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ENTREVISTA
Um realismo minimalista
Já há alguns anos, João de Pina Cabral diversos continentes, mas também da ativa
mantém uma relação estreita com a participação na institucionalização da
antropologia brasileira. Visita regularmente disciplina. Pina Cabral é um dos fundadores
o país, participa de seminários, oferece dos departamentos de antropologia do
cursos e cultiva uma intensa troca ISCTE e da Universidade de Coimbra, da
intelectual com os colegas. Recentemente, Associação Portuguesa de Antropologia e
abriu uma frente de pesquisa etnográfica da Associação Europeia de Antropologia
no sul da Bahia, voltando sua reflexão para (EASA), das quais foi também presidente.
o Brasil. Sua rara trajetória antropológica Atualmente, é pesquisador-sênior do
passa pela Europa, África, Ásia e, agora, Instituto de Ciências Sociais de Lisboa.
América Latina, atravessando temáticas de Tendo como fio condutor elementos
pesquisa igualmente diversas: a vida dos de sua trajetória pessoal, Pina Cabral
camponeses portugueses, a dinâmica das oferece nesta conversa com Carlos
identidades em Macau e em Moçambique, Fausto e Federico Neiburg, ocorrida no
os afetos, os nomes e as concepções da Rio de Janeiro em 25 de junho de 2007,
pessoa no Brasil. Soma-se a isto uma arguta um panorama agudo sobre os debates
reflexão sobre o presente e o futuro da contemporâneos da antropologia,
antropologia, resultado não apenas da manifestando a visão de um antropólogo
experiência de ensino e pesquisa em singularmente cosmopolita.
280 entrevista
FN: Sua trajetória é bastante particular. CF: Você vinha, então, de Moçambique?
Você nasceu em Portugal, formou-se en- Eu fui para Moçambique com 13 anos –
tre Moçambique e África do Sul, depois nós pertencemos a uma antiga família
em Oxford. Fez pesquisas em Portugal, protestante do norte de Portugal. O meu
Macau e no Brasil. Conte-nos um pouco pai foi nomeado bispo anglicano de
essa história e como a antropologia entrou Moçambique (Bispo dos Libombos, é o
em sua vida. título). Foi o último bispo missionário
anglicano. Aliás, ele foi escolhido já em
Quando cheguei à antropologia eu estava função da mudança que estava a ocorrer
numa situação de marginalidade entre dentro do anglicanismo na África do Sul,
dois tempos: o tempo do colonialismo e personificada por figuras como o bispo
da missionação e o tempo do socialismo e Tutu, que ainda hoje é amigo do meu pai.
da independência. Encontrei-me em Mo- Mas essa história é mais antiga, ela passa
çambique, como filho de um missionário, pelo bispo Zulu e pelo Arcebispo Selby-
a observar a guerra pela independência Taylor, que foram os que prepararam a
e, em Joanesburgo, durante os anos de mudança no anglicanismo sul-africano,
levantamento popular contra o apartheid. que depois teria um papel tão importante
Estava a ocorrer uma mudança no mundo no fim do apartheid. A presença do meu
à minha volta, uma mudança política, mas pai em Moçambique, portanto, liga-se à
sobretudo uma mudança de paradigmas. tentativa de “localizar” o anglicanismo.
A minha chegada à antropologia pren- Eles escolheram-no porque supuseram
de-se a isto tudo: o problema inicial que, como português, poderia comuni-
foi o da cristianização da África, que car-se melhor com a administração co-
se revelava aos meus olhos de adoles- lonial e facilitar o processo de transição
cente como profundamente dilemática. para um bispo africano – como de fato
Quando cheguei a Joanesburgo, des- ocorreu.
cobri a antropologia largamente por
acaso. Mas os meus professores tinham CF: E por que foi de Moçambique para a
percursos muito parecidos com o meu. África do Sul?
O Hammond-Tooke, meu primeiro orien-
tador, era filho de um ilustre missionário- A tradição familiar era estudar direito,
etnógrafo. Estávamos a assistir a uma pro- mas eu recusei-me a fazer isso. Fui para
funda crise ideológica no pós-Maio 1968. a África do Sul porque tinha vagamente
A antropologia também estava em revolu- a ideia de que queria estudar “a mente
ção interna com a chegada do estrutura- humana”... achava que queria ser psi-
lismo e do marxismo estrutural. cólogo! Depois descobri a antropologia
e nunca mais olhei para trás! Cheguei
CF: Em que universidade de Joanesburgo à África do Sul em 1972 e fiquei lá até
você estudou? 1977, mas na verdade a África do Sul foi
sempre um local de passagem para mim.
Witwatersrand, que era a maior univer- Na época, Joanesburgo ainda tinha um
sidade de língua inglesa no país. Ali, o ótimo departamento de antropologia. Só
polo teórico dominante na antropologia que, depois, confrontado com a indepen-
era um estruturalismo marxista ligado dência de Moçambique, o meu projeto
ao movimento revolucionário interno à de ser um antropólogo africanista – era
própria África do Sul. para isto que eu estava a preparar-me –
um realismo minimalista 281
capotou. Em 1977 percebi que não tinha tornei amigo, mas só muitos anos depois.
condições para ficar na África Austral, Afinal, foi essa experiência que me fez
porque não tinha visto de residência na decidir a não ir fazer antropologia na
África do Sul e, em Moçambique, como França. Porque apesar de eu ser, ainda
filho de um missionário, não havia lu- hoje, um fã do Lévi-Strauss, a verdade é
gar para mim. Em boa verdade, em 77 que senti que na França, àquela altura,
começávamos já a ver que o projeto de não havia um projeto antropológico
independência de Moçambique talvez consistente. Ora, na época, eu estava
não fosse o que tínhamos sonhado. En- muito influenciado pela leitura da obra
tão, tive de refazer o meu projeto de vida etnográfica do Maurice Bloch.
e voltar à Europa.
FN: Você já o conhecia pessoalmente?
CF: Portugal não era um pouco estranho
para você? Você desde os 13 anos estava Não, de maneira nenhuma. Mas fui para
na África Austral... a Inglaterra porque queria estudar com
ele na London School of Economics. Só
Claro, Portugal era estranho para mim, que ele estava de sabático nos Estados
embora eu tivesse sido criado como Unidos nesse ano. Quando soube fiquei
português. De fato, as nossas referên- muito triste. Estava no Porto. Então,
cias literárias eram portuguesas, mas telefonei para Londres, para a UCL
sobretudo francófonas. Quando cheguei [University College of London], para ver
à África do Sul eu lia francês fluentemen- se havia alguém que me sugerisse o que
te (na altura estava a devorar o Proust fazer. Alguém respondeu ao telefone e
com enorme entusiasmo), mas não lia disse-me com muita segurança que fosse
inglês. Tive que aprender inglês na Uni- para Oxford, onde havia um senhor que
versidade. Essa marca de certa cultura iria me orientar muito bem, o John Cam-
“continental”, como dizem os ingleses, pbell. Quem fez a indicação, descobri
sempre foi uma coisa forte em mim. mais tarde, foi o Michael Gilsenan, que
Cheguei mesmo a pensar em ir estudar era o responsável pelos graduate studies
na França, mas por fim escolhi a Ingla- na UCL nesse ano.
terra. Passei o inverno de 1974 para 1975
em Paris. Assisti mesmo ao seminário do FN: Mas por que razão ele mandou você
Lévi-Strauss sobre a identidade. Foi sem estudar com John Campbell? Você já
planejamento. Queria saber quem era o tinha algum projeto? Você queria estu-
Lévi-Strauss; fui ao Collège de France; dar Portugal? Por isso foi encaixado na
vi uns painéis impressos indicando um Antropologia Mediterrânea?
seminário: “Prof. Claude Lévi-Strauss –
Séminaire sur l’identité”. Decidi ir. Lem- Isso mesmo. Eu já tinha feito a minha
bro-me que entrei, sentei-me, e só no fim tese de B.A. Honours (uma espécie de
do seminário percebi que o senhor ao mestrado na África do Sul) sobre um
meu lado era o Maurice Godelier. Quase conto popular português.1 Era uma lei-
perdi a respiração – os professores mais tura profundamente influenciada pelo
jovens em Joanesburgo achavam que ele Pierre Maranda. Fazia, portanto, algum
era o suprassumo. Estavam lá também a sentido estudar com um especialista
Françoise Zonabend, a Martine Segalen sobre sociedades rurais europeias, já
e outras pessoas das quais depois me que era o terreno que eu iria abordar.
282 entrevista
Então, em 1977, fui para Oxford para isso tudo neste momento está a colapsar –
fazer trabalho de campo no Alto Minho esta gente anda a levar-se demasiado a
(norte de Portugal). Em Oxford, caí no sério”. Era basicamente isso.
meio desse caldo pós-estruturalista. Lem-
bro-me (esta história tem alguma graça CF: Mas no contexto da África do Sul
porque mostra a atmosfera da época) que dominado pelo marxismo estrutural,
a primeira pessoa que eu quis conhecer Lévi-Strauss não era também uma figura
em Oxford foi o Rodney Needham. Era central na época?
a figura dominante do estruturalismo in-
glês. Era uma pessoa extraordinária, um No departamento havia três correntes.
homem intelectualmente poderosíssimo, Havia a mais radical, marxista, que lia
mas muito desiludido com o mundo e Claude Meillasoux, Pierre Philippe Rey
com a vida. Era um sistêmico que levava e Maurice Godelier e que acabou opon-
todas as suas ideias até as últimas conse- do-se à própria antropologia, num movi-
quências. Nunca se deve fazer isso! No mento antiacademicista de imersão no
momento em que um estruturalista como ativismo político. A figura máxima dessa
ele prova que o conceito de contradição corrente foi o David Webster, cuja brilhan-
não é consistente em termos lógicos,2 te tese sobre parentesco em Moçambique
realmente ocorre uma espécie de curto- estamos agora a publicar postumamente
circuito intelectual. Mas era uma figura no ICS e que foi assassinado pelo regime
com uma enorme profundidade analítica, em 1989.4 Havia uma segunda corrente
um sentido de procura e de honestidade mais literária de estruturalismo lévi-
intelectual extraordinário. straussiano, da qual eu me aproximava
mais. E depois havia uma terceira linha
FN: Quando você chegou a Oxford ligada à Escola de Frankfurt, que lia o
já estava definido que estudaria com primeiro Habermas do Conhecimento
Campbell? e Interesse 5 como quem lê a Bíblia.
O paradigma antropológico clássico tinha
Sim, foi ele quem me aceitou para a colapsado. Estas três correntes teóricas
pós-graduação no Instituto, mas acon- apareciam como tentativas de saída da
tece que ele e Needham eram grandes crise e partiam todas da convicção de que
amigos. Quando visitei este último, ele aquilo que havia sido a grande tradição
perguntou-me o que eu queria fazer, e eu anglófona da antropologia sul-africana
respondi que queria fazer uma análise tinha terminado. O último livro do Ham-
estruturalista da religião em Portugal. mond-Tooke – Imperfect Interpreters 6 – é
Então, ele sugeriu que, antes de tudo o quase comovente nessa medida. É o livro
mais, eu deveria ler um livro chamado de alguém que faz o luto do seu passado
La langue verte et la cuite3 – era essencial intelectual: uma grande escola antro-
que eu lesse este livro. Fui à biblioteca pológica fundada por Radcliffe-Brown
central (a imponente Bodleyan Library), em 1921, com um incrível impacto em
inscrevi-me como leitor e peguei logo o nível global, mas que após 1970 tinha
livro que ele me recomendara. Foi o pri- entrado em colapso terminal. O boicote
meiro livro que li em Oxford – mas, afinal, acadêmico promovido pelo ANC teve o
era uma practical joke, uma elaborada efeito trágico de isolar os acadêmicos an-
piada à custa do Lévi-Strauss e de mim. glófanos anti-segregacionistas, abafando
O Needham estava, assim, a passar-me as vozes de dissensão na África do Sul.
uma mensagem, como que a dizer: “Olha, As figuras que poderiam ter sido os gran-
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Para mim, esta foi uma questão muito FN: Eu acho que essa crítica ao naciona-
importante pela perplexidade que me lismo inscrito nas agendas de pesquisa se
causou, o que hoje chamo “primitivis- relaciona também com a necessidade, por
mo metodológico”. Quando comecei a parte da antropologia do Mediterrâneo,
intervir no debate, de repente descobri de lidar com as tradições do folclore eu-
que eu era visto como um anthropologist ropeu. Isto, a meu ver, paradoxalmente,
at home. Eu era tido como um nativo é também uma fonte da sofisticação e da
que estava a fazer “autoantropologia”, riqueza da antropologia do Mediterrâneo,
como agora dizem. Ora, para mim, tudo o fato de ter que lidar explicitamente
isso era (e é) completamente aberrante, com essas “antropologias” que são ou
como podem imaginar. Eu, a essa altura, que pretendiam ser também ideologias
vinha da África do Sul e Moçambique e nacionais.
voltava a um Portugal camponês com o
qual, na verdade, a minha identificação É verdade. Num certo sentido, toda a
era meramente histórica. Certo, havia antropologia que é feita sobre a Europa
um cânon literário português que eu assenta sobre o passado da etnologia
dominava desde jovem e que nunca tinha nacional. Eu nunca recusei isto, muito
abandonado, mas isto fazia a minha et- ao contrário. Não só não recusei como
nografia anthropology at home? Filhos de foi um caminho que explicitamente quis
Adão, Filhas de Eva10 é uma monografia trilhar, pois havia uma riqueza no que
europeísta escrita por um africanista – isto permitia de constituição de tem-
era o meu background intelectual à poralidades. Permitia-me compreender
época. Só posteriormente vim a conhe- historicamente muitas das coisas que
cer melhor o mediterranismo, levado eu estava a observar. Vou dar-lhes uma
até pela necessidade de compreender ideia: quando estudava no Minho as
o que se estava a passar à minha volta. relações de gênero e os rituais ligados
Os meus referentes intelectuais eram à domesticidade, recorria a um mode-
africanistas e foi este, acho eu hoje, um lo interpretativo que faltava ao Leite
dos principais interesses do que acabei Vasconcellos nas décadas de 1910 e 20.
por escrever. Isto está na base também da Mas o material que ele nos tinha deixado
minha inconformidade com o nacionalis- sobre os costumes ligados à vida domés-
mo reflexo que está implícito em tantos tica abria-se a reinterpretações baseadas
projetos de investigação antropológica: num novo enquadramento teórico. Isto
se você estuda a Grécia, você é um espe- foi algo que percebi logo, no início desse
cialista sobre a Grécia, mesmo que esteja primeiro projeto sobre um conto popular
a estudar albaneses na fronteira com a português, justamente editado por Leite
Albânia. Isto faz sentido? Se você é um Vasconcellos. O que nós precisávamos
americano que estuda a Espanha, você era de uma releitura socioantropológica,
tem a obrigação de citar tudo o que se moderna, do material da etnologia. Nos
escreveu em inglês sobre a antropologia anos 80, em Portugal, esta era uma das
de Espanha, mas não precisa conhecer o nossas tarefas principais.
que se passa a 5km do outro lado da fron-
teira, em Portugal ou na França. Então, FN: Creio que há aí uma dupla questão:
esse nacionalismo inscrito nas agendas essa produção é uma fonte inestimável
antropológicas foi realmente uma das de riqueza, que possibilita inclusive
minhas principais fontes de perplexidade trabalhos como o seu, mas ela obriga,
comparativa. ao mesmo tempo, a cultivar um espírito
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crítico em relação à antropologia em ge- lógico. Ora, se calhar até por causa da
ral. Penso no seu trabalho e naquele de minha história pessoal, eu sempre vi esta
Michael Herzfeld, por exemplo.11 Parece última com algum carinho. Eu sempre res-
que, nesse plano, os dois se aproximam peitei a scholarship deles, a preocupação
bastante. em produzir conhecimento sistemático,
ao contrário da antropologia colonial,
O Herzfeld também foi aluno de John que tinha um componente ideológico e
Campbell, mas ele é uns anos mais velho político muito vincado. Ambos os proje-
do que eu, pertence à geração anterior. tos eram nacionalistas e ambos tinham
A visão dele é mais marcada pelo cultu- sobrevivido devido à ditadura, mas eram
ralismo americano e, ao mesmo tempo, diferentes.
por um fascínio mais inocente pelo
pós-modernismo. A minha geração é CF: A ditadura em Portugal afetou de
mais sóbria. De fato, fomos uma geração alguma forma a sua formação?
sacrificada. Muitos de nós acabaram por
não conseguir fazer carreira acadêmica Claro que sim! Nós, na África, fazíamos
porque, não se esqueçam, nos anos 80, parte do mundo português. O meu pai
Mrs. Thatcher fez um ataque brutal à dialogava com esta questão diariamente.
antropologia. Durante praticamente Ele fez até um ano de prisão nos anos 40
dez anos não houve novos empregos no por ser protestante. Era um regime muito
ensino ou na investigação na Inglaterra. brutal e opressivo. O colonialismo portu-
Os que sobreviveram foram para fora. guês não era só colonialismo, era também
Eu tive muita sorte, porque as Ciências fascismo, portanto, virava-se também
Sociais em Portugal estavam a ser refun- contra os portugueses. A atmosfera que
dadas. Era o vácuo absoluto, foi preciso nos rodeava de tacanhez intelectual, de
lançar tudo de novo. Realmente, acho que opressão religiosa, de obscurantismo era
tive imensa sorte, porque as universidades muito forte, tanto em Portugal como em
portuguesas estavam a renascer. Moçambique. Talvez em Moçambique
um pouco menos, porque contrariamente
CF: Isso não começa já após o 25 de abril a Angola, Moçambique vivia certo estado
de 1974? de relativa calma, porque estava longe
demais para criar problemas à ditadura
Não é bem pós-25 de abril, não. É após em Portugal. Então, permitiam-se ali
a reconstituição das universidades, no alguns laivos de liberalismo. Eu, por
início dos anos 80. É por essa altura que exemplo, tive um professor de história
a coisa começa a se consolidar, que co- que foi muito importante para mim, e que
meçam a surgir novos departamentos, a tinha sido secretário geral do Partido Co-
carreira acadêmica começa a funcionar munista (Cansado Gonçalves). Só lhe foi
a sério em moldes modernos, as pessoas permitido entrar em Moçambique, mas
começam a fazer doutoramentos outra não em Portugal ou em Angola.
vez. Na antropologia havia duas tradi-
ções que tivemos de defrontar. Por um CF: E quando você volta para Portugal,
lado, a antropologia colonial que tinha com esse espírito intelectual fundacional,
estado fortemente engajada na luta qual era a ideia que vocês traziam do que
contra as guerrilhas africanas e tinha deveria ser a antropologia naquele mo-
concebido o lusotropicalismo dos anos mento? Qual era o lugar da antropologia
60. Por outro lado, o velho projeto etno- naquele contexto?
286 entrevista
O problema com a pergunta é o plural. livro editado pelo Tim Ingold, Key debates
É que nós não éramos um sujeito coletivo. in anthropology, que realmente constituiu
De maneira nenhuma. Cada um vinha o marco teórico de consagração, no qual a
do seu canto. Uns vinham de Genebra, Marilyn é a figura de proa.14
outros vinham de Louvaine, de Paris, da
Inglaterra, dos EUA. Cada um vinha com FN: Como você vê a relação entre a
a sua história diferente para contar e este emergência de Marilyn Strathern como
foi realmente o grande fator de dificulda- uma figura de referência no contexto
de nos anos 80: diferentes perspectivas, das elaborações teóricas e das relações
diferentes visões, diferentes projetos, tensas entre as antropologias britânica e
como conjugar essa diversidade? E ainda americana nesse momento? Trata-se de
tínhamos, é claro, a sobrevivência de uma uma relação ambígua, não é?
intelligentsia ligada ao Antigo Regime
que, na época, tentava se reimpor (e, até A questão é absolutamente esta. A Ma-
certo ponto, com algum sucesso, como se rilyn nunca assumiu uma posição de
pode ver hoje). Os anos 80 em Portugal confronto com a antropologia americana.
foram de grande conflitualidade intelec- Pelo contrário. E quando ela escreve
tual; de dúvida, mas ao mesmo tempo After Nature, em certo sentido até anda
de produtividade. Estávamos a formar para trás.15 After Nature é um livro, como
alunos em novos moldes, a fundar cursos ela diz, cuja paternidade é de David Sch-
novos; refundamos a Associação Portu- neider, e eu creio que esse namoro com o
guesa de Antropologia... havia espaço culturalismo schneideriano, na segunda
para fazer coisas novas. metade dos anos 90, desviou-a do projeto
de repensar uma antropologia social.
CF: Este é o momento também em que
começam a surgir os trabalhos da Marilyn CF: Mas é curioso, porque na verdade
Strathern que, no final dos anos 80, viriam tanto Schneider como Wagner, que vão
a ter um impacto muito grande sobre a ser as grandes influências da Marilyn
antropologia britânica, criando uma nova Strathern, não são os autores triunfan-
espécie de antropologia britânica, não- tes na nova antropologia americana,
americana, apesar de toda a influência que vem muito mais, digamos, dessa
de Roy Wagner e David Schneider. vertente literária a partir do Geertz e dos
seus críticos.
Eu, pessoalmente, senti logo o impacto
dessas mudanças no princípio dos anos Schneider é colega de Geertz e co-dis-
80. Aqueles primeiros textos que a Marilyn cípulo de Parsons. Os dois vieram de
escreveu sobre a pessoa em Mount Hagen Harvard. Isto é muito importante para
foram até mais influentes para mim do compreender, por exemplo, até o que
que os textos posteriores.12 Foi o impacto a Sherry Ortner está a escrever hoje.
da antropologia feminista que obrigou a Essa marca do parsonianismo está lá.
um repensar do conceito de pessoa. Para Apresenta-se como uma antropologia
mim isto foi muito marcante no período da cultura e parece assentar sobre uma
em que preparava a tese para publicação teorização do conceito de cultura. Mas
(1982-1986). Mas, de fato, o impacto dos cultura é uma coisa que é tida por gru-
trabalhos de Strathern foi mais sentido no pos, e “grupo” é categoria não teorizada
fim dos anos 80, princípio dos anos 90, com por eles que remete para uma lógica
Gender of the gift13 e, depois, com aquele parsoniana. Esta é a minha leitura e
um realismo minimalista 287
FN: Isto coincidiu também com a criação do colonialismo em África, com o termo
da EASA (European Association of Social das guerras civis. As lógicas sociais do
Anthropology). colonialismo português não acabaram
logo com a independência; só acabada a
Coincidiu absolutamente. São processos guerra civil subsequente é que começa a
paralelos. No meu caso pessoal, o desafio ser possível antever novas tramas sociais
foi lançado pelo Adam Kuper. Eu não africanas. Até lá as guerras criaram um
o conhecia pessoalmente, mas ele era hiato que prolongava o período anterior,
então editor da Current Anthropology. não permitindo construir nada de genui-
Quando eu escrevi aquele texto crítico namente novo.
sobre o Mediterrâneo, Adam apoiou-me
contra muitos que teriam preferido evi- FN: Eu creio que nesse percurso se pode
tar o debate, o que nos aproximou.17 Ele identificar também a cultivação de um
contactou-me, o que me agradou muito, tipo de antropologia crítica, consciente
porque eu o respeitava, por causa do da necessidade de criar as condições
meu background africanista e pelo meu institucionais para que ela se desenvolva.
gosto pela história da antropologia. Foi Um pouco como acontece no Brasil. Po-
muito interessante trabalhar com ele na demos dizer isto agora tranquilamente,
fundação da EASA. quando o PPGAS faz 40 anos e a antropo-
logia moderna no Brasil tem já algumas
FN: Qual era a motivação de vocês? gerações. Nesse sentido, a nossa geração
tem uma casa feita, diferente de quando
O contexto dizia respeito ao papel da você chegou a Portugal. Ainda assim,
antropologia num mundo após a Guer- a sensação que temos no Brasil é a de
ra Fria. Porque, com a queda do Muro que há um espaço aberto, um campo de
de Berlim, estavam a acontecer coisas possibilidades muito rico que obriga ao
inesperadas: por um lado, na Euro- mesmo tempo a produzir etnografia, dis-
pa, o Leste juntava-se a nós, como se cutir teoria e trabalhar o tempo todo sobre
cumprisse um destino. Este era o móbil as condições materiais e institucionais de
principal do Adam e do Ernst Gellner. possibilidade disso tudo. Se a gente olha
Mas também tinha havido, dois anos para os Estados Unidos, não se encontra
antes, a negociação sobre Hong Kong e mais esse perfil de pessoas...
Macau e, logo depois, o fim da Guerra
Civil em Moçambique e o princípio do De fato, houve nos Estados Unidos, no
fim da Guerra Civil em Angola. O mundo tempo da Ruth Benedict, no período
estava a reestruturar-se. Nós estávamos pós-Guerra. Mas foi isto de fato que me
a ver estas mudanças a ocorrer vertigi- fascinou enormemente quando descobri
nosamente. Elas tinham implicações na a antropologia brasileira, porque eu
própria maneira de fazer antropologia, descobri a antropologia brasileira muito
porque nós, como antropólogos, faze- tardiamente, só na segunda metade dos
mos parte desses processos, tanto numa anos 90. Mea culpa.
aproximação ao Leste, como na maneira
como nós víamos o nosso próprio objeto CF: Tá perdoado, João.
num contexto pós-colonial: a entrada de
Portugal na União Europeia, o fim do E ao descobri-la fascinou-me, porque en-
último colonialismo português em Ma- contrei aqui ecos de uma forma de fazer
cau e, em certo sentido, o fim definitivo antropologia que retirava a disciplina
um realismo minimalista 289
dessa condição de ciência dos hegemôni- “É do Leste que viemos com Malinowski.
cos sobre o mundo dos outros. Eu sempre As nossas raízes também estão aí. Nós
tive muita dificuldade com essa ideia da não podemos deixá-los sós. Essa gente
antropologia como a Ciência do Outro, tem que se juntar a nós porque são
porque sempre me senti “outro”. Esta nossos”. Essa relação com a Europa do
foi uma questão que me causou sempre Leste, essa necessidade de dizer “vamos
dificuldades e que está na base da minha trazê-los” foi muito importante. A ideia
crítica ao mediterranismo. Quando chego é claramente esta até o Congresso de
ao Brasil e encontro este cruzamento Praga, em 1992. As coisas começaram
entre uma tradição francesa e uma tra- então a mudar, porque perdemos um
dição anglófona, esta constituição de pouco da nossa inocência com toda essa
instituições de pós-graduação sólidas, dinâmica dos Bálcãs. Mas a sensação
uma antropologia que se concebe a si de que a antropologia americana se põe
mesma como autônoma – tudo isto me à nossa frente como um problema só
fascinou muito. Queria poder dizer: eu, surge mais tarde, no fim dos anos 90.
por virtude de ser português, não tenho É aí que começamos a sentir o efeito do
que me vestir de ocidental para fazer an- mecanismo silenciador lançado pelas
tropologia! A herança antropológica é tão novas formulações hegemônicas sobre a
minha como de qualquer inglês, francês história da nossa disciplina – gente como
ou americano, apesar da minha menor Stocking e Clifford, que conta a história
“ocidentalidade”. O meu fascínio com a da antropologia europeia a partir de uma
antropologia brasileira passa por aí. perspectiva americana.
CF: Eu vou fazer o papel de advogado do FN: Bem, mas desde o início tratava-
diabo, porque em nossa conversa apare- se de uma associação de antropologia
ceu uma oposição entre a antropologia social...
americana e as outras antropologias.
Talvez não seja exatamente assim, mas Naquela altura havia sim o projeto de
me parece que um dos projetos da EASA uma antropologia social, mas isto não
era criar um bloco que fizesse, digamos, era necessariamente visto como antia-
frente a certa hegemonia americana. mericano, até porque pessoas como a
Não era isto? Silverman, o Wolf ou o Mintz não se con-
cebiam como antropólogos culturais – os
Eu acho que não era assim. Isto é uma discípulos do Julian Stewart em Nova
coisa mal entendida. Adam Kuper tinha York sempre se chamaram antropólogos
uma relação muito forte com setores im- sociais. Foi preciso tomar uma posição
portantes da antropologia americana e defensiva, mas para quem como eu lá es-
a EASA foi fundada com apoio direto de teve, a questão colocava-se institucional-
Eric Wolf e Sydel Silverman, que partici- mente. A EASA tinha que evitar o beco
param diretamente das discussões desde do europeísmo. Nós não queríamos nos
o início. O grande desafio era captar as tornar um subcapítulo da AAA (American
antropologias que já estavam a dar cartas Anthropological Association), um ramo
a Oeste (Grécia, Espanha e Portugal) e da Society for the Anthropology of Europe.
as novas a Leste – nos antigos espaços Queríamos reivindicar uma antropologia
das ditaduras do pós-Guerra. Era dizer em tempo inteiro, e para isso era necessá-
assim (como disse o Gellner na aula rio certo afastamento da América, porque
inaugural que fez em 1990 em Coimbra): os americanos só estavam interessados
290 entrevista
endimento etnográfico, porque sem isso perante nós próprios? Eu acho que o
entramos numa espiral deflacionista – desafio principal se situa aí.
a etnografia colapsa sobre si mesma.
Corremos o risco de confundir a nossa FN: Quais são os caminhos que você
herança de relativismo metodológico (o enxerga para sair desse impasse, dessa
melhor que nós temos) com relativismo contradição entre a produtividade dos
epistemológico (que nos tornaria irrele- antropólogos na compreensão do mun-
vantes). Creio que este problema está no do contemporâneo e a dificuldade de se
fundo da dificuldade que a antropologia teorizar e se definir a disciplina e, espe-
tem experimentado ultimamente de lidar cificamente, o fazer etnográfico?
consigo mesma. Quando figuras como o
presidente da Wenner Green Foundation Isto, na minha opinião, passa por uma
for Anthropological Research vêm dizer crítica ao projeto sociocêntrico da mo-
que a antropologia americana está sem dernidade. Esta crítica foi sendo rea-
rumo, quando vemos o que se está a pas- lizada e, em certo sentido, foi levada
sar, por exemplo, em termos da própria a um ponto radical, sem questionar as
definição do que é um anthropologue próprias condições epistemológicas da
na França,20 temos que compreender crítica e, então, virou-se contra si própria.
que este dilema não é só institucional, Na verdade, o que nós encontramos no
é também teórico. O que está em causa presente momento são versões do para-
é a própria posição da antropologia no doxo com o qual se deparou Rodney Nee-
mundo da ciência e das humanidades. dham nas suas obras finais.21 São versões
A antropologia tem que se reencontrar da situação em que a antropologia leva
enquanto ciência social num mundo te- a sua autocrítica até um ponto em que
órico pós-positivista. Trata-se sobretudo, perde as condições para a explicação
creio eu, de repensar as condições de de si mesma, porque se radicaliza. Eu
possibilidade do gesto etnográfico. Quer creio que, para sair desses paradoxos, é
dizer, o gesto etnográfico não perdeu a preciso um posicionamento tanto teórico
sua produtividade, como muitos chega- quanto político. Na minha opinião, o que
ram a pensar que iria acontecer com o se passou foi que nós, ao naturalizarmos
passar da primitividade. Volto a insistir: o relativismo etnográfico, ao trazermos
quem são as pessoas que estão a escrever o relativismo da metodologia para um
as coisas mais interessantes e criativas questionamento da própria existência
sobre a religião nos nossos dias – não são da possibilidade do contato com a reali-
antropólogos? Sobre meio ambiente e so- dade, viramos a antropologia enquanto
bre economia – não é na antropologia que ciência contra si mesma. Isto tem im-
encontramos algumas das saídas mais plicações epistemológicas destrutivas,
criativas contemporâneas? Em relação mas também tem implicações práticas.
às ciências médicas e à própria prática Significa que, por exemplo, se a ciência
científica, não foi da tradição antropoló- é um projeto ocidental, se a antropologia
gica que saíram as grandes pistas? A an- é parte da ciência, então só os ocidentais
tropologia tem uma agenda muito viva e é que podem fazer antropologia. Isto é
muito contemporânea – por que será que ridículo – os efeitos da velha falácia do
não conseguimos explicar a possibilidade tudo-ou-nada.22 Na minha opinião, esta
teórica do gesto etnográfico? Como é é uma noção politicamente bem proble-
possível termos chegado a um ponto em mática, porque vem criar a possibilidade
que o gesto etnográfico se tornou obscuro de existir um objeto que, para mim, é
294 entrevista
quimérico: “outras antropologias”. Ora, para nós com os mesmos olhos com que
eu não concebo tal possibilidade. Acho nós hoje olhamos para os missionários
que, no momento em que assim pensar- de ontem. Eu conheci missionários que
mos, deixaremos de ser antropólogos e eram gente muito bem intencionada, que
passaremos a ser ideólogos. Não nego estava genuinamente convencida de que
que existam sempre e necessariamente a missionação era a coisa melhor do mun-
relações entre estas duas atividades, do. Por isso, quando vejo pessoas como a
mas isto não significa que sejam uma e Nancy Scheper-Hughes a escrever livros
a mesma atividade. Esta preocupação como Death without Weeping,23 que são
epistêmica prende-se precisamente formas radicais de alterização de uma
à necessidade que sinto de encontrar sociedade, de constituição de guerras
caminhos de saída para a performance ontológicas fundacionais, recuso-me a
deflacionista – que é uma ideational participar, porque acho que essas pessoas
performance na medida em que realiza estão a fazer precisamente a mesma coisa
a transformação de um problema epis- que os missionários estavam a fazer, com
têmico em um gesto ontológico. Quer as mesmas “boas intenções” paternalis-
dizer, através de um truque epistêmico, tas. Temos de encontrar uma forma de
eu transformo a diferença que identifico não depender desse tipo de alterizações
na etnografia numa diferença radical e, radicais e, precisamente, de encontrar
com isso, retiro a própria possibilidade certa atitude de reserva crítica perante
do gesto etnográfico inicial. nós próprios. Assim, por exemplo, quando
figuras como o Max Gluckman são acusa-
FN: Esta posição teórica e política, me pa- das de serem colonialistas, eu fico furioso.
rece, nos permite voltar à sua trajetória. O tipo vivia num mundo colonial, lá isso
sim, sem dúvida. Mas quando pessoas
Sim, claro, é que nunca consegui deixar igualmente envolvidas nas hegemonias
de me sentir “outro” em relação às hege- do seu tempo chamam de colonialistas
monias globais que se vão sucedendo. a antropólogos do passado que estavam
E, ao mesmo tempo, sinto-me muito muito mais profundamente envolvidos na
antropólogo. Vejam, quando vou a Mo- crítica social do seu tempo que os que hoje
çambique colaborar no lançamento de os acusam, como Gluckman, acho isso um
uma antropologia local; quando vou a absurdo e um ato de lesa-antropologia.
Macau dar aulas de antropologia para Da mesma maneira, acho que algumas
futuros juristas; quando venho ao Brasil dessas propostas de alterização radical
dialogar convosco; quando estou em têm raízes ideológicas tão facilmente
Portugal a trabalhar para a criação de determináveis que fico chocado pelo fato
uma escola de antropologia, que sentido de isto não ser mais patente para toda a
faz eu achar que a antropologia é uma gente.24 Como é que nós, que somos mar-
atividade “ocidental”? Como é que posso ginais à ordem global, deixamos que algo
encontrar uma definição de ocidentali- assim passe? É realmente aí que eu creio
dade que nos abranja a nós todos? Isto que, por exemplo, uma antropologia feita
para mim é um absurdo, e envolve uma em português (ou em espanhol, alemão ou
posição ideológica que não me satisfaz. chinês) tem um papel muito importante a
Eu comecei a minha vida intelectual cumprir. Trata-se de espaços de comuni-
nessa charneira entre a atividade missio- cação com alguma autonomia relativa em
nária e a atividade científica e, por isso, face das hegemonias globais, o que pode
tenho muito medo de um futuro que olhe permitir alguma liberdade de negociação
um realismo minimalista 295
Houve um colega que me disse: “Olha, com o que se passa cá fora. O problema é
você tem muita sorte. O que eu sei da que a própria categoria antropologia con-
antropologia é aquilo que eu não posso tinua também para eles a transportar as
fazer, porque aqui, na China, nós somos marcas do primitivismo metodológico –
obrigados a estudar minorias étnicas. Eu quando trabalham sobre o Japão, cha-
sou mandado em campanhas organiza- mam-na de outra coisa, tal como na Índia
das para estudar as minorias étnicas, e chamam sociologia àquilo que, fora da
depois os meus relatórios são lidos por Índia, passa por antropologia da socieda-
pessoas do governo, portanto, grande de hindu. No interior da Índia, só usam a
parte daquilo que eu escrevo é tratado expressão antropologia para se referirem
como informações sobre as pessoas que ao estudo das populações não-hindus.
eu estudo. Estou muito limitado no que Nós não devíamos fugir a esse desafio,
posso dizer. A única vez em que eu fiz fingindo que não reparamos nos efeitos
antropologia como você faz foi quando perversos do primitivismo metodológico.
fui ao enterro do meu avô. Meu avô vinha Esta é a minha posição. Nós deveríamos
de uma aldeia da província de Anhui. confrontá-lo diretamente.
Quando ele morreu, o meu pai já falecera
em Pequim, e eu era o descendente prin- CF: Mas o que significa não fugir e
cipal, portanto, a figura que lidera o luto. confrontá-lo? É procurar uma definição
Então, tive que ir lá pela primeira vez na ou deixá-lo suficientemente aberto para
minha vida. Quando acabou o enterro, que possa abrigar todos esses diferentes
eles me deram um gabinete na secretaria modos de fazer antropologia?
da aldeia, e durante três dias as pessoas
da aldeia vieram discutir comigo os pro- Significa uma tentativa de endereçar a
blemas que tinham para eu lhes sugerir questão do primitivismo metodológico
soluções e resolver disputas, porque eu de uma maneira crítica e analítica. Não
era o chefe da linhagem. Durante esses estou a propor autoritarismos, definições
três dias, aprendi tanto quanto vocês definitivas, nada disso, porque isto seria
aprendem quando fazem trabalho de ridículo, mas debater o problema fron-
campo por anos”. Eu achei essa história talmente. Veja, o Brasil tem esse mesmo
trágica e fascinante. Fato é que existe problema de forma muito aguda com a se-
na antropologia chinesa uma enorme paração entre etnologia e antropologia. É
dificuldade de lidar com uma visão do uma postura disciplinar que, depois, terá
outro sobre a China. Isto é muito forte e ecos teóricos em todas as teorizações so-
vai demorar algum tempo a passar. bre etnicidade, raça etc. Nós, na Europa,
tivemos um problema semelhante com a
CF: Você pode comentar sobre a antropo- etnologia (volkskunde) e o folclore. A SIEF
logia em outras partes do mundo, como (Société Internationale d’Ethnologie et de
na Indonésia, ou no sudeste asiático? Folklore)31 continua viva; essa tradição de
continuidade das etnologias de constru-
De fato, a segunda maior comunidade ção nacional ainda está lá. Na França, a
antropológica fora dos EUA não está no categoria etnologia parece mesmo estar
Brasil, mas no Japão. Eles ainda estão em processo de ressemantização. Con-
muito orientados sobre si próprios, mes- tudo, no geral, o processo de integração
mo quando fazem etnografia no estran- desses debates dentro do grande campo
geiro. Por exemplo, sobre África, fazem da antropologia está a avançar a passos
muita pesquisa, mas há pouco diálogo largos. Eu acho que temos que olhar para
um realismo minimalista 297
estas divisões com suspeita e esmiuçar as É por isto que me empenhei em ler Do-
implicações teóricas que elas possam ter. nald Davidson,32 porque ele nos ajuda a
Mais uma vez, não se trata de encontrar responder a algumas destas questões.
resoluções definitivas, porque isso não O modelo que ele constrói para a pos-
existe, mas uma tentativa de endereçar sibilidade do pensamento passa pela
o problema. centralidade da linguagem, mas não se
limita a ela. Permite-nos compreender
CF: Você tem essa visão ampla de uma um bocado melhor como, sendo todos
antropologia feita no mundo. O que você absolutamente diferentes, temos grandes
identificaria como coisas novas sendo áreas de sobreposição e, portanto, pode-
feitas na antropologia? mos construir sobre essas grandes áreas
de sobreposição uma noção de humani-
Teria muita dificuldade em identificar dade. Não existe uma essência comum
uma coisa que fosse mais nova que à humanidade, existem sobreposições
as outras. A minha apreciação é que humanas. Se a antropologia conseguir
estamos a entrar num momento neo- reencontrar um caminho para um com-
clássico, quer dizer, num período de parativismo baseado num realismo mini-
voltar a repensar algumas das questões malista e num estruturalismo mitigado,
que marcaram a antropologia clássica poderemos reatar com as preocupações
e que fomos empurrando para debaixo universalistas do período clássico, agora
do tapete como resultado do processo em moldes menos eurocêntricos. Trata-se
de desconstrução crítica. Por exemplo, de um desafio interessante.
o discurso sobre o parentesco ou sobre
a ecologia estão a reemergir e de formas CF: Talvez pudéssemos concluir a conversa
muitíssimo interessantes; e a reemergir falando um pouco desses debates con-
em ligação direta com alguns dos deba- temporâneos em relação ao que você está
tes que foram abandonados nos anos 70. fazendo nesses últimos anos na Bahia.
Eu creio que há muitas problemáticas do
período clássico que estão a reemergir Além de comer sarapatel... a minha vinda
hoje, à luz precisamente da procura de para o Brasil liga-se diretamente a uma
certo comparativismo antropológico – o triangulação com Moçambique e Macau.
esforço por construir uma antropologia No princípio dos anos 2000, fui professor
mais comparativa e mais universal. Eu convidado na Universidade Eduardo
vejo novas possibilidades num discurso Mondlane, em Maputo, numa altura em
sobre a condição humana que se prenda à que o projeto sobre os macaenses estava a
própria possibilidade de fazer etnografia – acabar e eu andava à procura de um novo
ao gesto etnográfico. Esta é a questão cen- projeto. Pareceu-me que o Brasil, em ter-
tral. Por quê? Porque a antropologia hoje mos temáticos, iria responder a algumas
é uma atividade empreendida por todos das preocupações que tinham emergido
os tipos de atores humanos sobre todos os entre Moçambique e Macau sobre as
tipos de atores humanos. Então, abre-se a problemáticas da etnicidade e da iden-
possibilidade de voltar a uma procura dos tidade pessoal. Eu vim para aqui muito
significados da condição humana, desta preocupado com a questão da identidade
vez teoricamente mais informada. étnica. Cheguei ao Brasil e encontrei, po-
rém, outras questões. A questão da pessoa
FN: O que seria um “discurso teoricamente e sua constituição afetiva tornou-se muito
informado sobre a condição humana”? mais importante para mim.
298 entrevista
FN: Este é o foco de sua pesquisa? panóplia tão vasta de aspectos foi para
mim inesperada. O próprio nome Brasil
Tenho estado a trabalhar sobre pessoa e levanta logo a questão: é que a terra não
nominação no Baixo Sul da Bahia. Traba- deveria chamar-se assim, mas sim Terra
lho com jovens e professores em várias es- de Santa Cruz. Já o grande João Barros (o
colas municipais. A temática central tem cronista e grande engenheiro da primeira
sido a forma como a emoção gera laços colonização) alertava para que não se
sociais que depois definem a pessoa no chamasse a essa nova terra pelo nome do
seu relacionamento com os outros. E isto pau vermelho do “vil lucro” (o pau-brasil),
veio confrontar-me com o debate sobre mas sim pelo nome do madeiro vermelho
indivíduo/pessoa no Brasil, que teve o seu com o sangue de Cristo. Mas perdeu a
momento alto na obra de DaMatta e que aposta! Desde esse momento fundacional
necessita agora ser repensado à luz da até à antropofagia modernista, o tropo
crítica ao sociocentrismo que emergiu nos demoníaco é dominante nos discursos
anos 90. Há hoje condições para repensar identitários brasileiros. Ele é constituído
essa polarização indivíduo/pessoa na sua por esse movimento utópico inicial: a
ligação com a ideologia eurocêntrica da polarização entre o Éden e o Hades.
modernidade e o papel que esta teve na
própria constituição da sociedade bra- CF: O diabo na terra de Santa Cruz...
sileira. A questão levantou-se de forma
inesperada para mim. Quando comecei a Precisamente! Essa polaridade é uma
reunir colegas para discutir nomes de pes- disjunção utópica. Por isso, a figura do
soa em português, sem que o tivéssemos Padre Antônio Vieira é tão estruturante,
previsto, os nossos debates acabaram por não é? É desse utopismo que mais tarde
girar em torno desta questão. Os últimos o projeto modernista se apropria, inver-
textos que tenho estado a escrever são tendo os polos, claro.
precisamente uma tentativa de reler a
tradição brasileira sobre o debate pessoa/ CF: Mas esta é uma tendência, a da
indivíduo que se liga a uma concepção da interpretação dilemática, polarizante,
sociedade brasileira como dilemática.33 dual; a outra é a tendência do hibridismo,
do sincretismo, da mistura. Como é que
CF: O dilema brasileiro, nos termos de essas coisas convivem?
DaMatta.
Esse problema está a montante do Brasil
O dilema brasileiro: uma sociedade divi- e no Brasil se prolonga. Quando o Pierre
dida entre uma ocidentalidade programá- Sanchis fala sobre sincretismo brasileiro,
tica e uma não-ocidentalidade difusa. Por ele diz que há cá dois sincretismos: há o
que ela é difusa? Porque ora é africana, ora sincretismo europeu e o sincretismo afro-
é indígena, ora é portuguesa popular ou brasileiro e que, já lá na Europa, a religio-
japonesa... é polifacetada. O binômio da sidade popular era sincrética porque o pa-
dualidade brasileira é assimétrico. Então, ganismo tinha sobrevivido através dos tem-
essa discussão levou-me a tentar pensar pos. Só que a questão que nós temos que
o significado da alterização do Brasil pe- nos perguntar, honestamente, é quando é
rante si próprio, que se formula através, que acaba o sincretismo? Quando é que
por exemplo, da imagem do demônio. acaba o sincretismo e começa a emergir
A forma como o tropo demoníaco é cons- uma coisa nova? Como é que se pode afir-
tituinte da autoimagem do Brasil numa mar – como a maior parte dos historiadores
um realismo minimalista 299
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