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Crise crônica ou crônicas de (mais) uma crise?

Sobre as humanidades e o
capitalismo tardio
Andre de Lemos Freixo*

A opção pela barbárie, que para muitos hoje nos ronda como espectro ameaçador
ou como salvação sedutora, é onde se instala a consequência de amplas
transformações mundiais, e não a resolução de uma juventude afogada em livros.
(Ernst Troeltsch, 1922).1

“Não fale em crise, trabalhe”. Eis o slogan do Governo Federal brasileiro sob a presidência
de Michel Temer (2016-2018), cujo lema oficial é “Ordem e Progresso”. A expressão “não fale em
crise” deseja afastar a possibilidade de crítica, ou denegá-la, bem ao modo de regimes
discricionários. É no mínimo curioso que ela seja proferida pelo Governo que assumiu dois terços
do famoso lema dos positivistas comtianos que fundaram, por assim dizer, o regime republicano
entre nós, brasileiros, nos estertores do século XIX.2 O lema, que ainda estampa o centro do nosso
pavilhão nacional, figura também como mote para essa administração que promete uma “ponte para
o futuro” – a redentora série de reformas modernizadoras, na qual o amor não aparece como fim,
mas sim a promessa de equilíbrio das contas públicas ao custo de enorme austeridade para a
população brasileira. Ponte para o futuro de quem e, talvez mais importante, quem morará em baixo
desta ponte permanece uma incógnita, pelo menos nos discursos oficiais. Só não é mais curioso do
que é sintomático.
Passado, presente e futuro se entrelaçam de modo complicado no parágrafo anterior.
Vivemos um tempo (presente) de crise? Quando não houve crise (passado)? De que crise se fala
hoje? Crise para quem? Crise econômica apenas? Crise política? Crise da história? Do tempo
histórico moderno? Da historiografia moderna? Das humanidades? Se o que se tem é crise, como
esta se resolveria sem crítica? Apenas com trabalho crítico?
Reinhart Koselleck defendeu sua tese “Crítica e crise” pouco depois do término da
Segunda Guerra Mundial. Ele procurou estabelecer a “patogênese” do mundo burguês (o mundo
“moderno” por excelência) sobre a dinâmica entre crítica e crise (inicialmente, nessa ordem). Essa

* Doutor em História (PPGHIS/UFRJ, 2012) e Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro
Preto e do Programa de Pós-Graduação da mesma Universidade.
1 TROELTSCH, Ernst. “A Crise atual da história”. Trad. Sérgio da Mata. In: MALERBA, Jurandir (Org.). Lições de
História: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: FGV Editora; Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010.
p.451.
2 Sobre isso, ver: NEVES, Margarida de Sousa. “Cenários da república”. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília
de Almeida Neves. O Brasil Republicano I: o tempo do liberalismo excludente. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013. p. 13-44; e VELLOSO, Mônica Pimenta. “O modernismo e a questão nacional”. In: FERREIRA,
Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano I: o tempo do liberalismo excludente. 6ª ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p.351-386.
gênese complexa, emergindo do chamado “antigo regime” seria o resultado de uma relação
sistêmica e intrasistêmica das críticas filosóficas “apolíticas” (não se poderia criticar politicamente
o monarca sob pena de lesa majestade), na opinião pública dos salões, lojas maçônicas e na
literatura “pornográfica”, por exemplo. O esgotamento do regime absolutista teria sido o resultado
mais evidente das inúmeras críticas de cunho moral. A democracia moderna emerge dessa crise
impulsionada pelas críticas. A opinião pública e os savant passam a atuar de modo mais e mais
transparente e racional, através da imprensa, com o objetivo de manter o dispositivo da crítica
permanentemente apontado aos governantes do povo. Com isso, as opiniões “apolíticas” ganharam
o corpo e as mentes na reputação de imparcialidade que as críticas pretendiam lançar ao mundo
moderno, ou burguês.3 Ou seja, a crítica promove a crise, na mesma medida em que a crise pode ser
resolvida pela crítica. Se julgamentos de ordem moral ganham a cena, a crítica contínua gera um
estado de crise igualmente contínuo, ou seja, torna-se uma espécie de “doença” da modernidade
burguesa. Disso decorreria uma grande crise da democracia na primeira metade do século XX. As
duas grandes guerras mundiais foram arena na qual a democracia liberal, o comunismo e o
nazifascismo se digladiaram. Com a vitória contra o nazifascismo, a história da modernidade
européia (branca) tornou-se a história “do mundo”, agora em disputa entre liberais e comunistas.
A crítica gera um estado permanente de crise? Ou seria o contrário? Como diz um colega
professor, Rafael Cunha, a modernidade burguesa apresenta-se ao mesmo tempo como o veneno e o
antídoto. O estado de crise na modernidade seria perpétuo? Teria, então, a crise se tornado crônica?
Crise é uma metáfora que deriva do vocabulário médico-biológico-jurídico, de onde extrai sua
natureza temporal. Ela procura delimitar ciclos vitais bem ordenados e associados a noção de que a
vida possui continuidade, mesmo diante das enfermidades e, inexoravelmente, da morte.4 De modo
que crise não é uma essência, mas sim um conceito. Como um conceito fundamental moderno, crise
não é um conceito unívoco, portanto. Apesar do que as aparências mostram através da utilização
largamente difundida da palavra crise. Segundo Koselleck, na modernidade,
the concept of crisis, which once had the power to pose unavoidable, harsh and
non-negotiable alternatives, has been transformed to fit the uncertainties of
whatever might be favored at a given moment. Such a tendency towards
imprecision and vagueness, however, may itself be viewed as the symptom of a
historical crisis that cannot as yet be fully gauged. This makes it all the more
important for scholars to weigh the concept carefully before adopting it in their
own terminology.5

3 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: EdUERJ;
Contraponto, 1999.
4 PALTI, Elias. Verdades y saberes del marxismo: reacciones de una tradición política ante su “crisis”.Buenos Aires:
Fonde de Cultura Economica, 2010. p.14-15.
5 KOSELLECK, Reinhart; RICHTER, Michaela (Trad.). “Crisis”. Journal of the History of Ideas, Vol. 67, No. 2 (Apr.,
2006), p. 357-400. p. 399-400.
Dito isto, devemos, portanto, “não falar em crise, mas trabalhar”? Evidente que não. Mas a
pergunta que nos reúne coletivamente neste volume convoca a um trabalho de entendimento da
“crise”: História hoje, para quê? A pergunta, antes que se possa respondê-la, precisa ser bem
entendida. Do modo como a leio, ela é, em si, um convite ao pensamento. Isso precisamente por ser
uma pergunta importante e complexa, que ultrapassa o âmbito da prática historiadora – o que
necessariamente nos leva a pensar sobre o que significa e baliza aquilo que poderíamos chamar de
valores, por exemplo, sobre a positividade das humanidades e, em particular, da história e do
conhecimento histórico no interior do(s) projeto(s) de civilização que desejamos. Sobre essa
importância resta pouca dúvida, em especial para a guilda dos historiadores profissionais. Mas esse
é precisamente um dos aspectos que demandam redobrada atenção. Exatamente por ser (quase)
autoevidente para historiadores temos que dedicar algum tempo a repensar tais valores. A
complexidade que pode reaparecer é a de que qualquer resposta que se avente para a pergunta
precisa deixar claro não apenas o que se entende por “história” e “hoje”, bem como justificar para
além de qualquer “utilidade” definida pelo establishment historiográfico (uma utilidade disciplinar),
caso se julgue existir uma função (qualquer que seja) para essa “história” nesse “hoje” fora deste
universo.

No entanto, trata-se de uma pergunta antiga. Quer dizer, uma pergunta que já foi enunciada
por muitos e muitos pensadores e pensadoras. Por exemplo, para Ernst Troeltsch em seu texto sobre
a “crise atual da história” (1922), escolhido aqui como epígrafe, a “crise” da história convocava
seus colegas ao trabalho. Ela se inseria entre os muitos rescaldos dos acontecimentos da Guerra
Mundial (1914-1918). Nesse sentido, o “gigantesco alimento” espiritual (cultura histórica)
produzido pela ciência histórica vigorosa, organizada, especializada e profissional paulatinamente
afugentava interesses mais espontâneos da juventude na qual sua geração depositava as esperanças
por um futuro melhor. De acordo com o alemão, a ciência histórica tornou-se impessoal demais,
rígida demais, curiosamente se aproximando daquilo que as ciências naturais faziam há tempos. A
juventude, que muitos de seus contemporâneos acusavam de “a-histórica”, espantava-se diante do
monumento de erudição exigido pela ciência da história. Em uma palavra, para ele, finalmente, a
crise era ampla: uma crise, pois, dos fundamentos filosóficos gerais, das concepções dos valores
históricos e dos elementos constitutivos do pensamento histórico diante dos rumos da humanidade,
das necessidades da vida, dos dilemas do presente que clamavam por respostas novas. Fundamentos
e valores formulados em tempos “de paz” pelo idealismo liberal-burguês já não dariam mais conta
de embasar as ciências humanas diante das experiências e eventos terríveis de amplas
consequências (mundiais, ou globais), por exemplo.
As palavras de Troeltsch soam estranhamente familiares, em meio à segunda década do
século XXI.6 Deste modo, penso que a própria natureza da interrogação que nos reúne no presente
volume remete à tradição na qual o pensamento historicista se inscreve. Esta ainda é predominante
nos estudos historiográficos tout court – independentemente dos espantalhos que estes produziram
(e produzem). Se, por um lado, não se trata de contemplar a história, mas escrever história como um
saber científico e uma disciplina acadêmica, por outro, implica em realizar tudo isso historicamente
e tentar compreender (hermeneuticamente) o “hoje” como um “tempo de crise” que demanda a
crítica e a consciência histórica modernas. Trata-se de uma interrogação que parte do pressuposto de
existir, em si e para si, um universo de experiências e horizontes sedimentado (a história e as
humanidades como “tese”): visão estabelecida, uniforme, compartilhada, (aparentemente) estável e
bem conhecida (ou a ser bem conhecida), que em um determinado momento (“hoje”)
desestabilizou-se, diz-se ter entrado em “crise” (antítese), para que, então, possa-se reconstituir sua
estabilidade sobre novas bases entre crise e a crítica (síntese). Nesse sentido, penso, a distância que
nos separaria (“nós”, os historiadores profissionais) do “historicista” desaparece numa cortina de
fumaça. Na realidade, penso que ela jamais existiu fora de certa narrativa que prefigura esse
pronome possessivo “nós”, como em “nosso ofício”, “nosso tempo” (identitário e moderno) –
utilizarei livremente o mesmo neste ensaio. Uma ponte que, por vezes, se (re)configura a partir das
contribuições de figuras mais ou menos conhecidas deste historicismo. Mas apenas como passagem,
uma vez que se dissipa a distância efetiva, qualquer ponte se torna desnecessária. Essa aproximação
permite que pensemos que a “crise” não é uma questão de momento (uma conjuntura imediata – a
qual chamamos aqui e agora, “hoje”, “presente”). Se Koselleck estiver certo, trata-se da própria
dinâmica temporal da modernidade. Sendo assim, o “hoje” não se confunde com o “nosso”
presente, num sentido hegeliano, mas remete a uma contemporaneidade que deita suas bases numa
temporalidade mais fundamental do que aquela que o historicismo nos legou.

Assim, a crise de que falamos “hoje”, seja das humanidades ou da história, já foi muitas e
muitas vezes formulada por diferentes pensadores modernos em diversos momentos, e a partir de
diversas questões.7 Gostaria de propor, à luz disso, que o que, talvez, esteja “em crise” não seja
6 Por que iniciar com ele, digo, um “historicista”? Historicistas oitocentistas, em geral, são representados como o que
haveria de mais retrógrado e ultrapassado para aquilo que historiadores definem, no seu ofício, contemporaneamente,
como história. Independentemente de uma leitura atenta ou “em diagonal”, ou mesmo de alguma leitura, destes
pensadores, os historicismos, em particular os oitocentistas, tornaram-se espécie de espantalho para imensa maioria dos
historiadores profissionais: “o” historicismo. Depois, associam ao nome “historicismo” termos que muitas vezes servem
apenas para desqualificar o espantalho e enaltecer aqueles que “verdadeiramente” poderiam (e deveriam) escrever
história: termos como teleologia, positivismo, uma concepção linear e progressiva da história, factualismo, idealismo,
ideologia (liberal-burguesa), entre outros. Esses termos, se mal empregados, costumam empalhar os espantalhos
disciplinares.
7 Nietzsche criticou a cultura histórica oitocentista. A sociologia durkhemiana criticou os historiadores e seus “ídolos”.
Marc Bloch e Lucien Febvre, entre outros, criticaram o historicismo e o nacionalismo dos historiadores. Antropólogos
como Levy-Strauss criticaram historiadores e sua história. Poetas como Paul Valèry ou filósofos como Sartre criticaram
a história. Heidegger e Gadamer criticaram a historicidade do historicismo. Foucault criticou, Derrida, Deleuze, Lacan.
A lista se estenderia enormemente. De muitas formas, as crises da história e das humanidades e humanismos estão
necessariamente “a história”, a “ciência histórica” ou mesmo “as humanidades” - mas todo o
complexo no qual se fia a concepção de civilização sobre a qual as humanidades, e a história como
a conhecemos hoje, está apoiada. Como sugeriu Elias Palti, talvez seja enganoso apostar em mais
uma interpretação para um estágio mais agudo de “crise”, uma crise crônica, mas interrogar o
próprio conceito fundamental moderno de crise. De certo modo, esse conceito está assentado sobre
uma estrutura que justificou (e justifica ainda), para muitos de nós, a própria existência das
humanidades, da Universidade e do saber científico como, em geral, o compreendemos.8

A história é parte estruturante do vocabulário e da semântica ocidentais. Em termos gerais,


aquilo que “hoje” definimos como conhecimento histórico emergiu na Europa dos séculos XVIII e
XIX, durante a “primeira globalização”, para dizer como Luc Ferry. Tratava-se de um período de
separação fundamental entre o que se entendia como poder e saber. Os liberalismos emergentes
naquela conjuntura, a partir dos idealismos de filósofos como Immanuel Kant e Voltaire, entre
outros, contribuíram para sedimentar uma concepção de ciência distinta daquela dos empiricistas
ingleses, como Francis Bacon, por exemplo. Tratava-se de pôr “fim” à Metafísica tradicional, tal
como então compreendida. O nascimento de uma era racional e lógica: a desmistificação do mundo
(ocidental). Ao privilegiar questões gnoseológicas e epistemológicas, as ciências trataram de
produzir sua distância de outros tipos de interrogações, como, por exemplo, questões ontológicas,
éticas e políticas. Pode-se dizer que as “Luzes” visavam emancipar o Homem do jugo da fé
institucionalizada (e suas verdades dogmáticas), impondo o primado da razão sobre a verdade, a
partir da ciência, para quebrar a monotonia da tradição e instaurar a mudança e o progresso como
novos paradigmas, o progresso técnico e moral da humanidade, emancipando igualmente os
espíritos das nações. Crítica e crise caminhariam juntas, ou pelo menos esse foi o script que nos
ensinaram.

Assim, o pensamento filosófico ocidental moderno sedimentou um modo de produção de


conhecimento que se apropriou do humanismo aliando-o ao espírito da Ilustração, este pautado pelo

sempre rondando por aí.


8 A partir do conceito nietzschiano de “experiência abismal”, Elias Palti sugere um caminho interessante para
repensarmos alguns dos valores fundamentais modernos num mundo altamente globalizado (mais e mais neoliberal) e
de (des)orientação para a mercantilização sistemática de todas as esferas da vida. Ele situa seu estudo sobre a “crise do
marxismo” no mundo pós-1989, como um estudo de caso para a quebra de inteligibilidade que ultrapassa enormemente
o âmbito do marxismo. Para ele, analisar as experiências abismais permitem deslocar o aparato simbólico de natureza
metafórica médico-jurídica carregado na noção de crise, que se tornou um obstáculo epistemológico, cuja
inteligibilidade dificulta, ou mesmo impede a compreensão de fenômenos contemporâneos. Sendo assim, seguindo com
Palti, interessa menos a compreensão da crise em sua dimensão histórica (historicista): suas causas, origens, seu
desenvolvimento, suas origens etc. O que interessa para a contemporaneidade “más concretamente, es observar cómo
reaccionan ciertos sujetos cuando descubren que todas sus creencias más fundamentales les resultan ya insostenibles,
pero tampoco hallan otras disponibles con las cuales reconstituir un horizonte práctico de vida alternativo. En fin, qué
ocurre cuando todo Sentido se disuelve y los hechos y fenómenos históricos aparecen difusos, los contornos con que se
nos presentaban con anterioridad claramente se diluyen, y la realidad circundante se nos vuelve extraña, oscura”. Ver:
PALTI, op. cit., p.19-20.
antropocentrismo, aquele pela autonomia e liberdade da Razão, o qual teria no discurso das ciências
seu mais forte aliado. Estas deveriam (o imperativo é categórico) ser absolutamente rigorosas,
autorreflexivas e críticas – capazes de se reproduzir e renovar a partir de si mesmas seguindo
sempre princípios e fundamentos racionais e epistêmicos. O idealismo contribuiu muito com noções
como as de autocontrole e objetividade, que pretendiam afastar da produção de conhecimento (e da
verdade, portanto) tudo o que pudesse macular ou comprometer a manufatura do saber
legitimamente científico. De modo que política, religiosidade e o mundo dos valores (ética)
deveriam ficar de fora do universo científico moderno, sob a pena de fraturarem o Sujeito
transcendental moderno, o agente legítimo, por seus procedimentos, que produz ciência e iluminaria
o mundo, dissipando as trevas do obscurantismo do “medievo”.

A história definiu-se enquanto saber disciplinar e científico moderno no XIX. E como fez
isso? Definindo um objeto (o passado), procedimentos próprios, um vocabulário de pretensões
científicas – este apropriado de diversos outros saberes, como a Medicina, a Física (em particular a
física newtoniana), a Teologia, o Direito, entre outros –, mas apoiado na linguagem comum, e uma
história para ela mesma. Uma história de mudanças em uma longa tradição de continuidade,
progressivamente (hegelianamente), chegando ao seu zênite e “fim da história”: o modo científico
de historiar o passado. Ora, isso não deve ser surpresa para ninguém, mas mesmo essa “identidade”,
essa narrativa que encontra um nascimento em Heródoto e se estende ao “nosso tempo” foi uma
alternativa, um modo histórico e historicizável de produção de sentido e unidade na mudança.

Mas o problema não é a teleologia que, silenciosamente, ainda baliza a metanarrativa de


legitimidade dos historiadores-cientistas enquanto estes apontam seus dedos para os espantalhos de
ocasião. O problema é a “teologia” que este tipo de alternativa aciona. Isto é, a própria
metanarrativa triunfalista da história-ciência oitocentista não é duradouro como se desejava. Ele é
incapaz de conter as transformações do mundo no qual se inscreve. Por mais organizado que seja o
formato disciplinar, ele está sempre atado ao que há de histórico e historicizável nele e no mundo no
qual se inscreve (que o possibilita, inclusive). O que temos, portanto, diante de nós é uma
modificação estrutural naquilo que permitia identificar, inquestionavelmente, a autoridade,
legitimidade de um profissional formado e reconhecidamente diplomado (qualquer que fosse) frente
a um “amador” (ou diletante). Essa distinção se fazia a partir de uma lógica de polarização que
aparta o profissional, exatamente, por sua formação em algum órgão de pesquisa e ciência
universais. O tipo de saber do profissional seria qualitativamente superior ao de qualquer outro. No
entanto, como a própria chamada observa, o interesse público por história cresce quase na mesma
medida em que o desinteresse pelos profissionais da história. Por que?
Pode-se dizer que algo mudou nos caminhos dos modos de administrar o saber e sua
circulação e do que esperar da fé na formação universitária e científica, fundamental nas sociedades
modernas? Sim, primeiramente, a técnica. Informar tornou-se parte de uma informática cada vez
mais presente no cotidiano das pessoas. Por um lado, o idealismo e as Luzes construíram um mundo
institucionalizado de legitimidade, das virtudes epistêmicas (deontologia), e autoridades que
estabeleciam claramente quem podia ou não produzir, circular e difundir o conhecimento
(Universidades e Centros de Pesquisa e Pós-Graduação, Escolas e Institutos de Educação). Por
outro, com a guinada tecnológica e a massificação dos meios da informática, toda estrutura social
que permitia certa estabilidade ao modelo institucional de controle epistemológico das ciências
modernas, essencialmente globais segundo as aspirações da primeira globalização, se viu
seriamente desafiado. Mas não foi só isso que mudou. Com a derrocada da União Soviética, na
década de 1990, contudo, o golpe fatal do mundo soviético iniciou a segunda globalização, que
estreitou os horizontes da aliança entre capitalismo e democracia. O neoliberalismo se encarregou
de redefinir essa relação fora de uma co-dependência mútua e, pelo menos em teoria, benéfica.
Segundo Luc Ferry, a segunda globalização pode gerar todo tipo de “crises” financeiras e
econômicas. Mas o que resta como desafio à inteligibilidade do mundo que é o nosso é muito mais
complexo. Como fazer para redefinir sentidos, valores e certezas num mundo cujo horizonte único
parece ser o do consumo? O que está em jogo são os valores da civilização que não conseguiu
promover ainda igualdade social, solidariedade real, respeito e significado para a existência
cotidiana.9 Todo o projeto de civilização moderno (Ilustrado) se vê diante dos dilemas sociais,
éticos, morais e políticos da contemporaneidade.

No entanto, como Achille Mbembe analisou, a tecnocracia global contemporânea foi


potencializada por alianças entre potências militares e de tecnologia, que asseguraram que o capital
financeiro, que os financiou, se tornasse hegemônico mundialmente. Ao anexar o núcleo duro dos
desejos humanos (muito mais do que o dos direitos humanos), tornando-os submetidos ao primado
do consumo, ao final do século XX, testemunhamos o nascimento da primeira teologia secular
global.10 O melancólico testemunho de Walter Benjamin sobre o erro de avaliação de Nietzsche
quanto à “morte de deus” foi atualizado. Ao invés da morte de deus, a teologia moderna orientou-se
para o dinheiro, como Giorgio Agamben sabiamente identificou.11 De modo que se fundiram os
atributos da tecnologia e da religião (no sentido lato). Este tipo de fusão refundou e ressacralizou o
mundo sobre alguns dogmas modernos da primeira globalização, como a liberdade individual, por

9 FERRY, Luc. Diante da crise. Materiais para uma política de civilização. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. p.19-20.
10 MBEMBE, Achille. “The age of humanism is ending”. Mail & Guardian, 22 dec 2016, in:
<https://mg.co.za/article/2016-12-22-00-the-age-of-humanism-is-ending/>, último acesso em 29 jan. 2018.
11 AGAMBEN, Giorgio. “Deus não morreu, ele tornou-se dinheiro”, Entrevista de Giorgio Agamben ao Blog da
Editora Boitempo. In: <https://blogdaboitempo.com.br/2012/08/31/deus-nao-morreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-
com-giorgio-agamben/>, último acesso em 29 de jan. 2018.
exemplo, para o contexto da competição no mercado. A fantasia do empreendedor como empresário
de si mesmo e virtuoso do neoliberalismo; o domínio inconteste da propriedade e das commodities;
o culto da ciência e da tecnologia – úteis, pois a única que permite vislumbrar e medir progressos e
almejar futuros-virtuais, entre outras. Aquilo que definia tempo, avanços e retrocessos, inclusive
num plano moral, está cada vez mais atado aos que o Mercado impõe, ao que dita ter ou não valor.

Então o que muda? Relacionemos, pois, a história – tanto sua versão disciplinar, quanto
àquela antiga história da humanidade ao rol de valores básicos da primeira globalização: saber,
ciência, verdade, razão, progresso etc. Ela possuiria valor se apoiada sobre a crença inconteste
(otimista) da inexorável melhora da humanidade, melhorias lentas, progressivas, de uma
humanidade solidária, através da vida política e moral, da ciência e da educação em direção à
emancipação total da humanidade. Mas e frente a uma nova teologia, e se questionada pelo “deus-
Mercado”? Como ficam essas metas? O modelo moderno de conhecimento, em sua relação com a
verdade, desde a Ilustração e, após o fim da Segunda Guerra Mundial, foi “revalorizado”
(desvalorizado) exatamente porque não conseguir “provar” ao Mercado que possui um “valor”
distinto daqueles que hoje figuram como obsoletos. Não que não se tente fazê-lo, tenta-se
argumentar exaustivamente. No entanto, a exaustão leva, muitas vezes às novas tentativas que
parecem, em geral, buscar adequar-se aos desígnios da nova teologia. A busca por financiamento
que, segundo Ethan Kleinberg, seguem amparadas por uma prática “analógica” (livros,
especialização, eventos presenciais, artigos publicados em revistas impressas e pagas etc.) num
mundo digital.12 Ou seja, a insistência na manutenção de uma estrutura considerada “antiquada”,
insustentável, certo “conservadorismo reformador”, se quisermos, contra um mundo no qual este
tipo de “tecnologia da informação” já deixou há muito de ser viável.

É claro que podemos pensar essa questão do analógico e do digital como uma metáfora. O
abismo da experiência, não o faz por obra da natureza ou um desgaste inerente ao modelo, mas sim,
por força de uma competição entre os valores modernos que poderíamos dizer tradicionais – se os
encaramos como valores que merecem ser preservados e os valores alternativos… Pós-modernos?

12 Segundo Kleinberg, “at the most cynical level my answer is that despite the many good intentions of those scholars
seeking to expand the horizons of the historical discipline, the question is primarily an economic one. The criteria to
determine which disciplines are considered ‘serious’ are no longer those of Aristotle, but rather pertain to funding,
though it seems to be the case that presenting a universal and unifying explanatory platform is a key to success in that
arena, so perhaps Aristotle was right all along. Over the past twenty years, historians have moved increasingly toward
affiliation first with the social sciences and then with the hard sciences; such movement tracks the rise of the STEM
initiative and the perceived crisis of the humanities. It is not surprising or even a coincidence that as federal, state, and
local governments have invested increased amounts in the “hard sciences,” enrollments in the humanities and history in
particular have declined. This is then coupled with a logic of impact assessment where funding agencies measure the
question of whether research is worthwhile on a metric of funds previously gained. The money follows the money and,
in this current incarnation, the ideas follow the funding and not vice versa. The pursuit of capital stimulates ideas and
paradigms, and one result is that historians now run toward science in search of those funds”. KLEINBERG. Ethan.
“Just the Facts: The Fantasy of a Historical Science”. History of the Present, Vol. 6, No. 1 (Spring 2016), pp. 87-103.
p.98-99.
Não. Pois, estão inseridos na mesma lógica dos valores modernos, mas a partir de metanarrativas
distintas. Novos conjuntos de valores entram em competição pelo seu espaço num mundo cada vez
mais orientado pela competição e pelas virtudes de desempenho. Pelo menos, uma vez que o
mercado dita os valores dos produtos que circulam por ele. Ou seja, o Mercado tornou-se o
mecanismo primário de validação das verdades que o conhecimento pode produzir. O Mercado
avalia e desvaloriza, por exemplo, a educação. Os critérios são muito distintos daqueles que
estavam disponíveis na justificativa anterior.

De modo que não se pode dizer que, de repente (“hoje”), o espelho se quebrou: e as
relativamente silenciosas justificativas que mantinham a Universidade em seu lugar cativo, os
historiadores em sua legitimidade de sujeitos transcendentais do conhecimento, não mais bastassem
para a manutenção do modelo moderno de conhecimento científico – que hoje exige novas
justificativas amparado por um quadro de demandas que nossos protocolos e valores modernos
clássicos, ou tradicionais, já não conseguem mais atender (ou não mais como já conseguiram). E,
apenas nesse “momento de crise” todos os segmentos sociais, políticos e econômicos que tornavam
possíveis as universidades modernas passaram a reclamar seus poderes para redefinir o tipo de
Universidade que desejavam. A práxis formativa moderna enquadra-se em uma lógica amparada por
uma lógica social de interdependência entre educação, formação e melhoria qualitativa da vida em
sociedade que hoje não obedece mais aos protocolos do século XIX.

Filosoficamente, para empregar o jargão de Jean-François Lyotard, a metanarrativa


(legitimadora) moderna clássica, que justificou eficazmente todo o mecanismo de formação que
conhecemos (um longo tempo e um processo evolutivo que consumia boa parte da vida das pessoas
– desde a formação básica, com letramento e primeiras operações aritméticas, passando para uma
formação mais alargada em humanidades e ciências, para, então, chegar-se ao ensino superior e
tornar-se um profissional, um especialista ou cientista/pesquisador) perdeu sua capacidade de
justificativa. Ela passou a gerar mais desconfiança do que legitimidade. Pessoalmente, discordo de
que tenha se passado um “fim das metanarrativas”. A metanarrativa hoje é a do Mercado e seus
dogmas se apresentam cotidianamente. Ora, como se justifica a manutenção das humanidades nas
universidades mundo afora pela lógica do Mercado? A partir da valorização liberal clássica? Com a
informatização e a internet e agora as redes sociais, como os avanços da robótica e cibernética na
década de 1960 de Lyotard, com velocidade da circulação e das trocas de informações sempre
avaliadas em sua potência mercadológica, tudo mudou no que se refere ao contexto no qual se
promove, justifica e legitima isso que chamamos “formação”. E não apenas a educação formal, por
assim dizer, mas aquilo que ela “produz”: um profissional. Sim, isso mesmo, o próprio conceito de
formação parece ter mudado, portanto. Seu “valor” no mundo regido por valores materiais da
economia de mercado neoliberal é definido por “aquilo” que ele produz: se alguém apto a ter
excelente desempenho no mercado de trabalho ou não. Isso consome a própria capacidade de
produzir verdades a partir do conhecimento à sua utilidade e/ou rentabilidade no mundo da
economia.13

As sociedades que moldaram os valores ilustrados modernos, entre eles o valor das
humanidades e da educação formal que conhecemos e lutamos para preservar, como no caso da
formação de um historiador profissional, por exemplo, espelhavam o formato social, político e
econômico no qual esta estavam assentadas. O nascimento dos ideais de fraternidade, igualdade e
liberdade como projeto de sociedade, no caso Francês, demorou cerca de 100 anos para definir uma
sociedade republicana. Mas ele moldaram uma forma não apenas de reconhecer as desigualdades do
regime deposto mas, no mesmo movimento, de projetar horizontes de superação dessa mesma
desigualdade. A formação seria, pois, um meio de instituir essa transformação como movimento
progressista de superação de um problema reconhecido. Evidentemente, ela não resolvia tudo,
havia, claro, todo o problema do colonialismo e do racismo. Efetivamente, não aboliu
diferenciações entre elite e povo, pois como Bourdieu sabiamente evidenciou,14 introjetando a
dinâmica da distinção entre saberes de alta e baixa cultura, que funcionavam mediações entre o alto
e o baixo em termos sociais. No entanto, pelo menos em tese, a formação poderia pavimentar o
caminho para que pessoas pobres pudessem melhorar sua condição de vida através de uma
formação cada vez mais valorizada como capital simbólico em uma sociedade instruída. A proposta
não superou as divisões, mas criou mecanismos de equalizar o pertencimento a uma mesma
comunidade a partir de um sistema educacional público no qual cada etapa representava algo para o
todo.

Dito isto, cabe insistir que o que nos afasta destes ideais reside na atual conjuntura: o que
está em questão e em disputa? A máquina compressora neoliberal atua, em especial nas sociedades
emergentes, de modo extremamente violento e sem remorso. No contexto de hipervalorização do
empreendimento individual e da meritocracia não há um reconhecimento franco das desigualdades
fundamentais que estruturam as sociedades modernas – uma vez que elas não partem de princípios e
valores básicos. Nesse sentido, a educação (especialmente a pública) fica em “maus lençóis”. Como
justificar o necessário investimento em educação pública num mundo em que a hegemonia dos
discursos defendem que educação é uma despesa e um ônus aos cofres públicos? E o horizonte
parece ser cada vez mais estreitamente único: o do consumo (e cada vez mais)?

O descaso com os Direitos Humanos, por exemplo, passam igualmente por essa
desvalorização daquilo que foi erigido pelo mundo burguês do liberalismo clássico. Se problemas
13 LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1998.
14 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Rio de Janeiro: Zouk, 2010.
sociais ainda são tratados como assunto de polícia (cuja função primária é a de repressão, controle
social e proteção da propriedade privada), por outro lado, desenvolveu-se uma espécie de
denegação estrutural das causas destas desigualdades, seus efeitos e suas muitas deformações como
lado sombrio dos novos dogmas do individualismo (neo)liberal. Os modos como, em geral,
sociedades como a brasileira (mas não apenas), ou seja, periféricas e ainda às voltas com a violência
e o racismo estruturais que as constituem, seguem cada vez mais orientadas para o mercado. O
modo como representam a si mesmas através de suas políticas públicas, mas igualmente nos usos e
abusos públicos da história, evidenciam a luta desigual e competitiva pela sobrevivência contra
discursos hegemônicos (inclusive os discursos oficiais) que primam pelo desprezo por quaisquer
éticas da inclusão, da reparação e restituição. Alguns autores, como o alemão Jörn Rüsen, cuja
teoria da história se ampara no modo clássico-liberal (kantiano) e droyseniano (historicista) da
primeira globalização, chamam isso de “compensação estética”.15 Talvez, perspectivas como estas
se esqueçam de pensar o elemento local em seu universalismo. Talvez não consigam contemplar o
fato de que a Europa já não é mais o centro do universo. Talvez, esqueçam, por razões variadas, que
o que possibilitou o liberalismo no qual muitos se arvoram na condenação das “compensações”,
especialmente nas ciências humanas, e nos países colonizados, repousa silenciosamente no espólio e
privilégios herdados, individual e coletivamente, desde o auge do imperialismo cruel e racista, e de
uma antropologia (no sentido foucaltiano) que amputou (ainda amputa) não apenas membros (mãos
e pés), mas a própria humanidade de milhões de pessoas; ceifou vidas sob premissas de redenção e
civilização. Sem restituição e reparação não poderá haver humanidade digna deste nome, senão
mais uma deformação da idealista (e idealizada) humanidade de outrora, igualitária em sua forma
excludente e violenta, porém mais para uns do que para outros. Desconfio muito seriamente que
ecos da primeira globalização, que lutam para serem escutados por trás dos ruídos da segunda
globalização, talvez não sejam alternativas minimamente compatíveis com o mundo que temos
diante de nós.

Hoje, a educação para o empreendedorismo é, já, uma realidade concreta nas escolas
brasileiras (públicas e privadas) – uma educação não apenas pautada pelo mercado, mas valorizada
como tal e orientada para o mesmo. Os professores e professoras seguem desvalorizando.

15 “A compensação das coerções para agir, no campo da formação histórica, leva com frequência a uma relação estética
abstrata com a experiência da alteridade do passado. Ela se refugia numa espécie de descompromisso com respeito às
exigências pragmáticas do presente. A experiência da alteridade histórica, apropriada ao longo da formação, pode
perder-se na compensação estética das coerções a agir. Com isso, a formação degenera para algo de deslocado no
quadro da orientação da vida prática. A liberdade da experiência histórica própria pode conduzir à desvinculação
estética do mundo, como se um véu encobrisse o olhar histórico que buscasse perscrutar a temporalidade intrínseca às
circunstâncias atuais da vida”. Cf. RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da História III: formas e funções do
conhecimento histórico. Tradução Estevão Rezende Martins. Brasília: Editora UnB, 2007. p.113. Um debate
pormenorizado sobre o modo como Rüsen associa sua crítica da compensação ao futuro histórico, ver: Assis, Arthur A..
“Jörn Rüsen contra a compensação”. Intelligere, Revista de História Intelectual, vol. 3, nº2, p. 13-33. 2017. Disponível
em <http://revistas.usp.br/revistaintelligere>. Acesso em 29 mar. 2018.
Explicadores e tutores (operadores de apostilas) aparecem no horizonte como alternativa aos
empregadores que, ao mesmo tempo em que desvaloriza a formação docente, precariza as relações
de trabalho. Formação para o pensamento crítico é um valor que consegue competir com os
imperativos da eficiência e do desempenho no mercado? No que toca à história e a representação do
passado destas sociedades, também estamos (nós – os historiadores) sob o constante juízo de valor
do soberano “deus-Mercado” e seus poderosos pastores. Os produtos deste tipo de transformação já
podem ser adquiridos nas principais lojas do ramo. História “for dummies”, guias politicamente
incorretos, revisionismos rasos, autoajuda em programas de televisão, canais de “streaming” e os
muitos “tubes” na internet. O culto à celebridade (em sua máscara oracular) já começa a colecionar
historiadores em suas fileiras. Ele já chegou à academia também; se bem que entre o ranço (inveja?)
e a adesão à distância é muito pequena. As interpretações que conseguem, de algum modo, projetar
imagens de sociedade “homogênea”, em que o ritmo frenético da alta modernidade, da
multiplicação das mercadorias e das trocas em todos os níveis, parece sugerir que as divisões de
classes foram abolidas, cria uma ilusão perigosa de uma homogeinização social, racial, de gênero,
assim como política e econômica. Na era da “lacração”, fake news e da “pós-verdade”, se pressupõe
que a cidadania esteja, já, imediatamente disponível para todos e todas (uma vez considerados
apenas como consumidores). Assim como se relacionam facilmente (e equivocadamente) as
fruições e liberdades do mundo moderno ao denominador comum do acesso ao consumo.
Algoritmos e “big data” são as estruturas da informação útil circulando entre nós. Conteúdo?
Procure nos “search engines” ou na plataforma da enciclopédia Wiki. É duro dizê-lo, mas vivemos
um tempo em que a desonestidade tem um enorme valor de mercado.

Eficiência mudou de estatuto. De pessoas “bem formadas”, de carne e osso, detentoras não
apenas de um saber efetivo, mas igualmente das capacidades e da autonomia para se aprimorarem
neste saber e em suas funções, para funcionários que desempenhem o que lhes for passado sem
questionamento. Isso significa que o homem idealizado pelo Iluminismo de Kant, como vimos, o
sujeito moral moderno, capaz de decisões éticas e deliberações racionais “entra em crise” contra a
concepção dogmática, metafísica, muito mais simples e sedutora da nova teologia da Mercado. Ser
consumidor é ter direitos. Tudo se torna muito mais complexo quando não conseguimos, por mais
que desejemos, definir as coisas por simples oposição: valores modernos contra os valores “pós-
modernos”. Isso porque a ideia de superação do atraso secular, na qual as sociedades emergentes –
que ainda não teriam entrado no ritmo da modernidade global e/ou transnacional – é vendida ao
lado da condenação dos velhos espantalhos de sempre: aqueles que não souberam se adaptar às
acelerações necessárias à imperiosa modernização. Trata-se de uma apropriação da própria
dinâmica (ou dos discursos da) modernidade. No caso brasileiro, apenas para citar um exemplo, as
promessas de redentoras reformas de toda sorte aparecem como mote ideal das modernizações que
carecemos para superar “nosso atraso”. O tom professoral com que tais reformas são vendidas é, na
melhor das hipóteses, modernista. Mas não deixa de ser patético por isso mesmo. O discurso da
modernização no Brasil parece desejar, séculos depois, a “obra civilizatória” do colonizador, mas
contra seu próprio povo. O pobre é visto não como um problema social no sentido de não ser
cidadão plenamente ativo. Ele é visto como um problema por ser alguém que não tem nada a vender
além, talvez, do seu voto e mais nada que possa ser valorizado pelo mercado. Isso, por conseguinte,
nos remete diretamente aos tempos do imperialismo e da escravidão que se redefine
contemporaneamente. Quando o humanismo ocidental idealizou o homem e sua contra parte
humana, ela mesma roubada de sua humanidade mais fundamental: o “branco” cultivou a liberdade
e a razão, enquanto o “negro” foi reduzido à sua condição de mercadoria. Sua existência reduzida
ao que poderia ser o seu valor para os seus senhores. Em Crítica da Razão Negra, Mbembe
evidencia que o devir negro no mundo globalizado não seria mais uma questão associada às pessoas
etnicamente afrodescendentes. A violência e a opressão do mundo do capitalismo hoje não
diferenciam exclusivamente mais pelas “raças” da antiga antropologia humanista, mas uma
necropolítica também. Apesar da história aliar essa duas dimensões, que não desapareceram, em
termos concretos, esse devir estaria hoje, na dinâmica do capitalismo tardio (neoliberal), moldando
as formas de exploração, de exclusão e de revalorização do ser-no-mundo. Inclusive, novas formas
de escravidão emergem a partir desse contexto neoliberal, de dizer quem pode viver e quem deve
morrer.16

Nestas condições, a própria atividade de formação de especialistas, digamos, como os


historiadores profissionais, torna-se cada vez mais encarregada de uma tarefa a ser igualmente
“reformada”: superar a distância entre a igualdade de condições proclamada como objetivo último e
a desigualdade estruturante e fundamental. Mas o objetivo dessas “reformas” modernizadoras é
reforçar a relação espelhada entre educação formal e a sociedade que a situa e recontextualiza social
e culturalmente, na qual as instituições de formação, como a Universidade, por exemplo, não fica de
fora desse espectro fantasmagórico. Ela é, inclusive, cada vez mais convocada a intensificar suas
ações para “reduzir as desigualdades” (sua vocação moderna) que, por sua vez, são mais e mais
consideradas meramente “residuais” pelos poderes públicos e seus agentes. No entanto, a tragédia
deste tipo de reformismo é que, finalmente, a própria educação passa a legitimar uma visão
oligárquica de uma sociedade em que a autoridade e legitimidade dos “melhores alunos” – ou seja,
das “elites” – segue naturalizada como um tipo superioridade inerente a uma classe, um tipo, uma
região ou Estado. Na qual o abismo entre o douto e o popular se instaura como reflexo de uma
divisão social desequilibrada que somente mantém, reproduz e reforça a desigualdade originária.
Um reflexo perverso não dos méritos acadêmicos daqueles que ascendem, mas de seus poderes e da

16MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. 2ª ed. Tradução: Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.
desigualdade estrutural que mantém sempre os mesmos setores ou segmentos da sociedade na
esfera de poder e de decisões políticas. Formação e sociedade são como dois espelhos um de frente
para o outro, infinitamente se simbolizam uma à outra; reproduzem, assim, indefinidamente a
desigualdade no modo como pensam e refletem uma à outra, em suas próprias estratégias de
denegação.

Neste universo, que eu chamaria de uma espécie de inferno historicista, tudo muda o tempo
todo. Eis o desespero em busca de crítica em meio à “crise” que já se tornou crônica. Mas o próprio
tempo mudou. Não temos tempo como outrora para resolver nossos impasses através de crônicas da
crise. Há emergências e a imperiosa mãe de todas as invenções: há necessidade! No caso da crítica,
como fica o tempo que se redefine e passa a ser revalorizado a partir de noções como as de
desempenho, otimização, maximização dos resultados por minimização de esforços e
investimentos? O valor de troca do conhecimento produzido em instituições de ciência e pesquisa
está cada vez mais associado ao do progresso material da tecnologia (útil), quase como um fim em
si mesmo. Como fica a verdade diante do valor da pós-verdade; das propaladas “fake news”; dos
“alternative facts”? Insistiremos no modo modernista, na defesa inconteste da epistemologia de um
mundo que é visto sob as lentes da desconfiança dos arautos e pastores do sacrossanto Mercado? Se
o mercado permite (re)definir o que é verdade e suas virtudes em relação ao que ele prevê, e se
verdade e conhecimento estão juntos ou não (ou quando estão e quando não estão), como ficam os
arautos da especialidade, do rigor e da ciência? Não teria sido o mercado e seus agentes que
definiram o valor do “trabalho”, e a desvalorização do “falar sobre a crise” (pensar), no conhecido
slogan do Governo Federal brasileiro, mencionado no início deste ensaio?

Sempre justificando o bom e velho mote ilustrado do progresso da humanidade (mas ao


custo dos cursos das Humanidades – que começam a fechar suas portas mundo à fora), isto nos
amarra a nova definição de ciência e conhecimento (e de formação, portanto) a uma finalidade
última, praticamente algemada ao imperativo do “serve para quê?”. A cada nova resposta, a certeza
não tanto do “para que serve” esse ou aquele conhecimento, mas do “para quem ele serve” e,
infelizmente, ao quê ele serve: mais (ou menos) financiamento. Mais (ou menos) tempo pra a
pesquisa, para a formação e para o pensamento. A hiperespecialização, mesmo nas humanidades, se
adequa a essas pressões como pode, enquanto pode. Uma vez que passa a formar agentes, desde a
graduação para essa “forma” hiperespecializada, se preocupa apenas com aquelas competências
capazes de saturar as funções necessárias ao “bom desempenho” na dinâmica da academia e do
Mercado. Resta saber qual a palavra final que diremos em relação a isso. Para terminar como
começamos, citando Troeltsch, o problema que se coloca é maior do que “nós mesmos”, ou “nosso
ofício”. Sem que haja uma participação efetiva na redefinição dos valores civilizatórios que
sustentam e justificam as humanidades (a Humanidade, digna deste nome) e a história (que o
alemão chamava de filosofia da história – as relações da história com a visão de mundo, os
pressupostos filosóficos e a consequência da pesquisa histórica),17 sem que refundemos, juntos as
possíveis e desejáveis articulações entre estes problemas, primeiro, como expressões de nosso
mundo e, segundo, diante das demandas do mundo que é o nosso também, restaria pouco a ser dito.
Talvez, um seco e resignado amém…

Espero que sejam poucos os que optem por esta via.

17 TROELTSCH, op. cit. p.454.

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