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• A partir do século XV, os europeus levaram o seu direito para outras zonas do mundo. Este
processo, no entanto, deve ser visto como um fenômeno muito complexo, em que as
transações jurídicas se efetuam nos dois sentidos, e a violência se combina com a aceitação.
O direito e a justiça
• O direito em vigor no império era, em princípio, o direito português, tal como estava contido
nas Ordenações, legislação real e doutrina vigentes no Reino. No entanto, este princípio não
levava a uma pura e simples aplicação territorial do direito do Reino.
◦ Entravam aqui em funcionamento as normas de conflitos do direito comum que
regulavam os critérios pelos quais se decidia a aplicação do direito de um reino.
◦ Nesta época, predominava a teoria estaturária, segundo a qual o direito do reino só se
aplicaria, em princípio, aos seus naturais. Este princípio conhecia algumas limitações,
inspiradas por soluções casuísticas, bem como por razões de equidade.
▪ Os que se tornassem escravos passavam a estar sujeitos às leis do reino, como
membros de uma comunidade doméstica portuguesa.
▪ Nas relações mistas, os portugueses procuravam chamar a outra parte para o foro
régio, embora existissem normas destinadas a proteger os nativos dos abusos dos
europeus na utilização de um foro e de um processo que estes dominavam e
utilizavam a seu bel prazer.
▪ Também se verificavam situações em que os portugueses se submetem às justiças
locais.
◦ Nos casos normais, mesmo que juízes portugueses tivessem jurisdição sobre nativos, o
julgamento destes nas questões entre eles teria que decorrer de acordo com o direito
indígena, exceto nos casos em que estivessem em causa valores supremos, de natureza
política ou religiosa.
◦ Existia outro princípio que era dominante sempre que a questão a regular estivesse
relacionada com a afirmação de poder do príncipe, na qual o direito do reino tinha
aplicação territorial.
▪ Em suma, para o direito português, o âmbito de aplicação espacial das ordens
jurídicas portuguesa e indígena era o produto da compatibilização destes dois
princípios:
• Personalidade do direito – questões de estatuto pessoal.
• Ligação entre direito e soberania territorial – estaturo político ou bens imóveis.
• O pluralismo jurídico se explica por questões de razões de ordem prática, uma vez que
representava uma enorme economia de meios para a administração colonial. Mas eram,
ainda, confirmadas por razões mais profundas:
◦ Discussões acerca de questões como as da legitimidade da guerras de conquista, etc.
◦ Teólogos da Segunda Escolástica peninsular tinham autonomizado a natureza em relação
à fé e, consequentemente, achavam que as instituições dos povos ou comunidades
deviam ser respeitadas, independente da ortodoxia religiosa desses povos.
▪ Fundamentado na ordem natural do homem, definido como um ser racional e
sociável, portador de uma única natureza. O que minava ideias de supremacia dos
poderes e instituições cristãs sobre os restantes, consequentemente, minando a
legitimidade de obrigar outros povos a aderir à mensagem de Cristo, e, sob um ponto
de vista mais macro, minando qualquer superioridade de uma cultura sobre outra.
• Francisco de Vitoria – tratado sobre os índios
◦ O pecado mortal não impede a propriedade civil de ser uma verdadeira propriedade.
◦ A infidelidade não é impedimento de que alguém seja verdadeiro proprietário.
◦ A guerra tinha que ser justa, defensiva
• As guerra justas ofensivas:
◦ Interdição de divulgar a mensagem cristã, que devia ser ouvida, independentemente da
sua aceitação.
◦ A violação da paz
◦ A opressão injusta de inocentes
◦ O impedimento do comércio pacífico
• As guerras injustas que eram realizadas:
◦ Guerra ordenada pelo Papa
◦ A conversão forçada ao cristianismo
◦ A pretexto da prática pelos indígenas de atos considerados bárbaros ou depravados.
• Injusta a guerra, era também qualquer ato que decorresse dela, como:
◦ A destruição das comunidades indígenas
◦ A apropriação dos seus bens
◦ O cativeiro dos seus membros
◦ A conversão ao cristianismo
• A justificativa das cruzadas era territorial, mas não abrangia a América, África meridional
ou o Extremo Oriente.
• Este universo ideológico contrapunha-se, porém, a outros, de sentido diverso. Um deles era
o da oposição entre comunidades civilzadas e comunidades rústicas, que reduzia as últimas a
uma situação de menoridade civil e política, legitimando, pelo menos, uma tutela
civilizadora. E, de fato, muito dos povos nativo eram "tutelados" como se fossem crianças.
◦ Dominngo de Soto reconhece que existem nações que nasceram para servir e que,
portanto, devem ser subjugadas pela força. Esta subjugação podia até ser justificada
como uma medida de misericórdia por pessoas oprimidas por ordens nativas injustas e
cruéis, como seriam as destes selvagens.
▪ Assim, os nativos eram os inimigos, o que explica a tensão entre a legislação do
reino que proibia a escravização dos nativos e as pretensões esclavagistas e de
extermínio normais entre os colonos.
◦ Assim, a guerra se justificava por alargar a fé e o reino.
• Não obstante, tanto as situações políticas como os imaginários dominantes confluem num
reconhecimento amplo da vigência de direitos locais, embora sempre limitado pela ideia de
que a submissão política devia ter consequências no plano do direito que hoje chamamos
público e de que o objetivo de cristianizar e de civilizar podia levar a limitações na esfera de
auto-organização e de autorregulação dos povos indígenas.
• Algumas comunidades tiveram um regime jurídico especial, pois eram regidas pelo seu
próprio direito e governadas por autoridades indígenas.
◦ Deste modo, evitava-se aquilo que fontes da época descrevem como a fúria litigante dos
hindus, que, por questões mínimas, destruiriam as fazendas em intermináveis duelos
morais perante os ouvidores letrados oficiais.
◦ Embora os cristãos tenham um direito próprio na ordem jurídica gentia, beneficiando-os,
com o intuito de atrair fiéis.
▪ Tal proteção no plano civil e político baseava-se justamente na existência de regimes
jurídicos mais favoráveis e no reconhecimento de um poder de tutela por parte de um
curador coletivo. Assim, os indígenas cristãos nem gozavam da plenitude da
capacidade jurídica perante o direito do reino, nem se desligavam completamente da
ordem jurídica local.
◦ Em 1587, a justiça sobre os chineses não competia às autoridades portuguesas, não
podendo os ouvidores portgueses interferir na jurisdição que o mandarim do distrito de
Macau tinha sobre as questões internas da comunidade chinesa residente em Macau.
Salvo os casos de relações mistas.
• No Brasil, pode falar-se de um duplo particularismo do direito.
◦ O direito metropolitano era apropriado pelas comunidades colonas locais e suas elites,
bem como era adaptado às circunstâncias locais pelos tribunais e juízes da terra.
◦ A vivacidade da autorregulamentação local das comunindades colonas tem vindo a
ganhar evidência. Tem-se salientado o poder político e de auto governo das elites das
terras, a manipulação que faziam os funcionários e instituições da coroa, a autonomia
dos oficiais locais, bem como a sua capacidade de construir um poder próprio a partir da
confusão jurisdicional e da distância que os separava da coroa e dos seus agentes.
▪ Explicado com uma metáfora, descrevendo a situação do Sol em analogia ao rei.
• Em algumas ocasiões os indígenas faziam a própria república e justiça, que, as vezes, eram
reconhecidas formalmente pelos portugueses.
• O caso da Angola fornece elementos sobre a complexidade das relações entre os direitos
indígenas e o direito dos colonos e da metrópole. Por um lado, as autoridades coloniais
apareciam a julgar segundo o direito indígenas e de acordo com as suas praxes processuais.
◦ Por vezes, isso permitia controlar o julgamento de questões entre indígenas cujo
desfecho interessava aos colonos, revelando um oportunismo jurisprudencial.