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A configuração
do sombrio nos
quadrinhos
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a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo definido de ro caso (1985), com a incerteza de um conflito nuclear
SEMIÓTICA
motivar as tropas aliadas, traziam consigo mensagens com a antiga União Soviética e, no segundo (1998), um
nada subliminares. momento de crise de identidade cultural por vários fa-
Símbolo maior e mais claro de personagem criado tores, dentre eles a eminência da globalização, e, como
para este fim, o Capitão América entra e sai de cena cons- consequência, o aumento da miséria mundial, inclusive
tantemente, como se fosse um índice da política Norte- da própria classe baixa americana.
Americana, curiosamente convocado sempre que o patrio- No caso do Brasil, basta recordar a repercussão da
tismo daquele povo apresenta-se abalado, conforme analisa telenovela “O Rei do Gado”, escrita por Benedito Ruy
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Jô Soares em um breve artigo publicado em uma revista : Barbosa e exibida pela Rede Globo de Televisão, entre
julho de 1996 e fevereiro de 1997, que, utilizando como
O Capitão América é um reflexo chauvinista da política pano de fundo o massacre ocorrido em Eldorado dos Ca-
externa americana. O seu uniforme listado e estrelado rajás, no sul do Pará, explorou de todas as maneiras pos-
seria a própria bandeira dos Estados Unidos, enquanto síveis o conflito entre fazendeiros, Governo e sem-terras.
o escudo teria uma conotação simbólica: só ataca para Repercussão esta que só ocorreu porque encontrou ecos
se defender, exatamente como querem demonstrar o
na sociedade.
Pentágono e a Casa Branca nos mais variados conflitos 6
Se em tempos remotos os homens paleolíticos pro-
da Ásia, África e América Latina. Daí por que o Capitão
América sofreu um certo ostracismo no período kenne- jetavam-se simbolicamente nos desenhos gravados por
dyano, ressurgindo agora com redobrado ímpeto4. (SO- eles mesmos nas cavernas, o homem contemporâneo
ARES, 1969 apud Cirne, 1974, p. 19). também se projeta e se identifica nas imagens fabricadas
e reproduzidas pela mídia. E se a mídia em geral buscou
Isso mostra que não só graficamente manifestam- elementos do imaginário coletivo para criar seu reper-
se as sombras, estas também se projetam no comporta- tório gráfico e estético7, é evidente que os efeitos da su-
mento dos personagens, ou ainda, como reflexos visíveis perexposição do homem a ela já tenham maculado este
do que eles representam. Neste contexto, podemos dizer imaginário coletivo/cultural, impossibilitando qualquer
que a estética sombria, explorada nos meios de comu- identificação e vinculação com outra coisa que não seja
nicação de massa, não é mera alegoria para compor e com ela mesma – a mídia.
ambientar histórias, mas sim reflexo travestido das ne-
gações sociais.
A série de luxo U.S. Tio Sam, escrita por Steve Dar- A ECLOSÃO DA SOMBRA
nall e Alex Ross (1998), por exemplo, aborda com ex-
trema genialidade as crises de identidade do “Espírito
Americano”, personificado pelo Tio Sam. O personagem Batman, que surgiu despretensiosa-
A trama ocorre num passeio alucinado entre “reali- mente no final da década de 30, nos Estados Unidos, com
dade” e lembranças do passado, revividas pelo protago- o objetivo de diversificar as histórias da revista Detetive
nista, resumindo bem o momento de crise de identidade Comics, embora ainda trouxesse consigo uma pequena
que o povo americano viveu mais intensamente naque- partícula do herói mitológico teve como pilar de seu su-
le período5. No decorrer da história, as sombras sociais cesso junto à massa, a exteriorização de sua sombra.
americanas são mostradas como lapsos de memória do Enquanto Super-Man (1938) era o próprio herói mi-
personagem, que tenta compreender os motivos que le- tológico envolto na bandeira americana, refletindo hiper-
varam estas manchas negras a acontecerem. bolicamente todo ideal de superioridade daquele povo,
Embora tenha sido uma publicação direcionada Batman (1939), por sua vez, era o anti-herói 8, que agia à
para o público americano, conquistou leitores do mundo noite, na escuridão. Se, para o Homem-de-Aço 9, seu equi-
todo, por sua profundidade no tema e pelo primor do valente no mundo animal era a águia, entre os vilões,
tratamento gráfico característicos de Alex Ross. Infeliz- Batman era temido como o Homem-Morcego. Juntos, na
mente a conclusão da trama é mais uma campanha de mesma revista, eles se completavam como opostos em
aclamação patriótica americana. sua essência; porém, lutando pelo mesmo ideal: a paz e a
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Assim como as telenovelas, as produções cinema- ordem, travestidas em eterna repressão ao inimigo ; mas
tográficas ou os romances literários, que promovem o principalmente, enquanto Super-Man tinha sede de jus-
estabelecimento de vínculos entre o espectador/leitor e tiça, Batman tinha sede de vingança.
os personagens da ficção, com os Quadrinhos não é dife- Durante sua trajetória, Batman sofreu diversas in-
rente. Da mesma forma que algumas tramas mobilizam tervenções formais e comportamentais, com o propósito
um grupo específico em função dos paralelos com a vida de aumentar sua penetração no mercado, fosse por meio
real, a relação de empatia com os personagens é igual- de revistas, seriados de TV, filmes, entre outros, mas sua
mente proporcional, em função do modelo idealizado origem sempre se manteve a mesma.
que eles representam. Tanto em Watchmen quanto em Herdeiro de uma fortuna, o garoto Bruce Wayne,
U.S. Tio Sam, ambas direcionadas para o público norte- após perder violentamente os pais assassinados num
americano, o país atravessava um momento de incerteza beco de Gotham City 11, foi criado por um tio e pelo mor-
política e social muito grande, o que possibilitou uma domo da família e cresceu solitário na mansão deixada
identificação imediata por parte do público. No primei- como herança. Introvertido, mas talentoso, Wayne tor-
gerada pela insaciável busca da humanidade por uma hostis, um choque de paixões antagônicas, é a resultante
eficiência hiperbólica inatingível e hoje potencializada de forças ociosas e indiferentes (das quais fazem parte
pelos meios de comunicação de massa: os espectadores inertes da televisão). A violência dos ho-
oligans é uma forma exacerbada da indiferença, que só
encontra tanto eco porque age sobre a cristalização mor-
Não há ressurreição de violência atávica. A violência
tífera da indiferença. (BAUDRILLARD, 1990, p. 84).
arcaica é ao mesmo tempo mais entusiasta e mais sacri-
ficial. Nossa violência, a produzida por nossa hipermo-
dernidade, é o terror. É uma violência-simulacro: bem É deste ponto que partimos, a fim de compreender
mais que da paixão, ela surge da tela, é de natureza a identificação do público leitor para com as Histórias
idêntica à das imagens. A violência está latente no va- em Quadrinhos do Batman e sua estética sombria, apon-
zio da tela, pelo buraco que ela abre no universo mental tando tal identificação como sendo uma ab-reação natu-
(...). Em toda parte há uma precessão da mídia sobre a ral a esta "brancura operacional” imposta pelo mundo
violência terrorista. (BAUDRILLARD, 1990, p. 83).15 contemporâneo.
A necessidade e o desejo pela energia subjetiva do
Como diria Baudrillard, “não é apenas a violência; Mal se manifestam e se reconhecem no que há de sombrio
é a violência mundializada pela televisão, é a violência e grotesco na mídia, e, neste sentido, os Quadrinhos do Bat-
travestida de mundialização”; o que de certa forma jus- man suprem, de certa forma, esta necessidade de expurgar
tificaria a popularidade dos programas e produtos deste a parte maldita reprimida em cada leitor. O termo “Gro-
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tesco” aqui utilizado encaixa-se perfeitamente bem com a todo o mal se manifesta, onde figuras bizarras transitam
SEMIÓTICA
configuração estética de Batman, por explorar exatamente e cometem seus crimes.
essas questões referentes à figura do rebaixamento: As Histórias em Quadrinhos do Batman, bem como
outros produtos da Indústria Cultural que seguem esta
(...) operado por uma combinação insólita e exasperada mesma linha estética (sombria e grotesca), acabam por
de elementos heterogêneos, com referência frequente a se tornar uma espécie de lugar mágico, onde o indivíduo
deslocamentos escandalosos de sentido, situações ab- projeta suas próprias sombras. Lugar onde tudo aquilo
surdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e de- que o convívio social proibiu ou renegou se efetiva.
jetos – por isso tida como fenômeno de desarmonia do
gosto ou disgusto, como preferem estetas italianos – que Não gostamos de olhar nosso lado sombra; portanto,
atravessa as épocas e as diversas conformações culturais, há muitas pessoas, em nossa sociedade civilizada, que
suscitando um mesmo padrão de reações: riso, horror, perderam inteiramente sua sombra, perderam sua ter-
espanto, repulsa. (M. Sodré e R. Paiva: 200, p. 17). ceira dimensão e, com ela, em geral, perderam o cor-
po. O corpo é o amigo mais duvidoso, porque produz
Nesse sentido, o universo fabuloso de Batman se coisas que não apreciamos: há coisas demais sobre a
mostra prodigioso em recriar essa estética grotesca, pois personificação dessa sombra do ego. Às vezes, funcio-
utiliza todos os elementos possíveis para isso: o riso do- na como um esqueleto no armário e, naturalmente, to-
entio característico do seu arqui-inimigo “O Curinga”, o dos querem livrar-se de uma coisa assim. (JUNG, 1935
apud CONGER, 1993, p. 103).
horror e o espanto provocado por suas aparições (Bat-
man quase sempre emergindo das sombras), a repulsa
por sua animalidade ou pelo animal que ele representa Por tudo, é patente que aquilo por nós renegado
– o morcego, e tudo que há de pior na escuridão. em algum momento da vida, ou posto na condição de
Logo, cada sentimento vil, inconcebível por nosso sombra , acumula-se ou cristaliza-se (seja no inconscien-
mundo positivista, se realiza e ganha vida nas narrativas te, segundo Jung; ou no ar, como propõe Baudrillard),
quadrinizadas. Em cada aparição em meio às sombras, esperando apenas uma condição favorável para se ma-
em cada golpe espetacular, em cada frase clichê dos Qua- nifestar em violência pura e simples.
drinhos, o leitor dá vazão aos seus próprios demônios, Assim como Bruce Wayne acabou cedendo à força
ainda que gradualmente aliviando suas tensões internas. vital de Batman frente à janela aberta em sua mente pela
Sob a égide das sombras libertamo-nos de toda repressão televisão, estamos sujeitos a tornarmo-nos fantasmas
imposta pelo convívio social. frente às mídias eletrônicas, cujos corpos se digladiarão
em estádios de futebol.
Há uma terrível consequência da produção ininterrupta
de positividade. Pois, se a negatividade gera a crise e a
crítica, a positividade hiperbólica gera a catástrofe, por CONSIDERAÇÕES
incapacidade de destilar a crise em doses homeopáticas.
(BAUDRILLARD, 1990, p. 113).
Se o homem não se assume como ser espiritual,
nem tampouco assume seu lado animal, inferior, então a
Contudo, seria possível abordar o personagem Bat- que se resume o homem contemporâneo?
man sob vários aspectos, relacionando-o a diversos as- Com a perda da capacidade de autocrítica, os con-
suntos. Infinitas leituras poderiam ser feitas da obra em flitos internos, a constante luta entre as forças opostas
questão: da estética romântica de Gotham City à disputa presentes em cada homem, mudam de foco, e este novo
chauvinista pelo poder; da ética do personagem à eterna homem passa a projetar seus problemas nos meios ex-
atualidade do herói, entre tantas mais quanto o aprofun- ternos, na esperança de que esses mesmos meios lhe for-
damento na obra permitisse. Por bem, decidiu-se discutir neçam as soluções. Como telespectador inerte do mun-
algumas questões relacionadas às sombras do persona- do, o homem perde a capacidade de olhar para si e para
gem e seu paralelo com a sociedade moderna. a sua própria sombra, pois para isso é preciso voltar-se
O caráter sobrenatural que gira em torno das som- contra a luz da razão:
bras, herdado das culturas primitivas e ainda impregnado
em nossas raízes, atribui um valor simbólico ao Batman, Ser um homem sem sombra é viver como massa, pro-
muito maior que, por exemplo, os poderes extraterrestres jetando nos outros os erros do mundo, apoiado numa
do Super-Homem. É muito provável que sua popularida- retidão superficial, facilmente sujeita às forças coletivas
de não tivesse sido a mesma não fosse Joe Shuster e Jer- da vida. Sem sua sombra, o homem moderno não tem
ry Siegel terem sido extremamente felizes na escolha do bases, não tem qualquer noção individual de significa-
17 dos. (CONGER, 1993, p. 88).
uniforme do kryptoniano ou ainda, se o próprio Super-
Homem não tivesse surgido na época certa, atendendo ao
clamor do povo americano por um herói nacional. Esta preocupante perda da noção individual de
Gotham City é outro elemento bastante peculiar nos significados coloca o homem contemporâneo num es-
Quadrinhos do Batman. A metrópole sombria é o palco tado animalesco, capaz de se ver refletido nas mais ab-
perfeito para suas atuações. Ambiente fértil que faz bro- surdas e grotescas situações, espetaculizando o culto às
tar de cada beco os horrores mais absurdos. Local onde inferioridades humanas, como forma de se defrontar
NOTAS
REFERÊNCIAS
1 Sombra: espaço sem luz; reprodução numa superfície mais
clara, do contorno de uma figura que se interpõe entre esta BAITELLO JR., N. A era da iconofagia. São Paulo: Ed. Hacker,
e o foco luminoso. 2005.
2 Na psicologia junguiana, geralmente definimos sombra BAUDRILLARD, J. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Ed. Civiliza-
como a personificação de certos aspectos inconscientes da ção Brasileira, 2001.
personalidade que poderiam ser acrescentados ao comple- __________. A transparência do mal. 8ª. ed. São Paulo: Ed. Pa-
xo do ego, que por várias razões não o são. Podemos, por pirus, 2004.
BAUMAN, Z. Comunidade - a busca por segurança no mundo
isso, dizer que a sombra é o lado escuro, não vivido e repri-
atual. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2003.
mido do complexo do ego, mas isso é apenas parcialmente
BENJAMIM, Walter. A crise do romance. Sobre Alexander-
verdadeiro. (VON FRANZ, M. L., 1985, p. 15). platz, de Doblin. In Obras Escolhidas - Magia e Técnica, Arte e
3 SOARES, Jô. Capitão América no Vietnam. O Pasquim n° Política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.
23. Rio de Janeiro: 1969. _________. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade
técnica. Rio de Janeiro: Revista Civilização Brasileira n. 19/20,
4 O “ressurgimento com redobrado ímpeto” a que se refere Jô
1968.
Soares, tem como expoente a transição entre o governo de
BERMAN, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo:
Lyndon B. Johnson (1963 – 1969) e Richard M. Nixon (1969
Ed. Cia das Letras, 1987.
– 1974).
CEIA, Carlos. E-dicionário de Termos Literários. Disponível
5 A crise mencionada, diz respeito a alguns ecos do fim da em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/arquetipo.htm>.
Guerra Fria (também explorada em Watchmen), reflexos do Acesso em 11 de jun. 2008.
fracasso da Guerra do Golfo, política de Globalização (1994- CIRNE, Moacy. A explosão criativa dos quadrinhos. Rio de Ja-
2000) e mais recentemente, às crises internas e externas, que neiro: 1974.
vão desde a popularidade de George W. Bush até os confli- CONGER, John P. Jung e Reich: o corpo como sombra. São Pau-
tos no Oriente-Médio. lo: Ed. Summus, 1993.
CONTRERA, Malena Segura. O Mito na Mídia. São Paulo: Ed.
6 Referencia-se aqui o período como um todo, desde o Paleolí-
Annablume, 1996.
tico Inferior, quando surgem os primeiros indícios de grava-
__________. Os monstros na/da mídia. São Paulo: GHREBH,
ções nas paredes das cavernas, bem como o uso de utensílios 2004.
e a prática de rituais funerários, etc. Cerca de 300.000 a.C. __________. O ritual na/da mídia. Chile: Revista Faros de Co-
7 Inclui-se aqui também a escolha do elenco baseada nos este- municação n°. 1, Universidade de Valparaíso, 2005.
reótipos criados pela própria sociedade e reafirmados pela DAMÁSIO, A. O mistério da consciência. São Paulo: Ed. Cia.
mídia: o nordestino atrapalhado, o caipira inocente, o gay das Letras, 2000.
extravagante, o japonês cômico entre tantos outros. FLUSSER, V. Da religiosidade - A literatura e o senso de reali-
dade. São Paulo: Ed. Escrituras, 2002.
8 Diferente do vilão, o termo anti-herói aqui empregado re-
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janei-
fere-se ao herói humano, conflituoso por natureza. Àquele
ro: Ed. Jorge Zahar, 2002.
cujas maiores batalhas são internas.
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