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Por essa razão, a definição que por toda parte se mostra a respeito da unicidade de Deus
reduz a nada tudo quanto os homens inventaram para si no que diz respeito à Divindade,
pois somente o próprio Deus é testemunha idônea de si mesmo.
Por isso, pelo fato de esse embrutecimento degradante ter-se apossado do mundo inteiro, de
maneira que os homens procurassem representar a Deus de forma visível – forjando deuses
de madeira, de pedra, de ouro, de prata ou de outro material qualquer inanimado ou
corruptível – temos de nos apegar ao seguinte princípio: Todas as vezes que se atribui a
Deus qualquer forma de representação, a Sua glória é corrompida de ímpio engano. Na Lei,
depois de atribuir a Si mesmo a glória da Divindade, quando quer ensinar que tipo de
adoração aprova ou rejeita, Deus acrescenta imediatamente: "Não farás para ti imagens
esculpidas, nem semelhança qualquer" (Ex 20.45), palavras com as quais nos proíbe o
desenfreamento de tentar representá-lo por meio de qualquer figura visível. E mostra, de
maneira breve, todas as formas pelas quais, desde há muito tempo, a superstição dos
homens começou a transformar a sua verdade em mentira.
Ora, sabemos que os persas adoravam o Sol e também sabemos que outros povos estultos
inventaram para si outros tantos deuses quantas são as estrelas nos céus. Para os egípcios
não houve nenhum animal que não representasse uma divindade. Já os gregos, devemos
reconhecer, parece, foram mais sábios do que os demais povos, pois adoravam a Deus sob a
forma humana. Deus, porém, não compara essas imagens entre si, como se uma fosse mais
apropriada do que outras; ao contrário, repudia a todas as efígies esculpidas, sem exceção,
incluindo pinturas e representações por meio das quais os supersticiosos imaginaram que
Ele devia estar perto.
Entre os Profetas, será suficiente citar só Isaías, que é o mais enfático ao demonstrar isso,
pois ele ensina que a majestade de Deus é manchada de vil e absurda invenção, quando o
incorpóreo é feito semelhante à matéria corpórea, quando o invisível é representado de
forma visível ou quando o espírito é feito semelhante à coisa inanimada ou, ainda, quando o
imenso é reduzido a um pedaço de madeira, de pedra ou de ouro (Is 40.18; 41.7,29; 45.9
e46.5). Paulo também raciocina de modo idêntico: "Visto que somos geração de Deus, não
devemos pensar que o Divino é semelhante ao ouro, e à prata trabalhada pela arte ou
invenção do homem" (At 17.29). Disto fica claro que qualquer estátua que se erige ou
imagem que se pinta para representar a Deus simplesmente o ofende, como também afronta
a sua majestade.
E não devemos nos admirar do fato de o Espírito Santo, do céu, proclamar esses oráculos,
pois Ele compele até mesmo os cegos e idólatras da terra a fazerem essa confissão. A
queixa de Sêneca, que se lê em Agostinho, é muito conhecida. Diz ele: "Dedicam os deuses
sagrados, imortais e invioláveis em matéria mui vil e desprezível, revestindo-os com a
aparência de homem e de feras; algumas até os representam como hermafroditas (= sexos
misturados) e corpos diversos, e os chamam de divindade, são figuras que, se recebessem
vida, seriam tidas por monstros, quando as víssemos!
Disto se evidencia novamente, mui às claras, que se apóiam em inútil sofisma os que
defendem imagens, dizendo que elas foram proibidas aos judeus, porque eles eram
inclinados à superstição. Como se pertencesse a um só povo aquilo que Deus, na verdade,
revela de sua eterna essência e da contínua ordem da natureza! E Paulo, quando impugnou
o erro em representar a Deus por meio de imagem, não estava falando aos judeus, mas aos
atenienses.
Ora, a nuvem, a fumaça e a chama – se bem que fossem símbolos da glória celeste (Dt
4.11), como um freio interposto, impediam que as mentes de todos tentassem penetrar mais
fundo (no conhecimento de Deus). Por isso, nem mesmo a Moisés, a quem Deus, contudo,
se manifestou mais intimamente do que aos outros, conseguiu com suas súplicas
contemplar a face de Deus, mas recebeu como resposta que o homem não é apto para
receber o impacto de tão grande esplendor (Ex 33.20).
O Espírito Santo apareceu em forma de pomba (Mt 3.16; Mc 1.10; e Lc 3.22), mas pelo
fato de Ter-se desvanecido rapidamente, quem não percebe que, pelo símbolo de apenas um
momento, os fiéis foram advertidos de que se deve crer no Espírito como um ser invisível,
de modo que, contentes com o seu poder e graça, não evocassem para si nenhuma
representação externa?
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O próprio propiciatório, onde, sob a Lei, Deus manifestou a presença do seu poder, foi de
tal modo construído, que indicava ser a seguinte a mais excelente visão da Divindade: Ela
ocorre quando as mentes são alcançadas acima de si mesmas, em admiração uma vez que
os Querubins, de asas estendidas, ocultavam a Deus, o véu o cobria e o próprio lugar, tão
escondido, de si mesmo o ocultava (Ex 25.17,18,21). Portanto, salta aos olhos que os que
tentam defender uma imagem de Deus ou de santos, citando o exemplo desses Querubins,
estão enlouquecidos. Suplico, pois: Que significavam essas imagenzinhas senão que não
existem formas apropriadas pelas quais se possam representar os mistérios de Deus? Elas
foram feitas para, velando com as asas o propiciatório, impedir não só que os olhos
humanos vissem a Deus, mas também com quaisquer de todos os outros sentidos e, dessa
forma, pusessem um paradeiro à temeridade dos homens.
Além disso, os Profetas, quando falam dos Serafins que lhes apareceram em visão,
mostram-nos com a face velada e, com isso, dão-nos a entender que o fulgor da glória
divina é tão grande, que os próprios anjos são impedidos de ser vistos em direta
contemplação, e as chispas de glória que refulgem são subtraídas aos nossos olhos.
Todos os que julgam com acerto reconhecem, contudo, que os Querubins, de que estamos
tratando agora, pertencem à antiga tutela da Lei. Portanto, é absurdo citá-los como exemplo
que sirva à nossa época, uma vez que já passou a fase infantil à qual esses rudimentos
haviam sido destinados (Gl 4.3).
Certamente, é vergonhoso Ter de reconhecer que os escritores profanos são intérpretes mais
capazes da Lei do que os papistas. Juvenal, por exemplo, zombando, censura os judeus que
adoravam as puras nuvens e o nume do céu. Certamente, Juvenal fala de modo pervertido e
ímpio. No entanto, quando nega existir qualquer efígie divina, fala de modo mais
verdadeiro que os papistas, que dizem haver, entre os judeus, alguma representação visível
de Deus.
Que os judeus, com entusiástica prontidão, se tenha atirado repetidas vezes, a buscar ídolos
para si, com a mesma forma de abundante manancial de águas borbulhantes, aprendemos
do fato de ser grande a propensão da nossa mente para com a idolatria. Por isso, atirando
contra os judeus a pecha de erro que é comum a todos os homens, não durmamos o sono
mortal, iludidos pelas vãs seduções do pecado.
nem o esplendor, nem o valor nos levem a reverenciar os ídolos. Finalmente, conclui,
dizendo que nada existe que tenha menos aparência de verdade do que serem os deuses
feitos de qualquer espécie de matéria morta!
Ao mesmo tempo, o Profeta insiste neste ponto: Que os mortais são levados por grande e
louca temeridade quando, de maneira precária, conseguindo alento fugaz de instante a
instante, têm a ousadia de conferir aos ídolos a dignidade de Deus. O homem se vê
obrigado a confessar que é uma criatura efêmera e, não obstante, quer que seja tido por
Deus um metal que ele mesmo transformou em deidade! Pois, como nasceram os ídolos
senão da desvairada imaginação dos homens?
Justíssima é a zombaria de Horácio, poeta profano, que disse: "Eu era outrora um tronco de
figueira, um inútil pedaço de lenho. Quando um artesão, incerto se deveria fazer um banco,
preferiu fazer de mim um deus."
Deste modo, um homenzinho terreno, cuja vida se extingue quase a cada instante – graças à
sua arte – transfere o nome e a dignidade de Deus a um tronco sem vida!
Porém, uma vez que esse epicureu brincalhão a fazer, a fazer gracejo, não deu importância
a religião alguma, deixando de lado as suas brincadeiras e as de outros, mais do que isso,
traspasse-nos a censura do Profeta (Is 44.15-17), quando afirma que são excessivamente
insensatos os que, de um mesmo tronco de árvore, aquecem-se, acendem o forno para assar
pão, assam ou cozinham a carne, e do resto fazem um deus, diante do qual se prostram
suplicantes a orar. Do mesmo modo, em outro lugar (Is 40.21), não só os acusa como réus
perante a Lei, mas também os censura pelo fato de não terem aprendido, dos fundamentos
da terra, que, na verdade, nada é mais absurdo do que desejar reduzir Deus, que é
imensurável, à medida de cinco pés! Essa monstruosidade que provoca repugnância à
ordem da natureza, revela-se como natural nos costumes dos homens.
Devemos ter em mente que, com freqüência, as superstições são referidas como obras das
mãos dos homens, e carecem de autoridade divina (Is 2.8; 31.7; 37.19; Os 14.3; Mq 5.13),
para que se estabeleça o seguinte: Que todas as formas de culto que os homens inventam
por si mesmos, são abomináveis diante de Deus.
No Salmo 115, o Profeta dá ênfase à loucura que significa o fato de homens – a tal ponto
dotados de inteligência – saberem que todas as coisas são movidas só pelo poder de Deus e,
no entanto, implorarem auxílio de coisas inanimadas e destituídas de sensibilidade. Mas,
pelo fato de a corrupção da natureza conduzir a demência tão grosseira, tanto os povos
todos quanto cada indivíduo, em particular, o Espírito Santo, finalmente, fulmina com a
seguinte maldição: "Tornem-se semelhantes a eles os que os fazem e todos os que neles
põem a sua confiança" (Sl 115.8). Notemos também que são proibidas não só gravuras mas
também imagens esculpidas e, com isso, refuta-se a improcedente exceção dos gregos, pois
pensam que se saem muito bem se não fazem imagem de escultura, que representem a
Deus, ao mesmo tempo que se divertem fazendo gravuras desenfreadamente mais do que
qualquer outra gente. Pois o Senhor proíbe não apenas que se faça imagem dEle em forma
de estátua, mas também que qualquer representação dEle seja modelada por qualquer tipo
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de artista, visto que, desse modo, Ele é representado de maneira inteiramente falsa e com
grave ofensa à sua majestade.
Se alguém objetar dizendo que os Profetas repreendiam os que abusavam das imagens para
ímpias superstições, sou obrigado a admiti-lo, sem dúvida. Contudo, acrescento: O que é
notório a todos é que os Profetas condenam o que os papistas sustentam como seguro
axioma, ou seja, para os papistas as imagens fazem as vezes de livros. Os Profetas, porém
opõem o Deus verdadeiro às imagens, como coisas contrárias e que jamais podem
conciliar-se.
Nas poucas porções bíblicas que acabei de citar, impõe-se a seguinte conclusão: Uma vez
que o Deus verdadeiro, que os judeus adoravam, é um e único, de maneira pervertida e
enganosa se inventam figuras visíveis que representam a Deus e, por isso, acabam
miseravelmente iludidos todos os que buscam conhecer a Deus por meio de imagens.
Se não fosse mentiroso e espúrio todo e qualquer conhecimento de Deus que se busca nas
imagens, os Profetas não o teriam condenado de modo tão generalizado. Por isso, sustento
o seguinte: Quando ensinamos que é vaidade e enganoso os homens tentarem representar
Deus por meio de imagens, não fazemos outra coisa senão referir, palavra por palavra, o
que os Profetas disseram.
Deve-se lembrar especialmente o que o mesmo Agostinho cite de Varrão e confirma com a
sua autoridade. Diz ele: "Os primeiros que introduziram imagens dos deuses, de um lado,
removeram o temor e de outro acrescentaram o erro." Se isso tivesse sido dito só por
Varrão, talvez tivesse pouca importância. Porém, ainda assim, devíamos sentir-nos
envergonhados pelo fato de um pagão, como que tateando no escuro, Ter alcançado esta
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luz, isto é, Ter chegado à conclusão de que as imagens corpóreas são indignas da majestade
de Deus, porque diminuem o temor dos homens e aumentam o seu erro. Os próprios fatos
atestam, de maneira incontestável, que o dito de Varrão é sábio e verdadeiro. Por isso,
Agostinho, tomando-o de empréstimo, repete-o como seu. E, no começo, Agostinho insiste
em dizer que os primeiros erros a respeito de Deus, erros em que os homens se enredaram,
não começaram com as imagens, porém, que uma vez introduzidas (na prática), aviltaram-
se ainda mais. Em conseqüência, por esse motivo, o temor de Deus não só diminuiu, mas,
até mesmo, se extinguiu, visto que na estupidez das imagens e na sua infeliz e absurda
invenção, pode-se facilmente desprezar a majestade divina. Oxalá não comprovássemos,
pela experiência, quão verdadeira é esta última afirmação!
Porém, diremos também que esta não é a maneira de ensinar o povo fiel nos lugares
sagrados, povo que Deus quer que seja instruído com outro tipo de doutrina. Deus ordenou
que aí, nos templos, se proponha uma doutrina comum a todos, na proclamação de sua
Palavra e nos sagrados mistério. Os que são levados pelos olhos à contemplação de ídolos,
em derredor – revelam que seu espírito está voltado bem pouco diligentemente para esta
doutrina!
A quem, no entanto, os papistas chamam de ignorantes e cuja obtusidade não lhes permite
ser ensinados senão só pelas imagens? Na verdade, chamam de ignorantes àqueles a quem
o Senhor reconhece como seus discípulos, aos quais considera dignos da revelação de sua
celeste sabedoria e que deseja sejam instruídos os mistérios salvíficos do seu Reino.
Certamente, admito que, na atual situação, não poucos são os que não podem dispensar as
imagens como "livros". Contudo, pergunto: De onde vem tal obtusidade senão do fato de
serem roubados desta doutrina que, sozinha, é apta para instruí-los? E não foi por outra
razão que os que presidiam às igrejas deixaram com os ídolos a função de ensinar, senão
pelo fato de os próprios ídolos serem mudos! Paulo afirma que, mediante a pregação do
Evangelho, Cristo é apresentado ao vivo e de certo modo é crucificado aos nossos olhos (Gl
3.1).
Qual seria o objetivo de, nos templos, erguerem-se, por toda parte, tantas cruzes de
madeira, de pedra, de prata e de ouro, se fosse ensinado honesta e fielmente que Cristo
morreu na cruz para tomar sobre si a nossa maldição (Gl 3.13), sacrificando o próprio corpo
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para expiar nossos pecados (Hb 10.10) e lavá-los com o seu sangue (Ap 1.5), enfim, para
reconciliar-nos com Deus, o Pai? (Rm 5.10). Só desse fato poderiam aprender mais do que
mil cruzes de madeira ou de pedras (poderiam ensinar), visto que os avarentos, talvez,
fixam os olhos e a mente nas cruzes de ouro ou de prata, mais do que em quaisquer
palavras de Deus.
Ora, que os ídolos já estivessem em uso, quando veio a prevalecer este anseio desmedido
de consagrar imagens de mortos, prática da qual se faz menção constante nos escritores
profanos, evidencia-se do que diz Moisés. Quando ele conta que Raquel havia furtado os
ídolos de seu pai (Gn 31.19), não fala de outra coisa senão de um vício generalizado. É
lícito, pois, concluir desse fato que a imaginação do homem é uma perpétua fábrica de
ídolos.
É assim que acontece, na verdade. Como a mente do homem está abarrotada de orgulho e
de temeridade, ele ousa imaginar a Deus segundo o seu modo de ser. Como a mente do
homem é embotada, mais do que isso, como ele é levado de cambulhada pela mais crassa
ignorância, imagina ele, para o lugar de Deus, a irrealidade e a aparência vazia.
A estes males, acrescenta-se nova iniqüidade: A de que o homem tenta exibir a Deus na
obra que faz, pois concebe a Deus do modo como o sente. Daí, sua mente gera o ídolo e
suas mãos o dão à luz. Portanto, a imagem do ídolo é a seguinte: Os homens não crêem que
Deus esteja com eles, se não virem a Deus de forma concreta. Revela isso o exemplos dos
israelitas: "Não sabemos", dizem eles, "o que aconteceu a esse Moisés. Faze para nós
deuses que vão adiante de nós" (Ex 32.1). Na verdade, ele sabiam que era Deus aquele cujo
poder tinham experimentado em tantos milagres; não confiavam, porém, que Deus
estivesse perto deles, a menos que, com seus olhos, pudessem ver uma representação
corpórea de Deus, uma representação que atuasse como testemunho de um Deus que os
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dirigia. Na verdade, os israelitas queriam reconhecer que Deus, através de uma imagem, ia
adiante deles, guiando-os pelo caminho.
A experiência de todos os dias nos ensina que a carne está sempre inquieta, até conseguir
uma representação fantasiosa semelhante a sim mesma, representação com a qual se
console de maneira vã, como se estivesse diante de uma imagem real de Deus. Para
obedecerem a esta cega obsessão, em quase todos os séculos desde que o mundo foi criado,
os homens ergueram representações visíveis, por meio das quais acreditavam ver a Deus
com os olhos carnais.
Por isso, quando os homens, na forma de imagens, fazem uma representação tanto de Deus
quanto da criatura e prostra-se diante dela para venera-la, é porque já foi fascinado por certa
superstição. Foi por essa razão que o Senhor proibiu não somente levantar-se estátuas
modeladas para representa-lo, mas proibiu consagrarem-se gravuras de qualquer espécie,
para serem usadas como objetos de adoração. Pela mesma razão, também, no preceito da
Lei, junta-se outra parte a respeito da adoração dessas representações, pois tão logo foi
inventada essa forma visível de Deus, o passo seguinte foi o de atribuir-lhe poder, Os seres
humanos são néscios a tal ponto, que identificam Deus com tudo o que o representa, e, por
isso, não pode acontecer outra coisa senão adorarem a essa representação de Deus! É
supérfluo discutir se simplesmente se adora o ídolo ou se se adora a Deus no ídolo, pois,
seja qual for o pretexto, quando se proporcionam honras divinas a um ídolo, é sempre
idolatria. E pelo fato de Deus não querer ser cultuado de maneira supersticiosa, recusa-se a
Ele aquilo que se oferece aos ídolos.
Atentem para isso os que andam em busca de míseros pretextos para defender essa idolatria
abominável, na qual a religião verdadeira, por muitos séculos, tem estado afundada e
subvertida. Embora digam que as imagens não são consideradas como seres divinos. Os
próprios judeus não eram tão absurdamente obtusos, que não se lembrassem de que era
Deus aquele por cuja mão tinham sido tirados do Egito (Lv 26.13), e isso antes de fazerem
o bezerro de ouro (Ex 32.4). Ao contrário, afoitamente o povo concordou em proclamar,
com Abraão, que aqueles que eram os deuses por meio dos quais tinham sido libertados da
terra do Egito (Ex 32.4,8), querendo dizer, com não duvidoso sentido, que o Deus libertador
lhes fosse conservado, contanto que pudessem contempla-lo andando na frente, em forma
de bezerro!
E não devemos crer que eram tão boçais, que não entendessem que Deus não era outra
coisa senão lenhos e pedras, pois embora mudassem as imagens à vontade, tinham em
mente sempre os mesmos deuses, e muitas eram as imagens de um único Deus. Porém, eles
não imaginavam existirem para si tantos deuses quantas eram a multidão dessas imagens.
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Além disso, dia após dia, consagravam novas imagens e, contudo, nem pensavam estar
assim constituindo novos deuses.
Leiam-se as justificações que Agostinho refere, justificações que os idólatras do seu tempo
usavam como pretexto. As pessoas comuns, quando eram acusadas de praticar a idolatria,
respondiam que não adoravam as imagens, mas ao contrário, adoravam a divindade que,
invisível, habitava nelas. Aqueles que, segundo o próprio Agostinho, praticavam uma
religião mais refinada, diziam que não adoravam nem a imagem, nem a divindade que ela
representava, porém, na representação material viam um sinal da divindade que deviam
cultuar.
Que diremos? Todos os idólatras, tanto entre judeus como entre os gentios, foram
motivados a praticar a idolatria da forma já referida, ou seja, não estando contentes com
uma representação espiritual de Deus, julgavam que, por meio de imagens, adquiriram
compreensão mais segura e mais íntima da divindade. Uma vez que se agradaram dessa
grosseira representação que imitava a Deus, não houve mais fim (desta loucura) até que,
finalmente – iludidos sucessivamente por novas invenções fantasiosas -, começaram a
pensar que Deus mostra o seu poder nas imagens. Mais do que isso, não somente os judeus
foram convencidos de que, sob essas imagens, adoravam ao Deus eterno, o único e
verdadeiro Senhor do céu e da terra, mas também os gentios que, do mesmo modo,
adoravam aos seus deuses, ainda que fossem deuses falsos que, no entanto, imaginavam
habitarem no céu.
E ainda não estou mencionando os erros grosseiros do vulgacho, que são quase infinitos e
dominam o coração de todos. Mencionei apenas os erros que eles mesmos confessam
quando querem, especialmente, safar-se da pecha de idolatria. Eles dizem: “Não chamamos
às imagens de nossos deuses.” Nem os judeus nem os gentios chamavam deuses outrora. E,
no entanto, os profetas não paravam de repreender as fornicações dos judeus com a madeira
e a pedra (Jr 2.27; Ez 6.3-6; Is 19.20; Hc 18-19; Dt 32.27), fornicações que são práticas
diárias daqueles que querem ser tidos por cristãos, isto é, que adoram a Deus de forma
carnal na madeira e na pedra!
Não ignoro, nem se pode disfarçar, que eles fogem do problema, criando uma distinção
enganadora, distinção de que faremos menção, novamente, de forma mais completa, mais
adiante. Dizem eles que o culto que prestam às imagens é eidoludeleian (=serviço à
imagem) e não eidolatria (=adoração de imagem). Falam assim, quando ensinam que, sem
ofensa a Deus, pode-se atribuir – às representações de escultura e pictória – o culto a que
dão o nome de dulia. Portanto, julgam-se sem culpa se são apenas os servos da imagem, e
não adoradores também. Como se o servir não fosse mais importante que o adorar!
Insisto para que mostrem, de forma objetiva, a diferença (que há entre as duas referidas
palavras), para que vejamos que eles são diferentes dos idólatras antigos. Ora, assim como
um adúltero ou homicida não pode fugir à acusação de crime, dando nomes diferentes ao
crime que cometeu, do mesmo modo é absurdo absolver estes do crime de idolatria,
mediante a sutil invenção de um termo, visto que, na prática, eles em nada são diferentes
dos idólatras que eles mesmos são obrigados a condenar! Na verdade, eles estão longe de
separar sua prática da prática desses idólatras. Sim, a sua causa está tão longe de ser
diferente da causa desses idólatras, que a fonte de todo o mal se baseia no desordenado
desejo que eles têm de imita-los, quando na sua imaginação não apenas concebem para si,
mas com suas mãos confeccionam os símbolos por meio dos quais representam a Deus.
Dizemos não ser permitido representar-se a Deus, de forma visível, porque Ele mesmo
proibiu (Ex 20.4; Dt 5.8) e, portanto, não se pode fazer isso, sem degradar a sua glória. E
para não pensarem que só nós sustentamos esta posição, os que são versados nos escritos de
autores sóbrios verificarão que eles sempre reprovaram essa prática nos seus escritos.
Porque, se não é permitido representar a Deus por meio de uma efígie, muito menos é
permitido cultuar a efígie ou cultuar a Deus nela.
Portanto, sobra-nos a liberdade de esculpirmos ou pintarmos só aquilo que está diante dos
nossos olhos, de forma que a majestade de Deus, que está muito acima da percepção dos
nossos olhos, não se corrompa por meio de fantasiosas representações. Nesta classe de
coisas que se podem representar pela arte estão incluídas, em parte, histórias e fatos
acontecidos, em parte, imagens e formas corpóreas que não estejam ligadas a eventos
consumados. As histórias e os fatos têm aplicação no ensinar e no advertir; as imagens e as
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formas corpóreas, por sua vez, creio que a sua utilidade não vai além do deleite (que nos
podem trazer). E, apesar disso, salta aos olhos que quase todas as imagens – exibidas até o
presente nos templos -, são desse tipo. Desse fato pode-se concluir que elas foram
colocadas nos templos não em função de julgamento ponderado ou de sábia decisão, mas
em função de insensata e precipitada paixão!
Deixo de focalizar aqui o quão sem propósito e indecente têm sido essas representações, e
quão licenciosamente os pintores e estatuários têm se mostrado sensuais (nos trabalhos que
fazem), como já referi pouco antes. Estou frisando apenas que mesmo que nada de
impróprio exista nessas obras, todavia elas revelam que nenhum valor têm para ensinar.
Quê? Devemos pensar que os santos pais (mais antigos) haviam deixado a Igreja ficar, por
tanto tempo, vazia dessa prática, que eles julgavam útil e salutar? Na verdade, porém esses
pais (mais antigos) repudiavam essa prática mais por decisão e reflexão, que por ignorância
ou negligência, porque viam que nessa prática não havia nada, nem um mínimo de
utilidade, porém, representava muito perigo. Agostinho também atesta isso com palavras
claras, quando diz: “Quando, nestes pedestais se colocam, essas imagens em exaltada
elevação, para que, por causa da própria semelhança que elas têm com membros e sentido
animados – se bem que lhes falte sensibilidade e alento -, chamem a atenção dos que oram
e dos que oferecem sacrifícios, elas afetam as mentes fracas, de modo que pareçam ter vida
e respirar.” Em outro lugar acrescenta: “Pois essa representação de membros faz o seguinte
e até obriga: A mente que vive em um corpo, julgue ser animado um corpo que vê muito
semelhante ao seu.” E mais adiante: “As imagens valem mais para desviar a alma infeliz,
que para assisti-la, visto que possuem boca, olhos, ouvidos, pés, mas não falam, não vêem,
não ouvem e não andam.”
Esta parece ser a razão pela qual João quis que nos guardássemos não somente do culto aos
ídolos, mas também dos próprios ídolos (1 Jo 521). Em vista da horrível insânia que até
agora tem dominado o mundo – extinguindo quase toda a piedade -, temos experimentado,
mais desmedidamente, que, tão logo as imagens são colocadas nos templos, levanta-se o
pendão da idolatria, porque não se pode moderar a loucura dos homens que, prontamente,
os leva à prática de cultos supersticiosos.
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Ora, mesmo que o perigo não fosse tão iminente, entretanto, começo a refletir sobre o uso a
que os templos foram destinados e, de uma ou outra forma, me parece indigno de sua
santidade os templos acolherem outras imagens, ao invés de acolher aquelas vivas e
representativas, que o Senhor consagrou em sua Palavra. Refiro-me ao Batismo e à Santa
Ceia, juntos com outras cerimônias nas quais o importante não é serem vistas com os olhos,
mas que nos afetem mais vividamente, de modo que não exijam outras imagens formadas
pelo engenho dos homens. O incomparável bem das imagens consiste no fato de, se dermos
crédito aos papistas, eles não têm compensação nenhuma que possa ressarci-los da perda!
Porém, antes de mais nada, livremo-nos primeiramente dos que hoje defendem o uso das
imagens, alegando o apoio desse Concílio Niceno. Há um livro sob o nome de Carlos
Magno, de caráter refutatório que, a julgar pelo estilo, parece ter sido escrito na mesma
época (do Concílio). Nesse livro faz-se referência às opiniões dos bispos que estiveram
presentes ao referido Concílio e aos argumentos com que lutaram nas discussões.
João, o legado do Oriente, disse “Deus criou o homem à sua imagem” e, por isso, devemos
concluir que é preciso ter imagens. Ele mesmo, na seguinte afirmação, opinou as imagens
nos são recomendadas: “Mostra-me a tua face, pois ela é formosa” (Ct 2.14). Outro, para
provar que se devem colocar imagens nos altares, citou o seguinte testemunho: “Ninguém
acende uma candeia e a põe debaixo do módio” (Mt 5.15). Um outro, com o objetivo de
demonstrar que a contemplação das imagens nos é útil, citou um versículo dos Salmos:
“Estampada foi sobre nós a luz da tua face, ó Senhor” (Sl 4.6). Um outro recorreu à
seguinte analogia: Como os Patriarcas fizeram uso dos sacrifícios dos gentios, do mesmo
modo as imagens dos santos devem ocupar para os cristãos o lugar dos ídolos dos povos.”
Para esse mesmo propósito, torcem a seguinte oração: “Senhor, amei a formosura da tua
casa” (Sl 26.8). Porém, especialmente engenhosa é a seguinte interpretação: “Como temos
ouvido, assim também temos visto”. Portanto, para eles, Deus é conhecido não pelo ouvir
da Palavra, mas também pela contemplação das imagens! Semelhante é a agudeza do bispo
Teodoro: “Maravilhoso”, diz ele, “é Deus nos seus santos” (Sl 68.35) e, daí, diz-se em outro
lugar: “Quanto aos santos que estão na terra” (Sl 16.3). Portanto, concluem eles, isso deve
referir-se às imagens!
Afinal de contas, são tão disparatadas as suas parvoíces que até me envergonho de referi-
las.
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Se, para zombar dos que defendem a adoração das imagens, alguém quisesse fazer deles
uma caricatura ridícula, poderia, porventura, reunir tolices maiores e mais grosseiras do que
as acima referidas? E, de qualquer modo, para não haver dúvida nenhuma, Teodósio, bispo
de Mira, confirma tão a sério – com base no sonho de seu arcediago -, que as imagens
devem ser adoradas, como se estivesse presente um oráculo celeste. Agora, que saiam a
campo esses defensores das imagens e nos pressionem com o decreto do Concílio Niceno
retro referido, como se os pais veneráveis desse Concílio não anulassem toda a confiança
que se deveria ter neles, não só por portarem a Escritura de modo tão infantil, mas também
por submete-la a tão execrável mutilação!
Teodósio, bispo de Amoria, pronuncia anátema (=maldição) contra todos os que se opõem à
adoração das imagens. Um outro atribui todas as calamidades da Grécia e do Oriente ao
crime de não se adorarem imagens! Em conseqüência disso, os Profetas, os Apóstolos e os
Mártires – no tempo dos quais não se usavam imagens -, mereciam ser castigados!
João, o legado dos do Oriente, levando mais longe ainda a sua ousadia, adverte que seria
preferível acolherem-se todos os lupanares, em uma cidade, a rejeitar-se o culto das
imagens!
Finalmente, o Concílio Niceno estatui, pelo consenso de todos, que os Samaritanos eram os
piores de todos os hereges, porém, que piores que os Samaritanos, eram os que combatiam
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as imagens! Além disso, para que não faltasse à peça o seu solene Aplauso, acrescenta-se à
cláusula o seguinte: “Regozijem-se e exultem os que, tendo a imagem de Cristo, lhe
oferecem sacrifícios”.
Onde está, agora, a distinção entre latria e dulia com a qual eles costumam ofuscar os olhos
de Deus e dos homens, uma vez que esse Concílio (Niceno) favorece tanto às imagens
quanto ao Deus vivo?