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Territórios etnoeducacionais e educação escolar indígena:
percepções, reflexões e apropriações a partir de um pensar
emocional ameríndio
Resumo
Este artigo propõe reflexões acerca da política de Fernanda Brabo Sousa
territórios etnoeducaconais, criados a partir do Decreto nº UFRGS
6.861/2009, buscando em especial perceber como vem se fernanda_brabo@yahoo.com.br
dando sua apropriação pelos povos indígenas brasileiros.
Tem como objetivo específico compreender de que modo o
pensar emocional ameríndio, proposto por Rodolfo Kusch,
parecem contribuir para as apropriações étnico‐culturais
desta política indigenista educacional. Metodologicamente,
utilizou‐se a teoria da razão sensível, formulada por Michel
Maffesoli, abarcando as dimensões da afetividade e do
afetual contidos no fazer‐se desses etnoterritórios. Como
fundamentação teórica, considerou‐se o modo como,
segundo Kusch, as culturas indígenas parecem estruturar‐se
sobre a afeição, estabelecendo sua coerência interna a
partir do fundo afetivo em que atua, sem dissociar os
aspectos racionais dos emocionais. Como resultados
iniciais, o estudo aponta para uma visão orgânica da
realidade que integra o estar‐se‐fazendo da educação
escolar indígena às questões de territorialidades ancestrais
e atuais, pautada em uma racionalidade de fundo afetivo e
emocional. Assim, a partir do pensar emocional ameríndio,
parece ser possível a compreensão de como os povos
indígenas vêm se apropriando da política de territórios
etnoeducacionais.
Palavras‐chave: territóriosetnoeducacionais; educação
escolar indígena; pensar emocional; dimensão do coração
X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014.
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Territórios etnoeducacionais e educação escolar indígena: percepções, reflexões e apropriações a partir de
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um pensar emocional ameríndio
Fernanda Brabo Sousa
Os territórios etnoeducacionais – TEE, criados a partir do Decreto Presidencial nº
6.861/2009, surgem como um marco político‐jurídico na história dos movimentos
indígenas brasileiros, ao possibilitarem que a organização da educação escolar indígena
se dê em atenção à territorialidade de seus povos. A partir daí, intensifica‐se e revigora‐se
a discussão sobre terras, territórios e territorialidades, identidades étnicas e processos de
identificação indígenas, sob o viés da educação. Cerca de quatro anos depois, a Portaria
nº 1.062/2013 institui o Programa Nacional dos Territórios Etnoeducacionais – PNTEE,
estabelecendo diretrizes mais específicas para a implementação e o funcionamento dos
etnoterritórios. Este documento foi editado no mesmo número de Diário Oficial que a
Portaria nº 1.061/2013, que institui a Ação Saberes Indígenas na Escola, tendo por principal
objetivo a formação continuada de professores indígenas, sendo parte integrante e
fundamental do PNTEE.
Considerando o caráter recente da política indigenista em questão, as lacunas, os
consensos e os dissensos em seu entendimento e uma aparente e relativa vagareza em
sua implementação, este artigo propõe algumas reflexões acerca dos territórios
etnoeducaconais e do modo como vem se fazendo a compreensão desta política pelos
povos indígenas brasileiros.
Territórios etnoeducacionais: alguns olhares iniciais
No ano de 2009, o Governo Federal editou o Decreto nº 6.861, criando uma nova
situação política e jurídica na história da educação escolar indígena no Brasil: os territórios
etnoeducacionais – TEE. Com uma proposta original no que diz respeito ao
reconhecimento das identidades étnicas dos povos indígenas e a possibilidade de uma
gestão mais autônoma de seus processos escolares, ao aliar a questão educacional à
territorial, essa política inaugura um novo momento no processo histórico de
protagonismo escolar indígena. Por isso, consideramos a criação dos TEE um marco
jurídico‐político na história de dominação e resistência em que estão envolvidos os povos
indígenas brasileiros.
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Em linhas gerais, a ideia de território etnoeducacional denota um movimento de
organização da educação escolar indígena em consonância à territorialidade de seus
povos, independente da divisão política entre estados e municípios que compõem o
território brasileiro. Ainda no plano das ideias e da sua concretude, tal movimento
revigora a discussão sobre terras, territórios e territorialidades, identidades étnicas e
processos de identificação indígenas, pelo viés da educação. Segundo o documento, isso
significa dizer que
Cada território etnoeducacional compreenderá, independentemente da
divisão político‐administrativa do País, as terras indígenas, mesmo que
descontínuas, ocupadas por povos indígenas que mantêm relações
intersocietárias caracterizadas por raízes sociais e históricas, relações
políticas e econômicas, filiações lingüísticas, valores e práticas culturais
compartilhados (BRASIL, 2009, p. 01).
O texto do Decreto traz mais um importante aspecto político que abre
possibilidades para outro paradigma, outra perspectiva para a relação entre povos
indígenas e Estado: o reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, dos povos
indígenas como sujeitos políticos ativos, conscientes e responsáveis pela construção dos
projetos que lhes digam respeito, construindo possíveis diálogos de interculturalidade e
empoderamento indígena. Com isso, a escola indígena passa a trazer em seu bojo uma
evidente e respaldada autoria indígena, mostrando‐se um caminho viável para a
legitimação de identidades e afirmações étnicas, expressas por meio de projetos
autônomos de educação escolar indígena.
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No ano de 2013, após vários meses de indefinições e imprecisões nos setores
governamentais responsáveis e envolvidos com a educação escolar indígena, o
movimento de pensar coletivamente os TEE intensifica‐se, a partir da Portaria Ministerial
nº 1.062 de 30 outubro de 2013, que institui o Programa Nacional de Territórios
Etnoeducacionais – PNTEE, integrada à criação da Ação Saberes Indígenas na Escola,
instituída pela Portaria nº 1.061 de 30 de outubro de 2013. Tal Ação, surgida por demanda
dos TEE já pactuados, reafirma o compromisso do Ministério da Educação com a
educação escolar indígena básica e superior, atuando em especial na promoção de
formação continuada de professores indígenas.
No sentido de esclarecer e definir os princípios de organização dos TEE, a Portaria
nº 1.62/2013 afirma, em seu segundo artigo o seguinte:
Art. 2º Os territórios etnoeducacionais são espaços institucionais em que
os entes federados, as comunidades indígenas, as organizações
indígenas e indigenistas e as instituições de ensino superior pactuam as
ações de promoção da educação escolar indígena, efetivamente
adequada às realidades sociais, históricas, culturais, ambientais e
linguísticas dos grupos e comunidades indígenas. (BRASIL, 2013, p. 01)
No entanto, o relativo desconhecimento do funcionamento da política em questão
por parte de importantes lideranças e intelectuais indígenas no estado do Rio Grande do
Sul, local de onde parte o olhar desta pesquisa, e a inexistência de territórios
etnoeducacionais nas regiões Sul e Sudeste do país provoca inquietantes indagações.
Nesse sentido, este artigo propõe‐se a refletir acerca da política em questão, buscando
compreender como a dimensão do “coração”, de acordo com o pensamento kuschiano,
parece incidir de maneira contundente nas apropriações étnico‐culturais e no estar‐se
fazendo da política de TEE e em seu acolhimento pelos povos indígenas. Ou seja:
perceber de que forma a dimensão do coração, citada pelos estudos de Rodolfo Kusch,
aliando razão e emoção em um corpo indissociável, interfere nas apropriações de
políticas específicas pelos povos indígenas.
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1. Tomada de consciência étnica e razão sensível
Essa pesquisa, embora ainda em fase inicial, fundamenta‐se em duas abordagens
teóricas que, ao serem relacionadas entre si, dão suporte argumentativo ao estudo: a
tomada de consciência étnica pensada por José Bengoa e o método da razão sensível
formulado por Michel Maffesoli.
Segundo José Bengoa (2000), com o fim das ditaduras políticas nos países latino‐
americanos de expressiva população indígena, uma crescente “consciência étnica” ― no
sentido de uma verdadeira “tomada de consciência” ― emergiu, de modo a fazer com
que a questão indígena fosse incorporada às agendas políticas desses novos governos
democráticos. Ao questionarem as relações de dominação e resistência em que
historicamente estiveram envolvidos, movimentos indígenas passaram a se organizar
mais sistematicamente, tornando‐se atores político‐sociais cientes de seus direitos e
expressando novas identidades.
Claro está que essa tomada de consciência, no sentido que Bengoa nos propõe,
não se deu de uma hora para a outra. A questão indígena ― como foi nomeada ― fez‐se
notória, entre outros motivos, principalmente a partir da apropriação dos dispositivos de
mídia e dos aparatos legais que ordenam as sociedades. Não por coincidência, a
emergência étnica deu‐se logo após a queda de governos autoritários e populistas e com
o fim da Guerra Fria, rompendo os laços com um ideal de cidadania e um discurso de
nacionalidade que não atendia às expressões identitárias dos diversos povos indígenas
latino‐americanos.
Este nuevo discurso de las identidades étnicas tiene um camino de ida y
regreso: se fundamenta en última instancia en lo que ha sido la tradición
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identitaria de la comunidad, la que podemos denominar la “identidad
tradicional”. El discurso viaja por las culturas adyacentes, en particular,
por la cultura dominante que es a quien se dirigirá. Allí se “reprocesa”,
adquiere un lenguaje nuevo, diversas entonaciones y incluso cambia las
prioridades como consecuencia de alianzas culturales. En un tercer
movimiento discursivo, vuelve a la comunidad, es asumido como “el
nuevo discurso” y muchas veces reemplaza incluso al discurso identitario
tradicional. (BENGOA, 2000, p. 39)
Interessante notar que esse discurso de identidade é pautado na coletividade, isto
é, não se refere a identidades individuais ou a uma identidade do sujeito, mas sim, a uma
identidade coletiva que dá forma e corpo às reivindicações e pautas de lutas indígenas ―
o que, segundo Maffesoli, seria o “reconhecimento de si a partir do reconhecimento do
grupo” (2001, p. 19). Uma identidade que se produz em resposta a uma autodemanda
indígena, no sentido de que o Estado, entes federativos, autoridades, intelectuais e a
sociedade como um todo possam reconhecer a existência de populações indígenas acima
da máscara de uma pretensa igualdade que, ao nivelar culturas sob a égide do
“politicamente correto”, apaga suas diferenças primordiais, suas histórias, suas relações
e suas características identitárias.
Faz‐se necessário frisar que ao refletirmos sobre os processos de retomada (e não
resgate) e visibilidade de identidades indígenas o fazemos no plural, no sentido de fazer
perceber o engodo da visão de índio genérico e, ao mesmo tempo, a força política do
discurso de identidade étnico‐cultural desses indígenas que a autoproclamam. Segundo
Gersem Baniwa,
É importante destacar que quando estamos falando de identidade
indígena não estamos dizendo que exista uma identidade indígena
genérica de fato, estamos falando de uma identidade política simbólica
que articula, visibiliza e acentua as identidades étnicas de fato, ou seja, as
que são específicas [...] (BANIWA, 2006, p. 40)
Sobre essa necessidade de uma identidade reinventada, ou melhor, ressignificada,
produzida pelos próprios indígenas, em função de seus interesses e objetivos, para si e
para o outro ― buscando se livrar do caráter das políticas indigenistas em que não
indígenas definiam o que devia ser bom ou ruim às populações indígenas ―, Bengoa
afirma: “es una identidad que permite construir un puente entre las culturas
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tradicionales, que son ‘las que saben’ y la culturas indígenas urbanas que son ‘las que
recuerdan’” (BENGOA, 2000, p. 129).
O autor segue dizendo:
Los indígenas son demandados acerca de sua identidad. Deben
responder a preguntas tan sencillas pero tan difíciles de ¿y por qué usted
es indígena? o más aún cuando se trata de poblaciones mestizas vecinas
¿qué hace que usted sea indígena? La vida indígena “globalizada” exige
respuestas a las preguntas sobre identidad. El dirigente indígena que va a
una reunión debe además saber explicar a sus compañeros indígenas las
características peculiares de su grupo humano. Debe mostrar su carácter
de indígena y además debe mostrar sua especificidad como maya,
chiriguano, quéchua o mapuche (BENGOA, 2000, p. 130).
Nesse sentido, a construção de uma identidade étnica como ferramenta de luta
para o reconhecimento do direito à diferença parece dar‐se a partir da lógica de
processos de identificação de que nos fala Maffesoli. Apoiando‐se em uma “teoria da
relatividade” da identidade, o autor expõe as imprecisões da formação de um “eu” bem
contornado e encerrado em si mesmo.
Reconhecendo que esse “eu” de contornos indefinidos existe apenas a partir das
situações e das experiências que o fazem “individual”, ou seja, que “o sujeito é um ‘efeito
de composição’” (MAFFESOLI, 1996), o processo de construção de identidades faz‐se a
partir do outro e da necessidade de afirmar‐se e identificar‐se perante esse outro. E ainda,
por tratar‐se de um processo constante de (re)elaboração de si e da visão de si e dos
outros, há sucessivas identificações de acordo com “afinidades eletivas” e vicissitudes
das relações, o que nos permite contrapor a unicidade da identidade à multiplicidade da
identificação.
A sensibilidade teórica postulada por Maffesoli no fazer da pesquisa e no fazer‐se
do pesquisador deu origem a um termo por mim utilizado como “mostrar consciente”,
que entendo ser o olhar atento às minúcias e ao todo daquilo que se olha, buscando
compreender o que é, sem tentar forçosamente explicar o que se vê. O mostrar sem a
necessidade de ter de demonstrar, fugindo à tentação do dever ser, reconhecendo as
potencialidades presentes naquilo que se olha, conscientemente, com os sentidos
despertos e livres do jugo moral do passado e do futuro sobre um presente que está se
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fazendo. Por meio de um mostrar consciente, que considera ainda a importância
fundamental da intuição sobre o que se olha e o que se quer e se permite ver, acredito ser
possível descrever o fenômeno estudado sem procurar explicá‐lo, mas compreendê‐lo em
suas mais variadas acepções.
Com isso, a razão sensível traduz‐se também na tentativa de abandonar a moral do
"dever ser" para mostrar “o que é”. Utilizando um presenteísmo necessário e
entendendo a política educacional em questão como oriunda de um processo
historicamente construído e fruto de seu tempo, a reflexão sobre um mostrar consciente
parece‐nos mais relevante à pesquisa, como um estudo que não se encerra na academia.
Trata‐se de uma inteligência que, quanto mais conectada à vida real ― esta como vida
que não se curva à regra (MAFFESOLI, 1998) ―, menos confinada entre os muros das
instituições formais de saber.
Ao entender a atualidade da questão indígena inserida em uma possível história do
tempo presente, como fenômeno que está se fazendo, em contínuo movimento, o
pesquisador precisa agir como um farejador social, segundo Maffesoli. Isso significa dizer
que, para além do que está posto na superfície e no centro do fenômeno, faz‐se
necessário investigar suas camadas e seus arredores, como uma obra visual que precisa
ser vista em um conjunto coeso de tela, moldura e contexto.
Assim, do que poderia ser uma análise objetiva de política pública, com todo seu
peso e rigidez metodológica, partimos para o estudo do fazer‐se, ou do estar‐se‐fazendo
da política em questão pelos povos indígenas e de seu acolhimento, entendido aqui como
apropriação étnico‐cultural, mas também intelecto‐emocional. Considerando os sentidos
e significados que o termo “acolher” assume em nossa língua pátria e sua etimologia, do
latim acolligere, uma das dimensões por ele abarcada é a da afetividade e do afetual.
2. O pensar emocional: afetividade e coração
O mostrar consciente proposto neste estudo, amparado pelo método da razão
sensível maffesoliana, parece encontrar no pensamento do filósofo argentino Rodolfo
Kusch contornos mais definidos. Para a construção deste artigo, buscamos amparo nas
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obras “América profunda” (1962) e “El pensamiento indígena y popular en América”
(1970), reunidos na publicação denominada “Obras Completas” (2000), em quatro
tomos. É a partir de Kusch que percebemos as dificuldades em fazer uma mostração
buscando desvencilhar‐se da objetividade academicista e de uma intelectualidade que
não se satisfaz em compreender determinada realidade, mas que insiste em apontar
soluções racionalizadas e objetivas para supostos problemas de outra ordem e natureza.
A objetividade torna‐se desnecessária à medida que percebemos a relação entre a
tentativa em ser objetivo e o próprio objeto. Isto é, se ao sermos objetivos evidenciamos
o objeto exterior a nós, a objetividade é uma maneira de relegar a subjetividade a uma
internalidade obscurecida e mesmo esquecida, como os moldes acadêmicos de tradições
europeias ocidentais nos ensinam. Assim, ver as coisas como são sem olhar para dentro
de nós quando buscamos ver ao nosso redor pode ser uma armadilha de ocultação de
nossa subjetividade. Kusch nos alerta: “com la objetividade tratamos de tapar lo que no
queremos ver” (KUSCH, 2000, tomo II, p. 17).
Nos estudos kuschianos sobre o pensamento indígena e popular na América Latina
(embora o próprio autor questione o termo “latino‐americano” e utilize, em grande
parte, a nomenclatura “América do Sul”), as culturas indígenas parecem estruturar‐se
sobre a afeição, ritualizando sua afetividade e estabelecendo sua coerência interna a
partir do fundo afetivo em que atua. Isso se dá, entre outros motivos, pela valorização do
homem em seu total, em uma visão orgânica, indissociando os aspectos racionais dos
irracionais, ou razões de emoções. Segundo os relatos de Gonzales Holguin sobre as
culturas quéchua e aymara, estudados por Kusch, para o indígena, os aspectos irracionais
de sua personalidade são amplamente aceitos e equiparados aos racionais, assim como
os aspectos emocionais assumem os mesmo valor e peso que os racionais, sem
sobreposição ou submissão de um ao outro.
Nos relatos indígenas trazidos por Kusch em parte de suas obras de cunho
antropológico e filosófico, vemos o termo “corazón” como determinante para tomadas
de decisões vistas pelo senso comum como racionais. O coração não como órgão do
corpo humano tal e simplesmente, nem tão somente pela dimensão emocional como
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comumente o tomamos, mas como regulador intuitivo do juízo individual, como instância
objetiva e subjetiva de quem vê e sente o mundo. Segundo Kusch,
El juicio emitido a partir del corazón es a la vez racional e irracional, por
una parte dice lo que ve, o sea que participa del mundo intelectual de la
percepción, y por la otra siente la fe en lo que se está viendo, casi a
manera de un registro profundo, como una afirmación de toda la psiquis
ante la situación objetiva. Se trata de una especie de coordinación entre
sujeto e objeto, con el predomínio de un sujeto total (KUSCH, 2000, tomo
II, p. 304).
Kusch diz que, por tomar decisões com o coração, que pode ser entendido como
um símbolo de integração e de equilíbrio, “todo lo indígena aparece con ese matiz del
‘porque sí’, casi irracional, com el cual el acompaña sus afirmaciones. Pero, lo hace así
porque esa actitud le brinda una seguridad interna” (KUSCH, 2000, tomo II, p. 304). Trata‐
se de um saber emocional que, ao sentir e contemplar, internaliza e expressa o
movimento de sua realidade e sua verdade. Segundo Kusch, é
un predominio del sentir emocional sobre el ver mismo, de tal modo que
ve para sentir, ya que es la emoción la que da la tónica a seguir frente a la
realidad [...]. El registro que el indígena hace de la realidad es la afección
que ésta ejerce sobre él, antes que la simple connotación perceptiva
(KUSCH, 2000, tomo II, pp. 279‐280).
Nesse sentido, é interessante notar que a palavra “pensamento” não costuma
figurar entre os relatos indígenas estudados e produzidos por Kusch, mas vemos o largo
uso do termo “saber”. O pensamento parece surgir como um pensar mais sistematizado
sobre o saber do indígena, saber esse tanto racional quanto emocional, sem atribuição de
valores em nosso estudo ao pensar, ao saber e ao sentir. Parece claro que o pensar, como
categoria, mostra‐se de origem no próprio pensamento europeu ocidental acadêmico,
enquanto que o saber assenta suas origens em instâncias dos conhecimentos tradicionais
indígenas (originários, ameríndios) e em dimensões mais subjetivas – o homem interior.
Assim,
El saber indígena no es entonces un saber del porqué o causas sino del
cómo o modalidades. Tampoco es un saber disponible que pudiera ser
encerrado o almacenado, y menos enajenado de un sujeto, sino que
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exige el compromiso del sujeto que o manipula (KUSCH, 2000, tomo II,
pp. 317‐318).
Se deslocarmos a lógica do porquê para o como no pensamento político,
poderemos perceber a maneira como os indígenas tem se apropriado das políticas
educacionais indigenistas que são, a um só tempo, fruto e semente das reivindicações,
desejos, recusas e esperanças dos movimentos indígenas brasileiros. Pensando desde
uma sabedoria profunda americana e indígena, a realidade se conjuga dentro dos
princípios de uma gestação orgânica, onde tudo que está vivo sobre o solo nasce, cresce
e morre e, ao morrer, reintegra‐se ao solo para nascer, num ciclo orgânico animal que
rege o próprio saber, o sentir e o estar sendo no mundo. Assim também parece ocorrer
com a ideia de política. Kusch nos diz que “El criterio de la política no sigue la causa y lo
efecto sino la gestación. Se piensa politicamente em tanto se advierte la organicidad de
un planteo político y el político a su vez actúa siempre como sembrador, porque espera
que su idéa dê su fruto (KUSCH, 2000, tomo II, p. 222)”.
[...] é como um espaço que dentro da pessoa se abre para acolher certas
realidades. Lugar onde se albergam os sentimentos indecifráveis, que
saltam por cima dos juízos e daquilo que pode ser explicado. É amplo e
também profundo, tem um fundo de onde saem as grandes resoluções,
as grandes verdades que são certezas. E às vezes arde nele uma chama
que serve de guia através de situações complicadas e difíceis, uma luz
própria que permite abrir passagem onde parecia não haver passagem
nenhuma; descobrir os poros da realidade quando esta se mostra
fechada. Encontrar também a solução de um conflito interior quando se
caiu num labirinto inextricável por obra das enredadas circunstâncias [...].
O coração é o símbolo e representação máxima de todas as entranhas da
vida, a entranha onde todos encontram a sua unidade definitiva e a sua
nobreza (ZAMBRANO, 2000, pp. 22‐23)
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A publicação da Portaria Ministerial nº 1.062, em outubro de 2013, que institui o
Programa Nacional de Territórios Etnoeducacionais, além de definir e precisar o
funcionamento dos etnoterritórios e do regime de colaboração entre as partes
envolvidas em sua pactuação e suas ações expressas no Plano de Ação de cada território
etnoeducacional, parece ter lançado novos insumos de energia e interesse na política.
Engendrando os movimentos que permeiam os rituais de pactuação dos TEE, o PNTEE
tem retomado de maneira mais sistemática a realização de reuniões das comissões
gestoras dos TEE, monitoramento e avaliação das ações pactuadas nos respectivos
planos de ação. Com isso, novos olhares e novos entendimentos parecem terem se
voltado às possibilidades e potencialidades de uma política de educação escolar indígena
que se organiza segundo as territorialidades e relações étnico‐culturais e socioambientais
destes povos indígenas. No âmbito do estar‐se‐fazendo da política e do próprio cotidiano
da educação escolar indígena, novas apropriações e reflexões parecem permitir um
diálogo mais fecundo no campo da interculturalidade e da intercientificidade, e ainda no
respeito às territorialidades ancestrais e aos modos de estar no mundo.
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Dessa forma, com a dimensão do coração, exprimindo uma espécie de pensar
emocional ameríndio e uma visão orgânica da realidade, acredito ser possível observar,
descrever, refletir e compreender relevantes aspectos sobre como os povos indígenas
têm acolhido a política de territórios etnoeducacionais, com suas esperanças,
desconfianças, racionalidades, entendimentos e percepções dessa política educacional.
Referências
BANIWA, Gersem Luciano dos Santos. O Índio brasileiro: o que você precisa saber sobre
os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC; LACED – Museu Nacional, 2006.
BENGOA, José. La emergência indígena en América Latina. Santiago de Chile: Fondo de
Cultura Econômica, 2000.
BRASIL. Decreto Presidencial nº 6.861, de 27 de maio de 2009. Dispõe Sobre a Educação
Escolar Indígena, Define Sua Organização em Territórios Etnoeducacionais, e dá Outras
Providências. Brasília, DF, 2009.
______. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Portaria nº 1.062, de 30 de outubro de 2013. Institui
o Programa Nacional de Territórios Etnoeducacionais – PNTEE. Brasília, DF, 2013.
KUSCH, Rodolfo. Obras Completas – Tomo II. Argentina, Rosário: Editorial Fundación
Ross, 2000.
MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.
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______. A Conquista do Presente: por uma sociologia da vida cotidiana. Natal, RN: Argos,
2001.
ZAMBRANO, Maria. A metáfora do coração e outros escritos. 2ª ed. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2000. Trad. José Bento.
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