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EDITORA UNISINOS
2012
APRESENTAÇÃO
Esta obra tem como objetivo servir de apoio a alunos que desenvolverão estudos
à distância na disciplina de Ética e Negócios.
A UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), como universidade
associada e alinhada à AUSJAL (Associação das Universidades Jesuítas da América
Latina), assume como uma de suas prioridades acadêmicas a Formação Integral de seus
estudantes, em relação à qual está aliada a proposta de Formação Humanística que
propõe, atravessando todos os cursos e compondo alianças com as respectivas áreas,
o estudo e a reflexão sistemática a partir de três eixos temáticos:
INTRODUÇÃO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Fala-se muito em ética atualmente. Afirma-se que certas pessoas não têm moral para
darem conselhos ou lições de moral. Que falta caráter para muitos em relação a assumirem
posturas responsáveis e não sucumbirem à inveja e comportamentos mesquinhos em
relação ao modo de tratar as pessoas. Estamos a todo momento presenciando a abertura de
comissões de ética para desenvolver julgamentos e cobranças morais. A ética está em alta
ou é a falta de ética que faz com que seja proclamada como necessidade da hora? Penso
que o mais importante não é tentar resolver esse paradoxo, mas aproveitar o momento para
avançar no entendimento em relação ao que é ético e em relação às boas práticas. Nessa
perspectiva, neste primeiro capítulo, busco questionar certas compreensões limitadas em
relação aos conceitos de ética e moral, tentando esclarecer o que nos faz seres éticos
capazes de, na prática, desenvolver boas ações. Com isso, também quero demonstrar como
estamos, não raras vezes, presos a morais (moralismos), e que nos falta um distanciamento
– uma visão plural e aberta – e uma consistência teórica ampliada e qualificada para poder
avaliar melhor os comportamentos e pensar alternativas de ação.
O que nos faz seres morais? Por que dar importância à reflexão ética em relação
ao desenvolvimento pessoal e social? O que faz com que pessoas e sociedades
avancem em suas práticas morais na direção de uma ética na qual se afirma a dignidade
da vida e das pessoas? Estas questões dão corpo à ética e ao seu estudo. A reflexão
crítica sobre valores pessoais e sociais e sua contribuição para um projeto de vida com
sentido é o que anima a reflexão.
Percebemos o quanto, nos tempos atuais, relações superficiais e descartáveis
estão presentes nas relações entre os indivíduos, enfraquecendo o comprometimento e
a aprendizagem mútua. Na sociedade capitalista em que o mercado é endeusado, onde
tudo se transforma em mercadoria, as relações entram como mais um produto de
consumo. Compra-se um pacote de relação que, se não agrada ao consumidor, é
trocado ou jogado fora.1 O outro é aquele que mais se identifica com o modelo de
minha referência. Como todos nós somos diferentes, logo nos frustramos por não
encontrarmos nossos idênticos (nossa cara metade, dito popular que deve ser melhor
pensado). M as resolvemos temporariamente o problema indo para outra (trocando de
mercadoria). Ocorre, assim, o enfraquecimento da responsabilidade e do
comprometimento com a construção de um projeto com o outro.
Paradoxalmente, atualmente também se valoriza o fazer ético e o
desenvolvimento de relações de confiança, do comprometimento e da responsabilidade
como estratégia para salvar os negócios, salvar as relações, salvar a educação e ter
sucesso. Vivemos um momento de transição em que os indivíduos querem se
convencer da importância de fazer ética mais do que seguir padrões morais impostos.
Promovemos a desconstrução moral, a crítica às morais tradicionais e convencionais.
Abandonamos antigos padrões e nos dizemos livres para viver bem. Estamos num
momento pós-moralista, como destaca Gilles Lipovetsky. 2 Queremos viver bem, ter
uma vida bela, porém, estamos um pouco perdidos. Não sabendo como, muitos vão
aos mercados e lojas em busca de satisfação e prazer. Buscamos receitas em livros de
pensamento positivo, acreditando que eles podem conter a resposta e até receitar o
caminho. Desejamos trabalhar menos por obrigação e mais no que gostamos.
Desenvolvem-se e multiplicam-se práticas de lazer (o mercado de entretenimento está
em alta), porém, muitas vezes de forma superficial e compensatória. É um sintoma
moral: a vida é para ser bem vivida. M as a reflexão crítica sobre o que faz bem, como
saber viver, que prazer o ser humano pode experimentar numa relação positiva
consigo, com o outro e com o planeta, ainda está para ser mais bem desenvolvida.
Ainda compramos muitos pacotes prontos de lazer e de prazer. Acreditávamos que
havia receita para isso, que o progresso tecnocientífico e econômico nos traria e
apresentaria o final feliz. Está no ar este desejo pelo bem viver. Por que não apostar
que esta é a hora da ética, de pensar e elaborar morais ascendentes e que qualifiquem a
vida? M as como afirmar a nossa consistência ética?
Proponho, primeiramente, uma reflexão (interiorizada) sobre os quatro
constituintes básicos apresentados por M arilena Chauí3 para que nos tornemos
sujeitos morais, ou seja, atores éticos;lembrando que sujeito moral é aquele que
consegue relacionar-se consciente, reflexiva e criativamente com sua moral.
a. Consciência de si e dos outros – a capacidade de ser autor de si mesmo
na relação com o outro, que é reconhecido como sujeito recíproco de
aprendizagem. Ser criativo a partir do entendimento (processual) de si
mesmo e do mundo e, consequentemente, desenvolver a capacidade de
pensar e exercer uma intervenção autônoma no mundo.
b. Liberdade – não reduzir-se nem às suas representações e inclinações,
nem a forças exteriores; ampliar seu mundo conceitual e sua linguagem
para ter poder e ser capaz de intervir criativamente no tempo e no
espaço.
c. Vontade – interiorizar a força de vontade para o bem. A boa vontade é
a força que faz com que seja efetivado na prática o desejo pelo bem.
Vontade aqui não se confunde com boas intenções, mas com uma
inteligência espiritual que vê na busca de um mundo melhor o princípio
que anima o comportamento humano.
d. Responsabilidade – assumir o que se faz na medida em que se é autor
da ação. O conceito de responsabilidade não pode identificar-se com a
obediência cega a regras externas, mas com a qualificação da própria
ação. Aliás, a responsabilidade para com as normas se dá na medida em
que refletimos e nos convencemos interiormente do valor das mesmas.
A autora, em um ponto de seu escrito, afirma que ser responsável é reconhecer-
se como autor da ação. M uito já se falou sobre o quanto as pessoas não se
comprometem com aquilo que parece que é pré-determinado a se fazer, sem que se
entenda o sentido que pode fazer em suas vidas. Por exemplo: uma disciplina de Ética
em que os alunos não percebem o sentido e o valor que pode ser agregado dificilmente
compromete, logo, não nos tornamos responsáveis em relação à mesma.
O questionamento é o primeiro passo para desenvolver o saber-fazer ética.
Questionamentos sobre o que nos faz assim e até que ponto o que fazemos nos
potencializa e aos outros. Nosso modo de viver promove a vida em nós e nos outros?
Há pessoas que muito rapidamente se dizem moralmente esclarecidas e capazes de
fazer ética. Há de se ter cuidado com estes senhores da lei. A ética deve ser leve na
medida em que ela nos desafia a irmos além de nós mesmos. A moral pesada nos
enquadra, nos fixa a certos padrões, e a pior das morais é aquela em que nos fixamos
em nossos juízos restritos. Diálogo e convivência tornam-se difíceis diante desse tipo
de indivíduo. Aqui importa destacar que indivíduos leves não são superficiais (como
se não tencionassem os valores), mas pelo contrário, são consistentes; não porque
impõem uma verdade pela retórica clássica da argumentação (abstracionismo), mas
porque testemunham sua potência no diálogo com o outro que passa a ser
radicalmente digno em seu aprender. Sua dignidade é diretamente proporcional à
maneira aprendiz com que se colocam. M esmo que sejam pessoas que trazem consigo
mais conceitos, linguagens e experimentações do que o outro, não se apresentam (e
representam) para ensinar e dar receitas, e sim para apresentar, testemunhar e
aprender sobre como estes conceitos e linguagens podem ser aprendidas, atualizadas,
(re)contextualizadas e experimentadas pelo outro e por ele mesmo no processo de
relação.
As éticas idealistas tiveram seu tempo. Futuristas e coladas em realidades
abstratas perfeitas, estas perspectivas salvacionistas não convencem muitas pessoas e
o mundo real e vivido as ultrapassa. Atualmente, o que pode convencer a maioria das
pessoas a assumirem o saber-fazer ético são as possibilidades de convivência radical
da liberdade cooperativa em processo continuamente retomado. Certas tradições
morais, historicamente, fizeram com que as pessoas se comprometessem com um
projeto: o coletivismo dos ditos primitivos fazia com que qualquer membro fosse
responsável pelo projeto da tribo; a pólis grega, especialmente em Atenas, exigia
comprometimento diante da arte de fazer política em favor da cidade; a tradição
religiosa comprometia perante Deus e seus representantes; as nações modernas
desenvolveram constituições republicanas que, acreditava-se, iriam dar
sustentabilidade ao progresso social pela justiça, logo, respeitavam-se as leis em favor
do bem social que elas representavam.
Todas estas tradições morais estão fragilizadas diante da sociedade de indivíduos,
cada vez mais interessados em seu bem viver pessoal (falo nisso como característica
de nossa época e não como algo negativo em si mesmo). Diante disso, penso que o
maior desafio moral atual é convencer-se, e às pessoas, de que fazer ética vale a pena,
pois avaliar como a vida pode ser melhor vivida a partir do comprometimento com a
dignificação das relações pode fazer bem para a saúde pessoal. Proponho subverter o
significado batido de individualismo para ressignificá-lo como sendo a maneira como a
pessoa produz a si mesma no encontro com as coisas do mundo, em especial as outras
pessoas. Indivíduo não como uma categoria restrita, atomizada, mas como autor de si
mesmo, na relação consigo mesmo e com os outros.
Todos somos bons e maus. A consciência e a vontade podem nos comprometer a
buscarmos ser melhores e menos maus. M as para que isso seja possível, precisamos
experimentar a liberdade: questionar e desafiar a nós mesmos (para que não estejamos
fixados e reduzidos aos nossos modelos ou impulsos morais), avaliar como podemos
transcender certos padrões morais exteriores e, em especial, alargar nosso pensamento
e nossa linguagem para desenvolver uma ação esteticamente enriquecedora da vida.
Fazer ética para tornar a vida mais alegre e bela. Alegria ligada à experimentação aberta
e estendida no tempo (transbordamento de si) e beleza relacionada à qualidade estética
das expressões (e percepções), ao desenvolvimento da linguagem.
1 Alguns autores denominam de cultura fetichizada esta tendência, ou seja, as pessoas vão
idealizando modelos que lhe agradam, ou por conta própria ou condicionadas pelas mídias, e
reduzem seu desejo e prazer à possibilidade de terem satisfeitos estes fetiches, que vão desde
objetos de consumo até práticas comportamentais e sexuais.
2 Gilles Lipovetsky (1944) é filósofo, professor de filosofia da Universidade de Grenoble e autor dos
livros A Era do Vazio , O luxo eterno, O império do efêmero, entre outros. Em sua obra A
Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever, indicada ao final deste livro, o autor afirma que
cada vez menos as pessoas vivem a ética por obrigação ou sacrificam-se por algum valor. Estamos
na era dos indivíduos e as pessoas cada vez mais fazem suas escolhas e desenvolvem seus valores a
partir de si mesmas.
3 Em Convite à Filosofia (2005, p. 337 e 338) Marilena Chauí desenvolve argumentação acerca dos
constituintes do campo ético. É com base nesta leitura que os mesmos são propostos acima.
4 Henri Bergson (1859-1941), filósofo francês que teorizou sobre o pensamento intuitivo, cujas obras
que destacaria são A evolução criadora e Matéria e Memória.
5 Edgar Morin (1921), pensador contemporâneo e teórico da complexidade, critica os discursos
salvacionistas que reduzem a seus princípios o melhor dos mundos. Somos incompletos e o
mundo pode ser melhor pela experiência criativa e solidária com os outros. A fraternidade terrestre,
em que ninguém é dono da ética e da verdade, é o caminho para a paz e para um mundo melhor do
que este que está aí.
CAPÍTULO 2
OS PENSADORES E A ÉTICA
Neste capítulo é desenvolvida a crítica a visões dogmáticas e relativistas que podem estar
presentes na discussão sobre a moral e a ética e, em especial, desenvolve-se um diálogo
com vários pensadores para alargar a perspectiva conceitual dos leitores e alunos em
relação à teorização sobre a ética e diferentes possibilidades de interpretação e
contextualização. Importa destacar que uma postura aberta, reflexiva e propositiva é base
para o desenvolvimento da compreensão e, ao mesmo tempo, revela-se como processo de
educação para o diálogo posterior. Esta competência para dialogar é pressuposto
fundamental para o desenvolvimento e progresso moral, tanto do ponto de vista pessoal
como do ponto de vista social. Nossas afinidades com alguns conceitos e teorias não pode
fazer com que, aos poucos, nos fixemos demais em círculos, pois a pluralidade e a
diversidade moral devem alimentar alternativas de crescimento pessoal e social através de
bons encontros, como veremos logo mais em Espinoza. A cidadania de cada indivíduo é
diretamente proporcional à sua capacidade de defender o direito à autonomia de todos os
indivíduos ao mesmo tempo em que desafia cada um a colocar suas convicções em
suspeita na relação com os outros para transcender o que só pensa a partir de si mesmo.
Duas tendências morais devem ser criticadas quando falamos em formação moral
(ou em estudo de ética).
Em primeiro lugar é o dogmatismo, ou seja, a ideia de que existe um modelo
moral definitivo a ser imposto ou ser seguido para que se alcance o bem. Tal sintoma
pode estar presente quando se acredita que alguma religião ou algum sistema jurídico
contenha em si toda a verdade sobre como devemos nos comportar. Tanto as religiões
como as constituições são obras humanas e históricas, além de serem desenvolvidas e
experimentadas dentro de certo contexto social. A vida, a história, a cultura, os
fenômenos sociais são dinâmicos e devemos reavaliar, sistematicamente, as morais na
forma como respondem propositivamente ou não aos contextos. Aos dogmatistas e a
quem arroga para si mesmo a verdade moral a ser seguida, cabe essa crítica.
Num outro extremo temos os relativistas, que tendem a dizer que cada povo tem
a sua moral ou que depende de cada um avaliar sua ação e escolher entre o bem e o
mal. Este relativismo tem seu limite não somente na ordem social que depende de um
mínimo de ordem moral e jurídica para adequar as relações, mas, principalmente,
porque a consistência moral não é alcançada a partir de si mesmo sem um diálogo com
o de fora.
Acredito que o estudo e a reflexão sobre as propostas morais de vários
pensadores podem dar consistência à nossa reflexão ética e, consequentemente, ao
nosso agir moral. Esta é a proposta do caminho que vamos desenvolver a seguir,
dialogando com alguns pensadores e suas ideias sobre ética. Penso que cada um deve
ser capaz de desenvolver sua reflexão e contextualização, mas acredito que podemos
sair desta leitura e conversação mais animados para pensar a consistência do que
fazemos e, em especial, nos desafiarmos a desenvolver melhores reflexões em relação
às nossas práticas, tornando as nossas vidas mais interessantes.
Reconhecemos que aprendemos na relação, porém, é a passagem por dentro de
cada um de nós, pelo convencimento e pelo comprometimento com o bem, que move a
força de nossa reflexão e, consequentemente, da nossa prática. A minha percepção, o
de dentro (que aos poucos pode ser mais consistente) e a do outro, o de fora, se
encontram (duplicidade) e, de alguma forma, a abertura pessoal e o outro, que se move
dinamicamente e de forma cooperativa, abrem espaço para a ética. A experiência
interior radical no encontro com o de fora, é o que dá saúde moral às pessoas.
Vamos, a seguir, visitar alguns pensadores e suas propostas éticas. É uma visita
ao de fora, ao outro, a diferentes conceitos que, se forem reconhecidos e atualizados,
podem promover uma relativa potencialização moral e existencial. Como já destaquei
anteriormente, a visita a mais conceitos e suas atualizações na relação com nossos
contextos e experimentações nos potencializam e alargam as possibilidades de nosso
viver bem.
Insisto que o rápido diálogo aqui desenvolvido com alguns pensadores e suas
éticas não dá conta da consistência das ideias e conceitos abordados e desenvolvidos
pelos mesmos. Inclusive, ao trazê-los para a discussão e escolher algumas de suas
proposições, já estou fazendo certa escolha parcial e propondo, a partir do que os
mesmos propuseram teoricamente, uma reflexão para além das reflexões propostas.
Cada leitor-estudante é convidado a desenvolver seu senso crítico e avaliar de que
forma certas propostas podem ser mais ou menos significativas em suas
interpretações e contextualizações. O que se espera dos leitores é que se coloquem de
maneira aprendiz diante destes encontros conceituais.
Sócrates: muitos consideram que é a partir de Sócrates que temos o início da
Filosofia M oral ou Ética, pois se inicia aí a discussão racional sobre o valor dos
comportamentos humanos, para além de condicionamentos sociais (da tradição, do
hábito e do costume) ou outros determinismos. Apesar de Sócrates não haver escrito
nada em sua vida, através de Platão, seu discípulo, tivemos acesso ao seu pensamento.
Sócrates é o autor da conhecida afirmação filosófica e moral: Conhece-te a ti mesmo.
Ele não se conformava com a forma alienada com que as pessoas seguiam os padrões
culturais, em especial os cidadãos atenienses, não tensionando o sentido dos costumes
e de seus próprios comportamentos, ignorando sua autonomia moral. Para Sócrates,
era importante que as pessoas fossem questionadas a tal ponto que se desmascarasse
a fragilidade de suas convicções em relação aos seus valores e comportamentos, ao
mesmo tempo em que cada um deveria ser autor de sua própria história e responsável
pelo desenvolvimento de seu caráter. Tais processos ou métodos socráticos receberam
os nomes de Ironia (levar o outro a reconhecer sua ignorância, de onde tem origem os
ditos: sei que nada sei ou ainda, sábio é aquele que sabe que não sabe nada) e
Maiêutica (comprometer a pessoa a desenvolver sua autonomia e criatividade – o
conhece-te a ti mesmo citado acima). Em relação a este segundo método, destacamos
que Sócrates lembrava sua mãe Fenareta em seu ofício de parteira. Afirmava ele que,
assim como sua mãe retirava o recém-nascido de dentro do ventre de uma mulher, cada
pessoa deveria ser capaz de produzir, a partir de dentro, de si mesmo e de sua
interioridade,1 seus valores morais e, consequentemente, sua autonomia.
Aristóteles: para Aristóteles, o que nos diferencia dos animais é que somos seres
de razão e que será a partir dela, de seu uso, que seremos capazes de nos tornar
conscientes do valor e da consistência de nossas atitudes. Segundo Aristóteles, a razão
bem utilizada nos conduz para a boa conduta, impede que vivamos na ignorância e nos
leva para o caminho da felicidade, fim último do existir. Virtuoso, para ele, será aquele
que souber avaliar a ação prática e seus resultados. De Aristóteles herdamos a aliança
entre a teoria e a prática em nosso fazer. Segundo ele, a prudência é a mãe das
virtudes, pois ela nos conduz para as melhores decisões em relação à vida, o que ele
chama de sabedoria prática. Há uma diferença entre a proposta de Aristóteles e a de
Platão que está na origem de duas maneiras de se pensar a ética, e que acompanham a
reflexão moral no Ocidente até os nossos dias.2 Enquanto para Platão a moral depende
da ideia, de uma verdade ou princípio que rege a ação (Éticas Deontológicas ou da
Convicção), para Aristóteles, a prática e seus efeitos é que fazem com que avaliemos a
consistência de determinada ação moral (Éticas Teleológicas , Consequencialistas ou
da Responsabilidade). Porém, tanto para Sócrates e Platão como para Aristóteles, o
exercício racional era que qualificava nossa ação moral em relação ao compromisso
com a pólis e com a harmonia cósmica. Tanto que as crianças eram reconhecidas como
seres que não poderiam ser avaliadas moralmente (amorais), na medida em que não
tinham alcançado um desenvolvimento racional que pudesse comprometê-las em
relação à consciência de seus comportamentos (lembro aqui da discussão sobre
cidadania e sobre o limite de idade para a responsabilização jurídica de crianças e
adolescentes). Além disso, lembramos que mulheres e estrangeiros também ficavam à
margem da cidadania, na Grécia Antiga, e seus valores morais eram negligenciados.
Apesar disso, ainda é importante destacar que, para Aristóteles, é imprescindível que
se atenda a certas necessidades básicas para que se possa, a partir de então, passar a
desenvolver o exercício racional que nos leva ao comprometimento com o bem e com o
saber-fazer ético.
Em relação a esta questão final, ficam alguns questionamentos para reflexão:
como exigir o desenvolvimento da racionalidade moral daqueles que vivem nos limites
da sobrevivência? Como esperar de quem é explorado e violentado em sua condição
existencial o senso de justiça? Como exigir dos empregados o comprometimento com a
empresa sem que ela ofereça as condições básicas de trabalho?
Rousseau: para Rousseau, a bondade natural foi pervertida pela sociedade.
Nascemos bons, inclinados para relações de troca e cooperação com os outros, mas
interesses sociais, morais vinculadas a interesses particulares, a propriedade privada,
entre outros, são alguns fatores que vão condicionando o humano para o mal. A
sociedade perverte as pessoas. Não precisamos, segundo Rousseau, buscar em uma
ideia ou teoria a orientação para o bem. Ele está dentro de nossa natureza.3 A vida
deixada livre no humano será capaz de inclinar-se naturalmente para o bem. Ele busca
reconciliar o ser humano com a Terra, com a vida, e critica o processo civilizatório
predador e movido por interesses particulares. Ele está chamando a atenção para a
força viva que está em cada um de nós como desejo natural de viver. Em geral, os
animais não desejam morrer e nem matar os outros, no máximo sobrevivem sob uma
ordem natural (as pesquisas revelam que a vida é fundamentalmente produto das
trocas e não da luta e da exploração, que são sintomas e sinais de morte). Gosto de
pensar a proposição de Rousseau como um desafio a vivermos desejando a vida e não
condicionando a mesma a representações fixas que devem ser seguidas (morte da
ética).
Kant: já para Kant, como seres naturais, não alcançamos o estado ético. Para ele,
a natureza é fraca e sucumbe ao mal. Como seres de natureza, somos facilmente
influenciados e é imperativamente necessário que a razão instaure, a partir disto, o
dever-ser ético. Como seres da natureza, estamos presos à lógica da necessidade, ou
seja, ao movimento instintivo. Para Kant, somente pela razão prática podemos alterar
o curso das coisas. E este é o dever da razão. M as não estamos falando de uma razão
que vai descobrir que devemos ser bons e definir o que é ser bom. É uma razão que
estabelece como obrigação ética a boa vontade (a vontade do bem como finalidade da
razão). Querer o bem como algo universal para todas as pessoas, segundo Kant, é um
pressuposto básico para a ética. Na obra do filósofo, a ética da convicção radicaliza-
se, ou seja, é imperativamente necessário que a dignidade da pessoa seja pensada como
um fim em si mesmo. Qualquer gesto meu em relação ao outro, para ser bom, deve
poder ser pensado como regra universal. Não existe em Kant a possibilidade de se
pensar certos meios circunstanciais menos éticos para conseguir alcançar fins mais
éticos. Não existe a possibilidade de sermos menos ou mais éticos. Qualquer gesto é
ou não é ético quando entramos no âmbito das relações. Tanto os meios como os fins
devem ser éticos. Kant pensa o dever que temos, enquanto seres de razão, de
administrar pela mesma os nossos impulsos naturais. Podemos questionar até que
ponto tal ética dá conta de práticas em contextos dinâmicos, onde convivemos com
pessoas de carne e osso, com seus limites e condicionamentos. Além disso, este
dever-ser em relação ao corpo por muitos foi confundido com certa coerção, certa
domesticação do corpo, em que uma racionalização da vida fragilizou afetos e
sensibilidades. A natureza viva, presente no corpo humano, pede passagem como
força dinâmica e não podemos mais reduzi-la ao controle da razão. Essas ressalvas não
retiram da proposta kantiana certa atualidade, em especial diante da superficialidade e
corrupção moral. A ética kantiana de alguma forma está inscrita na história do menino
pobre que encontra uma bolsa (com dinheiro e objetos de valor) e decide entregá-la ao
poder público para que ele encontre o dono e devolva a ele seus pertences. Esta
postura de convicção em relação a gestos de boa vontade, este dever-ser bom inscrito
na razão humana (que também dá sentido à sua existência enquanto ser de razão) pode
ser pensado em relação ao desenvolvimento do caráter (aqui poderíamos voltar a
Sócrates e seu desafio em relação ao comprometimento interior da pessoa com seus
valores).
Espinoza: a ética espinozista critica o peso da culpa e da obrigação que
acompanha a moral. Espinoza não utiliza termos como bom e mal, certo e errado
(culpa e ressentimento passam à margem da ética espinozista). Prefere falar em
paixões alegres e paixões tristes. Em bons encontros e maus encontros. Em seres
fortes e seres fracos, no que diz respeito à passionalidade, à relação com as forças
exteriores. Para ele, devemos ser autônomos na relação com o outro e não resignados
ou submissos. A nossa força moral é diretamente proporcional à capacidade ativa que
desenvolvemos nas relações. Paixões alegres, ou seja, bons encontros, nos
potencializam na medida em que saímos deles mais sensíveis à escuta e à percepção e,
ao mesmo tempo, mais capazes de nos expressarmos.4 Espinoza fala em relações de
força entre as matérias na natureza, em afetação. As matérias que multiplicam suas
possibilidades (energias) a partir das relações são exemplos de forças criativas. Esta
ideia é pensada em relação à ética. Para radicalizar, trago o exemplo da relação com as
dores: podemos sair fortalecidos ou enfraquecidos diante das dores da existência.
Alguns se tornam fracos e não conseguem lidar bem com as dores, tornando-se vítimas
das mesmas e infelizes existencialmente. Outros conseguem aprender a partir da
relação com a dor e tornam-se mais fortes, e a vida amplia-se diante de seus olhos.
Hegel: critica Kant e as éticas que vinham sendo pensadas até então porque não
via nelas a discussão sobre a cultura e a história e sua influência e importância no
desenvolvimento moral. Dizia que a discussão girava em torno da pessoa e não
reconhecia a influência da realidade social sobre a vida das pessoas. Para ele, o grande
debate ético deve acontecer em relação ao progresso moral que se desenvolve na
relação entre a sociedade (ética objetiva) e o indivíduo (ética subjetiva). A grande
evolução ética se daria através da experiência de um estado social que atenderia de
forma perfeita às aspirações dos indivíduos. Esta harmonia entre a sociedade (Estado)
e os cidadãos, para Hegel, é o fim último da ética. Por vezes, Hegel e outros
pensadores que se filiaram a esta dialética em que se chegaria à grande síntese em um
estado harmônico, enalteceram tanto o caráter histórico e a importância do estado (da
sociedade e da cultura), que os indivíduos e sua autonomia acabaram enfraquecidos.
Alguns pós-hegelianos chegaram a pensar que o desenvolvimento da Ética dependia
desta submissão à vontade maior do Estado. Sabemos como certas revoluções levaram
à origem de estados que submeteram os indivíduos. Não podemos prescindir desta
relação dinâmica entre indivíduos e cultura (sociedade organizada), porém, a tendência
em radicalizar para cada um dos dois lados é temerária. Gosto de pensar com Hegel
que a ética tem muito a ver com aquilo que os antigos gregos afirmavam: somos seres
políticos e é no debate sobre o que é bom para a sociedade como um todo e para os
grupos e pessoas de forma particular que aprendemos a argumentar e refletir sobre a
sociedade a que pertencemos e como somos corresponsáveis pelo seu
desenvolvimento. Por exemplo: as empresas devem fazer internamente um exercício
político radical de participação (liberdade, autonomia e comprometimento), a tal
ponto que os empregados sintam-se corresponsáveis pelo desenvolvimento da
empresa e vendam a ideia de comprometimento ético para os clientes.
Marx: foi aluno de Hegel e, em boa parte, sua discussão traz um projeto moral
que se revela hegeliano. Para M arx, era hipocrisia uma sociedade exigir que as pessoas
fossem boas e corretas (éticas) se as estruturas sociais eram injustas e exploratórias.
Soava à incoerência. E repetia que toda sociedade deveria dar condições necessárias
para que seus membros pudessem participar da transformação social. A partir daí
desenvolveu toda uma análise histórica (materialismo histórico) de como as
sociedades e seus modos de produção até então eram exploratórios em relação às
camadas marginalizadas. Aqui, M arx propõe a grande revolução ética contra o
capitalismo e a burguesia (materialismo dialético). O estado perfeito, o fim último da
dialética seria a revolução socialista e o estabelecimento de uma sociedade sem classes.
A Revolução Socialista na Rússia do início do século XX (1917) baseou-se nas
propostas marxistas. Porém, esse idealismo não contava com a dinamicidade histórica
e, em especial, com a autonomia dos indivíduos. O estado ficou pesado e o tempo
ocupou-se do resto. Destacamos que M arx é atual enquanto nos remete à discussão
em relação a um projeto que diminua as injustiças, que busque mais igualdade entre as
pessoas, principalmente atendendo as condições básicas de todos para o pleno
exercício da cidadania. O princípio de defesa dos explorados e marginalizados ainda é
importante ser trazido para a discussão, não com teor demagógico, mas para nos
desafiar a pensarmos alternativas de ação diante do quadro de extrema desigualdade
ainda existente, em especial no Brasil. Estratégias morais coerentes, para que se avance
neste sentido, são um desafio permanente de reflexão e atuação por parte de pessoas
comprometidas com um mundo melhor.
Nietzsche: critica todas as éticas racionalistas na medida em que, para ele, elas
estão sempre preocupadas em moralizar o corpo e a vida. A vida deve ser libertada
destes moralismos, das racionalidades que arrogam para si o ajuizamento dos corpos.
Defende a ideia de que devemos dar prioridade ao instinto, ou seja, que devemos
abandonar as representações racionais e desenvolver uma filosofia da vida. Não
significa viver de qualquer jeito e sem compromisso, mas preocupar-se com a nobreza
do viver a partir da liberação da vida e não de seu aprisionamento a representações
racionalistas. Nietzsche utiliza, como Espinoza, termos como fortes e fracos, ativos e
reativos. Ativos são aqueles que abraçam e acolhem a vida (em Nietzsche temos de
volta a valorização da natureza, como havia ocorrido em Rousseau), enquanto reativos
são aqueles que fogem da vida e desprezam (invejam) a força dos que estão
experimentando a vida e o corpo. Diz que os fracos não suportam a alegria dos fortes
(dos que se entregam à vida e ao viver intensamente), pois estão reduzidos a seus
moralismos e racionalismos (vidas simplificadas, reduzidas a padrões e modelos
rígidos, agenciadas moralmente). Esta crítica aos moralismos deu continuidade a toda
uma corrente de pensadores existencialistas e pós-nietzscheanos que durante o século
XX defenderam a radicalidade de um viver que não estivesse condicionado a padrões
morais, submetido a poderes exteriores. É claro que a força da crítica nietzscheana
provocou interpretações equivocadas, como se ele quisesse defender um laisse-faire
(deixai fazer...), um viver sem comprometimento, uma vida individualmente impulsiva
sem reconhecimento dos outros. Penso que, moralmente, em especial em nosso
tempo, em que muitos indivíduos se fixam em seus pontos de vista superficiais e não
aceitam questionamentos, reduzindo a justificativa ao argumento de que cada um tem
o direito de viver e de escolher o que bem entende se não fizer mal ao outro, temos
que ter cuidado quando falamos em liberdade e direitos pessoais. Estão longe de serem
práticas éticas as opiniões e as ações superficiais. O próprio Nietzsche zombaria de
uma vida vivida sem consistência, pois acreditava que viver bem requer nobreza de
pensamento e ação. Quem ama a vida (amor fati) lhe oferece uma arte superior de
(rel)ação. Fica em aberto em Nietzsche a questão de como o outro entra nesta
experiência pessoal radical do viver por parte de cada um. M uitos criticam Nietzsche
nessa direção, porém, penso a partir da ideia de vontade de poder que está presente na
proposta filosófica dele, que é impossível conceber a experiência da força por parte de
alguém pelo enfraquecimento do outro, ou seja, seria contraditório e iria contra a
própria proposta nietzschiana que critica os reativos, ou seja, aqueles que submetem o
outro ou colam no outro. A nobreza do comportamento está na força que ela agrega a
todos que participam da animação da vida em diferentes áreas e processos.
Freud: trago Freud para a discussão em especial por causa do embate entre o id,
o ego e o superego, forças presentes em todas as nossas experiências e que atuam
diretamente sobre nossas vidas. O id não representa um estado passivo a ser
manipulado, mas é o inconsciente ativo, um desejo natural e intempestivo que
transborda de nosso corpo e não pode ser represado (lembro aqui a desconstrução da
razão absoluta). Como corpo em busca de prazer, cada um de nós tem seus sonhos e
suas inclinações pessoais e certas tendências naturais (id → impulsos naturais). Ao
mesmo tempo, vivemos em uma cultura que agencia valores e padrões, formalmente
ou informalmente (superego). Freud remete ao ego como a força (consciência), como
dimensão que deve equilibrar ou negociar entre o id e o superego social. Há aqui uma
proposição ética, ou seja, na medida em que somos seres sociais e temos que aprender
a viver em sociedade, e ao mesmo tempo somos seres individuais com nossos desejos,
nosso ego deve desenvolver a capacidade consciente de organizar, de forma flexível,
essa relação conflituosa. O cuidado para que nossa consciência não se transforme nem
num superego em relação ao corpo e nem numa força de resistência insana em relação
ao convívio em sociedade é o desafio moral e ético que daí se desprende. A boa
consciência reconhece o equilíbrio movediço, os limites da harmonia entre o id e o
superego. Ela negocia, propõe, experimenta, amplia a percepção, desafia e se
compromete; não agencia e condiciona imperativamente. O bom negócio em ética
sempre deve conseguir afirmar a vida da pessoa em sua totalidade, compondo alianças
criativas com a vida em sociedade.
Ética contemporânea: nas reflexões e teorizações recentes sobre a ética, há uma
resistência às morais verticais, àquelas que tentam impor modelos de comportamento
a seguir (o que faz com que seja denominada de era pós-moralista). A autonomia e a
intervenção propositiva e criativa dos indivíduos nos processos são destacadas
(sociedade de indivíduos ou individualista). Existencialistas (como Sartre)5 falam em
liberdade radical e experimentação e comprometimento (responsabilidade) com o que
fazemos. Utilitaristas (como Stuart M ill)6 querem chegar aos melhores resultados
possíveis diante de certas circunstâncias, para que mais pessoas saiam ganhando, mas
fica em aberto quais são as prioridades, como avaliar as circunstâncias e de que forma
vamos estabelecer o que é melhor para um maior número de pessoas.
Diante do contexto e dos desafios atuais, a proposta que fica é a de que o
alargamento de nossos valores, a partir do reconhecimento do outro, e a força de um
diálogo propositivo podem fazer com que a humanidade caminhe para um estado em
que estejam mais presentes, do que atualmente, a fraternidade e a paz. A globalização
aproximou geograficamente as nações e as diferentes culturas. Esse encontro vai ser
positivo na relação direta em que os povos souberam ampliar redes de diálogo em que
consigam transcender seus interesses para pensar a humanidade como um todo e cada
um como responsável pela boa convivência. M uitos limites e possibilidades se fazem
presentes. Como será o futuro? Nada nos assegura que ele será melhor ou pior, mas a
nossa ação pode compor a narrativa de um mundo melhor, não somente porque
acabamos obrigados diante de uma possível situação limite (crise ecológica ou
terrorista), mas porque percebemos e assumimos a vida bem vivida na relação criativa
e afirmativa com os outros como fundamento do bem viver e da ética.
Este capítulo quer estender uma conversa com o belo escrito de Pierre Lévy sobre a ética.
Trago, inicialmente, uma proposta de Flávio Gikovate1 quando indagado sobre como
uma pessoa pode ser feliz (em nosso tempo, em um programa televiso o qual assisti e
agora não recordo o nome). Ele destaca que, além da educação pessoal para que tenhamos
elementos para viver bem, a maneira como enfrentamos as dores e a cumplicidade que
desenvolvemos com outras pessoas fazem a diferença, ou seja, tornam algumas pessoas
mais felizes do que outras. O texto de Lévy de diferentes maneiras cruza com estas
propostas de Gikovate, ou seja, ele propõe de maneira radical que devemos assumir nossa
própria felicidade, não nos vitimizando, que devemos encarar as dores como
aprendizagem, enfraquecendo-as, e que o amor está presente nas mesclas, nas misturas
propositivas que conseguimos experimentar com outras pessoas, ideias, culturas. Quero
aqui avançar nesta conversa dialogando sobre o cuidado de si, as estratégias para
enfrentarmos as dores e, especialmente, como podemos amar mais e melhor.
4.1 O cuidado de si
Se não cuido de mim mesmo, como poderei cuidar dos outros? Com grande frequência, a
vontade de ajudar e curar os outros nada mais é do que uma projeção de nossa própria
necessidade de cura. Antes de pensar em transformar o mundo, entenda primeiro o que você
deve melhorar em si mesmo. (LÉVY, 2000, p. 142)
Se você decide ser o ator e autor de seu próprio mundo, se aceita as dificuldades dos testes
que certamente o farão crescer, então você resolveu se engajar no caminho da liberdade. Mas se
tem a sensação de se resignar, de ser vítima, você acaba se tornando a própria vítima. É você
quem produz, secreta, em seu íntimo, um mundo de vítima. Você escolhe ser vítima. (LÉVY,
2000, p. 145)
O que nos faz sofrer da dor de alma? As dores físicas, sentidas pelo corpo em sua
estrutura fisiológica, podem levar a dores espirituais se nos enfraquecem a tal ponto
que nos tornamos incapazes de transcendê-las. Porém, não faltam exemplos de que
como, diante de dores físicas, pessoas não só foram capazes de retomar suas vidas
normais, mas mesmo permanecendo com limitações, assumiram posturas de
valorização da vida que ultrapassaram em muito a maneira superficial como percebiam
seus fazeres cotidianos antes das perdas.
Onde quero chegar? Penso que as dores, em relação às quais Lévy fala em seu
texto e que quero trazer para a conversa, são as dores de alma, que podem ser a perda
de entes queridos, mas também, muitas vezes, são as dificuldades que temos em lidar
com aquilo que não se identifica com o que idealizamos. Quem geralmente são as
pessoas que têm dificuldade de aprender com a diferença, com o outro, com as perdas,
com o que não se identifica com seu mundo? Pessoas que acomodaram seus mundos.
Não estou aqui pressupondo que pessoas em movimento dinâmico, criativo e aberto
não sintam dores e experimentem um enfraquecimento diante de certas circunstâncias.
Porém, a vida como experiência construtiva e animada para novas possibilidades faz
com que nossas memórias não fiquem pesadas e sufocadas pelas dores, perdas ou
derrotas (conceitos aos quais resisto, pois penso que na vida nunca há derrota,
somente uma maneira menos potente para sair de um acontecimento). Todo
acontecimento, mesmo que em si seja produtor de circunstâncias empobrecedoras da
vida, pode provocar uma ressignificação afirmativa e alternativa de nossas
compreensões e perspectivas.
Diante do nazismo, por exemplo, podemos pensar o quanto a vida perdeu com a
prepotência, porém, a resistência e maneiras de refletir sobre a miséria humana de tal
acontecimento podem fazer com que seja resgatado o valor da fraternidade, de maneira
especial, aquele que aposta na multiplicidade.
1 Flávio Gikovate, médico psiquiatra, terapeuta e escritor, de quem destacaria as obras Uma nova
visão do amor e Os sentidos da vida.
CAPÍTULO 5
ÉTICA PROFISSIONAL (E ORGANIZACIONAL) E
RESPONSABILIDADE SOCIAL
1 “ Aí reside a mudança pós-moralista: ontem, era a moral que prescrevia regularidade e disciplina,
hoje, ela é um instrumento de flexibilidade da empresa; ontem, era um sistema de autoridade, de
imposição e de obrigação incondicional, hoje, significa menos hierarquia e disciplina, mais
iniciativa, abertura à mudança e flexibilidade, com vista a uma maior competitividade. Motor da
flexibilização das organizações, a ética na gestão significa tanto o renascer do ideal normativo dos
valores como uma atenção acrescida em relação aos fatores psicológicos e relacionais na motivação
para o trabalho. Não é a obrigação categórica que comanda o movimento da ética, é a cultura psy, a
importância que passou a ser atribuída aos valores comunicacionais nos fenômenos de coesão de
grupo e de implicação individual.” (Lipovetsky, 2005, p. 307-308)
2 CORTINA, Adela. Construir Confiança: Ética da empresa na sociedade da informação e das
comunicações. São Paulo: Loyola, 2007.
3 “ [...] ou a empresa se posiciona olhando para o próprio umbigo, em um isolamento olímpico que
só legitima as próprias conveniências, ou levanta a cabeça e desvela a paisagem maior, com suas
interdependências e suas forças em confronto. Tal situação reproduz as tensões permanentes que
existem entre os interesses privados e o bem-estar coletivo, a autossuficiência individual e a
consciência social.” (SROUR, 2003, p. 405)
4 Epicuro, filósofo grego da ética hedonista, ou seja, que identificava o bem com o prazer. Porém,
não qualquer prazer, mas um prazer superior, a saúde que advém da sabedoria.
5 Sêneca, filósofo romano da Escola Estóica, que trabalhava a arte (força) de lidar com o trágico (as
dores) como educação para o bem.
CAPÍTULO 6
ÉTICA, ECONOMIA E NEGÓCIOS
A economia ocupa direta ou indiretamente boa parte da vida das pessoas. Muitas vidas
acabam excessivamente reduzidas aos resultados quantitativos daquilo que se produz e se
consome. Não podemos negar e nem fugir desta realidade. Mas podemos, por um lado,
questionar o limite de tempo que vivemos em função do trabalho ou submetidos pela
lógica do acúmulo financeiro (juntamente com aquilo que ele permite consumir, muitas
vezes, histericamente); por outro lado, podemos avaliar como esse espaço do econômico
pode promover alternativas experimentais, ou seja, de que forma podemos tornar a
economia aliada da afirmação da dignidade humana. Este capítulo quer demonstrar, num
primeiro momento, o quanto o fato econômico e tudo o que envolve os processos de
produção e consumo revelam-se como fatos morais e que, eticamente, podem e devem ser
avaliados em sua função de promover a qualidade de vida dos seres humanos e do planeta.
Na medida em que reconhecemos que a economia produz uma moral que deve ser
avaliada, apresentamos a virtude da confiança como valor que deve e pode ser promovido
pelas empresas e pelas práticas negociais, tanto para que sejam alcançados melhores
resultados, quanto para que a sociedade toda ganhe pela extensão de tal espírito para
outros procedimentos sociais. Reconhecendo que os trabalhadores e profissionais em geral
devem se educar para o espírito da confiança mútua, propomos como terceiro aspecto que a
ética torna-se fundamento para os bons negócios e para a evolução alternativa e criativa dos
processos produtivos, na medida em que as pessoas envolvidas sentem-se autoras e
corresponsáveis pelos resultados. Multiplicam-se, desta maneira, dividendos financeiros na
relação direta com a valorização de cada pessoa e de sua ação comprometida para com o
todo.
É possível que certo discurso ainda limite a relação entre a economia e a ética. A
partir de uma perspectiva excessivamente quantitativa e fixada na lógica do capital e
da lucratividade, muitas vezes ignoramos como a marginalização da reflexão ética pode
transformar a economia excessivamente condicionada à lógica da produtividade e do
ganho e com pouco comprometimento em relação aos aspectos morais que atravessam
os modos de produção e distribuição das riquezas. Destaco aqui a fala de Edgar M orin
no Programa Roda Viva:
A economia é baseada em cálculos e tudo que foge ao cálculo é eliminado do pensamento
econômico. Isto faz com que, infelizmente ou felizmente [...] o que foge ao cálculo é a
emoção, a vida, o sentimento, a natureza humana. Então, temos um conhecimento abstrato. O
conhecimento da sociedade não pode ser somente baseado no cálculo. Os problemas sociais
não podem ser reduzidos a cálculos. Não podemos dizer que só o desenvolvimento da
economia resolve todos os demais problemas humanos. E temos de reagir contra esta ideia
simplista e redutora. Acho que você teve razão de mostrar e apontar que tudo isso diz respeito
à definição do ser humano. Por muito tempo, acreditou-se que o ser humano era chamado o
Homo sapiens, isto é, o homem racional, e o Homo faber, o homem que fabrica ferramentas.
Bem, de fato, somos Homo faber. Eu também sou, através da caneta ou do computador.
Homo sapiens, a racionalidade, é excelente. Só que é sabido que a racionalidade só abstrata
deixa de ser racional. Você sabe que não há pensamento racional sem emoção. Até mesmo o
matemático tem paixão pela matemática, ou seja, não podemos pensar... A razão fria são
unicamente os computadores. Eles é que têm a razão fria. Não têm sentimentos, nem vida. Se
os deixássemos governar a humanidade, seria um perigo. Portanto, somos seres capazes de
emoções e de loucuras também. E, no fundo, a dificuldade da vida é navegar, não é? Nunca
perder a racionalidade, mas, também, nunca perder o sentimento, sobretudo o amor. Do
mesmo modo, como você disse, somos homens de economia. É claro, temos interesses
econômicos, mas somos Homo ludens [homem lúdico] também. Gostamos de jogo. Não são
só os jogos infantis. Os adultos adoram jogar. E não só jogar baralho ou ir ver uma partida de
futebol. O jogo faz parte da vida. Do mesmo modo, a prosa. De fato, ela faz parte da vida
porque são as coisas obrigatórias e necessárias que fazemos, mas que não nos interessam. Mas
o importante eu disse há pouco: a prosa serve para sobreviver. Mas a poesia é viver, é o
próprio desabrochar. É a comunicação, a comunhão. Se tivermos essa definição aberta do ser
humano, levaremos em conta toda a dimensão humana. Mas se ela for fechada e econômica, a
perderemos.
Várias são as questões relacionadas à economia que remetem à ética. Trago aqui
algumas delas para instigar a reflexão:
Só é possível falar de uma gestão ética da confiança a partir dos pressupostos de uma ética
empresarial dialógica, orientada pela ideia de que produzir confiança significa criar as
condições para poder confiar na empresa com boas razões. […] o que devemos mostrar é que a
confiança tem um valor econômico porque tem um valor moral, e não vice-versa. (GARCÍA-
MARZÁ, 2007, p. 81)
7.1 O outro
O outro é maior do que o eu, uma vez que o eu não dá conta de abarcá-lo. A razão não o
totaliza em nenhum discurso por ela arranjado. A pessoa, ao aceitar essa realidade como um
exercício existencial, tende a combater a arrogância e a pretensão totalitária das ações e valores
atualmente arraigados e muitas vezes ocultos nos comportamentos funcionais e
organizacionais. (SILVEIRA; SIQUEIRA)
7.2 A solidariedade
Estendo tal proposta para a área dos negócios, ou seja, a solidariedade competitiva
não se vê como força que se impõe ao outro, mas compõe com o outro o desafio da
transcendência. Essa proposta é criativa porque busca perceber como podemos
ampliar as práticas produtivas em favor de um mercado menos destruidor do outro e
mais aliado à ideia de compor alianças potencializadoras com o desenvolvimento de
produtos mais inteligentes. Retomo a concepção de que somos também produtores e
consumidores de banalidades, porém, cada vez mais nos encontramos com produtos
mais inteligentes e que abarcam o campo de atividades alternativas, muito mais ligadas
ao ócio humano. Interessante este paradoxo linguístico, ou seja, estamos entrando em
uma era em que o ócio passa a ser um campo a ser explorado pelo negócio. Estamos
nos referindo ao ócio como atividade em que não estamos diretamente nos ocupando
de atividades produtivas no sentido clássico, ou seja, produzindo objetos que serão
usados pelos humanos em outras atividades ditas “produtivas”, mas estamos
produzindo coisas para o tempo de lazer, para a arte, para o desenvolvimento estético
do humano.
O contexto produtivo atual, que vai saindo cada vez mais da produção em série e
da vinculação a modelos (protótipos), exige inteligências cooperativas que serão o
fundamento da criatividade. Administrar, de maneira particular, já está em muito
relacionado com a capacidade de gerir e fomentar redes cooperativas. A necessidade de
ser mais competitivo é, na maioria das vezes, mais bem definida como uma
necessidade de ser mais cooperativo, de conquistar a lealdade, a confiança e a
compreensão dos clientes, funcionários e investidores (SALOM ON, 2000, p. 25).
Reitor
Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, SJ
Vice-reitor
Pe. José Ivo Follmann, SJ
EDITORA UNISINOS
Diretor
Pe. Pedro Gilberto Gomes, SJ
do autor, 2012
2012 Direitos de publicação e comercialização da
Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
EDITORA UNISINOS
ISBN 978-85-7431-488-4
Editor
Carlos Alberto Gianotti
Acompanhamento editorial
Mateus Colombo Mendes
Sobre o autor
LAÉRCIO ANTÔNIO PILZ é doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (Unisinos), 2002; mestre em Educação pela UNISINOS (1997); bacharel em
Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (1981);
professor de Ética e Antropologia Filosófica e coordenador dos Eixos de Formação
Antropológica e Ética da Formação Humanística na UNISINOS.