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No prólogo, Tomás observa que todos conhecem três traduções latinas dos
salmos: já nos tempos apostólicos havia uma antiga tradução, corrompida
pelos copistas e, por isso, o papa Dâmaso encomendou a São Jerônimo que
corrigisse o saltério e desse trabalho resultou o "saltério romano". Mas,
prossegue, como essa tradução divergisse do texto grego, Jerônimo
empreendeu uma nova tradução latina - coincidindo com o grego palavra por
palavra - e Dâmaso ordenou que esta versão fosse cantada na França,
tornando-se conhecida como "saltério galicano". Com o tempo, esta versão foi
adotada por toda a cristandade latina até converter-se no texto modelo, que é a
Vulgata.
2. O salmo II
Embora Tomás não explicite qual versão do saltério ele utiliza como base de
seu comentário, fica claro que emprega a galicana (e, quando se refere à
romana, esta é designada por "alia littera"). Apresentemos, desde já, o texto
do salmo II [2] , que Tomás irá comentar verso a verso (e quase palavra por
palavra).
PSALMUS II
SALMO II
CAPÍTULO I
O salmo II é um salmo de Davi: foi por ele composto e trata de seu reinado -
imagem do reinado de Cristo. Pois Cristo é adequadamente prefigurado por
Davi: dele se diz ser mão forte; de Cristo, força de Deus (I Cor 1, 24). Davi
tinha um aspecto agradável; Cristo, o esplendor da glória (Hbr 1, 3), "a quem
os anjos desejam contemplar" (I Pe 1, 12).
Quanto ao primeiro, sabe-se, pela história, que uma rebelião começa pelo
surgimento de um murmúrio entre o povo e, depois, se recorre ao auxílio de
um poderoso para perfazê-la. Daí que se fala primeiro do murmúrio do povo
e, depois, do auxílio dos poderosos: "Erguem-se os reis da terra e, unidos,
os príncipes se insurgem".
O povo miúdo, por si só, nada pode fazer, se não contar com os poderosos, daí
que o salmo diga que estes oferecem auxílio, em primeiro lugar, por seu
poder: "Erguem-se os reis da terra e, unidos, os príncipes se insurgem
contra o Senhor e contra seu Cristo", como que dizendo: uns bramaram e
outros ergueram-se, isto é, empreenderam esse mal. Alguns cooperaram com
seu saber, aconselhando, daí que se diga: "unidos, os príncipes se insurgem",
isto é, uniram-se em seus juízos ou - como diz outra tradução -
"confabulavam".
CAPÍTULO II
Não se pode arrojar o jugo sem antes romper os vínculos. Ora, num reino, os
vínculos são aquilo que impõe a autoridade do rei, tal como soldados,
exércitos, armas etc. É necessário, portanto, antes de mais nada, desfazer estes
vínculos e, então, remover o jugo.
CAPÍTULO III
Ao dizer: "Aquele que habita nos Céus, se ri", o salmo trata da agressão dos
conspiradores ao reino de Davi: primeiramente, de como agridem ao Senhor e,
em segundo lugar, a seu Cristo ("Eu, porém, fui constituído...").
E, por fim, passa à execução da sentença. Assim o salmo diz que, em seu
furor, aterrá-los-á, no coração e na alma, com a condenação eterna, castigá-
los-á com seu poder. Também diz o livro de Jó: "Sabe o que lhe está
preparado, não escapará do dia das trevas, será aterrorizado pela tribulação e
será invadido pela angústia" (Jó 15, 23).
Estas quatro coisas ocorrerão no juízo: escarnecerá (irridebit) [9] ao dizer
"Tive fome..."; zombará (subsannabit) deles, situando-os a sua esquerda (Mt
25, 33); falará enfurecido (loquetur in ira), sentenciando "Ide, malditos, ao
fogo eterno..." e aterrorizá-los-á (conturbabit), executando a sentença "E serão
lançados no suplício eterno...".
CAPÍTULO IV
Mostra-se a seguir como serão reprimidos pelo seu Cristo: "Eu, porém...".
Pois, o povo, nações e princípes insurgiram-se contra Cristo/Davi.
Primeiramente mostra como o Cristo age em relação ao povo; em segundo
lugar, em relação às nações ("Disse-me o Senhor...") e, em terceiro lugar, em
relação aos reis ("Agora, ó reis, compreendei..."). E diz: "Eu, porém, fui
constituído rei em Sião, seu monte santo...". Deve-se saber que há um rei
constituído por Deus em Jerusalém e sua pregação restabelece a ordem sobre
o povo. Como que dizendo: "Estes fazem rebelião, mas não podem alcançar
seu intento, porque eu fui constituído e firmemente estabelecido rei sobre
Sião, isto é, sobre o povo dos judeus, cuja cidadela é Sião".
Assim, seu poder advém de Deus, como diz o salmo: "O Senhor é meu auxílio
e não temo o que pode fazer contra mim o homem" (Sl 117, 6). E o livro de
Jó: "Põe-me, Senhor, a teu lado e mão alguma se levanta contra mim" (Jó
17,3).
"Fui constituído rei em Sião, seu monte santo": não para mim mesmo, mas
para reger o povo segundo a lei de Deus e, por isso, prossegue: "Vou publicar
o preceito do Senhor". Prefigurando a Cristo, fala-se desse rei, segundo a
profecia: "Virão dias em que suscitarei a Davi um descendente justo, reinará e
será sábio, praticará o direito e a justiça sobre a terra" (Jer 23, 5).
Sião, a igreja dos judeus, é chamado de monte santo, pois recebe antes os
raios do Sol. Diz o Senhor: "Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da
casa de Israel" (Mt 15, 24) [10] . E lê-se nas Escrituras: "Acaso ignoro que
hoje me tornei rei de Israel?" (II Sam 19, 23).
CAPÍTULO V
No primeiro, há dois aspectos: por que direito tem ele poder sobre as nações e
a aceitação desse poder: "Dar-te-ei por herança as nações...". Isto não se
realizou plenamente em Davi e, portanto, refere-se a Cristo, a quem compete
domínio sobre as nações, a duplo título de direito: hereditário e meritório.
Já a propriedade se manifesta em: "Tu és meu filho", filho meu, não adotivo,
como aqueles de que fala João (1, 12): "Deu-lhes o poder de se tornarem
filhos de Deus...", mas como propriedade de sua natureza: "Tu és meu filho",
tu és meu filho por natureza, singular, consubstancial: "Este é meu filho
amado" (Mt 17, 5).
Diz também "hoje" para designar o presente com glória [12] de Cristo, que
habita em luz inacessível (I Tim 6, 16) e que é verdadeiro: nele não há
pretérito, nem futuro, nem escuridão, mas só claridade.
CAPÍTULO VI
Deve-se considerar que, assim como as formas são infundidas nos entes
naturais de acordo com as disposições da matéria, assim também é a
distribuição por Deus dos dons da graça. "Deus é quem opera em nós o querer
e o agir" (Fil 2, 13) e quer que recebamos os dons pela petição e pela oração.
E quis mostrar-nos este exemplo por Cristo, pois Ele quis o que pediu: o que
por direito hereditário lhe competia.
Esta petição pelas nações pode ser entendida de dois modos. Primeiramente,
pela oração, pois orou por eles: "Não rogo por estes apenas, mas por aqueles
que crerão em mim por sua palavra" (Jo 17, 20). E também pela paixão: "Para
que, por intercessão de sua morte para remissão das transgressões dos que
estavam sob a primeira Aliança, os que foram chamados recebam a herança
eterna prometida" (Hbr 9, 15).
E sua petição não ficou frustrada, pois foi ouvido por causa de sua atitude
reverente (cfr. Hbr 5,7) [13] e foram-lhe concedidas as nações: "Dar-te-ei as
nações...".
Note-se que ninguém vem a Cristo senão como dom do Pai: "Ninguém pode
vir a mim a não ser atraído pelo Pai que me enviou" (Jo 6, 44). A doação das
nações é puro dom, já os judeus eram-lhe como que restituídos, pois já lhe
tinham sido dados, como se lê em Romanos: "Cristo se fez ministro da
circuncisão para honrar a fidelidade de Deus, no cumprimento das promessas
feitas aos pais; ao passo que os gentios glorificam a Deus, pondo em realce a
sua misericórdia" (Rom 15, 8).
"Os confins do mundo", pois por todo o mundo foi edificada a Igreja. Mas,
em seguida, por Nicolau, o herege, e por Maomé, houve uma volta à
infidelidade. De modo que a Igreja está edificada ou para ser fundada: "Não
basta que sejas meu servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os
fugitivos de Israel; vou fazer de ti luz das nações para que sejas minha
salvação até os confins do mundo" (Is 49, 4). Por Ele, "que foi constituído
herdeiro de tudo" (Hbr 1,2).
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
Ao dizer "Agora, ó reis...", mostra como age em relação aos reis. Reprime-os,
admoestando-os e atraindo-os ao serviço de Deus.
A verdade pode ser conhecida de dois modos: por descoberta - é o caso dos
que pensam bem - ou por aprendizagem - é o caso dos que aprendem bem.
Também o governo admite dois graus: há os reis, que têm domínio geral, e os
juízes, cuja autoridade versa sobre matérias especiais. Os primeiros são
exortados a entender: "o homem inteligente possuirá o leme" (Pro 1, 5) e os
segundos, a aprender, a receber de outros a forma do juízo. E assim diz:
"Compreendei..." e "Instruí-vos...". E no livro da Sabedoria (6, 1): "Ouvi, ó
reis, e compreendei; aprendei, ó vós que julgais a terra".
CAPÍTULO IX
A seguir diz: "Servi...". À compreensão, segue-se convenientemente o
serviço, pois o servir a Deus, que é a latria, é profissão de fé. E, assim, só
quem antes creu, pode confessar a fé e servir. "É crendo de coração que se
obtém a justiça e é professando com palavras que se chega à salvação"(Rom
10, 10).
E o Senhor diz que, para servir ao homem, basta uma sujeição exterior de
obediência, mas para servir a Deus é necessário uma sujeição interior, da alma
que lhe tem afeto. Diz o salmo 61: "Minha alma está sujeita a Deus...".
Uma outra tradução diz apenas "caminho" (e não "caminho justo"). O homem
neste mundo está como num caminho e, se cai, dentro do caminho, pode se
levantar. Mas se sai do caminho, então a situação é irreparável: "Porque não
entendem, perecem para sempre" (Jó 4, 20) [17] .
CAPÍTULO X
E diz "em breve" porque não vai tratar de cada pecado separadamente, mas de
todos em conjunto.
Daí que aquele juízo será breve: não durará mil anos (como pretende
Lactâncio), mas "num momento, num piscar de olhos, ao som da última
trombeta, os bons revestir-se-ão da glória da imortalidade" (I Cor 15, 52-53).
E, portanto, bem-aventurados os que confiam, não já porque não serão
castigados, mas porque atingirão o reino, cuja bem-aventurança e glória
ressaltarão ainda mais em contraste com o castigo dos maus. "Bem-
aventurado o homem que confia no Senhor e cuja esperança é o Senhor
etc."(Jer 17, 7).
[1] . Para os dados deste estudo, cfr. Weisheipl, James A. Tomás de Aquino -
Vida, obra y doctrinas, Pamplona, Eunsa, 1994. Valemo-nos do original latino
do In Psalmos apresentado por Roberto Busa Thomae Aquinatis Opera
Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milano, Editoria Elettronica Editel,
1992, que, por sua vez, reproduz a ed. Parmensis t. XIV, 1863.
[3] . Algumas vezes traduzimos "gentes", "gentios", por "nações" (as nações
pagãs, em oposição a Israel).
COMENTÁRIO DE SANTO
TOMÁS DE AQUINO À 1A.
CARTA DE SÃO PAULO
AOS CORÍNTIOS
10 anos ago
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by Veritatis Splendor
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Nota do VS: O presente texto que apresentamos aos nossos leitores é parte de um
belíssimo e extraordinário comentário da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios
feito pelo mais Doutor dos Santos e o mais Santo dos Doutores da Igreja, isto é, de
Santo Tomás de Aquino.
A tradução para a língua portuguesa foi feita por Rodrigo Santanta e revisada por
Alessandro Lima de um texto editado em castelhano pela Editorial Tradicón (S. A. Av.
Sur 22 No. 14 – entre Oriente 259 y Canal de San Juan – , Col Agricola Oriental.
Codigo Postal 08500) de 1983. A edição em castelhano (disponível no site da
Congração para o Clero: http://www.clerus.org) se deu através de um exemplar em
latim intitulado Sancti Thomae Aquinatis Doctoris Angelici super Primam Epistoiam
Sancti Pauli Apostoli ad Corinthios expositio editado por Petri Marietti em 1896.
O texto bíblico citado por Santo Tomás é o da Vulgata de São Jerônimo, infelizmente as
atuais traduções em português não são tão fiéis aos termos empregados nesta referência
católica das Escrituras, desta forma optamos por traduzir da Vulgata os textos utilizados
neste comentário, dando assim maior uniformidade e fidelidade ao texto latino de Santo
Tomás.
O que nos motiva a publicar o presente trecho do comentário de Santo Tomás (sobre o
capítulo 14 de 1 Cor) é que ele trata de um tema ainda muito incompreendido entre nós
católicos deste século: o dom de línguas. Neste trecho de seu comentário o Doutor
Angélico apresenta-nos a doutrina tradicional da Santa Igreja Católica a respeito deste
tema que é de especial interesse em nosso tempo. É mister lembrar ainda que os
Pontífices Romanos não só recomendaram-nos à doutrina do Aquinate (Santo Tomás),
mas também em diversas oportunidades confirmaram a autoridade de seus
ensinamentos para toda a Igreja Católia (alguns exemplos: Aeterni Patris de Leão
XIII, Doctoris Angelici de S. Pio X , Lúmen Ecclesiae de Paulo VI, Sapientia
Christiana, Laborem exercens, Inter Munera Academiaraum de João Paulo II).
Assim é que na caridade não se dá esse zelo que não tolera coparticipação no que se
ama e que só se encontra enquanto coisas corporais, no que sucede que se alguém tem
aquilo que ele mesmo zela, sofre; do qual resulta um desejo com emulação que vem a
ser inveja. De modo que se eu amo honra e riquezas, sofro se alguém as possui, e
consequentemente o invejo. E assim é patente que do zelo surge à inveja.
Com efeito, como nosso conhecimento é mediante as coisas corporais e por espectros
ou imagens tomadas das coisas sensíveis, primeiramente se necessita que na imaginação
se formem semelhanças corporais das coisas que se mostram, como ensina Dionísio,
pelo qual é impossível que nos ilumine a luz divina se não seja mediante a diversidade
das coisas sagradas envoltas em véus.
O que em segundo lugar se necessita é uma luz intelectual que ilumine o entendimento
sobre coisas que se devem conhecer acima de nossa natural cognição. Com efeito, como
a luz intelectual não se dá senão sobre as semelhanças sensíveis formadas na
imaginação para serem entendidas, aquele a quem tais semelhanças se mostram não
pode ser chamado profeta, mas senão um sonhador, como o Faraó, que embora viu
espigas e vacas, as quais indicavam certos fatos futuros, como não entendeu o que viu,
não se chama profeta, senão que o é, aquele José, que fez a interpretação. E o mesmo há
que dizer de Nabucodonosor, que viu a estátua, mas não entendeu. Pelo qual tampouco
ele foi chamado profeta, senão a Daniel. Pelo qual se disse em Daniel 10,1: Lhe foi dada
na visão sua inteligência.
O que em terceiro lugar se necessita é ousadia para anunciar o revelado. Pois para isto
fez Deus suas revelações: para que sejam manifestadas aos demais. Eis, eu ponho
minhas palavras na tua boca (Jr. 1.9).
O quarto são os milagres, que são para a certeza da profecia. Pois se não fizerem
alguns, que excedam as forças naturais, não crerão naquilo que está por cima da
cognição natural.
Pelo que aponta ao segundo, os modos da profecia, sabemos que existem diversos
modos de ser profeta. Com efeito, às vezes se diz que alguém é profeta porque tem
estas quatro coisas, a saber: que vê visões imaginárias, e têm a compreensão delas,
e ousadamente as manifiesta aos demais e também faz milagres, e de um como está
dito em Numeros 12,6: Se existe entre vós um profeta, etc.
Chama-se também às vezes profeta o que só tem as visões imaginárias, mas
impropriamente e muito de longe.
Também se diz às vezes profeta ao que tem a luz intelectual para explicar também as
visões imaginárias, ou feitas a ele mesmo, ou a outros; ou para expor os ditos dos
profetas ou as Escrituras dos Apóstolos.
E assim diz-se profeta a todo o que discerne as escrituras dos doutores, porque se
interpretam com o mesmo Espírito com que são declaradas. Pelo qual se podem chamar
profetas a Salomão e a David, enquanto tiveram luz intelectual para uma clara e sutíl
penetração; mas a visão de Davi foi tão só intelectual.
Se diz também que alguém é profeta pelo único fato de que declare ditos de profetas, ou
os exponha, ou os cante na Igreja, e deste modo se diz que Saul se contava entre os
profetas (I Rs 19,23-24), ou seja, entre aqueles que cantaram os ditos dos profetas.
Diz-se também que alguém é profeta se faz milagres, segundo aquilo de que o corpo
morto de Eliseu profetizou (Sl 48,14), ou seja, que fez um milagre.
Mas o que aqui diz o Apóstolo em todo o capítulo sobre os profetas deve-se
entender do segundo modo, isto é, do que se diz que profetiza aquele que explica
em virtude da luz divina intelectual as visões recebidas por ele mesmo ou por
outros. É claro que aqui se trata desta classe de profetas.
Quanto ao dom de línguas devemos saber que como na Igreja primitiva eram
poucos os consagrados para pregar pelo mundo a fé de Cristo, a fim de que mais
facilmente e a muitos anunciassem a palavra de Deus, o Senhor deu-lhes o dom de
línguas, para que a todos ensinassem, não de modo que falando uma só língua
fossem entendidos por todos, como alguns dizem, mas sim, bem literalmente, de
maneira que nas línguas dos diversos povos falassem as de todos. Pelo qual disse o
Apóstolo: Dou graças a Deus porque falo as línguas de todos vós (1Cor 14,18). E
em Atos 2,4, se disse: Falavam em várias línguas, etc. E na Igreja primitiva muitos
alcançaram de Deus este dom.
Mas os corintios, que eram de indiscreta curiosidade, preferiam esse dom que o da
profecia. E aqui por falar em língua, o Apóstolo entende que em língua
desconhecida e não explicada: como se alguem falasse em língua teutônica a um
galês, sem explicá-la, esse tal fala em língua. E também é falar em língua o falar de
visões somente, sem explicá-las. De modo que toda locução não entendida, não
explicada, qualquer que seja? Seja, propriamente falar em língua.
Visto estas coisas, dediquemo-nos à exposição da carta, que é clara. E para isto faz o
Apóstolo duas coisas. Primeramente prova que o dom de profecia é mais excelente que
o dom de línguas; e em segundo lugar rechaça qualquer objeção: Volo autem vos…:
Desejo que faleis todos em línguas; prefiro, contudo, que profezeis (1Cor 14,5). Que o
dom de profecia exceda o dom de línguas o prova com duas razões, das quais toma a
primeira da comparação de Deus com a Igreja; e a segunda razão se toma da
comparação dos homens com a Igreja.
A primeira razão é a seguinte: Aquilo pelo qual faz o homem as coisas que não são
unicamente em honra de Deus, mas também para utilidade dos próximos é melhor que
aquilo que se faz tão unicamente em honra de Deus. É assim que a profecia é não
unicamente em honra de Deus, mas também para a utilidade do próximo, e pelo dom de
línguas se faz unicamente o que é em honra de Deus. Logo etc.
E esta razão se desenvolve, primeiramente enquanto ao que o que é dito em língua, tão
unicamente honra à Deus. O expressa com essas palavras: O que fala em língua, se
entende que desconhecida, não lhes fala aos homens, se isto fosse, ao entendimento dos
homens, mas senão a Deus, isto é, tão unicamente em honra de Deus (1Cor 14,2). Ou à
Deus, porque o mesmo Deus entende: O ouvido de Deus zeloso escuta tudo, etc. (Sb
1,10). E o que não se disse ao homem, adiciona: Nada ele ouve, isto é, nada ele entende.
Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça (Mt 13,9). Mas o que só a Deus é falado,
compreende-se que o próprio Deus fala. Pelo qual disse: Mas o Espírito de Deus fala
mistérios, isto é, coisas ocultas (1Cor 14,2). Porque não sereis vós que farereis, senão o
Espírito de vosso Pai é que falará em vós. (Mt 10,20).
Em segundo lugar prova que a profecia é em honra de Deus e para utilidade dos
próximos. Pelo qual disse: Porque quem profetiza, etc. (1Co 14,3), isto é, o que explica
visões ou escrituras, lhes fala aos homens, quer dizer, ao entendimiento dos homens, e
isto para edificação dos principiantes, e para exortação dos adiantados (Animais os
covardes,1Ts 5,14. Ensinai e exortai,Tt 2,15), e para consolo dos aflitos.
Mas a edificação corresponde a uma disposição espiritual. Em quem também vós estais
sendo juntamente edificados (Ef. 2,22). E a exortação é para induzir a boas ações,
porque se a disposição é boa, boa será tão a ação. Estas coisas ensinam e exortam (Tt.
2,1,4). A consolação induz a paciência ante os males. Tudo quanto foi escrito, para nos
ensinar se escreveu (Rm 15,4).
Pois bem, a estas três coisas induzem os proclamadores da Divina Escritura.
A segunda razão é esta: o que é útil tão somente para quem o faz é menor que aquilo
que também a outros aproveita. É assim que o falar em línguas é somente para a
utilidade de quem as fala, é ao invés o profetizar aproveita a outros.
Averigua esta razão, e primeiramente enquanto a sua primeira parte, para o qual disse:
O que fala em línguas edifica-se a si mesmo (1Cor 14,4). (Dentro de mim meu coração
me ardia, Sl. 38,4). Em segundo lugar enquanto a sua segunda parte, para o qual disse:
Mas o que profetiza edifica, instruindo, a Igreja, isto é, aos fiéis. Edificados sobre o
fundamento dos Apóstolos e dos Profetas (Ef. 2,20).
Veja também Dúvidas sobre os santos, espírito santo, dom de línguas e pluralismo
religioso
Primeiro com um exemplo tomado de si mesmo; logo mediante um tomado das coisas
inanimadas: Assim sucede com os instrumentos inanimados, etc.; e por último com um
tomado da diversidade de línguas dos homens: Há no mundo não sei quantas variedades
de línguas, etc.
Enquanto a ele mesmo, argumenta desta maneira: É patente que eu não possuo menos
que vós o dom de línguas; mas se somente lhes falar em línguas, sem interpretá-las, de
nada aproveitariam. Logo tampouco vos aproveitais mutuamente. O disse com estas
palavras: Suponhamos que eu vá até vós falando em línguas. O qual pode entender-se
de duas maneiras, isto é, ou em línguas desconhecidas, ou a letra com qualquer sinais
não entendidos. Em que vos aproveitaria se minha palavra não traz nem revelação? etc.
E aqui devemos observar que estas quatro coisas, a saber, nem revelação, nem ciência,
nem profecia, nem ensinamento, podem diferenciar-se de duas maneiras.
1º De um modo segundo o poder de quem seja. Pois devemos saber que a ilustração da
mente mediante o conhecimento é de quatro coisas, porque o é das coisas divinas, e tal
ilustração pertence ao dom de sabedoria. Mas o conhecimento das coisas divinas, como
já se disse no capítulo 2, é a revelação, porque as coisas que são de Deus nada se
conhece, etc. Pelo qual disse o Apóstolo nem revelação, pela qual é iluminada a mente
para conhecer as coisas divinas.
Ou o conhecimento é de coisas terrenas, mas não de qualquer for, senão só das que são
para edificação da fé, e tal conhecimento pertence ao dom da ciência, pelo qual disse:
nem ciência, não de geometria, nem de astrologia, porque estas não tem a ver com a
edificação da fé, senão a ciência das coisas santas. Lhe deu a ciência das coisas santas,
etc. (Sb 10,10). Ou é conhecimento de coisas futuras, e este pertence ao dom da
profecia, pelo qual disse: nem profecia. Interpreta-lhes sinais y os prodígios antes que
ocorran, e a sucessão dos tempos e dos sinais (Sb 8,8). Mas é de notar-se que aqui não
se toma a profecia em sentido geral, ou seja, conforme ao que se foi dito, senão de
maneira particular tão somente enquanto é a manifestação de coisas futuras. E enquanto
a isto define assim Cassiodoro: A profecia é a divina inspiração de coisas futuras para
declarar a imutável verdade. Quero derramar minha doutrina como profecia, etc. (Sl
24,46). Ou é de ordem da moral, no qual pertence a instrução ou doutrina, pelo qual
disse o Apóstolo: nem instrução. Com instrução instruindo (Rm 12,7). A boa instrução
da graça (Pr 13,15).
2° De outro modo podem-se distinguir as diversas maneiras de adquirir o conhecimento.
Com efeito, é de saber-se que todo conhecimento ou provém de um princípio
sobrenatural, isto é, de Deus, ou de um natural, ou seja, da luz natural de nosso
entendimento. Mas o primeiro pode ser de duas maneiras: ou infundindo-se a luz divina
por súbita apreeensão, e assim teremos a revelação; ou se infunde sucessivamente, e
assim é a profecia, pois não a tiveram subitamente os profetas, senão sucessivamente e
por partes, como mostram suas profecias.
Devemos dizer que ainda quando a voz não pertence senão a animais, contudo, se pode
dizer, por certa semelhança, de certos instrumentos que tem certa consonância e
melodia, pelo que faz menção deles, isto é da cítara, que ao tato dá sons, e da flauta,
soprando. Portanto, se estas coisas dão sons confusos como se entenderão?
Com efeito, sendo que o homem mediante instrumentos deseja expressar algo, isto é,
com algumas melodias, que se ordenam ou ao pranto ou ao gozo (Vós cantareis como
na noite em que celebra a festa, com alegria de coração, como que ao som da flauta vai
entrar no monte de Yahwéh,Is 30,29), ou também a sensualidade, não se poderia julgar
com que finalidade se toca a flauta, ou com qual a cítara, se o som é confuso e obscuro.
Da mesma maneira, se o homem fala em línguas, e não as interpreta, é impossível saber
o que quer dizer. Se não dá senão um som confuso, etc. Isso mesmo se vê pelos
exemplos das coisas inanimadas, e dos instrumentos próprios para o combate. E esta
semelhança se toma do capítulo 10 do livro dos Números. Ali se lê que o Senhor
ordenou a Moisés que fizesse duas trombetas de prata para convocar o povo, para pôr
em movimento os acampamentos e para o combate. Mas para cada uma destas
finalidades teriam certo modo de tocar, pois de uma maneira era a voz para juntar-se na
assembléia, outra era para mover o campamento, e outra quando lutavam. Pelo qual
argumenta o Apóstolo que assim como se a trombeta não dá senão um som confuso, isto
é, ininteligível, não se sabe se devem preparar para a guerra, assim também vós, se
falais somente em línguas, sem uma clara exposição que interprete o dito, nada saberá
do que é dito. Por trombeta se pode entender que se trata do pregador. Como trombeta
clama a voz no grito, etc. (Is 58,1).
Porque não se pode saber o que se diz é que falareis ao vento, ou seja, inútilmente. E
exerço o pugilismo não como dando golpes no vazio, etc. (1Cor 9,26). Há no mundo
não sei quantas variedades de línguas, etc. Aqui toma o exemplo das diversas línguas
que se falam. E acerca disto procede de três maneiras.
Primeiro mostra a diversidade das línguas; logo, a inutilidade de falar-se mutuamente
em línguas estranhas: Mas se desconheço o valor dos sons, etc; e finalmente conclui
com o que deseja: Assim pois, já que aspiramos aos dons espirituais, etc.
Com efeito, primeiramente disse: Muitas e diversas línguas há no mundo, e cada quem
pode falar a que queira; mas se não fala uma determinada, não se entende. Pelo qual
disse: há não sei quantas variedades, etc. Pode-se expor isto de duas maneras, porque
pode continuar com o que precede, de modo que diga: Falareis ao vento; e há não sei
quantas variedades, etc., como se dissera: ao vento, isto é, inutilmente falais em todas as
línguas, porque falais sem entende-las, não obstante que para serem entendidas tem as
significações próprias das vozes. Pois nada carece de voz.
Ou se pode pontuar desta maneira: Es como si ha-biaráis al viento. Pois tantos são os
gêneros de línguas, isto é, de cada língua. Mas se desconheço, etc. Com isto mostra sua
inutilidade. O disse com estas palabras: Se falasse todas as línguas. Mas se desconheço
o valor dos sons, ou seja, a significação das vozes, serei um bárbaro para meu
interlocutor.
R. – Eis que eu trago sobre vós uma nação de muito longe, nação cuja língua ignoras
(Jr. 5,15).
Observe-se que segundo alguns são bárbaros aqueles cujo idioma discorda totalmente
do latino. Embora outros dizem que todo estranho ou estranjeiro é um bárbaro para
qualquer outro estranho quando não é entendido por ele. Mas isto não é assim, porque
segundo Isidoro Barbaria é uma certa nação. Em Cristo não há bárbaro nem escravo,
etc. (Cl. 3,2). Mas, segundo mais verdadeiramente se disse, bárbaros são propriamente
aqueles que gozam de vigor corporal sendo deficientes no vigor da razão, e estão como
na margem das leis e sem regime jurídico. E isto concorda com o que Aristóteles disse
em sua Política. Consequentemente, quando o Apóstolo disse: assim como conclui o
que pretende, isto se pode construir de duas maneiras. Primeiramente para certificar
como se dissera: Tão bárbaro seria eu para vós se falasse sem significação nem
interpretação, como bárbaros serieis vós mutuamente; pelo qual procurai abundar, etc., e
isto porque aspiráis aos dons espirituais.
Ou de outro modo, dizendo-se tudo com claridade, como se dissera: Não sejais, pois,
bárbaros; senão que, tal como eu procedo, posto que estais ansiosos das coisas do
espirito, isto é, dos dons do Espírito Santo, pedí-los a Deus, para que abundeis. Na
abundante justiça está a virtude máxima (Pr 15,5). Na qual justiça é edificar aos demais.
Pedi e vos será dado; buscais e achareis; batei e vos será aberto (Mt 7,7).
Porque quem entende se renova em sua mente e em seu afeto; e entretanto a mente do
que não entende permanece sem fruto de renovação. Daqui que como é melhor o
renovar-se na mente e afeto do que unicamente no afeto, resulta claro que na oração
mais vale o dom da profecia do que somente o dom de línguas. Isto o expressa
dizendo: Digo que peça o dom de interpretar. Porque se oro em línguas, ou seja, se para
orar uso o dom de línguas, de modo que digo algo que não entendo, então meu espírito,
isto é, o Espírito Santo que me é dado, pede que me incline e mova a pedir. E com tal
oração não deixo de ganhar, porque o mesmo fato de que me mova pelo Espírito Santo é
meritório para mim. Pois nós não sabemos pedir o que convém; pois o próprio Espírito
Santo nos faz suplicar (Rm 8,26). Ou também: Espírito meu, meu espírito, isto é, minha
razão, me indica que fale coisas que são para o bem, ou com palavras próprias minhas,
ou de outros santos. Ou também: Espírito meu, meu espírito, isto é, a faculdade
imaginativa, pede, enquanto vozes ou semelhanças das coisas corporais são tão somente
na imaginação sem aquilo pelo qual se entendam pelo entendimento; e por isso
adiciona: mas minha mente, isto é, meu entendimento, fica sem fruto, porque não
entende. Pelo que na oração é melhor a profecia ou interpretação do que o dom de
línguas. Contudo, e quando alguém ora e não entende o que disse, se fica sem o fruto da
oração?
Devemos dizer que é duplo o fruto da oração. Um fruto é o mérito que se resulta ao
homem; o outro fruto é a consolação espiritual e a devoção que se alcança pela oração.
Agora bem, enquanto o fruto da devoção espiritual se priva quem não atende ao que ora
ou que não o entende; mas enquanto ao fruto do mérito não se pode dizer que se prive,
porque se assim fosse muitas orações ficariam sem mérito, pois com dificuldade pode
dizer o homem um Pai Nossosem que seja exigida a mente pelas demais coisas. Pelo
qual devemos dizer que quando o que ora se distrai às vezes do que disse, ou quando
alguém em uma obra meritória não pensa continuamente em cada um de seus atos que
faz por Deus, não perde a razão do mérito. E assim é porque em todos os atos meritórios
que se ordenam a um fim reto não se requer que a intenção do agente se una ao fim em
cada ato, senão que a primeira energia que move a intenção permaneça na obra inteira
ainda quando as vezes em algo particular se distraia; e essa primeira energia faz
meritória toda a obra a não ser que se interrompa por uma afeição contrária que do fim
predito leve a um fim contrário.
Mas a atenção é tripla. Uma é a respeito das palavras que diz o homem, e esta às vezes
danifica enquanto impede a devoção; outra é com relação ao sentido das palavras, e
esta danifica, embora não é muito nociva; e a terceira é com relação ao fim, e esta é a
melhor e quase necessária.
Todavia, estas palavras do Apóstolo: a mente fica-se sem fruto se entendem do fruto de
renovação. Então que fazer? etc. Porque pode alguém dizer: Se orar com a língua é algo
sem fruto da mente e todavia a boca ora, porque, em conseqüência, não há que orar com
a boca?
O Apóstolo o resolve dizendo que se deve orar
das duas maneiras, verbal e mentalmente, porque o homem deve servir a Deus com
tudo o que tem de Deus; e como de Deus tem respiração e mente, pelo mesmo de uma e
outra maneira deve orar. Com todo seu coração louva ao Senhor, etc. (Sl 47,10). Pelo
qual disse: Orarei com a boca, mas orarei também com a mente; salmodiarei com a
boca, mas, etc.
E disse orar e salmodiar, porque a oração ou é uma deprecação, e a isto se refere o orar,
ou é para louvar a Deus, e a isto se refere o salmodiar. Sobre estas duas coisas disse São
Tiago (Tg 5,13): Sofre algum entre vós? Que ore. Está algum alegre? Que cante salmos.
E nos Salmos 91,2: Bom é salmodiar, etc. Assim é que orará verbalmente, isto é, com a
imaginação, e com sua mente, isto é, com a vontade. Porque se não louvas senão com
respiração, etc. Isto mostra em segundo lugar que o dom da profecia vale mais que o
dom de línguas, ainda na oração pública, na qual se dá quando o sacerdote ora
publicamente, e às vezes diz coisas que não entende, e às vezes coisas que entende. E
sobre isto procede o Apóstolo de três maneiras.
Primeiramente da razão; logo já põe a vista: Como dirão amém? etc.; e por último prova
o que havia suposto: Se não sabem o que dizes.
Em efeito, disse assim: Disse que o dom da profecia na oração privada vale mais,
porque se não louvas, etc., e também na pública, porque se não louvas senão com a
respiração, isto é, em uma língua que não se entenda, ou com a imaginação, e movido
pelo Espírito Santo, quem suprirá aos simples? Simples é propriamente aquele que não
conhece senão a língua materna: Como se dissera: Quem dirá aquilo que deve dizer ali o
simples? Ou seja: Amém. E por isso disse: Como dirá amém a tua ação de graças? O
que a Glosa explica assim: Como se porá em harmonia com a ação de graças feita por ti
na representação da Igreja? Quem seja bendito na terra será bendito em Deus. Amém (Is
65,16). Amém é o mesmo que faça-se, ou assim seja; como se dissera: Se não entende o
que dizes, como assentira ao que dizes? Pode alguém assentir, ainda sem entender, mas
tão somente em geral, não em concreto ou em especial, porque não pode entender que
coisas boas dizes nem o que é que tão só bendizes. Mas porque não se hão de dar as
bendições na língua vulgar para que se entendam pelo povo e se adapte estas melhor a
elas?
Devemos dizer que isto assim foi felizmente na Igreja primitiva, mas já estando
instruídos os fiéis e sabendo o que é que ouvem no oficio comum, se dizem os
louvores em latim.
Consequentemente, prova o Apóstolo porque não se pode dizer Amém quando disse:
Porque, certamente, bem que tu dá graças, isto é, embora tu dês boas graças à Deus
enquanto entendes; mas outros, que ouvem e não entendem, não se edificam, enquanto
não entendem em especial, embora em geral entendam e se edifiquem. Não saia de
vossa boca palavra danosa, senão a que seja conveniente para a edificação da fé (Ef
4,29). E pelo mesmo é melhor que não somente com a língua se louve, senão que
também se interprete e se ponha à vista, embora tu que da graças, bem o faças.
Primeiramente dá graças pelo dom de línguas que Deus lhe deu; e logo lhes propõe o
mesmo como exemplo: Mas na Igreja prefiro, etc. Assim é que disse: Graças dou, etc.,
como se dissera: Não é que desprezo o dom de línguas quando digo que o dom da
profecia seja mais excelente, senão que deve te-lo por muito apreço. Pelo qual eu
também dou graças a Deos, etc. Pois deve-se dar graças de tudo. Em tudo dai gracias,
etc. (1Filem 5,18). E: Graças dou a Deus, etc.. Como se dissera: não menosprezo o dom
de línguas como se dele caressese, pois eu também o tenho, pelo qual disse: graças dou
a Deus. E para que não se creia que todos falavam uma só língua, disse: porque
falo todas as línguas de vós (Falavam os Apóstolos em várias línguas, Atos
2,6). Mas na Igreja, etc. Aqui se põe ele mesmo como exemplo, como se dissera: Se eu
tenho também o dom de línguas como vós, deveis fazer o que eu faço. E eu quero, isto
é, prefiro, falar na Igreja cinco palavras, ou seja, muito poucas, porém com minha
percepção, e dizer, com minha inteligência, de modo que eu entenda e seja entendido, e
assim instrua aos demais, que não dez mil palavras, ou seja, uma multidão de palavras
em línguas, no qual, como quiser que seja, não é falar ao entendimento, como já ficou
exposto acima.
Alguns opinam que o Apóstolo disse cinco porque parece querer expressar que prefere
dizer uma só oração para o entendimento do que muitas sem inteligência. Pois a oração,
segundo os gramáticos, para fazer sentido perfeito deve constar de cinco partes, a saber:
sujeito, predicado, ligação verbal, determinação do sujeito e determinação do predicado.
A outros parece melhor que como falar com a inteligência é para ensinar aos demais,
exige cinco coisas porque o douto deve ensinar cinco coisas, a saber: o que se deve crer
(Assim tem de ensinar e exortar, etc. Tito 2,15); o que se deve obrar (Ide, pois…
ensinai-os a guardar tudo o que Eu os tenho mandado,Mt 28,19-20); o que se deve
evitar, isto é, os pecados (Como da serpente foge do pecado,Sl 21,2 Revela meu povo
suas iniquidades,Is 58,1); o que se deve esperar, isto é, a dádiva eterna (Desta -salvação
investigaram e indagaram os profetas, que profetizaram sobre a graça destinada a vós,1
Pedro 1,10); o que se deve temer, isto é, as penas eternas (Idê, malditos, ao fogo eterno,
etc.Mt 25,41).
Irmãos, não sejais crianças, etc. Aqui mostra a excelência do dom da profecia sobre o
dom de línguas, com razões tomadas da parte dos infiéis. E para isto procede de duas
maneiras. Primeiro desperta a atenção, e os torna atentos; e logo argumenta a propósito:
O que está escrito na lei?
Acerca do primeiro vemos que o Apóstolo tira-lhes o manto da desculpa daqueles que
ensinam coisas vãs e superficiais querendo fazer-se pasar por inocentes, sem preocupar-
se portanto de penetrar ao fundo conforme a verdad das coisas, no qual não alcançam,
alegando para isto as palavras do Senhor: Se não mudardes e vos fazeis como crianças,
não entrareis no Reino dos Ceús (Mt 1 Mt 8,3). Tal coisa exclui o Apóstolo dizendo:
Não sejais crianças nos juizos, ou seja, não quereis falar e ensinar coisas infantis, inúteis
e tolas. Quando eu era criança, falava como criança, etc. (1Cor 13,1 1Cor 1). Mas como
deveis fazê-los como crianças? Com o afeto, não com o entendimento. Pelo qual disse:
Mas enquanto a malícia. Porque já sabemos que as crianças não projetam coisas más, e
é assim como debemos fazer-nos crianças; pelo qual disse: sede crianças enquanto à
malícia. Mas falta-lhes pensar em coisas boas, e não é assim que devemos ser crianças,
mas senão varões bem perfeitos, pelo qual adiciona: porém maduros nos juizos, isto é,
enquanto ao distinguir os bons e os maus, sede perfeitos. Por isso disse em Hebreus
5,14: O manjar sólido é para os perfeitos ou adultos. Assim é que não se louva em vós a
simplicidade que se oponha à prudencia, senão a que se opõe ao engano. Pelo qual disse
o Senhor (Mt 10,16): Sede prudentes como a serpente. Quero que sejais engenhosos
para o bem e inocentes para o mal (Rm 16,19). Pelo qual, quando disse: Está escrito na
Lei, argumenta a propósito, e devemos saber que sua argumentação, como se vê pela
Glosa, inclue muitas aplicações; mas segundo a intenção do Apóstolo não parece que
neste lugar atenda senão a uma razão. E a razão que dá para provar que o dom da
profecia é mais excelente que o dom de línguas é o seguinte: Tudo o que vale mais para
aquilo ao que outra coisa principalmente se ordena é melhor que esta outra ordenada ao
dito; e o dom da profecia, como o dom de línguas, se ordena à conversão dos infiéis;
porém mais eficazes são para isto as profecias que o dom de línguas; logo a profecia é
melhor.
Mas enquanto a esta razão procede o Apóstolo de duas maneiras. Primeiro mostra a que
se ordena o dom de línguas; e a que se ordena o dom da profecia; em segundo lugar, que
vale mais o dom da profecia: Se, pois, se reúne toda a assembléia, etc. (1Cor 14,23).
Duas coisas faz acerca do primero. Desde logo faz admitir a autoridade. E logo, apoiado
na autoridade, argumenta à propósito: Assím pois, as línguas, etc.
Pelo que vê ao primeiro se deve saber que estas palavras: Que está escrito na Lei? Se
podem ler ou interrogativamente, como se dissera: não deveis faze-los crianças nos
juízos, senão adultos, e isto é ver e connhecer a lei. Em consequência, se sois perfeitos
nos juízos, conheceis a lei, e na lei o que está escrito sobre as línguas: que geralmente
são inúteis para aquilo para o qual se ordena, porque ainda quando se fale em diversas
línguas, por exemplo, ao povo judeu, contudo não ouve o homem, etc.
Pode-se ler também indulgentemente: Está escrito na Lei. Como se dissera: Não vos
agiteis como crianças desejando algo sem discernir se é bom ou melhor o que tratais de
alcançar e o prefirais a um bem superior, senão sede perfeitos nos juízos, discerni entre
os bens e os bens maiores, para que assim trateis de alcançá-los.
E é assim, se pensais o que está escrito na Lei: Em línguas estranhas falará, etc. (Assim
é que meditando o juízo é perfeito,Sb 6,16). E diz na Lei, tomando a Lei estritamente
pelos cinco livros de Moisés tão somente, como se toma em Luc. 24,44: É necessário
que se cumpra tudo o que está escrito acerca de mim na Lei de Moisés, etc., senão por
todo o Antigo Testamento, como se toma em Jo 15,25: Para que se cumpra o que está
escrito em sua lei: odiaram-me sem motivo. E isto mesmo está escrito no Salmo 119.
Contudo, este sentido está tomado de Is 28,11, donde nosso texto diz: Sim, com
palavras estranhas e com língua estrangeira se falará a este povo.
Assim é que está escrito que em línguas estranhas, isto é, em diversos gêneros de
línguas, e por lábios estrangeiros, ou seja, em diversos idiomas e modos de
pronunciar, falarão a este povo, ao dizer, aos judeus, porque este sinal se deu
especialmente para a conversão do povo judeu: Nem assim escutaram, porque com
sinais manifestos não creram. Endureceu o coração deste povo, etc. (Is 6,10).
Mas, para que Deus lhes deu sinais, se não haviam de converter-se? Sobre isto há duas
razões. Uma delas é que ainda quando não todos se converteriam, contudo alguns sim
porque não rechaça o Senhor ao seu povo. A outra razão é que mais justamente se
manifestaria a condenação deles sendo mais manifesta sua iniquidade. Se eu tivesse
vindo e não tivesse falado, etc. (Jo 15,22). Pelo tanto, quando disse: Assim, pois, as
línguas, etc., partindo da autoridade assentada argumenta à propósito, como se dissera:
que o dom de línguas não foi dado para que os fiéis creiam é claro, pelo fato de que já
creêm (Já não cremos por tuas palavras, etc., Juan 4,42), senão para que os infiéis se
convertam.
Mas na Glosa vemos neste lugar duas exposições de Santo Ambrósio que não são
literais; das quais uma é a seguinte: Assim como no Antigo Testamento falei ao povo
judeu em línguas, isto é, por figuras e com lábios, prometendo bens temporais, assim
agora, no Novo Testamento, falo a este povo em outras línguas, isto é, aberta e
claramente, e com outros lábios, ou seja, espirituais, embora tampouco igualmente
ouçam enquanto a multiplicidade deles. Assim, pois, as línguas se dão não para os
infiéis senão para os fiéis, para fazer patente a infidelidade daqueles.
23. Se pois se reúne toda a Igreja ou assembléia e todos falam em línguas e entram nela
ignorantes ou infiéis, não dirão que estais loucos?
24. Pelo contrário, se todos profetizam e entra um infiel ou um ignorante, será
convencido por todos, julgado por todos.
25. Os segredos de seu coração ficarão descobertos e, prostrado rosto em terra,
adorará a Deus confessando que verdadeiramente Deus está entre vós.
26. O que concluir, pois, irmãos? Quando estiverdes reunidos, cada um de vós pode ter
um salmo, uma instrução, um apocalipse, um discurso em línguas, uma interpretação;
mas que tudo seja para edificação.
Segundo a Glosa aqui começa outra razão na prova das teses. Mas, conforme já dito,
não foi dada senão uma única razão e em certo modo não foi manifestado senão a
metade dessa mesma razão, isto é, que a profecia é mais eficaz para aquilo pelo que
especialmente se ordena o dom das línguas. Daqui que para isto procede o Apóstolo de
duas maneiras:
Objeção: Enquanto aos ignorantes é o mesmo falar em línguas que o falar em idioma
culto; é assim que na Igreja todos falam em idioma culto, porque tudo se diz em latim;
logo parece que também isto é uma loucura.
Respondo: Pelo mesmo era uma loucura na Igreja primitiva, porque eram rudes e
ignorantes em matéria de rito eclesiástico, posto que não sabiam o que se fazia ali, se
não lhes explicasse. Mas na medida conveniente todos estão instruídos, pelo qual, ainda
quando tudo se diz em latim, todos sabem, contudo o que se faz na Igreja.
Consequentemente, quando disse: Pelo contrário, se todos profetizam, mostra que segue
o bem do dom da profecia. E para isto procede de três maneiras.
Primeiramente mostra o que segue, enquanto aos infiéis, pelo bem da profeicia; logo,
mostra como segue isso: os segredos de seu coração, etc.; e em terceiro lugar, adiciona
que efeitos provêm dele: E, prostrado rosto na terra, etc.
Disse, pois: Consta que mediante o dom de línguas não se convence os infiéis. Pelo
contrário, ou seja, mas sim aqueles que juntos profetizam, isto é, falam ao entendimento
de todos, ou explicam as Escrituras, ou ainda interpretam as revelações que tem
recebido; isto é, se todos, mas não simultaneamente, senão um em seguida do outro
assim profetizam; e entra, isto é, na Igreja, na assembléia, algum ignorante, ou seja,
quem não tenha mais que a língua materna, o bem que dele segue é que será
convencido de algum erro que lhe é mostrado (Logo que me mostrasse me
envergonhei, Jer 3 1,19), julgado por todos os que profetizam, como se dissera que se
mostra avergonhado de seus maus costumes e de seus vícios.
O homem espiritual, isto é, o mestre, o julga todo, etc. (1Co 2,15). Para estas duas
coisas, com efeito, é a profecia: para confirmação da fé e para correção dos costumes. E
de que maneira vem este bem do dom da profecia o adiciona ao dizer: Os segredos de
seu coração. O qual se pode entender de três maneiras.
Um modo consiste, literalmente, em que alguns na Igreja primitiva tiveram o dom de
saber os segredos dos corações e os pecados dos homens. Pelo qual lê-se que Pedro
castigou Ananias por fraude no preço do campo (At 5,4-5). E por isto se lê: os segredos
de seu coração, etc. Como se dissera: se convence porque os segredos, isto é, seus
pecados secretos ficam descobertos por aqueles que os revelam.
Outro modo ocorre quando alguém na pregação toca muitas coisas que os homens
levam em seu coração, como se vê nos livros de São Gregório, de onde cada um
ordinariamente pode encontrar todos os movimentos de seu coração. E conforme isto se
lê: Os segredos do coração. Como se dissera: ficam convencidos porque os segredos de
seu coração, isto é, os que levam no coração (Assim como nas águas se reflete o rosto
de quem as olha, assim se manifestam aos prudentes os corações dos homens, Pr
27,19), são manifestados, ou seja, são palpados por eles.
Ocorre outro modo, porque às vezes se diz que é segredo do coração aquilo que um
duvida e não pode por si mesmo certificar. E conforme a isto se lê: Os segredos do seu
coração, isto é, aquelas coisas que duvida em seu coração e que não creia que se
manifestem, pois indo à Igreja se fazem frequentemente manifestas, como de si mesmo
disse Santo Agostinho (Conf., Liv. 10, cap. 35): que foi a igreja unicamente pelo canto,
e contudo ali se revelavam muitas das coisas sobre as quais duvidava e pelas quais não
houvera ido. E dele seguia o salutável temor, pois completamente vencido temia a Deus.
E o Apóstolo disse isto assim: E prostrado rosto em terra, isto é, tão vencido ficava,
manifestados os segredos de seu coração, que prostrado rosto em terra adorava a Deus
(E prostrando-se adoraram,Mt 2,2), em sinal de santo temor. Dos réprobos se lê, ao
invés, que caem para trás. A senda dos ímpios é tenebrosa e não sabem donde se
precipitam (Pr 4,19). Mas o eleito cai rosto em terra porque sabe donde se prostra e que
é em sinal de santo temor. Prorromperam em gritos de jubilo e cairam rosto em terra
(Levit. 9,24 e Mt 2,2). Diante cairão em terra os etíopes (Sl 71,9). E não só mostrara
santo temor de Deus, senão também à Igreja, confessando, disse el Apóstolo, que
verdadeiramente Deus está em vós, os que profetizais na Igreja. Queremos ir convosco,
porque temos ouvido dizer que Deus está convosco (Zc. 8,23).
Está claro, portanto, que o dom de profecia é mais útil enquanto aos infiéis.
Que concluir, pois, irmãos? Aqui os instrui sobre o uso dos ditos dons. E para isto
procede de duas maneiras.
Primeiramente mostra como se devem portar no uso destes dons; e logo conclui com
seu principal propósito: Portanto, irmãos desejai com emulação o profetizar, etc.
Enquanto ao primeiro três coisas faz. Em primeiro lugar mostra em geral como se deve
mostrar respeito a todos os dons; em segundo lugar, como terão de se portar quanto ao
dom de línguas: Se alguém fala em línguas, etc.; em terceiro lugar lhes disse como
devem portar-se quanto ao dom da profecia: Profetizem dois ou três, etc.
Disse, pois: profetizar é melhor que falar em línguas. Que concluir, pois, irmãos? Isto é
o que deveis fazer. Porque quando vos reunis se vê que um só não tem todos os dons; e
portanto nenhum de vós deve lançar mão de todos os dons, senão daquele que mais
especialmente foi recebido de Deus e que seja o melhor para a edificação, Porque cada
um de vós tem algum dom especial: algum tem um Salmo, isto é, um cântico em louvor
do nome de Deus, ou explica os Salmos. Pelas alturas conduz meus passos, etc. (Habac.
3,19). Outro tem instrução: prega para instrução dos costumes ou para explicar um
sentido espiritual. Por sua doutrina se dá a conhecer o varão (Pr 12,8). Outro tem um
Apocalipse, isto é, uma revelação, ou em sonho ou em alguma visão. Existe um Deus no
céu que revela os mistérios, etc. (Dn 2,28). Outro tem um discurso em línguas, isto é, o
dom de línguas ou de ler as profecias. E começaram a falar em outras línguas (At 2,4).
Outro, uma interpretação. A outro a interpretação das línguas (1Cor 12,10).
Estas coisas se hierarquizam assim: ou são naturais ou vem só de Deus. Se procedem
somente do meio natural, ou são para glória de Deus, pelo qual se disse: Tem um
Salmo, ou é para a instrução do próximo, pelo qual disse: Tem uma instrução. Se
provém unicamente de Deus, são de duas maneiras: ou são algo oculto interiormente,
pelo qual disse: tem um Apocalipse, ou são coisas ocultas exteriormente, pelo qual
disse: tem um discurso em línguas. E para a manifestação de uma e outra coisa é uma
terceira, isto é, uma interpretação.
E se deve proceder de modo que tudo seja para a edificação. Que cada um de vós trate
de agradar a seu próximo para o bem, buscando sua edificação (Rm 15,2).
Lição 6: 1Co 14,27-33
Ensina como devem usar do dom de línguas e quando não se há de usar.
27. Fala-se em línguas, que falem dois, ou no máximo três, e por turno; e que haja um
intérprete.
28. Mas se não há quem interprete, guarde-se silêncio na assembléia; fale cada qual
consigo mesmo e com Deus.
29. Quanto aos profetas, falem dois ou três, e os demais julguem.
30. Se algum outro assistente tiver uma revelação, cale-se o primeiro.
31. Pois podeis profetizar todos por turno para que todos aprendam e se animem.
32. E os espíritos dos profetas estão submetidos aos profetas.
33. Pois Deus não é um Deus de desordem, senão de paz, como ensino em todas as
igrejas dos santos.
Aqui lhes ensina o Apóstolo como devem proceder para o uso do dom de línguas; e para
isto faz duas coisas.
Primeiro mostra de que maneira se deve usar do dom de línguas; e logo, quando devem
deixar de usá-lo: Se não há quem interprete. Disse, pois, primeiramente que o modo de
usar do dom de línguas deve ser de tal maneira entre vós, que se fala em línguas, ou
seja, sobre visões, ou sonhos, tal discurso não se faça por muitos, de modo que o
emprego do tempo nas línguas não deixe lugar aos profetas, e se gere a confusão. Senão
que falem dois, e se for necessário três, de modo que seja suficiente com três. Por
declaração de dois ou três (Dt 17,6). E é de notar-se que este costume é conservado
até agora na Igreja. Porque lições, e epístolas e evangelhos temos no lugar das línguas,
e por isso na Missa falam dois, pois só por dois se dizem as coisas que pertencem ao
dom de línguas, isto é, epístola e evangelho. Os Matinais (vésperas) constam de
muitas partes, ou seja, de três lições ditas no Noturno. Em efeito, antigamente os
Noturnos se diziam separados conforme as três vigilias da noite; mas agora se dizem em
uma só vez. Assim é que não somente se deve guardar a ordem enquanto ao número dos
que falam, senão também quanto ao modo, e isto disse assim São Paulo: e por turno,
isto é, que os que falem se sucedam alternativamente, ou seja, que um fale depois do
outro. Ou: por partes, isto é, por incisos, de modo que se diga uma parte da visão, ou da
instrução, e se explique, e logo outra e esta seja explicada, e assim sucesivamente. E
deste modo acostumaram guardar-lo os anunciadores quando anunciam interpretando
para homens de língua estranha, pelo qual disse: e que há um intérprete.
Consequentemente, quando disse: Mas se não há quem interprete, etc., ensina quando
não se deve usar das línguas dizendo que se deve falar por partes e que haja um
que interprete. Porque se não há quem interprete, que quem tiver o dom de línguas
guarde silêncio na assembléia, isto é, que não fale nem anuncie as pessoas na língua
desconhecida, pois não será entendido por ninguém, e fale consigo mesmo, porque ele
mesmo se entende, mas isto em silêncio, orando ou meditando. Falará na amargura de
minha alma. Lhe dirá a Deus, etc. (Jó 10,1-2).
Quanto aos profetas, falem dois ou três, etc. Aqui ordena como devem portar-se a
respeito do uso da profecia. Para isto, primeiramente ensina de que maneira devem usar
desse dom, tanto quanto ao número como quanto à ordem; e em segundo lugar disse a
quem é proibido o uso da profecia: As mulheres calem-se nas assembléias.
Acerca do primeiro devemos saber que o uso da profecia conforme ao que aqui parece
que entende o Apóstolo é dizer ao povo umas palavras de exortação explicando as
Sagradas Escrituras; e como na Igreja primitiva haviam muitos que recebiam de
Deus este dom, e ainda não se haviam multiplicado os fiéis, para que não houvesse
nem confusão nem cansaço, quer o Apóstolo que não todos os que sabem explicar
as profecias e a Sagrada Escritura profetizem, senão alguns poucos e determinados,
no qual disse assim: Enquanto os profetas, etc. Como se dissera: Não quero que todos os
que se reúnem, senão tão só dois, ou três no máximo, na medida que exige esta
necessidade de falar, falem, isto é, exortem. E isto concorda também com o que já dizia
a Escritura: Por declaração de dois ou três (Dt 17, o). E os demais, ou seja, os que não
devem falar, julguem aquilo que foi exposto, se foi bem ou mal dito, aprovando o bem
dito, e fazendo que se corrija o mal dito. O homem espiritual julga tudo (1Cor 2,15).
No uso desse dom deve-se guardar também a regra de que se algum outro dos
assistentes que se calavam e julgavam revelar algo melhor do que se apresenta e exorta
primeiro, então este que está de pé deve sentar-se e aquele a quem algo melhor foi
revelado deve levantar-se e exortar. Isto disse o Apóstolo: Se algum outro assistente tem
uma revelação, se entende que pelo Espírito Santo, o primeiro que se levantou cale-se e
ceda o lugar aquele (Estimando mais em cada um aos demais,Rm 12,10).
E a razão é que desta maneira podeis sucessivamente profetizar um por um, isto é,
todos, e assim todos, ou seja os maiores, ensinam, e todos, ou seja os menores, sejam
exortados (Que atenda o sábio, etc. Pr 1,5).
E se alguém diz: oh! Apóstolo: Eu não posso calar quando outro profetiza, ou ceder e
retirar-me havendo já começado, porque não posso silenciar o Espírito que fala em mim
segundo aquilo de Jó 4,2: Quem pode conter suas palavras? Contesta o Apóstolo
dizendo: Os espiritos dos profetas estão submetidos aos profetas. Como se dissera:
Muito bem podes calar ou sentar-se, porque os espiritos dos profetas, isto é, os que dão
as profecias – e os põe no plural pelas muitas revelações que são inspiradas- estão
submetidos aos profetas, por certo, enquanto ao conhecimento, porque, como disse São
Gregório (Moral., lib. 2, c. 14), nem sempre atua nos profetas o Espírito de profecia. De
modo que não é um hábito como a ciência. Segue-se pelo tanto daqui que ainda
enquanto ao conhecimento lhes está sujeito, e podem usar dele quando quiserem, ou não
usá-lo; porque é força certa o impulso de Deus, que ilumina e toca os corações dos
profetas; mas não conhecem senão quando assim são tocados. Logo desta maneira não
lhe está sujeito, nem se entende assim a palavra do Apóstolo, pois os espiritos dos
profetas estão sujeitos aos profetas enquanto à elocução, porque quando querem podem
muito bem dizer as coisas que se revelam a eles, e podem não dizê-las.
Assim é que não vale o pretexto de que te impulsiona o Espírito sem que possa
calar. E que isto seja a verdade o prova dizendo: Pois não é um Deus de dissenção, etc.
E dá dele a razão. Jamais impulsiona Deus para aquilo que resulte rixa ou dissensão,
porque não é um Deus de dissensão senão de paz; e se o Espírito de profecia impulsiona
os homens a falar, seria então causa de dissensão, porque assim sempre estariam
querendo falar, e não ensinar, nem calar quando outro fala, para turbação dos demais.
Logo o Espírito Santo não impulsiona os homens a falar. E o Deus da paz e do amor
estará convosco (1Cor 13,2).
Contudo, como, todavia poderia objetar-se que aquilo não ocorreria porque somente aos
Coríntios mandava o Apóstolo estas coisas e não às demais Igrejas, pelo que até como
algo molesto poderia ser considerado, agrega que isto ensina não somente a eles senão
também em todas as Igrejas; e com efeito disse: Como ensino em todas as Igrejas dos
Santos sobre o uso das línguas e da profecia. Já disse acima: Que tenhais todos um
mesmo sentir (1Cor 1,10).