, ao mesmo tempo consegue
ser impessoal (isto é, determinista no mau sentido) e, ainda por cima,
reducionista.
Mas esse exaustivo inventário dos defeitos é apenas a prepara-
ção do terreno para a proposição das soluções; estas são introduzidas,
agora, através de considerações relativas à concepção das alucinações.
A psicologia associaçionista assimila o fenômeno alucinatório à ordem
sensorial. Criticar essa concepção, sob todos os aspectos tão auto-evi-
dente, pode parecer um contra-senso, desde que não se leve em conta
o que o associacionismo quer dizer com "sensorial" e o que Lacan en-
tende por "percepção". De fato, para aquela escola, o aparato sensorial
não passa de um conjunto de estruturas anatômicas e mecanismos fi-
siológicos destinados a conduzir ao cérebro a informação perceptiva
exterior e ali projetá-la. Ora, um distúrbio sensorial, nesta concepção,
só pode ter uma causa orgânica, isto é, uma perda localizada ou geral
de função em um dispositivo essencialmente fisiológico. Para Lacan, a
percepção é, primitivamente, um fenômeno de conhecimento e, por
extensão, também a alucinação. Na Tese, ele já se apropriara do ambí-
guo conceito de "alucinação psíquica'' para subsumir a totalidade do
fenômeno alucinatório à categoria das estruturas reacionais, aproxi-
mando-o, assim, da interpretação delirante. Posto isso, se o delírio in-
terpreta a alucinação, isto nâo significa que ele atribui secundariamente
um sentido a um fenômeno elementar de origem orgânica e, funda-
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 197

mentalmente, de natureza deficitária, mas sim que ele traduz na lin-


guagem verbal uma espécie de "interpretação alucinatória da realida-
de"64, que é, desde o início, uma totalidade significativá. Todo esse
raciocínio pode ser expresso na seguinte fórmula, que tem a vantagem
de já antecipar os termos em que se desenvolve o projeto lacaniano
nesse momento: a alucinação, para Lacan, não é uma sensação (visual, ·
tátil, olfativa, ou o que seja), mas sim uma imagem.
"Consideremos, agora, os problemas da imagem. Esse fenôme-
no, sem dúvida o mais importante da psicologia, pela riqueza de seus
dados concretos (... )"65: que Lacan deposite suas esperanças de reno-
var a psicologia na formulação de uma teoria do imagindrio não causa
surpresa, quando se recapitula toda a pregação anti-realista que, por
este ou por aquele motivo, retorna com tanta freqüência sob sua pena.
Mas deixemos de lado, por ora, o conteúdo positivo desta teoria, para
nos concentrarmos nos requisitos epistemológicos que ela deve satis-
fazer.. Em primeiro lugar, a imagem é uma forma, isto querendo dizer
que seus elementos não adquirem sentido senão a partir da totalidade
que ela constitui, e que é somente enquanto totalidade que ela pode
desempenhar essa "função de informação" que Lacan quer-lhe atribuir,
ou seja, portar em si um conteúdo cognitivo próprio, independente
de qualquer interpretação exterior; Todos os papéis que ela deve cum-
prir como objeto por excelência de uma psicologia concreta depen-
dem disso. Lacan os enumera: "os papéis da imagem como forma in-
tuitiva do objeto, forma plástica do engrama e forma generatriz do
desenvolvimento" 66 . Trata-se, assim, de um conceito capaz de respon- .
der a uma ampla variedade de.questões, "que vão da fenomenologia
mental à biologia'', coincidentemente ou não, as mesmas que ficaram

64 Na conferência de 1953 em que introduz oficialmente seus "três registros" e lan-


ça seu programa de retorno a Freud, Lacan retoma esse tema, a partir de uma
f6rmula de Raymond de Saussure, que diz que "o sujeito alucina seu mundo" {Le
simbolique, nmaginaire et /e réel p. 6)
65 PR, p. 77; grifos do autor.
66 PR, p. 77; grifos nossos.
198 RICHARD THEISEN S!MANKE

pendentes quando da conclusão da Tese. Mas, para que estes propósi-


t~ se cumpram e produzam algo semelhante à psicologia científica
almejada, a imagem tem que ser afastada dos termos em que a psico-
logia tradicional a aborda, onde ela é reduzida à sua função de ilusão.
O que Lacan pretende elaborar, portanto, é uma teoria da consistência
e da positividade do imagindrio, distanciando-o das categorias do erro
ou de uma concepção que vê a imagem como uma sensação enfraque-
cida, que guarda para com a percepção atual a mesma relação de infe-
rioridade intensiva que medeia entre a vivência e a memória (a inver-
são desta relação, lembremos, foi o problema central enfrentado por
Freud na elaboração de sua primeira teoria das neuroses). Para realizar
esse feito, nosso autor vai recorrer desde às considerações espinozistas
que visam distinguir o imaginário do meramente ilusório até à psico-
logia fenomenológica do primeiro Sartre, passando, é claro, por uma
revisão a fundo da teoria freudiana do narcisismo e da identificação.
Basta por ora, no entanto, assinalar o alcance crítico e metodológico
desta valorização da imagem. Antes de tudo, é evidente que o desme-
recimento da image·m na psicologia associacionista é conseqüência di-
reta de seus pressupostos realistas: a imagem é uma sensação debilita-
da, porque revela menos semelhanças ou uma menor intensidade em
termos de qualidades perceptivas quando cotejada com o que se con-
sidera o real dado. São esses mesmos pressupostos que fazem aquela
escola, na prática, distinguir duas grandes ordens de fenômenos: as
"operações do conhecimento racional", que são o objeto legítimo da
análise psíquica, e toda a gama de fenômenos subliminares, afetivos
ou desviantes (intuições, sentimentos, crenças, delírios, etc.) que são
relegados à vala comum da epifenomenoldgia do orgânico. Ora, em
ambos os casos, nenhuma realidade própria- e, por conseguinte, ne-
nhuma determinação própria - é reconhecida para os fatos psíquicos,
pois, se os fenômenos descartados como irrelevantes são abandonados
a um determini$mO orgânico (mais endóge.no, talvez), a análise
associacionista do conhecimento racional o decompõe em elementos
cada vez mais próximos do limite totalmente ideal da sensação pura, à
qual se atribui uma origem passiva e externa, como registro da esti-
mulação que chega pela via perceptiva. Como resultado, as altemati-
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 199

vas ordenam-se entre um racionalismo metafísico (o único que parece


capaz de preservar a especificidade do campo psicológico) e um redu-
cionismo biológico ou diretamente físico-químico (o único que pode-
ria sustentar uma determinação e uma explicação cientificamente po-
sitiva). A promoção do conceito de imagem, portanto, só pode-se
sustentar no contexto de uma inversão completa dessas premissas. Para
Lacan, a essência do fato psíqµico será o seu significado, daí que só
poderá ser considerada uma psicologia autêntica aquela que souber
reconhecer que "uma certa intencionalidade é fenomenologicamente
inerente ao seu objeto" 67 • É aí que a imagem pode delimitar o campo
específico da explicação psicológica: as relações sociais, as condutas
efetivas, as irrupções de afeto serão "psíquicas" apenas na medida em
que alcançarem sua expressão numa imagem. O sujeito psicológico só
nascerá como tal no momento em que a incorporação de certas ima-
gens fundamentais, para as quais Lacan reserva a denominação de
imagos, der sua forma mínima ao eu ou à personalidade. Todo o pro-
blema vai residir em formular uma teoria do imaginário capaz de do-
tar esse conceito de um sentido politzerianamente concreto, o que,
como veremos, só será possível com um certo grau de antropologização
dos conceitos freudianos, principalmente os que integram o corpo da
metapsicologia.
Por outro lado, a crítica anteriormente feita às exigências de ver-
dade da psicologia adquire seu pleno sentido diante do contraponto
oferecido pelo conceito de imagem: aquela "verdade" é estrangeira à
ordem da ciência por ter pretensões ao absoluto; é uma verdade meta- .
física que deve ser expurgada de uma ciência que se quer positiva. A.
dimensão imagindria da experiência, ao contrário, dá margem à iden-
tificação dos "critérios vividos da verdade", introduzindo na aborda-
gem do campo psicológico essa fenomenologia do sujeito concreto que
permitiria à nova psicologia acompanhar os "relativismos vertigino-
sos" alcançados na física e nas matemáticas contemporâneas, ou seja,
numa versão mais moderna do credo científico. Em suma, a verdade

67 PR, p. 78.
200 RICHARD THEJSEN S!MANKE

do conhecimento psicológico é relativa ao sujeito deste conhecimen-


to, com o que Lacan consegue transformar a maior dor de cabeça das
ciências ditas humanas - a coincidência entre o sujeito e o objeto da
investigação - na sua principal virtude, que permite alinhá-las com o
que há de mais up to date na ciência. Mas, para que um conhecimento
assim definido não descambe para um idealismo radical - pior ainda:
para alguma forma de irracionalismo - este sujeito tem que sofrer al-
guma espécie de determinação material, o que só será obtido atribuin-
do-se um sentido concreto ao mundo das imagens. É por isso que as
primeiras incursões doutrinárias de Lacan em terreno psicanalítico vi-
sarão compor uma teoria da determinação do sujeito pelo imaginário,
que se desdobrará em uma teoria da constituição do sujeito pelo ima-
ginário, por onde ele retorna, a seu modo, ao espírito mais especulativo
d.a metapsicologia. Vê-se também, por aí, a que vem responder a ado-
ção de um modelo relativista: no modo como Lacan o interpreta, o
relativismo abre as portas da ciência ao sujeito humano e sua ativida-
de produtora de sentidos, que seriam excluídos do plano científico por
um positivismo mais tacanho. A definição, se se pode chamá-la assim,
de ciência que ele oferece nesse ponto mescla, sem problemas, requisi-
tos positivos, relativistas e existenciais, no esforço de atender a todas
as especificações de uma "ciência do sujeito": "A ela [a ciência] só im-
porta que esse fenômeno seja comunic.ável em alguma linguagem (con-
dição de ordem mental}, registrável sob alguma forma (condição de
ordem experimental), e que ele chegue a se inserir na cadeia das identi-
ficações simbólicas, onde a ciência unifica o diverso de seu objeto pró-
prio (condição de ordem racional) " 68 • Foi guiada por exigências cien-
tíficas ultrapassadas e fora de foco que a medicina chegou ao espantoso
desconhecimento da realidade psíquica, o qual condenou a psiquia-
tria à penúria e à mendicância teóricas. O passo decisivo de Freud -
ao restabelecer os direitos da clínica que, no seu compromisso com o
indivíduo concreto, passa ao largo dos decretos normativizantes do

68 PR, p. 79; grifos do autor.


O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 201

cientificismo - foi efetuar, então, muito dialeticamente, esta "negação


eficaz" (do passado abstrato da psicologia) em que se afirma uma "po-
sitividade nova''. A intenção terapêutica e o impulso necessário à ati-
vidade, que guiaram as descobertas psicanalíticas, impediram-na de
reduzir o sujeito à inação, levando ao reconhecimento da intencionali-
dade ativa e transformadora inerente à realidade humana69 . Por essa
via é que se obtém, para Lacan, a medida da revolução instaurada pelo
método freudiano.
O que fica claro a este respeito, então, é que, além de endossar
uma orientação politzeriana, o reconhecimento do valor do método
criado por Freud tem uma outra fonte, talvez não menos importante,
no alinhamento quase que natural de Lacan com a tradição clínica da
psiquiatria, que resistiu, ao longo da história daquela especialidade,
aos avanços do organicismo. Vale notar que o tom das críticas que ele
endereça a Freud - na Tese, por exemplo - nem sempre é exatamente
o mesmo das de Politzer: Lacan se preocupa menos com o retorno do
cabedal doutrinário da psicologia clássic,a do que com uma série de
formulações que lhe parecem biologizantes e que, portanto, caminha-
riam no sentido do reducionismo orgânico que ele quer superar. &-
sim, se, por um lado, ele considera, como Politzer, que é numa atitu-
de de "submissão ao real" que o método freudiano reconhece que o
testemunho subjetivo é parte integrante, por natureza, dos fenôme-
nos psíquicos, quando remete, por outro lado, esses fenômenos a uma
"função de relação social"·, está dando maior ênfase à instância de de-
terminação que, em sua própria tese, pretendeu substituir à causalida-
de orgânica70 . Tudo isso aponta, é claro, para a necessidade de uma·
teoria cientificamente concreta do psíquico, que a Critique des fonde-
ments de la psychologie alardeia, mas não formula. Isso vai exigir, justa-

69 PR, p. 80. Comparar, a título de ilustração, com a concepção oposta do "ho-


mem-ferramenta", apontada por Canguilhern como fundamento de algumas ver-
sões da psicologia mecanicista.
7 º Ver PR, p. 81.
202 RICHARD THEISEN SIMANKE

mente, a discriminação conceituai entre o imagindrio e o simplesmente


ilusório, cuja identificação é uma característica que o conhecimento
comum (o do doente, por exemplo) e o conhecimento médico com-
partilham. É, mais uma vez, a idéia de que o hiperobjetivismo das teo-
rias médicas não é mais do que a radicalização do realismo espontâ-
neo do senso comum. Contudo, a celebração do método psicanalítico
ganhou ainda um outro argumento no período que vai da publicação
da Tese a 1936, decorrente da freqüentação lacaniana de Kojeve: a
possibilidade de descrever o dispositivo clínico da psicanálise dentro
do espírito da Erfohrung hegeliana.
Com efeito, a expressão ''experiência analítica" torna-se, com o
tempo, a terminologia oficial do lacanismo para descrever, tanto o que
acontece entre analista e paciente na intimidade do consultório, quan-
to a aplicação generalizada deste modelo na interpretação dos fatos da
cultura. Nesse momento, ela tem um desígnio bem preciso: converter
o método fundado por Freud de uma técnica de intervenção clínica em
um procedimento de investigação teórica, no pleno sentido da palavra -
peculiaridade que fora anunciada pelo próprio Freud, mas, aparente-
mente, na opinião de Lacan, sem uma formalização suficientemente
sofisticada. Assim, quando ele se propõe a uma "descrição fenomenol6-
gica da experiência psicanalítica'' - com "fenomenologia'', doravante,
passando a significar mais Hegel e menos Jaspers - é para afirmar que
"é esta experiência mesma que constitui ;o elemento da técnica tera-
pêutica, mas o médico pode propor-se, se ele tem um pouco que seja
de sentido teórico, a definir em que ela contribui para a observação"71 •
O que há de mais "fenomenol6gico" nessa descrição é o começo de
uma referência à instância do outro, já a serviço de uma relativização -
esta, afinal, a palavra-chave do texto - das significações veiculadas pela
linguagem. Essa é a maneira tortuosa, aliás, pela qual Lacan tenta cum-
prir a diretriz politzeriana de privilegiar a significação pessoal dos fatos
psíquicos, em detrimento de sua significação convencional. As coisas

71 PR, p. 82; grifos nossos.


O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 203

se passam mais ou menos assim: o dado imediato dessa "experiêncià'


em que a análise acaba de se converter é a linguagem; mas, para Lacan,
nesse momento "linguagem" ainda quer dizer "signo", ou seja, uma
unidade razoavelmente estável, composta de um símbolo e uma idéia.
Todo o problema consiste, portanto, em como pensar a relação entre
o sujeito e a linguagem concebida desta maneira. Em outras palavras,
se o sujeito deve ser ativo e se a palavra deve portar uma significação
individual, como justificar o emprego estritamente pessoal de um cer-
to signo, que é, por definição, um instrumento público e convencio-
nal de comunicação? Transparece, assim, a inadequação do conceito
de signo ao encaminhamento do projeto lacaniano, o que torna com-
preensível o vigor com que ele, posteriormente, empregou todos os
recursos ao seu alcance para retalhá-lo e para promover o significante
puro à condição de pedra de toque da idade madura de sua doutrina.
A solução, neste momento, é o apelo à função do outro na interlocução,
certamente inspirada no papel formativo do confronto e da luta das
consciências na antropogênese kojeviana, que transparece cristalina-
mente na situação analítica: "a linguagem, antes de significar alguma
coisa, significa para alguém". Como o encontro com o outro é constitu-
tivo da subjetividade, o outro "está lá" desde antes da linguagem, o
acesso a esta dando-se sob os auspícios desta alteridade. Em psicanáli-
se, reconhecer a não-convencionalidade da significação é perceber que
o paciente não fala ao analista, mas ~im que, através dele, endereça-se
aos "seus outros", àquelas figuras que estão na origem da sua existên-
cia como sujeito. Aausência de intencionalidade aparente, imposta à
fala do paciente pela regra fundamental, permite que surjam as inten:..
ções inconfessas - intenção, aqui, tanto no sentido de propósito quan-
to no de destinação do discurso-, sob os dois modos complementares
da denegação e do simbolismo, que mimetizam os momentos da
dialética hegeliana, onde a síntese é, de novo, uma ferramenta filosófi-
ca para dar um ar mais condigno ao que Freud descrevia como "for-
mação de compromisso". É só nesse sentido, aliás, que a noção de in-
consciente vai encontrar algum espaço no quadro de referência
lacaniano: como o estado de uma intenção que só pode se manifestar
por um substituto simbólico ou sob a forma negada. Um uso, portan-
204 RICHARD THEISEN SrMANKE

to, apenas fenomenológico e quase que descritivo do conceito, mas


sem um peso explicativo que lhe confira as propriedades de uma cau-
sa: "assim, a intenção verifica-se na experiência, inconsciente enquan-
to exprimidà, consciente enquanto reprimida"72 •
Com o analista colocado, por enquanto, mais numa função de
interlocutor do que numa função de ouvinte, fica claro por que, nesse
momento, uma teoria da clínica deva ser, para Lacan, obrigatoriamen-
te, uma teoria do imaginário. Só esta vai permitir-lhe dar conta do
fato peculiar de que o sujeito não fala ao seu interlocutor presente -
que tem, aliás, o péssimo hábito de não responder-, mas sim que seja
levado, por essa recusa mesma, a denunciar o outro imaginário que se
perfila por detrás, essa imagem que o analista substitui e que, embora
formação imaginária, é, a seu modo, mais real do que a situação pre-
sente, já que faz parte daquele conjunto de identificações que formam
o próprio alicerce da subjetividade. Fiel às diretrizes da Tese, Lacan
afirma que as intenções que apontam para essas imagens são reveladas
pelo conjunto da conduta do sujeito, cujo significado é acessível ao
analista, mas desconhecido, em todo seu alcance, pelo sujeito, refor-
çando a idéia de que, nesse momento, inconsciente significa basica-
mente méconnaissance. Quanto à linguagem, Lacan aponta, dela, uma
característica que, depois, vai justificar sua eleição como instância úl-
tima de determinação, mas que aqui só serve para apoiar a necessida-
de de recorrer ao modo imaginário: a linguagem é, em si mesma, ex-
terna ao sujeito. O discurso, enquanto tal - e isso se manifesta muito
claramente na análise - parece consistir em "puros relatos", que trans-
correm "fora do sujeito", o qual está "à deriva em seu discurso", mani-
festando "fragmentos de lembrança" de "acontecimentos sem inten-
ção" e assim por diante73. Ou seja, há um sujeito anterior à linguagem,
que nela se manifesta, ao mesmo tempo que se perde, da mesma ma-
neira que em sua conduta, e esse sujeito só pode ter sido constituído

72 PR, p. ·83; grifos nossos.


73 PR, p. 84.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 205

pelo imaginário. Lacan não chega ao extremo behaviorista de reduzir


a linguagem a "comportamento verbal", mas ela guarda, com relação
à ordem subjetiva, a mesma distância que o comportamento motor:
ambos só se revestem de sentido por sua referência a um imaginário
original. Em suma, se a conduta é um modo de objetivação da ima-
gem, a imagem é, antes de tudo, um fator de subjetivação do discurso.
Do ponto de vista técnico, é dessa sobreposição das imagos pessoais
que o analista retira a eficácia de sua intervenção: eis aí a face imagi-
nária do fenômeno da transferência que, mais tarde, vai duplicar-se
com uma definição no simbólico - mise en acte do significante, atri-
buição do analista como sujeito ao saber inconsciente, etc. -, mas que,
agora, é suficiente como justificação de um dispositivo técnico, dados
os objetivos que Lacan define para a análise. De fato, a dissolução dos
sintomas deve coincidir com o término da tarefa de acabamento da
personalidade - nos termos da Tese: superação da estase evolutiva que
determina o descompasso frente às exigências sociais -, noção que,
como veremos, já aparece aqui permeada pela idéia da realização final
do conceito da consciência de si, outra versão da identificação pro-
funda entre os fenômenos subjetivos e os fenômenos de conhecimen-
to que Lacan quer promover.
O que temos até agora, portanto, é o apelo a uma "descrição
fenomenológica da experiência analíticá', a qual serviu para introdu-
zir a dimensão relativizante da instância do outro que, como parâmetro
para as identificações constituintes da subjetividade, justifica o recur-
so a uma teoria do imaginário como garantia de um lugar para o su-
jeito dentro dos quadros da ciência. Para fechar o ciclo do raciocínio·
lacaniano, é preciso mostrar, então, como essa experiência, que gira
em torno do eixo de variáveis subjetivas, pode ser objetivada em ter-
mos plenamente ·científicos; em outras palavras, mostrar que, assim
concebida, a psicanálise - ou a psicologia nela inspirada - não só é
uma ciência, como é uma ciência no sentido mais moderno do termo.
Este, como já vimos, é o objetivo da paciente construção de um mo-
delo relativista para a psicologia, inspirado à distância no relativismo
na física: dar conta de como a "experiência analítica" pode ser
objetivada e, deste modo, vir a ser não apenas uma prática corretiva
206 RICHARD THEISEN SIMANKE

da personalidade, mas também uma investigação e um procedimento


capaz de produzir conhecimento científico. Ou seja, o recurso ao
relativismo serve para mostrar que o que é bom para um método clíni-
co pode também ser bom para a cilncia.
Mas o que significa "relativismo" para Lacan? Pouca coisa mais
do que "esta ausência de referência fixa no sistema observado, este uso,
para a observação, do próprio movimento subjetivo"74 • É essa apreen-
são bastante genérica da noção de relatividade que justifica a licença
de equiparar à física relativista uma psicologia que reconhece o papel
do sujeito na construção de seu objeto. O abuso evidente que Lacan
comete aqui, a fim de consolidar essa vantajosa aliança para com seu
projeto, é tirar disso a conclusão de que, se a física contemporânea é
relativista, é porque admitiu no seu interior, os fatores decorrentes do
conhecimento humano que a construiu. Assim, no lugar de uma com-
plicada teoria matemática destinada a dar conta de todos os sistemas
de referência possíveis, nosso autor enxerga a subordinação do conjun-
to desta ciência ao ponto de vista do sujeito humano do conhecimen-
to, no que se pode ver, além das conveniências óbvias, a influência do
kantismo enviesado de von Uexküll, que reduzia o mundo físico a uma
extrapolação injustificada do Umwelt do homem, até o ponto deste
identificar-se com a realidade em si. É num antropomorfismo psicoló-
gico, portanto, que consiste essa "realização" do mundo físico; é contra
ele que Lacan imagina que o relativismo científico trabalhe75. Ele chega

74 PR, p. 86.
75 A tonalidade peculiar das idéias de Uexküll a este r~speito transparece em várias
passagens. Por exemplo: "a natureza não poderia mais se desvelar sob nenhuma
figura humana, e cada progresso da ciência apagou dela um traço antropom6rfi-
co" (PR, p. 86). O emprego anti•reducionista destes pontos de vista fica bem ela·
ro quando Lacan aponta como este antropocentrismo trabalha contra uma an-
tropologia em formação, tão indispensável à fundamentação da psicologia:
"Transportar a mesma exigência de redução em uma antropologia em vias de nas-
cer, impô-lo mesmo em seus objetivos mais longínquos, é desconhecer seu objeto
e manifestar autenticamente um antropocentrismo de uma outra ordem, a do
conhecimento" (PR, p. 87; grifos do autor).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 207

ao ponto de desenterrar um uso muito restrito que Émile Meyerson


faz do termo "identificação", e entendê-lo como o reconhecimento,
no âmbito da própria lógica da relatividade, da participação da "iden-
tificação mental, forma tão constitutiva do conhecimento humano"76.
Tão constitutiva, de fato, que o instrumento pelo qual o ho-
mem empreende sua relação cognitiva com a natureza merece o nome
de "pensamento identificat6rio", uma relação mediara que forma a
contraparte do uso de instrumentos e ferramentas artificiais na modi-
ficação desta própria natureza. Ao contrário, o contato com os outros
homens é pensado como ocorrendo de forma bem mais direta: Lacan
inclusive destitui a linguagem e as instituições sociais de uma função
primária nessas relações (na verdade, ele pensa, aqui, a linguagem ape-
nas como mais uma instituição social); o cimento originário da socie-
dade é uma espécie de "comunicação afetiva, essencial ao agrupamento
socia1" 77, que é, ela mesma, efeito da malha de identificações recípro-
cas entre os membros do grupo. Esta tese, tão estrangeira ao pensa-
mento lacaniano posterior, tem uma fo~te bem evidente no trabalho
de Freud Psicologia das massas e andlise do eu, justamente o texto em
que Freud investiga mais a fundo o problema da identificação, ao qual
acrescenta, no entanto duas novidades. A primeira é que Lacan, mui-
to pouco interessado em qualquer contribuição à psicologia social en-
quanto tal, pensa a identificação essencialmente como a operação psí-
quica que leva à formação de um registro imagindrio da experiência,
doravante o domínio privilegiado de uma psicologia que se quer con-
creta. Assim, a comunicação afetiva que está na base da sociedade não
se deve a nenhuma afinidade eletiva comum à espécie, mas ao fato de
que os membros de um grupo compartilham um mesmo imaginário,

76 PR, p. 87; grifos do autor. Aparentemente, trata-se da obra intitulada A dedução


relativista, onde Meyerson faz um uso puramente lógico do termo, para designar
a identidade que a razão tende a estabelecer entre o antecedente e o conseqüente
de um raciocínio, no esforço de justificar a ocorrência de um fenômeno (cf.
Roustang, F. Lacan: de l'équivoque a /'impasse, p. 29).
77 PR, p. 87.
208 RICHARD THElSEN SIMANKE

o que explica que esta simpatia não se estenda ao resto da humanida-


de, muito antes pelo contrário. A segunda inovação visa esquivar-se a
uma certa circularidade - a afetividade explica a identificação e a iden-
tificação explica a afetividade - implícita no argumento freudiano. Para
Lacan, tanto uma como outra devem-se a um esforço de supercompen-
sação de uma insuficiência vital exclusiva da espécie humana, idéia
emprestada ao embriologista Louis Bolk que, como vimos, será conti-
nuamente reaproveitada por Lacan. É este, no fundo, o fator que ope-
ra o corte entre o mundo animal e o humano: ao usufruir de uma de-
terminação natural suficiente para suas necessidades de sobrevivência,
o conhecimento animal se funda em relações de conaturalidade, o que
significa continuidade e homogeneidade entre o sujeito e o objeto das
relações cognitivas mediadas pelo instinto. É exatamente em oposição
a esta característica que o conhecimento humano vai singularizar-se
por sua relatividade: nesse caso, o vazio orgânico e o desamparo origi-
nários são preenchidos pela assistência alheia sedimentada em identi-
ficações. É este outro, cujo perfil muda de cultura para cultura, que
faz a mediação das relações humanas de conhecimento. "A natureza
do homem é sua relação com o homem" 78 , afirma Lacan, sem muita
originalidade, mas, mesmo assim, dando ao aforismo um lugar bem
preciso dentro de seu sistema. O verdadeiro antropomorfismo dentro
da ciência é atribuir uma existência autônoma à natureza, para depois
tomar as ciências que se ocupam em desvendar suas leis como paradig-
mas de eficiência científica. A natureza é um mito constituído inter-
subjetivamente e, portanto, sumamente inadequado como parâmetro
de objetividade. No caso humano, reconhecer o relativismo do objeto
do conhecimento é ser objetivo. Daí o tópico que Lacan elege para
concluir seu artigo: "o objeto da psicologia "- ciência das relações inter-
humanas - "se define em termos essencialmente relativistas" 79 •
No fundo, é estabelecer esse relativismo do objeto e, por exten-
são, da realidade que este artigo almeja; daí, o "para além" do prind-

78 PR, p. 88.
79 PR, p. 88.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 209

pio de realidade freudiano, sobrevivência em seu sistema do realismo


acrítico da psicologia clássica. As relações inter-humanas - uma ver-
são mais psicossocial da fumosa intersubjetividade que pontuará as ela-
borações lacanianas até suas primeiras aventuras pelo registro do sim-
bólico - constituem a realidade específica dentro da qual a psicologia
recorta seus objetos. Os conceitos com que ela opera, se eles não de-
vem ser simplesmente subjetivos, no sentido mais corriqueiro do ter-
mo, s6 podem ser definidos como relativos. Como se vê, toda essa elu-
cubração em torno da relatividade está em continuidade com o
propósito de encontrar uma saída para o dilema inerente a qualquer
esforço de constituir uma ciência objetiva da subjetividade, dilema ins-
crito no próprio coração dos impasses epistemológicos da psicologia.
Dizer dos conceitos psicológicos que eles não são meramente subjeti-
vos é afirmar que eles não são contingentes, já que, no homem, a relati-
vidade é necessdria, pois que define o que há de "humano" em sua "na-
turezá'. Por isso, a identificação tem que ser retirada do contexto do
comportamento animal. Na Tese, Lacan a assimilava à imitação, com
o que não fazia senão dar uma tradução behaviorista e etológica ao
conceito freudiano. Ela, agora, se distingue desta última por consistir
na "assimilação global de uma estruturá' - a imitação é pontual e loca-
lizada - e numa "assimilação virtual do desenvolvimento~ ao passo que
º.
que a imitação é sempre atua18 Não é de todo insensato imaginar
que se delineiam aqui as dimensões da sincronia e da diacronia que
Lacan vai incorporar do pensamento de Saussure, via Lévi-Strauss. A
especificidade da identificação humana é defendida pela apresentação
dos termos do projeto de psicologia que Lacan desenvolverá nos anos·
seguintes: as identificações cruciais para o sujeito - em geral, as iden-
tificações parentais - constituem essa forma particular que governará
suas relações posteriores, que também atende pelo nome de personali-
dade. Essas identificações dão-se no interior de situações sociais já
estruturadas, que promovem o estabelecimento de relações psíquicas
típicas; a tudo isso, denomina-se complexos, "o conceito mais concreto

80 Ver PR, p. 88-9; grifos do autor.


210 RICHARD THEISEN SrMANKE

e o mais fecundo já empregado no estudo do comportamento huma-


no"81, substituindo com grandes vantagens o conceito de instinto, que
reina soberano na explicação etológica. Daí a afirmação que abre o
artigo sobre os complexos familiares, de que a família humana é o ob-
jeto por excelência da psicologia concreta.
Antes de concluir, Lacan não deixa de retornar, com todo este
instrumental, à crítica das posições metapsicológicas 82 . Trata-se, numa
palavra, de inverter a ênfase colocada por Freud em considerações de
ordem energética e de promover ao primeiro plano o conceito de dese-
jo, numa acepção que permite que toda a dinâmica sexual seja inserida
nessa ordem antropológica de determinações. A libido, conceito já far-
tamente criticado na Tese, é, para Lacan, o índice de uma descoberta
clínica capital, a saber, a correlação entre as anomalias da função sexual
e a formação dos sintomas psíquicos. Contudo, ela expressa essa des-
coberta em termos que ficam ainda a dever muito a hipóteses subs-
tancialistas, que recolocam a explicação psicanalítica na dependência
dos fenômenos da matéria. Ao contrário, a energética freudiana deve
ser entendida como o estabelecimento de uma unidade de medida
comum aos fenômenos em foco. Feito isso, "a libido não é senão a
notação simbólica da equivalência entre os dinamismos que as ima-
gens investem no comportamento. É a própria condição da identifica-
ção simbólica (... )"83. O conceito de libido sai, com isso, do registro
metapsicológico e torna-se mais um instrumento na tarefa de impul-
sionar a psicologia no rumo de um saber positivo84 • O desejo que move
a sexualidade humana não fica mais preso às correias dos instintos que

81 PR, p. 89; grifos nossos.


82 "Depois de ter, com efeito, valorizado a aquisição fenomenológica do freudismo,
nós chegamos, agora, à crítica de sua metapsicologia" (PR, p. 90).
83 PR, p. 91, grifos nossos ..
84 Lacan chega a comparar o progresso, em relação à noção de consciência moral,
que representou a constituição do conceito de supereu, pensado como precipitação
de investimentos libidinais, às revoluções teóricas efetuadas pela física matemática.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 211

servem à reprodução e pode ser redefinido dentro de um conjunto de


condições específicas do homem. Quais são essas condições?
Diz Lacan a esta altura: "Os elementos de uma determinação
positt'va foram, assim, introduzidos entre as realidades psíquicas que
uma definição relatt'vista permitiu objetivar. Esta determinação é di-
nâmica ou relativa aos fatos do desejo "85. Ou seja: o desejo é o fator ao
qual a relação do homem com seus objetos - e Lacan não distingue
entre as relações afetivas e cognitivas- é relatt'va. Isso porque este dese-
jo, é ele mesmo, também relativo: é mediado pela ação da instância
do outro, já presente no pensamento de Lacan, se bem que nem sem-
pre nomeada. Lembremos que, na interpretação kojeviana de Hegel,
o que distingue o desejo do homem é que ele deseja os objetos porque
são desejados por outros - deseja, assim, no fundo, o próprio desejo -
, afastando-se, por isso, daqueles que simplesmente servem à satisfa-
ção das necessidades vitais. É, portanto, uma espécie de relativização
em dois tempos dos fatos da subjetividade- primeiro, com relação ao
desejo e, deste, com relação ao outro -, o que explica por que Lacan
sempre vai tentar dar conta, concomitantemente, da constituição do
sujeito e do mundo dos objetos (já que a "substâncià' do eu é aquilo
que o desejo incorpora, ao preço de negá-lo, e assim por diante). A
ambos os problemas ele tentará responder com a formulação de uma
teoria antropológica do imaginário, seu primeiro empreendimento de
fôlego como teórico da psicanálise.
Em suma, o artigo sobre o "princípio de realidade" expõe o
modo como, partindo de premissas politzerianas para a reforma da
psicologia, Lacan conclui pela necessidade de uma teoria do imaginá..: ·
rio, que parte dos conceitos freudianos de narcisismo e identificação,
corrigidos por um projeto epistemológico bastante complexo. A ênfa-
se no registro do imaginário será a condição para, em primeiro lugar,
combater o realismo desencaminhador que professam, em comum, a
psicologia e a psiquiatria e, em segundo lugar, para encontrar, no âm-
bito de uma psicologia concreta e positivamente científica, um lugar

85 PR, p. 91; grifos do autor.


212 RICHARD THEISEN SIMANKE

para a atividade eficaz do sujeito, mesmo que ao preço de adotar um


modelo relativista constituído às custas de graves infrações ao bom sen-
so científicQ. No esforço de formulação desta teoria do imaginário, o
desencanto progressivo de Lacan com a psicologia vai conduzi-lo pas-
so a passo, pela via de uma série de inovações antropológicas contem-
porâneas, aos braços mais acolhedores e ao terreno mais firme da psi-
canálise freudiana.

III.4. AS NECESSIDADES DA CLÍNICA

Não é, contudo, apenas por uma tendência especulativa - ou,


como Politzer, por uma vocação para a polêmica - que Lacan dedica-
se à reforma da psicologia. Seus propósitos são deixados bem claros
desde o anteprojeto exposto nas páginas finais da Tese: só uma psico-
logia concreta, segundo os critérios ali enumerados, pode desincumbir-
se da tarefa de fornecer à clínica psiquiátrica das afecções mentais uma
doutrina adequada aos fenômenos que ela confronta, e para os quais
tem que dar uma solução ao mesmo tempo teórica e terapêutica. Já
vimos como a psiquiatria, no curso da sua história como um ramo
autônomo da medicina, foi deixada órfã, tanto pelas doutrinas médi-
cas - que só tinham a oferecer uma fundamentação organicista, com
a qual a doença mental não podia superar o status de um correlato
secundário das patologias do co'rpo -, quanto pela psicologia, que nun:.
ca conseguiu desatar o nó górdio de sua emaranhada epistemologia,
de modo suficientemente satisfatório para oferecer à investigação psi-
quiátrica um fio condutor confiável.
Essa insuficiência da psicologia é, mesmo, o tema central do pri-
meiro livro de Michel Foucault, Doença mental e psicologia, no qual,
aliás, não deixa de ecoar a mesma problemática presente nas elabora-
ções laca~ianas. Em resumo, a tese ali apresentada é a de que a
-sobreposição recorrente entre a patologia orgânica e a patologia men-
tal, com evidente prejuízo para a segunda, decorre de uma incapaci-
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 213

dade histórica da medicina para construir um conceito de doença tal


que permitisse subsumir a ele os fenômenos da loucura. A formulação
desse conceito exigiria uma série de etapas sucessivas, que deveriam
levar à superação do localizacionismo grosseiro e das generalizações
abstratas, passando por urna concepção estrutural da doença, daí a uma
valorização ponderada de sua dimensão evolutiva referida à história
individual, para chegar, por fim, à apreensão da necessidade existencial
da doença, a urna fenomenologia do patológico que, no campo do
mental, prepararia o terreno para o "grande afrontamento trágico com
a loucura", para além de toda psicologia86•
Desse modo, a formulação de urna teoria psicologicamente con-
seqüente da doença mental deveria ser apenas uma etapa intermediá-
ria, dada a impossibilidade, digamos assim, estrutural da psicologia em
dar conta do problema da loucura, uma vez que a análise da constitui-
ção histórica da categoria "doença mental" revela como o discurso psi-
cológico sedimentou-se como um subproduto das práticas institu-
cion.ais que se organizaram para digeri~ socialmente o conjunto de
condutas e representações desviantes encarnadas no louco; em outras
palavras, as ações incompatíveis com um certo padrão de funciona-
mento da sociedade, padrão historicamente oscilante, oscilando com
ele as práticas de contenção e tratamento. Porque a loucura foi condi-
ção para o surgimento da psicologia é que esta mostra-se sistematica-
mente incapaz de apreendê-la em sua globalidade, pois a análise psi-
cológica só reencontra, a cada passo, os fatores que presidiram à sua
origem, caindo naquele jogo de espelhos, que não escapou nem a La-
can, nem a Policzer, em que o psicólogo parece dedicar-se apenas ·a
elucidar continuamente suas próprias categorias, coisificadas ao pon-
to de se confundirem com seus objetos 87 • Perdida entre suas miragens,

86 Foucault, M. Doenfa mental epsicologia, p. 86. A familiaridade destes termos com


o projeto psiquiátrico de Lacan é manifesta; mais ainda, se lembramos que o pri-
meiro título do livro de Foucault era Doença mental e personalidade.
87 Esta tese de que a psicologia formou-se como um resíduo das práticas que se
ocuparam da Desrazão é reiterada na conclusão de O nascimento da clínica. Para
214 RICHARD THEISEN S!MANKE

a psicologia não conseguiu sequer cumprir a etapa transitória que lhe


cabia no progresso das concepções sobre a doença, o que permitiria,
ao menos num nível fenomenológico capaz de informar a prática clí-
nica, distinguir a medicina orgânica e a medicina mental.
Levando tudo isso em conta, nada há de surpreendente em que
Lacan tenha subordinado imediatamente suas elaborações no terreno
da epistemologia às exigências de uma clínica das afecções psíquicas,
primeiro de feitio psiquiátrico, depois psicanalítico, quando aderiu
nominalmente à doutrina freudiana. O exame dos textos do período
em que esse esforço é empreendido deve revelar uma série de condi-
ções suplementares, além daquelas inerentes a qualquer tentativa de
renovação da psicologia tradicional, que deverá cumprir a teoria laca-
niana do imagi,ndrio - o momento propriamente doutrinário de seus
trâmites com a psicologia - que é elaborada concomitantemente. Vale
a pena, por isso, conceder, inicialmente, alguma atenção à segunda
parte do artigo sobre "La familie", escrito em 1938 para a Encyclopédie
.française88 , que trata, justamente, do papel desempenhado pelos com-
plexos familiares na determinação dos quadros patológicos. O inte-
resse desses desenvolvimentos está em que é exatamente aí, onde ten-
ta-se propor uma causalidade psíquica sustentável para as afecções
mentais, que se localiza a interface por onde técnica e doutrina come-
çam a comunicar-se e a influenciar-se mutuamente, o que fará com
que, ao fim e ao cabo, mesmo o esforço mais abstratamente metapsico-
lógico de Lacan não possa ser compreendido senão como uma teoria

Foucault, portanto, uma abordagem ciencffica da loucura é inviável, a não ser ao


preço de desconhecer totalmente sua natureza. A loucura s6 pode ser apreendida
indiretamente, por uma análise - prenúncio já de uma arqueologia - que capeas-
se os sinais inscritos nos discursos que ela constituiu. Nesse sentido, a tese de
doutorado de Lacan talvez tenha sido a última grande tentativa de propor uma
abordagem científica, estritamente psiquiátrica, ao problema da loucura - exce-
tuada, portanto, por razões 6bvias, a torrente de teorias organogênicas que se for-
mularam desde então.
88 Lacan,J. "La Familie".
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 215

da clínica, característica que vai influir perenamente nos rumos de seu


pensamento.
Na abertura, então, do segundo capítulo de seu artigo ("Os com-
plexos familiares em patologia"), Lacan já explicita seus objetivos: atri-
buir aos complexos uma função formal na determinação das psicoses e
uma.função causal na determinação das neuroses89 • Seja lá o que for
que isso queira dizer, uma coisa é certa: Lacan começa a operar aqui
com uma distinção tipicamente freudiana - a que opõe as neuroses às
psicoses -, que vai tentar fundamentar das maneiras mais variadas ao
longo do tempo, e na qual a psicose desfrutará de um inegável privilé-
gio teórico. Talvez se possa dizer que a psicose vai alinhar-se com tudo
que tem a ver com a forma e a estrutura, e a neurose, com tudo o que
diz respeito à causa e o conteúdo. Dito de outra maneira, os mecanis-
mos da psicose estarão sempre identificados, de alguma maneira, com
a forma última da subjetividade, à qual uma operação suplementar terá
que se acrescentar para constituir uma estrutura neurótica. Assim, se é
só nas neuroses que os complexos desempenham uma função causal,
é porque o conteúdo dessas afecções tem afinidades nítidas com o que
se considera o campo psicológico no sentido mais tradicional. E se,
nas psicoses, eles fornecem apenas a forma, é porque a determinação
efetiva tem que ser recuada a uma configuração social que é trans-
psicológica e que pode constituir um sujeito cujo caráter normal ou
psicótico está na dependência daqueles critérios de assentimento e con-
cordância do grupo social, no sentido em que isto foi estabelecido na
Tese. Contudo, de alguma forma, é como se, para Lacan, o sujeito.
psicótico praticamente se identificasse com o sujeito tout court, o que
ajuda, pelo menos, a compreender que as estruturas paranóicas de co-
nhecimento sejam generalizadas para o conhecimento humano como
um todo.
O objetivo mais genérico de todo este artigo é substituir um
ponto de vista biológico-hereditário por uma consideração estrita das

89 LF, p. 42-1.
216 RICHARD THEISEN SIMANKE

relações sociais no estudo do papel da família na determinação e na


propagação das doenças mentais. É também o primeiro passo de Lacan
no sentido de levar sua investigação aos confins de uma antropologia
não-individualista, escorado na máxima comteana de que a sociedade
compõe-se de famílias, e não de indivíduos. Essa substituição é, como
sabemos, a condição para atingir a objetividade psicológica e dar um
caráter concreto à noção de personalidade, pivô de todas as elabora-
ções efetuadas na Tese. Mas já se percebe agora um sensível desloca-
mento nos termos em que se expressa a problemática lacaniana: o
vocabulário da personalidade é, pouco a pouco, substituído pelo voca-
bulário do eu, conseqüência, com certeza, da exploração do conceito
freudiano de narcisismo realizada nesse meio tempo Qá convergindo
para a teoria da fase do espelho, formulada dois anos antes e cuja his-
t6ria será objeto do nosso próximo capítulo). Tudo se passa como se,
para Lacan, fazer "psicologia na primeira pessoa'', segundo as diretri-
zes politzerianas, exigisse, antes de tudo, a elaboração de uma "psico-
logia da primeira pessoa'' - uma teoria da constituição do eu e do su-
jeito, centrada no estágio narcísico do desenvolvimento-, com o que
ele dá um passo além da crítica epistemológica, assumindo já a tarefa
da fundação positiva de uma nova psicologia. Pode-se dizer que iden-
tificar o papel dos complexos em psicopatologia é, justamente, des-
crever o lugar e a ação do eu do sujeito nessa constelação de objetos e
relações que constitui um complexo; sem contar a intervenção con-
comitante das instâncias intrapsíquicas aparentadas ao eu - o ideal do
eu e o supereu - cujo desconhecimento já servira como um argumen-
to contra a introspecção, incapaz de discriminar entre as esferas de atu-
ação de cada uma.
De fato, quando Lacan se refere à "constituição de estágios do
eu, anteriores à personalidade"90, está pensando nas conformações
desse objeto intrapsíquico que é o eu - correlativas, em cada um des-
ses estágios, a um tipo de objeto, externo e parcial - antes do acaba-
mento dessa síntese chamada personalidade, que promove a ilusão de

90 LF, p. 42-1.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 217

que o eu coincide com a totalidade do sujeito. Como são esses estágios


arcaicos do eu que se ativam pela fixação de desenvolvimento que está
na origem da psicose, nada mais natural que a constituição concomi-
tante dos objetos seja trazida também para o primeiro plano. Se esses
objetos manifestam "os caracteres constitutivos primordiais do conhe-
cimento humano" 91 , é porque as propriedades que lhes conferem um
caráter patol6gico - estagnação e fixidez dos objetos do delírio, por
um lado; equivalência afetiva, reprodução iterativa, simbolismo antro-
pomórfico, por outro - são as mesmas que garantem, para o conheci-
mento comum e para uma concepção tradicional e realista da ciência,
a estabilidade do real, que o torna apto para o conhecimento objetivo.
Deste modo, a fé perceptiva que o alucinado deposita em suas produ-
ções não difere, em essência, da crença ingenuamente empirista que o
homem comum professa para com o mundo que lhe é dado pelos sen-
tidos, crença codificada num cânone científico que atravessou sécu-
los. Uma e outra são efeitos da mesma participação afetiva- expressão
que atesta uma certa sobrevida da contribuição de Lévy-Bruhl - e da
mesma identidade imaginária entre o real e o sujeito, ocasionadas pe-
las configurações narcísicas que governam sua origem.
É nesse sentido que a psicose revela o caráter mais essencial de
todas as relações espontâneas de conhecimento, que s6 pode ser sub-
vertido por um "relativismo" nos moldes propostos em '~u-delà du
'Principie de realité"'. Se os complexos familiares interessam à psico-
patologia, é porque eles desempenham uma função crucial para a gê-
nese do eu, ao fornecerem o meio ambiente em que se efetuam as múl-·
tiplas identificações que o constituem e que se dão frente a um objeto
construído na e pela relação familiar. Tudo isso leva Lacan a formular
uma espécie de· lei geral das psicoses, baseada numa relação de
proporcionalidade inversa, que faz a ponte entre o anti-realismo epis-
temol6gico que vem apregoando e a teoria do imaginário, então tam-
bém em vias de formação: "& reações m6rbidas, nas psicoses, são

91 LF, p. 42-1.
218 RICHARD THEISEN SIMANKE

provocadas pelos objetos familiares em função decrescente da realida-


de destes objetos, em benefício de seu alcance imagindrio"92 .
Essas identificações familiares também dão margem a que se
proponha a distinção, teoricamente necessária, entre o eu e o sujeito,
que é escamoteada pela auto-imagem introspectiva que o sujeito é ca-
paz de se fazer fjá que esta auto-imagem só pode ser, por definição, o
eu): o incremento do grau de identificação do eu com um objeto fa-
miliar, ao longo da série que vai das psicoses mais benignas às mais
profundas, tem como conseqüência o esfacelamento da distância que
o sujeito mantém entre ele e sua convicção delirante. Trata-se, portan-
to, de que o mesmo processo pelo qual se produz a identidade, quan-
do levado além de certo ponto conduza à perda da identidade, com o
sujeito dissolvendo-se no mundo dos objetos, do qual o eu com que
ele, normalmente, se representa não passa, contudo, de apenas mais
um componente. É isso que Lacan expressa ao afirmar que, com o
agravamento dos quadros psicóticos, "o eu tende a se confundir com
a expressão do complexo, e o complexo a se exprimir na intenciona-
lidade do eu" 93 , levando-se em conta, ainda, que o mundo imaginário
- mas não, por isso, ilusório - do sujeito é formado justamente por
estas manifestações expressivas, que vão ser recusadas depois, em nome
de uma teoria exclusivamente formal do simbólico. A diferença entre
o normal e o patológico reside, portanto, apenas na maior ou menor
flexibilidade destas "representações em que o eu- se estabilizà', decor-
rentes de um ponto de fixação mais ou menos regressivo e da conse-
qüente atualização de um estágio mais ou menos arcaico do eu na
sintomatologia manifesta da psicose. Há ainda bastante semelhança
desse ponto de vista com a escala standard·das regressões possíveis,
proposta por Abraham e aceita por Lacan com os senões aos quais já
se fez referência (senões que, aliás, constituem a própria originalidade
da abordagem lacaniana nesse momento), o principal deles sendo a
tradução da evolução libidinal numa dinâmica de identificações, que

92 LF. p. 42-2; grifos nossos.


93 LF, p. 42-2.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 219

vai permitir a transição de uma metapsicologia das pulsões a uma an-


tropologia do imaginário.
Esses desenvolvimentos conduzem a uma perguntá que se abre
a uma série de elaborações posteriores de Lacan sobre esse tema: "Res-
ta estabelecer se os complexos que desempenham esses papéis de mo!
tivação e tema nos sintomas da psicose também têm um papel de cau-
sa em seu determinismo; e essa questão é obscura"94• É, com efeito, o
problema da causalidade psíquica que está sendo enunciado aqui. Pois,
se a determinação social surgiu, num certo momento, como a saída
para a necessidade de uma ordem de causalidade não-reducionista,
homogênea ao sujeito, ela continua, por definição, externa à indivi-
dualidade psicológica, com o sujeito assumindo, diante dela, uma po-
sição demasiado passiva para justificar a significatividade imanente de
seus atos, que era o objetivo inicial, tanto de Lacan, quanto de Politzer.
A subjetivação desta ordem externa de determinação é, assim, condi-
ção para que a teoria lacaniana não degenere numa mera sociologia da
doença mental, por mais bem intencionada que seja. Esse problema
agravar-se-á, mais tarde, com a entrada em cena do novo mecanicismo
estruturalista e com a alardeada ''morte do sujeito", com os quais
Lacan, a uma certa altura, problematicamente se comprometerá. A
solução, por ora, será deslocar o peso causal do complexo, concebido
ainda como uma constelação familiar, para as imagos, que compare-
cem justamente como resultado da subjetivação dessas relações, atra-
vés de um intrincado jogo identificatório com os objetos nelas envol-
vidos. O desenvolvimento do sujeito psicológico - sobre o qual se
procurava localizar os pontos de fixação destinados a explicar as anó~
malias de personalidade e que reaparece, aqui, na ordenação temporal
dos complexos - passa a significar, então, um processo de sucessivas
subjetivações dessas determinações extra-psíquicas, sob a forma deste
tipo particular de imagens, que Lacan chama de imagos, propostas
como os objetos legítimos da sua psicologia concreta. Todo esse apa-
rato serve, inicialmente, para dar conta desta espécie de "hereditarie-

94 LF, p. 42-2; grifos nossos.


220 RICHARD THEISEN SJMANKE

dade psicológica'' propiciada pelo grupo familiar, que vem substituir


os fatores constitucionais até então invocados para explicar a produção
e a transmissão das características patológicas ao longo das gerações.
Se a abordagem das psicoses de tema familiar conduz diretamen-
te aos problemas cruciais do empreendimento lacaniano, as neuroses
familiares são tratadas num tom que denuncia claramente a função
teórica secundária que se lhes atribui. A razão é simples e já foi mencio-
nada acima: a questão mais premente, para Lacan, é a da constituição
do sujeito e dos objetos, que interessa ao problema da formação da
personalidade, tanto psicótica, quanto normal, havendo ainda.espaço
para se insinuar que há um pouco de psicose em toda normalidade.
Ora, a neurose é uma afecção tal que manifesta as vicissitudes de um
sujeito já constituído. É por isso que sua sintomatologia só apresenta-
ria uma relação contingente com os objetos familiares; estes já teriam
sido incorporados à personalidade sob a forma de imagos, desde en-
tão submetidas às leis da dinâmica psíquica. Quando Lacan diz que
os complexos cumprem, nas neuroses, uma função causal, está pen-
sando menos na situação familiar específica que determinou esta ou
aquela formação psíquica, do que na realidade e no dinamismo pró-
prios destas formações, que permitem falar num determinismo psí-
quico no sentido mais estrito, como, aliás, já aparece em Freud. Em
suma, na psicose está em jogo a gênese das estruturas; nas neuroses, o
movimento dos conteúdos psíquicos.
Mais tarde, Lacan vai recriminar Freud por ter ficado demasia-
damente atrelado ao "ponto de vista da neurose", o que o levou a to-
mar determinações contingentes - a configuração do Édipo propicia-
da pela família nuclear patriarcal, por exemplo - como necessárias e
universais, por desconhecer que é na psicose que transparece, de algu-
ma maneira, a realidade essencial do sujeito. Esta censura manifesta-
se em germe aqui, já que é a propósito das neuroses que Lacan ende-
reça algumas críticas a Freud, além de assinalar as divergências para
com seus próprios pontos de vista. Muitas destas críticas continuam
sendo de inspiração politzeriana: se a psicologia clássica se engana,
,identificando o eu com o sujeito, Freud também continua conceben-
do o seu !eh, segundo os parâmetros de uma psicologia que ele mes-
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 221

mo chama de racionalista, "como o sistema das relações psíquicas se-


gundo o qual o sujeito subordina a realidade à percepção conscien-
te"95. O que não é exatamente a mesma coisa, mas, para Lacan, é qua-
se, já que ele precisa de um eu como o operador absoluto da primeira
pessoa, pela qual o sujeito se afirma como realidade do sentido, en-
quanto que a segunda tópica freudiana é muito explícita em propô-lo
como uma instância particular da mente, aliás bastante servil, confor-
me a noção de suas Abhangigkeiten, frente às demais. O mais grave,
do ponto de vista lacaniano, é que este equívoco comum a Freud e às
psicologias que o precederam é correlativo "a um impasse na teoria do
conhecimento"96 - ou seja, o bom e velho realismo científico...., que
precisa ser corrigido pela percepção de que o eu é uma formação ima-
ginária, o que não deixa de manifestar uma condição estrutural da rea-
lidade humana (as palavras são de Lacan}, no duplo sentido, cabe ob-
servar, da realidade do ser do homem (naquilo, evidentemente, que
ela tem de específico, em acréscimo à realidade biológica) e da reali-
dade que a ele se dá como objeto de conhecimento. Pela origem desse
eu pensado como formação imaginária vai responder a teoria da fase
do espelho, modelo meio ecológico, meio psicossocial, que tenta dar
conta do modo como o torneio identificatório e o drama existencial
que envolvem o triângulo formado pelo eu, pelo outro e pelo objeto -
onde aparece já o dedo de Kojeve - vêm a preencher o vazio orgânico
deixado pela prematuração do filhote humano, condição biológica
negativa, por assim dizer, da própria humanização.
Mas onde há menos uma renovação das reservas politzerianas e
mais o reconhecimento de uma divergência imposta pelas próprias
premissas da investigação é nos diferences pesos relativos atribuídos
aos vários complexos na estruturação da personalidade. Melhor dizen-
do: Lacan reconhéce a razão de Freud em afirmar o complexo de Édipo
como o complexo nodal das neuroses. Ele não poderia mesmo recusá-
lo em nome de Policzer, já que é o componente mais dramdtico da

95 LF, p. 42-4.
96 LF, p. 42-4.
222 RICHARD THEISEN SIMANKE

metapsicologia; só que, do seu ponto de vista, a neurose não é mais


uma condição essencial do sujeito, e sim a psicose. Daí uma relevân-
cia maior concedida aos complexos mais arcaicos - o de desmame e,
principalmente, o de intrusão -, cujo significado e alcance serão dis-
cutidos no nosso próximo capítulo. Nas versões mais evoluídas da teo-
ria, essa tendência continuará a manifestar-se: no esforço de relativi-
zar o "ponto de vista da neurose" adotado por Freud e propor uma
acepção mais abrangente para os conceitos psicanalíticos, Lacan será
levado a privilegiar o complexo de castração em detrimento do de
Édipo, como condição lógica e estrutural deste último. Neste momen-
to, o papel da família na gênese das neuroses está relacionado a um
duplo encargo do complexo de Édipo, onde se expressa claramente
seu papel secundário e relativo apenas ao conteúdo destas afecções.
Em primeiro lugar, uma incidência apenas ocasional no progresso
nardsico, já que, para Lacan, a presença de um terceiro não rompe
necessariamente a relação narcísica, ela mesma pensada como um cer-
to tipo de vínculo com a alteridade; em segundo lugar, a introdução
no eu de um certo grupo de imagens, o que supõe, é claro, um eu já
constituído, ao qual se acrescentam alguns elementos. Tudo isso basta
para Lacan definir a neurose - ele fala, aqui, especificamente da fobia,
mas não há nada que impeça a generalização - como "uma forma
substitutiva da degradação do Édipo"97, com o que provavelmente se
refere ao que Freud denominou Untergang (sepultamento, declínio)
do complexo de Édipo, o qual pode assumir um estilo diferente, con-
forme a neurose de que se trate, mas é sempre uma vicissitude tardia
de uma subjetividade já em pleno funcionamento.
Em resumo, o Édipo é ocasião para a incidência de um trauma-
tismo sobre o progresso narcísico, que modifica o curso do processo
de constituição. Note-se que aqui Lacan trabalha com uma concep-
ção flagrantemente exógena do trauma: uma relação conflitiva com um
dos integrantes da trama edípica, por exemplo. O narcisismo respon-
de, aí, pela origem do sujeito; o traumatismo, pela forma e pelo con-

97 LF, p. 42-5.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 223

teúdo do sintoma. É porque o sujeito não se confunde com nenhuma


das instâncias geradas por essa dinâmica de relações - o eu e o ideal
do eu do narcisismo, o supereu, herança do Édipo-que a ele deve ser
atribuída uma constituição que depende de uma causalidade extra-
psíquica: primeiro o social, depois a linguagem. No estágio em que se
encontra a teoria em 1938, trata-se de colocar o Édipo e a neurose na
dependência de uma certa configuração objetiva da ordem familiar:
"o complexo de Édipo supõe uma certa tipicidade nas relações psico-
lógicas entre os pais"98 , relações, portanto, que se estabelecem entre
os membros de um grupo que tem a realidade sociológica de uma
instituição.
O que é preciso reter destes apontamentos são as razões pelas
quais o problema da psicogênese dos quadros psiquiátricos ou, em
outras palavras, da causalidade psíquica da loucura permanece sempre
no proscênio das preocupações de Lacan. É num de seus primeiros
trabalhos do pós-guerra que ele faz a abordagem mais sistemática des-
ta questão, dentro dos termos desta primeira fase de sua teoria. Com
efeito, em "Propos sur la causalité psychique" (1946), é retomada uma
das primeiras bandeiras de sua trajetória psiquiátrica: a crítica das teo-
rias organicistas da loucura99. Propondo-se, desde o início, a uma co-
locação "radical" do problema da causalidade psíquica, este é um tex-
to dedicado basicamente à ratificação, em termos atualizados, da
definição anterior da paranóia como fenômeno de conhecimento, num
sentido que vai permitir e fundamentar a generalização que afirma a
estrutura paranóica do conhecimento humano.
Dado esse objetivo, não é de se estranhar que Lacan tome como··
exemplo o organo-dinamismo de seu antigo colega Henri Ey: sendo

98 LF, p. 42-6.
99 Este texto resulta de uma discussão ocorrida durante as jornadas psiquiátricas de
Bonneval em 1946, que tinha por tema "A psicogênese", e foi publicado inicial-
mente num volume intitulado A psicoglnese e os distúrbios psíquicos. Estes títulos
dão a idéia do quanto as questões aqui discutidas se alinham com as preocupa-
ções iniciais de Lacan.
224 RICHARD THEISEN S1MANKE

essa uma teoria sofisticada, que busca tornar o organicismo adequado


para a psiquiatria, malgrado todos os inconvenientes que resenhamos
no primeiro capítulo, trata-se, para Lacan, de tentar demonstrar que,
pelo simples fato de continuar sendo, assumidamente, um organicis-
mo, ela incorre em todos os descaminhos que distinguem esta ten-
dência e a tornam incapaz de fundamentar uma medicina do psíquico
que se queira estritamente como tal. Assinale-se, contudo, que o res-
gate epistêmico da psiquiatria já não é mais o alvo principal visado
por nosso autor. Mas, se ele consente, ainda, em retornar às velhas
polêmicas médicas, isto pode ser considerado, pelo menos, um indí-
cio de que pretende - com o teor çle suas reformas, que vão migran-
do, lentamente, da psicologia para a psicanálise stricto sensu - propor
uma teoria ampla o suficiente para abarcar (e, no seu entender, solucio-
nar) uma gama de problemas que vai dos limites da medicina orgâni-
ca aos confins do espírito. Isso além do fato de que são as categorias
clínicas da velha psiquiatria que fornecerão uma série de ingredientes
importantes para sua nova doutrina.
Em resumo, segundo Lacan, toda teoria incapaz de remeter a
gênese dos distúrbios meneais a outra coisa que não seja "o jogo dos
aparelhos constituídos na extensão interior ao tegumento do corpo" 1 ºº,
merece, com todo o rigor, a denominação de organicista, uma vez que

100 Propossur la causalité psychique (doravante CP), p. 152; grifos nossos. Como já
observamos, esta crítica a Jackson, através de Ey, é interessante por dar a medida
da distância que separa os projetos iniciais de f reud e de Lacan: para Freud, a
noção funcional de aparelho sempre foi indispensável, sendo a principal marca
da inspiração jacksoniana da metapsicologia; Jacques Nassif, que aborda - sob
uma ótica bem lacaniana, é verdade - as origens da psicanálise freudiana como
uma tomada de consciência teórica das rupturas operadas por nomes como Char-
cot, Bernheim e Jackson em seus domínios espedficos, expressa essa distância
como sendo aquela que separa uma probkmática dos aparelhos, típica de um neu-
rologista, de uma probkmática tÚJs signos, na qual se situa um psiquiatra. Pode-se
sugerir que a réleitura lacaniana de Freud consiste na sua recondução progressiva
da primeira para a segunda. Ver Nassif. J. Freud, l'inconscient, principalmente o
segundo capítulo, "Jackson et le domaine de l'inconscient", p. 105-258.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 225

não consegue propor nenhuma outra espécie de determinismo que não


seja uma relação de função a variável entre o mundo da matéria e os
fenômenos psíquicos; por mais, ele acrescenta, que este organicismo
se sofistique com a inclusão de concepções dinamistas e, mesmo, ges-
taltistas, como é o caso do organo-dinamismo de Ey. Este estado de
coisas continua condenando a psiquiatria a atuar sob um quadro de
referência cartesiano - o que não é mau em si, logo veremos por quê -
, s6 que num sentido em que "esse quadro não designa outra coisa
º
que esse recurso à evidência da realidade ftsica" 1 1, repetindo o equí-
voco realista que atravessa de ponta a ponta a hist6ria da psiquiatria,
assim como da psicologia, e do qual Lacan assume a tarefa de redimir
sua disciplina. E se, nesse momento, ele começa já a valorizar a abor-
dagem de organicistas juramentados, como Guiraud e, principalmen-
te, Clérambault, é por uma razão bem distinta, que nada tem a ver
com o seu posicionamento doutrinal: ao afirmar que as posições des-
tes autores têm um "valor psiquiátrico" de modo algum negligível,
Lacan está-se referindo, explicitamente, a<;> valor clinico de suas obser-
vações. Teremos oportunidade de verificar que a virtual identificação
entre clínica e teoria que decorre de suas teses, se, por um lado, destina-
se a purificar a investigação psicanalítica do empirismo grosseiro em
que caíra, por outro é conseqüência direta da destituição do organi-
cismo como explicação psicopatol6gica, o que restaura a soberania da
clínica como espaço e método para a produção do conhecimento.
Mas por que o organo-dinamismo de Ey fracassa na carefa que
ele mesmo se atribui, isto é, fornecer uma teoria estritamente médica,
porém não-mecanicista, da loucura? A resposta de Lacan não deixa de
surpreender: porque ele não tem "as características da idéia verdadei-
ra". Surpreende por causa do cuidado com que ele procurara substi-
tuir, em ''.Au-delà·du 'Principie de realité'", a "função de verdade" da
psicologia: metafísica, pela "função do real" da psicologia concreta. A

101 CP, p. 153; grifos nossos. É essa versão específica do cartesianismo psiquiátrico
que Lacan condena; ele retomará, na continuidade, a discussão do organicismo
sobre um pano de fundo cartesiano.
226 RICHARD THE!SEN S!MANKE

justificativa dada aqui, se bem que implique, como se verá, uma


redefinição significativa do que se entende por verdade, concerne di-
retamente ao coração de seu projeto: "a questão da verdade condiciona,
em sua essência, o fenômeno da loucura e, ao se querer evitá-la, cas-
tra-se este fenômeno da significação, por onde eu penso mostrar-lhes
º
que ele se atém ao ser mesmo do homem" 1 2• O que está sendo literal-
mente afirmado aqui é que uma definição do homem, como ser histó-
rico e cultural que é, não pode elidir a dimensão do sentido, a mesma
que era essencial à psicologia, que, por aí, passa definitivamente para
o lado das ciências humanas, retirando sua candidatura ao clube das
Naturwissenscha.ften. Mas, além disso, Lacan está abrindo caminho
para a introdução do aspecto mais importante para a construção de
seu modelo clínico para a teoria: todo o movimento do texto está
construído para demonstrar a tese de que a loucura é vivida inteira-
mente no registro do sentido, pelo que se distingue da doença orgânica
em geral e da síndrome neurológica em particular. Com a equipara-
ção conjunta e simultânea da condição humana e do fenômeno da lou-
cura ao domínio da significação, falta pouco para afirmar a imanência
da loucura à realidade humana (o que Lacan fará, de fato, mais adian-
te), fornecendo a complementação, por assim dizer, ontológica para a
tese epistêmica do conhecimento paranóico.
Com efeito, um dos argumentos contra o organicismo é que,
mesmo nas suas versões dinâmicas e funcionais (como as de Jackson e
Ey), ele nunca está à altura de responder ao problema dos limites en-
tre a neurologia e a psiquiatria, já que não é capaz de apreender "a
º
originalidade própria ao objeto de nossa experiêncià' 1 3 . Ou seja,
Lacan está dizendo que, mesmo nos termos de uma epistemologia mais
realista - aquela que define a identidade de uma ciência pelo objeto,
antes que pelo método-, a autonomia da psiquiatria depende da pres-
teza com que ela consiga incorporar o sentido das condutas humanas

º CP, p. 154; grifos nossos.


12

103 CP, P· 154.


O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 227

como um componente indispensável na receita de seu objeto. As con-


cepções de Jackson, que aplicam um ponto de vista evolucionista na
crítica de uma nosografia neurológica derivada da doutrina das locali-
zações cerebrais, resultam numa escala comum de dissoluções funcio-
nais, onde os distúrbios ditos psiquiátricos seriam os primeiros (e os
mais benignos) a se manifestar, e os neurológicos, os últimos e os mais
graves na série das retrogressões funcionais; mas nada há aí que justifi-
que qualquer espécie de distinção de natureza entre eles. A estratégia
de Lacan, contudo, não consiste em propor critérios, que só poderiam
ser clínicos, para o diagnóstico diferencial destes distúrbios. Como se
trata de estabelecer uma questão de doutrina- no caso, a pertinência
da significação à esfera psiquiátrica e humana em geral -, ele procura
mostrar que mesmo as síndromes flagrantemente neurológicas - o
exemplo dado é o célebre caso estudado por Gelb e Goldstein - são
indistinguíveis de um quadro psiquiátrico. Isto, é claro, desde que o
observador o considere do ponto de vista das reações globais da perso-
nalidade, que vai revelar como uma lesão estritamente localizada - no
paciente em questão, situada na área de projeção visual do córtex
occipital - está na origem de uma sintomatologia que se estende à toda
a esfera do simbolismo. Em outras palavras, a distinção entre o que é
da alçada da psiquiatria ou da neurologia deve decidir-se sobre o pla-
no gnoseológico e não sobre um critério que se atenha unicamente a
um dado da realidade corporal: a existência ou não de uma lesão ma-
terial no cérebro. É justamente este critério que é comprometido pelo
concepção de Jackson, que permite o surgimento de um conceito tão
ambíguo como o de "lesão funcional". A solução proposta por Ey -
distinção entre um distúrbio localizado (neurológico) e um distúrbio
global (psiquiátrico) - manifestamente não funciona no caso dopa-
ciente de Goldstein, no qual uma perturbação tão generalizada resulta
de uma lesão cortical perfeitamente delimitável. Lacan é bem taxativo
ao afirmar que a definição da psicose como uma reação global da per-
sonalidade é inseparável de alguma referência à psicogênese. O organo-
dinamismo, que defende a primeira e recusa terminantemente a se-
gunda, cairia aí, segundo ele, em uma contradição insustentável.
228 RICHARD THEISEN S1MANI<E

Contudo, mais interessante do que essa crítica específica e cir-


cunstanciada são os termos em que ela se desenvolve. Lacan rapida-
mente empurra a questão para o terreno filosófico, onde seleciona uma
série de temas que comparecem, depois, com assiduidade em seus tex-
tos. Que estes girem, na maior parte, em torno das concepções
dualistas do cartesianismo não é de surpreender, dado o modo como a
psiquiatria nelas se enredou ao longo de sua história. Em poucas pala-
vras, o que Lacan recrimina ao organicismo é ter interpretado o pen-
samento de Descartes como se ele propusesse "um dualismo absoluto
introduzido entre o orgânico e o psíquico" 1º4, com o qual se justifica-
ria uma abordagem reducionista e mecânica dos problemas mentais.
E, se ele se engaja nesse tendência de matizar o dualismo de Descartes
- inspirado, talvez, em Merleau-Ponty, que já publicara Le structure
du comportment - não é por outra razão que a necessidade de uma
sustentação filosófica para a manutenção da referência ao sujeito no
centro da reflexão sobre a psicopatologia, quer psiquiátrica, quer psi-
canalítica. No seu ponto de vista, Ey está simplesmente defendendo
esta versão equivocada do cartesianismo ao subscrever-se à idéia, para
lá de tradicional, de que o espírito é livre em todas as circunstâncias,
exceto na l.oucura, uma vez que considera a doença mental como um
"insulto" ou um "entrave" à liberdade humana. Lacan vai, inclusive,
concluir este texto negando de duas maneiras esta concepção: em pri-
meiro lugar, o homem não é livre - em todo caso, ele não é originaria-
mente livre, aí entrando partes iguais de determinismo freudiano e da
fenomenologia de Sartre-; em segundo lugar, ele não é livre justamente
porque a loucura é inerente à sua realidade própria, funcionando como
um limite intrínseco à ação livre, e não como efeito da ocorrência con-
tingente de um processo patológico.
As salvaguardas oferecidas ao cartesianismo revelam rapidamen-
te sua utilidade: elas servem para atribuir realidade à vida psíquica e,
num segundo momento, para a identificação da verdade do psiquismo
com a verdade da loucura. Já tínhamos visto como o cartesianismo

104 CP, P· 157.


O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 229

serviu à causa da psiquiatria, quando concedeu autonomia ontol6gica


ao mental, ao preço que se conhece. Se Lacan sente-se à vontade para
retornar a esse argumento, é porque ele se julga na posse de instru-
mentos teóricos suficientes para sustentar um determinismo apropria-
do ao psíquico e recusar o incondicionado da substância pensante.
Ora, a teoria deste determinismo foi elaborada na Tese - cuja proble-
mática, aliás, sobrevive quase que incólume nesse texto - para dar con-
ta das psicoses paranóicas. O que Lacan está afirmando agora, apoia-
do nisso, é que, se o organicismo vai buscar uma causa orgânica para a
suposta diferença radical entre o sujeito livre e o louco acorrentado às
ações do corpo e às paixões da alma, é por desconhecer que a loucura
reflete a essência do psiquismo e do sujeito, que o conhecimento hu-
mano é essencialmente paranóico, já que as mesmas condições presi-
dem à gênese dos sistemas delirantes e da personalidade normal, nem
louco, nem sadio estando cortados, enquanto sujeitos, da realidade
corporal, já que esta gênese consiste justamente na ação do social so-
bre o vital. Essa é outra razão, além disso, para nosso autor retornar ao
problema da verdade: se é necessário dar· uma base, por assim dizer,
existencial à epistemologia que se vem construindo, esta deve ter seu
alicerce na afirmação de que a loucura é a verdade do sujeito. Em suma,
para Henri Ey, a "causalidade propriamente psíquica'' (as palavras são
dele) não é nada mais do que a liberdade individual do sadio; para
Lacan, ela repousa no determinismo comum ao qual tanto o louco
quanto o normal estão sujeitos.
Uma coisa fica dara nessas elaborações: uma ciência do psíqui-
co, quer seja ela uma psiquiatria, uma psicologia ou, mesmo, uma psi..:.
canálise, precisa delinear um conceito de seu objeto tal que lhe permi-
ta existir como tal, cercada como está de fisicalismo e organicismo por
todos os lados. Lacan esboça, em rápidas pinceladas, uma recusa, que
se tornará cada vez mais intransigente, do empirismo em psicologia:
trata-se, para ele, de uma teoria do conhecimento que encontra sua
base justamente na interpretação estrábica do dualismo cartesiano que
ele denuncia, como se a delimitação de um mundo de extensão e ma-
téria cortado do sujeito permitisse a disseminação da idéia de que o
conhecimento deriva exclusivamente da experiência, o que não traria
230 RICHARD THEISEN SIMANKE

grandes problemas, se não se entendesse "experiêncià' como um con-


tato imediato com um real dado, do qual os atos de conhecimento
apenas apreendem características que lhes preexistem completamen-
te. Se Lacan emprega "experiência" num sentido emprestado à
fenomenologia hegeliana, é para conotar um processo construtivo atre-
lado às peculiaridades da existência humana. Daí que sujeito e objeto
apresentem esta interdependência mútua, que não deriva mais, con-
tudo, de premissas estritamente idealistas, mas sim de sua origem co-
mum, numa gênese que se pretende concreta. Por isso que, desde o
início, não há muito lugar nas especulações lacanianas para o Sujeito
Absoluto, que governa de ponta a ponta - embora só se revele no final
- o movimento da fenomenologia do espírito, mesmo que Lacan só
vá tematizar essa pedra no sapato de suas metáforas hegelianas bem
mais tarde, quando então dirá nunca ter aceito o happy end previsto
desde o início no roteiro do calvário da consciência de si. Sujeito e
objeto colocam-se na dependência de uma instância que transcende a
ambos e que, nesse momento, já começa a deixar de ser a sociedade
pensada de um modo bastante genérico, para identificar-se com o ins-
trumento simbólico que é responsável, mais do que todos, pela pro-
dução das significações, isto é, a linguagem. Embora não vá muito além
de algumas observações esparsas, Lacan já expressa a idéia de que o
uso da linguagem, naquilo que diz respeito ao conhecimento do ho-
mem, não é tão indiferente quanto nas ciências da natureza, pois não
se limita a representar uma realidade exterior, mas, de alguma manei-
ra, participa da matéria de seu objeto 105 • Nisso, antecipemos, já está
contido o embrião do problema do estilo, mais uma palavra de ordem
reiterada constantemente no lacanismo posterior: quando Lacan toma
o aforismo de Buffon, que diz que "o estilo é o próprio homem", e o
coloca quase como epígrafe para seus·Écrits, está reafirmando que as
modulações formais da linguagem são as operações pelas quais, exclu-
sivamente, o sujeito humano se constitui e se reconhece como tal.

I05 "O uso da palavra requer bem mais vigilância na ciência do homem do que em
qualquer outro lugar, pois ele engaja aí o ser mesmo de seu objeto" (CP, p. 161).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 231

De qualquer modo, uma psicologia científica - quer dizer, uma


psicologia concreta: Lacan refere-se explicitamente aqui à Politzer e a
seu artigo anterior sobre o princípio de realidade 106 - depende, para
sua formulação, da definição do estatuto de seu objeto em termos ca-
pazes de atender às exigências estabelecidas. Por isso, toda a discussão
que se segue, sobre a "causalidade essencial da loucura'' - leia-se, por
tudo que se viu: "causalidade essencial do sujeito" - tem por alvo defi-
nir um objeto para a psicologia que passe, obrigatoriamente, pela con-
sideração dos transtornos mentais em seu conjunto, lembrando que aí
residiu o fracasso histórico da psicologia para com a psiquiatria. Este
"objeto" será algo bastante próximo das "formas paranóicas do conhe-
cimento" e, de qualquer maneira, é, desde o início, em torno das "es-
truturas constitutivas do conhecimento humano", que se desenvolve
a argumentação. Por exemplo, o próprio caso do doente de Goldstein
retorna como evidência para uma tese tipicamente lacaniana: uma vez
que se tratava de um distúrbio generalizado decorrente de uma lesão
no c6rtex visual, que só poderia produzir como dano primário a ce-
gueira psíquica, ele é usado para apoiar a· idéia de que o simbolismo
do pensamento encontra, na percepção visual, um suporte qtie é da
ordem de um fundamento 107, o que, evidentemente, remete a toda a
teorização sobre a fase do espelho que transcorre ao longo destes anos.
Além disso, Lacan se reporta à explicação da paranóia proposta na Tese,
para asseverar que a definição do objeto da psicologia não precisa ir
muito além disso. A idéia é simples: a personalidade é e tem sido, mais
ou menos naturalmente, o objeto das psicologias que querem sedes-
vencilhar. dos pressupostos atomistas do associacionismo e de outras ·
escolas, só que isso, por si só, não basta para romper com o espiritua-
lismo que a assombra desde suas origens na metafísica tradicional. A
solução está em mostrar que, se uma afecção como a paranóia pode
ser alvo de uma explicação objetiva e concreta e se for possível, de al-
guma maneira, subsumir às mesmas leis a personalidade psicótica e a

ioG CP, p. 161.


º Cf. CP, p. 162.
17
232 RICHARD THEISEN S!MANKE

normal, isto abriria uma via para expulsar, de uma vez por todas, os
devaneios abstratos dos psicólogos para o registro da superstição e sau-
dar o ingresso da nova ciência nos reinos da positividade.
É evidente que Lacan não se contenta com essas considerações,
à primeira vista bastante saudáveis. O próprio fato delas parecerem não
fazer outra coisa que subir e descer os pratos da balança onde se pe-
sam o espiritualismo abstrato e o materialismo mecânico, surge-lhe
como razão suficiente para ingressar de novo em considerações filosó-
ficas que, aliás, são a tônica da segunda parte deste artigo, indo de
Descartes às insinuações kojevianas que, cada vez mais, vão despontar
sob sua pena. Ele não hesita, mesmo, em sugerir, com relação ao pri-
meiro, um slogan que depois fará escola a respeito de um outro perso-
nagem: "Eu penso, por isso, que a palavra de ordem de um retorno a
º
Descartes não seria supérfluà' 1 8• A justificativa presente para tanto é a
passagem das Meditações... onde o filósofo se refere aos "insensatos ...
ofuscados pelos negros vapores da bílis", que rendeu depois, da parte
de Foucault, duas páginas muito debatidas da Histoire de la folie à l'J.ge
classique em que este discute o porquê da exclusão da loucura do elen-
co das razões naturais de duvidar. 109 Discussão que não é alheia ao
que está em foco aqui, já que diz respeito, justamente, à possibilidade
de atribuir ao louco uma subjetividade pensante, o que, para Lacan,
seria uma condição indispensável para que ele possa conter, de algu-
ma forma, a verdade do sujeito em geral. Embora não se aprofunde
na questão, Lacan não deixa de assinalar o fato surpreendente de que
Descartes não tenha lançado mão de um argumento aparentemente
tão adequado aos seus propósitos.

IOS CP, p. 163; grifos nossos. Esta citação não é meramente anedótica: a simpatia
que Lacan precocemente demonstra com o mote "retorno a... " - que vai fazê-lo
entusiasmar-se de imediato com o "retorno a Saussure" incentivado pela linha
de frente do estruturalismo - é um bom índice da sua propensão a um uso me-
tafórico das teses alheias, que lhe permitirá adotar mesmo aquelas mais distantes
ao seu domínio específico.
109 Ver meu artigo "Lacan: subjetividade e psicose" para uma discussão da relação
dessa passagem com o empreendimento lacaniano inicial.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 233

De volta ao terreno psiquiátrico, esses comentários desembocam


na questão, também clássica, da origem da crença concedida aos da-
dos da percepção. No fundo, o problema se reduz a estes termos: quan-
do o sujeito afirma ser um vaso ou ter um corpo de vidro, trata-se de
um erro da percepção ou do entendimento? Em outras palavras, ele
realmente vê coisas que não estão lá ou simplesmente interpreta erro-
neamente o que vê? Para Lacan, todas essas são questões vazias, uma
vez que estão visivelmente comprometidas com a atitude realista, que
supõe a percepção como a captação sensorial de um objeto exterior,
que pode ser mais ou menos acurada conforme o estado de conserva-
ção deste instrumental biológico conhecido, em seu conjunto, como
"órgãos dos sentidos", assim como das áreas de projeção cortical e dos
aparelhos de condução correspondentes. Ao contrário, presenciamos
já como Lacan tentou, de todas as maneiras, na Tese e depois dela,
firmar a idéia de que a percepção é, ela também, uma interpretação
do real, sujeita, portanto, às mesmas leis que governam a atividade
cognitiva em geral. É a partir daí que se. critica o esforço, aparente-
mente louvável, do organo-dinamismo eni retirar a alucinação do puro
registro do erro: isto se daria apenas como uma tomada de posição
dentro daquela alternativa que manifesta, em comum, o equívoco rea-
lista. A alucinação não seria mais, nessa concepção, uma sensação anor-
mal, mas um fenômeno perfeitamente normal do pensamento - ima-
ginar uma cena, por exemplo - ao qual se concede uma crença
delirante na sua realidade objetiva. Todo o aspecto deficitário da psi-
cose é, com isso, deslocado da atividade alucinatória para o delírio,
este sim o inimigo a ser combatido pela intervenção terapêutica.
Lacan não pode aceitar este aparente progresso - afinal, definir
a loucura como um erro do entendimento não é considerá-la, ainda
que negativamente, como um fenômeno de conhecimento? - simples-
mente porque seu intuito é banir completamente a leitura deficitária
do fenômeno psicótico e excluir de vez as categorias do erro da sua
abordagem. Para ele - muito espinozisticamente, mas com algum tem-
pero bergsoniano -, perceber é julgar, e a percepção é um processo
ativo de interpretação do real, porque a crença na existência do objeto
percebido, tanto a delirante, quanto a normal, decorre de uma espécie
234 RICHARD THE!SEN S!MANKE

de congelamento no fluxo da realidade, que recorta e fixa os objetos


reconhecidos como tais, o que, por si só, já implica um julgamento de
existência: "Congelado, o fenômeno se torna objeto de julgamento e,
logo, objeto tout court" 11 º.
Não basta, porém, destituir o erro das definições do delírio. Fei-
tas as correções de mira no que toca à percepção, é preciso explicar
por que, afinal, uma forma tão legítima de relação cognitiva com o
objeto, como é o delírio, dá toda a aparência de que algo não anda
bem. A resposta vai exigir uma troca bastante súbita de referencial fi-
losófico - de Descartes para o Hegel à la Kojeve -, mas vem bem ao
encontro dos interesses lacanianos, já que substitui a perspectiva do
objeto pela perspectiva do sujeito. Para dizê-lo logo, o psiquiatra não
está às voltas aí com um erro, mas com um fenômeno de desconheci-
mento: "Qual é, portanto, o fenômeno da crença delirante? Ele é,
digamo-lo, desconhecimento, com isso que esse termo contém de anti-
nomia essencial. Pois desconhecer supõe um reconhecimento, como o
manifesta o desconhecimento sistemdtico, onde é preciso admitir que isso
que é negado seja, de algum modo, reconhecido" 111 • Já se anuncia, nes-
sa passagem, a aproximação da negação freudiana aos termos da
dialética, cuja formulação oficial Lacan vai depois encomendar a Jean
Hyppolite. As conseqüências deste apelo à noção de desconhecimen-
to indicam que não é mais tanto o caso de que o sujeito se equivoque
quanto ao conteúdo de suas produções; isto é, o louco conhece objeti-
vamente o conteúdo de seus delírios e alucinações, mas ele não se re-

11 º CP, p. 164.
111 CP, p. 165; grifos nossos. O que se segue são algumas tintas do aproveitamento
lacaniano das idéias de Kojêve, que exporemos aqui exatamente nos termos em
que se colocam e: que interessam à questão do objeto da psicologia. Uma aprecia-
ção mais detalhada desta importante fonte de inspiração para Lacan fica reserva-
da para o Capítulo V. Cabe assinalar, porém, que, se estas observações fazem-se
presentes aqui, é devido à mesma percepção da necessidade de uma fundamen-
tação antropol6gica para a psicologia que vem orientando as formulações
lacanianas desde a Tese.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 235

conhece nelas, não as reconhece como sendo suas, da mesma forma,


aliás, que o sujeito norm;,tl não reconhece sua participação na constru-
ção do real. Contudo, afirmar que o sujeito não reconhece como suas
as fantasias que produz é mais ou menos o ponto pacífico, sobre o
qual todos concordam quanto à natureza da loucura. Mas, na aborda-
gem da psiquiatria clássica, o doente não se reconhece em suas fabu-
lações, porque, no fundo, ele nada conhece sobre elas. O louco é aquele
que não sabe o que diz, nem o que faz - o que, aliás, o exime da res-
ponsabilidade penal -, e isso é apenas outra maneira de expressar a
visada deficitária que é lançada sobre os fenômenos da loucura. O pro-
blema, para Lacan, é enfatizar uma pergunta bem diferente: o que,
mesmo sem se reconhecer, o sujeito conhece de sua realidade e de sua
participação no mundo que o cerca? Aí se joga a possibilidade de sus-
tentar a definição da loucura como fenômeno de conhecimento e, já
que esta proposta sempre esteve atrelada à identificação do significado
das formações delirantes, consolidar a pertinência integral da loucura
ao registro do sentido112.
Só que, nos anos transcorridos desde a Tese, a questão do sen-
tido deslocou-se, gradualmente, para um pergunta sobre a linguagem.
As razões para isso podem ser buscadas na própria inclinação ao "con-
creto" que se fortaleceu nesse :meio tempo, onde o fenômeno lingüís-
tico deve ter começado a parecer mais fácil de objetivar cientificamen-
te do que a passagem metafísica da existência ao sentido. Seja como
for, essa valorização da linguagem só se tornou possível com o seu pro-
gressivo afastamento do regime dos signos - impregnada, como vi-
mos, de execrável realismo -, em direção a alguma coisa que não é
ainda a famosa teoria do significante, mas chega perto. Assim, se o
problema da significação pode fazer-se equivaler ao da linguagem, es-
tando ambos diretamente implicados no fenômeno da loucura 113 , é

112 Cf. CP, p. 166.


113 "( .•• )o fenômeno da loucura não é separável do problema da significação para o
ser em geral, isto é, da linguagem para o homem" (CP. p. 166; grifos nossos).
236 RICHARD THE!SEN SIMANKE

devido a uma nova definição da unidade lingüística: ''A palavra não é


mais signo, mas nó de significações" 114 • Referindo-se a algo que é preci-
so desatar, e não mais diretamente ao sentido, que é, por definição,
transparente ao sujeito, Lacan está mais à vontade para propor o seu
ponto de vista à psiquiatria, sem mais correr o risco de dissolver a priori
qualquer conotação patológica que se pudesse atribuir ao fenômeno.
É, pois, um problema epistemológico e um problema clínico que esse
deslocamento vem resolver: a referência pura e simples ao sentido não
era capaz de garantir, nem o determinismo indispensável a uma ciên-
cia do psíquico - pois o que é transparente é, em princípio, livremen-
te controlável-, nem a opacidade mínima que uma formação subjeti-
va qualquer deve ter para poder ser considerada, clinicamente, um
sintoma. É, de fato, apenas com esse apelo, em primeira instância, à
linguagem como tal, apelo que vai se acentuar até culminar na tese da
primazia do significante, que a noção de desconhecimento pode ser
empregada como recurso para dar uma base filosófica mais adequada
à psiquiatria: o sujeito pode apreender claramente o sentido de um dis-
curso, mas, enquanto ele não se reconhecer nesse discurso, quer como
autor, quer como objeto, a sua significação maior permanecer-lhe-á
desconhecida. A partir daí, Lacan consegue avançar uma fórmula na
qual se combinam a idéia de uma antropologia como condição da psi-
cologia e a afirmação de que o campo de ação próprio dessa psicologia
antropológica é, justamente, aquilo que foi historicamente circunscrito
como desrazão, com o que não se está senão extraindo as conseqüên-
cias epistemológicas da imanência da loucura à realidade humana, que
vem se alinhavando nesses vários textos. Conclui-se: "É por isso que
em uma antropologia, onde o registro do cultural no homem inclui,
como se deve, o do natural, poder-se-ia definir, concretamente, a psicolo-
gi,a como o domínio do insensato, dito de outro modo, de tudo isso que
faz nó no discurso- como bem o indicam as "palavras" da paixão" 11 5.

114 CP, p. 166; grifos nossos.


O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 237

Com isso, a pesquisa psiquiátrica, informada por uma tal psico-


logia, passaria a se preocupar não apenas com o sentido das formações
delirantes, mas com os limites da significação, onde aquele mesmo sen-
tido encontra seu determinismo. Daí que readquiram importância as
teses mecanicistas de um Clérambault e de um Guiraud: elas mostram
o não-sentido que está na origem dos sintomas psicóticos, desde que,
é claro, a fundamentação organicista seja convenientemente substituí-
da por uma fundamentação na linguagem, já que esta, tomada à parte
da referência exclusiva ao sentido, mostra-se mais como uma peça de
resistência do que como um veículo natural de significações. Por isso,
é o valor clínico destas observações médicas que Lacan vai celebrar,
chegando a afirmar, no que falta por completo à verdade, que seguiu
o método de Clérambault na análise do caso Aimée; ao contrário, este
"método" só se torna inspirador no momento em que, como agora, já
dispõe de instrumentos para inverter totalmente o sentido dos termos
de seu suposto mestre - "postulados", «erenomenos
"' basais· ", o "auto-
matismo mental" como um todo, enfim\-, remetendo-os aos meca-
nismos da linguagem, e não mais aos desarranjos cerebrais.
Uma recapitulação rápida do caso Aimée dá, então, oportuni-
dade a Lacan de mostrar que ele sempre seguiu a boa lição de seus
mestres, que confusamente, porque organicistas, identificavam uma
função básica de desconhecimento na origem da loucura. No esforço
de explicitá-la, ele promove uma aproximação de Kojeve com Freud,
através do conceito de identificação, com o que toda essa discussão
pode ser canalizada para o conjunto de teses biológicas e psicogenéticas-
que compõem sua teoria do imaginário, por esta época já recebendo
os retoques finais. O argumento procede da seguinte maneira: ao mos-

115 CP, p. 167; grifos nossos. A}-. "palavras da paixão", assim como a "palavra de se-
nhà', são os exemplos prediletos que Lacan usa para mostrar que a significac;ão
da palavra não tem nada a ver com aquilo que ela designa. Ele retoma o caso das
palavras amorosas (''mon petit chou~ por exemplo) na conferência Le symbolique,
l'imaginaire etle réel de 1953.
238 RICHARD THEISEN S!MANKE

trar as relações da paranóia com a personalidade, a Tese afastou uma


concepção deficitária da psicose e mostrou que a diferença entre a nor-
malidade e a patologia tem que ser buscada numa noção que não se
limite a estabelecer uma hierarquia de desempenho psíquico, mas que
seja capaz de fundar uma distinção qualitativa entre os dois estados, o
que, para Lacan, é cada vez mais sinônimo de uma distinção - e esta é
a palavra-chave - estrutural. É aí que entra a noção de desconhecimen-
to. Um homem qualquer que se crê um rei não é mais nem menos
louco do que um rei que se crê um rei, diz Lacan. Mas por quê? Por-
que ambos padecem da mesma alienação que governa a distribuição
dos papéis sociais num certo nível e, num outro mais arcaico, o pró-
prio problema da identidade, ou seja, o problema do "eu sou ... ". Pois,
se a identidade é sempre construída por identificação, esta pode dar-
se de duas maneiras, que acarretam dois graus ou, para fazer isso soar
mais lacaniano, dois estilos diferentes de desconhecimento. Lacan fala,
aqui, da mediação ou da imediatidade da identificação, para designar
o que depois chamará de ideIJ.tificação primária e secundária, sacra-
mentando uma distinção apenas esboçada em Freud. O que diferen-
cia o louco do normal, retomando o exemplo dos que se crêem reis, é
o caráter mediato da identificação do segundo com esta condição 116,
o que faz com que sua crença concorde com uma certa realidade soci-
al, já que é justamente esta realidade que faz a mediação. Claro que,
no contexto kojeviano em que se coloca, tudo isto se refere à media-
ção humanizante proporcionada pela instância do outro, que, agora,
substitui a determinação social genérica antes defendida, assim como
depois vai encarnar a ordem formal da linguagem, quando Lévi-Strauss
a ela reduzir as estruturas do mundo da cultura. Se a loucura é ima-
nente à realidade humana, é porque esta identificação imediata, pri-
mária, que está na sua origem, é um momento logicamente necessário

116 "O momento de viragem é dado, aqui, pela mediação ou a imediatidade da identi-
ficaej:ão e, para dizer a palavra, pela infatuação do sujeito" (CP, p. 171).
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 239

na edificação do sujeito e, portanto, os alicerces da subjetividade estão


enraizados num solo tipicamente paranóico de identificações perfei-
tamente constitutivas, das quais o estágio do espelho busca fornecer o
modelo. É por isso que Lacan não tem pudores em afirmar que este
"desconhecimento essencial da loucura'' situa-nos, diretamente, "no
coração da dialética do ser" 117 , isto é, do ser do homem enquanto com-
portando um fundo irredutível de não-sentido ou, em todo caso, de
insensatez 118 • Por aí se compreende por que a figura da "bela alma",
no seu afã de impor à desordem mundana, projeção de sua interiori-
dade conturbada, a lei redentora de seu coração, será uma das mais
freqüentes metáforas hegelianas a surgirem sob a pena de Lacan, e não
apenas para expressar a loucura, mas a condição do sujeito em geral. É
pelo fato de que a história do sujeito consiste nessa série de identifica-
ções ideais - que o alienam, à medida que o constituem - que o pro-
blema da causalidade efetivamente psíquica da loucura só pode ser
pens_ado dentro do quadro de uma investigação sobre os efeitos subje-
tivos do modo imaginário: efeitos na formação da subjetividade e efei-
tos na subjetivação do real. A esta é dedicada a última parte do artigo
em pauta, que, entretanto, só revela plenamente seu alcance se inserida
na história das teorizações lacanianas sobre o imaginário, à qual será
dedicado o próximo capítulo.

117 CP, p. 171.


118 Lacan se refere, aqui, ao que ele considera como "a fórmula geral da loucura que ·
se encontra em Hegel" (CP, p. 172), ou seja, a insensatez do empreendimento
da bela alma, que não apreende o duplo desconhecimento envolvido em sua con-
dição: não perceber que a desordem do mundo é manifestação exterior de seu
próprio ser, nem que a lei do coração é a imagem invertida deste ser. Por onde se
vê o malabarismo que parece necessário a Lacan - seu estágio do espelho, alta-
mente hegelianizado - para dar conta daquilo que Freud expressava através do
seu prosaico, mas eficiente, conceito de projeção.
240 RICHARD THEISEN S1MANKE

III.5. CLÍNICA E EPISTEMOLOGIA

Para concluir, então, tentemos deixar mais claro como a tese da


estrutura paranóica do conhecimento humano exige investigações e
conduz àquelas sobre o imaginário que acompanham a sua elabora-
.ção. Em primeiro lugar, ela serve como índice do grau em que as ques-
tões epistêmicas e clínicas imbricam-se umas com as outras, à medida
que avança o projeto estabelecido na Tese. Essa predominância da
clínica, por sua vez, é quase que uma decorrência narural da recusa de
todo um aparato doutrinário que dominava a prática psiquiátrica e
que foi relegado ao ostracismo por Lacan, pelas razões que se viu. A
idéia é mais ou menos essa: se uma teoria - a organicista, basicamente
- é aposentada por desconhecer a realidade clínica específica do cam-
po de ação da psiquiatria, qualquer teoria que venha a substituí-la de-
verá, para não incorrer no mesmo erro, preservar, valorizar e tematizar
esta realidade; deverá ser uma teoria que tome a clínica como modelo
e parâmetro e que, no limite, se identifique com ela. Ora, como a na-
rureza dos fatos clínicos com que se defronta o psiquiatra foi definida,
na Tese, como consistindo, essencialmente, em fenômenos de conhe-
cimento, nada mais apropriado para abrangê-la do que uma reflexão
de feitio epistemológico, desde que cumprida a condição acima. As-
sim, uma hipótese como a da "estrutura paranóica do conhecimento"
serve a um duplo propósito: primeiro, impregnar a teoria, mesmo no
seu patamar mais abstrato, com ingredientes retirados da realidade clí-
nica que ela pretende descrever; segundo, vacinar, de saída, essa refle-
xão contra o realismo científico, diagnosticado como o principal dos
males a castrar a criatividade teórica da psiquiatria. Pois, como Lacan
pretendeu ter demonstrado, o conhecimento paranóico é relativo a
uma cerca estrutura da personalidade, cujas leis de formação - isto é,
cujo determinismo específico - ele buscou identificar. Desta forma, se
o conhecimento humano, em geral, é igualmente relativo, o foro
decisório de uma ciência que o estude não pode ser a correspondência
com uma realidade entendida como instância fisicamente material,
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 241

preexistente e absoluta, mas sim a realidade própria do homem, cujo


parâmetro de definição passou pelo social, pela família, até migrar,
pouco a pouco, para a consideração da linguagem. Mas essa derivação
acompanhou as modificações que sofreu, no pensamento de Lacan,
uma concepção da antropologia que, como ciência "humana" por ex-
celência, seria a única capaz de fornecer as bases para uma psicologia
anti-realista e anti-reducionista.
De fato, no relatório de sua viagem à Inglaterra, centrado no
estado da psiquiatria naquele país durante e após a Grande Guer-
ra 119, Lacan descreve uma série de estratégias de seleção e tratamento
do pessoal militar, que se caracterizavam todas, a seu ver, por uma ên-
fase colocada no funcionamento dos grupos (sociais, de trabalho,
terapêuticos, etc.) enquanto tais, e não na patologia individual, cuja
origem sempre poderia ser remetida a uma causa orgânica. O aparen-
te sucesso destas intervenções leva-o a concluir, no encerramento do
debate: "Insisto em afirmar a concepção unitária, que é a minha, em
Antropologia'' 120 • Ou seja, é uma antropologia não decomponível em
individualidades que, como na Tese, é visada como condição para uma
abordagem fecunda e, ao mesmo tempo, objetiva e científica do cam-
po psiquiátrico. Daí que a teoria do imagindrio que se propõe conco-
mitantemente, como alternativa para o vazio doutrinário da psicolo-
gia, esteja atravessada por um claro viés antropológico, como teremos
oportunidade de verificar.
Além, disso, a formulação positiva de uma teoria psicológica,
que derive consistentemente de toda essa epistemologia anti-realista;
ponto central das elaborações recapituladas até agora, só poderia ser
uma doutrina sobre o funcionamento do modo imagindrio, que o
apontasse como .aquilo que distingue a especificidade humana e lhe
confere esta posição peculiar frente à determinação natural. O com-
promisso desta doutrina do imaginário com a tese do "conhecimento

119 "A psiquiatria inglesa e a guerrà'. ln: A querela dos diagnósticos.


120 Ibidem, p. 26.
242 RICHARD THEISEN S!MANKE.

paranóico" - que, aliás, funcionou este tempo todo como emblema


da reflexão epistemológica que preparou sua introdução - é revelada
pela presença de uma formulação explícita desta tese num texto dedi-
cado a uma crítica do conceito de ego, a partir, justamente, da teoria
do imaginário e do estágio do espelho. Em "Some reflections on the
Ego", com efeito, após relembrar os desenvolvimentos da Tese, Lacan
assevera: "Mas, inversamente, ao estudar o "conhecimento paranóico':
eu fui levado a considerar o mecanismo da alienação paranóica do ego
como uma das pré-condições do conhecimento humano" 121 • Este texto,
escrito já em 1951, é, portanto, posterior ao acabamento da teoria do
imaginário, que pode ser datada de 1949, data da publicação do arti-
go sobre o estágio do espelho. Na verdade, é contemporâneo das ela-
borações que vão empurrar esta teoria de encontro a seus limites e cul-
minar na introdução do registro do simbólico, ao qual, daí em diante,
será atribuído um papel cada vez mais decisivo. A equiparação do co-
nhecimento humano e científico às formas paranóicas de cognição não
é, pelo que se vê, uma simples sobrevivência renitente da fase psiquiá-
trica inicial do pensamento do autor, prestes a ser sepultada pelas re-
flexões sofisticadamente psicanalíticas que se lhe seguem. Esta equiva-
lência continua sendo afirmada, de fato, em época bem posterior e,
num certo sentido, até o final da carreira lacaniana, quando ele conti-
nuará afirmando que a paranóia e a personalidade são a mesma coisa,
idéia que, afinal, não difere muito do que vinha sendo proposto desde
a Tese.
Neste mesmo artigo, Lacan dá uma definição muito clara e pre-
cisa de seu projeto científico, desenvolvido nos anos anteriores: "A te-
oria que eu tenho em mente é uma teoria genética do ego. Esta teoria
pode ser considerada psicanalítica, na medida em que ela trata a rela-
ção do sujeito com seu próprio corpo em termos de sua identificação

121 "Some reflections on the Ego", p. 12; grifos nossos. Este texto, publicado em
1953 no lnternational Journal ofPsychoanalysis, configura, juntamente com uma
tradução para o inglês de "Le myche individuei du nevrosé", as duas únicas con-
tribuições de Lacan ao órgão oficial da Associação Internacional de Psicanálise.
O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PARANÓICO 243

com uma imago, que é o relacionamento psíquico por excelência; de


fato, o conceito que nos formamos deste relacionamento, a partir de
nosso trabalho analítico, é oponto de partida para toda psicologia genuí-
na e cientlfica" 122 • É ao estudo desta teoria e desta psicologia que está
dedicado o próximo capítulo.
IV. IMAGENS E COMPLEXOS

Aquilo que se conhece como a teoria /,acaniana do imagindrio -


na verdade, sua primeira teoria do imaginário, já que ela seria revista
depois, à luz de seus desenvolvimentos sobre o simb6lico - é a sua
contribuição positiva inicial ao campo da psicologia ou, se se quiser,
da psicanálise, uma vez que, como vimos, Lacan não distinguia essen-
cialmente as duas disciplinas, quer no momento em que vasculhava
os textos psicanalíticos à procura de recursos para sua renovação de
uma psicologia obsoleta, quer quando fá considerava a psicanálise
como o modelo mais promissor para uma psicologia concreta, que s6
estava a precisar de alguns retoques. Estes retoques consistem, basi-
camente, numa revisão da teoria freudiana do narcisismo, levada a
cabo com um instrumental congregado a partir dos mais diferentes
referenciais, com o que se inaugura o estilo mais típico da teorização
lacaniana. Isso, aliás, faz com que essas suas elaborações sejam reco-
nhecidas, até pelos discípulos mais ortodoxos, como dignas do mes-
tre, sendo aí que, via de regra, começam os manuais mais convencio~
nais do lacanismo. O que foi exposto até aqui, no entanto, deve ter
servido para mostrar que esta teoria vem cumprir uma série de tarefas
prescritas por um· projeto em pleno andamento. A influência bastante
restrita de Freud na elaboração deste projeto - ele pode, no máximo,
ter sido convidado a contribuir com algumas soluções, mas não a par-
ticipar na formulação dos problemas - torna compreensível a liberda-
de com que Lacan vai transportar os conceitos freudianos para um
terreno que lhes é um tanto quanto estranho. E, se essa liberdade con-
tinua sendo um traço característico de praticamente toda a trajet6ria
246 RICHARD THEISEN SIMANKE

lacaniana, isso takrez sugira que as linhas de força deste projeto per-
maneceram mais ou menos constantes ao longo do percurso.
Este passo tão significativo no encaminhamento da investiga-
ção de Lacan se organiza em torno do eixo fornecido pela chamada
teoria do estdgio do espelho, proposta em 1936, e que recebe sua for-
mulação mais acabada em 1949, no artigo "Le stade du miro ir comme
formateur de la fonction du Je". Desse modo, a história da construção
da teoria lacaniana do imaginário coincide, grosso modo, com a série
de elaborações sucessivas que o modelo do estágio do espelho recebeu
no período 1936-1949, cada momento dessa evolução estando tam-
bém condicionado pelo campo de aplicação e o tipo de problema ao
qual este modelo foi chamado a contribuir com suas soluções. Af po-
demos listar a formação do eu, a agressividade, a criminologia, a
remodulação da teoria do narcisismo, entre outros, todos de alguma
maneira relacionados com a clínica das psicoses através de seus tópi-
cos subsidiários (identificações alienantes, as idiossincrasias do delí-
rio, a relação com as diversas encarnações do "outro", por exemplo).
Sob certo aspecto, a questão que Freud deixou respondida de modo
inconcluso ao final de sua obra - a formulação de uma explicação
metapsicológica para a psicose - foi a primeira tarefa teórica de enver-
gadura que Lacan se atribuiu ou que, pelo menos, pode ser descrita
nesses termos a partir do momento em que os alvos de sua investiga-
ção inicial passaram a receber expressão em termos psicanalíticos.
Seja como for, essa teoria do imaginário em formação possui
inegáveis conotações antropológicas - aliás, não poderia ser de outra
maneira, dada a importância atribuída à antropologia desde a conclu-
são da Tese -, e isso em dois sentidos: em primeiro lugar, no de que
ela pretende embasar uma teoria da gênese do eu, a qual, à medida que
Lacan for criticando a concepção ortodoxa do ego como mera instân-
cia intrapsíquica objetivada, vai-se convertendo em uma verdadeira
teoria da constituição do sujeito, com todas as implicações e pretensões
filosóficas que uma tal mudança acarreta. É, pois, de uma teoria da
antropogénese que se trata, de uma tese sobre a origem do sujeito hu-
mano em sua especificidade "ontológica". Teremos oportunidade de
verificar, no próximo capítulo, o quanto esta teoria está impregnada
IMAGENS E COMPLEXOS 247

pela leitura antropologizante que Kojeve faz da Fenomenologia do espí-


rito, além de outros passeios pela tradição e pelas filosofias contempo-
râneas. Mas essa teoria pode ser dita antropológica também no senti-
do de que ela concebe a gênese das imagens numa situação social e
institucional onde uma dinâmica de identificações envolvendo os per-
sonagens do drama familiar lança os alicerces da subjetividade, sob a
forma de um conjunto muito primordial e decisivo de imagens, que
merecerão a denominação distintiva de "imagos': Esta situação, com o
acréscimo, evidentemente, das reações afetivas que se dão nos sujeitos
envolvidos, é exatamente aquela que Lacan designa como um comple-
xo, noção que encontra-se, portanto, bem distante da caracterização
estritamente formal que receberá mais tarde. Nosso autor é muito ex-
plícito quanto a esta função generatriz que o complexo desempenha
com relação ao imaginário: "É pela via do complexo que se instauram
no psiquismo as imagens que informam as unidades mais vastas do
comportamento: imagens às quais o sujeito se identifica alternada-
meni:e para representar, único ator, o drama de seus conflitos" 1• Cabe-
nos, assim, como tarefa preliminar à abordagem das concepções
lacanianas sobre o imaginário, percorrer suas .primeiras explorações
sobre os complexos, onde, por um lado, se evidenciará o solo antro-
pológico onde assentam-se as formações imaginárias e, por outro, será
possível perceber o elo de continuidade que une as primeiras contri-
buições originais de Lacan à psicanálise a uma problemática já firme-
mente estabelecida desde a Tese.

IV.1. A FAMfLIA E SEUS COMPLEXOS

A concepção que Lacan faz dos complexos, assim como de sua


tipologia, sua evolução e seu encadeamento, tal como aparece exposta

1 PR, p. 90; grifos do autor.


248 RICHARD THEISEN S!MANKE

na primeira parte de "La famille", é, de fato, muito pouco freudiana,


em que pese o comprometimento crescente do autor com a aventura
psicanalítica nos anos que se seguiram à Tese (análise didática, comu-
nicações em Congressos oficiais da IPA, etc.). Para Freud, com efeito,
os complexos - isto é, o complexo de Édipo e o de castração, rema-
nescentes da devassa efetuada sobre a proliferação indiscriminada dos
complexos promovida por Jung- eram governados pelas fantasias que
incidiam sobre as relações inaugurais do sujeito (fantasia de castração
e fantasias incestuosas, principalmente), as quais faziam surgir os per-
sonagens do drama encenado, a saber, o adulto castrador ou sedutor,
a criança passiva ou perversa, e assim por diante. O problema é que,
em Freud, as fantasias acabavam por ser remetidas, em última instân-
cia, a uma origem endógena, o que deixava muito poucas alternativas
além de atribuí-las a um fator constitucional e, o que é ainda pior,
hereditário (como as Urphantasien, por exemplo). É verdade que Freud
nunca se sentiu à vontade com estas conseqüências acarretadas pelo
fracasso de suas tentativas de propor uma gênese puramente histórica
para a neurose (e o psiquismo em geral, por extensão)2, o que o levou
às conhecidas e exageradas especulações em busca do evento funda-
dor, no passado da humanidade ou na própria filogênese. De qual-
quer modo, o fato é que, para Freud, o complexo era, antes de tudo,
uma constelação intrapsíquica, mesmo que esta concepção o levasse a
ziguezaguear sobre os perigosos limites entre o psíquico e o biológico.
Ora, o objetivo manifesto do texto de Lacan é destituir os fato-
res biológicos de sua eficácia explicativa nos fatos concernentes ao fim-
cionamento da família humana. É por isso que, para ele, o complexo
vai ser, antes de mais nada, uma situação social, a partir da qual se
geram, por identificação, as imagens que, uma vez em movimento,
constituem este mundo de fantasia que, em Freud, era pensado como
uma formação originária. Assim, se há algum fator biológico em jogo,
ele diz respeito à origem da família e não do complexo e, mesmo as-

2 Um fruto tardio deste mal-estar freudiano é a chamada teoria da sedução generali-


zada de Jean Laplanche.
IMAGENS E COMPLEXOS 249

sim, não vai além da geração, que meramente produz os indivíduos, e


das condições do meio, esta sim uma condição relevante, mas que, como
já vimos, prepara o caminho para a substituição dos determinantes
biológicos pelos antropológicos, na medida em que a ação coletiva
humana produz um meio artificial, o único com o qual os indivíduos
se relacionam diretamente3• Esse desenvolvimento exacerbado das re-
lações sociais que se observa na espécie humana, propiciado por "capa-
cidades excepcionais de comunicação mental"4 - um prenúncio das
funções humanizantes da linguagem -, tem como causa e condição
um déficit instintivo, cujo vazio necessita ser preenchido por uma de-
terminação suplementar. Essa "economia paradoxal dos instintos" 5 aí
mencionada não é muito diferente da dinâmica pulsional descrita por
Freud, mas ela desempenha agora o papel de uma espécie de resíduo a
ser facilmente negligenciado pela explicação psicológica, ao passo que
sabemos o quão crucial era o conceito de pulsão para a metapsicologia
freudiana, por mais que este mergulhasse suas raízes na realidade bio-
lógica do corpo. Será necessário um longo trajeto, durante o qual a
pulsão sofrerá um certo ostracismo, antes que ela possa se reconciliar
com a teoria lacaniana do significante, herdeira de suas preocupações
antropológicas.
Estas últimas, por sua vez, não são gratuitas. O esforço de cons-
tituir uma psicologia concreta, por tudo que se viu da relação de Lacan
com Politzer e da inspiração que ele aí buscou para atender os requisi-
tos estabelecidos na Tese, chegara à conclusão de que a ordem social
deveria condicionar a ordem psicológica. Mas, se a ordem social deve
ser condição suficiente para á. explicação do que ocorre no sujeito, ·a
família, onde este se gesta, tem que ser arrancada tanto quanto possí-

3 Cf. LF, p. 40-3. A inspiração ainda comteana do texto, assim como a distância
que este pretende tomar com relação ao determinismo biol6gico, manifesta-se, já
em sua abertura, na observação de que, no homem, ao contrário dos outros ani-
mais que vivem em sociedade, a famClia é a efetiva uniáade social.
4 LF, p. 40-3.
5 LF, p. 40-3.
250 RICHARD THE!SEN S!MANKE

vel ao determinismo biológico, o mesmo, aliás, que produzira aquelas


conseqüências funestas para a psiquiatria, as quais Lacan tentara con-
tornar em sua obra inaugural. Por isso: "Coordenados pelo método
sociológico, esses dados [os dados comparados da etnografia, da histó-
ria, do direito e da estatística social} estabelecem que a família humana
é uma instituição. A análise psicológica deve adaptar-se a essa estrutu-
ra complexa (... )"6 • Se a família é a unidade efetiva de composição da
sociedade - de qualquer sociedade-, é porque ela desempenha um
papel primordial na transmissão da cultura, afirmação que prenuncia
a tese posterior de que o discurso parental, de alguma maneira, "ino-
cula'' o simbólico no infans ou, melhor dizendo, que o sujeito em po-
tencial está aí capturado antes mesmo de nascer, sendo o discurso em
que se articula o desejo dos pais a seu respeito o veículo. com o qual
ele ingressa na ordem da linguagem, que lhe pré-existe e sobredeter-
mina. Como se vê, a primazia da ordem da cultura sobre a natureza,
no caso humano, vai ser recuada para além da barreira biológica apa-
rentemente absoluta do nascimento, prolongando e acentuando uma
tendência que já se delineia em 1938. Além de satisfazer os requisitos
epistêmicos da análise psicológica concreta, essas posições, já agora,
destinam-se a encontrar um lugar, ainda que secundário, para a noção
de inconsciente. Afinal, o conceito de complexo descende de Freud,
em cuja obra o inconsciente é uma noção central e indispensável. O
problema, para Lacan, é propor uma definição do conceito de incons-
ciente que escape às acusações de substancialismo desfechadas por
Politzer, além da constatação mais ou menos óbvia de que, em termos
psicológicos tradicionais, a expressão "representação inconsciente" é,
de fato, uma contradição em termos. Por issó, a veiculação dos fatores
culturais operada pela família vai ser pensada como transmissão de

6 LF, p. 40-3. Um dos sintomas, aliás longevos, desta prevalência do social


é o papel
central atribuído à funyão paterna na constituição do sujeito. Já em "La familie",
Lacan aponta como as funyões maternas ainda apresentam trayos do comporta-
mento instintivo e têm, portanto, um pé no biológico, enquanto que a paternida-
de se prende aos "postulados espirituais que marcaram seu desenvolvimento" (LF,
p. 40-3) e está, assim, mais intimamente ligada ao determinismo cultural. '
IMAGENS E COMPLEXOS 251

"estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa


os limites da consciência"7 . A significação do inconsciente na deter-
minação imposta pela instituição familiar à constituição do sujeito é,
portanto, mais ou menos simétrica àquela que lhe era atribuída por
um determinismo fisiológico das funções psíquicas; ou seja, o sujeito
não tem consciência dos mecanismos sociais que atravessam seu com-
portamento, da mesma forma que não percebe os movimentos da
inervação cerebral que subjazem aos seus atos mentais. É, pois, numa
acepção meramente descritiva que Lacan emprega - e ainda emprega-
rá p~r muito tempo - o termo "inconsciente", e não na de uma ins-
tância que exerça uma causalidade efetiva. Ao contrário, é esse funcio-
namento soberano da família como instituição que vai estabelecer
"uma continuidade psíquica entre as gerações, cuja causalidade é de
ordem mental" 8 . Esta hereditariedade social promovida pelo grupo fa-
miliar, na verdade, resume a tese que Lacan quer estabelecer neste
texto: ela dá conta, no lugar dos fatores constitucionais, da gênese e
do determinismo esperados para a subjetividade. O inconsciente
freudiano, com todos os ecos biologistas que ressoam aos ouvidos de
Lacan, ficará em suspenso até segunda ordem9, e ele retomará esta ta-
refa de relativização do conceito a propósito do tema mais circunscri-
to do complexo propriamente dito, como veremos à frente.
De fato, uma série de tomadas de posição mais tardias estão an-
tecipadas nesta intransigente promoção ao primeiro plano da família
como instituição social. A principal delas é a idéia de uma ruptura

7 LF, p. 40-3.
8 LF, p. 40-3; grifos :nossos.
9 Ao comentar o artigo sobre a família em seus cursos da Sorbonne, Merleau-Poncy
percebe muito bem que se trata, para Lacan, de substituir efetivamente o conceito
e que a noção de imago vem se colocar no lugar da problemática "representação
inconsciente" freudiana: "Lacan tende a substituir a noção de 'inconsciente' pela
de 'imaginário'. A imago, por exemplo, em vez de ser inconsciente, soterrada em
profundidade, deve ser considerada como uma formação 'imaginária', isto é, proje-
tada diante da consciêncíà' (Merleau-Ponty à la Sorbonne: resumé de cours, p. 109).
252 RICHARD THEISEN S!MANKE

absoluta e definitiva entre natureza e cultura - que Lacan, depois, fes-


tejaria em Lévi-Strauss -, expressa na insistência com que é afirmado
o quanto a família humana é um fenômeno originariamente cultural,
já que se descobre que mesmo as características da família primitiva
que poderiam, talvez, ser creditadas a um estado ainda natural (uma
suposta promiscuidade originária, por exemplo), são, na verdade, resul-
tado de um complicado sistema de interdições e leis, presentes desde
o princípio. A noção de complexo, tema axial deste estudo, será o ins-
trumento teórico com que se tentará justificar esta ruptura e, por este
caminho, reafirmar a "ordem original de realidade constituída pelas
relações sociais" 1º, mais um axioma presente em Lacan desde a Tese.
É, antes de tudo, à noção de instinto que a de complexo vem se
opor11 • Primeiro, por razões relativas à metodologia da investigação:
toda vez que a pesquisa psicológica romper com as abstrações acadê-
micas e tiver em vista tão somente o "concreto" no que diz respeito à
dinâmica familiar, o que se destaca e se propõe como objeto a esta aná-
lise não é nunca os instintos, mas sempre os complexos. Veja-se bem:
,se a família é, como já foi dito, um objeto sumamente apropriado aos
métodos da psicologia concreta, é porque seu funcionamento é ade-
quadamente descrito com o recurso a esta noção em que tão bem se
revela a prevalência do social, o que garante um determinismo objeti-
vo, mas não reducionista. Na verdade, se não é o complexo que é elei-
to como o objeto da nova psicologia que Lacan quer fundar, mas sim
as imagos, é porque ele designa uma constelação ainda demasiadamen-
te exterior à ordem subjetiva, à qual transmite, no entanto, a sua ca-

10 LF, p. 40-S.
11 Este objetivo se manifesta explicitamente numa comunicação de Lacan à Socie-
dade Psicanalítica de Paris, onde ele procura mostrar como as impulsões- termo
genérico, que pode recobrir desde os fenômenos do instinto até o Trieb freu-
diano, passando por certas manifestações psicóticas reconhecidas desde longa
data pela psiquiatria - podem ser remetidas aos complexos que organizam o de-
senvolvimento, permitindo assim localizar a origem dos sintomas numa escala
genética sem ter que recorrer aos dados da maturação da libido (ver "De l'impul-
sion au complexe (1938)").
IMAGENS E COMPLEXOS 253

racterística mais apreciável: "esse caráter essencial do objeto estudado:


seu condicionamento por fatores culturais, à custa dos fatores natu-
rais"12. Esse caráter é evidenciado na definição de complexo proposta
por Lacan, que vale a pena citar na íntegra, já que sintetiza muito bem
o ponto de vista que se trata de defender (não esquecendo que este
texto foi originalmente um verbete de enciclopédia e que, por isso,
tem um grau de sistematicidade raro em Lacan): "O complexo, com
efeito, liga, sob uma forma fixada, um conjunto de reações que pode
interessar todas as funções orgânicas, desde a emoção até a conduta
adaptada ao objeto. O que define o complexo é que ele reproduz uma
certa realidade do ambiente, e duplamente: 1) Sua forma representa
esta realidade nisso que ela tem de objetivamente distinto em uma eta-
pa dada do desenvolvimento psíquico,· esta etapa especifica sua gênese.
2) Sua atividade repete no vivido a realidade assim fixada, cada vez que
se produzem certas experiências que exigiriam uma objetivação supe-
rior desta realidade; estas experiências especificam o condicionamen-
to do complexo" 13 • .
O que primeiro chama a atenção nessa definição é o quanto ela
prolonga o esquema explicativo montado na Tese, que pode ser resu-
mido pela tríade reação/fixação/repetição. Essa continuidade fica bem
manifesta na aplicação que se faz deste esquema à elucidação dos qua-
dros psicopatológicos na segunda parte do artigo, como já vimos. Mas
o mais importante é que, para Lacan, esta definição, por si só, garante
a independência do complexo - e, por extensão, daquilo que ele de-
termina - com relação aos fatores biológicos encarnados pela noção
de instinto. Por quê? Em primeiro lugar, porque o complexo recria à
realidade ambiente, segundo as leis que presidem cada etapa do de-
senvolvimento e, assim, regula as relações que se estabelecem, a cada
passo, dentro do grupo familiar. Ele dá margem, deste modo, ao
surgimento de uma ordem especificamente humana, já que é sob sua
égide que os membros do grupo familiar revestem-se das característi-

12 LF, p. 40-5; grifos nossos.


13 LF, p. 40-5; grifos nossos.
254 RICHARD THEISEN S!MANKE

casque farão deles, com relação a um sujeito dado, objetos em todos


os sentidos da palavra (isto é, no de escolha afetiva e no de alvo do
conhecimento}. Sob todos os seus aspectos, diz Lacan, o complexo só
se compreende por sua referência ao objeto, mas este, uma vez que o
próprio complexo engendra a chave interpretativa a partir da qual se
"lê" o real, só pode ser comunicado, indicado, atribuído ou, mesmo,
interditado segundo um critério cultural, do qual a família é, por defi-
nição, o portador. Enquanto que, no mundo animal, é o instinto que
regula a conduta em relação aos objetos (o alimento, a presa, o inimi-
go, o parceiro sexual), no mundo humano é uma certa estrutura de
relações, constituída ao longo da história de uma cultura e transmiti-
da de geração a geração, que governa as diversas escolhas, rompendo
não só com a fixidez instintiva - que, segundo Lacan, é substituída
por um "processo dialético", produtor das novas atribuições -, mas
também com a conaturalidade entre o organismo e o meio, sob a qual
se plasma o comportamento animal. Isso não quer dizer apenas que o
homem está exilado do mundo natural, que ele nega ao se constituir
como sujeito humano, mas também que, pelo próprio fato deste
distanciamento, as relações de conhecimento implicadas pelos com-
plexos exigem, por definição, a distinção entre o sujeito e o objeto do
conhecimento, que não faria sentido no que diz respeito ao comporta-
mento instintivo, já que o animal é, ele mesmo, um elemento do mun-
do natural. Fica claro que, para Lacan, a substituição do instinto pelo
complexo é condição para que se possa falar do surgimento de um su-
jeito no pleno sentido da palavra.
A tarefa final desta caracterização geral do problema em pauta é
prestar contas, de alguma maneira, dessas conotações introduzidas no
conceito de complexo frente a suas origens freudianas. É nesse con-
texto que retorna a questão do peso e do sentido que deve ser atribuí-
do aos fatores inconscientes. A primeira providência, então, é tentar
uma espécie de compromisso, numa formulação onde possam convi-
ver harmonicamente a concepção freudiana e a lacaniana em vias de
se formar: "Definimos o complexo num sentido muito amplo, que não
exclui que o sujeito tenha consciência do que ele representa. Mas foi
como fator essencialmente inconsciente que Freud o definiu a princí-
IMAGENS E COMPLEXOS 255

pio" 14 • É claro que a astúcia desta atitude - e não é nem de longe a


última vez que Lacan a empregará - consiste em acomodar as idéias
de Freud como um caso particular de suas próprias teses, o que vai
permitir, num período posterior, reivindicar-se freudiano sem deixar
de introduzir, à vontade, elementos que nunca sequer rondaram o pen-
samento do fundador da psicanálise. No entanto, por mais condes-
cendência que demonstre para com os pressupostos de seu antecessor,
Lacan deixa muito claro que, seja o que for que se possa chamar de
inconsciente dentro do domínio que interessa à psicologia, é sempre
de uma estrutura que se trata, nunca de uma representação. É verdade
que ele se reconhece forçado a admitir esta "entidade paradoxal" em
que consiste uma representação inconsciente 15 ; mas, ao deslocar o pro-
blema do terreno da representação para o das imagos, ele está, justa-
mente, procurando furtar-se aos impasses que se criam quando se ex-
pressa uma descoberta nova na linguagem da velha psicologia. Com
efeito, uma imago só é uma "representação inconsciente" num senti-
do muito peculiar. O termo não designa qualquer coisa semelhante a
uma "imagem mental" no sentido clássico, mas sim uma posição sub-
jetiva com a qual o sujeito se identifica e a partir da qual "interpreta",
quase que no sentido clínico que esta palavra tem na psiquiatria, a sua
realidade imediata e constitui, assim, seu mundo próprio 16. Tudo se
passa, na verdade, como se Lacan adaptasse às idiossincrasias da reali-
dade humana o modelo meta-ecológico construído por von Uexküll

14 LF, p. 40-5.
15 Ver LF, p. 40-5: "Esses efeitos têm características de tal modo distintas e contin-
gentes que elas fonpm a admitir como elemento fundamental do complexo esta
entidade paradoxal: uma representação inconsciente, designada sob o nome de
imago. Complexos e imagos revolucionaram a psicologia, e especialmente a da
família, que se revelou o lugar de eleição dos complexos mais estáveis e mais típi-
cos (...)"; grifos nossos. ·
16 Cf. Merleau-Ponty à la Sorbonne... , p. 109: "A imago, no sentido freudiano, não
significa uma representação sensível, nem atual, mas um centro implícito da
conduta".
256 RICHARD THEISEN S1MANKE

em torno da noção de Umwelt: o homem não desfrutaria apenas de


um mundo circundante comum, determinado pelas características da
espécie, mas cada sujeito seria o centro, à sua maneira, de um mundo
pessoal, construído a partir das vicissitudes identificatórias a que foi
submetido no interior do grupo familiar. É claro que, entre o Umwelt
genérico da espécie e a situação do indivíduo intercala-se o ambiente
social modelado pela cultura da qual ambos participam e cujos prin-
cípios é função da família transmitir. O maior ou menor sucesso na
tarefa de inserir-se nele determinará o caráter patológico ou não da
conduta. A possibilidade da adoção de uma posição absolutamente sin-
gular, prevista pela própria maneira segundo a qual se concebe a "pro-
dução" do sujeito a partir da dinâmica identificatória que ocorre no
meio familiar, é uma espécie de condição para se poder pensar a emer-
gência das configurações clinicamente patológicas reconhecidas pela
psiquiatria. Esta é uma outra maneira de justificar a identificação da
psicose a partir do critério do "assentimento" da comunidade, numa
fórmula que não dê margem a que a loucura seja simplesmente equi-
parada à desadaptação social que, de resto, pressuporia um sujeito ati-
vo e inconformista, e não determinado e dependente.
De qualquer modo, a imago, naquilo que ela tem de inconscien-
te, não designa um foto psicológico em sentido estrito, mas um lugar
na estrutura que determina este fato, ponto desde o qual se produz
uma série de efeitos-aquilo que é designado como o modo imaginá-
rio de funcionamento psíquico-, que, uma vez produzidos são, por
definição, conscientes enquanto tais. No fundo, a imago é inconsciente
no mesmo sentido em que o complexo pode ser inconsciente: como
uma estrutura em que se articula o psíquico e o social 17 , cujo influxo
sobre os atos individuais pode passar despercebido ao sujeito que ne-
les se engaja. A relação entre o complexo e a imago é como que a
interface pela qual se exerce a determinação social sobre a esfera sub-
jetiva. Ao mesmo tempo, a passagem do primeiro à segunda é o pró-

17 Mas também o vital. Veja~se a relação entre o imaginário e o c:orpo na Ética de


Espinosa, à qual retomaremos.
IMAGENS E COMPLEXOS 257

prio processo de subjetivação das instâncias exteriores, que autoriza a


que se fale de uma psicologia, e não de uma sociologia do sujeito e
dos transtornos psicológicos, a teoria do estágio do espelho compare-
cendo aí para dar conta da ação destes fatores na construção do corpo
psíquico, primeira matriz do eu. Em suma, o complexo, tanto quanto
a imago em que ele se sedimenta, são inconscientes, para Lacan, mais
ou menos da mesma maneira que as "estruturas" o serão para Lévi-
Strauss, com a ressalva de que, neste estágio, o complexo lacaniano
parece definir-se com um grau maior de realismo sociológico do que
o estruturalismo atribuirá às suas construções. A ser verdadeiro o cré-
dito que Lévi-Strauss concede a Marcel Mauss de ser o inventor da
noção de inconsciente em sociologia, talvez se possa ver nisso uma fon-
te de inspiração para a compatibilização que Lacan tenta empreender
entre os seus pontos de vista e os freudianos. Este esforço se manifesta
na fórmula extremamente geral do complexo que é avançada aqui:
"Esse progresso teórico nos incitou a dar do complexo uma fórmula
generalizada, que permite incluir os fenôt1:1enos conscientes de estru-
tura semelhante" 18 • O progresso teórico a· que se faz alusão aqui é a
percepção do papel que os complexos desempenham como organiza-
dores do desenvolvimento psíquico. Além de conceder-lhes um lugar no
esquema explicativo das psicoses em elaboração desde a Tese, esta
constatação serve de gancho para a consideração dos diversos comple-
xos que se ordenam temporalmente ao longo do desenvolvimento do
indivíduo em seus primeiros anos.
Essa descrição seqüencial dos três complexos principais para
Lacan (o de desmame, o de intrusão e o de Édipo} tem também um··
objetivo bem nítido: ela visa ocupar o lugar das elaborações freudianas

18 LF, p. 40-6. Essa fórmula conciliatória não visa somente a. Freud, mas também às
fontes psiquiátricas (Bleuler, Minkowski), através dos quais a importância do con-
ceito fez-se clara para Lacan. Um uso tipicamente minkowskia.no do termo o de-
nuncia a.qui: ·~sim também as crenças delirantes, nas quais o sujeito a.firma um
complexo como uma realidade objetiva; nós o mostraremos particularmente nas
psicoses familiares" (LF, p. 40-6).
258 RICHARD THE!SEN SIMANKE

sobre os estágios da libido e inverter a tendência biologizante que


Lacan aí percebe. A correspondência que se estabelece é mais ou me-
nos natural: o complexo de desmame substitui a fase oral, o de intrusão
cobre o período reservado à fase anal (é verdade que com a introdução
de uma problemática que escapa completamente às intenções
freudianas), e o complexo de Édipo corresponde, como em Freud, à
fase fálica, mas, como se verá, sem conceder tanta importância à per-
cepção das diferenças anatômicas entre os sexos. Essa preocupação
lacaniana prende-se ao fato de que ele pouco distingue entre a teoria
freudiana das pulsões e as concepções etológicas do instinto - ele emprega
longamente o termo "instinto" para traduzir o Trieb freudiano, um uso
que condenará veementemente depois-, que lhe pareciam, ambas,
propor um inatismo demasiado contundente para permitir, nos
interstícios do determinismo biol6gico, um lugar para a constituição
histórica e cultural do sujeito.
Nesse contexto, a descrição do complexo de desmame tem uma
função estratégica: ao responder pela forma mais primordial da imago
materna, ele fornece um excelente argumento para a tese da preva-
lência absoluta do complexo sobre o instinto no homem, pois mostra,
no momento mais precoce do desenvolvimento, a dominação que os
fatores cultur;üs exercem, às expensas dos determinantes biol6gicos,
sobre a conformação do sujeito. Esta prevalência - que pode ser ex-
pressa, nos termos do projeto lacaniano, como a primazia do imagi-
nário sobre o real-, serve para afirmar o modo como, no homem, a
cultura é primordial e faz valer os seus direitos mesmo num caso em
que a impregnação dos fatores constitucionais e instintivos parece tão
fora de dúvida. É claro que não se trata de,negar as funções biol6gicas
da lactação, mas sim de afirmar que, para o filhote humano, "ablacta-
ção" e "desmame" não significam absolutamente a mesma coisa. Pois
- e este é um argumento decisivo, já que provém justamente do lado
da biologia do comportamento - o fim da lactação, no animal, coin-
cide com o cessamento da ação do instinto materno e das práticas de
proteção e cuidados, enquanto que as crias _humanas permanecem li-
gadas à família ainda por muito tempo; afinal, elas precisam passar
ainda pelos outros dois "complexos familiares" antes de atingirem sua
IMAGENS E COMPLEXOS 259

identidade adulta. Enquanto que o animal, uma vez desmamado, dis-


pensa-se ou é dispensado da proteção dos pais, pois esse evento coinci-
de, nele, com a maturação das capacidades de sobrevivência autônoma,
"no homem, pelo contrário, é uma regulação cultural que condiciona
o desmame" 19 . E não poderia ser de outra maneira, pois, com a de-
pendência biopsíquica prolongando-se até uma idade muito mais
avançada, o desmame não poderia, a bem da sobrevivência da espécie,
coincidir com a expulsão pura e simples do convívio parental. O cerne
da tese lacaniana é que o rompimento real do vínculo alimentício que
une mãe e filho é costurado pelo surgimento de um vínculo imaginá-
rio, que funda uma outra forma de relação. Neste imaginário em for-
mação, o rompimento real se inscreve pelo que Lacan designa como
um traumatismo psíquico, pelo qual "o desmame deixa no psiquismo
humano o traço permanente da relação biológica que ele interrom-
pe"2º. Desnecessário insistir no quanto esta caracterização abre mão
facilmente das condições energéticas que Freud julgava indispensáveis
à configuração do trauma.
Ainda que essas afirmações tenham ·um inequívoco ar kleiniano
- pois, para Melanie Klein, as imagos componentes das fantasias ge-
ram-se mais ou menos espontaneamente como compensação das frus-
trações pulsionais inevitáveis a que se submete o recém-nascido-, elas
adquirem rapidamente um ar mais lacaniano, a partir do momento
em que todas essas configurações são caracterizadas como uma "estru-
tura dialéticà', na qual, pela primeira vez na história individual, uma
"tensão vital" se resolve numa "intenção mental". Ou seja, a compen-
sação que a fantasia inconsciente vem oferecer à insatisfação pulsional
- o que aqui se harmoniza com a hipótese lacaniana de que o imagi-
nário vem preencher o vazio orgânico originário, postulado conforme
a teoria da prematuração de Bolk - é traduzida nos termos da negação
da natureza que preside à hominização do animal humano. Nesses ter-
mos, muito dialéticos - uma dialética onde não há eu nem objeto, já

19 LF, p. 40-6.
20 LF, p. 40-6.
260 RICHARD THEISEN S!MANKE

que, segundo a concepção freudiana do narcisismo, estes são dois ter-


mos que se constituem simultaneamente, mas que exigem condições
suplementares àquelas presentes por ocasião do desmame-, "é a recu-
sa do desmame que funda o positivo do complexo, a saber, a imago da
relação nutriente que ele tende a estabelecer"21 .
O que se alinhava aqui, em complementação à tese psicogênica
em psiquiatria e em consonância com as tentativas de elaborar uma
teoria da constituição do sujeito, é uma espécie de psicogênese da sub-
jetividade em geral, o que implica em tomar a maior distância possí-
vel com relação a hipóteses maturacionais. Assim, a teoria da prema-
turação permite pensar que, se não há eu nem objeto nessa "dialética"
originária do sujeito, é porque falta inclusive o reconhecimento do cor-
po pr6prio, já que o atraso na maturação e a falta de condicionantes
inatos vão provocar o fato único de que, antes que estes condicionantes
amadureçam, a representação do corpo se construirá na relação ima-
ginária com o outro, que surge como imagem especular vinda de fora.
Essa precedência do imaginário será, nessa fase, o fator de humani-
zação invocado por Lacan para efetuar o corte natureza/cultura, que,
mais tarde, será responsabilidade do simb6lico operar. Esboça-se, as-
sim, a diferença entre o imaginário animal e o humano: mesmo que,
depois, Lacan continue distinguindo homem e besta segundo o crité-
rio de que, no primeiro, uma regulação simbólica se acrescenta a uma
regulação imaginária da conduta, ainda no plano do imaginário eles
se diferenciam nisso que, no animal, o reconhecimento de certos pa-
drões de imagem eficazes para o desencadeamento do comportamen-
to agressivo, sexual ou o que seja (a cor vermelha do peixe-espinho, o
perfil do gafanhoto que determina a opção'pela vida gregária ou isola-
_da, etc.), tem suas condições criadas pelo funcionamento dos instin-
tos herdados. A hierarquia que se estabelece entre os três registros
mostra-se, pois, como um escalonamento de precedências: inicialmen-
te, uma precedência temporal, ao longo da linha do desenvolvimento;
depois, uma primazia l6gica, quando Lacan desertar das hip6teses

21 LF, p. 40-6.
IMAGENS E COMPLEXOS 261

evolutivas. Nesse esquema, será proposta, em primeiro lugar, uma pri-


mazia do imaginário sobre o real, à qual se seguirá a idéia de uma pri-
mazia do simbólico sobre o imaginário. Num terceiro momento, vai
ser afirmada a prevalência do real sobre os demais registros, mas ape-
nas num momento em que Lacan terá reformulado tanto o significa-
do do conceito que ele não terá mais nada a ver com o realismo "ingê-
nuo" do senso comum ou da ciência.
O complexo é, então, o solo onde pode frutificar essa tese da
prevalência do imaginário, na qual se reafirmam todas as antigas pala-
vras de ordem lacanianas. Os interesses afetivos, que ainda não foram
recusados em nome de um formalismo abstrato, determinam a for-
mação das Gestalten primordiais nas quais se alicerça o mundo imagi-
nário do sujeito 22 ; a precocidade do complexo de desmame e sua re-
solução pela imago materna dão margem, ainda, para a ratificação da
tese de que tudo no sujeito, afinal de contas, consiste em fenômenos
de conhecimento, para o que Lacan encontra apoio no trocadilho de
Claudel ''co-naissance" (co-nascimento/cophecimento), dando vazão a
um gosto pessoal que se acentuará com o tempo.
O que Lacan efetua aqui, em suma, é um esforço para arranjar
um lugar para a imago, espremido entre o vital e o social, o que, co'mo·
já vimos, visa delimitar a área de atuação de uma psicologia verdadei-
ramente científica. Para tanto, ele reitera sistematicamente a hipótese
prematuracional ("impotência vital total", "deficiência biológica pri-
mitiva", "nascimento prematuro" são expressões que abundam no tex:-
to), no fundo, para dar a entender que a determinação social do sujd-
to é originária, porque este padece de um vazio orgânico também
originário, o que explica a prevalência da super-compensação imagi-
nária no homem, com a psicologia podendo constituir-se em ciência
ao mesmo tempo humana e concreta ao eleger este imaginário como
objeto. A "imago do seio materno domina toda a vida do homem",

22 Lacan salienta o interesse da criança pela configuração constituída pelo rosco hu-
mano (LF, p. 40-7); é aquilo que René Spitz, em seus estudos sobre a psicanálise
do desenvolvimento precoce denomina "Gestalt privilegiada".
262 RICHARD THEISEN S!MANKE

diz Lacan, o que quer dizer que a imago em geral domina a vida do
homem, para o bem ou para o mal, já que ela precisa ser "sublimadà'
- e sublimada, para Lacan, quer dizer capturada na rede das significa-
ções sociais - para permitir o surgimento de novos complexos, com o
conseqüente engendramento de novas imagos, e assim por diante. É
nesse processo, que nosso autor quer o mais dialético possível, que
consiste o desenvolvimento humano. A não-sublimação da imago23 , nos
termos em que agora se apresenta, é uma tese que já se pode chamar
de metapsicológica, com os devidos cuidados e que explica o fato da
fixação de desenvolvimento, detectada na clínica da paranóia. Em suma,
a sobrevida da imago materna ao longo da história individual faz com
que as sucessivas perdas implicadas pelo crescimento e pela indepen-
dência progressiva da tutela familiar sejam vividas, imaginariamente,
como uma série de novos "desmames". A intenção de subsumir tudo
isso ao crivo da dialética kojéviana se manifesta claramente na conclu-
são de Lacan: "Todo acabamento da personalidade exige esse novo des-
mame. Hegel formula que o indivíduo que não luta para ser reconhe-
cido fora do grupo familiar nunca atinge a personalidade antes da
morte" 24 • Este "acabamento da personalidade" é a versão mais an-
tropogênica que se pode dar à realização do conceito da consciência
de si, cujo processo a Fenomenologia do espírito descreve. Lacan vai,

23 Além de responder pelo potencial patológico da imago, a ausência de sublimação,


em termos mais abstratos, é responsável por que a imago converta-se em um "fa-
tor de morte". Ela explica, assim, que "a tendência à morte seja vivida pelo ho-
mem como objeto de um apetite" (LF, p. 40-7), já'que é à imago que o desejo está
ligad~. Estas observações servem para recusar a hipótese freudiana de um "instin-
to de morte" (sic), que não passaria, mais uma vez, de uma concessão aos "precon-
ceitos de biólogo" que Lacan quer contornar.
24 LF, p. 40-8; grifos nossos. Este "acabamento da personalidade", que Lacan repu-
diará depois como um "final feliz" injustificado para dialética da consciência, re-
cebe uma expressão ainda mais "filosófica" logo a seguir: "assimilação perfeita da
totalidade ao ser", que está na origem - como diz um dos subtítulos da Enciclo-
pédia, suprimido nas edições em separado - da "nostalgia do Todo", primeira en-
tre as nostalgias da humanidade.
IMAGENS E COMPLEXOS 263

nesse ponto, bem mais longe que Kojeve, já que empurra a noção até
o domínio _da psicologia individual. De qualquer modo, há pelo me-
nos uma ocasião dentro da vida familiar em que o sujeito pode-se exer-
citar na luta pelo reconhecimento, antes de ser lançado às feras do
mundo social. Esta ocasião é o complexo da intrusão que, em razão da
centralidade que a referência kojeviana começa a assumir, vai ser pro-
posto como o verdadeiro complexo nuclear do desenvolvimento,
desbancando, na concepção lacaniana, o lugar privilegiado que o com-
plexo de Édipo adquirira com Freud.
Mas as seduções da dialética são s6 um aspecto do privilégio de
que o complexo da intrusão desfruta nesse momento. Pelo menos mais
duas razões podem ser detectadas, que não deixam, porém, de articu-
lar-se umas com as outras: a sua maior proximidade com as situações
e os sentimentos sociais e a sua coincidência - cronol6gica, mas tam-
bém estrutural - com o estágio do espelho. O primeiro aspecto se ma-
nifesta logo no subtítulo desta seção ("o ciúme, arquétipo dos senti-
mentos sociais"). A intenção do autor é, portanto, não só articular a
gênese do sujeito com uma certa dinâmicà familiar, mas também mos-
trar como as sedimentações intrapsíquicas dessa dinâmica - as onipre-
sentes imagos - colaboram na produção dos sentimentos sociais. Es-
tes, aliás, os dois modos em que a teorização empreendida neste
período revela o seu compromisso com a antropologia social: quando
propõe uma gênese social do sujeito e quando atribui uma gênese ima-
ginária à sociabilidade.
Ao se concentrar no ciúme, a análise lacaniana visa, em primei-
ro lugar, colocar esse segundo complexo em continuidade com o de
desmame e, assim, afirmar, não só a prevalência e a precocidade25, mas
a presença maciça dos determinantes culturais no funcionamento fa-

25 É para dar destaque à precocidade do fenômeno que Lacan retoma a observação


de Santo Agostinho, extraída das Confissões, l, VII: "Vi com meus olhos e bem
observei uma criança pequena tomada de ciúme: ela não falava ainda e não po-
dia, sem empalidecer, deter seu olhar sobre o espetáculo amargo de seu irmão de
leite" [LF, p. 40-8).
264 RICHARD THEISEN S!MANKE

miliar que produz o sujeito humano. Mais especificamente, trata-se,


para Lacan, de retirar o conflito fraterno do registro de uma rivalida--
de vital, para colocá-lo na dependência de uma identificação mental26•
Esta ressalva é importante para que não se pense que a dependência
em que o complexo se coloca frente a um fato vital, como é o nasci-
mento da prole dentro de uma família, signifique uma concessão feita
ao determinismo biológico. Ao contrário, o que Lacan procura esta-
belecer é de que modo uma contingência biológica ("o lugar que a sor-
te dá ao sujeito na ordem dos nascimentos") se traduz na constituição
de papéis imaginários (o de "abastado" ou de "usurpador", cita Lacan,
com o que o fato orgânico do nascimento engendra algo que é da or-
dem de uma "posição dinástica", fato cultural). Assim, se esta rivalida-
de surge aparentemente em corno de uma disputa por alimento, con-
forme o exemplo de Santo Agostinho, ela não pode por isso ser tratada
da mesma maneira que as ocorrências verificadas na natureza. Antes
de tudo, porque o nascimento de um irmão e o privilégio da relação
nutriz com a mãe que lhe é concedido retira seu efeito traumático da
reedição de um outro complexo - o de desmame - e, portanto, de
uma situação para a qual Lacan já argumentou à exaustão a favor da
tese da determinação cultural27 . Além disso, a rivalidade que se ins-
taura só pode ter seus efeitos explicados por um "colocar-se no lugar

26 LF, p. 40-8. Lacan aproveita, mais adiante, para denunciar como a concepção
freudiana do ciúme hesita nesse ponto e permanece presa à idéia darwiniana de
que a luta está na própria origem da vida e ao clidrê do homo homini lupus (LF, p.
40-9). Mais um pecado biologista de Freud, como se vê.
27 A inversão das prerrogativas concedidas a este ou aquele complexo na passagem
de Freud para Lacan faz-se clara aqui. Freud, com o papel "nuclear" que atribuía
ao complexo de Édipo e à temática da castração a ele relacionada, afirmava que o
desmame (ou o nascimento:e outras situações de separação ou perda) s6 poderia
ser vivenciado como uma castração retrospectivamente (nachtriiglich, apres-coup,
como quererá Lacan mais tarde). A perspectiva de Lacan, ao colocar o complexo
fraterno na dependência do complexo de desmame, é, nesse momento, muito
mais genética do que a de Freud.
IMAGENS E COMPLEXOS 265

de ... ", que é exatamente o que designa o termo identificação. Esses


dois fatores fazem com que a luta se trave sobre o terreno do imaginá-
rio e não no de uma competição vital: ''A imagem do irmão não des-
mamado só atrai uma agressão especial porque repete, no sujeito, a
imago da situação materna e, com ela, o desejo de morte. Esse fenôme-
no é secundário à identificação"28 • Ou seja, a agressividade é o signo da
constituição de um "eu" que se dá numa relação originariamente
conflitiva com o "outro" do qual ele se destaca. É este processo que é
preciso descrever e, para tanto, Lacan recorrerá, pela primeira vez num
escrito publicado, à sua teoria d9 estágio do espelho.
Vamos por partes. Para começar, Lacan, ao situar o complexo
de intrusão na faixa dos seis meses aos dois anos de idade, está fazen-
do com que este coincida cronologicamente com o período do estágio
do espelho. O passo seguinte é caracterizar a figura do rival como o
primeiro protótipo do "outro": "pode-se admitir que, desde esse está-
gio, se esboça o reconhecimento de um rival, ou seja, de um 'outro'
como objeto"29 • Dois casos são analisad~s: um, em que a pequena di-
ferença de idade entre parceiros infantis agrupados dois a dois faz com
que sua rivalidade se objetive numa certa adaptação de condutas e ges-
tos, numa espécie de ballet, que é também uma luta, cuja descrição se
inspira nitidamente nos rituais que, entre os animais, precedem ou
substituem as lutas por ocasião do acasalamento; outro, em que uma
diferença maior de idade permite que se estabeleça uma relação assi-
métrica, em que o lado favorecido assume rapidamente posturas de
exibição, sedução ou despotismo. Em ambos os casos, a situação só é
compreensível, segundo Lacan, se se aceita que o sujeito confunde,'
em certa medida, seu papel com o do outro e com ele se identifica, o
que se manifesta na discordância entre as condutas- por exemplo: um
assume uma atitude de dominação, independente do fato de o outro .
se contentar ou não com seu papel submisso - e na possibilidade de

28 LF, p. 40-9.
29 LF, p. 40-8.
266 RICHARD THE!SEN S!MANKE

que toda a situação possa ser encenada sozinha. A conclusão se im-


põe: "a identificação específica das condutas sociais, nesse estágio, se
funda em um sentimento do outro, que não se pode senão desconhe-
cer, sem uma concepção correta de seu valor totalmente imaginário"3º.
Estabelecido, ainda num plano geral, o caráter imaginário da relação,
resta perguntar-se sobre a estrutura desta imago (as palavras são de La-
can), ou seja, sobre o modo como esta se organiza e se constitui. É aí
que se dá mais um passo em direção à formulação da hipótese do está-
gio do espelho: "Depreende-se que a imago do outro está ligada à es-
trutura do corpo próprio e, mais especialmente, de suas funções de
relação, por uma certa similitude objetiva''31 .
O problema que Lacan quer equacionar aqui é justamente o da
gênese simultânea do eu e do objeto, lembrando que o complexo de
desmame foi definido - seguindo, aliás, os passos freudianos, já que
ele coincide com a etapa do auto-erotismo - como uma dialética "sem
eu e sem objeto" 32• Se as características da relação de rivalidade per-
mitem intuir a gênese imaginária do outro como objeto, só a teoria
do estágio do espelho fornecerá a base para que se pense, simetrica-
mente, a produção do eu do sujeito como reflexo dessa relação primor-
dial. Não é à toa, portanto, que, em anos posteriores, Lacan empregue
sistematicamente este esquema para a explicação do comportamento
agressivo e da criminalidade, visando escapar a uma apreensão pura-
mente instintiva, por um lado, e sociológica, por outro: a agressividade
está intimamente ligada ao narcisismo, já que a relação constitutiva
com o outro é, primariamente, uma relação de disputa. Este o sentido
que Lacan vai atribuir, ainda ria descrição do complexo da intrusão,
ao conceito freudiano de masoquismo primário, continuando na linha

30 LF, p. 40-9; grifos do autor.


31 LF, p. 40-9.
32 Jean Piaget, com quem Lacan polemizará em certo momento, justamente a pro-
pósito das etapas precoces do desenvolvimento, também define o estilo das pri-
meiras relações cognitivas com o mundo dos objetos como um "egocentrismo
sem eu".
IMAGENS E COMPLEXOS 267

de desbiologização da noção de pulsão de morte, que vai culminar,


anos mais tarde, na sua identificação com a lógica do significante.
De fato, todo esse esquema serve a esta substituição das con-
cepções que Lacan considera biologistas em Freud por outras mais
afins ao seu espírito. Assim, o irmão, que é mostrado pela "doutrina
da psicanálise" como objeto privilegiado das exigências da libido, tem
agora a sua importância na economia subjetiva justificada pela sua
participação no drama concreto da rivalidade que se desenrola na cena
familiar. O fato de que a agressividade que marca a relação fraterna se
demonstra secundária à identificação com o irmão, coloca sentimen-
tos e condutas na dependência da imago, cuja formação os precede e
condiciona. É verdade que Freud já descrevera as atitudes sádicas e
masoquistas como resultado de uma identificação cruzada entre o
agressor e a vítima. Mas, em primeiro lugar, estas atitudes derivavam,
primordialmente, de certas polaridades inerentes às pulsões (no caso,
a polaridade ativo/passivo, cruzada com a de amor/ódio) e que, na ver-
dade, participavam da definição de seu conceito, ao circunscrever a
concepção dos Triebschicksale. Além disso, Freud foi levado, com a in-
trodução da segunda teoria das pulsões, a revisar sua concepção ante-
rior de que o sadismo é originário, relacionado à fase anal da libido, e
o masoquismo só se forma por uma inversão que canaliza a agressivi-
dade contra o próprio corpo; ele passa a propor, então, a idéia de um
masoquismo primário, que representa para a pulsão de morte o que o
narcisismo representa para o Eros: um momento em que a totalidade
do investimento pulsional está concentrado no eu. É flagrante que es-
ses pontos de vista colocam o masoquismo em particular, e a agressi-
vidade em geral, numa relação de dependência direta e imediata da
atividade pulsional. Como Lacan não distingue pulsão e instinto, esta
concepção lhe é completamente inaceitável: ele acredita que é somen-
te o enigma que o masoquismo representa na constelação dos instin-
tos vitais, pois é um "instinto" que tende à destruição e não à sobrevi-
vência do indivíduo, que levou Freud à proposição de algo tão
paradoxal como um ªinstinto de morte". Ao contrário, ele vê no maso-
quismo primário "o momento dialético em que o sujeito assume, por
seus primeiros atos de jogo, a reprodução desse mesmo mal-estar e,
268 RICHARD THEISEN SIMANKE

com isso, o sublima e ultrapassà' 33 • Ou seja, se o sujeito infringe so-


frimento a si próprio - ao, por exemplo, afastar de si um objeto que-
rido, para depois recuperá-lo - é para reencenar e dominar a situação
de perda experimentada passivamente, cujo protótipo continua sendo
o desmame. Com isso, é toda a dinâmica anterior dos complexos, além
das imagos que estes precipitam, que precede e determina o sentimen-
to de ódio e a conduta agressiva, quer em relação ao outro, quer con-
tra si, a qual, deste modo, de forma alguma pode ser creditada a um
funcionamento originário da pulsão, concebida por Lacan como rea-
lidade biológica. Pode-se dizer que esta é a interpretação "imaginárià'
que Lacan dá ao famoso jogo do Fort-Da descrito por Freud, que de-
pois significará para ele a entrada do sujeito na linguagem, com a for-
mação da primeira oposição significante.
Mas ainda falta, para completar o quadro do complexo da
intrusão, dar conta do surgimento do segundo pólo do conflito que aí
se estabelece, ou seja, da origem do eu. Como já dissemos, é o estágio
do espelho que responde a esta necessidade. Mas, como sua descrição
ficou reservada para a próxima seção, cabe fazer apenas alguns assina-
lamentos, a fim de melhor delinear a situação. Numa palavra, sabe-se
que a metáfora do espelhamento serve para explicar o surgimento do
"eu" como um "outro" (segundo o aforismo rimbaudiano que Lacan
gosta de explorar). Este eu é o mesmo eu freudiano, que se constitui
no estágio do narcisismo, como resultado daquela "nova ação psíqui-
cà' necessária para a superação do auto-erotismo inicial. Ora, Lacan
deixa bem claro que é de uma intrusão narcisica que se trata nesse com-
.plexo. Portanto, ele atribui à intrusão mais ou menos o mesmo papel
que Freud concedia à castração, já que era como ameaça ao narcisismo

33 LF, p. 40-9; grifos nossos. Nunca é demais salientar a freqüência com que Lacan
recorre ao vocabulário da dialética. De fato, ele concebe sistematicamente cada
complexo como uma situação antagônica (tese/antítese) que se resolve numa
imago (síntese). Assim, a oposição lactação/desmame se resolve na constituição
da imago materna; a oposição fraterna, na constituição da imago do outro, e as-
sim por diante.
IMAGENS E COMPLEXOS 269

e a seu pressuposto da uniformidade sexual que o complexo de castra-


ção adquiria todo o seu peso traumático. No arranjo dialético que nos-
so autor tanto aprecia, tudo se passa mais ou menos da seguinte ma-
neira: o narcisismo propicia a antecipação imaginária de um corpo
coordenado e funcional, protótipo do eu, em contraste com a vivência
proprioceptiva de um organismo prematuro, que se traduz na fantasia
do corpo fragmentado. Ele provê, desta maneira, uma espécie de su-
tura para a desagregação do trauma do desmame, que mergulhou o
sujeito no seu desamparo (Hilflosigkeit} originário. O complexo da in-
trusão, por sua vez, configura uma ruptura do narcisismo, gerando um
novo desequilíbrio, que vai levar a formação de um outro complexo.
Portanto, a presença do irmão só é vivida como intrusão a posteriori,
já que, num primeiro momento, ela fornece os elementos e o impulso
necessários ao espelhamento constitutivo do eu narcísico; num outro
sentido, ela antecipa a disputa edípica pelo progenitor do sexo oposto.
"O eu se constitui ao mesmo tempo que o outro no drama do
ciúme"34 : esta afirmação, onde repercµte nitidamente a herança
politzeriana, se articula imediatamente com uma referência a Kojeve,
a eminência já não tão parda da teoria lacaniana do imaginário. Pois o
"drama do ciúme" traduz-se justamente na disputa por um objeto, alvo
de desejo somente por ser desejado pelo outro. É por isso, aliás, que a
rivalidade em torno do alimento (o leite materno) pode ser despojada
de seu caráter natural35. Vê-se, por aí, que é essa relação eu/outro ori-
ginária que desencadeia o processo de construção da realidade huma-
na - o Umwelt do homem - como uma edificação imaginária, imagi-
nário este profundamente enraizado no mundo da vida, que ele nega.·
e supera, no mais puro espírito daAufhebung. Ai; expressões que Lacan

34 LF, p. 40-10; grifos nossos.


35 Lacan expressa muito claramente a solidariedade entre esta superação da natureza
e uma teoria da constituição dos objetos: "Ainda aqui, o ciúme humano se dis-
tingue, portanto, da rivalidade vital imediata, já que ele forma seu objeto, mais
do que o determina; ele se revela como o arquétipo dos sentimentos sociais" (LF,
p. 40-11).
270 RICHARD THEISEN S!MANKE

emprega para descrever os objetos que se dão a conhecer sob a "forma


característica do conhecimento humano" - "objeto comunicável", "ob-
jeto socializado", etc. -, todas querem dizer, doravante, objeto tout
court. O que vemos é um Lacan em plena forma na sua cruzada con-
tra o "realismo ingênuo do objeto", em que se engajara ainda como
psiquiatra.
Este, pois, o duplo papel do personagem do irmão no desenvol-
vimento do sujeito: um papel traumatizante, constituído por sua
intrusão, cuja função é, reeditando em outro plano o complexo de
desmame, impulsionar o sujeito um passo à frente no processo de sua
sublimação; mas um papel também constitutivo, já que a imago do ir-
mão fornece, ainda, o "modelo arcaico do eu". Já observamos como
estes dois papéis se sobrepõem, pois a intrusão não pode ser vivida
como ameaça ao narcisismo senão após a constituição desse primeiro
esboço do eu. O que se anuncia, nas entrelinhas, é uma visão do
surgimento do sujeito psíquico como uma operação essencialmente
traumática, que não se distingue, aliás, em essência, do trauma no sen-
tido clínico da palavra. A idéia de intrusão estará, ao longo de toda a
obra, entrelaçada com os diversos mecanismos que engendram o su-
jeito do inconsciente: intrusão da operação simbólica da função pa-
terna na relação imaginária; depois, irrupção do real na trama dos
significantes que sustenta o sujeito, esta última, a concepção lacaniana
mais ou menos definitiva do trauma.
A centralidade concedida por Lacan ao complexo da intrusão se
manifesta, ainda, no breve comentário sobre as conseqüências do mes-
mo na formação dos quadros patológicos. Se por um lado, ele assinala
sua relação com as impulsões perversas ou a culpa obsessiva, equipa-
rando-o novamente, portanto, à fase anal da libido, conforme a con-
cepção freudiana, não deixa, por outro lado, de dar ênfase às "cone-
xões da paranóia com o complexo fraterno" 36 • Ora, a paranóia sempre
foi, como já se viu, o ponto de referência dínico preferencial de Lacan.
Os termos em que ele enuncia essas conexões é ainda mais explícito:

36 LF, p. 40-10.
IMAGENS E COMPLEXOS 271

no eu paran6ico fica muito claro o modo como ele se objetiva como


um outro (no caso, a figura exemplar do perseguidor), revelando, no
mesmo golpe, a sua origem, digamos assim, heterocêntrica (ex-cên-
trica, dirá Lacan depois) e, no sentido inverso, como a realidade exte-
rior se produz como uma série de objetivações desse eu, com o que o
mecanismo - de início, estritamente patogênico - da projeção se con-
verte numa espécie de engendrador de mundos. Estas observações não
causam surpresa se se recordam todas a longas elaborações lacanianas
em torno do tema do "conhecimento paran6ico" que, de uma estraté-
gia para retirar aquela afecção do registro dos fenômenos de déficit,
acabou tornando-se a chave para uma reinterpretação geral da relação
cognitiva do homem com a realidade. No plano da psicopatologia,
tudo se passa como se as neuroses se expressassem em fantasias, e as
psicoses, na constituição de objetos. Como este último processo é es-
tritamente simétrico à formação do eu, entende-se por que, para La-
can, ~ a psicose - e não a neurose, como lhe parece ser o caso de Freud
- que revela a verdade do sujeito e, por. isso, esta vem em primeiro
lugar na ordem lacaniana das matérias e das razões.
Duas razões se conjugam, portanto, para a relativização da im-
portância do complexo de Édipo· neste estágio do pensamento de
Lacan. A primeira é, justamente, que esse complexo lhe aparece como
muito ligado à explicação das neuroses37 e, assim, c~m um grau se-
cundário de pertinência ao problema - para ele, central - da consti-
tuição. Uma segunda razão, menos explícita, é a dependência em que
o Édipo se encontra, a seus olhos, com relação à emergência das

37 Ver LF, p. 40-11: "Foi ao descobrir, na análise das neuroses, os fatos edipianos
que Freud trouxe á luz o conceito de complexo". Ou seja, a importância do Édipo
em Freud é que ele foi ocasião de uma descoberta; mas uma análise teórica rigo-
rosa deve demonstrar o seu papel secundário com relação aos complexos mais
arcaicos. Lacan, aqui, segue provavelmente Melanie Klein em suas especulações
sobre as versões precoces e pré-genitais do complexo de Édipo, apenas recusando
esta última denominação àquelas configurações primordiais. Ele será, de certa
forma, mais kleiniano ainda quando, mais tarde, subsumir todo esse desenvolvi-
mento à problemática edípica, com sua teoria dos "crês tempos do Édipo".
272 RICHARD THEISEN S!MANKE

pulsões genitais infantis: como há um fator inegavelmente biológico


na sua origem, toda a relevância do complexo para a explicação dos
fatos da subjetividade é imediatamente colocada sob suspeita. Mas
mesmo um aproveitamento restrito exige, aos olhos de Lacan, alguma
forma de aproximação aos seus próprios pontos de vista. Por isso, ele
apresenta as coisas da seguinte maneira: as pulsões genitais precoces
fornecem a base do complexo, e a frustração destas pulsões forma o
seu nó. Ora, é evidente que "nó" para Lacan quer dizer estrutura, mes-
mo que ele ainda esteja muito longe de seus devaneios topológicos. O
que se verifica, portanto, é a admissão de um determinismo biológico
no mesmo pé em que isso já acontecia na Tese: há uma base vital para
os fenômenos da subjetividade, constituída pelos fatos biológicos do
desenvolvimento, porém, tanto lá como cá, estes não são capazes de
dar conta da "coerência", ou seja, da estrutura destes fenômenos, fi-
cando subentendido que é isto o que verdadeiramente importa. Deli-
neia-se, também, nas entrelinhas, o onipresente determinismo social,
já que a frustração pulsional se dá no interior da ordem familiar, a par-
tir dos valores e interdições que esta veicula.
No fundo, a importância do Édipo para Lacan continua sendo
a mesma da Tese: o papel explicativo e etiológico das instâncias que o
complexo origina, isto é, o supereu e o ideal do eu. Mas a conexão
necessária entre o complexo e o modo imaginário de funcionamento
psíquico se manifesta agora num vocabulário renovado. Estas instân-
cias surgem como resultado de um processo identificatório, que se
designa como "sublimação da imagem parental", isto é, como sua
emancipação das pulsões sexuais que a tornam alvo de interesse nesse
estágio, o que permite que elas constituam um ideal, pela dupla via
do exemplo e da coerção superegóica. A fidelidade de Lacan a seus
princípios é tamanha que ele não hesita em utilizar o fato da sexuali-
dade infantil - incontestável desde Freud e, em sua obra, diretamente
implicada na problemática edípica - como argumento a seu favor: o
desconhecimento histórico deste fato é um sintoma da "relatividade
social do saber humano", enquanto que, para Freud, este desconheci-
mento era um efeito do recalque, uma noção demasiado comprometi-
da com pressupostos energéticos para ser, assim sem mais nem me-
IMAGENS E COMPLEXOS 273

nos, aceitável para Lacan. De qualquer modo, o "valor científico" que


o complexo de Édipo possui é o de revelar uma ordem de determina-
ção positiva para os fenômenos da personalidade, tornando caducas
as referências à ordem orgânica que marcaram toda uma tradição mé-
dica38. A continuidade entre os presentes desenvolvimentos e os pro-
blemas psiquiátricos que Lacan enfrentava na sua estréia teórica se evi-
dencia, portanto, nessa valorização muito particular dos conceitos
freudianos: o Édipo é ocasião de uma descoberta, e o aspecto desta
descoberta que interessa a um psiquiatra é o desvelamento de uma cau-
salidade propriamente psíquica para os fenômenos que estuda.
Esta releitura muito pouco imparcial de Freud tem, como já se
sabe, o objetivo de substituir os determinantes biológicos por outros,
de feitio antropológico 39 . É esse deslocamento que vai orientar as crí-
ticas às concepções freudianas, que Lacan não se abstém de fazer. Ape-
nas para dar um exemplo, ele discorda cabalmente da hipótese da
hor~a primitiva, não tanto pelo seu caráter francamente especulativo,
mas por consistir, primeiro, numa redução da família primitiva ao gru-
po patriarcal vitoriano dentro do qual F~eud descobriu seu complexo
e, além disso, por propor uma ordem familiar que deve sua organiza-
ção a um fator estritamente biológico, a saber, a força física e a feroci-
dade do chefe da horda, que as emprega para monopolizar as mulhe-
res e manter afastados os filhos rivais. Após apontar os equívocos
freudianos, Lacan parte, então, para uma releitura do complexo à sua
maneira, onde seus temas prediletos vão reaparecer com assiduidade.
É na boca dos próprios teóricos da psicanálise que os argumen-
tos lacanianos vão ressurgir. Segundo Lacan, "o complexo aparece para
eles como o eixo segundo o qual a evolução da sexualidade se projeta

38 Ver LF, p. 40-12.


39 Basta ver o que, precisamente, Lacan preza na descoberta freudiana: "Descobrir
que desenvolvimentos tão importantes para o homem quanto os da repressão
sexual e do sexo psíquico estavam submetidos à regulação e aos acidentes de um
drama psíquico da familia era fornecer a mais preciosa contribuição à antropologia
do grupo familiar( ... )" (LF, p. 40-12; grifos nossos).
274 RICHARD THEISEN S!MANKE

na constituição da realidade"4º. É claro que Freud nunca se expressou


dessa maneira, embora não seja de todo insensato extrair conseqüên-
cias próximas a estas de sua teoria do Édipo. Mas Lacan vai ainda mais
longe, ao afirmar que os dois resultados da passagem pelo complexo,
a repressão da sexualidade e a sublimação da realidade- que correspon-
dem às duas "heranças" edípicas do sujeito: o supereu e o ideal do eu,
respectivamente -, não podem ser colocados no mesmo plano, isso
sem contar que Freud jamais falaria de uma "sublimação da realida-
de", já que, para ele, o que se sublima é a pulsão. Sabendo bem de
quem se trata, não é difícil adivinhar que a ênfase vai recair toda no
segundo aspecto e que o problema da constituição do mundo dos ob-
jetos será trazido imediatamente para o primeiro plano.
Há um sinal bastante revelador de que Lacan continua vendo
na teoria da sexualidade freudiana uma concepção bastante tradicio-
nal: é o modo como ele pensa a evolução sexual em termos de matu-
ração, o que de modo algum é um ponto assim tão pacífico em Freud.
De fato, embora haja aí hesitações significativas, Freud dá mostras de
recusar às pulsões genitais um privilégio natural sobre as demais. To-
madas em si mesmas, elas são tão parciais quanto as outras, e o fato de
que venham a atingir uma hegemonia dentro da vida sexual do sujei-
to, se não é cabalmente explicado, é ao menos relacionado, ainda que
vagamente, à repressão social, por um lado, e à constituição de um
objeto total para a libido por outro, objeto cujo primeiro protótipo é
o eu do narcisismo, para o qual pode convergir o conjunto das pulsões,
agora já devidamente hierarquizado. Em outras palavras, Lacan sente
necessidade de revisar Freud por não compreender, justamente, aque-
le segmento de sua obra que mais se aproxima a seus próprios pontos
de vista; uma compreensão, aliás, que talvez demonstrasse não ser ne-
cessário importar tantos conceitos estrangeiros à doutrina psicanalíti-
ca para bem revitalizá-la. É essa espécie de ofuscamento com seu pró-
prio projeto que o leva a fazer uma distinção bem marcada na sua
apreensão do Édipo: há uma maturação da sexualidade que condiciona

40 LF, p. 40-13; grifos do autor.


IMAGENS E COMPLEXOS 275

o complexo {isto seria Freud), mas, no sentido inverso, há uma inge-


rência do complexo, enquanto estrutura, sobre a maturação sexual, já
que ele a favorece, ao dirigi-la para seus objetos (isto seria Lacan) 41 .
Trazendo assim, para o primeiro plano, as constelações objetais, Lacan
pode creditar todo o movimento do Édipo a um "conflito triangular
no sujeito", sem que seja muito difícil imaginar que, cada vez que ele
se refere a uma situação triangular, está pensando nos três momentos
da dialética, que, com uma série de negações suce~sivas, impulsionam
o desenvolvimento. Mesmo que esta seja uma maneira um tanto ras-
teira de assimilar o esquema hegeliano, ela aparece como indispensá-
vel a nosso autor para consumar o processo de desnaturalização dos
complexos e, por extensão, da família e do próprio sujeito. Isso se
manifesta claramente na fórmula tipicamente lacaniana que se segue:
"Vemos aqui a influência do complexo psicológico sobre uma relação
vital, e é por aí que ele contribui à constituição da realidade" 42 •
É significativo que Lacan se coloque explicitamente na posição
de psiquiatra, de alguém interessado na "~línica das doenças mentais",
para desde aí criticar a psicanálise pelo peso excessivo que esta conce-
de à dimensão energética dos processos psíquicos. É como se ele se
entrincheirasse nos muros dessa psiquiatria já liberta do organicismo,
para denunciar os abusos biologistas de Freud, que poderiam minar
os ganhos obtidos, a partir do momento em que um compromisso
maior fosse se estabelecendo entre a nova clínica lacaniana e as vigas-
mestras da metapsicologia. O suposto ponto de vista maturacional de
Freud e a relação de dependência que o Édipo entretém com a sexua-
lidade genital resultariam na coincidência entre o real e o natural, ô
que, para Lacan, não passa da expressão biologizada do dogmatismo e
do realismo ingênuo do qual ele procurou livrar a clínica psiquiátrica.
Em perfeita solidariedade com isso, estaria a ablatividade genital como
padrão da saúde psíquica - isto é, o estabelecimento de uma relação

41 Ver LF, p. 40-13.


42 LF, p. 40-13. No texto daEncyclopédíefrançaise, esta passagem encontra-se sob o
incerdculo "Constituição da realidade".
276 RICHARD THEISEN SIMANKE

plenamente madura e satisfatória com o objeto -, concepção que


Lacan nunca se cansará de denunciar ao longo de sua obra, elegendo
Abraham como emblema e forçando suas idéias ao limite da caricatura.
Eis, portanto, o pecado mortal da doutrina psicanalítica: "negligenciar
a estrutura em benefício do dinamismo" 43 • Ao contrário, é "diferen-
ciando o jogo formal do complexo que se pode estabelecer, entre sua
função e a estrutura do drama que lhe é essencial uma relação mais
fixa'' 44 . Ou seja, é partindo de uma separação de direito entre forma e
função que se pode chegar a uma concepção mais rigorosa de seu rela-
cionamento, o que significa, no fundo, afirmar a autonomia da forma
e a determinação que esta exerce sobre a função. Aproximar esta con-
clusão do modo como Lacan vai tratar depois as relações entre
significante e significado não seria, de forma alguma, um procedimen-
to arbitrário.
A mesma revisão vai incidir sobre o complexo de castração e seu
papel na repressão da sexualidade, mais uma vez segundo o modo
como Lacan encara a significação dessas noções em Freud, não neces-
sariamente a única possível. Segundo ele, o papel preponderante que
a imago do pai desempenha nesse processo seria atribuído pela psica-
nálise ao fato perfeitamente contingente da dominação social exercida
pelo sexo masculino. Essa mesma contingência traria para o primeiro
plano a fantasia de castração, já que é a dominação masculina que de-
terminaria a sobrevalorização de seu órgão sexual. Trata-se, para Lacan,
então, de contornar a dupla falha representada por uma alternativa que
oscila entre a prevalência natural de um órgão e um determinismo so-
cial - os privilégios do macho humano -, mas contingente, o que
inviabilizaria o projeto científico de sua psicologia. É para superar es-
ses dois empecilhos que se lançará mão de um tipo especial de fanta-
sia, que servirá para subsumir toda a questão aos parâmetros do modo
imaginário e que, ao mesmo tempo, está profundamente identificada
com a teoria do estágio do espelho: a fantasia do corpo .fragmentado.

43 LF, p. 40-13; grifos nossos.


44 LF, p. 40-13; grifos nossos.
IMAGENS E COMPLEXOS 277

Lacan utiliza aqui sua estratégia costumeira de tornar o concei-


to freudiano um caso particular de uma tese mais abrangente, no caso,
a sua própria: "a fantasia de castração é, com efeito, precedida por toda
uma série de fantasias de despedaçamento do corpo, que vão, regressi-
vamente, da deslocação e do desmembramento, passam pela
evisceração, o eventramento, até a devoração e o amortalhamento" 45 •
Ele assinala como foi Melanie Klein quem melhor captou a origem
materna dessas fantasias, denunciando a origem kleiniana - aliás, mais
ou menos evidente - de seu corps morcelé; mas não deixa de apontar a
falha gravíssima que consistiria em atribuir a estas fantasias alguma
relação com o corpo real. É claro que Melanie Klein nunca pensou
que o sujeito experimentasse, nessas fantasias, alguma percepção refe-
rente à sua realidade orgânica; mas o que Lacan está criticando aqui,
mais exatamente, é a idéia de que estas formações imaginárias possam
surgir como conseqüências diretas do stress corporal provocado por si-
tuações como o nascimento, a fome ou as con,trações intestinais. Pois,
para ele, a fantasia do corpo fragmentado só pode surgir do contraste
com a imago do corpo próprio constituída pelo "espelhamento" narcí-
sico. Ela é, assim, uma espécie de medida imaginária da distância que
separa o corpo do narcisismo primário do corpo real, captado pelas
sensações proprioceptivas; esta é a condição para que possa ser consi-
derada um fantasme, isto é, uma formação imaginária em todos os sen-
tidos da palavra, inclusive no papel constitutivo que Lacan quer-lhe
atribuir na história do sujeito. A prematuração do infans só tem, por
isso, um papel negativo nesse processo: ele é o buraco que precisa ser
preenchido por um imaginário cujo determinismo específico tem que
ser procurado alhures46 .

45 LF, p. 40-13 / 40-14.


46 Lacan deixa bem claro que o corpo de que se trata é este "objeto nardsico", cuja
gênese encontra-se "condicionada pela precessão, no homem, de formas imaginá-
rias do corpo sobre o domínio do corpo próprio, pelo valor de defesa que o sujeito
dá a essas formas contra a angústia do dilaceramento vital fato da prematuração
(LF, p. 40-14; grifos nossos).
278 RICHARD THEISEN S!MANKE

Por tudo isso, fica estabelecido que a fantasia de castração e a


angústia que a acompanha referem-se a este mesmo objeto - o corpo
imaginário do narcisismo - a que se opõe a fantasia do corpo frag-
mentado. Ela é um caso especial desta última, um tipo particular de
ameaça à integridade narcísica do corpo e que, por isso, não tem a ver,
essencialmente, com o sexo do sujeito envolvido. Com isso, no mes-
mo golpe, Lacan dissocia a fantasia de castração do sexo biológico, por
um lado, e das ameaças reais de castração que a educação das crianças
possa eventualmente proporcionar, reafirmando, com isso, a autono-
mia e a consistência da ordem imaginária. Trata-se de um golpe, por-
tanto, no biologismo, no realismo e na contingência da explicação psi-
canalítica tradicional, os três pecados fundamentais da doutrina
freudiana do Édipo. Ele chega inclusive a equiparar a castração ima-
ginariamente sofrida àquela perda que se expressa, por ocasião do des-
mame, em jogos do tipo do Fort-Da: ela consistiria numa espécie de
rejeição, pela criança, do órgão que lhe é negado ou, em termos mais
amplos, do controle sobre o próprio corpo, que ainda lhe falta.
Por isso, se o supereu é, tradicionalmente, na doutrina psicanalí-
tica, o porta-voz das ameaças de castração, fica fácil, para Lacan, expli-
car por que estas ameaças são tanto mais severas quanto menos elas se
verificaram na educação real do sujeito, observação destacada, por
exemplo, por Melanie Klein. Assumindo, mais ou menos implicita-
mente, a noção kleiniana de um supereu precoce, de origem mais ma-
terna que paterna, ele arremata o processo que subsume o complexo
de castração a uma estruturação mais arcaica do sujeito, embora aceite
que, mesmo recebendo já traços de realidade em suas formas primitivas
(desmame, controle dos esfíncteres), é com a passagem pelo complexo
de Édipo que ele supera a sua forma nardsica. Essa enigmática "subli-
mação da realidade" de que Lacan tanto fala, que se alcança com a
saída do complexo de Édipo, tem pelo menos uma parte do seu signifi-
cado elucidada pelas considerações acima: ela designa a distinção entre
a ordem subjetiva e a ordem dos objetos que aí se constitui, ultrapas-
sando a coincidência narcísica em que ambas foram produzidas. É após
salvaguardar assim as propriedades imaginárias da realidade que Lacan
poderá, então, deslocar o foco da explicação daí para o sujeito, cum-
IMAGENS E COMPLEXOS 279

prindo o projeto de construir uma psicologia e não uma sociologia do


imaginário.
A nova crítica que Lacan endereça a Freud, então, é não ter dis-
tinguido suficientemente entre a identificação que marca a saída do
Édipo e forma as instâncias que este sedimenta no psiquismo, e aque-
la outra, mais arcaica, que constitui o eu narcísico. A verdade é que a
primeira forma foi o único tipo de identificação efetivamente temati-
zado por Freud, que sempre teve muita dificuldade em admitir a ori-
gem identificatória do eu, por parecer-lhe contraditória com a própria
idéia de narcisismo, já que pressupunha a abertura para o objeto. Ape-
nas em uma solitária passagem de O eu e o isso ele alude à possibili-
dade de haver uma identificação mais primária, prévia a todo e qual-
quer investimento objetal, o que não deixa, contudo, de ter um ar
misterioso, uma vez que, para Freud, é impossível pensar a apresenta-
ção e a valorização psíquica do objeto sem menção às vicissitudes da
libido. É notável, então, como o dispositivo lacaniano, centrado no
estágio do espelho - onde o sujeito, virtu;tlmente, identifica-se consi-
go mesmo47 -, permite contornar esta dificuldade freudiana, ainda que
ao preço de, como sempre, colocar entre parênteses o ponto de vista
energético, vital para as teses metapsicológicas. Além disso, para La-
can, a identificação edípica forma duas estruturas que precisam ser dis-

47 O risco dessa concepção é o sujeito lacaniano dobrar-se irremissivelmente sobre seu


pr6prio umbigo imaginário, ficando diflcil perceber como ele poderia superar o cur-
to-circuito especular. Ou seja, tais são as armadilhas de uma teoria que concebe que·
"a constituição do sujeito é rigorosamente uma auto-afecção" (cf. Arantes, P. E. "Hegel
no espellho do Dr. Lacan", p. 65), idéia também criticada azedamente por Richard
Wollheim: "O indivíduo lacaniano típico reage a si mesmo ou a seu pr6prio ser, e não
ao que ocorre a ele ou dentro dele" ("O gabinete do Dr. Lacan", p. 215). Wollheim,
contudo, comenta a teoria lacaniana do estágio do espelho como se se tratasse, em to-
dos os sentidos, de uma psicologia empírica do desenvolvimento, plano onde ela, de
fato, não funciona muito bem. De qualquer forma, esse problema prescreve com a
introdução do registro do simb6lico e a concepção de uma constituição do sujeito
nessa relação com uma ordem que lhe é completamente externa, isto é, a da lingua-
gem, o "grande Outro" de Lacan.
280 RICHARD THEISEN SIMANKE

cernidas com cuidado - o ideal do eu e o supereu -, já que é o seu


afastamento que "define a primeira sublimação da realidade", ponto-
chave da questão e alvo último de todo esse esquema.
O primeiro sentido aventado para a expressão "sublimação da
realidade" foi, como se viu, que ela deve significar, em Lacan, uma
constituição do mundo dos objetos em concordância com os valores
sociais veiculados pela família. No caso, é a capacidade de harmonizar
os valores imaginários positivos herdados do Édipo (o ideal do eu) com
o sistema de prescrições e interditos mais ou menos bem digerido
intrapsiquicamente (o supereu) que vai decidir sobre o caráter saudá-
vel ou patológico da personalidade que daí resulta. Lacan parece en-
dossar aqui a concepção kleiniana de que é o supereu - muito mais
que o isso, como acontecia em Freud- a verdadeira instância psíquica
patogênica, na medida em que é o alvo preferencial da defesa, princi-
palmente quando assume as suas formas primitivas, sádicas e irracio-
nais - lembremos, aqui, que Lacan dava, já na Tese, uma importância
especial ao que ele designava como "psicoses do Supereu". Mas "subli-
mação da realidade" parece aqui significar algo mais, a saber, a distin-
ção entre o sujeito e seus objetos, inexistente no estágio narcísico, cuja
principal característica era a coincidência entre esses dois termos. Esta
distinção é capital para o empreendimento lacaniano, pois é ela que
vai permitir a caracterização dos fatos da subjetividade como fenôme-
nos de conhecimento, ultrapassando a conaturalidade que marca o
comportamento animal em suas relações com o meio circundante,
governadas pelo instinto. Este aspecto da identificação que encerra o
complexo de Édipo fica bem evidente quando Lacan assinala quão
pouca importância se deu até então ao fato de que "o objeto da iden-
tificação não é aqui o objeto do desejo, mas aquele que, no triângulo
edipiano, se opõe a ele"48 • Já nessa época - e a partir de seu referencial
espinozista e kojeviano -, Lacan vê no desejo o determinante funda-
mental da subjetividade tomada em si mesma. O que a identificação

48 LF, p. 40-14.
IMAGENS E COMPLEXOS 281

secundária do Édipo determina é o regime dos objetos que vão, a par-


tir daí, constituírem-se em metas para o desejo; este, de sua parte, con-
servará, de uma forma ou de outra, a sua feição narcísica' ao longo de
toda a história do sujeito. É por isso que, ao operar o deslocamento de
ênfase da realidade para o sujeito, que todo esse desenvolvimento pre-
para e permite, Lacan não vai deixar de desqualificar um pouco o de-
sejo edipiano, demasiado comprometido com o objeto para servir de
indicador seguro do lugar central que o sujeito deve assumir em sua
psicologia do imaginário. Diz Lacan, com efeito: "Esse fato define,
para nós, a originalidade da identificação edipiana: ele nos parece in-
dicar que, no complexo de Édipo, não é o momento do desejo que erige
o objeto em sua nova realidade, mas o da defesa narcísica do sujeito" 49 .
Mas contra quem o sujeito deve defender seu narcisismo? Justa-
mente contra a figura do drama edípico que surge, eminentemente,
como obstáculo ao desejo: aquela que se cristaliza na imago do pai. É
ao represar, com seu poder de interdição, as energias sexuais, que essa
figura cria uma espécie de reserva de inte~esse ativo que pode ser ca-
nalizada para objetivos sociais, e obtém-se daí a sublimação. Ao reafir-
mar, assim, a prevalência da imago paterna sobre a materna, ao menos
para os fins socializatórios e, mesmo, civilizatórios do complexo de
Édipo, Lacan está referindo cada uma dessas imagos, respectivamen-
te, à identificação secundária e primária, que procurou distinguir com
tanto cuidado 50 • Mas esse privilégio oscilaria perigosamente sobre os
limites de uma contingência biológica, se ficasse atrelado ao pai real;
Lacan chega a mencionar, por exemplo, como a morte do pai tenderia.

49 LF, p. 40-14, grifos nossos.


50 Ver LF, p. 40-14: "Ora, a própria estrutura do drama edipiano designa o pai para
dar à função de sublimação sua forma mais eminente, porque mais pura. A imago
da mãe, na identificação edipiana, rrai, com efeito, a interferência das identifica-
ções primordiais{ ... )". Este privilégio, como já se viu, anuncia as futuras prerro-
gativas do simbólico sobre o imaginário. Mesmo pensado apenas no registro do
imaginário, ele já sugere, nesta etapa, uma espécie de simbolização em segundo
grau, isto é, mais distante da natureza.
282 RICHARD THEISEN S!MANKE

a estancar o progresso da realidade. A pr6xima tarefa, portanto, será


estabelecer a re/,atividade biológica do complexo, a fim de inseri-lo defi-
nitivamente em seu esquema antropol6gico, consumando a ruptura
com as funções meramente vitais da família.
Esse é o último movimento deste texto, e Lacan vai cerrar filei-
ras aí com as críticas antropológicas à psicanálise, principalmente a de
Malinowski. Por uma razão muito simples, na verdade: este, ao de-
nunciar o equívoco freudiano de tomar como universal uma estrutura
que só se verifica na família patriarcal vitoriana, serve à causa lacania-
na, ao permitir-lhe avançar uma versão do complexo totalmente inde-
pendente do fato biológico da paternidade. Isso porque ele não segue
Malinowski até o ponto de dizer que os melanésios não teriam com-
plexo de Édipo, já que, em sua cultura, as funções que o Ocidente
atribui ao pai são exercidas pelo tio materno. Ao contrário, Lacan vê
aí um argumento a favor da relatividade social do Édipo mesmo na
cultura ocidental pois fica evidente que o papel que o pai exerce nesta
última não resulta, pura e simplesmente, da sua condição de progeni-
tor macho, mas do lugar que ele ocupa numa certa estrutura social
que, no caso, se caracteriza pelo patriarcado, cujas origens podem ser
rastreadas historicamente. Numa cultura em que outro personagem
ocupar este lugar - o irmão da mãe, no caso -, ele ficará automatica-
mente investido dessas funções. É a completa inversão de qualquer
argumento naturalista que Lacan busca: não é um poder inerente à
condição paterna que torna esta figura capaz de operar a repressão e
impor a sublimação das tendências sexuais, mas é por estar socialmente
investida com as funções repressivas e com as insígnias do ideal cultu-
ral que a imago do pai adquire a sua força e asua pregnância caracte-
rísticas. Tudo muito pouco freudiano como fica claro a seguir. Um lon-
go comentário que remete ao Bergson de As duas fontes da moral e da
religião, com a distinção entre as religiões "abertas" e "fechadas", suge-
re ser esta uma referência mais significativa para a concepção lacaniana
da cultura do que, por exemplo, o Freud de Totem e tabu e Mal-estar
na cultura, obras que tratam de temas bastante próximos.
Depois de todo esse trajeto, não é surpreendente que nosso au-
tor sinta-se completamente à vontade para reformular os termos em
IMAGENS E COMPLEXOS 283

que Freud expressa suas teses sobre o Édipo, adaptando-as à sua visa-
da antropológica e, em certo grau, culturalista. Va1e a pena citar na
íntegra a seguinte passagem, em que tanto as angústias edípicas, com
suas raízes superegóicas, quanto sua resolução sublimatória, traduzem-
se perfeitamente no novo vocabulário: "Ora, em nosso tempo, menos
que nunca, o homem da cultura ocidental não poderia ser compreen-
dido fora das antinomias que constituem suas relações com a natureza e
com a sociedade: como, fora delas, compreender não só a angústia que
ele exprime no sentimento de uma transgressão prometéica em relação às
condições de sua vida, mas também as concepções mais elevadas com
que vence esta angústia, reconhecendo que é através de crises dialéticas
que ele se cria, a si mesmo e a seus objetos?"5 1•
É o conceito de ideal do eu, formação imaginária pela qual se
efetua a transmissão familiar da cultura, que amarra a vertente antro-
pológica e a vertente psicológica do pensamento de Lacan nesta fase.
Não é por acaso que ele procura distingui-lo, com a maior precisão
possível, do eu, do supereu e também, mais tarde, do "eu ideal", trans-
formando uma oscilação terminológica de Freud em duas instâncias
distintas. O processo formativo de todas essas instâncias gravita em
torno do estágio do espelho, núcleo de toda a constituição da subjeti-
vidade. É o exame, então, do que consiste exatamente este estágio que
vai permitir caracterizar mais de perto o teor e a vocação da teoria la-
caniana do imaginário que ele subsidia.

IV.2. DUAS FILOSOFIAS DO IMAGINÁRIO

É claro que Lacan não tira do nada sua concepção do imaginá-


rio. A própria teoria do estágio do espelho provém de um aproveita-
mento muito particular de certos experimentos da.psicologia humana

SI LF, p. 40-16; grifos nossos.


284 RICHARD THEISEN SIMANKE

e animal e, mais especificamente, do alcance a eles atribuídos por


Henri Wallon para a interpretação do desenvolvimento infantil. Mas,
além dessa referência mais imediata, que se coloca em perfeita conti-
nuidade com os modelos ecológicos incorporados por Lacan desde a
Tese, há um pano de fundo mais genérico para esta teoria do imaginá-
rio erigida sobre a experiência do espelho. Ele compõe-se principal-
mente de algumas referências filosóficas que determinam a orientação
da teoria, mesmo quando não contribuem diretamente para a formu-
lação de suas teses. Como é quase sempre o caso com Lacan, essas re-
ferências não são lá muito explícitas, e fazer o seu levantamento é uma
tarefa que corre constantemente o risco de tornar-se um mero exercí-
cio especulativo. Seja como for, talvez valha a pena empreendê-la, ain-
da que de modo limitado, a fim de esboçar uma filiação pelo menos
provável para as idéias lacanianas deste período, o que permitirá me-
dir, mais tarde, a que exatamente o autor está aderindo ou com o que
precisamente ele está rompendo e traçar um roteiro mais preciso do
encaminhamento da doutrina.
Com vistas a não ampliar demasiadamente este esforço conje-
tural, limitemo-nos a dois nomes próprios, que podem ser considera-
dos emblemáticos dos principais aspectos da teoria lacaniana do ima-
ginário: Sartre e Espinosa. O segundo, como se sabe, foi o padroeiro
intelectual que Lacan elegeu para seu doutoramento; é difícil crer que
ele tenha desdenhado a contribuição espinozista no momento de pro-
por uma teoria que se empenha em retirar o imaginário do simples
registro do erro e da ilusão52 • De qualquer modo, o contexto em que

52 Na verdade, pode-se dizer que há uma dupla vertente nas concepções espinozis-
tas sobre o imaginário: numa, mais tradicional, a imaginação é considerada numa
perspectiva de inferioridade com relação aos poderes do entendimento; na outra,
a pr6pria radicalização da perspectiva racionalista leva ao reconhecimento de uma
''16gica do imaginário" e, conseqüentemente, sua distinção do que seria um puro
erro do espírito (cf. Vedrine, H. Les grandes conceptions de J'imaginaire... , p. 65-
6). Por razões 6bvias, a exposição que se segue dá maior ênfase a esta segunda
vertente.
IMAGENS E COMPLEXOS 285

Espinosa efetua essa operação revela afinidades muito nítidas com o


projeto lacaniano. Quanto a Sartre, a inspiração que dele Lacan pode
tomar é bem mais manifesta, emergindo em algumas referências pos-
teriores, esparsas, mas reveladoras. Além disso, as reflexões do primei-
ro Sartre giraram, justamente, em torno da proposição de uma psicolo-
gia fenomenológica centrada em uma teoria do imaginário. Trata-se,
portanto, guardada a distância que medeia entre um empreendimen-
to filosófico e o de um psiquiatra que se encaminha lentamente para a
psicanálise, de um projeto muito similar ao que Lacan tenta fazer pro-
gredir. O sucesso do recurso às teses fenomenológicas em psiquatria,
quando se tratava de desbancar o dogma organogênico, pode ter ser-
vido para produzir a mesma esperança, quando o problema é arrancar
a psicologia da estagnação em que se encontravam suas ambições cien-
tíficas. Pode-se dizer, de modo geral, que a contribuição que Lacan
espera de Espinosa é que ele forneça o pano de fundo metafísico de
sua teoria do imaginário, enquanto que Sartre é chamado a contribuir
no momento mais tipicamente epistemológico da constituição de uma
psicologia que possa se reivindicar como uma "ciência da imagem",
uma ciência no sentido fone da palavra.
O que encontramos em Espinosa - e que não pode ter deixado
de entusiasmar a Lacan - é, de fato, uma teoria que pensa a imagina-
ção em termos de potência, em contraste com um racionalismo que só
sabe pensá-la numa comparação sempre desfavorável com as promes-
sas do entendimento puro. O que Espinosa se dispõe a revisar é, como
se sabe, o racionalismo cartesiano que, ancorado numa metafísica
dualista, desvaloriza a dimensão imaginária do conhecimento, dema-·
siado atrelada às vicissitudes do corpo. Este, identificado pura e sim-
plesmente à matéria e cortado em definitivo da substância pensante,
só poderia, doravante, interferir de forma negativa no exercício reden-
tor da razão. Ao contrário, a reabilitação espinozista do imaginário vai
apoiar-se, como se verá, numa celebração dos poderes do corpo, permi-
tida, no plano metafísico, por uma visada monista, que torna a identi-
ficar Deus e Natureza, alma e matéria, numa mesma substância univer-
sal. Escusado dizer que não se pretende aqui uma exposição exaustiva
da concepção espinozista do imaginário, em todas as suas imbricações
286 RICHARD THEISEN SIMANKE

com a reforma do entendimento e com o projeto ético53. Trata-se, an-


tes, de inventariar uma série de suposições singulares que demonstram
afinidades com as incursões lacanianas por este mesmo terreno e que
podem, com verossimilhança, ter servido como materiais para a cons-
trução de suas teses sobre o funcionamento do modo imaginário. De
resto, não é tanto a arquitetura interna do sistema espinozista que
Lacan recupera, mas sim algumas fórmulas que sirvam de argumento
para defender uma concepção que distingue o imaginário do ilus6rio,
mas sobre o plano clínico-científico, e não metafísico-especulativo.
Tomando uma certa liberdade com os slogans lacanianos relativos às
psicoses, pode-se dizer que o que ele busca é uma concepção não-defi-
citdria do imagindrio, capaz de alicerçar um programa de pesquisa psi-
col6gico satisfatoriamente concreto.
Quanto ao que nos interessa, é possível organizar as questões
relativas à concepção espinozista do imaginário em torno da seguinte
pergunta: pode a imaginação - e, em caso afirmativo, como - ser con-
siderada uma forma válida de conhecimento, sendo uma função inti-
mamente vinculada ao corpo? É claro que, por trás da afirmação desta
possibilidade, encontra-se a amortização da diferença alma/corpo,
deslocada do plano da substância para o de seus atributos, e, mais es-
pecificamente, a distinção que Espinosa estabelece entre as diversas
formas de conhecimento (conhecimento de primeiro, segundo e ter-
ceiro gêneros 54). Mas o que interessa mais de perto a uma compara-

53 Uma exposição sistemática deste tipo pode ser encontrada no livro de Michele
Bertrand, Spinoza et l'ímaginaire, no qual nos apoiamos para o que se segue. Uma
visão mais resumida do mesmo tema é exposta em Les grandes conceptions de
l'imaginaire... , de Helenc: Védrine, Cap. V, "Puissance et imagination selon Spi-
noza", p. 63-86.
54 A teoria espinozista do conhecimento admite três formas ou níveis do conheci-
mento. O primeiro é o da experiência vaga ou confusa que decorre da interação
do corpo com os outros corpos e opera basicamente com imagens. O segundo se
constrói a partir desse primeiro nível, através da generalização das características
que todos os corpos, quando considerados sob o modo da extensão, têm em co-
mum; formam-se, assim, as "noções comuns" que integram o conhecimento cien-
IMAGENS E COMPLEXOS 287

ção com as posições lacanianas é destacar três pontos cruciais: primei-


ro, que o conhecimento possa ser uma função mediada pelo corpo,
sem que seja necessário subscrever a tese empirista; segundo, que se
possa falar de objetos imaginários, sem que isso implique num erro da
imaginação; e, por último, que, dado tudo isso, o imaginário possua
uma lógica e uma dinâmica própria, que, mesmo limitados num certo
sentido e diferentes da lógica do entendimento, configuram um está-
gio necessário deste último, sem que isso comprometa a sua validade
própria como forma de conhecimento.
São a identidade substancial entre a alma e o corpo e a doutrina
do "verdadeiro" paralelismo que permitem vincular a imaginação às
disposições corporais sem cair numa formulação empirista. Michele
Bertrand assinala o fato aparentemente paradoxal de que o segundo
livro da Ética, que investiga a origem da alma, inicie justamente por
uma definição do corpo55. Mas o que deve ter inspirado mais de perto
a elaboração lacaniana sobre o estágio do espelho e o funcionamento
do imaginário em geral é a proposição que define a alma como a "idéia
do corpo". Diz essa proposição: "O obJeto da idéia constituindo a
Alma humana é o corpo, quer dizer, um certo modo da extensão exis-
tindo em ato, e não é nada além disso"56. Não é preciso muito esforço
para perceber o parentesco com a idéia lacaniana de que o protótipo
do eu é a identificação com o reflexo especular do próprio corpo, que
é assim incorporado como imagem e, portanto, como o que há de mais
tipicamente psíquico ou anímico, segundo Lacan. O poder que, por
aí, é atribuído ao corpo - numa palavra: o poder de ser afetado de
alguma forma, produzindo, assim, imagens que não necessariamente

t(fico. O terceiro gênero de conhecimento consiste na aproximas;ão intuitiva da


totalidade deste sistema de idéias que pode ser alternativamente chamado de Deus
ou Natureza. Correspondem a cada nível de conhecimento, respectivamente, as
idéias confusas, :is idéias adequadas e as idéias intuitivas.
55 Cf. Spinoza et t'imaginaire, p. 37. Diz Espinosa nessa definição: "Eu entendo por
corpo um modo que exprime a essência de Deus, enquanto se a considera como
coisa extensa, de uma maneira certa e determinada( ...)" (Ética, 11, definição 1).
288 RICHARD THEISEN S!MANKE

devem reproduzir fielmente coisas exteriores-, ao mesmo tempo que


justifica uma certa "inconsciência" da alma para com as possibilidades
corporais57 , permite pensar a autonomia da ordem imaginária com
relação ao real, condição para que se possa afirmar a irredutibilidade
da imaginação ao erro, que interessa tanto a Lacan quanto a Espinosa.
Interesse tanto maior quando se percebe que, ao ser pensada como
"idéia do corpo", a alma não está simplesmente recebendo uma defi-
nição objetiva ou, melhor, sendo afirmada como tendo o corpo como
objeto. "A alma é o pensamento do corpo, nisso que ela exprime as
afecções que ele experimentà', diz Michele Bertrand, com o que tor-
na-se possível conceber a origem de um sujeito a partir deste poder do
corpo de ser afetado e do fato destas afecções encontrarem na alma
seu meio de expressão. Corpo, afecção, sujeito, expressão: eis os ingre-
dientes de uma teoria do imaginário que poderia agradar a Lacan, já
que cumpre os requisitos de dar ao campo psicológico um fundamen-
to concreto e, ao mesmo tempo, irredutível ao orgânico, sem, contu-
do, cortá-lo do mundo da vida, pois o monismo espinozista coloca o
homem, inapelavelmente, como uma parte da natureza, numa relação
de dependência mútua com os outros seres que dela participam e, aci-
ma de tudo, com aqueles que mais se lhe parecem, ou seja, os outros
seres humanos. O problema da identidade do sujeito dentro deste
mundo do qual ele não difere em essência é resolvido por uma física
particular, centrada na idéia de movimento próprio, e que se afasta da
física cartesiana ao propor um princípio puramente natural para a
identidade individual5 8• Não é o caso de se demorar nessas sutilezas,

56 Ética, II, 13.


57 "O corpo pode, apenas pelas leis de sua natureza, muitas coisas com as quais a
alma se espanta" (Ética, III, 2, esc6lio). Este vislumbre de inconsciente já serviu
para algumas aproximações entre Espinosa e Freud, complementado por uma es-
pécie de função terapêutica que exerce a dinâmica da imaginação (catarse das pai-
xões a serviço do conatus, etc.).
ss Cf. Bertrand, M. Spinoza et l'imaginaire, p. 46: "Nossa identidade individual se
manifesta, portanto, como a persistência desta relação [entre as partes] na rede
IMAGENS E COMPLEXOS 289

mas apenas de assinalar que a unidade corporal, condição da identi-


dade, só se mantém por essa série incessante de choques com outros
corpos que conserva cada uma de suas partes animadas de um movi-
mento suficientemente sincronizado para impedir a desagregação59 • É
nesse sentido que os destinos do corpo interessam diretamente ao ima-
ginário: o corpo não podendo deixar de ser continuamente afetado,
estas afecções também não podem deixar de ecoar continuamente no
·pensamento.É óbvio que Lacan nunca será capaz de levar tão longe a
identidade entre o espírito e a natureza que Espinosa propõe; por isso,
ele vai estar muito mais preocupado com a unidade do corpo imagi-
nário do que com a coesão do corpo físico. No fundo, o que ele afir-
ma é que só há unidade possível no plano imaginário; o corpo en-
quanto tal só pode produzir um caos de sensações que se expressam
na fantasia do corpo fragmentado, uma espécie de grande resumo do
movimentadíssimo mundo interno descrito por Melanie Klein.
Mas são as conseqüências desta física espinozista que nos inte-
ressam mais de perto. No que diz respeito .às imagens (imagines}, Espi-
nosa não se distingue muito de Descartes: trata-se aí de afetos corpo-
rais, cuja origem e função acabamos de expor. Mas às imaginações
(imaginationes), por outro lado, vai ser decididamente atribuído o ca-
ráter de idéias ou representações. Só que, em Descartes, isso significa-
ria subsumir integralmente a atividade da imaginação à lógica do en-
tendimento. No sistema cartesiano, é inconcebível que o pensamento
possa ser algo da ordem de uma paixão da alma. Inversamente, uma

infinita das interdependências que nos ligam ao resto da natureza, e que não cessam
de afetar, isto é, de modificar as diferentes partes do nosso corpo".
59 Assinale-se, contudo, que, além desse princípio externo de coesão (pressão do
ambiente, choques exteriores, etc.), Espinosa acrescenta um princípio interno,
que diz respeito à essência singular de cada corpo e ao conatus, isto é, o esforço
para perseverar no próprio ser. Lacan, diga-se de passagem, não verá nenhuma
dificuldade em identificar o conatus ao Eros freudiano, o princípio que rege a
combinação de toda as coisas e que se opõe, portanto, ao poder desagregativo da
pulsão de morte.
290 RICHARD THEISEN S!MANKE

ação da alma conduz sempre a uma paixão do corpo, a algo que o cor-
po experimenta passivamente. Em Espinosa, ao contrário, corpo e
alma serripre agem ou $ofrem uma ação concomitantemente, já que
não passam de dois atributos sob os quais se pode conceber o mesmo
todo. É esse liame que se estabelece entre a imaginação e as paixões da
alma- uma vez que a imaginação resulta, em última instância, de uma
afecção do corpo - que permitirá a Espinosa atribuir-lhe uma dinâ-
mica distinta daquela do entendimento, sem, no entanto, desqualificá-
la como forma de pensamento.
Quando, em Descartes, afirma-se a heterogeneidade fundamen-
tal entre extensão e pensamento - e é isso que determina a relação in-
versa entre as paixões e ações do corpo e da alma-, fica aberto o cami-
nho para a consideração daqueles fenômenos do espírito que podem
ser ditos patológicos. Basta invocar, como exemplo, os muito comen-
tados "negros vapores da bile", que obscurecem o cérebro dos insensa-
tos e os fazem imaginar ser reis ou ter um corpo de vidro. Ou seja, a
alma sofre uma ação do corpo que a leva a pensar de maneira anôma-
la, mas como a imaginação não pode ser julgada por outras leis que
aquelas do entendimento, isso só pode conduzir à sua desqualificação:
ela é uma forma pervertida do pensamento. Traduzindo tudo para o
jargão psiquiátrico, é uma concepção deficitária da loucura que se en-
contra em Descartes, e dela a psiquiatria fez-se herdeira ao longo da
sua história. Uma autonomia pelo menos relativa da imaginação com
relação ao entendimento puro é, assim, a primeira condição para que
se possa considerar mesmo a~ mais desvairadas de suas produções como
uma forma válida de pensamento e de cognição.
Acrescente-se, ainda, que, para Descartes, a intelecção em geral
- isto é, o processo pelo qual se concebe uma idéia, se produz uma
representação-é passivo no que interessa à cognição. O componente
ativo do conhecimento é o juízo de adesão ou não a uma asserção ou
um enunciado. Daí que a vontade surja como o fator que induz ao
erro, que, de outra maneira, não se compreende muito bem como po-
deria ocorrer no âmbito do entendimento puro, inspirado com idéias
daras e distintas pela bondade divina. Ora, para Espinosa, o juízo vem
embutido na própria representação, ou seja, perceber e conceber já é,
IMAGENS E COMPLEXOS 291

de alguma forma, julgar; daí que ele se preste muito melhor aos obje-
tivos de Lacan de fazer da própria percepção um fenômeno ativamen-
te cognoscente, uma interpretação da informação sensorial bruta, que
constitui uma realidade, e não apenas a absorve. Em suma, se Lacan
vai recorrer, depois, continuamente a Descartes, em busca de apoio
filosófico para suas elaborações em torno do sujeito do inconsciente,
ele só poderá fazê-lo, consistentemente, após desistir da idéia de uma
determinação e de uma constituição do sujeito de responsabilidade
exclusiva do modo imaginário - isso, é claro, sem entrar no mérito de
sob que condições Descartes vai poder servir de referência depois que
a pedra de toque do empreendimento lacaniano tiver se convertido
no registro do simbólico. Em Descartes, não há um imagindrio pro-
priamente dito, no sentido de uma região da subjetividade animada
por uma lógica e uma legítimidade específicas, mas apenas um "mundo
imaginado" totalmente homogêneo ao pensamento consciente e aos
critérios do intelecto60, onde uma imaginação só será uma represen-
tação ·válida, em vez de um erro, quando Q entendimento mostrar que
ela corresponde fidedignamente àquilo que existe. De outra parte, há
em Espinosa um imaginário que pode ser quase um inconsciente e
cuja dinâmica própria pode ser descrita de modo a afirmar a validade
de suas produções, independentemente de quaisquer critérios de
correspondência.
Em primeiro lugar, porque o imaginário não diz respeito dire-
tamente ao conhecimento das coisas exteriores: "Ele exprime ou, se se
prefere, ele indica - e isso é uma coisa completamente diferente de
explicar - o poder e os limites do nosso corpo" 61 • "Poder", aí, refere-se
ao conatus, enquanto esforço para perseverar na existência, que define
o organismo vivo e o ser em geral; já o "limite" é relativo ao fato de
que o homem - que, como todo ser finito, não pode ser concebido
apenas por si mesmo - é necessariamente uma parte da Natureza. É

6°Cf. SpinoM et l'imaginaire, p. 54.


61 Ibidem, p. 69.
292 RICHARD THEISEN SrMANKE

verdade que, para entusiasmar-se com tais proposições62 , Lacan preci-


sa esquecer completamente que "natureza", para Espinosa, é uma to-
talidade - aliás, idêntica a Deus - dentro da qual tudo o que há e ocor-
re pode, em princípio, ser deduzido dos atributos essenciais da
substância infinita. Portanto, nada há que se compare com o campo
dos objetos das ciências ditas naturais, no qual nosso autor quer en-
raizar sua teoria do sujeito, para que ela escape a uma formulação de-
masiado compreensiva e abstrata. Mesmo assim, são os atrativos de
um determinismo homogêneo - e que, ainda por cima, deixa alguma
margem à atividade63 - que ele aí reencontra: o corpo é forçado a agir
(e a alma, por isso mesmo, a representar) como condição para a ma-
nutenção de sua pr6pria existência, o que, em termos físicos, significa
manter razoavelmente constantes as quantidades relativas de movi-
mento e repouso entre as partículas elementares que o co~põem. Mas,
em contrapartida, dadas as limitações inerentes a todo modo finito, o
homem não é sempre a causa adequada 64 disso que nele se produz,
sendo necessário o recurso àquilo que o afeta desde seu meio circun-
dante para explicá-lo. O imaginário se apresenta, então, como o do-
mínio em que se manifesta mais claramente isso que Michele Bertrand
chama de uma "articulação dissimétrica'' entre os poderes e os limites

62 Po~ exemplo: "É impossível que o homem não seja uma parte da Natureza·e não
possa experimentar outras transformações além daquelas que podem ser conheci-
das apenas por sua natureza e das quais ele é a causa adequada" (Ética, IV, 2).
63 Deixemos de lado a questão - aliás, de pouca relevância - sobre se Lacan apenas
reencontra em Espinosa as premissas de seu método psiquiátrico ou se estas fo-
ram-lhe inspiradas já pelas leituras precoces da Ética que levoµ a cabo ainda na
adolescência.
64 Espinosa explicita as noções de causa adequada e inadequada na Definição I do
Livro III da Ética: "Eu chamo de causa adequada aquela da qual se pode perceber
o efeito claramente e distintamente por ela mesma; eu chamo de causa inadequa-
da ou parcial aquela da qual não se pode conhecer o efeito apenas por elà'. Assi-
nale-se que a idéia de atividade, para Espinosa, está ligada à de caúsa adequada:
diz-se de um ser que ele é ativo em relação a alguma coisa quando ele for a causa
adequada desta coisa.
IMAGENS E COMPLEXOS 293

do corpo: sua dinâmica só se explica por esta conjugação de deter:..


minismo e ativídade, por esta atividade movida desde fora através de
uma série contínua de afecções, das quais o corpo não pode prescindir
para a manutenção de sua identidade e de sua existência. É nesse sen-
tido que a imaginação, que surge como idéia ou representação destas
afecções, é imprescindível para que a alma possa cumprir integralmente
suas funções de conhecimento: é através dela que o intelecto apreende
as coisas exteriores e o funcionamento de seu próprio corpo, configu-
rando assim, se não o grau mais elevado, ao menos uma etapa indis-
pensável no caminho do entendimento rumo ao conhecimento racio-
nal. É esta concepção da imaginação como espaço de interação que
permite a Espinosa distingui-la do simples equívoco ou ilusão e, como
conseqüência, atribuir-lhe uma lógica própria; ou seja, o segundo e o
terceiro aspectos de sua teoria do imaginário, dentre os três que distin-
guimos acima como dignos de nota para o que interessa à apropriação
lacaniana destas idéias.
· O argumento para distinguir o im3:ginário e o ilusório provém
da própria caracterização do primeiro coino manifestação do poder
do corpo de ser afetado de múltiplas maneiras e da definição da ima-
ginatio como espaço de interação: o entendimento não conhece nada,
pelo menos em primeira instância, a não ser através das modificações
do corpo. Daí que, para Espinosa - embora concorde com seus con-
temporâneos em que as representações mais ou menos espontâneas que
nos formamos do próprio corpo e das coisas exteriores não constitu-
am conhecimentos claros e distintos -, ''nossa consciência fanciona, ela
mesma, no imaginário" 65 • Isso por si só já destitui a consciência de uma·
transparência a si mesma que decorra simplesmente de seu próprio
conceito, o que não deixa de ser uma conseqüência da recusa do
dualismo e da distinção essencial entre a alma e o reino da extensão.
Mas, se o conteúdo das representações imaginárias pode ser dito con-
fuso é apenas por não estar contido, nelas mesmas, um critério para
decidir sobre_a presença ou não de um objeto exterior que correspon-

65 Spinoza et l'imaginaire, p. 73; grifos da autora.


294 RICHARD THE!SEN SIMANKE

da ao que está sendo representado. Esta confusão, devido à qual deve-


se dizer que o imaginário mais exprime do que conhece verdadeira-
mente essa interação entre o corpo e as coisas exteriores, abre a possibi-
lidade do surgimento de algo da ordem de urna "ciência do imagjndrio "66 ,
pela qual o intelecto pode debruçar-se sobre os mecanismos da imagi-
nação e desvendar a razão de seus efeitos. Eis aí mais urna vantagem
evidente das concepções espinozistas sobre as cartesianas para um
Lacan que, a partir da clínica psiquiátrica, resolveu empreender a fun-
dação de urna psicologia positiva. Já nos detivemos em como o
cartesianismo, por um lado, serviu à causa da psiquiatria ao conceder
autonomia ontológica ao mental, mas, por outro, inviabilizou, de urna
vez por todas, a possibilidade de urna ciência da mente, uma vez que a
substância pensante é, por definição, incondicionada. Agora, a partir
do momento em que a consciência é mergulhada no modo imaginá-
rio, torna-se possível empreender a elucidação de suas leis, que não
mais são as leis do entendimento puro e podem dele fazer-se objeto
de análise, sendo remetidas a um quadro de noções comuns que con-
figura o chamado "conhecimento de segundo gênero", que seria mais
ou menos parecido com o conhecimento científico. Mas, ao mesmo
tempo - e isso talvez seja o mais importante-, esse movimento atri-
bui urna racionalidade intrínseca ao imaginário: se ele pode ser co-
nhecido, é porque não coincide simplesmente com o nada de um puro
erro de um intelecto desatento ou desencaminhado. O que há em Es-
pinosa, portanto, é a afirmação de uma consistência do imaginário, e
a radicalidade de sua proposta racionalista reside em que ele afirma a
imaginação corno um modo normal de pensar que, além disso, pode
ser totalmente explicado em seus mecanismos e seus conteúdos. Para
tanto, é necessário que - se a imaginação é, afinal de contas, um co-
nhecimento errôneo, em certo sentido, quando afirma a presença e a
ação de coisas que lá não estão - a fome deste erro não se encontre no
domínio do imaginário, considerado em si mesmo. O raciocínio espi-
nozista prossegue aí da seguinte maneira, em linhas gerais: quando a

66 Spinoza et l'imaginaire, p. 75; grifos da autora.


IMAGENS E COMPLEXOS 295

alma imagina, ela se representa coisas que estão realmente presentes


enquanto imagens, mesmo que não correspondam a algo que exista
exteriormente; o que falta, então, para a correção desse conhecimento
confuso, é, nas palavras de Espinosa, a presença, na alma, de uma idéia
que exclua a presença disso que estd sendo imaginado 67 • Ora, uma tal
idéia não poderia jamais provir da imaginação enquanto tal, já que ela
consiste justamente em afirmar a presença de uma representação, mas
não de uma coisa, pelo simples ato de imaginá-la. A omissão desta idéia
só pode ser uma falta do intelecto, que se converte no único responsá-
vel pelo erro, uma vez que a imaginação, em si mesma, não é verda-
deira nem falsa; não pode sê-lo, pois ela é ou apresentação de uma
imagem ou não é nada.
O resultado disso tudo é algo muito ao gosto das preferências
lacanianas: a distinção entre imagem e sensação, em vez de ater-se aos
critérios empiristas da vivacidade sensorial, surge como desenlace de
um "conflito lógico" entre as idéias do entendimento e as idéias imagi-
nativàs. Basta lembrar todo o esforço crít~co de Lacan, dirigido à psi-
cologia tradicional, assim como o empenho que demonstrou, desde a
Tese, em descrever as produções psicopatológicas nos termos de uma
lógica particular, recorrendo até ao pensamento primitivo de Lévy-
Brühl e suas infrações aos princípios aristotélicos: tudo isso desembo-
ca num anti-empirismo vitalício, que dedicou, depois, sua verve par-
ticularmente à psicologia do ego e ao freudismo ortodoxo. Como, em
Espinosa, estes conflitos lógicos são pensados como instituindo-se des-
de o nível mais baixo do conhecimento - aquele da percepção sensí-
vel68 - Lacan encontra aí uma base filosófica bastante firme para seu ·
desígnio de subsumir a própria percepção e suas alterações patológi-
cas, como a alucinação, aos modos de operação do conhecimento
paranóico.
Pelo próprio fato, então, de que o imaginário seja cognoscível
pelo intelecto, impõe-se que ele possua uma lógica rigorosa, que pode

67 Cf. Spinoza et l'imaginaire, p. 76.


68 Cf. Ibidem, p. 77.
296 RICHARD THEISEN SIMANKE

ser apreendida pelo pensamento racional. O racionalismo absoluto de


Espinosa não admite outra alternativa: ''As idéia inadequadas e confu-
sas seguem-se umas das outras com a mesma necessidade que as idéias
adequadas" 69 • Esta lógica do imaginário fundamenta-se nos princípios
de associação de idéias (contigüidade, semelhança, simultaneidade,
etc.), mas, por tudo que já se viu, isso não comporta nenhuma espécie
de compromisso com uma visada empirista, não fosse por outro mo-
tivo, pela afirmação de um intelecto ativo, que se empenha em conhe-
cer o mecanismo e os resultados dessa associação e, nisso, em apreen-
der a razão das construções imaginativas. Os detalhes desta lógica do
imaginário não nos interessam, de momento. Sua descrição só serviria
para mostrar como ela se presta às aproximações pretendidas por Lacan
com os processos primários e as leis do psiquismo inconsciente que
ele readapta de Freud. Mesmo porque, o objetivo de relembrar, ainda
que esquematicamente, alguns tópicos da concepção espinozista do
imaginário era tão somente indicar de que modo elas fazem ressaltar
as orientações gerais da pesquisa de Lacan. Espinosa nunca foi uma
referência filosófica muito celebrada em Lacan, cujo nome sempre foi
mais facilmente associado aos modismos hegelianos e heideggerianos
franceses. Mas da epígrafe da Tese à comparação que Lacan faz entre
si mesmo e seu filósofo predileto na abertura do Livro XI de Le sémi-
naire70 - onde pode-se dizer que ele arremata o essencial de suas reali-
zações teóricas, em que pese o sucesso experimentado por algumas for-
mulações mais tardias-, passando pela redução da psicanálise a um
discurso ético que, como em Espinosa, é cuidadosamente distinguido
de uma moral prescritiva, o que se insinua é uma inspiração surda e
subterrânea, que talvez merecesse maior atenção. De qualquer modo,
um psiquiatra que emigrava para a psicanálise, fazendo escala numa
psicologia concreta do imaginário, certamente pôde encontrar, no sin-
gular empreendimento espinozista, que lhe era bem familiar, um refe-
rendo filosófico para suas pretensões científicas, aliás nada modestas.

69 Ética, II, 36; grifos nossos.


70 Le séminaire. Livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la psychana!yse, p. 12.
IMAGENS E COMPLEXOS 297

No plano epistemológico, porém - passagem obrigatória para a


adequada realização das ditas pretensões científicas -, a figura de
Sartre, cujas relações com a psicanálise sempre foram tumultuadas,
fornece um interessante contraponto, quer pela semelhança da proble-
mática inicial, quer pela recorrência coincidente de certos temas, quer,
ainda, pela diversidade das soluções alcançadas, que, em alguns casos,
chegam a ser simetricamente contrárias. E essa diversidade transpare-
ce, antes de tudo, no fato de que nada está mais longe das conclusões
de Sartre do que uma renovação do credo positivista e determinista da
psicologia. Assim, se ele inspira, de alguma forma, a epistemologia la-
caniana, é basicamente em seu momento mais crítico do que constru-
tivo, no qual reaparecem, inclusive, alguns temas politzerianos. Mas a
psicologia que daí resulta será uma psicologia eidética que, embora de
reconhecido valor propedêutico e reservando espaço para a investiga-
ção empírica do psicólogo experimental ou introspeccionista, concen-
tra tudo o que há de novidade no projeto sartreano para este ramo da
ciência. Não esquecendo, é claro, que a qítica da psicologia represen-
ta apenas o movimento inicial e preparat6rio da evolução filosófica de
Sartre que, após passar da psicologia à fenomenologia, assume seu as-
pecto mais típico com a "ontologia fenomenológica" ensaiada em O
Ser e o Nada 71 • Embora Lacan se refira alguma vezes a esta obra, é
para ressaltar o valor de certos tópicos que se vinculam, de certa ma-
neira, às elaborações que a preparam - a fenomenologia do olhar, por
exemplo. Mas, pelo próprio fato de se encontrar mais próxima da psi-
cologia, é a obra inicial de Sartre que demonstra maior afinidade com
as idéias de Lacan, tanto na sua orientação geral, quanto na presença·
de um certo número de elementos temáticos que podem ser organiza-
dos em torno de uma concepção do imaginário.
Já nas primeiras incursões fenomenológicas de Sartre, no En-
saio sobre a transcendência do ego, estas afinidades se revelam: este tra-
balho define-se, com efeito, como o primeiro passo de uma tarefa, que

71 Para uma reconstituição deste movimento, ver o livro de Luiz D. S. Moutinho,


Sartre: psicologia e fenomenologia (doravante Sartre... ).
298 RICHARD THEISEN SIMANKE

o autor se atribui, de revisar a totalidade do campo da psicologia. Esta


revisão vai consistir, justamente, em delinear uma teoria consistente
do objeto psíquico e, ao fazer isso, recusar a idéia de um eu substancia-
lizado que habitaria o mundo interior constituído pela consciência. E
não só do eu: este encaminhamento tem, em sua base, uma profunda
aversão por qualquer psicologia dos conteúdos de consciência e pela
celebração, quer psicológica, quer metafísica, das potencialidades da
vida interior. É a mesma aversão, portanto, que se pode detectar tanto
em Lacan, quanto em Politzer, este último podendo ser apontado
como uma inspiração comum, direta ou indireta, dos dois outros au-
tores72. Uma certa convergência com Lacan transparece melhor quan-
do se verifica que este anseio por uma "teoria do objeto psíquico" aca-
ba por conduzir a uma abordagem fenomenológica do problema da
imagem, trazida, como em Lacan, para o centro da vida psíquica, so-
brepujando, para tanto, a desvalorização que a afligia, tanto do ponto
de vista empirista, quanto cartesiano.
É, enfim, o problema da constituição que Sartre reencontra em
seu primeiro ensaio: ele procurará superar, no plano filosófico, o rea-
lismo que o neokantismo francês atribuía ao transcendental kantiano,
concebendo-o como uma espécie de fato absoluto e constituinte do
eu e do psiquismo em geral. Fazendo isso, tentará estender sua reflexão
para além das considerações abstratas sobre o problema do conheci-
mento e suas condições de possibilidade, e abordar tanto o problema
da constituição, como o do conhecimento em termos concretos73 . Não
é o caso de nos determos, aqui, em como Sartre vai buscar elementos
para pensar a questão da existência de fato do eu como um fenômeno
de consciência na fenomenologia de Husserl. Cabe apenas notar que
a definição da natureza essencialmente intencional da consciência -
conforme o slogan predileto de Sartre: "toda consciência é consciência

72 Vejamos as datas: a Critique de fondements de /.a psychologie de Politzer (1928), a


Tese lacaniana (1932), a primeira versão de seu estágio do espelho {1936), o En-
saio... de Sartre (1934).
73 Ver Sartre... , p. 25-6.
IMAGENS E COMPLEXOS 299

de alguma coisa" - torna dispensável a hipótese de um eu como cen-


tro de referência organizador do campo da consciência, já que é o pró-
prio campo dos objetos que lhe confere unidade (a consciência é um
"fluxo auto-unificante", etc.). Este ponto de vista seria certamente
compartilhado por Lacan, no que diz respeito à destituição do eu, mas
seu afã determinista o impediria de subscrever o acréscimo do prefixo
"auto" a qualquer qualificativo do psiquismo. Mas, pelo próprio fato
de que almeja a construção de uma ciência psicológica concreta, Lacan
é capaz de admitir a idéia, afastada por Husserl, de que o eu pode con-
sistir, basicamente numa representação e, por aí, num objeto. Para Sar-
tre, esta constatação levou Husserl a afirmar o eu como um princípio
formal, hipótese que ele julga igualmente perniciosa, pois parece im-
plicar uma opacidade do eu à consciência, infringindo o princípio da
translucidez absoluta da consciência a ela mesma, que decorre do seu
esvaziamento em termos de conteúdos psíquicos74 • Para Lacan, ela vai
servir para adaptar a tese freudiana de que o eu surge como primeiro
objeto não-parcial da libido - dita, emãq, narcísica - à sua releicura
epistemológica, com a já referida identificação virtual entre os objetos
do desejo humano e os objetos do conhecimento: em Lacan, desejar
será condição para o conhecer, se bem que o inverso talvez seja tam-
bém verdadeiro, já que as inclinações anti-realistas de sua epistemolo-
gia tendem a identificar "conhecer" com "constituir".
Ao mesmo tempo, a afirmação da consciência como fenômeno,
onde "ser" e "aparecer" coincidem, conduz quase que naturalmente à
concepção da natureza fundamentalmente imaginária do psiquismo,
pois se coaduna muito bem com as propriedades da imagem, que man-" ·
tém o seu valor próprio como presença de uma representação, inde-

74 Cf. Sartre... , p. 32. Segundo Sartre, tanto o eu transcendental neokantiano, quanto


o "eu formal" ou o "eu material" implicarão a hipótese malsã de um inconsciente
psíquico, incompatível com a definição intencional da consciência. Ele identifi-
cará quase que naturalmente este inconsciente com o freudiano, recusando a to-
dos em bloco. Apenas a hipótese da transcendência do "ego" - e do objeto psí-
quico em geral - se lhe afigurará como satisfatória.
300 RICHARD THEISEN S!MANKE

pendentemente de quaisquer critérios de correspondência (crítica em-


pirista) e de qualquer comparação desfavorável com os poderes do en-
tendimento puro (crítica cartesiana). Estas são as posições comparti-
lhadas por Sartre, Lacan e Espinosa.
O problema da constituição do "Ego" 75, em Sartre, é, ·portanto,
o problema da constituição de uma transcendência. Nessa concepção,
o ego ressurgirá como síntese e, aparentemente, como fator de unidade
dos fatos e fenômenos de consciência. Mas, no limite, os impasses de
se considerar uma transcendência passiva como constituinte da cons-
ciência levarão Sartre a inverter a fórmula e a afirmar que é a cons-
ciência que constitui o ego. Porém, como a consciência, liberada de
seus conteúdos, tornou-se um vazio que apenas pode constituir a si
mesmo enquanto intencionalidade - esta a "espontaneidade" da cons-
ciência-, essa constituição só pode assumir a forma de uma projeção:
'"Constituir' tem aqui simplesmente o sentido de 'projetar', e o que é
projetado é já a consciência enquanto unidade sintética(... ). É o que
permite resolver os problemas que se podem colocar acerca da síntese
do Ego"76 .
Essas observações já antecipam algo a respeito do uso da metá-
fora especular em Sartre: ela representa o modo como o eu se apresen-
ta à consciência e tem, portanto, um sentido bastante diferente do laca-
niano, onde a experiência do espelho surge como paradigma de um
processo constituinte referido a determinantes extra-subjetivos e, por
isso, constitutivamente - e, de certa forma, irredimivelmente - alie-
nantes. Já em Sartre, a "falsa espontaneidade" do eu, projeção de uma
consciência já unificada de antemão e por seus próprios méritos, pode
ser percebida, criticada e, mesmo, suprimida, pelo sujeito, tese que aju-
dará a alimentar, entre alguns psicólogos clínicos, uma certa terapêu-

75 De modo similar a Lacan, Sartre emprega o je" para a face ativa do eu, e o termo
'ínoi"para sua face passiva (em Lacan, isso seria o eu como sujeito e como objeto,
respectivamente), valendo-se do termo "Ego" para o conjunto formado por estes
dois aspectos [cf. Sartre..•, p. 38, nota].
76 Sartre... , p. 41.
IMAGENS E COMPLEXOS 301

tica de inspiração existencialista. Mas, no plano do conhecimento, é a.


consciência que vai se dar como objeto à fenomenologia, enquanto
que o Ego definirá o campo da psicologia empírica, que; purificada
pela propedêutica fenomenológica, poderá exercitar-se, de forma mais
sadia, nos métodos da observação externa e da introspecção. É uma
psicologia um tanto convencional, então, que, como ciência, emerge
da reflexão de Sartre, enquanto que a originalidade de seu projeto con-
centra-se toda do lado da fenomenologia. O aspecto teoricamente po-
sitivo de sua psicologia nova- justamente, sua concepção do imaginá-
rio - já desliza do plano empírico para o eidético, onde o método, por
mais objetivo que se pretenda, vai sempre visar mais a uma intuição
das essências do que a uma apreensão objetiva e concreta dos fatos. É
nesse ponto, portanto, que se desgarra do encaminhamento lacania-
no, pouco afeito a prolegômenos filosóficos - a não ser, é claro, como
expediente retórico - e onde os conceitos emprestados à filosofia são
imediatamente aplicados a uma investigação que se quer científica no
mais alto grau. Por conseguinte, não é pa,ra se espantar que o dilema
insolúvel da objetividade do subjetivo faça sentir aí toda a força do
seu impacto. De qualquer modo, Lacan não fica indiferente às elabo-
rações sartreanas sobre o imaginário, que comungam de muitos de seus
pontos de vista, .observadas as ressalvas mencionadas acima. O que ele
faz é tentar transportá-las, com a mesma impetuosidade de sempre,
para o domínio da psicologia empírica, onde promove uma simbiose
com certas proposições psicanalíticas, que se prestam, por sua posição
muito singular no panorama dos dilemas psicológicos, a equacionar
estas antinomias. De resto, isso é mais ou menos o que. ele faz com as
teses kojevianas, mergulhadas ainda mais decididamente no mundo
dos fatos antropológicos. Mas as observações que se seguem talvez sir-
vam para precisar o tom e o lugar da inspiração sarcreana de Lacan,
que vai se ater, compreensivelmente, à face crítica de sua teoria do ima-
ginário. As teses afirmativas que compõem o corpo da teoria lacaniana
vão sempre dever muito mais à psicologia e à biologia do comporta-
mento - além de, evidentemente, à psicanálise- do que à filosofia.
No entanto, o projeto geral dos desenvolvimentos sartreanos
sobre o imaginário revela logo o seu valor para os termos da investiga-
302 RICHARD THEISEN SIMANKE

ção lacaniana: ele supõe, de fato, uma revisão integral do campo da


psicologia, assim como de suas fontes filos6ficas. Para Sartre, todas as
concepções sobre a imagem cometem invariavelmente o mesmo erro.
Ora, este erro não é nada mais, nada menos, do que o velho equívoco
realista, que Lacan, por outros motivos, denunciou à exaustão: ao ser
substancializada - isto é, tomada como uma "coisa", seja a coisa men-
tal cartesiana ou a coisa perceptiva do empirismo -, a imagem vê-se
condenada a uma eterna desvalorização. Ela será sempre uma "coisà'
pobre, fraca, com menos realidade do que a coisa material da qual ela
provém (segundo o empirismo) ou do que o entendimento puro (se-
gundo o cartesianismo), manifestação ideal da substância pensante. O
que a análise fenomenológica revela, ao contrário, é que a imagem é a
realidade essencial do psiquismo; é que este, considerado em si mes-
mo, sem intenções de reduzi-lo a outra instância, compõe-se, antes de
tudo da apresentação de imagens à consciência. A crítica que Sartre ela-
bora das diversas psicologias do século XIX, que poderia ser subscrita
na íntegra por Lacan, dedica-se, pois, à remeter as posições das diversas
escolas, alternadamente, ao modelo humeano e ao modelo cartesiano,
as duas fontes distintas que levam ao mesmo desmerecimento da ima-
gem, como fenômeno de conhecimento e como realidade psíquica. Estes
dois termos já nos aproximam dos objetivos teóricos de Lacan, que,
partindo da reabilitação da paranóia como fenômeno de conhecimen-
to, foi levado, como vimos, a avaliar muito favoravelmente o conceito
freudiano de realidade psíquica, que só padecia do defeito de não ter
sido assumido plenamente em suas conseqüências. Mas, sem entrar
nos detalhes de mais essa crítica da psicologia, o importante é que,
constatada a necessidade de ultrapassar esta "metafísica ingênua da
imagem'' professada pela totalidade das escolas psicológicas - lem-
bremos a ''mauvaise métaphysique" acusada por Lacan nas páginas da
Tese -, afirma-se, para Sartre, o imperativo de um "retorno à expe-
riêncià'. Esse mote é, compreensivelmente, uma palavra de ordem uni-
versal dos reformadores da psicologia, aí incluídos Sartre, Politzer,
Lacan e os demais. A diferença é que, com Sartre, o método que se
propõe para este retorno é o método fenomenológico, que conduzirá
a uma psicologia eidética, antes que a uma psicologia empírica ou con-
IMAGENS E COMPLEXOS 303

ereta. É como se, para superar o realismo desabonador da imagem,


fosse necessário buscar uma experiência que ultrapassasse o domínio
dos fatos, domínio onde o imaginário só pode ocupar aquela posição
subalterna. Sabemos que esta não foi a solução de Lacan, que empres-
tou da etologia um conceito de imaginário capaz de ser aplicado até
ao mundo animal e, por aí, de tornar-se familiarizado com os requisi-
tos da objetividade científica (podemos citar o Umweltde von Uexküll,
os chimpanzés de Kõhler, os gafanhotos de Chauvin e, até, para uma
evolução mais tardia do conceito de imaginário, o "mimetismo" e a
"psicastenia lendárià' de Roger Caillois). Mesmo assim, o anti-realismo
da concepção sartreana (a imagem tem que ser pensada fenomenologi-
camente, em seu plano próprio de realidade), seu anti-dementarismo
(a psicologia eidética afirma, acima de tudo, a unidade e a irredutibili-
dade do subjetivo), a introdução do sentido como um componente
indispensável do psiquismo, esta e outras hipóteses não podem ter dei-
xado de impressionar positivamente nosso candidato a reformador da
psicologia para fins médicos e, depois, psicanalíticos. Em que pese a
divergência que os dois projetos experimentam daí por diante - a
Sartre, por exemplo, vai sempre repugnar o determinismo que Lacan
não se cansa de defender -, essas afinidades genéricas trazem como
resultado a recorrência de uma série de temas que concernem muito
de perto ao coração das investidas lacanianas. São estas recorrências,
então, que precisam ainda ser descritas, para completar o quadro des-
ta superposição - parcial, é verdade - das concepções de Sartre e de
Lacan a respeito do imaginário.
Porém, estas mesmas diferenças de mira acarretarão um uso di~
verso destes temas recorrentes. O primeiro deles - e que vai direto ao
âmago do problema - é o papel da alteridade na formação do eu. Tan-
to Sartre quanto 'Lacan valem-se do aforismo rimbaudiano 'Je est un
autre" para ilustrar esse ponto, mas Sartre certamente não quer dizer
com isso que o eu seja uma incorporação passiva e alienante da ima-
gem do outro, como quer Lacan. Isso porque, bem ao contrário de
Sartre, Lacan está preocupado em fornecer uma explicação dos fatos
psíquicos que mereça, em algum sentido, o sobrenome de "científicà'.
E estará, ainda por muito tempo, embora sua idéia de ciência não con-
304 RICHARD THE!SEN SIMANKE

tinue a ser sempre a mesma. Por isso, a alteridade nunca deixará de


ser, para ele, uma instância de determinação da personalidade e do
sujeito, quer se trate do "outro social" das relações familiares concre-
tas, do outro imaginário que emerge do espelho e propicia a subjeti-
vação dessas relações ou, ainda, do grande Outro da linguagem, que,
quando Lacan aderir ao estrururalismo, dissolverá a alteridade - e, com
ela, a explicação do psiquismo - na combinatória impessoal dos ele-
mentos significantes. Tudo isso somado, não se pode dizer, no entan-
to, que Lacan ignore as concepções sartreanas, o que se manifesta num
punhado de referências explícitas que ocorrem no artigo de 1949 so-
bre o e~tágio do espelho, justamente aquele em que a teoria lacaniana
do imaginário recebe sua formulação mais acabada77 . Uma parte das
afinidades que se possam revelar aí deve-se ao compartilhamento de
alguns temas hegelianos por ambos os autores, ainda que, mais uma
vez, as divergências, igualmente notáveis, conduzam a um aproveita-
mento distinto desses temas em cada caso78 •
Ambos, por exemplo, fazem uso do tema da "consciência infe-
liz", e de um modo bastante parecido. Aquilo que, em Hegel, era uma
figura intermediária numa lógica da constiruição do conceito da Selbst-
bewusstsein, com Kojeve virou história e, com Sartre e Lacan, psicolo-
gia, levando-se em conta, certamente, que os dois últimos têm idéias

77 Lacan se refere aí à "filosofia contemporânea do ser e do nadà' e ao equívoco da


"psicanálise existencial" (título de uma das seções do livro de Sartre) em presumir
uma "auto-suficiência da consciêncià' ("Le stade du miroir comme formateur de
la fonction du Je" (doravante SM], p. 95-61). Segundo Betty Cannon (Sartre et la
psychanalyse, p. 234), as influências da teoria do imaginário de Lacan se repartem
entre Sartre e Hegel: "Quanto a Lacan, é quase certo que sua visão do desenvolvi-
mento do eu foi influenciada em parte por Hegel e por Sartre". Ou ainda: "Lacan
conhecia os trabalhos de Sartre, e é possível que sua visão do estágio do espelho
tenha sido influenciada pelo conceito sartreano do olhar".
78 São comentados, na seqüência, apenas alguns t6picos que se prestam à compara-
ção entre as idéias de Lacan e Sartre. A relação de Lacan com o Hegel lido sob o
prisma kojeviano e seu emprego na construção de uma teoria do imaginário são
abordados no próximo capítulo.
IMAGENS E COMPLEXOS 305

bem diferentes sobre o que seja psicologia. Sequer a idéia de que Lacan
pudesse discordar, dadas suas preferências psicanalíticas, de que todo
esse processo se restrinja ao campo da consciência pode ·ser sustenta-
da: já vimos como ele, decididamente, não considerava, nesse perío-
do, que o inconsciente fosse um conceito indispensável à psicanálise.
Sua adesão final ao texto freudiano acabou por levar, bem mais tarde,
à recusa da idéia de que a dialética da consciência conduza ao desenla-
ce alvissareiro encarnado na figura do Sujeito Absoluto; mas, mesmo
depois que o estruturalismo lhe forneceu um conceito aceitável de in-
consciente, Lacan continuou, por bastante tempo, a descrever o pro-
cesso analítico em termos de uma superação do desconhecimento res-
ponsável pela opacidade das relações intersubjetivas que presidem à
constituição do sujeito. Agora, como a infelicidade da consciência de-
corre de seu dilaceramento trágico, isto é, do fato de que as responsa-
bilidades subjetivas encontram-se repartidas e alienadas na figura do
outro, é de novo o problema da alteridade que se coloca aqui ou, mais
precísamente, o problema do reconhecimento do outro como sujeito.
Nesse ponto, a teoria lacaniana do.imaginário está muito mais
próxima de Sartre do que permitiriam supor as críticas acerbas que
endereça depois a esse posicionamento (Lacan vai dizer, por exemplo,
que é um modo perverso de relação com o outro que resulta da con-
cepção de Sartre). Para Sartre, a existência do outro como consciência
se revela ao sujeito na experiência do olhar79 : saber-se olhado pelo ou-
tro revela a um sujeito particular o interesse concreto desse outro pe-
las circunstâncias da sua subjetividade e, assim, converte-se no sinal
da reciprocidade necessária ao jogo das consciências. Se tomamos dis:..
tância, quanto a Lacan, da experiência empírica e contingente da cap-
tação especular, é possível perceber que é o olhar do outro o verdadei-
ro espelho onde se decide a gênese da subjetividade; é porque o espelho
mostra minl;ia imagem do modo como ela é vista pelo outro que o
reflexo pode erigir-se em um primeiro esboço do eu, e esse pequeno
experimento pode surgir como paradigma fundamental da constitui-

79 Cf. Cannon, B. Sartre et la psychanalyse, p. 238.


306 RICHARD THEISEN SJMANKE

ção do sujeito pelo imaginário. Af., Lacan dá um passo que é, aparen-


temente, recusado por Sartre, que não atribui tal alcance à experiência
do olhar: este seria revelação da subjetividade alheia, mas não consti-
tuição da subjetividade própria. Contudo, para Lacan, o reconheci-
mento do outro será sempre um fator de constituição e, nesse sentido,
ele talvez seja um kojeviano mais aplicado que Sartre. Quando a ênfa-
se maior vier a recair sobre o registro do simbólico, ele vai endossar
sem mais conflitos a posição cartesiana de que é a linguagem o único
fator de superação do solipsismo e de manifestação de uma subjetivi-
dade pensante no outro. Mesmo assim, enquanto Lacan considerar o
estágio do espelho como o ingrediente principal no receituário de uma
psicologia do desenvolvimento, ele não estranhará completamente o
caráter mais ou menos empírico que reveste a experiência do olhar e a
do espelho, ainda que tenda a temperá-lo com vistas à obtenção de
um certo sabor transcendental ou, como quer o vocabulário que en-
trará em voga em seguida, estrutural.
Tudo isso faz com que o mote 'Je est un Autre"venha a servir,
em Lacan, para expressar uma alienação muito mais fundamental do
que Sartre jamais admitiria. Ou seja: o eu é um outro mesmo; a cons-
ciência não tem, em si, nenhum potencial positivo para organizar o
caos orgânico originário e dar forma a qualquer coisa semelhante a
um sujeito. Daí que o ponto de partida do processo de constituição
seja o corpo - qualquer outro marco zero para uma teoria do sujeito
teria, para Lacan, um perturbador aroma dualista -, ou melhor, uma
fantasia do corpo fragmentado que expressa no plano imaginário a
incoordenação e a prematuração iniciais. É claro que Lacan não tarda
a perceber que essa fantasia só pode se constituir retrospectivamente,
do contrário haveria uma espécie de imaginário espontâneo, prévio à
operação de espelhamento80, o que penderia perigosamente para uma

80 Essa, aliás, a alternativa que Melanie Klein assume com muita naturalidade - para
ela, a fantasia em geral emerge espontaneamente da frustração pulsional resultan-
te da não satisfação imediata das necessidades or~nicas -, o que não deixa de ser
mais um índice das origens kleinianas da fantasia do corpo fragmentado.
IMAGENS E COMPLEXOS 307

origem constitucional e hereditária, como no problemático conceito


freudiano das Urphantasien. Futuramente, será a operação significan-
te primitiva sobre o corpo que tentará dar conta desse esfacelamento
inicial do sujeito, que se expressa na imagem do corps morcelé.
· Assim, embora Lacan e Sartre talvez concordassem nas linhas
gerai,s de sua concepção do eu - como "objeto de desconhecimento e
não qe compreensão", como "falsa representação de si", etc. -, o peso
maiot. que Lacan coloca na idéia do eu como alienação fundamental,
solidá.t_ia a sua orientação determinista, conduz a uma concepção tam-
bém diversa com respeito ao tema da intersubjetividade. Não há dúvi-
da de que, nesse ponto, ambos bebem nas fontes kojevianas. É, com
efeito, por causa do tema da "luta das consciências", além da descri-
ção da experiência do olhar, que Lacan recomenda aos analistas a lei-
tura de O ser e o nada 81 • Embora a intersubjetividade seja a palavra de
ordem dos primeiros tempos da psicanálise lacaniana, o problema do
solipsismo é aí muito mais pungente, devido ao caráter irremediável
da alienação que cerca a formação do eu, Essa alienação, aliás, sugere
que o eu "normal" lacaniano parece-se muito com o eu psicótico que
o existencialismo descreve, o que não deixa de ser mais uma manifes-
tação do caráter paradigmático que a psicose tem para sua teoria do
sujeito e para sua psicanálise em geral82 • É em torno de uma dialética
dos objetos - quem é amado por quem - que se desenvolve a concep-
ção lacaniana do imaginário. Para resumir essa diferença, pode-se di-
zer que o eu lacaniano é e será, inapelavelmente, um objeto, não che-
gando jamais a constituir-se plenamente em sujeito. E talvez essa seja a
principal limitação interna de sua teoria do imaginário: ela não chega·
a cumprir aquilo a que se propõe, isto é, dar conta do problema da

81 Isso se dá no primeiro ano do Seminário. Ver, a esse respeito, Cannon, B. Sartre


et la psychanalyse, p. 24 5.
82 É isso que Betty Cannon aponta como um demérito de Lacan em comparação
com Sartre (Sartre et la psychanalyse, p. 245). No seu caso, isso é perfeitamente
coerente, já que o interesse da autora em Sartre deve-se a propósitos declarada-
mente terapêuticos.
308 RICHARD THEISEN SIMANKE

constituição do sujeito, cuja solução é exigida pelo programa de pes-


quisa que se elaborou desde a Tese. O simples fato de que a psicanáli-
se mesma, tanto em sua dimensão clínica quanto teórica - e Lacan
não se cansará, depois, de afirmar o quanto elas coincidem -, não faz
nenhum sentido sem que haja ao menos uma possibilidade de trans-
formação da estrutura subjetiva parece impulsionar a teoria a um "mais
além" do imaginário que responda por essa possibilidade, ainda que
Lacan sempre procure, então, tomar todas as providências para livrar
a psicanálise de uma visada excessivamente terapêutica, no sentido
médico, ou das promessas de felicidade, no plano ético.
Enfim, mais do que um referencial filosófico no sentido forte
da palavra, o que a superposição ou a inspiração parcial da teoria
lacaniana do imaginário nas filosofias sartreana e espinozista revela é a
continuidade, tantas vezes despercebida, entre essa primeira incursão
mais decidida de Lacan no campo psicanalítico - incursão que, de al-
guma forma, terá efeitos duradouros sobre rodo o seu empreendimento
posterior - e os pressupostos firmados na sua estréia teórica em 1932.
Com efeito, se o desenvolvimento das idéias da Tese é colocado, desde
o início, sob o emblema da Ética de Espinosa, é numa releitura feno-
menológica da psiquiatria e da psicologia que Lacan deposita as espe-
ranças de relegar à história o reducionismo psiquiátrico. Os parentescos
que o paradigma especular estabelece em sua um tanto longa gestação
(se consideramos o período 1936-1949) revelam bem a permanência
dos temas, com destaque para o anti-realismo, que compareceram à
sua primeira formulação, ainda num contexto bastante afastado da
psicanálise freudiana, que nosso autor se propôs, entrementes, a revi-
sar. O exame, com cerro detalhe, dessa evolução deve permitir, pois, a
confirmação dessa suposição, além do objetivo mais imediato de
explicitar a arquitetura dessa teoria.
IMAGENS E COMPLEXOS 309

IV,3. UMA ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO

A exposição que se pode considerar definitiva das concepções


lacanianas sobre o estágio do espelho é, com certeza, o artigo de 1949,
"Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je". Este tex-
to, contudo, é a sedimentação de uma elaboração bastante longa - o
próprio Lacan lembra, na abertura do artigo, que faz treze anos que
ele introduziu o conceito - que atravessa uma fase na qual ocorreram
modificações significativas no pensamento lacaniano. De fato, essa for-
mulação mais tardia da teoria já apresenta traços bastante nítidos das
guinadas que estão por vir, principalmente a adoção mais decidida de
um ponto de vista estrutural, em contraste com o tom "psicológico"
que caracterizou as abordagens anteriores. Tendo isso em vista, a me-
lhor maneira de fazer jus às nuanças e aos meandros da elaboração da
teor.ia talvez seja adotar o texto de 1949 como fio condutor de sua
exposição, intercalando os desenvolviII?-entos anteriores, freqüente-
mente mais extensos e detalhados, nos pontos em que estes servirem
para elucidar alguma questão, assinalando, de passagem, as diferenças
de perspectiva, quando estas forem notáveis ou importantes para a
compreensão do movimento da teoria.
Apesar da virada estruturalista que já se anuncia, Lacan ainda
situa sua teoria no contexto da psicologia comparada. Na verdade, isso
quase não poderia ser evitado: toda a descrição do estágio do espelho
emerge de experimentos etológicos e psicológicos levados a cabo por
nomes como Wallon e Kõhler83 e, de qualquer modo, .Lacan já come-
ça a insinuar que a diferença entre a condição humana e a animal é

83 Além desses, pode-se citar, entre os inspiradores do estágio do espelho do lado da


psicologia comparada, Baldwin e Charlotte Bühler. Esta última é a responsável
pelos estudos sobre o transitivismo, fenômeno em que se manifesta a fluidez ini-
cial das fronteiras entre o eu e o outro, que Lacan utilizará largamente em apoio a
seus pontos de vista. Baldwin, bastante conhecido na França na época, é autor de
diversos estudos sobre os mecanismos e a função da imitação na primeira infân-
cia. Kohler foi o principal investigador dos efeitos da imagem especular em chim-
310 RICHARD THElSEN S!MANKE

que, no segundo caso, é só uma determinação imaginária que responde


pela regulação da conduta, enquanto que, no homem, um condicio-
namento pelo simbólico deve-se acrescentar, determinando, por ou-
tro lado, que o próprio modo imaginário funcione aí de uma maneira
específica. É curioso perceber que esse ponto de vista estende-se a tex-
tos cão tardios quanto, por exemplo, "Subversion du sujet et dialeti-
que du désir dans le inconscient freudien" (1960), e pode ser conside-
rado um sinal de que Lacan nunca se sentiu completamente à vontade
com as inclinações marcadamente intelectualistas de suas teorizações,
preservando a referência ecológica como uma espécie de garantia
epistêmica contra os riscos de uma incursão sem volta em territórios
metafísicos, como, aliás, já acontecia na Tese.
No caso do filhote humano, que padece de um certo atraso no
amadurecimento da inteligência instrumental com relação aos símios
mais evoluídos, a reação à descoberta da imagem especular difere sig-
nificativamente daqueles em dois aspectos: a permanência do interesse
pela imagem, mesmo após descobrir que se trata apenas de um reflexo,
e o caráter jubilatório de sua descoberta, sobre o qual Lacan sempre
vai chamar muito a atenção. É para dar conta desses dois traços distin-
tivos da experiência infantil humana do espelho que a teoria se desen-
volve em direção aos remas que lhe caberão explicar, notadamente a
formação do eu e o papel do imaginário na dinâmica subjetiva. Tro-
cando em miúdos, isso quer dizer que, ao contrário do filhote animal,
a experiência do espelho tem, no homem, um papel constitutivo ou,
melhor dizendo, ela serve de modelo e explicita as condições funda-
mentais sob as quais dá-se a gênese do sujeito humano. Eis-nos, por-

panzés, em seus estudos sobre os primatas superiores. Quanto a Wallon, o princi-


pal inspirador do estágio do espelho lacaniano, ele descreve as reações infantis
frente ao espelho principalmente num capítulo de seu livro Les origines du caractere
chez l'enfont ( 19.34) intitulado "Le corps propre ec son image exteroceptive". Para
maiores referências sobre este ponto, ver Lacan and language, de Muller & Ri-
chardson, p. 37 e 61. Sobre Henri Wallon, especificamente, ver, ainda, Borch-
Jacobsen, M. Lacan, the absolutt master, p. 248-9, notas 7 e 11.
IMAGENS E COMPLEXOS 311

tanto, reconduzidos ao renitente problema da constituição, o qual, por


sinal, Lacan vai caracterizar de um modo que descende diretamente
de suas teses psiquiátricas sobre a paranóia, que sobreviveram mais ou
menos incólumes ao longo de todo esse período, mesmo recebendo
uma nova roupagem de vez em quando. O estilo da reação do sujeito
infantil diante do espelho será, então, revelador de "uma estrutura onto-
lógica do mundo humano, que se insere em nossas reflexões sobre o
conhecimento paranóico »84.
O que quer dizer isso? Simplesmente que o homem, ao atribuir
realidade às imagens que constituem seu mundo e àquelas nas quais
ele reconhece seu eu, reedita um fenômeno muito semelhante à cren-
ça delirante nas formações alucinatórias do psicótico. Daí a tese, algo
pascaliana, da imanência da loucura à realidade humana: da mesma
forma que a conclusão do trabalho de 1932 exigia uma revisão da teo-
ria do narcisismo que permitisse fundamentar um conceito não-defi-
citár~o do delírio e da paranóia em geral, o resultado dessa revisão - a
teoria do estágio do espelho em sua forma final - termina de introdu-
zir a condição paranóica no próprio coração da realidade humana ou,
como Lacan aprecia expressar-se com o vocabulário da ontologia, no
"ser do homem enquanto tal". Só falta explicitar o mecanismo do "vir-
a-ser" de um sujeito dessa natureza. Esse mecanismo é a identificação,
que recebe aqui a coisa mais parecida com uma definição que Lacan é
capaz de fornecer: "Basta compreender o estágio do espelho como uma
identificação, no sentido pleno que a análise dá a esse termo: a saber, a
transformação produzida num sujeito quando ele assume uma imagem,_
- cuja predestinação a esse efeito de fase é suficientemente indicado
pelo uso, na teoria, do termo antigo de imago" 85.
Fica explicada, no mesmo golpe, a reação jubilatória do sujeito:
a incorporação de uma imagem de si, num momento de impotência
motora e dependência absoluta que resultam num profundo desampa-
ro existencial, tem um efeito compensatório que, embora imaginário,

84 SM, p. 90; grifos nossos.


85 SM, p. 90; grifos nossos.
312 RICHARD THEISEN S!MANKE

engendra a forma primordial do eu e lança a pedra fundamental do


sujeito. Cabe notar que, já aqui, Lacan não se furta a complementar:
"antes que ele se objetive na dialética da identificação com o outro e
que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito" 86. Se
atentamos para como "dialéticà' e "linguagem" integrarão, daqui para
a frente, a terminologia do simbólico, é possível perceber que Lacan
dá a esse registro pelo menos uma função complementar no processo
formativo do sujeito - aquilo a que ele ainda se refere de vez em quan-
do como "acabamento da personalidade" -, antes mesmo que esse re-
gistro venha a adquirir, como ocorrerá depois, uma função primordial.
Mesmo sem esse apêndice, a tese da compensação imaginária do de-
samparo inicial perpassa todas as descrições do estágio do espelho, des-
de sua primeira proposição. Recapitulemos, brevemente, duas dessas
descrições anteriores, para ilustrar dois momentos distintos da evolu-
ção dessa teoria.
A primeira descrição publicada do estágio do espelho aparece
no artigo "La famille" de 1938. Ela surge já no contexto de uma expli-
cação da agressividade: Lacan a situa no âmbito do complexo de in-
trusão, onde o ciúme dos irmãos é descrito como o "protótipo de todos
os sentimentos sociais". É também o processo de constituição do su-
jeito na relação com o outro que é trabalhado aqui. Se o complexo de
intrusão desfruta de uma posição central no esquema lacaniano, supe-
rior mesmo à do complexo de Édipo, é porque, em primeiro lugar, ele
se adapta perfeitamente ao aproveitamento da "luta das consciências"
como parâmetro para a constituição do sujeito. Por isso mesmo, a
imago do outro, a principal aquisição psíquica desse complexo, forma-
se, desde o início, sob o signo da agressividade. Como o paradigma
especular serve justamente para mostrar que o primeiro passo da for-
mação do sujeito é a identificação com o outro que resulta nessa imago,
a agressividade é pensada aí como uma condição inerente ao sujeito, e
este será o tom do tratamento mais extenso que Lacan dará depois ao
fenômeno. Ao mesmo tempo, enquanto matriz de todos os sentimen-

86 SM, p. 90; grifos nossos.


IMAGENS E COMPLEXOS 313

tos sociais, o ciúme fraterno original acarreta também um incontorná-


vel caráter agressivo que vai permear todas as relações sociais. O que
aparece embrionariamente aqui é a releicura que Lacan ·vai fazer da
pulsão de morte e do mal-estar na cultura freudianos - o segundo sur-
gindo, lembremos, como um efeito da primeira-, afastando-os da in-
suportável conotação biológica que o termo pulsão ainda lhe sugere e
encaminhando-se, nesse momento, para uma interpretação mais
psicossocial. Esses primeiros ensaios de redefinição de conceitos
freudianos tornam pelo menos mais compreensível a maneira como
Lacan buscará reduzir, mais tarde, a pulsão de morte à lógica do signi-
ficante, depois que o estruturalismo tiver-lhe fornecido as ferramen-
tas para reduzir, de modo igualmente drástico, a cultura à linguagem.
De resto, a apresentação do estágio do espelho em 1938 já mos-
tra as características básicas que reaparecerão sistematicamente nas ex-
posições posteriores: a reação jubilatória à descoberta da imagem do
corp9 próprio no espelho, a sua função compensatória da prematu-
ração, os efeitos imaginários que daí decprrem, a natureza essencial-
mente nardsica e alienante do eu. Toda a descrição é, no entanto, mais
empírica e psicológica, onde o processo é tratado como uma fase con-
creta do desenvolvimento, muito mais do que como um modelo para
pensar-se a formação do eu. Além disso, Lacan, com certeza, não dis-
tingue ainda tão marcadamente, como fará mais tarde, o "eu" do "su-
jeito", de modo que a constituição do primeiro parece bastar para dar
conta do surgimento do segundo, preservando-se, é claro, a distinção
entre o je e o moi para assinalar o aspecto subjetivo e objetivo do eu,
respectivamente. Nota-se, ainda, uma importância muito maior atrf-
buída aos dados da biologia do comportamento. É, com efeito, no
contexto de uma espécie de etologia humana que Lacan espera resol-
ver, de forma concreta e científica, o problema da constituição do su-
jeito. Mas, como é a "estrutura arcaica do mundo humano" que se faz
aqui objeto de análise, é preciso, dentro deste contexto, responder pela
especificidade do homem, pois a superposição com a informação
ecológica estende ao mundo animal os poderes explicativos do modo
imaginário, ponto de vista ao qual, de uma forma ou outra, Lacan
nunca renunciará. Curiosamente, à falta de melhor idéia, é a própria
314 RICHARD THEISEN SiMANKE

condição biológica da espécie humana que, sozinha, responde pela


ruptura com o mundo animal. Com efeito, referindo-se às condições
libidinais que cercam a aparição do fenômeno especular, Lacan afir-
ma: "Estas condições não são senão as tensões psíquicas oriundas dos
meses de prematuração e que parecem traduzir uma dupla ruptura vi-
tal: ruptura dessa imediata adaptação ao meio que define o mundo
animal por sua conaturalidade; ruptura dessa unidade de funciona-
mento do vivente que submete, no animal, a percepção à pulsão" 87 •
É, portanto, essa fetalização do homem, para usar a expressão de Bolk,
que estabelece a ruptura entre o homem e o animal, resultando em
que o alcance da determinação imaginária que eles compartilham seja
diferente em cada caso. No animal, essa determinação - os mecanis-
mos de déclenchement do comportamento sexual ou agressivo, por
exemplo - está atrelada ao instinto e, por isso, fixada genética e cons-
titucionalmente. Para o homem, ao contrário, a insuficiência vital ori-
ginária faz com que o imaginário ocupe o lugar deixado vago pelo ins-
tinto e seja capaz de veicular, desta posição central que ocupa, uma
série de determinantes sociais da conduta e do psiquismo em geral,
que é, como sabemos, o objetivo declarado de Lacan. Note-se, de pas-
sagem, que não há nenhuma distinção entre pulsão e instinto nesse
momento: Lacan aplica o termo "pulsão" ao animal, assim como fala-
rá, com respeito a Freud, em um "instinto de morte". Para ele, tanto
um termo como o outro representam uma submissão da explicação
psicológica à biológica. No homem, segundo seu ponto de vista, o
determinismo biológico brilha apenas pela ausência, e é esta bagagem
instintiva extremamente incompleta do homem que permite aos de-
terminantes sociais acederem ao seu lugar de direito na psicologia.
Num outro momento; bem mais próximo cronologicamente de
"Le stade du miroir... ", Lacan deixa muito claro como estes determi-
nantes sociais se encaixam na concepção relativista que ele pretende
para a psicologia, tal como fora exposto no texto sobre o princípio de
realidade. Trata-se do artigo 'Tagressivité en psychanalise", que data

87 LF, p. 40-10; grifos nossos.


IMAGENS E COMPLEXOS 315

de 1948. Este é o trabalho em que Lacan trabalha mais detalhadamen-


te a aplicação de sua teoria do imaginário e da identificação especular
à explicação das tendências agressivas, um problema que o ocupa des-
de suas investigações iniciais sobre o crime paranóico. A questão da
agressividade será abordada com maior detalhe adiante. Cabe aqui
apenas comentar a descrição do estágio do espelho presente nesse tex-
to, a fim de medir o grau de evolução sobrevindo desde 1938.
É em torno da quarta das cinco teses que ele defende nesse arti-
go que a noção de estágio do espelho é retomada88 • A continuidade
da teoria do imaginário que se elabora com suas preocupações psiquiá-
tricas iniciais se evidencia no modo como Lacan recapitula rapidamen-
te os passos de seu itinerário, indo das tendências agressivas que se
manifestam nessa "série de estados significativos da personalidade, que
são as psicoses paranóides e paranóicas" 89 até as identificações objeti-
vantes que explicam, em última instância, a estagnação de certas es-
truturas do eu psicótico, mas que também, por serem constitutivas do
próprio eu, fazem com que esta "estrutura mais geral do conhecimen-
to humano"9º, que concede fixidez e atribui realidade às Gestalten
perceptivas dadas na experiência imediata, mereça, como um todo, a
designação de conhecimento paranóico, equivalendo assim às formas
psicóticas de cognição e reafirma~do a imanência da loucura à condi-
ção humana. Essa cadeia formada pela agressão e o crime paranóico91 ,

88 Tese que contém a idéia central para a qual converge todo o texto: "A agressividade
é a tendência correlativa de um modo de identificação que nós chamamos de
narcísica e que determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de
entidades característico de seu mundo" ("I.:agressivité en psychanalyse" (doravante
AP], p. 110; grifos nossos).
89 AP, p. 110.
90 AP, P· 111.
91 A dívida de Lacan para com as premissas iniciais de sua pesquisa se manifesta
muito bem no texto "Introduction chéorique aux fonctions de la psychanalise en
criminologie", de 1950. Aí, é mais uma vez retomado o estágio do espelho para
dar conta dessa forma específica de manifestação da agressividade num contexto
316 RICHARD THEISEN SIMANKE

a paranóia como fenômeno de conhecimento e o conhecimento em si


como paranóia, aponta diretamente para a teoria do estágio do espe-
lho, por intermédio do tema das "identificações objetivantes" que é
chamado a explicar cada um de seus elos: a identificação especular,
que precipita o eu do sujeito como um objeto psíquico, é a primeira
matriz desse fenômeno.
A descrição objetiva da fase do espelho não difere essencialmen-
te de nenhuma das outras. Apenas uma mudança de tom bastante su-
til anuncia a guinada rumo a um ponto de vista estrutural, que se con-
cretizará no ano seguinte, já com o patrocínio de Lévi-Strauss92• Pois,
mesmo ocupando-se com um estágio do desenvolvimento demarcado
de maneira bastante precisa -r- dos seis aos dezoito meses, conforme
Bühler, Baldwin e outros autores que gosta de citar-, Lacan já se refe-
re às "sincronias da captação especular"93 . Mesmo que esta expressão
não tenha o mesmo sentido que vai adquirir depois no dicionário es-
truturalisca, ela já alude a algo que é da ordem de uma rede de relações,
e não mais simplesmente a um momento ou episódio específico da
história individual; no caso, Lacan está descrevendo o transitivismo in-
fantil, descrito por Bühler, que ilustra perfeitamente esta confusão (e
conseqüente alienação) entre o sujeito e o outro, promovida pela rela-
ção especular. Além disso, Lacan insiste muito, aqui, no caráter pri-
mordial da experiência. Isso, por um lado, visa ressaltar o seu caráter
formativo, objetivo presente desde sua primeira formulação; mas, por
outro, dá uma ênfase cada vez maior à idéia de que é uma matriz e
não uma fase do desenvolvimento que se elabora nesse contexto, a
qual, justamente por atravessar toda a história do sujeito daí por dhm-

social que é o crime. Essa peculiaridade faz com que o viés antropológico seja muito
mais nítido nesse artigo, aspecto em que ele complementa o exame do problema da
agressividade aqui efetuado.
92 Lacan já cita em Le stade du miroir. .. o artigo de Lévi•Strauss sobre ''l.:éfficacité
symbolique" (SM, p. 91), que inspirará também o seu "Le mythe individuei du
nevrosé", o primeiro trabalho francamente estruturalisca de Lacan.
93 AP, p 112; grifos nossos.
IMAGENS E COMPLEXOS 317

te, permite uma consideração sincrônica de sua vida psíquica, afastan-


do a idéia de que a elaborada teoria lacaniana do imaginário possa de-
generar numa mera psicologia do desenvolvimento, coisa que ele re-
cusará com veemência mais tarde. Assim, vai-se falar, por exemplo,
em "uma primeira captação pela imagem, onde se delineia o primeiro
momento de uma dialética das identificações" 94 , onde "primeiro" quer
dizer originário, e não apenas cronologicamente anterior. Da mesma
forma, "o estdgio do espelho tem o interesse de manifestar o dinamismo
afetivo pelo qual o sujeito se identifica primordialmente à GestaltvisuaI
de seu próprio corpo"95. O próprio fato irredimível da prematuração
traz como conseqüência que esta captação imaginária não possa ser
um momento evolutivo a ser superado, mas tenha que ter uma per-
manência enquanto estrutura. De resto, a prevalência concedida,
doravante, ao ponto de vista estrutural se confirma na conclusão des-
sa passagem, que retorna à questão da agressividade: "Há aí uma espé-
cie de entrecruzamento estrutural onde nós devemos acomodar nosso
pensamento para compreender a naturez~ da agressividade no homem
e
e sua relação com o formalismo de seu eu de seus objetos"96 . Ou seja,
eu e objetos adquirem, daí para adiante, uma forma que responde pela
"estrutura específica da realidade humana'', como Lacan repete cons-
tantemente. Já fica bem claro aqui como a condição do sujeito imerso
no modo imaginário reflete uma estrutura ternária, onde a participa-
ção kojeviana permite defini-la como a tríade formada pelo eu, pelo
outro e pelo objeto, em que o sujeito deseja o objeto desejado pelo
outro, toma o próprio desejo do outro como objeto do seu desejo, e
assim por diante. Esta percepção da estrutura ternária do imaginário
- e não simplesmente dual, como pareceria sugerir o modelo especu-
lar - levará Lacan a propor uma estrutura quaterndria para o simbóli-
co, quando chegar a hora deste ocupar o primeiro plano, o que ocor-
re, como veremos, já em "Le mythe individuei du nevrosé", dando

94 AP, p. 112; grifos nossos.


95 AP, p. 113; grifos nossos.
96 AP, p. 113; grifos nossos.
318 RICHARD THEISEN SIMANKE

origem, depois, ao famoso esquema em forma de Z, que pontuará por


muito tempo as intervenções lacanianas.
Retornando a "Le stade du miro ir... ", a abordagem "estrutural"
parece definitivamente hegemônica: "De resto, essa forma deveria ser
designada, antes, como o eu ideal..."97 • Impressa sobre o desenvolvi-
mento, essa forma governará a seqüência de "identificações secundá-
rias" que, por sua vez, exercem uma função de "normalização libi-
dinal". Trocando em miúdos, Lacan subsume toda a escala evolutiva
- que, em Freud, era tributária das vicissitudes libidinais e de suas me-
tamorfoses através das diversas "fases" - a uma dinâmica de identifi-
cações que sedimenta, em diversas camadas, a instância do eu (moi), a
partir daí despojada de qualquer função causal ou determinante na
estrutura subjetiva e colocada inteira do lado dos efeitos do modo ima-
ginário, onde acabará, por um desdobramento mais ou menos natu-
ral, identificando-se ao sintoma. O curioso é que Lacan, ao afirmar
que o eu se constitui fundamentalmente como ficção, acrescenta que
isso se dá "desde antes de sua determinação social"98 . Estranho, para
alguém que há dezessete anos deposita aí suas esperanças de uma ciên-
cia objetiva do psíquico; mas compreensível, quando se percebe que a
guinada estrutural na consideração do imaginário individual não é
nada mais do que a conseqüência de uma mesma tendência que se
manifesta na consideração da sociedade e da cultura. Quando retira o
privilégio absoluto de que desfrutava a determinação social do sujeito,
Lacan tem em mente a interação em sociedade de indivíduos concre-
tos, preterida agora em benefício das estruturas que podem ser dedu-
zidas a partir destas relações. Embora se refira, logo a seguir a 'Téffi-
cacité symbolique" de Lévi-Strauss, é bom não esquecer que 1949 é
também o ano do aparecimento da "Introduction à l'ouvre de Marcel
Mauss", que, como teremos oportunidade de verificar, vai-se consti-
tuir no efetivo programa do lacanismo daí para a frente. De qualquer
modo, é patente que o encaminhamento lacaniano rumo ao estrutu-

97 SM, p. 90-1; grifos nossos.


98 SM, p. 91.
IMAGENS E COMPLEXOS 319

ralismo é correlativo do acompanhamento atento que ele presta à


evolução das idéias antropológicas que lhe são contemporâneas.
A conseqüência imediata desse avanço sobre a perspectiva ante-
rior é, em primeiro lugar, o esvaziamento dos personagens dos dramas
pessoais antes descritos com tanta vivacidade: Lacan terá dificuldades
crescentes em expressar-se em termos politzerianos daqui por diante,
muito embora estes ainda repercutissem com razoável clareza no arti-
go sobre a agressividade99 • Mas, além disso, os termos até então em-
pregados na caracterização do estágio do espelho vão revestir-se, cada
vez mais, de conotações "sincrônicas", inclusive aquelas "sínteses dia-
léticas" que serviam para descrever o impulso subjetivo do desenvolvi-
mento e da história individual: elas vão significar, agora, nada mais do
que apresentações sucessivas de uma mesma estrutura, até o ponto em
que a própria noção de desenvolvimento ou de história perca o senti-
do. Que isso significa também a supressão de uma referência ao sujei-
to, mortífera para a perspectiva clínica, da qual a psicanálise não pode
prescindir, é algo que Lacan demorará alguns anos de complicados
malabarismos estruturalistas para perceber.
Essas sínteses dialéticas devem, em princípio, superar a aliena-
ção originária do sujeito em seu eu, processo que precipitaria uma ou-
tra espécie de estrutura intra-subjetiva- o je-, que, sendo o represen-
tante mais legítimo do sujeito e seu operador no plano discursivo, teria
por função resolver esta "discordância com sua própria realidade", que
é, mais ou menos, a definição lacaniana de alienação. Essa realidade
discordante continua sendo a realidade corporal, cuja maturação - em
termos lacanianos: a constituição da "forma total do corpo" - o sujei-
to antecipa na Gestalt arrancada ao espelho. Nisso, aliás, se explicita a
conexão entre a teoria do estágio do espelho e os desenvolvimentos
sobre o "conhecimento paranóico": esta Gesta/t, enquanto forma per-
ceptiva, é marcada pelas características da exterioridade, onde ela fixa

99 Por exemplo, na abertura da análise da Tese IV daquele texto, comentada acima,


lê-se: "A experiência subjetiva da análise inscreve, desde logo, seus resultados na
psicologia concreta" (AP, p. 110; grifos nossos).
320 RICHARD THE!SEN S!MANKE

(congela) a turbulência dos movimentos revelada pelos sentidos pro-


prioceptivos e que são típicos da prematuração humana, mas também
da atividade vital em geral. A metáfora da estátua, que Lacan vai em-
pregar com bastante freqüência, revela assim sua dupla utilidade: ela
expressa um corpo psiquicamente inanimado, ao qual apenas o imagi-
nário pode insuflar vida, mas, inversamente, conota igualmente o con-
gelamento do fluxo do real, que permite ao sujeito nele recortar seus
objetos e reconhecer seu eu; este, aliás, um objeto entre outros, segun-
do a leitura lacaniana do conceito de narcisismo. Mesmo o je é inclu-
ído nesta expansão do conceito de alienação: ''.Assim, essa Gestalt (... )
simboliza a permanência mental do eu (je), ao mesmo tempo que
prefigura sua destinação alienante; ela é plena, ainda, de correspon-
dências que unem o eu (je) à estdtua onde o homem se projeta, como
aos fantasmas que o dominam, ao autômato, enfim, onde, em uma
relação ambígua, tende a se acabar o mundo de sua fabricação" 1ºº· O

100 SM, p. 91; grifos nossos. Um comentador bastante comedido de Lacan -Mikkel
Borch-Jacobsen - analisa toda a teoria lacaniana do imaginário do ponto de vista
desta idéia do homem-estátua. Ele con'clui pelo caráter perfeitamente assustador
da Weltanschauung lacaniana: "Assim é o mundo descrito por Lacan, tão estranha-
mente petrificado e estático, uma espécie de imenso museu povoado com 'está-
tuas' imóveis, 'imagens' de pedra e 'formas' hieráticas. O mundo que Lacan des-
creve como estritamente 'humano' é simultaneamente o mais inumano dos mundos
possíveis, o mais unheimlich, em todo caso: é o mundo dos duplos freudianos, um
mundo de sombras, onde cada imagem do eu é já um 'sinistro emissário' de sua
morte. Em concordincia com a estrutura fundamental da Vor-stellung objetivante,
o eu assume aqui sua 'pose' para a eternidade, naquilo que Lacan (jogando muito
conscientemente com o radical sta} chama deu~ í'nstantané'(inscantâneo), uma
'instance'(instância), um re/iefdestanm.''(tamanhoconstrastante), um 'estático', uma
'estátua', uma 'estase do ser' (...)" (Lacan, the abolute master, p. 59). Esta mesma vi-
são resulta da compara'?º com Sartre, por um comentador de inclinações terapêu-
ticas, como Betty Cannon, a quem fizemos referência acima. Esta é a raiz da aver-
são que Lacan vai demonstrar ao longo de toda a sua carreira por uma concepção
"terapêutica" da prática psicanalítica, que af revela sua afinidade com o propalado
anti-humanismo de Lacan (cf., por exemplo, Ferry, L. & Renaut, A. Pensamento de
68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo, p. 239).
IMAGENS E COMPLEXOS 321

conceito freudiano de projeção, pilar de sua concepção da paranóia, é,


deste modo, subrepticiamente subsumido a uma propriedade ineren-
te às formas perceptivas, que conjuga exterioridade e permanência,
tornando-se, assim, apto a responder pela constituição do mundo dos
objetos em geral e não apenas do mundo do delirante, reforçando, em
terreno mais estritamente psicanalítico, a idéia do caráter paranóico
do conhecimento humano.
A imago do corpo próprio desempenha, na construção e na lógi-
ca desse conhecimento, um papel fundador, além de fornecer o me-
lhor argumento a favor da utilidade da hipótese do estágio do espe-
lho. Já vimos como, desde a Tese, Lacan emprega continuamente como
exemplo, em vários contextos, os casos de "delírio a dois" que se ma-
nifestam em quadros paranóicos. Se, inicialmente, essas referências
serviam ao propósito de apoiar a origem familiar e social da psicose
(delírios conjuntos de mãe e filha, de irmãs gêmeas, como o caso das
Papin, etc.), elas agora ilustram, de maneira sumamente apropriada,
esta relação em espelho com a imagem do outro, matriz de todas as
identificações e forma generatriz do desenvolvimento. É, mesmo, no
texto de 1938. sobre os complexos familiares "'" escrito, entre outras
coisas, para desenvolver e fundamentar algumas suposições avançadas
na Tese - que fica explicitamente afirmado que a aquisição psíquica
que resulta do complexo de intrusão, no qual transcorre a fase do es-
pelho, é a imago do outro, para Lacan, mais fundamental e condição
de possibilidade do surgimento deste "outro" particular - a imago do
pai, que emerge do Édipo - em torno do qual Freud teria, um tanto
ingenuamente, erigido todo o seu sistema.
Porém, se essa imago deve ser capaz, não só de complementar,
mas, no limite, de substituir a determinação biológica de que o ho-
mem carece, a capacidade dos efeitos do modo imaginário para influ-
írem na articulação do próprio real deve ser demonstrada num grau
maior de universalidade, nem que seja para alicerçar a idéia de que,
no que diz respeito ao homem e à psicanálise que dele se ocupa, o real
deve ser preterido em benefício do imaginário, tanto na clínica quan-
to na teoria. Lacan está bem longe de se contentar em afirmar uma
científicidade peculiar à psicanálise; pelo contrário, seu objetivo é pro-
322 RICHARD THEISEN S!MANKE

por uma ciência tão digna quanto as outras, se não mais. Para tanto,
ele, mais uma vez, não vai encontrar melhor argumento que o recurso
aos dados da etologia. Só essa função de sustentáculo epistêmico para
uma pretendida ciência, que, discorrendo sobre um mundo de sím-
bolos e imagens, roça perigosamente as raias da literatura, explica a
persistência dessas referências à psicologia animal numa época perfei-
tamente tardia-por exemplo, a conferência intitulada ''A terceirà', já
na década de 70 - em que o pensamento lacaniano já derivou para
bem longe de seu embasamento original.
Lacan recapitula aqui seus dois exemplos prediletos de como
º
"uma Gestalt [é] capaz de efeitos formativos sobre o organismo" 1 1: a
pomba, cuja ovulação, condicionada à percepção da forma do seme-
lhante, pode ser desencadeada pelo visão de seu reflexo no espelho, e
o caso do gafanhoto, estudado por Chauvin, cujo desenvolvimento
em direção à forma gregária ou solitária de sua espécie, morfologi-
camente diferentes, depende da percepção, num certo estágio precoce
de sua existência, de um indivíduo de uma ou de outra variedade. É
claro que, a essa altura, Lacan já não advoga mais qualquer equipara-
ção entre o caso humano e o animal. O argumento que se trata de
estabelecer é o seguinte: se no animal, cujo condicionamento consti-
tucional pelos determinantes instintivos tem a abrangência necessária
para uma regulação suficiente de comportamento, efeitos morfológi-
cos (forma adulta do gafanhoto) e fisiológicos (ovulação da pomba)
podem ser desencadeados por um estímulo que é da ordem de uma
imagem e, ainda por cima, às vezes, inadequado do ponto de vista das
necessidades de sobrevivência·, imagine-se o caso do homem, onde esta
determinação inata é tão incipiente... Este é, como se vê, um argu-
mento que se pretende definitivo para uma desnaturalização da psi-
cologia e seu alinhamento definitivo com as ciências humanas: a
abordagem do homem pela via do imaginário não deve apenas com-
plementar o estudo das funções neuropsíquicas e do desenvolvimento

101 SM, p. 92.


IMAGENS E COMPLEXOS 323

em termos de maturação de aparelhos e integração de funções, mas


deve elucidá-los.
Esta guinada rumo a uma consideração específica do imaginá-
rio humano ilustra-se com a primeira aparição de uma referência que
vai gozar de um certo sucesso na carreira de Lacan: a igualmente in-
tempestiva e eclética figura de Roger Caillois. Evidentemente, Caillois
pode ser chamado de tudo, menos de um biólogo do comportamen-
to. Mas trata-se de um autor que refletiu intensivamente sobre o ima-
ginário102, principalmente na literatura, mas cuja variedade de inte-
resses permitiu-lhe produzir um texto bastante curioso, intitulado
"Mimetismo e psicastenia legendária" 103, ao qual Lacan se refere aqui,
ao que se sabe, pela primeira vez 104 • Os termos com o que texto se
abre, por si sós, deixam claro o interesse que Lacan nele possa deposi-
tar: "De qualquer lado que se abordem as coisas, o problema último
é, afinal de contas, este da distinção: distinção do real e do imagindrio,
da vigília e do sono, da ignorância e do conhecimento, etc. (... ) Dentre
essas distinções, nenhuma delas seguramente é mais demarcada que a
do organismo e do meio, não existe uma ao menos onde a experiência
sensível da separação seja mais imediata" 1º5. Em linhas gerais, o obje-
tivo desse texto é refutar a hipótese de que o mimetismo resuma-se a
um mecanismo de defesa contra predadores e propor, alternativamen-
te, a idéia, bem mais ambiciosa, de que ele reflete uma tendência do

102 Uma amostra significativa de textos de Caillois sobre a questão do imaginário· ·


pode ser encontrada numa reunião publicada pela Gallimard com o título Ap-
proches de i'imaginaíre.
103 Publicado originalmente em Le mythe et l'homme, Gallimard, 1938. Cito de uma
tradução brasileira, publicada na revista Che vuoi?- psicandlise e cultura, n 2 O.
104 "Recordemos apenas os clarões que aí fez luzir o pensamento (jovem, então, e
em franca ruptura com a limitação sociológica onde se tinha formado) de um
Roger Caillois, quando, sob o termo de psicastenia lendária, ele subsumia o mi-
metismo morfológico a uma obsessão pelo espaço, em seu efeito desrealizante"
(SM, p. 92; grifos do autor).
I05 "Mimetismo e psicastenia legendária", p. S 1; grifos nossos.
324 RICHARD THEISEN S!MANKE

organismo vivo a assimilar-se novamente ao meio e suprimir, assim, a


individualidade que o define como organismo. Essa "paixão" do vivo
pela dissolução é descrita como "uma verdadeira tentação do espaço",
fornecendo a deixa, que Lacan aproveita na continuidade, para asso-
ciar o imaginário ao espaço, enquanto que a dimensão temporal será a
forma por excelência do simbólico. Ao mesmo tempo, esse compro-
metimento da distinção organismo/meio é equiparado por Caillois a
fenômenos tão diversos quanto a magia simpática, descrita à exaustão
nos volumosos escritos de Frazer, e aos fenômenos psicopatológicos,
esclarecendo a enigmática ligação do mimetismo com a psicastenia:
"O sentimento da personalidade, enquanto sentimento da distinção do
organismo do meio, da ligação da consciência com um ponto particu-
lar do espaço, não tarda, nessas condições a tornar-se gravemente com-
prometido; entramos, então, na psicologia da psicastenia e, mais pre-
cisamente, na psicastenia legendária, se consentimos em nomear assim
o distúrbio das relações definidas acima da personalidade com o espa-
ço"1 º6. Ora, o que este texto oferece a Lacan é um elo para a transição
entre suas investidas psiquiátricas e sua teoria do imaginário, que quer
continuar se pautando, ao menos sob um certo aspecto, nos dados da
biologia. O que Caillois defende é que a morfologia pode ser determi-
nada por um certo mod~ de relação do organismo com o seu meio, de
maneira que o comportamento que esta morfologia permite seja, em
última instância, um efeito do meio onde o organismo habita, claro
que sem cair numa proposta reducionista, já que o meio é aqui pensa-
do, não como um conjunto de estímulos e forças físicas, mas como
um certo modo de organização do espaço. Nada mais ao gosto de
Lacan, portanto, por tudo que se viu da concepção das relações orga-
nismo/meio que subjaz às elaborações da Tese e que, de forma algu-
ma, são abandonadas depois dela. Como ganho suplementar, a carac-
terização do mimetismo como "desejo de assimilação à espécie, de
identificação à.matéria" presta-se muito bem a que se possa pensar sob

106 "Mimetismo e psicastenia legendária", p. 63; grifos nossos.


IMAGENS E COMPLEXOS 325

este ângulo a pulsão de morte freudiana 1°7, que se insere aí numa bio-
logia compatível com as diretrizes lacanianas, naquilo em que contor-
na um ponto de vista exclusivamente constitucionalista. Talvez se possa
concluir, tendo tudo isso em conta, que Caillois dá a Lacan a oportu-
nidade de passar da biologia do comportamento propriamente dita a
uma concepção do imaginário que afirma a eficácia generalizada da
imagem, estendida ao reino animal, mas preservando a particularida-
de humana que, no entanto, terá que ser justificada por um outro re-
gistro. O reaproveitamento dessas idéias quando se tratar, mais tarde,
de estabelecer uma distinção entre a visão e o olhar, que transportará
toda essa problemática para o contexto das discussões em torno do
registro do real, dá a medida da importância que Roger Caillois man-
tém aos olhos de Lacan num segmento significativo de sua trajetória.
Pois, se o meio humano é o meio social, não há nenhuma rup-
tura em afirmar, na continuidade, que é uma "dialética social que es-
trutura como paranóico o conhecimento humano" 108, com Lacan en-
tende'rido por paranóia mais ou menos ~ mesma coisa que Caillois
designava como psicastenia: esse defeito na subjetivação das instâncias
determinantes que deixa o sujeito clinicamente paranóico como que
imerso na realidade das relações que o constituíram, tomando, à falta
de uma mediação simbólica, o imagindrio pelo real procedimento que
o conhecimento comum reedita a cada passo e que o conhecimento
científico - ou melhor, o realismo científico que Lacan opõe ao rela-
tivismo - eleva ao seu mais alto grau. Mas é essa "dialética social" que

107 Até a conexão entre os fenômenos psicopatológicos e o problema do conhecimen-


to reaparece em Caillois, num contexto afim com o tema da pulsão de morte: "A
partir da(, não é m·ais só a psicastenia que se aparenta ao mimetismo, mas o impe-
rativo do conhecimento ele mesmo, do qual, aliás, ela representa uma perversão.
O conhecimento, sabe-se, tende à supressão de todas as distinções, à redução de
todas as oposições, de maneira que seu objetivo parece ser o de propor à sensibi-
lidade a solução ideal de seu conflito com o mundo exterior e de, assim, nela
satisfazer a tendência ao abandono da consciência e da vida" ("Mimetismo e psi-
castenia legendária", p. 67).
108 SM, p. 93; grifos nossos.
326 RICHARD THEISEN SiMANKE

garante a autonomia do desejo humano com relação às necessidades


naturais. Essa autonomia é expressa pela instalação de um registro
imaginário quase que auto-suficiente na determinação do sujeito, na
exata medida em que a determinação natural desse sujeito é "insufi-
ciente". O alinhamento do imaginário com o espaço se reflete em que,
quando o assunto é o imaginário, o estágio do espelho é considerado
enquanto "captação espacial': ponto de vista que será completado al-
guns parágrafos abaixo com sua abordagem em termos temporais e
simbólicos. Mas, se é esse estágio que expõe o modo específico de re-
lação, no homem, entre organismo e meio - lnnenwelt e Umwelt, diz
Lacan, retomando a terminologia de von Uexküll -, afirma-se agora,
com todas as letras, que ele não representa senão um caso particular da
fançáo da imago. Em primeiro lugar, porque um estágio do desenvol-
vimento não pode encerrar em si a totalidade das propriedades estru-
turantes da imago; em segundo, porque os diferentes complexos, como
vimos, instalam no psiquismo diferentes imagos que, no conjunto,
compõem a esfera subjetiva. Embora o complexo passe a ser cada vez
mais pensado como uma rede formal de relações, em vez de como um
episódio localizável na história do indivíduo, permanece válida a dis-
tinção entre as imagos diversas que daí resultam - a tríade formada
pela imago do corpo, a imago do outro e a imago do pai -, que vão
ser depois englobadas na grande síntese em que consiste a teoria la-
caniana dos três tempos do Édipo.
Embora Lacan, ao afirmar a autonomia e a especificidade do
desejo humano, continue rezando aqui pelo breviário de Kojeve, ele
não deixa de reafirmar a condição de possibilidade biológica dessa au-
tonomia, isto é, a prematuraçáo específica do nascimento no homem, que
é recapitulada aqui com .rodo o vocabulário embriológico bolkiano
(fetalização, etc.), creditado, porém, aos "embriologistas" em geral. O
nome de Bolk se desvanece por muito tempo dos textos lacanianos,
para só retornar num texto tão tardio quanto a já referida conferência
"A terceira", de 1974, aliás, com um certo tom de impaciência, como
se em resposta a alguma crítica. Essa passagem denota, ainda, uma no-
tável persistência das teses lacanianas sobre o estágio do espelho, rea-
firmadas aqui quase que nos mesmos termos, reforçando a idéia de
IMAGENS E COMPLEXOS 327

que o modelo especular e a teoria do imaginário em geral tiveram uma


sobrevivência e uma função central na construção da teoria por sob as
prerrogativas quase que absolutas concedidas ao registro do simbólico
dos anos 50 em diante 109.
Mesmo assim, não resta dúvida de que é em "Le stade du mi-
roir... "que os privilégios do simb6lico começam a se evidenciar mais
claramente, no contexto da própria caracterização desse alicerce da te-
oria lacaniana do imaginário. Assim, se no plano imaginário o estágio
do espelho se definia por uma captação espacial do sujeito pela ima-
gem, seu desenvolvimento também pode ser descrito como uma
"dialética temporal que, decisivamente, projeta em história a formação
do indivíduo: o estágio do espelho é um drama cuja pressão interna se
º.
precipita da insuficiência à antecipação" (...) 11 Embora a inspiração
kojeviana, denunciada sempre que Lacan emprega o vocabulário da
dialética, tenha permeado todo o trajeto de formação dessa teoria do
imagjnário, ela vai, cada vez mais, exprimir consideração do sujeito
sob o prisma do simbólico. Nos anos p~ecedentes, Lacan produzira
seu artigo sobre o tempo lógico 111 , que pode ser considerado um mo-
mento de virada nesta evolução; os três momentos do tempo lógico -
o ""mstante de ver,, , o· "tempo para compreender,, e o "momento de

109 Cf. "A terceirà', p. 29; grifos nossos: "Ele, o corpo, se introduz na economia do
gozo (é daí que eu parti) pela imagem do corpo. A relação do homem, do que se
chama por esse nome, com seu corpo, se há algo que sublinha bem que é imagi,-.
nária, é o alcance que toma aí a imagem, e no começo, sublinhei bem isso, é que
era preciso para tal até mesmo uma razão no real, e que é a prematuração de Bolk
- não é minha, é de Bolk, eu nunca procurei ser original, procurei ser lógico -, é
que só há a prem:aturação que a explica, essa preferência pela imagem, que vem
daquilo que ele antecipa de sua maturação corporal, com tudo que isso comporta
(...)". Entre os autores que enfatizam esta permanência da referência ao imaginá-
rio ao longo de toda a obra de Lacan podemos citar Philippe Julien, num livro,
cujo título é, por si só, revelador dessa intenção: O retorno a Freud de Jacques
Lacan: a aplicação ao espelho.
110 SM, p. 93; grifos nossos.
111 "Le temps logique et l'assertion de la certitude antecipé".
328 RICHARD THEISEN SIMANKE

concluir" - mimetizam flagrantemente os três tempos da dialética,


enquanto, simultaneamente, antecipam os termos da futura lógica
lacaniana do significante (a inscrição da letra, a escansão, a cópula e o
efeito de retroação simbólica que engendra o significado). Esse tempo
não-linear, sinuoso e retroativo caracterizará o simbólico em geral.
Nada que impeça, contudo, Lacan de afirmar que a cadeia significan-
te configura uma tópica - isto é, uma forma espacial - do sujeito, num
sentido pretensamente equiparável ao que Freud atribuía ao seu apa-
relho psíquico, só que num outro registro topológico.
É nessa dialética temporal que parece se resolver o problema,
levantado anteriormente, em torno da fantasia do corpo fragmenta-
do. Se essa fantasia é resolvida pelo estágio do espelho e se o estágio
do espelho é marco zero do imaginário, ela só pode ser constituída a
posteriori e projetada retrospectivamente no passado, explicação que
se coaduna muito bem com a caracterização temporal do simbólico
que se ensaia aqui. Da mesma forma, essa relativização do absolutis-
mo do imaginário afasta a idéia de acabamento da personalidade, com
que Lacan trabalhou, de uma forma ou de outra, desde a Tese. Da
mesma forma que o corpo fragmentado não é uma expressão direta
da prematuração, mas uma formação imaginária construída retroati-
vamente, a unificação desse corpo pela imago especular não implica,
de forma· alguma, a superação do dilaceramento subjetivo. Como
Lacan apela para considerações de ordem técnica ao estabelecer este
ponto, talvez o motor dessa revisão tenha sido o receio de que a
psicanálise passasse a se conceber como uma espécie de ortopedia da
continuidade imaginária, cuja integridade estaria comprometida pelo
processo patológico. Essa concepção, antes"de tudo, reduziria a clínica
psicanalítica a uma prática corretiva e, portanto, terapêutica, por mais
que tenham sido deixados para trás os conceitos médicos e normati-
vos de cura e saúde; por outro lado, infringiria a constatação elemen-
tar de que os fenômenos patológicos são, inequivocamente de nature-
za e, por assim dizer, de etiologia imaginária, como aliás é exigido pelos
próprios termos da teoria, naquilo em que ela é herdeira das elabora-
ções em torno do "conhecimento paranóico", que apaga conclusiva-
mente a distinção qualitativa entre a cognição paranóica e a normal.
IMAGENS E COMPLEXOS 329

Por isso, a identificação entre o imaginário e o sujeito coloca em risco


todo o projeto epistemológico de Lacan, animado pela esperança de
uma ciência rigorosa e objetiva. É a título de uma ordem de determi-
nação externa ao sujeito que a linguagem começa, então, a ser aqui
introduzida: "Mas, ao construir apenas sobre esses dados subjetivos, e
por mais que nós os emancipássemos da condição da experiência, que
nos faz apreendê-los por uma técnica de linguagem, nossas tentativas
teóricas permaneceriam expostas à recriminação de se projetar no
impensável de um sujeito absoluto: é por isso que nós procuramos, na
hipótese aqui fundada sobre um concurso de dados objetivos, a grade
diretriz de um método de redução simbólica" 112 • Ou seja: a perspectiva
imaginária é insuficiente para uma técnica de análise, por várias ra-
zões. Uma delas é que produz-se assim a miragem de que o término
de uma análise bem sucedida possa resultar em algo semelhante a um
sujeito sem inconsciente, subentendida na referência à noção hegelia-
na de sujeito absoluto; mas, além disso, o compromisso dessa visada
com ·a imagem e o espaço está em contraqição com a própria natureza
da experiência psicanalítica, que transcor~e no tempo e se dá na e pela
linguagem. Em resumo, há uma necessidade clínica de uma teoria do
simbólico, que determine soberanamente os efeitos imaginários da
interação social, até aqui causa suficiente dos fatos e fenômenos psí-
quicos. Para Lacan, clínica e teoria apresentam-se tão solidamente li-
gadas, que, pelo menos em tese, não há uma conquista teórica sem
conseqüências para a técnica, nem uma constatação clínica que não
engendre um conceito. Essa é, aliás, uma decorrência da própria idéia
de que conhecimento e constituição da realidade são um único e mes,..:
mo processo, o que implica que aquilo que chamamos de "fato" seja,
em certo sentido, uma teoria sobre o real, como quer o anti-realismo
lacaniano.
Mas a mediação simbólica impõe-se ainda por um outro moti-
vo. A principal utilidade da teoria do ·estágio do espelho foi permitir a
Lacan uma nova abordagem da agressividade. Mas esta acabou con-

112 SM, p. 94; grifos do autor.


330 RICHARD THE!SEN SIMANKE

vertendo-se num fator inerente a todo contato inter-humano (isto é,


intersubjetivo), naquilo que ele deve ao modo imaginário: a relação
com o outro, submersa desde a origem num narcisismo que, no limi-
te, arrasta ao apagamento da identidade subjetiva, é marcada pelo ódio,
que responde aí como que a uma necessidade de sobrevivência psíqui-
ca. Longe de ser uma contingência social, a agressividade é uma con-
seqüência do processo mesmo de constituição do sujeito, que cobra
em alienação o preço para compensar a inadequação vital. Daí que
Lacan possa ver na pulsão de morte freudiana um conceito - equívoco,
é verdade - capaz de dar conta do caráter universal da destrutividade
no que tange ao homem, de modo que vale e pena substituí-lo, sem
dor de consciência, por sua própria teoria, mais afim com as exigências
de uma "ciência do homem". De fato, o que Freud e os psicanalistas
fizeram foi invocar "os instintos de destruição, e até mesmo de morte,
para explicar a relação evidente da libido narcísica à função alienante
do eu (je), à agressividade que dele se desgarra em toda relação com o
outro (... )" 113 • É notável aí o quanto Lacan - tão cioso, depois, da di-
ferença entre instinto e pulsão - faz questão de referir-se a um instin-
to de morte em Freud, com a finalidade evidente de enfatizar sua for-
mulação biológica e preparar o caminho para sua recusa 11 4 • Mas essa
onipresença da agressividade, ao fim e ao cabo, inviabilizaria toda re-
lação social, se essa tivesse que se dar na imediatidade do modo imagi-
nário. Num contexto mais restrito, tornaria insustentável a relação
analítica, pois não haveria espaço para elaborar a identificação do ana-
lista com as imagos primordiais, que impregnaria o tratamento com
uma dose tão grande de intenção agressiva (ou transferência negativa,

113 SM, p. 95; grifos nossos.


114 Essa parcialidade terminol6gica de Lacan é ainda mais explícita em seu artigo
sobre as funções da psicanálise em criminologia, onde emprega pulsion em todos
os casos, exceto para se referir à Todestrieb. Um exemplo bem típico: "Esta i:ensão
manifesta a negatividade dialética inscrita nas pr6prias formas em que se engajam,
no homem, as forças da vida, e pode-se dizer que o gênio de Freud forneceu sua
medida, ao reconhecê-la como "pulsão do eu (moi)" sob o nome de instinto de
morte" (PC, p. 141; grifos nossos).
IMAGENS E COMPLEXOS 331

se se preferir), a ponto de inviabilizar a eficácia da intervenção. No


final das contas, a tríade imaginária reduz-se a uma relação dual, pois
o narcisismo prescreve a identificação entre o eu e o outro com rela-
ção ao objeto, entre o eu e o objeto com relação ao outro, e assim por
diante. A introdução do simbólico como quarto termo é, portanto,
condição para o que a psicanálise, justamente, chama de simbolização,
quer na situação social, quer na situação analítica. Contudo, antes de
encerrar o capítulo sobre o imaginário, vale a pena olhar mais de per-
to o que esta teoria conseguiu alinhavar a propósito do tema da
agressividade, um dos motores de sua formulação.
É no artigo 'Tagressivité en psychanalise", de 1948, que se en-
contra a exposição mais extensa e sistemática desta questão 11 5. Lacan,
como sempre, abre a discussão com considerações epistemológicas, que
servem, imediatamente, para ir ao ponto: decifrar a "significação enig-
mática que Freud promoveu como instinto de morte" 116 • É ainda o
mesn:i,o estranhamento com a abordagem metapsicológica que se ma-
nifesta aqui, pois Lacan vê como urgente, a tarefa de esclarecer a "na-
tureza metapsicológica das tendências mortíferas", tomando a merapsi-
cologia como um enigma, isto é, como algo que não se compreende
bem. Por isso que a primeira providência para escapar ao suposto ob-
jetivismo da explicação metapsicológica é propor a seguinte tese ini-
cial: /! agressividade se manifesta em uma experiência que é subjetiva
por sua constituição mesma" 117 • Esta proposição quer dizer que, não só

l l5 Lacan, em 1950, em "lntroduction théorique aux fonctions de la psychanalyse


en criminologie", retoma as mesmas questões no domínio mais específico do cri-
me. Contudo, no ano seguinte ao da apresentação de "Le stadc du miroir... ", a
virada antropológica de Lacan já está consumada e funcionando a pleno vapor, é
claro que, nesse exemplo específico, facilitada pela natureza do assunto. Este tex-
to, por isso, representa bem a inclinas;ão da teoria lacaniana do imaginário em
direção à antropologia.
116 AP, p. 1O1; grifos do autor. O artigo sobre a criminologia abre da mesma maneira.
Ver a primeira seção, intitulada "Do movimento da verdade nas ciências do ho-
mem" (PC, p. 125).
11 7 AP, p. 102; grifos do autor.
332 RICHARD THEISEN S!MANKE

a experiência agressiva se constitui como subjetiva, mas também, como


já foi repisado tantas vezes, que a experiência que constitui o sujeito
dá-se sob o signo da agressividade. Ponto de vista que é, também rea-
firmado na abertura da "Introduction théorique aux fonctions de la
psychanalyse en criminologie" 118 , onde o objeto da criminologia é di-
vidido em dois: uma face policial, o crime, assunto da jurisprudência
e, por que não dizer, da psiquiatria, cujas origens forenses Lacan fri-
sou várias vezes; a outra face é o lado subjetivo do problema, o crimi-
noso, assunto da antropologia e, por conseguinte, da psicanálise. É ao
contexto da ação psicanalítica- onde tudo isso se reedita, de uma for-
ma ou de outra - que a questão é remetida em seguida. "Comunica-
ção verbal", "apreensão dialética do sentido", a psicanálise "supõe, por-
tanto, um sujeito que se manifesta como tal à intenção de um
outro" 119 • Já nos demoramos suficientemente sobre a epistemologia
lacaniana para que a afirmação, repetida aqui, de que estas caracterís-
ticas não impedem a formação de uma ciência positiva não necessite
maiores esclarecimentos. O que interessa é que o passo seguinte (a Tese
II do artigo) consiste em afirmar que, como a experiência psicanalíti-
ca permite experimentar essa "pressão intencional'' do sujeito, a
agressividade manifesta-se aí, não como objeto psicológico (sentimen-
to, tendência), mas como intenção de agressão e - eis aí o gancho para
enunciar tudo isso nos termos do imaginário lacaniano - como ima-
gem de desmembramento corporal. Em suma, estas duas primeiras teses
afirmam que a psicanálise é uma experiência intersubjetiva - isto é,
que se dá entre um eu e um outro que comparecem aí como sujeitos,
e que é função do analista mantê-la assim, por mais que o sujeito se
esforce por objetivá-lo ou objetivar-se -, onde a agressividade surge
como intenção de um sujeito e imagem corporal despedaçada. Como esta
última é a primeira matriz da subjetividade, fica aberto o caminho para
afirmar a inerência da agressividade à condição do sujeito humano,
substituindo o problemático "instinto" de morte freudiano.

118 PC, p. 125.


119 AP, P· 102.
IMAGENS E COMPLEXOS 333

Quanto à imagem corporal, Lacan desenvolve aqui, por extenso,


o que afirma mais sucintamente em "Le stade du miroir... ": seu papel
formativo, indissociável da intenção agressiva e, no que· diz respeito
especificamente a esta última, a agressividade desvairada daquele con-
junto de imagens primordiais (castração, dilaceração, evisceramento,
etc., etc.), agrupadas por ele sob a denominação "imagos do corpo
fragmentado". A sua intenção de ultrapassar, com isso, o plano mais
ou menos empírico em que essas fantasias aparecem (nas recordações
dos adultos, na análise infantil) e no qual foram amplamente mapea-
dos por Melanie Klein é bastante manifesta aqui: Lacan fala dessas
imagos, "que eu, pessoalmente, agrupei sob a rubrica, que parece bem
ser estrutural de imagos do corpo fragmentado" 12º. A filiação kleiniana
dessa sua idéia, assim como a determinação de, com ela, ir além de
uma abordagem descritiva, elevando-a ao plano propriamente concei-
tuai, aparece mais claramente numa passagem da "lntroduction théo-
rique ... ", que trata mais ou menos do mesmo assunto. Aí, ao descre-
ver mais uma vez a identificação esp.ecular em termos de uma
"alienação fundamental" e de uma constituição "dialética'' do ser do
homem, ele conclui observando que "cada uma dessas identificações
desenvolve uma agressividade que a frustração pulsional não basta para
explicar" 121 • Ora, o ponto de vista kleiniano é, em linhas gerais, este,
isto é, o de que as fantasias emergem espontaneamente da frustração
pulsional inevitável que acomete o sujeito humano desde seus primei-
ros dias. Aos olhos de Lacan, Melanie Klein estaria simplesmente ex-
traindo as conseqüências psicanalíticas da sua tão celebrada prematura-
ção, é verdade que, talvez, sem a necessária sofisticação teórica. Só que
Melanie Klein se afasta da concepção do senso comum que Lacan quer
criticar aqui, pelo próprio fato de pensar a relação entre agressividade
· e frustração como mediada pela fantasia: não é a frustração real que
importa - o desmame, digamos -, mas a privação imaginária desse
objeto essencial que é o seio materno. É uma concepção muito próxi-

120 AP, p. 104; grifos nossos.


121 PC, p. 141.
334 RICHARD THEISEN SIMANKE

ma, portanto, daquela que Lacan expôs em "La famille", e que parece
vigorar ainda, pela maneira como ele retoma a sua classificação dos
complexos. Além disso, essas fantasias primordiais são elevadas por ela
à categoria de conceitos, mesmo que ao modo impetuoso e pouco sis-
temático da autora. Se Lacan tem reservas às posições kleinianas é que,
já nesse momento, parece-lhe necessário um princípio ordenador ex-
terno ao modo imaginário, mas, no que se refere ao mundo de fanta-
sia que cerca a origem do sujeito e àquele aspecto das simbolizações
primordiais que diz respeito unicamente aos determinantes imaginá-
rios, ele está, em geral, de acordo com Melanie Klein, o que explica o
tom respeitoso com que vai referir-se, mais tarde, às suas idéias, mes-
mo quando a quase totalidade do mérier psicanalítico já estiver na mira
de sua crítica mais intransigente 122•
As considerações sobre a agressividade podem mesmo ser consi-
deradas um dos primeiros motores desta crítica, que vai endereçar-se
tanto aos aspectos técnicos quanto teóricos da análise, desde sempre
indissociáveis para Lacan. Sabe~se que um de seus alvos preferidos era
a tendência do momento de privilegiar a dita "análise das resistências"
como uma tarefa prévia da análise da transferência, como se a oposi-
ção agressiva ao progresso do tratamento fosse um obstáculo a ser re-
movido antes que o trabalho propriamente analítico - a elucidação do
inconsciente tal como ele se manifesta na transferência - pudesse co-
meçar. Ora, a partir do momento em que a agressividade se coloca
como imanente ao sujeito, ela se torna, no que importa à situação ana-
lítica, o objeto privilegiado da análise e o impulso da transferência e

122 O endosso de Lacan das idéias de Klein sobre a natureza agressiva do imaginário
primordial e a filiação de seu conceito de imago do corpo fragmentado às descri-
ções fartamente detalhadas que ela oferece desse funcionamento primitivo do
"mundo interno" são assumidos de modo bastante explícito em algumas passa-
gens. Por exemplo: "Um dos aspectos da ação analCtica é, com efeito, operar a
projeção disso que Melanie Klein chama os maus objetos internos, mecanismo
paranóico certamente, mas, aqui, bem sistematizado, filtrado de cerra forma e
estancado na medidà' (AP, p. 109. Lacan se estende mais sobre este ponto adian-
te. Ver AP, p. 115).
IMAGENS E COMPLEXOS 335

do tratamento. "Nós devemos, entretanto, pôr em jogo a agressividade


do sujeito a nosso respeito, já que, como se sabe, essas intenções for-
mam a transferência negativa, que é o nó inaugural do dtama analíti-
co" 123: o que Lacan está fazendo é atribuir um papel positivo à
agressividade do paciente e, até mesmo, um papel essencial, pois esta
transferência negativa consiste justamente na projeção sobre o analis-
ta das imagos mais arcaicas e, portanto, das mais cruciais para a reso-
lução da neurose, como vai ser exemplificado, a seguir, a propósito da
histeria, das obsessões e da fobia. Por conseguinte, mais que um obs-
táculo, a agressividade é o motor mesmo da análise e só se torna pre-
judicial ao andamento da cura quando, também seguindo um precei-
to mais ou menos assumido na técnica então vigente, o analista se
oferece como objeto da identificação ao analisando, ou seja, compare-
ce na relação analítica enquanto eu (moi) e não como sujeito, ou seja,
como interlocutor numa situação intersubjetiva. Para Lacan, nessa si-
tuação, em que o paciente vê no analista uma réplica de seu próprio
eu, o que se verifica não é uma transferência das imagos primordiais,
mais uma repetição imediata da situação· original, despertando uma
tensão agressiva a tal ponto incontrolável que impediria a própria ma-
nifestação da transferência 124 • Para fundamentar essa idéia, é retoma-
da a crítica da noção de eu (moi) como "sistema percepção-consciên-
cia" (este é, ainda o modo como Lacan percebe o conceito freudiano)
e exposta a versão lacaniana alternativa, que constitui a Tese IV desse
ensaio, a qual recapitulamos acima como uma das formulações signi-
ficativas da teoria do estágio do espelho.
Mesmo os estágios posteriores a isso que a psicanálise reconhe-·
ceu como a etapa nardsica do eu e do sujeito não saem inc_?lumes des-

123 AP, p. 107. Lacan é mais taxativo adiante: "Não é, portanto, que seja desfavorá-
vel reativar uma cal intenção [agressiva] na psicanálise" (AP, p. 108).
124 A relação entre o eu (moi) e as resistências é explicitada numa passagem poste-
rior: "Deixemos aqui a crítica de todos os ·abusos do cogito ergo sum, para lem-
brar que o eu (moi), em nossa experiência, representa o centro de todas as resis-
tências ao tratamento dos sintomas" (AP, p. 118; grifos nossos).
336 RICHARD THEISEN SJMANKE

sas remodulações. De fato, ao recuar assim o momento decisivo da


constituição - que, para Freud, sempre circulou em torno da proble-
mática edípica -, Lacan é levado, quase que forçosamente, a atribuir
um papel secundário ao complexo de Édipo, o que é manifesto desde
o artigo sobre a família. Quando reafirma que a "noção de uma
agressividade como tensão correlativa da estrutura nardsica" 125 per-
mite compreender os fatos e os acidentes daquilo que se segue, Lacan
encadeia imediatamente uma apreciação do complexo de Édipo, em-
bora a aplicação mais prática dessa nova noção seja, evidentemente, a
compreensão das atipias do desenvolvimento posterior, isto é, os fatos
da patologia. Em suma, essa apreciação consiste em pensar o Édipo
em termos de um conjunto de funções de normalização, de sublima-
ção e de "remanejamento identificatório do sujeito", que por si sós já
denotam a posição segunda que ele ocupa em relação aos eventos inau-
gurais desse mesmo sujeito. A atribuição dessas funções vai resultar da
rápida localização desse complexo no contexto de uma explicação an-
tropológica, onde, aliás, se revelam claramente a mudança das prefe-
rências de Lacan nesse campo. Deixando isso para o próximo capítu-
lo, cabe ressaltar apenas que, no que diz respeito ao tema específico da
agressividade, essas considerações servem para caracterizar mesmo os
resultados felizes e adaptativos que uma passagem com êxito pelo
Édipo pode proporcionar como uma espécie de camada luminosa e
superficial sobre um oceano de agressividade originária. É, como se
vê, o tema da oh/atividade libidinal (genital, principalmente) que ocu-
pa Lacan aqui, nem de longe pela última vez, naquilo em que o termo
designa a possibilidade de uma relação tranqüila e saudável com o ob-
jeto, com a superação do egoísmo narcísico. É óbvio que, do ponto de
vista lacaniano, tal relação é impensável, já que é incompatível com o
próprio conceito de eu e de objeto que resulta da teoria até aqui ela-
borada sobre sua gênese concomitante. Essa idéia, que Lacan nunca
deixará de considerar como uma ultrajante invasão do senso comum
nos territórios da novidade psicanalítica, vai ser atacada de todas as

125 AP, p. 116.


IMAGENS E COMPLEXOS 337

formas nos anos que se seguem, e o preço para a inclusão do comple-


xo de :Édipo na linha de frente do instrumental lacaniano será uma
revisão em ampla escala de sua formulação, com seu desdobramento
nos famosos "três tempos", de modo a embutir nela os desenvolvimen-
tos em torno da identificação narcísica.
De volta a "Le stade du miro ir... ", é em nome desta revisão pro-
funda no sentido e nas atribuições do eu que são mencionadas e cri-
ticadas as posições existencialistas, e o fato de que Lacan seja um
kojeviano mais aplicado que Sartre se evidencia em que a principal
recriminação que ele lhe endereça é não ter atribuído ao eu, com todo
a ênfase que ele julga necessária, as suas fonções de desconhecimento.
Em Lacan, esta concepção é essencial para que o eu possa ser coloca-
do como pivô de todos os fenômenos psicopatológicos e, no futuro,
como se sabe, virtualmente identificado ao próprio sintoma. :É a utili-
dade clínica dessas noções que responde por todo o movimento do
texto, e é a ela que o autor se dirige quase que a título de conclusão:
''Assim se compreende esta inércia própria às formações do eu (je),
onde se pode ver a definição mais extensiva da neurose: como a capta-
ção do sujeito pela situação dá a fórmula mais geral da loucura (...)" 126•
Foi esta "fórmula geral" que Lacan veio tentando precisar desde a Tese,
onde a explicação proposta para a paranóia insinuava-se, ainda timi-
damente, como uma teoria geral das psicoses. No artigo sobre a causa-
lidade psíquica, foi empreendida a tentativa mais sistemática deste pri-
meiro período para alcançar este objetivo. Todos os desenvolvimentos
sobre o imaginário, da revisão do conceito de narcisismo às descrições
do estágio do espelho, convergem aí para identificar, nas vicissitudes
do "Eu (Moi) primordial como essencialmente alienado", a "estrutura
fundamental da loucura" 127. A causalidade psíquica da patologia men-
tal - o alvo manifesto do artigo - é equiparada com a causalidade es-
sencial do sujeito, dentro do princípio de que a loucura contém, de
alguma forma, a verdade desse último, princípio reafirmado na tese

126 SM, p. 96.


i21 CP, P· 187.
338 RICHARD THEISEN SIMANKE

da sua imanência à condição humana - num plano, por assim dizer,


ontológico - e na noção de conhecimento paranóico, sua versão mais
epistêmica. Esta causa última é muito precisamente nomeada: "Uma
forma de causalidade a funda [a imago], que é a causalidade psíquica
mesma: a identificação, a qual é um fenômeno irredutível e a imago é
essa forma definível no complexo espaço-temporal imaginário, que
tem por função realizar a identificação resolutiva de uma fase psíqui-
ca, dito de outra forma, uma metamorfose das relações do indivídüo
com seu semelhante" 128 • "Realizar a identificação" significa, para
Lacan, dar-lhe o caráter de uma realidade; a identificação fica, deste
modo, confirmada, não só como o mecanismo fundador do sujeito,
mas também como a operação pela qual se constitui isso que chama-
mos de "realidade", no sentido de que é ela que "realizà' as Gestalten
perceptivas que formam a face, por assim dizer, externa de toda essa
cadeia causal.
Essa face externa é indispensável, em virtude dos próprios ter-
mos do projeto lacaniano, que não pode abrir mão da idéia de deter-
minação do sujeito. A ordem social permaneceu ao longo de todo esse
período como o horizonte do desenvolvimento da teoria, e isso fez com
que sua formulação fosse continuamente permeada por considerações
antropológicas. Entre as referências à biologia do comportamento, an-
tídoto para "uma concepção do homem que seria totalmente metafí-
sica", e o horizonte antropológico, estende-se a descrição desse pro-
cesso de humanização do animal humano, que é a própria teoria
lacaniana do sujeito e para a qual são invocados quaisquer instrumen-
tos que sirvam para dar conta do problema da antropogênese, que se
formula nos termos de uma concepção do imaginário, a qual só pode,
portanto, ser "antropológicà' em todos esses sentidos. Biologia e an-
tropologia, natureza e cultura formam a moldura da tarefa que Lacan
se atribui nesse período, e é a esses termos que ele retorna no momen-
to de concluir: "Nesse ponto de junção da natureza. à cultura, que a
antropologia de nossos dias escrutina obstinadamente, apenas a psica-

128 CP, p. 188; grifos nossos.


IMAGENS E COMPLEXOS 339

nálise reconhece esse n6 de servidão imaginária que o amor deve sem-


pre desfazer e cortar" 129. Mas a "antropologia de nossos dias" não é
mais a mesma que guiou os primeiros passos de Lacan em seu itinerá-
rio, e uma série de referências em textos desse período indicam o aban-
dono e a substituição de noções largamente aproveitadas antes. Ago-
ra, refazer a história da utilização dos diversos modelos antropol6gicos
de que Lacan lançou mão, deve permitir compreender o movimento
que conduziu à virada significativa nos rumos de seu pensamento, que
ocorreu a partir do começo dos anos 50, mas, ao mesmo tempo, esta-
belecer a continuidade com os termos do projeto inicial. É possível
perceber aí uma evolução que, visando atender as necessidades de uma
teoria em formação, permitirá que Lacan incorpore um conjunto de
conceitos freudianos, com destaque para o de inconsciente, que ele se
viu compelido a recusar ao longo desse período inicial 13°, é claro que
ao preço de uma completa ressignificação dos mesmos. Tanto o en-
doss_o quanto a ressignificação desses conceitos vão dar o tom do "re-
torno a Freud", proclamado a partir de ~953. De qualquer modo, é a
intensificação crescente do compromisso com a antropologia que vai
conduzir, ao fim e ao cabo, a que Lacan passe a procurar uma funda-
mentação para a psicanálise fora dos domínios da psicologia.

129 SM, p. 97; grifos nossos.


130 Essa recusa se expressa mais claramente em duas passagens do "Propos sur la cau-
salité psychique", de modo baseante inequívoco: "Nenhuma experiência, mais
que a psicanálise, terá contribuído para manifestá-lo, e essa necessidade de repe-
tição que ela mostra como efeito do complexo - se bem que a doutrina a exprima
na noção, inerte e impensável do inconsciente - fala muito claramente" (CP, p.
182; grifos nossos). E adiante: "Que me baste dizer que a consideração desses
últimos me conduziu a completar o catálogo das estruturas - simbolismo,
condensação e outras que Freud explicitou como tais -, eu diria, do modo imagi-
nário; pois eu espero que se renunciará logo a usar o termo inconsciente para desig-
nar isso que se manifesta na consciência" (CP, p. 183; grifos nossos).
V. ANTROPOLOGIAS LACANIANAS

O que se viu sobre a trajetória lacaniana até aqui praticamente


dispensa maiores explicações sobre as motivações de seus trâmites -
mais que freqüentes, constantes - com a antropologia. A própria idéia
diretriz da Tese já o exigia: criticar o reducionismo organicista que
dominava o campo psiquiátrico e, ao mesmo tempo, proclamar a ne-
cessidade de uma psiquiatria e de uma psicologia científica, concreta,
materialista e assim por diante, quase que não deixa outra alternativa
a Lacan que não seja apostar o sucesso de seu projeto na possibilidade
de uma "ciência do homem" que não seja apenas mais uma "ciência
do espírito". É claro que há toda uma série de circunstâncias históri-
cas por trás dessa opção, já que a promessa comteana de uma sociolo-
gia que pudesse ser a ciência humana verdadeiramente positiva reper-
cutira em todo um programa de pesquisa orientado nesse sentido, cujo
maior expoente foi Durkheim e seu grupo, ao qual Lacan não pôde
deixar de saldar como a terceira via, tão esperada, entre o organicismo
médico e o espiritualismo de uma fenomenologia psiquiátrica pouco
preocupada com os rigores da ciência.
Está além. dos objetivos desse trabalho enveredar pelos mean-
dros da história das idéias sociológicas. Mas, rastreando-se as referên-
cias e alusões presentes nos textos, é possível e útil traçar um perfil da
incidência do pensamento antropológico sobre a construção da teoria
lacaniana e, para tanto, é necessário um mínimo de reconstituição de
alguns momentos significativos desse pensamento. Esta incidência, a
que já se fez alusão anteriormente, deve agora ser tratada com maior
detalhe, naquilo que ela informa questões específicas e dilemas cen-
342 RICHARD THEISEN SiMANKE

trais do empreendimento lacaniario, de tal forma que é possível


reconstituir o seu percurso - o mesmo percurso que os capítulos pre-
cedentes buscaram traçar- a partir desse prisma. Esse recuo estratégi-
co, além de mostrar em filigrana o papel das referências antropológi-
cas a que apenas se fez alusão episódica até aqui, tem ainda a função
de conduzir, prospectivamente, a duas figuras eminentes, essas sim re-
conhecidas por toda parte como fundamentais para a elaboração teó-
rica de Lacan naquilo que ela tem de mais típico, a saber, Kojeve e
Lévi-Strauss.
De fato, é a título de uma antropologia, por filosófica que seja,
que a reflexão retumbante de Kojeve sobre a Fenomenologia do espírito
ingressa no variegado arsenal lacaniano. Pode-se pensar o encontro de
Lacan com Kojéve lembrando que o primeiro tratou os fenômenos
patológicos, psíquicos e humanos em geral basicamente como fenô-
menos de conhecimento, aproximando clínica e epistemologia até o
ponto de uma virtual identificação, enquanto que o segundo meta-
morfoseou as figuras de uma lógica do vir-a-ser do espírito em perso-
nagens de um drama humano, histórico e concreto, de modo que não
é incompreensível que tenham vindo a se cruzar em algum lugar a
meio deste caminho que vai de uma lógica do conhecimento aos fatos
humanos, já que tendiam a percorrê-lo em sentidos opostos. É como
se o próprio movimento da reflexão efetuada na Tese tivesse prepara-
do terreno para que Lacan pudesse incorporar, de modo mais ou me-
nos tranqüilo, essa visão mais sofisticada do problema da gênese do
sujeito humano que passara a interessá-lo desde então, substituindo -
com vantagens, a seus olhos . .:. o apoio inicialmente encontrado na
perspectiva evolutiva em que Lévy-Bruhl colocava o pensamento sel-
vagem e o civilizado.
Numa outra vertente, a antropologia vai ajudar Lacan a cum-
prir a segunda das diretrizes de seu projeto, a saber, aquela que preco-
niza uma abordagem globalizante, "total" dos fatos da personalidade
psíquica, em oposição à análise pulverizada em que resultava a visada
organicista, sempre acompanhada de uma concepção atomística e me-
cânica do psiquismo. Aí pode-se destacar a figura de Marcel Mauss,
que pavimenta o caminho que leva a Lévi-Strauss, não só com sua
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 343

noção de "fato social total", mas com a introdução da idéia de incons-


ciente na consideração dos fenômenos antropológicos. Com efeito, um
dos principais objetivos de reconstituir este trajeto é mostrar por que
vias essa noção, indispensável para qualquer proposição que queira se
fazer reconhecer como psicanalítica, ingressa no pensamento de Lacan,
após ter sido recusada com todas as letras antes, recusa que se prolon-
gou mesmo até às primeiras produções lacanianas do pós-guerra, que
antecederam de perto seu encontro com Lévi-Strauss.
Talvez se possa esquematizar esse percurso notando que a pers-
pectiva evolutiva, que passa de Lévy-Bruhl a Kojeve está comprometi-
da com uma abordagem centrada na idéia de sujeito, justamente a no-
ção que Lacan foi levado a reintroduzir na reflexão psiquiátrica para
permitir a abordagem "total" pretendida, que não poderia, por isso
mesmo, excluir a face significativa dos fatos psicológicos. Mas, ao mes-
mo tempo, essa abordagem total deve abarcar ainda aquele conjunto
de fatores determinantes da subjetividade, de sua origem e de seu
fundonamento, que permitam manter a, investigação da personalida-
de psíquica dentro dos marcos da ciência, aí ingressando a linha que
conduz de Mauss a Lévi-Strauss. Essa é uma outra maneira de descre-
ver de que modo se constitui essa tensão que parece ser inerente à pro-
posta lacaniana, que arca com todos os impasses embutidos na idéia
paradoxal de uma abordagem objetiva do subjetivo, tensão que se pro-
longa até suas elaborações mais tardias. Lá, sempre que predominarem
as ambições científicas ou formalistas, o sujeito se desvanece; inversa-
mente, quando a preocupação maior for com os traços significativos
da experiência subjetiva, preocupação que se prende aos aspectos df.:
nicos da teoria, as dificuldades de uma análise puramente formal co-
meçam a se fazer sentir. Essa tensão se manifesta imediatamente, após
a filiação ao modelo estruturalista - aliás, mediada decisivamente por
Lévi-Strauss -, na oposição entre os pontos de vista sincrônico e
diacrônico e, na medida em que se consolida o vocabulário saussurea-
no, entre o significante e o significado.
Por tudo isso, essa recapitulação dos empréstimos lacanianos à
antropologia deve servir para revelar o modo como a evolução de sua
pesquisa o conduziu ao interior das fronteiras da psicanálise, nesse
344 RICHARD THEISEN S!MANKE

momento relativamente tardio de suas investigações em que o seu pro-


jeto passa a se expressar no mote do "retorno a Freud". Ao fim e ao
cabo, é a possibilidade de se atribuir um inconsciente ao sujeito que
passa a ser entrevista, dando margem a uma recuperação dos concei-
tos freudianos, desde então trabalhados nos termos de uma teoria que
já deixou uma longa história para trás. Trata-se agora, portanto, além
de recuperar certos conteúdos envolvidos na construção das idéias de
Lacan - isto é, alguma coisa como os materiais de que ela se vale-, de
tentar explicitar a maneira pela qual essa teoria, que se formou com
um alto grau de independência com relação à psicanálise, vai, a partir
de um certo momento, encontrar aí a possibilidade de realizar mais
cabalmente suas aspirações, ainda que ao preço dessa ampla reformu-
lação do sentido dos termos freudianos que todo mundo conhece. Esse
percurso é balizado, então, pela incidência inicial das idéias de Lévy-
Bruhl e Mauss sobre os primeiros passos de Lacan, conduzindo daí
aos paradigmas mais efetivos proporcionados por Kojeve e Lévi-
Strauss. Esse capítulo se ocupa, basicamente, dos três primeiros. A con-
tribuição de Lévi-Strauss é abordada no próximo capítulo, já que se
trata aí de identificar sob que condições o conceito de inconsciente pode
ser concatenado a uma teoria que inclui, simultaneamente, a perspec-
tiva do sujeito e um determinismo social, condições que Lacan vai
pensar encontrar realizadas na obra inicial de Lévi-Strauss.

V.1. SELVAGENS, LOUCOS E CIVILIZADOS

Curiosamente, o itinerário intelectual de Lucien Lévy-Bruhl


parte de uma investigação sobre a idéia de responsabilidade, que, como
vimos, preocupava Lacan em sua Tese na exata medida em que se refe-
ria à questão do determinismo, julgada crucial para qualquer empreen-
dimento científico. Examinada do ponto de vista filosófico, em uma
tese acadêmica, esta questão vai repercutir, após uma série de estudos
monográficos dedicados à história da filosofia, numa obra que marca
ANTROPOLOGJAS LACANIANAS 345

a transição para a sociologia e a etnologia, A moral e a ciência dos cos-


tumes, publicada em 1903. Já na tese sobre A idéia de responsabilida-
de, encontrava-se a tendência a deixar de tratar o problema do determi-
nismo e do livre-arbítrio como se consistissem em realidades objetivas,
enfatizando, ao contrário, a idéia de responsabilidade como um fato
de consciência, mas também como uma representação proveniente de
certos procedimentos concretos da vida social 1• Esse terreno movedi-
ço entre a psicologia e a sociologia nunca deixará de ser o domínio
privilegiado das investigações de Lévy-Bruhl, culminando nos estudos,
tornados célebres, sobre a "mentalidade" primitiva considerada do
ponto de vista antropológico. Quanto às questões de método, encon-
tra-se nesse ensaio, ainda, uma condenação das abordagens formais
ensinadas pela tradição metafísica em prol de uma abordagem concre-
ta, que dê destaque à relatividade do conhecimento, isto é, ao modo
como o sujeito que conhece converte-se, por assim dizer, na variável
independente do processo de conhecimento. Eis aí, em germe, a re-
condução das questões morais a um pro,blema cognitivo, em termos
que prenunciam o tom de suas obras posteriores e mais originais.
De fato, o que se encontra em A moral e a ciência dos costumes é
uma crítica generalizada às morais teóricas, tanto as de cunho meta-
físico quanto as de pretensões científicas, que, além de incorrerem
ambas na proposta auto-contraditória de uma "ciência normativa" -
uma ciência que pudesse, simultaneamente, conhecer e prescrever ou,
em outros termos, que r:rosse, ao mesmo tempo, " pura" e " ap 1·1cada" -,
partiam do pressuposto equivocado da homogeneidade universal da
natureza humana, tanto no que diz respeito à interioridade da cons-
ciência moral, quanto no sentido, por assim dizer, transcultural 2• As-

1 Cf. Oliveira, R. C. de. Razão e afetividade: o pensamento de Lucim Lévy-Bruhl


p. 28-30.
2 Cf. Cazeneuve, J. Lucien Lévy-Bruhl p. 18: "Enfim, as morais teóricas repousam
sobre dois postulados errôneos. Por um lado, com efeito, elas supõem que a natu-
reza humana é, sempre e por toda a parte, a mesma, enquanto que ela varia segun-
do as civilizações. Por outro lado, elas raciocinam como se a consciência moral
346 RICHARD THEISEN SIMANKE

sim, tanto o reconhecimento do caráter problemático da questão mo-


ral - que envolve, amiúde, interesses e fontes contraditórias - quanto
o da heterogeneidade da natureza humana apontam para a necessidade
de uma espécie de sociologia do conhecimento que, ao desvendar as
variações culturais da atividade cognitiva, permita expor as condições
que determinam a constituição, própria a cada agrupamento humano,
da idéia de responsabilidade, já agora, então, transportada do domí-
nio da filosofia para o da antropologia. É esse, em resumo, o propósi-
to da substituição das morais teóricas por uma "ciência dos costumes"
que, descendo do nível das idéias ao nível dos fatos, possa propiciar,
não só bases concretas para o tratamento do problema moral, mas tam-
bém a superação da contradição embutida na idéia de uma ciência
normativa. Não se tratará mais de fundamentar uma moral, mas de
analisar a realidade moral própria a cada cultura, realidade freqüente-
mente oculta aos próprios indivíduos nela imersos. Para respeitar a
particularidade e a relatividade de seu objeto de estudo, exigidas por
uma abordagem verdadeiramente científica, é que será necessário in-
vestigar as formas de pensamento que, em cada sociedade, determi-
nam a percepção da realidade e a prescrição das regras de conduta.
Embora o que Lacan aproveite explicitamente do pensamento
de Lévy-Bruhl sejam seus estudos clássicos sobre a mentalidade pri-
mitiva, dos quais faz amplo emprego na Tese, como as bases dessas
investigações posteriores estão dadas nessa proposição de uma ciência
objetiva dos costumes, não há do que se espantar quando se percebe
uma certa familiaridade das premissas lá e cá. Em primeiro lugar, a
idéia de uma "sociologia do conhecimento" não é completamente es-
tranha aos objetivos iniciais de Lacan, que, ao reconhecer nos sinto-
mas psicóticos, eminentemente, uma série compreensível de fenôme-
nos de conhecimento e, simultaneamente, perceber a necessidade de
uma ordem de determinação a ser encarnada na realidade social, aca-
ba por propor algo que pode ser descrito como uma teoria psicossocial

fosse um todo harmonioso, enquanto que, na realidade, ela encerra contradições,


amalgamando preceitos vindos de fontes diferentes".
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 347

do conhecimento paranóico, onde o elemento psíquico se acrescenta pela


simples razão de que trata-se agora de uma teoria psiquiátrica. Dei-
xando de lado a filiação comteana, que aparece com diversos matizes
em Durkheim, Lévy-Bruhl e Lacan, a própria introdução, na reflexão
sociológica, da noção de representações coletivas, às quais retornaremos
ao comentar as idéias de Marcel Mauss, faz com que um dos pressu-
postos fundamentais da pretendida "ciência dos costumes" seja aquele
da objetividade, plenamente satisfatória do ponto de vista científico,
da realidade social, uma objetividade que se faz equivalente à da reali-
dade física. Todo o esforço de Lacan em localizar aí o determinismo
específico da personalidade parte desse pressuposto, que implica uma
postura cada vez mais anti-realista e anti-naturalista: essa realidade, de
dignidade ontológica equiparável à do mundo físico, tem esse peso
porque é a única com que o animal social humano efetivamente se
relaciona, na medida em que a constitui pela sua capacidade modifi-
cadora do meio e pelas suas capacidades mentais de representação3,
tornando-a apta a que Lacan possa pens~-la, mais tarde, como cons-
titutiva do sujeito humano sem retornar ao reducionismo.
As mesmas ressalvas com relação à psicologia, no que diz res-
peito à sua utilidade para o tratamento dos problemas morais, reapa-
recem em Lévy-Bruhl a partir de sua herança das teses de Comte e
Durkheim e se prendem ao parentesco histórico desta com a meta-
física, cuja eficácia teórica já tinha sido posta por terra na própria con-
denação generalizada das morais teóricas de que parte o autor. Mas
ele parece acenar também com a possibilidade de uma psicologia Pº"'.'
sitiva4 , uma vez que se desfaçam certos preconceitos e se enfatizem âs

3 Segundo R.C. de Oliveira, essa premissa está presente em Lévy-Bruhl já em A mo-


ral e a ciência dos costumes: "É interessante observar que ele aceita a idéia de que
aquilo que chamamos de "naturezà' é algo gradativamente constituído por nosso
"entendimento". Nesse sentido, essa natureza é o resulcado de nossa capacidade
de objetivá-là' {Razão e afetividade... , p. 65).
4 A título de curiosidade, assinale-se que uma outra infração à prescrição positivista
do modelo das ciências naturais é a busca de apoio em uma ciência humana que,
348 RICHARD THEJSEN S1MANKE

questões de método em detrimento da substancialização metafísica da


alma que impregnou o objeto da psicologia em suas tentativas de ciên-
cia, o que não deixa de anunciar o domínio em que se movimentará
sua investigação posterior, aquele das mentalidades (primitiva, euro-
péia, etc.). Isso e mais a ênfase colocada sobre a questão dos sentimen-
tos sociais5, inexistente em Durkheim, torna a sua abordagem mais
próxima - porque mais útil - a Lacan, que precisava apostar na possi-
bilidade de uma psicologia positivamente científica para retirar a psi-
quiatria da indigência teórica e da dependência com relação aos ra-
mos apropriadamente organicistas das ciências médicas.
Se bem que os estudos de Lévy-Bruhl sobre as mentalidades pri-
mitivas não escaparam às críticas de um certo eurocentrismo, na me-
dida em que colocavam as formas de pensamento selvagem e civiliza-

já na época, parecia estar se saindo muito bem - a lingüística -, e isso em termos


bastante próximos aos que Lacan empregará mais tarde: "Isto será um progresso
semelhante àquele que foi realizado em lingüística, por exemplo, quando, em lu-
gar de adivinhar as etimologias sobre as semelhanças aparentes das palavras, tem a
ousadia de estudá-las metodicamente, segundo as leis da derivação, reconhecendo
que, nesta ciência como em muitas outras, o verossímil não é sempre o verdadei-
ro" ("A moral e a ciência dos costumes", citado em Razão e afetividade... , p. 74). É
claro que não se trata aí da lingüística estrutural, mas de uma filologia e de uma
gramática histórica mais rigorosas.
5 Essa referência à afetividade, longe de reconduzir a uma psicologia individualista,
está profundamente identificada com o projeto sociológico e o peso concedido às
representações coletivas:"( ...) todos esses sentimentos são de origem social. Todos
possuem sua força nas crenças e nas representações coletivas que são comuns a
todo grupo social" ("A moral e a ciência dos costumes", citado em Razão e afeti-
vidade... , p. 79). Da mesma forma, há uma estrita solidariedade entre o privilégio
do método sociológico, a investigação paralela do conhecimento e da afetividade
e a densidade concedida à realidade social: "Só (...) o método sociológico - histórico
e comparativo -, pode conduzir a esse conhecimento; e a primeira condição para
se fazer uso desse método é considerar que os sentimentos devem ser estudados não
da forma pela qual eles são experimentados, mas enquanto fazem parte da realida-
de moral dada. É necessário, pois, que (...) essa realidade seja vista pelo sdbio com a
mesma objetividade que a realidade foica" (ibidem, p. 83; grifos nossos).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 349

do numa seqüência hierarquizada, seu ponto de partida era justamen-


te evitar a redução da mentalidade primitiva a um mero exercício equi-
vocado de funções mentais que seriam comuns a toda humanidade.
Era este tipo de desqualificação que ele via na noção de animismo
empregada, entre outros, por Tylor e Prazer. Vale notar que é uma con-
cepção semelhante a essa que se encontra na origem e que inspira as
incursões algo temerárias de Freud pelos territórios da antropologia.
Para Freud, de fato, tratava-se de evidenciar uma espécie de solo co-
mum de toda a atividade psíquica humana, suposto necessário para
que as descobertas etnográficas pudessem iluminar algo dos temas es-
pecíficos envolvidos na investigação psicanalítica e apoiar a compara-
ção proposta entre a vida psíquica dos selvagens, dos neuróticos e das
crianças, como é anunciado desde o subtítulo de Totem e tabu. A pró-
pria afirmação dessas identidades, contudo, já se esquiva, em parte, à
acusação etnocêntrica, uma vez que o pensamento do homem civili-
zado~ naquilo que ele tem de mais profundo e essencial - ou seja, no
que diz respeito ao inconsciente - é rigorc;>samente comparável ao dos
selvagens, que apenas o expressam sob uma forma menos modificada
e, portanto, mais transparente à análise. Para Lacan, no entanto, não
se trata, inicialmente, de afirmar a semelhança, mas sim a especifici-
dade do conhecimento paranóico, mas sob outro prisma que não o de
uma leitura deficitária como era corrente na psiquiatria. Daí que a fór-
mula de Lévy-Bruhl lhe parecesse mais promissora, uma vez que pen-
sava a diferença em termos de uma anterioridade, se não propriamen-
te evolutiva, pelo menos lógica, anterioridade que, por conseguinte,
expressa um estágio mais primitivo pressuposto nas formas superiores
de pensamento, de modo que, aos olhos de Lacan, a diferença entre o
paranóico e o normal pode ser pensada como a permanência de uma
forma de pensar ·que já poderia ou deveria ter sido superada ou, para
empregar a terminologia da Tese, como uma estase ou uma fixação do
desenvolvimento.
De fato, Lévy-Bruhl distingue fundamentalmente dois tipos de
mentalidade: a européia e a que por ele é chamada de primitiva ou
pré-lógica, termo que já conota alguma forma de anterioridade que se
lhe quer atribuir. Uma vez deslocado o foco da investigação do pro-
350 RICHARD THE!SEN S!MANKE

blema moral para as formas de cognição capazes de explicar os modos


diferenciados de percepção da realidade moral em cada cultura6, é des-
necessário insistir no quanto as análises que se seguem vão girar
preferencialmente em torno das questões relativas ao conhecimento
propriamente dito, o que só pode agradar à perspectiva marcadamente
intelectualista de Lacan, mesmo reservando, como se assinalou acima,
um espaço para os fatores afetivos que, afinal, são componentes irre-
cusáveis dos quadros psicopatológicos. Na caracterização empreendi-
da dessa mentalidade primitiva7 vamos encontrar, então, uma série de
temas aproveitados por Lacan em sua Tese para descrever as proprie-
dades específicas do pensamento paranóico. Mas talvez o primeiro e
mais importante aspecto a ser assinalado é que todo o problema, as-
sim como suas eventuais soluções, são pensados em termos de repre-
sentações coletivas, ou seja, não se trata de elucidar a mentalidade dos
primitivos, considerados como indivíduos, mas a mentalidade primiti-
va em geral, gestada no interior de um grupo social dado e apresen-
tando uma coincidência formal, comum a todos os povos ditos não-

6 A continuidade entre esse aspecto mais típico do pensamento de Lévy-Bruhl e o


problema moral do qual partiu é ilustrada exemplarmente pela seguinte passagem:
"Isso que eu ensaiei de fazer para a moral, perguntei-me se não podia ser tentado
também para a lógica, isto é: se existem sociedades humanas verdadeiramente di-
ferentes entre si por suas instituições, essa diferença não deve aparecer também na
estrutura de seus espíritos ou, como se diz, em sua mentalidade?" (F. Lefreve, Une
heure avec Lévy-Bruh~ citado por R. C. de Oliveira, Razão e afetividade... , p. 87).
7 Nosso comentário dessa caracterização se concentra na primeira das duas séries de
obras em que se costuma dividir a produção de Lévy-Bruhl: aquela formada por
Les fonctions mentales dans les sociétés inférieures {1910), La mentalité primitive
(1922) e L'Ame primitive (1927). Além de representarem os aspectos mais típicos
das idéias do autor - que são, não obstante, parcialmente revistas e corrigidas nos
trabalhos posteriores -, as próprias datas já indicam que são estas obras que po-
dem ter influenciado a elaboração da Tese lacaniana, publicada em 1932. Na bi-
bliografia da Tese são citados o primeiro desta série, mais Le surnature/ et la nature
dans la mentalité primitive, que, no entanto, publicado em 1931, não pode ter
contribuído efetivamente na elaboração do projeto da Tese.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 351

civilizados. Esse ponto de vista, que tem origens durkheimianas e se


prolonga em Mauss, prende-se ao próprio projeto de uma sociologia
como ciência autônoma do homem. É a idéia mesma de.um determi-
nismo social que está em questão aí, ou, melhor dizendo: se os primiti-
vos não raciocinam mal, mas apenas de modo diverso do pensamento
europeu (este o aspecto, por assim dizer, não-deficitário das idéias de
Lévy-Bruhl, que vai ser caro a Lacan), "é porque o grupo social mode-
la de uma outra maneira os espíritos"8• A partir daí, e de uma visada
particular da noção de representação, vai ser possível extrair as caracte-
rísticas distintivas da mentalidade primitiva.
Há, em primeiro lugar, o caráter afetivo das representações (re-
sultado da influência, segundo Cazeneuve, da psicologia dos sentimen-
tos de Ribot), o que permite compreender que, no estágio em que se
encontra a evolução das sociedades primitivas, elas se revistam de um
caráter mais místico do que conceituai, ou seja, escapem ao tom
afetivamente neutro do pensamento racional. Daí a ingerência do pen-
samento sobre a própria percepção: os objetos do mundo natural são
percebidos diretamente com seus atribut~s e significações místicas, que
não se ligam a eles somente por uma associação posterior. Isso dá mar-
gem a que se insinue a idéia de que a percepção pode ser, em si mes-
ma, uma interpretação da realidade, ponto de vista que será tenazmen-
te defendido por Lacan na Tese, colocando-se em continuidade com
o esforço de generalização do caráter cognitivo dos sintomas psicóticos,
estendendo-o, por exemplo, até o caso-limite da alucinação.

8 Cf. Cazeneuve, J. Lucien Lévy-Bruhl p. 22. Essa ênfase, no entanto, inaugura um


problema que fará hist6ria: qual é o sujeito dessas representações coletivas? Se bem
que não tematizaâo em Lévy-Bruhl - que não reconhece um "sujeito" coletivo
distinto dos indivíduos, mas apenas procura ultrapassar, no plano do método, as
limitações de uma psicologia puramente individual (cf. Cazeneuve, J., ibidem, p.
23) -, ele vai ser agudamente pressentido em Mauss e, na medida em que suas
teses se prolongam na perspectiva estruturalista, conduz à pura e simples exclusão
da referência subjetiva (lembremos a conhecida afirmação de Paul Ricoeur, que
definiu o estruturalismo como "um kantismo sem sujeito transcendental"), com
repercussões diretas sobre Lacan, que buscava aí se instrumentar.
352 RICHARD THEISEN SIMANKE

Mas, à parte da relação das representações com seus objetos, é


nas conexões que elas estabelecem entre si que residem as proprieda-
des distintivas fundamentais da mentalidade primitiva, considerada
agora sob o ponto de vista formal. É nessa perspectiva que ela pode
ser dita pré-lógica. Lévy-Bruhl não pretende, com isso, afirmar uma
logicidade exclusiva do pensamento primitivo; segundo Cazeneuve,
não se trata sequer de propô-lo, estritamente, como uma etapa neces-
sária na evolução do pensamento lógico9 • Este termo - e isso é dito
com rodas as letras - quer significar, basicamente, que o pensamento
primitivo é capaz de contornar as restrições impostas pelo principio de
contradição, não tanto no sentido de que a ele se oponha radicalmen-
te, mas simplesmente que lhe pode ser completamente indiferente, na
medida em que os fatores místicos têm precedência na apreensão do
mundo natural, isto é, na medida em que há predomínio dos aspectos
místicos sobre os aspectos conceituais da representação.
Ora, para um Lacan que milita no sentido de ultrapassar a al-
ternativa entre um organicismo paralisante e uma psiquiatria fenome-
nológica pouco afeita ao concreto, mas que não envereda, a não ser
hesitantemente, pela terceira via oferecida pela perspectiva freudiana,
as idéias de Lévy-Bruhl oferecem a possibilidade de, pela primeira vez,
repensar, em termos antropológicos, noções - como a de que o pro-
cesso primário opera sem levar em conta a contradição, por exemplo
- que, em Freud, eram propriedades inerentes a um sistema incons-
ciente concebido em termos, por um lado, excessivamente biológicos
e, por outro, ainda próximos demais à psicologia tradicional (ou às
"psicologias da Vorstellung'; como se expressava Politzer). Essa trami-
tação da metapsicologia para a antropologia em que consiste boa par-
te do processo de produção dos conceitos lacanianos - e cada vez mais,
na medida em que aumentar o seu compromisso com a psicanálise -
inaugura-se, então, desde as primeiras importações de noções antro-
pológicas, que estabelecem Lévy-Bruhl como seu primeiro parceiro sig-
nificativo nessa área.

9 Cazeneuve, J. Lucien Lévy-Bruhl p. 25.


ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 353

Essa indiferença com respeito ao princípio de contradição e a


própria caracterização afetiva da representação convergem na formu-
lação de um princípio crucial para Lévy-Bruhl, que ele denomina lei
de participação. A participação está para o pensamento pré-lógico as-
sim como a contradição está para a mentalidade européia: é o princí-
pio invocado para dar conta das propriedades e peculiaridades do fi.m-
cionamento mental e das formas de cognição. Ele concebe um
universo repleto de forças místicas (isto é, supranaturais) das quais to-
dos os seres, animados ou inanimados, panicipam em maior ou me-
nor grau, grau esse que é medido por uma variável quantitativa exem-
plarmente representada pela noção melanésia de mana, à qual nenhum
etnógrafo da área deixou de fazer menção. Simultaneamente, a parti-
cipação é o tour de force das críticas endereçadas às teorias de Tylor e
Frazer, centradas na noção de animismo: este deixa de ser uma proprie-
dade originária do pensamento primitivo para passar a ser pensado
como efeito da participação e segundo com relação a esta, já que exige
uma ·condição suplementar para se consçituir, a saber, que o sistema
de forças cósmicas se condense sob a forma de almas ou espíritos que
passem a habitar os objetos. Além disso, a lei de participação é perfei-
tamente solidária ao determinismo social que se pretende fundar: não
é o caso, assinala Cazeneuve, de que a mentalidade primitiva se reparta
entre uma representação individual lógica e uma representação coleti-
va mística, já que "a vida mental do primitivo encontra-se inteiramente
º.
socializada'' 1 Do ponto de vista cognitivo - isto é, da representação
da vida social -, esta socialização intensiva se explica, ela também, atra-
vés da lei de participação, pela qual o grupo se percebe coeso por este·
mesmo compartilhamento de um sistema de forças transindividuais.
Tudo se passa - e aí entra-se já no que pode interessar a Lacan na cons-
trução de sua teo'ria - como se o caso dos povos primitivos revelasse,
com lente de aumento, uma propriedade universal do sujeito huma-
no: essencialmente social, ele é não só atravessado, como constituído
pelas determinações engendradas pelo grupo do qual participa, con-

°Cazeneuve, J. Lucien Lévy-Bruhl p. 26.


1
354 RICHARD THEISEN S!MANKE

forme afirmava a tese lacaniana da "gênese social da personalidade".


Lacan vai-se referir, com freqüência, às "leis da participação mental"
(ou da "participação afetiva'') que, ao garantirem a coesão e a subsis-
tência do grupo, conferem ao critério do assentimento social um sen-
tido que vai muito além do de um mero contrato, que passa a decidir
sobre o caráter patológico ou não das formações psíquicas. O valor
heurístico dos estudos etnográficos é, portanto, aos olhos de um Lacan
ainda psiquiatra, equivalente ao valor das próprias modificações pato-
lógicas para uma psicologia geral: eles tornam visíveis processos e fa-
tores normalmente ocultos nos modos mais familiares e cotidianos em
que se apresentam os fenômenos em foco.
Essa indistinção entre o individual e o coletivo que resulta das
condições em que opera o pensamento primitivo introduz uma outra
questão que, abordada por Lévy-Bruhl, tornar-se-á assídua aos textos
de Lacan: a da identidade do Eu. Esse tema, tratado principalmente
em A alma primitiva (1927), é examinado dentro do contexto dado
pela descrição da mentalidade primitiva nas obras anteriores e parte
do destaque concedido ao conceito de participação. De fato, o tercei-
ro trabalho etnológico de Lévy-Bruhl dedica-se a desvendar o modo
como os primitivos representam sua própria individualidade, ou seja,
aquele conjunto de representações que corresponde, grosso modo, ao
que a mentalidade européia designa com a palavra "alma'' 11 • Do pró-
prio fato de que essa concepção nasce no interior de um sistema de
representações animado pela lei de participação resulta que o primiti-
vo "não possua uma idéia clara de seu Eu; ele não se percebe como
sujeito distinto dos seres e das coisas que o cercam" 12• Como conse-
qüência dessa participação, o indivíduo não é nitidamente separado,
pelo pensamento primitivo, da espécie e do grupo dos quais faz parte.
Paralelamente, corpo e espírito não se distinguem de modo absoluto,
já que o corpo é apenas um objeto entre outros, animado por uma
força mística que não lhe é exclusiva e que ainda não se sedimentou

11 Cf. Oliveira, R. C. de. Razão e afetividade... , p. 106.


12 Cazeneuve, J. Lucien Lévy-Bruhl, p. 30.
ANTROPOLOG!AS LACAN!ANAS 355

numa "alma" individual. Por tudo isso, "o Eu não está limitado à peri-
feria do corpo, mas se estende a isso que Lévy-Bruhl denomina "per-
tences" [''appartenances'J (por exemplo, os cabelos, as pegadas, as ves-
tes)" 13. Com isso, mais uma vez, Lévy-Bruhl busca oferecer uma
explicação para algo que, em Frazer por exemplo, é simplesmente afir-
mado como uma propriedade inerente ao pensamento dos povos
incivilizados, isto é, a magia simpática, que ocupa um lugar de desta-
que nas formulações daquele autor. Esta agora pode também ser
subsumida à lei de participação, elucidando o modo pelo qual as prá-
ticas mágicas "simpáticas" podem agir à distância sobre os sujeitos,
através de seus pertences 14 •
Estas conseqüências da lei de participação para a questão da
identidade do eu são particularmente interessantes naquilo em que
convergem com as preocupações lacanianas, não só na Tese, mas prin-
cipalmente nas elaborações que se lhe seguem. Em primeiro lugar, o
eu é considerado aí, fundamentalmente, como uma representação da
individualidade atravessada pelos determipantes sociais e não como o
correlato psíquico, mais ou menos "natu~l" da individualidade bioló-
gica do corpo. É isso que permite que o eu simplesmente não coinci-
da com as fronteiras do corpo, mas, ao contrário, se prolongue nos
objetos a ele relacionados, ao mesmo tempo que, em contrapartida, é
penetrado por forças exteriores a ele 15. Em outras palavras, o eu pri-

13 Cazeneuve, J. Lucien Lévy-Bruhl p. 30. .


14 Um caso instrutivo da função dos pertences é o do nome (e da nomeação), que
vai estar também na origem dos estudos de Lévi-Strauss sobre os sistemas de pa-
rentesco: "Isto é provado também pela função dos nomes. O nome dá sua perso-
nalidade ao indivíduo, ao ligá-lo ao grupo; ele está unido a ele como um perten-
ce; freqüentemente, dá-se ao recém-nascido o nome de um ancestral que,
acredita-se, retorna nele" (Cazeneuve, J. Lucien Lévy-Bruhl p. 31).
15 Lévy-Bruhl considera que o pensamento primitivo é capaz de oferecer ao sujeito
uma série de compensações afetivas (por exemplo, numa vida religiosa de caráter
essencialmente místico), justamente por não compartilhar das características do
pensamento racional, que separa muito nitidamente o sujeito do objeto (cf.
Cazeneuve, J. Lucien Lévy-Bruhl p. 34). É na medida em que o conhecimento
356 RICHARD THEISEN SJMANKE

mitivo não deixa de assemelhar-se um tanto com o eu paranóico, já


que a fenomenologia clínica dessa afecção pode ser muito bem descri-
ta a partir das oscilações das fronteiras entre o eu e o não-eu; pense-
mos, por exemplo, na megalomania como uma ampliação das fron-
teiras do eu, que passa a perceber como vinculados a si eventos
autônomos do mundo externo, e no delírio persecutório como uma
retração dessas mesmas fronteiras, na medida em que as auto-recrimi-
nações são percebidas como oriundas de um perseguidor externo 16•
Com efeito, Lacan atribui explicitamente ao paranóico as proprieda-
des do pensamento primitivo, ambos se caracterizando por infringir
os princípios da lógica aristotélica, e não é para se surpreender que
seus estudos posteriores sobre a origem, a natureza e a dinâmica do eu
estejam em continuidade com estas concepções.
Em resumo, a incidência das idéias de Lévy-Bruhl sobre os
primórdios do pensamento lacaniano deve-se ao modo como elas ser-
vem ao propósito de repensar um certo conjunto de temas relativos à
paranóia e às afecções mentais em geral em termos diversos daqueles
fornecidos pelo organicismo psiquiátrico - que traz consigo todos
aqueles inconvenientes que destacamos no nosso primeiro capítulo -,
deslocando a explicação dos fatos clínicos da doença mental do orgâ-
nico para o social. Com isso, é possível, ainda, escapar a uma visada
exclusivamente deficitária da psicose, na exata medida em que con-
torna essa armadilha na consideração do pensamento primitivo: nem
selvagens, nem paranóicos raciocinam mal, mas sim de um modo
muito diferente e peculiar, o que se deve ao fato de que se constituem

paranóico - concebido em parte sob o modelo da mentalidade primitiva - passa


a constituir o paradigma do conhecimento humano, que Lacan vai passar a con-
siderar o eu muito mais como um objeto intrapsíquico do que como o pólo sub-
jetivo da personalidade.
16 Freud já explicava assim os sintomas da paranóia, partindo daquilo que denomi-
nava "delírios de assimilação" - que consistiam basicamente em modificações nas
fronteiras do eu - nos seus manuscritos e cartas enviados a Fliess e em outras
obras do mesmo período. Ver, principalmente, o Manuscrito K e o artigo Novas
observações sobre as neuropsicoses de defasa, ambos datados de 1896.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 357

como sujeitos a partir de condições completamente diversas do "euro-


peu normal". Todo o esforço de Lacan, na Tese, para introduzir a idéia
de que a psicose não é um distúrbio da personalidade, mas o desenvol-
vimento de uma personalidade perfeitamente coerente consigo mes-
ma, pode encontrar aí um apoio. A pr6pria coerência interna da per-
sonalidade psic6tica é condição para que ela possa ser compreensível,
como reza o projeto da Tese, e sua estranheza provém, então, da
discordância com os critérios consentidos pelo grupo social. Estes cri-
térios, na medida em que formam, digamos, o caldo cultural no qual
o sujeito se gesta, adquirem uma conotação muito mais originária, que
não tem a ver, senão indiretamente, com métodos de controle e re-
pressão social. Em outras palavras, um selvagem entre os civilizados,
um europeu entre os selvagens, poderiam ser igualmente considera-
dos "loucos", pelas mesmas razões que fazem com que a personalida-
de psicótica seja inassimilável pela sua pr6pria culcura: trata-se aí de
um sujeito constituído em bases diferentes daquelas que presidem a
gênes·e das subjetividades mais típicas de uma certa sociedade.
Não é por outra razão que Lacan enveredou, nos anos seguin-
tes, pela rota tortuosa de uma teoria da constituição do sujeito, que
haveria de levá-lo para bem longe das águas da psiquiatria. Se o pro-
blema da formação do eu surge à tona nesse contexto, pode-se pensar
que a contribuição de Lévy-Bruhl já oferecera uma primeira instru-
mentação para tratar dessa questão em termos antropológicos, o que
permitiria escapar a uma abordagem naturalista ou, mesmo, puramen-
te psicológica, com todos os impasses que estas trazem embutidas em
si. A própria perspectiva evolutiva em que Lévy-Bruhl se coloca vai·
dar condições para que Lacan generalize as características do eu pri-
mitivo - sua indiferenciação do grupo e dos objetos que o cercam -
para o eu em geral, onde passam a consticuir as suas propriedades mais
fundamentais, justamente aquelas que presidem a sua origem, o que
vai resultar em que a psicose se torne, aos olhos de Lacan, o principal
paradigma da subjetividade.
Enfim, num plano mais geral, toda a abordagem de Lévy-Bruhl
gira em torno do problema do conhecimento e, mais que isso, parte da
hipótese de uma soberana re/,atividade social das formas de cognição.
358 RICHARD THEISEN SIMANKE

Ora, vimos como, para Lacan, a conceicualização dos sintomas para-


nóicos como fenômenos de conhecimento era o caminho para fugir
àquela abordagem deficitária indissociável da visada organicista. Da
mesma forma, a relatividade do conhecimento, suposição necessária
para a reabilitação dos fenômenos patológicos, vai-se prolongar no
endosso de uma concepção relativista do conhecimento científico, a
ser proposta, ainda que sobre argumentos um tanto suspeitos, para a
psicologia e, na continuidade, para a psicanálise. Na exata medida em
que esse relativismo social está, em Lévy-Bruhl, intimamente associa-
do com o determinismo social, que resulta da própria indistinção en-
tre indivíduo e grupo ou, em outras palavras, dessa socialização inten-
siva da vida individual, quase que não se poderia esperar mais em
termos de convergência com o ideário lacaniano proposto em sua Tese,
mesmo deixando de lado a questão sobre se houve uma inspiração di-
reta de Lacan nas idéias de Lévy-Bruhl ou apenas uma instrumentação
calcada na convergência dos objetivos.
Seja como for, há poucas dúvidas de que Lévy-Bruhl seja a refe-
rência antropológica mais decisiva para a Tese. Ele é o único antropó-
logo citado com destaque no texto, e a propósito de questões cruciais
para o projeto lacaniano. As observações acima destinaram-se, portan-
to, a tentar identificar as motivações dessa presença e a esmiuçar um
pouco seus detalhes. Contudo, há que se reconhecer a participação,
ainda que subliminar, de Mauss na construção da teoria lacaniana ini-
cial, se bem que ela consista mais numa certa diretriz metodológica
do que numa temática espedfica 17 • Vale a pena, por isso, determo-
nos sobre essa participação, ainda mais que Mauss é reconhecido pelo
próprio Lévi-Strauss como o ancestral de direito do estruturalismo e
que a "Introduction à l'oeuvre de Marcel Mauss" foi a cartilha em que
Lacan se alfabetizou nessa área. O próprio Lévy-Bruhl empreendeu,

17 De fato, a extensão com que· se considerou, a seguir, as idéias de Mauss resultou


muito mais da convergência constatada, em problemas e soluções, com o enca-
minhamento lacaniano do que da percepção de uma influência direta, que muito
raramente se evidencia.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 359

na segunda parte de sua obra, uma série de revisões em seus pontos de


vista iniciais, motivadas em grande parte pelas críticas de Mauss, críti:-
cas que, por sua vez, partiam da noção de fenômenos sociais totais 18 ,
noção que vai simultaneamente nortear a metodologia lacaniana ini:.
cial e prolongar-se no estruturalismo de Lévi-Strauss, ao qual Lacan ·
vai aderir oportunamente. O cruzamento das influências de Lévy-
Bruhl e Mauss introduz, assim, pela primeira vez, essa tensão que opõe
o ponto de vista do sujeito e a perspectiva evolutiva à consideração do
"fenômeno total" comprometido com a hipótese determinista e as am-
bições científicas da teoria. ·

V.2. FATOS SOCIAIS, FATOS ·roTAIS

Se, de fato, as críticas de Mauss a Lévy-Bruhl visam, basicamen-


te, a justaposição de observações fragmentárias, oriundas de sociedades
e contextos culturais muito diversos, é porque a noção de fato social
total, que se opõe diametralmente a esse tipo de procedimento, é alça-
da à condição de pedra fundamental da antropologia maussiana. É
possível, mesmo, descrever o encadeamento dos desenvolvimentos
particulares da multiforme, plural e pouco sistematizada obra de Mauss
como convergindo para essa noção, que se apresenta como a culmi-
nação de seu projeto e, num certo sentido, como o fator que lhe dá
unidade e razão. Se atentarmos para a conseqüência metodológica di~
reta dessa concepção - a idéia, repetidas vezes afirmada por Mauss, de

18 Cf. Cazeneuve, J. Lucien Lévy-Bruhl p. 36. A segunda série de livros de Uvy-


Bruhl é formada por Le surnaturel et la nature dans la mentalité primitive, La
mythologie primitive e L'expérience mystique et les symboles chez les primitifi. Se bem
que ele não abandone aí nenhuma de suas noções fundamentais, há uma série de
mudanças de ênfase e correções de mira, como por exemplo, o destaque concedido
à categoria afetiva do sobrenatural em detrimento da lei de participação e o progres-
sivo abandono da expressão "pré-lógico" para designar o pensamento primitivo.
360 RICHARD THEISEN S!MANKE

que uma única observação bem feita pode ter mais valor do que uma
acumulação de fatos heterogêneos 19 - dá para perceber a afinidade
com a metodologia da Tese lacaniana, onde a profusão de pesquisas
epidemiológicas e as estatísticas sobre a dispersão dos distúrbios psi-
quiátricos são preteridos em favor de uma análise exaustiva e "total"
da paranóia de auto-punição de Marguerite Pantaine. Da mesma for-
ma que, em Mauss, nem todo fenômeno social desfruta da proprieda-
de de ser "total" - embora estes sejam os fenômenos aos quais a análi-
se sociológica se aplica de forma mais cabal e, no limite, os objetos
particulares da sociologia devem poder ser associados a esses fenôme-
nos totais, que implicam todo o conjunto das instituições sociais -,
tudo se passa, também para Lacan, como se nem todo transtorno psi-
copatológico possua essa característica de implicar a totalidade da per-
sonalidade e, na verdade, consistir justamente na construção de toda
uma personalidade mórbida, coerente e compreensível, embora dis-
tinta das personalidades ditas normais, distinção essa, aliás, fundada
num critério social. Mas, em todo caso, essas afecções, cuja explicação
exige a consideração da totalidade dos fatores subjetivos (isto é, dos
fatos relativos à personalidade), se prestam particularmente bem a se-
rem abordados por um método destinado a superar o atomismo im-
posto à psiquiatria por sua fundamentação organicista. Esse método,
uma vez delineado, pode, então, ser progressivamente exportado para
as demais regiões da psiquiatria, desde que feitas as adaptações neces-
sárias, como Lacan insinua ao final de sua análise do caso Aimée. Daí
o valor exemplar da psicose paranóica, que vai terminar por elevá-la à
condição de paradigma da subjetividade humana. Esse valor paradig-

19 Por exemplo: "É um erro crer que o crédito ao qual tem direito uma proposição
científica depende estreitamente do número de casos onde se crê poder verificá-
la. Quando uma relação foi estabelecida em um caso, mesmo único, mas metodi-
camente e minuciosamente estudado, sua realidade é certa de um modo diferente
do que quando, para demonstrá-lo, o ilustramos com fatos numerosos mas
díspares, com exemplos curiosos mas confusamente emprestados às sociedades,
às raças, às civilizações mais heterogêneas" (Sociologie et anthropologie, p. 391, ci-
tado por Cazeneuve, J. Socio/ogie de Marcel Mauss, p. 9).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 361

mático não deixa de ser simétrico ao dos objetos de certos estudos


empreendidos por Mauss, em que se revelam mais tipicamente os tra-
ços do fenômeno social total, estudos que, portanto, ilustram mais
perfeitamente seu método sociológico, aí contando-se os trabalhos,
tornados célebres, sobre as variações sazonais das sociedades esquimós
e, acima de todos, os sistemas de prestações totais analisados exausti-
vamente em todas a suas manifestações e implicações no clássico "Essai
sur le don: forme et raison de 1' echange dans les sociétés archa"iques",
mais ou menos consensualmente considerado sua obra-mestra.
Entre as conseqüências metodológicas dessa visada ao fato social
total - além, é claro, daquelas mais específicas ao campo da antropo-
logia, como a condenação do evolucionismo, que contaminava mes-
mo o tio e mestre Durkheim, e um uso limitado do método compara-
tivo - encontra-se uma concepção da necessidade de uma intensa
colaboração e, na verdade, de uma profunda interdependência entre
todas as ciências humanas. Isso tem um interesse particular naquilo
que diz respeito às relações entre a soci~logia e a psicologia - aliás,
alvo específico de um trabalho de Mauss ào qual retornaremos na se-
qüência -, por onde, inclusive se alinham algumas referências, cheias
de ressalvas, à psicanálise. Se bem que Mauss tenha dado uma ênfase
especial aos fenômenos inconscientes que transcorrem no campo so-
cial, isso de forma alguma representou uma subscrição das teses psica-
nalíticas, e por razões que não são muito diversas daquelas de Lacan
que, como vimos, faz, de início, um uso muito restrito desses concei-
tos. Ao contrário, tanto a referência aos aspectos inconscientes da vida
social, como a idéia da interdependência entre as ciências que se ocu.:
pam do homem - o que, do ponto de vista do sociólogo, quer dizer,
basicamente, a biologia e a psicologia -, estão vinculadas à proposta
de estudar o "homem total", ou seja, o agente, por excelência, do fato
social total e, por aí, o objeto imediato de uma antropologia concreta.
Por tudo isso, se é duvidoso que renha havido uma influência direta
de Mauss sobre o primeiro Lacan - ele se refere explicitamente a Mauss
apenas em uma ou duas passagens de seus trabalhos desse primeiro
período -, há pelo menos uma flagrante convergência no plano meto-
dológico, o que justifica a comparação, ainda mais que são essas li-
362 RICHARD THEISEN SIMANKE

nhas de pensamento que vão desembocar em Lévi-Strauss, através do


qual o lacanismo vai adquirir a sua coloração mais conhecida.
Em todo caso, a pr6pria idéia da interdependência entre as ciên-
cias humanas, implicada pela proposta de abordagem do "homem to-
tal" (ou seja, esse homem integral, imerso e, pelo menos em parte, de-
terminado pelo meio no qual subsiste, segundo se expressa Mauss,
tornando indispensável o estudo e a descrição de todos os fatores que
o envolvem), recomenda que se parta do modo como Mauss concebia
não s6 a relação da sociologia com as demais ciências do homem, mas
também o modo como ela se situa no sistema geral das ciências positi-
vas. O caráter positivo a ser atribuído aí à sociologia, por outro lado,
revela, mais uma vez, o espírito comteano disseminado sobre todo o
projeto de uma ciência objetiva do homem, que perpassa não apenas
as escolas sociol6gicas francesas, mas estende-se àqueles que nelas bus-
cam uma fundamentação para seus domínios específicos de atuação e
pesquisa, como é o caso de Lacan. Mesmo que seja verdade que Lacan
se alfabetizou no positivismo pelas cartilhas da Action Française, o seu
diálogo com as ciências sociais foi uma fonte bastante evidente para o
espírito positivista que anima suas primeiras incursões pelos domínios
do pensamento teórico, embora esse espírito tenha sido rapidamente
afetado pelas suas idiossincrasias que muito cedo começaram a se
manifestar.
Enfim, para Mauss, a sociologia parte do postulado de que os
fenômenos sociais se inscrevem na ordem dos fenômenos naturais, o
que, por outro lado, aponta para sua submissão ao determinismo uni-
versal pressuposto pela ciência, garantindo assim a sua inteligibili-
dade20. É esse bê-a-bá da ciência naturaLque Lacan julgou não ver

°Cf. Cazeneuve, J. Sociologie de Marcel Maurs, p. 17. E prossegue este autor: ''A
2

especificidade dessa ciência fundada por Augusto Comte supõe evidentemente


que ela se aplica a fatos distintos daqueles dos quais se ocupam as outras ciências,
e que podem ser religados diretamente uns aos outros, segundo relações definidas
que emergem da própria sociologia. O método desse disciplina prescreve o em-
prego de definições rigorosas, ainda que necessariamente provisórias (.. .)", e as-
sim por diante.
ANTROPOLOG!AS LACANIANAS 363

cumprido pela psiquiatria, que relegava a positividade dos fenômenos


mórbidos a uma produção aleatória e, portanto, não compreensível.
Tanto ele quanto Mauss vão esforçar-se por impulsionar esse deter-
minismo "científico" e "concreto" a fatos ainda fora do alcance da ciên-
cia, sendo que, coincidencemente, ambos serão levados a tentar uma
abordagem concreta dos aspectos significativos dos fenômenos em
foco 21 e, nos dois casos, tendo em vista o cumprimento da exigência
auto-imposta de uma apreciação total desses fenômenos. O mais inte-
ressante, porém, é que este impulso não entra em conflito com a loca-
lização da sociologia no âmbito das ciências da natureza e, mais espe-
cificamente, não compromete suas relações com a biologia (o fulcro,
lembremos, do sistema comteano). Com efeito, Mauss se esforça por
deixar clara a distinção e as posições relativas das disciplinas que co-
brem o campo social (a sociologia, a antropologia, a etnologia e a
etnografia). Para tanto, vai definir a antropologia como uma parte da
biologia, a parte que consiste no estudo dessa espécie particular que é
o homem; a sociologia, por sua vez, se d~fine como um capítulo da
antropologia, aquele que diz respeito à observação das sociedades hu-
manas e ao conhecimento dos fatos sociais. Percebe-se, por aí, que é à
antropologia que cabe a investigação desse "homem total", em seus
aspectos físicos, vitais, psicológicos e sociais; não é difícil imaginar que,
para Mauss, a psicologia deve ser, ela também, uma parte da antropo-
logia, com a qual a sociologia que ele propõe mantém uma relação
próxima e uma superposição parcial quanto ao campo dos objetos.
Essa relação é objeto de um estudo específico da parte de Mauss, no
qual, como se verá, a psicologia é praticamente despojada de sua pro-'

21 Ou seja, ressurge a·idéia de que, no que tange às ciências do homem, a referência


ao significado é requisito para que essa ciência possa ser considerada concreta.
Uma visão rápida desse aspecto do pensamento de Mauss pode ser encontrada na
introdução às suas idéias, de autoria de Fernando G. Brumana, Antropologia dos
sentidos: introdução às idéias de Marcel Mauss, que se detém na relação entre a
visada do sentido e a proposta de uma abordagem ao mesmo tempo concreta e
total do fato social (ver, principalmente, o segundo capítulo, "Ciência do concre•
to, ciência do significado", p. 15-23).
364 RICHARD THE!SEN SlMANKE

blemática própria, na medida em que a quase totalidade do psiquismo


individual passa a ser descrito como profundamente atravessado pelos
determinantes sociais, que vão configurar as verdadeiras causas dos fe-
nômenos de personalidade. Os termos em que Mauss se expressa nes-
se trabalho 22, que apontam para uma intensa familiaridade com os
pilares do empreendimento lacaniano inicial, recomendam, portanto,
considerar mais de perto a sua formulação.
O primeiro passo de Mauss, ao tentar precisar essas relações re-
cíprocas entre a sociologia e a psicologia é, compreensivelmente, situar
o lugar da própria sociologia no sistema das ciências. É nas páginas
iniciais desse estudo que ele vai, então, expor aquela classificação a que
já se fez menção acima: porque tanto a sociologia quanto a psicologia
só se ocupam, evidentemente, de seres vivos, ambas têm que ser in-
cluídas como uma parte da biologia; na verdade, como um setor dessa
parte da biologia que toma o homem como objeto, ou seja, a antropo-
logia23. Dois aspectos do pensamento de Mauss que não são indife-
rentes ao estilo lacaniano já transparecem nessa classificação. Em pri-
meiro lugar, apesar da intenção manifesta de delimitar o campo da
sociologia e, mais que isso, subsumir praticamente a totalidade dos fe-
nômenos humanos a uma determinação social, a continuidade com
as ciências da natureza não fica menos firmemente estabelecida. Basta
recordar, como, na Tese, Lacan se apóia numa teoria do meio bastante
particular, que põe em continuidade o ambiente social e o vital, para
perceber o parentesco que se revela aí. Ao mesmo tempo, isto não sig-
nifica uma amenização da ruptura entre natureza e cultura, quase tão
intransigente em Mauss quanto em seu herdeiro declarado, Lévi-·
Strauss: quer dizer apenas que essa ruptura não é uma impertinência
deliberada de um antropólogo cioso de sua autonomia epistêmica,
mas, ao contrário, que ela decorre da própria natureza do homem. Ou

22 "Rapports réels et pratiques de la psychologie et de la sociologie", p. 281-310.


a sociologia, assim como a psicologia humana é uma parte dessa parte da
23 "( ••• )

biologia, que é a antropologia, isto é, a totalidade das ciências que consideram o


homem como ser vivo, consciente e social" {Sociologie et anthropologie, p. 285).
ANTROPOLOGIAS LACAN!ANAS 365

seja, a separação entre natureza e cultura consiste, como já se disse,


numa "fratura ontológicà', em algo que diz respeito ao próprio ser do
homem, que se converte, ainda que por razões "naturais"; em uma ex-
ceção ao mundo natural. Enfim, pode-se ver toda essa série de conside-
rações em ação no trabalho de Lacan, desde o modo como ele recusa,
para o homem, a conaturalidade entre sujeito e objeto que caracteriza
o "conhecimento" animal, até a insistência prolongada com que ele se
vale da noção de prematuração emprestada a Bolk- uma noção, lem-
bremos, forjada no âmbito da mais pura embriologia, portanto, a anos-
luz das regiões da psiquiatria em que Lacan se move em seus trabalhos
1mc1a1s.
Um segundo aspecto dessa geografia das ciências ensaiada por
Mauss na abertura de seu trabalho é que a sociologia fica aí afirmada
como a ciência humana por excelência. Como diz o autor, a sociolo-
gia é exclusivamente antropológica24 , enquanto que a psicologia, dada
a circunscrição de seu objeto (que inclui, conforme a versão que se
preffra, o comportamento, a percepção, ~ assim por diante) abrange,
senão a totalidade, ao menos os segmentos superiores da escala ani-
mal. A sociologia, ao contrário, está limitada aos fatos humanos, dada
a própria irredutibilidade do caráter social deste últimos aos determi-
nantes naturais. Aceito isso, não é surpreendente que Lacan tenha ido,
desde o início, buscar na antropologia a fundamentação necessária a
uma ampla reforma da psicologia, historicamente constituída como
uma paráfrase do organicismo, fato do qual a sua extensibilidade ao
mundo animal pode ser considerado um sintoma. Mais tarde, uma
vez reconhecido como incurável o estranhamento da psicologia com ·a
dimensão subjetiva, cujo determinismo é preciso traçar, 'r..acan afirmará
que a etologia - isto é, a biologia do comportamento - é a mais acei-
tável das definições científicas da psicologia, restando ao campo psi-
canalítico a tarefa de ocupar-se do sujeito na sua especificidade huma-

24 Sociologie et anthropologie, p. 285. E, explicitamente, um pouco mais à frente:


"Assim, primeira diferença: a psicologia não é unicamente aquela do homem,
enquanto que a sociologia é rigorosamente humanà' (ibidem, p. 288).
366 RICHARD THEISEN S!MANKE

na, isto é, como já reza então a palavra de ordem lacaniana, em sua


determinação simbólica.
Mas, além de estender assim o campo da psicologia, às custas
da sua especificidade, Mauss restringe ainda, estritamente, a atuação
dessa disciplina aos fatos observados no comportamento dos indiví-
duos. Esta restrição, por sua vez, serve manifestamente ao propósito
de desqualificar qualquer coisa semelhante a uma psicologi,a coletiva e,
por aí, polemizar diretamente com MacDougall, para quem a identi-
ficação entre sociologia e psicologia coletiva resultava na redução da
primeira à condição de um mero capítulo da psicologia geral. É claro
que a um projeto de consolidação da sociologia como ciência, que pas-
sa de Durkheim a Mauss, não pode senão repugnar uma tal proposta.
Ela significaria não só uma subordinação do ponto de vista epistêmi-
co, mas também uma tal psicologização do objeto que inviabilizaria a
proposta de uma ciência sociológica positiva e concreta. Significaria a
identificação do objeto da sociologia com as representações coletivas que,
se bem que reconhecidas e destacadas no campo dos fenômenos so-
ciais, não esgotam esse campo, que inclui ainda os aspectos físicos da
vida social (os chamados fenômenos morfológicos, um segmento, como
se verá, do fato social total}, os aspectos históricos e aquelas variáveis
quantitativas que podem ser detectadas pelos métodos estatísticos. Ou
seja, o objeto da sociologia recobre uma ampla gama de fatores extra-
psicológicos, sua realidade transcende aquela dos fatos de consciência,
ainda que coletiva; portanto, a redução da sociologia à psicologia co-
letiva só pode ser efetuada ao preço de uma amputação injustificável
na realidade de seu objeto.
Ao contrário, essa defesa das fronteir.as da sociologia acaba por
conduzir a um esvaziamento significativo do campo da psicologia, a
tal ponto que o texto de Mauss chega a adquirir um certo ar condes-
cendente ao reconhecer, afinal, uma apertada área de atuação exclusi-
va para aquela disciplina. Pois, se as representações coletivas consis-
tem na única região, dentro dos limites da antropologia, em que
psicologia e sociologia se sobrepõem parcialmente, o argumento de
Mauss é que é que os fenômenos descritos e explicados a partir dessas
representações são muito mais propriamente objetos de uma investi-
ANTROPOLOG!AS LACAN!ANAS 367

gação sociológica do que psicológica25. Em outras palavras, na relação


entre o coletivo e o individual é muito transparente o sentido em que
caminha a determinação e, portanto, é a sociologia que se habilita a
dar a última palavra na explicação desses fatos. Ecoa claramente aqui
o preceito comteano que proíbe a redução do fato social às ações e,
muito menos ainda, às consciências dos indivíduos. Se este mesmo
princípio esteve na origem da busca lacaniana por uma determinação
social para a personalidade ou para o sujeito, não é muito difícil ima-
ginar como sua radicalização ao longo da linha de evolução da antro-
pologia que culminaria na sua versão estruturalista - processo do qual
Mauss participa, pelo menos quanto a um certo aspecto de sua obra26
- possa ter contribuído para a desistência de Lacan em reformar a psi-

25 "Aqui não é mais a sociologia que está em questão. É, por um curioso retorno, a
própria psicologia. Os psicólogos, ao aceitar nossa colaboração, fariam bem talvez
em ~ defender. Com efeito, a parte das representações coletivas - idéias, concei-
tos, categorias, motivos de ações e práticas tradicionais, sentimentos coletivos e
expressões congeladas das emoções e sentimentos - é tão considerável, mesmo na
consciência individual - e nós reivindicamos o seu estudo com tanta energia -,
que, por instantes, nós parecemos querer nos reservar todas as pesquisas nessas
camadas superiores da consciência individual" (Sociologie et anthropologie, p. 289).
E, uma vez estabelecido que é apenas do indivíduo que se ocupa a psicologia:
"parece que a camada da consciência individual seja muito delgadà'. Transparece
aqui um outro aspecto da desqualificação da psicologia, ligado à valorização da
noção de inconsciente na antropologia de Mauss: flagrantemente avessa a uma
definição psicológica, esta noção prende-se às representações coletivas das quais q
indivíduo participa sem necessariamente aperceber-se disso e, por isso mesmo, é
assunto da sociologia e não da psicologia, que fica assim duplamente limitada à
consciência e ao indivíduo. É nessa acepção que Lacan vai incorporar o conceito
de inconsciente, só que ainda mais depurado e formalizado pelo advento do es-
truturalismo. A psicanálise - que reivindica com autoridade o estudo do incons-
ciente - só vai poder então revestir-se, daí em diante, de toda espécie de colora-
ções antropológicas.
26 Cazeneuve assinala, em seu comentário da obra de Mauss, como ela serviu de
padroeira a pelo menos duas grandes correntes da antropologia: o estruturalismo
de Lévi-Strauss e o pluralismo de Georges Gurvitch (cf. Sociologie de Marce/Mauss,
p. 1).
368 RICHARD THE!SEN S!MANKE

cologia, quer para usos psiquiátricos, quer psicanalíticos. Ao abraçar


uma psicanálise completamente revista à luz da antropologia, Lacan,
no limite, estava tão somente aceitando as conseqüências do seu pro-
jeto e dos instrumentos de que se valeu para levá-lo adiante: o psiquis-
mo inconsciente, que rejeitara em Freud e que se esforçara em substi-
tuir por uma teoria do imaginário, passa a cumprir, a partir de um
certo momento, o papel de ponto de inserção da determinação social
na subjetividade do indivíduo. A psicanálise, durante algum tempo
pelo menos, será ou deverá tornar-se, para Lacan, a ciência que se ocu-
pa dessa intersecção, onde o determinismo pela linguagem vai servir a
uma profunda despsicologização dos conceitos freudianos, para, diante
da constatação da inviabilidade crônica da psicologia, propiciar seu tra-
tamento em moldes "concretos" e "científicos".
Não obstante, é sobre o terreno das representações coletivas que
se desdobra a magra contribuição da psicologia à sociologia; é aí que a
psicologia tem algo a dizer que seja de interesse do sociólogo, e vai ser
sobre esse ponto que Mauss dará crédito aos "serviços recentes presta-
dos pela psicologia à sociologia''. Mas o próprio papel subordinado que
a ciência psicológica deve representar nesse estudo já insinua uma di-
ficuldade que, reconhecida por Mauss, receberá uma solução mais ra-
dical em Lévi-Strauss. Com efeito, boa parte do esforço teórico de
Mauss volta-se para, seguindo os passos de Durkheim, elucidar a ori-
gem histórica e o caráter social das categorias com que opera o pensa-
mento, esquivando-se assim aos escolhos opostos do transcendenta-
lismo neo-kantiano e do psicologismo. Contudo, a identificação dessas
categorias com as representações coletivas que animam a vida social-
trata-se sempre, como se pode ver, do renitente problema do conheci-
mento, com que Lacan vai continuamente tentar impregnar, tanto a
psiquiatria quanto a psicologia e a psicanálise - coloca, de imediato, o
problema que pode ser expresso na seguinte pergunta: quem "pensa",
afinal de contas, essas representações coletivas27 ? Ou, em outras pala-
vras: dado o deslocamento operado, é válido ainda indagar pelo sujei-

27 Cf. Brumana, F. G. Antropologia dos sentidos... , p. 28.


ANTROPOLOGIAS LACANJANAS 369

to das representações? Afinal, essa reformulação, essa mudança de pla-


no das categorias do pensamento deveria servir, em tese, para escapar
ao "mito do eu", seja enquanto realidade psicológica, seja enquanto
princípio metafísico. De fato, num outro artigo 28 que, de certa forma,
complementa seu estudo sobre as relações entre sociologia e psicolo-
gia, naquilo em que ele se dedica a empurrar esta última para o fundo
do palco ocupado pelas ciências humanas, Mauss reconstitui o pro-
cesso pelo qual se formou, historicamente, a idéia de "eu", que passa
de uma figura jurídica do direito romano (persona} à condição de uma
categoria psicológica, tudo isso mediado decisivamente pela teologia
cristã e pelo cartesianismo. Mauss deixa bem claro, de saída, que não
se trata aí de uma questão psicológica, nem mesmo lingüística, mas
de um assunto pertencente à história social. A conclusão é que esse
longo processo pelo qual a noção de pessoa experimenta uma transfor-
mação tal, até se converter, muito recentemente aliás - menos de um
sécu_lo e meio, observa Mauss -, na categoria do eu, revela que "longe
de ser a idéia primordial, inata, claramente inscrita, desde Adão, no
mais profundo de nosso ser, eis que ela [a categoria do eu] continua,
quase em nosso tempo, lemamente a se edificar, a se clarificar, a se
especificar, a se identificar com o conhecimento de si, com a consciência
psicológica"29 • O eu, portanto, mostra exemplarmente como uma "ca-
tegoria do espírito humano" é constituída justamente a partir das mo-
dificações que as representações coletivas experimentam ao longo da
história, o que proíbe, evidentemente, que essa noção possa vir a ser

28 "Une catégorie de l'esprit humain: la notion de personne, celle de 'moí"'.


29 Sociologie et anthropologie, p. 259; grifos nossos. Mauss se estende, em sua conclu-
são, sobre o modo como, a partir da Renascença e, principalmente, com Descartes,
o eu passa a designar um conjunto de funções precisas da alma, o pensamento
claro e dedutivo, que faculta ao sujeito o conhecimento da natureza. Ou seja, o
cogito ilustra o momento no qual o eu passa a designar o ser do sujeito humano.
Aí, a equação pessoa = eu se complementa pela equação eu = consciência. Esse
processo, segundo ele, se arremata com Fichte: 'i\quele que responde, enfim, que
todo fato de consciência é um fato do "eu", aquele que funda toda a ciência e
toda a ação sobre o "eu", é Fichce (ibid., p. 361).
370 RICHARD THEISEN S!MANKE

considerada como o sujeito - vale dizer, como a causa eficiente - des-


sas mesmas representações. A questão retorna inalterada, portanto:
quem pensa essas representações?
Não é necessário insistir no quanto essa deposição do eu da con-
dição de absoluto psicol6gico deve parecer simpática a Lacan, a partir
do momento em que ele decide empreender a pesquisa de suas deter-
minações primeiras, desenvolvida nos termos de uma teoria do imagi-
nário altamente antropologizada. Mas essa mesma antropologização
não permite escamotear o fato de que, construída para dar conta do
mistério da constituição do sujeito - problema rigorosamente herdeiro
das especulações anteriores sobre a "gênese social da personalidade" -,
ela se defronta com o virtual esvaziamento da dimensão subjetiva,
quando se trata de operar teoricamente com as referidas representa-
ções coletivas. É verdade que Mauss não chega a se converter em um
pregador da "morte do sujeito", como o será Lévi-Strauss e a quase
totalidade do cortejo estruturalista3°. Mas, reconhecido o problema -
e já que dizer que é a "sociedade" que pensa essas representações não
pode passar de um sofisma da pior espécie -, Mauss o "resolve" por
um recuo e, de fato, por um recuo a um certo empirismo que seria
intragável já a Uvi-Strauss: as representações coletivas são obra de gru-
pos concretos, de instituições efetivamente em ação nas sociedades
consideradas. Toda a instituição tem como razão constituinte uma re-
presentação coletiva, que também é sua obra, uma vez que sua forma-
ção coincide com o processo de institucionalização de certas práticas.
Se estas representações revelam a lógica interna de uma sociedade dada,

30 Para Uvi-Strauss, a "miragem do eu" conduziu a que se optasse por um sujeito


sem racionalidade, em face da evidência de uma racionalidade sem sujeito (c[
Brumana, F.G., Antropologia dos sentidos... , p. 28). Contudo, todo esse esforço
para escapar a uma solução transcendentalista para o problema das categorias do
pensamento parece ter retornado ao ponto de partida, uma vez que as estruturas,
concebidas como forma e condição da experiência social, acabam por justificar o
aforismo de Rícoeur, que caracteriza o estruturalismo como um "kantismo" e,
ainda por cima, "sem sujeito transcendental": elas são os a priori absolutos dessa
experiência, estão fora dela e a determinam.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 371

é apenas na medida em que não se distinguem dela, mas apenas a ex-


pressam; trata-se de um processo de representação concebido num pla-
no semântico, portanto, e não sintático, que é onde operarão as estru-
turas de Lévi-Strauss. Essa forma de representação ou de expressão
simbólica tem que conservar, assim, um compromisso maior com o
discurso "nativo" em que as significações sociais se articulam31 , sem
aspirar ao universalismo que o estruturalismo professou em sua orto-
doxia mais típica.
Mas mesmo nessa posição subalterna que lhe é atribuída, a psi-
cologia, reconhece Mauss, prestou, afinal, uma série de serviços à so-
ciologia, e é no inventário desses serviços que a reflexão de Mauss toca,
pelo menos tangencialmente, questões que dizem respeito muito de
perto ao campo psicanalítico e, particularmente, a um certo número
de noções implicadas no trabalho inicial de Lacan. A evolução da psi-
cologia teria permitido, então, no que diz respeito às representações
coletivas - isto é, ao segmento mais psicológico da área de atuação da
sociologia-, compreendê-las mais adeqll;adamente, traduzindo o seu
modo de operação, como diz Mauss, em termos "precisos, inteligíveis
e científicos". Mesmo que não seja muito mais do que um emprésti-
mo de vocabulário, essa contribuição da psicologia representa, no en-
tanto, aquilo em que ela colabora para a apreensão do "homem total",
que, afinal de contas, é um sujeito psíquico, além de ser um sujeito
social. Para Lacan, cuja pesquisa desdobra-se nessa região do conheci-
mento delimitada pelo prefixo psi (psiquiatria, psicologia, psicanáli-
se), essa condescendência para com a psicologia é quase que uma con-
dição para que sua teoria não desemboque, como já vimos, numa:
sociologia do conhecimento patológico. Mas o desvanecimento pro-
gressivo do sujeito no plano antropológico e lingüístico será como que
uma ameaça contínua de consumar essa dissolução do psíquico no
social e, em termos epistemológicos, da psicanálise nas demais ciências
humanas, ao menos naquelas que funcionam bem, como a lingüística
e a antropologia. Daí a insistência em conservar alguma referência ao

3l Antropologia dos sentidos..., p. 29.


372 RICHARD THEISEN S!MANKE

sujeito, que não deriva apenas de uma fidelidade ao seu projeto inici-
al, que, sendo psiquiátrico até a raiz dos cabelos, poderia ser renegado
sem maiores problemas, mas da preocupação em demarcar e defender
as fronteiras da psicanálise dentro do panorama das ciências humanas
- no que era o sentido mais moderno do termo na década de 50 -
com as quais ela se alinha; no mesmo espírito, aliás, em que Lacan se
esforçava por defender a especificidade da psiquiatria no conjunto das
ciências da vida, na sua obra inaugural.
A primeira noção psicológica valorizada por Mauss é a idéia de
vigor mental, extraída das teorias de Babinski e Janet, principalmente.
Ela não teria um maior interesse, se Mauss não se referisse aí ao seu
trabalho sobre os efeitos físicos da idéia de morte32, como sendo um
dos casos em que aquela noção psicológica - mais especificamente, o
seu aspecto negativo, isto é, aquilo que se refere aos estados de debili-
dade e astenia - vem a clarificar os termos de um inquérito sociológi-
co. Este escudo vai desfrutar de uma justa celebridade na história pos-
terior da antropologia e o fenômeno investigado por Mauss - a saber,
o fato de que a sugestão resultante da concordância maciça de uma
coletividade quanto ao destino fatal de um de seus membros, quer isso
seja atribuído à feitiçaria ou a qualquer outra causa suposta, possa le-
var à morte real do indivíduo - será retomado por Lévi-Strauss, inclu-
sive em contextos em que este examina o tema da eficácia simbólica,
como se sabe, um tema que será caro a Lacan quando da elaboração
de sua proposta estrucuralista para a psicanálise. Esse poder letal da
sugestão coletiva será significativo também, como se verá adiante, para
a compreensão dos termos em que Mauss aceita da psicologia a incor-
poração da noção de instinto, como uma das contribuições efetivas
dessa ciência. Mas, desde agora, é possível assinalar que esse estudo,

32 "Effet physique chez l'individu de l'idée de mort suggérée par la collectivité".


Mauss reconhece ainda a pertinência dessa noção com relação ao estudo clássico
de Durkheim sobre o suicídio. Percebe-se que é na explicação dos fenômenos so-
cialmente determinados que consistem numa supressão do impulso vital que ele
vê utilidade nas noções de vigor mental e de astenia.
ANTROl'OLOGIAS LACANIANAS 373

pelo menos sob a forma em que ele é retomado por Lévi-Strauss, pode
perfeitamente ter sugerido a Lacan a via pela qual ele poderia redefinir
também o conceito freudiano de pulsão de morte desde uma perspec-
tiva antropológica. De fato, não deixa de ser notável que Lacan se in-
clua entre os psicanalistas freudianos- juntamente com Melanie Klein,
de cuja psicanálise ele vai seguidamente louvar os méritos, em parte,
por isso mesmo - que incorporam, de forma relativamente tranqüila
o conceito de pulsão de morte, que tanta estranheza causou nos meios
psicanalíticos quando da sua introdução, tendo sido, muitas vezes,
aceito apenas nominalmente, como uma concessão a um capricho
especulativo tardio do velho Freud. Aparentemente, Lacan teria todos
os motivos para rejeitar essa noção; não, é verdade, pelo conservado-
rismo teórico dos demais psicanalistas, que ele mesmo criticou muitas
vezes como mera obtusidade, mas pela formulação fortemente bioló-
gica que ela recebe em Além do princípio do prazer, onde Freud parece
fazer avançar, de um modo um tanto temerário, as fronteiras da psica-
nálise sobre o território da biologia. Por ,tudo isso, a incorporação la-
caniana desse conceito só pode ter transcorrido de modo tão pouco
problemático em função de uma ampla redefinição do mesmo, prin-
cipalmente se recordarmos o empenho da cruzada de Lacan contra o
biologismo e o organicismo psiquiátrico e psicanalítico33 .

33 Essa releitura antropológica do conceito de pulsão de morte - e isso depois que,


através da antropologia, a lingüística estrutural se converte na referência funda-
mental de Lacan - encontra seu ápice na sessão de Le séminaire II (p. 225-40)
dedicada a análise do conto de Poe A carta roubada. A versão revisada desse texto
que aparece nos Écrits (p. 19-75) dedica-se explicitamente a uma tr~dução - e a
uma identificação virtual - do conceito freudiano de compulsão à repetição, con-
venientemente rebatizado de automatismo de repetição, nos termos de uma lógica
e de uma combinatória do significante. Na medida em que a pulsão de morte é o
fundamento metapsicológico da compulsão à repetição, não é difícil perceber o
deslocamento de sentido que é tentado aqui - com relação ao conceito de pulsão
em geral, aliás. A importância que Lacan atribui a esse deslocamento transparece
no próprio fato desse texto relativamente tardio ter sido colocado na abertura da
coletânea - de resto, cronologicamente organizada - de Lacan, como que repre-
sentando a essência do que se segue.
374 RICHARD THEISEN S!MANKE

A segunda noção psicológica valorizada por Mauss traz sua re-


flexão para mais próximo dos interesses imediatos de Lacan. Trata-se
da noção de psicose, e ela é introduzida nos seguintes termos: "Um se-
gundo progresso foi realizado quando vocês [psicólogos], os neurolo-
gistas franceses e os psiquiatras alemães, substituíram a noção de idéia
fixa pela noção de psicose"34 . É interessante notar que é justamente
esse cruzamento entre desenvolvimentos muito diversos e heterogê-
neos das escolas francesa e alefl'}ã de psiquiatria e áreas afins que per-
mitiu a Lacan construir sua Tese sem escorregar para o organicismo
nem para a fenomenologia pura. Na verdade, a noção de psicose que
Mauss julga interessante incorporar à sociologia é bastante similar à
que Lacan quer propor em seu doutorado, haja vista os termos em
que ela se expressa: "Esta hipótese de um estado de toda a consciência,
de um estado que tem, por ele mesmo, uma força de desenvolvimen-
to, de proliferação, de desvio, de multiplicação e de ramificação, de
um estado que toma todo o ser psicológico, essa hipótese deve tornar-se-
nos comum"35 . A essa visão totalizante da psicose - que, por ser total,
já se esquiva a uma conotação deficitária, o que fica explícito quando
Mauss considera, mais à frente a noção de patologia sobre o plano so-
cial - encadeia-se uma referência tangencial a Freud, no sentido de
evitar qualquer compromisso com os "excessos da psicanálise", princi-
palmente aqueles cometidos em Totem e Tabu, crítica que, aliás, qual-
quer antropólogo minimamente ponderado faria, desde que, é claro,
se considere Totem e Tabu exclusivamente como um ensaio antropoló-
gico e com pretensões de realismo histórico%.

34 Sociologit tt anthropologit, p. 293.


35 Sociologit tt anthropologit, p. 293; grifos nossos.
36 Segundo Cazeneuve, contudo, apesar de suas restrições, Mauss é mais ou menos
pioneiro, na sociologia francesa, em reconhecer um cerco interesse da psicanálise,
nem que seja pelo destaque que ele mesmo concede - por outros~otivos e a
partir de outras questões - aos fatores inconscientes: "A esse respeito [a psicose],
Mauss emite uma opinião reservada sobre a psicanálise freudiana; mas ele é um
dos primeiros antropólogos franceses a compreender todo o interesse dos estudos
ANTROPOLOG!AS LACAN!ANAS 375

A terceira contribuição da psicologia - a "noção de símbolo e


da atividade essencialmente simbólica do espírito" 37 -, além de
concernir àquele aspecto do pensamento de Mauss que será especial-
mente prezado por Lévi-Strauss, não deixa de ter relação com a im-
portância atribuída aos fatores inconscientes. Mauss vê brotar a noção
de símbolo de fontes tão diversas quanto Bergson e Henry Head, e ela
o conduz, efetivamente, à consideração dos "mecanismos mais pro-
fundos da consciência" - embora o que ecoe nesse expressão seja tal-
vez mais Bergson do que Freud -, revelando que os chamados "esta-
dos mentais" não são suficientemente caracterizados como "estados da
alma'' (ou seja, sua versão mais substancialista), mas têm que ser pen-
sados também como "signos e símbolos de atividades e de imagens"38 •
Na medida em que o símbolo é, fundamentalmente, um instrumento
socializado de transmissão e de produção de sentido, esse conceito im-
portado à psicologia serve, ao fim e ao cabo, para intensificar sua su-
bordinação à sociologia. Tudo se passa como se uma apreensão exclu-
sivamente psicológica do simbolismo se iQclinasse perigosamente para
sua definição como uma espécie de faculdade do espírito e só a socio-
logia pudesse dar um tratamento concreto à questão da significação,
ao detectar o caráter simbólico dos fatos sociais, cuja determinação ela
atrela a todo tipo de fatores objetivos.
Mas é a quarta noção psicológica reconhecidamente aproveitável
pela sociologia que se presta a considerações mais atraentes. De fato,
ao conceder um valor heurístico particular à noção de instinto, quando
se trata da elucidação das questões que se abrem sobre o campo socio-
lógico, Mauss aparentemente recua da crítica efetuada há pouco, que
tinha por alvo as concepções de MacDougall. Se esse autor tendia a

sobre a psicopatologia coletiva e mesmo sobre a interpretação de certos fenôme-


nos sociais, como os mitos, a partir da psicologia do inconsciente" {Sociologie de
Marcel Mauss, p. 30).
37 Sociologie et anthropologie, p. 294.
38 Cf. Cazeneuve, J. Soâologie de Marcel Mauss, p. 30.
376 RICHARD THEISEN S!MANKE

subordinar a sociologia à psicologia coletiva, reduzindo ambas à con-


dição de um capítulo da psicologia geral, era, em grande parte, devido
ao destaque concedido à noção de instinto gregário na consideração
dos fatos sociais humanos, o que, na prática, já os relegava à condição
de um caso particular dentre aqueles abordados pela psicologia com-
parada. Contudo, o que ocorre aqui, ao fim e ao cabo, é uma certa
convergência entre Mauss e Freud, o qual, por sua vez, não tinha pou-
pado reservas a MacDougall em seu trabalho sobre a psicologia das
massas. O que Freud lhe recriminava ali era equiparar simplesmente a
determinação direta e unívoca que o instinto gregário exerce sobre o
comportamento social dos animais ao fenômeno social humano, me-
diado por uma série de mecanismos tipicamente psíquicos, com des-
taque para a identificação, em suas conexões com os modos narcísicos
de operação da libido. Esse encaminhamento, por sua vez, coloca ime-
diatamente toda a explicação freudiana dos fenômenos de massa na
dependência das vicissitudes da atividade pulsional humana e, mais
especificamente, das pulsões sexuais; em outras palavras, dessa "eco-
nomia paradoxal dos instintos", como Lacan se expressa em "La fa-
mille", que caracteriza esse ser intensivamente socializado desde a ori-
gem, que é o sujeito humano. Ora, Mauss, manifestamente, vê na
noção de instinto algo de muito semelhante ao Trieb freudiano. Em-
bora não se refira especificamente a Freud, ele fala, por exemplo, do
destaque concedido pelos "psicólogos" (cita Babinski, Monakow e
Rivers) à parte instintiva da vida mental, quando se trata da "interpre-
tação das histerias"39, ou seja, desse quadro cuja investigação clínica,
da parte de Freud, deu origem à psicanálise. Na verdade, Mauss colo-
ca o instinto numa relação muito próxima com essa noção-chave de
sua antropologia, que é a de simbolismo. Para ele, a abordagem da his-
teria a partir da noção de instinto permite contornar, sem maiores sus-
tos, o equívoco de pensar os atos e representações que constituem os
sintomas apenas em termos de "estados do espírito", naquela concep-
ção substancialista e cartesiana, no mau sentido, que, justamente, o

39 Sociologie et anthropologie, p. 295.


ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 377

conceito de símbolo ajudava a manter à distância; ao contrário, ela


permite perceber como eles manifestam, "de modo sempre simbólico e
parcial, a relação que existe entre as coisas e o corpo e, sobretudo, o ins-
tinto, Trieb de todo o ser, de seus mecanismos psicofisiológicos
estruturados"4 º.
Não deixa de ser significativo que, justamente a propósito da
abordagem psicológica das histerias, Mauss se refira às relações entre
as coisas e o corpo. Esta referência, com efeito, remete a um outro tra-
balho seu, em que a ação direta do meio social sobre o corpo vai, en-
tre outras coisas, permitir precisar o sentido de que a noção de in-
consciente se reveste em seu pensamento. Trata-se do artigo sobre As
técnicas do corpo, onde a análise do modo socializado pelo qual os su-
jeitos das diversas culturas servem-se de seus corpos, ou seja, execu-
tam ações corporais41 , presta-se para, sob um outro prisma, desbancar
mais uma vez a psicologia de suas pretensões explicativas. Fica claro
então, mesmo numa primeira abordagem, que, seja qual for a acepção
em que o conceito de inconsciente se faz presente no corpo das idéias
de Mauss, ele não possui aí nenhuma conotàção psicológica,· não se trata
de um inconsciente psíquico, como pretende ser o freudiano. Claro
que, em Freud, a noção de psiquismo é profundamente modificada
pelos próprios parâmetros da investigação metapsicológica, mas a con-
cepção de Mauss só poderá agradar, futuramente, um Lacan a quem o
inconsciente proposto por Freud sempre pareceu altamente indigesto,
no rastro, ainda, do bombardeio politzeriano. Para Mauss, esse estudo
sobre as técnicas do corpo se insere no esforço de afirmar a sociologia
- isto é, uma antropologia social no seu sentido mais amplo, segundo
Cazeneuve42 - como a disciplina adequada para abarcar e apreender

40 Sociologie et anthropologie, p. 296.


41 Mauss define "técnicas do corpo" como "os modos pelos quais os homens, socie-
dade por sociedade, de um modo tradicional, sabem se servir de seus corpos"
(Sociologie et anthropologie, p. 365, apud Cazeneuve, J. Sociologie de Marcel Mauss,
p. 36).
42 Sociologie de Marcel Mauss, p. 36.
378 RICHARD THEISEN SIMANKE

este "homem total", que é o objeto final de seu estudo, e fica nítido
que, se essa abordagem deve ser mesmo total, ela deve, aos olhos de
Mauss, incluir também os fatores inconscientes.
Fiel à inspiração comteana comum a todos esses luminares da
sociologia francesa, trata-se, para Mauss de, a propósito das técnicas
do corpo, mostrar como essa sociologia que reivindica para si o estu-
do do "homem total" pula a etapa psicológica do percurso que vai do
cosmo ao homem, de modo que a explicação sociológica se insere, sem
intermediários, na explicação biológica, como quer, aliás, o próprio
sistema de classificação das ciências professado por Mauss. É ao fran-
quear à investigação antropológica esse campo novo, delimitado pela
ação direta do social sobre o vital, que Mauss abre espaço para a con-
sideração dos fatores inconscientes. Essa interface entre o mundo da
vida e a sociedade, onde se decide, entre outras coisas, o uso socializa-
do do corpo 43, funda uma determinação que, por hipótese, está fora
do alcance do sujeito psicológico, tão fora que a psicologia - a "ciên-
cia" desse sujeito - não tem nada a acrescentar à explicação que o so-
ciólogo pode avançar a esse respeito. De fato, ao se perguntar qual é,
afinal de contas, o papel que os fatores psicológicos desempenham
nessa "montagem social" de técnicas enxertadas diretamente sobre o
biológico, Cazeneuve aponta como a resposta de Mauss implica a ne-
gação da possibilidade do psíquico agir como causa 44 . Se não chega a

43 Os exemplos de técnicas do corpo analisados por Mauss cobrem uma ampla.varie-


dade de comportamentos, nos quais o imbricamento entre as funções vitais e so-
ciais é patente. Quanto à infância, ele aborda o parto, o aleitamento, o desmame,
a educação dos sentidos, os hábitos gestuais. Não custa lembrar o quanto Lacan
insiste - no artigo ''La familie" principalmente - no caráter socializado mesmo
dessas funções cuja utilidade biol6gica é mais flagrante. Quanto à idade adulta,
Mauss observa e investiga, entre outras, as técnicas implicadas nos hábitos de sono
e vigília, na respiração, na marcha, na natação e, principalmente, nas relações se-
xuais. Cf. Cazeneuve, J. Sociologie de Marcel Mauss, p. 37).
44 "Mauss, que coloca ele mesmo a questão, permanece fiel a Comte ao negar que o
psíquico possa agir como causa, a não ser nos casos de invenção, que são raros,
mas ele tenta permitir-lhe uma certa existência, dizendo que ele age como uma
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 379

recusar qualquer espécie de realidade ao psiquismo individual, ele o


alinha, no entanto, completamente com a ordem dos efeitos, cuja cau-
salidade deve ser buscada na esfera social.
Abrindo mais um parêntese para enfatizar certas convergências
com o projeto lacaniano, é possível perceber que é exatamente esse o
lugar que Lacan quer atribuir aos fatos psíquicos, uma vez que, por
um lado, o endosso da tese psicogênica em psiquiatria exige a conces-
são de alguma ordem de realidade ao psiquismo, mas, por outro lado,
as exigências de cientificidade requerem que essa personalidade ou esse
sujeito assim reconduzido ao palco da medicina estejam submetidos a
uma forma rigorosa de determinação, compatível com os requisitos
de uma ciência médica. Não podendo ser orgânica essa determinação,
alternativa que recairia no organicismo reducionista cuja recusa é o
ponto de partida da Tese, ela só pode ser remetida a uma ordem social
homogeneizada ao sujeito por uma concepção da chamada gênese so-
cial da personalidade, que arremata a localização dos fatores psíquicos
na série dos efeitos de uma ordem social que os transcende.
Mas, retornando à noção de instinto, a impressão de um recuo
de Mauss, em relação à crítica veemente endereçada antes a MacDou-
gall, se dissipa logo, quando, ao passar ao comentário dos "serviços a
serem prestados pela sociologia à psicologia"45, ele se refere, mais uma
vez, ao seu trabalho sobre o poder sugestivo da idéia de morte. É, de
fato, em termos de uma "negação violenta do instinto de vida pelo
instinto social"46 que a eficácia letal da sugestão coletiva é retomada,

"roda de engrenagem". Essa metáfora parece - poder-se-ia dizer, lançando mão


de uma outra - com uma pirueta, pois ela parece conceder uma realidade ao
psiquismo individual, ao mesmo tempo em que proclama sua inutilidade para o
estudo das causas" (Sociologie de Marcel Mauss, p. 37). O próprio Lacan será cons-
trangido, ao longo de toda sua obra, a uma série de "piruetas" desse tipo, cada vez
que o seu fervor determinista colidir com a necessidade de manter a referência ao
sujeito, essencial à dimensão clínica da psicanálise.
-15 Sociologie et anthropologie, p. 298.
46 lbid, p. 299.
380 RICHARD THEISEN S!MANKE

onde, por "instinto social", evidentemente não se entende nada de se-


melhante ao instinto gregário puro e simples dos animais sociais, uma
vez que não se percebe qual poderia ser a utilidade biológica de uma
tal supressão do impulso individual de conservação, que em nada se
parece com os casos em que a morte do indivíduo serve à sobrevivên-
cia da espécie. Ao contrário, é a todo um conjunto de determinações
tipicamente culturais que o fenômeno é remetido (por exemplo, uma
crença compartilhada nos efeitos mortíferos e irreversíveis de certas
práticas de feitiçaria), de modo que "instinto social", sob a pena de
Mauss, significa muito mais um fator psicológico socialmente deter-
minado do que a determinação psicobiológica de um fato social por
um instinto herdado. É, portanto, a prevalência do social sobre o vital
que está sendo anunciada aqui, num sentido baseante próximo àquele
em que Lacan concebe a hipertrofia dos determinantes psíquicos, ima-
ginários e sociais diante da insuficiência da bagagem instintiva huma-
na, incapaz, por si só, de prover uma regulação eficaz para o compor-
tamento, que pudesse garantir a adaptação e a sobrevida do indivíduo,
do grupo e da espécie. Só que, em Lacan - um investigador médico
que, por isso mesmo, parte das premissas comuns às ciências da vida
-, há, pelo menos nesse seu período inicial, como que um vazio orgâ-
nico originário, a ser preenchido por um imaginário capaz de consti-
tuir o sujeito especificamente humano, enquanto que, para Mauss, que
pensa a mesma questão do ponto de vista da sociologia, isso assume a
forma de um cancelamento das tendências vitais por uma ação "vio-
lenta" dos fatores sociais. Em resumo: há, em Lacan, um argumento
biológico para a onipresença da determinação social no homem, ao
passo que, em Mauss, não se requer senão um argumento puramente
sociológico.
Mais interessante, talvez, seja a relativização do caráter patológi-
co e deficitário de certos fenômenos da clínica psiquiátrica que é per-
mitida por essa ênfase na determinação social. O exemplo escolhido
por Mauss é, justamente, essa tanatomania produzida pela sugestão
coletiva e que, por ser um fenômeno social característico de certas cul-
turas, só pode, pelo menos enquanto restrito ao âmbito dessas mesmas
ANTROPOLOGIAS LACAN!ANAS 381

culturas, ser considerado normal47 . Tudo se passa como se, ao se colo-


car a totalidade do psiquismo na dependência de um determinismo
social, o caráter patológico daqueles fenômenos psíquicos considera-
dos desviantes automaticamente se desvanecesse, já que eles, por hipó-
tese, sofrem a mesma espécie de determinação positiva que é imposta
aos fenômenos ditos normais. Daí a pensar-se o sintoma psic6tico
como um fenômeno de personalidade - ou de conhecimento, como
quer Lacan - e não como um distúrbio de personalidade, não há mais
do que um passo. A psicose, desenraizada do solo médico e conduzida
ao plano sociológico, perde sua significação mórbida, na exata medi-
da em que é só sobre aquele primeiro terreno que a idéia de doença
pode adquirir algum sentido concreto.
Embora, na continuidade, Mauss não cite senão dois exemplos
de contribuições da sociologia à psicologia - a saber, o estudo dos sím-
bolos míticos e morais e o do ritmo-, ele deixa bem claro que a quase
totalidade do campo psicológico pode ser informada pela sociologia,
na medida em que não há indivíduo hum~no que não seja, primordial-
mente, um ser social. No conjunto das ciências sociais, Mauss valori-
za especialmente a lingüística, por ter sido a primeira a endossar efeti-
vamente esse ponto de vista: "Entre os sociólogos, os lingüistas têm a
ventura de terem sido os primeiros a reconhecer que os fenômenos
que eles estudam eram, como todos os fenômenos sociais, primeiro so-
ciais, mas eram também, ao mesmo tempo,fisiológicos epsicológicos"48 .
Ele considera isso razão suficiente para tomar a lingüística como mo-

47 Diz Mauss: "As confusões mentais e as interpretações, os contrastes e as inibições,


os delírios e as alucinações que vocês [psic6logos] não observam, a não ser dificil-
mente e em casos patol6gicos, n6s temos deles milhões de exemplos e - o que é
mais importante - em casos normais" (Sociologie et anthropologie, p. 298). Segue-
se o exemplo da tanatomania, que é retomado mais à frente: "Ela [essa tana-
tomania] nos permitirá, com efeito, ver em detalhe isso que é preciso pensar do
instinto vital no homem: em qual grau ele está suspenso na sociedade e pode ser
negado pelo pr6prio indivíduo, por uma razão extra-individual" (ibid., p. 302).
48 Sociologie et anthropologie, p. 299; grifos nossos.
382 RICHARD THEISEN S!MANKE

delo para as ciências sociais49, de modo mais explícito do que aquele


que já se insinuava em Lévy-Bruhl, participando, assim, de uma ten-
dência mais ou menos generalizada da antropologia que lhe é contem-
porânea e que, radicalizada por Lévi-Strauss, vai desaguar com todo
seu impacto sobre Lacan, quando este começa a se empenhar em pro-
por um programa estruturalista para a psicanálise.
Fica claro que é à atribuição dessa espécie de prerrogativa ao so-
cial que se prende a exclusividade que cabe à sociologia no estudo do
"homem total". Em outras palavras, como os fenômenos em foco são
primariamente sociais, a sociologia pode desbordar sobre o domínio
das demais ciências, mas nunca o contrário. A explicação do fenôme-
no humano que pode ser oferecida por estas últimas está condenada,
por conseguinte, a uma irremissível parcialidade. Essa prerrogativa é
afirmada com especial vigor contra a psicologia, que parece fadada a
esse tipo de abordagem "abstrata" e "parcial" do homem. Ao contrá-
rio, "em nossa ciência, em sociologia, nós não encontramos quase, ou
quase nunca mesmo, a não ser em matéria de literatura pura, de ciên-
cia pura, o homem dividido em faculdades" 5º. Esse homem total é, ele
mesmo, uma parte desses "fenômenos de totalidade" dos quais a socio-
logia deve se fazer cargo. Essa totalidade, que surge como uma exigên-
cia epistêmica imposta a qualquer ciência do homem que se queira
concreta, se reflete, entre as "questões colocadas à psicologia", na ur-
gência que lhe é imposta a empreender o estudo desse homem com-
pleto, isto é, não pulverizado em "faculdades da almà', na sua versão
mais metafísica, nem em átomos de sensações, na sua versão pseudo-
científica. Não há dúvida de que é esse tipo de psicologia que Lacan

49 É bem no sentido de uma abordagem concreta frente a uma tendência desenca-


minhadoramente abstrata que esse aspecto exemplar da lingüística é enaltecido:
"A sociologia estaria, com certeza, bem mais avançada, se ela tivesse procedido,
por toda parte, à imitação dos lingüistas e se ela não tivesse caído nesses dois equí-
vocos: a filosofia da hisc6ria e a filosofia da sociedade" {Sociologie et anthropologie,
p. 299).
50 Sociologie et anthropologie, p. 303; grifos nossos.
ANTROPOLOG!AS LACAN!ANAS 383

persegue desde a Tese e ao longo das aventuras epistemológicas que


pavimentam seu caminho até a psicanálise. Resta examinar, então, no
que diz respeito ainda à obra de Mauss, o modo como se formula esse
privilégio concedido ao fato social total, lembrando que o trabalho em
que essa diretriz se consuma mais cabalmente é o clássico "Essai sur le
don ... ", figura central da introdução à obra de Mauss escrita por Lévi-
Strauss, a qual, por sua vez, é o texto por onde Lacan se introduz defi-
nitivamente, e ao mesmo tempo, no estruturalismo e na psicanálise.
Pode-se traçar, para tanto, um percurso ao longo do qual situar
diversos trabalhos-chave de Mauss (sem atenção a questões cronológi-
cas, diga-se logo) que represente o progresso rumo à circunscrição dessa
noção de fato social total, partindo do "Ensaio sobre as variações sa-
zonais na sociedade esquimó" e chegando até o "Essai sur le don ... ".
Nesse trajeto, ordenam-se as concepções fundamentais de sua antro-
pologia e, principalmente, de seu método, que se faziam presentes na
discussão do sistema das ciências e da relação entre a sociologia e a
psicologia e que, agora, podem ser devolvidas ao seu terreno original e
aí revelar as suas articulações internas. O t~abalho dedicado à socieda-
de esquimó, além de fornecer "ocasião para ver, em um exemplo pre-
ciso, isso que Mauss entende por fenômeno social total" 51 , serve para
firmar o lugar da morfologia social como marco inicial de toda investi-
gação sociológica que pretenda abarcar a totalidade concrefa da vida

51 Cazeneuve, J. Sociologie de Marcel Mauss, p. 48. Trata-se, nesse ensaio, de abordar ..


a variação observada pelos etnógrafos na estrutura e no funcionamento dos "esta-
belecimentos" esquimós - a verdadeira unidade social e territorial dessas popu-
lações, consistindo num certo número de famílias que mantêm um habitat co-
mum-, variação essa que acompanha o ciclo das estações: à dispersão do verão,
onde a habitação é a tenda familiar, e a família é a efetiva unidade social, segue-
se, no inverno, não só a concentração espacial em habitações coletivas, mas tam-
bém uma marcante intensificação da vida social extra-familiar. Partindo da expli-
cação mais plausível desse fenômeno pela neces~idade de acompanhar a dispersão
e a concentração d~ sua caça ao longo das estações, Mauss vai-se esforçar por ex-
plicar, por seu turno, esse sincronismo entre a sociedade e a vida ambiente a par-
tir de fatores eminentemente sociais.
384 RICHARD THEISEN S!MANKE

socia/ 52 e escapar, portanto, ao duplo pecado da parcialidade e da abs-


tração que, como se viu a propósito do debate epistemológico da psi-
cologia, parecem implicar-se mutuamente e andar sempre aos pares.
Em resumo, a estratégia de Mauss consiste em deslocar o foco
da análise dos fatores materiais que determinam a variação observada
- que, embora integrem a explicação morfológica, devem, por hipóte-
se, apenas secundar uma determinação social - para a própria suces-
são regular de um mínimo e de um máximo de sociabilidade. Essa su-
cessão passará a ser, então, explicada não mais como uma reação à
alternância meteorológica entre inverno e verão, mas como uma orga-
nização da vida social que se dá através da intervenção de um princí-
pio classificatório originário constituído pelas noções de inverno e ve-
rão53, que medeiam a apreensão dessas condições naturais. Mas, antes
de passar da morfologia às classificações - outro esteio das concepções
de Mauss, e um dos que resulta mais diretamente de sua colaboração
com Durkheim -vale a pena observar que esse deslocamento dos as-
pectos físicos do ambiente para a metabolização social desses mesmos
aspectos permite a Mauss, ao empurrar a análise sociológica ao seu
mais alto grau de generalidade, formular algumas "leis" universais da
vida social que não deixam de reencontrar certas hipóteses psicanalíti-
cas. Com efeito, ao tentar propor esse processo de contração/expansão
da sociabilidade como uma característica comum a todas as sociedades
humanas, Mauss acaba por reduzir a relação das variações específicas
da sociedade esquimó com seu meio circundante (por exemplo, a con-

52 É EG. Brumana, um dos comentadores em que nos apoiamos nessa reconstituição


esquemática das idéias de Mauss, que enfatiza a convergência entre a atenção à
significação, por um lado, e à totalidade, por outro, na construção de uma ciência
do concreto [ver Antropologia dos sentidos, principalmente os capítulos "Ciência
do concreto, ciência da significação" (p. 15-23) e "A totalidade concreta" (p. 50-
65), cf. acima, nota 21]. Essa convergência, por sua vez, parece familiar ao proje-
to lacaniano, naquilo em que ele se inspira em Politzer e sua descendência.
53 "Pode-se dizer que a noção de inverno e a noção de verão são como dois pólos em
torno dos quais gravita o sistema de idéias dos esquimós" ("Ensaio sobre as varia-
ções sazonais na sociedade esquimó", citado em Antropologia dos sentidos, p. 53).
ANTROl'OLOG!AS LACAN!ANAS 385

centração/dispersão sazonal de sua caça) à condição de uma mera causa


ocasional. A causa verdadeiramente determinante deve ser buscada em
"uma tendência ou necessidade universal da vida social" 54 ; no caso es-
quimó, as variáveis do meio físico explicam as particularidades do fe-
nômeno - sua intensidade, o calendário de seu ciclo, que acompanha
as estações -, mas fica aberta a possibilidade de que, em outros povos
e culturas, essa variação proceda de outra forma, apenas respeitando a
formulação genérica dessa lei universal das sociedades humanas. Qual
é, então, essa lei? Mauss a enuncia claramente: "Dir-se-ia, de fato, que
ela [a vida social] faz aos organismos e às consciências dos indivíduos
uma violência que eles só podem suportar durante um certo tempo, e
que chega um momento em que eles são obrigados a desacelerá-la e a
substrair-se dela em parte"55. Trata-se, como se vê, da versão, nos ter-
mos da antropologia de Mauss, da idéia freudiana de "mal-estar na
civilização", principalmente se lembramos a forma como essa idéia é
expressa, em A psicologia das massas... , pela parábola schopenhaueriana
dos porcos-espinhos no campo de neve, q1:1e se apertam ou se afastam
conforme pese mais na sua decisão o frio provocado pela neve
circundante ou a laceração que infligem uns aos outros com seus acú-
leos. Só que aquilo que, em Freud, decorria da reativação das tendên-
cias agressivas (leia-se aí: da pulsão de morte), provocada pela restri-
ção que a vida em sociedade necessariamente impõe às possibilidades
de satisfação pulsional dos indivíduos, agora é remetido a uma espécie
de propriedade originária das organizações sociais. Levando em conta
as preferências lacanianas, pode-se considerar esse um caso semelhan-
te àquele propiciado pelo estudo sobre a sugestão coletiva da idéia de· ·
morte: em ambos trata-se de um fenômeno familiar à psicanálise, que
encontra aí a ocasião de ser retirado de uma explicação que apele para
a metapsicologia das pulsões e de receber uma outra, que se inscreve
numa ordem de determinação exclusivamente social.

54 Sociologie de Marcel Mauss, p. 54.


55 "Ensaio sobre as variações sazonais ... ", citado em Sociologie de Marcel Mauss,
p. 54.
386 RICHARD THEISEN S!MANKE

Retornando a Mauss, podemos dizer, para encurtar a questão,


que a ordem do programa de investigação sociológica proposto por
Mauss para conduzir à apreensão do fato social total consiste, grosso
modo, na passagem da morfologia social para as classificações e, daí, às
representações coletivas, que permitirão circunscrever, adequada e glo-
balmente, os fenômenos da religião e da magia e, num grau mais alto,
os chamados sistemas de prestações totais analisados no "Essai sur le
don ... ", que representa a culminação de seu método e sua mais alta
realização. Num trabalho que assina junto ainda com Durkheim56 ,
Mauss e seu mentor intelectual propõem-se a mostrar que as classifi-
cações consistem primariamente na projeção sobre o mundo dos obje-
tos daquelas categorias segundo as quais se classificam os próprios gru-
pos que compõem a sociedade (tribos, fratrias, classes matrimoniais,
etc.). Nisso, não está fazendo nada mais do que dar o primeiro passo
na despsicologização da explicação social, na medida em que o esfor-
ço classificatório não depende, primitivamente, da atividade intelec-
tual dos indivíduos, mas sim reparte os objetos em classes que repro-
duzem aquelas dos grupos sociais e, na verdade, estão em continuidade
com elas. Tudo se passa como se a sociedade se constituísse como uma
espécie de negação da natureza, ao espalhar por sobre o meio natural
onde habita todas as significações sociais que dão vida ao próprio gru-
po57. Na verdade, a própria idéia de natureza passa a ser considerada
uma aquisição bastante tardia, fruto da especulação filosófica e cientí-
fica. A sociedade, originalmente, distingue entre as coisas da mesma

56 De quelques formes primitives de classification:' contribution à l'étude des répresen-


tations collectives, citado por Cazeneuve em Sociologie de Marcel Mauss, p. 56.
57 "A conclusão importante desse estudo é que as classificações não são fundadas a
priori; elas são apresentadas primeiro sob a forma de laços familiares. As coisas
·são aproximadas, distinguidas, confundidas ou opostas da mesma maneira que
os homens podem sê-lo, segundo os laços de parentesco ou, ao contrário, as lutas
entre grupos. A primeira características das coisas é a maneira pela qual elas afe-
tam a realidade social; elas são sagradas ou profanas, favoráveis ou desfavoráveis,
e se as agrupa fundando-se primeiro sobre semelhanças ou diferenças que são de
ordem afetiva antes que intelectual" {Sociologie de Marcel Mauss, p. 62).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 387

forma que distingue entre os homens ou entre os subgrupos de que se


compõe; e isso basta para a consecução de seus fins práticos, sendo
apenas os fins especulativos tardios da filosofia e da ciência que exi-
gem a constituição de uma ordem autônoma da natureza. Como não
se trata de propor mais uma perspectiva genética, ao modo de Lévy-
Bruhl, a idéia é, mais ou menos, que as coisas e fenômenos ditos "na-
turais" são imediatamente socializados, isto é, percebidos socialmen-
te. Uma vez constituída, a noção de natureza passa a funcionar como
uma espécie de limite desse processo espontâneo de socialização. Di-
ferentemente de Lévy-Bruhl, Mauss e Durkheim não querem propor
uma mentalidade primitiva distinta por natureza do pensamento racio-
nal - isto é, da racionalidade ocidental -, mas introduzir a idéia de
que estas classificações arcaicas, baseadas numa apreensão emocional
de relações sociais, são o fundamento comum de ambas as formas de
pensamento. Trata-se, enfim, de inverter o argumento frazeriano de
que as relações lógicas estão na base das relações sociais e propor que é
o soci~l que condiciona a lógica, ou seja, o.pensamento e as formas de
conhecimento. Para um Lacan que definiu.a paranóia como um fenô-
meno de conhecimento, antes de ir buscar à ordem social a sua deter-
minação, nenhuma formulação poderia parecer mais adequada. E, na
medida em que estas categorias, sociais em primeira mão, são as mes-
mas utilizadas para a classificação das coisas, em outras palavras, para
organizar a realidade, o que se obtém é a estrutura social fornecendo a
arquitetura do real, e não o contrário, vindo, de novo, ao encontro do
anti-realismo ferrenho de Lacan. Pode-se dizer que o que se observa .
nessa reconstituição do método maussiano é a construção progressiva ·
de um determinismo perfeitamente capaz de satisfazer as exigências
lacanianas, fixadas desde a conclusão de sua Tese5 8.

58 Cazeneuve assinala como já estão presentes nesse trabalho sobre as classificações


elementos do estado final das idéias de Mauss, principalmente o destaque concedi-
do à interdependência entre todos os aspectos da vida social, que está na origem
da noção de fato social total começando já a denotar uma disposição marcante-
mente anti-elementarista - "a unidade do todo é ainda mais real que a de cada
uma de suas partes"-, comum a ele, a certas escolas de psicologia como a Gestalt
388 RICHARD THEISEN S!MANKE

Avançando um passo mais, será nas suas tentativas de propor


uma "teoria geral da magia" que se evidenciará o papel predominante
das representações coletivas na organização da vida social e, num se-
gundo momento, como vimos, da realidade como um todo. Esta é
mais uma ocasião para Mauss refutar a interpretação animista de Frazer
e da escola inglesa, um pouco no sentido em que Lévy-Bruhl já o fa-
zia, mas, de fato, indo'üm passo além: em Lévy-Bruhl, tratava-se mais
de complementar a explicação de Frazer, considerando o princípio de
simpatia em que ela se apóia como um caso particular e um efeito da
lei de participação afetiva. Em Mauss, será afastada a idéia de que é
uma propriedade do pensamento individual, seja ela qual for, que ex-
plica a magia e a concepção mística do mundo; ao contrário, essa con-
cepção decorre, como se viu de uma projeção coletiva e espontânea
das categorias sociais sobre as coisas. Daí segue-se que o indivíduo
imbuído de poderes mágicos não obtém essa crença pessoal de um cer-
to modo de funcionamento de suas faculdades mentais, mas sim da
crença coletiva que o grupo deposita em seus poderes, dado um con-
junto de condições particulares e "anormais" que marcam a sua inser-
ção na coletividade. A condição de mágico ou xamã é, portanto, suge-
rida coletivamente ao indivíduo, num mecanismo semelhante àquele
descrito para a idéia coletiva de morte: a capacidade das representa-
ções coletivas de constituir a realidade social explica, num caso e nou-
tro, a produção de efeitos reais - a morte primeiro social, depois psí-
quica e, depois, física do indivíduo e a eficácia das ações mágicas,
reputadas por todos como produzindo efeitos concretos59 • É nesse sen-

e, com certeza, a Lacan. Mais especificamente, ele aponta como tudo isso começa
a convergir para o estruturalismo, que será abraçado por Lacan com um com-
preensível entusiasmo na vi,rada dos anos 50: "Dito de outra forma, este estudo
nos põe já sobre a via dos procedimentos operatórios que Mauss tornará mais
visíveis ainda em seu ensaio sobre a dádiva e que serão mais tarde reduzidos a seu
princípio quase matemático pelo estruturalismo" {Sociologie de Marcel Mauss,
p. 64).
Mauss: "t, portanto, a opinião que cria o mágico e as influências que ele
59 Afirma
emanà' (citado por Cazeneuve em Sociologie de Marcel Mauss, p. 69).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 389

tido, como uma representação coletiva, que Mauss vai entender a no-
ção de mana, usada por todos para explicar a religião e o pensamento
primitivo, dando assim início ao processo de "simbolização" dessa no-
ção, que culmina com Lévi-Strauss atribuindo-lhe a característica de
ser um "símbolo zero", ou seja, um elemento puramente formal de
um sistema simbólico e que, ao não significar nada por si só, se erige
em antepassado do significante lacaniano. ·· ~
Mas sem querer entrar muito nos detalhes aa_sociologia religio-
sa de Marcel Mauss, cabe ressaltar apenas os pontbs em que ela reen-
contra a sua sociologia do conhecimento. É Cazeneuve que nos dá a
expressão mais sucinta dessa relação, apontando como o artigo sobre
as classificações "pretendia nos fazer remontar às origens do entendi-
mento, que são, ao mesmo tempo, sociais e religiosas, a religião não
sendo, segundo eles [os autores], senão uma representação da consciên-
cia social, ao mesmo tempo em que ela é uma prefiguração das cate-
gorias da razão" 6º. É sempre, como se vê, a representação coletiva a
pedra· de toque de sua explicação sociológica e o fator unificador dos
diversos setores da sociologia. Tão unificá.dor que rompe completa-
mente com a possibilidade de uma sociologia dos povos primitivos
diferente daquela que se ocupa dos povos civilizados. Por isso, Mauss
reedita periodicamente as críticas a Lévy-Bruhl que, no fundo, se re-
sumem a uma: uma abordagem genética não pode ser uma aborda-
gem total e, por isso, não pode fundar uma explicação sociológica dig-
na desse nome. Seria mais ou menos isso: ao não ser suficientemente
total e abrangente, a abordagem de Lévy-Bruhl vê diferenças muito
marcantes entre fatos que representam tão somente duas formas de'
operação ou de articulação entre os elementos de um mesmo sistema.
No limite, isso vai implicar que não há uma gênese verdadeira, pois
todas as possibilidades estão dadas, de início, num sistema total, cuja
evolução apenas as atualiza. É claro que o que se observa aí são os

60 Sociologie de Marcel Mauss, p. 89. E o autor conclui: "Há, portanto, para Mauss
como para seu tio, uma identidade de tarefa e de domínio entre a sociologia reli-
giosa e a sociologia do conhecimento".
390 RICHARD THEISEN S1MANKE

embriões do credo estruturalista, ao qual Lacan vai fazer coro, quase


que sem reservas, pelo menos num primeiro momento, sendo levado,
cada vez mais, a recusar o ponto de vista evolutivo, assumido de início
como condição para a reintrodução do sujeito na psiquiatria. Na ver-
dade, o ponto de vista evolutivo é o "ponto de vista da pessoa'' pro-
posto na Tese, daí que o seu abandono vai sempre arriscar a dissolu-
ção da referência subjetiva, reputada, num certo momento, como
essencial. Mas, por outro lado, o privilégio que passa a ser concedido
à sincronia, na esteira da vaga estruturalista, vem também ao encontro
de certas palavras de ordem iniciais de Lacan, já que o ponto de vista
evolutivo começa, a seus olhos, a parecer implicar um excessivo realis-
mo e, portanto, ameaça reeditar os pecados mortais do normativismo
e do dogmatismo. É como se esse ponto de vista afirmasse que há uma
realidade em si que se desdobra, evolui e engendra diferenças reais e
não apenas, como rezará a fórmula posterior, uma estrutura, construto
teorético, cujas efeitos são formalizáveis combinatoriamente num sis-
tema total.
De qualquer forma, retornando a Mauss, ele é bastante explíci-
to ao afirmar que "as estruturas mentais implicadas nos fatos sociais
totais observados pelos etnógrafos são as mesmas que as nossas" 61 • As-
sim, se o mana, como já acontecia com Durkheim, é a noção-chave
de sua explicação da religião e da magia, ele é muito mais taxativo ao
defini-lo como uma categoria, mas não uma categoria exclusiva do
pensamento primitivo, e sim, ao contrário, uma primeira forma de
apresentação de categorias, sob todos os aspectos, essenciais a qual-
quer forma de pensamento; numa palavra, Mauss as nomeia, aquelas
de causa e de substância 62 . Na medida e·m que, por "categoria" - no

61 Sociologie de Marcel Mauss, p. 91.


62 "Mas o mana não é somente uma categoria especial da mentalidade primitiva, e
hoje em vias de redução: é, ainda, a forma primeira de que se revestiram outras
categorias que funcionam sempre em nossos espíritos: aquelas de substância e de
causa" (Hubert & Mauss, M. Mélanges d'histoire des religions, citado em Sociologie
deMarcelMauss, p. 91).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 391

sentido classificatório, mas também como uma "categoria do entendi-


mento", numa acepção bem kantiana, como se vê - Mauss entende,
rigorosamente, uma "representação coletiva'', fica referendado o papel
dessa última como fulcro da explicação de qualquer fenômeno social.
A função destacada que, por aí, é atribuída ao simbolismo social, uma
das idéias que leva Lévi-Strauss a anunciar Mauss como precursor do
estruturalismo, faz com que sua pesquisa assuma a forma de uma in-
vestigação dos sistemas de significação que estão por trás das diversas
instituições e práticas sociais e que, de fato, as determinam. É nesse
sentido que o "Essai sur le don ... " é a realização maior desse projeto:
ao mostrar a significação das estruturas subjacentes aos sistemas de tro-
ca que caracterizam a economia primitiva, Mauss retira esses procedi-
mentos do âmbito de uma explicação estritamente econômica e os ele-
va à condição de fato social total, o mais típico que se pode encontrar
em sua obra, nesse ensaio que pode ser considerado a realização maior
de seu método e o ponto de chegada dos elementos de sua obra
inventariados até aqui. É claro que não é possível se estender aqui so-
bre toda a complexidade deste ensaio, mas apenas abordar resumida-
mente as características que permitem ilustrar a idéia de fato social
total, na sua apresentação mais acabada. ·
Para resumir a história, Mauss pretende mostrar aí que a troca,
tal como a entende a economia clássica, não é o fato econômico primi-
tivo, mas sim a dádiva, a concessão aparentemente livre de presentes
que o destinatário, não obstante, deve retornar obrigatoriamente. Essa
estratégia permite inserir os fenômenos mais tipicamente econômicos
- as trocas de mercadorias úteis e necessárias à vida - num quadro··
bem mais amplo, nisso que ele vai denominar "sistema de prestações
totais"63, ou seja, um sistema de circulação de bens, os mais variados,

63 Definindo a expressão, Cazeneuve observa que, "nas sociedades ditas primitivas


não se observam simples trocas, isto é, intercâmbio de bens ou de riquezas no
decorrer de um mercado que se passa entre indivíduos. São coletividades que pro-
cedem a estes intercâmbios, e o que está em causa não são unicamente coisas úteis
do ponto de vista estritamente econômico, mas são também - e, mesmo, sobre
392 RICHARD THEISEN SIMANKE

que envolve não só indivíduos, mas grupos sociais inteiros (clãs, por
exemplo), e onde a dádiva, sua aceitação e sua retribuição são aparente-
mente voluntárias, mas, de fato, obrigatórias, já que prescritas por leis
tácitas que governam o mais profundo do funcionamento da socieda-
de. O próprio fato de que é algo de muito diferente do útil que circula
nessas trocas faz com que Mauss se pergunte que força, afinal, a coisa
intercambiada adquire nesse processo, a ponto de tornar compulsória
a sua devolução. Fica claro que é algo de semelhante ao bom e velho
mana que está sendo proposto aqui, um poder que garante ao objeto
uma certa eficácia social, devido às significações nele depositadas pela
sua participação numa representação coletiva. Parece faltar pouco para
Mauss afirmar o caráter estritamente simbólico dessas trocas, como fará
o estruturalismo, com o qual, no entanto, ele não se confunde total-
mente, nem que seja pelo fato de continuar se concentrando no obje-
to, e não na operação, o que parece reintroduzir na sua análise fatores
subjetivos e psicológicos que são recusados com tanto vigor em outras
partes. Mas deixemos de lado, por ora, esse suposto "estruturalismo
latente" de Mauss, para enfatizar as diferenças ainda presentes, já que
são estas que o aproximam mais dos termos em que Lacan se expressa
nesses tempos pré-estruturalistas, o que ajuda a confirmar Mauss como
mais uma "antropologia lacaniana", e em dois sentidos: como um mo-
delo presente e como antecipador de um modelo futuro.
Em primeiro lugar - e pelo próprio fato de que é característico
do método de explicação sociológica de Mauss a generalização, para
qualquer sociedade, de um princípio observado em uma civilização
primitiva - constitui-se aí uma ambigüidade fundamental, que parece
oscilar entre um evolucionismo implícito e. um estruturalismo incipiente.
Entenda-se: a questão é a de saber se o trânsito de Mauss da informa-
ção etnográfica sobre sociedades primitivas para as civilizações históri-

tudo - gentilezas, festins, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, feiras. Estas
prestações e contra-prestações, malgrado seu caráter obrigatório, se apresentam
como dádivas. É a esse conjunto de fatos que Mauss dd o nome de prestações totais"
(Sociologie de Marcel Mauss, p. 99; grifos nossos).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 393

cas da Antigüidade e, daí, para as sociedades civilizadas atuais signifi-


ca a proposição de um encadeamento no tempo, a descoberta de estru-
turas fandamentais (e, por isso, universais) ou a busca de corre'4ções
fancionais entre os fatos sociais e os quadros sociais64 (casos em que
teríamos, respectivamente, um evolucionismo, um estrutura/ismo e um
fancionalismo sociais). Talvez se possa dizer que, embora conserve al-
gum ponto de vista evolucionista - quem sabe uma fidelidade ao seu
ponto de partida durkheimiano -, o que Mauss procura são fenôme-
nos sociais humanos universais no tempo e no espaço e, nesse sentido,
abre caminho para o estruturalismo, mesmo que aí não chegue, pelo
próprio fato de manter sua visada centrada no fenômeno, ou seja, nos
efeitos de estrutura, e não nas estruturas elas mesmas 65 .
É nessa adesão, ainda, ao aspecto fenomênico da vida social que
Lévi-Strauss localiza o descaminho de Mauss que o impediu de pros-
seguir na via direita que conduzia ao ponto de vista estrutural. Mauss
não teria reconhecido, como quer Lévi-Strauss, que a própria troca
constitui o princípio essencial dos fenômçnos que ele analisa. Ora, se
o estruturalismo concebe a estrutura social fundamentalmente como
um sistema de trocas (de bens, de palavras, de mulheres), é porque
trata-se aí de uma operação que combina entre si os elementos,
doravante simbólicos, que compõem essa mesma estrutura e, com isso,
é possível deslocar a ênfase do objeto trocado para a própria troca, o
que significa preterir o que resta de empirismo em antropologia em
beneficio de uma abordagem formal 66• Pelo próprio fato de que Mauss

64 Cf. Cazeneuve, J. Sociologíe de Marcel Mauss, p. 106.


65 Afirma Mauss na conclusão de seu "Essai ... ", referindo-se especificamente à ques-
tão da dádiva e refutando explicitamente a Lévy-Bruhl: 'i\ssim, de um extremo a
outro da evolução humana, não há duas sabedorias. Que se adote, portanto, como
princípio de nossa vida isso que sempre foi um princípio e o será sempre: sair de
si, dar livremente e obrigatoriamente; não há risco assim de se enganar" ("Essai
sur le don: forme et raison de I' échange dans les sociétés archaYques", p. 265; grifos
nossos).
66 Para Cazeneuve, Mauss chega a promover uma espécie de profilaxia a este avanço
do formalismo: "Em termos mais precisos, é talvez graças à sua familiaridade com
394 RICHARD THEISEN S!MANKE

continuou a buscar a chave do processo nos termos - que, ao serem


considerados em si mesmos, não podem ser totalmente esvaziados de
sua realidade própria e reduzidos a elementos de uma combinatória -
é que ele viu-se restringido a uma abordagem particularista e não total
e, por esse caminho, reconduzido a uma explicação parcialmente psi-
cológica, supremo pecado para um estruturalista, já que apela excessi-
vamente para variáveis subjetivas. Sim, porque, ao concentrar-se no
mana do objeto doado (ou melhor, numa forma particular que este
assume nesses casos, para o qual elege o termo maori, hau), Mauss
estava, em última instância se interrogando sobre a razão, no duplo
sentido de motivo e racionalidade, de uma crença, ou seja, sobre um
fenômeno psicológico, o que arrisca a reaproximar sua abordagem da
questão das mentalidades. É claro que essa "repsicologização" é limita-
da, de imediato, pelo fato de que se trata, quanto ao mana e a toda
espécie de categorias desse tipo, de representações coletivas, e uma re-
presentação coletiva não pode, de modo algum, ser reduzida a uma
entidade psicológica, já que consiste, sempre e em qualquer caso, de
um compartilhamento de significações sociais que vão muito além do
psiquismo individual. Para não perder de vista o que Lacan tem a ver
com tudo isso, cabe assinalar que é só a partir do momento em que
começa a reconhecer um caráter não-psicológico à representação que
ele pode passar a aceitar a possibilidade de uma representação incons-
ciente e a pensar o determinismo do sujeito em termos mais próximos
aos freudianos. Mas essa despsicologização radical das representações
coletivas só se consuma com Lévi-Strauss, onde elas são substituídas
pelas estruturas, já então definitivamente inconscientes para os sujeitos
da cultura. De qualquer modo, parece que, enquanto a antropologia
continuou a se expressar em termos de representações, ela não conse-
guiu exorcizar completamente os fantasmas da famigerada "psicologia

a obra de Mauss que o estruturalismo de Lévi-Strauss soube evitar o perigo do


formalismo que ameaçava essa teorià' (Sociologie de Marcel Mauss, p. 123). Resta
saber se soube mesmo ou se, pelo menos, o restante do movimento estruturalista
seguiu também essa lição de cautela.
ANTROPOLOG!AS LACANIANAS 395

coletiva". É possível antecipar, ainda, que, nesse momento de transi-


ção, no qual, espremido entre a multiplicidade das referências que in-
voca, Lacan começa a entrever as insuficiências da abordagem psico-
lógica, mas mantém a idéia de que é preciso propor uma teoria da
gênese da subjetividade, ele tenha encontrado em Kojeve a possibili-
dade de uma abordagem do sujeito para além da psicologia, mantendo,
no entanto, a idéia de constituição, que se insere, agora, no contexto
de uma filosofia da história que é, ao mesmo tempo, uma antropologia
filosófica, isto é, uma reflexão filosófica sobre a origem e a especifici-
dade do sujeito humano.
Mas, com todas essas hesitações, o trabalho de Mauss, ao con-
vergir rumo a esses "fatos sociais totais", cuja circunscrição é concebi-
da como a tarefa principal e a realização maior do método sociológi-
co, conduz a uma confirmação e a uma consolidação, que têm um ar
definitivo, da idéia de que o social é a realidade humana por excelên-
cia, uma realidade que tem precedência e condiciona a apreensão da
realidade "natural". É nesse sentido que essa idéia - que passa do posi-
tivismo de Comte a Lacan, depois de atravessar o essencial da sociolo-
gia francesa - contribui para fundar uma causalidade forte numa or-
dem social que adquire densidade equivalente à do mundo físico, pelo
menos no que diz respeito aos fenpmenos humanos. Assim, se Lacan
pôde, na Tese, depositar aí suas esperanças de uma psicologia renova-
da, foi por estar inserido nesse movimento, do qual passa a participar
no exato instante em que volta as costas à causalidade organicista da
psiquiatria clássica. A vantagem suplementar que a obra de Mauss tem
a lhe oferecer está em que, nessa proposta de uma abordagem total do- ·
fenômeno - que inclui desde a morfologia, até as representações cole-
tivas e o simbolismo social-, a variável, por assim dizer, independen-
te, são os determinantes propriamente sociais, que condicionam até
mesmo a relação e a apreensão cognitiva do meio natural. Ela pode,
então, reforçar, do lado da sociologia, esta precedência do social sobre
o vital, que Lacan afirmara até então a partir de argumentos biológi-
cos, como a prematuração de Louis Bolk ou o Umwelt de von Uexküll,
que enfatizava o papel ativo do organismo na construção de seu meio
próprio. É por essa via que a noção de fato social total contribui com
396 RICHARD THEISEN SrMANKE

a vertente determinista do pensamento lacaniano, embora, como se


viu, ela não chegue ao ponto de excluir completamente o sujeito. Com
ela, se desnaturaliza o real e se despsicologiza o sujeito, ao incluir este
tipo de fatores numa série causal onde ambos ocupam o lugar dos
efeitos.
Em suma, se a referência mais manifesta na Tese é a de Lévy-
Bruhl, que permite a Lacan pensar antropologicamente a perspectiva
genética, com a qual se identifica o "ponto de vista da pessoa" e a rein-
trodução do sujeito - que, afinal, a seguirmos a análise de Bertrand
Ogilvie, é o objetivo maior da obra-, podemos imaginar que o pensa-
mento de Mauss, mesmo que tenha tido uma ação bem mais indireta,
teve aí um papel complementar, a serviço do fortalecimento daquilo
que, na Tese e depois dela, aspira a uma ciência objetiva da personali-
dade, que, para superar os entraves de uma psicologia atomística e abs-
trata, precisa, justamente, de uma sociologia votada à investigação des-
sas "totalidades concretas" 67 que são os fenômenos sociais totais. Não
é difícil imaginar que, na medida em que Lacan se empenhe cada vez
mais, nos anos seguintes, numa empresa epistemológica que visa ar-
rancar a psicologia à sua estagnação pré-científica, a ênfase passe a re-
cair mais sobre a determinação ou a dependência do sujeito do que
sobre sua atividade, com o que as abordagens totalizantes ou quase-
estruturais de Mauss ganham terreno sobre a perspectiva evolutiva à
la Lévy-Bruhl. O próprio fato de que Mauss não leve até o fim essa
exclusão das variáveis subjetivas e psicológicas de sua análise garante a
Lacan, ao beber de suas fontes, uma certa margem de manobra para
conservar a referência ao sujeito, enquanto avança num projeto cien-
tífico para a psicologia. Esse projeto, irrealizável sobre o plano da psi-

67 Diz Cazeneuve, na conclusão de seu estudo sobre Mauss, que, não obstante as
diversas leituras posteriores da sua obra, "o importante era, talvez, que primeiro
se denunciava os escolhos de uma sociologia que atomizava o real ou se perdia na
abstração" (Sociologie de Marcel Mauss, p. 126; grifos nossos). Ou seja, Mauss, a
seus olhos, salva a sociologia daqueles mesmos perigos dos quais Lacan, seguindo
as indicações de Politzer, quer salvar a psicologia e a psicanálise.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 397

cologia em si mesma, acaba encontrando uma solução, ainda que pro-


visória, numa psicanálise lida à luz do estruturalismo e que tem (ou,
pelo menos, teria) que assumir o banimento do sujeito que aquela dou-
trina Ímplica; em outras palavras, o "assujeitamento" do sujeito à lin-
guagem que Lacan passa a propor assumiria, no limite, a forma de uma
aniquilação. Mas, entrementes, Lacan adquirira ainda uma outra fer-
ramenta teórica na dialética hegeliana da constituição da consciência
de si reinterpretada por Kojeve, referência que permeia toda a sua teo-
ria do imaginário e·que vai-lhe permitir tentar uma abordagem do su-
jeito e de sua gênese fora de uma perspectiva psicológica. Isso terá o
mérito de oferecer a Lacan uma saída para, mesmo subscrevendo o
anti-psicologismo generalizado do método estruturalista, manter o
sujeito como um dos pilares de sua teoria, bastando, para tanto, tra-
duzir uma vez mais os "tempos" da dialética nos termos de uma "lógi-
ca do significante"68 , com o que o sujeito ressurge, milagrosamente,
no seio de um "inconsciente estruturado como uma linguagem''. Mas,
antes disso, é a origem do sujeito numa relação imaginária com seus
outros que o ensino de Kojeve vai ajudar Lacan a formalizar, dando,
segundo a voga da época, um matiz hegeliano à sua teoria do estágio
do espelho e reforçando, assim, a sua vocação para o concreto.

68 O primeiro momento em que essa identificação é tentada é o artigo sobre "Le ..


temps logique et 1 'assertion de la certitude antécipé", de 1945. Os três momen-
tos da "modulação do tempo" antecipam os passos da lógica do significante a ser
enunciada mais tarde, em termos pretensamente algébricos, por Lacan. O instan-
te de ver corresponde à inscrição do significante puro (o Sl), o tempo para com-
preender à escansão significante (o lado negativo da "cópula", a "demora'' que ex-
pressa a resistência do significante a se compor em sistema e produzir
significações) e o momento de concluir à articulação com o S2 e a conseqüente
precipitação do sentido (ver o artigo citado, principalmente p. 204-7). Alain
Juranville trabalha explicitamente a lógica lacaniana do significante nos termos
da dialética hegeliana e da relação do sujeito com o Outro, tentando dar um peso
efetivamente filosófico a essa aproximação (Lacan e a filosofia, p. 111).
398 RICHARD THEISEN SIMANKE

V.3, SUJEITO, DESEJO E NEGATIVIDADE

É, realmente, a título de uma nova antropologia que o pensa-


mento de Kojeve participa da elaboração das teses lacanianas69. Mais
especificamente, de uma teoria da antropogênese, que tem a vantagem
de pensar o sujeito humano na sua generalidade - quase que se pode-
ria dizer, com Mauss, na sua "totalidade concreta" -, ultrapassando,
assim, a perspectiva evolucionista que Lacan pensara ter encontrado
em Lévy-Bruhl, mas que dizia respeito apenas a uma hierarquia das
formas de conhecimento, se bem que se estendesse sobre suas conse-
qüências para a quase totalidade dos fatos psíquicos e sociais (aqueles
que envolvem a afetividade, por exemplo). Além disso, é, definitiva-
mente, da constituição do sujeito que se trata aí. Ou seja: Lévy-Bruhl
permitia a Lacan situar geneticamente os processos cognitivos e, deste
modo, dispor de um instrumento para pensar a diferença - desde en-
tão, circunstancial, é verdade - entre o conhecimento paranóico e o
dito normal em termos de uma localização diferenciada ao longo de
uma mesma linha evolutiva (esta a idéia de uma fixação e de uma estase
do desenvolvimento exposta na Tese). Já com Kojeve, todo esse pro-
cesso vai poder ser visto, não da perspectiva da instância determinante
(a sociedade), mas no da instância a ser determinada (o sujeito), com
a vantagem suplementar de evitar os escolhos de um excesso de
psicologismo, que ameaçavam a teoria sempre que a ênfase recaía so-
bre o "ponto de vista da pessoa", que, afinal, era um dos esteios da
Tese. Como já se mencionoú acima, é uma teoria não-psicológica da
constituição do sujeito que Lacan encontra em Kojeve, não só porque

69 "De modo geral, Kojeve deu uma versão antropológica da filosofia hegelianà'. Cf.
Vincent Descombes em Le même et l'autre: quarante-cinq ans de philosophie ftan-
faÍSe (1933-1978), p. 40; grifos do autor. As páginas que se seguem se apóiam, de
modo geral, na análise feita por esse autor do impacto de Kojeve sobre a filosofia
francesa deste século, no primeiro capítulo da obra citada, intitulado ''1:humani-
sation du néant" (p. 21-63).
ANTROPOLOG!AS LACAN!ANAS 399

tudo se passa no interior do território da filosofia, mas também por-


que essa filosofia particular - o Hegel da Fenomenologia do espírito -
foi aí galantemente traduzida para os termos de um drama humano,
histórico e social, no qual se joga a possibilidade da constituição da
consciência de si. Antecipando um pouco, esta última só se pode for-
mar numa situação social - o encontro com o "outro", a relação de
dominação, o trabalho, etc. Em linguagem hegeliana, o plano estrita-
mente psicológico se identifica com o mero sentimento de si, a certeza
subjetiva que tem que ser posta à prova no conflito com o outro para
aceder à condição de Selbstbewusstsein, que, portanto, se localiza nessa
interface entre o subjetivo e o objetivo, na realidade social onde Lacan
quer situar o seu sujeito.
Como aponta Descombes, Kojeve é, sem dúvida, um dos prin-
cipais mentores da ressurreição de Hegel "como um autor de vanguar-
da" nos anos 30 da inteligentsia francesa. Se Lacan pôde, num certo
momento, enunciar em linguagem hegeliana certas formulações de sua
doutrina em formação e, ao mesmo tempo, ser fiel à sua determina-
ção de manter a psicanálise alinhada com tudo que havia de mais "mo-
derno", no bom e no mau sentido, em sua época, é porque, por um
lado, Kojeve já tinha efetuado essa atualização do vocabulário da
dialética e, por outro, porque boa parte da "modernidade" intelectual
francesa, com a qual Lacan quer se medir em pé de igualdade, for-
mou-se à sombra do seminário kojeviano ou foi por ele influenciado

70 Tal é o caso de Sartre, o "contemporâneo alternado" de Lacan segundo Roud.i-


nesco, que teve acesso a Kojeve através do texto publicado em Mésures, em 1939
(cf. Arantes, P. E. "Um Hegel errado, mas vivo: notícia sobre o seminário de Ale-
xandre Kojêve", p.73, n. 2), que consiste na tradução comentada de uma passa-
gem da Fenomenologia... em que se descreve a Dialética do Senhor e do Escravo.
Esse trecho, republicado na abertura da lntroduction à la lecture de Hegel talvez
seja o mais representativo do pensamento de Kojêve, que fazia dessa dialética o
pivô de sua leitura de Hegel. Veremos, à frente, como esse texto pode ser conside-
rado como o "programa oficial" da teoria do sujeito que Lacan quer propor à psi-
canálise, assim como a "Introduction à l'oeuvre de Marcel Mauss", de Lévi-Strauss,
pode-se considerar o "programa oficial" de seu projeto epistemológico.
400 RICHARD THEISEN SIMANKE

por vias mais ou menos indiretas70 . Há os que especulam que Lacan


herdou de Kojeve não apenas uma certa temática e uma terminologia
nova em folha para expressar suas idéias, mas também a própria for-
ma e o estilo do Seminário: ele teria tentado fazer com Freud, dos anos
50 em diante, mais ou menos o que Kojeve fazia com Hegel nos anos
30, isto é, traduzir uma doutrina julgada ultrapassada, conservadora
ou, pelo menos, restrita a certos círculos institucionais em termos que
lhe permitissem alcançar a imaginação teórica de sua geração, trazen-
do-a assim para o primeiro plano do debate intelectual que lhe era con-
temporâneo. Mas, especulações à parte, vejamos primeiramente al-
gumas questões de caráter geral envolvidas na releitura kojeviana da
Fenomenologia do espírito que não são estranhas ao encaminhamen-
to lacaniano.
Há, em primeiro lugar, a torção operada no racionalismo abso-
luto de Hegel ("o real é racional", que Lacan explorará mais tarde em
outros contextos), muito dialeticamente, é verdade, mas que vai per-
mitir, não só a apropriação existencialista de Kojeve (a racionalidade
do real não será mais incompatível com o absurdo da existência), como
também uma aproximação, da parte de Lacan, dos temas que o inte-
ressam mais de perto. De fato, na versão kojeviana, um pensamento
dialético não se pode permitir, como a razão analítica, uma oposição
simples entre o irracional e o racional. Ao contrário, na confrontação
dialética entre o mesmo e o outro, a razão deve, de alguma forma, in-
corporar seu contrário, modificá-lo no mesmo movimento em que
modifica a si mesma. Ora, "o outro da razão é a desrazão, a loucura.
O problema que se coloca, assim, é o de uma passagem da razão pela
loucura ou a aberração, passagem prévia a todo acesso a uma verdadei-
ra sabedoria"71 • O que Lacan ganha com isso, então, é uma sanção
filosófica perfeitamente na ordem do dia para a sua hipótese do co-
nhecimento paranóico, nos dois sentidos em que ela se formula: a para-
nóia como fenômeno de conhecimento e o conhecimento como fe-
nômeno paranóico. Pois, se a loucura não é mais estranha à razão, mas

71 Le m1me et l'autre... , p. 25; grifos do autor.


ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 401

a integra de alguma forma, nada mais natural que a psicose seja um


fenômeno de conhecimento, isto é, um efeito da aplicação dessa razão
sobre o real. Mas, na medida em que a passagem pela- loucura seja
mesmo condição para a verdadeira sabedoria, Lacan tem ainda todos
os trunfos na mão para extrair daí a conclusão: todo conhecimento
humano é, no fundo ou pelo menos em primeira instância, paranóia,
sem que isso queira dizer que ele seja simplesmente um engano. Des-
combes generaliza a posição de Kojeve falando de uma origem dérai-
sonnable du raisonnable - é verdade que mais em relação ao modo
como este concebe o movimento da história, cujo motor é a violência
e não a razão 72• Para Lacan, isso significaria enunciar o fundo psicótico
de toda personalidade ou de todo sujeito, que se constrói, no entanto,
como uma estrutura que conserva e integra as reações cognitivas às
ações do meio social, que constituem a sua história. Esse é mais um
passo do trajeto que vai levá-lo a concluir que a psicose encerra a ver-
dade do sujeito em geral, verdade que Freud procurou em vão no su-
jeito da neurose, uma versão amena e se~undária do primeiro.
Torções desse tipo vão fazer com 'que, em Kojeve, o idealismo
de Hegel configure, curiosamente, a verdadeira "filosofia concreta,,,
afinando, em conseqüência com a palavra de ordem com a qual Lacan
se identifica desde suas leituras de Politzer. É claro que isso só é possí-
vel se o idealista dá-se conta de que o ideal ainda não é o real, ou seja,
que a história ainda não terminou e que é preciso terminá-la pela ação.
Isso feito o 'erro de hoje se transformará na verdade de amanhã: tour de
force dialética que a ação realizará ou, como se dirá com um termo
que se quer marxista, a práxis"73. É, pois, nesse curto-circuito entre o

72 Cf. Le même et f'autre..., p. 26. Segundo Descombes, é uma concepção terrorista


da história que Kojeve lega a seus ouvintes, que repercute até no Merleau-Ponty
de Humanismo e terror. Passam por af temas como a identificação entre o filósofo
e o tirano, e assim por diante. Cf. Le même et l'autre..., p.27).
73 Le même et l'autre..., p. 29; grifos do autor. Descombes aponta ainda que, "depois
de 1965, e para se demarcar dessa versão "existencial" do marxismo, não se dirá
mais "práxis", porém "prática". Por exemplo, a escrita será uma ''prática signi-
ficante" e a filosofia uma "prática teórica" (Le même et l'autre... , p. 30). Lacan
402 RICHARD THEISEN SJMANKE

ideal e o real que o termo "práxis" se incorpora ao vocabulário de um


Lacan empenhado na construção de uma teoria com forte vocação in-
telectualista, mas para quem o sentido tem que ser concreto. É mais ou
menos isso que Merleau-Ponty enuncia ao falar da práxis como "o lu-
gar do sentido"74 e que Lacan reforça ao definir, em Le séminaire XI, a
práxis como qualquer maneira de tratar o real pelo simbólico, defini-
ção excessivamente abrangente para dizer qualquer coisa de preciso,
mas que, de qualquer modo, revela a familiaridade que se formou en-
tre a práxis e as categorias lacanianas mais típicas.
Por outro lado, a engrenagem kojeviana - ou a "filosofia con-
cretà' que dela se reivindica - é capaz ainda de mostrar que a antro-
pogênese hegelianizada que ela quer propor não é de todo estranha às
. "filosofias do cogito. Sem querer entrar muitos nas minúcias, o argu-
mento, em linhas gerais, é esse: se o eu do cogito é um absoluto, a con-
dição à qual tudo o mais é relativo, ele é necessariamente único e soli-
tário, pois não pode haver mais de um absoluto. Mas, por isso mesmo,
se houver outra consciência pensante - um outro sujeito do cogito -,
ela será obrigatoriamente uma consciência rival, uma consciência que
disputa com a primeira a condição de sujeito. Por aí, surge o proble-
ma clássico da fenomenologia francesa, o "problema do outro", ao
mesmo tempo em que se insinua o tema da luta das consciências, que
é o passo inaugural da antropogênese d'apres Kojeve75 . Se isso quer
dizer, como Descombes menciona, que a filosofia concreta não ia
muito longe em seu combate com a filosofia universitária calcada na

acompanhará também os novos ventos e, lacanianamente, a psicanálise será defi-


nida como uma "prática do discurso".
74 Cf. Le même et l'autre... , p. 29.
75 Cf. Jbid., p. 35: "Ora, não pode haver simultaneamente vários absolutos. Um
segundo absoluto (outro) significa necessariamente um rival do primeiro absolu-
to (eu, ego). A passagem do cogito ao cogitamus não é a passagem do "eu" da medi-
tação solitária ao "nós" de uma República dos espíritos. No plural, os absolutos
não são mais que pretendentes ao absoluto, são os concorrentes que se dilaceram
em torno do trono".
ANTROl'OLOGIAS LACANIANAS 403

idéia do cogito, por outro lado, ajuda a compreender como se difun-


diu a idéia da ''rivalidade inerente à noção mesma de sujeito': que expli-
ca o sucesso da Dialética do Senhor e do Escravo na gera,ção da qual
Lacan participa, mas também que este último possa, repetidas vezes a
partir daí, ter identificado o sujeito do cogito com o seu sujeito e, mais
tarde, com o sujeito do inconsciente. O argumento implícito é qual-
quer coisa assim: é necessário reinventar um sujeito que, ao contrário
do cartesiano, não seja autônomo e incondicionado, mas determina-
do e dependente; a ordem de determinação adequada ao sujeito é a
ordem social, que pode ser reduzida à sua expressão mínima (o ou-
tro). Ora, o sujeito cartesiano isolado é apenas aparentemente o sujei-
to humano por excelência; no dizer de Kojeve, como veremos, ele tem
apenas o sentimento de sua humanidade, mas não verdadeira consci-
ência, isto é, não tem o seu conceito. O verdadeiro sujeito só nasce do
conflito onde ele impõe ao outro sua condição de sujeito: mesmo ven-
cedor do embate, ele é determinado por esse encontro agressivo com
o outro, protótipo de todas as relações sociais {isso era o que Lacan
dizia em 1938 a propósito do ciúme fraterno primordial). Como se
vê, essa talvez seja a primeira via pela qual o sujeito cartesiano se
desincompatibiliza com o projeto de Lacan: ao Descartes "fenomenó-
logo" que se insinuava, como já vimos, a propósito das relações entre
alma e corpo, se acrescenta um inesperado Descartes "dialético", o que
revela que Lacan não era o único a tomar certas liberdades no trato
com os filósofos clássicos.
É claro que não é só isso: a origem do sujeito humano é mani-
festamente pensada como uma negação da sua condição natural. Essa ·
negação é remetida a um desejo especificamente humano que conduz
a uma forma de ação - isto é, em termos kojevianos, de negação do
dado - também ela especificamente humana: respectivamente, o dese-
jo de reconhecimento e a luta de puro prestigio, como se verá adiante,
diretamente sobre o texto de Kojeve. Assim, a explicação da origem
do sujeito pela negação se faz completar por uma explicação da ori-
gem da negação pelo desejo, e inaugura-se também o perene discurso
de Lacan sobre o desejo como negatividade pura que preside à consti-
tuição do sujeito, tudo isso transportado para o terreno psicanalítico
404 RICHARD THEISEN S!MANKE

pela identificação, sem muitos pudores, entre a Begierde hegeliana e o


Wunsch freudiano - ambos traduzidos sistematicamente por désir -,
que Lacan jamais colocou em questão.
Por outro lado, esse papel central que é concedido à ação não
será, ele também, sem conseqüências para o encaminhamento lacani-
ano em direção à Freud. Já se tornou lugar-comum medir a distância
que separa Lacan de Freud pelos dois motes que elegem para expres-
sar o problema das origens (da cultura, do sujeito, etc.): enquanto
Freud vale-se, em Totem e Tabu, do "no princípio era a ação" {ln den
Anfongen war der Tat) de Goethe, Lacan, por razões muitíssimo com-
preensíveis, sempre se inclinou mais pelo Evangelho de São João e seu
"no princípio era o Verbo". Ora, para Kojeve, a ação está na origem da
história, ela é o motor da reversão do verdadeiro no falso e do falso no
verdadeiro que define a dialécica76 • Ela introduz no mundo natural
esta negatividade com relação ao dado que engendra o mundo hu-
mano. Mas, concomitantemente, se também a "palavra é a morte da
coisà', ela é igualmente negadora do dado, ela é igualmente ação. Dessa
identidade entre palavra e ato que Lacan extrai como conclusão dessas
premissas, emerge a possibilidade de conciliar as preferências freudia-
nas com as suas, mostrando que o verbo e a ação coincidem na sua
função originária e criadora de mundos. Sai daí, ainda, uma série bas-
tante longa de considerações sobre o "ato analítico" (a interpretação
que opera pela palavra), sobre a transferência (também ela uma ope-
ração significante) como mise en acte do inconsciente, e assim por dian-
te. Por esse caminho, Lacan vai tentar facilitar sua tarefa de aclimatar
o ativismo intransigente de seus primeiros mestres (Kojeve, Politzer) à
pacata metodologia estruturalista.
Essa ênfase na ação mostra-se, por tudo isso, em perfeita conso-
nância com o papel que Kojeve desempenha na construção do corpus
Iacaniano. Vale lembrar que o dilema central dessa construção era a
antinomia entre a atividade e a dependência do sujeito - condição para
o sentido e condição para a ciência, respectivamente - que brocava já

76 Cf. Le même et l'autre... , p. 42.


ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 405

das páginas da Tese. Kojeve alinha-se nitidamente com a vertente de


uma teoria do sujeito, enquanto que as outras antropologias de Lacan
(Mauss, Uvi-Strauss) são chamadas a contribuir na fórmula de sua
determinação. Ora, o sujeito humano de Kojeve só se define enquan-
to atividade. É na ação que ele se humaniza e humaniza o mundo em
que vive, essa ação essencialmente negadora dos objetos dados sobre
os quais se aplica. Tanto que é na situação prototípica da constituição
do sujeito - a luta da consciência e a relação de dominação que dela
resulta - que comparecem as duas formas da Ação reconhecidas por
Kojeve: a luta e o trabalho 77 , conforme veremos adiante, no texto de
abertura do livro de Kojeve. Aliás, o próprio título da seção da Fenome-
nologia do espírito que é traduzida e comentada nesse texto já enuncia
o antigo dilema lacaniano: "Dominação e servidão: autonomia e de-
pendência da consciência de si" (leia-se aí: do sujeito).
As teses de Kojeve vêm, portamo, complementar a concepção
lacaniana da especificidade do sujeito humano que, sem elas, se for-
mularia apenas sob uma forma negativa,. isto é, como ausência de de-
terminação natural. Esta, como se viu, era·a idéia que Lacan empresta-
va à embriologia de Louis Bolk. Mas, com Kojeve, a Menschenwerdung
lacaniana pode ultrapassar essa_ vivência passiva da falta e assumir um
caráter ativo: não é só uma ausência, mas uma negação do dado natu-
ral que produz o sujeito humano. O sujeito nega a sua natureza ao

77 Essas duas formas de a<;ão constituem aquilo que Descombes chama de "a via.
antropológica" da negatividade em Kojeve. A outra via - a "metafísica'' - passa
pela oposição entre história e natureza em termos de identidade e negatividade:
"A naturer.a, já que esse é o nome do que se produz sem que o homem aja, deve
ser plenamente positiva. O ser natural se define pela identidade (no sentido ordi-
nário e "não-dialético" do termo). A coisa natural- o cascalho, o cão - é o que ela
é e não é nada a não ser isso que sua natureza (sua identidade) lhe ordena ser. Daí
o ensinamento de Kojeve: a história é dialética, a natureza não é" (Le même et
l'autre... , p. 47; grifos do autor). Estas são, por assim dizer, as bases metafísicas da
distinção que Lacan faz entre a conaturalidade do conhecimento animal e o co-
nhecimento humano, cujo caráter "paranóico" consiste em atribuir positividade
a isso que é apenas o resultado da sua ação negadora.
406 RICHARD THEISEN SIMANKE

colocar a vida em risco pelo reconhecimento, nega o objeto natural


transformando-o pelo trabalho, e assim por diante. E se, por um lado,
Kojeve vem em socorro de Lacan, ao auxiliá-lo a pensar a constituição
do sujeito no confronto com os seus "ol!tros", hegelianizando um pro-
saico experimento da psicologia animal e comparada a ponto de con-
verter o estágio do espelho no paradigma de todas as identificações
imaginárias nas quais o sujeito se forma, se aliena e se perde78 , por
outro lado os próprios termos da doutrina já apontam para a insufi-
ciência dessa concepção: o imaginário funda um sujeito e todo um
sistema de relações calcados na identidade, traduzindo, na terminolo-
gia "especular" de Lacan, a teoria freudiana do narcisismo, onde o eu
se constitui como idêntico ao objeto, onde o conservadorismo das pul-
sões trabalha no sentido da preservação dessa identidade. Conclusão:
a hominização, sendo um engendramento contínuo de diferenças79 ,
não pode ser pensada apenas pelo crivo do imagindrio, constatação que
levará Lacan a erigir o seu registro do simbólico eminentemente sob o
signo da diferença, atribuindo-lhe, a partir de certa data, o papel pri-
mordial no processo de constituição. Tentará reverter o conservado-
rismo das pulsões, em Freud, através de uma concepção que vê na
pulsão de morte, essa negadora por excelência da realidade vital, uma

78 Quanto ao tema da alienação, Lacan promove um de seus famosos curto-circui-


tos terminológicos, dessa vez, é verdade, auxiliado pelo próprio Kojeve: a aliena-
ção da consciência infeliz, separada de si mesma (a de Jean Wahl, por exemplo) se
identifica, com Kojeve, com a alienação ideológica, num sentido mais ou menos
marxista e todas, por sua vez, se identificam, em Lacan, com a alienação no sentido
clínico do termo, isto é, com a loucura, de modo que uma pode sempre funcionar
como metáfora da outra (Cf. Arantes, P. E., "Hegel no espelho do Dr. Lacan", p.
67). A história das "identificações alienantes" do sujeito é a história da formação
do fundo paranóico de toda personalidade humana; da mesma forma, e em sen-
tido inverso, a ideologia será considerada um sintoma social, e assim por diante.
79 "Agir, na história, é trabalhar para não ser tal como se é. Em suma, o ser significa,
na natureza, a identidade, e na história, a diferença. A coisa natural é enqu;mto
que ela é idintica. O ator histórico é enquanto que ele age, e de age enquanto que
ele não cessa de ser diferente" (Le mime et l'autre... , p. 51).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 407

espécie de essência da atividade pulsional como um todo, ressaltando


o seu caráter criativo, já que a negação não vai mais significar aniqui-
lação, mas supressão dialética de um ser pela criação de um ser "ou-
tro", na qual o primeiro, não obstante, sobrevive de alguma maneira.
Assim, se a obra de Kojeve fornece a Lacan uma parte dos ma-
teriais para a construção de sua teoria do imaginário, ela já aponta para
os seus limites e, nesse sentido, contribui para empurrar a teoria laca-
niana para a forma que ela assumirá na virada dos anos 50. Tanto que
o vocabulário e as figuras hegelianas comparecerão, com freqüência,
como elementos dos textos de Lacan desse período. Na verdade, pelo
menos numa forma explícita, comparecerão com maior freqüência do
que nos anos da elaboração da teoria do estágio do espelho, em que
nosso autor ainda era comedido no emprego claramente metafórico
de conceitos filosóficos (ou outros) em suas teorias. Embora Lacan te-
nha sido um razoavelmente assíduo seminarista kojeviano e tenha,
portanto, adquirido um variegado repertório de imagens hegelianas
com que abastecer, depois, seu próprio sc;minário80, o essencial dessa
temática pode ser encontrado no já citado texto de abertura da lntro-
duction à la lecturede Hegel publicado ainda em 1939. Examinado de
perto, esse texto apresenta-se como uma espécie de programa para a
teoria lacaniana do sujeito à época, assim como daquelas que ainda
estão por vir. Esse exame pode, assim, fazer surgir no detalhe esse
ideário teórico bastante abrangente que Lacan foi buscar em Kojeve.
Desde o início, o texto de Kojeve deixa bem claro que é da ques-
tão da antropogénese que ele se ocupa, ou seja, de uma pergunta pelas
origens do sujeito humano: "O homem é Consciência de si. Ele é cons;. ·
ciente de si, consciente de sua realidade e de sua dignidade humanas,
e é nisso que ele difere essencialmente do animal, que não ultrapassa o

80 Uma das mais perenes e freqüentes sendo a da "bela alma" (com seus correlatos: a
"lei do coração", o "delírio de presunção", etc.), que expressa, metaforicamente, a
condição paran6ica: a alma que projeta no mundo a desordem que recusa em si
mesma e, da{, afasta-se dele ou tenta impor-lhe a "lei de seu coração", etc.
81 Kojeve, A. lntroduction à la !ecture de Hegel (doravante LH), p. 11.
408 RICHARD THEISEN SIMANKE

nível do simples Sentimento de si. O homem toma consciência de si


no momento em que - pela "primeirà' vez- ele diz: "Eu" (Moí). Com-
preender o homem pela compreensão de sua origem é, portanto, com-
preender a origem do Eu revelada pela palavrà' 81 • Se lembrarmos todo
o cuidado que Lacan tomou até aqui para não desvincular completa-
mente sua teoria, por mais intelectualista que ela seja, da realidade vital
do homem, fica clara a utilidade de uma tal proposta "dialética" para
se pensar a gênese desse último: não é de uma simples ruptura, mas de
uma Aufhebung do mundo da vida que o sujeito especificamente hu-
mano emerge, de modo que essa realidade, assim como a forma de
conhecimento que a caracteriza (o Sentimento de si), encontram-se
nele, ao mesmo tempo, conservadas e ultrapassadas. A origem desse
Eu, que se revela na capacidade do sujeito enunciar-se na primeira
pessoa, vai, deste modo, formular-se, desde o início, em termos de um
problema de conhecimento, que Lacan, por tudo que se viu, não pode
deixar de apreciar. A questão pode ser posta nos seguintes termos:
como esse Eu que conhece, que, a acreditarmos nas conclusões da Tese
lacaniana, é essencialmente conhecimento, chega a conhecer a si pró-
prio e, assim, assumir a sua condição de sujeito humano, que se defi-
ne pela capacidade de alcançar a Consciência de si? Essa a primeira
etapa da contribuição de Kojeve. Mas o próprio fato de se formular
como um problema de conhecimento vai exigir que a elucidação da
origem do sujeito recorra a um fator suplementar.
Cabe observar en passant, no entanto, que a origem do sujeito
se joga em torno da possibilidade de uma enunciação, de modo que
Lacan já pode pescar aí um dos temas que lhe serão mais caros futura-
mente: a oposição entre o sujeito do enunciado e o da enunciação. Ele
retoma, em vários contextos, a crítica hegeliana ao Cogito, que procura
mostrar que esse tipo de enunciado em que sujeito do enunciado e
sujeito da enuciação coincidem não pode ser a primeira verdade e o
ponto de partida da filosofia, já que supõe como condição todo o pro-
cesso de constituição da consciência de si, que é o que permite que
um enunciado na primeira pessoa possa ser verdadeiro. A Fenomeno-
logi,a do espírito é, justamente, a história da aparição do espírito- isto
é, do sujeito absolutamente auto-consciente - no mundo. E esse Su-
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 409

jeito Absoluto pode então - pressuposto idealista - compreender a sua


identidade com o mundo82, por onde se vê o serviço fabuloso que
Kojeve presta a Lacan, mostrando a esse último por que vias o seu anti-
realismo militante pode ser, não obstante, concreto, uma vez que é
um processo histórico e social que conduz a essa descoberta, ou seja,
não se trata apenas de postular a identidade entre o mundo e a repre-
sentação. O que ~e abre aí, para Lacan, é a possibilidade de uma fe-
nomenologia das imagens e do sujeito como centro organizador des-
sas imagens, que o compõem, da mesma forma que compõem o "seu"
mundo. É através dela que ele se empenhará em reformar a psicolo-
gia, num sentido semelhante ao de Sartre, como vimos, mas dele se
afastando na medida em que pesarem mais as suas exigências científi-
cas ainda positivistas83 .
Segunda etapa da aventura kojeviana: se tudo se formula em ter-
mos de um problema de conhecimento, um fator muito específico tem
que intervir para fazer o sujeito avançar no caminho em direção à cons-
ciência de si. Sim, porque o conhecimento (a "razão", o "pensamen-
to", o "entendimento", diz Kojeve) revela o objeto, não o sujeito. O

82 Essa identidade é a condição de possibilidade da enunciação de um discurso filo-


sófico verdadeiro e, nesse sentido, a Fenomenologia... é também a história de como
essa condição se cumpre. Descombes assinala como Kojeve compara, a esse res-
peito, a Ética de Espinosa com a Ciência da lógica, de Hegel: ambas pretendem
enunciar a racionalidade absoluta do mundo e, para tanto, o filósofo deve encon~ .
trar-se na condição de Deus, mas Hegel faz preceder sua obra do relato de como
se atinge essa condição, coisa que falta em Espinosa - "É, portanto, explica Kojeve,
um livro impossível. O que está escrito na Ética é, talvez, verdadeiro, mas, de
qualquer maneira, ·nós nunca saberemos nada sobre isso, pois esse livro não pode
ser lido e não pôde ser escrito" (Le même et l'autre... , p. 58). Tendo em conta a
contínua identificação promovida por Lacan entre ele mesmo e Espinosa, pode-
se, talvez, entender dessa maneira a afirmação feita quando da publicação dos
Écrits, de que eles "não são para serem lidos".
83 Esse positivismo, às vezes desconfortável, de Lacan vai encontrar, finalmente, um
porto seguro na metodologia estruturalista, que cumpre, a seu modo, os requisi-
tos de uma sociologia positiva, como veremos no próximo capítulo.
410 RICHARD THEISEN SIMANKE

sujeito do conhecimento "se perde" no objeto, está "absorvido" por


este; numa palavra, alienado no objeto que contempla. Nessa condi-
ção, só o aguilhão do desejo pode chamar o sujeito de volta a si, pode
chamar a atenção para a sua própria condição e desligá-lo do objeto.
Está implícito que, na medida em que esse prato-sujeito não ultrapas-
sou ainda o estágio do sentimento de si, essa relação hipotética pri-
mordial com o objeto só pode ser uma relação fundada na mesma for-
ma de conaturalidade que marca o conhecimento animal. O desejo
promove, assim, o rompimento dessa relação. Podemos nos figurar a
imaginação teórica de Lacan funcionando da seguinte maneira: esse
desejo precisa ser de um tipo que o sujeito não possa satisfazer sozi-
nho pelo consumo do objeto dado, do contrário seria resolvido da
mesma forma que se resolve o desejo animal. Tudo aponta para aquela
situação inicial do lactente, que Lacan descreveu como o complexo de
desmame (Kojeve dá como exemplo o desejo de comer): é por não po-
der satisfazer imediatamente seu desejo, que o filhote humano tem
atraída a atenção para a sua condição de sujeito, reencontrando-se, por
esse caminho, todos os temas do desamparo e da prematuração, que
serão, posteriormente, codificados, em Lacan, num duradouro discur-
so sobre a falta. O desejo é sempre de algo que não se tem: essa a bri-
lhante conclusão que Lacan teve que, mais tarde, ir buscar no Ban-
quete de Platão. De qualquer forma, retorna, nesse contexto, esse
conceito que já tinha tido um lugar privilegiado na Tese, não só ao
exemplificar o que seria uma definição concreta em psicologia (a defi-
nição do desejo como "ciclo de comportamento"), mas também uma
típica explicação psicogênica em psiquiatria (o acting-out homicida de
Aimée como efeito de um desejo de auto-punição). Fiel ao ponto de
partida, o desejo será tratado por Kojeve também em termos de co-
nhecimento, permitindo integrar esses dois aspectos do pensamento
lacaniano inicial: "É o Desejo que transforma o Ser revelado a ele mes-
mo por ele mesmo, no conhecimento (verdadeiro), em um "objeto"
revelado a um "sujeito" por um sujeito diferente do objeto e "oposto"
a ele. É no e por, ou melhor ainda, enquanto "seu" Desejo que o ho-
mem se constitui e se revela - a si mesmo e aos outros - como um Eu,
como o Eu essencialmente diferente do, e radicalmente oposto ao, não-
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 411

Eu " 84 • E concluindo taxativamente: "O Eu (humano) é o Eu de um


- ou do - Desejo" 85 •
Mas esse é apenas o primeiro passo; é preciso, ainda, discrimi-
nar a natureza desse desejo humano, e de que forma ele especifica ô
seu ser. Em primeiro lugar, pelo próprio fato de depender do desejo -
que pode não passar, simplesmente, de um desejo de alimentar-se, por
exemplo -, fica estabelecido que a realidade humana, ou seja, o ser
consciente de si, só pode se constituir no seio de uma realidade bioló-
gica. Em outras palavras, o desejo pressupõe a vida. Mas a antropogê-
nese não pode deter-se aí, pois é preciso identificar o que distingue o
ser humano dos demais seres vivos. O raciocínio kojeviano prossegue,
então, dessa maneira: o desejo, ao arrancar o homem de sua quietude
contemplativa, o impulsiona à ação. Essa, como já vimos, é essencial-
mente negadora: agir significa transformar algo em outra coisa. Mas,
para ser fiel ao espírito da Aufhebung, é preciso reconhecer que não se
trat~ aí de uma simples aniquilação. Ao contrário, a ação serve à cria-
ção ou à manutenção de uma outra realidade; assim, por exemplo, o
objeto devorado pelo animal serve à preservação de sua vida. Mas se o
Eu está apenas em vias de se constituir - e se o desejo que o constitui
não passa de um impulso à ação negadora do objeto -, não há aí ne-
nhum conteúdo positivo além daquele fornecido pelo próprio objeto.
O Eu terá, portanto, a natureza daquilo que o seu desejo levá-lo a as-
similar. Se assimilar um objeto natural, tornar-se-á ele mesmo um Eu
natural (um "Eu coisista" como diz Kojeve). Para que do desejo emerja
algo diverso do ser natural, que não se distinguiria ainda do animal, .é

s4 LH, P· 11.
85 LH, p. 11. A distinção lacaniana entre o Moi e o }e como operadores gramaticais
do sujeito do enunciado e do sujeito da enunciação, respectivamente, também já
aparece em Kojeve, a esse propósito: "É o Desejo (consciente) de um ser que
constitui esse ser enquanto Eu (Moi) e o revela enquanto cal levando-o a dizer:
"Eu (}e) ..." (LH, p 11). A ressalva "consciente" é um índice, ainda, de um outro
aspecto das dificuldades de Lacan em incorporar o conceito de "inconsciente":
além de todos os vícios apontados anteriormente, ele deve ter-lhe parecido tam-
bém incompatível com esse advento do sujeito.
412 RICHARD THEISEN S!MANKE

necessário que esse desejo se enderece a algo diferente do objeto natu-


ral. Ora, a essa altura do processo, estamos ainda em pleno mundo da
vida; nenhuma outra realidade foi engendrada. A questão é, justamen-
te, saber como o mundo humano pode se constituir tendo como pon-
to de partida apenas o mundo animal, ou seja, aquilo que está dado
na natureza. A resposta de Kojeve não se faz esperar: "Ora, a única
coisa que ultrapassa esse real dado é o próprio desejo" 86 • Sem outro
conteúdo positivo que aquele fornecido pelo objeto, o desejo, tomado
em s1. mesmo, é um "na da revela do", um "vazio . irrea
. 1" 87. Ele e' essen-
cialmente diferente da coisa desejada, já que não possui nem perma-
nência, nem identidade; não pode permanecer idêntico a si mesmo,
uma vez que não possui, propriamente falando, um si-mesmo ao qual
permanecer idêntico. Se for, por conseguinte, um desejo desse tipo que
presidir a origem do Eu, segue-se que "ele criará, portanto, pela ação
negadora e assimiladora que o satisfaz, um Eu essencialmente outro
que o "Eu" animal. Esse Eu que se "nutre" de Desejos será, ele mesmo,
Desejo em seu próprio ser, criado em e pela satisfação de seu Dese-
jo"88. É claro que esse ser que é essencialmente desejo, compartilhará
das propriedades desse último; será, como diz Kojeve, ação, "negati-
vidade-negadorà', devir. Terá sua forma no tempo, e não no espaço, e
por aí, novamente, se insinua uma incompatibilidade entre as idéias
de Kojeve e a teoria lacaniana do imaginário que, no entanto, elas de-
veriam vir fundamentar: é o espaço que será, para Lacan - muito com-
preensivelmente, aliás - a forma do imaginário, enquanto o tempo
definirá o simbólico, principalmente depois que ele assimilar os "tem-
pos" da dialética à lógica da linguagem. Até lá, fica difícil imaginar

86 LH, p. 12.
87 Kojeve prossegue, afirmando que o desejo, sendo a "revelação de um vazio", con-
siste na "presença da ausência de uma coisa", fórmula que Lacan empregará
freqüentemente a propósito da linguagem, permitindo, por a{, a assimilação do
desejo ao funcionamento dessa última, principalmente quanto ao seu aspecto
"metonímico".
88 LH, p. i2.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 413

como um sujeito constituído pelo imaginário possa ter sua forma no


tempo e não no espaço. Além disso, as imagens compõem, manifesta-
mente, uma espécie de conteúdo positivo da subjetividade, nada que
se assemelhe ao vazio absoluto que Kojeve percebe nesse ser cuja reali-
dade íntima é ser desejo. Pode-se imaginar, então, que o fading do su-
jeito lacaniano do simbólico não consista apenas numa tentativa de
mascarar a "morte do sujeito" pregada pelo estruturalismo numa dou-
trina que não pode prescindir dessa referência para dar conta da signi-
ficação da experiência clínica, da qual, aliás, ela extrai a sua identida-
de: esse sujeito desvanecente seria também o modo de, finalmente,
poder ser fiel a Kojeve (ao menos sobre esse ponto), deixando ao ima-
ginário a tarefa de preencher os vazios da estrutura e proporcionar al-
guma forma de permanência ao sujeito, a qual, no entanto, será in-
cansavelmente denunciada como ilusória, alienada, neurotizante, etc.
Conclusão: o desejo humano deve ter como objeto um outro
desejo. A nova pergunta é: em que condições isso pode-se dar? É aí
que a contribuição kojeviana começa a convergir mais decididamente
para as linhas-mestras do empreendimento lacaniano inicial. Pois, para
que aquela condição possa se verificar, é necessário que haja uma plu-
ralidade de desejos, de desejos animais inicialmente, como ressalva
Kojeve, mas o que importa é que eles sejam múltiplos. Daí que a reali-
dade humana só possa se constituir no interior de um rebanho: "É
por isso que a realidade humana não pode ser senão social" 89 • Fica es-
tabelecido, assim, por vias diferentes daquelas percorridas antes, o ca-
ráter necessariamente social da realidade humana. Mas essa "condição
necessária" não é, por si só, "condição suficiente". É preciso, ainda,'
que essa sociedade primitiva se humanize, isto é, que seus membros
encontrem no desejo do outro o objeto de seu próprio desejo. Vale a
pena citar Kojeve 'mais longamente aqui, já que este é o momento em
que ele define explicitamente as condições da antropogênese: "Se a rea-
lidade humana é uma realidade social, a sociedade não é humana se-
414 RICHARD THEISEN SIMANKE

não enquanto um conjunto de Desejos se desejando mutuamente en-


quanto Desejos. O Desejo humano ou, melhor ainda: antropogênico,
co.qstituindo um indivíduo livre e histórico, consciente de sua indivi-
dualidade, de sua liberdade, de sua história e, finalmente, de sua his-
toricidade, - o Desejo antropogênico difere, portanto, do Desejo ani-
mal (constituindo um ser natural, apenas vivo, e não tendo senão um
sentimento de sua vida) pelo fato de que ele se exerce, não sobre um
objeto, real, "positivo", dado, mas sobre um outro Desejo" 9º. Fica cla-
ro, ainda, nessa passagem, por que Kojeve só pode ser aproveitado por
Lacan naquilo que concerne à formulação de uma concepção sobre o
sujeito, e não em suas ambições de uma cientificidade positiva para a
psicologia e a psicanálise: se esse sujeito não é a verdade primeira do
conhecimento, se ele é constituído obrigatoriamente numa situação
social - isto é, se sua origem está condicionada por essa situação -,
ainda assim ele emerge desse processo como um sujeito "livre", "his-
tórico", "consciente", e assim por diante. A antropogênese kojeviana
só pode, então, complementar aquelas antropologias mais "determi-
nistas" e funcionar aí como uma medida de cautela contra o apaga-
mento completo da dimensão subjetiva em que aquelas se arriscam, o
que frustraria, igualmente, uma das faces do tenso projeto lacaniano.
Mas,. por outro lado, a influência de Kojeve colabora, ainda, para a
resistência lacaniana em assimilar a noção de inconsciente, que apare-
ce, no entanto, prefigurada naquelas outras teorias antropológicas em
que se apóia. Só a intervenção decisiva de Lévi-Strauss quebrará essa
resistência, a relação indireta, alusiva e, talvez até mesmo, retroativa
de Lacan com Mauss não tendo tido força para tanto, embora já se
fizess"e presente ali um inconsciente social, é claro que de forma me-
nos sistematizada. Ao longo de todo seu período pré-estruturalista,
Lacan se apoiará em Kojeve para traduzir o desígnio freudiano de tor-
nar consciente o inconsciente - ele nunca vai gostar muito dessa fór-
mula, mesmo mais tarde - em termos de uma superação "dialéticà',

90 LH, p. 13; grifos nossos.


ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 415 ·

que se dá na "experiêncià' analítica9 1, da alienação a que o sujeito está


).
submetido, no labirinto das identificações imaginárias que o consti- ...
J-4•.

tuem. Alienação e desconhecimento serão, assim, duas figuras muito


atualizadas para dizer mais corretamente o que Freud - o neurólogo
oitocentista, o psicólogo da representação - inadvertidamente desig-
nara como inconsciente.
Essa especificação do desejo humano permite a Lacan ainda al-
gumas outras vantagens na elaboração de regiões acessórias de seu sis-
tema; por exemplo, para pensar o complexo de Édipo em termos um
pouco diferentes dos freudianos (isto é, mais socialmente e menos
intrapsiquicamente). De fato, Kojeve não deixa de precisar que, mes-
mo na relação entre os sexos, se o desejo deve ser propriamente huma-
no, não é o corpo do outro, em si, que é desejado, mas sim apenas na
medida em que se constitui em objeto do desejo de um terceiro. Nada
melhor do que isso para retirar o complexo de Édipo de um registro
psicológico ou biológico e inseri-lo nessa dinâmica social mediatizada
pelo desejo: não é a mãe que o menino deseja no Édipo, mas o objeto
do desejo do pai e, nesse movimento, o de~ejo paterno ele mesmo; na
i.
saída do Édipo não serão mulheres semelhantes à mãe que ele irá bus- ~ 1

car, mas mulheres que poderiam ser ou ter sido desejadas pelo pai, e
assim por diante. Também o Édipo será, para Lacan, uma "história de
Desejos desejados", como dizia Kojeve a propósito da história huma-

91 Onde melhor tr~nsparece o que Lacan ente~de, afinal, por "experiência" ao se_. :i'
referir à prática psicanalítica é num de seus exercícios hegelianos mais explícitos,· ;1
pronunciado em um congresso psicanalítico em 1951 e publicado nos Écrits sob fi
o título de "lntervention sur le transfere". O movimento de uma análise - o caso
Dora - é descrito aí como uma sucessão de "inversões dialéticas", seguidos de
novos "desenvolvimentos da verdade", que balizam o progresso do tratamento. É
a partir disso que Lacan insiste em que a prática psicanalítica não deve se guiar
pela convenção de uma regra, mas "segundo as leis de uma gravitação que lhe é
própria e que se chama a verdade. Eis aí, com efeito, o nome desse movimento
ideal que o discurso introduz na realidade. Em resumo, a psfrandlise é uma expe-
rilncía dialética, e esta noção deve prevalecer quando se coloca a questão da natu-
reza da transferência" ("Intervencion sur le transfere", p. 216; grifos do autor).
416 RICHARD THEISEN S!MANKE

na como um todo. Começa aqui, aliás, a profunda implicância de


Lacan com qualquer análise centrada na idéia de rela.ção de objeto, que
lhe valerá, mais tarde, algumas de suas páginas mais célebres: se o de-
sejo é o fulcro da constituição do sujeito, se ele é um "nada revelado"
e, ainda por cima, negador do objeto dado, o objeto com que a psica-
nálise tem que se haver será, necessariamente, um objeto faltante e,
portanto, incapaz de fundar qualquer espécie de "relação" com o su-
jeito, a não ser no plano imaginário, que é, justamente, o que se trata
de superar (isso após a atribuição de prerrogativas absolutas ao simbó-
lico, é claro). Daí, por exemplo, afirmações como a de que o pai que
opera no complexo de Édipo é essencialmente o "pai morto" (aí esta-
riam, em Freud, a hipótese da horda primitiva e o mito de Moisés para
prová-lo): trata-se de uma espécie de Aufhebung do pai real, que per-
mite a emergência da função paterna, função simbólica por excelên-
cia, pela qual o sujeito se introduz na linguagem, etc.
Além disso, como qualquer objeto natural pode ser alvo de uma
mediação similar através do desejo do outro, Lacan pode ver aí um
instrumento para pensar, nesses termos, o processo de subjetivação da
realidade que promoveu em sua teoria desde as críticas iniciais ao rea-
lismo ingênuo - o que chamou de hiperobjetivismo - que grassava na
psiquiatria. Com efeito, se o ser humano é capaz de desejar objetos
perfeitamente inúteis do ponto de vista biológico - Kojeve cita uma
decoração ou uma bandeira; Lacan preferirá depois o sapato dos feti-
chistas, um objeto sexual flagrantemente inútil do ponto de vista da
reprodução humana-, é porque esses objetos se converteram em sím-
bolos de desejos alheios, o que permite çomeçar a pensar a realidade
social como um tecido simbólico animado pelo desejo. Mas falta ain-
da um detalhe para que o sujeito possa avançar rumo à condição hu-
mana e, com ele, a realidade que ele constitui: a negação completa da
natureza, que assume a forma da negação do valor supremo para o ser
natural, ou seja, sua própria vida. É no curso desse argumento que
Kojeve introduzirá a luta das consciências e a dialética do Senhor e do
Escravo, figura-chave de sua leitura de Hegel, e que Lacan resgatará,
metaforicamente, para múltiplos usos.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 417

Se todo desejo é "desejo de um valor" (Kojeve) e se o valor que


guia o desejo humano não pode ser a vida animal, qual seria então?
Em outras palavras, como deve funcionar o "desejo antropogênico"
para ser, ao mesmo tempo, negação do valor vital e desejo de outro
desejo? É para responder a essa dupla pergunta que surge o tema da
luta das consciências. "Desejar o Desejo de um outro é, portanto, de-
sejar que o valor que eu sou ou que eu "represento" seja o valor deseja-
do por esse outro: eu quero que ele "reconheça" meu valor como seu
valor, eu quero que ele me reconheça como um valor autônomo. Dito
de outro modo, todo Desejo humano, antropogênico, gerador da Cons-
ciência de si, da realidade humana, é, no final das contas, fonção do De-
sejo de reconhecimento"92• Sendo o reconhecimento o valor buscado,
então, pelo desejo humano - valor que se encarna nessa figura, que
Lacan consideraria imaginária, do "puro prestígio" -, a conjunção disso
com a necessidade de negar a vida como valor supremo conduz à con-
clusão de que a luta até a morte pelo reconhecimento, que se trava
entre dois candidatos a seres humanos, é a verdadeira situação social
antropogênica. Nada de surpreendente, então, que Lacan faça coinci-
dir o complexo fundado sobre a rivalidade fraterna com o seu estágio
do espelho, modelo que expressa a constituição do eu narcísico nesse
encontro com o outro que é ele mesmo, nem que faça do ciúme entre
os irmãos o "protótipo de todos os sentimentos sociais", como afirma
em "La famille": a partir daí, agressividade e narcisismo estão intima-
mente conjugados, já que a constituição dessa primeira matriz do eu
quase que exige a supressão da condição de sujeito no outro, o que
representa a versão lacaniana da "concepção terrorista da história"· ·
kojeviana, por um lado, e, por outro, sua versão da pulsão de morte e
do mal-estar na cultura descritos por Freud.
Para que dessa situação resulte a relação de dominação e servi-
dão que é a do Senhor e do Escravo - que Lacan empregará depois
para descrever, não só a constituição do sujeito em geral, mas a rela-
ção (edípica) com a figura paterna e, em particular, a neurose_ obses-

92 LH, p. 14; grifos nossos.


418 RICHARD THEISEN S!MANKE

siva93 -, o raciocínio que se segue é: se ambos os adversários, na luta


pelo reconhecimento, levarem até o fim o seu desejo de se verem reco-
nhecidos pelo outro, mesmo ao custo de suas próprias vidas, no me-
lhor dos casos um deles morrerá, interrompendo assim o processo de
"hominização", já que o morto não pode reconhecer o vencedor. Por
isso, não basta a multiplicidade do rebanho como condição para a
emergência da realidade humana; é preciso, ainda, que essa prato-so-
ciedade "implique dois comportamentos humanos ou antropogênicos
essencialmente diferentes"94• Para que os dois adversários permaneçam
com vida após a luta, é necessário que um deles recue no impulso de
fazer reconhecer o seu desejo, em prol da manutenção da sua vida.
Daí que: "Ele deve abandonar seu Desejo e satisfazer o Desejo do ou-
tro, e1e deve (( recon h ece- 1o sem ser recon hec1"do)) por e1e. o ra,
A )J ((

"reconhecê-lo" assim é "reconhecê-lo" como seu Senhor e se reconhe-


cer e se fazer reconhecer como Escravo do Senhor" 95. Eis, portanto,
essas duas figuras que se consagrariam, desde então, na literatura psi-
canalítica que se inspira em Lacan. Este, calcado no fato de que, nas
mãos de Kojeve, a dialética do Senhor e do Escravo se converte quase
que em um apólogo, sentiu-se à vontade em aplicar esse apólogo para
ilustrar tudo que, na teoria psicanalítica, comporta dois sujeitos numa
relação assimétrica e hierárquica, como é o caso das relações que se
estabelecem entre os personagens do Édipo. Como Lacan se faz her-
deiro dessa concepção belicosa de Kojeve, em suas descrições da ori-
gem e do funcionamento da subjetividade sempre abundarão metáfo-
ras sangrentas, como o sacrifício e o assassinato.

93 Um dos mais belos exemplos do emprego metaf6rico que Lacan faz dessas figuras
hegelianas está nas páginas finais do Seminário 1, onde ele emprega a relação Se-
nhor/Escravo - já temperada, é verdade, com um pouquinho de Heidegger- para
descrever a posição subjetiva do neurótico obsessivo. Ver Le séminaire. Livre I:
Les écrits techniques de Freud, p. 315-6.
94 LH, p. 15.
95 LH, p. 15.
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 419

Mas o fato de que, para dar conta da origem do sujeito humano


seja preciso recorrer a dois personagens e a duas atitudes perfeitamen-
te distintas, permite, ainda, a Lacan equacionar o impasse entre a de-
pendência e a atividade do sujeito. De fato, se esse intróito serve para
Kojeve introduzir o trecho da Fenomenologia do espírito que ele tradu-
zirá na continuidade - ·~utonomia e dependência da consciência-de-
si: dominação e servidão"96 - esse tema reparte, entre dois persona-
gens distintos, aquele par antinômico, cuja conciliação foi sempre
problemática. Antecipando uma terminologia que ainda está por vir,
pode-se pensar isso sob um ponto de vista diacrônico ou sincrônico.
É claro que, nesse primeiro momento, Lacan privilegia a perspectiva
diacrônica, isto é, histórica, em consonância com seus objetivos inici-
ais. Desde esse ponto de vista, o sujeito seria sempre, originariamente,
dependente, determinado por um outro (o grupo familiar e, mais es-
pecificamente, a figura paterna) que encarna a determinação social à
qual ele se encontra submetido. Mas nenhum sujeito - a não ser, tal-
vez, n·os casos patológicos extremamente ,agudos - é absolutamente
passivo. Sua história, como reza a fórmula lacaniana, consiste numa
série de reações a essas determinações externas, pelas quais ele progres-
sivamente subjetiva seu meio imediato e constrói seu eu, sua persona-
lidade, ou o que seja. Talvez se possa dizer que, posto isso, o seu "vir-
a-ser" sujeito consista na tomada de consciência de que suas ações são,
na verdade, reações, de que seu discurso na primeira pessoa é já e des-
de sempre uma resposta a um apelo alheio, consciência que lhe per-
mitiria, então, ensaiar algumas saídas para fora dessa servidão imagi-
nária ao seus "outros", as quais, não obstantes, estarão condicionadas
por esses mesmos fatores que presidiram à sua constituição (esse, gros-
so modo, o objetivo a ser alcançado na análise). Em outras palavras,
escapar integralmente a essa determinação significaria deixar de ser
aquilo que se é, o que entraria em contradição com essa espécie de

96 "É por isso que falar da origem da Consciência de si é necessariamente falar 'da
autonomia e da dependência da Consciência de si, da Dominação e da Servi-
dão"' (LH, p. IS).
420 RICHARD THEISEN S!MANKE

conatus lacaniano que subjaz a essas descrições. Em suma, é como se,


para Lacan, o equacionamento do impasse assumisse a seguinte for-
ma: há sempre uma sobra de determinação em toda autonomia, um
ponto cego em toda auto-consciência, mas também há sempre uma
luz de liberdade em toda servidão. De um ponto de vista sincrônico,
tudo se passa de modo semelhante, bastando deixar de pensar a ques-
tão em termos evolutivos e considerar as diversas posições subjetivas e
imaginárias que o sujeito pode assumir, alternativamente, perante seu
objetos.
Mas, nessa equação entre atividade e dependência, Lacan só
pode seguir Kojeve completamente naquilo que diz respeito à ativida-
de, principalmente quanto às relações entre o sujeito e o meio social
em que ele subsiste, porque, para Kojeve, trata-se de descrever como a
ação humana constitui o mundo no qual o homem passa a viver e com
o qual se relaciona efetivamente. Nesse sentido, ele não poderia cola-
borar para o projeto de uma "antropologia anti-individualista", que
Lacan reclama ainda na Tese, e que ele vai ter que ir buscar alhures.
Como seu compromisso é com a perspectiva do sujeito (ou da Cons-
ciência de si), o encaminhamento de Kojeve não pode deixar de ver o
mundo humano como uma função da atividade do sujeito humano, e
não o contrário. No fundo, o que Lacan vê em Kojeve é uma espécie
de von Uexküll travestido num vocabulário filosófico, que lhe oferece
a oportunidade de poder afastar-se da biologia sem recair automatica-
mente na psicologia pura e simples: é uma teoria não-psicológica do
sujeito que Kojeve tem a oferecer, uma antropogênese filosófica que
poderá, mais tarde, ser aclimatada ao estruturalismo, sem infringir di-
retamente os ditames anti-psicologistas daquele, podendo sobreviver,
portanto, à violenta inversão de perspectiva que acompanha a adesão
lacaniana ao pensamento de Uvi-Strauss.
De fato, no que tange à relação do sujeito com o mundo huma-
no, Kojeve é bem explícito sobre a direção em que caminha o processo.
A luta pelo reconhecimento é o primeiro momento dessa objetivação
da certeza subjetiva da sua condição humana, que o sujeito deve impor
ao mundo como condição para ascender a uma consciência verdadei-
ra dessa condição e impô-la, antes de tudo, ao primeiro outro que en-
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 421

contrar, desenvolvendo-se, a partir daí, o apólogo da "luta de puro


prestígio" 97 . Mas é apenas o primeiro passo da humanização do mun-
do natural que essa luta opera: "No caso em questão, para ser, de fato,
verdadeiramente "homem" e saber-se tal, deve, portanto, impor a idéia
que ele faz de si mesmo a outros diferentes dele: ele deve se fazer reco-
nhecer pelos outros (no caso limite ideal: por todos os outros). Ou
ainda: ele deve transformar o mundo (natural e humano) onde ele não
é reconhecido em um mundo onde esse reconhecimento se opera. Es-
sa transformação de um mundo hostil a um projeto humano em um mun-
do que estd de acordo com esse projeto se chama ação; atividade"'9 8• Eis,
portanto, a ação humana constituindo um mundo que é, de saída,
social e não natural, um mundo que nasce de uma sociedade natural
que se humaniza por essa ação mesma. Era o que Lacan queria desde
a Tese, só que, quando se trata de pensar a determinação que esse
"mundo" pode exercer sobre o sujeito, ele prefere voltar-se para as abor-
dagens sociológicas que o apresentam já constituído e em pleno fim-
cionamento na determinação do comportamento dos indivíduos.
Essa função humanizadora da ação prossegue, no texto de
Kojeve, na descrição de como se supera, sempre dialeticamente, essa
relação originária de servidão que é o embrião da história e da socie-
dade. Para abreviar, o raciocínio é mais ou menos este: o reconheci-
mento que o Senhor obtém do Escravo não é senão um reconheci-
mento aparente; como o Senhor não reconhece a dignidade humana
daquele a quem ele subjuga, o fato de ser por ele reconhecido como

97 "Essa ação - essencialmente humana, já que humanizadora, antropogênica - co-


meçara pelo ato de se impor ao "primeiro" outro que se ·encontrara. E já que esse
outro, se ele é (ou, mais exatamente, se ele quer ser, se ele se crê) um ser humano,
deve fazer o mesmo, a "primeira" ação antropogêníca toma necessariamente a for-
ma de uma luta: de uma luta até a morte entre dois seres que se pretendem ho-
mens; de uma luta de puro prestígio travada em vista do "reconhecimento pelo
adversário" (LH, p. 18; grifos nossos). Observemos, que, aos olhos de Lacan, essa
figura do "puro prestígio", representa um valor imaginário que se substitui, abso-
lutamente, a qualquer valor natural.
98 LH, p. 18; grifos nossos.
422 RICHARD THEISEN SIMANKE

Senhor não lhe garante a condição de sujeito, como parecera de início.


O Senhor está, então, como diz Kojeve, num "impasse existencial",
que não pode ser ultrapassado. Ao adquirir sua condição apenas ao
preço do risco de sua vida animal, o Senhor não completou o proces-
so de negação do dado natural; afinal, ele somente arriscou a sua vida,
mas não a transformou, e agora se vê incapaz de transformá-la. Essa
transformação deveria provir do reconhecimento, mas na medida em
que esse reconhecimento é feito por alguém - o Escravo - que, a seus
olhos pelo menos, permanece no nível da animalidade, ele é sem va-
lor. O Senhor permanece preso à narureza; ele é um puro consumidor
dos frutos do trabalho do Escravo, que prepara o objeto natural para
o gozo do Senhor. Mas, para o Senhor ocioso, o objeto que ele conso-
me não tem nenhum valor humano, isto é, não está mediatizado pelo
desejo do outro: submeter-se significa que o escravo abre mão de de-
sejar aquilo que ele prepara para o consumo do Senhor. O objeto é,
para ele, apenas uma coisa - um alimento, por exemplo -, e seu eu
continua sendo, para usar ainda as palavras de Kojeve, um "eu-coi-
sistà'. O Escravo, ao contrário, ao ser forçado a trabalhar pelo Senhor,
é colocado na condição daquele que pode, eficazmente, proceder à
negação do mundo dado, do mundo natural. Ele não está identifica-
do com a sua condição de Escravo, mas deseja ultrapassá-la, isto é, ser
livre, ser uma consciência autônoma. Ele deseja essa autonomia que
só vê realizada na figura do Senhor, até que ele suprima, dialetica-
mente, pelo trabalho, a sua própria condição de Escravo, ao criar um
mundo novo, que não é mais o mundo natural onde o Senhor goza
absolutamente. Além disso, o adiamento da satisfação de seu desejo,
imposto pela servidão, lhe proíbe a forma de satisfação animal a que o
Senhor permanece restrito. Na medida em que é no produto de seu
trabalho que ele pode buscar essa satisfação, esse produto - cultural e
não mais natural - surge como um símbolo de seu desejo, até então
recalcado 99 • O Escravo trabalhador converte-se, assim, no verdadeiro

99 Kojeve traduz da seguinte maneira a seguinte passagem da Fenomenologia... : "O


trabalho é, ao contrário (do Desejo do Senhor], um Desejo recalcado, um desva-
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 423

agente da história, na medida em que ele se "forma-e-educa'' pelo tra-


balho, ao passo que o Senhor permanece estagnado. t. a angústia de
morte sentida no primeiro confronto, no primeiro combate ainda
imerso numa realidade animal, que lhe revela que o mundo natural é
hostil a um projeto humano, que é preciso negá-lo, anulá-lo, refazê-lo
para que esse projeto possa ter um futuro. Assim, se a história huma-
na aparece, a princípio, como uma "história de desejos desejados", ela
toma a forma, ao cabo do processo, de uma história de desejos adia-
dos e realizados laboriosamente pela transformação do mundo natu-
ral e estático num mundo humanizado e histórico.
Essa passagem pode, por outro lado - e já de um ponto de vista
lacaniano - representar a passagem do imaginário para o simbólico,
ou seja, de uma situação em que o desejo busca se satisfazer imediata-
mente numa relação de dominação/servidão imaginária do sujeito com
seus outros (com seus objetos, no sentido freudiano e libidinal) a uma
outra em que o recalque (Lacan formulará, depois, num outro plano:
a castração) força o desejo a entrar numa sçrie de tentativas de satisfa-
ção mediaras e simbólicas, sempre incompletas e, por isso, incessante-
mente renovadas. Por isso, a colaboração de Kojeve para a composi-
ção da metapsicologia lacaniana - isto é, a formulação das categorias
do simbólico, do imaginário e do real - apresenta uma dupla face.
Numa delas, permite inserir a constituição do sujeito pelo imaginário
numa ordem antropológica de determinação, como requer o projeto
de Lacan desde o início 10°. A figura que representa essa ordem, redu-

necimento detido; ou, em outros termos, ele forma-e-educa" (LH, p. 29; grifos do
autor). Ou seja, o Desejo do Senhor, ao consumir absolutamente, não deixa nada
de estável atrás de si, que possa ser a matéria de um mundo humanizado. O pro-
duto do trabalho, enquanto símbolo do desejo recalcado do Escravo, constitui
esse mundo. Por aí se compreende como, cruzando Kojeve e Lévi-Strauss, Lacan
consegue conciliar a estrutura simbólica da cultura com o referencial freudiano
centrado na noção de desejo. ,
100 Segundo Paulo Arantes, Lacan reencontra em Kojeve a "revelação de uma crítica
não reducionista da consciência" já presente em Politzer e no "clima de opinião
424 RICHARD THEISEN SIMANKE

zida à sua expressão mínima - o "outro" -, nunca mais vai abandonar


o pensamento lacaniano, ainda que, depois da passagem pelo estrutu-
ralismo, ela simplesmente se identifique com a ordem da linguagem,
onde nosso autor passa a depositar todas as suas esperanças de uma
determinação efetiva e de uma ciência do sujeito. Determinação social,
o outro imaginário, a estrutura da linguagem: três variantes da mesma
proposta de formular uma teoria da dependência do sujeito, que, mes-
mo assim, não o apagasse definitivamente na teoria. É evidente, no
entanto, que, em Kojeve, é a ação do homem, antes de tudo, que
metaboliza o mundo dado num mundo social. Mesmo que a realidade
humana só possa constituir-se numa situação social - há a exigência,
como se viu, de uma "pluralidade de desejos" -, essa sociedade primi-
tiva é ainda um rebanho, e somente a ação antropogênica movida pelo
desejo pode fazê-la ultrapassar essa condição. Assim, se a leitura de
Kojeve transforma, de fato, a Fenomenologia do espírito numa antro-
pologia, é de uma antropologia "individualista" que se trata, ou seja,
uma que concebe a sociedade como uma função da ação dos indiví-
duos, justamente o pecado maior que Lacan apontava na Tese e cuja
correção julgava indispensável para o cumprimento de seu projeto.
Mas a antropogênese kojeviana tem o mérito, aos olhos de
Lacan, de enfatizar a perspectiva do sujeito e sua atividade, condição
para que ele possa ser o agente produtor das significações dos fatos
clínicos, que a teoria não pode recusar sob pena de perder o caráter de
uma abordagem "total", que é uma de suas palavras de ordem. Lacan,
de fato, já assimila o ensinamento de Kojeve matizando de modo bas-

fenomenológica da épocà'. :É justamente esse tipo de crítica que Lacan busca nas
páginas da Tese, no esforço de escapar, simultaneamente, ao desvanecimento do
sujeito - e, portanto, da significação - nas mãos do organicismo psiquiátrico e
ao sujeito onipresente do cartesianismo, que, como vimos, trouxe outros tantos
reveses à psiquiatria. A vantagem de Kojeve é, segundo o autor, oferecer "um
ponto de vista original sobre a estrutura da consciência, entendida como processo
de socialização da inst~ncia que diz Eu" ("Hegel no espelho do Dr. Lacan", p. 65;
grifos nossos).
ANTROPOLOGIAS LACANIANAS 425

tante perceptível esse seu "ativismo": seu estágio do espelho pretende


propor um modelo para a constituição do sujeito como determinado
pelo imaginário. A alienação originária do sujeito nas imagens que o
constituem torna-se, assim, uma figura da dependência em que ele se
encontra com relação a essas imagens, que formam o seu único "ser",
na medida em que a insuficiência vital em que ele se encontra mergu-
lhado abole qualquer possibilidade de uma constituição e de uma de-
terminação natural. Mas, ao contrário da servidão kojeviana, que pode
ser superada pelo trabalho - onde o Escravo nega a natureza do obje-
to dado, ao mesmo tempo em que nega a sua própria natureza de Es-
cravo -, a servidão imaginária do sujeito humano é, em Lacan, no li-
mite, incontornável: toda negação da natureza que poderia ser feita,
já o foi desde o início, dada a ênfase na carência absoluta de eficácia
da determinação biológica. Podemos pensar isso em termos de que
Kojeve, evidentemente, não dialoga com o organicismo psiquiátrico,
enquanto que Lacan sim. O que está em jogo para Lacan não é a opo-
sição entre servidão e liberdade, autonomi.a e dependência, mas o re-
conhecimento ou o desconhecimento desse assujeitamento do sujeito
aos seus "outros" imaginários, que o constituíram e que o determinam.
Tudo se passa como se, para Lacan, a experiência analítica seja o pro-
cesso no qual o sujeito transita desse desconhecimento a esse reconhe-
cimento, fórmula em que se converte o desígnio freudiano de tornar
consciente o inconsciente. O que se revela ao sujeito, ao cabo desse
processo, é que o seu desejo é, inapelavelmente, o desejo de um outro.
Se esse desejo o impulsiona à ação, é em nome do outro que ele age,
ou seja, é ainda na posição de Escravo que ele se encontra.
É claro que falta um Senhor nessa recomposição lacaniana do
apólogo de Kojeve. Isso se resolve, mais tarde, com a identificação do
outro (do grande Outro) com a ordem da linguagem e da cultura, com
o que, não só se arremata essa recondução de uma autonomia do su-
jeito a uma determinação severa, como se abole, na relação intersubje-
tiva, a diferença essencial entre o Senhor e o Escravo: igualmente sub-
metidos à linguagem, ambos - ou melhor, suas encarnações mais
concretas: o pai e o filho na situação edípica, por exemplo - apenas
encenam um drama imaginário de submissão e autoridade, onde to-
426 RICHARD THEISEN S!MANKE

dos os papéis estão prescritos de antemão. Lacan insiste sempre, por


exemplo, que a figura paterna apenas representa a Lei, é seu portador,
mas não se identifica com ela, essa identificação, quando ocorre, con-
sistindo na perversão dessa função, com conseqüências funestas para
o sujeito em formação na outra ponta da relação edípica. Não seria
demais dizer que é um mundo de escravos que se constrói aí, onde a
liberdade e a emancipação das determinações primordiais só pode
ocorrer no plano imaginário, pairando o simbólico como uma instân-
cia onipresente que governa cada ato desses sujeitos, doravante nada
mais do que efeitos transitórios de cada ato de fala. A percepção dos
excessos dessa concepção - a nulidade desse sujeito em perpétuo fading
contraria, flagrantemente, os termos do projeto inicial - vai levar
Lacan, num terceiro momento, a tentar reencontrar, encarnado no
real, esse sujeito que desaparece no simbólico, seguindo aí, em parte,
os passos de Merleau-Ponry.
Mas o impulso em direção à superação de uma concepção do
sujeito calcada unicamente no imaginário já estava, pelo menos em
parte, contida no próprio encaminhamento do raciocínio de Kojeve:
a ação, a diferença, a "negatividade-negadora" dificilmente poderiam
harmonizar-se com uma teoria centrada na identidade e na passivida-
de do reflexo especular. Podemos localizar, portanto, dois fatores que,
a partir de Kojeve, movem Lacan em direção às elaborações sobre o
simbólico que marcam o seu pensamento ao longo dos anos 50 101 •
Um, positivo: necessidade de tornar sua teoria da constituição do su-
jeito mais compatível com alguns pontos-chave da filosofia de Kojeve.
Outro, negativo: necessidade de relativizar a autonomia e a atividade

101 A referência hegeliana continua a se fazer presente nesse período, de uma forma
até mesmo mais ruidosa, como uma expressão metafórica da constituição do su-
jeito pelo simb6lico, onde o Outro, agora com maiúscula, deixa de ser uma ima-
gem para se converter numa função. O principal parceiro nessas façanhas passa a
ser Jean Hyppolite, que, agindo inclusive sob encomenda, empreende: uma série
de leituras hegelianizadas de Freud que, no limite, já são umas leituras lacanizadas
de Hegel. Cf. Arantes, P. E. "Hegel no espelho do Dr. Lacan", p. 66).
ANTROPOLOGIAS LACAN!ANAS 427

absoluta do sujeito humano que aquela filosofia propõe, recusando o


final feliz em que a Consciência de si realiza o seu conceito (isto é,
percebe a sua condição de sujeito absoluto, idêntico ao mundo, e as-
sim por diante), e descobrindo uma ordem soberana de determinação
que seja perfeitamente extra-subjetiva. Esse segundo fator tem, clara-
mente, um peso maior nesse redirecionamento das preocupações de
Lacan, e vai decidir sobre a sua adesão entusiástica ao estruturalismo,
onde uma antropologia finalmente anti-individualista e anti-psicolo-
gista vai parecer acenar-lhe. com o preenchimento definitivo dos re-
quisitos iniciais de seu projeto teórico, com a vantagem suplementar
de lhe permitir revisitar a psicanálise munido de um instrumental re-
novado e incorporar, inclusive a até então execrável (porque psicolo-
gista ou biologista) noção de inconsciente.

V.4. RESUMINDO: LACAN E A, ANTROPOLOGIA

Podemos dizer que Lacan viu efetuar-se, como que diante de


seus olhos, aquela "revolução na antropologia'', que ele preconizava em
1932 e cuja necessidade não se cansou anunciar. Das três referências
fundamentais inventariadas acima, certamente a de Kojeve foi a mais
significativa e aquela que produziu efeitos mais duradouros sobre o
pensamento de Lacan, tanto que se costuma considerar mais ou me-
nos natural a sua associação com Hegel, sem que, em geral, se chegue'
a sequer pressentir os formidáveis problemas de uma tal aproximação.
Mas também não é o caso de simplesmente desqualificá-la como mais
uma esquisitice do pitoresco Dr. Lacan. Ao contrário, a presença de
Kojeve nesse instrumental bastante eclético que Lacan começa já a co-
letar nesses anos de formação daquele corpo teórico que se tornou mais
conhecido, justifica-se, de modo bastante convincente, se considera-
da no contexto dessa composição de um referencial antropológico, cuja
localização e função na teoria ficaram estabelecidas desde o seu ponto
de origem. Evidentemente, mesmo levando-se isso em conta, a pre-
428 RICHARD THEISEN S!MANKE

sença de um nome como o de Hegel no âmbito de uma teoria psica-


nalítica do inconsciente só se explica plenamente pelo somatório de
duas habilidades retóricas - a de Kojeve e a de Lacan - que não hesi-
tam em redefinir à vontade os conceitos que empregam, para pô-los a
serviço de suas próprias necessidades e interesses.
A intervenção de Kojeve serve, ainda, a um outro objetivo, mais
específico. Lacan inaugura sua reflexão. psiquiátrica argumentando a
favor da reintrodução da perspectiva do sujeito na consideração dos
transtornos mentais, ao mesmo tempo em que propõe que a determi-
nação dessa subjetividade deva ser buscada na ordem social, a bem da
obtenção de um grau de científicidade que uma visada meramente
psicológica, por todas as razões que se viu, não seria capaz de propor-
cionar. Portanto, não bastava apenas a Lacan buscar numa referência
antropológica uma instância causal que se impusesse às variáveis sub-
jetivas ressuscitadas na medicina. Se essa determinação não deveria ser
reducionista - afinal, esse era o ponto de partida da história toda -,
era preciso que esse sujeito se definisse, ele também, em termos antro-
pológicos ou sociais. Ou seja, era preciso dar conta do problema da
"gênese social da personalidade" também do ponto de vista do sujei-
to, e não apenas do ponto de vista da sociedade que o determina. É aí
que entra a concepção kojeviana da antropogênese, uma teoria não-
psicológica do sujeito que é capaz de pensar a subjetivação dos deter-
minantes sociais - descrita inicialmente, por Lacan, a partir da noção
ainda excessivamente psiquiátrica de reação - como um processo
dialético de supressão/incorporação do desejo do outro, desse outro
que é o social reduzido à sua expressão mínima e que fornece aquela
que, para Lacan, será, daí em diante, a substância por excelência da
subjetividade: o sujeito lacaniano será, até o fim, um sujeito do - e
sujeitado ao - desejo.
Já a participação de Lévy-Bruhl na composição das teses iniciais
de Lacan foi, ao mesmo tempo, direta e pouco longeva, ao contrário
de Mauss, que comparece de modo mais alusivo, mas cujo ideário teó-
rico se prolonga - através de Lévi-Strauss, é verdade - no lacanismo
posterior. As idéias de Lévy-Bruhl sobre a mentalidade primitiva ser-
vem, de fato, para que Lacan pense, em sua Tese, a diferença entre o
ANTROPOLOG!AS LACANIANAS 429

conhecimento paranóico e o normal em termos genéticos, e não defi-


citários, fundamentando assim a noção de fixação do desenvolvimento,
uma das peças-chave de sua explicação da paranóia. O problema é que
a idéia de uma gênese verdadeira da subjetividade vai parecer, cada vez
mais, a Lacan, comprometida com uma perspectiva excessivamente
psicológica. De fato, trata-se aí de um indivíduo real, com suas cren-
ças e idiossincrasias, que atravessa um processo que não pode ser to-
talmente dissociado de uma evolução psíquica e de um crescimento e
uma maturação biológica. A progressiva despsicologização da antro-
pologia a que assistimos com Mauss e Lévi-Strauss, associada à desti-
tuição absoluta dos fatores maturacionais de qualquer eficácia na gê-
nese do sujeito, pensada entrementes nos termos exclusivos da teoria
lacaniana do imaginário, vai tornar a noção de psicogênese cada vez mais
estrangeira ao encaminhamento lacaniano, até a sua recusa taxativa nos
primeiros anos do Seminário. É nesse sentido que as idéias de Kojeve
vêm, efetivamente, substituir as de Lévy-Bruhl: elas permitem pensar
o sujeito numa perspectiva que não seja .exclusiva e realisticamente
genética. Embora o sujeito kojeviano seja uma representação
condensada do sujeito e do acontecer histórico, a luta das consciências,
a dialética do reconhecimento, as figuras do Senhor e do Escravo, en-
fim, todos os componentes mais chamativos do périplo da Selbstbe-
wusstsein, vão funcionar, em Lacan, como um modelo do vir-a-ser do
sujeito, ou seja, uma totalidade que pode ser pensada sincronicamente
e aplicada a cada um dos momentos concretos (na neurose, no Édipo,
etc.) em que essa subjetividade deve emergir. Numa palavra, a pers-
pectiva de Kojeve é, apesar de tudo, mais apta para ser assimilada ao· ·
sujeito desvanecente que Lacan vai propor em seus anos estruturalis-
tas, um sujeito produzido a cada operação significante protagonizada
por esse grande Outro, verdadeira reedição do Deus cartesiano e da
idéia de criação contínua - não faltam comparações, em Lacan e seus
discípulos, a esse respeito.
É por isso que, como já se observou acima, talvez se possa atri-
buir a Kojeve a façanha de ter preservado a referência lacaniana ao su-
jeito no contexto de um estruturalismo que cem a sua aniquilação
como projeto. Tanto que, na virada dos anos 60, quando o pensamento
430 RICHARD THEISEN S!MANKE

de Lacan estiver experimentando outro de seus tournants- que, dessa


vez, irá levá-lo a um progressivo afastamento do programa estrutura-
lista -, ele produzirá a versão mais ou menos definitiva de sua teoria
do sujeito ainda debatendo-o em termos hegelianos, num de seus tex-
tos mais célebres, a "Subversion du sujet et dialectique du désir dans
le inconscient freudien". Pode-se, talvez, avançar a idéia de que foi
Kojeve quem permitiu que essa subversão do sujeito não degenerasse
no seu banimento puro e simples da teoria psicanalítica. Com efeito,
o conceito de inconsciente que Lacan finalmente incorpora no início
dos anos 50, e que lhe permite autoproclamar-se freudiano e pregar o
"retorno a Freud", foi introduzido na reflexão antropológica por Mauss
e desenvolvido por Lévi-Strauss, no contexto de um processo de ex-
clusão das variáveis subjetivas e individuais da análise das estruturas e
do funcionamento sociais. Tornar os membros de uma certa cultura
ou grupo social inconscientes daquilo que determina sua condútã" em__ _
sociedade é, em última instância, mais uma estratégia para cumprir o
desígnio positivista de despojar a ação individual de qualquer papel
com relação à explicação sociológica. O sujeito inconsciente não age;
ele simplesmente executa as ações que lhe são prescritas por uma ins-
tância que o transcende e determina. Onde encontrar um lugar, numa
tal concepção do inconsciente, para a atividade irrecusável de um su-
jeito que só se define pelo desejo, este será o dilema enfrentado por
Lacan durante toda a etapa estruturalisca de seu percurso - e mesmo
depois, sempre que se vir atraído por outros tipos de formalismo, ló-
gico ou matemático, por exemplo. Resta-nos, então - para completar
essa reconstituição do caminho que conduziu Lacan à reinterpretação
da psicanálise que o identificaria de 1953 em diante, no Seminário e
nas novas escolas fundadas a partir daí - descrever como o seu cruza-
mento com a antropologia de Lévi-Strauss forneceu-lhe a chave para
se apropriar daqueles conceitos freudianos desprezados até esse mo-
mento, conceitos cuja redefinição sistemática vai dar o tom de seu tra-
balho teórico daí por diante.
VI. UM INCONSCIENTE PARA O SUJEITO

A incorporação de noções oriundas da antropologia trouxe, aos


poucos, a noção de inconsciente para o interior da teoria que Lacan
empenha-se em formular ao longo dos anos de formação de seu siste-
ma. Mas essa presença permanece difusa dentro da própria antropolo-
gia até o surgimento do trabalho de Lévi-Strauss, que define o sentido
do conceito, o integra e teoriza, convertendo-se, por isso, no principal
agente dessa reformulação do estilo do pensamento lacaniano, que vai
levá-lo a, enfim, propor sua própria versão de uma ortodoxia freudiana.
Ortodoxia muito peculiar, porém, já que não é difícil mostrar que o
inconsciente assim reabilitado quase nada tem a ver com o que era
proposto por Freud. Será preciso, ainda, que Lacan cruze Kojeve com
Lévi-Strauss para que possa haver sujeito e desejo nesse inconsciente
doravante "estruturado como uma linguagem", o que de forma algu-
ma o reaproxima de Freud, dado o sentido que essas noções têm no
interior da releitura de Hegel desenvolvida por Kojeve. Outra evidên_-
cia dessa distância é que, no limiar mesmo da proposição do "retorno
a Freud", o que o paradigma estruturalista permite a Lacan reencon-
trar são os mesmç,s pressupostos que animaram seu projeto desde suas
origens perfeitamente não-freudianas, como se pode ver na conferên-
cia de 1953 sobre Le symbolique, l'imaginaire et le réel. Vejamos pri-
meiro, então, o sentido da noção de inconsciente em Lévi-Strauss, para
depois acompanhar como Lacan se exercita no manejo do recém-ad-
quirido instrumental estruturalista em "Le mythe individuei du ne-
vrosé", seu trabalho mais lévi-straussiano, antes de lançar o seu pró-
prio programa de pesquisa na conferência de 1953. Esse movimento
432 RICHARD THEISEN S!MANKE

completa o percurso de Lacan da psiquiatria à psicanálise e deve tor-


nar daras as condições sob as quais esse encaminhamento se dá.

VI.1. O INCONSCIENTE DAS ESTRUTURAS

Lévi-Strauss é o pai fundador do estruturalismo. Uma ve:z que


trocou a filosofia pela antropologia, seus estudos de campo sobre os
indígenas brasileiros, associados ao encontro com Jakobson em seu
exílio americano durante a guerra, desencadearam uma série de inves-
tigações que culminaram em sua tese sobre As estruturas elementares de
parentesco, convertida, desde a sua publicação em 1949, no modelo
para a nova metodologia científica da pesquisa antropológica. A am-
bição de uma cientificidade plena para a ciência social não é, no en-
tanto, exclusiva de Lévi-Strauss; ele apenas inovou no método para
atingi-la. O que reaparece aí é a mesma filiação positivista e comteana1
que, como se viu, animou todos os luminares da sociologia francesa,
de Lévy-Bruhl a Mauss, inspirando ainda o determinismo social do
sujeito que Lacan buscou estabelecer desde a Tese e para o qual, de
fato, buscou recurso junco a todos esses investigadores da vida social.
Só que, nesse afã de cientificidade, Lévi-Strauss vai..se insurgir contra
o empirismo em geral e o funcionalismo em particular que, a seu ver,
constrangiam a antropologia a manter-se na superfície dos fatos sociais,
cuja singularidade representava um obstáculo incontornável ao desíg-
nio de atingir uma explicação antropológica verdadeiramente univer-
sal e, por aí, plenamente científica. Ele vai eleger um novo modelo de

1 Como afirma François Dosse: "Nesse plano, e mesmo que Lévi-Strauss se distan-
cie e inove, o estruturalismo inscreve-se na filiação positivista de Auguste Comte,
do seu cientismo, e não do otimismo comteano que vê na hist6ria da humanidade
um progresso por etapas da espécie para a idade positiva(...)" (História do estrutu-
ralismo, Vol. 1, p. 34).
UM INCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 433

científicidade - o modelo lingüístico oferecido pela lingüística estru-


tural impulsionada por Jakobson2 -, o que lhe permitirá suplantar o
vínculo entre a antropologia e as ciências da natureza, a antropologia
física antes dominante na cena francesa, com sua filiação naturalista e
biologista, voltada para a pesquisa das bases naturais do homem, para
o qual propunha, portanto, um determinismo essencialmente bioló-
gico. Lançava, assim, as bases para uma verdadeira antropologia social
capaz de pensar o sujeito humano como um efeito dos processos - na
verdade, das estruturas - sociais nos quais se encontra inserido, unifi-
cando a pesquisa sociológica e antropológica num grande projeto de
apreensão positiva do universo humano.
Esse recurso ao modelo lingüístico está intimamente associado
ao lugar que a noção de inconsciente irá ocupar em seu projeto e na
metodologia prop·osta para a pesquisa antropológica. De fato, as duas
grandes lições a serem retidas do modelo lingüístico estrutural são, "por
uma parte, a investigação de invariantes para além da multidão de varie-
dades identificadas e, por outra parte, o afastamento de todo e qualquer
recurso à consciência do sujeito foi.ante, logo; a preponderância dos fenô-
.menos inconscientes da estrutura''3 . Não faltam declarações do próprio

2 Ao se afastar do empirismo anglo-saxônico, Uvi-Strauss vai-se aproximar de um


certo grupo de antropólogos que preparam o seu caminho em direção a Jakobson,
com destaque para Boas: ''A mais importante contribuição de Boas e sua influên-
cia sobre Lévi-Strauss terão sido a ênfase que deu à natureza inconsciente dos fin6;-.
menos culturais e a colocação das leis da linguagem no centro da inteligibilidade des-
sa estrutura inconsciente. O impulso lingüístico estava dado, oriundo do campo da
antropologia, a partir de 1911, e iria favorecer a fecundidade do encontro entre
Lévi-Strauss e Jakobson" (História do estruturalismo, p. 37; grifos nossos).
3 História do estruturalismo, p. 43; grifos nossos. Quanto ao primeiro aspecto, ele
marca a origem do pensamento de Lévi-Strauss na investigação das estruturas de
parentesco. A questão inicial era sobre a possibilidade de encontrar uma lei da
cultura que desfrutasse do mesmo grau de universalidade de uma lei natural; essa
lei instituiria o próprio estado cultura e se identificaria com ele. Tal é o papel atri-
buído à proibição do incesto em As estruturas elementares de parentesco: para além
de qualquer consideração de ordem biológica (os riscos genéticos da consangüini-
434 RICHARD THEISEN SrMANKE

Lévi-Scrauss de que é a apropriação do método da análise fonológica


empregado pela lingüística estrutural que reafirma o papel preponde-
rante dos processos inconscientes no fato social, à semelhança do que
se revela na análise do fato lingüístico. Só para dar um exemplo: "No
estudo dos problemas de parentesco (e sem dúvida também no escudo
de outros problemas), o sociólogo se vê em uma situação formalmente
semelhante àquela do lingüista fonólogo: como os fonemas, os termos
de parentesco são elementos de significação; como aqueles, eles só ad-
quirem essa significação ao se integrar em sistemas; os "sistemas de
parentesco", como os "sistemas fonológicos", são elaborados pelo espí-
rito no estdgio do pensamento inconsciente(... )"4 . O que acontece é que,
com Lévi-Strauss, culmina aquele processo de tomada da lingüística
como modelo, para as ciências humanas como um todo e para a socio-
logia e a antropologia em particular, que se pode observar em curso ao
longo da história da evolução das idéias sociológicas que passa por
Lévy-Bruhl e Mauss. Com efeito, é o próprio Mauss que Lévi-Strauss
cita quando, ainda em 1945, assume explicitamente o modelo lingüís-
tico: "No conjunto das ciências sociais, ao qual ela pertence indiscuti-
velmente, a lingüística ocupa, não obstante, um lugar excepcional: ela
não é uma ciência social como as outras, mas aquela que, de longe,
realizou os maiores progressos; a única, sem dúvida, que possa reivin-
dicar o nome de ciência e que tenha chegado, ao mesmo tempo, a for-
mular um método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submeti-
dos à análise. ( ...) Como escrevia já há vinte anos Marcel Mauss: ''A
sociologia estaria, com certeza, bem mais avançada se ela tivesse pro-
cedido, por toda parte, à imitação dos lingüistas ...". A estreita analo-

dade, por exemplo), ela constitui um fato cultural, positivo, intaurador da ordem
social em geral. Essa passagem do fato natural da consangüinidade para o fato cul-
tural da aliança, ao promover a ruptura entre natureza e cultura, constitui a pró-
pria cultura: "A proibição do incesto situa-se, simultaneamente, no limiar da cul-
tura, na cultura e, num sentido, é a própria culturà' (Lévi-Strauss, em Les structures
élémentaires de la parenté, citado em História do estruturalismo, p. 42).
4 Anthropologie structurale, p. 40-41; grifos nossos.
UM INCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 435

gia de método que existe entre as duas disciplinas lhes impõe um de-
ver especial de colaboração" 5• Essa lição será muito bem aprendida por
Jacques Lacan, que a repetirá durante todo o seu momento estrutura-
lista, inclusive lamentando o fato de que Freud não tenha podido se
beneficiar de tantos e tão salutares progressos6 .
É claro que a adoção desse modelo implica, por si só, uma signi-
ficativa redefinição da natureza do fato social, que constitui o objeto
da antropologia. O comportamento social é, em si, um objeto bastan-
te avesso a uma comparação com o fato lingüístico e a submeter-se a
uma análise do mesmo tipo. É essa redefinição que vai resultar na elei-
ção do símbolo como objeto da antropologia e na equiparação da cul-
tura a um conjunto de sistemas simbólicos passíveis de uma descrição
formal nos mesmos moldes que a análise fonológica. Dessas inovações
emergem as características do método estruturalista em antropologia,
na qual o conceito de inconsciente vai receber uma acepção admissível
ao projeto lacaniano, ainda que ao custo de um tal estranhamento com
seu sentido freudiano originário.
Para que essa aproximação funcione, é necessário, ainda, que a
noção de símbolo seja completamente retirada de uma relação, quer
natural, quer convencional, com as coisas e, na verdade, assimilada ao
elemento formal de uma estrutura. Assim, se Lévi-Strauss redescobre,
como a lingüística já o estava fazendo, a distinção saussureana entre o
significante e o significado, ele "adapta-a ao terreno antropológico, ao
atribuir ao significante o lugar da estrutura e ao significado o do sen-
tido, ao passo que em Saussure trata-se, antes, de opor som e concei-
to"7. Essa derivação deve-lhe parecer indispensável para afastar a no:.
ção de símbolo de qualquer conotação realista ou psicológica, trazendo

5 Anthropoúigie structurale, p. 37.


6 Por exemplo em A instância da letra no inconsciente... , calvez a mais típica das pro-
duções estruturalistas de Lacan: "Pois eis aí o fato pelo qual a lingüística se apre-
senta em posição piloto nesse domínio em torno do qual uma reclassificação das
ciências assinala, como é de regra, uma revolução do conhecimenco (... )" (p. 253).
7 História do estruturalismo, p. 43.
436 RICHARD THEISEN 5IMANKE

essas mesmas conseqüências para a concepção do fato social, como


bem o percebeu Merleau-Ponty num texto em que reconstitui a for-
mação da antropologia social francesa 8• Não é ocioso observar que é
exatamente nessa acepção que Lacan elaborará o seu registro do sim-
bólico. Pois, embora o vocabulário saussureano desponte com freqüên-
cia em seus textos, é Lévi-Strauss quem fala aí pela boca de Saussure,
inclusive na famosa desmontagem do signo e na inversão do "algo-
ritmo" (sic) apresentado no Cours de lingu.istique générale 9• Uma vez
assimilada, nesses termos, a concepção saussureana da linguagem, tor-
na-se possível pensá-la como o instrumento, por excelência, para a
construção e organização do mundo humano e social, já preconizadas
pela sociologia positiva de Augusto Comte. A complexidade que o fe-
nômeno lingüístico e as capacidades de comunicação atingem no ho-
mem e o fato de que a linguagem aí se constitua em sistema e que,
portanto, seus sinais remetam uns aos outros, e não apenas às coisas
que eles designam, permitem que o simbolismo que assim se constrói
forneça a chave para a organização do próprio mundo físico, adaptan-
do-o às instituições humanas, ao contrário das linguagens animais que,
por mais desenvolvidas que sejam, só podem expressar ou designar 10 •

8 "De Mauss à Claude Lévi-Strauss", p. 150: "Os fatos sociais não são nem coisas
nem idéias, são estruturas". Este texto, escrito inteiramente do ponto de vista de
Lévi-Strauss, já foi considerado como cobrindo exatamente a "origem da proble-
mática do indmsciente na Antropologia Social" (Aragão, L. T. do. "O inconscien-
te em Claude Lévi-Strauss ou a dimensão inconsciente nos fenômenos culturais",
p. 149).
9 Em "La instance de la letcre dans l'inconscient ou la raison depuis Freud", p. 253-
6. A fórmula saussureana do signo é exposta no capítulo sobre a "Natureza do
signo lingüístico", do Cours de /inguistique générafe (p. 97-103).
°Cf. Lepine, Claude. O inconsciente na antropologia de Lévi-Strauss, p. 20. Há, por-
1

tanto, ruptura e não uma diferença de grau entre a linguagem humana e as lin-
guagens animais, que diz respeito, justamente, ao seu caráter formal (ou simbóli-
co) ou expressivo, respectivamente: "A passagem entre o mundo humano e o
mundo animal se situa, em conclusão, no ser humano, no momento da ruptu(a
entre a linguagem expressiva e a linguagem simbólica" (id., ibid., p. 22). Daí a
UM INCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 437

Daí que o homem viva "num meio artificial de símbolos; não reage
diretamente às coisas, mas às idéias que ele tem sobre as coisas; não
pode perceber nada senão através da interposição desse meio simbóli-
co que o afasta da realidade física'' 11 • Pelo que se vê que, na medida
em que Lacan busque aqui subsídios para suas teorias, a idéia de uma
construção social da realidade pode continuar fornecendo a base para
que se atribua uma natureza fundamentalmente cognitiva para os fa-
tos psíquicos em geral e, particularmente, para os fatos psicopato-
lógicos: a própria percepção é uma interpretação - como queriam as
inversões operadas por Lacan, na Tese, em certas concepções psiquiá-
tricas clássicas sobre a paranóia-, já que universalmente mediada por
esse simbolismo onipresente que se substitui à realidade natural.
Mas um outro aspecto dos desenvolvimentos lacanianos, prin-
cipalmente de sua teoria do imaginário, pode ser reencontrado aqui: a
idéia de uma constituição simultânea e recíproca do sujeito e de seus
objetos, estes últimos compreendidos tanto no sentido de objetos do
interesse sexual quanto no de objetos do çonhecimento. Sabemos, con-
tudo, que isso que antes era pensado no imaginário, sob o modelo do
estágio do espelho será, depois, tematizado no simbólico, quando Lacan
acrescentar esse terceiro registro à sua metapsicologia, a partir da ex-
periência estruturalista. Ora, se o estruturalismo pode substituir pelo
· símbolo os antigos objetos da sociologia - o comportamento social dos
sujeitos, basicamente - é porque ele abre uma via para que se passe a
conceber esses próprios sujeitos como constituídos pelo simbolismo.
Melhor dizendo, o sujeito individual passa a ser considerado apenas
como uma ocasião para que o simbolismo social se manifeste, um sim._
bolismo dependente em contraposição ao simbolismo autônomo consti-
tuído coletivamente, como dirá Lévi-Strauss na sua "Introduction à
l' oeuvre de Marcel Mauss". É claro que não é a antropologia social

recusa explícita de Lacan, mais tarde, de qualquer concepção expressivista da lin-


guagem e do simbolismo, relegando a idéia de expressão a uma formulação no ima-
ginário, assim como o significado.
11 O inconsciente na antropologia de Lévi-Strauss, p. 21.
438 RICHARD THEISEN S!MANKE

que vai-se ocupar da investigação desse sujeito assim constituído; mas,


dando margem a que assim se o conceba, ela cria a possibilidade de
que alguma disciplina venha a dele se encarregar. É justamente por
esse brecha que Lacan vai tentar apresentar a psicanálise como a ciên-
cia desse novo sujeito que surge agora no panorama das ciências huma-
nas. Lembremos que seu objetivo sempre foi identificar uma causali-
dade homogênea ao sujeito, que evitasse os escolhos do reducionismo.
Esse objetivo nunca deve ter-lhe parecido mais próximo de ser atingi-
do do que nessa proposta do simbolismo como uma espécie de subs-
tância universal do mundo humano, tanto na sua expressão coletiva
quanto individual. Isso com a vantagem suplementar de evitar, ainda,
qualquer concepção dessa determinação do sujeito em termos, por
exemplo, de um condicionamento social, o que o faria retornar ao
empirismo e a um certo psicologismo - mais behaviorista e menos
associacionista, calvez -, armadilhas a serem contornadas desde o co-
meço. Na medida em que tanto a cultura quanto o sujeito estão orga-
nizados pela linguagem 12, este último configura tão somente o modo
de expressão individual da função simbólica, uma tradução, como dirá
Lévi-Scrauss, do simbolismo coletivo no plano individual. É dessa ver-

12 Se a cultura é um conjunto de sistemas simbólicos, um ponto de vista efetiva-


mente estrutural não pode admitir que se trate aí de uma mera justaposição, mas
sim que esses diversos sistemas estejam integrados entre si. É o que aponta Claude
Lépine ao introduzir a problemática de seu livro: "Podemos concluir que a cultu-
ra se define pelo simbolismo; é um conjunto de diferentes sistemas de comunica-
ção, o que não significa, porém, nem que a sociedade se reduza a uma mera justa-
posição de sistemas simbólicos autônomos, nem que possa ser finalmente reduzida
à linguagem. Estes sistemas apresentam entre si homologias, e é possível pensar
numa meta-estrutura, numa ordem das ordens que os integraria" (O inconsdente
na antropologia de Lévi-Strauss, p. 10). Mais adiante, essa meta-estrutura é expli-
citamente identificada com a linguagem: "Os vários sistemas simbólicos qúe com-
põem uma cultura apresentam homologias com o sistema lingülstico, mas essas ho-
mologias poderão aparecer somente entre expressões já formalizadas de certos
sistemas particulares, por exemplo, entre sistemas de parentesco e sistemas fono-
lógicos" {ibidem, p. 28; grifos nossos).
UM INCONSCI~NTE PARA O SUJEITO 439

são particular do simbolismo social ao qual ainda se pode dar o nome


de sujeito que vai-se ocupar a psicanálise reescrita por Lacan, que se
apresenta assim como a contraparte subjetiva da antropologia estru-
tural. O próprio fato de o simbolismo comparecer nesses dois planos
abre espaço para que se conceba o aspecto inconsciente da subjetivi-
dade. De fato, o método estruturalista, que se erige a partir dessa con-
cepção do símbolo e da cultura como um conjunto de sistemas sim-
bólicos, vai admitir duas fórmulas para o inconsciente: uma objetiva,
que corresponde ao plano da estrutura social, e outra subjetiva, que
corresponde ao indivíduo. É entre essas duas fórmulas que se define o
primeiro sentido que o conceito de inconsciente assume na antropo-
logia de Lévi-Strauss 13 e aquele que influiu decisivamente nos rumos
do pensamento lacaniano.
A questão da objetividade científica sempre é mais delicada
quando se trata de uma ciência do homem. Ao se defrontar com um
objeto que é, ele próprio um sujeito, o investigador vê-se diante do
dilema de como abordá-lo objetivament~ sem descaracterizá-lo - isto
é, sem desconsiderar a sua condição de sujeito - ou, no sentido inver-
so, como conciliar a dimensão subjetiva com os rigores de uma abor-
dagem científica que se quer perfeitamente objetiva14. Vimos que esse

13 Claude Lépine mostra como há duas concepções do inconsciente em Lévi-Strauss:


uma primeira, em termos de uma função simbólica, que é o objeto espedfico da
antropologia, e uma segunda, proposta principalmente a partir de O pensamentf!.
selvagem, que apresenta o inconsciente como uma espécie de lei do mundo físico,
um postulado metafísico que justificaria a unificação do conhecimento sobre o
mundo natural e o mundo humano, mas que cai fora do campo específico da
antropologia (O inconsciente na antropologia de Lévi-Strauss, p. 11-3). Tanto por
razões históricas quanto conceituais, é a primeira acepção que interessa para a
compreensão de Lacan e a ela nos restringimos na exposição que se segue.
14 "Torna-se indispensável analisar melhor o processo de observação etnográfica e
explicar como a solução do problema não consiste em afastar a subjetividade,
como nas ciências da natureza, mas, pelo contrário, em mostrar que objetividade
e subjetividade são complementares. A recusa da antinomia entre sujeito e objeto
caracteriza a observação etnográfica, e esta condição particular dá à Antropologia
440 RICHARD THEISEN S!MANKE

dilema da objetividade do subjetivo é contemporâneo ao próprio nas-


cimento do projeto lacaniano. O que Lacan vai encontrar em Lévi-
Strauss é uma nova equação para essa antinomia, uma equação que
passa justamente pela introdução oficial do inconsciente no aparato
conceituai da antropologia. Assim, num primeiro momento, o méto-
do estruturalista prescreve que o etnógrafo identifique-se, em certa
medida, com a experiência indígena, ou seja, que a apreenda subjeti-
vamente, apreensão essa que é possibilitada por uma espécie de solo
comum a toda subjetividade. A esse momento de interiorização do
objeto deve seguir-se um outro de objetivação do sujeito, de apreen-
são externa disso que foi vivido subjetivamente, remetendo-o a uma
rede de relações que pode ser considerada objetivamente, como uma
coisa, um elemento da realidade social, reafirmada aí como de uma
consistência equiparável à do mundo físico. É isso que permite que o
observador valha-se de seu próprio eu como instrumento, com a con-
dição de que ele desdobre esse eu numa face subjetiva frente a outra,
objetiva, desdobramento que, sabemos, distingue a concepção laca-
niana do eu e se expressa na distinção pronominal entre o je e o moi.
Ora, a passagem de um ao outro não pode-se dar sem mediações, e é
justamente o inconsciente que vai ser chamado a operar essa media-
ção. Se a identificação inicial com a experiência indígena só pode o.cor-
rer sobre um terreno comum a qualquer subjetividade, a natureza desse
terreno já foi bem especificada com relação ao objeto da investigação
antropológica: trata-se da função simbólica que organiza toda e qual-
quer experiência na cultura e que, fazendo isso, garante a possibilidade
do acesso à subjetividade do outro, ainda que na forma inconsciente
da identificação. Esse, portanto, o primeiro aspecto, subjetivo, que a
noção de inconsciente adquire na antropologia: "Este inconsciente é,

seu caráter distintivo entre os outros ramos da ciência" (O inconsciente na antropo-


logia de Lévi-Strauss, p. 33; grifos nossos). E prossegue a autora, citando tex-
tualmente a Lévi-Strauss, numa passagem que enuncia o desígnio mais antigo de
Lacan: "De todas as ciências, ela [a antropologia] é, sem dúvida, a única a fazer
da subjetividade mais íntima um meio de demonstração objetivà' (ibidem, p. 33).
UM INCONSCJ~NTE PARA O SUJEITO 441

portanto, um sistema de formas universais de operações lógicas, e não


é outra coisa, por enquanto, senão a função simbólica. Suas leis deter-
minam o comportamento de todos os homens, em magia, ein religião,
em Lingüística. Ele determina as modalidades da apreensão subjetiva,
pelo etnógrafo, dos fenômenos sociais revividos por ele, e garante que
esta vivência coincidirá com a consciência indígena. Ele é um princí-
pio efetivo de organização da vida interior; sob este aspecto, constitui
um principio subjetivo que determina nossas atividades mentais" 15. Essa
acepção do conceito permite, como se vê, operar uma despsicologi-
zação da vida interior, uma apreensão do sujeito no plano simbólico e
não mais psicológico, onde o inconsciente não vai significar mais uma
contradição em termos como ocorreria nas tentativas lacanianas de
psicologia, por exemplo. Numa palavra, se a noção de representação
inconsciente parece auto-contraditória à luz de uma teoria estritamente
psicológica da representação, a noção de uma estrutura inconsciente
não apresenta nenhum estranhamento frente a uma teoria estritamente
anti-psicológica do simbolismo. Em vez de-resíduo de uma psicologia
pré-científica que só podia oscilar entre uma hipertrofia e uma ani-
quilação do sujeito, o conceito de inconsciente surge como uma solu-
ção quase mágica para o problema da objetividade do subjetivo.
Solução que se completa com o segundo passo do método, onde
é a objetivação da estrutura social, ou melhor, a revelação da sua obje-
tividade, que vai reafirmar o seu caráter inconsciente, agora num pla-
no estritamente científico. A possibilidade de uma antropologia como
ciência do inconsciente social abre caminho para uma psicanálise como
ciência da versão individual desse inconsciente, e Lacan poderá pregar
tranqüilamente o retorno a Freud sem ser, por algum tempo, atormen-
ta,do pelos paradoxos em que envereda seu projeto científico, a partir
desse aggiornament'o do impasse entre o subjetivo e o objetivo que é
propiciada por Lévi-Strauss. Resumindo, então, os dois momentos do
método estruturalista e o papel que neles desempenha o inconsciente,

15 Lépine, C. O inconsciente na antropologia de Lévi-Strauss, p. 35; grifos nossos.


442 RICHARD THEISEN S!MANKE

temos, portanto, que "na primeira fase, a da investigação etnográfica,


o inconsciente possibilita a comunicação entre o observador e seu ob-
jeto; é o princípio subjetivo de organização da vida mental de ambos.
Agora, sob seu aspecto objetivo, ele possibilita a passagem dessa pri-
meira fase da apreensão subjetiva de uma significação para a apreen-
são objetiva, ao nível da análise científica, da infra-estrutura. Precisa-
mente por ser inconsciente, ele fica fora da apreensão subjetiva, e suas
leis só podem ser conhecidas como objetos, no nível científico. Este
duplo caráter do inconsciente, subjetivo por ser um princípio efetivo
de estruturação da vida mental, e objetivo por ser inconsciente e co-
nhecido apenas através da análise científica, é o que lhe permite, em
primeiro lugar, estabelecer a comunicação entre o sujeito e o objeto e,
em segundo lugar, realizar a passagem entre os dois momentos da in-
vestigação antropológica'' 16 . Nesses dois momentos desdobrar-se-á
também a investigação psicanalítica sob Lacan: num momento clíni-
co, ao qual corresponde uma concepção da situação analítica como re-
lação intersubjetiva, para o que contribuem, não só Lévi-Strauss, mas,
principalmente, Kojeve; e num momento que se pode chamar de me-
tapsicológico, com a condição de se entender esse "além da psicologià'
como um passo em direção à ordem antropológica, e não a um limite
entre o psíquico e o neurológico, como em Freud. Aí o inconsciente
pode ser objetivado numa reflexão que apelará, antes de tudo, para o
novo registro do simbólico e a estrutura da linguagem, na esteira des-
sas considerações de Lévi-Strauss.
Agora, é, mais do em qualquer outro lugar, na "Introduction à
l'oeuvre de Marcel Mauss" que esses pontos de vista são expostos numa
forma que converge exemplarmente com 'os princípios das investiga-
ções de Lacan. Ao que parece, quando do encontro entre os dois, foi a
esse texto que Lévi-Strauss remeteu Lacan para que esse se instruísse
sobre os novos ventos a soprarem na antropologia. De qualquer for-
ma, o caráter fortemente programático dessa pretensa apresentação de

16 O inconsciente na antropologia de Lévi-Strauss, p. 36-37; grifos nossos.


UM INCONSCiêNTE PARA O SUJEITO 443

uma série de trabalhos de Marcel Mauss até então dispersos 17 - ovo~


lume intitulado Sociologie et anthropologie - permitiu a Lacan apreen-
der, sob uma forma sintética, os princípios fundamentais· do estrutu-
ralismo, numa versão tão próxima de suas próprias idéias que um
exame mais minucioso do texto pode mostrar bem por que este aca-
bou-se constituindo no verdadeiro programa para o lacanismo dos
anos 50, complementando um papel semelhante que pode ser atribu-
ído também à introdução do livro de Kojeve, razão pela qual vale a
pena deter-se um pouco mais sobre a letra das suas formulações.
A "lntroduction à I'oeuvre de Marcel Mauss" não poderia mes-
mo ser apenas aquilo que ela é manifestamente, ou seja, a apresenta-
ção de uma coletânea, aliás heterogênea e cronologicamente dispersa.
Com o pretexto de mostrar a atualidade do trabalho de seu prefacia-
do, Lévi-Strauss acaba por expor o abecedário da antropologia estru-
tural em vias de constituição e por valorizar a obra de seu antecessor
justa~ente naquilo em que ele antecipa os princípios desta. Ao fazer
isso, enfatiza uma série de tópicos cuja convergência com as elabora-
ções lacanianas já foi apontada, interpreta~do-os, contudo, num sen-
tido que os aproxima não só das linhas de" força do trabalho até então
desenvolvido, mas também com os termos em que ele se desenvolverá
daí por diante. Lévi-Strauss representa assim, efetivamente, uma espé-
cie de carrefour teórico que conecta esses dois momentos do pensa-
mento de Lacan e explica tanto a continuidade quanto a ruptura que
se estabelece entre eles: a continuidade de uma problemática pensada,

17 François Dosse, comparando-a com o trabalho sobre as estruturas elementares de


parentesco, ressalta que "o status de sua Introduction à l'oeuvre de Marcel Mauss
(1950) é diferente.'Não se limita a uma simples apresentação da obra de um dos
mestres, durkheimiano, da antropologia francesa, mas aproveita a ocasião para
definir o seu próprio programa, estruturalísta, que é a exposição de uma rigorosa
metodologia. Curiosamente, portanto, o que de início parece ser um modesto e
ritual prefácio acabou fazendo época e constituiu a primeira definição de um
programa unitdrio proposto ao conjunto das ciências do homem desde a tentativa
dos ideólogos do começo do século (... )" (História da estruturalismo, p. 47; grifos
nossos).
444 RICHARD THE!SEN S!MANKE

doravante, a partir de um aparato conceitual renovado, mas não ape-


nas por uma mera aflição atualizante do autor, e sim porque este novo
instrumental se presta a cumprir certas exigências que a teoria se im-
punha desde as origens, claro que sem deixar de criar uma nova série
de problemas com que ela terá que se enfrentar nos anos seguintes.
Um dos sinais dessa aproximação mais estreita que Lévi-Strauss
promove entre as idéias de Mauss e os interesses de Lacan está na fre-
qüência com que o texto envereda por considerações sobre a patologia
mental, inclusive com um debate bastante explícito com a psicanálise,
trazendo para o primeiro plano aquelas referências episódicas presen-
tes nos artigos de Marcel Mauss. De fato, Lévi-Strauss abre a primeira
parte de seu comentário - que abrange os estudos "Psychologie et so-
ciologie", "Lidée de mort" e "Les techniques du corps" - apontando
como o Ensaio sobre a idéia de morte "introduz ao cerne das preocupa-
ções que a medicina psicossomática reatualizou no curso desses últi-:-
mos anos" 18 • Daí, após reafirmar, junto com Mauss, o valor desses fe-
nômenos que põem em relação imediata o fisiológico e o social - ou
seja, não só a idéia coletiva de morte, mas principalmente as técnicas
do corpo que, como vimos, atendem exemplarmente o requisito
positivista de uma explicação do homem apenas em termos biológi-
cos e sociais-, Lévi-Strauss parte para a afirmação do parentesco en-
tre a etnologia e a psicanálise, onde se insinua que será essa última que
tomará como objeto essa interface onde se exerce a determinação dos
processos sociais sobre a esfera vital, justamente o lugar onde Lacan
vai tentar encaixar, daí em diante, o seu problemático sujeito. Quase
que naturalmente, deduz-se daí que esse será também o lugar do in-
consciente que, por isso mesmo, se despoja completamente de qual-
quer conotação psicológica, uma vez que ele· ingressa no corpo dos
conceitos lacanianos justamente no contexto dessa recusa da psicolo-
gia, contra a qual Lacan resistiu bravamente em seus primeiros anos,
mas à qual sucumbe agora, finalmente. Embora Lévi-Strauss não in-
troduza aqui, explicitamente, a discussão do conceito de inconscien-

18 "lncroduction à l'oeuvre de Marcel Mauss" (doravante IMM), p. x.


UM !NCONSC!ÊNTE PARA O SUJEITO 445

te, que o ocupará mais à frente, ele extrai do texto de Mauss sobre as
técnicas do corpo passagens que caminham exatamente nesse sentido;
não faltam, por exemplo, referências a "estados psíquicos desapareci-
dos de nossa infâncià', que situam imediatamente o observador "em
plena psicanálise, provavelmente baseante fundada aqui" 19. O exem-
plo selecionado para ilustrar esses estados psíquicos são as modalida-
des do desmame analisados por Mauss naquele ensaio. Pode-se imagi-
nar que essas observações puderam fornecer a Lacan a chave para
pensar o complexo de desmame em termos antropológicos., tal como
ele aparece em "La famille", complementando assim a inspiração mais
evidente que ele tomou em Melanie Klein, que faz das reações imagi-
nárias - em geral, agressivas - à frustração pulsional ocasionada pela
interrupção da lactação um dos pilares de sua versão pessoal da psica-
nálise. Talvez não seja insensato completar, dessa maneira, o quadro
dos empréstimos efetuados por Lacan para compor sua concepção dos
complexos - cuja série, lembremos, descreve o processo de constitui-
ção da subjetividade - atribuindo a essa ~xótica conjunção de Marcel
Mauss e Melanie Klein a matéria-prima 'para a formulação do com-
plexo de desmame, enquanto que o de intrusão provém, flagrantemen-
te de Kojeve e sua antropogênica "luta de puro prestígio". O éomple-
xo de Édipo, cuja autoria freudiana é incontestável, encerra a série e,
ao ocupar essa posição secundária, reforça a idéia de que a releitura
lacaniana de Freud consiste, na maioria das vezes, em atribuir aos con-
ceitos do fundador da psicanálise um lugar determinado no quadro
de uma teoria mais ampla que, do mesmo tempo, os ultrapassa e bus-
ca justificá-los.
. A apreciação desses pontos de contato entre a consideração dos
fenômenos patológicos - em outras palavras, da investigação médica
- e a pesquisa antropológica se amplia quando Lévi-Strauss passa a
comentar o ensaio de Mauss sobre as relações entre a psicologia e a
sociologia, onde, como vimos, essa questão era levantada. O comen-
tário de Lévi-Strauss pode ser considerado uma exploração exaustiva

19 IMM, p. xi.
446 RICHARD THE!SEN SIMANKE

das possibilidades desses pontos de contato e, nesse movimento, surge


uma série de referências bastante explícitas à psicanálise e, mesmo, a
Lacan. Após relembrar que esse gênero de fatos descritos sob a rubrica
da morte mágica e das técnicas do corpo se presta muito bem a ilus-
trar o modo como a natureza social incide muito diretamente sobre a
natureza biológica do homem, ele retoma a lição de Ruth Benedict
que "ensinou aos etnólogos e aos psicólogos contemporâneos que os
fenômenos a cuja descrição uns e outros se dedicam são suscetíveis de
ser descritos em uma linguagem comum emprestada à psicopatologia, o
º.
que constitui, por si só, um mistério" 2 Esse "mistério" só pode ser
solucionado pela constatação do caráter eminentemente simbólico de
todos esses fenômenos aparentemente díspares: os fatos da cultura e
os fatos psíquicos, quer normais, quer patológicos. Ora, o grande mé-
rito da psicanálise foi justamente ter reconhecido a natureza simbóli-
ca dos sintomas e formações psicopatológicas em geral, ainda que a
partir de uma teoria confusa do simbolismo, que se trata então de cor-
rigir. Daí que essa referência ao vocabulário da psicopatologia, que se
oferece como uma linguagem comum para expressar os resultados tan-
to da investigação etnológica, quanto da psicológica, conduza rapida-
mente a considerações sobre a natureza simbólica dos fenômenos so-
ciais, que vai servir para uma crítica, com pretensões ortopédicas, da
própria psicanálise, naquilo em que ela ainda é devedora de um cienti-
ficismo antiquado, assim como de certas escolas de sociologia - a escola
psicossociológica americana, por exemplo - que professam o mesmo
apego a um empirismo que particulariza excessivamente as questões
para permitir-lhes uma resposta rigorosa. Assim, a pergunta sobre se
as características institucionais de uma certa sociedade derivam das
particularidades das personalidades de seus membros ou, ao contrá-
rio, é a educação promovida por essas mesmas instituições que molda,
desde a mais tenra infância, essas personalidades individuais, é recusa-
da, porque os termos empíricos em que ela se formula a tornam irres-
pondível. Por isso: "O debate deverá permanecer sem solução, a me-

20 IMM, p. xv; grifos nossos.


UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 447

nos que se perceba que as duas ordens não estão, uma com referência
a outra, em uma relação de causa e efeito (qualquer que seja, aliás, a
posição respectiva que se atribua a cada uma), mas que a formulação
psicológica não é senão uma tradução, sobre o plano do psiquismo in-
dividual, de uma estrutura propriamente sociológica" 21 •
É notável como os termos dessa passagem refletem particular-
mente antigas preocupações lacanianas, ao mesmo tempo em que
anunciam aquelas por vir. Já nos detivemos sobre a espécie de proble-
mas ocasionada pelo propósito de formular uma explicação objetiva e
não-reducionista da subjetividade: mesmo essa "causalidade psíquica'',
que deveria substituir-se à causalidade orgânica, se tomada a sério, le-
vava, ela também, à anestesia da face ativa do sujeito, com o eviden,te
prejuízo dos aspectos significativos de suas formações, em benefício
do determinismo procurado. Ora, tudo se passa como se Lacan, a par-
tir de agora, percebesse que a determinação do sujeito não precisa ser,
necessariamente, do tipo de uma causalidade, ou seja, de uma série tem-
poral (diga-se logo: diacrônica) de efeitos que se seguem a suas causas;
ela pode assumir a forma de um efeito de estrutura, que atribui ao
sujeito, entendido como individualidade psicológica, a natureza de
uma tradução dessa estrutura social que o constitui. É claro que isso
não resolve verdadeiramente o impasse. Qualquer forma de determi-
nismo levado às últimas conseqüências traz consigo o mesmo desvane-
cimento do sujeito: trata-se do caso da substituição do velho mecani-
cismo organicista por um novo mecanicismo, no que Bertrand Ogilvie
denomina de "risco estruturalista". Mas, pelo menos provisoriamente,
essa substituição permite a Lacan sonhar com a conciliação das duas -·
exigências antinômicas de seu projeto. Além disso, a idéia de tradução
do social em psicológico oferece ocasião para reacomodar antigos prin-
cípios politzerianos como, por exemplo, o modo de conceber a rela-
ção entre o conteúdo latente e o conteúdo manifesto dos sonhos. A
crítica de Politzer atacava a atribuição de realidade psicológica ao con-
teúdo latente como tributária das ultrapassadas psicologias da repre-

2l IMM, p. XVI; grifos nossos.


448 RICHARD THEISEN S!MANKE

sentação e propunha, alternativamente, uma concepção que pensava


as duas formas de conteúdo onírico como dois estilos formalmente dis-
tintos de narrativa, distinção que se prendia à natureza pessoal ou con-
vencional da significação. Lacan, com um pendor para a metafísica
bem maior do que Politzer, tinha que procurar uma forma de conce-
der substância ao conteúdo latente sem recair no realismo psicológi-
co. A oportunidade para tanto surge-lhe outra vez, agora, já que o psi-
cológico, em sentido tradicional, coincide justamente com aquilo que
aparece em Freud como o psiquismo consciente ou pré-consciente,
tradução - Freud também emprega essa metáfora - de um inconscien-
te que representa a realidade psicológica fundamental. Só que, neste
momento, o inconsciente é deslocado para o plano social, não o de
um realismo social ingenuamente formulado, mas para o de uma es-
trutura que forma o esqueleto lógico da fenomenologia social e que,
na medida em que os sujeitos singulares daí derivam, pode fornecer a
chave para a explicação dos fatos da subjetividade.
É nesse sentido que a subordinação do psicológico ao social que
Lévi-Strauss descobre em Mauss parece, aos olhos de Lacan, ao con-
trário da fórmula comteana que subscrevera inicialmente, abrir espa-
ço para uma ciência do sujeito, que não seria um acréscimo ocioso a
uma ciência social, na medida em que ambas seriam, no fundo, uma
única e mesma disciplina: uma ciência do simbolismo, nos seus dois
modos de manifestação, social e individual, que se tornam objeto de
duas investigações, doravante complementares, a antropológica e a
psicanalítica. Percebe-se que Lacan encontrou aqui uma nova versão
para a coloração espinozista que antes atribuíra à sua "substância social
da personalidade", fundamento do "verdadeiro paralelismo" que cor-
rigia os dualismos psicológicos e psiquiátricos. Só que essa concepção
formal do simbolismo se presta muito pouco ao papel de uma subs-
tância, seja ela qual for, e os vazios da estrutura serão preenchidos opor-
tunamente pelos conteúdos imaginários, numa tentativa, ainda, de
conceder alguma consistência ao sujeito. Vale a pena citar Lévi-Strauss
mais longamente nesse ponto, já que ele expressa, de forma bem
condensada, a sua concepção sobre as relações entre indivíduo e socie-
dade, inclusive encontrando um lugar aí para as formações psicopato-
UM INCONSCiflNTE PARA O SUJEITO 449

lógicas, construída a partir dessa referência ao simbolismo, concepção


que será, em linhas gerais, a de Lacan daqui em diante. Diz o autor:
"É da natureza da sociedade que ela se exprima simbolicamente em
seus costumes e em suas instituições; ao contrário, as condutas indivi-
duais normais não são jamais simbólicas por elas mesmas: elas são os ele-
mentos a partir dos quais um sistema simbólico, que não pode ser se-
não coletivo, se constrói. São apenas as condutas anormais que, porque
dessocializadas e, de alguma forma, abandonadas a elas mesmas, reali-
zam, sob o plano individual, a ilusão de um simbolismo autônomo.
Dito de outro modo, as condutas individuais anormais, em um grupo
social dado, atingem o simbolismo, mas sobre um nível inferior e, se
se pode dizê-lo, em uma ordem de grandeza diferente e realmente in-
comensurável com aquele no qual se exprime o grupo. É, portanto, ao
mesmo tempo natural e fatal que, simbólicas de uma parte e traduzin-
do, por outra (por definição), um sistema diferente daquele do grupo,
as condutas psicopatológicas individuais ofereçam a cada sociedade
uma espécie de equivalente, duplamente .diminuído (porque indivi-
dual e porque patológico) de simbolismos diferentes do seu próprio,
sendo vagamente evocadores de formas normais e realizadas em escala
coletivà' 22 • É tudo que Lacan poderia esperar para renovar seus pon-
tos de vista iniciais sobre a significação dos fenômenos psicóticos. A
infração a um critério de assentimento social anteriormente invocado
assume agora a forma de um desacordo com relação ao simbolismo
coletivo, o único efetivo aliás, o que, por outro lado, reforça, em no-
vas bases, o tema da dependência do sujeito. Em suma, o simbolismo
social é autônomo; o individual, dependente daquele. O que a psicose··
revela é a natureza secundariamente simbólica das condutas indivi-
duais, imperceptível no caso da normalidade, na medida em que se
trata de um simbolismo compartilhado e que pode passar despercebi-
do como tal, já que o caráter inconsciente da determinação estrutural
que este experimenta dá um aspecto "natural" às significações assim
produzidas. É a possibilidade de objetivar esse simbolismo que a es-

22 IMM, p. xvi-xvii; grifos do autor.


450 RICHARD THEISEN S!MANKE

tranheza da psicose oferece, renovando, nesses termos, o valor heurís-


tico do patológico, tradicional em psiquiatria. O patológico parece au-
tônomo, porque se esquiva à determinação específica de uma dada
sociedade, mas, ao mesmo tempo, produz o simulacro da construção
de um microcosmo social (o Umweltdo psicótico, nos termos da Tese),
já que também simbólico. Mas essa autonomia é ilusória: o indivíduo
não pode deixar de referir-se aos símbolos da cultura em que se gerou;
eles são, por assim dizer, a única matéria-prima disponível para a
edificação de sua subjetividade. O psicótico apenas se relaciona dife-
rencialmente com eles, equacionando-se assim o problema de distin-
guir entre normalidade e patologia sem retornar a uma concepção de-
ficitária desta última e conservando a sua definição em termos de
fenômeno de conhecimento. Essa autonomia apenas relativa do sim-
bolismo psicótico leva à conclusão de Lévi-Strauss, que poderia ser
também a de Lacan: "O domínio do patológico não se confunde ja-
mais com o domínio do individual (... )"23 • Lévi-Strauss condena ta-
xativamente as tentativas de redução do social ao psicológico por in-
termédio da psicopatologia. Ora, é justamente o contrário que Lacan
se esforça, por razões diferentes, em alcançar desde a Tese: uma redu-
ção do psicológico ao social que tenha por cenário o campo dos dis-
túrbios mentais. A convergência, nesse ponto, é completa, e não há
do que se espantar de que Lacan tenha feito dessas páginas de Lévi-
Strauss o programa de seus encaminhamentos subseqüentes.
Principalmente, aliás, naquilo em que Lévi-Strauss se dá o di-
reito de apontar as insuficiências do desenvolvimento maussiano, que
se deteve, por razões a seu ver injustificáveis, a meio caminho do pon-
to de vista estrutural. É por isso que, ainda em torno do problema da
significação social do patolégico, ele vai introduzir sua própria pers-
pectiva, cuja lição Lacan assimilará integralmente. Em resumo, o que
Lévi-Strauss propõe é que, apesar dos traços comuns que se encon-
tram entre as formações patológicas e certos fenômenos abordados pela
etnologia - como o xamanismo e as possessões em geral, abordados

23 IMM, p. xvii.
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 451

por ele mesmo-, é necessário relativizar o caráter mórbido destes últi-


mos, se não se quer incorrer naquela projeção da psicopatologia sobre
o social que fora criticada há pouco como veículo para uma psicologi-
zação da cultura. Em outras palavras, a comparação só é possível, não
porque o xamã seja um neurótico, mas porque há uma estrutura co-
mum entre as práticas xamânicas e aquilo que a cultura ocidental cha-
ma de neurose; enfim, porque é alguma forma de simbolismo que está
em ação lá e cá. Daí resulta que o caráter patológico de uma conduta
ou de um estado psíquico qualquer deve ser considerado contingente
e resultante de condições particulares a uma cerca sociedade. Portan-
to, "as pretendidas doenças mentais, em realidade estrangeiras à medi-
cina, devem ser consideradas como incidências sociológicas sobre a
conduta de indivíduos cuja história e cuja constituição pessoais se
dissociaram parcialmente do grupo (... )" 24 . Essa passagem tem o du-
plo mérito de, no que se refere a Lacan, retomar o velho relativismo e
o critério do assentimento social explorado desde a Tese e, ao mesmo
tempo, arrematar a desmedicalização da,psicose que, inevitável a se
manterem rigorosamente os termos do projeto inicial, não foi senão
relutantem~nte aceita por Lacan. Vê-se, mais uma vez, o texto de Lévi-
Strauss funcionando como o elo de ligação entre dois momentos do
percurso de Lacan, desse Lacan que precisa mudar de vez em quando,
para poder continuar sendo o mesmo. Além disso, há ainda um espa-
ço para a constituição pessoal nessa definição, só que ela, de forma
alguma, continua sendo eficaz na determinação do caráter patológico
ou não de um cerco estado. A contingência do patológico afasta, defi-
nitivamente, qualquer explicação constitucionalista da doença mental
e pode justificar, por essa via, o anti-reducionismo de princípio que
sempre caracterizou a teoria de Lacan. É por isso que "uma teoria pu-

24 IMM, p. xix; grifos nossos. Lévi-Strauss prossegue afirmando que mesmo um es-
tado fisiologicamente patológico na origem dos distúrbios meneais não invia-
bilizaria sua concepção, já que constituiria apenas um terreno favorável ou uma
disposição sensibilizadora para certas condutas simbólicas, cuja elucidação só
pode, por hipótese, emergir da interpretação sociológica.
452 RICHARD THEISEN SIMANKE

ramente sociológica dos distúrbios mentais (ou disso que nós considera-
mos como tais) poderia ser elaborada sem medo de ver um dia os fi-
siologistas descobrirem um substrato bioquímico das neuroses. Mes-
mo nessa hipótese, a teoria permaneceria válida''25.
A manutenção desse postulado anti-reducionista só pode-se jus-
tificar, por outro lado, pela concepção particular de cultura que emerge
do estruturalismo de Lévi-Strauss e, particularmente, pela amplitude
quase que desmedida que o simbolismo aí adquire. Essa onipresença
do simbólico impregna, absorve e, na verdade, compõe a substância
mesma desses indivíduos que uma visada ingenuamente empirista tei-
maria em considerar como os elementos de composição da sociedade.
De fato, eles se vêem reduzidos à condição de um mero substrato na-
tural para a inscrição e a operação dos símbolos, da mesma forma, por
exemplo, que os objetos intercambiados nas relações econômicas, cujo
valor é eminentemente simbólico, muito antes de ser monetário. Lévi-
Strauss, efetivamente, encadeia de imediato um verdadeira definição
de cultura a essas considerações anti-reducionistas sobre a doença men-
tal. Diz ela: "Toda cultura pode ser considerada como um conjunto
de sistemas simbólicos, dos quais se colocam em primeiro plano a lin-
guagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciê_n-
cia, a religião. Todos esses sistemas visam exprimir certos aspectos da
realidade física e da realidade social e, mais ainda, as relações que os
dois tipos de realidade entretêm entre si e que os próprios sistemas
simbólicos entretêm uns com os outros" 26 • Essa equiparação entre a
. cultura e um conjunto de sistemas simbólicos permite não só uma rela-
tivização daquilo que é considerado, do ponto de vista médico, uma
doença mental, mas também, no sentido inverso, a afirmação do ca-
ráter normalmente patológico das subjetividades ditas normais: se o
sujeito são de espírito é aquele que se constitui como uma certa arti-
culação simbólica compartilhada, é ele o verdadeiro "alienado", ou seja,

25 IMM, p. xix; grifos nossos.


26 IMM, p. xix; grifos nossos.
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 453

aquele que existe no outro e como um outro, que é o que ele verda-
deiramente designa cada vez que enuncia "eu"27 . Esses dois raciocí-
nios de sentido inverso correspondem àquilo que comparece em La-
can sob a rubrica do conhecimento paranóico em suas duas formulações
- a paranóia definida, na Tese, como um fenômeno de conhecimento e
o conhecimento em geral, definido, depois dela, como um fenômeno
paranóico.
Estas consideraçõe~ vão permitir a Lévi-Strauss, na esteira dessa
desmedicalização da loucura promovida acima, colocar sob suspeita a
própria noção de doença mental, criticando justamente a problemáti-
ca conjunção que ela representa, entre uma noção que só tem sentido
sobre o plano orgânico - a de "doençà' - e outra que é índice de to-
dos os equívocos que assolaram o campo da psicologia, merecendo o
anátema das escolas que a pretenderam científica- a de "mental". Na
medida em que não é a relação mente/corpo que está em pauta aqui,
mas a relação entre o corpo e a ordem social que atua sobre ele, a ques-
tão assume uma forma algo modificada. "Pe fato", diz Lévi-Strauss,
"é a própria noção de doença mental que está em causa. Pois se, como
afirma Mauss, o mental e o social se confundem, seria absurdo, nos
casos em que o social e o fisiológico estão diretamente em contato,
aplicar a uma das duas ordens uma noção (como a de doença) que só
tem sentido na outrà'28 • Nem se cogita considerar o lado "mental" do
problema. Se a noção de "doença" só tem sentido no plano fisiológico
e, portanto, não pode ser exportada para a consideração dos fatos so-
ciais como fazem aqueles que se valem do vocabulário da psicopato-
logia, o "mental" não faz sentido em nenhum dos dois caos e, por con- · ·
seguinte, não faz sentido algum. A que se assiste é, assim, não apenas

27 Cf. IMM, p. xx: "Pois, falando propriamente, é aquele que nós chamamos de são
de espírito que se aliena, já que ele consente em existir em um mundo definível
unicamente pela relação entre o eu e o outro". É, de fato, de Lacan mesmo que
Lévi-Strauss extrai essas conseqüências de seu encaminhamento. Ele cita, em nota,
o artigo "I.: agressivité en psychanalyse", publicado no ano anterior ( 1948).
28 IMM, p. xxii; grifos do autor.
454 RICHARD THEISEN S!MANKE

a uma ampla desmedicalização das condutas patológicas, mas também


à retirada de qualquer referência psicológica da sua explicação.Já vi-
mos que o dilema da tese psicogênica em psiquiatria consistia em que,
remetida a uma causalidade estritamente psicológica, a noção de do-
ença se desvanecia - podia assumir, no máximo uma conotação meta-
fórica, como apontava Henri Ey - e o investigador via-se transporta-
do para o exterior das fronteiras da medicina. A partir de agora, essa
exclusão pode ser assumida por Lacan sem que ele tenha que se con-
tentar com um lugar nas fileiras da mesma psicologia abstrata de cuja
desmontagem ele quis participar nos anos anteriores. Numa antropo-
logia cujo problema são as relações entre o biológico e o social, o indi-
víduo perde, de imediato, qualquer status psicológico e só pode tornar-
se alvo de uma disciplina que reconheça, nessa interface, a realidade
própria do sujeito humano. Essa disciplina deverá ser a psicanálise,
cujo prefixo psi se reduz quase que a um resíduo histórico: Lacan in-
sistirá continuamente no caráter não-psicológico dos conceitos psica-
nalíticos daqui em diante, defendendo com unhas e dentes a sua in-
terpretação de Freud de qualquer acusação psicologista. Que esse lugar
atribuído ao sujeito seja o mesmo reservado pela antropologia para a
noção de inconsciente é uma conclusão para o qual esse mesmo texto
de Lévi-Strauss lhe fornecerá subsídios mais a frente.
Conclusão: "O psiquismo individual não reflete o grupo. Ain-
da menos, o pré-formà'29. É a formulação mais acabada do requisito
de uma antropologia anti-individualista que Lacan persegue desde a
Tese. Isso se apresenta agora como uma denúncia do caráter ilusoria-
mente autônomo do simbolismo individual, justamente aquele que a
psicanálise se encarrega de investigar. Sua, tarefa, na teoria e na clínica,
será revelar a determinação que se esconde por trás da atividade sim-
bólica do sujeito e mostrar, como querem Mauss e Lévi-Strauss, que o
caráter individual nunca é simbólico por si mesmo, mas trata-se sem-
pre de um simbolismo - e de um sujeito, portanto - dependente,

29 IMM, p. xxiii.
UM INCONSC!llNTE PARA O SUJEITO 455

como afirma Lacan desde o início de sua carreira. Esse simbolismo


individual é pensado como fornecendo tão somente a "matéria-pri-
ma", os "elementos" para um simbolismo social, esse sim determinan-
te. Do ponto de vista da teoria lacaniana, esses elementos do simbo-
lismo individual são justamente as imagens, desde agora insuficientes
para a explicação dos fatos da subjetividade, como se pretendera ante-
riormente. Se o imaginário fornece, apesar de tudo, o conteúdo dessa
subjetividade dependente, a sua razão encontra-se agora em outro lu-
gar e só pode ser circunscrita no âmbito de uma teoria do simbólico,
que descreve a forma dessa inserção da estrutura social no indivíduo.
É, de certa forma, a teoria dessa determinação do sujeito nor-
mal ou psicótico ou, pelo menos, as premissas epistemológicas dessas
conclusões, que Lévi-Strauss expõe na segunda metade de sua "lntro-
duction ... ", que aborda a segunda série de estudos reunidas em
Sociologie et anthropologie. De fato, ele entra diretamente na conside-
ração .da noção de fato social total cuja abordagem, em Mauss, era uma
prerrogativa absoluta da ciência social, que tomava a seu cargo, desta
maneira, o seu objeto classicamente definido - a vida do homem em
sociedade - e o objeto da psicologia, além dos aspectos físicos e bioló-
gicos aí envolvidos. Essa concepção, retomada aqui por Lévi-Strauss,
não deixa de reencontrar a ênfase que, desde a Tese, Lacan colocava.
no "verdadeiro paralelismo", de inspiração espinozista, que ele queria
substituir aos dualismos psiquiátricos: se a personalidade ou os fatos
da subjetividade não são paralelos ao orgânico, mas à própria totalida-
de que a inclui, nada mais natural que a ciência que se ocupe dessa ·
totalidade esteja apta a explicar também esse subconjunto específico
de fatos que concernem apenas ao sujeito. A idéia de totalidade retor-
na, com efeito, ao primeiro plano aqui, em termos que convergem
ponto por ponto com o projeto lacaniano. Em primeiro lugar, a no-
ção de fato social total permite reforçar a idéia de que o social pode
adquirir a consistência de uma realidade tão digna de ser denominada
como tal quanto a realidade física, esse que era, como vimos, o requi-
sito para um determinismo não-reducionista, mas científico, do sujei-
to. Mas essa consistência depende de que os componentes do fenô-
456 RICHARD THEISEN S!MANKE

meno social sejam efetivamente integrados num sistema, o que é ape-


nas uma outra maneira de dizer que a sua análise deve ser total3°. Essa
análise total deve levar em conta, em primeiro lugar, a história indivi-
dual o que pode ser considerado uma abordagem psicológica legíti-
ma, desde que investigue os "seres totais", o homem "não dividido em
faculdades", como se expressava Mauss. Mas o passo seguinte e decisi-
vo para uma abordagem total deve ser de natureza definitivamente an-
tropológica, deve ser obra de uma antropologia da qual Lévi-Strauss
fornece aqui uma precisa definição: "uma antropologia, quer dizer, um
sistema de interpretação que dê conta, simultaneamente, dos aspectos
físico, fisiológico, psíquico e sociológico de todas as condutas {... )"31 •
O fato social total tem, portanto, três dimensões, nas quais aparece o
vocabulário típico do estruturalismo: a dimensão físio-psicológica, a
dimensão histórica ou diacrônica, e a dimensão sincrônica. As duas pri-
meiras são empíricas; a última, definida por Lévi-Strauss como a "di-
mensão propriamente sociológica", as integra em um sistema cuja ex-
pressão formal é a estrutura. Posto isso, sobra espaço para afirmar que
essa tripla aproxímação só pode ocorrer sobre os indivíduos, numa re-
cusa, pelo menos por enquanto, de ontologizar as categorias da análi-
se sociológica: um estudo "concreto" e "completo" só pode ter o indi-
víduo real como objeto, de modo que Lacan pode encontrar aqui até
mesmo uma deixa para conservar os resquícios da "psicologia na pri-
meira pessoà' que ele herdou de Politzer e que também alimenta a ver-
tente de seu pensamento que tem o sujeito como foco, mais que a sua
determinação. O social é, portanto, condição para a formação dessas
totalidades concretas, já que somente ele pode unificar elementos tão
diversos, através desse instrumento fundamental denominado simbo-
lismo, com que se trabalha a natureza para constituir a verdadeira rea-

3°Considerando o objetivo de "definir o social como a realidade': afirma Lévi-


Strauss: "Ora, o social não é real a não ser quando integrado em sistema, e eis aí
um primeiro aspecto da noção de fato cocal" (IMM, p. xxvv).
3l IMM, p. xxv; grifos do autor.
UM !NCONSCl!l.NTE PARA O SUJEITO 457

!idade humana. Os registros lacanianos do simbólico, do imaginário e


do real, em vias de elaboração, podem ser considerados a forma parti-
cular que essa exigência de uma apreensão total dos fenômenos ad-
quiriu em seu pensamento. Eles correspondem, grosso modo, aos as-
pectos estrutural, individual ou ,histórico e material dos fatos da
subjetividade, cumprindo, assim, por vias diversas, mais ou menos a
mesma função que Freud atribuía às categorias da sua metapsicologia
e constituindo-se, de fato, nas categorias da metapsicologia lacaniana.
Mas a metodologia proposta por Lévi-Strauss vem ainda ofere-
cer uma outra fórmula para a emaranhada questão da objetividade do
subjetivo, em que Lacan se enreda desde o começo. O reconhecimen-
to do caráter peculiar das ciências humanas, em que o objeto é da
mesma natureza do observador ou, em outras palavras, é ao mesmo
tempo sujeito e objeto, faz com que a interpretação sociológica que
ele propõe procure conciliar e "fazer coincidir a objetividade da análise
histór_ica ou comparativa com a subjetividade da experiência vivida'' 32 •
Essa discussão diz respeito diretamente, cqmo vimos há pouco, ao pa-
pel do conceito de inconsciente em sua antropologia. Mas o mais im-
portante talvez seja que os dois momentos desse método incluam um
componente inconsciente. Ora, sendo o primeiro passo aquela apreen-
são interna, "indígena", subjetiva do fenômeno, fica aberta a possibi-
lidade de se estabelecer uma ligação entre inconsciente e sujeito, jus-
tamente aquela que falta para Lacan poder se declarar freudiano. Se o
segundo momento destina-se a objetivar esse sujeito e, no limite, apa-
gar a dimensão subjetiva do fenômeno, é possível, contudo - pelo
menos Lévi-Strauss se esforça tanto quanto Lacan para isso-, colocar·
um limite a esse processo. Diz Lévi-Strauss: "Uma vez colocada a dis-
tinção entre objeto e sujeito, o sujeito pode, ele mesmo, se desdobrar
novamente da mesma forma, e assim sucessivamente, de modo ilimita-
do, sem serjamais reduzido a nada. A observação sociológica, condena-
da, parece, pela insuperável antinomia que nós destacamos no pará-
grafo precedente, sai dela graças à capacidade do sujeito de se objetivar

32 IMM, p. xxvi; grifos nossos.


458 RICHARD Tl-IEISEN SIMANKE

indefinidamente, isto é, (sem chegar jamais a se abolir como sujeito) de


projetar para fora porções sempre decrescentes de si" 33 . É por isso que
Lévi-Strauss pode considerar as posições aqui expostas como "inspi-
radoras de um novo humanismo" e não de um anti-humanismo, como
o estruturalismo será tachado mais tarde, Lacan incluído. É nesse con-
texto que o conceito de inconsciente reaparece, desde então inserido,
portanto, no cerne das preocupações de Lacan, não sendo mais o resí-
duo espúrio do naturalismo ou do psicologismo freudiano, mas justa-
mente o terreno onde o antigo impasse entre o subjetivo e o objetivo
pode esperar ser resolvido, claro que, agora, a anos-luz da psicologia.
É, de fato, nesses termos que Lévi-Strauss define o papel desse concei-
to no método estruturalista: "Essa dificuldade seria insolúvel, as sub-
jetividades sendo, por hipótese, incomparáveis e incomunicáveis, se a
oposição entre o eu e o outro não pudesse ser superada sobre um ter-
reno que é também aquele onde o objetivo e o subjetivo se encontram,
nós queremos dizer, o inconsciente"34 •
Essa passagem serve para notar como o tema do "Eu como um
Outro" encontra-se em continuidade com o problema da objetivida-
de do subjetivo, mais antigo, contemporâneo das primeiras tentativas
de propor uma ciência da personalidade. Nas considerações que se se-
guem, é possível perceber, ainda, o modo como o desdobramento desse
problema, além de conduzir a um aparato conceituai que Lacan utiliza-
rá largamente, torna explícito o papel do inconsciente no seu equacio-
namento, nas duas formas em que ele se apresenta. Lévi-Strauss atribui
à lingüística a descoberta do caráter inconsciente daqueles fenômenos
determinantes da vida psíquica35, determinação que, ao ser investiga-

33 IMM, p. xxix; grifos nossos.


34 IMM, p. xxx; grifos nossos.
35 "Pois é a lingüística e, mais particularmente, a lingüística estrutural, que nos fa-
miliarizou desde então com a idéia de que os fenômenos fundamentais da vida
do espírito, aqueles que condicionam e determinam suas formas mais gerais, se
situam no estágio do pensamento inconsciente. O inconsciente seria, assim, o ter-
mo medía4or entre o eu e o outro" (IMM, p. xxxi; grifos nossos).
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 459

da, permite objetivar os fatos subjetivos, estabelecendo assim alguma


forma de mediação entre esse eu e esse outro que constituem os dois
pólos entre os quais se desdobra a análise sociológica e, dependendo
do grau de sucesso que Lacan vai obter em projetar tudo isso sobre a
obra freudiana, também a investigação psicanalítica. O inconsciente
só pode, por definição, ser apreendido objetivamente, na medida em
que está fora da experiência subjetiva, mas essa objetivação não deve,
pelo menos em princípio, sufocar a atividade essencial do espírito, que
reconduz isso que é descoberto pela análise a um plano subjetivo. Mas
é justamente esse plano subjetivo que deve ser reduzido pela análise e,
se resta algum lugar para o sujeito nessa antropologia, é porque se pos-
tula uma certa inesgotabilidade do sujeito, que se fragmenta, se dila-
cera, mas não se aniquila sob o olhar analítico. As salvaguardas ofere-
cidas ao sujeito acabam por reduzi-lo à condição de um resíduo
inobjetivável, uma espécie de ponto cego inerente a toda ciência hu-
mana,. mas é melhor do que nada, para uma teoria psicanalítica que
deve fundamentar uma clínica que intervéµi diretamente sobre o su-
jeito, e não sobre as estruturas. De qualquer forma, o modo como
Lévi-Strauss expressa essa tensão que parec~ constitutiva de sua antro-
pologia,· tanto quanto o será da psicanálise lacaniana, serve para, pelo
menos aproximar as duas terminologias: "Nos dois casos [na psicaná-
lise e na etnologia], é o mesmo problema que se coloca, aquele de uma
comunicação buscada, ora entre um eu subjetivo e um eu objetivante,
ora entre um eu objetivo e um outro subjetivado" 36 • Esse "eu subjeti-
vo" equivale àquilo que Lacan distingue com o pronome je, enquanto ..
que o "eu objetivante" é justamente o artífice desse conhecimento pa-
ranóico que constitui o mundo humano; o "eu objetivo" é esse moi
narcísico, formado. pela precipitação imaginária das identificações que
resultam do encontro com esses objetos, não obstante formados pelo
próprio processo de objetivação das imagens e, por fim, esse "outro
subjetivado" deixa-se assimilar facilmente a esse fator de alteridade in-
troduzido no coração da subjetividade pelo fato de que essa se consti-

36 IMM, p. xxxi; grifos do autor.


460 RICHARD THEISEN S!MANKE

tui, eminentemente, por identificação, ou seja, o processo pelo qual o


outro se transforma no "si mesmo".
O que obtemos, assim, é não s6 um conceito de inconsciente
devolvido ao âmago das preocupações de Lacan, mas também defini-
do em termos que o aproximam da lingüística estrutural, a partir da
qual Lacan o formalizará de agora em diante, condensando tudo isso
na fórmula de que "o inconsciente está estruturado como uma lingua-
gem". Embora esse aforismo de longa carreira no pensamento laca-
niano mude bastante de sentido ao longo do percurso, ele quer dizer
rigorosamente, nesse primeiro momento, que o inconsciente propos-
to para a psicanálise é o mesmo que aquele reconhecido pela antropo-
logia, nem que seja pelo fato de que Lévi-Strauss identifica explicita-
mente a linguagem com a ordem social37 . Essa aproximação com a
lingüística oferece a oportunidade também para, a pretexto de corri-
gir Mauss naquilo em que ele ainda ficou preso a uma antropologia
excessivamente empírica, introduzir uma série de inovações de sua pró-
pria autoria, que repercutirão longamente no trabalho de Lacan e de
onde ele tira alguma de suas fórmulas prediletas. O -que Lévi-Strauss
faz, no fundo, a fim de explicar por que Mauss não foi estruturalista,
é dizer com todas as letras em que consiste, afinal de contas, a antropo-
logia estrutural. O caráter programático desse texto revela-se, então,
claramente, não só o de programa para uma certa concepção da antro-
pologia, mas também, a partir do endosso lacaniano, da psicanálise.
A falha de Mauss, aos olhos de Lévi-Strauss, foi, como já se
apontou, não ter percebido que a troca era o fator determinante para

37 Por exemplo, numa passagem que formula expressamente a "primazia do


significante sobre o significado", da qual Lacan fará uma das chaves de sua leitura
de Freud calcada no estruturalismo: "Como a linguagem, o social é uma realida-
de autônoma (a mesma, alíds); os símbolos são mais reais que isso que eles simbo-
lizam, o significante precede e determina o significado" (IMM, p. xxxii; grifos nos-
sos). Por onde se vê como essa primazia se coloca em continuidade com o desígnio
de afirmar a dignidade ontológica da realidade social para aí fundar uma causali-
dade concreta do sujeito, para o que Lacan recorreu sistematicamente às antro-
pologias convenientes ao longo desse período.
UM INCONSCI~NTE PARA O SUJEITO 461

os fenômenos que ele estudou, com destaque para aqueles abordados


no "Essai sur le don ... ", e não uma propriedade qualquer inerente ao
objeto trocado. Isso porque ele teria permanecido ainda excessivamente
atrelado àquilo que é dado diretamente à observação e recuado diante
da possibilidade de transcender o plano empírico, rumo a uma expli-
cação do fenômeno social que pudesse ser efetivamente universal. A
própria teoria esboçada por Mauss parecia a Lévi-Strauss requerer uma
estrutura que unificasse e desse coerência à informação fragmentária
fornecida pela observação, revelando assim a sua necessidade. Ora,
evidentemente, a troca, como uma pura operação, não está dada na
experiência (o fenômeno social não é a troca, mas sempre trocas disso
e daquilo) e, se não está dada, é preciso construí-la. A estrutura deve
surgir, assim, como um construto teorético, abstraído dos fatos, e que,
em princípio, pode revelar de modo absoluto a totalidade dos aspectos
envolvidos na produção de qualquer fenômeno de uma determinada
espéc~e. É a mesma profissão de fé anti-dementarista - presente não
só em Lacan, mas na quase totalidade da~ críticas mais produtivas à
psicologia - que ressurge aqui: "é a troca que constitui o fenômeno
primitivo, e não as operações discretas nas quais a vida social a de-
compõe"38. Mauss tinha reconhecido que a unidade do todo era mais
real que a de suas partes, mas tendia a pensar essa totalidade ainda em
termos muito empíricos, uma forma na qual ela arrisca constantemen-
te a se desfazer em seus componentes. Com efeito, nada impede que
se decomponha o fato social em estado bruto em quantas sub-unidades
se queira, pulverizando a realidade social que se pretendia inicialmen-..
te consolidar. Mas os componentes de uma estrutura são logicamente
dependentes uns dos outros, na exata medida em que a estrutura con-
siste justamente ~o esqueleto lógico do fato social; com o ponto de
vista estrucural, a visada "total" pretendida deixa de depender de uma
postura ou de uma decisão do observador para se converter em uma
necessidade teórica.

38 IMM, p. xxxviii.
462 RICHARD THEISEN SIMANKE

Embora Mauss seja celebrado por Lévi-Srrauss como o intro-


dutor da noção de inconsciente na antropologia, a sua hesitação em
levar até o fim a vocação estruturalista de seu pensamento é tratada
aqui também como uma insuficiente percepção do papel e do alcance
do conceito de inconsciente. Ao perder-se em especulações sobre o hau
como razão última da troca, ele se teria mantido atrelado à forma cons-
ciente pela qual os indivíduos de uma certa cultura captam "uma neces-
sidade inconsciente, cuja razão está em outra parte" 39 . Seria o exemplo
de uma "teoria indígena'', com a qual o investigador deve se identifi-
car subjetivamente num primeiro momento, mas que deve ultrapas-
sar no passo seguinte, trazendo à luz a face objetiva da determinação
inconsciente da cultura. Lévi-Strauss propõe, inclusive, o método pri-
vilegiado para atingir esse objetivo, em termos perfeitamente con-
sonantes com o modelo lingüístico do qual parte: "Depois de terdes-
tacado a concepção indígena, era preciso reduzi-la por uma crítica
objetiva, que permitisse atingir a realidade subjacente. Ora, esta última
tem muito menos chance de se encontrar nas elaborações conscientes
do que nas estruturas mentais inconscientes, que se pode atingir através
das instituições e, melhor ainda, da linguagem" 4º. Assim, embora se
reconheça um inconsciente subjetivo no primeiro momento do méto-
do, o objetivo final é reduzi-lo às determinações objetivas que a estru-
tura pode proporcionar, restando apenas a teimosia do sujeito em
manifestar-se como tal para resistir à plena instauração de um novo
mecanicismo. O inconsciente das estruturas é um inconsciente obje-
tivo, objetivável, fundamento de um determinismo minucioso, e não
da atividade do sujeito.
Porém o fundamento último desse novo mecanicismo é uma
concepção formalista do simbolismo, cuja exposição ocupa a última par-
te da "lntroduction ... " e que arremata a contribuição de Lévi-Strauss

39 IMM, p. XXXIX; grifos nossos.


40 IMM, p. XXXIX; grifos nossos.
UM INCONSCl!NTE PARA O SUJEITO 463

para a constituição do que será o ideário lacaniano ao longo dos anos


5041 . O ponto de partida dessa concepção é justamente a crítica de
noções como o hau ou o mana, na sua versão maussiana: Mauss teria
atentado apenas ao conteúdo ou à significação dessas noções no con-
texto em que elas são formuladas - equívoco particularizante, aliás
compartilhado pela totalidade das escolas sociológicas que o precede-
ram-, limitado que estava por uma concepção restrita do simbolismo
e da lógica. Tivesse disponível uma efetiva lógica das relações e teria,
só para começar, generalizado a sua própria constatação de que o mana
desempenha o papel de cópula em uma proposição42 (numa teoria da
magia, por exemplo, que apresenta o ato mágico como um juízo), ou
seja, atribuído-lhe a função de um operador lógico num sistema for-
mal e, portanto, totalmente desvinculado de qualquer conteúdo ou
significação específica.
Trata-se, portanto, para Lévi-Strauss, de "modernizar" a noção
de m_ana, valendo-se para tanto, como ele diz explicitamente, da in-
formação mais recente fornecida pela análise lingüística, revelando as-
sim a sua universalidade43 , claro que ao preço de esvaziá-la de qual-
quer significação. Isso e mais a prevalência do significante sobre o

41 Do lado de lacan, trata-se de uma oportunidade de construir uma teoria rigoro-


samente anti-exprmivista do simbolismo - ao contrário daquela que podemos
encontrar em Melanie Klein, por exemplo. Ele parece identificar, em passagens
de sua obra posterior, a idéia de expressão com um certo "nominalismo" (o termo_
é de Lacan), isto é, com uma teoria da significação baseada na relação entre a
palavra e o objeto nomeado. Uma tal teoria vai de encontro aos pressupostos anti-
realistas que caracterizam seu pensamento desde a origem.
42 IMM, p. xi.
43 ''Ao contrário do que se acreditava em 1902, as concepções do tipo mana são tão
freqüentes e tão difundidas que convém se perguntar se não estamos em presença
de uma forma de pensamento universal e permanente que, longe de caracterizar
certas civilizações ou pretendidos "estágios" arcaicos ou meio-arcaicos da evolu-
ção do espírito humano, seria função de uma certa situação do espírito em pre-
sença das coisas, devendo portanto aparecer cada vez que essa situação é dadà'
(IMM, p. xliii; grifos nossos).
464 RICHARD THEISEN SIMANKE

significado vem ratificar essa concepção do simbolismo em que o sím-


bolo, em princípio, não significa nada: "Mas, sempre e por toda par-
te, esses tipos de noções intervêm um pouco como símbolos algébricos,
para representar um valor indeterminado de significação, nela mesma
vazia de sentido e portanto suscetível de receber não importa qual sen-
tido, cuja única função é preencher uma lacuna entre o significante e o
significado ou, mais exatamente, assinalar o fato de que, em tal cir-
cunstância, tal ocasião ou cal de suas manifestações, uma relação de
inadequação se estabelece entre significante e significado, em prejuízo da
relação complementar anterior" 44 • Essas propriedades aparecem, em
Lacan, generalizadas para a totalidade do funcionamento da lingua-
gem, onde o significante nunca significa nada, é completamente es-
tranho à ordem do significado e assim por diante. Não deixa de ser
curioso que Lacan tenha rejeitado veementemente o inconsciente freu-
diano, em parte devido ao caráter contraditório que a noção de repre-
sentação inconsciente (uma representação que não representa para a
consciência) assume quando considerada de um ponto de vista psico-
lógico, para agora incorporar o inconsciente antropológico de Lévi-
Strauss, que se apóia na concepção de um símbolo que não simboliza.
De qualquer modo, essa situação é um bom índice de como o estru-
turalismo vai servir para expressar metaforicamente os conceitos
metapsicológicos, retroativamente interpretados· como espécies de
metáforas (energéticas, naturalistas) involuntárias, perpetradas pelo
próprio Freud, à falta de um vocabulário mais adequado.
Essa concepção formalista do simbólico, o fato de que o símbo-
lo passa agora a ser pensado de um ponto de vista relacional leva, de
imediato, à reiteração dos preceitos básicos dessa nova antropologia,
com destaque para o seu anti-elemencarismo de princípio, que assu-
me, na consideração das relações entre os sujeitos da cultura, a forma
daquele anti-individualismo que era buscado desde o começo. Ou seja,

44 IMM, p. xliv; grifos nossos. Grifamos abundantemente para destacar o quan-


to essa passagem concentra daquelas que serão as palavras de ordem do Lacan
estruturalista.
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 465

trata-se de perceber o eu e o outro, não mais como sujeitos ativos de


um processo social, mas como elementos de uma lógica de relações,
que descreve o processo na sua totalidade e não nas suas emergências
ocasionais e particulares. A mesma forma de conceber o surgimento
da linguagem45, que visa contornar as aporias implicadas na discussão
sobre a origem das línguas desde as primeiras incursões antropológi-
cas do século XVIII, é aplicada aos sistemas de troca e ao pensamento
simbólico em geral: ''A troca não é um edifício complexo, construído
a partir das obrigações de dar, de receber e de retribuir, com a ajuda
de um cimento afetivo e místico. É uma síntese imediatamente dada no
e pelo pensamento simbólico, que, na troca como em toda outra forma
de comunicação, sobrepuja a contradição, que lhe é inerente, de per-
ceber as coisas como os elementos do diálogo, simultaneamente sob a
relação de si e do outro, e destinados por natureza a passar de um ao
outro. Que elas sejam de um ou de outro representa uma situação deri-
vada por relação ao caráter relacional inicial" 46•
· Essas definições têm efeito direto sobre o modo de conceber as
relações entre o simbolismo e o conhecimento, o que também não
pode deixar der repercutir sobre Lacan, que fez de uma reflexão sobre
o conhecimento humano o eixo de sua reforma da psicologia e da psi-
canálise. De fato, uma vez afirmado absolutamente o cardter relacional
do pensamento simbólico, o símbolo passa a remeter apenas a outros

45 Essa concepc;ão recusa a possibilidade da linguagem ter-se constituído passo a..


passo, pois, para que uma significac;ão possa ser comunicada ao outro, é necessá-
rio que a linguagem exista já como um sistema. A partir daí o surgimento repen-
tino da linguagem se converte numa espécie de axioma do estruturalismo,
correlativo ao privilégio concedido ao ponto de vista sincrônico: "Quaisquer que
tenham sido o momento e as circunstâncias de sua aparic;ão na escala da vida ani-
mal, a linguagem só pôde nascer toda de uma vez. As coisas não poderiam ter-se
posto a significar progressivamente. Em conseqüência de uma transformac;ão, cujo
estudo não é da alc;ada das ciências sociais, mas da biologia e da psicologia, uma
passagem se efetuou, de um estado onde nada tinha um sentido a um outro, onde
tudo o possuía'' (IMM, p. XLVII).
46 IMM, p. xlvi; grifos nossos.
466 RICHARD THEISEN S!MANKE

símbolos do sistema e não mantém mais nenhuma forma de relação


com os objetos, que é o que caracteriza uma operação cognitiva. Vazio
de sentido, o símbolo é um elemento formal identificável na sua opo-
sição aos demais; ele não pode introduzir nenhuma continuidade no
real; ao contrário, a sua ação aí é mais da ordem de um dilaceramento.
Daí se conclui que há "uma oposição fundamental na história do espí-
rito humano, entr:e o simbolismo, que oferece um caráter de desconti-
nuidade, e o conhecimento, marcado pela continuidade"47 . Não é difí-
cil imaginar que, se o "conhecimento paranóico" lacaniano tinha antes
a função de atribuir um peso de realidade e de estabilidade às imagens
fugidias da percepção, ele passa a ter, depois de passar pelo crivo de
Lévi-Strauss, a função de preencher os vazios da estrutura e restabele-
cer, imaginariamente, a continuidade de um mundo despedaçado pelo
simbólico; antes de tudo, aquela parte do mundo que mais interessa
ao sujeito: seu próprio corpo. O caráter paranóico desse conhecimento
fica assegurado, doravante, por essa forma de relação direta do imagi-
nário com o real, que integra a própria definição lacaniana de psicose.
Assim, se a definição de simbólico que emerge dessas páginas-
"totalidade cerrada e complementar com ela mesma'' 48 - não apaga
completamente a consideração ao significado, a sua subordinação ao
significante implicada na própria concepção da linguagem e de sua
origem deixa muito pouco espaço para qualquer autonomia do sujei-
to como agente das significações. A "superabundância do significante"
de que fala Lévi-Strauss - decorrente de que a língua como sistema se
constitui de imediato, embora a exploração das suas possibilidades de
significação transcorra passo à. passo - garante a autonomia do simbó-
lico (ou a primazia do significante, como prefere Lacan) e permite
postular uma alocação secundária do significado ao significante, que
despoja a linguagem de qualquer acepção expressiva: não há uma rela-
ção, por assim dizer, genética entre o símbolo e o que ele significa,
mas uma relação sempre problemática, devido a essa própria assimetria

47 IMM, p. xlvii; grifos nossos.


48 IMM , P· XlVlll.
...
UM INCONSCltNTE PARA O SUJEITO 467

originária, entre duas ordens essencialmente distintas. Daí que Lévi-


Strauss possa concluir que noções do tipo do mana representam exem-
plarmente esse significante flutuante, que desliza sobre o significado
sem confundir-se com ele, isto é, com nenhum dos significados que
ele possa vir a assumir ocasionalmente. Eis aí, portanto, a fonte inspi-
radora do glissementdo significante lacaniano, que pontua todas as suas
elaborações sobre o registro do simbólico.
A conclusão de tudo isso não se faz esperar. A noção de mana,
interpretada à luz de todos esses desenvolvimentos, torna-se a encar-
nação de toda essa concepção do simbolismo, numa definição à qual
Lacan vai remeter-se com freqüência: "E, com efeito, o mana é tudo
isso ao mesmo tempo; mais precisamente, não é porque ele não é nada
disso tudo: simples forma ou, mais exatamente, símbolo em estado puro,
portanto suscetível de se fazer cargo de não importa qual conteúdo
simbólico? Nesse sistema de símbolos que constitui toda cosmologia,
isso seria simplesmente um valor simbólico zero, quer dizer, um signo
que marca a necessidade de um conteúdo ~imbólico suplementar àque-
le que porta já o significado, mas podendo· ser um valor qualquer, com
a condição de que ele faça ainda parte da reserva disponível, e não seja
já, como dizem os fonólogos, um termo do grupo" 49 . Com essa defi-
nição, Lévi-Strauss praticamente encerra sua apresentação da obra de
Mauss, que não difere tanto assim, em espírito, daquela que Lacan
passará a fazer de Freud daí em diante. O próprio Lévi-Strauss aponta
o modo como as deficiências do referencial teórico de Mauss levaram-
no, em certos casos, a expressar-se na forma puramente negativa de

49 IMM, p. l; grifos nossos. O "significante puro", o significante que não significa


nada de Lacan decola nitidamente daqui. O pr6prio Lévi-Strauss aponta como
sua interpretação do mana provém de certos desenvolvimentos da lingüística es-
trutural em torno da noção de fonema zero (de Jakobson e Lotz), aquele que, no
sistema da língua opõe-se simplesmente à ausência de fonema. Mais tarde, quando
a álgebra lacaniana reduzir a cadeia significante à sua expressão mínima - a cópu-
la entre um S 1 e um S2 -, Lacan vai chamar o S l de "Um do simb6lico" e o S2
de "Um do sentido", querendo dizer que o Um do simbólico é, precisamente, o
Zero do sentido.
468 RICHARD THE!SEN S!MANKE

uma "psicologia não-intelectualista'', enquanto que as contribuições


aqui acrescentadas ao seu trabalho devem permitir formular uma psi-
cologia que seja intelectualista em outros termos. Numa palavra: que
incorpore a concepção do simbolismo aqui exposta e a racionalidade
que ela permite destacar, insinuando conseqüências diretas e explíci-
tas para a compreensão da psicanálise freudiana. É essa a tarefa da qual
Lacan vai querer se encarregar a partir daqui, e a sua produção desse
período revela bem a metamorfose instrumental que acomete seu pro-
jeto inicial a partir da incidência estruturalista. Não deixa de ser signi-
ficativo que são justamente esses os trabalhos em que se manifesta uma
recém-adquirida vocação para a ortodoxia freudiana em Lacan.

VI.2. A NEUROSE COMO MITO INDIVIDUAL

Existem poucas dúvidas, por tudo que se viu, de que Lévi-


Strauss tenha sido realmente o grande mentor da introdução de Lacan
no estruturalismo e do proveito que ele ali pôde tirar de um conceito
de inconsciente já bem torneado e não mais incompatível com suas
preferências teóricas. As realizações de Lévi-Strauss em termos de ar-
rematar a constituição de uma antropologia social em contraste com a
antropologia física até então reinante nos meios franceses podem ser
consideradas um tanto quanto simétricas ao esforço que Lacan em-
preendia, desde de seu doutorado, par3i a desmontagem do dogma
organogênico em psiquiatria e, a partir do momento em que se enca-
minha progressivamente para a psicanálise, para a purificação da teoria
freudiana dos resquícios de um biologismo oitocentista que ela ainda
abrigava. É essa catarse final que ele encontra realizada em Lévi-
Strauss, justamente num conceito de inconsciente que não deve mais
nada à psicologia abstrata da representação, nem a qualquer formula-
ção biol6gica. Além disso - e esse é o aspecto mais explicitamente as-
sumido da sua aproximação com a antropologia estrutural-, é de uma
UM lNCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 469

caução científica para seu projeto que Lacan está em busca5°, e o rigor
que a investigação estrutural consegue imprimir à pesquisa antropol6-
gica, a expressão quase matemática dos resultados que seu formalismo
permite, vão constituir, daí em diante, o modelo de científicidade a
ser seguido na psicanálise lacaniana. O modelo lingüístico vai ser as-
sumido por Lacan na forma exata pela qual Lévi-Strauss dele se apro-
pria. Embora as referências posteriores se enderecem preferencialmente
a Saussure e, um pouco menos, aJakobson, a ordem real de importân-
cia dos autores é exatamente a inversa: Lacan é conduzido a Jakobson
a partir de Lévi-Strauss, e desse a Saussure, apontado pelo lingüista
russo como o predecessor do estruturalismo. A tão propalada desmon-
tagem do signo saussureano não é mais de que uma redefinição do
mesmo nos termos já propostos por Lévi-Strauss, que desvinculou
significante e significado, para fins de uma abordagem estritamente
formal da questão do parentesco, retomando e ampliando algumas
considerações de Mauss sobre a nomeação, por exemplo, e mostrando
que ·a um conjunto restrito de nomes sã<;> atribuídos os sujeitos nasci-
dos num certo grupo, e não o contrário'. Não se trata de dar nomes
aos bois, mas bois aos nomes: essa a lição ensinada por As estruturas
elementares de parentesco, que exige como condição a célebre primazia
do significante sobre o significado, inexistente em Saussure, por mais
que Lacan o reivindique.
Agora, são essas mesmas concepções de Lévi-Strauss que alimen-
tam uma série de restrições à psicanálise e decretam, inapelavelmence,
que a noção de inconsciente que propõe seja completamente estranha
ao conceito freudiano, s6 isso já baseando para explicar o fato de que
o retorno a Freud lacaniano, permitido pela inclusão do conceito de
inconsciente em seu arsenal te6rico, se revista das peculiaridades e
idiossincrasias que todo mundo conhece. Há, em primeiro lugar, as

°
5 Cf. Dosse, F. História do estruturalismo, p. 137. E, mais adiante: "Lévi-Strauss
serve, pois, de modelo para a conquista da científicidade do discurso psicanalíti-
co, e Lacan inveja-lhe a simbiose que ele conseguiu realizar entre etnologia, lin-
güística, matemáticas e psicanálise" (id., ibid., p. 143).
470 RICHARD THEISEN SIMANKE

reservas explícitas ao freudismo da parte de Lévi-Strauss. Ele tende,


desde muito cedo, a criticar o estilo da teoria freudiana e assimilá-la a
uma mitologia5 1, muito em função de que a psicanálise se inclina, a
seus olhos, a definir o inconsciente em termos de um certo tipo de
conteúdos privilegiados, e não como um caso, no indivíduo, da fun-
ção simbólica que organiza a totalidade da vida social. É claro que esse
não é o único modo de se compreender o inconsciente freudiano, que
se distingue, aliás, muito mais por um modo de funcionamento - o
que Freud designa como processos primários - do que por um certo
tipo de conteúdos. Mas, de qualquer forma, não há como desconhe-
cer que qualquer leitura atenta à especificidade do texto freudiano deve
revelar a distância astronômica que medeia entre o seu inconsciente e
esse, antropológico, das estruturas5 2• O modo como Lévi-Srrauss per-
cebe a psicanálise é semelhante, por um lado, àquele pelo qual Mauss
concebia as relações entre psicologia e sociologia, que, no limite, re-
duzia a primeira a um caso particular da segunda5 3. Mas também con-

51 Por exemplo, em entrevista a François Dosse: "O que Freud fez, na verdade, foi
construir grandes mitos" (História do estruturalismo, p. 138). Ou, em "Le sorcier
et sa magie", texto crucial para a virada estruturalista de Lacan: "Mas a inquietan-
te evolução que tende, desde alguns anos, a transformar o sistema psicanalítico,
de corpo de hipóteses científicas verificáveis experimentalmente em certos casos
precisos e limitados, em uma mitologia difi1Sa compenetrando a consciência do
grupo (...) arrisca de restabelecer rapidamente o paralelismo [entre psicanálise e
magia)" (p. 201-2; grifos nossos):
5l "Está a( a raiz do mal-entendido, pois o inconsciente do antropólogo está muito
distante do inconsciente freudiano, para além das analogias que se possa assinalar
entre a decodificação semântica dos mitos e as técnicas de interpretação psicana-
lítica. Em Lévi-Strauss "o inconsciente é o lugar das estruturas". O inconsciente
lévi-straussiano é definido, portanto, como um sistemas de condicionamentos ló-
gicos, um conjunto estruturante (... ). Esse inconsciente puramente formal, lugar
vazio, puro receptáculo, está bem longe do inconsciente freudiano, definido por
um certo número de conteúdos privilegiados" (História do mruturalismo, p. 140).
53 Dosse aponta como Lévi-Strauss reitera o inconsciente como o objeto específico
da antropologia, reivindicando-o à psicanálise, na medida em que não se trata de
um depositário de conteúdos individuais, mas da função simb6lica que organiza
UM INCONSC!llNTE PARA O SUJEITO 471

tinua sendo tributário da tendência inaugurada por Politzer de cindir


a psicanálise em método e doutrina, enaltecendo o primeiro para de-
preciar a segunda: no fundo, o que Lévi-Strauss reconhece é um certo
número de analogias, por exemplo, entre a análise dos mitos e a inter-
pretação psicanalítica, sob o paradigma da interpretação onírica, ao
mesmo tempo em que recusa a fundamentação metapsicológica dessa
prática, rebaixada a uma nova mitologia.
Mais de um autor já apontou o caráter mais kantiano do que
psicanalítico do inconsciente estruturalista: "Por outro lado, se quisés-
semos comparar essa noção de inconsciente àquela de Freud, apenas a
título de ilustração constrastante, diríamos que Lévi-Strauss enfatiza a
prioridade da forma sobre o conteúdo, o que implica numa priorida-
de da estrutura (sincrônico) sobre a perspectiva diacrônica. Tec-
nicamente diríamos (...) que a noção de inconsciente no estruturalis-
mo lévi-straussiano é "conseqüência" ou resultado de transposição da
indagação kantiana no campo etnológico, já que dispôs-se a descobrir
as "categorias" ou propriedades funda~entais que, de acordo com
Kant, sempre constrangem a mente humanà' 54 . Não que isso possa
ter servido de empecilho a Lacan, que não deixou de, por _outras vias,

a cultura em ação no indivíduo. Diz ele, em O pensamento selvagem, num tom


bem maussiano: ''A etnologia é antes de tudo uma psicologia" (citado em Histó-
ria do estruturalismo, p. 140).
54 Aragão, L. T. do. "O inconsciente em Claude Lévi-Strauss... ", p. 161. François-
Dosse destaca o modo como esse novo kantismo se constituiu à margem da refle-
xão filosófica, o que reforça a idéia de que não só a lingüística, mas boa parte da
filosofia embutida nos conceitos de Lacan, lhe chegou pela via da antropologia:
"De maneira não explícita, pois Lévi-Scrauss abandonou o território do filósofo
para ganhar outros continentes do saber, pode-se considerar o embasamento des·
se programa estruturalista como marcado pela filosofia kantiana em sua vontade
de vincular todos os sistemas sociais a categorias primordiais que funcionam como
categorias numênicas" (História do estruturalismo, p. 51). Se com Kojeve o idea-
lismo absoluto de Hegel se torna concreto, o mesmo acontece com o idealismo
crítico de Kant através de Lévi-Strauss, ambos confluindo para alimentar o anti-
realismo visceral de Lacan.
472 RICHARD THEISEN S!MANKE

incorporar elementos da filosofia kantiana aos materiais de constru-


ção de seu corpo teórico. Se isso reforça, por outro lado, a idéia de que
o estruturalismo constitui uma espécie de retorno do kantismo, ainda
que com a economia, segundo Paul Ricoeur55, da noção de sujeito
transcendental, faz compreender ainda o sentido de certas formulas
lacanianas, como a da primazia do significante, como significando uma
espécie de a priori da experiência, à qual tem que se remeter a explica-
ção psicanalítica que se queira completa, mesmo que ao custo da
descaracterização de seu objeto.
Essa distância entre o estruturalismo e Freud é difícil de passar
despercebida e1 se Lacan fez sua a tarefa de fundir esses dois referen-
ciais, foi com plena consciência do quanto isso implicava de descaracte-
rização para um dos lados. Num primeiro momento, é em detrimen-
to do solo original onde foram forjados os conceitos freudianos que
essa fusão se opera: o retorno aos textos freudianos proposto em 1953
significa a tradução de Freud na linguagem do estruturalismo (ou,
melhor, do estruturalismo na linguagem de Freud: significante ou
pulsão, repetição ou automatismo, é sempre da mesma idéia que se
trata), ainda que Lacan consiga, de certo modo, justificar teoricamen-
te a redução da reflexão metapsicológica a uma mitologia, no interior
de sua concepção metafórica da teoria psicanalítica que começa então
a tomar forma mais definitivamente. Posteriormente, mais ou menos
a partir da virada dos anos 60, será mais em proveito de Freud que
essa redefinição funcionará, com termos do estruturalismo - como o

55 É Ricoeur ainda um dos que exprime taxativamente o caráter anti-freudiano e


kantiano do inconsciente estruturalisca. Diz ele, em O conflito das interpretações:
ensaios de hermenêutica, que "as leis lingüísticas designam um nível inconsciente
e, neste sentido, não-reflexivo, não-histórico do espírito. Esse inconsciente não é o
inconsciente .freudiano da pulsão, do desejo, em seu poder de simbolização; é mais
um inconsciente kantiano que .freudiano, um inconsciente categorial combinatório;
é uma ordem finita ou o finicismo da ordem, mas de cal forma que se ignora.
Digo inconsciente kantiano, mas apenas por causa de sua organização, porque se
trata muito mais de um sistema categorial sem referência a um sujeito pensante"
(p. 31-2; grifos nossos).
UM INCONSC!!lNTE PARA O SUJEITO 473

de significante, acima de tudo - passando a querer dizer algo de com-


pletamente diverso, a ponto de Lacan poder renegar com bastante
tranqüilidade sua filiação estruturalista, da qual fizera tanta questão
num primeiro momento.
Mas seja como for, é a fórmula de Lévi-Strauss que vai servir
como primeiro modelo para uma assimilação do conceito de incons-
ciente e da metapsicologia em geral ao instrumental lacaniano. Na ver-
dade, apesar da incontestável distância, Lévi-Strauss chega a se referir
ao seu inconsciente em termos bastante próximos aos freudianos 56,
coincidência que deve ter bastado para acender a imaginação teórica
de nosso autor. O début de Lacan no estruturalismo vai assim se dar
em um trabalho que é lévi-straussiano de ponta a ponta, como ele
mesmo admite: a conferência promulgada no College philosophique à
convite de Jean Wahl em 1953, intitulada "Le mythe individuei du
nevrosé". A própria expressão-título é de Lévi-Strauss e remete a dois
textos cruciais de publicação recente, onde o intercâmbio entre a an-
tropologia e a psicanálise comparece da fc~rma mais manifesta.
Trata-se, basicamente, de uma releit:ura do clássico caso clínico
freudiano geralmente conhecido como o Homem dos Ratos, ao qual
Lacan se propõe a aplicar o método de análise estrutural dos mitos
elaborado por Lévi-Strauss. Embora ele se refira a esse trabalho como

5G Por exemplo, em "La notion de structure en ethnologie" (1953), onde qualquer


coisa de semelhante à noção freudiana de resistência se insinua: "Um modela .
qualquer pode ser consciente ou inconsciente, essa condição não afeta sua natureza.
É apenas possível dizer que uma estrutura superficialmente dissimulada no in-
consciente torna mais provável a existência de um modelo que a mascare, como
uma tela, para a consciência coletiva. Com efeito, os modelos conscientes - que
se chamam comumente "normas" - contam-se entre os mais pobres que existem,
em razão de sua função, que é de perpetuar as crenças e os usos, mais do que
expor suas motivações. Assim, a análise estrutural depara-se com uma situação
paradoxal bem conhecida do lingüista: quanto mais nítida é a estrutura aparente,
mais difícil torna-se apreender a estrutura profunda, por causa dos modelos cons-
cientes e deformados que se interpõem como obstdculos entre o observador e seu ob-
jeto" (p. 308-9; grifos nossos).
474 RICHARD THl:.ISEN S!MANKE

derivando do "primeiro texto de Lévi-Strauss sobre o mito" 57 - ou seja,


o artigo sobre 'Téfficacité symbolique", publicado em 1949 - Lacan
já emprega aqui, claro que à sua maneira, a metodologia que seria ex-
posta por Lévi-Strauss em 1955, no artigo sobre "La structure des my-
thes" que, não por acaso, toma como objeto de demonstração o mito
de Édipo. Ao intervir, anos depois, num debate sobre uma exposição
de Lévi-Strauss sobre as relações entre mito e ritual, ele revela seu apre-
ço precoce pelo método da análise estrutural dos micos, "uma vez que,
como·Lévi-Strauss não ignora, tentei, quase de seguida, com pleno
sucesso, ouso dizê-lo, aplicar-lhe a grelha aos sintomas da neurose ob-
sessiva, e especialmente à admirável análise que Freud deu do 'homem
dos ratos', isco numa conferência intitulada precisamente 'o mito
individual do neurótico"'5 8 •
Tanto em 'Téfficacité symbolique" quanto em um texto con-
temporâneo, "Le sorcier et sa magie", Lévi-Strauss trabalha temas mui-
to próximos daqueles expostos na "Introduction a l' oeuvre de Marcel
Mauss" (os três textos são do mesmo ano), com a vantagem, no que
interessa para a compreensão de sua relação com Lacan, de referir-se
aí específica e intensamente à psicanálise. Nos dois casos, trata-se de
comparar a cura xamanística com a psicanalítica, fazendo ambas equi-
valerem-se na constatação de que se trata, num caso e no outro, de
uma manipulação simbólica dos enfermos, capaz de produzir efeitos
reais nos sujeitos devido ao próprio papel constitutivo que o simbolis-
mo desempenha em sua gênese. Esse efeito real da manipulação simbó-

5? "Nós aí produzimos, entre outros, um mito individual do neurótico, início de uma


referência estruturalista em forma (o primeiro texto. de Lévi-Strauss sobre o mito)"
("De nos antécédents". ln: Écrits, p. 87; itálicos do autor).
5B "lntervention dans la discussion sur l'exposé de C. Lévi-Strauss sur les rapports
entre la mythologie et le rituel". Citado por Tito Cardoso e Cunha no seu prefá-
. cio à edição portuguesa de O mito individual do neurótico, p. 32. O autor esclare-
ce ainda que, embora "La structure des mythes" só viesse a ser publicada em 1955,
Lévi-Strauss desenvolvera seu método nos cursos da École Pratique des Hautes
Études no período 1952-1954, portanto contemporaneamente à conferência de
Lacan, que é de 1953.
UM INCONSC!l?.NTE PARA O SUJEITO 475

lica é expresso nos dois casos, por Lévi-Strauss, pelo recurso ao termo
e ao conceito freudiano de abreação. Tanto o xamã quanto o psicana-
lista são, a seu ver, abreatores profissionais59 , sendo esse um conceito
que lhe permite reafirmar a dependência que os estados afetivos e mes-
mo corporais se encontram com relação à determinação simbólica60 •
Mas é em "eéfficacité symbolique" que essa relação entre a psi-
canálise e o xamanismo é exposta em todas as suas conseqüências. Lévi-
Strauss retoma aí o conceito de abreação, ligando-o ainda mais expli-
citamente à idéia de uma manipulação simbólica do corpo doente, que
pode funcionar porque a relação que os componentes e personagens
simbólicos do canto xamânico, por exemplo, mantêm com a doença
que se trata de curar é uma relação interior aos espírito do doente,
relação entre símbolo e coisa simbolizada, só que essa "coisa simboli-
zadà' não é uma parte do corpo natural, mas é, ela mesma, simbólica,
de modo que Uvi-Strauss pode outra vez recorrer ao vocabulário da
lingüística para se corrigir: uma relação de significante a significado61 ,

59 "Le sorcier et sa magie", p. 199. Logo adiante, Lévi-Strauss afirma que o sucesso
da cura xamanística depende de que o feiticeiro "possa induzir simbolicamente no
doente uma abreaçáo de seu próprio di$túrbio" (p. 199).
60 O modo como Lévi-Strauss concebe essa determinação simbólica, inclusive para
a distinção entre os estados normais e patológicos, será assimilada na íntegra por
Lacan. Por exemplo, no modo como se vale do vocabulário saussureano, já ope-
rando a desmontagem do signo que depois fará escola no lacanismo: "Empres-
tando a linguagem dos lingüistas, nós diremos que opensamento normal sofre sem- ..
pre de um déficit de significado, enquanto que o pensamento dito patológico (. ..)
dispõe de uma pietora de significante" ("Le sorcier et sa magie", p. 200; grifos nos-
sos). Não esqueçamos que Lacan vai sempre caracterizar a psicose como uma
manifestação mais pura do significante enquanto cal, enquanto que a neurose ou
a normalidade se manifestam através de um sintoma que tem a natureza de uma
metáfora, ou seja, o aspecto da linguagem mais comprometido com o significa-
do. O despedaçamento do homem pela linguagem, que vai definir o conceito
lacaniano de castração também se faz presente em termos muito claros: "Despe-
daçado entre esses dois sistemas de referência, aquele do significado e aquele do
significante, o homem ... ", etc. (ibidem, p. 203; grifos nossos).
61 "I..:éfficacité symbolique", p. 218.
476 RICHARD THEISEN S!MANKE

por onde se vê muito claramente que a concepção de simbolização que


se delineia aqui a concebe como uma operação inteiramente interna à
linguagem. A comparação com a psicanálise lhe permite, então, apelar
para a noção de transferência para dar conta da eficácia da encenação
de um mito da parte do xamã para a supressão do sintoma, compara-
ção na qual utiliza a expressão "mito individual" para se referir à neu-
rose, exatamente como o fará Lacan alguns anos mais tarde: "O doen-
te atingido por neurose liquida um mito individual opondo-se a um
psicanalista real; a parturiente indígena supera uma desordem orgâni-
ca verdadeira se identificando com um xamã miticamente transpos-
to"62. Lévi-Strauss retorna a essa expressão pelo menos mais duas ve-
zes ao longo do texto, inclusive para se referir à noção psicanalítica de
complexo, com fortes indícios de que a compreende num sentido bem
mais próximo de Lacan do que de Freud: "e os complexos, esses mitos
individuais, se remetem também a alguns tipos simples, moldes onde
vem se enraizar a fluida multiplicidade dos casos"63 • Esses "alguns ti-
pos simples" podem muito bem ser os três complexos principais de
Lacan; Lévi-Strauss se refere explicitamente pelo menos a um deles,
quando afirma que, "para resolver um complexo de desmame, a psica-
nalista deve assumir uma posição maternal realizada ( ...)"64 .
Lévi-Strauss propõe ainda que essa comparação com o xamanis-
mo possa contribuir para elucidar alguns pontos obscuros da doutrina
freudiana, o que quer dizer, evidentemente, que a psicanálise pode ser
"aperfeiçoada'' à luz da antropologia, exatamente o que Lacan se encar-
regará de tentar fazer. Os principais pontos obscuros a serem elucida-
dos são justamente as noções de mito e de inconsciente. Ao cabo de

62 "Céfficacité symbolique", p. 219; grifos nossos.


63 Ibidem, p. 225; grifos nossos. A outra ocorrência da expressão é ainda a propósito
da comparação entre xamanismo e psicanálise: "Mas, num caso, é um mito indi-
vidual que o doente constrói com a ajuda de elementos tirados de seu passado;
no outro, é um mito social que o doente recebe do exterior e que não corresponde
a um estado pessoal antigo" (ibidem, p. 220; grifos nossos).
64 Ibidem, p. 221; grifos nossos.
UM INCONSCJtNTE PARA O SUJEITO 477

um certo desenvolvimento, Lévi-Strauss conclui com a apresentação


de uma nova definição de inconsciente, que é aquela com que Lacan
trabalhará ao longo de todo seu estágio estruturalista. A última dife-
rença que restava entre a cura xamânica e a psicanalítica era o caráter
coletivo e individual, respectivamente, dos mitos envolvidos. Mas, na
medida em que se pensa em termos estruturais, é possível perceber que
são as mesmas estruturas que estão em jogo no homem civilizado ou
selvagem, são ou doente. Se o inconsciente é, como quer Lévi-Strauss,
o conjunto de todas essas estruturas, ele perde rigorosamente seu cará-
ter individual, que só se justificava numa leitura - a equivocada leitura
freudiana, do modo como Lévi-Srrauss e Lacan a entendem - em ter-
mos de conteúdos, e não de formas ou estruturas. Feita essa correção,
portanto: "O inconsciente deixa de ser o inefável refúgio das particula-
ridades individuais, o depositário de uma história única, que faz de
cada um de nós um ser insubsticufvel. Ele se reduz a um termo pelo
qual nós designamos uma função: a função simbólica, especificamente
humana, sem dúvida, mas que, em todos ~s homens, se exerce segun-
do as mesmas leis, que se remete, de fato~ ao conjunto dessas leis" 65 .
Conseqüência disso: "o inconsciente é sempre vazio; ou, mais exatamen-
te, ele é tão estrangeiro às imagens quanto o estômago aos alimentos
que o atravessam" 66 • É sob essas condições que Lacan consente em in-
corporar o conceito de inconsciente, em substituição ao imaginário
que buscou formular nos anos anteriores, mas que agora lhe parece
não permitir o mesmo grau de universalidade do inconsciente antropo-
lógico identificado com a função simbólica. Mas Lacan preservará o
imaginário como um registro complementar ao recém-introduzido sim-'
bólico, com a função ex~tamente de preencher os vazios dessa estru-
tura inconsciente, singularizando, assim, essa função universal que ni-
vela a totalidade dos sujeitos, ao reduzi-los a um efeito do simbolismo
social. O seu "Le mythe individue! du nevrosé", construído sobre essas
considerações de Uvi-Strauss, apresenta, de fato, sob vários aspectos,

65 "I..:éfficaciré symbolique", p. 224; grifos nossos.


66 Ibidem, p. 224; grifos nossos.
478 RICHARD THEISEN SIMANKE

essa tensão entre o ponto de vista do sujeito e o ponto de vista da es-


trutura que marcará todo o pensamento lacaniano daqui para a frente.
Lacan, com certeza, não esquece suas preferências anteriores,
nem desconsidera o caráter problemático da fusão que está pretenden-
do fazer entre Freud e Lévi-Strauss, quando dota sua conferência de
um preâmbulo epistemológico no qual discute a natureza do conheci-
mento psicanalítico. Esse preâmbulo, aliás, é interessante justamente
naquilo em que ele nos informa das mudanças que a filiação estrutu-
ralista de Lacan permitiu introduzir nos termos em que ele discute o
problema do conhecimento. Ele abre, de fato, sua conferência com
uma comparação positiva entre a psicanálise e as "artes liberais" da Ida-
de Média, o que deveria ser surpreendente, dada a cientificidade in-
transigentemente defendida ao longo dos encaminhamentos prece-
dentes. Evidentemente, Lacan não está renunciando aqui a elevar a
psicanálise às alturas do conhecimento científico. O que ocorre, ao
contrário, por tudo que se viu, é que é justamente essa elevação que
ele espera realizar através do estruturalismo. É essa nova concepção de
uma ciência do homem propiciada pela antropologia estrutural de Lévi-
Strauss que ele procura expressar em sua comparação: se Lacan conce-
de em equiparar a psicanálise às artes liberais, naquilo em que elas se
distinguem das ciências objetivas que daí se originaram, seu objetivo é
enfatizar o modo como se reflete no campo psicanalítico a revolução
estruturalista, e a especificidade desse reflexo pode ser pensada em ter-
mos da impossibilidade, no lado da psicanálise, de abrir mão de uma
referência ao sujeito, que parece cada vez mais ociosa no interior do
paradigma estrutural. Se esse trabalho assin~la a adesão oficial de La-
can ao estruturalismo, ele está, não obstante, totalmente permeado por
esse esforço de conservar o sujeito no centro da reflexão psicanalítica,
sem que esse seja esmagado pela determinação necessária que deve so-
frer da parte de um meio social doravante concebido em termos de
estruturas.
Com efeito, o que caracteriza distintivamente as artes liberais
com relação à ciência "é que elas mantêm em primeiro plano aquilo
que se pode chamar de uma relação fundamental com a medida do
UM INCONSCI~NTE PARA O SUJEITO 479

homem" 67 • A psicanálise seria, no panorama contemporâneo, a única


disciplina a conservar essa característica, banida do cenário do conhe-
cimento científico. Ou seja, Lacan está reivindicando para a psicanáli-
se o privilégio de conservar a referência ao sujeito no plano científico,
do qual ele teria desaparecido, mesmo no caso do novo paradigma para
. as ciências humanas fornecido pelo estruturalismo. Aqui manifesta-se
bem claramente a função de peça de resistência contra o apagamento
do sujeito que a filosofia hegeliana à la Kojeve desempenha para Lacan:
mais à frente ele se referirá ao declínio que sofre no presente momento
histórico a figura do "mestre moral", cujo papel formativo, constitutivo
da subjetividade ressurge, no entanto, no plano dessa mitologia indi-·
vidual em que consiste a neurose e, em geral, no modo como o sujeito
experimenta sua passagem pelo Édipo68 •
De qualquer modo, a própria descrição da Erfahrung psicanalí-
tica, nos termos em que Lacan a concebe (movimento dialético em
direção à verdade do sujeito), já indica bem essa presença do sujeito
justificada a partir de Hegel: é exatamente a clínica que não pode pres-
cindir dessa referência e, pelo contrário, tem que se organizar em torno
dela. Mas isso não pode deixar de ter conseqüências para o projeto de
uma abordagem objetiva da subjetividade. É o sujeito enquanto sujei-
to, enquanto centro ativo na organização de seu mundo, que marca
presença sobre~ divã, é com o aspecto ativo da subjetividade que a
clínica se enfrenta, como já era reivindicado desde a Tese. Portanto, a
bem da coerência, é preciso reconhecer que a objetivação científica do
sujeito não pode ser plenamente realizada, sob pena dele se desvanecer,
da mesma forma que ocorreu com as demais ciências. Se a psicanálise
ainda conserva essa relação fundamental com a medida do humano, o
que transparece pelo fato de ela comportar uma experiência que trans-

67 "Le mythe individue! du nevrosé'' (doravante MIN), p. 292; grifos nossos.


68 Cf. MIN, p. 293. Essa incidência hegeliana é apontada por T.C. Cunha em seu
prefácio a O mito individual do neurótico (p. 34), se bem que não seja necessário
seguir o autor quando esse afirma que nomes como o de Hegel e Heidegger se-
riam tão determinantes para o pensamento lacaniano quanto o próprio Freud.
480 RICHARD Tl-!EISEN S!MANKE

corre inteiramente no campo da palavra - o fator decisivo na ruptura


entre o homem e o animal -, então, é "justamente nisso que a experi-
ência psicanalítica não é decisivamente objetivável"69 • É esse espaço
reservado ao sujeito no coração da experiência analítica que será defini-
do pelo apelo à noção de mito, resultando na caracterização da neuro-
se como um mito individual70 . Note-se bem que é do lado da experiên-
cia analítica, isto é, do lado clínico da psicanálise, que esse espaço se
abre, não no da teoria, onde vigoram as idiossincrasias da metapsi-
cologia lacaniana: aí Lacan sentir-se-á bem mais à vontade para seguir
o programa estruturalista de dessubjetivação das ciências humanas, o
que se manifesta no seu afã de formalização dos conceitos psicanalí-
ticos, que apelará, com o tempo, para instrumentos mais exóticos (ma-
ternas, lógicas não-clássicas, figuras topológicas, e assim por diante).
Mas, se "existe no seio da experiência analítica alguma coisa que
é, propriamente falando, um mito", esse mito precisa ser definido em
termos que interessem à psicanálise. Como a presença dessa dimensão
mítica da psicanálise foi exigida, de início, pelo fato de sua "experiên-
cia'' transcorrer na linguagem, vai ser em relação à linguagem que o
mito se definirá. Se a experiência psicanalítica propicia um "movimen-
to da verdade", através das "inversões dialéticas" que ela pode ocasio-
nar, como se expressa Lacan na sua "Intervention sur le tranfert", essa
é uma verdade que não pode ser dita, pelo menos não inteiramente, já
que, sendo a verdade de um sujeito humano, ela é constituída pela
palavra como, aliás, o próprio sujeito, e a palavra não pode apreender-

69 MIN, p. 292.
70 Essa noção de mico individual, por outro lado, presta-se bem para expor a distân-
cia que medeia entre Freud e esse Lacan, o primeiro interessado em revelar a pre-
sença do inconsciente na cultura, o segundo, da determinação social no sujeito.
Freud afirmava, por exemplo, que os micos, muito provavelmente, '.'correspondem
a resíduos deformados de fantasias de desejo de nações inteiras, aos sonhos secula-
res da humanidade jovem" ("Der Dichcer und das Phancasieren". ln: Studien-
ausgabe, Vol. X, p. 178). Do "mito como sonho da humanidade" à "neurose como
mico individual": essa a imensa distância a ser transposta para se poder ir de Freud
a Lacan.
UM INCONSCI!NTE PARA O SUJEITO 481

se a si mesma, a não ser - e essa é a ressalva fundamental - sob a forma


mítica. A função te6rica do mito no conhecimento psicanalítico de-
corre, portanto, da sua função na constituição da experiência subjeti-
va, abrindo-se por aí mais uma via para a identificação entre clínica e
teoria cada vez mais intensa em Lacan: se a teoria recorre a um mito
(por exemplo, o de Édipo) para explicar a neurose, é porque a neurose
é, em si mesma, como se pretende demonstrar aqui, um mito indivi-
dual. Daí decorre a definição que se lhe confere: "O mito é isso que
dá uma fórmula discursiva a alguma coisa que não pode ser transmiti-
da na definição da verdade, já que a definição da verdade não pode se
apoiar senão sobre ela mesma, e é enquanto a palavra progride que ela
a constitui. A palavra não pode se apreender a si mesma, nem apreen-
der o movimento de acesso à verdade, como uma verdade objetiva.
Ela só pode exprimi-la - e isso de um modo mítico" 71 •
É nesse contexto em que a psicanálise teoriza a constituição do
fenômeno humano em termos de uma ~elação intersubjetiva que se
dá através da linguagem- situação que é r_eencenada na situação ana-
lítica, a fim de superar a alienação que essa constituição comporta -
que o complexo de Édipo vai assumir plenamente, então, o seu valor
de mito, para além da referência mitológica explícita na sua própria
denominação. Mas a descrição freudiana do Édipo tampouco sairá
inc6lume dessa adaptação à perspectiva da antropologia estrutural pro-
tagonizada pela sua definição em termos de mito. De fato, "Le mythe
individuei du nevrosé'' conclui-se com uma modificação substancial
na estrutura do complexo, tal como ele era descrito por Freud, modi-
ficação que já se encontra antecipada desde o começo72 e que, pode-··

71 MIN, p. 292. Começa aqui, como se vê, também a recusa reiterada de Lacan da
possibilidade de uma metalinguagem, que se expressará depois - em "Subversion
du sujet et dialetique du désir dans le inconscient freudien", por exemplo - na
fórmula "não há Outro do Outro", esse Outro, é claro, já tendo sido reduzido ao
conjunto dos signficantes de uma língua, considerado sincronicamente.
72 Diz Lacan, ainda na abertura do texto: "Essas formações [do vivido dos sujeitos
neuróticos] exigem trazer ao mito edipiano, enquanto que está no coração da ex-
482 RICHARD THEISEN S!MANKE

mos antecipar, consistirá em substituir a configuração ternária propos-


ta por Freud por outra, quaternária, por uma série de razões. Mas, para
compreender como essa modificação é uma conseqüência do ponto
de vista estrutural no qual Lacan se exercita aqui pela primeira vez, é
preciso verificar de que modo se desenvolve a aplicação prática do
método criado por Lévi-Strauss a uma questão psicanalítica. É isso que
Lacan empreende, na segunda parte de seu trabalho, numa reinterpre-
tação do caso freudiano conhecido como o "Homem dos Ratos". Esse
exercício explícito de aplicação do estruturalismo na releitura de um
texto freudiano é, de fato, bem representativo do estilo do "retorno a
Freud", cuja palavra de ordem começa, aqui, a se fazer ouvir73.
O caso do Homem dos Ratos, nas mãos de Freud, expressa
exemplarmente a dinâmica da neurose obsessiva. A escolha dessa his-
tória clínica, da parte de Lacan, tampouco é aleatória: a neurose ob-
sessiva, por tudo que ela implica de uma relação problemática com a
figura paterna na passagem pelo Édipo, presta-se, melhor que qual-
quer outra formação clínica, a ser interpretada nos termos da dialética
Senhor/Escravo, tanto que Lacan o fará com certa freqüência daqui
para a frente. Assim, se o objetivo desse trabalho é, efetivamente, cru-
zar Kojeve com Lévi-Strauss, nada mais apropriado do que fazê-lo a
partir do caso paradigmático de neurose obsessiva apresentado por
Freud74 . Lacan descreve duas fases do mito que define a neurose do

periência analítica, certas modificações de estrutura, que são correlativas ao pro-


gresso que nós mesmos fazemos na compreensão da experiência analíticá' (MIN,
p. 292; grifos nossos).
73 A propósito da discussão em torno do acerto ou não da escolha desse caso, mes-
mo da parte de Freud, Lacan afirma: "Mas isso mesmo deveria nos incitar a refle-
tir e a nos perguntar por que essa escolha foi feita por Freud. Isso, bem entendi-
do, se confiarmos em Freud. E é preciso confiar nele" (MIN, p. 293).
74 O caso do Homem dos Ratos é, de fato, um formidável resumo de todas as carac-
terísticas desse tipo de neurose, começando pela obsessão pelo suplício dos ratos.
A partir da ambivalência afetiva, que reparte o sujeito entre um amor consciente
e um ódio inconsciente aos objetos com que se relaciona, constitui-se uma série
muito típica de sintomas: apreensões obsessivas (receio que aconteça algo a mu-
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 483

Homem dos Ratos, que correspondem a duas gerações sucessivas. Sua


intenção é evidente: aplicar, da forma mais fiel possível, o método lévi-
straussiano de análise dos mitos, que, na sua exposição mais completa
em "La structure des mythes", interpreta o mito de Édipo através das
permutações que se produzem entre os mesmos elementos na passa-
gem de uma geração para outra (superestimação ou subestimação das
relações de parentesco, por exemplo, que envolvem, alternativamente,
os personagens das diversas gerações que compõem o mitologema de
Édipo, desde seu tataravô Cadmo, até seus filhos, que encerram o dra-
ma75). No caso do Homem dos Ratos, a primeira geração apresenta
uma estrutura mítica que Lacan descreve como um "mito familiar",
na qual o pai se desdobra num duplo imaginário, representado por
um amigo que o socorrera por ocasião de um desfalque nos fundos do
regimento que lhe cabia gerir. Ao mesmo tempo, a figura da mãe -
ou, mais precisamente, o objeto do desejo paterno - se desdobra, igual-
mente, na figura de uma mulher pobre a quem o pai poderia terdes-
posado, em vez da mulher de condição so~ial superior à sua que ele

lher amada), compulsões (ao suicídio, por exemplo), prescrições minuciosas e ri-
tuais (contar o tempo entre o relâmpago.e o trovão), ordens auto-impostas (com-
parecer a um exame, pagar uma dívida), todos permeados por uma seqüência
exasperante de hesitações, dúvidas, mudanças de idéia, inclusive na cena decisiva
de sua neurose - o pagamento de uma dívida a um cerco colega de exército quan-
do, de fato, é à funcionária do correio que ele deve-, cuja configuração, justa-
mente, Lacan descreverá como um mito individual que reproduz a estrutura de
um mito familiar.
75 Por exemplo: Cadmo procura Europa (superestimação), Édipo maca Laio (sub-
estimação}, Édipo casa-se com Jocasta (superestimação), Etéocles mata Polinice
(subestimação), e assim por diante. Há uma outra alternância, que Lévi-Scrauss
descreve como a afirmação/negação da autoctonia do homem. É das equivalên-
cias que se estabelecem entre esses dois pares (do tipo A está para B assim como
C está para D) que emerge o significado do mito (cf. "La scructure des myches",
p. 236-41, principalmente). Daí decorrem também as modificações estruturais
que Lacan se vê compelido a introduzir no Édipo freudiano: a fim de que ele
possa aí mimetizar o procedimento de Lévi-Scrauss, é necessário que o Édipo te-
nha uma estrutura quaternária e não ternária.
484 RICHARD THEISEN SIMANKE

efetivamente desposou76 . Essa a "constelação originária que presidiu


ao nascimento do sujeito" 77 : a metáfora astrológica de Lacan visa mos-
trar, antes de tudo, o modo como o sujeito encontra-se capturado
numa estrutura simbólica já no momento em que vem ao mundo, a
sua condição neurótica dependendo, daí em diante, do sucesso que
ele alcançar em subjetivar essa estrutura. Fica claro, também, a substi-
tuição da terminologia freudiana por uma outra oriunda da antropo-
logia: essa constelação originária é exatamente aquilo que Freud cha-
mava de novela familiar, e que agora se define como um mito. Esse,
por outro lado, expressa um tema que será caro a Lacan, e que ele já
anunciava, na verdade, desde "La famille", ou seja, o declínio da figu-
ra paterna, que aparece como a condição histórica para que se perce-
ba, nesse momento, a prevalência da função simbólica do pai sobre o
pai real. Muito no espírito de que "a palavra é a morte da coisà', Lacan
sempre insistirá no papel que o "pai morto" (o pai da horda primitiva,
o Moisés) desempenha na psicanálise, como condição para que pos-
sam ser trazidos para o primeiro plano os significantes do pai (os fa-
mosos Nomes-do-Pai), que é o que realmente importa no configura-
ção do Édipo. No caso do Homem dos Ratos, há uma desvalorização
do pai devedor diante do amigo que o socorreu e, já que o valor ima-
ginário encarnou-se na figura do dinheiro, o prestígio - a expressão não
é casual e estabelece uma linha direta com Kojeve - situa-se do lado
da mãe. A partir dessa constelação, resta então estabelecer através de
quais permutações essa estrutura se reproduz na neurose obsessiva do
paciente de Freud.
É como um esquema-perfeitamente homólogo ao primeiro que
Lacan descreve o "mito individual" do Homem dos Ratos. A simples
obrigação do pagamento de uns óculos atualiza a estrutura familiar,
onde o paciente se identifica com a figura do pai devedor, ao mesmo

76 Ver Cunha, T. C. "Do mito coleccivo ao mito individual", p. 37-9, para uma
exposição resumida e esquemática dos dois momentos da estrutura mítica da neu-
rose do Homem dos Ratos.
77 MIN, p. 294.
UM INCONSC!llNTE !'ARA O SUJEITO 485

tempo que projeta o colega, ao qual afinal ele não deve nada, na posi-
ção do amigo salvador. Do lado do· objeto do desejo, a senhora do cor-
reio - a quem ele deve, de fato - ocupa a posição da mulher rica, mas
com o mesmo desdobramento imaginário do objeto real do desejo,
no caso uma criada de albergue, pobre, a quem o sujeito dedica um
amor idealizado. Essa a permutação operada com relação à estrutura
originária é, justamente, o que impede que as duas coincidam perfei-
tamente, o que torna o conflito insolúvel no plano imaginário em que
ele se trava. S6 a intervenção do simbólico permitirá colocar em pers-
pectiva os planos imaginário e real da experiência, e reconduzir a dívi-
da a seu verdadeiro destinatário - a funcionária dos correios -, o que
o sujeito fará ao longo de sua análise com Freud, com um prosaico
vale postal, após a imensa trama de hesitações obsessivas que se criou
em torno desse episódio.
Após explicitar o isomorfismo entre as duas estruturas, Lacan
parte para a definição daquela que é a questão central da qual o texto
se ocupa: "Esse cenário fantasísrico se api:esenta como um pequeno
drama, uma gesta, que é precisamente a manifestação disso que eu cha-
mo o mito individual do neurótico "78 • Dentro do espírito do texto, que
é o de preservar a referência ao sujeito, mesmo dentro de uma análise
estrutural, Lacan se apressa em acrescentar que essas relações que com-
põem a estrutura não se apresentam, digamos, in natura, na forma
factual e objetiva na qual foram expostas, mas só adquirem seu valor
próprio em virtude da apreensão subjetiva que o sujeito faz de sua pró-
pria história, que pode, no entanto, ser expressa teoricamente como
essa combinação de relações. Ou seja, Lacan tenta não perder de vista
que trata-se aí de um caso clínico, que os elementos que podem ser
compostos nesse tipo de estrutura foram extraídos laboriosamente de
um sujeito real ao 'longo de um tortuoso processo psicanalítico, que
só pode ocorrer segundo as regras da psicanálise formuladas por Freud,
e não segundo as regras da análise estrutural. De certa forma, é a velha
e politzeriana dissociação entre método e doutrina que retorna aqui,

78 MIN, p. 298; grifos nossos.


486 RICHARD THEISEN S!MANKE

embora Lacan trabalhe decididamente para a sua superação. Mas tudo


se passa como se ele duvidasse sinceramente de que essa superação
pudesse ser alcançada enquanto a doutrina em questão for a meta-
psicologia freudiana, tanto que ele faz sua a missão de substituí-la por
uma outra, com a qual se possa franquear o abismo pressentido em
Freud e promover a identificação entre técnica e teoria que será uma
de suas bandeiras nos anos que se seguem. A idéia é mais ou menos
essa: a antropologia pode aplicar estritamente o método estrutural, já
que os produtos sobre os quais ela o aplica - os mitos, por exemplo -
estão, de certa forma, acabados, por mais que se possam continuar in-
definidamente produzindo novas versões, como afirma Lévi-Strauss,
inclusive considerando o complexo de Édipo freudiano apenas como
a versão mais recente do mito de Édipo e a psicanálise, por extensão,
como uma grande mitologia contemporânea. Mas o psicanalista assis-
te a essas versões da mitologia individual se produzindo, ao vivo e a
cores, diante de seus olhos ou de sua escuta, e não pode, sob risco de
descaracterizar sua experiência, abstrair o sujeito que as produz. No
entanto, uma vez que o problema seja trabalhar teoricamente com os
resultados dessa experiência, essa abstração já não causará mais tantos
transtornos, e a estrutura pode ser apreendida como uma forma a priori
da experiência individual, como quer o novo kantismo estruturalista e
não como uma Erlebnis captada no tempo de uma análise. Por isso,
feitas essas ressalvas, Lacan passa, em paz com sua consciência, a ocu-
par-se apenas da combinatória estrutural que marca a passagem do
mito familiar para a neurose individual, o que conduz às inovações
teóricas que ele quer introduzir na teoria do Édipo.
Em primeiro lugar, essas permutações de estrutura explicam o
conflito neurótico, pelo fato de que os impasses próprios do mito fa-
miliar se deslocam no interior da organização mítica, fazendo com que
tudo que não tenha sido resolvido num lugar reapareça em outro, o
que não deixa de ser uma forma de exprimir o fenômeno da repetição
na neurose, já perfeitamente identificado por Freud. Por exemplo, a
dívida nunca saldada do pai do paciente para com o amigo que cobriu
o seu desfalque ressurge, não no lugar do desdobramento imaginário
do sujeito, mas no do objeto, nesse duplo da criada pobre e idealizada
UM INCONSCIJlNTE PARA O SUJEITO 487

em que consiste a funcionária do correio. Trata-se, evidentemente, de


pensar a produção do sintoma neurótico a partir dessas alienações ima-
ginárias que só podem ser corrigidas no simbólico, o registro no qual
se torna possível distinguir entre sujeito e objeto e os seus duplos
narcísicos, e unificá-los naquilo que Lacan chama, nesse momento,
de um estado de equilíbrio moral, que se opõe à neurose 79 . À relação
dual que caracterizaria o narcisismo pensado sob o modelo do reflexo
especular, segue-se, não uma situação triádica, como a do Édipo freu-
diano, mas necessariamente uma estrutura a quatro termos, e isso por
várias razões. Primeiro, porque o ensinamento de Kojeve, mesmo en-
quanto servia para instrumentar a teoria lacaniana do imaginário, pro-
punha já uma estrutura ternária, formada pelo sujeito, o outro e o
objeto. Uma vez que um desejo só é humano se for mediado pelo de-
sejo do outro, o sujeito só desejará humanamente mesmo seus objetos
sexuais se ele os desejar justamente porque eles são objetos de um ou-
tro desejo, daí a rivalidade ser constitutiva da condição humana. En-
tão, se algo deve-se acrescentar para carac~erizar a passagem do regis-
tro do imaginário para o simbólico, este· último terá que ser, pelo
menos, uma estrutura a quatro termos. Mas, mais importante que isso,
é a constatação de que o desdobramento imaginário ocorre em dois
planos, o que instala uma dupla dualidade: aquela que se dá entre o
imaginário e o real, que só pode ser demarcada pelo simbólico, e aquela
que se estabelece entre o sujeito e o objeto, que se inscrevem, ambos,
em cada um desses dois registros. Em outras palavras: o sujeito se de-
fine no imaginário como o seu eu narcísico, cujo objeto é a própria _
imagem especular ou seus equivalentes; mas esse outro.que é seu obje- ·

79 MIN, p. 300. Se Làcan designa aí o que, numa perspectiva mais terapêutica, se


chamaria saúde psíquica, como "equilíbrio moral" é, cm primeiro lugar, para
enfatizar a figura do "mestre moral" que ele introduziu no começo e que repre-
senta justamente esse outro do sujeito, pensado agora canto no registro do imagi-
nário quanto no do simbólico. Mas essa expressão antecipa, ainda, a caracteriza-
ção da psicanálise como um experiência ética que ele desenvolverá nos anos 60, é
claro que a partir de bases bem diferentes. Mas trata-se sempre de recusar o cará-
ter psicológico dos conceitos psicanalíticos, e o caráter terapêutico da psicanálise.
488 RICHARD THEISl!N S!MANKE

to reaparece também no simbólico e, assim, constitui o sujeito como


sujeito da linguagem. Essa pequena matriz é o que Lacan expressará,
mais tarde, com seu célebre esquema Z ou lamda, onde o objeto se
reparte no pequeno ourro (a) e no grande Outro (A), e o sujeito no eu
narcísico (à) e no sujeito do significante (S), isto é, o sujeito propria-
mente dito, sendo que o fato de que essas relações não sejam apresen-
tadas como paralelas, mas sim cruzadas, é designado em "Le mythe
individuei du nevrosé'' como a mudança de plano que caracteriza as
permutações da estrutura mítica: "Mas gostaria de insistir sobre isto
que é uma realidade clínica, que pode servir de orientação na experiên-
cia analítica- há, no neurótico, uma situação de quatuor, que sereno-
va sem cessar, mas que não existe sobre um único plano" 8º. Introduzido
esse ''quatuor': que deriva das necessidades da teoria, na própria reali-
dade clínica, resta apresentar oficialmente esse quarto elemento que
se acrescenta à estrutura edípica. Lacan o faz na conclusão do texto,
após comentar um episódio da juventude de Goethe narrado em Poe-
sia e verdade 81 , onde, a seu ver se verifica a mesma estrutura do caso
do Homem dos Ratos, mas que também serve para preparar a peça de
retórica com que Lacan conclui sua conferência, citando as últimas
palavras de Goethe.
Feitos esses rodeios, Lacan vai direto ao ponto: "O sistema qua-
terndrio, cão fundamental nos impasses, nas insolubilidades da situa-
ção vital dos neuróticos, é de uma estrutura muito diferente daquela

80 MIN, p. 300; grifos nossos.


81 Além da identidade estrutural com o caso e~ foco, a inclusão desse episódio se
justifica também pelo papel que ele desempenha na análise do Homem dos Ra-
tos. Este, a certa alcura, relata a Freud que, tendo abdicado, após a morte do pai,
de suas atividades masturbacórias, essas só voltavam a ocorrer em certos momen-
tos de exaltação literária, como quando lia essa passagem de Poesia e verdade, onde
Goethe relata como se livrou dos efeitos de uma maldição lançada por uma ex-
amante ciumenta, que preconizara a morte da próxima mulher que o beijasse nos
lábios. É esse episódio que Lacan comenta na terceira parte de sua conferência, a
fim de ratificar suas conclusões sobre a estrutura dos mitos individuais (cf. nota à
edição portuguesa de "Le myche individuei du nevrosé" p. 64-5).
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEJTO 489

que é dada tradicionalmente - o desejo incestuoso da mãe, a interdi-


ção do pai, seus efeitos de bloqueio e, em torno, a proliferação mais
ou menos luxuria.me dos sintomas" 82 . Lacan não deixa de mencionar
o fato de que uma "antropologia geral" se depreende da teoria psica-
nalítica, e que merece ser discutida, uma vez que, aparentemente, o
modo como ela se formulava até então deveria conduzir a certos
descaminhos numa concepção do homem que se poderia formar a
partir da psicanálise. Na verdade, o movimento que começa a se ten-
tar aqui é exata~ente o inverso: não mais as conseqüências da psica-
nálise para uma concepção do homem, mas as conseqüências de uma
certa concepção do homem, que acompanha o surgimento da antro-
pologia estrutural, para a psicanálise. A parte dessa tarefa que é possí-
vel realizar ainda nesse texto, Lacan a define como a introdução, afi-
nal, desse quarto elemento, que complementa a tríade freudiana e, pelo
menos, começa a alinhar a psicanálise com essa nova antropologia.
O primeiro passo para a introdução desse quarto termo é enfa-
tizar o desmerecimento da personagem paterna na situação edípica.
Lacan já assinalava, em "La famille", o papel estritamente culcural do
pai, enquanto que a relação mãe/filho ainda mantinha um pé numa
certa realidade biológica. É essa constatação que retorna agora. O que
Lacan quer dizer, no fundo, é que o prestígio atrelado à personagem
materna no caso do Homem dos Ratos não é só uma particularidade
da história desse sujeito específico. É como se a mãe, ou seja, o pólo
da relação edípica ao qual o sujeito está ligado por laços inegavelmen-
te naturais, tivesse, por isso mesmo, o seu valor cultural razoavelmen:
te assegurado. Do lado do pai tudo se passa de outra forma: sendo
essencialmente o portador de uma função simbólica, a plena realiza-
ção dessa função e, portanto, a manutenção do prestígio de seu perso-
nagem exigiria a ·condição impensável de que o simbólico recobrisse
completamente o real. Como diz Lacan, inaugurando uma expressão
célebre em seu pensamento: "Seria preciso que o pai não fosse unica-

82 MIN, p. 304; grifos nossos.


490 RICHARD THEISEN S!MANKE

mente o nome-do-pai (... )" 83 • Ora, o problema é que, para Lacan, o


pai sempre será apenas o nome-do-pai, ou seja, um significante; não
que não haja um pai real, ou uma representação imaginária da figura
paterna, mas aquilo que define um pai como pai é ser po'rtador da
função simbólica. Dessa sua identificação com a função simbólica de-
corre, então, que as representações do pai, ao menos na cultura oci-
dental, mostrem, um pai "carente", "discordante", "humilhado" (as
expressões são de Lacan), um pai cuja presença positiva tende a apa-
gar-se do imaginário do sujeito.
Essa é uma das prévias à introdução do quarto termo do Édipo.
A outra é a retomada do aspecto imaginário da constituição do sujei-
to, ou seja, a relação nardsica84 , que constitui o eu como uma instân-
cia ou um objeto que o sujeito experimenta, inicialmente, como algo
estrangeiro dentro de si, resultado de que esse eu é, como Lacan nun-
ca se cansou de repetir, originariamente um outro. Ora, o que se quer
enfatizar agora, a propósito do narcisismo, não é tanto o seu papel
positivo na constituição do sujeito, mas sim aquela carência vital ab-
soluta que a relação imaginária vem preencher, de modo, aliás, muito
tênue: "O sujeito tem sempre, assim, uma relação antecipada com a
sua própria realização, que o reenvia, ele mesmo, sobre o plano de uma
profunda insuficiência, e testemunha nele uma fissura, uma dilacera-
ção originária, um abandono (déréliction}, para retomar o termo
heideggeriano. É por isso que, em todas suas relações imaginárias, é
uma experiência da morte que se manifesta. Experiência sem dúvida
constitutiva de todas as manifestações da condição humana, mas que sur-
ge muito especialmente no vivido do neurótico" 85.
',

83 MIN, p. 305.
84 Para Lacan, nesse momento, a relação narcísica é "a segunda grande descoberta
da psicanálise, não menos importante que a função simbólica do Édipo" (MIN,
p. 305), o que revela bem os novos ventos que sopram cm sua teoria: até bem
pouco, o narcisismo era a primeira grande descoberta da psicanálise, aquela que,
acima de todas, valia pena, recuperar e atualizar, ao passo que o complexo de Édipo
UM !NCONSCil!NTE PARA O SUJEITO 491

Eis justificada, portanto, pelo lado do simbólico e pelo do ima-


ginário a introdução do quarto elemento da problemática edípica, e
da constituição do sujeito em geral, com o apelo à Geworfenheit
heideggeriana - literalmente, a condição de estar atirado ao mundo -
servindo para dar-lhe a forma com que esse se apresenta nesse traba-
lho: "O quarto elemento qual é? Pois bem, eu o designarei esta noite
dizendo-lhes que é a morte" 86 . A função de elemento mediador atri-
buído à morte se justifica a partir de diferentes perspectivas. Preparada
pela ênfase concedida à carência da posição paterna e pelo caráter mor-
tífero da relação narcísica, ela é empregada agora para uma comple-
mentação lacaniana da dialética do Senhor e do Escravo, que tem dois
aspectos. No primeiro, Lacan explora a idéia de que o Escravo espera
e deseja a morte do Senhor, o que lhe permite melhor usar o apólogo
kojeviano para exprimir as peculiaridades da neurose obsessiva, os in-
termináveis adiamentos e postergações, que fazem da vida do obseda-
do uma longa espera. Além disso, a idéia de que é uma morte imagi-
nária que é esperada - no caso, a morte do pai, que ocupa o lugar do
Senhor na dinâmica edípica - permite que Lacan resolva diferente-
mente de Kojeve o problema de que é necessário que ambos os sujei-
tos sobrevivam à luta pelo reconhecimento para que a realidade hu-
mana possa se constimir: sendo uma relação de servidão imaginária
aquela em que o sujeito se coloca com relação aos seus outros, é de
uma morte imaginária que ele espera sua remissão, desse assassinato
interno da figura paterna que é necessário para a plena assunção da
condição de sujeito.

desempenhava, como vimos, um papel bastante secundário. É um dos tantos mo-


dos cm que começam a se expressar as prerrogativas absolutas concedidas,
doravante, ao registro do simbólico.
85 MIN, p. 305-306; grifos nossos.
86 MIN, p. 306; grifos nossos. Lacan misturará, posteriormente, Hegel com a no-
ção de ser-para-a-morte para descrever particularmente a posição do sujeito na
neurose obsessiva.
492 RICI-IARD TI-IEISEN SIMANKE

Se o lugar do significante na estrutura edípica é introduzido,


inicialmente através dessa figura da morce87 , isso não é sem conseqüên-
cias para o modo como os conceitos freudianos serão assimilados da-
qui para a frente. É como se Lacan, uma vez que tenha incorporado o
conceito de inconsciente na sua acepção lévi-straussiana, tenha-se'jul-
gado de posse da chave que permitirá a assimilação da totalidade do
instrumental freudiano, desde que reinterpretado sob as mesmas con-
dições. Essa identificação entre a linguagem e a morte, na medida'. em
que o próprio fato da existência da cultura e da linguagem dá a medi-
da da distância que se estabeleceu entre o homem e o mundo da vida,
vai permitir, como já se viu, a releitura do conceito de pulsão de mor-
te e de repetição como a maneira ainda precária e biologista que Freud
encontrou para falar da lógica da linguagem em ação no coração e na
origem mesma da subjetividade. Daqui para a frente, torna-se possí-
vel e recomendável "confiar em Freud", como diz Lacan, adotá-lo
como guia para o progresso do conhecimento psicanalítico, desde que
feitas essas imprescindíveis correções de mira. O sentido do retorno a
Freud que Lacan começa a propor salta aos olhos, quando se considera
que, no momento mesmo em que a campanha por esse retorno é
lançada, são as categorias especificamente lacanianas que recebem uma
primeira definição sistemática: elas constituem, assim, o crivo através
do qual a obra de Freud será percebida daí em diante. É na confe-
rência inaugural da nova Sociedade Francesa de Psicanálise, intitulada
Le symbolique, l'imaginaire et !e réel, que essas categorias se ma-
terializam para o público de Lacan. E os termos em que elas se defi-
nem revelam bem como são as mesmas questões que marcaram a ori-
gem da trajetória lacaniana que se apresemam nas novas vestes de uma
fidelidade a Freud. Essa conferência, longe de alardear uma nova era
para o pensamento lacaniano, é, sob todos os aspectos, a reiteração de
um projeto.

87 "É igualmente a morte imaginária e imaginada que se introduz na dialética do


drama edipiano (... )" (MIN, p. 306).
UM INCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 493

VI.3. UMA METAPSICOLOGIA LACANIANA

Na conferência intitulada Le symbolique, l'imaginaire et le réel,


pronunciada em 8 de julho de 1953, Lacan, de início, reconhece o
que o título tem de ambicioso; de fato, como fica nítido ao longo do
seu desenvolvimento, ele pretende, a partir dessas três rubricas, abar-
car a totalidade do campo da psicanálise. Essa ambição um tanto des-
medida é matizada pela caracterização da exposição que se segue como
um "resumo de pontos de vista", "uma espécie de prefácio ou de in-
trodução a uma certa orientação do escudo da psicanálise" 88 . Esse tra-
balho apresenta-se, portanto, como um preâmbulo a toda psicanálise
lacaniana futura, condição que se verifica cabalmente em seu anda-
mento. Mas trata-se também, de modo igualmente explícito, de uma
retomada de temas que datam dos primórdios do pensamento laca-
niano e, portanto, de um momento em que seu projeto tinha, como
vimos, muito pouco de psicanalítico. Co~ efeito, em que consiste essa
"cerca orientação" a ser imprimida ao estudo da psicanálise? Justamente
no ''retorno aos textos freudianos". Ou seja,· estamos sendo in traduzidos
a uma diretriz de pesquisa que se expressa naquela que será a palavra
de ordem por excelência do trabalho de Lacan daqui para a frente.
Mas qual é a razão para que essa diretriz tenha que se exprimir dessa
forma? Porque "não há apreensão mais total da realidade humana do
que aquela que é feita pela experiênciafreudiana" 89 • Ora, essa idéia de
uma apreensão total do fenômeno - do fenômeno humano, acima de
tudo - é perfeitamente originária em Lacan, inclusive tendo servido ·
de argumento para uma recusa inicial da psicanálise, que, comprome-

88 Le simbolique,i'imaginaire et !e réel (doravante SIR), p. 1. Cito de uma cópia dati-


lografada da Bibliotheque de l'École de la Caiese Fret1dienne, à falta de uma melhor
edição. Tendo cm vista os problemas de se trabalhar com textos não publicados,
mantém-se aqui o foco na idéia, mais do que na literalidade da expressão. Por
isso, também, todos os grifos que aparecerem serão nossos, e não do autor.
89 SIR, p. l.
494 RICHARD THEISEN S!MANKE

tida com um cerro ponto de vista psicológico, não era capaz de dar
conta, sozinha, dessa abordagem total, para a qual Lacan recorreu
muito cedo à contribuição da antropologia. As diversas antropologias
nas quais se apoiou serviram, por um lado, para estabelecer a realida-
de social como tão positiva quanto a realidade flsica e, com isso, abriam
uma via para escapar ao abstracionismo da psicologia, que Lacan recu-
sa, calcado em Politzer. Ao mesmo tempo, já que essa era a realidade
humana por excelência, ajudavam a contornar o reducionismo psiqui-
átrico, na exata medida em que constituíam uma antropologia social
em oposição ao paradigma anterior fornecido pela antropologia física.
Tudo isso emparelhado, Lacan encontrava-se em condições de ultra-
passar o elemenrarismo e o atomismo, tanto do organicismo quanto
da psicologia associacionista que o reproduzia, e propor essa visada
coral no fenômeno psicócico e humano em geral. Só que, com Lévi-
Scrauss, que não deixou de reiterar esse aspecto do programa episte-
mológico da antropologia que ele foi buscar em Mauss, Lacan conse-
guiu munir-se de instrumentos que lhe permitiram revisar a tal ponto
a doutrina psicanalítica, que ela, assim como a experiência do sujeito
que promove, aparece como a realização maior desse programa, tal-
vez, justamente, por incluir a perspectiva do sujeito, virtualmente ba-
nido da antropologia. Daí que a fidelidade a Freud se converta no prin-
cipal ponto de apoio para o cumprimento dessa diretriz que, não
obstante, cem uma longa história pregressa na formação do ideário te-
órico lacaniano.
É por isso que a identificação entre a clínica e a teoria, prefi-
gurada desde a definição de fenômeno psicótico como um fenômeno
de conhecimento, pode ser, finalmente, afirmada de modo explícito,
desta vez no que diz respeito à teoria psicanalítica90 . É justamente por
propiciar uma abordagem cocal da realidade humana que a teoria deve
permitir compreender como a matéria-prima dessa realidade é o sim-
bolismo, segundo a lição de Lévi-Strauss, e, portanto, da mesma natu-

90 "Não podemos nos impedir de pensar que a teoria da psicandlíse (e, ao mesmo
tempo, a técnica, que não formam senão uma tínica e mesma coisa)( ... )" (SIR, p. 1).
UM INCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 495

reza do discurso que a apreende, de modo o que o anti-reducionismo


que se pretendera estabelecer na relação entre a ordem das causas e a
dos efeitos agora se estende para a relação entre a teoria e seus objetos,
claro que ao preço de uma radicalização do caráter intelectualista da
teoria que se observa nesse momento em que Lacan procede à demons-
tração da racionalidade absoluta da experiência psicanalítica, como se
verá à frente. Porque é a natureza simbólica do estofo da subjetividade
que propicia essa identificação virtual entre a atividade teórica e a clí-
nica - que vai permitir, aliás, em sentido inverso, que Lacan conceba,
mais tarde, o trabalho teórico sob o modelo da intervenção clínica da
psicanálise - é que se deve acrescentar mais esse registro ao instrumen-
tal psicanalítico, completando assim essa "tábua de categorias" laca-
niana. Com efeito, ele se propõe a esclarecer nessa comunicação "o
que quer dizer a confrontação desses três registros que são bem os regis-
tros essenciais da realidade humana, registros muito distintos e que se
chamam: o simbolismo, o imaginário e o rea/" 91 • Ou seja, o simbolis-
mo é acrescentado àqueles termos nos quais.antes se concebia o funcio-
namento do sujeito, cuja neurose resultava de um descompasso - não
fortuito, mas inevitável - entre sua constinüção pela imagem e a reali-
dade. Sendo esses os registros essenciais dessa realidade humana cuja
abordagem total acabou de ser anunciada, fica claro que pensá-la sob
esse triplo pomo de vista é condição para a globalidade pretendida para
as formulações dessa ciência psicanalítica que acaba de ingressar no
conjunto das ciências humanas reformadas pelo estruturalismo.
Desses três registros, o real vai sofrer uma espécie de ostracismo
que, no entanto, inaugura sua relação negativa com o campo psicana- · ·
lítico, que vai-se perpetuar após sua reabilitação posterior. Lacan se
refere àquela "parte de real" dos sujeitos submetidos à análise que, se
não escapava à percepção freudiana como tende a escapar à percepção
dos analistas de sua geração, ficava muito claro, mesmo em Freud, que
se situava fora do alcance da apreensão psicanalítica. Que papel pode
desempenhar esse real que não deve ser ignorado, mas que se localiza

91 SIR, p. 2.
496 RICI-IARD THEISEN S1MANKE

para além das pos~ibilidades da intervenção psicanalítica? Justamente


o de um limite para essa experiência protagonizada pelo analista e seu
paciente. É verdade que Lacan, nesse ponto, parece ainda conceber o
seu real de modo semelhante àquele do realismo científico, que ele tan-
to se esforçou por evitar, desde as críticas ao hiperobjetivismo psiquiá-
trico até a definição do simbolismo como substância da realidade hu-
mana, passando pela proposição de um modelo relativista para a
ciência psicológica em geral e para a psicanálise em particular. Com-
preensivelmente, ele procura afastar esse registro do escopo da pr~tica
psicanalítica, que deve se delimitar negativamente com relação a ele, o
que se manifesta daqui para adiante, por exemplo, nas críticas ferozes
que Lacan vai endereçar às concepções adaptativas da psicanálise, cujo
representante maior será a chamada psicologia do ego americana: não
tanto por um afã libertário (Lacan sempre foi politicamente conserva-
dor), mas calvez muito mais pela percepção das conseqüências funes-
tas dessa concepção para os destinos da teoria, já que ela significa res-
suscitar o papel normativo de um real ingenuamente concebido. Daí
que a função de limite da experiência psicanalítica que lhe é atribuída
assuma significados distintos quando é enunciada agora e quando da
retomada do problema nos anos 60. O real nesse momento aparece
como algo a ser evitado na construção da estratégia psicanalítica, tanto
na teoria quanto na clínica, e a psicanálise, na prática, deve se restrin-
gir às relações entre o simbólico e o imaginário. Mais tarde, sua con-
dição de limite será razão para colocá-lo no centro da reflexão teórica
de Lacan, já afetado de tamanha inefabilidade metafísica, que não per-
mitirá nenhuma sobreposição com qualquer postura realista, seja ela
qual for. Ele cumprirá lá uma função de ruptura, que permitirá ao su-
jeito nele ressurgir, para além da estrutura.
Lacan é, portanto, taxativo ao recusar qualquer compromisso do
psicanalista com o real. A experiência psicanalítica e a doutrina que
dela se ocupa têm que identificar em outro lugar o seu instrumento e
a razão da sua eventual eficácia. Ora, Lévi-Strauss já tinha dado a chave
para essa questão ao subsumir tanto o mecanismo da cura xamanística
quanto a psicanálise sob a rubrica da eficácia simbólica. Por isso, a
questão da "eficácia dessa experiência que se passa inteiramente com
UM JNCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 497

palavras" deve justamente introduzir na doutrina uma pergunta sobre


esse termo que está sendo acrescentado ao instrumental lacaniano e
que constituirá o objeto privilegiado de sua investigação nos anos que
se seguem: "E, já, falar é se introduzir no assumo (sujet) da experiência
analítica. É aí, com efeito, que convém proceder e saber; e primeiro
colocar a questão: 'O que é a palavra?' - isto é, o 'símbolo"' 92 . É ao se
colocar a pergunta sobre sua natureza nesses termos que se torna possí-
vel inserir a experiência analítica numa ordem de racionalidade quase
absoluta. A aparência de irracionalidade nos fenômenos dos quais a
psicanálise se ocupa - afetos, compulsões, automatismos - resulta ape-
nas dessa apreensão parcial, quando não segmentada, de seu campo,
que repete os equívocos históricos da psiquiatria e da psicologia. Já
uma "consideração total da experiência analítica" 93 - e isso quer dizer
agora a integração desses fenômenos num sistema formal que dê conta
de todas as possibilidades combinatórias entre es,ses elementos - deve
mostrar que a análise é muito menos irracional do que se imagina, o
que, 'do ponto de vista clínico, permite ,que não haja "técnica mais
transparente" quanto àquilo que a justifica, muito ao contrário de uma
concepção que visse a psicanálise como uma prática intuitiva, no me-
lhor dos casos, e obscurantista, no pior. Tudo isso serve para mostrar
que, embora Lacan vá mais tarde expressar essa racionalidade onipre-
sente no campo psicanalítico através do mote hegeliano de que "o real
é racional", o verdadeiro mentor dessa concepção é, mais uma vez,
Lévi-,Strauss, que denunciava como as ciências do homem tinham feito
a opção por um sujeito sem racionalidade- e esse seria o caso típico da
psicanálise ortodoxa - ao recuar~m diante da evidência. de uma racio:.
natidade sem sujeito. Tanto que, após esse finca-pé no caráter racional
da experiência psicanalítica, Lacan vai defini-la - ou pelo menos à sua
questão primordial - como a "questão da essência e da troca da pala-
vra"94, referindo-se explicitamente à linguagem como um dos sistemas

92 SIR, p. 4.
93 SIR, P· 5.
94 SIR, p. 5.
498 RICHARD THEISEN S!MANKE

de trocas simbólicas {na verdade o mais essencial) aos quais a antropo-


logia lévi-straussiana reduzia a cultura. Explicitado o referencial teóri-
co, Lacan faz um recuo estratégico em direção à experiência, para, a
partir daí, percorrer uma série de temas já fam:iliares ao seu pensamento
anterior, mas de um modo que lhe permita encontrar, no final, conclu-
sões que reencontrem isso que já está dado de início como pressupos-
to de toda a argumentação: a prevalência do simbólico na elucidação
da realidade humana em geral, do campo psicanalítico em particular.
O que a experiência revela em primeiro lugar? Justamente a ine-
ficiência do real em contribuir para uma explicação dos fatos da sub-
jetividade. Partindo de uma observação de Raymond de Saussure de
que "o sujeito alucina seu mundo" - fórmula que já faz a conexão com
a problemática psiquiátrica inicial, onde tudo começou -, Lacan su-
gere que uma clara compreensão da experiência subjetiva deve-se con-
centrar em algo diferente do que "aquelas de suas satisfações que encon-
tram seu objeto no real puro e simples"95. É, pois, a questão do objeto
que retorna aqui e, com ela, a do imaginário, que será desenvolvida na
continuidade. A idéia a ser demonstrada é, mais ou menos, essa: se a
perspectiva do real deve ser recusada e substituída pela do imaginário,
essa última, por sua vez, é insuficiente, e deve ser complementada pela
do simbólico. O que a alucinação mostra é uma representação imagi-
nária sendo tomada como real, abrindo caminho, por um lado, para a
atribuição de um caráter imaginário à realidade em geral, na medida
em que se trata, nos dois casos, de uma interpretação perceptiva do real
bruto, como quer a concepção do conhecimento paranóico; mas, por
outro, revela que o imaginário só dá conta da constituição desse mun-
do privado do sujeito, desse Umwelt do q'ual ele constitui o centro,
mas não oferece nenhum critério que permita regulamentar e compar-
tilhar esse mundo com outros sujeitos, ou seja, delimitar o imaginário
do real no único sentido aceitável para a teoria. Ora, desde a Tese, já
ficara estabelecido que esse critério só poderia ser social, só que agora,
o universo social metamorfoseou-se nesse sistema de estruturas sim-

95 SIR, p. 6.
UM INCONSCl~NTE. PARA O SUJEITO 499

bólicas que constituem o mundo humano. Se o mundo próprio de


cada sujeito deve coincidir suficientemente com o de outros, de modo
a permitir isso que se chama de vida social, a determinação simbólica
deve ser originária, deve presidir à constituição dessas formações ima-
ginárias que definem a realidade, de modo que elas possam convergir
na construção da realidade social onde todos esses sujeitos irão viver.
Essa é uma forma de dar corpo, nesse contexto, à idéia de Uvi-Strauss,
que distingue um simbolismo autônomo na cultura de um simbolis-
mo dependente no sujeito, havendo inclusive espaço para definir o
simbolismo falsamente autônomo das subjetividades patológicas, que
apenas definem uma relação de exterioridade do sujeito psicótico com
relação às estruturas que compõem o seu meio cultural.
Retornando ao encadeamento do argumento lacaniano, encon-
tramos a reversibilidade do distúrbio neurótico justificando a afirmação
de que a "economia das satisfações" que caracteriza esses sujeitos tem
que ser de outra ordem do que aquela determinada pelos "ritmos or-
gânicos fixos", de forma semelhante a coµio a curabilidade da para-
nóia ajudava a sustentar a tese psicogênicà na Tese, por exemplo, no
caso Aimée. Embora, aqui, o termo "reversibilidade" já aluda a um
funcionamento estrutural, ao tempo reversível do fenômeno tomado
na sua dimensão sincrônica. Essas satisfações têm que estar ligadas,
portanto, a outro tipo de objetos do que aqueles prescritos pelas ne-
cessidades naturais. Esse tipo só pode ser, segundo Lacan, "justamen-
te aquele que eu estou em vias de qualificar: "o imagindrio': se se quer
bem reconhecer aí todas as implicações que lhe convêm"96. Ora, os
objetos passíveis de sofrerem uma tal determinação imaginária refe- ·
rem-se a uma classe de satisfações muito específica. Com efeito, para
a maior parte das necessidades orgânicas, a representação que conduz
à ação deve coincidir com o objeto real, sob pena de o sujeito não so-
breviver a essa inadequação; pensamos no caso da fome, por exemplo,
que já em Freud era razão para que o aparelho psíquico substituísse o
modo primário e alucinatório de realização de desejos pela posterga-

96 SIR, p. 6.
500 RICHARD THEISEN SIMANKE

ção do processo secundário, que permite reencontrar o objeto adequa-


do para a satisfação buscada. Por isso Lacan complementa sua afirma-
ção, observando que esse tipo de satisfações imaginárias só pode-se en-
contrar no plano dos objetos sexuais.
Note-se bem que mesmo os objetos das necessidades mais bási-
cas comportam algum aspecto de determinação imaginária, na exata
medida em que toda relação com a natureza, no homem, está media-
da pelos valores culturais. Mas apenas a atividade sexual pode exercer-
se exclusivamente na esfera do imaginário, perdendo completamente
o contato com sua base vital, canto que é necessário todo um processo
cultural de normalização da função sexual para que essa possa cum-
prir seu papel biológico, ou seja, a procriação e a preservação da espé-
cie. Essa normalização fica a cargo do complexo de Édipo, tal como
Lacan o caracterizava desde "La famille": aquele conjunto de opera-
ções que levam o sexo psíquico do sujeito a coincidir com o sexo bio-
lógico (a "identificar-se com o ideal de seu sexo" como ele o diz, mais
textualmente), mesmo que sem alcançar sucesso em cem por cento dos
casos, como testemunha a variedade das formas de manifestação da
sexualidade adulta, aí incluídas as perversas.
Ao restringir aos objetos sexuais essa possibilidade de uma de-
terminação completamente apartada da realidade biológica, Lacan
encontra uma maneira de aproximar Freud e Lévi-Strauss, na medida
em que essa economia particular da satisfação sexual vai ao encontro
da concepção que este último se formou dos sistemas de parentesco,
cuja função é garantir a circulação das mulheres no interior de uma
cerca sociedade; ou seja, trata-se da distribuição dos objetos sexuais
explicada pelo caráter simbólico desses objetos, isto é, pelo seu papel
como elementos de uma estrutura. Mas, ao mesmo tempo, fornece
um outro fundamento para a constatação freudiana de uma etiologia
eminentemente sexual da neurose 97 . Essa nova fundamentação da des-

97 Lacan reitera esse ponto mais à frente, quando, ao discorrer mais especificamente
sobre o comportamento neurótico, comenta como essa distinçao dos aspectos sim-
bólicos e imaginários desse comportamento permite "saber porque se trata sem-
UM INCONSCI~NTE PARA O SUJEITO 501

coberta freudiana se manifesta, ainda, na retomada de uma antiga re-


formulação do sentido do conceito de libido, reduzido, de energia se-
xual psíquica a um fator puramente formal, a um operador teórico e
convencional, adaptado agora aos novos tempos da teoria: "O termo
"libido" é uma noção que só faz exprimir essa noção de reversibilida-
de, que implica a de equivalência, de um certo metabolismo das ima-
gens"98. Esvaziado de toda a sua conotação pulsional, o conceito de
libido converte-se numa espécie de metáfora energética para expressar
uma certa mecânica estrutural que descreve o funcionamento do ima-
ginário, essa medida de equivalência que permite que as imagens se
substituam umas às outras, como acontece na transferência ou naqui-
lo que Lacan descrevia bem antes como identificações iterativas, que,
no caso Aimée por exemplo, reencarnavam em sucessivas figuras fe-
mininas a personagem prototípica da irmã, protagonista de um "com-
plexo fraterno" decisivo para a constituição da sua personalidade pa-
ranóica. O conceito lacaniano de imaginário desenvolvido entrementes
veio, entre outras coisas, fornecer a teoria dessas descrições clínicas da
psicose. É, em parte, essa teoria do imagi"nário que Lacan recapitula
nas páginas que se seguem, mas o própriofaco de que esse "metabolis-
mo das imagens" se desdobre no tempo reversível da estrutura já apon-
ta para o modo como, daqui para _adiante, o imaginário estará subor-
dinado ao simbólico, como será explicitado mais à frente.
É significativo que Lacan, nesse ponto, reate o diálogo com a
biologia do comportamento, como, aliás, não deixará de fazer ao lon-
go dos anos do Seminário e até um momento bem tardio de seu per-
curso teórico. Mas, se na aurora da teoria esse diálogo servia como uma· ·
espécie de garantia episcêmica para a concrecude pretendida para os
desenvolvimentos teóricos em torno da psicologia, agora trata-se muito
mais de distinguir· o campo da realidade humana, da qual se ocupará a
psicanálise, daquele do comportamento animal, inclusive com relação

pre de comportamento sexual" (SIR, p. 9). Essa a justificativa tipicamente laca-


niana, portanto, para a onipresença da sexualidade na causação da neurose.
98 SIR, P· 7.
502 RICHARD THEISEN SJMANKE

ao modo como funciona a determinação imagindria num caso e no outro.


Lacan começa lembrando como, no que diz respeito ao comportamen-
to animal, a constituição dos objetos sexuais está ligada a certos ciclos
instintivos descritos pelos biólogos. Mas essa noção de ciclo de com-
portamento, que já servira, ainda na Tese, para formular uma defini-
ção objetiva e concreta de desejo, exemplar para o tipo de psicologia
que ali se buscava, tem o seu alcance bastante restringido no arual es-
tágio da investigação de Lacan.
De início, aparentemente não, é verdade. É reconhecida aqui a
mesma continuidade entre os termos da Tese e a teoria do imaginário
que a sucedeu. A ocorrência desses ciclos de comportamento instinti-
vo está ligada a certos mecanismos de desencadeamento (déclencheurs),
que têm, flagrantemente, a natureza de uma imagem - uma mancha
só visível em certa posição, uma postura, um gesto, etc. - inclusive
em áreas distintas do comportamento sexual, e o comportamento hu-
mano compartilharia com o animal essa forma de regulação 99 • Mas
Lacan começa, imediatamente, a introduzir ressalvas que vão, ainda
dentro do campo da etologia, relativizar essa onipresença da deter-
minação imaginária. A primeira delas diz respeito à ocorrência, no in-
terior dos ciclos instintivos, de certos deslocamentos. Esse termo desig-
na a ocorrência, no interior de um ciclo de uma dada natureza, de
comportamentos pertencentes a outros ciclos - por exemplo, um com- ,
portamenco de exibição (alisar as penas) em meio a um ciclo de com-
bate. Esse deslocamento, com certeza, não tem nada que ver com a
Verschiebung freudiana, mas prepara alguma forma de aproximação e,
se se trata de um fenômeno comum ao comportamento animal e hu-

99 Lacan se refere, por exemplo, aos trabalhos de Lorenz sobre o imprinting e fe-
nômenos associados: "Mas outros comportamentos (cf. os estudos de Lorenz
sobre as funções da imagem no ciclo da nutrição) mostram que o imaginário
desempenha um papel tão eminente quanto na ordem dos comportamentos se-
xuais. E, de resto, no homem, é sempre sobre esse plano, e principalmente sobre
esse plano, que nós nos encontramos diante desse fenômeno" (SIR, p. 8). A co-
nexão evidente que se faz aí é com o complexo de desmame e o papel nele desem-
penhado pela imagem - ou imago - do seio.
UM INCONSCifNTE PARA O SUJEITO 503

mano, vai exigir uma distinção suplementar para dar conta das pecu-
liaridades desce último, por onde se entende um pouco a equivalência
dos mecanismos freudianos com o funcionamento da linguagem que
Lacan vai incorporar mais carde: o ciclo animal pode sofrer desloca-
mentos, mas só o homem será capaz de metonímia.
Fica rapidamente claro, aliás, que, para além da importância que
esses deslocamentos adquirem na elucidação do comportamento se-
xual, a função dessa referência, nesse ponto, é permitir a transição para
a consideração do simbólico: "esses elementos de comportamento ins-
tintivo deslocados no animal são suscetíveis de alguma coisa na qual
nós vemos o esboço disso que chamaremos um 'comportamento simbó-
ºº.
lico"' 1 Não sendo um antropólogo, como Lévi-Srrauss, que se situa
de imediato dentro do campo da cultura, Lacan parece sentir necessi-
dade de fazer gradualmente a transição entre suas idéias iniciais, nas-
cidas dentro de um programa de pesquisa essencialmente médico e,
portanto, comprometido com as ciências da vida, para o novo para-
digma· antropológico que vem instrumenta~· a psicanálise. Nesse senti-
do, esse trabalho é tipicamente lacaniano, nisso que ele se esforça por
conciliar uma pluralidade de referências baseante díspares, sem preju-
ízo dos pressupostos iniciais da teoria, uma mistura de fidelidade e
ecletismo que, de resto, caracterizará praticamente todo o percurso de
Lacan. Já "Le mythe individuei du nevrosé'' deve ser lido muito mais
como um exercício de aplicação de Lévi-Strauss a Freud, assim como
a "Intervention sur le transfere" tem muito de um improviso hegelia-
no sobre o caso Dora, mas nem um nem outro representam um efeti-
vo esforço de integração como o que se observa aqui.
Essas tentativas de integração tomam forma, por exemplo, numa
sutil referência kojeviana nesse movimento que tenra pensar a origem
do simbolismo a partir do mundo animal. Esse caráter simbólico do
comportamento só pode ocorrer, com efeito, no contexto de uma co-
letividade animal, por onde reaparece a idéia de Kojeve de que a re'ali-
dade humana só pode surgir no interior de um rebanho que, no en-

100 SIR, p. 8.
504 RICHARD THEISEN SIMANKE

tanto, ainda precisa se humanizar para constituir uma verdadeira soci-


edade. Diz Lacan e esta altura: "Isso que se chama, no animal, um
comportamento simbólico, quer dizer que, quando um desses segmen-
tos deslocados assume um valor socializado, ele serve ao grupo animal
º
de marcação para um certo comportamento coletivo" 1 1• É, portanto,
apenas dentro de uma coletividade que um comportamento pode ser
chamado de simbólico. O argumento é, em linhas gerais, esse: o com-
portamento deslocado já escapa à utilidade biológica do ciclo no qual
ele interfere; se, além disso, ele adquire um valor socializado, ao servir
de sinal para uma modificação qualquer no padrão de comportamen-
to de um grupo, ele já merece ser chamado de simbólico, em virtude
do seu maior grau de independência com relação às necessidades na-
turais mais básicas. Mas é claro que a sociedade animal nunca vai ul-
trapassar esse estágio da regulação imaginária, enquanto que o homem
vai-se distinguir pela onipresença desse simbolismo apenas insinuado
no comportamento de rebanho. Daí as parciculaidades que começam
a ser introduzidas no que diz respeito ao sujeito humano.
Pois, se a determinação imaginária explica, como vimos, a pre-
sença constante da sexualidade na etiologia das neuroses, ela nem por
isso esgota o fenômeno neurótico: a necessidade de uma abordagem
total reafirmada de início passa a exigir, portanto, uma complemen-
tação. Lacan lança mão do caso do fetichismo, como o exemplo mais
drástico de desnaturalização da sexualidade humana. A pergunta toma
a seguinte forma então: o fato absolutamente anti-natural de que um
homem possa, por exemplo, ejacular à vista de um chinelo, pode ser
explicado, em todas as suas conseqüências, a partir da função que esse
objeto desempenha no imaginário do neurótico? A resposta será um
decidido "não", que assume, inicialmente, a seguinte formulação: "De
fato, é preciso bem ver que o imagindrio está, ao mesmo tempo, longe
de se confundir com o domínio do analisdvel, e que, de outra parte, pode
º
haver aí uma outra função além do imagindrio" 1 2• Ainda quanto ao

101 SIR, p. 9.
102 SIR, p. 10.
UM JNCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 505

exemplo do fetichismo, Lacan põe-se a supor que, em termos estrita-


mençe imaginários, o fetiche pode representar um deslocamento se-
melhante àqueles que ocorrem no comportamento animal; e, de fato,
representa, já que, desde Freud, se sabe que o fetiche se constrói a par-
tir de um deslocamento do órgão genital feminino, como resultado
de um mecanismo de defesa que visa manter afastado do sujeito o re-
conhecimento da castração, isto é, da diferença sexual. Mas, se ele fos-
se apenas isso, seria, diz Lacan, tão inanalisável quanto qualquer outra
formação perversa. Na verdade, o que se está querendo insinuar é que
qualquer sintoma, lido apenas segundo uma chave imaginária, é
inanalisável, pois se encontra congelado por aquele processo nardsico
que atribui realidade às imagens: sob esse ponto de vista, cada sinto-
ma é, realmente, parte da subjetividade - é um segmento do homem-
estátua que emerge do estágio do espelho -, como quer a fé neurótica
que o sujeito neles deposita, nessa relação alienada com as imagens
que o constituíram, e contra a qual, justamente, a análise exercita suas
armas. Ora, se a análise é, afinal, possível, é preciso que essas armas
sejam de outra natureza que a dimensão imaginária do sintoma; mas,
para que essas armas sejam eficazes, é necessário, ainda, que a fantasia
não tenha só uma dimensão imaginária - como em Melanie Klein,
por exemplo -, mas também um valor simbólico; não é que Melanie
Klein não fale em simbolismo, muito pelo contrário, mas sua concep-
ção expressivista do mesmo não pode fazê-lo ultrapassar o plano ima-
ginário. E o sentido desse valor simbólico é estrategicamente atrelado
ao movimento da análise: "Eu entendo por isso que, aqui, a fantasia
da qual se trata, o elemento imagindrio, não tem, estrita.mente, senão· ·
um valor simbólico, que nós não temos que apreciar e compreender a
não ser em função do momento da andliseem que ele vai-se inserir" 103.
Ou seja, esse valor simbólico não diz respeito ao conteúdo da fantasia
- por isso a idéia de expressão passa longe da teoria do simbólico em
Lacan -, mas ao modo ou ao lugar onde ela se insere no andamento
da análise, processo cuja natureza será em breve precisada. Em resu-

º
1 3 SIR,p.10.
506 RICHARD THEISEN SIMANKE

mo, só é analisável, para Lacan, o que se dá na transferência, mas a


seu ver a transferência se define em termos de um "momento do diá-
logo analítico", ou seja, com relação a um outro - o analista - com
quem o sujeito estabelece uma relação de interlocução, isto é, de troca
de palavras, o que, desde Lévi-Scrauss, é o modelo para todo processo
cultural, já que representa a expressão mais pura do simbolismo. Só é
analisável, do ponto de vista lacaniano, aquilo que "representa outra
º
coisa que ele mesmo" 1 4• Essa é a própria definição de símbolo, mas é
impensável, em Lacan, que o símbolo se defina pelo imaginário. As
imagens da teoria lacaniana não configuram, como se viu, uma dupli-
cação do real, mas substituem-se, no homem, a uma realidade bio-
lógica ausente; em Melanie Klein, por exemplo, a fantasia elabora
simbolicamente a pulsão, mas esta é concebida com um alto grau de
realismo biológico, totalmente ao contrário de Lacan. Qualquer sim-
bolismo deverá tomar essas imagens como objeto - elas são, por tudo
que se viu, os objetos humanos por excelência-, porém operando num
outro plano, que será, então, designado como o simbólico. Sendo o
único simbolismo digno desse nome o da cultura, isto é, o coletivo,
conclui-se com a fórmula de que todo símbolo simboliza algo para
alguém, onde reaparece a figura do outro, de extração kojeviana, como,
simultaneamente, origem e destinatário da palavra, e não mais como
modelo para a identificação especular. Por isso será, em breve, grafado
com maiúscula, para denotar suas prerrogativas.
Lacan não perde tempo em começar a exprimir sua concepção
do simbólico na linguagem do estruturalismo. Antes de tudo para re-
afirmar por aí a subordinação do imaginário a um simbólico que co-
meça a se definir em termos de uma ordem significante. Com efeito,

104 "Portanto, que resta a dizer? Que não basca que um fenômeno represente um
deslocamento - dito de outra forma, que se inscreva nos fenômenos ímagindrios -
para ser um fenômeno analisável, por um lado, e que, para que ele o seja, é
preciso que ele represente outra coisa que ele mesmo, se posso dizê-lo" (SIR, p.
11). E, mais explicitamente, na seqüência: "o assunto de que eu falo, a saber, o
simbolismo ... ".
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 507

uma vez que tudo tenha sido reduzido a uma troca de palavras, os ele-
mentos imaginários passam a ser encarados como partículas lingüísti-
cas (morfemas, sílabas) de uma linguagem cifrada - Lacan ·dá o exem-
plo do pot [pote] que pode ser empregado para representar a sílaba po
em outras palavras (police, poltron), num contexto que não precisa ter
nada que ver com a imagem que representa o objeto. É mais ou me-
nos a mesma coisa que Freud afirma no capítulo VI da Traumdeutung,
quando diz que as imagens do sonho não devem ser compreendidas
pelo que elas representam imageticamente, mas como caracteres de um
alfabeto desconhecido, que é preciso decifrar; ou seja, o sonho é mui-
to menos um filme ou uma história em quadrinhos e muito mais um
texto hieroglífico. Não é à toa que Lacan retornará insistentemente a
essa passagem freudiana, buscando aí ratificação de seu argumento 1°5.
Esses elementos que aparecem, não só no sonho, mas no dis-
curso do sujeito submetido à análise como um todo, se constituem,
efetivamente símbolos de alguma coisa, não o são no sentido, por
exemplo, em que uma bandeira represem~ um país, ou uma fotogra-
fia, uma pessoa. A natureza do simbolismo que se quer propor é
explicitada então, numa fórmula que poderia ser encontrada quase que
literalmente nos textos de Lévi-Strauss: "trata-se, ainda uma vez e sem-
pre, de símbolos, e de símbolos mesmo muito especificamente organi-
zados na linguagem, portanto funcionando a partir deste equivalente
do significante e do significado: a estrutura mesma da linguagem" 106• Só
há simbolismo, portanto, numa relação interna entre os elementos de
uma linguagem organizada e não numa relação entre uma palavra e
uma imagem, muito menos na relação entre uma palavra ou imagem· ·
e uma coisa. Lacan não vai ao ponto de pronunciar, ainda, aquele que
será o seu mote mais destacado - "o inconsciente está estruturado
como uma linguagem", a sua versão da redução lévi-straussiana do in-
consciente à função simbólica-, mas chega perto, ao apontar o modo

105 Lacan reitera mais à frente: "Não é meu esse termo de que "o sonho é um rebus;
é do próprio Freud" (SIR, p. 12).
106 SIR, p. 11.
508 RICHARD THEISEN S!MANKE

como o sintoma "exprime, ele também, alguma coisa de estruturado e


º
organizado como uma linguagem" 1 7 , como fica claro, a seu ver, no
caso do sintoma histérico, que se apresenta como um equivalente de
uma atividade sexual. Note-se a diferença que se instaura encre uma
atividade sexual deslocada, operação imaginária, que pode ser encon-
trada também na natureza, e a equivalência que se estabelece entre o
sintoma e a ação sexual, operação simbólica por excelência, já que diz
respeito às possibilidades de substituição recíproca entre os elementos
da estrutura, numa palavra, às possibilidades combinatórias .da mes-
ma. Após enfatizar, desse modo, o aspecto sincrônico da linguagem -
afinal, aquele que vai, em seguida, caracterizar o seu inconsciente
estruturado como cal-, inclusive citando as hipóteses de Lévi-Strauss
sobre a origem da linguagem, súbita e não progressiva, Lacan recorre
a alguns exemplos concretos para reforçar a independência do signi-
ficante com relação ao significado, que sua teoria quer emprestar ao
estruturalismo. ·
Trata-se de examinar o caso das palavras de passe (ou de senha) e
das palavras de amor. Ambas cem a vantagem de colocar essa concep-
ção da linguagem em conexão com a questão de intersubjetividade, a
primeira numa versão mais kojeviana, a segunda, talvez, mais próxi-
ma de Freud. Ambos tiram o seu valor exemplar do fato de que seu
emprego ou sua função social se processarem completamente à mar-
gem da questão do seu significado. A palavra de passe, que retornará
com freqüência aos textos de Lacan, principalmente com o caso do
hebraico shibboleth - o mais apropriado entre rodos, já que a sua utili-
dade como senha devia-se a uma questão de pronúncia, isto é, pren-

IOl SIR, p. 12. A assimilação do sintoma a um elemento simbólico - no sentido cm


que simbolismo se define a partir de agora - prepara a sua futura definição como
um procedimento metafórico. Lacan antecipa aqui essa definição, quando com-
para a complexidade do sintoma, do sonho e das formações do inconsciente em
geral com a complexidade de uma frase poética, "que vale, ao mesmo tempo, por
seu tom, sua estrutura, seus calembours, seus ritmos, sua sonoridade, portanto,
essencialmente, sobre vários planos, canto da ordem quanto do registro da lin-
guagem" (SIR, p. 12).
UM INCONSCIÊNTE !'ARA O SUJEITO 509

dia-se ao aspecto material e significante da linguagem, mais do que a


uma convenção -, remete a uma consideração da intersubjetividade
de estilo kojeviano, porque, como Lacan assinala, sua "virtude mais
preciosa" é a de servir, simplesmente, para que o sujeito evite ser assas-
sinado 108. Ela é um instrumento de reconhecimento entre os membros
de um grupo, um grupo já constituído e, portanto, onde as relações
de servidão e dominação já se estabeleceram, dispensando o engalfi-
nhamento moral entre seus membros. É na medida em que esse reco-
nhecimento é a condição para a constituição da sociedade humana que
Lacan pode afirmar que, mais do que um mero utilitário para a dis-
tinção entre partner e inimigos, a palavra de passe é o próprio instru-
mento para a consticuição do grupo, ratificando o papel da linguagem
como meta-estrucura da sociedade e, naquilo que o interessa mais de
perto, descrevendo como a linguagem constitui a cultura e como, a
partir daí, a cultura constitui seus sujeitos, usando a linguagem como
instrumento. ·
·A palavra de amor tem uma função ,semelhante, com a diferen-
ça de pensar a intersubjetividade que se constrói a partir do aspecto
significante da lingµagem no registro das relações amorosas, e não no
da agressividade. Se os sujeitos engajados nesse tipo de relação são ca-
pazes de designar-se mutuamente empregando nomes de animais oµ
legumes pouco nobres (mon petit chou, e coisas assim), é porque a. sig-
nificação se constitui no ato da operação significante que designa um
sujeito com relação ao outro e, na verdade, já que é apenas na inter-
subjetividade que o sujeito pode-se constituir, mais que produzirem
um novo efeito de significação, os sujeitos se deixam formar por essa: ·
operação mesma. Ele diz, mais precisamente, que, uma vez a palavra
pronunciada, os parceiros não são mais a mesma coisa que eram an-
tes, com o que b:can inaugura a identificação do sujeito com o lugar
do significado, o que, na medida em que avança o formalismo, amea-
ça a reduzi-lo a nada. Posto tudo isso, é possível arriscar uma fórmula
que prefigura a drástica afirmação posterior de que o significante, con-

JOs SIR, p. 13.


510 RICHARD THEISEN S!MANKE

tra todas as aparências, rigorosamente não significa nada: "Nesse dois


exemplos, a linguagem é particularmente desprovida de significação.
Vocês vêem aí, da melhor forma, isso que distingue o símbolo do sig-
no, a saber, a fonção inter-humana do slmbolo" 1º9. Significar para al-
guém, ames de significar alguma coisa: essa a maneira pela qual a fi-
gura do outro se insere nesse movimento que despoja a linguagem de
suas funções expressivas, em benefício de seus mecanismos.
Uma vez que Lacan tenha imbricado profundamente, como fez
acima, o seu registro do simbólico com o movimento do processo e da
experiência psicanalítica, resta demonstrar como os conceitos funda-
mentais que descrevem esse processo - os conceitos correlatos de trans-
ferência e resistência - podem ser repartidos entre o simbólico e o ima-
ginário, de modo a justificar o que se propõe daqui para a frente como
alvo da intervenção do psicanalista, o que ele deve romper com essa
que é a sua ferramenta mais preciosa, a saber, a interpretação. Para co-
meçar pela transferência, o que se observa é que, compreensivelmen-
te, cai para um segundo plano a identificação, promovida pelo anali-
sando, entre o analista e as imagos cruciais da sua constituição. Não
que esse aspecto desapareça, bem entendido; mas, da mesma forma,
que o fetiche, agora há pouco, deixou de ser apenas um deslocamento
do genital feminino para se converter em um significante em torno
do qual o sujeito organiza sua atividade sexual - isto é, uma das
encarnações possíveis dessa função significante que Lacan em breve
resumirá em torno do conceito de falo-, a função do analista, consi-
derada pelo ângulo do simbólico, onde ele é simultaneamente o outro
ao qual se fala e a partir do qual se fala, se converte em um pólo dessa
relação intersubjetiva que move o sujeito da alienação ao reconheci-
mento, conforme se redefiniu a experiência analítica. Numa palavra,
o analista deixa de ser o suporte para uma sucessão de "outros" que
recapitulam a história da constituição do sujeito e assume a função de
ser o "Outro" por excelência, a síntese de tudo aquilo que opera como
UM INCONSCl~NTE PARA O SUJEITO 511

alteridade em relação ao sujeito. É claro que essa função organizadora


só pode pertencer ao simbólico que, esvaziado de conteúdo, se con-
verte no esqueleto formal da multiplicidade imaginária ..Feitas essas
correções de mira, a experiência analítica pode continuar a ser perce-
bida segundo o modelo da dialética do Senhor e do Escravo, como já
era antes, num registro imaginário. A equação que perpassa, então, o
espírito de Lacan deve ser algo assim: o analisando que transfere é
como o Escravo, submisso ao analista, com todas as inevitáveis explo-
sões de agressividade que essa condição acarreta. A liquidação da trans-
ferência - e, com ela, pelo menos em tese, a da neurose - equivale ao
momento final da descrição de Kojeve, em que o Escravo "liberta-se
através do trabalho" e toma consciência de que é ele que faz do Se-
nhor um Senhor, assim como é a transferência que faz do analista um
analista. Essa a estrucura geral, considerada do pomo de vista do su-
jeito, de uma análise e, por extensão, da própria neurose. Certamente,
essa estrutura só pode ser singularizada no plano imaginário, onde
entram em cena as imagens que tornam concreto cada um desses dra-
mas subjetivos que são as neuroses individuais.
Nada de surpreendente, portanto, em que o drama neurótico,
aquele com que o analista se enfrenta diretamente, seja conceituado
no plano imaginário - lembremos a "cenário fantasístico" que forma-
va o mito individual do Homem dos Raros - e, com ele, o conceito
que define todo obstáculo colocado ao progresso, doravante dialético,
da análise, ou seja, o de resistência. A definição de resistência faz-se
agora em termos que lembram muito a noção de conhecimento para-
nóico do primeiro Lacan, localizando melhor a origem dessa caracte-. ·
rística praticamente universal do conhecimento humano: "A falta de
realizar a ordem do símbolo de um modo vivo, o sujeito realiza ima-
gens desordenadas, das quais elas [transgressões a uma certa ordem]
são os substitutos"llº. Por onde se entende que é somente a partir de

11 º SIR, p. 16. Lacan explicita sua definição logo em seguida: "é esse registro que
nós chamamos as "resistências'"' (SIR, p. 16).
512 RICI-IARD THEISE.N S!MANKE

uma falha no simbólico, o único registro a partir do qual se pode fazer


a partilha entre o real e o imaginário, que as imagens podem ser dota-
das desse grau de realidade que permite que elas se elevem à categoria
de objetos, sendo que essa "realização" das imagens e da própria lin-
guagem é típica daqueles sujeitos conhecidos clinicamente como
psicóticos. Mas esse caráter paranóico continua sendo uma proprie-
dade universal do conhecimento humano, na medida em que a lin-
guagem é, por definição, uma ordem externa aos sujeitos que ela cons-
titui e determina. O máximo que estes podem alcançar, como já vimos,
é uma espécie de "paranóia compartilhada", onde, na medida em que
eles ingressam na estrutura simbólica peculiar a uma dada cultura,
podem assegurar-se de uma certa uniformidade na produção dos efei-
tos de significação. É por esse caminho que Lacan subscreve o ponto
de vista de Lévi-Strauss de que os ditos normais são os verdadeiros ali-
enados, na medida em que desconhecem a identificação com os valo-
res culturais que faz deles o que são.
Mas mesmo no caso normal ou neurótico, cada vez que o ele-
mento imaginário vier para o primeiro plano, isso se traduzirá, na aná-
lise, no fenômeno clínico da resistência. Por onde se pode medir, ali-
ás, a mudança de perspectiva que a introdução do registro do simbólico
ocasionou: o que antes, no âmbito de uma oposição dual entre o ima-
ginário e o real, era o motor do tratamento, a saber, o fato do analista
encarnar os "outros" do sujeito, agora é fator de resistência. Em com-
pensação, o que antes era um fator negativo - a exterioridade da lin-
guagem com relação à ordem subjetiva, o que inclusive a desqualifi-
cava como instrumento preferencial da cura -, será, a partir de agora,
a pedra de toque da explicação e da intervenção psicanalítica, naquilo ·
em que sua própria objetividade permite uma prática informada pelo
rigor da análise estrutural, podendo descartar instrumentos pouco
confiáveis como a intuição, a compreensão, a identificação, e assim
por diante.
Não se pode, contudo, censurar Lacan por ter simplificado isso·
que já tinha em Freud uma abordagem bem mais sutil, a saber, que a
resistência e a transferência que move a análise são dois ·aspectos do
mesmo processo. Na verdade, a identificação promovida entre o ana-
UM INCONSCI~NTE PARA O SUJEITO 513

lista e as imagens constitutivas do sujeito é a transferência considera-


da na sua vertente imaginária, justamente aquela em que ela funciona
como resistência 111 . É apenas a partir da relativização simbólica dessa
identificação que a transferência passa a funcionar como motor do tra-
tamento. Além de tudo, a resistência - ou, se se preferir, a transferên-
cia tomada no plano imaginário - é o próprio modo espontâneo de
operação da subjetividade, insinuando-se que o único espaço onde essa
mediação simbólica, no sentido de tomada de consciência das estru-
turas em ação no sujeito, pode ocorrer é na situação analítica. Da mes-
ma forma, Freud havia equiparado o amor de transferência ao amor
em geral, que igualmente tem por base a reedição de certas escolhas
de objeto primordiais, notadamente as edípicas, só que, na análise, isso
é utilizado pelo analista para subsidiar e dar eficácia à interpretação.
Mas não é apenas a chamada "transferência positiva" que inte-
ressa Lacan aqui, mas, talvez acima de tudo, a projeção sobre o analis-
ta das tendências agressivas do sujeito. Sabemos que Lacan sempre se
oporá à distinção um tanto maniqueísta çl.a psicanálise oficial entre
uma transferência positiva, que faz a análise avançar, e uma negativa,
que a emperra. Para ele, ambas as formas de transferência são, simul-
taneamente, formações resistenciais e ocasião para o progresso da cura
psicanalítica, recuperando, pelo menos nesse ponto, a concepção
freudiana, se bem que a partir de um referencial muito distinto, que
se exprime aqui na distinção entre os aspectos imaginários e simbóli-
cos da transferência. Mas, além disso, toda a teoria lacaniana do ima-
ginário já o preparava para afirmar as possibilidades instrumentais
mesmo da transferência negativa, uma vez que essa teoria explicava a

111 Afirma Lacan, nesse ponto, que "a resistência não é algo como uma simples inér-
cia oposta ao movimento terapêutico, como em física se poderia dizer que a massa
resiste a toda aceleração. :É algo que estabelece um certo laço, que se opõe como
cal, como uma ação humana, àquela do terapeuta; mas isso não quer dizer que
seja necessário que o terapeuta aí se engane. Não é a ele, enquanto realidade, que
o sujeito se opõe; é na medida em que, no seu lugar, é realiuida uma certa ima-
gem que o sujeito projeta sobre eleu (SIR, p. 17).
514 RICHARD THEISEN SIMANKE

totalidade das tendências agressivas no homem como resultado de sua


constituição pelo imaginário na situação prototípica da identificação
especular, ao mesmo tempo em que definia o imaginário como o cam-
po de ação, por excelência, da psicanálise, na sua oposição ao registro
do real, ao qual se dedicariam as ciências da natureza. É essa teoria -
sua "teoria do eu [moi}"- que Lacan recapitula nesse ponto, para dar
conta de um suposto "instinto agressivo" que se manifestaria na análi-
se, nos fenômenos ditos negativos da transferência, "a saber, do eu
como função imagi,ndria do eu, como unidade do sujeito alienado nele
mesmo, do eu como isso no qual o sujeito não pode se reconhecer, de
início, a não ser se alienando e, portanto, não pode-se reencontrar a não
ser abolindo o alter ego do eu, que, como tal, desenvolve a dimensão,
muito distinta da agressão, que se chama, nela mesma e desde já, a agres-
sividade"112. Essa distinção entre agressão e agressividade é, indubita-
velmente, tributária da oposição entre o real e o imaginário, respecti-
vamente, na qual todas essas considerações se baseiam. Mas, para
adequar essas formulações ao novo contexto teórico onde elas estão
sendo retomadas, faz-se necessário, deixando um pouco de lado a
agressão real, abordar a questão nos dois registros que decidem agora
o estilo da teorização lacaniana: a "questão da palavra " (isto é, o sim-
bólico) e a "questão do imaginário". É n~sse movimento que encerra
essa introdução mais densamente teórica da conferência de Lacan -
ela se exercita, depois, numa aplicação dessas categorias na elucidação
da condição neurótica- que algo similar a uma definição do conceito
desses dois registros pode ser rastreada.
Para formalizar sua definição da palavra ou fala (parole), Lacan
retorna à sua dupla equivalência entre o simbólico e o tempo, o ima-
ginário e o espaço, dessa vez para enfatizar o quanto a linguagem pode
funcionar como um ato. O papel de mediação da linguagem não é
apenas o de uma pacífica comunicação entre dois sujeitos dados de
antemão. Fiel à sua inspiração kojeviana, Lacan concebe que a palavra
transforma aqueles envolvidos na relação intersubjetiva que ela cons-

112 SIR, p. 18.


UM INCONSClllNTE PARA O SUJEITO 515

titui. Isso na relação amorosa, como foi dito, mas também na relação
agressiva: a palavra "permite, entre dois homens, transcender a relação
agressiva fundamental da miragem do semelhante" 113 • Se a palavra é
ação, como quer Lacan, ela deve cumprir aquele papel de "negativi-
dade-negadora" previsto na antropogênese de Kojeve: negação do dado
e engendramento de uma nova realidade, no caso, humana. É dessa
forma que Lacan, explicitamente, entende as funções mediadoras da
linguagem: "vê-se que não sómente ela constitui essa mediação, más,
da mesma forma, ela constitui a própria realidade" 114 • É para essa nova
versão do problema da constituição que o ocupou cão longamente que
Lacan vai recorrer à noção lévi-straussiana de estrutura elementar: ela
permite fundar a proposição da natureza simbólica - e não mais ima-
ginária - da realidade. Lacan parece estar assimilando a idéia de "ele-
mentar" à de "constitutivo", embora não seja exatamente essa a con-
cepção de Lévi-Srrauss 115 • Mas, de qualquer forma, essa distinção
vai-lhe servir para apontar como, nas estruturas complexas de paren-
tesco da sociedade ocidental, o caráter relativamente frouxo da pres-
crição dos cônjuges faz com que, por um lado 1 o determinismo social
da estrutura não seja muito evidente e, por outro, que haja espaço para
se confundir as relações de parentesco com relações reais. A estrutura
elementar revela melhor a sua natureza simbólica e, quando se tratar,
mais à frente, de retornar ao problema da analisabilidade, essa consta-
tação será importante para expor corretamente o papel da estrutura
edípica. Com efeito, se o sintoma é um fenômeno que se dá inteira-

113 SIR, p. 19. Essa, por exemplo, a função da palavra de senha. Por isso que, para
Lacan, a senha n~o pode ser apenas uma forma convencional de comunicação.
114 SIR, p. 19.
115 Em As estruturas elementares de parentesco, a estrutura elementar, objeto da obra, é
aquela onde o universo dos cônjuges possíveis está muito precisamente prescri-
to, deixando muito pouca margem de escolha para os sujeitos. As estrttturas com-
plexas são aquelas, como as da sociedade européia, que apenas interditam um
certo conjunto de relações, deixando o restante do universo social aberto às es-
colhas matrimoniais.
516 RICHARD THEISEN SIMANKE

mente na linguagem 116 , surge como conseqüência que o domínio do


analisável se confunde com aquele do que pode ser interpretado sim-
bolicamente. Lacan procurará, por seu turno, mostrar que isso que pode
ser interpretado simbolicamente deve estar, de alguma forma, inscrito
numa relação a três.
Note-se que não se trata tanco aqui, para Lacan, de explorar sis-
tematicamente as possibilidades do novo paradigma estrutural, como
ele o faz em "Le mythe individuei du nevrosé'', o que levou à formu-
lação de uma estrutura quaternária para o complexo de Édipo, mas
muito mais de elucidar aquilo que, na clínica - esta é uma conferên-
cia basicamente para psicanalistas, lembremos -, distingue as forma-
ções imaginárias das simbólicas. É aí que as relações diádicas e triádicas
assumem todo o seu valor, embora, no plano teórico, mesmo as rela-
ções triádicas necessitarão de um quarto elemento para que a explica-
ção estrutural possa se completar. É, de fato, em termos do drama que
se desenrola frente ao analista, essa reencenação do drama da consti-
cuição do sujeito, que Lacan se expressa aqui: sendo a relação a dois
marcada pelo "estilo do imaginário", faz-se necessário a aparição de
um "terceiro personagem" para que essa relação possa assumir o seu
valor simbólico 117• Mas ficou claro, por tudo que antecedeu ·essa for-
mulação, que não é no plano das relações entre os personagens do dra-
ma edípico que pode dar-se a passagem do imaginário para o simbóli-
co: cada relação, tomada em si mesma, é sempre dual, por isso sendo

116 Por exemplo, refutando certas concepções behavioristas da neurose: "E isso de
que se trata não é o condicionamento de um fenômeno, mas isso de que se trata
nos sintomas é da relação do sintoma com o sistema inteiro da linguagem. Isto é, o
sistema das significações das relações inter-humanas como tais" (SIR, p. 21).
117 "Isso quer dizer que toda relação a dois é sempre mais ou menos marcada pelo
estilo do imagindrio; é que, para que uma relação assuma seu valor simbólico, é
preciso que haja a mediação de um terceiro personagem, que realize, com relação
ao sujeito, o elemento transcendente, graças ao qual sua relação com o objeto pode
ser sustentada a uma cerra distância" (SIR, p. 22). Esse elemento transcendente
é a função simbólica, introduzida pelo terceiro personagem - em geral, represen-
tado como o pai -, mas que não se identifica com ele.
UM INCONSC!ÊNTE PARA O SUJEITO 517

necessário o surgimento de um elemento fora de qualquer relação -


esse elemento transcendente de que Lacan fala aqui - para que possa
ocorrer a forma de mediação que caracteriza o registro do simbólico.
É verdade que Lacan se refere ao terceiro personagem como o elemento
transcendente da relação diádica inicial, mas, para que a relação com
esse terceiro não transcorra também inteiramente no imaginário será
preciso propor um quarto elemento, que representa a mediação abso-
luta proporcionada pela linguagem, que é o que Lacan faz em "Le
mythe individuei du nevrosé".
A partir dessa distinção entre um modo de relação simbólica
(mediada) e um modo imaginário, Lacan introduz uma outra distin-
ção - clínica - entre a angústia e a culpabilidade, que serve, por sua
vez, de ocasião para introduzir a discussão do conceito freudiano de
pulsão de morte, de forma que ele possa ser assimilado ao programa
desenvolvido aqui, nessa que será calvez a maior façanha do retorno
lacaniano a Freud: subsumir a pulsão de morte a uma cerca concepção
sob~e a lógica do funcionamento da linguagem. A angústia, nesse
momento aparece vinculada ao imaginário. Ela é pensada como a
vivência subjetiva de uma perda, de uma modificação na constituição
do eu 11 8, que, na medida em que essa é a imagem pela qual o sujeito
se reconhece, revela tudo que há de mortífero na relação nardsica, isto
é, a carência vital que o imaginário, muito precariamente recobre.
Curiosamente, parece haver em Lacan, assim como em Freud, dois
momentos bem distintos de suas teorias da angústia. Freud, num pri-
meiro momento, definiu a angústia em geral como um resultado da
transformação da energia sexual uma vez desligada de seus objetos 119 ;

118 "A angústia (... ),·ela está sempre ligada a uma perda, isto é, a uma tramformação
do eu, quer dizer, uma relação a dois a ponto de se desvanecer e à qual deve-se
suceder alguma coisa diferente, que o su.jeito não pode abordar sem i,ma certa ver-
tigem" (SIR, p. 22).
119 A teoria freudiana apresenta, inicialmente, dois aspectos, conforme se trate da
excitação sexual somdtica - caso em que uma descarga inadequada para mais ou
para menos pode levar, alternativamente, a uma neurastenia ou a uma neurose
de angústia - ou da sexualidade psíqttica, que conduz à formação das neuroses de
518 RICHARD THEISE.N SIMANKE

para, correlativamente à introdução da nova teoria das pulsões na vi-


rada dos anos 20, vincular a angústia muito mais à pulsão de morre,
numa concepção mais abrangente, que permitia à primeira teoria ser
considerada como um caso particular da segunda. De forma similar,
Lacan apresenta a angústia, agora, como um fenômeno vinculado a
uma determinação imaginária, quando se sabe que, posteriormente, a
relacionará à irrupção do real no seio da constituição simbólico-imagi-
nária do sujeito, inspirando-se, em grande parte, no alcance filosófico
que Heidegger tenta dar à angústia em O que é a metafisica?, trabalho
que se tomou uma de suas referências mais constantes. O paralelismo
com a evolução das concepções freudianas não é fortuito, já que é ní-
tido que os textos de Freud que Lacan privilegia inicialmente são aque-
les em que vigora a primeira teoria da angústia 120, alargando suas re-
ferências, concomitantemente ao momento em que passa a pensar a
angústia com relação ao registro do real. A grande exceção a essas pre-
ferências iniciais é o destaque concedido, desde o início, à noção
de pulsão de morte, destaque cujas condições teóricas começam a se
explicitar agora.
A culpabilidade será pensada como a forma de angústia que cor-
responde à intervenção de um elemento simbólico, que Lacan nomeia
muito expressamente, aqui, como a Lei 121 . Essa noção, que Lacan in-
troduziu no instrumental psicanalítico, além de ter suas raízes na
prática psiquiátrica forense do autor e nos trabalhos que derivam mais
diretamente dela - a "Introduction aux fonctions de la psychanalyse

defesa, notadameme da histeria. De fato, a angústia histérica é o modelo para


toda a primeira teoria freudiana da angústia.
120 Na verdade, Lacan passeia, desde o início do seu "retorno a Freud", com bastan-
te liberdade pelos diversos momentos da obra freudiana. Mas é flagrante que os
textos de Freud mais destacados, nesse momento, são aqueles que melhor se pres-
tam à ratificação da tese do "inconsciente estruturado como uma linguagem",
ou seja, acima de todos, A interpretação dos sonhos, A psicopatologia da vida coti-
diana e O chiste e sua relação com o inconsciente.
121 "Nesse momento, intervém um outro registro, que é justamente aquele que se
chama: ou o da lei, ou o da culpabilidade" (SIR, p. 23).
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 519

en criminologie", por exemplo -, cumpre a função de unificar diver-


sas referências lacanianas, como a teoria freudiana do Édipo e a fun-
ção nela desempenhada pelo pai, o lugar atribuído à linguagem na psi-
canálise lacaniana e o determinismo cultural que ela fundamenta -
afinal, a lei é, por excelência, o modo da sociedade agir sobre o indiví-
duo através da linguagem. Mas a referência a esse fator estritamente
simbólico na determinação do sujeito dá ocasião para a retomada da
caracterização desse registro, com o que se conclui a parte mais signi-
ficativamente teórica desse trabalho.
O primeiro passo desse esforço final de delimitação do conceito
lacaniano de simbólico dá-se com referência à questão do tempo. O
fato de que, quando se considera o trabalho analítico e a relação
intersubjetiva em geral do ponto de vista do simbólico, o aspecto tem-
poral venha para o primeiro plano decorre diretamente da contribui-
ção kojeviana para a formação dessa teoria lacaniana do simbólico. Se
o simbólico é o registro definidor da condição humana, como se ten-
tou estabelecer, e se o homem é essencialll?,ente um ser histórico, cria-
dor da história por sua ação negadora do dado natural que, deixado a
si mesmo, jamais ultrapassará a condição de identidade com a sua pró-
pria natureza, o tempo será, eminentemente, a dimensão na qual ope-
ra o simbólico 122 , constatação por onde já se pode fazer a conexão com
Lévi-Strauss, o principal promotor dessa virada estruturalista de Lacan.
De fato, o estruturalismo - na lingüística, em primeiro lugar - ao pro-
por-se a substituir o historicismo da filologia e da gramática histórica
por um estudo da língua como sistema, foi levado a distinguir duas
formas de temporalidade: o tempo reversível da estrutura (aspecto sin-· ·
crônico) e o tempo irreversível da evolução do sistema (aspecto diacrô-
nico), distinção que aparece explicitamente nos textos de Lévi-Strauss
nos quais Lacan se apóia de forma mais direta. É claro que o tempo,
em Kojeve, é o tempo histórico e, portanto, diacrônico. Mas, na me-

122 Ao pensar a relação entre o simbólico e o imagindrio, nesse ponto, Lacan afirma:
"A questão da constituição temporal da ação hitmana é, ela, inseparável absoluta-
mente da primcirà' (SIR, p. 23).
520 RICI-IARD THEISEN SIMANKE

dida em que sua contribuição a Lacan é promover a manutenção da


referência subjetiva no âmago de um estruturalismo que tende a anulá-
la, essa contradição não atrapalha, já que o tempo diacrônico, quer o
da história - aí mais a evolução do sujeito do que a da humanidade -
, quer o da construção da frase, é justamente aquele em que o sujeito
aparece, ainda que na posição de um efeito de estrucura. Através dessa
referência temporal, onde se cruzam, afinal, as duas perspectivas que
seu projeto deve conciliar - a do sujeito e a da estrutura-, Lacan pode
abrir caminho para considerar isso que ele chama da dimensão exis-
tencial da sign.ificação do símbolo para o homem. Ora, é em torno do
conceito freudiano de Wiederholungszwang que essa dimensão será
pensada.
Esse conceito - do qual Lacan prefere, por razões óbvias, a tra-
dução "automatismo de repetição" e não "compulsão à repetição" - é
aproveitado para expressar a constituição do sujeito, não mais pelo
imaginário, mas pelo simbólico, concebido na forma como foi expos-
to nesse trabalho. A situação prototípica não é mais a criança se reco-
nhecendo no espelho, mas o exemplo extraído de Além do princípio do
prazer, em que Freud descreve uma brincadeira na qual seu neto faz
desaparecer e reaparecer um carretel amarrado a um barbante, enquan-
to pronuncia algo semelhante às palavras Fort (longe) e Da (aqui) -
outro episódio que jamais deixará de ser retomado como apólogo por
Lacan. Tudo nessa pequena observação pela qual Freud ilustra o seu
conceito de repetição se presta maravilhosamente para as intenções de
Lacan. Em primeiro lugar, há um "automatismo" em que intervêm,
simultaneamente, um objeto - o carretel, que Freud, no entanto, já
identificara como um substituto da mãe -'e os primeiros rudimentos
da linguagem. Mas, acima de tudo, essa repetição primitiva comporta
uma certa "escansão temporal" de um objeto que desaparece periodi-
camente, mas cuja identidade é mantida. O argumento de Lacan é
que somente a sua natureza simbólica pode explicar essa: permanên-
cia, essa "presença enquanto ausente", tanto do brinquedo que se pode
fazer reaparecer à vontade, quanto da mãe que ele simboliza. Aquilo
que Freud descreve como uma superação da angústia primitiva de se-
paração pela passagem de um papel passivo para um papel ativo, per-
UM INCONSCIÊNTE PARA O SUJEITO 521

mitida pelo jogo, é transformado - ou, talvez, complementado por


Lacan - em uma simbolização originária que salva o objeto do desa-
parecimento (da morte) pela sua inclusão numa cadeia simb6lica, que
aparece aqui na sua forma mínima: articulação entre dois significantes.
A preocupação de Lacan, agora, é claramente mais com o lado
do objeto do que o do sujeito, o primeiro, tanto quanto o segundo,
tendendo a se evaporar com a sua redução a um termo puramente for-
mal. A idéia é mais ou menos essa: qualquer coisa que deva ser preser-
vada na duração temporal, só pode sê-lo simbolicamente ou imagina-
riamente, já que o tempo e a ação são puramente negativos, abolidores
de qualquer identidade. Diz Lacan, a prop6sito da noção de objeto:
"O homem faz e, antes de tudo, faz subsistir em uma certa permanên-
cia, tudo isso que durou como humano" 123. O que está se formulando
aqui, em outras palavras, é o modo como o simbólico e o imaginário
contribuem para o surgimento daquilo que Lacan chamou de conhe-
cimento paranóico, que se caracterizava por atribuir permanência às
Gestalten perfeitamente evanescentes da Rercepção. Essa tendência ge-
neralizada de todas as coisas a desaparecerem no vortex da transforma-
ção contínua que esse ser histórico, que é o homem, impõe ao seu
mundo é justamente o sentido que vai adquirir, sob a pena de Lacan,
o conceito de pulsão de morte, que em Freud emergia de uma tendên-
cia inerente a toda matéria viva. Por aí, Lacan, o mais anti-biologista
dos psicanalistas, incorporará sem problemas o conceito freudiano
mais profundamente calcado numa argumentação biol6gica. Como a
sua noção desse "instinto de morte" apóia-se na historicidade e no

123 SIR, p. 25. A referência ao objeto como "isso que durou", que se explica pelo
contexto em que aparece aqui, ajuda a compreender o quanto Lacan vai, depois,
insistir em que o objeto do qual se ocupa a psicanálise é, essencialmente, o obje-
to faltante, esse objeto que teve que desaparecer no real, para retornar no simbó-
lico, isto é, retornar no âmbito de um mundo tipicamente humano. Daí as críti-
cas reiteradas à noção de relação de objeto - com indiscutíveis conotações reali~tas
- que predominava na psicanálise oficial, críticas às quais dedicará, entre outros
trabalhos, todo um seminário, nos anos 1956-57 (Le séminaire. Livre IV: La re-
lation d'objet).
522 RICHARD TI·IEISEN S!MANKE

impulso à ação inerentes ao sujeito humano - e na medida em que


essa concepção se harmoniza com a de uma estrutura simbólica da
cultura-, Lacan só pode ver, na recusa amplamente difundida desse
conceito, uma cegueira para esse registro simbólico da experiência
analítica e uma tendência a concebê-la apenas através da agora insufi-
ciente via do imaginário, que leva a pensar a psicanálise antes como
uma "análise das resistências" - conforme o caráter imaginário recen-
temente atribuído ao fenômeno da resistência - do que como uma
"análise do inconsciente", outra concepção à qual ele criticará com sua
melhor verve 124 • Lacan, ao contrário, colocará esse conceito no centro
de seu sistema, a ponto de identificá-lo com o próprio funcionamen-
to da linguagem.
Essa concepção da linguagem, que será o esteio da psicanálise
lacaniana daqui para a frente, ingressa na teoria, portanto, após teres-
tabelecido todas essas formas de parentesco que permitem, por um
lado, preservar as linhas de força, os pressupostos e as conclusões cru-
ciais das investigações precedentes e, por outro lado, definir esse pro-
grama para futuras elaborações teóricas em terreno psicanalítico como
estritamente freudiano. É nesse sentido que o aproveitamento do con-
ceito de pulsão de morte é bem representativo do estilo do retorno
lacaniano a Freud e não é por acaso que essa conferência inaugural de
uma psicanálise, enfim, lacaniana - ou de um Lacan, enfim, psicana-
lítico - praticamente se encerra, no que tem de mais importante, com
esses desenvolvimentos 125• Mas esse texto como um todo pode ser con-

124 "É por isso que, se eu o assinalo aqui, não é evid·entemente sem razão, e a teoria
de Freud teve que avançar até a noção, que ela destacou, de um instinto de morte,
e todos aqueles que, depois disso, puseram a ênfase unicamente sobre isso que é
o elemento "resistência~ quer dizer, o elemento "ação imaginária~ durante a expe-
riência analítica, e anulando mais ou menos a função simbólica da linguagem, são
os mesmos para quem o instinto de morte é alguma coisa que não tem razão de
ser" (SIR, p. 25).
125 Lacan, de fato, dedica o final de sua conferência a uma tentativa de descrever o
movimento da análise a partir de um esquema combinatório um tanto incipien-
te, num exercício que não acrescenta muito ao que foi desenvolvido até aqui. Ele
UM INCONSClÊNTE PARA O SUJEITO 523

siderado como um inventário - incompleto, talvez, e não muito siste-


mático - dos principais temas que alimentarão o progresso do pensa-
mento lacaniano em seu momento estruturalista, com o qual ele per-
manecerá longamente identificado. Mas esses temas revelam também
uma notável continuidade com os da obra anterior, a ponto de quase
se poder dizer que constituem tão somente uma versão mais atualiza-
da dos mesmos. É claro que mesmo uma simples renovação dos ope-
radores conceituais, que permitem tratar de certas questões, não é isen-
ta de conseqüências para o direcionamento da teoria que se começara
a formular a partir daqui. Essas conseqüências podem ser rastreadas
nos desenvolvimentos lacanianos ao longo dos anos 50, onde a ques-
tão sobre se são alcançadas, de fato, novas respostas ou, ainda mais
importante, se se constituem novos problemas tem que ser constante-
mente recolocada. O que só quer dizer que a questão da continuidade
ou descontinuidade do projeto lacaniano ao longo de sua evolução de
forma alguma admite uma solução simples; como quase nada, aliás,
na obra de um psicanalista, cujo estilo e c::uja concepção do trabalho
teórico específico ao qual se dedica implicàm, a seu ver, a necessidade
de esconder seus pressupostos.

é interessante, no entanto, naquilo cm que antecipa as tentativas, formalmente


mais sólidas, de propor uma lógica combinatória do significante, no artigo sobre
A carta roubada, justamente onde se leva mais longe o esforço de conciliar o con-
ceito de pulsão de morte com o aparato metodológico escrucuralista.
CONCLUSÃO

Apesar de ser um autor reputado como obscuro, a trajetória in-


telectual de Lacan, da qual recapitulamos aqui um primeiro momen-
to, apresenta uma série de opções teóricas baseante explícitas, e que
consistem em assumir decididamente um cerco partido em debates
clássicos ou plenamente constituídos, nesse sentido, diferenciando-se
de Freud, cujo pensamento manifesta uma dara aversão a algumas
dicotomias clássicas. Assim, em sua estréia psiquiátrica, nosso autor
alinha-se totalmente com a crítica ao organicismo predominante no
meio médico onde se forma, com a conseqüente valorização da clíni-
ca em oposição a uma doutrina reducionista, e assim por diante. Mais
tarde, vai empreender uma crítica da psicologia cujos componentes
politzerianos ou fenomenológicos são igualmente explícitos. Uma to-
mada de posição ainda mais cabal caracteriza sua adesão ao estrutura-
lismo e às idéias de Lévi-Strauss, à qual toda a sua evolução precedente
conduz de uma maneira bastante compreensível. Se há ambigüidades
em Lacan, elas devem-se, portanto, mais a posicionamentos que sãó ·
um tanto conflitivos uns com os outros, como é a sua profissão de fé
materialista e determinista que se deve conciliar com a referência ao
sujeito e à significação, conflito que se manifesta em diversas versões
ao longo desse processo de constituição de seu programa de pesquisa
para a psicanálise e com cujo peso sua investigação propriamente psi-
canalítica, que transcorre dos anos 50 em diante, vai ter que arcar.
De qualquer forma, a problemática lacaniana é baseante preci-
sa; ela se define em termos bem inequívocos ao longo desse período,
assim como o modo em que é transportada para um terreno definido
526 RICHARD TI-IEISEN S!MANKE

em termos escritamente psicanalíticos daí para adiante. A obscuridade


que vai caracterizar nosso autor deve, portanto, ser creditada a questões
de estilo, embora estas não derivem apenas de preferências pessoais,
mas também de uma certa concepção da teoria, cujas bases também
estão dadas na sua obra inicial.
Em primeiro lugar, pelo anti-realismo ferrenho que, por todas
as razões que se viu, Lacan foi levado a defender desde o início de seu
percurso. Este prolongou-se numa epistemologia que recusava qual-
quer correspondência com um real dado como critério para a valida-
ção ou para a verificação do conhecimento e, ao contrário, procurava,
na medida em que se complementava, muito compreensivelmente,
com uma teoria do imaginário, atribuir um caráter constitutivo ao
conhecimento que o sujeito humano obtém de sua realidade própria,
fiel à diretriz inicial de que os métodos criam os fatos, o que, no pla-
no, digamos assim, ontogenético, se traduzia numa concepção sobre a
constituição simultânea do sujeito e de seus objetos, fundada na refe-
rida teoria do imaginário formulada por Lacan. Na medida em que
essa teoria, no seu propósito de reformar e renovar a ciência psicológi-
ca, buscou cada vez mais apoio e a s4a fundamentação necessária nas
disciplinas que se ocupavam do funcionamento da sociedade (socio-
logia, antropologia), viu-se reafirmar, por esta via, a idéia de que a rea-
lidade humana é, essencialmente, uma realidade social - portanto
construída e não dada-, refutando, de outro ponto de vista uma pos-
tura empirista, desde o início incompatível com o projeto lacaniano.
Na medida em que todos estes requisitos encontraram um novo
alento na revolução que o estrururalismo operou no panorama das
ciências humanas, principalmente com a ascensão ao primeiro plano
da noção de simbolismo como "substânciá' da realidade humana na
sua versão social e individual, tornou-se possível traduzir nesses novos
termos a idéia perfeitamente inaugural do pensamento lacaniano - na
verdade, resultado de uma radicalização da postura anti-reducionista
- de uma homogeneidade entre a teoria e o objeto do qual ela se ocupa,
que se encarnara primeiro na figura do conhecimento paranóico. Um
sujeito constituído pelo simbólico pode ter a sua verdade expressa di-
retamente por instrumentos simbólicos: essa parece ter sido a promes-
CONCLUSÃO 527

sa que Lacan entreviu na sua aclimatação à psicanálise dos desenvol-


vimentos estruturalistas. Essa concepção parecia permitir, por isso mes-
mo, a superação daquela dicotomia crucial que se estabelece na psica-
nálise, a partir da crítica politzeriana, entre a clínica e a metapsicologia,
ao diminuir estranheza entre esta última, herdeira de um cientificismo
naturalista, e a primeira, que se ocupa, acima de tudo, com um sujei-
to humano, histórico, cujos atos são eminentemente intencionais, na
medida em que comprometidos com uma significação estritamente
pessoal.
Por isso, a releitura lacaniana de Freud, que caracteriza o seu
projeto psicanalítico, vai consistir basicamente na redefinição dos con-
ceitos metapsicológicos, com vistas a apagar aquele estranhamento e
revelar a identidade simbólica entre o sujeito e a teoria. Ora, apegar-se
à letra da linguagem e fazê-la produzir novas significações é rigorosa-
mente o que se entende por metdfora, pelo menos a partir da concei-
tualização formal que essa figura de retórica recebe no estruturalismo
lingüístico, que Lacan vai fazer sua tamb~m nos anos que seguem. Se
o retorno a Freud de Lacan consiste numa apropriação metafórica do
texto freudiano, fazendo-o produzir significações bastante alheias às
intenções originais de seu autor, esse procedimento encontra-se pelo
menos parcialmente justificado por essa concepção da teoria que se
insinua nas entrelinhas dos textos, mas que só pode ser apreendida
cabalmente a partir da análise dos trabalhos onde esse "método" laca-
niano se exercita explicitamente, e não só com Freud.
O que nosso trabalho procurou mostrar é, em primeiro lugar,
com quais opções originais do autor essa concepção se encontra em
continuidade, isso num esforço de fazer uma espécie de arqueologia
do estílo da teorização de Lacan, que permitisse pôr em perspectiva
suas peculiaridades, sem partir do pressuposto de que se trata de uma
simples idiossincrasia arbitrária. Em segundo lugar, proceder ao inven-
tário daqueles que foram os materiais de construção, os empréstimos
teóricos realmente significativos, uma vez que uma certa compreensão
dos procedimentos lacanianos oferecesse um critério para distinguir
os efetivos elementos de composição de teoria em meio a multiplicidade
de referências que aí ingressam apenas a título de um meio de expres-
528 RICHARD THEISEN S!MANKE

são metafórico do tipo exposto acima. Essa perspectiva histórica ou


arqueológica permitiu identificar, pelo menos, uma problemática ra-
zoavelmente precisa, que se reproduz sob diversas formas ao longo da
evolução da obra. Como foi forçoso restringirmo-nos ao primeiro
momento dessa evolução - por razões de método e de viabilidade do
trabalho -, o presente estudo pode ser considerado um esforço ainda
preliminar de compreensão do sentido do empreendimento lacaniano,
tarefa que está bem longe de se completar. Sua complementação deve
exigir, em primeiro lugar, a explicitação das fomes pré-estruturalistas
das concepções lingüísticas com que Lacan operará ao longo dos anos
50, que incluem, pelo menos, uma certa filosofia da linguagem implí-
cita na estética do surrealismo, tão presente nos passos iniciais do iti-
nerário lacaniano, além das primeiras intuições sobre a relação entre a
linguagem e o inconsciente encontráveis na obra psicanalítica e lin-
güística de Pichon. Feito isso, restaria mergulhar nas concepções da
lingüística estrutural e no modo como Lacan delas se apropriará a par-
tir das premissas prévias de seu projeto teórico, as quais se procurou
expor no presente trabalho, a fim de medir o alcance e os limites da
concepção de metáfora que estas permitem e quais suas conseqüências
para o encaminhamento da investigação lacaniana, uma vez que se te-
nha demonstrado ser essa mesma a orientação que segue, mais ou
menos declaradamente, essa espécie de metateoria subjacente ao seu
trabalho. São essas as tarefas que se apresentam, a partir deste momen-
to, como diretrizes para o prosseguimento do esforço de elucidação
do sentido geral do pensamento lacaniano a que este livro pretendeu
dar início.
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Este livro foi impresso na Cromosete Gráfica.
Miolo em papel Pólen Sofc 80g/m2, 66x96.
Capa em Supremo 250g/m 2, 77xl 13.
Por mais que suas idéias sejam questionadas,
a importância da obra de Lacan para o ce_nário psi- ·
canalítico e intelectual do século XX dificilmente
poderia ser posta em dúvida. Seu pensamento
dialogou com praticamente todas as tendências
filosóficas e científicas que lhe foram contem-
porâneas, e a influência que exerceu estendeu-se
a campos tão diversos quanto os estudos literários
e o movimento femini~ta, para citar apenas
alguns. Contudo, as peculiaridades do estilo
tortuoso e barroco do autor, o cultivo deliberado
da obscuridade - fundamentado, é verdade,
numa certa concepção sobre a natureza do saber
psicanalítico -, a multiplicidade e a heterogenei-
dade das referências convocadas a instrumentar
sua reflexão sobre a obra freudiana tornam difícil
freqüentar sua produção teórica e penoso o
processo de introduzir-se nos meandros do pensa-
mento lacaniano. Acrescente-se a isso a pouca
disposição de Lacan para patentear as revisões e
redirecionamentos que impôs a suas idéias e
obtém-se um quadro pouco animador para os
leitores não iniciados.
Diante desse quadro, Metaptiicologia laca-
niana: oti anoti de uormação apresenta-se como
um trabalho de fôlego, que se propõe a resgatar as
origens do empreendimento lacaniano, explici-
tando as linhas de força que se perpetuaram no
programa que formulou e reformulou para a psi-
canálise, assim como a deslindar - com dareza,
mas sem concessões - a teia de referência~~$~--..
~\.,,_ ··,"
alimentaram esse processo de formação. Se ""-., ,.:_:_:_•.-,-
mimetizar o estilo de Lacan - como acontece com _
boa parte da literatura lacaniana disponível -,
oferece-se como uma ferramenta extremamente
útil para a compreensão de seus textos e, numa pers-
pectiva mais ampla, contribui decisivamente para
a elucidação do sentido geral de seu projeto teórico.
ISBN 85-86590-35-5

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