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Resumo
Abstract
1
Eugenia Casini Ropa é professora associada aposentada de História da Dança e da Mímica do Departamento de Música e Espetáculo
(DAMS) na Universidade de Bolonha, Itália. Estudiosa de teatro e dança do século XX, entre suas publicações, lembramos especial-
mente os volumes: La danza e l’agitprop (1988) e Alle origini della danza moderna (1990). Foi fundadora e curadora da Revista Teatro
e Storia (com Franco Ruffini, Ferdinando Taviani e outros). Fundou também em 2009 a revista on-line Danza e Ricerca, e ocupa-se de
inúmeras publicações e editoriais no âmbito da dança, das quais se destacam as coleções I libri dell’icosaedro (Ephemeria, Macerata)
e Danza d’autore (L’Epos, Palermo).
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Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC.
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constante, vigilante e diferenciado com a mento sobre o homem e sobre o corpo dava
arquitetura e a ordem urbana da cidade4, impulso à saída da dança dos teatros para
com os seus edifícios e os seus percursos, sua expansão em espaços diferentes do ha-
com a heterogeneidade dos seus espaços e bitual para uma explosiva experimentação
das suas características mais ou menos hos- prática. Uma diferente inquietude epo-
pitaleiras, com seus lugares mais evidentes cal de liberação impeliva então a dança à
e com aqueles mais secretos para se habitar fuga das instituições teatrais nas quais ti-
com a dança. nha permanecido arraigada por séculos a
Aqui o corpo dançante, instrumen- perpetuar as ritualidades da elite, laicas e
to vivo da arte do movimento, se propõe espetaculares daquelas antigas sociedades,
como o fator alquímico que propicia o en- para a recuperação de valências antropo-
contro, que ativa a re-velação e a re-signi- lógicas aparentemente esquecidas e para a
ficação dos papéis em jogo. A plasticidade busca de uma requalificação artística, que
estática dos edifícios urbanos, com os seus superasse os artifícios do virtuosismo codi-
volumes imóveis, as suas tensões e os seus ficado e se enraizasse nas potencialidades
ritmos arquitetônicos congelados na pedra expressivas de cada ser humano, originá-
e no cimento, se confronta com aquela plas- rias no seu próprio corpo e então desejosas
ticidade viva, dinâmica e incessantemente de se manifestar.
metamórfica dos corpos que dançam e que As gerações de dançarinos entre os
despudoradamente, ou amorosamente, séculos XIX e XX redescobriram, porém,
ou ainda, indiferentemente, a penetram o sentido da corporeidade e as potenciali-
desafiando a solidez semântica. No novo dades expressivas do movimento fugindo
contexto se originam assim gradualmen- não somente dos teatros, mas também das
te percepções estranhas e desconcertantes cidades já em crescimento incontrolável,
tanto para os dançarinos como para os es- vividas nos tempos como ameaça alienante
pectadores. O estranhamento da função para a reconquista da liberdade psicofísica
física e social dos lugares e dos edifícios do homem6. Era, por outro lado, no con-
tende a criar um sentido de desorientação tato com a natureza incontaminada pelo
e de alerta nos sentidos de quem age e de progresso tecnológico e pela sua crescente
quem assiste, tornando-os mais agudos e opressividade que se procurava regene-
perceptivos, enquanto a absurda rituali- rar, por meio de uma nova arte da dança
dade lúdica dos corpos dançantes põe por fundada em leis naturais do movimento,
si perguntas embaraçadoras à frenética aquela perfeita máquina biológica pensan-
atividade utilitarista e dirigida que os cir- te – capaz de estar à altura das máquinas
cunda. O desafio prosêmico dos corpos e tecnológicas – que se descobria então como
aos corpos que dançam disseminam assim a unidade corpo-mente do ser humano. No
imprevistas derivações de sentido5 e novas vento envolvente de um antropológico “re-
interpretações metafóricas e criativas do torno às origens”, se fugia então da cida-
mundo circundante. de, golem urbanístico fagocitário e desper-
Apesar desta iniciativa de fuga da sonalizante, para afirmar a peculiaridade
dança dos teatros na procura, num outro criativa individual e de grupo e descobrir,
lugar, de uma nova seiva nutritiva parecer na livre manifestação rítmica e expressiva
desconcertante para alguns, vale a pena do corpo, novas fontes vitais para a dança
recordar que esta não é a primeira vez ela (e, utopicamente, para o novo homem e a
ocorre. Um século atrás um novo pensa- sociedade do futuro).
E justamente daquela reinvenção das
4 práticas e do sentido do corpo dançan-
Para a evolução de um pensamento geral sobre dança e arquitetura permanece fun-
damental o número 42/43, verão de 2000, da revista “Nouvelles de danse”, dedicado te, originadas no confronto com os luga-
exatamente a Danse et architecture.
5
Um interessante olhar semiótico às características comunicativas da dança urbana se
6
encontra em: Bizarri, Maria Cecília. La danza e la città. Esperienze di danza Cf. Alle origini della danza moderna, organizado por Eugenia Casini Ropa,
urbana, in “E/C”, série especial, ano II, nº 2, p. 33-37, 2008. Bologna: Il Mulino, 1990.
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los trabalham de forma evidente ou subter- sivo da arte da dança ou de uma aquies-
rânea, somando-se aos exemplos de fusão cência ao efêmero permanente e decorativo
linguística já experimentados pelo teatro, que domina a civilização do espetáculo? É
aos problemas logísticos e econômicos, às uma autêntica pesquisa de novas modali-
inquietudes reivindicadas e aos impasses dades expressivas relacionais inspiradas
criativos, aos impulsos provocadores e às pelo genius loci ou uma mera transferência
tendências interculturais e socialmente em outro contexto de produções coreográ-
orientadas de uma parte da dança contem- ficas originadas num outro lugar? É sub-
porânea local. Assim, de novo entre dois versão ou adaptação?
séculos, o corpo dançante deixa para trás Além das possíveis interpretações de
os teatros para se aventurar no espaço ex- um fenômeno ainda em expansão e em
terno e a arte da dança se confronta com definição, é todavia necessário observar
outros desafios. concretamente como a dança urbana, nas
Se o que foi dito até aqui – e que sinteti- suas diferentes formas, tenha criado um
za em boa parte as interpretações dadas até circuito de festivais e mostras nacionais e
então à gênese do fenômeno – é verdadei- internacionais de várias entidades, como
ro, então a dança urbana dos nossos dias os artistas puderam trocar técnicas e pro-
poderia ter também, como a dança livre jetos e colaborar nas realizações espetacu-
de um século atrás, uma implícita verten- lares, e como o que nasceu como explosão
te utópica: isto é, a aspiração a uma fusão espontânea, urgência de espaço vital para
provocatória e fertilizante com a cidade, os a sobrevivência de alguns artistas contem-
seus espaços e as suas funções na intenção porâneos, tenha na verdade demonstrado
de revitalizar criativamente o ambiente ur- uma incitação de fato frequentemente efi-
bano, mudando a significação e as conven- caz para a imaginação, a criatividade core-
ções relacionais. Assim como por meio da ográfica e o encontro das diversas artes do
dança se desejava tempos atrás transformar corpo. Mais difícil permanece julgar o im-
o homem, agora talvez se pretenda com a pacto do estímulo nos espaços e sobretudo
dança transformar o seu habitat urbano, no público, a qualidade e a incisividade da
torná-lo reativo à presença no seu ventre sua desorientação e da alteração perceptiva
de uma arte vivente. Em ambos os casos o sinestésica e relacional, ou quanto o encon-
impacto se revelaria mais antropológico do tro urbano tenha contribuído a familiarizá-
que social ou artístico e a confiança na po- lo com a dança.
tencialidade transformadora da realidade e É necessário se perguntar de resto, e no
de sua percepção intrínseca à dança seria fundo, se a dança, na sua genética aleato-
exaltada. riedade, pode de fato incidir ou somente
Mas, nos fatos, o fenômeno hodierno é tocar por um instante a ímpar persistência
mais complexo e ambíguo. Na dança urba- urbana, se pode de fato deixar marcas du-
na se entrelaçam, de fato, inextricavelmen- ráveis ou somente lançar “sinais secretos
te provocação antropológica e aceitação do devir”.10
social; se quer desafiar criticamente aquela Em conclusão, gostaria de reler meta-
qualidade de vida à qual, apesar de tudo, foricamente a inteira vicissitude do último
implicitamente se aceita de pertencer e de século da dança, com as suas repetidas fu-
se adequar completamente. Idealmente é gas dos lugares e dos vínculos da tradição
uma tentativa de sabotagem no interior de precedente e as também repetidas reentra-
alguns mecanismos auto-reguladores da das nas novas ordens da cultura vigente à
máquina-cidade, mas ao mesmo tempo é luz da sua reafirmada essência antropoló-
um buscar no seu ventre sapiente refúgio gica e do seu consequente instinto de adap-
protetor para atividades expressivas que se
exaurem em ambientes fechados e na rejei- 10
A expressão é de Walter Benjamin, que a usa com felicidade nos anos vinte quanto
ção de teatros inóspitos. Trata-se de uma trata da sutil eficácia social do teatro das crianças. Cf. Walter Benjamin, Programma
di un teatro proletario dei bambini, in Asja Lacis, Professione: rivoluzionaria, Milano:
real vontade de um papel urbano subver- Feltrinelli, p. 83-89, 1976.
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REFERÊNCIAS
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ne: rivoluzionaria, Milano: Feltrinelli, p. 83-89, 1976.
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Arts, sciences et technologie. Actes du rencontres internationales, 22, 23 et 24 novembre
2000, Université de La Rochelle, Maison des Sciences de l’Homme et de la Société, p. 155-
160, 2000.
Casini Ropa, Eugenia (org.). Alle origini della danza moderna. Bologna: Il Mulino, 1990.
_________________ Judson Dance Theater. Danza e controcultura nell´America degli anni ses-
santa. Macerata: Ephemeria, 2010.
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