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O CRISTIANISMO ATRAVÉS

DOS SÉCULOS
POR

H . H . M u í r h e a d , A . B . , T h . D>, D . D . ,
Ex-dlretor dos Seminários Teológicos Batistas do Recife
e Rio de Janeiro

VOLUME 1
3." EDIÇÃO

Refundida e ampliada

CASA PUBLÈCADORA BATISTA


Rio de Janeiro
19 5 1
A MINHA ESPOSA D. ALYNA MUIRHEAD,
CUJA INSPIRAÇÃO E COLABORAÇÃO TORNARAM
POSSÍVEL ESTA OBRA, AFETUOSAMENTE
DEDICO ESTE VOLUME
P R E F Á C I O

Quando em 1921, publicamos um esbôço da história eclesiásti-


ca, sob o mesmo título desta obra, prometemos que dentro de dois
anos, ampliá-ítf-iamos em um compêndio de história.
Feliz, ou infelizmente as muitas ocupações nos privaram de
cumprir a promessa. Felizmente, porque nos deu tempo para es-
tudar mais a fundo a matéria, e especialmente ler uma boa parte
da literatura sôbre o assunto que se acha em português; infeliz-
mente, porque durante êsses catorze anos, os estudantes nos semi-
nários, e o público em geral, viram-se privados de um compêndio
mais adequado.
Certo é, que êste volume não virá preencher a lacuna a conten-
to de todos, mas de algum modo fornecerá matéria para uma com-
preensão mais completa, que um simples esboço apenas.
A história eclesiástica é tão vasta, que mesmo num estudo li-
mitado como o é esta obra, não pudemos reduzi-la a um só
volume. O presente, abrange os movimentos mais importantes des-
de o início do cristianismo até à Reforma; o segundo volume, abran-
gerá o período que vai desde a Reforma até os nossos dias.
Apesar de termos recorrido a quase tõdas as fontes, a nossa
gratidão especial é para os Drs. Albert Henry Newman e W. J.
McGlotin, nossos inesquecíveis mestres, e ao Dr. Henry C. Vedder,
cujas obras históricas nos têm servido de guia, embora não as te-
nhamos seguido à risca.
Agradecemos também ao professor Carlos Barbosa, egrégio
professor do Colégio Americano Batista do Recife, cuja colaboração
no preparo dêste volume foi indispensável; aos Drs. A. R. Crabtree,
Antônio Neves Mesquita, e Antônio Alves Drumond, colegas no Co-
légio e Seminário do Rio de Janeiro, que bondosamente leram par-
tes do manuscrito e ofereceram valiosas sugestões; e aos professo-
res, José Wanderley Pereira de Souza e Moysés Silveira, professo-
res do Colégio Batista do Rio de Janeiro, que tão laborioso e pres-
tante serviço desempenharam na revisão final.
Que esta humilde obra, possa servir para maior despertamento
e mais interêsse pela história do cristianismo, e portanto, amor e
fidelidade a Cristo, o autor e preservador do verdadeiro Cristianis-
mo, é tudo quanto almejamos.

Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1935.


O AUTOR.
t

PREFÁCIO DA TERCEIRA EDIÇÃO


Durante os doze anos desde que a edição do primeiro volume
de «O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS», apareceu, o au-
tor tem continuado as suas pesquisas, No entanto, exceto algumas
adições ao texto, foram feitas poucas modificações no conteúdo. O
acréscimo de dez mil palavras acha-se na sua maioria, nos capitu-
ios sobre missões ou atividades na expansão do Cristianismo du-
rante os primeiros catorze séculos.

Com o fim de tornar o livro mais didático, achamos por bem


unificar a organização da matéria.

Em adição aos agradecimentos expressos no prefácio da se-


gunda edição, o autor quer expressar aqui a sua gratidão ao Rev.
Werner Kaschei e pela paciência e pelo trabalho na adaptação do
texto de 1935, à ortografia atuai, e nas correções do manuscrito.
Também aos três filhos médicos: Drs.: J. 3. Muirhead, S J.
Muirhead, E. E. Muirhead e suas esposas, junto á Woman's Mis-
sionary Union of Texas, U. S. A., por cujo auxilio financeiro, é
possível a publicação dos três volumes a sair.

E' deveras raro que uma obra didática no Brasil chegue à ter-
ceira edição. O autor aproveita a oportunidade para -agradecer
esta generosidade por parte dos leitores brasileiros e faz votos a
Deus que esta humilde obra contribua para o engrandecimento de
sua causa nas terras onde se fala o português.

Dallas, Texas, U. S. A .

1 de janeiro de 1948.

O AUTOR
Í N D I C E

INTRODUÇÃO Págs
I . DEFINIÇÃO 13
n . PONTOS DE VISTA 14
1. Do romanista 14
2. Do anglo-católico 15
3. Do defensor do desenvolvimento eclesiástico progressivo 16
4. Do defensor do Novo Testamento como a norma auto-
rizada 16
n i . PERÍODOS HISTÓRICOS 17
IV VALOR DO ESTUDO DA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA .. 17
V. AMBIENTE E M QUE APARECEU O CRISTIANISMO .. 19
1. Governo 20
2. Raças 20
3. Condições sociais 21
4. Cultura .. .. .. 21
5. Religião 22
V I . PREPARAÇÃO DO MUNDO P A R A O CRISTIANISMO
1. O mundo pagão 23
2, O mundo judáico 29
PRIMEIRO PERÍODO
Do nascimento de Cristo até o fim da Idade Apostólica, 1 —100
CAPÍTULO I
Fundando o Cristianismo
I. OBSERVAÇÕES GERAIS 3!
H. O PRECURSOR 3í
m. O FUNDADOR 3(
rv\ OS CONTINUADORES 4í
1, O programa do Senhor ressuscitado 4í
2. O Dia de Pentecostes 4í
3. O evangelho transpondo Jerusalém 4<
4, O evangelho levado aos gentios 45
V A IGREJA DE ROMA 5(

CAPÍTULO n
O Cristianismo em Atividade
I . UMA NOVA FORÇA 55
I I . O CONCÍLIO DE JERUSALÉM 5c
H I . PERSEGUIÇÃO
CAPÍTULO III
Organizando o Cristianismo
I. O REINO E A IGREJA 5f
H . A IGREJA E AS IGREJAS - ., .. . . . . ...... 55
III, CARATERÍSTICOS DAS IGREJAS . .. 59
IV, OFICIAIS DAS IGREJAS 60
V , ORDENANÇAS DAS IGREJAS 62
VI-. L I T E R A T U R A DO PERÍODO: — O NOVO T E S T A M E N T O 63
V I I . V I D A CRISTA 65

SEGUNDO PERÍODO
Desde os tempos dos apóstolos até a adoção do Cristianismo como
Religião do Estado, 100 — 333
CAPÍTULO I
« P o r fora combates, temores por dentro»
I . PERSEGUIÇÃO 67
1. Causas da perseguição 67
2. Os imperadores e os cristãos 68
I I . CRESCIMENTO E CORRUPÇÃO 74
1. Observações gerais .. 74
2. Duas linhas históricas 75
- I I I . REAÇÃO A N T I - C R I S T A 77
1. Os ebionitas 77
2. Os gnósticos 79
3. Os maniqueus .. 82
4. Os monarquianos 84
IV COMEÇOS DA IGREJA CATÓLICA 85
V MOVIMENTOS REFORMADORES 85
1. Os montanistas 85
2. Os novacianos *. 87
3. Os donatistas • •• • • 88

CAPÍTULO II
Literatura do Período
I. OBSERVAÇOES GERAIS 89
II. PERÍODO E D I F I C A T I V O 90
1. Primeira Epístola de Clemente de Roma 90
2. Epístola de Barnabé .. 91
3. Epístolas de Inácio 91
4. O Pastor de Hermas 92
5. Epístola de Policarpo aos Filipenses 93
6. Ensino dos Doze Apóstolos ou A Didache 93
III. PERÍODO APOLOGSTICO .. .. 94
1. Ari5tides 96
2. Justino Mártir 98
IV. PERÍODO POLÊMICO 98
1. Irineu 9®
2. Hipólito 100
3. Tertuliano 102
4. Cipriano 104
V- PERÍODO CIENTIFICO 105
Págs.
1. Clemente de Alexandria .. . . .. .. 106
2. Orígenes .. 107
3. As Constituições Eclesiásticas e os Cânones dos
Apóstolos 109
CAPÍTULO III
Condições no fim do Período
I . EXTENSÃO DO CRISTIANISMO 111
I I . POSIÇÃO SOCIAL „ , 114
H I . ALTERAÇÕES N A D O U T R I N A E P R A T I C A 114
1. Ponto de partida .. .. .. 115
2. Ordenanças convertidas em sacramentos 11G
3. Catecumenato .. 118
4. Mudanças no ministério 119
5. Sacerdotalismo 122
6. Culto 122
I V O CREDO 123
V- O CÁNON DO NOVO T E S T A M E N T O 124
•VI. A V I D A CRISTÃ 124
1. Mundanísmo .. 124
2. Analfabetismo 125
3. Ascetismo 126
VIL SUMÁRIO 126
TERCEIRO PERÍODO
Da adoção do Cristianismo como Religião do Estado até a
coroação de Carlos Magno, 323 — 800.
CAPÍTULO I
A Igreja e o Império
í. C O N S T A N T I N O E SEUS SUCESSORES 129
1. Constantino e o Cristianismo 129
2. Os filhos de Constantino .. .. 135
3. Reação sob Juliano 135
4. Teodósio, primeiro imperador ortodoxo .. .; 136
H . TRANSIÇÃO P O L Í T I C A 136
I I I . A IGREJA O F I C I A L I Z A D A 138
CAPÍTULO II
Desenvolvimento da Teologia
I . OBSERVAÇÕES GERAIS .. 141
I I . CONTROVÉRSIAS 143
1. Controvérsia administrativa — Os donatistas 143
2. Controvérsia trinitaríana — Arianismo 146
•3. Controvérsia cristológica 149
1) Apolinarianismo 150
2) Nestorianismo 150
3) Eutiquianismo ou monofisismo .. ... ., 151
Págs.
4) Controvérsia monotelita .. . . . . — 152
4. Controvérsia antropológica — Agostinho e Pelágio . . 153
CAPÍTULO m
Reações e Movimentos Reformadores
I. OBSERVAÇÕES GERAIS 159
II. REAÇÃO DE AÊRIO 159
III. REAÇAO JOVINIÁNICA 160
IV. REAÇÃO VTGILÁNCIANA 163
V REAÇÃO P A U L I C I A N A 164
VI. REAÇAO C O N T R A A ADORAÇÃO DE IMAGENS 171
CAPÍTULO IV
Crescimento do Poder Papal
I . A IGREJA E O BISPO DE R O M A 173
I I . POLÍTICA DOS BISPOS DE ROMA 173
1. Concilio de Nicéia 173
2. Concilio de Sardes 174
3. Concilio de Éfeso 175
4. Concilio de Cali:edônia 175
5. Segundo Concilio de Constantinopla 177
6. Terceiro Concilio de Constantinopla 177
7. Quarto Concilio de Constantinopla 177
8. Atitude de outros papas .. . 179
I I I . JUSTINIANO E O P A P A D O 181
IV O REINO MEROV1NGIO .. 181
V INVASÃO DOS BARBAROS .. 182
V I . GREGÓRIO I, O GRANDE 182
V I I . O REINO CARLOV1NGIO 184
V I I I . CARLOS MAGNO E O P A P A D O 186
CAPÍTULO y
Missões no Período
I . OBSERVAÇÕES GERAIS 189
I I . MISSÕES N A B R E T A N H A 190
1. O Cristianismo primitivo na Bretanha 190
1) Origem 190
2) Intervenção papai 191
3) Doutrinas e práticas 192
2. Missionários britânicos 194
1) Patricio 194
2) Coiumba 201
3) Coiumbano 202
I I I . MISSÕES A R I A N A S E P A P A I S .. 203
1. Métodos missionários 203
2. Nas margens do Danúbio — Ulfilas .. 204
3. N a Inglaterra — Agostinho 206
4. Em Frísa — Wilibrord 210
5. Na Alemanha — Bonifácio 211
6. N a Escandinávia — Ansgar 215
CAPÍTULO VI
O Maometismo: — Um Rival do Cristianismo
I. OBSERVAÇOES GERAIS 219
II. O FUNDADOR 219
IU. EXPANSÃO PELA ESPADA 220
IV, DOUTRINAS E P R Á T I C A S 220
V CONQUISTAS 222

CAPÍTULO VII
Condições Internas do Cristianismo no fim do Período
I . MUDANÇAS NAS DOUTRINAS E P R A T I C A S 223
1. Sistematização da doutrina 223
2. Mudanças no batismo e na ceia. — Novos sacramentos 224
3. Veneração aos anjos, mártires, santos e relíquias .. .. 225
4. Culto € V i r g e m Maria 226
5. Adoração de imagens e peregrinações 227
I I . V I D A CRISTÃ — MONAQUISMO 228
QUARTO PERÍODO
Da Coroação de Carlos Magno até a Reforma Protestante,
800 — 1517
CAPÍTULO I
Idade Média
I . OBSERVAÇÕES GERAIS 231
I I . A CIVILIZAÇÃO M E D I E V A L 233
I I I . O SANTO I M P É R I O R O M A N O E A S A N T A IGREJA CA-
TÓLICA 235
I V . DIVISÃO E N T R E AS IGREJAS O R I E N T A L E OCI-
DENTAL 238
V- O FEUDALISMO 240
V I . DECRETOS FALSIFICADOS 241
V I I . A L E I CANONICA E A L E I C I V I L 243
V I I I . A CÜRIA R O M A N A 245
I X . A V I D A MONASTICA N A IDADE MÉDIA .. • 247
X . AS CRUZADAS 252
X I . A INQUISIÇÃO : 257
X I I . AS UNIVERSIDADES D A IDADE M É D I A 260
X H I . TEOLOGIA E CULTO CATÓLICO D A IDADE M É D I A .. 261
1. Escoíasticismo 261
2. Misticismo medieval 266
XIV O PAPADO DURANTE A ERA MEDIEVAL 268
XV O P A P A D O NO SEU AUGE 275
X V I . D E C L f N I O NO PODER P A P A L - 277
X V I I . O C A T I V E I R O BABILÕNICO (1305—1376) 278
X V I I I . O CISMA P A P A L (1378 — 1449) 279
1 CAPÍTULO n
f Missões Católicas do Período Págs.
[ I . OBSERVAÇÕES GERAIS 285
I I . CARLOS MAGNO E A CRISTIANIZAÇÃO DOS SAXOES 286
i n . QUINHENTOS ANOS MAGROS .. .. 287
I V . MOVIMENTOS DOS POVOS E SUA CRISTIANIZAÇÃO .. 288
1. No Ocidente 289
! 1) Os mouros na Espanha .. .. 289
2) Os normandos na França e Inglaterra 289
2. Na Europa Central 290
' 1) Os magiares 290
j; 2) Avanço dos turcos 291
U 3. No Oriente — Invasão dos mongóis .. .. .. 292
V. O CRISTIANISMO E N T R E OS ESLAVOS 294
V I . O CRISTIANISMO NO I N T E R I O R D A ASIA 295
V I I . MISSÕES N A Á F R I C A O C I D E N T A L E N A S I L H A S .. 296
f V I I I . RESUMO .. .. 297
CAPÍTULO III
; Reformadores antes da Reforma
j| I . OBSERVAÇÕES GERAIS 301
([ I I . DISSIDÊNCIA D U A L I S T A .. 302
i 1. Os bogomilos 302
2. Os cátaros 303
! I I I . DISSIDÊNCIA E V A N G É L I C A 305
1. Cláudio de Turim 305
X 2. Os albigenses ^ 305
ií % 3. Os petrobucianos e henríquenses 307
| 4. Os amaldistas 310
5. Tanqueimo e Eudo de Stella .. 313
< x. 6. Os Valdenses 3*5
•Ú yt 7. Wiclif e os lolardos .. 323
8. Marcilo de Pádua 329
í 9. Movimentos evangélicos na Boêmia 331
1) Situação geral .. 331
í 2) Plêiade de reformadores .. 331
i Os taboristas 337
». 4) Os irmãos boêmios .. ,. .. 338
10. Outros movimentos 341
ij 1) Os irmãos da vida comum .. .. . . 341
!; A 2) Savonarola 341
i! 3) João Puper de Goch 342 v
4) João de Wesel 342
l ii 5) João de Wessel 342
H / * ^ A w» -ILvV^H^ Conclusão
:! A O R A I A R DO NOVO D I A 343
uj { BIBLIOGRAFIA 349

jj x , , T. t ^
Introdução

I . DEFINIÇÃO

A restauração do homem alienado de Deus pelo


pecado e a sua volta à obediência e à comunhão com
fele, foram os propósitos altruisticos por que o cristia-
nismo iniciou a sua ação benéfica, como está claramen-
te comprovado no Novo Testamento e na obra dos seus
primeiros adeptos.
Enquanto permaneceu êste propósito tão digno
quão elevado, o Cristianismo se manteve isento dos
desejos de poderio e da insaciável cobiça de ouro; con-
servou a sua primitiva simplicidade; criou, embora por
algum tempo o seu próprio ambiente, tendo atraves-
sado numa corrente de ar puro e regenerador, a at-
mosfera do velho mundo romano, impregnado de de-
vassidão, licenciosidade e árido materialismo; e se as-
sim tivesse continuado, dele se poderia dizer: A Histó-
ria Eclesiástica ê a narração de tudo que se sabe da
religião fundada sobre o nome e os ensinamentos de
Jesus Cristo.
Infelizmente porém, o Cristianismo se desviou do
seu propósito primitivo, deixando-se influenciar por
um ambiente muito diferente do seu. 0 contacto com
outros sistemas religiosos e escolas filosóficas modifi-
cou-lhe tanto a organização como os propósitos; de
modo que temos de aceitar que o Cristianismo históri-
co é o resultado do Evangelho agindo no mundo de ho-
mens e que a História Eclesiástica è a narração desse
resultado. Assim, para compreender o Cristianismo
na multiplicidade de aspectos e m que se apresenta, é
preciso não só estudá-lo na sua essência, como tam-
bém mergulhar o pensamento no mundo em que se
15 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

propagou através de quase dois mil anos. Estudar tam-


bém, a influência do cristianismo no mundo e vice-ver-
sa. Cristo disse de seus seguidores, que estão no mun-
do, mas não são do mundo ( 1 ) . N o entanto, em certos
períodos, o Cristianismo secularizou-se e paganizou-se.
Para compreender o resultado dessas influências, o es-
tudante da história eclesiástica terá de estudar a histó-
ria do mundo em que o Cristianismo se desenvolveu.
Podemos dizer, que em geral, quanto maior foi a influ-
ência do mundanismo sôbre o Cristianismo, tanto mais
êle se aproximou das religiões pagãs.

I I . PONTOS DE V I S T A

Tanto na pesquisa, como na exposição dos fatos,


deverá o historiador eclesiástico manter tanta impar-
cialidade, quanto a do químico no laboratório, exami-
nando as coisas referentes â espécie, pois achar a ver-
dade, apresentá-la na sua simplicidade sem as côres
falsas do convencionalismo, é o seu alvo e dever. Se
êle for justo e consciencioso para com os indivíduos e
partidos, cujas opiniões respeita e esposa, deverá por
certo, ao examinar os fatos, expô-los como os observou,
ainda que êstes fundamentalmente divirjam da opinião
formada quando leitor, pelos fatos que desabonam os
seus correligionários; embora seja velha praxe, é um cos-
tume que o verdadeiro historiador, cfonsciente de sua
missão, deverá evitar.
Dividiremos os diversos pontos de vista do estudo
da História Eclesiástica, em quatro grupos distintos:
1 . 0 romanista sustenta que toda a autoridade, in-
cluindo a das Escrituras reside na Igreja; que a Igre-
ja- tem o direito de legislar, independentemente das Es-
crituras; que como vigário e vice regente de Cristo na
1) João 17,
INTRODUÇÃO IS

terra, o papa possui por direito, domínio universal, tan-


to espiritual quanto secular, e portanto, o direito de
estudar e escrever a história da Igreja sob o ponto de
vista hierárquico. Convencido de que a "maior glória
de Deus" consiste na realização dos fins da hierarquia,
o romanista considera como digno de louvor e justifi-
cável, tudo quanto concorrer para o engrandecimento
do poder hierárquico o que a igreja tem aprovado; e
classifica de herético e digno de reprovação, tudo
quanto se opuser ao desenvolvimento do sistema hie-
rárquico.
Escreve o padre An teimo Goud na introdução da
sua História Eclesiástica: " P o r conseguinte, a Igreja
não é, por assim dizer, senão Jesus Cristo falando e en-
sinando sob a forma humana; é a encarnação perma-
nente do Filho de Deus. Apesar de tantos e tão renhi-
dos combates, vê-la-emos percorrer admiràvelmente sua
nobre carreira, ensinar a verdade, fazer o bem, e con-
servar ilesos os seus caracteres celestes, sua unidade, ca-
tolicidade e apostolicidade; enfim, veremos que ela f o i
sempre divina e que essa Igreja divina f o i sempre a
Igreja Romana" (2), Confessa pois, o padre Gpud, logo
no começo da sua obra, que não escreveu um trabalho
histórico, porém uma tese para provar a santidade,
apostolicidade e catolicidade da Igreja Romana. E
assim, como o historiador a que nos referimos, os de-
mais historiadores católicos romanos não poderão exa-
minar imparcialmente os dados históricos, uma vez
que são obrigados a aceitar as conclusões da " I g r e j a " .
2. O anglo-catôlico aceita como surprema, a auto-
ridade da antiga Igreja, antes do cisma, representada
pelos teólogos dos seis primeiros séculos, ou mais espe-
cialmente, pelos cânones dos quatro primeiros conci-
lios ecumênicos, e insiste na sucessão apostólica, per-
2) História Eclesiástica, p . I X .
16 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

petuidade e catolicidade da igreja com o f i m de esta-


belecer a identidade da sua Igreja e do seu episcopado
com o da Igreja Católica» Tal historiador pois, por
força dos seus argumentos e direção dos seus pensa-
mentos, não pode admitir os grupos dissidentes; antes,
condena-os por não seguirem as suas opiniões doutri-
nárias.
3. O defensor do desenvolvimento eclesiástico pro-
gressivo, negando que Cristo e os apóstolos tivessem
tido a intenção de estabelecer uma forma definida na
organização da Igreja, como perpétua e obrigatória, e
afirmando que a vida cristã se incorporou na forma da
organização adaptada, às necessidades e circunstân-
cias do tempo apostólico, naturalmente dá pouca aten-
ção às alterações da ordem eclesiástica e da doutrina,
verificadas através dos séculos. A preocupação daque-
les que defendem tal teoria, é mostrar como e porque
as circunstâncias e necessidades contribuíram para a
transformação da simples ordem congregacional das
igrejas primitivas, em governo presbiterial, episcopa-
do simples, prelaticio, e finalmente no papal. Os de-
fensores dessa teoria consideram cada estado, como o
natural, senão o resultado de antecedentes, e, apesar
de não hesitarem em condenar práticas corruptas, es-
quivam-se de condenar qualquer instituição.
4. O Novo Testamento como norma autorizada.
Àqueles que aceitam os preceitos de Cristo e Seus após-
tolos, exarados no Novo Testamento, como norma au-
torizada para todos os tempos e circunstâncias, e na-
turalmente consideram qualquer desvio dessa norma,
ato contrário ao espirito do Cristianismo, embora ad-
mitindo que o Novo Testamento exponha apenas o re-
sumo, deixando ainda muito para ser posteriormente
determinado pela sabedoria e bom senso das corpora-
ções de crentes que observem as ordenanças apostóli-
INTRODUÇÃO 17

cas, e se sujeitem á direção do Espirito Santo, recusam


aprovar qualquer vio'acao daquilo que consideram
princípio fundamental da norma apostólica.
O historiador eclesiástico que estuda o desenvol-
vimento histórico do cristianismo, sem perder de vista
a norma apostólica, deve ser como nenhum outro,
amante da verdade, justo, benevolo, e entre todos o
mais escrupuloso na exposição dos fatos.

I I I . PERÍODOS HISTÓRICOS
Por conveniência dividiremos em sete períodos,
os desenove séculojggta era cristã, fazendo ressaltar de
cada um deles, os tópicos mais importantes para o nos-
so estudo:
1. D o nascimento de Cristo até o f i m da idade apos-
tólica, 1 — 100.
2. Do f i m da idade apostólica até a adoção do Cristia-
nismo como religião do Estado, 100 — 3 2 3 .
3. Da adoção do Cristianismo como religião do Estado
até a fundação do Santo Império por Carlos Magno,
323 — 800.
4. Da coroação de Carlos Magno até a Reforma Pro-
testante, 800 — 1517.
5. Da Reforma Protestante até a Paz de Westfália,
1517 <— 1648.
6. Período de transição da Idade Média aos tempos
modernos, 1648 — 1789.
7. O Cristianismo contemporâneo, 1789 — 1946.

I V . V A L O R DO E S T U D O D A H I S T Ó R I A
ECLESIÁSTICA

O estudo da história é por todos considerado como


elemento valiosíssimo na cultura. A história universal
ficaria incompleta e até incompreensivel sem o conhe-
t
[JIAAJ^U^
18 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

cimento da evolução histórica do Cristianismo, torna-


se porém compreensível e clara, quando Jesus Cristo
é reconhecido como a sua figura central. De um
lado o passado com os seus sistemas de filosofias, re-
ligião e governo, serviu de preparação para a vinda
de Cristo, pelo outro, o Evangelho, a religião fundada
sobre o nome e ensino de Cristo, é em bom sentido, o po-
der agressivo e conquistador. Sem o estudo das dezenas
dc sistemas doutrinários e das múltiplas formas de or-
ganização, vida e culto que proliferaram â sombra dos
ensinamentos de Cristo, através de quase dois mil anos
de sua existência histórica, seria impossível entender
o que é modernamente Cristianismo.
Sob certo ponto de vista, a história das igrejas
cristãs, é a história da vida cristã. O conhecimento do
sofrimento do povo de Deus e o modo leal e heróico
por que êle tem pelejado e triunfado, levam-nos a con-
siderar refletidamente as experiências da vida cristã,
comuns a todos os tempos e lugares. Mesmo a falsida-
de daqueles que têm professado o Cristianismo e vivem
ainda nas suas antigas relações e pecados para com o
mundo, nos adverte contra a hipocrisia, assim como
não nos causam desânimo os que cumprem imperfei-
tamente os seus deveres cristãos.
O estudo da História Eclesiástica dá-nos oportuni-
dade de estudar através de longos períodos de tempo,
o desenvolvimento das grandes doutrinas do cristia-
nismo.
A História Eclesiástica é um comentário vivo e mo-
vimentado das Escrituras. Em muitos dos seus ensi-
nos, ela nos dá uma exemplificação prática que faz sal-
tar aos nossos olhos, com o relevo das realidades his-
tóricas, os males decorrentes dos desvios de princípios
evangélicos. Quanto maior fôr o desvio, tanto maior
será o mal. Embora mostremos benevolência para com
IS
I N T R O D U Ç Ã O IS

aqueles que têm caído em erros, o estudo da História


Eclesiástica, nos adverte contra a tendência de transigir
com as pequenas aberrações doutrinárias, pois as gran-
des heresias e corrupções observadas no decorrer dos
tempos, tiveram origem nesses desvios, muitas vezes
muito subtis.
Sem receio de contestação, diremos que a quase
totalidade das pequenas seitas, procederam por igno-
rância da História Eclesiástica, pois se os seus funda-
dores tivessem estudado o desenvolvimento histórico
do Cristianismo, não nas teriam criado, A generaliza-
ção e o melhor conhecimento dêsse estudo, serviriam
para unificar o pensamento a respeito do que deve ser
o Cristianismo, contribuindo assim poderosamente para
n unidade cristã.
A história das igrejas cristãs, evidencia o triunfo
final do Cristianismo. Por mais de uma vez, a corrup-
ção tem-no atirado ao subsolo de mundo apóstata, re-
tardando a sua marcha; o fogo da perseguição o obri-
gou várias vezes a refugiar-se no interior das cavernas
e das espessas florestas, no entanto, a sua germinação
prosseguiu obscura, mas persistente, por entre as den-
sas camadas de erros, que finalmente rompeu para
alastrar-se com o vigor primitivo que lhe é peculiar.
Êsses fatos nos convencem da sua capacidade para ven-
cer quaisquer obstáculos que porventura ainda se en-
contrem, como um f i o de água cristalina que desliza
célere pelos campos, cuja vegetação beneficia e refres-
ca, indo depois atirar-se no seu escoadouro, consciente
de ter cumprido a sua missão.

V . O AMBIENTE EM QUE A P A R E C E U O
CRISTIANISMO

O Cristianismo nasceu na plenitude do Império


Romano, que constituía o mundo civilizado de então.
20 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Os seus cem milhões de habitantes, gozavam dos limi-


tes territoriais que sc estendiam ao derredor do Mar
Mediterrâneo, Durante os primeiros quinhentos anos,
quase não ultrapassou esses limites. Para compreender
o meio em que êle nasceu, e a atuação dos seus primeiros
adeptos, é mister estudar os principais elementos que
formaram a civilização do Império.
1. Governo, A conquista romana fêz desaparecer
os obstáculos entre o oriente e o ocidente, como tam-
bém entre as províncias, sujeitando todo o mundo civi-
lizado ao governo absorvente de Roma. Os governado-
res ordinariamente nativos das respectivas províncias
eram diretamente nomeados pelo govêrno central. Varia-
va o desenvolvimento das administrações municipais, e
em certas províncias eram menos fortes e abundantes
os laços de sujeição ao poder central, mesmo que êste
não lhes tivesse dado margem à independência, Pode-
mos dizer que nos primeiros anos do império, o govêr-
no central era sólido e bem organizado, concedendo
às províncias certa liberdade, quiçá, bastante para nu-
lificar os lampejos de rebelião e autonomia.
2. Raças. Aquêles milhões de criaturas que se mo-
viam dentro das fronteiras do Império, pertenciam a
raças diversas. Os latinos que povoavam a Itália, e o
norte da África, gozavam da primazia. A língua ofi-
cial era a latina, como também era de procedência la-
tina, a classe militar. Os gregos, dispersavam-se por
toda a Grécia e i*has, Ásia Menor, norte e leste da Sí-
ria, Palestina, Egito, litoral da Itáia, Sicília, Roma
e sudoeste da Gália. Os judeus, que constituíam a
maioria da população da Palestina, enxameavam nas
cidades mercantis do Egito, Chipre, Ásia Menor, Gré-
cia, Macedonia, Itália, Espanha, Síria, Mesopotamia,
Pérsia, e ainda mais para o oeste, onde eram os pri-
meiros comerciantes.
IS
I N T R O D U Ç Ã O IS

Os outros semitas, eram os sírios, que viviam na


Síria, e Mesopotamia; os árabes, na Arábia; os feni-
cios na.Femcia e norte da África. Havia também ou-
tras raças nativas, como os celtas e os coptas do Egito
e os bérberes da África Setentrional. A o redor do Im-
pério, estavam, ao norte, ainda bárbaros nas florestas
virgens da Germânia, os germanos; e a oeste, os per-
sas, partos e citas, e ao sul, iia África e na Ásia, várias
tribos selvagens.
Condições sociais. As condições sociais do gran-
de Império Romano eram as mais lamentáveis possí-
veis. Por toda a parte predominava a mais férrea es-
cravidão, sofrendo os escravos tratos desumanos e bár-
baros. As crianças na sua quase totalidade, permane-
ciam sem educaçãtff havendo mui poucas escolas. A
mulher, era atirada à mais baixa e humilhante posição,
e muitas vezes arremessada à vala tôrpe da imoralida-
de. Os mendigos (somente os da cidade de Roma, eram
calculados em cerca de 200.000), viviam na mais vil
pobreza e cobertos de trapos e imundícias, enquanto os
ricos viviam como nababos engolfados em prazeres e
riquezas»
4. Cultura. Às massas populares eram em geral ig-
norantes, pois a educação entregue quase exclusiva-
mente aos cuidados dos escravos, era apenas literá-
ria, retórica e artificial. A Grécia porém, distinguia~se
como centro intelectual da época e os seus traços de re-
finada cultura eram relevantes. Entre esses salienta-
vam-se a língua suave e flexível, grandemente espalha-
da pelas conquistas alexandrinas; a literatura abun-
dante; as belas artes, com a surpreendente originalidade
e admirável senso de harmonia e proporção, que ain-
da são ressentidos na escultura e arquitetura contem-
porâneas, e finalmente a filosofia, que tem influen-
ciado a filosofia e teologia até o dia de hoje.
22 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

Á contribuição máxima dos romanos foi a ju-


risprudência e a ciência administrativa, pois a sua fi-
losofia e literatura, foram apenas imitação dos gregos.
O latim entretanto, tornou-se a língua culta do mundo
ocidental, conservando essa primazia, até data rela-
tivamente recente.
5. Religião. Todas as religiões eram nacionais,
nenhuma pessoal ou universal, e exceto o judaísmo,
todas eram políteistas, com divindades de ambos os
sexos. Essas religiões na. sua maioria ritualistas, dei-
xando os seus seguidores em completa ignorância re-
ligiosa, disputavam entre si a primazia, chegando al-
gumas vezes à violência louca e desenfreada. Às con-
quistas romanas e as relações mercantis, desfizeram
de alguma sorte, as barreiras que separavam as reli-
giões, aproximando-as. Os gregos que eram semi-pan-
, teístas e intelectuais, embora fracos, cultuavam os seus
•i deuses como personificações dos poderes da nature-
za. Os romanos viam nos seus deuses atributos sociais,
I ou reprodutivos da família. Os judeus, seguidores da
J ; |1 única religião monoteista da antigüidade, mantinham
I 1 como fundamento da sua crença, a adoração dum Deus
| vivo, verdadeiro, absolutamente santo e criador de tô-
I , das as coisas. Insistiam nos mais sublimes preceitos
I 1 morais, pregavam a vinda dum Messias que viria ínau-
| gurar a idade áurea, conservavam um só templo como
J único sacerdócio, cujo culto era ritualista, embora con-
i; lassem com as sinagogas para a instrução religiosa e
culto sem sacrifício. O século que precedeu a vinda
í: ! de Cristo, caracterizou-se pelo ceticismo. No primeiro
século do Cristianismo, revívesceu a fé nas religiões
/; devido aos esforços do imperador Augusto e de outros.

1
IS
I N T R O D U Ç Ã O IS

V I . PREPARAÇÃO DO MUNDO P A R A O CRIS-


TIANISMO

1. O mundo pac/ão. O evento central na longa his-


tória do universo, è a vinda de Jesus Cristo como o
Salvador do mundo. Èle não é apenas o centro de tôda
a história, é a "pedra angular", o fecho do arco do uni-
verso. "Tudo foi feito por Êle; e nada do que tem sido
feito, foi feito sem Êle ( 3 ) . "Nele foram criadas todas
as coisas nos céus e sobre a terra... Todas as coisas
tem sido criadas por Èle e para Èle" (4). Desde que
Jesus Cristo é a figura centrai e o seu advento à terra
é o evento central da história, é natural considerar o
periodo anterior ao seu nascimento, como o de prepa-
ração para a sua vm<fa, e a história posterior à sua mor-
te, ressurreição è ascensão, como o período do desen-
volvimento das idéias que Ê!e ensinou e dos altos ideais
que Èle exemplificou. Agostinho declarou muito tem-
po depois: " O Novo Testamento está escondido no Ve-
lho e o Velho está revelado no N o v o " .
1) Observação Geral. O Cristianismo não encon-
trou um mundo vazio, antes, achou a mente humana
cheia de teorias quanto ao universo, à religião, ao pecado,
â retribuição e ao castigo. Mesmo entre os gentios, todos
com exceção dos poucos representantes da sofisticação
filosófica, criam na existência de um poder (ou poderes)
universal, supér-liumano e eterno, que controlava o
cies tino dos homens, e que devia ser adorado ou cuja ira
devia ser aplacada com orações, ritos e sacrifícios.
Era conceito geral que a terra era o centro do uni-
verso, em torno da qual giravam o sol, os planetas e as es-
tréias. Por cima, estava o céu, e em baixo a moradia dos
espíritos malignos e homens degenerados. Não havia

3) João 1 : 3 .
4) Col. 1:16
25
23 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

concepção das leis naturais. Todas as funções da na-


tureza eram atribuídas aos poderes invisíveis bons e
maus. Por isso admitia-se não somente a possibilidade
de milagres, mas também eram considerados inevitá-
veis quando operavam torças superiores. Cria-se que
o universo era habitado por uma infinidade de espí-
ritos bons e maus que influíam na vida humana. 0
povo em gerai eslava insatisfeito, inquieto e almejava
uma religião mais satisfatória.
2) Filosofias gregas e romanas. Entre os demais
cultos do Império romano, dominavam as idéias helenis-
las que de cerla maneira, abriram caminho para o
Cristianismo. No dizer do Di\ A . T . Roberlson:
Os romanos venceram os gregos, mas num certo sentido os
gregos venceram os romanos. A obra de Alexandre já tinha di-
fundido a língua e os costumes gregos no mundo ocidenlaí e a
unificarão do mundo sob o governo romano, não romanizou o
mundo de Alexandre, tanto quanto este helemzou o império de
Roma. A própria cidade de Roma tinha professôres gregos e j o -
gos gregos; e foi na língua grega que o apóstolo Pauio escreveu
aos cristãos de Roma. O resultado de^sa mutua influencia, foi
a fusão dessas duas civilizações exceto no norte cia África e no
ocidente (Esnanha, Gália e Ilhas Britânicas), Os romanos não
fizeram nenhum o.sfórç.o para eliminar a míluôncia da vida e
pensamentos gregos; pelo contrario, tornaram-se imitadores da
Grécia na literatura e na f i l o s o f i a . Assim, o heieoismo se tornou
a principal caracterisiica do mundo romano. Qualquer pessoa, em
qualquer lugar, podia faíar o grego e ser geralmente entendida.
O icoi.nâ, linguagem vulgar, era o sucessor direto do grego anti-
go e nêle è que o Novo Testamento foi escrito. Era a língua co-
mum do povo, do comércio, da vida e da literatura, (com exces-
são de alguns imitadores artificiais da clássica e famosa litera-
tura ática) ( B )

Sócrates (470? — 399 A . C . ) tinha chamado os ho-


mens do terreno de mera especulação sobre o univer-
so exterior, para a reflexão sobre a sua própria natu-
reza moral. Conhece-te a ti mesmo era a sua palavra
5) Estudos do Novo Testamento, págs. 11-12.
IS
I N T R O D U Ç Ã O IS

de ordem. Errou no -entanto, por identificar a virtude


com o conhecimento, isto é, em doutrinar que o saber,
resulta no f a z e r . Essa doutrina produziu tristes conse-
qüências na teologia cristã da era medieval.
Platão (427 — 347 A . C . ) o mais místico e espi-
ritual dos filósofos gregos, levou a idéia de Sócrates
mais adiante, ensinando qué ò conhecimento individual
não é somente desejável, mas também um dever. A
alma, ensinava êle, existiu antes do corpo, e por isso
é independente dêle e não está sujeita à deterioração.
Essa concepção de imortalidade da alma da qual o
corpo não participa, posto que menos desenvolvida que
a dos hebreus, induzia o pensamento nessa direção,
abrindo caminho |>gra o Cristianismo. Ainda que
Platão não chegasse^a reconhecer a existência dum só
Detis pessoal, a sua teoria de "idéias"' aproximava-o
dessa doutrina. O.bem, dizia êle, e não o acaso governa
o mundo. O reino de "idéias" é o ambiente verdadeiro
da alma que acha a sua maior satisfação na comunhão
com elas. A salvação consiste no reconhecimento da
*visão do bem e do belo, que a alma possuía antes de li-
gar-se com o corpo. Com razão podia o apóstolo Paulo
dizer que os filósofos estavam buscando a Deus, " s e
porventura o apalpando o achassem ainda que não es-
tivesse longe de cada um de nós" (6).
Aristóteles (384 — 322 A . C . ) procurou reduzir todo
o conhecimento humano, tanto físico como metafísico
num só sistema. A matéria, dizia êle, é apenas uma
substância potencial e eterna, e portanto, a finalidade
cio conhecimento. T o d o movimento do universo postula
um motor, por isso é necessário que haja um motor
imóvel. Êsse argumento para provar a existência de
Deus tornou-se célebre na teologia escolástica. Esta
causa não motivada, argumentava Aristóteles, age com

G) Atos 17:27
25 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

inteligência e propósito; portanto, Deus não é somente


o princípio, mais também a finalidade do processo no
desenvolvimento do mundo. O homem ainda que per-
tença ao mundo físico, possui, além do corpo e da alma
comuns a todos os animais, uma faisca divina, o logos
da mesma essência e natureza de Deus que é eterna e
impessoal. A felicidade, dizia êle é a finalidade do ho-
mem.
Dois séculos e meio depois da morte de Platão,
surgiu uin plalonisino modificado, o neo-platonismo,
que afetou profundamente a teologia cristã do tempo
de Agostinho em diante, ao passo que Aristóteles for-
mava a base da teologia esco'astica da idade média.
Até êsse tempo, os filósofos gregos visavam o ho-
mem exclusivamente à luz do seu valor ao Estado. As
conquistas de Alexandre (que morreu em 325 A . C . )
mudaram radicalmente êsse ponto de vista. E ao pas-
so que a cultura helênica se espalhava por todo o ori-
ente, os estados da Grécia como entidade política, de-
sapareciam. Mas, dificilmente se podia verificar uma
mesma devoção para com o vasto império romano como
a que os cidadãos de Atenas dedicavam ao seu pequeno
estado independente. Começaram então, os filósofos
a interpretar as coisas à luz da vida individual. Pode
o indivíduo alcançar o supremo bem? Foi uma de suas
perguntas. Duas foram as respostas, — a do epicurismo
e a do estoícísmo. Aquele era francamente antagôni-
co ao espírito do Cristianismo, êste, tendo alguma coi-
sa em comum com o Evangelho, influenciou profunda-
mente a teologia posterior,
Epicuro (342 — 270 A . C . ) ensinou que a felici-
dade na vida atual é a finalidade do homem. Isso não
implica necessariamente no viver dissoluto, pois no
conjunto, tal procedimento não produz a maior soma
de felicidade. No entanto, a aceitação da doutrina de
que o prazer é o único critério do procedimento, tendia
IS
I N T R O D U Ç Ã O IS

para a corrupção da moral dos seus adeptos. Gradu-


almente a distância entre o verdadeiro e o falso, en-
tre o bem e o mal, entre a virtude e o vício se apaga-
vam, e os praticantes dessa doutrina nada de restri-
ção moral ou religiosa sentiram. Dessa forma foi que
a filosofia grega provocou uma licenciosidade pior que
a do oriente, e que por fim, abalou os alicerces da so-
ciedade greco-romana.
Parece que Epícuro pessoalmente foi de vida moderada e
austera ou pelo menos, não mais dissoíuta que a dos seus contem-
porâneos. Mas as suas doutrinas, substituindo o bem pelo prazer
e o mal pela dor e estatuindo como norma suprema de moral um
critério eminentemente subjetivo, tornaram-se mais tarde a dis-
solução de Lodo o vinco isprat e o germe da abominável corrup-
ção de costumes que tez Be epícuro, o sinônimo do homem, sen-
suaS, efemmado, incapaz de qualquer esfôrço ou luta morai pelo
dever ( r ) .

Outra resposta à pergunta: Pode o indivíduo al-


cançar o supremo bem? — foi a do estoicismo, fundado
por Zeno, em cerca de 308 A . C. A base fundamental
dêsse sistema foi o seu materialismo panteístico. A
moralidade consiste em viver conforme a razão. A vir-
tude é o único bem; a felicidade suprema consiste na
submissão voluntária á fatalidade das leis cósmicas,
cuja ínexprabilídade o homem racionalmente reconhe-
ce. O mal único, é o vicio, a revolta contra a harmonia
das leis naturais. A felicidade consiste no desprezo dos
prazeres humanos, meio único de alcançar a impassi-
hilidade absoluta.
Como sistema de moral propondo uma regra de preceder basea-
da na razão e apregoando o desprfizo dos prazeres sensíveis, eleva-
se cie muito, acima da degradação geral do tempo, mas perde quase
todo ôste merecimento quando ensina o fatalismo que tende a di-
minuir o valor da personalidade humana, quando justifica o sui-
cídio, condena a compaixão para com os que áofrem e sobretudo,

7) Leonel Franca, Noções da História da Filosofia, pág. 59.


28 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

quando em todos os seus preceitos, deixa transparecer êsse o r -


gulho secreto que lhe inquma tòda a virtude, transformando-a
em vã ostentação da austeridade D ,
O monismo pregado pelos estoicos influenciou
profundamente a teologia cristã. Diz Newman, que
" O sentimento moral dos escritos de Sêneca, Epiteto e
Marco Aurélio é tão elevado e puro que sugere
uma dependência das fontes cristãs (9) >
O povo entretanto, que jazia na torpe superstição
pouco aproveitou dos sistemas filosóficos. Cria-se em
muitos deuses. Cada cidade ou vila tinha seu deus ou
deusa padroeiro; a p r o f i s s ã o , a arte, a lavoura, as es-
tações do ano, o lar, o casamento, o nascimento, etc.,
tinham respectivamente um deus especial. Também o
povo, conservador como sempre, convicto de^que qual-
quer desvio das tradições dos antepassados provoca-
va a ira dos deuses, que faziam cair sobre os trans-
gressores grandes calamidades, como sêcas, tempes-
tades, pestes, etc., (doutrina que causou muita perse-
guição a cristãos posteriormente e que ainda é motivo
de perseguição aos evangélicos no Brasil), se opunha
à propagação de novas religiões. Por outro lado, os
imperadores visando o interesse político, se esforçavam
para revigorar e unificar as religiões nacionais. Ha-
via mais patriotismo que religião na maior parte das
religiões anteriores ao Cristianismo.
intimamente porém, os homens de então, como em
todos os tempos, sentiam a necessidade de uma reli-
gião mais profunda e satisfatória que filosofia e ce-
rimônias .
3) As religiões misteriosas. De todos os cultos da
era religiosa na qual o Cristianismo nasceu, nenhum
era mais popular ou mais difundido que as chamadas
8) Leonel Franca, Idem.
9) Newman, A Manual of Church History, v . I, pág, 2-6.
IS
I N T R O D U Ç Ã O IS

"religiões misteriosas", que tiveram a sua origem na


antigüidade e floresceram nos últimos séculos antes da
vinda de Cristo. Embora diferentes, sua finalidade
era a mesma: libertar os seus adeptos, da escravidão
da carne e assegurar-lhes uma imortalidade feliz, que
conforme seus ensinos, podia ser alcançada somente
por meio de deuses-salvadores que morreram e ressus-
citaram.
As religiões misteriosas eram ricas em simbolismo.
Pretendiam alcançar a redenção dos seus adeptos da
mortalidade, e do mal no qual os homens se achavam
implicados. Eram altamente emocionais e algumas até
orgiacas. Prometiam satisfazer a ânsia pelo conheci-
mento do divino por 1keio de informação e de proces-
sos de cujo segredo se arrogavam a posse exclusiva.
Dizem que as religiões misteriosas influenciaram o
Cristianismo. Também há os que afirmam que o Cristia-
nismo era apenas uma forma dos mistérios. Que estes
contribuíram grandemente para a transformação do
ensino cristão dos três primeiros séculos no Catolicis-
mo do quarto século em diante, pode-se provar; mas
que influenciaram na formação do Cristianismo
primitivo, não há provas cabais. Nos volumosos docu-
mentos cristãos dos primeiros quatro séculos encon-
tram-se poucas referências aos mistérios. Como rivais
da nova fé, não preocuparam tanto a atenção dos es-
critores cristãos como a filosofia ou as religiões nacio-
nais .

2. O mundo judaico. Desde o cativeiro babilôni-


co, a Palestina, com excessão dos cem anos de indepen-
dência sob os Macabeus (167-63 A . C . ) , tinha sido tri-
butária sucessivamente da Assíria, Pérsia, Macedonia,
Egito, Síria, e de Roma, no tempo de Jesus e dos após-
tolos.
O cativeiro babilônico deixou indelèvelmente os
30 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

seus resultados nas instituições e no modo de pensar


dos israelitas.
A deportação não foi completa. Alguns, especial-
mente das tribos do norte, permaneceram no país, en-
quanto outros da tribo de Judá, refugiaram-se no
Egito e noutras terras. Enquanto as tribos do norte na
sua grande maioria, permaneceram na terra do cativeiro
e caiu na idolatria, as do sul, conhecidas como judeus,
reagiram contra as influências do paganismo e na afli-
ção, cultivaram o lado espiritual da religião, repudiando
h idolatria. O monoteísmo pregado através das Escri-
turas Sagradas, foi melhor compreendido e a idolatria
licenciosa que outrora atraía o povo, tornou-se repug-
nante.
Os judeus receberam de braços abertos os conquis-
tadores persas, que professando um dualismo relati-
vamente puro e rejeitando a idolatria dos babilônios,
tinham com os judeus, muito em comum.
O sistema dualista dos persas, cuja colaboração é
geralmente atribuída a Zoroastro (cerca de 660 — 583
A. C . ) , distingue-se vantajosamente dos sistemas pan-
teístas e politeistas do Oriente, pela doutrina de liber-
dade e responsabilidade humanas, que firmou a base
para uma moralidade relativamente pura. Ensinava
que a doutrina persistente do bem, enerva o mal; pug-
nava pela pureza física e moral e insistia na prática da
generosidade e retidão com a máxima insistência na
veracidade. Rejeitava o ascetismo e alimentava o gozo
de tudo quanto a natureza prodigalizasse. Ensinava
as doutrinas da ressurreição e vida de felicidade ou
castigo de além túmulo, dependente do caráter da vida
presente, e fixada pelo juízo, logo que o espirito dei-
xasse o corpo. Acreditava no céu, no inferno e purga-
tório; na vinda de um salvador, no triunfo final do rei-
no de Ormasde e na degradação de Daevas, o malévolo;
"na profundidade das trevas e no mundo horroroso do
IS
I N T R O D U Ç Ã O IS

inferno"/Prestava culto a um sem número de divinda-


des inferiores e as ladainhas fazem lembrar as da Igre-
ja Católica da atualidade.
Podemos dizer que os persas influíram muito no
modo de pensar e agir dos judeus, como por exemplo:
na excessiva escrupulosidade dos judeus subseqüentes,
ultrapassando as prescrições da lei Ievítica; na descri-
minação entre o puro e o impuro; na relativa indife-
rença para com o culto do templo; na popularização
da instrução e do culto centralizados na sinagogas,
mantidas em todas as partes onde se achavam grupos
de judeus; na obstinação dos judeus em não se corrom-
perem çom a idolatria; e na elaboração de um sistema
de angeologia e demonologia encontrado nos livros apó-
crifos e escritos durai!te o período do domínio grego.
A sinagoga que tão grande parte teve na dissemi-
nação do Cristianismo na era apostólica e que parece
ter tido a sua origem durante o exílio babilônico, era
simultaneamente esco'a biblica e lugar de adoração.
Foi em conexão com o culto nas sinagogas, particular-
mente na "Grande Sinagoga" em Jerusalém, que se en-
volveu o Talmude, um conjunto de tradições, e que sur-
giu uma classe de doutores da lei, chamados escríbas,
que como intérpretes da lei, tornaram-se os verdadei-
ros guias do povo.
A sinagoga era uma congregação local que abran-
gia todos os judeus do distrito e governada por um
grupo de "anciãos", presididos por um " c h e f e " que ti-
nha o poder de excomungar os perturbadores. O culto,
que era simples e familiar, consistia na oração e lei-
tura das Escrituras em hebraico e explicação em ara-
maico. Qualquer hebreu, incluindo visitantes, a con-
vite do " c h e f e " podia palestrar sobre o texto lido. Por
causa da crescente importância das sinagogas, o tem-
plo, ainda que ocupasse lugar central no sistema judai-
co, tornou-se menos vital na vida religiosa do povo, á
32 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

medida que se aproximava o tempo de Cristo, de tal


modo que no ano 70 A. D., foi totalmente destruído
sem modificar grandemente os elementos essenciais
do Judaísmo.
A influência helênica na vida e no modo de pensar
dos judeus começou com as conquistas alexandrinas,
e intensificou-se durante a dominação selêucida, pro-
vocando por fim, a revolta dos ortodoxos sob a chefia
dos Macabeus (167 A . C.)> Essa nobre família que su-
biu ao poder sob a onda nacionalista e zêlo religioso,
tendia gradualmente para o helenismo e ambição po-
lítica.
Sob o regime de João Hircano, cujos adeptos eram
chamados saduceus e que se tornaram os propagan-
distas da cultura greco-romana, atraiu para si a maio-
ria da casta sacerdotal. Os saduceus rejeitavam a lei
oral e negavam a ressurreição, a existência de anjos e
a vida futura. Ainda que poucos em número e geral-
mente hostilizados pelo povo, que combatia qualquer
influência estrangeira, gozavam de muita influência po-
li líca e intelectual.
Por outro lado, os fariseus eram os expoentes do
Judaísmo tradicional e o baluarte contra as tendências
helenizadoras da época. Mesmo em quantidade maior
que os saduceus, nunca chegaram a ser numerosos. A o
judeu da plebe faltava a educação nas minúcias da lei
mosaica e tempo suficiente para ser fariseu. A atitu-
de do fariseu para com a massa popular, era de despre-
zo (10), Sendo porém ultranacíonalistas, as suas dou-
trinas eram geralmente aceitas. Interpretavam a lei,
k luz das tradições, e criam em anjos, na ressurreição e,
como o povo em geral, na vinda de um Messias político
e um reino temporal. A maior parte do ensino farisai-
co era verdadeira. Porém a falha do farisaismo era
10 João 7:49.
IS
I N T R O D U Ç Ã O IS

dupla: Reduzindo a religião à guarda da lei, não liavia


mais lugar para o cultivo do espírito nem aproximação
pessoal de Deus, excuindo também das promessas di-
vinas todo aquele cujas falhas o impossibilitassem de
alcançar o seu padrão. ES, deserdando a "ovelha per-
dida" de Israel, recebeu merecidamente a condenação
de Cristo.
A crença na vinda do Messias, doutrina claramen-
te ensinada através do Antigo Testamento, fora mais
vivida nos tempos da depressão nacional. Durante o
período da independência sob o domínio dos Maca-
beus, essa esperança esmoreceu, para reviver com mais
ardor sob o podeFroinano (de 63 A . C. em diante) .
Pouco antes, e no tempo de Cristo, era crença geral que
o rei messiânico, da descendência de Davi, estabelece-
ria o seu trono em Jerusalém, reunindo os judeus dis-
persos por todo o Império Romano, e inauguraria o
período áureo. Para a maioria entretanto, o reino mes-
siânico não significava outra coisa senão a expulsão dos
romanos e a restauração do reino de Israel, mesmo que
alguns esperassem a "consolação de Israel" (11).
Calcula-se que pouco antes da era cristã havia cin-
co ou seis vezes mais judeus fora da Palestina do que
no próprio pais. ÍTsses foram mais influenciados pela
filosofia grega, com especialidade os judeus do Egito.
Em Alexandria o Antigo Testamento havia sido vertido
para o grego o que tornou as Escrituras judaicas lar-
gamente acessíveis. Aí, principalmente sob a influên-
cia do judeu Filo (20? A . C. — 42? A . C . h que ten-
tava pelo método alegórico conciliar o ensino do Velho
Testamento com a filosofia grega, a helenização dos
judeus alcançou o maior êxito.
Segundo Filo, havia um só Deus que criou o mun-
do como a expressão da sua bondade para com a cria-
11) Lucas 2:25.
M O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

tura; mas entre Deus e o mundo, havia uma infinida-


de de poder es divinos, sendo o mais importante, o lo-
gos que emanou de Deus e por quem foi criado o mun-
do e o homem ideal de que o homem é uma cópia imper-
feita, obra dos poderes inferiores conjuntamente com
o logos. Mas, ainda no seu estado decaido o homem,-
por intermédio do logos pode voltar à harmonia com
Deus. Mesmo que a concepção de Filo não se equipare
á do Novo Testamento, revela que jà era sentida a ne-
cessidade de uma mediação entre Deus e o homem.
Ten-oflo
©

PRIMEIRO PERÍODO

0® üas€ifftenf© cie Cristo até © fim da-


I d a d e tikpo$télU&9 1 «=

CAPÍTULO I

FUNDANDO O CRISTIANISMO
#
I. OBSERVAÇÕES GERAIS

De acordo com a referência feita anteriormente, o


Judaísmo desenvolveu-se gradualmente sob o podero-
so influxo das civilizações pérsica, grega e romana,
produzindo uma literatura abundante e notável. Não
obstante isso. permaneceu ainda descontente e ansioso
com os olhos voltados para a vinda do Messias, porta-
dor de novas esperanças.
O que contribuiu sensivelmente para o desconten-
tamento do povo judaico, foi ter a filosofia banido a
crença da mitologia popular substituindo-a pelo ceti-
cismo grego, cuja divisa era: "Gozai folgadamente o
presente", Isso despertou a necessidade dum Salvador
e, quer os judeus quer os gentios, convencidos dessa
verdade, aguardavam a vinda daquele que deveria ser
a suprema esperança nacional, e em quem todos rea-
lizariam as niais nobres aspirações espirituais.

I I . O PRECURSOR
0 ministério de Jesus foi precedido pelo curto mi-
nistério de seu primo João Batista, jovem das monta-
nhas da Judéia, que passou muito tempo de sua vida,
no deserto fora do contacto dos homens. Tinha êle
cerca de 2fi anos quando começou a pregar o que era
-•» .-í • •• - •'• •" • ••-••••< •

35 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

virtualmente uma nova religião. Sacerdote de nasci-


mento, desprezou por completo o templo e a religião
cerimonial e nacional do seu povo, proclamando o ar-
rependimento pessoal como base da aceitação de Deus.
Descender de Abraão, era insuficiente, dizia êle, para
entrar no reino de Deus que estava próximo; os homens
teriam de produzir os frutos de um arrependimento sin-
cero. Proclamava que o Messias, por tanto tempo espe-
rado estava prestes a aparecer, com a pà na mão para
limpar a sua eíra, recolher o trigo do seu celeiro, e quei-
mar a palha 110 fogo inextinguiveL Batizava no Jordão e
declarava que o Messias batizaria com o Espírito San-
to e com fogo. Apontava Jesus como "O Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo". Dentro em pouco
foi encarcerado, por criticar a vida intima do gover-
nador, e meses depois degolado.
As idéias de João não eram novas. Encontravam-
se nos ensinos espirituais do Antigo Testamento, prin-
cipalmente nas profecias e nos salmos. Eram porém
novas, por combater a existência da base racial e ceri-
monial da religião e em insistir sobre o preparo espiri-
tual do coração. Para êle, a religião era pessoal e espi-
ritual e não nacional e cerimonial. A única cerimô-
nia por êle praticada, era o batismo após o arrependi-
mento dos pecados.

III. O FUNDADOR

O apóstolo Paulo nos informa que Cristo veio "na


plenitude dos tempos (1), De fato, o Cristianismo foi
favorecido pela região e pelo tempo em que nasceu.
Originou-se no mundo mediterrâneo, o maior e mais
importante centro da civilização de então. Herdeiro
como era, da longa história judaica, e sendo s e u inicio
1) Gál. AA: Mat. 13:13
FUNDANDO O CRISTIANISMO 37

quase contemporâneo 90 nascimento do Império Ro-


mano, o Cristianismo gozava das vantagens de paz e
unidade política, cultura comercial e lingüística pro-
movida por êle. "Se o reino do céu é semelhante ao
fermento e a humanidade semelhante a uma massa de
farinha, a massa deveria ser" ájuntada antes de ser le-
vedada. Êsse ajuntamento foi feito pelo Império Ro-
mano".
Também o primeiro perid€o de expansão do Cris-
tianismo coincidia com a transformação política, so-
cial e religiosa do mundo mediterrâneo. Libertados das
antigas ancoragens, os homens buscavam segurança;
uma agitação religiosa despertava seus espíritos. Com
o transcurso dos séculos e a decadência das velhas ci-
vilizações e, mesmo do Império Romano, os homens se
esforçavam para encontrar a salvação nas religiões,
mas somente puderam achá-la na religião de Cristo.
Nunca antes, na história humana, as condições eram
tão favoráveis ao nascimento de uma nova religião.
Cristo apareceu "na plenitude dos tempos",
Jesus que principiou o seu ministério aos trinta
anos, aliou-se a João Batista, recebendo o batismo das
suas mãos, e proclamando a mesma mensagem de ar-
rependimento baseado na proximidade do reino. Dizia
Êle, que viera buscar e salvar o que se havia perdido.
Aceitando a origem divina e a veracidade dos ensinos
espirituais do Antigo Testamento, Êle edificou sobre o
fundamento de Moisés e dos profetas. Ainda que não
condenasse diretamente a lei cerimonial, proclamou os
princípios que haviam de anulá-la. Durante os três
anos de sua atividade pública, viveu imaculadamente,
chamando os homens ao arrependimento e a uma vida
mais nobre, inculcando a f é em Deus e nÊle mesmo e
sempre colocando o homem acima de qualquer dou-
trina ou instituição. Ensinava como quem tinha auto-
38 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

ridade, e não *se limitava como os escribas, a citar au-


toridades antigas. Denunciava a hipocrisia dos fari-
seus e tinha compaixão dos desprezados. Não hesitou
em ensinar que Êle mesmo era o Filho de Deus, o Fi-
lho do homem, o Messias, o cumprimento de tôda a pro-
fecia. Predisse a sua morte, ressurreição e ascensão e
declarou que voltaria outra vez para julgar os vivos
e mortos. Veio para estabelecer o reino de Deus nos co-
rações dos homens.
A oposição que se organizou no principio do seu
ministério, ganhou força até que conseguiu a sua morte
ignominiosa na cruz do Calvário. Ao terceiro dia foi
encontrado vazio o seu túmulo que fôra selado e guar-
dado por sentinelas romanas. Durante os quarenta dias
seguintes aqueles que. o conheceram mais intimamente
se convenceram de que Êle havia ressuscitado da mor-
te. Viram-no repelidas vezes; escutaram o seu ensino;
examinaram-lhe as feridas, viram-no aparecer e desa-
parecer, Numa ocasião foi visto por mais de quinhen-
tos. Não podia haver dúvida quanto à sua identidade.
Finalmente viram-no subir da terra e desaparecer nos
céus, findando assim, a sua vida terrestre.
Os historiadores antigos não erain precisos quanto
às datas dos acontecimentos narrados. No entanto,
Lucas dá dois subsídios da data do nascimento de Jesus.
Primeiro o recenseamento geral mandado fazer pelo
imperador Augusto e segundo, o primeiro recen-
seamento ordenado por Quirino, governador da
Síria. Até data recente esses indícios, perfeita-
mente claros e contemporâneos de Lijcas, foram
para os leitores posteriores bastante obscuros. Dos pa-
piros egípcios, sabe-se agora que Augusto tinha por
costume fazer um recenseamento geral de quatorze em
quatorze anos. As recentes descobertas de W . M.
Ramsay, revelam que Quirino, conforme o historiador
F U N D A N D O O CRISTIANISMO 39

Josefo, governador da Síria no ano 6 A . C., tinha sido


enviado previamente à Siría em conexão com o recen-
seamento . O único ponto obscuro, è o ano exato em que
Jesus nasceu. Que o ano 1 fixado por Dionisio Exiguo
no sexto século, como o tempo do nascimento de Cris-
to e principio da era cristã?- está errado, é universal-
mente aceito. Mateus (2) nos informa que Jesus nas-
cera antes da morte de Herodes o Grande, e Josefo mar-
ca o ano 4 da era cristã como a data da sua morte.
Muitos argumentos indicam m ano 5 como a data do
nascimento de Cristo, ainda que o último recenseamen-
to mencionado pareça favorecer uma data de um ou
dois anos antes. Sabe-se porém, que nas províncias, os
recenseamentos nem sempre eramí executados com
prontidão.
Nada absolutamente se sabe quanto ao mês e dia
do ano em que se verificou o nascimento de Jesus, ex-
ceto que não se podia ter dado em 25 de dezembro.
Lucas nos informa que na noite em que Jesus nasceu,
pastores guardavam o seu rebanho nos campos. Como
os rebanhos eram levados ao pasto no tempo da pás-
coa e ali ficavam até o meado de outubro, quando co-
meçava o inverno, Jesus deve ter nascido entre abril e
-outubro.
Também não é possível determinar com precisão
o tempo do ministério de Jesus, Os Evangelhos sinòp-
ticos mencionam apenas uma páscoa, a em que Jesus
foi crucificado. João porém, menciona três (3) e o
ministério de Jesus começou alguns meses antes da pri-
meira. Por isso, calcula-se que o seu ministério durou
pelo menos dois anos e meio; provavelmente três e
meio, pois ainda que a festa mencionada em João 5:1,

2) 2:1-12
3) João 2 0:4; 12:1
39 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

não seja urna páscoa, as muitas atividades do Salva-


dor parecem exigir pelo menos, três anos.
Pode-se dividir o ministério público de Jesus da
forma seguinte: (a) seu ministério na Judéia, dado
somente por João (4), e que incluí alguns dos seus atos
e ensinos mais importantes: a purificação^ do templo,
a conversação com Nicodemos, o testemunho de João
Batista em Enon, a visita a Samaria; (b) seu ministé-
rio na Galiléia até a escolha dos doze, dado principal-
mente pelos sínóptícos, com paralelos em João; (c)
continuação do ministério na Galiléia até a parti-
da para Jerusalém; (e) seu ministério na Peréia em ca-
minho para Jerusalém; ( f ) a semana da paixão;
(g) quarenta dias entre a ressurreição e ascensão.
Os quatro Evangelhos registram os atos e ensinos
de Jesus Cristo e relatam, em conjunto, tudo quanto o
Espirito Santo julgou preciso revelar a respeito do Ver-
bo que se fez carne. B por meio dos seus escritos, João
levantou o véu do passado, expondo os fatos e relações
eternas que dizem respeito á Trindade. São suas as
seguintes palavras: " N o principio era o Verbo (Logos)
e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Tô-
das as coisas foram feitas por Êle, e sem Èle nada do
que foi feito se f ê z . Nêle estava a vida e a vida era a
luz dos homens. Era esta a luz verdadeira que alumia a
todo o homem que vem ao mundo, E o Verbo se fêz
carne e habitou entre nós". Nestas singelas, porém
profundas e expressivas palavras, não encontramos
expressões semelhantes às máximas vazias dos filósofos
gregos, e sim afirmações verídicas da identidade de Jesus
Cristo, o Verbo que se fêz carne, com o eterno Deus
criador do universo.
Jesus o Messias esperado e anunciado pela profe-
cia do Velho Testamento, assumiu a árdua e edifican-

i) João 2:13-4:42.
FUNDANDO O CRISTIANISMO 41

te tarefa de estabelecer na terra o reino de Deus, de-


clarando porém de antemão, que o seu reino a despeito
de não ser deste mundo, estava dentro do crente, e que,
apesar de pequenino como grão de mostarda, se tor-
naria em breve, uma árvore frondosa em cujos ga-
lhos as aves do céu fariam ninhos; que era semelhan-
te a um pouco de fermento levedando assim tôda a
massa; compilou-o também à pérola de, grande preço
e ao tesouro escondido no campo que despertaria o in-
teresse de serem possuídos, ainda mesmo pelo mais
alto preço. Tal reino não teria funcionários, sede de
governo, nem associações mundanas; seria antes, um
reino espiritual, cujos súditos deveriam ser indivíduos
que crescessem à sombra da sua divindade, difundissem
induzidos pelo amor, a sua missão, obedecessem á sua
vontade, estivessem sempre unidos com Èle em seus
planos e propósitos, prontos a levar a cruz, a sofrer
tôda a difamação e romper os laços sociais que porven-
tura os estivessem impedindo de o seguir,
A relação existente entre os seus seguidores e Êle,
deveria ser como a das varas para com a videira; e
como a condição essencial â entrada no reino de Deus,
os seus discípulos deveriam nascer de novo, nascimento
êsse, que implicava na completa e real transformação
do caráter e da vida.
Jesus apresentou-se ao mundo como o revelador
do Pai, de quem procedeu e para quem voltaria, como
o caminho, a verdade e a vida, isto é, o caminho pelo
qual os pecadores poderiam voltar para o Pai com a
revelação de tôda a verdade que precisavam conhecer,
e a Vida por cuja participação e mediante a fé, pode-
riam se tornar filhos de Deus.
Estabelecidas as primeiras noções do reino, Jesus
cheio de abnegação assumiu a responsabilidade da sua
gloriosa missão entre os homens, apresentou-se volun-
42 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

tàríameiite como pastor, realizando pela sua morte na


cruz, o resgate de muitos.
Poucas vezes Jesus pregou ás grandes multidões,
e o Sermão da Montanha foi o mais célebre dos seus
discursos. Nesse belo trecho da literatura bíblica, o
Salvador não se referiu à fé, ao arrependimento, à ex-
pi a cão, ao batismo, mas contrastou a vida do seu reino,
com a do judaísmo ensinando que o Evangelho não
consisie absolutamente em ritos e cerimônias, mas na
vida nova do homem novamente nascido.
0 Sermão da Montanha encerra grandes verdades
sobre a moral e estabelece a conformidade pessoal com
a lei de Deus que é a lei do amor,
Jesus ensinava por parábolas, afim de exaltar as
verdades divinas; era sobremaneira hábil nas entrevis-
tas pessoais, como sabemos das que manteve com Ni-
codemos e a mulher samaritana. Algumas dessas pará-
bolas confundiam os seus opositores, deixando-os per-
plexos quanto à sua exata significação; mas Jesus sem-
pre as explicava aos discípulos mais íntimos, expon-
do-lhes assim, os seus pianos e propósitos.
Os milagres praticados por Jesus não tiveram
como objetivo saciar a curiosidade popular, mas foram
eloqüentes atestados da idoneidade das suas preten-
sões messiânicas.
Não obstante as atividades missionárias de Jesus
Cristo terem sido circunscritas à Palestina, o Mestre
viu-se logo acompanhado por centenares de indivíduos
que adotaram as suas doutrinas, e por um pequeno
grupo de discípulos obedientes e dedicados. Apesar de
tôda a dedicação de alguns deles, indo até à morte, os
discípulos não entenderam completamente as palavras
do seu Mestre, não compreenderam a sua grande e glo-
riosa missão em favor dos filhos perdidos da casa de
Israel. O Calvário porém, revelou-lhes em toda a sua
realidade, a grandiosa obra que Jesus veio realizar en-
tre os homens, e o consummation est, desfazendo planos
F U N D A N D O O CRISTIANISMO 42

que pareciam ainda acalentados, levou-os à beira do


túmulo, onde verificaram na ressurreição do Mestre o
cumprimento de tudo quanto Êle lhes ensinara. E a
ressurreição do Mestre implantou-lhes na alma, pro-
funda convicção de que era Êle realmente o Filho de
Deus, e os levou a empreender, corajosamente a evan-
gelização do mundo.
A vida e trabalho de Jesus Cristo, não devem ser
apreciados somente pelo número dos que seguiram as
suas doutrinas, porém petos resultados do seu trabalho
e ensino nas gerações futuras.
O Dr. James Stalker, referindo-se ao assunto, es-
creveu em sua importante obra sobre a vida de Jesus:

Jesus só Leve trôs anos para o cumprimento cia sua missão.


Se atendermos para a rapidez com que decorrem três anos na vida
de qualquer pessoa, e do pouco que geralmente produzem, pode-
remos avaliar a caoacidade e natureza daquele caráter, e a uni-
dade e intensidade de propósito daquela vida que em tão curto
espaço de tempo deixou no mundo i,ão profunda e indelével im-
pressão o deixou a tôdas as gerações vindouras tão grande tegaiío
de verdades e influência. E ' geralmente admitido que Jesus apa-
receu como um homem público, em cuja mente, as idéias se acha-
vam inteiramente desenvolvidas e coordenadas; em cujo caráter
havia uma perfeita determinação, em cujos desígnios não havia
a menor sombra de incerteza. A razão disto deve estar em <jue
durante Os trinta anos que antecederam a .ma apresentação em
público, as suas idéias, caráter e desígnios passaram, por todos
os períodos de um desenvolvimento cabal. Para quem tinha Lodo
o poder à sua disposição, trinta ano,g de afastamento e reserva
representam, um longo período. Nada houve nÈIe depois, de mais
sublime é majestoso, do que aquôle relraimento, tanto no falar
como no agir. que o caracterizava.
O autor termina o seu precioso estudo com as se-
guintes palavras de apreciação ao caráter e vida de
Jesus:
Uma vida não termina mesmo para Gste mundo, quando o
corpo por meio do qual se tornou visível durante algum tempo,
desaparece da superfície da terra.
Entra na corrente da vida humana, cada vez mais caudalo-
44 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

sa, e aí, contínua ia atuar com tôda a sua f ò r ç a . D e fato, a verda-


deira magnitude de um ser humano, só pode ser apreciada me-
diante essa vida posterior. E assim, sucedeu com Cristo. A m o -
desta narrativa dos evangelhos tfíal nos prepara para a explosão
da fôrça criadora que dimanou da sua vida quanta esta parecia
ter findíulo. A sua influência sôbre o mundo moderno, é uma
evidência de quão grande era Êle; pois é certo que tudo quanto
existe no efeito deve existir na causa. Êle, por assim dizer, c m -
giu a vida dos homens, e fêz com que esta florescesse com um
vigor provindo necessàríamente de uma origem espiritual. Absor-
veu tôdas as demai £ influências, assim como um rio poderoso
que corre pelo meio de um continente, recebe tributários que os
montes lhe enviam. E a sua qualidade é mais excepcional do que
a sua quantidade.
A evidência mais importante porém, é que Êle se acha não
na historia da civilização moderna, nem na história pública da
igreja visível, mas na consciência de uma sucessão; >de verdadei-
ros crentes que de mãos dadas têm formado a passagem através
das gerações cristãs para terem contacto pessoal com Êle. O que
tem sido experimentado por miriades de almas por Êle- resgata-
das, tanto de si mesmas como do mundo, prova que a história
foi dividida ao meio com a aparição de um Ftegenerador, que não
era um simples elo da cadeia dos seres humanos, mas Aquele que
a raça humana, com os seus recursos não poderia ter produziüo
— o tipo perfeito — o homem dos homens. O que tem sido
experimentado pelas consciências mais sensíveis que o mundo
já viu tanto da santidade de Deus, como do seu estado de p e -
cado, mas que podem regozijar-se numa paz com Deus, que ó o
mais patente motivo para uma vida santa, prova que no decor-
rer dos séculos, se efetuou um ato de reconciliação em razão ido
qual os pecadores poderão manter unidade com um Deus santo.
O que tem sido experimentado por miríades de espíritos que goza-
ram da bem-aventurança de contemplar um Deus, que aos olhos
purificados pela palavra de Cristo, é uma luz tão completa em
que não há treva alguma, prova que a última revelação feita pelo
Eterno ao mundo, realizou-se mediante um que o conhecia tão
.bem que não podia deixar de ser divino.
A vida de Cristo jamais desaparecerá da história. A sua in-
fluência aumenta cada vez mais; as nações mortas estão à espera
que ela as atinja também, e é a esperança de todos os fervorosos
espíritos que estão clamando pela nova terra. Tôdas a s desco-
bertas do mundo moderno, todo o desenvolvimento das mais jus-
fas idéias, das mais elevadas fôrças. dos mais sublimes sentimen-
tos da humanidade, são apenías novos auxiliares para interpretá-
io, e a elevação da vida aonivet das suas idéias e do seu caráter, é
o programa da raça humana.
F U N D A N D O O CRISTIANISMO 45

A vitalidade do que se chama Cristianismo, quan-


do traçada à sua fonte, originou-se na pessoa, no ensino
e na obra de Jesus Cristo. Nele, na sua morte e na con-
vicção da sua ressurreição se encontram a explicação
do triunfo do Cristianismo. Sem Êle o Cristianismo
não teria existido; Êle é a gerador dinâmico que tem
impulsionado o Cristianismo através dos séculos.
I V , OS CONTINUADOBES
1. O programa do Senhor ressuscitado
Com pequenas excessões, Jesus tinha limitado o
seu ministério aos judeus na Palestina, Grande parte
dos últimos meses da sua vida f o i consagrada ao prepa-
ro de um pequeno grupo de homens que havia de con-
tinuar o trabalho depois da sua retirada. Sua última
ordem foi que somente depois de revestidos pelo poder
do Espirito Santo, deviam sair para fazer discípulos
de tôdas as nações (5). 0 programa do Senhor ressus-
citado, conforme Atos 1:8, era que homens fortaleci-
dos pelo Espirito Santo, deveriam partir de Jerusalém
e fazer a conquista do mundo inteiro por uma campa-
nha de testemunho. Seguindo êsse plano, os apósto-
los iniciaram-na onde se achavam, mas com os olhos
sempre fitos no mundo.
Efetivamente, o testemunho fortalecido pelo Es-
pírito Santo, gradualmente ganhou terreno até se esta-
belecer firmemente em Jerusalém ( 6 ) . Dêsse centro,
começou a irradiar-se primeiro entre os judeus mestiços»
em Samaria (7), depois aos estrangeiros simpatizantes
ao culto de Jeová dentro do país ( 8 ) . De Antioquia,
como novo centro, o testemunho foi levado aos estran-
5) Mateus 28:19
6} Atos 2:14-0:1
7) Atos 6:8-9:31
8) Atos 9:32-12:20
46 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

geiros puros, fora do pais, que nada tinham de comum


com a sinagoga judaica (9) e, finalmente aos judeus
gentios, o centro do mundo de então (10),
Êsses três passos foram tomados a despeito da opo-
sição e às vêzes, da violência dos judeus ortodoxos.
Houve dias perigosos através dos quais o novo movi-
mento teve de passar, mas as fogueiras da perseguição,
apenas esx^alharam faíscas e fíamas; novos centros de f é
e ardor cristão surgiram por todo o Império Romano.
2. O dia de Pentecostes
Dkz dias depois da ascensão de Cristo, desceu o
poder sòbre o grupo em Jerusalém, acompanhado de
sinais tão evidentes que não restava a menor dúvida de
que Jesus estava i\ destra do Pai como havia profeti-
zado.
Nesse dia de Pentecostes a pequena igreja de 120
membros foi acrescida de mais de três mil, e dentro de
pouco tempo, contava com cinco mil homens e sem dú-
vida, muitas mulheres (11). Mais adiante somos infor-
mados de que se divulgava a palavra de Deus, e se
multiplicava muito o número dos discípulos em Jeru-
salém; também muitos sacerdotes obedeciam à f é (12).
Estalou uma forte perseguição chefiada por um homem
aristocrata fariseu de Tarso cujo nome era Saulo, re-
sultando por fim, no martírio de Estêvão, um dos sete
escolhidos pela igreja para administrar a distribuição
de alimento entre seus pobres.
3. O Evangelho transpondo Jerusalém
Tão severa foi a perseguição que dispersou os mem-
bros da igreja de Jerusalém, exceto os apóstolos, pela

9) Atos 13:1-19:20
1Ü) Atos 9:21-28:31
11) Atos h:h
12) Atos 6:7
F U N D A N D O O CRISTIANISMO 47

região da Judéia e Samaria, os quais "iam por toda a


parte pregando a palavra" (13),
Felipe, outro do primeiro grupo de diáconos, "des-
ceu à cidade de Samaria, proclamando-lhes Cristo",
Tão grande foi o êxito de sua missão entre os judeus
mestiços que despertou a atenção da igreja de Jerusa-
lém, enviando esta, os apóstolos Pedro e João para in-
vés tigà-Ia (14). Êstes aprovaram o trabalho de Felipe,
e, o mais significativo, é que êles mesmos, na v*olta para
Jerusalém, "evangelizaram muitas aldeias dos sama-
ritanos",
Pouco depois, Pedro, que havia por fim, saído a
campo, e que chegara a Jope foi convidado por um cen-
turião (que fora favorecido por uma visão), para pre-
gar o evangelho a alguns oficiais e soldados romanos
em Cesaréia, capital militar da nação. Para seu gran-
de espanto, e também dos cristãos que o acompanha-
vam, desceu o Espirito Santo sobre êsses gentios e êles
falavam línguas tal como os judeus cristãos no dia de
Pentecostes. Essa manifestação da aprovação divina
levou Pedro a propor que os novos conversos fossem
batizados, e não havendo objeção por parte dos seus
companheiros de viagem, "ordenou que fossem bati-
zados em nome de Jesus Cristo" ( ( 1 5 ) , O caso levantou
forte questão na igreja de Jerusalém, e "disputavam
com èle, (Pedro) os que eram da circuncisão dizendo:
Entraste em casa de homens incircuncisos, e com es te com
èles'\ Mas, quando Pedro acabou de lhes explicar as
circunstâncias, "se apaziguaram e glorificaram a Deus
dizendo: Assim, pois, Deus também aos gentios deu o
arrependimento para a vida" (16). Vencido estava o
primeiro passo na libertação do Cristianismo dos mol-

VA) Atos 8:4


H) Atos 8:2-2<í.
15) Ato? 10 : •(-'(8
10) Atos 11 :1S
47 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

des judaicos. A igreja mãe, ainda que não convencida,


submeteu-se, mas nada fêz para levar o evangelho aos
gentios dentro e fora do pais.
4. 0 Evangelho levado aos gentios
Algum tempo depois dêsse incidente, houve um
esforço mais importante em prol da evangelização dos
gentios. Alguns dos cristãos que foram expulsos de Je-
rusalém, pela perseguição,. logo depois da morte de
Estêvão, eram nativos de Chipre, e Cirene. Havendo
vivido entre os gentios, parece que tinham menos pre-
conceito contra êstes, do que os que viviam em Jeru-
salém. 0 certo, é que, logo que chegaram a Antioquia,
capital da Síria, começaram a pregar aos gregos resul-
tando em que " u m grande número converteu-se ao Se-
nhor" (17), A noticia dêsie fato, criou nova sensação na
igreja de Jerusalém e para investigar a situação foi
enviado Barnabé " o qual, quando chegou e viu a gra-
ça de Deus, se alegrou, e exortava a todos a perseverar
no Senhor com firmeza de coração" (18), Provavel-
mente, sem voltar a Jerusalém, Barnabé continuou em
Antioquia e dentro em pouco, havia uma forte igreja
ali.
Um pouco antes do último incidente, o perseguidor
Saulo se convertera e tinha começado a pregar primei-
ro em Damasco, depois na Arábia, novamente em Da-
masco e por fim em Jerusalém. Por causa da oposição
desta última cidade, tinha êle sido enviado a Tarso, sua
cidade natal, onde passou alguns anos na ohscuridade,
ainda que, sem dúvida, se ocupasse no estudo e na
evangelização da zona.
Barnabé, achando o trabalho em Antioquia muito
pesado para êle, "partiu para Tarso em busca de Saulo,
e tendo-o achado, levou-o a Antioquia", onde "durante
17} Atos 1:2
18) Atos i 1:23.
F U N D A N D O O CRISTIANISMO 49

um ano inteiro se reuniram com a igreja, e instruíram


muita gente". Ai " e m Antioquia, os discípulos pela pri-
meira vez foram chamados cristãos" (19).
Até êsse tempo parece que a propagação do Cristia-
nismo não tinha sido plangjpda pelos discípulos, antes
lhes tinha sido imposta pe ! a liderança da providência.
Mas a hora tinha chegado para um esforço mais agres-
sivo e bem planejado. Enquanto um grupo de obreiros da
igreja de Antioquia "ministravam perante o Senhor e
jejuavam'\ provavelmente em demanda de direção di-
vina para a prossecução da obra missionária, "disse-lhes
o Esp^-ilo Santo: Separai-me Barnabé e Saulo para a
obra a que os tenho chamado" (20). Em obediência â
chamada divina, partiram os missionários na sua pri-
meira viagem que os levou através da ilha de Chipre e
a certas cidades importantes da Ásia Menor. Tanto ju-
deus como gregos se converteram apesar da oposição
das autoridades judaicas. Na Antioquia da Pisidia mo-
dificaram definitivamente a posição dos gentios. Na
administração das ordenanças e na organização das
igrejas, judeus e gentios eram considerados igualmen-
te, Em cada igreja, foram nomeados anciãos para con-
servar a organização e prosseguir na obra de evangeÜ-
zação,
Paulo fêz mais duas longas viagens missionárias
através da Ásia Menor e sudoeste da Europa, atraves-
sando a Macedonia e a Grécia e talvez, chegando até
às costas do Adriático. Na volta da terceira viagem,
levantou-se contra ê'e um tumulto instigado pelas au-
toridades judaicas em Jerusalém, para onde êle tinha
levado uma gx'ande coleta angariada entre as igrejas
gentílicas da Ásia Menor e Grécia para os judeus pobres
da igreja mãe (21), Foi pelos soldados romanos sal-
49) Atos 11:25-26
20) Atos 13:2
21) Atos 12:17 " E saindo retirou-se para outro l u g a r " ,
51
49 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

vo da fúria dos judeus, que certamente o teriam assas-


sinado, mas foi retido dois anos como prisioneiro em
Cesaréia, pelo venal governador Félix. Com a subida
de Festo ao poder, os judeus renovaram seus esforços
para apoderar-se de Paulo, forçando-o assim a apelar
para Roma, afim de ser julgado pelo imperador. Em
Roma foi conservado preso pelo menos por dois anos,
desfrutando porém, de liberdade para pregar e escre-
vei\ Depois disso, parece ter sido libertado e em segui-
da a uma viagem ao Leste, prêso outra vez, e finalmen-
te martirizado em Roma.
Com ex cessão das de Pedro, pouco se sabe defini-
tivamente das atividades dos outros apóstolos. A tra-
dição posterior à idade apostólica atribui grandes ati-
vidades missionárias a cada um, e pode haver alguma
base para essas conjecturas, mas nada de positivo se
,f sabe. Díz-se que Pedro chegou até Roma onde foi cru-
cificado de cabeça para baixo e que João morreu em
Êfeso no fim do primeiro século.
O certo, é que no fim do primeiro século, o Cristia-
nismo se havia firmado nos grandes centros comerciais
do Império Romano e feito algum progresso nos distri-
tos rurais. Em alguns lugares os cristãos constituíam
elemento de influência na sociedade.

V , A IGREJA D E ROMA

Nãc há nenhuma referência histórica de fonte ve-


rídica a respeito da fundação da igreja de Roma. A tra-
dição porém, afirma que o apóstolo Pedro, na oca-
sião a que se refere o escritor do livro de Atos (22), f o i
a Roma, em cuja sinagoga estabeleceu o centro de pro-
paganda evangélica que durou vinte e cinco anos, re-
sultando na organização da igreja. Essa tradição, no

22) Atos 16:1-21:30


F U N D A N D O O CRISTIANISMO 51

entanto» não pode ser sustentada, pois é geralmente


aceito, até pelos próprios eruditos católicos romanos,
que a suposta ida a Roma sucedeu em cerca do ano
42. E' evidente em Atos 15, que Pedro se encontrava em
Jerusalém dez anos depois dessa data. Verifica-se na
epístola aos Romanos, escrita seis ou sete anos mais
tarde (provavelmente em 58) que o referido apóstolo
ainda não havia estado em Roma quando a epístola foi
escrita, notando-se ainda em Atos 26, três anos depois,
quando Paulo chegou a Roma, que o apóstolo Pedro
ainda não visitara a capital do Império.
Com referência a outra tradição, que afirma
terem os apóstolos Pedro e Paulo sofrido martírio con-
juntamente por ocasião da perseguição movida por
Nero, muito pouco podemos deduzir, uma vez que dos
historiadores que referem o assunto, somente Eusébio
faz ligeiras alusões (23). 0 que afirmamos porém, é
que o apóstolo Pedro não tomou parte na organização
da igreja de Roma (24).

23) História Eclesiástica, T I X X V .


2A) The Expositors' Greek Testament, Vol- I I p. 558.
CAPITULO II

O CRISTIANISMO EM ATIVIDADE
I . UMA N O V A F ô R Ç A

Antes de findar o período apostólico, o Império


Romano jà começara a sentir que uma nova força di-
nâmica operava no seu meio.
Jesus tinha limitado o seu ministério aos judeus à
parte setentrional do pequeno pais da Palestina, em
grande palie aos pobres e iletrados; não tinha escrito
nada nem tão pouco mandado que outros escrevessem,
não havia levantado templo algum, nem fundado es-
colas, nem alistado ao seu lado os ricos e os poderosos.
Tinha apenas, criado num pequeno número de homens
vulgares uma nova vida, mandando-os ao mundo in-
teiro ganhar outros discípulos iguais a êles.
0 Cristianismo como força era principalmente um
novo tipo de vida — vida de santidade, amor e serviço.
Sua primeira exigência era santidade pessoal e justiça
para com outrem. Essas virtudes emanaram do amor
a Deus e se expressaram em serviços a outros. Todos os
homens eram reconhecidos como criaturas do mesmo
Criador, e, por esta razão como irmãos, qualquer que
fôsse a raça, côr ou condição social. Os Cristãos consti-
tuíram uma grande corporação fraternal unidos no mes-
mo espirito e com a mesma finalidade.
Êsse novo tipo de vida se baseava numa f é mais
ampla e definida no amor de Deus para com todos os
homens, f é que o mundo jamais tinha experimentado.
Era também inspirado por uma esperança mais clara
e racional da imortalidade. Pela primeira vez a vida
além-túmulo se tornara luminosa e atraente.
O CRISTIANISMO E M A T I V I D A D E 53

I I . 0 CONCiLIO DE JERUSALÉM

Desde a pregação de Pedro aos prosélitos, na casa


de CoiTiélio em Cesaréia, que Iiavía diferença de opinião
sobre a relação entre o Judaismo e o Cristianismo. Os
judeus cristãos consideravam o Cristianismo a conti-
nuação da religião judaica. Não tendo Jesus abolido
formalmente a lei, julgavam-na ainda em vigor. Acei-
taram Jesus como Messias, mas insistiam que os judeus
seriam salvos pela lei mais Jesus, e que os gentios eram
salvos por Jesus mais a lei. A noticia de que Paulo e
Barnabé, na primeira viagem missionária, tinham ba-
tizado e recebido nas igrejas, gentios sem a circuncisão
e observância de outras exigências da lei, levantou uma
grande questão na igreja de Jerusalém. Alguns dos
partidários dos judaizantes desceram a Antioquia acu-
sando os missionários de terem pregado um evangelho
defeituoso, dizendo: "Se vos não circuncidardes, con-
forme o uso de Moisés, não podeis salvar-vos",
Depois de muita discussão fútil na igreja de Antio-
quia "resolveu-se que Paulo e Barnabé, e alguns dentre
êles, subissem a Jerusalém, aos apóstolos e anciãos".
Ventilado o assunto em plena reunião concluiram que
não "perturbassem (com a observação da lei) aquêles,
dentre gentios que se convertessem a Deus". Esta reco-
mendação foi aceita pela maioria da igreja de Jerusa-
lém e por tôdas as igrejas gentílicas, mas houve um
grupo de reacionários que não concordou com a maio-
ria. Através da sua atividade missionária Paulo teve
que lutar contra esses "judaizantes",
Ainda que o cerimonialismo falhasse na sua pri-
meira investida, a tendência de adicionar "boas obras"
à graça como meio de salvação, tem continuado até o
dia de hoje, produzindo a igreja católica romana e a
grega, e neutralizando a espiritualidade de muitas
igrejas protestantes; infelizmente a doutrina paulina
54 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

da justificação pela f é tem sido substituída pela dou-


trina de "boas obras" pela maioria da chamada cris-
tandade atual.
0 Concilio de Jerusalém é de suma importância
histórica, não somente pelas suas resoluções liberais e
democráticas, como também por revelar-nos uma igreja
bem organizada em Jerusalém, cooperando eficiente-
mente com os apóstolos, anciãos e demais irmãos na ex-
tensão do reino de Deus até os confins da terra. Os
apóstolos, conforme nos deixa ver a narração bíblica,
foram os componentes dos princípios recomendados
aos gentios, os quais, conforme ficara estabelecido po-
deriam gozar as bênçãos do evangelho, sem se subme-
terem aos ritos e cerimônias do Judaísmo. E, assim,
tão liberal em suas opiniões e franco na maneira de ex-
por as suas recomendações, e por ter sido composto de
membros de igrejas independentes umas das outras,
êsíe concilio nenhuma semelhança tem com os da
igreja romana, que são tanto legislativos como execu-
tivos. Foi mais uma reunião de obreiros do que um
cpncilio.

III. PERSEGUIÇÃO

Os cristãos, desde a morte do seu fundador, sofre-


ram perseguições esporádicas. Geralmente estas su-
blevações foram instigadas pelos judeus e protegidas
pelos funcionários romanos. Até os gentios se levanta-
ram algumas vezes contra os seguidores de Cristo, mas
cumpre-nos declarar que antes do ano 64 não encontra-
mos nenhuma referência histórica de que algum funcio-
nário romano haja movido perseguições, ou assumido a
paternidade delas contra os cristãos.
Nero, porém, veio quebrar essa linha de procedi-
mento mantida pelos seus antecessores, embora nos
primeiros anos de seu "reinado", o evangelho gozasse
O CRISTIANISMO E M A T I V I D A D E 65

de relativa liberdade, possuindo seguidores entre os


altos funcionários romanos, e até mesmo na própria
casa imperial.
Filho da ambiciosa e intrigante Agripina e neto do
imbecil Carlos, Nero subiu ao trono ainda muito moço.
Versado na poesia e na musica, era jovial e humanitário,
tendo iniciado o seu governo com certa brandura e be-
nignidade. Dócil e bondoso, lamentava saber escrever,
sempre que era forçado a assinar sentenças de morte.
Foi durante o governo de Nero que Paulo escreveu Ro-
manos 13:1-17 e Pedro, I Pedro 2:13-17, e para
quem aquele apelou quando se tornou evidente que não
podia obter justiça na Palestina.
Não nos cabe estudar dentro dos limites do nosso
trabalho, a súbita transformação do humanitário e pu-
silânime Nero do ano 54, no monstro cruel de 62-68.
A história grava, indelèvelmente os seus odiosos cri-
mes como nódoa vergonhosa. No ano 55, por ocasião de
um f es tini, Nero cobardemente envenenou a Britânico,
seu irmão adotivo. Sua ferocidade chegou ao cúmulo
no ano 60, quando mandou matar a sua própria mãe.
Sanguissedento ainda, ordenou a morte de Otávía, sua
esposa, afim de casar-se com Pompéia. A sua vaidade
levou-o, certa vez, a fazer-se de bobo para ganhar os
aplausos populares. Monstro e devasso, Nero entre-
gou-se a tôda a sorte de prazeres ao lado das suas cor-
tezãs e favoritas, chegando ao desequilíbrio da razão.
Somente um louco teria praticado os atos que êle con-
sumou.
No verão do ano 64, com o fim de reedificar Ro-
ma, fêz lançar fogo a um bairro da cidade, acusando
após os cristãos da perpetração de tão abominável
crime.
Os escritores judaicos da época prudentemente
mantiveram silêncio sobre o tirano que governou o
56 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S
I;
imjjério, pois falar ou escrever a respeito do incêndio
de Roma seria expor a cabeça ao cutelo do algoz. So-
mente os escritores pagãos do século seguinte, fizeram
o histórico da perseguição sofrida pelos cristãos du-
rante o reinado de Nero. São do célebre historiador
Tácito as palavras que sobre o assunto transcrevemos:
Em primeiro lugar foram interrogado.- os que coníessaram;
ííutão, baseado na^ sua,-- informações, uma vasta mu.lidão .01
condenada, não tanto peta cuíj a de incendiános, como peto ódio
para com a raça humana. A -Ua morte t'01 tornada mais cruel
pelo escárnio que a acompanhou. Alguns foram vestidos de p e -
les e despedaçado petos cães; outro,.- morreram numa cruz ou
nas chamas; ainda outros foram queimados depois do pôr do
sui. para assim alumiar as trevas. Nero ma-rao cedeu o próprio
jardim para o espetáculo; deu uma exibição no circo e vestiu-
-e de cocheiro, 01 a associando-se com o povo, ora guiantio o pró-
prio carro. Assim, ainda que culpados e merecendo a s ena mais
dura, tinha-íe compaixão dõles, pois parecia que estavam sofren-
do a morte, não parn beneficiar o EUudo, mas para satisfazer a
crueldade de um indivíduo ( * ) ,

Domíciano (81-86), filho de Vespasiano, era aris-


tocrata, arrogante, desconfiado e cruel. A o contrário
de seu pai, exigiu dos seus súditos, a adoração como
prerrogativa da coroa, tendo-se proclamado' "Deus",
"Júpiter", "Senhor Deus", etc. Zeloso pela manuten-
ção da religião do Estado, considerava as demais como
viveiros de traição, prejudiciais â ordem e á estabili-
dade do seu governo; por isso mesmo que se esforçou
em destrui-las. O senado romano opondo-se a alguns
dos seus decretos arbitrários, incorreu na desconfiança
do imperador, que, para vingar-se, decretou o bani-
mento de muitos senadores. Não satisfeito, instituiu
um sistema de espionagem, incitou os escravos a trai-
rem os seus senhores e intensificou ainda mais, nos úl-
timos dias do seu governo, as suas desconfianças e cru-
eldades. Os cristãos, particularmente os de Roma, so-

i l Anais, XV, 44.


O CRISTIANISMO E M A T I V I D A D E 67

freram horrivelmente em suas mãos, contando-se en-


tre êles alguns membros da nobreza. Perseguido pela
sua própria desconfiança que se lhe tornou um verda-
deiro fantasma, o imperador não trepidou em praticar
os mais abomináveis crimes, cuja soma foi elevada com
o banimento do apóstolo J ç ã o para a ilha de Patmos.
Referindo-se a Domiciano, o célebre Tertuliano
chama-lhe "uma porção de Nero quanto à crueldade".
CAPÍTULO III
¥
ORGANIZANDO O CRISTIANISMO
I . O REINO B A IGREJA

Como já notamos, o âmago do ensino de Jesus f o i


" O reino de Deus"; por isso não é de admirar que êle
empregasse o vocábulo "igreja" apenas duas vêzes (1),
enquanto que se encontra o mesmo 107 vêzes nos Atos,
nas Epístolas e no Apocalipse.
No ensino de Jesus o reino de Deus tem dois as-
pectos: primeiro o reino de Cristo, mediante o Espírito
Santo, no coração do homem, levando-o á completa sub-
missão à vontade divina; segundo, visando o tempo
quando todos os homens, regenerados pelo Espirito
Santo, mediante a obra expiatória de Cristo, reconhe-
cerão a paternidade de Deus e a irmandade dos con-
cidadãos, isto é, uma sociedade regenerada. A socie-
dade se regenera à medida que os seus membros são
regenerados pelo Espirito Santo. O reino de Cristo não d
deste mundo, mas os súditos são deixados no mundo
afim de conquistá-lo em nome do seu Rei. E' dever dos
súditos viver conforme os ideais do Rei e com os olhos
da fé sempre fitos na consumação final quando " O
reino do mundo passará a ser do nosso Senhor e de
seu Cristo", e êste será reconhecido por todos como " O
Rei dos reis, e o Senhor dos Senhores" ( 2 ) .
A igreja é apenas o agente do reino; o reino é o
fim e a igreja o meio para alcançar o f i m .
Segundo Jesus, a unidade da igreja seria mantida
não pela fôrça civil nem pela legislação eclesiástica, e

1) Mat. 16:18: 18:17.


2) Apoc. l i : 1 5 ; 19:16.
O R G A N I Z A N D O O CRISTIANISMO 59

sim pela obediência voluntária dos seus membros ao


mesmo Pai e pela fraternidade mútua.

I I . A IGREJA E AS IGREJAS

O vocábulo grego ecclesia, traduzido por igreja,


literalmente significa "uma chamada de fora", ou o
resultado da chamada do povo de fora, para fins pú-
blicos, significando por isso mesmo, assembléia. No
Novo Testamento, quanuo aplicado aos crentes, signifi-
ca: (a) o conjunto de todos os salvos, considerados como
um corpo unido pela crença em um Senhor comum e
pela participação de uma vida e salvação comuns, im-
pulsionados pelos mesmos fins e interêsses; (b) um
grupo de crentes que se reúne num lugar definido com
o fim de prestar culto a Deus, edificar-se mutuamente,
exercer disciplina e propagar a causa de Deus. Quando
o vocábulo igreja é empregado em sentido geral, não
se refere a nenhuma organização.

III. CARACTERÍSTICOS DAS IGREJAS

As igrejas primitivas eram compostas de crentes


batizados. O Novo Testamento em nenhuma de suas
páginas, faz a menor referência que prove ter a circun-
cisão substituído o batismo, e ter este sido administrado
âs crianças. Quer na leitura dos evangelhos e epísto-
las, quer na observação do governo das igrejas primi-
tivas, verifica-se que a religião do Novo Testamento é
absolutamente pessoal.
Excluindo a idéia de um sacerdote especial ou "custa
sacerdotal" dentro da igreja, o Novo Testamento en-
sina que cada crente é o seu próprio sacerdote. Por
certo essa doutrina não implica na identidade de fun-
ções, mas em igualdade de direitos e privilégios. ( 3 ) .
3) X Cor. 12.
60 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

E* fora de dúvida que as igrejas do Novo Testa-


mento eram autônomas e dirigiam os seus próprios ne-
gócios, internos e externos, dando conta de seus atos
somente a Cristo, que era o seu cabeça. Níão obstante,
elas cooperavam em perfeita união na difusão do
evangelho, mantendo reciprocamente, relações de au-
xilio pecuniário e de amor fraternal, não esquecendo a
influência moral que, com eficácia, umas mantinham
sobre as outras. E assim, ao passo que eram indepen-
dentes, tornavam-se também interdependentes.

I V . OFICIAIS DAS IGREJAS

N o Novo Testamento encontram-se três grupos de


oficiais, um transitório, e outros dois permanentes.
O vocábulo apóstolo é empregado no Novo Testa-
mento em dois sentidos: um lato e outro restrito. No
sentido mais largo incluí os missionários, como Barna-
bé, Apoio, Timóteo, Silvano, etc., e continuou a ser
aplicado a uma classe de evangelistas ambulantes,
muito depois da época dos apóstolos. No sentido mais
restrito, è usado somente em relação aos doze que fo-
ram escolhidos e educado por Jesus. Paulo deu como
razão do seu apostolado o fato de ter tido uma visão
de Cristo ressuscitado.
A linguagem clara do Novo Testamento nos leva a
dizer que os doze apóstolos nunca ocuparam cargos de
oficiais nas igrejas locais, mantendo muito embora, re-
lações paternais, aconselhando-as, guiando-as e admo-
est-ando-as. Esta relação nunca foi autoritária, mas
puramente moral,
Os oficiais permanentes de uma igreja do Novo
Testamento eram anciãos (presbíteros) e diáconos. Os
anciãos eram também chamados superintendentes e
ORGANIZANDO O CRISTIANISMO 61

pastores (4)., Em E f . 4:11, acha-se apenas o termo


pastor, porém em outras passagens escriturísticas,,
acham-se definidos, claramente, quais são os seus de-
veres, como por exemplo, em Atos 20:17-28. Esta pas-
sagem diz que o apóstolo mandara chamar os anciãos
da igreja de Éfeso. No decorrer da conversa que en-
treteve com êles, o apóstolo chamou-lhes bispos (supe-
rintendentes) e os exortou a vigiarem o rebanho como
pastores. Desta e de outras passagens onde se fala do
oficialato da igreja, depreende-se sem que reste dú-
vida alguma, que os têrmos ancião, bispo e pastor sig-
nificam uma só coisa; não designam três cargos, nem
três pessoas; mas um só cargo, Uma só pessoa. Os de-
veres do bispo, pastor e presbitero (ancião), acham-se
enumerados em X T i m . 3:17.
A palavra diácono quer dizer servo, e num sentido
geral foi muitas vêzes aplicada aos pastores e minis-
tros, como em I Cor, 3:5, onde Paulo e Apoio são cha-
mados diáconos no originai, e nervos, lia tradução bra-
sileira. Há, no entanto, duas passagens onde a palavra
è usada em sentido particular, a saber: Fil. 1:1 e I
T i m . 3:8-13. Talvez seria ir muito longe dizer que os
sete eleitos pela igreja de Jerusalém (5) seriam pro-
priamente diáconos, no sentido em que Paulo usa o
têrmo, ainda que fossem, por certo, os primeiros na
ordem que mais tarde daria origem ao oficio de diá-
cono que data desta passagem da vida das igrejas. Na
falta de instrução relativa aos deveres do diácono, ser-
vem as advertências aos sete em Jerusalém e algumas
outras indicações das funções que lhes estavam priva-
tivamente competidas: cuidar das finanças, zelar pe-
los bens da igreja. Em tôdas as funções os diáconos,
4) Vide, por exempto, as seguintes passagens: A t , 11:30* 14:
23; 20:17-28; F i t . i : 1; I T i m . 3:1; 5:17, 19; T i t o 1:5; T i a g o 5;
l i ; I P e d . G; 10.
5) Atos 0:1-6;
61 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

como os pastores, conservaram-se no mesmo nivel dos


demais membros, não constituindo um elemento à
parte. Em I T i m . 3:8-13, diz-se que o diácono deve ser
marido de uma só mulher, sério, firme na fé, mode-
rado, não de língua dobre, consciente no govêrno da
sua própria casa e seus filhos, e honesto.

V , ORDENANÇAS DAS IGREJAS

A religião de Cristo é essencialmente livre de mero


cerimonialismo. As duas ordenanças estabelecidas por
Cristo mesmo são de profunda significação religiosa.
Tendo, porém, seu lado cerimonial, facilmente se per-
verteram e degeneraram até ao nível dos ritos pagãos.
O batismo cristão é a imersão do candidato na
água como símbolo da morte para o pecado e
ressurreição para a nova vida (6). Jesus mesmo recebeu
o batismo das mãos de João Batista, vencendo a obje-
ção deste com as palavras "assim nos convém cumprir
tôda a justiça", Nesta ocasião a sua filiação divina foi
atestada pela descida do .Espirito Santo (7),
A significação do vocábulo, a descrição do ato em
cada caso mencionado no Novo Testamento, e o sim-
bolismo (sepultura e ressurreição) exigem que o ato
seja a imersão. O divino Mestre ordenou que o ato de
batismo seguisse a f é (8), e a natureza da ordenança o
faz aplicável só aos capazes de exercer a f é .
A ceia foi instituída e ordenada pelo Senhor ( 9 ) .
As passagens citadas abaixo, ensinam que tal cerimô-
nia foi observada só por crentes nas suas reuniões de
culto e como parte do culto. Não era um banquete so-
ôí R o m . 6:1-11.
7) Marcos 1:9-11.
8) Marcos 16:15-16.
9) Mat. 26:26-29: Mar. 14:22-25; L u c . 22:17-30: T Cor. 11:
22-26; A t . 2:42-46; 20:7; I Cor. 10:16-17; 11:17-34.
ORGANIZANDO O CRISTIANISMO 6$

ciai» um ato mágico, um privilégio do sacerdócio, nem


tão pouco uma prova de amor cristão, mas sim um ato
comemorativo da morte de Jesus Cristo. "Fazei isto
em memória de m i m " é a ordem do divino Mestre
(10).
V I . L I T E R A T U R A DO PERÍODO; — O NOVO
TESTAMENTO

Jesus nada escreveu e em nenhuma parte se en-


contra que êle ordenasse aos seus discipulos escreve-
rem a seu respeito e do seu ensino. E* possível que Èle
lhes falasse a este respeito, e há comentadores que
pensam até que alguns dentre os discipulos tomassem
apontamentos dos ditos e feitos de Jesus; contudo não
há prova direta de que tal acontecesse. A sua espe-
rança no futuro estava no Espirito Santo e nos homens
I)or Èle inspirados. Comissionou Êle os adeptos a leva-
rem o evangelho ao mundo inteiro, e êles, sob a. influ-
ência do Espirito Santo (11) descobriram que era pela
pena que podiam melhor obedecer esta ordem. O Novo
Testamento foi o produto das atividades e experiências
de Cristo e dos homens por Êle comissionados a pre-
garem o evangelho a tôda criatura. A Bíblia não f o i
criação direta de Deus, antes é a interpretação da in-
tervenção dele na vida humana.
W , O. Carver em três excelentes livros (12) mostra
como os escritos do Novo Testamento foram o produto
das atividades missionárias.
Houve muitos tratados que narraram os ensinos e
10) I Cor. 11:24.
I I ) "Porque a promessa jamais foi dada pela vontade dos ho-
mens, mas os homens, da parte de Deus falaram, movidos
pelo Espirito Santo" (1 Ped. 1 : 2 1 ) .
12) All the World in All the Word; The Course or Christian
Missions; Emu The New Testament Came To Be Written.
63 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

feitos de Jesus, dando especial ênfase à sua morte e


ressurreição. Èstes tratados tornaram-se necessários
devido ao alargamento do evangelho e à entrada nas
igrejas de muitos que não conheceram a Cristo na
carne nem gozaram a oportunidade de obter os fatos
diretamente dos apóstolos. Todos os crentes eram tes-
temunhas das boas novas e necessitavam da história
da vida do seu fundador, Os três primeiros evangelhos
(os sinópticos) são os únicos destes tratados que che-
garam a nós.
Lucas, o grande historiador da época, divide a
obra de Jesus em duas partes: aquilo que Èle fêz em
pessoa antes " d e ser recebido em cima" e aquilo que
Êle fêz do céu por intermédio do Espirito Santo, As-
sim escreveu as "boas novas" em dois tomos: o Evan-
gelho de Jesus Cristo e o Evangelho do Espirito Santo.
Aquêle nos diz como o evangelho se originou, este
como o evangelho se espalhou por todo o Império Ro-
mano. Os Atos dos Apóstolos são a um tempo o pri-
meiro capítulo da história das missões e o livro de mé-
todo das missões em todos os tempos.
Havia necessidade de interpretar aos novos con-
versos, nos campos missionários, a vida e as doutrinas
cristãs. Esta. necessidade foi suprida por certas epísto-
las de Tiago e Paulo: Tiago, I e II Tessalonicenses, Gá-
Jalas, Romanos e Efésios,
A organização das igrejas, a disciplina e o culto
eram novidades para os novos conversos. Precisavam
de instrução, que lhes foi dada em I e I I Corintios.
Houve quem se opusesse ao progresso do evange-
lho; outros que negaram o ensino quanto à pessoa e
obra de Cristo; e outros dentro das próprias igrejas,
que interpretavam erradamente estas e outras doutri-
nas fundamentais. Para corrigir estas idéias errôneas
e controverter as heresias pregadas pelos pagãos, os
O R G A N I Z A N D O O CRISTIANISMO 65

missionários escreveram a epístola aos Hebreus, os


Evangelhos, I e II Epístola, de João e Colossenses.
Em I e II Timóteo, Filipenses e III João encon-
tramos as mensagens dos grandes missionários apostó-
licos aos missionários da .segunda geração e aos que
sustentavam os missionários, enquanto que Filemom,
trata de uma/ questão social num novo campo missio-
nário .
A I e II Epístolas de Pedro, Judas e Apocalipse
foram escritas para animar e fortalecer os novos cris-
tãos em tempo de perseguição,

V I I . V I D A CRISTÃ

Os cristãos deste período vieram, na sua maioria,


do proletariado, que é sempre o elemento mais acces-
sivel nos campos missionários. Houve, na verdade, al-
guns das classes mais elevadas tanto na política como
na sociedade. Na ilha de Chipre converteu-se um go-
vernador; em Roma, membros da "casa de César" fa-
ziam parte da igreja; em vários lugares homens e mu-
lheres da alta sociedade aceitaram o evangelho.
Quanto á raça, eram principalmente judeus e gre-
gos; outras nações porém fizeraxn-se representar, Nos
cultos e na correspondência, geralmente empregava-se
o grego, mas o aramaico, siriaco e outros idiomas fo-
ram também usados.
A vida cristã de modo nenhum era ideal. Vindos
na sua maioria das classes mais baixas da sociedade
pagã, não se podia esperar que os cristãos se livrassem
de vez da corrupção da sua vida primitiva. As igrejas
foram perturbadas por partidos, facções, contendas,
cismas, antagonismos raciais, embriaguez, imoralida-
de, orgulho e vaidade. Mas por outro lado, em con-
traste com os pagãos que os cercavam, manifestaram
muitos rasgos de caráter tais como, caridade, amor e
10 G O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

abnegação. Os pecados mais graves eram punidos pela


exclusão da comunhão da igreja e pelo ostracismo da
sociedade cristã. Fazía^se esforço heróico para man-
ter a honestidade e a casticíade.
Em face da perseguição os cristãos mostraram-se
serenos e fortes. Alguns apostataram e entristeceram
os fiéis, porém muito maior foi o número dos que se-
renamente sofreram prisão, multas, exílio, castigo cor-
poral e até morte.
No Cristianismo primitivo não se encontra nada de
monaquismo e ascetismo. Os cristãos geralmente se
abslinham de comer carnes oferecidas aos ídolos e de
tomar parte nas festas pagãs. Também se negavam a
ocupar posições civis e militares que embaraçassem a
vida cristã. Era um povo tranqüilo, pacífico e zeloso
pelas boas obras.
SEGUNDO PERÍODO

Desde os tempos dos Apóstolos até a


adoção do Cristianismo como
religião do Estados~1®®-323
CAPÍTULO i

"POR FORA COMBATES, TEMORES


POR DENTRO"

I . PERSEGUIÇÃO

1. Causais da perseguição

O Império Romano apenas tolerava a religião dos


povos conquistados, enquanto ela não tentasse fa-
zer prosélitos. Dai o motivo porque o Judaísmo era
considerado religião licita, enquanto que o Cristia-
nismo j^Ugmo^licila, uma vez que empregava todos
os recursos possíveis afim de fazer prosélitos.
0 Cristianismo, devido â sua tendência para tor-
nar-se universal e viver independente do Estado foi
considerado pelas autoridades romanas, para quem o
Estado era tudo, como elemento pernicioso às institui-
ções do Império . Além disso a determinação dos cris-
tãos de se separarem do mundo, levou-os a serem consi-
derados como ateus — inimigos dos deuses e da hu-
manidade, incorrendo assim no maior crime da época.
Aindai mais, as reuniões noturnas que realizavam às
caladas da noite, e as relações mais intimas que man-
tinham entre si, deram lugar a que os acusassem de
libertinagem. Tudo quanto era mau lhes f o i atribuído,
63
67 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

e essa má reputação deu origem ás mais cruéis persegui-


ções.
Tendo os cristãos sido 1'ecrutados quase exclusiva-
mente de entre as classes sociais mais humildes, foram
desprezados e considerados inúteis pela orgulhosa
classe de escol. Mesmo alguns filósofos sinceros e no-
bres classificam-nos de fanáticos.
O Cristianismo, porém, vencia todos estes obstá-
culos, ainda que em sua simplicidade tivesse prejudi-
cado os interesses de certas classes — os sacerdotes, os
vendedores de animais para o sacrifício, os fabricantes
e os vendedores de ídolos, etc.
A fome, os terremotos,. 'os revezes militares, as con-
flagrações, os incêndios, causaram sempre as m a i s ter-
ríveis perseguições contra os cristãos, pois-como inimi-
gos dos deuses, só êles podiam ter provocado suai ira e
por conseguinte, causado esses males.

2. Os imperadores e os cristãos

Entre os imperadores do segundo e terceiro sécu-


los, encontramos homens bem intencionados, refleti-
dos e moderados, dos quais se esperava o término das
atrozes perseguições de que, em geral, foram vítimas
os indefesos cristãos. Verificou-se no entanto, o con-
trário, pois dos mais refletidos e honestos, procederam
os mais nefandos decretos de perseguição e extermí-
nio. Mesmo os imperadores sèriamente interessados na
reabilitação do Estado decaído, tornaram-se insistentes
na perseguição e ódio aos cristãos. E' que predomi-
nava a idéia de que para reabilitar o Estado, se fazia
preciso, antes de mais nada, restaurar a religião nacio-
nal, e, como os verdadeiros ideais do Cristianismo fossem
desconhecidos, f o i êle sempre combatido como inimigo
do Estado.
< d P O R F O R A COMBATES, TEMORES P O R D E N T R O » 69

Trajano (98-117), induzido por Tácito e Plínio,


sustentou a religião do Estado como medida política
opondo-se, todavia, às sublevações violentas contra os
cristãos.
Adriano (117-138), não acreditava na religião po-
pular, tendo revelado grande interesse pelas religiões
estrangeiras, embola, como boa medida política, ti-
vesse sustentado a religião do Estado.
Antônio Pio (138-161) f o i um dos mais sábios e
justos imperadores; no entanto, durante o seu governo
os cristãos, a quem o povo fanático atribuía todos os
males, como a fome, os terremotos, os incêndios de
Roma, Antioquia e Cartago, sofreram constantes e cru-
éis perseguições. A despeito disso, porém, o Cristia-
nismo crescia com admirável resistência, vencendo he-
roicamente as vicissitudes, Nem mesmo o desapareci-
mento de centenares de cristãos, atirados ora a feras à
vista sanguissedenta do populacho, ora mandados para
bs degredos perpétuos, entibiou-lhes o ânimo. A per-
seguição nunca abateu o ânimo dos cristãos, nunca
lhes diminuiu o fervor e a crença; ao contrário, enco-
rajou-os mais, aumentando-lhes a f é e o amor â causa
que defendiam.

Marco Aurélio (161-180), cultor apaixonado da fi-


losofia, viveu simples e moderadamente, tendo procu-
rado governar com justiça. Ainda assim o Cristianismo
durante o seu governo sofreu perseguições mais atro-
zes que em qualquer outro período, exceto o de Nero,
cuja crueldade Marco Aurélio aborrecia e do qual disse
" n ã o ser homem". Imperador filósofo como lhe cha-
mavam alguns historiadores, excitou e promoveu
constantes perseguições aos cristãos, cujo fervor e en-
tusiasmo, considerava como mero fanatismo; e ainda
que não esposasse inteiramente a religião do Estado,
69 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

sustentou-a como necessidade política, Essás persegui-


ções» todavia, foram sobremodo favoráveis à propaga-
ção do Cristianismo, pois levaram o povo a investigar
a razão porque homens indefesos eram tão ferozmente
perseguidos, calando òtimamente no espirito popular °
modo resignado e calmo como êles sofriam pela. causa
que com tanto heroísmo defendiam. A consolidação da
igreja com seu episcopado monárquico, sua insistência
na autoridade e sucessão do cânon do Novo Testamen-
to, tomaram grande desenvolvimento durante êste go-
verno em que surgiu também a importante controvér-
sia a respeito da celebração da páscoa.
Cômodo (160-193), era dissoluto, tímido, desconfi-
ado, cruel e vingativo; no entanto, sua atitude para
com o Cristianismo, graças à influência de Márcia, sua
concubina favorita, que simpatizava bastante com os
cristãos, foi mais favorável que a de seus predecessores.
Sétimo Severo (193-211), não decretou novas leis
contra os cristãos, porém impôs o fiel cumpx*ímento
das que existiam, de forma que em nada foi o seu go-
verno mais benevolente para com os crentes que os dos
seus antecessores. Clemente de Alexandria-, escrevendo
sobre os acontecimentos dessa época diz: "Muitos
mártires estão sendo queimados, crucificados e degola-
dos diariamente perante os nossos olhos". Em 202 ou
203, Clemente foi obrigado a abandonar o seu traba-
lho e retirar-se da cidade, e o pai de Origenes foi su-
pliciado.

Caracala e Heliogábalo (211-222), foram dois dos


mais vis imperadores que, no entanto, toleravam o
Cristianismo. Quando Heliogábalo subiu ao trono era
sacerdote do culto siriaco, que consistia na adoração
do sol. Convergiu todos os seus esforços para fundir o
Judaísmo, Samaritanismo, Cristianismo e a religião do
<dPOR F O R A COMBATES, TEMORES P O R D E N T R O » 71

Estado, num só sistema em que predominasse a adora-


ção do sol. Mau grado, o Cristianismo desenvolveu-se
rapidamente, embora absorvesse do paganismo doutri-
nas que foram sobremodo prejudiciais à sua pureza.
Alexandre Severo (222-235), era bastante propicio
ao Cristianismo. A mãe, que lhe inspirava todos os
atos governamentais, aprendeu de Origenes, o grande
teólogo cristão, preciosas Jições sôbre os verdadeiros
princípios do Cristianismo.\E assim puderam os cris-
tãos gozar um período de "paz em que edificaram os
seus templos e progrediram materialmente. Por êsse
tempo florescia admiràvelmente a escola cristã em
Alexandria e a instrução religiosa em Roma tomava
grande impulso. Todavia, o Cristianismo ainda não ti-
nha sido declasado por decreto imperial religião legal,
movendo-lhe o senado e a aristocracia romana aberta e
tenaz oposição.
Décio Trajano (249-251), soldado italiano, levado
-ao''trono pelo exercito, considerou que o único meio
de assegurar a unidade e a estabilidade do império e
reabilitar e impulsionar a religião do Estado, seria a
supressão do Cristianismo pelo exterminío de seus lí-
deres. E para conseguir os seus propósitos, decretou
que os cristãos se conformassem com a religião do Es-
tado e participassem dos seus ritos e cerimônias. Por
certo os cristãos não se submeteram ao decreto impe-
rial por julgá-lo atentatório aos princípios da f é que
defendiam, sofrendo, por isso mesmo, o confisco dos
seus bens, exílio, prisão, trabalho nas minas, tortura,
execução pelo fogo, animais ferozes e espada. Nos pe-
ríodos em que a perseguição fora menos intensa, mul-
tidões se uniram ás igrejas sem a menor noção dos de-
veres da vida cristã. E, a maior parte nada sabia de re-
generação. 0 espírito mundano dominava por com-
pleto não só grande parte dos leigos mas especialmente
71 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

muitos dos clérigos que gastavam mais os seus esfor-


ços nas coisas seculares que no ministério da palavra.
Èsses, em vindo a perseguição, imediatamente se retra-
taram; porém os fiéis preferiam a morte â ignomínia.
Valeriano (235-2GG), no princípio do seu reinado
foi bastante benevolente para com os cristãos, porém
as calamidades que periodicamente tanto perturbaram
o império, levaram-no a publicar um edito muito mais
sanguinário que o de Décío. Cipriano, bispo da igreja
cie Cartago, Sixto, bispo de Roma, e muitos outros cris-
tãos dos mais influentes, foram supliciados, enquanto
que muitas igrejas viram destruídas as suas casas de
orações.
Galiano (260-268), sucessor de Valeriano, favore-
ceu os cristãos, fêz voltar os desterrados, restaurou us
propriedades da igreja e proibiu as perseguições.
Deste governo ao de Dioclecíano, os cristãos aprovei-
taram-se do período de relativa paz que lhes concede-
ram os perseguidores, para recomporem as suas for-
ças, crescerem em número e riqueza e aperfeiçoarem a
organização da igreja. Infelizmente ao lado do pro-
gresso, infiltrou-se na igreja o mundanismo com o seu
cortejo de calamidades e ruínas. Não menos prejudi-
cial foi a entrada dos pagãos com as suas doutrinas e
hábitos de vida que causaram tanta divergência e fra-
queza no seio das igrejas, a ponto de não se sentirem
êles em condições de enfrentar uma perseguição im-
placável.
Dioclecíano (284-305), talvez de origem escrava,
foi elevado ao trono pelas suas.proezas militares. Se-
guindo o proceder de alguns dos seus antecessores, êste
imperador sustentou para fins políticos a religião do
Estado insuflando cruel perseguição aos cristãos não
obstante terem sido cristãs, ao que parece, Orisca e Va-
<dPOR FORA COMBATES, TEMORES POR D E N T R O » 72

léria, sua esposa e filha. A perseguição começou por


um decreto imperial que obrigava todos os soldados a
sacrificarem aos ídolos, devendo ser excluídos os que
se recusassem a obedecer e executados os que mani-
festassem zêlo pelo Cristianismo, Além disto, o palá-
cio de Nicomédia foi incendiado em duas épocas dife-
rentes no ano 303, sendo acusados os cristãos, já bas-
tante perseguidos como incendiários. E não obstante
já terem os cristãos refeito as suas forças e recupe-
rado tudo quanto haviam perdido com as perseguições que
lhes moveram os imperadores Décio e Va eriano, muito
sofreram desta vez, em suas vidas e propriedades. Eusé-
bio, relatando os acontecimentos desse império, diz que
por tôda a parte foram publicados editos reais que man-
davam derrubar os templos, queimar as Escrituras,
desprestigiar aqueles que ocupavam posições honrosas,
e privar da liberdade os que persistissem fiéis ao Cris-
tianismo ( 1 ) . Èste edito publicado em fevereiro de
303, conforme Eusébio, foi seguido de outros decretos
que ordenavam que todos os oficiais das igrejas fossem
encarcerados primeiramente, em seguida levados por
qualquer pretexto a fazer sacrifícios aos ídolos. Ein
tôdas as partes do império esta ordem imperial foi se-
veramente executada. Multidões se apressaram a ab-
jurar a f é e a entregar as cópias das Escrituras, en-
quanto os fiéis suportaram as mais terríveis torturas e
recusaram até o último suspiro entregar as que pos-
suíam, ou de qualquer modo submeter-se. Alguns em-
pregavam meios ilícitos para escapar ao cumprimento
da lei.
Constantino (até 323), associou-se aos bons intuitos
do seu pai para* com o Cristianismo. Como governa-
dor da Bretanha, Gálía e Espanha, auxiliou e protegeu
os cristãos, tanto quanto possível, sem prejudicar as
1) História Eclesiástica, V I I I , cáp. 2.
73 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

suas conveniências. N o entanto a< perseguição era se-


veramente renovada à leste por Maximínio. Depois de
tornar-se o ultimo imperador do oeste, atribuindo a
sua vitória ao favor do Deus dos cristãos, Constan-
tino garantiu completa tolerância, tornou o Cristia-
nismo religião legal para aqueles que o desejassem abra-
çar, promovendo êle mesmo, por todos os meios pos-
síveis, o seu engrandecimento secular e entusiástico
(313). Algum tempo depois Constantino derrotou Ma-
xêncio, tornando-se o único imperador. Dessa maneira
o Cristianismo triunfou no Império Romano, depois
de uma luta de trezentos anos.

I I . CRESCIMENTO E CORRUPÇÃO

1. Observações gerais

Os apóstolos e seus colaboradores pregaram o


evangelho e estabeleceram igrejas na Ásia Menor, na
Grécia, na Itália e talvez mais para o ocidente embora
arrostando com o rigor da perseguição que não cessou
durante todo êste período. Não obstante, êste estado
de coisas contribuiu admiràvelmente para a propaga-
ção da verdade.
0 Cristianismo entrou no segundo período histó-
rico sem literatura, sem cultura filosófica e sem posi-
ção social; no entanto ao terminá-lo já contava com
êsses três elementos. Houve nisso, é verdade, algumas
vantagens, mas quantos prejuízos não trouxeram os
erros filosóficos e a imitação das cerimônias pagãs
vindas com a cultura do Cristianismo?! Além disso,
o emprêgo de meios ilegítimos em busca de posição so-
cial e poder político, abriu a porta a tôda espécie de
abusos.
Êste período notabilizou-se pelo crescimento e
gradual corrução do Cristianismo.
<dPOR F O R A COMBATES, TEMORES P O R D E N T R O » 75

2. Duas linhas históricas

Advertências contra heresias e falsos mestres se


encontram nos últimos escritos do Novo Testamento, e
já se notou como os judeus e pagãos desde o principio
se esforçaram para reduzir o Cristianismo aos moldes
da sua religião. Tôdas as'i'eligioes antes de Cristo ti-
nham um elemento comum — a salvação pelas obras;
só o Cristianismo ensinava a salvação pela f é .
Não compreendendo os principios fundamentais da
nova religião — que o destino de cada alma é o resul-
tado de uma relação pessoal com Cristo, e que a vida
cristã não é mero escapamento de retribuição futura,
porém um comêço nesta vida de intima e vital união
com Deus, os novos crentes superficialmente conver-
tidos, julgaram que o destino se fixava pelo ato externo
e que a ira de Deus se poderia evitar pela prática de ri-
tos e cerimônias.
O resultado lógico dessa má compreensão dos
principios fundamentais do Cristianismo foi a substi-
tuição da espiritualidade pelo formalismo e da f é viva
pelos ritos. Destaafonte podem-se traçar tôdas as mu-
danças posteriores de doutrina e prática.
Logo que as igrejas apostólicas deixaram de reco-
nhecer que o homem para gozar comunhão com Deus,
tem que "nascer de novo", ficou aberto o caminho para
a corrução que se seguiu.
Dai em diante, há duas linhas históricas a traçar.
Duas tendências que se não conciliam — a centraliza-
ção administrativa e a fixídez dogmática, por um lado,
e a reação em favor dos ensinos e práticas do Novo
Testamento, simples e desartificiosos, por outro — pre-
cisam ser notadas. A primeira delas tem o seu ponto
culminante na hierarquia romana; a segunda, numa
volta á norma apostólica.
Antes de proceder ao estudo dêsses dois movimen-
75 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

tos cumpre-nos determinar a significação das palavras


de Cristo: " T u és Pedro, e sôbre esta pedra edificarei
a minha igreja; e as portas do Hades não prevalecerão
contra ela" (2)
E' neste texto que a Igreja de Roma- baseia as suas
pretensões de ser o papa, o vigário de Deus na terra, e
ela, a verdadeira igreja de Cristo. Esta pretensão junto
com a suposta sucessão ininterrupta, que pôsto obscura
e incerta a principio, é ininterrupta pelo menos desde
o quarto século, leva-a a classificar tôdas as demais
corporações cristãs de císmáticas e hereges.
Infelizmente os dados históricos não permitem
traçar passo a passo a história das igrejas do Novo
Testamento. A explicação disto está no fato de ter a
quase totalidade das informações acerca dos grupos
divergentes procedido dos seus maiores inimigos. Sus-
tentamos porém que a continuação histórica das dou-
trinas essenciais pode ser traçada, e que Deus não tem
ficado sem testemunhas. Do lado da exegese, afirma-
mos que a palavra de Deus não tem falhado e com isto
concorda o Dr. Yedder quando diz que a vitória pro-
metida por Jesus é a vitória última de sua igreja sôbre
tôdas as forças da terra e do inferno que possam ser
dirigidas contra ela, ainda que não prometa a vitória
em cada ação separada.
A f i r m a r a necessidade da continuidade externa na vida da
igreja é ler gratuitamente nas palavras de nosso Senhor o que Èle
cuidadosamente se absteve de dizer. Visando seus próprios fins,
Roma pretende que o único significado possível das palavra^ de
Cristo, è que terá uma continuidade histórica que se possa pro-
var por documentos e outras provas. Isto não constitui de modo
algum mferência por si mesma evidente do que diz Jasus.

Uma campanha vitoriosa não é incompatível com a perda de


um'a batalha e o desastre aparente dnirante o seu progresso, A

2} Mat. 16:18.
<dPOR FORA COMBATES, TEMORES POR D E N T R O » 77

•promessa dc Cristo não faltaria ainda que encontrássemos a igre-


ja em alguns períodos da história aparentemente vencida por
Sàtanás, e suprimida, ainda mesmo que não restasse alguns tra-
ços na literatura, ainda me-mo que não encontrássemos em ne-
nhuma parte do mundo corporações de cristãos, organizados em
igrejas, guardando a f é na simplicidade apostólica. A verdade se-
ria sempre, como Èle prometera, testemunhada em qualquer l u -
gar, de qualquer maneira, por quem quer que fôsse. A igreja não
deixa de existir porque tenha sido lançada no deserto ( ' ) . •

I I I . REAÇÃO ANTI-CRÍSTÃ

1. Os ebionitas

O desvio da norma apostólica que acabamos de


notar, foi em grande parte causado pelas quatro seitas
anti-cristãs: os ebionitas, os gnósticos, os maniqueus e
os monarquianos.
Os ebionitas ou cristãos judaicos — Esta seita teve
origem nos tempos apostólicos (4), continuando a exis-
tir por cerca de duzentos e cinqüenta anos. O termo
"ebionita" quer dizer pobre e era aplicado aos novos
cristãos, os quais de ordinário, eram pobres de bens
temporais. Passou depois a ser usado para designar o
partido judaico, procedendo talvez tal qualificação dos
seus inimigos. Durante o primeiro século permanece-
ram os ebionitas em comunhão com os cristãos. No se-
gundo, porém, foram repudiados, passando então a
formar uma organização distinta. As suas doutrinas de
maior relevo eram: Úm Deus verdadeiro, o criador do
universo e autor da lei mosaica; Jesus, o Messias, po-
rém não divino; rejeitavam a Paulo como apóstolo e
portanto, como autor inspirado; veneravam a Tiago e
a Pedro. Os primeiros ebionitas eram ascetas, e exal-

3) Vedder, Breve Eütôria dos Batistas, pág. 28-29, trad, de


Muirhead.

Atos dos Apóstolos.


77 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

tavam com ardor a virgindade. O seu autor predileto


era Tiago, irmão de Jesus. Os mais modernos, influen-
ciados pela filosofia alexandrina, proclamavam a ex-
celência do casamento sôbre a virgindade. Para êstes,
era Pedro a figura principal.
Deram valor demasiadamente elevado ao batis-
mo, em parte devido à crença de que Jesus se tornou
o Cristo ou foi adotado pelo Pai como seu Filho, no
ato do batismo. Por exemplo, nas "Recognições", es-
critas no segundo século e fraudulosamente atribuídas
a Clemente, terceiro pastor de Roma, depois de repre-
sentar a água como a primeira coisa criada e como o
elemento donde provêm tôdas as coisas, diz o autor.
E suponde que podeis ter esperança para com Deus ainda que
tenhais cultivado tôda a piedade e tôda a justiça, não tendo r e -
cebido o batismo? De certo que não, mas ante^ merecerá menor
castigo quem não praticar bem as boas obras. Ora, Deus ordenou
que cada um que o adora seja selado pelo batismo; porém = e o
rejeitardes e obndeeerdes antes à vossa própria vontade, sereis
sem dúvida contrários e hostis à vontade dêle, Mas por ventura
perguntareis, como pode -o batismo dágua contribuir para o culto'
de Deus? Primeiro porque o que é agradável a Deus já foi cum-
p r i d o . Segundo, porque quando sois regenerado,; e nascidos de
novo pela água e por Deus, a fraqueza do primeiro nascimento
que recebestes, o dos homens, é desfeita e finalmente podeis obter
a salvação que de outra forma seria impossível. Ide, portanto,
a estas águas, pois sòmente nelas podeis apagar a violência do
fogo futuro; e aquôle que demorar em aproximar-se demonstra
cabalmente que o diabo da incredulidade ainda está nôle, pelo que
é impedido de chegar a ela? que conferem a salvação. Quer se-
jaís justos, quer injustos, o batismo vos é necessário; para o jus-
to afim de que a perfeição seja operada nele e que nasça de novo
para Deus; para o injusto, afim de que possa alcançar o perdão
dos pecados cometidos na ignorância ( B ) .

Ainda que atribuíssem ao batismo qualquer poder


mágico, não poderíamos encontrar provas de que os
ebionitas batizassem crianças; ao contrário, há abun-
5) "Recognições", V I . 8t citação de V e d d e r .
<dPOR F O R A COMBATES, TEMORES P O R D E N T R O » 79

dantes referências de que êles batizavam tão sòmente


os adultos.
Os ebionitas não viveram sempre em franca uni-
ão. Freqüentemente surgiram entre êles desavenças,
causando estas uma vez a cisão de que resultou um
grupo mais liberal que tomou o nome de "nazarenos".
•a
2. Os gnôsticos

Essa heresia com os seus diversos sistemas filosó-


ficos, floresceu durante o segundo século na Síria, no
Egito, na Ásia Menor, etc. Assim como os ebionitas e
nazarenos procuraram reduzir o Cristianismo aos mol-
des Judaicos, o gnosticismo procurou reduzi-lo aos
moldes pagãos. Enquanto os ebionitas rejeitavam os
escritos de Paulo e classificavam o apóstolo dos gen-
tios como impostor, os gnôsticos rejeitavam o Velho
Testamento e todo o Novo cora exceção dos escritos de
Paulo.
Não se sabe, ao certo, quando teve origem êste sis-
tema filosófico, mas não resta a menor dúvida de que
êle existiu no tempo dos apóstolos. Paulo escreve sôbre
a ciência (gnosis) que produz soberba e jactância, e
a I Epístola de João foi escrita, conforme supõem vá-
rios exegetas, para combater o gnosticismo. Pelo me-
nos nessa epístola o apóstolo combate os dois aspectos
do gnosticismo: a negação da divindade e humanidade
de Cristo.
A base filosófica do gnosticismo é o problema e a
origem do pecado. Os gnôsticos filosofavam: O mundo
é cheio de imperfeições: logo o supremo ser não pode
ter sido o seu criador. E desde que o Velho Testamento
fala de Jeová como o criador do mundo, uma obra im-
perfeita, Êle por sua vez, deve ser também imperfeito
e assim a religião dos judeus não pode deixar de ser
oposta á religião verdadeira. O objetivo do gnosti-
79 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

cismo era explicar as coisas quais elas são sem com-


prometer o caráter do Ser Supremo.
Muitas foram as fontes em que o gnosticismo sor-
veu o seu conjunto de doutrinas, porém a mais direta
e mais importante, foi a filosofia judaica de Alexan-
dria (6). Não obstante, o gnosticismo foi poderosamente
influenciado pelo budismo e zoroastrismo. Iiavia nêle
um dualismo fatalista, eterno conflito entre o espirito
e a matéria. Era uma tentativa para harmonizar tôda a
verdade e tôdas as idéias em um só sistema. A tradição
concorda em atribuir a fundação dessa heresia a Simão
Mago, porém foi Filo, judeu nascido em Alexandria,
cerca do ano vinte A . C., que a organizou em um sis-
tema. Considerou êle, Platão e Moisés áticos e procu-
rou harmonizar o Judaísmo com a filosofia platônica,
mas como sempre, sacrificou tudo o que era de preci-
oso nos dois sistemas.
Os gnôsticos sustentam que Deus é um espírito ab-
soluto e causa todo o bem, enquanto a matéria é com-
pletamente maligna. Afirmam ainda que o universo,
uma mistura de espirito e matéria, é em parte divino,
em parte maligno, obra, não do Deus verdadeiro, mas
de Jeová, o deus dos judeus, que ou trabalha em opo-
sição ao verdadeiro Deus, ou na ignorância dêle. Em

G) A cidade de Alexandria foi fundada em 321 antes da era


cristã, por Alexandre, o Grande. Desde a sua fundação serviu de
capitai ao novo reino grego do Egito, e logo tomou lugar entre os
mais importantes centros comerciais e culturais. A biblioteca, a
mais célebre coleção de livro,? do mundo antigo, foi fundada por
Ptolomeu T e protegida per seu f i l h o . Diz-se que até o ano de 47
ante- de Cristo, o' numero de volumes atingia a 7000.000. D u -
rante o sítio da cidade por Júlio César, neste mesmo ano. a maior
parte da biblioteca, a parte que se achava no museu, foi incen-
diada. Êsse prejuízo, f o i em grande parte reparado peia coleção
de pergnmmhos presenteada a Cledpatra por Marco Antônio. A
parte principal da biblioteca, se achava no Serapeu, templo de
Júpiter. Êsse edifício, junto com a sua coleção preciosa, f o i
destruído pelos cristãos fanáticos, no remo de Teodósio, o Grande
<dPOR FORA COMBATES, TEMORES POR DENTRO» 81

referência ao homem, dizem que é uma mistura do bem.


e do mal, e dividem a humanidade em três classes: hi-
lie os, quq são absolutamente incapazes de salvaçao;
psíquicos, que possuem uma alma e são capazes de sal-
vação parcial; pneumáticos, (ou gnôsticos) dotados de
alma e capazes de salvação completa (7). Os
mais modernos dessa seita aproximavam-se bastante
dos Evangelhos, e, em razão disto, ensinavam que a.
redenção é efetuada através do conhecimento revelado
por Cristo — um dos aeões mais elevados que veio sô-
bre Jesus, mero homem, no ato do seu batismo, tendo-o
deixado antes da sua crucificação, Ensinavam, ainda,
que todos os espíritos serão finalmente livres da maté-
ria e subirão com os remidos para o pleroma onde ha-
bitarão para sempre. A o lado disto, negavam a reali-
dade do corpo, dos sofrimentos e da ressurreição do
corpo, e Filo, negou a veracidade do castigo futuro, do
i n f e r n o ^ e ^ ^ i i ã b ó . Alguns dentre êles eram sinceros,
outros libertinos.
Por tôda a segunda parte do terceiro século, o gnos-
ticismo tornou-se fortemente agressivo, tendo-se espa-
KÊSf-1-' •

(391 A . D . } , A população de Alexandria era composta de qua-


tro classes principais: ( 1 ) as egípcios inteligentes e civilizados;
(2) os soldados mercenários, rudes e baixos; (3) os alexandrinos,
apesar da origem mista, pela maior parte de sangue grego, ocu-
pando o meio tôrmo das ctafsses mencionadas; (4) os judeus, em
grande número. Além dessas classes se achava uma multidão de
estrangeiros. Enfim, tôdas as nações ali se acotovelavam enquan-
to passeavam na formosa rua que se estendia através ida grande
cidade desde a porta de Canopo até a de Necròpole. Compradores
e copisíias eram enviados por todo o mundo em busca de tesouro>
literários e artísticos. As divindades de tôdas a/s terras achavam
acolhimento em Alexandria. L á se achavam todos os ismos do
mundo. Não é portanto de admirar o desenvolvimento, num
meio assim cosmopolita e artificial, de um sistema pagão-judai-
co-cristão quaí foi o gnosticismo,

7) A Guide to the Study of Church History — McGlothlin.


81 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

lhado por todas as igrejas cristãs, ein cujo seio conquis-


tou muitos dos seus mais inteligentes membros. Pode-se
dizer que o gnosticismo, gradualmente realizou a místu-
| ra do Cristianismo com o paganismo, disto resultando
a transformação da religião de Cristo e dos apóstolos no
Cristianismo do segundo e terceiro séculos em diante, que
assim se tornou a base para muitas seitas, modernamente
f proclamadas cada qual como religião verdadeira, e mui
especialmente para a formação da Igreja Católica Ro-
| mana.
\
1 3 .Os man.iqu.eas
Essa heresia, inteiramente oposta ao Cristianismo,
tinha doutrinas mais em comum com o gnosticismo do
que com uma agremiação cristã.
A seita dos maniqueus que consistia no enxerto de
elementos do Budismo e do Cristianismo na velha reli-
gião zoroastríana, foi fundada no começo do século ter-
ceiro, cerca do ano 238, por Mani, natural da Mesopo-
tamia. Esta mistura heterogênea foi propagada como
sendo o único Cristianismo verdadeiro, e o seu funda*
dor, graças à sua capacidade intelectual, gozava de
grande simpatia e conceito, o que lhe valeu a fácil disse-
minação de suas doutrinas por tôda a Pérsia, de onde
pouco depois, elas se espalharam por todo o império.
Expulso da Pérsia, Mani percorreu a India; e a China,
voltando depois ao pais de onde havia sido banido, e ali
foi grandemente honrado pelo novo rei e crucificado
pelo seu sucessor. Os seus adeptos porém foram barba-
ramente perseguidos pelo imperador Diocleciano no ano
287. No quarto e quinto séculos, os maniqueus abalaram
a Itália e o norte da África, mas no século sexto, desa-
pareceu tôda a organização regular, ainda que os ensi-
nos da seita continuassem a influir nas doutrinas de ou-
tras seitas da Idade Média.
Os maniqueus, pregavam um dualismo absoluto, re_
<dPOR F O R A COMBATES, TEMORES POR D E N T R O » 83

j ei lavam o Velho Testamento e tudo quanto no Novo


Testamento se referia ao Judaísmo, Afirmavam ser o
mundo uma mistura de dois elementos: — luz (divin-
dade) e trevas (corrupções) e que o homem criado pelo
príncipe das trevas para vencer o espirito do Sol, prín-
cipe da luz, é composto d§ alma da natureza do reino
da luz e corpo da natureza do reino das trevas. Criado
desta maneira, o homem é dominado por duas forças
opostas; a natureza mais nobre, sempre tentada pela
baixa. Acrescentam ainda, que o objetivo do aparente
(pois não apareceu realmente em corpo, ensinavam)
advento de Cristo no mundo foi auxiliar o homem a
vencer o mal dentro de si mesmo, e destarte libertar a
luz. ....
Os maniqueus estavam divididos em ouvintes e per-
feitos. Èstes praticavam o mais absoluto ascetismo e re-
jeitavam o casamento, sendo os sacerdotes mediadores
entre Deus e os homens. Aqueles, gozavam de mais li-
berdade e supunham participar da santidade dos per-
feitos mediante contribuições que lhes eram impostas.
Èstes dois grupos estavam organizados em igrejas inde-
pendentes, guardavam o domingo, mantinham culto
simples, celebravam o batismo com óleo, e a ceia, ape-
nas com pão.
Êste sistema tão absurdo e anti-cristâo propagou-se
como o único Cristianismo verdadeiro, atraindo para as
suas fileiras muitos dos letrados da época;. Pode-se di-
zer, que junto a outras influências, os maniqueus esti-
mularam: o espirito ascético nas igrejas com o desprêzo
pelo casamento e exaltação da virgindade; a introdução
das cerimônias pomposas nas igrejas; a sistematização
da doutrina cristã para combater essa heresia; o desen-
volvimento do sacerdócio e a crença de que os ministros
da religião em virtude do seu oficio, são intermediários
entre Deus e os homens; a introdução nas igrejas da
doutrina das indulgências, filha legítima do sacerdócio.
83 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Portanto, pode-se dizer conforme a linguagem bíblica


"ainda que morta (esta heresia) vive". Vive nas igre-
jas Romana e Ortodoxa.

4. Os monarquianos

N o fim do segundo século, surgiu outra heresia que


lutou com grande persistência para. introduzir-se nas
igrejas e delas ganhar o apôio. Essa nova doutrina di-
vidiu-se em duas escolas: uma chefiada por Teodato e
Paulo de Samosaía, a que os escritores alemães (leram
o nome de dinamista; outra inventada por Noesto, Prá-
xeas, Sebélio e Berilo, chamada modelista,
A diferença principal entre essas duas escolas con-
sistia 110 faío de ensinar aquela que Jesus recebera po-
der (atributos) do Pai e se tornara Cristo no batismo
pcln virtude do Espirito Santo, vindo sôbre êle naquele
momento; enquanto esta ensinava que O eus aparecera
em formas diferentes, ora como Espirito Santo. Além
do quarto evangelho, é corrente que êles rejeitavam
também o Apocalipse e as epístolas de João. Epifânío
diz que os dinamistas afirmavam ser a cristologia do
quarto evangelho, contrária a dos sinópticos, que ne-
nhuma referência fazem à eternidade do Filho.
Um dos primeiros e mais zelosos defensores dessas
doutrinas foi Teodato de Bizâncío que no ano 190, pre-
gava, na igreja de Roma, a teoria da adoção, isto é, que
o nascimento de Cristo fora realmente sobrenatural, po-
rém que Èle era mero homem até o ato do seu batismo,
quando o Espirito Santo lhe conferiu os atributos divi-
nos. Esta doutrina foi rejeitada pela Igreja de Roma,
tendo Paulo de Samosata, bispo de Antioquia, sido ex-
comungado por professá-la.
Referindo-se aos modelistas, Tertuliano disse que
Práxeas conseguiu a excomunhão do Paráclito (Espí-
rito Santo) e a crucificação do Pai, isto é, que, conforme
<dPOR FORA COMBATES, TEMORES POR DENTRO» 85

o seu ensino, o Pai aparecera na pessoa de Jesus e as-


sim sofreu a morte no Calvário.
As idéias de No es to e Sebélio foram combatidas
por Hipólito, as de Práxeas por Tertuliano e as de Be-
rilo por Origenes.
I V , COMEÇOS D Â ÍGREJA CATÓLICA
Como já notamos, à medida que o Cristianismo ia
crescendo em número e riqueza, ia-se transformando,
de tal maneira que no fim do terceiro século, estaíva
bem diferente do Cristianismo apostólico. Essa trans-
formação, que gradualmente ia formando a Igreja Ca-
tólica1 foi motivada pela rápida influência judaica c
pagã, pelo mim d anis mo e pela falta de instrução geral
e bíblica, pois não havia educação cristã além do ca-
íecismo. Naturalmente essa transformação não pode-
ria deixar de provocar protesto e até, reação por parte
dos mais espirituais nas igrejas. Os três movimentos
reformadores da época foram os montanistas, os no-
vacianos e os donatislas.
V , MOVIMENTOS REFORMADORES
1. Os montanistas
0 montanismo, cujas doutrinas se opunham ao
gnosticismo foi fundado na Frigía, cêrca do ano 135-
160, por Montano, sendo Tertuliano o seu mais célebre
defensor, Oj /movimento foi, propriamente falando,
uma reação para fazer voltar o Cristianismo aos seus
moldes primitivos, apesar de ter ido em certos pontos
ao extremo, como acontece à mor parte das reações.
Não foi uma nova forma do Cristianismo: foi a volta ao
velho: à igreja primitiva, em oposição â corrupção do Cristia-
nismo corrente. Á velha igreja exigia pureza de vida; a nova ti-
nha entrado em combinação com o mundo e estava satisfeita
com o arranjo, e por isso. êles (os montanistas) romperam com
ela ( 8 ) .
8} Shaff-Rerzog Encyclopaedia, III, pag. 1562.
85 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Insistiam em que os que tinham abjurado a fé sob


a perseguição, provaram por êste ato que nunca foram
crentes e para serem readmitidos na igreja deveriam
ser rehaíizados, e é por isso que são chamados por al-
guns autores modernos "Anabatistas" (9)
Não obstante seu espirito puritano, sustentavam as
doutrinas básicas das igrejas apostólicas., embora pa-
reçam ter dado excessivo valor aos dons celestiais, que
afirmavam receber por dispensação do Espírito Santo.
0 "dom de profecia" e o da' "cura pela f é " tornaram-se
de tal modo valiosos que aqueles que os não possuíssem
não podiam fazer parte da igreja. Dizem alguns historia-
dores, ainda que contestadas por outros, que os monta-
nistas levaram as suas extravagâncias ao ponto de pre-
ferirem as suas profecias ao ensino das Escrituras.
Estudando as doutrinas dos montanistas, nota-se
que êles se opuseram à hierarquia, sustentaram o sacer-
dócio universal dos crentes; praticaram rigorosa dis-
ciplina, rejeitaram o segundo casamento, exigiram fre-
qüentes jejuns e exaltaram a virgindade. Foram êles
que, pela primeira vez, distinguiram o pecado mortal
do venial, de maneira que sòmente o último podia ser
perdoado pela igreja. Como se vê, as duas últimas
doutrinas que levaram as igrejas oficiais a rejeitar o
montanismo e classificá-lo de heresia, foram séculos
depois incorporadas aos seus dogmas. Os montanistas
mantiveram viva esperança de que o f i m do mundo
estaria próximo. Das inovações, que iam introduzindo
nas igrejas, manipuladas pelos gnôsticos e pagãos, fo-
ram implacáveis inimigos. Todavia, êles mesmos por
sua vez, foram inovadores, tendo sitio precursores do
Cristianismo ascético do quarto século em diante.
O movimento espalhou-se rapidamente por tôda a
Ásia Menor, Norte da África e ganhou muitos adeptos
9} Sciinff, History of lhe Cnstian Church. II, 427,
<dPOR FORA COMBATES, TEMORES P O R D E N T R O » 87

mesmo em Roma, conquistando a simpatia dos mora-


listas e pios. As doutrinas de Montano ganharam tanto
terreno, especialmente na Ásia Menor, que houve di-
versos concilios para suprimi-las, e por fim, foram ofi-
cialmente condenadas. 0 movimento, porém, conti-
nuou por séculos, e oportuúaínente foi incorporado em
outros movimentos reformadores (10). Na Frigia os
montanistas entraram em contacto com os paulicianos
e. provavelmente com êles se fundiram.
2. Os nouacianos
Êste movimento foi, realmente um montanísmo mo-
dificado e purificado de certas doutrinas nocivas, como
o falar de línguas e o dom da profecia, e surgiu em
época posterior e sob outros aspectos e circunstâncias.
Durante a perseguição de Décio (250), muitos
cristãos em tôda a parte do império abjuraram a f é .
Depois de passada a perseguição., levantaram-se entre
as igrejas duas opiniões opostas. O /patrtido consti-
tuindo a maioria na igreja de Roma, insistia em read-
mitir, sem cerimônia nem exigências, os que, no mo-
mento de fraqueza negaram a fé para salvar a vida;
enquanto que o partido restrito, chefiado por Nova-
ciano, insistia em um arrependimento sincero e no re-
batismo. Èste partido conquistou a simpatia das igre-
jas do Norte da África e da Ásia Menor, juntamente
onde o montanísmo havia florescido. Novaciano e seus
adeptos foram excomungados, mas ainda assim, o mo-
vimento se espalhou por todo o império, dividindo
igrejas, e fundando outras que existiram até o sexto
século.
A vasta extensão desse movimento reformador esta
autenticada pelos escritores que escreveram contra êles.,
e pelas diversas partes do Império Romano ein que flo-
resceu. Da História dos Batistas, publicada pelo Dr.
Christian, extraímos as seguintes citações;
87 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Estas'igrejas continuaram a florescer cm muitas partes da


crístandade por seis séculos ( 1 1 ) . D r . Robmson traça a eua con-
tinuação até a Reforma e a aparição do movimento anabatista.
"Grande numero seguiu o seu exemplo (o de Novaciano) 1 ', diz
èle, " e por ttfda a parte do império, igrejas puritanas foram or-
ganizadas que continuaram a florescer por duzento s anos. De-
pois, quando as leis penais as obrigaram a se esconder em luga-
res retirados e a adorarem a Deus .secretamente, foram designa-
dos por vários nomes, e a sua sucessão contintuxm até a Reforma"
(12). Por causa da sua pureza de vida, foram chamados cátav&s,
isto é, os puras. "RebaUzaranr\ 'diz Moshenn, "os cjue lhes v i e -
ram dos católicos ( u ) .

3. Os donatistas

Êste movimento apareceu em Cartago, durante u


perseguição de Dioclecíano (cerca de 311), tendo se-
guido em linhas gerais o movimento montanísta e o
novacíano, e reagido contra a disciplina das igrejas.
Constantino fêz-lhe oposição severa1 e depois de sua
condenação, por diversos concílios da igreja, perse-
guiu-os tenazmente. Esta perseguição continuou com
algumas interrupções, durante o quarto século, Agos-
tinho, combateu-os também, aconselha-ndo a sua su-
pressão. Argumentaram que o caráter dum ministro
não afeta seus atos oficiais. Todos os atos da igreja são
válidos, ainda que os oficiais sejam indignos, dizia êle,
No entanto, sòmente no século sétimo, foram êles ex-
tintos com o resto do Cristianismo do Norte da África,
por ocasião da invasão maometana.

10) Eusébio, The Church History, 227, nota do D r . M c G i f f e r t .


11) Watch, Historie cier Kelzereyen, II, 220
12) Robinson, Ecclesiastical Researches, 126, Cambridge, 1792.
13) Mosheim, Institutes of Ecclesiastical History, I, 203.
CAPITULO II

LITERATURA DO PERÍODO

I. OBSERVAÇÕES GERAIS

A literatura cristã dos três primeiros séculos ocupa


posição secundária com relação à apostólica, não sò-
mente no tempo, como também em importância. O seu
valor deriva-se das seguintes causas: é a nossa única
fonte de informação com referência ao processo por
que o Cristianismo apostólico se transformou em dou-
trina, govêrno, vida, culto e instituições do Cristia-
nismo do quarto século em diante; revela como adqui-
rimos a nossa Bíblia; mostra-nos claramente os diver-
sos aspectos que o Cristianismo tomou como resultado
do contacto e conflito com o Judaismo e o paganismo.

Esta fase da atividade literária do Cristianismo


pode ser dividida em quatro períodos: edificativo, apo-
logético, polêmico e científico, Estai divisão tanto é ra-
cional como cronológica.
Nesta fase de atividade literária do Cristianismo apos-
tólico, o número limitado de homens letrados evidenciou
a necessidade de literatura edificativa. E para promo-
ver eficaz defesa aos constantes ataques de inimigos, apa-
receu a literatura apologétíca que foi um apêlo à to-
lerância. Por fim, surgiu da pena de homens versa-
dissimos nas filosofias da época a literatura polêmica,
forte ataque â religião idolatra; e também a literatura
científica das doutrinas cristãs, trabalho de escritores
notáveis no manejo da filosofia.
89 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

II. PERÍODO BDIFICATIVO

Os escritores teológicos desse período não revelam


o menor conhecimento da filosofia pagã, sendo antes
positivas manifestações de fé piedosa. Além disso, a
literatura desse período apresenta o Cristianismo em
tôda a sua atividade. E é notável verificar o respeito
mantido pelos escritores do período pura com o Velho
Testamento, citando o Novo com base da doutrina, en-
quanto extraiam do Velho as provas dn verdade que
apresentavam.
1. Primeira Epístola de Clemente de Roma (ter-
ceiro pastor da igreja na cidade de Roma). — Esta car-'
ta, escrita entre os anos 93-97, e geralmente atribuída a
Clemente, ainda que a sua autoria não esteja positiva-
mente provada, é dirigida "pela igreja de Deus que re-
side em Roma, á igreja de Deus que reside em Corin-
to". A carta; foi provocada pela sedíção na igreja de
Corinto. Os jovens presbiteros conseguiram afastar
dos serviços da igreja alguns presbiteros mais velhos,
levando estes, o caso ao conhecimento da igreja de Ro-
ma. Esta, em sua resposta, não demonstrou nenhum
espírito de superioridade ou autoridade, mas aconse-
lhou respeito aos velhos, especialmente aos presbiteros
empossados pelos apóstolos. Os sediciosos deviam
confessar seus erros e no futuro respeitar os oficiais
idosos.
A idéia que temos da igreja, apresentada nesta
epístola, é a de uma assembléia composta de membros
com direitos e privilégios iguais. Cada um seria essen-
cial ao mesmo corpo; enquanto os mais experimenta-
dos teriam o dever e o privilégio de auxiliar os menos
experimentados. Sòmente duas ordens de oficiais são
mencionadas 11a epístola de Clemente, a saber: bispos
ou presbiteros e diáconos. A nenhuma classe é reco-
nhecido o direito inerente de governar a igreja.
L I T E R A T U R A DO PERÍODO 91

2. Epístola de Barnabé — Esta carta escrita entre


os anos 70 a 137 (provavelmente cèrca de 119) é atri-
buída a Barnabé, companheiro do apóstolo Paulo; no
entanto, o seu conteúdo revela ser esta atribuição muito
duvidosa, se não inteiramente incrível. A carta contém
j o r t e invectiva contra os judeus e labora em erros no
q u e d i z respeito ã lei mosaica. O autor insiste muito sô-
bre as letras gregas que representam o número de ser-
vos circuncidados por Abraão. Ora, por certo, o levita
Barnabé, não teria esquecido que o Velho Testamento
fôra escrito em hebraico. Além_isso, o autor revela
verdadeira mania pela interpretação alegórica. l\ssim
junto às doutrinas que defende, mostra a sua familia-
rídade com 'os gnôsticos e especialmente, com a filo-
sofia de Alexandria.

3. Epístolas de Inácio — Atualmente essas epísto-


las se acham em três formas, a saber: A longa, com-
posta de doze epístolas escritas em grego, universal-
mente considerada como a mais completa falsificação
do quarto, quinto ou sexto séculos. Seu conteúdo é um
composto de anacronismos e evidentemente foi escrita
em defesa da igreja hierárquica dos séculos posterio-
res. A breve, composta de sete epístolas escritas em
grego. A versão siriaca, composta de três epístolas bem
resumidas. E' geralmente aceita pelos investigadores
mais honestos, ter sido a edição breve dessas epístolas
escritas em 107 por Inácio, que segundo uma versão
mais ou menos exata, ocupava o lugar de bispo (sim-
ples pastor) da igreja de Roma por ocasião do reinado
de Trajano. Estas epístolas, porém, à revelia do seu
autor, sofreram e r P • Justificou
tal proceder o precfsar o clero cfe sustentar sua hierar-
quia. C.nmn ímíçjo ^-orlns^ ns iffrçjas_a^respeita'rem
e obedecerem aosjbispos^os ínterpoladores modifica- - "
63
91 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

ram as suas epístolas afim de que elas sustentassem


uma doutrina que lhes era conveniente.
4. 0 Pastor de Hermas — Esta obra, provável-
• mente escrita cerca dos anos 139rl4ü por Hermas irmão
de Pio, pastor da igreja de Roma, é de sumo interêsse,
uma vez que nos dá a conhecer o baixo nível moral da
vida cristã do seu tempo. O seu autor faz-se represen-
tar como um escravo vendido pelo seu senhor a uma
senhora romana chamada Rode. Vendo certo dia uma
linda mulher banhando-se no rio, sentiu-se dominado
por uma paixão impura. Arrependendo-se depois, re-
cebeu uma visão em que a mesma mulher apareceu
repreendendo-o severamente e guíando-o com bons
conselhos aos puros caminhos da vida cristã. Esta vi-
são foi sucedida por uma outra em que uma velha lhe
aparece subitamente e responde a tôdas as perguntas
que o autor lhe dirige sôbre a vida cristã. As visões fo-
ram seguidas por doze mandamentos e estes por dez
comparações.
Que a vida cristã da época, especialmente na idade
de Roma, tinha-se corrompido grandemente, evidenci-
a-se pelo grande número de transgressões combatidas
na epístola. Basta mencionar as seguintes: traição,
blasfêmia, covardia, hipocrisia, calúnia, malícia, insin-
ceridade, mundanismo, imoralidade, inconstância, se-
dição, ensino falso. Os praticantes dessas transgressões
não são mencionados como futuros inimigos, mas como
membros em plena comunhão com a igreja. A epís-
tola combate especialmente os presbíferos "injustos,
contenciosos, vaidosos, maliciosos, negligentes'1, e os
diáconos que se apropriam do uso pessoal dos bens que
lhe são confiados.
Quanto à teologia, o autor considera o batismo
como ato iinpreterível no processo da regeneração e»
embora haja declarado que o arrependimento e a f é
L I T E R A T U R A DO PERÍODO 93

deveriam preceder, diz que sòmente no ato do batismo


se efetua a remissão dos pecados. Quanto ao governo
da igreja, o autor ensina ser da competência dos pres-
biteros e bispos.
5. Epístola de Policarpq aos Filipenses — Irineu,
discípulo de Policarpo, diz ter sido o seu mestre dis-
cípulo do apóstolo João, de quem gostava de repetir
as últimas entrevistas. À epístola que êle dirigiu aos
Filipenses, escrita cêrca de 155-156, consiste em sua
maioria de citações de textos das Escrituras, Nesta car-
ta, o autor representa ,a igreja como sendo administrada
pelos presbiteros e diáconos, cujos deveres estão men-
cionados no Novo Testamento. Nenhuma referência faz
ás tendências hierárquicas da época.

6. O Ensino dos Doze Apóstolos ou A Didache —


Êste manuscrito foi obra de um cristão judeu no f i m
do segundo século. Uma cópia, escrita cêrca de 1056 e
descoberta em 1883 no mosteiro de Constantinopla, con-
tém além do "Ensino", a sinopse do Velho e Novo Testa-
mento, escrita por Crisóstomo; a epístola de Barnabé; as
epístolas de Clemente de Roma; a falsificada epístola de
Maria Cassoboli a Inácio, e as doze pseudo epístolas
de Inácio.
E' duvidoso que o autor tencionasse apresentar o
seu "Ensino" como trabalho dos apóstolos, mias tão sò-
mente como interpretação do ensino apostólico.
O "Ensino" está assim disposto: Os seis primeiros
capítulos contêm preceitos morais. O capítulo sétimo
dá instruções sôbre o batismo, que deve ser praticado
por imersão trina depois d 0 ensinamento do cate-
cismo.
A aspersão não é permitida*, salvo em caso de ab-
soluta falta de água. Também são exigidos o jejum e a
oração. O capítulo oitavo refere-se ao jejum que devia
93 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

ser praticado ás quartas e sexfca-feíras, enquanto a ora-


ção dominical seria repetida três vêzes por dia. O capi-
tulo nono instrui sôbre a eucaristia e diz que esta orde-
nança deve ser distribuída sòmente aos crentes batizados.
Os capítulos décimo primeiro e décimo terceiro, ensi-
nam o modo como devem ser tratados os apóstolos e
profetas. O capítulo décimo quarto doutrina sôbre o
dia do Senhor como dia de sacrifício cristão. O capi-
tulo décimo quinto ensina que os bispos e diáconos de-
vem ser eleitos pelas igrejas e estimados tanto quanto
os apóstolos e profetas. O último capítulo, contém exor-
tações à vigilância em vista da vinda do Senhor.

I I I . PERÍODO APOLOGÉTICO

No govêrno do imperador Adriano o Cristianismo


tornara-se suficientemente forte para iniciar a defesa
dos seus direitos. E em pouco tempo, relativamente,
os cristãos chegaram â conclusão de que paciência de-
masiada deixa de ser virtude e que era p r e f e r í v e l vi-
ver e trabalhar, a sofrer martírio. Os apologistas mais
notáveis dêsse tempo foram, Arístides, por ser o
primeiro, e Justiniano, por ser o mais célebre.
Contrastando a literatura dêste, com a do primeiro
período, notamos o seu grande desenvolvimento no que
diz respeito à cultura- em geral e á filosofia em parti-
cular. Enquanto os escritores do primeiro período reve-
lam escassa ou nenhuma familiaridade com a filosofia,
os dêste período revelam-se verdadeiros mestres, con-
seguindo os seus trabalhos firmar para O-Cristianismo
uma posição respeitável e digna de acatamento. As apo-
logias foram escritas, não tanto para ganhar adeptos para
o Cristianismo, mas principalmente para assegurar aos
cristãos o direito de viver. As mais importantes foram di-
rigidas aos imperadores Antônio Pio e Marco Aurélio.
Os apologistas defenderam o Cristianismo de acusações
L I T E R A T U R A D O PERÍODO 95

de ateismo, dissolução e canibalismo, Os cristãos eram


acusados de ateismo porque rejeitavam os deuses jpa-
gãos, os Ídolos e os sacrifícios. Os pagãos não podiam
compreender como era possível acreditar em Deus sem
estes acessórios. Partiu daí a refutação dos apologistas,
provando que sendo Deus espírito, só lhe é aceitável
um culto espiritual, e que o culto oferecido a Deus pe-
los cristãos é mais verdadeiro e racional que o pres-
tado pelos pagãos aos seus ídolos.
Não podendo os pagãos compreender senão aquilo
que era sobremaneira comum entre êles mesmos, a sa-
ber; a prática das mais baixas imoralidades, acusavam
os cristãos de dissolução porque êstes se reuniam em lu-
gares secretos para realizar suas cerimônias religiosas
e demonstração de afeto reciproco. Os apologistas vie-
ram então em defesa, chamando a atenção para a dou-
trina da castidade cristã, que até o próprio pensamento
libertino considera pecado.
Não está comprovado se a acusação de caniba-
lismo partiu do ódio aos cristãos ou da interpretação
errônea das palavras de Jesus sôbre comer do seu corpo
e beber do seu sangue. Todavia, os apologistas de-
monstraram que a doutrina cristã referente ao assassinio
se opunha ao extermínio de crianças expostas ao frio
e ao calor, o que os cristãos absolutamente não permi-
tiam .
Combatendo a idéia» de que o Cristianismo era uma
nova seita, os apologistas procuraram mostrar que êle
era a mais velha entre as religiões. Por isso basearam
sua argumentação no Velho Testamento. Demonstra-
ram que Jesus Cristo viera ao mundo tanto para cum-
prir as profecias como para gravar o ensino do Velho
Testamento na memória dos homens e não panai ensi-
nar qualquer coisa nova. Para sustentar esse princi-
pio os apologistas usaram o método alegórico de inter-
pretação.
95 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

E' relevante notar que os escritos dêste período


salientaram a pureza da vida e do ensino de Cristo e o
maravilhoso poder transformador do Cristianismo.
1. Aristides — A apologia dêste autor foi dirigida
ao imperador Antônio Pio. e, não obstante ter sido uma
das primeiras apresentadas ao público, escrita entre
138-177, é apreciada entre as mais nobres defesas do
Cristianismo. E' também excelente exp'osição da dou-
trina cristã acerca de Deus, de Cristo e da salvação. O
seu autor argumenta com superioridade confrontando
essas doutrinas com as religiões pagãs, e nesse estudo
se revela êle conhecedor tanto da filosofia e religião
romanas, como das religiões do Egito e da Pérsia- e tal-
vez de alguns sistemas da índia.
2. Jusiino Mártir — Justíno era samaritano de nas-
cimento. Em sua mocidade assistiu às perseguições
movidas contra os cristãos e impressionou-lhe o modo
resignado por que êles as sofriam. Versado na filosofia,
procurou tirar dessa ciência algum alivio para a sua
alma. Foi, porém, infeliz; mas o Cristianismo a que
se converteu deu-lhe tôda a paz e tranqüilidade procu-
radas em vão na filosofia. Justino foi martirizado,
cêrca do ano 165, por ordem do imperador Marco Au-
rélio .
Sua primeira apologia, escrita no ano 157 e dirigida
ao imperador Antônio Pio e ao seu filho adotivo Marco
Aurélio, divíde-se em três partes. Na primeira, o au-
tor sustenta que os cristãos não devem ser condenados
sem serem ouvidos em suas queixas e defesa, afirmando
serem êles inocentes de qualquer crime, Admite-se que,
se alguns cristãos forem apanhados em flagrante na
infração de qualquer lei, devem ser punidos e não a
coletividade por êles. E argumenta neste sentido que o
fato de os crentes preferirem a morte à mentira, provia
a sua inocência. O autor afirma que os cristãos não
L I T E R A T U R A D O PERÍODO 96
98

são aleus, uma vez que adoram a Deus — Pai, Filho e


Espirito Santo, — e que por isso mesmo não devem
ser condenados por não prestarem culto aos ídolos.
Referíndo-se ao governo, acrescenta que o império não
deve ter receio do Cristianismo, pois o reino de Cristo
não è deste mundo. Os cristãos, declara ainda o autor,
são realmente os melhores súditos que o império pode
ter, E para reforçar essa declaração, reclama a atenção
do imperador para a maravilhosa transformação ope-
rada nos homens pelo Cristianismo, cujas doutrinas de
caridade, amor, paciência, obediência às autoridades,
pagamento de tributos são ensinadas e praticadas pelos
cristãos. A segunda parte do Hvro apresenta os argu-
mentos em defesa da veracidade do Cristianismo. O
autor procura provar três coisas: que a verdade é en-
sinada sòmente pelo Cristianismo; que o Filho de Deus
verdadeiramente encarnou-se; que as fábulas do paga-
nismo foram inventadas pelos demônios para desacre-
ditar o advento de Cristo e fazer com que êste também
fòsse fábula. Na terceira parte o lautor descreve o culto
dos cristãos.

O "Diálogo com Trifo", o judeu, divide-se também


em três partes. Na primeira o autor refuta a opinião
dos judeus em relação á lei. Na segunda, mostra que o
verdadeiro Filho de Deus se tornou carne e foi cruci-
ficado por nós. Na terceira sustenta que a chamada
dos gentios e o estabelecimento da igreja de Cristo fo-
ram preditos muito antes da era cristã.
Na sua teologia, Jus tino afirma que Deus se man-
tém completamente afastado da sua criação; que Cristo
é intermediário do Pai tanto na criação como na pro-
vidência; que a função principal do Espirito Santo é
inspirar os profetas. E crê firmemente no livre arbítrio
do homem considerando ia regeneração um ato inteira-
mente voluntário, e o arrependimento mera mudança
97 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

de proceder, embora, com esta afirmativa, deixe ver que


'o sacrifício de Cristo não teve por fim satisfazer a jus-
tiça divina. Ensina ainda, que a igreja é composta de
pessoas batizadas, cujos oficiais são diáconos e presi-
dentes. Quanto ao batismo, doutrina que esta ordenan-
ça deve ser administrada aos que crêem, mas parece que
êle a considerava como ato final da regeneração. O au-
tor ainda informa que os cristãos costumavam reunir-se
aos domingos, celebrando também o culto familiar cm
que era lida uma parte das Escrituras e dirigida breve
exortação pelo presidente, Estas reuniões terminavam
com oração e ceia.

I V , PERÍODO POLÊMICO

Houve escritores polemistas antes dêste período,


tendo sido Justino um dos escritores que mais escre-
veram contra o heresia, não se tendo, porém, preser-
vado seus escritos. No entanto, foram os gnôsticos
com as suas tentativas para reduzir tôda a verdade a
um só sistema, e especialmente tas suas especulações a
respeito da Trindade, da origem do mundo e do peca-
do, etc., que despertaram essa espécie de literatura,
forçando assim, os letrados a se expressarem clara^-
mente por meio de credos.
Os escritores do período anterior, na sua maioria,
foram homens vindos do paganismo; não sendo de es-
tranhar que êles tivessem trazido tôda a bagagem de
sua filosofia pagã, e que se expressassem em linguagem
um tanto inculta. Mas, no período polêmico os escri-
tores refletem a influência do Cristianismo sôbre o ca-
ráter, expressando-se em linguagem mais nobre e ló-
gica .
Os apologistas escreveram durante tempos de gran-
des perseguições, com o f i m de combater as heresias
vindas de fora da igreja. Enquanto isso, os escritores
LITERATURA DO PERÍODO 98
100

polemistas viram grandes perigos no falo de o Cristia-


nísmo propagar erros sob a pretensão da verdade cris-
tã, e por isso escreveram para combater as heresias
dentro da própria igreja.
Nesse período as escrituras do Novo Testamento
começam a ocupar o saiu próprio lugar, tornando-se
as verdadeira autoridade em questões de religião.
Os escritores desse período, pela primeira vez, re-
velam a idéia de uma igreja católica, opondo-se forte-
mente à heresia, o que importa em declarar que estava
firmemente estabelecida -a base para o rápido desen-
volvimento da hierarquia.
1 . I r i n e u — Nasceu na Ásia Menor entre os anos
130 e 135, tendo sido discípulo do velho Policarpo, que
por sua vez o fora do apóstolo João. Educado na filo-
sofia, nos clássicos gregos, nas Escrituras Sagradas e
na literatura eclesiástica dos períodos anteriores, era
homem piedoso, zeloso e simples. Em tempo de grande
perseguição, assumiu o pastorado da igreja de Lyão,
em que se portou fiel e valorosamente. Nos seus últi-
mos anos, Irineu escreveu cinco livros, expondo e refu-
tando as doutrinas de diversas seitas gnósticas e expli-
cando, cabalmente, a doutrina cristã. Para nós, os dois
pontos importantes desta obra são; a apresentação de
uma declaração de f é da igreja1, talvez a primeira ex-
posição distinta das doutrinas cristãs formalmente
apresentadas numa série de proposições; a apresenta-
ção de uma boa regra de interpretação das Escrituras
( 1 ) . Diz êle; "Quando as Escrituras são claras e sem
ambigüidade não devem ser explicadas ambiguamente
para satisfazer a fantasia do intérprete. Passagens am-
bíguas, como parábolas, não devem ser usadas como
base de doutrina".
Combate o ensino dos gnôsticos, aceito por Justi-
1} L i v r o I .
99 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

no, de que o ser supremo está afastado de tôdas as re-


lações com o mundo e aceita que Jeová, o Deus do V e -
lho Testamento, é o criador e preservador do universo.
Defende a divindade, humanidade e eternidade do Fi-
lho ( 2 ) , Identifica o Espírito Santo com tai Sabedoria
do Velho Testamento, diz que o Espírito Santo é Deus
manifesto na providência, na revelação e na consciên-
cia humana. A trindade de Irineu seria então Deus no
mundo. Deus em Cristo e Deus em sí mesmo. Em opo-^
síção ao fatalismo dos gnôsticos, Irineu sustenta a dou-^
trina do livre arbítrio do homem, e diz que para Deus
não há coação (3) = Representa a redenção como ato do
amor de Deus. Afirma que jgosxpíação è uma multa
paga, não a D e u s ^ l n a s ^ n M
"jeitos- todos os que desobedecem a Deus. Êle considera
a igreja como unidade orgânica, cujas doutrinas foram
transmitidas por intermédio de uma sucessão de pres-
biteros. Não defende o epíscopado como instituição di-
vina, antes sustenta a independência das igrejas locais.
Sustenta que a igreja de Roma foi fundada por Pedro
e Paulo que nomearam sucessores, e, portanto, deve go-
zar de grande prestígio entre as demais igrejas, mas não
hesita em criticar a decisão do bisp 0 de Roma na grande
controvérsia sôbre a páscoa.

2. Hipôlito — Considerando a importância dos seus


escritos, é para estranhar que tão pouco saibamos da
vida do grande polemista. No entanto, foi êle, um dos
mais rigorosos disciplinadores, forte polemista e um dos
quatro teólogos mais importantes do seu tempo, sendo
da mesma classe de Tertuliano, Clemente de Alexandria
e Origenes. Nasceu na última parte do segundo século,
tendo sido provavelmente discípulo de Irineu. Eusébio

2). L i v r o II, cap. 18.


3) L i v r o IV, cap. 37 =
L I T E R A T U R A D O PERÍODO 101

" /

chama-lhe bispo, mas não nos informa a respeito do seu tf'


episcopado.
As perseguições diminuíram consideravelmente em
número e influência por todo o segundo século, enquanto
a igreja romana' crescia grandemente em número e ra-
pidamente alargava o circulo de sua influência. E o
seu rápido desenvolvimento monárquico atribui-se ao
contacto com o paganismo e o gnosticismo. Desde os
seus principios a igreja de Roma. manteve mais inte-
rêsse pela administração e distribuição da caridade do
que pelas controvérsias doutrinárias. Mas, aos poucos
a sua opinião ia sendo solicitada para as questões que
constantemente surgiam nas igrejas, dando ensejo a
que a sua proeminência aumentasse de dia para dia
em virtude das respostas práticas e sensatas que ela
dava às demais. No tempo de Hipólito dois partidos
lev:antaram-se dentro da igreja de Roma. Um, quase
montanista em sua disciplina severa, chefiado por Hi-
pólito» contando ao que parece, com a maioria; outro,
que dispunha de grandes riquezas e posição social, de-
masiadamente liberal e chefiado por Zeferino *e Ca«
lixto.
Vítor, pastor dessa igreja (189-190), era muito se-
vero na disciplina, tanto que muitos foram eliminados
durante o seu pastorado. Zeferino, porém, seu suces-
sor, era homem fraco sob o duplo aspecto morai e in-
telectual, tendo permitido a entrada de tôda espécie de
heresias e abusos na igreja. Aliou-se ao escravo Ca-
lixto que fora preso por ter roubado grande soma de
dinheiro que o senhor lhe confiara e banido para as
minas de Sardenha por ter causado dissenção numa
sinagoga judaica. Liberto por intervenção de Márcia,
amante do imperador, foi a Roma, sucedendo a Zefe-
rino no pastorado da igreja. Assim que empunhou as
rédeas do govêrno da igreja prontificou-se a perdoar
101 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

todos os pecados. Desta licença aproveitaram-se aque-


les que haviam sido excluídos pelo motivo de vidas ex-
tremamente irregulares, voltando ao seio da igreja. Ca-
lixto sustentava que um bispo não poderia ser deposto
ainda mesmo que fosse culpado de pecado mortal, E
dizia que a arca de Noé, na qual foram preservados os
a-nimais limpos e imundos, era o tipo da igreja. Esta
desnorteada liberalidade chegou ao ponto, dizem, de
permitir que moças de famílias distintas e ricas que se
não quisessem casar, tivessem os seus escravos como
seus amantes. Estas irregularidades, porém, não deixa-
ram de receber justo castigo contra os desmandos de or-
dem moral e doutrinária praticados pelo pastor da igreja,
No entanto, Calixto deveria ler sido uni homem de no-
tável capacidade e extraordinária personalidade para ele-
var-se da escravidão e baixa reputação pela falta de
honestidade, á primeira posição na igreja.
Depois da morte de Calixto, parece que Hipólilo
se reconciliou com a igreja de Roma, voltando esfca a
gozar a paz que fora alterada. E' geralmente aceito
que morreu nas minas da Sardenha para onde tinha
sido transportado por Maximino, o Traciano, Hipólito
em doutrina e prática foi montanista. À sua obra prin-
cipal foi "Refutação de Tôdas as Heresias",

3. Tertuliano. filho de um centurião proconsular,


nasceu em Cartago cêrca do ano 155, tendo sido edu-
cado na lei e na literatura romana e grega e bastante
influenciado pela filosofia estoica. Convertido ao Cris-
tianismo cêrca do ano 180, foi nomeado presbitero da
igreja de Cartago, tendo sido o primeiro dos grandes
teólogos ia escrever em latim, o que lhe valeu ser cha-
mado o pai da teologia italiana. Era de natureza forte,
rico em fantasia^ de espirito mordaz, apaixonado, do-
tado de zelo oriental, firmeza e tino romanos. Em meio
de sua carreira religiosa, as suas idéias sofreram radi-
L I T E R A T U R A DO PERÍODO 103

cal transformação, levando-o a se tornar montanista,


pela- revolta que lhe causaram o escandaloso libera-
lismo e a indisciplina da igreja de Roma, sob a admi-
nistração de Zeferino. Polemista dos mais proeminen-
tes da época tomou parte em muitas controvérsias. Tão
numerosos são os seus escritos que não se pode estu-
dá-los minuciosamente nos limites desta obra; consi-
deraremos apenas os pontos mais salientes da sua teo-
logia. Não obstante Tertuliano haver abandonado a
igreja oficial, a sua erudição exerceu sôbre ela pode-
rosa influência.
O notável presbitero ensina em seus escritos a dou-
trina da Trindade, embora se incline a negar a coeter-
nidade e a coigualdade do Filho e do Espirito Santo
com o Pai; e diz que o livre arbítrio foi dado ao homem
para que êste consiga um mérito análogo ao de Deus.
Afirma que o pecado do homem primitivo consistiu no
fato de procurar êle livrar-se da sujeição â vontade de
Deus, e que depois da queda a natureza humana ficou
tão corrompida que se tornou uma nova natureza, res-
tando-lhe apenas o bem da alma. Assim, o homem au-
xiliado pela graça divina, livremente dispensada a to-
dos por meio de Cristo, é capaz de voltar a Deus e re-
ceber a salvação. Tertuliano foi o primeiro a ensinar
a doutrina da transmTssao da alma pela propagação
^clõs pais aos fflirôs7isto é, .a doutrina do traducionismo.
7sénhuin õüti-o escritor cristão dos primeiros séculos es-
creveu tão extravagantemente a respeito do mágico
efeito da água do batismo. O tratado 3>c batismate
começa: "Bem-aventurado é o nosso sacramento de
água, em que limp ando-nos dos pecados da nossa ce-
gueira primitiva, estamos libertos para a vida eterna".
No entanto, êle protestou energicamente contra a prã-
ti^a _de batizar crianças que ia se tornando popular
qiesse tempo. Crendo que os pecados cometidos depois
do bahsníõ eram imperdoáveis, julgava que ninguém
103 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

deveria ser batizado, a menos que estivesse em situa-


ção de poder guardar a sua vida escrüpulosainente
desde o momento do batismo. Os escritos de Tertuli-
ano fornecem abundantes evidências da corrupção mo-
ral nas igrejas, e a crescente tendência para o episco-
pado que êle, como presbítero, energicamente comba-
teu.

. 4. Cipricmo nasceu na África proconsular, prova-


velmente em Cartago e era filho de um oficial romano
que lhe deu esmerada educação. Tornou-se mestre
provecto de retórica antes da sua conversão e foi grande
admirador de Tertuliano, de quem se considerou dis-
cípulo. Nomeado bispo da igreja cartaginesa (4) logo
depois da sua conversão, revelou idoneidade para o lu-
gar, ainda que a sua nomeação tivesse causado desgosto
entre os demais presbiteros. A sua fuga da perseguição
deciana, ocasion'ou-lhe severas críticas. Acusaram-no de
infidelidade e cobardia, não obstante ter êle demons-
trado melhor e mais verdadeira compreensão dos de-
veres cristãos do que os que procuravam o martírio.
Finalmente foi martirízado por ocasião da perseguição
de Valeriano no ano de 258.
Foi Cipriano quem transformou o ensino teológico
de Tertuliano na teologia da Igreja Católica Romana.
Apesar de ser homem extraordinariamente piedoso, po-
de-se dizer que contribuiu mais do que qualquer outro
para o desenvolvimento das idéias hierárquicas, tendo
sido o primeiro a estabelecer uma clara distinção entre

4) Não se sabe, ao certo, quando nem como o evangelho f o i


levado para Cartago. Supõe-se que tenha sido levado de Roma em
princípios do segtwuío século. Cartago era a metrópole da Á f r i -
ca Setentrional e uma das cidades mais importantes do mundo.
Os cartagineses adotaram a língua falada em Roma, tendo atin-
gido 4 um alto desenvolvimento intelectual. A cidaide combinou
a imoral idolatria do Oriente com o luxo e a extravagância de
Roma, a ponto de um escritor contemporâneo chamar-lhe a Ro-
LITERATURA DO PERÍODO 105

presbiteros e bispos e a sustentar a supremacia da


igreja de Roma como a cathedra Petri.

V . PERÍODO CIENTÍFICO
Alexandria foi, no comêço da era cristã, & cidade
mais cosmopolita do mundo. A sua situação geográ-
fica tornava-a o ponto de convergência da cultura ori-
ental com a ocidental. As portas da cidade estavam
sempre abertas a qualquer religião ou filosofia, não
lhe faltando prosélitos e defensores. Tudo que era bom
ou ruim ocupava um lugar naquele formigueiro huma-
no. Grande empório comercial que foi a cidade, tor-
nou-se por isso, o chamariz para os aventureiros, que
lhe transpunham as portas em grossas correntes, ávidos
por coisas novas e fáceis êxitos mercantis ( 5 ) . Eístas
circunstâncias nos levam a supor que o Cristianismo
entrou na formosa metrópole africana sem encontrar
grande resistência ; Faltam-nos entretanto, dados his-
tóricos. A tradição aponta Marcos como o fundador da
igreja de Alexandria. Mas; de positivo e certo, coisa al-
guma se sabe.
Os primeiros conhecimentos históricos que possuí-
mos do movimento cristão na capital africana, datam
mais ou menos do meado do segundo século. Neste
tempo foi fundada uma escola de catecisino com o f i m
de instruir os filhos dos crentes e os convertidos vindos
do paganismo, nas doutrinas fundamentais do Crislia-

ma da Á f r i c a . Não obstante, o Cristianismo encontrou plena acei-


tação entre tôdas as classes sociais, tendo-se espalhado pelo nor-
te da África em propaganda incessante, terminada a qual pôde
contar no f i m do segundo «século, com milhares de adeptos. Na-
turalmente, surgia um novo tipo de Cristianismo da combinação
entro a organização romana e a impetuosidade e o zôlo africanos.
Em nenhuma outfla parte houve cismas tão violentes.

5) Vide a discussão sôbre os gnôsticos:


10 G O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

nismo. Esta escola, dirigida por Clemente, tornou-se


sobremodo popular dando ao Cristianismo uma acen-
tuada feição cientifica; o seu conceito, porém, chegou
à culminância nos dias em que Orígenes a dirigiu atra-
indo um número de pagãos gnôsticos igual ao de cris-
tãos. Ela bem pode ser considerada' a pedra angular do
edifício filosófico levantado 210 seio da crístandade.
Clemente e Orígenes, dos quais Alexandria foi a mãe
intelectual, podem ser tidos como os primeiros homens
que estudaram cientificamente o Cristianismo e as Es-
crituras. Até o sétimo século, Alexandria continuou
ainda como a sede dos sentimentos e das influências
cristãs. Foi ai que, ao entardecer do segundo século,
se iniciou a primeira exposição do Cristianismo como
um todo.

1. Clemente de Alexandria nasceu cêrca do ano


160, provavelmente em Atenas. Espírito seriamente re-
ligioso, debalde procurou satisfazer a alma nos sistemas
filosóficos do seu tempo. Mas a religião cristã ensinada
por Panteano, diretor da escola de Alexandria, deu-lhe
aquilo que os sistemas filosóficos lhe não facultaram.
Algum tempo dej)ois da conversão, tendo Clemente
revelado dotes intelectuais, foi eleito diretor da escola
de Alexandria, lugar de que tomou posse em 190, nele
se mantendo com proficiência, durante doze anos.
Foi o cristão mais douto antes de Orígenes. Era homem
profundo e especulativo, com uma extraordinária apre-
ciação da Verdade, do Bem e do Belo.
Seus principais escritos foram Discursos Gregos em
que confronta a religião cristã com as filosofias gre-
gas, realçando a superioridade daquela sôbre estas; O
Pedagogo, opúsculo acentuadamente religioso, destinado
á instrução dos filhos dos crentes e dos recém-conver-
tidos vindos do paganismo; Miscelâneas, livro de com-
bate dirigido aos gregos, onde o autor mostra a superí-
L I T E R A T U R A DO PERÍODO 107

oridade do Cristianismo sôbre as religiões pagas; e Es-


boços, excelente e bem elaborado comentário de uma
grande parte do Velho e Novo Testamentos.
Clemente apresenta Deus em sua teologia como a
causa indireta e o Filho como a direta de todas as coi-
sas. Isto nos leva a verificar a sua tendência para afas-
tar o Ser Supremo de tôdas as coisas criadas e 'apre-
sentar o Filho como criador, preservador e salvador. A
doutrina do Espirito Santo não foi claramente definida
em sua teologia. Quanto ao homem, sustentava enfa-
ticamente o livre arbítrio. Considerava o estado ori-
ginal como estado infantil e puramente livre. Como
resultado da queda sob revi eram ao homem tôdas as
dificuldades que hoje o cercam inclusive a luta cons-
tante contra a sensualidade. Não obstante essas fra-
quezas humanas, Clemente apresenta Cristo encarnan-
do-se para mostrar que o homem tem poder suficiente
para obedecer e cumprir os mandamentos de Deus.
Portanto, segundo o seu modo de ver, Cristo é mera-
mente um exemplo para o homem. Sôbre a vida cristã,
ensina êle, que o homem pela sua própria vontade e
disciplina pode vencer tôdas as tendências maléficas.
Clemente encarava diversas graduações espirituais com
relação ao Cristianismo. Segundo êste principio fêz a
seguinte classificação: Cristo, os anjos, os cristãos fi-
lósofos e a grande massa de cristãos que nunca atin-
giram a perfeição, -
Conquanto não previsse o efeito de suas doutrinas
e nem se tivesse expressado desta forma, podemos atri-
buir-lhe mui naturalmente a inspiração do sacerdó-
cio que mais tarde se estabeleceu na Igreja Católica,
baseado no principio de graduação espiritual.
Clemente foi o precurssor do pelagianismo, assim
como Tertuliano o foi do monaquísmo.
• 2. Orígenes nasceu 110 ano 185, e recebeu de seus
107 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

pais a educação religiosa mais salutar possível. Quando


ainda muito criança recitava de cor, grandes trechos
das Escrituras, chegando mesmo a confundir o seu in-
teligente pai Leônidas, com as perguntas engenhosas
([lie lhe dirigia. Seu pai foi martirízado cêrca do ano
202, revelando Orígenes neste transe tão doloroso, uma
f é digna de menção, aconselhando-o a sofrer firme e
resignadamente até o f i m .
Orígenes foi o autor da doutrina da criação pro-
gressiva do Filho e do Universo, baseando-se na idéia
de que Deus não pode sofrer modificação alguma, e
que, portanto, nunca houve tempo em que Deus não
fôsse Pai e criador, sendo por isso a geração do Filho
e a criação do mundo, atos eternos. Assim como Deus
é Pai e Senhor desde a eternidade, também a geração do
Filho e a criação do mundo são atos eternos. O Pai é a
causa originária do Filho, e o Filho a de tôdas as ou-
tras criaturas. O Espirito Santo é o primeiro e mais
excelente dos seres criados pelo Pai, por intermédio do
Filho. Referindo-se à antropologia diz êle que no mundo
original houve sòmente entes espirituais. Muitos espí-
ritos foram criados puros, porém depois apostataram
de Deus. O mundo material foi tirado do nada para
ser a morada dos espíritos caídos, tendo ao mesmo tempo
por objetivo ser um lugar de sofrimento e expiação. A
triste condição do homem caido o torna sujeito a Sa-
tanás, ainda que sua vontade seja livre para escolher
entre o bem e o mal. Orígenes cria na morte expiató-
ria de Cristo em oposição aos que sustentavam que o
Filho de Deus tinha sido apenas um mero exemplo, ao
mesmo tempo que dizia ser esta expiação não sòmente
para todos os homens, mas também para todos os an-
jos decaídos. 0 mérito de Cristo só pode ser adquirido
pela f é pessoal. Segundo a doutrina da corrupção de
tôda a humanidade, professada por Orígenes, as pró-
prias crianças vindas ao mundo, não estavam isentas
L I T E R A T U R A DO PERÍODO 109

dela, portanto necessitavam da remissão. Acreditava


na necessidade e eficácia do batismo, na remissão dos
pecados, e por conseguinte, insistia em que as crianças
fôssem batizadas, costume êsse que parece existir nas
igrejas. Nunca pôde conceber a ressurreição do corpo
material; por êste motivo, "não aceitou a ressurreição
da matéria. O corpo ressuscitado, pensava êle, teria a
mesma forma, embora sem a mesma substância. Não
podia ser um corpo de carne e sangue, mas um corpo
inteiramente espiritual. Tinha a firme certeza de que a
harmonia espiritual observada no principio do mundo
havia de ser finalmente restaurada. Por esta forma
dizia que o f i m do mundo seria como o principio. Logo
que se alcançasse êste tempo os próprios condenados e
os demônios depois de terem sofrido castigo suficiente,
andariam voluntariamente sujeitos a Cristo .
O seu método fantástico de interpretação das Es-
crituras, foi desde logo adotado pelas igrejas, exceto
pela escola de Antioquia, que lhe opôs tenaz resistên-
cia, defendendo a aceitação restrita da interpretação
literal, e estendendo a sua influência até os tempos me-
dievais/ Neste particular a influência de Origenes f o i
péssima e de resultados funestos. As suas especulações
extravagantes, tiveram como resultado o aparecimento
de dois males que bem tristes conseqüências trouxeram:
muitos, seguindo o seu exemplo, converteram a Bíblia
em livro mágico, sacrificando o seu ensino simples e
prático; outros foram levados por causa de sua extra-
vagância a negar ao leigo o direito sagrado de pensar
por si só.

3. As Constituições Eclesiásticas e os Cânones dos


Apóstolos; obra anônima, parece ter relação com o "En-
sino dos Doze Apóstolos", e a "Constituição Apostóli-
ca", w qual até a última parte do quarto século e o co-
meço do quinto, não havia tomado a forma atual. Nesse
109 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

escrito, o governo eclesiástico, é ainda primitivo. Dou-


trina, por exemplo, que se houver em algum lugar no
mínimo doze jjessoas que desejam escolher dentre si
uma delas para pastor, deverão escrever às igrejas cir-
cunvizinhas, pedindo-lhe que escolham três homens
afim de examinarem o candidato. Em caso de o acha-
rem digno, a comissão enviada pelas igrejas, o sepa-
rará para o trabalho pastoral. O pastor assim escolhido,
consagrará, depois do respectivo exame, dois ou três
presbiteros para o ajudarem na; administração das or-
ei enanças e da disciplina.
A edição egípcia (cóptica) desta obra apresenta
instruções pormenorizadas a respeito da escolha, ensi-
no, batismo e admissão dos candidatos à comunhão;
exige três anos como tempo preciso para 'o preparo do
candidato na vida e doutrina cristãs, antes de ser ad-
mitido ao batismo. Findo êste prazo deverá ser apre-
sentado um relatório do seu comportamento, zelo no
serviço cristão, e progresso no conhecimento da vida
cristã. 0 batismo é precedido pela cerimônia do exor-
cismo e unção de óleo. Após êste rito o candidato en-
tra na água despido, faz uma confissão oral de sua fé,
em seguida é imerso três vêzes. Terminada a imersão,
faz outra confissão, após a* qual saí da água, sendo en-
tão ungido pelo presbite.ro com óleo da graça, vestido
e preparado para entrar na igreja.,O pastor, colocando
a mão sôbre a cabeça do recèm-batizado, invoca a bên-
ção do Espírito Santo e unge-lhe novamente a cabeça.
A Ceia do Senhor é então administrada aos novos mem-
bros, constando além de pão e vinho, de leite misturado
com mel como símbolo de sua entrada num estado de
bem-aventurança entre os santos.
CAPITULO I I I

CONDIÇÕES NO FIM DO PERÍODO

I. EXTENSÃO DO CRISTIANISMO

Chegamos ao tempo em que o Cristianismo tendo


invadido todo o Império Romano, se estende da Bre-
tanha à índia. Por tôda a parte, dentro dos confins ro-
manos, o nome de Cristo é conhecido e honrado. E di-
ante da cristandade forte, bem organizada, triunfante
mesmo, o paganismo aparece débil, fraco, esfacelado,
sem organização, sem conceito, e sem esperança.
E, deve-se notar que essa expansão do Cristianismo
foi conseguida sem haver juntas que sustentassem e di-
rigissem os missionários, nem escolas adequadas para
o seu preparo, nem governos cristãos que protegessem
e fomentassem as missões, nem riquezas, nem influên-
cia social que pesassem a seu favor. No entanto, no f i m
do período, quase uma décima parte da população do
Império Romano era cristã. Na Ásia Menor a metade
dos habitantes era de cristãos.
Muito pouco das minudências do movimento mis-
sionário é conhecido. Até a maioria dos nomes dos
missionários da época são desconhecidos. É bem provável
que a maior parte da evangelização, como na era apos-
tólica e nos campos missionários na atualidade fôsse
feita pelos leigos.
Os argumentos usados na conquista dos não cris-
tãos variavam. Para com os judeus e prosélitos judai-
cos, os cristãos apelavam aos cumprimentos das profe-
cias do Velho Testamento em Jesus; para com os pa-
gãos, contrastavam as fraquezas do corrente politeísmo
com a superioridade e antigüidade do monoteísmo cris-
111 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

tão, Para ambos, os cristãos davam ênfase à encarna-


ção, a morte e a ressurreição de Cristo e chamavam a
atenção á relativa pureza da vida dos cristãos em con-
traste com a dos pagãos.
0 Cristianismo que principiou como uma pequena
seita judaica e que nunca conseguira ganhar senão pe-
queno número dos judeus, dentro de trezentos anos ad-
quirira base sólida entre os armênios, os sirios e, pro-
vavelmente entre os povos antigos do Egito e Arábia,
atingindo mesmo os godos, georgianos e os indígenas
do Oriente. Quanto á lingua e ao ambiente, eram ainda
predominantemente gregos; quanto à herança, mais ju-
daica que qualquer outra coisa.
A grande maioria dos cristãos se achava no Impé-
rio Romano, e quase todos os demais viviam na esfera
de influência política, cultural ou comercial dele. To-
davia, o Cristianismo já era cosmopolita quanto aos
membros. Seu aumento se acelerava de década em dé-
cada, tendo no terceiro século um crescimento feno-
menal e, por fim, torn'ou-se mais poderoso que o Estado,
que, depois de lutar inutilmente para exterminá-lo, ca-
pitulou e procurou aliar-se com êle,

Nunca na historia da raça humana houve igual êxito. Nun-


ca em tão curto espaço de tempo tem qualquer outra religião, on
qualquer outro grupo de idéias religiosas, políticas ou comerciais,
sem o auxílio de fôrça física ou do prestígio cultural, alcançado
uma posição dominante numa cultura tão importante. Outros têm
conquistado maior número de aderentes no mesmo espaço ae
tempo. Provavelmente o Maometanismo ganhou mais nos três
primeiros século^ da sua existência, mas isto f o i principalmen-
te por causa da fôrca e do prestígio que precedeu do êxito dos
seus exércitos. 0 Budismo talvez, tenha atraído mais conversor
nos seus três primeiros séculos, mas se assim aconteceu, foi prin-
cipalmente por causa do apôio que lhe deu o grande monarna,
Asoka. Talvez o Maniaueísmo tenha se espalhado num terríto-
r i o maior no mesmo período de tempo. Gomo o Cristianismo
também Ôle cresceu em face de perseguição e sem o apOlo dos
CONDIÇÕES N O FEYt DO PERÍODO 113

reis. No entanto, o Maniquefsmo nnraca ocupou uma posição tão


importante num estado tão poderoso quanto o Cristianismo no
Império R o m a n o . . . A história do Gristianismo nos trôs primei-
ros séculos é única ( 1 ) .

Na primeira parte, a obra missionária foi feita pe-


los gregos, empregando a lingua grega, mas antes de
findar o período já se pregava o evangelho em vários
idiomas, e as Escrituras haviam sido vertidas em latim
para os romanos, em siriaco, para os povos da Síria e
Mesopotamia, e em cóptico para os cristãos residentes
no Egito. A Vulgata, versão em latim, serviu por mui-
tos séculos, como a única Bíblia da cristandade ociden-
tal; e até o dia de hoje é a única Bíblia autorizada pela
Igreja Católica Romana.
O Cristianismo não triunfou sem oposição, antes,
foi a oposição que contribuiu para o seu triunfo, A per-
seguição era bastante severa para desanimar os frivo-
los a aliarem-se com os perseguidos, dando, assim, so-
lidariedade e tom moral ao Cristianismo. Por outro
lado, as perseguições não foram suficientes para ani-
quilar as igrejas.
As razões para a extensão maravilhosa do Cristia-
nismo, nos três primeiros séculos foram muitas. A prin-
cipal porém, foi o impulso original que veio do Fun-
dador. A transformação operada por Cristo naqueles
que o aceitaram como Salvador e Senhor e a inabalá-
vel crença na sua morte e ressurreição e a certeza da
sua volta, e que levaram os cristãos primitivos a inici-
arem e continuarem a conquista do mundo em seu no-
me. Era o impulso intimo e dinâmico, implantado ne-
les pelo Espírito Santo, que conduzia os cristãos â vi-
tória.

1) Lalourette, A Eistóry of the Expansion of Christianity. Vol


I, pg. 112.
113 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

II. POSIÇÃO SOCIAL


0 progresso do Cristianismo e o bom nome adqui-
rido depois de lutas tão sanguinárias e ásperas, deram-
lhe uma alta posição no império, Muitos cristãos che-
garam a ocupar elevados cargos públicos. No entanto,
a grande maioria dos cristãos ainda vinha da classe
mais humilde como acontecera no período apostólico.
Cêrca do ano jOO^ Abgar, jceL.de Edessa, abraçou o
Cristianismo e foi a primeira cabeça"cot&ada que se
curvou aos pés do divino Mestre. Em 311, Constantino
colocou-se ao lado dos cristãos e fêz com que cessasse
a perseguição oficial.
As condições agora tão favoráveis â vida cristã, tor-
naram possível melhor distribuição pecuniária. Mui-
tos cristãos tornaram-se possuidores de avultados bens
materiais. As igrejas, igualmente, prosperavam, e, em
muitos casos, fizeram aquisição de grande fortuna.
I I I . ALTERAÇÕES N A D O U T R I N A E P R Á T I C A
Ao lado destas condições externas, notam-se alte-
rações sensíveis na doutrina e prática das igrejas que
gradualmente se iam transformando na Igreja Católica
Romana dos tempos posteriores.
O Cristianismo ganhou popularidade entre o povo
e o apôio do governo imperial à custa de mudanças ra-
dicais na sua vida e organização. Diz o moderno his-
toriador, H . C. W e l l s :
A idéia essencial, espírito v i v o do Cristianismo era uma coi-
sa nova na história da mente e vontade do homem; porém a r o u -
pagem do ritualismo, simboIi?mo e fórmuía com que o Cristia-
nismo se vestiu, e se veste até o dia 'de hoje em muitos pafóes,
fôra de certo fabricada nas religiões e templos de Júpiter, Se-
rapis e ísis que se irradiou de Alexandria ao mundo civilizado
na idade teocrática do segundo a primeiro séculos antes de Cris-
to m .

2) The Outline of History {Star Book Edition) p á g . 353.


CONDIÇÕES N O FEYt DO PERÍODO 115

E mais adiante:
0 que é evidente é que o ensino de Jesus de Nazaré era o do
novo tipo que começou com os profetas hebraicos. Não «ra sa-
cerdotal, não idependia de templos nem de altares. Nada tinha tíe
ritos nem de cerimônias. Seu sacrifício era "um coração que-
brantado e contrito". Sua única organização era a de pregadores
e a sua função principal era a do sermão. Mas o Gristianismo do
quarto século, ainda que preservasse o núcleo dos ensinos de Je-
sus nos evangelhos, foi em grande parte uma religião sacerdotal
do tipo já familiar no mundo, durante milôníos. O centro do seu
ritual era o aliar, e o ato essencial do culto era o sacrifício mi-
nistrado pelo sacerdote, na celebração da missa (3) .

Enfim podemos dizer que há um largo e profundo


abismo entre o Cristianismo do ano 100 e as igrejas do
ano 323.
Efetivamente é mais fácil salpicar um pouco de
água benta na testa do que purgar o coração da malí-
cia; comer um pedacinho de pão e pretender haver en-
gulido a divindade do que sujeitar-se à vontade de Deus;
ofertar meia dúzia de velas ao invés de dedicar o co-
ração; raspar ia cabeça do que expelir os pensamentos
impuros.

1. Ponto de partida.

Pode-se destacar como ponto de partida na histó-


ria do desvio da norma apostólica, a crença procedente
do paganismo. Como natural desdobramento desta
idéia foram surgindo no seio da cristandade o ascetis-
mo, a perversão da caridade cristã numa caridade de
esmolas derivada da suposição de que as esmolas as-
seguram a remissão dos pecados, a perversão das orde-
nanças em magias pelas quais os benefícios espirituais
eram obtidos, o sacerdotalismo e o ritualismo.

3) The Outline of .-History (Star Book Edition) pág. 523.


10 G O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS SÉCULOS

2, Ordenanças convertidas em sacramentos.


O primeiro passo para a degeneração foi a atribui-
ção de um poder mágico ao batismo.
Considerou-se o batismo não taívez como absolutamente ne-
cessário á salvação, porém como um ato tão necessário que se
não se pudesse efetuar precisamente do acôrdo com o mandamen-
to de Cristo e o precedente apostólico, devia ser substituído por
algum simulacro dêle.
O? primeiros cristãos insistiram com razão na importância
de obedecer a Cristo no batismo. Parece que nunca ibes ocorreu
como tem ocorri/do a cristãos de tempos recentes evitar êste man-
damento porque fô?se inconveniente ou desagradável obedecê-lo,
ou pela .suposição de aue alguma outra coisa pudesse substituir
o ato exigido, estando mais de acôrdo com os sentimentos delica-
dos de gente culta e refinada. Sua obediência era implícita, pron-
ta, completa. Sua falta estava no excesso da virtude — tenta-
tiva de obedecer em casos que a obediência era impossível, Quan-
do não havia água em quantidade suficiente para a imersão. não
pedia h3ver batismo propriamente dito. Porém, como o batismo
era considerado de muita importância, alguma coisa devia ser
feita, e em tais casos derramava-se água sôbre a cabeça por três
vêzes com tanta profu-ão quanto possível. Sem duvida, procura-
ram aproximadamente imitar a imersão. Perderam de vista o
verdadeiro princípio — que onde a obediência é impossível.
Deus aceita a vontade de obedecer, em lugar da própria obediên-
cia; e, adotaram o princípio errôneo — que se pode obedecer à
Deus fazendo outra coisa em substituição à. que Èle manda O ,

Na já citada obra: O Ensino dos Doze Apóstolos,


lemos:
Agora em referência ao batismo, batizai assim: havendo p r i -
meiramente pronunciado tôdas estas coisas, batizai em nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo : em água corrente. Mas se não
tiverdes água corrente, batizai em outra água, e so não pudepdes
batizar em água fria, então b a t i z a r e m água morna. 33, se não
tiverdes água suficiente para a imersas, derramai água em p r o -
fusão sôbre a cabeça três vêzes, em nome do Pai, do P i l h o e do
Espírito Santo. Mas, antes do batismo, o ministrante e o candi-
dato devem .jejuar, e quaisquer outras pessoas que puderem; mas

4) Vedder, Breve História dos Batistas, pg, Í7-18, trad, de


Muirhead.
CONDIÇÕES NO FEYt DO PERÍODO 117

ao candidato, mandarei; j e j u a r por dois ou trôs dias antes de


ser efeluado o ato (, 6 ).

Do meado do segundo século em diante, os escrito-


res da época começaram a identificar o símbolo do ba-
tismo com a coisa simbolizada. Justino Mártir (150)
usa a expressão " o banho "dá regeneração", e entre os
últimos escritos ante-nicenos, o emprego do vocábulo
"regenerar" significando "batizar", é tão comum que
se tornou quase regra.
Uma das primeiras conseqüências dessa nova doutrina
foi o chamado batismo "clinico" (de kliriè, palavra
grega que significa leito), isto é o batismo daqueles que
pensam estar enfermos de morte. O primeiro caso re-
gistrado, embora outros possam ter ocorrido antes, é o
de Novaciano. Supondo-se próximo da morte e dese-
jando "purgar-se dos pecados pelo batismo", derrama-
ram em redor dêle, estando êle no leito, grande quan-
tidade de água, representando tanto quanto possível
uma imersão. Hestabelecendo-se Novaciano, entrou no
ministério e a questão da validade do seu batismo, foi
submetida a Gipríano, bispo da África (cêrca de 250),
que inventou o argumento tão comumente usado desde
então, de que "pouca água é o mesmo que muita". Sua
conclusão baseou-se na noção sacramentai. Argumen-
tava que a aspersão eqüivalia á lavagem da salvação;
e, que quando esta fôsse praticada mediante a fé, tanto
do recipiendário como do administrador, era válida.
Muito tempo passou-se porém, antes que a opinião de
Cipriano prevalecesse, sendo a prática da aspersão muito
rara antes do século dezessete, ainda que x'ecebesse san-
ção oficiai no sinodo de Ravena em 1311, que decidiu
que " o batismo há de ser administrado por trína asper-
são ou imersão".
Outra conseqüência da idéia da regeneração balis-
5) Citação ae Voddex', idem, pags. 18-19, tradução de Muirhead.
118 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS SÉCULOS

mal foi o batismo de crianças. Deduzia-se logicamente


que se aqueles que não são batizados não se salvam,
todos os que morrem na infância estão perdidos. Logo,
devem ser batizadas as crianças o mais breve possível
depois de nascidas.
Não se sabe quando começou a prática do batismo
infantil.
Certo è, que pelo tempo de Tertuliano (150-250) a
prática era conhecida ainda que não generalizada.
Nada hâ na história da igreja que tenha concorrido tanto para
o estabelecimento do papado que esta separação da prática apos-
tólica. Introduziu-se na igreja uma multidão de pessoas cujos
corações não estavam transformados pelo Espirito de Deus, in-
teiramente mundanos e que procuravam o desenvolvimento mun-
dano da igreja para destarte aumentar seu próprio poder e i m -
portância ( 6 ) ,

No f i m do período, a ceia podia ser celebrada so-


mente pelo bispo ou sacerdote. Consistia de pão e vi-
nho (misturado com água). Sòmente as pessoas bati-
zadas podiam participar da ceia. Desde o principio a
ceia fizera parte importante do culto e êste sentimento
cresceu rapidamente durante o período. No fim, porém,
começou o costume de despedir os descrentes antes da
ceia, resultando na designação da palavra latina "mis-
sa" ou cerimônia.
Alguns dos escritores citados sob a discussão da
literatura do período, começaram a falar, ainda que
ambigüamente, da presença de Cristo nos elementos,
mas foi sòmente depois do ano 200 que começaram a
referi-los como sacrifício, e ainda muito mais tarde é
que foi desenvolvida a doutrina católica.
3. Catccumenato.
Como já foi notado, até o meado do segundo sécu-
lo, o batismo era administrado sob profissão de f é .
G) Vedder, obra citada, pg. 22.
CONDIÇÕES NO FEYt D O PERÍODO 119

Sentindo-se a necessidade de dar instrução aos interes-


sados, começou o costume de ensinar-lhe as doutrinas
fundamentais da igreja. A idéia foi boa, mas infelizmente
o resultado foi funesto, pois tendia a substituir a rege-
neração pela educação e a introduzir nas igrejas mui-
tas pessoas que nunca experimentaram a graça de Deus,
e assim contribuiu para a corrupção da igreja.

4. Mudanças no ministério

Junto com a mudança da vida cristã, notam-se tam-


bém mudanças no ministério e na organização das igre-
jas. Já se verificou em páginas atrás, que até ao tempo
de Irineu não havia distinção entre os títulos "presbi-
teros" e "bispos", sendo estes termos empregados como
sinônimos. Entre os cem anos de Irineu a Cipríano,
foram êles usados para designar duas funções distin-
tas. Esta alteração deu-se pelo seguinte: As igrejas ha-
viam crescido de modo que o seu govêrno tornou-se so-
bremaneira difícil. Acresceu a isto, que a tarefa de re-
colher e distribuir esmolas tomou proporções conside-
ráveis. E, recaindo sôbre os bispos esta obrigação, êles,
gradualmente se tornaram presidentes dos corpos de
presbiteros, aos quais era confiada a direção das igre-
jas locais, ficando, porém, reservada ao bispo a admi-
nistração da disciplina. Esta organização não evitou
que surgissem desavenças entre os presbiteros, as quais
evidenciaram a necessidade de uma autoridade em dada
comunidade cristã, afim de prevenir e preservar a uni-
dade. E assim, o episcopado triunfava, conseguindo es-
tabelecer, por algum tempo, tranqüilidade e ordem,
mas criando embaraços ao livre desenvolvimento espi-
ritual e eclesiástico, fatalmente produziu o sacerdota-
lismo dos tempos posteriores. Os motivos que estabe-
leceram êste novo regime parecem ter sido puros, mas
quando êle foi empregado pelos sucessores menos dig-
119 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

nos, redundou era grandes e lamentáveis abusos. Ci-


priano foi um excelente pastor, mantendo sempre o
maior cuidado e solicitude pelo bem estar de cada mem-
bro do seu rebanho.
No fim do período encontram-se não sòmente dis-
tinção entre presbiteros e bispos, mas também uma por-
ção de oficiais subalternos: sub-diáconos, leitores, acóli-
tos, zeladores, e exorcistas.
Irineu insistiu a respeito da unidade da igreja não
orgânica, mas espiritual, resultante da comunidade de
crença num só Senhor, Jesus Cristo.
Pouco a pouco, as simples cerimônias foram tomando
maior incremento e ênfase, ao mesmo tempo que a idéia
de unidade orgânica ocupava o lugar da unidade espi-
ritual. Da tendência de que resultou ficar o poder I9-
cal nas mãos dos bispos, afim de assegurar a unidade e
ordem na comunidade, também se verificou a centrali-
zação do poder supremo num chefe da igreja univer-
sal. Se a igreja havia de ser uma unidade external e
orgânica, precisava por certo de alguém que lhe inter-
pretasse as leis e mantivesse a ordem entre os bispos,
um bispo dos bispos em suma. Do tempo de Clpríano
(250) em diante, essa idéia ganhou terreno rapidamen-
te. Foi assim que se deram os primeiros passos para a
doutrina da supremacia da Igreja de Homa como cá-
tedra e centro de unidade de uma igreja universal.
Na sua introdução a O Papa e o Concilio, o exímio
escritor Rui Barbosa diz:
Durante a primeira época da igreja, debaide a crítica histó-
rica procura na organização deia as leis e os elementos que hoje
lhe servem de base. A unidade não resultava então senão de acôr-
do espontâneo das almas; porque a crístandade era uma pura de-
mocracia espiritual, sem centro oficial, sem meios de coação, e x -
trema, som relações temporais com o estado. A noção paga de
um pontífice máximo seria nesses tempos uma enormidade tal,
que ainda ao papa Estêvão (253-257) negou formalmente €ipria~
CONDIÇÕES N O FEYt DO PERÍODO 121

no o direito de sentenciar entre dois bispos divergentes. " I n d i g -


na-me", escrevia S. Firmiliano. "a estulta arrogância do bispo
de Roma, com presunção de que o seu bispado é herança do após-
tolo P e d r o " , A preponderância que na propaganda se permitia
à moral sôbre u dogma, deixava à ortodoxia uma latitude hoje
inconcebível, e facilitava as reconciliações que o afeolnüsmo uni-
tário de uma autoridade individualmente infalível teria neces-
sariamente impossibilitado. As boas obras eram então o melhor
sinal de f é que se nüo traduzia em fórmulas artificiais, mas na
comunicação íntima entre os dissidentes evitavam os cisma?, que
o refimento centralizador converteu depois em sucessos triviais
e persistentes. A simplicidade dos dogmas, a ausência de ceri-
mônias teatrais, a severa proibição das imagens, a pureza do en-
sino, o martírio dos confessores da fé, a submissão a todos os g o -
vernos humanos, a aspiração a uma pátria estranha a ôsle mun-
do, constituíam a mais decedida antítese entre aquela comuni-
dade, vinculada pelos laços morais, e o Catolicismo Romano fun-
dado na ampliação arbitrária dos artigos de fé, nas pompas de
um culto laustoso, no enfeitiçamento dos sentidos, no casuísmo,
na intolerância, não sòmente dogmática, ma^ temporal, na in-
subordinação contra o poder civil, no pendor do sacerdócio a es-
tabelecer neste mundo um remo seu. A direção dos crentes in-
cumbia aos bispos, eleitos pelos fiéis, aos padres e diáconos; mas
ainda assim, considerável era a participação da sociedade leiga
n o julgamento das questões que interessavam a f é comum. A
igreja era o povo, não suplantado, mas livremente unincaao ao
sacerdócio [ J ) .

Em meados do primeiro século notamos que os bis-


pos se reuniam em diversas localidades, afim de troca-
rem idéias a respeito dos interesses comuns das igre-
jas. Não muito depois, reuniu-se o sinodo diocesano,
e mais tarde ainda o sínodo provincial. As suas deci-
sões, todavia, tinham sòmente uma influência moral.
Cada localidade agia livremente, podendo aceitá-las
ou não. Cipriano que tanto fêz pelo desenvolvimento
da primazia episcopal e que tanto advogou a união
eclesiástica, recusou aceitar as decisões de qualquer
concilio.

7) O Papa e o Concilio, pág. 23. E d . de 1930.


10 G O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

5, Sacerdotalismo

Acompanhando estas mudanças no ministério, crês-


cia, como conseqüência da idéia dos méritos das obras
exteriores e do sacramentalismo, o sacerdotalismo. As
ordenanças — batismo e ceia — possuindo grande
càcia, deviam ser ministradas por pessoas especialmente
designadas para êste f i m . Em virtude de sua consagra-
ção cerimonial, o pastor tornava-se o mediador entre
Deus e os homens e o meio único pelo qual o leigo po-
dia receber os benefícios espirituais. Facilmente o sa-
cerdotalismo, comum a tôdas as religiões pagãs, en-
controu acolhimento nas igrejas cristãs. E o corolário
do sacerdotalismo e o ritualismo. Não é, portanto, de
estranhar que houvesse mudanças no culto.

6. Culto

Devido ao pouco preparo do clero em geral e a


idéia de que as palavras usadas no culto eram em si
sagradas, junto com as tendências já explicadas, o
culto tendia a tornar-se cada vez mais Htúrgico e cheio
de pompa. Consistia em cânticos, leituras das Escritu-
ras, orações e pregação. Uma vez que a instrução era
dada em classes, não se dava tanta importância à pre-
gação como nos tempos posteriores. Os bispos eram os
pregadores, e, alguns no f i m do período começaram a re-
velar alguma capacidade na tribuna.
No principio do período, os cristãos continuaram
seus cultos nas casas particulares, mas com a liberdade
no fim do período, começaram a edificar casas consa-
gradas exclusivamente aos cultos às quais deram o nome
de "igrejas", "casa de Deus", "casa de oração",
Nos primeiros dias do Cristianismo, o domingo,
considerado como o "Dia do Senhor", era o único dia
observado religiosamente. Mas, no correr dos tempos.
CONDIÇÕES NO FEYt DO PERÍODO 123

surgiram outros dias de guarda, como a páscoa, cele-


brada um domingo depois da sexta-feira da paixão, a
festa do pentecostes — derramamento do Espirito San-
to, a festa da epifania, cuja origem remonta ao segundo
século e foi considerada como a comemoração do ba-
tismo de Cristo, manifestado- ao mundo na qualidade
de Filho de Deus, e por f i m a festa da natividade que
junto com o batismo foram comemoradas no mesmo
dia, tendo ambas alcançado grande vulto e populari-
dade. 0 dia de Natal e o dia do batismo não foram se-
parados antes do meado do quarto século, tendo sido
o dia 25 de dezembro, data da Brumália, no f i m da Sa-
turnália, escolhido para a celebração da festa da nati-
vidade.

I V , O CREDO
Ja notamos, páginas atrás, que em oposição à here-
sia observava-se nas igrejas forte corrente que pugnava
pelo estabelecimento de uma confissão clara e concisa,
com tendências a formar um credo em periodo não
muito remoto.
0 credo mais antigo é o chamado "credo dos após-
tolos". Não foi escrito pelos apóstolos nem tâo pouco
foi obra de um concilio, como acontecera com os ou-
tros credos. Surgiu no meio das atividades missioná-
rias como breve exposição de fé cristã, que devia ser
aceita pelos candidatos antes do batismo. Apareceram
vestígios dêste credo antes do ano 200, mas a forma
em que aparece na atualidade, data do quarto ou quinto
século. E' mais uma confissão de f é do que um credo.
Até o dia de hoje, milhares de pessoas em muitas par-
tes do mundo repetem-na cada domingo como a ex-
pressão da sua crença. Por causa do seu valor histó-
rico, como o primeiro credo, e por seu uso geral na
atualidade, transcrevemo-lo integralmente:
123 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra,


em Jesus Cristo seu único Filho, nosso Senhor, o qual foi conce-
bido por obra do Esj írito Santo, nasceu da Virgem Maria, pade-
ceu -ob o poder do Pòncio Pilatos, foi crucificado, morto e se-
pultado, desceu ao inferno, ao terceiro dia ressuscitou dos m o r -
tos, subiu aos céus e es;tá assentado à destra de Deus Pai, T o d o -
Poderoso, de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos;
creio no Espirito Santo, na santa igreja católica, na comunhão
dos santo?, na remissão dos pecados, na ressurreição do corpo, e
na vida eterna. A m é m .

Houve quem negasse a divindade de Cristo neste


período, mas a grande maioria dos cristãos aceitaram
a Jesus como o Messias do Velho Testamento, Filho de
"Deus e filho de homem, verdadeiro Deus e verdadeiro
homem, por cujo ensino, sofrimento, morte, ressurrei-
ção e intercessào provém a redenção.
Y. CÂNON DO NOVO T E S T A M E N T O
Até depois do meado do segundo século não exis-
tia ainda o cãnon definido do Novo Testamento, ser-
vindo dos livros do Velho Testamento como a fonte de
autoridade. No conflito com a heresia, os cristãos acen-
tuavam sempre a importância do ensino apostólico. E
sob o ponto do cânon do Novo Testamento, inspirada e
dirigida pelo Espirito Santo, foi uma obra de séculos.
O cânon atual, definido pelo concilio de Hipona no ano
393, foi chamado o Novo Pacto (Testamento) e colocado
ao lado da Bíblia judaica, conhecida como o Velho
Pacto (Testamento) e mais tarde reunidos sob o nome
de Bíblia (o livro).

V I . V I D A CRISTÃ
1. Mundanismo
E' deveras importante o conteúdo dos chamados Câ-
nones dos Santos Apóstolos, os quais provavelmente to-
maram a sua forma atual no f i m dêste período. Por
CONDIÇÕES NO FEYt DO PERÍODO 125

êles notamos que o mundanismo campeava no meio


do clero; que muitos faziam parte das igrejas, mas con-
tinuavam no paganismo; que o pecado predominante
do período parece ter sido a imoralidade; que o celi-
bato do clero não era obrigatório, sendo porém, empre-
gados os maiores esforços afim, de impedir que aquê-
les que entrassem solteiros para o clero, quebrassem
êste modo de viver; que os pagãos de influência e ri-
queza entravam nas igrejas, tornando-as semelhantes
aos templos pagãos, encliendo-as de imagens e exigin-
do, ou pelo menos, ensinando que elas fossem adoradas
em substituição do paganismo politeista.

Não devemos, porém supor que tôda a cristandade


estivesse assim corrompida. Muitos cristãos abandona-
vam esta tibieza de moralidade, lutando sinceramente
por uma reforma, tanto de costumes como de práticas,
como já tivemos ocasião de notar no estudo dos movi-
mentos reformadores. Mesmo dentro da igreja oficial
houve muitos crentes sinceros e fiéis.
Os cristãos trataram de restringir o divórcio, abo-
lir a prática de expor as crianças à morte, elevar o ca-
ráter da relação matrimonial e da vida do lar e aliviar
as condições desumanas dos escravos. Em tudo isso
exerceram uma influência benéfica.

2. Analfabetismo

A maior parte dos cristãos continuou no analfa-


betismo, pois fundaram-se poucas escolas e estas sò-
mente para o ensino do catecismo preparatório para o.
batismo, e bem poucos membros das igrejas freqüen-
tavam as escolas pagas. Se tivesse havido escolas cris-
tãs adequadas desde a era cristã, é provável que a his-
tória que estamos registrando fosse bem diferente.
126 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

3. Ascetismo

Algumas almas fervorosas, desesperançadas por não


poderem salvar a sociedade e, descontentes como o ecle-
siasticismo opressivo e sempre crescente, entregaram-se
à vida ascética,?No princípio, renunciaram apenas ao
matrimônio, comer carne, e beber vinho, mas continu-
aram a viver na sociedade. Mais tarde porém, come-
çaram a abandonar o mundo e retiraram-se para os
desertos e bosques.

V I I . SUMÁRIO

Esta claro e patente que grande parte do que se


chamava "cristianismo" de 323, era bem diferente era
doutrina, organização e vida, do Cristianismo do ano
100. Em extensão, o crescimento fora fenomenal, ten-
do-se espalhado por tôdas as partes do Império Roma-
no; do Eufrates ao Oceano Atlântico; do Danúbio e da
Escócia, aos desertos da África. Mesmo além do terri-
tório romano existiam igrejas. Também o Cristianismo
ganhara alta posição social e em muitas igrejas, grande
parte dos seus membros eram ricos. Muitos dos líderes,
especialmente os teólogos e escritores em educação e
cultura, eram superiores aos pagãos. Enfim, o fermento
do Cristianismo permeava tôda a vida romana. Esta
expansão, todavia, custou alto prêço. Se o Cristianismo
venceu o paganismo, de seu turno, o paganismo operou
transformação no Cristianismo.
Antes de Constantino, ou pelo menos antes que o
Cristianismo fôsse oficializado pelo Estado, as massas
começaram a entrar nas igrejas, incluindo muitos que
no pensar e prática, continuaram pagãos. Idéias cor-
rütas ganharam popularidade. O mundanismo e o
formalismo eram praticados em muitas partes. Fêz-se
uma infeliz distinção entre a chamada moralidade alta
CONDIÇÕES NO FEYt DO PERÍODO 127

e baixa1 e entre o clero e os leigos. 0 clero tornou-se


mediador entre Deus e os homens. O mérito das boas
obras foi advogado por líderes proeminentes. Márti-
res e santos foram reverenciados e a seus lugares e re-
líquias, atribuiu-se uma santidade especial. O externa-
lismo manifestava-se nos etaborados ritos e nas festas
cristãs que cresciam em número.
O mundo grego-romano fora cristianizado, e o
Cristianismo, em parte, fôra paganizado.
Todavia, seria êrro supor que esta situação preva-
lecesse em tôdas as partes e em tôdas as igrejas. Houve
almas nobres e crentes sinceros no meio da corrução
geral e entre os grupos dissidentes ainda havia uma
aproximação ao Cristianismo primitivo.
TERCEIRO PERÍODO

Da adoção do Cristianismo como Reli-


gião do islado até a coroarão
de Carlos Magno, 323-800
CAPÍTULO I

A IGREJA E O IMPÉRIO
I. CONSTANTINO E SEUS SUCESSORES

1. Constantino e o Cristianismo

Como já tivemos ocasião de notar, Diocleciano


(284-316), apesar da provável origem escrava, que co-
meçou a sua carreira militar como soldado raso, e fe-
loz perseguidor dos cristãos, foi competente organizador
c conseguiu insuflar no Império Romano, já em deca-
dência, um novo alento de vida que durou quase du-
zentos anos. Para obviar o assassinio, que era a norma
de sucessão, e corresponder â magnitude da tarefa, ele
organizou a tetrarquia por meio de um imperador as-
sociado e de dois coadjutores e herdeiros respectivos.
Os dois Augustos, que eram Diocleciano e Maxim iano,
reinaram, um em Milão e outro em Nicomédia, na Ásia
Menor, sendo as províncias mais distantes e turbulen-
tas confiadas aos dois Césares, sucessores presuntivos,
(ralério e Constâncio.
Depois de vinte anos, cansado das responsabili-
dades do govêrno, Diocleciano abdicou o trono e obri-
gou o seu colega Maximiano também a abdicar no
mesmo dia, indo ele plantar couves em Salone a Leste
do Adriático. Dizem que, quando mais tarde Maximi-
iliü o cuisstiAMSMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

ano lhe escreveu insis lindo que eles dois reagissem para
reconquistar o trono, o ex-imperador respondeu-lhe:
"Se viesses a Salone e vísses as couves que tenho plan-
tado com as minhas próprias mãos, nunca mais me fa-
larías em imiiério". Automaticamente os dois Césares,
Galério e Constâncío, subiram a Augustos, mas um ano
depois falecendo Constâncio, seus soldados, não le-
vando em conta a lei de sucessão decretada por Dio-
cleciano, proclamaram imperador o filho, Constantino,
o qual durante dezoito anos pelejou contra seus con-
correntes.
Pouco se sabe da vida privada de Constantino. Zó-
simo, historiador do quinto século, diz que ele era filho
ilegítimo, sendo seu pai egrégio general e sua mãe, He-
lena, filha dum estalajadeiro de Nish na Sérvia, Gibbon,
historiador inglês, 110 entanto, acha que eleve ter havido
casamento. Em todo o caso foi casamento humilde e
Constantino teve que pelejar contra sérios obstáculos
desde a infância, e, o fato de ele ter alcançado a posi-
ção mais alta 110 govêrno, revela que era homem de
valor Sua educação era bem limitada. Sabia pouco
ou nada de grego. Gibbon, por causa de sua aversão
ao Cristianismo, é hostil a Constantino, mas admite
que ele era sóbrio e casto. Acusa-o de prodigalidade
por causa das suas grandes construções, e de vaidade e
dissolução porque, na sua velhice, usou cabelo postiço
e diadema e túnica luxuosa. 0 próprio Gibbon amar-
rava o cabelo com laço de fita preta, e todos os impe-
radores depois de Constantino usaram diademas e tú-
nicas luxuosas.
Constantino foi mais autocrálico que os predeces-
sores. Reinou sem senado nem conselheiros. Como Di-
ocleciano, ele reconheceu que o seu império estava em
decadência, e assim como aquele procurou a força uni-
ficadora na religião pagã, este procurou-a no Cristia-
nismo.
A IGREJA 3E O IMPÉRIO iâi

Constantino, pouco simpático à religião popular,


interessava-se, no entanto, pelo culto tributado pelos
Persas a Mitras, deus do Sol, combinação da filosofia
neoplatônica e zoroastriana que se tornara sedutora
por meio de um rito bem elaborado e imponente.
Organizando as suas forças contra Maxêncio, for-
tificado sobre a ponte de Mulvina, nas proximidades
de Roma, Constantino verificou que o momento era
assás difícil, pois, a vitória das suas armas atestaria o
seu poder invençível, enquanto o insucesso delas, faria
irreparável a sua derrota. Observando que Maxêncio
empregara todos os recursos possíveis para ganhar as
graças populares, convenceu-se de que somente o seu
apoio ao Cristianismo poderia alrair-Ijlie a simpatia
do povo- E, ao par da sua apreciação sobre o seu po-
der invencível, por êle considerado de procedência di-
vina, Constantino resolveu adorar o Deus dos cristãos,
lendo declarado ainda, certamente para encorajar as
suas tropas, ter visto 110 firmamento uma bandeira em
forma de cruz, 11a qual se lia: " I n hoc signo vinces"
(Com este sinal vencerás), e a cruz, emblema da paa
entre os homens, passou a ser emblema de guerra (1).
No entanto, a vida subseqüente de Constantino leva-
nos a concluir ter sido falsa a sua visão. Politico as-
tuto e sem escrúpulos, nenhuma vida lhe era preciosa
quando o seu interesse estava em jôgo._Assassinou
traiçoeiramen te a**- Lúcio e ordenou o extermn^~lle
qua^ por certo",
nao podia ser o de um homem regenerado.
Logo após a sua vitória sobre Maxêncio, Constan-
tino mandou erigir, em praça pública, a sua própria
estátua empunhando uma cruz, onde se lia: "Em vir-
tude dêste sinal salutar que é o verdadeiro símbolo do

(1) Oliveira Lima — História da Civilização


O CIÍISTíANISítfO A T K A V É S DOS SÉCULOS

valor, tenho preservado a vossa cidade do jugo da ti-


rania*' ,
0 vencedor de Maxêncio não teve, pelo menos ao
principio, o propósito de intervir no culto pagão, de-
rivando os seus esforços em conceder certos favores ao
Cristianismo, afim de torná-lo atraente e invejável.
Assim, eximiu o c l e j ^ d a s ^ b j j ^ g ^ mu-
nicipais, J&eiUm^s^-Sims^iwrie^
impôs tos^decretoii^^aboUção-
cfen ancas . pagãs. ofensivos aos^ çr^stãos^.ordeiiQii™a_çQ3r„__
servância do d o m i n g
ejas,,cristãscontribuiu Jj^astante para a
construção^ de templos crisTão^^ iéus f f f i o s
Dizem que no ano 324, Constantino"
prometeu a cada convertido ao Cristianismo vinte m o i
| edas de ouro e uma roupa branca para a ceiiiitâma ba^
ITji^inTTcíTd^ ali crrtessé~à^^ de doze^
Imil homens e tantas m ü m s ^ u i l i e r c s _.e crianças. E nò
I ano publicou uma advertência geral aos^siiUs^sib
f ditos, chamando-os a abxa.çamm o Cristianismo (2),
jQjtmperádoT- era poniífu^niiodm.0 da religião pa-
gã,
a mesma posição^ cIue

éie seTornasse religião oficial. E, d bom notar que esta


supremacia encontrou a mais franca aceitação por
parte dos cristãos, quiçá agradecidos pelos favores con-
cedidos pelo imperador ao Cristianismo.
'Esia. eievução do Cristianismo tez de- Constantinopla o p r i -
meiro representante duma teocracia cristã, uma política que
implicava: (1) na suposição de que todos os súditos eram cris-
tãos assim como a teocracia do Velho Testamento presumia que
todos os súditos daquele govêrno eram israelitas; (2) numa in-
tima relação entre os direitos civis e religiosos; e (3) na crença
de que a Igreja e o Espado como instituições divinas eram os
dots braces do govêrno divino na terra. Esta idéia recebeu, de-

(2) Newman — A Manual of Church. History, V o l . I, pg. 307.


iâi
A IGREJA 3E O IMPÉRIO iâi

SPiivoívimcnío mais amplo 110 Santo Império Romano da Idade


Média c tem reaparecido em várias formas através dos tempos
mesmo até o dia de hoje (3).

Em todo o seu modo de agir para com a religião


dos cristãos, Constantino tlejxou transparecer que a
sua maior preocupação era conseguir a unidade, dando
pouca atenção à divergência de certas doutrinas. E ,
aPesar não achou j
prudente baÜ^^ j
j y i 1 ' Bem pode ser que esta de- í
iiíora êín cumprir a ordenança cristã, tenha encontrado jJ
justificativa na convicção mantida pelo imperador de |j
que, finalmente, ^oJ^tismjo^ I)!?i:a~ j
dos que manchavam a sua vida. — ,
^ Spflf», jjtQ * jll!
pena'fpara íBizancio, principalmente por causa do seu de-
sagrado peftrpa^anism'o que ainda prevalecia em Roma. A
escolha de Constantinopla (a cidade de Constantino que
ainda estava em construção quando êle morreu) como a
nova Roma profundamente afetou o futuro rumo da histó-
ria. Um dos resultados foi um iippério unia .igreja diyj-
.didos ainda que Constantino se esforçasse para tornar a
nova sede do govêrno o verdadeiro centro do Cristianis-
mo. Êle construmjtll_inagrdficos teniplos.xxlstãos; trouxe
de todas as partes do mundo obras de arte, e elevou o
bispo de Constantinopla â posição igual ã do bispo de
Roma.
Para frizar a importância da transformação por-
que passou o Cristianismo nesta época, citamos por ex-
tenso a sábia análise feita pelo competente e imparcial
escritor, Ruy Barbosa:
Nns dias de Constantino, porém, passou a igreja por uma \
revoluçtio, cujo desenvolvimento absorve tAda a sua história ate
aos nossos tempos. Começou então o cesarísmo religioso, que

(3) Qualben, A History of lhe Christian Church, pg. Hi.


134 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

tem agora 11a infalibilidade papal a sua expressão definitiva, A


soberba grandeza da Roma imperial, augusta ainda na caducida-
de, inspirou á uasconle hierarquia católica, seduzida peta pros-
peridade maravilhosa da nova doutrina, a tendência funesta da
imitação, que havia de trocar as formas republicanas dos Ires
primeiros séculos no govêrno despótico do papa, transformado
impíamente em vigário exclusivo de Cristo. Era a heresia da dc-
nominaçiw, na frase de Arnaud, que iprincipiava, — a maior idas
heresia.? contra'a cruz, porque transformava em verbo de discór-
dia para as sociedade- humanas a palavra daquele que, para lhes
trazer a paz, instituiu a cidade universal " u m mundo superior.
Vos de deorsum est is, ego dc sup cr ms sum; vos de mundo hoc
est is, c{/o non sum dc hoc inundo ( ; í ) ,
Tòda a religião associada ao govêrno das coisas da terra
é uma religião morta: o espirito não v i v e mais nela. Quer o sa-
cerdócio seja o detentor rio poder secular, como na metrópole pa-
pal até 1870; quer, consorcíada ao esíado, receba dèíe a igreja
subsistência, privilégios e íorça; o resultado e sempre a imolação
. da doutrina ao interesse político, Dominadora ou protegida, num
e noutro caso é serva dos cálculos da ambição: no primeiro, para
que o governo temporal lhe não caía nas mãos; no segundo, para
que não lhe subtraiam os proventos temporais do monopólio.
Foi o que entrou a suceder sob Constantino. Estreou-se ai
o sacrifício do Cristianismo ao engrandecimento da hierarquia.
O imperador não batizado recebe o título de bispo exterior; julga
e depõe bispos; convoca o preside concilio»; resolve sôbre dog-
mas. Já não era mais esta, certo, a igreja dos primeiros cris-
tãos. listes repeliriam como sacrilégio as monstruosas conces-
sões ao odioso absoiuíismo dos imperadores, as homenagens ao
déspota que se ensangüentou com a morte de dois sobrinhos, do
cunhado, do filho e da mulher, e que enquanto recebia reverên-
cia nas basílicas cristãs, aceitava adoração como Deus nos tem-
plos do paganismo. Adquiriu-a igreja a influência temporal; mas
a sua autoridade moral decresceu na mesma proporção; de p e r -
seguida tornou-se perseguidora; buscou riquezas, e corrompeu-
se; derramou sangue, para impür silêncio à hetorodoxia; e, su-
jeitando o espírito à letiva, inicie-u ôsse formalismo, que f o i o
primeiro sintoma da sua decadência, o. se não se suprimir, por
uma reforma que a aproxime da sua origem, há de ser a causa
final da sua ruína. Já a fé não era mais o rationale obsequium
do apóstolo (r\) .

(3) Ev\ de João 8:32.


(5) O Papa e o Concilio, pgs. 23-24, E d . de 1930.
iâi
A IGREJA 3E O IMPÉRIO iâi

2. Os filhos de Constantino

Conforme.foi referido, Constantino educou a famí-


lia sob os princípios da religião cristã; no entanto, os
filhos, depois da sua morte, demonstraram a mais ab-
soluta negação ao ensino recebido s Constâncio II con-
seguiu tornar-se o único imperador, tendo ultrapas-
sado o seu pai no esforço para derrotar o paganismo.
Mas, a corrução e a intolerância sempre crescentes
dos cristãos e as medidas arbitrárias postas em prá-
tica por Constâncio, prepararam o caminho para a re-
ação que caraterizou o seu reinado,

3. Reação sob Juliano &Í 3£3

Juliano, o apóstata, sobrinho de Constantino, foi


salvo do grande morticínio promovido pelos soldados
contra a família do seu tio, graças à influência de um
bispo cristão. Educado na religião cristã, proibiram-
lhe a leitura dos escritos pagãos; no entanto, êle os lia
secretamente, tendo sido grandemente influenciado pe-
los seus ensinos. Acérrimo inimigo de Constâncio, a
quem derrotou e sucedeu, declarou-se hostil ao Cristi-
anismo e uma vez no trono, restaurou os templos pa^
ga'os e todo, o serviço de ^saudLÜcios^restahdaí^aj^s^^
cerdotes, e tudo quanto concernia,ao paganismo. Do
^clero cristâü ttl^)itntrd?trãsTmuniclades e privilégios. que
lhe haviam sido concedidos. E para melhorar o culto
pagão copiou do Cristianismo tudo quanto lhe poderia
ser útil, como pregação popular pelos sacerdotes ves-
tidos de purpura, música, canto, hinos, etc. Mas não
conseguiu ir mais além, por ter sido morto na batalha
travada com os persas, quando apenas havia gover-
nado dois anos. O seu suposto brado, depois de mortal-
mente ferido: "Vencesle, Galileu!", carece de provas.
Os sucessores de Juliano anularam todas as restri-
ISfi O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

ções impostas ao desenvolvimento do Cristianismo,


resiituíndo às igrejas os privilégios que elas haviam go-
zado no govêrno de Constantino e seus filhos.

4. Teodósío, primeiro imperador ortodoxo

Teodósio (379-395) 6 geralmente considerado como


o primeiro imperador ortodoxo, e foi sob a sua influ-
ência que o senado romano reconheceu o Cristianismo
como religião oficial. Aproveitando esta situação so-
bremodo favorável, muitos bispos, auxiliados pelo po-
der civil, incitaram o povo a assaltar violentamente os
santuários pagãos. E nessa luta desigual, o paganismo
fez um esforço supremo para manter a sua influência,
embora lhe faltassem o entusiasmo c a constância re-
ligiosa que fizeram o Cristianismo triunfar das mais
renhidas perseguições. Oficialmente, o paganismo foi
vencido; mas, virtualmente continuou a viver no pró-
prio seio das igrejas cristãs, pelas conversões forçadas
daqueles que o abandonaram para serem agradáveis ao
poder oficial.

II. T R A N S I Ç Ã O POLÍTICA

Antes de ser narrada a história da oficialização do


Cristianismo c as suas tristes conseqüências, convém
passar em revista rápida a transição por que a Europa
passou durante os anos de 323 a 600 e que tão profun-
damente afetou o Cristianismo.
Já foram apresentados vislumbres das tribos ger-
mânicas que viviam nas florestas da parte setentrional
do Danúbio e no lado orientai do Reno. Por muitos
anos tinha sido difícil para Roma conservá-las atrás
das suas barreiras naturais, e mais de um exército ro-
mano foi completamente aniquilado pelo valor daque-
les. Eram semi-bárbaros. Não tinham literatura nem
iâi
A IGREJA 3E O IMPÉRIO

tãò i)ouco língua escrita. Ocupavam-se mais em culti-


var o campo e careciam de indústria. Eram, porém,
valentes e cruéis, e durante séculos haviam mirado com
olhos vorazes, além das fronteiras, os campos férteis e
as cidades encantadoras do império. A vida estável e
as imensas riquezas acumuladas nestns terras constitu-
íram para eles uma constante sedução.
Enquanto o império achava-se forte e havia abun-
dância de homens, nada havia que temer dos bárba-
ros; mas agora eslava em plena decadência, e, ao in-
vés de ser um poder invasor, estava sendo invadido, e
havia falta de cativos para cultivar a terra e servir ao
exército. As guerras continuas e os impostos pesados
estavam despovoando os países e empobrecendo o po-
vo. Por este motivo o império permitiu que tribos ger-
mânicas transpusessem as fronteiras e se estabeleces-
sem no território: os visigodos, ou godos ocidentais, na
Trácia e Mésía e os ostrogodos ou godos orientais, nas
terras ao norte do Mar Negro entre êsse rio e o Danú-
bio (375-376) , Estas tribos, por sua vez, estavam sendo
apertadas pelos hunos, povo mais bárbaro do que elas,
procedente da Ásia. Pouco a pouco os imigrantes obti-
veram posições no exército imperial e nas repartições
civis, destarte efetuando uma invasão pacífica. Além
disso, o govêrno imperial tinha sido dividido em duas
-partes — uma oriental e outra ocidental. Antes da sua
morte em 337, Constantino tinha distribuído as terras
do império entre os três filhos, e somente por breves
períodos tinha sido reunido. Fixando a capital orien-
tal no Rósforo e a ocidental em Rávena, junto ao Adri-
ático, a cidade de Romaí ficou sob o mando do bispo. A
parte ocidental deteriorava-se rapidamente e dentro
de um século (376-476) caiu nas mãos dos povos ger-
mânicos. Com a queda de Roma em 476, o último ves-
tígio do govêrno romano cessou. O fruto de muitos sé-
culos de civilização romana feneceu completamente.
138 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Passada a tempestade, os invasores se espalharam


por lòda a parle e nas ruínas do govêrno imperial co-
meçaram a evolver governos nacionais. Os francos
ap'oderaram-se da Gália, e, por fim, deram o seu no-
me à França. Os godos ocidentais estabeleceram-se na
Espanha, os vândalos se estenderam pelo norte da
África e das ilhas do Mediterrâneo ocidental, os lom-
bardos se fixaram na Itália setentrional e outras tribos
menos importantes em outros lugares.
Os primeiros resultados desta grande invasão pa-
reciam desastrosos, mas os invasores não hesitaram em
tomar dos vencidos a sua civilização e religião, Os ven-
cidos derrotaram os vencedores intelectual e espiritu-
almente e não tardou em surgir um amálgama resultando
por fim, em uma nova base para a vida de tôda a Eu-
ropa ocidental.

I I I . A IGREJA OFICIALIZADA

Depois da morte de Juliano em 363, todos os impe-


radores professaram o Cristianismo e antes de findar o
quarto século, o Cristianismo foi virtualmente estabe-
lecido como a religião do império.
Embora não se possa escurecer o fato de que a ado-
ção do Cristianismo como religião do Estado lhe tenha
trazido males inumeráveis, não podemos também negar
os benefícios dela recebidos.
Entre os benefícios trazidos pela união do Cristia-
nismo com o Estado, notam-se; (1) A derrota do pa-
ganismo. Do reinado de Teodósío o govêrno começou
a usar medidas repressivas contra o paganismo e os
seus templos ou foram destruídos ou transformados
pela força em igrejas cristãs; o culto pagão foi supri-
mido; o sacerdócio pagão abolido; e as escolas pagãs
fechadas. 0 fechamento da grande escola paga de Ate-
nas, em 527, pode ser chamado o fim da cultura pagã
A IGREJA E O ISÍPfeRIO im

no império. (2) A influência do Cristianismo sobre a


legislação do Império Romano, O Cristianismo deu â
legislação a faculdade de apreciação alta e digna do
valor da vida humana, dos direitos recíprocos de todos
os seres humanos — escravos,, estrangeiros e bárbaros;
elevou extraordinariamente a posição da mulher e da
criança; e aboliu gradualmente os espetáculos. dos gla-
diadores. (3) Sobretudo, melhorou consideravelmente
a moralidade.

Em conexão com êsles favores dispensados por


Constantino ao Cristianismo, êle impunha as suas pró-
prias idéias a respeito da Igreja e o Estado. Quanto
aos tristes efeitos da união, podem-se enumerar os se-
guintes: (1) O Cristianismo deixou de ser a religião
espiritual, para se tornar secular, isto é, a religião do
Estado. E assim as portas da igreja foram tão facil-
mente atravessadas, a ponto dc não haver distinção no-
tável entre o mundo e o Cristianismo, (2) Os pagãos
acostumados à adoração de deuses de ambos os sexos,
reclamaram os seus Ídolos, não obstante se terem tor-
nado nominalmente cristãos. E daí serem escolhidos
como objetos fie adoração os carateres mais notáveis
dos tempos apostólicos e posteriores, como Maria, a
mãe de Jesus, os apóstolos, os mártires, etc. (3) O cos-
tume de adoração mantido pelos pagãos era a personi-
ficação dos seus deuses em forma de imagem, e tendo
os novos convertidos ao Cristianismo reclamado as ima-
gens dos seus santos para o mesmo fim, as igrejas se
foram sucessivamente enchendo de objetos de adora-
ção. (4) O desenvolvimento hierárquico recebeu nova
seiva, tornando-se a hierarquia eclesiástica um forte
contrapeso do govêrno civil. Os bispos mais graduados
em Autoridade foram os de Roma, Alexandria, Antio-
quía, Éfeso e Jerusalém, tendo o de Roma conquistado
aos poucos o lugar principal. A igreja assim cercada
ISfi O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

de poder, constituiu-se um centro perseguidor, valen-


do-se da autoridade civil para a repressão das dissen-
ções e do paganismo. (5) E assim a igreja tornou-se
mais cruel em perseguir os que não concordavam com
ela do que a própria religião pagã. A perseguição de
Diocleciano foi realmente um nada em comparação
com as execuções do "Santo Ofício", (6) A reação con-
tra o mundanismo resultou em excessivo ascetismo, Os
mais espirituais viram que era impossível uma vida pu-
ramente cristã dentro de igrejas mundanas. Diante dis-
to, muitos se afastaram da sociedade e retiraram-se para
lugares desertos, onde passavam o tempo em jejuns e
orações, fazendo assim triunfar o espirito sôbre a car-
ne. Diferentes modos de ascetismo se desenvolveram:
o que prevaleceu nas próprias igrejas, variando de aus-
< teridade; o da vida hermética; e o da vida claustral —
freiras e monges.
CAPITULO II

DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA
I. OBSERVAÇÕES GERAIS.

A perseguição e a luta pela própria existência do


Cristianismo durante os três primeiros séculos não de-
ram aos cristãos oportunidade para raciocinar sobre
as doutrinas fundamentais da sua crença. A paz sob a
proteção do govêrno imperial providenciou a oportu-
nidade de pensar. Também a sistematização da dou-
trina cristã foi provocada pela convicção da necessidade
de o Cristianismo reinvindicar sua pretensão de ser a
religião universal e acelerada pela pressão do gnosti-
cismo por fora e a dissidência por dentro das fileiras
cristãs. Èstev portanto, foi o tempo áureo da sistemati-
zação da teologia.
A história dêste período é a do desenvolvimento
cia doutrina cristã sob a influência da cultura clássica
e especialmente da filosofia. As fontes de discussão fo-
ram as Escrituras, inclusive os livros apócrifos, e a tra-
dição, as quais determinavam o conteúdo da Bíblia e a
interpretavam. 0 processo foi >aí controvérsia, provocada
principalmente pelos orientais e controvertida em fór-
mula de doutrinas pelos concilios ecumênicos, (1) os

CONCÍLIOS ECUMÊNICOS
Reconhecidos pelas igrejas católica romana e grega

1. Nicéia I, 325 5. Constantinopla, II, 553


•2. Constantinopla I, 381 ^ G o n s l a n t i n o p I a nr, ü 8 0
3. Efeso, 431
Caleedônia, 451 7> Nicéia Ií t 787
142 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

quais foram lidos como inspirados, e sua aceitação lida


como necessária aos que se quisessem salvar, Os con-
cilios algumas vezes fomentaram intrigas e violências
que terminaram em cismas; no entanto, seus decretos
foram aceitos como leis do império, e muitas vêzes
apoiados pelo poder imperial.
Aqueles que visam unicamente a união orgânica
dos grupos religiosos, opinam que, se o Cristianismo
tivesse o poder moral e eclesiástico com que impusesse
as suas decisões, faria cessar a controvérsia e levaria
todos os homens a pensarem da mesma maneira. No
entanto, as controvérsias que serão referidas, provam
o contrário.
A controvérsia, embora desça algumas vêzes a per-
sonalidades, quando mal orientada, e assim sacrifique
o espirito fraternal que deve haver entre os investiga-
dores da verdade, é íncontestàvelmente um elemento
indispensável na educação de um povo. B já se tem ve-
rificado que sem discordância não pode haver progres-
so, mas só estagnação e morte. A árvore petrificada é
mais forte e resistente do que as demais da floresta, no
entanto é morta. Melhor é a controvérsia' do que a es-
tagnação. A mente que não pensa atrofia-se.
As controvérsias eram inevitáveis; mais cedo ou
Reconhecidos somente pela Igreja Romana
. 8 . Constantinopla IV, 80S) 15. Viena, 1311-13
t 9. Latrão I, 1123 Pisa { ? ) , 1409
>10.Latrão II, l i 3 9 H>. Constanza, 1415-18
>11. Latrão IH, 1179
17,_ Florcnça, 1439
-ri2. Latrão IV, 1215
13. Liao I, 1245 18. T r c n l o 1545-63
14 . II, 1274 20. Vaticano, 1809-70
Outros concilias importantes
í. Elvira, 305 4. Sárdica. 343
2• Artes, 314 5. Constantinopla, f>92
3. Anciro, 314 6. Basiléia, 1431
D E S E N V O L V I M E N T O D A TEOLOGIA iiíi

mais larde os que pensavam tinham que enfrentar tais


problemas, como a natureza de Deus, a divindade e a
humanidade de Cristo, a relação de pessoas da Trinda-
de, a natureza do homem. Pena é que os investigado-
res nem sempre soubessem, manter o espirito cristão
nas suas discussões. Houve períodos em que o impé-
rio foi mesmo profundamente abalado pelas lutas te-
ológicas. O derramamento de sangue não era raro se
verificar; bispos foram desterrados por ordem imperi-
al; tanto a turba como os imperadores davam o seu
apoio, ora a èste lado, ora àquele. No entanto, saiu de
toda esta confusão a sistematização das doutrinas ba~
sicas da cristandade de todos os tempos. A única ex-
plicação deste fato interessante é que, apesar de todas
as intrigas, violências e fraquezas humanas, o Espirito
Santo agiu em beneficio da verdade.
As pi-íncipais discussões teológicas dês te período,
foram: A.administrativa, a trinitariana, a crístológica, e
a antropológica.

II. CONTROVÉRSIAS
1. Controvérsia administrativa — Os donalislas

Na história do período anterior — movimentos e


reformadores — tivemos ocasião de mencionar os do-
natistas por ler o movimento aparecido nos últimos
dias do período (cerca de 311} e, de certa maneira ser
a continuação das reações chefiadas por Hon lano e
Novaciano. Convém agora entrar mais pormenoriza-
damente na história do movimento.
Tendo Constantino, no principio do seu reinado,
excluído os donatistas dos privilégios conferidos aos
cristãos, por não concordarem com o govêrno dos bis-
pos e por insistirem na disciplina rigorosa, pediram-
lhe (313) — estando êle ainda na Gália — que no-
üt Ò CRÍST1AMSMG ATKAVÉS DOS SÉCULOS

measse uma comissão para investigar a natureza do


cisma em Caríago. Acedendo ao pedido, Constantino
nomeou uma comissão composta de Melquiades, bispo
de Roma, e cinco bispos galegos, peraaite a qual com-
pareceram Ceciliano, cuja legalidade de consagração
os donatístas questionavam, e dez bispos africanos de
cada lado. Sendo, desde o j>nncipio, a maioria da co-
missão antagônica aos donatistas, não era de esperar
outro resultado senão que a decisão fosse favorável a
Ceciliano. Os donatistas se queixaram de que a sua
causa não fora imparcialmente julgada e pediram ou-
tra investigação. Constantino convocou um concilio em
Aries (314) composto de bispos dos dois partidos es-
colhidos em várias partes do império. A maior parte,
sendo cia Gáliat e Itália e, portanto, favorável a Ceci-
liano, decidiu a seu favor. Os donatistas apelaram
novamente ao imperador que decidiu contra êles (316)
e ameaçou desterrar os seus bispos e confiscar os seus
bens se êles não voltassem ao seio da igreja oficial.
Isso êles se negaram a fazer e a execução da ameaça
não tardou. Foram-lhes tiradas as igrejas e persegui-
dos de toda maneira. Doravante os donatistas se de-
clararam positivamente contra a intervenção por parte
do govêrno civil nas questões religiosas, O bispo do-
natista de Cartago em 347 repeliu os comissários impe-
riais, Paulo e Macário, com a exclamação: "Quid est
imperator cum ecclesia?" (2),
0 imperador Juliano, por causa cta sua oposição
ao Cristianismo protegido por Constantino, favoreceu os
donatistas, restaurando-lhes os templos e anulando os
decretos do governo anterior. Cessou por um pouco a
perseguição, mas no principio do quinto século, sob a
liderança de Agostinho, bispo de Hipona, começou de

(2) Optai us Miles, B e Scbismati Donat. L . l i t . c. 3. Ci-


tação de Christian in A History of the Baptists, pg\ 47.
DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA iiíi
iiíi

novo. As suas acusações principais foram: (1) que eram


separatistas, isto é, negaram unir-se às igrejas ofici-
ais; (2) que insistiram no rebatismo dos que passaram
da igreja oficial para a deles; (3) que eram intoleran-
tes. Sua intolerância provavelmente foi a reação con-
tra a intolerância dos da igreja oficial. 0 bispo dona-
tista Petiliano, na África^ contra quem Agostinho es-
creveu, em resposta, referiu-se a Cristo e aos
apóstolos que nunca perseguiram. "Pensais vós", diz
ele em "servir a Deus matando-nos com as vossas mão?
Enganais-vos se vós, pobres mortais, assim pensais;
Deus não tem assassinos por sacerdotes. Cristo nos en-
sina a suportar a perseguição, nã© vingá-la", E o hispo
donalisjta Gaudêncio diz: "Deus nomeou profetas e
pescadores, não príncipes e soldados para propagarem
a f é " (3),
A ultima tentativa para reconciliar os dois parti-
dos foi feita por Teodósío II, quando em 411 convocou
o concilio de Cartago. O fato de terem comparecido
286 bispos da igreja oficial e 279 bispos donatistas, re-
vela que os dois partidos estavam mais ou menos equi-
librados e que. havia igrejas de ambos os partidos es-
palhadas por toda a África do Norte. Os bispos dona-
tistas estavam desconfiados e os da igreja oficial ar-
rogantes e exigentes. Como era de esperar, os donatis-
tas foram condenados, e logo rompeu contra êles uma
perseguição feroz. Os vândalos, porém, favorecendo o
arianismo, perseguiram ambos os partidos, de 429 em
diante. Entraram os donatistas em declínio no meado
do quinto século, mas mantiveram a sua separação até
os últimos anos do sexto século e no seguinte foram
extintos com o resto do Cristianismo do Norte de África
por ocasião da invasão maometana.

(3) Idem..
6 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

2. Controvérsia triniiariana — o Arianismo

Quando os grupos anti-cristãos foram referidos,


notou-se que os gnósticos, defendendo a teoria; da ema-
nação, e os ebionitas, rejeitando a divindade de Cristo,
levaram os teólogos a se expressarem em tênnos pre-
cisos sobre a pre-existêncía e natureza do Logos e que
os monarquianos (Noesto, Práxeas, Sabélio e Berilo)
procurando bater os gnósticos, tentaram identificar o
Filho com o Pai, atraindo Tertuliano com a sua Econo-
mia e Orígenes com a sua Eterna Geração, os quais se
propuseram resolver tão importante problema.
No f i m do terceiro século e no princípio do quar-
to, a questão fortemente debatida entre os gnósticos e
ebionitas, ressurgiu com mais vigor. Chegou a hora
para os teólogos decidirem de vez se o Filho, o funda-
dor do Cristianismo, era mera criatura e portanto não
divina, ou se era eterno e assim Deus verdadeiro da
mesma essência do Pai, embora distinto dele em per-
sonalidade, pois, aceitar a primeira teoria eqüivaleria
a classificar o Cristianismo entre as demais religiões
do mundo, enquanto aceitar a segunda seria conside-
rá-lo a única religião verdadeira digna de tornar-se uni-
versal .
Em tese podemos dizer que o Cristianismo ociden-
tal visara não somente o f i m prático desta como de ou-
tras discussões, enquanto o Cristianismo oriental limi-
tava-se a discutir os pontos técnicos e teóricos.
A controvérsia ariana que durou um século, tendo
exercido grande influência sobre a humanidade, não
foi senão outra fase desta mesma discussão.
/ Ário, presbítero da igreja de Alexandria onde go-
zara de grande influência pela sua vida asceta, edu-
cado em Antioquia, sustentava a interpretação gramá-
tico-histórica em oposição à alegórica prevalecente em
Alexandria. 0 seu intelecto lógico reclamava uma apre-
D E S E N V O L V I M E N T O DA TEOLOGIA iiíi

sentação clara e incisiva da rei ação entre as três pes-


soas da Trindade, e achava sem significação a teoria
filosófica de Origenes, pois ele mesmo dizia; "Preci-
samos admitir ou a existência de duas essências origi-
nais, sem principio e independente uma da outra, ou
que o Logos teve começo, isto é, que houve tempo quando
ele não existia".
Os arianos sustentavam que o Logos foi a primeira
criação de Deus e que existiu antes das incarnação, em-
bora sem ser eterno, tendo criado tudo (inclusive o Es-
pirito Santo), tornando-se, por isso, digno de adoração,
ainda que não representasse a Deus, nem o revelasse
em sug perfeição, A controvérsia ariana pode ser di-
vidida em quatro pontos: (1) de 318 à vitória tempo-
rária da ortodoxia no concilio de Nicéia em 325; (2)
de 325 à reação e vitória temporária do arianismo em
361; (3) de 361 à segunda reação e triunfo final da or-
todoxia fto império em 381; (4) a conversão dos ale-
mães à ortodoxia até cêrca do ano G00. Em geral os
alemães e a maior parte dos gregos eram arianos, en-
quanto os latinos defendiam a ortodoxia.
A controvérsia ariana teve começo em Alexandria
no ano 318, espalhando-se rapidamente pelas regiões
circunvizinhas. Depois de várias tentativas para dis-
suadir Ãrio do seu erro, excomungaram-no publica-
mente em Alexandria, no ano 321. Quatro anos depois
reuniu-se o concilio de Nicéia, cidade perto de Nico-
média noutro lado do Bósforo e de Constantinopla,
convocado por Constantino com o f i m de pôr têrmo
às constantes disputas e chamar a cristandade á har-
monia. A êste concilio, não obstante terem sido con-
vidados 1800 bispos, assistiram apenas 318, entre os
quais se contavam somente sete ocidentais. Foi, por-
tanto, um concilio quase de orientais.
Euzébio narra a história interessante dêste conclave
148 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

estranho, ao qual o imperador presidiu, ainda que não


fosse cristão professo. Sentou-se sobre um trono dou-
rado no meio do recinto, e, não compreendendo gre-
go, teve que tirar as suas conclusões das feições e ges-
tos dos oradores e explicações do seu intérprete. Al-
gumas das sessões foram turbulentas, Numa, quando
o venerando Ãrio se levantou para falar, um tal Nico-
lau de Mira deu-lhe uma bofetada na face e muitos
dos membros do concilio correram para as portas com
os dedos nos ouvidos para não ouvirem a heresia do
velho.
Três partidos surgiram por este tempo: o ariano,
o semi-ariano e o ortodoxo. Por influência de Ataná-
sio, jovem diácono de Alexandria, e do imperador, a
ortodoxia triunfou no credo niceno, estabelecendo que
Cristo é Deus verdadeiro, um em essência com o Pai e
áo mesmo tempo distinto em pessoa. "Cremos", corre
a decisão, " e m um só Senhor Jesus Cristo, Unigênito
Filho de Deus, gerado do Pai antes de todos os mun-
dos, Deus de Deus, Luz de Luz, Verdadeiro Deus de Ver-
dadeiro Deus, gerado, não feito, consubstanciai com o
Pai; por quem todas as coisas foram feitas; quem, por
nós e nossa salvação, desceu do céu, e foi encarnado
pelo Espirito Santo na Virgem Maria, e foi feito ho-
mem," etc. Em face da decisão o arianismo sofreu vá-
rias perseguições. Ário foi banido, os seus livros quei-
mados e os seus adeptos caluniados como inimigos do
Cristianismo.
A reação, porém, não demorou. Constantino colo-
cou-se em defesa dos principíos estabelecidos por Ário,
e os concílios de Tiro e de Constantinopla (335) con-
denaram Atanásio, bispo de Alexandria, o qual foi ba-
nido no ano de 336. E Ário teria voltado ao seio da
igreja de Constantinopla se a morte o não tivesse co-
lhido repentinamente no ano de 336.
Os arianos dividiram-se ao passo que a ortodoxia
iiíi
D E S E N V O L V I M E N T O D A TEOLOGIA iiíi

foi aos poucos galgando posição predominante. Teo-


dósío convidou todos os seus súditos a professarem a
f é ortodoxa, convocou o concilio de Constantinopla no
ano 381, o qual confirmou com algumas alterações o
credo niceno, adotou uma ^cláusula sobre o Espirito
Santo, e, finalmente, pela fôVça civil proibiu o culto
ariano.

3. Controvérsia cristológica

A questão a respeito da personalidade de Cristo já


havia sido discutida em quase todas as polêmicas an-
teriores, tendo sido em algumas delas negada a per-
feição humana do Filho de Deus. Por êste tempo, de-
cidira-se oficialmente que Êle era Deus verdadeiro,
restando somente determinar se Èle era ou não humano,
e, no caso de ser, verificar a relação existente entre as
duas naturezas — divina e humana. Os cristãos con-
sideravam-no geralmente como Deus e homem, em-
bora sem precisar a distinção entre as duas naturezas.
Èste problema era precisamente oposto ao precedente,
pois naquêle se procurava encontrar uma pluralidade
de pessoas numa unidade de essência ou natureza, en-
quanto neste, preservar a unidade de pessoas com dua-
lidade de naturezas, procurando-se unir as duas
naturezas — divina e humana — em uma só per-
sonalidade. A primeira referente ao Logos, discor-
ria sobre a sua pre-existência, a natureza e a inter-re-
lação das pessoas divinas na eternidade; a segunda tra-
tava da pessoa histórica de Cristo conforme a sua vida
na terra.
Essas teorias despertaram duas tendências: a an-
tioquiana, cujo fim principal foi dar ênfase à natureza
humana, e considerar as duas em separado, e a alexan-
drina, que afirmava a excelência da natureza divina e
a unidade da pessoa. Essa controvérsia teve origem por
150 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

ocasião da discussão anterior, sofrendo sérias modifi-


cações que aliás lhe prolongaram a existência por mui-
tos séculos e teve quatro fases que tomaram os nomes dos
seus principais defensores:
1) Apolinarianismo (362-381) — Esta controvérsia foi
iniciada e desenvolvida por Apolinárío. pouco antes da con-
trovérsia erístológica. Em oposição a Origenes, que decla-
rara em suas discussões possuir o Cristo alma humana, e
Ário, que afirmava ser o Logos unido somente a um corpo
humano, Apolinárío cria que o homem era uma "trícoto-
mia" (corpo, alma e espirito) e sustentava que Cristo
tivera uma alma e um corpo humanos, mas dizia que o
espirito humano havia sido fornecido pelo Logos, o que
importava em negar a perfeição de sua humanidade,
por meio da qual, Cristo, imaculado, tornava-se capaz
de conciliar perfeitamente a humanidade com Deus.
Essas teorias, porém, foram condenadas por di-
versos concilios provinciais e, finalmente, pelo conci-
lio ecumênico de Constantinopla no ano de 381. E as-
sim ficou estabelecido que a natureza humana de Cristo
era completa, restando como único ponto discutível a
relação entre as duas naturezas.
Òs apolinarianos foram grandemente perseguidos
em virtude dessa resolução, tendo algum tempo depois
se reunido aos monofisitas.
2) Nestorianismo — 0 movimento denominado
nestorianismo apareceu em Constantinopla no ano 428,
tendo como organizador o monge sacerdote de Antio-
quia e patriarca de Constantinopla. Em suas teorias o
referido monge se opôs à aplicação do termo "Mãe de
Deus" a Maria; afirmou que as duas naturezas de Cristo
agiam em harmonia e tão distintas como constituindo
uma personalidade dupla, declarando ainda que Cristo
era Deus e homem e não Deus-Homem. Tais idéias,
porém, foram combatidas por Ciriío de Alexandria, e
iiíi
D E S E N V O L V I M E N T O DA TEOLOGIA iiíi

mais tarde condenadas pelos sino dos de Roma e Ale-


xandria. O concilio de Éfeso convocado no ano 431 pe-
los dois imperadores foi sobremodo violento, tendo-se
cingido antes de alcançar a menor resolução sobre o
assunto. Somente no ano de 433 conseguiu-se um acor-
do, em virtude do qual Nestor foi banido, as suas obras
queimadas e aprovado o termo "Mãe de Deus",
3) Eutiquianismo ou Monofisismo: — O eutiquia-
nismo foi um movimento de reação contra o nestoria-
nismo, e um desenvolvimento mais completo das opi-
niões de Cirilo. Eutíquio, velho arquimandrita de mn
convento em Constantinopla, pregou a divindade de
Cristo, negando que ele tivesse duas naturezas, Con-
forme a sua opinião, a natureza humana é tão assimi-
lada pelo Logos que incontestàvelmente o seu corpo
não pode ser como o nosso, isto é, da mesma natureza
do nosso. B, ainda, todos os atributos humanos são
transformados numa única pessoa, que é o Logos hu-
manizado. Por isso e segundo essa ordem de idéias,
Deus sofreu e morreu,
Eutíquio conquistou alguns simpatizantes para as
suas teorias, mas também alguns opositores. Enquanto
Teodoro, patriarca de Antioquia e Flávío, patriarca de
Constantinopla, combatiam-no fortemente, Dióscuro,
patriarca de Alexandria amparava-o com a sua mão
potente. E depois de renhidas lutas e discussões, am-
bos os partidos apelaram para a côrte de Constantino--
pia e para Leão, bispo de Roma, cujo veredicto dei-
xou vencido o partido que sustentava Entiquio, o qual
foi deposto por um sinodo local reunido em Constan-
tinopla no ano de 448. Enquanto isso se passava, Leão
escrevia a sua famosa carta dogmática a Flávio, na
qual também combatia acremente o ponto de vista em
que Eutíquio se colocara. Sob a presidência de Dióscu-
ro, o imperador Teodósio II convocou em Éfeso (449)
152 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

o chamado "sinodo ladrão" que se tornou violentís-


simo. Não satisfeito com as suas decisões, Teodósio,
mau grado os protestos de Flávio e Leão, san-
cionou certos atos pouco louváveis. Mas o novo
governador Marciano e o imperador ocidental convo-
caram em 451 o concilio de Calcedònia, no qual foram
anulados todos os atos do concilio de Éfeso, repostos
Diòscuro e outros chefes cutiquianos e definida a per-
sonalidade de Cristo, assentando que ela era composta
de'duas naturezas completas e sem mistura em uma
pessoa, porém inseparáveis. J^m face disso o impera-
dor ordenou que todos os seguidores de Eutiquio fossem
banidos e suas obras queimadas. 0 credo do concilio
de Calcedònia, contém a cristologia das igrejas, latinas
e protestantes. Por fim, o ultimo esforço levado a efeito
para reconciliar os dois partidos (nestoriano e eutiquí-
ano) resultou em um cisma entre o bispo de Roma e o
do Oriente, ocasionando a chamada controvérsia mo-
nofisita.

4) Controvérsia Monotelita — A discussão em tôrno


da natureza do Logos, isto é, se èle possuía uma natu-
reza divina e outra humana, provocou a discussão so-
bre se ele possuía também, uma ou duas vontades.
Desde os tempos dc Jusliniano, a doutrina de duas
naturezas prevaleceu através do Império Romano, Os
que pregavam a doutrina de uma só vontade, chama-
dos monotelitas, não sendo tolerados pelas igrejas, cons-
tituíram um partido císmático, chefiado por Tiago,
bispo de Edessa, e iniciaram intensa propaganda mis-
sionária, de que resultou a conversão da Armênia e da
Pérsia ao monotelismo. Antioquia, também convertida
aos princípios monotelitas, tornou-se o centro da nova
doutrina que se espalhou pelo Egito e Abissinia, Em
014 os persas invadiram a Síria, a Palestina e o norte
da África, ameaçando em 612 invadir também Constan-
D E S E N V O L V I M E N T O D A TEOLOGIA iiíi
iiíi

tinopla, deixando assim o imperador Hercílio em sé-


rias dificuldades para combatê-los, uma vez que os
seus súditos estavam afastados do seu trono por causa
do cisma monotelita. Para reuni-los novamente cm
torno do seu poder, o imperador propôs a substituição
do vocábulo "vontade"' pela palavra "energia", tendo-se
declarado então, que o Cristo possuía uma energia
tanto humana como divina. Ainda, por meio de pro-
messas de promoção o imperador conseguiu a conver-
são de Ciro, bispo de Fasis (quatro anos depois pro-
movido a patriarca de Alexandria), Atanásio, chefe dos
monotelitas na Síria (logo promovido a palrít rca de
Antioquia) e de todos os chefes do Egito. E assim to-
dos os chefes do monotelismo se venderam ao impe-
rador com exceção de Sofrônio que se tornou patriarca
de Jerusalém no ano 634. Finalmente o terceiro con-
cilio de Constantinopla reunido entre os anos 680 e
681 decidiu que Cristo possuía duas vontades, perma-
necendo no entanto, a vontade humana sujeita à von-
tade divina.
Assim, o diotelísmo, isto é, a doutrina de que Cristo
possuía duas vontades, triunfou depois de quatrocen-
tos anos, embora Honório, um dos bispos mais céle-
bres de Roma, tivesse permanecido monotelita, diver-
sos imperadores continuassem a sustentar o monotelis-
mo, um dos papas romanos e um dos teólogos mais
célebres do diotelísmo tivessem morrido como mártires
no exílio e milhares de outros sofrido como conseqüên-
cia da fidelidade a essa doutrina.
A forma adotada pelo monotelismo, é a mesma
seguida atualmente pela maioria dos católicos e pro-
testantes.
•1. Conlvo vêrsia antropológica
Nas discussões já referidas, muito pouco se discu-
tiu a respeito do homem propriamente dito, havendo
155 O C R I S T I A N I S M O ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

grande esforço para sustentar o livre arbítrio e a res-


ponsabilidade moral, contra as teorias da filosofia do-
minante. As questões suscitadas pela controvérsia an-
tropológica não foram decididas pelos concílios ecu-
mênicos, tendo permanecido sem nenhuma solução.
Os seus dois extremos foram representados por Pelá-
gio, monge britânico e Agostinho, bispo de Hipona, en-
tre os quais a diversidade de indoles e experiências deu
lugar à contradição que os separava a respeito da dou-
trina da natureza e da graça.

Agostinho era de natureza irascível e apaixonada.


Apesar de sua grande cultura, tinha uma continua luta
consigo mesmo afim de subjugar as suas propensões
humanas. Sua longa experiência reunida à discussão
de Paulo, sobre a luta entre a carne e o espirito, le-
vou-o a considerar a natureza humana como funda-
mentalmente má e o livre arbítrio uma triste ilusão.

Pelágio era um monge instruído, uma natureza


doce e meiga, praticando sempre a abstinência. Pare-
cia-lhe fácil manter uma vida pura e irrepreensível.
Tinha a convicção de que possuía a liberdade de (obe-
decer à voz da consciência e por esta razão não via a
necessidade de obedecer à suposição de que a poste-
ridade de Adão herdara a culpa de seu pecado.

Os dois sistemas, mais ou menos completos e ló-


gicos, eram, porém, fundamentalmente opostos um ao
outro. Pelágio advogou ardentemente a bondade e a
capacidade do homem; Agostinho pelo contrário insis-
tiu na sua ruína, e na contínua atividade e soberania
de Deus.

Eis alguns dos contrastes mais importantes entre


as duas opiniões:
iiíi
DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA iiíi

O HOMEM P R I M I T I V O

PELÁGIO AGOSTINHO

O homem era inocente, dota- O homem era dotado de l i -


do de livre arbítrio absoluto, vre arbítrio, inocente e incli-
porém, mortal. nado ao bem, capaz de tornar-
se livre do pecado pela contí-
nua obediência, enfim um ho-
mem imortal.

A QUEDA

À quoda trouxe a morte espi- A queda trouxe a morte es-


ritual de Adão, porém, atingiu piritual e física de Adã'o, e, por
a sua posteridade sòmeote co- intermédio dêle, a tôda a hu-
mo exemplo. manidade, escravizando-Ihe a
vontade.

O HOMEM DEPOIS D A QUEDA

Todos os homens entram no Todos os homens entram no


mundo como Adão antes da mundo possuídos de uma na-
queda e caem no pecado por tureza corrupta, e duma von-
vontade e ato próprios. tade escravizada ao mal e in-
capazes de proceder com re-
tidão.

L I V R E ARBÍTRIO

O homem é sempre livre e O homem era livre antes da


igualmente capaz de escolher o queda e propenso ao bem e à
bem e o mal. justiça, porém com a queda
perdeu a sua libendade e jus-
tiça e escravizou-se ao mal.

O PEGADO

O pecado é um ato vindo ex- O pecado é mato à natureza


clusivamente da vontade, não humana {pecado original) e
e da natureza, e, portanto, -os manifesta-se em ações pecami-
homens não são necessáriamen- nosas. Portanto, todo o ho-
te pecadores e alguns podem mem, com exceção de Cristo, e
até v i v e r sem pecar. necessàriamente pecador des-
de o seu nascimento.
ISfi O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

A GIIAÇA
 "graça divina" consiste A graça é a operação da von-
nos privilégios que Deus ou- tade do Espirito Santo no h o -
torga ao homem. mem, pela qual a vida espiri-
A salvação a pessoal, sem lei tual começa e se aperfeiçoa.
nem evangelho. A vantagem Sem ela o homem não pode ar-
do evangelho é que por êle so repender-se nem tão pouco
lorna mai« fácil ser crente. crer. A graça redentora é m -
quebrantável em sua operação
sôbre os eleitos: nada lhe pode
resistir,

A ELEIÇÃO

ISTio há tal coisa como a elei- A eleição é eterna e absolu-


ção incondicional. ta e é incondicional.

BATISMO I N F A N T I L

O batismo infantil é coisa E' necessário o batismo pura


boa, mas não essencial á salva- a salvação das crianças, dtsde
ção das crianças. que elas são pecadoras, pois o
batismo é o único meio pelo
qual uma igreja se torna rege-
nerada. Alguns dentre os re-
generados pelo batismo podem
cair, e de fato assim acontece,
porém os eleitos jamais cairão.

Os pelagianos foram condenados no ano 412 pelo


concilio de Cartago e em 416 pelo papa Inocêncio, mas
sustentados em suas teorias e doutrinas pelos sinodos
de Decápoles e Jerusalém, reunidos em 415, e pelo papa
Josino, não obstante depois de condenados por um con-
cilio geral das igrejas Africanas, reunidos no ano 418.
Ainda o segundo concilio de Cartago reunido no ano
431, novamente os condenou, pena que no entanto, não
atingiu as suas doutrinas. Nenhum dos dois sistemas
logrou geral aceitação. Antes da morte de Agostinho
foram iniciadas as tentativas para a aproximação dos
DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA 157

dois sistemas e, possivelmente, fundi-los em um só.


Èste movimento, chefiado por uma escola semi-pelagi-
ana situada no sul da França, alcançou insultados sa-
tisfatórios, após um século de discussões, dando lugar
no sinodo de Orange à vitória de um Agostianismo mo-
derno. A Igreja Católica, porém, ainda continua divi-
dida em relação a este assunto.
CAPÍTULO III

REAÇÕES E MOVIMENTOS REFOR-


MADORES
L OBSERVAÇÕES GERAIS

O conceito ascético da vida cristã que tomara sa-


liente feição agressiva muito antes do f i m do quarto
século, tornou-se neste período, sobremodo dominan-
te. A vida cristã identificou-se tanto com o ascetismo,
a ponto de não ser possível nenhuma aproximação de
caráter cx-istão em sua perfeição, senão por meio do
celibato voluntário, da pobreza e do isolamento da vida
secular.
O próprio Jerônimo, considerado o maior erudito
entre os seus contemporâneos, não escapou à pressão
do espirito ascético, tendo-se internado no deserto da
Assíria, onde se submeteu aos castigos mais cruéis e
incríveis afim de livrar-se das chamas do inferno. Com
o crescimento do aácetismo desenvolveu-se ràpidamente
a mais grosseira idolatria — adoração de idolos, relí-
quias» imagens, lugares santos, etc. Esta tendência as-
sustadora para a paganização do Cristianismo desper-
tou no entanto, as objeções de vários homens notáveis,
verificando-se então, as reações de Aério, Vigilâncio, o
Jovinialismo e a paulicianismo.
II. REAÇÃO DE AÉRIO
As relações entre Aério, superintendente de uma
casa de beneficência na Ásia Menor, e Eusta^iio, no-
meado bispo em 355, eram bem intimas e estreitas; mas
durante o bispado de Eustáquio suscitou-se uma contro-
vérsia com Aério a respeito da administração da casa
100 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

de beneficência, levando o bispo a resignar as suas fun-


ções .
Aério, em seus argumentos contra o bispo, não se
limitou a criticar certos deslíses da administração de
Eustáquio, mas aproveitou o ensejo para atacar de ri-
jo, práticas e doutrinas corruptas prevaleceutes naquela;
região. E insistiu na igualdade de bispos e presbíteros,
firmado no que estabelece a Escritura, denunciou o
êrro da intercessão de santos e da celebração da santa
ceia como oferta aos mortos, e insurgiu-se contra a ce-
lebração da páscoa, como prática judaica incabivel na
igreja cristã.
Aério não ficou sò. A sua atitude de reação encon-
trou solidariedade franca de vários indivíduos; mas,
tanto o guia do movimento como os seus adeptos, fo-
ram rudemente perseguidos, indo encontrar refúgio
nas florestas e montanhas solitárias, onde realizavam
as suas reuniões.
O aerianísmo, como partido, perdeu-se logo de vis-
ta, parecendo, entretanto, que a sua ação continuou
obscuramente em sua fusão com o movimento pauli-
ciano.

III. REAÇÃO JOVINIÀNICA

J'oviniano, chamado pelo célebre historiador Ne-


ander (1) " o protestante do seu tempo/' foi um monge
romano de esmerada educação. Viveu por longos anos
em rigoroso ascetismo, e em 378 iniciou fortes ataques
ao ensino e práticas de Jerônimo e seus adeptos. Infe-
lizmente a maior parte das informações a respeito de
Joviniano e seus ensinos é extraida das violentas polê-
micas mantidas contra ele pelo seu duro oponente.
Jerônimo acusou-o de quatro heresias "veneno-

M)Ncatiíier — Ch. Hist. V o l . II, pag. 269.


REAÇÕES E MOVIMENTOS REFORMADORES 161

sas," "entre as quais se pode ouvir o silvo da serpente"


(2), Estas "heresias" são: a) que "as virgens, viúvas e ]
mulheres casadas, salvas por Cristo, se não diferem em '
outros pontos, têm méritos equivalentes; b) que "aquê-
les que têm sido batizados não podem ser assenhorea- \
dos pelo diabo". A "este ensino Joviniano propõe o se-
guinte esclarecimento: "Mas aqueles que têm sido ten-
tados mostram que foram batizados só pela água e não
pelo Espirito, como se observou no caso de Simão Ma-
g o . " Esta asseveração indica claramente que os Jovi-
nianos não atribuíram p o d erjrnágico jà. .simples água do
batisnxol. mas consideram-no como o s í m b o 1 o^Bxteriór
da transformação interior trazida pela f é , Não susten-
taram que o homem regenerado é por necessidade ab-
solutamente sem pecado. Esta afirmativa, comparada
com outras declarações feitas por Jerônimo torna evi-
dente que Joviniano quis somente ensinar que a sufi-
ciente graça divina desce sobre o homem verdadeira-
mente regenerado para torná-lo apto a resistir às ten-
tações do maligno, e que este perseverará inevitável-»
mente até o f i m " (3); c) que "não há diferença entre
os que fazem abstinência de alimentos e os que dêles/ V
participam dando graças/' sustentando que "tòdas a »
coisas foram criadas para servir aos homens, repudi-
ando a idéia de que a inanição conduz à santidade";
d) que "para quantos se tiverem preservado no ba-
tismo que receberam (isto é, tendo sido batizados sob
uma profissão de fé salvadora) há uma só recompensa
no reino dos céus",
Joviniano ensinou ainda, que Cristo vive igual-
mente em todos, e sem diferença de graus. Conforme

(2) Adversus Jovínianum (Eng. Tr. IS'ic. F a t h e r s " Rer.


2. Vol. VIí.
(3)Neander, Manual of Church History, V o l . I, p. 375.
162 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

a sua opinião, a humanidade está dividida em duas


classes: os salvos e os não salvos. Também sustentou
o argumento de que sendo a salvação pela graça e não
pelo mérito, os que são salvos se consideram salvos em
absoluto. Com esta afirmação ele combateu os ensinos
correntes da sua época, que faziam das boas obras meios
de obter a salvação.
Do vivo interesse despertado pelos clamores de Jo-
viniano contra a corrupção do ensino puro das Escri-
turas, tem-se uma idéia- exata do tom das polêmicas de ;
Jerônimo, que foi o maior contraditor do chefe jovíni-
anista. Sabe-se ainda, que nos foros de Roma e Milão,
foram instaurados processos públicos contra Jovinia-
no — o que constituí outra prova bem clara da influ-
ência produzida pela sua firme atitude de reação.
Em 390 um sinodo romano, sob a presidência do!
bispo Siricio, condenou Joviniano e sete dos seus adep-
tos, c logo depois outro sinodo, reunido em Milão, lan-
çou a excomunhão sôbre todos os jovinianistas.
Jerônimo 110 seu escrito contra Vigilâncio (406)
refere-se à morte de Joviniano, ocorrida mais ou me-
nos a êsse tempo. E' verdade que um edito imperial
de Honório datado de 412 condenou certo Joviniano;
mas é de presumir que se trate de outro indivíduo do
mesmo nome.
Mau grado as perseguições dos seus oponentes, o
vínianismo não desapareceu inteiramente, como se pode
verificar do movimento chefiado por Vigilâncio, no
qual se percebe o espirito jovinianista.
E é quase certo que os adeptos de Joviniano pro-
curaram refúgios nos vales alpinos, conservando ai
acesa a chama do ensino evangélico até o século doze,
quando o mesmo se alastrou em várias ramificações:
arnaldistas, petrobucianos, henríquenses, etc.
33D A$.

REAÇÕES E MOVIMENTOS REFORMADORES 163

IV, REAÇÃO V I G I L A N C I A N A

. Vigilâncio, natural da Gália e pupilo de Sulpicio


• Servo, foi educado pelo seu tutor, tendo quatro anos
depois da sua consagração para presbitero, visitado
os ascetas cfa Itália~e~3o oriente, cu]ã~Tãniã*sè tornai*a , /
mundial. J ^ d g o r j ^ c ê S í á s a j ^ /
pasmo, trazendo-o ao torrão natal convencido de que o / /
ascetismo e as práticas idòlátras eram estranhasao/ 1

puro e s p i n t o i s m w s ã s s T m , resolveu fazer tudo


quanto estivesse ao seu alcance afim de induzir as igre-
jas a voltarem às simples doutrinas e ensinos dos bons
tempos apostólicos.
Neste tentame, os seus princípios reformadores
conseguiram franco acolhimento. Severo e o bispo de
Tolosa expressaram-lhe franca solidariedade. Mas
Jerônimo não demorou sair a campo em polêmica que
se tornou notável pela sua virulência e 'üispereza, sendo
as baterias da hierarquia assestadas contra o bem in-
tencionado reformador,
A invasão dos alamos e dos vândalos fêz desapa-
recer, aparentemente, o movimento a que Vigilâncio
emprestou o seu nome.
Dizemos aparentemente, porque mais tarde em plena
época medieval, encontram-se grupos de cristãos evan-
gélicos no sul da Gália, o que nos leva a acreditar que
(a- influência dos princípios pregados por Vigilâncio
não desaparecera completamente.
Do relatório exagerado de Jerônimo, deduzimos
os pontos mais salientes do protesto de Vigilâncio: a)
que não se devem reverenciar os sepulcros dos márti-
res; b) que as vigílias devem ser condenadas; c) que a
castídade é o vínculo da concupiscêncía; d) que só en-
quanto somos vivos devemos orar uns pelos outros,
pois, depois de mortos, as orações não são mais ouvi-
das; e) que as peregrinações aos túmulos dos santos
164 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

deram ocasião à prática, por homens e mulheres que


nela tomavam parte, das mais vis e grosseiras imorali-
dades. Jerônimo reconheceu a veracidade desta última
acusação, .alegando, porém, que uma coisa boa não deve
ser interrompida somente porque dá ensejo a abusos e
excessos.
Vigilâncio ainda condenou a vida claustral, afir-
mando que ela estava muito longe de ser unia luta,
sendo antes um meio de fugir da luta.

IT V,t REAÇÃO P A U L I C Í A N A '


Infelizmente a maior parte da informação refe-
rente aos paulicianos vem dos seus maiores inimigos.
Até os últimos anos do século próximo passado a fonte
principal donde beberam os historiadores desde Gibbon
(1737-1796) (4), foram as crônicas dos monges Gregó-
rio Magistos (1058), Pedro Sículo (5) e Fócío (6), Esta
fonte é bem suspeita uma vez que os autores, sendo
emissários da Igreja Grega, classificam de hereges to-
dos os que discordavam da igreja oficial. Ainda que
Gibbon suspeitasse da malícia dos cronistas, e, no capi-
tulo 54 da sua célebre história, não hesitasse em expor
a antipatia existente entre êles e os paulicianos; por
sua vez, foi em certos pontos por êles desencaminhado
dos fatos; todavia êste seu proceder é desculpável, uma
vez que não dispunha dos dados históricos descobertos
em nossos dias.

A Chave da Verdade, citada por Gtegório Magistos


no décimo primeiro século, e descoberta pelo Snr, Fred
C. Conybeare, de Oxford, em 1891^ na Biblioteca do

( l ) A u t o r da História da Decadência c da Queda do Império


Uomnno
(5) Autor sla História Manic haeorum.
(G) Autor de Âdvcrsus Recentiores Manickaeos.
REAÇÕES E MOVIMENTOS REFORMADORES 165

Santo Sinodo, em Edjmiatzin da Armênia, de que re-


cebeu cópia em 1893 e publicou em 1898, juntamente
com outros documentos por iêle descobertps, vieram
favorecer de alguma maneira os paulicianos a pleitea-
rem a sua própria causa.
As tradições narradas pelos monges Gregório, Pe-
dro Sículo e Fócio nas suas crônicas, dizem que os pau-
licianos surgiram na segunda metade do sétimo século,
tendo por fundador um tal Constantino, que, obtendo
uma cópia do Novo Testamento das mãos de um cris-
tão que voltara do cativeiro entre os sarracenos, ficou
tão profundamente interessado pelas epistolas de Pau-
lo, que resolveu dedicar-se a trabalhar com todo e s-
fôrço afim de conseguir a volta do Cristianismo à sua
primitiva forma paulina. Estas tradições, fixadas nos
seus escritos pelos três cronistas monásticos, podem ter
fundamento histórico na parte referente â ação do ci-
tado Constantino, não como fundador, mas como f i -
gura de renome entre os paulicianos no século sétimo;
porém são incorretas não só relativamente à data do
aparecimento, como também por serem marcadas com
o estigma do dualismo maniqueu. Alguns historiado-
res modernos julgam que o nome pauliciano deriva-se de
Paulo de Samosata ( 7 ) . Gibbon classifica o paulicia-
nismo como a forma primitiva do Cristianismo,

De Anlioquia e Palmira deve ter sido espalhada a f é à Me-


sopotamia e à Pérsia; e foi nestas regiões que se «formou a base
da fé, que se espalhou desde as cordilheiras do Tauro até o monte
Ararate. Foi esta a forma primitiva do Cristianismo, As igrejas
nas cordilheiras do Taoiro formaram uma reprôsa circular, na
qual correu a primitiva f ó pauliciana para ser preservada por
séculos, como reflexo da corrente principal ( 8 ) ,

(7) Newman, A Manual of Church Bistory, I pg. 199.


(8) História de Gibbon, Edição Bury, V I , pg. 543.
163 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

Noutro lugar diz êle:


0 nome pauliciano, dizem os seus inimigos que se deriva
do algum líder desconhecido; mas tenho certeza de que os pau-
licianos se gloriaram da sua afinidade com o apóstolo aos gen-
tios

Os paulicianos pretendem ser de origem apostóli-


ca. Na Chave da Verdade, lemos:
Submetfimo-nos então humildemente à. santa igreja univer-
sal, e sigamos o seu exemplo, que, agindo com uma sd orientação
o uma só fé, nos ensinou. Pois ainda recebemos no tempo opor-
tuno o santo e precioso mistério do nosso Senhor Jesus Cristo e
do Pai celestial: a saber, no tempo de arrependimento e fé.
Assim como aprendemos do Senhor do universo e da igreja apos-
tólica, prossigamos; e firmemos em f é verdadeira aquôles que
não receberam o sanLo batismo {na margem: a saber, 03 latinos,
os gregos e armênios, que nunca foram batizados); como assim,
nunca provaram do corpo nem beberam do santo sangue do nos-
so Senhor Jesus Cristo. Portanto, de acòrdo com a Palavra do
Senhor, devemos trazô-ios à fé, induzt-lcs ao arrependimento, e
dar-lhes batismo ( , 0 ) ;

Adenev, nas suas reflexões sobre este parágrafo,


diz:
Portanto, é justo que éles (os paulicianos) sejam considera-
dos como os sobreviventes da forma primitiva do Cristiams.
mo { " ) .

Conybeare afirma:
Que a igreja pauliciana não era uma igreja nacional nem de
uma raça particular, mas uma velha forma da igreja apostólica,
que abrangia no seu seio, sírios, gregos, armênios, africanos, lati-
nos e diversas outras raças. Encontrando r e f ú g i o no sudoeste
romano, o paulicianismo ali concentrou suas fôrças com relativa
segurança debaixo da proteção dos persas e, árabes, preparando-
se para uma arrojada emprêsa missionária no mundo grego ( 1 2 ) .

(9) História de Gibbon, Edição Bury, V, pg. 386.


(10) Chave da Verdade, pgs. 76-77,
( i í ) The Greek and Eastern Churches, p g . 217.
(12) Chave da Verdade,
REAÇÕES E MOVIMENTOS REFORMADORES 164

O crescimento rápido dos paulicianos não podia


deixar de despertar os inimigos, O professor Wéllhau-
sen, na biografia que escreveu sobre Maomé (13) diz
que os sabíanos (sabian palavra árabe que significa
batista), literalmente encheram com os seus adeptos, a
Síria, a Palestina e a Babitôliia.
Os paulicianos, ameaçados de expulsão pelos im-
peradores, refugi aram-se no território dos maometa-
nos, onde foram tolerados. No ano 690, Constantino,
seu lider, foi apedrejado por ordem do imperador, e
seu sucessor foi queimado vivo. A imperatriz Teodora
instigou uma perseguição na qual, dizem, foram mor-
tos na Armenia cem mil paulicianos.
No nono século os paulicianos rebelaram-se con-
tra os inimigos, expulsaram Miguel III e estabeleceram
na Armênia o estado livre de Teprice, cerca de cem
kilômetros de Sivas, no rio Chala, que durou cento e
cinqüenta anos, quando foi destruído pelos sarracenos.
Daqui, diz_ojcronista Siculo que visitoiljl_co lô nia, man-
^rainlníIssíÕnários aos eslavos,_jja_ Bul£^ia, BÓ5iiia C
JSérvkT^ os perseguidos
de toda a parte. Diz o historiador Evans (14i) que os
paulicianos deram absoluta liberdade a todos os seus
governados. Sob êste ponto diz o já citado Conybeare:
E, um ponto a seu favor eleve ser notado que é o seguinte:
o seu próprio sistema, como o cios cátaros europeus, na sua idéia
e concepção fundamental foi alheio â perseguição; pois que para
ser membro da igreja pauliciana 'dependia do batismo, volunta-
riamente procurado, mesmo com lágrimas e súplicas, pelos adul-
tos fiéis e penitentes. Para tal igreja não podia haver emprégo
. de esfôrço a f i m de obrigar alguém a entrar nela contra a von-
tade. Pelo contrário, o objetivo do exame rigoroso, ao qual eríi
submetido o candidato ao batismo, era simplesmente para des-
cobrir se o seu coração e intelecto haviam sido conquistados, e

(13) Enciclopédia Britânica, XVI, p. 571, 9tli E d .


(14) Historical Vieio of Bosnia p g . 30.
108 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

para se defenderem contra mera conformidade exterior, que é


tudo que o perseguidor pode esperar impor, Foi ôste um dos r e -
sultados mais funestos do batismo infantil que se tornou mecâ-
nica, fãcii e barata a entrada na igreja cristã; e abre dôste moído
o caminbo para o perseguidor í16) ,

Por influência de Constantino Coprônimo, os pau-


licianos estabeleceram-se na Tràcia e no ano de 970 o
imperador Tzmiskes, também armênio, transferiu cem
mil para a região baixa do Danúbio e concedeu-lhes
plena liberdade religiosa.
Ainda que grandemente perseguidos, os paulicia-
nos têm subsistido na região do Tauro até o dia de
hoje.
No principio do oitavo século as doutrinas paulici-
anas espalharam-se por toda a Europa, e se firmaram
no Sul da França onde mais tarde floresceram os alhí-
genses.
Quanto ãs doutrinas dos pauJícianos pode-se di-
zer que:
Não se denominaram "paulicianos", porém " A igreja
santa, universal e apostólica" As igrejas romana, grega
e armênia, eram duramente condenadas por êles como
absolutamente satânicas e más. Sua aceitação, que pa-
rece bem provável, da cristologia adocionista não im-
portava na falta de reverência- a Cristo ou na falta de re-
conhecimento dele como Salvador e Senhor absoluto. '
Era in firmemente contrários ao batismo infantil. A ar-
gumentação daquêles "que batizavam pessoas sem fé,
sem razão e sem arrependimento" era por êles consi-
derada como "velhacaria," e os que assim pervertem a
ordenança de Cristo são apresentados como "falsos e
cheios de sedução do diabo" e, "sob o castigo do Senhor
(15) Chave da Verdade, caps. 1 e 2.
REAÇÕES E MOVIMENTOS REFORMADORES 166

e cios santos apostólicos," "e, inspirados pelo espirito


do adversário do P a i " (16),
Portanto e do conformidade com a Palavra do Senhor, de-
vemos primeiramente trazer as pess-oas para dentro da fé, e en-
tão. dar-lhes o batismo. Assim procedeu a igreja santa, "univer-
sal, apostólica, que aprendeu de Je§u? Cristo; assim também deveis
vós fazer, files primeiro ensinaram; em segundo Isugar, pediram
f é ; em terceiro, induziram ao arrependimento; e depois do tudo,
deram o santo batismo aos que estavam em idade madura, e em
particular, rcconhecedores do pecado originai. Yds, j s . alei tos,
devais para que 61 es recebam_ante^rijijjaç.
U s m o ^ n s t r u c ã o e exercício, tanto para o corpo coma-nara.-a
JtTma;"comõrênsinaS. PauloVAssim, d eve is sem demora trazer
*~os tais a fé, à esperança, ao amor e ao arrependimento, e com ex-
tremo cuidado prová-los, seja quem fòr, para evitar a aceitação
do impostor, ou enganador, ou encantador como Simão. E m se
tratando, tanto de homens como de mulheres, não d e v e i s j i a t j z í b
^ prova-

Se alguém disser que algum sacramento se esconde no ba-


tismo, a fòrça de tal argumento é desfeita de trôs maneiras:
Primeiro, porque a vida reprovada dos ministros (sem dúvida
se refere aos padres das igrejas grega e romana) não facilita re-
médio algum ã pessoa a ser batizada. Segundo, porque os peca-
dos renunciados h fonte, são renovados mais tarde. Terceiro,
porque uma vontade estranha (isto é, a de um padrinho) não
parece pertencer à criança nem oferecer-lhe vantagens, pois ela
não tem vontade, nem anda, porque nada sabe a respeito da fé,
e está completamente alheia a sua própria salvação; por isso, nela
não pode existir o desejo de regenerar, e idéia não se pode espe-
rar uma confissão de f é ( 1 S ),

Parece que o modo geral de batismo entre os úl-


timos paulicianos era^afusão, ainda que haja refe-
rências que indicam que os primitivos praticassem
imersão. Imersão era a prática das igrejas orientais e

(16) Chave da Verdade, caps. 1 e 2. — C i t a ç ã o de Newman.


17) Chave da Verdade, X I I .
(18) Altix, The Ecclesiastical Churches, p g . 104, — Citado
por Christian, História dos Batistas,
170 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

seria coisa estranha se os paulicianos introduzissem


esta inovação nas suas igrejas. No parecer de Cony-
beare a imersão trina seguia à afusão, conforme a prá- 1
tica da igreja ortodoxa da- Armênia, confirmando esta
opinião a circunstância de ser exigida dos candidatos
ao batismo a condição de irem nus e de joelhos à água. j
A ceia era conhecida entre êles como o "mistério
da salvação", O pão e o vinho "abençoados" eram con-
siderados como "mudados no corpo e sangue de Cristo".
Tais afirmativas parecem implicar na doutrina da \
presença real; mas deve notar-se cjue os padres são
apontados como autores da mudança dos elementos
na carne e sangue de Cristo. E' provável que as ex- j
pressões usadas tivessem por objeto significar uma par-/
ticipação espiritual de sangue e corpo de Crisio pelo/
crente.
Certamente a ceia e o batismo, eram celebrados <
com a máxima solenidade, atenta a importância dada
pelos paulicianos ás duas ordenanças.
À escolhai de ministros do evangelho presidia um
cuidado e escrúpulo extremos. As qualidades exigidas
eram prescritas no Novo Testamento, tornadas muito
explícitas e pormenorizadas. Atribuíram alta impor-
tância ao ato solene de consagração dos ministros com
a imposição de mãos.

E' necessário àquele homem, debaixo de todo o aspeto, ser


livre de falta, anies dc lhe concedermos autoridade de sacerdócio,
episcopado, doutorado, apostolado, presidência e eleição. Todos
são uma e a mesma coisa; não há maior nem menor. A autorida-
de é u m a : não sendo maior nem menor, Um sò foi o Espírito
Santo que desreu sóbre os apóstolos universais e fê-los a igreja
universal, apostólica ( w ) ,

O ministério hierárquico dos latinos, gregos e ar-


mênios era explicitamente condenado.
(19) Chave dai Verdade, cap. 22.
REAÇÕES E M O V I M E N T O S REFORMADORES 171

Páginas atrás já se notou que os paulicianos sus-


tentavam e praticavam a liberdade de crença e de cons-
ciência no tocante á religião,

V I . REAÇÃO CONTRA A ADORAÇÃO DE IMAGENS *

Uma boa parte do conteúdo dês te parágrafo, re-


fere-se ao próximo período; entretanto, achamos melhor
intercalá-lo nesta discussão.
No principio do século oitavo, a adoração das ima-
gens já estarva largamente espalhada. Não obstante isso,
os judeus, maometanos, monofisitas, paulicianos e um
pequeno grupo de cristãos das igrejas oficiais moveram-
lhe tenaz perseguição. E enquanto durava esta longa
e sanguinolenta controvérsia, a reforma do oriente ten-
tou triunfar por duas vêzes, mas o seu brilho efêmero
foi logo apagado por uma mulher. Neste ínterim, ra-
zões de ordem religiosa e política levaram o impera-
dor Leão, o Isauriano, a proibir, no ano 726, a adoração
das imagens, ordenando ainda, que elas fossem retira-
das das igrejas e destruídas. Èstes decretos foram exe-
cutados violentamente com o auxílio do exército. Mas,
•Germano, patriarca de Constantinopla, não se subme-
teu às ordens imperiais, razão por que foi prêso e des-
terrado. Igual sorte tiveram os monges que persistiram
na ia d or ação das imagens. Ia assim a oposição ao culto
das imagens, quando, no ano 780, Irene tornou-se vir-
tualmente imperatriz, em face da menorídade do seu
filho Constantino, que tinha apenas sete anos. Eím 787
convocou o sinodo de Nicéia, que se declarou a favor
das imagens da igreja, fazendo unia sutil distinção en-
tre o culto ás imagens e o culto a Deus (dulia e latria).
Postas de novo as imagens nas igrejas, ai perma-
neceram até que o imperador Leão V, (813-820) as
mandou retirar, proibindo a sua adoração, Esta se-
gunda proibição, porém, somente durou até o ano 842.
172 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

quando a regente Teodora as fêz repôr nas igrejas. Des-


de então elas têm sido conservadas nas igrejas sem a
menor oposição.
No Ocidente, a reforma f o i inoportuna, pois o Papa
era amigo decidido das imagens, tendo em 731 exco-
mungado os iconoclastas. A este ato, o imperador res-
pondeu cortando todos os rendimentos do V.aticano,
na Itália Meridional, e anexando as igrejas da Ilíria a
Constantinopla. Mas, por fim, o Papa tornou-se vito-
rioso, tendo a questão abalado por tal forma a Itália, a
ponto de desligá-la do império. Carlos Magno mos-
trou-se hostil ao culto dos idolos. Também, um conci-
lio de bispos alemães condenou 110 ano 794, a adora-
ção das imagens, o que, porém, não fêz cessar tão abo-
minável prática. No século quinze, o grande movimento
reformador do Ocidente conseguiu pôr uma estacada
entre a espiritualidade do puro Cristianismo e o gros-
seiro materialismo da idolatria paga. E assim, verifi-
ca-se que o desenvolvimento da idolatria 110 Ocidente,
foi mais livre e mais fácil do que no Oriente.
Com a controvérsia que se acaba de examinar, co-
meçou a distinção prevalecente hoje quer nas igrejas
orientais, quer nas ocidentais, a respeito da veneração
(Vcneratio, proskunesis, doulcia) de imagens e o culto
(latreia) a Deus. E adotada a adoração às imagens, fo-
ram eliminados o ensino e a pregação do culto, que se
tornou mais formalísta e pomposo. Também, dentro
desta época de transição, apareceu nas igrejas o estilo
arquitetônico particular, caraterizado por cúpulas doi-
radas, geralmente três, que representam a trindade.
CAPÍTULO I V

CRESCIMENTO DO PODER PAPAL

I . A IGREJA E O BISPO DB ROMA

Do começo do segundo século em diante a posição


da igreja de Roma foi-se tornando altamente respei-
tável. Para ela apelavam de ordinário as facções que
se desavinham em outras igrejas.
A igreja da capital da Itália não dava ás suas de-
cisões nenhum tom de autoridade, mas de simples ad-
vertências. Durante os primeiros três séculos foi dimi-
nuía a sua contribuição para o desenvolvimento teoló-
gico. Isto, porém, foi auxilio valioso, pois, não na per-
turbaram! contendas doutrinárias, como sucedeu ás
suas irmãs do Oriente, ficando ela, assim, com o hom
conceito de ser mais ortodoxa.

II. P O L Í T I C A DOS BISPOS DE ROMA

E' deveras interessante notar que o bispo de Roma


não pesava mais e nem exercia mais poder nos conci-
lios dos primeiros sete séculos do que os demais bis-
pos,
1. O Concilio de. Nicéia

A o concilio de Nicéia (325), convocado e presidido


pelo imperador Constantino, que se intitulou "bispo
dos bispos", o bispo de Roma nem compareceu. Foi ape-
nas representado pelos dois presbíteros, Vito e Vicêncio,
que nenhuma parte saliente tomaram nas discussões e
decisões. Houve dezenas de bispos que exerceram mais
influência nesse concilio do que o velho bispo da "Ci-
174 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

dade Eterna", Du Pin, competente historiador católi-


co, diz: " E ' mui provável que Hósius, bispo espanhol,
no seu próprio nome, ocupasse o primeiro lugar no con-
cilio de Nicéia, por estar ao par dos negócios a tratar,
e ser muito estimado pelo imperador (1),
O sexto cânon deste concilio, que tanto tem emba-
raçado os defensores das prerrogativas papais, confe-
riu ao bispo de Roma posição e autoridade equivalente
às dos bispos de Antioquia e Alexandria, não lhe dando
assim primado algum. A autoridade dispensada indis-
tintamente a éstes três bispos dava-lhes superioridade
sôbre os bispos das grandes divisões do império, das
quais Alexandria, Roma e Antioquia eram as cidades
centrais.

2. O Concilio de Sardes

O concilio de Sardes (345 ou 347) convocado pe-


los imperadores Çonstans e Constâncio e presidido por
Hósius, no dizer de Du Pin (2), não delegou ao bispo
de Roma poderes para julgar a causa dos bispos bo
seu tribunal em Roma. Apenas concedeu-lhe autori-
dade para investigar se a causa linha sido julgada im-
parcialmente. Se, a seu ver, tinha sido mal julgada,
deveria decretar no julgamento, n'o pais, pelos bispos
vizinhos das províncias onde o caso tinha sido julgado,
podendo o Papa mandar ou não um representante.
Adiciona o citado historiador; "Tal artigo votado
pelos poderes constituía inovação" ( 3 ) , lst 0 é, que an-
tes desse tempo, a autoridade mesma de investigar as
decisões dos sinodos provinciais, não havia sido atri-
buição do bispo de Roma. Esta pequena concessão foi

( ! ) Du Pin, I, 599; E d . de Dublin, 1723.


(2) Du Pin, I, 599; E d . de Dublin, 1723.
(3) Menu p . COG.
CRESCIMENTO DO PODER P A P A I » 175

fortemente combatida pelos bispos e, por fira, resultou


no cisma da igreja do Oriente e da do Ocidente,
O primeiro concilio de Constantinopla (381), con-
vocado pelo imperador Teodósio, decretou: "Que o
bispo de Constantinopla tenha ^autoridade inferior so-
mente â do de Roma, por ser Constantinopla a nova
Roma", (4),

3. Concilio de Éfeso

N o concilio de Éfeso (431), Celestino, bispo de Ro-


ma, f o i representado por Cirilo, representante do Si-
nodo de Éfeso. Em nada influiu este concilio quanto
às pretensões de Roma.

4. O Concilio de Calcedònia

No concilio de Calcedònia (451), Leão, bispo de


Roma, por intermédio dos seus três representantes —•
dois bispos e um presbítero — fêz grande esforço para-
conseguir a supremacia sobre as igrejas. Escreveram-se
cartas para influírem no concilio a favor de Roma. Uma
carta .escrita por Placídia, mãe do imperador Teodó-
sio, contém o seguinte apêlo: "Vendo que é justo em
tudo preservar esta cidade (Roma), que é a senhora
de todas as cidades", (5) O argumento a favor da su-
premacia da igreja de Roma não se baseava na hipo-
tética fundação por Pedro, mas na importância da ci-
dade de Roma.
O esforço de Roma f o i debalde. O nono cânon diz:
Se alguém que faz parte c!o clero tiver questão com seu co-
lega. não despreze êle seu próprio bispo, apeiando ao tribunal
secular; antes deve o caso ser levado ao seu próprio bispo; ou,
com o consentimento do mesmo, perante uma comissão escolhida

(A) Labbc e Cossart. ii, 497, E d . de Paris, 1071-2.


(5) Sinodo de Calcedònia, p . 27,
176 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

por ambas as partes. 33, se aiguém íòr contrario a esta fórmula,


--eja ela sujeita á censura canômca. Se um clérigo tiver queixa
contra seu bispo, ou outro bispo, seja o caso julgado pelo sinodo
provincial. Se, porém, um bispo ou clérigo tiver questão com o
metropolitano da província, leve o caso ao exarca da diocese, ou
ao trono de Constantinopla imperial, e ai será julgada <a cau-
ra

E' geralmente aceito que a última frase se refere ao


trono do bispo de Constantinopla.
O cânon vigésimo oitavo diz:

Nós, seguindo em tudo os decretos dos santos pais, e tomando


cm consideração o cânon dos 150 bispos, amados de Deus, que
acabou -de ser lido, por nossa parto decretamos e votamos as mes-
mas prerrogativas quanto à autoridade, k santíssima igreja de
Constantinopla — a nova Roma: pois os pais, com razão, deram
procedência ao trono da velha Roma, por ser a cidarle imperial;
e os 150 bispos, amados de Deus, impulsionados pelas mesmas
considerações, concedem igual autoridade ao santíssimo trono da
nova Roma, julgando com razão que a citíade honrada com o go-
verno e o senado deve gozar igual privilégio ao da antiga rainha,
Roma; e, com ela ser honrada eclesiàsticamente, tendo o segundo
lugar depois dela; sendo que os metropolitanos das dioceses do
Ponto, Asia e Tracia, e também os bispos entre os bárbaros nas
mesmas dioceses, sejam ordenados pelo ja mencionado santíssimo
trono da Santa Igreja de Conslantinopia, isto 6, que o metropoli-
tano da diocese, junto com os bispos da província, ordene os seus
bispos, de acôrdo com as instruções nos cânones divmos; mas
que sejam os meiropolilanos das dioceses, como já declaramos,
ordenados pelo Arcebispo de Constantinopla O r

Tem razão Du Pin em dizer que: " O 28 o ." cânon con-


cede á igreja de Constantinopla, chamada a nova Ro-
ma, os mesmos privilégios concedidos à velha Roma,
por ser a segunda cidade do mundo'1 (8),

(G) Lab be e Cossarl Cone. IV, 759. E d . Paris, 1671-2.


(7) Idem, pag. 770.
(S) V o l . i., 67S, Ed, de Dublin, 1723.
CRESCIMENTO DO PODER P A P A I » 177

5. O Segundo Concilio de ConsUmtinoplq


Durante o concilio de Constantinopla (553), con-
vocado pelo imperador Jusliniano I, Virgílio, bispo de
Roma, se achava na cidade, mas recusou assistir às
sessões e dar apoio aos decretos., e por este motivo foi
exilado. Mais tarde, como prova da infalibilidade pa-
pal, mudou de opinião e apoiou os decretos.
(5. O Terceiro. Concilio de Conslantinopla
No terceiro concilio de Constantinopla (680), con-
vocado pelo imperador Constantino Pogonato, que, con-
forme Du Pin, "ocupou o primeiro lugar nas sessões,"
Honório, bispo de Roma, foi condenado e anatematízadü
como herege — mais uma prova da infalibilidade pa-
pal. E' o seguinte o decreto de excomunhão.
iAltiin (listes, reconhecemos também Honõno, anteriormente
Papa tia velha Roma, entre os expulsos da .Santa Igreja de Deus
e anatematizado, porque descobrimos na sua carta a Sérgio que
(Me seguiu as suas próprias opiniões, e.confirmou seus ímpios
dogmas ( " ) ,

7. O Quarto Concilio de Conslantinopla


O quarto concilio de Constantinopla (()í>2), con-
vocado pelo imperador Jusliniano II, no seu 36°. câ-
non, reafirmando os cânones de Constantinopla e Cal-
cedònia, deu à igreja de Constantinopla os mesmos
privilégios e a mesma autoridade que deu a Ro-
ma, e o segundo lugar de honra. Deu o terceiro lugaír a
Alexandria, o quarto a Antioquia e o quinto a Jerusa-
lém.
Não obstante tudo isto, oficialmente a igreja de
Roma durante os primeiros sete séculos não conquis-
tou a preeminêncía, todavia não abandonou a sua pre-
(9) Labbe e Cossart, Cone. VI, 943, E d , Paris, 1671-2.

C. A. S. — 1 2
178 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

tensão e, por fim realizou no Ocidente o que ambicio-


nava. Favoreceram esta pretensão: a hipotética fun-
dação da igreja de Roma por Pedro e o seu suposto
primado concedido por Cristo; a pro eminência que a
capitai da Itália muito cedo ocupou no Ocidente e o
fato de estar livre das rivalidades locais; a transferên-
cia da metropole imperial de Roma para Constantíno-
pJa e a fraqueza dos imperadores ocidentais depois da
divisão do império; a invasão dos bárbaros junto ao es-
tabelecimento de governos rivais no sul da Europa,
dando fáceis oportunidades aos papas para formarem
alianças vantajosas, oportunidades que raramente es-
caparam á sagacidade política da sé de Roma; o fato
de o crescimento do Cristianismo a partir do 5 o . sé-
culo ter sido muito maior 110 Ocidente que no Oriente;
o enfraquecimento da cristandade do Oriente cansado
pelas controvérsias doutrinárias; e o recuo d i a n t e das
forças persas e maometanas, que se foram apossando
dos territórios cristãos.
Os imperadores orientais, desde Constantino, con-
sideravam-se como supremos administradores, tanto da
Igreja como do Estado. E assim deram à hierarquia
episcopal a importância de uma simples máquina po-
lítica. Ainda fizeram correr ondas de oiro sobre a igre-
ja, e abrilhantaram-na com um verniz de dignidade,
somente para conseguir a ordem civil e a unidade po-
lítica. Que surgissem lutas renhidas entre os poderes
imperial e papal não è de admirar. Alguns dos papas
(10) mais ambiciosos foram mais felizes 110 manejo
dos imperadores do que nos concilios.

( t o ; "O íôrmo latino papa ( p a i ) aplicava-se de ccmòço a


todos os bispos e mesmo aos padres. Do século sexto em diante
foi que entrou a designar particularmente o bispo de Roma, a
quem Gregório V I I , pontífice romano, cm 1076 o manjdaria ex-
clusivamente com o epíteto prefixo de Santo", Oliveira Lima,
História da Civilização, pg. 210.
CRESCIMENTO DO P O D E R PAPAI» 179

8. Atitude de outros papas

ILcão I, o grande, (440-461H estava ausente quando


o clero, o senado e o povo de Roma o elegeram. Duas
vezes romano: romano pela origem e pelo sentimento,
sentia correr em suas veias, o sangue das fortes quali-
dades agressivas da Roma imperial e papal. Nêle «e
encontravam as caraterísticas do genuino tipo romano,
feito do orgulho acumulado em muitos séculos de oni-
potência, e da ambição daquela raça de liomens prá-
ticos que excederam a todos na ciência de governar

O tempo da eleição de Leão foi 0 mais propicio


para a realização dos seus intuitos ambiciosos. Homem
forte, não deixou escapar uma só oportunidade vanta-
josa aos interesses da Santa Sé de Roma, tendo levado
a sua sagacidade ao ponto de conseguir, com o auxílio
do imperador, dar passos importantes, bem como o do
reconhecimento da supremacia de Roma, ainda que ne-
gada pelos concílios.
O imperador decretou que a nenhum bispo fôsse
permitido, em desacordo com o antigo costume, fazer
qualquer coisa sem a autorização do venerável Pai da
Cidade Eterna, mas respeitar tudo quanto a sé apos-
tólica tem ordenado, ordene ou venha a ordenar, de
modo que, no caso de algum bispo ser chamado a juízo
perante o pontífice romano, obedeça ou seja forçado a
obedecer pelo govêrno das províncias.
jGelásio I (4Í>2-496)| africano de nascimento, reunia
o zelo característico da sua raça com a sutileza romana,
produzindo esta fusão um tipo singularmente interes-
sante de dominador.
A chama do orgulho e da ambição ardia-lhe nas
veias, tanto ou mais do que no seu antecessor. Uma vez
no poder papal, Gelásio não perdeu tempo, envidando
180 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Iodos os meios afim de aproveitar-se das regalias e


vantagens que Leão soubera conquistar, e ir alem em
busca de novas conquistas. B o seu traquejo político
ficou sobejamente demonstrado com a sujeição de Cons-
tantinopla a Roma.
O pontífice rendia inteira obediência ao impera-
dor em se tratando de questões de ordem legal, mas de-
clarava que o mundo era governado por dòis poderes
— o pontifical e o real — dos quais o primeiro era
mais grave e importante, uma vez que o pontífice res-
pondia a Deus pelos atos dos reis. A este ensino, feito,
por certo, ao seu modo, Gelásio acrescentou que em-
bora os reis governem os homens no mundo, devem sub-
missão aos prelados nas coisas espirituais, não sendo
reis nas ordenanças divinas, porém súditos. Tais fo-
ram os princípios que o sutil Gelásio deixou estabele-
cidos no seu pontificado, preparando assim o caminho
para a absorção das antigas prerrogativas reais pelo
nascente poder papal, formidável e irresistível.

Símaco (498-514), seguindo as pegadas dos seus


antecessores, recusou submeter-se a um tribunal im-
perial que o suspendera das funções papais, por causa
das irregularidades verificadas na sua eleição, até que
fosse apurado o modo como procedera para alcançar
este posto.
Sustentou que nenhum tribunal podia obrigar a
comparêncía de um papa, nem pronunciar sentença
contra ele (papa), na sua ausência. Em 503 convocou
um . concilio que estabeleceu a impecabiüdade do pa-
pa, como..dogma da igreja .

Hormisdas (514-523), não quis ficar em plano in-


ferior aos que o tinham precedido na cadeira pontifi-
cai, no tocante ao almejado fim de engrandecer o po-
CRESCIMENTO DO P O D E R P A P A I » 181

der papal. Os seus atos neste sentido, embora inferi-


ores em número, não o foram em rigor. Constantinopla
que de há muito vinha sentindo o jugo do Papa, viu
nêste pontificado agravar-se mais a sua situação, pelo
modo humilhante por que foi tratada. A supremacia
de Roma há muito tempo apregoada e defendida, foi
praticamente estabelecida, ainda que decretada por
concilio algum.

II [. JUSTINIANO E O P A P A D O (527-565)

Depois da morte de Teodósio a anarquia prevale-


ceu na Itália. As práticas corruptas e os meios ilícitos
para alcançar a cadeira papal, tornavam-se cada vez
mais vergonhosos. Até os papas indignos mantinham e
advogavam a prerrogativa papal. Das cartas e da vasta
legislação de Justiniano não transparece o menor vis-
lumbre de que ele tivesse idéia de admitir a irrespon-
sabilidade do govêrno eclesiástico. A o contrário, cria
no direito de legislação e o exercia em todos os depar-
tamentos da vida eclesiástica. Na sua opinião a digni-
dade imperial ultrapassava todas as outras. Em todo
o caso manteve sempre a maior lealdade ao Papa como
cabeça da igreja, embora mal interpretado pelos que
insistiam na suh-rogação de todo o poder civil e - reli-
gioso pelo Papa.

IV, O REINO MEROVÍNGIO E 0 P A P A D O (496-752)

A conversão de Clovis, chefe merovingio, à f é ca-


tólica, é de suma importância na história do papado.
Guerreiro valoroso, tendo começado com um reduzido
número de partidários, conseguiu, em pouco tempo, e
por meio das suas proezas militares, atrair um grande
número de tribos. Mais tarde, casando-se com uma
princesa católica, em melhores condições se colocou em
182 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

face dos grandes eventos que deveriam perpetuar o


seu nome na história do Catolicismo. E observando a
influência e a força do papado, procurou ganhar-lhe o
apòio, fazendo profissão de f é em 496 e induzindo, com
o seu exemplo, todos os seus partidários a se unirem
ao Catolicismo, sendo batizados três mil. As lutas em
que Clovis se empenhou, depois deste passo, foram cer-
cadas com uma série de vitórias depois das quais pôde
ver a Gália, a Burgúndia e a Bavária, reunidas, mais
011 menos firmemente, debaixo do seu cetro. Desta
forma estava dado o primeiro passo para o estabeleci-
mento dum vigoroso poder católico, cujo maior interesse
e preocupação seria promover e formar a força do pa-
pado; por sua vez os papas corresponderam condigna-
mente aos merovingios, promovendo-Ihes o engrande-
ciinento.

y . INVASÃO DOS BÁRBAROS


De Justiniano até Gregório (527-590) o Papa pouco
conseguiu alcançar no campo da supremacia papal. A
Itália havia sido privada da sua independência e de
todos os seus recursos, pelo império oriental e pela in-
vasão dos bárbaros. Desta forma, na ausência de to-
do os recursos, quer pecuniários, quer políticos, os pró-
prios papas tinham de estacionar nas suas aspirações.
Avizinhava-se, porém, um período áureo e cheio de
oportunidades.

V I . GREGÓRIO I, O GRANDE (590-604)


Gregório acabava de subir á cadeira pontifical no
meio de pestes e lutas internas. A fama de sua santi-
dade reunida ao seu notável saber tornaram-no um dos
maiores e mais bem sucedidos papas. O seu tino polí-
tico havia de engendrar meios práticos afim de melho-
rar a situação. E realmente Gregório iniciou a sua obra.
CRESCIMENTO DO PODERP A P A I »180

estabelecendo o costume de conferir o "pallium 1 " Ba


sagração dos bispos, com o fim de "fazer necessário o
apôio do papa à validade das ordenanças episcopais
assim facilitar o poder civil no tocante ao governo da
igreja. Pensou que um dos fatores importantes para o
bom exilo das suas aspirações, seria desligar o clero
da familia, para que só tivesse uma vontade a atender,
a do papa. Neste sentido insistiu na lei do celibato do
clero, que depois de algumas lutas foi estabelecida.
Continuou a prática antes iniciada, de estender o pres-
tigio e a autoridade da se romana por meio de empre-
sas missionárias e alianças vantajosas com os governos
civis. Pensou que o melhor meio de conseguir a uni-
dade católica, seria uniformizar o modo de culto, in-
sistindo que uma só língua (o latim) fosse usada em
toda a crístandade. 0 papado deve a Gregório boa
soma de esforços no afã de solidificar o seu crescente
domínio.

t Gregório, o Grande, foi o maior papa de Roma. Procedendo


de uma rica "família patrícia, era eminentemente dotado como
administrador, perito diplomata o homem prático. Foi prefeito
imperial de Roma, embaixador à cOrte imperial em Constantino-
pla e abade dum coirvento do qual foi fundador antes que fôsse
eíeito papa. Seu pontificado foi cheio de perturbações. A f o m e
e peste devastaram Roma. Os lombardos e os romanos orientais
ameaçavam cie f o r a . Os francos tinham estabelecido uma igreja
nacional, que fracamente reconhecia o Papa somente como uma
autoridade morai. Os visigodos cristianszados na Espanha assu-
miram atitude semelhante. 0 prestigio do bispo de Roma quase
desaparecera üa própria Itália. A Igreja estava rasgada pelas
dissensoes internas, enquanto a inveterada corrupção moral p r e -
valecia. Como papa, Gregório distinguiu-se em diversas manei-
ras. Foi ôle, não os oficiais militares, que levantou um exército,
pagou as despesas da guerra e fôz as pazes com o rei dos lom-
bardos. Restabeleceu a dise;plina eclesiástica, organizou o ritual
e a rmisica da igreja. Saiu vitorioso na luta com o patriarca de
Constantinopla que assumira o título de "bispo u n i v e r s a l . " G r e -
gório revogou o título e adotou para si mesmo o de "servo dos ser-
vos de Deus.'" F o i incansável na obra missionária. 0 arcebíspado
184 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

tio Cantuana (na Inglaterra) foi estabelecido durante seu ponti-


ficado .
i>,le estendeu a influência da sé romana à França, Inglaterra,
Espanha o Á f r i c a . Foi forte defensor das ordens nionàsticas
favoreceu especialmente os~beneditinos, F o i o fundador da teo-
logia da Idade Média e produziu grande número de escritos.
Suas doutrinas de purgatório, boas obras, missa e eucaristia,
firmaram a Igreja Católica Romana. Nos seus bem sucedidos es*
fonjos para eslender a autoridade papal, ôle ediPicou nos alicer-
ces feitos pelo papa Leão, o Grande ( u )

VII. O REINO CARLOVÍNGIO E O P A P A D O

Os trancos continuaram a exercer o seu domínio


no continente. O seu império, constituído pela Áustria,
Nèustria e Burgúndia, foi em 613 reunido, tendo fi-
cado, porém, cada divisão sob a jurisdição de um go-
vernador, ou major dornas (Prefeito de Palácio). Gra-
dualmente estes três prefeiios tornaram-se mais fortes
que os próprios reis. Em 687 Pepino da Áustria sub-
jugou o prefeito de Nèustria e constituiu-se prefeito de
todo o Império Franco atê 711, quando a morte o co-
lheu. O seu filho Carlos Marlel (prefeito de 714-741)
venceu os nobres francos rebeldes, pelejou contra os
saxões e frigíos, derrotou-os e fêz os mulçumanos vol-
tarem a Tauro (732). A Carlos Martel sucedeu seu fi-
lho Pepino, o Breve, (Prefeito em 741) que com o as-
sentimento do Papa depôs o próprio rei e foi co-
roado pelo bispo Bonifácio (751), dando principio à di-
nastia carlovi ngia. Desde 567 os iomhardos possuíam
quase lodo o norte da Itália e ameaçavam incorporar
ao seu reino, Roma c o patrimônio petrino, que o Papa
governava em semi-independência. Pepino, que os re-
peliu, confirmou o Governo do Papa, tirou a Astolfo,
rei dos íombardos, o exarcado de Ravena e Pentápo-

(11) Qualben, History of lhe Christian Chnrch, pg. 148.


CRESCIMENTO DO PODER PAPAI» 185

lis e o ofereceu ao pontífice, dando assim principio ao


poder temporal dos papas (12),
Nenhum período, porém, na historia das crueldades romanas,
oferece talvez mais singular interesse que o da luta papal contra
Oi lombardos. De todos os povos bárbaros não havia outro que
reunisse á virilioade característica dessas nações do norte dis-
posições lão humanas o qualidades tão civilizadoras. Mas a sua
admirável tenacidade, os seus inteligentes e inflexíveis esforços,
durante duzentos anos, por fundar uma nacionalidade italiana
grangearam-lhe por parte dos papas um ódio inexorável ínextin-
gutvci, .cujcs anátemas tremendos ressoam ainda hoje nos escrito-
res da igreja.
Eram cs francos, ilustrados, havia amda pouco, pela sua bem
sucedida resistência à invasão muçulmana, os alados naturais
dos pontífices nes^a hostilidade. Todos conhecem as primeiras
relações- do papado com a família/de Iíeristall e os interessados
obséquios de Gregório 111 a Carlos Martelo cuja morte não con-
sentiu realizar-se logo a funesta coligação entre o mais feroz dos
'povos bárbaros e o representante do Gristo, Os merovmgiavios,
cujos direitos à coroa de França, não obstante a impotência dê-
Icb no governo, eram de uma legitimidade incontestável, deveram
a sua definitiva ruína ao papa Zacarias (741-752), que mediante
uma ridícula farçn, ordenou a Pepino que assumisse a si o trono,
"uma vez que .seu, já era o -poder". Tais foram-os primeiros pas-
tos do papado, absorto já nas suas deploráveis pretensões ,de su-
perintendência sòbro a autoridade dos governos humanos.
Com o mesmo direito com que o para deu de presenle a
f r a n ç a aos Carlovmgianos, também Pepino, em trôco, por sua
parte, (Presenteou ao papa com o território submetido, por ine-
gável d irei í o dc soberania, aos imperadores gregos. No intuito de
dar aparência de legitimidade a essa doação, cujo conteúdo entre-
tanto. não se sabe senão por informações de um compilador pou-
co fidedigno, e mais de cem anos posterior á assembléia de
Guercy-sur-Oíse, ínvcntou-se-lhe o título de restituição, com-
pondo-se para justificar essa escandalosa mentira histórica, a
famosa doação de Constantino,
; Nesta célebre falsificação as Idéias pontifícias de superiori-
dade dos interesses papais sôbre os direitos da nacionalidade ita-
liana, sôbre a autonomia dos povos, sôbre a jurisdição dos prín-
cipes, estão significativamente consubstanciadas numa declara-
ção formai. "Enquanto a nós'V diz o suposto doador, "pareeeu-

(12) Botelho, História Universal, p g . 195,


186 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

nos trasladar o nosso domínio para as províncias orientais e o ter-


ritório de Bizâncio: porquanto não hú razão que, onde o rei ce-
leste instituiu a soücraiiia sacerdotal e a cabeça da religião cris-
tã, mantenha outra rei sua terrestre impotência"
Na origem de qua.ce tôdas as grandes usurpaçoes costuma
jer a violência a explicação ida conquista, c o triunfo obtido pela
força basta para satisfazer a ambição dos violadores do direito;
na bis for ia (ias usurjmçôes romanas, a fraude-representa sempre
um papei preponderante e prodigicso,
Àquele documento, irrisònamente atribuído a Constantino,
seguiram-se as ftiísas decretais Me Isidoro Mercator, que o papado
não repudiou senão quando a revolução completa, gerada por
elas na constituição eclesiástica, lançara raízes indestrutíveis, e
oblivera ás pretensões teocrálicas do papa pniá vitória que nem
a audácia dos falsificadores sonhou. À vista dessa descomunal
indignidade, que imputava aos Santos Padres, aos papas, aos con~
cílios, aos imperadores de épocas em que o prelado de Roma não
era niais que um bispo sem nenhuma autoridade fôra da sua dio-
cese, decisões insensatas, inverossímeis, absurdas, contrárias a
outras reconhecidamente autênticas: á vista xlessa'incomparável
falsificação, ficam à sombra, amcsquinhados, quanto outros arti-
fícios a èsse tempo engendraram: as lendas miraculosas, a carta
dc L U Í S , O Bonanchão, a epístola em que S . Pedro pessoalmente
intimava a Pepino o aniquilamento dos lombardos, e todos os
embustes históricos por onde o século V I I I mereceu conceitua-
rem-no como a id-Ofilc dc ouro da impostura.
Releva, todavia, não esquecer que todos Cs?os crimes contra
a verdade tiveram sempre um fim único, notório o inalterável: a
dominação da Igreja sôbre o Estado, a supremacia do papa sôbre
a igreja ( u ) .

V I I I . CARLOS MAGNO E O P A P A D O
Carlos Magno (768-814), destruiu o império dos
lombardos, em 773, confirmou e aumentou os estados
papais e se declarou "rei de Itália", Depois de muitas
conquistas, foi coroado imperador pelo pTÓprio papa
Leão III, ressurgindo assim o velho Império Romano
d 0 ocidente. O Santo Império Romano, assim formado,
compreendendo, agora, a maior parte da França e

13) Ruv Barbosa — O Papa e o Concilio, págs. 26-27 a E d . de


1930.
CRESCIMENTO DO P O D E R P A P A I » 187

quase tôda a Alemanha, a Suíça, a Itália e outros es-


tados modernos, não era inferior ao antigo império do
Ocidente.
O crescimento do poder papal de mãos dadas com
o franco d esen vol vim entoado império Carlovingío, avan-
çara em paralelo, de modo que o aumento de um con-
tribuiu para o progresso do outro.
Os missionários católicos tinham o apoio das ar-
mas civis no afã de exterminar a heresia e o paganis-
mo, E quando os meios moderados se mostravam inii-
teis aos seus desígnios, a igreja não hesitou em pedir o
emprego de medidas violentíssimas, obtendo logo o
assentimento do Estado. Os bispos foram reconhecidos
como administradores de permeio com os oficiais ci-
vis, tendo a mesma jurisdição e cooperação reciproca.
A Santa Igreja Romana e o Santo Império Roma-
no, foram considerados partes homogêneas e o obje-
tivo de um era o alvo do oulro — a conquista e domi-
nação do mundo inteiro.
CAPÍTULO V

X/ MISSÕES NO PERÍODO
I. OBSERVAÇÕES GERAIS

O quarto e o quinto séculos marcaram a transição


do Cristianismo de uma religião da minoria para a re-
ligião da maioria do mundo mediterrânea, tornando-se
assim a religião da mais poderosa área civilizada do
globo. Continuou a expansão além dos confins do Im-
pério Romano, mas principalmente em conexão com a
cultura greco-romana. Daí atingiu vários povos ger-
mânicos, notadamente os godos, os vândalos, os buru-
neses e os francos; alguns deles dentro e outros fora
dos limites do Império. Também foi levado a Irlanda
e a Geórgia. Nos domínios pérsicos o número de cris-
tãos crescia. Alcançou adeptos em várias partes das
fronteiras da Arábia e tornou-se a religião de Axum, o
predecessor da Abissinia. Nos anos entre 300 e 500 o
número de cristãos professos multiplicou-se grande-
mente e o Cristianismo tornou-se a religião oficial de
vários governos.
Principiando o sexto século o Cristianismo achou-se
num mundo diferente. O Império Romano estava em
decadência e ia se transformando em dois mundos —
o bizantino ou grego e o romano. O grande estado
que, desde o começo do Cristianismo, dominara o
mundo mediterrâneo estava se desmoronando e a cul-
tura na qual a f é cristã nascera estava sendo alterada
profundamente. O Cristianismo, que tinha vencido to-
dos os rivais, exceto o Judaísmo, agora se achava num
mundo que o estava esmiuçando. Morreria o Cristia-
nismo com a cultura moribunda ou demonstraria vi-
190 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

lalícíade suficiente para conquistar novos povos e cons-


truir nova cultura? A história das missões nos séculos
sexto a oitavo dará a resposta. A história destes sécu-
los será cristalizada nas ligeiras biografias dos missio-
nários (te mais destaque da época.
I I . MISSÕES N A B R E T A N H A
1. O Cristianismo primitivo na Bretanha
1) Origem. Ignora-se a data da introdução do Cris-
tianismo na (Bretanha (1) > As tradições medievais de
que .íosé de Arimatéia, acompanhado de mais doze mis-
sionários, cerca do ano 63, e de que o apóstolo Paulo le-
vassem o evangelho aos habitantes das ilhas britânicas
carece cie fundamento histórico. Neander diz que o
Cristianismo foi introduzido na Bretanha oriental no
fim do segundo século. Tertuliano afirma que no ano
200 havia cristãos nas ilhas, e Origenes, numa das suas
homílias (cerca do ano 239) refere-se ao Cristianismo
na Bretanha como fato bem conhecido. Sozomcn, his-
toriador grego, que escreveu cèrca do ano 300, fala de
igrejas britânicas (2) , O certo é que diversos bispos
britânicos tomaram parle no sinodo de Aries (314), A
presença destes prova desenvolvimento considerável
nas igrejas, desenvolvimento que levou tempo, talvez
uns cem anos. O mais que se pode afirmar é que prova-
velmente a introdução do evangelho na Bretanha re-
monta mais ou menos ao tempo do desembarque do
exército romano ali no fim do segundo século. O que
é certo, porém, é que no começo do quarto século o
Cristianismo havia lançado fundas raízes nas ilhas,
contando um bom numero de fiéis adeptos.
O exército romano dos dois primeiros séculos, como
( i r Trata-se aqui das Ilhas Britânicas (Lat. Britannia) e não
da província do mesmo nome na França.
(2) Vedder, «Christian Epoch-Makers», pág. 63.
11)5
MISSÕES N O3PERÍODO11)5

o exercilo brasileiro na atualidade, oferecia grande


oportunidade para a propaganda do evangelho. Sob o
sistema imperial, as legiões de Roma foram estaciona-
das permanentemente nas províncias, mas recrutadas
cm outros lugares, para não serem os soldados obriga-
dos a guerrear contra os próprios patrícios. AsüegiÕes^
da Gália e Bretanha foram ^recrutadas—do Oriente, e
era natural que aíguns cristãos se achassem nas filei-
ras e que aproveitassem a oportunidade para propa-
gar a sua religião. E' quase certo que o evangelho foi
introduzido na Bretanha pelos soldados romanos do
Oriente c não por missionários especialmente enviados.
Também o comércio romano sempre seguia as pe-
gadas do exército. Naquele tempo, como na atualidade,
as ilhas britânicas adquiriram fama por causa da sua
riqueza mineral, e, por isso, surgiu logo depois da ocu-
pação pelo exercito romano, avuliado comércio de me-
tais. Èsse movimento inevitavelmente atrairia alguns
cristãos para aquelas regiões longínquas, como sempre
tem levado para lodo o mundo. Ainda que não passe
de mera conjetura da nossa parte, no entanto, é bem
provável que foi por esta maneira que o Cristianismo
chegou ã Inglaterra.

2) intervenção pagai. Após a retirada dos solda-


dos romanos, em cerca do ano 110, o íntercurso entre
os cristãos britânicos e os que estavam sujeitos à in-
fluencia de Roma quase se desfez. Os bretões, filiados
ao Cristianismo, foram gradualmente impelidos para
as longínquas montanhas de Gales, onde se organizaram
para a vida e o trabalho cristãos, sendo o seu viver
simples e semi-monástico.
Parece que se organizaram em colônias cada qual
presidida por um abade. Cada membro da colônia foi de-
signado para um trabalho sui generis. Um bom nú-
mero dedicara-se ao estudo, sendo a Bíblia o livro pre-
192 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

d He lo. Seu ensino no quarto século não parece menos


primitivo do que o dos cristãos gálicos com quem man-
tiveram intima reiação.
Em '§§9^0 papa Gregório, o Grande, mandou a Ga- ^
les o monge Agostinho com trinta monges missioná-
rios, afim de tentarem converter ao romanismo os cris-
tãos britânicos. Pelo modo por que se apresentaram
praticando aparentemente uma vida ascética, operando
pretensos milagres e fazendo vantajosas promessas ma-
teriais, conseguiram a conversão cie Eielberto, rei dos
saxòmos, na Bretanha, que logo foi batizado 110 rio pe-
los missionários romanos ao mesmo temjío que dez mil
de seus adeptos davam o mesmo passo. Enquanto êste
acontecimento se passava, uma aliança era feita entre
Eielberto e a sé romana, e os missionários punham
mãos à dificílima tarefa de subjugar a Roma os cris-
tãos britânicos, já refugiados em Gales e na Escócia,
Empregados todos os meios possíveis para o bom
êxito desta empresa, após o seu insucesso, os missioná-
rios persuadiram o rei da Saxônia a fazer uma expedi-
ção contra os cristãos. O rei não se fêz de rogado, pondo
em ação as medidas mais violentas. Três mil cristãos
foram chacinados duma só vez. Por alguns séculos,
cristãos da mesma natureza intransigente dos bretões
em Gales, Escócia e Irlanda, como em diversas partes
da Alemanha, resistiram valorosamente â invasão ro-
mana. Assim, somos levados a crer que o Cristianismo
d êste tipo nunca foi completamente exterminado.
Janus, no seu erudito estudo sôbre a infalibilidade
dos papas, assevera que os cristãos da Bretanha "ali-
veram-se durante muitos séculos a uma posição autô-
noma, sem sentirem a minima influencia de Roma".

3) Doutrinas c práticas. Dos relatos das discussões


havidas entre os missionários de Roma e os guias dos
cristãos britânicos depreende-se o seguinte acerca de
11)5
MISSÕES N O 3PERÍODO

suas práticas: Não existia entre êles o episcopado dio-


cesano; dispensavam a mais rigorosa atenção ao es-
tudo das Escrituras; eram cheios de zêlo missionário e
estendiam o seu trabalho evangelizador, coroado sem-
pre de bom êxito, aos picto,^ do Norte, â França e â
Alemanha; recusavam absolutamente reconhecer qual-
quer autoridade humana em assuntos de religião, ofe-
recendo tenaz resistência às manobras do Papa para
sujeitá-los à sua vontade; insistiam na humildade e
simplicidade da vida cristã, e o gênero de vida pomposa
e mundana que o missionário de Roma ostentava pe-
rante êles, deixou-os escandalizados: diferiam dos ro-
manísías em vários outros pontos, como por exemplo,
no tempo de celebrar a páscoa, (3) e o modo de batismo
— uma sò imersão em lugar dc imersão trina.
(3) Oí cristãos orientais, seguindo o calendário judaico, ce-
lebravam a páscoa no 14,° dia da lua depots do equinócio da p n -
ma vera; os ocidentais, a paixão na sexta-l'eira o a ressurreição
no domingo seguinte à páscoa dos judeus, isto 6, na primeira
sexta-feira e no domingo depois da primeira lua cheia, que se
^egue ao equinòeic. da primavera, e que cai scrnnre entre os dias
9..Í de Março e 25 de A b r i l . Parece de pouca importância esta di-
ferença, mas precisa-se lembrar de que dela depende, para os
católicos romanos, a data de tôdas as festas móveis da páscoa.

A Septuagésima , , 63 dias antes da páscoa


A Quinqnagésima , , 49 dias
A Paixão . : 14 dias
Quasimodo , , 5 ? dias depois da páscoa
A Ascensão , 3 • — 40 dias
O Penleeostes : . 10 dias depois da Ascensão
A S . S . Trindade , 7 dia- depois de Pentecostes
O Gorpo «de Deus ; tia quinta-feira seguinte

Também entrou na controvérsia a questão de uniformidade


de culto, doutrina e organização — que sempre tem provocado
desunião—cjue.neste tempo estava triunfando no Ocidente. O conci-
lio de Aries (314) tinha decretado que a páscoa fôsse celebrada no
mesmo dia em todo o mundo; mas esta assembléia eclesiástica,
a que o Oriente pouca importância ligou, não possuía meios parã

C. A . S. — 13
190 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

2. Missionários britânicos

V Patricio. Foi mais custosa e lenta a entrada do


Cristianismo na Irlanda — chamada pelos romanos,
Scotia ou Hibernia. E' somente 110 quarto século que
começam a aparecer alguns vestigíos da influência do
evangelho 11a ilha. Celestino, discípulo e amigo de Pe-
lágio, parece ler sido irlandês, como também, conforme
Jerônimo, Pelágio mesmo o era; e nas suas controvér-
sias com Jerônimo e Agostinho, estes célebres "here-
ges" (4) revelaram muitos dos característicos daquela
raça. O mito de que Patricio foi o primeiro a pregar o
evangelho na Irlanda, com outros muitos que se englo-
bam em roda de sua personalidade, carece de funda-
mento histórico.
Gaspar de Aquitaine, cronista do quinto século, diz
que o papa Celestino consagrou um tal J?aládi2^ sacer-
dote de origem gálíca, e no ano dej|31 enviou-o como
comissário à Irlanda. 0 fato de confessar o cronista
que a missão não alcançou êxito, dá crédito à histó-
ria. Parece que Paládio f o i mal recebido pelos irlan-
deses, que o obrigaram a fugir da ilha, e que logo de-
pois morreu. Mas se Patricio não foi o primeiro a pre-
gar o evangelho na Irlanda, foi, sem duvida, o mais
bem sucedido.
Há na atualidade apenas dois documentos escri-

impor as suas decisões. Ao imperador Constantino, que pouco in-


terôsse tinha nas questões doutrinárias, pois visava apenas a
unidade do seu império, parecia escandaloso que a festa que c o -
memorava o fato central do Cristianismo fôsse celebrada em
dias diferentes; que enquanto alguns estavam jejuando outros
estariam festejando. A êle a questão da páscoa era mais impor-
tante do que a da divindade de Cristo que estava em foco nos
seus dias. Pela mesma razão de uniformidade a hierarquia sem-
pre tem pugnado a favor da fixação do tempo d&s festas.

( 4 ) Padre Anthetmo, Go'ud, História Eclesiástica, p g . 129.


MISSÕES N O 3PERÍODO 11)5

tos por Patricio e que constituem a fonte principal da


nossa informação quanto à sua vida e obra; pois as bio-
grafias escritas do oitavo século em diante, isto é, de-
pois da Igreja Católica transformar o simples prega-
dor em santo, são tão cheias de lendas miraculosas que
nenhum historiador sério lhes pode dar crédito,
A primeira destas obras é chamada "Confissão",
fragmento autobiográfico, na qual o missionário narra
em breves linhas a sua própria história (5), Ela nada
contém das ridículas lendas miraculosas posteriores
que obscurecem o homem. Honestidade, simplicidade
e veracidade caracterizam a sua narrativa. Dizem os
entendidos que o latim em que foi escrita a obra é um
tanto rude, confirmando assim o pouco preparo lite-
rário do autor como ele próprio o confessa. As cita-
ções das Escrituras são da velha versão latina, mais
antiga do que a de Jerônimo, o que não deixa de ser
argumento a favor da genuinídade da obra. Ef exata-
mente o que se esperaria da lavra de um missionário
da época de pouco preparo literário, mas profundo co-
nhecedor da sua Bíblia e ativo na propaganda do evan-
gelho.
A outra obra escrita por Patrício é a "Epístola a
Corótico"* príncipe de Gales, que tinha repelido «ma
invasão irlandesa, perseguido os invasores além do
mar e cometido represálias. Ainda que cristão pro-
fesso, Corótico não fez distinção entre os irlandeses
pagãos e os adeptos de Patrício, que escreveu a epístola
em protesto contra o ato qnti-cristão do príncipe.
Patrício nasceu na Bretanha entre os anos de 336 e
395. Era de boa família, sendo seu avô presbitero e
seu pai diácono — prova de que o clero britânico dessa
época não praticava o celibato. Além de diácono, Cal-
púrnio, seu pai, era membro do conselho municipal e
(5) A tradução de Dr. Catheart contém umas oito mil palavras.
190 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

proprietário, sendo dono de uma fazenda. Esta com-


binação de ofícios — um secular e outro eclesiástico —
ao mesmo tempo proprietário, prova que o clero bri-
tânico ainda não formava casta sacerdotal.
Aos dezesseis anos Patrício foi levado preso para
a Irlanda pelos piratas que saqueavam naquelas regi-
ões, chegando até a fazenda de Caipúrnio. Diz a tra-
dição que o seu senhor era Milchu, chefe de Dalarádia
ao nordeste da Irlanda. Èle mesmo diz que, como o
pródigo da parábola, foi mandado ao campo cuidar
de porcos.
Até êste tempo, ainda que filho de país crentes,
Patrício ainda não tinha a experiência pessoal da graça
regeneradora. Mas as horas solitárias no campo ofe-
receram-lhe oportunidade para meditar e a meditação
levou-o a orar, e a oração à confissão de pecados, re-
sultando, assim, que a vida do jovem foi trasformada
pelo poder divino., como êle mesmo diz na sua "Con-
fissão" :
Tinha dezesseis anos de kl a de, e não conhecia o Deus v e r -
dadeiro; mas numa terra estranha, o Senhor me levou a reco-
nhecer a minha incredulidade, de forma que, ainda que tarde,
arrependi-me do.» meus pecados, e voltei com todo o meu cora-
ção ao Senhor meu Deus; que, olhando para a minha baixeza,
teve compaixão da minha mocidade o ignorância, das quais me
preservava antes que eu o conhecesse, e que me protegia e con-
forlava ccmo um pai ao filho, antes que eu soubesse distinguir
entre o bem e o mai (°) =

Depois de seis anos de escravidão, Patricio conse-


guiu fugir para a costa e daí voltou para casa, sendo
recebido pelos pais como se fora um morto que hou-
vesse ressuscitado.
Dez anos mais tarde, foi novamente prêso pelos pi-
ratas e levado â Gália onde, dois meses depois, por
(6) Neander, «General History of the Christian Religion and
Church,» 8th Ed. Boston, Vol. H, pág. 127.
11)5
MISSÕES N O3PERÍODO11)5

meio de comerciantes cristãos, conseguiu a liberdade e


voltou de novo para casa. >Bem podia ter passado o
resto dos seus dias no seio dos seus, se não fôsse a sem-
pre crescente convicção de que era a vontade de Deus
que ele voltasse para a terra de seu cativeiro para pre-
gar o evangelho aos seus antigos raptores. As admoes-
tações e súplicas de parentes "V amigos não puderam
demovê-lo da convicção da sua chamada divina. " N ã o
estava no meu poder," diz Patrício, " f o i Deus quem
me conquistou, e venceu-os a todos." Èle narra a se-
guinte experiência:
V i á meia noite, um homem por nome Vitorio, vindo 'da
Irlanda com inumeráveis cartas, das quais me deu uma; e eu li
no princípio da caria a seguinte frase: " A voz dos irlandesos",
E, enquanto lia em voz alta o principio da carta, eu mesmo p a r e -
ci!! ouvir a voz daqueles que v i v i a m perto do bosque de Fochlut,
que ú adjacente ao mar do oeste, bradarem com uma so v o z : " I m -
ploramos-te, síinto jevem, que venhas e andes entre nós". P r o -
fundamente comovido e não podendo ler o resto da carta, acor-
dei. Graças a Deus que depois de muitos anos o Senhor lhes con-
cedeu o seu pedido. Notutra noite, se dentro ou fora de mim, não
; sei. Deus o sabe, ouvi palavras suavíssimas, que não compreen-
di, exceto a última frase que dÍEia: "Aquêle que deu a sua vida
per ti ê quem fala cm t i . " Acordei cheio de regozijo pelo que ti-
nha visto em sonhos.

Èle não explica a razão ou obstáculo que o impe-


dira de fazer o trabalho para o qual se sentia chama-
do. Apenas menciona bem de leve a oposição dos seus
queridos e amigos, que duvidaram da veracidade da
sua chamada e discutiam a respeito do seu caráter,
por causa de cerías frivolidades cometidas antes da
sua consagração ao diaconato. Parece que a explicação
se acha na falta de preparo e experiência.
A tradição, aceita por alguns biógrafos, procura
preencher a lacuna com a história da demora de Pa-
trício por trinta anos na França, onde se diz, foi con-
sagrado missionário por Germano, bispo de Auxerre,
198 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

seu protetor, Esta narrativa é plausivel. Pelo menos


explica a longa demora entre a chamada e a iniciação
do trabalho missionário, como também a sua predile-
ção, pela vida inonástica, tão estranha aos cristãos bri-
tânicos da época, mas bem desenvolvida entre os cris-
tãos franceses.
Porém» nem nas primitivas tradições, nem nos pró-
prios escritos de Patrício, nada se encontra da suposta
comissão do Papa Celestino ao trabalho missionário
entre os irlandeses. A "Confissão" é uma apologia, na
qual o autor justifica a sua obra missionária na Irlan-
da, contra os críticos que o acusam de falta de prepa-
ro, que em parte êle admite. Que seria mais fácil e
mais concludente para êle do que ter respondido aos
críticos que tinha sido comissionado pelo Papa, prova
da sua idoneidade? Pelo contrário, Patrício justifica a
sua ação de duas maneiras: primeiro, que tinha sido
chamado por Deus; e segundo, que Deus tinha aben-
çoado os seus labores; e nem uma palavra quanto â
aprovação eclesiástica.
Neander (7) argumenta contra esta tradição que,
se Patrício fôsse legado papal, naturalmente a igreja
irlandesa se sentiria dependente da igreja romana, fato
que a história subseqüente não sustenta, Diz êle que
havia na igreja irlandesa "um espirito de independên-
cia semelhante ao da antiga igreja britânica, que re-
sistiu tenazmente ao jugo das ordenanças romanas.
Acha-sq subseqüentemente entre os irlandeses muito
mais semelhança com os costumes eclesiásticos britâ-
nicos do que com os romanos. Isto prova que a ori-
gem da igreja irlandesa foi independente de Roma, e
deve ser atribuída apenas ao povo britânico"(8).
(7) General History of the Christian Religion and Church,
Boston, 1857, Vai. II, pg. 123.
(8) Idem, p g . 123.
11)5
MISSÕES NO PERÍODO 195

Há, diz "Vcdder ( D ), outra objeção talvez mais concludente


contra esía fábula da comissão papal do que o silêncio de P a t r í -
cio; é um anacronismo completo, pois esta suposição inclui BQ
quinto século latos da história subseqüente. Os bispos de Roma
nesse tempo nem pretendiam e nem tentaram exercer tal auto-
ridade que a lenda implica. Para o papa Celestino comissionar
Paládio, seu conlieciido e íntimo, era uma coisa; para Patrício su-
plicar a aprovação de Celestino e outra coisa bem diferente. T a l
ideia da supremacia de noma não existia na Bretanha -nesse tem-
po e nem por muito tempo depois da missão de Agostinho, Nem
Columba nem Ctíumbano pediram autoridade papal para suas
missões.

Pouco dizem os documentos genuínos sobre a obra


missionária de Patrício. O mais que se pode dizer é
que trabalhou durante muitos anos com zelo e êxito
admiráveis. Suas declarações são vagas e gerais, como
atestam os seguintes exemplos: " C o m o é que na Irlanda
aqueles que nunca tiveram conhecimento de Deus, «
até agora sempre têm adorado ídolos e coisas imun-
das — ultimamente têm-se tornado povo do Senhor e
são chamados Filhos de Deus? Filhos de Scots (10) e
os filhos dos chefes têm se tornado frades e vigários
de Cristo". Noutro lugar ele fala de "uma bendita se-
nhora irlandesa, de nascimento nobre, mui linda, adul-
ta", que ele batizou, procurando-o dias depois, e con-
fessando que havia tido uma chamada divina para ser
Virgem de Cristo. A tradição dá-lhe o nome de Santa
Bridget, mas o seu nome nem é mencionado por Patrí-
cio, e é este o único incidente pessoal da sua obra mis-
sionária por ele narrada.
Patricio terminou a sua carreira deixando não so-
mente a Irlanda quase inteiramente evangelizada, mas
deixando também reputação de santidade de vida e de
poder espiritual a ponto de ser considerado um dos
(9) Christian Epoch-Makers, D. 73.
(10) Até o século onze Scotia e Scoti significavam Irlanda e
irlandeses.
190 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

maiores missionários. Não se deve supor que todos os


que aceitaram o Cristianismo por seu intermédio, e re-
ceberam o batismo de suas mãos, experimentaram re-
almente a graça regeneradora. E' provável que em
muitos casos a defesa sincera de Patricio, mostrando
ser o Cristianismo religião mais nobre e sublime que
o paganismo, persuadisse muitos déles, e com êles os
seus seguidores a adotarem formalmente o Cristianismo
sem transformação alguma de caráter,
No entanto a falta não estava com o evangelho por
êle pregado e praticado. Felizmente pode-se deduzir
da sua " Confissão" a sua teologia, onde êle nos dá o
seu credo que, no conjunto, é mais bíblico do que o
credo níceno. Cria firmemente numa mudança radi-
cal, operada no coração pelo Espirito Sanlo, como re-
sultado da fé pessoal em Cristo. Não é, portanto, sur-
prêsa descobrir nos documentos que escreveu que êle
batizava somente crentes adultos. Em nenhuma parte
êle menciona o batismo de crianças. Que èle batizava
por imersão, prática geral nessa época, é atestado pe-
ias constantes referências às fontes, jioços e rios onde
batizava seus conversos. Três ordens no ministério são
mencionadas, mostrando o inicio do episcopado que
aparece mais tarde. Mas o bispo britânico era ainda
pastor de uma sò igreja. Anos depois S. Bernardo se
queixava da "frouxidão escandalosa" na organização
eclesiástica irlandesa onde "quase todas as igrejas têm
o seu bispo/' A vida monàstica estava no começo, ha-
vendo bom número de frades e freiras, ainda que não
fossem congregados em mosteiros. O celibato era vo-
luntário. Em nenhuma parte dos escritos de Patrício
há referência à autoridade da tradição, da igreja, do
concilio ou do papa, mas sempre das Escrituras. Nos
seus breves escritos há pelo menos cento e treze cita-
ções da Bíblia. Somente séculos depois foi que os cris-
11)5
MISSÕES N O3PERÍODO11)5

tâos irlandeses aceitaram as doutrinas do purgatório,


invocações dos santos, culto à Virgem e submissão â
autoridade papal.
O caráter de Patrício brilha através das fábulas
nebulosas acumuladas em tempos posteriores. Possuía
o temperamento impetuoso .da sua raça; era uma alma
ardente que o perigo não podia atemorizar nem difi-
culdades podiam desanimar; uma alma ardente de
amor ao Senhor Jesus, que o tinha chamado para pre-
gar a liberdade do evangelho aos seus antigos raptores.
A igreja de Roma tem perpetrado muitos furtos,
mas nenhum, depois de Pedro, é mais audacioso do que
o de Patricio, que hoje figura no calendário dos san-
tos da igreja.
2) Columba. A Irlanda evangelizada, por sua vez,
se tornou evangelizadora. Columba nasceu no ano 521,
não mais de cinqüenta anos depois da morte de Patricio,
da família real da Irlanda. Nesse tempo já havia sido
instituído no país a prática do batismo infantil, pois
sabe-se que ele foi batizado na infância na igreja do
Douglas. Educou-se na escola monástica de Clonard,
célebre naquele tempo, e logo depois internou-se no
mosteiro. A vida que passou na mocídade estava longe
de ser a de um santo. Dificilmente escapou a excomu-
nhão por ter tomado parte numa carnificina entre as
tribos. Alguns historiadores até afirmam que chegou
a ser excomungado por um sinodo irlandês por ser ho-
mem de sangue.
Parece que dessa data em diante êle se corrigiu e
começou a dedicar-se aos deveres religiosos, e em cerca
do ano 563 embarcou com alguns companheiros para a
Ilha de lona, onde fundou um mosteiro e entrou na
dura tarefa de converter os pictos, povo pagão que
habitava o norte da Escócia.
A vida monástica naquele tempo não consistia ape-
190
190 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

nas na meditação e penitências. O mosteiro era uma


comunidade cristã, localizada no meio dos pagãos, para
ensinar-lhes o que é o Cristianismo e servir de centro
missionário.
Os companheiros de Columba, cêrca de duzentos,
se entregaram com entusiasmo ao trabalho evangéli-
co, e, apesar de tenaz oposição, alcançaram bom êxito.
O rei Bruce se converteu no ano de 565 e o seu exem-
plo foi logo seguido pela maioria da tribo. Antes de
morrer, Columba teve a satisfação de ver um bom nú-
mero de igrejas espalhadas por toda a Escócia,
3) Coliimbano, também irlandês, nasceu em 543.
Educado em Bangor, num dos mais célebres colégios
monásticos do seu tempo, logo sentiu o mesmo desejo
cia evangelização dos seus conterrâneos. Gastou toda a
vicia evangelizando e fundando igrejas na Burgúndia,
Suiça e norte da Itália. Ao mesmo tempo que desen-
volvia tôdas as suas energias nestas regiões, a sua in-
fluência se estendia pela região do Reno, Alemanha e
Países Baixos, provocando um desperfcamento geral.
Infelizmente êste movimento não foi duradouro, Os
governadores carlovingios associados aos missionários
romanos, no tentame de levar todos os povos a pensa-
rem como o papa, fizeram calar as consciências e de
alguma forma suprimiram êsse movimento. Há, porém,
provas bastante evidentes, que forçam a crer que o mo-
vimento não foi inteiramente esmagado pela igreja ro-
mana. Apenas ficou eclipsado por alguns anos para
ressurgir mais tarde nos partidos evangélicos da idade
média. Ao toque da primeira trombeta evangélica de
1517. surgiram de tôdas as partes cristãos evangélicos
que em tudo se assemelhavam aos primitivos cristãos.
Não é preciso argumentar a razão por que assim se
npresentavam para a luta que se ia iniciar, quase per-
feitamente organizados em igrejas e com um corpo de
MISSÕES NO PERÍODO 203

doutrinas baseadas em o Novo Testamento. O enorme


braço do papado só tinha conseguido que as bocas se
calassem por um "pouco de tempo," até que o momento
fôsse oportuno para se manifestarem.
As doutrinas, práticas e métodos missionários da
Irlanda e Escócia cristãs do quinto, sexto e sétimo sé-
culos, representavam o tipo da >vída cristã primitiva,
muito melhor que o da Igreja Romana do tempo de
Gregório, o Grande. Todavia, eram de alguma forma
doutrinas, práticas e métodos mais propriamente de
acordo com o quarto século do que com o tempo dos
apóstolos.
Enquanto os escoceses e irlandeses rejeitavam a
hierarquia romana, os seus chefes como Patricio, Colum-
ba e Columbano eram autocráticos e arbitrários no mais
alto grau. Parece que não tinham o menor conheci-
mento da mariolatria e da adoração dos santos em tô-
das as suas formas, nem tão pouco, de qualquer espécie
de idolatria. Tinham, porém, idéias a respeito das or-
denanças cristãs parecidas com as do terceiro ou quarto
século.

I I I . MISSÕES A R I A N A S E P A P A I S

1. Métodos Missionários

Chega-se agora a um período de grande atividade


missionária. Logo ao alvorecer do período, os arianos
restantes foram extintos, absorvidos uns pelo maome-
tismo, outros pela ortodoxia romana, de modo que o
Cristianismo ocidental ficou quase inteiramente uni-
do. A diplomacia astuta do papado bem cedo desco-
briu nas missões um meio fácil de estender a sua in-
fluência.
Dai a larga difusão do método missionário que se
acha neste período, usado pelo papa,
204 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

As missões recebiam sustento do próprio papa, dos


bispos e dos reis. A sua ação procedeu-se de cima para
baixo, começando na mais alta escala social da época
e íemmando na mais baixa camada social. Dos novos
métodos adotados pelo papado para extensão do seu
domínio, resultou uma sólida e potente organização
eclesiástica.
As conversões conseguidas pelos esforços missio-
nários foram muitas, porém superficiais, e na quase
totalidade, determinadas por pretensões ou circunstân-
cias políticas. O resultado foi a elaboração de nm Cris-
tianismo arlificíoso bem diferente do primitivo: o
Cristianismo papal do sétimo século e dos séculos su-
cessivos.
Em todos os casos as missões eram esgalhos que
partiam da cadeira papal.

2. Nas margem do Danúbio — Ulfilas


0 que salvou a invasão dos bárbaros no império e
u queda de Roma de uma catástrofe foi terem os go-
dos, mesmo antes da conquista, deixado, em parte, de
ser bárbaros, graças à influência civilizadora do Cristia-
nismo, Èste resultado benéfico foi em grande parte
devido à influência e a vida de um só homem.
És te homem foi Ulfilas, de quem, infelizmente
pouco se sabe, mas do êxito da sua missão muito sa-
bemos.
Nasceu em cêrca de 311, de uma família da Capa-
dõcia e na infância foi raptado pelos godos, de quem
recebeu o nome de Wulfila, raposínho. Ainda moço,
talvez pelo ano 332, foi enviado com outros patrícios
numa embaixada à corte imperial de Constanlinopla,
onde passou alguns anos, durante os quais aperfeiçoou
a educação e converteu-se sob a pregação dos arianos.
No ano de 341, com a idade de trinta anos, Ulfilas
11)5
MISSÕES NO3PERÍODO11)5

foi consagrado bispo missionário por um grupo de bis-


pos arianos em Antioquia. Foi êle quem levou o Cris-
tianismo além do Danúbio aos visigodos, antes de êles
penetrarem no império. Para se livrar da tenaz per-
seguição promovida por Atanàsio, rei dos visigodos,
Ulíilas conseguiu permissão do imperador Constâncio
(em cerca de 350) para atraveSs&r com os conversos o
Danúbio. Por se lerem estabelecido em Moésia, perto
de Nicájíolis, e por ter sido êle líder do povo deram-lhe
o titulo de " O Moisés dos godos",
Continuando a atividade missionária, antes da sua
morte em 381, Ulfilas teve o prazer de assistir à con-
versão do rei Atanásio, seu antigo perseguidor, cujo
exemplo foi seguido por quase toda a nação, E' raro
um missionário ter o privilégio de ver tão grandes re-
sultados cio seu ministério; geralmente entre a semea-
dura e a ceifa medeiam gerações. E o brilho dêste tri-
unfo não está escurecido pelo uso de métodos violen-
tos ou questionáveis. Nações têm sido convertidas c
batizadas a ponta de espada, ou por ordem do seu mo-
narca. O brado de Maomé, " o cora o ou a morte", que
infelizmente se tem ouvido mais dc uma vez na his-
tória do Cristianismo, não houve na conversão dos go-
dos. Foi conseguida pelo poder inerente do evangelho
e pelo fervor e dedicação de Ulfilas em face de grande
oposição e dificuldades.
Não contribuiu pouco para esta transformação a
Bíblia por êle traduzida. Mas antes de traduzir as Es-
crituras o missionário teve que reduzir a escrito a lín-
gua dos godos, pois nada de literatura possuíam. F o i
a Bíblia de Ulfilas que deu o começo à rica literatura
germânica. Tanto os godos como os vândalos levaram
cópias desta Biblia por toda a Europa por onde anda-
ram. Os vândalos a levaram á Espanha e à África.
Com certeza Ulfilas foi auxiliado por outros cujos
207
202 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

nomes não chegaram a nós, pois ninguém sozinho pode


converter "uma nação num dia",
Como foi dito de outros movimentos missionários,
seria erro grave supor qüe a conversão do povo godo
fosse completa. Houve transformações individuais, ope-
radas pelo Espirito divino, mas, sem dúvida, milhares
apenas aceitaram o Cristianismo formalmente. Mas
nem por isso deixou o Cristianismo de elevar os ideais
do povo c preparar o caminho para a civilização.
riais tarde estes arianos foram encaminhados para
o aprisco da igreja de Roma.

V 3. Na Inglaterra — Agostinho

A invasão no oeste do Império Romano f o i apenas


um episódio, e talvez não fôsse o mais importante na
mii.iy.eão das tribos teutônicas para a Europa. Houve
outras, de que falam pouco os historiadores, que tive-
ram alcance não menos importante, Talvez a fase
mais importante da migração dos teutões, não
fosse a sua conquista do império, mas a sua ocupação
permanente do território do norte da Europa entre o
Reno e o Danúbio e que se estende até a zona ártica.
Enquanto as tribos que penetraram nas fronteiras do
império se civilizaram e se cristianizaram, as que ocu-
param o norte permaneceram pagas e bárbaras.
Desta conquista teutónica, a Bretanha ficou livre
por alguns séculos, devido mais a seu isolamento do
que á capacidade do povo céltico de se defender contra
o inimigo. Quando, no principio do quinto século, o
império ocidental estava prestes a cair, as legiões ro-
manas foram retiradas da Bretanha, e os romanos que
ficaram foram amalgamados com os habitantes da
ilha-. Com a retirada das legiões os bretões se deram
facilmente à pilhagem. As tribos da Escandinávia e
das costas do que hoje se chama Holanda ou Alemanha
MISSÕES N O3PERÍODO11)5
11)5

do norte, não tardaram em aproveitar a fraqueza dos


bretões.
Os jutos se firmaram na parte central da ilha; os
saxões na parle do sul e os anglos no norte e oeste. En-
quanto os godos e vândalos gradualmente se amalga-
maram coin os romanos, adotando seus costumes, lin-
gua, civilização e religião, os bretões se refugiaram em
Gales e na Escócia, onde preservaram seus costumes,
língua e religião, deixando o que é hoje a Inglaterra,
aos invasores; e, desse modo desapareceram a raça,
a lingua e a religião britânicas e o sul do pais se tor-
nou Angle-land ou England. A Inglaterra deixou de ser
célíica e tornou-se leutônica, A mesma coisa se deu
mais tarde na conquista da America, onde a civilização
c a religião indígenas foram absorvidas pelas euro-
péias.
Como já se notou os bretões eram cristãos e civi-
lizados; ao passo que os teutões que o suplantaram
eram pagãos e bárbaros. Adoravam as divindades dos
normandos primitivos cujos nomes são perpetuados
nos nomes dos dias da semana (11) - Era esta a condi-
ção da Inglaterra quando chegou o primeiro missioná-
rio de Roma.
O primeiro homem que concebeu a idéia de evan-
gelizar os ingleses foi um fsade do mosteiro de S, An-
dré de Roma, que mais tarde foi elevado à alta posi-
ção de bispo de Roma, conhecido na história com o
nome de Gregório, o Grande, o primeiro frade que ocu-
pGu a cadeira papal. Beda na sua História Eclesiástica
narra a seguinte anedota que pode ter sido provável:
Tendo alguns traficantes chegado a Roma, fizeram uma ex-
posição da sua mercadoria no mercado e muita gente .foi apreciá-

(11) Tuesday — T i w s day; sendo T i w sinônimo do grego


Zeus. Wednesday n Wodn's day: Thursday, T h o r s day: Friday,
Frijia's day, sendo F n g a a forma teutõmca de Venus.
208 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

la, inclusive Gregório. Entre outras coisas oferecidas a venda se


achavam uns lindos rapazes .brancos de cabelos lourcs. Vendo-
os, èle perguntou de que pais v i e r a m . Responderam-lhe que da
ilha britânica, cujos habitantes eram todos louros. Perguntou-
lhes Lambem se eram cristãos, e foi informado de que eram
pagííos. Exclamou o diácono suspirando; "Que pena que o au-
ior da;- trevas esteja de posse de homens tão belos; e que sendo
de semblantes tão graciosos, suas mentes estejam tão despreveni-
das da gnu;a interior." Tornando a perguntar o nome da nação
fia su;i procedência, fes informado de que são chamados anglos.
" T ê m razão", replicou èle, "pois têm o rosto de anjos, e merecem
ser coerdeiros dos anjos do céu. Qual será, porventura o nome
da província de onde vieram?'' òle perguntou. Hesponderam-lhe
que os nativos da província chamavam-se Detri. "São de verda-
de De im", (disse ele, "retirados da ira e chamados a mercê de
Cristo. Como se chama o rei da província?" "informado de que
se chamava Aela, èle, fazendo jogo de palavras, disse: " A l e l u i a :
i' louvor de Deus, o Criador, precisa ser cantado naquelas par-
le.-"'.

Dirigindo-se ao bispo de Roma, Gregório pediu li-


cença para ir como missionário enviado aos ingleses.
Di'icm que o bispo anuiu, porém, o povo de Roma pe-
diu com tantas lágrimas a conservação d 0 ilustre diá-
cono na cidade, que o bispo deixou-se vencer. Gregó-
rio ficou em Roma e mais tarde foi eleito bispo,
No ano de 596 Gregório mandou Agostinho (12),
seu discípulo, com quarenta companheiros á Bretanha.
Chegando ás costas de Kent no ano seguinte, foram
bem recebidos pelo rei Etelbcrto, o chefe mais poderoso
dos anglo-saxões. Contrário ao costume de seu povo,
linha êle se casado com uma franca, por nome Berta,
que era cristã, o que, provavelmente explica porque os
missionários foram tão prontamente recebidos, O rei,
julgando que eram encantadores e julgando que fora
de casa o seu encantamento seria menos hipnótico, en-

(12) Não se deve confundir ôste Agostinho com o célebre


bispo de Hipona, mencionado em conexidade com a discussão do
fegundo período.
11)5
MISSÕES NO3PERÍODO11)5

controu-os ao ar livre. Agostinho, por meio dum intér-


prete, pregou-lhe o evangelho, ao qual, diz a tradição,
o rei respondeu:

Stm? palavras e promessas me agradam, mas são novas e es-


tranhas, e eu não as posso aceitar logo, nem tão pouco abandonar
f.uido o que OÍ meus pais e lodo o ptlvò inglês tôm aceitado por
tanto tempo. Vejo, porém que vieram de longe para nos expor
o que julgam ser a verdade; portanto podem ficar no país, e
eu Mies fornecerei casa e comida; e podem pregar ao meu povo,
e se alguém aceitar as suas doutrinas, não os impedirei.

Os missionários ficaram hospedados na cidade real


de Cantuária, e tiveram plena liberdade de pregar ao
povo, Foi narrada páginas atrás, a história da conver-
são de Etelberto, seguida pela cristianização, ainda que
superficial, dos saxões, como também o modo anti-cris-
tão por que os antigos crentes britânicos, agora refu-
giados em Gales, Escócia e Irlanda, foram tratados por
Agostinho e seus sucessores.
Depois t i o batismo do rei dos anglo-saxões, Agos-
tinho regressou á França onde foi consagrado bispo.
Na volta para a Bretanha, com o auxilio do rei, recons-
truiu a igreja de Cantuária, e, com a aprovação de
Gregório foi consagrado primeiro arcebispo da Ingla-
terra. Morreu na cidade de Cantuária- no ano de 604.
Schaff diz que os talentos e o caráter de Agostinho
não passaram de medíocres, e que êle em nada se com-
para com o bispo de Hipona; no entanto, f o i bem equi-
pado para o trabalho missionário, e o êxito perma-
nente da sua missão "tende a cingir a sua fronte com au-
réola de grandeza emprestada."
B' verdade que Agostinho, o frade, não era teó-
logo nem literato; se, porém fôr julgado pelo que con-
seguiu, teremos de colocá-lo entre os grandes pioneiros
da civilização. Transformar os costumes e a vida de
210 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

um povo, talvez seja tão importante como escrever 41A


cidade de Deus", (13)
O que caracterizou a sua atuação foi um espirito
de inteira obediência ao seu superior de principio até
o f i m . O papado teve raros servidores tão leais e sub-
missos, e talvez, só Bonifácio excedesse a Agostinho em
subserviência.

4. Em Frisa — Wilibrord •
Do sétimo até o nono século a Irlanda foi o centro de
atividade missionária, porém a igreja papal estabelecida
por Agostinho na Inglaterra não andou muito a-tr^s. O
espirito de aventura que inspirou os anglos e saxoes a
deixarem o continente e se firmarem na (Bretanha, in-
flamou a religião dos ingleses; e talvez fosse este es-
pirito de tanto zelo pela causa de Cristo que os tornou
os missionários incansáveis da época.
Ainda que a Inglaterra já tivesse sido nominal-
mente cristianízada, por alguns séculos não chegou ao
nível de cultura e piedade atingidas em outras partes
da Buropa e especialmente na Irlanda. Os mosteiros
dêste pais gozavam de bom conceito no sétimo século.
Os jovens ingleses que almejavam preparo melhor do
que podiam obter no seu pais, internavam-se nos mos-
teiros irlandeses. Alguns destes emheberam o espirito
missionário que levou Columba aos pictos e Columbano
aos burgundos. Entre outros foi o presbítero Wilibrord.
Debaixo da proteção de Pepino e amparado pela
sé de Roma começou Wilibrord o seu trabalho entre
os frísios em 690. Nomeado ax*cebispo de Utrecht em
696, teve o gosto de ver convertidos antes de sua morte
os frísios meridionais, apesar da oposição continua do
seu príncipe. O bom êxito de Wilibrord e dos seus su-

Cí3> üma cias maiores obras de S. Agcslinho, bispo fde H i -


pona.
11)5
MISSÕES N O3PERÍODO11)5

cessores f o i grandemente exterior, aparente e material,


como prova a explosão constante de revoltas contra as
autoridades civis e eclesiásticas. Durante gerações su-
cessivas os frisios foram acres antagonistas do govêrno
franco e do Cristianismo político. Em 734 Carlos Mar-
tel subjugou os frisios independentes, destruiu os san-
tuários pagãos, impondo-lhes ow Cristianismo. Apôs a
morte de Wilibrord houve uma debandada gerai para
o paganismo.

5. Na Alemanha — Bonifácio

Bom número de missionários tinha pregado o evan-


gelho em várias partes da Alemanha antes de 721. Essa
atividade missionária tinha sido esporádica e, em
grande parte, sem autoridade e auxilio eclesiásticos.
Dois caminhos estavam abertos para a evangelização
cia Alemanha. Primeiro, continuar o trabalho já co-
meçado e permitir que os missionários voluntariamente
pudessem entrar no campo, cada qual agindo indepen-
dentemente, seguindo seu próprio plano, e dependendo
da operação divina no coração dos homens para trans-
formar-lhes a vida. Desta maneira o Cristianismo
pouco a pouco, como fermento, levedaria toda a mas-
sa. Segundo, enviar alguém com excepcional energia
e capacidade para organizar uma igreja germânica â
moda da de Roma e submissa à autoridade desta. Em
outras palavras: seguir o plano apostólico ou o plano
romano. Seguindo aquele, que é mais de acordo com
o espirito do Cristianismo, os pagãos do norte seriam
evangel iz a dos com tanto êxito, e, talvez, tão rapida-
mente quanto os do Império Romano na época apostó-
lica. Seguindo êste, que é mais de acordo com o espi-
rito eclesiástico, garantiria, pensavam êles, mais uni-
formidade. Infelizmente foi o segundo plano adotado.
Satanás mostrou aos papas todos os reinos do mundo e
212 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

a sua glória, e disse-lhes: " T u d o isto vos darei, se pros-


trados, me adorardes." Os papas aceitaram a propos-
ta. Pros taram-se e adoraram a< Satanás, e por algum
tempo os reinos do mundo e a sua glória foram deles.
Nesta conexão não se pode resistir â tentação de
intercalar um parágrafo de H . G. Wells (14):

No quarto século já -prevaleciam as idéias do domínio ecle-


siástico universal. S. Agostinho, cidasdão de Hipona no norte dn
Africa, que escreveu, entre os anos de 354 a 430, dá expressão a
esta crescente idéia política da igreja no seu livro A Cidade de
Deus, que sugere a possibilidade de organizar o mundo num
Reino dcs Céus teocrático. A cidade, segundo Agostinho, se-
ria "uma sociedade espiritual dcs fiéis predestinados 11 , O passo,
porém, desta idéia á sua aplicação política não era muito largo.
A igreja havia de ser a ditadora de tôdas as nações ido mundo, a
autoridade divina sôbre uma liga de nações. Mais tarde essaa
idéias se desenvolveram numa política definida. A o passo que
as raças bárbaras se localizaram e se tornaram cristãs, os papas
pretenderam a s : berania sôbre os fiéis. Dentro de alguns séculos
os papas se tornaram em tese e até certo ponto, em prática, o
sumo-sacerdole, o censor, o juiz, e monarca divino da cristanda-
de; fua influência se estendia no Ocidente muito além idas fron-
teiras do velho império, à Irlanda, Noruega, Suécia e Alemanha.
P o r mais de mil anos prevaleceu na Europa a idéia da u n i f i c a -
ção da cris ( :indadi\ como uma espécie de vasta anfictionia, cujos
membros, mesmo em tempo de guerra, seriam restringidos em ex-
cesso pcia idéia duma fraternidade comum e lealdade comum à
igreja. A história da Europa do quinlo ao décimo século f o i em
grande parle a da ruína desta nobre idéia de um govêrno divino
universal pôs to em prãtica.

Que o método eclesiástico da evangelização da Ale-


manha fôsse seguido ao invés do apostólico f o i em gran-
de parte devido ao fato de ter no momento oportuno apa-
recido o homem talhado para a grande tarefa.
"Winfrith, nascido em Devenshire, Inglaterra, no
f i m do sétimo século, descendia de boa família. Os
pais, pôslo que crentes, destinaram-no a uma vocação
(14) The Outline âf ãistoru, pg. 525.
11)5
MISSÕES N O3PERÍODO11)5

secular. O rapaz, entretanto, mostrou predileção pela


vida religiosa, muito a contra-gosto do pai. Èste, po-
rem, depois de muita oposição e de sofrer uma triste
experiência que o humilhou (alguns dizem que foi do-
ença grave, outros a perda dos bens), deu permissão
ao filho para internar-se no mosteiro de Exter, To-
mando o nome de Bonifácio, Winfrith prosseguiu os
estudos em diversos conventos ingleses e na idade de
trinta anos foi consagrado sacerdote.
Bonifácio, o apóstolo da Alemanha, iniciou o seu
trabalho em 716. Sua principal preocupação f o i a der-
rota da missão céltica, e a revivificação e organização
do Cristianismo sujeito a Roma. A conversão dos pa-
gãos tinha para ele valor secundário. Pensava que o
método mais favorável e rápido para conseguir a con-
versão dos povos pagãos, era levá-los a obediência aos
princípios católicos, obrígando-os ao mesmo tempo a
abandonarem tôdas as práticas idolatras e a aceitarem
nominalmente tôdas as formas do Cristianismo; ainda
que para conseguir isto tivesse de recorrer a meios su-
tis e artificiosos. Depois de ter passado algum tempo
pregando entre os frísios, foi em 723 consagrado mis-
sionário papal, pelo bispo e pelo primaz da Alemanha,
isto, porém, só depois de ter jurado absoluta fidelidade
e homenagem ao Papa. Dizem que houve dúvidas
quanto à sua ortodoxia, que foi removida somente pela
apresentação da seguinte confissão:

Eu, Bonifácio, bispo pela graça de Deus, prometo-te, bendito


Pedro, chefe dos apóstolos, e a ti vigário, Papa Gregório, e a teus
sucessores, que, com o auxílio de Deus, proclamarei a unidade
e pureza da santa f é católica; e permanecerei na unidade daquela
•fé; que de maneira nenhuma concordarei com coisa alguma con-
trária á unidade da igreja universal, mas em tudo manterei minha
fé pura e a minha cooperação constante contigo, e, em benefí-
cio da tua igreja, á qual foi entregue por Deus o poder de ligar
e desligar, em benefício do teu vigário, já rneneíonad-o e os seus
214 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

sucessores. E, quando achar que o procedimento dos superiores


das igrejas contradizem os decretos antigos e as ordenanças dos
padres, não terei mais comunhão ou íraternidae com ôtes, mas
pelo contrário, se puder obstá-los, obstã-los-ei; e se não, f i e l -
mente os denunciarei ao meu senhor apostólico. Se, porém (ja-
mais queira Deu.í que aconteça) eu fizer outra ccisa qualquer,
por pensamento ou ato, contrária a esta minha profissão, seja
eu culpado do jufzo eterno e sofra a pena de Ananias e Safira.
Êste breve juramento tenho escrito com a minha própria mão,
e sôbre o mais sagrado corpo do bendito Pedro, com-o prescrito,
sendo Deus a minha testemunha e juiz, tenho tomado êste j u r a -
mento, que prometo cumprir { " )

E cumpriu.
Passou êle o ano de 724 em Hesse subjugando os pa-
gãos escoceses para organizar sôbre suas práticas idola-
tras uma igreja submissa ao Papa; de 725-735, ocupou-se
com a mesma tarefa na Turingía. Os anos de 735-741
não lhe foram muito favoráveis. Depois de lutar com
uma tenacidade assombrosa, afim de fundar na Ba-
vária, uma igreja sujeita a Roma, terminou êste
período sem nada ter conseguido, Mais tarde organi-
zou a igreja dos francos sujeita a Roma. Em 742 a
Austrásia, e em 744 a Nèustria, adotaram por meio de
sinodos organizados em diversas partes, as suas idéias,
as quais foram depois gradualmente postas em prática.
Morreu êste célebre monge em 755 quando ia em
viagem missionária para o meio dosírãncos. Nenhum
outro legou ao absolutísmo papal tão grande soma de
esforços e dedicação, assim como nenhum outro lhe
prestou tão servil submissão. A grandeza dos ex-
pedientes e da empresa deste missionário anglo-
saxão é incontestável. Os seus atos eram caracteriza-
dos por uma vontade de ferro e sobretudo por uma
cega e fanática obediência a 0 Papa. Que êle foi um

(15) Migne, "Latin PatrologyLXXXIX, 803. Citação de


Vedder, Christian Epoch Makers, pg-. 110.
11)5
MISSÕES N O3PERÍODO11)5

estadista eclesiástico do melhor quilate e um requin-


tado papista, intolerante e fanático, cujo esforço se_ di-
rigia a um só ponto — o engrandecimento do domínio
do Papa, é hoje reconhecido por todos os historiadores
de mérito e isto se encontra claramente demonstrado
nos escritos de seus contemporâneos. E' questionável
que algum papa ienha feito taitto para o progresso do
absolutismo papal como êsíe monge, a quem a Igreja
Católica deve grande parte do monumento hierárquico.
Inegavelmente as circunstâncias eram propícias
nesse tempo à completa cristianização politico-eclesi-
ásiica da Alemanha; todavia só um homem essencial-
mente genial poderia levar a cabo tão grande tarefa e
ter operado tão extraordinárias transformações como
as que se observaram no período de 732-755.
Conquanto se reconheça que Bonifácio tenha sido
trabalhador incansável dentro dos seus princípios, re-
conhece-se também que ele e outros da sua estirpe, não
consideraram os meios para alcançar os fins. Os pre-
dicados que devem acompanhar uma vida realmente
cristã, foram por êle postos à margem. Èle mesmo es-
t'ava longe de ser o verdadeiro tipo de cristão evangé-
lico .

6. Na Escandinávia — Ansgar

Ainda que a história da missão de Ansgar per-


tença propriamente ao quarto período, julgamos por
bem incluí-la neste, por ser a culminação dos grandes
empreendimentos missionários de Roma, entre os bár-
baros.
Os normandos, que neste período pilharam as cos-
tas européias até a Itália, estabelecendo-se no norte da
França, e invadindo a Inglaterra, modificaram dêste
n^odo a língua inglêsa e a raça e formaram uma das
três principais tribos hoje conhecidas pelo nome geral
216 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

de escandinavos. Eram de raça teutôníca e nos iempos


pré-históricos confundiam-se com os alemães, os an-
gles e os holandeses. Antecedendo esse tempo fixaram-se
no que é hoje conhecido por Noruega, Suécia e Dina-
marca.
A religião desse povo robusto, enérgico e cruel, era
uma forma de culto prestado á natureza.
Naturalmente a sua evangelízação foi protelada
até depois da crístianização do resto da Europa. Che-
gou a sua vez no principio do nono século.
Numa visita ao imperador Luis, o Pio, em 826,
Haroldo, rei dos dinamarqueses e sua esposa foram
batizados com grande pompa e também o foram os
corte:<ãos que os acompanhavam. Na volta para sua
terra levou consigo dois monges por nome de Ansgar e
Antberto. Èste, adoecendo antes de conseguir coisa no-
tável, voltou para França.
Ansgar, que nascera na diocese de Amiens, Fran-
ça, em 801, entrou cedo numa das comunidades monás-
ticas, que, como já se notou eram nesse tempo uma
espécie de sociedade cooperativa, organizada para de-
senvolver a agricultura e a industria tanto quanto para
a educação religiosa. Ali o jovem obteve as duras ex-
periências que o prepararam para a vida missionária
entre um povo pouco afastado do barbarismo. Parece
que foi celibatário consistente, assíduo estudante das
Escrituras e homem de vida exemplar, Se todos os
monges da Idade Média tivessem sido do caráter de
Ansgar, a história do monaquismo seria bem outra.
Os historiadores católicos atribuem-lhe unia infinidade
de milagres, mas êle nunca fingiu tal poder. A um
amigo intimo que lhe atribuiu esse poder milagroso,-o
missionário respondeu: "Se me considerares digno de
tal honra, do Senhor pediria que me desse poder para
operar apenas um milagre, que Èle, pela sua graça, fi-
MISSÕES N O PERÍODO 217

zesse de mim um homem bom" (16). A sua conexão


com Roma, ao seu ver, era uma necessidade, e conser-
vou-se isento dos erros mais repugnantes; mesmo a
igreja de Roma de então, não era tão corrompida como
se tornou nos tempos subseqüentes.
Por ter abraçado o Cristianismo e acolhido os mis-
sionários, o rei dos dinamarqueses perdeu o apôio do
seu povo e dois anos depois da chegada de Ansgar, foi
deposto e teve que fugir para a França. Achando a sua
vida em perigo, o missionário mudou-se para a Suécia,
onde batizou algumas pessoas e, sem duvida, teria al-
cançado bom êxito se tivesse permanecido ali, mas teve
a convicção de que devia voltar ao seu campo primi-
tivo. Depois de um ano e meio voltou â França e con-
seguiu que o imperador fundasse uma metrópole em
Hamburgo, como centro missionário. Em cêrca de 829
visitou Roma pela primeira e última vez e foi consa-
grado pelo Papa, arcebispo das regiões do norte. Em
853 Ansgar pela segunda vez visitou a Suécia conse-
guindo ganhar o apôio do rei e da sua corte. Voltando
ao seu campo de ação, conseguiu firmar o trabalho.
Trinta e quatro anos consagrou-se ao trabalho missio-
nário, finando-se em fevereiro de 865.
Ainda que o êxito da sua missão não fosse tão es-
petacular como as de Agostinho e Bonifácio, no en-
tanto foi seguro e lento. Cabia a outros levantar nos
alicerces por êle estabelecidos a estrutura do Cristia-
nismo Católico Romano.
A Dinamarca e a Suécia dentro de dois séculos se
tornaram nominalmente cristãs. A cristianização da
Noruega foi começada um século depois da morte de
Ansgar, Os normandos levaram o Cristianismo á Is-
lândia e à Groenlândia, e, dizem alguns que o levaram

(16) Vedder, Christian Epoch Makers, p . 135.


2X8 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

também à América do Norte até o lugar que é hoje


Nova York.
A significação da atividade de Ansgar é que êle
virtualmente completou o programa missionário de
Gregório, o Grande. A Europa central e o norte, com
exceção de grupos relativamente pequenos de evangé-
licos espalhados aqui e acolá, já estava sob a denomi-
nação da sé de Roma. No sul o progresso fora impe-
dido pelos maometanos e no Oriente pela igreja gre-
ga. Restava apenas consolidar as conquistas para rea-
lizar o sonho de uma só igreja em toda a Europa, ainda
que longe de ser universal.
CAPÍTULO VI

O MAOMETISMO: - UM RIVAL DO
CRISTIANISMO

I, OBSERVAÇÕES GERAIS
No momento em que o Cristianismo papal procu-
rava conquistar os povos bárbaros, derribar ou assimi-
lar as crenças tradicionais idolatras e preparar o ca-
minho para uma sólida organização polííico-eclesiás-
tica, capaz de enfrentar qualquer poder humano e exer-
cer jurisdição autoritária sôbre tôda a Europa, eis que
surge no Oriente um forte contrapeso aos seus propó-
sitos. Era uma bem principiada organização político-
religiosa que acabava de ser fundada, ameaçando to-
mar proporções assombrosas, fechar as portas ao Cris-
tianismo no Oriente, e paralisar ou mesmo exterminar
a obra crista.
A seita nascente, guardada e defendida pelas ci-
mitarras de centenas de fanáticos, surgia cheia
de poder agressivo, pretendendo até disputar ao
Cristianismo a posse da Europa.
II. O FUNDADOR
O Maometismo foi fundado por Maomé, (571-632),
que descendia duma ilustre família árabe. Dizia ter-
lhe sido revelada esta nova doutrina pelo arcanjo Ga-
briel. O seu característico básico é um monoteismo
fatalista. Maomé dizia ser o último e maior profeta.
Maomé, reputado por sua probidade, passou de pas-
tor de ovelhas a guia de caravanas e mercador. A prin-
cipio, quando apregoava suas idéias, f o i perseguido pe-
los próprios sacerdotes a cuja classe pertencia, sendo
obrigado a fugir de Meca para Medina. Esta fuga, ocorri-
190
190 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

da em. 622 assinala Hégira, e marca para os muçulma-


nos o começo da nova era. Maomé continuou a pregar
e organizou uma comunidade, reunindo muitos clãs.
Medina tornou-se o núcleo do grande império, cuja
unidade política veio pela fé, unidade essa restrita aos
próprios árabes.
I I I . EXPANSÃO P E L A ESPADA
A expansão do Islamísmo foi militar. A espada,
no dizer de Maomé, é a chave do céu e do inferno e por
ela deve a "salvação" ser imposta a toda a humanida-
de. Dez anos depois da Hégira, Maomé capturava Meca
á frente de 10.000 beduinos transformados em mos-
lemes ou "verdadeiros crentes". Nesse mesmo ano fa-
lecia, deixando, contudo, elaborada a doutrina que,
propagada com entusiasmo, rapidamente uniu as tri-
bos árabes numa poderosa nação, Maomé, depois que
d esposou uma viúva rica, cujos bens administrava, en-
tregou-se por completo à oração, á meditação, ao mis-
ticismo; teve aparições sobrenaturais e recebeu ordens
do céu, que não passavam da projeção do trabalho in-
terior do seu pensamento ( 1 ) ,
I V . DOUTRINAS E PRÁTICAS
O Corão, inteiramente produzido por Maomé, é o
produto duma mocidade gasta entre os povos vizinhos
no estudo das diversas formas e ritos dos cultos pagãos
e especialmente o culto de Jeová, professado pelos ju-
deus. Conhecendo assim os diversos sistemas religio-
sos de então, Maomé se apresenta aos seus patrícios e
ao mundo em geral como o portador duma religião
verdadeira, impondo ato continuo este conjunto de
idéias heterogêneas à ponta de espada, não só aos seus
patrícios como a todos os povos.
(1) Oliveira Lima. História da Civilização, pg. 2M.
O MAOMETISMO: — U M RIVAL DO CRISTIANISMO 321

O Corão admite anjos bons e maus e um céu onde


existe o sensualismo. Não nega a vinda de Jesus como
Messias e Profeta, porém, repudia a doutrina da sua
divindade como implicando numa blasfêmia. Admite
o seu nascimento sobrenatural, assim como todos os
milagres que Èle operou na terra. Nega que Jesus ti-
vesse sido realmente crucificado; declara, porém, que
foi levado por Deus ao Paraiso.
Maomé, entre outras cousas, proclamou-se o Pa-
ráclito (Espirito Santo) prometido por Jesus.
O dogma primordial deste sistema é o reconheci-
mento de um só Deus apresentado na maneira seguin-
te: "Só Ala é Deus e Maomé o seu profeta", Por isso a
sujeição á vontade divina é a virtude principal. O je-
jum é expressamente recomendado, assim como a ora-
ção e a prática de esmolas. E7 exigida completa absti-
nência (ic carne de porco,
A poligamia e o concubinato preceituados pelo Co-
rão, foram espantosamente praticados pelos seus pro-
sélitos e a escravidão hàrbaramente implantada.
" N o Corão não há lugar para o jôgo da liberdade
humana; é o livro do destino, gerador do fatalismo mu-
çulmano. Nos seus próprios mandamentos nota-se, ape-
sar do seu tom moral, a ausência de um esforço conti-
nuo para perfeição, qual o da abnegação cristã", (2)
"Crê ou morre" é o emblema do Islamismo e por
esta via, guerra até a morte contra o incrédulo é dever
sagrado de todo o bom maometano. Para tornar efe-
tiva esta estiipida imposição, prescreve o Corão para
aqueles que morrem na peleja pela fé, que entram íme-
diatamenitc numa existência da glória onde supera-
bundam a licenciosidade e os prazeres sensuais. Ja-
mais outro sistema religioso conseguiu alistar homens
tão aguerridos, entusiastas e obedientes até ao sacri-

(2) Idem, idem, p . 243.


222 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

fício das suas próprias vidas, para a propagação da


religião. A razão é fácil de ver, observando que a ban-
deira deste exército fanático encerra o sensualismo car-
nal. Nenhuma outra seita tem lutado mais tenazmente
nem com mais eficácia contra a influência moral e ben-
fazeja do evangelho que o Maometismo.
V. CONQUISTAS
0 Maometismo logrou espalhar-se por todo o inundo
oriental, o que somente conseguiu a f i o de espada. Je-
rusalém caiu em seu poder 110 ano 637= Toda a Síria,
côrca de 639, o Egito em 641 e tôda a África em 711,
foram cair nas mãos dos maometanos, Como as suas
forças aumentassem dia a dia e a Espanha estivesse a
esse tempo enfraquecida pelas discórdias internas, o
general Tarick, transpôs o estreito de Gibraltar, apos-
sando~se em pouco tempo de quase tôda a península
ibérica, cerca de 713. No Oriente, as armas maometa-
nas continuaram a luía com a mesma facilidade, che-
gando até a índia. Em Tours, foram repelidos e obri-
gados a evacuar, em 732. A Asia Menor e o sudoeste
da Europa foram gradualmente invadidos até a to-
mada de Constantinopla em 1513.
A admirável unidade dêste grande império, obsei-
vada no principio, não foi duradoura. As contendas e
ódios deram ocasião às mais sanguinolentas lutas se-
guidas da divisão do império em dois grandes partidos
religiosos e um sem numero de divisões políticas.
A intolerância e a opressão religiosa faziam parte
dèste séquito conquistador, não deixando outra mar-
gem ao descrente que a conversão ou o fio da espada.
A propriedade não era respeitada: por tôda a parte se
destruía., e. derribava. As igrejas cristãs eram conver-
tidas em mesquitas e os cristãos submetidos a maus
tratos, sendo muitos obrigados a aceitar o Maometismo
para escaparem â morte.
CAPÍTULO V I I

CONDIÇÕES INTERNAS DO CRIS-


TIANISMO NO F I M DO PERÍODO
I . MUDANÇAS N A S DOUTRINAS E PRÁTICAS

1. Sístematização da doutrina

Como já se notou, durante o primeiro período his-


tórico os crentes contentaram-se com os simples prin-
cípios enunciados por Cristo e seus apóstolos ^ Foram
as heresias, mormente as dos gnósticos, que obrigaram
os cristãos a sistematizar as suas doutrinas. Esta síste-
matização de doutrinas que começou no segundo perío-
do produziu no terceiro, as célebres controvérsias que,
por sua vez, resultaram na formação de credos.
Foi definitivamente decidido, quanto à pessoa de
Cristo, que êle é verdadeiro Deus, igual ao Pai em es-
sência e existência, tendo duas naturezas, uma divina,
outra humana, ambas completas e sem mistura, porém
ínseparâvelmente unidas. Quanto ao homem, surgiram
os dois sistemas, a saber, o de Agostinho e o de Pelá-
gio, sendo a base daquele a soberania de Deus e a dêste
o mérito do homem. Até o dia de hoje a cristandade
se acha dividida entre esses dois sistemas. A hierar-
quia, que iniciou no período uma simples modificação
cias normas apostólicas, termina com um Papa assen-
tado no seu trono. A união entre o Estado e a Igreja,
que começou no principio do período, foi aperfeiçoa-
da, com os tristes resultados que temos observado. En-
quanto o Ocidente unifica-se cada vez mais sob a in-
fluência do bispo de Roma, o Oriente divide-se pela
dissensão. A imersão trina continua a prevalecer tanto
2X8 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

no Ocidente como no Oriente, admítindo-se a aspersão


em caso de doença. O batismo infantil, ainda que se
tornasse mais popular, no entanto não constituía uma
prática geral. O ensino do catecismo segue o batismo
íle adultos e precede o das crianças. O culto tornou-se
iilúrgico, dirigido pela oficialidade devidamente cons-
tituída. As imagens encheram as igrejas do Ocidente e
os quadros representativos as do Oriente.

2. Mudanças no batismo e na ceia — Novos Sacra-


mentos.

Os simples ritos do batismo e da ceia do Senhor


foram grandemente elaborados e novos sacramentos
foram adicionados.
Nos fins do quarto século, a idéia do sacerdócio
cristão como instituição divina resultou no estabeleci-
mento da ordenança da confirmação como sacramen-
to. O sacramento da extrema unção começou a ser re-
conhecido durante o pontificado de Inocêncio I (401-
417). O sistema sacerdotal da Igreja Católica, todavia,
não foi definitivamente formado até a Idade Média.
Muitas cerimônias foram acrescidas ao rito do ba-
tismo. Exorcísmo (oração e cerimônias para esconju-
rar os espíritos maus) era pronunciado sobre o can-
didato. Depois o sacerdote soprava sôhre êle e toca-
va-lhe a orelha, dizendo: efata. Isto foi seguido pelo
sinal da cruz na testa e no peito. Em alguns lugares o
sal era dado ao candidato. Às vezes uma moeda era
dada como emblema do talento da graça batismal. O
novo nome dado na ocasião do batismo indicava a en-
trada de uma nova vida.
A ceia do Senhor chegou a ser considerada não so-
mente como sacramento, senão como sacrifício, Por
fim, considerou-se a missa cantada pelo sacerdote como
a repetição do sacrifício expiatório de Cristo para a sal-
CONDIÇOES I N T E R N A S D O C R I S T I A N I S M O . . . 3Í$

vação dos vivos e dos mortos. Ensinaram que o pão e


o vinho consagrados transformaram-se no verdadeiro
corpo e sangue de Cristo e que o corpo de Cristo era
oferecido literalmente cada dia e cada hora em mui-
tos altares da cristandade. Erigiram vários altarea
na mesma igreja nos quais sacerdotes especialmente
designados cantavam a missa ou rezavam pelos vivos e
mortos. Mandar cantar uma missa chegou a ser consi-
derado uni ato meritòrio. Com tempo a idéia do sa-
crifício na missa sombreou completamente a idéia de
sacramento.
0 grande influxo na Igreja de cristãos nominais,
nada sabendo da regeneração pelo Espirito Santo, con-
duziu à veneração de anjos, mártires, santos, imagens
e relíquias em substituição às crenças e práticas pagãs
que haviam renunciado.

o. Veneração ao:; anjos, mártires, santos e relíquias

O politeísmo pagão e o culto ao imperador natu-


ralmente conduziam ao culto dos anjos. 0 culto ou-
trora prestado aos heróis logo achou sua contraparte
na veneração dos mártires cristãos e santos. Conseqüen-
temente a Igreja desenvolveu uma. doutrina elaborada
considerando os santos como entes celestiais que parti-
cipavam da onipotência e da onísciêncía de Deus. De
ano em ano o numero de santos canonizados aumen-
tava, não tardando que cada província e cada cidade
tivesse o seu padroeiro. Erigiram altares e igrejas sôbre
seus túmulos e em vez de orar-se por êles, pedia-se sua
íntercessão.
Os mártires foram canonizados e às suas relíquias
atribuiu-se poder miraculoso. Cria-se que estas relí-
quias podiam restaurar os doentes, exorcismar os de-
mônios, revelar os crimes, impedir as pragas e até res-

C. A . S. — 15
222 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

suscitar os mortos. 0 culto às reliquias era a contra-


parte do fetichismo. Não havia altar nem igreja sem
elas. A relíquia mais importante era a cruz de Cristo
a respeito da qual dizia-se, ter Helena, mãe de Cons-
tantino, descoberto em 326 em Jerusalém. Permitiu-se
que os peregrinos levassem lascas da cruz para outras
terras e dentro em pouco apareceram lascas suficien-
tes para construir grande número de verdadeiras cru-
zes de Cristo. Outras reliquias incluíram os ossos dos
mártires, sua roupa, seus utensílios e os instrumentos
com os quais foram supliciados. 0 tráfico nas relíquias
tornou-se tão geral que Teodósio I em 336 f o i forçado
a proibi-lo. Festejava-se com grande esplendor a trans-
ferência dos ossos dos mártires de um lugar para ou-
tro.

4. Culto à Virgem Maria

A adoração de Maria, mãe de Jesus, originou-se


depois da prática da veneração de anjos, santos e re-
líquias. Considerou-se desde o princípio Maria como a
mais honrada das mulheres. Gradualmente a idéia da
sua virgindade depois do nascimento de Jesus ganhou
terreno para tornar-se em doutrina da, Igreja no quarto
século. Durante as grandes controvérsias doutrinárias
deu-se ênfase à absoluta divindade de Cristo, o que au-
mentou o respeito por Maria e a veneração que lhe era
atribuída ultrapassou a que era dada aos santos. Não
tardou que surgisse a expressão " M ã e de Deus", Agos-
tinho não a enumerou entre os pecadores e Ambrósio
chamou-lhe a segunda Eva que cooperava com Cristo
na expiacão. Espalhou-se a lenda de que Maria, imedia-
tamente depois da morte, fôra ressuscitada pelos anjos
e levada aos céus onde fôra coroada Rainha. Como tal
tornou-se ela o objeto, não somente de adoração, mas
CONDIÇOES I N T E R N A S D O CRISTIANISMO... 3Í$

também de invocação. O povo contemplou-a como


a verdadeira ajudadora nos céus e suplicava sua inter-
cessão antes de se dirigir a 'Deus por intermédio de
Cristo.
O culto a Maria era a contraparte do culto pres-
tado pelos pagãos rio mundo mediterrâneo â divindade
feminina, a Grande Mãe. Fôra uma herança fatal. Mais
tarde Ana, mãe de Maria, tornou-se o objeto de adora-
ção especial. Instituiram-se em honra: da mãe de Je-
sus várias festas, como a Festa da Anunciação, a Festa
da Purificação, a Festa da Ascensão de Maria e a Festa
do seu Nascimento,

5. Adoração de imagens e peregrinações

Os cristãos primitivos manifestaram aversão âa


imagens, pois consideraram seu uso proibido pelo pri-
meiro mandamento do decálogo. Até o quarto século
alguns dos pais da igreja fizeram forte oposição à ado-
ração de imagens, mas, a despeito disso, imagens de
Cristo, de Maria e dos santos eram conservadas não
somente nas igrejas, mas nos lares também. O povo
adorava-as e não a divindade que representavam.
As peregrinações aos lugares santos tornaram-se
gerais por causa do mérito atríbuido a tais atos de de-
voção. A visita de Helena, mãe de Constantino, á Pa-
lestina em 326 despertou grande interesse nos peregri-
nos. Alguns dos pais da igreja debalde fizeram
forte oposição a êsse zelo doentio pelas peregrinações,
julgando que a prática comprometia a verdadeira re-
ligião e a moralidade,
O Cristianismo mais evangélico do periodo é re-
presentado pelos desligados das igrejas oficiais — os
jovinianos, os paulicianos, os bretões primitivos, os ir-
landeses, etc.
228 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

I L V I D A CRISTÃ — MONA QUI SM 0

À medida que o Cristianismo absorvia o paganis-


mo, o nivel da vida cristã decrescia. Á moral não era
da mais pura, a superstição crescia e as discórdias e
contendas debilitavam as igrejas. Impotentes para deba-
ter êsses males insinuados nas igrejas, os cristãos mais
fervorosos empreenderam formai* uma classe especial
dentro das igrejas, consagrada a uma vida cristã mais
apurada. As tendências ascéticas, que tomaram rumo
no período anterior, cresceram rapidamente nesse pe-
ríodo. Começaram os devotos a se retirarem em grande
número da sociedade e a viverem na solidão dos de-
sertos e cavernas. Saiam para pelejar contra o pecado
dentro da sua própria alma e para escapar dum mundo
corrompido e duma igreja opressora. Estavam pen-
sando mais em salvar as suas próprias almas do que
salvar as almas alheias. Como já se notou, êsse movi-
mento começou no Egito, onde o temperamento do povo
e o clima eram favoráveis. Milhares se refugiaram nos
desertos onde viviam na contemplação e oração, tendo
vidas ociosas e inúteis.
Não tardou a urgência de alguma forma de orga-
nização para controlar êsses agrupamentos. Da neces-
sidade de alimentar e ocupar estas hordas, surgiram
os regulamentos estritos sob os quais os monges vive-
ram dessa data em diante. Como já se notou, o pri-
meiro organizador de importância foi Pacômio no Egi-
to. A sua organização foi copiada c aperfeiçoada em
outras partes tanto no Oriente como no Ocidente.
Em Monte Cassino, Itália meridional. Benedito de
Núrsía empreendeu em 529 a organização da primeira
ordem, a beneditina, cujo regulamento serviu de mo-
delo para as subseqüentes. Por meio deste plano, os
mosteiros espalhados em diferentes partes do mundo
C0NDIÇ0ES I N T E R N A S DO C R I S T I A N I S M O . . . 329

sujeitos às mesmas regras são dirigidos por um govêrno


central; 11a atualidade êste govêrno está localizado em
Roma. Foi êste o comêço de uni movimento vastíssimo
que tem afetado profundamente a vida católica, com
repercussão até iia história secular.
Os primeiros mosteiros foram povoados de homens
fervorosos e, sem duvida, hem intencionados, porém, a
vicia é tão artificial e desnatural que freqüentemente
tem baixado â mais repugnante corrupção. Não obs-
tante os benefícios prestados pelos mosteiros na Idade
Média, que são inegáveis, pois constituíram por lon-
go tempo os únicos centros da pouca cultura que havia,
não se pode deixar de sentir que podia ter conseguido
mais se os reclusos tivessem permanecido na sociedade
c assumido a sua parte na atividade cristã.
A fundação de mosteiros para homens foi seguida
por conventos para as mulheres, e por toda a Idade
Média rivalizavam-se as mulheres e os homens em de-
voção e atividade. Cada minúcia da vida foi cuidadosa
e estritamente regularizada e os serviços prestados
dentro das muralhas dos conventos, também não fo-
ram jmicos. Os frades e as freiras eram professores,
missionários, copistas, músicos e servos do povo, E,
ainda que não se possa deixar de reconhecer a sua devo-
ção e sinceridade, pelo menos dos primitivos frades, de-
ploram-se as conseqüências malévolas que o sistema
tem produzido no seio da crístandade. Os devotos f i -
zeram o voto de pobreza, castidade e obediência, que é
irrevogável.
Não se deve, porém, deixar estas mudanças radi-
cais dos costumes dos frades e os seus tristes resulta-
dos obscurecer-nos a tal ponto de negarmos o fato de
que, com tôdas as suas imperfeições, o Cristianismo
continuava a ser a única fôrça cívilizadora, e, que ze-
lava pelo bem da humanidade. Continuava a elevar
2X8 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS SÉCULOS

os ideais e costumes do povo, a influenciar benefica-


mente na legislação e em corrigir os vicios dos bárba-
ros; acabou com os sacrifícios sanguinários, converteu
o domingo em dia de guarda, e produziu outros muitos
benefícios. Sem dúvida o Cristianismo pouco a pouco
se infiltrou no mundo ao passo que o mundo se infil-
trava no Cristianismo. Mas havia ainda almas puras e
dedicadas. No meio de tanta confusão, Deus não ficou
sem testemunhas.
QUARTO PERÍODO

Da coroacio de Carlos Magno até a


Peforma Protestarite 800-1517
CAPITULO I

IDADE MÉDIA
{ :í I . OBSERVAÇÃO GERAL
Chama-se período medieval os mil anos desde a
queda de Roma até o romper da Reforma protestante
por causa da sua posição cronológica entre os tempos
antigos e modernos e que forma a transição da civili-
zação greco-romana para a civilização romano-germâ-
nica destinada a controlar o futuro do mundo ociden-
tal.
Como já se notou, a queda do Império Romano pe-
las tribos íeutônicas em 476, politicamente falando, ini-
ciou a era medieval, enquanto a coroação de Carlos
Magno e a fundação do Santo Império Romano marcam
seu principio na história eclesiástica, ainda que suas
raizes tivessem começado a se formar desde o pontifi-
cado de Gregório, o Grande, iniciado em 590. Foi êle
o último dos país da igreja e o primeiro teólogo medi-
eval; o último bispo de Roma e o primeiro Papa me-
dieval.
O teatro do Cristianismo medieval limita-se
quase exclusivamente ao Ocidente. Foi no Ocidente —
Itália, Espanha, Gália, Grã Bretanha e Alemanha —
onde os povos teutônico-latinos desenvolveram a ci-
vilização ocidental.
As invasões destrutivas iniciaram o período me-
232 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

dieval. Os dois séculos entre a queda de Roma e a for-


mação do Santo Império Romano constituíram uma
catástrofe para a sociedade civilizada. Indizivel desor-
dem e terrível destruição prevaleciam no Ocidente. A
Igreja Católica fôra a única, força capaz de exercer
qualquer influência construtiva sobre os invasores,
No Oriente a destruição era ainda mais completa,
porque a fôrça da Igreja foi quebrada e " a Cruz foi su-
plantada pelo Crescente." No sétimo século uma grande
onda de povos semi ticos, os maonietanos, principiando
na Arábia, rapidamente invadiram a Siria, Palestina,
Egito e. Pérsia (633-651), destruindo tudo no seu camí-
niio. Duas vêzes sitiaram Constantmopla (609-676 e
717-718), mas sem êxito. Em 707 conquistaram o Norte
da África e em 711 a Espanha. Em 732, na, batalha de
Tours, foram vencidos e a civilização ocidental foi
salva.
Os maometanos roubaram aos gregos a sua mara-
vilhosa vitalidade e sufocaram sua civilização. Esta
nova civilização possuía considerável vitalidade física
c algum conhecimento das matemáticas, das ciências
naiurais e da filosofia, mas em cultura era muito in-
ferior á da Grécia antiga, e a Europa medieval preci-
sou livrar-se das suas garras antes de tirar proveito
da Renascença e da Reforma e desenvolver a mente
moderna.
O maometismo paralisou e, em parte, aniquilou a
vida da Igreja no Império Oriental. Foi permitida a
continuação dos patriarcados em Alexandria, Aníio-
quia e Jerusalém, mas o progresso e a expansão da
Igreja foram completamente interrompidos. A Igreja
Grega petrificou-se e tem continuado em estado cada-
vérico até o dia de hoje. Ficou ainda vitalidade sufi-
ciente na igreja j)ara dar às tribos eslavas o alfabeto,
os elementos de educação e as doutrinas da igreja, mas
IDADE MÉDIA 233

as nações eslavas não tiveram a capacidade para re-


vivificar o mundo grego,
A Europa, no entanto, estava destinada a ter, não a
civilização sarracena, mas a teutônico-latina. Por três
ou quatro séculos a lâmpada de conhecimento deu pouca
claridade e a Europa apresentou um triste espetáculo
de ignorância, anarquia e violência, Era uma época
de transição e reconstrução. A Igreja transmitiu às
tribos teu tônicas a herança da civilização greco-romana
c o Cristianismo, e estes elementos, juntos com a vida
e vigor teu tônico, como: respeito pela mulher, senso
de honra, amor à liberdade tornaram-se os princípios
proeminentes da nova civilização teutôníco-latina.
Gradualmente esta nova civilização se desenvol-
veu. O espirito latino alcançou sua maíoridade durante
a Renascença e o espirito teu tônico emancipou-se du-
rante a Reforma.

II. CIVILIZAÇÃO MEDIEVAL

A civilização medieval foi o produto de três influ-


ências distintas que se mesclaram e fundiram entre si:
a velha civilização greco-romana, o Cristianismo e o
modo de viver e pensar das instituições politico-soci-
aís dos povos teutônícos.
E' comum considerar-se a Idade Média como uma
fase histórica de estagnação e retrocesso. No entanto,
nos dez séculos que a constituem desenrolou-se como
que subterrâneamente uma corrente dágua, que mais
tarde deveria aparecer densa e impetuosa, enchendo
dc novo vigor as instituições políticas e sociais, modi-
ficando-as e adaptando-as à civilização moderna.
Sob o ponto de vista religioso, tendo em compara-
ção a vida cristã mais pura da idade ante-nicena com
o corrupto Catolicismo Romano dêsse período, parece-
nos que o progresso foi apenas em devassidão e, por
2X8 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

assim dizer, sobremodo desvantajoso. Tal, porém, não


se dá porque apesar das práticas e abusos das igrejas
hierárquicas, ainda se encontra no seu seio, corno fora
dele, grande cópia de ci-istãos sinceros cujo viver puro
lembrava a vida dos apóstolos.

Os triunfos do Cristianismo nesse período sobres-


saem ainda mais, se se confrontar a bárbara Europa do
quinto século com a Europa intelectual e cristianizada
do século dezesseis. A cristianização do direito romano
refundiu inteiramente os moldes da legalidade, dando
firme segurança à vida e à propriedade, fazendo desa-
parecer, em parte, as cruas leis de tortura, forca e com-
pressão, nas 'quais era tão fértil a jurisprudência de
Roma.
Para a vida industrial, rasgaram-se novos horizon-
tes. 0 intercurso comercial cresceu de maneira notá-
vel. Do Mediterrâneo ao Báltico, na Inglaterra, e no
vale do Danúbio, levantaram-se grandes cidades, que
ostentavam nos frontais e nas fachadas de suas cons-
truções arquitetura fina e invulgar. Raramente se en-
contrava uma cidade importante a que faltasse uma
universidade. A educação difundiu-se com certa ra-
pidez durante a Idade Média.
Vemos assim, que, embora tenha deixado ás épo-
cas sucessivas o mau legado de sua corrupção eclesiás-
tica, da intolerância, da opressão politico-social e da
injustiça — fundas chagas que ainda não cicatrizaram
de todo — a Idade Média representa um periodo de
transição do barbarismo primitivo para a civilização
moderna.
JDADE MÉDIA

I I I . O S A N T O IMPÉRIO R O M A N O E A S A N T A
IGREJA C A T Ó L I C A

A coroaçào de Carlos Magno pelo Papa Leão III,


foi um fato de suma importância sob o aspecto poli-
tico e religioso.
Carlos Magno, tão dignamente honrado pelo Papa
quis mostrar quanto lhe era agradecido. A sua am-
bição de dominador universal retrocedeu um pouco
para transfundir-se na idéia agora concebida de um
Santo Império Romano, irmanada â idéia papal de uma
Santa Igreja Católica. Conquanto estes dois poderes,
que assim se dispunham à conquista do mundo, tives-
sem o mesmo alvo não pensavam em tomar o lugar um
do outro. A cada um era. reservada a liberdade de ação,
podendo ambos visar conjuntamente o progresso e o
interesse comum, exercer o poder supremo na sua pró-
pria esfera, confundindo-se somente para melhor leva-
rem a bênção e a civilização a toda a humanidade.
Pode-se dizer que entre o Papa e o imperador exis-
tia a mais leal solidariedade, governando juntos o
mundo, auxiliando-se mutuamente e mostrando cada
um a maior solicitude em ser prestável ao outro.
Era sagrado o grau do poder que cada um exer-
cia, pois não discutiam superioridade nem tão pouco
qualquer deles estava disposto a reconhecer a supre-
macia do outro. Sempre que a ocasião era propicia
cada um declarava a sua própria vontade sem que isso
afetasse a qualquer das partes.
A idéia de Carlos Magno quanto à relação dos dois
governos, isto é, entre o imperador e o papa e vice-
versa, estava baseada na relação havida entré Hóisés e
Arão em que os dois tinham funções diferentes, porém,
intimamente ligadas.
232 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Com o {empo, porém, mais duas teorias surgiram:


(1) Que o imperador era superior ao papa nas coisas
seculares. Os advogados desta teoria apelaram
tanto para as Escrituras como para a história em
sustento da sua doutrina. 'Diziam que Jesus Cris-
to pagou tributo ao governo. Também Jesus ti-
nha dito: " D a i a César o que è de César", Tam-
bém insistiram que as doações 'de Pepino I I e Carlos
Magno á Igreja tornaram os papas vassalos dos impe-
radores. (2) Que o poder... temporal era subordinado
ao espiritual mesmo nas coisas seculares. " Â alma go-
verna o corpo," diziam, " e o sol é superior á lua; logo
o espirito governa o temporal." Também citavam tais
passagens bíblicas como I Coríntios 2:15 e Jeremias 1;
10.
A contenda entre os partidários das duas teorias
j'oi a causa de constante guerra entre os papas e os im-
peradores por séculos.
Carlos Magno, mesmo baseado na sua independên-
cia do Papa, presidiu a um concilio eclesiástico e legis-
lou tanto em importantes assuntos desta ordem como
em negócios civis. Não trepidou em envolver-se na ques-
tão de imagens e colocar-se mesmo contra os paj)as e
concílios que opinavam por êste culto. Nomeava
bispos e padres para qualquer lugar com a maior
liberdade sem que fôsse argiiido pelos seus atos.
Por sua morte sucedeu-lhe o seu filho Luiz, o Pie-
doso, (811-840) em que tudo deixou a desejar, como
sucessor digno do grande imperador. Duma fraqueza
extrema, Luiz deixou desaparecer a unidade e a gran-
deza do império na sepultura do seu fundador.
Logo que subiu ao trono, por sua vez colocou os
filhos (Lotário, Luiz e Pepino) em posições de grande
responsabilidade administrativas sem que êles tives-
sem para isto aptidões notáveis. Hourou a Lotário com
a dignidade imperial, a Luiz deu a Germânia, e a Pe-
IDADE MÉDIA 237

pino a Aquitânia ( 1 ) . Descontentes com o pai por lhes


haver tirado alguns territórios, para dotar Carlos, filho
de segundas núpcias, provocaram-lhe um levantamento
dos povos, ohrigando-o assim a abdicar e recollier-se a
um convento. Mais tarde foi-lhe restabelecida a digni-
dade imperial, graças às contendas entre seus malva-
dos filhos.
Por sua morte a desunião, já antes tão acentuada,
consumou-se com as desavenças dos seus herdeiros,
dividindo-se íôda a Europa numa multidão de sobera-
nias com os interesses e propósitos inteiramente anta-
gônicos .
Henrique I, o Caçador, parente de Carlos Magno
(linhagem materna) resistiu às forças demolidoras e
O tão, o Grande, que lhe sucedeu em 936, continuou a
obra da reconstrução e pacificação. Finalmente em
962 a Itáüa, que por muito tempo fora teatro de dis-
putas, crimes e anarquias, chegou a gozar ordem e paz.
Os esforços pacificadores de Otão foram recom-
pensados pelo Papa João XII, que o coroou imperador.
O protegido, porém, provou a sua ingratidão, depondo
e substituindo o seu protetor por Leão V I I I .
O trono imperial por certo tempo virtualmente he-
reditário, já era nominalmente eletivo. Em caso de
não haver sucessor ou haver pluralidade de candi-
datos, cabia aos eleitores — os arcebispos de
Maintz, Treves e Colônia que representavam o
estado eclesiástico alemão e os duques de Francônia,
Suábía, Saxônía e Bavária que representavam o poder
secular — eleger o imperador entre os candidatos.
Esta eleição foi a causa de constantes lutas entre
o império e a Igreja. Do meado do século onze até o
meado do quinze os dois poderes sustentaram a mais

(1) Região cia Gália antiga.


2X8 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

sanguinolenta luta. Os imperadores depunham os pa-


pas e punham nos seus lugares outros mais afeiçoados.
Os papas por sua vez excomungavam os imperadores
e fomentavam a discórdia com os seus inimigos afim
de com a sua queda conseguirem uma dinastia mais
simpática â sua causa. Enfim cada qual procurava
derrotar o outro e criar-lhe maior soma de embaraços.
E' bem provável que esta luta politico-eclesiástica
tenha sido um obstáculo ao absolutismo eclesiástico
por um lado e ao absolutismo imperial por outro,

I V . DIVISÃO ENTRE AS IGREJAS ORIENTAL E


OCIDENTAL

Antes do fim do último período, diferenças consi-


deráveis em doutrinas e práticas se haviam desenvol-
vido em diversas partes. Do mesmo modo, profundas
rivalidades entre Roma e Constantinopla haviam pro-
vocado grandes contendas e ódio. As causas principais,
porem, do cisma entre o Oriente e o Ocidente eram:
raça, lingua e características mentais e morais. 0 Ori-
ente era de raça grega, falava o grego, usava o grego
no culto e sua teologia foi escrita em grego; o Ocidente
era latino e usava a lingua latina do mesmo modo. Além
destas diferenças de raça e língua, os meios de comu-
nicação entre as duas partes do mundo eram deficien-
tes e vagarosos.
Estas diferenças aumentavam cada vez mais, e tam-
bém dificultavam a aproximação entre os dois povos.
Enquanto o Oriente paralisava as suas forças e circuns-
crevia pelos motivos já apresentados, o campo de suas
atividades, o Ocidente continuava a desenvolver-se na
sua esfera secular e eclesiástica.
Chegou-se então à conclusão de que as diferenças
eram de caráter religioso, rompendo-se definitivamente
os laços fraternais em 867= Dessa data em diante
IDADE MÉDIA 239

trava-se uma lula sem tréguas entre o Oriente e o Oci-


dente até que em 1054, o Papa e o Patriarca mutua-
mente se excomungam, junto com os seguidores, con-
denando-os à perdição; pena que ainda não foi revo-
gada.
Estava consumado o cisiúa, cabendo as glórias
deste feito a Miguel Cerulário, bispo de Constantino-
pla e a Leão IX, bispo de Roma.
Conquanto as duas igrejas se tenham tornado ini-
migas figadais, todavia as diferenças existentes entre
elas, eram mais de caráter prático que doutrinário. A
igreja oriental, por exemplo, jpermite casamento do
clero inferior, enquanto a ocidental não o permite. No
Ocidente os padres barbeiam-se, ao passo que os do
Oriente não. Os do Ocidente usam pão asino na comu-
nhão e os do Oriente, pão fermentado. Os do Ocidente
enchem os seus templos de imagens, mas os do Oriente
usam quadros apresentativos de diversos santos (íco-
nes). No Oriente pratica-se a imersão trina; no Ocidente
batiza-se de qualquer modo. As datas da celebração da
Páscoa e do Natal são diferentes. O Oriente diz que o
Espirito Santo procede do Pai pelo Filho; o Ocidente,
que procede o Pai e do Filho. , ,
Depois do rompimento ainda se fizeram tentati-
vas infrutíferas para unir as duas igrejas, notadamente
nos concílíos de Lião (1274) e Florença (1439), Como
fôsse reconhecida a nulidade dos esforços conciliado-
res, não se pensou mais nisto depois da queda, de Cons-
tantinopla. As duas igrejas portanto, têm continuado
em franca hostilidade até hoje.
O Patriarca de Constantinopla exerce primazia e
jurisdição espiritual sôbre todos os súditos ortodoxos
do Império Turco. Sua eleição é feita pelo sinodo, ten-
do, porém, de ser confirmada pelo sultão, sem o que,
não é oficialmente reconhecida.
210 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Os russos, gregos e algumas outras igrejas ortodo-


xas orientais são hoje independentes de Constantino-
ple.

V . FEUDALISMO

Dá -se o nome de feudalismo, ao governo político


da Idade Média, cujo poder se encerrava nos reis, nos
grandes vassalos e nos pequenos senhorios.
O íeudalísmo foi sobretudo um regime militar, Os
grandes proprietários territoriais dividiam os seus vas-
tos domínios em pequenos senhorios quase independen-
tes. 0 rei era apenas o suzerano nominal de todos os se-
nhores da coroa. Èsles, por sua vez, enfeudavam partes
dos seus domínios a outros nobres menos qualificados
(viscondes, barões, etc), que por isto se tornavam seus
vassalos, podendo éstes ainda constituir-se senhores de
vassalos menores. Esta espécie de governo, assim re-
duzido a fragmentos feudais, constituía uma verda-
deira escada hierárquica em que cada um era ao mesmo
tempo suzerano e vassalo.
Existia peculiar relação pessoal entre o proprietário
e os seus subordinados, de modo que um era obrigado a
dispensar proteção paterna, e o outro auxilio e obediên-
cia. 0 resultado disto foi a concentração de poder numa
casta de proprietários e a formação de uma classe mais
baixa em condições somente de obedecer — vassalos e
servos. Na linguagem dos romanos, aqueles eram pa-
trícios, estes plebeus.
Èste regime, embora pareça à primeira vista todo
secular, tinha no seu âmago afinidades bem profundas
com o movimento religioso.
0 feudalismo sem o querer e na insciência dos ho-
mens, atrofiou o progresso da centralização do poder
papal que alguns anos antes havia sido bem pronun-
ciado, porque, fazendo dos prelados vassalos, sujeita-
IDADE MÉDIA 241

va-os aos governadores civis e tirava-lhes o direito de


obediência exclusiva ao papa. Por outro lado, confun-
dia-lhes os próprios interêsses com os deveres milita-
res e civis, levando-os assim, a esquecer a tarefa que
lhes era predileta — o en grande cimento do poder ecle-
siástico.
Estudadas algumas causas que contribuíram tão
eficazmente para retardar a marcha do absolutismo
papal, releva notar que, encarando o feudalismo pelo
lado econômico, ou melhor, pelo lado por que era feita
a distribuição das terras, é claro que a Igreja Católica
jamais teve uma época tão favorável aos seus desígnios.
Os bispos e os padres que possuíam grandes terras au-
mentaram com elas o patrimônio da Igreja, contribuindo
destarte para o crescimento do poder eclesiástico. Por
sua vez a Igreja possuía grandes territórios, que, em-
bora fossem propriedades feudais (e por isso até certo
ponto propriedades duvidosas) poderiam mais tarde,
ser reclamados como bens livres e dêste modo a Igreja
tornar-se-ia a maior suzerana da Europa.

V I . DECRETOS FALSIFICADOS

A o mesmo tempo que se avolumava a ambição da


Igreja. Católica e se desenvolvia o seu poder nas coisas
seculares, sentia-se a necessidade imperiosa de susten-
tar estes arrogados direitos com documentos mais for-
tes do que os até então existentes, Na ausência dêles,
era preciso arranjá-los de qualquer forma. E assim,
os papas não hesitaram em solicitar dos indivíduos
mais astutos que os cercaram, o arranjo desses docu-
mentos favoráveis aos intuitos do papado. Diz; Janus,
historiador católico: 4

Veio então a surgir, pelo? meados dêsse século, a monstruosa


falsificação das derretais de Isidoro, cujo efeito estendeu-se m u i -
to além das intenções do autor. Essa burla acarretou, lenta, mas

C. A . S. — 16
238 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

progressivamente, a transformação completa da constituição e do


governo da I g r e j a .
Não cremos que, na historia inteira, se possa encontrar se-
gundo exemplo de uma falsidade que vingasse tão perfeitamente,
o que losse, todavia, tão grosseiramente concertada. Há trezen-
tos anos já que ela desnudou-se; mas os princípios que se desti-
nava a <difundir e realizar praticamente, brotaram no solo da
Igre.ja raízes tão profundas, identificaram-se tanto com o desen-
volvimenío cia vida eclesiástica, que a manifestação da fraude
não produziu abalo duradouro no sistema vigente.
Cêrca de cem pretensas decretais »dos mais antigos papas,
com escritos de outros chefes da Igreja e atas de alguns sinodos,
foram a ósse tempo fabric'adas, nos países francos situados à
margem esquerda do Reno. Desses papéis apoderou-se logo com
avidez o papa Nicotáu I, c os fêz servir de base, como documentos
autênticos, ás novas pro tensões aventadas por èle e seus suces-
sores. — Todo o sentido dos autores clèsses documentos falsos
era assegurar independência aos bispos em relação aos metropò-
lita.5 e cs demais poderes, grangear-lhes impunidade absoluta,
o excluir qualquer influência temporal. Mas. para obter Ôsse fim,
ampliavam tão consideravelmente o poder papal, que se a I g r e -
.ja se compenetrasse dêsses princípios, c cs acompanhasse até
6s conseqüências, assumiria a forma de uma monarquia sujeita
ao arbítrio e absolutismo de um homem. Estava pois, assentada
a podia angular da infalibilidade papal.
Assim que, tanto como se lhe comunicaram as novas decre-
tais, forjadas na oficina de Isidoro (863-864), deu-se logo pressa
Nicoiau em aplacar os escrúpulos, que a respeito dela patentearam
certo? bispos franceses, asseverando-lhes que a Igreja Romana
possuía de longo tempo, no seu arquivo, êsses papéis, e que os
venerava entre os seus antigos documentos. Acrescentava que,
ainda quando não fizesse parte integrante da coleção dos câno-
nes, todo c qualquer escrito papal tinha já por si sd plena fôrça
do lei para a I g r e j a . Foi de acòrdo com essa ordem de idéias
que. num smodo efetuado em Roma no ano de 8G3, pronunciou
análema contra quem quer que não fizesse caso de alguma dou-
trina ou ordem exprimida pelo Papa. Desde que a tôda a Igreja
obrigassem os decretos pontifícios, e que os papas tivessem jus
de condenar, ou aprovar, a seu hei prazer, as decisões smodais,
como queria Nicolau, apoiado na ficção do pseudo-Isidoro, bas-
tava um passo mais, para chegar a promulgação da infalibilidade
pessoal. íisse passo, porem, mu it? tempo decorreu antes que o
dessem. Contentaram-se em reproduzir, de quando em quando, a
afirmativa de que a Igreja Romana guardava a f é em tôda a sua

MfiMifliifittKflíiMKiKHH
244
IDADE MÉDIA 239

pureza, continuando ela mesma a preservar---e sem mácula. T r ê s


séculos passaram ainda, primeiro que o germe disseminado b r o -
tasse frutos. Durante tado o espaço de quase duzentos anos, que
medeuu entre a morte de Nicoiau e o remado de Leão IX, f i c o u
a só pontifícia numa situação que não lhe consentiu cuidar na
premeditada aquisição de direitos mais extensos (n),

Entre os decretos falsificados figuravam a jà men-


cionada Doação de Constantino, que tinha por f i m sus-
tentar a posse de certas propriedades valiosas em po-
der da igreja: Os cânones dos Apóstolos e As Cartas
de Clemente a Tiago que tiveram por fim provar os di-
reitos da hierarquia.
Os inlentos dos decretos falsificados parecem ter
sido livrar os bispos da jurisdição secular e dar-lhes
jurisdição nas questões seculares tanto quanto nas ecle-
siásticas; livrar os bispos da dependência dos sinodos
metropolitanos e provinciais; e assegurar o direito ili-
mitado a apelar a Roma e assim torná-la o centro e a
origem da autoridade eclesiástica.

V I I . A LEI CANÔNICA E A LEI CIVIL

A lei canônica (que definiu minuciosamente os de-


veres e direitos preláticos do clero, monges, freiras e
leigos, fixando as penalidades de tôdas as transgres-
sões) foi, dia a dia tomando maior incremento e in-
fluência, tornando-se tanto mais importante quanto
maior era o poder e a ambição papal. Havia tribunais
eclesiásticos graduados que correspondiam aos tribu-
nais civis, onde eram discutidos os diversos assuntos
cristãos, os quais mais tarde transformaram-se na Cú-
ria Romana — Tribunal de Apelação para toda a Cris-
tajidade. Êstes tribunais, com atribuições particulares
e sectários, tornaram-se os mais terríveis inimigos dos

(2) Janus, 0 Papa e o Concilio, tradução dc Ruy Barbosa, pgs.


41-1.418, Edição de 1930.
244 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

tribunais civis. As suas decisões muitas vêzes, arbitrá-


rias e afrontosas aos poderes civis, forçavam os tribu-
nais seculares a intervir, estabelecendo-se então, a luta
entre os dois com o epílogo " o ultimo estado pior do
que o primeiro." Alegando que todos os crimes podiam
ser considerados pecados, e por conseguinte da alçada
dos tribunais eclesiásticos, reclamava de maneira ex-
traordinária o direito de jurisdição em causas de in-
teira competência dos tribunais civis. Esta maneira de
proceder, tornou-se o pomo da eterna discórdia entre
o poder secular e o papado, Esta contenda política
tornou-se tão importante, a ponto de incentivar o es-
tudo popular da lei canônica e constituir materia indis-
pensável para qualquer carreira eclesiástica.
Diz o já citado Janus:
Nessa êpcca imputava-se em gerai ao papado e 5, jurispru-
dência, isto é, a essa jurisprudência poluta, que fizera do direito
eclesiástico instrumento de despotismo espiritual, a miséria e a
profunda decadência, moral e religiosa, em que se achava engol-
fada a cristandarle no Ocidente. Por essas duas fontes, que v e r -
tiam confundidas, é que diziam ter sido envenenado o mundo;
visto que ambas (até 1305) eram italiarías, e, uma, a escola j u r í -
dica de Bolonha, mais não era que cativa da outra, a cúria.
"São os juristas", confessa Roger Bacon { s ) , "que hoje em
dia governam <a igreja, vexando e confundindo os cristãos com
os seus longos processos. 11
B e fato, os papas que se podem apontar como grandes t
poderosos, Tnocènmo III, Inocêncio IV, Clemente IV, ou B o n i f á -
cio V I I I , não tinham galgado a liara e ao senhorio do mundo se-
não no caráter de juristas. Entendia Bacon que não híavia sal-
vamento possível, sem que o direito da Igreja volvesse a ser mais
teológico (isto 6, bíblico) , Dante também {*) divisava, nas decre-
tais pontifícias e na proemmôncia que se lhes dava sôbre a es-
critura sanla, uma origem de corrupção ( n ) ,

(3) Opus Tertius, Bd Brewer, pg. 84, L o n d . 1859,


f/i) Paraâiso, IX, 136-138.
(5) Janus. O Papa e o Concilio. p g . 497, Tradução de Ri.y
Barbosa, E d . 1930.
IDADE MÉDIA 245

VIII. A CÚRIA ROMANA


Desde o começo do quarto século a cidade de Koma
foi dividida, para fins eclesiásticos, em vinte e cinco
bairros, cada um administrado por um presbítero, e
em sete distritos, para a minis tração da caridade, cada
um dirigido por um diácono.
N o século oitavo, os bispos suburbanos foram re-
unidos a êsses presbíteros e diáconos, vindo esta fusão
produzir o corpo eclesiástico, bem célebre mais tarde,
e conhecido do século onze em diante como o Colégio
dos Cardeais (6), Veio a nova instituição a ter grande
proemínência na segunda metade dos tempos medie-
vais, quando muitos príncipes se arrogaram o direito
vde nomear um ou mais cardeais para o Colégio. Èstes
cardeais se chamavam cardeais da coroa.
A o clero de Roma é que pertencia nos primeiros
tempos o direito de nomear o bispo de Roma, cabendo
ao povo o privilégio de intervir com o seu voto nessa
nomeação. Quanto mais cresciam o poder e a ambi-
ção do papado, tanto mais ganhavam em número e im-
portância, os negócios da cúria de Roma. Quando Roma
se tornou a coroa suprema da crístandade católica, che-
gando a manter múltiplas e complicadas relações com
todos os governos cultos, assim como a dirigir-se a cada
bispo e abade, / tornou-se imperiosamente necessário
sistematizar a sua ampla tarefa administrativa.
O Colégio dos Cardeais, sob a presidência do pon-
tífice, reunido para tratar dos negócios da igreja, tor-
naria mais brando ao Papa o pesado ofício de mover
tôda a imensa e pesada máquina. Reunido para o exer-
cício desta função, o Colégio dos Cardeais denomina-se
consistório; enquanto que para a eleição do Papa cons-
titui o conclave. 0 número de membros do colégio tem
(6) A palavra cardeal deriva-se de cardo — gonzo.
242 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

oscilado desde a data de sua criação entre treze e se-


tenta e seis, nunca excedendo o último. Quanto à nacio-
nalidade, a predominante entre os cardeais, isto è, a
da maioria deles, é a italiana.
Durante o século dezesseis foram criadas várias
congregações religiosas, cada uma com um fim parti-
cular como a da inquisição, a dos livros proibidos, a
das indulgências, etc. Em conexão com estas diversas
cortes e congregações, agia um numeroso corpo de fun-
cionários legais e secretários.
Durante algum tempo a cúria romana contribuiu
grandemente para a consolidação do poder papal, mas
a sua manutenção absorvia avultadas somas de dinhei-
ro. Janus qualifica-a com 0 "um campó de peleja para
litigantes, uma chancelaria de escribas, notários, em-
pregados fiscais, até onde se negociavam privilégios,
isenções, salvo-condutos, etc.; onde se andava a pedir
e intrigar de porta em porta; enfim, um mercado eu-
ropeu para os clérigos de todos os países á cata ç|e be-
nefícios" ( 7 ) :
Tão poderosa máquina eclesiástica absorveu e su-
gou a pouca seiva de espiritualidade cristã que ainda
circulava no tronco da greja Católica Romana, tornando
vã qualquer tentativa de reforma. Todos os bons in-
tuitos se esboroavam, frágeis e impotentes, diante dêsse
monstro enorme. Não era mais o Papa, o chefe real da
Tgreja, mas a cúria romana.
E' duvidoso que estivesse ao alcance das possibili-
dades do Papa, pouco antes e algum tempo depois, quase
ilimitadas, o conseguir realizar uma reforma dentro da
Igreja dissoluta.
Grandemente interessada, tanto nas finanças como
nos negócios administrativos da Igreja, a cúria romana
(7) Janus, 0 Papa e o Concilio, pg. 505, T r a d , de Ruy B a r -
Barbosa, Ddição de 1930.
I D A D E M É D I A 247

provocava apelações e requerimentos de tôda a parte,


desejosa de auferir deles lucro pecuniário.
Chegou a ser do dominio de todos que seria fácil
e simples à cúria romana revogar as mais rigorosas
decisões discíplinares de bispos, abades e até metropo-
litanos. Tudo dependia do dinheiro e da influência de
que o paciente pudesse dispor e mover a favor de seus
supostos direitos. Naquela côrte eclesiástica o peso da
balança era o dinheiro, e a concha mais lesada de oíro
era a que alcançava o beneficio, a absolvição, o privi-
légio, a indulgência, a vitória no processo.
O ricaço leigo dado a liberdades podia ficar certo
de que em Roma não lhe faltaria consideração. Tor-
nou-se evidente que o zelo de Roma não estava, em cum-
prir a dura lei canônica, nem mesmo a mais simples
moralidade, mas se concentrava no lucro pecuniário,
no oiro? que vinha atrás das papeladas dos processos
eclesiásticos, falando mais ato e mais convincente que
o ardil do mais fino advogado, ou a citação mais pró-
pria da legalidade canônica.

• I X . A V I D A MONÁSTICA N A IDADE MÉDIA

A vida monástica, que começou no terceiro perío-


do, neste recebeu o seu maior desenvolvimento.
Pode-se mencionar como razões do espantoso de-
senvolvimento do viver monástico nos tempos medie-
vais as seguintes: Crença geral de que a vida monás-
tica era uma vida de méritos; perfeita adaptação dás
ordens monásticas aos propósitos da hierarquia e o en-
corajamento que os papas, no seu próprio interesse,
lhes deram; o estado de anarquia reinante na Europa
medieval, fazendo que muitos fossem buscar nos con-
ventos refúgio tranqüilo e pacífico; a quase ausência
de meios de instrução em tôda a Europa, forçando os
que tinham gosto pelo estudo, a procurar os mosteiros,
248 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

naquele tempo os centros da sabedoria e letras do mun-


do; a oratória entusiástica e glorificadora das supostas
virtudes do viver monástico, cujos arautos eram ho-
mens do talento de Francisco, Bernardo, Benedito e
Domiciano, arrastando muitos para dentro dos mostei-
ros; os favores dispensados aos conventos pelos papas,
tornando-os em situação de desafogo e independência
dos bispos, usando os monges para posições de alta
responsabilidade, dando aos pregadores monásticos, o
direito de pregar e proceder a confissões, sem necessi-
dade de licença dos bispos ou de qualquer autoridade
local.
Os resultados mais notáveis de que foi causa o mo-
naquísmo medieval são: As ordens monásticas absor-
veram quase toda a vida cristã da época; o cultivo das
letras praticado com maior ou menor esmero pelos
monges fêz dos mosteiros reservatórios de cultura e
saber; quase toda a obra de propaganda, proselitismo
e filantropia efetuada durante a Idade Média foi diri-
gida e executada pelos monges; foram ainda os mon-
ges os mais proeminentes escritores, pregadores, teó-
logos e filósofos dos tempos feudais; cabe aos monges
vasto, quinhão na iniciativa das cruzadas, como lam-
bem na direção e responsabilidade de muitas delas, e
na repressão da heresia por meio da inquisição; gra-
ças à grande popularidade de que gozavam os mostei-
ros, amontoaram avultadas fortunas, das quais resul-
tou o desligamento dessas ordens abastadas de elemen-
tos desejosos de um viver simples e flrugal, alheio a to-
dos os gozos do mundo, Èsses elementos desligados,
juntavam-se formando novas ordens; sendo os mos-
teiros os lugares onde residia a maior soma de luzes
e sabedoria dos tempos medievais produziram os ho-
mens mais salientes e eruditos dêsses tempos, como
Erasmo, Tauler, Stauptiz e Lutero. A segurança e efi-
IDADE MÉDIA 249

ciência das ordens monásticas estavam na proporção


de obediência prestada à cúria romana, que lhes dis-
pensava, como recompensa da sujeição à sua vontade,
o privilégio de pensarem como entendessem acêrca das
doutrinas cristãs. Vê-se que a obediência requerida era
mais exterior, dizendo respeitosos negócios e interesses
temporais do papado. A liberdade concedida aos mon-
ges em questões de doutrina e vida cristãs deve-se á
permanência, no seio da Igreja Católica Romana, de
certos elementos cristãos, que podiam viver a vida que
melhor correspondesse ao seu ideal religioso.
Não fôra isto, êstes mesmos elementos ter-se-iam
retirado. Cada organização claustral, embora obede-
cesse cegamente a Roma em alguns pontos, noutros
pensava independentemente, motivando isto certas di-
ferenças radicais em pontos de doutrina-, que separam
umas corporações de outras. Estas diferenças são cem
vêzes mais profundas do que as existentes nas diversas
denominações protestantes. Portanto, a unidade da
Igreja Católica Romana, é mais fictícia e tradicional
que positiva e real. A vida monástica, com as suas prer-
rogativas, conservou num só corpo uma infinidade de
cabeças, que pensam de modo divcrsissimo umas das
outras.
Os próprios escritos católicos, datados da Idade
Média, nos fornecem elementos com que se pode re-
compor o quadro da vida e atividade monásticas da-
quele tempo com as suas diferentes cores e aspectos.
Por um lado vêem-se: heroísmo, negação de si mesmo,
indústria, zelo pelos conhecimentos sacros, cultivo de
letras, simplicidade de vida, entusiasmo missionário,
virtude religiosa, moralidade; por outro lado vêem-se:
indolência, luxo, torpeza e vícios, ignorância, imorali-
dade, licenciosidade, efc. Na literatura monástica o
tipo vulgar de monge é baixo, tanto na vida intelectual
250 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

como na espiritual e moral. A maioria dos que pro-


curavam o silencioso e quieto recolhimento dos mostei-
ros, faziam-no sob a pressão do desprezo público, por
atos indignos que haviam cometido.
As sociedades monásticas cada uma por seu turno,
e á medida que se tornavam mais antigas, iam adotando
costumes sensuais dos quais seus fundadores haviam
tentado libertar-se.
Na sua esfera mais alta, e porventura mais nobre,
a vida monástica medieval aparece-nos com os traços
do exclusivísino, intolerância, superstição e fanatismo.
A subtração de tantas vidas à atividade humana e o
acumulo de vastos capitais para o sustento das diver-
sas corporações monásticas só mereceriam justificativa,
se essas mesmas corporações produzissem em medida
correspondente aos enormes gastos. E duvidoso se os
mosteiros, apesar de fazerem uma espécie de mono-
pólio das letras, tanto no cultivo como na transmissão
das mesmas aos favorecidos da fortuna, compensavam
os prejuízos causados â marcha do progresso humano,
quer sob o ponto de vista da organização da família,
quer sob o ponto de vista econômico.
O recolhimento dentro das altas paredes dos mos-
teiros de milhares de criaturas, peneiradas da suposta
virtude da vida clauslral, eclipsou a dignidade e o justo
valor da vida doméstica. O crescimento da população
que teria sido um fator poderoso para o desenvolvi-
mento da Europa medieval, estacou impotente e íner-
me, diante da grossa barreira levantada pelo mona-
quismo. Por outro lado, a prostituição, os nascimen-
tos ilícitos, os infalícidios., os abortos criminosamente
provocados, proliferaram 'assustadoramente por toda
a parte, como inevitável resultado do rebaixamento
dos lares e do predomínio do celibato obrigatório e da
vida monástica.
IDADE MÉDIA 261

Apesar de a vida monástica haver nascido no Ori-


ente, o seu desenvolvimento f o i mais rápido no Oci-
dente. A ordem dos Beneditinos, fundada em 529 por
Benedito de Núrsia, reformada e robustecida em 817
por Benedito de Aniano, teve uma grande revivifica-
ção no meado do século doze. Ctunia, fundada em 019,
foi a ordem proeminente do século dez em diante. Já
no meado do século doze havia dois mil conventos su-
bordinados a Ciugny, principalmente na. França. A or-
dem dos Cistercianos (convento de Citeaux) f o i criada
em 1098 pelos beneditinos mais pios, afim de fugirem
ao luxo e corrupção dos mosteiros já muito ricos. Ber-
nardo de Clairvaux deu uma nova feição a esta ordem,
durante os primeiros anos do século doze. Os Carme-
litas, ordem fundada no monte Carm elo em 1209; e re-
conhecida pelo Papa em 1224, devem a sua criação às
cruzadas, de que foram eles zelosos combatentes. As
grandes ordens de pregadores. Dominicanos e Francis-
canos, foram fundadas durante os primeiros anos do
século treze (1216-1223) por influência, de Inocèncio
III, porém, só receberam incondicional aprovação do
Papa em 1223. Nascidos numa época em que as idéias
opostas ao Cristianismo papal se espalhavam pela Fran-
ça, Itália, e muitos outros lugares, constituíram o maior
e mais forte elemento que a hierarquia tem tido para
repressão da liberdade de pensamento, Os francísca-
nos (minoristas) foram os emissários do emocionalismo
e da piedade ascética. A eloqüência que realmente cul-
tivavam e o ascelismo descomunalmente praticado vi-
savam antes do mais atrair às igrejas as multidões in-
diferentes. Os Dominicanos representavam um tipo de
vida e trabalho sobretudo intelectual. P o r isso dispu-
taram a primazia teológica, distinguindo-se pelo seu
conhecimento literário e teológico e como fundadores
e diretores da inquisição.
264 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

veio agravar a siíuação, jà crítica, de milhares de pere-


grinos. Esta triste condição acrescida com as injustiças,
roubos e atos sacrílegos praticados aos pobres viajores
iludidos, tornou-se por fim notória em tôda a Europa, fa-
zendo compreender ao nosso tempo que estas arrisca-
das viagens só prestavam para desiludir uma geração
de aventureiros e senlimentalistas.
As cruzadas terminaram, enfim, sem terem con-
seguido a meta desejada, conquanto tivessem sido mn
sorvedouro de vida e de riquezas.
Pedro, o Eremita, quando de volta de uma pere-
grinação, foi aconselhado por Urbano II a percorrer a
Europa, pregando a cruzada, mostrando como os cris-
tãos eram perseguidos na Terra Santa. O zelo com que
pregou a guerra santa e o modo entusiástico como foi
acolhido por tôda a parte foi um testemunho frisante de
como a Europa estava de acordo com o Papa. Esta prova
de obediência à Igreja — que era o que mais interes-
sava ao papado — advertiu a Urbano de que qualquer
projeto seria bem aceito pelo povo. Urbano mesmo fêz
um discurso perante o concilio de Clermonte (1095) no
qual prometeu a todos os que se alistassem nas campa-
nhas, plena remissão de tôdas as multas e penitências
a que tinham sido sujeitos pelos pecados passados, pro-
metendo também a proteção imediata de Pedro, Paulo
e da Santa Igreja a cada um combatente e suas pro-
priedades, e para dar mais coragem aos pugnadores,
ameaçou com o anátema a todo aquêle que por ven-
tura os maltratassem.
O entusiasmo com que o povo recebeu a ordem de
marcha para a guerra, não passou despercebido aos
príncipes. O Papa fêz circular as Tréguas dc Deus en-
tre (odos os príncipes europeus, convidando-os a to-
marem parte na conquista da Terra Santa. Tão grande
IDADE MÉDIA 255

era o fervor, que a maior parte pôs logo as suas rique-


zas, armas e vida à disposição do Papa.
Pessoas que jamais poderiam solver seus débitos,
foram desde logo consideradas quites. Os cárceres fo-
ram abertos e os prisioneiros incluídos entre os cruza-
dos. Diz-se que um número nunca inferior a 600.000
homens, afora mulheres e crianças, embarcou na pri-
meira cruzada.
0 modo, porém, como se portaram na viagem não
só mostrou que o sentimento que os unia não era sin-
cero, mas, ainda, contribuiu para a sua derrota. Os
países por onde passaram foram alvo de tôda a sorte
de pilhagem, não escapando nada que fôsse objeto da
cobiça devastadora, o que fêz com que fossem quase
exterminados os poucos que tinham ficado desta pre-
matura campanha. Foram também em grande número
reduzidos pela peste que se manifestou nos seus acam-
pamentos.
Enquanto esta primeira cruzada era assim aniqui-
lada antes de chegar ao campo de suas operações, ou-
tros povos se armavam para o mesmo fim, conseguindo
chegar a Jerusalém e sitiá-la, caindo a cidade em seu
poder em 1099. Apenas escaparam cêrca de 40.000 para
participarem da vitória. Èste sucesso, entretanto, foi
temporário e parcial; aproximava-se o dia da desilu-
são.
Durante vinte anos umas nove cruzadas se reali-
zaram, cada qual com a maior soma de prejuízos quer
de homens quer de dinheiro.
Em 1212 efetuou-se uma cruzada composta de cri-
anças, dirigida pelo menino Estêvão, em que tomaram
parte 30.000, tôdas da França, partindo cheias de en-
tusiasmo e sem terem a menor noção do perigo a que
se expunham. O desfecho desta empresa fatídica, foi
o total aniquilamento dos infantes que nela tomaram
256 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

parle; uns pelo rigor do tempo, outros por privações


que lb.es sobrevíeram; outros, conseguindo passagem
para o Oriente, foram presos pelos árabes e vendidos
como escravos.
Quanto aos resultados permanentes das cruzadas
podem-se mencionar os seguintes: O aniquilamento de
quase todos os senhores feudais, enfraqueceu extraor-
dináriamente o feudalismo e preparou o caminho para
a centralização monárquica e fundação das grandes na-
ções .
Para o papado foi a época áurea de aquisição de
riquezas, e estabelecimento do poder papal. Os prín-
cipes que na maioria dos casos tomavam a direção das
cruzadas, querendo torná-las fortes e eficazes, e não
dispondo de meios pecuniários, para esse fim, hipote-
cavam os seus domínios â Igreja, que no começo deste
movimento havia oferecido qualquer importância sob
esta condição. A maior parte não voltava mais e os seus
bens já empenhados tornavam-se propriedade papal.
Outros, querendo tornar mais segura a sua salvação
no caso de morrerem em combate, legavam todos os seus
bens à Igreja. Por este processo a Igreja chegou a pos-
suir um terço das riquezas da Europa.
O grande impulso dado pelas cruzadas ao comér-
cio entre o Oriente e o Ocidente, fêz conhecidos os pro-
dutos orientais na Europa e vice-versa, trazendo gran-
des resultados especialmente para o Ocidente.
As letras, as artes e as ciências que os orientais
cultivavam com esmerado gosto, foram ínportadas
para o Ocidente onde se fizeram sentir os seus resul-
tados benéficos. A fundação das grandes universida-
des da Idade Média foi sobretudo obra das letras ori-
entais trazidas pelas cruzadas, de cujo influxo tam-
bém se ressentiu a Renascença.
IDADE MÉDIA 257

Da mesma forma que as cruzadas contribuíram a


principio para o fortalecimento do poder papal, foram
no fim, a causa do seu enfraquecimento. Os papas em
face das vantagens que elas lhes trouxeram, continua-
ram a advogar uma causa inteiramente impopular, O
resultado foi o descontentamehtò geral; e o despertar
das' inteligências antes adormecidas obrigou os ho-
mens a pensarem por si, e a proclamarem a liberdade
de pensamento, enquanto que grandes empresas co-
merciais, industriais e as grandes nações, já formadas,
constituíam forte contrapeso ao absolutismo papal e
favoreciam o seu declínio, que doravante marcharia
a passos largos.

X I . A INQUISIÇÃO

As dissensões sempre crescentes na Igreja, provo-


cadas pelo viver desregrado dos papas, bispos, etc., fo-
ram considerados heresia, e esta um pecado mortal,
crime atroz que urgia reprimir a todo o custo. Só um
instrumento como a inquisição poderia satisfazer as exi-
gências do caso. Por muito tempo havia- sido acometi-
do aos bispos o dever de procurar os "hereges" e Pro-
cessa-los. Durante o século doze, como florescesse
espantosamente a imoralidade na Igreja, cresceu tam-
bém a dissidência. Èste estado sempre progressivo ne-
cessitava de repressão séria e sistemática, quer por
meio de pregações, quer pela força civil.
O terceiro concilio de Latrão (1179) decretou a
perseguição sistemática dos "hereges," distribuindo êste
trabalho pelas cartas episcopais. Os próprios leigos fo-
ram obrigados por juramento a dar tôdas as informa-
ções neste sentido, uma vez que suspeitassem de al-
gum, e os bispos foram obrigados a proceder contra os
que desrespeitassem êste juramento sob pena de ex-
comunhão e dcstêrro.

c . a . s . — 17
258 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

O quarto concilio de Latrão (1215) decretou que os


governadores seculares confiscassem os bens dos "he-
reges" e depois os executassem sob i>ena de serem êles
mesmos excomungados, depostos e privados dos seus
baveres, Todos os que protegessem os "hereges" eram
condenados e aos considerados suspeitos foi-lhes dado
o prazo de um ano para apresentarem provas de ino-
cência e no caso contrário seriam condenados como
"hereges" sujeitos às mesmas jjenas.
Em 1233, a inquisição foi declarada um departa-
mento especial do governo papal e entregue aos domi-
nicanos (Domini-canes) com tôda a> autoridade para
procederem desapiedadamente contra todo aquele que
caisse sob sua ação. Os bens confiscados aos "hereges"
eram repartidos com os informantes, pelo que não fal-
tava quem não quisesse ser espião e falsa testemunha.
O rigor desse tribunal sanguinolento era tal que aos in-
felizes acusados, não era sequer permitido conhecer
os seus acusadores ou testemunhas falsas.
Isio dava ainda lugar a que o papel de verdugo
se tornasse mais fácil, visto ser possível acusar quem
quer que losse sem o risco de sair das trevas.
O resultado efetivo da inquisição em qualquer
pais dependia do maior ou menor servilismo dos go-
vernadores seculares ao Papa. Os países latinos — a
França, a Espanha e a Itália, — foram os lugares em
que este fatídico tribunal fêz maiores proezas, visto a
exírema catolicidade dos governantes e súditos.
Não se respeitava o rico nem o pobre, o criminoso
ou inocente, mas todo o que incorria nas iras dos de-
tentores desta empresa demolidora, sofreria morte atroz
fogo que não lhes fôsse possível defender-se a gosto
dos inquisidores. Mulheres indefesas com filhinhos nos
braços eram entregues às fogueiras sem que os seus la-
meníos pudessem comover os carrascos. Não prelen-
IDADE MÉDIA 259

demos registrar aqui todos os bárbaros crimes desta


invenção papal, visto ser necessário limitar ao mínimo
as narrativas e mesmo porque elas são do domínio uni-
versal .
Os países em que a inquisição nunca chegou ao
auge da perversidade foram os teutônicos. Todavia,
muitos foram sacrificados â sua causa. A Igreja Cató-
lica Romana jamais se purificará da mancha destas
tragédias sanguinárias. Quanto aos efeitos da inquisi-
ção podem-se mencionar: Todos aquêles que direta- y
mente operaram nesse trabalho ficaram de tal modo
embrutecídos que nada os comovia. A inquisição rea- y
giu poderosamente contra todos os atos da lei civil
como contra tôda administração, chegando quase a
neutralizar completamente os efeitos benéficos e civi-
lizadores que o direito romano cristianizado tinha pro-
duzido nos primeiros tempos. Os homens tornaram-se
feras e os sentimentos que caracterizam um povo ci-
vilizado foram todos de somenos importância. Esti-
mulou e intensificou poderosamente o dissentimento
da hierarquia, que aliás não podia deixar de ser con-
siderada como idéia anti-cristã por aqueles que conhe-
ciam alguma coisa do evangelho. Obrigou os diversos y
grupos de cristãos evangélicos a aperfeiçoarem sua or- V
ganização e a empregarem métodos secretos de propa-
ganda religiosa. O receio da morte metamorfoseou-se
numa destemida coragem e a Europa encheu-se de
agências secretas evangélicas que iam assentar os seus
arraiais mesmo à sombra da inquisição. De mãos da-
das com as constantes dissensões evangélicas da igreja
papal, o ascetismo e a infidelidade cresceram e ma-
nifestaram-se em revoltas contra a atrocidade papal e
o dogmatísmo. A inquisição, pode-se afirmar, preparou
o terreno para a revolução protestante. A consciência
cristã havia sido insultada e tarde ou cedo explodiria
a sua reação.
254 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

X I I . AS UNIVERSIDADES DA IDADE MÉDIA

As sim|)les escolas monásticas e catedráticas dos


primeiros anos da Idade Média achavam-se transfor-
madas em universidades nos últimos anos deste P e ri-
odo. O trioium (gramática, retórica, lógica) e o guar
(trimam (música, aritmética, geometria e astronomia)
das escolas mais antigas, foram transformados em cor-
porações para o ensino prático de tôda a ciência. Estas
gozavam o-privilégio de aulo-govèrno, recebendo ainda
muitos outros favores dos papas e governadores tem-
porais. Em princípios do século treze voltaram a ser
reorganizadas, dando-se-lhes uma feição mais perfeita.

A universidade de Bolonha foi fundada em 1158, a


de Montpelier em 1880, as de Paris, Oxford e Salerno
em 1200. No século treze fundaram-se 8; no catorze,
20; no quinze, 20 e no dezesseis, 2.
A de Paris tornou-se notável em teologia, a de Bo-
lonha em direito, e a de Salerno, em medicina. Passa-
ram-se os primeiros anos quase cm inação; limitavam-
se apenas as recém-fundadas universidades a preservar
os antigos conhecimentos, discuti-los e a ensiná-los; não
havia aquele espirito de investigação tão vivaz e co-
mum nos tempos posteriores.

A literatura era abundante, notadamente a literatura


eclesiástica e teológica. A língua predileta dos es-
critos de vulto era o latim. A literatura verná-
cula, que começara a aparecer na França, Alemanha,
Inglaterra e Itália, veio preparar o caminho para a de-
cadência da lingua latina.
IDADE MÉDIA 261

XIII. TEOLOGIA E CULTO CATÓLICO DA IDADE


MÉDIA

1. O Escolasticismo

O tipo da teologia predominante neste periodo foi


chamado escolástica, por se haver originado nas esco-
las. Seu alvo não foi descobrir ou desenvolver novas
verdades, mas a justificação lógica das existentes na
Igreja. Os métodos empregados na análise foram a ló-
gica dedutiva, dialética e especulativa, dividindo-se a
matéria em assunto geral, pontos principais e sub-pon-
tos até que a matéria ficasse plenamente destrinçada.
A matéria submetida à análise consistia em frases
dos padres, dogmas da Igreja, os cânones dos concílios,
os decretos dos papas, etc.
As conclusões eram confirmadas com citações dos
padres, de Aristóteles, e às vêzes da Bíblia. Nenhum
assunto era considerado tão vasto ou tão insignificante
que não carecesse de análise e explicação. Èste processo
em nenhum sentido foi teologia bíbiica, tanto assim
que, poucos anos depois, degenerou em trivíalidades.
As principais questões discutidas eram a pessoa,
natureza e atributos de Deus; a Trindade; a relação de
Deus para com o mundo, etc.
Ainda que o sistema escolásííco nada conseguisse
criar ou descobrir, todavia teve sua importância na his-
tória da educação, pelo desenvolvimento lógico que
deu âs faculdades intelectuais. Foi prejudicada, porém,
a sua ação, desde que a sua forma externa de teologia
chegou a ser considerada de suma. importância com
prejuízo do verdadeiro espirito do Cristianismo. Ade-
mais, a escolástica, sendo um produto do papado e as-
similando mesmo o seu espirito, tornou-se um dos mai-
ores baluartes, e através dos tempos tem sido um pode-
roso fator contra qualquer reforma dentro da Igreja
262 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

Católica Romana. O caráter frivolo da teologia medi-


eval, junto ao formalismo que acompanhava todos os
seus passos, deu origem às revoltas evangélicas, a esse
tempo tão comuns, ao misticismo, ao humanismo e fi-
nalmente á revolução protestante.
Antes de findar o periodo pode-se dizer que a te-
ologia católica foi praticamente fixada. Foi esse o se-
gundo periodo importante da discussão e formulação
da teologia, tendo sido o primeiro no quarto e quinto
séculos. No primeiro período formularam-se as dou-
trinas aceitas por quase tôda a crístandade; neste, as
doutrinas distintivamente católicas, que separam aquela
igreja das evangélicas, tais como: as da transubsian-
ciação e da aspersão em substituição á imei*são, adota-
das no concilio de Latrão (1215); e as do purgatório,
dos sete sacramentos e das indulgências, etc., formu-
ladas no concilio de Trento.
O sacrifício da missa como centro e coração do
culto católico, firmou-se nesse periodo. A cerimônia
consiste na recitação em latim de textos bíblicos acom-
panhada de ações simbólicas representativas das di-
versas fases da paixão de Jesus, desde que foi prêso
até a ascensão. No meio da cerimônia, o pão e o vinho,
que no ato da sua consagração são "transformados em
corpo e sangue de Crisio," tornam-se objetos de ado-
ração. Pouco a pouco o pão foi negado às crianças, que
antes tomavam o sacramento, e o cálice negado ao leigo
para evitar o derramamento do "sangue de Cristo." A
hóstia, colocada na língua do recipiente pelo sacerdote,
é considerada sagrada e, por isso, é pecado mortal re-
tirá-la sob qualquer pretexto. Guardam-se sempre nas
igrejas algumas hóstias consagradas para servirem aos
doentes em caso de morte. Doravante a missa é o mis-
tério mais sagrado do culto católico.
Devido à propagação das cruzadas e â atividade
dos grupos evangélicos, especialmente no sul da Euro-
IDADE MÉDIA 203

pa, que faziam grande uso do sermão, a pregação teve


ressurgimento nesse periodo. A ordem dominicana f o i
expressamente organizada para êsse fim e os seus mem-
bros tomaram o nome de "irmãos pregadores",
Dias especiais começaram a suplantar o domingo,
dia do Senhor, sendo um santo designado para cada dia.
A adoração da hóstia foi decretada em 1217 e a festa de
Corpus Cliristi ein 1264. No décimo segundo século in-
seriu-se o nome de Maria na liturgia e começou-se o
uso de Ave Maria e a celebração tia Imaculada Concei-
ção =
Mas, o que foi mais notável no período foi o grande
impulso dado à arquitetura eclesiástica. Muitas das
matrizes mais célebres da Europa — Cantuária, York
Kt Durham, na Inglaterra; Notre Dame e Rheims, na
França; Estraburgo, na Alemanha; Milão, na Itália,
etc., — foram construídas nesse tempo. As igrejas eram
grandes e ricamente ornamentadas; sua construção as-
saz custosa em tempo e dinheiro, algumas levando até
gerações, porém, mal adaptada à pregação e ás ativi-
dades religiosas de hoje. Serviam tanto para o culto
como de cemitério. Geralmente foram construídas de
pedra cuidadosamente esculpida no exterior com tor-
res pesadas, acabando em pontes e ad'ornadas com ad-
miráveis janelas de cristal artístico. No interior havia
corredores amplos com uma abóbada sustentada por
pilares.
A Igreja Católica do período produziu um bom
numero de teólogos notáveis que até o dia de hoje são
reverenciados naquela Igreja. Entre os mais ilustres
podem-se mencionar: Anselmo (1058-110,9), italiano, de
grande saber e vida piedosa, que chegou a ser arce-
bispo de Cantuária, Inglaterra, e cuja fórmula da dou-
trina da expiação é hoje aceita pela maioria da cris-
tandade, tanto' católica como protestante; Abelardo
(1079-1142), francês, um dos mestres mais famosos de
258 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Iodos os tempos; Bernardo de Clairvoux (1091-1153),


outro francês, grande escolástico, pregador e compo-
sitor de hinos; Pedro Lombardo (1100-1164), que edi-
tou o livro de teologia mais famoso da Idade Média;
Tomás de Aquino (1227-1274), um dos pensadores mais
profundos, escritor dos mais profícuos e o teólogo de
mais influência na história da Igreja Católica; João
Duns Scotos (1266-1308), escocês, sutii, dialético e atre-
vido prosador O anlagonismo dos dois últimos divi-
diu o mundo católico em duas escolas hostis, durante
vários séculos, denominadas tomista e escotista.
Abelardo loí a figura mais interessante de todos
os lideres escolaticísmo. Desde a infância deu pro-
vas de talento admiráveis- Foi aluno do famoso Ros-
cclino de Compiegne e Guilherme de Champeaux. Rom-
pendo com êste, Abelardo fundou em Pa ris a A ba dia
de Sanla Genoveva, perto da famosa San Vitor, da qual
Guilherme era diretor, roubando-ihe os discípulos. A
eloqüência com que ensinava, o conhecimento profundo
da lingua francesa, a destreza lógica com que argüia e
o magnetismo pessoal lhe atraiam estudantes de tôda
a parte da França, Inglaterra, Espanha e mesmo de
Roma. A oposição de Guilherme de Champeaux for-
oou-o a deixar Paris, para onde mais tarde voltou e es-
tabeleceu ou ira escola, cujas aulas logo se encheram
de estudantes. Não tardou em ocupar o primeiro lu-
gar como teólogo na Europa. Seus discípulos adora-
vam-no e aceitavam suas opiniões como conclusivas.
Diz Guízot: "Desta famosa escola saíram um papa, Ce-
lestino II, dezenove cardeais, mais de cinqüenta bis-
pos e arcebispos franceses, ingleses e alemães e um
número muito maior de indivíduos contra os quais os
papas, os bispos e cardeais tiveram que lutar, tais como
Arnaldo de Brescia e outros." Calcula-se que o nú-
mero de estudantes que freqüentaram as aulas de Abe-
lardo passaram de cinco mil.
IDADE MÉDIA 265

O grande mestre chegara a seu apogeu. Um cône-


go, por nome de Fulberto, empregou-o como mestre
particular de sua ilustre sobrinha, Eloisa. O amor mú-
tuo que se desenvolveu resultou em escândalo e casa-
mento secreto. A insistência de Eloisa, que preferia a
desonra antes que seu consorte perdesse a alta posi-
ção que ocupava, levou Abelardo a fazer os votos dum
monge e ingressar no mosteiro de São Dionisio. Eloisa
tomou o voto das freiras de Argenteuil. Èle continuou
ensinando e escrevendo, com o espirito quebrantado,
mas rodeado de grande número de admiradores.
Abelardo foi acusado de heresia por Bernardo de
Clairvaux e fêz as pazes com a Igreja Romana, liumi-
lhando-se abjetamente e retratando-se dos erros de que
fora acusado. Tinha forte inclinação para o racionalismo
e era forte combatente, mas sem a coragem moral de
que são feitos os mártires. Tinha acentuada inclinação
contra a autoridade da Igreja, mas faltava-lhe a cora-
gem para manter sua posição. Sem dúvida Abelardo
de coração era cético e seu método de argüir promo-
veu o ceticismo e a dissidência.
Mas, sem contestação, a figura mais saliente e mais
interessante da galeria de teólogos escolásticos dessa
época é Tomás de Aquino, o "doutor angélico", Na sua
obra capital, "Suma Teológica", de alta nomeada na
Igreja Católica Romana, está realmente encerrada tôda
a soma do pensamento medieval. Discípulo do "dou-
tor universal," Alberto Magno, excedeu Tomás ao mes-
tre, na assimilação dos escritos de Aristóteles e na ada-
fação dos mesmos à teologia medieval. Exaltou a teo-
logia como senhora de tôdas as ciências e usou as Es-
crituras mais do que qualquer outro teólogo seu con-
temporâneo, embora só o fizesse para confirmação do
dogma eclesiástico. Encarnou com tôda a perfeição o
principio de subserviência â autoridade eclesiástica, e
260 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

dai é que seguramente se deriva a proeminência que


o seu ensino ocupa rja Ig re .ía Romana. A tirania do
eclesiásticísmo teve no erudito Tomás de Aquino um
baluarte forlissiniW Filósofo de fino quilate, teria f i -
gurado com relevo entre os sutis sofistas da Grécia.
Dêle há argumentos memoráveis. Repeliu como ab-
surdas certas teorias de Platão, e baseou grande parte
da sua argumentação filosófica em Aristóteles. 0 ilus-
tre dominicano morreu em 1274.

2. 0 Misticismo medieval

0 crescimento do sacramentalismo, ligando a graça


salvadora a meras cerimônias e fórmulas exteriores, e
ainda, fazendo do sacerdócio o único meio possível de
se obterem os favores celestiais, tendia a destruir cada
vc:^ mais a comunhão intima que cada alma deve man-
ter com o seu Deus. O triste resultado dessa criação
doutrinária foi a tardia desilusão dos que inadvertida-
mente a aceitaram e seguiram. Dizemos tardia, porque
uma vez reconhecida a necessidade de mudar de pen-
samento era preciso acarretar com dificuldades que
doutro modo podiam ser evitadas.
A grande maioria dos místicos mais eminentes
eram fiéis dominicanos alemães. E* deveras interes-
saníe notar que, enquanto na França, Itália e Espanha
o zelo dominicano se manifesta na desumana perse-
guição aos dissidentes, na Alemanha, pelo contrário, se
rcvelaiva numa profunda contemplação do amor de
Deus e na procura da união íntima com os céus, entre-
gando-se alguns às mesmas práticas e doutrinas dos dis-
sidentes perseguidos pelos dominicanos franceses, es-
panhóis e italianos.
Muitos daqueles foram ao extremo, Julgando que
realmente gozavam intima comunhão com Deus, afir-
mavam falar por inspiração divina, chegando mesmo
IDADE MÉDIA 1
267
i

a sobrepor as suas próprias mecütações aos ensinos da


palavra divina. Alguns, devido ] talvez, a 0 mórbido e
vago sentimentalismo que os 'animava, tornaram-se
pan teístas.
Mestre Ecliart (falecido em 1327) e João Tauler
(morto em 1361) podem ser citados como os mais sé-
rios e construtivos tipos representativos dessa corrente
mística que inundou o coração da Europa medieval.
Eckart pertencia à ordem dos frades dominicanos.
Por meio de sermões e escritos êle advogava uma vida
religiosa mais elevada. O tema geral de sua pregação
era que as doutrinas bíblicas são as únicas verdadei-
ras; que o resultado natural destas verdades é a puri-
ficação do coração obtida por meio do exame da cons-
ciência. Deus vive na alma. Contemplamos as coisas
exteriores, ao invés de olharmos ao interior. A pureza
deve estar firmada no coração, desde que Deus não en-
tra onde existem pensamentos impuros.
Diante de pregação tão enérgica, muitos dos sócios
de sua ordem classificaram Eckart como herege, acu-
sando-o de três heresias imperdoáveis: acusar o clero
dc imoralidade; falar decididamente contra o cultb
prestado a Maria; e negar o poder que tem o purga-
tório de purificar a. alma pecadora.
João Tauler (1290-1361) foi discípulo de Eckart.
Gozava de uma popularidade maior que seu mestre.
Usava uma linguagem simples e despertava grande e n ~
tusiasmo nos ouvintes. Sobrepujou os demais místicos
da Idade Média em fervor, em simpatia para com a
massa popular e na firmeza de sua crença na doutrina
da justificação pela fé. Neste respeito foi mestre de Lu-
tero. De Estraburgo como centro de sua atividade mi-
nisterial, Tauler tornou-se o pregador mais eloqüente
e influente do seu tempo. Sustentava que a alma se
acha em uma de três condições: a da natureza, a da
268 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

graça, ou a da santificação. Quando a alma chega a


este último estado, se esquece inteiramente de si mesma
e se submete completamente á vontade de Deus, desde
que a alma humana è como a cera flexível, na qual o
Espirito Santo imprime a sua imagem.
Tauler censurava as pretensões sacerdotais de seu
tempo, advogando energicamente o direito de cada in-
divíduo pensar e sentir por si mesmo. Ensinava que
os cristãos devem exercer seu próprio sacerdócio, uma
vez, que Jesus Cristo mora em cada coração crente.
Não obstante a ameaça de excomunhão, como ha-
viam sido excomungados muitos de seus predecesso-
res cuja linguagem era demasiado severa contra os cos-
tumes de então, continuou sua pregação contra as irre-
gularidades que prevaleciam na Igreja, sem interrup-
ção seria.
Lulcro foi grandemente influenciado pelos escritos
de Tauter, Ao seu amigo Espalatin èle escreveu: "Se
queres aprender na língua alemã a teologia sólida dou-
trora, le os sermões de João Tauler; não tenho lido no
latim nem em outra lingua qualquer, teologia mais aju-
izada nem mais de acordo com o evangelho."

X I V . 0 P A P A D O D U R A N T E A ERA MEDIEVAL
(800-1268)
A coroação de Carlos Magno abriu na história po-
litico-eclesiástica da Europa, um período novo, no qual
os dois poderes, o civil e o papal, aparecem intima-
mente ligados, em busca do ideal comum de poderio
e domínio.
Leão III (795-816). — O periodo começa com Leão
I I I assentado na cadeira pontificai. Leão mostrou-se
favorável à coroação do grande rei franco, e foi de suas
próprias mãos que Carlos Magno recebeu, em Roma, a
coroação imperial. Èste fato ocorreu em 800. Bem agi-
\
IDADE MÉDIA ! 269

taclos foram os dias do pontificado de Leão III em vir-


tude da oposição que lhe m o v ê r a m o s seus adversários.
Findou em 816.
Estêvão IV (816-817). Deste pontificado é digna
de ser evidenciada a circunstância de Luís, o Pio, co-
roado por Estêvão, em Roma, ter mostrado pelo Papa
uma consideração elevadíssima.
Gregório IV (827-841), Foi nos dias deste Papa
que apareceram falsos documentos a favor da prerro-
gativa papal. Nos últimos anos, Gregório teve de se
ocupar seriamente da defesa de Roma contra os sarra-
cenos.
Nicotan 1 (858-867). Èste pontífice ascendeu â ca-
deira papal num momento de agitações e desordens.
Aproveitando-se dos documentos falsos a favor da
absoluta soberania e irresponsabilidade do papado, an-
teriormente manipulados, e do estado de desintegra-
ção, esta motivada pelo feudalismo, Gregório procu-
rou firmar os direitos de supremacia do Papa e de sua
jurisdição suprema. Dois casos importantes de apela-
ção a Roma foram a confirmação prática dêsses direi-
tos.
Adrião II (867-872), Ainda que fôsse homem há-
bil e de iniciativa, não conseguiu Adrião II dar ao pa-
pado a influência atingida pelo seu antecessor.
João VIII (872-882), As circunstâncias, das quais
a mais notável foi a ameaça sarracena, fox-çaram João
V I I I a pedir ao novo imperador, Carlos, a sua prote-
ção. Morto êste, o Papa teve de sujeitar-se á aceitação
de humilhante tratado com os sarracenos.
Papas de 882 a 903. Êste período caracteriza-se
pela torpe degradação em que rastejaram os detento-
res do poder papal.
270 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

0 império earlonvingio, partido e desmembrado,


fragmentou-se em facções hostis. O poder papal en-
fraqueceu-se notavelmente. As eleições pontifícias fei-
tas nesse período, são memoráveis pela torpeza que as
acompanhou. O Papa Formoso, subiu ao poder em 891,
e dois anos depois de sanguinolento pontificado, mor-
reu, provavelmente envenenado.
Estêvão VI, seu sucessor, abrogou-llie todos os atos
pontifícios. Aprisionado e morto, foi eleito Papa Ma-
rino, cujo pontificado durou apenas meses. João X,
feilo Papa, procurou abrogar os atos de Estêvão, e de
fato, abrogou muitos dêles. Leão V» depois de um breve
pontificado, foi morto pelo seu próprio capelão, seu su-
cessor. Mas ao assassino, coube o mesmo f i m trágico,
decorridos apenas oito meses.
De 903 a 9,82. Sérgio 111 abre este periodo, e com
ele começa a influência perniciosa de uma aventureira
de alia linhagem (Moròzia) sôbre o governo papal.
De 936 a 956 o papado esteve sob a influência de Albé-
rico, que nomeou quatro papas. Um filho do mesmo,
sob o nome de João X I I assumiu o oficio papal, sendo
o seu pontificado havido pelos contemporâneos como
um dos mais imorais e licenciosos. Èste Papa morreu
assassinado.
Olão e. o papado. Olão, o Grande, fez sentir a sua
interferência no papado em 983, com a convocação de
um sinodo para depor o imoral papa João XII, e subs-
titui-lo por Leão V I I I . Mas os amigos de João, escolhe-
ram para sucessor do mesmo, durante a ausência de
Olão, a Benedito V\ Otão voltou, reuniu novo sinodo,
depôs Benedito, conservando o direito de interferên-
cia direta nas futuras eleições pontificíais.
Kste direito foi mais tarde aproveitado por Otão
III, que nomeou Papa a Gerberto, sob o nome de Sil-
vestre II (999) , A este sucedeu em 1002, Henrique II,
IDADE MÉDIA 271

que instituiu medidas severas com o f i m de salvar o


clero da dissolução ein que se ia sepultando. Esta ori-
entação foi seguida pelos seus imediatos sucessores,
Conrado 11 e Henrique 111.
Hildcbrando (1073). Depois de uma ascendência
rápida e fácil, na qual ocupou notáveis posições ecle-
siásticas, Hildebrando impôs-se, pela sua fina sa-
gacidade, à investi dura papal. Recebeu-a em 1073, to-
mando nome de Gregório V I I . Dêle diz textualmente
Newman. " F o i inquestionavelmente o maior estadisia
eclesiástico da Idade Média. O espirito do papado en-
carnou-se nêle'\ Seu objetivo foi tornar um fato o do-
mínio universal e absoluto do papado, e sua política
subordinou-se, completamente, a êste propósito. Hil-
debrando soube achar um hábil escritor para fazer a
apologia e defesa dos seus princípios de autocracia pa-
pal. Èste escritor foi Dainíani. Fortíssimo f o i o impulso
que Hildebrando deu ao desenvolvimento das prerro-
gativas pajjais.

Quando as queixas do mundo civilizado contra a corrupção


do governo ponLi-1 íeio mannestavam-se nessa linguagem, que o
mfaiíbilismo romano condenaria hoje como a suma das lieresias,
subia Gregõno V I I ao trono papal, depois de ter preparado ôle
mesmo o terreno aos seus planos teocráticos, mecli'ante a influên-
cia absoluta que exerceu em Nicolan I I e Alexandre I I . A o im-
pulso do seu gemo ao mesmo tempo enérgico e flexível, tôdas as
soberamas temporais, na Europa, são abaladas, invalidadas, ou
usurpadas. Aos condes de Espanha declara que todo o território
dôles era "propriedade de S. Pedro' 1 - ao rei de França ameaça com
a desobediência dos súditos; ao da Hungria afirma que "aquôle
remo pertence à igreja romana'1.; em pouco tempo reparte as co-
roas da Alemanha, Hungria e Polônia; 'depõe Nicéforo I I I ; f a z do
rei da Boêmia tributário seu; apoia a tôdas as usurpações, no
mí.uifo de obter um aliado em cada usurpador; e trava contra
Henrique IV essa porfiada guerra, principiada sob o hábil p r e -
texto das investiduras, envenenada pela recente imposição do
272 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

reUluúo clerical, peía soiene deposição do papa 110 concilio alemão


tli> Worm? e no concilio italiano de Pávia, pela bula pontifícia
que depôs o rei da Alemanha, e desobrigou-lhe os súditos do j u -
ramento de fidelidade, e tenazmente mantida, no meio da mais
tremenda anarquia, não obstante a desonrosa humilhação de Hen-
rique.
Na memória de todos eslão os recursos de astuta diplomacia
empregados pelo ambicioso pontífice, e as peripécias aconteci-
da,-, na luta enlre os dois reis, desde a eleição Mo duque de Suá-
bia até à morte, na batalha de Merseburgo. O que cumpre notar,
pnrém, (; que apesar do concilio de Brixen, em que se decretou
análema contra llildebrando, o mgroinan te, o monge -pass es so do
espirito infernal; apesar dos irreparáveis revéses que lhe trouxe
a sita política ide calculada tergiversação entre os dois competi-
dores imperiais; anula assim, vencido, proserito, errante, aca-
brunhado, Gregório V I I deixou, nas suas doutrinas, à Roma pa-
pal uma Lradição que até hoje não cessou de ser a aimla da Igreja
Romana O , "Ainda quando," escrevia èle ao clero e nobreza do
império teutònico, "aüijda quando se demonstrasse que excomun-
giimos o príncipe sem motivos bastante, e contrfei as .'ormas que
i s Santos P a d r e s . . " "Se a santa sé", dizia por êsse mesmo tem-
po, num breve a Hermann, bispo de Melz. "se a santa sé recebeu
de Deus o poder de sentenciar as coisas espirituais, por que não
há de sentenciar também ;as t e m p o r a i s ? . . . Quando Deus disse a
Pedro: Apascenta as minhas ovelhas, abriu exceção para os
reis? Tão acima eslã da realeza o episcopa;do, quanto o ouro do
chumbo: bem o sabia Constantino, quando, entre os bispos, to-
mava o derradeiro l u g a r . " "Se a sé de S. Pedro," dizia êle, "deci-
de e sentencia 'as coisas celestes e espirituais, não decidirá e sen-
tenciara por venLura as mundanas e seculares? Deus, conferindo
a S. Medro o supremo direito de ligar e desligar no céu e na ter-
ra, não exceluou a ninguém, a ninguém eximiu da sua autorida-
de : todos os principados, tôdas as potências do orbe lhe Subme-
teu = Deste modo Cristo, o rei da glória, .eonsíituiu-o chefe dos
apóstolos, senhor dc todos- os reinos do mundo. Genii o é todo o
que recusa obedecer à sé apostólica; e os soberan-os, que tenham
a audácia de desprezar o? decretos da santa sé, decaem da difjnu

(8) Ruy Barbosa, O Papa e o Concilio, pgs. 29-30. Edição


de 1930.
IDADE MÉDIA 273

ttade real. Procedem os reis e os príncipes de homens, que, des-


conhecendo a divindade, e movidos pelo diabo, force jam por do-
minar os seus semelhantes, entretanto que o pontificado insti-
tuiu-o a Providencia por honra .sua, e o deu ao mundo por u m
ato de misericórdia O .

•A politica do partido de Hildebrando foi libertar o


papado e a Igreja em geral da interferência dos lei-
gos; reduzir a absoluta sujeição ao Papa todos os me-
tropolitanos, bispos, abades e os demais elementos do
clero; obrigar os reis e príncipes a agirem no interesse
do govêrno papal.
Pelo concilio de Roma (1059) foi decretada: (a)
A nomeação dos papas pelos bispos cardeais, sancio-
nada, pelo clero cardeal e depois, aprovada pelo clero
inferior e os leigos. Um anátema terrível, incluindo
excomunhão, " a ira do Pai, Filho, Espírito Santo e a
indignação dos apóstolos Pedro e Paulo," è pronunci-
ado sôbre os que impugnarem êste decreto, (b) Ne-
nhum oficial da Igreja, sob pretexto algum, pode acei-
tar benefício algum de qualquer leigo ou ser chamado
a contas ou dar conta a jurisdição leiga, (c) Nenhum
cristão pode assistir a missa rezada por padre de quem
se saiba ter concubína. Èste último ponto incluía os pa-
dres casados, pois ao ver do partido hildebrandino, não
havia distinção entre o clero casado e o concubinato.
Apesar de renhida oposição, Hildebrando executou
a risco esses decretos. O clero casado foi estigmatizado
de concubinato, os bispos e abades que receberam no-
meação por influência leiga foram depostos e substi-
tuídos por outros sob a absoluta dominação papal. Os
soberanos que resistiram â submissão ao Papa, como
foi notado na citação de Ruy Barbosa, pagaram caro.

( 9 ) Gregório *VII, Epüt. IV, 26, 2, 23. 24; V I I , 6, I, 63;


V I I I , 21, citação de Ruy Barbosa, 0 Papa e o Concilio, pgs. 30-31.
E d . de 1930.

c . a . s . — 18
, 274 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS IDADE MÉDIA 275

a seguinte fórmula, conhecida como a concordata de


No entanto a vitória de Hildebrando nunca f o i com-
W o r m s , entre o papa Galixto e o imperador Henrique
pleta nem permanente. Henrique, recuperando as f o r -
V : (a) Eleição dos bispos e abades, dentro do territó-
ças, tomou Roma e destronou-o e o célebre Gregório
rio imperial, feita com a presença do imperador, sem
" v i l morreu no exílio.
simonia ou qualquer coerção, tendo o imperador o di-
Controvérsia sôbre a investidura. O vocábulo in- reito de decidir as eleições disputadas, (b) O bispo ou
vest idnr a significa o ato de dar posse de cargo e a ce- abade eleito receberia do imperador o bastão ou cetro,
rimônia que acompanha o ato de dignidade eclesiás- emblema do poder temporal, e do Papa o anel, em-
tica. A controvérsia sôbre a investidura originou-se em blema da investidura nas funções eclesiásticas, (c) O
torno da nomeação e posse dos bispos, abades, etc. Papa havia de absolver todos os eclesiásticos depos-
Desde o inicio do feudalismo, os bispos e abades tos por causa da sua afiliação com o imperador, e êste
feudais recebiam benefícios dos chefes políticos, go- devolveria as terras que pertenciam à sé de Roma e
zando os mesmos privilégios e imunidades gozados daria lodo o apoio ao P a p a .
pela nobreza secular, e, por sua vez, participavam igual- Não se f a z mister adicionar que nem um nem ou-
. mente de legislação e administração e prestavam o tro cumpria a sua palavra, senão quando lhe era con-
mesmo voto de fidelidade ao seu chefe. Os reis que veniente. As vantagens imperiais da concordata foram
i doavam terras extensas aos bispados e abadias não po- abrogadas em 1125 por Lotário III, como preço do apôio
diam deixar a administração dessas terras cair em prestado ao imperador que se achava em difícil situa-
mãos liostis ou indiferentes, e por isso, empossavam na ção.
administração destas propriedades somente aqueles
Alexandre III (1159-1181), A eleição pontificai de
que lhes eram fiéis, se não subservientes. Foi contra a
Alexandre I I I foi das mais ruidosas. Tôda a Europa
escolha e domínio destas dignitárias por parte dos
se agitou. Alexandre, recusado pelo concilio que deci-
. príncipes que Hildebrando e seus sucessores reagiram.
diu a favor do candidato Vítor, apelou para as nações.
Receber investidura dos governadores civis foi decla-
Vítor era o candidato de Frederico Barbarroxa, que se
rar simonia — venda de coisas sagradas (10)^ — que
achava senhor da cidade de Roma. Uma nova tenta-
desqualificava, o clero do exercício das funções ecle-
tiva de invasão, chefiada por Frederico, falhou, e o i m _
siásticas, sendo também considerada usurpação sacri-
p era d or renunciou as suas pretensões de soberania sô-
,lega cometida pelos príncipes.
bre Roma. Alexandre I I I estava vitorioso.
Depois da morte de Hildebrando a luta entre o im-
perador e o papado continuou com resultados varian- X V , O P A P A D O NO SEU A U G E
tes. O equilíbrio entre o imperador e os reis era esta-
belecido pelos papas ainda mesmo quando estes se Inocêncio III (1198-1216). A Alexandre sucedeu o
achavam exilados, tendo na cadeira pontifícia um papa arguto Inocêncio I I I que aproveitou as prerrogativas
rival de nomeação do imperador. Em 1122 f o i assinada papais, firmando umas e alargando outras. Foi durante
seu pontificado que o poder papal, que envolvia gra-
i, (10) De Sirnão. o mago, que quis comprar aos apóstolos os
dualmente através dos séculos, chegou a seu auge. Ino-
dons do Espirito Santo.
276 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

cêncío I I I rematou-o com os últimos retoques e a es-


trutura completa permaneceu por todo o século.
Inocêncio I I I foi o maior Papa do século treze.
Conseguiu aproveitar as condições favoráveis para a
unificação de todos os elementos e assim tornou o pa-
liado supremo. Foi êle o primeiro pontífice que ins-
tou que o Papa não era somente o representante de
Deus na terra, mas que era o Vigário de Cristo, —
aquêle que faz as vêzes de Deus na terra, — e que como
tal tínlia o direito de empunhar duas espadas, a espiri-
tual e a temporal. Instava que os reis e os príncipes
recebessem seu poder do Papa que tinha o direito
fazer e dispor de reis a sua vontade. Também foi êle
que desenvolveu o interdito — sentença eclesiástica
que proibe a um sacerdote o exercício do seu minis-
tério ou que proibe o exercício do culto da Igreja num
lugar determinado — como uma temida arma moral,
econômica e política. Centralizou a instituição dos le-
gados papais sob o completo controle do Papa, Sub-
jugou a Igreja alemã ao controle papal e assim arre-
batou do Império Germânico o seu melhor sustentáculo.
Promoveu reformas dentro da Igreja, especialmente
quanto a simonia — o viver luxuoso do clero — a su-
perstição, etc. Suprimiu efetivamente a dissidência, es-
pecialmente os albigenses e os valdenses. O quarto Si-
nodo de Latrão, em 1215, o maior da Idade Média, re-
conheceu sua supremacia universal e apoiou suas re-
formas.
Gregório IX (1227-1241). A obra de Inocêncio HI
teve um continuador excelente na pessoa de seu sobri-
nho, o Papa Gregório I X . Gregório IX declarou o do-
mínio papal in universo mundo e sôbre rerum ei cor-
porum, isto é, em todo o mundo, e sôbre coisas e pes-
soas .
IDADE MÉDIA 377

Inocêncio IV (1243-1254). Inocêncio I V prosseguiu


no mesmo rumo dos seus antecessores. Sustentou a ori-
gem divina do poder secular do papado, insistindo no
dever de obediência à vontade papal ainda mesmo que
o Papa ordene um erro.
Clemente IV (1265-1268), Èste Papa assegurou o
direito do papado de fazer nomeações a seu bel pra-
zer,
Gregório X (1271-1276), Gregório X fêz tudo quanto
pôde para promover nova cruzada. No seu pontificado
é que foi declarado incurso na penalidade de excomu-
nhão todo aquele que não recebesse a eucaristia ao me-
nos uma vez por ano. Era o esboço da inquisição nas-
cente.

XVI. DECLÍNIO DO PODER PAPAL

Do século treze em diante começa o suave declí-


nio do papado, para o que concorreram fatos e circuns-
tâncias históricas diferentes. Com o século treze desa-
pareceu completamente o gosto pelas peripécias ro-
mânticas, que foram a alma das Cruzadas — fonte de
tão largos benefícios para o papado. As rígidas fór-
mulas dentro das quais Roma comprimiu todo o seu
conjunto de doutrinas e práticas, tornaram crescentes
as dissidências.;
A corrupção reinante na côrte de Roma, o favori-
tismo e o mercantilismo que presidiam às decisões do
Papa e da cúria, igualmente estimularam a dissidên-
cia. Enquanto isto, a imoralidade dominava o clero,
já sujeito ao celibato, e ás ordens monásticas; e a ca-
deira papal era objeto da ambição mais desenfreada —
dois outros motivos para o descontentamento do povo.
A influência adquirida pelos franceses na Itália e
na Sicília, após a queda dos imperadores germânicos.
278 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

foi sobremodo prejudicial ao papado. Bonifácio V I I I


(1294-1303), subiu à cadeira pontifícia no meio destas
condições tão desfavoráveis ao papado, mas, sem se
adalar a elas, conservou aquele espirito de arrogância
e mandonismo, muito característico dos seus antecesso-
res.
Tentou, em vão, ímpor-se pela excomunhão e pe-
los interditos. Quis intervir na politica européia com
ares de árbitro supremo, mas a sua intervenção foi in-
feliz. Fa.cam a paz — gritou êle, de Roína, à França e
à Inglaterra que então se guerreavam. A luta, porém,
continuou. O Papa lançou interditos e excomunhões
contra a França, mas Felipe, o Belo, em represália, fe-
riu-o onde deveria ferir; proibiu a exportação de ouro,
prata e pedras preciosas.
Em face dêstes insucessos o Papa achou de hom
alvitre mudar de atitude e entrar em bom acordo com
Felipe. Por isso canonizou-lhe o avô, procurando ser-
Ilie agradável. Entretanto, esta sua nova atitude foi
jnúlil, pois tanto a França como os eclesiásticos se co-
locaram no lado do rei. Bonifácio foi então prêso pe-
los agentes de Felipe, vindo a falecer pouco tempo de-
pois.
A sua bula, Unum Sanctnm, publicada por ocasião
dêste incidente, é uma pretensa defesa bíblica da uni-
versalidade do domínio papal.

X V I I . O CATIVEIRO B A B I L ô N l C O (1305-1376)

Depois da morte de Bonifácio a corte papal ras-


tejou na lama da mais pútrida devassídão. Em 1305
foi eleito um francês, Clemente V\ como papa. Êste
não foi a Roma, mas estabeleceu sua corte papal em
Avingnon e tornou-se subserviente a Felipe, rei da
França. Aqui êle e seus sucessores, todos franceses»
serviram por setenta anos como virtuais vassalos da
IDADE MEDIA

França, assim cavando mais fundo o já começado^é-


clínio do poder papal. Tão notórias se tornaram as
condições que os historiadores católicos estigmatiza-
ram o periodo de "Cativeiro Bahilònico do papado."
O Papa tornou-se alvo da antipatia, que se mani-
festava nos escritos dos teólogos, juristas e poetas seus
contemporâneos. Apontavam-no como o anti-cristo,
tendo este movimento anti-papal perdurado até 1378.
A literatura da época está cheia de alusões sarcás-
ticas aos vícios da clerezia e dos frades, e na Alemanha
a exaltação contra a corrupção eclesiástica chegara à
revolta. Foi por esse tempo que rebentaram os movi-
mentos chefiados por W y c l i f f e e João Huss, êste na Bo-
êmia e aquêle na Inglaterra.

XjVIII. O CISMA P A P A L (1378-1449)

Já foi dito que a deslocação da corte papal de Roma


para Avignon fê-la subserviente á França. Aconteceu
então o que era natural num tempo em que a Europa
estava sulcada de inimizades internacionais. A catoli-
cidade européia cindiu-se, ficando uma parte com a
França, e outra com os italianos á frente, hatendo-se
pela volta da corte pontifícia ao seu primitivo lugar.
Aparecem então dois papas, um lançando anátemas e
maldições sôbre o outro, e cada qual julgando-se o le-
gitimo chefe da cristandade.
A situação produzida por esta dualidade de pon-
tífices, tornou-se tão delicada e tão difícil, que levou
a Universidade de Paris, corporação de sumo presti-
gio naqueles dias, a intervir a favor da conciliação.
As bases de sua proposta, apresentada em 1394, fo-
ram: ambos os papas resignarem; a convocação pelo
rei de um concilio geral, que pusesse termo à disputa. \
Pouco tempo depois morreu Clemente, e os cardeais de
Avignon elegeram Benedito XIII, cujo pontificado foi
280 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

um tecido de agitações. Em Roma, Bonifácio ES, Ino-


cêncio VII, e Gregório XII, foram papas sucessivamente,
tendo o último feito esforços ingentes para obter a con-
ciliação com o seu rival. Em 1408 houve uma confe-
rência em Livorno entre representantes dos dois pa-
pas, e um ano depois, reunia-se um concilio geral cm
Pisa, com a presença dos representantes de Benedito
XIII e Gregório XII, além de deputações das principais
universidades da Europa, embaixadas dos reis euro-
peus, altos dignatáríos eclesiásticos e centenas de dou-
tores em teologia.
Discutida largamente a questão, ambos os papas
foram declarados cismáticos e heréticos, e excomunga-
dos. O concilio elegeu então Papa, ao cardial de Milão,
que tomou o nome de Alexandre V ,
 questão, no entanto, não ficou resolvida, pois
três papas levantaram-se disputando a cadeira pontifí-
cia, cada um formando em tôrno de si um considerá-
vel número de admiradores. Um dos grupos susten-
tava a Benedito; outro a Gregório e o terceiro a Ale-
xandre que faleceu um ano depois, sendo substituído
por João X X I I I .
E m 1414» reuniu-se outro concilio em Gonstança
com o duplo propósito: estancar a dissidência, princi-
palmente o movimento de Huss, e pôr termo ao cisma
papal. Dizem ter sido o mais concorrido da Idade Mé-
dia, e afirma-se que durante as suas sessões a cidade
esteve repleta de prostitutas. O concilio depôs o papa
João, acusado de grandes imoralidades e infâmias, e
reafirmou a teoria de que " a igreja universal reunida
em concilio é o mais alto tribunal eclesiástico da terra."
Foi escolhido Papa, o cardeal Colona, que tomou
o nome de Martinho V ,
Em 1431 reuniu-se outro concilio em Basiléia, para
tratar do movimento de Huss. Presidiu-o o p a pa Eu-
IDADE MÉDIA 281

gênio IV, que tentou dissolvê-lo, reagindo, porém, o


concilio que o expulsou de Roma.
Em 1437 o concilio cindiu-se, uma vez que uns que-
riam removê-lo para Avignon, enquanto outros enten-
diam que devia permanecer onde estava. Eugênio
aproveitou o ensejo para restaurar a sua autoridade,
reconhecendo como verdadeiro um dos grupos. O
grupo papal reuniu-se em Ferrara (1438) tentando, sem
resultado, uma aproximação dos grupos.
O outro grupo, ficou com a maioria de prelados e
delegações, reunindo-se sob o amparo forte da França,
que se manifestou assim contra o Papa. 0 concilio de-
claro u-se superior em autoridade ao Papa, desconhe-
cendo-lhe o privilégio de legalmente dissolver um con-
cilio, e chegando finalmente, a destitui-lo do seu alto
ofício. Foi então escolhido o duque de Sabóia, com a
franca aprovação dos representantes da França, Itália
e Alemanha, afim de suceder ao Papa deposto. Coro-
ado o novo Papa, viu-se cercado de largo prestigio,
ainda que não tivesse conseguido pôr têrmo à disputa
em torno da cadeira papal.
Piccolomini, um dos políticos eclesiásticos da mais
refinada astúcia dos tempos medievais, conseguiu o
apôio do novo imperador alemão para Eugênio e o seu
sucessor, Nicolau V] (1447-1453).
Em 1449 Felix V abdicou e o concilio de Basiléia
elegeu Nicolau V, ficando assim extinto o cisma, que
tão longo tempo durara. Frederico III, que prestigiara
Nicolau, visitou-o em 1452, dando-lhe assim, sobejas pro-
vas de subserviência. Retribuiu-lhe o pontífice, que lhe
concedeu largos favores, coroando-o imperador dos ro-
manos. 0 pontificado de Nicolau V (1448-1455) foi no-
tável em prodigalidades, tendo sido construídos nesse
tempo o Vaticano e a Basílica de S. Pedro, considerados
como duas magníficas obras de arte. 0 sucessor de Ni-
282 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

colau foi Calixto I I I (1455-1458), que declarou guerra


aos turcos. Èste Papa, à maneira de muitos governantes,
preocupou-se muito cm promover os seus parentes, ele-
vando um a prefeito de Roma e fazendo outros car-
deais.
De fato, nesta época critica parecia que a única
ambição duma série de papas era engrandecer suas
próprias famílias e fortificar os estados pertencentes
a .Igreja. Carecendo-lhes um grande objeto público
em que se ocupar, como Unham sido as cruzadas, in-
trigavam e lutavam com o f i m de levantar princípa-
dos na Ilália, destinados a seus parentes. Para promo-
ver e efetuar estas empresas'mundanas, lançaram mãos
com freqüência dos tesouros da Igreja e da venda dos
cargos eclesiásticos. O caráter vicioso de alguns papas
aumentava o escândalo criado por esta prática cor-
rupta .
Sixto IV (1471-1484) animado pelo desejo de fun-
dar um principado para seu nelo, ou segundo Maquía-
vel, seu filho ilegítimo, Girolano Riário, favoreceu &
conspiração contra a vida de Juliano e Lorenzo de Me-
dicis, que resultou no assassinío do primeiro na ban-
queta do altar, durante a celebração duma missa. De-
pois o Papa se aliou com Nápoles na guerra contra
Florença e, com o fim de fazer Farrara pertencer a seu
nelo, incitou Veneza á guerra. Mas quando o neto se
aliou com Nápoles, o Papa abandonou seus aliados
vcnezianos e excomungou-os. Èste ato não produziu
grande efeito, e a mortificação que és te causou ao pon-
tifice apressou sua morte.
Inocêncio V I I I (1484-1492), para melhorar a for-
tuna dos seus seis filhos ilegítimos, pelejou contra Ná-
poles e recebia um tributo anual do sultão, por man-
ter seu irmão e rival na prisão em vez de enviá-lo como
IDADE MÉDIA 283

o cabeça de um exército contra os turcos, inimigos da


cristandade.
Alexandre V I (1492-1503), papa espanhol, cuja ini-
qüidade nos faz lembrar o tempo do obscurantismo
papal do décimo século, ocupou-se na construção de
um principado para seu filho favorito, o depravado
César Bógia, e em amontoar tesouros por meios repro-
vados e cruéis para o sustento da licenciosa côrte ro-
mana. Dizem que êle morreu do veneno que tinha
preparado para um rico cardeal, que subornou o co~
* xinheiro para servi-lo ao Papa mesmo.
fe^t^-^C'J&tti^sffi^áf^ (1503-1513), que satisfez a ambição de
0 sua família de maneira menos ignóbil, regozijou-se na
guerra e na conquista e propôs-se a estender os estados
da Igreja. Organizou alianças e derrotou seus inimi-
gos um após outro, obrigando Veneza a acompanhá-lo,
não vacilando, ainda que velho, em ir êle mesmo ao
campo de batalha em pleno inverno. Tendo atraído
os franceses a seu lado e juntando-se à liga de Cam-
bray, com o fim de subjugar Veneza, chamou a seu lado
os venezianos para expulsar os franceses.
Esta absorção dos papas em emprêsas pessoais e
mundanas, não se deu numa época de ignorância, se-
não no período do renascimento literário e quando a
Europa tinha entrado numa era de invenções e des-
cobrimentos destinados a transformar a civilização. O
estado de desmoralização em que a Igreja Romana, se
achava na véspera da Reforma, era um fato geralmente
reconhecido.
CAPÍTULO n

MISSÕES CATÓLICAS DO PERÍODO


I. OBSERVAÇÕES GERAIS

O tipo de Cristianismo que prevaleceu neste perío-


do, exceto o da Igreja Grega, foi o Catolicismo Romano
com seus credos, seus sacramentos, seu monaquismo e
sua hierarquia. Os frades, que serviam de missionários,
se esforçaram mais para ievar os p'ovos a conformarem-
se com o Cristianismo oficial do que convertê-los a Cris-
to. O reino da Igreja obscurecera o reino de Cristo. Os
batismos, na sua grande maioria, eram por atacado e
as massas recebiam apenas instrução religiosa da forma
mais rudimentar. A evangelização procedeu da alta classe
para a baixa; do rei, e geralmente por fins políticos, aos
súditos, A aceitação do Catolicismo pelos povos consis-
tia apenas na substituição de velhos deuses por novos;
o abandono de um ritual por outro. A entrada na Igreja
não importava num rompimento com o passado como
acontecera nos três primeiros séculos.
Todavia, até o princípio deste período (800) o Ca-
tolicismo Romano tinha alcançado algumas vitórias im-
portantes. E' verdade que gradualmente se afastava do
Catolicismo oriental e perdera para o Maometismo quase
todo o norte da África e muito da Peninsula Ibérica e da
Sicília, mas, por outro lado, tinha eliminado o Arianísmo,
forte rival desde o quarto século, e estendido seus terri-
tórios n'o noroeste da Europa muito além do Império
Romano. Também tinha sobrevivido ao fracasso da es-
trutura política, econômica, social e intelectual c o p as
quais tinha se aliado, e conquistara mais território do
que perdera. Tinha ganho os povos que séculos mais
tarde haviam de ter grande parte na cristianização de
286 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

terras do que a Igreja medieval e o Império Romano


líunca ouvira. Sem embargo, julgado pelos desenvolvi-
mentos posteriores, o noroeste da Europa era destinado
a ser o território mais importante na expansão do Cris-
tianismo nos séculos dezenove e vinte.

II. CARLOS MAGNO E A CRISTIANIZAÇÃO DOS


SAXõES

Carlos Magno utilizou as missões como meio de es-


tender os limites do seu vasto império e não hesitou no
uso de armas na subjugação dos povos â submissão pa-
pal. Em nenhuma parte era este método mais patente
do que na subjugação dos saxões continentais, o último
povo germânico a ser forçado a entrar no aprisco ca-
tólico.

A conversão dos saxões fôra conseguida peía combinação da


fõrra armada e o zelo missionário. Quanto ao nosso conhecimen-
to, nunca antes deste (empo fôra a aderência dum povo à fé, al-
cançada pelo uso de fôrça tão drastica e com tanto derramamento
de sangue dos pagãos relutantes. A completa conversão fio I m -
pério Romano nos século? quarto e quinto, ainda que conseguida
sob a pressão da legislação imperial, talvez não tivesse acarre-
tado a matança de tantos pagãos como a conquista da pequena
area do noroeste da Alemanha.
Fôra a primeira mas não a última vez na qual a aceitação
cio batismo e do nome cristão era conseguida peia aplicação libe-
rai da espada. Encontraremos a repetição do processo muitas
vézes no decorrer dos mil anos entre os séculos oitavo e décimo-
nono. Vè-lo-emos como parte na conquista dum povo após outro
— invasores e conquistadores utilizando a Igreja e seus agentes
como um rclos instrumentos. Ás vèzes descobri-lo-emos como um
dos meios pelo qual o monarca estende seiu- poder sôbre seus do-
mínios, especialmente contra os nobres relutantes O ,

(1) Latourette, A Eislory of the Expansion of Christianity,


V o l . IE, pgs. 105-106.
2&tt
MISSÕES CATÓLICAS DO PERÍODO 2&tt

Foi principalmente da Europa Ocidental que o Ca-


tolicismo Romano se expandiu para a Europa Central,
ao sul e ao norte das terras bálticas.

III. QUINHENTOS ANOS MAGROS

Chamam-se os anos de 1000 a 1500 " o peri'odo de


missões esporádicas" ou "os quinhentos anos magros"
(2). Julgado pelo período apostólico e os séculos dezes-
sete a vinte a declaração tem razão de ser. As conquis-
tas para a fé neste periodo foram o resultado da migra-
ção dos povos para a Europa e o esforço dos governos
e não de esforço missionário por parte da Igreja. Outra
coisa não podia se esperar, considerando a rebaixada
vitalidade espiritual da Igreja no periodo. As massas
tinham sido induzidas â Igreja sem nenhuma experiên-
cia da graça regeneradora nem a aceitação voluntária
das doutrinas cristãs. A aceitação do batismo infantil
em lugar da regeneração pelo Espirito Santo e a crença
na eficácia santiíicadora dos sacramentos militaram con-
tra a espiritualidade da Igreja e abafaram o espirito
missionário, enquanto a cristalização do ministério num
SQcerdoci'o profissional eliminara a responsabilidade e
o entusiasmo dos leigos pelo evangelismo. A divisão en-
tre o Oriente e o Ocidente alienou, em grande parte, a
Igreja ocidental, ou Romana, da cultura grega, e as in-
vasões pagãs abafaram a cultura romana; o feudalismo
quase que suprimiu o individualismo; e a expansão do
ma'ometismo segregou a mundo cristão do mundo pa-
ga o, dificultando a obra missionária.

(2) Carver, The Course of Christian Missions, p g . 77.


288 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS SÊCÜLOS
MISSÕES CATÓLICAS DO PERÍODO 289

IV, MOVIMENTOS DOS POVOS E SUA CRISTIANIZA- 1. No Ocidente


ÇÃO
No Ocidente, neste período, não se notam os gran-
A tarefa das missões domésticas consistia na cris- des movimentos que se observaram nos períodos ante-
tianização dos pagãos dentro da Igreja os quais se acha- riores. As condições raciais e políticas eram mais ou
vam dentro do território da Igreja Romana, e na guerra menos estáveis. Os acontecimentos mais notáveis foram
contra a dissidência, sendo os grupos hereges mais im- a longa e vitoriosa luta dos cristãos contra os maome-
portantes os albígenses no sul da França, os petrobru- tanos na Espanha e a guerra de cem anos entre a In-
cianos e henriquenses na Suíça Ocidental, os valdenses glaterra e a França.
no sul da França e na Itália, e grupos de anabatístas em 1) Os mouros na Espanha. A população cristã da
várias partes da Europa. Espanha gradualmente impeliu os mouros para as ban-
A Espanha, com sua grande população de judeus e das da África, donde vieram, e, assim que se viu livre
mouros maometanos, oferecia o maior campo de mis- dos chefes maometanos, organizou-se em pequenos rei-
sões domésticas, enquanto os povos ao norte da Europa, nos — Leão, Castela, Navarra, Aragão, e Portugal. Uni-
da Ásia, do oeste da África e das ilhas atlânticas ao longo dos, em 1492, destruíram por completo o que amda res-
da costa européia constituíram os campos de missões tava da força militar dos maometanos. Dai em diante os
estrangeiras. cristãos reinaram sobre tôda a península Ibérica, ainda
Várias pequenas nações na Europa: Polônia, Prús- que alguns mouros permanecessem no pais por mais de
sia, Lituânia, Pomerânia, Estônia e Letônia, ainda es- um século. Durante èsse tempo 'os cristãos unificaram Os
tavam fora da Igreja Romana no principio do período. seus governos, reduzindo-se a dois — Espanha e Portu-
Èstes povos, em parte, eram eslavos e em parte germâ- gal, que permanecem até o dia de hoje.
nicos. Neste tempo, todavia, êles consistiam de peque-
nos, mas vigorosos e independentes clãs pagãos e ocu- 2) Os normandos na França e Inglaterra. O Dtiqiie
pavam relativamente pequenos territórios. Todos estes, de Normandia, distrito ao norte da França, conquistou
junto com os finlandeses e os lapões, foram incorpora- Inglaterra em 1066 sem, contudo, abrir mão do seu do-
dos à Igreja neste periodo. mínio na França. Por isso uma jjaríe extensa da França
A submissão à Igreja, tanto Romana como Grega, foi anexada â coroa da Inglaterra. Por casamentos e
foi conseguida na sua maioria pela força de armas e conquistas êsse vasto território foi aumentado até que o
sempre pelo emprêgo da influência e autoridade políti- rei da Inglaterra chegou a dominar quase a metade da
cas, sendo os missionários fornecidos pelas ordens monás- França moderna e por iss'o pleiteou a coroa da
ticas e os recursos financeiros pelos governos. As con- nação. Estas condições provocaram guerras contínuas
versões eram mais uma submissão a força do que o re- por mais de cem anos. Quando os franceses chegaram
sultado de convicção e lealdade â fé cristã, Era mais uma ao estado de desespero foram encorajados para a luta
sujeição do que uma conversão, o que, em parte, por uma componesa de nome Joana d'Arc, a donzela de
bxplica porque êstes povos, séculos depois, tão pronta- Orléans. Ela cria ter sido chamada por Deus para livrar
mente aceitaram o Protestantismo. De fato nunca se o seu pais dos "odiados invasores/4 O seu entusiasmo e
hmalgamaram completamente à Igreja de Roma. visões captaram o apôio de tôda a nação e o avanço
dos inglêses foi detido. Em 1429 ela caiu nas mãos dos

c . a . s . — 19
200 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

ingleses, foi julgada e queimada como "herege." Sua


missão, porém, já estava cumprida. Os ínglêses pouco
a pouco perderam terreno, de modo que no fim deste
periodo possuíam apenas a cidade de Calais.

2. Na Europa Central
X) Invasão dos inagíares. A origem dos magíares
ou húngaros é questão disputada. Parecem ter sido uma
mistura de elementos fino-hungaros e turcos, sendo a
controvérsia principal sobre qual desses elementos pre-
domina.
Na última década do século nono os magiares co-
meçaram a saquear a Moravia e a Panônia ( 3 ) , Em cerca
de 895 emigraram em grande número para o território
.agora conhecido como a Hungria e ali estabeleceram
colônias permanentes. A transferência de tãO(:grande
número de asiáticos para a Europa Central era possível
neste tempo devido ao enfraquecimento politico do go-
verno. O Impérro Carlovingío estava se desintegrando
pelas dissenções internas e por fora estava sendo aper-
tado pelos normandos. Os reis saxões ainda não haviam
restabelecido a ordem. Nestas circunstâncias as portas
estavam abertas a novas invasões do Oriente. Do lugar
que hoje se chama Hungria cfomo base, os magiares in-
vadiram repetidas vezes a Itália e a Europa Ocidental.
Pilharam até as terras tão longínquas como Saxônía e
penetraram até o Mar do Norte, Queimaram igrejas e
saquearam mosteiros. Alguns padres foram mortos di-
ante dos altares e outros levados cativos junto com mui-
tos leigos. Na Panônia reduziram as igrejas a ruinas.
Mais tarde penetraram nos Bálcãs.
No século dez os alemães ressurgiram sob a lide-
rança dos chefes saxões e a onda dos magiares foi de-
lida. Por fim, em 955, Oto I esmagou-os de tal maneira,
(3) Região da Europa antiga entre o Danúbio ao norte e a
ílíria ao suí.
MISSÕES CATÓLICAS D O PERÍODO 2&tt

na batalha perto de Augsburgo, que nunca mais avança-


ram para o Ocidente.
Os príncipes magiares que conseguiram unificar e
organizar estas tribos pagãs, aceitaram o Catolicismo
Koinano e os húngaros entraram no circulo dos povos
civilizados.
Missionários da Igreja Grega entraram no país pelo
sueste e ganharam alguns conversos, no entanto a Hun-
gria, sob a influência dos saxões ligou-se com o Ocidente
e não com o Oriente.
2) 0 avanço dos turcos. No f i m do século treze o
império dos turcos (seljuks) tinha caído em desordem e
estava a dissolver-se. 0 seu extermínio foi apressado e
completado peía invasão dos mongóis, como acabamos
de notar. Sôbre as suas ruínas, porém, levantou-se ou-
tro império turco mais vasto e poderoso do que o dos
seljuUs, Èsse império foi fundado por Otmã no centro
da Ásia em cerca do ano 1300. De pequenos começos
esses turcos otomanos, assim dominados pelo seu fun-
dador, alargaram os seus termos rapidamente por con-
quistas ora dos cristãos ora dos maometanos, Dentro
de quarenta anos tinham destruído todo o govêrno cris-
tão na Ásia e no ano 1355 se transplantaram firmemente
no continente europeu, capturando e fortificando Gali-
poli. Em 1361 conquistaram a cidade de Andrinopla e
fizeram-na capital. Em 1402 o seu progresso retardou-
se quando Tainerlão e toda a península balcânica foram
então subjugados. Em 29 de maio de 1453 Constantino-
pla foi capturada e tornou-se a capital do Império O to-
mano, caindo por fim o velho Império Romano. No Ori-
ente e sul continuaram as conquistas sôbre seus vizinhos
maometanos, turcos, árabes e outros. No f i m do perí-
odo, o Império Otomano estendia-se do Danúbio às cata-
ratas do Nilo e do Eufrates até o meio do Mediterrâneo.
As suas persistentes tentativas de abrir passagem no Da-
núbio, heroicamente defendido pelos húngaros, alcança-
292 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

ram êxito somente nos começos do periodo seguinte,


quando, sob a liderança de Suleiman, o Magnífico, em
cujo reino o império atingiu o seu poder máximo, sitia-
ram Viena, capital de Áustria.
Por séculos a Igreja Grega, com exceção da Rússia,
jazia impotente debaixo do calcanhar do "turco terrí-
vel", A Igreja tornou-se uma instituição política cuja
função principal era servir a seus senhores, os turcos, na
capacidade de cobrar impostos e manter a ordem. Os
cristãos foram obrigados a sustentar o govêrno e contri-
buir com o dizimo de seus filhos para serem educados
como maometanos e alistarem-se nos famosos janizaros,
o primeiro exército permanente da Europa. O patriarca
de Constantinopla foi nomeado pelo govêrno turco e os
bispos e o clero inferior foram em realidade oficiais do
estado turco. Muitas das mais famosas igrejas, incluindo
a de Santa Sofia, em Constantinopla, foram convertidas
em mesquitas; proibíu-se que o Cristianismo fizesse pro-
sélilos e, em geral, o espirito da cristandade foi abafado.
O culto cristão foi tolerado, porém a sua influência e
poder foram desprestigiados. Selim I obteve do Egito to
califado, ou melhor, o cabeça espiritual de todos os mao-
metanos, isto em 1517. Desde essa época o sultão tem
sido 'o chefe tanto político como espiritual da maior parte
do mundo maometano. A dominação dos turcos no su-
deste da França chegou ao apogeu no fim do periodo.
Tôda a Europa estremecia diante do poder aparente-
mente irresistível dos invasores cruéis.

3. No Oriente
Invasão dos mongóis ou tártaros. No principio do
século treze surgiu no interior da Ásia, ao norte da China,
um novo império, que exerceu poderosíssima influência
sôbre o Cristianismo n'o Oriente por alguns séculos.
Sob a liderança de Gengíscã, os mongóis, ainda pa-
gãos, conquistaram todo o norte da China e todo o In-
MISSÕES CATÓLICAS DO PERÍODO 2&tt

dostão até o Mar Cáspio. Morto 'o lider em 1227, seus


sucessores estenderam as conquistas para o Sul, norte
e oeste. Tôda a China foi subjugada pela dinastia mon-
gólica que, em breve, adotou o Budismo como religião
Oficial. Destes, um ramo dirigiu-se para o norte em di-
reção à Rússia. As regiões sudestes e ocidentais foram
invadidas em cerca de 1237, as cidades de Kiev e Mos-
cou foram incendiadas, e o pais caiu sob o jugo mongó-
líco ou tártaro, e assim permaneceu êsse estado de coi-
sas por duzentos e cinqüenta anos. Èsses dois e meio sé-
culos sob o calcanhar da "horda dourada", como os tár-
taros se chamavam a si mesmos, tiveram um efeito de-
sastroso sôbre o desenvolvimento da vida e religião do
povo russo, do qual ainda não se recuperou por com-
pleto.
Da Rússia esta divisão dos mongóis dirigiu-se ao
Ocidente, atravessou a Polônia e entrou na Alemanha
oriental, queimando e destruindo tudo na sua passagem.
Na grande batalha de Liegnitz o seu avanço foi impe-
dido. «Dirigiram-se então ao sudeste para Húngria e pe-
las margens do Danúbio, sendo o seu caminho caracteri-
zado pelas ruínas fumegantes das cidades e igrejas e
pelos montões de cadáveres. Sobrecarregados de espó-
lios retiraram-se finalmente para a Rússia. Mas, se o
sofrimento dos cristãos foi grande, o de alguns maome-
tanos não foi menor. O império da Pérsia e o califado
de Bagdá foram conquistados e destruídos.
As hordas mongólicas, continuando o seu avanço
no Ocidente, destruíram o Império Turco, capturaram
c saquearam as cidades principais da Ásia. Assim con-
tinuaram, chegando até quase ao Mediterrâneo. Êste
grupo aceitou, por fim, o maometísmo e tornou-se se-
guidor fanático das suas doutrinas cruéis.
O governo Confederado dos mongóis no Ocidente
corroinpeu-se. e, por um pouco, o seu poder enfraqueceu.
Em cerca de 1400 êste povo reconstituiu-se sob a lide-
284 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

rança de Tamerlão. Tôda a Ásia ocidental mais uma vez


f o i devastada até o Mediterrâneo. A matança dos inde-
fesos e inocentes era horrorosa, atingindo muitas vêzes
uns dez mil de uma cidade saqueada apenas. Terminou
finalmente o poder dos mongóis, na Ásia ocidental com
u morte de Tamerlão em 1405. A Rússia, porém, con-
tinuou a sofrer.

V . O CRISTIANISMO E N T R E OS ESLAVOS

A raça eslava, de origem índo-européia, cedo sub-


dividiu-se em nações distintas — Bulgária, Morávia, Boê-
mia, Polônia, Rússia, etc. Estas nações receberam o Cris-
tianismo por intermédio da Igreja Grega, mas, em tempo,
com exceção da primeira e última das nações mencio-
nadas, as demais aliaram-se com a Igreja Romana. Cons-
tantinopla semeou e Roma colheu o fruto. No f i m do
nono sécuío Vladmiro I, rei dos russos, abraçou o Cris-
tianismo e dentro de dois séculos a Rússia foi cristia-
nizada.
Em 1305 a sede metropolitana da Igreja Russa f o i
removida de Kiev para Moscou e, depois da queda de
Constantinopla, declarou-se independente do patriarcado
daquela cidade. Até então o cabeça da Igreja Russa era
grego, nomeado pelo patriarcado grego; desde então o
metropolitano é eleito pelos bispos russos, sendo sempre
nativo.
O monaquismo tomou grande impulso com a se-
paração e logo tornou-se a força motriz na Igreja Russa.
Os mosteiros, cujos edifícios ainda figuram entre os
mais possantes do pais e refletem o esplendor bárbaro
daquele grande povo, bem fortificados, converteram-se
em postos avançados da civilização, servindo tanto para
a defesa como para a propaganda da cultura e religião.
O monaquismo russo não revela a grande variedade que
se nota no Ocidente. Todos os mosteiros estão debaixo
do mesmo regime cujo modêlo é o de S. Basílio. A preo-
MISSÕES CATÓLICAS D O PERÍODO 2&tt

cupação dos monges é mais a de contemplação que a dê;


serviço. Os bispos vêm dos mosteiros e são celiLatários,
enquanto que os padres, educados nos seminários, se ca-
sam . Por isso o padre diocesano jamais alcançará o bis-
pado. A cultura, direção e inspiração religiosa da Rús-
sia vêm de Constantinopla, Ivã (1462-1505), que deu à
Rússia verdadeiramente o primeiro governo organizado,
casou-se com a filha do imperador grego e empregou
todos os meios a'o seu alcance para induzir homens eru-
ditos a prestarem a sua concorrência ao desenvolvimento
da Rússia. Ivã, aproveitando-se da recente queda de Cons-
tantinopla, apropriou-se da águia de duas cabeças, sím-
bolo do império, e eognominou-se Czar, manifestando
assim o seu sonho de tornar o Império Russo o continua-
dor do Império Bizantino. O nosso período termina com
o pais na véspera da sua grande expansão.

V I . O CRISTIANISMO NO INTERIOR DA ÁSIA

Há muitos indícios de que havia um bom número


de cristãos no interior da Ásía durante êsse periodo.
Eram principalmente nestorianos e, se dermos crédito
ao que afirmam os escritores católicos, êsíes cristãos eram
ativos ainda que lhes faltassem cultura e caráter neces-
sários a uma propaganda idônea e cristã. O boato es-
palhado por tôda parte de que havia um reino cristão
bastante extenso 110 norte cia China e governado por
Prestes João, carece de confirmação histórica. Mereceu
tanto crédito, porém, o boato, que o Papa mandou uma
embaixada para o interior da Ásia à procura do tal prín-
cipe cristão.
Quando um século mais tarde os mongóis estende-
ram suas conquistas para o Ocidente, o Papa lançou suas
vistas para o Oriente. Em cêrca do meado do século
treze foram enviados muitos missionários à Ásia orien-
tal com a esperança de que 'os pagãos bárbaros daquela
região ficassem impressionados. Èstes missionários e ex-
06 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

plòradores, como Marco Polo, encontraram, tolerância


por parte dos mongóis, para com tôdas as religiões; den-
tre muitas, sobressaiam três como principais: o Budis-
mo, o Maometismo e o Cristianismo nestoriano. Os mis-
sionários católicos finalmente chegaram à côrte do
grande Cã em Pequim em 1303. Foram amigavelmente
recebidos e tiveram permissão de construir dois edifí-
cios para igrejas, um bem perto do palácio real, sobre-
pujando-o em beleza. Os missionários traduziram do
originai os Saímos e o Novo Testamento para a língua
tártara e conseguiram batizar seis mil pessoas em pouco
tempo. Tudo corria muito bem para o completo êxito
dá missão católica, até a conquista dos mongóis pela di-
nastia Ming em 1368, que suprimiu o Cristianismo. Mui-
tos eruditos afirmam que o Budismo da Ásia central so-
freu sensivelmente os efeitos da presença transitória do
Cristianismo. Porém, pela providência divina o longín-
quo Oriente ficou, quase totalmente, fechado ao Cristia-
nismo até que o Protestanlismo pudesse recomeçar o tra-
balho missionário de maneira mais apostólica e cristã
do que os nestorianos e católicos poderiam conseguir,

V I L MISSÕES N A ÁFRICA OCIDENTAL E NAS ILHAS

A costa ocídenlal da África e os grupos de ilhas ao


longo da costa atlântica constituíram um campo distinto
na expansão do Catolicismo no periodo. As Canárias
foram colonizadas e incorporadas â Igreja Católica Ro-
mana no século quinze pel'o barão João de Bitencourt,
da Normandia. Os missionários, frades francíscanos, es-
creveram a história da missão em£ "A Canariana", livro
da conquista e conversão dos canarianos. Disseram que
sustentavam seu cavalheiro patrão que emulara "os
grandes aventureiros, empreendedores de viagens na
conquista dos pagãos com o f i m de convertê-los à f é
cristã, " A empresa teve bom êxito e o barão fêz uma
2&tt
MISSÕES CATÓLICAS DO PERÍODO 2&tt

visita pessoal ao Papa, conseguindo a nomeação de Al-


berto de Ias Casas ao bispado das Canárias.
Sob o patrocínio de Henrique, príncipe português, os
Açores foram colonizados; as ilhas da Madeira e Cabo
Verde foram descobertas e mais de mil e seícentos qui-
lômetros além do ponto antes conhecido pelos europeus,
das costas africanas, foram tocados. Missionários se-
guiram os decobridores de Henrique no século quinze em
diante, conseguindo firmar-se em várias localidades. 0
rei João II de Portugal enviou uma expedição à Costa
de Ouro na África onde se construiu uma fortaleza e uma
igreja em 1482, Dois anos depois mandou êle outra ex-
pedição sob o comando de Diego Cão, ao Congo. Alguns
nativos, incluindo um chefe africano por nome de Cazu-
ta, foram levados a Portugal. Cazuta e seus cortezãos
batizaram-se, tendo o rei e a rainha como padrinhos.
Na volta para África o chefe foi acompanhado por um
grupo de missionários que conseguiram estabelecer mis-
sões em vários pontos ao longo da costa africana. Seus
métodos não eram os mais sábios e o tipo de Cristianis-
mo, quanto à forma e á vida moral, deixava muito a de-
sejar, Foram estas explorações que conduziram a inau-
guração da escravatura africana pelos ocidentais e dei-
xaram muitas influências viciosas entre os nativos.

VIII. RESUMO

No nono século completou-se a conversão dos sa-


xões na Europa Ocidental e principiou-se na Europa Cen-
tral o primeiro grande movimento dos eslavos para o
Cristianismo Romano. As duas acessões eram associa-
das com a expansão dos francos no reinado Carlovíngio.
298 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Também foi neste século que a Igreja Grega Ortodoxa


iniciou suas conquistas entre os invasores eslavos no
território balcânico e nas regiões ao norte do Mar Ne-
gro, entre os búlgaros e czares turcos ao mesmo tempo
que perdera territórios aos maometanos na Sicília.
No século dez principiou a conversão dos normandos
no Ocidente tanto entre as colônias dentro do território
católico como na mãe pátria. Continuou-se a expansão
do Catolicismo Romano entre os eslavos da Europa Cen-
tral e do Catolicismo grego nos Bálcãs e entre os norman-
dos e os eslavos na Rússia. No mesmo século os nestoria-
nos provisoriamente se extinguiram na China.
Nos séculos onze e doze o Catolicismo Romano con-
seguiu a conversão dos escandinavos, fez mais progresso
entre os eslavos e ganhou os magiares. Também que-
brou-se a dominação politíca dos maometanos na Sicília
e no sul da Itália, e empreenderam-se as cruzadas à Pa-
lestina. Na Rússia o Catolicismo Grego estava se conso-
lidando e se expandindo, Na Ásia Central o nestoria-
nísmo eslava em ascendência,
Nos séculos treze e catorze o Catolicismo confirmou
a conversão dos eslavos c dos povos balcânicos, isto é,
dos eslavos que se aliaram com a Igreja Romana. Por
oulro lado, a civilização católica sofreu novas ameaças
pelas grandes invasões dos mongóis. Na China o nesto-
rianismo alcançou êxito ainda maior e os dominicanos
e franciscanos estabeleceram missões na Europa Orien-
tal e na Ásia.
No século quinze o Catolicism'o, tanto Romano como
Grego, sofreu graves reveses, perdendo grande número
de adeptos para os maometanos. Os mongóis foram con-
vertidos ao Islamismo e Tamerlão, apagou muito do Nes-
torianismo. Os turcos otomanos, maometanos, acabaram
MISSÕES C A T O U C A S D O PERÍODO 299

com o império católico em Constantinopla e firmaram


o Islamismo no sueste da Europa. Foi somente na Pe-
ninsula Ibérica que os católicos romanos reconquistaram
algum território dos maometanos e somente na Rússia,
na costa ocidental da África e nalgumas ilhas do Atlân-
tico é que foram feitas novas conquistas permanentes
íeníre os pagãos.
A admissão â Igreja foi feita por grupos e en masse.
Geralmente foram os reis e outros governantes seculares
que iniciaram e continuaram as missões. A maioria dos
missionários era de frades. 0 papado servia somente
como a força estabilizadora, lucrando dos esforços
alheios.
CAPÍTULO III

REFORMADORES ANTES DA REFORMA


I . OBSERVAÇÕES GERAIS

Durante a Idade Média continuou o esforço em fa-


vor da, primitiva simplicidade cristã e contra a corrupção
e tirania eclesiásticas.
Èste duplo esforço manifestou-se bastante saliente
no paulicianismo cuja conexão histórica com o Cristia-
nismo primitivo apresenta muitos traços de evidência
com o velh'o tipo do Cristianismo inglês persistente na
Inglaterra, em Gales e na Escócia, e com outros grupos
que conservaram em estado lento através dos escuros
tempos medievais. Conservaram a vida, a simplicidade
e os verdadeiros propósitos evangélicos, opondo-se à cor-
rupção medieval.
A opressão exercida pelo Romanismo dominante não
estancou a corrente evangélica que de quando em quando
se avolumava, erguendo-se na voz de um evangelista au-
daz, como Pedro de Bruys ou Henrique de Lausanne.
Assim enconiram-se nas brumas da obscura Idade Me-
dieval numerosos grupos guardando as simples verda-
des evangélicas, e isto representa uma coragem digna de
ser comparada com a dos primitivos cristãos quando
anunciavam essas mesmas verdades. Êstes grupos evan-
gélicos recebiam como era natural os nomes dos seus
principais líderes, o que não quer dizer que os seus prin-
cípios fossem derivados deles. Diz o historiador Mosheim:
"Estas seitas antigas, como temos visto,_ receberam de
seus inimigos nomes tirados dos campeões que foram
célebres ou pereceram na pregação de sua causa".
O historiador católico Jônatas Serrano, estabelece
distinção entre os grupos "heréticos" medievais, reconhe-
302 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

cendo que alguns deles provinham do "desejo de reagir


contra o espirito mundano e a riqueza do clero, afim
de reconduzir á simplicidade evangélica. Tais foram os
valdenses e albigenses" ( 1 ) ,

II. DISSIDÊNCIA DUALÍSTICA

1. Os bogomilos
Dizem que a palavra "bogomilos" significa na lín-
gua eslava "amigos de Deus:"\ Outros dizem que o povo
que assim se chamava recebeu o apelido de um seu líder
por nome Bogomil no décimo século.

0 cerlo, é que a seita é mais velha do que o nome; o partido


ou a denominação bogomila existia muito antes dôste título. Re-
presentaram durante o periodo medieval, quando comparados com
a religião de Roma, a í é mais pura e a prática mais apostólica,
anula que misturada com algumas doutrinas grotescas, e uns pou-
cos de erros séries { ' ) ,

Os bogomilos 'originaram-se na Bulgária, e, como


parece, emigraram com os paulicianos para a Trácía,
espalhando-se entre as populações eslavas. Conforme as
acusações dos inimigos, sustentaram uma cosntfología
dualística semelhante à dos gnòsticos. Neste ponto, po-
rém, é preciso ter cautela. Como jà se notou, os pauli-
cianos foram estigmatizados pelos romanos de maniqueis-
mo, como mais tarde foram os valdenses. A Igreja Cató-
lica Romana procurava diligentemente pretextos para
perseguir os que a ela se opunham. Até Lutero foi acu-
sado pelos católicos de ser maniqueista. Diz o célebre

(1) Serrano — Ep. da História Uriiversal, 15a. edição, pgs.


2 « - 2 J 5.
(2) Vcdder. Breve História dos Batistas, T r a d , de Hayes, pgs.
85-8G.
REFORIVIADORES A N T E S D A R E F O R M A 303

bispo Uslier que " a acusação de serem os albigenses ma-


niqueus, sem dúvida, é falsa" (3) >
Dizem que os bogomilos rejeitavam o batismo com
água, substituindo-o por uma longa "cerimônia de pu-
rificação''. Afirmam também que rejeitavam a ceia, sus-
tentando que o pão é a 'oração do Senhor e o cálice, os
últimos discursos do Senhor nos evangelhos; que não
aceitavam o casamento e nem tampouco o uso da carne
como alimento, Consideravam a Igreja Romana e a
Grega como satânicas; não aceitavam o uso de imagens.
E se diz que não aceitavam do Velho Testamento a lei
mosaica. Usavam exageradamente o método de inter-
pretação alegóx-ica das Escrituras. Cerca de 1111 bogo-
mil'os atraíram a atenção do imperador Alexis, que os
perseguiu cruelmente. Parece, entretanto, que ainda so-
brevive um pequeno número. De certo continuaram até
a Reforma.

2. Os cátaros

Èste movimento, nas suas tendências dualistas, foi


descoberto em Aquiíània e Orléans em 1022. Diz a tra-
dição que ele principiou na Itália, sendo trazido de lá
por uma mulher que conquistou adeptos até nO alto clero.
Parece que se subdividiu em três grupos rivais. O movi-
mento cresceu na França durante os séculos onze a treze.

Em cêrca de 1025 um bando de íiereges apareceu cm Arras,


França. Como os místicos poítcrioreí, esf.es rejeitavam as dou-
trinas da igreja papal, e cm gerai, consideravam as ordenanças
exteriores assunto de pouca imporlAnc:n. Professavam aceitar
sòmente as Escrituras. Seus princípios eram: abandonar o mun-
do, refrear a carne da eoncnpiscôncia, susíiMitar-.se pelo labor cias
próprias mãos, não ofender a ninguém, ser caridoso para com os
irmãos na f é . Alcançando ésle ideal julgavam não haver neces-

(3) Actand, The Glorious Recovery of the Vaudois, LXVII,


London, 1857.
304 O C R I S T I A N I S M O A T R A V É S DOS S£CUIX)S

«idade do batismo. Consideravam especialmente o batismo in-


fantil como de nenhum valor. Rejeitavam o casamento cerimo-
nial e a veneração dos eoníessores. e negavam a eficácia da p e -
nitência pelos pecados cometidos depois de profissão de fé. Os
argumentos dos seu? inimigos indicam que rejeitavam, segundo
a prática dos maniqueus, todo convívio sexual. Sustentaram que
qualquer quarto era tão sagrado quanto uma igreja e que cs al-
tares não eram melhores que um montão de pedras. Eram p o r -
tanto, protestantes e místicos intensos; e. aparentemente, tinham
algumas tendências dualistas. ftstes bandos de hereges multi-
plicaram-se na França'durante os séculos onze, doze e treze O =

Acusam os càtaros de rejeitar o matrimônio como


fabricação e ordenança do diabo e negai' que Cristo e os
apóstolos de verdade curassem os corpos dos homens,
considerando a carne como obra do diabo e indigna da
consideração divina. Uma das facções era inteiramente
dualista; outra, sustentava um só Criador. Atribuíam ao
Antigo Testamento origem má. Encaravam Cristo do
ponto de vista do docetismo, negando a sua corporifica-
cão como homem, e que êle comesse, bebesse, etc. Da-
vam grande importância à imposição das mãos (eon-
solamentum), fazendo-a em lugar do batismo.
O catarismo disseminou-se rapidamente na França,
Itália, Espanha e até no norte da Europa. No meado do
século doze, a França meridional, influenciada pelos cà-
taros, petrobrucianos e henriquenses, era quase tôda an-
ti-católica.
Os dissidentes Conseguiram mesmo ganhar o favor
e amparo dos príncipes e barões. Os escritores católicos
falam dessa população anti-católica como se ela fôra "ca-
tari" ou maníqueana, isto é, penetrada da heresia dualis-
tica. E' provável que uma facção fôsse efetivamente dua-
lística, rejeitando o Velho Testamento e as ordenanças
exteriores. Mas é fora de dúvida, repousando sôbre firme
fundamento histórico, o fato de que grande parte da-

U) Newman, A Manual of Church History, Vol, I, pag. 546.


REFORIVIADORES A N T E S D A R E F O R M A 305

quela população francesa era evangélica, influenciada


por Bruys e Lausanne.
Inocêncio III, quando subiu ao pontificado, resolveu
exterminar a dissidência, concedendo regalias aos exter-
minadores. O fanático Arnald então saiu â frente do san-
guinário bando papal, saqueando cidades e matando os
"hereges". Alguns destes foram reunir-se aos grupos
evangélicos dos Paises Baixos.

III. DISSIDÊNCIA EVANGÉLICA

1. Cláudio de Turim

Cláudio de Turim, bispo espanhol, (5) cêrca do ano


832, adotou a teologia de Agostinho, excetuando os seus
elementos sacerdotais. Firmados nas Escrituras susten-
tou o principio da relação direta do crente Com o seu
Criador, sem a mediação sacerdotal. "Aquele que pro-
cura'', afirmou Cláudio, " e m qualquer criatura do céu
ou da terra, a salvação que devia buscar só em Deus, é
idolatra", Èle insurgiu-se contra o culto de imagens,
orações pelos mortos, adoração da cruz, crucifixos, pe-
regrinações a Roma, boas obras como o meio de ganhar
o favor de Deus, etc. Cláudio foi como que um traço de
união entre os grupos evangélicos dos primeiros séculos
e os grupos evangélicos da Idade Média.

2. Os Albigenses

Já se notou que os paulícianos, que vieram da Ar-


mênia, via Trácia, firmaram-se na França e Itália donde
se irradiaram por tôda a Europa.

(5) Parece que Cláudio, apesar dos seus princípios anti-ro-


mamstas, não foi destituído das funções que ocupava. Isto nos
leva a prever certo relaxamento na disciplina romana de então.
No Brasil deu-se um caso semelhante: o do padre Diogo F e i j ô ,
inimigo declarado do celibato clerical e de outras corrupções.

C. A . S. — 20
306 O C R I S T I A N I S M O A T R A V É S DOS S£CUIX)S

Alguns historiadores traçam a origem dos albigen-


ses (6) como tendo provindo dos paulicianos (7), en-
quanto outros afirmam que êles se achavam no sul da
França desde os primeiros dias do Cristianismo. Seja
qual fôr a origem, é fato histórico que diversos grupos,
uns mais, outros menos evangélicos, floresceram no sul
da França, do princípio do século doze em diante. Infe-
lizmente os escritores católicos incluem sob o nome de
albígenses todos aqueles que nessa época protestaram
contra a sua s'oberania. Dai vem muita confusão. E'
como se incluísse sob o nome — evangélico todos os que
na atualidade no Brasil pugnam contra as pretensões da
hierarquia católica de unir a Igreja ao Estado, Neste
grupo figurariam muitos credos tais como os espíritas,
positivistas, teosofistas, etc., que não têm, sequer, a pre-
tensão de ser evangélicos. Quase a única coisa que êles
têm em comum com os evangélicos é que são acatóli-
cos. Roma odiava a todos os que não rezavam conforme
a sua cartilha, e levantou-se em pêso contra Os "here-
ges'\ Conforme o seu ponto de vista, Ríoma tinha razão,
pois, no fim do século doze, houve uma luta de vida e
morte entre a Igreja Romana e os "protestantes".
O advento de movimentos anti-sacerdotaís que flo-
resceram nos séculos doze, treze e catorze, revela um
descontentamento mui pronunciado com a vida mundana
do clero e contra o govêrno prelatício da Igreja. E' in-
teressante notar que precisamente quando o papado pa-
recia estar íío apogeu do seu poder, se levantou uma re-
belião que não pôde ser reprimida senão por meio do uso
em grande escala de forcas militares, e por atos brutais
que tem deixado uma mancha indelével na Igreja que
os instigara.

(6) Ba pequena cidatío de Albi, no distrito de Albigeois, que


se tornou o centro de propaganda de diversos movimentos.
(7) Enciclopédia Britânica, I, 45, 9 a , Ed.
REFORIVIADORES A N T E S D A R E F O R M A 307

Houve em 1167 na cidade de Toulouse o chamado


concilio albígense," de cujos resultados pouco se sabe.
O fato, porém, de ter havido um conciliq para tratar sim-
plesmente dos "hereges" é prova da sua importância e
influência. Bernardo de Clairvoux, um dos homens mais
eloqüentes e retos da época, tendo dirigido uma missão
entre eles, escreveu por todo o sul da França as igrejas
(católicas) estavam abandonadas, os altares apodreci-
dos e os padres morrendo de fome.
Ao estudar os grupos da dissidência medieval, não
evangélicos, antes filiados às velhas heresias sobreviven-
tes, è bom lembrar-se que as informações históricas que
se possuem procedem quase totalmente dos seus infle-
xíveis opositores. Se se possuísse a história verídica é
bem possível que a nossa avaliação fôsse mais favorá-
vel.
Apesar da escassez de informações históricas sem o
travo amargo da parcialidade, o estudo dos grupos dissi-
dentes da era medieval é cheio de vivo interesse e de forte
encanto. Peripécias quase românticas o entrecortam, e
o estudioso sente-se preso a elas. " P o r aquela obscuri-
dade mística", escreve Ford, "aparecem formas vestidas
coin 'ornatos de pompas eclesiásticas e personagens ro-
mânticas que parecem como criações da imaginação"
(8).
3. Os petrobracianos e os henriquenses

Pedro de Bruys, antes de seí tornar o audaz evange-


lista que provocou as iras farisaicas do Papa, fora padre
e discípulo do filósofo e sutil sofista medieval Abelardo

(8) Ford, Origem c História dos Batistas, Versão port, de


Taylor.
308 O C R I S T I A N I S M O A T R A V É S DOS SÉCULOS
REFORMADORES ANTES DA REFORMA 309
( 9 ) . A sua carreira evangélica data de 1104. Depois de
um ministério de mais de vinte anos, durante o qual ba- os acusados negavam que as crianças antes de chegarem
tizou muitos, sob profissão de fé, Pedro foi queimado á idade da razão pudessem ser salvas pelo batismo de
em 1126. Cristo; que a fé de outra pessoa pudesse aproveitar aque-
les que não podiam exercer sua própria — isto de acordo
Pedro de Bruys abalou tôda a França Meridional com a Escritura: " o que crer e f o r batizado, será salvo".
com a sua pregação das verdades evangélicas, pregando (10). Sustentavam que não eram necessários lugares
também contra os abusos e as corrupções do Roma- sagrados para o culto, sendo dispensável a edificação de
nismo. igrejas, uma vez que Deus ouve tanto as orações feitas
numa taverna como numa igreja, diante de um altar,
Henrique de Lausane, fôra monge, antes de se en- como diante de uma estrebaria; que as cruzes devem ser
tregar com denodo e firmeza à propaganda do evange- partidas em pedaços e queimadas, negando que o instru-
gelho. Celebrizou-se pela eloqüência poderosa e comove- mento que serviu ao suplício de Cristo deva ser adorado
dora. Parece que associou os seus esforços aos do seu ou venerado. Negavam que existisse na eucaristia o ver-
dadeiro sangue e corpo de Cristo, considerando seme-
contemporâneo Pedro de Bruys, e, ligados, realizaram a lhante coisa como absurda e sacrilega; negavam que os
importante obra de evangelização entre os albigenses. sacrifícios, orações e boas obras dos vivos, fossem de al-
Faleceu Henrique em 1148, provavelmente na prisão em guma maneira, vantajosos para os mortos. Repeliam a
que o recolheu o concilio de Reims. autoridade dos chamados "pais da igreja" e da tradição,
aceitando somente a das Escrituras. Pedro, o Venerá-
E' impossivel determinar com certeza a origem do vel, também informa que ouvira dizer, mas não estava
impulso que pôs em movimento a carreira reformatória certo da veracidade da notícia, que os petrobrucianos re-
do padre Pedro de Bruys e o monge Henrique de Lau- jeitavam também o Antigo Testamento e partes do Novo.
sane. Sem embargo, perpetuava-se na Igreja corrupta,
sob a dominação da hierarquia romana, algo da vida e
do pensamento evangélicos. Protestos contra a corrup-
ção eclesiástica foram expressos de vez em quando por
homens eminentes durante o periodo da crescente cor-
rupção . As doutrinas e práticas de Henrique eram provavel-
mente semelhantes ás de Pedro de Bruys, dada a asso-
A informação que temos das doutrinas pregadas e
ciação dos dois homens. Segundo Ford, que se baseia
praticadas por êsses dois homens e pelos seus inúmeros
em Mosheim e especialmente em Wall, Henrique "acre-
seguidores procede quase tôda dos seus opositores, sendo
assim misturadas do travado ódio. Pedro, o Veneravel, ditava na espiritualidade da igreja de Cristo, na autori-
abade de Clugny, acusou como "hereges" a Pedro de dade suprema de Cristo como Rei, e na imersão dos ver-
Bruys e seus adeptos. Dessas acusações depreende-se que dadeiros crentes" (11). Mosheim assevera que Henrique
"censurava o batismo das crianças e os costumes cor-
(9) Abelardo (1079), chamado "a encarnaçâo do escoiasti- ruptos do clero".
cismo francês," célebre por causa das suas obras filosóficas e teo-
lógicas e pela sua paixão por Heloísa, sobrinha do eÔnego Fulher-
(10) E v . de Marcas 16:16.
io, a qual morreu abadessada em 1164. Suas supostas heresFas
foram combatidas pelo célebre pregador Bernardo de Clairvoux (11) Ford, Origem e História dos Batistas, pg. 61, tradução
de T a y l o r .
310 O C R I S T I A N I S M O A T R A V É S DOS S£CUIX)S

4. Os arnaldistas

De origem nobre, Arnaldo nasceu na Bréscia. Como


Pedro de Bruys, f o i discípulo do famoso Abelardo (12).
Voltando à terra natal foi admitido no clero. A corrupção
eclesiástica muito feriu os seus sentimentos.' Arnaldo
resolveu então denunciá-la. Sua pregação despertou todo
o Norte da Itália. Acusado como "herege" pelo bispo da
círcunscrição (1139) foi obrigado a buscar refúgio no
estrangeiro. Emigrou para a Franca e depois para a Suí-
ça, onde as tendências liberais do bispo de Constança
facilitaram a sua obra e a sua propaganda evangélica,
até que Bernardo de Clairvoux (13) o denunciou como
"inimigo da Igreja", conseguindo a sua expulsão do ter-
ritório suíço. A proteção que lhe dispensou um legado
papal, que, mais tarde subiu a'o pontificado com o nome
de Celestino II, permitiu-lhe ficar em Roma de 1145 a
1155. Arnaldo continuou, então, esforçando-se em favor
da simplicidade evangélica.
A condescendência não durou mais de dez anos. O
corajoso pregador foi condenado, m'orto, queimado, e
suas cinzas lançadas ao Tibre. Dele escreve Brewster:
"E* impossível não admirar o gênio e a intrepidez perse-
verante de Arnaldo." "Não há consciência possuída do
espirito de liberdade," diz Ruy Barbosa (14), "que não

(12) "Não foi sem razão -que a Igreja de Roma, no seu ponto
de vista, condenasse a Abelardo; porque se Ôle não foi estrita-
mente herege, foi certamente quem espalhou o germe de heresia
para outros. As mais sérias rebeliões do século doze contra a Igre-
ja podem ?cr traçadas diretamente ao seu salão de conferências."
— Vedder, Breve História dos Batistas', per. 42.
(13) Bernardo de Clairvoux, primeiro abade do Convento
de Ciaravel, França {jda ordem de Gister): promotor da segunda
cruzada (1147-1153); pregador eloqüente e violento contra a he-
resia no sul da França. Investiu-se contra Alebardo e Arnaldo,
•obrigando aquôle a retratar-se e pedir perdão à Igreja, e ôste a
sair do território francês.
(14) O Papa e o Concilio, E d . 1930, pg. 31.
REFORIVIADORES ANTES DA REFORMA 300

estremeça ainda agora ante o suplício de Arnaldo de


Bréscia (1155), cujo sangue, diz um sério e profundo
historiador, clama ainda hoje por vingança" (15)
Foi reformador mais das instituições políticas do que
das religiosas, Na sua opinião o Estado devia ser uma
pura democracia republicana. "Cada cidade, ensinava êle,
devia constituir um estado independente, em cujo go-
verno nenhum bispo devia ter o direito de intervir; a
Igreja não devia possuir qualquer domínio secular, e os
sacerdotes não deviam ter autoridade alguma temporal"
(16), Não podia haver heresia maior neste tempo em que
prevalecia a idéia de um sacerdotiam e um imperium
universais; um governando os negócios espirituais e o
outro os temporais; o governo civil recebendo sua auto-
ridade do governo espiritual e em troca protegendo a
êste com sua espada, e executando seus decretos" (17).
Sob a liderança de Arnaldo, o povo de Roma rejei-
tou a supremacia do Papa nas coisas temporais e expul-
sou-o da cidade, mas o êxito do seu idealismo foi tem-
porário e ilusório, e custou-lhe a vida .

0 bvspo Hurst dá o seguinte resumo da victa de Arnaldo:


A o estudar a carreira de Arnaldo e o seu f i m trágico, pensar-se-ia
que fôsse apenas um episódio do tempo turbulento em que ôle
v i v i a . Precisamos, porém, olhar mais alíhn. Èle desmoronou a
confiança do povo na supremacia do rapado e provou que era
possível que um ?6 homem de energia pudesse, pelo menos pro-
visòriamente, pôr abaixo o poder temporal dos papas, introduzir,
mesmo em Roma, uma nova .vida política, e arregimentar o povo
ao seu lado. Seus inimigos mais intransigentes não puderam
achar falha sequer no seu caráter moral. A pureza da sua vida
estava de pleno acòraio com o evangelho que ôle pregava. Seu
valor pessoal e as mudanças provisórias que Ôle conseguiu cons-
tituíram as grandes fôrças que continuaram por muito tempo de-

(15) \V. Draper, Histoire du Development Intelectual en


Europe. trad, por Aubert, T o m . II, Paris, 1868, p g . 285.
(16) Vedder, Breve História dos Batistas, ed. citada.
(17) Idem idem, pgs. 42-43, idem.
312 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

pois do seu martírio. E m -cada tentativa subseqüente de reforma,


e mesmo na reforma na Alemanha e noutros países, o nome
de Arnaldo de Bréscia foi fator poderoso no rompimento (dos v e -
lhos laços. Mesmo nos tempos modernos èle tem o seu valor
histórico, pois na luta do Protestantism o na nova Itália, para
atuar no pensar do povo, aquele nome é consôlo a todos quantos
se estão esforçando para apressar aim dia melhor desde os Alpos
ate Sicília ( w ) .

A principal importância histórica de Arnaldo é que


êle, além de negar a dualidade do batismo infantil e re-
jeitar 'o sacramento do altar, proclamava insistente e elo-
qüentemente a doutrina da liberdade da alma e da se-
paração entre o Estado e a Igreja (19).
Arnaldo deixou muitos seguidores, conforme afir-
mam historiadores de renome. Na sua História Pontifi-
calis, escrita em 1164, João Saresberiensís relata que
Arnaldo "fundou uma seita de homens que é ainda cha-
mada heresia dos lombardos" (20). Mas, a opinião dos
historiadores novamente se divide: Teria sido realmente
Arnaldo o fundador da seita conhecida no século seguinte
como arnaldista? As circunstâncias históricas parecem
favorecer o lado afirmativo. Uma delas, lembrada por
Newman, é que os arnaldistas floresceram na Lombàr-
dia, precisamente a região onde Arnaldo de Bréscia exer-
ceu maior influência. Êste grupo uniu os seus esforços
aos petrobrucianos e aos dos cátaros (isto não importan-
do na identificação com os propósitos dêstes últimos) con-
Ira a corrupção e o vier dissoluto do clero. Negavam os

(18) Hurst, Short .History of the Christ inn Church, pági-


na 152.
(19) 0 padre Goud, no seu compêndio de História Eclesiás-
tica, refere-se a Arnaldo e a Gilberto de Poréia, increpando-os
de grandes heresias. De Arnaido êle diz: "Atacou dum modo
especial a adoração pelos mortes, o sacrifício 'da missa, o batis-
mo; sustentou que os bispos e os monges não podem possuir ter-
ras íem incorrerem na condenação".
(20) Newman, A Manual of Church History, v o l . I p g . 565.
REFORIVIADORES ANTES D A REFORlVtA 313

arnaldistas a eficácia da água batismal para assegurar a


regeneração dos pecadores, e praticavam a impo-
sição das mãos como ato complementar do batismo.
Não há nenhuma evidência de que êies tenham subs-
tituído o batismo pelo "consolamentum" dos cátaros.
Os arnaldistas atravessaram como um partido dis-
tinto, os séculos treze e catorze, subsistindo ao apareci-
mento dos valdenses. E' certo que Arnaldo e Pedro de
Bruys, diz Newman, fizeram da igreja apostólica o seu
modelo, e tinham em vista o Cristianismo na sua pri-
mitiva pureza e simplicidade (21).

5. Tanqaetmo e Eudo de Stella

Tanquelmo (1115-1124) é o nome de um contem-


porâneo de Pedro de Bruys, o grande evangelista das
províncias meridionais da França. Denunciou com en-
tusiasmo e ardor a corrupção dos simples ritos do Cris-
tianismo primitivo e dissuadiu a muitos de receberem
a eucaristia das mãos dos padres e pagar-lhes o dízimo.
Seu campo de ação foram os Países Baixos. Acusam-no
da pretensão de "ser igual a Cristo em santidade e na
possessão plena do Espirito Santo", e de que "seus dis-
cípulos dedicaram-lhe tanta estima que bebiam a água
em que ele tomava banho". Tais acusações parecem in-
justas e mentirosas, ou pelo menos excessivamente exa-
geradas, dada a semelhança que parece existir entre os
ensinos de Tanquelmo e os de Bruys.
Eudo de Stella agitou a Bretanha com a sua vio-
lenta campanha contra a corrupção eclesiástica. Muitas
vêzes influenciou de tal modo os seus ouvintes, que ês-
tes, tomados de excessiva indignação, saíram destruindo
mosteiros e conventos. Em 1148 foi Eudo detido e con-
denado á prisão perpétua pelo concilio de Rouen.

(21) Idem, v o l . I, pg. 56G.

X,
314 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Parece que faleceu logo depois. O arcebispo de Rou-


en, (1145) deixou uma descrição da "heresia de Eudo",
da qual se depreende que este condenava entre outras
coisas, o batismo de infantes, baseado em que o evan-
gelho diz, Aquele que crê, e uma criança não pode crer,
sustentando portanto a justificação pela f é .
Nas provincias renanas também apareceram cerca
desse tempo, grupos de dissidentes. Em 1115, aproxima-
damente, foram apresentados às autoridades de Treves
dois desses "hereges," acusados de "negarem a transmu-
tação, nas mãos d'o padre, do pão e do vinho no corpo
e sangue de Cristo" e de não considerarem "que o sa-
cramento do batismo aproveita á salvação das crianci-
nhas," além de outras "heresias". Uma carta dirigida
de Steinfeid, ao célebre Bernardo, em 1146, informando-o
de que hereges cátaros infestavam a círcunvizinliança de
Colônia, informa também a existência de um grup'o dis-
sidente fundamentalmente distinto dos cátaros. A carta
descreve êsses dissidentes, acusando-os de negarem que
o corpo de Cristo é feito no altar; de dizerem que a dig-
nidade apostólica tem sido corrompida, em intrometer-se
nos negócios seculares, estando, por isso, destituída de
consagração; de condenarem os sacramentos com exce-
ção do batismo, e êste só para adultos; de não terem
confiança no batismo das criancinhas, em vista da pas-
sagem bíblica: " O que crer e fôr batizado será salvo".
A carta diz ainda que êles rejeitavam o casamento,
exceto o de nubentes virgens, repudiavam o sufrágio dos
santos, chamavam superstição a tudo quanto a Igreja
observa, sem ter sido estabelecido por Cristo e pelos após-
tolos, opunham-se à doutrina do purgatório, sustentando
que imediatamente depois da morte as almas ou vão para
o repouso eterno ou para a eterna punição. Esta carta,
escrita por pessoa adversa ao grupo dissidente, deixa ver,
através das acusações que apresenta contra os "hereges"
REFORIVIADORES ANTES DA REFORMA 315

das proximidades de Colônia, os propósitos que êles


mantinham.

6. Os valdenses

Dentre os evangélicos medievais, os mais geralmente


conhecidos são os valdenses. Contra êles faísca o ódio
dos apologistas da Igreja Romana, como 'o padre Goud,
(22) que os chama de fanáticos e sedicíosos, atribuindo-
lhes maus intuitos, grosseiros embustes e crimes.
Entretanto, Cantu, historiador católico, na sua His-
tória Universal, tratando de Pedro Vaux ou Yaldo, o
campeão do movimento valdense, diz que êle se apresen-
tou em 1170, "depois de vender tudo quanto possuía, en-
sinando, não dogmas abstratos, mas, como Arnaldo de
Bréscia, preceitos inteligíveis a todos." "Dizia", conti-
nuou o célebre hístoriógrafo italiano, "que a Igreja se
tinha desviado do evangelho, que era mister fazê-la vol-
tar à simplicidade primitiva dos tempos em que o culto
não tinha luxo, etc," (23)
Pedro Valdo era um rico negociante de Lião, que
não podendo encontrar a paz da alma nos ritos e peni-
tências prescritas pela Igreja Romana, consultou um sá-
bio teólogo qual seria o caminho mais seguro para o
céu. Èste, repetindo as palavras de Jesus ao moço rico,
respondeu-lhe: "Se queres ser perfeito, vai, vende tudo
o que tens, e dá-o aos pobres, e terás um tesouro nos
céus; depois vem e segue-me" (24). Se êle tivesse sido
um crente experimentado e instruído, teria compreen-
dido que Jesus se refere à submissão absoluta á vontade
divina, mas sendo homem simples, voltou a casa, divi-
diu os bens com a esposa, que não participava de sua in-

(22) História Eclesiástica, sc. 12.


(23) Cantu, História Universal, v o l . X, pg. 79.
(2-í) Evangelho de Mateus, 19:21.
316 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

quíetação pela salvação, deu rico doie às duas filhas e


distribuiu o resto em esmolas aos pobres.
Não sabendo latim, Valdo contratou dois padres,
incumbidos, um de verter as Escrituras para o verná-
culo, e outro de copiá-las, e desta maneira foram tradu-
zidos os Evangelhos, os Salmos e parte das Epístolas. O
ex-negociante estudou esta versão e nela meditou a ponto
de sair de seus lábios quase espontâneamente e não tar-
dou em pôr em prática a verdade bíblica que se revelara
aos seus olhos e ensiná-la aos 'outros. Andando a pé de
cidade em cidade e de aldeia em aldeia, contou a velha
história da cruz e a própria experiência que o povo es-
cutava com avidez. Não tardou em a juntar numerosos
seguidores, e com o auxílio destes continuou a ensinar as
Escrituras a'o povo, concítando-o a arrepender-se dos seus
ptícados.
Èste movimento evangélico, que começou em 1170,
nno tardou, pelo bom êxito e pela rápida propaganda, a
atrair a atenção das autoridades filiadas à Igreja de Rb-
ma. O arcebispo de Lião proibiu a pregação de Valdo
e dos seus adeptos. A resposta, porém, que êles deram
à intimação do arcebispo foi curta e decisiva: "Deve-
mos obedecer antes a Deus que aos homens", O arce-
bispo, ciumento da popularidade dos pregadores leigos»
mandou que calassem. Èles apelaram para o Papa, indo
Valdo pessoalmente a Roma em 1177. Diz-se que Ale-
xandre III recebeu bondosamente o pregador, como a
um varão santo, e ainda condescendeu até em beijar sua
face, mas disse-lhe que não podia pregar sem o consen-
timento de seu diocesano. Até este tempo Valdo tinha
sido um filho fiel da Igreja; apenas solicitava o privilé-
gio de dizer aos outros que havia achado o Salvador. Ne-
gam-se-lhe êste direito, e sentindo-se chamado por
Deus a esta obra, não demorou em obedecer antes a
Deus que aos homens. Doravante seus seguidores eram
REFORIVIADORES ANTES DA REFORMA 306

tidos conto hereges e em 1184 foram excomungados pelo


concilio de Verona,
O primeiro propósito de Valdo foi semelhante ao de
Lutero: reformar a Igreja. Mas, diante da impossibili-
dade, constituiu-se com os seus adeptos em grupo inde-
pendente e hostil à igreja hierárquica. Diz o já citado
Yedder:

No seu modo de tratar Valdo, Roma revelou menos sagaci-


dade que, -quando mais tarde Francisco de Assis pleiteou tole-
rância semelhante para sua ordem de pregadores. Se o papa
Alexandre I I I tivesse sido mais astuto provável men te teria ha-
vido uma nova ordem ide pregadores leigos na Igreja Romana,
ao invés da sei Ia valdense e, talvez, não tivesse havido a R e f o r -
ma luterana ( 3S ).

Dai em diante, como hereges, os valdenses sofreram


tôda a espécie de perseguição. Valdo mesmo morreu
cerca do ano 1217, mas, nem a morte do seu líder, nem
as perseguições abafaram o movimento, que aumentou
consideravelmente por tôda a Europa continental.
O crescimento rápido dos valdenses explica-se pela
antipatia do povo contra a Igreja de Roma, causada pela
corrução reinante no ciero e entre os leigos; pelo desejo
nutrido por parte de muitos dentro da Igreja Romana de
uma religião que satisfizesse as aspirações da alma, e
especialmente, pela semente já semeada pelos movimen-
tos evangélicos nos tempos anteriores, mui particular-
mente pelos dos paulicianos e petrobrucianos.
Parece pelos seus escritos, corroborados pelos es-
critores contemporâneos, que os valdenses acreditavam
na antigüidade das suas doutrinas.
"Os valdenses criam", diz Michelet, "numa perpe-
tuidade secreta através da Idade Média, igual à da Igreja
Católica" (26). E Neander adiciona: "Não é sem fun-
(25) Breve História dos Batistas, p g . 122. Tradução de
Muirhetid.
(2(3) Histoire de France, II, 402, Paris, 1833.
318 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

damento a asserção dos valdenses dêste período (1100


em diante), a respeito da antigüidade de sua seita, e que
tinha havido, desde o tempo da secularização da Igreja,
a mesma oposição (à Igreja Romana) que êles susten-
tavam" (27).
Tlieodoro Beza, discípulo e sucessor de Calvino, ex-
pressa a convição do século dezesseis nestas palavras:
Quanto aos valdenses, seja-me permitido chamar-lhes v e r -
dadeira semente da primitiva e pura igreja cristã, desde que são
êles que têm sido sustentados, como é abundantemente mani-
festo, pela maravilhosa providência de Deus, de modo que nera
as tempestades sem fim que têm abalado todo o mundo cristão
per tantas gerações sucessivas, nem o Ocidente tão miseràvel-
menie oprimido pelo falsamente chamado bispo de Roma; nem
as horríveis perseguições expressamente levantadas contra êles,
ato agora têm podido desviá-los ou forçá-los a se submeterem
voluntariamente ao jugo da tirania e da idolatria de Roma í 3 *),

Os historiadores que se têm especializado na histó-


ria dos valdenses sustentam a idéia de que as doutrinas
dos valdenses não se originaram com Pedro Valdo. Os
limites deste trabalho não permitem citar senão um só
exemplo. Diz Faber:
A evklència, que acabo de produzir, prova, não sòmente que
os valdenses e albigenses existiram antes de Pedro de L i ã o ; mas
também, que no tempo do aparecimento dêie nos fins do século
doze, havia duas comunhões de grande antigüidade a Segue-se,
portanto, que mesmo nos séculos doze e treze, as igrejas valden-
ses eram tão antigas, que'a sua origem remota foi atribuída, mes-
mo pelos seus inimigos ínquisitoriais, ao tempo além da memó-
ria do homem. Os romamstas mais bem informados do período,
não ousaram fixar a data da sua origem. Eriam incapazes de f i -
xar a data exata dessas veneráveis igrejas. Tudo que se sabe é
que èles tinham florescido por longo tempo, e que eram muito
mais antigos do que qualquer seita moderna ( w ) ,

(27) History of the Christian Church, Boston, 1859. v o l . IV,


pg. G05.
(28) Moreland, History of the Evanaelical Churches, pg. 7.
(29) Faber, The Waldenses and Albigenses.
REFORIVIADORES ANTES DA REFORMA 319

O fato é que os valdenses "não parecem ser mais que


os petrobrüsios, simplesmente com denominação diferen-
te. B, ainda que haja razão para supor que Valdo nada
devesse a Pedro de Bruys, mas chegara independente-
mente ao conhecimento da verdade, veio desde logo a
ser o herdeiro espiritual de seu predecessor e ctontímlador
do mesmo trabalho" (30).
E' fora de dúvida o fato que os valdenses tiveram
relação com os grupos evangélicos da Lombárdia. Houve
em 1218 em Bérgamo, uma convenção de valdenses e
"os pobres da Lombárdia", para harmonizar os pontos
de divergência entre êles.
Não é a nossa pretensão, com estas citações, provar
a sucessão ininterrupta através dos séculos, de qualquer
organização evangélica. Pouco nos interessa tal idéia.
Mas, que tenha havido perpetuidade das doutrinas fun-
damentais do Novo Testamento, mesmo nos tempos mais
escuros, é mais que evidente, e não hesitamos, diante dos
dados históricos, em afirmar que ainda estão de pé as
palavras de Cristo: " A s p'ortas do Hades não prevalece-
rão contra ela ; ' (sua igreja); que Cristo não tem deixado
de ter testemunhas aqui na terra; e que êste testemu-
nho se encontra mais fiel nos movimentos fora das igre-
jas oficiais.
Há dois documentos datados de cêrca do ano 1260,
e da pena de escritores romanos, que descrevem os val-
denses. Em resumo,.diz um dêles (31) que os valden-
ses vestiam com relativa simplicidade, comiam e bebiam
moderadamente, sempre laboriosos e estudiosos, havendo
entre êles muitos homens e mulheres que sabiam de cor
todo o Novo Testamento. Neste ponto o escritor tem a
franqueza de dizer, referindo-se aos clérigos da Igreja
Romana daquela época, que era raro encontrar um que

(30) "Vedder, Breve História dos Batistas, p. 45, tradução de


Muirhearl.
(31) Chamado por Preger "Pssau Anonymous",
320 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

pudesse repetir três capítulos das Escrituras. Informa


ainda que entre os valdenses os mestres eram sapateiros
e outros homens de trabalho humilde, e as suas "escolas*'
muito freqüentadas. Mantinham segundo o mesmo do-
cumento, atitude francamente hostil ao Romanísmo. O
outro documento é o tratado de Davi de Augsburgo, es-
crito sobre os "pobres de L i ã o " ou valdenses, e impreg-
nado de ódio e antipatia. Èste documento diz que os val-
denses proclamavam-se "discípulos de Cristo e sucesso-
res dos apóstolos" e quando eram excomungados, regozi-
javam-se com o fato de terem de sofrer perseguição como
outrora os apóstolos, "nas mãos dos escribas e fariseus",
O documento informa que êles rejeitavam os milagres
eclesiásticos e os festivais, ordens, bênçãos, etc., dizendo
que essas coisas foram introduzidas pelo clero cobiçoso;
batizavam os que abraçavam seus princípios, dizendo
alguns dêles que o batismo de crianças não vale nada,
pois elas são incapazes de crer. Não criam que o sangue
c corpo de Cristo estão na eucaristia, limítando-sé a aben-
çoar o elemento como um símbolo. Celebravam a ceia,
recitando palavras do evangelho (32); negavam o pur-
gatório, o concubinato, o sacerdotalismo, o lega-
lismo, etc. Diz o documento que êles rejeitavam, de
algum modo, o Velho Testamento. A acusação explica-se
em vista do uso que 'os monges e o clero faziam do Ve-
lho Testamento, para justificarem a cruel perseguição
aos "hereges". Era certamente contra êste uso imode-
rado e injusto do Antigo Testamento que os valdenses
se insurgiam. O documento diz que havia entre êles duas
classes, querendo provavelmente significar os ministros
e os discípulos, sendo os valdenses obrigados a ter as
suas reuniões em lugares de difícil acesso, como as ca-
vernas, os subterrâneos, etc.

(32) Sôbre a administração da ceia, o documento diz q^e


uns insistiam que ela se fizesse por um homem bomr outras
achavam que eia dependia das palavras de consagração.
REFORIVIADORES A N T E S D A R E F O R M A 310

Outros historiadores romanos anteriores a 1350, atri-


buem os seguintes erros aos valdenses: "Que a doutrina
de Cristo e dos apóstolos, sem os decretos da Igreja, é
suficiente à salvação", "que não passa de fábula todo o
ensino que não se possa provar pelo texto bíblico;" "que
o canto da igreja — sem dúvida referindo-se ao cantar
da missa em latim — é um clamòr infernal;" "que so-
mente êles eram a igreja de Cristo", "que ninguém é
santo senão Deus;" "que ninguém é obrigado a crer;"
"que um homem é batizado pela primeira vez quando
aceita suas heresias;" "que o batismo não aproveita às
crianças, visto que não podem realmente crer;" "que a
rocha sôbre a qual a igreja é fundada — é Crísto; v "que
em nenhum caso se deve jurar ou matar",
Dr. Keller, o último e o mais criterioso investigador
dos dados históricos quanto aos valdenses, é de opinião
que êles batizavam unicamente sob profissão de f é . Esta
idéia está de acordo com a quase unanimidade dos es-
critores romanos contemporâneos e os investigadores mo-
dernos .
Havia entre os valdenses dois corpos distintos: um
constituído dos oficiais e evangelisias itinerantes, enquanto
o outro era constituído dos discípulos. Para ser admi-
tido ao primeiro corpo era mister que o candidato se su-
jeitasse a certas condições de vida muito severas e ri-
gorosas, com'o a renúncia de qualquer bem particular, e
devotar-se exclusivamente ao serviço religioso, e até acei-
tar o celibato. Eram condições de vida comparáveis, pelo
seu rigor e severidade, ás das ordens monásticas. O corpo
de trabalhadores, (ministros, evangelistas, etc), reunia-
se anualmente, para considerar a marcha do trabalho,
estudar os relatórios recebidos de tôdas as partes do cam-
po, fazer distribuição de fundos, admitir ou não candida-
tos ao serviço religioso (perfect!), determinar os lugares
dos trabalhadores, consagrar oficiais (superintendente ge-
ral, presbíteros, diáeonos), exercer disciplinas, etc. Esta

C. A . S. — 21
318
311 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

reunião constituía-se também em sociedade missionária,


dirigida pelo superintendente geral.
A respeito da teologia dos valdenses, deve-se notar
que era anti-agostiniana. Èles davam ênfase aos ensinos
diretos e ao- exemplo do Senhor. Interpretavam quase
literalmente o sermão da montanha, adotando-o como
modêlo de vida.
Davam grande importância à experiência de sofrer
pela causa de Cristo. Os evangelistas, trabalhadores e
ministros renunciavam geralmente ao casamento, o que
não faziam como f i m de vida, conforme à concepção
monástica, mas como meio de melhor servir à obra da
evangelização do mundo. Havia valdenses em quase to-
das as partes da Europa medieval, ascendendo o total,
de aderentes a centenas de milhares. A rápida dissemi-
nação do Cristianismo evangélico no século quinze ex-
plica-se diante da grande corrução da Igreja papal. Fal-
tam informações exatas sobre a obra evangelistíca dos
valdenses (33).
Pequenos grupos de valdenses, apesar das persegui-
ções inquisitóriais, (34) ainda existem nas regiões mon-
tanhosas do sul da Europa, sendo, porém, a maioria ab-
sorvida pelos movimentos reformadores futuros. " F o -
ram os antecessores espirituais das igrejas anabaüstas,
que nasceram por toda a Europa continental logo antes
(33) €esar Cantu cái no lamentável êrro de chamar "cáta-
ros'1 aos valdenses. Os cátaros constituíam um partido absolu-
tamente distinto, tanto dos valdenses como dos albigenses, con-
tinuadores rios maniqueus, e não dos paulicianos como diz amda
o célebre historiador. Para maior esclarecimento è preciso ler as
informações sôbrc paulicianos c cáíarcs.
(34) O concilio de Verona (1183) decretou anátema per-
poluo conira os hereges," incluindo o homem pobre de LiCw. 0
quarto concilio de Latrão (1215) decretou extermínio completo
dos " h e r e g e s , " Para evitar a propagação das "heresias," o smodo
do, Toulouse (1229) proibiu aos leigos lerem a Bíblia nas tradu-
ções vernáculas, o o de Terracona (1234) tornou esta proibição
extensiva ao clero.
REFORIVIADORES ANTES DA REFORMA 323

da Reforma luterana," diz o criterioso historiador Ved-


der (35). E, continuando:

E é um falo instrutivo e curioso que estas igrejas anaba-


tistas fossem mais numerosas justamente onde os valdenses, um
cu dois séculos antes, tinham florescido mais, e onde sua identi-
dade como valdenses se havia perdido. Que tenha havido rela-
ção intima entre o? dois movimentos, poucos daqueles que têm
estudado ôsie período e sua literatura, duvidam.
A iu7. da verdade foi transmitida 'de geração em geração, e
ainda que anmíde fumegasse e estivesse aparentemente extinta,
não necessitou mais que dum sôpro para inflamar-se outra vez e
fazer luz a tôda a humanidade C50),

7, Wiclif e os lolardos

O triunfo obtido pelos heróis ingleses sôbre a rea-


leza, representada na pessoa do rei João, e do qual re-
sultou a Magna Carta (1215), despertou na Inglaterra
uma reação contra o absolutismo papal, personificado em
Inocêncio III. A Inglaterra entrava na sua fase de au-
tonomia nacional, e o espirito de independência mostra-
va-se bastante forte e pronto a repelir qualquer intrusão
Estrangeira na vida interna da nação. Era uma estacada
ó política absorvente do papado (37). Um legado papal
de alta dignidade quase foi maltratado pelos estudantes de
Oxford em 1240, o que mostra, com outros casos seme-
lhantes, a exaltação de ânimos que reinava no pais con-
tra o Papa. Em 1235 foi nomeado bispo de Lincoln um
homem profundamente religioso e de notável saber, Ro-
berto Grossetète. Assumindo o bispado, Roberto pôs em
prática certas medidas reformadoras e depôs vários pa-
dres. Em 1250 apresentou ao Papa um memorial sôbre

(35) Breve [lislona dos Batistas, p g . 48, edição ciLada.


(30) Idem.
(37) Não é ide admirar que a Magna Carla, primeira fórmula
escrita de todas as modernas constituições representativas, fôsse
amaldiçoada por inocêncio III como ignomínias a e herética.
324 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

a situação corrupta da Igreja, atribuindo-a, em grande


parte, à falta de bons pastores e à própria cúria romana,
da qual citou diversos abusos. Era 1258, Roberto, direta-
mente afrontado pelo Papa rompeu com êle. Contava
então 80 anos. Sua popularidade espalhou-se e a fama
de sua bondade perdurou na Inglaterra muito tempo de-
pois de sua morte. Èste homem exerceu grande influ-
ência em W i c l i f , Entretanto, continuava 'o papado a ma-
nobrar audaciosamente, com o fim de submeter a In-
glaterra à sua jurisdição. Bonifácio "VIII, chegou a ex-
pressar êsse desejo numa bula publicada em 1299, na qual
X>retendia provar o direito do domínio papal na Escócia.
A questão foi levada ao parlamento, e decidida a favor
do rei.
Em 1339 rebentou a guerra entre a Inglaterra e a
França. A estreita ligação do Papa com o rei da França,
contribuiu para acentuar, durante a guerra, o espnito de
autonomia ínglêsa e as suas disposições contra o papa-
do. Em 1313, um ato papal que fazia reverter às mãos
de dois cardeais estrangeiros, entre os quais um sobri-
nho ou filho ilegítimo do próprio Papa Clemente IV, di-
nheiro arrecadado na Inglaterra, fêz surgir nova desa-
vença entre êste e o parlamento inglês, sempre cioso de
suas prerrogativas, o qual sustentou que as rendas dos
bens da Igreja na Inglaterra deviam ser aplicadas, ali
mesmo, na manutenção do culto, proteção aos pobres,
etc. Diante dessa atitude hostil, o Papa apelou para o
rei Eduardo I, porém êste respondeu censurando seve-
ramente o procedimento papal. Eduardo II, não se fêz
notar como seu antecessor na resistência contra a opres-
são do papado, antes o favoreceu, deixando-o recuperar
as vantagens perdidas no reinado anterior, Não foi as-
sim Eduardo III. Èste tomou medidas rigorosas e deci-
sivas contra as manobras papais, estabelecendo até a elei-
ção livre dos bispos e arcebispos, e regularizando a co-
leta das rendas de maneira que ela revertesse em bene-
REFORIVIADORES A N T E S D A R E F O R M A 325

fício do povo inglês, e não de dignatários estrangeiros.


Em 1352 o Statute of Praemunire estabeleceu que os sú-
ditos ingleses não podiam tratar, perante tribunais ou
cortes estrangeiras, de casos que caissem debaixo da ju-
risdição do rei. Era um golpe certeiro na cúria romana»
que com o fim de resolver questões relativas aos bens
da Igreja, estava usurpando os direitos dos juizes inglê-
ses. Outras medidas foram tomadas contra a política ab-
sorvente e opressora do papado, nas quais se sentia o
ardor do sentimento nacional e do espirito de indepen-
dência. Esta animosidade da nação contra as usurpações
papais oferecia as melhores oportunidades a um diri-
gente religioso, que se dispusesse a combater a igreja
hierárquica. Éste líder apareceu na pessoa de Wiclif.
O movimento de Wiclif não teve o cunho de inde-
pendência que se notou em outros. Èle tinha da igreja
uma concepção realista, o que fazia olhar para o cisma
com certo receio. Antes do cisma papal, Wiclif consi-
derava o papa cabeça da Igreja; o cisma foi para êle uma
decepção, lèvando-o a estudar mais a fundo o assunto.
Durante a sua controvérsia sôbre a ceia, disse êle ver no
papado o cumprimento das profecias do Apocalipse a res-
peito do anti-cristo, declarando que só duas ordens de
ministério foram estabelecidas por Cristo — presbiteros
e diáconos — sendo as outras o resultado da seculariza-
ção da Igreja.
No papado, o que parecia a Wiclif mais indigno,
eram os meios de explorar os pobres, em benefício de
dignatários estrangeiros. O mercantilismo ganancioso do
papado índignava-o. Nesse tempo eram muito popula-
res os frades mendicantes que percorriam a nação, ex-
torquíndo o dinheiro do povo. A primeira contenda pú-
blica de Wiclif foi com um desses frades, na Universi-
dade de Oxford. A princípio teve a proteção do arcebis-
po, porémj êste morreu logo (1366) e êle teve de apelar
para o Papa. Enquanto o caso estava em pendência, o
326 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

Papa solicitou grande soma de dinheiro, baseado nos di-


reitos de relação feudal que o rei João havia imposto à
Inglaterra. O parlamento resistiu e Wiclif escreveu a
defesa. Sua atitude fê-lo ganhar as boas graças da côrte,
e êle foi nomeado capelão do rei, começando ao mesmo
tempo sua carreira universitária.
Em 1374 Wiclif foi enviado como embaixador a
Avignon, e nos dois anos em que ali permaneceu, revi-
gorou-se ainda mais diante doutros fatos, a sua indigna-
ção contra a corrupta côrte papal. O ponto básico de sua
atividade, nos primeiros tempos, foi libertar a Inglaterra
do papado, que a oprimia e a explorava para satisfazer
ias suas ambições de fausto mundano. Por isto as suas
polêmicas foram sempre travadas com os tais frades
mendicantes, agentes do papado e seus instrumentos di-
retos na obra do mercantilismo religioso. Wiclif publi-
cou em 1380 uma tradução da Biblia que foi largamente
espalhada pelos seus cooperadores, os poor priests, as-
sim como inúmeros tratados populares. Esta propaganda
evangelistica influiu grandemente no ânimo popular, fa-
zendo que muitos se indispusessem contra a Igreja papal
e os frades mendicantes.
A oposição de Wiclif ao papado não derivava só do
motivo politico de libertar sua pátria de uma opressão
estrangeira repugnante e ofensiva. Tinha as suas raizes
em motivos religiosos. E bem fortes eram essas raizes.
Além de patriota ardente, Wiclif era homem de senti-
mentos profundamente cristãos, bebidos na fonte limpa
do evangelho. Vivo era o seu desejo de reconduzir a
Igreja á pureza evangélica e de instruir os seus compa-
triotas sôbre o verdadeiro meio de alcançar a salvação.
Dai o seu esforço no sentido de abolir o sistema finan-
ceiro em voga na Igreja, e raiz de tanta corrupção e apos-
tasia, e de popularizar o mais possível o uso da Bíblia,
como guia de doutrina e vida. Canterbury condenou uma
série de proposições de Wiclif como heréticas. Obrigado
REFORIVIADORES ANTES D A REFORMA 327

a sair de Oxford, Wiclif deixou o professorado univer-


sitário onde se fizera notável, e passou 'o resto dos seus
dias escrevendo e pregando. Quarenta e quatro anos de-
pois de sua morte, ocorrida em 1384, o concilio de Cons-
tança condenou-o com'o herege, ordenando que os seus
ossos fossem queimados.
Tinha razão Ruy Barbosa em dizer:

O sistema papal foi sempre èsse; difamar sem escrúpulos,


espoliar implacavelmente o adversário vivo, e, morto, persegui-
lo aiiida, negando-llie ao cadáver o obséquio da sepultura, no-
doando-íhe a memória, eternizando nos seus anais ímpios contra
a vítim-a o ódioje a mentira ,

E' evidente que a influência do primitivo Cristia-


nismo britânico perdurou na Inglaterra até muito depois
da conquista dos normandos (1066). Durante os sécu-
los treze e catorze bom número de evangélicos da Europa
continental, principalmente dos Países Baixos, fugindo
ao rigor do Rom;anísmo dominante, foram refugiar-se
na ilha. Essa imigração de elementos evangélicos,
resultou num avxvamento do Cristianismo inglês, cuja in-
fluência já alcançava grande parte da população de Ga-
les e das zonas circunvizinhas.
A versão popular da Bíblia e os escritos de Wiclif
circulavam largamente. A sujeição aos católicos roma-
nos era fraca, e a vigilância dêles contra os "hereges"
quase nenhuma. Segundo o testemunho de um escritor
católico, era difícil encontrar dois homens num caminho,
dos quais um não fôsse do partido de Wiclif. Os prega-
dores trabalhavam ativa e poderosamente, percorrendo
as províncias e anunciando 'o evangelho. Outros escre-
viam, e os seus escritos eram largamente espalhados.
Entre esses evangelistas havia muitos de alta cultura re-
cebida nas universidades. Eram versadíssimos nas Es-
crituras.
(38) 0 Papa e o Concilio; p g . 31, ed. de 1930.
328 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Os lolardos, nome posteriormente dado aos segui-


dores de "Wiclif, além das circunstâncias favoráveis já
mencionadas, tiveram também a seu favor a simpatia
protetora de muitos nobres. Em 1395 apresentaram êles
ao parlamento um memorial, em que seus fins eram cla-
ramente expressos. Queriam a volta à simplicidade pri-
mitiva, a pureza de vida e de doutrina. Sua atitude era
mais decisiva e mais radical do que a de Wiclif e seus
contemporâneos. Pouco se lhes dava que lhes atirassem
a pecha de "císmáticos". 0 memorial referido declarava
em resumo: que a carrupção da Igreja é resultado do or-
gulho; que o clero começado em Roma não é o ordenado
por Cristo; que a lei do celihato induz ao vicio contra a
natureza; que a doutrina da transubstanciação conduz à
idolatria; que exorcismo e benzeduras do vinho, pão,
água, etc., são práticas de necromância; que as orações pe-
los mortos são baseadas na idéia falsa do vaíor das esmo-
las; que a confissão auricular exalta o orgulho dos pa-
dres e dá-lhes oportunidade para conversas secretas e com
propósitos viciosos; que o homicidio pela guerra ou sob
a lei é contrário ao Novo Testamento; .que os votos de
celibato feitos na igreja pelas mulheres são a causa dos
mais horríveis pecados; que tudo que não ministra aos
desejos atuais, mas estimula o orgulho, deve ser abolido.
Os lolardos de Leicester negavam o poder do Papa ou
prelados para excomungar ou conceder indulgência. Sus-
tentavam que qualquer leigo tem o direito de pregar e
ensinar o evangelho, que todo o homem, sendo bom, é
um sacerdote, quer conheça literatura quer não; que ne-
nhum eclesiástico em estado pecaminoso é apto para ad-
ministrar válidamente ordenanças cristãs. Do depoimento
de Walter Brute, perante o bispo Hereford, em 1391, vê-
se ainda que os lolardos davam à Escritura tôda a auto-
ridade, fazendo de Cristo o único cabeça da igreja; sus-
tentavam que na ceia do Senhor o corp'o e o sangue de
Cristo estavam presentes só simbolicamente; rejeitavam
REFORIVIADORES A N T E S D A R E F O R M A 329

o sacrifício (1a eucaristia; negavam o poder da excomu-


nhão papal; negavam a validade das ordenanças admi-
nistradas por padres viciosos; tinham hem clara a dis-
tinção entre o evangelho e a lei; defendiam a doutrina
da justificação, pela fé com mais força do que W i c l i f .
Os lolardos gozaram de relativa liberdade de ação
até 1399, quando Henrique IV, da Casa de Lancaster, subiu
tio trono e pôs em prática medidas rigorosas contra aquele
grupo evangélico. Muitos lolardos foram queimados,
principalmente os pregadores} os livros e escritos de
propaganda evangélica foram destruídos e a Universi-
dade de Oxford fechada. Ainda assim o movimento evan-
gélico na- Inglaterra durante a Idade Média continuou.
Lord Cobham, amigo do rei, que promoveu larga pro-
paganda evangélica nos seus domínios, foi condenado
peío parlamento em 1417, depois de muitos esforços em-
pregados pelo rei para que renunciasse a heresia.
De 1417 em diante começou a declinar a força d'os
lolardos. A perseguição cresceu e foram muitos os que
pereceram no martírio. Em 1431 as autoridades ro-
manas supunliam-nos inteiramente extintos. Engano, Os
lolardos, reduzidos pela perseguição e pelo martírio, per-
sistiram até aos dias da grande revolução religiosa
guiada por Lutero.

8. Marcilo de Pádua

Sessenta anos antes de Wiclif reagir contra a inter-


venção papal na vida inglesa e despertar interesse no puro
evangelho na Universidade de Oxford, houve um movi-
mento semelhante na França.
Marcilo de Pádua foi o n'ome de um reitor da Uni-
versidade de Paris (1312), posição deveras saliente na-
queles dias, pois a mesma universidade era o maior cen-
tro de sabedoria e letras de França e quiçá do mundo.
Exercia Marcilo tão alto reitorado quando rebentou a
ú ~

330
^ t O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS SÉCULOS

irritante questão entre o imperador Luis, o Bávaro, e o


Papa i a ã m S f c 0 notável universitário pôs-se ao lado do
imperador, tomando uma atitude rasgadamente hostil ao
Papa, e escrevendo em colaboração com João de Jandum,
o Defensor Pacis (1324). Nesta defesa êle sustentou pon-
tos de vista semelhantes aos dos valdenses e francamente
evangélicos. Marcilo foi algum tempo médico do impe-
rador, sendo provável que tenha influído sôbre os senti-
mentos e os atos governamentais de Luís, Explica-se as-
sim a liberdade fartamente concedida aos dissidentes
pelo govêrno imperial, e p'or outro lado, a sua atitude
severa para com o clero. ,
O reitor da Universidade de Paris sustentava
a exclusiva autoridade das Escrituras canônicas, in-
terpretadas sem a interferência de padre. Para definir
pontos duvidosos sugeria êle um concilio geral de
crentes, e não uma corporação parcial de homens. Não
há nenhum preceito evangélico, dizia êle, que possa com-
pelir alguém por penas e penalidades a observar os pre-
ceitos da lei divina. Sôbre êste ponto a sua argumenta-
ção é vasta, naturalmente por causa da forte oposição
papal naqueles dias. Èle insistiu na igualdade de todos
os bispos, inclusive o de Rjoma, negando a êste o direito
de promover outros à dignidade eclesiástica. Sustentava
que os termos "presbitero" e "bispo" eram sinônimos na
primitiva igreja cristã, referindo-se o primeiro à idade e
o segundo á dignidade do mesnro cargo,
A pretensão da Igreja Romana de ser a Caiedra Pe-
irix e de ter superioridade sôbre as demais, teve nêle um
forte contraditor, Quanto a Pedro, asseverava Marcilo
que não há prova bíblica, por diminuta que seja, que de-
monstre ter sido Pedro bispo de Roma, E' demais pro-
vável, e quase fora de dúvida, segundo êle, que
Paulo foi bispo de Roma, e Pedro de Antioquia. Mar-
cilo traçou com clareza o aparecimento e desenvolvi-
mento do poder papal,
REFORIVIADORES A N T E S D A REFORMA 331

9. Movimentos evangélicos na Boêmia

1) Situação geral. Como o movimento de Wiclif na


Inglaterra, o de Huss na Boêmia foi precedido de um
concurso de circunstâncias que grandemente o favorece-
ram e facilitaram. A Boêmia recebeu o evangelho da
Igreja Grega no século nove, mas a invasão dos húnga-
ros ou mogiares no século onze, contribuiu para que as
formas da Igreja Latina fossem lentamente introduzi-
das. Entretanto, êsse predomínio não apagou de todo a
influência grega, e os boêmios estavam prontos para re-
ceber os que se opusessem às pretensões de Roma. Carlos
IV (1316-1378) tornou definitivo o triunfo romano na
Boêmia, levantando suntuosas catedrais, criando a Uni-
versidade de Praga e elevando a mesma Praga à cate-
goria de arcebispado, sem contar as rigorosas medidas
contra os dissidentes. O triunfo, porém, não era real,
nem definitivo, antes simplesmente aparente e cedo ha»
via de esvaecer-se. A universidade, aberta sob os auspí-
cios do monarca católico, não tardou em constituir-se jem
centro de reação contra a Igreja papal. À corrupção do
clero e da Igreja levantaram-se vozes, como a do arce-
bispo de Praga, Pardohtiz, clamando contra a degradante
e crescente imoralidade. Pardobtiz chegou a adobar me-
didas de rigor que proibiam ao clero o concubinato, a
freqüência às tavernas, etc.

2) Plêiade de Reformadores. Uma voz que se fêz


ouvir bem alto foi a do grande pregador Conrado do
Waldhausen. Chamado a Praga, ali esteve em 1360 ou
1362 e do púlpito censurou com a mais rude franqueza
os pecados de todas as classes, altas e baixas, clérigos e
leigos. Sua eloqüência era grande e poderosa, e atraia
as multidões. A maneira rude e franca de denunciar oa
abusos e pecados despertou contra êle a antipatia dos
m'onges e do clero. Conrado era agostiniano e pregava
em latim e alemão.
332 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

Ou Ira voz que clamou contra a corrupção eclesiás-


tica foi a de Milested de Dremsier. Ocupava alta posi-
ção na Igreja, mas renunciou-a em 1363, começando a
pregar na Boêmia. Tal era a avidez para ouvi-lo, que
êle linha de pregar diàríamente duas ou três vêzes, e aos
domingos de duas a cinco vêzes. A influência de sua pre-
gação alcançou tôdas as classes e mais de duzentas pros-
titutas foram por êle induzidas a abandonar seu vergo-
nhoso viver. O estudo do Apocalipse o persuadiu de que
o anli-crislo já chegava na corrupção da igreja. Em 1367
foi a Roma, sendo prêso e depois solto. Voltou a Praga
um tanto desanimado, mas não tardou em encher-se do
ardor de outrora. Entregou-se então ao trabalho de pre-
parar evangelistas, tendo morrido em 1374. Depois da
sua morte outra voz se alçou contra os desmandos e ví-
cios, da igreja. Era a voz de um letrado, antigo aluno
de filosofia e teologia na Universidade de Paris, chamado
Mcttias Janow. Para difundir o evangelho, ao qual se
sentiu atraído, provavelmente pela influência de Miles-
ted, publicou vários escritos que constituem a sua obra
principal. 0 seu trabalho A respeito das Regras do Ve-
lho e do Novo Testamento, escreve Newman, " é uma
das mais notáveis obras reformadoras da Idade Média".
Homem de muito talento e cultivo era Matias Janow*
grandemente admirado pelos letrados do seu; tempo.
Quando iniciou a sua obra, três papas disputavam a ca-
deira pontificai, como verdadeiros cães esfaimados. Isto
confirm'ou as suas suposições de ser o papado o anti-
cristo. Matias combateu a nação de que o clero é a igre-
ja, sustentando o sacerdócio universal dos crentes, e de-
fendendo vigorosamente os direitos dos leigos à ceia do
Senhor. Morreu em 1394. A ação de Matias, talvez de-
vido ao fato de ter êle escrito em latim, circunscreveu-
se às classes cultas.
Mas, enquanto êle despertava estas classes, Tomás
de Stitmj acordava a grande massa popular. Stitny era
REFORIVIADORES A N T E S D A REFORMA 333

uni homem de fina cultura, educado na Universidade de


Praga, e falava fiuentenieníe a lingua boêmia. Nos seus
escritos misturava-se o desejo de libertação religiosa com
o de libertação política. Era 'o grito de revolta contra a
opressão papal e a opressão germânica.
Pedro Chelcickij nasceu cêrça de 1385 na Boêmia.
Nada se sabe a seu respeito até cerca de 1419, quando é
encontrado em Praga, protestando contra os propósitos
de Ziska e Hussinetz de pegarem em armas em defesa
da liberdade religiosa. Pedro é considerado um dos
maiores pensadores do século quinze. Combateu, talvez
com mais força que Marcilo, o sistema hierárquico.
Numa das suas polêmicas, mostrou que era inadmissível
uma conexão do governo hierárquico da Igreja com o sis-
tema sacerdotal do Velho Testamento. Insurgiu-se con-
tra toda autoridade prelática ou eclesiástica. A única
fonle de fé conforme Pedro, é a vontade de Deus tor-
nada suficientemente conhecida e baseada no ensino dos
apóstolos e no Novo Testamento. A lei de Deus, dizia êle,
é absolutamente suficiente em tudo. Quanto às relações
das igrejas cristãs com o Estado, sustentou a separação.
Os cristãos, afirmava Pedro, não devem levar as suas dis-
putas perante os magistrados. " A apostasia começou
quando se mudaram as relações da Igreja com o Esta-
do," dizia êle, acrescentando que o "Estado seria desne-
cessário se todos os que se tornam cristãos nominalmen-
te, pelo batismo, fossem, cristãos de fato". Para êle o
Estado é um mal, porém o grande mal é o "chamado es-
tado cristão". A ^própria expressão, Estado Cristão,
é contraditória, sustentava Pedro. "Pertence à própria
essência do Estado fazer uso de coerção e violência, o
que é inteiramente estranho ao espirito do Cristianismo".
Pedro considerava a divisão da sociedade em classes, como
violação do mandamento da fraternal igualdade (Lucas
22:24-27). Como os anabalisías do século dezesseis, êle
rejeitava a guerra, os castigos, etc. Insistia na imitação
334 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

de Cristo, mas para êle Cristo não era sò "mestre e exem-


plo, mas também Salvador e Eterno Mediador entre Deus
e a criatura". "Limpou com seu sangue o pecado da raça
humana, e está continuameníe perante Deus, como sumo
sacerdote, intercedendo pelos crentes". " A vontade do
homem depois da queda ficou livre para escolher entre
iO bem e o mal", " A regeneração intima não se pode
operar sem a graça de Deus". " E ' a regeneração íntima
que dá ao homem, novo coração, novos pensamentos,
novas obras", "Èle (o homem) deriva salvação somente
da graça de Deus; ainda que na aproximação dela o ho-
mem não seja passivo mas ativo", Pedro olhava a idéia
da salvação pelo merecimento próprio como absurda.
"Só na morte de Cristo e na graça de Deus repousa a
nossa esperança de salvação", Pedro Clielcicky reconhe-
ceu apenas dois sacramentos: o batismo e a ceia. "Clara
é a palavra do Filho de Deus", dizia êle, "quanto ao ba-
tismo: primeiro êle fala da fé, depois do batismo". "Para
receber o batismo deve ter a vontade de morrer para
o pecado", Ainda que sustentasse êsse ponto de vista,
Pedro dizia que se "verdadeiros cristãos desejarem ba-
tizar seus filhos não podem ser impedidos de fazê-lo."
Quanto â ceia negava a transubstanciação, e prova-
velmente a consubstanciação. Parece que êle achava que
o crente participa espiritualmente do corpo e do sangue
de Cristo.

Waclav IV, sucessor de Carlos IV, com seus abusos,


deu mais força ao desejo de reação contra os opositores
da Boêmia, desejo latente na alma popular. Outra cir-
cunstância favorável ao movimento de Huss foi a intro-
dução na Universidade de Praga, antes de findar o sé-
culo catorze, dos escritos de Wiclif, graças ao grande in-
tercurso intelectual entre os dois centros universitários,
Oxford e Praga. Èstes escritos foram bem aceitos, e al-
cançaram imediata solidariedade.
REFORIVIADORES ANTES DA REFORMA 335

Os clamores de homens honestos e bem intenciona-


dos como Matias, Conrado e Síitny, da Universidade de
Praga, e várias outras circunstâncias, que de passagem
mencionamos, tornavam fácii um impulso reformador.
E êste não se fez tardar, soprado pela voz de João IIuss.
^ íqão Huss. Filho intelectual da Praga, onde rece-
beu os títulos de bacharel em 1393, de mestre em 13,96
e de lente em 1398, Huss j^assou mais tarde a exercer as
funções de deão da Faculdade de Filosofia, ascendendo
por fim em 1403, ao reil'orado da Universidade. Em 1402
Huss foi nomeado pregador de uma capela fundada poi
dois abastados cidadãos de Praga, desejosos de promo-
ver a pregação do evangelho na língua popular. Essa
nova responsabilidade fê-lo estudar com meticuloso zêlo
as Escrituras e chegou à conclusão a que chegaria qual-
quer investigador honesto. Huss verificou que a Igreja
estava divorciada das Escrituras, e que o principal mo-
tivo da corrupção era a negligência do estudo biblico.
Começando a pregar, adquiriu logo a reputação de grande
pregador. A sua pregação tinha alguma coisa da de Con-
rado e da de Stitny, Havia nela condenação dos vícios
do clero, como na daqueles, e o mesmo sopro quente
de patriotismo que animava os discursos e os escritos
de Stitny, Èste patriotismo provocou contra êle o ódio
do elemento germânico (39), Em 1405, nomeado para
investigar os pretensos milagres no sangue de Cristo, em
WiJsnack, denunciou a fraude e o embuste dos mesmos.
As autoridades romanas e o clero em geral começaram
então a inquietar-se com êste homem, e em 1410 o Ar-
cebispo obteve do Papa uma bula, que proibia a prega-

(39) Os boômíos pertenciam à raça estava. Revoltaram.se


contra a dominação dos alemães em cuja dependência tinham
v i v i d o por gerações. Quase toldos os grandes proprietários eram
alemães como também os altos comerciantes e funcionários da
cidade. Aos boômíos não eiia permitido ocupar as altas posições
governamentais da pátria. A grande maioria estava reduzida ao
estado dc plebeus c de simples artífices.
336 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

ção em capelas particulares e ordenava a queima dos


escritos de Wiclif. Já se fez referência ao ativo inter-
curs'o intelectual entre os dois grandes focos de cultura
da Europa medieval: Oxford e Praga. Foi êste íntercurso
que pôs Huss em intimo contacto com os escritos de W i -
clif e lhe deu um conhecimento mais profundo da teologia
wiclifiana. A bula papal visava de preferência a João
IIuss. Èle porém tinha ao seu lado o rei e a rainha, os
nobres e a universidade. Continuou, pois a pregar e a
escrever em defesa de Wiclif. A bula ficou então sem
efeito. Em 1412, a propósito de uma bula papal contra
Waclav, Huss e Jerônimo de Praga protestaram enèrgí-
camente, falando também contra os abusos das indul-
gências. Roma então excomungou Huss e condenou os
escritos de Wiclif. Em 1414, munido de um salvo-con-
duto do imperador Sigismundo, Huss compareceu pe-
rante o concilio de Constança, procurando aí fazer a sua
defesa. íncreparam-no de heresia, por cujo crime foi
prêso em 28 de Novembro do mêsmo ano. A Universi-
dade de Praga e os nobres protestaram contra a prisão
de Huss, mas os seus protestos não foram ouvidos. Vio-
laram o salvo-conduto imperial, e em julho de 1415 João
Iiuss foi queimado. Parece que concorreram para sua
condenação a sua atitude severa contra o clero corrupto
e vicioso, a sua obstinação em sustentar seus pontos de
vista e a preponderância no concilio do elemento ger-
mânico, ao qual o seu patriotismo boêmio era odioso.

Segundo Huss, Cristo é o cabeça único da igreja


universal. Quanto á eucaristia, Huss era acusado de sus-
tentar que to pão e o vinho permanecem pão e vinho após
a consagração. Nem papa nem cardeais, dizia êle, são
necessários ao regime da Igreja. Huss não revelou
grande originalidade. Wiclif foi o seu modelo. Seus es-
critos consistem em grande parte de citações de Wiclif.
A condenação de Huss, e depois a de Jerônimo de
Praga encheram de indignação os boêmios e os nobres
REFORIVIADORES A N T E S D A R E F O R M A 337

que dirigiram ao concilio uma carta de protesto e forma-


ram uma liga de defesa da pura doutrina. Por sua vez
a universidade pronunciou-se a favor da liga, que Tiago
de Mila defendeu. A indignação e o entusiasmo fervi-
am. Milhares de boêmios, entre êles muitos nobres, con-
centravam-se no monte Tabor, preparando-se para re-
sistir atos seus opressores. Em 1419, com a morte de
Waclav a anarquia reinou e João Ziska atacou Praga
com alguns fanáticos.
Os seguidores de Huss dividiram-se em dois gru-
pos: os hussitas propriamente ditos, e os taboritas que
adotaram as Escrituras como a autoridade absoluta.
3) Os taboritas. Segundo Preger, que faz acompa-
nhar as suas asserções de abundantes provas, os val-
denses italianos ttornaram-se numerosos e muito ativos
na Boêmia durante o século catorze. Os ensinos carac-
terísticos dos taboritas eram quase tos mesmos dos val-
denses. Por outro lado, Loserth provou a identidade dos
ensinos caraterísticos dos taboritas com os de Wiclif,
o que nos faz supor um encadeamento dêsses dois gru-
pos com os taboritas.
Após as execuções de João Huss e de Jerônimo de
Praga, e as rigorosíssimas medidas postas em prática na
Boêmia contra dissidentes (1415), milhares destes se
refugiaram no mtonte Tabor. Preparando-se os seus
inimigos para atacá-los, os refugiados procuraram
igualmente defender-se. Isto ocasionou uma luta
atroz, na qual os taboritas foram guiados por João Ziska
e despertou em alguns deles a espectativa fanática da
intervenção divina e do reino niilenáçio. Em 1433 fêz-se
<a. paz entre católicos e hussitas, e, em conseqüência, os
taboritas gozaram liberdade por algum tempo. Mas,
em 1453, foram êles desbaratados por Podiebrad, que,
apesar de sentimentos liberais, tinha aceitado a coroa da
Boêmia sob as condições de ser obediente ao Papa e ex-
tinguir a heresia, deixando de existir como organização,

C. A . S. — 22
327 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

embora existindo como congregações que se incorpora-


ram, mais tarde, aos "irmãos boêmios".
As doutrinas dos taboriías eram semelhantes à dos
valdenses italianos. Rejeitavam a autoridade da tradi-
ção, das escrituras apócrifas e dos doutores eclesiásticos,
aceitando a Bíblia como única regra de fé e prática.
Consideravam-se a si mesmos como igreja verdadeira,
tendo a Igreja Católica Romana como "igreja do maligno
e da bêsía" (do Apocalipse), Sustentavam que os cató-
licos, com ^exceção das crianças eram "dignos de conde-
nação". A respeito das ordenanças mantinham a firme
opinião de que nenhum óleo sagrado ou água batismal
deve ser santificada ou consagrada. Rejeitavam a prá-
tica do exorcismo. Para os fins do batismo era suficiente
água fresca, não importando o lugar. Sobre a ceia, a
teoria e prática dos taboritas assemelham-se a dos val-
denses. insistiam 110 uso do cálice comum e não consa-
grado, e do pão simples, não fazendo depender a vali-
dade da ordem de objetos consagrados. Rejeitavam a
transubstanciação e a consubstancíaçã'o, sustentando a
presença espiritual de Cristo na celebração da cerimônia,
Não aceitavam festivais eclesiásticos (salvo os que ti-
vessem sanção apostólica), cultos litúrgicos, doutrina do
purgatório, orações pelos mortos, íntercessões dos mor-
tos, veneração de relíquias, imagens, etc.
O seu viver era simples e puro, combatendo êles a
luxúria e frivolidade mundana,
4) Os irmãos boêmios. Os irmãos boêmios (unitas
fratrum) podem ser considerados como um resultado
dos movimentos de Huss, Valdo e dos taboritas. Tam-
bém deve registrar-se, entre os precedentes daquele grupo
evangélico, a influência de Pedro Chelcícky e de Roky-
cana. Arcebispo de Praga, (1448 em diante), que se ma-
nifestou a favor de uma reforma. Foi talvez Rokycana
quem influiu mais diretamente para que os "irmãos
boêmios" se organizassem. Com efeito, debaixo de
REFORIVIADORES ANTES D A REFORMA 328

sua proteção, êíes se fixaram na cidade de Kunwald


(1457).
Por outro lado, havia no principio, semelhança entre
os propósitos e ideais dos "irmãos boêmios" e os das or-
dens monásticas. Parece que não pretendiam constituir-se
em igreja independente, mas num grêmio pio ei fraternal,
que trabalhasse a favor da reforma da igreja nacional. E m
1459 surgiram divergências entre os "irmãos" a respeito
da ceia, negando uns a presença real, enquanto outros sus-
tentavam a transubstanciação ou consubstanciação. O
movimento foi crescendo, até conquistar a simpatia de
professores e estudantes da Universidade de Praga. Foi
então publicado um edito real (1461), ameaçando de
banir aquêles que não fossem católicos ou utraquistas.
(40) As perseguições de que foram alvo, acabaram por
convencer os "irmãos" de que não lhes era possível fi-
car na igreja nacional. Era necessário que se separas-
sem e se organizassem em igreja independente. Em 1464
houve uma assembléia, na qual foram fixados os esta-
tutos dos "irmãos", Foram escolhidos três dentre tos
mais experientes, para a superintendência geral do gru-
po, Ein 1465 foi convocado um sinodo para resolver de-
finitivamente a questão de uma ^organização e de um mi-
nistério independente, Foram resolvidas uma e outra
coisa. Dois anos depois houve outra reunião. Entoou-se
um hino de agradecimento com tôda devoção, e cada
membro recebeu novo batismo. Em seguida procedeu-
se à eleição dos ministros. Alguns acharam conveniente
iigar o ministério ao das velhas igrejas Orientais, porém
os delegados para tratar do assunto encontraram as mes-
mas igrejas tão corrompidas que foi posta de lado a idéia
de obter uma sucessão episcopal por êste meio. Os " i r -
mãos" tinham vários pontos de vista semelhantes aos

(40) Partido moderado de Huss. Depois da morte do gran-


de campeão seus seguidores políticos fizeram as pazes com os
perseguidores, modificando e abrandando as doutrinas.
340 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

dos valdenses. Tôdas as tentativas, porém, para reuni-


los num só corpo, foram debalde. Em 1471 morreu Ro-
kycana, que se tornara perseguidor dos "irmãos" e de-
pois de sua morte e da de Podiebrad Os "irmãos" cresce-
ram, espalhando-se pela Morávia e Boêmia, e absorvendo
os restantes elementos taboritas e alguns valdenses.
Gomo os lolardos, na Inglaterra, êles tiveram prote-
tores em alguns nobres e poderosos, que favoreceram a
expansão do movimento nos seus domínios. Houve con-
trovérsia entre os "irmãos boêmios" acerca da magistra-
tura, serviço militar, etc. Procópío de Neuhaus advogou
a modificação das regras adotadas em 1490 contra a ma-
gistratura, serviço militar, etc., apoiado por Lucas de
Praga, o homem mais ilustre dentre êles. Os "irmãos"
mostraram-se grandes amigos da educação, promoven-
do-a sistematicamente, assim como da imprensa, que
usaram largamente, fazendo circular copíosa literatura
e muitas edições da Bíblia no vernáculo. Mantinham nu-
merosas escolas.
Os "irmãos" divergiam a respeito do batismo. "Al-
guns batizam crianças, porém muitos não", informa
um escritor da época. (41) Cêrca do ano de 1500, a per-
seguição contra os "irmãos" reapareceu, tomando o rei
Waldislaus, insinuado pelo Papa, atitude hostil contra
êles e os waldenses. Proibiram-se as reuniões e seus es-
critos foram condenados às fogueiras. A obra dos "ir-
mãos" foi muito extensa, atentas as condições desfavo-
ráveis e difíceís em que se desenvolveu. E* erro vulgar
atribuir a Lutero a originalidade de esforços reforma-
dores na Alemanha, pois o próprio Lutero reconheceu o
caráter evangélico dos "irmãtos".

(41) Citação de Newman, v o l . I, pgr. 599.


REFORIVIADORES A N T E S DA REFORMA 341

10. Outros movimentos

Intercalaremos nesta seção a história de movimen-


tos que foram, pelo seu espirito e influência, movimen-
tos evangélicos, porém, não tiveram o cunho de inde-
pendência encontrado em tantos outros. Esta atitude deve
ser atribuída à concepção da "igreja", corrente naquela
época, e ao conseqüente horror ao cisma. Assim as ten-
dências e esforços dêstes movimentos foram puramente
reformadores.
1) Os "irmãos da vida comum", Originários dos
Países Baixos, os "irmãos da vida comum*' surgíraift
cêrca do século catorze, durante o chamado "Cativeiro
Bahilônico" do papado. Foram seus chefes principais
Buybroek e Groot, que se entregaram á obra de prega-
ção do arrependimento a grandes multidões em várias
cidades neerlandesas (1379). O movimento, segundo
Newman, era uma combinação de misticisnvo com a de-
voção ao trabalho evangélico, à educação e á produção
literária, tendo encontrado o apoio de homens instruí-
dos. Acquey comparou-os aos metodistas modernos e
Ritschl aos pietistas (42). Os "irmãos" pregavam com
ardor a justificação pela f é e a necessidade duma vida
pura e consagrada. Insistiam também no livre arbítrio,
como os anabatistas. do século dezesseis. O movimento
sobreviveu até ao século seguinte, e muitos "irmãos"
tiveram a alegria de saudar a triunfante revolução pro-
testante, associando-se aos reformadores. Além dêste
movimento, há os "reformadores antes da reforma",
designação que se costuma dar a Goch, João Wesel, Wes-
sel e Savonarola. Êste último é talvez o mais célebre.
2) Savonarola era um monge dominicano, que se
fêz notar pelos seus vibrantes protestos contra a corrup-
ção eclesiástica dos seus dias. Pugnava por uma reforma
{42} Citação de Newman.
342 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS S£CUIX)S

dos abusos, e não propriamente por uma volta à pureza


evangélica. Não pode ser, portanto, considerado cristão
evangélico no puro sentido da expressão. Morreu, vi-
tima da cruel intolerância papal, em 1498.
3) J'oão Pupper de Goch, nominalista extremo em
filosofia e inimigo da escolástica que considerava inútil
e vã, pregou a justificação pela fé, repudiando o sistema
da justificação pelas obras; sustentou a autoridade das
Escrituras sôbre a autoridade eclesiástica e a tradição.
0 amor a Deus e o amor ao próximo eram, segundo êle,
a essência da religião. Morreu em 1475. Goch recebeu a
influência de três correntes: o misticismo evangélico dos
"irmãos da vida comum", os trabalhos de Agostinho e
a Renascença.
4) João de Wesel, professor da Universidade de Erfurt
(1445 a 1456), manifestou-se contra as indulgências, o
sistema sacerdotal da Igreja hierárquica, repudiando tam-
bém a autoridade da Igreja para interpretar as Escritu-
ras para os crentes. Insistiu em que os eleitos são sal-
vos só pela graça e não por obras. Rejeitou a doutrina
católica da transubstanciação, sustentando que as subs-
tâncias (pão e vinho) não se alteram. Tendo compare-
cido perante as autoridades eclesiásticas de Maínz, foi
preso, morrendo na prisão em 1482.
5) João de Wessel (não confundir Wesel ctom Wessel)
foi um dos mais insignes intelectuais do seu tempo, tendo
cursado uma escola dos "irmãos da vida comum", a Uni-
versidade de Colônia e a grande Universidade de Paris.
Ensinou nestas e em várias outras universidades euro-
péias. Nêle houve a mesma convergência de influências
que em Wesel e com êste proclamou a justificação pela
fé.
Estudando os movimentos que acabamos de esbo-
çar, compreenderemos melhor a revolução protestante
que se seguiu.
CONCLUSÃO

O Raiar do Novo Dia


Uma das características mais salientes do fim da
Idade Média foi a revivescência do gosto pelas letras,
pela arte e pelo saber, A o declínio do Império Romano
correspondera um declínio de produção literária. Os va-
gos pedaços de cultura que ficaram flutuando com os
destroços do grande império, foram em grande parte
destruídos pelas invasões bárbaras. Carlos Magno, de
quem diz a tradição que não sabia escrever, procurou
dar vigoroso impulso aos estudos de teologia. Dois dias
de Carlos Magno em diante os mosteiros tornaram-se
quase exclusivos laboratórios do pensamento. Èsíe só
depois de marcado pelo sine te da autoridade eclesiástica,
podia vir à luz. Explica-se assim o diminuto esforço dos
teólogos medievais para chegarem à visão de largas idéias
novas. A Igreja determinava o modo de interpretação
das Escrituras, e a versão latina da Bíblia era havida
como infalivelmente correta. Dai o nenhum desejo en-
tre os teólogos da época de se reportarem ao estudo das
Escrituras nas línguas originais, ou à pesquisa da rela-
ção histórica entre os diferentes livros. Assim, a teolo-
gia medieval foi uma forte estacada ao progresso da ver-
dadeira cultura.
As universidades, por sua vez, debaixo da pressão da
escolásíica, limitaram-se a conservar e difundir o saber
antigo. Pouco se lhes dava que a ciência, nos seus vá-
rios ramos, ficasse paralisada ou avançasse.
As sucessivas invasões dos turcos do Império Gre-
go, e, por fim, a queda de Constantinopla (1453) força-
ram os sábios bisantinos a refugiar-se na Itália, levando
consigo muitos manuscritos gregos e latinos. Acolhi-
344 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

mento excelente foi dispensado pela Itália a estes erudi-


tos, que traziam, como abelhas, a f l o r da cultura medie-
val, o pólen da cultura clássica.
Disputavam-se os seus serviços domo professores da
lingua grega e da filosofia. O gôslo pelo estudo da anti-
güidade tornou os manuscritos dos clássicos gregos e ro-
manos mais preciosos que oíro, e os pergaminhos das li-
vrarias monasticas eram avidamente desenrolados e li-
dos pelos estudiosos. O escrever conforme o estilo lapi-
dar de Cícero era o requinte da época. Por isso o estudo
do latim e do grego se tornou moda nos círculos eru-
ditos .
Ao lado desta nova orientação educacional, que des-
pertou novos horizontes dos estudiosos, manifestou-se
por toda a Europa, do meado do décimo quinto século
em diante, um novo espirito de independência pessoal
em todas as classes sociais, que inspirou nova ini-
ciativa e energia. Foi o começo do individualismo que
dominava o mundo todo até ao romper da grande guerra
de 1914.
Através da Idade Média as duas instituições da so-
ciedade — o Estado e a Igreja — tinham submergido o
indivíduo até o ponto de privá-lo da independência pes-
soal e da sua própria significação. O novo espirito exal-
tou o indivíduo acima das instituições e produziu a grande
revolução intelectual, social e religiosa conhecida domo a
Renascença e Reforma.
Durante a Idade Média o indivíduo aceitava sem
exame o que o Estado e a Igreja decretassem. Foi a
"idade da f é " . As lendas mais absurdas a respeito das
vidas dos santos, milagres, visões, etc., foram aceitas
sem a menor investigação. Foi um ambiente favorável
à superstição, criado pela Igreja Católica Romana. O
novo espirito exigia uma razão das coisas e afirmava o
direito do indivíduo de examinar, criticar e julgar por
si mesmo. Foi, sem dúvida, a maior conquista na his-
CONCLUSÃO : O R A I A R JDO N O V O D I A 345

ióría do homem, diante da qual as superstições boloren-


tas e absurdas, acumuladas através da "idade da f é " ti-
nham que desvanecer, dando lugar ao mundo moderno.
O ressurgimento do novo espirito moderno logo se
expressou nas invenções e descobrimentos. A introdu-
ção do papel e da imprensa na Europa, no meado do sé-
culo quinze tornou possível a disseminação do novo es-
pirito. E' interessante notar que o primeiro livro a sair
do prelo f o i a Bíblia, em latim, no ano de 1455. Em 1488
foi impresso o Velho Testamento em hebraico; e, em 1516,
o Novo em grego. Mais importantes, porém, para o povo,
foram as versões no vernáculo, que logo apareceram em
inglês,-alemão, francês e outros idiomas, apesar da opo-
sição da Igreja Católica, que fêz tudo para que a Pala-
vra dê Deus não caísse nas mãos do povo. A o mesmo
tempo as citações dos chamados "pais da igreja" e de Aris-
tóteles estavam sendo substituídas pela Bíblia original.
O emprego da bússola e da pólvora, já conhecidas
no Oriente, entrou em uso no Ocidente. Sem estas in-
venções o mundo moderno teria sido impossível.
Com a bússola homens intrépidos se aventuraram
ao alto mar. Em 1492 Colombo descobriu a América;
em 1498 Vasco da Gama, rodeando a África, descobriu
um novo caminho para as índias; em 1522 Magalhães
circunavegou o mundo. E, enquanto os marinheiros ex-
ploravam por mares nunca dantes navegados", o cé-
lebre astrônomo polaco, Copérnico, demonstrou a pe-
quenez do nosso planeta no conjunto do universo, des-
tituindo-o do centro da criação e reduzindo-o à condição
de satélite — "heresia" que lhe custou caro. A visão do
homem alargava-se e o mundo se estreitava; abalavam-
se os alicerces do velho pensar do homem e abriam-se
novos horizontes.
Uma literatura digna da língua do povo começa a
surgir. Ate agora a parca literatura que havia, estava no
latim, língua desconhecida pela massa popular, mas o
346 O CRISTIANISMO A T R A V É S DOS SÉCULOS

homem do povo começa a pensar e os letrados também


começam a julgá-lo digno de consideração. Ao romper
da Reforma foi possível orientar um público bem con-
siderável pela imprensa. Ao pass'o que a cultura filtrava
a massa popular, esta despertava da subserviência e re-
clamava os seus direitos. Na Itália aparecem Dante
(1205-1321), Petrarca (1304-1374), Boccacío (1313-1375),
e na Inglaterra Chaucer (1340-1400). As obras literárias
desses e de outros escritores, ainda de menos brilho, na
França e Alemanha não visavam os príncipes e prela-
dos, mas o povo, o homem rural, o homem do povo,
Esta literatura era uma crítica forte à Igreja Romana.
Dante não hesitou em lançar os papas no inferno, en-
quanto outros escritores da época não eram menos caus-
tícantes.
Os papas (1), Julio II e Leão X com especialidade
e muitos governadores civis concederam proteção

(1) Papas durante o Ilnnnsccnra — O primeiro £>apa da Re-


nn-cença foi Pio II, cuja ação já se fizera sentir. O historiador
Newman, define-o como um "diplomata maquiavélico." A d e f i -
nição ,parece-nos bastante exata, dadas a astúcia e a suma habili-
dade com que sempre se houve Osso estadista eclesiástico. P i o
I I f o i dado ás letras e deixou vasta coleção d e epístolas.
Sixto IV (1471-1484) , Sixlo foi um Papa vicioso cuja pre-
ocupação foi tão sômenle engramíecer-se a si e aos de sua f a m í -
lia. No seu pontificado, segundo afirmações do padre Goud, foi
estabelecido na Espanha o tribunal da Inquisição,
Inocência VIII (1384-1492). Éste Papa prevaleceu-se da sua
posição para engrandecer os seus filhes ilegítimos, distribiundo-
Ihes ofícios na cúria. Foi um pontífice inábil, sem escrúpulos,
e sem decoro. Durante o seu pontificado Colombo descobriu a
América, a Savonarola, o grande pregador, iniciou a sua campa-
nha contra os vícios da côrte papal.
Alexandre VI (1492-1503). Alexandre V I , antigo cardeal
Bórgía, além de inúmeros filhos de mães incógnitas, possuía qua-
tro filhos de uma mulher romana, com quem v i v e r a . O seu pon>
ííficado c; uma série de devassidões, crueldades e intrigas, para
CONCLUSÃO : O RAIAR JDO NOVO DIA 347

ao movimento 'la Renascença, dispendendo considerável


auxilio em beneficio da literatura, da arquitetura e das
belas artes. A Itália foi o berço comum de muitos ar-
tistas geniais. Basta mencionar Gioto (1266-1336); Gio-
vanni Fra Angélico, (1387-1455); Leonardo da Vinci
(1452-1519), Rafael (1483-1520); Miguel Ângelo (1475-
1564) , A arte sagrada, prenuncio da aurora do novo
dia, atingiu o auge nas obras destes assim como de ou-
tros da época.
0 Renascimento, porém, não se limitou a exercer in-
fluência puramente literária ou meramente artística. Pe-
netrou, como era natural, na religião, atraindo os homens
ao estudo da Bíblia no grego e no hebraico, línguas em que
foi originalmente escrita. Êste estudo feito independen-
temente de preconceitos escolásticos, contribuiu para um
entendimento melhor das Escrituras e uma compreen-
são mais pura do espírito do Cristianismo. Sem o Re-
nascimento o mundo teria sido privado de homens da
ordem de Colet, Reuchlin, Erasmo, Lutero, Zwinglio,
Calvíno e tantos outros. A vida religiosa da Europa me-
dieval foi penetrada tão profundamente pelo espirito da
Renascença quanto o foram a intelectual e a social.

as quais contribuíram seus filhos, César, João e sua filha L u -


crêcia Bórgia, famosa pelo v i v e r escandaloso. Os próprios cronis-
tas católicos admitem "que Alexandre V I foi um monstro na prá-
tica do imrjüidadcs.
Júlio II (1503-1513) , Júlio I I quis restaurar os estados da
I g r e j a . Era seu intento isentar a Itália de qualquer influência es-
trangeira, para e que manteve grandes exércitos.
Leão X 1513-1521. De Leão X dizem que após sua elei-
ção exclamou: "Deixem-nos gozar o papado desde que Deus n o -
lo d e u . " Perfencia ;i família dos Módicis. O seu gênio pacífico
fnnduziu-o à proteção das bolas letras e das arte?, fazendo-se ro-
dear de letrados e artistas. Interessou-se muito mais pela R e -
nascença e pelo elassicismo pagão do que pelo Cristiani ; mo. A
sua corte foi das mais licenciosas e faustosas, lendo sido ôle pró-
prio homem depravado e vicioso.
348 O CRISTIANISMO ATRAVÉS DOS S£CUIX)S

0 papado havia tocado à culminância dos seus in-


luiíos dominadores e os papas, fascinados pela revíves-
cência da arte e da literatura consagravam-lhes maior
quinhão de energias e cuidados que a manutenção do
poder eclesiástico, As iufadas de vento quente da Re-
nascença, soprando em tôdas as direções, fizeram cair
muitos castelos de cartas dos velhos sistemas medie-
vais, preparando o caminho para a Reforma, e cimen-
iando-Ihes os alicerces. As primeiras manifestações do
espirito moderno foram humanistas, e por conseguinte
escassas em zelo e sinceridade religiosa. O movimento
de que Erasmo foi a mais completa figura representa-
tiva, somente carecia de uma penetração mais funda do
espirito religioso e patriótico, tão vivo e forte no movi-
mento luterano, para poder abalar nos seus fundamen-
tos <o Catolicismo medieval da Europa.
Tomando em consideração as forças civilizadoras
em atividade no f i m desse periodo, a corrupção espantosa
da Igreja hierárquica, o espirito evangélico que estava
levedando a população européia e o descontentamento
das massas populares com as condições sociais e econô-
micas, a Reforma Protestante, que não deixou de ser,
sob todos os pontos de vista, uma revolução, se torna
compreensivel.
A história dessa revolução política, econômica, so-
cial e espiritual, junto com os seus resultados prejudici-
ais e benéficos, será narrada e analisada no segundo vo-
lume desta obra.
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