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Querem alguns que seja palavra Arábica. Em castelhano, Naipes vale o mesmo que Cartas
de Jogar; dizem que se chamam assim da primeira cifra que tiveram, na qual se encerrava o
nome do inventor [...]. Entre nós Naipe é o metal ou cor das cartas [...].
RAFAEL BLUTEAU, Vocabulário Português-Latino
[...] muito melhor conhece os lances do jogo aquele que o vê, que aquele que o joga.
D. FRANCISCO MANUEL DE MELO, Carta de Guia de Casados
1
Arquiva-se na Osterreichische Nationalbibliothek de Viena.
123
Três de tais sistemas haviam de adquirir especial notoriedade: o Lati-
no (também denominado Espanhol), ainda utilizado em Espanha, nas antigas
colónias espanholas da América do sul, em Itália, nas Filipinas e ainda em
algumas regiões da França e do Norte de África; o sistema Alemão, produto
da combinação de sistemas distintos; e ainda o sistema Francês, actualmente
o mais difundido (nomeadamente nos Estados Unidos e no Canadá).
Os primeiros naipes 2 padronizados foram adoptados no século
XV, em França, Espanha e Itália e, ulteriormente, no século XVI, pela In-
glaterra.
E muito embora adoptando denominações, iconografia e semântica
diferenciadas, os naipes assumiram, quase invariavelmente, uma estrutu-
ra quadripartida hierarquicamente ordenada na sequência espadas, copas,
paus e ouros, de acordo com o sistema Francês, ou na de paus, espadas,
cálices (copas) e moedas (ouro), consoante o sistema Latino.
Já no que concerne ao sistema Alemão, a estrutura dos naipes, ape-
sar da sua base quadripartida, não era tão rígida, dependendo do tipo de
jogo, o mesmo sucedendo quanto à iconografia: uma bolota (Eichel), era
equivalente aos paus; um guizo (Schellen), aos ouros; uma folha (Grun ou
Blatt), às espadas; e um coração (Herz), às copas.
Alguns investigadores contemporâneos têm relacionado os quatro
naipes com as quatro etapas da manifestação do mundo ou com os quatro
elementos que o configuram 3. Porém, autores pretéritos preferiram her-
menêuticas mais consentâneas com a imagem depreciativa associada ao
jogo de cartas.
Assim, Pedro Aretino (Cartas falantes) considera que os paus indi-
cam o castigo merecido por quantos mentem; as espadas se reportam à
morte daqueles que persistem no jogo; as copas à bebida onde as disputas
dos jogadores se apaziguam; os ouros significam o alimento do jogo.
Por sua vez, Covarrubias apresenta os paus e as espadas como sím-
bolos de violência e crime, as copas de desordem e os ouros de cupidez e
crime.
2
A etimologia da palavra naipe (palo, em espanhol) é controvertida, admitindo-se, no entan-
to, que possa derivar do hebraico naibi, sinónimo de feitiçaria. Francisco de Luque Fajardo
aponta um madrileno, conhecido por Villán ou Vila, que acabou na fogueira, como o inven-
tor dos naipes. Ver Fiel desengaño contra la ociosidade y los juegos, Sevilha, 1603.
3
Autores hodiernos, comparando as 52 cartas com o calendário, estabeleceram o seguinte
quadro de correlações: 52 cartas = 52 semanas do ano; 4 naipes = 4 estações; 13 cartas de
cada naipe = 13 meses lunares do ano e 13 semanas de cada semestre; 12 dignidades de um
baralho = 12 meses do ano e 12 signos do zodíaco.
124
O Joker foi a última figura a aparecer nos baralhos de cartas, tratan-
do-se de uma invenção americana, surgida por volta de 1860. É uma carta
de conveniência, que não se insere em nenhum sistema ou naipe, e que
constitui um trunfo especial cujo valor depende do tipo de jogo.
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Apesar de todas as interdições e tentativas para banir a sua utiliza-
ção, o jogo de cartas rapidamente se difundiu por toda a Europa.
O fabrico de cartas de jogar em Espanha está atestado desde finais
do século XIV. Em 1429, Juan Alvarez manufacturava-as numa fábrica que
detinha em Sevilha, cidade da Andaluzia onde, no século XVI, chegou a
haver cerca de sete dezenas de fabricantes.
Portugal não fugiria à regra, aparentemente, por influência castelhana.
São contemporâneas de D. João II as duas mais remotas notícias
repertoriadas nos anais portugueses sobre cartas de jogar, curiosamente,
datadas do mesmo ano:
4
Cf. Documentos do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa, Livro de Reis, I., Lisboa,
1957, doc. n. 33, n. 35º, p. 240. Considerando o requerimento exagerado, o monarca apenas
interditaria o jogo de dados, porém, não o de cartas! O costume dos alfeloeiros mercarem
de mistura com jogos persistia no tempo de D. Manuel, porquanto este monarca, tendo
mandado passar Carta de Mercê a favor de Pedro Favela, a 14 de Julho de 1505, pela qual
o autorizava a fabricar alfeloa e a vendê-la na cidade de Lisboa, proibia, todavia, os seus
vendedores de jogarem “dados e cartas nem outro nenhum jogo e isto se entenderá até
quatro pessoas somente”. ANTT: Chancelaria de D. Manuel, liv. 20, fl. 17v. Cf. Sousa Viterbo,
Curiosidades históricas e artísticas, Coimbra, 1919, p. 64-65.
5
Garcia de Resende, Crónica de Dom João II, cap. CX, p. 145.
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Penas sempre assi consigo,
Vai caminho das eternas 6.
6
Poesias de Francisco Saa de Miranda (ed. Carolina Michaëlis de Vasconcelos), Lisboa, 1885, p.
243-244.
7
Livro V, título XLVIII: Como são defesas as cartas, e dados.
8
Livro V, título LXXXII: Dos que jogam dados, ou cartas, ou as fazem, ou vendam, ou dão tavolagem,
e de outros jogos defesos.
127
Como são defesas as cartas, e dados
(Ordenações Manuelinas)
128
achar, e a outra metade do Alcaide Mor do lugar, onde assim for achado jogando,
segundo no Título dos Alcaides Mores no Livro Primeiro é dito. As quais penas
de dinheiro se não entenderão nos escravos cativos, mas em lugar da pena do
dinheiro serão açoutados ao pé do pelourinho, onde lhe serão dados vinte açoutes;
salvo se o senhor do escravo quiser pagar a dita pena de dinheiro por eles.
*
Dos que jogam dados, ou cartas, ou as fazem, ou vendam,
ou dão tavolagem, e de outros jogos defesos
(Ordenações Filipinas)
129
5 E por se evitarem mais os jogos, mandamos que se ao que dá tavolagem em sua
casa algum dos jogadores que nela jogam, ou outra qualquer pessoa que a ela vai
ver jogar, enquanto se na casa joga lhe fizer algum furto, injúria, ou dano, não possa
pela pessoa que dá a tavolagem ser demandado, ainda que a injúria seja atroz, e de
lhe pôr as mãos, salvo se o matasse, ou ferisse, porque em tal caso será o delinquente
castigado, como se em outro lugar, ou a outra pessoa ferisse, ou matasse.
6 Porém se os jogadores entre si se injuriassem, ou roubassem uns aos outros,
serão julgados, e castigados com as penas ordinárias, que se dão aos outros
delinquentes de semelhantes delitos.
7 E porque acontece algumas vezes, que os jogadores obrigam outros a jogar
forçosamente, ou depois que jogam a lhe manterem jogo quando perdem, a fim
de se desquitarem. Mandamos que o que tal força fizer seja degredado quatro
anos para o Brasil. E fazendo além da força alguma injúria, será mais condenado
para a parte que o demandar, em pena corporal, e pecuniária, conforme a
qualidade da pessoa ofendida, e da injúria que se lhe fizer.
8 E os que forem culpados em jogar dados, ou cartas, poderão ser citados ou
demandados do dia que cometerem o malefício até quatro meses primeiros
seguintes. E os que forem culpados em os outros casos sobreditos de fazer
cartas, ou vender, ou trazer, ou jogar com cartas, ou dados falsos, ou por terem
tavolagem, poderão ser acusados até um ano, e mais não.
9 Das quais penas de dinheiro contidas nesta Ordenação, será a metade para quem
os acusar, e a outra para nossa Câmara. E quanto ao dinheiro, ouro, ou prata, que
for achado no jogo, será a metade do que o achar, e a outra do Alcaide Mor do lugar
onde assim for achado jogando, como fica dito no Livro Primeiro, no Título: Dos
Alcaides Mores.
10 [capítulo interditando o jogo de bola em determinadas circunstâncias 9].
11 E aos escravos que forem achados em qualquer parte de nossos reinos,
culpados em cada um dos casos acima ditos, ou jogando outro qualquer jogo
na Corte, ou na Cidade de Lisboa, ser-lhe-ão dados vinte açoutes ao pé do
Pelourinho, salvo se seu senhor quiser pagar pelo seu escravo quinhentos réis
para quem o prender, e que o não açoutem.
12 E quando os meirinhos, e alcaides acharem jogando dados, ou cartas
a alguns Oficiais mecânicos, ou pessoas semelhantes, levá-los-ão perante
um Julgador, onde serão ouvidos como for justiça. E sendo pessoas de mais
qualidade, os Julgadores os farão chamar a suas casas, e os ouvirão, e farão em
tudo cumprimento de Justiça, dando sentenças, das quais as partes poderão
apelar, e agravar, qual no caso couber. E os Corregedores da Corte despacharão
os tais feitos em Relação.
9
Ver do subscritor, neste Boletim Cultural, o artigo: Jogos do Jardim do Cerco: bola, laranjinha e aro.
130
(1534) 10; as Constituiçoens do Arcebispado de Lixboa (1537) 11; as Constituições
do Arcebispado de Braga (1538) 12; as Cõstituições Synodaes do Bispado do Porto
(1541) 13; as Constituiçoes Synodaes do Bispado de Coimbra (1548) 14; as Consti-
tuiçoens do Bispado do Algarve (1554) 15; as Constituyções da Iurisdiçam Eccle-
siastica da Villa de Tomar (posteriores a 1555) 16; as Constituyções Synodaes
do Bispado de Viseu (1556) 17; as Constituições Synodaes do Bispado de Lamego
(1563) 18; as Constituiçoens do Arcebispado de Evora (1565, ed. 1753) 19.
De resto, o carácter alegadamente diabólico dos naipes (“invenção
do Diabo”), apontado pelo já citado São Bernardino de Siena, persegui-los-
ia recorrentemente, como um estigma, tanto nas letras como nas artes.
Tal se infere, por exemplo, do Auto da Feira (1527), de Gil Vicente,
que, num diálogo entre um Serafim e o Diabo, põe este a confessar que um
dos elementos do seu comércio são justamente as cartas de jogar, para as
quais encontra sempre clientes, incluindo no rol aos eclesiásticos:
10
Título X, const. VII, fl. 21 e const. VIII, fl. 21-21v.
11
Título X, const. VII, fl. 23v e const. VIII, fl. 23v.
12
Título X, const. VI e VII, fl. 28v.
13
Título 13, const. 12, fl. 54 e 100-100v.
14
Título XIII, const. III, fl. 40-40v.
15
Título X, cap. VII, fl. 40-40v e VIII, fl. 40v.
16
Título 4, const. 2, fl. 26.
17
Título XI, const. X, fl. 48-48v.
18
Título XXXII, const. II, p. 214; título XII, const. VII, p. 80-81 e VIII, p. 81.
19
Título X, cap. 7 e 8, p. 52.
20
Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente (ed. Maria Leonor Carvalhão Buescu), v. 1, Lisboa,
1984, p. 154-155.
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Todo o jogo, em que a fortuna faz maior figura que a arte, é proibido em
Direito; mas como a proibição de ordinário desafia o apetite dos homens: Nitimur
in vertitum, comumente se inclinam àqueles jogos, a que as leis se opõem com mais
severidade. Um destes é o jogo das cartas, cujo exercício é tão universal em todas
as nações quanto é prejudicial às consciências; porque é um estragador do tempo,
um ladrão dos cabedais, e um violador dos respeitos. Nele são frequentes as juras,
as blasfémias, as desesperações, as vilezas, as mentiras, os roubos, os desafios, e as
desgraças; nesta arte quanto mais sábio é o homem, tanto mais mau o homem é.
Tudo isto é certo; porque a experiência o prova com o facto; e tudo, ou quase tudo
disse um discípulo de S. Tomás de Cantuária, Bispo Carnotense, natural de Seris-
béria: Nonné fatis improbata est cujusque artis exercitatio, in qua quanto
quis doctior, tanto nequior. Aleator quidem omnis hic est. Mendaciorum
siquidem, et perjuriorum mater est alea, et aliena concupiscentia sua pro-
digio, nullam habens patrimonis reverentiam, cum illud essuderit, sensim
in furta delabitur, et rapinas.
Tudo isto, e muito mais se acha no jogo das cartas. Se nele se perdesse só o
respeito, o brio, a fazenda, e ainda a liberdade, como era alguma hora costume entre
os Alemães, menos mau era; mas também se perde a vida, e talvez a alma. Se eu não
receara escandalizar ao leitor, referira-lhe com mais individuação o caso seguinte,
que sucedeu em uma Cidade deste Reino, onde eu a este tempo me achava. Jogavam
três a Renegada, deram-se as cartas, passaram todos a primeira vez, e nas segundas
passagens foi um deles à cascarrilha com tão bom, ou com tão mau, sucesso, que
achou cinco vazas direitas; neste caso disse inadvertidamente um dos jogadores:
Isto é ventura de filho de tal. Picou-se o injuriado, porque a mãe merecia o nome,
que o homem lhe deu, e metendo a mão a uma faca, lha pregou no peito com tanta
fúria, que sem confissão o mandou para a outra vida, e talvez para a outra morte;
porque as circunstâncias, que revestiam este diabólico exercício, fazem muito prová-
vel esta conjectura. Se este caso servisse de escarmento aos futuros, assim como foi
de escândalo para os presentes, poderá ser que senão use tão mal em todos os estados
da eutrapelia, que degenere em tasularia, como estamos vendo todas as horas.
Juntamente proibiram os Turcos este, e semelhantes jogos pelas suas leis
não só com a pena de perderem a fazenda, mas também a honra; porque os compre-
endidos neste crime ficavam reputados por infames. Deram os Infiéis este quinhão
aos Príncipes Católicos, que dissimulam um exercício tão oposto às leis de Deus, e
tão comum nos homens, que apenas se juntam quatro amigos numa tarde de verão
ou numa noite de inverno, já o livrinho de quarenta, e oito folhas anda nas palmas,
como se não houvesse para passar o tempo outros livrinhos: uns espirituais para
os bem intencionados, outros de história para os curiosos: uns de políticas para os
Repúblicos, outros de guerras para os Militares; uns de Náutica para os Mareantes,
e outros de Agricultura para os fazendeiros.
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O demónio, que segundo alguns escrevem, foi o inventor deste, e outros
semelhantes jogos, com grande astúcia multiplicou as espécies deste género: ensi-
nou a Renegada, os Centos, a Gigajoga, os Piques, o Quinto, o Quarto, as Vazas, a
Polhinha, a Garatuza, a Primeira, o Cró, o Estenderete, o Osória, o Trinta, a Banca,
o Pacau, a Carteta, as Pintas, o Trunfo, o Quinze de Resto, o Vinte e um, o Cochino,
o Ganha perde, e outros muitos, que não numero, porque até o escrevê-los me enfas-
tia, lembrando-me das ruínas, que tem causado no mundo o seu uso. Tudo isto foi
destreza do inimigo infernal para fazer este exercício mais comum; para que os que
não gostassem de um jogo, jogassem outro.
Para todos serve este desencadernado livro, não de letras, mas de estampas.
Nele se acham pintados os Reis, as Sotas, os Condes, e os Ases. Nele se veem dife-
rentes naipes: os ouros, as copas, as espadas, e os paus. Tudo tem seu significado, de
que darei notícia aos que folheiam este livro da ociosidade. É livro desencadernado,
para significar os desmanchos, que faz nas consciências. Não tem letras, porque não
é livro, que tomem na mão homens cientes, e letrados. Tem Reis, para que se saiba,
que também se usa dele nos palácios. Tem Condes, por outro nome, cavalos, para
que entendamos assenta bem o nome de brutos naqueles fidalgos que estudam por
ele noites, e dias inteiros com grande escândalo dos seus criados. Tem Sotas, para
que se veja que o sexo feminino em todo o divertimento ilícito faz vaza. Tem Ases,
que são uns dragões; porque se quis estampar neste livro o seu autor: a este parece
que adoram os que trazem nas palmas este volume: Adoraverunt draconem.
Tem ouros, para que acabem os homens de persuadir-se, que no jogo reina
muito a ambição: uns, e outros, por mais amigos que sejam, querem-se tirar a capa,
ainda que se dão capotes. As copas querem insinuar-nos, que o jogar as cartas é
exercício de tabernas. As espadas indicam as brigas, as dissenções, que do jogo se
originam. Os paus são prognóstico da forca, em que muitas vezes vêm a parar os
jogadores; ou porque do jogo das cartas se levantam para o das pancadas, ou porque
a pobreza, a que os reduz, os incita a despojarem as bolsas alheias depois de vazarem
as suas. Não foram necessários os três paus para experimentar esta desgraça, e pa-
decer a afronta do patíbulo o jogador, que deu matéria a esta reflexão; porque com
um laço o fez o demónio enforcar no ferrolho de uma porta.
Diz S. Paulo, que caem na tentação, e laço do demónio os que desejam ser
ricos: Qui volunt divites sieri incidunt in tentationem, et laqueum diaboli.
Nesta tentação, e neste laço cai o nosso jogador vendo-se pobre, por haver perdido
ao jogo o pouco, ou muito cabedal, que tinha. Aqui dá S. Bernardo um sentidíssimo
ai, doendo-se das muitas prisões que o demónio faz no mundo com este laço: Ergo-
ne laqueus diaboli divitia fut hujus saeculi? Hec quam poucos invenimus,
qui ab hoc laqueo liberati exultent; quod parum sibi videntur irretiti, et
abuc, quantum possunt, ipsi se involvere, et intricare laborant. Se os que
desejam ser ricos andam presos do demónio, os jogadores vivem mais enlaçados,
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que todos os ambiciosos. Se perguntarmos a um destes, para que joga, responderá
para me desenfadar!; mas se a mim se fizesse esta pergunta, havia de responder com
mais verdade, para ganhar. Nenhum se senta à mesa do jogo com intentos de perder;
todos se enfadam, ou mais ou menos, se a fortuna os não favorece.
É para ver, e para ouvir um destes, quando o persegue a desgraça um dia,
e outro dia; uma noite, e outra noite. Lança mil maldições sobre as cartas, e sobre
as duas mil pragas jurando, e terjurando de não pegar mais nelas, e fugir da casa
do jogo, como do demónio; mas duram pouco tempo estes bons propósitos. Quando
muito no primeiro dia teme quebrar o juramento, não vai à casa do jogo, mas passa
pela porta: no segundo entra; e no terceiro senta-se à mesa como dantes fazia. Estes
são como os navegantes. No tempo da tempestade protestam de não meterem mais
pé em barco, e lembrados do perigo, em que se viram lhes parece muito arriscada a
passagem de qualquer rio; mas em aparecendo os editais ou para a Índia, ou para
os Brasis, já as ondas do Oceano no seu conceito são menos formidáveis, que as
do Tejo, ou Guadiana; e se necessário e, são os primeiros, que procuram lugar nas
embarcações para a jornada. Destes falou Ovídio: Qui post naufragium stagna,
lacusque timebat, Aequoreas iterum remige transit aquas 21.
21
Frei Pedro Correia, Triumphos Ecclesiasticos, Lisboa, 1617.
22
Cf. A Pintura Maneirista em Portugal: arte no tempo de Camões, Lisboa, 1995, p. 494-496.
134
A Virgem do Carmo e S. Simão Stock convertendo um cavaleiro hereje, do pintor Pedro Nunes
(Évora, Igreja do Carmo). No chão, junto das cartas, veem-se, também, dois dados.
135
Inclusivamente, D. Manuel, contrariando as disposições legais
emanadas da sua própria Chancelaria, patrocinava jogos com naipes em
que intervinha toda a Corte. Para o efeito, chegou a ordenar a Garcia de Re-
sende que compusesse quarenta e oito trovas, tantas quantas as cartas que
formavam o baralho corrente no Reino, destinadas a uma diversão áulica:
tais trovas dividem-se em dois grupos, por sua vez subdivididos em dois
outros: 24 eram dirigidas às damas, outras tantas aos cortesãos homens;
12 de cada um desses grupos eram de louvor, outras tantas de deslouvor.
Baralhadas as cartas, seriam tiradas uma a uma, reportando-se a cada um
dos presentes.
[Ás de copas]
[Dois de copas]
136
[Três de copas]
[Quatro de copas]
[Cinco de copas]
[Seis de copas]
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[Sete de copas]
[Oito de copas]
[Nove de copas]
[Damas de copas]
138
[Valete de copas]
Se no mundo se perdesse
quanto se pode cuidar
tudo vós pudereis dar
sem que nada falecesse.
Porque o qu’em vós sobeja
é tanto qu’abastaria
a mil mundos e teria
cada u[m]a o que deseja.
[Rei de copas]
Em saber e descrição
em virtudes e bondade
e em toda perfeição
tendes primor na verdade.
Sois também mui piedosa
amiga de todo bem
sobretudo a mais formosa
do qu’ouviu nem viu ninguém.
[Ás de ouros]
[Dois de ouros]
139
[Três de ouros]
[Quatro de ouros]
[Cinco de ouros]
[Seis de ouros]
140
[Sete de ouros]
[Oito de ouros]
[Nove de ouros]
[Dama de ouros]
141
[Valete de ouros]
[Rei de ouros]
[Ás de espadas]
[Dois de espadas]
142
[Três de espadas]
[Quatro de espadas]
[Cinco de espadas]
[Seis de espadas]
143
[Sete de espadas]
[Oito de espadas]
[Nove de espadas]
[Dama de espadas]
Eu prezo-me d’escrever
e dar conselhos nuns motos
sei bem cantar e tanger
alguns são em mim devotos.
E sou prezado das damas
estimado dos senhores
e com todos meus favores
não lhe tiro suas famas.
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[Valete de espadas]
[Rei de espadas]
[Ás de paus]
[Dois de paus]
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[Três de paus]
[Quatro de paus]
[Cinco de paus]
[Seis de paus]
Galante blasfemador
tendes feição de varrão
tão longe de sensabor
coma perto de malhão.
Quem isto tomar por si
Há-de ser homem de paço
e já eu vejo daqui
alguém posto em embaraço.
146
[Sete de paus]
[Oito de paus]
[Nove de paus]
[Dama de paus]
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[Valete de paus]
[Rei de paus]
D. Aleixo de Meneses aio que foi de el-Rei D. Sebastião, sendo o dito Rei
ainda moço e estando uma noite de inverno enfadado, quis passar duas horas dela
em jogar algum jogo de cartas, com outros moços fidalgos de sua idade e criação, e
porque então o que mais se usava era a Primeira na qual os outros eram já mestres,
el-Rei não começava ainda a ser discípulo, disse para o aio, quero jogar a primeira
porque a não sei jogar e vós me ensinareis, veio D. Aleixo nisso, estava detrás de el-
Rei e ensinava-o, teve que fazer, chamou um moço fidalgo que também sabia jogar
e estava vendo de fora, e pô-lo em seu lugar para que ensinasse a el-Rei enquanto
23
De Garcia de Resende a um jogo de Cartas, in Cancioneiro Geral (ed. Andrée Crabée Rocha), v.
5, Lisboa, 1973, p. 402-415.
24
O Jogo do Homem, é, em muitos aspectos, semelhante ao ganjiva, indiano, que veio a dar a
quadrilha francesa.
148
ele faltava. Foi D. Aleixo e tornou; quis o moço que ele deixara ensinando a el-Rei
tirar-se do posto e D. Aleixo lhe disse que fosse continuando; ensinava o moço e
D. Aleixo via. Pelo decurso do jogo atentou D. Aleixo que el-Rei pelo conselho do
mestre que lhe dera, não envidava, nem tinha, senão com jogo muito seguro. Disse
então para o moço fidalgo, arredai-vos para lá que eu deixei-vos aí detrás de el-Rei
para o ensinardes a jogar, mas não para o ensinardes a ganhar 25.
Esta anedota permite aferir que, dentro de limites que não passa-
vam por uma dimensão moralizante, os jogos de cartas, propostos como
divertimento cortesão 26 no tão influente Il Libro del Cortegiano (1528) de
Baltasar Castiglione, eram uma das actividades dilectas dos nobres e cor-
25
Cristopher C. Lund, Anedotas portuguesas e memórias biográficas da corte quinhentista, Coim-
bra, 1980.
26
Com carácter não apenas lúdico, mas declaradamente honesto e esporádico.
149
tesãos nacionais, eventualmente, apenas suplantada pelas corridas de tou-
ros, como outro episódio, narrado por João Cascão deixa entrever.
O mesmo D. Sebastião, em 7 de Fevereiro de 1573, no decurso de
uma jornada ao Alentejo e Algarve, acompanhado pelo condestável do
Reino, D. Duarte, assistiria a uma corrida de touros em Serpa, durante a
qual um touro dando uma cornada a um moço de estribeira, havia de lhe
romper uma algibeira, espalhando pelo curro as cartas de jogar que nela
trazia:
27
João Cascão, Relação da jornada de El-rei D. Sebastião quando partiu da cidade de Évora, in Fran-
cisco Sales Loureiro, Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve, Lisboa, 1984, p. 126. A p. 92, o
cronista refere que, em Colos, D. Sebastião jogou cartas com o Duque de Aveiro e D. Pedro
Dinis, o Conde de Vidigueira e D. Álvaro de Castro, que ganhou o jogo, e, depois da ceia,
D. Duarte jogou as trezentas com D. Diogo de Lima que saíu vitorioso; a p. 96, em Odemira,
D. Duarte “gastou o dia em jogar”.
28
Carta I (remetida de Ceuta). Sobre o Chincalhão, ver Celestino Maia, Chincalhão (Jogo de Car-
tas), in Douro Litoral, s. 8, v. 7-8 (1958), p. 611-618.
150
O gosto dos portugueses por jogos de cartas revelar-se-ia mesmo
em circunstâncias no mínimo inesperadas. Referirei dois exemplos que jul-
go paradigmáticos:
29
ANTT: Inq. Coimbra, proc. 9839 de 1578.
30
Elvira Cunha da Azevedo, A Inquisição de Coimbra no século XVI: a Instituição, os Homens e a
Sociedade, Fundação Eng. António de Almeida.
31
Frei Caetano do Vencimento, Fragmentos da Prodigiosa Vida da muito favorecida e amada Es-
posa de Jesu Christo, a veneravel Madre Marianna da Purificaçam, Religiosa Carmelita Calçada no
Seminário de almas Santas, o Reformadissimo Convento da Esperança da Cidade de Beja, Lisboa,
António da Silva, 1747, p. 193-194.
151
Cartas portuguesas do dragão ou Dragões de Portugal
152
Cartas portuguesas do dragão ou Dragões de Portugal
Este baralho organizava-se em torno de quatro naipes (ouros = moeda; copas = taça com
tampa; espadas = cruzadas em panóplia; paus = cacetes desramados e entrecruzados), de
acordo com o sistema Latino (48 cartas, sem as quatro correspondentes ao dez).
As suas características distintivas mais notáveis são: um dragão ou serpente alada, nos
ases, eventualmente alusiva ao timbre das armas nacionais; as sotas (damas) de espadas
e paus domando serpentes; os reis entronizados; as formas enfaticamente arredondadas
dos símbolos do naipe de copas; os padrões das cercaduras; a figura jovem entrelaçada no
dois de paus; as panóplias (espadas cruzadas) no naipe de espadas; os rostos de querubins
assoprando nuvens nos cantos do seis de ouros.
A iconografia do seis de ouros, do dois de paus e da sota de paus sofreu sucessivas
alterações, até perder, com o tempo, as especificidades apontadas.
153
Cartas portuguesas do dragão ou Dragões de Portugal
154
cartas, organizado segundo o sistema Latino. A sua relevância foi tal que
acabaria por ser copiado, de acordo com as idiossincracias locais, no Bra-
sil, Japão, Índia, Indonésia, etc., tendo atingido uma longevidade de quase
quatro séculos 32.
32
Cf. Sylvia Mann e Virginia Wayland, The Dragons of Portugal, Surrey, 1973. Ver também de
Sylvia Mann, Portuguese playing cards and their journeys, in Roger Tilley, A History of Playing
Cards, Nova Iorque, 1973, p. 181-187 (Apêndice I).
155
cialmente no Oriente, onde a diáspora lusíada alcançou os mais recônditos
lugares 33.
Em quinhentos, houve, decerto, fábricas de cartas de jogar em ter-
ritório português, todas mais ou menos clandestinas, uma vez que a activi-
dade era escrutinada de perto e os transgressores sujeitos a penas pesadas
que chegavam ao degredo 34.
Pelo menos de dois presumíveis fabricantes de cartas nos chegou
notícia, uma vez que, após terem sido denunciados e condenados, de acor-
do com as penas cominadas pelas Ordenações Manuelinas, solicitaram a D.
Sebastião lhes perdoasse, pelo menos o degredo, favor que o Desejado lhes
concederia.
Transcrevo os trechos mais significativos das duas Cartas de Perdão:
33
Cf. Ana Maria Amaro, Os Jogos de Cartas na Expansão Ibérica, in Mare Liberum, n. 10 (Dez.
1995), p. 493-507.
34
Sabe-se que, antes de existirem manufacturas peninsulares, Toulouse, Thiers e Ruão pro-
duziam cartas de jogo em quantidades consideráveis, destinadas aos mareantes portu-
gueses, espanhóis e flamengos. Cf. Catherine Perry Hargrave, A History of Playing Cards,
Nova Iorque, 1966, p. 248. No mesmo passo esta autora refere-se a um alegado fabricante de
cartas português quinhentista, cujo nome, Inferrera, mais não deve ser que a adulteração de
Ferreira, ignorando-se qual a fonte onde o obteve. João de Barros testemunha ter inventado
um jogo de cartas sistematizando a Economia de Aristóteles.
35
ANTT: Legitimações e Perdões de D. Sebastião, liv. 16, fl. 224. O documento encontra-se trans-
crito por Sousa Viterbo, Curiosidades históricas e artísticas, Coimbra, 1919, p. 55-56.
156
As mais antigas Cartas conhecidas em Portugal (2ª metade do séc. XVI)
Em quinhentos, as cartas portuguesas eram xilogravadas, em cor de laranja e preto, sendo
o papel utilizado semelhante ao das cartas produzidas em Limoges (França). Um dos
baralhos em apreço foi impresso sobre papel com a chancela de Alexandre Pimentel
(Colacção Eng. Manuel de Faria)
157
Carta de Perdão de João Tomé de Brisola (1576)
Dom Sebastião etc. faço saber que João Tomé de Brisola morador nesta cidade de
Lisboa me enviou dizer por petição que sendo ele condenado por sentença em um
ano de degredo para África por se dizer fazer cartas para jogar o suplicante dera
fiança a ir cumprir o dito degredo a 13 de Junho de [15]75 e eu neste tempo lhe fa-
zer mercê perdoar-lhe o dito degredo e por o pronunciar com os autos por conforme
o suplicante gastara até 3 de Janeiro de 1576 e sendo pronunciado por conforme
levando a António Fernandes escrivão para desobrigar a dita fiança o não quisera
fazer por dizer ser passado o tempo que era obrigado trazer certidão e era homem
estrangeiro e cuidava que bastava ter perdão meu pedindo-me lhe perdoasse a culpa
que no caso tinha e que mandasse lhe fosse desobrigada sua fiança [...] 36.
36
ANTT: Legitimações e perdões de D. Sebastião, liv. 21, fl. 104v. Idem, ibidem, p. 54-55.
37
Sylvia Mann e Virginia Wayland apontam um baralho de 1597, manufacturado por Pietro
Ciliberto, como o mais antigo que lograram encontrar, remontando ao século XVII o mais
genuinamente português a que tiveram acesso. Ob. cit., p. 15-16.
38
Manuela Azevedo, As mais antigas Cartas de Jogar, in Novas Obras de Arte Quinhentista do
Tempo de Camões, [Lisboa], 1986, p. 55-58.
39
Tony Klauf, A Importância do Baralho Ordenado no Ilusionismo, [Porto], [1998].
158
Baralho brasileiro (c. 1840), reproduzindo as Cartas portuguesas do Dragão.
159
1 2
3 4 5
160
Solimão
Sublimado corrosivo,
ao qual se reconheceram
excelentes propriedades antisépticas,
porventura como desinfectante dos
baralhos
1605
A manufactura e comércio das cartas de jogar são entregues a sucessivos
monopólios por Alvarás, pelo menos desde 17 de Março deste ano. O primeiro
arrematante conhecido das rendas do Estanque das cartas de jogar e de Solimão é
João de Olmedo de Campos. A especulação resultante da legalização dos jogos em
40
Para compor este Subsídio Cronológico servi-me, além das fontes a seu tempo citadas, prin-
cipalmente da seguinte bibliografia: Notice abrégée de l’Imprimerie Nationale de Lisbonne, nou-
velle édition, Lisboa, 1869, p. 7, 33 e 49; Egas Moniz, História das Cartas de Jogar, Lisboa, 1942
e 1998; Pedro Vitorino, Cartas de Jogar, in Revista de Guimarães, n. 3-4 (1943); Enrique Garcia
Martin, Naipes Portugueses, in La Sota, n. 6 (Fev. 1993) e Naipes Portugueses II, in La Sota, n. 16
(Mar. 1997); Fernanda Frazão, As Cartas de Jogar Constitucionais – História de um baralho, in
Revista Museu, s. 4, n. 10 (2001), p. 173-186.
161
que entram cartas, permite ao fisco arrecadar anualmente dezasseis contos de réis
(cf. Rebelo da Silva, História de Portugal).
1636
Um Alvará, de 21 de Junho de 1636, declara que Gaspar Pacheco, Diogo Mendes de
Castro e Rui Dias Franco “tomaram por arrendamento de dois anos [com efeitos a
partir de 1 de Janeiro], o Contrato das Terças dos Concelhos do Reino com jurisdição
privativa, tal como vem na provisão passada aos Conservadores dos Portos Secos
e das Cartas e Solimão”. Na mesma ocasião é nomeado Juiz Conservador das
ditas Terças o Doutor Gregório Mascarenhas Homem, Desembargador da Casa
da Suplicação.
1644
Alvará, de 18 de Outubro [com efeito a partir de 3 de Agosto], a consignar o
“contrato por oito anos das rendas dos Estancos das Cartas de Jogar e Solimão
deste Reino [e Senhorios de Portugal], feito a Duarte Rodrigues Nunes, Henriques
Mendes da Costa e Gonçalo Rodrigues da Cunha”. Uma Carta de Privilégio a
favor dos mesmos arrematantes, concede-lhes “os mesmo privilégios, liberdades
e penas dos contratos realizados anteriormente”, ordenando devassas “a todas
as pessoas que fizerem cartas falsas, ou derem ajuda e favor para se fazerem, ou
jogarem com elas, ou as vendam ou comprem corridas, porquanto nas naus, que
deste Reino vão para a Índia, e outras partes vão muitas cartas falsas, e Solimão,
e se joga com elas nas naus. [...]. E se o escrivão de seu ofício não procurar a dita
devassa, se lhe dará em culpa, [...] que tanto que este contrato for arrematado a ele
Contratador e companheiros ninguém poderá usar, nem ter em sua casa, nem fora
dela nenhumas outras cartas, senão as que forem feitas, e dadas por sua ordem, e
seus feitores. Com condição que o Meirinho que servir na vara destes dois estancos
de cartas e Solimão, e os das mais partes do reino, possam ir com vara alçada a
quaisquer partes do Reino, e Ultramar [...] que por quanto nesta cidade e mais
partes do Reino em muitas casas se jogam dados secos e se recolhem homiziados
que fazem cartas falsas, e vão contra as condições deste contrato”. O documento
elenca ainda as penas cominadas aos transgressores.
1724
Romão da Costa Freitas requer ao Contador da Fazenda o privilégio do contrato
do Estanco das cartas de jogar e Solimão, o qual, à falta de outros elementos, se
presume possa ter sido deferido apenas em 1729.
1729
Contrato das Cartas de Jogar e Solimão, que se fez no Conselho da Fazenda com Romão da
Costa Freytas, por tempo de seis annos que hão de ter principio em 12 de Agosto de 1729 e
hão de ter fim em 11 de Agosto de 1735 (Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues).
162
1735
É renovado o contrato com Romão da Costa Freitas, ficando o contratante
obrigado a pagar pelas rendas dos estancos das cartas de jogar e Solimão, cinco
contos e quinhentos mil réis, forros, “em cada um ano, por tempo de seis”, isto
é, até 1741.
1741
A prosperidade do negócio das cartas de jogar é evidenciada pela Carta dos Privilégios
do contrato das cartas de jogar e Solimão de Anastácio da Costa Freitas dos trezentos do
número (Lisboa, Manescal da Costa [BN: Pombalina 472, fl. 339]), em virtude da
qual o contratador “tem a faculdade de nomear até trezentos estanqueiros [...]
com privilégios activos”, pelo período de seis anos (de 12 de Agosto de 1741 a 11
de Agosto de 1747), podendo cobrar a quantia de oitenta réis por cada baralho
vendido. Segue-se o Alvará de aprovação do contrato, feito em nome do rei por
José Rebelo Palhares que, entre outros títulos, tinha o de privativo dos estancos
das cartas de jogar e Solimão, sendo subscrito por António de Almeida Lobrão,
“proprietário do Ofício de Escrivão da Conservatória das Cartas de jogar e Solimão,
etc.”. Neste documento é, pela primeira vez, nomeada uma oficina gráfica, a do
impressor Manescal da Costa, cujos prelos produziam cartas certamente de fabrico
rudimentar.
1747
Carta dos privilegios do contrato das Cartas de Jogar, e Solimão, de que he contratador João
Francisco, e administrador Geral Anastacio da Costa Freitas (Lisboa, Oficina de Miguel
Manescal da Costa).
1753
Uma Resolução de 16 de Maio, revogando a Lei do Reino, no que respeita ao Contrato
das Cartas de Jogar, concede ao estanqueiro autorização para importar baralhos
estrangeiros, desde que o fisco aufira o lucro respectivo. O Alvará competente seria
publicado no ano seguinte.
1754
Alvará de 26 de Março revoga a Lei do Reino, relativamente à condição XIII do
Contrato das Cartas de Jogar, permitindo que o contratador possa “meter as Cartas
que quiser, de quaisquer partes que lhe forem necessárias, e Selar com o Selo do
Contrato, ou qualquer outro que lhe estiver bem, as quais cartas poderá trazer
livremente sem a isso lhe porem impedimento algum, e que com elas, como com
as dos Estancos, se poderá jogar todos os jogos livremente e se não poderá tirar
Devassa de quem der Casa de Jogo das ditas cartas do Contrato, nem as Justiças
prenderão por isso”.
163
Reis de um baralho da Impressão Régia
1769
André Faria da Rocha é o derradeiro contratador do Estanco das cartas de jogar,
antes da fundação da Real Fábrica de Cartas de Jogar, ocorrida em 31 de Julho
([Lisboa], Na Regia Officina Typografica), mediante Alvará de D. José I. No mesmo
documento é aprovado o contrato com Lourenço Solésio ficando a Impressão Régia,
com o exclusivo da manufactura e venda de Cartas de Jogar e papelões da autoria
deste mestre italiano. Os baralhos desta fase, inspirados em modelos espanhóis e
produzidos pelo processo da estampilha, ostentam no duque de copas a legenda Real
Fábrica de Lisboa, como indicação da sua origem. Durante os doze anos de duração
da concessão os baralhos fabricados ficam abrangidos pelo privilégio exclusivo da
venda para todo o continente e ilhas (ao preço unitário de 100 réis) e colónias (150
réis), contra o pagamento ao Erário Público da quantia de 10.000$00 réis anuais.
Em 22 de Outubro, Manuel Freire recebe 8 mil réis por “11 estampas para Cartas
164
Portuguesas”, depois de já haver recebido, em 14 de Agosto, 960 réis “por umas
Armas Reais para a capa dos baralhos” [IN/CM: Documentos de Caixa, n. 28].
1770
A partir de 1 de Janeiro é interditada a posse, bem como a utilização em jogos, em
casa ou fora dela, de quaisquer cartas de jogar que não tenham sido produzidas e
vendidas por ordem da Direcção da Administração e Vendas das Cartas (Condição
VII); as cartas falsas serão confiscadas (Condição VIII); nenhum estanqueiro poderá
adquirir cartas a outrém (Condição X); etc. Alvará de D. José, de 6 de Agosto [BN:
Res. 3626 V], concede privilégios aos oficiais empregados na Fábrica das Cartas de
Jogar, determinando, ainda, que “com cartas desta Fábrica se poderão jogar todos
os jogos [lícitos] livremente”.
1774
João Sacomano, depois mestre exímio no fabrico de cartas, inicia a sua actividade
na Real Fábrica de Cartas de Jogar.
165
1800
Fabricam-se em Portugal três tipos de cartas: portuguesas, francesas e castelhanas.
As cartas são vendidas a dois preços: as portuguesas são fornecidas aos estanqueiros
a 90 réis o baralho, incluída a comissão de 20 réis aos administradores; as
francesas e as espanholas a 100 réis, compreendida a mesma comissão. O público
que se dirija aos armazéns da Impressão Régia compra-as a preços inferiores:
as primeiras a 80 réis o baralho, as segundas a 90 réis. O preço fixado para a
venda no ultramar inclui a comissão de 10 réis destinada aos estanqueiros. Os
administradores comissários recebiam seis por cento de venda e dois por cento de
remessa, “abonando-se-lhes a despesa de caixotes, fretes, alugueres de armazém,
riscos de mar e avarias”.
1801
Saem da Fábrica de Cartas de Jogar entre 192.000 e 240.000 baralhos de cartas, rendendo
dois terços da receita geral da Impressão Régia. Esses lucros são investidos na edição
de obras literárias e científicas e no subsídio, na quantia de 53 contos, da Real Fábrica
das Sedas. Falece Manescal da Costa, administrador da Impressão Régia.
1802
Um decreto concede a todas as pessoas empregadas na Impressão Régia as “mesmas
faculdades e isenções que pelos alvarás de 31 de Julho de 1769 e de 6 de Janeiro
de 1770” haviam sido concedidas aos empregados da Real Fábrica das cartas de
Jogar. Presume-se que os gravadores Francisco Bartolozzi e Gregório Francisco de
Queiroz terão exercido uma influência benéfica sobre o arranjo e ornato das cartas
de jogar produzidas pela Real Fábrica. O rendimento do Estanco sofre assinalável
decréscimo (diminuindo para menos de metade), em virtude da promulgação de
um decreto proibindo a saída de cartas de jogar para o ultramar.
1806
A 23 de Agosto, Decreto promulgado pelo Príncipe Regente Dom João, futuro Dom
João VI, no Palácio Nacional de Mafra, estabelece normas destinadas ao controlo
do comércio das cartas de jogar.
166
Contadoria da dita Impressão Régia: E tomando Sua Alteza Real o referido em
consideração: é servido mandar o seguinte:
Todos os Provedores, Corregedores, Juízes de Fora, e Ordinários das Terras
do Reino darão o mais exacto, e pronto cumprimento aos Precatórios do
Conservador da Impressão Régia e Real Fábrica de Cartas de jogar, qualquer
que seja o objecto dos mesmos Precatórios. Nas cabeças de suas Comarcas
os Provedores, e nas mais terras delas os Juízes de Fora se informarão extra-
judicialmente, se os Administradores das Cartas de jogar são pessoas que gozem
de conceito de boas contas; e no caso de acharem essa fama, lhes intimarão,
e participarão (sem ser por meio judicial) que observem cada um nas suas
Administrações a seguinte instrução, que a dita Junta exige impreterivelmente
para a boa direcção deste ramo de arrecadação que lhe está confiado, e se contém
nos quatro artigos que se seguem.
167
168
169
170
Outrossim há Sua Alteza Real por bem que cada um dos Magistrados, a
quem estas Reais Ordens vão dirigidas, fique responsável à sua execução, de
tal modo que se a Junta Administrativa Económica e literária da Impressão
Régia representar a falta de cumprimento delas, e constar; no Real Erário serão
denegadas as Certidões de Corrente aos Provedores; e aos Juízes de Fora será
dada em culpa em suas Residências a mesma falta.
171
1807
Alvará pelo qual são postas por estanco as cartas de jogar no Estado do Brasil (in Collecção
de Leis, Decretos, e Alvarás, Ordens Régias, e Editais, que se publicarão desde o Anno
de 1803 até 1807, Lisboa, J. F. Monteiro de Campos e Impressão Régia, 1815-1818
[BPNMafra: 2-48-8-11/18]).
1820
Por deliberação das Cortes Constituintes, a Impressão Régia passa a denominar-se
Imprensa Nacional.
1821
São estampadas as 12 figuras das Cartas Constitucionais, concebidas por Manuel
Luís Rodrigues Viana, porventura o único baralho português de que é possível
reconstituir toda a história [IN/CM: Documentos de Caixa, 1821, I e II]. Os
primeiros baralhos produzidos são postos à venda no mês de Dezembro, ao preço
de 2.400 réis, cada maço de uma dúzia.
172
Cartas Constitucionais
O único baralho completo (?) conhecido guarda-se no Museu Fournier (Vitória, Espanha).
Suspeita-se que as chapas originais possam ter sido destruídas pelas “autoridades
absolutistas em virtude da Dama de copas representar a Constituição”
(Nobreza de Portugal, v. 2, Lisboa, 1960-1989)
173
1831
Decreto de 19 de Setembro determina que “tanto as cartas como os livros que se
exportassem, ou para os domínios ou para fora do país” gozem de igual isenção,
competindo ao administrador geral da Imprensa Nacional regular o preço das
cartas, “de maneira que nem o contrabandista encontrasse interesse em as mandar
vir de fora, nem os estrangeiros as introduzissem no Reino”.
1832
A administração da Imprensa Nacional contrata o suiço João Luiz Weber, que tem
como contramestre Ângelo Bissum, com o objectivo de dirigir e melhorar a sua
laboração. São produzidas cartas de tipo francês, reversíveis, de grande qualidade.
O monopólio detido pela Imprensa Nacional, do fabrico e comércio de cartas de
jogar é abolido, por decreto de 10 de Setembro, ficando livre qualquer pessoa de as
manufacturar e vender sem pagar imposto algum.
- Se num jogo de cartas uma carta especial (excepto o nove de ouros) vai
repetidamente parar às mãos do mesmo jogador, este deve comprar o baralho
ao dono, queimar todas as cartas, excepto aquela, passando-a pelo defumador
e guardando-a como talismã.
- Os jogadores de cartas nunca devem jogar sem terem um alfinete de ama
espetado na bainha das calças.
- Se alguém encontrar perdida uma carta de jogar (excepto o nove de ouros)
deve apanhá-la com a mão esquerda e trazê-la consigo durante uma lua inteira
(28 dias).
- Não é aconselhável jogar cartas com um baralho destinado à cartomância.
- Nunca roubar um baralho de cartas de casa de um amigo.
- Nunca se deve rasgar ou estragar um Ás de copas.
- Nunca deitar um baralho para o lixo, sem antes o queimar.
- As cartas de jogar devem ser embrulhadas num pedaço de pano vermelho
ou violeta enquanto durar a viagem de quem as traz consigo.
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