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descanso (com participação nas suas rotinas de fim-de- Por um lado, ocupa os mesmos territórios e é erguida
-semana). para e pelos sucessores dos antigos habitantes das casas
A realização de trabalho de campo em terrenos france- rurais. Por outro lado, difere nos materiais, nas formas e
ses e portugueses abriu-me caminho a uma leitura compa- nos volumes dos edifícios, assim como nas relações com
rativa entre as performances destes emigrantes no país de o espaço (interiores e envolvente), com a terra e com o
acolhimento e na aldeia natal, numa relação indissociável trabalho, numa relação especial com a produção agrícola.
entre a casa, a atitude do proprietário, a forma como se Difere na situação económica dos proprietários comparati-
projeta e como é representado pelos outros. Com efeito, vamente aos pequenos agricultores e jornaleiros, dos quais
o emigrante representa-se na sua casa e esta, por sua vez, descenderam muitos dos emigrantes. Ou mesmo na pró-
representa-o, como elemento de mediação com os outros. pria relação com a economia ao deixar de funcionar como
Por sua vez, os seus apreciadores e detractores também se instrumento de produção (Oliveira & Galhano 1992). Rom-
projetam através das representações que fazem dela. Es- pe ainda com a imagem de fixação da arquitetura aos con-
tes investimentos "fazem parte da luta simbólica de classes, textos locais e regionais (de imutabilidade ou de mudança
do jogo do crédito e do descrédito, do mercado quotidia- lenta) ao manifestar materialmente a influência de estilos de
no dos bens simbólicos e dos valores sociais” (Gonçalves outros terrenos, inclusive estrangeiros.
1996: 201). É uma arquitetura que reflete a atitude permeável dos
Antes de avançar com algumas leituras, é oportuno re- seus proprietários, na combinação de influências estran-
fletir sobre o lugar que a casa do emigrante ocupa na rela- geiras com expressões locais, mas também a sua visão
ção com os pressupostos da arquitetura popular. otimista de um regresso bem sucedido ao país que deixa-
Conhecem-se algumas incursões prévias no terreno, ram. É ainda uma imagem material forte do processo de
ainda na década de 1960, que viriam a ser conhecidas mais transformação do panorama rural em Portugal no séc. XX,
tarde, nomeadamente a da antropóloga Colette Callier-Bois- tornando ainda mais oportuna a reflexão sobre as fronteiras
vert sobre o Soajo (1999), embora não com uma aborda- da arquitetura popular. Neste contexto, recorro ao antropó-
gem explícita à casa do emigrante. Mas foi na década de logo Garcia Canclini (1998) que analisando a cultura popu-
1980, com o 2º Congresso da Associação dos Arquitetos lar considera a associação restritiva do popular ao passado
Portugueses, que instalava no país o debate sobre estas rural um obstáculo ao entendimento das mudanças nas so-
casas (Moutinho 1981), prolongando-se em crescendo nos ciedades industriais e urbanas. O autor defende ainda que
anos seguintes. Estas expressões tornavam-se objetos ali- a preservação pura das tradições não é necessariamente a
ciantes do interesse académico em Portugal. Através de melhor solução num processo de reprodução social, pre-
tematizadas e disciplinares diferentes (arquitetura, antropo- ferindo uma postura flexível e ajustada à complexidade da
logia, sociologia, geografia) vêm sendo consubstanciadas atualidade.
em artigos e em teses de mestrado e de doutoramento (Ro- No campo específico da arquitetura popular, entre ou-
seta 1988, Silvano 1990, Silvano & Coelho 1993, Leite 1990 tros contributos, sublinho as reflexões de Roselyne de Villa-
e 1998, Raposo et all 1995, César 1996, Gonçalves 1996, nova (2006), João Leal (2009, 2009-1) e Álvaro Domingues
Castro 1998, Villanova 2006, Almeida 2008). (2011). Através de diferentes visões disciplinares, estes in-
Relativamente à posição da casa do emigrante na arqui- vestigadores incentivam-nos a pensar sobre a necessidade
tetura popular, não se revendo no conceito de arquitetura de flexibilizarmos o conceito de arquitetura popular, confe-
erudita, incorpora traços que também não preenchem os rindo-lhe maior abertura. João Leal concretamente, propõe
critérios convencionais da arquitetura popular. o alargamento do estudo a “novas expressões da arquitec-
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tura popular/vernácula de acordo com uma conceção reno- com condições de vida precárias eram os que mais alinha-
vada do que é hoje o popular” (Leal 2009: 66), onde cabem vam numa emigração laboral, na maioria dos casos com
por exemplo, as casas em estudo. destino a França (Goldey 1982). Mas emigravam com o de-
Em suma, esta flexibilização, também aqui defendida, sejo de regressarem (Silvano 1990).
enquadra parcialmente a casa do emigrante no terreno da Marie-Christine Volovitch-Tavares (1995), refere que
arquitetura popular, com pontos de identificação e outros os primeiros portugueses que se instalaram no bidonville
de desvio relativamente ao que tem sido aceite e estabiliza- de Champigny, um bairro social improvisado, partiram de
do como arquitetura popular. Apresenta um estatuto híbri- uma região no centro de Portugal, referindo-se a Espite.
do, um lugar nas margens comparativamente às casas dos Com base em registos conhecidos, posiciona a primeira
residentes locais que não absorveram influências externas geração destes emigrantes oureenses em França por altura
de forma tão explícita e assumidamente propositada. da primeira guerra mundial. Durante a investigação, pude
Em suma, a casa do emigrante é um bom pretexto para reforçar estas informações com documentos de correspon-
se pensar a fluidez da arquitetura popular num ajustamento dência incorporados no Arquivo Histórico Municipal e com
ao presente. Não estando integrada no conceito de arqui- narrativas partilhadas por oureenses.
tetura popular em toda a extensão, propõe-se como mais Os movimentos migratórios para França aumentam
uma expressão, não da arquitetura popular, mas das arqui- significativamente em 1960, como já foi mencionado. Sal-
teturas populares, perante a diversidade e a permeabilidade vador, um ex-emigrante, natural e atualmente residente em
que as revestem. Espite, expressa orgulhosamente a afirmação de Espite na
diáspora para França: “Agente fala com quase toda a gente
2. OS CAMPOS, A EMIGRAÇÃO, O RETORNO E A (RE) do país e toda a gente conhece Espite porque aquela zona
EMIGRAÇÃO: 1960 – 2012 de Champigny era toda povoada por Espite. Eram milhares
Em Portugal e especificamente em Ourém, a agricultura e milhares de pessoas naquelas barracas. Foram os de Es-
foi a principal fonte de subsistência de gerações sucessivas, pite que hastearam em maio de 68 a bandeira de Portugal
permanecendo como setor económico dominante durante em Champigny.”
a primeira metade do séc. XX. Era uma prática intuitiva, de Numa primeira fase, emigraram os homens para esca-
pequena escala que assentava num trabalho duro e numa parem à pobreza, à guerra colonial e ao conservadorismo
rotina anual. Não tinha uma estrutura laboral organizada, imposto no país. Assegurado o mínimo de estabilidade la-
pelo que dependia da cooperação familiar e de compadrio, boral e residencial, seguiram-lhes as mulheres. O censo de-
assegurando o sustento de famílias inteiras (Baptista 1996). mográfico de 1970 relativo a Ourém registava, pela primeira
Em meados do séc. XX, a industrialização instalava-se vez desde 1864, uma quebra demográfica acentuada (des-
no país e a emigração ganhava expressão, especialmente cida para 42.745 habitantes).1 Continuou a decrescer em
junto dos trabalhadores rurais. Intensificou-se em 1960, 1980 (41.376 habitantes)2 e em 1991 (40.185 habitantes).3
como sugerem as estatísticas demográficas nomeadamen- Muitos casais regressaram à aldeia de origem em 1980
te na região e no concelho. Em Ourém, os camponeses e em 1990, um fenómeno verificado noutros territórios
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do país num contexto favorável ao retorno (Poinard 1983, nas suas aldeias, que sonhavam vir a habitar. Para estes, o
Amaro 1985, Rocha-Trindade et all 1988). Investiram na sentido de pertença à aldeia tornava-se mais significativo do
criação de micro-empresas nos setores da transformação e que o sentido de pertença ao país, num sentido de identida-
da construção civil, com benefícios para a economia local, de muito localizado (Villanova 2006).
com reflexos designadamente no aumento da população A maioria dos proprietários entrevistados referiu não ter
em 2001, para 46.216 habitantes.4 recorrido a empréstimos para construir a casa, investindo
Nos anos recentes, o agravamento económico do ali as primeiras poupanças da emigração. Com essa op-
país refletiu-se na falência de empresas de construção em ção, além de atribuírem à casa na aldeia a prioridade dos
Ourém, uma das áreas motoras da economia local. Foi o seus investimentos, revelavam espírito de sacrifício e uma
mote para a retoma local da emigração, novamente com capacidade de poupança ancorada a um projeto de vida a
destino recorrente para França. O perfil destes emigrantes médio prazo, sob o lema «trabalhar no presente para des-
é composto por jovens assalariados sem formação acadé- cansar no futuro».
mica superior e por empresários da construção civil. Estes Relativamente às opções de construção destas casas,
enveredam especialmente pela emigração pendular, com foram vários os fatores que contribuíram, nomeadamente o
empreitadas que ajustam com empresas de construção contato com outras representações identitárias, a aspiração
portuguesas sedeadas em França, ou com emigrantes in- ao conforto e à projeção social, mas também a afirmação
vestidores em habitações próprias. de materiais e de técnicas industriais nacionais na constru-
ção, gerando logo à partida, uma condição favorável à ex-
3. A CONSTRUÇÃO NA ALDEIA DE ORIGEM: 1970-2012 pansão da contaminação de estilos, como adiante se verá.
A construção de casas em Espite e Urqueira de portu- Numa análise cruzada de entrevistas, projetos de arqui-
gueses emigrados em França ganhou expressão em mea- tetura e observação de edifícios, sobressaíram oscilações
dos de 1970, intensificando-se até 1990. O fenómeno é no fluxo de construção ao longo dos últimos 40 anos e foi
confirmado pelo número elevado de pedidos de licencia- possível identificar os tipos de habitação mais recorrentes
mento5 e pela observação de casas no terreno. A maioria em cada período. De um modo geral, são três as fases de
dos processos tinha início no verão, coincidindo com o pe- construção destas casas em Espite e Urqueira, seguida-
ríodo de férias dos requerentes em Portugal. Eram depois mente expostas com a necessária flexibilidade e consciên-
acompanhados por familiares, ou por projetistas locais, re- cia de variações.
munerados para o efeito.
Foi uma tendência comum a muitos terrenos do país, Primeira fase: Final de 1960 - primeira metade de 1970.
especialmente nas regiões mais a norte. Fernando Martins Os primeiros projetos em arquivo do Município remon-
(2004) associa este investimento às alterações políticas e tam a este período. Com a obrigatoriedade de licenciamen-
socioeconómicas otimistas em Portugal, em que os emi- to por esta altura, as plantas de arquitetura com memórias
grantes se sentiram motivados para construírem habitação descritivas sumárias tinham-se tornado entretanto sistemá-
5 Município de Ourém, Arquivo de Obras particulares. Foi realizada a análise de projectos de arquitectura entre 1960 e 2013, pelo método de amostragem. A
partir da segunda metade de 1970 regista-se um aumento progressivo de projetos de arquitetura de proprietários emigrantes em França.
Foram consultados 124 projetos de arquitetura com anotações aos seguintes aspetos: residência/profissão/idade do proprietário, identificação/residência/
formação do projetista; duração da obra; o orçamento estimado; tipologia e matérias aplicadas na construção; programa funcional e projeto de alterações.
Seguidamente, foram selecionados 32 casos paradigmáticos da “casa de emigrante” e submetidos a uma análise mais aprofundada. A seleção dos exemplos
incidiu principalmente nas freguesias de Espite e de Urqueira.
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ticas. Eram assinadas sobretudo por engenheiros técnicos. Segunda fase: Meados de 1970 - 1990.
As casas de emigrantes apresentavam orçamentos mé- Durante estes anos a construção de casas dos emigran-
dios de construção entre 300 e 400 mil escudos e mal se tes residentes em França foi particularmente intensa, regis-
distinguiam casas que eram erguidas, pela mesma ocasião, tando um grande aumento de pedidos de licenciamentos
pelos residentes locais. Estas, por sua vez, passavam por no Município. A euforia da construção neste período pode-
uma transformação que começara a tornar-se visível por vol- rá estar associada à proliferação do mercado imobiliário e
ta dos anos 50, num abandono progressivo dos modelos ao aumento da capacidade financeira dos emigrantes. Nes-
de casa associada ao pequeno e médio trabalhador rural se registo, o custo médio das moradias em geral aumentou
(agricultor, ou assalariado). A expansão dos materiais de consideravelmente, os modelos arquitetónicos tornaram-se
construção industrial, em substituição dos materiais e das mais complexos e os volumes maiores, numa valorização
técnicas artesanais localmente dominantes (adobe, taipa assumida dos espaços amplos.
e pedra calcária para as paredes estruturantes e tabique Como já foi de algum modo referido, o tema das op-
para as divisórias interiores), assim como a entrada de dese- ções arquitetónicas relativas a estas casas tem sido deta-
nhadores e engenheiros técnicos na conceção, que antes lhadamente tratado por vários investigadores (Raposo et
apenas se verificava em situações excecionais, geralmen- all 1995, César 1996, Gonçalves 1996, Castro 1998). Em
te aliadas a casos económica e socialmente privilegiados, descrições de habitações constantes nestes estudos, rea-
contribuíram para esta mudança. Estes fatores, de resto, lizados em vários territórios, especialmente nas regiões a
intervieram simultaneamente nas casas de residentes e de norte do Tejo, encontro afinidades com as que identifiquei
emigrantes, com reflexos comuns. no terreno em apreço, pelo que remeto esta descrição para
Estas novas habitações distinguiam-se das antigas ca- os referidos estudos.
sas dos trabalhadores rurais nomeadamente pelas paredes Não obstante, sublinho em jeito de síntese caraterísti-
em marmorite (numa expressão dos materiais industriais) cas como: a grande inclinação das águas da cobertura e
e, nalguns casos, pela integração de mirantes sugerindo o revestimento com telhas pretas, a amplitude das áreas, a
uma afinidade com ténue as moradias francesas, embora complexidade e a exuberância das formas e dos materiais,
também se registassem mirantes em algumas habitações as mansardas, os mirantes, as grades de ferro pintadas de
da vila local. preto, ou a paleta de cores vivas (usadas também em casas
Estava em marcha um processo de reconfiguração da de residentes).
imagem das arquiteturas locais, que tinha dominado as De acordo com a maioria dos relatos dos proprietários,
aldeias ao longo de gerações sucessivas. Esta transforma- as influências da arquitetura francesa intervieram na conce-
ção, de algum modo lenta ou pouco assumida, projetava ção do projeto através de uma das seguintes vias: revistas
um sinal de abandono em curso dos campos como forma francesas (o proprietário apresentava ao projetista a revista
de subsistência, em prol da emigração e do operariado fa- com a indicação de um modelo que lhe agradava); foto-
bril pelos residentes enquanto alternativas mais compensa- grafias de casas francesas (com uma imagem geralmente
doras. confinada ao exterior da habitação); visitas a exposições de
arquitetura em Paris: “trouxe a fotografia de uma maqueta
que vi numa exposição em Paris;”6 planos ou esboços con-
6 Salvador.
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cebidos por um desenhador residente em França; ou mes- Progressivamente, a autoconstrução deu lugar à ad-
mo, replicação de modelos de casas construídas na aldeia judicação da obra a empreiteiros locais. Muitos eram ex-
por outros emigrantes. -emigrantes, também com contato visual e experiência de
Todavia, a análise destes processos de negociação en- construção em França, que se tornavam úteis na execução
tre as influências arquitetónicas importadas e as opções de pormenores arquitectónicos como as mansardas e al-
locais exigia-me uma verificação no local. Em 2011, numa guns vãos maiores. Tinham um papel importante na esco-
curta estadia de campo em França, na região do Marne, lha dos materiais de construção e dos revestimentos. Para
pude confirmar semelhanças entre casas de portugueses pouparem o proprietário a deslocações ao país e para não
ali residentes e as casas que observara em Espite e em Ur- comprometerem a obra, assumiam frequentemente a esco-
queira. Com o apoio de operários da construção civil foi- lha dos materiais, adotando como critérios a disponibilida-
-me possível identificar várias moradias erguidas em 1980 de dos materiais na casa de comércio mais próxima e as
e 1990, que se esbatem na imagem destes aglomerados tendências de venda. Tinham, por isso, um peso importan-
urbanos. te nas decisões e no resultado da obra. Em entrevista, um
A mansarda ou o mirante são peças recorrentes, numa empreiteiro dizia que era fácil realizar alterações ao projeto
solução de rentabilização das áreas de construção através durante a construção, até porque a fiscalização municipal
do aproveitamento do sótão. A cobertura varia entre a telha era reduzida.
preta ou de cerâmica vermelha e os ladrilhos de ardósia. Por maior que fosse a afinação entre este, o projetista e
Estas e as habitações implantadas nas aldeias de origem o construtor, nem sempre o resultado correspondia ao que
dos emigrantes divergem principalmente nos materiais e o emigrante tinha imaginado. Esta falha devia-se em parte
nos revestimentos das paredes exteriores e na tendência ao facto de não poder acompanhar a obra. Em entrevista,
para um aumento dos volumes em Portugal. Com efeito, vários proprietários lamentaram os desvios relativamente
durante este tempo de construção galopante, o Plano Dire- aos modelos que tinham idealizado numa apropriação de
tor Municipal não tinha sido ainda implementado, facilitan- imagens das arquiteturas francesas. Um dos fatores des-
do as escolhas dos terrenos e as dimensões das áreas de se desvio pode estar associado ao tal recurso de materiais
construção. adquiridos no mercado local, ou nacional, em virtude do
Até meados de 1980, prevalecia a autoconstrução, que custo dispendioso da sua importação. Paralelamente, so-
ocupava os meses de férias grandes dos proprietários. bretudo a partir de 1980 começava a vingar a noção de que
Uma das principais atividades económicas dos emigran- a aquisição de materiais em Portugal era vantajosa perante
tes oureenses em França era a construção civil, o que lhes a emergência de novidades e diversidade de oferta no mer-
conferia experiência e domínio de pormenores que renta- cado nacional.
bilizavam em casa própria (Raposo et all 1995). A casa era Verifica-se portanto, uma tendência para a combinação
erguida faseadamente, chegando a demorar anos. Num ve- entre o estilo importado e os materiais locais, reforçando a
rão era colocada a «placa», no verão seguinte era rebocada imagem exuberante e dissonante que estes modelos proje-
e «fechada» e assim sucessivamente até aos acabamentos. tam, com impacto na alteração da paisagem local. A impor-
Beneficiavam da colaboração dos pais, sogros e irmãos, tação de influências das arquiteturas francesas da área de
numa espécie de cooperação familiar herdada do modelo residências destes portugueses, a emergência de um novo
adotado pelas gerações anteriores com relação à gestão paradigma de construção rural perfilado com o mercado
dos campos e do agregado doméstico, em que toda a fa- industrial e com o desejo de progresso, assim como a inter-
mília participava. ferência de técnicos projetistas (na mistura, por vezes alea-
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tória, entre traços representativos de arquiteturas residentes As casas dos emigrantes suscitaram reações contra-
com traços de arquiteturas comuns em França), promove- ditórias por parte de muitos residentes nas freguesias em
ram expansão destes modelos híbridos contaminados com estudo. Uma realidade também identificada noutras locali-
traços de outro espaço geográfico e cultural: são de dois dades a propósito deste tipo de construção. Na maior parte
lados e de lado nenhum. dos casos, os residentes que conviviam com estas «novas»
As habitações conhecidas como casas de emigrantes expressões emitiam observações negativas como o desa-
ajudaram a marcar um novo tempo para as aldeias, numa justamento à paisagem, ou às casas «tradicionais portu-
aproximação crescente aos modelos sociais e culturais vi- guesas». Dirigiam-se-lhes de forma pejorativa: “casas com
gentes em meio urbano. Em certa medida, marcaram tam- muitas janelas e telhados para a neve”.
bém o fim do tempo das casas do trabalhador agrícola, às Foram entrevistados alguns técnicos municipais que du-
quais o emigrante não queria voltar a habitar porque o re- rante este período desempenhavam funções na avaliação
metiam para aspetos do passado, e a imagem da miséria, dos projetos, os quais, sem exceção, referiram as posições
de que se pretendiam distanciar. de contrariedade com que emitiam os pareceres relativa-
A transição da casa camponesa para a casa do emi- mente a estas propostas de casas. Desidério Fernandes,
grante português expressa ainda a mudança de um tempo dirigente do Município de Ourém na década de 1990, com
onde prevalecia um modelo de casa estabilizado entre pro- responsabilidade nas obras particulares, verbaliza estas po-
prietário e construtor, com a conceção assente num saber sições: “Achávamos alguns projectos descabidos e até co-
difundido oral e geracionalmente, para um tempo em que meçamos por dar informação negativa. Mas não tínhamos
passava a assentar na inovação pela via da experimentação base legal nenhuma. Tentámos mentalizá-los. Mas depois
através de novos atores envolvidos no processo (engenhei- percebemos que a influência era muita, não havia nada a
ros técnicos e desenhadores). fazer para os demover.” Mas este município, tal como ou-
Não obstante estes emigrantes desejarem afirmar-se tros (Gonçalves 1996: 216), apesar de não instituir regula-
socialmente na aldeia onde cresceram, rompendo com o mentos condicionadores de modelos, ou de caraterísticas
passado, as suas casas não se reviam na linguagem senho- construtivas que se desviassem daquelas comummente
rial, tal como eles. Apesar de conterem alguns elementos adotadas, implementou a obrigatoriedade da aprovação da
na tentativa de conferirem uma dimensão social mais dis- cor das fachadas a partir de meados de 1980. Quando o
tinta ao proprietário (a volumetria, os espaços amplos, os branco não era a opção, era exigida a aprovação pelos aos
mirantes, ou as balaustradas), os materiais «nobres» como serviços técnicos municipais mediante a apresentação de
a pedra, eram substituídos pelo cimento e por outras maté- uma amostra de cor.
rias industriais. Neste território, a um discurso de contestação manifes-
Paralelamente, persistiram algumas manifestações ru- tado por técnicos e residentes locais, contrapunha-se um
rais, numa espécie de compromisso com a terra agrícola. outro veiculado por alguns habitantes, para os quais estas
Era o caso da construção de duas cozinhas, uma das quais casas eram sinais visíveis de progresso para a aldeia ao
conhecida como cozinha agrícola, cuja designação consta- projetarem uma imagem de sucesso que lhes agradava.
va nos projetos de arquitetura. Era a cozinha mais utilizada Manifestavam o gosto por estas arquiteturas, não tanto ver-
durante o período de férias e mesmo após o regresso defi- balmente, mas sobretudo pela replicação total ou parcial de
nitivo, ficando posicionada na área mais reservada da casa, modelos instalados pelos emigrantes.
geralmente a tardoz, com acesso ao terreno ocupado com Estamos pois, perante uma dualidade de posicionamen-
a horta. tos à escala local, influenciada pelos contextos profissionais
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e intelectuais dos detratores versus apreciadores. A uma ses em estudo, manifestados designadamente na arquitetu-
tendência depreciativa por parte de indivíduos mais letra- ra local, onde se inscrevem estas casas.
dos e com emprego, sobretudo em áreas de serviços, con- Foi um tempo de limbo, em que os habitantes acaba-
trapunha-se uma tendência valorativa por indivíduos com vam de deixar os campos como meio de subsistência, mas
menores habilitações académicas e em especial com pro- sem sedimentarem novas esferas de atividade; em que as
fissões ligadas ao ramo da construção (Gonçalves 1996: antigas arquiteturas rurais eram postas de parte, mas em
214). Mas sublinhe-se o caráter de tendência, não linear, que estas novas arquiteturas também não colhiam consen-
desta dualidade. Paralelamente, na opinião pesava o fator so. Foi parte visível do processo de mudança cultural en-
de proximidade familiar com os proprietários das referidas tre o rural e o pós-rural, pautado por experimentação, com
casas. Um irmão por exemplo, resguardava-se mais de te- poucas bases de programação aplicada às construções de
cer comentários depreciativos em relação a estas casas que casas nestes terrenos, num tempo em que as participações
um vizinho que não tivesse familiares nessas condições, o dos arquitetos nestas aldeias eram limitadas a projetos de
que era raro pois a maioria tinha familiares emigrantes e habitações erguidas por indivíduos económica, social e in-
com casa erguida na aldeia. telectualmente privilegiados, de resto excecionais (confor-
Os residentes projetavam nestas casas as representa- me processos de licenciamento em Arquivo Municipal de
ções que construíam dos emigrantes, variando em função Ourém).
de fatores como a ligação afetiva e a identificação com a fi- Num estudo realizado por Dimitris Dalakoglou (2010)
losofia e o percurso de vida destes indivíduos. À construção sobre a construção de casas na Albânia por albaneses
representativa destas como o espelho de uma atitude altiva, emigrados na Grécia, foram identificados aspetos comuns
arrogante dos emigrantes e da invasão e do desrespeito com as representações sociais e culturais dos emigrantes
para com os valores de equilíbrio da aldeia, contrapunha-se portugueses em França, não obstante as especificidades
outra: a da materialização de uma atitude de coragem, de sociopolíticas de cada realidade. São seguidamente apre-
sucesso e com contributo para o progresso local. sentados alguns resultados de representações culturais
Mas não foram os residentes locais, os que conviviam fi- com analogias entre as duas realidades, através de uma
sicamente com estas construções, os protagonistas na sua leitura comparativa que assenta num exercício de análise
transformação em assunto. A construção da sua imagem essencialmente empírico.
negativa, um pouco por todo o país, partiu essencialmente - Em ambos os casos o país de origem e o país de aco-
de cosmopolitas e intelectuais de várias áreas, desde aca- lhimento dos emigrantes estão relativamente próximos,
démicos, jornalistas, arquitetos, técnicos, ou apologistas de facilitando-lhes a realização relativamente frequente de des-
causas pela salvaguarda dos patrimónios culturais (Ribeiro locações.
1987, Saramago 1998). As críticas aumentavam de tom, - Tal como os portugueses, os albaneses investiram na
com espaço em artigos de opinião e, por isso passaram construção de casa no país natal, perto da família, ainda
também a merecer a atenção por parte de investigadores, que nem sempre confiantes no regresso definitivo. Esta de-
não apenas enquanto objeto material, mas também en- cisão ajudou-os a afirmarem a pertença ao lugar de origem,
quanto objeto de representações pelos residentes e pelos legitimando-a materialmente. Manifestaram ainda por esta
críticos. via a necessidade de garantia da segurança da velhice e o
O período entre 1970 e 1990 pode ser entendido como desejo de continuarem ligados à família que não emigrou. A
um tempo de negociação de transformações arquitetóni- manutenção dos laços familiares e a continuidade geracio-
cas, económicas, sociais e culturais nos terrenos portugue- nal dos vínculos com a aldeia de origem foi uma das prin-
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cipais razões referidas para a construção da casa na aldeia com a sensação permanente de obra inacabada.
de origem. Encerra aqui esta leitura comparativa entre os emigran-
- É identificada a tendência para os emigrantes albane- tes portugueses e os emigrantes albaneses nas relações
ses e os emigrantes oureenses pagarem a construção com com as suas casas nos países de origem, para a retoma de
economias de poupança. Por um lado, não estavam dis- uma análise circunscrita às freguesias deste ensaio.
postos a pôr em causa a estabilidade financeira que tanto A partir de meados de 1990, estes oureenses emigra-
desejaram; por outro lado, através da construção de casa dos na região do Marne começavam a manifestar sinais de
própria, sem recurso a crédito, cumpriam uma importante mudança de atitude em relação à construção das casas
etapa do enriquecimento a que se comprometeram consi- na aldeia de origem desde 1970. É uma etapa intermédia,
go próprios. sobretudo no que toca à tipologia de construção, que de
A principal atividade económica dos dois grupos de algum modo poderia dar continuidade à fase anterior, ou in-
proprietários era a construção, que lhes conferiu saber em- tegrar a fase seguinte. Este curto período, sensivelmente si-
pírico essencial para intervirem mais no processo constru- tuado na segunda metade de 1990, teve um papel de tran-
tivo. Em ambos os terrenos os proprietários referem-se ao sição entre duas condutas representadas pelos emigrantes:
processo construtivo da casas utilizando sobretudo o verbo Uma conduta pautada pela afirmação de sucesso perante a
«fiz» e não o verbo «construí». Dimitris Dalakoglou atribui o comunidade de origem, expresso na grandeza e exuberân-
discurso ao facto de estes emigrantes despirem o papel de cia da casa; e uma conduta pautada pela estratégia de (re)
construtores (enquanto função profissional) para assumi- integração na aldeia, como adiante se refere.
rem um papel mais imaterial e emotivo e menos material e
operativo. Construir é para os outros, num ato estritamente Terceira fase: Final de 1990 - 2012.
profissional e impessoal. Fazer pressupõe um projeto de A diminuição do investimento em casa na aldeia de
vida pessoal, o que se aplica também ao caso de estudo origem e a alteração de opções arquitetónicas configuram
em análise. uma terceira etapa no panorama local das casas dos emi-
Nos dois casos a família tinha um papel ativo no acom- grantes portugueses em França.
panhamento da obra, sendo-lhes delegado num voto de Na linha do que já foi referido com relação aos habi-
confiança. Justifico-o como a estratégia de reforço do vín- tantes locais, muitos dos emigrantes que tinham erguido
culo afetivo e do compromisso com a família. Este envolvi- casa com caraterísticas ostensivas durante os anos 70, 80
mento familiar na construção e, mais tarde na manutenção e inícios de 90, manifestam hoje arrependimento. Durante
da casa, viria a contribuir para alimentar os laços de proxi- o trabalho de campo foram registados comentários como:
midade, já acima salientados. “Uma casa muito grande;” 7 “está fechada durante a maior
- Durante as férias e em curtas permanências no país parte do ano e estraga-se. Os filhos não vão dar valor à casa
de origem, os atores dos dois países ocupavam e alguns e vão perder a ligação à terra. Foram outros tempos… nem
ainda ocupam o tempo com aquisições de equipamentos pensámos muito quando decidimos construir;”8 “fiz-lhe alte-
e acessórios para a casa e com reparações e pequenas al- rações porque havia coisas com pouco jeito.”9
terações, num espírito de bricoleur, em esforço contínuo e
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Estes comentários projetam uma reconfiguração dos sinvestimento, entre os quais a preferência pela aquisição
seus posicionamentos, que passam designadamente: de casa no país de acolhimento em detrimento de uma
- Pela mudança da imagem ideal que tinham de uma casa na aldeia, com futuro de ocupação incerto; a entrada
casa para si e para as suas famílias (uma casa grande, com em vigor do Plano Diretor Municipal de Ourém em 2001,
uma importação assumida de estilo como negação do es- com efeitos condicionadores na expansão imobiliária; ou
tilo residente); mesmo o aumento significativo dos custos de construção.
- Pela reavaliação da forma e dos objetivos de vida. Por Ao ritmo deste fenómeno de abrandamento, decorria
um lado, expressam o mau investimento num sonho que um esbatimento das reações locais de censura e de elogio
em tantos casos acabaria por não se concretizar (muitos em relação às habitações erguidas sobretudo entre 1970 e
emigrantes nunca regressaram definitivamente). Por ou- 1990. Ambas as posições por parte dos residentes, antes
tro lado, valorizam uma perspetiva de fruição do presente mais extremadas, aproximavam-se de um registo oscilante
através da melhoria da qualidade de vida em França, não entre alguma indiferença e resignação em relação a estas
obstante assumirem também a incapacidade de pouparem casas, confluindo progressivamente para a sua assimilação
como conseguiam no passado. Esta nova atitude reflete a como elementos da paisagem. Atualmente muitos residen-
desaceleração do investimento, antes centrado na poupan- tes ouvidos, entendem que estas começam a fazer parte de
ça em prol de uma vida melhor no futuro para os próprios um tempo do passado e atribuem-lhe a categoria de mar-
e para os descendentes. É uma mudança de paradigma da cos de memória: “agora já não fazem casas dessas. Isso
relação do emigrante português com a poupança. Conti- foi mais há 30 e há 20 anos… já nos habituámos a elas.”12
nuam a manter uma vida regrada, mas não estão dispostos Voltando à relação dos emigrantes com a casa na aldeia,
a sacrificar-se e à família por uma casa na aldeia, sem saber os que contrariando a tendência «fizeram» recentemente
sequer se algum dia a irão habitar: “Eu já não penso que te- casa na aldeia, têm idades médias entre 40 e 60 anos e
nho que mandar dinheiro para Portugal, que tenho que ter raramente assumem um regresso definitivo (Almeida 2008).
uma “casa-museu” em Portugal. Eu vivo em França, o meu Os oureenses entrevistados justificam a construção com a
conforto está lá e aqui tenho o indispensável.”10 garantia de privacidade familiar durante as curtas perma-
- E pela crítica à perda de «marcos identitários na al- nências no país (assim não ficam sujeitos aos ritmos e im-
deia», como as casas de arquitectura tradicional na aldeia postos pelos familiares) e com a expetativa de investirem
de origem. Esta posição traz implícita a convicção do pre- num espaço de descanso onde pretendem passar períodos
juízo que casas como as suas provocaram na aldeia que mais longos após a reforma.
hoje desejam ver reabilitada, ao encontro da visão urbana Constroem ainda numa apropriação de aspetos de uma
monumentalizadora da paisagem rural: “Se fosse hoje tinha cultura rural em vias de desaparecimento e para que os fi-
recuperado a casa dos meus pais.”11 lhos não se desvinculem das suas raízes. Estes luso-des-
Em meados de 1990 o número de projetos de casas de cendentes, por sua vez, encaram a casa como uma espécie
emigrantes desacelerou e de 2000 em diante quase perdeu de destino exótico de férias, relevando algum afastamento
expressão. no sentido de pertença ao lugar.
Foram vários os fatores que contribuíram para este de- As opções de construção tornaram-se mais sóbrias. No
10 Maria de Fátima Marques Vieira, natural de Espite, 55 anos, emigrante no Vale do Mane.
11 Manuel Araújo.
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interior, verifica-se uma ligeira redução de áreas, designa- veram-lhes características exteriores que remetiam para o
damente do «salão», ou «sala de jantar» e de algumas afi- estereótipo da casa do emigrante dos anos 70 e 80, como
nações ao programa funcional. Em jeito de parênteses, as mansardas, azulejos, telhado preto, ou portadas de ma-
opções relacionadas com a redução das áreas poderão de deira; substituíram as cores fortes por cores suaves (beije,
algum modo estar associadas à mudança da dimensão real branco, salmão) e introduziram várias águas e alpendres
e idealizada da ocupação. Por um lado, a família nuclear re- apoiando-os em colunas de calcário.
duziu numericamente (número inferior de filhos). Por outro As novas condutas sugerem uma estratégia de (re)in-
lado, quando vêm de férias, estes portugueses em diáspora tegração do emigrante na aldeia de origem pela via da re-
vivem a iminência de um afastamento relativo aos familiares conciliação da casa com a paisagem, adotando o modelo
residentes, refletido na diminuição de encontros de convívio da casa socialmente aceite, sem descurar o papel influente
em suas casas, o que, em certa medida deixa de justificar dos projetistas e as tendências do mercado imobiliário.
«áreas sociais» tão grandes. Após um distanciamento essencial para o apaziguar de
Mas eles não pretendem desvincular-se dos familiares, memórias de associação à pobreza e outras imagens ne-
dos vizinhos e da aldeia, ou não construíam na aldeia, o que gativas, encaram agora o projeto com estas caraterísticas
também contribui para a aposta num projeto conciliador, como uma reaproximação aos campos, num movimento de
que não se demarque das casas dos residentes. Alinha- valorização da natureza, da «reconciliação» com a terra e
dos com estes ideais, sem desvalorizar a necessidade de do acesso a uma alimentação saudável. Estes portugueses
ajustamento às tendências do mercado, aderem a projetos emigrantes desejam participar na reconstrução da aldeia
idênticos aos dos residentes e contratam os mesmos inter- idílica.
venientes, desde a conceção á construção. Afinal, a construção da imagem dos campos como es-
As cores suaves foram reassumidas, registando-se ain- paços de qualidade de vida e de redutos de identidade cul-
da a tendência para o redimensionamento dos volumes, tural passa também pela arquitetura, e eles arrogam a si um
proporcionalmente à redução das áreas funcionais, como papel proativo na reposição de referenciais dessa mesma
já foi mencionado. arquitetura «tradicional».
Uma alteração significativa nas imagens destas casas
foi o recurso a elementos construtivos conotados com íco- 4. CASAS DE PORTUGUESES NO MARNE: CASOS DE
nes da arquitetura tradicional em Portugal, numa lógica de CONSTRUÇÃO RECENTE
reabilitação da mesma. Aos projetistas locais solicitam bei- Os bairros visitados na periferia de Paris (Champigny,
ral à portuguesa, cornijas, telheiros com colunas de pedra, Villiers-sur-Marne, St. Maur, Chennevières, Bonneuil e Or-
ícones da reabilitação desejada da imagem padronizada da messon) integram moradias, entre as quais casas de portu-
arquitetura tradicional do país. Nas memórias descritivas gueses. Também esta identificação beneficiou do apoio de
dos projetos estes termos passaram a figurar e no terreno Sérgio, operário da construção civil que participou inclusi-
as aldeias passaram a acolher cada vez mais casas com ve, na construção de algumas.
varanda e alpendre. Confirma-se a tendência para estes emigrantes adqui-
Por sua vez, proprietários entretanto regressados e ou- rirem casa em França: “É preferível comprar que arrendar.
tros ainda emigrantes, fizeram alterações às habitações, Quando se arrenda, o dinheiro vai todo e ficamos sem
aproximando-as das locais erguidas recentemente. Remo- nada.”13 Dizem ainda preferir moradia a apartamento para
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terem uma pequena horta. Reiteram desse modo a relação colhas comparativamente à que tinha nas casas erguidas
de continuidade com a terra, agora não como garante de na aldeia em períodos anteriores. Pode inclusive, acompa-
subsistência como nas gerações anteriores de trabalhado- nhar presencialmente a obra.
res rurais, mas como um complemento á economia domés- Assiste-se ainda ao aumento da exportação de materiais
tica e como lazer. de construção para França, com a contratação de emprei-
Nalguns casos compram casas antigas que recuperam tadas para a construção das habitações a residentes de
ou reconstroem aos sábados com a participação de familia- Ourém (rebocos, azulejo e caixilharia). É neste regime de
res ou vizinhos portugueses. Reconhecem no entanto, que prestação que intervêm os emigrantes pendulares, alguns
esta prática de solidariedade foi mais sólida no passado: dos quais, empresários da construção civil.
“Agora cada um dedica-se à família e quase não nos vemos. Os emigrantes compram materiais de construção no
Não é como antes.”14 mercado português durante o período de férias, ajustando
Quando adjudicam a construção, os processos são a sua deslocação com empresas transportadoras locais:
mais rápidos. As paredes são erguidas com blocos de be- “Agora o emigrante que saiu daqui vai mandar um camião
tão e revestidas com ravalement: “É usado em quase tudo… com azulejo, a caixilharia, cola para as juntas e madeiras
aplica-se primeiro uma resina para agarrar e depois o rava- para uma casa que está a fazer em França.”16 Noutra oca-
lement. É uma espécie de tapa misérias... nem é preciso sião, o empresário de uma transportadora de camionagem
rebocar.”15 confirmava o fluxo significativo de material de construção
Sobre a tipologia das habitações, sobressaem as cober- que transporta para França.
turas pouco inclinadas e telha cerâmica, persianas, moldu- Os atores (proprietários, operários da construção civil,
ras em cantaria de pedra (em alguns casos originária de projetistas e fornecedores de materiais) atribuem a tendên-
Portugal, com destaque para as molduras em calcário). cia da aquisição de materiais e mão-de-obra em Portugal
Estas casas partilham algumas características com a ge- a razões como: o preço acessível (mesmo com o custo do
neralidade casas erguidas na última década em Espite e transporte); a diversidade e a qualidade da oferta dos ma-
Urqueira, de emigrantes e de residentes. Mas também con- teriais portugueses; os preços acessíveis de mão-de-obra
têm traços comuns a outras casas nestes bairros franceses, portuguesa; a qualidade do trabalho executado por estes
revelando uma vez mais um fenómeno de contaminação. operários comparativamente aos de operários de outras
Durante a investigação foram identificados alguns casos nacionalidades (turcos e italianos); e a disponibilidade de
de arquitetos residentes em Ourém, que trabalham em par- engenheiros e arquitetos portugueses para projetarem,
ceria com técnicos luso-descendentes residentes em Fran- confrontados com a redução de trabalho. Finalmente, conti-
ça na conceção de projetos para esse território. Após uma nua a pesar o fator da solidariedade, sobretudo em relação
primeira viagem para conhecerem o espaço de implanta- a vizinhos da aldeia ou da origem: “Sempre ajudamos os
ção do projeto, desenvolvem-no e recorrem à internet para de cá.”
discutirem os processos de decisão com o proprietário. Um Após o povoamento das aldeias em estudo e de tantas
método que permite a este uma maior participação nas es- outras com expressões da arquitetura francesa, é a vez de
15 Sérgio Santos.
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alguns bairros franceses habitados por portugueses «im- Para Alejandro Portes (2004) esta é uma das formas de
portarem» expressões arquitetónicas de Portugal. Estes transnacionalismo com maior aplicação no contexto atual.
emigrantes investem cada vez menos no sonho de um re- Ainda com relação á análise deste fenómeno como
gresso definitivo a Portugal e substituem-no pela constru- uma expressão de transnacionalismo, das várias permissas
ção de casa em França, adaptando-o ao país que habitam enunciadas por Linda Basch e co-autoras (1994) sublinho
realmente. Transferem para lá a imagem de um país de que duas num ajustamento ao contexto: a de que é um proces-
já não se envergonham, que deu o salto no progresso, mas so em que os emigrantes criam esferas sociais geradoras
que hoje está a «saldos» e com futuro incerto. de cruzamentos de fronteiras nacionais através dos seus
Estas casas de emigrantes portugueses, seja na aldeia quotidianos, das relações sociais, económicas e políticas;
de origem, seja no bairro de destino, são manifestações visí- e a de que o termo transnacional intervém para assinalar a
veis do fenómeno de transnacionalismo, que incide em ati- fluidez com a qual as ideias, os objetos, o capital e as pes-
vidades transfronteiriças de base privada, onde se incluem soas se movem entre fronteiras, como se verifica no estudo
os migrantes, nomeadamente através da importação e/ou de caso.
exportação de bens de/ou para os seus países de origem.
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