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“De Mauss a Claude Lévi-Strauss”, cinquenta

anos depois: por uma ontologia Maori


patRice maniGlieR
Université Paris-Ouest Nanterre La Défense, Paris, França
tradução: ian pacKeR
École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França
revisão técnica: nicoDème De Renesse
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133v22i22p163-179 link between these two authors has been construed
determine or reveal as many historical interpreta-
resumo: desde o célebre artigo de Merleau-Ponty, tions of structuralism as philosophical and theore-
“De Mauss a Claude Lévi-Strauss”, a maneira como tical choices about social sciences. We know that
se avalia a relação entre estes dois autores determi- this vindicated kinship was supposed to be critical :
na ou exprime tanto as interpretações históricas do being faithful to Mauss’s discovery, that of the cen-
estruturalismo e as posições teóricas ou flosófcas trality of reciprocity in social life, compelled us to
subsequentes, quanto as ciências sociais. Essa flia- overcome sociology in the direction of a general
ção se pretendia uma crítica: ser fel à descoberta semiology. Tis paper, in opposition at Merleau-
de Mauss sobre o caráter central da reciprocidade -Ponty’s subtle interpretation of this move, tries
impunha ultrapassar a sociologia rumo a uma se- to show that it was not aimed at a redefnition of
miologia geral. Este artigo quer mostrar que não se social reality as a system of substitutable points of
trata, contrariamente à sutil interpretação de Mer- view and correlated movements of subjectivation,
leau-Ponty, de fazer da realidade social um sistema but at the idea that “valeurs” themselves, because of
de pontos de vista substituíveis ou de movimentos their very nature, of their ontology, necessarily cir-
correlatos de subjetivação, mas de mostrar que são culate between various exclusive and complemen-
os “valores” que, por sua natureza, sua ontologia, tary points of view. Lévi-Strauss’s famous critique
devem necessariamente circular entre muitos pon- of Mauss’s explanation of the “obligation to give”
tos de vista exclusivos e complementares. O artigo because of a “power in the things”, is reconsidered
revisita a célebre crítica de Lévi-Strauss a Mauss a from this interpretation, and the benefts of struc-
respeito da explicação da obrigação de dar por uma tural anthropology for contemporary philosophy
“força das coisas”, e reposiciona a contribuição da appear to be promising in dialogue with the proble-
antropologia estrutural dentro da flosofa do es- ms raised in the philosophy of physics about quan-
pírito contemporâneo, ali onde ela se confronta às tum mechanics ontology.
questões abertas pela física sobre a ontologia dos
objetos quânticos.
De Mauss a Claude Lévi-Strauss: movi-
mento natural ou passo forçado? Mal caminho
Abstract:Since Merleau-Ponty’s famous paper a ser evitado ou salutar continuação de uma
“De Mauss à Claude Lévi-Strauss”, the way the verdade ameaçada por sua própria expressão?

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O debate foi lançado por Merleau-Ponty1 há mo”, que continua a dar às discussões em torno
mais ou menos 50 anos. Ainda hoje, ele con- do estruturalismo o triste aspecto de um diá-
tinua a existir: seria possível até mesmo dizer logo de surdos. Voltando, contudo, cinquen-
que toda a refexão flosófca sobre as ciências ta anos depois, a essa leitura, gostaríamos de
sociais, na França do pós-guerra, e as diferen- mostrar aqui que, contrariamente àquilo que
tes correntes teóricas nessas disciplinas, são Merleau-Ponty sugeria, não se trata para Lévi-
diferentes respostas à essa pergunta2. É que -Strauss de afrmar que a realidade social nun-
ela diz respeito, é claro, à interpretação e à ca é uma coisa, mas somente um sistema de
avaliação que se faz do estruturalismo. Como pontos de vista substituíveis, de movimentos
Merleau-Ponty compreendeu imediatamente, correlatos de subjetivação, mas, ao contrário,
se quiséssemos descrever o estruturalismo em que são os valores que, devido à sua natureza,
antropologia não a partir de sua doutrina, mas ao seu modo de existência, devem necessaria-
a partir de sua história, como acontecimento mente circular entre vários pontos de vista ex-
e não como sistema, é nessa passagem que é clusivos e complementares.
preciso apreendê-lo. É notável que os nume- Trata-se de apresentar as regras sociais
rosos críticos do estruturalismo tenham tão como tantas maneiras nas quais se determi-
frequentemente se empenhado em recolocar o nam, em sua existência, estas entidades es-
ponto de partida contra o ponto de chegada. tranhamente paradoxais que são os valores,
O fato é claro: para nosso deleite ou lamen- formas primitivas dos signos. Não são os ho-
tação, a célebre “Introdução à obra de Mar- mens, se podemos dizer, que fazem os valo-
cel Mauss” (LÉVI-STRAUSS, [1950] 2003) res, mas os valores que fazem os homens... E
é, na verdade, um convite ao estruturalismo. é nisso que Lévi-Strauss reencontra a intuição
O proveito dessa operação parece claro, mas original de Mauss, a saber: que o dom supõe
estaríamos errados se julgássemos se tratar uma propriedade da própria coisa. Assim, sur-
apenas de apropriação de uma herança. Pois, ge uma outra história do estruturalismo: não
na realidade, trata-se explicitamente de uma a descoberta de uma função cognitiva que
crítica. Ser fel à descoberta de Mauss sobre o sustentaria os fenômenos culturais, as línguas,
caráter central da reciprocidade na vida so- as regras de parentesco ou mitologias, mas a
cial, supõe ultrapassar a sociologia em direção descoberta do problema ontológico que colo-
a uma semiologia geral. Essa ultrapassagem, cam as manifestações simbólicas. Uma tal su-
no entanto, pode e foi diversamente interpre- peração da psicologia da função simbólica em
tada: a esta correspondem as diferentes esco- direção a uma ontologia dos valores, que Lévi-
lhas radicais não apenas sobre o sentido que é -Strauss frequentemente designa como a fna-
preciso dar ao acontecimento estruturalista na lidade de sua empreitada – e cujos problemas,
história do pensamento antropológico, mas nós veremos, apresentam notáveis analogias
também sobre as questões fundamentais das com aqueles que encontra uma flosofa da fí-
ciências humanas. sica, também ela inspirada em Merleau-Ponty
A leitura de Merleau-Ponty não tem por –, parecerá talvez desenvolver em excesso al-
único mérito ser a primeira: é uma das raras gumas das indicações parciais de Lévi-Strauss.
leituras a evitar os dualismos artifciais e, em Mas talvez seja justamente por esse excesso
particular, a não fazer uso da oposição frontal que nós podemos ser féis, por nossa vez, a um
e caricatural entre “objetivismo” e “subjetivis- pensamento que nunca teve medo deste “livre

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devaneio” que ele também chama de “floso- segundo a qual o grupo se constitui enquanto
fa” (LÉVI-STRAUSS, [1971] 2011, p. 619), tal. A palavra “estrutura” signifcaria aqui so-
e que continuemos a nos instruir na agudez mente: princípio de totalização de um conjunto.
do pensamento de Merleau-Ponty... Quanto à ideia que a vida social seja simbólica,
essa signifcaria simplesmente que a troca não se
explica nem pela necessidade de cooperar nem
1. As ambiguidades da reciprocidade por sentimentos psicológicos supostamente uni-
versais, tais como o horror do incesto, mas pela
Lévi-Strauss sociólogo? vontade de afrmar a existência do laço social
As estruturas elementares do parentesco é visto enquanto tal: o presente é um sum-bolon, ga-
como um grande livro de sociologia. A proibição rantia da aliança. A causalidade social subverte,
do incesto, ouvimos ainda aqui e ali, ao obrigar portanto, as causalidades naturais ou psicológi-
as descendências biológicas a se abrirem às alian- cas. E nisso, a ultrapassagem de Durkheim por
ças sociais, instituiriam uma totalidade nova que Mauss teria sido apenas uma maneira de lhe ser
não é mais dada na natureza, mas construída fel, pois ela permite compreender que a realida-
coletivamente. O texto de Lévi-Strauss parecia de social é moral, e não biológica.
justifcar essa leitura: “O papel primordial da Entretanto, esta interpretação é incorreta, e
cultura é garantir a existência do grupo como o próprio texto de 1949 o dizia claramente. As-
grupo” (LÉVI-STRAUSS, [1949] 2010, p.72)3. sim, mal Lévi-Strauss havia afrmado que tudo
Ou ainda esta frase quase conclusiva: “As múlti- se explica quando se estabelece que é preciso
plas regras que proíbem ou prescrevem certos ti- que a sociedade exista, ele complementava:
pos de cônjuges, e a proibição do incesto que as
resume, esclarecem-se a partir do momento em Mas a sociedade teria podido não existir. Não
que se estabelece ser necessário que a sociedade teremos, portanto, julgado ter resolvido um
exista” (LÉVI-STRAUSS, [1949] 2010, p. 530). problema senão para atirar todo seu peso so-
Lévi-Strauss teria então retomado de Mauss a bre outro problema, cuja solução aparece ainda
tese segundo a qual a essência da vida social não mais hipotética que aquela à que nos dedica-
está na experiência de pensamentos, afetos ou mos exclusivamente? (LÉVI-STRAUSS, [1949]
ações idênticos, como parecia dizê-lo Durkheim, 2010, p. 561-562).
mas na reciprocidade de prestações que podem
ser diferentes, à condição que sejam comple- Segue uma dessas passagens próprias ao fer-
mentares: a totalidade social não é, portanto, vor teórico de Lévi-Strauss, onde se descobre que
uma unidade transcendente, mas um sistema as mulheres são signos, que o signo por nature-
organizado onde atos unilaterais se respondem za é algo que circula, e que compreender a ori-
uns aos outros. Ele teria aplicado essa tese ao pa- gem da sociedade é compreender “a emergência
rentesco, e teria mostrado que as regras particu- do pensamento simbólico” (LÉVI-STRAUSS,
lares (casar com a prima cruzada, evitar a sogra, [1949] 2010, p. 569). É isso que a “Introdução”
etc.) se explicam e se articulam como peças que repetirá, dessa vez explicitamente contra Mauss,
permitem montar um sistema de obrigações re- propondo uma outra interpretação da noção
cíprocas cuja único imperativo é se fechar. Ele de reciprocidade: “Mauss julga ainda possível
evidencia assim “ciclos de reciprocidade” matri- elaborar uma teoria sociológica do simbolismo,
moniais, essa circularidade defnindo a maneira quando é preciso evidentemente buscar uma ori-

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gem simbólica da sociedade” (LÉVI-STRAUSS, ra entidade, pertencente a uma física ampliada,


[1950] 2003, p. 22). É preciso entendê-lo literal- reabrindo assim os deleites da metáfora organi-
mente: não é porque trocamos as coisas que damos cista na qual as teorias dos sistemas e da comple-
sentido a elas, mas porque nós damos sentido a elas xidade se precipitarão impetuosamente7. Ora,
é que as trocamos. E se os fenômenos de parentes- sabemos que foi precisamente contra esse orga-
co apresentam uma certa estrutura, não é por- nicismo (representado especialmente por Spen-
que eles estão no fundamento do metabolismo cer) que Durkheim havia construído ao mesmo
social, mas porque se trata de uma propriedade tempo sua flosofa social e seu método, redef-
de toda atividade signifcante. É porque damos nindo os fatos sociais como representações e a
sentido ao ato de se casar, aos parceiros que nele sociedade como uma realidade moral. É por essa
se envolvem, às crianças que nascem através dele, razão que Merleau-Ponty, procurando inscrever
que nossos atos matrimoniais obedecem à um Lévi-Strauss na tradição sociológica francesa e
imperativo de reciprocidade4. As estruturas de apresentar essa última como um superação da
parentesco evidenciadas ao longo de todo o livro sociologia hermenêutica alemã de Weber e Dil-
são procedimentos “lógicos”, e é exatamente essa they, propôs uma interpretação diametralmente
a razão pela qual elas podem se encontrar em so- oposta do estruturalismo, que encontra nele os
ciedades que nunca estiveram em contato: elas meios de defnir o objeto das ciências humanas
representam possibilidades do espírito, soluções não como uma coisa real, mas como o conjun-
diversas graças às quais os seres humanos dão to das condições que permitem a um sujeito se
sentido à realidade. Além disso, a troca não é o abrir a outrem em outras palavras, de nunca ser
único domínio onde se pode ver essas estruturas unicamente aquilo que ele é. O estruturalismo,
operando: Lévi-Strauss reencontrará no estudo como ele mostra substancialmente, e de forma
dos mitos, na cosmologia, essas fórmulas do es- contrária à uma leitura ainda hoje bastante di-
pírito humano, das quais se trata idealmente de fundida, admite que o sociólogo, o psicólogo, o
ter um catálogo sufcientemente completo para linguista, não procurem explicar os comporta-
que se possa propor uma teoria geral dos fatores mentos observáveis por meio de leis causais ob-
elementares da “função simbólica”5. jetivas que exerceriam seus efeitos à revelia dos
atores, mas compreender o sentido que os atores
Uma dialética da subjetividade? dão eles próprios àquilo que fazem e que é a
Entretanto, essa retifcação é ela mesma verdadeira razão de seus comportamentos. En-
ambígua, e essas ambiguidades darão espaço a tretanto, Merleau-Ponty defne o sentido não
interpretações divergentes do estruturalismo. como representação consciente (por exemplo,
De fato, identifcar sociologia e teoria da co- o motivo admitido) que acompanha a execu-
municação é algo que pode ser feito no senti- ção de um ato, mas como a possibilidade para
do de Norbert Wiener, que Lévi-Strauss cita um outro de se colocar no lugar do sujeito. Se
expressamente6: a comunicação é então uma aquilo que eu faço tem sentido, é porque um
consequência entre outras de um certo modo outro teria feito a mesma coisa em meu lugar,
de organização ou de construção de sistema, de em outras palavras, porque “eu” poderia ser um
um certo tipo de máquina, a máquina ciberné- outro. Portanto, é na medida em que eu me
tica, caracterizada inclusive pelo célebre “ciclo introduzo em um sistema que articula pontos
de retroalimentação”. Mas fca claro, então, que de vista parciais (no duplo sentido deste último
se considera a “sociedade” como uma verdadei- termo), de modo que se possa passar de um a

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outro de forma regrada, que eu sou um sujeito intersubjetividade viva e constituinte de todo
e que meus atos são, não comportamentos de- objeto (mesmo que fosse o objeto do próprio
terminados por causas objetivas mas, antes de antropólogo), a interpretação de Merleau-Pon-
tudo, expressões subjetivas. Fica claro, a partir ty, possivelmente, passa ao largo das intuições
de então, que eu não sou depositário do sen- mais promissoras nas quais Lévi-Strauss enca-
tido daquilo que eu digo. A tarefa do “soció- minhava não apenas a antropologia, mas tam-
logo” ou do “etnólogo” estaria cumprida se ele bém a flosofa. Com efeito, mais tarde, em
pudesse reconstruir as diversas modalidades de O homem nu ([1971] 2011), Lévi-Strauss, re-
intersubjetividade, e Merleau-Ponty é bastante tomava o problema da origem simbólica, não
prudente quanto ao projeto de uma “ciência das mais do parentesco, mas dos mitos, e concluía:
estruturas universais do espírito humano”. Um
“sistema simbólico” não é uma totalidade real, a questão da gênese do mito se confunde, por-
composta de partes objetivas e onde cada ato tanto, com a do próprio pensamento, cuja ex-
se encadearia com outros de maneira funcional periência constitutiva não é a de uma oposição
como as engrenagens de uma vasta máquina entre o eu e o outro, mas do outro aprendido
social, mas um sistema de pontos de vista sub- como oposição. Na falta dessa propriedade in-
jetivos reversíveis ou convertíveis uns nos outros, trínseca – a única, na verdade, absolutamente
exatamente no sentido em que Bergson defnia dada – nenhuma tomada de consciência consti-
a noção de “totalidade simbólica” (BERGSON, tutiva do eu seria possível. Não sendo apreensí-
1934, p. 190-195). A reciprocidade não é aqui- vel como relação, o ser equivaleria ao nada. As
lo que fecha uma sociedade sobre ela mesma, condições de surgimento do mito são, pois, as
mas aquilo que abre cada indivíduo a outrem. mesmas daquela de todo pensamento, já que esse
Melhor: um sujeito é apenas uma instância divi- não poderia ser senão pensamento de um objeto, e
dida pela possibilidade de ser outro: nunca uma um objeto só o é, por mais simples e despojado
coisa, sempre um ponto de vista, nem mesmo que se o conceba, pelo fato de constituir o su-
sobre um objeto exterior, mas sobre aquilo que jeito como sujeito e a própria consciência como
ele poderia se tornar. consciência de uma relação (LÉVI-STRAUSS,
[1971] 2011, p. 539-540, grifo meu).

2. O ser daquilo que se dá Antes da subjetividade, há, portanto, uma


certa apreensão do objeto enquanto oposição.
A natureza contraditória do objeto pensado Se há dupla constituição da subjetividade e da
Essa leitura se inscreve de maneira coerente objetividade, essa se deve ao próprio modo do
na flosofa de Merleau-Ponty que, poderíamos objeto, a seu caráter opositivo. Ora, sabe-se que
dizer grosseiramente, deseja seguir o movimen- essa propriedade era precisamente aquela pela
to do Husserl tardio, buscando a origem do qual Saussure defnia o signo. Assim, não é por-
sentido não mais na consciência, mas na in- que nós vivemos para o outro que nós percebe-
tersubjetividade, colocando, por assim dizer, a mos a realidade exterior e nossos próprios atos
possibilidade do Outro antes da possibilidade sob um modo simbólico; ao contrário, é por-
da consciência. Entretanto, inteiramente ab- que nós percebemos a realidade como simbólica
sorvida pela sua vontade de mostrar que a vida que nós ocupamos um lugar enquanto sujeitos
social não é uma realidade objetiva, mas uma em um sistema de pontos de vista reversíveis.

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Outras formulações presentes na mesma passa- retribuir, com o auxílio de um cimento afetivo
gem não deixam nenhuma dúvida: e místico. É uma síntese imediatamente dada
ao e pelo pensamento simbólico que, na troca
Esse ser do mundo consiste numa disparidade. como em qualquer outra forma de comunica-
Não se pode simplesmente dizer do mundo que ção, supera a contradição que lhe é inerente de
ele é; ele é na forma de uma assimetria primeira, perceber as coisas como os elementos de um diálogo,
que se manifesta diversamente conforme a pers- simultaneamente relacionados a si e a outrem, e
pectiva adotada para apreendê-lo: entre alto e destinadas por natureza a passarem de um a outro
baixo, céu e terra, terra frme e água, perto e lon- [grifo meu]. Que elas sejam de um ou de outro,
ge, esquerda e direita, macho e fêmea, etc. Esta representa uma situação derivada em relação
disparidade inerente ao real põe em marcha a es- ao caráter relacional inicial (LÉVI-STRAUSS,
peculação mítica porque condiciona, aquém do [1950] 2003, p. 40).
pensamento, a existência de todo objeto de pensa-
mento (LÉVI-STRAUSS, [1971] 2011, p. 581). Em outras palavras, é a própria modalidade
do objeto considerado como valor, riqueza ou
Os sistemas simbólicos, antes de serem con- bem, o tipo de objeto percebido que ele é, que faz
fgurações intersubjetivas instáveis, são “mo- que ele só possa ser concebido como devendo
dos de elaboração do real” (LÉVI-STRAUSS, ser repartido entre múltiplos pontos de vista. É a
[1971] 2011, p. 581). natureza do signo que implica uma dupla apre-
Podemos nos perguntar se essas considerações ensão subjetiva, e não sua função intersubjetiva
puramente especulativas têm algum interesse, que determina sua natureza. Longe, portanto, de
para além dos prazeres necessariamente suspeitos propor uma gênese do valor à partir do fato da
oferecidos pela flosofa, aqueles precisamente do reciprocidade, Lévi-Strauss propõe uma gênese
pensamento que se inebria com suas próprias pos- da reciprocidade à partir dos caracteres particu-
sibilidades e sacrifcar toda consequência empíri- lares daquilo que os fenomenólogos chamariam
ca. Desconfança legítima, da qual Lévi-Strauss, de constituição objetiva do valor como forma
por sua vez, nunca se desfez, ele que se satisfazia primordial do signo8. Se é preciso buscar uma
de ter conservado de seus estudos de flosofa ape- origem simbólica para a sociedade, é porque o
nas “certas convicções toscas”, e de não “correr o pensamento é fabricado de tal maneira que ele
risco de ser enganado por sua complicação inter- recorta objetos que têm um caráter intrinseca-
na, nem de esquecer sua fnalidade prática para mente duplo ou dividido, e que fazem em si
me perder na contemplação de sua maravilhosa próprios, consequentemente, a síntese entre dois
organização” (LÉVI-STRAUSS, [1955] 1996, pontos de vista subjetivos e incompatíveis.
p. 50). Acontece, contudo, que essas considera-
ções concernem a interpretação que devemos dar A divisão do signo
a noções como “mana”, hau”, etc., e que dizem Para compreendê-lo, é preciso retornar à de-
respeito ao segundo grande movimento da ultra- fnição do signo. Um erro persistente apresenta
passagem de Mauss proposta por Lévi-Strauss. a invenção da “semiologia” como uma extensão
Contra Mauss, Lévi-Strauss escrevia: a outras atividades humanas que não a lingua-
gem - como os hábitos indumentários, as len-
A troca não é um edifício complexo, construído das, etc. -, da ideia segundo a qual elas servem
à partir de obrigações de dar, de receber e de para comunicar e exigem, consequentemente,

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que se separe nelas o código social das perfor- gia como uma disciplina semiológica (LÉVI-
mances individuais. Na realidade, a grande -STRAUSS, [1973] 2010, p. 19) precisamente
descoberta de Saussure é ter chamado a atenção porque os objetos com os quais o antropólogo
sobre um fato, que só será confrmado expe- lida apresentam esta mesma característica de
rimentalmente algumas décadas mais tarde, e não se confundirem com sua aparência empíri-
que concerne o tipo de objeto que é o próprio ca, ou ainda, porque a identidade das diferentes
signo, independentemente de toda hipótese so- realizações de um signo não depende de suas
bre sua função. Com efeito, a identidade de um semelhanças observáveis, mas da conservação de
signo, por exemplo “senhores”, repetido muitas uma certa distribuição das oposições. Assim, o
vezes ao longo de uma conferência (SAUSSU- que aparece em um mito como o mocho, pode
RE, 1972, p. 152) não é como a identidade se revelar uma variante daquilo que aparece em
de um objeto físico qualquer (mesa, molécula). um outro mito como uma águia, se esta pas-
Entre diversas ocorrências do mesmo signo em sagem de um animal do dia a um animal da
meu discurso, há variações de pronúncia (rá- noite se acompanhar sistematicamente de um
pida, lenta) e de signifcado (irônico, elogioso, conjunto de outras inversões de valores oponí-
etc.) tão importantes que é impossível defnir veis que afetam o contexto, por exemplo sobre
um “retrato” do signo retendo apenas as seme- o eixo do bem e do mal, da natureza e da cul-
lhanças empíricas. Gravações experimentais tura, etc. Estas transformações correlatas fazem
mostrarão que duas ocorrências de um mesmo aparecer um “sistema de compatibilidades e de
signo podiam ter nenhuma propriedade posi- incompatibilidades” (LÉVI-STRAUSS, [1973]
tiva (por exemplo, de frequência) em comum 2010, p. 162), que só é conservado através des-
(JAKOBSON, 1976). Saussure levanta a hi- sas variações. Um signo é, portanto, defnido
pótese de que somente as correlações entre as não por sua qualidade substantiva, mas pela
diferenças sobre os dois planos heterogêneos distribuição das oposições que ele atualiza: não
(signifcante e signifcado) são constantes: uma importa que o traço A seja + ou -, contanto que
variação sobre um plano implica uma outra va- se possa mostrar que, quando ele é +, o traço B
riação, sobre um outro plano. Assim, um sig- é -, e que, inversamente, quando ele é -, o traço
no é defnido não por propriedades positivas, B será +. Ainda que de maneira limitada, per-
mas por diferenças pertinentes, que permitem tence assim ao signo poder ser outro, e não ter
distingui-lo entre todos os outros possíveis, e outra identidade que não a de sua posição em
não possui outra identidade se não negativa. Se um grupo de substituições que opera com opo-
é preciso defnir um signo não por aquilo que sições distintivas de natureza bastante variável
ele representa (crítica da teoria da língua como (alto/baixo, cozido/cru, etc.). O pensamento
nomenclatura), mas pela posição que ele ocupa simbólico, antes de ser um meio para comuni-
em um sistema de séries de diferenças, isso se dá car signifcações, é uma maneira de organizar a
não em virtude de uma tese sobre a natureza da realidade sensível, que revela entidades que não
signifcação, mas porque não há outra solução correspondem a nenhuma invariância substan-
para se identifcar o objeto que é um signo: o cial e que têm a propriedade de serem idênticos
signifcante de “senhores” não é a realidade so- sob (ao menos) duas relações diferentes: com
nora registrável, mas um conjunto de critérios efeito, basta inverter conjuntamente os valores
que permitem simplesmente percebê-lo... dos parâmetros (alto ou baixo, etc.) para pro-
Ora, Lévi-Strauss redefne a antropolo- duzir o mesmo signo. Ou melhor: um signo só

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pode se atualizar de maneira parcial, remeten- e indivisível, que faz apreender a flha ou a irmã
do a uma atualização complementar, onde as como um valor oferecido e, reciprocamente, a
correlações das oposições distintivas são inver- flha e a irmã de outrem como um valor exigí-
tidas de maneira simétrica. Se uma “estrutura” vel” (LÉVI-STRAUSS, [1949] 2010, p. 162). É
é um sistema de pontos de vista recíprocos, é a constituição de diferentes mulheres como sig-
porque um signo é sempre dividido e só pode nos, isto é, como atualizações necessariamente
ser apreendido parcialmente, relativamente a complementares umas das outras, que introduz
outros termos com os quais ele entretém rela- a reciprocidade e que, consequentemente, está na
ções de simetria invertida. É neste sentido que origem da vida social, eu e outrem ocupando os
Lévi-Strauss, ao afrmar na “Introdução” que a lugares determinados pelo sistema das atualiza-
troca é apenas uma maneira de superar a con- ções possíveis do signo:
tradição que faz perceber as coisas como ele-
mentos de um diálogo, e que suas atualizações Nosso esquema de interpretação [...] implica so-
parciais eram “derivadas” em relação ao “cará- mente que as mulheres sejam consideradas como
ter relacional inicial”, dava este exemplo: valores [...] e a apreensão, pela consciência indivi-
dual, de relações recíprocas do tipo: A está para B
o juízo mágico, implicado no ato de produzir assim como B está para A. Ou ainda: se A está para
fumaça para suscitar as nuvens e a chuva, não D assim como B está para C, C deve estar para D
se baseia numa distinção primitiva entre fumaça como B está para A [...]. A aquisição da capacidade
e nuvem, com o apelo ao mana para soldá-las de apreender essas estruturas levanta um proble-
uma à outra, mas no fato que um plano mais ma, mas é um problema psicológico e não socio-
profundo do pensamento identifca fumaça e lógico (LÉVI-STRAUSS, [1949] 2010, p. 172).
nuvem, de que um é a mesma coisa que o outro,
ao menos sob certo aspecto, e esta identifcação Dito de outra forma, a troca é um efeito
justifca a associação subsequente, não o contrá- – entre outros – de mecanismos psicológicos
rio (LÉVI-STRAUSS, [1950] 2003, p. 41). ou lógicos que não podem funcionar sem in-
duzir mecanicamente, por assim dizer, a cons-
Ocorre o mesmo com o parentesco e, de ma- tituição destes objetos paradoxais que são os
neira geral, com as estruturas sociais. Se as mu- signos ou os valores. Não é, portanto, a inter-
lheres são valores, é porque elas são atravessadas subjetividade ou a dialética do reconhecimen-
por uma oposição, entre mulheres adquiridas to que vem primeiro, mas esse modo singular
(esposas) e mulheres cedidas (irmãs e flhas), de de constituição dos objetos percebidos pelo
forma que as últimas são necessariamente com- pensamento simbólico que, em razão de sua
plementares às primeiras, e que elas constituem arquitetura, induz
juntas uma estrutura, isto é, um sistema de in-
versões de valores: passando das esposas às flhas, a contradição que fazia perceber a mesma mulher
as atitudes se invertem; em outras palavras, há sob dois aspectos incompatíveis: de um lado, ob-
correlação entre as transformações, exatamente jeto de desejo próprio e, por conseguinte, exci-
como nos mitos. Pode-se dizer, entretanto, que tante dos instintos sexuais e de apropriação; e, ao
elas atualizam o mesmo signo, no sentido em que mesmo tempo, sujeito, percebido como tal, do
o signo só é defnido por essas correlações entre desejo de outrem, isto é, meio de ligá-lo aliando-
as oposições: “é um ato da consciência, primitivo -se (LÉVI-STRAUSS, [1949] 2010, p. 536).

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Talvez pudéssemos mesmo dizer que o ob- exclusivas: seja como uma bacia (cavidade), seja
jeto do desejo é essencialmente o objeto do como uma cúpula (em relevo), de acordo com a
desejo do outro9. Contudo, não porque o de- maneira segundo a qual se coloca em correlação
sejo seria constitutivamente tomado em um as oposições: se está em relevo, é porque a luz
triângulo intersubjetivo, mas porque tanto eu vem da esquerda, enquanto que em contra-re-
quanto outrem somos constituídos de tal ma- levo sua trajetória deve ser simétrica e inversa.
neira que nós percebemos um objeto em si de- Quando o desenho é isolado, é impossível de se
sejável, isto é, duplamente desejável, piscando decidir, a não ser de maneira arbitrária. Mas o
interminavelmente entre duas “interpretações” contexto determinará a boa interpretação. Es-
exclusivas e complementares. Realmente, estra- cher, no entanto, constrói uma célebre compo-
nho objeto esse... A mesma mulher é percebida sição, onde ele obriga o olhar do espectador a
como dívida por um grupo e crédito por um alternar permanentemente suas interpretações,
outro. A troca permite “repartir”, por assim inscrevendo o convexo/côncavo em um espaço
dizer, esta “contradição”, a oposição do eu e saturado de outros objetos ambíguos (a esca-
do outro distribuindo a oposição constitutiva da, os arcos, o plano em perspectiva), deter-
do próprio valor... A dialética não é do sujeito, minados por outras oposições (visto de cima/
mas do objeto: visto de baixo, à frente/atrás, etc; cf. ERNST,
1994, p. 80-84). Podemos pensar também no
Como no caso das mulheres, o impulso original desenho de W.E. Hill, “Minha mulher et mi-
que levou os homens a ‘trocar’ palavras talvez nha sogra”, mais próximo do trocadilho visual
devesse ser buscado numa representação des- (aliás, tido por Lévi-Strauss como modelo de
dobrada, ela mesma resultante do surgimento exercício simbólico) (LÉVI-STRAUSS, [1971]
primeiro da função simbólica? Assim que um 2011, p. 600), onde pode-se ver ou uma velha
objeto sonoro é apreendido como portador de senhora de nariz curvo ou uma bela senhorita
um valor imediato, ao mesmo tempo para quem com casaco de pele e o rosto virado, mas não as
que fala e para quem que ouve, adquire uma duas ao mesmo tempo (ERNST, 1994b, p. 22-
natureza contraditória cuja neutralização só é 23). As interpretações dependem da correlação
possível por esta troca de valores complemen- entre as oposições axiais e os valores estéticos
tares a que se reduz toda a vida social (LÉVI- e mesmo parentais... O próprio Lévi-Strauss
-STRAUSS, [1958] 2008, p. 74)10. compara o signo à estas

Para melhor esclarecer ainda como uma lâmpadas elétricas de um complicado painel
mesma coisa pode implicar dois pontos de publicitário, que se acendem ou se apagam, a
vista opostos e complementares, pode-se com- cada vez fazendo aparecer imagens diferentes,
parar o signo, tal como Lévi-Strauss o redef- luminosas sobre fundo escuro ou escuras sobre
niu, a estes desenhos ambíguos que podem ser fundo luminoso (tipo de obra que também ela
interpretados de duas maneiras incompatíveis é uma criação do espírito) sem nada perder de
mas complementares, dos quais Escher, entre sua coerência lógica (LÉVI-STRAUSS, [1983]
outros, deu belos exemplos. Assim “Convexo e 2010, p. 223).
côncavo” (cf. reprodução em ERNST, 1994, p.
83) brinca com a possibilidade de interpretar ou a estas “construções geométricas ou de-
um desenho de maneiras complementares mas corativas em que a fgura e o fundo se equili-

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bram de tal maneira que, às vezes, o fundo se tudo, alimentos, mulheres, crianças, bens, ta-
sobressai como fgura e a fgura como fundo”, lismãs, solo, trabalho, serviços, ofícios sacerdo-
de maneira que o motivo “oscila sob o olhar tais e funções, é matéria de transmissão e de
do espectador, que o vê alternadamente cla- prestação de coisas. Tudo vai e vem como se
ro sobre fundo escuro ou então, escuro sobre houvesse troca constante de uma matéria espi-
fundo claro”, remetendo-as à uma “atividade ritual que compreende coisas e homem, entre
autônoma do espírito”, que, “movida por um os clãs e os indivíduos, repartidos entre as fun-
élan interno, vai além daquilo que ele havia ções, os sexos e as gerações (LÉVI-STRAUSS,
inicialmente percebido” (LÉVI-STRAUSS, [1950] 2003, p. 203).
[1983] 2010, p. 234).
Não são as pessoas échangeuses12 que fazem
circular os objetos trocados, mas os objetos tro-
3. Retorno a Mauss cados que, por sua natureza, pela propriedade
metafísica que possuem (o hau ou o mana),
A partir de então, é possível melhor compre- forçam as pessoas à dá-los, recebe-los, retribui-
ender em que sentido Lévi-Strauss acredita estar -los, em suma, a passá-los adiante. É, aliás, um
sendo fel a Mauss ao propor superá-lo. Recorde- dos temas constantes de Mauss a demonstra-
mo-nos sucintamente do problema. Mauss cons- ção de que não há, de um lado, sujeitos que
tatava que um grande número de sociedades não trocam e, de outro, objetos trocados, mas que
conheceram outra forma de economia que não o próprio da “troca-dom” é, precisamente, que
a do dom. Vê-se o paradoxo: a sociedade apenas nela as pessoas e identidades sociais circulam
sobrevive graças à circulação de bens, mas não tanto quanto as coisas, e que a distinção entre
há nenhum princípio que reclame compensação título de propriedade e coisa possuída jamais é
imediata por um serviço ou bem recebido. Para defnitiva. Compreende-se, a partir de então,
que o dom seja um dom, é preciso que ele negue que não se pode pensar a circulação como uma
por princípio toda exigência de retribuição. Não relação intersubjetiva, pois os próprios sujeitos
se devolve um presente; oferece-se um outro, não são externos à troca.
que leva ele mesmo a um outro presente; assim Esses textos fzeram correr muita tinta.
nunca se está “quitte”. Entre o dom e o contra- Quanto a Lévi-Strauss, ele os acusa de terem
-dom, deve haver descontinuidade e não medida simplesmente reconduzido a explicação que
comum. Falsa consciência ou outros costumes? os Maori dão da experiência cindida da troca
Mauss mostra que a obrigação de dar, de receber sob a forma de dons e contra-dons, sem terem
e de retribuir é pensada a partir da própria coisa, buscado explicá-la. À questão “por que vocês
e não em relação aos outros parceiros: é a coisa dão coisas uns aos outros, se não porque tro-
que contêm um princípio metafísico que nos cam de maneira dissimulada?”, os indígenas
constrange à fazê-la circular11. O paradoxo da respondem: “não somos nós, são as próprias
“troca – dom” é, portanto, resolvido pela noção coisas que pedem para serem trocadas”. Tudo
de uma propriedade da própria coisa. Dando, aquilo que sabemos, portanto, é que os indíge-
recebendo, retribuindo, não se compensa inte- nas percebem as próprias coisas como devendo
resses contrários, realiza-se a natureza das coisas circular. O hau não diz nada além disso. Mas
que não podem permanecer onde estão e devem o que faz que com que elas sejam percebidas
necessariamente se deslocar: assim? Sobre isso, nenhum explicação. Eviden-

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temente, podemos nos contentar com isso, e mas, ao contrário, por ter separado as coisas des-
defender a ideia que nunca é necessário ir além sa propriedade que as faz circular, e por não ter
da explicação que os seres humanos dão de suas compreendido que é a própria maneira como são
próprias ações: é esta posição que defende, por defnidas, delimitadas, postas, que faz que elas só
exemplo, Vincent Descombes em Les institu- possam ser percebidas como devendo-ser-troca-
tions du sens, sugerindo que Mauss não busca das. Mauss pensa os valores trocados como ob-
explicar, mas somente compreender o sentido jetos materiais aos quais o espírito acrescentaria
que os próprios Maoris dão a sua própria ação, uma propriedade abstrata e indeterminada, que
reconstruir uma racionalidade que à primeira obrigaria os homens à fazê-las circular, enquanto
vista nos escapa porque não partilhamos das que na realidade a avaliação já está na própria de-
mesmas concepções flosófcas, morais ou teó- terminação do objeto (como escudo, como colar,
ricas. Podemos, contudo, pensar que o sentido etc), que só pode ser defnido em um sistema de
explícito por meio do qual os seres humanos termos substituíveis uns pelos outros. A invoca-
justifcam suas ações é, na maior parte do tem- ção de um princípio abstrato pelos flósofos Ma-
po, secundário em relação ao sentimento da oris é apenas uma explicação entre outras desse
obrigação; em outras palavras, que geralmente caráter consubstancial da substituibilidade à de-
se tratam de racionalizações de segundo grau, e terminação do objeto. Se é preciso buscar uma
que assim, as teorias que nós construímos sobre origem simbólica para a reciprocidade, é porque
nosso próprio universo normativo são tão sus- não é necessário acrescentar nada ao signo para
cetíveis de serem verdadeiras ou falsas quanto que este seja naturalmente dividido, duplamente
qualquer outra teoria. A vida social não é como atualizado, incessantemente entre dois, sempre
um conjunto de jogos cujas regras nós mes- virtualmente um outro... De maneira geral, se
mos nos damos; nós aprendemos a jogar antes as coisas são avaliadas, não é por um princípio
mesmo de conhecê-las. Quando os sujeitos nos abstrato externo (como o é ainda o “trabalho so-
dizem que, em tal ação, eles aplicam tal regra, cial” para Marx e para o conjunto da tradição
nós não temos, portanto, nenhuma razão para socialista), mas porque elas só podem ser identi-
acreditar neles. Um pouco de familiaridade fcadas em um espaço de substituição virtual. As-
com o direito mostra que uma grande parte do sim, os atos dos homens não estão no princípio
trabalho doutrinal consiste em esclarecer a na- da troca, mas são tantos momentos daquilo que
tureza da norma à qual de fato se obedece13... se poderia chamar de processo do valor, no sen-
Admitamos com Lévi-Strauss, portanto, que é tido do processo de determinação progressiva e
legítimo não apenas buscar dar uma outra ex- sempre arriscada das entidades simbólicas umas
plicação racional aos comportamentos, como em relação às outras. As avaliações subjetivas são
também mostrar que as racionalizações secun- secundárias: o valor, ainda que “visto do espírito”
dárias que expressamos são, frequentemente, (se podemos falar assim), coloca suas exigências
consequências da racionalidade real, ainda que aos homens e os submete a sua lei. Ou melhor: o
não explícita, de nosso comportamento. potlatch não deve ser interpretado como o teste-
Ora, contrariamente ao que dirão certos munho de que a representação da relação social
leitores (por exemplo LEFORT, 1978), Lévi- como afrmação de sujeitos em sua rivalidade
-Strauss critica Mauss não por ter atribuído às implica uma relação bem determinada à pró-
coisas uma propriedade que só pode ser aquela pria coisa, onde ela se torna substituível pela sua
que homens conscientes e vivos lhes atribuem, própria negação?

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4. A matéria simbólica zer ou prescrever um cônjuge, mas também


o que permite reconhecer, em um conjunto
Ainda assim, não basta defnir o signo como de fenômenos bastante diversos (o desloca-
oposição para remontar à “origem” da socieda- mento de uma mulher, rituais, transferências
de ou do pensamento; é preciso ainda explicar de bens, etc), um acontecimento único. Um
por qual razão o “espírito humano” procede “sistema simbólico” não é um meio para dar
por oposição e correlação entre oposições e, sentido, mas uma organização real da experiên-
consequentemente, gera sistemas simbólicos. A cia, que atuando sobre a correlação entre seus
resposta a essa questão, nota Lévi-Strauss, ul- traços distintivos, extrai dela acontecimentos
trapassa os limites da antropologia e pertence descontínuos. Trata-se para o antropólogo de
à psicologia, ou até mesmo à biologia. Quanto reconstruir o sistema de traços pertinentes
ao antropólogo, ele pode se contentar com o que permite identifcar os acontecimentos. O
poderoso instrumento ao mesmo tempo crítico flósofo W. Quine tinha razão, para além de
e metodológico que essa hipótese fornece para suas próprias esperanças, quando dizia que o
seu próprio trabalho. Com efeito, o verdadeiro problema do antropólogo em uma situação de
problema do etnógrafo não é compreender o “tradução radical” não era reconstruir a “sig-
sentido que os atores dão aos objetos que eles nifcação” de uma performance verbal como
manipulam, aos seus gestos, etc., mas sim def- “Gavagai” (QUINE, 1960, p. 57), mas, antes
nir simplesmente aquilo que eles fazem, aqui- de tudo, conseguir perceber “Gavagai”, isto é,
lo que eles percebem, etc, se tornar sensível reconhecer esta palavra quando eventualmen-
àquilo que são sensíveis aqueles que ele estuda; te pronunciada em um outro contexto, por
reconstruir, poderíamos dizer, a escansão da uma senhora ao seu neto e não por um jovem
experiência deles. Sua atenção se voltará assim e arrogante informante, etc. E quando ele
para os detalhes que poderiam tê-lo escapado conseguir, ele se dará conta que compreendeu.
e que tornam signifcativos outros aspectos da O método é fecundo também porque é prospec-
realidade, precisamente por sua complemen- tivo: ele permite supor, a partir da reconstrução
taridade com os primeiros. O problema etno- das oposições determinantes de um sistema, a
gráfco é similar ao problema da aprendizagem atualização de variantes aparentemente não da-
de línguas estrangeiras que colocava Saussure das. Numerosas vezes ao longo das Mitológicas,
(1972:145): não se trata de compreender o que Lévi-Strauss se dedica à “verifcar” uma aná-
os outros dizem, mas de perceber os signos eles lise estrutural mostrando que um dos termos
mesmos, de passar, se assim podemos dizer, de do grupo de substituições (por exemplo uma
uma experiência confusa a uma experiência variante de um motivo mítico) é efetivamente
articulada. Não há, de um lado, fatos obser- realizado, e ao mesmo tempo confrma e am-
váveis e, de outro, as signifcações que se lhes plia a hipótese. Em sua busca pelo pensamento
atribui, de um lado realidades físicas, de outro simbólico, o antropólogo se limita, portanto,
os conceitos (isto é “um casamento”, “entre X a reconstruir seu funcionamento, e não teria
e Y”, etc): o que permite identifcar o aconte- condição de propor uma explicação.
cimento, ver simplesmente que ocorre algo, é Mas talvez seja que a resposta, na verdade,
também o que permite “compreendê-lo”. Um pertença à ontologia, na medida em que, como
sistema de parentesco não é apenas um con- dirá mais tarde Lévi-Strauss e cada vez com
junto de regras formais que permitem predi- mais insistência, “o espírito realiza operações

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que não diferem em natureza daquelas que se Ele acrescentava, contudo, que na prática
desenrolam no mundo desde o começo dos esta distinção entre as “qualidades primeiras”
tempos” (LÉVI-STRAUSS, [1983] 2010, p. e as “qualidades segundas” era possível e pro-
165). Assim, se a troca é a consequência desta veitosa nas ciências físicas. Ela não o é para as
“realidade autônoma” que é o social, não é so- ciências sociais na medida em que “as modif-
mente porque “os símbolos são mais reais que cações que [a observação] produz são da mesma
aquilo que simbolizam” (LÉVI-STRAUSS, ordem de grandeza que os fenômenos estuda-
[1950] 2003, p. 29), mas também porque o dos” (LÉVI-STRAUSS, [1958] 2008, p. 67;
real é ele mesmo simbólico: “a natureza das ver também LÉVI-STRAUSS, [1973] 2010).
coisas é de ordem ‘êmica’, não ‘ética’” (LÉVI- Esse dualismo metodológico volta, con-
-STRAUSS, [1983] 2010, p. 170), em outras tudo, a ser questionado no seio mesmo da
palavras, ela é feita destas virtualidades que são disciplina sobre a qual a distinção entre as
os signos, e não de suas atualizações passagei- qualidades primeiras e as qualidades segun-
ras; ela própria é puramente diferencial e não das durante muito tempo se fundou e se jus-
positiva14. Consequentemente, isso signifca tifcou, entre outros, a física. Efetivamente,
também que as próprias coisas são necessaria- sabemos que a mecânica quântica descreve a
mente interpretadas de maneiras exclusivas e evolução de um sistema microfísico à partir
complementares, que elas só se atualizam em de uma equação, “a equação de Schrödinger”,
pontos de vista. Não há, de um lado, os objetos que é contínua. Entretanto, quando o sistema
físicos, em sua identidade teimosa de coisas é mensurado, constata-se que ele sofre uma
indiferentes à interpretação que se faz delas, transição descontínua. Sabemos que essa dua-
e do outro, sujeitos que, lançando, por assim lidade evolutiva do sistema, ao mesmo tempo
dizer, do exterior seu olhar sobre as primeiras, contínua e descontínua, foi interpretada como
as decompõem em aspectos variados que de- uma dualidade onda-partícula, e que uma de
pendem da organização de seu aparelho per- suas consequências, entre outras, é que não
ceptivo. A própria coisa é apenas o sistema de se pode determinar ao mesmo tempo a velo-
pontos de vista nos quais ela se atualiza. As- cidade de uma partícula e sua posição, em um
sim, na “Introdução”, Lévi-Strauss contestava instante t. Não basta, contudo, atribuir este
a tentação de atribuir à separação do sujeito salto quântico à interação do sistema estuda-
e do objeto um valor defnitivo, mesmo nas do e do aparelho de medida, pois o segundo
ciências naturais: também é um sistema físico e o “grande siste-
ma” que eles constituem conjuntamente é, do
todo elemento do real é um objeto mas suscita ponto de vista da física, descritível pela equa-
representações, e uma explicação integral do ção de Schrödinger. O “problema da medida”
objeto deveria esclarecer simultaneamente sua é, portanto, interpretar esse salto, que parece
estrutura própria e as representações por meio não poder ser deduzido da descrição física do
das quais apreendemos suas propriedades. [...] sistema (BITBOL, 2000, p. 30-34). Ele im-
uma química total deveria nos explicar não plica, ao mesmo tempo, a questão da nature-
apenas a forma e a distribuição das molécu- za da matéria e a compreensão do que medir
las do morango, mas de que modo um sabor quer dizer. O próprio Lévi-Strauss intuiu que
único resulta desse arranjo (LÉVI-STRAUSS, a mecânica quântica apresentava problemas
[1950] 2003, p. 25) similares àqueles que ele encontrava. Ele cita

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diversas vezes uma frase de Niels Bohr, em formalizações (linguísticas ou matemáticas)


que o físico compara as “diferenças tradicio- de racionalidades processuais de generalidade
nais das culturas humanas” aos “modos diver- crescente; [...] cada região de objetividade cons-
sos, mas equivalentes, como se pode descrever tituída como patamar estacionário de uma dia-
uma experiência em física” (LÉVI-STRAUSS, lética (própria a cada racionalidade processual)
[1958] 2008, p. 320). das variações locais e da busca de invariância;
Um livro recente de Michel Bitbol permi- [...] o procedimento de objetivação é tido mais
te ampliar a comparação e precisá-la. O autor como meio de coordenar, de maneira cada vez
propõe que se considere os acontecimentos mais controlada, os enunciados situados, do que
produzidos pela medição não como aciden- como um fm, revelar alguma realidade absolu-
tes que acometem esta realidade completa ta (BITBOL, 2000, p. 332)
que seria o sistema descrito pela equação de
Schrödinger, mas antes como pontos de vis- Ele conclui, assim, que esse novo conceito
ta parciais e situados, relativos a outros, que de ciência “automaticamente quebra a separa-
são diferentes maneiras, incompatíveis mas ção metodológica entre ciências da natureza e
complementares, de se envolver em uma situ- ciências humanas, pois mobiliza para a ciência
ação experimental. Essa interpretação supõe da natureza que é a física um dos procedimen-
uma reformulação da teoria das probabilida- tos mais específcos das ciências humanas: o
des, afm de mostrar que essas não medem procedimento hermenêutico, que implica a
a possibilidade de um acontecimento ocor- consideração das situações e de suas possíveis
rer independentemente da avaliação que faz intersubstituições, que tende a compreender
dela o sujeito, mas, antes, a possibilidade de os processos do interior, apoiando-se sobre o
“acontecimentos relativos a diversos contextos ponto de vista do participante e sobre suas dia-
por vezes incompatíveis”, “o cálculo clássico léticas parciais envolvimento-distanciamento,
das probabilidades sobre eventos que se pode mais do que a descrever um único grande ob-
tratar como ocorrendo por si só na natureza” jeto distanciado” (BITBOL, 2000, p. 341).
aparecendo à partir de então como um limite Mas se a lição do estruturalismo para as
macroscópico do cálculo quântico (BITBOL, ciências humanas é que a substituibilidade das
2000, p. 94). Assim, de certa maneira a me- posições só pode ser uma função da lingua-
cânica quântica obrigaria o ideal científco a gem (como afrma Michel Bitbol, seguindo
renunciar à interpretação metafísica que ele Wittgenstein) porque ela é consequência da
dá de si mesmo, como descrição descontextu- natureza semiológica dessa, isto é, do caráter
alizada, como “visão de parte nenhuma”, para opositivo ou diferencial dos elementos que a
reconhecer que ele não é mais que “uma prá- constituem, podemos sugerir que a confronta-
tica da comunicação que antecipa ou pressu- ção entre os resultados da antropologia estru-
põe a intercambialidade das posições entre os tural e os resultados de um século de debates
membros da comunidade falante” (BITBOL, sobre a mecânica quântica se anuncia como o
2000, p. 186). Aliás, Bitbol evoca Merleau- lugar promissor, onde talvez poderá se aproxi-
-Ponty para descrever essa compreensão que se mar o ideal que professava Lévi-Strauss: o da
funda apenas sobre a “reciprocidade do meu e reintegração “da cultura na natureza, e, fnal-
do outro” (BITBOL, 2000, p. 193). As teorias mente [da] vida no conjunto de suas condições
científcas deveriam ser avaliadas como físico-químicas”; ideal que supõe, contudo,

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que se esteja “preparado para ver cada redução “L’échange et la lutte des hommes” de Claude Lefort
(artigo de 1951, republicado em LEFORT, 1978),
perturbar por completo a ideia pré-concebida
“Marcel Mauss: une science en devenir” de Louis Du-
que se possa fazer do nível, qualquer que seja, mont (artigo de 1972, republicado em DUMONT,
que se tente alcançar” (LÉVI-STRAUSS, 1983), mais recentemente a obra de Vincent Des-
[1962] 2005, p. 276). Esse caminho que bus- combes, Les institutions du sens (DESCOMBES,
cava Merleau-Ponty, pelo qual Lévi-Strauss 1996, 245-266), Godelier (1996), Hénaf (2002).
teria escapado de Mauss permanecendo-lhe Frequentemente publica-se artigos que propõem
mostrar que a crítica de Lévi-Strauss passou ao largo
fel, encontraria aqui, portanto, um novo im-
do sentido exato das teses de Mauss, esse pecado ori-
pulso, no ponto em que se cruzam uma física ginal ao mesmo tempo simbolizando e explicando as
que reintegra as subjetividades na compreensão derivas do estruturalismo.
de seus próprios resultados e uma antropolo- 3. Da mesma forma, no fnal de As estruturas elementares
gia que explica o estilhaçamento da subjetivi- do parentesco: “A exogamia fornece o único meio de
dade pela lógica de entidades necessariamente manter o grupo como grupo, de evitar o fraciona-
mento e a divisão indefnidos que seriam o resultado
desdobradas. Não se deveria mais, a partir de
da prática dos casamento consanguíneos” (LÉVI-
então, defnir os símbolos como objetos de -STRAUSS, [1949] 2010, p. 520).
pensamento resultantes de um certo modo de 4. O próprio Lévi-Strauss parece refutar essa interpre-
funcionamento do espírito, e remeter sua expli- tação quando nega ter tentado fazer uma “gênese in-
cação à psicologia cognitiva, mas, antes, defnir consciente da troca” (LÉVI-STRAUSS, [1962] 2005,
o espírito como uma maneira de ser e um nível p. 300). Mas isso para dizer que ele estuda não tanto
as causas reais dos atos humanos, quanto os impera-
de desdobramento dessas realidades necessaria-
tivos que se descobre ao analisar a maneira como os
mente estilhaçadas, divergentes, que seriam os homens dão sentido àquilo que fazem.
símbolos, únicas realidades às quais, em últi- 5. Ver Marcel Hénaf (1991) para uma apresentação
ma instância, talvez nos seja permitido aceder. completa dessa leitura lévi-straussiana de Mauss no
Mas, reconhecendo assim não apenas o caráter que diz respeito aos estudos de parentesco e Hénaf
real dos valores, mas ainda o caráter simbólico (2002), para uma retomada e uma discussão comple-
ta do problema do dom.
do real, nós não reencontramos a direção que
6. “Por outro lado, ao associar-se cada vez mais intima-
os próprios Maori, há quase um século, nos mente à linguística, para um dia constituir com ela
haviam indicado pela voz de Mauss? Parece, uma vasta ciência da comunicação, a antropologia
efetivamente, que ainda há “muitas luas mor- social pode esperar benefciar-se das imensas perspec-
tas, ou pálidas, ou obscuras, no frmamento da tivas abertas à própria linguística pela aplicação do
razão”... Não obstante, é trabalhando sobre o raciocínio matemático ao estudo dos fenômenos de
comunicação” (LÉVI-STRAUSS, [1950] 2003, p.
fo do pensamento de Merleau-Ponty e talvez
33). E Lévi-Strauss remete a Cybernetics de Norbert
contra ele - e, nesse caso, fortemente contra ele Wiener e a Mathematical Teory of communication de
-, que se poderá contribuir para revelá-las. Shannon e Weaver.
7. Podemos pensar aqui em Piaget (1968). Um exemplo
bastante característico dessa síntese ecumênica entre
Notas a teoria dos sistemas e o estruturalismo foi proposta
por Wilden (1972).
8. Talvez não seja inútil lembrar que, para Saussure,
1. Cf. Merleau-Ponty, 1960. As referências remetem à
o cerne da semiologia se identifique à teoria do
bibliografa detalhada no fnal do texto.
valor e que, além disso, ela parece ter sido inspira-
2. Podemos citar, entre as mais importantes, a intro-
da diretamente por Pareto e o problema do valor
dução ao Sens pratique de Pierre Bourdieu (1980),
em economia.
L’échange symbolique et la mort de Baudrillard (1976),

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9. Mauss lembrava que “os Kwakiutl distinguem entre 13. A jurista Marcela Iacub mostrou a fertilidade heurís-
as simples provisões e a riqueza-propriedade” e que o tica dessa tese e propôs uma reinterpretação “dialéti-
termo que designava os objetos da segunda categoria, ca” do “positivismo jurídico” de Kelsen a partir desse
“dadekas”, devia signifcar originalmente “a coisa que princípio: cf. a introdução de Iacub (2002a) e tam-
se pega e que torna invejoso” (MAUSS, [1950] 2003, bém Iacub (2002b).
p. 207). É próprio do valor ser essencialmente dese- 14. Podemos nos reportar também às últimas páginas do
jável por outrem. Final do O homem nú, que vai do pensamento mí-
10. Eu deixo aqui em suspenso ao menos dois aspectos tico à percepção: “a matéria-prima, por assim dizer,
maiores da refexão de Lévi-Strauss que nuançam e da percepção visual imediata já consiste em oposições
completam a refexão aqui proposta. Primeiramente, o binárias como aquela entre simples e complexo, cla-
caráter “dialético” dos signos é um pouco mais comple- ro e escuro, claro sobre fundo escuro e escuro sobre
xo: um signo não é somente defnido por sua posição fundo claro, movimento dirigido de cima pra baixo
em relação a outros, mas também por suas relações com ou de baixo para cima, segundo um eixo reto ou obli-
outros, e essas duas determinações não podem ser intei- quo, etc.” (LÉVI-STRAUSS, [1971] 2011, p. 668),
ramente superpostas. Para uma exposição mais formal e da percepção ao próprio dado, para concluir que o
dessa dialética, na medida do possível, podemos nos re- estruturalismo “deixa entrever a ordem natural como
portar ao esquema do operador totêmico em O Pensa- um vasto campo semântico onde a existência de cada
mento Selvagem, onde vê-se bem que a simetria entre os elemento condiciona a de todos os outros”; realidade
esquemas posicionais de termos de níveis lógicos hierar- intrinsecamente “dialética”, diz ele também.
quicamente dependentes (espécie/indivíduo) é possível
na medida em que as relações sofrem uma “espécie de
torsão” (LÉVI-STRAUSS, [1962] 2005, p. 185). Esse Referências bibliográfcas
aspecto é um dos mais profundos do pensamento de
Lévi-Strauss. É ele que inspira o problema da fórmula
BAUDRILLARD, Jean. L’échange symbolique et la mort.
canônica do mito, onde os termos são defnidos ao mes-
Paris: Gallimard, 1976.
mo tempo por seu personagem (pastor, porco-espinho,
etc.) e por sua função. Da mesma forma, no parentesco BERGSON, Henri. La pensée et le mouvement, Paris: PUF
há uma relação “dialética” entre as nomenclaturas e as “Quadrige”, 1942.
atitudes de parentesco. É nesse sentido que se deveria BITBOL, Michel. Physique et Philosophie de l’esprit. Paris:
aprofundar a teoria da função simbólica. Aliás, é pre- Flammarion, 2000.
ciso notar que o parentesco e a linguagem não são tão BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique. Paris: Minuit,
facilmente passíveis de serem superpostos por diversas 1980.
razões, uma delas nos levando ao cerne da contribuição
DUMONT, Louis. Essais sur l’individualisme, Une pers-
lévi-straussiana à teoria do valor: no parentesco, “objeto
pective anthropologique sur l’idéologie modern. Paris:
e sujeito de comunicação são quase da mesma natureza
Seuil “Points”, 1983.
(mulheres e homens respectivamente), enquanto que,
na linguagem, aquele que fala jamais se confunde com DESCOMBES, Vincent. Les institutions du sens. Paris:
suas palavras” (LÉVI-STRAUSS, [1958] 2008, p. 53; Minuit, 1996.
cf. também LÉVI-STRAUSS, [1949] 2010). Essa seria ERNST, Bruno. Le miroir magique de M.  C. Escher.
a diferença entre signo e valor. Köln: Taschen, 1994a.
11. Cf. o capítulo intitulado “O espírito da coisa dada” _____Le monde des illusions d’optique. Köln: Taschen,
(MAUSS, [1950] 2003, p. 197-200). 1994b.
12. Optamos por não traduzir o termo “échangeuses”
GODELIER, Maurice. L’énigme du don. Paris: Fayard,
aqui afm de manter a fórmula adjetival empregada
1996.
por Patrice Maniglier, sem equivalente em língua
portuguesa e fundamental para caracterizar a troca HÉNAFF, Marcel Claude Lévi-Strauss et l’anthropologie
como uma propriedade intrínseca do sujeito, da pes- structural. Paris: Belfond, 1991.
soa, concepção essa que é combatida por Maniglier _____Le prix de la vérité, Le don, l’argent, la philosophie.
nesse trecho (N. de T.). Paris: Seuil, 2002.

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“De Mauss a Claude Lévi-Strauss”, cinquenta anos depois | 179

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JAKOBSON, Roman. Six leçons sur le son et sur le sens. Saussure et la naissance du structuralisme. Paris: Léo
Paris: Minuit, 1976. Scheer, 2006.
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[1971] 2011. munication and exchange. London: Tavistock, 1972.

traduzido de
MANIGLIER, Patrice. “De Mauss à Claude Lévi-Strauss: cinquante ans après. Pour une on-
tologie Maori”. Archives de Philosophie, numéro spécial “Merleau-Ponty”, dir. Etienne Bimbenet
et Emmanuel de Saint-Aubert, Tome 69, Cahier 1, Printemps, 2006 (p. 37-56).

tradutor Ian Packer


Mestre em Filosofa (EHESS/França)

revisor Nicodème de Renesse


Doutorando em Antropologia Social/USP

cadernos de campo, São Paulo, n. 22, p. 163-179, 2013

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