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Da leitura como produção de sentidos

Jean Marie Goulem.ot

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Não esperemos ji-issons teóricos do que segue. Apelei mais às

experiências de leitura, às práticas pedagógicas que aos textos canô-
nicos ou próximo de o serem: os ele Bakhtin, de Kristeva, de Jakobson
ou ele Michel Charies.
Estou extremamente lisonjeado ele poder assinar a análise das
leituras letradas. Não peço tanto e gostaria que me concedessem
(o imperfeito do subjuntivo é uma homenagem aos letrados e dou-
tos) um domínio mais vasto: seja popular ou erudi.ta, ou letrada ,
a leitura é sempre produção de sentido. Esforcei-me- em recordar
isso, mesmo que, por outro lado, te nha escolhido meus exemplos,
não tanto entre uma leitura de letrados, mas entre textos que são
por natureza polissêmicos. Portanto, não vou tratar das dimensôes
psicopedagógicas da leitura e ele seu aprendizado. Existem especia-
listas que se encarregarão disto. Também não tratarei, a despeito
do meu título, da chamada leitura singular ou plural no sentido em
que falamos de leitura(s) de Racine ou de leitura de Barthes por ele
mesmo. hnporta-me·aqui menos o discurso crítico sobre as obras do
que a prática ele uma leitura cultural, lugar de produção ele sentido,
de compreensão e de gozo. Não que se trate de uma leitura ingênua,
que oporemos à leitura dos profissionais, críticos por vocação ou
obrigação, universitários ... , encarregada do saber, de referências e ele
métodos. Não creio - e retornarei a esse ponto - que exista leitura
ingênua, quer dizer, pré-cultural, longe de qualquer referência exterior
a ela. O que desejaria entender aqu i são os jogos de conotações que

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]EAN MARIE GOULEMOT
a leitura produz, sem que ela exija para isso um discurso crítico e
empregue uma metalingu agem.
Primeiro, algumas evidências. Ler é dar um sentido ele conjunto,
uma globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas
sequl:ncias. Não é encontrar o sentido desejado pelo autor, o que
implicaria que o prazer do texto se originasse na coincidência entre
o sentido desejado e o sentido percebido, em um tipo de acordo
cultural, como algumas vezes se pretendeu, em uma ótica na qual o
positivismo e o elitismo não escaparão a ninguém. Ler é, portanto,
constituir e não reconstituir um sentido. A leitura é uma revelação
pontual ele uma polissemia elo texto literário. A situação da leitura é,
em decorrência disso, a revelação de uma das virtualiclades significan-
tes do texto. No limite, ela é aquilo pelo qual se atualiza uma de suas
virtualidades, uma situação de comunicação particular, pois aberta.
Se admitirmos, como o faço, que um texto literário é polissêmico, a
análise do leitor parecerá, portanto, pertinente, porque constitui um
dos termos essenciais do processo de aprovação e de troca que é a
leitura. Para maior comodidade, chamarei aqui o leitor e a situação de
leitura ele fora-do-texto, e é ele que me proponho descreve r através
ele algumas hipóteses c alguns exemplos.
O leitor, nessa relação com o texto, define-se por uma fisiologia,
uma história e uma biblioteca. Estes três termos (campos) dividem
o conjunto de fatores em jogo segundo uma comodidade arbitrária
na qual é necessário fingir acreditar. Tudo pode ser dito através do
termo história, se lhe damos sucessivamente um conteúdo fisiológico,
afetivo, cultural ou político. O sentido, aquele que se constitui por
uma leitura histo rica mente datada, empregado por um indivíduo
que tem um destino singular, nasce, portanto, do trabalho que esse
fora-do-texto assim definido opera, para além do sentido das pala-
vras, elo agrupame nto ele frases, sobre o texto.
· Pouco direi sobre a psicologia. Rolancl Barthes chocou muito
quando, e m um congresso de professores ele francês, creio eu, declarou
ler com maior frequência e aproveitamento em seus banheiros. Com
efeito, existe na leitura de divertimento (e em toda leitura) uma posição
(atitude) elo corpo: sentado, deitado, alongado, e m público, solitário,
em pé ... Além elas atitudes próprias às gerações ou aos dados técnicos
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DA LEITURA COMO PRODUÇÃO DE SENTIDOS
(a vela, o abajur, por exemplo) ou climáticos, uma disposição pessoal ele
cada um para a leitura. Diria um rito. Somos um corpo leitor que cansa
ou fica sonolento, que boceja, experimenta dores, formigamentos, sofre
de cãibras. Há mesmo uma instituição do corpo que lê. Quando era
criança, as senhoritas da escola privada onde fui educado nos falavam
de uma atitude digna, respeitosa para ler, levemente apoiado sobre
a mesa, as costas retas, sendo o relaxamento denunciado como uma
forma ele desprezo pela cultura. É suficiente olhar uma fotografia ele
escrivão tirada no fim do século passado para compreender (e ve1)
o que se entende fisicamente (e, portanto, ideologicamente) por le r.
Com relação a isso, seria conveniente estabelecer uma história ele
representações (poses) com valor de modelos do ato de ler. Há uma
dialética inscrita na história do corpo e do livro. Impõem-se-nos
(quem nos impõe?) atitudes de leitor: leituras sonhadoras (Baudelaire,
Hugo), leituras profundas (a cabeça entre as mãos), leituras ausentes
(Jean Lorrain, a face carregada, displicentemente alongado sobre seu
sofá). .. Sujeitaremo-nos a modelos, a uma tipologia elos atos de leitura,
quaisquer que eles sejam, veiculados por todas as formas da icono-
grafia pública e ela instituição escolar. As relações com o livro, isto é,
a possibilidade ele constituir sentido, se dão por me io dessas atitudes
ele leitor. Inversamente, o livro, tomado como gênero, dá a posi~.;ão de
sua le itura. Sem dizer, como Housseau, que existem livros que lemos
de um único modo, é verdade que o livro indica com frequência (ou
incita a escolhe!) o lugar de sua leitura. E ler em público uma obra de
filosofia ou um texto pornográfico é reconhecer, através da provoca-
ção, que tais livros constituem por si mesmos o espaço de sua leitura.
Porém, mais genericamente, nosso corpo lê, e não somente p elo viés
dos olhos ou de nosso psiquismo, uma vez que há uma invasão elo
sentido por parte ela consciência que provou a doença, a saúde ou
a morte. Lembremo-nos elas leituras que Thomas Mann evoca em
A montanha mágica. Quero sublinhar aq ui o que em nosso corpo é
trabalhado pelo texto aberto, para não confundir com o que foi mu-
dado em nosso corpo pelo livro e m leitura. Diclerot construiu uma
teoria elo diafragma para explicar os efeitos emotivos cujo modelo
podemos recorda r aqui. Para encurtar, direi que o corpo elo leitor é
uma livre escolha e uma imposição, pois revela atitudes-modelo, ou
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jEAN MARIE GOULEMOT
tipos (semelhantes aos modelos da distinção), de determinismos bio-
lógicos, de um dispositivo adequado ao próprio gênero do livro, mas
também de uma liberdade em que intervém, em uma medida que lhe
é adequada e que não pode ser quantificada, o singular.
O .fora-do-texto é também uma história coletiva e pessoal. Desta
última podemos discernir dois lados: o que nos liga ao contemporâneo
e o que constitui nossa marca. Admitiremos essa distinção, ainda que
pudéssemos afirmar que a própria marca individual está inscrita em
modelos genéricos. Para mostrá-lo, tomarei um exemplo: o das cartas
de leitoras endereçadas a Bernardin de Saint-Pierre após a publicação
de Paul e Virginie. É espantoso ver, e isso se aplica também ao caso
elos leitores ela Nova Heloísa, analisados por Daniel Rache e Michel
Launey, como um público se reconhece, se pensa através dos modelos
narrativos. O que quer dizer que é o cultural que ordena o que acredi-
tamos pertencer a uma singularidade extrema. Nos exemplos citados,
os correspondentes descobrem, através elo romanesco e ela ficção, o
sentido de seu destino. Os casos extremos, sem dúvida alguma, são os
elos êmulos de Chatterton ou elos neo-rimbauclianos. Parece-me evidente
que, em grande parte, o que construímos como nossa história pessoal
pertença, em boa parte ele seus aspectos, a uma narração cultural.
Por história cultural entendo a história política e social, que, sem
que sejamos seus autores, traba lha aquilo que nós lemos. Há alguns
anos, uma determinada representação elo Tartu.fo em Paris provocou
apenas debates estéticos ou morais. Esse mesmo Tartu.fo, na Madri
dos anos 1970, quando a Opus Dei estava no poder, desencadeou
uma manifestação política e foi proibido. A história, aceitemos ou
não, orienta mais nossas leituras elo que nossas opções políticas. Darei
um exemplo que me parece particularmente pertinente. Em 1967, eu
era um jovem assistente na Sorbonne - sempre jovem e brilhante
assistente, jamais velho e terno professor. Devia explica!- a EducaçãO
sentimental e, nutrido de um Barthes emergente que tinha ainda sabor
ele fruto proibido, pedi aos meus estudantes que determinassem as
sequências a partir das quais eles, rapazes e moças desses anos, ricos
em alguma cultura, compunham o sentido elo romance. Suas análises
orientavam o romance, ele modo unânime, em direção a um único e
mesmo efeito: os amores ele um adolescente e ele uma mulher madura.
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DA LEITURA COMO PRODUÇÃO DE SENTIDOS
A Educação sentimental, ao acrescentar-se o drama, a crer neles, seria
uma espécie ele Diabq no corpo. Em março de 1969, a mesma experiên-
cia. Tudo havia mudado depois elos acordos de Grenelle, exceto os
programas ele licenciatura. Os estudantes compunham o sentido elo
romance a partir elas sequências políticas. Frécléric era denunciado
como burguês reacionário e fraco, que preferia os charmes ela floresta
de Fontainebleau, em galante companhia, à ação revolucionária. Desta-
cavam o saque elas Tulherias, a descrição ela repressão ele 1830, a sátira
aos clubes, igualmente como tempos essenciais elo romance. Estava
esquecido o romance elos amores frustrados entre Frédéric Moreau e
maclame Arnoux! Essa foi a opção política diante dos acontecimentos
de maio. Valorizações adversas articulavam-se a partir elas mesmas
sequências privilegiadas por todos. O saque das Tolherias permitia
expressar a recusa ela violência elas ocupações, mas também o caráter
profundamente reacionário, sob outras aparências, ela obra ele Flaubert.
Isso ainda mais facilmente, pois acabava ele surgir, creio eu, o estudo
ele Paul Lidsky, Les lkrivains contre la Commune. O que quero reter
dessa experiência, que também foi pedagógica, é o plano coletivo da
história de nossas leituras. Poderemos, dessa maneira, escrever a his-
tória de gerações através daquela de suas leituras dos. grandes textos
literários e retomar, com um novo conteúdo, as teses )á arcaicas de
Thibaudet, não mais sobre as gerações da época dos escrivães, mas
desta vez sobre as de leitores e do trabalho do sentido.
Há uma história contemporânea, quase vivida, que trabalha
o texto no processo ele leitura. Acrescentarei que há também uma
história mítica que perte nce, também ela, à obra: entendo por isso
uma história fundamental da qual não fomos testemunhas, nem mesmo
contemporâneos, evidentemente, e que se reduz a alguns aconteci-
mentos altamente valorizados elos quais nos sentimos herdeiros. Para
nós; franceses, citarei, a título de exemplo, a Revolução, a Resistência,
Napoleão, Joana D'Arc ou Vercingetorix ... Poderíamos apelar para a
memória coletiva e institucional de uma coletividade nacional, insu-
flada pelo viés do ensino e do discurso lancinante e mudo elos nomes
de ruas, selos postais, monumentos, práticas culturais diversas (elas
vão elo filme histórico, como A marselhesa, de Renoir, ou Casanova e
a Revolução [La Nuit de Varennes], de Scola, à evocação dos mortos
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jEAN MARIE GOULEMOT
ilustres sob as abóbadas do Panteão). Parece-me evidente que essa
história mítica participa de nosso ato de ler. Não há dúvida de que ela
trabalhe o texto ele Malraux, assim como o ele Sartre ou mesmo Guerra
e paz, no processo ele sua escrita. Mais amplamente, ela molda toda
leitura. De fato, ela está presente tanto na leitura como na escrita, uma
vez que, além ele opções, constitui um tecido, um discurso comum. Se
Albert Soboul sentia-se o guardião ela Revolução Francesa, fez-se ele
cada um ele nós, sejamos conscientes ou não, um ele seus herdeiros.
Direi em forma de chiste que é a nossa maneira ele ler, à francesa.
Para terminar com estas formas de história presentes no fora-
-do-texto, gostaria ele lembrar que se trata aí ele variáveis. A própria
memorização histórica tem uma historiciclacle. Cada regime constrói
sua memória histórica. Os republicanos ele 1880 privilegiavam 1789 e
1848, seus adversários, Luís XVI e Joana D'Arc. Em 1878, Joana D'Arc
será honrada, por meio de um acordo inesperado, pelos monarquis-
tas e republicanos, que a associarão, para pôr fim às manobras elo
monsenhor Dupanloup, a Voltaire, Rousseau e aos militantes ele 1848.
Compreender o que está em jogo na leitura também seria, talvez, re-
constituir as memórias históricas em obra nos diversos momentos ela
história cultural. Permitam-me propor um exemplo cuja interpretação
não é evidente. Sabemos que a l3iblioteca Azul difundiu largamente
as canções ele gesta, fenômeno que o processo ele memorização social
permite talvez compreender parcialmente. Aos meus olhos ele é menos
operacional quando se trata de explicar por que a literatura ele cordel
(literatura popular do Nordeste elo Brasil, cujas características materiais
são muito próximas daquelas da Biblioteca Azul) reconduz a temática
(ainda hoje) das canções de gesta com Rolancl e Olivier. A vizinhan-
ça com a América ele língua espanhola é apenas uma explicação
parcial. Lembremos que no início do século, quando de uma revolta
camponesa, um dos chefes se fez chamar Rolando e escolheu vinte
e quatro tenentes porque fazia doze pares, o que fazia, em tradução
aproximativa, vinte e quatro indivíduos ... Estranho mistério esse do
encaminhamento, da transmissão daquilo que pertence a uma história
mítica praticamente morta entre nós hoje.
Falemos da biblioteca. Quis dizer com isso que qualquer leitura
é uma leitura comparativa, contato do livro com outros livros. Assim
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DA LEmJRA COMO PRODUÇÃO DE SENTIDOS
como existe díalogismo e intertextualídade, no sentido que Bakhtin
dá ao termo, há dialogismo e intertextualidade da prática da própria
leitura. Entretanto, não há nada aqui que seja mensurável. Estamos no
campo das hipóteses e do provável. Ler será, portanto, fazer emergir
a biblioteca vivida, quer dizer, a memória de leituras anteriores e ele
dados culturais. É raro que leiamos o desconhecido. O gênero do livro,
o lugar de edição, as críticas, o saber erudito colocam-nos em posição
valorizada de escuta, em estado de recepção. Lemos Gallimarcl, Écli-
tions ele Minuit, diferentemente, o que significa que a reputação pública
dessas casas editoriais prepara uma escuta: do severo ao razoável, elo
sério ao enfadonho, o sentido já está dado.
Também é verdadeiro que a cultura institucional nos predispõe a
uma recepção particular do texto. Poderíamos utilizar aqui o conceito
de horizonte de expectativa ele Jauss e da Escola de Constança. Quer
dizer que cada época constitui seus modelos e seus códigos narrativos
e que no interior de cada momento existem códigos diversos, segundo
os grupos culturais. Na época ele Dom Quixote, Cervantes zombou dos
romances de cavalaria que ainda existiam e do público que aceitava .
seus efeitos de credibilidade e seus códigos narrativos. Sem recuar
tanto, existem hoje, conjuntamente, Guy eles Cars e Alain Robbe-Grillet,
]ames ]oyce e o romance linear de Martin du Gard. Portanto, deve-
-se reconhecer que diversos modos ele narrativa coabitam no mesmo
espaço cultural e social. A posse dos códigos que os regem permite
a leitura. Ela constitui, por outro lado, o horizonte de expectativa no
sentido em que o entendo. Graças a ela, encontramo-nos novamente
em uma sucessão de sequências, até conhecemos, de antemão, o
produto cultural que vamos consumir. É o caso do romance policial
ou ela narração pornográfica, cujas estruturas narrativas são extrema-
mente reduzidas. A leitura deles é, portanto, o encontro entre uma
oferta e uma demanda. A partir desta hipótese, poderíamos resumir,
de fato, a história da literatura a uma sucessão de rupturas nos códigos
narrativos e colocar, portanto, uma acumulação de códigos narrativos
adquiridos na potencialidade da leitura. Essa acumulação se constitui
no próprio movimento histórico e cultural, mas em um momento dado,
em uma sociedade definida, permite, segundo sua riqueza ou pobreza,
a hierarquização cultural. O grau ele cultura compara-se à polivalência
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)EAN MAI\IE G OULEMOT
dos códigos narrativos, podendo ser colocado em jogo no ato de ler.
jacques, o fatalista, de Diderot, ilustra perfeitamente meu propósito,
uma vez que me parece exibir-se aí o processo de leitura quando são
desmascarados os códigos narrativos tradicionalmente empregados no
romance de aventuras e de amor. O narrador aí explica o que poderia
ser o romance elos amores de Jacques, segundo as normas narrativas
contemporâneas. Ele as exibe para melhor recusá-las. Projeta um esboço
ela narração e grita, imediatamente, que "não fará Cleveland", toman-
do o romance do abade Prévost como o modelo-tipo do romance
admitido e reconhecido. É ao mesmo tempo, pelo jogo de negações,
a recusa e o aparecimento de novas retóricas da narração. Através
do mesmo movimento, o narrador Diderot desmascara e denuncia o
que existe, substituindo-o por novas maneiras de narrar. Em relação
a isso, jacques, o fatalista é um roma nce mais exemplar p ela leitura
elo que pelo processo da escrita. Mostra-se aí uma das dime nsões do
prazer de ler que é da seguridade cultural. Poderíamos imaginar para
um dado grupo uma tipologia de códigos narrativos e tentar fazer sua
histó ria . É através dela, sem querer no entanto invadir o domínio de
Roger Chartier ou mesmo responder à questão que coloca, que passa
uma das vias da história ela leitura, se admitirmos o ·sentido que dei,
por conta própria, a esse termo.
Além dos códigos narrativos que estão em obra na leitura, parece-
-me existir uma cultura coletiva sobre a qual gostaria ele me interrogar
agora, através da noção de biblioteca. Trata-se ele textos, mas também de
todo um sistema de valores que neles estão em obra. No texto prepara-
tório ela minha intervenção, tinha dado como exemplo o teatro trágico
no século XVIII. Era lido na época em relação aos mestres do teatro
trág ico, Corneille e Racine, que constituem sua medida e seu limite.
O que prova que não existe compreensão autônoma elo que é dado a
ler ou a e ntender, mas articulação em torno ele uma biblioteca do texto
lido. A comparação, a medida, formam o tempo primeiro, primário,
dessa intertextualidade que fundamenta a leitura. Mais adiante, é a
constituição do sentido que estará em operação. O livro lido ganha seu
sentido daquilo que foi lido antes dele, segundo um movimento redutor
ao conhecido, à anterioridade, O sentido nasce, em grande parte, tanto
desse exterior cultural quanto do próprio texto e é bastante certo que
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DA LEITURA COMO PRODUÇÃO DE SENTIDOS
seja de sentidos já adquiridos que nasça o sentido a ser adquirido.
De fato, a le itura é jog? de espelhos, avanço especular. Reencontramos
ao le r. Todo o saber anterior - saber fixado, institucionalizado, saber
móvel, vestígios e migalhas - trabalha o texto oferecido à decifração.
Não há jamais compreensão autônoma, sentido constituído, imposto
pelo livro e m leitura. A biblioteca cultural serve tanto para escrever
quanto para ler. Chega mesmo a ser, creio eu, a condição de possibi-
lidade ela constituição do sentido. Um pouco à maneira como Roland
Barthes e Philippe Hamon tinham, cada qual a seu modo, analisado os
efeitos do real e o verossímil como um acordo entre as representações
adquiridas e os códigos admitidos ao le itor e ao escriturário.
Parece-me poder deduzir d estas condições uma concepção d a
le itura e do texto à qual gostaria ele ater-me um pouco. Louis Marin
escreveu que a narração é uma armadilha, acrescentare i que ela é
um mecanismo apto a produzir efeitos e que a leitura é, no fim das
contas, a osci lação dessa máquina em um confronto com o corpo,
com o te mpo e com a cultura adquirida. A leitura é, portanto, uma
estratégia do afrontamento e da manipulação. Isso me p ermite, penso
eu, responder a uma importante objeção. Ao levar minha análise a seu
ponto extre mo , chegaremos a fazer elo texto um pretexto à investida.
Um pou co como a crítica parano ica adiantada por Salyador Da lí, que
p ermitiria fazer, com a ajuda da obsessão, uma leitura delirante e
e ró tica do Angelusde Millet. No limite, portanto, o texto não desempe-
nharia ne nhum papel. É ir um pouco longe. Um texto contemporâneo
articula sua produção a partir de seu consumo. Quer dizer, sua escrita
a partir de sua leitura, por meio ele uma comunidade ele códigos narra-
tivos e pelo emprego, no processo d a escrita, de fatores que intervêm
também na constituição do sentido pela leitura. Também é verdade
que o livro exige uma posição elo leitor que interpela. Dare i dois exem-
plos disso, para me .fazer compreende r melhor. O primeiro será o d a
lite i·atura pornográ fica (espero que esta segunda citação ela literatura
po rnog ráfica não seja sentida como um convite a consentir-me uma
biblioteca povoada, unicamente, por segundas .fileiras). Uma a ná lise
ele seu processo de enunciação mostra que o leitor está aí instalado,
necessa riamente, em posi ção ele voyeur. Pois trata-se ele fazer ver, ele
mostrar, de desenvolver sequências. Que r dizer que um tipo de leitura
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]EA N M ARIE GOULEMOT I
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é imposto, um pouco à maneira da demonstração da paisagem utópica I
analisada por Louis Marin. Replicar-me-ão qu e o texto pornográfico I
é, essenc ia lme nte , monossêmico, que possui uma estratégia eficaz e
que é utilizado em um único sentido. De f:1to, o texto pornográfico
ape na s revela o que está latente em todo tex to lite rário, a saber, o
:Irranjo el e uma posi ção ele le itura a partir ela qual se org;miza a pro-
dução ele sentido. O segundo exemplo é o ela HnciclojJédia, cuja le itura
pr:Itica pelos contemporf111cos rüo consigo im;~ginar qu:d seria, mas
c uja natureza e nunciativa pede, com certeza, uma r os ição el e leitura.
O descontínu o, o sistema de nota s, impede uma maneira de le r que
é a do texto narrativo. Mas aqui o processo da leitura se complica
pela própria duração d a publicação. Por sua natureza, o tex to enci-
clopédico r ed e uma leitura a contrape lo, direi, que toma o texto ao
contrário e torna impossível uma le itura sequencial tradicional, uma
vez qu e o sentido se constitui a pa rtir elo fim, e não elo movimento
de seu próprio d ese nvolvimento.
Para terminar, gostaria ele adiantar algumas hipóteses. A primeira
é que le r é fazer-se le r e dar-se a le r. Em outros te rmos, dar um sen-
tido é falar sobre o que, talvez, não se chegue a dizer ele outro modo
e mais claramente. Portanto, seria permitir uma eme rgência daquilo
que cst:í escondido. Por outro helo, assim como a hihfiotcca trabalha
o tex to ol'crecido, o texto lido t.rahallla em compensa~·;'Io :1 pr<'J pria
hihlioteca. A cada leitura , o que já fo i lido muda de sentido, torna-se
outro. É uma f'orma de troca . Espe ro Lcr mostrado - c perdoem-me
ter esque mati zado, extrapolado - o que se trava na leitura: um dado
e uma aquisição, as obrigações sem número do social, sob a ilusão
da indepe ndê ncia e da escolha , mas também alguns fragme ntos ele
uma singular libe rdade.

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