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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL

MARIANA MENDONÇA DE ALMEIDA

SOCIEDADE CAPITALISTA ATUAL E OS USUÁRIOS DOS


SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL: UMA DISCUSSÃO SOBRE
VÍNCULOS E AUTONOMIA

RIO DE JANEIRO
2018
1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL

MARIANA MENDONÇA DE ALMEIDA

SOCIEDADE CAPITALISTA ATUAL E OS USUÁRIOS DOS


SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL: UMA DISCUSSÃO SOBRE
VÍNCULOS E AUTONOMIA

Monografia apresentada à Escola de


Serviço Social do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, para obtenção de grau no
curso de Serviço Social, sob a orientação do
Prof. Dr. Rogério Lustosa Bastos.

RIO DE JANEIRO
2018
2

MARIANA MENDONÇA DE ALMEIDA

SOCIEDADE CAPITALISTA ATUAL E OS USUÁRIOS DOS


SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL: UMA DISCUSSÃO SOBRE
VÍNCULOS E AUTONOMIA

Rio de Janeiro, 25 de junho de 2018.

Banca examinadora

__________________________________
Prof. Dr. Luis Eduardo Acosta

__________________________________
Prof. Dr. José Augusto Bisnetto

___________________________________
Prof. Dr. Rogério Lustosa Bastos
Orientador
3

Sou um técnico,
mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido,
com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Lisbon Revisited (1923) – Álvaro de Campo


4

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos usuários do CAPS Franco Basaglia, que me acolheram e
confiaram a mim suas histórias de vida, anseios, revoltas e sonhos. Que me
ensinaram, com suas atitudes, que tudo pode ser compartilhado, inclusive o último
trago do cigarro, e que a solidariedade dos oprimidos pelos oprimidos é
indispensável; mostraram-me que de fato, como menciona em poesia Bertold
Brecht, ela é a Esperança do Mundo.
5

AGRADECIMENTOS

Sou profundamente grata à minha mãe Gládis, pela parceria incondicional, pelas
palavras sábias e amigas, pelas reflexões que me ajuda a fazer; ao meu pai João
Carlos, igualmente incondicional quanto ao apoio, que muito contribui para minhas
análises sobre as coisas; à minha irmã Lara, que ao longo dos anos sempre me
auxilia a pensar melhor e que neste trabalho teve participação fundamental, graças
às trocas de ideia e sugestões bibliográficas; ao meu amor e companheiro Victor
Hugo, que esteve sempre ao lado, sobretudo nos momentos mais difíceis, me
alimentou, cuidou e apoiou, sendo fundamental para o êxito de todos os meus
projetos. Meu amor, minha admiração e gratidão pelos quatro são infinitos.
Agradeço aos meus amigos e demais familiares pela importância cotidiana em todos
os aspectos da existência, não citarei nomes para não correr o risco de esquecer
alguém especial, coisa bastante provável de acontecer.
Agradeço ao meu professor, orientador e amigo Rogério Lustosa, pela maravilhosa
orientação que recebi, pelas prosas ao longo dos encontros, pelo apoio e pela
bibliografia indicada, que possibilitou que este trabalho fosse produzido com grande
prazer.
Agradeço a todos os trabalhadores, colegas e professores da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, onde dei início a esta graduação.
Agradeço, igualmente, a todos os trabalhadores, colegas e professores da Escola
de Serviço Social da UFRJ. Considero uma imensa sorte a oportunidade de poder
cursar minha graduação em Universidades tão importantes para este país,
sobretudo por serem Universidades Públicas, imprescindíveis para a construção de
uma sociedade mais justa e democrática.
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RESUMO

Este trabalho estuda a autonomia dos usuários dos serviços de saúde mental em
face da sociedade capitalista atual, principalmente após a reforma psiquiátrica.
Pretende-se, a partir de uma discussão sobre vínculos e comunidade, analisar o
papel dos técnicos na chamada sociedade “do bem-estar”, a qual, em geral,
mascarando uma face de violência e controle, concede essa tarefa ao poder técnico
(médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros etc.). Almeja-se pesquisar se
há chances de se reverter não só essa concepção tradicional de controle que tende
a moldar a saúde mental dos usuários, como também as racionalizações que
dominam esse procedimento que se incide, no mais das vezes, contra o
comportamento divergente, frequentemente reduzido aqui ao mero “desvio”.
Paradoxalmente, em tese, esse modo de proceder é oferecido como “remédio”,
embora, no cotidiano, tenda a trazer esse grupo para uma maior cronificação,
dificultando ainda mais a possibilidade de uma inserção social autônoma e crítica.
Em contraponto, destacamos a importância do vínculo para a construção de um
novo espaço social para as pessoas em sofrimento psíquico, sinalizando para a
importância de transformar a relação entre a sociedade e a loucura, centralizando a
necessidade de sensibilizar e desfazer, na comunidade, a imagem comum da
loucura, fundamentalmente discriminatória.

Palavras chaves: Saúde mental; Autonomia; Vínculos.


7

RESUMEN

Este trabajo estudia la autonomía de los usuarios de los servicios de salud mental
frente a la sociedad capitalista actual, principalmente después de la reforma
psiquiátrica. Se pretende, a partir de una discusión sobre vínculos y comunidad,
analizar el papel de los técnicos en la llamada sociedad "del bienestar", la cual, en
general, enmascarando una cara de violencia y control, concede esa tarea al poder
técnico (médicos, psicólogos, asistentes sociales, enfermeros, etc.). Se busca
investigar si hay posibilidades de revertir no sólo esa concepción tradicional de
control que tiende a moldear la salud mental de los usuarios, así como las
racionalizaciones que dominan ese procedimiento que se refiere, en el más de las
veces, contra el comportamiento divergente, a menudo reducido aquí al mero
"desvío". Paradójicamente, en tesis, ese modo de proceder es ofrecido como
"remedio", aunque, en el cotidiano, tiende a traer ese grupo para una mayor
cronificación, dificultando aún más la posibilidad de una inserción social autónoma y
crítica. En contraposición, destacamos la importancia del vínculo para la
construcción de un nuevo espacio social para las personas en sufrimiento psíquico,
señalando la importancia de transformar la relación entre la sociedad y la locura,
centralizando la necesidad de sensibilizar y deshacer, en la comunidad, la imagen
común de la locura, fundamentalmente discriminatoria.

Palabras claves: Salud mental; autonomía; vínculos


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SUMÁRIO

Introdução……………....…………………………………….…………………………….9
Capítulo 1 - A reforma e contra reforma psiquiátrica no Brasil Contemporâneo: uma
análise a partir da experiência no CAPS Franco Basaglia……………………………11
1.1 A Reforma e contra reforma psiquiátrica no Brasil contemporâneo: uma reflexão
dos prós e contras………………………………………………………………………….11
1.2 CAPS Franco Basaglia: uma discussão sobre vínculos
......................……………………………………....……………………………………...19
Capítulo 2 - Usuários do CAPS Franco Basaglia e a possível inserção fora dos
muros: entre o comportamento desviante e divergente……………………………….29
Conclusão……………………………………………………………...…………………..42
Referências ………………………………………………………………………………..47
9

INTRODUÇÃO

”Somos muitos Severinos”, como já nos dizia João Cabral de Melo, “iguais em tudo
na vida”, em especial, na criação de desencontros. Sim, temos uma vida Severina,
sejamos usuários dos serviços de saúde mental, sejamos “técnicos” profissionais
(assistentes sociais, psicólogos, médicos, enfermeiros etc.). Daí a dificuldade de
atentarmos às relações humanas – ou às vinculações afetivas – entre estes atores.
A produção do “bom encontro”, impreterivelmente se dá através dos afetos, da
abertura de cada profissional frente ao usuário. A leitura de que o sofrimento
psíquico parte de uma doença ou de um distúrbio simplesmente, torna o ambiente
terapêutico árido, estéril, pouco ou nada produtivo, em geral, aumentam a
possibilidade de cronificação e assujeitamento destas pessoas. Dado isso, que para
muitos, e em especial, para os usuários de saúde mental, tal existência é um
caminho de pedras, é a própria morte severina, em que se morre um pouco a cada
dia.
Este é um trabalho demarcado por uma clara posição em favor dos usuários
dos sistemas de saúde mental e da classe trabalhadora como um todo. Pretendeu
analisar a vida social numa perspectiva que não privilegie apenas a concepção das
sociedades como sendo um sistema de normas, leis e regras; nem compreenda a
política - atividade fundamental da vida em sociedade, como meramente um circuito
de bens e riquezas, mas a partir do entendimento de que a vida social também é
composta pela instauração de afetos e que a reprodução desta vida social está
também vinculada à maneira como os afetos circulam.
No primeiro capítulo, a pesquisa abordará a reforma e contra reforma
psiquiátrica no Brasil contemporâneo, seus prós e contras, desde uma análise a
partir da experiência no CAPS Franco Basaglia, trazendo uma discussão sobre a
importância dos vínculos no projeto terapêutico dos usuários para uma inserção
crítica na sociedade.
O segundo capítulo abordará a possibilidade de inserção dos usuários para
além dos muros institucionais, trazendo uma abordagem a cerca do comportamento
desviante e divergente, sinalizando para a importância da arte na produção de outra
subjetividade, capaz de perceber a vida não de acordo com os valores do mercado,
10

mas com os valores de liberdade e emancipação humanas, tão necessárias para a


superação da “unidimensionalidade” das sociedades capitalistas atuais.
Trata-se de um estudo investigativo, ancorado em pesquisas bibliográficas e
também com breves ilustrações coletadas na observação diária das práticas
multiprofissionais do trabalho de atenção psicossocial no ambiente de estágio
obrigatório da estudante de Serviço Social no CAPS III Franco Basaglia.
Por fim, teremos as principais conclusões de nosso trabalho, as quais, além
de não terem a pretensão de esgotarem o assunto, quiçá poderão contribuir para,
no mínimo, diminuir a incidência de um deserto que é criado, em tese, nas relações
entre usuários e técnicos, o qual continua a rubricar, em alguns casos, o aumento
das cronificações e também a nossa “vida Severina”...
11

1 A REFORMA E CONTRA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL


CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA EXPERIÊNCIA
NO CAPS FRANCO BASAGLIA

1.1 A REFORMA E CONTRA REFORMA NO BRASIL


CONTEMPORÂNEO: UMA REFLEXÃO DOS PRÓS E CONTRAS

Diz-nos Foucault (1978), que se debruçar sobre o estudo da “loucura” é


principalmente se deparar com um espanto: estamos diante de um fenômeno social
passível de ser interpretado de diversas maneiras, variando ao longo da história e
conforme a época. Iniciaremos esta reflexão contextualizando a história da loucura,
discutindo as práticas e os saberes que os Estados constituíram sobre o “louco”,
para finalmente avançarmos para as discussões sobre as influências e práticas
atuais na área de saúde mental no Brasil.

Na antiguidade grega e romana várias doenças, como tantas outras coisas,


eram atribuídas à ação de deuses, demônios ou forças sobrenaturais. Para o
cristianismo, a loucura era coisa do diabo, de espíritos maus ou de espíritos
atrasados. De algum modo, apesar da interpretação religiosa da loucura, as
sociedades pré-industriais relacionavam-se de maneira muito mais tolerante com os
sofredores do que as sociedades capitalistas (SERRANO 1985).

Na Europa, durante a Idade Média, a loucura era vista como “pobreza de


espírito”, a sociedade feudal era regida pela ideologia religiosa e pela ordem divina,
tudo fazia parte do plano de deus, o mundo era obra de deus e tudo que nele
existia. A vida era configurada de acordo com a vontade de deus, por isso o
entendimento de que os diferentes, os menos capazes, os improdutivos, ou aqueles
que raciocinavam com outra lógica também eram parte da sociedade, pelo menos
sob a ordem celestial (SERRANO op. cit.).
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Contudo, a decadência do feudalismo trouxe profundas mudanças sociais:


começaram a se formar as cidades, que à medida que cresciam passavam a
apresentar problemas sanitários e sociais cada vez mais complexos, enquanto a
exploração dos metais preciosos nas Américas enriquecia setores da nobreza e
aumentava o comércio; estes fatores acabaram tornando os gêneros de primeira
necessidade tão caros que ficaram inacessíveis à maioria da população, fazendo
com que uma parcela considerável desta começasse a vagar pelas cidades em
situação de mendicância. É nesse momento que os pobres e loucos passam a ser
temidos como uma ameaça ao controle da sociedade (SERRANO 1985).

A mentalidade da sociedade medieval começa a mudar, começam a brotar as


ideais capitalistas de lucro e de que o trabalho pode produzir riqueza e os pobres e
loucos passam a ser vistos como vagabundo. Logo, os pobres são pobres porque
não produzem riqueza, porque não trabalham. Os novos valores da era moderna
são muito mais materiais do que espirituais. A ideologia religiosa começa a perder
espaço para a ideologia de mercado. A ideologia burguesa toma força, baseada na
ideia de trabalho, lucro e dinheiro. A responsabilidade da doença e da loucura não
está mais nas mãos da coletividade caridosa, ela passa a ser privada, como as
propriedades. O louco, deste ponto de vista moral e burguês, passa a ser alguém
que vive dentro de uma razão errada, é alguém que desrespeita as normas e
comportamentos porque vive no erro (SERRANO 1985).

No Brasil, desde a segunda metade do século XIX, duas áreas da saúde


atingiram a base de formação do Estado: a área das epidemias - varíola, tifo, febre
amarela - e a loucura. Tais questões tornaram-se problema de ordem nacional, já
que poderiam comprometer os negócios e também o equilíbrio do Estado. Nesse
momento a loucura passa a ser entendida como uma questão de saúde pública, sob
a forma de discurso normativo. São nas cidades portuárias que os primeiros
hospícios são construídos: no Recife, a Tamarineira, em Salvador, Juliano Moreira,
no Rio de Janeiro, o hospício de Pedro II (LUZ, 1994).
13

Quanto a esse momento histórico e a ordem nacional que se está instituindo,


algumas perguntas merecem menção e quem dá luz a elas é a professora Madel
Terezinha1:

Por que a loucura como saúde pública? Seria a loucura um vírus ou um


bacilo que se disseminaria, como as epidemias, ameaçando de contágio a
totalidade da população, isto é, as classes sociais indiscriminadamente?
Talvez se possa perguntar ainda, como corolário: serão as pessoas que
enlouquecem as mesmas que sofrem o tifo, a febre amarela, a varíola, a
tuberculose? Ou, para resumir: quem fica doente, no Brasil desta época, de
vírus, bacilo ou demência? E ainda uma questão, corolária desta? Por que
adoecem? Finalmente, como responde o Estado a estas ameaças?

Pensar os porquês destas perguntas revela que tamanha preocupação com


as epidemias e com a loucura pelo poder estatal é porque há uma coisa em comum
entre as epidemias e a loucura: ambas são doenças inter-classe, que afetam e
destroem contingentes de camadas sociais diversas, apesar de, evidentemente, a
incidência, tanto num caso, como no outro, ser de longe superior nas classes baixas
(LUZ, 1980). Daí o interesse na loucura como uma questão de saúde pública, criada
sob uma perspectiva de controle social e urbano, se manifestando em formas de
medicinas sociais diversas.

Nessa época, as grandes cidades portuárias brasileiras comportavam o


crescente contingente urbano do país; a classe operária em formação, assim como
os ex escravos libertos e os brancos depauperados começam a viverem
amontoados em castiços e malocas e a serem vistos pelo poder público e pela elite
local como portadores dos germes da doença e da morte, da loucura e do vício, ao
mesmo tempo em que eram extremamente necessários para movimentar as
engrenagens da indústria. O Estado precisou responder de alguma maneira a esse
cenário que se apresentava. Nesse contexto, Madel Terezinha Luz afirma que a
política oficial de saúde mental possui uma história de marginalização, em que a
preocupação com a loucura sempre foi maior do que a preocupação com o louco.

1
Socióloga, professora do Instituto de Medicina Social da UERJ. Texto escrito em 1980.
14

Daí a origem de toda a repressão e discriminação empregada no trato destas


pessoas.

A loucura não é puramente biológica, psíquica ou sociológica, como produto


do meio social, ela é antes de tudo construção política e teórica, institucional e
científica (Luz, 1994, p.89). A criação dos manicômios é algo que inclui para excluir,
é a criação do espaço político do desvio; desvio de comportamento, depois da
atitude, do desejo e até da fantasia, é um espaço de marginalização, onde se atribui
ao louco um status próprio, uma identidade institucional (LUZ, 1994).

Para manter a ordem social, as instituições modernas tradicionais: família,


escola, universidade, fábrica, quartel, procuram adestrar os indivíduos e caso algo
fuja do controle, outras instituições podem ser acionadas: hospitais, igrejas,
hospícios, cadeias. Desse modo, pelo medo e pela força são produzidos os corpos
doutrinados, disciplinados, úteis e dóceis. O corpo dócil é aquele que pode ser
submetido e utilizado, transformado e aperfeiçoado. (FOUCAULT, 2000, p. 117-118)
Os hospícios estão cheios dos desviantes das instituições modernas tradicionais.

Há nesse contexto, o interesse de controlar, sobretudo, a força de trabalho.


Sabe-se que as políticas sociais, ao mesmo tempo em que é resultado dos embates
entre classes sociais antagônicas - proveniente da contradição existente entre
capital e trabalho, é também instrumento de controle disciplinar e vigilância dos
trabalhadores. Por isso, as políticas sociais podem ser tanto resultado de vitórias
para classe trabalhadora, quanto concessão do Estado para a conservação e
manutenção das condições gerais de produção, que sejam convenientes à
acumulação capitalista.

Portanto, como salienta a professora Madel, falar de política de saúde mental


é falar também do Estado enquanto emissor e interlocutor de tais políticas, que para
amenizar a questão social causada pelas contradições de existência de uma imensa
parcela social, mantém um aparato de controle efetivo sobre a vida de todos os
indivíduos. Em termos específicos: a política social é a maneira como o Estado lida
15

com o problema das condições de vida das classes trabalhadoras, por isso, tais
políticas podem conter um caráter tanto de inclusão como de exclusão de classe e
as políticas de saúde mental têm sido formas sistemáticas de exclusão econômica e
social (LUZ, 1994).

Diante de todos os horrores praticados dentro dos manicômios mundo a fora,


inicia-se, já no século XX, um movimento de contestação de tais práticas. Do ponto
de vista internacional, a noção de desinstitucionalização delimita-se no interior dos
processos de restauração sócio institucional das sociedades europeias e norte
americana após as duas Guerras Mundiais (GALLIO, 1990).

A Europa, marcada pelo trauma da 1ª e 2ª guerra, passava por um momento


de redefinição de sua política e economia, necessitando rever suas concepções
institucionais e éticas. Seria nessa atmosfera que a situação dos hospitais
psiquiátricos provocaria a comoção da sociedade, tendo sido estes muitas vezes
comparados aos campos de concentração (BARROS, 1994). Nos EUA, a
preocupação maior seria a redefinição do papel do Estado na regulação capital-
trabalho. Na década de 60, no entanto, durante o governo Kennedy, começam a
ocorrer mudanças na assistência à população. Nessa época os norte americanos
criaram o termo “desinstitucionalização” para designar os processos de “alta” e de
reinserção dos pacientes psiquiátricos na comunidade (BARROS, 1994).

A política de saúde mental, europeia e norte americana, era travada por uma
disputa entre o modelo clássico da internação e segregação e a proposta da
intervenção territorial, em que o doente mental pudesse ser tratado de maneira
eficaz em serviços comunitários. Tais disputas criaram opções políticas e teóricas
diferentes para o enfrentamento prático das questões que envolvem as instituições
manicomiais nestes países (BARROS, 1994).

Já o processo italiano, iniciado em 1961, representou e representa um


contraponto fundamental, pois segue uma trajetória prática e teórica diferente das
duas citadas. O movimento de transformação da psiquiatria na Itália envolveu
movimentos sociais e sindicatos e fez denúncias severas às instituições
psiquiátricas, criando caminhos para a sua desestruturação. Esse processo
16

significou e possibilitou não apenas o desmonte das instituições totais, mas a


desconstrução de uma materialidade, de um suposto saber e das interferências de
saberes que se consolidam dentro do saber psiquiátrico (BARROS, 1994).

No Brasil, a história da assistência psiquiátrica tradicional, centrada no


modelo hospitalocêntrico também é trágica e estarrecedora. Violações dos direitos
humanos foram registradas em praticamente todos os hospitais psiquiátricos do
país, até trabalhadores da área, influenciados pela experiência italiana e norte
americana, começar a questionar o método e a ética dos confinamentos
compulsórios em instituições psiquiátricas. A partir de então, decidiram romper com
o silêncio dos horrores vividos nessas instituições, onde a imensa maioria dos
homens e mulheres era conduzida à força e muitas vezes sem diagnóstico algum
(MOURÃO, 2016).

A Reforma Psiquiátrica, consequência da crise do sistema psiquiátrico


enquanto sistema científico e enquanto sistema institucional (BASAGLIA, 1967) e as
políticas de saúde mental, no Brasil, são marcadas por impasses, tensões e
disputas de interesses, num momento em que já estava em declínio o estado de
bem estar social na Europa. Diante de avaliações de ineficiência, ineficácia, baixa
qualidade e absurdas violações dos direitos humanos, o movimento de luta
antimanicomial se dá quase ao mesmo tempo em que, na década de 70, os
movimentos sociais lutavam pela redemocratização do país, momento em que
também eclodiu o “movimento sanitário”. Tais movimentos tiveram uma participação
efetiva nas reivindicações por um serviço de saúde universal, que atendesse a
todos os brasileiros. Nesse contexto, o campo da saúde mental teve um papel
fundamental nas lutas pela universalização da saúde no país, pois incluiu a ideia da
participação social no processo de construção das políticas (MOURÃO, 2016).

A Reforma Psiquiátrica foi e ainda é um processo político e social complexo e


diverso, integrado por atores, instituições e forças variadas, em universidades,
poderes políticos, conselhos profissionais, movimentos sociais, no imaginário social
e na opinião pública. Em matéria de conceito:
17

Reforma Psiquiátrica significa, em um primeiro nível, substituir a assistência


centrada em instituições totais, fechadas e em procedimentos involuntários,
muitas delas promovendo internações de médio e longo prazo, marcadas
por violações regulares dos direitos humanos mais fundamentais. (Barros,
1994; Arbex, 2013).

O principal marcos para a Reforma Psiquiátrica brasileira foi a I Conferência


Nacional de Saúde Mental, em 1987 e a promulgação da Lei 10.216 de 2001, que,
segundo a Constituição Federal: “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental”. O processo de desinstitucionalização brasileira, desde sua origem, tem
trabalhado de forma gradual no fechamento dos leitos e na substituição do serviço
de atenção. Contudo, seria ingênuo partir de uma visão otimista da situação global
atual, principalmente num contexto de avanço das políticas neoliberais, onde o
capitalismo mundial vem historicamente, e cada vez mais, concentrando a riqueza
em sua diminuta elite, de tal forma a colocar em risco a própria ordem liberal
mundial (Piketty, 2014). A contra reforma psiquiátrica é um movimento ostensivo de
resistência aos princípios antimanicomiais da reforma na assistência à saúde
mental, é uma tentativa de retornar ao modelo hospitalocêntrico das políticas de
saúde mental, focado no atendimento hospitalar e na segregação (Mourão, 2016).

Em geral, o principal interesse que atravessa os processos decisórios quanto


às políticas de saúde mental, no Brasil, parecem ser econômicos e financeiros, pois
os leitos psiquiátricos ainda existentes no país são, em grande medida, privados.
São geridos por empresas, mas sua quase totalidade é financiada pelo SUS. Por
isso, acabar com esse modelo é interferir nos negócios de um setor rico e influente
da sociedade, de segmentos que pensam a saúde como mercadoria e que formam
um verdadeiro complexo médico industrial, que não está preocupado com a saúde,
mas interessado na doença, envolvendo não só mega empresas que oferecem
planos de saúde privados, quanto à indústria farmacêutica que induz à
medicalização em massa, conveniados com um grande número de médicos
(Mourão, 2016).
18

Recentemente, dia 15 de setembro de 2017, a Justiça Federal do Distrito


Federal, na figura do juiz Waldemar Claudio Carvalho, concedeu uma liminar que
permite aos psicólogos realizarem estudos científicos e atendimentos relacionados à
(re) orientação sexual de indivíduos. Esta decisão atropela a Resolução nº001/1999
do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que considera que “a forma como cada
um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser
compreendida em sua totalidade”. Portanto, direciona a prática dos psicólogos para
combater as discriminações e estigmatização homofóbicas, e impede o tratamento e
cura destes sujeitos.

A decisão do juiz configura-se em uma grave violação dos direitos humanos,


pois permite que técnicos atuem na “(re) orientação sexual” do indivíduo, o que
significa ajustá-lo a um padrão normativo de sexualidade, ou implicitamente à “cura
gay”. Tais questões relembram as antigas práticas manicomiais de internação
involuntária e tortura da população LGBT nos hospitais psiquiátricos. Diante deste
contexto, é importante ressaltar também que a transsexualidade e a travestilidade
são ainda consideradas doenças, de acordo com a Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, frequentemente
designada pela sigla CID2. Tais questões demonstram o quanto é necessário
intensificar a luta pela despatologização da homossexualidade, da bissexualidade e
da transsexualidade, assim como frear o movimento de contra reforma psiquiátrica
no Brasil, reafirmando cada vez mais os valores e posição da carta de Bauru, marco
na luta antimanicomial no Brasil:

O manicômio é a expressão de uma estrutura presente nos diversos


mecanismos de opressão na sociedade. A opressão nas fábricas, nas
instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros,
homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos
usuários de serviços de saúde mental significa incorporar-se à luta de todos

2
A Classificação Internacional de Doenças (CID) foi adotada internacionalmente em 1893 para ser
uma classificação de 77 causas de mortes. Em suas sucessivas edições, tal instrumento estatístico
de classificação de causas de morte ampliou-se, tornando-se uma classificação de doenças e de
motivos de consulta (Laurenti, 1994: 112-113).
19

(as) os (as) trabalhadores (as) por seus direitos à saúde, justiça e melhores
3
condições de vida! (Carta de Bauru, 1987) .

1.2 CAPS FRANCO BASAGLIA: UMA DISCUSSÃO SOBRE


VÍNCULOS

Os CAPS constituem a principal estratégia do processo de Reforma


Psiquiátrica e estão apoiados na Política Nacional de Saúde Mental 4, lei 10.216, de
abril de 2001, já citada neste trabalho. O projeto dos CAPS foi escrito antes da
montagem do serviço, com influência italiana e norte americana.

O Serviço Social e seu projeto ético-político, junto ao CAPS III5, têm muito a
fertilizar e contribuir, assim como ao movimento antimanicomial e a saúde mental:

Isso se dá, particularmente, no sentido de valorizar o marxismo e suas


complexas construções teórico-conceituais, para a investigação da
constituição histórica da psiquiatria, bem como na análise da conjuntura
econômica e política mais ampla, que incide e tem profundas
consequências, principalmente no atual contexto neoliberal, de aberta crise
econômica e política para o campo da saúde mental (Vasconcelos, 2010).

Na perspectiva de efetivação dos direitos e acesso às políticas, o assistente


social é o profissional que buscará mediações para, a partir das demandas
emergentes, atuar de maneira democrática na garantia dos direitos sociais das

3
BAURU, dezembro de 1987 - II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental.
4 o
Art. 1 Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei,
são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual,
religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou
tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.
5
Os CAPS possuem modalidades; os CAPS III oferecem acolhimento noturno para atenção à crise
de transtornos mentais graves, inclusive pelo uso de substâncias psicoativas. Recebe usuários de
todas as faixas etárias, exceto crianças e atende cidades ou regiões com pelo menos 150 mil
habitantes.
20

pessoas com transtorno mental, em consonância com o projeto ético político e o


código de ética profissional.

No entanto, ainda que os CAPS representem uma importante estratégia para


o processo de reforma psiquiátrica, a reflexão constante sobre as práticas
institucionais, sobre a representação e o discurso acerca da loucura é fundamental
para afastar cotidianamente a tendência de reprodução do mesmo como norma, que
possa incorrer na eliminação da singularidade do indivíduo. Desta experiência, foi
possível identificar a insuficiência de ações que visem aumentar o protagonismo dos
usuários e que possibilitem geração de renda, assim como a promoção de
atividades no território, capaz de incentivar os usuários a ocuparem outros espaços,
para além dos muros do CAPS.

Para Franco Basaglia, é crucial libertar os loucos da psiquiatria, pois a


loucura, segundo ele, não pode ser silenciada por discursos de verdades e práticas
coercitivas, com relações pretensamente assépticas; sinalizando a necessidade de
uma psiquiatria, portanto, que “não quer somente negar-se enquanto ciência, mas
quer afirmar-se como anticiência - se por ciência se entende uma ideologia que se
encontra sempre a confirmar os valores da classe dominante”. (BASAGLIA 1985).

A desestruturação concreta da lógica manicomial é somente o primeiro passo


para assegurar uma aproximação real com os usuários dos sistemas de saúde
mental, ainda a ser plenamente construída, pois se trata de alcançar uma nova
maneira de ser profissional, uma maneira que deve recusar o grau de poder e
autoridade que o técnico exerce automaticamente sobre o usuário. A nós técnicos,
deve-se a pergunta: como ser um técnico sem o sê-lo? Para Basaglia, o que
legitima esta lógica é a própria estrutura social:

Família, escola, fábrica, universidade, hospital: instituições que repousam


sobre uma nítida divisão de funções, através da divisão do trabalho (servo e
senhor, professor e aluno, empregado e empregador, médico e doente,
organizador e organizado). Isso significa que o que caracteriza as
instituições é a nítida divisão entre os que têm o poder e os que não o têm.
De onde se pode ainda deduzir que a subdivisão das funções traduz uma
relação de opressão e violência entre poder e não poder, que se transforma
21

em exclusão do segundo pelo primeiro. A violência e a exclusão estão na


base de todas as relações que se estabelecem em nossa sociedade.
BASAGLIA (1985, p 101)

Sobre os graus de aplicação desta violência:

Dependerão, entretanto, da necessidade que tenha aquele que detém o


poder de ocultá-la ou disfarçá-la. É daí que nascem as diversas instituições
desde a familiar e escolar até a carcerária e manicomial. A violência e a
exclusão são justificadas por serem necessárias, nas primeiras, como
consequência da finalidade educativa, nas segundas, da “culpa” e da
“doença”. Tais instituições podem ser definidas como instituições da
violência. BASAGLIA (1985, p 101)

Para isso, o técnico necessita recusar o papel requisitado pelas instituições de


ser o administrador da violência, caracterizado pela extensão do poder a ele
consentido, à disposição para atenuar os atritos, dobrar as resistências e resolver os
conflitos provocados pela contradição das próprias instituições e da vida social.
Partindo desta recusa, a consciência que devemos estimular nos excluídos, é a de o
serem, sem contribuição nenhuma para a sua adaptação a esta exclusão
(BASAGLIA, 1985).

A tendência humana de reprodução do mesmo acaba sendo um dos


elementos castradores da subjetividade singular dos sujeitos. A luta por eliminar a
diferença, condiciona as mentalidades, inibe o pensamento livre e a possibilidade de
subverter regras injustas. A pergunta central é: por que não lutar para reproduzir a
diferença? Afinal, é a própria diferença o que faz a diferença. A reprodução do
mesmo elimina as infinitas possibilidades do extraordinário, do inusitado; a
reprodução do mesmo encarcera e condiciona a subjetividade humana.

De acordo com BARROS (1994), Franco Basaglia produziu uma série de


debates sobre o lugar do técnico nas sociedades modernas e fez-nos refletir acerca
da atribuição, cada vez maior, que estas sociedades fazem a este saber, para que
22

se encontre soluções de problemas e contradições da vida e da convivência, sem é


claro, comprometer as estruturas do sistema hegemônico.

Hospitais, cadeias, manicômios, fábricas, escolas são lugares nos quais se


leva a cabo e se perpetuam crimes em nome da ordem e da defesa do
homem. Mas o homem que quer se defender não é o homem real, é aquilo
que o homem deve ser depois da cura, do doutrinamento, da destruição e
achatamento de suas potencialidades, a recuperação. É o homem cindido,
separado, dividido, sobre o qual é possível este tipo de manipulação para
sua total adaptação à ordem social que vive da discriminação e do crime.
(BASAGLIA, 1977:78, apud BARROS, 1994 p, 176).

Contudo, para libertar o doente do sofrimento, é substancial pensar em


serviços psiquiátricos que funcionem e que atendam corretamente os necessitados.
Para que se compreenda o sofrimento, é importante uma ampla discussão entre
profissionais da saúde mental, a população e os próprios usuários dos serviços de
saúde e seus familiares. Seria proveitoso rever não só a concepção tradicional
sobre a periculosidade do doente mental, mas também as racionalizações que
dominam o controle social do comportamento divergente e que se produza uma
nova relação entre os loucos e os ditos normais.

Por isso, refletir sobre a prática profissional do trabalho psicossocial é


essencial, uma vez que há uma discriminação fundada no pressuposto ou
conhecimento da doença mental. A sociedade, por sua vez, precisa ser educada
para o cuidado, para que seja responsável por aqueles que possuem outras
necessidades, para que a singularidade e a diferença possam ser respeitadas.

É na comunidade, por tanto, que devemos tentar desmedicalizar o olhar


sobre a loucura, redefinindo-a como experiência de extremo sofrimento psíquico e
existencial, que pode ser minorado pela solidariedade e estima pelo outro. O
processo de desospitalização é importante, no entanto é indispensável que a
desinstitucionalização seja concomitante à devida criação de alternativas e
dispositivos na comunidade, para não deixar desassistida a parcela social que
demanda por esses serviços.
23

O CAPS Franco Basaglia é um dispositivo para este acolhimento sempre que


necessário, é por isso que a questão antimanicomial é referenciada nas condições
específicas de cada país, sofrendo impacto direto das políticas e decisões de
governos que, a serviço das corporações médicas privadas, deliberam a seu valor,
em detrimento das necessidades daqueles que dependem do serviço público de
saúde, ampla maioria social (Mourão, 2010).

Nesse sentido é importante ressaltar que todo o brasileiro – inclusive aqueles


que pagam por caros planos de saúde, utilizam-se do SUS, uma vez que, qualquer
cirurgia de alta complexidade é realizada pelo Sistema Único de Saúde:
transplantes, cirurgias bariátricas, tratamentos oncológicos, etc. O SUS é o único
sistema de saúde no mundo a garantir acesso integral, universal e igualitário:

O SUS não é apenas assistência médico-hospitalar. Também desenvolve,


nas cidades, no interior, nas fronteiras, nos portos e aeroportos, outras
ações importantes como a prevenção, a vacinação e o controle das
doenças. Faz vigilância permanente nas condições sanitárias, no
saneamento, nos ambientes, na segurança do trabalho, na higiene dos
estabelecimentos e serviços. Regula o registro de medicamentos, insumos
e equipamentos, controla a qualidade dos alimentos e sua manipulação.
Normatiza serviços e define padrões para garantir maior proteção à saúde
(Ministério da Saúde, 2011).

É por isso que tornar pública a trajetória do SUS fortalece a sua construção
coletiva e estimula a mobilização da sociedade para lutar pela superação dos
desafios do setor da saúde e a ampliação dos direitos sociais. O princípio de
controle societário do SUS merece destaque, pois impele o protagonismo e a
autonomia dos usuários dos serviços na gestão dos processos de trabalho no
campo da saúde coletiva, a partir do princípio de participação comunitária 6.
Partilhando destes princípios:

6
Estabelecida e regulada pela Lei nº 8.142/90, a participação comunitária expos a relevância da
inserção da população brasileira na formulação de políticas públicas em defesa do direito à saúde.
Além disso, atribuiu importância a instâncias populares na fiscalização e controle das ações do
Estado considerando as especificidades de cada região brasileira. Os Conselhos de Saúde são
órgãos deliberativos que atuam como espaços participativos.
24

A rede de atenção à saúde mental, composta por Centros de Atenção


Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros
de Convivência, Ambulatórios de Saúde Mental e Hospitais Gerais,
caracteriza-se por ser essencialmente pública, de base municipal e com um
controle social fiscalizador e gestor no processo de consolidação da
Reforma Psiquiátrica (Ministério da Saúde, 2005).

No entanto, para além desta rede básica de atenção à saúde mental, parece
fundamental criar, manter e ampliar a rede comunitária de cuidado nos territórios;
não apenas do ponto de vista da saúde mental, como objeto concreto para a
consolidação da Reforma Psiquiátrica, mas também relacionados a outros tipos de
cuidado, como ao idoso, às crianças, às pessoas portadoras de deficiências, etc.

Se a rede de atenção à saúde mental define-se como de base comunitária, é,


portanto indispensável que na ideação desta rede estejam presentes o movimento
permanente da comunidade usuária e de seus familiares, voltados para a ocupação
de outros espaços das cidades, em busca da emancipação, cada vez maior, das
pessoas com sofrimento psíquico, fora dos muros institucionais.

Para que haja uma mudança na concepção da comunidade com relação ao


sofrimento psíquico, parece fundamental que tal relação seja transformada antes
entre técnico e usuário. A inserção crítica destes usuários na comunidade depende
do tipo de instituição que o tutela e da relação estabelecida entre os profissionais e
seus clientes:

Viver dialeticamente as contradições do real é, assim, o aspecto terapêutico


de nosso trabalho. Se tais contradições não forem ignoradas ou
programaticamente distanciadas na tentativa de criar um mundo ideal, mas
dialeticamente trabalhadas a comunidade pode, então, tornar-se
terapêutica... Mas a dialética existe apenas quando há mais de uma
possibilidade, isto é, alternativa. Se o doente não tem alternativa, se a sua
vida se apresenta já preestabelecida, organizada, e sua participação
pessoal consiste na adesão à ordem, sem possibilidade de escape,
encontrar-se-á prisioneiro do terreno psiquiátrico, assim como se
25

encontrava aprisionado no mundo externo no qual não conseguia enfrentar


dialeticamente as contradições. Como a realidade que não conseguia
contestar, a instituição à qual não pode se opor permite apenas uma
escapatória: a fuga através da produção psicótica, o refúgio no delírio onde
não há contradição nem dialética. (BASAGLIA, 1981: 491, apud BARROS,
1994: 188).

Não obstante, a observação e pesquisa revelaram-nos que o diagnóstico, a


medicação assistida e até o acúmulo de saber teórico profissional não são mais
importantes, nem estão acima das relações vinculares e de afecção. A noção de
vínculo desenvolvida por Pichon-Rivière, parte, sobretudo de uma visão política
sobre a função do âmbito sociocultural mais amplo na constituição da subjetividade
humana. O autor considera que existe um material psíquico que é transmitido
coletivamente e que as famílias, no geral, organizam-se a partir desta herança
coletiva, na mesma medida em que a transformam, levando em consideração seu
próprio legado geração após geração.

Neste processo subjetivante, cada um dos sujeitos do grupo agregará a sua


marca, assim como será marcado pelo grupo em questão. Ou seja, há uma relação
dialética entre o que é transmitido e aquilo que sofre alteração. Ocorre que, desde o
nascimento, somos socializados de maneira grupal, esse processo grupal pode ser
dividido em duas partes: a socialização primária, correspondente às famílias, que
além de ser significativa na construção da nossa subjetividade, cria em cada um de
nós uma maneira própria de vincular-se, podendo estabelecer, a partir daí, relações
saudáveis ou doentias.

A vinculação acontece principalmente na socialização primária (Bastos, 2008;


Bleger, 1978). Ou seja, é através da família que nós apreendemos o nosso padrão
vincular. Segundo Bleger, existem três tipos básicos de família, as quais têm papel
cabal na socialização de todos os indivíduos. Para o autor, existem famílias do tipo
esquizóide, que são famílias que estimulam um vínculo altamente individualista,
onde há uma importância exacerbada do “eu”. Em geral, os membros desta família
têm uma grande dificuldade de exercer qualquer função grupal. Neste caso, antes
de tudo, estamos diante de uma dificuldade de nos diferenciarmos.
26

O segundo tipo de família é do tipo simbiótica, que é o contrário da família


esquizóide; aqui os vínculos são altamente enlaçados. Quer dizer, se na primeira
era acentuado o eu, aqui a dificuldade maior é consumar qualquer trabalho onde se
valorize a individualidade. Ou seja, os membros familiares, dentro desta perspectiva,
são altamente dependentes uns dos outros. Bleger chega a dizer que, tanto a
família simbiótica quanto a esquizóide são famílias dos extremos e cujos membros
tendem a apresentar uma relação de “enfermidade mental”.

A terceira são os vínculos ditos saudáveis, os quais dentro de um contínuo


destes dois extremos faz uma mediação. Nesse particular, em geral, seus membros
aprendem, a ser “eu” e a ser “nós”. Neste caso, Bleger aponta que há uma
tendência à construção de vínculos saudáveis, na entanto, a maioria de nós veio de
famílias com dificuldade de vinculação, pois há na maior parte dos grupos familiares
a dificuldade de diferenciar-se. A diferenciação é construída pelo afeto e a
indiferenciação é o que atrapalha as relações e as adoece.

A questão central para nós é que se aprende um tipo de vinculação na família


e isso tende a se repetir em todas as relações que se sucedem. O importante
também, é que estas vinculações não são naturais, são construções, que na medida
em que se constituem, produzem grupos sujeitos ou grupos sujeitados.

Há autores, tais como Féres-Carneiro (1996), apontando que não existe


família totalmente saudável ou totalmente enferma. Sim, existem agrupamentos
familiares que tendem à saúde, e há famílias que tendem à enfermidade.
O que isso implica? Implica que, tanto as famílias ditas saudáveis quanto a
enferma têm os mesmos problemas: problema de separação, problema de
abandono, de dinheiro, de alcoolismo, etc. Daí que Féres-Carneiro (op. cit.) defende
que toda e qualquer família tem problema, a questão aqui não são os problemas,
mas a forma com que cada família, enferma ou saudável, lida com esses
problemas. Enquanto algumas famílias usam desses problemas contra si mesmos,
há outras que utilizam esse problema como possibilidade de crescimento. Os
vínculos são construídos a partir da capacidade de lidar com os problemas.
27

Os vínculos, para Pichon (1982), são uma estrutura psíquica complexa e


dialética, que inclui sempre um sujeito e um objeto de catexia, que na maioria das
vezes são outras pessoas, envolvidos por uma mútua relação, que passa por
processos de comunicação e aprendizagem. Ou seja, todo o grupo passará
necessariamente por estes dois processos: um grupo precisa de canais de
comunicação e precisa propiciar a aprendizagem. Essas duas condições
caracterizam os grupos operativos, teoria e técnica desenvolvidas pelo autor.

Nesse sentido, Pichón supera alguns conceitos da psicanálise, quando afirma


que, por conta desta dinâmica dialética dos vínculos, nossa personalidade pode
continuamente ser revista, num processo dinâmico de vinculações, daí a
importância dos vínculos no processo terapêutico dos usuários.

A questão vincular, para o autor, passará sempre pela questão do grupo,


sendo este entendido como um contexto de significados compartilhados e um
campo de referências afetivas e cognitivas, onde o sujeito se integra e se
reconhece, podendo tanto bloquear quanto estimular processos criativos e críticos.
Logo, se os vínculos são responsáveis pela comunicação e aprendizagem,
referências afetivas e cognitivas, podendo estimular ou bloquear processos criativos
e críticos. Por tanto, tais vínculos podem ser entendidos como uma questão chave e
central no projeto terapêutico dos usuários.

Nesse sentido, a teoria de Pichon Revière, de certo modo vai ao encontro à


ética de Espinosa (1991) e ao conceito de "bons encontros", quando
compreendemos que o afeto não é uma mera expressão de simpatia, um fazer-se
querido, mas uma cadeia de afecções7, em que afetamos e somos afetados o tempo
inteiro e de diversas maneiras. Se para Pichon os vínculos são responsáveis por
estimular ou bloquear processos criativos e críticos, para Espinosa “bons encontros”
aumentam a potência dos indivíduos, enquanto os “maus encontros” diminuem e
impedem a criação de tal potência. Para Espinosa não existe bem e mal. O que

7
Afecção é uma modificação de corpos. É um efeito de um corpo sobre o outro; é uma mistura de
corpos; um corpo age sobre o outro e o que recebe, recebe as características do primeiro corpo
(idéia de causa-efeito).
28

existe é o bom e o mau. O bom está relacionado aos “bons encontros” e o mau, está
atrelado aos “maus encontros”.

De tal forma que podemos entender que certas manifestações psicóticas,


muito mais do que sintomas de uma doença, demência ou qualquer outro termo
aproximado, é resultado antes de formas de vinculações e afecções. O que isso
significa? Significa que um diagnóstico diz muito mais sobre uma prática e um saber
do que sobre o sujeito em questão.

Implica que se afetamos e somos frequentemente afetados, não só por


questões materiais, mas, sobretudo subjetivas, quando encaramos o outro, a nós
mesmos ou qualquer outra coisa sob um novo ponto de vista, imediatamente
estaremos produzindo outra maneira de afetar e sermos afetados. Ou seja, se
olharmos para o usuário retirando dele o estigma de ser um paciente psiquiátrico,
teremos a oportunidade de perceber naquele indivíduo, muito mais do que um
desvio, podemos encontrar ali uma divergência, um desacordo, podemos colher
desta observação elementos concretos para um projeto verdadeiramente
terapêutico para o usuário.

Podemos, ainda, de acordo com Espinosa, se nos colocamos de maneira


consciente, reconstruir a gênese da afeição, criar “encontros úteis” entre equipe e
usuários, desenvolvendo um tipo de afeto - no caso de Bleger e Pichón, um tipo de
vínculo, em que o usuário se perceba capaz de operar transformações em si mesmo
e no mundo externo.
29

2 USUÁRIO DO CAPS FRANCO BASAGLIA E A POSSÍVEL


INSERÇÃO FORA DOS MUROS: ENTRE O
COMPORTAMENTO DESVIANTE E DIVERGENTE

Frequentemente, o indivíduo divergente tem sido encarado a partir de uma


perspectiva psicologizante, não só pelo senso comum e pelos meios de
comunicação de massa, mas também pela academia, que não consegue
transcender a camisa de força do estigma e do preconceito. Tais abordagens, de
forma geral, mantém à margem um número significativo de pessoas que
apresentam comportamentos que não estão conformados com os padrões
aceitáveis de conduta, reduzindo a questão à “patologia social”, ao desvio ou a
problemas de cunho moral.

O comportamento divergente ou comportamento desviante é objeto de


estudo tanto da Antropologia e da Sociologia, como também da Psicologia social.
Becker (2008), por exemplo, enfatiza três questões relevantes a respeito: a
concepção do desvio como ação coletiva; a desmistificação do desvio e os dilemas
morais da teoria do desvio.
Além disto, ele define esse comportamento da seguinte maneira:

Os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cujas infrações


constituem desvio e ao aplicar tais regras a pessoas particulares e rotulá-
las como desviantes. Deste ponto de vista, o desvio não é uma qualidade
do ato que a pessoa comete, senão uma consequência da aplicação pelos
outros de regras e sanções a um “ofensor”. O desviante é alguém a quem
aquele rótulo foi aplicado com sucesso; comportamento desviante é o
comportamento que as pessoas assim rotulam (BECKER, 2008, p.21-22).

Desta forma, a questão do desvio é muito mais comum do que se pensa e


caminha mais por uma complexidade do que pela simplificação, já que ele está
presente em alguns comportamentos e ausente em outros. Isso quer dizer que só
existe desobediência porque existem regras e estas estarão sempre de acordo com
os valores de grupos específicos que as institui e controla - não apenas por
privilegiar determinado segmento social em detrimento de outro, mas também por
30

decidir quem, como e com qual intensidade será punido se desobedecer ou não se
adequar às regras socialmente impostas.

Discutimos no primeiro capítulo, baseado na obra de Franco Basaglia, que as


sociedades estão estruturadas sobre instituições que se mantém através,
sobretudo, da violência, do controle pela força e pela nítida divisão entre os que têm
o poder e os que não o têm, sendo os presídios e os hospícios instituições
acionados para controlar aqueles que, por algum motivo, perturbam a ordem social.
Não obstante, neste cenário, tanto nas penitenciárias quanto nos hospitais
psiquiátricos não ficarão confinados todo e qualquer sujeito desviante; aqui, antes
dessa preocupação com a delinquência ou com o desvio, há em cada situação um
determinante específico: o poder contratual, isto é, a condição social e econômica
que o cidadão possui.

Curiosamente, Becker (2008), ao analisar o comportamento de sujeitos


específicos, supostamente desviantes e as reações causadas por suas ações,
constatou que existem comportamentos que alguns grupos reprovam e outros
grupos valorizam, dependendo das perspectivas construídas e conservadas. Isto
sem contar que, esses atores, também possuem suas próprias regras e seus
conceitos de normalidade. Diante disto, o autor estadunidense propõe uma teoria
interacionista do desvio, ao afirmar que as pessoas agem juntas: ora, de um lado,
se podemos admitir que toda atividade humana é algo da ordem da criação coletiva,
de outro, é evidente que também subscrevemos essa atividade designada, aqui,
como desvio. Enfim, segundo Becker, regras, desvios e rótulos são sempre
construídos em processos políticos, nos quais alguns grupos conseguem impor
seus pontos de vista como mais legítimos do que outros.

As normas e regras das sociedades mudam de acordo com as novas


realidades produzidas por determinado aspecto social, o comportamento “normal”
das pessoas em nossa sociedade (e provavelmente em qualquer sociedade) pode
ser visto como uma série de compromissos progressivamente crescentes, com
normas e instituições convencionais (BECKER, 2008: 38). À medida que tais
31

8
transformações acontecem, criam-se novos “empreendedores morais” , que
acabam por gerar novas classes de outsiders.

Apesar de o CAPS Franco Basaglia ser um dispositivo substitutivo aos


manicômios, que trabalha diariamente na tentativa de superar a histórica e trágica
forma de lidar com o desvio, a significativa parcela de usuários provindos de
hospitais psiquiátricos de longas e recorrentes internações, ainda carrega consigo o
condicionamento de serem pessoas doentes. Por isso, para produzir uma inserção
crítica deste usuário para além dos muros institucionais, entendemos que o principal
trabalho a ser feito é o de produzir nele uma transformação gradual na sua maneira
de colocar-se no mundo, de perceber a doença e também na sua perspectiva sobre
as coisas, restringida e diminuída não tanto pela enfermidade atribuída, mas
justamente pelo longo período de exclusão e segregação social (BASAGLIA, 1985).

É importante identificar que a ação objetivante9 acaba, pois, por influir no


conceito sobre si mesmo do usuário, o qual não poderá deixar de viver-se como um
corpo doente, se assim for visto pelo psiquiatra e pela instituição que o tutela
(BASAGLIA, 1985). Por isso a necessidade de reafirmar sempre que o chamado
desvio não é algo de “outro mundo”, mas, em geral, fala de uma diferença com
relação ao padrão tradicional. Assim, ele pode ser discutido e merece ser
compreendido, a partir de um contato estreito com as pessoas com quem travamos
essa experiência e principalmente, levando em conta seus pontos de vista.

Algumas teorias, tais como a de Merton (1970), na tentativa de deslocar o


mal do indivíduo, desviam o foco do problema exclusivamente para a sociedade ou
para a cultura, saindo, portanto, de uma patologia do indivíduo para uma patologia

8
Howard Becker os denomina também “reformadores cruzados”, que são aqueles sujeitos que
procuram impor a sua moral aos outros pensando que assim lhes farão bem, sem nunca se
questionarem sobre a vontade ou necessidade dos outros de incorporarem o sentido moralizante das
suas regras.
9
A objetivação não é a condição objetiva do doente, mas se localiza no interior da relação entre
doente e terapeuta, no interior, portanto, da relação com o doente e a sociedade que delega ao
médico sua cura e tutela (...) a doença não é condição objetiva do doente, mas o que o faz assumir o
aspecto que tem reside na relação com o médico que o codifica e a sociedade que o nega. (Basaglia,
1985: 109, 129)
32

social, que precisaria de contenção e controle. No entanto, antes de quaisquer


determinações, é preciso verificar como a vida social é percebida e representada.

O conceito de anomie, para Merlon, é quando há uma forte propensão ao


desrespeito às regras, às normas e às leis instituídas. Durante este contexto, para o
autor, há que se desenvolverem estratégias de controle para evitar um estado de
“degradação social”. Dentro desta perspectiva, o sujeito divergente não é visto com
bons olhos, pois ele representa rupturas e contradições.

Merton (op.cit.), afirma ainda que “o grau de anomie10 de um sistema social é


indicado pelo grau de falta de acordo a respeito das normas que se julgam
legítimas”, como se tais problemáticas impedissem o funcionamento harmônico da
sociedade e como se todas as sociedades apresentassem objetivos e meios de
realizá-los, considerados legítimos pela totalidade dos seus membros, inclusive por
indivíduos “diversamente localizados” (Velho, 1974:13).

Nesse sentido, em seu estudo do comportamento divergente, numa


perspectiva crítica, Gilberto Velho (1974) relativiza tais abordagens, possibilitando
reflexões menos normativas a respeito.

Além de o conjunto social ser composto por seres singulares, diferentes entre
si, em gostos, crenças, valores, desejos e fantasias, ainda nos separam questões
materiais de acesso a bens e serviços básicos para a manutenção de uma vida
digna. Uma sociedade que se recusa a viver em comunidade, mantendo e
perpetuando diferenças de classe, raça e gênero tão profundas, não pode tentar
convencer, a partir de orientações acadêmicas conservadoras - ou pela mídia
corporativa - que é possível a existência de um universo harmônico em meio a
tantos problemas estruturais e desprezo pela dignidade humana.

Esta ideologia, que tenta convencer sobre a possibilidade de harmonia em


sociedades profundamente desiguais, considera que algumas pessoas apresentam
características de comportamento “anormais”, encarados como sintoma ou

10
Consideramos que o conceito de anomia de Merlon, em termos de fonte original, está bem próximo
ao conceito de anomia de Durkheim (2000).
33

expressão de desequilíbrio e doença, tornando muito difícil, para os sujeitos


acusados, a superação dos obstáculos sociais para a conquista de sua autonomia e
emancipação. Daí, o grande problema deste tipo de concepção, que considera a
diferença uma anomia, não apenas pelo seu caráter conservador, mas pelo fato de
ter como premissa uma estrutura social não problematizada, que enfatiza o
equilíbrio e a coesão na vida social supostamente livre de contradições, tensões e
interesses diversos, marginalizando tudo o que, de alguma maneira, possa
desestabilizar a tendência aparentemente coerente de tal sociedade. (VELHO,
1974).

A ideia de desvio cria automaticamente a ideia de que é possível que exista


um comportamento “médio” ou “ideal”, que estaria conformado com as exigências
do sistema social. A crítica a tais perspectivas, como a de Merlon, não se trata de
negar a especificidade de fenômenos psicológicos, sociais, biológicos ou culturais,
mas sim reafirmar a importância de não perder de vista o seu caráter de inter-
relacionamento complexo e permanente VELHO (1974, p. 19).

Portanto, não é que os atores definidos como desviantes sejam


“inadaptáveis” ou que vejam o mundo de uma maneira “fundamentalmente sem
sentido”, mas sim, que eles têm, em geral, uma interpretação do mundo diferente
daquele visto pelos indivíduos ditos ajustados. O sujeito divergente, do ponto de
vista psicológico, não é “um ser de outro mundo”, tanto o desvio quanto as normas
fazem parte de um mesmo sistema de relações e interações que constituem a
própria dinâmica social. O sujeito divergente ou desviante, apenas por existir,
denuncia a contradição que tanto as sociedades tentam negar, seja pela exclusão
imposta pelos manicômios, seja pela exclusão imposta pelas penitenciárias, sejam
pelas discriminações cotidianas. Uma análise crítica de qualquer código
sociocultural revelará a existência de “desvios”, o que, para Velho denota um traço
multifacetado, dinâmico e por vezes ambíguo da vida cultural de qualquer
sociedade:

A cultura não é, em nenhum momento, uma entidade acabada, mas sim


uma linguagem permanente acionada e modificada por pessoas que não só
desempenham “papéis” específicos, mas têm experiências existenciais
34

particulares. A estrutura social, por sua vez, não é homogênea em si


mesma, mas deve ser uma forma de representar a ação social de atores
diferentemente e desigualmente situados no processo social VELHO (1985
p. 21).

Estimulados por essa análise crítica, podemos afirmar que a estrutura social é
múltipla, comportando sujeitos com experiências variadas e oportunidades distintas;
que a ordem hegemônica deve ser questionada e desafiada, sobretudo pelos
desigualmente situados, excluídos e injustiçados. O exercício do pensamento
dialético permite-nos analisar o mundo sob o aspecto também de sua inadequação
interna, no qual os autores estão envolvidos e interagindo, contrapondo-se às
teorias simplistas a respeito da vida em sociedade.

Marcuse (1973) utilizou-se do termo negação como uma estratégia de


superação interna e externa, neste entendimento, a inconformação e a produção do
mal estar, para o filósofo, são meios de contrapor-se às muitas formas
contemporâneas de alienação. Faz-nos lembrar de que a história é resultado das
escolhas e ações dos homens, por esse motivo a ênfase no pensar negativo, na
inadequação, entendendo que este é um importante elemento de contrapartida ao
pensamento positivo, que legitima o conformismo e a resignação, como se as leis
sociais fossem as leis da natureza.

É importante atentar e contrapor a tendência autoritária de homogeneizar


comportamentos de maneira determinista e reducionista, sem considerar as
particularidades de grupos e subgrupos que compõem o tecido social. No estudo do
comportamento divergente, o grupo dos já citados interacionistas avançou para
além da teoria da anomie, entendendo o ser humano não como um ser passivo, que
se desenvolve apenas por determinação da estrutura social, mas também por uma
inadequação interna, antes mencionada:

A noção básica é que não existem desviantes em si mesmos, mas sim


uma relação entre atores (indivíduos, grupos) que acusam outros atores
de estarem consciente ou inconscientemente quebrando, com seu
comportamento, limites e valores de determinada situação sociocultural.
35

Trata-se, portanto, de um confronto entre acusadores e acusados (VELHO


op. cit., p. 23).

Ora, se a cultura não se mantém estática, se os valores socioculturais


transformam-se ao passar dos anos e décadas, possuímos os ensejos de superar
condicionamentos, normas, preconceitos e estigmas que não estejam em
consonância com os valores de liberdade já alcançados - independentemente de
limites geográficos. Nesse ponto de vista, o sujeito desviante é aquele que não
aceita facilmente as determinações forçosas da vida em sociedade, é alguém que,
consciente ou inconscientemente não adere aos valores impostos e por isso detêm
em sua essência a revelia necessária para a construção do novo.

Nesse sentido, tentando unir as ideias freudianas e marxistas, visando a


mudança pessoal e coletiva, Marcuse (1973) vai questionar o capitalismo tardio, que
fala em liberdade, mas aprisiona, diz buscar a riqueza, mas produz pobreza para a
maioria da população. Tal sociedade industrial globalizada é uma sociedade
basicamente sem oposição, onde ocorre uma paralisia da crítica, a partir da
imposição de uma ideologia que é precursora do homem unidimensional.

Marcuse (op.cit.) alega que o estado de tensão permanente em torno do


perigo iminente de um desastre nuclear, que poderia destruir a humanidade, ofusca
a real intenção deste estado de tensão planetária, que é proteger os interesses das
próprias forças que perpetuam este medo; assim nos submetemos à produção
pacífica dos meios de destruição, à perfeição do desperdício, a ser educados para
uma defesa que deforma os defensores e aquilo que estes defendem (MARCUSE,
1973: 13). Tal problemática se expressa pelo fato de a sociedade industrial
desenvolvida se tornar mais rica, maior e melhor ao perpetuar o perigo.

Esta crítica, em síntese, aponta que a ordem do capitalismo atual é eficaz,


não só porque dita as condições econômicas, mas também porque ocupa a
subjetividade humana. Desta forma, cria-se um modelo único de vida, que é
sinônimo do homem unidimensional e que envolve uma razão, tecnologias e valores
36

que, com a contribuição da mídia e da publicidade, tornam-se indisponibilidades e


anseios de toda a sociedade.

Implica que, para Marcuse, as sociedades do capitalismo tardio, repousam


sobre um modo de vida dito consensual, pouco ou nada questionado a respeito dos
valores do mercado, o qual dita as condições materiais e subjetivas para os seres
humanos de todo o planeta. O ponto crucial desta análise é o fato de que a partir da
ocupação da subjetividade, o homem passa a desejar as marcas, numa clara
submissão voluntária, a partir de um consenso interno, com aspecto de vontade
própria. O avanço da “unidimensionalidade” não é algo escondido ou oculto,
entretanto a maioria dos indivíduos não consegue identificar os condicionamentos
externos e internos que influirão sob seus sonhos, vontades, desejos, medos e
frustrações.

Em nome de uma suposta produtividade, as necessidades políticas da


sociedade capitalista contemporânea tornam-se necessidades e aspirações
individuais, sua satisfação promove os negócios e a comunidade, e o conjunto
parece constituir a própria personificação da razão (MARCUSE, 1973, p. 13), por
isso também a utilização da expressão “sociedade sem oposição.” No entanto, a
convivência pacífica de valores contraditórios desde uma perspectiva política,
cultural e econômica, fruto desta aceitação dos modos de agir e pensar, mesmo
dissimulados, compreende uma nova forma de totalitarismo:

Em virtude do modo pelo qual organizou a sua base tecnológica, a


sociedade industrial contemporânea tende a tornar-se totalitária. Pois
totalitária não é apenas uma coordenação terrorista da sociedade, mas
também uma coordenação técnico-econômica não-terrorista que opera
através da manipulação das necessidades por interesses adquiridos.
Impede, assim, o surgimento de uma oposição eficaz ao todo. Não apenas
uma forma específica de governo ou direção partidária constitui
totalitarismo, mas também um sistema específico de produção e
distribuição que bem pode ser compatível com o „pluralismo‟ de partidos,
jornais, „poderes contrabalançados‟ etc (MARCUSE, 1982, p. 24-25).
37

Para que se exerça tal controle, foi necessário dificultar o acesso dos povos
aos elementos necessários para a tomada de consciência sobre a sua própria
exploração e sobre a alienação intrínseca a esse modo de vida, que tem na
servidão voluntária dos indivíduos a principal arma para o seu controle. Revelar a
dominação profunda desta realidade exige que busquemos a essência do sentido
das palavras, que, mistificadas, ocultam as condições de subserviência global a
esse tipo de racionalidade; a chamada democracia liberal é uma farsa, em que dita
que a economia precisa ser livre, enquanto a política necessita ser conservadora,
mas a farsa maior se revela na conformação do mundo, que não tem absolutamente
nada de democrático nem de liberal, uma vez que quem controla o planeta, no
sentido estrito, são grandes corporações financeiras internacionais, como Banco
Mundial, FMI e a OMC. Em suma, o capitalismo tardio dita que fora do mercado não
há saída, ainda que tal afirmação ao ser analisada com profundidade exponha
exatamente o contrário:

Essa sociedade é irracional como um todo. Sua produtividade é destruidora


do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas; sua
paz, mantida pela constante ameaça de guerra; seu crescimento,
dependente da repressão das possibilidades reais de amenizar a luta pela
existência (MARCUSE, 1982, p. 14).

No entanto, mesmo diante desta “unidimensionalidade” da vida


contemporânea, existem aqueles que não se sujeitam à ordem hegemônica: os
psicóticos, os outsiders e o lumpemproletariado compõem este seleto grupo, por
isso a intensa medicalização e repressão, que não recaem apenas sobre os “loucos”
e “delinquentes”, mas também sobre os “candidatos à loucura”. Pois, em tese, sob
tal raciocínio, todos nós, em algum momento, precisaremos de medicação ou
contenção. A medicalização é a camisa de força da modernidade pós reforma
psiquiátrica. Entretanto, mesmo sufocados por esta racionalidade, Marcuse não
deixou de considerar e alimentar a necessidade de criarmos políticas de resistência
frente a esta dominação, começando pela conscientização da liberdade até alcançar
a sua efetivação:
38

Por baixo da base popular conservadora, encontra-se o substrato dos


párias e outsiders, dos explorados e perseguidos de outras raças e de
outras cores, dos desempregados e dos não empregáveis. Eles existem
fora do processo democrático, suas vidas são a mais imediata e mais real
necessidade de acabar com as condições e as instituições intoleráveis.
Assim, sua oposição é revolucionária mesmo se a suas consciências não o
forem. Sua oposição atinge o sistema de fora e, por isso, não se curva a
ele; é uma força elementar que viola as regras do jogo e, ao fazê-lo, revela-
o como trapaça. Quando eles reúnem-se e saem às ruas, sem armas, sem
proteção para reivindicar os mais primitivos direitos civis, sabem que
enfrentarão cães, pedras e bombas, cadeia, campos de concentração e até
a morte. Sua força está por trás de toda manifestação política pelas vítimas
da lei e da ordem. O fato de eles começarem a recusar a jogar o jogo pode
ser o fato que marca o início do fim de um período. (MARCUSE, 1982: 256
- 257)

Com influência e contribuição da teoria freudiana, Marcuse (1978) considera


que a razão instrumental e a repressão das pulsações é o que dá corpo à
dominação tecnológica, por isso precisa ser questionada e transformada pelos
“novos sujeitos sociais”, que a partir do exercício de uma razão libertária, possam
produzir outra sensibilidade, com vistas à emancipação dos homens, levando em
conta que a repressão das pulsações e a felicidade não são valores próprios de
toda a civilização.

A partir da estética de Marcuse (1986), aliada à concepção de Antônio


Candido (2004), podemos afirmar a importância da literatura e das artes para a
formação humana e também para a superação de uma realidade instituída. Isso
porque, a partir da fabulação, dentre outras coisas, podemos alcançar outra
realidade, uma realidade instituinte, em que o sujeito possa se reconhecer como um
ser ativo em sua existência e afirmar-se enquanto sujeito de direito. Marcuse vai
ressaltar o potencial revolucionário existente na arte, não necessariamente para
fazer a revolução, mas para contribuir para a transformação da consciência dos
homens frente ao mundo. Além disso, a arte se define por esse caráter emancipador
39

porque aponta também para a criação de um “Novo Princípio de Realidade”, que é


inimigo da opressão política e psíquica (BASTOS, 2005, p. 36).

A propósito, Marcuse nesse, como em outros pontos de sua obra, nos dá


brechas para pensar uma noção de comunidade, na qual ao invés de produzir o
homem sujeitado, seja capaz de gestar um homem protagonista de si e de sua
história. Em outras palavras, para o pensador de Frankfurt, essa comunidade que
buscamos - comunidade do homem sujeito - ainda é uma quimera frente à
sociedade globalizada pelo mercado. Diga-se de passagem, que aqui, o próprio
Tom Zé, metaforicamente, já a definiu como a sociedade da “globarbarização”. Ou
seja, quem é sujeito não é o homem, mas o dinheiro, sob o globalitarismo,
dificultando a emancipação dos povos.

Segundo a perspectiva de Marcuse, a arte possui potencial para


desacomodar o pensamento e as emoções, em virtude da dimensão política dos
fenômenos artísticos. A possibilidade de escapar de um mundo hostil, pré
estabelecido, oferece às pessoas a chance de viver, mesmo que por algum
momento, em um lugar menos adverso, através de um romance ou de um poema,
de uma peça de teatro, de um filme ou música. Extrapolar os limites da dita
realidade objetiva pode despertar nas pessoas o desejo de viver em um mundo
melhor, em que o dinheiro não seja mais livre do que a população - pois, segundo
este autor, a sociedade contemporânea, do ponto de vista material e tecnológico
evoluiu o suficiente para que as necessidades de todas as pessoas do planeta
possam ser atendidas.

Despertar a consciência em oposição aos valores impostos pelo mercado é o


que possibilitará combater o “homem unidimensional”, na medida em que se
reconstrói outra subjetividade, ou seja, uma subjetividade rebelde, não servil. No
entanto, para que de fato essa “unidimensionalidade” possa ser superada e uma
alteração qualitativa no corpo social e nas instituições possa ser alcançada, é
imprescindível que esta subjetividade rebelde esteja articulada às lutas políticas
concretas pela emancipação da humanidade. (BASTOS, 2005; MARCUSE, 1986)
40

Do mesmo modo que se criou uma subjetividade hegemônica, a favor do


mercado, do descarte e do consumo, é necessário criar e alimentar uma
subjetividade insubordinada, de Grande Recusa a essa lógica mercantilista. Esta
subjetividade rebelde tende a aflorar pelo esgotamento ou pela dor, mas pode
também se manifestar de uma maneira estética, a partir de processos éticos
políticos para trazer à tona experiência vívida ao invés de experiência servil. A arte,
entre outras virtualidades, pode modificar tal quadro, fissurando a “subjetividade
hegemônica”, e permitindo assim que se forme uma contra consciência: consciência
histórica ou de ruptura, decorrente de uma subjetividade rebelde (Marcuse, 1997,
1986, 1981).

Marcuse considera, com base nas categorias marxistas, que toda esta
estrutura de dominação e servidão voluntária se mantém e perpetua, pois o trabalho
permanece alienado e a maioria das forças e instituições sociais, assim como
lideranças políticas, está em conformidade com os ditames do “deus mercado” e da
“Santíssima Trindade” (FMI, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio),
tal como trata Ianni (2004), por isso Marcuse aponta a relevância da arte na
produção do estranhamento e de uma sensibilidade distinta, que seja capaz de
“diluir” tais congruências:

Numa sociedade baseada no trabalho alienado, a sensibilidade humana


está embotada: os homens só percebem as coisas nas formas e funções
em que lhes são dadas, feitas, usadas pela sociedade existente; e só
percebem as possibilidades de transformação tal como são definidas e
limitadas na sociedade existente. Logo, a sociedade existente é
reproduzida não só na mente, na consciência do homem, mas também nos
seus sentidos; e nenhuma persuasão, nenhuma teoria, nenhuma
argumentação, pode romper essa prisão, a menos que a sensibilidade fixa,
petrificada dos indivíduos seja “dissolvida” aberta a uma nova dimensão da
história (Marcuse, 1978, p: 74).

É importante mencionar que a arte aqui referida está longe de ser confundida
com os produtos mercadológicos vazios que as produtoras, a indústria fonográfica e
audiovisual tentam incutir na vida de todos como sendo expressão artística,
enquanto, na realidade, esmagam e marginalizam verdadeiros artistas que não se
41

vergam às banalidades exigidas pelos patrocinadores, fazendo dos seus trabalhos


uma ferramenta de denúncia. Genuinamente falando, a arte desafia o monopólio da
realidade estabelecida em determinar o que é “real” e o faz criando um mundo
fictício que, no entanto, é mais real que a própria realidade Marcuse (1986, p. 33).

Frente à perspectiva apresentada, consideramos que a arte constitui uma


ferramenta importante para emancipação e ampliação das potencialidades, não
apenas dos usuários dos sistemas de saúde mental, mas para mudanças históricas
do ser humano e seu meio social, que possibilitaria a real emancipação das pessoas
com sofrimento psíquico. Por isso Marcuse propõe mudar a sociedade como um
todo e concretizar o sonho das lutas anticapitalistas, construído um Novo Princípio
de Realidade (Marcuse, 1981; 1969; 1979; 1999).

Diante de tudo, refletimos que é profundamente assertivo quando os CAPS


incluem no projeto terapêutico do usuário práticas artísticas do seu interesse, que
permitam estimular estes sujeitos, que ao longo de muito tempo foram tolhidos de
expressar e manifestar suas opiniões, sensações, expectativas e pensamentos.
Assim, ao criarmos esse processo, por essa dimensão estética, criamos uma
positividade através do caráter afirmativo da arte, sob a base de uma negação
extrema. (BASTOS, 2005, p. 41)

Acreditamos nas utopias humanas de libertação e as defendemos;


entendendo que a liberdade é um valor humano universal e o que nos distingue de
todos os outros seres da natureza. A utopia não serve apenas para que sigamos
caminhando, como nos disse Eduardo Galeano, mas também para que saibamos
qual a direção do nosso caminhar, tendo claro que nosso futuro pode e deve ser
traçado por nós e não por instituições seculares que já provaram servir única e
exclusivamente para a nossa dominação e doutrina. Sejamos os rebeldes, os
desajustados, os desviantes e divergentes, os outsiders contemporâneos,
organizados e conscientes de nossos valores de autonomia, justiça, emancipação e
liberdade.
42

CONCLUSÃO

A primeira conclusão deste trabalho se refere, principalmente, à discussão do


surgimento da reforma psiquiátrica e também de uma lacuna que está colocada. Em
outras palavras, apesar de a reforma psiquiátrica no Brasil ter apresentado avanços,
como o tratamento mais humanizado, o combate ao eletrochoque etc; nosso
trabalho se deparou com essa lacuna, a qual uma vez discutida poderia ajudar na
construção da autonomia e a uma inserção crítica dos usuários na sociedade. Quer
dizer, não obstante os avanços da luta antimanicomial, nosso trabalho descortinou
que quando há certa vinculação entre o usuário e o profissional de saúde mental
(médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais),
aumenta-se as probabilidades de esse usuário construir uma melhor acolhida no
seu retorno à sociedade. Esta é a lacuna que aponta este trabalho. Ao deparar-se
com tal problemática, nossa pesquisa teve a pretensão de considerar que devemos
discuti-la, empenhando-nos no desenvolvimento de uma vinculação singular entre
“técnicos” e usuários.

Essa questão lacunar, em tese, pode ser identificada menos como um fator
individual e mais como uma questão cultural, pois atualmente, em que se pesem as
exceções, estamos vivendo sob uma cultura tecnicista, em detrimento dos afetos.
Essa relação tecnicista tenta, basicamente, abafar a singularidade, ainda que se
apresente com todo um discurso a favor dela, na realidade, quer meramente
enquadrá-la ao estabelecido, desertificando-a. Evidentemente, o caminho oposto
aqui, o investimento nas relações dos afetos e vínculos que funcionem como uma
espécie de continente, também não é algo já predeterminado e com resultados
excelentes para todos os casos. Mas, por tal caminho que deverá ser construído
pela relação humana, demasiadamente humana, sem linha reta para ninguém,
teremos uma maior chance de que esses usuários possam reconstruir seus
desencontros, sua autonomia, frente a interminável luta de mostrarem suas
diferenças junto ao grupo social.

O contraditório, é que na relação tecnicista vigente, em geral, o profissional


parece conhecer de antemão o usuário, a partir de seus conhecimentos
43

“matematizados”, baseados num modelo medicamentoso. Neste particular, a alma


do tecnicismo vem à tona quando a preocupação principal parece se dar não em
ouvir propriamente os usuários, mas, a priori, “encaixá-lo” em uma CID
(Classificação Internacional de Doenças). Sim, em que se considere que toda regra
possui suas exceções, ao analisar essas práticas tecnicistas, é possível hipotetizar
que por trás dessas categorizações e desse modelo medicamentoso estão os
laboratórios e seu interesse por lucros cada vez maiores.

É importante ressaltar que nós não somos contra o remédio, entendemos que
a medicação tem seu momento, no entanto estamos questionando a medicalização
como panaceia. Quer dizer, uma suposta solução farmacêutica para todo e qualquer
problema, bem como algo que acaba sendo a questão central nos projetos
terapêuticos dos usuários.

De forma geral, observamos que aqui, se o usuário está fazendo uso da


medicação corretamente e isso está evitando surtos e crises, entende-se que o
projeto está correto e este usuário pode permanecer em casa até o próximo surto,
momento que parece expressar apenas que a medicação precisa ser reajustada.

Em decorrência do tecnicismo e da medicalização, há nos “técnicos” a


tendência de ver o usuário apenas enquanto um sujeito desviante, ignorando a
divergência ali presente. Desnecessário apontar que essa divergência, em geral,
emerge pela diferença que faz a diferença desses usuários em relação à dita vida
padrão, hegemônica, a qual tende a ser apresentada como a única. Neste particular,
por via de regra, pode-se pensar que esses “técnicos” não veem naquele indivíduo o
potencial de transformar uma realidade injusta, na qual suas particularidades são
negadas. Contraditoriamente, ainda hoje o usuário dos serviços de saúde mental é
tratado como bode expiatório de uma racionalidade excludente e normativa.
Evidentemente, isso não significa que não exista loucura, ou que não haja uma
singularidade na loucura, mas é justamente por este entendimento que devemos
encontrar os vários significados do delírio e não apenas encaixá-lo em uma CID ou
propor sua doma através da medicalização. Não negamos a existência do
patológico, porém reduzir tudo ao desvio pode atrapalhar o processo criativo dos
usuários, fazendo parecer que há uma espécie de conspiração dos “normais”.
44

Enfim, é por esses e outros fatos, os quais precisam ser observados e não
“negados” que estamos diante dessa lacuna que dificulta a criação do vínculo -
quesito terapêutico principal para uma inserção crítica dos usuários na sociedade.

A segunda conclusão deste trabalho refere-se à questão dos vínculos:


Vínculos? Que vínculos? Nosso trabalho discutiu que esses vínculos, longe de
serem naturais, são um fator que é criado, sobretudo, a partir dos agrupamentos
familiares. Na realidade, os vínculos humanos são gestados nas relações sociais, a
qual se inicia por um processo grupal que começa com a família (socialização
primária) e segue por outros grupos: grupos de educação, religião, saúde, trabalho
etc (socialização secundária). Ou seja, nosso trabalho apontou que em tese, essa
socialização primária acontece por vínculos, de um lado simbióticos ou esquizóides
(que tendem à enfermidade); de outro, por vínculos que fazem uma mediação entre
esses dois extremos (os quais tendem para a “saúde”).

Isso implica que, segundo Bleger (1977), como vimos, quando somos
socializados na família simbiótica, em geral, apresentamos uma forma de vinculação
muito dependente e pegajosa. Quando somos socializados na família esquizóide,
tendemos a apresentar uma vinculação extremamente individualista. O autor ainda
afirma aqui, esse tipo de vinculação, além de nos causar sérios problemas com o
outro (extrema dependência ou extremo individualismo), tende a se repetir na
escola, no trabalho, no grupo religioso, etc (socialização secundária).

Ainda para Bleger, a “saúde” está no meio, ou seja, quando somos


socializados de maneira a reconhecer a nossa diferenciação, aprendemos a fazer
tarefas em grupo ao mesmo tempo em que respeitamos nossa individualidade;
teremos aqui, menos problema vincular com o outro. Além disso, tendemos a repetir
estes vínculos menos problemáticos também no trabalho, na escola e outros grupos
de socialização secundária.

O interessante desta teoria, é que em tese, observamos que muitos dos


usuários provindos de longas internações apresentam comportamento de muita
dependência ou de um extremo individualismo. Mas em alguns casos, quando
45

conseguem desenvolver uma vinculação com alguns técnicos, apresentam uma


melhor possibilidade de vinculação diferenciada.

Uma terceira conclusão de nosso trabalho aponta que considerando que esta
pesquisa não tem a pretensão de esgotar o objeto em questão, faz-se necessário
também desenvolver outras pesquisas sobre ele. Neste sentido, entre outras
sugestões, ressaltamos que se desenvolva pesquisa sobre a questão dos vínculos
entre os usuários e “técnicos”, sobretudo, através de estudos empíricos, por
exemplo.

Uma última conclusão, ainda sob o quesito de vinculação, trata de uma


observação muito peculiar, de alguns técnicos juntos aos pacientes: quando há
certa disponibilidade do técnico de não encarar, enxergar ou ler o usuário apenas
um paciente psiquiátrico, mas como uma pessoa que por sua história de vida pode
estar vivendo um sintoma, como expressão de uma divergência do grupo social de
onde veio, pode haver aqui uma abertura mais próxima e que também facilita esses
vínculos de diferenciação, que possibilita também uma melhor chance de
socialização com os outros.

Nesse sentido, vimos também que Espinosa (1991) desenvolve a sua teoria
dos afetos, com base no princípio dos encontros, que podem ser “bons” ou “maus”,
em que nos constituímos como sujeito nas primeiras experiências sociais, que se
dão numa interrelação permanente, ou seja: eu afeto o outro e outro me afeta. Para
Espinosa, a capacidade de afetarmos e sermos afetados são o que nos torna, entre
outras coisas, humanos.

. A dificuldade de superar esta realidade é a dita unidimensionalidade e a


contra reforma. Em suma, o grande desafio da Reforma Psiquiátrica ainda é abrir os
muros e socializar a loucura. A readaptação crítica necessária não é apenas para os
usuários dos sistemas de saúde, mas para todos os atores envolvidos com saúde
mental: familiares, usuários, sociedade civil e aqui, principalmente, os “técnicos”.
Por fim, encerramos nossa conclusão reafirmando que este é um exercício
permanente de questionamentos sobre nossa prática e sobre o estado das coisas,
recordando e exaltando o poema de Bertold Brecht, em que diz:
46

Desconfiai do mais trivial,


na aparência singelo,
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.”
47

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