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SEMIÓTICA

A configuração
do sombrio nos
quadrinhos

Paulo Vinícius de Omena Pina


Mestre em Comunicação e Mídia pela Universidade Paulista – São Paulo.
Coordenador e Docente do Curso de Comunicação Digital da Universidade
Paulista - São José dos Campos. Professor Titular do curso de Desenho
Industrial das Faculdades Integradas Teresa D´Ávila

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"Um homem deixou de alimentar a sombra que carregava. neo, as folhas, os ramos e o tronco da árvore.
Alegou razões de economia. Afinal para que de sobejo levar A sombra, pelo contrário, é imaginada, não é vista,
algo que o duplicava? Sem sombra, pensou melhor carre- primitiva, arcaica instintiva, primordial, imprevisível,
garia o que nele carregava. Equivocou-se. Definhou. Desco- confusa, rebelde, desestruturada, negada, desvincula-
briu, então, que a sombra o sustentava".
da, não civilizada, instável, indisponível, louca, a mão
esquerda, a máscara antitética, o dionisíaco, o lado de
Affonso Romano de Sant’Anna
baixo das coisas, o lado ctônico, o fundo, o periférico,
o perverso, o ansiado, aquilo que retém e recua, aquilo
Acredita-se que o temor e o culto às sombras, em que é vislumbrado no canto do olho, aquilo que parece
seus aspectos míticos, sejam tão antigos quanto o pró- ruim, mágico, negado, incomum, mercurial, esquivo,
prio surgimento da consciência humana: letal, subterrâneo, as raízes da árvore. (CONGER, 1993,
p. 87).
[...] Inúmeras superstições relativas à sombra ou à ima-
gem que ainda prevalecem em todas as partes de nosso Nas Histórias em Quadrinhos, estas características
mundo civilizado correspondem aos difundidos tabus opostas se manifestam muito claramente e são esses as-
dos primitivos, que viam nessa imagem natural do Self
pectos sombrios, enraizados em nossa cultura, que bus-
a alma humana... Os povos primitivos não apenas têm
caremos identificar neste trabalho, procurando traçar um
medo de deixar que sua sombra incida sobre certos
objetos, em especial alimentos, como também têm hor-
paralelo com o cotidiano.
ror de que caia acidentalmente sobre eles a sombra de É peculiar e característico de qualquer produto
outras pessoas - sobretudo mulheres grávidas e sogras. industrializado formar consumidores e/ou adaptar-se a
Tomam cuidado para que ninguém cruze sua sombra e eles; esta é a natureza irrefutável da produção em mas-
observam precauções especiais para que suas sombras sa e com a Indústria Cultural não foi diferente. Embora,
não caiam sobre os mortos ou sobre o caixão ou num tú- em sua maioria, os heróis tenham se tornado figuras per-
mulo, razão pela qual, supõe-se, seus enterros em geral meadas de positividade quase apolínea, este excesso de
são feitos à noite. Seu maior medo, porém, diz respeito “brancura” fatalmente se desdobraria numa expectativa
à lesão intencional de sua sombra por mágica, uma vez
por figuras sombrias, como um movimento natural ao
que, de acordo com uma crença comum, um inimigo
equilíbrio. Curiosamente, pouco tempo após o surgimen-
pode ser morto ferindo-se sua sombra. Muitas outras
tradições folclóricas de natureza semelhante indicam
to dos Super-Heróis dotados de eficiência sobrenatural,
com clareza que o homem primitivo considera a som- heróis mascarados e sombrios começaram a ganhar es-
bra seu duplo misterioso, um ser espiritual, mas real. paço nesse novo segmento midiático.
(RANK, 1941, p.71). A figura que mais se destacou entre os Heróis mas-
carados, e que ainda hoje povoa o imaginário popular, foi
Talvez o que mais tenha intrigado o homem primi- o Batman. Atuando sempre à noite, o Homem-Morcego
tivo, e a isso atribuísse às sombras características sobre- não possui qualquer habilidade sobrenatural, ao contrá-
naturais, fosse exatamente o fato desta ser imaterial - in- rio, é humano, errante, luta ferozmente contra seus fan-
tangível, porém real - visível. E mais, embora o homem tasmas. No universo dos Quadrinhos, Batman é a figura
tenha galgado diversos degraus na escala evolutiva da mais prodigiosa, aquela que melhor representa o homem
espécie desvendando inúmeros mistérios da natureza, real, deixando transparecer conflitos internos muito cla-
alguns aspectos míticos da cultura primitiva se sedi- ros e característicos do romantismo alemão:
mentaram em nosso inconsciente, e no caso da sombra,
desdobrando-se de várias maneiras. (...) é o sentimento como objeto da ação interior do su-
1
De uma simples definição literária a uma concei- jeito, que excede a condição de simples estado afetivo:
SEMIÓTICA

2 a intimidade, a espiritualidade e a aspiração do infinito,


tuação bem mais complexa , o traço comum a qualquer
tentativa de compreender este fenômeno é sempre o na interpretação tardia de Baudelaire. Sentimento do
sentimento ou desejo do desejo, a sensibilidade român-
mesmo: o medo do ser humano frente ao desconhecido.
tica, dirigida pelo ‘amor da irresolução e da ambiva-
Tanto o local assombrado – área sem luz, quanto o in-
lência’, que separa e une estados opostos (...), contém
consciente propriamente dito aterrorizam, pois em ne- o elemento reflexivo da ilimitação, de inquietude e de
nhum dos dois casos o homem apresenta-se no controle insatisfação permanentes de toda experiência confliti-
da situação. No primeiro, por suas limitações físicas e no va aguda, que tende a reproduzir-se indefinidamente à
segundo, por ser incapaz de compreender os mistérios custa dos antagonismos insolúveis que a produziram.
do inconsciente. Assim, estes temores sedimentaram-se Pelo seu caráter conflituoso interiorizado, trata-se, por-
na cultura popular como gêneros opostos: tanto, considerada assim, de uma categoria universal.
(NUNES; GUINSBURG [Org.], 1985, p. 51).
A vida se desenvolve em uma tensão dos opostos. A
luz costuma ser considerada razão, ordem, aquilo que Os Quadrinhos tornaram-se um meio de comunica-
se adapta, avança, parece bom, relaciona-se facilmente ção extremamente sofisticado, capaz de difundir ideias e
com as outras partes, é científica, empírica, previsível,
pensamentos também complexos e repletos de conceitos
compreendida, capaz de obter um acordo geral, ime-
não menos densos. Aspecto bastante curioso observado,
diatamente disponível, civilizada, equilibrada, a mão
direita, estrutura, sanidade, a cara das coisas, o apolí-
é que a maioria dos Super-Heróis que surgiram durante

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a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo definido de ro caso (1985), com a incerteza de um conflito nuclear

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motivar as tropas aliadas, traziam consigo mensagens com a antiga União Soviética e, no segundo (1998), um
nada subliminares. momento de crise de identidade cultural por vários fa-
Símbolo maior e mais claro de personagem criado tores, dentre eles a eminência da globalização, e, como
para este fim, o Capitão América entra e sai de cena cons- consequência, o aumento da miséria mundial, inclusive
tantemente, como se fosse um índice da política Norte- da própria classe baixa americana.
Americana, curiosamente convocado sempre que o patrio- No caso do Brasil, basta recordar a repercussão da
tismo daquele povo apresenta-se abalado, conforme analisa telenovela “O Rei do Gado”, escrita por Benedito Ruy
3
Jô Soares em um breve artigo publicado em uma revista : Barbosa e exibida pela Rede Globo de Televisão, entre
julho de 1996 e fevereiro de 1997, que, utilizando como
O Capitão América é um reflexo chauvinista da política pano de fundo o massacre ocorrido em Eldorado dos Ca-
externa americana. O seu uniforme listado e estrelado rajás, no sul do Pará, explorou de todas as maneiras pos-
seria a própria bandeira dos Estados Unidos, enquanto síveis o conflito entre fazendeiros, Governo e sem-terras.
o escudo teria uma conotação simbólica: só ataca para Repercussão esta que só ocorreu porque encontrou ecos
se defender, exatamente como querem demonstrar o
na sociedade.
Pentágono e a Casa Branca nos mais variados conflitos 6
Se em tempos remotos os homens paleolíticos pro-
da Ásia, África e América Latina. Daí por que o Capitão
América sofreu um certo ostracismo no período kenne- jetavam-se simbolicamente nos desenhos gravados por
dyano, ressurgindo agora com redobrado ímpeto4. (SO- eles mesmos nas cavernas, o homem contemporâneo
ARES, 1969 apud Cirne, 1974, p. 19). também se projeta e se identifica nas imagens fabricadas
e reproduzidas pela mídia. E se a mídia em geral buscou
Isso mostra que não só graficamente manifestam- elementos do imaginário coletivo para criar seu reper-
se as sombras, estas também se projetam no comporta- tório gráfico e estético7, é evidente que os efeitos da su-
mento dos personagens, ou ainda, como reflexos visíveis perexposição do homem a ela já tenham maculado este
do que eles representam. Neste contexto, podemos dizer imaginário coletivo/cultural, impossibilitando qualquer
que a estética sombria, explorada nos meios de comu- identificação e vinculação com outra coisa que não seja
nicação de massa, não é mera alegoria para compor e com ela mesma – a mídia.
ambientar histórias, mas sim reflexo travestido das ne-
gações sociais.
A série de luxo U.S. Tio Sam, escrita por Steve Dar- A ECLOSÃO DA SOMBRA
nall e Alex Ross (1998), por exemplo, aborda com ex-
trema genialidade as crises de identidade do “Espírito
Americano”, personificado pelo Tio Sam. O personagem Batman, que surgiu despretensiosa-
A trama ocorre num passeio alucinado entre “reali- mente no final da década de 30, nos Estados Unidos, com
dade” e lembranças do passado, revividas pelo protago- o objetivo de diversificar as histórias da revista Detetive
nista, resumindo bem o momento de crise de identidade Comics, embora ainda trouxesse consigo uma pequena
que o povo americano viveu mais intensamente naque- partícula do herói mitológico teve como pilar de seu su-
le período5. No decorrer da história, as sombras sociais cesso junto à massa, a exteriorização de sua sombra.
americanas são mostradas como lapsos de memória do Enquanto Super-Man (1938) era o próprio herói mi-
personagem, que tenta compreender os motivos que le- tológico envolto na bandeira americana, refletindo hiper-
varam estas manchas negras a acontecerem. bolicamente todo ideal de superioridade daquele povo,
Embora tenha sido uma publicação direcionada Batman (1939), por sua vez, era o anti-herói 8, que agia à
para o público americano, conquistou leitores do mundo noite, na escuridão. Se, para o Homem-de-Aço 9, seu equi-
todo, por sua profundidade no tema e pelo primor do valente no mundo animal era a águia, entre os vilões,
tratamento gráfico característicos de Alex Ross. Infeliz- Batman era temido como o Homem-Morcego. Juntos, na
mente a conclusão da trama é mais uma campanha de mesma revista, eles se completavam como opostos em
aclamação patriótica americana. sua essência; porém, lutando pelo mesmo ideal: a paz e a
10
Assim como as telenovelas, as produções cinema- ordem, travestidas em eterna repressão ao inimigo ; mas
tográficas ou os romances literários, que promovem o principalmente, enquanto Super-Man tinha sede de jus-
estabelecimento de vínculos entre o espectador/leitor e tiça, Batman tinha sede de vingança.
os personagens da ficção, com os Quadrinhos não é dife- Durante sua trajetória, Batman sofreu diversas in-
rente. Da mesma forma que algumas tramas mobilizam tervenções formais e comportamentais, com o propósito
um grupo específico em função dos paralelos com a vida de aumentar sua penetração no mercado, fosse por meio
real, a relação de empatia com os personagens é igual- de revistas, seriados de TV, filmes, entre outros, mas sua
mente proporcional, em função do modelo idealizado origem sempre se manteve a mesma.
que eles representam. Tanto em Watchmen quanto em Herdeiro de uma fortuna, o garoto Bruce Wayne,
U.S. Tio Sam, ambas direcionadas para o público norte- após perder violentamente os pais assassinados num
americano, o país atravessava um momento de incerteza beco de Gotham City 11, foi criado por um tio e pelo mor-
política e social muito grande, o que possibilitou uma domo da família e cresceu solitário na mansão deixada
identificação imediata por parte do público. No primei- como herança. Introvertido, mas talentoso, Wayne tor-

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nar-se-ia um empresário de sucesso à frente dos negócios gênero (violentos) veiculados nas mais variadas mídias.
da família. Constantemente assombrado pela tragédia da Ora, se a sociedade moderna, em nome da convi-
infância, o garoto milionário encontra na vingança uma vência harmônica, baniu certos atos sacrificiais primiti-
razão para viver. vos, que tinham como objetivo apaziguar tensões inter-
Somente esses elementos, já seriam mais que sufi- nas do grupo, a avidez desta violência acaba sempre por
cientes para sustentar o sucesso de Batman, dando às suas encontrar outra vítima ou forma de se manifestar:
histórias, além de respaldo lógico, motivo para existir (vin-
gança, restauração do equilíbrio e da ordem etc.), estabe- É a comunidade inteira que o sacrifício protege de sua
lecendo com o público uma relação de afetividade muito própria violência, é a comunidade inteira que se encon-
grande. Porém, o duradouro sucesso de Batman também tra assim direcionada para vítimas exteriores. O sacrifí-
pode ser compreendido como resposta de caráter imedia- cio polariza sobre a vítima os germens de desavença es-
to, promovida por seus elementos arquetípicos (imagens palhados por toda parte, dissipando-os ao propor-lhes
uma saciação parcial. (GIRARD, 1990, P. 19).
primordiais) cujo tempo entre a visualização, a identifi-
cação e a história desses signos é tão rápida e usual para
nós, que apontam para uma mitologia própria e completa, Não se trata de apologia ao sacrifício, mas um olhar
apreendida e traduzida instantaneamente pelo leitor: crítico às relações humanas, pois, por mais contraditó-
rio que pareça, o equilíbrio estruturado pelas diferenças
São sistemas de prontidão para a ação e, ao mesmo desapareceu e deu lugar à mediania, graças à efetivação
tempo, imagens e emoções. São herdados junto com a do projeto da Cultura de Massa, que se incumbiu de
estrutura cerebral - constituem de fato o seu aspecto formatar o homem “médio” e, neste aspecto, o que era
psíquico. Por um lado, representam um poderoso con- distinto tornou-se gênero; não há mais diálogos, apenas
servadorismo instintivo e são, por outro lado, os meios monólogos; os vínculos foram substituídos por conexões
mais eficazes que se pode imaginar de adaptação instin- e as expectativas rebaixadas. Os sentimentos humanos
tiva. (JUNG, p. 22 apud CEIA, 2008). 12 com cores, contrastes e nuances variadas deram lugar ao
cinza “tom-pastel”. Em meio a esta maciça homogenei-
Em 1986, o desenhista e roteirista Frank Miller pu- zação do mundo, os opostos não mais se complementam,
blicou, nos Estados Unidos, a revista que mais tarde seria pois não há nada mais que seja assim tão oposto e desta
considerada um divisor de águas dentre as Histórias em forma, até mesmo como consequência deste desmedido
Quadrinhos: The Return of the Dark Knight (lançada no avanço populacional e tecnológico, o que ganha desta-
Brasil como ”O cavaleiro das trevas”). Nesta trama, após que são os extremos.
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anos de combate ao crime, Bruce Wayne decide “aposen- O Mal configura-se como extremo desse mundo
tar-se” e começa a praticar esportes radicais. Dez anos se transversal. O problema real é que tudo aquilo que a
passam. Wayne já está com sessenta anos, e a cidade de Modernidade renegou durante seu grande projeto de
Gotham encontra-se dominada pelo crime. realização, toda positividade gerada em função deste
Dividido em quatro livros, a obra de Miller traz ao pseudo progresso, impediu que certas pulsões negati-
centro da discussão o poder influenciador dos meios de vas do homem se manifestassem naturalmente, afetando
comunicação13 junto à grande massa, bem como a espe- diretamente o equilíbrio entre as forças da alma. Assim,
taculização da violência. Coincidentemente, poucos anos esta positividade absoluta, provocou um efeito muito
14
depois, Jean Baudrillard aprofundou-se nestas questões pior que a própria maldade:
referentes aos fenômenos extremos, tomando como pivô
a violência e as manifestações das forças malignas, como Tal acontecimento decorre de uma súbita cristalização
resultados de séculos de repressão à natureza humana, de violência em suspenso. Não é um confronto de forças
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gerada pela insaciável busca da humanidade por uma hostis, um choque de paixões antagônicas, é a resultante
eficiência hiperbólica inatingível e hoje potencializada de forças ociosas e indiferentes (das quais fazem parte
pelos meios de comunicação de massa: os espectadores inertes da televisão). A violência dos ho-
oligans é uma forma exacerbada da indiferença, que só
encontra tanto eco porque age sobre a cristalização mor-
Não há ressurreição de violência atávica. A violência
tífera da indiferença. (BAUDRILLARD, 1990, p. 84).
arcaica é ao mesmo tempo mais entusiasta e mais sacri-
ficial. Nossa violência, a produzida por nossa hipermo-
dernidade, é o terror. É uma violência-simulacro: bem É deste ponto que partimos, a fim de compreender
mais que da paixão, ela surge da tela, é de natureza a identificação do público leitor para com as Histórias
idêntica à das imagens. A violência está latente no va- em Quadrinhos do Batman e sua estética sombria, apon-
zio da tela, pelo buraco que ela abre no universo mental tando tal identificação como sendo uma ab-reação natu-
(...). Em toda parte há uma precessão da mídia sobre a ral a esta "brancura operacional” imposta pelo mundo
violência terrorista. (BAUDRILLARD, 1990, p. 83).15 contemporâneo.
A necessidade e o desejo pela energia subjetiva do
Como diria Baudrillard, “não é apenas a violência; Mal se manifestam e se reconhecem no que há de sombrio
é a violência mundializada pela televisão, é a violência e grotesco na mídia, e, neste sentido, os Quadrinhos do Bat-
travestida de mundialização”; o que de certa forma jus- man suprem, de certa forma, esta necessidade de expurgar
tificaria a popularidade dos programas e produtos deste a parte maldita reprimida em cada leitor. O termo “Gro-

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tesco” aqui utilizado encaixa-se perfeitamente bem com a todo o mal se manifesta, onde figuras bizarras transitam

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configuração estética de Batman, por explorar exatamente e cometem seus crimes.
essas questões referentes à figura do rebaixamento: As Histórias em Quadrinhos do Batman, bem como
outros produtos da Indústria Cultural que seguem esta
(...) operado por uma combinação insólita e exasperada mesma linha estética (sombria e grotesca), acabam por
de elementos heterogêneos, com referência frequente a se tornar uma espécie de lugar mágico, onde o indivíduo
deslocamentos escandalosos de sentido, situações ab- projeta suas próprias sombras. Lugar onde tudo aquilo
surdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e de- que o convívio social proibiu ou renegou se efetiva.
jetos – por isso tida como fenômeno de desarmonia do
gosto ou disgusto, como preferem estetas italianos – que Não gostamos de olhar nosso lado sombra; portanto,
atravessa as épocas e as diversas conformações culturais, há muitas pessoas, em nossa sociedade civilizada, que
suscitando um mesmo padrão de reações: riso, horror, perderam inteiramente sua sombra, perderam sua ter-
espanto, repulsa. (M. Sodré e R. Paiva: 200, p. 17). ceira dimensão e, com ela, em geral, perderam o cor-
po. O corpo é o amigo mais duvidoso, porque produz
Nesse sentido, o universo fabuloso de Batman se coisas que não apreciamos: há coisas demais sobre a
mostra prodigioso em recriar essa estética grotesca, pois personificação dessa sombra do ego. Às vezes, funcio-
utiliza todos os elementos possíveis para isso: o riso do- na como um esqueleto no armário e, naturalmente, to-
entio característico do seu arqui-inimigo “O Curinga”, o dos querem livrar-se de uma coisa assim. (JUNG, 1935
apud CONGER, 1993, p. 103).
horror e o espanto provocado por suas aparições (Bat-
man quase sempre emergindo das sombras), a repulsa
por sua animalidade ou pelo animal que ele representa Por tudo, é patente que aquilo por nós renegado
– o morcego, e tudo que há de pior na escuridão. em algum momento da vida, ou posto na condição de
Logo, cada sentimento vil, inconcebível por nosso sombra , acumula-se ou cristaliza-se (seja no inconscien-
mundo positivista, se realiza e ganha vida nas narrativas te, segundo Jung; ou no ar, como propõe Baudrillard),
quadrinizadas. Em cada aparição em meio às sombras, esperando apenas uma condição favorável para se ma-
em cada golpe espetacular, em cada frase clichê dos Qua- nifestar em violência pura e simples.
drinhos, o leitor dá vazão aos seus próprios demônios, Assim como Bruce Wayne acabou cedendo à força
ainda que gradualmente aliviando suas tensões internas. vital de Batman frente à janela aberta em sua mente pela
Sob a égide das sombras libertamo-nos de toda repressão televisão, estamos sujeitos a tornarmo-nos fantasmas
imposta pelo convívio social. frente às mídias eletrônicas, cujos corpos se digladiarão
em estádios de futebol.
Há uma terrível consequência da produção ininterrupta
de positividade. Pois, se a negatividade gera a crise e a
crítica, a positividade hiperbólica gera a catástrofe, por CONSIDERAÇÕES
incapacidade de destilar a crise em doses homeopáticas.
(BAUDRILLARD, 1990, p. 113).
Se o homem não se assume como ser espiritual,
nem tampouco assume seu lado animal, inferior, então a
Contudo, seria possível abordar o personagem Bat- que se resume o homem contemporâneo?
man sob vários aspectos, relacionando-o a diversos as- Com a perda da capacidade de autocrítica, os con-
suntos. Infinitas leituras poderiam ser feitas da obra em flitos internos, a constante luta entre as forças opostas
questão: da estética romântica de Gotham City à disputa presentes em cada homem, mudam de foco, e este novo
chauvinista pelo poder; da ética do personagem à eterna homem passa a projetar seus problemas nos meios ex-
atualidade do herói, entre tantas mais quanto o aprofun- ternos, na esperança de que esses mesmos meios lhe for-
damento na obra permitisse. Por bem, decidiu-se discutir neçam as soluções. Como telespectador inerte do mun-
algumas questões relacionadas às sombras do persona- do, o homem perde a capacidade de olhar para si e para
gem e seu paralelo com a sociedade moderna. a sua própria sombra, pois para isso é preciso voltar-se
O caráter sobrenatural que gira em torno das som- contra a luz da razão:
bras, herdado das culturas primitivas e ainda impregnado
em nossas raízes, atribui um valor simbólico ao Batman, Ser um homem sem sombra é viver como massa, pro-
muito maior que, por exemplo, os poderes extraterrestres jetando nos outros os erros do mundo, apoiado numa
do Super-Homem. É muito provável que sua popularida- retidão superficial, facilmente sujeita às forças coletivas
de não tivesse sido a mesma não fosse Joe Shuster e Jer- da vida. Sem sua sombra, o homem moderno não tem
ry Siegel terem sido extremamente felizes na escolha do bases, não tem qualquer noção individual de significa-
17 dos. (CONGER, 1993, p. 88).
uniforme do kryptoniano ou ainda, se o próprio Super-
Homem não tivesse surgido na época certa, atendendo ao
clamor do povo americano por um herói nacional. Esta preocupante perda da noção individual de
Gotham City é outro elemento bastante peculiar nos significados coloca o homem contemporâneo num es-
Quadrinhos do Batman. A metrópole sombria é o palco tado animalesco, capaz de se ver refletido nas mais ab-
perfeito para suas atuações. Ambiente fértil que faz bro- surdas e grotescas situações, espetaculizando o culto às
tar de cada beco os horrores mais absurdos. Local onde inferioridades humanas, como forma de se defrontar

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com seus próprios conflitos, com suas próprias sombras. Siegel e Joe Shuster, é o planeta de origem do Super-Man e
Tudo isto, amplificado pela indústria do entretenimento, legalmente propriedade da DC Comics.
vem se sedimentando sobre a cultura e os valores mo- 18 Neste sentido, “sombra”, como uma definição um pouco
rais, que têm a idade do homem, e que são imprescindí- mais específica, segundo uma das diversas definições de
veis na viabilização do convívio social. sombra por Jung, configurando-se como um mal da cultura
ocidental, “que nega os opostos da natureza humana”.

NOTAS
REFERÊNCIAS
1 Sombra: espaço sem luz; reprodução numa superfície mais
clara, do contorno de uma figura que se interpõe entre esta BAITELLO JR., N. A era da iconofagia. São Paulo: Ed. Hacker,
e o foco luminoso. 2005.
2 Na psicologia junguiana, geralmente definimos sombra BAUDRILLARD, J. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Ed. Civiliza-
como a personificação de certos aspectos inconscientes da ção Brasileira, 2001.
personalidade que poderiam ser acrescentados ao comple- __________. A transparência do mal. 8ª. ed. São Paulo: Ed. Pa-
xo do ego, que por várias razões não o são. Podemos, por pirus, 2004.
BAUMAN, Z. Comunidade - a busca por segurança no mundo
isso, dizer que a sombra é o lado escuro, não vivido e repri-
atual. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2003.
mido do complexo do ego, mas isso é apenas parcialmente
BENJAMIM, Walter. A crise do romance. Sobre Alexander-
verdadeiro. (VON FRANZ, M. L., 1985, p. 15). platz, de Doblin. In Obras Escolhidas - Magia e Técnica, Arte e
3 SOARES, Jô. Capitão América no Vietnam. O Pasquim n° Política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.
23. Rio de Janeiro: 1969. _________. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade
técnica. Rio de Janeiro: Revista Civilização Brasileira n. 19/20,
4 O “ressurgimento com redobrado ímpeto” a que se refere Jô
1968.
Soares, tem como expoente a transição entre o governo de
BERMAN, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo:
Lyndon B. Johnson (1963 – 1969) e Richard M. Nixon (1969
Ed. Cia das Letras, 1987.
– 1974).
CEIA, Carlos. E-dicionário de Termos Literários. Disponível
5 A crise mencionada, diz respeito a alguns ecos do fim da em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/arquetipo.htm>.
Guerra Fria (também explorada em Watchmen), reflexos do Acesso em 11 de jun. 2008.
fracasso da Guerra do Golfo, política de Globalização (1994- CIRNE, Moacy. A explosão criativa dos quadrinhos. Rio de Ja-
2000) e mais recentemente, às crises internas e externas, que neiro: 1974.
vão desde a popularidade de George W. Bush até os confli- CONGER, John P. Jung e Reich: o corpo como sombra. São Pau-
tos no Oriente-Médio. lo: Ed. Summus, 1993.
CONTRERA, Malena Segura. O Mito na Mídia. São Paulo: Ed.
6 Referencia-se aqui o período como um todo, desde o Paleolí-
Annablume, 1996.
tico Inferior, quando surgem os primeiros indícios de grava-
__________. Os monstros na/da mídia. São Paulo: GHREBH,
ções nas paredes das cavernas, bem como o uso de utensílios 2004.
e a prática de rituais funerários, etc. Cerca de 300.000 a.C. __________. O ritual na/da mídia. Chile: Revista Faros de Co-
7 Inclui-se aqui também a escolha do elenco baseada nos este- municação n°. 1, Universidade de Valparaíso, 2005.
reótipos criados pela própria sociedade e reafirmados pela DAMÁSIO, A. O mistério da consciência. São Paulo: Ed. Cia.
mídia: o nordestino atrapalhado, o caipira inocente, o gay das Letras, 2000.
extravagante, o japonês cômico entre tantos outros. FLUSSER, V. Da religiosidade - A literatura e o senso de reali-
dade. São Paulo: Ed. Escrituras, 2002.
8 Diferente do vilão, o termo anti-herói aqui empregado re-
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janei-
fere-se ao herói humano, conflituoso por natureza. Àquele
ro: Ed. Jorge Zahar, 2002.
cujas maiores batalhas são internas.
SEMIÓTICA

GUINSBURG, J. (Org.). O romantismo. 2ª ed. São Paulo: Ed.


9 Nome, por vezes, também adotado pelo Super-Man. Perspectiva, 1985.
10 Neste contexto, qualquer país que se opusesse ao modelo KAMPER, Dietmar. O Medial - O Virtual - O Telemático. Cen-
tro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia - www.
político e econômico americano.
cisc.org.br consulta em 05/07/2007.
11 Cidade fictícia onde Batman vive e atua. Faz constante refe- LAROUSSE. Grande enciclopédia Larousse cultural. São Pau-
rência a Nova Iorque. lo: Ed. Plural, 1998.
12 CEIA, Carlos. E-dicionário de Termos Literários. Disponí- LORENZ, Konrad. Os Oito Pecados Mortais da Civilização.
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po.htm>. Acesso em 11 de jun. 2008. MELMAN, C. O homem sem gravidade - gozar a qualquer pre-
ço. Rio de Janeiro: Ed. Cia. de Freud, 2003.
13 Neste caso a televisão. MORIN, E. Cultura de Massas no séc. XX. São Paulo: Ed. Foren-
14 A transparência do Mal - Ensaios sobre os fenômenos extre- se Universitária, 1990.
mos. Ed. Papirus - SP. 1990. ROMANO, V. Ordem natural e ordem cultural do tempo. Dis-
ponível em <http://www.cisc.org.br/biblioteca> Acesso em jun.
15 Neste capítulo, em particular, Jean Baudrillard destaca o
2007.
poder que a televisão tem de instigar a violência na massa.
SODRÉ, M; PAIVA, R. O império do grotesco. Rio de Janeiro:
16 Nesta visão dialética, o mal se configura como oposto ime- Ed. Mauad, 2002.
diato ao progresso, à vida em sociedade, ao positivismo. VON FRANZ, M.L. A sombra e o mal nos contos de fada. São
17 Kryptoniano ou kryptoniana é todo e qualquer ser vivo e Paulo: Paulinas, 1985.
objeto do planeta Krypton. Lugar fictício criado por Jerry

108 www.fatea.br/angulo

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