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Territórios etnoeducacionais e educação escolar indígena: 
percepções, reflexões e apropriações a partir de um pensar 
emocional ameríndio 
 
 
 
 
Resumo   
Este  artigo  propõe  reflexões  acerca  da  política  de  Fernanda Brabo Sousa 
territórios  etnoeducaconais,  criados  a  partir  do  Decreto  nº  UFRGS 
6.861/2009,  buscando  em  especial  perceber  como  vem  se  fernanda_brabo@yahoo.com.br 
dando  sua  apropriação  pelos  povos  indígenas  brasileiros.   
Tem como objetivo específico compreender de que modo o   
pensar  emocional  ameríndio,  proposto  por  Rodolfo  Kusch,   
parecem  contribuir  para  as  apropriações  étnico‐culturais   
desta política indigenista educacional. Metodologicamente,   
utilizou‐se a teoria da razão sensível, formulada por Michel   
Maffesoli,  abarcando  as  dimensões  da  afetividade  e  do 
afetual  contidos  no  fazer‐se  desses  etnoterritórios.  Como 
fundamentação  teórica,  considerou‐se  o  modo  como, 
segundo Kusch, as culturas indígenas parecem estruturar‐se 
sobre  a  afeição,  estabelecendo  sua  coerência  interna  a 
partir  do  fundo  afetivo  em  que  atua,  sem  dissociar  os 
aspectos  racionais  dos  emocionais.  Como  resultados 
iniciais,  o  estudo  aponta  para  uma  visão  orgânica  da 
realidade  que  integra  o  estar‐se‐fazendo  da  educação 
escolar indígena às questões de territorialidades ancestrais 
e atuais, pautada em uma racionalidade de fundo afetivo e 
emocional. Assim, a partir do pensar emocional ameríndio, 
parece  ser  possível  a  compreensão  de  como  os  povos 
indígenas  vêm  se  apropriando  da  política  de  territórios 
etnoeducacionais. 
 
Palavras‐chave: territóriosetnoeducacionais; educação 
escolar indígena; pensar emocional; dimensão do coração 
 

X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014.   
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Territórios etnoeducacionais e educação escolar indígena: percepções, reflexões e apropriações a partir de 

X Anped Sul
um pensar emocional ameríndio 
Fernanda Brabo Sousa 

Os territórios etnoeducacionais –  TEE, criados a partir do Decreto Presidencial nº 
6.861/2009,  surgem  como  um  marco  político‐jurídico  na  história  dos  movimentos 
indígenas  brasileiros,  ao  possibilitarem  que  a  organização  da  educação  escolar  indígena 
se dê em atenção à territorialidade de seus povos. A partir daí, intensifica‐se e revigora‐se 
a discussão sobre terras, territórios e territorialidades, identidades étnicas e processos de 
identificação indígenas, sob o viés da educação. Cerca de quatro anos depois, a Portaria 
nº  1.062/2013  institui  o  Programa  Nacional  dos  Territórios  Etnoeducacionais  –  PNTEE, 
estabelecendo diretrizes mais específicas para a implementação e o funcionamento dos 
etnoterritórios.  Este  documento  foi  editado  no  mesmo  número  de  Diário  Oficial  que  a 
Portaria nº 1.061/2013, que institui a Ação Saberes Indígenas na Escola, tendo por principal 
objetivo  a  formação  continuada  de  professores  indígenas,  sendo  parte  integrante  e 
fundamental do PNTEE. 

Considerando o caráter recente da política indigenista em questão, as lacunas, os 
consensos e os dissensos em seu entendimento e uma aparente e relativa vagareza em 
sua  implementação,  este  artigo  propõe  algumas  reflexões  acerca  dos  territórios 
etnoeducaconais  e  do  modo  como  vem  se  fazendo  a  compreensão  desta  política  pelos 
povos indígenas brasileiros. 

Territórios etnoeducacionais: alguns olhares iniciais 
No ano de 2009, o Governo Federal editou o Decreto nº 6.861, criando uma nova 
situação política e jurídica na história da educação escolar indígena no Brasil: os territórios 
etnoeducacionais  –  TEE.  Com  uma  proposta  original  no  que  diz  respeito  ao 
reconhecimento  das  identidades  étnicas  dos  povos  indígenas  e  a  possibilidade  de  uma 
gestão  mais  autônoma  de  seus  processos  escolares,  ao  aliar  a  questão  educacional  à 
territorial,  essa  política  inaugura  um  novo  momento  no  processo  histórico  de 
protagonismo  escolar  indígena.  Por  isso,  consideramos  a  criação  dos  TEE  um  marco 
jurídico‐político na história de dominação e resistência em que estão envolvidos os povos 
indígenas brasileiros. 

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Territórios etnoeducacionais e educação escolar indígena: percepções, reflexões e apropriações a partir de 

X Anped Sul
um pensar emocional ameríndio 
Fernanda Brabo Sousa 

Em  linhas  gerais,  a  ideia  de  território  etnoeducacional  denota  um  movimento  de 
organização  da  educação  escolar  indígena  em  consonância  à  territorialidade  de  seus 
povos,  independente  da  divisão  política  entre  estados  e  municípios  que  compõem  o 
território  brasileiro.    Ainda  no  plano  das  ideias  e  da  sua  concretude,  tal  movimento 
revigora  a  discussão  sobre  terras,  territórios  e  territorialidades,  identidades  étnicas  e 
processos de identificação indígenas, pelo viés da educação. Segundo o documento, isso 
significa dizer que  

 
Cada  território  etnoeducacional  compreenderá,  independentemente  da 
divisão  político‐administrativa  do  País,  as  terras  indígenas,  mesmo  que 
descontínuas,  ocupadas  por  povos  indígenas  que  mantêm  relações 
intersocietárias  caracterizadas  por  raízes  sociais  e  históricas,  relações 
políticas  e  econômicas,  filiações  lingüísticas,  valores  e  práticas  culturais 
compartilhados (BRASIL, 2009, p. 01).  
 
O  texto  do  Decreto  traz  mais  um  importante  aspecto  político  que  abre 
possibilidades  para  outro  paradigma,  outra  perspectiva  para  a  relação  entre  povos 
indígenas  e  Estado:  o  reconhecimento,  por  parte  do  Estado  brasileiro,  dos  povos 
indígenas como sujeitos políticos ativos, conscientes e responsáveis pela construção dos 
projetos que lhes digam respeito, construindo possíveis diálogos de interculturalidade e 
empoderamento  indígena.  Com  isso,  a  escola  indígena  passa  a  trazer  em  seu  bojo  uma 
evidente  e  respaldada  autoria  indígena,  mostrando‐se  um  caminho  viável  para  a 
legitimação  de  identidades  e  afirmações  étnicas,  expressas  por  meio  de  projetos 
autônomos de educação escolar indígena. 

Considerando  o  caráter  recente  da  política  de  territórios  etnoeducacionais  e  a 


escassez  de  estudos  acadêmicos  sobre  as  proposições  e  repercussões  do  Decreto 
Presidencial  nº  6.861/2009,  que  cria  os  TEE,  esta  pesquisa  mostra‐se  de  significativa 
relevância para o entendimento da educação escolar indígena em suas interfaces com a 
questão  territorial.  Tal  relevância  justifica‐se  tanto  pelo  momento  atual  das  políticas 
indigenistas de educação escolar e de demarcação de terras, quanto pela retomada das 
ações  de  consulta  e  implementação  dos  territórios  etnoeducacionais,  eixo  principal  da 
política  nacional  de  Educação  Escolar  Indígena  no  Ministério  da  Educação  –  MEC  e  na 

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Fernanda Brabo Sousa 

Secretaria  de  Educação  Continuada,  Alfabetização,  Diversidade  e  Inclusão  –  SECADI,  no 


final do ano de 2012 e início de 2013. 

No  ano  de  2013,  após  vários  meses  de  indefinições  e  imprecisões  nos  setores 
governamentais  responsáveis  e  envolvidos  com  a  educação  escolar  indígena,  o 
movimento de pensar coletivamente os TEE intensifica‐se, a partir da Portaria Ministerial 
nº  1.062  de  30  outubro  de  2013,  que  institui  o  Programa  Nacional  de  Territórios 
Etnoeducacionais  –  PNTEE,  integrada  à  criação  da  Ação  Saberes  Indígenas  na  Escola, 
instituída pela Portaria nº 1.061 de 30 de outubro de 2013. Tal Ação, surgida por demanda 
dos  TEE  já  pactuados,  reafirma  o  compromisso  do  Ministério  da  Educação  com  a 
educação  escolar  indígena  básica  e  superior,  atuando  em  especial  na  promoção  de 
formação continuada de professores indígenas. 

No sentido de esclarecer e definir os princípios de organização dos TEE, a Portaria 
nº 1.62/2013 afirma, em seu segundo artigo o seguinte: 

 
Art. 2º Os territórios etnoeducacionais são espaços institucionais em que 
os  entes  federados,  as  comunidades  indígenas,  as  organizações 
indígenas e indigenistas e as instituições de ensino superior pactuam as 
ações  de  promoção  da  educação  escolar  indígena,  efetivamente 
adequada  às  realidades  sociais,  históricas,  culturais,  ambientais  e 
linguísticas dos grupos e comunidades indígenas. (BRASIL, 2013, p. 01) 
 
No entanto, o relativo desconhecimento do funcionamento da política em questão 
por parte de importantes lideranças e intelectuais indígenas no estado do Rio Grande do 
Sul,  local  de  onde  parte  o  olhar  desta  pesquisa,  e  a  inexistência  de  territórios 
etnoeducacionais  nas  regiões  Sul  e  Sudeste  do  país  provoca  inquietantes  indagações. 
Nesse  sentido,  este  artigo  propõe‐se  a  refletir  acerca  da  política  em  questão,  buscando 
compreender como a dimensão do “coração”, de acordo com o pensamento kuschiano, 
parece  incidir  de  maneira  contundente  nas  apropriações  étnico‐culturais  e  no  estar‐se 
fazendo  da  política  de  TEE  e  em  seu  acolhimento  pelos  povos  indígenas.  Ou  seja: 
perceber de que forma a dimensão do coração, citada pelos estudos de Rodolfo Kusch, 
aliando  razão  e  emoção  em  um  corpo  indissociável,  interfere  nas  apropriações  de 
políticas específicas pelos povos indígenas. 

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1. Tomada de consciência étnica e razão sensível 
Essa pesquisa, embora ainda em fase inicial, fundamenta‐se em duas abordagens 
teóricas  que,  ao  serem  relacionadas  entre  si,  dão  suporte  argumentativo  ao  estudo:  a 
tomada  de  consciência  étnica  pensada  por  José  Bengoa  e  o  método  da  razão  sensível 
formulado por Michel Maffesoli.  

Segundo José Bengoa (2000), com o fim das ditaduras políticas nos países latino‐
americanos de expressiva população indígena, uma crescente “consciência étnica” ― no 
sentido  de  uma  verdadeira  “tomada  de  consciência”  ―  emergiu,  de  modo  a  fazer  com 
que  a  questão  indígena  fosse  incorporada  às  agendas  políticas  desses  novos  governos 
democráticos.  Ao  questionarem  as  relações  de  dominação  e  resistência  em  que 
historicamente  estiveram  envolvidos,  movimentos  indígenas  passaram  a  se  organizar 
mais  sistematicamente,  tornando‐se  atores  político‐sociais  cientes  de  seus  direitos  e 
expressando novas identidades.  

Claro  está  que  essa  tomada  de  consciência,  no  sentido  que  Bengoa  nos  propõe, 
não se deu de uma hora para a outra. A questão indígena ― como foi nomeada ― fez‐se 
notória, entre outros motivos, principalmente a partir da apropriação dos dispositivos de 
mídia  e  dos  aparatos  legais  que  ordenam  as  sociedades.  Não  por  coincidência,  a 
emergência étnica deu‐se logo após a queda de governos autoritários e populistas e com 
o  fim  da  Guerra  Fria,  rompendo  os  laços  com  um  ideal  de  cidadania  e  um  discurso  de 
nacionalidade  que  não  atendia  às  expressões  identitárias  dos  diversos  povos  indígenas 
latino‐americanos. 

De  acordo  com  o  mencionado  autor,  a  globalização  é  grande  responsável  pela 


necessidade  de  produção  de  novos  discursos  de  identidade  e  lutas  por  autonomia  de 
grupos minoritários, num duplo processo de globalização e particularismo. Diante de uma 
possível  “ameaça  cultural”  de  um  mundo  globalizado  e  interconectado,  identificar‐se  e 
identificar o outro parece ser um movimento fundamental para fazer parte deste mundo 
e, ao mesmo tempo, não sucumbir a ele.  

Este nuevo discurso de las identidades étnicas tiene um camino de ida y 
regreso: se fundamenta en última instancia en lo que ha sido la tradición 

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Territórios etnoeducacionais e educação escolar indígena: percepções, reflexões e apropriações a partir de 

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Fernanda Brabo Sousa 

identitaria  de  la  comunidad,  la  que  podemos  denominar  la  “identidad 
tradicional”.  El  discurso  viaja  por  las  culturas  adyacentes,  en  particular, 
por  la  cultura  dominante  que  es  a  quien  se  dirigirá.  Allí  se  “reprocesa”, 
adquiere  un  lenguaje  nuevo,  diversas  entonaciones  y  incluso  cambia  las 
prioridades  como  consecuencia  de  alianzas  culturales.  En  un  tercer 
movimiento  discursivo,  vuelve  a  la  comunidad,  es  asumido  como  “el 
nuevo discurso” y muchas veces reemplaza incluso al discurso identitario 
tradicional. (BENGOA, 2000, p. 39)  
 
Interessante notar que esse discurso de identidade é pautado na coletividade, isto 
é, não se refere a identidades individuais ou a uma identidade do sujeito, mas sim, a uma 
identidade coletiva que dá forma e corpo às reivindicações e pautas de lutas indígenas ― 
o que, segundo Maffesoli, seria o “reconhecimento de si a partir do reconhecimento do 
grupo”  (2001,  p.  19).  Uma  identidade  que  se  produz  em  resposta  a  uma  autodemanda 
indígena,  no  sentido  de  que  o  Estado,  entes  federativos,  autoridades,  intelectuais  e  a 
sociedade como um todo possam reconhecer a existência de populações indígenas acima 
da  máscara  de  uma  pretensa  igualdade  que,  ao  nivelar  culturas  sob  a  égide  do 
“politicamente correto”, apaga suas diferenças primordiais, suas histórias, suas relações 
e suas características identitárias. 

Faz‐se necessário frisar que ao refletirmos sobre os processos de retomada (e não 
resgate) e visibilidade de identidades indígenas o fazemos no plural, no sentido de fazer 
perceber  o  engodo  da  visão  de  índio  genérico  e,  ao  mesmo  tempo,  a  força  política  do 
discurso  de  identidade  étnico‐cultural  desses  indígenas  que  a  autoproclamam.  Segundo 
Gersem Baniwa, 

 
É  importante  destacar  que  quando  estamos  falando  de  identidade 
indígena  não  estamos  dizendo  que  exista  uma  identidade  indígena 
genérica  de  fato,  estamos  falando  de  uma  identidade  política  simbólica 
que articula, visibiliza e acentua as identidades étnicas de fato, ou seja, as 
que são específicas [...] (BANIWA, 2006, p. 40) 
 
Sobre essa necessidade de uma identidade reinventada, ou melhor, ressignificada, 
produzida  pelos  próprios  indígenas,  em  função  de  seus  interesses  e  objetivos,  para  si  e 
para  o  outro  ―  buscando  se  livrar  do  caráter  das  políticas  indigenistas  em  que  não 
indígenas  definiam  o  que  devia  ser  bom  ou  ruim  às  populações  indígenas  ―,  Bengoa 
afirma:  “es  una  identidad  que  permite  construir  un  puente  entre  las  culturas 

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Fernanda Brabo Sousa 

tradicionales,  que  son  ‘las  que  saben’  y  la  culturas  indígenas  urbanas  que  son  ‘las  que 
recuerdan’” (BENGOA, 2000, p. 129).  

O autor segue dizendo:  

 
Los  indígenas  son  demandados  acerca  de  sua  identidad.  Deben 
responder a preguntas tan sencillas pero tan difíciles de ¿y por qué usted 
es indígena? o más aún cuando se trata de poblaciones mestizas vecinas 
¿qué hace que usted sea indígena? La vida indígena “globalizada” exige 
respuestas a las preguntas sobre identidad. El dirigente indígena que va a 
una reunión debe además saber explicar a sus compañeros indígenas las 
características peculiares de su grupo humano. Debe mostrar su carácter 
de  indígena  y  además  debe  mostrar  sua  especificidad  como  maya, 
chiriguano, quéchua o mapuche (BENGOA, 2000, p. 130).  
 
Nesse  sentido,  a  construção  de  uma  identidade  étnica  como  ferramenta  de  luta 
para  o  reconhecimento  do  direito  à  diferença  parece  dar‐se  a  partir  da  lógica  de 
processos  de  identificação  de  que  nos  fala  Maffesoli.  Apoiando‐se  em  uma  “teoria  da 
relatividade” da identidade, o autor expõe as imprecisões da formação de um “eu” bem 
contornado e encerrado em si mesmo.  

Reconhecendo que esse “eu” de contornos indefinidos existe apenas a partir das 
situações e das experiências que o fazem “individual”, ou seja, que “o sujeito é um ‘efeito 
de  composição’”  (MAFFESOLI,  1996),  o  processo  de  construção  de  identidades  faz‐se  a 
partir do outro e da necessidade de afirmar‐se e identificar‐se perante esse outro. E ainda, 
por  tratar‐se  de  um  processo  constante  de  (re)elaboração  de  si  e  da  visão  de  si  e  dos 
outros,  há  sucessivas  identificações  de  acordo  com  “afinidades  eletivas”  e  vicissitudes 
das relações, o que nos permite contrapor a unicidade da identidade à multiplicidade da 
identificação.  

A sensibilidade teórica postulada por Maffesoli no fazer da pesquisa e no fazer‐se 
do  pesquisador  deu  origem  a  um  termo  por  mim  utilizado  como  “mostrar  consciente”, 
que  entendo  ser  o  olhar  atento  às  minúcias  e  ao  todo  daquilo  que  se  olha,  buscando 
compreender  o  que  é,  sem  tentar  forçosamente  explicar  o  que  se  vê.  O  mostrar  sem  a 
necessidade  de  ter  de  demonstrar,  fugindo  à  tentação  do  dever  ser,  reconhecendo  as 
potencialidades  presentes  naquilo  que  se  olha,  conscientemente,  com  os  sentidos 
despertos e livres do jugo moral do passado e do futuro sobre um presente que está se 

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fazendo.    Por  meio  de  um  mostrar  consciente,  que  considera  ainda  a  importância 
fundamental da intuição sobre o que se olha e o que se quer e se permite ver, acredito ser 
possível descrever o fenômeno estudado sem procurar explicá‐lo, mas compreendê‐lo em 
suas mais variadas acepções.  

Com isso, a razão sensível traduz‐se também na tentativa de abandonar a moral do 
"dever  ser"  para  mostrar  “o  que  é”.  Utilizando  um  presenteísmo  necessário  e 
entendendo  a  política  educacional  em  questão  como  oriunda  de  um  processo 
historicamente construído e fruto de seu tempo, a reflexão sobre um mostrar consciente 
parece‐nos mais relevante à pesquisa, como um estudo que não se encerra na academia. 
Trata‐se  de  uma  inteligência  que,  quanto  mais  conectada  à  vida  real  ―  esta  como  vida 
que  não  se  curva  à  regra  (MAFFESOLI,  1998)  ―,  menos  confinada  entre  os  muros  das 
instituições formais de saber.  

Ao entender a atualidade da questão indígena inserida em uma possível história do 
tempo  presente,  como  fenômeno  que  está  se  fazendo,  em  contínuo  movimento,  o 
pesquisador precisa agir como um farejador social, segundo Maffesoli. Isso significa dizer 
que,  para  além  do  que  está  posto  na  superfície  e  no  centro  do  fenômeno,  faz‐se 
necessário investigar suas camadas e seus arredores, como uma obra visual que precisa 
ser vista em um conjunto coeso de tela, moldura e contexto. 

Assim, do que poderia ser uma análise objetiva de política pública, com todo seu 
peso e rigidez metodológica, partimos para o estudo do fazer‐se, ou do estar‐se‐fazendo 
da política em questão pelos povos indígenas e de seu acolhimento, entendido aqui como 
apropriação étnico‐cultural, mas também intelecto‐emocional. Considerando os sentidos 
e significados que o termo “acolher” assume em nossa língua pátria e sua etimologia, do 
latim acolligere, uma das dimensões por ele abarcada é a da afetividade e do afetual. 

2. O pensar emocional: afetividade e coração 
O  mostrar  consciente  proposto  neste  estudo,  amparado  pelo  método  da  razão 
sensível  maffesoliana,  parece  encontrar  no  pensamento  do  filósofo  argentino  Rodolfo 
Kusch  contornos  mais  definidos.  Para  a  construção  deste  artigo,  buscamos  amparo  nas 

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um pensar emocional ameríndio 
Fernanda Brabo Sousa 

obras  “América  profunda”  (1962)  e  “El  pensamiento  indígena  y  popular  en  América” 
(1970),  reunidos  na  publicação  denominada  “Obras  Completas”  (2000),  em  quatro 
tomos.  É  a  partir  de  Kusch  que  percebemos  as  dificuldades  em  fazer  uma  mostração 
buscando  desvencilhar‐se  da  objetividade  academicista  e  de  uma  intelectualidade  que 
não  se  satisfaz  em  compreender  determinada  realidade,  mas  que  insiste  em  apontar 
soluções racionalizadas e objetivas para supostos problemas de outra ordem e natureza. 

A objetividade torna‐se desnecessária à medida que percebemos a relação entre a 
tentativa em ser objetivo e o próprio objeto. Isto é, se ao sermos objetivos evidenciamos 
o  objeto  exterior  a  nós,  a  objetividade  é  uma  maneira  de  relegar  a  subjetividade  a  uma 
internalidade obscurecida e mesmo esquecida, como os moldes acadêmicos de tradições 
europeias ocidentais nos ensinam. Assim, ver as coisas como são sem olhar para dentro 
de  nós  quando  buscamos  ver  ao  nosso  redor  pode  ser  uma  armadilha  de  ocultação  de 
nossa subjetividade. Kusch nos alerta: “com la objetividade tratamos de tapar lo que no 
queremos ver” (KUSCH, 2000, tomo II, p. 17). 

Nos estudos kuschianos sobre o pensamento indígena e popular na América Latina 
(embora  o  próprio  autor  questione  o  termo  “latino‐americano”  e  utilize,  em  grande 
parte,  a  nomenclatura  “América  do  Sul”),  as  culturas  indígenas  parecem  estruturar‐se 
sobre  a  afeição,  ritualizando  sua  afetividade  e  estabelecendo  sua  coerência  interna  a 
partir do fundo afetivo em que atua. Isso se dá, entre outros motivos, pela valorização do 
homem  em  seu  total,  em  uma  visão  orgânica,  indissociando  os  aspectos  racionais  dos 
irracionais,  ou  razões  de  emoções.  Segundo  os  relatos  de  Gonzales  Holguin  sobre  as 
culturas quéchua e aymara, estudados por Kusch, para o indígena, os aspectos irracionais 
de  sua  personalidade  são  amplamente  aceitos  e  equiparados  aos  racionais,  assim  como 
os  aspectos  emocionais  assumem  os  mesmo  valor  e  peso  que  os  racionais,  sem 
sobreposição ou submissão de um ao outro. 

Nos  relatos  indígenas  trazidos  por  Kusch  em  parte  de  suas  obras  de  cunho 
antropológico e filosófico, vemos o termo “corazón” como determinante para tomadas 
de  decisões  vistas  pelo  senso  comum  como  racionais.  O  coração  não  como  órgão  do 
corpo  humano  tal  e  simplesmente,  nem  tão  somente  pela  dimensão  emocional  como 

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Territórios etnoeducacionais e educação escolar indígena: percepções, reflexões e apropriações a partir de 

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comumente o tomamos, mas como regulador intuitivo do juízo individual, como instância 
objetiva e subjetiva de quem vê e sente o mundo. Segundo Kusch, 

 
El juicio emitido a partir del corazón es a la vez racional e irracional, por 
una parte dice lo que ve, o sea que participa del mundo intelectual de la 
percepción,  y  por  la  otra  siente  la  fe  en  lo  que  se  está  viendo,  casi  a 
manera de un registro profundo, como una afirmación de toda la psiquis 
ante la situación objetiva. Se trata de una especie de coordinación entre 
sujeto e objeto, con el predomínio de un sujeto total (KUSCH, 2000, tomo 
II, p. 304). 
 
Kusch diz que, por tomar decisões com o coração, que pode ser entendido como 
um  símbolo  de  integração  e  de  equilíbrio,  “todo  lo  indígena  aparece  con  ese  matiz  del 
‘porque  sí’,  casi  irracional,  com  el  cual  el  acompaña  sus  afirmaciones.  Pero,  lo  hace  así 
porque esa actitud le brinda una seguridad interna” (KUSCH, 2000, tomo II, p. 304). Trata‐
se  de  um  saber  emocional  que,  ao  sentir  e  contemplar,  internaliza  e  expressa  o 
movimento de sua realidade e sua verdade. Segundo Kusch, é 

 
un predominio  del sentir emocional sobre el ver mismo, de tal modo que 
ve para sentir, ya que es la emoción la que da la tónica a seguir frente a la 
realidad [...]. El registro que el indígena hace de la realidad es la afección 
que  ésta  ejerce  sobre  él,  antes  que  la  simple  connotación  perceptiva 
(KUSCH, 2000, tomo II, pp. 279‐280). 
 
Nesse  sentido,  é  interessante  notar  que  a  palavra  “pensamento”  não  costuma 
figurar entre os relatos indígenas estudados e produzidos por Kusch, mas vemos o largo 
uso do termo “saber”. O pensamento parece surgir como um pensar mais sistematizado 
sobre o saber do indígena, saber esse tanto racional quanto emocional, sem atribuição de 
valores em nosso estudo ao pensar, ao saber e ao sentir. Parece claro que o pensar, como 
categoria,  mostra‐se  de  origem  no  próprio  pensamento  europeu  ocidental  acadêmico, 
enquanto que o saber assenta suas origens em instâncias dos conhecimentos tradicionais 
indígenas (originários, ameríndios) e em dimensões mais subjetivas – o homem interior. 
Assim, 

 
El  saber  indígena  no  es  entonces  un  saber  del  porqué  o  causas  sino  del 
cómo  o  modalidades.  Tampoco  es  un  saber  disponible  que  pudiera  ser 
encerrado  o  almacenado,  y  menos  enajenado  de  un  sujeto,  sino  que 

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exige  el  compromiso  del  sujeto  que  o  manipula  (KUSCH,  2000,  tomo  II, 
pp. 317‐318).  
 
Se  deslocarmos  a  lógica  do  porquê  para  o  como  no  pensamento  político, 
poderemos  perceber  a  maneira  como  os  indígenas  tem  se  apropriado  das  políticas 
educacionais  indigenistas  que  são,  a  um  só  tempo,  fruto  e  semente  das  reivindicações, 
desejos,  recusas  e  esperanças  dos  movimentos  indígenas  brasileiros.  Pensando  desde 
uma  sabedoria  profunda  americana  e  indígena,  a  realidade  se  conjuga  dentro  dos 
princípios de uma gestação orgânica, onde tudo que está vivo sobre o solo nasce, cresce 
e  morre  e,  ao  morrer,  reintegra‐se  ao  solo  para  nascer,  num  ciclo  orgânico  animal  que 
rege o próprio saber, o sentir e o estar sendo no mundo. Assim também parece ocorrer 
com a ideia de política. Kusch nos diz que “El criterio de la política no sigue la causa y lo 
efecto sino la gestación. Se piensa politicamente em tanto se advierte la organicidad de 
un planteo político y el político a su vez actúa siempre como sembrador, porque espera 
que su idéa dê su fruto (KUSCH, 2000, tomo II, p. 222)”. 

Voltando  nosso  olhar  à  dimensão  do  coração  e  sua  complexidade,  podemos 


perceber seus outros aspectos e sua relevância para a decisão e coordenação de atos e 
atitudes  a  partir  da  aproximação  do  pensamento  de  Rodolfo  Kusch  e  da  filósofa 
espanhola  Maria  Zambrano.  Em  sua  obra  “A  metáfora  do  coração”,  publicada  pela 
primeira  vez  em  Havana,  1944,  a  escritora  faz  um  apanhado  dos  diversos  sentidos 
atribuídos  ao  nobre  órgão  e  das  figuras  por  ele  assumidas  no  senso  comum  e  no 
pensamento europeu na modernidade. Segundo Zambrano, o coração 

 
[...] é como um espaço que dentro da pessoa se abre para acolher certas 
realidades.  Lugar  onde  se  albergam  os  sentimentos  indecifráveis,  que 
saltam por cima dos juízos e daquilo que pode ser explicado. É amplo e 
também profundo, tem um fundo de onde saem as grandes resoluções, 
as grandes verdades que são certezas. E às vezes arde nele uma chama 
que  serve  de  guia  através  de  situações  complicadas  e  difíceis,  uma  luz 
própria  que  permite  abrir  passagem  onde  parecia  não  haver  passagem 
nenhuma;  descobrir  os  poros  da  realidade  quando  esta  se  mostra 
fechada. Encontrar também a solução de um conflito interior quando se 
caiu num labirinto inextricável por obra das enredadas circunstâncias [...].  
O coração é o símbolo e representação máxima de todas as entranhas da 
vida, a entranha onde todos encontram a sua unidade definitiva e a sua 
nobreza (ZAMBRANO, 2000, pp. 22‐23) 
 

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3. Territórios  etnoeducacionais:  retomada  de  uma  apropriação  étnica, 


cultural, política e afetiva 
O Decreto nº 6.861, publicado em 2009, criando a categoria e a ideia de territórios 
etnoeducacionais, produziu intensas movimentações e discussões ao longo daquele ano 
e nos dois anos subsequentes. Até o início do ano de 2012, foram pactuados vinte e dois 
(22)  etnoterritórios,  situação  que  se  mantém  inalterada  até  o  atual  momento,  embora 
cada TEE apresente suas especificidades e diferentes estágios de implantação, demandas 
e realidades. Os TEE pactuados são: Rio Negro, Baixo Amazonas, Juruá/Purus, Cone Sul, 
Povos  do  Pantanal,  A'uw  Uptabi,  Xingu,  Médio  Solimões,  Yby  Yara  ‐  Bahia,  Kakauatire, 
Mapuera,  Alto  Solimões,  Vale  do  Javari,  Cinta‐Larga,  Timbira,  Vale  do  Araguaia,  Tupi 
Mondé,  Tupi  Tupari,  Txapakura,  Ykukatu,  Tapajós  Arapiuns  e  Nambikwara,  segundo 
dados  mais  recentes  da  FUNAI  e  MEC/SECADI.  Além  dos  22  TEE  pactuados,  cerca  de 
oustros vinte (20) estão em fase de consulta e diagnóstico, primeiras etapas necessárias à 
pactuação e implementação de um território etnoeducacional. 

A  publicação  da  Portaria  Ministerial  nº  1.062,  em  outubro  de  2013,  que  institui  o 
Programa  Nacional  de  Territórios  Etnoeducacionais,  além  de  definir  e  precisar  o 
funcionamento  dos  etnoterritórios  e  do  regime  de  colaboração  entre  as  partes 
envolvidas em sua pactuação e suas ações expressas no Plano de Ação de cada território 
etnoeducacional,  parece  ter  lançado  novos  insumos  de  energia  e  interesse  na  política. 
Engendrando  os  movimentos  que  permeiam  os  rituais  de  pactuação  dos  TEE,  o  PNTEE 
tem  retomado  de  maneira  mais  sistemática  a  realização  de  reuniões  das  comissões 
gestoras  dos  TEE,  monitoramento  e  avaliação  das  ações  pactuadas  nos  respectivos 
planos  de  ação.  Com  isso,  novos  olhares  e  novos  entendimentos  parecem  terem  se 
voltado às possibilidades e potencialidades de uma política de educação escolar indígena 
que se organiza segundo as territorialidades e relações étnico‐culturais e socioambientais 
destes povos indígenas. No âmbito do estar‐se‐fazendo da política e do próprio cotidiano 
da  educação  escolar  indígena,  novas  apropriações  e  reflexões  parecem  permitir  um 
diálogo mais fecundo no campo da interculturalidade e da intercientificidade, e ainda no 
respeito às territorialidades ancestrais e aos modos de estar no mundo.  

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Territórios etnoeducacionais e educação escolar indígena: percepções, reflexões e apropriações a partir de 

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Fernanda Brabo Sousa 

Dessa  forma,  com  a  dimensão  do  coração,  exprimindo  uma  espécie  de  pensar 
emocional  ameríndio  e  uma  visão  orgânica  da  realidade,  acredito  ser  possível  observar, 
descrever,  refletir  e  compreender  relevantes  aspectos  sobre  como  os  povos  indígenas 
têm  acolhido  a  política  de  territórios  etnoeducacionais,  com  suas  esperanças, 
desconfianças, racionalidades, entendimentos e percepções dessa política educacional. 

Referências  
BANIWA, Gersem Luciano dos Santos. O Índio brasileiro: o que você precisa saber sobre 
os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC; LACED – Museu Nacional, 2006. 

BENGOA, José. La emergência indígena en América Latina. Santiago de Chile: Fondo de 
Cultura Econômica, 2000.  

BRASIL. Decreto Presidencial nº 6.861, de 27 de maio de 2009. Dispõe Sobre a Educação 
Escolar  Indígena,  Define  Sua  Organização  em  Territórios  Etnoeducacionais,  e  dá  Outras 
Providências. Brasília, DF, 2009. 

______. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Portaria nº 1.062, de 30 de outubro de 2013. Institui 
o Programa Nacional de Territórios Etnoeducacionais – PNTEE. Brasília, DF, 2013. 

KUSCH,  Rodolfo.  Obras  Completas  –  Tomo  II.  Argentina,  Rosário:  Editorial  Fundación 
Ross, 2000. 

MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.  

______. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 1998.  

______. A Conquista do Presente: por uma sociologia da vida cotidiana. Natal, RN: Argos, 
2001. 

ZAMBRANO,  Maria.  A  metáfora  do  coração  e  outros  escritos.  2ª  ed.  Lisboa:  Assírio  & 
Alvim, 2000. Trad. José Bento. 

X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014.   
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