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Rio de Janeiro
2009
ii
Rio de Janeiro
2009
42
Mente
No poço
pingam gotas
Gotas que o preenchem
com um líquido
espesso
negro
e denso.
essa gotas lúgubres
são meus pensamentos
Buscaremos mostrar que o campo da saúde mental, atualmente, passa por uma
XXI, o ‘homem normal’. Esse projeto é um passo a mais sobre a teoria da identificação
Teremos, assim, uma idéia mais ampla do campo da saúde mental, tanto em suas
bases históricas, quanto em suas perspectivas atuais e futuras. Esse panorama nos
44
Nosso objetivo é mostrar que a psicanálise possui uma teoria sólida sobre o discurso da
ciência, e que sua posição de recusa do homem normal, assim como outrora recusou o
Trata-se de uma clínica ávida por números e que não deixa espaços para o resto,
resto no sentido daquilo que o paciente, em sua particularidade, não pode compartilhar
com nenhum outro. Nesse sentido a clínica psicanalítica toma um rumo completamente
cifra, emblema do quantificável (e insígnia deste papel de arauto da verdade que a ciência
bastante desenvolvido (Laurent, 2008b). São avaliações que não poupam sequer os
próprios profissionais que lidam com o sofrimento mental, estes igualmente avaliados
pelos resultados (Matet, 2008)53. A psicanálise, no século XXI, encontrou novas críticas a
sua presença na saúde mental, são os avaliadores que acusam os resultados psicanalíticos
de pouco confiáveis, uma vez que não podem ser reproduzíveis em um modelo dito
científico.
52
Abelhauser, a., Le chiffrage de la clinique, p.52
53
Matet, J-D., Il était une fois un IME comme beaucoup d´autres..., p.37
45
psicanálise no campo da saúde mental, quais são os aportes possíveis, enfim de que modo
ela pode participar da grande conversação que configura o campo da saúde mental. Por
fim, veremos de que modo a psicanálise se separa da clínica do mental, construindo uma
clínica inconfundível, e de que modo ela se torna, por excelência, uma clínica para os
nos trópicos, 2003. Essa passagem ilustra, como poucas, o modo como um
comportamento que contraria as normas, por mais sadio que seja, pode ser tachado de
aberração desviante. É o risco que ocorre quando a ciência passa a agir a serviço do
científico pode ser utilizado, em nome da psiquiatria, para perpetuar a condição inferior
do negro no período escravocrata. Poderia ser cômico, se não fosse trágico, o que Scliar
Observamos aqui uma manobra nada sutil que faz as questões éticas deslizarem
para uma política diretamente instrumentalizada pelo saber científico. Apesar de distante
no tempo, o exemplo é bastante atual, já que todos os dias nós recebemos notícias de
que escapa à norma. Um dos maiores críticos da teoria das qualidades psíquicas inatas é
54
Scliar M., Saturno nos Trópicos, p.196
47
Stephen Jay Gould. Para ele, construiu-se o mito que diz ser a ciência uma empresa
como ele realmente é (Gould, 2003). É patente, aqui, o risco de que o determinismo
biológico seja usado para grupos detentores do poder. Não se trata de negar a importância
premissa de que a inteligência era uma coisa que existia no interior da cabeça. Enquanto
se manteve essa crença, por mais que se mostrassem evidências contrárias, perdurou a
Para entendermos o modo como a paixão pela quantificação e pela norma toma
espaço nas políticas de saúde mental e segrega tudo que lhe parecer anormal, partiremos
inicialmente do comentário de Miller de que vivemos na época do “Outro que não existe”
formação das massas no momento em que a queda dos ideais deixa um vácuo
55
Gould S.J., A falsa medida do humano, p.7
48
É possível identificar um percurso que vai de uma clínica lacaniana que tem no
modo como o sujeito constrói uma resposta para sua própria existência. Esse percurso
pode ser exemplificado a partir de dois seminários de Lacan, separados por precisos vinte
anos. Ambos são momentos cruciais para a clínica das psicoses: o Seminário III, As
Seminário III, torna-se uma crença de que há sentido no real. Isso implica em um
“forçamento”, digamos, uma invenção, que procura apagar a constatação lacaniana dos
anos 70 de que real e sentido se excluem. No capítulo IV, veremos que o NP apenas pode
se sustentar, com o avanço da teoria lacaniana das psicoses, se ele tiver apoio no
sinthoma. Ou seja, a partir do que vimos no capítulo anterior, podemos afirmar que não
não se separam, surge o matema que inicialmente foi utilizado por Lacan na construção
do grafo do desejo (Lacan, 1966k), mas que posteriormente ganhou novo fôlego a partir
do curso de Miller O Outro que não existe e seus comitês de ética (Miller, 2005b):
A
/
56
Uma clínica que diferencia neurose e psicose a partir do NP e sua foraclusão
49
todo problema encontrará uma solução no campo do Outro, sempre haverá restos que são
excluídos de sentido. É nesta perspectiva que Miller pergunta em seu curso sobre o modo
como podemos pensar a clínica quando o Outro não existe. Temos como resposta que ela
opera por seus restos (Cohen, 2006; Vieira, 2008). Podemos afirmar que todo resto é
grande valor absoluto agita a crença na consistência do Outro, fez com que o vazio de
respostas fosse ocupado pela certeza obtida nos números produzidos pela ciência (Miller,
2005b). A tese que desenvolve Miller é que o declínio dos valores universais e das
que o discurso da ciência é tomado como única verdade confiável. Essa afirmação traz
das bases do laço social. Prosseguindo nosso percurso, nos deparamos então com uma
pergunta: o que resta do laço social quando nada se espera da demanda ao Outro?
Bauman (Gauchet, 1985; Bauman, 2001; Lipovetsky, 2004), entre outros. O mundo
cujas peças têm em comum, por um lado, a ausência de garantias do Outro e, por outro,
57
Que serão melhor desenvolvidos no capítulo IV
50
crescentes do sujeito contemporâneo. Para Renaut, por mais diversos que sejam os
modos de abordagem, todos esses autores afirmam que a modernidade consiste em opor,
às sociedades tradicionais, aquelas onde o indivíduo não mais aceita ser submetido a nada
Essa constatação nos leva a uma nova leitura do supereu freudiano, suscitando um
que mais o mundo caminha para se tornar uma grande comunidade globalizada, mais o
58
Renaut A., L´Individu, p.14
59
Bauman, Z., O Mal-Estar na Pós-Modernidade, p.9
51
ideais:
homogeneização dos modos de gozar, que é da ordem do objeto a, sem que este seja
conectado a uma causa. Sabemos que esta é uma questão para Lacan. O objeto a
lacaniano é ao mesmo tempo mais de gozar e causa de desejo. É por isso que, quando ele
é ofertado sem limites para o gozo, o que ocorre no consumo desenfreado ou na oferta
crescente de drogas lícitas e ilícitas, ele perde sua função de causar o desejo (Miller,
2005c).
campo da saúde mental quanto no campo da psicanálise. Podemos ir mais além, o que
aproxima e distancia esses dois campos é o modo como cada um responde a essa
constatação.
Observamos, porém, que o modo como, no vácuo deixado pelo declínio da imago
paterna, foi tragada igualmente a clínica da subjetividade, sendo esta substituída pela
60
Baudrillard, J., Le mondial et l´universel, p.175
52
clínica da quantificação. Lacan possui uma tese muito bem definida para justificar o
discurso da ciência (Lacan, 1966g). Assim, entendemos que uma clínica dominada pelas
pensar a saúde mental a partir de normas e estatísticas, sem que haja espaço para uma
clínica que inclua o sujeito. Duas referências nos auxiliam em nosso percurso, o texto
revolução das massas (Gasset, 2007). Esses textos nos auxiliam a ver a importância de se
pensar o campo da saúde mental como local onde se reúne o mais singular de um sujeito,
que na teoria lacaniana será representado por seu sinthoma, e suas trocas com o Outro, ou
seja, o modo como se constrói para cada um o laço social. Tomemos, inicialmente, a
subjetividade” (Schechtman, 2006). Para tanto ele se serve do belo conceito barthesiano
53
sociabilidade do grupo”.61
não reduzir o território da saúde mental apenas à vertente da sociabilidade. Para ele, é
preciso abrir um espaço para outra vertente, onde a vida individual como independência
ponto de solidão do sujeito que não deve ser visto como abandono, mas como a
possibilidade de poder gozar sem necessariamente ter que partilhar esse gozo com
alguém. Assim, o território deixa de ser visto apenas como lugar de trocas, ele inclui o
cidadania e aos ideais aspirados pela maioria, está enlaçado na trama social. Esse laço é
guiado por ideais que encontram na plenitude do bem estar biopsicossocial, do Relatório
sobre a saúde mental de 2001 da Organização Mundial de Saúde (Murthy, 2001), seu
ideal maior.
do gozo e da solução sintomática, percebemos que o laço social não é tecido pelos ideais.
Esta questão é fundamental quando pensamos no laço social possível nas psicoses.
61
Schechtman, A., Território e idiorritmia: uma leitura de Barthes para a saúde mental, p.37
62
idem
63
O esquema L, presente no Seminário III de Lacan, mostra as relações da realidade com o inconsciente.
Ele será estudado em detalhes no capítulo IV, mais adiante
54
campo da realidade, expondo as diversas tensões entre o louco, seu semelhante e o Outro.
o enigma que habita permanentemente a vida do psicótico. Sua vida é tomada pela
permanente.
modo como Lacan pensa o laço social através de seus quatro discursos. No Seminário
XVII (Lacan, 1992), ele desenvolve sua teoria sobre os quatro discursos que são: discurso
S1 = o significante mestre
S2 = o saber
$ = o sujeito
a = mais-de-gozar
O que distingue entre si, os quatro discursos, é a posição dos símbolos. Há quatro
agente outro_
verdade produção
preservando, sempre, a mesma ordem. Assim, cada discurso surge de um giro dos
símbolos de um quarto de volta. Podemos supor que a territorialidade que é criticada por
Schechtman é ditada por um mestre que não leva em conta as motivações subjetivas do
55
tome as rédeas de sua posição, o que lhe permite conciliar ao mesmo tempo sua relação
com o mundo externo e com o gozo íntimo, que não passa pelas experiências de troca no
laço social. O discurso da histérica, proposto por Lacan, nos dá a dimensão dessa posição
do sujeito no discurso:
$ → S1
a S2
saber fazer com o resto de gozo, que é estranho tanto para o sujeito como para o mundo
que lhe rodeia. É a partir desse resto elevado a condição de agente do discurso – e
a → $
S2 S1
6464
Já que o objeto a é ao mesmo tempo mais-de-gozar e cauda do desejo
56
garantem necessariamente a adesão do sujeito ao laço social. Como resultado, temos cada
vez mais a formação de comunidades de identificações débeis, que se mantém apenas por
crescente, a clínica atual se depara com uma espécie de debilidade mental do sujeito
estabelecido, permanecendo, desse modo, fragilmente conectado ao Outro. Ele toma por
base o Seminário XVII para constatar o encontro de sujeitos que não mais se inscrevem,
como agentes, em nenhum dos quatro discursos lacanianos66 para constituir uma rede de
Encontra-se na clínica uma quantidade cada vez maior de sujeitos capturados por
duas novas formas de discurso, o discurso da ciência e aquele que Lacan problematizaria
como um falso discurso, o discurso capitalista (Lacan, 2003h), falso precisamente pelo
fato de não fazer laço social. Se Lacan os chama de falsos é porque, nesses últimos, não
entra em questão a divisão subjetiva. No primeiro pelo fato de que há na ciência uma
65
Tendlarz, S., O patológico da identificação, p.5
66
A saber, o discurso do mestre, da histérica, do universitário e do analista
57
ao líder, proposto no capítulo VII do texto Psicologia das massas por Freud (Freud,
1981). Freud, quando pensou sua teoria da identificação, o fez em torno da figura do
líder, que é inspirado na própria imago paterna. A identificação surge como resposta do
sujeito aos impasses do desejo: “É fácil exprimir em uma fórmula a diferença entre tal
identificação ao pai e a escolha do pai como objeto. No primeiro caso o pai é o que se
seria por excelência o modo como o sujeito passaria da clínica do diagnóstico comum
para a clínica do caso único. Clínica onde sua queixa e seu sintoma não podem ser
e esta renúncia está cada vez mais distante dos imperativos contemporâneos. Nesse
faz com que o sujeito dispense os grandes significantes que possam representá-lo para o
pela ciência fez com que, cada vez mais, o sujeito prescinda dos ideais e invente seu
próprio estilo de vida, ou seja, seu modo particular de viver a pulsão (Laurent, 1993a)68.
67
Freud S., Psychologie de Foules, p.168
68
Laurent, E., Styles de vie, p.3
58
detrimento da busca dos ideais. É o que Miller nos descreve com o matema: a > I (Miller,
2005b)69.
Passamos dos grandes símbolos às grandes marcas das vitrines. Ao colocar o sujeito
dos valores universais continuam sendo coerentes com a teoria freudiana da identificação
semelhante e não mais ao líder71. Trata-se, a nosso ver, de uma massa ainda mais amorfa
Em 69, Lacan faz um raro comentário sobre a reforma psiquiatria. Ele ocorreu em
França (Lacan, 1969). Nesse texto, ele antecipou os riscos da separação da psiquiatria
entre psiquiatria social e psiquiatria científica, esta sob o domínio crescente dos
laboratórios farmacêuticos. Por um lado, uma Sociatria72 que se afastaria cada vez mais
69
Miller J-A., El Outro que no existe...p.112
70
Ferrari, I., A realidade social e os sujeitos solitários, p.23
71
Laurent, E., Politique de l´unaire, p.18
72
Sociatrie, tradução nossa
59
tomada pelas seduções do mercado. Sob o rótulo de ciência, o que se vê com muito mais
esteira das novas relações entre filosofia e ciência, uma vez que o pensamento científico,
metafísica e ciência (Chalmers, 1987)73. É o que conduz diversos autores a afirmar que a
teologia e filosofia, que surge a questão da identificação. Assim, uma forma derivada da
identificação ao semelhante é a identificação aos novos rótulos que lhe são impostos pelo
discurso da ciência. É o que configura uma nova clínica, para a saúde mental, onde
tanto aos serviços públicos quanto aos psicanalistas, já chegam com um pré-diagnóstico,
freqüência cada vez maior um questionário que dará uma identificação ao sujeito.
que se organizam em torno do modo de gozar do sintoma e não em torno do Pai. São
tornaram preocupações constantes das novas políticas de saúde mental. Nessas três
dissolução progressiva do tecido social. Surge um contingente cada vez maior de sujeitos
narcisicamente enclausurados pelo gozo solitário, conectando-se ao laço social por um fio
cada vez mais frágil: o dealer, a virtualidade da internet, o sexo casual, etc. Enfim, nos
fica o desafio da resposta a uma questão que o clínico ouve cada vez mais em sua prática:
com a crítica que faz o filósofo Ortega y Gasset sobre homem de massa. Para ele, a
questão da psicologia das massas é pensada sob a ótica da segregação. Sua obra mais
importante, A rebelião das massas, prenunciou que o mundo, tomado pela técnica,
forjaria as bases para a criação do homem mediano, o homem no qual cresceria o horror
passiva, sem vontade nem critérios, levando à negação de duas das principais condições
homogeneidade e indistinção social. Ele não tem nenhum projeto que lhe seja próprio e
não faz nenhum esforço para uma realização pessoal, consumindo e gozando das mesmas
coisas que os outros. Tudo que se afasta desse platô monótono da normalidade é
rebelião das massas, sobretudo quando pensamos que ela foi escrita antes dos
74
Esquirol J.M., Ortega y Gasset: la technique et « l’homme de masse », p.125
61
eliminação da anormalidade: “aquele que não é como todo mundo, que não pensa como
Para Esquirol, a obra de Ortega Y Gasset indica que o protótipo, por excelência
ele é apenas uma evidência que mente. Somente podemos falar em psicanálise quando
na leitura atual que faz Miller do Homem sem qualidades de Robert Musil (Miller,
instituído pela ciência. Ulrich, o personagem de Musil, demonstra que por baixo da
75
Esquirol J.M., op. cit. p.124
76
Idem, p.126
62
A disjunção entre real e sentido, na teoria lacaniana, faz com que nunca se tenha a
boa palavra para se falar do real (Lacan, 1974c). Para Miller, no momento atual, procura-
se cada vez mais entender o psiquismo humano através da resposta certa que faria a
adequação entre estímulo e resposta, sem deixar restos. Esta adequação está na base de
psicanalíticos. Até mesmo porque em Lacan, o real seria, ironicamente, um estímulo que
teria a propriedade especial de sempre produzir uma resposta inadequada (Miller, 2004c).
psicanálise:
O nome de Deus, hoje, é o Normal. Com ares científicos, nos é proposta uma
teologia do normal, enquanto o beabá do que nos ensina a psicanálise através
de Lacan é que o psiquismo, como tal, não é normal. A normatização do
psíquico é o seu desaparecimento, sua supressão78.
profetizada por Foucault em Vigiar e punir (Foucault, 2004), tornou-se uma questão
Foucault denuncia, de forma crua, a pouca esperança que depositava na integração dos
desvios da norma pelo mundo civilizado (Foucault, 2002). Um dos maiores legados de
77
Hanke, M., A qualidade do “Homem sem qualidades” de Robert Musil, p.138
78
Miller, J-A., Théologie du normale, tradução nossa
79
idem
63
O título desse sub-item alude a uma das mais importantes obras brasileiras sobre
essa obra analisa, tal como a escola foucaudiana, o papel da medicina como instrumento
na política [...] e que adquirem seu verdadeiro sentido apenas quando são restituídos ao
diferenças. Trata-se do temor anunciado por Habermas de que o mundo entre em uma
(Habermas, 1973)81.
Estado exerce igualmente, de modo cada vez mais freqüente, o poder de regulador e
controlador da prática analítica. O livro de Machado nos mostra que a história anda em
estatístico dos distúrbios mentais”, como única referência “científica” para a classificação
das doenças mentais. Segundo a autora, a saúde mental dos Estados democráticos ficou
80
Agamben, G., Homo Sacer, p.128
81
Habermas, J, La technique et la science comme “idéologie”, p.97
64
ela cita o rastreamento da anomalia psíquica, que faz com que crianças rebeldes à
escolaridade sejam tratadas como doentes, recebendo prescrição de ritalina, sem que nada
se inscreve no laço social por um traço singular, mas este não é levado em consideração
no momento da avaliação quantitativa, já que apenas o que pode ser comparado com o
outro é levado em conta. Assim somente é medido o que é possível medir. Definida como
possível83. É a partir da clínica do caso único que afirmamos que ser normal é impossível.
Vale aqui lembrar o lema adotado pela luta Antimanicomial, extraído de uma canção de
Caetano Veloso, “De perto ninguém é normal”. Ao que Paulo Amarante contrapõe, se
2007)84.
A clínica psiquiátrica, cada vez mais, se dirige para a identificação de normas que
82
Roudinesco, E. 2005, p.87
83
O psiquiatra Valentim Gentil Filho, professor da USP, em entrevista à revista Veja, narrou que, após
examinar centenas de candidatos, conseguiu isolar 70 homens e mulheres perfeitamente normais: “...que
estariam livres de quaisquer transtornos psíquicos e se comportariam com a propriedade exigida pelas
circunstâncias da vida – sem exageros ou carências de comportamento e ação. Uma das conclusões já
obtidas é que, com a ajuda de antidepressivos, é possível tornar alguém normal ainda
mais...normal.”(Buchalla, 2006)
84
Amarante, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial, p.19
85
Arce-Ross, 1997, p.90
65
(Arce-Ross, 1997). Para Ey, “se nós devêssemos seguir Lacan em sua concepção da
psicogênese não haveria mais psiquiatria.” Hoje percebemos que o risco maior à
psiquiatria não vem da causalidade psíquica, tal como foi proposta por Lacan (Lacan,
científica desfigurou-se a própria psiquiatria defendida por Henri Ey. A nova clínica
psiquiátrica é uma clínica sem palavras, onde se busca eliminar a subjetividade para
Laurent afirma que essa é uma das principais conseqüências da ruptura promovida
psiquiatria, para tornar-se uma disciplina médica “autêntica”, teve que abrir mão de uma
parte importante do julgamento pessoal que estava a cargo dos psiquiatras (Laurent,
2007)86. Foi necessária essa manobra para que os psiquiatras pudessem entrar pela porta
da frente no hospital geral. Esse não deixa de ser um aspecto curioso e que trai a
apoiados pelos setores do campo psi mais resistentes ao hospital psiquiátrico – como, por
geral. Mas não seria esta, justamente, uma forma de valorizar ainda mais a causalidade
orgânica da loucura?
formação, passar por um curso obrigatório de psicopatologia. A crítica que esse autor faz
86
Laurent, D., Le médicament saisi para la logique de la technique, p.10
66
ao artigo 52 passa pela própria redação, já que é prescrito que os terapeutas devem
da existência de um homem normal. A seu ver, seria esta a razão pela qual, muito cedo,
metapsicologia.
públicos. Ele cita, como exemplo, o affair Accoyer, deputado francês que, por pouco, não
psicanalistas franceses. Para tanto, Accoyer se baseou em um relatório feito por técnicos
Milner coloca essa questão como central para saber de que forma as profissões
“psi”, assim como todas as profissões que se ocupam do mal estar de viver, se
87
Maleval, J-C., Vers une nouvelle “Psychopatologie clinique” d´État, p.30 – tradução nossa
67
Accoyer, ele aponta um procedimento que, embora equivocado, obedece a uma lógica
bastante clara, e que é forjado pelo acúmulo de vários silogismos: uma vez que se admite
que a saúde mental é questão de saúde pública, e que a saúde pública é dever do Estado, a
saúde mental é dever do Estado. E, como o mal estar de viver é problema de saúde
dessa conjuntura, que pode ser chamada de moderna. Por um lado o paradigma problema-
Ortega.
Para concluir essa parte, deixemos que o próprio Lacan nos dê sua opinião sobre a
normalidade:
88
Miller J-A e Milner J-C, Voulez-vous être evalué ? p.14
89
Lacan, J., Entrevista ao Magazine Litéraire, p.28 – tradução nossa
68
distintos. No que toca à saúde mental, a questão se torna mais complexa devido ao fato
que diversos significantes mestres, muitas vezes contraditórios, brigam entre si para
ocupar o lugar de agente no discurso. Com efeito, em nossa prática junto ao campo,
psiquiatras, assistentes sociais, juristas, religiosos, “psis” de todas as correntes, etc., falam
mental foi cunhada em 64, no momento de fundação de sua Escola: psicanálise aplicada.
pelo autor: a clínica médica e a terapêutica (Lacan, 2001a)90. Aos poucos, passou-se a
usar o conceito de psicanálise aplicada para indicar qualquer ação que fosse externa ao
divã do analista. “Passou o tempo da figura mítica do psicanalista limitando seu campo
de atividade às paredes de seu consultório para convencer de sua devoção à causa privada
Porém, no mesmo Ato de fundação em que Lacan fala de psicanálise aplicada, ele
nos dá uma indicação precisa de que o campo de trabalho da Psicanálise, aberto por
90
Lacan, J., Ato de fundação, p.237
91
Matet J-D, e Miller, J., Apresentação, p.2
69
Freud, necessitava recuperar sua lâmina da verdade (Lacan, 2001a)92. Entendemos que há
um risco real de que a psicanálise aplicada não acabe por se tornar uma psicanálise
menor, sem o mesmo rigor da psicanálise pura. Assim, ao pensarmos em uma interseção
mantém sua especificidade, não se deixando confundir com os outros discursos que
atravessam a saúde mental. Se antes a psicanálise em instituições era vista com reservas
pelos próprios analistas fazemos eco as palavras de Cottet ao afirmar que “parece
2007)93. Mesmo porque, nada nos impede de observar a mesma temida degradação da
Assim, o campo psicanalítico leva em conta o real que escapa aos discursos. Ao
afirmar que o real é o impossível, Lacan se distancia do campo da saúde mental, pois a
característica do real é que nenhum S1 pode recobri-lo, tampouco algum saber (S2)
(Lacan, 1967b). Como veremos a seguir, estamos aqui no âmago da discussão sobre
psicanálise pura e psicanálise aplicada. Nesse sentido, não se trata de conhecer o real,
É pelo ato que se pode demonstrar o real e extrair dessa demonstração alguma
conseqüência. A melhor definição de ato seria a intervenção do analista que provoca uma
ruptura entre o antes e o depois. Acreditamos que, através de seu ato, o psicanalista marca
uma presença inédita em uma instituição psiquiátrica. O analista pode estar presente em
uma instituição para curar, ensinar, supervisionar, mas nestas funções ele estará sempre
92
Lacan, J., Acte de fondation, p. 229.
93
Cottet, S., O psicanalista aplicado, p. 27
94
Idem, p.28
70
Assim, formalmente não haveria sentido em dizer que o real faz parte do campo
da psicanálise, já que não é possível transmitir algum saber sobre ele (Badiou, 1999)96, o
que faz Lacan dizer nos anos 70: “o que me salva do ensino é o ato” (Lacan, 2003a)97. É
mental quando a prática clínica tropeça no impossível. É como propomos ler a tese de
Lacan de que o ato é bem sucedido quando algo fracassa (Lacan, 2003c)98: o discurso
O primeiro a evocar essa impossibilidade foi Freud. Notamos isso quando ele
afirma que é impossível eliminar as três fontes de sofrimento universal, as quais ele se
próprio corpo e a insuficiência das medidas destinadas a regular as relações dos homens
entre si (Freud, 1971 (1929))99. Em Lacan, essas três modalidades do impossível seriam
Podemos afirmar, com Freud e Lacan, que a psicanálise se ocupa do que, no campo da
psicanálise, não como o oposto da saúde mental, mas como seu negativo:
95
Retomaremos a questão da demonstração do real no capítulo V através de um estudo de antropologia
visual
96
Badiou, A., Lacan e o real, p. 67
97
Lacan, J., Alocução sobre o ensino, p.309
98
Lacan, j., Discurso na Escola Freudiana de Paris, p. 270
99
Freud S., Malaise dans la civilisation, p.32
71
Ao ler esse fragmento, percebemos que a psicanálise visa a liberdade negativa que
não é acolhida pelo Outro, negando ao louco a dialética que o relançaria no laço social.
modo de passar essa formação singular e fora da dialética para o campo do Outro
(Maleval, 1996)101.
Biopsicossocial ou sinthoma?
Para termos uma visão dos pontos de aproximação e separação entre psicanálise e
sinthoma de Lacan. A partir do Seminário R.S.I., Lacan constrói uma teoria para o laço
social ainda mais distinta do que representa o laço para a saúde mental. O laço social, até
então trabalhado em seu ensino a partir dos quatro discursos, pode ser visto sob a
perspectiva dos nós borromeus. Adiante, quando nos detivermos na teoria das psicoses,
abordaremos com mais detalhes a teoria dos nós. Por enquanto registramos que o
enodamento dos três registros, real, simbólico e imaginário, traz uma nova perspectiva
sobre o campo “psi”. A diferença fundamental entre o laço social da teoria dos discursos
100
Lacan, J., Função e campo... p.281
101
Maleval, no seu livro La logique du delire, concebe esse processo em três etapas: significantização do
gozo deslocalizado, identificação do gozo no Outro e consentimento regulado ao gozo do Outro.
72
psicótico encontra uma invenção singular para a fixação do gozo (Miller, 2003a). Gozo
uma função que enlaça os três registros, ou seja, considerá-lo o nó, e não uma das cordas
significa que o pai não é feito do barro de nenhum dos três registros, ele é apenas a
função de amarração104. O que muda em sua teoria é que, enquanto nos anos cinqüenta a
metáfora paterna, em sua posição de exceção, garantia a ordem das coisas, nos anos
setenta será necessário que a função se apóie no sinthoma105. O que muda com o
garantida por um símbolo universal, o NP, passa a ser garantida por uma invenção
singular.
saúde mental (Aflalo, 2005). Apesar do social, tão caro às suas bases, a abordagem não
garante nenhuma amarração que o situe além da fragmentação dos diversos discursos.
Para a psicanálise, o ser biopsicossocial não é consistente pelo fato mesmo de que nada
biopsicossocial. É o que leva Lacan a sustentar em seu último ensino que o mental é
102
Maleval, J-C., La logique du delire, p.101
103
Lacan, no Seminário XXIII, diz que o NP tem essa função, mas também diz que o complexo de Édipo
tem essa função, não havendo, portanto uma diferença relevante entre os dois.
104
Voltaremos a esse ponto mais adiante
105
Como veremos no capítulo IV
73
mental, como afirma Miller: “a debilidade mental quer dizer que o falasser é marcado
momento atual um discurso que, em sua pretensão científica, substitui o papel do pai pela
norma científica. Para ela, a evidência científica torna-se, no século XXI, o único
significante mestre que é considerado irrefutável. É o que faz, a seu ver, da clínica atual
uma teratologia, já que o sofrimento psíquico é reduzido a uma causa primária, genética,
e uma causa secundária, adquirida. Assim, toda causalidade psíquica tem sempre um
um novo arcabouço identificatório do ser. O que antes era a função do pai perdeu muito
compatível com a evolução da função paterna no ensino de Lacan. O fato de o pai deixar
de ser um nome para ser uma função tem suas conseqüências. A função nunca é a mesma
como veremos adiante em um comentário de Miller. Ela escapa ao cálculo coletivo, pois
106
Miller, J-A., O último ensino de Lacan, p.13
107
Aflalo A., A orientação lacaniana ou a “ciência” psicanalítica? p.37
74
não depende mais do NP e terá que ser obtida mediante uma invenção que está sempre do
diferença, não como um discurso de exceção e sim como um discurso que recolha as
exceções, ou seja, os fragmentos de ditos que não fornecem sentido algum aos
dispositivos coletivos, e que representam o que o sujeito tem de mais íntimo. Trata-se de
por discursos e disputas que acabam por relegar a clínica ao segundo plano. Trata-se de
vezes o exigem. Ou seja, a gravidade do quadro clínico muitas vezes torna inviável o
2007)108. Veremos como a psicanálise pode integrar a conversação entre discursos tão
108
Kusnierek, M., Pertinências e limites da prática entre vários, p.163
75
que sua incidência se faz de modos diversos na obra de Lacan, uma não invalidando a
outra: causa do desejo, mais de gozar, resto, semblante, etc. Podemos dizer que há uma
Psicanálise. Surge, no título da segunda parte desse texto, inclusive a menção ao limite
na função de agente, acreditamos que Lacan funda finalmente seu próprio campo, não
apenas campo psicanalítico, ou campo freudiano como ele mesmo referia, mas campo
lacaniano.
entre múltiplos discursos e significantes mestres, que por vezes estão em franca
contradição. No momento em que propõe seus quatro discursos, Lacan estabelece que as
relações entre os elementos discursivos incluem sempre uma questão política. Essa
posição deriva do fato de que todo agente de um discurso assume uma posição de
comando. Essa flutuação dos discursos, no melhor dos casos, faz da saúde mental uma
questão política, no pior, o campo se torna palco de disputas de poder em que muitas
vezes o paciente é o maior prejudicado. Ciaccia, vê essa situação com certo humor:
[...] há muitas modalidades de prática entre vários: desde a que acontece com
vários comparsas – como o tratamento do psicótico às vezes exige – até a
prática entre vários, na qual, segundo Lacan, o “vários” se reduz, tal como
76
institucional público, não apenas na saúde mental, mas igualmente em qualquer órgão
público que seja atravessado pela burocracia estatal. Esta burocracia exige documentos,
burocracia é a própria expressão de que o Outro não existe, uma vez que não há, por trás
da burocracia, nenhum significante mestre que seja o timoneiro das ações cobradas.
comum, é porque a psicanálise não deve ser vista como mais uma das figuras do mestre
para instituição, que cobra resultados, culpabiliza seus praticantes, ou tenta impor seu
próprio discurso. Forjou-se, nos últimos anos, todo um programa investigativo sobre a
psicanálise e a prática institucional entre muitos (Baio, 1999; Ciaccia, 1999). A maioria
dos textos aponta um resto intratável que causa um mal estar que resiste aos significantes
integrante não difere da demanda usual. A expectativa é que ele diagnostique o caso,
solucione o problema e diga como tratar o paciente para que ele volte para casa o mais
109
Ciaccia, A., Inventar a psicanálise na instituição, p. 75
77
cedo possível. Trata-se, portanto, de uma demanda terapêutica compatível, até certo
terapêutico, que poderia vir por acréscimo, vira um imperativo da burocracia sobre o
psicanalista na instituição. Acreditamos, por isso, que a presença do analista não pode ser
um problema à saúde mental. Ela não pode ser imposta, desse modo ela inclui a
facilitar, mas nunca calcular exatamente suas coordenadas. Incluir a transferência nas
estratégias da saúde mental implica em restituir à clinica um espaço que ela vem
burocrática. A clínica psicanalítica, citando Miller (Miller, 2007c), é uma clínica que
inclui o privilégio no sentido de lex, lei, e privum, privado. Ou seja, uma clínica que
reintroduz o particular no universal das leis que buscam uma saúde mental para todos.
surgimento dos serviços de regulação de pacientes que são implantados, com maior ou
habitualmente não levam em conta que tratar o sofrimento psíquico é diferente de tratar a
atenção para o fato de que, nas psicoses, a problemática é ainda mais complexa.
Enquanto na neurose trata-se de uma demanda de amor ao Outro - que pode inclusive ser
Um cidadão que sofra um infarto ou tenha uma crise de vesícula pode ser
regulado – ou seja, encaminhado - para qualquer hospital da rede, o importante é que seja
um serviço qualquer.
Com Lacan, podemos afirmar que, mais nos aproximamos de uma psiquiatria
saúde mental, onde o conceito de cura é tão improvável quanto uma real escuta do sujeito
para além de sua queixa. É um dos grandes paradoxos que encontramos nos incontáveis
profissionais que atendem até quarenta pacientes em uma manhã cuja única função é
expunha as chagas das torturas políticas, dos desaparecidos, da luta pela queda de
psicanálise nos dispositivos de saúde mental no Brasil. Por um lado ela visa devolver ao
111
...e ainda assim eles voltam, e muitos pelo resto da vida!
80
louco seu direito à cidadania. Por outro, cria mais um ideal que pesará sobre o sujeito em
Contudo, ao mesmo tempo em que foi uma grande conquista, a lei 10.216 nos
deixa entrever um paradoxo. Não há reivindicação de direitos que não seja presidida pelo
identificação. Por mais que sejam criadas políticas de inclusão das “diferenças” o sujeito,
“dito”, incluído é aquele que se integra à coletividade agrupada em torno de seus ideais.
Ele é inserido quando trabalha, se diverte, se casa, enfim, quando seus valores privados se
Desse modo, a exclusão é inicialmente percebida como uma limitação, mas sua
essa a lição freudiana a ser extraída a partir de sua psicologia das massas. Para que o
sujeito seja incluído, é necessário delimitar os limites do universo ao qual ele poderá
particularizar-se como mais um (Miller, 2003a)112. Inclusão social significa aceder aos
limites da lei válida para todos, o que implica em assumir as identificações que legitimam
os papéis sociais. Na clínica psicanalítica podemos dizer que implica em saber fazer com
outros.
identificações. A resposta pela identificação sempre deixa um resto. Resto que causa o
sujeito embora não traga um saber que possa representá-lo, já que esse resto é
112
Miller, J-A., A invenção psicótica, p.13
81
ilegítimo, uma vez que não é recoberto pelo campo da lei. Mas, não é essa mesma a
tecido por estratégias singulares onde o Outro fracassa em dar aquilo que o sujeito
que nos permite passar do campo social ao campo clínico. Não se trata da clínica do
social, mas da clínica no social. Uma clínica que não se inclina diante das exigências do
Outro, mas que permita ao sujeito definir algum saber para fazer um laço social
Brousse113 afirma, sobre esse ponto, que o que distingue a psicanálise de uma
mais detalhes a solução lacaniana para o gozo que não passa para o campo do Outro,
campo do significante, essa solução é o sinthoma, com th, tal como foi grafado no
Seminário XXIII.
silenciá-lo, por um lado, ou nutri-lo de sentido, por outro. É nesse ponto que a psicanálise
acrescenta algo às políticas que lidam com a loucura. Hervé Castanet é direto em sua
crítica, referindo-se ao panorama atual das políticas de saúde mental (Castanet, 2006):
113
Brousse M H, La santé mentale bouleversée, p.5
82
O humanismo defensivo
vimos no sub-item sobre Foucault, que o humanismo passa a ser defesa contra uma
louco cidadão, mas que gerou, em certos ambientes da saúde mental, a idéia de negação
promoção social do louco115. Confundiu-se em certo momento tratar a doença com negar
tratar a doença mental, por parte da psicanálise, passou a ser visto com desconfiança por
114
Castanet, H., Um monde sans réel, p.34
115
Em 2008 realizou-se na cidade de Salvador o “Dia do orgulho louco”, iniciativa no mínimo paradoxal
pois, ao querer afirmar o orgulho por sua patologia, manipula e disciplina a percepção individual do louco
sobre sua própria relação com “sua” loucura.
83
XVII: “Uma coisa é certa: se o sujeito – da psicanálise - está realmente ali, no âmago da
diferença, qualquer referência humanista a ele torna-se supérflua, pois é esta que ele corta
maneira, o que traduz o $ (sujeito barrado) de Lacan como sujeito da ciência”117. A cada
passo da ciência, os comitês de ética devem seguir atrás buscando uma regulação de seu
humanista sustentada pelos demais discursos que compõem a saúde mental. A nova
mental.
Existe, porém, uma diferença às vezes sutil entre considerar a saúde mental um
cabe ao estado possibilitar o melhor acesso possível aos profissionais da saúde mental, na
segunda, o próprio estado passa a legislar sobre ela. No momento atual, a intervenção do
estado no campo da saúde mental passa igualmente pela esfera judiciária. No Brasil, cada
116
Lacan, J., La science et la vérité, p.857
117
Miller J-A., El outro que no existe e sus comitês de ética, p.72
84
2007; Lima, Saraiva et al., 2008). Parte muitas vezes do Ministério Público a exigência
médico.
contemporâneo deve-se ao fato de que a clínica do olhar foi transformada pelas novas
práticas jurídicas e humanitárias. A nova condição não deixa de trazer embaraços, uma
cada vez mais, obrigados a deliberar sobre a cidadania do louco sem nada saber sobre a
loucura. O processo de judicialização da saúde mental expõe essa dificuldade como nos
indica o próprio Procurador-Geral da Justiça em seu comentário sobre a lei 10.216: “Não
são os pobres que estão a ingressar na órbita jurídica, somos nós, da órbita jurídica, a
lei 10.216, é cada vez mais forte no cotidiano dos dispositivos de saúde públicos e
privados. É como se a ele tivesse acordado para o fato que as divergências haviam
118
Teixeira, M.A., Internação Psiquiátrica Involuntária, p.16
119
Idem, p.22
85
exemplifica a complexidade do debate e nos faz recordar a dança dos poderes na loucura
comportamento agressivo em casa, com seus próximos, e na rua de sua cidade no interior.
Por diversas vezes ele havia sido trazido ao hospital para internamento devido à suas
medicamentos em doses elevadas fez com que a psicocirurgia se tornasse uma indicação
da equipe médica.
decisão de não transferir o paciente, o que causou viva celeuma com o próprio Conselho,
já que o diretor não reconhecia o poder deste, mas igualmente com grande parte da
comunidade psiquiátrica, uma vez que instalou um grande debate sobre o poder do diretor
diante da soberania do ato médico. Interpelado formalmente, coube dessa vez ao diretor
fazer apelo ao Ministério Público para que o procedimento não fosse realizado.
86
Público, o diretor fez prevalecer a idéia de que cabe ao médico cuidar do sofrimento
subjetivo e que, nesse caso, não havia sofrimento por parte do paciente. A demanda de
tratamento visava restaurar a ordem pública e familiar. Quando a psiquiatria começa agir
em nome da ordem pública e não do sofrimento de seus pacientes ela está a um passo de
Percebemos com esse episódio que o caso clínico passou por diversas esferas do
diretor do hospital e por fim o ministério público. Todo esse percurso foi necessário para
que algo da clínica pudesse emergir. Apoiado por servidores do hospital que eram contra
essa decisão médica – muitos da luta antimanicomial, outra forma de poder – o paciente
por parte do ministério público, não mais foi questão a cirurgia. A nova abordagem
ponto de perturbação desse paciente por onde ele passa. A dificuldade - mas também o
campo da saúde mental não é possível pensar em solução radical do sinthoma sem