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ANTÔNIO JOSÉ SARAIVA

A CULTURA
EM PORTUGAL Teoria e História
2.» EdiçSo

Livro I
Introdução Geral à Cultura Portuguesa

BERTRAND EDITORA
VENDA NOVA
78 A CULTURA FM PORTUGAL

NOTAS
1 Pidal, Origcnes dei Espanol, tá. 1072, p. 632.
1 H. Meier, uA Formação da Língua Portuguesa» in Ensaios de Filo-
logia Romãnica. >
• Leif Sletsjõe, uA Regio portucalensis e os seus antigos documentos»
in Revisto de Portugal, XXV, 1960.
4 Ruy de Azevedo, iiúHistória da Expansão Portuguesa no Mundo, I,
p. 55.
9 Sobre a evolução dp português veja a breve mas muito clara sín-
tese de Paul Teyssier, em Histoire de la Langue Portugaise, 1.* ed., 1980
Icolecçio Que sais-je?).
4 Pidal, Ortgenes dei Espaãol.
' Pilar Vasquez Cuesta e Maria Albertina da Luz, Gramática Portu-
guesa, 3.* vol., II, p. 206.
4 W. D. Elcock, Romance Languages, London, 1971, p. 431.
' Pidal, op. cit., p. 518.
" Holger Sten, Les Particularités de la Langue Portugaise, 1944.
" W. D. Elcock, op. cit., p 435.
u Peter Rickard, Fernando Pessoa, Selected Poems, Edimburg Bilin-
gual Library, 1971, p. XI.
" Ver Holger Sten, op. cit.
14 Cit. poT Sten, op. cit.
3
ALGUMAS FEIÇÕES PERSISTENTES
DA PERSONALIDADE CULTURAL
PORTUGUESA
Partimos da hipótese de que uma cultura nacional
tem uma certa identidade e uma certa permanência no
tempo, qualquer que seja a razão disso.
Só são possíveis esta hipótese ou a contrária, isto é:
que não há particularidades nacionais, ou que todas as
nações oferecem as mesmas características. Esta segunda
hipótese aparece imediatamente como falsa a qualquer
pessoa que tenha viajado fora do seu país, ou que tenha
aprendido línguas, ou freqüentado as literaturas e as artes,
ou que conheça minimamente o comportamento de vários
países ao longo da história.
Não nos deteremos, porque não é aqui o lugar para
isso, em procurar uma teoria que explique as particulari-
dades nacionais. As razões podem ser intrínsecas ou extrín-
secas, históricas, geográficas, econômicas, culturais ou espi-
rituais; da combinação desses factores e de outros resulta
um número praticamente infinito de efeitos. Deve ser
possível classificá-los num certo número de tipos dentro
de critérios variados, mas não conhecemos uma tipologia
universalmente aceitável.
Reconhecemos que ao tentar caracterizar individual-
mente uma nação entramos num gênero de problemas
para o qual não há método científico estabelecido, e que
por isso é aqui grande o risco do impressionismo arbitrá-
rio, dos estereótipos e das generalizações sem fundamento,
de que aliás há vários exemplos. No entanto, algumas
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obras que não pretendem ser ccientíficas> contêm por
vezes juízos penetrantes. Citaremos entre elas o capí-
tulo consagrado a Portugal do conde Kaiserling cm
Das Spectrum Europas, 1920 (obra traduzida em francês
com o título Analyse Spectrale de VEurope), e o ensaio
de Eduardo Lourenço nO Labirinto da Saudade (1978).
Um perigo inevitável é o subjectivismo, porque para
definir os caracteres específicos de uma nação é indispen-
sável compará-la com outras; ora esta comparação só c
possível quando conhecemos outras nações tão bem e tão
interiormente como a nossa, o que raramente acontece.
Normalmente uma pessoa nasce e cria-se dentro de uma
cultura nacional, e é a partir dela que aprende, já numa
outra fase do seu próprio desenvolvimento, as culturas
alheias. Por isso a cultura própria e as alheias não são
comparáveis; a relação de uma e das outras com a nossa
subjectividade pessoal é diferente.
Todavia, o estudo de uma cultura nacional em que se
omitam as características específicas do povo que a produ-
ziu parece um trabalho sem sentido, visto que é o próprio
sujeito dela que fica em claro. Temos de procurar conhe-
cê-las, embora de uma maneira imperfeita e provisória.
Para diminuir os perigos do subjectivismo — já que não
é possível evitá-los completamente — procuraremos fun-
damentar-nos em certos índices relativamente consisten-
tes. São eles: os factos averiguados da nossa história que
nos permitam traçar uma figura que ao longo deles
se manifeste com certa persistência; ajíngua, em que se
manifesta sempre um espírito próprio sob variadas formas,
nem sempre apreensíveis; certas instituições e tendências
sociais também averiguadas; as observações de estrangei-
ros a nosso respeito, e as de Portugueses relativamente
a países estrangeiros onde estiveram; documentos de con-
trastes de costumes e mentalidades; a litejatura e as artes,_
onde se exprimFmTsõnEõs e tendências subjectivas, que
nem sempre chegam a ter expressão material e social.
É sobre tais índices que procuraremos fundamentar o que
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 83
dissermos sobre as feições da figura da nação portuguesa,
que na medida do possível gostaríamos de retratar.
Em primeiro lugar, há que considerar a (língua) que
tentámos caracterizar no capítulo anterior, sobretudo em
relação ao castelhano. Foi dentro da área linguístiça-galcgo-
-portuguesa, como num"lefóTnãternal i que se constituiu
o EStã3o _ português. NuricàlT3ê~mãís lembrílo. Se a área
da língua, finalmente, não coincidiu com a do Estado,
isso deve-se a factores externos e portanto não essenciais.
O território lingüístico galego-português foi amputado
em conseqüência da relação de forças, sobretudo militar,
entre Portugal e Castela. Essa amputação política, aliás,
não teve correspondência cultural: a Galiza não se tor-
nou castelhana e ainda hoje há uma cultura de base
comum nos dois lados do Minho.
Esta relação entre língua e Estado não se deu com
outros países. Em certos casos vemos que uma determi-
nada língua coloniza territórios linguisticamente diferen-
tes, havendo uma imposição da língua nacional contra
as línguas regionais. Em Portugal os falares do Noroeste
eram estreitamente aparentados e não se deu a coloni-
zação lingüística, salvo no apêndice ao sul do Tejo, mal
povoado; e mesmo assim a assimilação dessa escassa popu-
lação é tão antiga que não restam vestígios, a não ser na
toponímia, da língua que aí se falou. Por isso se pode
dizer com muita verdade que Portugal é umestado-nação,
isto é, um Estado implantado_njini_xa2Ít(irjíL com uma
cultura própria ê rnãttVSmçnt£homQgénea.
Este aspecto deu,Hêsde o início, à cultura da orla atlân-
tica uma coesão espontânea, isto é, que não teve de ser
imposta, contrariamente ao que sucedeu, por exemplo, na
Espanha, França e Itália, por um grupo regional domi-
nante. Do ponto de vista cultural, as diferenças regionais
entre o norte e o sul do Tejo e entre o litoral e o interior,
ou entre as microculturas existentes em territórios muito
limitados, só têm significado se as considerarmos unica-
mente dentro do espaço nacional. Não são nem remo-
tamente comparáveis às que existem entre as várias
84 A CULTURA EM PORTUGAL
regiões culturais dos três países mencionados, para só dar
exemplos no mundo latino. Esta coesão ref.ectiu-se no
ultramar: é dela exemplo a impressionante homogenei-
dade cultural de um país imenso como o Brasil.
Poderíamos dizer que Portugal, culturalmente, é um
país monolítico no sentido de que não se podem separar
nele blocos de composição diferente, embora os grãos
sejam muito variados. A existência da nação nunca peri-
gou por oposiçõeS das regiões entre si. Já no tempo de Fer-
não Lopes se dizia que para onde vai Lisboa vai todo
o Teino. E isto apesar de, sob o ponto de vista econômico
e climático, as diferenças não serem para desprezar. Já foi
notada a diferença entre o Portugal atlântico e o Portu-
gal mediterrânico, entre a montanha e a planície, entre
o minifúndio do Norte e o latifúndio do Sul, etc. Mas
estas diferenças nunca foram bastante acentuadas para
criarem pólos de poder ou de irradiação cultural. A cen-
tralização jio Estado, que foi muito precoce em Portugal,
nunca foi contrariada por problemas regionais. O poder
cerilral fòi todo-poderoso, não por ser capaz de reprimir
resistências, mas por não as encontrar, salvo acidente. As
resistências políticas e sociais ao poder de Lisboa nunca
encontraram apoio em culturas regionais diferenciadas.
A consciência nacional formou-se por oposição a dois
inimigos fronteiriços: os Mouros e Castela. A primeira
termina pouco mais de um século á seguir à fundação
do reino, mas deixou uma raiz funda que vem outra vez
à superfície em 1415, com a conquista de Ceuta, origi-
nando uma guerra de quase dois séculos em Marrocos,
chamado o «Algarve de além-mar», cujas motivações nos
são hoje difíceis de compreender. Provavelmente nunca
foram bem estudadas e pensadas as conseqüências deste
contacto três vezes secular com os Muçulmanos. Mas é um
facto que salta à vista que o império português e o impé-
rio muçulmano, ambos marítimos e de tipo semelhante,
rivalizaram de Ceuta até Malaca, sendo os Portugueses
os herdeiros do comércio de certos gêneros, como o ouro,
as especiarias, os escravos, que durante muito tempo
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 85
tinham sido monopólios sobretudo dos Árabes. É como
se a expressão comercial árabe tivesse sido o modelo da
nossa. De ambos os lados a justificação declarada era a
expansão da Fé, e a guerra por isso mesmo era «santa».
Isto permite a João de Barros legitimar pela cruzada
as conquistas portuguesas no Oriente. Trata-se de um
assunto a esclarecer.
Quanto à oposição em relação a Castela, é já visível
nos primeiros anos da nacionalidade e intensifica-se no
século xiv com as invasões castelhanas e permanece desde
então. É o prolongamento natural da resistência da Galiza,
que chegou a ser um reino autônomo no século xi, refor-
çada pela tendência autonomista em relação à própria
Galiza dos guerreiros da fronteira, os Portugalenses, como
já vimos. Alguns autores, para quem a independência
doJPaís nas condições geográficas e cultufairtla Ibéria se
afigura enigmáticiL procuram explicar a independência
põrtüguesa~pêlã existência de um império com sede em
Lisboa, desde o século xv; mas é mais lógica a suposição
inversa: o império é que é a conseqüência da indepen-
dência.
Foi poucos anos depois do fim da guerra com Cas-
tela (1411) que se deu a conquista de Ceuta (1415). A con-
clusão que os factos históricos nos permitem tirar é que
em fins do século xiv e princípios do xv se põe radical-
mente e se resolve a grandeogção nacionah ou a inter
gração em Castela, òu a aventura fora da Península. Alju-
barrota acarretou Ceuta, porque, uma vez escolhida a J.
independência como situação irreversível, foi preciso bus-
car fora, para fazer face à nova situação nacional criada, o» <;õ
os meios de a sustentar. E Ceuta era, entre outras coisas,
o términus mítico. De modo que tudo nasceu de uma " 3 ^
escolha inicial, a escolha da independência em rela- o t^HAí^f.
ção a Castela, escolha que aliás já se manifestara na „.> LC *Í ')
fundação do reino, mas que no século xiv, quando Cas-
tela inicia o processo de unificação da Península, se põe
pela raiz.
86 A CULTURA EM PORTUGAL
Como já notou Oliveira Martins, trata-se de um acto
de vontade, que as circunstâncias dificilmente justificam.
Da perduração da independência resulta uma situação,
não só política, mas também cultural e psicológica que se
tem mantido e aprofundado ao longo dos séculos. Alguns
aspectos dessa situação e suas conseqüências serão discuti-
dos no decorrer deste capítulo.
Uma delas é um certo sentimento de isolamento, por-
que, entre a Europa e Portugal, Castela tem funcionado
como um deserto isolador, mais do que como um espaço
de ressonância e comunicação. Portugal é um oásis ou uma
ilha, conforme o ponto de vista, porque de um lado o
rodeia o deserto, do outro o mar. E a gente aqui prisio-
neira adquiriu um complexo de ilhéu, oscilando entre
a aventura fora e a passividade dentro, ou ainda vivendo a
aventura pela imaginação, sem sair do mesmo lugar.
O ilhéu é um exilado, ou da sua terra ou do mundo.
Deforma subjectivamentc a realidade ausente; faltam-lhe
as ocasiões para se medir com vizinhos, isto é, com reali-
dades humanas diferentes da sua, o que traz como conse-
qüência que ignora também as dimensões e limites da sua
própria Tealidadc. Isto vê-se em Portugal pela mitifica-
ção que geralmente aqui se faz do estrangeiro, designado
freqüentemente pela expressão «lá fora» (que sugere um
sentimento de claustrofobia): lugar de delícias ou de per-
dição, conforme a inclinação do espelho deformador do
vsonho.
!' J Exemplo recente disto é a oscilação pendular entre
o «orgulhosamente sós» e o «a Europa connosco» (este
último revela claramente que a «Europa» é sentida como
exterior). Daqui também a atitude quanto ao «estran-
geirado», atitude misturada de admiração e de repulsa,
acompanhada sempre de inveja mais ou menos secreta.
Claro que nesta situação o Português avalia de ma-
neira pouco realista as suas verdadeiras possibilidades no
conjunto das nações: ora se inferioriza, considerando-se
ínfimo, sem poder e sem cultura própria, refugiando-se
numa auto-ironia perfurante, como a de Eça de Queirós,
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 87
ou numa autocrítica flageladora da sua própria história,
como em Oliveira Martins; ora incha o peito para desa-
fiar o mundo ou para o conduzir, umas vezes como ver-
dadeiro apóstolo da cristandade, outras como autêntico
representante do Ocidente, outras ainda como portador
do «socialismo-português», esperança do mundo.
O messianismo, filosofia de exilados e de infelizes,
mas lambem afirmação de forte personalidade espiritual,
tem-se revelado uma das persistentes expressões do espí-
rito português, desde Os Lusíadas até ao «25 de Abril»
inclusive, assumindo várias formas, uma das quais foi
o sebastianismo propriamente dito. Deu lugar à crença
de que ^ortugal é uma nação escolhida por Deus, crença
que se exprime no mito do milagre de Ourique, senti-
mento messiânico que é comum a Portugueses e Israelitas,
e também à teologia do reino consumado de Cristo na
Terra, elaborada pelo padre Antônio Vieira. O sebastia-
nismo ocultista de Fernando Pessoa é uma nova versão
do destino providencial de Portugal.
Estas manifestações estão relacionadas com o complexo
de ilhéu, mas não quero com isto dizer que o espírito
português seja um resultado da geografia, mas sim que
reagiu de determinada maneira aos limites geográficos.
Por outro lado, ele é um ilhéu que olha pouco para o mar,
porque, embora o mar tenha muita importância na nossa
história, tem comparativamente pouca na nossa literatura
e na nossa imaginação, como veremos.
Ainda dentro desta problemática psicológica não se
pode deixar de assinalar a importância desse complexo
a que se chama «saudade», embora o portuguesismo desta
palavra seja um lugar-comum que tem vários séculos.
É improvável que se trate_.de um. sentimento exclusk
vãmente português; mas é certo que tem na nossa lín-
gua eiiã nossa literatura uma presença saliente e quase
obsessiva.
Já o autor da Crônica da Tomada de Ceuta chama
a atenção para esta palavra, então «soidade». Encontra-se
nos cancioneiros dos séculos xm e xiv. O rei D. Duarte,
88 A CULTURA EM PORTUGAL

antes de 1437, foi o primeiro a escrever que se trata


de uma palavra inexistente noutras línguas e intraduzí-
vel. No século x v i foi glosada universalmente por quanto
havia de poetas, e a Menina e Moça, de Bernardim
Ribeiro, foi conhecida por o Livro das Saudades. Camões
conceptualizou-a e utilizou-a como ponte dialéctica entre
o sensível e o inteligível platônicos. Alguns escritores reli-
giosos falaram de «saudades do céu», para traduzir u m
talvez vago misticismo. Em meados do século x v i i D . Fran-
cisco Manuel de Melo expõe a sua «teórica das saudades»;
no século x i x Gartett põe-na em evidência no início do
poema com que pretendeu inaugurar o Romantismo em
Portugal; no século x x Teixeira de Pascoaes procurou
basear nela uma filosofia panteísta «nacional». Está cons-
tantemente presente no cancioneiro popular e n ã o falta
em Fernando Pessoa. A sua história singular prossegue
na Galiza e no Brasil.
O sentimento chamado saudade caracteriza-se pela sua
duplicidade contradi tória: é uma dor da ausência e u m
comprazimento.da.presença, pela memória. É u m estar em
dois tempos e em dois sítios ao mesmo tempo, que tam-
bém pode ser interpretado como uma recusa a escolher:
é um não querer assumir plenamente o presente e o n ã o
querer reconhecer o passado como pretérito. Do ponto de
vista da actividade, é um acelerador combinado com u m
travão simultâneo, se é possível usar imagens mecânicas
em matéria de tanta subtileza qualitativa. De qualquer
forma, é um sentimento complexo, mesclado, doce-amargo,
pouco propício à acção, e não deve ter contribuído pouco
para que a personalidade portuguesa apareça a observa-
dores estrangeiros como desnorteante e paradoxal.
A saudade está ligada ao apego que se criou aos sítios,
aos tempos e às pessoas que ficaram distantes. E é muito
característica do amor à portuguesa, que parece com-
prazer-se na distanciação. O amor é um tema extraor-
dinariamente obsessivo na literatura..portuguesa, desde
os primeiros cancioneiros, prosseguindo quase sem des-
continuidade até aos nossos dias, passando por Bernardim
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 89

Ribeiro, Camões, Tomás Antônio Gonzaga, Bocage, Gar-


rett, Camilo, cujo Amor de Perdição, segundo Unamuno,
é a «novela de paixão amorosa mais intensa e mais pro-
funda que se escreveu na Península». É um dos princi-
pais temas da poesia popular. «Poucos países haverá que
tenham tanta abundância de poesias amorosas como Por-
tugal» (J. Leite de Vasconcelos, 1881).
Trata-se em geral rio amnr-paixãn que se compraz na
ausência, na impossibilidade de realização, na autodes-
truiçaó, amor a fogo brando, sem sentimento trágico,
exceptuando Camilo e t> Garrett das Folhas Caídas. Chega
a ser um estado de insatisfação sem objecto. Assim apa-
rece no Fado. O sentimentaiismo amoroso à portuguesa
impressionou os nossos vizinhos castelhanos e deu lugar
a este epigrama de Lope de Vega:
«A un português que lloraba
preguntaron la ocasión.
Respondió que el corazon
y que namorado estaba.
Por minorar su dolor,
le preguntaron de quiên?
Respondió: — Pues de ninguên
lloro de puro amor.»
£ um sentimento em que certa sensualidade insatis-
feita e uma certa espiritualidade impura se temperam
mutuamente, e que é mais que mera sexualidadéTFalcü-
-se de uma «religião do amor em Portugal», e pode dizer-se
que ele é entre nós quase uma forma de misticismo,
e de um misticismo que não logra despegar-se inteira-
mente da carne. J á D . Duarte tinha sugerido que a sau-
dade não é um sentimento puramente espiritual, mas tem
muito de carnal.
Este novelo afectivo de que tentamos segurar algumas
pontas — o sentimento insular, o messianismo, a saudade,
a ((religião do amor» — bastariam para fazer do Português
uma criatura atectivamente muito complexa. Mas seria
preciso ainda completar este retrato com outros traços
90 A CULTURA EM PORTUGAL

afectivos, alguns dos quais derivados já daquela comple-


xidade.
Um deles seria a obliqüidade das relações que as
pessoas mantêm entre sf, o predomínio^ dos sistem3S-têr=~-
õafTns sobre os sisteyn as hinários. As formas de trata-
mento entre as pessoas são muito complexas e difíceis
• de ensinar a estrangeiros. Em lugar do sistema binário
tu e usted que existe em castelhano (equivalente a tu
e vous em francês, etc.), admitimos u m tratamento oblí-
quo na terceira pessoa (usando o nome do interlocutor,
o que parece ser uma maneira de evitar o frente-a-frente;
ou o você de amizade, ^ue não corresponde ao usted espa-
nhol). Esta obliqüidade revela-se também na dificuldade
que o Português tem de interpelar alguém fora da sua
intimidade, pois n ã o existe o equivalente ao Monsieur
francês como forma de chamamento (mas na intimidade
usa-se hoje muito a interpelação com «Pá»).
E já notámos, ao falar da língua, que o nosso sis-
tema de afirmativa e negativa admite um terceiro termo,
aparentemente neutro, que é o sim na maior parte das
circunstâncias. Isto parece denotar a dificuldade de ser
directamente negativo ou dircctamente positivo na res-
posta a um pedido ou a uma pergunta, mas talvez mais
a dificuldade de dizer não. Os indivíduos que o fazem
tornam-se notados na nossa gente. É outra expressão da
obliqüidade das relações dominante entre nós.
Seria t a m b é m de apontar o culto da dor, o ((gosto
_ de ser triste», de que fala Camões, e que é patente em
autores como Bernardim Ribeiro, Fr. T o m é de Jesus,
Raul Brandão, Antônio Nobre e Fernando Pessoa, que.
notemos de passagem, é u m autor oblíquo por excelên-
cia. O Fado é a expressão mais popular deste «gosto de ser
triste»: é u m lamento entrecortado de soluços.
E seria importante também uma análise do humor
português, que vai desde a chacota à auto-ironia. A cha-
b cota atingegeralmente aqueles que querem sobressair"
éaõ^comum, c i n d a hoje se usa do mesmo modo que
a usavam as cantigas de escárnio e maldizer. A auto-ironia
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 91

colectiva é muito freqüente. T a m b é m se encontra nos


cancioneiros e tem grandes representantes em Fernão
Mendes Pinto, em Eça de Queirós, em Nicolau Tolen-
tino, em Alexandre 0 ' N e i l l , em Nuno Bragança. Nas
artes plásticas o seu melhor expoente é o Zé-Povinho
de Rafael Bordalo Pinheiro, cujo protesto toma a forma
do condoer-se humoristicamente de si próprio. A expres-
são mais justa deste sentimento foi talvez a achada por
Fernão Mendes Pinto quando se expõe ao riso do público
falando do «pobre de mim». Nada é mais diferente do
humour britânico, da espirituosidade francesa ou da frieza
espanhola. Encontra-se todavia o mesmo tipo de humor
na literatura popular galega, tendo o seu grande repre-
sentante em Alfonso Castelão. É talvez uma forma d ç pro-
testo também oblíqua, uma compensação do sentimento
de inferioridade colectiva, tão freqüente em Portugal.
Mas não podemos nesta súmula i r mais longe. Vamos
passar a outros aspectos da personalidade portuguesa.
Portugal e Espanha têm uma história religiosa muito
parecida, pelo menos quanto às circunstâncias externas.
Ambos lutaram com os Muçulmanos, ambos extermina-
ram o judaísmo e tiveram a Inquisição, ambos se apre-
sentaram como paladinos da fé católica tridentina e con-
seguiram impedir nos seus territórios as heteredoxias. Mas
se descermos ao nível da interioridade, o sentimento reli-
gioso oferece um contraste de u m país para o outro.
Miguel de Unamuno, que viajou várias vezes em Portu-
gal e reagiu como espanhol às nossas peculiaridades, cita
com aplauso u m dito de Guerra Junqueiro: «O Cristo
espanhol nasceu em Tânger; é um Cristo africano e nunca
se aparta da cruz, onde está cheio de sangue; o Cristo por-
tuguês brinca com os camponeses pelos campos, merenda
com eles, e só a certas horas, quando tem que cumprir
com os deveres do seu cargo, carrega com ã crüZ» fPof
Tierras de Portugal y de Espana). Alberto Caeiro descre-
veu bem este Cristo que foge do céu, que lhe parece sole-
nemente aborrecido, e desce à terra por u m raio de sol,
a passear com as crianças, no meio das flores.
92 A CULTURA EM PORTUGAL

Não quer isto dizer que os Portugueses sejam menos


católicos que os seus vizinhos, pelo menos nas camadas
populares, embora o grau de religiosidade varie ao norte
e ao sul do Tejo. A prova mais flagrante desta religiosi-
dade é a peregrinação a Fátima, a última das grandes
peregrinações da cristandade ocidental, ainda bem viva.
Mas são-no de outra maneira, que alguns consideram mais
pagã. É uma relação menos veemente com o sagradqum
«•ntimentornais difuso ê menos problemático, mais mis-
turado c o m a terra dos yivos e dos mortos. Veja-se esse
jovial Santo Antônio, com o menino ao colo, achador
de objectos perdidos, protector de raparigas namoradas.
E de uma maneira geral o culto dos santos populares:

São João foi tomar banho


com vinte e cinco donzelas;
as donzelas caem n'água,
São João caiu com elas.
(Cantiga popular do Brasil)

A expressão mais geral e evidente desta forma de reli-


giosidade é o culto da Virgem. É um culto que se espa-
lhou nos países católicos, e que tem sem dúvida raízes
psicanalíticas. Mas talvez em nenhum se espalhasse tanto
como em Portugal, como o mostra o onomástico. O nome
de Maria tornou-se tão freqüente que se tornou uma
espécie de partícula designativa do sexo feminino, permi-
tindo feminizar qualquer nome masculino (Maria João,
Maria Manuel, em vez de Joana ou de Manuela). A Vir-
gem funciona como medianeira, facilitando o contacto
com o Deus paternal. É a pessoa divina que está em efec-
tividade de funções. Pouco falta para que o deus de Por-
tugal seja uma mulher, o que efectivamente vai no sen-
tido de esbater conflitos ou oposições entre o profano
e o sagrado.
Outra particularidade religiosa portuguesa que im-
pressionou Unamuno foi o culto dos mortos, especial-
mente manifesto nas «alminhas» à beira da estrada e nos
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 93

cemitérios de aldeia. Em comparação com o cemitério


português, «el castellano parece un corral». A religião
impregna a terra, liga numa cadeia os vivos e os mortos.
Já na Crônica da Tomada de Ceuta, a propósito do fim
da guerra com Castela, os homens sensatos contam entre
os benefícios da paz que agora já podiam ter a segurança
de que os seus corpos podiam repousar entre os seus pais
e filhos.
Todavia, é em Espanha e não em Portugal que se
encontram os grandes escritores místicos: Teresa de Ávila,
Fray Luis de León, S. Juan de la Cruz, que se podem
incluir entre os maiores do Ocidente. Nada de comparável
com isto existe na nossa literatura. Raramente os nossos
escritores de matéria religiosa excederam o nível do ser-
mão de penitência, de moralidade ou de panegirico dos
santos milagreiros. Houve movimentos místicos em Espa- r
nha, como o dos «alumbrados» no século xvi, que foram t tv'.wJ
reprimidos pela Inquisição; mas pouca ou nenhuma reper- i , ytfb'
cussão tiveram em Portugal, onde a homogeneidade e o • f - W r
desinteresse pelas questões religiosas parecem ser a r e g r a ^ J ^ ^ '
A ousadia teológica do padre Antônio Vieira^rorn a sua i
idéia do regresso d^Cristo à Terrajpari"inaugurar a ter- jV j^Ú
ceira fase da história do mundo, emjque se reconciliariam w * 5 - f ^
Judeus e Cristãos, foi considerada pelos Inquisidores como ffiy'
uma manifestação de criptojudaísmo. fCcPn—•>> ^ O * * * " — À f j [ , C
O misticismo espanhol manifesta um face-a-face com (jp^
Deus, uma inquietação que tende à união com a divin-
dade, e é isso que falta em Portugal, onde esse face-a-face ;
é amortecido com a mediação da Virgem e dos santos, e M J M * ' J " ~
com uma certa presença divina na terra-mãe. .v-eoUV
Nas artes plásticas poderia encontrar-se facilmente a
expressão deste antimisticismo. Escasseia entre nós a verti-
calidade das agulhas góticas. O manuelino contraria o
efeito da altura, obriga a ogiva a arredondar-se e a abau- ^ fJíC^
lar-se. A decoração manuelina é a negação do fogo, parece
amassada em terra.
Com o desinteresse pela filosofia contrasta em Portu-
gal o interesse pela história. Qualquer que seja a época,
94 A CULTURA EM PORTUGAL

encontramos entre nós uma historiografia abundante e


de excelente qualidade, comparável à das grandes litera-
turas européias e certamente não inferior à espanhola.
As origens do reino foram cantadas em tradições
épicas, donde se salienta a lenda de Afonso Henriques.
O maior cronista medieval, Fernão Lopes, é português.
É-o também o iniciador da historiografia planetária, João
de Barros. São-no dois grandes representantes da historio-
grafia romântica' européia, um pelo rigor do método e
pela visão social e institucional dos factos, Herculano;
outro pela capacidade de combinar numerosos factores,
desde os econômicos aos espirituais, em extraordinárias
sínteses artísticas,; Oliveira Martins. O grande poema
nacional, Os Lusíadas, apresenta-se como uma narrativa
histórica. Desde o século xv ao xix existiu o cargo de his-
toriador oficial do Estado.
Pode relarionarse esta importânciada historiografia
çom_a consciência da nacionalidade: Fernão Lopes é o
épico da vitória sobre Castela, Oliveira Martins procura
ansiosamente unia razão para a independência e sobre-
vivência nacional; historiadores do século X V H tinham
achado o fundamento da independência na palavra de
Deus. O mito do Quinto Império é a projecção deste
mesmo complexo no futuro.
Outra explicação para esta importância da historio-
grafia seria um contemplativismo passadista, uma procura
da idade de ouro no passado — uma forma, afinal, de sau-
dosismo.
Em terceiro lugar, haverá nesta característica nossa
um gosto pela apresentação concreta dos problemas, o
mesmo gosto que justificaria o desinteresse pela abstrac-
ção filosófica à maneira ocidental. Como diz João de Bar-
ros, o historiador, a história é um campo cultivado onde
está semeada toda a doutrina teológica, moral, racional
e «instrumental», e quem colher o seu fruto convertê-lo-á
em forças de entendimento e memória para uso de justa
e perfeita vida. O que é uma maneira de dizer que a
história substitui a filosofia, oferecendo-nos, em vez de
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 95

razões, casos, exemplos e figuras para aprender. É bem


provável que estas três ordens de motivos se conjuguem
para dar à historiografia a importância incontestável que
ela tem na nossa cultura.
Colocando-nos agora noutra perspectiva, podemos
arriscar que do ponto de vista sociológico houve sempre
uma^grande presença popular .na arte, o que também
aconteceu em Espanha, mas talvez em menor grau.
Logo nas origens, o lirismo português nasce nos can-
tares de amigo, cujo carácter popular e tradicional é
flagrante. Contra as formas nascidas no terrunho, levan-
taram-se em geral as formas importadas: as canções pro-
vençais, o estilo italiano, os alexandrinos franceses. Houve
tentativas de rejeição das formas de arte popular, como
foi a representada por Antônio Ferreira no século xvi,
mas sem sucesso. O caso de Gil Vicente é o mais impres-
sionante: ele representa uma imposição na corte da tra-
dição popular portuguesa, quer no seu espírito, quer nas
suas formas.
Esta formidável presença da aldeia na corte ilustra
a situação da «corte na aldeia», para glosar mais uma
vez a famosa expressão inventada por Rodrigues Lobo,
e por este lado o teatro vicentino é o patrimônio que
melhor representa a cultura poTtuguçsa no seu conjunto,
o principal documento de uma antropologia portuguesa.
Mas há outras manifestações e sintomas da mesma ten-
dência. A maior parte dos poetas do século xvi nunca s e J ^ X J * ,
decidiu a abandonar a redondilha, e alguns cultivaram
de forma mais ou menos culta o velho rimance tradicio- . - tii
nal que perpetuou até perto dos nossos dias velhas his-
tórias medievais. Observando bem de perto os sermões
do padre Antônio Vieira, que no conjunto são uma grande
enciclopédia medieval em linguagem do século xvn, veri-
ficamos que muitos deles estão perto da imaginação popu-
lar, a quem se dirigiam, como o Sermão de Santo Antô-
nio aos Peixes ou o Sermão das Mentiras do Maranhão.
O público de Vieira é aristocrático e popular ao mesmo
tempo, como o que visitava os presépios no Natal. Ele
96 A CULTURA EM PORTUGAL

é uma espécie de Demóstenes da aldeia. No século xvm


Antônio José da Silva adapta a ópera italiana ao teatro
de bonifrates.
Esta simbiose corte-aldeia é decisivamente afectada na
segunda metade desse mesmo século pela formação de uma
I população urbana alfabetizada, e o Romanceiro de Gar-
rett é já a expressão de uma saudade dos tempos idos.
No entanto, as formas populares da literatura teimam
em persistir, ou em infiltrar-se na literatura culta, assim
chamada; e por outro lado é o público popular que faz
a fortuna de ceríçs escritores.
O Amor de Perdição é conhecido do público popular,
talvez porque vem na tradição das novelas de amor do
século xvii. E o mais lido dos romances portugueses,
A Rosa do Adro, de Manuel M. Rodrigues, nem sequer
figura nas histórias da literatura e quase parece uma obra
anônima, porque ninguém lembra o nome do autor.
Na poesia, o caso de João de Deus parece-nos muito
significativo, porque ele é uma transição entre o canta-
dor de aldeia è o poeta culto formado em Coimbra:
improvisava a música e a letra tenteando as cordas da
viola, os seus poemas andaram nas bocas dos apreciadores
antes de serem coleccionados e impressos por um erudito.
Durante algum tempo foi o poeta mais popular do País,
inclusive entre os letrados.
Já em nossos dias assistimos ao curioso caso de um
poeta popular analfabeto, Antônio Aleixo, improvisador
de feiras, ser editado por iniciativa de um professor de
liceu e se ter tornado um sucesso editorial. Aliás, as letras
do Fado, que também não são consideradas pelos críticos
e historiadores da literatura, vão perpetuando em nossos
dias a poesia oral, intimamente ligada com a música.
Tão-pouco se notabilizou Portugal pela reflexão filo-
sófica, pelo menos como o Ocidente a praticou, mas nisto
não destoamos no concerto hispânico. Notava Unamuno
na obra citada que «o povo português é ainda mais infi-
losófico que o espanhol — e atenção, porque este já o é
muito». A filosofia portuguesa, notava o mesmo autor,
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 97

há que ir buscá-la aos seus poetas. E com efeito o lirismo


em verso é a forma mais corrente dos autores portugue-
ses que se interessaram por problemas filosóficos, como
Camões, Antero de Quental e Fernando Pessoa, ao mesmo
tempo que a tentativa a que se chamou «filosofia portu-
guesa» não chegou a despegar-se do lirismo em prosa.
Tem-se insistido no experimentalismo latente nos prá-
ticos da navegação, da astronomia e da flora, nos sé-
culos xv e xvi, e tem-se apontado aí o esboço de uma
filosofia empirista à Bacon. É talvez querer ver de mais,
ou pelo menos, foi flor que não vingou. Tudo se reduz
a constatações inevitáveis a propósito de casos concretos,
que não alcançaram o nível do sistema e da reflexão.
No século xvn tivemos doutrinadores de orientação esco-
lástica tomista e aristotélica motivada pela actividade
docente em Coimbra, em que participaram mestres espa-
nhóis. Também não teve seguimento.
Desta falta de criatividade, ou desta indiferença, resul-
tou talvez a voga que nos séculos xix e xx teve em Portu-
gal e no Brasil a doutrina de Augusto Comte e a pouca
aceitação que aqui sempre tiveram os sistemas idealistas,
se exceptuarmos Antero, Antônio Sérgio e poucos mais.
O positivismo nacional (e seus prolongamentos, como o
marxismo vulgarizado) não chega a ser uma antimeta-
física; é apenas o resultado de uma preguiça ou de uma
indiferença filosófica.
É curioso constatar que as esferas intelectuais portu-
guesas nos princípios do século xix trocaram um catoli-
cismo enraizado mas de baixa tensão e sem problemas
por um positivismo igualmente sem problemas e que no
processo dessa troca, salvo casos individuais, não houve
uma verdadeira crise espiritual. Dir-se-ia que sob o aspecto
teológico-filosófico a atitude nacional é a falta de empe-
nhamento e o conformismo indiferente com o magistério
ocidental, porque este passa longe do epicentro da nossa
sabedoria própria. É esta uma questão de que os profes-
santes da «filosofia portuguesa» tiveram provavelmente
uma confusa consciência.
4
98 A CULTURA EM PORTUGAL

Queremos sugerir com estas considerações que a nossa


alegada falta de vocação filosófica significa, no fundo, que
estamos fora do percurso intelectual que nasce com os
Gregos e se vai transmitindo de tese em antítese, den-
tro de carris estreitos, a S. Tomás, a Descartes, a Kant,
a Hegel, a Husserl, etc. O problema pôr-se-ia talvez nou-
tros termos se adoptássemos outra definição de filosofia.
\^<v/r Esta presença popular na literatura, a que poderíamos
ty.bt*'' chamar «aldeanisme», encontra o seu paralelo nas artes
plásticas. A talha de madeira dourada e GJlBÜEjo» as duas
mais notadas expressões do nosso barroco plástico, são
obra de_artesãos anônimos que tiveram grande^aceitação
na^aristocracia. Não é nos quadros de mestre mas nas
pinturas regionais das bandeiras das misericórdias e dos
ex-votos que temos de procurar a nossa pintura mais ori-
ginal, do século xvu para cá.
Há uma tradição abundante de barristas e ceramistas,
por vezes muito originais, em vários pontos do país. U m
dos mais notáveis, Rosa Ramalho, cuja fantasia realista
- j i ^ " faz pensar em G i l Vicente, faleceu em 1977, e as suas
N figurinhas encontram-se em boas casas burguesas.
*' Certas práticas religiosas, como os presépios de Natal,
(Y*^^ têm favorecido entre nós esta arte de feira, para a qual
' têm contribuído, com as suas obras ou com a sua influên-
cia, artistas de escola. Machado de Castro, o mestre portu-
guês da escultura acadêmica, fez presépios ao gosto popu-
lar que deixaram, descendência. No século xix um artista
notável, Rafael Bordalo Pinheiro, criou uma indústria
de louça ornamental ao gosto popular que teve grande
sucesso na cidade e na aldeia, em casas Ticas e pobres.
Quanto à arquitectura, certas igrejinhas barrocas do
Norte e certas capelas da Estremadura de nave de berço,
todas recobertas de azulejo, são obra de mestres pedreiros
locais, de que não se sabe o nome.
Mas é talvez no Brasil que se encontra o exemplo
.mais flagrante do aldeanismo: Antônio Maria Lisboa.
de Minas Gerais, que ficou conhecido pelo nome popu-
lar de «Aleijadinhoii. £ uma espécie de Miguel Ângelo
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 99

rústico, filho de um pedreiro de Lisboa, talvez de origem


minhota, e de uma escrava negra, formado na tradição dos
santeiros de Braga. O Brasil é um caso extremo e exem-
plar, porque era a mais remota das províncias, aonde
nunca chegavam os mestres europeus e onde a iniciativa
dos modestos artífices estava menos manietada pelos artis-
tas acadêmicos. Mas cada província portuguesa era sob
este aspecto um minúsculo Brasil.
Quanto à música, é do conhecimento geral que a mú-
sica popular portuguesa, que os conhecedores estrangeiros
consideram riquíssima, é a única verdadeiramente origi-
nal neste campo da arte, pois não temos um único grande
mestre compositor que exprima a criatividade nacional.
Mas a música popular foi uma revelação para Kaiserling:
><É em Portugal que existe a música popular mais viva
da Europa. [...] Foi um dos acontecimentos mais signi-
ficativos da minha vida ter conhecido esta música», escre-
via ele em 1920 na obra citada.
Noutro plano ainda, há uma forma nacional de com-
portamento, que se manifesta através da economia.
Os Portugueses são os iniciadores do mercado mun-
dial em grande escala e nele participaram sucessivamente ^ ^ 0t_
com as especiarias do Oriente, o açúcar do Brasil, os escra-
vos, o ouro de Minas, o café do Brasil e de Angola, etc. á 3 ' v ~ * r N é K < 3
Lisboa_foi uni dos centros mundiais do comércio inter- X
contiaentaDrodavia nunca aqui se formou um polo capf- ft^
talista. Nãohõuve acumulaçáò é Investimento à'medida 0» hW\ ft(
das imensas riquezas que passaram pelos nossos portos,
de tal modo que, tendo dominado grande parte do comér-
cio do mundo durante pelo menos dois séculos, fomos
sempre uma fraca potência econômica, tivemos normal-
mente uma balança comercial deficitária e chegámos ao
século xx num dos últimos lugares do capitalismo euro-
peu. A moeda que entretantò passou pelos portos portu-
gueses foi canalizada para outros centros, como a Ingla-
terra e a Holanda, onde foi investida em poderosas indús-
trias.
100 A CULTURA EM PORTUGAL

O trabalho dos nossos camponeses produziu uma mer-


cadoria de alta qualidade, que é o vinho do Porto. Mas
os nossos homens de negócio não souberam comerciali-
zá-lo, e as marcas comerciais são inglesas.
É difícil encontrar para este fenômeno uma explica-
ção propriamente "econômica, uma vez que não faltaram
as oportunidades de acumulação de capitais, e tanto mais
que ele se repete no Brasil, que, apesar da sua riqueza
nacional, é explorado pelas multinacionais radicadas no
estrangeiro. Temos provavelmente de procurá-la no campo
da mentalidade, isto é, da cultura. E m Portugal houve,
como em toda a Éuropa, fidalgos e clérigos parasitários,
e camponeses que'1» duras penas transformaram uma terra
geralmente ingrata, como o mostram a paisagem do Minho
e do Alto Douro; e houve também uma classe média
. j de lavradores, de comerciantes e de homens ligados às
\AÍ^ ^\actividades marítimas. O que parece não ter abundado
tv s é o espírito próprio do «burguês», para quem o dinheiro
' •" é algo de abstracto e móvel que se acumula para se inves-
(\,JAÍj^ tir de forma a produzir mais dinheiro disponível para
p ( ' . - r - J l f l ^ ' - novo investimento. O «capitalista» português tem-se espe-

: ^ v K Í ^ a l i z a d o na especulação, no jogo da Bolsa e na usura,


1 v
" como tem sido notado desde Herculano:
«O que depois da legislação de Mouzinho se viu
implantado no nosso país não foi afinal o liberalismo
econômico verdadeiramente criador e produtor, isto é,
o capitalismo dos. empresários industriais e agrícolas, foi
essencialmente o do parasitismo e do jogo — o dos rece-
bedores de rendas, o dos simples agiotas, o dos especula-
dores da Bolsa, unido ao sistema do comunitarismo de
Estado.» (A. Sérgio, Hist. Port., I , pp. 215-216.)
Para o camponês o dinheiro incorpora-se na teira e lá
fica imobilizado, produzindo uma renda que traz a segu-
rança e o bem-estar material ou ainda uma sobra para
comprar mais terra; e este espírito encontra-se também
nos emigrantes repatriados. Por outras palavras, o dinheiro
tem uma finalidade concreta, o que é uma concepção
pré-capitalista. Quanto ao citadino, que atingiu um certo
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 101

nível entre nós, o dinheiro sejye-para comprar conforto, , »r>.,\jçí-


divertimentos e uma certa (ostentação Jque inclui a libera
lidade.
Nas sociedades capitalistas ocidentais existem camadas '1
para quem a multiplicação do capital, indefinidamente,
como num jogo, é um fim em si mesmo, a isso se sacri-
ficando o prazer, o luxo e até por vezes a comodidade
— e é esta condição do capitalismo propriamente dito
que entre nós parece faltar tradicionalmente. O flamengo
Clenardo, na primeira metade do século xvi, já notava com
escândalo o espírito de dissipação dos escudeiros de Lis-
boa, e o português Tomé Pinheiro da Veiga, um século
depois, satirizava o pequeno lavrador que passava priva-
ções para comprar uma vinha ou um olival que deixava
em herança.
É esta outra feição pela qual nos afastamos das socie-
dades propriamente ocidentais.
Observando o comportamento dos Portugueses no ex-
terior e especialmente no Ultramar, saltam à vista algu-
mas características culturais, e desde logo a tendência
para a miscigenação com outros povos.
Pode observar-se que a miscigenação é um processo
humano não exclusivamente português; também se deu
no império espanhol, em certa medida no holandês e até
no inglês. Não é fácil neste campo fazer comparações
quantitativas porque não há possibilidade de estabelecer
estatísticas. Mas há factos que são indício de atitudes,
e o que nos interessa não é o número de mestiços nasci-
dos, mas a atitude dos Portugueses perante raças e cul-
turas diferentes. Em si, a miscigenação é um fenômeno
quase biológico, e o que nos interessa aqui é o fenômeno
cultural.
Com que espírito encaravam os Portugueses, na prá- Cr.- 1-W
tica mais íntima, os povos com que se defrontavam? Qual
era a consistência das barreiras culturais que estabele- M»l
ciam entre si mesmos e os outros} Ora sobre este ponto
há alguma documentação, que supomos não foi exausti-
vamente explorada. Um documento muito importante é
102 A CULTURA E M PORTUGAL

a carta de Afonso de Albuquerque ao rei de Portugal


propondo casamentos entre portugueses e indianas como
forma de povoar o território. Isto prova que se consi-
derava a miscigenação não como uma fatalidade natural,
mas como um factor político; é o seu reconhecimento
cultural. Prova também que ao nível político mais ele-
vado não havia repugnância em reconhecer pelo ritual
do casamento as uniões naturais com indígenas. É um
facto decisivamente significativo.
Aquando das campanhas da imprensa inglesa contra
o tráfico de escravos praticado pelos Portugueses em mea-
dos e na segunda htetade do século xix, o que parecia
escandalizar os virtuosos jornalistas não eram propria-
mente-as relações dos portugueses com as africanas ao
nível puramente carnal: era que os portugueses as trata-
vam como esposas, legitimavam os filhos delas e os bapti-
zavam. Isso é que era intolerável, porque era a transgres-
são de uma regra cultural na relação entre a raça branca
e a raça negra.
A carta de Afonso de Albuquerque como que oficia-
liza antecipadamente um processo que se generalizou em
vários pontos do império português.
Na índia formou-se um povo indo-português, cujas
famílias se envaideciam com os apelidos das mais nobres
famílias portuguesas, e com as mulheres desta origem se
casaram numerosos holandeses da Indonésia, que se deci-
diram a considerá-las «brancas». -
E m Cabo Verde toda a população é mestiça, tanto
biológica como culturalmente.
N ó Brasil houve a mestiçagem sistemática com os
índios nativos e depois com os negros escravos, e havia
o costume, durante as longas viagens pelo interior, de dei-
xar portugueses a «povoar», isto é, a constituírem famí-
lias mestiças, as mais das vezes poligâmicas.
Cabe aqui observar que .mesmo em Portugal este pro-
cesso de assimilação se dava. Houve uma numerosa popu-
lação de escravos dentro do País, calculados no século xvi
em dez por cento da população total de Lisboa, cidade
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 103

certamente bicolor até ao século xvm inclusive. Ora, em


vez de virem a constituir um ghetto, os negros de Portu-
gal desapareceram totalmente, o que só se explica por
terem sido assimilados pela maioria branca, como aliás
foram também assimilados os judeus e os mouros que
ficaram.
Ora o que é que revela este processo? A nosso ver
uma certa liberdade em rpb™ *s fr"nteiras culturais,
uma certa promiscuidade entre o E u e o OutroTTHinr
certa falta de preconceitos culturais, a ausência do sen-
timento de superioridade que caracteriza, de modo geral,
os povos de cultura ocidental.
A este respeito a carta de «adiamento do Brasil»
de 1500, de Pêro Vaz de Caminha, um simples escri-
vão de bordo, é um documento muito interessante não
só sobre os índios, mas também sobre os Portugueses:
o autor abre os olhos maravilhados e sem preconceitos
perante uma civilização da pedra lascada que lhe parece
paradisíaca; conta como os marinheiros se misturaram
com os aborígenes bailando ao som da música. À falta
da linguagem foi o ritmo universal que uniu por alguns
momentos o povo embarcado nas naus eriçadas de canhões
e a gente completamente nua da praia e da floresta.
Naturalmente que esta atitude não é unânime;
Os Lusíadas exprimem pelo contrário a afectação de um
civilizado «ocidental» perante os «bárbaros». Mas basta-
mos que seja uma atitude generalizada. Fernão Mendes
Pinto inclinà-se até ao pólo oposto ao de Camões ao ver
nos orientais qualidades de civilização que faziam que em 9 p , ^ - ^ ^
relação a eles os Portugueses fossem os verdadeiros bár- • v i l ' • V» J v
baros.
Isto acontece, no entanto, quando o Português se
encontra perante civilizações a que ele se sente superior
intelectual e instrumentalmente. E m situação inversa, isto
é, perante civilizações mais ocidentalizadas, a sua atitude
é a de ensimesmamento, de refluxo sobre si mesmo. E m
França, na Alemanha e nas Américas do Norte há uma ^>^/,\Vi j ;
tendência forte para a constituição de ghettos tanto de tra- {<K , ( \

t-b V 6-)», rí^> <£>^o,óí t-\Pt<?r»(b) t ° r


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h *•> P»rí)-f 6JLI •^'-"^ l í J l C - ^ L i A ^ t - . w


104 A CULTURA EM PORTUGAL

balhadores como de intelectuais, o que aliás também acon-


tece com outros emigrantes. Numa situação ou noutra
não se estabelece entre o Português e o estranho um ver-
dadeiro diálogo: o Português ou absorve ou se mete na
concha.
tir*<i°)°*> Outro lugar-comum sobre o comportamento português
p^í é aquilo a que se chama a «brandura dos nossos costu-
mes». Pode tratar-se de uma idéia inteiramente arbitrária
e aliás muito imprecisa.
Há dela um índice objectivo, mas talvez insuficiente:
v Portugal foi um dos primeiros países do mundo a abolir
ft
(>,ri" ^ a pena de morte. Isso ocorreu em 1867 e Victor Hugo
« ot considerou o caso. tão notável, dentro da sua filosofia
" humanitária, que dirigiu uma felicitação ao Governo por-
•v-.^6- tuguês. E não se tratou de uma mera formalidade legal,
porque de facto a morte penal estava abolida nos costu-
mes desde 1842, data em que se executou o último con-
denado. Este índice é muito significativo se nos lembrar-
mos de que ainda em 1975 houve execuções de morte
em Madrid, e, o que é mais, por crimes «políticos»,
sendo de resto muito numerosa a lista de condenações
e execuções durante todo o período que decorre de 1842
para cá.
Esta regra de não matar judicialmente tem sido res-
peitada nas diversas situações políticas, desde o cabra-
lismo, instaurado em 1842, até ao pós-25 de Abril, embora
se tenham imputado a certos governos, e especialmente
no período de 1926 a 1974, alguns assassínios políticos
clandestinos.
Resulta este índice de um comportamento normal
atestável na história? E m 1921 deu-se em Lisboa o assas-
sínio de Machado Santos e um grupo de outros homens
políticos por uma o r g a n i z a ç ã o terrorista (foi a noite
de «dezanove de Outubro»); em 1918 fora assassinado
o presidente da República, Sidónio Pais, ao que parece
por um louco; em 1908 foram assassinados o rei D. Car-
los e o príncipe herdeiro; há várias condenações à forca
e massacres durante as lutas liberais; na época do mar-
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 105

quês de Pombal os Távoras e seus associados são executa-


dos com requintes de ferocidade, ainda hoje lembrados;
em 1641 é a execução, em grande espectáculo, de altas
personalidades acusadas de traírem o novo rei; em 1502
foi o pogrom de Lisboa contra os cristãos-novos, etc. Sem
falar nas execuções metódicas da Inquisição, que subiam,
ao que parece, a pouco mais de uma dezena por ano, em
média.
Mas também aqui é preciso comparar, lembrando as
matanças massivas da guerra civil de Espanha e das guer-
ras carlistas, as múltiplas execuções sumárias de civis em
França, em 1945, a seguir à Libertação; os milhares de
mortos da Comuna parisiense, os outros tantos milhares
do Terror, o massacre de Saint Barthélemy, para só lem-
brar os países mais próximos.
Quanto à aventura ultramarina, Oliveira Martins
intentou o processo das desumanidades portuguesas no
Oriente, mas não parece que elas excedam ou mesmo igua-
lem as de outros povos colonialistas.
Por isso nos parece que, feitas as contas, o que fica
líquido é o estado de espírito revelado na abolição oficial
da pena de morte, em 1867: uma certa aversão ao espeta
táculo público do assassinio, a piedade pelos mortos e_
pelos supficiados, o horror do sangue.
Desta maneira dé sentir temos outros índices, signi-
ficativos por contraste. No direito penal medieval há uma
pena especialmente cruel que consistia em enterrar o
assassino, vivo, debaixo do cadáver do assassinado. Ora
esta pena encontra-se nos forais de Atouguia da Baleia
e da Lourinhã, que foram concedidos a populações de
Francos e de Flamengos, que vieram a Portugal com os
cruzados e aqui se fixaram, forais que reproduzem ((costu-
mes» desses povos. Esta pehà falta nós outros forais portu-
gueses, que se limitam à morte por enforcamento em
certos casos graves.
É bem curioso o que acontece com as corridas de tou-
ros: em Portugal não é permitido matar o touro, e além
106 A CULTURA E M PORTUGAL

disso os touros são embolados para não correr o sangue


do toureiro.
Há também alusões de nacionais e estrangeiros a esta
forma de comportamento. Já Fernão Lopes se refere à
«maviosidade» que ele considera típica dos Portugueses,
e conta a este respeito a história de um alcaide que se
deixou cair numa cilada por amor da mulher. Segundo
Tamé Pinheiro da Veiga, no século xvu os Castelhanos
divertiam-se com; anedotas sobre este modo de ser portu-
guês, como a daquele pregador que num sermão da Pai-
xão se demorou a-pintar os sofrimentos de Cristo, provo-
cando gritos e chóros na assistência, ao que o pregador
acudiu, para a acalmar, dizendo:, «Não choreis, irmãos,
pode ser que não' fosse assim.» U m capelão inglês que
viveu em Portugal no século xvin espantava-se de os
Portugueses assistirem com alegria aos autos-de-fé, por-
que normalmente eles se comoviam e choravam com o
enforcamento dos criminosos de direito comum.
O facto é que «a brandura dos nossos costumes», com
este nome ou outro, é um tópico literário desde o sé-
culo xv. Podemos explicá-la ou por uma certa sensibili-
dade à flor da pele, ou pela falta de firmeza nos juízos
sobre o próximo, ou pelo esquecimento das culpas, ou pelo
baixo tónus de agressividade.
Muitos leitores estarão lembrados do grande ajunta-
mento do povo de Lisboa no 1." de Maio de 1974 após
a queda de um regime que durava há quarenta e oito
anos. Foi uma romaria pacífica a que só faltou o santo;
as flores davam-lhe um ar campestre e festivo; quase não
se ouviram palavras de ódio e agressão contra os vencidos,
o que é notável em alterações políticas deste tipo, onde
os vencidos costumam ser insultados pelo que fizeram e
pelo que não fizeram. Foi um dos mais flagrantes e irre-
cusáveis exemplos do comportamento do povo português.
Hto nos leva a pôr outra pergunta: se o povo portu-
P°de considerar-se como um povo guerreiro. Como
. . é natural (e se verifica com qualquer outro povo), a edu-
cação escolar procura apresentar-nos como um povo vito-
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUCUESA 107

rioso nas guerras em que participou: é uma imagem ine-


vitável.
É verdade que combatemos em vários teatros de
guerra. No primeiro século da nacionalidade, contra os
Mouros, no actual território nacional. Foi talvez mais uma
guerrilha do que uma guerra, em que recebemos a ajuda
dos Cruzados. Seguiu-se-lhe mais de um século de paz com
o exterior, com curtos intervalos de guerra civil no inte-
rior. No século xiv são as guerras com Castela, quase sem-
pre defensivas, salvo as incursões malogradas de D. Fer-
nando na Galiza.
Nuno Álvares levantou no Alentejo exércitos de cam-
poneses, e foi com a infantaria, isto é, com vilãos, que
ganhou a batalha de Aljubarrota. Todavia, como aconte-
ceu em Toro, os Portugueses foram repelidos sempre que
tentaram avançar dentro de Castela.
A partir de 1415 abre-se outro teatro de guerra na
África do Norte. Foi de início uma série de assaltos a
algumas praças do litoral; mas em breve se converteu
numa guerra de cerco porque os Portugueses tiveram
de se defender dentro das muralhas das praças conquista-
das, agarrados como ostras à costa marroquina, em risco
constante de serem atirados ao mar, o que os não impe-
dia de fazerem perigosas surtidas no campo, deixando
freqüentemente cadáveres na retirada. Foi uma guerra
dura, onde morreram numerosos fidalgos da mais alta
estirpe, sem dúvida a mais sangrenta que sustentámos,
durando mais de cento e setenta e cinco anos; e apesar
disso, ao que parece, popular, como o mostra a fala do
Velho do Restelo. Acabou no enorme desastre de Alcácer
.Quibir, que foi uma tentativa para romper o cerco e
ocupar o interior. .^a^J
Talvez que a combatividade guerreira npsta época . ü
e durante a primeira dinastia se possa explicar por razões ^ ( i v
étnicas, porque os nobres eram grupo à parte, de origem 0 j f e V J J V L
germânica, visigodos, talvez mestiçados de montanheses 0,j
das Astúrias. ;';»V,L>.»Q
108 A CULTURA EM PORTUGAL

Prosseguia ao mesmo tempo a guerra marítima do


Oriente, inicialmente contra pequenos reis indígenas mal
armados e sem treino de guerra, mais tarde contra arma-
das turcas; vencemos umas e defendemo-nos contra outras.
Mas a fortuna virou-se contra os Portugueses, quando ali
apareceram ingleses e holandeses. Revelou-se então a sua
inferioridade no combate naval.
No reino, com a Restauração, iniciou-se em 1641 uma
longa guerra defensiva do lado português, que obrigou
os Castelhanos, derrotados em duas batalhas importantes,
a desistirem da conquista de Portugal. Foi a segunda vez
que eles sentiram a* dificuldade de combater em territó-
rio português, e desta nem sequer chegaram a cercar Lis-
boa, como o tinham feito em 1384. Paralelamente, no
Brasil, os portugueses de lá conseguiam só com os recur-
sos locais repelir as armas holandesas. Na Guerra da Suces-
são (1704-1712), que acabou num empate, fomos coman-
dados por ingleses.
Quando, em 1807, chegaram as tropas napoleónicas,
foi a debandada geral: a corte só se sentiu tranqüila no
Rio de Janeiro. Mas começou então dentro do reino (como
em toda a Península) uma guerrilha popular, que com
a ajuda de tropas inglesas obrigou os Franceses a retirar.
Seguiu-se-lhe uma guerra civil e um longo período
de paz que só foi interrompido com o envio de um corpo
expedicionário a Ffânça, na Grande Guerra.
\ * * ' v O que ressalta desta resenha é que os Portugueses,
tirando o período dos Mouros, em que participaram numa
guerra geral dos Cristãos, só ganharam decisivamente as
guerras defensivas travadas em território nacional; a ati-
tude da população foi provavelmente um factor impor-
tante nas duas grandes guerras contra Castela e na guerra
contra os Franceses. Mais do que a manifestação de um
_yalor guerreiro, aparece aqui uma obstinação defensiva,
3> apego a terra ocupada. Longe da terra perde-se a guerra.
Só a empresa de África aparece como um grande
esforço militar fora de fronteiras; mas acabou — é ver-
dade que ao fim de mais de século e meio — numa enorme
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 109

catástrofe. Feitas as contas, não nos podemos considerar


um povo de guerreiros, mas sim um povo obstinado
quando se trata de defender o terrunho. j\_padeira de f ' £ -''-bfviji/
Aljubarrota é, possivelmente, o melhor símbõlo~i3õ~êspi
rito guçrreir^poftügueí

Procurámos enumerar uma a uma algumas feições


persistentes da personalidade cultural portuguesa sem nos
preocuparmos com a sua sistematização, porque esta nos
obrigaria porventura a exclusões por amor do sistema.
Mas talvez o posteriori nos seja possível agrupar de forma
mais metódica as notas deste acervo. •
Uma característica comum a várias das ffirãp* rstn- C-i >v\_ o-Joí.
dadas é aquilo a que poderíamos chamar o estar onde ft* u
não se está, isto é, viver num sitio e num tem;
•-•fSTPlh r TK""™ com_a_imaginação. Notámos que a sau-
dade consiste em viver simultaneamente em dois tem-
pos e lugares. Quanto ao Quinto Império, é viver num
tempo e num espaço futuros, numa espécie de paraíso, mas
paraíso terrestre e corporal como o que imaginou o padre
Antônio Vieira no seu Reino Consumado de Cristo. )3\j- ^
Aparentemente, esta característica não se ajusta com
outra, igualmente importante, que é uma certa obstina-
ção em relação ao terrunho, atestada quer nas guerras ^
com Castela e na resistência espontânea aos invasores, \ /
quer na persistência com que o lavrador do Norte cava ^
os vales liliputianos entre montes de granito e modela
na montanha, como no barro, mas a golpes de picareta, os
socalcos para plantar a vinha. Esta característica revela
um forte enraizamento, um apego ao imediato e ao con- q ?t (>* A^
creto. v..?.o»A> .t
Isto mesmo é patente na actividade intelectual e artís- ^
tica: no desinteresse pela especulação filosófica à ociden- ^ , r v-V»
tal, na ausência de polêmicas teológicas e de doutrinação
propriamente mística, na falta de mentalidade capitalista
com o que ela inclui de concepção abstracta do dinheiro,
no interesse pela historiografia, no estilo manuelino, no
lirismo amoroso. Tudo isto mostra uma fraca capacidade
110 A CULTURA EM PORTUGAL

de idealizar, conceptualizar e objectivar. A experiência


fica-nos pegada à pele, e quando arrancada deixa-nos em
carne viva. A própria saudade tem a sua raiz no concreto
5t
v-..(.iy d a s pessoas, dos lugares e dos tempos passados, mas que
^ ^ não passam completamente, na dificuldade de a gente se
' j ^ r v despegar e objectivar em relação àquilo que alguma vez
tyA* c * foi vivido.
É ainda dentro desta tendência que porventura con-
^ v é m situar o q u é chamamos «aldeanismo»: a presença
. V quase dominante das formas populares rústicas na litera-
* tura e na arte sobré as formas aristocráticas e acadêmicas,
que quase sempre obedecem a padrões cosmopolitas.
Aqui, é preciso pão confundir «aldeanismo» com «pro-
vincianismo». Ao contrário daquele, este caracteriza-se
pela falta de autenticidade, porque é um sentimento de
subúrbio. O provincianismo português não é um produto
da província, mas sim da capital, e na medida em que
esta é, não a capital do país onde está, mas o satélite
intelectual de uma capital européia donde se importam
as modas (Madrid, Roma, Paris, um pouco Londres).
Quando falava do provincianismo português, Fernando
Pessoa referia-se aos intelectuais de Lisboa e Porto.
Aquele estar onde não se está e este enraizamento no
±\2*'x'( imediato estão__enL.pQlos .distanciados. Porventura consti-
£ t u e m o sistema bipolar dentro do qual temos vivido: o
* enraizamento e a aventura; o imediato e o longínquo
^j<\pi concreto, o amor à terra que se tem e a busca da que
' não se tem, a aldeia e o mundo. No processo da histó-
ria, esta bipolaridade manifesta-se na defesa obstinada
da terra em contraste com a constante expansão, quer por
emigração, quer por ocupação e conquista. É tentador
e aparentemente fácil explicar a expansão por circuns-
tâncias econômicas e geográficas, mas analisando o pro-
blema com rigor não se encontra uma ligação necessária,
nem sequer muito provável, entre a suposta causa e o
suposto efeito. Todavia, o positivismo reinante só consi-
dera válidas as explicações que partem do inerte para
o vivo e do exterior para o interior, tornando o processo
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 111

histórico completamente ininteligível. Mas a própria ciên-


cia física só pode avançar hoje aceitando como funda-
mento de tudo o conceito da energia, que não pode ser
explicado a partir de qualquer exterioridade. O fogo não
é o carvão e a expansão não é as circunstâncias de que se
alimentou. Do mesmo modo, o enraizamento não é os
vales do Minho, nem as leis de herança: isso são ocasiões
e modos de ele se manifestar.
A terceira tendência revelada nas características atrás
indicadas é a que poderíamos resumir desta forma:. os_
Portugueses não têm manifestado consciência muito clara
da fronteira que separa 1t sua_ cultura das alheias. Isto os
levou à miscigenação, assumida deliberadamente como
método para se implantarem nos vários continentes que
freqüentaram. O contorno que os separa dos outros é
nuançado, esfumado, gasoso, o que torna fácil uma certa
promiscuidade com as culturas exteriores. Mas o senti-
mento da própria identidade cultural existe no inte-
_rior_da alêctivictade deles, dé uma maneira muito forte.
A superfície r~mõTé,~õ"caroço é duro. Sob a aparência ( \ J J W U i 5
da tolerância, os Portugueses são poderosamente asximi- ( ^ ^
ladorçs, como o foram também os Romanos. Nenhum
povo europeu se mostrou tão capaz de enraizar a sua cul-
tura em terras ultramarinas, como o provam Cabo Verde,
o Brasil e outros exemplos.
Esta dificuldade de discriminação da linha exacta
onde acabamos e começamos está provavelmente relacio-
nada com a pouca propensão para a visão intelectual das
coisas e com ojredominio da emotividade que se refu-
gia no coração, isto é, no interior da personalidade. É uma
dificuldade de objectivação. Dir-se-ia que no Português
o ouvido predomina sobre a vista (o sentido objectivante
por excelência) porque, ao contrário da forma visual, o
som tem um foco de irradiação, más hão uma fronteira
definida.
Mas isto vem também, seguramente, de os Portugue-
ses terem uma consciência pouco clara dos seus padrões
culturais no contacto com o exterior. Não lhes falta cria-
112 A CULTURA E M PORTUGAL

ção, mas falta-lhes a doutrina. Sentem obscuramente e


realizam na afectividade os valores, mas não os sabem
intelectualmente. A inteligência é cortante e separadora;
só ela sabe onde começa e acaba a subjectividade, o meu
e o teu. A emotividade, pelo contrário, é amalgamante.
Assim, .o Português sente a sua identidade (é o caroço
ou nó resistente), mas não discrimina os seus limites ou
fronteiras. No seu comportamento histórico age como sé
Tosse"cTcentro do mundo, e não concebe o outro senão
à sua imagem e semelhança; por isso mesmo se mistura
com ele ou se retrai,»quando se sente em posição de infe-
rioridade. ;>
O que dissemos sobre a «criação» e a «doutrina» pode
talvez apresentar-se de outra forma dizendo que Portugal
é para.os Portugueses mais uma mátria que uma pátria
(uma oposição de palavras inventada pelo padre Antônio
Vieira). A mátria é a terra de origem, dá o leite e a cria-
ção materna; é a cultura ao nível da afectividade. A pátria
ensina os padrões.ao nível das relações com o exterior,
que é também o nivel propriamente intelectual.
Os Portugueses comportam-se como um povo que teve
mãe, mas é órfão de pai, o que historicamente até se
poderia explicar de uma maneira positivista pela emi-
gração massiva dós chefes de família durante a maior
parte do tempo dá nossa história. E esta explicação pode-
ria ter desenvolvimentos psicanalíticos.
Mas preferimos outra hipótese, que aliás não exclui
a anterior. O «pai» da gente portuguesa era representado
pela «Espanha», no antigo significado de pátria comum
de todos os povos ibéricos; dela nos vinham os padrões de
civilização ao nível intelectual. A «mãe» era a região onde
se falava o galego-português, ninho dos valores afectivos.
Desde que Portugal rejeitou a paternidade hispânica, a
família ficou precocemente amputada.
O aldeanismo liga-se com o apego carnal à terra e é
um complexo gerado pela criação sem doutrina. O sebas-
tianismo é um sentimento de orfandade combinado com
sTêXpectauva doTegressõTto pai. Há algo de inacabado e
PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA 113

até de amputado na nossa cultura, uma espécie de infân-


cia para além do termo, cujo mais recente exemplo é o
p<5s-25 de Abril. E foi isso, talvez^ que nos levou a pro-
curar outro «pai» além-Pirenéus, que é desde o século xvm
a França.
Resta saber se ela pode desempenhar essa função, har-
moniosamente, num povo que, como atrás apontámos,
está visceralmente fora da mentalidade ocidental.
4

AS ÉPOCAS
DA C U L T U R A P O R T U G U E S A
§ / . INTRÓITO

É contestável que na história espiritual de um povo


se possam definir épocas ou fases. Elas são próprias da his-
tória da civilização, porque a acumulação sucessiva de
modificações no mercado, na tecnologia e nas instituições
atinge níveis críticos e provoca saltos que abrem novos
períodos com características gerais diferentes dos anterio-
res. Mas a história cultural é feita de acontecimentos xme
j p t f l a é Q g n b g j n l í m noca_dHIgmsalidad£jLxuia dialéc-
tica não compreermemõsTNa história da arte, por exemplo,
á sucessão das épocas é menos fácil de definir do que na
história da tecnologia. H á quem pretenda que na arte
se sucedem os períodos clássicos e os períodos barrocos
num sistema pendular e circular, independentemente da
tecnologia. Poderíamos também imaginar uma sucessão
pendular de épocas permissivas e de épocas repressivas
na política, nos costumes, no vestuário, também indepen-
dente da linha de desenvolvimento socioeconómico. Por
vezes uma personalidade ou u m grupo têm u m papel
decisivo no lançamento de u m estilo ou de uma atitude
quando se encontram numa posição estratégica. Isso acon-
tece também com certas instituições sociopolíticas, como
a corte, ou socioeclesiásticas, como as ordens religiosas.
Mas tudo tem de ter u m discurso, uma explanação,
uma possibilidade de se dizer. É daí que vem a necessi-
dade de distinguir épocas para o historiógrafo. Por isso
118 A CULTURA E M PORTUGAL

arrisramQsJjipóteses neste terreno aleatório, seguindo vá-


J
' v. riosl^érios^
h unrtTeles 'é o dos mitos dominantes nas várias épocas,
mitos que motivam ou que justificam os comportamentos,
mesmo quando estes, na prática, se afastam daqueles.
3 Outro é o do grupo dominante que serve de padrão e
0
^ exemplo. O grupo dominante economicamente ou hierar-
\quicamente nem sempre é o dominante culturalmente.
l\. (.••'•' \ dominância resulta do dinamismo cultural.
Outro ainda è o do sistema cultural a que se per-
:>„ * tence. Pertencemos hoje "(aparentemente) ãõ sistema cul-
^ "túral europeu-ocidental) mas houve tempo em que a Espa-
çji^"rAU n h a era a u t ô n o m a em relação à cultura européia medieval
(como o eram t a m b é m a Itália ou a Inglaterra), excepto
quanto à instituição eclesiástica. ^ 0 . ^-^KIT
Finalmente, outro critério, propriamente estrutural, é
aquele que designamos por Palavras e Coisas, servindo-
-nos do título de u m célebre Tívro francês. Aí fizemos uma
sondagem numa questão essencial e por isso mesmo difícil
de abranger na sua profundidade, que é_p valor paracada
^ épocajiaL§igno lingüístico, e wxXontstdo próprio discurso?
Por esse caminho aproximamo-nos da relação do g r ü p o
cultural com a realidade que o envolve e .com a do pró-
prio sujeito.
Diferentes critérios que, reunidos, não formam u m sis-
tema, mas são tentativas avulsas em várias direcções. Pre-
ferimos aproximar-nos humildemente dos factos.

§ 2 . OS M I T O S

o\ «fi <Lr~ Os mitos históricos são uma forma de consciência fan-


óbfjí it-n tasmagórica com que u m povo define a sua posição c a
s u
Vv *i' i * vontade na história do mundo.
AS ÉPOCAS EA CULTURA PORTUGUESA 119

O primeiro grande mito colectivo português^mie aliás .


é um mito de toda a Espanha, foi o dajCruzaSãy fixado A,y}
eloqüentemente por Camões no poema nadonaldos Por-
tugueses. Portugal era o paladino da fé católica, e a expan- I
são mundial da Fé era a sua vocação própria, a razão x
de ser da sua história. Em relação especial com Deus, y
que o favoreceu desde o nascimento, Portugal realizava ^
um plano divino que culminaria na conversão do mundo po^t\mr
inteiro.
Este mito nasce na guerra santa que travavam entre
si os Mouros e os Cristãos de todas as nacionalidades. San-
tiago, que aparecia nas batalhas sob a aparência de u m
cavaleiro resplandecente, foi inicialmente, para todos os
povos espanhóis, o ajudador na guerra santa, e j á no
século x n , pelo menos, a campanha dos príncipes cris-
tãos na Península foi equiparada pela Igreja à guerra na
Palestina.
O mito da Cruzada intensificou-se nos séculos x v e x v i ,
quando os papas tentaram mobilizar os desavindos prínci-
pes cristãos para resistir ao avanço turco. Portugal com-
batia então com os Muçulmanos em duas frentes: no
Norte de África e no Oriente até Malaca. A acção dos Por-
tugueses podia ser idealizada n u m nível mundial de cru-
zada. Assim o v i u Camões, e assim o tinha já visto João
de Barros nas Décadas, cujo espírito já se encontra na
História do Imperador Clarimundo, novela em que se
adapta a um sentido português o profetismo religioso
da Demanda do Santo Graal. G i l Vicente, referindo-se
à guerra com os Mouros, chama a Portugal «alteres da Fé».
A um nível popular este mito exprimiu-se nas Trovas
do sapateiro Bandarra, que profetiza a unificação do \
mundo sob u m só rei e u m só pastor. !
A este complexo mítico pertence o «milagre» de Ouri-... p ..
que, que pela primeira vez aparece relatado nas páginas A 1
da Crônica de 1419. Fernão Lopes, todavia, n ã o o inven-
tou, porque o achou escrito n u m texto anterior, certa-
mente já do seu século. É de crer que este «milagre» tenha
sido forjado sob o impacte da guerra com Castela e que
120 A CULTURA E M PORTUGAL

tenha inicialmente u m sentido anticastelhano. Ele signi-


ficava que Portugal era u m reino de fundação divina
e que a sua independência se fundava n u m direito supe-
rior ao direito humano. Mas já em Camões se vê que
ele se integra na concepção de Portugal como povo pre-
destinado ao combate pela Fé.
t J/- S )iQv•'.çoíi O roito dos Lusitanos e o de Viriato como precur-
v . sores de Portugal e.o de Ulisses como fundador de Lisboa
í' 1 /'"-iV-AÍ "J são contribuições do saber humanista que se subordinam
à idéia central de missão providencial dos Portugueses.
Q_mito da C r u r a d a j ã n a g"J_3P < 'l l ^l..gg jdajiQ_.meg-
tabjnaTfõi fortemente moriYador plano Hg_árgãn Sen-
timo-lo atrás da tomada de Ceuta e das campanhas afri-
canas (concebidas cbmo continuação da guerra santa), e
ainda dos empreendimentos do Infante D . Henrique,
sejam quais forem as respectivas causas reais, E eviden-
temente inspirou D . Sebastião, cuja loucura, como a de
Quixote, consistia em tomar por realidades as entidades
puramente mentais.'
A morte do rei-cruzado não pôs termo definitivo a este
mito. Pelo contrário, ele apareceu como garantia sobre-
natural da independência, e portanto da restauração do
reino, que o «milagre» de Ourique mostrava ter sido fun-
A- jij v \ , v j dado por Deus. O^ipito-dQ^Sebastianismo^ veio engrossar
, o caudal mítico L .qqe, jauetitão" tinhajjéculos de existência.
Vivo ou morto, o rei havia dt regressar p ã f ã - c O m p r i r
o seu destino providencial. Porventura há aqui uma remi-
niscência da lenda 'do rei Artur, que foi conhecida em
Portugal na Idade Média.
O mito é t a m b é m uma forma de compensação em
relação a uma realidade frustrante. É qvíãhdo Portugal
" p a r e c i condenado a u m estrangulamento inglório, em
luta com Holandeses e Castelhanos, perdido da África
e do Oriente (que justificavam a motivação da Cruzada),
que o mito ganha a sua forma mais grandiosa e precisa
através do padre A n t ô n i o Vieira, que o descreveu na
História do Futuro e nos escritos sobre a consumação
do reino de Cristo na Terra. O padre Vieira projectou
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 121

o mito no futuro e ante viu um novo império mundial


com um só rei, um só pastor e uma só fé. Esta idéia é o
desenvolvimento das profecias do abade Joaquim e dos
franciscanos ((espirituais», que anunciavam uma nova e
última fase na história do mundo, e é também por outro
lado uma versão cristianizada do mito judaico do império
universal, ou Quinto Império, inaugurado pelo Messias.
Assim cresceu, como limalha atraída por um iman,
o mito inicial da guerra santa, a que sucessivamente se
juntaram o mito arturiano do rei desejado, o mito joaqui-
mita da Terceira Idade do Mundo e o mito judaico do
Quinto Império. Mas na sua última forma o mito era já
um delírio sem qualquer relação com a situação h i s t ó r i a "
real, estava ria "fase de agonia. '
O golpe de misericórdia no mito foi dado por Alexan-
dre Herculano ao mostrar na História de Portugal que
o ((milagre» de Ourique era uma fraude historiográfica,
suscitando uma viva reacção por parte de alguns mante-
nedores da tradição. Mas, já um século antes, Luís Antô-
nio Verney, no Verdadeiro Método de Estudar, mostrara
a mais completa falta de respeito por esta crença, sem
provocar resposta, o que mostra que em meados do sé-
culo x v m já ninguém a tomava a sério.
Foi também Herculano que tentou acreditar uma « y .
131
outra idéia mobilizadora, segundo ele mais próxima da
realidade. À visão mundial da história que o mito da Cru- Hít^
zada supõe, quis substituir uma visão interna, tentando
apreender o gérmen a partir do qual a nação se consti- '
tuiu. Herculano procurava também um sentido para a his- h^ix Jrí»
tória de Portugal, mas julgava encontrá-lo numa espécie (" •{/•
de história natural do País, uma história quase botânica, *
a partir de uma semente. A semente eram os concelhos,
células populares que se teriam desenvolvido harmonio-
samente segundo um principio de liberdade, se não fos-
sem circunstâncias exteriores e espúrias que se lhe opu-
seram. A monarquia absoluta, o cleto (identificado com
a Inquisição) e a mercantilização causada pelos Descobri-
mentos foram estas circunstâncias. Segundo esta perspec-
122 A CULTURA E M PORTUGAL

tiva, a parte positiva, criativa e de certa maneira orgânica


da história de Portugal acabou no século x v . Herculano
só se ocupou da história posterior para exemplificar o seu
aspecto negativo (História da Origem e Estabelecimento
da Inquisição).
Embora explicasse a realidade (pois só se aplicava
a um curto período da história do País), esta teoria não
chegou a ser u m mito, pois não teve u m assentimento
geral, mas só a de certos grupos políticos. Teófilo Braga
tentou inspirar-se nela para elaborar uma teoria da lite-
ratura portuguesa que vê em toda a parte uma poesia
popular abafada pela corte e pelos poetas áulicos, salvo
em alguns casos excepcionais, como Camões e João de
Deus.
E t a m b é m naquela teoria se inspirou o célebre opús-
culo de Antero de Quental sobre as causas da decadência
dos povos peninsulares, causas que eram a monarquia
- S V / Q - a b s o l u t a , a Inquisição (com a suposta colaboração dos
bjci/10^ Jesuítas) e os Descobrimentos. Com Antero instaurou-se
i _ o contramito da Decadência, que Oliveira Martins desen-
volverá sobretudo na Historia de Portugal, apresentando
, ^ v o Portugal actual como uma sobrevivência póstuma de u m
' país que morreu em 1580. Além disso a ideologia de Cru-
zada é virada do avesso com a denúncia das crueldades e
JJ- ; / ignomínias acarretadas pela expansão. A História de Por-
•, ] tugal de Oliveira Martins é uma espécie de Os Lusíadas
j em negativo.
Guerra Junqueiro deu dela uma versão narrativa e
dramática no A Pátria, que procura responsabilizar pela
decadência a dinastia de Bragança. ;_
Chamo a esta idéia de «decadência» u m fcontranutoA
em primeiro lugar porque se opõe deliberadamente ao
.mito da Cruzada; em segundo lugar porque pretende riâb'
ser u m mito, mas uma expressão racional 5 ã realidadêf
em terceiro lugar porque não tem a tunçao de justificar
e motivar a acção colectiva. Ela é antes de mais a expres-
são de uma ausência de ideal, da incapacidade de dar u m
sentido à vida colectiva, contra a qual reagiram alguns
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 123

homens, como Antônio Sérgio, e alguns movimentos, como


o Integralismo Lusitano e o Salazarismo, que aliás tentou
agarrar-se a um resto do naufrágio do mito da Cruzada,
o da missão civilizadora portuguesa em África.
Este contramito da Decadência revela sobretudo que
o mito europeu e «burguês» do Progresso não vingou em
Portugal a não ser como ideologia particular de certos
grupos profissionais e políticos, como o fontismo, pala-
vra que deriva do apelido de u m engenheiro que v i u
a regeneração do País na política dos «melhoramentos
materiais». Na consciência profunda do povo português
o progresso foi visto como uma realidade própria dos
«países adiantados», isto é, da Europa, mas n ã o como
coisa sua. ' '
O contramito da Decadência é o vazio deixado pelo
desaparecido mitjTda Cruzada.
São estas duasTdeiàs que presidem como signos ao
percurso da história cultural portuguesa e a dividem em
dois longos períodos: um que vai das origens até meados
do século XVIH e outro que vem desde então a t é hoje.

§ i . O T O P O E A BASE

Outro critério que vamos considerar é o que chama-


mos o Topo e a Base. Por outras palavras: qual é a espé-
cie de grupo dominante que em cada fase conseguiu impor
um padrão ou u m modelo social às classes dominadas
do País. Na nossaperspectíva, o problema n ã o é de ordem
econômica ou mesmo social no sentido mais estreito desta
palavra, masjmltutal. Falamos de modelos, padrões, valo-
res e símbolos. Quem é que em Portugal esteve em con-
dições de os impor, e em que medida foi acompanhado
pela base.
Seríamos tentados a imaginar esquematicamente na
nossa cultura três épocas: a época dos cavaleiros, a época
dos clérigos e a época dos mercadores.
124 A CULTURA EM PORTUGAL

Durante a fase da conquista do território, das origens


até meados do século x m , os cavaleiros são naturalmente
o grupo mais activo da população. As decisões capitais,
que são as que respeitam às campanhas militares, depen-
o^J dem deles; as considerações estratégicas estão no primeiro
plano da acção colectiva; a própria economia, em grande
r - ^ U / ^ / ^ j p a r t e baseada no saque, está orientada para a guerra. Os
reis são sobretudo chefes de guerra, e têm de se impor
pelas qualidades guerreiras.
Durante a Idade Média, os cavaleiros, como j á apon-
támos, eram u m grupo etnicamente separadgda popula-
çãg e tinham-se a si próprios _como_ «descendentes" dos
/Gogós», ji duralltè a mflfíãfquía visígótica o dirêífcTgCT^
mânico se fundira legalmente com o direito romano. Mas
o grupo dos Germanos, que fundamentalmente era cons-
t i t u í d o pelos nobres e não se fundira completamente na
população autóctone, conservara a sua função guerreira
e parte dos seus costumes e tradições privativas.
Os chefes de guerra profissionais são hereditários, como
todos os praticantes de qualquer ofício nesta época, ex-
cepto o eclesiástico. Mas a casta dos fidalgos n ã o era intei-
ramente impermeável, porque ao lado dos cavaleiros fidal-
gos havia os cavaleiros vilãos, lavradores afazendados,
intermediários entre a fidalguia e o campesinato, que
tinham interesse em se profissionalizarem e em se toma-
rem fidalgos de linhagem. E havia ainda os aventureiros,
chefes de bando e de guerrilha, que em condições favo-
ráveis ingressavam ria casta por mérito próprio. Por outro
lado, n ã o devemos esquecer que tanto para Mouros
como para Cristãos esta guerra, desde as origens, era
uma «guerra santa», mesmo antes de ser oficialmente uma
«cruzada»), guerra em que todo o povo estava empenhado,
quer para os desastres, quer para os benefícios.
Os clérigos, muitos dos quais provinham da nobreza
para ocupar os postos mais elevados da hierarquia ecle-
siástica, eram t a m b é m privilegiados. Eram os doutriná-
£)<(••"• rios e os doutrinadores, e além disso tinham u m papel
/ A í-L.- W
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 125

muito importante na diplomacia, na burocracia, na tesou-


raria do rei e na sua diplomacia. E na mesma qualidade
eram também indispensáveis às grandes casas senhoriais.
Como intermediários do Sagrado, acumulavam enormes
tesouros. Mas em circunstâncias de guerra permanente ele
podia ser o doutrinador, porém n ã o o herói, nem, portanto,
o modelo. Aliás, nenhum grupo sacerdotal pode ser um
modelo social. A guerra (e seus sucedâneos, como a caça Ü l j ^ s \
e o desporto) foi sempre grande inspiradora da imagina- "»
ção, e ela aí estava quotidianamente, à vista e na expe-
riência de todas as c a m a d a s . d a n o p u l a ç ã o , envolvida no
fluxo e refluxo da fteronquista/>Uiás ela invadia tam-
bém a vida clerical. È trequente nesta época os clérigos
comandarem exércitos; e as ordens monásticas militaTes
combinavam o ideal clerical com o ideal guerreiro.
Os heróis dos cantares de gesta (ou do único de que
nos resta u m vestígio, a tradição épica de Afonso Henri-
ques), dos relatos lendários, dos livros de linhagens, são
guerreiros, como Afonso Henriques, Gonçalo Mendes da
Maia, Egas Moniz, sendo curioso notar que a tradição
de Afonso Henriques é decididamente anticlerical.
Os valores do guerreiro, nos textos indicados, são a
valentia física (o '«esforço)), como se dizia a t é ao século x v i ,
inclusive), Tfideliffadp ap senhor e a generosidade gra-
tuita (ou «liberalidade»). Gonçalo Mendes d á Maia, o~
herói de uma bela página do Livro de Linhagens do
Conde D. Pedro, que inspirou Herculano, é u m exemplo
de «esforço». Egas Moniz, quando se toma perjuro para
salvar Afonso Henriques, d á u m exemplo de fidelidade
ao senhor; há numerosos exemplos, nos livros de linha-
gens, deste gênero de fidelidade, que se m a n t é m mesmo
quando o senhor enjeita o vassalo. Os exemplos de ((libe-
ralidade» são numerosos. O Livro de. Linhagens do Conde ...
D. Pedro fala por exemplo de u m fidalgo que n u m só
dia, debaixo de uma árvore, distribuiu pelos seus vassa-
los sessenta cavalos. Trata-se de u m valor p r ó p r i o de uma
economia de potlach: quem mais dava ou quem mais gas-
tava inutilmente, mais valia.
126 A CULTURA E M PORTUGAL

A importância do modelo social cavaleiresco prolon-


ga-se para além da época da Reconquista. A guerra con-
tra o Mouro persistiu na Península até à conquista do
reino de Granada, em 1482, sendo interessante notar que,
segundo o autor da Crônica da Tomada de Ceuta, se
aventou na corte portuguesa de D . João I a hipótese de
empreender essa conquista, antes da decisão de tomar
Ceuta. Nunca desapareceu, até ao f i m do reino de Gra-
nada, a idéia peninsular da luta contra os Mouros, que
podiam sempre tentar uma invasão enquanto tivessem u m
pé na Península. E m 1340 Portugueses e Castelhanos cola-
boraram no contra-atãque a uma invasão muçulmana, que
culminou na batalha do Salado. E a conquista de Ceuta,
em 1415, por D . J o ã o I , é u m empreendimento que na
consciência colectiva — ou pelo menos na dos doutriná-
rios que falavam em nome dela — era ainda percepcio-
nado na continuidade da reconquista hispano-cristã, trans-
formada entretanto em Cruzada do Ocidente.
No espaço que vai de 1250 a 1415, na falta de mouros
a entreter a classe guerreira portuguesa, tinham-se suce-
dido, com intervalos de paz, as guerras fratricidas, quer
dentro de Portugal, quer entre Portugueses e Castelha-
nos: n ã o falando na guerra entre Sancho I I e seu irmão
D . Afonso, anterior à conquista do Algarve, a guerra
entre D . Dinis e seu filho Afonso I V , a guerra entre
Afonso I V e seu filho D . Pedro, as guerras de D . Fer-
nando com os reis de Castela, e, por morte de D. Fernando,
a guerra luso-castelhana, começada em 1384 e só termi-
nada de jure com a paz de 1411. Quatro anos depois
seguiu-se a tomada de Ceuta, que recomeçou a guerra
santa contra os Mouros e deu origem a um estado de
guerra permanente no Norte de África, que conhecerá
o seu ú l t i m o grande episódio em Alcácer Quibir (1578).
Embora serodiamente, D . Sebastião, que quis repetir as
proezas de seu antepassado D . Afonso V, foi o ú l t i m o
rei-cavaleiro, o ú l t i m o representante da geração dõs reis
guerreiros, iniciada com Afonso Henriques, cuja espada
ele levou para a sua desastrada empresa. Representante
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 127

anacrônico, porque já os três reis anteriores, D . J o ã o I I I ,


D. Manuel e D . João I I tinham feito a guerra por pro-
curação, sem sair dos seus gabinetes, se bem que a casta
militar continuasse a ocupar um lugar dominante, n ã o só
em Marrocos como na índia, onde também os Portugue-
ses tinham de se bater contra os Muçulmanos. A série
dos reis-cavaleiros terminara de facto três gerações^ãtfás,
comAfónso v, muito melhor cavaígiru t|Ug"gêneral, e que
vânãs~vêzèr expusera o corpo em recontros anaados, na
guerra de África. E depois üeie q u e ^ C T t o i j ç a s p o r t u g u í "
sas ~3eíxám~"de ser irõsaruK"W"pênp^cias bélicas^ côíno
t ^ h a i n l i a i r í i r ^ E ^ Z ^ " " ' " '
à i i n h ã ^ d ê n e S t f t i ^ i m e n t o da clericatura n ã o se ^(Íq
situa no mesmo plano que a da cavalaria. Não se deve -—_
esquecer que a organização religiosa da Península é ante-
rior à fundação do reino de Portugal. E é sensível o desa-
justamento entre o ideal do corqvistpdfir e Q fln pvapge-
Tizador, Aquele considera-se descendente dos «Godos»,
isto é, dos invasores germânicos que partilharam entre si
os frutos do trabalho da população hispano-romana; estes
são os herdeiros dos letrados e burocratas do Império, os
domesticadores de bárbaros. As diferenças culturais entre
uns e outros aparecem desde os primeiros documentos
da literatura portuguesa. O conde D . Henrique, no testa-
mento político que lhe é atribuído na tradição épica,
recomenda ao herdeiro os cavaleiros e os homens dos con-
celhos, mas não tem uma palavra para os clérigos.
Numa primeira fase p&dgmos supor que a comunica-
ção entre a casta militar_e_o^_gpvo ej^m^sJácilj^SLJÍ.
comunicação entfFÕ"çIêro e o povo, porque a casta m i l i -
tar "tinha uma cultura oral e tradkionaL/êmjíipntraste
com a cultura escrita dos clérigos. É de presumir que os
cahlarerêpícós e o s f omances antigos tinham como público
cavaleiros e vilãos, ao mesmo tempo ou alternadamente.
Quando nasceu o reino de Portugal acabava de se instalar
a reforma eclesiástica de Cluny, vinda de França, que
rompia com a tradição hispânica ou moçárabe. Os prin-
cipais bispos de Portugal eram franceses ou nórdicos.
128 A CULTURA E M PORTUGAL

Mas a p a c t i i L j i o século x i y a distância, entre o clé-


rigo e n Jeígo es^á"3jíílõ3ã"tenuada r como o atestem as
ordens religiosasjnendicantes — Dominicanos e Francisca-
nos — introduzidas durante os séculos x m e x i y . À pre-
gação popular, que estas ordens se propuseram como voca-
ção especial, foi o seü principal meio de comunicação com
o público. Aliás, a própria diferença entre clérigos e lei-
gos é atenuada pelo facto de os Franciscanos n ã o serem
sempre padres. A cultura eclesiástica penetra nos meios
profanos com os seus ideais próprios. A primeira metade
do século x v oferece-nos uma obra escrita por u m rei,
D. Duarte, em que os preceitos religiosos se misturam
tj\„£ com os preceitos caValeirescos, e já no século anterior os
lk
"^ romances de cavalaria vindos de França estão penetra-
F.>>---\ dos de doutrina religiosa (José de Arimatia, Demanda
, \ do Santo Graal).
É provavelmente por efeito desta osmose, desta per-
eci £ / í / » é mpajuliTarão egtre a cultura cleiicaLe ajcultura ravátêu-.
'* ,.t- rèsca, que vemos intredl?zir-se_nO-padrão cavaleiresco. u m .
outro^ vãipr_que psijantares de gesta e os livros de linha-
gens não conheciam: a ascese, isto é, o espírito de .renún-
cia aos bens j:arnais_e" mundanos. É no século x i v que
a vemos afirmada como valor essencial na Demanda do
Santo Graal. N a primeira metade do século x v ela é cons-
tantemente afirmada no Leal Conselheiro de D . Duarte
e nas Crônicas, a começar pela de Zurara.
O mais alto expoente das «bondades» cavaleirescas é,
segundo Fernão Lopes, o condestável D . N u n o Alvares.
Pereira, em torno do q ü ã T p â r E E F t e r havido u m verda-
j deiro culto popular. Ele possui no mais alto grau o
«esforço», pois é insuperável como homem de armas; pos-
•'• 1 sui também a «liberalidade», até ao ponto de distribuir
a sua imensa fortuna pelos servidores e pelos pobres.
Note-se que este valor cavaleiresco, no caso de N u n o Alva-
res, podia t a m b é m ser considerado como uma forma de
ascese, porque coincide com o culto monástico da pobreza,
e Nuno Alvares recolheu-se a um convento de carmelitas.
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 129

É também uma forma de ascese o culto da castidade


que os cronistas lhe atribuem. É no líeãilo x v , depois
das celebradas histórias de amor de D . Dinis, D . Pedro
e D. Fernando, que a castidade se impõe na literatura ofi-
cial como virtude de reis e príncipes. O Infante D . Hen-
rique teria morrido virgem, segundo Zurara. D . Duarte
recusou «dormir com mulher» antes de casado, apesar
do conselho dos médicos, segundo ele próprio declara no
Leal Conselheiro; e os irmãos, a julgar pelo que dizem
os respectivos biógrafos, teriam sido exemplarmente cas-
tos fora do leito conjugai. De resto, a dinastia acabou em
D. Sebastião, por este, seguindo à letra o ideal cavalei-
resco, se recusar a casar ou a qualquer contacto feminino.
Esta combinação do valor cavaleiresco e do valor cris-
tão ascético atinge o seu z^ej^r^^eliDEXtxLlíQ^úáBi^ro^
terço do século X V L Tem~a sua expressão no ideal de cru-
zada que mõnvã~as conquistas na costa africana. Ainda
no primeiro terço do século x v i G i l Vicente é soprado
por este vento, apesar de desde D . João I I a motivação
mercantil se ter sobreposto ao ideal de cruzada, pelo
menos na orientação da Coroa. O teatro de G i l Vicente
é uma expressão dos valores tradicionais. Parte dele são
autos de cavalaria, outra parte autos religiosos, e nume-
rosas facécias populares. Com o Auto da Alma atinge-se
provavelmente o cumè da expressão artística literária da
concepção ascética da vida. A expansão do teatro vicen-
tino, tanto na corte como no povo, mostra que este sis-
tema de valores tem uma grande aceitação na sociedade
portuguesa. Atinge-se u m equilíbrio entre o ideal do cava-^
leiro e o do clérigo, os dois grupos culturalmente domi-
nantes! ~ " ~~
É provável que a personalidade étnica da nobreza se
atenuasse no século x v i , tanto mais que o Rei admitia
como «cavaleiros-fidalgos» muitos plebeus que lhe presta-
vam serviços.
Ainda então o/grupo dos merõtjoresjestá relegado a
uma situação secundaria, apesar da sua enorme e crescente
5
130 A CULTURA EM PORTUGAL

importância econômica. No século x v o rei D . Duarte


definiu os cinco «estados» ou classes da sociedade. Em pri-
meiro lugar, os ((oradores», que são os padres e frades;
em segundo lugar, os «defensores», que são os cavalei-
ros; em terceiro lugar, os pescadores e lavradores (o que
nós hoje chamamos, o sector primário); em quarto lugar,
os «oficiais», que são os ((conselheiros, juizes, regedores,
vedores, escrivães e semelhantes»; finalmente, os que
hoje chamaríamos.técnicos: «físicos» (médicos), cirurgiões,
mareantes, «tangedores» (músicos), armeiros, ourives, etc.
t. notável que nesta enumeração não se encontram os
mercadores, apesar da importância decisiva que os histo-
riadores lhes atribuem já na insurreição de 1383. Cultu-
ralmente, os seus Valores estavam ainda marginalizados.
Aliás, desde a segunda metade do século x v , n ã o se
pode já falar dos cavaleiros e da clerezia como pólos cul-
turais independentes. O verdadeiro foco, a oficina onde
se elaboram os valores da aristocracia, é a Corte. A Corte
é o Rei, com os seus familiares, os seus cavaleiros, os seus
padres, os seus burocratas e frades, os seus músicos, decora-
dores, arquitectos e artistas em geral, os autores e ence-
nadores de espectáculos, os torneios de cavaleiros, os con-
cursos de poetas, as danças, as modas, etc. A q u i desaguam
e tentam uma síntese a erudição dos clérigos, as tradições
de cavalaria e u m saber não propriamente clerical, pro-
veniente da Universidade e da leitura de autores huma-
nistas, italianos e latinos.
G i l Vicente criou um curioso símbolo, que é ((Frei
Paço», um clérigo com maneiras de cortesão, que tenta
ensinar as moças labregas a terem modos de senhora. Com
esta personagem quer ele significar a importância que
a clerezia tinha na corte, o que é confirmado por inúme-
ros depoimentos, entre eles o do cardeal Lipómano, que
em meados do século nos descreve a corte de D . João I I I
como u m estado-maior de padres e frades. Mas esse sím-
bolo mostra t a m b é m como estes eram permeáveis às
influências mundanas.
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 131

O fidalgo não é já u m guerreiro em estado puro, como


os heróis dos cantares de gesta. É principalmente u m
«cortesão». Herdou o «esforço» e a «liberalidade», mas
acrescentou a este patrimônio outras qualidades. Gonçalo
Fernandes Trancoso, num dos seus Contos e Histórias
de Proveito e Exemplo (o 2." da 2.» parte, publicado na
ed. de 1585), descreve-nos as artes cortesanescas de um
filho de mercador rico: «Numa cidade de Lusitânia havia
um rico mercador que tinha um só filho de grande dis-
creção e habilidade, muito ensinado nos bons costumes
que o mancebo nobre deve ter, douto na língua latina
e grega, dançante, músico, grande tangedor de todos os
instrumentos de tecla, cavalgador e bom cavaleiro, des-
tro em todo exercício militar. De modo que por sua pes-
soa, sem outra coisa, era para caber em corte e casa do
maior rei do mundo. E como ele tinha todas estas partes
não podia o pai sujeitá-lo a seu modo na mercancia, que
o mancebo não estimava.»
O modelo originariamente aristocrático da cortesania
assimila os filhos dos mercadores, que, aliás, freqüente-
mente adquiriam carta de nobreza. O filho de mercador
desta novela de Trancoso acaba por casar com a filha
do rei de Inglaterra. E vemos, em G i l Vicente, que era
adoptado também por gente de origem humilde, como
os escudeiros pelintras, que tocavam viola, falavam pre-
ciosamente, alardeavam uma liberalidade de ricos, faziam
versos e blasonavam de bons cavaleiros. Eles eram preten-
didos pelas «moças de vila», filhas de oficiais mecânicos,
como Inês Pereira, que sonhavam trocar o tear e o forno
do pão pelas prendas de palácio. Inês Pereira prefere a
galantaria do escudeiro pobre mas músico e «discreto»,
isto é, bem-falante, aos modos labregos do lavrador abas-
tado. U m observador flamengo que por 1532 estanciou na
corte portuguesa notou até que ponto este ideal de fidal-
guia era flagrante nas ruas, e conta.de u m barbeiro que
ia a casa do freguês com ademanes de senhor, precedido
do ajudante, como se este fosse o seu escudeiro.
132 A CULTURA E M PORTUGAL

O modeloda cortesania, com o_seu desdém pelo traba-^


Cff " c J h o j n â n u a l , o seu culto da «HKõreçãõ)!, o seu gosto da des-
pesa sumptuáriâ,' aSHmâs* «artes» de iòcledãde, impôs-se
ao pâfs inteiro contrapondo-se à rusticidade e à obriga-
ção de trabalhar, próprias do rampnnês. O idya) dp mgr-
yador está ainda ausente da obta de-GilVicente.
A época áurea da corte p o r t u g u e s ã r i r t l o seu mo-
delo social é provavelmente a corte de D . Manuel e de
D. João I I I . Mas a partirjfe, 154CLa influência clerical
k torna-se cada vez mais absorvente. Uma nova vaga monas-
)» . . ~TIcã~ítivade-a t ó f t e ^ ~ i m p õ ? s ê ~ à aristocracia: é a Compa-
\ nhia de Jesus, que rapidamente entra em competição com
Vf,\\ Franciscanos e Dotninicanos.
í ' Os Jesuítas criam uma rede de ensino que vem preen-
^ cher uma lacuna na formação da nobreza; quase toda a
aristocracia portuguesa por lá passou durante perto de
dois séculos (de meados do x v i a meados do x v m ) . O r e i
D. Sebastião foi educado por jesuítas, dentro de u m ideal
monástico-cavaleiresco, que representou uma amputação
na cortesania alegre e festiva que se respirava na corte
de D . Manuel e na maior parte da de D . João I I I . A bata-
lha de Alcácer Q u i b i r foi u m golpe mortal no espírito
de cruzada, cujo recuo j á é patente no abandono das pra-
ças de África por D . João I I I .
^ S t a ^ ç a t á s t r o f e j i g o diminuiu_a influência da clerica-
\ 0 r f* tura, que se manifesta em fnrmãk rplj^nsa^Tu^j^parrn^
C nas
nas artes-piasficas
artps Jilástiras e p noutras manifestações7~Mãs
manifestarnes~R/rJ5f esta vaga
vãtrã"
..A 3 . de devoção parece corresponder a um princípio de laici-
l ^(• •'^ zação e de dúvida religiosa, cujos principais agentes foram
os humanistas, letrados laicos, familiarizados com o pen-
samento greco-latino e com os mitos pagãos. N ã o é ainda
a dúvida sistemática, mas pressentimentos de descrença,
que se encontram por exemplo em Camões, contrabalança-
dos por movimentos de catolicismo exacerbados. Embora
os humanistas n ã o tivessem qualquer projecção popular,
foram considerados perigosos pela clericatura dominante.
Os colégios jesuíticos contrapuseram-se vitoriosamente aos
mestres humanistas.
74
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 133

Acrescentou-se a isto a acção repressiva da Inquisição,


que instituiu uma atmosfera de p i p d ^ e rpljginsa exibi- ^0'
cionista nmtivada pelo medo das denúncias. Entramos na ^ ± > ^ j>jA
époa-dos.|lérigq^ *A{V>-^'
O golpe decisivo na cortesania foi provavelmente a
perda da independência, em, 1580,. que acarretou o desa-
parerimento_dacorte deJLisboa. Uma grande parte da
fidalguia portuguesT~Eéqüèiiitã Madrid ou Valladolid,
outra parte recolhe-se às suas terras senhoriais. O duque j " . ^
de Bragança manteve uma pequena corte em V i l a Viçosa.
Mas como podiam estas «cortes na aldeia» substituir a 63>]í
antiga corte dos reis? Mesmo Lisboa, sem deixar de ser
um grande porto comercial, o maior da Península, se tor- (I (fo - ^ ^
J
nou uma cidade provinciana: assim o notou u m sensível
observador português, T o m é Pinheiro da Veiga, que em
princípios do século x v u visitou a corte espanhola, então
em Valladolid.
É então que os clérigos dominam a cena em Portu-
gal. Eles participam do conselho da regência que admi-
nistrava o reino, ao mesmo tempo que monopolizam o
patriotismo popular, através principalmente das prega- f g.-i .
ções jesuíticas, e o patriotismo literário, através das mara- ay
vilhas teológico-patrióticas contadas por Fr. Bernardo de ,-.£j.íy
Brito e outros frades, como as Cortes de Lamego e o mila- ' ^0?/
gre de Ourique. As tipografias imprimem principalmente
vidas de santos, crônicas de ordens religiosas, histórias
de milagres. Os Jesuítas montam grandes espectáculos
moralizantes, embora o público pareça mais atraído pelas
comédias trazidas a Lisboa por companhias espanholas.
Esta situação permanece mesmo depois da Restaura-
ção. A corte de Lisboa nunca mais voltou a ter o brilho
antigo; e o homem-símbolo da pús-r^tanração é o padre
A n t ô n i o Vieira, jesi^a^pregador. diplomata, missionário. "
conselheiro "3ò rei na administração, na economia e até
na gúètTâ. OsTieróis militares da guerra contra Casteia
sãò" figUfas secundárias; o «nervo da guerra» é o dinheiro,
como diz Vieira, e não já os homens. Uma grande parte
da actividade de Vieira foi gasta para atrair à causa da
134 A CULTURA E M PORTUGAL

independência portuguesa os capitais dos mercadores e


para formar companhias de comércio; todavia, o burguês,
mercador ou letrado, permanecia na sombra. N ã o cons-
tituía ainda, não constituirá talvez nunca, em Portugal,
um padrão social, u m paradigma de comportamento.
A Inquisição, se bem que cada vez com maior dificuldade,
procurava confiná-lo nas trevas infernais.
À falta de uma corte prestigiosa, beneficiando do apa-
gamento relativo dos heróis militares e do ostracismo que
pendia sobre os mercadores, o clérigo pretende impor-se
como o único mestre e exemplo do povo.
Ihte >v Para mestre não" lhe faltaram os pieioã^ desde o cgÜ^
Wi ) SI" ' Íft° Í e s ^ f " i - , 0 a t ^ à confissão, passando pela pregação e pelas
inumeráveis pYóci5SÕés"eFspcçtáculos pios. Poderia dizer-
1
- f -ri -se que nunca houve época tiõ~suBmiS3mente religiosa
L. como esta; mas talvez t a m b é m nunca se descresse tanto
.i.a/jjf / J em Portugal (e na Espanha em geral) como na mesma
1
^ época.
/.o ('•'• A correspondência entre as palavras e os objectos por
j ^ O - J rias referidos era-extremamente equívoca. Os historia-
dores e os hagiógrafos referem as mais incríveis maravi-
lhas, inventam e forjam documentos sem sujeitar o que
dizem a qualquer controle que tenha por base a separa-
ção do verdadeiro e do falso. Basta que uma coisa seja
imaginada e dita para que se tenha por verdadeira. Nunca
J ^ JlQaye talvez época em que a palavra fosse tão_absoluÍãZjC
_Jsto, eridènTéméntej~süpõ
mente indiferente a qualquer verdade exterior à palavra..
Quando o padre Antônio Vieira diz que a Virgem é
superior a Deus ou que a Santa Trindade tem quatro
pessoas, e n ã o três, será que quer convencer o seu audi-
tório, ou apenas deslumbrar com paradoxos mirabolantes
a imaginação dos ouvintes? No primeiro caso porque é
que esses atrevimentos n ã o foram castigados como hère-
sias? N o segundo, qual era a função do orador sagrado?
Em qualquer caso, este e outros exemplos deixam-nos
a impressão de que o exibicionismo verbal ou outro (como
a J m p o n ê n c i a dasjirocissões e a profusão barroca dos alta-
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 135

res) corresponde à falta de uma adesão intima às verda- 6{- í'


desjja fé, isto é, à jjiisência de umaj|fectividade rejjgiosa. t " ; , i t \ ,
A_ascese é substituída pela mortificação, que é uma _ •
manifestação qbiectiva, não""iíecessariamente dela, mas^j^ ' 1-'* .
eventualmente da_ süa_tgj[ta. A ascese é uma sublimaçãcw^OíT;»í;C*(f
de instintos fortes e que leva ao extremo da vida, que
c o seu f i m . A mortificação pode ser só uma penitência
para compensar o gozo corpóreo. Nas procissões exibiam-
-se os flagelantes, com a pele a sangrar das chicotadas que
davam a si mesmos. E acresce que este auto-suplírio é uma
forma de masoquismo, com a sua autocomplacência. Havia
nisto evidentemente uma certa connipisçêpcijL que é tam-
bém flagTante, por exemplo, no gozo público que propor-
cionavam os autos-de-fé, como acontecia nas touradas.
Podemos talvez falar de uma sensualidade ambígua,
que tanto aparece sob a forma de mortificação como na
de pequenos vícios expressos em forma de homenagens
piedosas. A Fénix Renascida publica u m poema a Santo
Antônio, «em metáfora de doce». Toda a doçaria portu-
guesa está ali referida como forma de homenagear as vir-
tudes do santo. Havia acepipes de freiras associados à v
clausura religiosa, que cripujoiinas particulares de sócia- ' ->\
bilidade, como o eram os.luaiteiros»iou concursos de poe-
tas. Uma categoria especial de amores se criou, os amores
«freiráticos», tanto , mais atraentes quanto mais clandes-
tinos e susceptíveis de grandes arrependimentos. No final
desta época, que podemos situar no reinado de D . João V,
a talha dourada consagra a Deus, à Virgem e aos santos
altares que divertem os olhos, todos povoados de anjinhos
que-narecem Çupidos nos quais espreita a l u b í r c i d a t t e '
Em resumo, a vacilação na crença cristã, que se pres-
sente na Renascença, deu lugar a uma espécie de crença C^^fp
redundante manifestada de maneira copiosamente sen- -^''J^L
suai. Esta redundância n ã o prova que a crença tenha sido
restaurada pela Contra-Reforma, mas antes que ela se exte-
rioriza, isto é, passa de dentro para fora. N ã o há já o
pressentimento de uma dúvida inquietante, mas sim u m
oco apaziguador. A religiosidade transfere-se para a super-
136 A CULTURA E M PORTUGAL

fície, como, nas múmias dos faraós, a estátua saliente


esconde, para a eternidade, a ausência do corpo já con-
sumido.
Mas se o clero podia ser um mestre, a sua própria
maneira de viver impedia-o de ser u m exemplo. O clé-
rigo é um marginal na medida em que não constitui
J C U
S L família.
' Enquanto n ã o entra em cena o mercador, o modelo
j social continua a ser o do cavaleiro-cortesão tradicional.
v
j! J ^ cortesania permanece, mas não se renova. O cortesão
' limita-se a conservar a herança; não inova o seu modo
. .^oc de vida. A linguagem palaciana n ã o se adapta, tal como
acontece com a mentalidade da maioria.jiosfidalgos:
torna-se cada vez mais formal, mais pngenhosav mais
• distante"9a realidade, mais fnintefígível aos jiao_jpiria=
ffóúCfclA 4 ° s - ^ heiin provável que a irradiação d á cortesania não
________— tenha já o â m b i t o nacional documentado nos autos vicen-
tinos. Mas n ã o havia outro modelo social que se lhe opu-
sesse. E algumas das iuas características mais inertes, como
o desdém do trabalho manual, o «andar de costa direita»,
tornaram-se verdadeiramente nacionais. Sob o aspecto do
padrão sorial,\ojéculn_xvn é umprolongamento cada vez
mais espectral do quinhentismo. ~ ~'
, Entretanto, j á a partir de ü. João V a corte enxameia
de gente nova, que não pode incluir-se nem no grupo
dos clérigos nem no do cavaleiro-cortesão: multiplicam-se
os licenciados, geralmente filhos de mercadores, e os fidal-
gos de novo tipo, os ((fidalgos ilustrados», que tinham
bibliotecas e gabinetes de física, participavam em acade-
mias, aprendiam línguas estrangeiras transpirenaicas, via-
javam ou mesmo se expatriavam.

A tipografia tinha acumulado os seus efeitos, tornando


(jv . i j l i ) acessíveis pela leitura certos conhecimentos que até ao
r,,j século x v i só se obtinham por iniciação clerical. Os letra-
, v . dos leigos, muitos dos quais não eram fidalgos, consti-
' 'fJí tuíam um grupo cada vez mais numeroso em face dos
^ 4)J letrados clérigos. '*
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 137

/.//1\ i Q , - _
O Brasil dá oportunidades para fortunas rápidas, de L 7 L<r'
que uma pequena parte procura investir-se na terra, ^
em prédios mais ou menos luxuosos, ou inclusivamente em
indústrias que era preciso i n v e n t a r . _ M e r ç a d o r e s e a y e n -
tureiros ingressam aceleradamente n õ s ~ q u a 3 r o s d a fídàEl
guia, desnatürãp3o-a. ~ ' ' . ~
E o marquês de Pombal, um dos tais fidalgos ilus- fiOo/,úJi*
trados. e para mais ((estrangeirado»..quem dá ao merca- u i / J V / q *
dor, como classe, uma posição dominante. Ele faz dizer ( V o ,
_ • -1 1—- — • 1 i 1 , , . \\il'i/""Jtl/y
aos seus letrados que a classe dos mercadores e a mais
útil e a mais nobre da nação. Com a expulsão dos Jesuítas A ^ ^
amputa gravemente a influência clerical e destrói um ^
c
tipo de educação de que eles eram os principais artífices. ^r'"
A reforma da Inquisição consistiu sobretudo em levantar $1*0* , J
o labéu de «cristãos-novos» que pesava sobre a classe dos " S G ^ C ^ Y J
mercadores. -—' "
Com o ministério Pombal podemos dizer que os mer-
cadores, grupo j á muito importante economicamente, pelo
menos desde o século x v , mas culturalmente confinado
a uma espécie de clandestinidade, ocupa finalmente a
boca da cena. .——
Com que sucesso? Temos de reconhecer, em primeiro
lugar, que esta palavra ((mercadores» abrange ou esconde
diversas realidades. H á o «mercador» propriamente dito,
que se desenvolveu no transporte de mercadorias (pimenta,
escravos, açúcar, café, ouro...); há o brasileiro, ou «mi-
neiro» (como se dizia no século X V I I I ) , que em certos casos
era u m golpista da fortuna, u m novo-rico; há o empresá-
rio dos engenhos de açúcar, da captura de escravos, etc; h á
a burocracia de Estado oriunda de famílias burguesas;
há o «capitalista», isto é, o homem que faz empréstimos
a juro. Entre estes grupos, que se tornavam privilegiados,
e os trabalhadores manuais ou braçais não existia prova-
velmente uma classe média cujo peso cultural fosse sen-
v
sível. "
Este mundo dos mercadores não parece ter sido bem
acolhido n u m país em que a economia rural de subsistên-
cia continuava a ser dominante, e em que o clérigo conti-
138 A CULTURA E M PORTUCAL

l/i\o * ) n uava a ser no campo o conselheiro e juiz das consciên-


F-t-'- •> * c j a S i s ó aqueles que sabem falar à imaginação e ao espírito
!>j conseguem agir espiritualmente. O mercador fazia cál-
culos abstractos de emprego de capitais que nada tinham
que ver com a vida quotidiana do camponês. A plebe
da cidade, na medida em que deixava morrer os valores
s p"A^- originários, que eram rurais, ficava abandonada ao embru-
1 t e c i m e n t o , ou pelo menos ao empobrecimento espiritual;
só lentamente ela . virá a apropriar-se dos novos valores
J
U ; 6 Í ^ 3 «burgueses» e a criar uma consciência própria.
^° É muito provável que, apesar dos esforços de Pombal
para alargar ao país'inteiro o esquema das escolas regias,
o povo de maneirá . geral se tivesse tornado muito mais
inculto do que o fora no século x v , mesmo tendo em
conta a diminuição de analfabetismo.
Sobretudo o que parece acontecer é uma lenta desin-
WLoytAÇo jegra,-;,, cultural da sociedade portuguesa. N o topo, o
>>>__ Estado entroniza a Razão. Pela Universidade, pela buro-
í .•£>:> cracia, pelas academias, lança uma ofensiva sistemática
contra a ((Superstição» e a «Ignorância», contra a própria
Imaginação quando ela n ã o é u m mero revestimento, sem
autonomia, de u m esquema racional.
As guerras liberais são o afrontamento entre os merca-
00«.
• j dores, entretanto desapossados do Brasil, com os seus alia-
dos intelectuais, e os clérigos, que eram apoiados pela
J plebe ignara e fanatizada. O que estava em causa era
v
* a posse da terra, que ainda pertencia na maior parte à
•*/'••" w Igreja. Os mercadores desapossavam os clérigos, tornando-
- o <.• ri . s e aristocracia rural, e muitos camponeses puderam tor-
r .• - nar-se proprietários. Foram estes últimos que formaram
\p ' ü ' t / i a c l a s s e média rural, seleccionada segundo os dotes de tra-
balho, de economia e de capacidade administrativa.
De facto, no século x i x , o pequeno e médio empre-
sário do comércio e da indústria e o proprietário cam-
ponês atento ao desenvolvimento da «casa», gente mori-
gerada, austera, de contas certas, gente de «princípios»,
constituem os dois núcleos colectivos que se impõem
moralmente quer à aristocracia ociosa e dissipadora, quer
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 139

a uma plebe que vive no dia-a-dia, do salário ou da jorna.


Das médias e pequenas famílias rurais t ê m saído em
grande parte os quadros dirigentes da nação, em muitos
casos pela via do seminário, o que contribui para uma
presença forte dos ideais religiosos, visíveis ou invisíveis,
na aristocracia rural, ou na elite urbana de origem rural.
Mas na maioria da população nunca vingou em Por-
tugal, acT invés do que sucedeu nos países calvinistas,
a flr
^ ' H T ? Í Q doutrinária do trabalho. Nesse aspecto per-
sistiu na massa da população portuguesa a atitude medie-
val, própria do senhor, do servo da gleba, do cortesão
ou mesmo do clérigo católico. A valorização moral do tra-
balho em Portugal é própria não do povo em geral, nem
tão-pouco da aristocracia, mas daqueles núcleos minori-
tários a que nos referimos, isto é, dos empresários rurais
ou urbanos, e ainda de alguns intelectuais, de que Alexan-Y
dre Herculano é um bom exemplo. N ã o h á em Portugal \
uma «classe média» com homogeneidade culturãT )
O espectácuío cultural que nos dá a sociedade portu-
guesa depois do pombalismo é o de u m mundo disperso,
esfarrapado, constituído por núcleos desencontrados e que
tanto se manifesta nas enormes peregrinações a Fátima A £A* oij
— a última grande romaria do Ocidente — como na per- ^'tWsyn
seguição religiosa desencadeada em 1910, pelo governo ^ 0
republicano, secundada por uma parte da plebe urbana. i^-o
Assim, o advento da era dos mercadores, que sucede - . rf c ^
em Portugal à era dos cavaleiros e à era dos clérigos, mani- ^ A
festa-se sobretudo pelos seus efeitos negativos. A desinte- C v í ^ a L
gração dos ideais tradicionais não foi seguida por uma
reintegração noutro sistema.
A Utilidade renega qualquer moral cavaleiresca ou
ascética, ou mesmo hedonística. É essencialmente mate-
rialista, mesmo quando se reveste de altruísmo; só se con-
juga com uma idéia quantitativa é corporal do universo
e da vida. Em última análise, mede a prática da vida em
unidades monetárias, o que está, formalmente, de acordo
com a idéia de racionalidade matemática. É t a m b é m essen-
cialmente objectivista, o que significa que a pessoa se
140 A C U L T U R A E M PORTUGAL

£ riPilà i i j ^ m e d e pelos objectos que tem ou não tem ao seu dispor.


«Ter» é o verbo desta moral, porque é a palavra que
p
->U i. exprime a relação entre as pessoas e os objectos, consi-
derados estes como inertes, segundo u m critério que tam-
bém é científico (o princípio da objectividade). Por isso
ela é incompatível tanto com a ascese como com a sensua-
lidade, que ambas supõem a relação de alguém com algo
que pode agir na sua essência subjectiva, de forma dura-
doura ou m o m e n t â n e a . Mas ajusta-se com a austeridade
que supõe uma certa privação, u m certo n ã o ter rela-
tivo, que é uma forma de capitalizar, isto é, de ter nou-
tro nível. Fora desta relação, fica a alma propriamente
dita; e, talvez por isso, esta palavra é praticamente abolida
não só no discurso científico, mas na linguagem burguesa
quotidiana.
Em conseqüência do que ficou dito nas páginas ante-
riores podemos, sob este ponto de vista, distinguir no
desenvolvimento da cultura portuguesa as seguintes ^fãsêsTj
iy aquela em que é predominante o ideal ravaleiresco^
Nesta podemos distinguir dois padrões sucessivos: o padrão
do guerreiro a t é meados do século x i v , e o padrão do corte-
sâo, que se torna mais patente no século x v e no primeiro
terço do século x v i , embora persista muito paTa além desta
época; éy aquela em que se torna dominante o ideal cleri-
cal e qrie ocupa parte do século x v i , todo o X V I I e a pri-
meira metade do X V H I , sem que todavia se encontre u m
substituto para o padrão da cortesaniar^J aquela em que
o mercador deixa dcsaLjnarginalizado, sem_ todavia con-
seguir criar outro ideal colertivo erq sqb«tittlPpjf> gyr^
v móbil da "Uriíjdade.destiuiu. Este período vem do sé-
cuK XVffi "ãtíTnossos dias.
Não há mutações súbitas no palco: o clérigo, o guer-
reiro, o cortesão coexistem, durante certo tempo, embora
troquem como n u m ballet os respectivos planos cênicos.
O mercador e o clérigo coexistem a partir de certa data,
embora irreconciliáveis, como n'A Sobrinha do Marquês,
de Garrett. Cada momento dado contém o passado e o
futuro. Mas se há u m corte mais marcado é em meados
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 141

r do_5Éculojçvm, quando o dérigo_é expulso.dp topo do


Estado, quando p mercador irrompe na cena.-quando a
cidade se .distancia do campo. É então que a relativa üriF-
~3àde cultural do País se desmantela, sem aliás ser recons-
tituída noutra base. Nunca mais acontecerá que u m povo
inteiro se reconheça num artista de corte, como foi o caso
de G i l Vicente.
Dentro desta grande divisão h á momentos particulares,/>
o
como o torvelinho da p^ènasçênçã^Um grupo de intelec- ' 9
tuais laicos, os humanistas e seus adeptos, ameaça aluir
a primazia cultural dos clérigos; a concepção ascética da
vida é ameaçada pelo culto da Beleza; o ideal cristão tem M
de empenhar-se em sustar a invasão dos ideais pagãos, tra- -J
zidos pelos escritores da Antigüidade. Mas é uma revolta • O - I F A ^ ,
de intelectuais que foi abafada, tanto em Portugal como
na Europa, quer pelo catolicismo, quer pelas igrejas pro-
testantes, embora de maneiras diferentes.
Este torvelinho merece todavia uma atenção especial,
até porque a maior parte das suas promessas se perdeu
para muito tempo.

§ 4. D E N T R O E FORA

Outro critério a considerar neste problema da perio-


. dização da cultura portuguesa é o que designaremos suma- s
riamente por Dentro e Fora. - UXV.'.0W£
Uma cultura só tem identidade quando se sente dife- l
renciada em relação a u m exterior. Esse sentimento pode \
variar quanto às épocas e também quanto ao espaço desse y> riu^íl»
exterior. . "
Portugal nasceu dentro da Espanha (dando a esta pala- : '
vra o seu antigo e legítimo significado de conjunto das
142 A CULTURA EM PORTUGAL

nações peninsulares), a partir, como já notámos, das mon-


tanhas das Astúrias. É o país mais interior e mais isolado
da Espanha ocidental, o mais afastado da Europa e porven-
tura aquele que, depois dos Bascos, conservou de maneira
mais pura e mais duradoura as características culturais
mais específicas d á Península. É a continuação do remoto
noroeste dos castros, que os Romanos levaram tanto tempo
e esforço a assimilar. Menéndez Pidal notou que no seu
tempo ainda persistiam em Portugal rimances populares
comuns a Portugal e a Castela, mas que em Castela já
' P > ,,,,, se tinham perdido.
' Este e o ponto de que tem de partir qualquer refle-
t i ?m:VL. xão sobre o Dentro e o Fora. Portugal é tão ((espanhol»
i j j/«iA c o m o - £ a s t e l a - «Espanha» é ã pátria_comum de várias
v'"• ''' ' nações e regiões, estando P o r m g ã l m c l u f d o entre elas^ "
Na primeira fase da sua história, Portugal participa
•!" hi\ com as outras nações da Espanha nas guerras da Recon-
quista, «outro», o vizinho e inimigo, o do outro lado da
fronteira, e b Mouro, e isto tanto para Portugueses como
-v F
para Castelhanos e Aragoneses.'Dali vieram sem dúvida
•> v o . influências, mas que foram vigorosamente assimiladas ç
recalcadas. Em PortiigãTnãTficou uma pedra a assinalar
a presença árabe. As catedrais foram construídas com os
cantos das mesquitas arrasadas; raríssimas inscrições esca-
param; n ã o deve chegar a um milhar o n ú m e r o de pala-
- í'4lt->j vras árabes que ficaram no nosso vocabulário. O mesmo
sucedeu em Castela, salvo quanto ao reino de Granada,
que só foi conquistada em 1482.
Ficou sem dúvida uma parte da tecnologia árabe, mais
suportável porque não tem um valor simbólico (para não
falar do seu interesse econômico).
T u d o isto mostra uma vontadejaersistente de apagar
a presença do «inimigo».
Inicialmente, na fase da hegemonia árabe na Penín-
sula, e ainda talvez no primeiro reinado português, os
«Moçárabes», Cristãos arabizados, ou mesmo pactuantes
com o poder muçulmano, chegaram a alcançar posições
dominantes, como vimos pelo caso do conde Sesnando,
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 143

pelas mais antigas tradições recolhidas nos livros de linha-


gens e pela tradição épica de Afonso Henriques. Mas essa
situação não se manteve perante o processo de recalca-
mento violento a que já nos referimos.
Todavia, um recalcamento não é uma anulação. A rela-
ção de Portugueses e Árabes foi exterminada da zona
da consciência, mas continuou a processar-se fora dela,
invisível como os raios infravermelhos. J á demos algu-
mas sugestões sobre este problema, que mereceria ser
analisado cuidadosamente: qual é na realidade, para além H f ^ / ^
de alguns topónimos e da lembrança das mouras encan- ifojié 1
tadas^,a_herança árabe na cultura portuguesa?
Nas origens do Estado português encontramos factores
transpirenaicos. O fundador, Afonso Henriques, é filho
de u m conde burguinhão. Os primeiros bispos do novo
reino chegam de França, especialmente da Borgonhà, tra-
zidos pela Ordem de Cluny. A Ordem de Cister é trans- , •
plantada do mesmo país, e foram provavelmente arqui- ^'l"p'í't
tectos franceses que riscaram e dirigiram a construção ^'"víx
do monumento de Alcobaça. A arquitectura românica *R'A'<t*>i
chega ao Norte de Portugal vinda de França, passando r r r . \ 0 ( ^ fl
pelas Astúrias e pela Galiza. Mas esta influência francesa
é comum a toda a Península, no oriente sobretudo, mas ÚS^^A
também no ocidente. Chega a Portugal na medida em
que entra em Espanha. O imperador das Espanhas, Fer-
nando V I I de Leão e Castela, também é filho de um
conde borguinhão. Os bispos franceses em Portugal são
apenas uma fracção da onda de clérigos franceses que
passaram para cá dos Pirenéus; a esta imigração tinham já
pertencido os monges de Cluny, que em Espanha haviam
introduzido o rito romano já ria época do avô de Afonso
Henriques. A influência francesa n ã o pode portanto consi-
derar-se;.uma particularidade da cultura portuguesa no
^SJíTKXW^Cíííírsúlán Bastaria olhar para o mapã"para se
ver" que ísscT? muito improvável.
Esta situação perdurará. Os Ingleses, na Guerra dos
Cem Anos, chegaram a Portugal na seqüência da sua par-
ticipação nas guerras civis de Castela na época de Pedro,
144 A C U L T U R A E M PORTUGAL

o Cru, e ajudaram D . João 1 dentro de uma estratégia


que tinha em vista o trono de Castela.
Pode dizer-se que é através do todo ibérico_aue Por-_
tugal recebe, como uma criança no ventre materno, as
i n f l u ê n c i a s " do exterior, muito embora desde meados do
ô ( ',ívn* século xii"" a fronteira política estivesse perfeitamente
r A -ir- reconhecida. A «Espanha» era um_tqdo cultural e uma
/ e s p é c i e de subcontinente com várias línguas e várias
0
coroas ou reinos que não reconheciam entre eles qualquer
primazia, embora os Castelhanos já então dominassem
outras nações, como Leão e a Galiza (que fora a parte
principal do reino de Leão).
fcUriJ cC"»-1*'* Pode dizer-se,_de^maneira ggaL_que as áreasjxiltu-
- "X-1f= jo* ~- r a ' s n a Península correspondem às áreas lingüísticas. "Nos
í0
[' " . séculos X I I , X I I I e x i v cultiva-se na corte j i q r t u g u e s ã j u m
Yt t t - ^ / i i í . g ê n e r o de poesia l í r i c á ^ r a i z a i d a ouma tradição popjilar
-.vi-j própria da Galizá ejdçTNòrte de Portugal ejque foi rrg'*-
tada por escrito em canciõnèlfõs fàbfiçados na mesma
c o r t e
'v> . e t a m b é m na corte de Afonso X de Castela e Leão.
1
r' Os respectivos autores são em parte, talvez na maioria,
(jfiUiip 'W'; naturais de cidades e vilas galegas; outros são portugue-
c .;\ ses, quase sempre do Norte. Como era uma pogsja__can-
tada, diyulgou-.se par. várias. jcortcs-pmnaUates..em Jíaz.
gifa gaíego-portuguesa. Vemos inclusivamente castelhanos
i£.fi6* t ^ - e até u m aragohês comporem poemas nessa língua. Simuh
^AIVc^HVO taneamente, a poesia épica e as primeiras crônicas sáõT
compostas em castelhano e lidas ou ouvidas eiií todos os
pontos da Península. Mas, provavelmente por influência
das cortes dos reis, esta vinculação das diversas línguas
a diversos gêneros literários dá lugar ao exercício de todas
elas em todos os gêneros então praticados.
É interessante o caso da Crônica General, de Afonso X ,
fr/viri o Sábio, obra que se ramificou numa vasta descendên-
c a
* - E m 1^44 apareceu uma Crônica Geral de Espanha,
• ^ portuguesa não só na língua como na perspectiva dos
,y
acontecimentos. É seu autor o conde D . Pedro, filho de
rip*'Aç*- D. Dinis. E j á antes disso houve traduções para portu-
l„ c . •^I.SJA guês dos romances de cavalaria, segundo parece, directa-
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 145

mente do francês. Sinal de que as línguas da Península


se tornam cada vez menos inteligíveis entre si.
Separada de Portugal e privada de corte a partir do
século x n , a Galiza integrou-se pouco a pouco na área
cultural castelhana. Muitos fidalgos portugueses tinham
lá propriedades e inversamente; o seu território, ainda
no século xx, serviu de base a guerras civis em Portugal;
Afonso Henriques fez algumas incursões além do Minho,
e durante as guerras com Castela D . Fernando foi reconhe-
cido como rei por alguns senhores galegos. Fidalgos gale-
gos, como o conde de Andeiro e Vasco Pires de Camões,
no século x i v , participaram na política portuguesa, onde
ocuparam altas posições.
SL sentimento de antagonismo entre as váriasnaçõgs. Wy^lVh
hispâmcãTé muito a ^ g o e perdura até "hoje, P é l a s u i T £ hru M
posição geográfica central, pela sua h e g é S o n i a militar , - ,
e pelo facto de ter fronteiras com todas as nações da Penín- v -
sula, Castela foi o objecto principal em que se concre- \\úN^<»í
tizaram as pulsões nacionalistas dos outros estados ibéricos.
No século x i v Castela vive em estado intermitente
de guerra civil e nela participa o r e i de Portugal. H á
várias invasões castelhanas, e numa delas Lisboa chegou
a ser ocupada. Os Ingleses, na sua grande expansão da
Guerra dos Cem Anos, serviram-se do território portu-
guês como base de ataques a Castela. Em conclusão des-
tas guerras e devido à derrota militar do rei D . Fernando,
o rei de Castela tornou-se herdeiro do trono de Portugal.
Era o primeiro grande passo para a unificação política
de toda a Península.
Mas este processo é violentamente interceptado pela
insurreição de Lisboa contra Leonor Teles, regente e lt,0lt^
suposta aliada do rei de Castela. Deixando de lado as intri- v-
gas palacianas, que estão na origem deste movimento, e —ViíQJ —
aceitando o relato que dele faz Fernão Lopes, podemos
dizer em resumo que se trata de uma insurreição popu-
lar contra os «cavaleiros», enxertada numa luta «nacio-
nal» contra os «castelãos» (castelhanos) e que desta com-
binação veio a sua extraordinária importância. «Castelão»
146 A CULTURA E M PORTUGAL

era u m nome execrando, que embravecia as massas. Por


ser «castelão» foi assassinado por bandos de populares o
bispo de Lisboa, e quando esse apodo era assacado contra
alguém a vítima era logo linchada por homens, mulheres
e crianças da aldeia e do bairro. E m muitos casos os
homens de armas suspeitos de serem «castelãos» abando-
navam os castelos, que eram em seguida queimados e arra-
sados. Fernão Lopes opõe aos partidários de Castela os
«verdadeiros portugueses», animados do «amor da terra».
Numa página caracteristicamente nacionalista fala da ((boa
e mansa oliveira portuguesa», cujos ramos são os portu-
., , gueses que apoiarahi o Mestre, e opõe-os às vergônteas
C^t^&ô «nascidas de azamb.ujeiro bravo», que são os portugueses
Jc espúrios e traidores, partidários de Castela.
r- .— ! Às crônicas de Fernão Lopes poderiam por si sós ser
é n T*' /consideradas como u m poema étnico, como a Odisséia
i ou o Poema do Cid, revelador de u m sentimento de nacio-
I vi J*i\t* ' C i d a d e , mas t a m b é m cimento dela. São o que se poderia
; chamar u m texto fundador.
ICL^ *~ D . João I pode considerar-se por excelência u m rei
7 . -^^^ poTtuguês puro, no sentido de que não herda o trono por
herança dinástica mas por eleição em cortes, sendo ao
mesmo tempo filho bastardo de u m rei de Portugal e
í) •„í^>fl ^ de uma fidalga portuguesa, e não de u m casamento diplo-
^ \. f mático com uma herdeira peninsular. O seu próprio
\) casamento com a filha do duque de Lencastre é extra-
t TÔ- peninsular, o que parece significar uma política externa
,.wky\ft-- orientada para fora da Península. O casamento da sua
1
OAYIA -ffrir filha D . Isabel com o grão-duque da Borgonha confirma
esta orientação.
T^uev Q s n i e i n j j r o s j a « í n d i t a geração» são filhos de inglesa
e cunhados de flamengo. U m deles, D. Pedro, estanceia
í longamente na Europa de além-Pirenéus. U m pintor fla-
mengo pinta o retrato de D . João I ; arquitectos ingleses
trabalham no risco e nas obras do Mosteiro da Batalha.
Aparentemente, j r _ c o r t e j Í Q s _ g r i j ^ ^
busca uma relaçãoj^.ixciaJ.Qm.-íUEm.QPí^
'marítimo, dispensando a via hispânica. É a primeira vez_
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 147

que o mar é utilizado para deslocar para fora da Penín-


sula o nosso centro~3e gravidade.
"~ Mas esta fenda na unidade cultural peninsular foi _
colmatada de maneira relativamente rápida. J á na gera-
ção dos filhos de D. João I a política portuguesa se entre- ^ ";?.A<w\_
laça com a dos outros reinos de Espanha. A rainha viúva
de D . Duarte é aragonesa e pede auxílio aos irmãos para ^ "; * 9
se manter na regência. O filho de D . Pedro está ènvol- \Qf r.y«>
vido nas lutas de sucessão da coroa aragonesa. Afonso V,
neto de D . Duarte, disputa a coroa de Castela, a que se
julgava com direito por casamento. D . João I I sonhou
para o filho o reinado das Espanhas. Seu sucessor, D . Ma-
nuel, praticou uma política de alianças matrimoniais, que
culminou em ele ser herdeiro do trono de toda a Penín-
sula e jurado como tal. E, finalmente, o casamento de
D . João I I I com a irmã de Carlos V levou a que Filipe I I
viesse a herdar o trono de Portugal.
Tildo se passou como se o pensamento de unificaT a f^p^Àa
Península fosse a idéia fixa das duas casas reais, a de Espa-
nha e a dejjoEtügal. E todavia Lisboa tornara-se a sede
He" um vasto império, tal como Madrid, impérios frontei-
riços e concorrentes, com centros separados por poucas
centenas de quilômetros, que foi preciso discriminar na
esfera terrestre pelo Tratado de Tordesilhas.
Era como se dois gêmeos, saindo do mesmo ovo, fos-
sem crescendo de costas voltadas, cada u m para seu lado
e ocupando a sua metade do mundo. H á nisto uma curiosa
semelhança de destino, nascida com a semente, e que
pouco tem que ver com relações econômicas ou mesmo
com alianças políticas. . _
H á também uma cultura comum em duas línguas. «'^
N u n õ T é í s a unidade cultural toi táo flagrante como na Aic^l/A
época em que a língua portuguesa atingia a sua fase
adulta e produzia as suas obras-primas clássicas. Quase
todos os poetas portugueses do século x v i deixaram obras
em castelhano. Foi nado e criado em Portugal o autor
da Diana, u m dos clássicos da língua castelhana, Jorge
de Montemor (ou Montemayor, à castelhana). Cantam-se
148 A CULTURA E M PORTUGAL

as baladas ou rimances em português ou castelhano indi-


ferentemente. Dos cinco rimances compostos por Gil
Vicente três são em castelhano e dois em português, e um
deles, o rimance de Flórida, em castelhano, espalhou-se
por todas as terras para onde emigraram judeus espanhóis
ou portugueses. Aliás, Gil Vicente, que escreveu em cas-
telhano um terço, aproximadamente, das suas peças, é
um dos máximos representantes da herança ibérica, ou
pelo menos da sua parte ocidental — Portugal e Castela.
E mesmo Camões, que criou o panteão das glórias portu-
r
.tl-V-'i guesas, se refere áo «grande e raro Castelhano» como
_ 4 ; ^ «restituidor de Espanha e senhor dela» (Lus. I I I , 19).
'' ,u É significativa-aliás a voga de Camões na Espanha
o,.— v/f» ( j a i í n g U a castelhana, pois Os Lusíadas tiveram três tra-
duções castelhanas nos doze anos seguintes à sua primeira
edição portuguesa. Embora os principais autores imitados
em Portugal na segunda metade do século xvi fossem
italianos, eles chegaram-nos em parte por via espanhola
e eram também os poetas mais imitados em castelhano.
Há algumas ireacções ao castelhanismo reinante em
Portugal nesta época. O Dr. Antônio Ferreira, contraria-
mente ao seu mestre, Sá de Miranda, não escreveu um
só verso em castelhano, e denominou a sua obra signi-
ficativamente Poemas Lusitanos.
Mas o que parece ter havido sobretudo é uma riva-
; lidade entre duas capitais da mesma cultura, com vista
\ •»* • ir L ; à melhor realização de um padrão comum. Gil Vicente
, , é um super Juan dei Encina; João de Barros desejou
1 • i'""1- ser um Nebrija; Francisco de Morais quis superar o Pal-
^ ^ j ( i » H ^ t m e ' r ' ' n de Oliva. Dir-se-ia que estava resolvida a quadra-
tura do círculo: _duas nações independentes, comjíEguas
I.-A J/»V
Üferentes, concorrentes no domínio do universo, reconhe-
cendo-se como expressões de uma mesma tradição cm
r a l . n a q u a l se senfiapi p ^ r f f i r a ^ f n / p irmanadas. Sé â H l ?
tória tivesse parado nessa época ter-se-ia realizado alguma
coisa que raramente se viu.
Mas em virtude da política de alianças prosseguida
de um lado e outro da fronteira, este ponto culminante
I

AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 149

das relações entre os dois Estados ibéricos deu lugar à apa- \j,ji'rL
rentemente lógica conclusão que era a união dos dois /
Estados sob a forma inicial de um trono com duas coroas: [ty^Cè -
a monarquia dual de Filipe I I . Portugal conserva, a par-
tir de 1580, o seu estatuto de autonomia, o uso oficial
da sua língua e o seu império separado.
Mas o Tesultado talvez não procurado nem esperado
foi a subalternização cultural do reino. Deixou de haver
corte em Lisboa, e já vimos as conseqüências disso. Muitos
dos principais homens de espírito e de letras emigraram
para a capital das Espanhas. Numerosos escritores adop-
taram o castelhano para aumentar o seu público, inclu-
sive aqueles que exalçavam as glórias portuguesas, como
Faria e Sousa. Ijsboa, reduzida a cidade provinciana,
como já notámos, deixou de ser únTtoco intelectualmente
criador. Acentuou-sé q jalingüísmo, jEín.^pr£jjuíza.do~pQrr
tuguês. Era por intermédiq de Wãjrid. que. se reali^axam
os coritactos com as culturas não ibéricas.
O nacionalismo persistente tendia a-agarrar-se à tra-
dição, fundamentalmente camoniana, e a encarar descon- y " , ' / - o
fiadamente_as novidades, o que contribuía panTacentüãr " a " ' - i ^
"ha çu!tora,_portuguesà._um_arcaismo provinciano. Por
outro lado, a política prudente de Filipe I I não foi se-
guida pelos seus sucessores. Principalmente sob o governo
de Olivares, tende a afirmar-se o centralismo castelhano.
Com tudo isto, Portugal ia a caminho de conhecer uma tx>A~. a
sorte parecida com a da Galiza. Assim, em lugar de con- c í v ^ ^ j
/rv
tribuir com a sua voz para o coro hispânico, como acon- ^
f
tecera na época de Gil Vicente e Camões, Portugal emu- • ' Xin*j*
deceu. ! '^'k,
O único notável escritor português que contribuiu no e„y ^.,
v

século xvn, antes de 1640, para o enriquecimento das


literaturas hispânicas foi D. Francisco Manuel de Melo,
com a sua obra clássica Historia de Ias guerras de Cata-
lunia, escrita em 1638. D. Francisco era nesta altura
um madrileno. Mas Tomé Pinheiro da Veiga, que escre-
veu no princípio do século um extraordinário livro de
impressões sobre Valladolid e as festas do nascimento
150 A CULTURA E M PORTUGAL

de Filipe I V , ficou inédito até ao século xx, apesar de


. , , \ vL como escritor não ter menor envergadura que D . Fran-
cisco: só que vivia em Lisboa, onde não havia corte,
•' e escreveu em língua portuguesa.
' O desenvolvimento das duas literaturas nos séculos x v i
£ V/OÍÍA^I x v n é de certa maneira inverso. Na Espanha o século x v i
--^prenuncia o século x v n : mas é neste último que se colhem
' J ( í% os frutos sazonados da sêmenteira do século anterior. Em
,-vv IsS^fri Portugal o século x v i c brilhante, mas o x v n só dá frutos
Ja . pecos. O que possivelmente confirma que a integração em
Espanha resultou ' culturalmente num empobrecimento
^41 nacional, que não podia deixar de ser também uma redu-
ção das promessas que no século x v i se ofereciam à Espa-
nha no seu conjunto.
T u d o leva a crer que a união dos dois Estados, sobre-
tudo na época de Olivares, deparou sempre com uma resis-
tência popular tácita, explorada por certos pregadores,
especialmente jesuítas. A insurreição de Évora de 1637,
que é u m movimento camponês contra os impostos e os
senhores, enxertoü-se também, como a de 1383, n u m sen-
timento nacionalista, que encorajou os conspiradores que
viriam a desencadear o golpe de Lisboa em 1640.
.1 f V ^ / . T , £ s t e f 0 j u m a espécie de 25 de A b r i l que entusiasmou
A rVbvJ o a população em Lisboa e noutros lugares do reino. Na
guerra que se seguiu vários escritores se referem com
'' admiração à adesão u n â n i m e do povo à causa do dítque
ri '. -•/>-. de Bragança e à .maneira como suportou os sacrifícios
da guerra. Esta atitude foi provavelmente decisiva no
desfecho das operações militares, que se desenrolaram
principalmente em território português: os movimentos
do exército espanhol eram dificultados pela hostilidade
da população.
O d i v ó r c i o cultural entre Portugal e Espanha não se
processou imediatamente ,a_seguir à Resteuraçãoj3e 1640..
0~padrè"XntonKT Vieira é considerado o maior orador
das letras sagradas de toda a Península, por portugueses
e espanhóis, como o atesta já no século x v m o padre galego
Benito Feijoo, e teve várias edições castelhanas. Aliás,
A S É P O C A S DA C U L T U R A P O R T U G U E S A 151

ele próprio escrevia correntemente o castelhano. E ainda 1 :<k^K^


em 1746 a polêmica desencadeada pelo Verdadeiro Método i ^ ^
de Estudar, de Luís Antônio Verney, se alargará a toda . v , *
a Península. D . Francisco Manuel de Melo trocou defi- * ^ >"í"--
nitivamente Madrid por Lisboa, e aqui prosseguiu a sua c f j f ^ ^
carreira literária, versejando em castelhano ou imitando ^ v . . ^
a comedia espanhola, que continua a dominar os palcos fl£j.
portugueses. E é na época a seguir à Restauração que , 0 r 0
mais se cultiva em Portugal a poesia gongorina, dando as Í U A _
costas à tradição camoniana. "
É todavia a partir da Restauração que a palavra «Espa-
nha» começa a usar-se no significado actual, para designar
toda a Península excluindo Portugal. O padre Antônio
Vieira, na sua História do Futuro, emprega indiferente-
mente, e no mesmo sentido, «Espanha» ou «Castela»,
embora num dos seus sermões use a expressão ((a nossa
Espanha» para significar o conjunto da Península, Por-
tugal incluído. Pouco a pouco, os Portugueses esquecena-
-se de que são «espanhóis». «EspanKã» passa a referir-se
não a uma entidade gêÕcultural, mas a um Estado.
A diplomacia da Restauração obriga a procurar rapi-
damente contactos directos com o mundo transpirenaico.
Quando, em 1641, D . João I V enviou uma missão diplo-
mática a França nenhum dos seus membros falava o fran-
cês. As nossas relações com a França estavam sem dúvida
em recuo relativamente à época de D . João I I I , e o mesmo
provavelmente acontecia com a Itália, donde na época
da monarquia dual nos vinham livros e artistas, mas por
via espanhola. Os portugueses que emigravam, devido
sobretudo à perseguição inquisitorial, perdiam definitiva-
mente o contacto com o País. N ã o havia relações com as
comunidades judaicas portuguesas emigradas, e talvez pou-
cas pessoas soubessem em Portugal que em Amesterdão
se falava o português na Sinagoga. A diplomacia da Res- \j'c't*
tauração procura a reactivação desses contactos. O padre ra~sa
Vieira faz estadas eon Paris, em Haia, em R u ã o , em Roma, , •„
estabelecendo contactos com os emigrados portugueses, W" 6 1 '*
Em Paris foi embaixador u m membro da mais alta no-
152 A CULTURA E M PORTUGAL

breza, o m a r q u ê s de Nisa, e posteriormente foi ali agente


diplomático Duarte Ribeiro de Macedo, também confi-
. üOrJóio.j (t dente de Vieira e que propôs um conjunto de reformas
'1"ÍÍ3>\ AfjUj econômicas em vários escritos. Por instigação de Vieira
regressa (para sua desgraça) a Portugal um «estrangei-
'^ rado» residente em Paris, Manuel Fernandes de Vila
PÍI- V I ^ Real. Para Roma emigra u m letrado de grande erudição,
D. Vicente Nogueira, que mantém correspondência lite-
rária com o m a r q u ê s de Nisa. A guerra obrigou a pro-
, ,4 curar fora dos Pirenéus, além de aliados, material, cava-
los e mercenários. Q conde de Lippe, alemão, reorganizou
o exército português. Para o f i m do século já se pode
t Zl\c falar de uma elite, éuropeizante, que ganha cada vez mais
força, e que é representada publicamente pelas «Confe-
Evi<\oPjl2u\, rências discretas e eruditas» (1696) em casa do 4.° conde
da Ericeira, nas quais participa u m padre teatino francês,
! D . Rafael Bluteau, que teve grande influência nos meios
letrados de Lisboa. Boileau é pela primeira vez traduzido
em português em 1697, e Voltaire pouco antes ou pouco
depois, ambos por D . Francisco Xavier de Meneses. No
}tAAüu\i^ século x v m o «francesismo» está florescente nas letras e
nas modas.
É então que Portugal, ou pelo menos a sua elite inte-
Jgçjjial^jieixajde s ê r n i s p à n i c o . "A liferatura passa a ser
Píívfr>i. predominantemente francesa; 'a literatura, a música e o
teatro, predominantemente italianos. Então se realiza o
t&vj# JA«A antigo voto de A n t ô n i o Ferreira no século x v i : «A antiga
'iJNolM r E s P a n h a deixo a 0 povo.» Portugal volta as costas defini-
*• tf*' tivamente ao p a t r i m ô n i o cultural ibérico, que é o seu.
Desde então «progresso» eqüivale a «europeização».
Mas n ã o desaparece com isso aquele fenômeno a que
poderíamos chamar de «geminação», isto é, aquele des-
tino comum que parece estar na semente dos dois países,
ou pelo menos da parte ocidental da Ibéria, Portugal e
Castela. Com efeito, este processo de europeização dá-se
simultaneamente cm Portugal e Espanha. PoTtugal tem
0 w-J/v-o o s s e u s «estrangeirados» como a Espanha tem os seus
cy<W^ çY~- «estrangerizados». O reinado esclarecido de D . José (1750-
A S É P O C A S DA C U L T U R A PORTUGUESA 153

-1777) corresponde ao de Carlos I I I de Espanha (1759-


-1788), que aliás pertence a uma dinastia francesa. A inten-
sificação do francesismo, acrescida de outras influências
transpirenaicas, dá-se em ambos os países. T a m b é m à Espa-
nha volta as costas ao patrimônio ibérico, à «antiga Espa-
nha». —.
De facto, tanto em Espanha como em Portugal o movi-1
mento de europeização é obra de uma aristocracia intelec-\
tual e reformadora que tem de lutar contra hábitos e \
instituições tradicionais e pretende fazer tábua rasa de u m
patrimônio enraizado, inclusive na literatura (o teatro,
a redondilha tradicional), que era afinal idêntico em
ambos os Estados da zona ocidental da Península Ibérica; j
mas cada um o faz por conta p r ó p r i a / i n d o directamente •
à fonte de renovação. Do lado português o corte com j
aquela tradição é sentido como uma autonomização cul- ;
tural em relação à Espanha. , ;
Esta nova fase da relação dos dois países do ocidente
ibérico prolonga-se até hoje, e tem-se sempre apoiado, em
Portugal, na cultura francesa (a inglesa também se mani- Cv>-.rj A
festa, mas mais superficialmente), chegando a dar-nos a
O0E
ilusão de que aquela cultura é o fundamento da nossa, "
ilusão que Eça exprimiu dizendo que Portugal é u m país ^ °^>-Jtj.
traduzido do francês. Chegamos a esquecer-nos do que (L),,
ainda lembrava a Garrett na introdução ao Romanceiro: ^ Jvc
«que até bem tarde a literatura das Espanhas foi quase
toda uma». '
A periodização resultante deste esboço distingue tam-
bém na história da nossa cultura duas grandes fases: a que
vai até meados do século x v m , aproximadamente, e a que
"siê_sSgOé"ãfé à actuaíida"der Dentro da primeira fase há
oscilações e conjunturas. Até à segunda metade do sé-
culo x i v Portugal e Castela são complementares. No
século x i v afirma-se com mais força o sentimento üã hãcicY
nalidade e é repelida uma tentativa de união política sob
a hegemonia castelhana. Daí em diante h á uma espécie
de rivalidade das duas culturas, mas dentro do mesmo
espaço cultural; cada uma pretende ser mais autentica-

(J)ov MIV>\AO f t é - X ^ l l . (.RijfÂíAfc)

, ) ) J 3 iitf \\|it| .Ai teií f =I 6,.vjfcíAçSf. IHAFAO.J^


154 A CULTURA E M PORTUGAL

mente espanhola que a outra. Este período dura até 1580,


aproximadamente. A partir de então, até à Restauração
de 1640, a cultura portuguesa é subalternizada e provin-
cializada. Quanto à segunda grande fase, caracteriza-se
por uma tentativa constante de europeização, em que a
Europa é confundida com a França. Segundo o fenômeno
de geminação que já apontámos, as camadas cultural-
mente dirigentes de ambos os países voltam as costas uma
à outra, e ambas a tradição peninsular, para, independen-
temente uma da outra, buscarem modelos e valores no
Ocidente europeu.
Estes cinco períodos, no que respeita a Portugal, podem
resumir-se era cinco palavras: complementaridade, oposi-
ção, rivalidade, provincianização, divórcio.

§ 5. P A L A V R A S E COISAS

z " . i>*\ Podemos ainda ensaiar u m outro critério para definir


a s
)t> a A * a s e s ^ a c u l t u r a portuguesa, u m critério semiológico.
' <N ° L ""' Trata-se de saber qual a função dos signos sob as suas
várias formas de símbolos e de ícones, isto é, qual a rela-
ção entre a expressão e a «coisa» expressa (idéias, sen-
timentos). É sobretudo na literatura escrita que esta
relaçãò pode ser observada, mas também, embora mais
) 5 h» imperfeitamente, nas artes plásticas. Temos portanto de
:;uV
nos restringir ao nível da cultura erudita, dado que é
desta sobretudo que nos ficaram documentos perduráveis,
quer na literatura q ü e r nás àrtes plásticas. Temos d ê c ò n ^
•J fiar em que nasjormas aristocráticas se manifesta a ten-
dênçia_prpfunda_da _cultura no conjunto da sociedade,
problema que repetidamente se põe aos historiadores da
cultura. A oposição entre a cultura popular e a cultura
A S É P O C A S DA C U L T U R A P O R T U G U E S A 155

aristocrática, quer seja clerical, quer cortesanesca, é de


todos os tempos. Mas pode ser maior ou menor, e isso
mesmo é significativo da situação da cultura no seu con-
junto.
Numa-nrirneira fase, o discurso escrito está muito pró-
vimn Hn disP^so prático comum, .po_dendõ_mesmo dizer-
-5ejpic_q_esarito_é a r e p r o d u ç ã g d o oral. Na consciência
do falante ou do escriba cada significante tem só u m signi-
ficado. Contar uma história é contar factos acontecidos
ou imaginados, segundo uma seqüência que é a desses
mesmos factos, sem qualquer acrescento estilístico ou Tetó-
rico. Imagina-se que a linguagem é transparente, que
entre o significado e o significante há uma relação directa
e unívoca.
Os textos narrativos do século x m , como por exemplo
a primeira versão da lenda do rei Ramiro e a tradição
épica de Afonso Henriques, são estritamente objectivos.
Narram os actos, os gestos e as palavras na exacta medida
em que são funcionais, isto é, em que correspondem à
acção, que tem u m princípio, u m meio, u m f i m e uma
ordem de seqüência. Excluem qualquer referência directa
à subjectividade das personagens, ou qualquer manifes-
tação excrescente da subjectividade do narrador. É u m
discurso idêntico ao dos contos populares de fundo mais
tradicional, como o do Príncipe Real ou o do João
da Burra. Quanto à poesia mais tradicional, o efeito
é comandado pela música e resulta principalmente de
repetições e paralelismos, não dos vocábulos ou da gramá-
tica. Os símbolos de conjunto pertencem ao inconsciente
colectivo, não resultam da invenção do autor.
Em meados do século x i v esta fase está passada. Nos
livros de linhagens os textos datáveis desta época, como
a narrativa do Salado ou a segunda versão da lenda do rei
Ramiro, nota-se já o usq_inten£Íonal de nieios retóricos,
como a hipérbole, algumas metáforas literárias, frases em
que o narrador exprime o seu ponto de vista, ou com que
pretende, independentemente da narrativa, impressionar
o leitor, efeitos estilísticos resultantes mais da maneira
156 A CULTURA E M PORTUGAL

artificiosa como se usa a palavra do que das «coisas»


referidas.
Esta^ alteração da relação do significadoedo signifi-
cante atinge o seu cume no século xv."Às"crônicasHeEer-
, nãõ Topes aparecem a muitos observadores como escritas
éAlu;^ n u m estilo oral, e esta aparência acentua-se se as compa-
/ rarmos com as de João de Barros, no século seguinte. Mas
i i d a s c o m m a i s atenção verifica-se que há nas suas frases
í convergências de' pontos de vista que têm de ser sabia-
mente doseados: a objectividade dos factos e a subjectivi-
2.*Wh> dade do narrador; as acções ocorridas e as suas motivações
psicológicas; a própria simultaneidade dos factos que se
desenrolam em vários planos, e ainda a valorização, a
ênfase postas na valorização desses mesmos factos. Encon-
tram-se em Fernão Lopes páginas em que o jjiscurso é
jjredominantemente retórico, como a prosopopeia em que
o autor dialoga com a cidade de Lisboa, como se esta fosse
uma criatura dotada de fala, ou como o capítulo de elo-
gio de Nuno Álvares, que é mais oratório que narrativo.
Mas o exemplo mais estreme da nova arte da palavra
encontra-se em Gomes Eanes de Zurara, em que a sobre-
carga retórica é excessivamente visível:" as hipérboles, as
prosopopeias, as citações de autores célebres, as invoca-
ções, as comparações, a adjectivação valorativa escondem
£..V/>i; r os factos em certâs páginas. Em comparação com ele, Fer-
não Lopes é extraordinariamente funcional e directo.
vv,,, Esta evolução'pode ser comparada com a que n se dá
t>$> «n»rit >-'v» . ' T i v .—f, ,
na arquitectura. O Iromanico,/de paredes nuas, torres
\ a -;s«vçA austeras, próximas da a r q u i t è í r u r a militar, escassa decora-
. v iiiiJn ção, com os efeitos ornamentais comandados pelo equilí-
iVô Mst/fi brio do material, contrasta com ajxlórka-dajpjóíiço^sobre
WSTfÁtl\u> tudo na última fase. A q u i a arquitectura parece por vezes
só u m suporte da ornamentação. O enfeite impõe a sua
autonomia, quando n ã o provoca a própria estrutura fun-
3
cional. Mas este contraste intenso entre o românico portu-
guês e o gótico na sua fase adiantada n ã o deve fazer-nos
esquecer que mesmo dentro de Portugal se encontram
1

A S É P O C A S DA C U L T U R A P O R T U G U E S A 157

expressões de transição entre os dois estilos, como, entre ^-


outras, o Mosteiro de Alcobaça, que é de modelo francês. 0 4 0 t
Estas duas primeiras fases, que abrangema chamada^ i^t^in
Idade MédíaTnão assinalam todavia umà""ãTtiraçã<> subs- j
tancial da função do signo. A retórica é uma sobreposição \J
ó u ü m ãcrescento~giãTmto num discurso em que a Tela- flíiAfi,
ção entre o significante e o significado permanece uni- # . j / t ) í A / r
voca. Temos de ter em conta, aliás, que nestas duas fases
a função principal da prosa é narrar acontecimentos, a ' Ai
supostos ou imaginários, e qite o problema principal do 7 =>
narrador é lembrar e transmitir factos conservados na sua r ! ( . • •
memória ou na memória colectiva. Existiu t a m b é m uma
prosa doutrinária, que servia para expor doutrinas indis- (^ j ^ S ^
cutidas, os ensinamentos da Igreja ou o saber tradicional, v
ambos rigidamente codificados.'A primeira obra onde se hi*J
encontra a expressão de uma reflexão pessoal é o Leal
Conselheiro, do rei D . Duarte, baseada numa experiência
do quotidiano. No nosso ponto de vista, o que há a assina-
lar neste livro é o esforço constante do ajustamento das
palavras ao conteúdo, pu_do _sjgnifiçante ao_signifiçado,
em tentativas mais ou menos bem sucedidas, para as quais v
o autor não tinha modelos nem precedentes. N ã o faz qual- / 1 \
quer sacrifício nem à retórica nem sequer à elegância da
exposição. Mas o pressuposto do autor é que cada idéia ~ —
deve ter uma palavra para a exprimir o mais exactamente
possível. J 4 f-çHOt
É a partir da segunda metade do século x v i que a fun- t» JX X \ ) l
ção do signo-SC altera radicalmente na literatura e np
^TlglPg"" 1 A" r o r t p Uma palavra significa ao mesmo ^ W / , " r ^
tempo e no mesmo contexto várias coisas; pode ter vários rfs.)lF>"i
entendimentos. A seqüência das palavras não corresponde ^ Y i >0^n,
LJ
mais à seqüência lógica. Cada u m dos entendimentos
da palavra pode desenvolver-se independentemente dos
Outros, o que permite seqüências logicamente imprevisí-
veis, embora gramaticalmente conectas, saltos súbitos,
mudanças de agulha, por intermédio dos chamados jogos
^dejialayras. No século x v i chamava-se a este tipo de dis-
curso o «estilo derivado»; à capacidade de o entender e
158 A CULTURA E M PORTUGAL

produzir, |tagudeza>)x U m pensamento imprevisto/baseado


na possibilidade de^utilização de uma das vánasjjdeias"
contidas na palavra, chamava-se no século x v n jíconceito»^
Este tipo de discurso n ã o é propriamente incoerente,
m a s s m
Vi/ riT ' conduzido segundo regras que não são as do dis-
curso lógico ou narrativo, ligações que não se fazem de
idéia a idéia, por implicação ou conseqüência lógica, mas
de idéia a palavra, de palavra a idéia, de palavra a pala-
vra ou de idéia a idéia, em múltiplos planos. Donde n ã o
resulta propriamente u m discurso impreciso ou vago ou
caótico; pois se tr^ta de u m jogo que tem regras muito
exactas e difíceis, porque era preciso utilizar as palavras
em vários tabuleiros.
Aliás, é um jogo, no sentido lúdico, para o qual n ã o
se exigia apenas a actividade do ((juízo», mas sobretudo
a do ((engenho», que n ã o , s e preocupa apenas com a ver-
taTt
dade ou falsidade das prop"SIÇÕ"i ?fíl { T 1 l r n m " S p n
lado estético. Faz "parte deste jogo construir as proposi-
ções de forma simétrica, repetitiva, opositiva, contrastante,
elíptica, etc, como pequenas arquitecturas que se bastam
a si mesmas. A própria narrativa histórica, apesar da flui-
dez da sua matéria, está contida nestas moléculas: n ã o
oferece uma seqüência pura de factos, mas pequenos cris-
tais feitos de sentenças em que um membro da frase res-
ponde a outro por oposição ou semelhança: há como que
esquemas prévios por onde deve correr, como por canais,
o r i o da narrativa.
MllH-j,
A relação entre a palavra ejtjgisa deixa de ser óbvia.
A linguaggm_,paj5a.a_çonstituir problema e jogo.
Esta estrutura da expressão, que não é só portuguesa
mas ibérica (mas que t a m b é m se encontra, embora com
menos insistência, noutros países transpirenaicos — lem-
bre-se o wit inglês), parece ter-se desenvolvido com a vida
de corte, a partir do reinado de D . João I I . Corresponde
até certo ponto ao tipo do «cortesão». Encontramos j á os
seus precedentes no Cancioneiro Geral, de Garcia de Re-
sende. Sá de Miranda está cheio de ((sentenças». Domina
a prosa de Bernardim Ribeiro, na primeira metade do
AS É P O C A S DA C U L T U R A PORTUGUESA 159

século x v i . Aparece em Camões (prosa e verso), em Jorge


Ferreira de Vasconcelos, em T o m é Pinheiro da Veiga,
em D. Francisco Manuel de Melo. T e m a sua manifes-
tação máxima no padre Antônio Vieira, onde se vê a sua
relação com uma certa visão do mundo, concebido intei-
ramente como um sistema de correspondências entre as
diversas partes do universo, entre o físico e o espiritual,
entre o divino e o humano. Na historiografia já o pode-
mos descortinar em João de Barros, que obriga o fluir
histórico a correr por canais conceptuais orientados para
uma figura arquitectónica. Inspira quase que cada período
da Vida de D. João de Castro, de Jacinto Freire de A n -
drade, e não lhe escapa D . Francisco Xavier de Mene-
ses, o autor de Portugal Restaurado. Antônio Prestes, na
segunda metade do século x v i , Antônio José da Silva,
na primeira metade do século x v m , ambos autores de far-
sas e comédias, mostram-nos como este uso da palavra
se generaliza no teatro, reflexo da vida quotidiana.
Sublinhemos que n ã o se trata de u m uso restritamente 0 0 J l ' - 4 h
literário, mas^até.onde podemos entteverjjorçartas, livros c^Ci*~Jo
de memórias e anedotas, l i e uma forma social corrente raT j ^ .
pratica quotidiana da corte, nos sermões, nos espectáculos. , ' w
A partir daqui não podia deixar de se pfõpagãFãõ público
popular. Ainda hoje a agudeza e os jogos de palavras são s"e\H
freqüentes na poesia popular, como o atestam algumas "Sfytc^
quadras de Antônio Aleixo.
É por meados do século x v m que se altera esta rela-
ção mental entre o significado e o significante. O padre A friW .5*
Verney, no seu Verdadeiro Método de Estudar (1746), J x - ^ , ,
oferece-nos um modelo de prosa em discurso prático, cen-
trado sobre as «coisas» (isto é, as idéias), seguindo uma OV^H
seqüência lógica, sem problemas sobre a maneira de as
manifestar. É sem dúvida decalcado sobre a fala das cama- ,y,\ t
das cultas urbanas. Em Verney a palavra deixa de ser ^
jogo: é o decalque da idéia. Novamente o discurso decorre ***1 '»? ai
de idéia para idéia. Da mesma forma discorrem o padre
José Agostinho de Macedo, u m grande polemista, e, em
poesia, o abade de Jazente.
) - fiJí 160 A CULTURA EM PORTUGAL
Os poetas arcádicos (1756-1760) usam um estilo pom-
" poso, retórico, de palavras alatinadas e semeado de alu-
"' sões mitológicas. Mas é bem claTO que essa pompa e no-
breza de estilo recobre uma seqüência lógica das idéias,
que as idéias se encadeiam em palavras de significado
,-ufl? ,"1J>IÍ/A fixo. A mitologia, o escolhido do vocabulário são apenas
. >A>'i*L tim estuque superficial sobre uma carpintaria racional.
j, A suposta «poesia» estava só na roupagem e nas lante-
I 0 _ H V ^ j 0 U i a S i n 5 0 na substância, tal como a decoração fantasiosa
f^i,\}i<-'»i do estilo rococó é só uma superfície. Trata-se de mera
retórica acrescentada ao discurso prático. O essencial é
que a relação entre o significado e o significante volta
a ser unfvoca. ';
Podemos aqui abrir um novo período. A nosso ver,
a transformação semiótica do século xvm é uma intro-
dução ao Romantismo, via imitação dos clássicos franceses
e latinos. Essencialmente, o Romantismo roqserva a rela-
ção unívoca entre as duas metades do signo. Mas com-_
parario r n m o séçulo xvm e mesmo com os anteriores
caracteriza-se pêlo uso intensivo da conotação.* ü 'signo
tem um recorte, que c o seu significado, e tem uma
auréola, que são as idéias e sentimentos que esse signifi-
cado atrai. Os árcades respeitam o contorno da palavra,
de modo que o conteúdo dela surge nítido e fechado em
/ si. Nos românticos, pelo contrário, esse contorno surge
ufi <** esfumado, como o da Lua em noites de bruma, o que
(U-^À»"*^* quer dizer que a palavra, sem deixar de ter uma relação
unívoca com O respectivo conceito, não se fecha em si,
Çvirfo/JÀrJCMÍ
antes abre passagem a outros conceitos. É um som que
tem ecos e ressonâncias, como a música romântica. A pala-
vra torna-se um nó irradiador de ondas que se vão esba-
. tendo e amortecendo no nevoeiro. A arte da palavra não
consiste, comqsucedera no século xvn, em a mtúrãr em
grãos portadores de significados múltiplos, tornando pos-
síveis jogos também múltiplos, mas todos rigorosos, antes
em a inserir, com o seu significado único, num continuum
em que o_sigpificado se prolonga pu amõlece. Parrver isto
basta comparar a eloqüência de um ííerculano, cheia
AS ÉPOCAS DA CULTURA PORTUGUESA 161
de ressonâncias, com a de um Vieira, cheia de astúcias.
E é por esta arte da conotação que o romantismo se pro-
longa e refina nos chamados «realistas», como Eça de Quei-
rós, e nos simbolistas, como Camilo Pessanha. Este novo
tipo de retórica populariza-se através dos jornais e dos
oradores políticos, que cada vez concorrem mais com os
oradores sagrados.
Se estas considerações são verdadeiras, podemos distin-
guir em Portugal, deste ponto de vista, três grandes fases i•' i-fa
culturais. Na primeira, que vai até ao primeiro terço
do século xvi, a relação entre as duas metades do signo
é unívoca: cada significante tem um só significado. Mas
nesta primeira grande fase podemos distinguir dois perío-
dos: aquele em que a retórica não se evidencia, em que
o discurso é funcional como nas igrejas românicas; e
aquele em que a retórica sobressai, ou como uma forma
de resolver problemas novos postos por uma mudança
nos pontos de vista do narrador, ou como uma excrescên-
cia decorativa gratuita. Podemos chamar a esta fase a Idade /
Média, cujo último representante seria Gil Vicente. /
Na segunda grande fase, que vai de cerca de 1530 até ~
meados do século xvm, o signo é esquartejado, cada uma ^ r * t
das suas partes serve para o trânsito do discurso, que deixa
de obedecer a uma ordem lógico-semântica; e em que o
engenho do autor ou falante se sobrepõe ao juizo, ten-
dendo aquele à construção de conceitos, que são válidos
independentemente de serem verdadeiros. Podemos tal- .^'-fttfc
vez distinguir dois períodos: a Renascença, em que se \,
nota ainda um certo compromisso entre este discurso enge- K r"*r'
nhoso e o discurso clássico greco-latino, mais próximo da
expressão lógica; e o chamado «Barroco», em que o papel / **4i. ,
do juízo parece afundar-se completamente e o paradoxo!
se afirma como a manifestação máxima do engenho. ______
Finalmente, na terceira grande fase volta_a restabe-
lecer-se a relação unívoca entre as duas metades do signo", 3 4
embora o modelo hão seja já a língua coloquial prática
essencialmente camponesa (como o fora na Idade Média),
mas a língua das camadas cultas urbanas, usada no jorna-
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162 A CULTURA EM PORTUGAL
lismo e na oratória. Há também dois períodos nesta fase:
o período em que predomina a lógica geométrica, mais
ou menos revestida de retórica greco-latina; e o período
romântico e pós-romântico em que se recorre abundante-
mente à conotação das palavras, pelo menos no discurso
literário.
~~ _ . " A primeira fase corresponde, sob o ponto de vista Topo
v&Oi(pí\ f ^ t e B ase> a o modelo social do cavaleiro-guerreiro; a segunda
AÍ \t*Òfcl fase, aos modelos sociais do cor tesão e do clérigo; a ter-
ceira fase, ao modelo do mercador e seus porta-vozes, como
o letrado laico. Do ponto de vista Dentro e Fora, as duas
primeiras fases correspondem à unidade cultural ibérica
e a terceira ao rompimento dessa unidade, compensada
(em Portugal como em Espanha) pela busca de modelos
transpirenaicos.
Combinando os quatro pontos de vista, vemos que
a viragem crucial é a que se dá em meados do sé-
culo xvm. Então se verificam a extinção do mito da Cru-
zada, o advento do mercador, com os seus valores pró-
prios, o divórcio entre-as duas partes que constituíam a
cultura ibérica ocidental e o fim do discurso engenhoso.
Por outras palavras: o fim de uma tradição várias vezes
secular e o princípio dos esforços de integração num espaço
cultural não ibérico.
.. iii

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