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Belém-Pa
2014
Glenda Suelem Magno Duarte
Belém
2014
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BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof. Dr. Douglas Rodrigues da Conceição – Presidente
UEPA
_______________________________________________
Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet
UEPA
_______________________________________________
Prof. Dr. Manoel Ribeiro de Moraes Junior
UEPA
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Para minha Mãe
e meu Marido.
4
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Sandra e João, por seu apoio, amor e incentivo, sobretudo, no
início da minha vida escolar.
Ao meu marido e amigo, Thiago Silva, por seu amor, apoio, dedicação e
paciência. Sem você nada disso seria possível.
A toda minha família, irmãos, sobrinhos e cunhada, por fazerem parte da
minha vida.
Ao meu orientador, Profº. Dr. Douglas Rodrigues da Conceição, por seu apoio
e interesse por essa pesquisa.
Aos professores que participaram da minha banca de qualificação, por suas
imprescindíveis sugestões.
Aos professores Etienne Alfred Higuet e Manoel Ribeiro de Moraes Junior,
por terem aceitado participar desta banca.
À CAPES, pela bolsa de pesquisa concedida durante o mestrado.
À UEPA, por mais uma oportunidade de progressão acadêmica.
Ao PPGCR, aos docentes, discentes e o corpo técnico, principalmente, à
secretária Andréa, por sua inesgotável atenção e dedicação.
Ao poeta, João de Jesus Paes Loureiro, por seu belo trabalho que serviu de
inspiração para essa dissertação.
A todas as pessoas que contribuíram, direta ou indiretamente, para realização
desse trabalho.
5
Eu recordo, e cedo a fala da memória à voz
da adolescência, quando fiz o primeiro poema.
Tinha onze anos de idade e ainda não sabia
as regras teóricas de um poema. No entanto,
lembro que sentia ter feito uma poesia.
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RESUMO
7
ABSTRACT
The present study aims to investigate the expressions of the sacred and their
respective modes of articulation from the poetry of Pará‟s writer João de Jesus Paes
Loureiro, from a dialogue between religion and literature. Thus, we are interested in
understanding, more specifically, the interplay of their poetry in the context of
Amazonia, since certain symbolic and mystical aspects are typical characteristics of
the sacred in the Amazonian environment. Soon, we start from the assumption that
poetry produced by João de Jesus Paes Loureiro, at a certain level of articulation, is
presented as the sacred language of the Amazonian context. Therefore, we
conducted an hermeneutic of the terms of this sacred poetry João de Jesus Paes
Loureiro, based on concepts developed by the author, as a poetic imagination and
enchant the language.
Keywords: Sacred, literature, poetry, hermeneutic and João Jesus Paes Loureiro.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1 RELIGIÃO E LINGUAGEM OU RELIGIÃO E LINGUAGENS 13
1.1 AS INTERFACES ENTRE RELIGIÃO E LITERATURA 13
1.2 A POESIA ENQUANTO EXPRESSÃO DO SAGRADO 18
1.3 RELIGIÃO E POESIA NUMA PERSPECTIVA FILOSÓFICA 23
1.4. RELIGIÃO E LITERATURA: TRAÇOS E LAÇOS 28
9
3.2.14 “CASA NATAL REVISITADA” 76
3.2.15 “UM ÍNDIO À PORTA DA IGREJA” 77
3.2.16 “HINOS DIONISÍACOS AO BOTO” 79
3.2.17 “CANTAR DOS ENCANTADOS” 84
3.3 A EXPRESSÃO DO SAGRADO POÉTICO 87
CONSIDERAÇÕES FINAIS 90
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 92
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INTRODUÇÃO
O autor João de Jesus Paes Loureiro é natural de Abaetetuba, estado do
Pará, atualmente desenvolve atividades como poeta, teórico e professor nas
faculdades de Arte e Comunicação, da Universidade Federal do Pará. Possui
graduação em Letras e Direito, é Mestre em Teoria Literária e Semiologia e obteve o
título de doutorado em Sociologia da Cultura pela Universidade de Sorbonne Paris,
com a tese Espelho quebrado do imaginário (Cultura Amazônica: uma poética do
imaginário), orientada por Michel Maffesoli.
Paes Loureiro possui uma vasta produção bibliográfica, entre as suas
principais obras destacamos Porantim (1979), Deslendário (1981), Pentacantos
(1984), Altar em chamas e outros poemas (1982), Cultura amazônica: uma poética
do imaginário (1995), A arte como encantaria da linguagem (2008) e a coletânea
Obras Reunidas (2000), composta por quatro volumes, nos quais podemos
encontrar as obras citadas acima, assim como outras produções do autor.
Ele é um autor de muito prestígio e também muito premiado. No ano de 1970,
juntamente com o artista plástico Paulo Chaves foi classificado com três poemas
visuais na X Bienal de São Paulo e com o poema A Vanguarda Visual Brasileira – 50
anos depois da semana de arte moderna. Nesse evento o poeta ganhou um prêmio
internacional concorrendo com mais de seiscentos participantes.
Em 1984, obteve da Associação Paulista de Críticos de Arte o Prêmio
Nacional de Melhor Livro de Poesias, com a obra Altar em chamas. Em agosto de
1990 participou de um Simpósio sobre arte e ecologia na Itália, no qual um de seus
poemas (Cântico XLII) apresentado no encontro, o colocou entre os dez melhores
poetas no cenário literário mundial.
Por esse motivo a sua produção literária está em consonância com diversas
correntes literárias e é reconhecida mundialmente. A prova disso é a exportação da
sua produção para diversos países como França, Espanha, Alemanha, Japão, entre
outros. Isso acontece porque o autor suscita questões vivenciadas por qualquer ser
humano, como o sentimento de pertença, de solidão, de admiração, de
maravilhamento, sentimentos esses que podem ser entendidos por qualquer pessoa
independente da sua condição geográfica.
11
Portanto, essa dissertação se justifica pela necessidade de estudos voltados
à expressão do sagrado desenvolvido de maneira poética por João de Jesus Paes
Loureiro. A escolha desse autor se explica pela relevância de sua poesia no cenário
local e internacional, assim como pelo estudo teórico que o mesmo vem
aprofundando ao longo dos anos a respeito da poesia como encantaria da
linguagem, destacando em suas produções o imaginário e os mitos amazônicos.
No primeiro capítulo dessa dissertação Religião e Linguagem ou Religião e
Linguagens, realizamos um levantamento teórico a partir das interfaces entre religião
e poesia. A partir do primeiro tópico tratamos das interfaces que circundam esses
dois conceitos, da relação da poesia enquanto expressão do sagrado, e da religião e
poesia em uma perspectiva filosófica e ainda destacamos os traços e laços que
compõem a relação entre religião e literatura.
O segundo capítulo dessa pesquisa intitulado Mito, Poesia e Religião na
Amazônia de Paes Loureiro, destina-se a análise das produções acadêmicas
desenvolvidas no contexto amazônico com base na produção poética do autor em
questão. Nesse capítulo tencionamos demonstrar os pontos convergentes e
divergentes entre a nossa pesquisa e essas produções. Por fim, destacamos a
relação entre poesia e religião no contexto Amazônico.
O terceiro e último capítulo desse trabalho intitulado Por uma hermenêutica
da expressão do sagrado na poesia de Paes Loureiro, destinou-se ao momento das
interpretações das poesias selecionadas, com base nos conceitos desenvolvidos
pelo próprio autor João de Jesus Paes Loureiro e a partir de análises intertextuais e
semióticas dos elementos provenientes da religião presente nas poesias do autor.
Portanto, o principal objetivo dessa pesquisa é analisar a relação existente
entre religião e literatura no contexto amazônico, a partir das poesias de João de
Jesus Paes Loureiro, partindo do pressuposto de que o sagrado na poesia do autor
expressa-se de forma peculiar na Amazônia, entre outros, por meio do imaginário
poético e da encantaria da linguagem.
12
1 RELIGÃO E LINGUAGEM OU RELIGIÃO E LINGUAGENS
13
específico, ou em qualquer outro lugar no qual o homem sinta-se a vontade para se
relacionar com o sagrado ou sobrenatural. Pois, suas representações estão em
todos os lugares inclusive no texto literário. Sobre essa diversidade religiosa
Nogueira destaca:
Assim, percebemos que aquilo que era considerado sagrado, não está mais
restrito somente a um ambiente institucional e confessional, pois “A religião não se
liquida com a abstinência dos atos sacramentais e a ausência dos lugares sagrados,
da mesma forma como o desejo sexual não se elimina com votos de castidade”
(ALVES, 1984, p. 11). A religião surge com suas múltiplas formas de expressões
desses sentimentos de entrega diante sagrado.
Está dentro dos códigos vitais, faz parte dos gestos mais profundos
de luta pela sobrevivência, é, muitas vezes, o fundamento de
desenvolvimentos culturais e civilizatórios mais complexos. A mensagem de
que há um sentido radical da vida, o desejo de plenitude associado ao
absoluto, os sentidos para além do banal, esta união entre o corriqueiro e
aquilo que o transcende, os grandes gestos de compaixão e compromissos
profundos, tudo isso faz da religião uma busca e uma experiência
insuperáveis. (MAGALHÃES e PORTELLA, 2008, p. 16-17)
Mas o ser humano pode „atravessar‟ esse primeiro sentido para ver nas
coisas de sua experiência fenomênica um segundo sentido. Diante do pôr-
do-sol (uma realidade astronômica cotidiana), eu posso sentir uma emoção
especial, tanto pela beleza do cenário como pela nostalgia do que termina e
fenece nesse momento. Ver uma formosa flor (que obedece as suas
próprias leis biológicas, seu primeiro sentido) me faz pensar na pessoa que
mais amo. O vôo de uma ave suscita uma sensação de paz e admiração. O
pôr-do-sol, uma flor, um pássaro que voa são uma realidade profana, mas
podem chegar a ser simbólicas: elas têm um „segundo sentido‟, captado por
meio do primeiro no cotidiano. (2010, p.86).
Conforme o que foi citado acima, podemos entender que as coisas em si não
são constituídas como símbolos, mas sim, são tomadas como símbolos a partir de
uma relação pessoal de sentido. Um sentido que não está propriamente
estabelecido na coisa em si, mas na pessoa que lhe atribui o significado. Então, nos
cabe a seguinte questão como se configura o símbolo para o homem religioso:
A obra literária não deve surgir com o único intuito de emocionar, de encantar,
de expressar o sentimento, porque ela deve fazer mais pelo seu leitor, fazer com
que ele critique e compare a sua realidade por meio da arte literária. Pois para o
autor o leitor fará o papel de ponte entre o mundo da obra literária e o seu mundo
real.
Goulart considera que a obra literária cria o seu próprio mundo, por meio da
ficção que é uma forma disforme da realidade que comporta palavras que compõem
18
as imagens produzidas na ficção, no qual o leitor ao se deparar com essa obra seja
capaz de criticá-la ou interpretá-la com base em sua própria realidade.
Assim, o autor sugere como conceito ideal de literatura o conceito exposto por
Massaud Moisés no qual menciona que “Literatura é a expressão dos conteúdos da
ficção, ou da imaginação, por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal.”
(GOULART, 1994, p.24).
Por meio da poesia podemos reorganizar a realidade. Ela é uma arte que lida
com os sentimentos, pensamentos e expressões. É por meio do signo e suas
múltiplas possibilidades, que o poeta consegue expressar sua forma diversificada de
perceber a sua própria existência. Desta forma, tudo pode ser considerado matéria
de poesia, inclusive o sentimento religioso, o sagrado.
A arte literária está diretamente relacionada com o sentimento transmitido por
quem a produziu. Segundo José Veríssimo, a expressão desse sentimento é uma
condição literária, por isso a literatura deve ser considerada “uma expressão e
interpretação da vida” (VERISSIMO, 1907, p.8). Portanto, ela possui determinados
elementos que representam-na por meio do registro literário, que são a emoção, a
imaginação e a forma.
Segundo Antônio Candido (1995), o direito a literatura deveria ser garantido a
todas as pessoas, sem qualquer exceção e fazer parte dos direitos humanos. Pois a
literatura faz parte da vida das pessoas, inclusive daquelas que não sabem ler ou
escrever, sobre isso o autor comenta:
Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a
possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação.
Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as
vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo
fabulado. (CANDIDO, 1995, p. 242).
Eduardo Gross (2012) entende que a poesia nada mais é do que um relicário
no qual está contido o sagrado, pois o sagrado é tão especial que não pode se
manifestar em qualquer ambiente, pois antes este recipiente precisará estar
revestido de uma aura para poder comportá-lo. Destaca ainda que, atualmente, as
manifestações do sagrado acontecem por meios de rastros, no qual a poesia é
compreendida como um espaço privilegiado em que podemos encontrar resquícios
do sagrado. Nesse sentido, o sagrado foi exilado da vivência comum e cabe ao
poeta ser o porta voz desse sagrado.
Assim, todo esse processo só é possível por meio dessa aura sagrada que
existe em torno da poesia. Pois o sagrado foi exilado e para que o homem entre em
contato novamente com ele é preciso que ocorra essa interseção por meio do poeta
e da sua poesia. Ao tratarmos de poesia estamos falando de expressão, sobretudo
da expressão de um sentimento religioso, sagrado, por meio do registro poético, pois
“Expressar o ser é impossível em última instância, ao mesmo tempo em que é uma
necessidade” (GROSS, 2012, p. 111).
O poeta francês Mallarmé também define a poesia como expressão, para ele:
"A Poesia é a expressão, por via da linguagem humana levada ao seu ritmo
essencial, do sentido misterioso dos aspectos da existência: ela dota assim de
autenticidade nossa permanência neste mundo e constitui a única tarefa espiritual"
(1946, p. 118).
21
O Massaud Moisés identifica a poesia “como a expressão do „eu‟ por meio da
linguagem conotativa ou de metáforas polivalentes” (2008, p.48-49). Assim, a poesia
interliga vários processos em sua composição entre eles podemos perceber a
metáfora utilizada como palavra-chave, pois ela consegue transportar a imagem
para o vocabulário literário, por meio dessa palavra central que orienta as demais
palavras do poema.
22
como a psicologia, a antropologia, a sociologia. - a poesia também não tem um
objeto específico, e tão pouco um método único de análise:
Não temos um objeto bem definido, temos vários; não temos um método
comprovado e universalmente eficaz, temos muitos; não temos uma
terminologia própria – mas isso não nos deve induzir à anarquia ou ao
império do subjetivismo. Deve, isto sim, estimular-nos a um esforço de vigor
ainda maior, para além do pseudo - esforço de adotar uma das várias
„teorias‟ disponíveis do estoque de plantão e aplicá-la mecanicamente.
(MOISÉS, 2007, p. 17).
„A poesia nos ensina a ver como se víssemos pela primeira vez‟ é, afinal, a
lição elementar que podemos extrair não dos filósofos ou pensadores, dos
especialistas em arte poética ou dos educadores (todos, de um modo ou de
outro, governados pela ciência profissional). (Idem, ibidem, p.23).
A poesia envolve técnica e trabalho árduo para elaborar uma linguagem que
tenha apelo estético e que seja objeto da contemplação. Ela possibilita ao ser
humano outras formas de linguagens, no intuito de mediar a complexidade de seus
dilemas existenciais em sua abertura ao sagrado.
1
Arte, podendo também significar técnica habilidade, ou profissão.
23
A intersecção entre poesia e religião na elaboração do fazer poético por meio
apenas de uma inspiração divina e não do uso da razão pode ser encontrada no
livro Íon do filósofo Platão no momento em que ele promove um diálogo entre
Sócrates e o rapsodo Íon no qual Sócrates faz a descrição do que é um poeta:
O poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar até que se
torne inspirado e fora de si, e a razão não esteja mais presente nele. Até
conquistar tal coisa, todo homem é incapaz de poetar e proferir oráculos [...]
No resto cada um deles é banal, pois nos falam essas coisas por arte, mas
por uma capacidade divina; porque se soubessem falar belamente por arte,
respeito de um, a respeito de todos os demais também saberiam. Por isso,
o deus, tirando-lhes fora razão, utiliza-se deles como serviçais, e também
dos proferidos de oráculos e dos adivinhos divinos, para que nós, os
ouvintes, saibamos que não são eles – aos quais a razão não assiste – que
falam essas coisas assim dignas de tanta estima, mas que é próprio deus
quem fala, e por meio dele pronuncia a nós (PLATÃO, 2008, p.33-34).
A relação entre filosofia e poesia começa na crítica que Platão faz a Homero
por não aceitá-lo como o poeta educador da cidade, por sua vez, o filósofo pensava
24
que a República ideal deveria ser governada por sábios. Essa revisão que Platão faz
da tradição homérica, não deve ser entendida de maneira precipitada como uma
crítica radical. Bloom coloca em dúvida essa polêmica ao afirmar que nos textos de
Platão há aspectos da própria elaboração poética:
A poesia passa a ser considerada como algo que está além de uma mera
produção baseada apenas na inspiração divina, ela passa a ser vista como algo que
estar totalmente voltada para o desenvolvimento do homem enquanto um ser capaz
de produzir formas de saber superando, desta maneira, a antiga finalidade de
exclusiva fruição e deleite dissociada de uma reflexão. “Já não bastava mais a
fruição da Pintura, da Escultura e da Poesia. Agora, elas também passam a construir
objeto de investigação teórica” (NUNES, 2001, p. 08)
A poesia pode tratar com profundidade de assuntos que fazem parte do que
há de mais íntimo e universal que caracteriza a humanidade, servindo, desta
maneira, como discurso que expressa as tensões humanas, a percepção do mundo,
das relações sociais. É na poesia que convergem os dramas humanos, a
compreensão que as pessoas fazem de si mesmas e dos objetos que elas
percebem, da maneira como se comportam, inclusive religiosamente. A arte, de
modo geral, pode contemplar essa dimensão religiosa do humano.
Quando Loureiro (2007) trata da obra de arte como discurso que tem a função
de atribuir sentido ao mundo, aos objetos que compõe a relação dos humanos no
âmbito da cultura, isso diz respeito à dimensão cognitiva que o ser humano
desenvolveu ao destinar sentido às coisas, criar significados que não estão no
objeto como uma essência, mas que partem do próprio homem como sujeito que
nomina as coisas, as interpreta, cria significados, e isto é parte de sua capacidade
simbólica.
Essa dimensão simbólica faz parte da criação de objetos culturais, nos mitos,
nas crenças místicas do ser humano, e mantém relação com as produções culturais
26
mais variadas possíveis e com a vida em sociedade. A respeito dessa relação da
cultura e as instâncias simbólicas do homem, José Luiz Santos comenta:
Tanto a religião como a literatura revela o seu poder por meio do discurso,
um discurso tão carregado de simbologia que é capaz de arrastar uma gama de
seguidores. Discurso esse que não cai em desuso, sempre se renova, pois possui
uma aura que fascina e encanta que os ouve ou profere; uma aura por vezes mística
e enigmática. Esses fatos é o que muitas vezes garantem a perenidade dos seus
textos.
Outro indício dessa relação seria por meio da própria poesia, pois muitos
estudos vêm apontando para essa crescente presença de elementos místicos em
poesias, uma vez que, a poesia pode ser considerada um elemento de ligação entre
o homem e Deus, pois ela por vezes é considerada como um lugar no qual pode
residir o sagrado, assim:
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Por isso autora destaca a importância da linguagem poética e da linguagem
religiosa, no texto escrito e no texto oral, pois todas as pessoas, as letradas ou não,
possuem a capacidade de sonhar, de imaginar, de criar, de acreditar, de contar, de
se relacionar. Dessa forma, todas devem estar inseridas nesse processo de
comparação entre literatura e religião.
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2. MITO, POESIA E RELIGIÃO NA AMAZÔNIA DE PAES LOUREIRO
João de Jesus Paes Loureiro desenvolve uma obra original, fala da Amazônia
sem se prender a estereótipos e seu trabalho é cheio de poeticidade, pois é repleto
de sua própria compreensão sensível do mundo através das fontes amazônicas
desenvolvidas poeticamente por meio de metáforas dessa própria realidade. Assim,
mito, poesia e religião se intercruzam na Amazônia idealizada do autor.
A produção de João de Jesus Paes Loureiro é pautada por uma visão
singular da região amazônica. Essa forma de ver a região se transformou no seu
projeto poético, uma vez que, o autor busca sua inspiração na visão amazônica do
mundo que o sustenta. Assim, há uma relação existencial entre a realização desse
projeto e a maneira como o poeta está engajado na região, o que revela a inter-
relação entre o poeta, a sua obra e a sua terra.
Com base nessa forma de perceber a região amazônica, é que a produção
literária do autor serve de influência para a criação de diversos trabalhos
acadêmicos. Duas significativas dissertações de mestrado serão discutidas nesse
estudo como uma amostra desta vasta produção. A primeira, intitulada Mito e
modernidade na trilogia Amazônica de João de Jesus Paes Loureiro, data de 2001,
e a segunda, sob o título As formas do mito nos cantares amazônicos do poeta João
de Jesus Paes Loureiro, data de 2009, ambas defendidas na Universidade Federal
do Pará. Além dessas duas dissertações também apresentaremos outros ensaios
que foram produzidos a partir de análises da produção poético-literária do autor.
A primeira dissertação tem por principal objetivo verificar como se daria uma
suposta passagem de uma consciência mítica para uma consciência moderna, nas
obras Porantim, Deslendário e Altar em Chamas, obras essas denominadas Trilogia
Amazônica, de João de Jesus Paes Loureiro. Assim, o autor da dissertação
mencionada analisa os reflexos do contexto histórico, político e social, no qual as
obras são produzidas. Obras essas que compõem o corpus da seguinte pesquisa.
Esse primeiro trabalho, parte do princípio de que na região amazônica existiu
um processo abrupto de “modernização”, sobretudo por meio do capitalismo, o qual
modificou toda uma consciência coletiva que era baseada nos mitos amazônicos. A
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partir da leitura de alguns poemas de Loureiro, Relivaldo Oliveira tenta demonstrar
como esse processo é recepcionado pelo poeta. E assim, através desses discursos
de âmbitos diferentes demonstra que na elaboração de seus poemas Paes Loureiro
constrói uma poética em que o mito vai sendo erigido sob uma ideia de um tempo
mítico.
Portanto, com base nas mudanças que esse processo acarretou para a
região, sobretudo no seu contexto social e geográfico, o mito é posto no mesmo
nível de uma realidade configurada como moderna. Assim é verificado que, na
poesia, o mito e a modernidade são representados pela ótica do conflito, no qual a
modernidade é a responsável pela desestruturação do Mito.
De acordo com Relivaldo Oliveira (2001), A Amazônia passou por um forte
processo de modernização que influenciou de maneira decisiva a sua história, fatos
que se tornaram essenciais pelas características com que se desenvolveram,
sempre tendo como um dos vetores principais a interferência externa em seus
aspectos primordiais. Sobretudo no século XX, quando:
A região passou por seu momento mais contundente, ou, pelo menos o
mais visível, de sua exploração, nesse processo a entrada do capital se fez
com o auxílio de um estado que intencionava a promoção do
desenvolvimento regional e de sua integração ao resto do país. Novamente
ficaram pegadas visíveis ainda hoje e caminhos nem sempre trilhados.
Quando o foram, os trilhos descarrilaram e as pegadas sumiram na poeira
da retórica, cujos oradores foram as empresas exploradas, os estados, o
púlpito e as populações regionais a plateia silenciosa-silenciada.
(OLIVEIRA, 2001, p. 08)
Amazônia! Amazônia!
A destroçada árvores das lendas
A desmatada agenda de cereais.
O desmentido estandarte de minérios.
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Outrora era Tupã ora ensinando
Menino Deus a nadar entre as iaras.
Agora o capital acumulando
A latifúndia razão
A primitiva
A concentrada estação da mais-valia. (LOUREIRO, 2000, v I, p. 101).
Sabe-se que a obra literária não está disjunta do meio em que é produzida.
Mesmo aquelas que se querem mais abstratas ou as que se ligam a um
intimismo obscuro possuem alguma relação com os elementos exteriores à
própria obra. Sejam estes de ordem pessoal a que o escritor se prende,
sejam os que, enquanto matéria social, contribuem para a construção do
trabalho, variando de graus em relação a utilização desses componentes.
Pois, a poesia, o poeta e o poema, enquanto instâncias criadoras do
literário, não seguem outro caminho, senão esse da transformação das
coisas em formas artísticas. (2001, p. 10).
Com base no que foi citado, podemos inferir que o autor Paes Loureiro não
estava desatento aos impactos que o desenvolvimento causava na região, por isso
suas obras podem ser consideradas como um registro da forma como o autor
percebeu, ou vivenciou esse processo, na medida em que, sua produção poética e a
região amazônica estão interligadas.
Oliveira também destaca em seu trabalho, que a partir desse processo de
modernidade vários autores começaram a escrever sobre a Amazônia, por exemplo,
o critico e literário José Veríssimo teceu suas considerações a partir do
desenvolvimento do meio físico, cultural e populacional da região; tudo isso muito
influenciado pelos moldes europeus.
33
Outro momento apresentado pelo autor que caracteriza esse avanço foi o
surgimento da Universidade Federal do Pará, na década de cinquenta. Com isso
houve o avanço na produção do conhecimento científico na região. “A ciência, e
principalmente, as Ciências Humanas passam, então, a dispor de um endereço para
analisar o passado e o presente e vislumbrar o futuro da região.” (OLIVEIRA, 2001,
p. 09).
À medida que o progresso chegava a região, ela tornava-se cada vez mais
conhecida, até no círculo literário, em um dos movimentos mais importantes para
literatura brasileira: a semana de Arte Moderna de 1922, que aconteceu em São
Paulo, a região vira tema de investigação em alguns de seus aspectos, inclusive ela
serviu como cenário para o escritor Mário de Andrade, na obra Macunaíma e para
Raul Bopp, na obra Cobra Norato. O autor da dissertação destaca que a produção
literária na região norte, também estava atenta para esse processo, sobretudo os
seguintes autores:
A partir de então o autor desse trabalho irá direcionar o seu foco para as
obras especificamente. Com base na obra Porantim ele irá desenvolver um capítulo
intitulado A Épica de Porantim. Depois estabelecerá o confronto dos tempos da
Trilogia, em seguida analisa a relação entre Mito e Modernidade nas obras
Deslendário e Altar em Chamas.
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Amazônica, por isso a escolha dessas obras como corpus de sua pesquisa, assim o
autor conclui:
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Entendemos que ao utilizar a obra de Loureiro como objeto de verificação das
tensões entre o discurso mítico e os valores da modernidade, Oliveira apresentou
um horizonte dicotômico e absolutizante para a percepção do imaginário e da
cultura. E mesmo que o autor aborde essas questões em suas poesias, elas não são
o tema principal de toda a sua obra, e sim apenas mais dois aspectos de
compreensão e interpretação, pois a poesia é uma forma de linguagem passível de
novas interpretações.
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Assim nessa pesquisa coube ao autor da dissertação demonstrar como se
processou a passagem de uma mentalidade mítica para uma racionalidade
capitalista, ou seja, a deslenda mítica e a visão da cidade como um espaço de ruína,
o que nos apresenta dois aspectos da análise: memória e esquecimento. Partindo
desse trajeto, que mostra a relação entre poesia e a realidade da qual o poeta colhe
o material para sua escritura, convertendo a realidade cotidiana em material estético,
consideramos que a poesia não é só ficção, ou criação abstrata, mas mantém
relação com os impactos que a realidade promove no íntimo do poeta.
Quando Loureiro retrata em suas poesias a crueza dos valores da
modernidade e seu impacto no discurso mítico, esse processo ocorre não para
ressaltar a miséria tornando-a bela, mas apresentando-a de uma forma poética ao
tempo histórico que cruza e é cruzado com o mito ou com as formas poéticas do
mito. Com isso, ao longo da dissertação analisada tenta-se evidenciar as formas
literárias do mito, isto é, os olhares do poeta João Jesus Paes Loureiro para a
Região Amazônica:
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vai se afirmando cada vez mais na medida em que supera os
condicionamentos pela conquista do universal a partir de particulares. Sua
obra é resultado da transformação da matéria em novo ser, em objeto
humanizado, objetivando os sentimentos e satisfazendo a necessidade de
comunicação e comunhão com os outros. (SILVA, 2009, p.13).
Nesse sentido, tudo que existe na região amazônica, nas mãos de Paes
Loureiro vira matéria de poesia, os rios, as florestas, os mitos, as lendas, o modo de
viver das pessoas, as mudanças na região, tudo se converte em poética. Uma
poética que suscita reflexões, uma poesia que vai além do prazer estético, é uma
poesia que faz pensar. Assim “A cultura amazônica é semelhante às antigas culturas
gregas e egípcias e à cultura indiana, possuindo um caráter estetizante tão forte
que, em muitos casos se converte em ética de relações.” (SILVA, 2009, p.13).
Silva (2009) situa o contexto histórico e cultural no qual a Amazônia está
inserida, com base no processo de modernidade/modernização. Também situa
nesse contexto a obra de Paes Loureiro e a contribuição que a sua narrativa traz
para o desenvolvimento da região:
Paes Loureiro possui uma obra original, uma poética com musicalidade e
reflexão, os seus conteúdos remetem para uma região, porém seu trabalho é
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conhecido no Brasil e fora dele. Consideramos que sua obra tem aceitação em
diversos países pelo seu caráter universal, porque o autor fala de questões
relacionadas à condição humana, dessa maneira seu trabalho pode ser comparado
ao trabalho feito por Homero ou Hesíodo na Grécia Antiga.
Por fim, Silva irá abordar a questão das deslendas: a deslenda do mito, a
deslenda indígena, a deslenda fluvial e a deslenda rural, a partir dos poemas de
Paes Loureiro. Com base na realidade moderna presente na Amazônia, temática
que perpassa as três obras. Essas fortes mudanças na região não permitem que as
lendas do mito, as lendas indígenas, as lendas fluviais e rurais, se desenvolvam
como outrora, por isso essas lendas são chamadas de deslenda. Desta maneira a
“dissertação evidenciou as formas literárias dos mitos, isto é, os olhares do poeta
João de Jesus Paes Loureiro para a Região Amazônica, principalmente [...] através
do processo de modernização” (SILVA, 2009, p. 120).
40
A poesia proporciona uma maior liberdade criativa, como nenhum outro
gênero poderá ter. Por meio de metáforas, sonoridades, e suas formas em versos,
ela é o gênero por excelência elencado por Paes Loureiro. No qual o tema principal
é a Amazônia, seja na composição de um simples verso, ou na composição de uma
obra completa, o poeta utiliza símbolos que representam a cultura inteira, como o
rio, as embarcações, ou próprio caboclo.
2
Frase dita pelo autor Paes Loureiro no Livro Encantaria da linguagem. (2008)
41
fusão das águas amarelas do Rio Amazonas com as escuras do Rio Negro
sem elas se misturarem” (NISSEL, 2000, vol. III, p. 394).
43
O autor Paes Loureiro também destaca alguns aspectos essenciais para a
criação de uma poesia mencionada por Shelley no livro Defesa da Poesia, no qual,
“afirma que os materiais da poesia são: a linguagem, a cor, a forma, os hábitos civis
e religiosos.” (LOUREIRO, 2000, p. 52).
3
O termo caboclo na linguagem indígena significa o homem que vem do mato, da floresta,
independente da sua condição racial. Cf. LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma
poética do imaginário. Belém: Cejup, 1995.
44
Loureiro (1995) ressalta que essa circunstância cabocla de “ver maravilha nas
coisas”, - é o que configura o modo peculiar do ribeirinho de conviver com o
estranhamento diante da sua realidade cotidiana, por isso essa realidade é
transfigurada tantas vezes pelo devaneio - é o reflexo da forma de viver de um povo
que é guiado pela memória e pela palavra oralizada, daí a importância da narrativa
nesse processo de transmissão cultural.
Narrar é um ato que aproxima as pessoas. Segundo Walter Benjamin (1993)
é possível ocorrer à cura por meio de uma narrativa, pois através do relato de uma
história a pessoa se tranquiliza, escuta e interage com o narrador e com isso o
processo de cura pode acontecer de forma mais rápida e eficaz.
Um narrador deve ser performático, porque além de contar uma história ele
deve interpretar, falar com a voz e com o corpo, deve transmitir para o seu ouvinte
toda a emoção, suspense e poder que possui uma narrativa. O contador de história
é um transmissor de saber, saber este adquirido com a experiência, como nos diz
Walter Benjamin “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que
recorreram todos os narradores.” (1993, p. 198). Logo, quando não acontece a troca
de experiências de pessoa para pessoa, não há narrador.
Segundo Ecléa Bosi, quando pessoas idosas narram historias elas estão
compartilhando as lembranças que existem em suas mentes, nesses casos a
memória exerce um papel fundamental, pois:
Se existe uma memória voltada para a ação, feita de hábitos, e uma outra
que simplesmente revive o passado, para ser esta a dos velhos, já libertos
das atividades profissionais ou familiares. Se tais atividades nos
pressionam, nos fecham o acesso para a evocação, inibindo as imagens de
outro tempo, a recordação nos parecerá algo semelhante ao sonho, ou
devaneio, tanto contrasta com nossa vida ativa. Esta repele a vida
contemplativa (BOSI, 1994, p.81).
45
As encantarias amazônicas são uma zona transcendente que existe no
fundo dos rios, correspondente ao Olimpo grego, habitadas pelas
divindades encantadas que compõem a teogonia amazônica. É dessa
dimensão de uma outra realidade que emergem para superfície dos rios e
do devaneio os botos, as iaras, a boiúna, a mãe d‟água, as melodias
sedutoras cantadas por invisíveis sereias, as entidades plásticas do fundo
das águas e do tempo. É o maravilhoso do rio, equivalente à poetização da
realidade histórica promovida pelo maravilhoso épico. Esses prodígios
poetizam os rios, os relatos míticos, a paisagem (que é a natureza
convertida em sentimento e cultura) e o imaginário. (LOUREIRO, 2007, p.
46)
47
ele torna-se poético e essa é uma forma de fazer poesia, não de maneira formal,
mas de maneira simples.
A poesia torna a vida mais suportável quando nos apresenta pela linguagem a
beleza que descortina uma nova perspectiva de sentido diante das agruras da
existência. Portanto, é pela sua linguagem transfigurada e transfiguradora que o ser
49
humano tem a oportunidade de desenvolver o aspecto lúdico, imaginativo e criativo.
No caso da Amazônia, esta linguagem fornece os referenciais a partir dos quais o
homem pode valorizar seus costumes, a natureza e produzir uma cultura rica em
diversidade e beleza.
50
3 A EXPRESSÃO DO SAGRADO NA POESIA DE PAES LOUREIRO
Relação pela qual o homem foi formando seu mundo e a si mesmo desde a
invenção de uma teogonia até as pequenas ferramentas e usos de seu
cotidiano prático. Um modo de ser no mundo e com o mundo que se vem
constituindo na horizontalidade da convivência espontânea com a natureza,
na verticalidade aurática do sentido do sublime a ela inerente, de um pensar
cultural em liberdade com a natureza, marcado pela poeticidade e
sentimento de comunhão cósmica. (LOUREIRO, 2000, vol. IV, p.07-08).
52
Outro aspecto importante que compõe uma das relações analisadas nos
poemas de Loureiro, diz respeito a compreensão de sua poesia como um discurso
que está impregnado dos caracteres religiosos da Amazônia, um imaginário voltado
para a natureza em sentido cósmico, de uma percepção de que o natural é
transformado em signo por um processo poético de transfiguração do real natural.
Neste contexto de caracterização de sua poesia, Loureiro considera o seu fazer
poético a partir de um princípio que ele afirma ser o estético-religioso das
encantarias correspondendo a:
53
3. 2. NO CAMINHO DAS POESIAS
54
outras linguagens. Consideramos que no contexto de uma análise semiótica da
cultura há o reconhecimento de que um texto pode ser entendido não apenas em
sua formatação escrita, mas sim como tudo aquilo que comporta o sentido.
Portanto, tratar das poesias a partir dessa forma de compreensão, baseada
na intertextualidade e em uma perspectiva semiótica, nos permite tratar da relação
possível da poesia com relação a textos ou símbolos como códigos interdiscursivos.
De acordo com Nogueira, na análise da semiótica da cultura compreende-se texto
muito além de sua forma escrita: “Esta noção de texto se aplica, portanto, não
apenas a mensagem da língua natural, mas a todos os portadores de sentido”.
(2012, p. 20). No caso de um texto religioso, há a ocorrência de uma dupla
codificação: uma baseada na expressão da língua natural e outra baseada em uma
codificação própria do sistema religioso com suas regras e semânticas próprias.
Com isso, podemos considerar que a relação entre o texto poético e o
símbolo corresponde a formação de novos sentidos e mantêm-se em relação a
novos códigos, inclusive possibilitando a formação destes novos códigos. Trata-se,
pois, de compreender o texto poético como um universo de significações que pode,
no contexto da análise semiótica, transcender sua dimensão de escritura alcançando
o status de símbolo, daí sua relação com a religião.
Isso contempla a possibilidade da dupla codificação na poética ao assumir
uma função de linguagem criadora de símbolos religiosos, pois uma forma de
linguagem pode contemplar a criação de novas linguagens pois o texto não é um
sistema fechado em si mesmo, está passível de ser influenciado e gerar novas
formas de linguagem e significado: “Esta dupla codificação de qualquer mensagem
lhe amplia ainda mais o potencial de criação de novas mensagens.” (NOGUEIRA,
2012, p. 19).
Por isso, iremos realizar a hermenêutica das manifestações religiosas nas
poesias de Paes Loureiro, com base na intertextualidade e interdiscursividade como
fios condutores para a compreensão do sagrado. Pois, percebemos que nas
produções poéticas do autor, os elementos que fazem referência ao campo religioso
ou a manifestação do sagrado aparecem de forma semiótica e intertextual em suas
poesias.
55
Dessa maneira, o primeiro poema analisado nessa pesquisa pertence à obra
Ser Aberto, esse poema foi escolhido por representar a arte poética do autor Paes
Loureiro, nele encontramos todos os elementos que compõem o seu processo de
criação, a encantaria da linguagem e sua relação com os mitos e com os elementos
que compõem a cultura Amazônica como o canoeiro, o caboclo, o rio, o devaneio, o
imaginário, enfim tudo o que caracteriza a poesia do autor. Como podemos verificar
abaixo:
I
A canoa leva o homem.
O homem leva a canoa.
Canoa e homem consomem
a mesma linguagem nua.
[...]
[...]
[...]
O canoeiro – palavra
boiando simples no rio –
com seu olhar de boiúna
só vê pelo o que não viu.
O canoeiro ainda vê
o tempo ser no foi...
Assim como o igarité
Assim como peixe boi.
[...]
[...]
57
O imaginário pode compor um conjunto de conteúdos reconfortantes e
sustentar o aspecto emocional do ser humano, quando esse se depara com
situações que constituem o real em sua mais degradante afirmação. De acordo com
Bachelard o homem utiliza a sua capacidade de imaginar como uma espécie de
válvula de escape e desta maneira “o devaneio é uma fuga para fora do real, nem
sempre encontrando um mundo irreal consistente” (1988, p. 05).
Para o canoeiro o seu devaneio está pautado nas lendas e mitos que
compõem a encantaria amazônica. Por isso, o homem conduz o sonho e o sonho
conduz o homem. Assim, a poesia torna-se linguagem, potente como o rio, assim,
homem, rio, canoa e as palavras, tornam-se mais que linguagem, tornam-se poesia.
Quando o homem sonha, ele se torna um ser que tudo pode realizar, por isso se
entrega sem medidas nesse sonho. Apesar de saber que ele está em um mundo
real, por meio do devaneio ele poderá ser totalmente livre.
4
C.f. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
5
Sempre que o cristianismo deixa marcas da sua influência, está presente a crença no diabo. No
antigo testamento, é entendido como o que se opõe; é o adversário, é o acusador. A partir de
determinado momento, a tradição olha-o como um ser individual. No novo testamento, onde é
frequentemente descrito o encontro pessoal, sucedem-se a derrota de Satanás. (NOGUEIRA, 2002,
p. 08)
60
considerado uma força atuante, um ser espiritual vivo, perverso, uma realidade
misteriosa e amedrontadora. Assim, “No afã de garantir a hegemonia das crenças, a
Igreja necessita detectar, divulgar e exorcizar o Mal, garantindo assim, o domínio da
consciência coletiva” (NOGUEIRA, 2002, p.12). Esse Mal está representado na
figura do diabo.
Os próximos poemas analisados abaixo fazem parte do livro Pentacantos,
nessa obra cinco cantos6 são organizados no intuito de reconciliar o leitor e a poesia.
Segundo Fábio Lucas “A grande metáfora que a atravessa é a palavra fundadora da
poesia. Habilmente o poeta explora os signos da Retórica, conciliando-os com os
códigos do amor e da vida” (LOUREIRO, 1984, p, 03). Os poemas desse livro são
repletos de jogos de palavras, que atrelam o seu significado com as referências do
mundo amazônico e do seu universo simbólico. Como iremos observar nos poemas
abaixo
[...]
6
Som musical produzido pela voz de um homem ou doutro animal, música vocal, poesia lírica;
canção, divisão de um longo poema. Dicionário Aurélio (2008).
61
„O mais jovem os deuses e eternamente jovem‟ (Platão). Representa a força
primordial da fecundidade, que garante a unidade do cosmo e a
continuidade de todas as coisas vivas. No período clássico assume uma
forma mítica e poética, tal como vemos na sua representação de um menino
com assas, arco e flecha. (1991, p.131).
Assim nesse jogo entre essas „personagens‟, pois enquanto um dança o outro
remansa, Loureiro estabelece o jogo entre a sensualidade, a contrariedade e o ato
de criação, estabelecido por meio da Teogonia. Dessa maneira, acontece a
intertextualidade com o livro, pois em Teogonia, Hesíodo estabelece uma genealogia
dos deuses e narra suas lutas até a vitória de Zeus. Assim, o autor estabelece como
surgiram esses deuses e de que maneira eles influenciaram a nossa cultura.
Para Loureiro, na Amazônia também podemos encontrar essa Teogonia
descrita por Hesíodo e ela acontece por meio das encantarias, pois de acordo com o
autor: “As encantarias amazônicas são uma zona transcendente que existe no fundo
dos rios, correspondente ao Olimpo grego, habitadas pelas divindades encantadas
que compõem a Teogonia amazônica.” (LOUREIRO, 2008, p. 46).
Os próprios discursos míticos amazônicos estão revestidos deste aspecto
poético de um imaginário, propiciado por locais extraordinários que despertam o
sentimento de que a natureza está animada por uma força incomum. Loureiro
compara as encantarias amazônicas com as divindades do Olimpo grego e estas
são comparadas aos encantados da Amazônia.
62
é exclusivo de espaços teológicos e sacerdotais. A seguir iremos analisar mais uma
estrofe de um poema do livro Pentacantos:
63
Chegando ao lugar indicado por Deus, Abraão ergueu ali um altar, colocou
a lenha em cima, amarrou o filho e o pôs sobre a lenha do altar. Depois
estendeu a mão e tomou a faca para imolar o filho. Mas o anjo do Senhor
gritou-lhe dos céus: „Abraão! Abraão!‟ Ele respondeu: Aqui estou! E o anjo
disse: „Não estendas a mão contra o menino e não lhe faças mal algum.
Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu único filho.‟ Abraão
ergueu os olhos e viu um carneiro preso pelos chifres num espinheiro.
Pegou o carneiro e ofereceu em sacrifício em lugar do seu filho. (BÍBLIA
SAGRADA, 2005, Gn, 22, 9-14).
Assim, temo mais uma vez, intertextualidade com a bíblia, porém dessa vez
essa relação acontece por meio do antigo testamento. No poema de Paes Loureiro o
lugar no qual ocorre esse sacrifício é o mar, em muitos de seus poemas ele aparece
como lugar sagrado. Na próxima estrofe do poema também iremos encontrar essa
referência ao mar, no entanto, o mar aparece para demarcar a passagem do tempo:
3.2.5 “Fragmento I”
Nessa estrofe, cabe o conceito de hierofania proposto por Mircea Eliade, que
consiste nas formas diferenciadas de manifestações das realidades sagradas que
podem ser chamadas de hierofanias, ou seja, quando algo considerado sagrado é
mostrado, revela-se ao homem, e este o reconhece como tal e manifesta-se
independente da sua forma, ou lugar:
64
sagrado não pode ser considerada como a mesma do reconhecimento de algo
comum: um texto jornalístico que trata da economia diária não tem o mesmo valor
ou natureza de textos sagrados em que são relatadas experiências hierofânicas.
Com base no que foi exposto por Eliade, em relação à hierofania, podemos
dizer que as formas de manifestação do sagrado ocorrem por meio do
reconhecimento que o homem faz de aspectos extraordinários que tem valor de
mistério e são incomuns pela descontinuidade que altera a percepção do mundo.
[...]
Nesse poema o poeta tece uma comparação entre o seu fazer poético e o
momento da crucificação de Jesus, dois processos de sofrimento. Nesse momento o
poeta se vê em desespero em meio às palavras e os versos. Podemos dizer que
nessa hora „lhe faltou à inspiração‟, por isso ele ressalta a questão: Por que me
abandonastes. Recorrendo a uma força maior que rege tudo, assim como também
fez Jesus. Porém, com a morte da inspiração ele poderá alcançar o reino das
palavras, assim como Jesus alcançou o reino dos céus para a religião cristã.
Os poemas que iremos analisar agora compõem o livro Porantim, esse é o
primeiro livro que compõe a trilogia amazônica de Paes Loureiro, Segundo Octavio
Ianni “O segredo da poesia de Porantim é a tensão permanente, crescente e
renovada entre o homem e a natureza. É dessa tensão que arranca a invenção
poética de Jesus.” (LOUREIRO, 1978, p. 09). Mas, para compreendermos o
verdadeiro significado da obra devemos, antes de mais nada, compreendermos o
significado do seu título:
Inspirado nessa peça etnográfica é que Paes Loureiro cria os poemas do livro
Porantim, o livro possui 43 cânticos, que tratam da temática do homem em relação à
natureza, porém essa natureza aparece de maneira devastada e explorada e nesse
cenário o índio acaba sendo a vítima desse processo de exploração, como podemos
perceber no poema abaixo:
Porantim! Porantim!
Eles nos fala...
[...]
Porantim! Porantim!
Ele nos fala...
Em relevo de linhas, sobre discos,
Os guerreiros em torno de Mahira
furtam o fogo,
de prometeus perdidos em barrancos.
Entre ciladas
vão se cadáveres banhados
pelas folhas mágicas
[...]
Porantim! Porantim!
Remo de Ouro
onde deliram lendas
nuas de lírios
e liras naufragadas no martírio
de gerações do mar em ti, ó Rio,
entre apagadas canções de canoeiros
levados para o nada, nas inúteis
igaretés do tempo,
rimas – passos sem pegadas –
em direção das eras sem aurora
Horizontes de hímens navegados.
Alvas quilhas de botos entre as ondas.
E nos braços do rio,
dependuradas,
as liras, arquipélagos de ilhas,
ao sol sem melodia. (LOUREIRO, 2000, vol. I, p. 29.).
3.2. 8 “Cântico I”
7
Herói mítico dos Parintins ou Cauiaiúas, do rio Madeira, Amazonas. De origem tupi. Suas aventuras
tem sabor de malicias e de zombaria, lembrando o Macunaíma. Dentre suas experiências está o furto
do fogo dos urubus.
8
Espécie de curupira de pés normais. Ser folclórico. Na língua geral significa habitante do mato.
Quem o encontra fica infeliz nos negócios e no que quer empreender.
9
Nome tupi de uma bebida fermentada, de alto teor alcoólico, feita com beju-açu dissolvido na água.
69
feita em fogo que no ventre
da noite do jacaré ardia
dentro foi buscar do rio
no ventre o fogo da noite
o canoeiro
que dentro foi buscar
e era o tempo naquele)
Nesse canto temos a presença do mito de criação da tribo Maué, nada existia,
nem a noite, nem o fogo e as comidas eram assadas ao sol, a noite era a fêmea
ardilosa. O mito religioso tem essa característica, procurar explicar alguma coisa,
como uma espécie metafórica de explicação, para as questões fundamentais da
vida. Nogueira (2012) considera o mito a narrativa por excelência da religião, uma
maneira que o homem encontra para expressar sua origem, sua cultura, seu
sentimento de pertencimento social.
É por meio da narrativa mítica que muitas dessas formas simbólicas se
manifestam. Tendo em vista que “O mito proclama a aparição de uma nova
„situação‟ cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a
narração de uma „criação‟: conta-se como qualquer coisa foi efetuada, começou a
ser.” (ELIADE, 2010, p. 85).
O imaginário está diretamente relacionado com o lugar social de quem o
representa, pois ele é o fruto das experiências pelas quais os homens passam ao
longo de suas existências. Desta maneira os mais diversos aspectos que compõem
a vivência do homem fazem parte do processo de construção do seu imaginário.
Pois, ele tira da sua própria realidade a matéria prima para o seu devaneio poético,
inclusive da sua própria experiência religiosa
Nesse poema percebemos também outros elementos próprios da região
amazônica, o canoeiro e o rio. Nele o autor traça essa relação entre o mito o
canoeiro, o ribeirinho que desde o princípio de tudo já estava lá, ele navegando pelo
rio e fazendo poesia no rio a linguagem. Pois, o mito na Amazônia está relacionado
com o processo de criação, poesia.
70
3.2.9 “Cântico XVI”
[...]
Crista de onda,
manto de Cristo...
Rionazareno.
A consciência em si
é o descaminho
É o sempre aquém do ser
que sonha além?
71
será no futuro. Dessa maneira, a temática dessa obra perpassa pela destruição da
sociedade, a mortalidade dos índios e o fluxo de ribeirinhos que deixam a região
onde moram e começam a passar situações de miséria na cidade. Assim, a maioria
dos poemas desse livro levam no título Deslenda, para ressaltar esse processo de
perda. O primeiro poema a ser analisado é o Deslenda cristã I:
Nesse poema acontece, mais uma vez, a referência a Jesus, porém por traz
dessa referência está velada uma crítica à forma de exploração agrária. Nesse caso
a região amazônica é comparada a Jesus e tudo o que ele passou no momento de
sua estada no mundo. Assim acontece com a Amazônia explorada. Antes a terra era
vista como uma espécie de presente de Deus para os homens e até então essa
relação não havia sido contestada.
[...]
Senhor,
por que me abandonaste
aos que me crucificam
em minha terra
em meu salário
em minha fome...
Senhor,
por que me abandonaste
aos que lançaram dólares
em minha terra
em meu salário
em minha fome...
72
Senhor,
por que me abandonaste
aos que me amortalham
em minha terra
em meu salário
em minha fome...
Tomai e comei
este é meu corpo
redividido em lucro e latifúndio.
Tomai e bebei
este é meu sangue
redividido em ouro e minérios.
Comei e bebei
este é meu povo
redividido em braço e mais-valia. (LOUREIRO, 2000, vol. I, p.109-113)
[...]
No poema a seguir temos, mais uma vez, uma referência a uma paisagem
mítica da região, por meio dos elementos Lua e Sol. Na simbologia, a lua é vista
como uma figura feminina, sobretudo, por causa do antigo ideograma yin, um corpo
celeste que recebe a luz passivamente, também é considerada um símbolo feminino
por analogia ao mês lunar e ligação ao ciclo menstrual, dessa forma podemos
entender a referência feita no poema abaixo:
73
3.2. 12 “Amazônia! Amazônia”
Paisagem mítica
Foi Baíra quem criou o sol e a lua.
O sol é homem
a lua é mulher.
Fez o membro do sol
da raiz da paxiúba
e da raiz do apuizeiro
fez a fenda
do enluado sexo da lua.
O sol, solteiro homem, sai de dia.
A lua, que é mulher, de noite sai.
Cada qual compreende seus deveres.
Na terra, como o sol, nasceram os homens.
E, como a lua, saíram-se as mulheres. (LOUREIRO, 2000, vol. I, p.119)
74
entram em questão, a sexualidade, a fecundidade, a mitologia da mulher, e da terra,
por isso, a experiência religiosa torna-se mais concreta e intimamente mistura à
própria vida.
3.2. 13 “Itinerário”
Coração persistente
no ventre
mãe.
Oh! vínculo vicinal
umbigo e terra,
que nem a lâmina do rio
e a idade cortam.
Tão leve e alado sigo
em busca do sagrado,
que frágil me deparo
ante o impuro
e me deploro nu
ao pé do agora
nesta Belém grelando em barcarenas
recomposta de barros e memórias
75
onde
estruturas de amor
originamos... (LOUREIRO, 2000, vol. I, p. 215)
76
Angústia de buscar-me
nas alcovas
arruinadas de uma casa ausente.
Foi ali que nasci
O cheiro de alfazema
Que outros nasceres inundaram a casa
ainda evola das cinzas.
Foi ali que nasci.
Embora vendo
Esse destino de chamas
das salas e varandas e cortinas
pensei:
„Foi então que morri‟ (LOUREIRO, 2000, vol. I, p.266).
Longe
o horizonte industrial.
O arco-íris retesa-se a lançae
flechas de chuva.
Versos pés ante pés pombos páginas caminham...
Na calçada pública da igreja
um índio pede esmolas.
77
Óculos escuros
pés descalços
um índio pede esmolas.
Pelas frestas dos vitral
Alguma coisa sangra.
Em tudo a sombra do Calvário.
O índio
- maracá na mão-
perdida a auréola, o cocar,
com voz de canto chão,
o índio conta uma vaga história
a troco de moedas.
O poema mencionado revela o que aconteceu com o índio que perdeu tudo
no que acreditava, sua cultura sua crença, sua tribo. E nesse momento se encontra
sem nada em frente à uma igreja, com óculos escuros, descalço, mas com o maracá
na mão. Tenta conseguir algum dinheiro, porém só conhece estórias que poucas
pessoas que passam estão dispostas a ouvir. São histórias sobre lendas e mitos do
seu povo, o que confere a interdiscursividade ao poema.
O índio é comparado a um anjo que perdeu sua aureola, pois ele perdeu o
seu cocar, o que lhe conferia a sua identidade. Relembra à festa de Tocandira, a
festa possui esse nome em referência as formigas de ferroadas dolorosas, nessa
festa eram celebradas as núpcias dos índios Maués.
O índio também faz referência ao boto figura mítica da Amazônia, uma
espécie de golfinho. É um ser encantado, habitante das encantarias do fundo dos
rios. Transforma-se em um belo rapaz e seduz as mulheres que habitam as regiões
ribeirinhas. Por fim, o índio em meio as suas histórias e pedindo suas esmolas,
revela no final que ele não quer dinheiro necessariamente, mas sim, a sua vida de
volta que foi roubada no período da colonização, e como ele está em frente a uma
igreja, podemos dizer que ele está pedindo de volta a sua crença.
Os próximos poemas fazem parte da coleção As encantarias, esses poemas
são especialmente voltados para os encantados da Amazônia. A partir desses
encantados e das referências aos mitos é que vão se configurar a intertextualidade
religiosa desses poemas. Como podemos perceber em seguida:
79
Esse nome despontou um dia
por sobre os promontórios da linguagem,
na crispação dos fonemas
atormentados em busca de sentido.
(Quem saberá dos peraus
onde renasce
o verbo inicial em cada nome?)
Estava ali o nome vestido de vogais
arcado de consoantes.
Duas sílabas querendo decidir o mundo
e dividir a vida em dois
- quem ama, quem não ama...
A palavra brotando como canto
no vale do silêncio,
ou como o botão de flor de um ai! Numa garganta,
ou como a brusca insurreição de um coral de primaveras.
[...]
Eu te saúdo nome-falus
Como encantado que és
80
e te celebro
nesse cantar que se mantém cativo
do mesmo encantamento que cativas.
Tu que meu canto acorda em leito de morfemas
e te ergue pelas mãos de um verso heróico,
desde a pátria de hexâmetros de Homero
até as encantarias deste poema...
Oh! tu
que levas aos mortais
o leve salto no abismo da paixão humana.
A ti eu canto!
Tu que vens e vais, voltas não-voltas,
feito esse adeus que um deus paralisou na forma de uma lua.
Tu que arrastas a noite como um manto imenso
tal como a vela arrasta o infinito,
tal como a vela arrasta o lençol dos oceanos.
A ti eu canto!
Celebro teu ser em festa nas festas do teu ser.
Celebro a música que adorna teu silêncio,
a pura sedução de teu segredo,
a doce transgressão de teu delírio.
A ti eu canto!
cavaleiro do vale entreaberto em coxas no horizonte de algum ventre,
personagem das mil e uma noites
das várzeas, dos peraus, dos igapós...
[..]
Eu te consagro aqui
grande esperado,
que a eterna espera faz teu ser eterno.
Oh! filho de Dionísio, neto de Selene.
Errante cavaleiro do sagrado
Instalado em palavra que te instala
Como tronco submerso em rio de encantarias.
Vocábulo lançado na essência da linguagem
como um dado,
como carta de um baralho e seus arcanos.
No vale do desejo e do poema
palavra pertencida que pertence,
81
edificando tempo articulado
de sentido e som, violino e arco.
Revelação por si mesma revelada, tua essência
é luz o vitral das aparências,
pura aparência que se faz essência
para ser.
Amor que vem à luz numa palavra inscrita no destino,
teu ser irrompe no nome como um jorro
tronco
da funda encantaria da linguagem.
[...]
82
Os mitos amazônicos, os „encantados‟ que habitam as „encantarias‟ -
espécie de Olimpo submerso nas águas dos rios da Amazônia - são
compreendidos por sua aparência estetizada e por meio dela garantem a
força abstrata de sua duração. Eles não falam, não dialogam, não
sentenciam, eles não emitem preceitos morais. Revelam-se como imagens
de pura aparência. Uma espécie de epifania. Atravessam as galerias do
imaginário ribeirinho como iluminações, nunca etnocenografia, hierofânica,
um puro deslizar de alegorias. (LOUREIRO 2008, p.26).
10
Poema ou cântico de veneração louvor ou invocação à divindade.
83
sacerdote de Dionísio / vagas na margem dos rios e do desejo. Dionísio é
caracterizado como o deus da fertilidade e é considerado como:
¹Depois aconteceu o seguinte Absalão filho de Davi tinha uma irmã muito
bonita de nome Tamar, e Amnon filho de Davi apaixonou-se por ela, aponto
de sofre e ficar doente por causa da sua irmã Tamar. É que ela era virgem e
portanto parecia impossível aproximar-se dela. Ora, Amnon tinha um amigo,
seu nome era Jonadab filho de Sama, irmão de Davi. Jonadab era homem
muito esperto. Ele interpelou Amnon: „Caro príncipe, por que andas cada
manhã com rosto mais abatido? Que tal se te abrisse comigo?‟ Amnon
respondeu-lhe: „Eu amo Tamar, irmã do meu irmão Absalão. Então Jonadab
lhe disse: deita-te na cama como se estivesse doente, e quando teu pai vier
visitar-te, lhe dirás: Deixe minha irmã Tamar vir aqui, para me dar de comer;
que ela prepare a comida na minha presença, para que eu a veja e coma de
sua mão. [...] Depois Amnon disse a Tamar: traze a comida para o meu
quarto, de modo que possa comer de tua mão. Tamar tomou os bolos que
tinha feito e os levou para o quarto do seu irmão Amnon. Mas quando lhe
apresentou comida ele a agarrou a força e disse: Vem e deita-te comigo,
minha irmã! Ela respondeu-lhe: Não faças isso, meu irmão! Não me
violentes, pois isto não se faz em Israel! Fala com o rei. Ele certamente não
recusará entregar-me a ti. Mas ele não quis ouvi-la, apoderou-se dela a
força e a violentou, deitando-se com ela. Depois Amnon foi tomado de
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profunda aversão contra ela, uma aversão ainda mais forte do que o amor
que lhe tivera. Por isso lhe disse: Vai-te embora e some daqui! Ela
respondeu: isto não, meu irmão! Pois escorraçar-me agora seria uma
infâmia ainda pior que a outra que cometeste contra mim! Mas ele não quis
ouvi-la. Chamou um dos moços que o serviam e lhe deu a ordem: Põe esta
mulher para fora daqui e tranca a porta! Ela usava um vestido de mangas
compridas – pois era assim que se vestiam as princesas virgens. Então o
servo a colocou para fora e trancou a porta. Tamar tomou poeira e a lançou
sobre a cabeça, rasgou o vestido de mangas compridas, pôs as mãos na
cabeça e se retirou gritando sem parar. Seu irmão Absalão lhe perguntou:
Teu irmão Amnon esteve contigo? Bem, por ora fica calada, minha irmã,
pois afinal ele é teu irmão... Não te aflijas por isto! (BÍBLIA SAGRADA,
2005, 2SAMUEL, 13, 01-20).
E o segundo motivo é por ela melhor representar o valor religioso por meio da
estrutura e da função do símbolo, nesse poema a sacralidade da água é
representada pelo rio. Logo, os encantados todos se revoltam com que aconteceu,
no rio sagrado, a Iara ser mitológico indígena que é considerada a mãe-dágua,
também conhecida por ser a protetora dos rios, vaga atônita. O uirapuru ave canora
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se calou, o boto ser mitológico mais conquistador ficou em pânico, nenhum
encantado aceitou a relação entre os dois irmãos, por isso eles foram punidos, foram
arrebatados para o reino da encantaria, onde se encantaram.
Daí surge o sagrado para Otto (1992) dessa função simbolizante que existe
entre o homem e aquilo considerado incompreensível ou misterioso. A poesia de
Paes Loureiro reflete esse imaginário composto pelos mitos amazônicos, desperta
uma consciência religiosa do homem em relação à natureza que ele considera
encantada. Dessa forma, o tema central das poesias está permeado pelo conceito
estético-religioso que possuem as encantarias.
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O princípio estetizante que compõe o sentimento religioso do homem
amazônico, consiste a realidade de uma espécie de afetividade cósmica e faz dela
uma transfiguração, haja vista que o simples natural abandona o seu modo comum e
é elevado à condição de símbolo, de referência significativa do sentimento religioso
das encantarias.
Isso nos remete à similaridade entre a poética do imaginário, que é o
processo estetizante que o homem aplica à natureza, transformando-a em símbolo
por meio do discurso mítico, e a encantaria da linguagem que assume, através do
trabalho do poeta, uma função de memória da cultura sagrada, pois é por meio da
linguagem que o sagrado é transmitido.
Em ambos os processos, da poética do imaginário e da encantaria da
linguagem, encontramos o processo poético como forma de elaboração imaginal que
confere a realidade de sentido, sendo, pois, uma tentativa do homem em referir o
mundo, em apresentar os conteúdos imaginativos a partir de uma linguagem que
crie uma possibilidade de existência.
Portanto, compreendemos que ao referir a poética do imaginário, a maneira
como se apresenta o imaginário religioso do homem amazônico, Loureiro assume
como condição de sua poesia da encantaria a função de atualizar aspectos do
imaginário amazônico, fazendo da poesia essa forma de memória coletiva, uma
espécie de inventário estético das encantarias, essa cultura considera sagrada.
Assim, percebemos ao longo desse trabalho que a produção literária de João
de Jesus Paes Loureiro estabelece em seus poemas uma “arte poética” que sofre
influencia direta dos mitos amazônicos, essa arte é caracterizada como encantaria
da linguagem, no qual o sagrado sobrevive porque é transmitido e a poesia de
Loureiro é a responsável por realizar essa tarefa.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Por fim, esperamos que essa dissertação contribua para uma maior
compreensão da produção poética de João de Jesus Paes Loureiro. Pois, ao
considerarmos que suas poesias são de ampla carga simbólica, estamos
constatando que há nelas diversas possibilidades de abordagens, sendo, pois, o
viés que pauta nosso trabalho, apenas mais um percurso de compreensão.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MOISÉIS, Carlos Felipe. Poesia e utopia. São Paulo: Escrituras Editora, 2007.
SANTOS, José Luiz. O que é cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
SILVA, Nivaldo Carlos Lima da. As formas dos mitos nos cantares amazônicos
do poeta João de Jesus Paes Loureiro. Dissertação de mestrado – Universidade
Federal do Pará. Belém, 2009.
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Centro de Ciências Sociais e Educação
Curso de Mestrado em Ciências da Religião
Tv. Djalma Dutra s/n – telegrafo
66113 – 200 Belém – PA
www.uepa.br
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