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Curso Integral

O estatuto da psicologia
2007 (12 aulas)

Curso ministrado no
Instituto de Psicologia
Universidade de São Paulo

Prof. Vladimir Safatle


O estatuto da psicologia
Aula 1

Uma questão de método e de objeto

“É inevitável que, ao propor-se como teoria geral da conduta, a psicologia faça sua alguma
idéia de homem. Faz-se necessário então permitir à filosofia perguntar à psicologia de onde
ela retira tal idéia e se não seria, no fundo, de alguma filosofia” 1. Esta questão de método
enunciada por Georges Canguilhem em um texto célebre a respeito dos fundamentos
epistemológicos da psicologia servirá de base para o desenvolvimento de nosso curso.
Trata-se aqui de apresentar uma certa tradição de reflexões sobre o estatuto
epistêmico da psicologia, da psicanálise e das ciências médicas que se desenvolveu em solo
francês principalmente entre os anos vinte e sessenta do século passado. Tal tradição,
embora não seja, no sentido forte do termo, uma Escola (já que era composta por
pensadores cujos programas de pesquisa eram bastante autônomos entre si), foi marcada
por uma partilha de problemas e de dispositivos de crítica determinantes para a constituição
de um modo particular de encaminhamento de questões derivadas da tentativa em
fundamentar práticas clínicas. Pois no interior desta tradição encontraremos a defesa de que
as práticas clínicas, principalmente aquelas próprias aos fatos psicológicos, seriam
dependentes, de maneira fundamental, de decisões prévias e muitas vezes não tematizadas a
respeito dos padrões de racionalidade da observação, da intervenção terapêutica e,
principalmente, da definição do objeto próprio à psicologia. Neste sentido, seguindo a
afirmação de Canguilhem, a reflexão epistêmica sobre a psicologia seria, necessariamente,
uma reflexão sobre a maneira com que uma certa antropologia filosófica guiaria, de forma
insidiosa, a racionalidade da direção do tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo
momento, remetida a uma raiz metafísica a respeito da qual ela não seria capaz de se livrar.
Raiz metafísica que nos colocaria diante da necessidade em responder uma pergunta maior,
a saber: uma prática clínica pode abstrair de pôr, em seu horizonte de racionalidade, uma
concepção de sujeito que se desdobre em uma teoria da conduta racional, base da definição
do que se define como patologia mental ?
A tradição de reflexão a qual me refiro nunca deixou pois de colocar, à clínica dos
fatos psicológicos, duas questões maiores: o que fundamenta seu método de observação,de
intervenção e o que particulariza seu objeto, ou seja, em que condições podemos dizer
estarmos diante de um fato psicológico que pode ser reportado a um sujeito? Uma questão
de método e uma questão vinculada ao estatuto de seus objetos que converge para um
problema central que guiará o desenvolvimento do nosso curso, a saber; qual o estatuto da
objetividade dos fenômenos subjetivos? Seria ele dependente da objetividade própria aos
fenômenos físicos e orgânicos? Ou ainda: há, de fato, algo como “fenômenos subjetivos”
ou eles nada mais são do que fenômenos orgânicos descritos em um vocabulário
inflacionado do ponto de vista metafísico? Como dirá Michel Foucault, na primeira frase
que abre seu primeiro livro, Doença mental e psicologia: “Duas questões se colocam: sob
quais condições pode-se falar de doença no domínio psicológico? Quais relações é possível

1
CANGHUILHEM, Georges, Qu´est ce que la psychologie?, p. 367
estabelecer entre os fatos da patologia mental e os da patologia orgânica?” 2. Estas questões
estão no horizonte de toda e qualquer reflexão epistêmica sobre as práticas clínicas de fatos
psicológicos.
Alguém que ouve questões desta natureza, poderia tentar esvaziá-las afirmando que
aquele que se interessa pela clínica não precisa perder seu tempo tentando resolver
intrincadas questões filosóficas sobre a essência do sujeito, assim como questões
epistemológicas a respeito da objetividade de fenômenos subjetivos. Pois a clínica mediria
sua correção a partir da eficácia em relação à cura do sofrimento. Esta profissão de fé da
soberania da clínica nos lembraria: para além de toda e qualquer questão de método e de
definição de objeto, a clínica está sempre diante de uma realidade inabalável, a saber, o
sofrimento do paciente. Minorar o sofrimento é nossa função e o único critério de
orientação da clínica. Um pouco como se a eficácia terapêutica em relação a uma categoria
fenomênica extremamente normativa como o “sofrimento” fosse condição suficiente para
assegurar a validade de dispositivos clínicos.
Lembremos apenas o que tal perspectiva tem de ideológica. Pois é ideológico todo
sistema de saber e de orientação da praxis que procura naturalizar seus dispositivos de
justificação como se estivéssemos diante de “fatos que falam por si mesmo”. Neste sentido,
podemos perguntar: afinal, o sofrimento é um “fato que fala por si mesmo” ou é um
fenômeno que é levado a falar no interior de contextos sócio-históricos determinados?
Podemos, por exemplo, tirar as conseqüências de afirmações como esta, de Foucault:
“Desde o século XVIII, a medicina tem tendência a narrar sua própria história como se o
leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experiências constante e estável, em
oposição às teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudança e mascarado, sob
sua especulação, a pureza da evidência clínica”. Na verdade, tudo se passaria como se : “Na
aurora da Humanidade, antes de toda crença vã, antes de todo sistema, a medicina residia
em uma relação imediata do sofrimento com aquilo que alivia” 3. Tal pressuposição de
imediaticidade, no entanto, esquece como “o que nos faz sofrer” muda constantemente de
configuração. Poderíamos tentar dizer que a experiência da dor é algo que ancora o
sofrimento em um solo inquestionável e indiferente a contextos. Mas, novamente, não seria
difícil lembrar como não há nenhuma relação imediata entre a dor física e o desprazer de
um sofrimento vivenciado como doença que leva sujeitos a se submeterem à clínica. Basta
lembrar aqui das palavras de um “psicólogo”, Nietzsche: “Só a grande dor, esta longa e
lenta dor na qual queimamos como madeira verde nos obriga, a nós filósofos, a descer em
nossas profundezas e a nos desfazer de toda confiança (...) Duvido que tal dor nos deixe
melhor, mais eu sei que ela nos aprofunda”4
Sendo assim, se aceitarmos a inconsistência de um discurso sobre a soberania da
clínica que procure se legitimar através de uma pretensa imediaticidade do sofrimento,
então poderemos começar a medir a importância de questões vinculadas ao método e a
definição do objeto da clínica dos fatos psicológicos.
No interior da tradição que estudaremos, as respostas a tais questões foram distintas
e nem sempre convergentes. No entanto, elas constituirão um sistema de relações no qual
respostas posteriores nunca deixarão de fazer referência, mesmo que de maneira
relativamente implícita, as respostas precedentes. É a este sistema de relações dialógicas

2
FOUCAULT, Michel; Maladie mentale et psychologia, p. 1
3
FOUCAULT, O nascimento da clínica, pp. 59-60
4
NIETZSCHE, A gaia ciência - introdução
onde a resolução de um problema é sempre, ao mesmo tempo, posição em relação a um
modo precedente de enunciar tal problema, que damos o nome de “tradição”.
Georges Politzer, Maurice Merleau-Ponty, Georges Canguilhem, Michel Foucault,
Jacques Lacan. Todos estes nomes fazem parte de uma tradição de reflexão sobre a clínica
dos fatos psicológicos que marcou, de maneira decisiva, o cenário intelectual francês. É ela
que será nosso objeto de estudos neste semestre.
Em comum, tais nomes partilham uma base teórica que parte, em maior ou menos
grau, da sensibilidade às questões epistêmicas postas à clínica pelo advento da psicanálise
freudiana e da Gestalttheorie (e, em alguns casos, pelo behaviourismo). Sensibilidade que
os levam a questionar todo privilégio dado à noções como vida interior e introspecção, a
criticar toda perspectiva atomística na compreensão dos fatos psicológicos e todo
materialismo reducionista, isto em prol da defesa do centralidade das relações entre
organismo e meio ambiente, entre sujeito e meio social. A Gestalttheorie teria demonstrado
como o fato psicológico não era a simples percepção de dados sensoriais, mas um ato de
conhecimento que implica a atualização de estruturas globais de orientação da conduta, o
que, como veremos, significa deslocar o objeto de preocupação da psicologia, da análise
atomizada das funções intencionais (como, por exemplo, atenção, memória, emoção,
sentimento, volição etc.) para as estruturas que determinam o modo global de relação entre
indivíduo e meio. A psicanálise, por sua vez, teria sido responsável não apenas pela
desmedicalização das práticas clínicas através da compreensão da força performativa da
fala e da auto-reflexão, mas principalmente pela determinação dos sintomas como modos
de manifestação de demandas sociais de reconhecimento que revelam processos de
formação da história do desejo de um sujeito com suas representações maiores de confronto
com instâncias de socialização. Como se a psicanálise exigisse a submissão de toda direção
do tratamento a uma elaboração de processos de formação subjetiva.
Por outro lado, todos eles estão também engajados em um combate sem tréguas
contra o que aparece como uma falha epistêmica aberta no coração da clínica dos fatos
psicológicos. Como dirá Politzer, em um acento aceito por todos eles: “Sabemos que a
história da psicologia há cinqüenta anos é apenas uma epopéia de desilusões e que, ainda
hoje, novos programas são lançados todos os dias para fixar as esperanças novamente
disponíveis”5. Canguilhem continuará com a mesma verve ao dizer: “Na verdade, vários
trabalhos de psicologia dão a impressão de misturar, a uma filosofia sem rigor, uma ética
sem exigência e uma medicina sem controle”6.
Esta falha epistêmica estaria vinculada, principalmente, a uma herança dualista que
ainda guiaria os desenvolvimentos da psicologia. Ou seja a definição do objeto da
psicologia, assim como seu desenvolvimento, estariam ainda marcados por um certo
“dualismo cartesiano” a respeito da relação entre mente e corpo (dualismo que, diga-se de
passagem, não é completamente imputável a Descartes, como veremos em outras aulas).
Isto teria feito com que o desenvolvimento da psicologia oscilasse, indefinidamente, entre
um certo privilégio da liberdade da espontaneidade da consciência a despeito da
causalidade orgânica, isto através de um subjetivismo assentado no uso clínico de noções
como “instrospecção”, “interioridade”, “intuição” e uma acentuação inversa vinculada á
pura essencialidade da causalidade orgânica, isto através de um materialismo reducionista
para o qual todo fato psicológico deve ser reduzido a fatos orgânicos. Diríamos atualmente
que tal perspectiva materialista vê todo estado mental apenas como uma maneira mais
5
POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie, p. 2
6
CANGUILHEM, idem, p. 366
confusa de nomear estados cerebrais e processos físicos, o que, no limite, nos levaria a
questionar a própria realidade de uma noção como a de “consciência”. Limite este que foi
transposto por alguns nomes maiores da filosofia anglo-saxã da mente, como Daniel
Dennet.
Mas, para esta tradição de reflexão sobre a clínica dos fatos psicológicos que será
nosso objeto de estudos, tratava-se de recuperar uma perspectiva monista na definição dos
fenômenos vinculados à subjetividade, mas sem que isto implicasse em redução
materialista. No entanto, viabilizar tal monismo não-reducionista significava problematizar
a própria concepção de sujeito pressuposto pelas práticas clínicas a fim de se livrar do peso
do dualismo. Por outro lado, tratava-se também de determinar a especificidade das
determinações causais em operação na constituição dos fatos psicológicos, em especial na
definição do que estaria em jogo em uma “doença mental”.
Assim, duas vias complementares se abriam para a reflexão epistêmica sobre a
clínica. A primeira dizia respeito à crítica das figuras do sujeito (ou dos modos de negação
do sujeito) pressupostas pelos métodos e direções do tratamento de práticas clínicas
hegemônicas. Crítica que poderia chegar ao desvelamento de como, através da
pressuposição de certas estruturas da subjetividade como horizonte da clínica, a psicologia
mostrava que sua essência era ser uma “prática disciplinar” que visava, na verdade, formar
subjetividades através da constituição de quadros de patologias Maneira de submeter a
reflexão epistemológica a uma crítica do poder, crítica que visava, principalmente,
demonstrar como as exigências de racionalidade podem ser invertidas em processos de
dominação. Michel Foucault, principalmente através de seus trabalhos que visavam
demonstrar como a razão determinava e era solidária do seu Outro (a loucura) é um nome
maior desta tendência. Lembremos, por exemplo, do sentido de sua afirmação: “Há uma
boa razão para que a psicologia nunca possa dominar a loucura; é que a psicologia só foi
possível no nosso mundo uma vez dominada a loucura e já excluída do drama” 7. Ou seja, a
experiência trágica e dramática da loucura, experiência no interior da qual a própria partilha
entre razão e loucura advém nebulosa, não é objeto da psicologia porque a psicologia é
solidária de uma determinação da loucura através de processos de constituição de estruturas
nosográficas que são, na verdade, fenômenos da ordem das práticas de dominação. Como
se a verdadeira mola do poder não estivesse diretamente vinculada à determinação positiva
de padrões de conduta, mas à gestão dos modos de ruptura da norma racional. Uma
perspectiva que, de uma certa forma, encontramos também em Jacques Lacan, quando este
afirma: “A psicologia é veículo de ideais: nela, a psique não representa mais do que o
patrocínio que a faz qualificar de acadêmica. O ideal é servo da sociedade” 8. Ideal que se
manifesta mais através da determinação do patológico do que através da enunciação da
norma.
Tais críticas a respeito daquilo que forneceria os fundamentos de decisões clínicas
sobre perspectivas de orientação de dispositivos de intervenção devem, no entanto, abrir
espaço para um conceito positivo de razão que fornecer fundamentos renovados para a
clínica dos fatos psicológicos. Veremos como cada um dos nomes que estudaremos tentou
dar conta desta questão, seja negando a própria autonomia da clínica através de um recurso
a alguma forma de guinada ética (Foucault), seja através da reconstrução da clínica sobre
novas bases fornecidas pela psicanálise (Lacan), por uma reavaliação da medicina
(Canguilhem) ou por gêneros de hermenêutica (Politzer).
7
FOUCAULT, Maladie mentale e psychologie, p. 104
8
LACAN, Ecrits, p. 832
Estrutura do curso

A fim de viabilizar tais objetivos, o curso será dividido em quatro módulos. Cada
módulo, irá durar de 3 a 5 aulas e será estruturado a partir de um texto-base a ser
comentado; texto cuja leitura é obrigatória. Textos suplementares serão indicados para
fornecer suportes de compreensão. Os módulos estão dispostos em ordem cronológica, isto
a fim de permitir a identificação das matrizes de constituição da tradição epistemológica
que estudaremos.
O primeiro módulo é dedicado a Georges Politzer e o texto-base será Crítica dos
fundamentos da psicologia. Como texto de apoio, serão disponibilizados Georges Politzer:
sessenta anos da Crítica dos fundamentos da psicologia, de Bento Prado Júnior e dois
capítulos de O conceito de mente, de Gilbert Ryle, intitulados: O mito cartesiano e
Psicologia.
O livro de Politzer, escrito em 1928, foi saudado como um acontecimento no que
diz respeito à reflexão epistemológica sobre a psicologia e a psicanálise. Seu tom
panfletário marcou uma longa geração de pensadores franceses, em especial Merleau-
Ponty, Sartre, Lacan e Foucault. Por um lado, tratava-se da primeira reflexão sistemática a
respeito do impacto epistemológico trazido pela psicanálise freudiana. Vindo de uma
tradição marxista, Politzer desenvolvia sua leitura de Freud a partir de uma perspectiva
marxista que anulava a base biologista da metapsicologia, ainda vinculada à psicofísica de
Fechner, Helmholtz, Brücke, Du-Bois Reymond e a relançava em um quadro de redefinição
das condições de compreensão do fato psicológico em geral. Era a objetividade do
subjetivo que estava em questão.
Politizer compreendia que os movimentos psicológicos contemporâneos - no caso, a
Gestalt, o behaviourismo e a psicanálise - eram ligados entre si pela tentativa de dissolver o
que ele chamava de “mito da dupla natureza humana”; ou seja, o mito do pretenso dualismo
entre mente e corpo. É de Politzer a idéia de que a psicologia anterior a estes três
movimentos teria sido apenas a elaboração nocional de tal mito através da oscilação entre
duas saídas possíveis.
Por um lado, o subjetivismo espiritualista que restituía à alma os seus direitos graças
às ilusões da imediaticidade da interioridade. Por outro, o materialismo que interpretava o
comportamento e o pensamento humano através de um paradigma reducionista ou
organicismo tal como, por exemplo, a psicologia do reflexo e as diferentes formas de
associacionismo. Faltava aos dois pólos a perspectiva de uma “ciência da primeira pessoa”,
ciência que descreve objetos que só teriam realidade ao serem conjugados na primeira
pessoa, ou seja, ciência que estados que não têm o mesmo estatuto epistêmico que estado
de coisas por dependerem da assunção de um sujeito. Estado subjetivos que, por sua vez,
tem seu sentido dependente da relação com os acontecimentos do meio no qual se desenrola
o vivido e na sua relação com o indivíduo, enquanto ele é o sujeito deste vivido. Uma
perspectiva distinta daquela adotada pelas “ciências da terceira pessoa” tal como a física,
por exemplo.
Vemos, aqui, o materialismo histórico do viés marxista de Politzer. O sentido do
fato psicológico não se encontra no desvelamento da vida interior. Ele encontra-se no todo
formado pelo “drama” subjetivo, pelas relações concretas com os outros e pela relação
conflitual com a sociedade. Daí a definição: “com efeito, um gesto que eu faço é um fato
psicológico, pois ele é um segmento do drama que representa minha vida. A maneira com
que ele se insere neste drama é dado ao psicólogo pela narrativa que eu posso fazer sobre
tal gesto. Mas é o gesto esclarecido pela narrativa que é o fato psicológico e não o gesto à
parte, nem o conteúdo realizado da narrativa” 9. O gesto em si não tem valor psicológico
algum. Somente o gesto inserido no “drama histórico” subjetivo através da narrativa que o
sujeito dele faz, demonstrando seu sentido, é que tem valor para a psicologia. Colocações
desta natureza serão fundamentais para Foucault e Lacan desenvolverem suas teorias da
doença mental.
Mas antes de analisarmos tais teorias, teremos um segundo módulo no qual será
questão de Georges Canguilhem, O texto-base será O normal e o patológico, de 1943. Os
textos de apoio, por sua vez, serão: O que é a psicologia?, do próprio Canguilhem, La vie: l
´expeérience et la science, de Michel Foucault e Canguilhem et les normes, de Guillaume
Le Blanc
Canguilhem é, sem dúvida, o nome mais eminente da epistemologia das ciências
médicas e biológicas do século XX e figura fundamental no desenvolvimento da
epistemologia das ciências humanas. Sua influência se fez sentir durante muito tempo,
principalmente devido a um de seus alunos, Michel Foucault. Dentre suas obras, O normal
e o patológico é a mais ambiciosa e sistemática. Trata-se, principalmente, de mostrar como
a partilha entre normal e patológico é solidária do que significa compreender a vida como
atividade normativa. Pois o patológico não é a pura e simples ausência de norma, mas uma
nova configuração do organismo através da implementação de outras normas na sua relação
com o meio. Canguilhem critica, desde cedo, uma perspectiva que define a doença apenas
como variações quantitativas de funções e órgão isolados em estado normal, seja para mais,
seja sob a forma de déficits orgânicos. Ao contrário, a doença é um acontecimento que diz
respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: “não há um único fenômeno
que se realize no organismo doente da mesma forma como no organismo são” 10. Quando
classificamos como patológico um sistema ou um mecanismo funcional isolado,
esquecemos que aquilo que os tornam patológicos é a relação de inserção na totalidade
indivisível de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser
doente é, para o homem, viver uma vida diferente.
Defender tal perspectiva equivale a determinar a saúde a partir da relação ativa a um
meio: “só é possível definir o estado normal de um ser vivo por uma relação normativa de
ajustamento a determinados meios”11. No entanto, esta noção de “ajustamento” será
radicalmente complexificada por Canguilhem, já que não se trata aqui de uma adaptação
simples a meios estáticos, mas de instaurar o que o filósofo chama de “margem de
tolerância às infidelidades do meio”12. Veremos, em outras aulas, o que tal margem de
tolerância pode querer significar.
Por hora, vale insistir que tal estratégia de vincular o normal a partir de uma relação
normativa de ajustamento ao meio leva Canguilhem a afirmar que não fato algum que seja
normal ou patológico em si. Eles são normal e patológico no interior de uma relação entre
organismo e meio ambiente. Colocações desta natureza serão fundamentais para a
redefinação da causalidade própria às doenças mentais, já que se trata apenas de tirar as
consequências da complexificação do meio ambiente humano. Quando se trata de norma
humana, elas são determinadas como possibilidade de um organismo agir em situação
social. No homem, os estímulos patogênicos jamais são recebidos como simples fatos
9
POLITZER, pag. 248
10
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 52
11
idem, p. 117
12
idem, p. 159
físicos em estado bruto, mas como sinais, dotados de significação, de tarefas ou de provas a
serem realizadas. Com isto, coloca-se a exigência de recorrer a um conceito de sujeito para
a própria definição da partilha entre normal e patológico.
A partir daí poderemos abordar duas perspectivas maiores para a reflexão sobre os
fundamentos da clínica dos fatos psicológicos. Uma, nos vêm de Jacques Lacan. Será
questão aqui da leitura de Proposições sobre a causalidade psíquica, texto publicado em
1950. Os textos de apoio serão: Le développement “mecaniciste” de la psychiatrie à l’abri
du dualisme “cartésien”, de Henri Ey e Lacan: a formação do conceito de sujeito, de
Bertrand Ogilvie.
Este texto de Lacan problematiza a noção de causalidade psíquica a partir da recusa
em submetê-la a uma perspectiva organicista. Seu início já é em tom polêmico, já que se
trata de criticar a “organo-dinamismo” proposto pelo psiquiatra Henri Ey. Alinhando-se a
um programa geral de racionalidade da clínica fortemente marcado por Politzer, Lacan
chega a definir a loucura como um fenômeno que: “não é separável do problema da
significação para o ser em geral, ou seja, do problema da linguagem para o homem” 13.
Maneira lacaniana de definir a causalidade da doença mental a partir da relação entre
organismo e meio ambiente, ou seja, entre sujeito e meio social cuja inteligibilidade se
daria através da sua redução á linguagem. Mas, contrariamente ao que poderíamos esperar,
não se trata aqui de definir a doença mental como desvio de adaptação em relação ao
universo simbólico implicado em todo uso da linguagem. Servindo-se de uma certa
dialética das identificações de inspiração hegeliana, trata-se de afirmar, ao contrário, que a
doença é, um pouco como veremos em Canguilhem, a impossibilidade de transcender as
determinações imediatas da percepção do meio social, impossibilidade de construir uma
“margem de tolerância às infidelidades do meio”. A clínica dos fatos psicológicos vira,
assim, clínica que não teme em re-introduzir conceitos filosóficos como “transcendência”,
“ser do homem”, “liberdade/alienação”; isto a fim de orientar seus dispositivos de
intervenção e interpretação a partir de um conceito renovado de sujeito. Como se a clínica
estivesse marcada pelo projeto de reintroduzir o sujeito no interior de um discurso com
aspirações de objetividade.
Por fim, o último módulo será dedicado à leitura de Doença mental e psicologia, de
Michel Foucault. Os textos de apoio serão os capítulos IV, VI e VII de O nascimento da
clínica.
Creio não ser novidade para ninguém aqui a importância decisiva do trabalho de
Michel Foucault no encaminhamento da reflexão epistemológica sobre o estatuto da clínica
dos fatos psicológicos. Nosso curso irá terminar mostrando como tal importância é
indissociável da maneira com que Foucault se insere no interior da tradição de reflexão que
configuramos através dos nomes de Politzer, Canguilhem e Lacan. Para tanto, vamos
analisar um livro, inicialmente escrito em 1954 mas depois totalmente reconstruído à época
de sua reedição, em 1962. momento em que Foucault já havia defendido sua tese sobre a
História da Loucura. Este pequeno livro, Doença mental e psicologia, uma porta de entrada
privilegiada para a compreensão da experiência intelectual de Michel Foucault por retomar
temas articulados no interior da reflexão filosófica francesa desde os anos vinte e por já
indicar os caminhos que Foucault trilhará em direção ao estabelecimento de sua estratégia
maior: submeter a reflexão epistemológica sobre as ciências humanas a uma genealogia do
poder e das práticas disciplinares. Submissão que aparece no horizonte desde que Foucault

13
LACAN, Ecrits, p. 166
admite que: “o homem só se transformou em uma ´espécie psicológizável´ a partir do
momento em que sua relação à loucura permitiu uma psicologia” 14. Como se a própria
normatização da vida produzisse seu outro.

14
FOUCAULT, Maladie mentale et psychologia, p. 88
O estatuto da psicologia
Aula 2

Na aula passada, vimos quais eram as coordenadas gerais responsáveis pelo


desenvolvimento deste curso. Tratava-se, principalmente, de apresentar uma certa tradição
de reflexões sobre o estatuto epistêmico da psicologia, da psicanálise e das ciências
médicas que se desenvolveu em solo francês principalmente entre os anos vinte e sessenta
do século passado. Tal tradição, embora não seja, no sentido forte do termo, uma Escola (já
que era composta por pensadores cujos programas de pesquisa eram bastante autônomos
entre si), foi marcada por uma partilha de problemas e de dispositivos de crítica
determinantes para a constituição de um modo particular de encaminhamento de questões
derivadas da tentativa em fundamentar práticas clínicas. Pois no interior desta tradição
encontraremos a defesa de que as práticas clínicas, principalmente aquelas próprias aos
fatos psicológicos, seriam dependentes, de maneira fundamental, de decisões prévias e
muitas vezes não tematizadas a respeito dos padrões de racionalidade da observação, da
intervenção terapêutica e, principalmente, da definição do objeto próprio à psicologia.
Neste sentido, a reflexão epistêmica sobre a psicologia seria, necessariamente, uma reflexão
sobre a maneira com que uma certa antropologia filosófica guiaria, de forma insidiosa, a
racionalidade da direção do tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo momento,
remetida a uma raiz metafísica a respeito da qual ela não seria capaz de se livrar. Raiz
metafísica que nos colocaria diante da necessidade em responder uma pergunta maior, a
saber: uma prática clínica pode abstrair de pôr, em seu horizonte de racionalidade, uma
concepção de sujeito que se desdobre em uma teoria da conduta racional, base da definição
do que se define como patologia mental ?
A tradição de reflexão a qual me refiro nunca deixou pois de colocar, à clínica dos
fatos psicológicos, duas questões maiores: o que fundamenta seu método de observação,de
intervenção e o que particulariza seu objeto, ou seja, em que condições podemos dizer
estarmos diante de um fato psicológico que pode ser reportado a um sujeito? Uma questão
de método e uma questão vinculada ao estatuto de seus objetos que converge para um
problema central que guiará o desenvolvimento do nosso curso, a saber; qual o estatuto da
objetividade dos fenômenos subjetivos? Seria ele dependente da objetividade própria aos
fenômenos físicos e orgânicos?
Como vimos na aula passada, o primeiro módulo de nosso curso, este que se inicia
na aula de hoje, será dedicado a um dos nomes fundamentais no interior deste debate:
Georges Politzer com seu Crítica dos fundamentos da psicologia.
Personagem peculiar, Politzer era filósofo e teórico marxista de orígem húngara,
embora vivesse em Paris desde 1921, isto devido a sua participação no movimento
fracassado que levou ao efêmero governo socialista de Bela Kun. A partir dos anos 30, ele
dará aulas de materialismo dialético na Universidade Operária de Paris. Desde cedo
interessado pela psicologia e pela psicanálise, Politzer irá, a partir dos anos 30, tomar
distância da última de maneira ferrenha, isto a fim de se dedicar à economia política e à
difusão do marxismo. Ele morrerá fuzilado pelos nazistas em 1942.
Para os que ainda não conhecem Crítica dos fundamentos da psicologia, escrito em
1928, vale a pena lembrar como ele foi rapidamente saudado como um acontecimento no
que diz respeito à reflexão epistemológica sobre a psicologia e a psicanálise. Seu tom
panfletário marcou uma longa geração de pensadores franceses, em especial Merleau-
Ponty, Sartre, Lacan e Foucault. Por um lado, tratava-se de uma crítica dos fundamentos
teóricos da psicologia que procurava fazer tabula-rasa de sua história. Isto ficava claro logo
no prefácio: “Trata-se, para nós, essencialmente, de colocar os problemas de tal maneira
que a discussão, sem poder nunca retornar a este psicologia que só deve existir para o
historiador, possa ser relançada a partir de uma base nova e desenvolver-se a partir de um
novo plano”15. Com Isto, Politzer procurava criar as condições de possibilidade para o
advento daquilo por ele chamado de “psicologia concreta”, ou seja, uma psicologia não
mais dependente de conceitos e métodos abstratos incapazes de dar conta da maneira com
que o vivido adquire sentido para os sujeitos.
Por outro lado, Politzer desenvolvia da primeira reflexão sistemática a respeito do
impacto epistemológico trazido pela psicanálise freudiana. Vindo de uma tradição marxista,
Politzer desenvolvia sua leitura de Freud a partir de uma perspectiva marxista que anulava a
base biologista da metapsicologia, ainda vinculada à psicofísica de Fechner, Helmholtz,
Brücke, Du-Bois Reymond e a relançava em um quadro de redefinição das condições de
compreensão do fato psicológico em geral. Era a objetividade do subjetivo que estava em
questão. Pois, como veremos, trata-se, a partir desta operação, de fornecer: “a definição do
fato psicológico na esfera do vivido, na perspectiva da primeira pessoa do singular,
rigorosamente destacada dos processos causais objetivos”16.
Na aula de hoje, será questão de um comentário da “Introdução” à Crítica dos
fundamentos da psicologia. Na aula que vem, nosso objeto de estudos será o primeiro
capítulo, este intitulado: “As descobertas na psicanálise e a orientação em direção ao
concreto”.
Já nas primeiras páginas de nosso texto, o tom polêmico se apresenta rapidamente.
Politzer pretende falar da: “morte da psicologia oficial, desta psicologia que se propõe
estudar os processos psicológicos, seja procurando apreendê-los em si mesmos [ou seja, de
maneira imediata, como um dado imediatamente disponível à introspecção da consciência],
seja através de seus concomitantes ou determinantes fisiológicos [como se a fisiologia fosse
naturalmente o espaço causal capaz de orientar os métodos próprios à clínica], seja através
de métodos “bricolados”17. Ou seja, trata-se de colocar em suspeição tudo aquilo que se
apresentava como progresso na fundamentação do conhecimento dos fatos psicológicos
desde que Wundt aparecera como fundador da psicologia moderna por ter sido o
responsável pelo primeiro laboratório do mundo dedicado à psicologia experimental.
De fato, Politzer lembra como Wundt aparecia enquanto momento mais bem
realizado de uma trajetória visando livrar a psicologia do penso de noções metafísicas de
“alma” ou da possibilidade de apreensão imediata de dados da consciência através da auto-
observação. Daí normalmente a maneira de descrever o impacto das pesquisas de Wundt
como um abandono da submissão da psicologia à filosofia, abandono da noção de
psicologia como “ciência da alma”, isto a partir do uso massivo de técnicas experimentais
de mensuração de constantes fisiológicas objetivamente identificáveis. Uso massivo que
pressupunha reduzir estados e eventos mentais à mensuração objetiva de estímulos e
respostas fisiológicas. Desta forma, aparece uma “psicologia fisiológica” que determinava o
fato psicológico fundamental como a “excitação” a partir de órgãos externos de sentido.
Mas esta submissão da racionalidade da psicologia à fisiologia era o resultado de
uma longa tradição racionalista que procurava definir a psicologia como “física do sentido
15
POLITZER, Critiques des fondements de la psychologie, p. VIII
16
PRADO JR., Filosofia da psicanálise, p. 15
17
POLITZER, idem, p. 2
externo”, ou seja, como o que permite o cálculo capaz de: “determinar as constantes
quantitativas da sensação e as relações entre tais constantes” 18. Devemos ler nesta
perspectiva sua dependência epistêmica de Wundt à psicofísica de Fechner, para quem “os
princípios gerais da psicofísica envolvem apenas a manipulação de relações quantitativas”,
assim como de Helmholtz e Du Bois-Reymond, para quem, por sua vez, só há, no
organismo, forças físico-químicas em atuação.
O que deve ser salientado aqui é como a física matemática aparece enquanto padrão
de racionalidade para a constituição da objetividade da psicologia. A objetividade do objeto
da psicologia deveria ser pensada tal como a objetividade própria a fenômenos que são
objetos da física, ou seja, a partir de possibilidade de mensuração, de redução quantitativa e
de abstração a um padrão geral de cálculo. Daí a esperança em : “fazer aparecer, nas leis
dos fatos de consciência, um determinismo analítico do mesmo tipo que este cuja mecânica
e a física permitem esperar uma validade universal a toda ciência”19.
Esta perspectiva própria à psicologia fisiológica de Wundt é criticada por Politzer
através da acusação de “formalismo”. Um formalismo que demonstraria como a psicologia
experimental não seria outra coisa que um disfarce responsável pela sobrevivência da
psicologia clássica, esta mesma que seria marcada pelas crenças metafísica na noção de
“alma”.
De fato, tal afirmação de Politzer parece, a primeira vista, o mais completo
contrasenso. Pois em que a psicologia experimental continuaria ainda tributária dos
descaminhos próprios a uma noção pré-científica de psicologia? É claro que uma parte da
resposta se encontra na própria definição do que Politzer entende por “formalismo”. Com
palavras zombeteiras, Politzer lembra que: “os fisiologistas se entregam de maneira terrível
à magia dos números e o entusiasmo pela forma quantitativa das leis não passa, neste caso,
de adoração do fetiche (...) Quanto aos psicólogos, é de terceira mão que eles recebem as
matemáticas; pois eles as recebem dos fisiologistas, que as receberam dos físicos que, por
sua vez, as receberam dos matemáticos”20. No entanto, a zombaria não é suficiente para nos
explicar qual é o verdadeiro vínculo entre a psicologia experimental e a psicologia clássica.
O verdadeiro argumento de Politzer começa a se organizar a partir do parágrafo
sexto. A partir daí, ele lembra que a história da psicologia a partir da psicologia
experimental de Wundt (ou seja, esta história marcada principalmente pelo advento do
behaviourismo, da Gestalt e da psicanálise) não era, como poderíamos esperar, a
consolidação de um corpo não-problemático de conceitos e de uma partilha tacitamente
aceita de métodos. Ao contrário, esta história não é de uma organização, mas de uma
dissolução. Daí a afirmação central do nosso capítulo: “O movimento psicológico
contemporâneo é apenas a dissolução do mito da natureza dupla do homem”21.
A idéia central aqui é: a psicologia foi até então tributária de uma mitologia
vinculada a própria natureza de seu objeto, ou seja, o sujeito enquanto centro funcional de
condutas e emoções. Esta mitologia deve ser dissolvida para que a psicologia como ciência
possa se instaurar, para que a psicologia possa acordar de seu “sono dogmático”. Mas para
que este despertar ocorra, faz-se necessário o reconhecimento claro do fato de que a

18
CANGUILHEM, Etudes d´histoire et de philosophie de la science, p. 370
19
idem, p. 371
20
POLITZER, idem, p. 5
21
POLITZER, idem, p. 7
psicologia clássica não é outra coisa que a elaboração nocional de um mito. Um mito que,
segundo Politzer, seria: “ a ideologia central da psicologia clássica”22..
De fato, devemos insistir neste ponto: a crítica aqui não é apenas crítica a ausência
de uma orientação verdadeiramente científica para a observação e clínica dos fatos
psicológicos. A crítica é também “crítica da ideologia”, defesa de que, por trás desta
incompreensão própria à determinação dos fundamentos da psicologia, há uma certa
ideologia em operação, como se não houvesse equívoco científico que não fosse animado
por uma orientação ideológica.
Esta ideologia própria ao mito da dupla natureza humana pode ser descrita da
seguinte forma. Politzer acredita que a psicologia, sequer a psicologia experimental de
wundt, nunca conseguiu escapar das conseqüências de um pretenso dualismo entre mente e
corpo. Daí a oscilação infinita entre duas saídas possíveis.
Por um lado, o subjetivismo espiritualista que restituía à alma os seus direitos graças
às ilusões da imediaticidade da interioridade. Uma psicologia baseada nos usos clínicos da
introspecção, uma certa ciência do sentido interno, seria resultado resultante daquilo que
poderíamos chamar de “ideologia da vida interior”, ou seja, a implementação clínica de um
conceito normativo de sujeito baseada na autonomia espontânea, na transparência imediata
de si a si e no rebaixamento do corpo enquanto pólo de determinação do sentido da
conduta. Daí a afirmação: “A ideologia da burguesia na estaria completa se não tivesse
encontrado sua mística. Após várias tentativas, ela foi enfim encontrada na vida interior da
psicologia”23. Mas sua essência é apenas a “abstração”, já que ela implica apenas o homem
“em geral”, a vida “em geral”, e não a vida humana inserida na particularidade da história
de seu desejo.
Por outro, o materialismo objetificador que interpretava o comportamento e o
pensamento humano através de um paradigma reducionista ou tal como, por exemplo, a
psicologia do reflexo, as diferentes formas de associacionismo e a psicologia experimental.
Contrariamente a noção de que a consciência deveria ser distinta das leis causais que
determinam o mundo físico, tratava-se de insistir que a mesma objetividade própria a
descrição dos fenômenos físicos deve ser aplicada à apreensão da inteligibilidade dos fatos
psicológicos. Como veremos, trata-se, para Politzer, também de uma ideologia, mas de uma
ideologia da auto-negação do sujeito também dependente de operações de abstração.
Este ponto pode ser melhor compreendido se lembrarmos das colocações que
Politzer apresenta a respeito do behaviorismo. Enquanto tentativa de preencher as
condições do que o próprio Politzer define como uma psicologia concreta, o behaviorismo
teve o mérito de renunciar à noção de vida interior. Mérito de criticar a noção de vida
interior como resquício de um pensamento animista no interior da ciência. Watson percebeu
que a única atitude científica possível para a psicologia consistia em fazer tabula rasa de
tudo o que se apresentava como introspecção e espiritualidade. Mas, ao salvar a
objetividade, o behaviorismo perdia a psicologia. Não foi por outra razão que, logo após
Watson tirar as conseqüências de suas descobertas, a psicologia pôs-se à cata de um
“behaviorismo não fisiológico”. Conclusão de Politzer: tudo o que o behaviorismo pode
nos ensinar é da ordem da mecânica animal. Continuamos presos entre o subjetivismo e o
objetivismo. Continuamos presos à alternativa dualista do “dentro ou fora”. Ou elegemos a
percepção interna como o fato psicológico ou, como fazem os behaviorista, escolhemos a
percepção externa: “Para suplantar a antítese clássica, dirá Politzer, faz-se necessário
22
POLITZER, idem, p. 11
23
idem, p. 13
renunciar a ver o fato psicológico em uma percepção qualquer e consentir em colocar, na
base da ciência psicológica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que
a simples percepção”24.
O importante a renunciar é a perspectiva realista ingênua que acredita ver, no fato
psicológico, um dado simples que corresponde a uma realidade perceptível, seja ela interna
ou externa. É neste ponto que o psicólogo da introspecção e o behaviorista se tocam: todos
os dois acreditam na premissa epistemológica do fato naturalmente dado. Enquanto os
primeiros acreditam que “nada é mais bem conhecido pela mente do que ela própria” e, por
isto, os estados mentais estão diretamente presentes à consciência, os segundos invertem a
posição teórica afirmando que são os estados físicos que naturalmente são dados à
consciência e recaem no realismo metafísico. O behaviorista prefere ignorar que a
percepção de um estado físico depende do que estamos acostumados a ver 25. Ela é
inferencial e não imediata.
Aqui está a intuição fundamental de Politzer: o fato psicológico, enquanto objeto do
conhecimento, não é um dado simples mas, como a compreensão do comportamento
humano resulta de uma percepção apoiada pela compreensão; trata-se de um dado
construído. Daí a definição: “com efeito, um gesto que eu faço é um fato psicológico, pois
ele é um segmento do drama que representa minha vida. A maneira com que ele se insere
neste drama é dado ao psicólogo pela narrativa que eu posso fazer sobre tal gesto. Mas é o
gesto esclarecido pela narrativa que é o fato psicológico e não o gesto à parte, nem o
conteúdo realizado da narrativa”26. O gesto em si não tem valor psicológico algum.
Somente o gesto inserido no “drama histórico” subjetivo através da narrativa que o sujeito
dele faz, demonstrando seu sentido, é que tem valor para a psicologia
Este é um ponto absolutamente central no interior de nossa discussão. Ele fica claro
se levarmos a sério uma afirmação como: “O termo ´vida´designa um fato ´biológico´, ao
mesmo tempo em que a vida propriamente humana, designa a vida dramática do homem.
Tal vida dramática apresenta todas as características que permitem a constituição de um
domínio a ser estudado científicamente [e que é o domínio da psicologia concreta]. E
mesmo que a psicologia não existisse, deveríamos inventá-la em nome desta
possibilidade”27.
Ou seja, a vida humana, objeto de uma psicologia concreta, não é aquilo que pode
ser redutível à determinação do disiológico enquanto campo de produção do sentido da
conduta. A vida humana é uma vida dramática no sentido teatral de “drama”, ação que
procura realizar um telos , uma teleologia da ação que só pode ser revelada no interior de
uma narrativa.
Com isto, Politzer não admite a redução do sujeito a um centro funcional que opera
a síntese entre a multiplicidade de fenômenos psíquicos; ou seja, o um nada, a não ser o
lugar convergente de uma multiplicidade de sensações, desejos e imagens. Adotar tal
posição significaria permitir isolar, de um lado, o sujeito e, de outro, os fenômenos
psíquicos a fim de tratá-los como objetos em si, como objetos de uma ciência que adota a
perspectiva da “terceira pessoa”. Ao contrário, devemos recusar tal formalismo abstrato e
apreender o fato psicológico como a encarnação em ato de um sujeito, ou seja, um
indivíduo dotado de intenção significativa. Por isto, o fato psicológico deve ser inserido no
24
POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie; pag. 249.
25
Ver, RORTY, Richard; Behaviorismo in A filosofia e o espelho da natureza, pp. 83-89.
26
idém, pag. 248
27
POLITZER, idem, p. 12
“drama histórico” subjetivo, onde o seu sentido se esclarece. Aí está a saída que permite
garantir a objetividade do subjetivo. Por fim, vale a pena salientar como a narrativa que o
sujeito dá a respeito do seu comportamento não nos remete a nenhuma experiência interior.
Afinal, a narrativa é, antes de mais nada, intenção significativa direcionada ao outro28. A
significação desconhece a interioridade; assim como desconhece o inefável de qualquer
pretensa intimidade.

28
Vinte anos depois, Lacan completará este raciocínio insistindo na alienação que o uso da linguagem impõe
ao sujeito e de como ela implica uma relação para além da intersubjetividade pois é intenção significativa
(agora inconsciente) direcionada ao Outro.
O estatuto da psicologia
Aula 3

Na aula passada, começamos a leitura do livro de Georges Politzer, Crítica dos


fundamentos da psicologia. Vimos como o objetivo deste panfleto que influenciou de
maneira decisiva o debate sobre a epistemologia da psicologia na França do século XX era
fazer tabula rasa da história das clínica dos fatos psicológicos até então. Já nas primeiras
páginas de nosso texto, o tom polêmico se apresentava rapidamente. Politzer pretendia falar
da: “morte da psicologia oficial, desta psicologia que se propõe estudar os processos
psicológicos, seja procurando apreendê-los em si mesmos [ou seja, de maneira imediata,
como um dado imediatamente disponível à introspecção da consciência], seja através de
seus concomitantes ou determinantes fisiológicos [como se a fisiologia fosse naturalmente
o espaço causal capaz de orientar os métodos próprios à clínica], seja através de métodos
“bricolados”29. Ou seja, tratava-se de colocar em suspeição tudo aquilo que se apresentava
como progresso na fundamentação do conhecimento dos fatos psicológicos desde que
Wundt aparecera como fundador da psicologia moderna por ter sido o responsável pelo
primeiro laboratório do mundo dedicado à psicologia experimental.
De fato, vimos como Politzer lembrava que Wundt aparecia enquanto momento
mais bem realizado de uma trajetória visando livrar a psicologia do penso de noções
metafísicas de “alma” ou da possibilidade de apreensão imediata de dados da consciência
através da auto-observação. Daí normalmente a maneira de descrever o impacto das
pesquisas de Wundt como um abandono da submissão da psicologia à filosofia, abandono
da noção de psicologia como “ciência da alma”, isto a partir do uso massivo de técnicas
experimentais de mensuração de constantes fisiológicas objetivamente identificáveis. Uso
massivo que pressupunha reduzir estados e eventos mentais à mensuração objetiva de
estímulos e respostas fisiológicas. Desta forma, aparece uma “psicologia fisiológica” que
determinava o fato psicológico fundamental como a “excitação” a partir de órgãos externos
de sentido.
Mas esta submissão da racionalidade da psicologia à fisiologia era o resultado de
uma longa tradição racionalista que procurava definir a psicologia como “física do sentido
externo”, ou seja, como o que permite o cálculo capaz de: “determinar as constantes
quantitativas da sensação e as relações entre tais constantes” 30. Devemos ler nesta
perspectiva sua dependência epistêmica de Wundt à psicofísica de Fechner, para quem “os
princípios gerais da psicofísica envolvem apenas a manipulação de relações quantitativas”,
assim como de Helmholtz e Du Bois-Reymond, para quem, por sua vez, só há, no
organismo, forças físico-químicas em atuação.
O que deve ser salientado aqui é como a física matemática aparece enquanto padrão
de racionalidade para a constituição da objetividade da psicologia. A objetividade do objeto
da psicologia deveria ser pensada tal como a objetividade própria a fenômenos que são
objetos da física, ou seja, a partir de possibilidade de mensuração, de redução quantitativa e
de abstração a um padrão geral de cálculo. Daí a esperança em : “fazer aparecer, nas leis
dos fatos de consciência, um determinismo analítico do mesmo tipo que este cuja mecânica
e a física permitem esperar uma validade universal a toda ciência” 31. Mesmo o recurso à

29
POLITZER, idem, p. 2
30
CANGUILHEM, Etudes d´histoire et de philosophie de la science, p. 370
31
idem, p. 371
fisiologia como base de análise para os fatos psicológicos deveria ser compreendido como
tributário desta maneira de constituição da noção de objetividade herdada da física.
Em um capítulo do Nascimento da Clínica, intitulado “Abram alguns cadáveres”,
Michel Foucault reconstitui a trajetória que permitiu à fisiologia e à anatomia patológica
aparecerem como fundamento da clínica. Tal posição da fisiologia só foi possível a partir
do momento em que o corpo foi reconfigurado, aparecendo como um “espaço ao mesmo
tempo mais complexo e mais abstrato, onde era questão de ordem, de sucessão, de
coincidência e de isomorfismo”32. Transformação do corpo em um espaço abstrato que era
resultado da aplicação de um “princípio geral de decifração” do espaço corporal semelhante
ao princípio geral de constituição do espaço homogêneo e geométrico da física moderna.
Tal princípio geral de inteligibilidade era fornecido, no caso da constituição do espaço
corporal, pela redução do corpo a um campo de tecidos orgânicos: “A partir dos tecidos, a
natureza trabalha com uma extrema simplicidade de materiais. Eles são os elementos dos
órgãos, mas o atravessam, os aproximam e, para além deles, constituem os vastos sistemas
nos quais o corpo humano encontra a forma concreta de sua unidade. Haverá tantos
sistemas quanto tecidos: neles, a individualidade complexa e inesgotável dos órgãos se
dissolve e, de uma vez, se simplifica”33.
Tal redução do volume orgânico a um elementar que é, ao mesmo tempo, um
universal aparece como condição para o aparecimento de uma fisiologia que pode se
submeter a um padrão de objetividade fundado em dispositivos de mensuração, de redução
quantitativa e de abstração a um padrão geral de cálculo. E é pensando a tal processo que a
perspectiva própria à psicologia fisiológica de Wundt pode ser criticada por Politzer através
da acusação de “abstração” (que trata objetos vivos como objetos mortos, prontos a serem
descritos em um discurso da terceira pessoa), ou ainda de “formalismo”. Um formalismo
que demonstraria como a psicologia experimental não seria outra coisa que um disfarce
responsável pela sobrevivência da psicologia clássica, esta mesma que seria marcada pelas
crenças metafísica na noção de “alma”.
A idéia central aqui é: a psicologia foi até então tributária de uma mitologia
vinculada a própria natureza de seu objeto, ou seja, ao sujeito enquanto centro funcional de
condutas e emoções. Esta mitologia deveria ser dissolvida para que a psicologia como
ciência pudesse ser instaurada, para que a psicologia pudesse acordar de seu “sono
dogmático”. Mas para que este despertar ocorra, faz-se necessário o reconhecimento claro
do fato de que a psicologia clássica não é outra coisa que a elaboração nocional de um mito.
Um mito que, segundo Politzer, seria: “a ideologia central da psicologia clássica” 34, o mito
da dupla natureza humana.
De fato, toda a crítica de Politzer à psicologia é tributária desta crítica ao dualismo e
a suas conseqüências. Um dualismo que instauraria um movimento bi-polar no interior da
história da psicologia, entre o subjetivismo espiritualista que compreende a introspecção
como dispositivo central de acesso ao fato psicológico e uma outra perspectiva “objetivista”
que, contrariamente a noção de que a consciência deveria ser distinta das leis causais que
determinam o mundo físico, insiste que a mesma objetividade própria a descrição dos
fenômenos físicos deve ser aplicada à apreensão da inteligibilidade dos fatos psicológicos.
Esta perspectiva servirá para Politzer se posicionar a respeito do behaviorismo.
Enquanto tentativa de preencher as condições do que o próprio Politzer define como uma
32
FOUCAULT, La naissance de la clínique, p. 128
33
idem, p. 129
34
POLITZER, idem, p. 11
psicologia concreta, o behaviorismo teve o mérito de renunciar à noção de vida interior.
Mérito de criticar a noção de vida interior como resquício de um pensamento animista no
interior da ciência. Mas, segundo Politzer, o behaviorismo continuava preso à uma
alternativa dualista do “dentro ou fora”. Ou elegemos a percepção interna como o fato
psicológico ou, como fazem os behavioristas, escolhemos a percepção externa. Richard
Rorty verá claramente isto ao afirmar: “Os cartesianos pensavam que os únicos gêneros de
entidades que naturalmente se ajustavam como diretamente presente à consciência eram os
estados mentais. Os behavioristas, no seu melhor momento epistemológico, pensavam que
o único gênero de entidade diretamente presente à consciência eram os estados de objetos
físicos. Os behavioristas se orgulhavam de fugir às noções de Essência vítrea o do Olho
interno, mas permaneceram fiéis à epistemologia cartesiana ao conservarem a noção de um
Olho da mente que apanhava algumas coisas em primeira mão (...) Os behavioristas
desistiram da noção de que ´nada é conhecido pela mente do que ela própria’, mas
conservaram a noção de que algumas coisas eram diretamente conhecidas naturalmente e
outras não, e o corolário metafísico de que somente as primeiras eram ´realmente reais´” 35.
Maneira de ignorar que o que conhecemos de modo não inferencial depende daquilo com
que estamos familiarizados. É esta fé epistêmica na noção de “dado simples e
imediatamente perceptível”, ou seja, de objetividade como o que resulta de alguma forma
de observação direta, que Politzer chama de “realismo”, mito próprio ao desenvolvimento
da psicologia até então.
Daí porque Politzer pode afirmar: “Para suplantar a antítese clássica, faz-se
necessário renunciar a ver o fato psicológico em uma percepção qualquer e consentir em
colocar, na base da ciência psicológica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais
elevada do que a simples percepção”36. Aqui está a intuição fundamental de Politzer: o fato
psicológico, enquanto objeto do conhecimento, não é um dado simples mas, como a
compreensão do comportamento humano resulta de uma percepção apoiada pela
compreensão; trata-se de um dado construído.

Gestalt e a noção de totalidade funcional

É a fim de dar conta do que deve ser este “ato de conhecimento de uma estrutura
mais elevada do que a simples percepção” que Politzer se apóia na Gestalt: “O valor da
Gestalttheorie é grande, sobretudo do ponto de vista crítico: ela implica sa negação deste
encaminhamento fundamental da psicologia clássica que consiste em romper a forma das
ações humanas para tentar posteriormente reconstituir a totalidade que é sentido e forma,
isto a partir de elementos sem significação e amorfos” 37. Ou seja, a Gestalt aparece como
contraponto a uma certa perspectiva atomista que acredita poder analisar, de maneira
isolada, funções intencionais e disposições regionais de comportamento, como se aquilo
que chamamos normalmente de sujeito não fosse mais do que um feixe de representações e
de disposições constituídas a partir de estímulos, reflexos e tropismos, mais do que a
somatória de funções e órgãos que poderiam ser isolados sem prejuízo para sua
inteligibilidade.
No entanto, a Gestalt insiste exatamente na impossibilidade de uma compreensão do
fato psicológico que negligencie a maneira com cada ato isolado do indivíduo, cada
35
RORTY, A filosofia e a espelho da natureza, p. 88
36
POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie; pag. 249.
37
Idem, p. 17
percepção isolada de objeto atualiza uma estrutura global de conduta e de inteligibilidade.
Wolfgang Köhler, por exemplo, um dos nomes-chaves da Gestalt juntamente como
Wertheimer e Kelner, chega a aplicar tal postulado à análise dos fatos orgânicos: “Se os
organismos se assemelhassem mais com os sistemas com os quais o físico se ocupa, um
grande número de seus métodos poderiam ser empregados em nossa ciência e sem grandes
mudanças. Mas, na verdade, tais semelhanças são raras. O trabalho do físico oferece a
vantagem da simplicidade dos seus sistemas (...) A modificação que intervém em um fator
implica ordinariamente em modificações correlativas em vários outros e estes últimos, por
sua vez, modificam o primeiro. No entanto, o isolamento de relações funcionais e a redução
de variáveis em ação em um fenômeno dado são grandes artifícios que facilitam as
investigações exatas em física. Como esta técnica não é aplicável à psicologia, posto que se
deve apreender o organismo aproximadamente da maneira como ele é, toda espécie de
observação que nos envia ao comportamento de nossos sujeitos como unidades complexas
e ativas será bem-vindo”38.
A afirmação não poderia ser mais clara. A psicologia exige um paradigma
diferenciado de objetividade porque seu objeto não se presta a processos de racionalização
em operação na apreensão de fenômenos físicos. Se Köhler pode afirmar que, comparado,
ao trabalho do psicólogo, o trabalho do físico é facilitado pela simplicidade de seus
sistemas, é fundamentalmente porque a psicologia não admite procedimentos de abstração e
de decomposição próprios à física. Ela trabalha com sistemas que se organizam como
totalidades funcionais onde, digamos, o todo não é o resultado da somatória das partes,
onde a função de um órgão é resultante das interações com o conjunto do sistema, onde a
perspectiva geral que orienta a conduta em relação a um meio ambiente não é o resultado
da somatória da ação de cada órgão, da articulação de cada função intencional tomada
separadamente. Desta forma: “situação e reação se vinculam interiormente por sua
participação comum a uma estrutura na qual se exprime o modo de atividade próprio de um
organismo”39. Canguilhem compreendeu isto claramente ao afirmar: “As formas vivas,
sendo totalidades cujo sentido reside na tendência a se realizar como tal no curso de
confrontação com o meio, podem ser apreendidas em uma visão, não em uma divisão” 40.
Daí porque Canguilhem costumava insistir não estar seguro de que um organismo, após a
ablação de um órgão, seja o mesmo organismo diminuído de um órgão.
Tal perspectiva permitirá, mais a frente, uma reorientação profunda do que se
compreende por doença (assim como permitirá uma reorientação profunda do que se
compreende por doença mental). Pois se trata de insistir na necessidade de deixar de dividir
a doença em uma multiplicidade de mecanismos funcionais alterados, isto a fim de
considerá-la como um acontecimento que diz respeito ao organismo vivo encarado como
totalidade. Pois: “não há um único fenômeno que se realize no organismo doente da mesma
forma que no organismo são”41. No organismo, todas as funções são interdependentes, o
que impede a dispersão da doença em sintomas e mecanismos funcionais isolados: ‘Quando
classificamos como patológico um sintoma ou um mecanismo funcional isolados,
esquecemos que aquilo que os torna patológicos é sua relação de inserção na totalidade
indivisível de um comportamento individual”42. Veremos, mais a frente, como um
38
KÖHLER, Psicologia da forma, p. 50
39
MERLEAU-PONTY, la structure du comportement, p. 140
40
CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 14
41
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 52
42
idem, p. 65
perspectiva desta natureza trará impactos na determinação do que é exatamente uma
patologia mental.
Mas Politzer insiste que introduzir esta dimensão da totalidade implica em
introduzir uma dimensão com impactos maiores na reflexão sobre o fato psicológico: a
dimensão do sentido. O fato psicológico é sempre um fato que procura realizar uma
exigência de sentido. Pois trata-se de afirmar que cada conduta e cada reação não é
resultado de um automatismo funcional, mas só pode ser inteligível se as reportarmos à sua
relação com uma estrutura global que orienta o organismo em sua confrontação com o meio
ambiente. Ou seja, cada conduta e cada reação é dotada de um sentido, de uma teleologia
própria à ação e que só pode ser apreendida se transcendemos o domínio do que se oferece
como dado imediato e como reação automática.
A grande contribuição de Politzer neste contexto consiste pois em insistir que o
modo de acesso a tal estrutura global de conduta, responsável pelo sentido do fato
psicológico, é através daquilo que ele chama de “drama”. Daí uma afirmação-chave como: :
“O termo ´vida´designa um fato ´biológico´, ao mesmo tempo em que a vida propriamente
humana, designa a vida dramática do homem. Tal vida dramática apresenta todas as
características que permitem a constituição de um domínio a ser estudado científicamente
[e que é o domínio da psicologia concreta]. E mesmo que a psicologia não existisse,
deveríamos inventá-la em nome desta possibilidade”43.
Politzer quer dizer, com isto, que a psicologia deve dar conta de condutas e
disposições que procuram realizar exigências de sentido e que a unidade de tais exigências
através de uma estrutura que se manifesta através da confrontação com o meio ambiente no
decorrer do tempo é um “drama”. Isto o leva a afirmar: “O drama implica o homem tomado
em sua totalidade e considerado como o centro de um certo número de acontecimentos que,
exatamente por se reportarem a uma primeira pessoa, têm um sentido” 44. Ou ainda: “o fato
psicológico não é o comportamento simples, mas precisamente o comportamento humano,
ou seja, o comportamento enquanto ele se reporta, de um lado, aos acontecimentos dos
meios nos quais se desdobra a vida humana e, de outro lado, ao indivíduo enquanto ele é
sujeito desta vida. Em suma, o fato psicológico é o comportamento que tem um sentido
humano”45.
Quer dizer, Politzer traz da Gestalt a noção de que o verdadeiro objeto da psicologia
é a totalidade da estrutura global de conduta que determina o modo de relação entre o
indivíduo e seu meio ambiente, totalidade que impõe a cada conduta e a cada reação uma
teleologia da ação, uma exigência mais ampla que sentido que deve ser reconstituída pelo
psicólogo através de uma noção aparentemente desprovida de objetividade científica, como
é o caso da noção de “drama”. Um drama que só pode ser objetificado através da narrativa
que o sujeito dele faz. Daí porque, se Politzer trás da Gestalt a noção de totalidade
funcional de sentido, ele irá procurar na psicanálise a perspectiva capaz de expor quais
devem ser as exigências de uma clínica capaz de responder pela objetividade do fenômenos
ligados à subjetividade.

43
POLITZER, idem, p. 12
44
idem, p. 249
45
idem, p. 248
O estatuto da psicologia
Aula 4

Na aula de hoje, iremos finalizar o primeiro módulo de nosso curso, este dedicado ao
comentário da Crítica dos fundamentos da psicologia, de Georges Politzer. Não se tratou de
fazer aqui o comentário exaustivo do livro, mas de fornecer o quadro de análise
politzeriano a respeito do programa crítico de reforma da psicologia. Vimos como Politzer
desenvolvia suas críticas a respeito do realismo de quem toma a percepção imediata como
fato psicológico fundamental, do caráter abstrato das generalizações da psicologia clássica
e do dualismo a respeito do qual sua história seria tributária. Um dualismo que instauraria
um movimento bi-polar no interior da história da psicologia, entre o subjetivismo
espiritualista que compreende a introspecção como dispositivo central de acesso ao fato
psicológico e uma outra perspectiva “objetivista” que, contrariamente a noção de que a
consciência deveria ser distinta das leis causais que determinam o mundo físico, insiste que
a mesma objetividade própria a descrição dos fenômenos físicos deve ser aplicada à
apreensão da inteligibilidade dos fatos psicológicos.
Vimos ainda como Politzer reconhecia no behaviorismo e a Gestalt duas correntes
que traziam colaborações para a constituição desta reforma do entendimento psicológico
então pregada. Segundo Politzer, o behaviorismo teria o mérito de renunciar à noção de
vida interior e à imediaticidade da introspecção – pois a verdadeira psicologia só pode ser
uma psicologia sem vida interior. Mas ele seria ainda tributário da fé epistêmica na noção
de “dado simples e imediatamente perceptível” (a imediaticidade do sentido do
comportamento externamente observável) ou seja, de objetividade como o que resulta de
alguma forma de observação direta, que Politzer chama de “realismo”, mito próprio ao
desenvolvimento da psicologia até então.
Daí porque Politzer afirmava: “Para suplantar a antítese clássica, faz-se necessário
renunciar a ver o fato psicológico em uma percepção qualquer e consentir em colocar, na
base da ciência psicológica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que
a simples percepção”46. Era a fim de dar conta do que deve ser este “ato de conhecimento
de uma estrutura mais elevada do que a simples percepção” que Politzer se apoiava na
Gestalt. Aos olhos de Politzer, a Gestalt aparecia como contraponto a uma certa perspectiva
atomista que acredita poder analisar, de maneira isolada, funções intencionais e disposições
regionais de comportamento, como se aquilo que chamamos normalmente de sujeito não
fosse mais do que um feixe de representações e de disposições constituídas a partir de
estímulos, reflexos e tropismos, mais do que a somatória de funções e órgãos que poderiam
ser isolados sem prejuízo para sua inteligibilidade. Vimos, na aula passada, como Köhler
lembrava que a psicologia trabalha com sistemas que se organizam como totalidades
funcionais onde, digamos, o todo não é o resultado da somatória das partes, onde a função
de um órgão é resultante das interações com o conjunto do sistema, onde a perspectiva
geral que orienta a conduta em relação a um meio ambiente não é o resultado da somatória
da ação de cada órgão, da articulação de cada função intencional tomada separadamente.
Mas Politzer insiste que introduzir esta dimensão da totalidade implica em
introduzir uma dimensão com impactos maiores na reflexão sobre o fato psicológico: a
dimensão do sentido. O fato psicológico é sempre um fato que procura realizar uma
exigência de sentido. Pois trata-se de afirmar que cada conduta e cada reação não é

46
POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie; pag. 249.
resultado de um automatismo funcional, mas só pode ser inteligível se as reportarmos à sua
relação com uma estrutura global que orienta o organismo em sua confrontação com o meio
ambiente. Ou seja, cada conduta e cada reação é dotada de um sentido, de uma teleologia
própria à ação e que só pode ser apreendida se transcendemos o domínio do que se oferece
como dado imediato e como reação automática.

O recurso à psicanálise

Era exatamente neste ponto que Politzer introduzia seu recurso massivo à psicanálise
freudiana: “É ao refletir sobre a psicanálise que percebemos a verdadeira psicologia” 47, dirá
Politzer. Ou seja, a psicanálise direciona o método de abordagem e determina o estatuto do
fato psicológico a partir das exigências de uma psicologia concreta, psicologia que
abandonou os postulados de abstração e realismo. E ela faz isto, principalmente, através da
descoberta do sentido concreto individual do sonho. Toda a reflexão de Politzer sobre a
psicanálise baseia-se, principalmente, na Traumdeutung.
O sonho é o elemento fundamental desta reorientação do estatuto do fato
psicológico porque ele coloca em cena a centralidade do problema do sentido: “todo sonho
aparece como uma produção psíquica dotada de significação (sinnvolles)”48, dirá Freud,
contrariando os julgamentos hegemônicos da psicologia da época que relegavam o sonho
ao estatuto de puro produto da atividade cerebral submetida a excitações e estímulos
somáticos e sensoriais. Ao insistir que o sonho era dotado de sentido, Freud colocava em
circulação a afirmação canônica: “o sonho é a realização de um desejo”. Desta forma, o
sonho podia ser visto como um certo ato de julgamento que deveria ser, necessariamente,
reportado a um Eu para quem o desejo é a função intencional central. A interpretação
analítica do sonho impedia assim o primado de procedimentos de abstração que
desvinculavam o sonho e o sujeito que sonha tratando o sonho e seus conteúdos como algo
produzido por causas impessoais: “O que a psicanálise procura em todo lugar”, dirá
Politzer, “é a compreensão dos fatos psicológicos em função do sujeito. É pois legítimo ver
nisto a inspiração fundamental da psicanálise”49.
Sendo o sonho a realização de um desejo vinculado à particularidade do sujeito que
sonha então a interpretação deve reconstituir o contexto de significação próprio a tal
particularidade. Neste sentido, a grande inovação de Freud estava vinculada a uma questão
de método, assim como ao reconhecimento da subjetividade do sentido. A questão de
método dizia respeito a um princípio de interpretação que se fundava no reconhecimento da
particularidade dos contextos de significação. Interpretar não era assim aplicar esquemas
prévios de simbologias (embora Freud nunca tenha deixado de reconhecer a presença de
um certo simbolismo nos sonhos), mas permitir uma reconstrução de contextos no interior
da qual o sujeito que sonho aparecia em um papel ativo. Este é o sentido de uma afirmação
central de Politzer: “a idéia [central para a psicanálise] segundo a qual poderia haver uma
dialética puramente individual à qual os atos individuais forneceriam uma significação
puramente individual é totalmente estranha à psicologia clássica” 50. Isto implicava na
defesa de uma subjetividade do sentido que permitirá Politzer afirmar: o caráter mais
evidente dos fatos psíquicos é de serem em “primeira pessoa”. E aqui ficamos sabendo que
47
Idem, p. 21
48
FREUD, Die traumdeutung, p. 1
49
POLITZER, idem, p. 41
50
idem, p. 102
um fenômeno na primeira pessoa é aquele cuja forma é resultado de seu pertencimento ao
Eu. Ou seja, um fenômeno de primeira pessoa é aquele cuja forma é sintetizada pelo Eu e
só pode ser compreendida através de remissão ao Eu como centro ativo.
Mas, lembra Politzer, sempre podem dizer que a psicologia clássica já admitia que
os fatos psicológicos são manifestações de uma consciência individual. É neste ponto que
Politzer submete a crítica da ciência a uma teoria do sujeito. Pois a questão fundamental
aqui é saber qual o conceito de sujeito pressuposto pela psicologia. Este, seria um sujeito
anterior à crítica kantiana que determinava o sujeito como responsável ativo pela
constituição da síntese das faculdades do conhecimento, um sujeito mais próximo de uma
leitura então corrente do empirismo inglês: o Eu como feixe de representações e de
funções: “ o Eu é simples causa, um puro centro funcional cujos fenômenos e funções
poderiam ser analisados de maneira isolada, ou ainda, um olho, no esquema da reflexão” 51.
Cada função é tratada como um elemento impessoal e não como a encarnação da forma do
Eu.
De fato, Politzer trabalha com um conceito de totalidade advindo da Gestalt, esta
totalidade onde as partes não podem ser decompostas e analisadas de maneira separada,
mas onde cada parte deve, ao contrário, sempre ser reportada a uma totalidade pressuposta
como condição para a revelação do sentido. Daí porque Politzer pode dizer: ‘A totalidade
que os psicólogos querem admitir no homem é apenas uma totalidade funcional, uma
sobreposição de noções de classe. Ora, uma tal sobreposição não é um ato e não supõe um
sujeito”52. A totalidade que Politzer procura, por sua vez, é aquela que me permite
encontrar, em cada ação humana, a implicação de um sentido que transcende as exigências
imediatas do meio no qual a ação está inserida.
Mas esta totalidade só poderá ser desvelada se apreendermos o sujeito como sujeito
daquilo que Politzer chama de vida dramática: “O psicólogo terá pois algo do crítico
dramático: um ato lhe aparecerá sempre como um segmento do drama, ele só existe no e
pelo drama. Seu método não pois um método de observação, mas um método de
interpretação”53. Notemos, o drama é esta seqüência de atos na qual cada ato vai
configurando o campo de significação dos atos posteriores, um campo de significação que
normalmente ultrapassa a intenção dos sujeitos que agem.
Sendo assim, a questão que fica é: como o psicólogo pode ter acesso à estrutura
deste drama que aparece como totalidade que orienta a conduta do sujeito na realização de
um sentido. É neste ponto que Politzer afirma: a maior contribuição clínica da psicanálise
encontra-se no abandono da noção de introspecção em prol da noção de narrativa. Por um
lado, a narrativa implica um regime de objetividade mais próximo do comportamento do
que da intuição. No entanto, ela é um comportamento que deve ser interpretado, e não
apenas observado. Pois a narrativa é sempre animada por uma intenção significativa,
intenção esta que pode não aparecer como um pensamento sob o regime do para-si da
consciência, mas que sempre se manifesta no endereçamento a um outro, dimensão própria
a toda e qualquer narrativa. Por isto, Politzer não cansará de lembrar: em todo uso da
linguagem, há sempre um primado da atividade teleológica, atividade orientada em direção
a fins.
A narrativa do sujeito aparece pois como o verdadeiro campo do tratamento já que é
ela que constitui esta totalidade da vida concreta do sujeito à qual o fato psicológico
51
POLITZER, idem, p. 48
52
idem, p. 49
53
idem, p. 53
necessariamente se reporta. Notemos, a narrativa tem um poder constitutivo, e não apenas
descritivo, já que ela é modo de rememoração e de simbolização reflexiva da multiplicidade
de atos de um sujeito. Isto explica a predominância que a psicanálise dá à palavra, isto a
despeito da centralidade de procedimentos de medicalização.
Notemos, para finaliza, que este esquema interpretativo politzeriano estará presente
em vários recursos epistemológicos à psicanálise, como estes operados por Habermas e por
Ricoeur. Por exemplo, para Habermas, a psicanálise forneceria o modelo de uma ciência
que recorre de maneira sistemática à auto-reflexão, já que trataria de levar o paciente a
apreender, de maneira reflexiva, as conexões causais que determinaram as deformações
sintomáticas nas quais o inconsciente se expressa.
Neste sentido, as formações do inconsciente (como os sonhos) deveriam ser
compreendidas como: “cicatrizes de um texto alterado ao que o autor [de tais alterações]
confrontou-se como quem se confronta com um texto incompreensível” (HABERMAS,
1973, p.252). Pois tais cicatrizes seriam marcas de uma linguagem desgramaticalizada
(entgrammatikalisiert). Noção astuta, já que não se trata de compreender as formações do
inconsciente como frutos de uma linguagem privada mas de uma linguagem privatizada
que poderia ser retraduzida na esfera na linguagem pública. Pois “isolar certos símbolos
individuais da comunicação pública equivale a privatizar seus conteúdos semânticos. No
entanto, subsiste uma conexão lógica entre a língua deformada e a língua pública na medida
que este dialeto privado é suscetível de ser traduzido – é exatamente nisto que consiste o
trabalho de análise de linguagem ao qual o terapeuta se dedica” (HABERMAS, 1973,
p.274). Daí porque o progresso analítico seria um “reaprendizado da gramática, um
treinamento intensivo para a retomada competente dos diversos jogos de linguagem”
(PRADO JR. 2000, p.17). Reaprendizado que, no fundo, é simbolização dos núcleos
traumáticos e formações do inconsciente através dos móbiles da rememoração.
Simbolização convergente que, em última instância, concebe o final de análise como
totalização narrativa capaz de dar expressão pública à história do desejo do sujeito através
da rememoração. Habermas poderá então afirmar: “Esta história é representada
esquematicamente como um processo de formação que progride através dos estágios de
uma objetivação de si e que tem seu fim (Telos) na consciência de si de uma história da
vida cuja apropriação foi realizada pela auto-reflexão.” (HABERMAS, 1973, p.290). Nada
mais politzeriano.

A crítica à metapsicologia

Mas para Politzer, a metapsicologia depeciona as exigências da psicologia concreta.


Politzer não pensa apenas no vocabulário cientista e energético que Freud herdara da
psicofísica e que ele sempre utiliza para descrever o ‘aparelho psíquico” e seu
funcionamento como se fosse um processo em terceira pessoa. A própria noção de
“inconsciente’ é, segundo Politzer, uma hipótese supérflua. Abrindo um caminho que
depois será seguido por Sartre na sua crítica do inconsciente freudiano, Politzer lembrará
que “consciência” é sinônimo de imputabilidade, de reconhecimento e de identificação.
Neste sentido: “toda esta dinâmica de representações que supõem censura, recalcamento e
resistência se relaciona à consciência mesma que o sujeito pode ter de seus próprios
comportamentos”54. os ditos conteúdos mentais inconscientes (conteúdos latentes de
sonhos, crenças não-conscientes, acontecimentos traumáticos denegados, etc.) não podiam
ser realmente inconscientes. Como tais conteúdos mentais seriam o resultado de um
processo de recalcamento, chega-se rapidamente a um certo paradoxo : para que exista
recalcamento, faz-se necessário que exista consciência prévia do recalcamento. Como dirá
Sartre : "Eu devo saber muito precisamente esta verdade [a verdade dos conteúdos mentais
inconscientes] para que eu a esconda de mim com mais cuidado" 55. Acento colocado aqui
sobre o saber. Se levarmos em conta as resistências correntes de um analisando, veremos
que elas demonstram : a) uma representação do recalcado ; b) uma compreensão do alvo
para onde tendem as questões do psicanalista.
Assim, Politzer afirmará que o sonho só tem um conteúdo: o conteúdo latente. Mas
tal conteúdo, o sonho o tem imediatamente, e não posteriormente a um mascaramento. Ou
seja, a significação do sonho não está em uma outra cena, mas está implicada na própria
montagem do sonho, no próprio trabalho do sonho. Politzer fala de uma montagem presente
no sonho tal como ele atualmente se manifesta. Este mecanismo que determina o processo
de montagem do sonho é o que é objeto da narrativa que o sujeito faz a respeito do que foi
sonhado. Esta latência do sonho é o que ganha corpo no interior da narrativa. Esta função
da narrativa demonstra como, para Politzer, a negação do inconsciente não implica em
entificação da consciência. Implica apenas em abandono do pretenso caráter privilegiado da
dimensão do “para-si” do pensar.

54
idem, p. 123
55
SARTRE, L’être et le néant,18 ed., Paris:Gallimard, 1989, p. 83
O estatuto da psicologia
Aula 5

Na aula de hoje, iniciaremos o segundo módulo do nosso curso, este dedicado à discussão
do pensamento de Georges Canguilhem. Tal discussão terá por guia o comentário de seu
livro central: O normal e o patológico. Como havia sugerido, outros textos de Canguilhem
serão estudados, como O que é a psicologia? Textos sugeridos sobre a obra de Georges
Canguilhem são: La vie: l´expeérience et la science, de Michel Foucault e Canguilhem et
les normes, de Guillaume Le Blanc
Canguilhem é, sem dúvida, o nome mais eminente da epistemologia das ciências
médicas e biológicas do século XX e figura fundamental no desenvolvimento da
epistemologia das ciências humanas. Sua experiência intelectual deve ser compreendida no
interior de uma corrente epistemológica francesa marcada por nomes como: Gaston
Bachelard, Jean Cavaillès, Alexandre Koyrè, entre outros. No entanto, a posição de
Canguilhem é peculiar e resultante de sua dupla formação: médico e pesquisador em
filosofia. Isto o permitiu construir de todas as peças um campo novo de reflexão
epistemológica, a saber, a reflexão filosófica sobre a medicina e sobre aquilo que se chama,
na França, de “ciências da vida”. A constituição de tal campo de pesquisas foi desdobrada e
continuada principalmente pelo mais conhecido de seus alunos, Michel Foucault.
Dificilmente poderíamos pensar em livros como O nascimento da clínica sem o impacto
gerado por trabalhos como O normal e o patológico. Por outro lado, a obra de Canguilhem
dialoga com, devido a partilha de temáticas, com uma outra tradição de reflexão
epistemológica, esta de Merleau-Ponty e Politzer marcada sobretudo pela fenomenologia e
pela perspectiva da relação entre sujeito e sentido, do sujeito como pólo de produção de
sentido dos fatos próprios a clínica. Basta lembrar como o programa politzeriano de uma
psicologia concreta ainda ressoa, de uma certa forma, nesta afirmação de Canguilhem:
“Esperávamos da medicina justamente uma introdução a problemas humanos concretos [ou
seja, a problemas cujo sentido exige a atualização de uma perspectiva que leve em conta os
modos de interação entre o homem e seu meio, assim como suas disposições
teleológicas]”56.
Neste sentido, a experiência intelectual de Canguilhem se coloca em um ponto
privilegiado no interior do qual duas grandes tradições do pensamento francês se
encontram. Isto talvez explique a extensão de uma influência bem traçada por Foucault ao
afirmar: “Retirem Canguilhem e vocês não compreenderão grande coisa sobre uma série de
discussões que ocorreram no marxismo francês, vocês não apreenderão o que há de
específico em sociólogos como Bourdieu, Castel, Passeron e que os marca de maneira tão
forte no campo da sociologia, você perderão todo um aspecto do trabalho teórico feito pelos
psicanalistas e , em especial, pelos lacanianos. Mais: em todo o debate de idéias que
precedeu ou seguiu o movimento de 1968, é fácil encontrar o lugar destes que, de perto ou
de longe, foram formados por Canguilhem”57.
Dentre suas obras, O normal e o patológico é sem dúvida a mais ambiciosa e
sistemática. Resultado de uma tese defendida em 1943 intitulada Ensaio sobre a alguns
problemas relativos ao normal e ao patológico, o livro, em sua versão final, foi acrescido

56
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 16
57
FOUCAULT, La vie: l´expérience et la science in Dits et écrits II, p. 1983
de três artigos escritos vinte anos depois e agrupados sob o título de Novas reflexões
referentes ao normal e ao patológico.
Mas do que fala exatamente este livro? Seu título já indica claramente a
configuração do objeto de estudos: trata-se de discutir o estatuto das estruturas de definição
e de partilha entre fenômenos normais e fenômenos patológicos. Questão central não
apenas para a biologia e para a clínica (seja ela médica ou psicológica) mas,
fundamentalmente, uma questão central para a filosofia. Pois, por trás das mudanças e
redefinições do que está em jogo na partilha entre normal e patológico encontramos um
problema vinculado à maneira com que a razão moderna determina a articulação entre vida
e conceito, entre ordem e desordem, entre norma e erro. Uma grande parte do trabalho
canguilhemeano de historiador das ciências está ligada a tentativa de demonstrar como as
decisões clínicas a respeito da distinção entre normal e patológico são, na verdade, um setor
de decisões mais fundamentais da razão a respeito do modo de definição daquilo que
aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Neste sentido, elas se inserem em
configurações mais amplas de racionalização que ultrapassam o domínio restrito da clínica.
Daí porque Canguilhem pode afirmar: “a filosofia é uma reflexão para a qual qualquer
matéria estranha serve, ou diríamos mesmo para qual só serve a matéria que lhe for
estranha”58. Pois problemas que parecem obedecer a um desenvolvimento ditado apenas
pelo estado da técnica ou pela configuração natural do dado são, ao contrário, espaços
privilegiados nos quais a razão configura, silenciosamente, os campos da experiência
possível. Tal certeza fornece o sentido de uma afirmação metodológica central como: “A
história das idéias não pode ser necessariamente superposta à história das ciências. Porém,
já que os cientistas, como homens, vivem sua vida num ambiente e num meio que não são
exclusivamente científicos, a história das ciências não pode negligenciar a história das
idéias”59.
Por outro lado, isto significa que um problema clínico nunca é apenas um problema
clínico, até porque, ele só e determinado enquanto problema por partilhar um padrão de
racionalidade, historicamente situado, cujas raízes não se esgotam apenas no campo da
clínica. Esta e uma das razões que leva Canguilhem a afirmar ser: “um grave problema, ao
mesmo tempo biológico e filosófico, saber se é ou não legítimo introduzir a História na
Vida”60. Esta é a razão também que permite a Canguilhem operar com um noção ampla de
clínica que, embora privilegiando a nosografia somática e a fisiopatologia, não deixa de
abrir questões e permitir extensões em direção à nosografia psíquica e á psicopatologia.
Tal posição de Canguilhem a respeito da natureza do problema próprio à distinção
entre normal e patológico nos permite lançar luz sobre a estrutura peculiar de seu livro.
Divido em duas grandes partes, o livro inicia passando em revista diferentes versões de
uma mesma tese então hegemônica no século XIX, “uma espécie de dogma cientificamente
garantido”, dirá Canguilhem, a respeito da distinção entre normal e patológico. Augusto
Comte, Claude Bernard e René Leriche teriam em comum uma maneira de compreender a
diferença entre normal e patológico como uma diferença quantitativa que diria respeito a
funções e órgãos isolados, como se os fenômenos patológicos fossem, no organismo vivo,
apenas variações quantitativas, déficits ou excessos. Como lembra Canguilhem,
semanticamente, o patológico é designado a partir do normal, não tanto como a ou dis, mas
como hiper ou hipo. Assim: “a doença não é pensada como uma experiência vivida,
58
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 15
59
idem, p. 25
60
idem, p. 13
engendrando transtornos e desordens, mas como uma experimentação aumentando as leis
do normal”61. Quer dizer, a doença nada mais é do que um sub-valor derivado do normal. É
a definição do normal como estrutura valorativa positiva que define o campo da clínica.
Esta experiência clínica exige que o normal esteja assentado em um campo mensurável
acessível à observação. Tal campo privilegiado é a fisiologia que aparece assim como
fundamento para uma clínica que irá se orientar a partir dos postulados de uma anatomia
patológica: “As técnicas de intervenção terapêutica só podem ser secundárias em relação à
ciência fisiológica, isto na medida em que o patológico só tem realidade provisória por
declinação do normal”62. O que nos deixa como uma questão maior: o que deve acontecer
ao corpo para que a fisiologia possa aparecer como campo de determinação da
normatividade da vida, campo de identificação daquilo que deve valer para a clínica como
norma? Questão que será retomada por Foucault, em O nascimento da clínica, ao lembrar
que: “o que é modificado com o advento da medicina anatomo-clínica não é a simples
superfície de contato entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido; é a disposição mais
geral do saber que determina as posições recíprocas e o jogo mútuo deste que deve
conhecer e o que há a conhecer”63.
A primeira parte do livro é assim um exame crítico da noção que procura definir o
patológico a partir do normal, como se a experiência do normal fosse anterior à
determinação do patológico. Já no primeiro capítulo, intitulado “Introdução ao problema”,
Conguilhem lembra que há uma outra perspectiva de análise das distinções entre normal e
patológico que insiste na distinção qualitativa, e não meramente quantitativa, entre os dois.
Tal perspectiva teria, ao menos, duas versões. Uma deveria ser chamada de teoria
ontológica devido ao fato de encarar a doença como o resultado da presença do que tem
realidade ontológica distinta do corpo são. A teoria microbiana das doenças contagiosas
(Pasteur) seria um caso paradigmático aqui por fornecer, através do micróbio, uma
“representação ontológica do mal” positivamente localizada, segundo Canguilhem. Já a
outra deveria ser chamada de teoria dinamista ou funcional e encontra na medicina grega
seu exemplo fundador. Contrariamente a uma noção de doença determinada a partir da
possibilidade de localização, a medicina grega estaria marcada por um certo dinamismo
relacional que já vimos em operação ao estudar o problema da natureza do sintoma segundo
um Georges Politzer profundamente marcado pela Gestalttheorie: “A natureza (physis)
tanto no homem como fora dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio,
dessa harmonia, é a doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte no homem.
Está em todo o homem e é toda dele” 64. A doença aparece assim como um acontecimento
que diz respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: “não há um único
fenômeno que se realize no organismo doente da mesma forma como no organismo são” 65.
Quando classificamos como patológico um sistema ou um mecanismo funcional isolado,
esquecemos que aquilo que os tornam patológicos é a relação de inserção na totalidade
indivisível de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser
doente é, para o homem, viver uma vida diferente. Notemos ainda que tal estratégia de
vincular o normal a partir de uma relação normativa de ajustamento ao meio implica em

61
LE BLANC, Conguilhem et les normes, p. 34
62
idem, p. 42
63
FOUCAULT, La naissance de la clinique, p. 139
64
CANGUILHEM, idem, p. 20
65
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 52
afirmar que não há fato algum que seja normal ou patológico em si. Eles são normal e
patológico no interior de uma relação entre organismo e meio ambiente.
Assim estas duas teorias, ontológica e dinamista, teriam em comum o fato de
afirmar que: “a doença difere da saúde, o patológico do normal, como uma qualidade difere
de outra, quer pela presença ou ausência de um princípio definido, quer pela reestruturação
da totalidade orgânica”66. Não há uma continuidade quantitativa entre normal e patológico,
mas discontinuidade qualitativa.
Será uma variação desta perspectiva qualitativa e relacional própria à medicina
grega que Canguilhem irá apresentar na segunda parte de seu livro. Nesta segunda parte,
trata-se de uma tentativa de redefinir o problema da distinção entre normal e patológico a
partir de novas bases. Pois Canguilhem não procura simplesmente reatualizar a reflexão
grega sobre a medicina, mas avançar em uma reflexão a respeito da qual podemos
apreender a extensão apenas se lembrarmos das reflexões politzerianas estudadas
anteriormente (embora Canguilhem nunca cite Politzer).
“Se quisermos compreender a doença, é necessário desumanizá-la”. “Na doença, o
que menos importa é o homem”. Estas duas afirmações são de René Leriche e visavam
insistir como a clínica não poderia ser dependente da expressão da subjetividade do doente,
sempre incerta e insegura, mascarando a certeza que apenas o contato com a fisiologia
poderia revelar. De uma certa forma, Canguilhem parte delas para procurar defender o
contrário, que o patológico só começa quando é, de uma certa forma, reconhecido como tal
pela consciência marcada pela experiência da doença. Com um certo acento hegeliano,
Canguilhem não teme em afirmar que: “não há nada na ciência que antes não tenha
aparecido na consciência [não necessariamente na consciência do sujeito que atualmente
sofre, mas naquelas dos que outrora sofreram e que fornecem ao médico a orientação do
seu olhar]”67.
Uma proposição desta natureza é passível de vários mal-entendidos por parecer
convidar a uma deriva subjetivista insustentável para a definição da partilha entre normal e
patológico. Afinal, a patologia é um conhecimento objetivo ou é resultado do sentimento
subjetivo do paciente? Na verdade, veremos que Canguilhem tem em vista,. na verdade, o
fato de que: “não há ciência da fisiologia humana sem técnica de restauração da saúde, ou
seja, sem a consciência da doença por um sujeito. Uma nova afirmação resulta disto: a
anterioridade da clínica, experiência da doença partilhada entre o doente e o médico, sobre
a fisiologia e a patologia”68. Compreender este ponto só será possível quando apreendermos
a noção de Canguilhem a respeito do patológico como aquilo que se define a partir de uma
individualidade biológica.
Por outro lado, fica claro que o problema do patológico está vinculado a uma
questão absolutamente central: em que situação ocorre algo como a consciência da doença?
O que significa, para um organismo, estar doente? Veremos, na segunda parte do livro,
como Canguilhem retoma alguns postulados da medicina grega a fim de insistir no caráter
relacional da patologia, a patologia como o que se revela na relação entre o organismo e seu
meio. Isto ficará claro, por exemplo, quando Canguilhem discutir a perspectiva que procura
vincular o normal ao conceito de média aritmética, de frequência estatística ou, ainda, de
tipo ideal em condições experimentais determinadas; como se o normal fosse um problema
de biometria. A posição de Canguilhem a este respeito estará sintetizada em afirmações
66
CANGUILHEM, idem, p. 21
67
idem, p. 68
68
DEBRU, Georges Canguilhem, science et non-science, p. 33
como: “Se é verdadeiro que o corpo humano é, em certo sentido, produto da atividade
social, não é absurdo supor que a constância de certos traços, revelados por uma média,
dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas de vida. Por conseguinte,
na espécie humana, a frequência estatística não traduz apenas uma normatividade vital, mas
também uma normatividade social”69. Maneira de afirmar que é no interior da relação entre
organismo e meio que poderemos definir conceitos como normal e patológico.

Auguste Comte e o problema do patológico

O capítulo II de O normal e o patológico é dedicado a uma reflexão sobre tais


problemas em Auguste Comte. Começar por Comte não era uma decisão gratuita. No
França, foi sobretudo o positivismo de Comte que apareceu como maneira de retomar a
indagação sobre a natureza dos processos de racionalização próprios a modernidade.
Indagação que não deixava de articular uma história geral das sociedades e uma discussão a
respeito da positividade das ciências. Neste sentido, este começo indica claramente os
interesses de Canguilhem. Trata-se de mostrar como o problema do patológico é um setor
da reflexão a respeito dos processos de racionalização em operação na modernidade, fato
que Comte não teria dificuldade em aceitar.
Canguilhem parte lembrando como Comte seguia Pinel ao defender, sob o nome de
“princípio de Broussais” que: ‘todas as doenças aceitas como tal são apenas sintomas e que
não poderiam existir perturbações das funções vitais sem lesões dos órgãos, ou melhor, de
tecidos”70. Maneira de assentar o estudo do patológico na fisiologia e afirmar que a doença
não seria outra coisa que efeito de variações de intensidade na ação de estimulantes
indispensáveis à conservação da saúde. Maneira de dizer, também, que a observação clínica
não pode ser outra coisa que a comparação entre um fenômeno padrão e um fenômeno
alterado e que qualquer patologia deve se basear no conhecimento prévio de um estado
normal.
Aqui vemos claramente o método de Canguilhem em operação. Ele lembra que uma
afirmação como a de Comte exige o reconhecimento de um critério para definir a
normalidade de um fenômeno a não ser que Comte se apóie em conceitos usuais de
harmonia entre influências da natureza e exigências do organismo. No entanto, um conceito
usual carregado de conotações como o conceito de “harmonia” só pode ser visto como um
conceito que expressa posições ideológicas. Daí porque Canguilhem pode afirmar que ele é
muito mais um conceito estético e moral do que exatamente científico, já que guarda
preceitos normativos de ordem social: “O conceito de normal se transforma em conceito
estético porque exprime um equilíbrio possível entre as influências da natureza e do
organismo a respeito do qual o espectador advertido que é o cientista pode se maravilhar.
Ele vale também como conceito moral porque a harmonia natural sugere uma ordem pré-
estabelecida”71. Ou seja, a norma que serve como base para a determinação de excesso ou
falta não é outra coisa que o resultado do apego a algum valor, logo a algo qualitativo. Um
valor que não se deixa pôr como valor, que não deve se pôr como valor produzido por um
projeto, mas como dado imediato fornecido de maneira não problemática pela percepção
direta. Como se no interior da positividade de um discurso que procura racionalizar a
clínica a partir de uma fisiologia que traz padrões de cientificidade marcados pelas
69
CANGUILHEM, idem, p. 113
70
idem, p. 27
71
LE BLANC, idem, p. 36
possibilidades de mensuração e quantificação que, como vimos anteriormente, vinha dos
padrões de racionalização dos objetos da física matemática, esconde-se uma produção de
não–tematizada de valor que é da ordem da ideologia.
Se lembrarmos da tendência de Comte em comparar o organismo biológico com o
organismo político, fica clara a função social do valor que opera na clínica e que retira toda
e qualquer realidade própria à desordem provocada pela doença. Trata-se de garantir o
caráter reconciliador da terapêutica No caso de Comte, tal esvaziamento do patológico é,
segundo Canguilhem: “a peça indispensável de uma concepção biológica de história [já que
as leis do organismo social e do organismo biológico do indivíduo seriam as mesmas – ou
seja, como se a história do homem fosse uma “história natural”] elaborada exatamente na
época que a história começava a penetrar a biologia”72.
No entanto, é claro que podemos tentar fundar o conceito de norma e de normal em
um terreno mais sólido e permeável a uma observação que possa apresentar claramente
seus pressupostos. É por isto que Canguilhem passa á análise da teoria que suporta a prática
de dois grandes médicos: Claude Bernard e René Leriche. No entanto, como veremos na
próxima aula, eles também não escaparão dos impasses que necessariamente encontraremos
todas as vezes que procurarmos defender uma perspectiva meramente quantitativa na
determinação das distinções entre normal e patológico.

72
CANGUILHEM, Etues d´histoire et de philosophie des sciences, p. 98
O estatuto da psicologia
Aula 6

Na aula de hoje, continuaremos o comentário de O normal e o patológico, de georges


Canguilhem, através da leitura dos capítulos III, IV e V. Nós vimos, na aula passada, o
que estava em jogo nesta primeira parte do nosso livro. Tratava-se de passar em revista
diferentes versões de uma mesma tese então hegemônica no século XIX, “uma espécie
de dogma cientificamente garantido”, dirá Canguilhem, a respeito da distinção entre
normal e patológico. Augusto Comte, Claude Bernard e René Leriche teriam em
comum uma maneira de compreender a diferença entre normal e patológico como uma
diferença quantitativa que diria respeito a funções e órgãos isolados, como se os
fenômenos patológicos fossem, no organismo vivo, apenas variações quantitativas,
déficits ou excessos. Como lembra Canguilhem, semanticamente, o patológico é
designado a partir do normal, não tanto como a ou dis, mas como hiper ou hipo.
Assim: “a doença não é pensada como uma experiência vivida, engendrando
transtornos e desordens, mas como uma experimentação aumentando as leis do
normal”73. Quer dizer, a doença nada mais é do que um sub-valor derivado do normal.
É a definição do normal como estrutura valorativa positiva que define o campo da
clínica. Esta experiência clínica exige que o normal esteja assentado em um campo
mensurável acessível à observação. Tal campo privilegiado é a fisiologia que aparece
assim como fundamento para uma clínica que irá se orientar a partir dos postulados de
uma anatomia patológica: “As técnicas de intervenção terapêutica só podem ser
secundárias em relação à ciência fisiológica, isto na medida em que o patológico só
tem realidade provisória por declinação do normal”74. A primeira parte do livro é
assim um exame crítico da noção que procura definir o patológico a partir do normal,
como se a experiência do normal fosse anterior à determinação do patológico.
Vimos, na aula passada, como o capítulo II de O normal e o patológico era dedicado
a uma reflexão sobre tais problemas em Auguste Comte. Começar por Comte não era uma
decisão gratuita. No França, foi sobretudo o positivismo de Comte que apareceu como
maneira de retomar a indagação sobre a natureza dos processos de racionalização próprios a
modernidade. Indagação que não deixava de articular uma história geral das sociedades e
uma discussão a respeito da positividade das ciências. Neste sentido, este começo indica
claramente os interesses de Canguilhem. Trata-se de mostrar como o problema do
patológico é um setor da reflexão a respeito dos processos de racionalização em operação
na modernidade, fato que Comte não teria dificuldade em aceitar.
Canguilhem parte lembrando como Comte seguia Pinel ao defender, sob o nome de
“princípio de Broussais” que: ‘todas as doenças aceitas como tal são apenas sintomas e que
não poderiam existir perturbações das funções vitais sem lesões dos órgãos, ou melhor, de
tecidos”75. Maneira de assentar o estudo do patológico na fisiologia e afirmar que a doença
não seria outra coisa que efeito de variações de intensidade na ação de estimulantes
indispensáveis à conservação da saúde. Maneira de dizer, também, que a observação clínica
não pode ser outra coisa que a comparação entre um fenômeno padrão e um fenômeno
alterado e que qualquer patologia deve se basear no conhecimento prévio de um estado
normal.
73
LE BLANC, Conguilhem et les normes, p. 34
74
idem, p. 42
75
idem, p. 27
Insisti com vocês como víamos claramente, neste ponto, o método de Canguilhem
em operação. Ele lembra que uma afirmação como a de Comte exige o reconhecimento de
um critério para definir a normalidade de um fenômeno a não ser que Comte se apóie em
conceitos usuais de harmonia entre influências da natureza e exigências do organismo. No
entanto, um conceito usual carregado de conotações como o conceito de “harmonia” só
pode ser visto como um conceito que expressa posições ideológicas. Daí porque
Canguilhem pode afirmar que ele é muito mais um conceito estético e moral do que
exatamente científico, já que guarda preceitos normativos de ordem social: “O conceito de
normal se transforma em conceito estético porque exprime um equilíbrio possível entre as
influências da natureza e do organismo a respeito do qual o espectador advertido que é o
cientista pode se maravilhar. Ele vale também como conceito moral porque a harmonia
natural sugere uma ordem pré-estabelecida” 76. Ou seja, a norma que serve como base para a
determinação de excesso ou falta não é outra coisa que o resultado do apego a algum valor,
logo a algo qualitativo. Um valor que não se deixa pôr como valor, que não deve se pôr
como valor produzido por um projeto, mas como dado imediato fornecido de maneira não
problemática pela percepção direta. Como se no interior da positividade de um discurso que
procura racionalizar a clínica a partir de uma fisiologia que traz padrões de cientificidade
marcados pelas possibilidades de mensuração e quantificação que, como vimos
anteriormente, vinha dos padrões de racionalização dos objetos da física matemática,
esconde-se uma produção de não–tematizada de valor que é da ordem da ideologia
No entanto, é claro que podemos tentar fundar o conceito de norma e de normal em
um terreno mais sólido e permeável a uma observação que possa apresentar claramente
seus pressupostos. É por isto que Canguilhem passa á análise da teoria que suporta a prática
de dois grandes médicos: Claude Bernard e René Leriche.

Claude Bernard

Claude Bernard foi o fisiologista francês mais importante do século XIX e


responsável por estudos pioneiros sobre a diabete e a função do açúcar no corpo humano.
Adepto da idéia de que o progresso da medicina só seria possível através da fisiologia
experimental, Bernard utiliza a física e a química como bases para todo conhecimento
fisiológico, isto a despeito de qualquer vitalismo que procurasse afirmar que apenas ‘forças
vitais” poderiam explicar, de maneira satisfatória, a natureza e a causalidade de fenômenos
vitais. Assim, para Bernard, a biologia segue o determinismo próprio à toda e qualquer
ciência do mundo físico. Maneira de afirmar a onivalência do postulado determinista e a
identidade material de todos os fenômenos físico-químicos. Bernard foi ainda responsável
pela noção de “meio interno” (e que hoje nós chamaríamos de “homeostase”) e que diz
respeito a independência relativa de funções orgânicas em relação à flutuações do meio
ambiente.
Canguilhem começa seu capítulo insistindo na herança positivista em operação na
prática de Claude Bernard. Maneira de abrir espaço à atualização das mesmas críticas que
haviam sido empregadas contra Comte no capítulo anterior. Bernard partilha esta noção de
Comte segundo a qual o estado patológico é apenas uma variação quantitativa do estado
normal e que a explicação de fenômenos vitais através da noção de um conflito entre dois
agentes opostos é infundada. Daí porque: “O bom senso indica que, conhecendo-se

76
LE BLANC, idem, p. 36
completamente um fenômeno fisiológico, estamos em condições de avaliar todas as
perturbações que ele pode sofrer no estado patológico” 77. É através, principalmente, do
estudo dos diabetes que Bernard procura colocar esta perspectiva à prova.
Canguilhem lembra que Bernard trazia, para sustentar seu princípio geral de
patologia, argumentos controláveis, protocolos de experiências e, sobretudo, métodos de
quantificação de conceitos fisiológicos como: glicogênese, glicemia, glicosúria, calor da
vasodilatação etc. No entanto, Canguilhem logo identifica situações nas quais a diferença
quantitativa é pensada sob a noção de desarmonia, mostrando assim o recurso a uma
diferença de ordem eminentemente qualitativa. Esta insistência da dimensão qualitativa
leva-o a perguntar: “O conceito de doença será o conceito de uma realidade objetiva
acessível ao conhecimento científico quantitativo? A diferença de valor que o ser vivo
estabelece entre sua vida normal e sua vida patológica seria uma aparência ilusória que o
cientista deveria negar?”78. Ou seja, a determinação valorativa própria à experiência
subjetiva da doença teria algo a dizer a respeito da própria natureza da doença?
É neste ponto que nosso autor traz uma afirmação maior a respeito de sua
perspectiva. Quem afirma existir uma homogeneidade entre normal e patológico admite a
possibilidade de definir a saúde perfeita como realidade à qual, tendencialmente, toda
situação orgânica deve se conformar. No entanto: “A saúde perfeita não passa de um
conceito normativo, de um tipo ideal. Raciocinando com todo o rigor, uma norma não
existe [ela não tem realidade empírica], apenas desempenha seu papel que é o do
desvalorizar a existência para permitir a correção dessa mesma existência. Dizer que a
saúde perfeita não existe é apenas dizer que o conceito de uma saúde não é o de uma
existência, mas sim o de uma norma cuja função e cujo valor é relacionar essa norma com a
existência a fim de provocar a modificação desta. Isto não significa que saúde seja um
conceito vazio”79.
Tais afirmações são decisivas porque elas lembram, primeiramente, que o estado
normal não é, exatamente, uma realidade empiricamente observável. A saúde, o estado
normal é uma norma que visa permitir a correção, a modificação do existente. Mas correção
e modificação em nome do que? Esta é questão que fica, por enquanto, em aberto.
No entanto, elas nunca poderiam ser aceitas por Bernard, para quem era possível,
como já foi dito, atribuir um conteúdo experimental ao conceito de normal. Canguilhem
passa então a uma análise da maneira com que Bernard procurava caracterizar os diabetes
pela taxa alta de glicemia com conseqüente glicosúria. Ele procura levantar situações onde
as relações de causa e efeito (aumento da taxa de gliecmia = glicosúria etc.) pensadas por
Bernard não se dão. Maneira de insistir que só poderemos compreender os diabetes ao
introduzirmos o conceito de “comportamento renal” de um indivíduo biológico. Como nos
lembra Le Blanc: “O conceito de comportamento é aqui fundamental: o comportamento
orgânico não é a réplica de uma função fisiológica correspondente, mas a apreensão de uma
atitude biológica. Assim, o uso da expressão ´comportamento renal´ traduz uma iniciativa
do organismo não absorvível em termos quantitativos”80. Pois quem diz “comportamento”
diz “ação a partir de processos de valoração e comparação”, diz “orientação global do
organismo em direção à realização de uma ação”. Por isto que Canguilhem afirmar que isto
nos impõe considerar a doença: “como um acontecimento que diz respeito ao organismo
77
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 45
78
idem, p. 53
79
idem, p. 54
80
LA BLANC, idem, p. 38
vivo encarado na sua totalidade”81. Até porque, o que parece aumento ou diminuição em
alguma localidade orgânica é, na realidade, uma alteração do todo. Daí porque Canguilhem
abraça definições dos diabetes como a de uma doença de nutrição considerando a constante
glicemia como um tônus indispensável à existência do organismo considerado como um
todo: “É claro que se pode fazer experiências com cada mecanismo funcional
separadamente. No entanto. No organismo vivo todas as funções são interdependentes e
seus ritmos harmonizados. O comportamento renal só teoricamente pode ser abstraído do
comportamento do organismo funcionando como um todo”82.
Esta perspectiva será fundamental para a análise das patologias psíquicas. É
pensando nelas que Canguihem afirmará: “Em geral não se deve relacionar determinado ato
de uma pessoa normal a um ato análogo de um doente sem compreender o sentido e o valor
do ato patológico para as possibilidade de existência do organismo modificado” 83. Isto é, na
verdade, apenas o desdobramento da perspectiva politzeriana que determinava o fato
psicológico como o ato de um sujeito dotado de expectativa significativa, ou seja, ato cujo
sentido só podia ser desvelado a partir da perspectiva do sujeito que nele se engaja.
Perspectiva politzeriana que se mostra de maneira ainda mais clara quando nosso autor
afirma que a clínico coloca o médico em contato com indivíduos completos e concretos e
não com seus órgãos ou funções.
Daí vem a definição proposta por Canguilhem segundo a qual a doença: “é uma
nova forma de se comportar em relação ao meio (...) Ser doente é realmente, para o homem,
viver uma vida diferente, mesmo no sentido biológico da palavra” 84. Pois a doença não é
doença de uma função, mas doença do organismo que se vê afetado, em todas as suas
funções, pela realidade da doença. Encontramos assim estas colocações fundamentais para
a perspectiva holista de Canguilhem: “É de um modo bastante artificial que dispersamos a
doença em sintomas ou a abstraímos de suas complicações. O que é um sintoma, sem
contexto, ou um pano de fundo? (...) Quando classificamos de patológico um sintoma ou
um mecanismo funcional isolados, esquecemos que aquilo que os torna patológicos é sua
relação de inserção na totalidade indivisível de um comportamento individual” 85. De fato, a
clínica procura, através d noções anatòmicas, fisiológicas ou neuronais, determinar a
realidade da doença, mas este realidade, a clínica só a percebe através da consciência de
decréscimo da potência e das possibilidade de relação com o meio, consciência esta
veiculada primeiramente pelo sujeito que sofre. Isto apenas nos remete novamente a esta
noção central: “não há ciência da fisiologia humana sem técnica de restauração da saúde,
ou seja, sem a consciência da doença por um sujeito. Uma nova afirmação resulta disto: a
anterioridade da clínica, experiência da doença partilhada entre o doente e o médico, sobre
a fisiologia e a patologia”86.
Mas Canguilhem lembra, no capítulo posterior, este a respeito das teorias do cirurgião René
Leriche, que se tende a aceitar o inverso, ou seja, a invalidade da opinião do doente em
relação á realidade de sua própria doença. Leriche é aquele que afirmará, com todas as
letras: “Se quisermos compreender a doença, é necessário desumanizá-la” e ainda “Na
doença, o que menos importa é o homem”. Estas duas afirmações visavam insistir como a
81
idem, p. 57
82
CANGUILHEM, idem, p. 61
83
idem, p. 62
84
idem, p. 64
85
idem, p. 65
86
DEBRU, Georges Canguilhem, science et non-science, p. 33
clínica não poderia ser dependente da expressão da subjetividade do doente, sempre incerta
e insegura, mascarando a certeza que apenas o contato com a fisiologia, que apenas a
compreensão da doença como o que ocorre no nível dos tecidos, poderia revelar. . De uma
certa forma, Canguilhem parte delas para procurar defender o contrário, que o patológico só
começa quando é, de uma certa forma, reconhecido como tal pela consciência marcada pela
experiência da doença. Com um certo acento hegeliano, Canguilhem não teme em afirmar
que: “não há nada na ciência que antes não tenha aparecido na consciência [não
necessariamente na consciência do sujeito que atualmente sofre, mas naquelas dos que
outrora sofreram e que fornecem ao médico a orientação do seu olhar]” 87. Em medicina, é o
pathos que chama o logos e que o faz funcionar. Se o médico pode adiantar à consciência
que seu paciente tem da doença é porque, outrora, a doença foi sentida como tal por alguma
consciência: “Sempre se admitiu, e atualmente é uma realidade incontestável, que a
medicina existe porque há homens que se sentem doentes, e não porque existem médicos
que os informam de suas doenças”88.
O próprio Leriche admite algo desta natureza ao reconhecer que a lesão não é
suficiente para constituir a doença clínica. Mas este reconhecimento não o leva a relativizar
o fato de que, da fisiologia à patologia, não há limiar. No entanto, Canguilhem procura
mostrar como Leriche luta contra si mesmo, procurando não ver aquilo que ele próprio
elabora. Como exemplo, Canguilhem analisa a maneira com que Leriche concebe o
problema da dor. È impossível considerar a dor como expressão de uma atividade normal.
Mas é impossível também considerá-la como um detector em um sinal de alarme imediatos
das ameaças internas ou externas à integridade orgânica, muito menos uma reação de
defesa que o médico deveria respeitar. Daí esta definição de Leriche, segundo a qual: “a dor
é um fato individual monstruoso e não uma lei da espécie. Um fato da doença” 89. Ou seja,
não é pela dor que a doença e definida. Ao contrário, ela já é vista como um fato da doença,
mas um fato cuja inteligibilidade exige a reflexão sobre o indivíduo biológico: “Parece-nos
de importância capital que um médico reconheça na dor um fenômeno de reação total que
só tem sentido e que só é um sentido ao nível da individualidade humana concreta” 90. A
consciência da dor não é um fato fisiológico, mas um fato psicológico no sentido
politzeriano do termo, fato no qual o sujeito expressa a limitação de sua capacidade de agir
sobre o meio. Através do problema da dor como fato da doença (lembremos, de que serve
uma cura que não aplaca o desconforto provocado pela dor?), Leriche reconhece algo que
nem Comte, nem Bernard estavam dispostos a aceitar. Para os dois, só se pode proceder
logicamente partindo do conhecimento fisiológico experimental para a técnica médica. Mas
Leriche acha que a fisiologia é a coletânca das soluções dos problemas levantados pela s
doenças dos doentes. Ou seja: “segundo Aristóteles, toda ciência procede do espanto. Essa
afirmação se aplica também à fisiologia. Porém o espanto verdadeiramente vital é a
angústia suscitada pela doença”91. Isto significa dizer que a doença determina a
configuração do nosso saber sobre o corpo, a configuração do nosso cuidado em relação ao
corpo, enfim, de nossa consciência do corpo. Se assim for, então é a doença que determina
nossa consciência do normal, e não o inverso. No ponto de vista da ciência, a doença é o
fenômeno originário.
87
idem, p. 68
88
idem, p. 69
89
idem, p. 71
90
idem, p. 72
91
idem, p. 76
O estatuto da psicologia
Aula 7

Temas para monografia:

“A constatação do comportamento humano resulta, para o psicólogo, não de uma simples


percepção, mas da percepção complexificada por uma compreensão; conseqüentemente, o
dado psicológico não é um dado simples. Enquanto objeto do conhecimento, ele é
essencialmente construído”.
(POLITZER, Crítica dos fundamentos da psicologia)

“Segundo Aristóteles, qualquer ciência procede do espanto. Esta afirmação se aplica


também à fisiologia. Porém o espanto verdadeiramente vital é a angústia suscitada pela
doença”
(CANGUILHEM, O normal e o patológico)

“Há uma boa razão que impede à psicologia de dominar a loucura: é que a psicologia só foi
possível em nosso mundo uma vez que loucura já estava dominada e excluída do drama”
(FOUCAULT, Doença mental e psicologia)

Na aula de hoje, continuaremos a leitura de O normal e o patológico através dos


comentários dos capítulos I, II e III da sua segunda parte, esta que tem por título; “Existem
ciências do normal e do patológico?”. Neste momento de nosso curso, podemos fazer uma
recapitulação de nossa problemática central, isto a fim de medir, de maneira mais precisa, a
natureza da resposta a ela fornecida por Canguilhem.
Desde nossas leituras de Georges Politzer, vimos como constituia-se, em solo
francês, uma tradição epistemológica que visava repensar, ao mesmo tempo, o estatuto do
fato psicológico e o estatuto da distinção entre o normal e o patológico. Em Politzer, a
reflexão sobre a natureza do estatuto psicológico estava vinculada a uma crítica ao caráter
abstrato das generalizações da psicologia clássica, ao dualismo a respeito do qual sua
história seria tributária e, principalmente, ao realismo de quem toma o objeto da percepção
imediata como fato psicológico fundamental. Contra este “realismo abstrato”, Politzer
pregava um certo retorno ao concreto que nada mais era do que compreensão de que o fato
psicológico é, fundamentalmente, um ato que visa realizar uma aspiração de sentido, ato
que obedece a uma teleologia resultante de um modo específico de valoração das
exigências do meio ambiente. Todo ato é assim, no fundo, um julgamento que orienta um
sujeito na relação com o meio ambiente no qual ele está inserido. O verdadeiro fato
psicológico não é, pois, a percepção, a sensação, o condicionamento ou o reflexo, mas o
julgamento que orienta a ação a partir de estruturas de valoração.
Sendo assim, ficava claro que definições como “normal” e “patológico”, embora
não fossem objetos diretos da reflexão politzeriana, não poderiam mais dizer respeito a
estados de indivíduos isolados, ou de indivíduos tomados como feixe de órgãos e funções
intencionais atomizadas. “Normal” e “patológico” enquanto categorias psicológicas só
poderiam dizer respeito a um sujeito tomado enquanto sujeito que se relaciona com um
meio ambiente que lhe é próprio. Daí a importância que Politzer dava a processos como a
simbolização e a verbalização narrativa na compreensão dos dispositivos de cura. Pois se
tratava de, através da fala, recolocar, no interior da relação a um meio ambiente
propriamente humano (meio “naturalmente” intersubjetivo) , algo que não encontrava mais
lugar aí.
Quando passamos à leitura de Canguilhem, vimos que a discussão tomava uma
outra proporção. A discussão sobre a especificidade do fato psicológico parecia não ocupar
mais lugar algum. Por outro lado, o problema da partilha entre normal e patológico
deslocou-se para o centro. De fato, Canguilhem opera com uma perspectiva mais larga do
que aquela oferecida por Politzer, já que ele simplesmente não está disposto a operar com
forma alguma de distinção estrutural entre o orgânico e o psicológico. Em vários momentos
de sua obra, Canguilhem age como quem acredita que o orgânico e o psicológico segue as
mesmas leis, que entre o fato psicológico e o fato orgânico não há diferenças maiores de
naturezas (mas apenas de complexidade). Mas, no caso de Canguilhem, isto não significa
tentar reduzir todo estado psicológico através de um materialismo reducionista. Trata-se, ao
contrário, de complexificar nossa compreensão do orgânico, nossa compreensão dos
fenômenos vitais, de uma forma tal que eles escapem do quadro compreensivo de uma
fisiologia mecanicista e, para usar termos de Politzer, “realista” e “abstrata”.
Não se trata, com isto, de continuar o velho debate entre causalidade somática e
causalidade psíquica, entre organogênese e psicogênese. A posição de Canguilhem é mais
radical pois assentada na pergunta: compreendemos bem um organismo biológico quando
vemos nele apenas um feixe de funções e órgãos que se submetem a padrões gerais de
mensuração e quantificação? Esta vida não seria apenas o exemplo de uma razão que se
transformou em princípio de dominação e controle da vida, ou seja, naquilo que um dia
Foucault chamou de biopoder? Por isto, embora não pareça ser um livro sobre psicologia,
O normal e o patológico teve uma influência decisiva em toda reflexão posterior sobre a
epistemologia da psicologia e das clínicas da subjetividade.
Dentro do quadro de Canguilhem, como fica então a distinção entre normal e
patológico? Comecemos lembrando desta afirmação tão importante para o filósofo francês.
“A saúde é a vida no silêncio dos órgãos”. Esta frase famosa do cirurgião René Leriche
indicava como a doença é, em última instância, o que faz o corpo falar. É a experiência da
doença que rompe uma certa imanência silenciosa entre sujeito e o seu próprio corpo; é ela
que transforma o corpo em um “problema” que determina exigências de saber e configura
necessidades de cuidado e intervenção. Desde há muito, ouvimos que “o homem que pensa
é um animal doente”. A frase se presta a, pelo menos, duas interpretações: não apenas que o
pensar é uma doença que marca o ponto de exílio em relação a uma naturalidade perdida,
mas, principalmente, que a doença é o que provoca o pensar. Pois, se é verdade que toda
ciência procede do espanto, então não haveria como esquecer desta afirmação maior do
filósofo Georges Canguilhem: “o espanto verdadeiramente vital é a angústia suscitada pela
doença”92. Esta era sua maneira de lembrar que a consciência da doença é o fato primeiro e
independente de uma definição positiva do fenômeno normal.
Se assim for, temos sempre o direito de perguntar de onde vem isto que poderíamos
chamar de “gramática da doença”, ou seja, este modo com que o saber transforma a doença
em discurso pronto para ser lido e interpretado pelo olhar clínico. Discurso que se expressa
em sintomas, nosografias, distúrbios, transtornos, síndromes e sinais vitais. Pois uma das

92
CANGUILHEM, O normal e o patológico, Forense Universitária, p. 76
idéias fundamentais desta tradição epistemológica que tem nomes como Michel Foucault e
Georges Canguilhem, consistiu em lembrar que a doença, o patológico, não tem gramática
própria. A maneira com que ela fala depende da maneira com que organizamos o que há a
ser visto e ouvido.
Podemos compreender a primeira parte de O normal e o patológico como uma
cuidadosa análise da gênese de uma certa gramática das doenças que parece ter sido
retomada na atualidade. Pois devemos sempre perguntar: o que está pressuposto em
afirmações como “alguém sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo”, “alguém sofre de
Transtorno de Déficit de atenção e de Comportamento Disruptivo”, “alguém sofre de
Transtorno do Desejo Sexual”? Dentre várias coisas, vale sempre a pena perceber como a
doença é compreendida, nestes casos, como um fenômeno de funções órgãos tomados de
maneira isolada. Por trás da constituição de patologias que permitem a constituição de
diagnósticos e intervenções que privilegiam categorias pontuais, há a crença fundamental
de que a doença nada mais é do que alguma forma de distúrbio, transtorno, déficit ou
excesso que acontece no nível de funções e órgãos. Isto legitima uma prática que
compreende a diferença entre normal e patológico como uma mera diferença quantitativa,
como se os fenômenos patológicos fossem, no organismo vivo, apenas variações
quantitativas de base fisiológica, o que o vocabulário do déficit expõe de maneira bastante
clara.
Esta perspectiva, por sua vez, possibilita tanto uma clínica submetida à fisiologia
quanto uma terapêutica que se submete de maneira praticamente sem limites à
medicalização, já que ela é o caminho mais curto para a regulação de variações
quantitativas de base fisiológica.. Pois, a doença aqui nada mais é do que um sub-valor
derivado do normal. É a definição do normal como estrutura valorativa positiva que define
o campo da clínica. Esta experiência clínica exige que o normal esteja assentado em um
campo mensurável acessível à observação. Tal campo privilegiado é a fisiologia que
aparece assim como fundamento para uma clínica que irá se orientar a partir dos postulados
de uma anatomia patológica, ou seja, de uma anatomia fascinada pela procura da lesão de
órgãos e tecidos como causa explicativa para o desvio da conduta.
Desta forma, a gramática das doenças de nossa época pode ser atomizada e
quantificadora porque ela se submete a um ideal normativo assentado na crença na
possibilidade de determinar o normal como estrutura valorativa positiva. Neste sentido, o
discurso hegemônico das ciências médicas e médico-psiquiátricas da contemporaneidade
não inovou. Na verdade, ele simplesmente reatualizou, como dizia Canguilhem, “uma
espécie de dogma cientificamente garantido” a respeito da distinção entre normal e
patológico que nos remeteu novamente ao século XIX.
Que o progresso científico apareça como um grande salto para trás, eis algo que não
deveria nos impressionar, até porque não será a primeira vez que isto ocorre. Historiadores
das ciências gostam de ver sua disciplina como a descrição de um irresistível progresso em
direção a um espelhamento, cada vez mais acabado, do mundo e de suas propriedades,
assim como a descrição de um aprofundamento reflexivo sobre os limites e desafios do
fazer científico. Infelizmente, esta história é, muitas vezes, a descrição da consolidação de
práticas de instrumentalização e controle ideologicamente orientadas. Neste sentido, é
sempre bom lembrar que decisões clínicas a respeito da distinção entre normal e patológico
são, na verdade, um setor de decisões mais fundamentais da razão a respeito do modo de
definição daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Elas se inserem
em configurações mais amplas de racionalização que ultrapassam o domínio restrito da
clínica.
Fica, no entanto, a questão sobre a possibilidade de uma outra visão a respeito do
que está em jogo na distinção entre normal e patológico, no que está em jogo na própria
definição de “doença”. É neste ponto que começa a segunda parte de O normal e o
patológico. Assim, se a primeira parte do livro: “mostrou que a o dogma positivista da
identificação entre normal e patológico só pôde se sustentar devido à desconsideração de
toda individualidade biológica [já que o normal não é fornecido por individualidade
alguma, mas é um padrão fisiológico mensurável de conformação do organismo], a segunda
parte reintroduz a individualidade biológica nas questões de doença e saúde” 93. No entanto,
e este é um ponto importante, não individualidade não aparece como um simples
mecanismo, uma máquina onde o todo é a soma das partes (dos órgãos), onde os efetiso são
dependentes de uma certa rigidez funcional. A individualidade é potência em direção à sua
afirmação como centro normativo.

Por que nem toda anomalia é doença?

A fim de encontrar um outro conceito para a partilha entre normal e patológico,


Canguilhem recorre à psiquiatria fenomenológica de Minkowski, Daniel Lagache e Charles
Blondel, para quem a desorganização psíquica não era simplesmente o simétrico inverso da
organização normal, mas uma diferença qualitativa fundamental na relação ao mundo. Uma
diferença que aparecia como anomalia, mas que não necessariamente aparecia como
doença. Aproveitando-se da noção de que nem toda anomalia psíquica é doença, e
afirmando que, neste ponto, anomalia psíquica e anomalia somática tinham a mesma
estrutura, Canguilhem procurava mostrar as conseqüências do ato de desvincular doença e
anomalia.
De fato, o problema do estatuto da anomalia fornece uma boa perspectiva para a
recomposição da noção de normal. A fim de insistir na desvinculação entre anomalia e
doença, Canguilhem lembra: “Há uma polaridade dinâmica da vida. Enquanto as variações
morfológicas ou funcionais sobre o tipo específico não contrariam ou não invertem esta
polaridade, a anomialia é um fato tolerado; em caso contrário a anomalia é experimentada
como tendo valor vital negativo e se traduz externamente como tal” 94. Ou seja, a vida é uma
atividade normativa polarizada contra tudo o que é valor negativo, tudo o que significa
decréscimo e impotência. Quando a diversidade orgânica não implica em tal polarização, a
diferença não aparece como doença.
Lembremos, ainda, que seres vivos que se afastam do tipo específico são, muitas
vezes, inventores a caminho de novas formas. A vida, mesmo no animal, não é mera
capacidade de evitar dissabores e se conservar. Ela é tentativa, atividade baseada na
capacidade de afrontar riscos e triunfar95, daí porque ela tolera monstruosidades. É isto que
levará Canguilhem a afirmar: “Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A
anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicos. Elas exprimem outras normas de
vida possíveis. Se essas normas forem inferiores às normas anteriores, serão chamadas
patológicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes – no mesmo meio – ou
superiores – em outro meio – serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua
93
LE BLANC, Canguilhem et les normes, p. 52
94
CANGUILHEM, idem, p. 105
95
CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 215
normatividade”96. Não é difícil encontrar nestas reflexões de Canguilhem uma certa posição
nietzscheana que procura erigir a criação de valores em vontade de afirmação da vida.
Esta reflexão sobre o estatuto ambivalente da anomalia pressupõe, no entanto, que o
portador da anomalia possa ser centro produtor de valor e de normatividade. Mesmo para
organismos unicelulares simples, viver é excluir e preferir. Na verdade, esta posição de
centro produtor de valor é própria a todo homem são: “O homem normal é o homem
normativo, o ser capaz de instituir novas normas, mesmo orgânicas. Uma norma única de
vida é sentida de modo privativo, e não positivamente” 97. Isto nos permite sintetizar uma
definição de saúde não mais vinculada à entificação de constantes fisiológicas. Saúde é a
posição na qual o organismo aparece como produtor de normas na sua relação ao meio
ambiente. Até porque a norma, para um organismo, é exatamente sua capacidade em mudar
de norma. O que implica em uma noção de relação entre organismo e meio ambiente que
não pode ser compreendida como simples adaptação e conformação. Um organismo
completamente adaptado e fixo é doente por não ter uma margem que lhe permita suportar
as mudanças e infidelidades do meio. A doença aparece assim como fidelidade a uma
norma única. Daí esta definição: “uma vida sã, uma vida confiante na sua existência, nos
seus valores, é uma vida em flexão, uma vida flexível (...) Viver é organizar o meio a partir
de um centro de referência que não pode, ele mesmo, ser referido sem com isto perder sua
significação original”98.
Isto implica em uma noção bastante particular de meio. Em um artigo intitulado “O
ser vivo e seu meio”, Canguilhem lembrava, contrariamente à noção de Jacob von Uexküll
sobre a completação conformação entre organismo e meio ambiente, que, contrariamente à
máquina, o organismo tem sua essência no ajustamento às infidelidades do meio. Neste
sentido, o meio não é mera potência condicionante. Para compreender este ponto, o
filósofo francês propõe uma certa arqueologia do sentido a respeito da noção de “meio”.
Uma noção que veio à biologia através da física newtoniana. Os mecanicistas franceses do
século XVIII chamaram de meio o que Newton entendia por “fluido” e cujo paradigma era
o éter. O problema a resolver através da noção de fluido concernia à ação à distância entre
indivíduos físicos distintos. Ou seja, tratava-se de compreender como é possível pensar um
sistema de relações entre indivíduos aparentemente sem relações entre si. Foi baseando-se
nesta idéia de Newton que Lamarck procurou explicar o ser vivo e seu comportamento
através de um sistema de conexão com o meio ambiente. Sistema mecânico onde os efeitos
seriam deduzidos diretamente das causas que o determinam à distância, tal como no sistema
de ação e reação próprio à física newtoniana.
Aos poucos, o meio vai se transformando em uma espécie de instrumento universal
de dissolução de individualidades. Como se a noção de meio acabasse validade o dito de
Descartes: “É a natureza que age nos organismos animais através de seus órgãos”. Isto nos
levou, por exemplo, a algumas situações, como as defendidas por Watson, para quem a
situação do ser vivo é, necessariamente, uma situação de condicionamento.
Não é esta a noção de meio que Canguilhem reconhece. Pois ela não pode dar conta
da maneira com que o organismo é capaz de trazer várias soluções a um mesmo conjunto
de problemas postos pelo meio, nem de definir a significação valorativa da ação operada no
meio. Um reflexo, por exemplo, não é uma simples reação, mas ação a partir de uma
intenção dotada de sentido e de orientação. “A ciência tem por objeto uma série de
96
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 113
97
idem, p. 105
98
CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 188
ambientes e meios (Umwelt, Merkwelt, Gegenwelt) nos quais os estímulos intervém
segundo o que eles significam e valem para a atividade típica da espécie considerada” 99.
Um meio deve ser assim o que se estrutura a partir de operações de determinação de valor
postas pelo próprio organismo. Quando ele não é capaz de operar tais determinações, trata-
se então de uma situação de doença. Isto nos explica porque, para Canguilhem, a norma
própria ao normal é individual, assim como porque a doença é compreendida como um
“abismo de impotência” vivenciado como tal pelo organismo em questão.
Notemos ainda que este caráter produtivo de normas na confrontação entre
organismo e meio invalida a fundamentação do critério de normatividade a partir de
experimentações em laboratório. Nesta crítica, Canguilhem e Merleau-Ponty andam juntos.
Todos os dois insistem que a experimentação na compreensão de um organismo é reação a
partir de uma abstração dos modos de inserção no meio, assim como abstração das
condições que a instabilidade do meio impõem. “Se é possível definir o estado normal de
um ser vivo por uma relação normativa de ajustamento a determinados meios, não se deve
esquecer que o próprio laboratório constitui um novo meio no qual, certamente, a vida
institui normas cuja extrapolação, longe das condições ás quais essas normas se referem,
não ocorre sem certos riscos ou imprevistos”100. Ou seja, trata-se novamente de lembrar que
há sempre alteração que conhecimento imprime ao fenômeno a conhecer, alteração
produzida pela preparação técnica implicada neste modo de conhecimento.

Norma e média

No entanto, é fato que tudo isto parece ainda uma petição de princípio. Pois:
“Geralmente, o médico tira a norma do seu conhecimento da fisiologia, dita ciência do
homem normal, de sua experiência vivida das funções orgânicas e da representação comum
da norma nem meio social em dado momento”101. Ou seja, tudo muito distante desta noção
de norma como potência valorativa da individualidade biológica.
Dentre estes três fatores, o mais importante é o fisiológico. No entanto, as
constantes fisiológicas pode ser compreendidas em dois sentidos distintos mas que
costumam misturar-se. Podemos dizer que normal é o resultado de um cálculo de média
estatística, ou podemos dizer que normal é um tipo ideal. Esta equivocidade do termo
“normal” foi facilitada pela tradição filosófica realista segundo a qual toda generalidade é
indício de uma essência e toda perfeição é a realização de uma essência; o que faz com que
um generalidade observável adquira o valor de perfeição realizada.
Canguilhem se dispõe, então, a avaliar esta relação entre norma e média, no capítulo
III da segunda parte de seu livro. Até porque o problema da relação entre norma e tipo ideal
já tinha sido tratado anteriormente, quando foi questão da crítica à noção positivista de
normal enquanto conceito muito mais da ordem da estética e da moral do que da ciência.
Ancorar o normal a partir do conceito estatístico de média implica definir o normal
como valor biométrico que admite margens estabelecidas de variação. Assim, uma vida
normal poderia, por exemplo, ser definida como a vida na qual as funções mensuráveis
permitem ao organismo alcançar a duração média de vida da sua espécie. No entanto, esta
noção não pode ser aplicada de maneira segura. A duração média da vida não é a duração
da vida biologicamente normal, mas duração de uma vida socialmente normatizada.
99
MERLEAU-PONTY, A estrutura do comportamento, p. 140
100
CANGUILHEM, idem, p. 117
101
idem, p. 94
“Encontraremos, nos indivíduos que aparentemente morrem de senescência, uma variedade
bastante vasta de duração de vida. Devemos tomar como duração de vida da espécie a
média dessas durações ou as durações máximas atingidas por alguns raros indivíduos ou,
ainda, algum outro valor? Essa normalidade, aliás, não excluiria outras anomralidades:
determinadas deformidade congênita pode ser compatível com uma vida muito longa”102.
Colocações desta natureza permitem a Canguilhem se perguntar se a relação entre
média e norma não deve ser invertida: ao invés de compreender a norma como aquilo que
se submete à determinação da média aritmética, definir a média aritmética como aquilo que
procura naturalizar uma norma. Canguilhem lembra que, desde Quêtelet (um dos pais da
estatística moderna), a média aritmética (ou mediana, número que , em um grupo de dados
ordenados, separa a metade inferior da amostra, população ou probabilidade de
distribuição, da metade superior) não é o número real da maioria da amostra, mas está mais
perto de um horizonte regulador.
Por outro lado, trata-se de insistir que a noção de média apenas acaba por naturalizar
processos de valoração social: “Se é verdade que o corpo humano é, em certo sentido,
produto da atividade social, não é absurdo supor que a constância de certos traços,
reveladas por uma média, dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas
de vida. Por conseguinte, na espécie humana, a freqüência estatística não traduz apenas
uma normatividade vital, mas uma normatividade social” 103. Neste sentido, Canguilhem faz
questão de lembrar dados que relativizam o caráter descritivo de realidades fisiológicas
universais próprios a que se manifesta em médias (por exemplo, jovens chineses de 25 anos
têm um débito urinário média de 0,5 cm2 por minuto, com oscilações de 0,2 a 0,7; ao passo
que esse débito é de 1cm2 nos europeus, com oscilações de 0,8 a 1,5). Isto implica que: “o
desconhecimento do corpo normativo tem, por consequência, o surgimento de um corpo
normatizado [por padrões biométricos]. O corpo vital é negado no corpo social externo
produzido pelo cientista na imagem social de sua ciência (laboratório, estatística)” 104. O que
nos deixa com uma questão central, a saber: como dar ao corpo social uma forma vital sem
operar um recobrimento do vital por um social que se serve da biometria para naturalizar
preceitos de regulação da vida?

102
CANGUILHEM, p. 121
103
idem, p. 126
104
LE BLAnC, idem, p. 66
O estatuto da psicologia
Aula 8

Na aula de hoje, terminaremos a leitura de O normal e o patológico através do comentário


dos dois últimos capítulos da segunda parte. Já temos uma idéia clara da estrutura do nosso
livro e de suas estratégias. Canguilhem quer fornecer uma definição renovada do que está
em jogo na distinção entre normal e patológico, definição na qual o patológico não será
mais pensado como um simples sub-valor derivado do normal. Lembremos, por exemplo,
desta afirmação tão importante para Canguilhem. “A saúde é a vida no silêncio dos órgãos”.
Esta frase famosa do cirurgião René Leriche indicava como a doença é, em última
instância, o que faz o corpo falar. É a experiência da doença que rompe uma certa
imanência silenciosa entre sujeito e o seu próprio corpo; é ela que transforma o corpo em
um “problema” que determina exigências de saber e configura necessidades de cuidado e
intervenção. Maneira de lembrar que a consciência da doença é o fato primeiro e
independente de uma definição positiva do fenômeno normal.
Sendo assim, temos sempre o direito de perguntar de onde vem isto que poderíamos
chamar de “gramática da doença”, ou seja, este modo com que o saber transforma a doença
em discurso pronto para ser lido e interpretado pelo olhar clínico. Discurso que se expressa
em sintomas, nosografias, distúrbios, transtornos, síndromes e sinais vitais. Pois uma das
idéias fundamentais desta tradição epistemológica que tem nomes como Michel Foucault e
Georges Canguilhem, consistiu em lembrar que a doença, o patológico, não tem gramática
própria. A maneira com que ela fala depende da maneira com que organizamos o que há a
ser visto e ouvido.
Podemos compreender a primeira parte de O normal e o patológico como uma
cuidadosa análise da gênese de uma certa gramática das doenças que parece ter sido
retomada na atualidade. Eu havia insistido: devemos nos perguntar sobre o que está
pressuposto em afirmações como “alguém sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo”,
“alguém sofre de Transtorno de Déficit de atenção e de Comportamento Disruptivo”,
“alguém sofre de Transtorno do Desejo Sexual”? Dentre várias coisas, vale sempre a pena
perceber como a doença é compreendida, nestes casos, como um fenômeno de funções
órgãos tomados de maneira isolada. Por trás da constituição de patologias que permitem a
constituição de diagnósticos e intervenções que privilegiam categorias pontuais, há a crença
fundamental de que a doença nada mais é do que alguma forma de distúrbio, transtorno,
déficit ou excesso que acontece no nível de funções e órgãos. Neste sentido, o discurso
hegemônico das ciências médicas e médico-psiquiátricas da contemporaneidade não
inovou. Na verdade, ele simplesmente reatualizou, como dizia Canguilhem, “uma espécie
de dogma cientificamente garantido” a respeito da distinção entre normal e patológico que
nos remeteu novamente ao século XIX.
É neste ponto que começa a segunda parte de O normal e o patológico. Assim, se a
primeira parte do livro: “mostrou que a o dogma positivista da identificação entre normal e
patológico só pôde se sustentar devido à desconsideração de toda individualidade biológica
[já que o normal não é fornecido por individualidade alguma, mas é um padrão fisiológico
mensurável de conformação do organismo], a segunda parte reintroduz a individualidade
biológica nas questões de doença e saúde”105.

105
LE BLANC, Canguilhem et les normes, p. 52
A fim de encontrar um outro conceito para a partilha entre normal e patológico,
Canguilhem recorre à psiquiatria fenomenológica de Minkowski, Daniel Lagache e Charles
Blondel, para quem a desorganização psíquica não era simplesmente o simétrico inverso da
organização normal, mas uma diferença qualitativa fundamental na relação ao mundo. Uma
diferença que aparecia como anomalia, mas que não necessariamente aparecia como
doença. De fato, o problema do estatuto da anomalia fornece uma boa perspectiva para a
recomposição da noção de normal. A fim de insistir na desvinculação entre anomalia e
doença, Canguilhem lembra: “Há uma polaridade dinâmica da vida. Enquanto as variações
morfológicas ou funcionais sobre o tipo específico não contrariam ou não invertem esta
polaridade, a anomialia é um fato tolerado; em caso contrário a anomalia é experimentada
como tendo valor vital negativo e se traduz externamente como tal”106.
Lembremos, ainda, que seres vivos que se afastam do tipo específico são, muitas
vezes, inventores a caminho de novas formas. A vida, mesmo no animal, não é mera
capacidade de evitar dissabores e se conservar. Ela é tentativa, atividade baseada na
capacidade de afrontar riscos e triunfar107, daí porque ela tolera monstruosidades. Esta
reflexão sobre o estatuto ambivalente da anomalia pressupõe, no entanto, que o portador da
anomalia possa ser centro produtor de valor e de normatividade. Mesmo para organismos
unicelulares simples, viver é excluir e preferir. Na verdade, esta posição de centro produtor
de valor é própria a todo homem são: “O homem normal é o homem normativo, o ser capaz
de instituir novas normas, mesmo orgânicas. Uma norma única de vida é sentida de modo
privativo, e não positivamente”108. Isto nos permite sintetizar uma definição de saúde não
mais vinculada à entificação de constantes fisiológicas. Saúde é a posição na qual o
organismo aparece como produtor de normas na sua relação ao meio ambiente. O que
pressupõe uma noção não-mecanicista de meio ambiente, uma noção na qual o meio é
indissociável de um processo estruturador desenvolvido por uma individualidade biológica.
Vimos ainda como, para defender sua noção da natureza da partilha entre normal e
patológico, Canguilhem era obrigado a criticar a tentativa de assentar a noção de normal no
interior de conceitos como média estatística. Ancorar o normal a partir do conceito
estatístico de média implica definir o normal como valor biométrico que admite margens
estabelecidas de variação. Assim, uma vida normal poderia, por exemplo, ser definida como
a vida na qual as funções mensuráveis permitem ao organismo alcançar a duração média de
vida da sua espécie. No entanto, esta noção não pode ser aplicada de maneira segura. A
duração média da vida não é a duração da vida biologicamente normal, mas duração de
uma vida socialmente normatizada. “Encontraremos, nos indivíduos que aparentemente
morrem de senescência, uma variedade bastante vasta de duração de vida. Devemos tomar
como duração de vida da espécie a média dessas durações ou as durações máximas
atingidas por alguns raros indivíduos ou, ainda, algum outro valor? Essa normalidade, aliás,
não excluiria outras anormalidades: determinadas deformidade congênita pode ser
compatível com uma vida muito longa”109.
Colocações desta natureza permitem a Canguilhem se perguntar se a relação entre
média e norma não deve ser invertida: ao invés de compreender a norma como aquilo que
se submete à determinação da média aritmética, definir a média aritmética como aquilo que
procura naturalizar uma norma.. trata-se de insistir que a noção de média apenas acaba por
106
CANGUILHEM, idem, p. 105
107
CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 215
108
idem, p. 105
109
CANGUILHEM, p. 121
naturalizar processos de valoração social: “Se é verdade que o corpo humano é, em certo
sentido, produto da atividade social, não é absurdo supor que a constância de certos traços,
reveladas por uma média, dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas
de vida. Por conseguinte, na espécie humana, a freqüência estatística não traduz apenas
uma normatividade vital, mas uma normatividade social”110. Neste sentido, Canguilhem faz
questão de lembrar dados que relativizam o caráter descritivo de realidades fisiológicas
universais próprios a que se manifesta em médias (por exemplo, jovens chineses de 25 anos
têm um débito urinário média de 0,5 cm2 por minuto, com oscilações de 0,2 a 0,7; ao passo
que esse débito é de 1cm2 nos europeus, com oscilações de 0,8 a 1,5). O que nos deixa com
uma questão central, a saber: como dar ao corpo social uma forma vital sem operar um
recobrimento do vital por um social que se serve da biometria para naturalizar preceitos de
regulação da vida?

Saúde e individualidade biológica

Podemos, então, a partir daí, configurar melhor o programa positivo de Georges


Canguilhem para a redeterminação da natureza da distinção entre normal e patológico.
Primeiro, trata-se de atribuir, ao próprio ser vivo, a responsabilidade em distinguir o ponto
em que começa a doença [não exatamente a este ser vivo que sofre atualmente, mas à uma
experiência subjetiva que orienta a constituição do olhar clínico). Uma média obtida
estatisticamente não permite dizer se determinado indivíduo, presente diante de nós, é
normal ou não. Pois trata-se de avaliar em que condições um organismo pode satisfazer
exigências que lhe são impostas.
De fato, isto implica dizer que o limite entre normal e patológico se torna impreciso.
Mas: “a fronteira entre normal e patológico é imprecisa para diversos indivíduos
considerados simultaneamente, mas é perfeitamente precisa para um único e mesmo
indivíduo considerado sucessivamente”111. Ou seja, não se trata aqui de caminhar para
alguma espécie de relativismo que simplesmente invalida as categorias de normal e
patológico. A questão central consiste em mostrar como tão divisão tem seu fundamento,
em última instância, na consciência do alargamento (ou não) do campo de experiências
possíveis para um indivíduo biológico. De fato, de nada adianta um processo de cura no
interior do qual o indivíduo não julga e é incapaz de pôr uma diferença entre o estado atual
e o estado anterior. Até porque, para Canguilhem, saúde e doença são estados vinculados à
capacidade individual de produção de valor na relação ao meio, e não à descrição de
constantes fisiológicas. Embora disfunções, déficits e modificações orgânicas ocorram,
trata-se de afirmar que não há relação direta e imediata entre a determinação de um estado
de doença e tais gêneros de acontecimentos físicos.
Notemos que, anteriormente, Canguilhem havia criticado Comte e Claude Bernard
exatamente por fazer a intervenção terapêutica dependente de uma estrutura normativa de
valoração que aparecia claramente nos usos do conceito de “harmonia”. Canguilhem
lembrava que harmonia pode ser um conceito funcional no campo da moral e da estética,
mas não na ciência, já que ele é eminentemente valorativo. Agora, ele parece voltar atrás
afirmando que o critério de orientação para a intervenção terapêutica passa pela análise da
capacidade individual de colocar-se diante da vida como produtor de valor. De qualquer
110
idem, p. 126
111
idem, p. 145
forma, fica claro que. no primeiro caso, é a perspectiva do médico que aparece como
implementação valorativa. No segundo caso, é aquele na posição de paciente que aparece
como centro de produção de valor.
Se assim for, fica a questão de saber qual é o critério de valor que permite, a um
indivíduo biológico, distinguir saúde e doença. Neste sentido, Canguilhem lembra que, para
um indivíduo, uma norma de vida é superior a outra quando comporta o que esta última
permite e também o que ela não permite. Assim: “A doença ainda é uma norma de vida,
mas uma norma inferior no sentido que não tolera nenhum desvio das condições em que é
válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma” 112. Até porque, o normal é viver
em um meio no qual flutuações e acontecimentos são possíveis. Como nos lembrará
Foucault: “a vida é o que é capaz de erro” 113. Ela é o que demonstra que a errância, muito
mais do que a segurança da auto-identidade, é a condição própria do organismo, até porque:
“o erro não continue o esquecimento ou o atraso da realização prometida, mas a dimensão
própria à vida dos homens e indispensável ao tempo da espera”114.
Em última instância, a doença é a rigidez de quem está completamente adaptado e
restrito a um meio determinado. Ser sadio não significa apenas ser normal em uma situação
determinada, mas ser normativo nesta e em outras situações eventuais. O homem se sente
em boa saúde quando se sente mais do que normal, isto é, não apenas adaptados, mas
normativo, capaz de seguir novas normas de vida. Resumindo: a saúde e uma maneira de
abordar a existência com uma sensação de criador de valor, de instaurador de normas vitais.
Como já disse anteriormente, é inegável o acento nietzscheano nesta compreensão da saúde
como posição de criador de valores na relação entre indivíduo e meio.
Insistamos ainda em um ponto. Afirmar que a saúde é, no fundo, uma margem de
tolerância às infidelidades do meio, implica em admitir que o ser vivo não vive
simplesmente entre leis físico-químicas, mas entre seres e acontecimentos que diversificam
estas leis, que modificam seus sentidos habituais. Isto significa incluir uma dimensão, no
campo dos fenômenos vitais, que é mais da ordem da história e de suas reversibilidades, do
que exatamente da ordem do mecanicismo causalmente fechado. Se é fato que ser vivo vive
em um mundo de acidentes possíveis, é porque o meio não é um sistema mecânico de
relações funcionais que aparecem como excitação que exige resposta.

Sobre um certo vitalismo

Talvez este ponto fique mais claro se compreendermos a natureza do vitalismo de Georges
Canguilhem. Nosso autor foi um dos últimos teóricos das ciências a defender uma
perspectiva vitalista na compreensão dos fatos próprios às chamadas ciências da vida.
Compreendamos aqui “vitalismo” como posição teórica que defende a irredutibilidade do
organismo vivo a todo tipo de explicação causal de natureza mecanicista. Muitas vezes, o
vitalismo postula alguma forma de princípio vital (como a força vital de Bichat, o élan vital
de Bergson, a enteléquia de Hans Driesch, etc.), isto a fim de mostrar como processos vitais
não são redutíveis a processos físicos. O resultado foi a compreensão do vitalismo como
uma espécie de postulado metafísico travestido de explicação científica. Postulado
metafísico que, muitas vezes, parecia recorrer a noções nebulosas como “alma” a fim de dar
conta do que poderia ser explicado a partir da aplicação de leis físicas e químicas. Contra
112
idem, p. 146
113
FOUCAULT, La vie: l´expérience et la science, p. 1595
114
idem, p. 1594
tais derivas em direção a uma metafísica suspeita, a ciência teria caminhado em direção ao
aprofundamento de um certo mecaniscismo capaz de fornecer uma perspectiva de avaliação
segura, mensurável e eminentemente descritiva.
A peculiaridade da posição de Canguilhem vem do fato dele defender um certo
vitalismo, já que, como vimos, a especificidade de um conceito como “vida” lhe é central.
No entanto, este vitalismo tem uma série de peculiaridades. Há várias maneiras de
compreender este ponto, mas podemos lembrar aqui de um pequeno texto de Canguilhem
chamado “Máquina e organismo”. Se a visão corriqueira do problema do embate entre
vitalismo e mecanismo passa pelo embate entre a respeito da possibilidade de reduzir o
organismo ao modelo explicativo da máquina, Canguilhem tende a inverter os pólos. Ele
lembra como, para a explicação mecânica dos fenômenos orgânicos, faz-se necessário, ao
lado das máquinas no sentido de dispositivos cinemáticos, máquinas como motores que
retiram a energia de algo para além do próprio circuito maquínico. Ou seja: “A construção
da máquina implica na obrigação de imitar um dado orgânico prévio” 115. Por outro lado,
devemos lembrar que, em uma máquina, o todo é a soma das partes, o efeito é dependente
de uma ordem das causas e ele apresenta uma rigidez funcional. No organismo, ao
contrário, conhecemos uma variância de funções, uma polivalência de órgãos e uma
tolerância a monstruosidades. Este era um ponto importante para a compreensão de um
vitalismo como o de Xavier Bichat. Pois, para Bichar, os atos da vida opõem, à
invariabilidade das leis físicas, a idéia de instabilidade e de irregularidade advinda das
exigências do ser vivo.
Assim, devemos perguntar sobre qual é o “princípio vital” que Canguilhem coloca
para além de toda explicação mecanicista e que sustentaria seu vitalismo. Na verdade,
Canguilhem afirma que só o vitalismo pode compreender a relação entre meio e organismo
como uma relação na qual o organismo atua como centro absoluto de referência, centro
responsável por atividades estruturadoras como julgamento e valoração que dependem de
uma causalidade que não é própria a dispositivos mecânicos compreendidos de maneira
tradicional: “A física é uma ciência de campos, de meios. No entanto, acabamos por
descobrir que, para que haja meio ambiente, faz-se necessário um centro. É a posição de um
ser vivo referindo-se à experiência que ele vive em sua totalidade que fornece ao meio do
sentido de condições de existência”116. O vitalismo é, aos menos nas mãos de Canguilhem,
uma forma de recuperar a irredutibilidade do sujeito para o interior do campo da clínica.
Daí porque ele afirmará que a recuperação do vitalismo nasce da compreensão de que a
redução do ser vivo à figura da máquina (por mais complexa que seja ela) é setor de uma
racionalidade que se realiza como mecanização da vida. Como se a racionalização fosse
uma mecanização do organismo. Este talvez seja o sentido da afirmação de Canguihem do
vitalismo como: “uma exigência, mais do que um método, uma moral, mais do que uma
teoria”.
Com isto, Canguilhem pode, de um lado, afirma o primado da clínica sobre toda
tentativa de fundar sua racionalidade a partir da fisiologia. O espaço da clínica, com as
demandas do paciente e sua palavra, é este espaço no qual o que é da ordem do patológico
pode se manifestar enquanto consciência de uma vida que não se afirma mais como
potência normativa. Pode ser estranho trazer para a clínica conceitos valorativos e
115
CANGUILHEM La connaissance de la vie, p. 144
116
idem, p. 122
aparentemente nebulosos como “vida” e “produção de valor”. No entanto, é desta forma
que Canguilhem procura dar conta de imperativos como: “É inevitável que, ao propor-se
como teoria geral da conduta, a psicologia faça sua alguma idéia de homem. Faz-se
necessário então permitir à filosofia perguntar à psicologia de onde ela retira tal idéia e se
não seria, no fundo, de alguma filosofia”117.

“Duas questões se colocam: sob quais condições pode-se falar de doença no domínio
psicológico? Quais relações é possível estabelecer entre os fatos da patologia mental e os da
patologia orgânica?”118.

117
CANGUILHEM, Georges, Qu´est ce que la psychologie?, p. 367
118
FOUCAULT, Michel; Maladie mentale et psychologia, p. 1
O estatuto da psicologia
Aula 9

Na aula de hoje, daremos início ao módulo dedicado à leitura de Doença mental e


psicologia, de Michel Foucault. Este módulo deve constar de três aulas dedicadas à leitura
do livro. Esta primeira aula será dedicada ao comentário de algumas características gerais
da experiência intelectual foucauldiana e à análise do primeiro capítulo de nosso livro:
Doença mental e doença orgânica. A próxima aula será dedicada à análise da primeira
parte: As dimensões psicológicas da doença; ficando a segunda parte do livro, Loucura e
cultura, como objeto da última aula do módulo.
Creio não ser novidade para ninguém aqui a importância decisiva do trabalho de
Michel Foucault no encaminhamento da reflexão epistemológica sobre o estatuto da clínica
dos fatos psicológicos, do olhar clínico, assim como das ciências humanas em geral. De
fato, as reflexões de Foucault sobre a psicologia são objetos privilegiados de análise desde
os primeiros escritos do filósofo. Licenciado em psicologia e diplomado em psicologia
patológica, Michel Foucault nunca deixou de alinhar sua formação filosófica a uma
reflexão ampla sobre a clínica. Este hibridismo do campo de reflexão próprio à experiência
intelectual foucauldiana está absolutamente vinculado a maneira com que Foucault
compreende o que significa a prática filosófica.
Contrariamente a uma posição hegemônica no meio francês de então, que via a
filosofia como prática de análise interna da sistematicidade de textos que compõem a
tradição do pensamento filosófico. para Foucault, ler um texto filosófico é principalmente
forçar a sistematicidade do discurso filosófico a deparar-se continuamente com seus limites
e misturar-se com aquilo que lhe era aparentemente estranho. Forçagem que impediria a
filosofia de se transformar em : “Perpétua reduplicação de si mesma, em um comentário
infinito de seus próprios textos e sem relação a exterioridade alguma” 119. Comentário
infinito que nos levaria necessariamente à simples textualização de práticas discursivas.
Mas se esta confrontação com a exterioridade é fundamento da leitura filosófica de
texto é porque: “a filosofia não é nem historicamente nem logicamente fundadora de
conhecimento, mas existem condições e regras de formação do saber aos quais o discurso
filosófico encontra-se submetido a cada época, como toda forma de discurso com
pretensões racionais”. Isto leva Foucault a afirmar a existência de uma espécie de
“inconsciente do saber que tem suas próprias formas e regras específicas” 120. Uma
proposição estruturalista por excelência, isto na medida em que ela procura definir os vários
sistemas de saber através da reconstituição de uma espécie de macro-estrutura.
Neste sentido, trata-se de inserir a filosofia e seus textos no interior da reconstrução
de práticas discursivas cujas formas e regras compõem o inconsciente do saber de uma
época. Eis o objeto central das explorações de Foucault a respeito de campos “extra-
filosóficos” como a clínica, a epistemologia das ciências humanas, entre outros. Trata-se de
mostrar, por exemplo, como a determinação da racionalidade das práticas clínicas de
intervenção é um setor privilegiado da razão e de seus modos de racionalização. Neste
sentido, a técnica e questões aparentemente técnicas são pontos maiores de compreensão
dos modos com que uma racionalidade historicamente determinada racionaliza os campos
da praxis. Como já devemos ter percebido, nenhum problema clínico é simplesmente um
problema clínico ligado apenas a condições neutras de eficácia de intervenção. Problemas
119
FOUCAULT, Dits et écrits, p. 1152
120
FOUCAULT, Dits e écrits, p. 1152
clínicos são o resultado da constituição de um olhar instaurados de condições de
normalidade. Pois problemas que parecem obedecer a um desenvolvimento ditado apenas
pelo estado da técnica ou pela configuração natural do dado são, ao contrário, espaços
privilegiados nos quais a razão configura, silenciosamente, os campos da experiência
possível.
Nosso módulo tentará mostrar como esta perspectiva de Foucault é indissociável da
maneira com que o filósofo se insere no interior da tradição de reflexão que configuramos
através dos nomes de Politzer, Canguilhem e Lacan. Para tanto, vamos analisar um livro,
inicialmente escrito em 1954 mas depois totalmente reconstruído à época de sua reedição,
em 1962. momento em que Foucault já havia defendido sua tese sobre a História da
Loucura. Este pequeno livro, Doença mental e psicologia, uma porta de entrada
privilegiada para a compreensão da experiência intelectual de Michel Foucault por retomar
temas articulados no interior da reflexão filosófica francesa desde os anos vinte e por já
indicar os caminhos que Foucault trilhará em direção ao estabelecimento de sua estratégia
maior: submeter a reflexão epistemológica sobre as ciências humanas a uma genealogia do
poder e das práticas disciplinares. Submissão que aparece no horizonte desde que Foucault
admite que: “o homem só se transformou em uma ´espécie psicológizável´ a partir do
momento em que sua relação à loucura permitiu uma psicologia” 121. Como se a própria
normatização da vida produzisse seu outro.
No entanto, este livro tem uma história peculiar. Lançado pela primeira vez em
1954, seu título era outro: Doença mental e personalidade. De fato, toda a segunda parte,
intitulada “As condições reais da doença” era diferente do que encontramos na versão atual
pois dedicada, principalmente, a Pavlov e á tentativa de edificação das condições para uma
ciência psicológica materialista. Então vinculado ao marxismo, Foucault não deixa de
seguir vias muito semelhantes a outro marxista, Georges Politzer e sua psicologia concreta
que privilegia o caráter de internalização de contradições sociais enquanto cerne da
constituição de patologias. No entanto, ao preparar uma nova versão em 1962, Foucault,
agora distante do marxismo, reescreve todo o capítulo final de seu livro, substituindo a
análise inicial por um grande resumo de sua tese de doutorado que acabara de sair: A
história da loucura. Devido a este grande remanejamento, Foucault renegará
completamente este trabalho. Em suas entrevistas, sempre irá se referir a História da
loucura como sendo seu primeiro livro. O que nos deixa com uma questão maior,: por que
introduzir o pensamento de Michel Foucault através de um livro que o próprio autor
repudiou?
Uma resposta possível diz respeito ao desejo de compreender de maneira mais clara
o processo de formação das questões e métodos que marcaram a experiência intelectual de
Foucault. Muitas vezes, um projeto abandonado ou totalmente reescrito diz muito a respeito
do movimento próprio a um pensamento, já que ele evidencia o encaminhamento que leva
um autor a procurar sintetizar questões que continuarão a guiar sua produção intelectual.
Neste sentido, devemos responder o que leva Foucault a abandonar uma perspectiva
classicamente marxista na análise do estatuto da psicologia, isto em prol da constituição de
um campo de análise da clínica que caminhará para a elaboração de um método de reflexão
epistemológica inicialmente pensado como uma “arqueologia” e posteriormente como uma
“genealogia”. Pois não é por acaso que o primeiro trabalho verdadeiramente acabado de
arqueologia da ciência tenha sido efetuado a partir da análise do próprio aparecimento da

121
FOUCAULT, Maladie mentale et psychologie, p. 88
noção moderna de clínica (O nascimento da clínica, de 1963). Foucault vê na constituição
da psicologia e da clínica dos fatos psicológicos, o campo privilegiado de orientação da
razão em seus processos de racionalização da vida.

A autonomia do mental

“Duas questões se colocam: sob quais condições podemos falar de doença no domínio
psicológico? Quais relações podemos estabelecer entre os fatos da patologia mental e estes
da patologia orgânica?”. Desta forma, começa Doença mental e psicologia. Como vemos,
trata-se de se perguntar sobre a especificidade da causalidade psíquica a partir de uma dupla
problematização. Primeiro, o problema da causalidade psíquica é abordado sob o fundo da
distinção entre o normal e o patológico. O que é um estado patológico para a psicologia?
Quais seus critérios e modos de classificação? Segundo, o problema da causalidade
psíquica é lido no interior da discussão entre psicogênese e organogênese. Há alguma
distinção estrutural entre patologia mental e patologia orgânica? Podemos utilizar os
mesmos procedimentos de determinação do segundo caso na análise do primeiro?
De fato, colocar o problema nestes termos já é operar com a pressuposição de uma
distinção pretensamente fundadora da racionalidade do campo da psicologia, a saber, a
pressuposição de que a perspectiva de análise de fenômenos físicos, orgânicos pode ser
completamente inadequada para a determinação mesma do que é um fato psicológico.
Vimos uma das raízes de tal distinção em um livro como a Critica dos fundamentos da
psicologia, de Georges Politzer com suas críticas contra o realismo e o formalismo do
discurso próprio á psicologia experimental. Foucault parece admitir tal perspectiva crítica
politzeriana ao afirmar, por exemplo: “Se parece tão difícil definir a doença e a saúde
psicológica, não seria por que nos esforçamos de maneira vã em lhes aplicar massivamente
conceitos igualmente destinados á medicina somática?”122. Lembremos, a este respeito, da
descrição foucauldiana sobre o estado da psicologia, uma descrição de inegável acento
politzeriano: “O destino desta psicologia que se via como conhecimento positivo repousou
sempre sobre dois postulados filosóficos: a verdade do homem esgota-se em seu ser natural
e o caminho em direção a todo conhecimento científico deve passar pela determinação de
relações quantitativas, pela construção de hipóteses e pela verificação experimental. Toda
história da psicologia até a metade do século XX é a história paradoxal das contradições
entre este projeto e seus postulados. Ao perseguir o ideal de rigor e exatidão das ciências da
natureza [Politzer falava do ponto de vista da terceira pessoa próprio às ciências físicas], ela
foi levada a renunciar a tais postulados. Ela foi levada, por cuidado de fidelidade objetiva, a
reconhecer na realidade humana outra coisa que um setor da objetividade natural [Foucault
pensa sobretudo na psicanálise e na análise existencial de Biswanger], e a utilizar para o
conhecer, outros métodos que estes fornecidos como modelo pelas ciências da natureza”123.
Foucault parte então para uma descrição dos impasses advindos da tentativa de
constituir o campo da análise das doenças psicológicas a partir do quadro metodológico
utilizado para analisar doenças orgânicas. Tal como na análise da doença orgânica, lembra
Foucault, a psicologia tentou inicialmente constituir uma sintomatologia (determinando o
quadro dos signos e sintomas que indicam a existência de estruturas mórbidas) e uma
nosografia (determinando as formas e os padrões de desenvolvimento da doença). Foucault
passa então a descrição de estruturas mórbidas tradicionalmente aceitas à época (histeria,
122
FOUCAULT, Maladie mentale ... p. 2
123
idem, La psychologie de 1850 à 1950, Dits et écrits, p. 148
psicastenia, obsessão, mania, paranóia, psicose alucinatória crônica, hebefrenia, catatonia),
isto a fim de mostrar como tais estruturas são marcadas pelo mesmo método de repartição
de sintomas em grupos patológicos e de determinação de estruturas mórbidas que
encontramos na análise das doenças orgânicas. Nos dois casos, a doença aparece como
essência cujos sintomas são atributos. Ou seja, consideramos a doença como uma:
“essência natural manifestada por sintomas específicos” 124. Tal perspectiva essencialista
converge com a descrição que vimos de Georges Canguilhem sobre a compreensão da
doença como o resultado de variações quantitativas de funções e órgão.
Foucault lembra que, contra tal perspectiva, desenvolveu-se a noção de doença
como o que resulta de reações globais de indivíduos tomados como totalidades orgânicas e
psicológicas. Visão bastante difundida na França principalmente devido a Canguilhem,
Merleau-Ponty e Kurt Goldstein, vimos como ela encontrava suas raízes já presentes na
medicina grega. Contrariamente a uma noção de doença determinada a partir da
possibilidade de localização, a medicina grega estaria marcada por um certo dinamismo
relacional que já vimos em operação ao estudar o problema da natureza do sintoma segundo
um Georges Politzer profundamente marcado pela Gestalttheorie: “A natureza (physis)
tanto no homem como fora dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio,
dessa harmonia, é a doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte no homem.
Está em todo o homem e é toda dele” 125. A doença aparece assim como um acontecimento
que diz respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade. Como dirá claramente
Foucault: ? A doença não é então nem um déficit nem uma regressão, mas um problema na
regulação com o meio”126.
No entanto, Foucault dá um passo próprio cheio de consequências. Ele cita
Goldstein e sua tentativa de, através da reflexão do patológico como situação global do
indivíduo, colocar-se para-além de toda distinção entre orgânico e psíquico (uma posição
que vimos também com Canguilhem). Foucault quer criticar tal posição ao insistir na
impossibilidade de ignorarmos a diferenciação radical entre o que é da ordem da
causalidade orgânica e o que é da ordem da causalidade psíquica. Na verdade, posições
desta natureza nos explicam uma das facetas da adesão de Foucault a perspectivas como o
estruturalismo francês. Pois o filósofo já admite, desde seus primeiros escritos, uma
distinção radical entre as ordens da natureza e da cultura, tal como é o caso em pensadores
como Claude Lévi-Strauss. Tal distinção traz consequências profundas para a determinação
do campo da psicologia e das doenças mentais.
No primeiro capítulo de seu livro, Foucault, descreve três aspectos onde a distinção
estrita entre natureza e cultura produz impossibilidade de estabelecer similitudes entre
doença mental e doença orgânica.
O primeiro destes aspectos diz respeito à abstração. Foucault insiste que as
patologias orgânicas não excluem a possibilidade de abstração de elementos isolados a fim
de reconstituir uma análise causal inteligível. “Ora”, dirá Foucault, “a psicologia nunca
forneceu à psiquiatria o que a fisiologia deu à medicina: o instrumento de análise que, ao
delimitar o problema, permitia identificar a relação funcional entre este e o conjunto da
personalidade”127. Daí porque ele poderá afirmar que a abstração não pode ser feita da
mesma maneira em psicologia e em fisiologia. Este é um ponto interessante porque
124
FOUCAULT, Maladie mentale..., p. 9
125
CANGUILHEM, idem, p. 20
126
FOUCAULT, La psychologie ... p. 154
127
FOUCAULT, idem, p. 13
Foucault age como quem acredita que a abstração quantitativa e individualizadora são
adequadas aos fenômenos orgânicos, enquanto que não são adequadas aos fenômenos
psicológicos. Como se o corpo fosse mais facilmente moldável à abstração
instrumentalizadora do que o mental. No entanto, vimos como esta perspectiva não é
sustentada por alguém como georges Canguilhem. Ele será abandonada pelo próprio
Foucault, principalmente após o impacto da escrita de O nascimento da clínica com sua
descrição do modo com que o advento da fisiologia moderna implicou na transformação do
corpo em um espaço submetido a procedimentos gerais de abstração.
Em um capítulo do Nascimento da Clínica, intitulado “Abram alguns cadáveres”,
Michel Foucault reconstitui a trajetória que permitiu à fisiologia e à anatomia patológica
aparecerem como fundamento da clínica. Tal posição da fisiologia só foi possível a partir
do momento em que o corpo foi reconfigurado, aparecendo como um “espaço ao mesmo
tempo mais complexo e mais abstrato, onde era questão de ordem, de sucessão, de
coincidência e de isomorfismo”128. Transformação do corpo em um espaço abstrato que era
resultado da aplicação de um “princípio geral de decifração” do espaço corporal semelhante
ao princípio geral de constituição do espaço homogêneo e geométrico da física moderna.
Tal princípio geral de inteligibilidade era fornecido, no caso da constituição do espaço
corporal, pela redução do corpo a um campo de tecidos orgânicos: “A partir dos tecidos, a
natureza trabalha com uma extrema simplicidade de materiais. Eles são os elementos dos
órgãos, mas o atravessam, os aproximam e, para além deles, constituem os vastos sistemas
nos quais o corpo humano encontra a forma concreta de sua unidade. Haverá tantos
sistemas quanto tecidos: neles, a individualidade complexa e inesgotável dos órgãos se
dissolve e, de uma vez, se simplifica”129. Tal redução do volume orgânico a um elementar
que é, ao mesmo tempo, um universal aparece como condição para o aparecimento de uma
fisiologia que pode se submeter a um padrão de objetividade fundado em dispositivos de
mensuração, de redução quantitativa e de abstração a um padrão geral de cálculo.
O segundo aspecto de distinção entre doença mental e doença orgânica é a partilha
entre normal e patológico. Foucault afirma neste momento haver distinções claras entre
normal e patológico no domínio dos fenômenos orgânicos. Seguindo Leriche, Foucault
afirma existir algo como uma planificação coerente das possibilidades fisiológicas do
organismo fundado na análise dos mecanismos em estado normal. Ou seja, Foucault age
como quem admite que a noção de norma e de normal na análise dos fenômenos físicos é
relativamente não-problemática. Isto é feito para afirmar que: “em psiquiatria, ao contrário,
a noção de personalidade torna particularmente difícil a distinção entre o normal e o
patológico”130. Pois sintomas que podem identificar quadros patológicos podem também ser
descrição de análises de caráter. Reich já havia percebido claramente como traços de caráter
organizam-se de forma semelhante a sintomas. Foucault utiliza o exemplo de Bleuler que
determinava as psicoses maniaco-depressivas por exageração de reações afetivas enquanto
Kretschmer constituía um quadro caracterial bipolarm, comportando esquizotimia e
ciclotimia. No entanto, podemos, como já vimos, não aceitar a tese de que fenômenos
orgânicos fornecem determinações não-problemáticas de norma e de normal.
Por fim, Foucault afirma que a relação entre o doente e seu meio é distinto nos casos
de doença mental e nos casos de doença orgânica. Pois a noção de totalidade orgânica
permitiria isolar a individualidade em sua originalidade mórbida (já que a cura seria
128
FOUCAULT, La naissance de la clínique, p. 128
129
idem, p. 129
130
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 14
realizada a partir de uma atuação particular) enquanto que a realidade da doença mental não
permitiria tal abstração em relação ao meio (já que a cura seria realizada a partir do ponto
de relação entre indivíduo e meio).
Tais pontos são levantados por Foucault a fim de afastar o postulado de uma
metapatologia. Como vemos, a distinção estrita entre natureza e cultura implica em uma
distinção estrita entre doença mental e doença orgânica.
O estatuto da psicologia
Aula 10

Na aula de hoje, daremos seqüência ao nosso módulo dedicado à leitura de Doença mental
e psicologia através do comentário da primeira parte do livro, esta intitulada “As dimensões
psicológicas da doença” e que comporta os capítulos: “Doença e evolução”, “Doença e
história individual” e “Doença e existência”.
Vimos, na aula passada, como Foucault partia da necessidade de operar uma divisão
estrita entre o que é da ordem da doença mental e o que é da ordem da doença orgânica, isto
a ponto de perguntar : “Se parece tão difícil definir a doença e a saúde psicológica, não
seria por que nos esforçamos de maneira vã em lhes aplicar massivamente conceitos
igualmente destinados á medicina somática?” 131. Foucault chegava a fornecer três aspectos
nos quais a distinção estrita entre natureza e cultura produzia a impossibilidade de
estabelecer similitudes entre doença mental e doença orgânica.
O primeiro destes aspectos dizia respeito à abstração. Foucault insistia que as
patologias orgânicas não excluem a possibilidade de abstração de elementos isolados a fim
de reconstituir uma análise causal inteligível. No entanto, no caso da patologia mental, tal
abstração é impossível devido à totalidade constituída pela noção de personalidade. O
segundo aspecto de distinção entre doença mental e doença orgânica é a partilha entre
normal e patológico. Foucault afirma neste momento haver distinções claras entre normal e
patológico no domínio dos fenômenos orgânicos. Seguindo Leriche, Foucault afirma existir
algo como uma planificação coerente das possibilidades fisiológicas do organismo fundado
na análise dos mecanismos em estado normal. Ou seja, Foucault age como quem admite
que a noção de norma e de normal na análise dos fenômenos físicos é relativamente não-
problemática. Isto é feito para afirmar que: “em psiquiatria, ao contrário, a noção de
personalidade torna particularmente difícil a distinção entre o normal e o patológico” 132.
Pois sintomas que podem identificar quadros patológicos podem também ser descrição de
análises de caráter. Por fim, Foucault afirma que a relação entre o doente e seu meio é
distinto nos casos de doença mental e nos casos de doença orgânica. Pois a noção de
totalidade orgânica permitiria isolar a individualidade em sua originalidade mórbida (já que
a cura seria realizada a partir de uma atuação particular) enquanto que a realidade da
doença mental não permitiria tal abstração em relação ao meio (já que a cura seria realizada
a partir do ponto de relação entre indivíduo e meio).
Com isto, fica a questão de saber qual a perspectiva adequada de análise das
patologias mentais, assim como o quadro mais amplo dos fatos psicológicos em geral. Este
é o sentido do primeiro capítulo do nosso livro. Trata-se de expor qual seria a perspectiva
capaz de permitir a apreensão adequada do que se manifesta em uma patologia mental
determinada. Neste sentido, a simples compreensão do encadeamento próprio aos títulos
dos três capítulos que compõem a primeira parte já evidencia a estratégia foucauldiana. Ele
começará discutindo a noção, então clássica, da doença como regressão (daí a discussão
entre doença e evolução), isto a fim de introduzir, no quadro da compreensão da doença, a
dimensão da história individual. Uma história individual que, por sua vez, deverá se
submeter a uma análise existencial inspirada por suas leituras de Ludwig Binswanger e que
procura apreender: “liberdade fundamental de uma existência que escapa, de pleno direito,
131
FOUCAULT, Maladie mentale ... p. 2
132
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 14
á causalidade psicológica”133. Trata-se então, na aula de hoje, de reconstituir este
movimento no interior do texto foucauldiano.

Evolução e história

Foucault parte da noção, hegemônica ainda no início do século XX, da doença mental como
regressão a um estágio anterior de desenvolvimento. A doença seria, principalmente,
dissolução de funções complexas de coordenação e substituição de tais funções por
atividades simples e restritas. Tudo se passa como se aceitássemos que: “a doença suprime
as funções complexas, instáveis e voluntárias, exaltando as funções simples, estáveis e
automáticas”134. Isto permita Foucault afirmar que a doença aparece aqui não exatamente
como uma essência anti-natural, mas como a própria natureza e um processo inverso de
involução.
Este esquema de compreensão da doença tornou-se hegemônico principalmente
devido a defesa de paralelismo entre filogênese e ontogênese, entre a evolução do que é da
ordem da espécie e a repetição de tal esquema evolutivo, de maneira mais rápida, no
desenvolvimento do indivíduo. Tal noção de doença depende de uma certa teleologia
evolutiva na qual etapas anteriores são superadas e integradas em etapas subseqüentes;
noção esta cuja teleologia se organiza a partir da lógica do aperfeiçoamento progressivo.
Ernst Haeckel, zoólogo alemão, divulgador do darwinismo insistia, por exemplo que: “O
desenvolvimento filogenético, dos seres mais simples aos mais complexos, é repetida no
desenvolvimento progressivo e aperfeiçoador do indivíduo: o adulto é mais perfeito que a
criança porque o homem é mais perfeito que a monera” 135. Neste sentido, a doença seria
necessariamente um retorno e dissolução de funções complexas que teriam sidos
sintetizadas em fases mais avançadas do desenvolvimento. Como vemos, aqui, o que é da
ordem do comportamento humano sob pode ser inteligível ‘a condição de submetermos o
humano à dimensão de uma história natural.
Foucault vê tal perspectiva naturalista atuando em autores como Freud e Pierre
Janet. Foucault pensa principalmente em uma certa perspectiva freudiana que vê a neurose
como uma regressão a estágios anteriores do desenvolvimento libidinal (não seria por outra
razão, ao menos segundo o jovem Foucault, que Freud insiste em vários momentos nas
similitudes possíveis entre o pensamento selvagem, o pensamento pré-lógico da criança e o
pensamento neurótico). Foucault acredita que uma perspectiva como a freudiana é
dependente de, ao menos, dois mitos: o mito de uma substância psicológica que progrediria
no curso do desenvolvimento individual e social (substância que seria, no caso, a “libido”
enquanto energia psíquica) e o mito da identidade entre o doente, o primitivo e a criança;
um mito patrocinado pela crença em uma similitude estrita entre filogênese e ontogênese.
Contra tais perspectivas, Foucault insiste que a regressão é apenas um aspecto
descritivo da doença. Até porque, por mais profunda que seja a dissolução de funções
complexas, a personalidade nunca desaparece completamente, o próprio processo de
dissolução com seus motivos e modos de desenvolvimento é sempre vinculado aos quadros
de uma personalidade. Daí porque Foucault pode afirmar que: “o que a regressão da
personalidade encontra não são elementos dispersos nem uma personalidade mais

133
FOUCAULT, Dits et écrits, p. 164
134
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 21
135
CANGUILHEM, Du développement à l´évolution au XIX siècle, p. 84
arcaica”136. Isto nos exige pois passarmos de uma compreensão evolutiva geral ‘a
especificidade da história pessoal do doente, isto se quisermos compreender o sentido da
doença. Ou seja, passarmos de uma psicologia evolutiva a uma psicologia capaz de levar
em conta a dimensão histórica da constituição da subjetividade. De qualquer forma,
Foucault admite que: “a importância do evolucionismo na psicologia advém, sem dúvida,
de que ele foi o primeiro a mostrar que o fato psicológico só tem sentido em relação a um
futuro e a um passado, que seu conteúdo atual repousa sobre um fundo silencioso de
estruturas anteriores que o preenchem com toda uma história, mas ele implica, ao mesmo
tempo, um horizonte aberto para o eventual”137.
Foucault começa o capítulo III lembrando que evolução e história obedecem a
dimensões temporais distintas. A história é doação de sentido ao passado através de
exigências do presente. É o presente que organiza e determina o sentido do que é
recuperado no passado. Já a evolução é marca do passado sobre a determinação do
presente. Ela é o peso determinista de um processo de desenvolvimento já previamente
definido. Ou seja, a articulação entre passado e presente obedecem, na história e na
evolução, sentidos distintos. Daí porque Foucault afirmará: “A psicologia da evolução, que
descreve os sintomas como condutas arcaicas, deve ser completada por uma psicologia da
gênese que descreve, em uma história, o sentido atual de tais regressões”138.
No interior da psicanálise, encontramos as duas tendências, a evolutiva e a histórica.
Grosso modo, a dimensão evolutiva aparece na metapsicologia através da teoria das fases
da libido, enquanto que a dimensão histórica aparece na clínica através da compreensão da
regressão não como queda natural no passado, mas como fuga intencional para fora de um
presente conflitual. Tanto que o passado ao qual se retorna é, fundamentalmente, o passado
imaginário das substituições fantasmáticas: “a doença tem por conteúdo o conjunto das
reações de fuga e de defesa através da qual o doente responde à situação na qual se
encontra; é a partir deste presente, desta situação atual que se deve compreender e dar
sentido às regressões evolutivas que aparecem nas condutas patológicas; a regressão não é
apenas uma virtualidade da evolução, ela é uma conseqüência da história” 139. Ou seja, a
regressão é um processo vinculado a conflito que se desenrolam no campo de interações do
sujeito com a configuração do meio no qual ele se insere e age. Vimos algo bastante
parecido com Georges Politzer quando este lembrava que, para a psicanálise, interpretar
não era aplicar esquemas prévios de simbologias (embora Freud nunca tenha deixado de
reconhecer a presença de um certo simbolismo nos sonhos), mas permitir uma reconstrução
de contextos no interior da qual o sujeito aparecia em um papel ativo. Este é o sentido de
uma afirmação central de Politzer: “a idéia [central para a psicanálise] segundo a qual
poderia haver uma dialética puramente individual à qual os atos individuais forneceriam
uma significação puramente individual é totalmente estranha à psicologia clássica” 140. Por
outro lado, esta insistência foucauldiana na história individual aparece em Politzer através
da exigência de reconstrução daquilo que ele chama de “drama” como seqüência de atos na
qual cada ato vai configurando o campo de significação dos atos posteriores.
Foucault chegará mesmo a utilizar o vocabulário do sentido a fim de, em um acento
claramente politzeriano, insistir que a psicanálise teria trazido ‘a psicologia o problema da
136
FOUCAULT, idem, p. 31
137
FOUCAULT, Dits et écrits, p. 153
138
FOUCAULT, Maladie mentale ..., p. 51
139
idem, p. 43
140
idem, p. 102
produção do sentido ao deixar de lado hipóteses muito amplas e gerais através das quais
explicamos o homem como um setor privilegiado do mundo natural, isto ao insistir no
vínculo entre formação de sintomas e resultado de processos de socialização. Por outro
lado, ele compreende a tendência, forte nos anos 30 e 40 graças principalmente a Anna
Freud, de transformar a psicanálise em uma análise dos mecanismos de defesa através dos
quais o Eu produz sintomas contra as exigências pulsionais do isso, em um movimento que
indica a insistência no uso psicanalítico da história. Pois analisar os mecanismos de defesa
significaria analisar o modo com que o sujeito reproduz e reconstitui sua história a partir de
conflitos próprios à sua situação presente. Significa compreender como ele mobiliza a
regressão, o isolamento, a introjeção, a projeção, a anulação retroativa, entre outros, isto a
fim de dar conta de contradições nas quais ele se enredou no presente.
Mas Foucault não deixa de fazer uma pergunta fundamental: qual a natureza do
conflito que produz esta fuga em direção ao passado? Conflito que não é apenas uma
experiência da contradição e da ambigüidade, mas uma experiência contraditória e
ambivalente [como, por exemplo, aquela responsável pela produção do sintoma fóbico no
pequeno Hans]. Freud se servia basicamente da noção de dualidade pulsional a fim de
expor uma gênese (a-histórica e praticamente naturalizada) do conflito. Este recurso a
forças impessoais que agem na antecãmara da subjetividade não é a perspectiva de
Foucault. Na verdade, ele prefere lembrar que a dimensão afetiva desta contradição interna
que gera o conflito psíquico é a angústia. Trata-se então de compreender a quais objetos e
situações a angústia está normalmente vinculada. Trata-se, por outro lado, de elevar a
angústia a condição para a compreensão do sentido da história individual, já que a angústia
marca a natureza do conflito psíquico responsável pela doença. Foucault chega mesmo a
afirmar que a angústia é o coração da doença.
Lembremos que nem todas as experiências de contradição e conflito são
necessariamente experiências nas quais a angústia aparece como dimensão afetiva
fundamental. A pergunta fica sendo pois: o que faz com que certos conflitos sejam
vivenciados de maneira angustiante e outros não por um sujeito; o que faz com que alguns
sujeitos vivam certos conflitos de maneira angustiante enquanto outros sujeitos não caem
em tal situação. Ao colocar questões desta natureza, Foucault procura uma dimensão para
além da análise da história individual, já que se trata de determinar um elemento
organizador da história, enquanto campo de conflito, para além da própria história: “para
que uma contradição seja vivenciada sob o modo angustiante da ambivalência, para que, a
respeito de um conflito, o sujeito se feche na circularidade dos mecanismos patológicos de
defesa, foi necessário que a angústia já estivesse presente, que ela tenha transformado a
ambiguidade de uma situação em ambivalência de reações”141. Daí a necessidade de passar
a uma análise existencial da doença, ou seja, desta maneira com que, a partir da angústia, a
doença se transforma em modo de estar no mundo, em “maneira com que a existência
humana se oferece no mundo”142, temporalizando-se, espacializando-se e projetando um
mundo. Foucault chega a falar de um “estilo de angústia” cuja interpretação fornece a
unidade significativa dos fenômenos de uma personalidade.
De qualquer forma, ao operar a partir desta via, Foucault não inovava. Baseando-se
fundamentalmente em Binswanger, mas sem deixar de sentir os ecos de alguns trablahos de
Jean-Paul Sartre (em especial O ser e o nada, de 1943), Foucault via, na gênese da angústia
um problema que não podia ser resolvido por uma análise do tipo naturalista, nem por uma
141
FOUCAULT, Maladie mentale..., p. 51-52
142
FOUCAULT, Dits et écrits, p. 164
análise do tipo histórico. Ao contrário, a história e a natureza do homem só poderia ser
compreendidas a partir da angústia, já que ela forneceria a unidade significativa da
totalidade de um sujeito.
A este respeito, lembremos, por exemplo, de Sartre e sua compreensão de que a
angústia é manifestação primeira da liberdade do sujeito em sua distância em relação à
norma. Quando me deparo com uma tal fragilização daquilo que causa meu ato que
apreendo minha conduta como um possível que, por ser meu possível, não se impõe de
maneira obrigatória, então a consciência da minha liberdade se manifesta como angústia. É
neste sentido que devemos compreender a afirmação de Sartre: “A angústia como
manifestação da liberdade diante de si significa que o homem está sempre separado de sua
essência por um nada (...) Na angústia, a liberdade se angustia diante de si mesma enquanto
ela nunca é solicitada ou entravada por nada”143.
É desta forma que Sartre absorve um tema clássico que vincula a angústia a uma
certa: “negação dos apelos do mundo” e de “desengajamento no mundo em que estava
engajado”144. Poderíamos retornar a Hegel a fim de determinar a angústia como
manifestação fenomenológica da consciência da fragilização das imagens do mundo.
Angústia como momento de confrontação do sujeito com aquilo que não se articula a partir
de princípios de ligação derivados do Eu como unidade sintética. Poderíamos seguir esta
perspectiva e afirmar que, para o jovem Foucault, através da angústia a doença expõe uma
certa experiência trágica constitutiva da liberdade humana. Mas quando a doença advém
objeto de uma psicologia, ela se esvazia enquanto manifestação da existência em seu
sentido mais amplo.
Dito isto, a reconstituição da história individual deve se submeter a uma análise da
existência, a uma reconstituição do universo patológico da consciência doente cujos
lineamentos Foucault procura definir no capítulo IV, intitulado “Doença e existência”
Neste sentido, Foucault se apóia em Minkowski e em Binswanger a fim de insistir na
maneira com que a doença mental, em especial em casos de psicose, é solidária de
modificações profundas naquilo que determina a configuração da posição existencial dos
sujeitos, ou seja, as noções de tempo e de espaço. Por exemplo, a lineraridade do tempo é
suspensa em delírios psicóticos nos quais eventos anteriores repetem-se de maneira
insistente ou se acoplam, de maneira simultânea, com outros eventos ocorridos em
momentos distintos. Todos conhecemos a modificações na noção de espaço (onde
dicotomias como interno e externo, dentro e fora, longe e perto não conseguem mais
organizar a vivência) assim como na estrutura de relações intersubjetivas resultantes da
doença. Tais modificações permitem a Foucault falar de uma espécie de “mundo privado”
resultante da entificação da doença. Uma proposição que nós já vimos ao estudarmos
Canguilhem com sua noção de que a doença é um acontecimento que diz respeito ao
organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: “não há um único fenômeno que se realize
no organismo doente da mesma forma como no organismo são” 145. Isto a ponto dele afirmar
que, para um organismo, estar doente é habitar outro mundo.
No entanto, Foucault lembra que, qualquer que seja o grau da doença, o doente
reconhece sua anomalia e dá a ela o sentido de uma diferença irredutível que o separa da
consciência dos outros. A doença mental sempre implica uma consciência da doença, até
porque, o universo mórbido nunca é um absoluto no qual se aboliria toda referência ao
143
SARTRE, L´être et le néant, p. 70
144
idem, p. 74
145
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 52
normal. Há sempre a referência a uma norma partilhada. No entanto, esta referência é feita
no interior da própria doença e a partir de seus móbiles. Foucault fala, nestes casos, de um
“reconhecimento alusivo”, de uma “consciência ambígua” na qual o normal é reconhecido
mas seu valor é suspenso. De qualquer forma, tal reconhecimento é fundamental por
mostrar como a doença mental é posição existencial organizada a partir de uma referência
de normatividade fornecida pelo meio social. Ou seja, a doença ainda é um modo de
participação social. Falta ainda analisar como tal articulação se estrutura.
O estatuto da psicologia
Aula 11

Com a aula de hoje, terminaremos o comentário de Doença mental e psicologia, de Michel


Foucault. Na aula passada, vimos como, ao tentar definir a natureza do que estaria em jogo
na noção de “doença mental”, Foucault havia partido da noção, hegemônica ainda no início
do século XX, da doença mental como regressão a um estágio anterior de desenvolvimento.
A doença seria, principalmente, dissolução de funções complexas de coordenação e
substituição de tais funções por atividades simples e restritas. Tudo se passaria, pois, como
se aceitássemos que: “a doença suprime as funções complexas, instáveis e voluntárias,
exaltando as funções simples, estáveis e automáticas”146. Isto permitia Foucault afirmar que
a doença aparece aqui não exatamente como uma essência anti-natural, mas como a própria
natureza e um processo inverso de involução.
Vimos ainda como este esquema de compreensão da doença tornou-se hegemônico
principalmente devido a defesa de paralelismo entre filogênese e ontogênese, entre a
evolução do que é da ordem da espécie e a repetição de tal esquema evolutivo, de maneira
mais rápida, no desenvolvimento do indivíduo. Tal noção de doença depende de uma certa
teleologia evolutiva na qual etapas anteriores são superadas e integradas em etapas
subseqüentes; noção esta cuja teleologia se organiza a partir da lógica do aperfeiçoamento
progressivo.
Contra tal perspectiva, Foucault insistia que a regressão é apenas um aspecto
descritivo da doença. Até porque, por mais profunda que seja a dissolução de funções
complexas, a personalidade nunca desaparece completamente, o próprio processo de
dissolução com seus motivos e modos de desenvolvimento é sempre vinculado aos quadros
de uma personalidade. Daí porque Foucault pode afirmar que: “o que a regressão da
personalidade encontra não são elementos dispersos nem uma personalidade mais
arcaica”147. Isto nos exige pois passarmos de uma compreensão evolutiva geral ‘a
especificidade da história pessoal do doente, isto se quisermos compreender o sentido da
doença. Ou seja, passarmos de uma psicologia evolutiva a uma psicologia capaz de levar
em conta a dimensão histórica da constituição da subjetividade.
Vimos como Foucault continuava seu trajeto lembrando que evolução e história
obedecem a dimensões temporais distintas. A história é doação de sentido ao passado
através de exigências do presente. É o presente que organiza e determina o sentido do que é
recuperado no passado. Já a evolução é marca do passado sobre a determinação do
presente. Ela é o peso determinista de um processo de desenvolvimento já previamente
definido. Ou seja, a articulação entre passado e presente obedecem, na história e na
evolução, sentidos distintos. Daí porque Foucault afirmará: “A psicologia da evolução, que
descreve os sintomas como condutas arcaicas, deve ser completada por uma psicologia da
gênese que descreve, em uma história, o sentido atual de tais regressões”148.
Esta dimensão histórica aparece na clínica através da compreensão da regressão não
como queda natural no passado, mas como fuga intencional para fora de um presente
conflitual. Tanto que o passado ao qual se retorna é, fundamentalmente, o passado
imaginário das substituições fantasmáticas. Ou seja, a regressão é um processo vinculado a
146
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 21
147
FOUCAULT, idem, p. 31
148
FOUCAULT, Maladie mentale ..., p. 51
conflito que se desenrolam no campo de interações do sujeito com a configuração do meio
no qual ele se insere e age.
Mas Foucault não deixa de fazer uma pergunta fundamental: qual a natureza do
conflito que produz esta fuga em direção ao passado? Conflito que não é apenas uma
experiência da contradição e da ambigüidade, mas uma experiência contraditória e
ambivalente [como, por exemplo, aquela responsável pela produção do sintoma fóbico no
pequeno Hans]. Freud se servia basicamente da noção de dualidade pulsional a fim de
expor uma gênese (a-histórica e praticamente naturalizada) do conflito. Este recurso a
forças impessoais que agem na antecâmara da subjetividade não é a perspectiva de
Foucault. Na verdade, ele prefere lembrar que a dimensão afetiva desta contradição interna
que gera o conflito psíquico é a angústia. Trata-se então de elevar a angústia a condição
para a compreensão do sentido da história individual, já que a angústia marca a natureza do
conflito psíquico responsável pela doença. Foucault chega mesmo a afirmar que a angústia
é o coração da doença. Daí a necessidade de passar a uma análise existencial da doença, ou
seja, desta maneira com que, a partir da angústia, a doença se transforma em modo de estar
no mundo, em “maneira com que a existência humana se oferece no mundo” 149,
temporalizando-se, espacializando-se e projetando um mundo. Foucault chega a falar de um
“estilo de angústia” cuja interpretação fornece a unidade significativa dos fenômenos de
uma personalidade.
Vimos como, ao elevar a angústia a condição de elemento organizador da história
individual cuja causalidade estaria para além desta própria história, Foucault filiava-se a
uma tradição fenomenológica que elevava a angústia em modo privilegiado de
manifestação fenomenal da liberdade. Poderíamos seguir esta perspectiva e afirmar que,
para o jovem Foucault, através da angústia a doença expõe uma certa experiência trágica
constitutiva da liberdade humana. Mas quando a angústia que provoca a loucura advém
objeto de uma psicologia, ela se esvazia enquanto manifestação da existência em seu
sentido mais amplo. A questão que fica é: qual o processo responsável por esta
transformação das figuras da angústia em “doença mental” submetida a primazia de um
discurso médico e de um olhar clínico. Este é o problema maior da segunda parte do nosso
livro: “Loucura e cultura”.

Uma história da loucura

É neste capítulo que vemos, de maneira clara, o método arqueológico de Foucault


em operação. Notemos inicialmente qual é o problema de Foucault aqui. Se a primeira
parte do livro foi uma exposição das formas de aparição da doença mental (como regressão,
como trauma não-historicizado etc.), agora se trata de expor as condições para o
aparecimento de algo como nossa noção de doença mental. Tais condições estão vinculadas
a um quadro de consolidação de regimes de racionalidade próprios a uma época que
podemos chamar de “modernidade” e que tem suas raízes, ao menos segundo Foucault, em
meados do século XVII. E é exatamente nesta época que Foucault determina o início de um
longo processo de transformação da loucura em objeto privilegiado do discurso médico e
do olhar clínico.
Desta forma, Foucault pode afirmar que as condições da doença mental não serão
encontradas nem na análise da evolução orgânica, nem na compreensão da história
149
FOUCAULT, Dits et écrits, p. 164
individual, nem na situação existencial do ser humano. Até porque, a doença mental só teria
realidade, valor e sentido no interior de uma cultura que a reconhece como tal. As leis
psicológicas, base para a partilha entre o normal e o patológico em saúde mental, são, ao
menos segundo Foucault, sempre relativas a situações históricas determinadas. Daí porque
nosso capítulo chama-se “As condições históricas da doença mental”.
Aparentemente, estaríamos com Foucault diante de um certo relativismo historicista
que definiria a doença mental a partir da norma positivamente enunciada pela média
fornecida pelo social. Ou seja, a doença mental seria definida de maneira negativa como
desvio em relação à normal e de maneira virtual como possibilidade do comportamento não
sancionada socialmente. Mas Foucault quer complexificar esta relação entre norma e
loucura. Ele lembra, por exemplo, que encontramos situações nas quais as doenças são
reconhecidas como tais, mas tê-las é, ao mesmo tempo, condição necessária para que certos
sujeitos possam assumir certos papéis sociais. Ele cita, a este propósito, certas patologias
necessárias para que, em certas sociedades, alguém seja reconhecido como xamã. Esta é
uma maneira de mostrar como uma sociedade pode se exprimir positivamente nas doenças
mentais manifestadas por seus membros. O que nos deixa como duas questões maiores:
“Como nosso cultura conseguiu dar ‘a doença o sentido de desvio e ao doente um estatuto
de exclusão? E como, apenas disto, nossa sociedade se exprime nestas formas mórbidas que
nas quais ela recusa a reconhecer-se?”150.
Foucault começa lembrando que a transformação da loucura em doença mental é um
fato historicamente determinado. Ele insiste como antes do século XIX, largos espectros da
loucura não tinham suporte médico. Mesmo a noção de internação não estava ainda
vinculada a alguma forma de intervenção terapêutica; ela era apenas uma medida de
internamento. Até a metade do século XVII, a loucura pe deixada essencialmente em estado
livre: “ela circula, ela faz parte da decoração e da linguagem comuns”151.
Lembremos, por exemplo, da maneira com que Foucault aborda este problema em
História da loucura. Neste livro, Foucault parte para análise de um deslocamento maior
operado na partilha entre racionalidade e loucura, ou seja, entre a razão e seu Outro: “Antes
que a loucura fosse dominada, por volta de meados do século XVII [notemos que se trata
da mesma data que marca o corte epistêmico que instaura o pensamento clássico], antes que
velhos ritos fossem ressuscitados a seu favor, ela estava ligada a todas as experiências
maiores da Renascença”152. Aos olhos de Focault, isto indicaria uma configuração do saber
no qual a loucura não apareceria como aquilo que se coloca na exterioridade da
racionalidade, mas como um fato interno à própria razão. Analisando textos literários,
filosóficos e morais da Idade Média e da Renascença nos quais é questão da loucura,
Foucault conclui que, em todos os casos: “A loucura é um momento duro, mas essencial no
trabalho da razão”153. Pois “a verdade da loucura está no fato dela ser interior à razão, dela
ser uma figura da razão, algo como uma força e uma necessidade momentânea que a razão
utiliza para melhor se assegurar de si mesma” 154. Daí porque Foucault fala de uma
consciência trágica da loucura devida a sua proximidade com a razão. Uma consciência

150
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 75
151
idem, p. 80
152
FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 21
153
FOUCAULT, História de la folie, p. 55
154
FOUCAULT, idem, p. 56
muito mais forte do que a consciência crítica que marcará a experiência moderna da
loucura.
Tal consciência trágica da proximidade da loucura seria responsável, entre outras
coisas, pela não-exclusão do louco através da internação: “Antes do século XVIII, a loucura
não era sistematicamente internada, e era essencialmente considerada como uma forma de
erro ou ilusão (....) As prescrições dadas pelos médicos eram de preferência a viagem, o
repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo vão e artificial da cidade”155.
Vale a pena lembrar aqui que a própria noção de racionalidade até a renascença
estava fundamentalmente vinculada a uma certa noção de mimesis e de semelhança: “Até o
fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel decisivo no saber da cultura
ocidental”156. Procurar o sentido era, fundamentalmente, expor as relações de semelhança e
a própria relação da linguagem ao mundo era pensada sob a forma da analogia, e não sob a
forma da representação. Não é por acaso que a loucura, em especial a psicose, será vista
mais tarde como um pensamento perdido nas malhas da analogia e das identificações
imaginárias.
Este quadro de relações entre razão e loucura se modifica radicalmente a partir de
meados do século XVII. Foucault descreve tal mudança em um capítulo da História da
loucura chamado de A grande internação. Nele, o filósofo escreve como os grandes
leprosários espalhados por toda a Europa e praticamente desativados depois do fim das
epidemias de lepra foram transformados em asilos para onde eram mandados loucos,
libertinos e desempregados. Longe de ser uma simples medida jurídica, ela expunha uma
nova lógica na relação da loucura: a lógica da exclusão e da separação.
Para descrever esta exclusão e separação da loucura, Foucault comenta um
parágrafo da primeira meditação de Descartes, texto escrito à mesma época e fundamental
para a constituição da noção moderna de subjetividade. Tal trecho diz respeito a uma etapa
da universalização da dúvida através da passagem do argumento do erro dos sentidos ao
argumento do sonho :
“Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco
sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode
razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que
eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as
mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo
sejam meus? A nào ser, talvez que eu me compare a esses insensatos (insanis), cujo cérebro
está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente
asseguram que são reis quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um
corpo de vidro. Mas quê? São loucos (amentes) e eu não seria menos extravagante
(demens) se me guiasse por seus exemplos”157.
O que chama a atenção de Foucault é a distinção, feita por Descartes, entre erro,
ilusão e loucura. As experiências do erro dos sentidos e da ilusão dos sonhos serão
absorvidas no encaminhamento da razão em direção a sua auto-fundamentação. Elas farão
parte da ordem das razões. Mas a experiência da loucura será simplesmente desqualificada.
Aparentemente, a recusa do argumento da loucura na crítica a um saber fundamentado na
percepção sensível é total. Foucault é sensível ao fato de Descartes utilizar ao mesmo

155
FOUCAULT, Michel; Microfísica do poder, 120
156
FOUCAULT, Les mots et les choses, p.; 32
157
DESCARTES, Meditações, p. 94
tempo um termo médico (insanis) e jurídico (amens- demens) que indica aqueles que estão
fora de todo e qualquer diálogo racional, uma categoria de pessoas incapazes de certos atos
civis, religiosos e judiciários. Insanis é um termo caracterizante, amens e demens são
termos desqualificantes.
Isto demonstraria a distância entre, de um lado, a experiência do erro dos sentidos e
da ilusão dos sonhos e, de outro, da loucura. O erro e a ilusão dizem respeito ao objeto do
pensamento e invalidam os conteúdos mentias do pensamento, a loucura diz respeito ao
sujeito que pensa, e eu que penso não posso ser louco já que a loucura seria condição de
impossibilidade do pensamento. Neste ponto, Foucault convoca Montaigne para medir a
distância que separa esta exclusão da loucura da compreensão anterior da sua proximidade
com a razão: “assim o perigo da loucura desapareceu do exercício mesmo da razão. Esta
voltou-se para um plena possessão de si na qual ela só pode encontrar armadilhas com o
erro e perigos como a ilusão”158. A partir de agora, a loucura estaria exilada da região do
saber e exilada de sua linguagem originária. A partir de agora, ela seria apenas “chamada a
falar” no interior do discurso médico.
No entanto, este processo precisou esperar até o século XIX. Pois é a partir do
século XIX que a internação ganha o sentido não apenas de enclausuramento, mas de
medicalização e, principalmente, de reconstituição moral. A função do médico será também
função de controle moral através da aplicação de um padrão de normalidade do
comportamento.Até porque: “curar significar inculcar no doente as sentimentos de
dependência, de humildade, de culpabilidade, de reconhecimento que são a armadura moral
da vida em família”159.
É a partir deste momento que a loucura deixa de ser considerada um fenômeno
global que diz respeito ao corpo e à alma. Ela será um fato que concerne essencialmente a
alma e receberá, pela primeira vez, estatuto e significação psicológica. Esta
psicologicização é setor de uma operação mais ampla de inserção da loucura em sistemas
de valores e de repressão morais. Daí, por exemplo, a infantilização do louco [lembremos
que a criança será outra figura da ausência de razão] e a conseqüente determinação da
loucura como regressão.
A questão fundamental nesta infantilização é: para que a conduta infantil seja um
refúgio para o doente, para que a regressão à infância se manifeste como figura da neurose,
faz-se necessário que a sociedade instaure uma barreira intransponível entre o passado e o
presente, entificando uma linearidade do tempo que é figura de uma certa noção de
progresso. Da mesma forma, para que o delírio religioso seja estrutura privilegiada da
paranóia com seus delírios de grandeza e fim do mundo, faz-se necessário que a laicização
da cultura aproxime a religião de um delírio sistematizado.
Desta forma, Foucault pode afirmar que a psicologia só pode aparecer a partir do
momento em que a relação à loucura foi definida pela dimensão exterior da exclusão e do
castigo, assim como pela dimensão interior da moralização e da culpabilidade. Com a
psicologia, perde-se uma “relação essencial” entre a razão e a desrazão. A respeito de tal
relação essencial, Foucault fala das obras de Hölderlin, Nerval, Roussel e Artaud, obras que
ainda permitiriam aquilo que ele chama de “grande confrontação trágica com a loucura”
[Contra a psicologia, Foucault parece procurar um certo recurso à estética na formalização
não redutora da alteridade].

158
FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 69
159
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 84
A doença mental será assim apenas a loucura alienada na psicologia. Foucault
insiste em um programa de liberação da loucura e de restituição à sua linguagem de origem.
Pois o advento da psicologia deve ser inserido no interior dos modos gerais de relação
alienada que o homem ocidental estabeleceu consigo mesmo.
O estatuto da psicologia
Última aula

Esta é a última aula de nosso curso. Enquanto última aula, trata-se de um momento
adequado para recapitular nosso trajeto e apontar algumas questões que devem ser
desdobradas.
Na primeira aula, eu inicie nosso curso lembrando da seguinte afirmação de
Georges Canguilhem: “É inevitável que, ao propor-se como teoria geral da conduta, a
psicologia faça sua alguma idéia de homem. Faz-se necessário então permitir à filosofia
perguntar à psicologia de onde ela retira tal idéia e se não seria, no fundo, de alguma
filosofia”160. Uma afirmação desta natureza indicava que práticas clínicas, principalmente
aquelas próprias aos fatos psicológicos, seriam dependentes, de maneira fundamental, de
decisões prévias e muitas vezes não tematizadas a respeito dos padrões de racionalidade da
observação, da intervenção terapêutica e, principalmente, da definição do objeto próprio à
psicologia. Neste sentido, seguindo a afirmação de Canguilhem, a reflexão epistêmica
sobre a psicologia seria, necessariamente, uma reflexão sobre a maneira com que uma certa
antropologia filosófica guiaria, de forma insidiosa, a racionalidade da direção do
tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo momento, remetida a uma raiz metafísica a
respeito da qual ela não seria capaz de se livrar. Raiz metafísica que nos colocaria diante da
necessidade em responder uma pergunta maior, a saber: uma prática clínica pode abstrair de
pôr, em seu horizonte de racionalidade, uma concepção de sujeito que se desdobre em uma
teoria da conduta racional, base da definição do que se define como patologia mental ?
Nós vimos, no decorrer de nosso curso, como esta antropologia filosoficamente
orientada apareceria no interior da reflexão psicológica. Ela estaria presente no interior do
movimento central de constituição de toda e qualquer clínica, ou seja, nos modos de
partilha entre o normal e o patológico. A idéia central do curso foi, pois, que o próprio
critério de distinção entre normal e patológico pressuposto pela clínica dos fatos
psicológicos já porta uma antropologia filosoficamente orientada. “Normal” é
necessariamente um conceito valorativo e uma questão maior para toda epistemologia da
psicologia é: qual a gênese de conceitos valorativos que operam no interior da clínica?
Uma questão desta natureza só adquire importância se problematizarmos, de
antemão, toda e qualquer tentativa de naturalização dos critérios de normalidade. Foi desta
problematização que partimos quando insisti na fragilidade de se tentar medir a correção da
clínica a partir da eficácia em relação à cura do sofrimento enquanto dado imediatamente
fornecido à percepção médica. Esta profissão de fé da soberania da clínica nos lembraria:
para além de toda e qualquer questão de método e de definição de objeto, a clínica está
sempre diante de uma realidade inabalável, a saber, o sofrimento do paciente. Minorar o
sofrimento é nossa função e o único critério de orientação da clínica. Um pouco como se a
eficácia terapêutica em relação a uma categoria fenomênica extremamente normativa como
o “sofrimento” fosse condição suficiente para assegurar a validade de dispositivos clínicos.
Desde o início, eu insisti no que tal perspectiva teria de ideológica. Pois é
ideológico todo sistema de saber e de orientação da praxis que procura naturalizar seus
dispositivos de justificação como se estivéssemos diante de “fatos que falam por si
mesmo”. Neste sentido, podemos perguntar: afinal, o sofrimento é um “fato que fala por si

160
CANGHUILHEM, Georges, Qu´est ce que la psychologie?, p. 367
mesmo” ou é um fenômeno que é levado a falar no interior de contextos sócio-históricos
determinados? Podemos, por exemplo, tirar as conseqüências de afirmações como esta, de
Foucault: “Desde o século XVIII, a medicina tem tendência a narrar sua própria história
como se o leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experiências constante e
estável, em oposição às teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudança e
mascarado, sob sua especulação, a pureza da evidência clínica”. Na verdade, tudo se
passaria como se : “Na aurora da Humanidade, antes de toda crença vã, antes de todo
sistema, a medicina residia em uma relação imediata do sofrimento com aquilo que
alivia”161. Tal pressuposição de imediaticidade, no entanto, esquece como “o que nos faz
sofrer” muda constantemente de configuração.
Poderíamos tentar dizer que a experiência da dor é algo que ancora o sofrimento em
um solo inquestionável e indiferente a contextos. Mas, novamente, não seria difícil lembrar
como não há nenhuma relação imediata entre a dor física e o desprazer de um sofrimento
vivenciado como doença que leva sujeitos a se submeterem à clínica. De fato, é impossível
considerar a dor como expressão de uma atividade normal. Mas é impossível também
considerá-la como um sinal de alarme imediato das ameaças internas ou externas à
integridade orgânica, muito menos como uma reação de defesa que o médico deveria
respeitar. Daí esta definição de Leriche, segundo a qual: “a dor é um fato individual
monstruoso e não uma lei da espécie. Um fato da doença” 162. Ou seja, não é pela dor que a
doença e definida. Ao contrário, ela já é vista como um fato determinado pela doença, mas
um fato cuja inteligibilidade exige a reflexão sobre o indivíduo biológico: “Parece-nos de
importância capital que um médico reconheça na dor um fenômeno de reação total que só
tem sentido e que só é um sentido ao nível da individualidade humana concreta” 163. A
consciência da dor não é um fato fisiológico, mas um fato psicológico no sentido
politzeriano do termo, fato no qual o sujeito expressa a limitação de sua capacidade de agir
sobre o meio. Basta lembrar aqui da existência de dores que não são vivenciadas como
doença, mas como índices de auot-superação do organismo. Neste sentido, lembremos,
mais uma vez, das palavras de um “psicólogo”, Nietzsche: “Só a grande dor, esta longa e
lenta dor na qual queimamos como madeira verde nos obriga, a nós filósofos, a descer em
nossas profundezas e a nos desfazer de toda confiança (...) Duvido que tal dor nos deixe
melhor, mais eu sei que ela nos aprofunda”164
Aceita a inconsistência de um discurso sobre a soberania da clínica que naturalizar
seus padrões de intervenção e de normalidade através de uma pretensa imediaticidade do
sofrimento, ficou então em aberto o problema de compreendermos como se constituiu
historicamente o critério de normalidade das clínicas dos fatos psicológicos. Três livros nos
serviram aqui de guia: Crítica dos fundamentos da psicologia, de Georges Politzer, O
normal e o patológico, de Georges Canguilhem e Doença mental e psicologia, de Michel
Foucault.
Com Politzer, vimos dois movimentos complementares. Primeiro, a crítica a
critérios de objetividade herdados, pela psicologia, das ciências físicas ou, para utilizar uma
expressão de Politzer, das “ciências da terceira pessoa”. Critérios estes que, no caso da
psicologia experimental inaugurada por Wundt, traziam padrões de normalidade derivados
da subsunção dos fenômenos psicológicos a fenômenos fisiológicos, mensuráveis e
161
FOUCAULT, O nascimento da clínica, pp. 59-60
162
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 71
163
idem, p. 72
164
NIETZSCHE, A gaia ciência - introdução
quantificáveis. Uma subsunção que visava definir a distinção entre normal e patológico a
partir da noção de variação quantitativa de funções e órgãos tomados de maneira isolada.
Vimos como, para Politzer, a fundação de algo como uma psicologia fisiológica,
esta fundada no uso massivo de técnicas experimentais de mensuração de constantes
fisiológicas objetivamente identificáveis, um uso que pressupunha reduzir estados e eventos
mentais à mensuração objetiva de estímulos e respostas fisiológicas, era um dos resultados
possíveis de um certo mito da natureza dupla do homem. Politzer acredita que a psicologia
até então nunca conseguiu escapar das conseqüências de um pretenso dualismo entre mente
e corpo. Tal dualismo teria produzido, por um lado, o subjetivismo espiritualista que
restituía à alma os seus direitos graças às ilusões da imediaticidade da interioridade. Uma
psicologia baseada nos usos clínicos da introspecção, uma certa ciência do sentido interno,
seria resultado resultante daquilo que poderíamos chamar de “ideologia da vida interior”,
ou seja, a implementação clínica de um conceito normativo de sujeito baseada na
autonomia espontânea e na transparência imediata de si a si. Por outro, teríamos as
múltiplas figuras de um materialismo objetificador que interpretava o comportamento e o
pensamento humano através de um paradigma reducionista tal como, por exemplo, a
psicologia do reflexo, as diferentes formas de associacionismo, a psicologia experimental
ou mesmo o behaviorismo. Contrariamente a noção de que a consciência deveria ser
distinta das leis causais que determinam o mundo físico, tratava-se de insistir que a mesma
objetividade própria a descrição dos fenômenos físicos deve ser aplicada à apreensão da
inteligibilidade dos fatos psicológicos.
Politzer lembrava que o importante a renunciar a fim de se livrar do mito da
natureza dupla humana é a perspectiva realista ingênua que acredita ver, no fato
psicológico, um dado simples que corresponde a uma realidade perceptível, seja ela interna
ou externa. É neste ponto que o psicólogo da introspecção e o behaviorista se tocam: todos
os dois acreditam na premissa epistemológica do fato naturalmente dado. Enquanto os
primeiros acreditam que “nada é mais bem conhecido pela mente do que ela própria” e, por
isto, os estados mentais estão diretamente presentes à consciência, os segundos invertem a
posição teórica afirmando que são os estados físicos que naturalmente são dados à
consciência e recaem no realismo metafísico.
Abandonar a premissa metodológica do fato psicológico como fato naturalmente
dado significava assumir que todo fato psicológico é um fato construído, fato socialmente
construído, ou seja, ação que procura realizar uma intenção significativa, um telos.
Teleologia da ação que só pode ser revelada no interior dos modos de relação entre sujeito e
aquilo que lhe aparece como meio social. A psicologia aparece assim como uma teoria da
ação.
No entanto, esta teoria da ação deve levar em conta a intenção significativa,
intenção esta que pode não aparecer como um pensamento sob o regime do para-si da
consciência, mas que sempre se manifesta no endereçamento a um outro, sempre está
implicada na constituição do campo no qual a ação irá se desdobrar. A pergunta pelo
sentido do fato psicológico é assim uma pergunta pela subjetividade do sentido, pergunta
esta que encontra, no método psicanalítico, uma inspiração maior. Notemos ainda que se
trata de um conceito de subjetividade claramente vinculado ao primado da
intersubjetividade, isto através da defesa da centralidade da noção de “meio social”.
Mas o que seria a doença mental, para Politzer? Ela só poderia ser uma alienação,
no sentido marxista da palavra, ou seja, uma impossibilidade de reconstrução da totalidade
das relações de sentido pressupostas pela ação subjetiva. Daí porque tal ação será alienada
na forma de sintomas, de inibições, como se diante delas o sujeito estivesse diante de
“cicatrizes de um texto alterado ao que o autor [de tais alterações] confrontou-se como
quem se confronta com um texto incompreensível”165.
Abordar inicialmente tal perspectiva foi um passo fundamental para a compreensão
de Doença mental e psicologia, de Michel Foucault. Neste livro do jovem Foucault, era
questão de determinar qual o sentido da noção de doença mental. Para tanto, vimos como
ele partia de uma distinção estrita entre doença mental e doença orgânica. Foucault chegava
mesmo a perguntar: “Se parece tão difícil definir a doença e a saúde psicológica, não seria
por que nos esforçamos de maneira vã em lhes aplicar massivamente conceitos igualmente
destinados á medicina somática?”166. Esta pergunta era apenas a inflexão desta tendência,
presente desde Politzer, de estabelecer linhas estritas de demarcação entre os campos da
psicologia (que seria, no fundo, uma psicologia social) e da fisiologia com seus processos
de abstração. Vimos como lutava contra a noção de doença como o que resulta de reações
globais de indivíduos tomados como totalidades orgânicas e psicológicas.
Esta autonomia do mental em relação ao fisiológico é a peça maior de uma
estratégia que visa, no limite, a se perguntar pelas condições históricas da configuração das
doenças mentais. Estratégia que visa submeter a reflexão sobre a epistemologia da
psicologia a uma história da loucura, a uma arqueologia que visa desvendar o modo com
que a partilha entre normal e patológico inscreve-se em um movimento mais amplo de
relação entre a razão e aquilo que lhe aparece como seu outro. A doença mental aparece
assim como modo de redução da loucura a objeto de um discurso médico que visa,
sobretudo, fundar a determinação da normalidade em um solo de normatização moral e
estética. Uma normalidade que procura não reconhecer proximidade alguma entre seus
procedimentos e aqueles em operação na loucura. Daí porque as práticas terapêuticas serão
fundamentalmente vinculadas à internação, à exclusão e à re-educação. Esta é a resposta
para duas questões maiores enunciadas por Foucault: “Como nosso cultura conseguiu dar à
doença o sentido de desvio e ao doente um estatuto de exclusão? E como, apenas disto,
nossa sociedade se exprime nestas formas mórbidas que nas quais ela recusa a reconhecer-
se?”167. Com o advento da psicologia, perde-se assim uma “relação essencial” entre a razão
e a desrazão. Uma relação ainda presente nas obras de Hölderlin, Nerval, Roussel e Artaud,
obras que ainda permitiriam aquilo que Foucault chama de “grande confrontação trágica
com a loucura”. Contra uma figura da razão que se inverteu em dominação e
institucionalização de práticas disciplinares, figura que habitaria o projeto mesmo de
estabelecimento da psicologia, Foucault insiste no poder diruptivo de criação de formas,
poder este que ainda pulsaria no interior do campo da produção estética.
Mas se compararmos Foucault, Politzer e outro autor que estudamos, Canguilhem,
veremos algumas diferença instrutivas. Canguilhem partilha com Politzer a crítica a uma
abstração que impede a apreensão das relações entre sujeito e meio ambiente, a um
formalismo que isola funções e órgãos a fim de permitir a advento da noção de patológico
como variação quantitativa do normal. No entanto, nada em Canguilhem permite a
dissociação entre os critérios próprios ao estabelecimento de uma doença mental e de uma
doença orgânica. Contrariamente a Foucault, não há dissociação entre orgânico e mental em
Canguilhem. Em vários momentos de sua obra, Canguilhem age como quem acredita que o

165
HABERMAS, 1973, p.252
166
FOUCAULT, Maladie mentale ... p. 2
167
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 75
orgânico e o psicológico segue as mesmas leis, que entre o fato psicológico e o fato
orgânico não há diferenças maiores de naturezas (mas apenas de complexidade). Mas, no
caso de Canguilhem, isto não significa tentar reduzir todo estado psicológico através de um
materialismo reducionista. Trata-se, ao contrário, de complexificar nossa compreensão do
orgânico, nossa compreensão dos fenômenos vitais, de uma forma tal que eles escapem do
quadro compreensivo de uma fisiologia mecanicista e, para usar termos de Politzer,
“realista” e “abstrata”.
Não se trata, com isto, de continuar o velho debate entre causalidade somática e
causalidade psíquica, entre organogênese e psicogênese. A posição de Canguilhem é mais
radical pois assentada na pergunta: compreendemos bem um organismo biológico quando
vemos nele apenas um feixe de funções e órgãos que se submetem a padrões gerais de
mensuração e quantificação? Esta vida não seria apenas o exemplo de uma razão que se
transformou em princípio de dominação e controle da vida, ou seja, naquilo que um dia
Foucault chamou de biopoder? Por isto, embora não pareça ser um livro sobre psicologia,
O normal e o patológico teve uma influência decisiva em toda reflexão posterior sobre a
epistemologia da psicologia e das clínicas da subjetividade.
Lembremos mais uma vez da maneira como Cnaguilhem organiza a distinção entre
normal e patológico. “O homem normal é o homem normativo, o ser capaz de instituir
novas normas, mesmo orgânicas. Uma norma única de vida é sentida de modo privativo, e
não positivamente”168. Isto nos permite sintetizar uma definição de saúde não mais
vinculada à entificação de constantes fisiológicas. Saúde é a posição na qual o organismo
aparece como produtor de normas na sua relação ao meio ambiente. Até porque a norma,
para um organismo, é exatamente sua capacidade em mudar de norma. O que implica em
uma noção de relação entre organismo e meio ambiente que não pode ser compreendida
como simples adaptação e conformação. Um organismo completamente adaptado e fixo é
doente por não ter uma margem que lhe permita suportar as mudanças e infidelidades do
meio. A doença aparece assim como fidelidade a uma norma única. Daí esta definição:
“uma vida sã, uma vida confiante na sua existência, nos seus valores, é uma vida em flexão,
uma vida flexível (...) Viver é organizar o meio a partir de um centro de referência que não
pode, ele mesmo, ser referido sem com isto perder sua significação original”169.
O que isto significa para uma reflexão sobre patologias que são objeto da
psicologia? O que isto significa, por exemplo, para uma reflexão sobre o critério de
normalidade que deve orientar a clínica, sobre a antropologia que estaria atuando em toda
psicologia? Há algo aqui de defesa de uma soberania capaz de se afirmar como
potencialidade criadora, mas uma soberania que só se afirma quando o sujeito é capaz de
transcender as configurações determinadas de seu meio. Há uma inadequação fundamental
entre sujeito e meio que aparece como condição para a afirmação da soberania criadora da
subjetividade. Mas não se trata aqui simplesmente de viver conforme outras regras, como
se estivéssemos aqui a estetizar o autismo, ou de operar em um mundo interno. Trata-se de
assumir o meio não mais como o que se oferece em uma resistência estática, mas como o
que porta, em si mesmo, o princípio de indeterminação. A mudança maior é uma mudança
na compreensão do meio, mudança que permite uma afirmação da potencialidade criadora
de novas normas. Vale para os fatos psicológicos aquilo que Canguilhem afirmara a
respeito dos fatos orgânicos: anomalias podem aparecer como novas normas.
168
idem, p. 105
169
CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 188
Comportamentos que outrora apareceram como anomalias podem determinar novos
padrões sociais de conduta. É no jogo de criação de potenciais normativas que se define a
saúde de um sujeito. Resta saber quais as condições para que a psicologia esteja à altura
deste jogo.

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