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2º AVALIAÇÃO
Análise do filme Ensaio Sobre a Cegueira
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Após o Governo determinar que todas as pessoas afetadas pela “cegueira branca”
deveriam, obrigatoriamente, permanecer em quarentena, a vida de cada um desses
indivíduos transformou-se em uma situação cotidiana de “vida ou morte”, visto que, com
o aumento intensivo de pessoas afetadas pela “cegueira branca” e a falta de conhecimento
sobre a doença, as autoridades simplesmente abandonaram todos os “infectados”,
mantendo-os presos no hospital, sem assistências básicas/mínimas para sobrevivência. E
é a partir dessa prisão e abandono que as pessoas “cegas” começam a tentar sobreviver
em meio ao convívio compulsório com pessoas desconhecidas.
Dado o cenário caótico, onde todos naquele hospital (ou melhor: naquela prisão)
estavam submetidos à fome, falta de higiene, ausência de qualquer tipo de assistência
médica, abandono e perda da integridade física e moral, a “humanidade”, com toda sua
carga conceitual, intelectual e científica, se vê frágil e ameaçada diante de toda essa
condição de impotência e submissão, principalmente em duas situações: 1) quando ocorre
dessas pessoas se dividirem em alas e grupos, e um desses grupos começar a impor regras
desiguais e abusivas aos outros, ameaçando e privando-os, com o uso de uma arma que
um dos “prisioneiros” portava, do acesso à pouca comida que ainda restava e 2) quando
esse mesmo grupo determinou que os outros grupos só teriam acesso à escassa comida se
as mulheres se submetessem sexualmente a eles, ou seja, uma troca de sexo compulsório
por comida. O direito à liberdade sobre seus corpos e o direito à vida, quando violados,
mostram àquele a quem as teve violadas o quão perversa pode ser a “cegueira” de que
não consegue reconhecer a humanidade alheia.
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Uma mulher francesa que, em 1990, já no seu nono mês de gestação, grávida de
gêmeos, após diversas tentativas de engravidar por fertilização in vitro, sofre um aborto
espontâneo e, logo em seguida, seu marido morre em um acidente de carro, quando ia visitá-la
no hospital. Mesmo após a morte do seu marido, a mulher persistiu no projeto de tornar-se mãe,
requerendo a transferência dos dois embriões restantes para o seu útero. No entanto, ela
deparou-se com a política da clínica, que exigia a presença dos dois cônjuges no momento da
transferência dos embriões, e com os termos do documento assinado pelo casal, que a partir de
então iria-se proceder a destruição dos embriões restantes.
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Uma disputa sobre o destino de dois embriões congelados que opõe de
um lado uma mulher que forneceu os ovos para serem fertilizados com
o esperma de seu marido agora falecido e de outro um serviço hospitalar
responsável pelo procedimento de fertilização e pelo congelamento e
guarda dos embriões excedentes. Ele revela nesse sentido que em
circunstâncias nas quais a procriação exige assistência médica os
pretensos direitos dos genitores (isto é dos fornecedores de gametas) de
usar e de dispor de seus embriões conservados estão submetidos a
restrições significativas. (NOVAES, SALEM, 1995, p. 67-68)
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do agente masculino, do homem, na criação daquela pessoa que ainda irá nascer. Revela-
se então uma extrema hipocrisia que sustenta um modelo de sociedade desigual e de
hierarquização entre homens e mulheres, visto que, como também mencionado nesses
dois artigos, o discurso da necessidade de pai não se sustenta quando o assunto é aborto,
posto que, mesmo com a ausência paterna, a mulher não tem direito de abrir mão da
gravidez. O controle sobre o seu corpo permanece.
Epicteto dizia que sua escola era, na verdade, um consultório médico onde
seus discípulos deveriam se identificar como “doentes”, a fim de que, além de aprender
os seus ensinamentos, aprendessem também a cuidar de si. Vir-se como doente
possibilitava ao aprendiz ouvir a sua voz interior e, assim, identificar as doenças de sua
alma. Esse “ouvir a voz interior”, no entanto, segundo Foucault, não se trata de uma “volta
à essência” em termos platônicos, mas sim, de um aprendizado e incorporação disso que
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se aprende. Esse aprendizado se dá, então, a partir de de exercícios que possibilitem o
exame de si mesmo. Ele diz:
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a partir da visão dos trobriandeses, as práticas que giram em torno das sexualidades e dos
sistemas de reprodução, são uns dos destaques do trabalho. A partir da perspectiva dos
trobriandeses sobre esses dois temas, podem-se relacionar dois interessantes
acontecimentos do filme: o impulso e atração sexuais que ocorrem entre duas pessoas
afetadas pela “cegueira branca”, e o prazer sexual sendo estimulado por meio do sexo
compulsório e da libido “incontrolável” dos homens abusadores. Segundo Malinowski
(1979, p.182), para os trobriandeses “os olhos são a sede do desejo e da luxúria. Eles são
a base ou a causa da paixão sexual.”. Nas sociedades ocidentais, parece que o impulso e
a atração sexuais também estão muito atrelados à “beleza” física. Mas até que ponto o ato
de ver fisicamente interfere na atração sexual?
Victor Turner, em “A Floresta dos Símbolos” (2005), faz uma análise acerca
dos Ndembu, onde também podemos identificar aspectos em que a organização
fisiológica do corpo não guarda correspondência com as interpretações que se fazem de
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seu funcionamento. Entre eles, por exemplo, quando alguém fica doente, este se manteve
próximo às “sombras”, que foram quem lhe puseram naquele estado. Essas doenças
possuem caráter anímico e são designadas não por uma infinidade de nomes como,
comumente, o é nas culturas ocidentais, mas sim, a partir do estado ao qual a pessoa se
encontra. Aqui, de novo, encontramos explicações e significações que não se resumem à
fisiologia ou biologia dos corpos. Em consequência disso, os tratamentos para essas
doenças se ligam às cores – uma vez que o indivíduo estava mantido às sobras -, cada
uma representando um sistema de símbolos específicos às doenças.
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Consideramos aqui como corpos orgânicos e corpos subjetivos, diferentes
(talvez) mas altamente imbricados, um transformando, dialeticamente, o outro.
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emocionalmente, e para que consigamos construir uma sociedade que não seja cega ao
outro.
O direito ao livre arbítrio sobre seus corpos e o direito básico à vida quando
violados por seus “iguais” (humanos) escancaram a farsa da “humanidade” inerente ao
indivíduo ocidental e descobre-se o egoísmo existente em nossa sociedade capitalista,
onde o individualismo e a meritocracia são pregados a todo custo em nome do “salve-se
quem puder”. A ideia de “humanidade” torna-se insustentável em uma sociedade em que
a coletividade é posta de lado na medida em que se enaltece, no discurso social, o poder
do indivíduo por si só, em um eterno “cada um por si”, esclarecendo que, na verdade, os
problemas ocorridos posteriormente ao início da epidemia, desde o abandono do Governo
até os abusos sexuais e assassinatos que ocorreram no hospital, são produtos de um
individualismo exacerbado inerente ao modo de vida capitalista.
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REFERÊNCIAS
SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.