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REVISTA SÍSIFO

ANO 2017
www.revistasisifo.com
Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

Endereço para correspondência. Adress for correspondence:


Revista Sísifo
Site: www.revistasisifo.com / E-mail: sisiforevista@gmail.com
Feira de Santana — Bahia — Brasil

Revista Sísifo – Feira de Santana – n. 5, v. 1 (2014-)


nº 5 maio/2017
Filosofia – Periódicos I

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FEIRA DE SANTANA-BA nº 5 p. 1 - 234 Ano 2017

REVISTA SÍSIFO
ANO 2017
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CORPO EDITORIAL
Yves São Paulo (Editor)
Marcelo Vinicius (Editor)
CONSELHO EDITORIAL
Andreia A. Marin
Bruna Torlay
Denise Kloeckner Sbardelotto
Dinameire Oliveira Carneiro Rios
Eduardo Pellejero
Luciano Donizetti da Silva
Marcos Roberto Nunes Costa
Nildo Viana
Priscila Vieira
Rodrigo Ornelas
Rodrigo Araújo
Tiago Medeiros Araujo
Valdenésio Aduci Mendes
Wanderley C. Oliveira

Os artigos e demais textos publicados nesta revista são de inteira responsabilidade


de seus autores. A reprodução, parcial ou total, é permitida, desde que seja citada
a fonte.

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sumário
Editorial........................................................................................................6

DOSSIÊ: POLÍTICA, COMUNICAÇÃO E CULTURA


NOAM CHOMSKY: propaganda e medo na política internacional
Jayme Benvenuto..........................................................................................8
OPINIÃO PÚBLICA, HEGEMONIA E CULTURA NOS CADERNOS
DO CÁRCERE DE A. GRAMSCI
Luciana Aliaga, Andressa Lima da Silva....................................................24
MÍDIA COMO DISPOSITIVO DE SABER/PODER
José Orlando Carneiro Campello Rabelo....................................................35
TODAS AS ERAS FORAM DA PÓS-VERDADE: um passeio pelo
doublethink nosso de cada dia
Arthur Aroha Kaminski da Silva.................................................................48
A MULTIDÃO NO TWITTER: a criação de memes com apropriação de
fotografias
Gabriel Malinowski.....................................................................................67
BELA, RECATADA E DO LAR: relações entre a prática discursiva sobre
a mulher e a docilização dos corpos em Foucault
Romário Duarte Sanches.............................................................................79
VIDA SERIAL, ÊXTERO-CONDICIONAMENTO E IDEOLOGIA: uma
análise do mass media pela ótica de Sartre
Vinicius dos Santos.....................................................................................96

ARTIGOS E ENSAIOS
CRUZADA CONTRA A BOCA DO LIXO: saberes e discursos na
imprensa
Everton Behrmann Araújo.........................................................................114

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O CORPO POÉTICO DA ATRIZ/AUTORA HELENA IGNEZ EM A


MULHER DE TODOS
Tatiana Trad..............................................................................................132
PRÁTICAS DISCURSIVAS ECONÔMICAS E SOCIOCULTURAIS
SÃO COMPATÍVEIS?
Rogério Faé...............................................................................................141
A ESCRITA COMO CUIDADO DE SI NA OBRA TARDIA DE
MICHEL FOUCAULT
Roberto Kennedy de Lemos Bastos..........................................................158
FOUCAULT, A HISTÓRIA DO PENSAMENTO E A GENEALOGIA:
sobre uma nova política da verdade e os limites da ideologia e da dialética
Priscila Piazentini Vieira...........................................................................171
UMA FILOSOFIA POLÍTICA PARA O BRASIL: Roberto Mangabeira
Unger e o pensamento com sotaque
Tiago Medeiros de Araújo.........................................................................192
ALCANCES E LIMITES DO CONCEITO DE SOCIEDADE CIVIL EM
ANTÔNIO GRAMSCI
Valdenésio Aduci Mendes.........................................................................207
REVISITANDO A UTOPIA: Sartre e o engajamento político-social da
liberdade
Luciano Donizetti da Silva........................................................................227

ENTREVISTA
CONVERSA COM CARLA DAMIÃO: sobre filosofia e filme
Rodrigo Araújo, Leidiane Coimbra...........................................................247

Regras para submissão de artigos..........................................................261

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EDITORIAL

O ato de pensar é atravessado pelos modos de comunicação. Poder-se-ia até


mesmo dizer que o ser humano já possui inerente a sua condição a possibilidade de se
comunicar com os demais membros de sua espécie, mas também uma imensa
dificuldade em realizá-la. Uma vez sendo um animal social, o humano requer vivência
em comunidade e para isso reivindica comunicação e compreensão.
Eis que esta necessidade básica de sobrevivência em grupo abandonou a esfera
privada. Por meio da linguagem e seus muitos artifícios é possível criar uma peça de
teatro, assim como expressar uma inquietação política objetivamente.
A potência da comunicação não é ignorada pelos humanos. Especialmente por
aqueles que detém poderes superiores na sociedade. E assim, ao longo de séculos, estes
homens dotados de barganha material de controlar o pensamento o farão, ainda que seja
adotando intelectuais e artistas para perto de si e financiando ou cerceando as suas
obras. Mas a este ponto, os meios de comunicação ainda não tinham a capacidade de
atingir grandes massas.
Difere muito do mundo contemporâneo. A sofisticação dos meios de
comunicação de massa, de maneira geral, popularizou a informação de tal forma que,
em dado momento, a sensação era a de que com ela também viria a tão sonhada
democratização da cultura. Tragédias naturais passaram a ganhar os noticiários em
tempo recorde, assim como os grandes eventos do mundo desportivo, da moda e do
mais prosaico cotidiano, bem como o acesso à vida política, e caminhamos para a
imagem em “tempo real” de nossos dias. Passados os tempos, aqui e ali alterados os
atores políticos, e ainda seguem tencionadas as relações entre comunicação, política e
cultura, de modo que a expressão “democratização dos mass media” ainda soa como
uma quimera em um Brasil cada vez mais dividido e desigual, assim como em diversos
outros territórios mundo afora.
Esta edição de Revista Sísifo trás para o leitor o dossiê Política, comunicação e
cultura, em que se problematiza a participação dos meios de comunicação no processo

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político e cultural das sociedades contemporâneas. Os artigos que seguem, mantém


relação próxima com o tema, discutindo os meios de comunicação, processos políticos e
seus impactos na cultura.
Marcelo Vinicius
Rodrigo Araújo
Yves São Paulo
(Organizadores)

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Dossiê

NOAM CHOMSKY:
propaganda e medo na política internacional

Jayme Benvenuto*

RESUMO: Este artigo tem o objetivo de apresentar a compreensão de Avram Noam


Chomsky a respeito das conexões entre a política, em especial a política internacional, a
propaganda e o medo, como elementos da grandiosa estratégia imperial de dominação
global, conduzida pelos Estados Unidos da América e seus sócios. Ao mesmo tempo em
que procura demonstrar a força das ideias do autor norte-americano, o artigo expõe os
pontos críticos na teoria chomskyana.
Palavras-chave: 1. Chomsky. 2. Propaganda. 3. Medo. 4. Política internacional.

INTRODUÇÃO

Avram Noam Chomsky é o intelectual vivo mais citado do mundo, com mais de
quatro mil citações de sua obra relacionadas no Arts and Humanities Citation Index e o

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oitavo numa lista que inclui autores como Marx e Freud, entre as personalidades mais
citadas de todos os tempos. Além disso, entre os anos de 1974 e 1992, Chomsky foi
citado 1.619 vezes de acordo com o Science Citation Index (Barsky, 2004, p. 15). Ao
completar 88 anos, em dezembro de 2016, o intelectual continuava ativo na publicação
de livros, artigos e participando de filmes independentes por meio dos quais expõe seu
pensamento crítico. A visita a sua página pessoal demonstra sua ampla capacidade de
produzir ideias em áreas que incluem a linguística, a filosofia, a história, a história das
idéias, as ciências cognitivas, a psicologia, a política nacional norte-americana e a
política internacional.
Apesar da vasta produção intelectual e do reconhecimento como um intelectual
engajado, capaz de levar milhares de pessoas a auditórios ao redor do mundo 1,
Chomsky passa como mais um intelectual nos corredores do MIT, o Instituto
Tecnológico de Massachusetts, onde trabalhou por mais de quatro décadas, pelo simples
motivo de que

nos Estados Unidos Chomsky é silenciado pelos grandes meios,


inclusive pelos meios progressistas, e muitos dos universitários e
intelectuais com quem cruza todos os dias provavelmente
desconhecem o que ele diz (…), desenhando os Estados Unidos
como um artefacto estranho que, por sua vez, é a maior democracia
do mundo e é governado por uma elite autoritária que despreza a
democracia. (Halperin, 2003, p. 8; tradução do autor)

Em entrevista concedida a Halperin, Chomsky situa o surgimento do incômodo


do Estado norte-americano em relação a si nos anos 1960, em que ele foi preso e
respondeu a processo por “conspiração” devido à participação em movimentos em
defesa dos direitos civis e políticos, muito em particular pelo direito de recusa legítima
de jovens à participação na guerra do Vietnã. A atuação política era interpretada como
uma agressão à atividade militar nos Estados Unidos. O processo judicial contra
Chomsky não prosperou, em sua visão, devido ao fato de que não foram encontradas
conexões, como o governo supunha, com regimes tidos então como suspeitos, como a
Coreia do Norte e a Hungria, assim como porque não seria sustentável juridicamente
imputar-lhe o crime de “conspiração”, quando suas ações eram integralmente públicas.
O que tentaram chamar de conspiração era realizado de forma “completamente aberta”
(Halperin, 2003, p. 55).
1
Em 2002, durante a segunda edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Chomsky foi ouvido
por uma plateia atenta constituída por 20 mil pessoas.

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A precaução quanto a ter uma agenda pública não impediu que Chomsky fosse
sistematicamente monitorado pelo governo norte-americano em suas ações acadêmicas.
“Provavelmente, esta conversa esteja sendo escutada pela Administração de Segurança
Nacional” (Halperin, 2003, p. 11), disse ele ao entrevistador.
O sistema perverso descrito por Chomsky para dominar o mundo - e que tem os
Estados Unidos, seu próprio país, como líder incontestável - é composto pelos poderes
político, militar, empresarial, midiático e educativo. Em outra ocasião e veículo, resumi
nos seguintes pontos a visão chomskyana sobre a política internacional dos nossos dias:

1. Os Estados Unidos da América são autores e lideram uma


“grandiosa estratégia imperial” que se vale da “guerra preventiva” e
de ações repressivas e terroristas pretensamente sustentadas pelo
Direito Internacional. O método de dominação do mundo está
relacionado à violência com que atua e financia, entendida como “um
poderoso instrumento de controle”
2. Os Estados Unidos da América se atribuíram o direito de
empreender ações militares e travar guerras químicas e biológicas
pelos motivos que consigam justificar, mesmo que não sejam
plausíveis. Como corolário dessa afirmação, a soberania dos demais
países pode ser ignorada tendo como pretexto a defesa dos direitos
humanos.
3. Na política de intervenção humanitária desenvolvida atualmente
em diversas partes do mundo, a qualificação de violação a direitos
humanos depende de quem seja o acusado. Os amigos criminosos
merecem proteção e não se pode cogitar de cometerem violações a
direitos humanos, enquanto os que se tornam inimigos merecem a
mais severa punição com base nos mais altos princípios de direitos
humanos.
4. Está em curso um modelo de globalização controlada da
“comunidade internacional”, através de meios complexos, que
envolvem os diversos países do mundo (independentemente de serem
mais ou menos poderosos) em atendimento aos interesses da potência
imperial e seus aliados.
5. Ao desenvolver uma estratégia de dominação do mundo com base
na idéia de criação do “inimigo supremo” e do armamentismo
nacional, a política de Washington estaria estimulando a proliferação
de armas de destruição em massa no plano internacional e,
consequentemente, fazendo do mundo um lugar mais inseguro.
6. O verdadeiro caráter da política do mais poderoso país do mundo
revela-se não pelo poder da retórica de seus presidentes e diplomatas,
mas por suas ações e contradições práticas, muitas vezes encontradas
no confronto entre os documentos e discursos oficiais e a observação
prática.
7. Os alvos de intervenções humanitárias das potências ocidentais
são descartáveis no day after, o que confirmaria o descompromisso
com os altos valores de proteção dos direitos humanos em condição
universal, conforme retoricamente anunciados. (BENVENUTO, Lua
Nova, São Paulo, 73: 123-145, 2008)

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As convicções de Chomsky segundo as quais o sistema de controle por ele


descrito manipula os cidadãos do seu país – e do mundo – na medida em que reúne “os
grandes partidos, as corporações, uma fatia muito especial de advogados, o poder
militar e também os grandes meios de comunicação” (Halperin, 2003, p. 8; tradução do
autor) são sustentadas por um arsenal propagandístico que ao mesmo tempo em que
gera, alimenta-se do medo.
Na condição de autor de orientação “anarco-sindicalista", Chomsky atribui a
condição de sócios na tarefa de dominar o mundo a instituições – o Estado (em especial
o poder militar), as grandes corporações econômicas, as universidades (e seus
funcionários), a mídia – tão poderosa quanto difícil de ser confrontada, e ainda mais
superada.
Este artigo tem o objetivo de enfocar na compreensão do autor em relação às
conexões entre a política, em especial a política internacional, a propaganda e o medo,
como elementos de uma grandiosa estratégia de dominação global. Ao mesmo tempo
em que procurarei demonstrar a força das ideias do autor, pretendo apresentar alguns
pontos que considero dignos de serem problematizados em sua teoria.

A GRANDIOSA ESTRATÉGIA IMPERIAL

Chomsky demonstra crer na existência de uma conspiração transnacional pela


manutenção do status quo internacional a qual descreve como grandiosa estratégia
imperial dos Estados Unidos da América. Embora não deixando de relacionar sua
análise com outros períodos históricos, o trabalho de Chomsky se concentra sobretudo
nas estratégias utilizadas por seu país para manter o poder mundial, papel assumido ao
longo do século XX, e principalmente com o término da II Guerra Mundial. O projeto
de controle internacional teria sido baseado em
estudos realizados já em 1941 (que) concluíam que o objetivo
fundamental de longo prazo era que os Estados Unidos se
transformassem na potência inquestionável do pós-guerra e agissem de
forma tal que limitassem a soberania de qualquer Estado que pudesse
interferir na política de adquirir supremacia militar e econômica […]
(2004a, p. 16)

A grandiosa estratégia imperial seria baseada no direito auto-instituído de


empreender “guerra preventiva” quando desejar, com respaldo no direito internacional
contemporâneo e certamente no poderio militar inquestionável. (Chomsky, 2004b, p.

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18) Entre outras, a categoria jurídica “crimes de guerra” é apresentada como maleável o
suficiente para ser usada ou descartada quando se apresentar conveniente do ponto de
vista político e militar. Não fora por outra razão que os EUA anunciaram que
ignorariam o Conselho de Segurança da ONU com relação ao Iraque quando do ataque
às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, ignorando as normas multilaterais e
passando a adotar o uso da força unilateral. (Chomsky, 2004b, p. 19)
A conveniência da guerra preventiva seria a de que para se encaixar na categoria,
o alvo "precisa ser totalmente indefeso”, “ter importância suficiente para compensar o
esforço”; e “haver um meio de pintá-lo como a mais terrível e iminente ameaça à nossa
sobrevivência.” (Chomsky, 2004b, p. 23)
Além de manter o poder político global no cenário mundial, o objetivo da
grandiosa estratégia imperial conduzida pelos Estados Unidos da América seria manter
o sistema econômico capitalista. Em cada situação geopolítica objeto de sua análise,
Chomsky identifica as conexões com o poder econômico, como faz no que se refere às
intenções estadunidenses relacionadas ao conflito no Iraque:
Os programas econômicos que têm sido anunciados seguem o
estandarizado modelo neoliberal, na tentativa de transferir o controle
da economia iraquiana para corporações multinacionais e instituições
financeiras, a maior parte baseadas nos Estados Unidos. (…) Uma
base militar no Iraque será a primeira no coração da maior região de
produção energética que é verdadeiramente confiável, sempre que ao
Iraque não seja permitido ir além da independência formal.
(Halperin, 2003, p. 17; tradução do autor).

O final da citação anterior demonstra a visão do autor de que o controle exercido


pelos Estados Unidos da América sobre seus parceiros seria sobretudo político. Uma
vez fosse demonstrada a intenção dos atores políticos de escaparem ao controle político,
seria retirado o apoio econômico e político, passando a se constituir em objeto da luta
por dominação.
O programa de controle global estaria em inteira compatibilidade com os gastos
norte americanos em matéria militar: o mesmo que todo o resto do mundo reunido. Na
contramão do que o mundo aprendeu a conhecer e louvar sobre os Estados Unidos da
América, Chomsky considera seu próprio país um “estado totalitário”, não muito
diferente de outros com pretensões imperiais, como a Rússia e a China. Colocar os
Estados Unidos da América no spotlight de suas críticas tem o sentido consciente de dar
correspondência à importância que o país tem no plano mundial como exemplo de
democracia.

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Num estado totalitário, não importa o que o povo pensa, já que o


governo pode controlá-lo pela força usando um cacete. Mas quando
você pode controlar o povo pela força, você tem que controlar o que o
povo pensa, e o modo padrão para fazer isso é pela via da propaganda
(criação de consenso, criação de ilusões necessárias), marginalizando
o público em geral ou limitando-lhes à apatia de alguma moda. […]
Numa sociedade totalitária, a guerra é um negócio sério e […] o
ditador simplesmente diz ‘estamos indo à guerra’ e todos marcham
(Manufacturing consent, 1992, tradução do autor).

A grandiosa estratégia imperial teria sido reforçada, sob Bill Clinton e Tony
Blair, pela ideia de um “novo internacionalismo”, a qual seria justificada pela
intolerância brutal aos grupos étnicos que incomodam o império e “seu sócio britânico”.
Segundo ele, a nova ordem internacional tratou de atribuir-se legitimidade exclusiva
para agir em nome da comunidade de nações, usando a força sempre que considerasse
adequado e em obediência às “modernas noções de justiça”.
A doutrina da nova ordem internacional global, para Chomsky, resume-se à
palavra de ordem: “os tiranos que se cuidem”. Sua análise é focada nos objetivos
anunciados pelos Estados Unidos, e certamente seu “sócio britânico” e pela OTAN para
a intervenção em diversas partes do mundo com os objetivos anunciados de “garantir a
estabilidade”; “conter a limpeza étnica”; e “garantir a credibilidade da OTAN”.
Ao tratar das intervenções humanitárias, Chomsky não se restringe a enquadrar o
termo na definição legal constante das convenções internacionais de Direito
Humanitário. Considera intervenções humanitárias as ações, embora unilaterais, de
potências militares no sentido de retórica e formalmente justificarem a manutenção da
paz em regiões conturbadas, tendo como base os princípios de respeito aos direitos
humanos e humanitários mais relevantes.
Na perspectiva chomskyana, são as grandes potências ocidentais, mais do que
tudo através da OTAN, que praticam crimes internacionais (genocídio, crimes contra a
humanidade e crimes de guerra) nos dias atuais, sob o manto de construção da
democracia e de respeito aos direitos humanos – o que constitui, por óbvio, uma
inversão na perspectiva tradicionalmente aceita, sobretudo pelos realistas. A estas ações
Chomsky contrapõe inúmeros exemplos em que as potências ocidentais toleram ou
mesmo estimulam – na medida em que emprestam apoio político, militar e financeiro –
as atrocidades cometidas pelos amigos, aqueles que, no exercício dos poderes locais,
dão sustentação à política internacional que lhes interessa. É o caso dos amigos turcos,
em 1997, sob Clinton:

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Graças ao fornecimento constante de armamento pesado, treinamento


militar e apoio diplomático, a Turquia conseguiu esmagar a resistência
curda, deixando dezenas de milhares de mortos, de dois a três milhões
de refugiados e 3.500 aldeias destruídas (sete vezes o Kosovo
bombardeado pela Otan)” (2003b, p. 18).

O que outros autores vêem como contingência natural da política do mais forte
sobre os mais fracos, política, financeira e militarmente, Chomsky vê como conivência
interessada em legitimar políticas semelhantes em outras partes do planeta.
Praticamente todos os governos fizeram o impossível para se aliar à
coalizão liderada pelos Estados Unidos, sempre por seus próprios
motivos. Assim, um dos primeiros países a se aliar, com grande
entusiasmo, foi a Rússia. Por que a Rússia? Porque eles querem
autorização para dar continuidade, mais ativamente, às suas próprias
atrocidades na Chechênia. A China aliou-se de muito bom grado. Eles
ficam encantados por contar com o apoio norte-americano para
repressão no ocidente da China. A Argélia, um dos maiores países
terroristas do mundo, foi recebida de braços abertos na ‘coalizão
contra o terrorismo’. [...] Atualmente, há tropas turcas em Cabul, ou
logo haverá, pagas pelos Estados Unidos para travar a Guerra contra o
Terrorismo. Por que a Turquia está oferecendo soldados? Na verdade,
eles foram o primeiro país a oferecer tropas aos Estados Unidos no
Afeganistão [...]. Foi por gratidão – porque os Estados Unidos foram o
único país que se dispôs a lhes dar apoio maciço em suas próprias
enormes atrocidades terroristas no sudeste da Turquia, nos últimos
anos. […] Clinton estava inundando o país de armas. A Turquia
tornou-se o principal destinatário de armas do mundo, além de Israel e
do Egito. (2005, pp. 21-22)

Por esse critério, os Estados violentos podem agir como quiserem, com a
aprovação das classes instruídas e da mídia. Estados com ímpetos imperiais regionais,
como a Rússia e a China, se sentiriam cômodos em seguir a doutrina norte-americana de
segurança nacional. A China estaria respondendo exatamente como esperado, através do
aumento de sua capacidade militar nuclear ofensiva, que obrigaria a Índia a responder
da mesma maneira, o que, por sua vez, obrigaria o Paquistão a responder em igual
proporção. Logo, essa cadeia atingiria o Oriente Médio e grande parte do resto do
mundo. A administração norte-americana estaria, assim, dando exemplo ao resto do
mundo ao desenvolver novas armas nucleares, o que certamente faria com que outros
viessem a agir da mesma maneira, já que não seria razoável esperar o contrário. Como
consequência, em sua visão, atualmente “o mundo é um lugar mais inseguro” (2004a, p.
34).
Em conexão com tais desenvolvimentos, está a ideia de que os grandes estados
do mundo são estados terroristas. Nesse aspecto, Chomsky vale-se dos ensinamentos de

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Santo Agostinho para demonstrar que é tênue a diferença na caracterização de “piratas e


imperadores”:
Santo Agostinho conta a história de um pirata capturado por
Alexandre, o Grande, que lhe perguntou: ‘Como você ousa molestar o
mar?’. ‘E como você ousa desafiar o mundo inteiro?’, replicou o
pirata. ‘Pois, por fazer isso apenas com um pequeno navio, sou
chamado de ladrão; mas você, que o faz com uma marinha enorme, é
chamado de imperador.’ A resposta do pirata [...] ilustra com certa
exatidão as relações atuais entre os Estados Unidos e vários outros
atores no plano do terrorismo internacional: a Líbia, facções da
Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e outros.
(Chomsky, 2006, p. 259)

Em relação a um dos temas mais caros a Chomsky, o terrorismo, ele o vê como


um dispositivo em que os sócios co-constroem, co-justificam e se responsabilizam pelas
realidades criadas. No contexto da guerra fria,
Não é (era) terrorismo (…) quando forças paramilitares, operando a
partir de bases americanas e treinadas pela CIA, bombardeiam(avam)
hotéis cubanos, afundam(avam) navios pesqueiros e atacam(avam)
navios soviéticos em portos cubanos, envenenam(avam) plantações e
animais de criação, tentam(avam) assassinar Fidel Castro e assim por
diante, em missões que eram realizadas quase semanalmente no auge
da campanha. (Chomsky, 2006, p. 10)

Para Chomsky o significado original de terrorismo considerado como terrorismo


de Estado precisa ser resgatado. Originalmente, estes são atos de violência cometidos
pelo Estado, no fim do século XVIII, com o intuito de garantir a submissão popular.
Com o passar do tempo, atendendo a interesses dos imperadores de todos os tipos, o
termo passara a ser empregado para designar, principalmente, terrorismo de pequena
escala, praticado por pessoas ou grupos (2006, p. 259). Tal concepção abre caminho, a
seu juízo, para a afirmação do princípio segundo o qual:
quando alguém pratica o terrorismo contra nós ou contra nossos
aliados, isso é terrorismo, mas, quando nós ou nossos aliados o
praticamos contra outros, talvez um terrorismo muito pior, isso não é
terrorismo, é antiterrorismo ou guerra justa” (2005, p. 78).

O mesmo padrão de comportamento se aplicaria à Colômbia, a cujo país


Chomsky atribui o pior histórico de violação dos direitos humanos da década de 1990,
ao mesmo tempo em que é o maior beneficiário da ajuda e do treinamento militar dos
EUA para “eliminar” seus inimigos (deles e dos próprios EUA). Certamente, no caso da
Colômbia, há a particularidade de que as atrocidades são atribuídas a paramilitares,
estreitamente ligados às forças armadas que recebem ajuda e treinamento dos Estados

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Unidos da América, “todos seriamente envolvidos com o narcotráfico”. A questão da


plausibilidade das razões apresentadas para as intervenções unilaterais persiste:
[...] o pretexto se baseia na notável pressuposição, praticamente não
questionada, de que os EUA têm o direito de empreender ações
militares e travar guerras químicas e biológicas em outros países para
erradicar uma lavoura de que não gostam, apesar de, supostamente, as
‘modernas noções de justiça’ não darem à Colômbia – ou à Tailândia,
à China e a muitos outros – o direito de fazer o mesmo na Carolina do
Norte para eliminar uma droga muito mais letal que foram obrigados
a aceitar (e divulgar) sob a ameaça de sanções comerciais, a um custo
de milhões de vidas (2003, p. 25).

A grandiosa estratégia imperial caracterizada por Chomsky só é possível graças


à sustentação e à participação na própria estratégia de instituições globais poderosas.

OS SÓCIOS DO IMPÉRIO

Se o império atual tem como nome Estados Unidos da América e seu sócio
estatal principal é o Reino Unido, na descrição de Chomsky os objetivos não são
alcançados sem que participem da grandiosa estratégia imperial os setores que lhe dão
suporte: a mídia, o poder militar, a Intelligentsia abrigada nas grandes universidades do
mundo. Os sócios do império seriam, na realidade, co-participantes de um aparato
propagandístico montado para dar sustentação ao sistema político e econômico vigente,
diante do que a economia capitalista é de fato o que move a estratégia.
A primeira operação de propaganda governamental norte-americana teria sido
produzida pelo presidente Woodrow Wilson, com a assessoria de diversos intelectuais,
por meio da Comissão Creel, com o objetivo de “transformar uma população pacifista
numa população histérica e belicosa que queria destruir tudo o que fosse alemão, partir
os alemães em pedaços, entrar na guerra e salvar o mundo.” (Chomsky, 2014, p. 7)
Segundo Chomsky, aquela teria sido o contraponto da propaganda nazista de Hitler,
“patrocinada pelo Estado, quando apoiada pelas classes instruídas” e teria como
pressuposto a ideia, comum a certo liberalismo, ao leninismo e ao nazismo, de que “as
massas ignorantes (…) são estúpidas demais para compreender sozinhas” (Chomsky,
2014, p. 8) os assuntos governamentais, em especial os de política internacional. De
acordo com essa visão, a função do “rebanho desorientado” é a de ser “expectador”.
(Chomsky, 2014, p. 8) Assim,
Para a classe política e para os responsáveis pela tomada de decisões,
elas têm de oferecer uma percepção razoável da realidade, embora

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também tenham de incutir nele (o rebanho) as convicções certas. Mas


lembrem-se: existe aqui uma premissa não declarada. A premissa não
declarada - e mesmo os homens responsáveis têm de escondê-la de si
próprios - tem que ver com a pergunta de como eles alcançam a posição
em que têm autoridade para tomar decisões. A maneira como fazem
isso, naturalmente, é servindo as pessoas que têm poder de verdade. As
pessoas que têm o poder de verdade são as donas da sociedade, e elas
fazem parte de um grupo bem reduzido. (Chomsky, 2014, p. 9-10)

O elemento propulsor da propaganda política é o medo, que faz com que as


pessoas se mobilizem contra o que consideram uma ameaça a suas próprias existências.
“A lógica é cristalina. A propaganda política está para uma democracia assim como o
porrete está para um Estado totalitário.” (Chomsky, 2014, p. 10) Seu compromisso é
“controlar a mente da população.” (Chomsky, 2014, p. 10)
Desde então, a propaganda estaria presente nos governos dos Estados Unidos.
Durante o governo Ronald Reagan, que assumiu o poder em 1981, o objetivo seria o
combate ao “terrorismo internacional”:
O governo estava empenhado na implementação de três políticas
correlatas, todas realizadas com sucesso considerável: 1)
transferência de recursos dos pobres para os ricos; 2) um aumento em
larga escala da economia estatal pela forma tradicional, por
intermédio do Pentágono (orçamento militar), artifício para compelir
o público a financiar a indústria de alta tecnologia, por meio do
cativo mercado estatal, para a produção de inutilidades de alta
tecnologia e, com isso, contribuir com o programa de subsídios
públicos, lucros privados (denominados “livre iniciativa”); e 3) um
aumento significativo da intervenção americana, de operações
subversivas e do terrorismo internacional (no sentido lexicológico do
termo). (Chomsky, 2006, p. 14-15)

A ideia de que “Os verdadeiros objetivos a que tais políticas visam não podem
ser revelados ao povo” casa bem a conclusão de Chomsky com ideia de uma grandiosa
estratégia imperial da qual os bobos da corte não se dariam conta de como são
utilizados pelos governos e seus sócios. O artifício para alcançar os objetivos junto às
populações manipuláveis seria o medo, uma verdadeira “artimanha" por meio da qual a
propaganda se valeria de recursos discursivos como “Império do Mal”, “guerra contra o
terror”, “quem não está conosco está contra nós”, entre outros.
No auge da Guerra Fria, mais precisamente em 1971, em debate com Michel
Foucault na TV holandesa, Chomsky contra-constrangia o sistema, afirmando:
Pelo que sei, na mídia de massas americana você não pode encontrar
um único jornalista socialista ou um único comentarista político
sindicalizado que seja socialista. Do ponto de vista ideológico a mídia
de massas é quase 100% ‘capitalista de estado’. Num certo sentido,

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temos aqui a ‘imagem-espelho’ da União Soviética, onde todos que


escrevem no Pravda representam a posição a que chamam
‘socialismo’. [...] há a marcante homogeneidade ideológica da
intelligentsia americana em geral, que raramente provém de uma das
variantes da ideologia capitalista estatal (liberal ou conservadora)
(Chomsky e Foucault, 2007, p. 75, tradução do autor)

Assim vista por ele, a grande mídia é aliada dos grandes estados na ocultação de
fatos de interesse de suas sociedades. Um dos aspectos em que Chomsky mais insiste
quanto ao papel desempenhado pela mídia é com relação à ocultação de informações do
grande público, com o que se manifestaria a intenção de retirar a liberdade de
informação, ao contrário do que os postulados liberais levariam a crer.
A guerra terrorista dos EUA em El Salvador não é assunto para
discussão entre pessoas respeitáveis; isso não existe. O esforço
americano de "deter" a Nicarágua é assunto discutível, mas dentro de
limites estreitos. (Chomsky, 2006, p. 65)

A propósito do conflito árabe-israelense, Chomsky faz menção ao veto do


governo Carter à proposta construída, no âmbito das Nações Unidas, de uma resolução
que concluiria pela coexistência de dois estados na Palestina, mediante o entendimento
de que os estados da região teriam o direito de viver em paz, dentro de fronteiras
seguras e reconhecidas. Atendendo a pressões de Israel e de setores político-
econômicos poderosos nos EUA, o governo Carter vetara a proposta, com a
complacência da mídia e da intelectualidade.
O sistema ideológico-midiático ao qual Chomsky faz referência é aquele que
deliberadamente distorce informações, vendendo a ideia de que a política norte-
americana seria “moderada”, enquanto que a dos outros (países e grupos) seria
“extremista" ou mesmo “terrorista”, ao passo que os métodos e as intenções seriam os
mesmos ou assemelhados.
Chomsky se refere igualmente a um padrão duplo adotado pelos principais
veículos da mídia, em Israel e nos Estados Unidos, diante de um mesmo acontecimento.
No contexto do conflito árabe-israelense (que ele entende ser melhor designado como
conflito árabe-israelense-norte-americano), Chomsky diz que o envio de novos
helicópteros militares, em 2001, foi digno de ampla difusão pela mídia israelense,
enquanto que a mídia norte-americana escondeu a informação dos contribuintes,
certamente por razões políticas.
A única menção que se fez do acontecimento nos EUA foi numa
matéria assinada em Raleigh, Carolina do Norte. A condenação que a

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Anistia Internacional fez da venda de helicópteros americanos foi


ignorada também. E nada mudou nos meses seguintes, inclusive em
relação a uma carga despachada em fevereiro de 2001, por conta de
uma transação de 5 bilhões de dólares, a compra de helicópteros
Boeing Apache Longbow, os mais avançados do arsenal americano,
noticiada superficialmente nos Estados Unidos como simples
transação comercial. (Chomsky, 2006, p. 263)

No contexto do ataque às torres gêmeas, Chomsky faz menção ao editorial do


New York Times do dia 16 daquele setembro de 2001, em que o jornal se pronuncia de
maneira a gerar comoção, alimentar o medo e ao mesmo tempo angariar apoio para uma
investida militar: “Os responsáveis agiram pelo ódio que nutrem contra os valores
prezados no Ocidente, tais como liberdade, tolerância, prosperidade, pluralismo
religioso e voto universal”. (Chomsky, 2002, p. 33) A conclusão proporcionada por
Chomsky é de que os atos dos EUA são irrelevantes para explicar os ataques às torres
gêmeas e demais espaços territoriais norte-americanos naquele dia trágico de setembro
de 2001. Se nada pode justificar o acontecimento de 11 de setembro, não seria
apropriado, na perspectiva chomskyana, aceitar a posição dos EUA como o de uma
“vítima inocente”, com o que se estaria ignorando "o histórico de suas ações".
(Chomsky, 2002, p. 38)
No aspecto militar, a OTAN e a Escola das Américas teriam papel fundamental
na criação de antagonistas e na difusão de ideias que contribuiriam para o sucesso da
estratégia. A OTAN seria responsável pelas piores campanhas de limpeza étnica da
década de 1990 no Leste Europeu. Lideraria um esquema e um discurso capaz de dar
importância inquestionável ao poderio militar, incluindo a distribuição de armamentos,
o que requereria vultosos investimentos e alimentaria novos conflitos, por sua vez
justificadores de mais investimentos. Em relação à associação liderada por Clinton e
Blair, diz Chomsky:
A nova geração estabeleceu os limites colocando conscientemente a
maior quantidade possível de armas nas mãos de assassinos e
torturadores - não apenas armas, mas aviões, tanques, helicópteros,
todos os mais avançados instrumentos de terror - às vezes em
segredo, porque as armas eram enviadas violando legislação do
Congresso. (2003b, p. 19).

No que especificamente se refere à Escola das Américas, Chomsky destaca entre


seus logros a aniquilação da Teologia da Libertação, mediante o discurso de
“aperfeiçoamento democrático”. Seja no contexto latino-americano seja no contexto do
conflito árabe-israelense-norte-americano, o poder militar norte-americano

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potencializaria amigos, os quais certas vezes se tornam inimigos. A política norte-


americana teria contribuído para não apenas tornar o mundo mais inseguro, mas
também para afirmar “pressupostos racistas que não seriam tolerados se declarados
abertamente.” (Chomsky, 2006, p. 47)
O discurso militar e midiático teria sustentação da maioria dos intelectuais, os
quais escreveriam artigos e dariam aulas em que a tônica seria para o fator civilizador
das políticas e ações dos principais estados do planeta e para os “absurdos” praticados
pelos estados menores, sobretudo aqueles que são qualificados como estados falidos. Aí
estariam incluídas vozes que festejariam que os Estados Unidos fossem firmes, duros,
determinados, como forma preventiva e educativa, e sempre com a finalidade de
instaurar ou restaurar a democracia e o respeito aos direitos humanos.
A propósito do conflito soviético no Afeganistão, Chomsky trabalha com a
pressuposição de que o poder militar teria construído e a mídia expandido o “esforço
para apagar os registros e fazer crer que os Estados Unidos foram meros e inocentes
espectadores.” (Chomsky, 2002, p. 20)
Os militares são acusados por Chomsky de darem sustentação a esquemas dos
quais fazem parte prisões secretas, onde os detentos são mantidos em "condições
chocantes e sujeitos a espancamentos e torturas com choques elétricos” (Chomsky,
2006, p. 92), entre outras práticas pré-modernas. No que se refere ao conflito com a
Nicarágua, Chomsky diz que
Os terroristas que (George) Shultz comanda na Nicarágua (…) são
especializados justamente em ataques assassinos contra civis,
acompanhados de torturas, estupros, mutilações; a odiosa história de
terror deles está bem documentada, embora tenha sido ignorada e
esquecida rapidamente, e até negada pelos partidários do terrorismo.
(Chomsky, 2006, p. 119)

Na aliança envolvendo o poder militar, a mídia e os intelectuais, o objetivo é


certamente "mobilizar a população” para a sustentação do status quo político e
econômico global.

BEYOND CHOMSKY

Em outro artigo a respeito do autor, publicado em 2008, concluí que "O desafio
da sociedade é imenso, considerando o quadro de análise chomskyano”. (Benvenuto,
2008, p. 145) Tendo em vista que para Chomsky “é sensato lutar por um mundo melhor,

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mas não alimentar veleidades e ilusões sobre o mundo em que vivemos” (Chomsky,
2003b, p. 157), vale a pena concluir este artigo com uma breve reflexão a respeito do
tamanho do desafio contido por trás de suas palavras.
Tomarei como elemento chave para esta breve reflexão uma das questões mais
relevantes na análise chomskyana: a ideia de que propaganda política a que ele se refere
é uma propaganda de guerra para sustentar a grandiosa estratégia imperial, embora não
exista uma guerra global em termos jurídicos. A esse respeito, Chomsky dirá que não
temos uma guerra descrita enquanto tal porque o direito internacional contemporâneo
não dá sustentação ao conceito. Em outras palavras, o sistema do qual faz parte a
intelligentsia internacional cria suas normas e definições jurídicas conforme as
conveniências políticas.
Esta condição nos coloca numa enrascada sem tamanho na medida em que, se
todos esses poderes estão articulados em torno de uma propaganda de guerra capaz de
sustentar a grandiosa estratégia imperial - e eles são de tal forma poderosos -,
poderíamos ser tentados a sustentar a conclusão de que há duas saídas possíveis.
A primeira saída seria o esclarecimento da população - como Chomsky vem
propondo por meio de suas palestras, livros e filmes. A análise chomskyana parece
conduzir à compreensão de que a alternativa é o empoderamento das pessoas, por meio
de informação, para que entendam melhor o mundo em que vivem e a partir dessa
tomada de consciência possam fazer melhores escolhas, sobretudo relacionadas aos
governos. A partir da tomada de consciência da forma como os políticos, a mídia, a
Intelligentsia e o poder militar manipulam as consciências humanas, poderia haver um
levante popular de tamanha proporção que o próprio sistema se encarregaria de se
rearrumar em termos mais democráticos.
Não se pode deixar de enxergar, entretanto, a possibilidade de que o complexo
quadro de análise proposto por Chomsky considere pouco as dissidências existentes
dentro do próprio sistema - as quais poderiam estabelecer uma permanente tensão entre
posições - e que o jogo politico esteja de tal maneira embolado que as populações,
sobretudo dos grandes países do mundo, prefiram adotar uma posição conformista.
Nesse quadro, a cada denúncia contra os pressupostos da grandiosa estratégia
imperial o sistema responderia de tal forma articulado que as palavras dos articulistas
críticos não passariam de fagulhas lançadas ao vento capazes de desaparecer sem que o
poder político, a mídia, os militares e a intelligentsia tomassem conhecimento de sua
breve existência.

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Finalizo este artigo um dia após a autorização de Donald Trump para os


bombardeios unilaterais na Síria, atingindo civis de forma indiscriminada, segundo se
tomou conhecimento. As ações de Trump deverão ser descritas por Chomsky como
crimes contra a humanidade não respaldados pelo direito internacional contemporâneo.
A propósito das relações entre a política e a mídia, cabe lembrar aqui que a
eleição de Donald Trump foi realizada em plena era da Internet aberta, e deu margem a
acusações de manipulação do eleitorado pela mídia, tanto a tradicional como a
alternativa, com sinais de virulência e desatino político. O acesso à informação,
conforme temos visto em tempos de Internet aberta, pode levantar a suspeita de que o
eleitorado não propriamente se deixa enganar, mas faria parte de uma engrenagem da
qual ele próprio é produtor de sentidos.
Diante desse tipo de cenário cabe perguntar se as populações das nações
poderosas (e do mundo como um todo) estariam dispostas um dia a se insurgirem contra
o estado de coisas que parecem conhecer. Havendo o desejo, quais meios a população
dispersa possui para se insurgir contra poderes armados com mísseis, bombas, TVs,
rádios e Internet aberta a todo tipo de informação. E se estivermos diante de um estado
de coisas em que as populações não sejam tão manipuladas como supõe Chomsky, mas
prefiram permanecer diante de realities de TV (como os big brothers e as competições
gourmet de hoje em dia), redes sociais e telas de sexo interativo - deixando a política
nacional e internacional para poucos? Não concluirei que esta escolha importaria em
adesão à grandiosa estratégia imperial, mas que deixando as questões que importam
aos poderosos de sempre as populações não parecem ser nada ingênuas ou manipuladas.
Parecem ser parte do jogo, como acontece com a participação, ora direta, ora indireta,
nos big brothers.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIVROS
BARSKY, R. F. 2004. Noam Chomsky – A vida de um dissidente. São Paulo: Conrad do
Brasil.
BENVENUTO, J. Lua Nova, São Paulo, 73: 123-145, 2008.
CHOMSKY. 2002. 11 de setembro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
CHOMSKY, N. 2003a. Contendo a democracia. Rio de Janeiro: Record.
CHOMSKY, N. 2003b. Uma nova geração decide o limite: os verdadeiros critérios das
potências ocidentais para suas intervenções militares. Rio de Janeiro: Record.

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CHOMSKY, N. 2004a. “Os dilemas da dominação”. In: BORON, Atílio (org.). Nova
hegemonia mundial: alternativas de mudança e movimentos sociais. Buenos Aires:
Clacso, pp. 15-36.
CHOMSKY, N. 2004b. O império americano. Rio de Janeiro: Campus.
CHOMSKY, N. 2005. Poder e terrorismo. Rio de Janeiro: Record.
CHOMSKY, N. 2006. Piratas e imperadores, antigos e modernos. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil.
CHOMSKY, N.; FOUCAULT, M. 2007. The Chomsky-Foucault debate on human
nature. New York: The New Press.
CHOMSKY, N. 2014. Mídia: propaganda política e manipulação. São Paulo: Martins
Fontes.
HALPERIN, Jorge. 2003. Conversaciones con Chomsky. Santiago: Editorial Aún
Creemos en los Sueños.
MITCHELL, P. R.; SCHOEFFEL, J. (orgs.) 2005. Para entender o poder – O melhor
de Noam Chomsky. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

FILMES
Manufacturing consent: Chomsky and the media. Mark Achbar e Peter Wintonick
(diretores). 1992. Austrália, Finlândia, Noruega, Canadá: Zeitgeist Films, 167 min. On
globalization. Rage against the machine. Entrevista com Zach De La Rocha. 11 min.
Poder e terrorismo: Noam Chomsky em nossa época. 2002. John Junkerman (diretor).
Nova York: First Run Features. 74 min.
Power versus justice. Fragmentos de debate na TV holandesa em 1971, publicados no
Youtube. Parte 1 (06:50 min.); Parte 2 (06:02 min.)
The corporation. Mark Achbar e Jennifer Abbott (diretores). Canadá. 145 min.

INTERNET
http://www.chomsky.info/

AUTOR
* Jayme Benvenuto é Professor Adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-
americana (UNILA) no curso de Relações Internacionais. Bolsista de Produtividade em
Pesquisa 2 do CNPq. E-mail:
benvenutolima@uol.com.br / jayme.benvenuto@unila.edu.br

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Dossiê

OPINIÃO PÚBLICA, HEGEMONIA E CULTURA


NOS ‘CADERNOS DO CÁRCERE’ DE A. GRAMSCI
Luciana Aliaga*
Andressa Lima da Silva**

RESUMO: A investigação das relações complexas que se estabelecem na sociedade


moderna entre os aparelhos de opinião pública, a cultura e os processos de hegemonia
analisados nos Cadernos do Cárcere por Antonio Gramsci, constituem o centro de
interesse do presente artigo. Para consecução do nosso objetivo tomamos como ponto
de partida uma das características chave da opinião pública: o desempenho de “funções
de partido” por jornais, revistas e pelo setor editorial em geral. Estas “funções de
partido” ao mesmo tempo tornam evidente o caráter privado dos aparelhos de “opinião
pública” e explicitam suas conexões com as classes sociais, muitas vezes não
imediatamente perceptíveis.
Palavras-chave: Opinião pública; Hegemonia; Cultura; Partidos políticos.

INTRODUÇÃO

Nos Cadernos do Cárcere, já no primeiro caderno escrito entre fevereiro e


março de 1929[1], Gramsci caracteriza o exercício “normal” da hegemonia como “uma
combinação da força e do consenso que se equilibram, sem que a força suplante em
muito o consenso, ao contrário, apareça apoiada pelo consenso da maioria, expresso

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pelos assim ditos órgãos da opinião pública” (GRAMSCI, Q.1, § 48, p. 59[2]). Deste
parágrafo podemos deduzir dois elementos importantes da teoria de Estado gramsciana,
de clara influência maquiaveliana[3]. Em primeiro lugar o Estado moderno se mantém a
partir de um equilíbrio entre força e consenso e, portanto, o conflito está sempre
subjacente às relações sociais e políticas. De acordo com Gramsci o consenso permite à
classe ser dirigente, enquanto a força torna-a dominante (Cf. Q. 1, § 44, p. 41). Este é,
portanto, um Estado de classes e não um abstrato Estado ético. A segunda constatação
que se pode fazer é que a relação entre as classes sociais e entre estas e o Estado-
governo, ou, nos termos gramscianos, a sociedade política, é mediada pela cultura,
âmbito de ação dos aparelhos privados de hegemonia[4] em geral e especificamente dos
assim chamados “aparelhos de opinião pública”.
Para Gramsci os jornais, as revistas e o setor editorial em geral, constituem
importantes pontos de contato entre a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre a
força e o consenso. Neste sentido, podem se tornar instrumentos do Estado para
“organizar e centralizar certos elementos da sociedade civil” “quando quer iniciar uma
ação pouco popular” (cf. Q. 7, § 83, p. 914). Mas os órgãos de opinião pública são
fundamentais também para as classes não hegemônicas, isto é, o conjunto das classes
subalternas somente pode construir uma nova concepção de mundo se for capaz de
universalizar a ética e a política presente em sua filosofia, criando movimentos
culturais, “movendo” a opinião pública, em suma, criando consentimento em torno de
sua própria visão de mundo.
Neste sentido, os diferentes órgãos da opinião pública não apenas atuam na
formação do consenso, mas de fato “educam” (Cf. Q. 10, § 44, p. 1330-1331), isto é,
conformam mentalidades e aceitação em torno de determinadas ideias e políticas.
Gramsci, deste modo, contraria a ideia mesma de “opinião pública”, ou, melhor, ele põe
em relevo seu caráter “privado”, mostrando que toda opinião está ligada por muitos fios,
às vezes não imediatamente perceptíveis, aos grupos de interesse e às classes sociais.
Os aparelhos de opinião pública desempenham um papel de grande importância
no processo de luta entre hegemonias ao nível da consciência. Para o autor, em certas
circunstâncias “são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros
partidos” (Q.1, § 116, p.104). Ao demonstrar que as linhas editoriais guardam conexões
com interesses de grupos, Gramsci sinaliza para uma função que é específica dos
partidos políticos: sintetizar ou influenciar a concepção de mundo e a ética adequada à
determinada classe, universalizando-a para o conjunto da sociedade. Neste sentido,

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buscaremos esclarecer em primeiro lugar como Gramsci define os partidos políticos


nosCadernos do Cárcere, para em seguida refletir sobre as “funções de partido”
desempenhadas pelos aparelhos de opinião pública e, por último, suas diversas relações
na sociedade civil com os processos culturais e políticos de hegemonia.

PARTIDO POLÍTICO E FUNÇÃO DE PARTIDO

O partido político é definido por Gramsci nos Cadernos do Cárcere como o


“moderno príncipe”, o “condottiero ideal” (Cf. Q. 13, § 1, p. 1555). Numa clara
referência à Maquiavel, o autor destaca o papel fundamental da direção e da formação
política que têm os partidos modernos. Esta função diretiva e organizativa deve ser
compreendida no interior das relações de forças na sociedade civil e no Estado. O
“momento” onde se localiza o partido é aquele “essencialmente político”, isto é, o
momento em que a classe social ou o grupo específico torna-se capaz de superar as
demandas meramente econômicas e alcançar o terreno da universalidade (Cf. Q. 13, §
17, p. 1584).
O momento anterior, econômico-corporativo, caracteriza-se justamente por uma
solidariedade essencialmente econômica de grupo profissional, assim, não há
consciência de unidade do grupo social mais amplo. Por outro lado, a formação de uma
vontade coletiva localiza-se num estágio superior, no momento da formação da
consciência de classe e absorção dos interesses dos grupos subalternos. Esta é a fase
mais estritamente política que “assinala uma passagem nítida da estrutura para a esfera
das superestruturas complexas, é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se
transformam em partido” (idem). Esta elaboração política de interesses de grupo
consiste na formação mesma do partido político, como agente capaz de sintetizar a ética
e a política adequada à classe que representa.
Destarte, ao partido cabe resguardar os interesses da classe que representa,
porém, simultaneamente, deve assimilar em certa medida os interesses das classes
subordinadas. Deste modo, difunde sua visão de mundo de forma que os demais grupos
sociais a tomam como sua própria visão. A difusão por toda área social de sua visão de
mundo e a aceitação desta pelos demais grupos contribui para a construção da
hegemonia do grupo social fundamental, assim:
determinando além da unicidade intelectual dos fins econômicos e
políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as

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questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo,


mas num plano ‘universal’ criando assim a hegemonia de um grupo
social fundamental sobre uma série de grupos subordinados (idem).

Nos Cadernos, contudo, Gramsci observa que no mundo moderno, “os partidos
orgânicos e fundamentais, por necessidade de luta ou por alguma outra razão,
dividiram-se em frações, cada uma das quais assume o nome de partido”, de modo que,
muitas vezes o “Estado-Maior intelectual do partido orgânico” opera como se fosse uma
“força dirigente em si mesma, superior aos partidos e às vezes reconhecida como tal
pelo público”. E arremata:
Esta função pode ser estudada com maior precisão se se parte do
ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista
(ou grupo de revistas) são também ‘partidos’, ‘frações de partido’ ou
“funções de determinados partidos” (Q. 17, §37, p. 1939).

Observe-se que, para o autor, os jornais e as revistas, isto é, os aparelhos de


opinião pública, devem ser estudados em sua conexão com os “partidos orgânicos e
fundamentais”, ou, pode-se dizer, com os grupos sociais que travam disputa político-
cultural na sociedade civil no interior das lutas por hegemonia. Neste sentido, ainda que
sejam reconhecidos como uma “força dirigente em si mesma, superior aos partidos” – o
que supõe certa “isenção ideológica” – são “aparelhos” de opinião, isto é, desempenham
funções políticas na sustentação de certa visão de mundo ligada a determinados grupos
sociais.
Note-se que quando Gramsci se refere aos aparelhos de opinião pública como
partidos ele utiliza aspas, procedimento usado nos Cadernos para indicar que
determinado termo ou conceito está sendo utilizado fora de seu sentido habitual, neste
caso, determinadas revistas ou jornais são “partidos” na medida em que desenvolvem
funções de partido e estão enraizados em grupos sociais fundamentais.
Gramsci, portanto, distingue este tipo de “partido” específico, que abstrai a ação
política imediata, isto é, dos homens de cultura, que tem a função de dirigir do ponto de
vista da cultura, da ideologia geral, um grande movimento de partidos afins (frações de
um mesmo partido orgânico). Ao analisar a situação da Itália de seu tempo, Gramsci
afirma que, pela falta de partidos organizados e centralizados, “não se pode prescindir
dos jornais: são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros partidos”
(Q. 1, §116, p. 104). Neste sentido, os jornais cumprem duas funções fundamentais:
informação e direção política geral. Esta direção política obviamente não é neutra, ao
contrário, está ligada por muitos fios a determinados grupos (Cf. idem). Ao demonstrar

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que as linhas editoriais guardam conexões com interesses de grupos, Gramsci sinaliza
para uma função que é específica dos partidos políticos: sintetizar ou influenciar a
concepção de mundo e a ética adequada à determinada classe, universalizando-a para o
conjunto da sociedade. Para esta função deve-se da mesma forma levar em conta a
atuação dos “intelectuais”, mas neste caso específico, sua atividade concentra-se na
capacidade de influenciar as linhas editoriais de acordo com os interesses de grupos, de
certa forma, estes indivíduos constituem-se em dirigentes dos jornais (Cf. Q. 1, § 116, p.
108-109).

HEGEMONIA COMO PROCESSO EDUCATIVO

Aspecto importante dos aparelhos de opinião pública – a imprensa, os jornais, as


revistas, e o setor editorial em geral – é seu papel educativo na formação de um
determinado clima cultural, isto é, no convencimento, na conformação da opinião. O
fato de a hegemonia não se realizar apenas por meio dos aparelhos repressivos do
Estado, mas também por meio dos aparelhos privados de hegemonia, põe em relevo seu
aspecto “pedagógico”, neste sentido, compreende-se a afirmação de Gramsci segundo a
qual “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica [...]” (Q.
10, §44, p. 1331).
Nesse sentido, os aparelhos de opinião pública, que estão estritamente ligados ao
exercício da hegemonia através de sua atividade educativa formam consenso e
difundem determinadas concepções de mundo na sociedade. O conjunto de concepções
que difundem, a despeito de se apresentarem como fria análise de fatos concretos e, não
obstante reivindicarem isenção ideológica estão, invariavelmente ligados à filosofia de
um tempo, eivada por ideias-força que se tornaram senso comum, “religião de um
tempo histórico”, que servem de apoio ao status quo. A opinião pública, portanto, se
constitui enquanto o ponto de contato entre a sociedade civil e a sociedade política,
entre a força e o consenso, justamente por atuar na relação que se estabelece entre os
grupos dirigentes e aqueles dirigidos.
Compreende-se, destarte, que a atividade educativa dos aparelhos de opinião
pública é imprescindível para os processos de hegemonia, seja para sua manutenção
pelos grupos dominantes ou para a construção de uma nova hegemonia pelas classes
subalternas. No caderno 24, ainda sobre os jornais, Gramsci ressalta que estes se
distinguem entre o jornal de informação, que não possui nenhum partido explícito – que

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também é definido como jornal popular, por ser destinado às massas populares –, e o
jornal de opinião, que consiste num órgão de partido, e é dedicado a um público restrito.
Enquanto no último caso as conexões com a classe são evidentes, no primeiro estes
liames não são explícitos e, via de regra, são mais difíceis de perceber imediatamente.
Neste caso é necessário investigar seu editorial, o conjunto das opiniões expressas, os
interesses que defende, bem como os intelectuais que o dirigem e suas conexões
individuais para definir quantos fios o ligam a quais classes ou frações de classe. Isto
porque é de fundamental importância para as classes dominantes que os grandes
“jornais populares”, principalmente aqueles de circulação nacional, apareçam como
neutros, imparciais, defensores de supostos interesses universais, de uma indiferenciada
e homogênea sociedade civil. Os jornais populares se tornam, assim, os grandes
educadores da massa. Eles “simplificam” a realidade social para o homem médio e,
assim, naturalizam o que é social e velam o conflito entre as classes.
Ao contrário, para Gramsci, a imprensa consiste na parte mais dinâmica da
estrutura ideológica da classe dominante (Cf. Q. 3, § 49, p. 332-333), voltada para
difundir conteúdos acerca da sociedade sob uma determina perspectiva. Esta elaboração
madura de Gramsci começa a ser elaborada nos anos anteriores ao cárcere. No artigo
“Os jornais e os operários”, publicado no “Avanti!” em 22 de dezembro de 1916, o
autor afirma:
Tudo que se publica é constantemente influenciado por uma ideia:
servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato:
combater a classe trabalhadora. (...) E não falemos daqueles casos em
que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar,
iludir e manter na ignorância o público trabalhador. (GRAMSCI,
1980, p. 661).

Nesse sentido, observa-se que a concepção de mundo da classe dominante é


hegemônica justamente porque conseguiu tornar-se senso comum, uma fé, uma religião
laica, o que determina que sua suposta isenção seja aceita acriticamente. A concepção
de religião laica é uma elaboração original de Benedetto Croce, que Gramsci define
como “unidade de fé entre uma concepção de mundo e uma norma de conduta adequada
a ela, apresentada em forma mitológica” (Q. 10, §5, p.1217-1218). Gramsci assimila
esse conceito criticamente e o utiliza como uma forma de descrever o papel prático da
ideologia, que seria justamente colocar as massas em movimento, levá-las a ação. A
verdadeira concepção de mundo, neste sentido, se manifesta na ação, por esta razão a
concepção de mundo mais arraigada na cultura é aquela que aparece como natural,

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como uma fé, como uma religião sem deus e sem culto. Neste sentido, somente ao
tornar-se religião (laica) é que uma concepção de mundo terá impacto histórico, isto é,
se tornará hegemônica. Assim, as classes subalternas devem travar também uma batalha
cultural no interior das consciências para construir novas concepções de mundo, que
estejam em consonância com as necessidades concretas de vida, de trabalho e de fruição
do conjunto dos trabalhadores.
Destarte, encontramos outro aspecto da atuação dos dirigentes de jornais e
revistas que pode ser abordado do ponto de vista do seu caráter educativo, este se refere
à possibilidade da elevação das consciências no seio dos grupos subalternos. Neste
sentido, as redações das revistas podem funcionar como círculos de cultura, que tem a
função de “criticar de modo colegiado e contribuir para elaboração de trabalhos dos
redatores individuais, cuja operosidade é organizada segundo um plano e uma divisão
do trabalho racionalmente preestabelecidos (Q.12, §1, p. 1533).
A crítica colegiada está, portanto, voltada à educação recíproca como uma forma
de elevar o nível médio individual, no caso particular dos redatores de revista no qual
cada um é especialista em sua matéria, a troca de informações ou a crítica construtiva
constitui um meio de “alcançar o nível ou a capacidade do mais preparado” (idem).
É este “intercâmbio” de conhecimentos que dá organicidade ao grupo, e não apenas
isto, mas “criam-se também as condições para o surgimento de um grupo homogêneo de
intelectuais preparados para a produção de uma atividade ‘editorial’ regular e metódica
(não apenas de publicações de ocasião e de ensaios parciais, mas de trabalhos orgânicos
de conjunto)” (ibidem).
Temos, portanto, uma relação pedagógica entre os membros mais avançados e os
mais atrasados do grupo, o que pode resultar na elevação do nível médio. O ponto
fundamental a ser observado é que, assim como deve ocorrer no partido, esse tipo de
atividade editorial favorece a crítica da própria consciência, avançando no sentido da
formação de uma consciência integral de mundo, menos contraditória, mais próxima da
criação de uma nova cultura.
Estes organismos, contudo, que não se caracterizam por atividade política direta,
por seu modo de operar, correm o risco de perder o lastro na sociedade, isto é, de ter um
alcance tão restrito que se torna irrelevante. Desta forma só podem atingir os objetivos
como associação cultural se de fato estiverem ancorados em “um movimento de base
disciplinado, [caso contrário] tendem ou a se tornarem igrejinhas de ‘profetas

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desarmados’, ou a se cindirem de acordo com movimentos inorgânicos e caóticos que se


verificam entre os diversos grupos e camadas de leitores” (Q. 6, §120, p. 790).
O que Gramsci demonstra é a necessidade de organicidade, as revistas ligadas
aos grupos subalternos não podem estar no “limbo social”, supostamente em posição
neutra em relação aos grupos sociais, pois esta situação as restringe, faz com que
acabem por se cindirem infinitamente, sem de fato contribuir para o avanço cultural do
país. O mesmo se aplica às revistas dos partidos, igualmente elas devem ter caráter de
massa. A atividade política partidária por si só não é capaz de cumprir a função das
revistas:
“(...) não se deve crer que o partido constitua, por si mesmo, a
‘instituição’ cultural de massa da revista. O partido é essencialmente
político e até mesmo sua atividade cultural é atividade de política
cultural; as ‘instituições’ culturais devem ser não apenas de ‘política
cultural, mas de técnica cultural’. Exemplo: num partido existem
analfabetos e a política cultural do partido é a luta contra o
analfabetismo” (Q. 6, §120, p. 790-791).

É importante notar que Gramsci diferencia política cultural, própria do partido


político (luta contra o analfabetismo) e técnica cultural, própria das “instituições”
culturais (ensinar a ler e a escrever). Segundo o autor, num grupo criado para lutar
contra o analfabetismo não se propõe a ensinar ler e escrever meramente, não é uma
“escola para analfabetos”, mas “planejam-se todos os meios mais eficazes para extirpar
o analfabetismo das grandes massas da população de um país, etc.” (idem). De modo
que ficam claras tanto as conexões, quanto as distinções entre o partido e os aparelhos
culturais que cumprem determinadas “funções de partido”.
As revistas não ligadas aos partidos políticos possuem, contudo, uma limitação
adicional: elas não podem corresponder às necessidades meramente ideológicas na
medida em que precisam também atender às necessidades comerciais:
“Os leitores devem ser considerados de dois pontos de vista
principais: 1. Como elementos ideológicos, ‘transformáveis’
filosoficamente, capazes, dúcteis, maleáveis à transformação; 2.
Elementos ‘econômicos’, capazes de adquirir as publicações e de fazê-
las adquirir por outros (...) É observação generalizada a de que, num
jornal moderno, o verdadeiro diretor é o diretor administrativo e não o
diretor da redação” (Q. 14, §62, p. 1721).

Desta forma, todo o trabalho cultural e educativo que caracteriza a função


política das revistas corre o risco de perder-se na burocracia, já que se coloca a
necessidade de um “técnico” financeiro para cuidar das atividades da redação, ou seja,

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existe a possibilidade dos elementos econômicos sobrepujarem os elementos


ideológicos.
Disto depreende-se que, embora tenhamos dito no início desta discussão que
determinadas organizações ou “instituições” como os jornais e revistas, não sejam
partidos estrito senso podem cumprir esta função, é preciso dizer neste momento que
estas “instituições” não são suficientes para substituir o partido – principalmente para as
classes subalternas –, ou seja, não cumprem plenamente a função de partido, sua ação é
restrita. Esta restrição também diz respeito aos aspectos específicos ligados à militância
no partido, ou seja, a ação política direta não é um acessório, ela é central para
elaboração de novas intelectualidades integrais, neste sentido, somente os partidos são o
“crisol da unificação, de teoria e prática, entendidos como processo histórico real” (Q.
11, §12, p.1387).
Dito de outra forma, a função de partido não substitui o partido, os termos não
são intercambiáveis. Assim, o oposto também é verdadeiro, o partido, embora ligado à
função cultural das revistas e jornais, não pode substituí-los e nem prescindir deles.
Nenhum partido que tenha como projeto ser o divulgador de uma nova cultura pode
dispensar a atividade jornalística, antes, ela devem ser parte constituinte da sua
estrutura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os processos de hegemonia somente podem ser suficientemente apreendidos se


os compreendermos por meio de suas formas diversas de exercício, a partir dos grupos
em luta no interior das relações sociais de forças. Estas condições demonstram que as
formas de exercício da hegemonia – e de lutas dos grupos subalternos pela sua
conquista – exigem estratégias, organização política e discursos diversos. Compreendê-
las então, enquanto processos pedagógicos – seja por meio dos grandes meios de
comunicação de massa e suas relações indiretas com os partidos burgueses, seja por
meio dos aparelhos de opinião ligados aos partidos das classes subalternas – é
fundamental para perceber que a dominação não se limita ao âmbito econômico, mas só
se efetiva porque existe uma base ideológica e cultural que a sustenta.
Destarte, para compreender suficientemente as conexões complexas entre
hegemonia e cultura é fundamental considerar tanto os processos que criam
conformismo na sociedade civil por meio da difusão de concepções de mundo ligadas

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ao status quo, quanto é importante refletir sobre os processos que se referem à


organização e à formação da consciência crítica, isto é, a criação e difusão na sociedade
civil dos aparelhos de opinião pública autônomos, criados e dirigidos pelas classes
subalternas em sua diversidade.

AUTORAS
* Luciana Aliaga é Professora do Depto. Ciências Sociais/ CCHLA-UFPB e do
Programa de pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais – PPGCPRI/
UFPB. Grupo de pesquisa Materialismo e modernidade/ CCHLA-CCSA-UFPB/UFCG.
** Andressa Lima da Silva é Aluna do curso de Serviço Social/CCHLA-UFPB, bolsista
PIBIC/ CNPq, integrante do grupo de pesquisa Materialismo e modernidade/CCHLA-
CCSA-UFPB/UFCG.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GRAMSCI, A. Quaderni del carcere: edizione critica dell’Istituto Gramsci a cura di
Valentino Gerratana, Torino: Einaudi, 2007.
GRAMSCI, A. “I giornale e gli operai”, 22 de dezembro de 1916. In Cronache
Torinesi1913-1917, Sergio Caprioglio (org.). Roma, Giulio Einaudi Editore, 1980.
BUCI-GLUKMANN, Christinne. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: paz e terra, 1980.
BIANCHI, A; ALIAGA, L. “Força e consenso como fundamentos do Estado. Pareto e
Gramsci”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº5. Brasília, janeiro-julho de 2011,
pp. 17 – 36.
FRANCIONI, Gianni. L’Officina Gramsciana: Ipotesi sulla struttura dei “Quaderni
delCarcere”. Nápoles: Bibliopolis, 1984.
MORAES, Denis. “Comunicação, Hegemonia e Contra-hegemonia: A construção
Teórica de Gramsci”. Revista Debates, Porto Alegre, v.4, n.1, p. 54-77, jan.-jun. 2010.
ALMEIDA, Jorge. “Relação entre Mídia e Sociedade Civil em Gramsci”. Revista
Compolítica, n. 1, vol. 1, ed. março-abril, ano 2011.
FERNANDES, Vívian de Oliveira N. “Reflexões sobre a obra de Gramsci para o campo
da comunicação alternativa”. Extraprensa (USP) – Ano VI – nº 11 dezembro/2012.

NOTAS
[1] Para datação consultar FRANCIONI, 1984, p. 141.

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[2] Para simplificação da citação do texto de Gramsci nos Quaderni del


Cárcereutilizaremos a letra “Q”, seguida do parágrafo e da página de referência.
[3] Sobre isto consultar BIANCHI; ALIAGA, 2011.
[4] Sobre este assunto consultar BUCI-GLUCKSMANN, 1980.

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Dossiê

MÍDIA COMO DISPOSITIVO DE SABER/PODER


José Orlando Carneiro Campello Rabelo*

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir mídia (veículo da ‘cultura de
massas’) como um dispositivo de saber/poder partindo da noção de genealogia. A
centralidade do texto reside na teoria de Foucault destacando os processos de uma
genealogia, a noção de modos de subjetivação, nuances do saber/poder e finalmente a
noção de dispositivo convidando o leitor a refletir: não seriam os veículos de
comunicação as maiores fontes de propagação e manutenção das ideologias em nosso
meio? Foucault usa a “genealogia do saber-poder”, para discorrer sobre a possibilidade
de construção dos saberes através de determinadas condições externas ao próprio saber,
assim, congrega em sua análise, elementos relacionais, históricos e políticos a outros
referendados no poder. O poder se exerce de forma difusa e descontínua criando vetores
ou forças que se dissipam em direções das mais diversas, o saber seria um canalizador
dessas forças ou relações de poder. Assim, o ‘saber cultural’ pode ser compreendido
como qualquer ação social que tenha relevância para determinada significação e a mídia
seria veículo de difusão desta cultura, uma parte crítica da ‘estrutura’ das sociedades
modernas. O conhecimento é uma relação estratégica, generalizante, é a luta singular do
homem com o objeto que ele quer dominar, saber, em suma é poder, resultado de lutas
constantes e cortantes. Somos compelidos a produzir “verdades” pelo poder que a exige
e que dela necessita para funcionar. As verdades são reguladas pela disciplina e por ela
observamos as relações de poder operando sobre os corpos, tornando-os dóceis e úteis.
O fato de não identificarmos diretamente a “fonte” destes discursos, pode significar que
elas já tenham sido tão fortemente incorporadas ao senso comum que não causa mais
estranhamento. Assim, para além da origem do discurso destacamos aqui sua

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propagação, seu alcance ilimitado e seu potencial, proporcionados diretamente pelo


aparelho midiático como mais um elemento de dominação.
Palavras-chave: Genealogia; saber-poder; modos de subjetivação; Foucault; mídia.

PARA INICIAR A CONVERSA

A dita “cultura de massas” é tema recorrente em textos de diversas áreas


constituindo, até certo ponto, um elemento central nos debates acerca da sociedade
atual. Roland Barthes (2001), em seu clássico “Mitologias”, desvela a exaustão os
processos que ancoram e escondem as ideologias que sustentam estas construções,
garantindo-lhes validade e assegurando degredo a todo aquele que aponte sua
falibilidade. Aquele que se presta a desvendar estes mitos sociais contidos nestas
culturas é chamado por Barthes de mitólogo, e de acordo com o autor só lhe resta um
posicionamento sarcástico e descrente em mudanças que estrategicamente o aloca à
margem da sociedade. Na escrita deste texto me posicionarei como um destes seres, um
mitólogo, embora não recorra ao pensamento deste autor não posso deixar de mencionar
sua genialidade e contribuição.
O texto pretende constituir-se como uma provocação ao leitor foucaultiano e
aquele que por esta leitura se interessa ao questionar a possibilidade de compreender a
mídia (veículo da ‘cultura de massas’) como um dispositivo de saber/poder partindo da
noção de genealogia.
Complexa é a tarefa em tomar o arcabouço teórico de Michel Foucault como
base. A dificuldade está para além das complexidades da leitura e aproximação de suas
ideias da realidade brasileira demarcada por desordem e indisciplina. Igualmente
transcende as discussões da ausência de um “método”, nos cânones clássicos de
metodologia científica, o que consiste em um perigo teórico em apontar
direcionamentos diferentes do original. Aparentemente o maior desafio nesta tarefa
consiste em manejar termos consagrados por um modismo intelectual e universitário no
mínimo medíocre sem fazer coro com esta massa de ‘pensadores’ que utilizam jargões
deste teórico de forma aleatória, lhes garantindo um certo status ou ar de mistério.
Parece que termos clássicos do dicionário Foucaultiano estão, no caso de alguma
parte da produção brasileira, saturados de sentidos e contrassensos. Assim, é
fundamental buscar um fio condutor que nos leve a uma possível cartografia que
embora volátil e em constante processo de metamorfose (como toda cartografia deve

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ser), do cenário brasileiro para que a aproximação destes conceitos não aponte verdades,
mas condições de possibilidades.
Assim, este trabalho se propõe didático, enxuto e despretensioso. O objeto social
mídia não será foco da discussão, a centralidade é da teoria de Foucault destacando os
processos de uma genealogia, a noção de modos de subjetivação, nuances do
saber/poder e finalmente a noção de dispositivo convidando o leitor a refletir: não
seriam os veículos de comunicação as maiores fontes de propagação e manutenção das
ideologias em nosso meio?

SOBRE A NOÇÃO DE GENEALOGIA

Foucault apresenta em sua obra não um método no sentido clássico


(estruturalista), mas uma analítica de flexibilidade e mobilidade que permite reconstruir
a história de determinado saber em seus processos de desenvolvimento descontínuo.
O pensamento Foucaultiano sofre um profundo corte epistemológico, o que
melhor o teria caracterizado como pós-estruturalista. Sua proposta de método se inicia
em um período denominado de “arqueológico” em que busca uma análise do sujeito
enquanto fundado por um sistema autônomo, desvinculado de possíveis relações entre
os saberes e as relações políticas e econômicas, neste momento ele objetivava pesquisar
e “generalizar inter-relações conceituais capazes de situar os saberes constitutivos das
ciências humanas, sem pretender articular as formações discursivas com as práticas
sociais” (FOUCAULT, 1979, p. 09).
A análise arqueológica teria como finalidade e fundamento inter-relacionar os
saberes apontando o surgimento das ciências humanas, enquanto resultantes de uma
rede conceitual “Digamos que a arqueologia, procurando estabelecer a constituição
interna dos saberes privilegiando as inter-relações discursivas e sua articulação com as
instituições, respondia a como os saberes apareciam e se transformavam”
(FOUCAULT, 1979, p. 10). Seria uma história das ideias, uma escrita daquilo que já foi
escrito, abandonando a investigação de uma origem e buscando descrever as regras que
regem as práticas discursivas daquilo que chamamos de ciência.
Em outro momento o teórico, lançando mão de uma forte influência niilista do
pensamento de Nietzsche, discute a “genealogia do saber-poder”, em que discorre sobre
a possibilidade de construção dos saberes através de determinadas condições externas
ao próprio saber. Neste momento, congrega em sua análise elementos relacionais,

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históricos e políticos a outros referendados no poder. Assim possibilita a compreensão


da produção dos saberes sobre o homem, além da constituição dos sujeitos formados
por relações do discurso, sendo necessário compreender o que seriam tais práticas
discursivas e de poder (FOUCAULT, 1979). Para compreender o que é genealogia do
poder nesta teoria, será imprescindível apreender o pensamento de Nietzsche com
relação à genealogia.
A genealogia de Nietzsche não busca a origem histórica, pois a procura de uma
origem implica a vivência de uma “essência” ou de uma “verdade” que está esperando
para ser descoberta, compõe-se como algo arrebatado que se deu em determinado
momento. Esta genealogia se propõe a analisar as condições de possibilidades que
orientam determinado conjunto de forças a produzir certo valor, e quais
direcionamentos este “valor” imprime às vivências (BOUYER, 2009).
A relação da história para a genealogia será construída de rupturas e
descontinuidades. Na analítica de poder, Foucault preocupa-se em estudar o porquê (ou
o como?) do domínio de um saber, quais condições externas proporcionam o domínio
de um determinado saber. É por meio da análise das (des)construções dos saberes, que
se pretende “explicar sua existência e suas transformações situando-o como peça de
relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político, que em uma terminologia
nietzschiana Foucault chamará genealogia” (SOUZA; MACHADO & BIANCO, 2008,
p. 13). Será através da genealogia que Foucault, na apreciação dos “diagramas de força”
irá se dedicar a ampliar seu próprio pensamento com relação ao poder e suas manobras.
Neste sentido poder não é um objeto ou um sujeito, mas uma relação ou melhor
uma rede de relações. Portanto, o poder em seu exercício vai muito mais longe, passa
por canais muito mais sutis, é muito mais ambíguo, porque cada um de nós é, no fundo,
partícipe de certas relações de poder e, por isso, carrega ou veicula o poder.
Observamos que temos dois conceitos centrais que nortearão nossas discussões,
são eles: as noções de saber-poder e o discurso. Estes elementos deverão compor uma
cadeia de pensamentos que irá resultar em nosso guia, ou melhor, na analítica que ora
propomos.

NUANCES DO SABER-PODER: A MÍDIA COMO DISPOSITIVO

Conforme apontamos anteriormente, Foucault faz uso da genealogia para


investigar como surgem e se transformam os saberes. Para Foucault o poder é visto

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como um exercício e o saber uma regra. O poder se exerce de forma difusa e


descontínua criando vetores ou forças que se dissipam em direções das mais diversas, o
saber seria um canalizador dessas forças ou relações de poder. O saber não detém
nenhuma experiência “natural” ou inovadora, porque o enunciável, aquilo que se
manifesta, está vinculado às relações de poder, que são por elas mesmas atualizadas
gerando estratos (SOUZA; MACHADO & BIANCO, 2008, p. 13).
O “saber”, em Foucault, rompe, de início, com a tradição grega, que associava o
desejo de conhecer (saber) como natural, ou inato a um sujeito que seria seu detentor,
em uma unidade perfeita, com argúcia de observar o movimento que leva da
simplicidade à complexidade. O conhecimento se reconheceria nas coisas em uma
relação Dialógica. Foucault discorda veementemente disso ao apontar que o
conhecimento é fruto da astúcia, uma invenção que não teria uma “origem” natural.
Aqui abrimos um parêntese para discutir a ascensão e em muitos casos
prevalência do uso da cultura como espaço de atravessamento de tudo aquilo que é
social, garantindo-lhe o espaço de centralidade em estudos de ciências humanas e
sociais. Neste trabalho abordaremos cultura como um produto social desenvolvido e
ancorado em um espaço de permanentes disputas de poder, portanto instável.
Um recorte fundamental é de que aqui tratamos da produção cultural midiática, e
de nenhuma outra. Hall (1997) serve-nos como principal fonte de referência ao passo
em que conceitua como cultural qualquer ação social que tenha relevância para
determinada significação e acrescenta que a mídia, veículo de difusão desta cultura,
seria uma parte crítica da ‘estrutura’ das sociedades modernas. Ao afirmar este
posicionamento o autor define que a distinção marxista de uma base econômica e uma
superestrutura ideológica seriam insustentáveis na atual conjuntura.
Neste espaço de debate propomos: em que medida a mídia funciona como mero
‘veículo’ de transmissão da cultura dita de massas? Em algum sentido é possível
manipula-la para atender a interesses de grupos sociais específicos?
Uma noção brutalmente dominante, passada e reforçada por veículos de
comunicação em massa é de que a mídia seria um reflexo de anseios e manifestações
populares. Não cabe assim, discutir o limitado acesso popular a um repertório ‘cultural’
diversificado, sendo bombardeada diuturnamente por produtos midiáticos esvaziados de
sentido e profundamente alienantes?
Ao apontar a incongruência em separar base e superestrutura social Hall (1997)
não nega os conteúdos ideológicos ligados aos discursos da sociedade, longe disso,

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chama atenção a dificuldade de percebê-los de tão imbricados encontram-se em


diversos produtos desta mídia, com destaque ao alcance destas informações e saberes:
“A revolução cultural que aqui estamos tentando delinear em suas formas substantivas é
igualmente penetrante no nível do microcosmo. A vida cotidiana das pessoas comuns
foi revolucionada — novamente, não de forma regular ou homogênea” (HALL, 1997,
p.04).
Esta conceituação indica que a frágil noção de supostas identidades depende da
compreensão dos processos de identificação que permitem a apropriação dos discursos
culturais pelas subjetividades (ou por modos de subjetivação). Desta forma podemos
afirmar que a constituição dos sujeitos se dá através da cultura repassada pela mídia,
nunca fora dela, a mídia ganha força como uma das principais condições
(condicionantes?) de possibilidades. Os modos de subjetivação dependem, portanto, dos
‘conhecimentos’ e saberes que a elas são acessíveis, sendo parcialmente produzidas de
modo dialógico ‘no’ e pelo discurso.
O conhecimento como toda invenção, demanda de um tempo e lugar próprios, e
o que o engendra é seu motivo: uma maldade, originada da batalha entre os instintos.
Ele tem como objetivo dominar as coisas: “é contra um mundo sem ordem, sem
encadeamento, sem formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o
conhecimento tem de lutar” (FOUCAULT, 2009, p. 18).
Nada liga o conhecimento à natureza, portanto entre o conhecimento e as coisas
não há continuidade, mas diferença. O conhecimento dobra as coisas em uma relação
que busca destruí-las, ele quer dominá-las. O sujeito, demarcado pela guerra, é fruto da
luta entre instintos, assim não há sujeito uno (a unidade não tem partes). Conhecer é
uma relação estratégica, generalizante, é a luta singular do homem com o objeto que ele
quer dominar. Saber, em suma é poder, resultado de lutas constantes e cortantes: “É que
o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (FOUCAULT, 1979, p.
28). Compreender esta noção de saber passa pela apreensão de dois conceitos
essenciais: a ordem do discurso e o conceito de regime de verdade.
Compreendendo o saber em si, partimos para suas condições de produção e
circulação, sua economia, ou, conforme define Foucault (2005) em ‘ordem do discurso’:
[...] suponho que em todas as sociedades a produção do discurso é ao
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por
certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus
poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e terrível materialidade (FOUCAULT, 2005, p. 9).

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O Discurso é aquilo pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar.
Devemos, portanto considerar que não existe discurso neutro, desinteressado, ele estaria
intimamente ligado a desejo e poder. Cabendo a ressalva: diferente do que pontua a
psicanálise, o discurso não é apenas o que manifesta ou esconde o desejo, ele é, em si, o
próprio objeto de desejo e objeto de luta (lutamos para dominar o discurso) (BOUYER,
2009).
Neste cenário de lutas constantes cria-se um regime, ou ordem, que seleciona
“quais discursos” são ou não válidos ou interessantes, há procedimentos de controle
internos e externos nesta seleção. Os procedimentos internos são exercidos do discurso
sobre si mesmo a título de ordenação, classificação. Visam o controle da aparição do
discurso fixando regras de surgimento e significação (por meio da disciplina), e de sua
circulação ou funcionamento, qualificando os sujeitos que falam e não permitindo sua
permutabilidade, excluindo todo conteúdo inassimilável como heresia. Os
procedimentos externos de controle do discurso, também falados como procedimentos
de exclusão, orientam aquilo que entendemos como regime de verdade (VEIGA-NETO,
2007). Então como se dá e como o discurso pode ser controlado?

DISCURSOS E OUTROS DIZERES

Foucault (1986), no estudo “Arqueologia do saber” define discurso como o


conjunto de enunciados que provém de um mesmo sistema de formação; assim se
poderia falar de discurso clínico, discurso econômico, discurso da história natural,
discurso psiquiátrico (e por que não um discurso midiático). Daí decorre em Foucault a
noção de dispositivo e, finalmente de prática que enlaça a análise do discursivo com o
não discursivo, ele utiliza a noção de linguagem para definir o que entende por discurso,
por práticas discursivas.
Diferente de uma ação concreta e individual de pronunciar este ou aquele
discurso, a prática discursiva constitui-se como todo conjunto de enunciados que
formariam o fundamento mesmo das ações. Isso significa que nossas práticas
discursivas formam, sistematicamente, o mundo de que falam, nossa maneira de
compreendê-lo, de significá-lo (VEIGA-NETO, 2007)
O discurso excede a menção a “coisas”, há mais além do que palavras ou frases,
não se pode apreender um acontecimento de forma completamente neutra. Para
Foucault (1986) analisar o discurso seria compreender as relações históricas, de práticas

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visíveis que estão presentes nos discursos, será compreender as falas como práticas
sociais inexoravelmente vinculadas às relações de poder.
Foucault (2005) define que existiriam diversos mecanismos de controle externo
do discurso. Entre eles estariam a restrição da enunciação ou interdição, que pode ser
definida em linhas gerais como: “não se tem o direito de dizer tudo (...) que qualquer
um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, p. 9, 2005). Este
mecanismo estaria respaldado em três principais modalidades: o privilégio de quem
fala, o tabu do objeto e o ritual da circunstância. Outro mecanismo seria a rejeição do
discurso, na qual se utiliza um determinado aparato do saber para apontar a inadequação
daquela fala (Foucault utiliza como exemplo a loucura).
Finalmente a vontade da verdade, um procedimento de exclusão, arbitrário,
ancorado institucionalmente e eminentemente histórico. Ela “administra” nossa vontade
de saber apoiada em toda estrutura de livros, escolas, laboratórios, universidades,
orientando formas de valorização, ou não, formas de distribuição e atribuição exercendo
coerção sobre os demais discursos.
Neste prisma, não se deve simplesmente aceitar mais este discurso, o de
Foucault, sem questioná-lo. Oliveira (2011), ao analisar o uso acadêmico do “Vigiar e
punir” de Foucault no Brasil, destaca a incongruência em utilizar este referencial
indistintamente e amplamente diante da complexa realidade brasileira, segundo ele, a
despeito do cenário Francês e Inglês (à época dos escritos), em que houveram a
generalização dos dispositivos da escola, hospital, fábrica e prisão, este fenômeno nunca
foi observado em nosso meio. Para este autor a sociedade brasileira é antes de tudo
indisciplinada, argumento defendido diante dos altíssimos índices de violência que
presenciamos. Portanto, se estas instituições não atingem sua plenitude em nosso meio
não seria possível pensarmos que a mídia ocupa grande parte deste lugar?
Alguns discursos funcionariam regendo os demais, funcionando como verdade,
com regras de enunciação, técnicas de obtenção, definição de um estatuto próprio de
quem gera e define a verdade. Portanto, poder e verdade (saber-poder) fundem-se em
uma relação difusa e circular em que o poder produz e sustenta a verdade, que por sua
vez produz os efeitos do poder. Assim a verdade pode ser conceituada discursivamente,
nas palavras de Foucault: “Entendendo, por verdade, [...] o conjunto das regras segundo
as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui aos verdadeiros efeitos
específicos de poder” (FOUCAULT, 1979, p. 13). Ele diz também que há uma luta em
torno do estatuto da verdade.

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A partir deste “regime da verdade-poder” seria possível compreender as


maneiras de constituição da própria verdade incitada pela política e economia, difundida
por um imenso conjunto de instituições e aparelhamentos (mídia como elemento central
na atualidade), objeto de confrontos sociais, e eminentemente centralizada pelo discurso
científico. Essa “verdade” estará presente na fundação do sujeito.
Observam-se três dimensões autônomas, mas que se implicam constantemente
na constituição do indivíduo: saber, poder e si. Saber é determinado pelo visível e o
enunciável. O poder é determinado por meio das relações de forças. O si é determinado
pelos processos de subjetivação. Assim, não existem sujeitos, mas processos de
subjetivação.
A subjetividade anuncia relações de poder-saber, que modelam, alteram, que em
suma, dobram e desdobram o indivíduo, ao passo em que irrompem com a concepção
intimista de subjetividade. Portanto, para Foucault, inexiste subjetividade, o que existem
são processos de subjetivação que seriam expressões da história de nossa época
demarcadas em nós mesmos, o que chamamos de personalidade. A própria noção de
que somos únicos e nos diferenciamos de todo restante da população do mundo já seria
em si um reflexo de nosso momento atual:
Nós somos atravessados por toda uma complexa teia de aspectos
desejantes, políticos, econômicos, científicos, tecnológicos, familiares,
culturais, afetivos, televisivos... Entretanto, cada um de nós tem uma
história de vida que é singular, mas que não é interior (SOUZA;
MACHADO & BIANCO, 2008, p. 21).

Mas como e de onde provêm estas verdades? Voltando o olhar para o cotidiano
observamos um interessante aspecto do nosso cenário: não nos incluímos no rol dos
países classicamente leitores de material impresso. Ao mesmo tempo somos
destacadamente consumidores de mídia televisiva e virtual, um dos países que mais
consome internet no mundo. Em outras palavras, a principal forma de se manter
‘informado’ na atualidade provém da mídia, ela dita nossas verdades.
Concluindo, é verificado que há três concepções fundamentais com relação ao
poder em Foucault: a primeira é que o poder tem como característica ser negativo e
positivo, desta maneira forma o indivíduo. A segunda é que o poder é um exercício e
não deve ser possuído. A terceira, o poder transpõe a dicotomia dominante e dominado.
Foucault irá instituir uma analítica de poder, e não uma teoria, pois não busca
fixar definições a procura de verdades, mas acompanhar as metamorfoses das relações
de poder. O poder não é ele que se exerce, portanto não há uma essência, nem

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detentores do poder-saber, ele se manifesta de forma difusa em uma intricada relação de


forças. Sendo assim, o poder cria relações de força, jogos, regras e dispositivos que se
revelam nas práticas sociais. Em resumo, para Foucault “o poder não existe”, o que
existe são relações e práticas sociais onde o poder é exercido e nos discursos se torna
visível em seus jogos e manobras (SOUZA; MACHADO; BIANCO & SOUZA 2007).

PODER E SEUS DISPOSITIVOS

Para discutirmos os mecanismos que instituem o poder como verdade, ou seja


seus dispositivos, devemos compreendê-lo em ação, seja nos discursos que o produzem,
seja nos movimentos a que somos vitimados. Não se trata de descrever o poder em si,
mas de buscar encontrá-lo na intensidade e constância de determinadas relações
(FERREIRINHA & RAITZ, 2010).
Somos compelidos a produzir “verdades” pelo poder que a exige e que dela
necessita para funcionar. Estaríamos condicionados a dizer ou encontrar as “verdades”
do poder, sendo este caracterizado como uma ação sobre ações (FOUCAULT, 1999).
Estas verdades são, segundo Foucault, reguladas pela disciplina, compreendida aqui
como uma maneira de punir, como um micro modelo de um tribunal. É por esta
disciplina que observamos as relações de poder operando sobre os corpos, tornando-os
dóceis e úteis, estejam produzindo uma tecnologia sobre a vida que agrupa os efeitos do
convívio em coletividade (FOUCAULT, 1999).
Objetivando compreender estas dinâmicas deveremos procurar possíveis
homogeneidades produzidas no fundo de determinada episteme.
Foucault usa a palavra episteme para designar - o conjunto básico de
regras que governam a produção de discursos numa determinada
época, em outras palavras, episteme designa um conjunto de
condições de princípios, de enunciados e regras que regem sua
distribuição, que funcionam como condições de possibilidade para que
algo seja pensado numa determinada época. Uma episteme funciona
informando as práticas (discursivas e não-discursivas) e dando sentido
a elas; ao mesmo tempo, a episteme funciona também em decorrência
de tais práticas. (VEIGA-NETO, 2007, p. 115/116).

Estas condições de possibilidade orientam as manobras e jogos de poder,


atuando na subjetivação, na constituição mesma dos sujeitos, assim compreende-las em
sua multiplicidade de dimensões e representações é estruturante para a compreensão do
sujeito e do contexto social. Estes corpos “conformados e docilizados”, forjados em

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meio às ações do poder, são estabelecidos na e pela disciplinarização que bloqueia o


poder em ação naquele sujeito.
Para compreendermos os sujeitos devemos atentar que cada sociedade em cada
tempo tem seu regime de verdade, seus discursos que se fazem funcionar como
verdadeiros e norteiam as relações. As formas através das quais cada um é sancionado,
as técnicas e jogos utilizados na aquisição das “verdades”, o status daquele que é
autorizado a “dizer o que é verdadeiro” nos possibilita uma aproximação compreensiva
dos funcionamentos destas relações (FERREIRINHA & RAITZ, 2010).
Considerando que a linguagem se apresenta como fortemente ligada a sociedade,
Foucault (1999), compreende que estes discursos já circulam há muito tempo, e
analisando-os seria possível visualizar como as conexões estabelecidas entre as palavras
e as coisas, são tênues, reflexos de regras inerentes às práticas discursivas. As práticas
que induzem a internalização inquestionável destas verdades, chamadas de tecnologias
do eu, são oriundas, portanto de tecnologias do poder que produzem as subjetividades.
A analítica genealógica Foucaultiana possibilita compreender estas dinâmicas nos
afastando de uma visão reducionista da sociedade.
Buscando nos (re)aproximarmos da ideia de “genealogia” Foucaultiana,
partimos da noção de dispositivo, e de como este é operacionalizado nas relações de
dominação e subordinação da sociedade, especificamente naquelas ligadas a mídia na
comunicação da cultura de massas. Centramo-nos em três características fundamentais
deste fenômeno: atender a elementos históricos; apresentar-se como uma conceituação
multilinear e dinâmica; ter vinculação a outros dispositivos contemporâneos a ele, em
especial aqueles ligados as diversas ideologias e a ‘necessidade’ de mantê-las. Não é
precipitado afirmar que, mesmo a um olhar superficial, nosso objeto de discussão
atende facilmente aos três requisitos postos.
Em uma sociedade de suposto controle não caberia buscar na religião, política
ou escola o germe destas orientações, o poder é difuso existindo múltiplos dispositivos
de controle na sociedade em que vivemos. O fato de não identificarmos diretamente a
“fonte” destes discursos, pode significar que elas já tenham sido tão fortemente
incorporadas ao senso comum que não causa mais estranhamento. Assim, para além da
origem do discurso destacamos aqui sua propagação, seu alcance ilimitado e seu
potencial como mais um elemento de dominação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Não chegamos, e talvez nunca cheguemos, a conclusões definitivas (em assunto


algum), entretanto, caso o texto desperte inquietação ao leitor certamente seu objetivo
terá sido alcançado.
A guisa de considerações cabe destacar que a teoria Foucaultiana vista até aqui
nos orienta a pensarmos que as práticas discursivas ocorrem em um contexto social e,
portanto, não estrito ou determinado a esta ou aquela relação, trata-se de uma complexa
teia como esquemas e jogos de poder. Para se tornar sujeito a pessoa se ‘sujeita’, e esta
sujeição se dá nos processos de subjetivação através de verdades ancoradas em saberes
que respondem ao poder, que se ajustam para objetivos maiores de controlar corpos e
vivências, criando o mais permanentemente possível disposições sociais.
Reforçamos assim, a leitura de que pode haver a utilização da posição
privilegiada do discurso midiático como um dispositivo. Esta possibilidade se apresenta
quando atentamos a conceituação multilinear das posições defendidas amplamente pelos
veículos de comunicação, em especial nos desdobramentos e alcance de toda uma
imbricada trama ideológica, observamos sua inter-relação a elementos históricos e suas
vinculações a outros dispositivos. Destacamos ainda que, especialmente no caso
brasileiro, poucos ‘sujeitos’ detêm o controle da mídia (destaca-se também uma igreja
no caso televisivo).
O que temos como resultado é uma nova idade das desigualdades caracterizada
por uma massa de ‘incluídos’ em um universo informacional abertamente manipulado.
Práticas discriminatórias são produzidas e reproduzidas em velocidade inimaginável e
reforçadas a exaustão. Uma fábrica de valores, de uma nova ordem moral, funciona a
todo vapor reforçando, sob o véu obscuro do ‘politicamente correto’, a diminuição da
ação social do Estado sob o pretexto de livrar a população da corrupção (ainda que não
se esclareça como estes elementos estão associados). O discurso neoliberal se aproveita
do clássico estado de mal-estar brasileiro solapando direitos adquiridos e fortalecendo
as elites, que em nosso país ainda estão subordinadas a uma ‘coroa’ (um bom exemplo
de pós-colonialismo invertido).
Ao ‘mitólogo’ só resta a existência cínica diante de tais constatações. Creio,
porém que o cinismo e mesmo o sarcasmo não precisam, nem devem, ser vividos em
silêncio. Se não for possível romper as relações de subordinação, discriminação e
subalternidade ao menos as apontemos e multipliquemos assim o número de inquietos,
se não é uma solução ao menos sirva de lenitivo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BOUYER, G.C. O método da genealogia empregado por Foucault no estudo do
poder saber psiquiátrico. Memorandum, 16, 64-76, 2009. Acesso em13 de Março de
2017, disponível em:< http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf>
FERREIRINHA, I. M. N., RAITZ, T. R. As relações de poder em Michel Foucault:
reflexões teóricas.Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 44, n. 2, abr,
2010. Acesso em13 de Março de 2017, disponível
em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid >.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
__________.A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
__________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
__________.A ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 2005.
__________.A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, 2009.
HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso
tempo. Educação & Realidade, v. 22, n° 2, jul./dez., p. 17-46, 1997.
OLIVEIRA, L.Relendo ‘Vigiar e Punir’. In: DILEMAS – Revista de Estudos de
Conflito e Controle Social, v. 4, n. 2. Rio de Janeiro: IFCS – UFRJ, 2011. Acesso em02
de Abrilde 2017, disponível em:
<http://revistadil.dominiotemporario.com/doc/Dilemas-4-2Art5.pdf>.
SOUZA, E. M. DE, MACHADO, L. D. E BIANCO, M. DE F. O homem e o pós-
estruturalismo foucaultiano: implicações nos estudos organizacionais.Organizações &
Sociedade. Salvador, v. 15, n. 47, 71-86,dez, 2008. Acesso em02 de Abrilde 2017,
disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1984-92
VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

AUTOR
*José Orlando Carneiro Campello Rabelo é Docente do Centro Universitário Tabosa de
Almeida – ASCES UNITA. Doutor em Psicologia Clínica – UNICAP; Mestre em
Psicologia Social – UFPE; Militante dos Direitos Humanos, psicólogo, professor e
pesquisador.

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Dossiê

TODAS ERAS FORAM DA PÓS-VERDADE: um


passeio pelo doublethink nosso de cada dia
Arthur Aroha Kaminski da Silva*

Resumo: Este artigo visa se contrapor à algumas afirmações que surgiram no início dos
anos 2000, mas que se proliferaram em meios midiáticos quando do anúncio do termo
post-truth como palavra do ano de 2016 pelo grupo Oxford dictionaries. Tais
afirmações dão conta de que viveríamos, hoje, no século XXI, a “era da pós-verdade”.
A proposta de contraposição a estas alegações se dá, aqui, pelo enfileiramento de alguns
exemplos contidos em narrativas ficcionais que demonstrarão que a prática das políticas
da pós-verdade preexistem, em muito, o século XXI. A exposição se baseará no
cruzamento de informações e conceitos contidos em obras como 1984 (de George
Orwell), Matrix (das irmãs Wachowski), e Contos Amazônicos (de Inglês de Sousa),
com as proposições teóricas sobre a relação entre verdade, ficção e política como
elaboradas por autores como Pierre Bourdieu, Jacques Rancière, Juan José Saer,
Umberto Eco, entre outros.
Palavras-chave: Pós-verdade, doublethink, ficção, realidade.

1
INTRODUÇÃO: da ideia de pós-verdade

Antes de mais nada é preciso que eu admita que o passeio a que invito você hoje,
leitor, tem um objetivo. É uma proposta de contraposição à afirmações que se
proliferaram em meios midiáticos na passagem do ano de 2016 para 2017, no sentido de
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alegar que vivemos, hoje, a “era da pós verdade”.[1] Estes textos retomam a abordagem
da questão como proposta por Ralph Keyes, em seu livro The post-truth era, publicado
em 2004. E são impulsionados pela declaração do Oxford dictionary de que o
termo post-truth foi eleito a palavra do ano de 2016.[2] E pelos contextos doBrexit,
(como foi apelidada a saída do Reino Unido da União Europeia), e da eleição de Donald
Trump para a presidência dos Estados Unidos da América. Eventos ocorridos no mesmo
ano e que se mostraram ricas fontes de exemplos da política cultural que hoje
chamamos políticas da pós-verdade.
A pós-verdade, como nos explica o dicionário Oxford é um adjetivo que “se
relaciona ou denota circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes em
moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.[3] Ele não se
refere necessariamente à falsificação da verdade (embora possa também passar por
isso), mas mais especificamente à situações em que a “verdade” ou o “fato” é tido como
pouco relevante. Ou seja, algo a que todos estamos habituados, certo? Vemos (e
fazemos) isso diariamente, tanto no plano político quanto no pessoal. É uma prática
humana atemporal. Daí a minha contraposição à ideia de que vivemos na “era da pós
verdade”, como propõe os textos que citei no primeiro parágrafo.
Por contraposição, caro leitor, não pretendo dizer que discordo do fato de
vivermos numa era de pós-verdade. Mas discordo, sim, de que este momento da história
humana seja o ápice desta política cultural. Minha contraposição se baseará na defesa de
que, em fato, esta é uma política cultural que existiu e se manteve em uso constante e
corrente em toda a história humana. Que ela é parte da nossa própria capacidade de
construir conhecimento. Em suma que, para bem ou para mal, todas as eras foram da
pós-verdade. E que este “novo termo” - visto que data do final do século XX -,[4] é
apenas uma nova roupagem para uma questão que sempre foi importante para a
Filosofia, a História, a Literatura, e diversas outras áreas enquanto disciplinas.
Para defender este posicionamento é que o convido a me acompanhar neste
passeio. Que se trata de uma caminhada em forma reflexiva e textual por algumas
narrativas ficcionais que tocam, de alguma maneira, na questão da política da pós-
verdade. Admito também que a seleção das narrativas ficcionais que aqui abordaremos
se deu de maneira arbitrária – leia-se, elas estão aqui presentes porque eu quis assim -, e
poderiam ter sido facilmente outras a servirem de exemplos para esta discussão. Desta
forma, citarei aqui algumas obras literárias que me apetecem, levando você leitor a
comigo margear os rios amazônicos e conviver com alguns dos medos da população

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ribeirinha paraense do fim do século XIX, através do conto Voluntário, de Inglês de


Sousa. A se rebelar e sofrer junto com Winston ao descobrir a extensão e poder da
prática do doublethink no romance distópico 1984, de George Orwell. E a refletir sobre
a decisão de Cypher, que no filmeMatrix das irmãs Wachowski levanta a questão: é
preferível encarar a dureza da realidade, ou viver confortavelmente nas ilusões da
caverna do mito platônico, como o personagem conscientemente escolheu? Ademais,
para nos acompanhar em nossas trajetórias ficcionais ao longo deste artigo, irei propor o
cruzamento destas narrativas com questões teóricas sobre a relação entre realidade,
ficção e política conforme propostas por autores como Pierre Bourdieu, Jacques
Rancière, Juan José Saer, Umberto Eco, entre outros. Agora, feitos estes
esclarecimentos e introdução, comecemos nossa caminhada.

2
DO MITO DAS IDENTIDADES NACIONAIS, E DAS UTILIDADES E EFEITOS
DESTAS FICÇÕES

O primeiro texto que eu gostaria de abordar é o conto Voluntário, texto presente


no livro Contos Amazônicos, de Inglês de Sousa.[5] Este conto é ambientado na
província do Grão-Pará, Amazônia brasileira, e ronda a questão do alistamento militar
forçado praticado pelo Império Brasileiro à sua população durante o período dos
conflitos da Questão Platina, mais especificamente na Guerra do Paraguai. O texto
inicialmente foca na descrição da rotina de uma tapuia,[6] dona Rosa, uma viúva que
vive com seu único filho vivo, Pedro, em uma casa muito simples na beira do rio
Amazonas. Eles vivem como a grande maioria dos tapuios “colonizados”: em condição
de pobreza, e sobrevivem à custa do trabalho do filho, que é pescador, e do próprio
trabalho de Rosa como tecelã. Sendo estas as fontes de alimento e renda da família, que
é descrita como feliz em sua vida bucólica e contemplativa.
As primeiras menções ao Império vêm de maneira banal nesta parte: primeiro
que o filho da tapuia é xará do Imperador. E depois conta-nos o narrador que dona Rosa
dormia numa rede ornamentada com a coroa brasileira, obra de “ingênuo gosto”
(SOUSA, 2005, p.24) da própria tapuia. É de um simbolismo muito forte a imagem da
velha índia “dormindo ingenuamente nos braços do império”, visto o que (como
veremos) se sucede no conto, e pela relação com a imagem produzida no fim, da índia
cantarolando uma ode a D. Pedro II, anestesiada já após sua tragédia pessoal.[7] Pois

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após a pacata introdução nos é apresentado o contexto da guerra (SOUSA, 2005, p. 26-
27), e são descritos os efeitos iniciais da deflagração do conflito na sociedade
amazonense: a empolgação das classes mais favorecidas, e o medo do “povo miúdo”.
É-nos narrada brevemente, então, a campanha nacional operada pela monarquia
brasileira em busca de voluntários para lutar na Guerra do Paraguai. E a ironia do uso
do termo “voluntário” que intitula o conto, e que o Império dizia buscar, logo se faz
muito visível. Já que, em fato, o que ocorria era um alistamento forçado, ou mesmo uma
campanha de rapto de jovens de famílias pobres, que eram enviados para o Rio de
Janeiro e posteriormente para o front paraguaio à força. Grande parte destes jovens
morria ainda no caminho, pela má alimentação e doenças, e outros morriam no front, de
forma que muito poucos acabavam por voltar. Daí se pode entender o terrível medo da
população pobre amazonense em relação à imagem criada pela imprensa e pelo boca a
boca da época para a figura de Solano López, governante paraguaio, que faziam com
que os tapuios amazonenses, segundo o narrador do conto, imaginassem o presidente
como um “monstro devorador de carne humana” (SOUSA, 2005, p. 26).
Na sequência da narrativa, Pedro, filho de dona Rosa, acaba sendo
“voluntariado” para a guerra. E é aí que o narrador do conto se apresenta ao leitor, se
identificando como o advogado ao qual a tapuia Rosa implorou ajuda para libertar o
filho da prisão a que fora submetido, enquanto aguardava o transporte dos ditos
“voluntários” até o Rio de Janeiro (SOUSA, 2005, p.32). É pela voz dele que ouvimos
a narrativa dos horrores do recrutamento e do que proponho como relacionável com a
política da pós-verdade: segundo ele, a ignorância dos “rústicos patrícios” (elite
dominante, de origem portuguesa) era agravada pelas “fábulas ridículas editadas pela
imprensa oficiosa, dando ao nosso governo o papel de libertador do Paraguai (embora
contra a vontade do libertando o libertasse a tiro)” (SOUSA, 2005, p. 26-27). E faziam
com que esta elite extravasasse seus preconceitos e privilégio social e operasse o
alistamento forçado à população tapuia de forma violenta.
Estas “fábulas ridículas” a que o narrador do Voluntário se refere foram os
discursos que o Império brasileiro utilizava para justificar sua política intervencionista.
Como todo praticante de políticas imperialistas, o governo brasileiro justificava suas
ações como necessárias para o bem não só da própria população, mas como uma ação
necessária para o invadido. Creio que enquanto testemunhas de diversos conflitos
militares ao longo dos séculos XX e XXI, todos sabemos como isso funciona.[8] No
contexto específico da Questão Platina (do qual a guerra do Paraguai foi só um dos

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conflitos), o que ocorreu foi um confronto entre três nações de ambições imperialistas
(Brasil – Argentina – Paraguai) que, por serem vizinhas, viram seus projetos
expansionistas se chocarem.[9]
Agora pergunto a você, leitor: é possível imaginar os tipos de discursos oficiais
que foram produzidos no período, não? Quantas “fábulas” - como diz o narrador
do Voluntário -, foram elaboradas para justificar os conflitos e para fortalecer (ou
mesmo criar) um sentimento de identidade nacional nestas nações recém-fundadas. Não
é à toa que em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall tenha
escolhido nomear um capítulo como As culturas nacionais como comunidades
imaginadas. Nele, Hall explica que uma “(...) nação não é apenas uma entidade política
mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural”. Um sistema do
qual as pessoas fazem parte não só como cidadãos, mas pela participação na ideia de
nação. Concluindo que “uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica
seu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (HALL, 2011, p. 49) A
ideia de nação, então, é um discurso que se constitui por uma narrativa que vincula a
percepção de identidade do indivíduo às histórias, literatura e cultura popular. A própria
ideia de nação, se vê, perpassa uma política cultural baseada no apelo à emoção, a
crenças religiosas, e a preconceitos em detrimento da objetividade factual. Bem como a
necessidade da guerra sempre perpassa esta prática. A política da pós verdade
definitivamente não é um fenômeno característico do século XXI.
No caso do conto Voluntário acho interessante atentar, entretanto, não à
construção do discurso. Mas sim à “utilidade” que muitos encontram no discurso
construído. Relata o narrador que, durante o período de recrutamento forçado, um
fenômeno social ocorreu:
Foi então que se mostrou em toda a sua hediondez a tirania dos
mandões de aldeia. Os graúdos não perderam a ocasião de satisfazer
ódios e caprichos, oprimindo os adversários políticos que não sabiam
procurar, a serviço de abastados e poderosos fazendeiros, proteção e
amparo contra o recrutamento, à custa do sacrifício da própria
liberdade e da honra das mulheres, filhas e das irmãs (SOUSA, 2005,
p.27).

Ou seja, “comprar” o discurso nacionalista, a empolgação da guerra e da


necessidade de intervenção, em fato servia aos “graúdos” (mas não só a eles) como a
justificativa que necessitavam para pôr em prática ações que, comumente, não lhes
seriam possíveis por questões legais: se você cometesse um assassinato, você seria, em
teoria, preso. Mas se você, utilizando influência política ou monetária (como se as duas

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coisas pudessem ser dissociadas), ou mesmo uma denúncia ou o que quer que seja,
levasse um rival a ser recrutado (e muito provavelmente morto na guerra), não haveria
crime. Situações como a da campanha de recrutamento citada no Voluntário permitiam
uma limpeza étnica autorizada pelo Estado. Algo que se ilustra em outra fala do
narrador:
Corri à praia, onde era imensa a aglomeração de povo à espera do
vapor que vinha entrando a boca do largo Tapajos, em busca dos
futuros defensores da pátria. Eram vinte rapazes tapuios os que a
autoridade obrigava representar a comédia do voluntariado (SOUSA,
2005, p. 33).

Claro, a longo prazo situações como esta levaram a levantes armados por parte
das incontáveis populações e povos generalizados pelos portugueses sob o termo de
“tapuios”.[10] Mas como explicita o narrador – e neste caso acho possível considerar,
para além do caráter ficcional, o Voluntário como um relato fiável historicamente, já
que o autor imprime em seus textos um período que vivenciou[11] –, entre os tapuios,
inicialmente, o efeito foi a criação de um temor gigantesco em relação a um nome:
Solano López, o bode expiatório das elites e do império para todas estas práticas
opressoras e de exploração. E aqui creio que encontramos um bom ponto para erigir
uma ponte entre as margens do Amazonas e o distópico mundo de 1984, de Orwell.

3
DO PODER SOBRE A VERDADE, E DA SATISFAÇÃO PELA OPRESSÃO

1984, livro de George Orwell publicado em 1949, é ambientado numa sociedade


distópica governada por um regime autoritário que faz uso de um complexo sistema de
política da pós-verdade e controle midiático. A construção do ódio pelo outro é o atalho
que sugiro tomarmos entre os dois textos: assim como em Voluntário o narrador cita
Solano López como a entidade que o discurso imperial brasileiro e o imaginário popular
construíram para expiar as mazelas de sua sociedade – e digo entidade porque o que
esse imaginário construiu é obviamente outro ser que não o mesmo que o Solano López
“real”. A distopia de Orwell também tinha seus bodes expiatórios, ilustrados por um
perseguido político taxado de traidor (Emmanuel Goldstein), e também pelas nações
vizinhas inimigas que seriam culpadas pela “necessidade da guerra”. E meu convite
agora, leitor, é para que acompanhemos Winston, o protagonista desta obra de Orwell,
em suas descobertas sobre uma das técnicas utilizadas pelo governo de sua nação para

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manter o controle sobre sua população. Método que Orwell chamou doublethink. E que,
como veremos, é menos uma imposição, e mais um incentivo à capacidade que nós
enquanto humanos temos de defender/acreditar em duas coisas opostas ao mesmo
tempo. E à possibilidade de conscientemente optarmos por aprofundar esta capacidade
de modo tão intenso que a contradição se torna inconsciente. Algo que, creio, seja
relacionável e ilustre bem a política cultural que discutimos neste artigo.
O 1984 é protagonizado por Winston, um funcionário qualquer do Ministério da
Verdade, cujo trabalho era editar dados e notícias passadas e presente em função do
interesse do chamado Partido (grupo dominante). Winston, conforme vamos percebendo
ao longo da leitura, parece ser um pouco mais consciente e/ou problematizador do que a
maioria de seus colegas em relação à condição em que vivem. E ele faz algumas
análises interessantes sobre como as pessoas lidam com a realidade em que se inserem,
enquanto nos explica a conduta do doublethink. Prática que é por ele definida como:
É saber e não saber, é ser consciente da completa verdade enquanto
conta mentiras cuidadosamente construídas, é manter
simultaneamente duas opiniões que se cancelam, sabendo-as
contraditórias e efetivamente acreditando em ambas, é usar a lógica
contra a lógica, é repudiar a moralidade ao mesmo tempo em que
clama por ela, (...) é esquecer qualquer fato que tenha se tornado
inconveniente e, quando for necessário, trazê-lo de volta à mente pelo
tempo necessário, para em seguida esquecê-lo outra vez. É, acima de
tudo, aplicar o mesmo processo ao próprio processo – esta é a
suprema sutileza: conscientemente induzir a inconsciência e depois,
mais uma vez, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que você
acabara de realizar (ORWELL, 1961, p. 35).[12]

Claro, em princípio Orwell se referia a seu universo distópico. Mas agora


pergunto a você leitor: já praticaste ou conhece alguém que pratica ou praticou algo
similar ao doublethink? Você, como eu, vê similaridades entre o termo cunhado por
Orwell e o termo eleito pelo Orxford dictionaries o mais popular de 2016? Entre
o doublethink e a prática da política da pós-verdade? Sei que a pós-verdade não
necessariamente se refere à falsificação direta de fatos históricos, algo que Winston
ajudava a fazer, mas o próprio narrador de 1984 nos relata que Winston não era o único
que tinha consciência do que ocorria. Se parte dos membros do partido “comprava”
inconscientemente as verdades fabricadas, outra boa parcela tinha plena consciência da
falsidade de determinadas notícias e discursos. Estes, porém, forçavam a própria
inconsciência: se auto infligiam um processo de naturalização e aceitação destas
verdades fabricadas. Conscientemente relegavam os fatos ao segundo plano, se

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deixando moldar pelo discurso baseado no apelo à emoção. Ou seja, se tornavam


praticantes da política da pós-verdade.
Um exemplo pontual é o personagem chamado Syme, empregado do mesmo
ministério em que Winston trabalhava. Ele é descrito como um intelectual, mais
especificamente um filólogo, parte de um grupo responsável pela reelaboração do
idioma falado na nação distópica criada por Orwell. E segundo o narrador, era um
exemplo complexo da potencialidade do doublethink: era visível que Syme era
plenamente consciente de todas as atrocidades cometidas pelo regime que apoiava, mas,
adepto e praticante do doublethink, naturalizava o processo do qual fazia parte.
Convencia a si mesmo de que os fatos eram pouco relevantes frente ao potencial de
coisas que aquele contexto permitia a ele: financiamento às suas pesquisas e
perseguição aos proles (ORWELL, 1961, p. 48-63).
Os Proles,[13] como também descobrimos através da convivência com Winston,
consistiam em todos aqueles que não eram membros oficiais do Partido. Eram as classes
sociais menos abastadas, que viviam em situação de extrema pobreza, e que eram vistas
sob um filtro de preconceito pelos membros do Partido. Syme, por exemplo, chega a se
referir aos proles como “não humanos” (ORWELL, 1961, p. 52). E aqui, leitor,
proponho que ampliemos nossa ponte construindo no sentido inverso. Para voltarmos
rapidamente ao conto Voluntário, e relembrarmos o quanto a política da pós-verdade é
útil para grupos extravasarem seus preconceitos. Poderíamos falar novamente também
da atualíssima eleição de Donald Trump, evento bastante real carregado de possíveis
exemplos relacionáveis. Mas tais reflexões deixarei que faças sem minha companhia,
visto que meu foco neste artigo se manterá em obras de cunho ficcional. Ainda que,
como bem saibamos, por vezes a ficção e a realidade se entrelacem em nós que não se
permitem desamarrar. Laço este que pode nos servir de convite, caro leitor, a
passearmos também por um dos bosques ficcionais de Umberto Eco, em seu livro Seis
passeios pelos bosques da ficção.

4
DA COMPREENSÃO E CONTROLE DA REALIDADE ATRAVÉS DA FICÇÃO

Proponho esta incursão porque, no capítulo Protocolos ficcionais, Eco traz


algumas reflexões interessantes sobre o quanto as fronteiras entre realidade/veracidade e
ficcionalidade/mentira são liquefeitas. Propondo, por exemplo, o seguinte

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questionamento: “se a atividade narrativa está tão intimamente ligada a nossa vida
cotidiana, será que não interpretaremos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade,
não lhe acrescentamos elementos ficcionais?” (ECO, 1994, p. 137). Uma forte
indagação que proponho encararmos sob a luz do termo que, conforme explica o fictício
livro proibido de Goldstein (parte do imaginário universo de 1984), é “o sistema de
pensamento que engloba todo o resto, e que é conhecido em
Newspeak[14] como doublethink” (ORWELL, 1961, p. 212). Sistema este que “é
aprendido pela maioria dos membros do Partido, e certamente por todos que são
inteligentes, bem como ortodoxos. Em Oldspeak é chamado, francamente, ‘controle de
realidade’” (ORWELL, 1961, p. 214). Voltamos, então, à prática do doublethink como
proposta por Orwell, que a define (através do virtual livro de Goldstein) da seguinte
maneira:
Doublethink significa o poder de manter duas crenças contraditórias
na mente simultaneamente, e aceitar ambas. O intelectual do Partido
sabe em que direção suas memórias devem ser alteradas; Ele sabe,
portanto, que está praticando truques com a realidade; Mas pelo
exercício do doublethink ele também se convence de que a realidade
não é violada. O processo tem que ser consciente, ou não seria
realizado com suficiente precisão, mas também tem de ser
inconsciente, ou traria consigo um sentimento de falsidade e,
consequentemente, de culpa. (...) (Doublethink é) contar mentiras
deliberadas enquanto genuinamente acredita-se nelas, é esquecer
qualquer fato que tenha se tornado inconveniente, e então, quando for
necessário novamente, trazê-lo de volta do esquecimento pelo tempo
necessário. É negar a existência da realidade objetiva e, durante todo o
tempo, levar em conta a realidade que se nega – tudo isto é
indispensavelmente necessário. Mesmo o uso da
palavra doublethinktorna necessário o exercício do doublethink. Pois,
ao usar a palavra, o praticante admite que alguém está adulterando a
realidade, mas, por um novo ato de doublethink, apaga esse
conhecimento; E assim indefinidamente, com a mentira sempre um
salto à frente da verdade (ORWELL, 1961, p. 214).

O doublethink como imaginado por Orwell é, então, o controle em máxima


instância de um indivíduo sobre sua própria cognição. Em oposição à ignorância ou
falta de conhecimento, é a plena consciência da existência de todos os filtros
interpretativos pelos quais encaramos o mundo ao nosso redor. É a seleção consciente
de quais filtros aceitaremos e colocaremos entre nós e o mundo. E um posterior
processo de indução do esquecimento de que tal escolha consciente foi feita. É uma
naturalização do discurso escolhido conscientemente induzida, a ponto de que o próprio
indivíduo se torne inconsciente de que, inicialmente, fora consciente desta escolha. E,
talvez, cruzando a descrição deste sistema de pensamento com as palavras de Umberto

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Eco, possamos utilizar o conceito do doublethink para compreender o comportamento


humano no plano da realidade. Quiçá ele possa ser uma proposição útil para
compreendermos a maneira pela qual interpretamos a realidade. O modo pelo qual,
como sugere Eco, interpretamos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade, a
acrescemos de elementos ficcionais (ECO, 1994, p. 137). A fim de que a encaremos
como nos convém e, por meio de uma auto indução, tornemo-nos inconscientes de
nossa própria escolha. Talvez. Mas, antes que nossas mentes deslizem ainda mais fundo
no mundo labiríntico dodoublethink, e para que não nos percamos nestes tortuosos
corredores, deixemos que Eco nos puxe daqui para uma de suas histórias.
No capítulo Protocolos ficcionais do já citado Seis passeios pelos bosques da
ficção, Eco nos conta uma história que ele mesmo define como espantosa e que, mesmo
sendo puramente ficcional, foi e é tida por muitos como factual. Neste capítulo, Eco
relata parte de uma pesquisa temática que realizou e que posteriormente utilizou como
base para a criação de um romance, o Cemitério de Praga (2010). Resumindo de
maneira grosseira: Eco discorre sobre a origem do texto nomeadoProtocolos dos sábios
do Sião, obra de origem puramente ficcional escrita e reescrita por diversos autores, que
relata um projeto de dominação mundial encabeçado por lideranças religiosas judaicas.
É um “documento” ficcional onde os judeus declaram abertamente ambições de
dominação e de corrompimento e destruição das instituições e nações europeias. Ocorre
que este texto (em incontáveis versões adulteradas por incontáveis punhos) foi utilizado
e apresentado como relatório oficial sobre investigações de seitas religiosas a diversos
governos europeus durante o fim do século XIX e ajudou, sugere Eco, a fomentar o
antissemitismo na Europa (ECO, 1994, p.123-148).[15]
A temática da falsificação de documentos e das relações entre realidade e ficção
são temas recorrentes na obra de Eco, como bem sabemos. Mas considerei pertinente
apontar este caso específico por considerá-lo um exemplo muito forte. Uma
demonstração poderosa de como é uma constante histórica a política da pós-verdade:
provavelmente na própria época muitos desses relatórios eram sabidos ficcionais. Mas a
verdade pode ser pouco relevante quando um grupo ou sociedade procura justificar seus
preconceitos, ou quando pretende um debate ou discurso moldado pelo apelo à emoção.
Diz Eco que “já que a ficção parece mais confortável que a vida, tentamos ler a vida
como se fosse uma obra de ficção” (ECO, 1994, p.124). Ou seja, aplicamos
um doublethinksobre as situações em que nosso senso de justiça vai de encontro a um
preconceito, por exemplo.

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DA ESCOLHA CONSCIENTE PELA INCONSCIÊNCIA

Agora, para nos direcionarmos ao final de nosso passeio, leitor, – e peço


desculpas se já o cansei com minhas divagações – gostaria de propor um flerte com
outra narrativa de ficção, a fim de ruminarmos só um pouco mais esta questão da
escolha consciente por nublar nossa própria visão da realidade com uma ficção mais
confortável. No filme Matrix (1999), das irmãs Wachowski, há um personagem que
toma uma decisão marcante: a de voltar para a caverna. Explico: esta franquia, segundo
as próprias autoras, foi inspirada em obras de diversos filósofos,[16] dentre as quais a
mais direta ligação que se pode fazer é com o Mito da caverna de Platão. No primeiro
filme da trilogia acompanhamos Neo, o protagonista (interpretado por Keanu Reeves),
passando pelo processo de saída da caverna. Pela descoberta da limitação da própria
capacidade interpretativa frente à realidade. Por uma tomada de consciência de que
vivia, como sugere Platão, num mundo de sombras (PLATÃO, 2006, p.307-344). De
meias verdades ou de ficções.
Mas não pretendo me estender detalhadamente sobre isso agora, leitor, pois já
existem incontáveis produções que discorrem sobre o paralelo entre Matrix e o Mito da
caverna, e este não é o objetivo aqui. O que me interessa é citar o personagem Cypher
(interpretado por Joe Pantoliano), que após ter sido libertado da caverna e tido contato
com a realidade, toma a decisão de que prefere viver na caverna. No filme, Cypher
acaba assumindo o papel de vilão: é o traidor que quase causa a morte do protagonista.
Mas creio ser importante olhar para o personagem sem vilanizá-lo, e refletir
racionalmente sobre a escolha dele: é uma escolha pelo conforto, por encarar o mundo
através de determinados filtros, por não sentir determinadas emoções tão intensamente.
É uma escolha por saber e não saber. É ter o poder de relegar a verdade ao segundo
plano e se tornar inconsciente do que nos cerca. É, também, a escolha por se auto
induzir à uma inconsciência sobre a própria escolha. E a consciência desta escolha,
assim como a escolha pela inconsciência, ficam muito claras no diálogo entre Cypher e
o agente Smith (personagem de Hugo Weaving), durante jantar em que estão
negociando sua volta à Matrix:
Smith: – Temos um acordo, senhor Reagan?
Cypher: – Sabe, eu sei que este bife não existe. Eu sei que quando o
coloco na minha boca a Matrix está dizendo ao meu cérebro que ele é

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suculento e delicioso. Depois de nove anos você sabe o que eu


percebi? Ignorância é uma benção.
Smith: – Então temos um acordo?
Cypher: – Eu não quero lembrar de nada. Nada! Você entende?
(...)
Smith: – O que você quiser, senhor Reagan (MATRIX, 1999).[17]

Assim, por ser exatamente neste ponto que procurei focalizar este artigo: no ato
consciente de considerar a verdade irrelevante, de torná-la secundária frente aos nossos
interesses ou valores pessoais. Principalmente como forma de nós, enquanto seres
humanos, extravasarmos nossos preconceitos em relação ao outro, ou nos sentirmos
confortáveis com nossa própria existência e decisões. E com os olhos ainda na resolução
de Cypher, é que pergunto a você leitor: quantas vezes todos nós tomamos decisões
similares a esta? Quantas incontáveis vezes optamos por uma ignorância seletiva, por
um apagamento metódico do conhecimento de determinadas informações e
conhecimentos, em nome de nosso maior conforto? Quantas vezes induzimos nossa
própria inconsciência sobre nossas ações a fim de afastar, como sugeriu Orwell, o
sentimento de culpa que podem gerar? Seríamos todos nós, seres humanos, utilizadores
do sistema de pensamento a que Orwell chamou doublethink?

6
DA FANTASIA DO LUGAR DA VERDADE, OU DA INDISSOCIABILIDADE DA
VERDADE E DA FICÇÃO

A resposta para tais questões talvez esteja na maneira como lidamos com a
relação entre verdade e ficção. E na reflexão sobre as políticas da pós-verdade que,
reitero, definitivamente não são uma prática exclusiva do século XXI ou da
popularização da internet. Mas sim um sistema de pensamento e comportamental
existente há milênios. Para mim, a ideia de que o uso deste sistema se aprofundou na
pós-modernidade se baseia numa premissa da qual discordo: a de que o jornalismo ou
disciplinas como a História, um dia, já tiveram acesso a informações “reais”, à uma
suposta real natureza das coisas. Numa concepção de dependência hierárquica entre
verdade e ficção.
Em seu texto Reflexões sobre a pesquisa histórica, a ficção e as artes (presente
no livro História e Arte: encontros disciplinares), Rosane Kaminski nos explica,
citando Hayden White e Michel de Certeau, que a separação entre ficção e verdade vem

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de uma linha de pensamento construída no século XIX entre os próprios historiadores.


Que passaram a “(...) identificar a verdade com o fato e considerar a ficção o oposto da
verdade, portanto um obstáculo ao entendimento da realidade e não um meio de
apreendê-la” (WHITE apud KAMINSKI, 2013, p. 68). Num processo de
desenvolvimento, por parte da História enquanto disciplina, de práticas e convenções
“(...) para que o discurso histórico fosse percebido como o lugar da verdade do
passado” (CERTEAU apud KAMINSKI, 2013, p. 68). Algo similar, talvez, ao que
fez/faz o jornalismo no sentido de produzir um discurso de lugar da verdade do
presente. Estas são convenções que Kaminski questiona, propondo que “a ficção não é
necessariamente incompatível com a ideia de verdade” (KAMINSKI, 2013, p.66). E
tendo, leitor, a concordar com esta pesquisadora sobre tal questão. Bem como me
inclino a consentir com algumas proposições que Juan José Saer faz em seu livro El
concepto de ficción. Asserções que, se sob um primeiro olhar podem parecer fortes,
creio que podem se somar positivamente às reflexões propostas em nosso passeio. Saer
resume, por exemplo, o embate valorativo existente no seio das non-fictions (fidelidade
à realidade versus ficcionalidade) da seguinte maneira:
Podemos portanto afirmar que a verdade não é necessariamente o
contrário da ficção, e que quando optamos pela prática da ficção não o
fazemos com o propósito obscuro de perverter a verdade. E a
dependência hierárquica entre verdade e ficção, segundo a qual a
primeira possuiria uma positividade maior que a segunda, é
certamente, no plano que nos interessa, uma mera fantasia moral
(SAER, 2014, p.10-11).[18]

Tal consideração de Saer se dá porque, embora enquanto produção literária “a


ficção se mantenha à distância tanto dos profetas do verdadeiro como dos eufóricos do
falso” (SAER, 2014, p.12). Ela é um tratamento específico do mundo, inseparável do
que trata. Ficção e realidade são indissociáveis, pois uma se ancora na outra. As ficções,
os “enunciados políticos e literários” – e aqui cito Rancière – são, afinal, construções
intencionais que fazem parte de um “saber cultural”, são produtores de sentido que
interferem em nossa percepção do mundo, que fazem efeito no real (RANCIÈRE, 2009,
p. 59). Por isto Saer (falando em primeira instância do gênero biográfico, mas depois
também de todos os gêneros que se autodenominam non-fiction),[19] também afirma
que:
(...) A veracidade, atributo supostamente científico, nada mais é que a
retórica de um gênero literário, não menos convencional do que as três
unidades da tragédia clássica, ou o desmascaramento do assassino nas
últimas páginas do romance policial. A rejeição escrupulosa de todo

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elemento ficcional não é um critério de verdade. Posto que o próprio


conceito de verdade é incerto e sua definição integra elementos
díspares e até mesmo contraditórios, é a verdade como objetivo
unívoco do texto e não apenas a presença de elementos ficcionais que
merece (...) uma discussão minuciosa (SAER, 2014, p. 10).

Assumindo assim um tom crítico ao que considera uma pretensão “científica”


inalcançável por parte de obras que se propõe a contar a “verdade” sobre a vida de uma
pessoa ou sobre eventos já ocorridos. E propondo que as non-fictions são, em fato,
gêneros literários que não diferem necessariamente de uma obra de ficção. Uma teoria
que se mostra interessante no contexto deste artigo, pois propõe retirar tais gêneros do
pedestal regido por um discurso de detentor da verdade, de caráter documental, e
aproximá-los de outros gêneros literários. Apontando que não é possível garantir a
veracidade crua de qualquer informação, mesmo nestes gêneros tidos como “mais
fiáveis”. De jornais a documentários, de relatos históricos e biográficos a textos
acadêmicos, é impossível afirmar com segurança que qualquer texto é imune à
ficcionalidade.[20]
É importante esclarecer, entretanto, que este tom crítico de Saer se dá não em
relação ao gênero da não ficção em si, mas sim ao discurso que propõe ele como oposto
à ficção. O pensamento de Saer se alinha ao do já citado Jacques Rancière, que no
livro A partilha do Sensível: estética e política aborda, entre outros tópicos, a relação
entre a racionalidade ficcional ou “razão das ficções” – já que a ficção possui formas e
regras de ordenamento e composição próprias –, e os modos existentes de explicação da
realidade histórica e social, que ele nomeou “razão dos fatos”. Discussão presente
principalmente no quarto capítulo, nomeado Se é preciso concluir que a história é
ficção, em que Rancière cutuca uma das questões mais polêmicas da disciplina de
História: a relação entre literatura e história, entre ficção e realidade. E procura
questionar ou mesmo revogar a linha de divisão aristotélica entre a história do
historiador e do poeta. Para Rancière, a “realidade” dos fatos é algo desordenado. É o
discurso historiográfico que, fazendo uso de elementos convencionados pela
racionalidade formal da ficção, confere uma aparência de ordem ao narrar fatos.
Dito de outro modo – e isso é evidentemente algo que os historiadores
não gostam muito de olhar de perto –, a nítida separação entre
realidade e ficção representa também a impossibilidade de uma
racionalidade da história e de sua ciência. A revolução estética
redistribui o jogo tornando solidárias duas coisas: a indefinição das
fronteiras entre a razão dos fatos e a razão das ficções e o novo modo
de racionalidade da ciência histórica (RANCIÈRE, 2009, p.54).

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Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

Ou seja, para Rancière a própria existência da História enquanto disciplina só é


possível através da aceitação da não existência de uma separação clara do literário. Pois
a própria escrita da história se faz pela linguagem. E sendo a linguagem uma convenção,
ela está sempre sujeita a filtros de interpretação subjetiva e variável. Filtros estes que
talvez escolhamos – ainda que “não recordemos” –, através de um sistema que Orwell
escolheu nomear doublethink. Adaptando a fala de outro teórico: é bem provável que a
definição de [verdade][21] seja dependente da maneira pela qual alguém resolve ler, e
não da natureza daquilo que é lido (EAGLETON, 2003, p. 11). Afirmação que podemos
utilizar para fazer uma última costura teórica, e assim encerrarmos nossos passeios
pelos campos de construção da verdade.

7
CONSIDERAÇÕES FINAIS: sobre as pretensões à universalidade

Se, como sugere a adaptação da afirmação de Eagleton, a concepção de verdade


seja dependente da maneira pela qual o indivíduo lê ou olha para determinada
informação, o que impele ou auxilia o indivíduo a definir de que maneira irá olhar?
Pierre Bourdieu nos traz uma sugestão no livro O poder simbólico: “Se há uma verdade
é que a verdade está em jogo nas lutas” por uma “(...) pretensão à universalidade, ao
juízo absoluto, que é a própria negação da relatividade dos pontos de vista”
(BOURDIEU, 2003, p. 293-294). Estas lutas, como nos explica o sociólogo francês,
ocorrem dentro de todos os campos que estruturam o universo social, e também pelas
relações entre os campos e os agentes atuantes neste universo. São embates pelo poder
que advém do direito à enunciação de um discurso legitimado. Tido como crível,
confiável ou “oficial” em função dos protocolos de hierarquia e legitimação que um
determinado campo ou sociedade possuem, e pelos quais outorgam um enunciador com
o poder simbólico de determinar o que é verdade.
Este outorgamento de poder simbólico, entretanto, só se efetiva em autoridade
através do reconhecimento que os agentes conferem a ele. Daí Bourdieu defender com
tanto afinco que não se pode tratar o resultado das relações de forças do campo social
como efeitos de uma dominação e vontade única central, pois assim:
Ficamos impossibilitados de apreender a contribuição própria que os
agentes (incluindo os dominados) dão, quer queiram quer não, quer
saibam quer não, para o exercício da dominação por meio da relação
que se estabelece entre as suas atitudes, ligadas às suas condições

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sociais de produção, e as expectativas e interesses inscritos nas suas


posições no seio desses campos de luta, designados de Estado, Igreja
ou Partido. A submissão a certos fins, significações, ou interesses
transcendentes, quer dizer, superiores e exteriores aos interesses
individuais, raramente é efeito de uma imposição imperativa e de
submissão consciente (BOURDIEU, 2003, p. 86).

Ou seja, para Bourdieu os fins objetivos nunca são postos como tais, nem
mesmo pelos agentes mais interessados em seus resultados. E a subordinação do
conjunto de uma sociedade a uma mesma intenção objetiva, numa “espécie de
orquestração sem maestro” (BOURDIEU, 2003, p. 86-87), só pode se instituir através
de uma concordância instaurada entre os agentes daquele conjunto. Por uma assimilação
destes de seu papel dentro daquele corpo social: o que sentem que são, o que a história
fez deles e o que deles se espera. Em suma, pelo processo de incorporação que o
indivíduo faz do habitus[22] a ele destinado. Apropriação esta que pode gerar, como
sugere Bourdieu, inclusive bem estar, no sentido de pertencimento àquele lugar, de estar
a fazer o que tem de fazer, de ser destinado àquilo, e até de o fazer com gosto
(BOURDIEU, 2003, p. 87).
Vê-se que a concordância do indivíduo-agente (agente porque é atuante: age no
meio em que está inserido) com determinada atividade ou crença pode, então, muitas
vezes partir de pressupostos que não os oficialmente declarados. Mas também por
interesses particulares, credos e opiniões pessoais que não necessariamente estão
diretamente ligados à atividade geral a que se submetem. Associar isto individualmente
aos exemplos dados ao longo deste artigo – seja pelas atitudes de parte da população
ribeirinha paraense contra outra parcela dela no Voluntário, seja pela prática de
falsificação de documentos históricos como exposta por Umberto Eco em Seis passeios
pelos bosques da ficção ou como trabalhada por Winston em 1984, seja pela relação de
Syme com osproles no mesmo livro, ou seja ainda pela escolha de Cypher por um
favorecimento de seu bem estar individual através de um Doublethink forçado
em Matrix –, entretanto, nos faria alongar este passeio demasiadamente. Talvez um
novo estudo e artigo se mostrasse necessário só para isto. De forma que proponho
encararmos estas proposições de Bourdieu como uma possível conclusão à defesa do
posicionamento que aqui propus: a política cultural da pós-verdade não está vivendo seu
auge na atualidade, ela sempre existiu e atuou com intensidade. Pois esta prática cultural
é parte de nossa própria prática de construção de conhecimento e organização social. De
nossa capacidade de interpretar e nomear aquilo que nos rodeia. Que, para bem ou para

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mal, todas as eras humanas foram da pós-verdade. E aqui proponho que encerremos
nosso labiríntico passeio pelos longos corredores cognitivos da verdade, da pós-verdade
e do doublethink.

AUTOR:
*Arthur Aroha é graduado em Escultura pela Escola de Música e Belas Artes da
Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR. Atualmente é mestrando do Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná – UFPR, na área de
concentração de Estudos Literários sob orientação do Prof. Dr. Alexandre André
Nodari. E-mail: aakds@hotmail.com

REFERÊNCIAS:
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2003.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 5ª
edição. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva.
Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
KAMINSKI, Rosane. Reflexões sobre a pesquisa histórica, a ficção e as artes. In:
FREITAS, Artur (org.); KAMINSKI, Rosane (org.). História e Arte: encontros
disciplinares. São Paulo: Intermeios, 2013, p. 65-93.
MATRIX. Roteiro e direção: Lilly e Lana Wachowski. Produção: Joel Silver.
EUA/Australia: Warner Bros. Pictures/Roadshow Entertainment, 1999. 1 DVD (136
min).
ORWELL, George. 1984. New York: Signet Classics, 1961 (ano de reimpressão não
informado).
PLATÃO. Livro Sétimo. A República (ou da justiça). Trad. Edson Bini. Bauru - SP:
EDIPRO, 2006, pp. 307-344.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa
Netto. 2ª ed. São Paulo: EXO experimental; Editora 34, 2009.
SAER, Juan José. El concepto de ficción. 4ª ed. Buenos Aires: Seix Barral, 2014.
SOUSA, Inglês de. Voluntário. In: SOUSA, Inglês de. Contos amazônicos. São Paulo:
Editora Martin Claret, 2005, p. 23-36.
<https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>. Acesso
em Janeiro de 2017.
<https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth>. Acesso em Janeiro de 2017.

[1] Matérias e artigos jornalísticos que seguiram esta linha afirmativa surgiram aos montes neste período.
Aponto aqui alguns exemplos em língua portuguesa e inglesa, a título ilustrativo:
<http://www.cartacapital.com.br/revista/933/a-era-da-pos-verdade>;
<http://www.jn.pt/opiniao/jose-manuel-diogo/interior/a-era-da-pos-verdade-5507571.html>;
<http://revistacult.uol.com.br/home/2016/10/a-memetica-e-a-era-da-pos-verdade/>;
<http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/apertem-os-cintos-estamos-entrando-na-era-
da-pos-verdade/>; <https://www.nytimes.com/2016/12/27/magazine/the-problem-with-self-investigation-
in-a-post-truth-era.html?_r=0>. Acessos em Janeiro de 2017.

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Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

[2] Anualmente o grupo Oxford dictionaries faz uma lista com os termos considerados os mais relevantes
no período, e elege um como “palavra do ano”. O anúncio do post-truth como vencedor de 2016 pode ser
encontrado em: <https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>. Acesso em
Janeiro de 2017.
[3] Tradução livre de definição apresentada em: <https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth>.
Acesso em Jan. 2017.
[4] O termo post-truth foi pela primeira vez utilizado com o sentido a ele hoje designado em 1992 por
Steve Tesich em artigo sobre a Guerra do Golfo pérsico. Informações disponíveis
em: <https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>. Acesso em Janeiro de
2017.
[5] Inglês de Sousa, nascido na então província do Grão-Pará, foi um escritor, advogado e político do
período imperial brasileiro.
[6] Tapuio é um termo generalista que foi utilizado ao longo dos séculos no Brasil para designar
quaisquer índios que não falam a língua tupi.
[7] O trecho final do conto assim diz: “Ainda há bem pouco tempo vagava pela cidade de Santarém uma
pobre tapuia doida. A maior parte do dia passava-o a percorrer a praia, com o olhar perdido no horizonte,
cantando com a voz trêmula e desenxabida a quadrinha popular:
Meu anel de diamantes
Caiu na água e foi ao fundo;
Os peixinhos me disseram:
Viva D. Pedro Segundo!” (SOUSA, 2005, p.35-36).
[8] Basta pensarmos em conflitos como as ocupações do Afeganistão, a guerra do Golfo, a invasão norte-
americana ao Iraque, a intervenção francesa na Líbia, e mais recentemente as intervenções diversas nos
conflitos na Síria, por exemplo.
[9] O período pós independências na América do Sul foi permeado ininterruptamente por conflitos assim.
Praticamente todos os países entraram em guerra com seus vizinhos. Estas novas nações aplicaram as
mesmas políticas expansionistas sob as quais elas, enquanto colônias, foram fundadas. Até porque
seguiram sendo governadas pelas mesmas elites do período colonial.
[10] Vide a revolta denominada Cabanagem (1835-1840).
[11] Toco aqui no que diversos autores, de Ginzburg e sua “contiguidade entre ficção e história”
(GINZBURG, 2007), a Rancière e suas propostas de valorização por parte do olhar do pesquisador para
com os produtos ficcionais (RANCIÈRE, 2009), entre tantos outros, discutem com afinco: as relações
entre a realidade, a pesquisa histórica, a ficção e as artes.
[12] Todas as citações de 1984 são de tradução livre.
[13] O termo prole não existe no livro à toa: Orwell se inspirou nos grandes regimes totalitários europeus
do século XX para criar o 1984. Especialmente no regime stalinista, do qual Orwell era crítico por
considerá-lo uma perversão do Socialismo democrático. O próprio conceito do doublethink foi inspirado
num discurso proferido por Stalin em 1930.
[14] Newspeak é o nome da nova língua que se desenvolvia na distopia de Orwell.
[15] Eco vai às últimas consequências e propõe que, visto que o documento chegou às mãos do próprio
Hitler, ele poderia ter influência no Holocausto (ECO, 1994, p. 143).
[16] Outras influências foram Descartes, Kant, Foucault e Derrida. Como se pode ver em entrevista com
Lana Wachowski disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=3MXR4MCuA0o&feature=youtu.be>. Acesso em Janeiro de 2017.
[17] Tradução livre.
[18] Todas as citações de El concepto de ficción são de tradução livre.
[19] Como se pode ver no trecho a seguir: “Lo mismo podemos decir del género, tan de moda en la
actualidad, llamado, con certidumbre excesiva, non-fiction: su especificidad se basa en la exclusión de
todo rastro ficticio, pero esa exclusión no es de por sí garantía de veracidad. Aun cuando la intención de
veracidad sea sincera y los hechos narrados rigurosamente exactos ––lo que no siempre es así–– sigue
existiendo el obstáculo de la autenticidad de las fuentes, de los criterios interpretativos y de las
turbulencias de sentido propios a toda construcción verbal” (SAER, 2014, p. 10).
[20] Afinal somos seres que contam parte de sua história através de narrativas como as Sagas, sejam as
irlandesas, as nórdicas, ou, porque não aplicar este termo também às narrativas sumérias, maoris,
malinesas, às de Cristóvão Colombo no Diários da Descoberta da América, entre tantas possibilidades,
quem sabe até a relatos de eventos e/ou situações bem mais recentes?
[21] O termo [verdade] foi aqui utilizado para substituir o termo original [literatura], como presente em:
“A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza
daquilo que é lido” (EAGLETON, 2003, p. 11).

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[22] O conceito de habitus (as “vestes sociais” habitadas ou encarnadas pelos membros de uma
sociedade) é trabalhado por Bourdieu no Capítulo III – A génese dos conceitos de habitus e campo – de O
poder simbólico. (BORDIEU, 2003, p. 59-74).

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Dossiê

A MULTIDÃO NO TWITTER:
a criação de memes com apropriação de fotografias
Gabriel Malinowski*

RESUMO: O artigo desenvolve alguns aspectos do conceito de multidão, elaborado por


Antônio Negri e Michel Hardt, com ênfase nos aspectos da criação e da comunicação.
Essa abordagem serve de base para analisar certa produção na rede social Twitter: os
memes que são construídos com apropriação de fotografias e textos em até 140
caracteres. Faz-se uma análise de algumas postagens de cunho político que foram
realizadas ao longo de dezembro de 2016 no Brasil. Esse tipo de produção parece ir ao
encontro do projeto político reivindicado por Negri e Hardt, a multidão.
Palavras-chave: Multidão; Twitter; Meme; Negri; Hardt

PREÂMBULO

Um olhar atento lê uma reportagem em um portal de notícias na Internet. Os


dedos rolam a tela em busca de um parágrafo mais interessante. A fotografia que ilustra
a reportagem é salva na memória do dispositivo. Encerra-se a leitura. Na seleção de
aplicativos distribuídos na tela do aparelho, toca-se no ícone do Twitter. A sessão
“início” contempla os posts de perfis que o usuário segue. Os dedos atravessam a tela, o
olhar segue atento na leitura de textos e imagens. Com um toque no ícone de pena, que

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faz referência à escrita, outra tela é aberta. Nesse espaço, a imagem salva há pouco é
inserida juntamente a um texto. O botão “tweetar” é apertado, e a publicação entra em
rede para outros tantos usuários.
O Twitter é uma ferramenta de mensagens curtas lançada em outubro de 2006, e
que obteve um rápido crescimento no Brasil e no mundo. Nela, o usuário segue e é
seguido por outros perfis. O Twitter convida os usuários a responder à pergunta “o que
está acontecendo?” em até 140 caracteres. Dentre outras possibilidades do aplicativo,
estão a conversação entre os atores e a apropriação relacionada ao acesso à informação.
Quem é esse usuário? Como caracterizar sua atividade? De saída, pode-se dizer
que para existir esse “usuário” em rede, é indispensável a existência de tantos outros
“usuários”. A rede que os conecta fornece uma estrutura que perpassa condutas, modos
de ação e pensamento. Pode-se dizer também que Pode-se dizer também que nessa
produção, troca e propagação existe um bem valioso: a informação. A produção
imaterial de ideias, códigos, imagens, e até mesmo afetos parece ser um traço
característico daquilo que é produzido e consumido entre eles. Essas características
parecem estar no centro da questão daquilo que Antônio Negri e Michel Hardt chamam
de multidão, principalmente, quanto ao uso daquilo que os autores chamam de a
produção do comum por meio da linguagem.
Sendo assim, a proposta deste artigo é explorar a ideia de multidão no ambiente
do Twitter. O enfoque se dá na relação entre a multidão e as criações com imagem e
texto do aplicativo. Essa prática é uma forma linguística usual dentre outras utilizadas
cotidianamente no Twitter. Os efeitos desse modelo de ressignificação de fotografias
também podem ser diversos. Fez-se então um recorte de tweets do mês de dezembro de
2016 que utilizam fotos e textos para a construção de uma crítica de cunho político.
Tenta-se explorar o próprio conceito de multidão pelas práticas de criação desses
memes.
De saída, reforça-se a noção de multidão. Em seguida, aproxima-se o Twitter
desse conceito por meio de um de seus aspectos mais instigantes: sua monstruosidade.
Esse percurso serve de base para a análise de alguns posts publicados recentemente por
usuários. Acrescentando texto à fotografia, esses posts podem ser visto como memes
que alimentam a rede e conformam a comunicação entre seus usuários.

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NO CAMINHO DA MULTIDÃO
O conceito de multidão trabalhado por Antonio Negri e Michel Hardt permite
leituras profícuas acerca de alguns predicados subjetivos, políticos e tecnológicos que se
configuram nas sociedades mais fortemente tocadas pela lógica informacional do
capital. A complexidade do conceito, entretanto, traz consigo uma dupla dificuldade,
própria de grandes teorias: não ser reducionista, a ponto de desperdiçar as saborosas
suspeições dos autores; tampouco prolixo, de modo a reescrever repetidamente aquilo
que os autores já o fizeram de forma exemplar. No limite do interesse deste artigo,
segue-se aqui então uma indicação feita pelo próprio Antônio Negri (2009), em um
artigo conciso, intitulado Para uma definição ontológica da multidão. Nesse artigo,
Negri elenca de forma didática três aspectos centrais na ideia de multidão.
O caráter imanente da multidão seria o primeiro aspecto. Esse primeiro ponto
possibilita a inserção dos autores em um terreno filosófico e epistemológico específico.
Trata-se de uma demarcação teórica importante, que aposta em um projeto político para
além do terreno da representação. A multidão como imanência garante a validade
política das relações entre múltiplas singularidades. No mesmo gesto, postula uma
crítica ao pensamento político moderno dominante, que foi construído nas ideias de
representatividade e unidade, tão caras a Hobbes, Rousseau e Hegel. Abole-se na
multidão uma ideia de povo assentado na transcendência do soberano. Para Hobbes, por
exemplo, a multidão não é apta a governar. O múltiplo não conseguiria decidir, sendo
necessário assim a unidade. É a representação da multidão que conduz à necessária
unidade. A unidade, portanto, é considerada um pressuposto para a existência da paz e
do governo civil. Do contrário, subsistiria a guerra e a discórdia. A virtude política se
encontra na construção de uma unidade política. Disso resulta a importância que
Hobbes dá à noção de representação, tendo em vista que em torno dela se constitui e se
garante a unidade. A multidão, na perspectiva de Negri e Hardt (2005), não deve ser
domada mediante os mecanismos representativos. Ao contrário, trata-se do protagonista
fundamental do cenário político, ao qual se subordinam os dispositivos de
representação. Não é a representação que organiza e confere sentido à multidão, e sim a
multidão que constitui o sentido do mundo, que determina a produção do direito no
espaço político.
Negri (2009) destaca, como segundo aspecto, que a multidão é um conceito de
classe. Trata-se de um novo ponto de vista da lógica produtiva, que agrega a perspectiva
do trabalho cognitivo/imaterial como central nas sociedades capitalistas. A multidão é

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vista como classe na medida em que é aquilo que produz o comum. Além disso, como
essa produção se dá por comunicação e cooperação, constitui-se uma classe.
Obviamente, não se trata de diminuir a dimensão do trabalho industrial, mas notar a
força qualitativa de elementos imateriais presentes nos modos de produção
contemporâneos. Dois momentos teriam sido centrais para essa mudança paradigmática.
O primeiro é o momento em que o modo de produção se tornou completamente
“biopolítico”, ou seja, o ato de captura das linguagens, dos códigos, das necessidades e
dos desejos pelo capital. O segundo seria a financeirização, que mediria o valor desse
elemento comum produzido por cooperação e comunicação.
Ao longo da obra Multidão, os autores enfatizam as dimensões biopolíticas
como centrais nos atuais processos de produção. Trata-se de uma relação de poder que
está centrada na dimensão biológica, da vida. Na reconfiguração do capital e do
Império, calcados nos processos de financeirização, o biopoder é centrado nas
dimensões de comunicação e cooperação, ou seja, nas dimensões cognitivas e
imateriais, retirando daí sua mais-valia. Nesse sentido, a força do capital não seria
expropriada de um indivíduo, mas das singularidades da multidão, de suas formas de
comunicação e cooperação.
A multidão é então um conceito de classe na medida em que se constrói pela
exploração desse comum biopolítico. A multidão é, efetivamente, a classe que produz o
comum. Isso permite dizer que a multidão não é apenas explorada em sua produção –
como trata a definição de classe trabalhadora -, mas uma exploração da própria
cooperação. Assim, entender a multidão como classe, é colocar as singularidades como
centrais nos processos de produção. Nas palavras de Negri e Hardt (2005, p. 156):
A informação, a comunicação e a cooperação tornam-se as normas da
produção, transformando-se a rede em sua forma dominante de
organização. Assim é que os sistemas técnicos de produção
correspondem estreitamente a sua composição social: de um lado, as
redes tecnológicas, e de outro a cooperação dos sujeitos sociais que
trabalham. Essa correspondência define a nova topologia do trabalho e
também caracteriza as novas práticas e estruturas de produção.

Da capacidade de comunicação e cooperação aparece também a terceira


característica da multidão: sua potência. O mais importante nessa questão é notar que o
comum que é apropriado pelo capital é também o que possibilita certa resistência, ou
algo que escapa à lógica produtiva. Negri e Hardt (2005) argumentam que somente
analisando a cooperação podemos, com efeito, descobrir que o todo de singularidades
produz além da medida. Trata-se de uma fragilidade do comando capitalista, na medida
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em aposta na hegemonia “virtual” do trabalho coletivo, na cooperação produtiva. Esse


terceiro ponto será mais explorado neste artigo. Nele, a Internet aparece como elemento
de análise. Conforme argumenta Negri e Hardt (2005, p. 14):

Uma rede distributiva como a Internet constitui uma boa imagem de


base ou modelo para a multidão, pois, em primeiro lugar, os vários
pontos nodais se mantêm diferentes mas estão todos conectados na
rede, e além disso as fronteiras externas da rede são de tal forma
abertas que novos pontos nodais e novas relações podem estar sendo
constantemente acrescentados.

A Internet, em relação a esse terceiro ponto, fornece alguns exemplos de


subversão e inventividade. Se as práticas e os processos que constituem a Internet estão
na base de produção do capital, são neles que também aparecem formas de resistência e
criação.

A CRIAÇÃO MONSTRUOSA DA MULTIDÃO


De acordo com as características descritas acima, nota-se como a multidão é
explorada em suas relações de cooperação entre singularidades. Trata-se, na visão de
Negri e Hardt (2005), de uma exploração das redes que compõem o conjunto. De outro
lado, os autores enxergam uma potência nesse modelo, na medida em que aquilo que é
explorado ultrapassa as capacidades de controle do sistema. Se a comunicação é
apropriada pelo capital, ela tem a potência de ser reapropriada na dinâmica
comunicacional das redes. Cria-se aí um elemento inesperado, uma espécie de dobra. Os
autores enxergam, nessa agonística própria desse modelo capitalista, a força para o
surgimento da multidão como realidade histórica, da multidão como um corpo político.
Nos dias atuais, o que os autores conseguem perceber são apenas alguns
sintomas desse projeto político que nomeiam como multidão. Por isso trabalham com a
ideia de carne da multidão. Os autores constroem assim uma relação polissêmica
interessante entre o corpo político global do capital e a carne da multidão. A carne
parece operar, na teoria dos autores, como um estágio anterior, do corpo como
virtualidade. Para evidenciar a existência dessa carne da multidão, os autores iniciam
uma argumentação sobre a crise ou dissolução dos corpos sociais tradicionais.
Para muitos, essa carne é monstruosa, porque ela é fugidia, e não pode ser
enfeixada nos órgãos hierárquicos de um corpo político tradicional. Para os autores,
“essas multidões que não são povos nem nações ou sequer comunidades constituem um

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exemplo da insegurança e do caos que resultaram no colapso da ordem social


moderna.”(NEGRI e HARDT, 2005, p. 251). Os autores, assim, parecem apostar na
potência do monstro: “precisamos encontrar os meios de realizar esse monstruoso poder
da carne da multidão de formar uma nova sociedade”. (p. 253)
Um dado interessante da carne é que ela é comum, assim como o ar, o fogo, a
terra e a água. O monstro não seria um acidente, mas a possibilidade sempre presente
capaz de destruir a ordem natural da autoridade. Daí os autores sugerem uma relação
ambivalente com os monstros, pois essa carne monstruosa deve atacar o mundo horrível
e monstruoso do corpo político global do capital. Para eles, é preciso usar as expressões
monstruosas da multidão para desafiar as mutações da vida artificial transformadas em
mercadorias, pois é no novo mundo dos monstros que a humanidade tem de agarrar o
seu futuro. Por meio então desse pensamento metafórico da carne do monstro, ou mais
precisamente dessa condição latente de uma possível multidão, que os autores
desenvolverão alguns cenários já em curso nos dias atuais.
As expressões monstruosas da multidão podem ser entendidas, na teoria dos
autores, como elementos de criação próprios à multidão. Aqui, não se trata de uma
criação hierarquicamente estabelecida, mas de um elogio às capacidades inventivas dos
pobres. O conceito de pobre é amplo: pobre aqui são os países periféricos, como o
Brasil; pobres são aqueles sem emprego fixo e garantido nessa era de flexibilidade no
trabalho. Para Negri e Hardt (2005, p.182), “a criatividade e inventividade dos pobres,
desempregados, parcialmente desempregados e migrantes são essenciais para a
produção social”. Trata-se de um aspecto daquilo que não tem forma certa, nem pode
ser apreendido com harmonia e unidade: a criação. Para os autores, “apesar de sua
pobreza e de sua falta de recursos materiais, alimentos, habitação e assim por diante, os
pobres efetivamente dispõem de uma enorme riqueza em seus conhecimentos e poderes
de criação.” (NEGRI e HARDT, 2005, p.182)
As práticas sociais possibilitadas pelo uso de uma plataforma como o Twitter
integram esse cenário monstruoso atual, na medida em que participam de revoltas,
debates e, em certa medida, atuam efetivamente na condução de questões políticas
importantes. As micronarrativas em disputa no Twitter também parecem contribuir para
a dissolução da grande narrativa histórica. Obviamente, o Twitter não deve ser visto
como uma plataforma revolucionária, mas elemento central do próprio capital, e com
possibilidades que ultrapassam sua apropriação capitalística. No limite deste artigo, não
se estuda nenhuma mobilização específica ou revolta que faz uso do Twitter, mas um

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uso cotidiano, que parece trabalhar exatamente nessa agonística entre exploração da
cooperação entre singularidades e potência comunicacional e criativa daquilo que se
produz.

CRIAÇÕES NO TWITTER: MEMES COM APROPRIAÇÃO DE


FOTOGRAFIAS
A fim de evidenciar e tornar mais concreta esta abordagem, pretende-se analisar
a reapropriação de imagens com a criação de textos realizada por alguns usuários na
rede social Twitter. Não se trata, contudo, de uma análise estritamente linguística, mas
sim de uma aproximação às ideias e conceitos trabalhados pelos autores de Multidão.
Um primeiro ponto a ser notado, por exemplo, é que os usuários que produzem esse
conteúdo com reapropriação de imagens e produção textual, em sua maioria, não
carregam a autoridade da representação, e podem ser vistos como singularidades que
possuem uma força na realização do múltiplo. De acordo com Negri e Hardt (2005, p.
283), “a mobilização do comum demonstra, finalmente, que os movimentos que fazem
parte desse ciclo global de lutas não são apenas movimentos de protesto (embora seja a
face que aparece mais claramente na mídia), mas também positivos e criativos”.
Além disso, o Twitter atesta, por meio da linguagem, duas características da
produção do comum: o hábito e a performance. Para Negri e Hardt, outro modo de
compreender a produção e a produtividade do comum seria exatamente o hábito, pois
ele seria o comum na prática. Uma das vantagens em trabalhar com o termo é porque
ele desloca a ideia da pura subjetividade (as profundezas do eu) ou do sujeito político
tradicional (ideia transcendental). O hábito traz uma ideia de atravessamentos de
subjetividades, de imanência, na medida em que estamos constantemente criando
hábitos que servem para nossa vida prática. Essa construção surge de forma cotidiana,
através de trocas comunicacionais, através do comum, e nunca de forma realmente
individual ou pessoal. Mistura-se assim hábitos, conduta e subjetividade individual na
constituição de nossa natureza social. Além disso, não estariam apenas vinculados a
repetições mecânicas de atos passados, mas seriam meios ativos, maneiras enérgicas e
dominadoras do agir. Ou seja, uma prática viva de criação e inovação, na qual os
autores identificam a própria ideia de multidão. Nas palavras dos autores, “as
singularidades interagem e se comunicam socialmente com base no comum, e sua
comunicação social por sua vez produz o comum. A multidão é a subjetividade que
surge dessa dinâmica de singularidade e partilha” (NEGRI e HARDT, 2005, p.258). O

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que está em jogo nessa produção do comum é a participação mais ativa das
singularidades, desejos, afetos dos indivíduos na construção de um corpo, o qual seria
mitigado pela lógica capital que, num plano macro, ainda constrói uma sociedade à
revelia dessas vontades, hábitos. A produção da linguagem cômica utilizada nas
reapropriações de fotos no Twitter parece entrar nesse jogo subjetivo de produção de
hábito. Os próprios assuntos do momento no Twitter surgem nessa dinâmica, com
contaminações que encaminham determinadas ações. O uso de determinadas fotos “do
momento” atesta esse movimento, como veremos adiante.
A ideia de performance é um outro elemento trazido pelos autores para ilustrar a
produção e a produtividade do comum. A performatividade, a comunicação e a
colaboração seriam a chave do paradigma imaterial da produção. Dentre essas
performances está a performance linguística, pois se no trabalho fabril o trabalhador é
mudo, agora ele tem necessidade de habilidades linguísticas, afetivas e de comunicação.
E como a linguagem é sempre produzida em comum, ela pode ser um elemento de
criação, ou seja, uma aliada da Multidão. Entretanto, como sabemos, é exatamente no
controle do comum que o capital tem agido atualmente. O projeto de Multidão seria
possível exatamente por ter seu motor no comum. Para os autores, “essa natureza
comum da atividade social criativa é ainda mais destacada e aprofundada pelo fato de
que hoje a produção depende cada vez mais de competências e comunidades
linguísticas” (NEGRI e HARDT, 2005, p.179)
Os memes, em particular, podem ser vistos como uma produção performática
que já se tornou habitual e se configurou como um gênero linguístico. Trata-se de uma
forma de expressão que se estabelece por meio de novas tecnologias num determinado
período histórico, juntamente a todas as transformações culturais que sua inserção
acarreta. Para Lima e Castro (2016, p.39), “pode-se dizer, então, que novas formas de
‘querer-dizer’ implicam novos comportamentos comunicativos, consequentemente,
novos gêneros textuais”. Uma forma usual de meme no Twitter é a postagem de uma
foto que ganha certa visibilidade, mas que, porém, é ressiginificada por um texto que o
usuário produz, geralmente, com uso de ironia.
Como corpus de análise, buscou-se a página Melhores do Twitter, que faz uma
seleção sistemática das postagens. Optou-se por analisar apenas as postagens do mês de
dezembro que integravam memes com fotografia e texto e que faziam referência ao
atual cenário político. O conteúdo das postagens analisadas fazem referência, em sua
maior parte, à situação política no Brasil. Porém, nota-se alguns atravessamentos

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próprios à globalização. Para Negri e Hardt (2005, p.179), “essa comunidade linguística
vem antes do lucro e da construção de hierarquias locais e globais.” O post abaixo
(Figura 01), por exemplo, diz: “Depois desse cartaz na Paulista acho que agora o Estado
Islâmico vai dar uma trégua” (sic). A fotografia mostra um cartaz de fundo amarelo com
a frase “Estado Islâmico / Pare!” escrita em azul e vermelho, respectivamente. Na
disposição do cartaz, há ainda um ícone que lembra uma placa de trânsito, com uma
mão.

Figura 01

A legenda da foto, de forma irônica, critica a ineficácia e a ingenuidade da ação


reivindicada pelo cartaz, colocado na Avenida Paulista, um dos principais locais de
manifestação política da cidade de São Paulo. Interessante notar aqui como a linguagem
do texto do autor do post se relaciona com o texto presente na fotografia. O resultado
dessa intersemiose é o humor crítico, que parece ser, a propósito, elemento comum em
todas as postagens analisadas. Trata-se de um comum linguístico que se tornou, no
mesmo gesto, habitual e performático.
A foto (Figura 2), do atual presidente Michel Temer com a primeira-dama,
algumas crianças e um Papai Noel, também rendeu inúmeros memes cômicos. No dia
16 de dezembro, a página analisada publicou um desses posts, que trazia a seguinte
legenda: “Michel Temer distribui talões do INSS a crianças. Confira!”. A crítica aqui se

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refere ao projeto de reforma da previdência, que demandará mais anos de contribuição


aos trabalhadores. Como na referida foto, as crianças que estão à frente do presidente e
da primeira-dama estão sérias, o texto confere sentido a essas expressões faciais.

Figura 2

O usuário que publicou esse post, como pode ser notado, é @avaaaifelipe. Uma
breve investigação nesse perfil permite aprofundar a ideia de multidão como classe.
Nota-se, no Twitter, que diferentes perfis, de adolescentes e idosos, jornalistas e
estudantes, ou ainda perfis de viés feminista, ou esportivo, ou político, todos habitam as
possibilidades de comunicação e cooperação oferecidas pela ferramenta, ainda que os
poderes e influências de cada um deles dependam de outros fatores. O ponto em
“comum” entre eles é o resultado de suas relações intelectuais e cognitivas com a
máquina, que gera informação que alimenta o todo. O perfil @vaaaifelipe, que fez a
referida publicação, conta em sua descrição apenas com a frase “não repara a bagunça”.
Com efeito, a bagunça, a bricolagem e a gambiarra são traços da multidão que o perfil
exemplifica muito bem. Note-se que esse perfil possuía 8.868 seguidores à época da
postagem. Trata-se do número de usuários que, idealmente e diretamente, entraram em
contato com as produções feitas por ele. Entretanto, como redes como o Twitter
funcionam com re-postagens, elemento que caracteriza bem a cooperação, esse número
deve ser bem maior.
As questões políticas configuradas por toda a complexa crise brasileira que
atravessou 2016 encontra sua expressão linguística do comum em praticamente todos os
posts de viés político. As críticas às medidas tomadas pelo recém-empossado presidente
são alvos de montagens humoradas. Ainda em relação ao projeto de reforma da

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previdência, o post do perfil @chatolino integra a foto (Figura 3) de uma criança com
uma roupa de gari (possivelmente de um carnaval) com o texto: “Trabalhador deverá
contribuir por 49 anos para receber teto da aposentadoria pelo INSS”. A reapropriação
da foto, a partir dessa legenda, coloca em questão a ideia de trabalho. É interessante
notar que o projeto da reforma da previdência, após muitas críticas como essas aqui
analisadas, foi estrategicamente postergado pelo governo.

Figura 3
O uso das aspas no Twitter, reproduzindo um texto tal como ele foi divulgado na
grande mídia ou como fala do senso comum, torna-se uma ferramenta expressiva e
linguística própria da ferramenta. Geralmente, após o uso das aspas com tal texto,
inicia-se um texto que o contraria, o ridiculariza, ou demonstra contradições. A foto do
menino vestido de gari possui essa função de complemento, dando outro sentido ao
texto com aspas.
Esses casos demonstrados são similares em sua linguagem comum, e
exemplificam bem algumas produções que tratam de criticar e questionar, e certamente
influenciar, as decisões políticas por meio de uma linguagem que integra apropriação de
fotos com a produção de um texto de até 140 caracteres. Esse comum, segundo Negri e
Hardt (2005), é uma produção e um processo. Os memes são amplamente difundidos na
rede e atestam um potencial inventivo e de criação da multidão. A potência dessa
multidão é um fato atestado por vários casos recentes. As hashtags mais comentadas
tem a capacidade de induzir e modificar uma realidade. “Hoje, criamos como
singularidades ativas, cooperando nas redes da multidão, vale dizer, no comum” (p.

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182). Resta saber como utilizar esse potencial de criação na conformação de uma
verdadeira democracia, onde as criações do comum assumam um papel central na
condução das vontades políticas.

AUTOR
*Gabriel Malinowski é Doutorando em Comunicação pela UERJ-RJ. Mestre em
Comunicação pela UFF-RJ (2010). Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-
RJ (2008). Graduado em Cinema pela UNESA-RJ (2006). Entre 2009 e 2016, foi
docente em cursos de Cinema, Artes Visuais e Comunicação Social; coordenou o
projeto de extensão Crescendo com Arte, que oferecia oficinas de cinema para alunos da
rede pública do município de Barra Mansa; e foi integrante do projeto de extensão
Cinema Encena, que trabalhava na relação vídeo-performance-dança. Atualmente é
bolsista FAPERJ de Doutorado. Possui artigo publicado no livro anual da SOCINE,
além de outras publicações em revistas acadêmicas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NEGRI, Antonio e HARDT, Michel. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005.


NEGRI, Antonio. “Para uma definição ontológica da multidão” In Lugar Comum,
número 19-20, p.15-26, 2009.
LIMA, Geralda de Oliveira Santos e CASTRO, Lorena Gomes Freitas de. “Meme
digital: artefato da (ciber)cultura” In Revista (com) Textos Linguísticos. Volume 10.
Número 16, 2016.

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Dossiê
BELA, RECATADA E DO LAR:

relações entre a prática discursiva sobre a mulher e a


docilização dos corpos em Foucault
Romário Duarte Sanches*

RESUMO: Este artigo analisa a prática discursiva sobrea mulher “bela, recatada e do
lar” com base na categoria foucaultiana de corpos dóceis. O aporte teórico focaliza-se,
estritamente, na obra “Vigiar e Punir”, publicada por Michel Foucault em 1975.Para a
discussão da categoria corpos dóceis, delimitou-se a terceira parte do livro (disciplina),
na qual, Foucault (1987) procura pensar como se dá o processo de fabricação dos corpos
dóceis, enfatizando a disciplina como uma nova técnica de poder. Foucault descreve
quatro técnicas ou mecanismos disciplinares que envolvem o processo de formação dos
corpos dóceis, a saber: 1) arte das distribuições; 2) controle das atividades; 3)
organização das gêneses; e 4) composição das forças. Ao lado do acompanhamento dos
dados da teoria foucaultiana, foram relacionados a reportagem da revista Veja,
publicada em abril de 2016, e fragmentos do jornal do Jornal das Famílias, periódico
brasileiro do século XIX. A materialização discursiva, tanto da reportagem, quanto do
jornal, centra-se no sujeito mulher. A aproximação aponta que a mesma prática
discursiva do poder disciplinar sobreo corpo feminino encontrado no Jornal das
Famílias no século XIX, ainda está presente nos dias atuais, sendo propagada pelas
mídias como forma de manter o poder de dominação sobre as mulheres.
PALAVRAS-CHAVE: Corpos dóceis, disciplina, poder, mulher.

INTRODUÇÃO
Influente no pensamento contemporâneo, Michel Foucault também foi ativista
político, teórico social, crítico cultural, historiador criativo e professor. Para leitura de
sua obra, recomenda-se que o leitor esteja disposto a indagar a ordem social
preestabelecida, bem como, desfazer-se de premissas tidas como verdades absolutas.
Autores como Oksala (2011), esquematizam a obra de Foucault em três fases
distintas: a) a arqueologia; b) a genealogia; e c) a ética. Ressalta-se aqui a fase
genealógica, termo escolhido por Foucault para analisar o poder. Pois, é na obra
“Arqueologia do saber” que Foucault (2004) toma o discurso como uma prática social,
historicamente determinada, onde são constituídos os sujeitos e os objetos. Para ele, as
relações entre os dizeres e os fazeres, ou seja, as práticas discursivas são formas de
materializar as ações dos sujeitos na história. Uma tentativa de compreender a maneira
como as “verdades” são produzidas e enunciadas. Tal prática discursiva está explicitada

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também na obra “Vigiar e Punir”. Nela se discorre sobre conceitos como o de disciplina,
de docilização dos corpos, de panoptismo e outros.
O trabalho visa às práticas discursivas sobre a mulher “bela, recatada e do lar”
presentes no Jornal das Famílias, veiculado no século XIX, e na contemporaneidade,
presente na reportagem da revista Veja, publicada em abril de 2016. O artigo encontra-
se dividido em três seções. Na primeira, discute-se o aporte teórico, conceituando a
natureza do que Foucault assimila como corpos dóceis; seu processo de formação e suas
respectivas técnicas disciplinares. Na segunda, traça-se um breve panorama sobre o
papel desempenhado pela mulher na história do Brasil. Por fim, apresentam-se os
possíveis vínculos de aproximação do processo de docilização do corpo feminino
presenteno Jornal das Famílias e na reportagem da revista Veja.

1
APORTE TEÓRICO

1.1 Docilização dos corpos


Antes de se adentrar no conceito de docilização dos corpos, parece prudente se
fazer uma breve introdução a respeito da obra na qual se encontra a referida categoria de
análise. “Vigiar e Punir”, publicada pela primeira vez em 1975. Nela, Foucault discorre
sobre as práticas disciplinares que se consolidaram no final do século XVII e início do
século XVIII; bem como, atenta para a permanência destas práticas nos dias atuais,
como veremos nas próximas seções. A obra está dividida em quatro partes, nominadas
da seguinte forma: o suplício, punição, disciplina e prisão.
Para discussão acerca da docilização dos corpos, a presente leitura concentra-se
na terceira parte do livro sobre a disciplina, da qual, Foucault (1987) procura pensar
como se dá o processo de fabricação dos corpos dóceis. O autor enfatiza a disciplina
como uma nova técnica de poder. A ideia remonta à história clássica, quando o corpo
passa a ser visto como objeto do poder. Como bem descreve Foucault (1987), foi nesse
período que houve um grande enfoque ao corpo, à época, entendido com um objeto fácil
de ser manipulado:

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como


objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande
atenção dedicada então ao corpo — ao corpo que se manipula, se
modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas
forças se multiplicam (FOUCAULT, 1987, p. 163).

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Na intenção de mostrar como se procede ao poder disciplinar, Foucault (1987)


cita as fábricas, as escolas, os quartéis e os hospitais como instituições nas quais a
relação e a hierarquia de poder se apresentam da forma mais visível.
No caso dos quartéis, Foucault (1987) descreve a figura ideal de soldado no
início do século XVII, podendo este ser reconhecido de longe. Já na segunda metade do
século XVII, o soldado tornou-se uma espécie de corpo inútil ou inapto, que precisaria
ser fabricado conforme as necessidades da instituição.
Em torno da discussão sobre uma teoria geral do adestramento, Foucault (1987)
menciona o ensaio “O homem-máquina” do médico francês Julien Offray La
Mettrie2,escrito simultaneamente em dois registros. No primeiro, denominado de
anátomo-metafísico, as páginas iniciais são escritas por Descartes, em seguida,
continuadas por médicos e filósofos. No segundo, considerado técnico-político,
Foucault constitui o registro por um “conjunto de regulamentos militares, escolares,
hospitalares e por processos empíricos, refletidos para controlar ou corrigir as operações
do corpo” (FOUCAULT, 1987, p. 163).
Para Foucault (1987), o ensaio de La Mettrie é, ao mesmo tempo, uma redução
materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, e no centro disto, destaca-se a
noção de docilidade que une ao corpo analisável o corpo manipulável. O autor entende
que um corpo só poderá ser dócil desde que seja submetido, utilizado, transformado e
aperfeiçoado.
O corpo dócil implica numa coerção contínua que procura explorar ao máximo o
tempo, o espaço e os movimentos. Desse modo, o conhecimento dos métodos permite o
controle minucioso das operações do corpo, realizando a sujeição constante de suas
forças e impondo-o uma relação de docilidade-utilidade. A este processo dá-se o nome
de disciplina.
Foucault (1987), explica que vários processos disciplinares já existiam nos
espaços dos conventos, dos exércitos, das fabricas, etc. Mas somente no decorrer dos
séculos XVII e XVIII foi que as disciplinas se tornaram fórmulas gerais de dominação.

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma


arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas

2
La Mettrie desenvolveu em 1748 o conceito mecanicista do ser humano .

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habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação


de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais
obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma
manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus
comportamentos. (FOUCAULT, 1987, p. 164).

Como descreve Foucault (1987), o corpo humano entra numa maquinaria de


poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Para o autor, o processo remete a
uma espécie de “anatomia política” que se iguala a uma “mecânica do poder”. Nesta
última etapa se define o domínio sobre o corpo do outro, não simplesmente para que
faça o que se quer, mas para que opere do modo como se deseja, impondo com as
técnicas da maquinaria de poder a rapidez e a eficácia que se determina. Logo, a
disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”.
Para o autor, a função do poder disciplinar é de adestrar o corpo, e para este fim,
o adestramento só poderá ser garantido com sucesso se os recursos forem bem
aplicados. Assim, “o sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de
instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação
num procedimento que lhe é específico, o exame” (FOUCAULT, 1987, p. 195). Neste
sentido, pode-se afirmar que a disciplina “fabrica” indivíduos, sendo uma técnica
específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como
instrumentos de seu exercício.
Sem dúvida, a manipulação e o adestramento do corpo não parece fruto da
casualidade contemporânea. As relações de força e poder sempre agiram de forma
velada sobre o corpo. No que tange a modernidade, o corpo continua a ser fabricado
como produto, em trânsito nos diferentes espaços sociais de convivência da família, da
escola, da igreja, da Universidade, e da inserção no mercado de trabalho.

1.2 Técnicas disciplinares


Foucault (1987) descreve quatro técnicas ou mecanismos disciplinares que
envolvem o processo de formação dos corpos dóceis: 1) arte das distribuições; 2)
controle das atividades; 3) organização das gêneses; e por último 4) composição das
forças.

1) arte das distribuições


Para Foucault (1987) a disciplina exige uma espécie de cerca, a especificação de
um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo. Trata-se de um local

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protegido da monotonia disciplinar. A produção de um corpo dócil só é possível através


de uma repartição do espaço. O espaço disciplinar tende a se dividir proporcionalmente
pela quantidade de corpos ou elementos que há para se repartir. Cria-se um
quadriculamento onde cada corpo ocupa um lugar em que se possa tirar o máximo dele.
O autor cita as fábricas e as escolas, onde os corpos são distribuídos de maneira
a regular seus movimentos e suas relações. As tarefas são delimitadas, pois cada aluno
tem seu lugar, cada operário está devidamente posicionado na linha de montagem. A
regulação do tempo e do espaço é o meio utilizado pela disciplina para impor uma
ordem ao corpo, tornando-o eficiente. “A disciplina organiza um espaço analítico para
poder vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades
ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar”
(FOUCAULT, 1987, p. 169).

2) controle das atividades


Nesta técnica, a disciplina é constituída por meio do controle das atividades, o
relógio, ou seja, um dispositivo capaz de conduzir o corpo sem que haja dispersão.
Foucault (1987) cita as fábricas, quartéis e as escolas, no sentido que nessas instituições
fabricaram uma grade de horários a ser cumpridos, como horário de entrada, saída e
intervalo. No caso da escola, o autor mostra que no início do século XIX, foram
propostos para a escola horários como: “8,45 entrada do monitor, 8,52 chamada do
monitor, 8,56 entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira
lousa, 9,08 fim do ditado, 9,12 segunda lousa, etc” (FOUCAULT, 1987, p. 176).
De forma semelhante, verifica-se esta prática nos quartéis, hospitais, prisões, etc.
A ociosidade passa a representar a ideia de perigo. O tempo deve ser bem utilizado. De
acordo com Foucault (1987) é no bom emprego do corpo que o tempo será bem
empregado, nada deve permanecer ocioso ou inútil, tudo deverá ajudar a formar o
suporte do ato requerido.

3) organização das gêneses


Na organização das gêneses, ou seja, no arranjo das instituições em que o corpo
disciplinado e dócil se instaura, o espaço e o tempo conduzem à acumulação de saberes,
e também, à dominação e sujeição do corpo. O corpo a ser docilizado passa por várias
etapas de formação, sendo o processo de docilização dividido em classes, medido por
provas e aprimorado por exercícios. Uma série de estágios deve ser ultrapassada até que

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a formação esteja concluída, desde os conteúdos mais simples até a estrutura mais
complexa.
O poder disciplinar concentra-se nos mínimos gestos (detalhes) e se acumula da
repetição; só assim, o homem pode ser considerado útil. Não obstante, o mais
importante na organização das gêneses é o exercício, pois, é na repetição que se cria o
“bom estudante” e o “funcionário exemplar”, como afirma Foucault (1987, p. 187): “o
exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da
duração, não culmina num mundo do além; mas tende para a uma sujeição que nunca
terminou de se completar”.

4) composição das forças


Nesta última técnica de disciplina, constata-se que todo treinamento tende a se
concentrar num ponto máximo para a eficiência. Uma massa diversificada de indivíduos
se torna, na composição de forças, um único corpo maquinal, preparado para reproduzir
esquematicamente conhecimentos e práticas.
No caso da escola, Foucault (1987) afirma que os corpos já disciplinados como o
diretor, supervisor, professor e outros sujeitos “superiores” devem fazer com que seus
sinais sejam obedecidos pelos alunos. Neste caso, o que importa não é compreendera
ordem, mas perceber o sinal, e logo reagir a ele, de acordo com um código mais ou
menos estabelecido. Com isso, a máquina articulada não permite refletir, o corpo
treinado apenas reproduz.
Em síntese, entende-se que a disciplina produz a partir dos corpos docilizados
quatro tipos de individualidade, ou uma individualidade dotada de quatro
características: “a celular (pelo jogo da repartição espacial), a orgânica (pela codificação
das atividades), a genética (pela acumulação do tempo), e a combinatória (pela
composição das forças)” (FOUCAULT, 1987, p. 176).

2
O PAPEL DA MULHER NO BRASIL

É pouco provável se debruçar sobre o papel da mulher na história do Brasil sem


relacioná-lo às funcionalidades sociais do âmbito familiar. O papel da mulher,
historicamente, sempre esteve atrelado ao da família. Se retomarmos a história das

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famílias brasileiras, percebemos a institucionalização da chamada família patriarcal,


originária do modelo de sociedade fundamentado no patriarcalismo.
A família é uma microssociedade (PROST, 1992), com organização política,
econômica, social e cultural, baseada nas macroestruturas sociais em que cada família se
encontra. Cada membro familiar conduz um papel. No que diz respeito à função da
mulher na família, percebe-se desde a antiguidade, com a dominação do poder da igreja
sob as sociedades ocidentais, forte submissão da mulher à figura do “pai”:
A todo-poderosa Igreja exercia forte pressão sobre o adestramento da
sexualidade feminina. O fundamento escolhido para justificar a
repressão da mulher era simples: o homem era superior, e portanto
cabia a ele exercer a autoridade. São Paulo, na Epistola aos Efésios,
não deixa dúvidas quanto a isso: “As mulheres estejam sujeitas aos
seus maridos como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da mulher,
como Cristo é a cabeça da Igreja... Como a Igreja está sujeita a Cristo,
estejam as mulheres em tudo sujeitas aos seus maridos” (ARAÚJO,
2015, p. 45-46).

Para Araújo (2015), nessa época, pretendia-se controlar a sexualidade feminina


de várias formas e em diversos níveis. Qualquer comportamento “desviante” da mulher
deveria ser corrigido com severas punições, como previa a legislação civil do Brasil
colonial.
Outros sujeitos que fomentaram a ideia de inferioridade da mulher perante o
homem foram os médicos. Conforme Priore (2015), nos tempos da colonização, o
médico era um criador de conceitos, e cada conceito elaborado tinha uma função no
interior de um sistema que ultrapassava o domínio da medicina propriamente dito. O
exemplo de incentivo à submissão feminina pode ser extraído da interpretação do
médico mineiro Francisco de Melo Franco, em 1794:
[...] se as mulheres tinham ossos “mais fraca do que o homem”. Suas
carnes, “mais moles [...] contendo mais líquidos, seu tecido celular
mais esponjoso e cheio de gordura”, em contraste com o aspecto
musculoso que se exigia do corpo masculino, expressava igualmente
a sua natureza amolengada e frágil, os seus sentimentos “mais
suaves e ternos”. Para a maior parte dos médicos, a mulher não se
diferenciava do homem apenas por um conjunto de órgãos
específico, mas também por sua natureza e por suas características
morais. (PRIORE, 2015, p.79).

Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de


transformações. Presenciou-se o nascimento de uma nova mulher nas relações da
chamada família burguesa, ali marcada pela valorização da intimidade e da

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maternidade, do ambiente familiar acolhedor, dos filhos educados com base na


religiosidade da esposa dedicada ao marido, às crianças e à igreja.
D’incao (2015) mostra que as mulheres casadas ganhavam uma nova função, a
de contribuir para o projeto familiar de mobilidade social, através de postura feminina
nos salões, como anfitriãs, e na vida cotidiana, em geral, como esposas modelares e
boas mães. Percebe-se o reforço da ideologia ideal de mulher: ser mãe, dedicada,
recatada e atenciosa.
Os cuidados e a supervisão da mãe passam a ser muito valorizados nessa época,
ganha força a ideia de que seria importante que as próprias mães cuidassem da primeira
educação dos filhos, não deixando suas crias aos cuidados das amas, negras ou
“estranhos”, “moleque” de rua. (D’INCAO, 2015, p. 229). Tem-se aqui, o perfil da
mulher do lar.
Assim, o sucesso das famílias burguesas no século XIX, passa a depender o
desempenho das mulheres no espaço doméstico. Não se pode esquecer que a
emergência da família burguesa, ao reforçar no imaginário a importância do amor
familiar e do cuidado com o marido e com os filhos, redefine o papel feminino e, ao
mesmo tempo, reserva para as mulheres novas e absorventes atividades no interior do
espaço doméstico.
D’incao (2015) mostra que algumas instituições médicas, educativas e de
impressa, da época, reforçaram esse papel com a propagação de uma série de propostas
que visavam “educar” a mulher para o seu papel de guardiã do lar e da família; como
exemplos que revelam esta natureza, tem-se o jornal das famílias, que será apresentado
na seção 3.1, e a medicina, que também combatia severamente o ócio, sugerindo que as
mulheres se ocupassem ao máximo dos afazeres domésticos.
Não muito diferente das mulheres burguesas, Falci (2015) afirma que as
mulheres de classe mais abastada não tinham muitas atividades fora do lar. Eram
treinadas para desempenhar o papel de mãe e as chamadas “prendas domésticas”, ou
seja, suas funções eram orientar os filhos, cozinhar, costurar e bordar. Outras, menos
afortunadas, viúvas ou de uma elite empobrecida, faziam doces por encomenda, arranjos
de flores, bordados a crivo, davam aulas de piano e solfejo, e assim puderam ajudar no
sustento e na educação da numerosa prole.
Como se vê, a mulher do século XIX, independente da classe social ou do grau
de instrução, estava restrita à esfera do espaço privado, da casa, do lar. A esfera pública
do mundo econômico, político, social e cultural pertencia, exclusivamente, ao homem.

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Daí afirmar que a mulher dificilmente seria considerada uma cidadã política, pensante,
mas sim um corpo a ser domado, controlado, vigiado.

3
ANÁLISE DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS SOBRE A MULHER “BELA,
RECATADA E DO LAR”
Para compreensão de um determinado fato histórico é indispensável a análise da
prática discursiva, como propõe Foucault (2004), pois é no dizer que se fabrica as
noções, os conceitos e as verdades de um dado momento histórico. Gregolin (2007)
aponta que a análise dessas práticas é uma forma de mostrar que a relação entre o dizer
e a produção de uma “verdade” é um fato histórico.
No que tange aos textos midiáticos, Gregolin (2007) afirma que a criação de
uma “unidade” do sentido é um recurso discursivo que fica evidente nesses tipos de
textos.
Como o próprio nome parece indicar, as mídias desempenham o papel
de mediação entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia
oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor
produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a
realidade concreta. (GREGOLIN, 2007, p. 16)

Para Gregolin (2007), a mídia é o principal dispositivo discursivo por meio do


qual é construída uma “história do presente”, pois é ela que formata a historicidade que
nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao passado
e ao presente.
Sabendo da forte influência da mídia na fabricação de sujeitos na sociedade
moderna e contemporânea, a análise que será apresentada aqui consistirá, estritamente,
no entrecruzamento da categoria de corpos dóceis, encontrado na obra de Michel
Foucault, comas práticas discursivas sobre um modelo de mulher, isto é, “bela, recatada
e do lar” que se observa em textos midiáticos de dois períodos distintos da história no
Brasil. Um deles está no jornal impresso do século XIX e o outro se apresenta nos dias
atuais, em reportagens veiculadas por revistas de impacto nacional e internacional.

3. 1 Processo de docilização no Jornal das Famílias


No que concerne ao século XIX, selecionamos o Jornal das famílias3 produzido
durante os anos 1863 a 1878. Conforme Castro (2014) foi um jornal pensado e editado

3
Atualmente quase todas as edições do jornal estão disponíveis na homepage da Biblioteca Nacional

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pelo Francês Garnier para atender as necessidades das mulheres, exclusivamente, para o
entretenimento. Mas para, além disso, é possível observar o conteúdo moralizante em
todo o periódico. Como aponta Falci (2015, p. 241) “a elas certos comportamentos,
posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos.
Na primeira edição do jornal constata-se que o periódico se consuma como a
continuação da Revista Popular (de circulação mais geral), no entanto, voltado para as
atividades domésticas: “O Jornal das Famílias, pois, é a mesma Revista Popular d’ora
avante mais exclusivamente dedicada aos interesses domésticos das famílias
brasileiras.” (Jornal das Famílias, 1863, p. 02).
Conforme Castro (2014) é na leitura do editorial que se percebe como o espaço
exclusivo da leitora era destinado a tarefas domésticas, como cozinhar, costurar, cuidar
da casa, dos filhos, etc.: “as casadas dedicam-se ao cuidado com a administração do lar,
enquanto que as solteiras aprendem a cozinhar, como se estivessem se preparando para
o lar que ainda não possuíam”. (CASTRO, 2014, p. 20).
O jornal das Famílias também trazia “dicas” de beleza, de como a mulher bela
deveria cuidar de sua saúde, sua pele, traços que marcam a feminilidade: “o fundamento
das formas belas é a saúde, e para isso não ha como o movimento e o exercício ao ar
livre, alimentação substancial e regularidade de nos hábitos da vida, levantar cedo e não
deitar tarde. [...] Que uma pele macia e brilhante seja um predicado da beleza, ninguém
o contestará por certo, trata-se, porém, de saber como se conserva e mesmo como se
obtém este dote”. (Jornal das Famílias, 1863, p. 03).
Observam-se também, durante a leitura do jornal, receitas de produtos
cosméticos caseiros para cuidar da pele, dos cabelos, receitas para cozinhar, instruções
para bordar, fazer crochê ou indumentárias da época. Como exemplos, segue abaixo a
figura 01 e 02 mostrando uma receita caseira para cuidar da pela e explicações sobre
figurinos.

Digital do Brasil (http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776).

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Figura 01 – Receita caseira para cuidar da pele


Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1863).

A figura 02 mostra como se apresentavam as instruções para costurar bons trajes


no século XIX. Inicialmente, apresentam-se os modelos de trajes elegantes da época e
em seguida explicações sobre cada um.

Figura 02 –Figurinos do século XIX


Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1864).

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Figura 03 – Descrição e explicação dos figurinos


Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1864).

Estes exemplos mostram como o poder disciplinar se materializa no discurso, e


consequentemente, no corpo que o reproduz, o corpo feminino. Vê-sea existência do
regimento disciplinar, do qual, a mulher oitocentista é obrigada a cumprir, isto é, cuidar
dos afazeres domésticos e do papel de instrução para uma boa esposa, a fim de que não
desfrutasse do ócio, tão condenado pelos médicos da época. Constatam-se inúmeras
instruções de como ela deveria agir no âmbito familiar. De fato, a mulher passa por um
processo de docilização que tende a esquadrinha-la no discurso da “mulher bela,
recatada e do lar”.
Em relação às quatro técnicas disciplinares, mencionadas na seção 1.2, para se
chegar ao corpo dócil, percebe-se que a arte das distribuições corresponde ao espaço
em que a mulher ocupa: a casa e o lar. É justamente neste espaço que se aproveita da
mulher, no controle das atividades, pois, a ela, incumbe-se horário para cuidar dos
afazeres domésticos e dos filhos, até mesmo, para se dormir. Segundo as “dicas” do
Jornal das Famílias, as mulheres deveriam dormir cedo para preservarem sua beleza.

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Por ser um jornal que tem extensa periodicidade, as instruções sobre as tarefas
domésticas sempre se repetiam, culminando assim na organização das gêneses.
A reprodução das instruções no controle das atividades e na organização das
gêneses faria da mulher uma “boa esposa, excelente dona de casa e ótima mãe”. No que
tange a composição das forças, é arquitetada a obediência das instruções trazidas pelo
referido jornal, não só destinada às mulheres casadas, mas às solteiras, que almejavam
ao matrimônio. As mulheres solteiras do século XIX deveriam aprender com as mais
experientes, normalmente as mães. Uma tradição de aprendizagem de afazeres
domésticos que era transmitida de mãe para filha.

3.1 Processo de docilização na revista Veja


A revista Veja é um periódico semanal produzido pela Editora Abril. Na edição
de número 2474, publicada no dia 18 de abril de 2016, o papel da mulher
contemporânea tornou-se o assunto principal das ruas, das casas, dos ambientes de
trabalho e das redes sociais. Com a reportagem intitulada: Bela, recatada e “do lar”, a
matéria escrita pela jornalista Juliana Linhares parece pautada no objetivo de descrever
quem seria a “quase primeira-dama” Marcela Temer, hoje primeira-dama interina, tendo
em vista o afastamento da presidenta Dilma Rousseff.
De antemão, vale ressaltar o contexto referencial desta publicação. A edição de
número 2474 da revista foi publicada em meio ao cenário conturbado da politica
brasileira (em curso do processo de tramitação do impeachment, imputado à presidenta
Dilma Rousseff). A interinidade do presidente em exercício, Michel Temer, reverbera
na caracterização de Marcela como “quase primeira-dama”.
Em meio à polarização da cena política brasileira, dividida entre os que apoiam
o impeachment, e os que consideraram o processo como golpe de Estado, a revista Veja
emplacou a manchete “bela, recatada e do lar”. Em defesa dos interesses econômicos do
grupo social que a financia, parte da mídia brasileira parece desinteressada da
informação gratuita, e interessada na manipulação da vida política do país. A este
critério, pensa-se a reportagem da revista Veja, em face do projeto de adestramento do
sujeito analisado por Foucault, como se vê a seguir.

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Figura 04 – Matéria da Revista Veja sobre Marcela Temer


Fonte: Extraído da revista Veja (2016).

A figura 04 mostra a “cabeça” da reportagem, trazendo ao leitor a imagem de


Marcela Temer, ilustrada pela sinopse da legenda: “A quase primeira-dama Marcela
Temer, 43 anos mais jovem que o marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura
dos joelhos e sonha em ter mais filho com o vice”.
Ao longo da reportagem, a jornalista Juliana Linhares apresenta a biografia de
Marcela Temer, comentando sobre sua formação acadêmica e a rotina diária da quase
primeira-dama. O texto inicia-se com o trecho: “Marcela Temer é uma mulher de sorte”.
A jornalista conta ao público que Temer foi o primeiro namorado de Marcela, e que eles
se casaram quando ela tinha 20 anos, e ele, 62. Ela é Bacharel em Direito, mas nunca
exerceu a profissão de advogada. Gosta das tarefas domésticas e se dedica ao filho e ao
marido.

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A impressão do leitor ao ler a reportagem é a descrição de uma mulher burguesa


do século XIX, como já citado na seção 2. O processo de docilização do corpo da
mulher está explicito na pratica discursiva da jornalista, ao apresentar Marcela Temer.
Considerando as quatro técnicas disciplinares, destaca-se na primeira delas, a arte das
distribuições, a ideia que consiste em fixar o “lugar” que Marcela ocupa: o espaço
doméstico.
A dócil presença de Marcela na família Temer é corroborada pelo trecho:
“Marcela é uma vice-primeira-dama do lar”. A segunda técnica, o controle das
atividades, corresponde ao relógio que controla cada atividade de Marcela Temer. Neste
cotidiano, cita-se as tarefas da mãe afetuosa, que busca o filho na escola; da mulher
vaidosa, que vai ao salão de beleza para cuidar do cabelo e da pele, e da jovem esposa,
mais inteirada do que o setuagenário marido com o gerenciamento das mídias digitais
dele. Atrelado ao controle das atividades está a organização das gêneses, ou seja, a
repetição das tarefas domésticas e o cuidado com a beleza, conforme se observa-se no
fragmento da matéria:
Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar
da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas
três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele). [...]
“Marcela sempre chamou atenção pela beleza, mas sempre foi
recatada”, diz sua irmã mais nova, Fernanda Tedeschi. “Ela gosta de
vestidos até os joelhos e cores claras”, conta a estilista Martha
Medeiros.[...] Marcela é o braço digital do vice. (Revista Veja, abr.
2016)

A última técnica de formação dos corpos dóceis é a composição das forças;


trata-se do corpo treinado. A mulher é posicionada de forma docilizada, preparada para
ocupar o lar e ser uma “boa esposa e mãe”. Caberá a ela, mulher, reproduzir o processo
de docilização à outras mulheres, que por conseguinte, deverão obedecer aos seus
sinais, caso queiram obter o sucesso de Marcela Temer, referida na matéria jornalística
como “mulher de sorte”, que conseguiu se casar com um “homem de sorte”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados da análise feita sobre as práticas discursivas no Jornal das
Famílias e na reportagem da Veja sobre Marcela Temer, mostram que a história do
poder disciplinar sobre o corpo feminino é descontínuo. Semelhante processo de
docilização encontrado no Jornal das Famílias (século XIX) também reverbera na
reportagem da Revista Veja (século XXI), em recortes temporais distintos.

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A luz da docilização do corpo, a mulher “ideal” é aquela que sabe cuidar da casa
e dos filhos, é a mulher “prendada”, “bela, recatada e do lar”. Em ambas as práticas
discursivas analisadas, tanto no jornal quanto na revista, o papel feminino impõe a total
submissão ao homem, instaurando assim o poder disciplinar do corpo da mulher. No
século XIX o único espaço da mulher era a esfera privada, a casa. Já no século XXI é
possível encontrar o corpo feminino nos espaços públicos, conquista do movimento e da
luta feminista.
Na contramão das conquistas emancipatórias da mulher, a reportagem da revista
Veja parece perpetuar o “ideal de mulher”, concedendo notoriedade a Marcela Temer,
por observar na quase primeira-dama traços da docilidade.
Desde o surgimento da imprensa, a mídia confirmou-se como forte dispositivo
capaz de disciplinar sujeitos e manter a ordem social preestabelecida. Ao lado da mídia,
a família como microssociedade, irá reproduzir a ordem social (mulher disciplina e
submissa), criando novas forças de poder, novos corpos dóceis. Ciente da maleabilidade
do poder, sensível às novas construções e usos sociais, torna-se possível assimilar a
força subjetiva que rompe com os processos de docilização.
Ainda é preciso se aprofundar e acrescentar categorias e reflexões foucaultianas
para uma análise mais consistente e aprimorada. Todavia, este trabalho fornece novos
resultados, completados pelas categorias da formação discursiva, da história
descontínua, das regularidades, das ordens do discurso, e da ideia de dispositivo. Para
além da análise do discurso, os resultados também servem ao propósito da análise
sociológica, observando questões sociais como o machismo, o papel da mulher
contemporânea, a manipulação midiática, a sociedade de controle e a sociedade
disciplinada.

AUTOR
*Romário Duarte Sanches é Doutorando em Linguística pela Universidade Federal do
Pará (UFPA). Mestre em Linguística pela mesma universidade (UFPA). Especialização
em Estudos Linguísticos e Análise Literária pela Universidade do Estado do Pará
(UEPA). Graduado em Letras/Inglês pelo Instituto de Ensino Superior do Amapá
(IESAP). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Amapá
(UNIFAP). Atua nas áreas de Letras e Linguística.

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<http://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/>. Acesso em: 27
de Julho de 2016.

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Dossiê

VIDA SERIAL, ÊXTERO-CONDICIONAMENTO E


IDEOLOGIA: uma análise dos ‘mass media’ pela ótica
de Sartre
Vinícius dos Santos*

Resumo: o artigo pretende resgatar o modo como o conceito de série, ou de vida serial,
presente na Crítica da razão dialética de Sartre, e seu desdobramento naquilo que este
filósofo qualifica como êxtero-condicionamento, podem ser ferramentas conceituais
úteis para se pensar o papel e o funcionamento dos meios de comunicação de massa na
contemporaneidade. Particularmente, no que diz respeito à disseminação de discursos
ideológicos, como, por exemplo, o colonialismo e o racismo. Para tanto, se tratará,

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primeiramente, de recuperar as linhas de força do edifício teórico erigido na Crítica,


sobretudo a relação entre alienação e prático-inerte, para, na sequência, esclarecer o
vínculo entre aqueles conceitos.
Palavras-chave: alienação, êxtero-condicionamento, ideologia, meios de comunicação,
serialidade.

Em texto publicado há pouco mais de uma década, Frederic Jameson afirmava que
o conceito sartriano de série, que aparece na Crítica da razão dialética, de 1960, seria
“a única teoria satisfatória da opinião pública, a única verdadeira filosofia das mídias
elaboradas até hoje” (JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p.
27).
Sem necessariamente corroborar com o caráter peremptório da afirmação do
filósofo norte-americano, este artigo pretende resgatar o modo como a noção de vida
serial, e seu desdobramento naquilo que Sartre qualifica como êxtero-condicionamento,
podem ser ferramentas conceituais úteis para se pensar o papel e o funcionamento dos
meios de comunicação de massa, mesmo que Sartre não tenha elaborado uma teoria
completa sobre o tema. Particularmente, nossa atenção se volta ao modo de
disseminação de discursos ideológicos, como, por exemplo, o colonialismo e o racismo,
que a grande mídia pode viabilizar. Para tanto, será preciso, primeiramente, recuperar as
linhas de força do edifício teórico erigido na Crítica, para, na sequência, esclarecer o
agenciamento entre aqueles conceitos.

A Crítica da razão dialética representa o esforço definitivo de Sartre de fazer


convergir seu existencialismo com uma interpretação não dogmática do marxismo. Sem
entrar no mérito global da proposta, pode-se afirmar que a obra de 1960 visa esclarecer
as condições transcendentais da história e, mais particularmente, da sociabilidade
capitalista, por um viés materialista de assumida inspiração marxista. O ponto de partida
da chamada “experiência crítica” encontra-se na relação entre a práxis individual[1] e o
binômio necessidade/escassez, cujo esclarecimento é imperativo para posteriormente se
compreender a noção de série.
Pela práxis, isto é, pela ação no mundo inerte, o indivíduo busca satisfazer suas
necessidades orgânicas. A necessidade faz surgir a primeira relação totalizante do ser
humano enquanto organismo prático, ser material, com seu meio. Com efeito, ela

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representa a primeira negação da matéria e sua primeira totalização. “A necessidade é


negação de negações na medida em que ela se denuncia como uma falta no interior do
organismo, e ela é positividade na medida em que, por ela, a totalidade orgânica tende a
se conservar como tal” (SARTRE, 1985, p. 194). A necessidade destotaliza a totalidade
plena subsistente no mundo inorgânico, e essa destotalização injeta a negatividade no
mundo, acionando uma lógica dialética de totalizações mediante a destruição de cada
momento parcial.
Ao agir no mundo material, o homem cria um campo prático, em conjunto com
outros indivíduos (também agentes em busca de satisfazer suas carências), imprimindo
um significado propriamente humano à matéria trabalhada, e criando uma nova
dinâmica de inter-relações. Assim, a matéria circundante, passiva e inerte, torna-se
sujeita a uma série de unificações e totalizações de outras práxis que escampam a cada
agente. Minha totalização, porque adentra o campo totalizador da práxis de outrem, é
igualmente destotalizada por esses outros campos. Sartre ilustra essa relação através do
seguinte exemplo: um jardineiro e um calceteiro, desconhecidos entre si, trabalham em
lados opostos de um mesmo muro. Cada um é o centro de sua própria ação no mundo
objetivo, centro de uma disposição diferente do universo, e que possui seu próprio
campo totalizante. A princípio, inexiste relação direta entre eles. Contudo, a
intermediação, ignorada por ambos, de um terceiro – um intelectual que os observa da
janela – e promove a unificação dessa díade.
O homem só existe para o homem em circunstâncias e em condições
sociais dadas; portanto, toda relação humana é histórica. Mas as
relações históricas são humanas na medida em que elas se dão a
qualquer tempo como a consequência dialética imediata da práxis, isto
é, da pluralidade de atividades no interior de um mesmo campo
prático (SARTRE, 1985, p. 210).

No âmbito das relações práticas, há reciprocidade sempre possível, pois nela me


torno veículo do projeto totalizante de outro na medida em que o outro se torna veículo
de minha totalização. Em outras palavras, há um intercâmbio. Além disso, dois
indivíduos também podem ser veículos de um projeto conjunto, transcendente. Neste
caso, tais formas de reciprocidade se qualificam como positivas. Não obstante, ao haver
recusa de uma relação recíproca tem-se o conflito. Doravante, afirma Sartre, cada um
utilizará seu próprio campo material com o objetivo de conquistar objetivamente o
outro, tendo como base a relação de carência. Trata-se de uma
reciprocidade negativa (instrumentalização do outro, reificação, confronto).

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Mas, se o ponto de partida da experiência crítica é a práxis do ser humano que


busca satisfazer suas necessidades, cumpre complementar este princípio com um dado
alarmante e decisivo para se compreender a vida social e histórica pela ótica sartriana: a
escassez, fenômeno que impede a satisfação das necessidades de todos, imprimindo à
intersubjetividade o sinal negativo da luta e da violência.
Com efeito, segundo o filósofo, a História humana não se inicia apenas com o
movimento de busca de satisfação das carências orgânicas. Antes, seu indício originário
é a impossibilidade de satisfazê-las plenamente, na medida em que haveria um
descompasso entre os recursos naturais/materiais forçosamente finitos e as necessidades
humanas tendencialmente infinitas. Embora não seja necessária, diz Sartre, a escassez
seria, na prática, universal, demarcando, assim, o limite externo da ação prática dos
indivíduos.
À luz dessa situação, os seres humanos, organismos “primeiramente separados”,
se unem para lutar contra a escassez. Criam objetos, ferramentas, máquinas etc. com o
intuito de dominar a natureza e minimizar a penúria primitiva, relaxando a pressão por
ela exercida. Criam, por conseguinte, as condições materiais de sua reprodução. Numa
palavra, fazem história. A escassez, “determinação contingente de nossa relação
unívoca à materialidade” (SARTRE, 1985, p. 237), é o índice que, para Sartre, inaugura
a inteligibilidade da história humana.
Desse modo, a escassez fundamental promove uma unidade negativa de todos
enquanto incompletude (ou como “totalidade-destotalizada”), efetiva “impossibilidade
de viver”. O resultado é dramático: a própria coexistência, que a princípio serviria para
minimizá-la ou superá-la, com o decorrer do tempo devém igualmente impraticável.
Sob a égide da escassez, explica Sartre, cada um se torna um excesso para os outros, um
consumidor em potencial de algo que não existe para todos, que não poderá ser
consumido mais tarde etc. Cada um passa, assim, a ser Outro-que-não-eu, um ser
inumano, alienígena; um perigo para mim na exata medida em que sou um perigo para o
outro. Onde a reciprocidade é alterada pela escassez cria-se o anti-homem: o outro é
visto como um excesso, redundante, de trop[2].
Assim, em um quadro de escassez, o homem “é objetivamente constituído como
inumano e essa inumanidade se traduz na práxis pela apreensão do mal como estrutura
do Outro” (SARTRE, 1985, p. 244).

II

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O que foi visto na seção precedente pode ser sintetizado no seguinte trânsito
dialético: a natureza, intrinsecamente escassa, não possibilita ao ser humano a completa
satisfação de suas necessidades (negação da própria possibilidade de existência do
homem). Este, por sua vez, cria objetos e se une aos outros para superá-la (negação da
negação). Mas, essa união cria uma reciprocidade alterada pela própria escassez, uma
união negativamente estabelecida por um fator externo, uma tensão fundamental e
inevitável em nome da sobrevivência. Segundo Sartre, toda sociedade se constitui como
uma forma de luta contra a escassez. Por conseguinte, o binômio necessidade/escassez
seria o verdadeiro “motor da História”. Ela seria o fundamento da escassez própria aos
modos de produção históricos descritos pelo marxismo; consequentemente, a via de
inteligibilidade da luta de classes.
Sempre segundo Sartre, a escassez torna os indivíduos antagonistas entre si, não
obstante forçá-los, ao mesmo tempo, a um mínimo de cooperação em nome de sua
sobrevivência. Contudo, não é apenas a escassez que, externamente, interfere e altera a
reciprocidade interindividual. De acordo com o filósofo, a própria forma com que os
seres humanos se relacionam entre si pela intermediação do campo material os opõe uns
aos outros, porquanto esta relação é, em si mesma e inexoravelmente, alienante.
Explica-se: diante da realidade da escassez, a ação de cada um é orientada em
relação à ação dos outros. Ao criar um instrumento de trabalho ou um objeto de
consumo, a pressão exercida pela escassez é afrouxada e as relações de alteridade no
interior do grupo diminuem. Não obstante, esse fenômeno positivo logo se reverte.
Justamente porque a negação originária não pode ser abolida, ela reaparece em um nível
mais elevado: o da produção social. O produto da ação humana – sua objetivação, na
linguagem hegeliano-marxista – torna-se, então, a fonte da alienação da liberdade.
Isso significa que, se a história daquilo que Marx chamava de “indústria
humana” se caracteriza por uma crescente dominação em relação à natureza, permitindo
uma autonomia crescente, Sartre entende que este processo retornaria contra o homem
desde seu bojo com o ressurgimento da negação originária tornada uma negação radical
da sociedade. Esta negação, portanto, é que demarcaria “os fundamentos reais da
alienação” (SARTRE, 1985, p. 262).
Não se trataria, destarte, de um fenômeno acidental. Na leitura de Sartre, é a
própria forma que assume a relação que os indivíduos estabelecem entre si mediados
pela matéria. Como explica o filósofo, “a matéria aliena em si o ato que a trabalha, não
tanto na medida em que ela é uma força, nem mesmo enquanto ela é inércia, mas na

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medida em que sua inércia permite absorver e retornar contra cada um a força de
trabalho dos outros” (SARTRE, 1985, p. 262). Assim, no momento do trabalho, “é o
produto que designa os homens enquanto Outros, e que se constitui a si mesmo em
outra Espécie, em contra-homem. É no produto que cada um produz sua própria
objetividade, que retorna a ele como inimigo e o constitui como Outro” (SARTRE,
1985, p. 262-3)[3].
Para corroborar sua posição, Sartre recupera o caso dos camponeses chineses,
que durante séculos desmataram seus campos para aumentar a produtividade de
alimentos. Essa prática social inicialmente positiva, com o decorrer dos anos terminaria
por arrasar culturas inteiras, devido às inundações suscitadas por este mesmo
desmatamento. Ao agir sobre a matéria, explica o autor, o homem vê sua práxis alterada
pelo concurso da ação (passada ou presente) de outrem. O resultado de minha ação nem
sempre condiz com minha intenção original (isto é, com meu “projeto”), e isso ocorre
porque minha práxis foi alterada (desviada, modificada etc.) pela práxis alheia. Essa
interferência inevitável, complementa Sartre, impede, ao final, que eu me reconheça nos
produtos oriundos de minha atividade, ou seja, em minha objetivação. Logo, bloqueia a
compreensão das causas que levaram minha ação a um resultado diverso daquele que eu
esperava. Pois, como afirmado em Questão de método – preâmbulo metodológico
da Crítica da razão dialética –, se a História me escapa, “isto não decorre do fato de
que não a faço: decorre do fato de que outro também a faz” (SARTRE, 1985, p. 74).
Assim, o homem faz a História: isto quer dizer que ele se objetiva nela
e nela se aliena; neste sentido, a História, que é obra própria detoda a
atividade de todos os homens, aparece-lhes como uma força estranha
na medida exata em que eles não reconhecem o sentido de sua
empresa (mesmo localmente eficaz) no resultado total e objetivo
(SARTRE, 1985, p. 74).

Em resumo: se, por um lado, a matéria tem como função unificar todas as práxis
individuais, singulares, parciais, por outro, essa síntese se dá de um modo específico.
Quer dizer, “não é que a matéria absorva as ações humanas e as coisifique ou as
reifique: primeiramente, ela as unifica, e ela as unifica da maneira pela qual a matéria
pode unificar, isto é, desindividualizando-as, dessingularizando-as, portanto,
massificando-as” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 305). Logo, o processo de
unificação da práxis só pode tornar esta práxis estranha a si mesma. A “objetivação é
alienação” (SARTRE, 1985, p. 274), afirma Sartre, fazendo eco a Hegel, justamente
porque, através dela, cada um “retorna a si como Outro” (SARTRE, 1985, p. 336).

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Sartre denomina o meio social surgido por esta realidade de ação e


estranhamento[4] de prático-inerte. O prático-inerte é o campo de socialização de nossa
vida diária, isto é, em que se define nossa “situação”. Nesse sentido, atesta Sartre,
vivemos cotidianamente em uma esfera na qual a liberdade é dramaticamente
convertida em necessidade: os fins humanos adquirem o caráter de contra-finalidades
naturais e a atividade prática torna-se “atividade-passiva”, recorrência inercial,
independente da vontade dos indivíduos. A sociedade se torna uma “síntese passiva da
multidão” (cf. RIZK, 1996, p. 57 e ss.), isto é, unidade incompleta de uma
“multiplicidade prática” de indivíduos a priori atomizados e massificados.
O campo prático-inerte é o campo de nossa servidão, e isso não
significa uma servidão ideal, mas a submissão real às forças
“naturais”, às forças “mecânicas” e aos aparelhos “anti-sociais”. Isso
quer dizer que todo homem luta contra uma ordem que o esmaga real
e materialmente em seu corpo e que ele contribui a sustentar e a
reforçar pela própria luta que, individualmente, ele trava contra ela
(SARTRE, 1985, p. 437).

Dentro do projeto sartriano, convém reforçar, o prático-inerte funcionaria como


o “fundamento lógico” da alienação capitalista descrita por Marx, porquanto serviria de
anteparo à alienação característica dos modos de produção – a “alienação a posteriori”,
que “começa com a exploração” (SARTRE, 1985, p. 336).
Com efeito, neste governo da matéria, “equivalência da práxis alienada e da
inércia trabalhada” (SARTRE, 1985, p. 181), a relação dos indivíduos entre si
atravessados pela impotência, cria imperativamente uma força antissocial: na medida
em que agem sobre a matéria em busca de garantir sua sobrevivência orgânica, a
matéria trabalhada se contrapõe dialeticamente às práxis nos termos de uma férrea
necessidade. Uma vez absorvida pela matéria, a práxis se transforma em exis,
permanência, e a liberdade em inércia. O importante a se notar, observa Sartre, é que
isso não se reduz à simples absorção da práxis pela matéria. Por exemplo: o
desmatamento, ação humana sobre a natureza, não é igual à ausência de árvores, dado
inerte da realidade material, mas uma relação de alienação promovida pelo concurso
das práxis.

III

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O cenário alienante acima descrito, no qual o reconhecimento interindividual é


bloqueado à medida que os produtos da práxis se alienam de seus agentes, gera o modo
de socialização característico do prático-inerte, que Sartre denomina série.
Quando dois indivíduos se incluem mutuamente no campo de totalizações do
outro, se estabelece uma relação recíproca de interioridade, em contraste com a de
exterioridade, em que a reciprocidade é encontrada em algo externo. Para apreender a
formação das coletividades, dentro do processo espiral dialético, Sartre sugere se ater,
primeiramente, à forma mais simples de reciprocidade, a saber, aquela em que há uma
oposição entre a reciprocidade como relação de interioridade e a solidão dos organismos
enquanto relação de exterioridade. O resultado é a relação simultaneamente interna-
externa típica da serialidade.
No modo de existência serial, indivíduos isolados, antagônicos e intercambiáveis
entre si, são unidos apenas pelo concurso da matéria exterior. Como mencionado, no
domínio do prático-inerte, a práxis se transforma em exis, e a liberdade, alterada pelo
concurso da ação de outras individualidades (sem necessária comunicação direta entre
si), torna-se necessidade, fatalidade, destino. Numa palavra, a objetivação se converte
em alienação. Esta, diz Sartre, é a realidade ao qual estamos subsumidos
cotidianamente.
Por exemplo, o filósofo sugere que consideremos um grupo de pessoas em fila
aguardando o ônibus. Elas formam uma “pluralidade de solidões”. Os indivíduos
permanecem lado a lado, junto ao ponto de ônibus, mas sem qualquer senso de
comunidade. São apenas indivíduos justapostos, cuja coexistência é exclusivamente
mediada pela matéria exterior (no caso, o ônibus que aguardam).
Nesse nível, as solidões recíprocas como negação da reciprocidade
significam a integração dos indivíduos à mesma sociedade e, nesse
sentido, podem ser definidas como certa maneira (condicionada pela
totalização em curso) de viver em interioridade e como reciprocidade,
no seio do social, a negação exteriorizada de toda interioridade [...].
Finalmente, a solidão torna-se [...] o produto real e social das grandes
cidades (SARTRE, 1985, p. 365).

A solidão, portanto, pode ser compreendida como a primeira característica da


serialidade. Mas, para Sartre, ela não é apenas fruto da dinâmica da vida em sociedade,
mas é também um projeto. Ou seja, ela é vivida, suportada. Quando leio um jornal
aguardando o ônibus, utilizo de um coletivo nacional com o intuito de me isolar, por
exemplo, das outras três pessoas que estão na fila comigo. Tal situação se generaliza: o

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projeto de solidão de cada um faz com que a reciprocidade exista e seja negada ao
mesmo tempo.
Todas as unidades de uma série possuem a mesma propriedade. Com efeito, na
unificação em série, própria às formações coletivas do campo prático-inerte, cada
indivíduo é idêntico, intercambiável, desnecessário, separado e solitário. A mudança de
qualquer elemento e sua substituição por outro em nada alteram o quadro geral.
Novamente, todos são excedentes, redundantes. “Cada um é o mesmo que os
Outros na medida em que ele mesmo é outro” (SARTRE, 1985, p. 367-8). A série,
assim, só pode ser inteligível através do conceito de alteridade. A alteridade, enquanto
“unidade das identidades, encontra-se sempre necessariamente alhures” (SARTRE,
1985, p. 374). Mas, alhures há apenas um Outro que é outro inclusive para-si. Desse
modo, a consequência direta da alteridade (enquanto forma originária de alienação, de
degradação da liberdade) é a transformação de cada um em Outro (para-si e para-
outrem). É, portanto, promover a separação dos indivíduos mediante uma unidade
evanescente, externamente estabelecida, que conserva o antagonismo enquanto preserva
cada qual encerrado em seu próprio projeto solitário.
A vida serial, enfim, é o modo de ser do indivíduo, cuja unidade fugidia se
encontra sempre em um ser-fora, em um objeto comum, que torna cada qual Outro para
o outro e para si. Por conseguinte, viabiliza-se uma reciprocidade pela própria
alteridade, isto é, uma reciprocidade externamente constituída que conserva um
antagonismo interno. Sendo assim, há na vida serial um verdadeiro bloqueio ao
reconhecimento do outro em sua individualidade. Mais precisamente, há reificação das
relações humanas em um cenário de massificação. Com efeito, no campo prático-inerte,
é a indiferença a tônica da (falta de) percepção cotidiana do outro, que só é notado
quando interfere diretamente em nossa vida, nossos interesses etc. No dia a dia, presos
ao modo de vida serial, praticamos efetivamente aquele “solipsismo de fato” pelo qual
se definia ontologicamente a indiferença em O ser e o nada[5].
Ainda neste plano, a “multiplicidade prática” de indivíduos pode formar objetos
reais que a sociologia denomina coletivos. A origem dos coletivos é a “recorrência
social”. Tratam-se, portanto, de estruturas nas quais a serialidade se mantém. Porque sua
realidade advém da destotalização permanente da totalidade de indivíduos, o coletivo
promove uma unidade das multiplicidades orgânicas baseada na síntese passiva que
mantém os homens unidos por sua separação.

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IV

Uma vez estabelecido este quadro, torna-se finalmente possível dirigir a atenção
para como os meios de comunicação podem operar na dialética da vida serial e do
prático-inerte, assumindo um papel de disseminação de uma ideologia.
Em uma transmissão televisiva, por exemplo, cada indivíduo é outro na medida
em que é telespectador e se comunica, assim, com todos os outros nessa unidade
hesitante proporcionada pelo objeto comum. Tal fenômeno não se restringe a esse meio
de comunicação, mas, como bem nota Sartre, se verifica em todos os mass media.
“Nesse caso, o objeto prático-inerte [...]não produz apenas a unidade fora de si na
matéria inorgânica dos indivíduos: ele os determina na separação e assegura, enquanto
estão separados, sua comunicação pela alteridade” (SARTRE, 1985, p. 378).
Esta separação é fundamental para compreender como opera o discurso
ideológico para Sartre, que atualmente encontra no funcionamento dos grandes meios de
comunicação (cujos interesses e valores, enquanto empresas privadas, não se dissociam
daqueles hegemônicos na classe economicamente dominante) seu veículo preferencial
de disseminação.
Definida como “reverso simbólico da prática material”, isto é, “anverso da
alienação” (cf. BAROT. In: BAROT, 2011), a ideologia não se reduz, em Sartre, à visão
do marxismo dogmático que, minimizando a riqueza da própria concepção marxiana[6],
define-a como “falsa consciência”, “mistificação”, “ilusão” etc.[7]. Rejeitando o
dualismo base-superestrutura que ampara aquela interpretação rasteira, Sartre
compreende que a ideologia extrapola o plano meramente gnosiológico. Ela nasce das
coisas, da matéria trabalhada.
Nesse sentido, nota o filósofo, há modos seriais de comportamento, sentimentos
seriais, pensamentos seriais, que estão diretamente vinculados à compreensão da
ideologia. De fato, para Sartre, a ideologia, ideia serial, ou “ideia-exis” (como, por
exemplo, o colonialismo e o racismo), é um objeto do prático-inerte, e não um momento
consciente da ação. Sua evidência reside na dupla incapacidade em verificá-la ou de
transformá-la nos outros membros do coletivo.
Com efeito, diz o filósofo (cf. SARTRE, 1985, p. 406-9 – nota), aqui a ideia não
é práxis, mas essencialmente processo. Ou seja, desenvolve-se por meio de uma força
material externa que age sobre o pano de fundo da impotência provocada pelo
isolamento serial. Ela se torna, assim, a “unidade da série como sua razão ou seu índice

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de separação” (SARTRE, 1985, p. 406 – nota). Pela prática, a unidade passiva da


materialidade do objeto prático-inerte transforma-se em significação.
Por exemplo, a ideia-colonial é a unidade da série dos colonos (cada qual,
apartado de todos os outros): tanto justificação de sua unidade exterior em um “interesse
comum”, quanto modo de entronização deste interesse pelas atitudes que aquela ideia
torna “legítima” [8] (a exploração e a desumanização dos colonizados, a seleção dos
indivíduos por caracteres biológicos, o racismo[9] etc.).
Nesse sentido, observa Sartre, expressões que sintetizam o pensamento
colonialista, tais como “o indígena é preguiçoso”, “só trabalha se for obrigado”, “não
sabe governar a si próprio” etc.,
jamais foram a tradução de um pensamento real e concreto, sequer
foram alguma vez objeto de um pensamento. De resto, não têm por si
só nenhuma significação, ao menos na medida em que pretendam
enunciar um conhecimento sobre o colonizado. Elas aparecem com o
estabelecimento do sistema colonial e sempre se limitaram a ser esse
próprio sistema se produzindo como determinação da linguagem dos
colonos no meio (milieu) da alteridade. E sob esse aspecto, é preciso
vê-las como exigências materiais da linguagem (meio verbal de todos
os aparelhos prático-inertes) que se dirigem aos colonos como
membros de uma série e que os significa como colonos a seus olhos e
aos olhos dos outros, na unidade de uma reunião. De nada serve dizer
que elas circulam, que cada um as repete aos demais sob uma forma
ou outra: a verdade é que elas não podem circular porque não podem
ser objetos de troca. Elas têm a priori a estrutura de um coletivo, e
quando dois colonos, em sua conversa, pretendem trocar essas ideias,
o que na verdade fazem é reatualizá-las, uma após a outra, enquanto
elas representam a razão serial sob um aspecto particular. Dito de
outro modo, a frase pronunciada – como referência ao interesse
comum – não se dá por determinação da linguagem pelo próprio
indivíduo, mas por sua opinião outra. Ou seja, ele reclama receber dos
Outros e dar aos Outros, enquanto sua unidade funda-se apenas sobre
a alteridade (SARTRE, 1985, p. 407 – nota).

Quer dizer, o racismo, por exemplo, anverso do colonialismo, “é o interesse


colonial vivido como ligação de todos os colonos pela fuga serial da alteridade”
(SARTRE, 1985, p. 406 – nota). Assim,
as ideias racistas, enquanto estruturas da opinião coletiva dos
colonos, [são] condutas petrificadas [...] que se manifestam como
imperativos no quadro do Outro a se realizar por mim. Elas marcam,
como exigências perpétuas de serem reafirmadas por atos verbais
singulares, a impossibilidade de uma totalização real dessas
afirmações, ou seja, a intensidade do imperativo é diretamente
proporcional ao índice de separação (SARTRE, 1985, p. 409 – nota).

A ideologia colonial, destarte, é coextensiva ao sistema colonial, é seu doublet,


ambos sendo produtos de uma gênese conjunta no âmbito do prático-inerte. Por isso, ela
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é um pensamento-coisa, pensamento reificado ou, mais simplesmente, não-pensamento.


Daí a impossibilidade de sua troca, de sua circulação, apontada no trecho acima
destacado. E, como explica Emmanuel Barot, “é por isso que ela dura com a força da
coisa de uma parte, e que é inútil [...] se limitar à racionalidade argumentativa para lutar
contra ela” (BAROT. In: BAROT, 2011, p. 262).
Neste caso, lutar contra a ideia colonial ou contra o sistema colonial são uma só
e a mesma coisa. Pois, essa Ideia “não é mais ‘práxis vivente’, ‘chave sempre
contestável do mundo’ surgida da ação, mas reatividade fóssil reativada passivamente
como unidade dos colonos que se põem eles mesmos em permanência como colonos
graças a essa reativação” (BAROT. In: BAROT, 2011, p. 262).Por isso, explicará Sartre
em Playdoyer pour les intellectuels:
Não basta [...] combater o racismo (como ideologia do imperialismo)
por argumentos universais, tirados de nossos conhecimentos
antropológicos. Esses argumentos podem convencer ao nível da
universalidade. Mas, o racismo é uma atitude concreta de todos os
dias. Consequentemente, pode-se sustentar sinceramente o discurso
universal do antirracismo e, nas distantes profundezas que são ligadas
à infância, permanecer racista e, ato contínuo, se comportar como
racista, sem perceber, na vida cotidiana (SARTRE, 1972, p. 48).

Numa palavra, a ideologia é o próprio sistema prático-inerte apreendendo-se a si


mesmo, se convertendo em Ideia e se impondo a seus membros – cada indivíduo como
Outro para todos os outros – através de suas próprias ações e pensamentos sobre o
fundo da impotência de sua separação serial.
Diante do exposto, porém, fica claro que, para Sartre, o sucesso de disseminação
de uma ideologia depende da sua capacidade de se fazer interiorizar por cada indivíduo,
na medida em que este se encontra em relação serial para com os demais.
Se o regime ideológico não é apenas um regime de falsidade ou de
ilusão que um saber viria a destruir, é por se tratar de um regime de
existência concreta. Todo meio (milieu), as estruturas sociais que ele
traz, são sempre produzidas e reproduzidas de maneira “ampliada”, no
próprio movimento que procura negá-las (BAROT. In: BAROT, 2011,
p. 271).

Não obstante, para que essa interiorização seja possível em uma sociedade complexa,
institucionalizada, como a nossa, na qual as séries se multiplicam, o isolamento das
grandes cidades se intensifica, a divisão do trabalho se aprofunda e a urgência de

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sobreviver torna-se mais e mais dramática, a práxis soberana (governante, grupo, classe;
no limite, o Estado) deve ser capaz de condicionar cada um a agir à distância sobre
todos os outros, sem se apresentar enquanto tal. Ou seja, superar essas barreiras de tal
modo a, sem derrubá-las (o intuito é, na verdade, precisamente o oposto), conseguir
estabelecer entre os indivíduos a elas subjugados uma forma de sociabilidade. Sartre
denomina esse procedimento de êxtero-condicionamento.
Segundo Sartre, este novo estágio da práxis cria uma quase-unidade passiva que,
para realizar-se, precisa “fascinar cada Outro por esse falso-semblante: a totalização das
alteridades (ou seja, a totalização da série)” (SARTRE, 1985, p. 727). A armadilha do
êxtero-condicionamento reside no projeto do soberano de “agir sobre a série de maneira
a lhe arrancar, na própria alteridade, uma ação total” (SARTRE, 1985, p. 727).
Contudo, prossegue, “essa totalidade prática, ele a produz como possibilidade para a
série se totalizar conservando a unidade fugidia da alteridade, ao passo que a única
possibilidade de totalização que permanece no agrupamento inerte é dissolver nele a
serialidade” (SARTRE, 1985, p. 727).
A práxis, todavia, se conserva como liberdade transcendente. Assim sendo, a
natureza fundamental da institucionalização, sua impotência serial, separação e
reificação, que constrói a massa soberana e serializada, revelam, afinal, através da
desmistificação de sua inteligibilidade, mais uma forma de alienação da liberdade
individual. Mais uma vez, o funcionamento dos meios de comunicação de massa é o
melhor exemplo de como atualmente operariam esses dois caracteres elementares do
êxtero-condicionamento, complementando aquilo que já foi assinalado anteriormente.
De fato, na ação dos mass media, “a ação mediadora do grupo, que condiciona
cada Outro por todos os Outros, [gera uma] fascinação prática pela ilusão da serialidade
totalizada” (SARTRE, 1985, p. 728). Relembrando sua visita aos Estados Unidos, em
1946, Sartre relata (cf. SARTRE, 1985, p. 728 e ss.) que, a cada sábado, as emissoras de
rádio divulgavam a lista dos dez discos mais vendidos na semana que se encerrava. Na
semana seguinte, as pesquisas indicavam que a venda daqueles discos aumentava em
uma margem de 30 a 50%. Assim, o resultado da semana anterior era confirmado e
prolongado. A escolha dos discos, observa Sartre, era feito por um grupo de
especialistas (o “Grand Prix du Disque”) que agia sobre a massa serializada, em nome
da “opinião pública” (na verdade, das gravadoras), de modo a persuadir cada ouvinte de
que o Outro também iria comprar aqueles discos. Este Outro, consequentemente,
exigiria de mim que eu também os tivesse comprado e escutado, a fim de que não

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ficasse desinformado acerca daquilo que o “público” compra e escuta. Por minha vez,
eu faria o mesmo em relação a outrem. Os exemplos poderiam ser multiplicados.
Retomando o problema do racismo, HadiRizk nota que o êxtero-
condicionamento permite compreender melhor esse tipo de procedimento (em suas
várias manifestações fenomênicas), porquanto ele
só pode ser explicado por sua natureza serial, na qual cada um se faz
Outro que o outro “unindo-se” a ele pelo sentimento e prática da
exclusão. No fundo, tudo se passa como se cada indivíduo tentasse
exorcizar, às custas do outro, a fuga de seu próprio ser, que ele projeta
sobre um ser coletivo e unificante. Tal objeto torna-se a unidade dessa
fuga serial, tanto quanto a causa do ser-outro de cada um (RIZK,
1996, p. 186).

Assim, as diversas manifestações de racismo (contra o negro ou contra o judeu,


por exemplo), mais do que um fato seria, são práticas do grupo soberano que age sobre
o racismo com o intuito de fazer dele um meio de junção-na-separação dos indivíduos.
Não por acaso, as pesquisas de opinião visam captar “reflexivamente” esse racismo, por
exemplo, com perguntas como: “há muitos imigrantes em nosso país”?; ou, em um
arquétipo mais tipicamente brasileiro: “a política de cotas beneficia os negros?”[10].
Quando elas são formuladas, cortadas em amostras, e depois
representadas na cerimonia do comentário aos diferentes grupos
sociais, essas questões e estatísticas induzidas pelas “respostas”
equivalem a uma lista-tipo que ofereceria aos indivíduos seriais o
modelo de uma unificação à totalidade Outra da Nação. Dir-se-á assim
que “a França pensa...”, por exemplo, na casa dos 30% de maneira
racista. A comunicação – necessariamente serial, ou seja, atingindo na
alteridade o senhor-qualquer-um – induz em cada um a incitação de
ser 30% racista. Ou seja, ser ele mesmo um cidadão “normal” e
“médio”, fazendo-se o mais Outro, isto é, conforme ao Outro como
razão da série trabalhada e construída em certa totalidade pela práxis
de um subgrupo do grupo soberano (RIZK, 1996, p. 186-7).

O êxtero-condicionamento é, em suma, a utilização, por parte de um grupo


determinado, da ação recíproca que as séries realizam umas sobre as outras, sem que
estas se percebam vítimas de manipulação. Através dessa prática, o grupo soberano se
serve da divisão serial, ao invés de tomá-la como uma ameaça. Sua racionalidade
consiste, portanto, na necessidade que sofre o grupo soberano – surgido no seio da
instituição por conta de sua impotência em superar a serialidade – de manter uma
unidade social apoiada nas próprias séries em suas determinações recíprocas.
Em resumo, em uma sociedade na qual as séries se multiplicam, ou seja, onde a
relação interindividual é perpassada por várias camadas de mediação, os mass media,
por conta de sua própria constituição, tornam-se um mecanismo privilegiado para

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minimizar a distância e o isolamento entre os indivíduos (no sentido de serem capazes


de fazer seu discurso alcançar o maior número de pessoas possível), ao mesmo tempo
em que exige que essa separação se conserve (isto é, que os indivíduos permaneçam
reduzidos ao antagonismo alienante da impotência serial) para que o poder
(político/econômico) ao qual estão atrelados se sustente.

VI

Diante do exposto, fica nítida a conexão que Sartre estabelece entre a vida serial
e o êxtero-condicionamento como modos de sociabilidade nos quais os mass
media podem atuar como veículos privilegiados de propagação de discursos
ideológicos, isto é, discursos que se alimentam da impotência alienante daquela tipo de
relação social. Com efeito, em uma sociedade de consumo de massas, como a atual, não
é difícil observar, a partir da hipótese de Sartre, como a publicidade se vale fartamente
de formas de êxtero-condicionamento com o intuito de assediar consumidores em
potencial e aumentar o volume de vendas de seus produtos; ou como essa forma de
dominação tornou-se indispensável para transmitir valores e conceitos de “verdade” que
assegurem a hegemonia de uma determinada visão de mundo.
Por fim, caberia ainda indagar se há, em Sartre, algum vislumbre de superação
dessa situação. A resposta se fez entrever na própria forma pela qual o filósofo apreende
a noção de ideologia. Porque não se trata de um problema exclusivamente gnosiológico,
mas de um modo de vida interiorizado por cada um, para Sartre, apenas o concurso
das práxis é capaz de, mesmo nas malhas das artimanhas que a impulsionam a reforçar a
dominação à qual estão subjugadas (isto é, o prático-inerte), criar formas diferentes de
sociabilidade que possam se contrapor à manipulação do êxtero-condicionamento.
Lutar contra uma ideologia, portanto, não se desprende da luta (necessária e
possível) contra todo o conjunto de relações (econômicas, políticas, jurídicas etc.) que a
sustenta. Pelo contrário, na medida em que todas essas esferas se dão como um todo,
não há combate a uma sem combate a outra. Como sintetiza Sartre, neste ponto
abertamente adotando a atitude de Marx em relação ao tema: “não são as ideias que
mudam os homens, não basta conhecer uma paixão por sua causa para suprimi-la. É
preciso vivê-la, opor a ela outras paixões, combatê-la com tenacidade. Em suma, se
trabalhar” (SARTRE, 1985, p. 25). Inclusive, se poderia acrescentar, nisso que é
particularmente sensível nos dias atuais, no sentido de inventar formas distintas de

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bloquear a capacidade de persuasão dos meios de comunicação. Isto é, não apenas pela
mera denúncia de seu modo de operação, mas também através da concepção de práticas
distintas de vida e disseminação de valores e ideias contra hegemônicas. Práticas
capazes de romper, ou ao menos minimizar, a alienação típica da vida serial, cuja
fraqueza a que relega os indivíduos nutre o papel contemporâneo de manipulação
ideológica da mídia e, consequentemente, reforçam aquela mesma alienação.

AUTOR
*Vinícius dos Santos é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São
Carlos e licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. Mestre e Doutor
em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, com pesquisas desenvolvidas na
filosofia de Sartre. Professor adjunto de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. e-
mail:viniciusdossantos@ufba.br

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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et le marxisme. Paris : La Dispute, 2011, p. 253-284.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Prefácio Jean-
Paul Sartre. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FISCHBACH, Franck. L’aliénation comme réification. In : BAROT, Emmanuel.
(dir.).Sartre et le marxisme. Paris : La Dispute, 2011, p. 285-312.
GARO, Isabelle. L’idéologie ou la pensée embarquée. Paris : La Fabrique, 2009.
JAMESON, Fredric. Entre structure et événement: le groupe. Trad. Eustache
Kouvélakis. In: KOUVÉLAKIS, Eustache & CHARBONNIER, Vincent (dir.). Sartre,
Lukács, Althusser : des marxistes en philosophie. Paris: PUF, 2005, p. 11-32.
RIZK, Hadi. La constitution de l’être social– le statut ontologique du collectif dans La
Critique de la raison dialectique. Paris: Éditions Kimé, 1996.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In :
LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.
SARTRE, Jean-Paul. Critique de la raison dialectique (précédé de Questions de
méthode) – tome I: théorie des ensembles pratiques. Paris: Gallimard, 1985.
________________. L’Être et le Néant– essai d’ontologie phénoménologique.Édition
corrigée avec index par Arlette Elkaïm-Sartre.Paris: Gallimard, 2007.
________________. Plaidoyerpourlesintellectuels. Paris: Gallimard, 1972.

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NOTAS
[1] Na Crítica, a práxis aparece como a ação do homem no mundo material inerte, com vistas a
transformá-lo para um determinado fim, indicado num “projeto totalizante”. Sua translucidez permite
disparar a dialética que permitirá ao filósofo reconstruir as condições de possibilidade da inteligibilidade
histórica.
[2] Cumpre ressalvar que não se trata, para Sartre, de estabelecer uma essência humana ou de afirmar que
o homem seja, naturalmente, “lobo do próprio homem”, como Hobbes. Na verdade, diz o filósofo, “é
preciso compreender, ao mesmo tempo, que a inumanidade do homem não vem de sua natureza, que,
longe de excluir sua humanidade, só pode ser compreendida por esta, mas que, enquanto o reino da
escassez não tiver chegado ao termo, haverá, em cada homem e em todos, uma estrutura inerte de
inumanidade, que, em suma, nada mais é do que a negação material enquanto ela é interiorizada”
(SARTRE, 1985, p. 242).
[3]Destarte, “o que é negativo na contra-finalidade não é o resultado da matéria enquanto tal, mas
primeiramente o resultado da produtividade humana ou da práxis investida nela, e que retorna, sob uma
forma não reconhecível, sobre os seres humanos que originalmente investiram nela seu trabalho”
(JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 23).
[4] Com efeito, a alienação, em Sartre, consiste “numa exteriorização do sujeito de tal modo que ela
engendraria da objetividade um resultado que o sujeito não pode reinteriorizar, pois não se reconhece nele
ou porque se reconhece em não se reconhecendo (sob a forma: ‘sim, fui eu quem fez isso, mas, ao mesmo
tempo, jamais quis fazê-lo’)” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 308).
[5] Cf. SARTRE, 2007, p. 420.
[6] Para a compreensão dessa riqueza, cuja apresentação seria inviável, ver GARO, 2009, indicado nas
referências bibliográficas ao final.
[7]Convém notar que, desde La légende de lavérité, texto de juventude datado do final dos anos 1920,
Sartre já discutia, mesmo que sem maior profundidade, a noção de ideologia nestes termos. Já após sua
aproximação com o marxismo, por exemplo, em uma conferência proferida na Sorbonne,
no Amphithéatre Richelieu, em 16 de maio de 1956, Sartre trata especialmente do tema da “ideologia”, de
uma perspectiva próxima àquela que seria desenvolvida no âmbito da Crítica: a ideia como fato material
(ligado ao processo de produção), mas irredutível a este, porquanto significante. Na linguagem marxista,
Sartre recusava a tese – típica do marxismo dogmático – de que a superestrutura pudesse se reduzir à
infraestrutura. O manuscrito completo da conferência se encontra depositado junto ao acervo do “Fond
Sartre” da Bibliothèque nationale de France, sob a rubrica NAF 28405.
Para uma análise mais aprofundada do tema da ideologia em Sartre, ver o já citado BAROT. In: BAROT,
2011, p. 253 e ss.
[8] No prefácio à obra de Frantz Fanon, Os condenados da terra, Sartre assinala: “Nossos soldados no
ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus; uma
vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, eles dão por assente
que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar
essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do
macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem
somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los” (SARTRE.
In: FANON, 1968, P. 9).
[9] Cumpre observar, aliás, que a hierarquização social a partir da criação da ideia de raça é inseparável
do processo que de expansão do capital na aurora da modernidade, que se inicia com a descoberta da
América, e que estabelece uma nova forma de controle e divisão do trabalho, este convertido em
mercadoria. Como explica Aníbal Quijano: “A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história
conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre
conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência
a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas
nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e
redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam
apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas
identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando
eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais
correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha.
Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação
social básicada população.[...]. Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às
relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova identidade
depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da
perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como

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naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso
significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de
superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e
durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente
universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram
postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem
como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério
fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder
da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população
mundial. [...]. As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à
natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os
elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente”
(QUIJANO, In: LANDER, 2005, p. 117-8).
[10] Trata-se, evidentemente, de um questionamento típico de uma forma de pensamento que tem o
intuito de escamotear a relação artificial (isto é, não-natural, historicamente construída) entre raça e
posição social, isto é, rejeitar a constatação de que “as ‘classes sociais’, na América Latina, têm ‘cor’”
(QUIJANO. In: LANDLER, 2005, p. 138), o que, no Brasil em particular, é de uma evidência
negligenciável apenas se pautada em um discurso completamente alheio à realidade.

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Artigos e ensaios

CRUZADA CONTRA A BOCA DO


LIXO:
saberes e discursos na imprensa
Everton Behrmann Araújo*

RESUMO: Este trabalho busca analisar as construções discursivas na imprensa sobre


relações de poder e sociabilidades desenvolvidas no espaço urbano da cidade de São
Paulo entre 1950 – 1960, mais especificamente a Boca do Lixo, lugar que ficou
conhecido a partir dos anos 1950 por abrigar uma variedade de marginalizados, onde
foram estabelecidas formas de organização e códigos de conduta que insultavam a
moral vigente.
Palavras Chave: Discurso. Saber. Chavão. Faits Divers. Marginais.

Em 1954, a cidade de São Paulo comemorava o seu IV centenário. Em torno dos


festejos criou-se um ambiente simbólico tão forte que a historiadora Maria Izilda Matos

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localiza nesse ano o que ela chamou “a invenção da paulistaneidade”. Ela destaca o
termo “invenção” e o conceitua como um processo de construção variável ao longo do
tempo, forjado em diferentes espaços, com diversos objetivos e no caso específico da
capital paulista, diretamente atrelado aos conceitos de progresso, modernidade e
trabalho. (MATOS, 2007, p.71) Devido a esse marco simbólico para a cidade, a década
de 1950 foi marcada por uma intensificação do processo de transformações urbanas
iniciadas no começo do século. Não por acaso, o lema escolhido para as comemorações
do IV centenário foi: “São Paulo: a cidade que mais cresce no mundo”, que sintetiza a
perseguição do ideal de progresso e o tom ufanista que se queria imprimir à data. São
Paulo estava se abrindo à modernidade e seus moradores, mais do que nunca, estavam
se entusiasmando com o progresso capitalista. Para Matos, essa construção do moderno
está ligada, também, ao diagnóstico de um presente problemático e foi na projeção de
um futuro exemplar que as autoridades da época procuraram justificar algumas ações de
intervenção.
Entre as ações de intervenção que necessitavam ser justificadas para que a
população pudesse comemorar tranquilamente o IV Centenário da capital bandeirante
livre do contato com práticas e sociabilidades consideradas nocivas e degradantes, uma,
em especial, era questão de honra para o governo paulistano: a extinção da zona de
meretrício do Bom Retiro. Criada na década de 1940, por decreto do então governador
Adhemar de Barros, ficava confinada para além das linhas dos trens, nas ruas Itaibocas
e Aimorés, no Bairro do Bom Retiro. O aparelho policial via na forma confinada de
meretrício uma série de vantagens, entre as quais a possibilidade de um melhor
policiamento e higienização, além de expor menos as “boas famílias” forçadas a
transitar pela parte boêmia da cidade. (FONSECA, 1982, p.108)
No entanto, depois de alguns anos, setores da sociedade e da imprensa
começaram a cobrar do governo uma atitude em relação àquele “antro” que se
localizava no coração da metrópole. Essa demanda foi concretizada em dezembro de
1953, quando o então governador Lucas Nogueira Garcez publicou um decreto
colocando fim às atividades da Zona de Meretrício. As intenções do governador e da
Secretaria de Segurança, entretanto, não eram somente acabar com a prostituição
localizada no Bom Retiro, mas antes, por um fim definitivo à atividade da prostituição
na cidade de São Paulo.
Como já podemos supor, não foi bem-sucedida a intenção de extirpar
definitivamente, do solo da capital paulista, a prostituição e outras práticas que se

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desenvolvem em seu entorno. Com a proibição da Zona, as mulheres, sem ter de onde
tirar o seu sustento, migraram para as imediações do Bom Retiro, passando a
desenvolver suas atividades de forma ilegal nas ruas do bairro de Campos Elíseos,
potencializando, assim, a prática do chamado trottoir, atraindo para essas imediações
todas as atividades e sociabilidades que geralmente se desenvolvem em torno da
prostituição.
A historiadora Margareth Rago afirma que a atividade da prostituição
desempenha certo papel positivo na economia dos afetos em uma sociedade, sendo
praticamente impossível domar completamente a inclinação para o que chama de
“forças dionisíacas,” que correspondem ao universo do prazer e do lúdico atuantes em
seu interior. (RAGO, ano, p.12). Ao tentar reprimir essas forças, corre-se o risco de
deixar emergir o lado violento e recalcado da sociedade. Sobre essa tentativa de frear o
dionisíaco da alma humana, o lado noturno da vida, o historiador Tony Hara diz:
Seja por sabedoria imitadora ou por estupidez desesperada, os homens
tentaram construir também as suas muralhas e domesticar as forças do
mal. Ergueram-se assim, os muros do Estado, da Pátria, da família,
das escolas, dos conventos, dos hospitais psiquiátricos, das fábricas,
da identidade. Os homens construíram todas essas máquinas para
barrar as forças malditas que fazem parte do cotidiano de nossa
existência. É evidente que todo esse trabalho de esquadrinhamento
social não teve o resultado esperado, mas a consequência desses
esforços de domesticação da noite, ainda podemos sentir no tempo
atual, nesse exato instante que passa. (HARA, 2004, p.26).

A Boca do Lixo surge como refluxo causado pela ação do aparelho repressivo,
que na tentativa de extirpar as práticas “sujas” do seio da capital paulista, acabou por
espalhar essas atividades pela região central. De outra forma, o local, também, surge
como objeto forjado nas páginas dos jornais, através de um tipo de jornalismo
sensacionalista veiculado nas seções da reportagem policial que cunhou o nome do local
como “Boca do Lixo”. Pelo fato das atividades ilícitas terem se concentrado no entorno
de ruas que formavam uma espécie de quadrado, a crônica policial também se referia à
Boca como o “Quadrilátero do Pecado”. Esses termos eram usados para estigmatizar
essa área enquanto lugar onde se concentravam os piores sujeitos da cidade, onde a
legalidade e as convenções morais eram constantemente desafiadas: “seres comparáveis
aos restos, à sujeira e aos dejetos produzidos cotidianamente na cidade.”, conforme
observa a historiadora Angela Aparecida Teles.(TELES, 2012, p.50).
Faz parte da linguagem utilizada pela reportagem policial o uso exagerado de
palavras chave, ou “chavão”, para se referir a objetos, sujeitos, espaços ou temas

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tratados em suas páginas. O “chavão” e o “lugar-comum” ocupam uma função


específica na escrita jornalística. Referem-se, em primeiro lugar, a um nível de
comunicação bastante popular: são operações linguísticas perpassadas por um universo
folclórico, expressões dessimbolizadas, triviais e usadas à exaustão nas reportagens
policiais. O jornalista Claúdio Julio Tognolli pesquisou o uso dessas expressões em seu
trabalho de mestrado A sociedade dos chavões: presença e função do lugar-comum na
comunicação, pensando na função que eles exercem na escrita do texto do jornal diz:
O chavão se reproduz em todos os grupos, níveis da fala, diferentes
esferas sociais e categorias profissionais. Num jogo de linguagem, os
chavões têm servido como autênticas peças, ao que alguns chamariam
de a mais fina forma de reificação do pensamento, volta e meia sitiado
por ofegantes tentativas de criatividade. Temos aqui, diga-se, um
terminus ad quem: palavras-peças que dão respostas imediatas a cada
jogo, a cada interação, sem que a palavra passe, necessariamente, pelo
processo de pensamento, isto é, a simbolização. (TOGNOLLI, 2001,
p.17).

Portanto, neste artigo, analisaremos a cobertura jornalística em relação aos


acontecimentos na Boca do Lixo entre 1953 e 1963, especificamente nas páginas dos
jornais Diário da Noite e A Plateía e A Capital, no sentido de observar como as práticas
e sociabilidades desenvolvidas nesse espaço eram estigmatizadas e estereotipadas com
intenção de enquadrar e normatizar os praticantes que nele viviam. Durante o período
que propomos estudar, a reportagem policial cobria diariamente a Boca do Lixo, a ponto
de ser possível acompanhar nas leituras dessas reportagens os desdobramentos de cada
caso, dia após dia; da prisão de um malandro à construção da peça de defesa dos
advogados. Era uma cobertura tão detalhada – acontecimento por acontecimento – que
podemos comparar ao enredo de uma novela ou romance. A leitura de um jornal e o
acompanhamento de um assunto ou objeto específico nas suas páginas não é algo
simples. Em um único jornal, sobre uma mesma notícia ou fato, podemos ter a opinião e
a análise dos mais diversos sujeitos, que ocupam diferentes territórios de fala e emitem
pontos de vista diametralmente opostos sobre um mesmo fato. O historiador José
D’Assunção Barros nos alerta que ao fazer o uso do jornal enquanto fonte devemos
levar em conta a multiplicidade de vozes e de lugares de fala que estão presentes nesse
tipo de documentação. Assim, o aparecimento dessas outras vozes não deve ser
percebido ou analisado apenas sob o ponto de vista de que é o autor quem está falando,
mas deve-se levar em consideração, também, que esse autor pode estar representando

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uma instituição, comunidade profissional ou uma disciplina e que vai muito além de sua
própria fala. (BARROS, 2010, p.21).
A forma como essa diversidade de vozes e sujeitos é organizada e distribuída no
interior dos jornais lembra o que Michel Foucault chamou de “procedimentos internos”
de interdição do discurso, que submete o acontecimento e o acaso do discurso a uma
ordem, no caso do jornal, a sua “política editorial”, que tem relação direta com seus
interesses no jogo de poder da sociedade. Diz ele: “são procedimentos que funcionam,
sobretudo, a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição [...].”
Foucault elenca três categorias internas de interdição do discurso, as quais tentaremos
resumir conceitualmente. A categoria do “comentário” é o procedimento que permite
que seja dito algo além do texto, desde que o texto mesmo seja dito. Sobre isso temos
no jornal a seção de “cartas” ou, no jargão jornalístico mais moderno, o “Painel do
leitor”, espaço onde os leitores comentam sobre o texto. O segundo princípio, o de
“autor”, não deve ser entendido apenas como o indivíduo que produz um texto ou
pronuncia um discurso, mas um também “princípio de agrupamento do discurso, como
unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência.”, é o caso, por
exemplo, dos sujeitos que escrevem um artigo no jornal representando determinadas
instituições, para além de sua fala pessoal. E, por último, a “disciplina”, que seria,
grosso modo: um conjunto de métodos, de domínios de objetos ou corpus de
preposições consideradas verdadeiras. Não obstante, no jornal, quando se trata de falar
sobre saúde, chama-se um médico; sobre criminalidade, um criminalista, advogado;
sobre distribuição de renda, um sociólogo ou economista; e, em datas comemorativas,
um historiador. Foucault propõe uma análise do discurso enquanto prática instituinte, ou
seja, criadora de acontecimentos, imagens e comportamentos, levando-nos a perceber
nosso objeto de estudo como um efeito de construções discursivas. (FOUCAULT, 1996,
p. 26)

2.1 Um faroeste sobre o Terceiro Mundo ou toda notícia que couber a gente
publica4

Decretado hoje estado de sítio no país, o dispositivo policial reforça


todos seus órgãos [...] qualquer semelhança com fatos, reais, ou irreais,

4
O título dessa seção é uma alusão e colagem de trecho retirado do filme O Banido da Luz Vermelha de
Rogério Sganzerla e do artigo Jornalismo: toda notícia que couber a gente publica de Robert
Darnton; IN: O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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pessoas vivas, mortas ou imaginárias, é mera coincidência. Trata-se de


um faroeste sobre o terceiro mundo. (SGANZERLA, 1968).

O trecho citado faz parte da abertura do filme O bandido da luz vermelha do


diretor Rogério Sganzerla, o qual é narrado em tom de um programa de rádio policial.
As vozes de um homem e de uma mulher em tom apocalíptico e sensacionalista se
alternam na narração. O filme é construído através de colagens que abusam dos clichês
utilizados nesse tipo de programa. O recurso à linguagem do jornalismo policial
utilizado no filme, em certo sentido, serve para criticar e debochar da iconografia
conservadora e ufanista que predominava no imaginário cultural da São Paulo dos anos
1950-1960, onde a cidade era representada como terra do progresso, locomotiva do país,
cidade que não dorme etc. Como se a cidade fosse uma ilha de desenvolvimento e
progresso, simbolizando o lado moderno de um país atrasado e miserável – uma ilha de
“primeiro mundo” dentro do “terceiro”.
Como forma de ironizar essa visão que a elite paulistana tinha construído sobre o
progresso e a modernidade da cidade, no momento em que o trecho citado do filme é
narrado, surge em um letreiro luminoso a seguinte mensagem: “Os personagens não
pertencem ao mundo, mas ao terceiro mundo: Guerra total na Boca do Lixo.”
(SGANZERLA, 1968) A trama é narrada através dessa mistura de vozes de um
programa de rádio com a do personagem João Acácio, o bandido da luz vermelha, que
ficou conhecido nos anos 60 através da crônica policial. Importante situar que a voz do
personagem protagonista, o “Luz”, que no modelo convencional de cinema deveria
ocupar o primeiro plano da narrativa, é colocada em over, dividindo com a voz dos
apresentadores do programa sensacionalista o protagonismo na construção narrativa.
Essa técnica faz com que a construção do personagem se dê em fragmentos
contraditórios e disparatados, que são supervalorizados, para mostrar a angústia do
personagem marginal, caçado pelo aparelho policial. O filme é na verdade uma paródia
à mídia, por isso a mistura, o jogo de vozes entre os narradores do rádio e o
personagem, juntando-se a isso, o recurso a uma quarta forma de narrativa, que são os
constantes letreiros luminosos que aparecem no decorrer do filme. (TELES, 2015,
p.231) Em certos momentos, o filme passa a sensação de que todo o seu argumento foi
construído através de colagens feitas a partir da seção de fait divers de algum jornal,
pois há constantes recursos ao uso dos chavões da reportagem policial e uma exibição
excessiva do kitsh, numa clara crítica a essa forma de jornalismo:

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O narrador explicita a mediocridade dos meios de comunicação de


massa insistindo em escancarar o quanto há de informações precárias
e contraditórias circulando pela mídia sensacionalista. O tom irônico
do narrador provoca o riso demolidor, expondo a própria mídia em
ação. (TELES, op.cit., p.231).

No jornalismo brasileiro, o aparecimento dos fait divers — “fatos diversos”,


numa tradução literal — data da virada do século XIX para o XX, com o crescimento de
algumas cidades e o aumento de crimes e acontecimentos pitorescos no cotidiano das
mesmas. Foi quando os maiores jornais em circulação nos estados do Rio de Janeiro e
São Paulo começaram a dedicar uma seção para notícias sensacionalistas da cobertura
policial, importado, como sempre, do modelo de jornais norte-americanos e europeus.
Escritos numa linguagem dramática e às vezes com lampejos de comicidade, essas
pequenas e violentas crônicas do cotidiano chegaram para ficar e até jornais tidos como
sérios, a exemplo de O Estado de São Paulo, passaram a ter uma seção destinada a esse
tipo de narrativa jornalística. (GUIMARÃES, 2007, p. 323-349)
Em um comentário sobre a estruturação das notícias policiais, o historiador
Robert Darnton diz que é um tipo de escrita fortemente perpassada por estereótipos e
feita a partir de uma concepção prévia do resultado final da “matéria”. Esse tipo de
reportagem faz circular, entre o jornal e os leitores, um repertório conceitual e uma
forma de escrita e apuração, de modo que tentar fugir dessa amarra estrutural pode
significar um baixo índice de leitores. Segundo Darnton, existe uma epistemologia dos
fait divers, que ele descreve nessa passagem:
Converter um boletim policial num artigo requer uma percepção
treinada e um domínio do manejo de imagens padronizadas, clichês,
“ângulos”, “pontos de vista” e enredos, que vão despertar uma reação
convencional no espírito dos editores e leitores. Um redator perspicaz
impõe uma velha forma sobre um assunto novo, de uma maneira que
cria certa tensão – o sujeito vai se adequar ao predicado? -, e a seguir
dá-lhe uma solução voltando ao familiar. (DARNTON, 1990, p.91)

Essa tendência de abusar dos estereótipos, apontada por Darnton, faz com que os
repórteres policiais optem por uma redução da linguagem utilizada, pelo fato de se
propor escrever enquanto “jornalismo popular”, como se o seu público leitor fosse
formado por crianças, “o povo essa grande criança”, ironiza o historiador. Segundo ele,
é por causa dessa escolha estética que se forma o “caráter sentimental, moralista, com
ares de superioridade, do jornalismo popular”. (DARTON, op.cit., p. 91)

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Embora pequenos fragmentos, escritos em tom romântico, com uso recorrente de


recursos textuais oriundos da literatura de ficção, pode-se colocar em questão a
veracidade das informações divulgadas nesse tipo de notícia, se lido com certa atenção e
técnica, os fait divers podem fornecer pistas importantes sobre aspectos do cotidiano da
época em que foram publicadas, bem como ajudar a perceber os valores que circulavam,
as angústias e cobranças sociais e morais em relação a determinadas práticas, e até o
modus operandi dos aparelhos de repressão.
Embora aliada do aparelho policial no combate aos maus costumes, na
manutenção da moral vigente e, às vezes, servindo como porta-voz de cobranças por
segurança, moralidade, saúde pública, higienização; ao fazer circular através de suas
páginas os discursos de setores conservadores, de órgãos do governo, os jornais e, em
especial, a reportagem policial, desempenham um papel político importante na produção
da cidade. Quando o objeto em questão é a “marginália”, a “prostituição” e toda sorte de
desajustados sociais, esse papel fica ainda mais evidente, pois, quando se trata do
“submundo” o texto jornalístico recorre a disciplinas externas a seu saber, como, por
exemplo, a criminologia, com o intuito de diagnosticar desvios sociais, atuando no
sentido de esquadrinhar e delimitar a cidade, criando áreas “degradadas”, fazendo
mapeamento moral dos espaços, escolhendo personagens – alvo para protagonizar
diariamente, envolvendo-os em um enredo digno de novela. (BENATTE, 1996, p.230)
Foi através dessa atitude de se reivindicar enquanto porta-voz de demandas
moralistas de setores da sociedade paulistana, atuando no sentido de estereotipar
determinadas práticas e delimitar espaços “marginais” dentro da cidade, que podemos
perceber nas páginas do jornal Diário da Noite, a partir de 1951, uma série de
reportagens, notas e artigos que cobravam das autoridades competentes uma atitude
contra a zona do meretrício do Bom Retiro. Importante lembrar que a criação de um
espaço confinado para o exercício do meretrício na cidade de São Paulo, começou a ser
pensado e demandado no final da década de 1930, pois a elite cafeeira queria desfrutar
dos avanços arquitetônicos pelos quais a cidade vinha passando e se sentia incomodada
em dividir o espaço urbano com esses tipos “devassos”, tendo que presenciar práticas
como a prostituição e as diversas sociabilidades que esta atraía, como por exemplo, o
jogo e a malandragem. Portanto, surgia a necessidade de delimitar, de isolar essas
práticas em um lugar que ficasse distante do olhar das famílias que tinham de transitar
por São Paulo. (FONSECA, 1985, p.210)

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Importante lembrar que no período pré-criação da zona do Bom Retiro, um setor


da imprensa paulistana serviu como veículo para a emissão dos discursos a favor da
criação de um espaço confinado para o exercício do meretrício. Nesse sentido, podemos
observar o discurso do então Interventor Federal de São Paulo, Adhemar de Barros,
publicado no jornal A Platéia, no qual ele profere os motivos e vantagens de se
delimitar o espaço de atuação da “zona”: “não só para facilitar o policiamento como
também, por oferecer um interessante campo para estudos sociais, defendendo, ao
mesmo tempo, a ordem e a moralidade pública.” ( A Platéia, 04-12-1940. p.6.) Assim,
num clima de coesão política que envolvia políticos, empresários e setores da alta
sociedade paulistana, Adhemar de Barros publica no final de 1940 um decreto que cria a
zona de confinamento no bairro do Bom Retiro.
O local escolhido foi as ruas Itaboca e Aimóres. Não demorou e essas ruas
passaram a ser uma das mais movimentadas da capital paulista, principalmente aos
finais de semana e vésperas de feriados, atraindo gente de outros bairros e cidades. Após
essas datas, as ruas, que durante o dia funcionavam como ponto de comércio tradicional,
ficavam muito sujas, por isso, muitos comerciantes e famílias do local começaram a
reclamar, e a imprensa, claro, se prontificou a servir novamente como porta-voz dessas
demandas. Dessa forma, A Platéia publica a seguinte nota: “o escândalo que se vem
verificando, especialmente aos sábados, quando a extraordinária multidão que desfila
por essas ruas da boemia na falta total de mictórios despeja as urinas pelas ruas. ( A
Platéia, 04-12-1940. p.6.) Não demorou muito para que setores da sociedade e da
imprensa mudassem sua opinião a respeito da medida de confinar a prostituição na
cidade. A partir disso, todos os dias vários jornais estampavam manchetes na capa
narrando a “sujeira”, “violência” e a “pouca-vergonha” que diariamente tomavam conta
de parte do Bom Retiro. Esse clima começa a se acirrar durante a década de 1950, já no
Governo de Lucas Nogueira Garcez. Esse governo foi caracterizado, na época, como o
governo da limpeza, da moralidade e dos bons costumes. Garcez era muito próximo de
setores conservadores da Igreja Católica.
Já em 1951, começa-se uma ação de repressão do aparelho policial na Zona do
Meretrício. O Diário da Noite relata um desses momentos. “Pânico no Bas-fond”, era a
chamada da matéria:

A polícia cercou o bairro, deteve 500 pessoas e interrogou mais


de três mil. – Mais de 500 prisões foram efetuadas na noite de
sábado, por volta das 23:30 horas, na diligência levada a efeito

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pela 2ª Delegacia de Polícia da Capital, sob a orientação do


delegado Guilherme Pires de Albulquerque. A primeira medida
foi mandar fechar todas as entradas que dão acesso à zona,
compreendidas pelas ruas Aimorés, Carmo Cintra e Itaboca.
Essas vias públicas fervilhavam de indivíduos de toda a espécie,
alguns malandros já conhecidos da polícia, exploradores das
infelizes que frequentam os lupanares. (Diário da Noite, 29-08-
1951. p.3)

Nota-se, já de imediato, que o jornalista queria justificar estatisticamente a ação


da polícia e já começa explorando a grande quantidade de detenções e interrogatórios
que a ação policial gerou. Entre as várias formas de atuação do jornal no sistema de
relações de poder em que ele se insere, uma delas é essa de querer passar a impressão de
que é portador de demandas e cobranças da população, como um todo, para o governo e
outras instituições, quando, na maior parte do tempo, é um prestador de contas e
legitimador da ação dos mais diversos aparelhos do Estado e de valores de setores
hegemônicos da sociedade. Logo em seguida, justificada a ação policial, o texto focaliza
a estigmatização do espaço geográfico e os seus praticantes, daí o uso de termos como
“espécie”, “malandros”, “exploradores” e “infelizes”. Na segunda parte da nota, o jornal
nos informa quais os tipos sociais que foram detidos nessa diligência. Diz: “Ladrões,
“caftens”, “batedores de carteiras”, homossexuais e outros indivíduos, em número
superior a 50, que foram reconhecidos pelos policiais, foram detidos e encaminhados
para o plantão do D.I.” (Diário da Noite, 29-08-1951. p.3).
Esse clima de cobranças e disputas sobre o que fazer com a Zona do Meretrício
só teve desfecho quando o governador Lucas Nogueira Garcez publicou, em 1953, o já
citado decreto que colocava fim à Zona do Bom Retiro. Ironicamente, no mesmo dia foi
publicado outro decreto que mudava o nome da rua que mais representava o local da
prostituição do ponto de vista do imaginário cultural, a Rua Itaboca. O governo mudou
seu nome para Rua Cesare Lombroso, coroando, com essa homenagem ao criminalista
italiano, o seu trabalho para extinguir a zona tolerada de prostituição da cidade de São
Paulo.
No material que analisamos e, aqui, especialmente no jornal conservador A
Capital, podemos observar a existência de uma insatisfação desse veículo — que na
época representava os interesses de setores ligados ao mercado financeiro — com as
notícias narradas pela reportagem policial, que para os editores romantizava os feitos de
criminosos e retratava com glamour tanto a vida da prostituição quanto a do crime, que

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segundo o jornal, acaba por incentivar a entrada de mais e mais pessoas na vida dos
delitos e do pecado, ofendendo assim, a moral e os bons costumes da população
paulistana. O impresso, que se apresentava como “jornal-magazine”, era publicado
mensalmente. Podemos notar em três editoriais diferentes, a preocupação com a
chamada “imprensa marrom”; nesses editoriais, o jornal se valia do auxílio de outros
saberes, a medicina e a criminologia, por exemplo, para sustentar sua tese de que a
reportagem policial era um mal a ser combatido e extirpado. Também, pode-se observar
a tentativa de mobilizar diversas instituições da sociedade para sua causa, como se
percebe em constantes apelos ao clero, a polícia e aos políticos. Na edição de janeiro de
1962, o jornal publicara editorial com o título “O noticiário criminoso e dissolvente”; o
uso do adjetivo “dissolvente” já deixa claro a posição contrária do jornal à forma de
narrativa veiculada nas seções dedicadas à reportagem policial dos outros jornais; e
mais, afirmava que as mesmas atuavam no sentido de atacar determinados valores caros
para a visão de mundo de A Capital, nesse sentido o editor prossegue:
Afinal, “água mole em pedra dura…”, aqui está uma das
manifestações mais merecedora de acatamento e gratidão: o presidente
do Conselho Regional de Medicina do Estado de S. Paulo, prof.
Flaminio Favero, apresentou-lhe a proposta que estudada em plenário
em sua 205ª reunião, em 14 de março, foi POR UNANIMIDADE
APROVADO, e deliberado transmitir a todos os jornais de São Paulo
e autoridades competentes.
Essa proposta refere-se ao noticiário policial, e, sendo esta folha a
única que, na imprensa nacional tem movimentado uma persistente
campanha contra tal sistema de noticiário sensacional é com a maior
satisfação que transcrevemos o texto integral do protesto, hipotecando
– lhe integral solidariedade (A Capital, janeiro de 1962. p.1).

O texto trata de uma proposta apresentada pelo presidente do Conselho Regional


de Medicina, em reunião do citado órgão, no sentido de tentar frear a disseminação de
notícias jocosas nas páginas de jornais paulistanos. O editor de A Capital faz o uso da
metáfora “água mole em pedra dura...” para ilustrar a luta e protagonismo do seu jornal
na batalha contra o sensacionalismo e ao mesmo tempo para salientar que, enfim, depois
de tantas insistências e batalhas, algum órgão respeitável da sociedade resolvia se
pronunciar. O texto prossegue com a publicação na integra da nota do Conselho de
Medicina, eis o texto:
“De ordem do Conselheiro Presidente do Conselho Regional de
Medicina do Estado de S. Paulo, conselheiro Flaminio Favero,
cumpre-me apresentar a v.s, proposição estudada pelo plenário em sua
250ª reunião, realizada em 14 último e por ele aprovada
unanimemente, que se relaciona com publicações noticiosas de
natureza policial insertas de frequente nos jornais desta capital.

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“Assistimos no momento ocorrência social demasiado desagradável.


Habitantes de vários bairros da cidade vivem sobressaltados pela ação
criminosa do “bandido mascarado”. Toda a população se inquieta e se
comove pela natureza dos crimes cometidos.” Ninguém ignora os
objetivos do referido malfeitor.
Para aumentar a intranquilidade e piorar o trauma emocional, a policia
e a imprensa fazem questão de identificar as vítimas mesmo quando
há dias o fato delituoso ocorreu com uma menor. Embora o nome não
tivesse sido citado, cuidou a policia e a imprensa de anunciar a
residência da vítima, identificando-a de maneira indireta, mas sem
dúvida, realizando o sádico desejo de denunciar de modo claro quem
era a vítima.
Nos médicos, Sr. Presidente, compreendemos a necessidade de se
guardar segredo a respeito de certas ocorrências, porque sabemos da
possibilidade de tais revelações concorrer para agravar traumas
psíquicos, tornando – os irreparáveis. Nestas condições, propomos que
o Conselho de Medicina proteste, em defesa das vítimas e do sentido
de humanidade que nunca deve abandonar o profissional de medicina,
contra tal proceder da policia e da imprensa. (A Capital, janeiro de
1962. p.1).

Trata-se aqui, como podemos observar, do embate de uma entidade


representativa de um saber, no caso o Conselho Regional de Medicina, que se utiliza do
espaço discursivo de outro tipo de instituição, o jornal, para emitir uma opinião contra
um tipo de linguagem, a reportagem policial veiculada em jornais concorrentes de A
Capital. A nota é endereçada a outra instituição, a Presidência da República. No texto a
entidade médica toma para si o direito de falar em nome de moradores inconformados
com a forma que imprensa veicula notícias sobre os feitos do Bandido da Luz
Vermelha, e reclama sobre a identificação das vítimas nas páginas dos fait divers;
termina reafirmando a posição do Conselho contra a imprensa e a polícia, mas não sem
antes recorrer ao saber psiquiátrico para justificar seu argumento.
Ao que parece, o apelo às instituições laicas não foi suficiente para que a sua
cruzada contra a reportagem policial obtivesse sucesso, em outubro de 1962 A Capital
resolve buscar ajuda junto ao clero para continuar sua batalha conta o sensacionalismo.
Dessa forma, estampa no título de seu editorial a frase “Contra a perversão e a
degeneração”, o texto é endereçado ao Cardeal Dom Câmara, Archebispo de São Paulo.
Na argumentação, como recurso para obter a imediata simpatia do Cardeal, o editor
enfatiza a atuação do jornal no que chama de “causa santa” contra o comunismo e o
jornalismo marrom que seriam responsáveis por dilacerar os costumes e a moral cristã
da sociedade paulistana:

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A coleção desta folha, em seus 45 ou 46 anos da atual


orientação, (facilmente consultável no Arquivo do Estado)
atestará aos seus leitores sua indefectível batalha contra a
degeneração, perversão de costumes reclamando providencias
enérgicas das respectivas autoridades, além de intervenção
salutar de autoridades, inclusive da Eclesiástica... Acompanha
esta alguns exemplares da “A CAPITAL”, órgão independente
que mantém a santa batalha contra o comunismo e dissolução
de costumes de forma enérgica e permanente.( A Capital,
01/1962. p.1)

Ainda nesse artigo continua-se a mobilização de poderes e instituições para


extirpar os relatos degradantes e obscenos da imprensa policial, que expõem
constantemente a formação moral da população da cidade. Dessa vez, o editor faz
menção à carta enviada ao Presidente da República, reportando-se à época em que o
mesmo foi designado pelo clero para compor um conselho econômico sobre assuntos de
interesse do Brasil junto a Europa. Temos, portanto, o entrelaçamento e a mobilização
de três instituições para atuarem no sentido de interditar o discurso emitido pelas seções
dedicadas a reportagem policial na São Paulo da década de 1960, tais quais, da Igreja e
do saber religioso, da Presidência da Republica, além de fazer referência a uma
delegação que atuava no debate sobre economia e comércio, conforme podemos
observar na seguinte parte do editorial:
Num dos números encontrará V. Emin. os relatórios enviados ao Sr.
Presidente da Republica, relativo aos trabalhos na qualidade de
membro da Delegação Econômica Comercial do Brasil na Europa que
me coube desempenhar por ordem de S. Exa.( A Capital, Outubro de
1962, p.2).

Após desenvolver toda sua argumentação com o intuito de mostrar ao


representante da Igreja todo o esforço feito pelo jornal no sentido de combater a
proliferação dos discursos sensacionalistas nos jornais em circulação, o editor conclui
seu raciocínio afirmando que se não houvesse um enquadramento e uma normatização
por parte do poder-saber jurídico, via a inclusão de um artigo específico na Lei de
Imprensa, artigo esse que proíba a divulgação de notícias sobre crimes, bem como fotos
consideradas obscenas, seria inútil todo o esforço feito ao longo do tempo, pelo jornal e
pelas outras instituições envolvidas na cruzada contra o sensacionalismo. No final, ele
ainda se vale de um recurso retórico, ao usar o termo “infância” como um dos setores
que clamam por essas medidas:

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Aproveito a oportunidade para relembrar que todos os esforços contra


o sensacionalismo e dissolução de costumes, não serão profícuos se
não tiverem que na Lei de Imprensa seja incluído o artigo proibindo
tal divulgação do noticiário policial e fotografias obscenas. Nossa
infância clama por essas medidas e só V. Emin poderá consegui-la.
Com elevado respeito e acatamento de V. Emin devotissimo patrício J.
C. (A Capital, outubro de 1962, p.2).

A preocupação corrente era que os constantes relatos sobre os feitos criminosos


dos malandros e da vida libidinosa das prostitutas, contadas através da linguagem
romantizada e adornada por recursos como o chavão, utilizados pelos repórteres
policias, influenciassem de maneira negativa os leitores, principalmente a juventude.
Sobre isso, Ramão Gomes Portão5, repórter que atuou com frequência na Boca
do Lixo, chama atenção para o que ele denomina de “influência” que os meios de
comunicação de massa, especialmente a reportagem policial, exercem sobre a opinião
pública. Ele diz que esse tipo de relato contribui na formação da chamada “opinião
pública”, pois ele cria questões de interesse público, e que a ação do repórter ao cobrir
determinados locais onde a população por diversos motivos não tem acesso, acaba por
“formar” o conhecimento das pessoas sobre a “criminalidade”, influenciando também as
atitudes a serem tomadas pelas “instituições de defesa social” em relação aos
marginalizados. Como vimos, essas relações se estabelecem e podem ser percebidas
diariamente na prática da leitura do jornal. (PORTÃO, 1980, p.13).
Outra forma de atuação da reportagem policial, no sentido de pressionar as
autoridades e aparelhos de Estados a se posicionarem em relação a determinadas
sociabilidades consideradas “marginais”, é quando essa se comporta como uma espécie
de “tribuna de debates” sobre o que se considera um problema social a ser enfrentado.
Nesse caso, é recorrente encontrar nas páginas dos jornais no período pesquisado,
entrevistas com agentes do governo intimados a prestar contas de suas ações para
combater o crime e os maus costumes, como é o caso da entrevista encontrada no Jornal
Diário da Noite, em agosto de 1963, com o então Secretário de Segurança Pública do
Estado de São Paulo, na segunda gestão de Ademhar de Barros, o General Adelvio
Barbosa de Lemos. Na ocasião, o então Secretário havia sido convocado pela
Assembleia Legislativa para prestar alguns esclarecimentos sobre os acontecimentos
“ultrajantes” da Boca do Lixo. O jornal se antecipa à sabatina da Assembleia e o
convoca para uma entrevista onde o título já oferece ao leitor a opinião do entrevistado

5
Ramão Gomes Portão era formado em Direito, mas atuou como editor de polícia do famoso jornal
Notícias Populares durante 20 anos e conhece bem os melindres da feitura desse tipo de reportagem.

127
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sobre os principais assuntos pautados, diz: “Sou pela regulamentação do jogo e da


prostituição”; porém, logo em seguida, o jornal procura desqualificar a opinião do
secretário “Digressões filosóficas do velho General” (Diário da Noite, 09-08-1963,
p.5).
A entrevista segue com o secretário descrevendo como se comportaria perante os
questionamentos que iria receber na casa legislativa: “Responderei com lealdade e
franqueza a todas as perguntas que me forem dirigidas pelos ilustres deputados da nossa
Assembleia Legislativa. Direi inclusive os motivos pelos quais sou pela regulamentação
do jogo e do difícil problema do sexo. ” Logo em seguida, ciente do jogo de forças e de
poder ao qual estava prestes a ser submetido, diante do desafio de entrar nessa “ordem
arriscada do discurso” (FOUCAULT, op.cit. p.7), o secretário estabelece de imediato
uma separação, uma distinção, entre sua opinião pessoal sobre as práticas do jogo e da
prostituição na Boca do Lixo e seu dever enquanto agente do Estado, como podemos
observar:
Faço absoluta questão de frisar que, como secretário de Estado, coíbo
a contravenção penal a qualquer preço. Todavia, como cidadão,
homem particular, sou pela existência legal de ambos. Em todos os
regimes, em todos os tempos, jogo e questão sexual foram duramente
combatidos, no entanto, tidas como autentico calcanhar de Aquiles de
todos os governos. ( Diário da Noite, 09-08-1963, p.5)

Em seguida, o secretário se despe totalmente da postura de cidadão com opinião


progressista em relação ao jogo e à prostituição para descrever em detalhes como se
daria sua atuação na repressão aos praticantes da Boca do Lixo. Nessa descrição recorre
a termos utilizados pelos repórteres policiais para se referir aos habitantes do local e ao
seu cotidiano, como por exemplo, o uso das palavras “degradante”, “intolerável” e
“desajustadas”, como podemos observar:
Como auxiliar de um governo que me honrou com a direção desta
importante pasta, cumpre-me combater a contravenção e o crime. Isso
o farei de qualquer forma. Quando assumi a SSP tive a cautela de
mandar filmar e fotografar o aspecto degradante da chamada “Boca do
Lixo”. O espetáculo triste de filas de mulheres prostradas na via
publica em atitude de deboche vai acabar. Até aqui, o delegado Milton
Martins de Lara, titular da Delegacia de Costumes, autoridade das
mais dignas, tem se portado como um herói na repressão aos delitos
atinentes à sua Especializada, em fato dos parcos recursos do que ela
dispõe. Todavia, tão logo aquela Delegacia receba os reforços que
objetivo fornecer, espero que os lamentáveis espetáculos daquelas
ruas desapareçam. O delegado Milton Martins de Lara continua a
merecer a minha confiança. Estamos em plena batalha e, em tal fase,
não se troca de comando. Acredito, também, que a Delegacia de
Costumes, uma das mais importantes da nossa Polícia especializada,

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elimine, quando estiver devidamente equipada, o intolerável e


conhecido “trottoir” de mulheres desajustadas. (Diário da Noite, 09-
08-1963, p.5).

Ele encerra a entrevista descrevendo a situação e a estrutura utilizada pela


polícia para reprimir esse tipo de contravenção. Não sem antes, apoiar o seu enunciado
na incorporação de estudos realizados e no planejamento das ações de repressão que
seriam desenvolvidas. No final, faz questão de lembrar a responsabilidade e o papel da
imprensa no sentido de fiscalizar e pressionar o Estado para que tome as providências
cabíveis:
Até aqui a nossa posição foi de estudos e de observação, agora, com
tudo devidamente planejado, vamos avançar no sentido da trincheira
do inimigo comum, isto é, a delinquência. Em cada posto chave da
Polícia coloquei o homem adequado. Todos estão colaborando com
dedicação. As delegacias especializadas, as distritais, as regionais do
interior do Estado passaram a funcionar entrosadamente. Espero que a
imprensa continue firme na sua função fiscalizadora. As portas da
minha secretaria estão abertas aos jornais. Recebo a critica como
subsidio ao meu trabalho, nunca como ofensa à minha administração.
(Diário da Noite, 09-08-1963, p.5)

Sobre essa confusão que é a leitura diária de um jornal, o antropólogo Bruno


Latour faz uma descrição interessante, e a partir de uma notícia sobre o “aumento do
buraco na camada de ozônio” ele descreve que no mesmo artigo encontrou várias falas,
desde opiniões de químicos à de executivos de empresas produtoras de pesticidas,
passando por chefes de Estados e ecologistas, além é claro, da visão do próprio jornal
através do jornalista designado para produzir a matéria principal. Diz ele: “O mesmo
artigo mistura, assim, reações químicas e reações políticas [...]. As proporções, as
questões, as durações, os atores não são comparáveis e, no entanto, estão todos
envolvidos na mesma história. ” Ele conclui seu raciocínio de forma cômica e irônica:
“Se a leitura do jornal é a reza do homem moderno, quão estranho é o homem que hoje
reza lendo estes assuntos confusos. Toda cultura e toda natureza são diariamente
reviradas aí.”(LATOUR, 1994, p.7)
O produto das reportagens produzidas no jornal é nomeado por “informação”, o
historiador Frank Ankersmit diz que causa estranhamento as metáforas utilizadas para
se referir a este conceito, como se a informação fosse algo físico: “A informação ‘flui, ’
‘se move’, ‘se espalha, ’ é ‘trocada’, é ‘guardada’ ou é ‘organizada. ’ (ANKERSMIT,
ano, p.120). Voltando ao debate sobre a linguagem do jornalismo policial, lembramos
que os chavões e o lugar-comum são artefatos da escrita jornalística, orientados, em

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muitos casos, pelos manuais de redação dos jornais; eles cumprem uma função de
sobrepor a descrição dos fatos, o que dá aos títulos das reportagens uma materialidade
própria, como diz Tognolli:
No caso de um crime já disponho de todas as aberturas de matérias
possíveis realizadas pelo jornalismo policial. No caso de economia
tenho todo um componente técnico e reprodutível da linguagem a meu
serviço; os candidatos que “não alçam voo”, os partidos que “não
aquecem as turbinas” [...] para descrever a briga entre dois políticos,
me basta adotar todo o referencial da linguagem bélica: os “flancos
expostos”, os “pelotões de fuzilamento” e o “entrincheiramento” de
políticos num determinado partido.”(TOGNOLLI, ano, p.161)

Conforme apresentado no decorrer do artigo, a cobertura dos jornais analisados


funcionou como suporte discursivo de aparelhos do Estado, instituições sociais e de
saberes, que viam nas práticas “marginais” desenvolvidas no cotidiano da Boca do Lixo
uma ameaça para os valores e costumes que queriam fazer circular no imaginário
cultural da época. Para isso, se utilizaram das diversas seções dos jornais analisados,
transportando para suas páginas os discursos de diferentes campos do saber, sempre na
direção de esquadrinhar, separar, estereotipar e estigmatizar o cotidiano do local e seus
praticantes. Frisando sempre a sujeira, a violência, a promiscuidade, utilizando sempre
adjetivos negativos, como se o cotidiano dessas pessoas fosse o tempo inteiro
perpassado por essa aura sombria, como se no local, não existisse outras formas de se
relacionar que não as descritas nas páginas dos jornais.

AUTOR
Graduado em História pela UNEB - Universidade do Estado da Bahia (2010). Mestre
em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2015) e Doutorando em
História pela mesma instituição. Atualmente dedica-se à pesquisa em História Cultural,
nas seguintes áreas de interesse: história dos marginais, urbanidade, heterotopias, escrita
de si e estética da existência.

REFERÊNCIAS
Filmes:
SGANZERLA, Rogério; O Bandido da Luz Vermelha. Vídeo Interamericana, 1968.

Jornais:
A Platéia – 1940
A Capital – 1962
Diário da Noite – 1951/1963

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Bibliografia:
BARROS, José D’Assunção. Fontes Históricas – um caminho percorrido e perspectivas
sobre os novos tempos. In: Revista Alburquerque. Vol.3, n.1, 2010.
BENATTE, Antônio Paulo. O centro e as margens: boemia e prostituição na “capital
mundial do café”(Londrina 1930-1970). Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná, 1996.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FONSECA, Guido. História da prostituição em São Paulo. São Paulo: Resenha
Universitária, 1982.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio.
São Paulo: Loyola, 1996.
GUIMARÃES, Valéria. “Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem
para o século XX” IN: Revista Brasileira de História (Impresso), v. 27, p. 323-
349, 2007.
HARA, Tony. Saber Noturno: uma antologia de vidas errantes. Tese de Doutorado
apresentado ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 2004.
TELES, Angela Aparecida. Ozualdo Candeias na Boca do Lixo: a estética da
precariedade no cinema paulista. São Paulo, EDUC: FAPESP, 2012.
LATOUR, Bruno. 1994. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica.
Trad. Carlos Irineu da Costa.Rio de Janeiro: Ed.34, 1991.
MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran
Barbosa. Bauru: Edusc, 2007.
PORTÃO, Ramão Gomes. Criminologia da Comunicação. São Paulo: Traço Editora,
1980.
RAGO, Margareth. Os prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade
feminina em São Paulo (1980 – 1930). São Paulo: Paz e Terra, 1985.
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de
São Paulo. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP, 2003.
TOGNOLLI, Claudio Julio. Sociedade dos Chavões: presença e função do lugar-
comum na comunicação. São Paulo: Escrituras Editora, 2001(Coleção Ensaios
Transversais).

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Artigos e ensaios

O CORPO POÉTICO DA ATRIZ/AUTORA HELENA


IGNEZ EM ‘A MULHER DE TODOS’
Tatiana Trad*

RESUMO: Este artigo deriva da minha pesquisa de mestrado onde investiguei as


estratégias de invenção da atriz Helena Ignez em alguns filmes do Cinema Marginal
brasileiro. Lançar um olhar sobre o corpo poético da atriz no filme A mulher de
todos(1969), onde interpreta Angela Carne e Osso, é tentar compreender os caminhos
percorridos por Helena Ignez em sua elaboração de uma interpretação autoral. Da
parceria da atriz com o diretor do filme e seu marido Rogério Sganzerla, surgiu Angela
Carne e Osso, uma personagem transgressora, original e que se tornou um marco na
interpretação do Cinema Brasileiro pelas rupturas e avanços que traz na representação
da mulher. Este artigo reflete sobre o papel da performance nas inovações que a atriz
apresenta.
Palavras-chave: Helena Ignez, Cinema Marginal, interpretação.

Trabalhar a poética colaborativa cinematográfica e investigar os momentos de


criação do filme como integrantes e inerentes à composição de sua forma final e à sua
recepção estética, pressupõe elevar o ator ao estatuto de co-autor de determinados

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planos, sequências e até de um filme por inteiro. Partindo do lugar da atriz/autora


Helena Ignez, faço uma breve análise da personagem Angela Carne e Osso do filme A
Mulher de Todos(1969) dirigido por Rogério Sganzerla. Angela Carne e Osso é um
marco na cinematografia nacional por romper com o modelo de mulher imposto pelo
patriarcado e ampliar as possibilidades de identidades femininas no cinema brasileiro. A
performance da atriz foi determinante para o filme alcançar o resultado obtido.
Em A Mulher de Todos, a atuação de Helena Ignez é parte integrante da
construção da narrativa fílmica; a performance, ela mesma, é a força do filme. O texto
lido, ganha uma forma única na voz e no corpo da atriz. Rogério Sganzerla,
influenciado por Bergman e Godard, acreditava na liberdade de criação do ator/atriz e
tinha em Helena Ignez o corpo preparado para cada expressão requerida pela
personagem. O aspecto visual da atriz se torna a única forma possível de existência para
Angela Carne e Osso. Jovem, radicalmente loira em terra tupiniquim, corpo bonito,
forte e sensual. Poderia ser apenas uma mulher sedutora, mas era muito mais, era “a
mulher de todos”.
O filme é uma comédia e mostra as aventuras de uma mulher vampiresca,
adúltera, sedutora, dona de si, moderna, rebelde, casada com o empresário do ramo das
comunicações, editor de história em quadrinhos Dr. Plirtz (Jô Soares). Angela Carne e
Osso está em busca de amantes que queiram lhe acompanhar à Ilha dos Prazeres, um
lugar onde tudo é permitido. O filme se vale da linguagem da história em quadrinhos, da
pop art, da colagem e do humor das chanchadas para fazer uma crítica direta ao
machismo, ao sistema e a cultura de massa. O texto falado pela atriz ganha formas
muito particulares através de sua voz e corpo, resultando em uma performance
absolutamente original.
No início do filme, um enquadramento em contra-plongé mostra Angela Carne e
Osso chutando Flávio Asteca em uma escada rolante. Angela não para de chutá-lo e
agredi-lo. Ao mesmo tempo em que o agride, o beija. É ela quem toma a iniciativa.
Causa um estranhamento ao espectador, ver esta sequência onde Angela chuta, empurra,
puxa, grita, xinga, abraça e beija Flávio Asteca ao mesmo tempo. São sentimentos
extremamente opostos. Um corpo feminino que transita entre a histeria e a sedução,
apresentando-nos uma mulher agressiva e de comportamento oscilante.
O corpo poético da atriz desenha-se entre gestos contidos e explosões. A força
da personagem também é reforçada por um corpo firme em suas ações e oscila entre a
delicadeza feminina e a altivez tão característica do gênero masculino. A personagem se

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mostra ao espectador como um corpo autônomo, a exemplo da cena em que Angela está
na praia fumando um charuto (elemento fálico que irá lhe acompanhar ao longo de todo
o filme) e ajusta a camisa molhada e transparente no corpo, com o intuito de valorizar e
evidenciar os mamilos aparentes. Nesta cena Angela é dona do próprio corpo, está em
busca de diversão e prazer.
Não é possível separar a aparência física de Helena da composição física da
personagem. Angela Carne e Osso é em certo sentido a própria Helena Ignez. A
atriz/autora é conduzida por uma narrativa cômica que se utiliza dos exageros, dos
excessos, do absurdo e do cafona como elementos de composição estética e cênica para
dar corpo e voz a uma mulher única. A poética do corpo e da voz brota dos extremos. O
corpo que agride, o corpo que sente e dá prazer, um corpo ambíguo e material.
A personagem caracteriza diferentes mulheres para diferentes homens, porém
sempre em posição de domínio. A atriz faz uso de diversos figurinos, o que contribui
para essa demarcação de personalidades. O corpo de Angela Carne e Osso veste
símbolos codificados como bota de cowboy, vestidos curtos, mas também se veste com
roupas masculinas, vestindo camisa de manga comprida, gravata , chapéu e calça
comprida, masculinizando a personagem nas cenas em que desempenha ações atribuídas
somente aos homens na época, como dirigir um carro , dar carona para um homem na
estrada, se relacionar com outra mulher ou pilotar uma moto. O diretor se apropria de
elementos e símbolos de poder do universo masculino (como o charuto, por exemplo)
para garantir a Angela Carne e Osso um patamar de igualdade com os homens.

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Os trajes usados também influenciam em sua movimentação contribuindo para a


composição gestual da personagem. Nas cenas de dança, a coreografia intuitiva e de
improvisação, interage diretamente com o olhar do diretor, uma vez que a atriz brinca
com a câmera, ora se posicionando mais a frente ora mais afastada. Não tendo o diretor
total controle sobre a cena/performance.
Outra característica que aponta uma rasura no padrão de performance da
narrativa clássica hollywoodiana, é o fato de que Angela Carne e Osso é uma mulher
vampira e sádica. Em uma das cenas , ao beijar o parceiro Armando, queima-o com o
charuto e morde seu pescoço até sangrar. A cena dá um tom surreal à narrativa,
principalmente porque não é um código que se repete. Angela Carne e Osso rompe com
o convencional e ataca o parceiro com violência, deliciando-se com o sangue nos lábios.
É uma cena de horror, diferente das cenas de amor convencionais. Uma mulher
dominadora que se sente provocada e reage de forma agressiva. Essa cena é um dos
extremos no filme. O espectador não espera que algo assim aconteça, pois não há
nenhum código presente em cenas anteriores que indique essa possibilidade.
A atriz/autora tem em seu corpo e voz os instrumentos que a permitem fazer essa
transição entre a sedução e o horror. O berro é uma característica marcante do cinema
marginal e Angela Carne e Osso berra, grita. Esse grito é um grito da violência, da dor
de ser mulher, de ser jovem e artista durante o regime militar, mas este grito de
Angela/Helena, também é o grito da mulher discriminada, da mãe que não pode criar a
própria filha, são gritos provenientes também das angústias pessoais da atriz.
A visceralidade da encenação de Angela Carne e Osso se vale do improviso
como estratégia de combustão. O corpo, educado pelas técnicas é capaz de transcender
as convenções de interpretação cênica, criando um espaço/tempo próprio onde a mulher
e sua subjetividade é mais forte. De forma totalmente autônoma e independente,
Angela é protagonista de sua própria história. É ela quem está no comando e quem
decide de que forma dispõe seu corpo no tempo/espaço.
Angela Carne e Osso é extremamente abusada, é agressiva, grita com os
homens, mas também os ama, nunca sendo apenas uma presença sedutora. Ela é aquela
que não é submissa aos homens, que reage a violência com violência, que é dona do
próprio corpo. Helena Ignez fez da sinceridade do “olhar” de Angela Carne e Osso, a
síntese de seu dinamismo incomum.
Helena Ignez, a atriz e a autora encontram-se polarizadas em extremos corporais
no que diz respeito a postura da atriz frente à câmera. Se de um lado, temos a

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imobilidade total ou parcial quando aparecem as figuras da pose e da sedução; do outro,


temos a mobilidade excessiva e frenética do satélite e da histeria. Neste caso, o satélite é
uma das funções desempenhadas pela personagem, que às vezes parece orbitar em torno
dos demais personagens, onde a movimentação de Angela Carne e Osso em algumas
cenas sugere um estado de confusão ao espectador. A aproximação aliada ao
distanciamento brecthiano sugere uma atuação bastante explosiva.
A verborragia da personagem é uma característica já presente em “O Bandido da
Luz Vermelha”, esse excesso de texto, que é a marca geral dos atores nos filmes
marginais de Sganzerla, se apoia em diálogos e situações que escapam à transmissão de
um sentido narrativo através das palavras. Os personagens repetem assim,
exaustivamente ao longo dos filmes, frases previamente escritas pelo diretor, mas que
variam de entonação, ritmo e intensidade segundo a escolha de quem interpreta. Mais
do que formar diálogos, essas frases que muitas vezes soam como slogan publicitário,
servem mais para extravasar a tensão de um personagem do que estabelecer a
comunicação entre ela e seu parceiro de cena. Os diálogos de Angela Carne e Osso às
vezes parecem monólogos; o texto escrito, a entonação, o gestual, muitas vezes não
indicam claramente com quem ela fala; existe um distanciamento proposital dos outro
personagens.
Através do método de improviso, pulsão, atuação e construção operam em
conjunto ao mesmo tempo. Neste processo marcado pela ausência de fronteiras, o livre
trânsito da atriz possibilita uma performance onde o “corpo” é o grande acontecimento;
Helena Ignez dispôs de seu corpo como um corpo político a serviço da anarquia. Angela
Carne e Osso promove um rompimento radical com a norma e o realismo no que tange
o universo da encenação/atuação no cinema brasileiro.
A questão da pose, do “aparecer” sobre o “parecer”, é um elemento presente na
narrativa do filme, principalmente nos filmes da produtora Belair, onde ao invés de
buscar a verossimilhança, os atores simplesmente aparecem diante das câmeras (o
“aparecer”, o “mostrar- se”, o “estar lá”), acentuando o deboche típico do Cinema
Marginal.
A forma de realização do filme torna-se fundamental para que ocorram rupturas
no modo de representar. Rogério Sganzerla cria um espaço de maior liberdade para a
atriz, que permite que o acontecimento/performance se modifique, se altere, se construa
e desconstrua no exato momento em que é registrado. É dentro deste espaço, que ocorre
sempre no presente, que surge a possibilidade de alteração nos modos de representação,

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onde se torna possível romper a reprodução de modelos hegemônicos a partir da


interferência da atriz/autora.
Ao romper com a repetibilidade da forma de representar,
nos deparamos com a força do “ato performativo”. Para compreender esta força é
necessário adentrarmo-nos ao campo da linguagem. Segundo J.A. Austin (1998), a
linguagem não se limita a proposições que simplesmente descrevem uma ação, uma
situação ou um estado de coisas. Algumas proposições não são apenas descritivas mas
fazem com que alguma coisa aconteça. Ao serem pronunciadas, essas proposições
fazem com que algo se efetive, se realize. A estas proposições, Austin chama de
“performativas”. São exemplos: “Declaro estado de guerra. Eu vos declaro marido e
mulher”. (AUSTIN apud SILVA, 2007, p.93).
Segundo Austin (1998), no universo da comunicação, muitas sentenças
descritivas acabam funcionando como performativas, como: Maria tem dificuldade de
raciocinar. Embora descritiva, em um sentido mais amplo, pode funcionar como
performativa na medida em que sua repetição produz o fato, pois a receptora da
informação internaliza a sentença, que pela repetição a leva a acreditar que realmente
tem dificuldade de raciocinar.
Em termos de produção de Identidade, é sobretudo da possibilidade de repetição
que vem a força que um ato linguístico desse tipo tem no processo de produção de
identidade. (AUSTIN apud SILVA, 2007, p.94)
Analisando o conceito de “performatividade/performance”, numa perspectiva
mais ampla, para a filósofa e estudiosa de gênero Judith Butler (1999), a mesma
repetição que garante eficácia dos atos performativos e que reforçam as identidades
existentes pode significar também a possibilidade da interrupção das identidades
hegemônicas. A repetição pode ser interrompida, pode ser questionada e contestada. É
nessa interrupção que residem as possibilidades de instauração de identidades que não
representem simplesmente a reprodução das relações de poder existentes. (BUTLER
apud SILVA, 2007, p.95)
É a partir da performance que a atriz Helena Ignez rompe com a repetição de um
padrão. A liberdade no processo de construção das personagens possibilitou a atriz
explorar os extremos das potencialidades humanas, através do corpo e da voz, criou
nuances variadas, imbuídas de força e particularidades. A sua forma de atuar choca, é a
anti-heroína do cinema brasileiro.
O papel da atriz/ autora como ativista feminista que criou uma nova concepção
de atuação através da estética marginal, trouxe em cena uma mulher que quebra tabus
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falando abertamente sobre o aborto, sexualidade, que é também protagonista da


revolução, que questiona os valores do seu tempo, que propõe uma reflexão mais
profunda nas questões relacionadas ao gênero feminino. Num período de ditadura e
censura, Helena Ignez transgrediu as normas, incomodou os de direita e os da esquerda
também. Ela era o retrato do avacalho feminino, uma clara insatisfação ao regime
da ditadura civil e militar e suas consequências. Ela criou um novo estilo de atuar:
debochado, extravagante, sedutor e original. A partir daí, Helena atuou em diversos
filmes de Rogério Sganzerla.
Teóricas feministas do cinema como Laura Mulvey ou Teresa de Lauretis
acreditavam que o cinema independente poderia ser o espaço de subversão do papel
feminino comumente representado.
No ensaio “Visual pleasure and narrative cinema”, de 1975, Laura Mulvey
convoca Lacan e Althusser para o projeto feminista ao afirmar o caráter genérico da
narrativa e do ponto de vista do cinema hollywoodiano clássico. Para Mulvey. O cinema
coreografa três tipos de “olhar”: o da câmera, o das personagens olhando-se umas às
outras e do espectador induzindo a identificar-se voyeristicamente com um olhar
masculino sobre a mulher. O homem é o condutor do veículo narrativo e a mulher o seu
passageiro. O prazer visual no cinema reproduzia assim uma estrutura em que o
masculino olhava e o feminino era para ser olhado, uma estrutura binária que espelhava
as relações assimétricas de poder operantes no mundo social real. `As espectadoras
femininas não era reservada outra escolha senão a de identificar-se com o protagonista
masculino ativo, ou com a antagonista feminina passiva e vitimizada.

No caso do filme A Mulher de Todos, temos, além dos olhares masculinos, dois
olhares femininos: o da atriz para o marido/diretor/ público, e a possibilidade do olhar
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do público feminino que pode se identificar de forma positiva com a protagonista.


Existe aí a novidade do olhar feminino, defendido por Ann Kaplan, como sendo uma
das maneiras de se alterar as narrativas fílmicas, e que pode possibilitar brechas contra o
patriarcado e a construção de novos olhares. Ainda que o olhar feminino desta cena não
altere de forma significativa a narrativa como um todo, existe aí uma abertura de espaço
para que novos olhares se configurem, assim como a possibilidade de uma identificação
feminina com a protagonista.
A Mulher de Todos é um filme que merece destaque por sua originalidade e
pelas inovações da interpretação proposta por Helena Ignez, inclusive no
comportamento da personagem. O filme causou um grande impacto no meio intelectual
e levou diversos cineastas a refletirem. Para Jean Claude Bernardet[1]:.
A mulher de todos é um ato de liberdade quase total, como se o
Sganzerla tivesse se libertado dessa questão de desconstrução, de
paródia e se dirigir ai pra uma forma muito surpreendente de narrativa,
de personagens, de interpretação, de maneira de dizer o texto, de
montagem, de absolutamente tudo. No Bandido, e mais ainda na
Mulher de Todos, Helena Ignez rompe absolutamente com essa forma
de representação realista. Eu acho que ela foi realmente muito
audaciosa. Uma das inovações da Mulher de Todos é a forma de
trabalho da Helena Ignez como atriz que se apoia muito mais na
pessoa dela, na competência dela, no potencial performático dela do
que na composição da personagem.

Como Bernadet aponta acima, um fator determinante que possibilitou rupturas


na forma de representar é a própria capacidade de Helena Ignez e o seu potencial de
encenação. Sua bagagem pessoal aliada a seu potencial criativo, sobrepõe-se a rigidez
de uma composição prévia da personagem.
Sob o ponto de vista do feminismo, Bernadet acrescenta que naquela época
mulheres com caminhos muito diversos passam a fazer afirmações surpreendentes. Para
ele, não se pode pensar em Helena Ignez sem pensar em Leila Diniz grávida, pois
ambas são contemporâneas e não são fatos isolados. Surge a pílula, despontam colunas
semanais com artigos sobre a libertação da mulher, comportamento e etc. Para
Bernardet, dentro deste contexto de libertação e ruptura, Helena Ignez é a atriz de sua
época que foi mais longe, pois ao reunir esses elementos de empoderamento feminino
ao nível da interpretação diante da câmera, tornou possível o surgimento de Angela
Carne e Osso, por exemplo. Jean Claude Bernardet considera “A Mulher de Todos” um
filme inovador e a performance da atriz Helena Ignez única no cinema brasileiro.

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A Mulher de Todos trouxe avanços para o cinema brasileiro em diversos


aspectos. Existe um consenso entre autores/críticos do cinema brasileiro quanto à
importância fundamental do sujeito Helena Ignez na atuação e co-criação da
personagem, a performance de Helena Ignez é o elemento de força da personagem.

AUTORA
* Tatiana Trad é Mestra em Cultura e Sociedade pela UFBA e integrante do grupo de
pesquisa em Gênero, Cultura e Mídia “MIRADAS” / UFBA, coord. Pela Profa. Dra.
Linda Rubim.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de
Janeiro: Artemídia; Rocco, 1995.
LAURETIS, Tereza de. Alice doesn’t: feminism, semiotics, cinema: an introduction.
London: themainillanpress, 1978
LAURETIS, Tereza de. Technologies of Gender: Essays on Theory, Film, and Fiction.
Bloomington: Indiana University Press, 1987 and London: Macmillan, 1989.
MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. Original Published –
Screen, v.16, n. 3, p. 6-27, Autumn, 1975
NETTO, Tatiana Trad. Helena Ignez: descolonizando olhares “estratégias de invenção
na representação da mulher no cinema marginal brasileiro". Dissertação, UFBA,
Salvador, 2016.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 7. ed.-
Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

NOTAS
[1]
BERNADET, Jean Claude. A Mulher de Todos-Ocupação Rogério Sganzerla. Itaú Cultural,2010.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Fd9u_bJ9XHY> Acesso em 17/04/2015

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Artigos e ensaios

PRÁTICAS DISCURSIVAS ECONÔMICAS E


SOCIOCULTURAIS SÃO COMPATÍVEIS?
Rogério Faé*

RESUMO: Os discursos governamentais frequentemente justificam suas ações com


base na capacidade financeira para execução. Ao longo das últimas décadas nos
acostumamos a uma prática discursiva que atribui à eficiência e à competitividade no
mercado o suporte econômico que, por consequência, cria as condições para que
possamos melhorar a qualidade de vida, seja individual, seja da população em geral.
Entretanto, ao atrevermo-nos a um olhar diferente encontramos práticas discursivas
desvalorizadas ou negadas em uma batalha de saber-poder que busca manter a
legitimidade das ideias que predominam. Razão pela qual, este texto busca fazer um
resgate de algumas das condições que possibilitaram o predomínio, na atualidade da
sociedade brasileira, da lógica econômica sobre os aspectos socioculturais.
Palavras-Chave: Práticas Discursivas, Foucault, Crescimento Econômico.

INTRODUÇÃO
Vivemos em um contexto no qual está dado por certo que os aspectos
econômicos são determinantes do contexto sociopolítico em que vivemos. Os discursos

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governamentais frequentemente justificam suas ações com base na capacidade


financeira para execução. Ao longo das últimas décadas nos acostumamos a uma prática
discursiva que atribui à eficiência e à competitividade no mercado o suporte econômico
que, por consequência, cria as condições para que possamos melhorar a qualidade de
vida, seja individual, seja da população em geral.
Entretanto, ao atrevermo-nos a um olhar diferente encontramos práticas
discursivas desvalorizadas ou negadas em uma batalha de saber-poder que busca manter
a legitimidade das ideias que predominam. Razão pela qual, este texto busca fazer um
resgate de algumas das condições que possibilitaram o predomínio, na atualidade da
sociedade brasileira, da lógica econômica sobre os aspectos socioculturais em termos
governamentais.
Em um primeiro momento, será feita uma revisão de alguns elementos da
teoria foucaultina que darão suporte à análise. Na parte seguinte, as ideias de Celso
Furtado serão trabalhadas entendendo-as como reflexivas em relação ao contexto em
que ele se encontra. O autor, em constante autocrítica, faz emergir práticas discursivas
para no momento seguinte desconstruí-las e reconstruí-las parcialmente. Processo que
dá margem a vários entendimentos e que cria as condições para a posterior produção
discursiva de autores tanto de direita como de esquerda. A seguir será feita uma rápida
aproximação das formações discursivas abordadas em relação ao momento atual e, por
fim as considerações finais.

FOUCAULT E AS PRÁTICAS DISCURSIVAS


Foucault (2000, p. 55) argumentou que o discurso é um conjunto de enunciados
que não somente designa as coisas, mas produzem-nas, e deve ser visto como prática(s)
que formam “sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são
feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas.
É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é
preciso fazer aparecer e que é preciso descrever”.
O poder, por sua vez, se constitui através de práticas discursivas baseadas em
saberes próprios, nos quais ganha importância o conceito de corpo político, que é
entendido como um conjunto dos elementos “(...) materiais e das técnicas que servem de
armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de
poder e saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de
saber” (FOUCAULT, 1987, p. 30).

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Entretanto, mesmo considerando imprescindível considerar a produção anterior


à terceira fase de Foucault, é necessário frisar que a ênfase da última etapa no processo
de subjetivação, para Deleuze (1998, p. 129-130) foi resultado de um “(...) impasse em
que o próprio poder nos coloca, na nossa vida como no nosso pensamento (...). E só
haveria saída se o de-fora fosse apanhado num movimento que o desvia da morte. Seria
como que um novo eixo, simultaneamente distinto do do saber e do do poder.
Eixo que não invalida os outros, mas os impede de ficarem fechados,
entendendo a própria “(...) motivação psicológica não como a fonte, mas como o
resultado de estratégias sem estrategistas (...)” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p.121)
que leva a disposições, manobras, táticas, técnicas e funcionamentos, que emergem no
interstício de uma rede de relações sempre tensa e em atividade.
Foucault (1994, p. 10) define este terceiro eixo como “(...) o estudo dos modos
pelos quais os indivíduos são levados a se reconhecerem como sujeitos (...)”. Ou seja, a
compreensão sobre as maneiras pelas quais os indivíduos podem construir a experiência
deles mesmos enquanto sujeitos, constituindo-se e reconhecendo-se como tal, ou ainda,
através de quais jogos de verdades.
Ganharão importância, neste contexto, as razões pelas quais os cuidados éticos
– localizados espacial e temporalmente – adquirem importância, questionando sobre o
porquê de determinadas práticas discursivas e, principalmente, sobre as razões desta
formatação das relações de força. Buscando, assim, as formas e condições do pensar,
pelo homem sobre o que ele é, e sobre o mundo em que se insere.
Valorizando, assim, o conceito de técnicas de si, que se caracterizam como
conjuntos formados por práticas que definem a estética da existência, ou seja, práticas
reflexivas e voluntárias através das quais “(...) os homens não somente se fixam regras
de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e
fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e respondam a
certos critérios de estilo”. (Foucault, 1994, p.15)
Foucault (1994, p. 15-16) ao buscar as razões de determinadas
problematizações éticas, parte das práticas de si e, sem descaracterizar os eixos
anteriores, os atualiza e redimensiona: “a dimensão arqueológica da análise permite
analisar as próprias formas da problematização; a dimensão genealógica, sua formação a
partir das práticas e de suas modificações”.
Na sequência do texto, serão utilizados alguns elementos da construção de
Foucault no que tange à estética da existência. Para este estudo que busca olhar para o

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passado vislumbrando as condições que possibilitaram o contexto presente, no que se


refere à predominância do econômico sobre as esferas socioculturais no Brasil, serão
analisados aspectos da prática discursiva de Celso Furtado ao estudar em termos
históricos a formação socioeconômica brasileira. A escolha por centrar o estudo em
Celso Furtado se justifica por seu reconhecimento tanto por autores de esquerda, quanto
por autores de direita, que utilizam parte de sua construção discursiva de forma muitas
vezes descontextualizada (VIEIRA, 2007). Entretanto, algumas premissas permanecem
na base de quase todos os autores, mesmo que negadas por técnicos que predominam no
contexto político gerencial da atualidade.

O PROCESSO DE FORMAÇÃO SOCIOECONÔMICO BRASILEIRO


Antes de iniciar o texto é importante salientar que ao buscar compreender os
principais aspectos da formação econômica brasileira é necessário relembrar que a
construção de qualquer autor responde a fatores perceptuais localizados em termos
geográficos e temporais que, ao reinterpretar o passado a partir de novas variáveis, não
se está apenas abrindo alternativas para o futuro, mas empreendendo a reconstrução da
história pretérita (FOUCAULT, 2000). Nesse sentido, a produção de um mesmo autor
pode, também, expressar diferentes argumentos ao longo do tempo.
As práticas discursivas de Celso Furtado ganharam visibilidade na primeira
metade da década de 1950, época em que grupos modernizadores questionavam as
práticas oligárquicas ligadas à agricultura exportadora. Sua obra foi fortemente
influenciada pela construção político-social que emergiu na década de 1930, na qual
[...] o historicismo alemão, o culturalismo de Franz Boas, a sociologia
de Max Weber e o marxismo, passaram a informar, em novas bases, o
pensamento social do País. Foi, aliás, esse sopro de radicalismo
intelectual o responsável por algumas obras essenciais que [...]
descobriram o Brasil para os brasileiros, nos idos de 1930 – Casa
Grande e Senzala, de Gilberto Freire; Formação do Brasil
Contemporâneo, de Caio Prado Junior; e Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda. (VIEIRA, 2007, p. 16)

Em resultado dessa efervescência intelectual emergiram as bases para práticas


discursivas que buscavam valorizar a identidade brasileira. Esses projetos almejavam
fazer frente à homogeneização sociocultural de matriz eurocêntrica (VIEIRA, 2007).
Naquele contexto, Furtado (1961, p. 241-242) argumentou que a ideia de
desenvolvimento, unicamente identificada à lógica de crescimento econômico,

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desconsiderava a dimensão histórico-social que a condicionava. Assim como, criticou a


simples reprodução de padrões exógenos no contexto nacional.
O autor defendeu que a Revolução Industrial provocou transformações nos
padrões produtivos em escala mundial e, principalmente, que o discurso de
eficientização da produção somente ganhou dinamismo através da elaboração de
técnicas comerciais que articulavam oferta e procura, assim como da construção de
novas classes sociais ligadas à produção industrial, distribuição e comercialização das
manufaturas.
Se, nos países em que o processo de industrialização primeiro se fez presente,
houve íntima interdependência entre os fatores tecnológicos e sociais na construção da
realidade nacional, o mesmo não se podia afirmar em relação aos países da América
Latina. Nesses últimos, o processo de industrialização, ao ser incentivado, teve como
principal fator motivacional o aperfeiçoamento da produção ligada à exportação, ou
seja, caracterizou-se como complementar ao processo experimentado nos países
centrais. Essa lógica, em geral, desconsiderou as necessidades das nações que
compunham as linhas comerciais em posição de importadoras de manufaturas e
exportadoras de bens primários.
O resultado, para as economias Latino-Americanas, foi “[...] quase sempre a
criação de estruturas híbridas, uma parte das quais tendia a comportar-se como um
sistema capitalista, a outra, a manter-se dentro da estrutura preexistente. Esse tipo de
economia dualista constitui, especificamente, o fenômeno do subdesenvolvimento
contemporâneo” (FURTADO, 1961, p. 253). Nesse sentido, o subdesenvolvimento
experimentado pelos países da América Latina teria provocado a reprodução, em âmbito
regional interno, das desigualdades socioeconômicas entre países. Uma vez iniciado
esse processo, “[...] sua reversão espontânea é praticamente impossível” (FURTADO,
1959, p. 331).
É necessário frisar, ainda, que contrariando as práticas discursivas que
predominavam à época e que defendiam que o desenvolvimento socioeconômico viria
da homogeneização produtiva ditada pelos países centrais, para Furtado (1961, p. 253),
o “[...] subdesenvolvimento é [...] um processo histórico autônomo, e não uma etapa
pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau
superior de desenvolvimento”.
Entretanto, a resposta de Furtado (1954), em âmbito econômico, atribuía à
industrialização substitutiva uma posição de recurso gerador de nova dinâmica que

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levaria as nações Latino-Americanas, mais especificamente o Brasil, a uma situação de


maior autonomia em relação aos países centrais. Entretanto, o que se percebeu a
posteriori é que tal lógica acabou por reproduzir as práticas discursivas pré-existentes
nos países centrais.
A industrialização por substituição de importações tinha por pressuposto
ampliação do mercado interno, via crescimento da produção e renda per capita, que
possibilitariam a participação nacional no sistema econômico internacional em
condições menos desiguais. Já o planejamento do processo de desenvolvimento, ao ser
atribuído ao Estado, teria por função reduzir a espontaneidade pressuposta à
industrialização periférica, como fator alheio a qualquer “[...] intenção consciente de
romper com os esquemas tradicionais de divisão internacional do trabalho”
(FURTADO, 1962, p. 38-39).
Vieira (2007, p. 385) argumenta que, para Furtado, “(...) somente a ação
planificadora e compensatória do Estado, guiada pela intelligentsia munida de uma
racionalidade superior, seria capaz de assegurar o interesse coletivo e, nessa medida, a
dimensão democrática que na sua teoria passa pelo desenvolvimento econômico e pela
nação soberana, finalmente construída”.
Entretanto, passada a Era Vargas (1930-1954) na qual o processo de
industrialização foi incentivado, ao contrário do que era esperado, o custo das
importações demandadas pelo processo de industrialização substitutiva foi
gradativamente evoluindo e exigindo participação crescente do capital estrangeiro,
conforme foram se ampliando as necessidades.
O próprio Furtado (2000a) fez a autocritica e identificou três estágios
sequenciais que acabavam por manter a dependência com os países centrais: a)
substituição de bens de consumo leves; b) substituição de bens de consumo duráveis; e
c) substituição de bens de produção. A passagem para níveis mais elevados de produção
interna, se, por um lado, liberava a pauta importadora, por outro, criava novas
necessidades de importação de insumos para alimentar a produção interna, fato que
tornava o equilíbrio entre as divisas oriundas da exportação e os custos advindos da
importação (de máquinas, bens intermediários e matérias-primas industrializadas)
extremamente complexo, principalmente, ao considerar a relação crescentemente
deteriorada entre produção primária e industrial (FURTADO, 2000; MARTINS, 2006).
Naquele momento, a percepção que passou a predominar era que a acumulação
seria indissociável da expansão capitalista em padrões internacionais, ou seja, seria

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parte de um processo de enriquecimento dos países centrais e da pequena elite periférica


articulada a eles. Em resposta a essa percepção ganharam força, ao final da década de
1950 e início da década de 1960, processos de resistência articulados por movimentos
sociais e sindicatos de trabalhadores que lutavam por melhores condições de vida e
renda à população em geral (BIELSCHOWSKY, 2000).
Ao constatar que a classe dirigente brasileira era passiva e intelectualmente
alinhada com práticas discursas externas, Furtado (2007a, p. 421) passou a defender a
tese de que havia falta de vontade política para mudar a realidade experimentada. Razão
pela qual passou a “[...] ver o mundo como um desafio. Fazer política é enfrentar
desafios. Não cabe esperar por soluções espontâneas. Não pode haver infraestrutura sem
política, sem planejamento”.
Entretanto, a
[...] derrota e o banimento de Furtado, em 1964, no momento em que
o capital monopolista internacional elegia o país como mais um de
seus espaços de acumulação e reprodução ampliada, exigindo para
isso o aprofundamento dos aspectos antidemocráticos do Estado
Brasileiro, era a evidência de que a burguesia industrial Brasileira,
sem nenhuma ‘ilusão heróica’, tinha feito sua escolha: ser o sócio
menor do grande capital externo. (VIEIRA, 2007, p. 390)

Considerando a prática discursiva que predominou na década de 1960,


principalmente a partir de 1964, e que salientava os limites à industrialização sob
premissas definidas em âmbito interno, Furtado (1974, p. 10) afirmou que sua formação
discursiva anterior à década de 1970 foi produzida em um contexto no qual se “[...] se
manifestavam tendências policêntricas na economia mundial [...]”. Já a produção
discursiva que começou a tomar forma teve por base a percepção da “[...] afirmação
definitiva das grandes empresas no quadro de oligopólios internacionais, a rápida
industrialização de segmentos da periferia do sistema capitalista no novo sistema de
divisão internacional do trabalho”. Para o autor, a grande empresa passou a ocupar
posição de elemento estruturador do sistema capitalista.
Razão pela qual Furtado (1974) ratificou seu discurso problematizador do
conceito de desenvolvimento que, ao ser predominantemente identificado com
formações discursivas em defesa da ampliação dos mercados, buscava a disseminação
dos padrões de consumo experimentados por uma minoria privilegiada da população
mundial. Esse olhar teria direcionado muitos dos esforços ligados ao desenvolvimento
para práticas que viam na tecnologia o principal fator de dinamismo, independente do
contexto em que se inserisse.

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Em decorrência,
Pouca ou nenhuma atenção foi dada às consequências, no plano
cultural, de um crescimento exponencial do stock de capital. As
grandes metrópoles modernas com seu ar irrespirável, crescente
criminalidade, deterioração dos serviços públicos, fuga da juventude
na anticultura, surgiram como um pesadelo no sonho de progresso
linear em que se embalavam os teóricos do crescimento. Menos
atenção ainda se havia dado ao impacto no meio físico de um sistema
de decisões cujos objetivos últimos são satisfazer interesses privados.
(FURTADO, 1974, p. 14)

Em contrapartida à ênfase tecnológica estimulada pelos centros difusores do


discurso capitalista, o autor destacou a crescente dependência dos países centrais em
relação à matéria-prima – muitas vezes advinda de recursos não-renováveis – produzida
por outros países, como fator-chave na definição política de abertura econômica,
principalmente, via disseminação de grandes empresas com tecnologias capazes de
explorar os recursos naturais, em escala planetária.
Nesse aspecto, Furtado (1974, p. 16) destacou: “[...] como a política de defesa
dos recursos não-reprodutíveis cabe aos governos e não às empresas que os exploram, e
como as informações e capacidade para apreciá-las estão principalmente com as
empresas, o problema tende a ser perdido de vista”.
Em relação à desigualdade que daí advém, o autor salientou dois fatores
mutuamente influenciáveis: a aceleração da acumulação de capital nos sistemas de
produção; e a intensificação do comércio internacional, sob condições de troca que
ampliavam progressivamente a diferença entre o valor relativo dos produtos
industrializados e dos produtos agrícolas ou matéria-prima. Assim, é a forma como esse
excedente era apropriado e utilizado que era ratificada como problema para o estudo da
formação e manutenção do sistema capitalista industrial. Em outras palavras, a ênfase
de Furtado (1974) se centrava no entendimento da dinâmica que sustentava o sistema de
divisão internacional do trabalho.
Nesse sentido, sua análise novamente recorreu aos fatos históricos que
condicionaram a formação do sistema como o conhecemos, ou seja, o projeto inicial,
inglês, que buscava concentração geográfica, logo sofreu resistência e se pulverizou na
forma de sistemas econômicos de base nacional orquestrados pelos países que, no
século passado, assumiram a liderança do processo de industrialização e, por
consequência, centralizaram as decisões econômicas em escala mundial. Posições essas
que não deixaram de se aprofundar, pois

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Como a industrialização, em cada época, se molda em função do grau


de acumulação alcançado pelos países que lideram o processo, o
esforço relativo requerido para dar os primeiros passos tende a crescer
com o tempo. Mais, ainda: uma vez que o atraso relativo alcança certo
ponto, o processo de industrialização sofre importantes modificações
qualificativas. Já não se orienta ele para formar um sistema econômico
nacional e sim para completar o sistema econômico internacional.
(FURTADO, 1974, p. 23)

Neste contexto, as indústrias nascentes se moldavam às necessidades do


mercado de forma articulada com o sistema macroeconômico e remetiam às grandes
empresas à posição de centro de decisão, com capacidade de influir na dinâmica interna
dos diversos países, em âmbitos que extrapolavam a esfera econômica. Com base nessa
visão problematizadora, à revelia das consequências do discurso econômico nas esferas
socioculturais e ambientais, o traço mais característico do capitalismo seria a
inexistência de um disciplinador geral do conjunto das atividades econômicas.
A autonomia da macroeconomia, à medida que fornecia estabilidade às
relações comerciais transnacionais, em contrapartida, liberava o Estado para direcionar
seus esforços para a esfera social. Essa última, entretanto, necessitava estar articulada
com a estratégia econômica, ou melhor, deveria oferecer atratividade ao investimento
empresarial (FURTADO, 1974).
[...] o Estado tem [...] grandes responsabilidades na construção e
operação de serviços básicos, na garantia de uma ordem jurídica, na
imposição de disciplina às massas trabalhadoras. O crescimento do
aparelho estatal é inevitável, e a necessidade de aperfeiçoamento de
seus quadros superiores passa a ser uma exigência das grandes
empresas que investem no país. (FURTADO, 1974, p. 60)

Com base na análise do último autor, as relações entre empresas e Estados


nacionais eram condicionadas pelas grandes empresas, com base em quatro fatores: (i) a
inovação, principal instrumento de expansão internacional através da introdução de
novos processos e produtos, era controlada pelas grandes empresas; (ii) a maior parte
das transações internacionais estava sob responsabilidade das grandes empresas; (iii) as
grandes empresas operavam de forma a escapar da ação isolada de qualquer governo; e
(iv) as empresas possuíam grande liquidez que fugia ao controle dos bancos centrais e
tinham fácil acesso ao mercado financeiro internacional (FURTADO, 1974).
Para o autor, tais características das grandes empresas não caracterizavam o
declínio da atividade política, mas a “[...] unidade de comando político, apoiado em um
sistema unificado de segurança” (FURTADO, 1974, p. 34), que daria suporte à lógica
macroeconômica.

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Criou-se, assim, uma superestrutura política a nível muito alto, com a


missão principal de desobstruir o terreno ali onde os resíduos dos
antigos Estados nacionais persistiam em criar barreiras entre os países.
A reconstrução estrutural se operou a partir da economia
internacional. No plano interno os Estados nacionais ampliaram a sua
atuação para reconstruir as infraestruturas, modernizar as instituições,
intensificar a capitalização, ampliar a força de trabalho, etc. Tudo isso
contribuiu, evidentemente, para reforçar a posição das grandes
empresas dentro de cada país. Mas foi a ação no plano internacional,
promovida pela superestrutura política, que abriu a porta às
transformações de fundo, trazendo as grandes empresas para uma
posição de poder vis-à-vis dos Estados nacionais. (FURTADO, 1974,
p. 36)

Nessa superestrutura que possibilitava a autonomização da esfera econômica,


sob controle das grandes empresas, um Estado nacional isolado pouco poderia fazer, até
porque a pressão por inserção no mercado mundial já não vinha apenas dos núcleos de
desenvolvimento, mas também das empresas internas a seu território. Nesse sentido,
“[...] como tanto a estabilidade e a expansão dessas economias dependem
fundamentalmente das transações internacionais, e estas estão sob o controle das
grandes empresas, as relações dos Estados nacionais com estas últimas tendem a ser
relações de poder” (FURTADO, 1974, p. 33). As principais repercussões dessa nova
dinâmica capitalista baseada em relações de saber-poder, podiam, para Furtado (1974,
p. p. 42-43) ser traduzidas por
Em primeiro lugar, [...] o processo de unificação abriu o caminho a
uma considerável intensificação do crescimento no próprio centro [...].
Em segundo lugar, ampliou-se consideravelmente o fosso que já
separava o centro da periferia do sistema, o que em grande parte é
simples consequência da intensificação do crescimento no centro. Em
terceiro lugar, as relações comerciais entre países centrais e
periféricos, mais ainda do que entre países centrais, transformaram-se
progressivamente em operações internas das grandes empresas.

As economias periféricas passaram, então, a enfrentar um processo de


agravamento das disparidades internas de forma proporcional à sua industrialização,
amplamente estimulada pelo capital advindo dos oligopólios internacionais que, ao
financiar a produção, buscavam melhores taxas de retorno aos seus investimentos. Nesta
dinâmica foi ratificada a demanda aos países periféricos por mimetismo cultural e
concentração de renda, de forma a possibilitar a uma minoria privilegiada padrões de
consumo similares aos dos países centrais, que se diferenciam daqueles experimentados
pela massa populacional.
A integração do centro permitiu intensificar sua taxa de crescimento
econômico, o que responde, em grande parte, pela ampliação do fosso

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que o separa da periferia. Por outro lado, a intensidade do crescimento


no centro condiciona a orientação da industrialização na periferia, pois
as minorias privilegiadas desta última procuram reproduzir o estilo de
vida do centro. Em outras palavras: quanto mais intenso for o fluxo de
novos produtos no centro (esse fluxo é função crescente da renda
média), mais rápida será a concentração da renda na periferia.
(FURTADO, 1974, p. 45)

Assim, a crescente influência das grandes empresas se traduzia por uma


tendência à homogeneização e disseminação dos padrões de produção e consumo
vigentes no centro, que se traduziam na periferia por um aumento da distância entre as
condições de vida de uma minoria privilegiada e a massa populacional que vive no
limite da subsistência.
Nesse sentido, as práticas discursivas em defesa do desenvolvimento criariam,
nos países periféricos, fossos que demonstrariam a insustentabilidade de sua lógica,
tanto em termos socioculturais, quanto ambientais, pelo esgotamento dos recursos não-
renováveis que fornecem o suporte ao desenvolvimento. Razão pela qual, o autor atribui
ao desenvolvimento, sob as premissas do progresso, um status de mito:
A conclusão geral que surge dessas considerações é que a hipótese de
generalização, no conjunto do sistema capitalista, das formas de
consumo que prevalecem atualmente nos países cêntricos, não tem
cabimento dentro das possibilidades evolutivas desse sistema. E é essa
a razão fundamental pela qual uma ruptura cataclísmica, num
horizonte previsível, carece de fundamento. O interesse principal do
modelo que leva a essa ruptura cataclísmica está em que ele
proporciona uma demonstração cabal de que o estilo de vida criado
pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria.
(FURTADO, 1974, p. 75)

A prática discursiva de Furtado (1974), ao defender a tese do mito do


desenvolvimento, partiu da premissa de que as estratégias desenvolvimentistas
originadas nos países centrais e que têm por base a ampliação dos mercados de produtos
e de capitais seriam insustentáveis, predatórias e desiguais. A disponibilização de
capitais pelos oligopólios empresariais teria por principal função o financiamento da
produção e consumo de forma articulada com o sistema econômico mundial e,
principalmente, a busca das melhores taxas de lucro.
O autor assumiu, assim, uma posição de denúncia em relação às estratégias
discursivas em prol do sistema produtivo e financeiro impostas pelos países
desenvolvidos, enquanto produtores de situações de desigualdade entre nações, no
interior das nações e de insustentabilidade socioambiental. As grandes empresas foram
posicionadas como estruturantes do sistema macro, a partir de estratégias discursivas de

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saber-poder, que encontram seu suporte em práticas ligadas ao sistema financeiro, em


escala mundial.
Cabe destacar que, em avaliação retrospectiva sobre a produção ligada ao mito
do desenvolvimento, Furtado (1999, p. 98-99) argumentou que
Quando escrevi O mito do desenvolvimento econômico, foi um pouco
como provocação. Eu vivia no estrangeiro, estudava o Brasil de longe,
e quis mostrar aos brasileiros que, se não encontrassem caminhos
próprios, se confiassem completamente nas forças do mercado, nas
forças internacionais que atuavam aqui, não teriam saída. Abordei o
tema de tal modo que muita gente me disse que eu andava pessimista
com respeito ao Brasil. (...) O que eu insinuava é que a classe
dirigente brasileira não tem capacidade para enfrentar seus grandes
problemas, assim como não teve capacidade para formular uma
política de industrialização nos anos 30; esta veio na contramão, mas
veio. Só tardiamente o país descobriu sua vocação para industrializar-
se.

Em busca de alternativas à situação percebida, Furtado (1998, p. 63) passou a


defender que o subdesenvolvimento não seria resolvido pela lógica de mercado, ao
contrário, somente haveria superação desta condição “através de um projeto político
voltado para a mobilização de recursos sociais, que permitisse empreender um trabalho
de reconstrução de certas estruturas”.

O NOVO E A REPETIÇÃO
Empreender uma analise das práticas discursivas predominantes em termos de
defesa do predomínio econômico na atualidade, em escala nacional, levaria a um estudo
que considerasse, por um lado, uma leitura do processo de enfraquecimento econômico
provocado externamente pela queda do valor das commodities no mercado
internacional; por outro, do processo de crise e oportunismo político em parte
provocado pelo desequilíbrio da balança comercial brasileira. O que infelizmente, por
questões de extensão do texto, foge ao alcance do trabalho.
Entretanto, é necessário salientar que Celso Furtado foi reconhecido e serviu de
inspiração aos últimos governos em escala nacional. Bresser-Pereira (2006) reconheceu
a influência da prática discursiva de Furtado em suas ideias. Cabe destacar que Bresser-
Pereira, mesmo tendo sido Ministro de Estado no governo FHC, por um lado,
argumentou que divergia das ideias do ex-presidente no que se refere à importância do
planejamento governamental; por outro, como um dos principais idealizadores da
formação discursiva ligada ao neo-desenvolvimentismo, influenciou fortemente as
práticas discursivas nos governos Lula e Dilma (MERCADANTE, 2010). É interessante

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lembrar que o livro escrito por Aloísio Mercadante (Ministro de Estado nos governos
petistas) e publicado em 2010 tem em seu título (Brasil: uma construção retomada) uma
referência a um dos últimos textos de Furtado (Brasil: a construção interrompida).
Mercadante (2010), na introdução de seu livro, pressupõe uma retomada da prática
discursiva de Celso Furtado.
No que se refere às aproximações com as ideias de Furtado é necessário
salientar que os governos petistas incentivaram práticas em defesa do mercado interno,
como foi por exemplo a política de conteúdo local (PROMINP, 2017) que define um
percentual mínimo de equipamentos e insumos de fabricação nacional com vistas ao
incentivo da competitividade da indústria nacional ligada à extração e transporte de
petróleo, assim como investiu em políticas sociais que melhoraram os indicadores de
qualidade de vida (IPEA, 2011). Entretanto, a ênfase sempre se manteve no aspecto
econômico como dispositivo através do qual seriam alcançadas melhores condições para
os produtos brasileiros competirem no mercado internacional sob a justificativa de que a
disponibilidade financeira determina a capacidade de investimento na esfera social
(ROUSSEFF, 2011). Pouca atenção foi dada ou mesmo foram negadas as
consequências deste processo de associação ao mercado internacional como
argumentado por Furtado (1974).
A negação e inversão – já que o crescimento econômico é posicionado como
única alternativa para melhorar as condições de vida da população em médio e longo
prazo – das consequências da estratégia econômica criou as condições para que em um
momento de crise houvesse um aprofundamento da lógica economicista que propõe o
ajuste estrutural. Estavam abertos os caminhos para o fortalecimento da formação
discursiva direcionada ao crescimento econômico.
O direcionamento dado pelo governo nacional, principalmente a partir do
impeachment ocorrido em agosto de 2016, remete para o mercado as esperanças por
melhores condições de vida à população em geral, primordialmente, por meio dos
investimentos privados incentivados em algumas das políticas. Como, por exemplo, na
definição de novas regras que reduzem o percentual de conteúdo local para a indústria
de petróleo e gás, sob a justificativa de aumento da eficiência da indústria nacional
(Agencia Brasil, 2017).
Neste último caso, as alterações nas regras governamentais são justificadas por
uma prática discursiva que coloca em primeiro plano o custo de produção dos
equipamentos e insumos para a extração de produtos petrolíferos em comparação com o

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mercado internacional e, consequentemente, o potencial de atratividade de capital


externo. Entretanto, desconsidera o potencial desemprego a ser provocado pelo
fechamento de indústrias nacionais que fornecem tais equipamentos e insumos;
desvaloriza o investimento em pesquisa e tecnologia feito até o momento; assim como
nega a impossibilidade das indústrias nacionais concorrerem em pé de igualdade com as
estrangeiras em razão dos incentivos fiscais nos países de origem das empresas
fornecedoras, que não encontrará mais similaridade no país. (Jornal Agora, 2017).
Assim, de forma a repetir o passado e ocultar riscos como os previstos por
Furtado (1974), no atual contexto que valoriza prioritariamente o crescimento
econômico em escala global, práticas discursivas que se contrapõem a lógica
predominante são desconsideradas, negadas ou sofrem inversão, ao demonstrar as
consequências da dependência dos países periféricos em relação aos centros de
desenvolvimento e à articulação político-social entre atores economicamente
interessados e articulados em escalas global e nacional.
A prática discursiva predominante dissemina uma lógica na qual resta aos
sujeitos imersos no contexto fazer uma escolha entre abrir mão de direitos conquistados
ao longo dos anos ou a não sobrevivência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prática discursiva predominantemente disseminada em escala nacional
coloca ênfase no aspecto econômico como suporte às políticas de cunho social.
Entretanto, o que realmente está em pauta é a adequação da estrutura socioeconômica
nacional às demandas do mercado global.
É curioso olhar para este contexto e perceber que o denominado “ajuste
estrutural” ganha conotação de prática discursiva em defesa dos interesses da população
como um todo. Entretanto, o que se constata com maior frequência é um
entrecruzamento de formações discursivas em disputa. Conflito que não é claramente
percebido por quem se utiliza exclusivamente dos meios de comunicação de massa mais
acessíveis, nos quais predomina a participação de técnicos governamentais que são
escolhidos para suas funções, em muitos casos, pela própria identificação com as
propostas vigentes.
Práticas discursivas que põem em questão a lógica predominante são
frequentemente desqualificadas como provocadoras de estagnação e, consequentemente,

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identificadas com o aumento da impossibilidade de atendimento das necessidades da


população.
O que facilmente é esquecido, negado ou mesmo intencionalmente ocultado se
refere às consequências desta lógica em termos de dependência e insustentabilidade do
sistema produtivo em posição de fornecedor de commodities. As possibilidades de
investimento em políticas sociais estão vinculadas ao resultado econômico e, por
consequência, em momentos de crise o atendimento à população perde qualidade em
prol dos investimentos necessários para que se revertam os resultados econômicos
inadequados. A pergunta que fica é: nos momentos vindouros de prosperidade e
melhoria econômica, haverá reversão na qualidade dos serviços?
Ao finalizar este artigo, que tem a pretensão de oferecer um olhar alternativo
ao contexto nacional vigente, é importante salientar que a prática discursiva neo-
desenvolvimentista que predominou nos governos petistas, assim como a utilização de
ideias de Celso Furtado perderam força no atual governo que tem se mostrado de corte
mais liberal. Assim, a problematização que esteve na base da construção deste texto
pode vir a ganhar novas nuances a partir do momento em que o projeto de
desenvolvimento do atual governo venha a ser explicitado. Ou talvez, sob a lógica de
mercado global, o próprio plano seja não ter planos. O que para Matus (1996) já se
apresentaria como uma estratégia a ser examinada em suas consequências.

AUTOR
* Rogério Faé é professor Adjunto na Escola de Administração / Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Doutor em Administração pelo PPGA/EA/UFRGS e Pós-
Doutorado pela Essex University - UK (Ênfase em Economia Política). Email:
rogerio.fae@ufrgs.br.

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Artigos e ensaios

A ESCRITA COMO CUIDADO DE SI NA OBRA


TARDIA DE MICHEL FOUCAULT[1]
Roberto Kennedy de Lemos Bastos*

RESUMO: Michel Foucault realizou um deslocamento teórico até a antiguidade


clássica com o intuito de abordar textos prescritivos da conduta do homem grego, nessa
pesquisa atenta para o preceito do cuidado de si como princípio regulador de uma
espécie de razão prática do homem grego. A escrita se exerceria aí como importante
alternativa instrumental para o autoconhecimento tão necessário ao efetivo uso coerente
da razão no tocante ao uso dos prazeres, portanto, de um ethos anterior ao modo do
dispositivo moderno da sexualidade. Evocamos o texto L’écriture de soi (A escrita de
si) como um “mapa” para a localização do problema da escrita como cuidado de si na
obra tardia de Michel Foucault, enquanto uma tecnologia de si que dispõe o ser para
uma condição de ascese no pensamento e, por conseguinte, em uma excelência de vida
no sentido do conceito de estética da existência, isto é, a vida como uma obra de arte.
Palavras-chave: escrita de si, cuidado de si, hypomnemata, estética da existência.

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1
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é comentar as reflexões contidas na obra tardia de Michel
Foucault acerca de temas como subjetividade e modo de subjetivação, servindo-se para
tal de um texto menor, qual seja, A escrita de si, como um “mapa” onde o leitor toma
conhecimento dos novos contornos tomados pela pesquisa do autor e do rumo que essa
inflexão dos temas da modernidade (saber/poder) para a antiguidade greco-
romana. Esse é um texto menor. Figura entre outros textos produzidos por Foucault nos
anos oitenta na esteira das suas pesquisas acerca da história da sexualidade por
intermédio dos ditos jogos de verdade através dos quais o ser humano se reconheceu
como “homem de desejo”, conforme Jean-François Pradeau, “as regras de conduta às
quais os antigos buscavam submeter suas práticas sexuais e os discursos com os quais
eles demandavam uma compreensão, um entendimento dessas práticas[2]”. A escrita de
si segundo o método arqueológico-genealógico é um modo de subjetivação que,
enquanto uma forma de tecnologia de si, interessa Foucault nesse momento[3].
Acreditamos que as grandes escolhas se iniciam por pequenas e esclarecidas fontes
escolhidas, aqui e ali, e pensamos demonstrar a importância deste texto – publicado pela
primeira vez na revista Corps Écrit[4] – cujas páginas saem desta pesquisa cujo lema “é
preciso dizer a verdade sobre si mesmo”[5], concede mais fomento para o curso que
aborda temas relacionados com a cultura do cuidado de si[6] na antiguidade e no início
da nossa era em função da noção (nomeada pelo autor francês) de estética da
existência[7]. Dito ainda de outro jeito, mas sem sair da cartografia proposta por ele, de
como as práticas de si – do jogo entre o conhecer e o cuidar – expressam na forma da
escrita de si uma resolução estética e ética enquanto um poder “subjetivador” que a
escrita representa.
A escrita de si foi publicada em fevereiro de 1983 (portanto um ano e cinco
meses antes de sua morte) junto com outros cinco artigos que compõem a produção do
autor no hiato que sucedeu ao lançamento de A vontade de saber (1976), e que, segundo
o autor, faz “parte de uma série de estudos sobre as ‘artes de si mesmo’, isto é, sobre a
estética da existência e o governo de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois
primeiros séculos do Império” [8]. É sabido que a obra que aqui tratamos é o resultado
de um arriscado [9] deslocamento teórico feito rumo à antiguidade, e cuja alusão aqui
tem um significado igualmente arriscado[10]. Aliás, com efeito, o risco é a condição de
todo empreendimento filosófico, diria Foucault no prefácio de O uso dos prazeres, obra

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que, junto com O cuidado de si, representam a materialização do esforço do autor em


conceber uma ontologia do presente partindo de experimentos no campo da ética greco-
romana. Mais especificamente romano uma vez que a utilização da escrita como
gênese ethopoiética [11] só fora posta em prática, segundo o pensador francês, no
período imperial. Conforme Foucault:
Parece não haver dúvida que, entre todas as formas que tomou este
adestramento (o que comportava abstinência, memorizações, exames
de consciência, meditações, silencio e escuta do outro), a escrita – o
fato de se escrever para si e para outrem – só tardiamente tenha
começado a desempenhar um papel considerável. Em todo o caso, os
textos da época imperial que se referem às práticas de si concedem
uma grande parte à escrita. É preciso ler, dizia Sêneca, mas escrever
também. É Epicteto, que, todavia não ministrou senão um ensino oral
insiste repetidas vezes no papel da escrita como exercício pessoal:
deve-se “meditar” (meletan), escrever (graphein), treinar; “possa a
morte arrebatar-me enquanto penso, escrevo, leio” (FOUCAULT:
2009, pg. 133).

A escrita tem uma função transformadora do indivíduo e, na tradição cristã –


que no texto de Foucault é expresso pela transcrição de um trecho da vitae antonii de
Atanásio[12] –, possui seu sentido principal numa relação de complementaridade com
a anachoresis [13], i.e, atenuar os perigos da solidão e realizar um “trabalho não apenas
sobre os atos, mas, mais precisamente, sobre o pensamento”. Portanto, “aquilo que os
outros são para o asceta numa comunidade, Sê-lo-á o caderno de notas para o solitário”.
Trata-se de um debate sobre a forma como a askésis [14] grega ganha importância junto
à tradição cristã ainda procurando por uma identidade.
Há uma análise da oposição entre o ascetismo cristão e a ascética pagã, ambas
possuindo estreita relação com o cuidado de si, instituindo um campo prescritivo moral
com o qual o indivíduo irá constituir uma espécie de “armadura da conduta
cotidiana”[15]. Onde está, com efeito, a diferença uma vez que o sentido do ascetismo é
sempre um domínio sobre o desejo e o controle sobre o uso dos prazeres no sentido de
um cuidado de si? Em que sentido se pode dizer que a prática da escrita serviria,
enquanto princípio racional, para o controle do pensamento, isto é, dos movimentos da
alma? A seguir, portanto, apresentaremos estas questões dimensionando como Michel
Foucault vira no uso que os pensadores da antiguidade faziam da escrita uma forma de
cuidado de si, i. e, conforme A escrita de si:
Constituir a si próprio como sujeito de ação racional pela apropriação,
a unificação e a subjetivação de um “já dito” fragmentário e
escolhido; no caso das notações monásticas das experiências
espirituais, tratar-se-á de desentranhar do interior da alma os

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movimentos mais ocultos, de maneira a poder libertar-se deles. No


caso da narrativa epistolar de si próprio, trata-se de fazer coincidir o
olhar do outro e aquele que se volve para si próprio quando se aferem
ações quotidianas às regras de uma técnica de vida.

A apropriação do sujeito do “já dito” e sua consequente utilização em uma


prática de si, i. e; um exercício (que é um modo de subjetivação) concebido conforme o
entendimento que os antigos (seja grego, seja romano) tinham do papel da escrita como
exercício de si no pensamento, tinha duas formas, segundo Foucault, quais sejam,
o hypomnemata e a correspondência. A função que vão cumprir é da ordem de
uma tekne tou biou, uma arte de viver, “que é preciso entender como um adestramento
de si por si mesmo” (FOUCAULT, 2009, p. 132).

2
A ESCRITA DE SI: HYPOMNEMATA
A leitura produz no leitor um movimento, em sua alma, que pode ser utilizado
tal qual uma “ferramenta” para auxilio na sua disposição de vida. Fazer coleta de
fragmentos dos textos lidos sugere algo de peculiar, i. e; com a coleta de citações,
“reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à memória” se forma
um conjunto de elementos componentes de uma “memória material das coisas ouvidas
ou pensadas” que um “público cultivado” chamará “livro de vida” ou “guia de
conduta”: o hypomnemata.
Assim, conforme o Vocabulário de Foucault[16] define o caderno de notas
grego, hypomnemata, tem por característica estar á mão, tal qual uma ferramenta,
conforme já dito acima, para qualquer das vicissitudes da vida que se apresente tais
como “um luto, um exílio, uma ruína, a desgraça” de um lado; e de outro, combater
“este ou aquele defeito como cólera, a inveja, a tagarelice, a bajulação” dentre outras
formas de vícios constantes na condição humana. Foucault afirma,
Não haverá que considerar esses hypomnémata como um simples
suporte de memória, que poderia consultar a cada tanto, caso se
apresentasse a ocasião. Eles estão destinados a substituir a recordação
eventualmente débil. Eles constituem, antes, um material e um quadro
para os exercícios a realizar frequentemente: ler, reler, meditar,
conversar consigo mesmo e com os outros etc. Trata-se de constituir
um logos boéthikos; um equipamento de discursos que servem de
ajuda, suscetíveis, como diz Plutarco, de levantar eles mesmos a voz e
de fazer calar as paixões, como um amo que com uma palavra aplaca
o latido dos cães (FOUCAULT, 2009, p. 221).

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O hypomnemata serve de “base” para a escrita das correspondências que serão


enviadas em auxilio dos amigos-discípulos, nesse sentido, podemos dizer que não
apenas o ler é fundamental para a constituição de um hábito a tornar-se um ethos, mas
uma associação deste com o ato de escrever-para, que, se por um lado favorece, em
complementaridade com a anachorese (aqui tratando da tradição asceta cristã
supracitada), uma forma de disciplina e ascese; por outro lado, suscita a meditação que,
conforme Foucault, citando Epicteto, diz, “esse exercício do pensamento sobre si
mesmo que reativa o que ele sabe, se faz presente como um princípio, uma regra ou um
exemplo, reflete sobre eles, os assimila, e se prepara assim para enfrentar o real”
(FOUCAULT, 2009, p.133). Portanto, há um sentido “prático” da leitura que não
apenas o aumento da cultura – ou como dissera Heráclito da polimathia.
Convém pensar no hypomnemata como uma ferramenta para as circunstancias
mais variadas (sobretudo as adversas) como dito acima, mas, vislumbrar que o fim é um
só, qual seja, a produção de um corpo estético-ético possível segundo a prática de
exercícios ascéticos. Sêneca, por exemplo, é um dos autores mais apropriados por
Foucault, e, este estoico romano, verteu, por exemplo, da tradição grega para a latina, a
chamada paraskeué[17] (em latim instructio) que era a preparação para um
acontecimento[18] vindouro possível. No curso de 1982, A Hermenêutica do sujeito, na
aula de 17 de março (primeira hora), Foucault trata das técnicas utilizadas pelos
filósofos que prescrevem que a vida tal qual uma regula (uma regra), deve ser dotada de
uma estilística. Vejamos como ele expõe a questão.
A obra bela é a que obedece à ideia de uma forma (um certo estilo,
uma certa forma de vida). Esta sem dúvida é a razão pela qual jamais
encontramos na ascética dos filósofos aquele mesmo catálogo tão
precioso de todos os exercícios a serem realizados, em cada momento
da vida, que encontramos entre os cristãos. Portanto, estamos diante
de um conjunto bem mais confuso, cuja elucidação podemos tentar
iniciar da seguinte maneira: detenhamo-nos em duas palavras, dois
termos que se referem ambos a este domínio dos exercícios, da
ascética, mas que designam, creio eu, dois aspectos, ou se quisermos
duas famílias. De um lado, temos o termo meletân e, de
outro, gymnázein (FOUCAULT: 2004, 514).

A reflexão de Foucault demonstra como a práxis dos filósofos não era regida
por qualquer forma de breviário[19] (catálogo dos exercícios a serem realizados em
cada momento da vida), e sim, por técnicas (tékhne) cujo sentido era expressar uma vida
bela, exemplar. Há, contudo a distinção entre dois termos, quais
sejam, melete e gymnázein que em alguns filósofos estão separados e noutros seguem

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quase como sinônimos. Na palavra grega que tem a correspondência com


cuidado, epimélia, há uma junção entre uma preposição epi que diz através de, acerca
de, e, mélia que tem relação com meléte, isto é, exercício que implica uma energia
intensa, atenção constante. Jean-Pierre Vernant, no seu livro Mito e pensamento entre os
gregos, esclarece que:
O que caracteriza, no entanto, a meléte filosófica é que à observância
ritual e ao exercício militar ela substitui um treinamento propriamente
intelectual, uma adestragem mental que acentua antes de tudo, como
no caso da mélete poética, uma disciplina de memória. Virtude viril,
a mélete filosófica, como a méleteguerreira, implica uma energia
intensa, atenção constante, epiméleia, duro esforço. (VERNANT,
2002, p. 169/70)

Podemos concluir, portanto, que o exercício da escrita coletora, na forma


do hypomnemata, era uma prática ascética, portanto, uma meléte?
Temos duas tradições, a grega e a latina, que Foucault usou como fontes para
suas investigações sobre a forma como se instituir a si mesmo como um experimento
ético-moral (cuidado de si). A tradução que os latinos vão fazer, segundo Foucault nos
diz em A hermenêutica do sujeito, do termo meletân é meditari, e do
termo meléte é meditatitio. O que de significativo essa tradução nos indica? Foucault
nos chama a atenção para não perdermos de vista que:
Tanto meletân-meléte (em grego) quanto meditari-meditatio (em
latim) designam uma atividade, uma atividade real. Não se trata
simplesmente de uma espécie de enclausuramento do pensamento
lidando livremente consigo mesmo. Trata-se de um exercício real. Em
certos textos, a palavra meletânpode perfeitamente designar, por
exemplo, a atividade agrícola. A meléte, situação de meletân é um
verdadeiro trabalho. Meletân é também um termo empregado na
técnica dos professores de retórica para designar aquela espécie de
trabalho de preparação ao qual o indivíduo deve submeter-se quando
precisa falar livremente, improvisando, isto é, quando não tem diante
dos olhos um texto que leria ou que declamaria depois de tê-lo
decorado. É uma espécie de preparação, preparação muito restritiva,
concentrada em si mesma, mas que ao mesmo tempo prepara o
individuo para falar livremente. É a meléte dos retóricos. Creio que,
quando os filósofos falam de exercícios de si sobre si, a
expressão meletân designa algo como a meléte dos retóricos: um
trabalho que e pensamento exerce sobre si mesmo, um trabalho de
pensamento, mas que tem essencialmente por função preparar o
indivíduo para aquilo que ele em breve deverá realizar. (FOUCAULT,
2004, 515)

O termo Meléte citado acima compõe o que chamaremos aqui, para favorecer
didaticamente o entendimento, um binômio, qual seja meléte/gymnázein. Sendo que o

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outro termo, gymnázein, evoca a relação existente entre o exercício na forma intelectual,
exercício de adestramento do pensamento como prática de si, e o exercício ginástico
determinado (leitura, escrita) que é, também, da ordem de um adestramento do corpo.
O hypomnemata é um exercício de adestramento na forma da compilação. Vejamos o
que Foucault nos diz acerca do segundo termo do binômio.
Gymnázein (...) indica o fato de se fazer ginástica para si mesmo,
significa propriamente “exercitar-se”, “treinar-se” e que, parece-me,
reportar-se mais a uma prática em situação real. Gymnázein é estar
efetivamente em presença de uma situação, situação que é real, quer
se tenha artificialmente provocado e organizado, quer se a depare na
vida, e na qual se põe à prova aquilo que se faz. Esta distinção
entre meletán e gymnázein é ao mesmo tempo clara e bastante incerta.
Incerta porque há vários textos nos quais manifestamente não existe
diferença entre os dois termos, como em Plutarco, por exemplo, que
empregameletân/gymnázein quase que um pelo outro, sem diferença.
Em outros textos ao contrário, é muito claro que a diferença existe.
Em Epicteto temos pelo menos duas vezes a
série meletân/gráphein/gymnázein. Assim, meletân é meditar, é, se
quisermos, exercitar-se em pensamento. Pensamos em coisas,
pensamos em princípios, refletimos sobre eles, preparamo-nos pelo
pensamento. Gráphein é escrevê-los (portanto, pensamos em algo e o
escrevemos). (ibid, ibidem. P. 515/6)

Existe uma sutil distinção dos termos do binômio, mas nada que não
corroborasse a ideia de que o exercício do pensamento para o filósofo está numa ordem
de relação e equivalência ao do trabalho sobre o corpo na prática do exercício ginástico
e que a grafia é a terceira via, terceira forma de trabalho sobre si que caracteriza
a askesis[20] filosófica.
A redação dos hypomnemata, segundo Foucault segue um ordenamento de
acordo com três princípios fundamentais, quais sejam:
1. “A pratica de si implica leitura, pois não é possível tudo tirar do
fundo de si próprio nem armar-se por si só com os princípios da razão
indispensáveis à conduta: guia ou exemplo, o auxílio dos outros é necessário”.
2. “Embora permita contrariar a dispersão da stultitia[21], a escrita
dos hypomnemata é também (e assim deve permanecer) uma prática regrada e
voluntária da disparidade”.
3. “O contraste desejado não exclui a unificação. Esta, porem, não se
realiza na arte de compor um conjunto; deve estabelecer-se no próprio escritor,
como resultado doshypomnemata, da sua constituição (e portanto no próprio
gesto de escrever), da sua consulta (e portanto nas respectivas leituras e
releituras)”.
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Esse exercício, essa ginástica do pensamento, por fim, culmina num formato de
escrita, o caderno de notas, regido por dois princípios: “a verdade local da máxima” e “o
seu valor circunstancial de uso”. Os três princípios acima aliados a essas duas regras
vão originar um corpo correspondente, conforme diz Foucault,
“o papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um
“corpo” (quicquid lectione collectum est, stills redigat in corpus). E,
este corpo, há que entendê-lo não como um corpo de doutrina, mas
sim – de acordo com a metáfora tantas vezes evocada da digestão –
como o próprio corpo daquele que, ao transcrever as usas leituras, se
apossou delas e fez sua a respectiva verdade: a escrita transforma a
coisa vista ou ouvida “em forças de sangue” (in vires, in sanguinem).
Ela transforma-se, no próprio escritor, num princípio de ação
racional” (FOUCAULT, 2009, p.143)

Escrever tem um caráter de subjetivação conquanto seja esta escrita algo que se
insurja enquanto um “protocolo de experimentação”. Como diz Deleuze, em crítica e
clinica, “são acontecimentos na fronteira da linguagem. Porém, quando o delírio recai
no estado clínico, as palavras em nada mais desembocam, já não se ouve nem se vê
coisa alguma através dela, exceto uma noite que perdeu sua história, suas cores e seus
cantos. A literatura é uma saúde” (DELEUZE, 2011, p. 143).

3
A ESCRITA DE SI: A CORRESPONDÊNCIA ESCRITA/CUIDADO
A correspondência é uma via de “mão dupla”, vai para o destinatário
carregando “em forças e em sangue” palavras de zelo e de estímulo ao cuidado de si,
mas, não sem antes voltar-se para o remetente fazendo-o, no gesto da escrita, escutar-se
a si mesmo. Como diz Foucault, “a carta que se envia age, por meio do próprio gesto da
escrita, sobre aquele que a envia, assim como, pela leitura e releitura, age sobre aquele
que a recebe. Nessa dupla função a correspondência está bem próxima
dos hypomnemata, e sua forma muitas vezes se assemelha a eles” (FOUCAULT, 2004,
p. 153).
As cartas que Sêneca envia para seus correspondentes funcionam, por um lado
como exercício de uma escrita de si, portanto como cuidado de si, e, por outro, como
uma direção – que no caso de um Sêneca já idoso e retirado de suas funções públicas – é
exercida enquanto auxílio ao discípulo que, esse sim, exercendo função pública, é
requerente de uma demanda do velho mestre. É, portanto, pra falar nos termos de
Plutarco, a função ethopoiética (no dito de Sêneca, “ofícios recíprocos. Quem ensina se

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instrui”) da escrita, na forma de lembrar-se de praticar os preceitos enquanto os invoca


para outrem.
Existe, com efeito, algo em comum com o hypomnemata, mas, segundo
Foucault, não deve ser considerada como “simples prolongamento” da prática dos
mesmos. Ele diz,
Contudo, e apesar de todos os pontos comuns, a correspondência não
deve ser considerada um simples prolongamento da prática
dos hypomnemata. Ela é alguma coisa mais que um adestramento de si
mesmo pela escrita, através dos conselhos e advertências dados ao
outro: constitui também uma certa maneira de se manifestar para si
mesmo e para os outros. A carta torna o escritor “presente” para
aquele a quem a envia. E presente não simplesmente pelas
informações que ele lhe dá sobre sua vida, suas atividades, seus
sucessos e fracassos, suas venturas e desventuras; presente com uma
espécie de presença imediata e quase física “Tu me escreves com
frequência e te sou grato, pois assim te mostras a mim [te mihi
ostendis] pelo único meio de que dispões. Cada vez que me chega tua
carta, eis-nos imediatamente juntos. Se ficamos contentes por termos
os retratos de nossos amigos antigos ausentes [...] como uma carta nos
regozija muito mais, uma vez que traz os sinais vivos do ausente, a
marca autentica de sua pessoa. O traço de uma mão antiga, impresso
sobre páginas, assegura o que há de mais doce na presença:
reencontrar” (FOUCAULT, 2004, 155/6)

Escrever, com efeito, é “fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro”, e,
nesse sentido, de novo se apresenta a “mão dupla” na via expressa do “dito” que oferece
ao destinatário um “olhar omnipresente” sobre ele que é, igualmente, “uma maneira de
se oferecer”, a si mesmo que escreveu, “ao seu olhar através do que é dito sobre si
mesmo” um autorretrato. Se instala uma ação de reciprocidade naquele que escreve,
bem como naquele que lê, que é da ordem de um exercício (eis aí, de novo, o
supracitado binômio melete/gymnázein agora transformado no trinômio com a junção
do graphein) que “trabalha para a subjetivação do discurso verdadeiro, para sua
assimilação e elaboração como “bem próprio”, constitui assim, ao mesmo tempo, uma
objetivação da alma”. O preceito estoico suscitado por Sêneca nas epistolas a Lucilius
sempre é uma constante, ele diz que “devemos pautar nossa vida como se todo mundo a
olhasse”. Poderíamos ilustrar esta passagem com uma aproximação ao imperativo
categórico kantiano. Diz Foucault:
O trabalho que a carta opera no destinatário, mas que também é
efetuado naquele que escreve pela própria carta que ele envia, implica
portanto uma “introspecção”; mas é preciso compreendê-la menos
como um deciframento de si por si mesmo do que como uma abertura
que se dá ao outro sobre si mesmo. Não resta a menor dúvida de que
estamos diante de um fenômeno que pode parecer pouco

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surpreendente, mas que é carregado de sentido para aquele que


quisesse escrever a história da cultura de si: os primeiros
desenvolvimento históricos do relato de si não devem ser buscados do
lado das “cadernetas pessoais”, dos hypomnematas, cujo papel é o de
permitir a constituição de si a partir da coleta do discurso de outros;
podem-se em contrapartida encontra-los do lado da correspondência
com outrem e da troca da assistência espiritual” (FOUCAULT, 2004,
P.157).

Finalmente, a relação entre os meios, quais sejam, o hypomnemata e as


correspondências, são de complementaridade; uma conduz à outra, no sentido da
constituição a si de um experimento ético-estético, da construção de um corpo não
apenas teórico, mas, sobretudo, prático, de uma subjetivação dos discursos não, como
diria Foucault (no prefácio de O uso dos prazeres), como “uma apropriação dos outros
para fim de uma comunicação”, mas, sobretudo, para constituir um indivíduo portador
de uma estilística que lhe atravessasse a vida exprimindo-a como uma obra de arte;
enfim, como numa estética da existência.

4
CONCLUSÃO
Michel Foucault percebeu na forma como o público cultivado da antiguidade
se relacionava com a escrita enquanto sendo uma forma de subjetivação deveras
diferente da modernidade; havia uma intenção de dispor desta escrita como uma
ferramenta para agir sobre si mesmo de forma ética. Já havia visto nos exemplos de
figuras da literatura – nomes como Raymond Roussel, Blanchot, Kafka, Bataille, para
citar apenas alguns – como a escrita estabelece uma relação de subjetivação absoluta,
isto é, como, para usar uma formula de Nietzsche, se tornar o que se é. Esse é o sentido
da escrita como cuidado de si, tornar-se o que se é na medida em que se escreve com
sangue, palavras essenciais para conferir ao existir uma forma apropriadamente estética,
ou, dito de outra forma, como uma estética da existência. O próprio Foucault, diz
Ortega, se utilizou dessa forma de escrita, quando:
a situação existencial, que foi sempre para Foucault origem e causa de
cada um de seus livros, volta-se agora contra ele, pois observa-se,
precisamente em seus últimos livros, uma espécie de Philosophiae
consolatio, uma tentativa de fazer uma bela obra de uma vida
ameaçada pela presença constante da morte pela AIDS – em
concordância com a filosofia antiga, o que representa uma atualização
do estoicismo. (ORTEGA, 1999, p.23).

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Por fim, a coerência desse autor com a sua escrita sempre foi a marca presente
na forma como atuou enquanto intelectual engajado nas causas em que acreditou,
independente da história demonstrar que ele estava certo ou não[22]. No seu trabalho,
pode-se ouvir sub-repticiamente uma contraposição ao dito: “faça o que eu digo, não
faça o que eu faço”, com outro, mais afeito à estilística da existência, que diz: “faça o
que eu digo, faça como eu faço”.

AUTOR
* Roberto Kennedy de Lemos Bastos é licenciado em Filosofia pela UFBA, professor no
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 2011.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Ed. Veja, 2009.
_____. Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
_____. O Governo de si e dos Outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_____. A Coragem da Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
_____. História da sexualidade vol. II O uso dos Prazeres. Rio de Janeiro: Ed. Graal,
2001.
_____. História da sexualidade vol. III O cuidado de si. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2007.
_____. Ética, Sexualidade, Política. Col. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004.
GROSS, Frédéric. Foucault a coragem da verdade. São Paulo: Parábola editorial, 2004.
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: É Realizações
editora, 2014.
ORTEGA, Francisco. Amizade e Estética da Existência em Foucault. Rio de Janeiro:
Ed. Graal, 1999.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os Gregos. Rio de janeiro: Paz e
Terra, 2002.
VEYNE, Paul. Foucault seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.

NOTAS
[1] Artigo apresentado ao curso de Pós-graduação lato sensu em Filosofia Contemporânea, da Faculdade
São Bento da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Filosofia
Contemporânea, sob a orientação do Professor Gabrielle Grossi.
[2] Ver: PRADEAU, J-F. O Sujeito antigo de uma ética moderna: acerca dos exercícios espirituais na
História da Sexualidade de Michel Foucault. In: GROSS, F. Foucault a coragem da verdade. São Paulo:
Parábola Editora, 2004. P. 131/ 153.
[3] A recepção da obra de Foucault convencionou dividir a démarche em três momentos que
corresponderiam ao objeto de investigação: arqueologia do saber, os saberes; a genealogia do poder, os
poderes disciplinares instaurados a partir dos saberes; e, finalmente, uma terceira via a estética da
existência cuja série de pesquisas corresponderia à fase final, tornando-se assim os três pilares do método.
A via arqueológica (saber); a genealógica (poder) e a via estética (sujeito). A esse respeito, conferir os
cursos de 82,83 e 84, respectivamente, A hermenêutica do Sujeito, O governo de si e dos outros, e, A

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Coragem da Verdade (O governo de si e dos outros II). Todos se encontram publicados em língua
portuguesa (vide referência bibliográfica deste artigo).
[4] Posteriormente, após sua morte, reuniram-se artigos, entrevistas, ensaios, em dois volumes chamados
‘ditos e escritos’. No Brasil encontra-se publicados em diversos volumes.
[5] A fala franca (parresía), que Foucault dedicará seus últimos cursos no Collègè de France, seria a
forma oposta à verdade epistemológica consubstanciada na “analítica” dos saberes aduzido do homem,
trata-se de uma espécie de “imperativo” que instaura no ser o ardor da obrigatoriedade moral da ação
refletir o belo. Estaria, com efeito, a fala franca relacionada com uma virtude cardeal, isto é, a coragem
(andreia), que lhe aufere uma beleza ethopoiética.
“Podemos citar, em apoio e ilustração dessa importância na cultura antiga, práticas tão frequentemente,
tão constantemente, tão continuamente recomendadas [como] o exame de consciência prescrito pelos
pitagóricos ou estoicos, de que Sêneca deu exemplos tão desenvolvidos e que voltamos a encontrar em
Marco Aurélio”. (FOUCAULT: 2011, pg. 5)
[6] “Esse princípio – creio ter tentado apresenta-lo no curso dado a dois anos [A Hermenêutica do
Sujeito] – é o da epiméleia Heautoû (do cuidado de si, da aplicação a si mesmo). Esse preceito tão
arcaico, tão antigo da cultura grega e romana, e que encontramos regularmente associado, nos textos
platônico e [mais] precisamente nos diálogos socráticos, ao gnôthi seautón, esse princípio (sautoû
epimelê: ocupa-te de ti mesmo) deu lugar, creio, ao desenvolvimento do que poderíamos chamar de
“cultura de si”, uma cultura de si na qual se vê formular, se desenvolver, se transmitir, se elaborar todo
um jogo de práticas de si”. (FOUCAULT: 2011, pg. 6)
“essas espécies de diários que recomendavam que as pessoas escrevessem sobre si mesmas, seja para
coligir e meditar as experiências tidas ou as leituras feitas, seja também para contar a si mesmo, ao
despertar, [seus] sonhos” (FOUCAULT: 2011, pg. 5).
[7] Foucault na última fase do seu trabalho, interrompido prematuramente pela sua morte, cunhou esse
noção, tal diz Castro em seu vocabulário de Foucault, que, “por estética da existência, há de se entender
uma maneira de viver em que o valor moral não provém da conformidade com um código de
comportamentos, nem de um trabalho de purificação, mas de certos princípios formais gerais no uso dos
prazeres, na distribuição que se faz deles, nos limites que se observa, na hierarquia que se respeita. A
estética da existência é uma arte, reflexo de uma liberdade percebida como jogo de poder. Nesse sentido,
haveria que caracterizar o modo de sujeição da moral grega dos aphrodisianão só como estético-político.
A problemática da liberdade, entendida como não escravidão, encontra-se no coração dessa ética: não ser
escravo dos outros, não ser escravo de si mesmo ou, em termos positivos, governo dos outros e governo
de si mesmo” (CASTRO, 2009, p. 150/1).
[8] Foucault, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Nova Vega, 2009. p. 129.
[9] O risco segundo Foucault era o de “retardar e desorganizar o programa de publicações previsto”; além
disso, abordando textos e documentos de autores de um período distante do seu horizonte de investigação
usual e, não sendo nem latinista nem helenista, podendo incorrer no equívoco de, conforme o diz,
“submetê-los sem me dar conta, a formas de análise ou a modos de questionamento que, vindos de outros
lugares, não lhe convinham”. Equívoco que, segundo Pierre Hadot, Foucault comete quando da sua
análise acerca do comportamento ético dos estóicos. Para esclarecimentos sobre esse ponto, ver HADOT,
Pierre. Reflection about the notion of care of the self. In: The Cambridge companion to Foucault, ed. Gary
Gutting. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
[10] O risco de toda hipótese é não ter bases suficientes para dar consistência à mesma, contudo, fazemos
coro com Foucault, “para quem esforçar-se, começar e recomeçar, experimentar, enganar-se, retomar de
cima a baixo e ainda encontrar meios de hesitar a cada passo, àqueles para quem, em suma, trabalhar
mantendo-se em reserva e inquietação equivale a demissão, pois bem, é evidente que não somos do
mesmo planeta” (FOUCAULT, 2001, p. 12), e mais, como ele mesmo disse na sua última entrevista ao
Le Monde, em junho de 1984, concedida a A. Fontana: “para alguns, escrever um livro sempre implica
correr algum risco. Por exemplo, não conseguir escrevê-lo. Quando se sabe de antemão onde se quer
chegar, falta a dimensão da experiência, a que consiste em escrever um livro correndo o risco de não
chegar ao fim” (FOUCAULT, 2004, p. 288), sempre há o risco de não conseguir terminar.
[11] Michel Foucault usa o termo ethopoiese que retira da obra do filósofo romano Plutarco autor de
biografias de indivíduos famosos no seu tempo e noutros tempo.
[12] Atanásio de Alexandria foi um bispo da Igreja Católica Apostólica Romana, depois tornado santo,
que viveu no século IV d. C, e era defensor da vida ascética. Foi o defensor da consubstanciação das Três
Pessoas Divinas na Santíssima Trindade, tal como definido no pelo Primeiro Concílio de Niceia em 325.
[13] Anachoresis no contexto da prática do cuidado de si, “significa ausentar-se do mundo no qual
alguém se encontra imerso, interromper o contato com o mundo exterior, não sentir sensações, não se
preocupar com o que se passa à nossa volta, fazer como se não se visse o que acontece” (CASTRO: 2009
pg. 30); dito em outras palavras, um retiro espiritual.

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[14] Askésis são todos os exercícios empreendidos por quem procura uma ascese espiritual. São bastante
conhecidos pela tradição monástica e a confissão é uma das que possuem mais reputada importância.
[15] O tema da cavalaria, por exemplo, remonta a uma organização de mundo conforme a ordem dos
costumes rígidos imposta numa conduta específica e característica, geralmente, monástica. Podemos, no
tocante à armadura, apresentar os significados simbólicos que organizam esse mundo. Um forte assento
na fé cristã e no salvacionismo. Não são homens comuns, mas, heróis. Lembramos que os heróis são a
representação divina no humano, são dotados de virtudes, armas contra a vicissitude humana. A espada de
Teseu, o escudo, o elmo, as pederneiras, enfim, “as roupas e armas” do divino para a realização
da hierofania, do cântico dos heróis.
[16] Uma ferramenta à mão (procheiron) é esse Vocabulário de Foucault escrito por Edgardo Castro. Um
ótimo exemplo de como funcionava o hypomnémata. Servia para a produção de tratados sobre os mais
variados temas, nesse caso, essa ferramenta serve para familiarizarmo-nos com o conjunto dos conceitos
de que Foucault se utiliza para pensar e realizar o seu diagnóstico do presente, dito de outra forma, a sua
ontologia do presente.
[17] Segundo Foucault, paraskeué “é o que se poderia chamar de preparação ao mesmo tempo aberta e
finalizada do indivíduo para os acontecimentos da vida. Quero com isso dizer que se trata, na ascese, de
preparar o indivíduo para o futuro, um futuro que é constituído de acontecimentos imprevistos,
acontecimentos cuja natureza em geral conheçamos, os quais porem não podemos saber quando se
produzirão nem mesmo se se produzirão” (FOUCAULT, 2004, p.387)
[18] E sabemos que a tradição filosófica da antiguidade nos diz que não podemos evitar acontecimentos,
contudo podemos lidar com a seleção dos encontros.
[19] Nome dado ao livro onde se encontra os textos que se destinam a cumprir uma “liturgia das horas”
para todo o momento do dia, no sentido de fazer com que os que se ordenarão na vida religiosa
(monástica ou não) cumpram suas funções sem jamais, contudo, esquecer-se de parar em meio a toda a
agitação da vida e recordar que a obra é de Deus.
[20] É sabido que o termo ascetismo deriva do termo grego askesis que quer dizer exercício.
[21] O termo significa, em algumas circunstancias tolice, parvoíce, noutras loucura e insanidade.
Contudo, aqui, a stultitia “é definida pela agitação do espírito, a instabilidade da atenção, a mudança das
opiniões e das vontades, e, consequentemente, a fragilidade perante todos os acontecimentos que possam
ter lugar” (FOUCAULT, 2009, p.139).
[22] Como no caso da simpatia do autor pelo oriente (oriunda da sua busca por uma forma de vida
alternativa ao modelo ocidental) e seu posicionamento favorável à revolução do Irã que Depois o Xá Reza
Pahlevi e ascendeu o Aiatolá Khomeine ao poder espiritual. A respeito desse assunto há o livro de Jane
Afary e Kevin B Anderson Foucault e a revolução Iraniana.

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Artigos e ensaios

FOUCAULT, A HISTÓRIA DO PENSAMENTO E A


GENEALOGIA:
sobre uma nova política da verdade e os limites da
dialética
Priscila Piazentini Vieira*

RESUMO: Este texto destaca as reflexões de Michel Foucault acerca de sua história do
pensamento nos anos 1980, relacionando-a com os seus estudos genealógicos da década
anterior. Ele propõe uma nova política da verdade que permeie não somente o campo
da produção do conhecimento, mas também o da prática e o da militância política. A
aposta de Foucault é na desestabilização contínua das relações de poder. Por isso, ele
aponta para os limites das análises ligadas ao marxismo tradicional, principalmente no
que diz respeito às concepções de ideologia, dialética e ciência.
Palavras-chave: Foucault, história do pensamento, genealogia, nova política da
verdade.

A HISTÓRIA DO PENSAMENTO E OS EIXOS DO SABER, DO PODER E DA


ÉTICA
Em um curso dado entre os anos de 1982 e 1983, O governo de si e dos
outros, Michel Foucault fala sobre o seu projeto de uma “história ontológica
dos discursos de verdade” (FOUCAULT, 2010: 281), contrapondo-se à história do
conhecimento e à história das ideologias.Para ele, um discurso que pretende dizer a

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verdade não deve ser analisado por uma história do conhecimento que permitiria
determinar se ele diz o verdadeiro ou o falso. Esses discursos de verdade também não
devem ser analisados por uma história das ideologias, que perguntaria por que eles
dizem o falso em detrimento da verdade.
No início do curso, na “Aula de 05 de janeiro de 1983”, Foucault havia feito um
balanço de sua trajetória e, assim, explicitou as especificidades de sua “história do
pensamento” (FOUCAULT, 2010: 4). Nesse momento, ele diferenciou-se de dois outros
métodos muito utilizados no período, a história das mentalidades e a história das
representações, propondo um estudo diverso do que a maioria dos historiadores das
idéias praticava. De um lado, a história das mentalidades privilegia as análises dos
comportamentos efetivos, bem como as expressões que podem tanto preceder, seguir,
traduzir, prescrever, quanto justificar tais comportamentos. Foucault também destaca
essa diferença na “Introdução” de O Uso dos Prazeres, utilizando a sexualidade para
exemplificar a particularidade de uma história do pensamento:
(...) de que maneira, por que e sob que forma a atividade sexual foi
constituída como campo moral? Por que esse cuidado ético tão
insistente, apesar de variável em suas formas e em sua intensidade?
Por que essa“problematização”? E, afinal, esta é a tarefa de uma
história do pensamento por oposição à história dos comportamentos
ou das representações: definir as condições nas quais o ser
humano “problematiza” o que ele é, o mundo no qual ele
vive (FOUCAULT, 2006: 14).[1]

Por outro lado, a história das representações ou dos sistemas representativos


possui dois objetivos principais: o primeiro é a análise das “funções representativas” ou
do papel que as representações podem ter, seja em relação ao objeto representado ou ao
sujeito que o representa (uma história das ideologias); o segundo objetivo privilegia o
estudo das representações em função de um conhecimento considerado como critério de
verdade, como verdade-referência. E é com relação a esse critério que o valor
representativo de um sistema de pensamento poderia ser fixado. Entre essas duas
possibilidades, Foucault propõe uma história do pensamento. Ele entende
“pensamento” por meio da articulação de três eixos: as formas de um saber possível
(saber); as matrizes normativas de comportamento para os indivíduos (poder); e os
modos de existência virtuais para os sujeitos possíveis (ética).
Foi seguindo essa perspectiva que ele analisou a loucura (FOUCAULT, 2005a),
não considerada como um objeto invariante através da história e sobre o qual agiria um
certo número de representações. Também não entendeu por história da loucura o estudo

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de uma atitude que tivemos, através dos séculos ou em um momento dado, sobre a
loucura. Em vez disso, estudou-a como uma experiência no interior de nossa cultura,
tomando-a, primeiro, como um ponto a partir do qual se formou uma série de saberes
heterogêneos, ou seja, a loucura como matriz de conhecimentos. Além disso, entendeu-a
como uma forma de saber, uma junção de normas que a recortam como um fenômeno
de desvio no interior de uma sociedade. Finalmente, pensou a loucura como uma
experiência que define a constituição de um modo de ser do sujeito normal em relação
ao sujeito louco. A articulação entre esses três eixos, então, define o estudo
da “experiência”.[2]
Dessa maneira, sua proposta de pensamento foi construída a partir de três
deslocamentos conceituais. Primeiramente, ao estudar a formação dos saberes, ele
desloca o eixo da história do conhecimento em direção à análise dos saberes, e percebe
as práticas discursivas como formas de veridicção (FOUCAULT, 2005a). Em um
segundo momento, ao analisar as matrizes normativas de comportamento, não descreve
o Poder (com um P maiúsculo), as instituições de poder ou as formas gerais ou
institucionais de dominação, mas estuda as técnicas e os procedimentos pelos quais
conduzimos a conduta dos outros. A questão da norma do comportamento coloca-se nos
termos do poder que exercemos, e este, ainda, é analisado como um campo de
procedimentos de governo. Ele passa, assim, da análise do exercício do poder aos
procedimentos de governamentalidade, seguindo o exemplo da criminalidade e das
disciplinas (FOUCAULT, 2005b).
O terceiro eixo analisa a constituição do modo de ser do sujeito. E, aqui, o
objetivo foi escapar de uma teoria do sujeito, e analisar as diferentes formas pelas quais
o indivíduo se constitui como sujeito. A partir do exemplo do comportamento sexual e
da história da moral sexual (FOUCAULT, 2006; 2007a), Foucault tenta entender como,
e por quais formas concretas de relação consigo, o indivíduo foi chamado a se constituir
como sujeito moral de sua conduta sexual. Trata-se, assim, de operar os seguintes
deslocamentos: livrar-se da questão do sujeito e analisar as formas de subjetivação e,
além disso, estudá-las a partir das tecnologias da relação consigo, ou da pragmática de
si. Para Foucault, esses três eixos constituem uma história das “experiências”. E o
percurso seguido por seus estudos privilegiou a experiência da loucura, a da
criminalidade e a da sexualidade como fundamentais na constituição da cultura
ocidental.

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A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA POLÍTICA DA VERDADE E OS LIMITES


DA IDEOLOGIA
Quando Foucault defende uma nova relação da filosofia com o poder, ele
também expressa o modo de atuar do “intelectual específico”:
Talvez poderíamos considerar que há ainda para a filosofia uma certa
possibilidade de ter um papel em relação ao poder, que não será um
papel de fundação ou de recondução do poder. Talvez a filosofia possa
ter ainda um papel do lado do contra-poder, com a condição de que
este papel não consista em fazer valer, frente ao poder, a lei da
filosofia, com a condição de que a filosofia pare de se pensar como
profecia (...) como pedagogia, ou como legislação, e que ela se dê por
tarefa analisar, elucidar, tornar visível, e portanto intensificar as lutas
que se desenrolam em torno do poder, as estratégias dos adversários
no interior das relações de poder, as táticas utilizadas, os focos de
resistências (FOUCAULT, 1994c: 540).

O papel da filosofia, desse modo, teria um significado outro do que o da ciência,


que é o de fazer conhecer o que não vemos. A filosofia não deve descobrir o que
está escondido, mas dar visibilidade justamente ao que é visível, fazer aparecer o que é
próximo, o que é imediato, o que está intimamente ligado a nós mesmos e que, por isso
mesmo, não percebemos. É o que ele chamou de uma “filosofia analítico-política”
(FOUCAULT, 1994c: 541).
É nessa direção que Foucault percebe os movimentos sociais a partir dos anos de
1960, como o movimento das mulheres, por exemplo. Eles não visam o poder político
ou o sistema econômico, já que os seus objetivos não são os mesmos que os dos
movimentos políticos ou revolucionários tradicionais. Eles estão atentos às instâncias
próximas de poder, que se exercem diretamente sobre os indivíduos. São “lutas
imediatas”, “lutas anarquistas” (FOUCAULT, 1994c: 546). Não se trata, para esses
grupos, de seguir o modelo leninista, que via a classe operária como a grande
combatente da vanguarda [3], pois suas reivindicações são diferentes das que foram
fortemente valorizadas no Ocidente sob o signo da revolução. O papel da filosofia
analítico-políticaé justamente o de avaliar a importância desses fenômenos a que, até o
momento presente, foi concedido apenas um valor marginal.
Com o intuito de uma desestabilização sem fim dos mecanismos de poder, essas
lutas imediatas merecem, para Foucault, ao menos o mesmo mérito que damos às lutas
revolucionárias tradicionais. Foucault, assim, escapa aos signos tão venerados da
revolução e privilegia as atuações ligadas a conjunturas particulares, muito semelhantes
ao seu modo de entender a figura do intelectual. Trata-se de tomar uma posição

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específica, que “está ligada às funções gerais do dispositivo da verdade em nossas


sociedades” (FOUCAULT, 2005d: 13). A grande questão, portanto, não é criticar os
conteúdos ideológicos da ciência, mas “saber se é possível constituir uma nova política
da verdade (...) Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência
alienada ou a ideologia; é a própria verdade” (FOUCAULT, 2005d: 14).
Lembro, além disso, que a crítica ao marxismo e a recusa de conceitos que o
acompanhavam, como o de ideologia dominante, hegemonia, alienação, da revolução
pela tomada de consciência, do partido revolucionário, do intelectual orgânico, não
eram feitas somente por Foucault, mas por toda uma intelectualidade européia desde
os últimos anos da década de 1940. Ressalto, inclusive, que tal problematização partiu
de dentro do próprio marxismo, principalmente com o grupo Socialismo ou Barbárie
(CASTORIADIS, 1983), criado na França em 1948, e que tinha como integrantes
Cornelius Castoriadis, Claude Lefort, Guy Debord, entre outros. Essas contestações
prosseguem também fora do marxismo e intensificam-se cada vez mais nos anos 1950,
1960 e 1970. Nesse sentido, foram fundamentais: o Maio de 1968 não só na França,
como no mundo inteiro, os movimentos feminista, hippie, black power e gay, assim
como os “civil rights movements”, nos Estados Unidos.[4]
Em uma entrevista de 1978, “A cena da filosofia”, Foucault (1994d: 571-
595) indica que“não é competente para fazer a divisão entre o verdadeiro e o
falso” (FOUCAULT, 1994d: 571), e pretende descrever o teatro da verdade:
Como o Ocidente edificou um teatro da verdade, uma cena da
verdade, uma cena para essa racionalidade que se tornou agora uma
marca do imperialismo dos homens do Ocidente, já que (...) a
economia ocidental, (...) chegou ao término de seu apogeu (...) Mas
há algo que permaneceu, que o Ocidente sem dúvida terá deixado para
o resto do mundo: uma forma de racionalidade. É uma certa forma de
percepção da verdade e do erro, é um certo teatro do verdadeiro e do
falso (FOUCAULT, 1994d: 572).

Foucault encontrou essa mesma racionalidade no marxismo de sua época.


Em “Questões a Foucault sobre a geografia” (FOUCAULT, 1994e: 28-40), de 1976, ele
mostra como o desagradava o projeto de fazer um discurso de verdade sobre qualquer
ciência, pois este era, acima de tudo, um projeto positivista. Essa pretensão científica
assemelha-se ao marxismo que, em uma posição deárbitro, juiz, testemunha universal,
afirmava que “o marxismo, como a ciência das ciências, podia fazer a teoria da ciência e
estabelecer a divisão entre ciência e ideologia” (FOUCAULT, 1994e: 29). Essa é uma
posição recusada fortemente por Foucault. Interessava-o alguns combates que

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envolviam a medicina, a psiquiatria e a penalidade, mas ele nunca quis fazer uma
história geral das ciências humanas, nem uma crítica geral da possibilidade de todas as
ciências.
Entendo os estudos de Foucault sobre a loucura, a medicina, a prisão, a
sexualidade, o neoliberalismo como críticas severas ao modo da ciência moderna lidar
com a verdade, como o positivismo lógico, o marxismo, o humanismo, o estruturalismo.
Foucault não se aproxima, em nenhum desses casos, de um método científico que se
enxerga como neutro, ou dos procedimentos do materialismo histórico marxista que, no
entanto, também critica fortemente a sociedade liberal e burguesa. Devo acrescentar que
filósofos tais como G. Bachelard e G. Canguilhem, entre os anos de 1950 e 1960,
também problematizaram drasticamente essa relação entre a verdade e a produção do
conhecimento. Foucault inspirou-se bastante em suas reflexões arqueológicas quando
escreveu seus primeiros livros: As Palavras e as Coisas (FOUCAULT, 2007b), A
História da Loucura(FOUCAULT, 2005a), O Nascimento da Clínica (FOUCAULT,
1977), A Arqueologia do Saber(FOUCAULT, 2008).[5] Mas suas críticas da década de
1980, ligadas aos conceitos de governo de si e dos outros (FOUCAULT, 2010) e de
coragem da verdade (FOUCAULT, 2011b), possibilitaram uma nova relação entre a
produção de conhecimento e a verdade dentro do seu próprio pensamento.
Foucault inicia o curso Do Governo dos Vivos (FOUCAULT, 2011a) com a
descrição de Dion Cássio, um historiador do século II d.C., do exercício de poder no
governo do imperador romano Sétimo Severo. Ele começa com esse exemplo para
mostrar como manifestação de verdade e exercício de poder se relacionam não apenas
por uma necessidade utilitária ou econômica, dizendo: “Trata-se de uma manifestação
não econômica da verdade” (FOUCAULT, 2011a: 43-44), indicando como tanto o
modo científico, positivista e racional, quanto a forma marxista de se relacionar com a
verdade, que entende o exercício de poder como atrelado às relações econômicas, não
atentam para a importância dos efeitos de verdade produzidos pelas relações de poder.
A manifestação de poder de Severo, portanto, não era destinada a provar, demonstrar,
refutar, organizar um conhecimento, pois, para Foucault, o exercício de poder não
pressupõe somente um conhecimento útil e utilizável, mas uma manifestação de
verdade.
Em Subjetividade e Verdade (FOUCAULT, 2016), Foucault defende que a
verdade não é um conceito de conhecimento que podemos considerar como
universalmente válido e autorizado. Ela éum sistema de obrigação, e não um conteúdo

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ou uma estrutura formal de conhecimento. Para ele, a ciência, o conhecimento


objetivo é apenas um momento possível entre todas essas formas pelas quais a verdade
pode se manifestar (FOUCAULT, 2011a: 46).
Essa noção de governo dos homens pela verdade foi elaborada para Foucault se
deslocar da noção de saber-poder. No entanto, não podemos esquecer que ele contrapõe-
se, também, em relação ao conceito de ideologia dominante, como havia defendido na
entrevista “Verdade e Poder” (FOUCAULT, 2005d), em 1977. Nesse caso, ele disse:
A noção de ideologia me parece dificilmente utilizável por três razões. A
primeira é que, queira-se ou não, ela está sempre em oposição virtual a alguma coisa
que seria a verdade. Ora, creio que o problema não é de se fazer a partilha entre o que
num discurso releva da cientificidade e da verdade e o que relevaria de outra coisa; mas
de ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que
não são em si nem verdadeiros nem falsos. Segundo inconveniente: refere-se
necessariamente a alguma coisa como o sujeito. Enfim, a ideologia está em posição
secundária com relação a alguma coisa que deve funcionar para ela como infra-estrutura
ou determinação econômica, material, etc. Por estas três razões creio que é uma noção
que não deve ser utilizada sem precauções. (FOUCAULT, 2005d: 7).
Em Do Governo dos Vivos, ele faz a crítica da análise ideológica a partir das três
objeções seguintes: a primeira, porque postula uma teoria imperfeita da representação; a
segunda, por estar indexada à oposição do verdadeiro e do falso, da realidade e da
ilusão, do científico e do não científico, do racional e do irracional; e a terceira,
finalmente, pois recorre a um saber que se pergunta “como e por que em uma certa
sociedade alguns dominam os outros” (FOUCAULT, 2011a: 52).
Para escapar desses problemas e desnaturalizar o modo como a relação entre
poder e verdade foi pensada na modernidade, ele aponta diversas formas de ligar o
exercício do poder à verdade no pensamento moderno, a partir do século XVII.
Primeiramente, a verdade que deve ser manifestada éa do Estado como objeto de ação
governamental, ou seja, o problema da razão de Estado tratado emSegurança,
Território, População (FOUCAULT, 2008b); em segundo lugar, haveria a chegada a
um ponto utópico na história em que o império da verdade faria reinar sua ordem sem
que as decisões de uma autoridade tivessem que intervir, e o governo seria a superfície
de reflexão da verdade. Trata-se da ideia dos fisiocratas, que ele mostrou em O
Nascimento da Biopolítica (FOUCAULT, 2008c).

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O terceiro momento reflete sobre o século XIX, em que a arte de governar


está ligada àdescoberta de uma verdade e ao seu conhecimento objetivo, propiciando a
constituição de um saber especializado. Ele dá como exemplo desse princípio o
socialista Saint-Simon, que estava ligado àideia de progresso iluminista. Segundo W.
Hofmann (HOFFMANN, 1984: 48-55), Saint-Simon entendia que a história da
humanidade era regida pela grande lei do autoaperfeiçoamento, tal como ocorria na
história da natureza. Na modernidade, porém, cabia a uma filosofia positiva, que se
baseava na experiência, reconhecer as leis ordenadas do período, percebendo quais
elementos representavam o progresso objetivo em comparação ao período precedente.
Sua crítica da ordem vigente e a sua proposta de uma transformação passavam,
portanto, pelo seguinte lema:
Não se trata mais de idealizar intelectualmente uma sociedade do
futuro; em vez disso, devem ser já reconhecidas as tendências
concretas e elas devem ser promovidas. Assim, no lugar do direito
natural em Saint-Simon surge a ciência positiva. Faz parte da lei do
desenvolvimento superior que as grandes questões sociais se
posicionem (...) de uma maneira (...) cada vez mais generalizada
(HOFFMANN, 1984: 49).

Ainda, em um quarto momento, muitos acreditaram que se fosse possível fazer


com que os indivíduos conhecessem a verdade, o governo perderia sua legitimidade. E a
revolução aconteceria pela tomada de consciência dos mecanismos de exploração e de
dominação. Princípio, portanto, da tomada de consciência universal como o meio
de perturbação dos governos, dos regimes e dos sistemas, como defendeu Rosa
Luxemburgo[6], que foi uma importante teórica e ativista marxista do Partido Social
Democrata da Alemanha, no início do século XX, e apareceu como uma das grandes
vozes dissonantes da esquerda do período, fazendo críticas severas ao leninismo. Edson
Passetti fala sobre a importância dos posicionamentos de Rosa Luxemburgo:
Entre os revolucionários, Rosa Luxemburgo, chamou a atenção, em
seu ensaio Revolução Russa, de 1919, para a importância da
democracia como forma de educação política do proletariado urbano e
do campesinato durante a revolução. Alertou os bolchevistas para o
perigo do totalitarismo, da ditadura do proletariado transformar-se em
ditadura sobre o proletariado, mas continuou sendo considerada por
Lenin como apenas uma anarquista. Teve suas idéias e críticas
arquivadas até a segunda metade do século XX, depois da morte de
Stalin e do notório massacre das comunas húngaras, em
1954 (PASSETTI, 2002: 149-150).

Apesar dessa posição dissonante, ela apostava, como os marxistas e socialistas,


que a revolução não acontecia porque as “massas”, os operários estavam desprovidos da

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consciência da exploração. Cabia, nesse caso, ao intelectual ou ao Partido levar às


classes dominadas a realidade objetiva das condições sociais e econômicas existentes
para que, enfim, quando todos estivessem munidos desse conhecimento, lutassem contra
a dominação e a opressão burguesa.
Finalmente, a última ideia ressalta que o triunfo dos regimes socialistas se deu
exatamente porque todos sabiam a verdade, como disse Soljenítsin [7], que foi preso e
condenado a trabalhos forçados pelo estalinismo. Ele ganhou grande destaque nos anos
de 1970, denunciando a prática de repressão política soviética. Ou seja, no terror foi a
verdade, e não a mentira, que imobilizou as pessoas (FOUCAULT, 2011a: 57-58).
Para Foucault, essas maneiras modernas de refletir as relações entre o governo e
a verdade são definidas em função de um real que seria o Estado ou a sociedade. A
sociedade é objeto de saber e de processos espontâneos. Além disso, essas análises
pressupõem um saber que seria da ordem do conhecimento objetivo dos fenômenos. A
ligação entre exercício de poder e manifestação da verdade, porém, é muito mais antiga,
e está para além da finalidade de governar de modo eficaz.
É interessante, portanto, perceber como Foucault problematiza o modo como
a época moderna pensou essa relação entre o exercício de poder e a manifestação da
verdade, indicando as limitações dessas análises. Nem sempre governar significou ter
uma relação com o real, entendido como o Estado ou a sociedade, e implicou elaborar
uma racionalidade de Estado. As diferenças demonstram a sua particularidade histórica,
como também a fragilidade de sua existência. Por isso, a pergunta que norteia o
curso: “como, em nossa civilização, funcionaram as relações entre o governo dos
homens, a manifestação da verdade sob a forma da subjetividade e a salvação para todos
e cada um?” (FOUCAULT, 2011a: 68) é uma recusa à explicação feita pela análise
ideológica. Esta defende que quanto mais os homens estão preocupados com a salvação
do além, é mais fácil governá-los aqui embaixo (FOUCAULT, 2011a: 68). Ele comenta
sobre o significado dessa recusa:
Não é mais a crítica da representação em termos de verdade e
ideologia ou de ciência, de racionalidade ou irracionalidade; não
é mais a crítica da representação nesses termos que deverá servir de
indicador para definir a legitimidade do poder ou para denunciar sua
ilegitimidade: é o movimento para separar-se do poder que deve servir
de revelador da transformação do sujeito e das relações que ele
mantém com a verdade (FOUCAULT, 2011a: 70).

Ao afirmar que nenhum poder é evidente ou inevitável e, assim, não deve ser
aceito, Foucault ainda se pergunta:

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(...) o que é feito do sujeito e das relações de conhecimento no


momento em que nenhum poder é fundado no direito, nem na
necessidade; no momento em que qualquer poder jamais repousa a
não ser sobre a contingência e a fragilidade de uma história; no
momento em que o contrato social é um blefe e a sociedade civil um
conto para crianças; no momento em que não existe nenhum direito
universal, imediato e evidente que possa, em todo lugar e sempre,
sustentar uma relação de poder qualquer que ela seja (FOUCAULT,
2011a: 70-71).

É, nesse momento, que Foucault discute as suas aproximações e diferenças com


o anarquismo, ao propor o método da “anarqueologia”. Interessa-me entender como o
tema do anarquismo aparece a partir da crítica que ele faz ao conceito de ideologia. A
anarqueologia dos saberes implica excluir a divisão entre o científico e o ideológico e,
ainda, mostrar como “a especificidade da ciência não seja definida por oposição a todo
o resto ou a toda ideologia, mas que sua especificidade seja simplesmente definida entre
outros regimes de verdade ao mesmo tempo possíveis e existentes” (FOUCAULT,
2011a: 86). Essa crítica também se estende à discussão do conceito de evidência em
relação à verdade (FOUCAULT, 2011a: 80-81), como ao problema da
lógica ((FOUCAULT, 2011a: 82-83). Novamente, ele indica a sua preocupação com
outros regimes possíveis de verdade:
(...) é preciso compreender a ciência como somente um dos regimes
possíveis de verdade e que existem outros modos de ligar o
indivíduo à manifestação do verdadeiro por outras artes, com outras
formas de ligação, com outras obrigações e outros efeitos além desses
definidos na ciência, por exemplo, pela autoindexação do
verdadeiro (FOUCAULT, 2011a: 84).
A reflexão em torno da coragem da verdade (FOUCAULT,
2011b) trata claramente dessa problemática, indicando outros regimes de verdade
possíveis. Será a partir dessas reflexões sobre o dizer verdadeiro que Foucault
perguntará: o que temos para além do sujeito de conhecimento e da sua ligação com a
verdade? É uma crítica, dessa maneira, não somente ao pensamento científico ou ao
marxismo, mas também a todo um modo de pensar a mudança ou a revolução. A crítica
à ideologia aparece novamente no seguinte trecho de Foucault, no qual ele explica seus
estudos sobre a loucura:
(...) à série categoria universal, posição humanista, análise ideológica
e programação de reformas, opõe-se uma série que seria: recusa dos
universais, posição anti-humanista, análise tecnológica dos
mecanismos de poder; e, no lugar de um programa de reformas,
digamos, relações mais extensas de pontos de não
aceitação (FOUCAULT, 2011a: 73).

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A GENEALOGIA COMO METÁFORA DA GUERRA E OS LIMITES DA


DIALÉTICA
É no curso dado no Collège de France, em 1976, intitulado Em Defesa da
Sociedade, queFoucault trata da concepção da história entendida pela genealogia
nietzschiana como relação de forças, como dominação, enfim, como guerra. A questão
principal que ele se propõe a estudar em todo o curso é a seguinte:
(…) como, desde quando e por que se começou a perceber ou a
imaginar que éa guerra que funciona sob e nas relações de poder?
Desde quando, como, por que se imaginou que uma espécie de
combate ininterrupto perturba a paz e que, finalmente, a ordem civil
(...) é uma ordem de batalha? Quem imaginou que a ordem civil era
uma ordem de batalha? (...) quem procurou, no barulho da confusão
da guerra, quem procurou na lama das batalhas, o princípio de
inteligibilidade da ordem, do Estado e de suas instituições e de sua
história?(FOUCAULT, 2005c: 54).

Em outras palavras, muitos poderiam perguntar: como foi possível inverter o


princípio de Clausewitz?[8] Para Foucault, entretanto, a pergunta deveria ser formulada
de outro modo: qual foi o princípio que Clausewitz, no século XIX, inverteu quando
disse “a guerra não passa de política continuada?” (FOUCAULT, 2005c: 54). O
princípio contrário – de que a política é a guerra continuada por outros meios – é
anterior a Clausewitz e, então, foi ele quem inverteu uma tese, que circulava desde os
séculos XVII e XVIII. A genealogia da história como guerra, portanto, da própria
genealogia de Foucault, remonta a esse período.
Foucault aponta, na “Aula de 21 de janeiro de 1976”, como o desenvolvimento
dos Estados, ao longo de toda a Idade Média e no limiar da época moderna, produziu
um paradoxo histórico: com o aparecimento de um poder estatal centralizado, apenas
este podia iniciar a guerra e, com isso, foram apagadas as relações belicosas que
estavam presentes no corpo social inteiro.[9] O paradoxo surge nesse momento. Ao
mesmo tempo em que é proibida a guerra entre os integrantes que compunham o interior
de cada Estado, aparece um novo discurso, o da guerra entendida como relação social
permanente. Para Foucault, esse discurso tem sua data precisa, depois do fim das
guerras civis do século XVI. Esse é primeiro discurso histórico-político da sociedade,
em contraposição ao filosófico-jurídico. O primeiro discurso defende que o poder
político não começa quando cessa a guerra, pois foi esta que presidiu o nascimento dos
Estados. Dessa maneira, o direito, a paz e as leis nasceram no sangue das batalhas, e não
são produtos de um contrato decidido harmonicamente por todas as partes.

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Segundo esse discurso histórico-político, sob a pretensa pacificação da lei, a


guerra continua permeando todos os seus mecanismos de poder. Há uma guerra
permanente de uns contra os outros, e essa frente de batalha coloca necessariamente os
lados num campo ou no outro. O sujeito neutro, então, não existe, porque um sempre
será forçosamente o adversário de outro. Percebe-se que o que perpassa a
sociedade é uma “estrutura binária”, e não uma descrição piramidal feita na Idade
Média ou as que as teorias filosófico-jurídicas faziam do corpo social, como destaca
Foucault:
Uma estrutura binária perpassa a sociedade (...) À grande descrição
piramidal que a Idade Média ou as teorias filosófico-jurídicas faziam
do corpo social, àgrande imagem do organismo ou do corpo humano
que Hobbes apresentará, ou ainda à organização ternária (em três
ordens) que vale para a França (e atécerto ponto para certo número de
países na Europa) e que continuará a articular certo número de
discursos e, em todo caso, a maioria das instituições, opõe-se– não,
exatamente, pela primeira vez, mas pela primeira vez como
articulação histórica precisa – uma concepção binária de sociedade.
Há dois grupos, duas categorias de indivíduos, dois exércitos em
confronto (FOUCAULT, 2005c: 59).

Para esse discurso histórico-político, então, o corpo social não é comandado por
necessidades da natureza ou por exigências funcionais. Nele, devemos sempre
redescobrir a guerra, seus acasos e suas peripécias. Foucault considera esse discurso
importante para a sociedade ocidental, pois ele será o primeiro, desde a Idade Média,
que pode ser denominado, rigorosamente, de histórico-político. E por duas razões: a
primeira delas refere-se ao sujeito que produz esse discurso. Ele não procura a posição
do jurista ou do filósofo, isto é, a posição do sujeito universal, totalizador ou neutro.
Quem narra a história e diz a verdade está, necessariamente, de um lado ou de outro,
já que batalha para uma vitória particular. Aparece, dessa maneira, não o discurso da
totalidade, da neutralidade ou da verdade, mas um discurso de perspectiva, bem ao
modo daquela história que defendiam Nietzsche e Foucault (2005e: 30):
(…) sem dúvida, ele faz o discurso do direito, e faz valer o direito,
reclama-o. Mas o que ele reclama e o que faz valer são
os “seus” direitos –“são os nossos direitos”, diz ele: direitos
singulares, fortemente marcados por uma relação de propriedade, de
conquista, de vitória, de natureza. Será o direito de sua família ou de
raça, o direito de sua superioridade ou o direito da anterioridade, o
direito das invasões triunfantes ou o direito das ocupações recentes ou
milenares. De todo modo, é um direito a um só tempo arraigado numa
história e descentralizado em relação a uma universalidade jurídica. E,
se esse sujeito que fala do direito (ou melhor, de seus direitos) fala da
verdade, essa verdade não é, tampouco, a verdade universal do

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filósofo (...) é sempre um discurso de perspectiva (FOUCAULT,


2005c: 60-61).

A segunda razão destaca a inversão das polaridades tradicionais de


inteligibilidade, pois esse discurso postula a sua explicação por baixo (FOUCAULT,
2005c: 63). A parte de baixo, nessa explicação, porém, não é a mais clara e a mais
simples, mas o lado mais confuso, mais obscuro, mais desordenado e o mais condenado
ao acaso. Foucault fala sobre essa explicação pela parte de baixo:
(…) o que deve valer como princípio de decifração da sociedade e de
sua ordem visível é a confusão da violência, das paixões, dos ódios,
das cóleras, dos rancores, dos amargores; é também a obscuridade dos
acasos, das contingências, de todas as circunstâncias miúdas que
produzem as derrotas e garantem as vitórias (FOUCAULT, 2005c: 63-
64).

São esses princípios, portanto, que constituem a trama permanente da história e


das sociedades. E é acima dessa trama, dessa explicação por baixo, que se constitui algo
de frágil e de superficial, para manter a vitória, para conservar ou inverter as relações de
força, como explicita Foucault: “(...) é uma racionalidade (...) cada vez mais vinculada
também à astúcia e à maldade daquele que, tendo por ora a vitória, e estando favorecido
na relação de dominação, têm todo o interesse de não as pôr de novo em jogo”
(FOUCAULT, 2005c: 64). Temos, dessa maneira, nessa explicação, um eixo
ascendente: enquanto, na base, encontra-se uma irracionalidade fundamental e
permanente, na qual irrompe a verdade, em suas partes altas, temos uma racionalidade
frágil, transitória, sempre comprometida com a ilusão e a maldade. A verdade, assim,
está do lado da desrazão e da brutalidade, enquanto a razão, do lado da quimera e da
maldade. É uma inversão do discurso explicativo do direito e da história existente
até esse momento. Como bem ressalta Foucault:
(…) o esforço explicativo desse discurso consistia em destacar uma
racionalidade fundamental e permanente, que seria por essência
vinculada ao justo e ao bem, de todos os acasos superficiais e
violentos, que são vinculados ao erro. Inversão, pois, acho eu, do eixo
explicativo da lei e da história (FOUCAULT, 2005c: 65).

A última razão para ele considerar o discurso histórico-político importante é que


ele se desenvolve inteiramente na dimensão histórica. Para esse discurso, não se trata de
tomar a história como um dado superficial, que se deveria ordenar em alguns princípios
estáveis e fundamentais. Trata-se, entretanto, de redescobrir o passado esquecido das
lutas reais, das vitórias efetivas e das derrotas. Sob a lei, a estabilidade do direito e a
verdade, é preciso mostrar os gritos de guerra e a dissimetria das forças. Não se deve,

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assim, entender a dialética como a grande volta a esse discurso, pois, como aponta
Foucault, ela atuou como a retomada e a mutação do discurso filosófico-jurídico. A
dialética codifica a luta, a guerra e os enfrentamentos dentro de uma pretensa lógica da
contradição e, ainda, retoma a totalização, a racionalidade fundamental e o sujeito
universal. Será a genealogia de Nietzsche e de Foucault que retomará esse discurso
histórico-político, e fará da história uma guerra constante.
Para Foucault, portanto, essa inversão do problema da guerra no discurso da
história, não foi o efeito do controle assumido por uma filosofia dialética sobre a
história. A modificação pela burguesia, portanto, de um discurso histórico, dos seus
elementos fundamentais que ele possuía no século XVIII foi, para Foucault,
uma “autodialetização” do discurso histórico. É a partir do século XIX que aparece essa
relação característica entre a filosofia e a história, quando a primeira encontra na
segunda e no presente, o momento em que o universal se expressa em sua verdade. No
século XVIII, a filosofia da história existia apenas como uma especulação sobre a lei
geral da história e, ésomente a partir do século XIX que começa algo novo e
fundamental, caracterizado pelas seguintes perguntas: “o que, no presente, traz consigo
o universal? O que, no presente, é a verdade do universal?” (FOUCAULT, 2005c:
284). Estas são questões tanto da filosofia quanto da história. E é, nesse momento, que
Foucault aponta o nascimento da dialética e, com ela, a colonização do discurso da
história como guerra.
O par burguesia e dialética, assim, modificou drasticamente o discurso da
história. Ao colonizar o discurso histórico-político, a dialética civilizou as contradições,
as dominações e a guerra presentes na história. Esse aburguesamento, também,
regularizou os diferentes saberes, homogeneizando-os e hierarquizando-os em torno da
ciência. Não podemos, entretanto, deixar de perceber que essa “dialetização” da história
produziu inúmeros contra-ataques, tal como a genealogia de Foucault no século XX.

A INSURREIÇÃO DOS ‘SABERES SUJEITADOS’ E OS LIMITES DO


MARXISMO COMO CIÊNCIA
Em 1976, no curso Em Defesa da Sociedade, Foucault entende que seu trabalho
fazia parte de problematizações peculiares. Primeiramente, o que ele chamou de
a “eficácia das ofensivas dispersas e descontínuas” (FOUCAULT, 2005c: 8). Com a
eficácia dessas críticas descontínuas, particulares e locais, descobriu-se algo
fundamental: o “efeito inibidor próprio das teorias totalitárias (...) ou globais”

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(FOUCAULT, 2005c: 10). Isso não quer dizer que o marxismo e a psicanálise, duas
teorias totalizantes, não deram instrumentos localmente utilizáveis, mas só os
forneceram com a condição de que a unidade teórica do discurso ficasse suspensa,
recortada e deslocada. Privilegiou-se, nesse período, o caráter local da crítica:
(…) caráter local da crítica, o que não quer dizer, creio eu, empirismo
obtuso, ingênuo ou simplório, o que também não quer dizer ecletismo
frouxo, oportunismo, permeabilidade a um empreendimento teórico
qualquer, nem tampouco ascetismo um pouco voluntário, que se
reduziria ele próprio à maior magreza teórica possível. Creio que esse
caráter essencialmente local da crítica indica, de fato, algo que seria
uma espécie de produção teórica autônoma, não centralizada, ou seja,
que, para estabelecer sua validade, não necessita da chancela de um
regime comum (FOUCAULT, 2005c: 10-11).

Além disso, essa crítica local ocorreu através do que Foucault denominou
como “insurreição dos ‘saberes sujeitados’” (FOUCAULT, 2005c: 11). Os saberes
sujeitados podem ser designados como os conteúdos históricos que foram sepultados e
mascarados em sistematizações formais. Isso porque, para ele, no caso da crítica efetiva
da prisão e do hospício, não foi uma semiologia da vida em hospício ou uma sociologia
da delinqüência que a permitiram, mas o aparecimento de conteúdos históricos.
Por “saberes sujeitados”, ainda, Foucault entende outra coisa: uma série de
saberes que estavam desqualificados como saberes não-conceituais, insuficientemente
elaborados, ingênuos, hierarquicamente inferiores e que estavam abaixo do nível do
conhecimento ou da cientificidade esperada. Há o reaparecimento, dessa maneira,
desses saberes denominados como “de baixo”, exatamente por serem desqualificados,
como os saberes do psiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o do médico, o do
delinqüente, etc. Esse “saber das pessoas” que, segundo Foucault,“não é de modo algum
um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, local, regional,
um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força
apenas àcoincidência que opõe a todos aqueles que o rodeiam” (FOUCAULT, 2005c:
12), que proporcionou a crítica local.
É, nesse sentido, que Foucault denomina esses últimos embates de “pesquisas
genealógicas múltiplas”, porque significavam, ao mesmo tempo, a redescoberta exata
das lutas e a memória bruta dos combates. Essas genealogias só foram possíveis pela
revogação da tirania dos discursos englobadores e de suas hierarquias. Para a
genealogia, ainda, não se trata de opor a uma teoria abstrata a multiplicidade concreta
dos fatos; também não seria o caso de desqualificar um dado conhecimento disperso,
que não é acabado e organizado em torno de um corpus reconhecido e aprovado,
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opondo-lhe, na forma de um cientificismo, o rigor dos conhecimentos bem


estabelecidos. Não se trata, assim, nem de empirismo e nem de positivismo, em seus
sentidos comuns. Trata-se, ao contrário, de privilegiar os saberes locais, descontínuos,
desqualificados e não legitimados, contra uma instância teórica unitária que tem por
função hierarquizar e ordenar em nome de um conhecimento verdadeiro e em nome dos
direitos da ciência. As genealogias, nesse sentido, são anticiências, mas em uma direção
específica:
As genealogias não são, portanto, retornos positivistas a uma forma de
ciência mais atenta ou mais exata. As genealogias são, muito
exatamente, anticiências. Não que elas reivindiquem o direito
lírico à ignorância e ao não-saber, não que se tratasse da recusa de
saber ou do pôr em jogo, do pôr em destaque os prestígios de uma
experiência imediata, ainda não captada pelo saber. Não édisso que se
trata. Trata-se da insurreição dos saberes. Não tanto contra os
conteúdos, os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de uma
insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores
de poder que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um
discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a
nossa (...) É exatamente contra os efeitos de poder próprios de um
discurso considerado científico que a genealogia deve travar o
combate (FOUCAULT, 2005c: 13-14).

A genealogia, dessa forma, tem um empreendimento específico: libertar os


saberes históricos, para que tenham a capacidade de lutar contra a coerção de um
discurso teórico unitário, formal e científico que enquadra e formata as multiplicidades.
O projeto da genealogia, então, é a reativação dos saberes locais contra a hierarquização
científica do conhecimento e seus efeitos de poder. E o que mais interessa Foucault,
nesses estudos, não é dar um solo teórico contínuo e sólido a todas as genealogias
dispersas, unificando-as, mas entender o que está em jogo nesse movimento de colocar
em oposição, em luta ou em insurreição, os saberes contra a instituição e os efeitos de
saber e de poder do discurso científico. De qualquer modo, o que está em jogo em todas
essas genealogiasé saber: o que é o poder que apareceu com o desmoronamento do
nazismo e o recuo do estalinismo?
Para Foucault, nesse caso, interessa problematizar uma dada certeza: a de que a
análise dos poderes poderia ser deduzida da economia. Apesar das grandes diferenças,
ele destaca essa certeza em comum tanto na concepção jurídica e liberal do poder
político, presente nos filósofos do século XVIII, quanto na concepção corrente do
marxismo de poder. É um fenômeno caracterizado por ele como o “economicismo” na
teoria do poder. Vejamos, primeiramente, o caso da teoria jurídica clássica do poder.

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Para esta, o poder é um direito que se possuiria como um bem, e que se poderia
transferir ou alienar, através de um ato fundador de direito, que seria da ordem da
cessão ou do contrato. Todo indivíduo deteria o poder e o cederia, total ou parcialmente,
para constituir uma soberania política. Esse modelo de operação jurídica, então, defende
que o poder seria da ordem do contrato. Daí as comuns analogias entre o poder e os
bens, o poder e a riqueza.
Há, por outro lado, na concepção marxista corrente de poder algo diferente: a
sua“funcionalidade econômica” (FOUCAULT, 2005c: 19). Nesse caso, ele teria como
papel essencial manter relações de produção e, ao mesmo tempo, reconduzir uma
dominação de classe, que as modalidades próprias da apropriação das forças produtivas
tornaram possível. O poder político, assim, encontraria na economia sua razão de ser
histórica. Diante dessas duas concepções de poder, Foucault aponta o grande problema
de suas pesquisas, de suas genealogias, a partir das seguintes questões:
Primeiramente: o poder está sempre numa posição secundária em
relação àeconomia? É sempre finalizado e como que funcionalizado
pela economia? O poder tem essencialmente como razão de ser e
como finalidade servir àeconomia? Está destinado a fazê-la funcionar,
a solidificar, a manter, a reconduzir relações que são características
dessa economia e essenciais ao seu funcionamento? Segunda questão:
o poder é modelado com base na mercadoria? O poder é algo que se
possui, que se adquire, que se cede por contrato ou força, que se aliena
ou se recupera, que circula, que irriga esta região, que evita
aquela? (FOUCAULT, 2005c: 20-21).

Para Foucault, é necessário utilizar instrumentos diferentes para analisar as


relações de poder, mesmo que elas estejam profundamente intrincadas com as relações
econômicas. O que diz, fundamentalmente, a “hipótese de Nietzsche”, segundo a qual o
poder deve ser analisado a partir do modelo da guerra? Primeiro, que as relações de
poder se apoiam em uma relação de força estabelecida em um dado momento,
historicamente preciso, na guerra e pela guerra. E, além disso, se o poder político pára a
guerra e tenta fazer reinar uma paz na sociedade civil, não é para suspender os efeitos da
guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na batalha final da guerra.
O poder político, contrariamente, teria como função reinserir perpetuamente essa
relação de força, em uma guerra silenciosa, tanto nas instituições, nas desigualdades
econômicas, quanto na linguagem e no corpo dos indivíduos. A política é a recondução
do desequilíbrio das forças manifestado na guerra. Além disso, no interior dessa “paz
civil”, as lutas políticas, os enfrentamentos a propósito do poder e as modificações das

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relações de força, num sistema político, devem ser interpretados apenas como as
continuações da guerra.
Em Segurança, Território, População (FOUCAULT, 2008b: 5-6), Foucault fala
da prática filosófica preocupada com uma política da verdade. As suas análises sobre as
relações de poder foram de extrema importância para diagnosticar as lutas, os embates,
os choques desse círculo da filosofia que compreende o combate em torno da verdade.
Mas, a política convencional não lhe provoca empolgações. Decepcionado com os
movimentos de extrema esquerda depois do “Maio de 1968”, e cansado das inúmeras
discussões em torno do marxismo, ele revela o seu desejo de “nunca fazer política”
(FOUCAULT, 2008b: 6). Sua militância, portanto, ocorria em outras frentes: “Tentei
fazer coisas que implicassem um engajamento pessoal, físico e real, e que colocassem
os problemas em termos concretos, precisos, definidos no interior de uma situação
dada” (FOUCAULT, 2008b: 31-32). As análises apresentadas nesse curso sobre o poder
pastoral contrapõem-se à concepção de ideologia, quando ele ressalta as estratégias e as
táticas:
Em vez de dizer: cada classe, ou grupo, ou força social tem sua
ideologia, que permite traduzir na teoria suas aspirações, aspirações e
ideologia de que se deduzem rearranjos institucionais, que
correspondem às ideologias e satisfazem às aspirações – conviria
dizer: toda transformação que modifica as relações de força entre
comunidades ou grupos, todo conflito que os põe em confronto ou que
os faz rivalizar requer a utilização de táticas que permitem modificar
as relações de poder e a introdução de elementos teóricos que
justificam moralmente ou fundam em racionalidades essas
táticas(FOUCAULT, 2008b: 285).

Por fim, seria fundamental ressaltar que Foucault distingue o marxismo de


Marx. O seu problema é com o primeiro, que se tornou uma modalidade de poder na
sociedade moderna. Ele emergiu dentro de um pensamento racional, intitulando-se a
ciência das ciências e acabou, assim, por ligar-se a toda uma série de proposições
coercitivas. E é exatamente o caráter de profecia que possibilitava o exercício dessas
forças. Além disso, o marxismo funcionou por meio de um partido político e nunca
conseguiu se livrar da dependência em relação ao aparelho estatal. Ele forma, para
Foucault, um conjunto de relações de poder, ao se ver como um discurso científico, uma
profecia e uma filosofia de Estado ou ideologia de classe. Para Foucault,
portanto, é preciso acabar com toda essa dinâmica de relações de poder ligadas ao
marxismo e às suas funções.

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Obviamente, ele reconhece a grande importância do pensamento de Marx, mas o


uso que o marxismo fez de seu pensamento acabou por elegê-lo como um detentor
decisivo da verdade. Foucaul critica, então, a ligação entre os efeitos de verdade e a
filosofia estatal em que se baseia o marxismo. Para ele, não se deve procurar a
autenticidade de Marx, mas utilizá-lo no que ele nos serve, profaná-lo, desviá-lo,
até que se possa seguir em frente e inventar novos modos de sonhar
politicamente (FOUCAULT, 1994f). Nessa direção, é fundamental prestar atenção
à seguinte frase de Foucault: “o que existe está longe de preencher todos os
espaços possíveis” (FOUCAULT, 1994g: 67). O que ressoa dessa frase é a insistência
de Foucault na invenção de novas formas de militâncias políticas e de artes do viver.

(Este texto conjuga algumas das reflexões que realizei em: (VIEIRA, 2008) e (VIEIRA,
2015). Ambos os trabalhos foram financiados pela FAPESP.)

AUTORA
* Priscila Piazentini Vieira é professora adjunta do Departamento de História da UFPR
desde 2015. Possui graduação (2005), mestrado (2008), doutorado (2013) e é pós-
doutoranda em História pelo IFCH da UNICAMP, sob a orientação de Margareth Rago.
Entre 2010 e 2011, fez Doutorado Sanduíche na Université Est-Créteil, com a
supervisão de Frédéric Gros. Em 2005, teve sua monografia Michel Foucault e a
História Genealógica em Vigiar e Punir publicada e premiada pelo Concurso de
Monografias do IFCH da UNICAMP. Em 2015, teve sua tese A coragem da verdade e a
ética do intelectual em Michel Foucault publicada como livro pela Editora Intermeios.
Tem experiência na área de História, com ênfase em Teoria da História e História
Contemporânea.

REFERÊNCIAS
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KURLANSKI, M. 1968: o ano que abalou o mundo. Rio de Janeiro: José Olympio,
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LÊNIN, V.L. Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1978.


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ROSZAK, T. A Contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição
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História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
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______. A coragem da verdade e a ética do intelectual em Michel Foucault. São Paulo:
Intermeios, 2015.

NOTAS
[1] Dezessete anos antes, na “Introdução” de Arqueologia do Saber, Foucault define a sua “história do
pensamento”, aproximando-a à nova história francesa, como a história das mentalidades, por exemplo.
Naquele momento, não se tratava de comparar os diferentes objetos de estudo, mas de ressaltar as noções
de tempo descontínuo e de “documento- monumento” partilhadas tanto por Foucault quanto pela
historiografia francesa. (FOUCAULT, 2008: 03-20).
[2] Outro texto que trata dessa concepção de experiência é: “Préface à l’Histoire de la sexualité”
(FOUCAULT, 1994b: 578-584).
[3] Ver: (LÊNIN, 2006).
[4] Sobre esses movimentos de “Contracultura”, ler: (ROSZAK, 1972); (PEREIRA, 1983); (REIS
FILHO, 1998);(KURLANSKI, 2005); (ARTIÈRES, 2008).
[5] Para entender essa discussão, ler: (MACHADO, 1982).
[6] Ver a coletânea de textos de Rosa Luxemburgo em: (CASTRO, 1979).
[7] Sobre Soljenítsin, ler: (CHRISTOFFERSON, 2009: 117-146).
[8] Clausewitz foi um general e estrategista militar prussiano do século XIX. O princípio, referido por
Foucault, de que “a guerra é a continuação da política por outros meios” foi desenvolvido em sua
obra Da Guerra, de 1874. (CLAUSEWITZ, 1996).
[9] Para entender a importância da guerra para a nobreza, e a identificação desta com a cavalaria, na
Idade Média, ver: (DUBY, 1989).

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Artigos e ensaios

UMA FILOSOFIA POLÍTICA PARA O BRASIL:


Roberto Mangabeira Unger e o pensamento com
sotaque
Tiago Medeiros Araujo*

RESUMO: Este texto discute por que a filosofia política de Roberto Mangabeira Unger
convém a quem pretende pensar o Brasil. Dividido em quatro partes, o texto aborda a
ausência da questão sobre o tipo de sociedade desejável, de acordo com o ponto de vista
dos filósofos mais lidos na academia brasileira; esboça dois grandes grupos genéricos
de respostas exitosas à questão; apresenta algumas teses gerais de Mangabeira Unger,
que servem de marcadores de seu programa filosófico; aponta, por fim, alguns
elementos de sua visão sobre o Brasil, sugerindo a relevância de seu pensamento
político para a construção de um projeto nacional.
PALAVRAS-CHAVE: UNGER, BRASIL, FILOSOFIA POLÍTICA

1
UMA PERGUNTA PARA FILÓSOFOS POLÍTICOS
A erudição e a sofisticação com que argumentam alguns dos mais prestigiados
filósofos políticos contemporâneos convencem auditórios de todo o mundo, mas
exercem especial fascínio nos ambientes acadêmicos. Se fossem puxadores de trio
elétrico, filósofos como Rawls, Habermas, Bobbio, Agamben, Derrida, Deleuze,

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Foucault, Zizek etc., teriam vestido professores e pesquisadores universitários com as


fantasias mais comprometedoras e os feito dançar as coreografias mais circenses. É que
estes gênios tem qualquer coisa de carisma artístico – para não dizer religioso –, em
posse do quê eles renovam a assimilação de suas obras nos terrenos de saber
especializado, fazendo com que cada nova publicação – candidata natural a best-seller
universitário – chegue às mãos dos destinatários como objetos quase que ungidos.
A princípio, este não deveria ser um fato que provocasse revolta. Afinal, não são
as suas ideias expressões genuínas de um exercício profundo e de aspiração supra-
histórica e transnacional a que convém chamar de filosofia? Pensemos: não é
definitivamente reveladora a tese de que o poder é uma constante manifesta nas
instituições e práticas humanas, sob a presença da qual elas se tornam formas sociais de
dominação e exploração, tal como o postularia Foucault? Ou então: não é perfeitamente
admissível o pensamento de que a legitimidade do poder reside na deliberação
possibilitada por meio de expedientes de comunicação não distorcida entre indivíduos e
grupos, tal como o propõe Habermas? Ambas as ideias não são imprescindíveis para
quem quer pensar a política hoje, e em qualquer lugar do mundo?
Não nos percamos entre ironias e deboches ingênuos. Que as teses destes
grandes heróis sejam persuasivas e convenientes ninguém há de duvidar. Que elas
tenham alguma utilidade em realidades sociais mesmo as alheias ao radar dos filósofos
proponentes, também é algo que se pode admitir. Contudo, o que pode estar sujeito a
suspicácia, por parte de quem participa de experiência social, cultural, institucional etc.
distinta da do pensador lido com destrambelhado entusiasmo, é o horizonte por ele
traçado. Ponha-se, então, a questão simples e ignorada: "a que tipo de sociedade o
conjunto de ideias deste pensador intenta?" e vejamos qual resposta pode ser entrevista
na obra em exame.
Conquanto soe algo mesquinha e imediatista, esta pergunta não é extemporânea
ao universo dos filósofos políticos históricos. Aristóteles não pensou a política senão
para solidificar as instituições e práticas – entre as quais o escravismo – da democracia
grega existente em sua época. Maquiavel não escreveu O Príncipe (1513),
interrompendo os Discursos Sobre a Segunda Década de Tito Lívio (1531), como um
manual prático para políticos ambiciosos (embora um falecido governador da Bahia
houvesse obtido êxito assim o interpretando), mas como uma compreensão geral dos
requisitos necessários para consumar a unificação da Itália, totalmente fragmentada no
período. Hobbes, quem melhor pôs a razão a serviço do pânico, pariu o Leviatã (1651)

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do útero da Guerra Civil Inglesa, então emblema do impacto social da ausência de uma
autoridade central e absoluta empoderada pela razão. Hegel assistira à ascensão de
Napoleão, a seu ver, a superação do estado autofágico criado pelo jacobinismo e a
consumação da história no velho continente: “vi o imperador, essa alma do mundo, sair
da cidade, em viagem de inspecção; é, de fato, um sentimento maravilhoso ver
semelhante indivíduo que, concentrado aqui em um ponto, sentado em seu cavalo, se
estende sobre o mundo e o domina” – escrevera isso justamente no bojo da ocupação
francesa na Prússia, quando fora forçado ao exílio, fugindo do próprio Napoleão,
levando apenas os manuscritos de sua Fenomenologia do Espírito (1807).
Todos estes pensadores tiveram em mente – primeiramente – uma sociedade:
a sua. Ocuparam-se de seu tempo e, principalmente, de seu espaço. A tarefa de filosofar
sobre a política lhes era a própria missão de organizar, racionalmente, a sociedade,
extirpar seus males, sedimentar suas instituições, torná-la menos vulnerável e mais
próspera, mais solidária, mais livre. Suas categorias teóricas não são mais do que
experiências concretas vestidas em carapuças abstratas, nas quais, porém, menos se
ostenta arroubos de vaidade intelectual do que se cultiva sinceras preocupações voltadas
ao enfrentamento de desafios reais.
Aos filósofos contemporâneos – voltamos ao raciocínio – é mais do que
oportuno perguntar qual sociedade lhes apetece. Formulemos, então, melhor: qual
esquema global de sociedade é expressamente desejável de seu ponto de vista? Esta
pergunta tem que ser feita por quem lê o filósofo, por quem trabalha com as suas ideias,
por quem, quiçá, deseja ver realizado o seu projeto. No Brasil, a assimilação dos
filósofos mencionados no primeiro parágrafo, nas áreas das humanidades, dos estudos
jurídicos e das ciências sociais aplicadas, é imensa, como o notará qualquer curioso que
passar as vistas nos anais de congressos nacionais de pós-graduações, ou que ler as
ementas das disciplinas teóricas, ou ainda que conferir a sua continuidade/adaptação no
Ensino Médio. Se essa popularidade não sugere que há consentimentos pontuais, que
desligam elementos de um discurso de filosofia política da forma como organizar a
sociedade que ele apregoa; ela revela uma cumplicidade pusilânime, com a qual só se
pode inferir que as soluções gerais apresentadas por aqueles filósofos correspondem
perfeitamente às aspirações e aos reclames gerais da sociedade brasileira. De uma forma
ou de outra, parece permanecer robusto o abismo entre a elite pensante e a cultura
popular nacional, com seus problemas longe de terem soluções cogitáveis por gente

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paga para cogitá-las. Incongruências desse tipo nos fazem lembrar uma das deixas do
Millôr Fernandes: "Brasil, um filme pornô com trilha de Bossa Nova!" [1].

2
DUAS TENDÊNCIAS: migalhas de participação, overdose de suspicácia;
Perlustremos a gênese da bifurcação a que chegamos. A geração de pensadores
do pós-criticismo procurou responder à questão sobre a organização social apontando
para formas diferentes de combinar o socialismo (entendido como uma economia
política na qual os meios de produção pertencem ao Estado) com a democracia (o
governo gerenciado pelo conjunto da sociedade civil diversamente participativa e
representada). Contudo, o desfibramento do socialismo real trouxe uma estiagem de
ideias e esperanças que repercutiu numa dupla atitude: de um lado, a concórdia com o
projeto mais modesto e realista das socialdemocracias, isto é, a democracia política
coexistente à economia aberta e desimpedida, mas com a delegação explícita da
assistência social ao Estado; e, de outro, a mais absoluta desconfiança e revolta contra
as instituições convencionais, e às práticas e hábitos a elas associados, desconfiança
essa não suprida por um projeto que possibilitasse uma resposta positiva à questão sobre
a organização social. Tentativas de síntese entre esses dois caminhos não prosperaram -
como não vingaram mais recentemente diálogos entre burocratas e black-blocs.
Habermas e Rawls, tal como os vemos, são os melhores expoentes do primeiro
lado, assim como Foucault e Derrida do segundo. Sem ter qualquer veleidade de
escrutinar a obra destes grandes mestres, passaremos em revista a fragmentos de suas
ideias políticas, as quais chamam a atenção pelo impacto que criaram nas universidades
e nos governos de todo o mundo, inclusive no Brasil. A generosa proposta da justiça
como equidade social, por Rawls, é uma clara tentativa de atribuir função objetiva e
intransferível ao Estado, numa sociedade em que a liberdade competitiva dos mercados
é uma premissa amplamente aceita. A sociedade americana abraçou a economia de
mercado em sua eficácia para produzir riqueza, muito embora não houvesse deixado de
ostentar desavergonhadamente seus bolsões de miséria. A proposta de Rawls é a de que,
mantendo o jogo do mercado tal como ele é, podemos e devemos, por meio de um
consenso abrangente da sociedade, equipar os jogadores desassistidos para competir em
pé de igualdade com os demais, e deixar que, no certame, os de melhor desempenho
sejam vitoriosos e laureados. Trata-se de uma filosofia política que prescreve (ou que é
prescrita por) uma economia política: a filosofia que tematiza a justiça em termos de

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equilíbrio de base é perfeitamente compatível com – e talvez seja a melhor forma de


realizar – uma economia liberal centrada no princípio da competitividade sistêmica.
Injustiça seria impedir que humanos acelerassem o metabolismo do organismo
econômico simplesmente por não terem alcançado o grau mínimo de cidadania
requerido para tanto. A filosofia política rawlsiana cai como luvas nas mãos de um
regime socialdemocrata aplicado em uma sociedade dinâmica e complexa, como a
americana, que é desigual, que infla anualmente com a absorção de imigrantes e que
tenta regenerá-los de alguma forma.
A socialdemocracia também é muito bem assessorada, mas de modo levemente
distinto, pelo pensamento alemão de Jürgen Habermas. O filósofo é autor de uma
complexa e monumental teoria do agir comunicativo, a partir da qual aventa a tese de
que a inclinação ao consenso é o pressuposto básico de todas as instituições espontâneas
porque de toda experiência de comunicação. Disso, ele infere que as sociedades devem
garantir o direito à expressão e participação, nos assuntos públicos, de todos os
implicados nos vínculos sociais, atores cujas contribuições assegurariam a criação de
instituições e regras mais abrangentes e inclusivas. As formas de distorção da
comunicação prejudicam a sociedade como um todo porque impedem o alcance
máximo do consenso potencial da comunicabilidade, inibindo e excluindo agentes
sociais, indivíduos e grupos. Habermas tem em mente uma sociedade complexa que
precisa lidar com as diferenças étnicas, raciais e sociais, sem titubear para a ameaça da
irracionalidade nazista. Trata-se de um conjunto de ideias que aponta para uma
sociedade concebida nos moldes dos partidos progressistas europeus. Seu desenho mais
proveitosamente realizável é o das experiências escandinavas e renanas: as
socialdemocracias que priorizam conceder direitos e não energizar os mercados.
Do surto socialdemocrata, Rawls representa a face assistencialista, Habermas, a
ideologia da participação. Elas, juntas, depositam grandes esperanças no direito dos
cidadãos e no dever do Estado de assegurá-lo, muito embora não esbocem uma
alternativa social que dê substância à inclusão e à sustentabilidade duradoura dos
direitos, por não recomendarem uma reorganização do mercado. Assistimos aqui ao
drama narrado por Ítalo Calvino, em seu célebre "O Cavaleiro Inexistente"[2], na
passagem em que o rei Carlos Magno dialoga com um estranho cavaleiro trajado da
mais impecável armadura, um cavaleiro que, entretanto, não existe fora daquela
armadura:
- E por que não levanta a celada e mostra o rosto? [...]

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- Porque não existo, sire. [...]


- [...] E como é que está servindo, se não existe?
- Com força de vontade [...] e fé em nossa santa causa!
- Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o
dever. Bom, para alguém que não existe está em excelente forma!

Sem uma economia política capaz de reorganizar as instituições econômicas,


garantindo a inclusão do cidadão, não como mero portador de direitos abstratos, mas
como agente econômico real, autônomo, criador, o discurso socialdemocrata concebe
sua missão como um assistencialismo redistributivo, tratando indivíduos como vítimas
do mercado a serem amparadas por um Estado que distribui migalhas. Esse discurso é
explícita ou disfarçadamente abraçado nas academias brasileiras, sobretudo nos estudos
jurídicos e na ciência política, áreas nas quais a ênfase na institucionalidade requer a
procura por teorias construcionistas, ainda que minimamente. Entre os políticos
brasileiros, ele toma a forma do "discurso do social", cuja contemplação narcísica é
ironicamente pintada por Mangabeira Unger:
Cada líder político contempla-se no espelho, cercado por seu claque, e
pergunta: 'não sou eu o mais social de todos, o amigo mais sincero do
social, eu que sei reconciliar o realismo nas finanças e a eficiência na
produção com a insistência em corrigir as injustiças do mercado, eu
que não esqueço os excluídos enquanto luto para que o país siga o
exemplo triunfal das democracias do Atlântico Norte?' (Unger, 2001,
p. 9)

Mas essa não é toda a história. Além do discurso das migalhas de participação,
há um discurso mais engajado e enérgico, porém, avesso a todo e qualquer
construtivismo, apontado como ingênuo ou canalha. Trata-se de uma atitude a que se
pode chamar de overdose da suspicácia: discursos que tomaram os caminhos abertos
principalmente pelo desconstrucionismo derrideano e pelo foucauldianismo. Nas
humanidades e nos estudos literários, o desconstrucionismo penetrou com vigor
priápico e por ali espalhou sua fertilidade, tornando-se uma inevitável fonte de
articulação e referência. O combate a todas as estruturas pela desmontagem
epistemológica acumpliciou-se do discurso contra as estruturas de poder, aquele
detalhadamente concebido por Michel Foucault. Este último ou o convênio de ambos,
então, permanecem sendo as lentes por que enxergam a realidade social uma massa
túmida de sociólogos e antropólogos, bem como, e principalmente, as lideranças de
movimentos sociais organizados.
Tais atores e ideólogos oscilam entre um histérico anarquismo e um tonitruante
vácuo de ideias, quando indagados sobre qual sociedade esperam extrair de tais

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filosofias. A dificuldade de enxergar um projeto social exequível é compensada nas


produções intelectuais e na militância política pela conduta denuncista que, em muitos
momentos, assemelha-se a uma melancólica nostalgia do marxismo. Em exótica
simbiose, costumam associar obsessivamente as distintas perversões e crueldades
sociais a uma mesma fonte, como se toda a diversidade do mal proviesse de uma mesma
cabeça maligna (a do capitalista) - modus operandi semelhante ao do cristão que liga
todos os pecados à influência do "adversário" (o capeta). Quiçá, neste ponto, nos
forneça uma pista para tamanho imbróglio a etimologia da palavra "cabeça" (caput), que
origina tanto "capeta" quanto "capitalismo".
O que estas duas tendências conservam em comum, por trás de suas
escancaradas divergências, é um misto da incapacidade de acreditar numa produção
filosófica nacional que ajude a lidar com os entraves que os filósofos estrangeiros lhes
parecem contornar eficazmente, com um fascínio fetichista pela áurea de seriedade e
pertinência ubíqua do pensamento oriundo de terras clássicas. Essa atitude mentalmente
colonizada com que se posta os cultores das academias e os ideólogos políticos
brasileiros revela uma estranha tendência que o Brasil parece ter, e a qual nenhum
linguista nos poderia ajudar a explicar: a de pensar com sotaque.

3
ROBERTO MANGABEIRA UNGER: um pensamento sem sotaque
Não há nenhuma razão para se tomar a obra de Roberto Mangabeira Unger
como o santo graal da originalidade, mas é absurdo ignorá-la por completo. E não
afirmamos isso com base em seu prestígio internacional, mas no quê seu pensamento
tem a dizer concreta e objetivamente sobre o Brasil.
Chega ao nível do anonimato a crítica que se lhe é feita, na imprensa e na
academia brasileiras, que destina-se a desqualificar a mensagem desqualificando o
mensageiro. E, para piorar, o investimento difamatório é dirigido a um aspecto
vergonhosamente liliputiano do filósofo: o seu "sotaque estrangeirado". Aliado à
excentricidade discursiva e à performance facial repleta de esgares, o sotaque conserva-
o uma figura folclórica da política nacional. As caricaturas, entretanto – e infelizmente –
, não são mais do que álibi para o cultivo de um orgulhoso desconhecimento quanto ao
conteúdo de seus mais de doze livros.
Foi Richard Rorty quem notou o que a sabedoria convencional tupiniquim ainda
não conseguiu captar: o professor Roberto, apesar de ter ajudado a reformar as escolas

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de direito e o pensamento jurídico e social americanos, sempre teve a sua cabeça em


outra realidade. Comparando Unger a Walt Whitman, Rorty atribuiu à sua obra a
expressão "Romance de um futuro nacional". Nada mais apropriado. A filosofia política
de Unger se dirige explicitamente a um mundo por se fazer; e, conquanto o filósofo
brasileiro identifique a necessidade da ação reconstrutora nas mais diferentes nações,
sua atenção é majoritariamente canalizada para os grandes países em desenvolvimento,
especialmente o seu país natal.
O romance de um futuro nacional ungeriano é uma coordenação de ideias sobre
o Brasil, mas ele não se restringe a uma narrativa histórica, nem a uma análise estanque
de conjuntura, nem a arroubos românticos de enaltecimento cultural, e nem a profecias
de palanque. Em vez disso, é uma ligação íntima, coerente e mobilizadora, do passado,
do presente e do futuro nacionais, sobre o lugar e o papel do Brasil na história da
humanidade, sobre seus compromissos consigo próprio e sobre sua relação com os
demais países no contexto de globalização. Esse romance só poderia ser escrito sob a
égide de uma poderosa imaginação posta a serviço de um projeto nacional: teórico e
reconstrutivo. Mas como isso se dá em termos conceituais?
Primeiramente, é importante sublinhar que Unger é, antes de tudo, um filósofo
social. A compreensão geral que ele oferece sobre a natureza do vínculo social orienta
os demais passos de seu pensamento. Isso se aplica desde a sua antropologia filosófica.
É componente decisivo dela, que se articula, por assim dizer, já na base de sua filosofia
política, a vitalidade potencial da humanidade, constantemente obnubilada por
contextos e estruturas sociais inventados para contê-la, sob o alegado pretexto dos riscos
que ela tende a nos sujeitar. Essa vitalidade tem a mesma dupla face do conceito de
liberdade de Isaiah Berlim: enquanto capacidade negativa é aquela experiência de
nunca estarmos plenamente contidos, de nunca ajustarmo-nos comodamente aos
contextos sociais e culturais que habitamos; enquanto agência criadora é aquela
experiência de impor ao mundo a nossa vontade formatada pela imaginação. Eis aqui
uma maneira com que Unger descreve o que inúmeras tradições filosóficas, tanto
seculares, quanto religiosas, intuíram: há muito mais na densidade espiritual humana do
que nas estruturas que são por nós criadas, elas são finitas com respeito a nós, nós
infinitos com respeito a elas.
A partir deste enquadramento, Unger chama a atenção para algumas
interessantes consequências. É possível, por exemplo, conceber uma releitura da
situação humana no mundo e da relação dos homens e das mulheres comuns com as

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estruturas e instituições sociais que dão conteúdo aos vínculos existentes. A situação da
humanidade é a do engrandecimento contido, a experiência de seres infinitos presos em
cápsulas finitas. A relação entre as pessoas e seus vínculos é de luta, luta que requer
permanente reorganização dos componentes das estruturas e instituições. Mas Unger
também reconhece que essa luta não é percebida pelas pessoas no curso ordinário de
suas vidas, e isso deve-se a uma impetuosa campanha moldada em discursos e práticas
que atribui necessidades falsas à realidade existente. É por isso que um dos grandes
desafios empreendidos por esse filósofo está em diagnosticar as raízes fatalistas do
pensamento social (ST), que alimentam essa ilusão de necessidade, e confrontar a
filosofia política que nelas se assenta, contrapropondo-as a premissas que apostam na
contingência das coisas humanas (FN). Estas premissas compõe o escopo da ideia que
Unger denomina "sociedade como artefato" (Unger, 1997, p. 3) e que atribui a uma
longa tradição de pensadores que se seguiram a Giambattista Vico, segundo quem as
estruturas sociais nós as podemos compreender porque as criamos[3].
Com Mangabeira, a ideia de sociedade como artefato ganha uma versão
contemporânea radical na tese de que tudo é política (it's all politics): na vida social, das
culturas familiares às leis mais abstratas do Estado, tudo é resultado de conflito
interrompido, congelado. "Defeated or exhausted, people stop fighting. They accept
arrangements and preconceptions that define the terms of their practical and passionate
relations to another" (Unger, 1997, p. 72). Tais arranjos são cristalizados como
estruturas. Cada estrutura reproduz atividades de dois tipos: as mais abundantes que a
confirmam e as raras que a negam. Singularmente distinto de um pensamento marxista,
a tese de que tudo é política não compreende que a transformação social só é real
quando substitui um conjunto integrado de estruturas por outro, mas quando uma
atividade que nega uma estrutura cria instabilidades que perturbam as demais estruturas
revelando a contingência dos arranjos existentes e qualidade experimental da sociedade.
A reforma revolucionária - forma paradigmática da transformação em Unger - não se
alinha a uma visão da história linear e determinista, e aliás, a impossibilita.
O principal leitmotiv do pensamento ungeriano está justamente na proposição de
que, entre todas as atividades humanas, a filosofia e a política são como que irmãs: por
seu conteúdo, uma vez que abordam tudo e não abordam nada especificamente, e por
sua complementaridade, já que uma é o pensamento visando a ação e a outra a ação
abraçando o pensamento. Nestes termos, as categorias teóricas são chanceladas pela sua
intervenção no mundo e a ação política requer o respaldo do pensamento sobre as

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alternativas existentes e as possíveis. Conectando os temas anteriores, podemos aferir


que Unger entende o engrandecimento da liberação do infinito aprisionado no finito
como a mensagem da democracia. Para ele, a democracia não é um regime de atenuação
das injustiças sociais, nem o de participação via direitos (inclusive os de voz e voto) em
assuntos coletivos. A democracia é uma forma de viver em grupo na qual o todo cresce
e prospera com o engrandecimento das partes.
Visto por um ângulo maior e mais revelador, o projeto
democrático foi o esforço de tornar a sociedade um sucesso prático e
moral, pela conciliação da busca de dois gêneros de bens: o bem do
progresso material, nos libertando da servidão e da incapacidade e
dando armas e asas aos nossos desejos, e o bem da independência
individual, nos libertando dos esquemas triunfantes de divisão e
hierarquia social (Unger, O Direito e o Futuro da Democracia, 2004,
p. 16)

Não há conquista destes bens, não há engrandecimento, entretanto, se o


indivíduo é mergulhado nas ilusões da cisão público privado que finge realizá-lo
negando a sua conexão com os outros e com o mundo. Engrandecimento pressupõe
maior grau de envolvimento, de engajamento na realidade, em sua reconstrução, em sua
transformação. Democratizar não é perseguir a senda das caricaturas do
"empoderamento", é favorecer o potencial criador, inventivo, atuante, que existe em
cada homem e em cada mulher, por meio de inovações institucionais conquistadas pelo
ímpeto social de autocriação. A mensagem aventada nas socialdemocracias de
humanizar as práticas e instituições humanas não seria, portanto, um bom exemplo de
mensagem democrática, posto que o ideal de humanizar as práticas sociais seria
secundário em relação ao ideal de divinizar a humanidade. Já aqui Unger se diferencia,
e em muito, dos que o criticam pelo sotaque, pois que a ideia de democracia que circula
nos ambientes universitários e na mídia é precisamente aquela baseada na ideologia da
humanização, que ele, ironicamente, denuncia como "discursos do açúcar". Vamos
então a algumas considerações sobre o Brasil através de Unger.

4
O BRASIL DESACORRENTADO
O professor e cientista político Carlos Sávio Gomes Teixeira oferece uma
divisão das tendências do pensamento social e político brasileiro em três perspectivas: à
primeira ele denomina "liberalismo culturalista", da qual destacam-se os nomes de Ruy
Barbosa, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, grupo cuja principal ideia

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seria a de que o problema maior do Brasil é a tendência à personalização oriunda de


nossa herança ibérica; à segunda perspectiva ele denomina "estruturalismo sociológico",
e nela destaca os nomes de Caio Prado Jr. e principalmente Florestan Fernandes, tendo
este grupo a ideia de que o problema do Brasil sempre foi a maneira como o capitalismo
aqui se instalou; a terceira perspectiva, denominada "construtivismo institucional",
associa um número amplo de pensadores, mas destaca Guerreiro Ramos, Ignácio
Rangel, Darcy Ribeiro e Roberto Mangabeira Unger, grupo que seria fundamentalmente
movido pela ideia de que o problema do Brasil é a falta de um projeto de compreensão
da realidade nacional e de construção institucional (Teixeira, 2015). Concordamos com
as teses de Teixeira e registramos que esse alinhamento com o construtivismo
institucional é o principal elemento de divergência entre o projeto de Unger e o dos
filósofos políticos que elencamos anteriormente.
Se muito bem aplicado, o máximo que o projeto habermasiano daria ao Brasil é
a feição de uma sociedade bem comportada e justa, tal como as democracias renanas
sob governos progressistas, mas o faria sacrificando dados que conferem às nossas
contradições, traumas, vícios e virtudes coisas compreensíveis para nós próprios, sob o
preço de realizarmos o que as sociedades exitosas do Atlântico Norte conseguiram em
termos de igualdade, decência e civilidade. Por outro lado, se o corrosivo pensamento
foucauldiano é levado a cabo pela sociedade brasileira, as consequências seriam
bastante nebulosas, visto que toda a crítica à institucionalidade concebida pela brilhante
cabeça do mestre francês é lançada contra instituições que foram em algum momento
histórico abraçadas pela sociedade. É uma crítica à crueldade da exclusão por
instituições que nasceram das contradições internas da sociedade em análise.
No Brasil, e aqui está um detalhe que torna o pensamento de Unger especial, a
relação do povo com suas instituições nunca foi poiética, sendo, antes, mimética, com
respeito ao que os vizinhos do norte criaram. A cópia institucional marca um ponto
distintivo que não pode ser desprezado por quem quer conceber uma filosofia política
de real impacto - respeitando, assim, a tradição iniciada por Aristóteles. O que ela é,
afinal? A experiência de incorporar de outro país o modelo de organização de pedaços
da vida social, sem que tenha-se experienciado, na realidade que incorpora, todo o
histórico que originou, e que, portanto, confere sentido àquela forma de organizar.
A propensão de copiar instituições revela outro dramático item de nossa
experiência nacional: o abismo entre as elites dirigentes do país e a massa populacional
que permanece em sua retaguarda. A elite, composta de quadros do segmento

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financeiro, político, intelectual e midiático, toma o Brasil por uma horda de ostrogodos
dóceis, que precisa ser treinada nos preceitos da civilização. Sentindo-se iniciada nos
protocolos universais do êxito, essa mimada elite - de acordo com as pistas indicadas
por Teixeira sob a alcunha de um liberalismo culturalista - atribui o atraso brasileiro à
nossa carência cultural e institucional do atlântico-nortismo e milita para impor aqui as
práticas que vicejam alhures. Nesse discurso, as elites possuem historicamente,
conseguido uma proteção contra a rebeldia. "O que é característico do Brasil é ter elites
que, embora estéreis na criação de ideias ou instituições que interessem à humanidade,
são fecundas em estratagemas de sobrevivência" (Unger, 2001, p. 21).
Unger declara guerra a essa tendência. E sua primeira motivação reside na
percepção de que este ideário é também falido nos próprios países dos quais é
exportado. Richard Rorty captou com singular sagacidade essa característica intelectual
de Unger, de crítico da falta de fibra da elite intelectual e cultural americana, e a
interpretou como uma atitude esperançosa. Rorty associa tal atitude à origem nacional
do filósofo, ao fato de Unger ter vindo de “um país grande e retrógrado, com
gigantescas porções de matéria-prima e uma boa quantidade de acumulação de capital –
um país que começou a se lançar para frente, ainda que frequentemente tropeçando em
seus próprios pés” (Rorty, 1999, p. 240). Um país aberto a novidades em termos de
experimento social, não tendo internalizado os desalentos do velho continente europeu e
da precocemente envelhecida América do Norte um país que não pode esperar “alcançar
o que o Atlântico Norte alcançou, em igualdade e decência, pelos mesmos meios”
(Rorty, 1999, p. 240).
Unger censura, pois, tanto o atlântico norte pela falta de fibra, quanto as elites
do Brasil pelo desejo de importar instituições estrangeiras. Denomina sarcasticamente
"Suécia tropical" o ideário dominante no Brasil que é movido por questões do tipo "por
que o Brasil não é como a Noruega, a Dinamarca, a Finlândia, a França ou os Estados
Unidos?", e que, por ser dominante, é o que permanece dando as cartas nos meios
políticos e acadêmicos. Esse ideário é o coração de uma atitude que Unger tem
classificado como colonialismo mental.
Para escapar deste colonialismo, Unger propõe que o pensamento político
brasileiro costure a interpretação da realidade com propostas de intervenção. Tais
propostas são formuladas de modo a poder ganhar carne institucional, converterem-se
em arranjos institucionais concretos, aplicáveis em curto prazo. Sem inventar

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instituições do nada, o filósofo propõe uma recombinação dos elementos existentes nas
instituições existentes e com isso abre-as para inovações.
A marcha para tais inovações institucionais pressupõe uma releitura da própria
dinâmica social, na qual sobreleve-se as tensões intrínsecas à sociedade brasileira
enquanto tal. Um interessante exemplo do pensamento político de Unger, se comparado
ao de Habermas, por exemplo, é que a mobilização política pressupõe, no horizonte
habermasiano, a organização dos grupos que pleiteiam lugar de fala, e são esses grupos
os que deveriam estar à frente de lutas democratizantes e redistribuidoras. Mas, como
observa Unger:
"a sociedade civil brasileira não dispunha até recentemente de
instrumentos confiáveis de auto-organização. Tinha as organizações
ditas corporativistas que lhe foram legadas pelo regime militar de
Getúlio Vargas: o sistema de sindicatos de trabalhadores, associações
patronais e câmaras de representação e negociação desenhadas sob o
Estado Novo. Prestavam-se ora a uma tutela governamental dos
grupos de que mais diretamente dependiam as iniciativas do regime,
ora a acertos entre estes clientes coletivos e o Estado que os havia
organizado e favorecido.” (Unger, 2001, p. 21/22)

A ideia de uma democracia deliberativa, orientada pelo consenso e estabelecida


a partir da diversidade de interesses sociais, como pensa Habermas, ou a noção de uma
democracia radical, na linha traçada pela filósofa belga Chantal Mouffe, são apenas de
soslaio bem empregadas na conjuntura brasileira e justamente pelo que indicamos na
citação de parágrafo acima. Uma filosofia política contemporânea precisa encarar o
problema da organização social considerando os atores sociais em jogo e definindo qual
entre eles melhor exerce o papel de vanguarda transformadora ou de catalisador das
tendências dispersas de desejo por mudança social; e tal não é o caso de um pensamento
político que pressuponha o prescinda de um tino organizador do agente da
transformação, simplesmente porque, em determinadas realidades nacionais ou
regionais, só se mobilizaram de modo organizado aqueles militantes que, no exercício
das rotinas de mobilização, tendem a se isolar de a quem supostamente servem como
porta-vozes.
Logo, o agente transformador no Brasil também carece de critério de escolha
não previamente estabelecido em outras filosofias políticas. A questão é a de atribuir
relevo ao lugar ocupado pela maioria de trabalhadores desorganizados, muitas vezes
deixados na informalidade, e à classe média emergente que inauguram, ambos, uma
cultura de autoajuda e iniciativa baseada na independência do Estado. A relação entre o

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Estado e a sociedade civil independente não pode passar nem por perto do paternalismo,
outrossim, não pode ser constituída de um abandono deliberado, sob alegação de
incapacidade sistêmica, do primeiro. As filosofias políticas que, desde Hobbes, se
ocupam em discutir a necessidade do Estado, a legitimidade do uso da força por ele, a
sua relação com o direito e com o mercado, raramente postularam o seu poder como
residindo na plasticidade que inibe a oposição à sociedade ou à economia de mercado.
Plasticidade institucional é a compreensão da contingência das estruturas sociais
somada à imaginação de formas alternativas de operacionalizá-las. É isso o que Unger
deseja. Tal plasticidade aponta, em seu caso, para uma maneira de se colocar
politicamente no debate nacional, indicando ideias institucionais que tornem realidade
um projeto de emancipação social feito em coordenação com o Estado nacional
empoderado. O projeto em questão é progressista e deve compor o conteúdo da
militância de uma política de esquerda moderna e desonerada da poluição de um
marxismo desnorteado, bem como das duas tendências pseudo-emancipadoras de que
falamos: a overdose de suspicácia e as migalhas de participação.
Para finalizar, então, as cinco ideias institucionais de Unger para a consecução
do projeto são: (1) o estabelecimento de condições práticas que incluem níveis mais
altos de poupança doméstica e estreitamento da relação entre poupança e produção; (2)
o tratamento da política social enquanto fortalecimento e capacitação que compreende
uma educação vitalícia, dirigida ao desenvolvimento de um núcleo de habilidades
práticas e conceituais genéricas; (3) a democratização da economia de mercado que se
baseia na sua reorganização com o uso do Estado para criar as condições de novos
mercados; (4) o enraizamento da solidariedade social não apenas na transferência
monetária, mas também na responsabilidade universal pelos outros; (5) a concepção de
uma política democrática de alta energia que requer uma elevação sustentada e
organizada do nível de engajamento civil. (Unger, 2008, p. 32-37).

LEGENDA:
ST: Social Theory, Its Situation and Its Task
FN: False Necessity

AUTOR
* Tiago Medeiros Araujo é doutorando em Filosofia pela Universidade Federal da
Bahia, professor de Filosofia do Instituto Federal da Bahia, órgão no qual também
exerce a chefia do Departamento de Filosofia. É autor do livro Pragmatismo Romântico
e Democracia (EDUFBA, 2016) e de artigos publicados em periódicos acadêmicos.
Além disso, é compositor e instrumentista.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
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de Unger. 2009. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-07122009-144805/>. Acesso em:
2015-03-22.
_______, (2014) Filosofia Política e Experimentalismo Democrático: Alternativa
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NOTAS
[1] Fernandes, Millôr. A Bíblia do Caos, L&PM, Porto Alegre: 2014, p. 56
[2] Calvino, Ítalo. O Cavaleiro Inexistente. Trad. Nilson Moulin. Companhia das Letras, São Paulo:
2005, p. 9-10.
[3] Unger registra: Much in our modern ideas about society represents the relentless development of the
principle contained in Vico's statement that man can understand the social world because he made
it. Unger, 1997, p. 30.

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Artigos e ensaios

ALCANCES E LIMITES DO CONCEITODE


SOCIEDADE CIVIL EM ANTÔNIO GRAMSCI
Valdenésio Aduci Mendes*

RESUMO: O trabalho faz análise dos alcances e limites do conceito de sociedade civil
no pensamento político de Antônio Gramsci. O artigo está orientado pela seguinte
questão: em que medida as reflexões políticas de Antônio Gramsci sobre a sociedade
civil e o Estado projetam alcances teóricos e estratégias para repensar o problema
político do presente, ou seja, o problema da disjunção entre economia e sociedade
política e entre o Estado e a sociedade civil? No início analisa-se o conceito de Estado
amplo, no qual Gramsci localiza a relação entre a força e o consenso, a relação entre
sociedade política e sociedade civil. Neste sentido, Gramsci procura assimilar/superar a
proposta da tradição hegeliana-marxista, que leva-nos até o centro da crítica de Gramsci
perante o liberalismo económico, assim como ao economicismo atuante na tradição
marxista. Conclui-se que o pensamento de Antônio Gramsci é atual no sentido de que
continua sendo referência para questionar a perspectiva neo-liberal atual, que procura
separar a esfera econômica da esfera política.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedade civil, Estado, política, hegemonia, Moderno
Príncipe.

INTRODUÇÃO
O tema da sociedade civil regressou ao centro do debate cultural e político,
influenciado por duas vertentes: em primeiro lugar, a partir da década de 70 do século
XX, em função da chamada “revolução” neoconservadora ou neoliberal, que desejava o
questionamento do Estado como sujeito 'pleno' para sustentar a vontade de separação e

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de revanche do não-estatal, do econômico e do mercado sobre a política e sobre o


Estado social. Num segundo momento, o conceito de sociedade civil começa a
desempenhar, a partir da segunda metade da década de 90, um papel-chave no processo
de redefinição de uma parte da esquerda, “convencida da necessidade de abandonar um
paradigma interpretativo que implicava o conceito de classe” (LIGUORI, 2001, p. 1). O
novo conceito usado pela esquerda é o conceito de cidadania, que reivindica a ideia de
autonomia presente na sociedade civil, desvinculada do poder do Estado. No fundo,
tanto a vertente liberista, baseada no mercado, assim como a liberal, fundada nos
direitos, “guardam em comum, a concepção antropológica de que o indivíduo pode ser
concebido para não necessitar da sociedade, viver independente de sua complexa rede
de relações econômicas, sociais e políticas” (LIGUORI, 2001, p. 3).
O conceito de sociedade civil que submeteremos à análise tem despertado o
interesse de vários estudiosos na atualidade, em diversas áreas, sob os mais variados
aspectos e sentidos contrapostos. Assim, a expressão pode ser evocada sob muitos
prismas e diferentes atores sociais. Para alguns, sociedade civil é entendida como
“esfera autônoma ao lado do Estado e do mercado”; para outros é vista como “um
conjunto de entidades de caráter filantrópico, para onde podem ser transferidas
responsabilidades governamentais”. Há também os que a consideram como o “espaço
de manifestações culturais e de relações intersubjetivas”, e os que a idealizam como
“utopia de uma sociedade sem Estado” (SEMERARO, 1999, p. 13). E há, ainda, os
liberais que pensam a sociedade civil como sinônimo de economia.
O quadro político atual mostra uma complexidade maior do cenário social e
aponta para a crise da soberania, a disseminação da cultura individualista e o
desaparecimento do WelfareState, o fim das ideologias e também da História.
“Resultado deste cenário é uma sociedade civil não só mais complexa e diferenciada”
(SEMERARO, 1999, p. 236), assim como mais volátil e contraditória. A ideia liberal de
que só é possível pensar economia e política de forma dicotômica, correspondendo à
sociedade civil o “lado bom”, e cabendo ao Estado o “lado mau”, é, na realidade, uma
visão maniqueísta do político. Em outros termos, evidencia-se a contradição capitalista
entre democracia política e autocracia econômica. Aqui, poder-se-á perguntar se o
problema da liberdade se resolve tão somente no reino da economia. Na perspectiva do
neoliberalismo o mercado parece representar a “harmonia social, o consenso e a
liberdade; o Estado - e a política -, a esfera da imposição e do conflito” (BORON, 1994,
p. 15). Portanto, duas esferas antagônicas, e, conseqüentemente, irreconciliáveis. Nessa

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perspectiva, o reino do mercado é visto como “sacrário” da liberdade, ao passo que o


Estado é a esfera da dominação, da opressão, do autoritarismo.
Haveria hoje, no centro da ideologia dominante, um mito, segundo o qual, o
liberalismo teria gradualmente se transformado, por um impulso puramente interno, em
democracia, e em democracia cada vez mais ampla e mais rica: “o mito hoje dominante
também quer fazer crer que democracia e livre mercado capitalista se identificam”
(LOSURDO, 2004, p. 9). Portanto, por detrás desse mito, a idéia amplamente difundida
de que o “público não-estatal” seja escolhido como paradigma para o “bom
funcionamento” do mercado, como esfera capacitada para substituir o Estado. De
espaço essencialmente político, a sociedade civil parece ter-se configurado em espaço
livre de tensões, de conflitos. Ao disseminar-se largamente e colar-se ao senso comum,
ao imaginário político das sociedades contemporâneas, à linguagem da mídia, o
conceito de sociedade civil perdeu precisão: “empregam-no tanto a esquerda histórica
quanto as novas esquerdas, tanto o centro liberal quanto a direita fascista”
(NOGUEIRA, 2003a, p. 186).
Neste sentido, o objetivo do trabalho consiste em analisar o conceito de
sociedade civil no pensamento político de Antônio Gramsci[1], perguntando-nos por
seus alcances e limites no debate político atual. Ao procurarmos entender o que
acontece no campo político atual, propomos remeter-nos ao conceito de sociedade civil
como lócus de consenso e dissenso, como espaço de tensões e de conflitos para o
estabelecimento de hegemonias sociais. Visando atingir o objetivo proposto, o artigo
propõe analisar o conceito de sociedade civil relacionado ao conceito de Estado, já que
a análise do primeiro conceito requer necessariamente a análise do segundo. Ato
seguido, o trabalho procura mostrar que o Moderno Príncipe é um dos elementos
essenciais no seio da sociedade civil no sentido de fundar uma vontade coletiva.
Num momento posterior, o artigo procura analisar o conceito de Estado e de
sociedade civil em Gramsci na perspectiva dialética entre força e consenso, economia e
política, sociedade civil e sociedade política, apontando ao mesmo tempo a crítica que
este autor dirige à visão liberal que procura separar a esfera econômica da esfera
política. Analisa em que sentido o papel da sociedade civil é estratégico no projeto de
uma sociedade socialista no “Ocidente”.
Nas considerações finais retomamos aspectos relevantes do tema relacionando-o,
sobretudo ao fenômeno da globalização, da mundializacão da economia, das mudanças,
das mudanças ocorridas nos fundamentos políticos dos Estados-nações e da economia.

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Ou seja, pretende analisar se tais fenômenos estariam ou não produzindo a


despolitização da sociedade civil? Se a sociedade civil estaria ou não caminhando de
“costas” para o Estado na atualidade? Quer saber se as reflexões políticas de Antonio
Gramsci sobre a sociedade civil e o Estado projetam alcances teóricos e estratégias para
repensar o problema político do presente, qual seja, o da disjunção entre economia e
sociedade política, entre Estado e sociedade civil.

SOCIEDADE POLÍTICA E SOCIEDADE CIVIL


Na política, diz Gramsci, “o erro acontece por uma inexata compreensão do que
é o Estado (no significado integral: ditadura+hegemonia)” (C.C 13, v. 3, § 155, p.
257)[2]. Ao definir o Estado em termos de coerção e consenso Gramsci procura ampliar
o entendimento da ortodoxia marxista sobre o Estado, cuja tradição o define em termos
de aparato de repressão e de força. Nesse sentido faz uma alerta aos marxistas de que o
campo político constitui-se também de consenso, direção, persuasão e "guerra de
posição”. Para Gramsci, o Estado é todo o complexo de atividades práticas e teóricas
“com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas consegue
obter o consenso ativo dos governados [...]” (C.C 15, v. 3, § 10, p. 331). Assim,
Gramsci opõe-se a duas concepções de Estado: tanto a concepção liberal de Estado, cuja
característica é ser guardião da lei e protetor dos proprietários, o qual procura evitar o
mal maior, sem promover o bem. A outra concepção é a de que o Estado é mero
resultado de uma luta de classes.
Para Gramsci, ao contrário, nenhum Estado desenvolve o conjunto complexo de
atividades práticas e teóricas sem ser 'educador', 'civilizador'. Haveria aqui uma
evidencia no sentido de que ao ampliar a noção de Estado (força e consenso), Gramsci
inclui aí a sociedade civil e sociedade política. Que funções desempenham a sociedade
civil e a sociedade política numa sociedade do tipo 'ocidental', de capitalismo avançado?
E nas sociedades do Leste e da América Latina, que função tem ambas as esferas?
A concepção gramsciana de Estado procura dar conta, nas palavras de Coutinho,
de uma “intensa socialização da política”, que resultou, entre outras coisas, da
“conquista do sufrágio universal, da criação de grandes partidos de massa, a ação
efetiva de numerosos e potentes sindicatos profissionais e de classe”. A esfera política
'restrita' que era própria dos Estados elitistas – tanto autoritários como liberais – “cede
progressivamente lugar a uma nova esfera pública 'ampliada', caracterizada pelo

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protagonismo político de amplas e crescentes organizações de massa” (COUTINHO,


1985, p. 59).
Metodologicamente, Gramsci sugere que se distinga bem a sociedade civil, no
sentido entendido por Hegel, e no sentido em que é muitas vezes usada nas notas, isto é,
“no sentido de hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade,
como conteúdo ético do Estado”. E agrega,
[...] se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que
devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria
possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil,
isto é, hegemonia couraçada de coerção). [...] Mas isto significa que
por 'Estado' deve-se entender, além do aparelho de governo, também o
aparelho 'privado' de hegemonia ou sociedade civil' (C.C 13, v. 3, §
24, p. 225).

Para Gramsci toda ciência e arte políticas baseiam-se num fato primordial e
irredutível: “existem efetivamente governantes e governados, dirigentes e dirigidos”. A
questão primordial para o pensador político é saber se tal divisão do gênero humano é
perpétua, ou é um fato histórico (C.C 15, v. 3, § 4, p. 324-325)[3]. Por isso, ao
perguntar-se quando um grupo faz sua visão de mundo prevalecer sobre a dos demais,
coloca-se, em certo sentido, o problema das organizações que sustentam essa visão de
mundo ou essa hegemonia, que, na perspectiva de Gramsci, não se reduz ao campo
nacional-popular [4]. Em outras palavras, há que se perguntar pelo “portador
material da função social da hegemonia” (COUTINHO, 1999, p. 69). A hegemonia tem
na sociedade civil seu “par lógico e político”, e esta, por sua vez, “não se sustenta fora
do campo do Estado e muito menos em oposição dicotômica ao Estado” (NOGUEIRA,
2003b, p. 222-223). Procuraremos pensar essa relação, mais adiante, em termos
dialéticos, como sugere o próprio Gramsci.
A presença do tema do Estado nas reflexões políticas de Gramsci e a nova
perspectiva que o autor procura imprimir deve-se ao fato de que o tema o obriga a
retomar sistematicamente as grandes questões políticas que Gramsci vivenciou e
acompanhou: a crise do Estado liberal, a natureza do fascismo e do Estado fascista, a
novidade do Estado dos Soviéticos e sua evolução na URSS, a experiência dos
Conselhos, os problemas do Estado socialista. Sem esquecer o pivô da análise, segundo
Buci-Glucksmann (1980, p. 26-27), que consiste nessa “surpreendente 'resistência do
aparelho de Estado', própria às sociedades ocidentais, nos países capitalistas
desenvolvidos”.

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Portanto, Gramsci estaria enfrentando a questão do Estado desde duas


perspectivas: como problema teórico e como problema prático. No fundo, trata-se de um
reexame da parte de Gramsci, das relações entre infraestrutura e superestrutura,
problema central do materialismo histórico, isto é, incapacidade da classe operária de
poder expandir nos momentos de crise as lutas sociais para além do campo econômico-
reivindicatório e de transpor a barreira entre ela e o resto da sociedade. Para Gramsci
não teria sentido pensar a política sem o protagonismo da sociedade civil e seus
conflitos e tensões.
Mas, o que significa o Estado? Só o aparelho estatal ou toda a sociedade civil
organizada? Ou a unidade dialética entre o poder governamental e a sociedade civil?
Em uma carta escrita no Cárcere de Turi para a cunhada Tatiana em 1931, Gramsci nos
dá a ideia dos estudos que está desenvolvendo e dos planos que pretende seguir em
termos de pesquisa. A partir do conceito de intelectual, Gramsci revela uma cadeia de
conceitos, não tão novos na teoria política, mas portadores de novos significados, os
quais farão parte de seu “desinteressado” projeto, denominado Cadernos do cárcere.
A concepção marxista tradicional de Estado manteve, ao longo de décadas, a
visão de Estado como aparelho coercitivo de uma classe sobre outra, como forma de
salvaguardar unicamente os interesses da classe hegemônica, resultante do processo
produtivo, derivando daí uma visão economicista e determinista da política. Nessa
perspectiva, o Estado não é ativo, apresenta-se muito mais como efeito do que como
protagonista. O que Gramsci escreve à cunhada Tatiana esboça um projeto de prestação
de contas com a tradição, no sentido de criticar o economicismo. Contra essa concepção
prevalecente na sua época, defende que o âmbito da política é fruto de força e consenso,
e não mero reflexo do mundo econômico.
A crítica gramsciana do economicismo na teoria e na prática política diz respeito
"principalmente a uma concepção instrumental do Estado como exterior a uma classe ou
fração de classe, que a manobra 'de modo diabólico, para perpetuar seu poder e enganar
o proletariado'" (BUCI-GLUCKSMANN, 1977, p. 61). A atenção de Gramsci não se
esgota na temática tradicional da 'denúncia' da dominação classista coativa do Estado
moderno, “mas estende-se a todas aquelas articulações através das quais se exerce sob o
resto da sociedade a hegemonia duma classe. [...] do Estado como organização política e
jurídica” (CERRONI, 1976, p.160-161). Nas Notas sobre Maquiavel, Gramsci diz que:
Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo,
identificação que é, precisamente, uma reapresentação da forma

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corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e


sociedade política, uma vez que se deve notar que na noção geral de
Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de
sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que
Estado=sociedade política+sociedade civil, isto é, hegemonia
couraçada de coerção). Numa doutrina do Estado que concebe este
como tendencialmente capaz de esgotamento e de dissolução na
sociedade regulada, o tema é fundamental (C.C 13, v. 3, v. 1, § 88, p.
244-245).

Gramsci distingue duas esferas no interior das superestruturas: "sociedade civil"


e "sociedade política". À sociedade civil corresponde o conjunto das instituições
encarregadas não só de elaborar, assim como de difundir os valores simbólicos e
ideológicos gestados numa sociedade. Dela fazem parte o sistema escolar, os meios de
comunicação, os sindicatos, as Igrejas, os partidos políticos, as instituições de caráter
científico, etc. À sociedade política corresponde a instância de que o grupo hegemônico
lança mão para fazer uso legal da força. Polícia, armas, leis são os recursos ou aparelhos
utilizados neste âmbito político.
Para além do elemento força ou do Estado em sentido "restrito", Gramsci
acentua o elemento do consenso, embora faça uma distinção metodológica ao ressaltar a
unidade orgânica entre sociedade política e sociedade civil, ampliando assim, a noção
de Estado. Nas Notas sobre Maquiavel, Gramsci esclarece que, nos Estados mais
avançados, a sociedade civil tornou-se uma estrutura muito complexa e resistente às
"irrupções" catastróficas do elemento econômico imediato (crises, depressões, etc.): "as
superestruturas da sociedade civil são como o sistema das trincheiras da guerra
moderna” (C.C 13, v.3, § 24, p. 73), algo que Gramsci enuncia já no artigo A revolução
contra o capital, em 1917, onde diz que “as vontades se puseram em uníssimo, primeiro
mecanicamente, e, depois da primeira revolução, ativa e espiritualmente” (EP, v. 1, p.
128).
É aqui que Gramsci se utiliza do exemplo das mudanças ocorridas na tática da
guerra como parâmetro para entender o campo político na modernidade. Da mesma
maneira que o êxito das estratégias militares do mundo moderno depende de posições,
manobras e estratégias, antes mesmo de ataques frontais contra o inimigo, de igual
maneira, o êxito no campo político ocidental parece fadado ao fracasso se se apóia
exclusivamente na 'guerra de movimento'. Ou seja, nos tempos de crises capitalistas no
Ocidente, a classe burguesa não se desmoraliza, não abandona suas defesas, nem suas
"trincheiras" cravadas no coração da sociedade civil, nem diminui a confiança na
própria força. Por outro lado, o proletariado não consegue se organizar de modo
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fulminante, tal como teria ocorrido na Rússia, por exemplo, que utilizou ataques frontais
contra o poder do Estado burguês. Uma possível vitória do proletariado no Ocidente, em
termos políticos, pede a mudança de tática, segundo Gramsci. Em outros termos, a partir
de 1924, Gramsci deduz que a guerra de ataque frontal funcionou nos anos
revolucionários de 1917-1921 na Rússia, onde o "Estado era tudo e a sociedade civil
primitiva e gelatinosa". Esta estratégia frontal, porém, "não pode se repetir do mesmo
modo nos países capitalistas desenvolvidos" (GLUSCKSMANN, 1977, p. 45).
Trata-se, diz Gramsci, de "estudar com 'profundidade' quais são os elementos da
sociedade civil que correspondem aos sistemas de defesa na guerra de
posição”.[4] Gramsci sinaliza, dessa maneira, para o fato da burguesia não ter a força
como único recurso para a manutenção do status quo e para o fato de não se subestimar
o aparelho de Estado em tempos de crise. Ao contrário, o fenômeno político tornou-se
mais complexo e seu significado há que se buscar nas complexas e moleculares redes de
instituições da sociedade civil, dentre elas, o sufrágio universal, os parlamentos,
partidos de massa, sindicatos obreiros, os meios de comunicação, as escolas, igrejas,
movimentos sociais, etc., além dos aparelhos repressivos do Estado. Neste sentido, o
Estado passa a ser "um projeto de cultura" (FERREIRA, 1986, p. 209), e a base da
hegemonia ou a base histórica do Estado se manifesta através da soldagem da sociedade
civil com a sociedade política. Gramsci reconhece Lênin como o político que
compreendeu a necessidade de uma mudança na “guerra manobrada”, a qual foi
aplicada vitoriosamente no Oriente em 1917, para a “guerra de posição”, que poderia
ser a única vitoriosamente no Ocidente. Segundo Gramsci, o problema de Lênin[5] é
que não teve tempo de aprofundar a sua fórmula,
[...] a tarefa fundamental era nacional, isto é, exigia um
reconhecimento do terreno e uma fixação dos elementos de trincheira
e de fortaleza representados pelos elementos da sociedade civil, etc.
No oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e
gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma
justa relação e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente
reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era
apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma
robusta cadeia de fortalezas e casamatas [...] (C.C7, v. 3, §16, p. 262).

Isto significa que diante dessa nova realidade de complexidade da sociedade


civil e de socialização da política no ocidente, as estratégias de lutas por mudanças
sociais também deveriam mudar. Para Gramsci, uma estratégia política calcada em
ataques frontais ao Estado, tal como aconteceu na Rússia, por exemplo, parece não
constituir uma boa estratégia política, uma vez que o "Ocidente" desenvolveu fortes
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"trincheiras" políticas, as quais os proletários não poderiam ignorar se quisessem propor


mudanças sociais significativas.
Ao contrário, a atividade revolucionária, a partir desse novo cenário mundial de
crise, consiste, "em um processo penoso de disseminar e infundir, inculcar uma forma
mentis alternativa" (BUTTIGIEG, 2001a, p. 53-54), por meio da preparação cultural, do
desenvolvimento intelectual e educacional em escala massiva. Tais atividades se
concretizam materialmente nas "trincheiras" da sociedade civil e no campo das ideias,
para não dizer das 'ideologias'. O que significa dizer, que a operação de construção de
uma nova hegemonia é levada a cabo de forma mais lenta e de longo prazo ao invés de
mudanças operadas através da força e de ataque frontal ao poder constituído. A base
para a afirmação de uma nova autoridade política não poderia se limitar à conquista do
aparato governamental, da dominação, pois uma classe em luta pela própria afirmação
política “deve ser dirigente antes de ser dominante, deve dirigir para poder governar”.
Nesse sentido, “o consenso torna-se o fundamento e garantia de uma dominação
duradoura e, acima de tudo, democrática” (NOGUEIRA, 1988, p. 87).
De fato, analisadas as condições em que se encontravam Rússia e Itália após a
primeira guerra mundial, percebe-se que em ambos os países havia perspectivas
revolucionárias parecidas. Entretanto, as mudanças não ocorreram automaticamente, tal
como acreditavam os marxistas mecanicistas da época, ao menos na Itália. As forças
políticas progressistas italianas saem derrotadas pelo regime fascista. Gramsci se
interroga sobre as causas que produziram este fenômeno político. Diante das novas
condições colocadas pelo pós-guerra, a pobreza política desencadeada no seio da
sociedade civil poderia evidenciar consequências irreparáveis. Gramsci desdobra a
partir daí uma reflexão sobre a possibilidade de uma nova estratégia revolucionária para
o "Ocidente”.[6] Entra em cena o conceito de "guerra de posição" como possibilidade
de uma nova estratégia na arte política. Gramsci coloca-se, portanto, como antípoda da
ideia prevalecente de sociedade civil reduzida à massa e de Estado em sentido estrito.

O MODERNO PRÍNCIPE E SUA POSIÇÃO NA SOCIEDADE CIVIL


CONTEMPORÂNEA
Na sociedade civil, campo de elaboração e de consolidação de hegemonias
existe uma infinidade de instituições que concorrem para que ocorra a consolidação da
hegemonia, e dentre todas aquelas instituições que atuam para isso ocorra, o partido se
destaca, o qual é precisamente o mecanismo que realiza na sociedade civil a mesma

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função desempenhada pelo Estado, de modo mais vasto e mais sintético, na sociedade
política, ou seja, “proporciona a soldagem entre intelectuais orgânicos de um dado
grupo, o dominante, e intelectuais tradicionais. [...]” (C.C 12, v. 2, § 1, p. 24).
O caráter fundamental do Príncipe de Maquiavel, diz Gramsci, é o de não ser
um tratado sistemático, mas um livro 'vivo', no qual a ideologia política e a ciência
política fundem-se na forma dramática do 'mito'. Maquiavel deu à sua concepção a
forma da fantasia e da arte, pela qual o elemento doutrinário e racional personifica - se
em um condottiero, que representa plástica e 'antropomorficamente' o símbolo da
'vontade coletiva'. [...] O Príncipe de Maquiavel poderia ser estudado como uma
exemplificação do 'mito' soreliano, isto é, de uma ideologia política que se apresenta
não como fria utopia nem como raciocínio doutrinário, mas como uma fantasia concreta
que atua sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e organizar sua vontade
coletiva (C.C 13, v. 3, § 1, p. 13-14)[7].
A política em Maquiavel é uma atividade intelectual e ao mesmo tempo prática.
O alvo central a ser combatido, segundo as lições apresentadas por Maquiavel
no Príncipe, é o pontificado romano, instituição que deitara suas raízes no corpo social
há séculos, constituindo-se em entrave político para a formação do Estado-nação. Na
Itália, o Moderno Príncipe, segundo Gramsci, traduz-se em uma vontade coletiva
(partido) que “queira ser Estado”, independentemente da moral e da religião - tal como
vaticinara Maquiavel - não em nome de um niilismo moral, mas em nome, quiçá, do
combate aos corporativismos[7], que tem seu fundamento na própria sociedade civil. O
partido constitui, para Gramsci, elemento do "momento catártico”, célula que procura
transformar a "necessidade" em "liberdade”, a "individualidade" em "universalidade".
Ao contrário do Príncipe de Maquiavel que reivindica para si próprio o papel do
exercício do poder político em nome de uma nação, na perspectiva de Gramsci
o Moderno Príncipe constitui a primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade
coletiva que tendem a se tornar universais e totais, o qual deve e não pode deixar de ser
“o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de
resto, criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-
popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna”
(GRAMSCI, C.C 13, v. 3, § 1, p.16-18).
Na realidade, o Moderno Príncipe não é resultado de uma coletividade caótica e
indistinta, algo resultante de forças “misteriosas” e metafísicas. Esse corpo associativo
deve ser entendido como produto de “uma elaboração de vontade e pensamentos

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coletivos” (C.C 6, v. 2, §79, p. 230). Nessa perspectiva, a política tende a “desembocar”


na moral, segundo Montanari (1997); tende a se tornar o instrumento para que a moral
“não seja mais um inoperante e vazio 'dever ser' ou uma grande e autoritária pretensiosa
de colocar 'ordem no mundo', mas força ativa e interna à própria vida política”. Existe
uma ética interna no agir político, já que para Gramsci, conforme enuncia no
Caderno 13, § 16, o político é um “criador”, um “suscitador”. Assim como a ética tende
ao “universal” como fim, de igual maneira o Moderno Príncipe tende a esse fim na
construção da democracia. É do partido único que Gramsci está falando ao mencionar
o Moderno Príncipe? Parece não haver dúvidas. Mas isso significa um presumível
integralismo e totalitarismo? Haveria que ter cuidado nessa afirmação, segundo Vacca
(1994, p. 151) para não reduzir a concepção de hegemonia de Gramsci a uma "variante
'suavizada' da 'ditadura do proletariado'".
Quando se quer acusar Gramsci de antidemocrático, basta afirmar
simploriamente que ele via no Partido Comunista uma tipologia. Evidentemente, se a
classe operária é quem toma para si a tarefa da elaboração da vontade nacional-popular,
e talvez não pudesse deixar de assim fazer naquele período histórico, com o diferencial
de que sua atuação política dependeria de alianças com as frentes populares da época.
Para Gramsci está muito claro que o proletariado moderno, ao menos na Itália, não se
constituiria como bloco político dominante enquanto não superasse os corporativismos
de classe, e isso significava para Gramsci a constituição de alianças políticas com os
campesinos, tese já esboçada quando trata da questão meridional.
Que sentido teria para Gramsci o partido se o mesmo não fosse porta voz de uma
nova concepção de política, de Estado e de sociedade? O partido não é um programa
ideal em busca duma máquina executiva, mas “um organismo funcional que exprime,
verifica e adapta o seu próprio programa ideal. É uma máquina integralmente histórica
e, por isso mesmo, elástica: uma não máquina” (CERRONI, 1976, p. 166). Numa nota
instigante (Maquiavel. Partidos políticos e funções de polícia) que aparece no § 34 do
Caderno 14, Gramsci afirma que a vida de um partido político procura, decerta forma,
também exercer uma função de polícia, isto é, de defesa de uma determinada ordem
política e legal. Mais adiante Gramsci levanta a seguinte questão: essa função que
supostamente exercem os partidos é de caráter repressivo ou expansivo? Um
determinado partido exerce sua função de polícia para conservar uma ordem externa,
extrínseca, no sentido de colocar freios às forças vivas da história, ou a exerce no
sentido de levar o povo a um novo nível de civilização, da qual a ordem política e legal

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é uma expressão programática? Ou seja, a função de polícia de um partido pode ser


“progressista” ou “reacionária”: é progressiva “quando aspira a manter na órbita da
legalidade as forças reacionárias alijadas do poder e a elevar ao nível da nova legalidade
as massas atrasadas”. E é reacionária “quando aspira a reprimir as forças vivas da
história e a manter uma legalidade ultrapassada, anti-histórica, tornada extrínseca” (C.C
14, § 34, v.3,p. 308). Nesse caso, quando um partido é reacionário, funciona exercendo
um centralismo burocrático, e quando é progressista, o centralismo exercido é
democrático e deliberante, e no outro caso, ele é meramente executor. No § 6 do C.C 26
Gramsci diz que o Estado "veilleurde nuit" ("Estado guarda-noturno") corresponde em
italiano a Estado carabinieri e significa "um Estado cujas funções se limitam à tutela da
ordem pública e do respeito às leis [...] a direção do desenvolvimento histórico cabe às
forças privadas, à sociedade civil, que também é Estado, aliás, é o próprio Estado". O
oposto desse tipo de Estado seria o "Estado ético", de origem filosófica e intelectual. Ao
comentar sobre o Estado ético ou de cultura, Gramsci diz que todo Estado é ético “na
medida em que uma das suas funções mais importantes é elevar a grande massa da
população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às
necessidades de desenvolvimento das forças produtivas” (C.C 8, v.3, § 179, p. 284), e,
portanto, aos interesses das classes dominantes.
Nesse sentido, a escola como função educativa positiva e os
tribunais como função educativa repressiva e negativa são as atividades mais
importantes neste sentido: mas, na realidade, para este fim tende uma
multiplicidade de outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o
aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes. A concepção de
Hegel é própria de um período em que o desenvolvimento extensivo da burguesia
poderia parecer ilimitado e, portanto, a eticidade ou
universalidade desta classe podia ser afirmada: todo gênero humano será burguês.
Mas, na realidade, só o grupo social que propõe o fim do Estado e de si mesmo como
objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões
internas de dominados, etc., e a criar um organismo social unitário técnico-moral (C.C
8, v. 3, §179, p. 284). A passagem acima resume de certa forma, tudo o que se expôs até
aqui sobre o pensamento de Gramsci, referente ao tema da sociedade civil e do Estado.
Gramsci coloca em evidência as relações diversas entre Estado e sociedade civil. Define
o Estado liberal como "Estado carabiniere", o qual define arbitrariamente os rumos da

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política para todo o corpus social. Nessa perspectiva, o Estado absorve totalmente as
manifestações políticas advindas da sociedade civil, reduzindo-a a simples massa.
Por outro lado, o 'Estado ético' é aquele que reflete a configuração de uma nova
sociedade, ou seja, da sociedade socialista, “regulada”, ideia essa que reabre, ao mesmo
tempo, a antiga discussão marxista sobre a extinção do Estado. Numa sociedade de
cunho socialista, a sociedade civil tenderia a absorver os elementos coercitivos do
Estado. A ex-URSS é um exemplo de que a promessa da extinção do Estado não pôde
ser concretizada, exatamente porque o capitalismo de Estado prevalecente não
reconheceu na sociedade civil a possibilidade de superação da condição de
heteronomia. De qualquer forma, a burocracia partidária reinante dissociou (de uma
forma talvez prevista por Gramsci), a sociedade civil do Estado burocrático, os
dirigentes dos dirigidos. Na acepção de Gramsci, uma "socieda de regulada" não
acontece sem revolução e a mesma dá mostra de sua eficácia política quando feita "por
baixo" e não "pelo alto", ou seja, quando esta mesma sociedade é capaz de promover
gradualmente a extinção dos elementos e mecanismos da coerção, quando a
sociedade civil reabsorve a sociedade política e seus elementos coercitivos.
Voltamos aqui, novamente à questão central para Gramsci: a de que uma
sociedade política, quando democrática, deveria criar as condições nas quais
desaparecesse a divisão entre governantes e governados. A socialização do poder não
significa cair na utopia de uma sociedade sem governo. O realismo político de Gramsci
é resultante das dificuldades que conheceu na prática para organizar uma vontade
coletiva. Gramsci parece não se deixar levar pela crença de que uma vontade coletiva se
reconstitua tão facilmente assim, depois que ela se desagregou. Procura, ao contrário,
não pensar “que as vontades coletivas sejam um dado de fato naturalista, que
desabrocham e se desenvolvem por razões inerentes às coisas” (C.C, 15, v. 3, § 35, p.
335-336).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quais os alcances e limites que apresenta o conceito de sociedade civil
desenvolvido por Gramsci, tendo em vista a nova configuração social e política da
atualidade, denominada mundialização? Depois de um longo tempo de ausência no
debate teórico político, o conceito de sociedade civil foi recuperado por Gramsci nos
alvores do século XX, refletindo, de certa forma, a nova configuração social, econômica
e política do período em que viveu: época de duas guerras mundiais, das intensas lutas

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sociais e políticas travadas pelos trabalhadores de todo o mundo, do surgimento do


nazismo e o fascismo na Europa, da revolução Russa propondo alternativas ao sistema
capitalista. Nesse contexto, o conceito de sociedade civil e de Estado reflete uma época
de guerras, debates e de socialização da política. Está em questão a criação de novas
hegemonias no cenário político mundial.
A que tradição estaria ligada o conceito de sociedade civil em Gramsci: a de
Hegel ou a de Marx? Pode-se afirmar que suas formulações não estão simplesmente em
oposição a um ou a outro. Ao contrário, apresenta aspectos de ambos e os supera ao
mesmo tempo, num jogo dialético. A noção de sociedade civil em Gramsci não tem
sentido senão vinculada à idéia de Estado e de economia. Procuramos mostrar essa
peculiaridade do pensamento gramsciano ao apresentarmos as várias passagens onde o
pensador político se contrapõe a vertente liberal. O conceito de bloco histórico, por
exemplo, é o que melhor define essa relação dialética, posta em evidência pelos entes
sociais na luta pela superação dos interesses particulares e corporativistas, visando
interesses universais; luta que não se reduz à “pequena política”, ao contrário, se
expande e procura “fundar Estado”, o que nos remete a Maquiavel e a Hegel. A
sociedade civil vincula-se, portanto, à economia e à produção material, realizando-se
como espaço de hegemonia, como “possibilidade de elevação política” como
“possibilidade de imprimir ao conjunto dos homens uma nova forma de consenso e
consentimento” (NOGUEIRA, 2000, p. 20).
Ora, um grupo ou uma classe ao colocar para si a tarefa de dirigir a inteira
sociedade não poderá fazê-lo se desvinculado da ideia de Estado. Em outros termos, não
tem sentido pensar a sociedade civil em Gramsci, lócus de criação de visão de mundo
(consenso), desvinculada do Estado (força), daí a noção de hegemonia. Isto é, não há
hegemonia que se consolide somente pelo viés do consenso, tampouco só pela força. A
figura do centauro descrita por Maquiavel nos dá a noção precisa do que venha a ser
hegemonia: paixão e razão, metade homem e metade animal, objetividade e
subjetividade. A noção gramsciana de Estado ampliado comporta estes elementos:
sociedade civil + sociedade política.
Nesse sentido, Gramsci coloca-se como antípoda dessa visão do Estado que se
sustenta somente pela força, daí falar de um Estado ativo, que busca na sociedade civil o
consenso e não a repressão. Se assim é, o proletariado enquanto Moderno Príncipe, e
enquanto portador de uma nova visão de política e de mundo comporta uma reforma
política, moral e intelectual ao mesmo tempo. Assim, a hegemonia é a noção que

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expressa esse salto qualitativo na forma de conceber a política. E se há uma esfera onde
a hegemonia evidencia-se, esse espaço é a sociedade civil. Aqui podemos nos perguntar,
então, pelos alcances e limites da noção de sociedade civil em Gramsci.
Gramsci pensou e analisou o conceito de sociedade civil numa época em que a
tensão política era evidente, de modo que a relação sociedade política e sociedade civil
não escamoteavam seus conflitos. O fascismo, o nazismo, a revolução Russa e os
períodos entre guerras são prova disso. Ao mesmo tempo criticou o liberalismo
econômico que já ensaiava naquela época a tese de que economia e política são mundos
à parte, tese tão em voga na atualidade. O que pensar da ideia neoliberal de que a
política interfira o menos possível no campo das liberdades econômicas? Da ideia de
que a redenção das mazelas sociais estaria nas mãos da sociedade civil? Para chegar a
esse corolário da disjunção entre política e economia o neoliberalismo fez seus ensaios e
se lançou na conquista da hegemonia no mundo da cultura e das ideias.
As potencialidades do novo mundo no contexto do oceano da mundialização
parecem querer jogar fora a política nas águas, muitas vezes, revoltas e turvas dos
mercados. Lidamos com a ideia de que as únicas fronteiras a serem eliminadas são
àquelas referentes às fronteiras econômicas. “Lidamos com a ideia de que a economia é
boa em si, e a política um mal em si” (ASSMANN, 1996, p. 28), ou de que diante das
leis do mercado nada há a fazer senão obedecer, pois o que interessa é apenas ser
competente para obedecer ao mercado.
Ante os limites que as condições atuais apresentam para a configuração de novas
formas de direção política, a ideia de sociedade civil só faz sentido se for pensada em
“termos dialéticos”, uma visão que procure articular todas as dimensões e circunstâncias
que são amplas e complexas, que têm a ver com ‘legados históricos, tradições, culturas
e também correlações de forças, padrões de desenvolvimento econômico, relações
internacionais, equilíbrios políticos, decisões governamentais, marcos jurídicos
(NOGUEIRA, 2000, p. 246). Nesse sentido, se ainda resta alguma aposta na luta
política, essa aposta não pode se sustentar numa visão fechada ou circunscrita a
pequenos grupos que lutam por seus interesses corporativos, que lutam pela elaboração
da hegemonia visando o Estado em sentido estrito. Ora, a sociedade civil que pensa a
fundação de Estados não se coloca como “o outro lado do Estado, mas como o coração
do Estado”. E não há como se lançar nessa batalha sem a batalha de ideias, que é
essencialmente “uma batalha pelo poder, pela autoridade, pela direção” (NOGUEIRA,

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2000, p. 247-248), e também por maior liberdade, de um número cada vez maior de
pessoas.
Não se compreende Maquiavel, diz Gramsci, “se não se leva em conta que ele
supera a experiência italiana com a experiência europeia (internacional, naquela época):
sua vontade seria o tópico sem experiência européia” (C.C 6, v. 3, § 86: 241). Da
mesma forma que Maquiavel não pensara em superar a experiência política italiana
deixando de lado a experiência européia, a realidade internacional de sua época - caso
contrário permaneceria uma ação política reduzida ao campo do tópico -, da mesma
forma não se compreende Gramsci se não se leva em conta que ele procura superar a
experiência italiana apontando para uma experiência política mundial. Mesmo que a
questão do 'que fazer?' persista, e não se tenha clareza na apresentação de alternativa
possível, talvez possamos, ainda assim, analisar rigorosamente “o que existe”
(ADORNO, Apud ZIZEK, 2005: 176).
É certo que o Moderno Príncipe nos moldes bolcheviques não parece ser mais
desejável do ponto de vista político. Sua existência não deu mostras de que pudesse
aglutinar uma vontade coletiva democraticamente. Na Rússia aconteceu exatamente
aquilo que Marx e Gramsci não desejariam enquanto defensores do comunismo, ou seja,
a separação entre Estado e sociedade civil, economia e política, desenvolvendo naquele
sistema todas as características do capitalismo de Estado, ao invés de uma sociedade
que aos poucos pudesse absorver as forças opressoras do Estado. Por outro lado, não é
equivocado afirmar que a sociedade capitalista também apela para a força em momentos
de crises, mesmo que amparada no modelo democrático representativo. Desse lado, a
tentativa dos liberais é a de separar Estado e sociedade civil, apoiados nos argumentos
de que a sociedade civil é um espaço neutro e não político, espaço de trocas meramente
comerciais. Procuram afirmar que a única liberdade é a liberdade negativa, segundo a
qual a existência do outro seria necessariamente o inferno para mim.
Nesse caso não seria diferente dizer “que a minha vida exige a morte do outro,
ou que o mundo só suporta alguns seres humanos” (ASSMANN, 1996: 35). Se não é
isso que desejo para mim e para o outro, parece que a crítica à utopia liberal, mantém-se
acesa, consequentemente, a chama do ideal de um mundo para todos, também se
mantém acesa, e assim será, quem sabe, enquanto na noite da economia global existir
gatos que não são “pardos”. Em outras palavras, se a promessa de uma sociedade
humana perfeita, anunciada pela modernidade não se realizou - já que nem a liberdade
conduziu à igualdade, nem a igualdade à liberdade, resta-nos, quem sabe, a aposta na

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solidariedade, “de uma cumplicidade com outra liberdade individual”, a qual não pode
ser negociada em qualquer mercado, bolsa ou pregão. Enfim numa solidariedade que
seja caminho para um reforma moral e cultural, mas ao mesmo tempo, “contraditória,
tensa, sem resultado garantido” (ASSMANN, 1998, p 37).
Não há dúvidas que o conceito de sociedade civil em Gramsci apresenta muitos
limites para entendermos o sentido da política na atualidade. Por outro lado, o mesmo
conceito continua a lançar luzes e projetar alcances, fomentando uma relação mais
equilibrada entre Estado e sociedade civil, já que Gramsci não chega nunca a afirmar:
basta de política! Basta de Estado! Que reine o social! Ou vice-versa. Ao contrário, em
Gramsci, política é sinônimo de tensão e de resultados não garantidos, tal como
afirmado antes. Se tiver sentido redefinir a política na atualidade, então podemos
afirmar tranquilamente que Gramsci continua a projetar alcances, já que a separação
entre economia e política, tal como a desejam os neoliberais, nunca ocorre sem tensão.
O que é atual em Gramsci é exatamente isso: o fato de que política e cultura não são
esferas separadas numa sociedade, o que significa dizer que continuamos a disputar no
seio da sociedade civil atual e global uma visão de mundo e de sociedade, seja essa
visão pautada em princípios de mercado ou da solidariedade.

(O texto é fruto de pesquisa desenvolvida no mestrado em Ética e Filosofia Política na


UFSC, sob a orientação do professor Dr. Selvino Assmann. O mesmo foi publicado na
revista internacional Reflexión Política do Instituto de Estudos Políticos da UNAB-
Colômbia.)

AUTOR
* Valdenésio Aduci Mendes é Mestre em Ética e Filosofia Política e Doutor em
Sociologia Política (UFSC). Docente no Centro Universitário Municipal de São
José/SC-USJ, exercendo atividades laborais nos cursos de Pedagogia e Ciências da
Religião. Membro do grupo de Estudos AYA – Laboratório estudos Pós Coloniais e
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NOTAS
[1] Antonio Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891, em Ales (Ilha da Sardenha), sul da Itália. Era o
quarto dos sete filhos de Franscesco Gramsci e Giuseppina Marcias. Em maio de 1928 é levado ao
“Tribunal Especial” de Roma, em função de suas atividades políticas. Em 4 de junho foi dada a Gramsci
pelo regime fascista, a sentença que o condenou a 20 anos, 4 meses e 5 dias de prisão. Foi na prisão que
escreveu os Cadernos do cárcere e as Cartas que o tornariam referencia do marxismo ocidental, falecendo
aos 27 de abril de 1937 por hemorragia cerebral.
[2] Para os efeitos de citação das obras de Gramsci, usaremos as seguintes abreviaturas: C.C = Cadernos
do Cárcere; C= Cartas do cárcere; E.P= Escritos Políticos.
[3] Para Vacca (1996, p. 108), em linguagem habermasiana, o postulado aqui, é que, diversamente do que
ocorrera até então, "as relações entre governantes e governados podem tornar-se plenamente
comunicáveis e discursivas. E que se deseja explorar suas condições”.
[4] Esta guerra "mais complexa" de longo prazo, "esta guerra do povo democrático capaz de investir a
'justa relação' do estado e da sociedade civil própria aos países ocidentais e de desenvolver a todos os
níveis da sociedade uma dialética permanente entre as massas e o Estado" (BUCI-GLUSCKSMANN,
1977, p. 46).
[5] Ilitch na linguagem dos Cadernos do Cárcere.
[6] COUTINHO (1999, p. 148) observa que a 'ocidentalidade' de uma formação social não é, para
Gramsci, um fato puramente geográfico, mas, sobretudo “um fato histórico. [...] não se limita a registrar a
presença sincrônica de formações de tipo 'oriental' e 'ocidental', mas indica também os processos
histórico-sociais, diacrônicos, que levam uma formação social a se 'ocidentalizar'”.
[7] Nas palavras de Coutinho (1999, p. 169) a tarefa do Moderno Príncipe consistiria em "superar os
resíduos corporativistas (os momentos 'egoístico-passionais') da classe operária" e contribuir para a
"formação de uma vontade coletiva nacional-popular, ou seja, de um grau de consciência capaz de
permitir uma iniciativa política que englobe a totalidade dos estratos sociais de uma nação, capaz de
incidir sobre a universalidade diferenciada do conjunto das relações sociais”.

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Artigos e ensaios

REVISITANDO A UTOPIA:
Sartre e o engajamento político-social da liberdade
Luciano Donizetti da Silva*

Sabiam que a vida estava difícil e cheia de privações, que andavam


constantemente com frio e com fome, e trabalhando sempre que não estavam
dormindo. Mas, sem dúvida, antigamente fora pior. Gostavam de acreditar
nisso. Além do mais, naqueles dias eram escravos, ao passo que, agora, eram
livres.
George Orwell[1]

RESUMO: A filosofia de Sartre pretende recuperar a liberdade que todo homem é; isso
poderia estabelecer os princípios norteadores do Reino da Liberdade. Mais uma utopia?
Não. Para mostrar as diferenças entre o projeto libertário satreano e todo o romantismo
utópico, esse artigo propõe revisitar as utopias; mas não cabe aí parar: é preciso também
colocar frente a frente os projetos socialistas, sejam utópicos ou científico, e a filosofia
da liberdade, o que permitirá mostrar o alcance do engajamento da liberdade.
Palavras-chave: Liberdade; Utopia; Engajamento.

O homem é um ser das lonjuras, dirá Sartre em sua ontologia fenomenológica;


de fato, ser-para-si é ser falta, e ontologicamente essa falta jamais será suprimida. O
modelo ontológico sartriano indica que o que falta ao para-si é o si; breve, nenhum ser
humano jamais se realiza porque visa ser a totalidade (ser-em-si-para-si), almeja

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manter-se consciente e, no mesmo ato, idêntico a si, deseja ser Deus, enfim. É por isso
que a filosofia da liberdade pode, à primeira vista, parecer bastante pessimista quando
abandona o plano ontológico e adentra o âmbito ôntico: o homem-no-mundo aparece na
filosofia de Sartre como uma espécie de deus-faltado, de paixão inútil e, no fim, a
história de cada existência não será mais que a história de um fracasso.[2] Visão
aterradora do homem, pode pensar o socialista utópico; ranço idealista burguês,
assevera o socialista científico. Mas na verdade, e esse texto pretende mostra-lo, essa é
uma leitura parcial da filosofia de Sartre: a falta ontológica, que jamais poderá ser
preenchida, nada tem de romântico ou ideal, e ainda menos trata-se de pessimismo,
quietismo ou conformismo. Ao contrário, a filosofia de Sartre preconiza o engajamento
da liberdade: a definitiva irrealização humana faz ruir toda utopia, não se nega, mas de
modo algum reduz as possibilidades futuras do homem. Sartre faz ver que não há um
modelo de homem e mundo senão como resultado de condutas opressoras; melhor, não
há modelo universal algum, e ser homem-no-mundo é inventar individualmente o que
vem a ser-homem e mundo, o que exige constituir (eleger, escolher, etc.) o mundo no
qual esse homem existe. O paradoxal, todavia, é que embora o mundo seja
contemporâneo da consciência, ainda assim ele é mais velho que o homem: pudera,
nenhum homem pode ser-no-mundo sem, antes, ter sido criança. E é daí, da alienação
da liberdade ao longo da infância (processo que se inicia a partir da entrada de
todo novo-ser-para-si no mundo), que o controle social faz com que as novas gerações
sejam submetidas a modelos pregressos, costurados às pressas e em vista de interesses
macabros que se igualam ao menos num aspecto: visam controlar a liberdade que,
segundo a filosofia de Sartre, todo homem é.[3]
Assim, se ontologicamente o homem é liberdade, e se toda realidade humana é
falta que se cava na medida em que se preenche, é de se supor que também a filosofia
da liberdade tenha seu mundo a realizar: de fato, Sartre fala de um Reino da Liberdade;
mas no tocante à realização de tal reino é preciso admitir, o filósofo é bastante
pessimista: “Logo que existir, para todos, uma margem de liberdade real para além da
produção da vida, o marxismo desaparecerá; seu lugar será ocupado por uma filosofia
da liberdade” (SARTRE, 2002, p. 39). A condição do reino da liberdade, essa margem
de liberdade real para todos, situa-se tão longe da realidade que Sartre mesmo admite
que tal reino não pode ser sequer imaginado na década de 1960 (SARTRE, 1986); e
seria possível imaginá-lo nos dias de hoje? Cabe a cada homem ou mulher responder a
isso, mas parece claro que a história da filosofia está referta desse assunto: a utopia, ou

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essa proposta de correção ideal de uma situação existente, parece acompanhar a


humanidade desde seus primórdios. Em termos sartrianos, a falta-de-ser que habita o
coração humano é a fonte do mundo, e de todas as suas reformulações; é dali que
brotam (e sempre brotarão) aquilo que se pode chamar utopia. Assim, o
mundo existente reflete a luta humana por superar os desafios de seu ambiente; ao
homem falta alimento, segurança, abrigo, etc., e em resposta ao que lhe falta, tem-se
a invenção da agricultura, das armas, das cidades, etc.; e ainda, em consonância com o
princípio ontológico descrito por Sartre, aquilo que poderia ser chamado de evolução
humana seria a resposta livremente arquitetada pelo homem para prover-se daquilo que
lhe falta, daquilo que ele mesmo inventa que lhe falta, aquilo que ele deseja ou sonha e
lhe falta. Se a utopia nasce da invenção de possíveis sociais humanos, ela acompanha a
humanidade desde seus primórdios, ainda que o termo apenas venha a ser cunhado pela
livre iniciativa de Thomas More em 1516; e isso é ainda mais verdadeiro quando, após a
consagração desse gênero literário, ele foi – extemporaneamente e sem grande rejeição
– aplicado a Platão (Timeu e República). Mas o que impede estendê-lo ao Reino de
Deus, pensado pelos primeiros cristãos? Ou, ainda, a todas as descrições medievais
do rei divino que viria instaurar seu Reino de paz e justiça? E acentue-se o divino desse
rei, pois apenas Deus poderia congregar num mesmo reino a justiça sem a guerra. E,
mesmo, por que não é utópico todo projeto humano, seja individual ou coletivo, afinal
cada um deles nasce, sem exceções, da situação (existente) e, também sem exceções,
todos almejam idealmente aquilo que lhe falta (o mundo correto, como deveria ser)?
A resposta não é simples. De início é preciso considerar que o homem nasce
com passado; isso significa – paradoxalmente, como foi dito acima – que nenhum
homem veio ao mundo senão por meio de outros homens. A consequência é que tanto o
mundo existente quanto as correções ideais desse mundo sempre são encontradas
prontas; e, não raro, essas propostas de correção são justamente o maior entrave para
que de fato o existente possa ser corrigido: todas, sem exceção, negam a liberdade. É,
por exemplo, o caso do homem pobre bem-aventurado (BÍBLIA, 1993, Lc 6:20) que,
porque sofre fome, frio, doença, etc., é feliz e será merecedor do paraíso cristão; e esse
homem nada precisa fazer, visto Jesus já tê-lo salvado. Assim, o pai, cristão oprimido,
ensinará livremente a seu filho que basta viver todos os dias que Deus lhe der sem
jamais se opor a seu opressor, e seu prêmio será o céu, a felicidade eterna. Algo similar
se encontra no Timeu: afora o bizarro primeiro castigo para o homem que não dominou
suas paixões – de voltar à vida(reencarnar) como mulher e, caso persista no erro, voltar

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novamente como animal (como se ele não o fosse, desde sempre!) – o fato é que tudo
que o Demiurgo cria é belo e bom, e será o domínio das paixões (leia-se negação do
corpo e exaltação da alma) o metro que permitirá ao homem voltar ao céu e ali viver
como um deus, ou sofrer o castigo acima indicado.[4] A república platônica, por sua
vez, aposta na educação como meio de superar as mazelas sociais; mas, não se pode
esquecer, o prudente legislador usará de artifícios para separar os homens de acordo
com a natureza de sua alma: às almas de bronze comércio, agricultura e artesanato; a
defesa da cidade ficará por conta de pessoas de alma de prata e, claro, a alma de
ouro governará. Modelo igual ao social será aplicado ao agir individual, na medida em
que a parcela racional da alma deverá – sempre – sobrepor-se às parcelas apetitiva e
irascível.[5] O projeto humano de mundo, seja judaico-cristão ou caudatário da
demiurgia, tem até a utopia de Thomas More o papel de modelo originário: no
princípio, Adão e Eva no paraíso, ou a felicidade das almas bem-aventuradas numa
existência divinal; e sem liberdade. Diferentemente disso, é notório que a proposta de
uma república ideal nada tem de primevo: trata-se de constituir um legislador que
estabeleça um modelo educacional que lhe permita mais bem conhecer a índole dos
educandos, e num ato de sabedoria, encaminhá-los para um mundo onde sejam mais
úteis à coletividade na medida em que mais adequados estejam a seu tipo de alma. Mas
também aí a regra se repete: nenhum espaço de liberdade, visto que o homem é
determinado socialmente por sua essência. Os modelos que antecedem
a República pretendem-se originários, pois projetam a realização do Paraíso para o fim
da história (Jesus voltaria e instauraria o reino de Deus), ao passo que a pretensão
platônica em sua República não aponta para algo quase que mítico – como toda sorte
de bem-aventurança – mas para a realização de um futuro possível a partir do passado.
A felicidade humana originária (e mítica) é, até a proposta de uma república ideal, o
modelo a partir do qual o mundo humano deveria ser erigido; a partir de então trata-se,
efetivamente, de inventar o real peça a peça – afinal, foi Sócrates mesmo (ou Platão, se
se preferir) e nenhum Deus ou Demiurgo, quem talhou esse belo homem para
essa república justa, tanto quanto antes (Timeu) havia projetado livremente seu paraíso
e as regras para aí entrar.
Assumir o trabalho divino na criação do mundo humano é um ato de liberdade
que responde em parte a questão suscitada acima: sim, o homem pode inventar seus
modelos de mundo. Dito de outro modo, como para o existencialismo jamais houve um
Deus (ser impossível) senão como desejo humano de preencher sua falta existencial, o

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fato é que a função demiúrgica sempre esteve a cargo do homem: foi ele quem
livremente inventou seus deuses, seus mitos, sua essência ou natureza. Assim como
Sartre mostra a respeito de Descartes que, em suas meditações e por razões
históricas (submissão à Igreja), reserva a Deus o papel exclusivo do homem na
constituição das ordens de razões, a humanidade desde seus primórdios teria erigido em
Deus (ou numa natureza ou essência míticas) um dos mais fortes e
resistentes parapeitos contra a angústia.[6] A utopia será, nesse sentido, a assunção de
que, seja em nome de Deus ou de qualquer essencialismo, quem de fato decide seu
mundo é o homem; mas, e isso não é um detalhe, ele apenas o faz a partir de modelos
do passado. Ainda que o Reino de Deus, ou qualquer outro modelo, sejam colocados
como algo a ser alcançado, há que se considerar que nesse caso não caberá ao
homem escolher seu futuro: assim como a história da luta de classes levará,
irremediavelmente, ao comunismo – como mais tarde pensará Marx – a realização
dessas utopias calcadas no mito exigirá sempre a ação de uma força
estrangeira (Jesus, leis dialéticas ou mão invisível, tanto faz); e não importa o que se
faça, o resultado será sempre o mesmo. O homem (ou a humanidade), agindo
evidentemente de má-fé, transfere sua responsabilidade por seu mundo ao
transcendente. Pior, ele pode – também num ato de má-fé – depositar o fardo de
escolher e realizar ele mesmo seu mundo nalguma força estranha, que está para além
da liberdade.[7] A filosofia da liberdade rechaça todas essas empreitadas porque, ainda
que prometam a felicidade futura, o fazem a partir do passado e, ainda pior, retiram do
âmbito da liberdade – que é e somente poderia ser humana – seu poder constituidor de
mundo. Afinal, se é o homem o demiurgo que organiza o real peça a peça, seria forçoso
acreditar que algo além do homem possa realizar, por ele, sua felicidade. A alternativa
platônica e sua república, ainda que deplorável no tocante à liberdade humana
(essencialismo, tipos de almas), dá um passo importante ao resgatar o
papel inventivo humano; mas, e essa é a segunda grande dificuldade para se falar
no reino da liberdade, ele o faz a partir do modelo de virtude e justiça calcados na
tradição e história gregas. Ora, com isso tanto os filósofos quanto o cordeiro (ou seu
arauto, São João) não fazem mais que aliviar a consciência que sofre: ao cristão pobre,
que aguarda seu paraíso, virão se juntar proletários de todas as faces e recantos, tanto
aqueles que aguardam o equilíbrio forjado pelo egoísmo e ganância capitalista quanto
aqueles que esperam a justiça promovida pela completa e absoluta submissão
da liberdade e responsabilidade humanas a uma classe (ditadura do proletariado); ao

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homem que confia numa mão invisível não há nada a fazer tanto quanto também nada
pode aquele homem que deixa a cargo da dialética decidir seu futuro. Negar a liberdade
é submeter-se ao mito, não importa a bandeira ou credo; deixar para outro, seja Jesus,
Marx ou Smith, a realização do reino humano, é negar absolutamente a
responsabilidade do homem por seu mundo. Sem o engajamento da liberdade, é a má-fé
que se institucionaliza.
Assim, chega-se ao pai de Utopia, essa ilha onde a
realidade existente (problemas sociais aos olhos do homem Thomas) obedece ao
princípio da igualdade, justiça e liberdade; e virtude, é claro, afinal o ano era 1516. Mas
também aí está vedado ao homem escolher livremente seu destino: a
moralidade utópica funda-se, mais uma vez, no transcendente. A ordem social, toda
essa beleza de um mundo em que basta conhecer uma cidade para ter conhecido todas,
onde ouro e pedras preciosas não podem concorrer com o brilho do sol ou a beleza da
lua, etc., funda-se num ato de fé: a alma imortal, e a crença nalguma providência divina;
é daí, da completa submissão da liberdade de inventar, que More constitui um modelo
de mundo donde possa brotar uma lei que proíba a qualquer homem de ser indigno a
ponto de admitir que a alma morre com o corpo ou que o universo se move ao acaso e
não pela ação de Deus.[8] Difícil admitir que a utopia deixe entrever uma renovação
total do homem e do mundo, sobretudo porque ela toma seu modelo do passado: ainda
que queira distinguir-se do modelo cristão, o fato é que, em nome da
razão, Utopia realiza o mundo do homem racional. A exigência de respeito ao outro,
somada ao nível de autocontrole individual preconizado por More, faz do homem
utopiense já um Deus; ou ao menos semideus, pois somente assim Utopia pode ser
verossímil. Diferentemente do paraíso judaico-cristão ou platônico, More e
sua utopia parece propor a superação do passado em vista de um futuro outro; isso
facultaria ao homem mundano-concreto antever sua condição, seu possível, ou
o possível social humano. Mas apenas parece, pois além de praticamente repetir Platão
na determinação de uma essência humana, Utopia prevê um homem a tal ponto
idealizado que tudo aquilo que a razão – ou o bom senso – indica, é ali tomado como
que desejo natural humano. Talvez, já que o exercício é mesmo imaginário,
Utopia paire nalgum céu inteligível, mas está a tal ponto distante de qualquer realidade
(não confundir com possível humano) que se torna compreensível a acusação de que
utopia é u-topos, esse lugar nenhum que jamais será algum lugar.[9] E isso não é razão
para lamentos: a considerar o simétrico, pouco interessante e nada desafiador mundo

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imaginado por Thomas More, é melhor mesmo que Utopia (tanto quanto o paraíso onde
cabe ao homem contemplar Deus) jamais se realize. Chega-se sem rodeios aos modelos
de mundo que a modernidade propôs: a fé moderna, não apenas na razão, mas
no necessário progresso daquilo que consideraram homem e mundo (sujeito e objeto),
vai provocar as mais bizarras proposições de mundos a fazer; a liberdade humana,
de inventar o real peça a peça torna-se explícita nas utopias do século XVII – a
negação da liberdade, de toda liberdade, também.
A ciência, essa invenção humana de todas as épocas, tem na Europa do século
XVII seu momento áureo: parecia ao homem ter encontrado o bálsamo para todas as
suas dores. Deus ainda permanece nessas utopias, mas a influência do controle das
paixões a fim de evitar a pena eterna abre espaço para outra modalidade mitológica: o
progresso humano que viria da evolução científica. É assim que o debate filosófico,
antes voltado ao plano político ou religioso – lugar da moral –, é agora elevado ao nível
artístico e científico;[10] a liberdade humana, antes devotada a seres e
modelos divinos de antanho, será agora devota de outra de suas invenções:
a técnica feita ciência. E Tommaso Campanella é, em 1623, o inaugurador dessa utopia
da ciência: sua Cidade do Sol, governada por Hoh – sacerdote todo-poderoso – com a
ajuda de Potência, Sapiência e Amor, rivaliza em criatividade com a República de
Platão. Nessa cidade, protegida por muros em sete níveis, a reprodução obedecerá aos
comandos de Mor (Amor) a fim de melhorar o homem (algo que Platão já havia
sugerido ao legislador prudente); a eugenia platônica (ou grega) se faz europeia. Mais
ainda, em vista de melhoria da raça, a misoginia e o pensamento diretivo agigantam-se,
a família deixa de ser o núcleo primeiro da sociedade e a educação limita-se
à doutrinação estatal.[11] A liberdade do homem é, dessa feita, submetida a um modelo
ainda mais despótico que o próprio Deus: esse pretendeu legislar sobre o agir humano,
ao passo que a ciência pretende legislar sobre aquilo que o homem é; a propriedade é
coletiva nessa cidade ensolarada, mas nota-se que também as mulheres são coletivas –
ou, leia-se: a mulher é objeto de posse. E a infância idem: meninos e meninas seriam,
desde os dois anos de idade, educados para repetir o modelo proposto; o paradoxo
de propor uma mudança que pretende inviabilizar toda mudança futura – resultante da
desconsideração de que todo homem é liberdade – impõe-se. E Francis Bacon, o último
medieval e o primeiro moderno, repete o modelo: difícil dizer se o filósofo vê a ciência
moderna com olhos medievais ou se ele cientifica o Deus medieval, mas é inegável que
o papel antes reservado ao divino passa agora para a mão do homem. Não todo homem,

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não qualquer homem, mas sim o homem de ciência; esse sacerdócio, que ora em diante
vai presidir o controle de todo ato livre, terá seu auge durante a Segunda Grande Guerra,
com o extermínio científico (cianureto, câmaras, transporte, etc.) dos judeus, e isso
calcado em princípios científicos (a superioridade ariana não é, ao menos para
os nazistas, senão uma constatação científica).[12]
Outra vez o sacerdócio, homens que seriam mercadores da luz e que buscariam
toda sorte de conhecimentos para a casa de Salomão, centro ao mesmo tempo de
constituição de saber e, sobretudo, de controle social a partir de pesquisas feitas por
todo o mundo; trata-se de uma espécie de ciência iniciática (a cargo dos depredares,
homens de mistério, pioneiros do mistério, compiladores, doadores e benfeitores,
luminares, intérpretes da natureza e inoculadores – homens que teriam um alto grau de
luzes e, por isso, podem penetrar mais fundo que os demais nos mistérios da natureza)
sustentada numa hierarquia rígida pela qual homens mais do que homens(cientistas-
sacerdotes) – a elite científica – decidem o que cabe aos demais homens saber; Bens
além, esse laboratório gigante no qual a criatividade do homem Francis encerra sua
humanidade feliz, revela ainda as enormes e quiméricas pretensões científicas de
Bacon: criar chuva, neve, granizo, vento; talvez controlar a vida e a morte. Ora, se o
para-si é o trabalho de buscar realizar-se em-si-para-si, pode-se dizer que nessa utopia a
elite é – pela inventividade de Bacon – aquilo que mais se aproxima da ideia desse
de Deus faltado. Mas não sem o despropósito de fazer Deus descer do céu para habitar
um templo na terra (Salomão); ou seria melhor dizer que o homem (elite científica) foi,
ao menos imaginariamente, elevado à grandeza divina, e assim pode controlar a
natureza? E, claro, a liberdade inventiva, aquela de constituir o real peça a peça, fica
restrita aos homens de ciência.[13] Isso posto, nada mais é preciso para descrever um
mundo onde há igualdade, justiça e felicidade graças ao desenvolvimento da ciência
(razão); todavia, parece mais fácil acreditar na chegada do Reino do Céu de que admitir
que o controle da natureza vise o bem-estar de todos os homens e não apenas daqueles
da casa de Salomão que, efetivamente, detém esse saber e, assim, detém todo o poder.
Dignos de nota são, ainda, a Pansophie de Comenius, e sua fé inabalável na educação
como promotora da libertação humana (que o fez antecipar Montessori em três séculos),
e a tentativa de Glanvill, de ainda no século XVII, complementar Bacon.[14]
De fato, as utopias merecem reparos. Talvez isso não se aplique àquelas
propostas, como o Reino prometido por Jesus ou o paraíso anunciado por Platão, pois
nessas Deus mesmo decide pelo homem; mas nota-se que no âmbito utópico – de todas

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as utopias – o que ressalta é a norma social. Não ocorreu ao Platão da república, nem a
More, Campanella ou Bacon, buscar no futuro o mundo desejado; assim, ainda que
esses arautos de suas fantasias as prometam para uma realização futura, fica evidente
que elas nascem do passado de cada um deles e, mais, pretendem manter leis e costume
de antes. Se a ética visa o passado, nada de estranho que tais utopias preservem valores
(e preconceitos) de seu tempo ou de tempos antanho (como o caso da Bíblia); mas o
intelectual do século XIX exige uma pesquisa séria, e essa seriedade parece encontrar
seu lugar na utopia socialista; ou melhor, chega de utopias, é a hora do
socialismo científico. Não se nega que, do ponto de vista do presente, há uma diferença
importante entre o socialismo reacionário e o socialismo utópico; mas parece bastante
suspeita a distinção desse – utópico – e aquele que se pretende científico. Antes, porém,
de mais uma vez a liberdade humana prestar subserviência à ciência, cumpre visitar o
socialismo utópico, essa vertente que aos olhos marxistas aparece como ignorante
da maturidade de seu momento histórico;[15] de fato, a revolução a partir desses
modelos revela-se impossível, além do que toda mudança proposta exige a boa
vontade dos opressores (recorrem ao espírito de justiça humano). Saint Simon será o
primeiro socialista a ser visitado; e chega a ser anedótica sua proposta de promover a
liberdade, a igualdade e a paz a partir da constituição de uma fraternidade de
industriais, artistas, cientistas, etc. que administrem o país (França) visando o
crescimento econômico e, desse, a felicidade geral (todos os homens).[16] A moral, que
preconiza que cada homem colocará o melhor de si a serviço dos demais, realiza no
plano subalterno(operariado) mesmo sonho outrora atribuído
aos industriais (e comerciantes): a moral teria por base a liberdade de consciência; e
a escolha – é inacreditável – teria por base o princípio de que todos os homens devem se
ver como irmãos. Assim, o mais rico vai se preocupar com o mais pobre, e aquele que
sabe com o ignorante, pelo fato que são (ou aprenderam que todos os homens são)
irmãos;[17] Marx tem mesmo razão ao questionar o método (ou a falta dele) desse
socialismo, que acredita – segundo Marx, porque idealista pequeno-burguês – no
homem compassivo, que ama seu próximo pelo simples fato que ele está ali, perto.
O Reino de Jesus parece mais verossímil.
Fourier, e sua proposta de cooperativismo, leva vantagem em relação às demais
proposições: de fato é possível (embora pouco provável) que o homem
possa, livremente, fazer acordos de cooperação; mais do que isso, o homem François
Marie Charles – livremente – inventou e deixou de herança para todo socialismo

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libertário a noção de associação voluntária (comunas) como alternativa ao Estado. Mas


a fé de Fourier não tarda aparecer: a história seria o esforço humano de sua liberação e,
pior, a associação entre cultura e indústria seria a alternativa futura que, a partir do
amor, realizaria a liberdade como ordem.[18] Há ainda outros socialismos desse tipo,
como por exemplo o cooperativismo de Owen e o anarquismo de Proudhon;[19] no
caso do primeiro, e graças ao princípio filosófico de má-fé (negação a priori da
liberdade), cumpre endossar a crítica de Marx, e admitir que por importante que sejam
para preencher o imaginário de um povo, as fantasias – que repetem promessas
ancestrais de bonança e felicidade – não podem fazer avançar um passo a
causasocialista. É justamente por isso, lembra Marx, que
Nós desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos
próprios princípios do mundo. Nós não dizemos para o mundo: Parem
suas lutas, elas são tolas; nós lhes daremos o verdadeiro slogan de
luta. Nós simplesmente mostramos ao mundo o que é realmente lutar,
e consciência é algo que deve ser adquirido, mesmo que não se
queira” (MARX, 1843).

Todavia, se aos olhos da filosofia da liberdade (e responsabilidade equivalente) Marx


tem razão em relação a Owen, o mesmo não se passa em relação a Proudhon: na
verdade, Marx – numa negação explícita de todo ambiente intelectual de liberdade –
mostra os limites da filosofia do anarquista Pierre-Joseph, filósofo e sociólogo francês
(além de homem político, jornalista e economista bastante afeito a polêmicas) que se fez
Proudhon. De início o trabalho do anarquista interessou a Marx, que
o convidou para ser marxista; livremente, e de modo pouco gentil, Proudhon recusou-se
a deixar que o homem Karl decidisse como deveria ser a revolução socialista
para todos os homens. Proudhon quis participar dessa decisão, mas encontrou em seu
caminho a costumeira truculência revolucionária marxista e assim, em nome
da liberdade, ele recusou sua inscrição no marxismo, essa nova religião lógica e
racional (conforme suas palavras). A ruptura definitiva entre os filósofos se dá em 1946,
quando Proudhon rejeita veementemente a revolução violenta, o que contraria a certeza
prévia marxista de sua necessidade; desde então a contribuição de Pierre-Joseph, esse
homem genial e inventivo, foi esquecida, e ele passou por uma espécie de ostracismo no
plano da filosofia política: a aposta intelectual foi a marxista, e, na ausência de toda
atmosfera de liberdade, a obra de Proudhon (Socialismo Libertário, Federalismo,
Mutualismo, Anarquismo, etc.) foi silenciada.[20]

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Diferentemente das utopias e demais socialismos, o


socialismo científico é radical, é materialista, é dialético; e, se ser radical é agarrar as
coisas pela raiz, Marx lembra que a raiz é o próprio homem. A filosofia de
Sartre realiza esse preceito, desde que homem seja sinônimo de liberdade; e, também,
desde que o mundo seja aquilo que ocorre como consequência do movimento negativo
que o para-si é e, desse modo, somente o homem possa agir sobre seu mundo e sobre si
mesmo; o homem é livre.[21] Ou, conforme afirma Sartre em Materialismo e
Revolução, “Quando o materialista se pretende certo de seus princípios, sua segurança
não pode vir senão de instituições ou de raciocínios a priori, isto é, das especulações
mesmas que condenam. Compreendo agora que o materialismo é uma metafísica
dissimulada sob um positivismo” (SARTRE, 1949, p. 140). Assim, a negação da
negação apenas pode vir ao mundo se for trazida por uma realidade – a humana;
noutras palavras, mundo é algo eminentemente humano, assim com o é a falta, o nada, a
negação. Não há no plano do puro Ser qualquer fissura ou necessidade a partir da qual
faça sentido falar em movimento dialético; é o homem, é a falta humana que faz com
que o ser venha ao mundo e, consequentemente, a dialética é algo circunscrito à
realidade humana. E, se assim é, “o futuro não está feito” (SARTRE, 1964, p. 26) mas
é perpétuo afazer humano.
Para Sartre a metafísica que subjaz à crença no fim da história, quando aliada à
dialética, reduz os movimentos do espírito à matéria, eliminando, assim, a subjetividade
em favor do mundo; ou, o que daria no mesmo, suprimindo a liberdade em função
de leis irresistíveis e insuperáveis. E, para fundar-se, nada mais ajustado que o
positivismo: ele tem provas científicas de que assim é, e de nenhum outro modo seria.
Ora, não se pode esquecer que ciência também é um fato humano, e enquanto
livre invenção, também ela está imersa em sua situação; ou, por mais exata que seja,
nem mesmo a ciência pode prover ao homem o ponto de vista divino sobre o mundo ou
sobre a história. Ademais, adverte Sartre, “para suprimir a subjetividade o materialista
se declara objeto” e, assim, “pretende contemplar a natureza tal qual ela é
absolutamente” (SARTRE, 1949, p. 141); de uma parte tomam a postura da eternidade
para olhar o Ser, realizando – ao menos idealmente – o ser-em-si-para-si, mas, de outra,
submetem-se de tal modo à ideia que aceitam negar-se para que certa Razão sobressaia;
ou seja, limitam-se ao modo de ser-em-si, retirando todo e qualquer espaço de liberdade.
Repetem o paradoxo de toda utopia ou socialismo romântico: ou bem o homem é
elevado ao nível dos deuses, e lhe será exigida uma boa vontade inquebrantável, ou

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rebaixado ao plano dos insetos, não lhe cabendo sequer escolher como se vestir. Em
ambos os casos, não se pode esquecer, o que se perde é a liberdade.
Em sua ontologia Sartre insiste em mostrar a absoluta positividade do Ser, que
não pode senão ser o que é; mas, ainda assim, esse Ser se mostra de duas maneiras: em-
si e para-si (fenômeno). Ora, se de acordo com Kant o ser não é um predicado real, a
ontologia “limitar-se-á a declarar que tudo se passa como se o Em-si, em um projeto de
fundamentar a si mesmo, se concedesse a modificação do Para-si. Compete à metafísica
formar as hipóteses que irão permitir conceber esse processo como um acontecimento
absoluto que vem coroar a aventura individual que é a existência do ser” (SARTRE,
1997, p. 757).[22] A metafísica materialista, por sua vez, não somente responde que é o
Ser e por que ele se faz mundo, mas também afirma um mundo anterior que prepara o
que se pode considerar mundo humano. Assim, “Dogmático quando afirma que o
universo produz o pensamento, o materialismo passa imediatamente ao ascetismo
idealista” (SARTRE, 1949, p. 143-4) e dialeticamente joga a metafísica contra a
ciência, e essa contra aquela; o resultado não poderia ser mais nefasto: o homem é
reduzido a mero objeto dentre outros e, pior, submetido a leis materiais que
determinariam de antemão seu agir mundano-concreto. Para Engels isso nada mais seria
que resultado de um processo evolutivo de milhões de anos; porém, lembra Sartre,
também o que se pode chamar de história é algo eminentemente humano.[23] Assim, “A
ciência é feita de conceitos, no sentido hegeliano do termo. A dialética em sua essência
é, ao contrário, o jogo de noções” (SARTRE, 1949, p. 153), donde que o movimento
dialético seja o contrário daquele da ciência; noutros termos, sem liberdade não faz
muito sentido pensar a existência concreta, viva e orgânica. É o caso de Engels e
sua metafísica, quando pretendem fazer crer que o mundo seja movimento
resultante desde o universo científico até o plano realista da vida particular.
Apesar de Engels, de Marx, e do aspecto científico desse socialismo, para Sartre
ciência e dialética estão em planos inversos: à ciência cabe investigar as condições
gerais e abstratas do universo; a dialética, por sua vez, almeja a totalidade concreta.
Ainda, se a ciência expressa o ponto de vista burguês, como entender que marxistas
busquem nela argumentos e provas do materialismo? Inegável que a ciência seja
materialista; mas também não o é a burguesia? A esse respeito diz Sartre:
eu vejo claramente duas classes em luta: uma, a burguesia é
materialista, seu método de pensar é a análise, sua ideologia é a
ciência – outra, o proletariado é idealista, seu método de pensar é a
síntese, sua ideologia é a dialética. E como existe luta entre as classes,

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deveria haver incompatibilidade entre as ideologias. Mas não: parece


que a dialética coroa a ciência e explora seus resultados; parece que a
burguesia (...) é idealista – em lugar do proletariado (SARTRE, 1949,
p. 154).

A passagem de um a outro, ou melhor, essa confusão forjada entre as classes não parece
incomodar aqueles que promanam a ortodoxia materialista; ao contrário, tanto mais se
satisfazem quanto mais seu discurso é confuso e contraditório (irredutibilidades
redutíveis). A causalidade materialista fica no ar; não cabe, como se pretende, explicar
um fenômeno social por outro, ou deduzir o psíquico do biológico e, menos ainda, o
biológico a partir de leis físico-químicas. Essa pecha positivista, que Sartre denuncia no
materialismo dialético, acaba sendo escamoteada pela exigência científica; “a noção de
causa está suspensa entre as relações científicas e as sínteses dialéticas”, donde “o
materialismo sendo, (...) uma metafísica explicativa (...), utiliza por princípio o esquema
causal” (SARTRE, 1949, p. 156). O resultado não poderia ser pior: reduz o espírito à
matéria, explica o psíquico pelo físico. A riqueza do fato histórico acaba por reduzir-se
a aspectos causais, lineares e determinantes; e, ao contrário do que propôs o mestre
Marx (dialética), a ortodoxia dialética – que pretende falar em nome do proletariado –
recorre à ciência como sua panaceia, repetindo a ideologia burguesa.
A filosofia da liberdade não pode satisfazer-se com isso; menos ainda o futuro
humano – essa fonte de possíveis, que jamais seca – pode estar restrito a leis que o
definem de antemão. A utopia, de More e de todos os homens que negaram a liberdade
em favor de algum modelo de mundo e homem, repete-se nessa ciência utópica que, por
suas leis, vai realizar a história humana; a filosofia da liberdade, ao contrário, não
oferece modelos, não pode antevê-los, não pretende controlar o que virá – saber do
futuro não é muito diferente de prometer que, no fim da história, o Reino dos Céu sou
o Paraíso Platônico serão realizados. Note-se que o paradoxo inicial se reapresenta: o
homem já nasce com passado, ou seja, há uma norma social atuando; e é dela que
se indica o que será (ou deve ser) o futuro. Assim, como a liberdade é negada em seu
todo, até mesmo Kant pensa uma natureza humana cabível de bem e mal; mas o que
seria um ato bom ou mal em geral? Ou alguma sorte de bem não situado? Essa natureza
originariamente malévola teria de saber de si antes de ser para, assim, constituir o mal
de sua ação antes da situação – absurdo que não incomoda o velho moralista, satisfeito
com as amarras do sonho idealista e, também, por ter reduzido a liberdade a uma ideia.
Mas a ortodoxia dialética, com sua causa infundada cientificamente, torna-se uma
noção vulgar e prática – ou, conforme afirma Sartre, “A consciência das massas tem
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uma verdade prática porque ela é expressão necessária de uma situação, e porque suas
reivindicações englobam seu próprio ultrapassar rumo a uma sociedade na qual ‘o
homem seja o ser supremo para o homem’” (SARTRE, 1964a, p. 29).
Mas, vale lembrar, em temos de utopia é preciso ser radical e a raiz é o homem;
e ser-homem é ser liberdade, insiste Sartre. A liberdade, ou o homem livre, é o ser
supremo para o homem. Um círculo vicioso evidente? Não. É verdade que a filosofia de
Sartre, ao propor o engajamento da liberdade, propõe partir do homem situado e chegar
à liberdade social; mas cada homem, ao assumir seu projeto de ser-homem, executa
(realiza em seu ser) um modelo de mundo como ele deveria ser. A ética do
porvir (toda ética, portanto) emana daquilo que é o modo de ser humano no mundo, ou
seja, parte-se da liberdade situada para, livremente, inventar o futuro (acordo de
liberdades, ou Grupo em Fusão, SARTRE, 2002, pp. 501 ss). As barreiras que
impedem pensar uma ética do porvir se revelam em sua crueza: o homem é liberdade
que se elege em situação; a liberdade somente se realiza sobre o passado que cada
homem herda de outros homens. Mesmo assim o homem permanece abertura ao
futuro, ainda que suas possibilidades próprias lhe sejam negadas pelo ser-para-outro. A
má-fé, enquanto tentação determinista de, de fora, explicar esse fenômeno, impõe-se: a
ciência cria tipologias, esquarteja a existência em partes correlacionadas (primeira
infância, segunda infância, etc.) ou propõe soluções ainda mais bizarras, como sugerir
estruturas (modelos de ser) que podem explicar o um a partir do outro. A
fenomenologia não pode fazê-lo, e denuncia a prática de ignorar que cada homem, em
todas as suas manifestações mundano-concretas, é liberdade; e defende: nenhum homem
ou ciência é capaz de levar a cabo essa tarefa pelo outro. Ninguém pode saber do fim da
história; ele sempre será, em seu todo, invenção.
Enfim, engajar a liberdade é pré-requisito para a ética do porvir; nesse sentido
Sartre desmistifica pressupostos éticos que servem de base para a constituição
de utopias e, em certa medida, também do socialismo – ao menos, do socialismo sem
liberdade. Admitir a liberdade exige abrir mão de certezas sobre o futuro, é verdade;
mas negá-la exige manter a crença de que o homem é determinado em seu passado.
Assim sendo, a crença socialista na ciência se amplia: a ética é um projeto que, com
ajuda especializada, pode-se levar a termo. A fé nalgum fim da história resiste, mesmo
depois de tantos fracassos em sua realização; não faltam homens para repetir o projeto
absurdo de alcançar a Totalidade, o Ser, a Substância no qual o movimento que cada
homem é encontre repouso. Também não faltarão homens que insistirão num hábito,

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apreendido ainda na infância, de não se sentir responsável por seu ser, abrindo mão de
sua liberdade para livrar-se de sua responsabilidade (má-fé); outros tantos preferirão o
paraíso imaginado à alguma livre realização de si, e preferem entregar sua liberdade na
mão do primeiro líder – religioso ou político – que, com mais eficiência, aliviá-lo de si
mesmo (e de sua culpa). Que seja! A liberdade, quando engajada na história, revela que
o homem é livre e responsável; revela mais: cada homem é livre em sua situação, não
importa qual seja ela. A ética, o futuro humano, é um caminho que se trilha, e não a
reificação do próprio caminho.

AUTOR
*Luciano Donizetti da Silva possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal
do Paraná (1999), mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade
Federal do Paraná (2002) e doutorado em História da Filosofia pela Universidade
Federal de São Carlos (2006). Atualmente é professor de Filosofia na Universidade
Federal de Juiz de Fora, MG, no Instituto de Ciências Humanas, Departamento de
Filosofia. Bolsista CAPES, Estágio Sênior (Université Jean Moulin, Lyon), processo n°
2631/15-6.

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NOTAS
[1] ORWELL, 2000, p. 114.
[2] “Toda realidade humana é uma paixão, já que projeta perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo
tempo, constituir o Em-si que escape à contingência sendo fundamento de si mesmo, o Ens causa sui que
as religiões chamam de Deus. Assim, a paixão do homem é inversa à de Cristo, pois o homem se perde
enquanto homem para que Deus nasça. Mas a ideia de Deus é contraditória, e nos perdemos em vão; o
homem é uma paixão inútil” (SARTRE, 2011, p. 750).

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[3] “A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível: a essência do ser humano acha-
se em suspenso na liberdade. Logo, aquilo que chamamos liberdade não pode se diferençar do ser da
‘realidade humana’. O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre o ser do
homem e seu ‘ser-livre’” (SARTRE, 2011, p. 68).
[4] “Aquele que viver bem durante o tempo que lhe cabe, regressará à morada do astro que lhe está
associado, para aí ter uma vida feliz e conforme. Mas, se se extraviar, recairá sobre si a natureza de
mulher na segunda geração; e se, mesmo nessa condição, não cessar de praticar o mal, será sempre gerado
com uma natureza de animal, assumindo uma ou outra forma, conforme o tipo de mal que pratique. Ao
mudar o seu estado anterior, não se verá livre destes sofrimentos, enquanto for arrastado pelo percurso do
Mesmo e do Semelhante com a vasta massa formada de fogo, água, ar e terra que depois se juntou a ele;
só quando dominasse por meio da razão essa massa turbulenta e irracional, voltaria à forma do seu estado
primeiro e ideal” (PLATÃO, 2011, p. 119).
[5] Donde a justiça deva ser ensinada nessa República Ideal, pois, “_ Na verdade, a justiça é, ao que
parece, algo semelhante com a única diferença que ela não rege os negócios externos do homem, mas
seus negócios internos, seu ser real e o que lhe concerne realmente, não permitindo a qualquer das partes
da alma que cumpra uma tarefa alheia, nem às outras três partes que usurpe as respectivas funções. Ela
quer que o homem regule bem os seus verdadeiros negócios domésticos, que assuma o comando de si
próprio, ponha ordem em si e ganhe sua própria amizade; que estabeleça um perfeito acordo entre os três
elementos de sua alma, como entre os três termos de uma harmonia, a mais alta, a mais baixa, a média e
as intermediárias se existirem, e que, unindo-as em conjunto, ele se torne, de múltiplo que era,
absolutamente uno, temperante e harmoniosos; que somente então se ocupe, se é que se ocupa, de adquirir
riquezas, de cuidar do corpo, de exercer atividades na política ou nos negócios privados, e que tudo isso
considere e denomine bela e justa a ação que salvaguarda e contribui para a ciência que preside tal ação;
que, ao contrário, denomine injusta a ação que destrói esta ordem e ignorância , a opinião que preside esta
última ação” (PLATÃO, 1965, pp. 234-5).
[6] SARTRE, 1947.
[7] O sonho humano de ser-deus, preenchendo em definitivo sua falta de ser originária, realiza-se nas
promessas do cordeiro imolado tanto quanto na crença moderna no fim da história; assim, a
revelação coloca Jesus como aquele que – descendo do céu – vai instaurar seu reino. Ou seja, “quem
vencer, eu o farei coluna no templo do meu Deus, e dele nunca sairá; e escreverei sobre ele o nome do
meu Deus, e o nome da cidade do meu Deus, a nova Jerusalém, que desce do céu, do meu Deus, e
também o meu novo nome” (BÍBLIA, 1993, Ap 3:12); esse reino virá, não importa o que faça o homem:
“E levou-me em espírito a um grande e alto monte, e mostrou-me a grande cidade, a santa Jerusalém, que
de Deus descia do céu.
E tinha a glória de Deus; e a sua luz era semelhante a uma pedra preciosíssima, como a pedra de jaspe,
como o cristal resplandecente” (BÍBLIA, 1993, Ap. 21:10-11). Noutro termos, mas ainda na crença de
que a salvação virá de outro lugar que não a liberdade humana, Marx e Engels também fazem suas
predições: “Para nós, o comunismo não é um estado que deva ser implantado, nem um ideal a que a
realidade deva obedecer. Chamamos comunismo ao movimento real que acaba com o atual estado de
coisas. As condições deste movimento resultam das premissas atualmente existentes” (MARX-ENGELS,
1999a, p. 43), donde “Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classe,
surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do desenvolvimento de
todos” (MARX-ENGELS, 1999, p. 44). E, não muito distante daí, ainda que fazendo coro no partido
adversário do comunismo, tem-se Adam Smith e sua mão invisível: “Geralmente, na realidade, ele não
tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo (...); ao orientar sua
atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas o seu próprio ganho e,
neste, como em muitos outros casos, é levado como que por uma mão invisível a promover um objetivo
que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo não
faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir seus próprios objetivos, o indivíduo muitas vezes
promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quanto tenciona realmente promovê-lo”
(SMITH, 1983, p. 379, grifo nosso).
[8] Considerando-se que “Os utopienses creem, portanto, que depois desta vida, os vícios serão punidos e
a virtude, recompensada. Aqueles que negam essa proposição deveriam ser considerados abaixo da
condição humana, uma vez que estão degradando a sublimidade de sua própria alma e se reduzindo à
condição do animal que possui apenas seu corpo material perecível. Esses indivíduos nem deveriam ser
considerados como cidadãos, uma vez que, certamente iriam trair e desrespeitar as leis e os costumes da
sociedade se não fossem contidos pelo medo. Quem irá duvidar de que um homem, que nada teme além
da lei e que não tem nenhuma esperança numa vida depois da morte, fará de tudo para infringir as leis de
seu país por meio da astúcia ou da violência para satisfazer sua avidez por vantagens pessoais. Assim, a
alguém que compartilha uma tal visão não se concede honrarias e nem se confiam funções e

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responsabilidades públicas, sendo visto por todos como um ser sórdido e de natureza baixa. Ainda assim,
não o punem por isso, pois estão convencidos de que ninguém escolhe sua fé apenas por um mero ato de
vontade” (More, 2004, p. 116), onde seria o espaço da liberdade?
[9] Que o alvo de More seja a Inglaterra do século XVI não muda o fato de que, nessa utopia, os valores
pregressos – a escravidão e o machismo, por exemplo – serão a tônica dessas leis que fazem
de Utopia a melhor das repúblicas; boa, mas talvez aqueles homens destinados à escravidão não estejam
de acordo, afinal, “quão suaves e práticas são essas leis que procuram punir e eliminar os vícios e salvar o
homem. Os criminosos são tratados de tal modo que são levados a ver a necessidade de serem honestos e
de repudiarem o mal que fizeram antes. Há tão poucos riscos de reincidência que os viajantes, que vão de
um lado para outro do país, os têm como guias da mais alta confiança, trocando os nos limites de cada
distrito. Com efeito, o escravo não tem a menor possibilidade de realizar um roubo, uma vez que não tem
arma e qualquer dinheiro em sua posse o denunciaria. Se for apanhado, o castigo o espera; nenhuma
esperança há de fuga. Como esconder-se?” (MORE, 2004, p. 24); e, não se pode esquecer, as mulheres
(fisicamente mais fracas que o homem) tem seu papel bem definido: como “Em cada família, é o mais
velho que governa a casa; as mulheres devem obediência aos maridos; os filhos, aos pais e, de um modo
geral, os mais jovens obedecem aos mais velhos” (MORE, 2004, p. 63), ela meramente fará parte de uma
estrutura já definida. Isso nem é tão mal assim, num mundo que – contrariamente à todo futuro – esforça-
se por cristalizar-se: “Relações sexuais antes do casamento, quando devidamente comprovadas, são
motivo de punições severas tanto ao homem quanto à mulher, que não podem mais se casar pelo resto da
vida, a menos que sua pena seja suspensa pelo perdão do príncipe. Adicionalmente, o pai e a mãe, chefes
da família em cuja casa o ato foi praticado, ficam publicamente desonrados por terem sido relapsos em
seus deveres” (MORE, 2004, p. 93); ainda, “Os sacerdotes são também responsáveis pela educação das
crianças e dos jovens. O aprendizado de boas maneiras e de moral é considerado como tão importante
quanto o conhecimento. Desde o início, procuram inculcar na mente das crianças, cuja alma é ainda tenra
e dócil, princípios que serão úteis à preservação da comunidade. Aquilo que é plantado na mente das
crianças continuará vivo na mente dos adultos e torna-se de grande valor para o fortalecimento da
comunidade: o declínio das sociedades pode sempre ser traçado a partir dos vícios que emergem de
atitudes erradas” (MORE, 2004, p. 121).
[10] “À Sapiência compete a direção das artes liberais, mecânicas, e de todas as ciências, bem como a dos
respectivos magistrados, dos doutores e das escolas de instrução. Obedecem-lhe, pois, tantos magistrados
quantas são as ciências. Há um magistrado que se chama Astrólogo, outro Cosmógrafo, Aritmético,
Geômetra, Historiógrafo, Poeta, Lógico, Retórico, Gramático, Médico, Fisiólogo, Político, Moralista,
havendo para eles um único livro chamado Saber, no qual, com maravilhosa concisão e clareza, estão
inscritas todas as ciências” (CAMPANELLA, 2002, p. 10).
[11] Nesse sentido, “Se uma mulher não é fecundada pelo homem que lhe é destinado, é confiada a
outros; se, finalmente, se revela estéril, torna-se comum, mas lhe é negada a honra de sentar-se entre as
matronas na assembleia da geração, no templo e à mesa. Assim procedem para que, por motivos de
luxúria, não procurem elas a esterilidade. As que concebem ficam, por quinze dias, dispensadas de
qualquer fadiga. Começam, em seguida, trabalhos fáceis que lhes fortifiquem a prole (...), os médicos só
lhes permitem alimentos profícuos” (CAMPANELLA, 2002, p. 25). A crença na utopia científica é
tamanha que caberá ao médico decidir a alimentação da mãe, ao físico decidir os dois anos pelos quais a
criança deverá ser amamentada; em seguida ela será entregue ao mestre para “quase que como um
divertimento, a aprender o alfabeto, a explicar as pinturas, a exercitar-se na corrida, na luta, e depois a
estudar as histórias expostas pelas pinturas e as diferentes línguas. Até aos seis anos de idade, vestem uma
elegante roupa multicor” (CAMPANELLA, 2002, p. 25). Resta o espaço de liberdade: ao menos a cor da
roupa das crianças não foi decidida de antemão, mas está decretado que será elegante e colorida; fica
patente que, apesar de toda boa vontade do filósofo italiano, o caso é com isso todo possível humano é
negado, e a liberdade reduzida quando muito ao mero arbítrio.
[12] Após lembrar que Bacon captou muito bem o sentido da ciência, mesmo não sendo matemático,
pode-se ler em O conceito de Iluminismo que “o iluminismo se auto-reconhece até mesmo nos mitos.
Quaisquer que sejam os mitos para os quais essa resistência possa apelar, esses mitos, pelo simples fato
de se tornarem argumentos numa tal contestação, aderem ao princípio da racionalidade demolidora pela
qual censuram o iluminismo. O iluminismo é totalitário” (ADORNO-HORKHEIMER, O conceito de
Iluminismo, p. 21).
[13] Como pode um mundo perfeito negar a liberdade sexual, quase que seguindo à risca a totalidade das
limitações propostas pelos judeus? “Entendereis que não há sob o céu nação mais casta que Bens além,
nem tão livre da corrupção e da torpeza. É a nação virgem do mundo. (...). Pois nada há entre os mortais
de mais belo e admirável que a mente casta deste povo. Sabei também que entre eles não há bordéis,
casas dissolutas, nem cortesãs nem qualquer coisa do gênero” (BACON, 1979, p. 258). Todavia, a
maneira de levar essa castidade aos jovens não parece muito santa ou, mesmo, justa: “Não são

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invalidados os casamentos feitos sem o consentimento dos pais, mas são castigados os herdeiros, pois os
filhos nascidos de tais matrimônios não são admitidos à herança em mais que a terça parte dos bens
possuídos pelos seu pais” (BACON, 1979, p. 260); qual seria mesmo a culpa dos netos (ainda não
nascidos)? E antes de dar asas à imaginação, para descrever toda a ciência divinizada que, no lugar de
Deus, deveria controlar a liberdade humana, o filósofo ainda brinda seu leitor com a benção de um
mensageiro judeu em língua espanhola: “Deus vos abençoe, meu filho; vou oferecer-vos a joia mais
preciosa que possuo; pelo amor de Deus e dos homens, vou fazer-vos
uma relação da verdadeira organização da casa de Salomão” (BACON, 1979, p. 262, grifo nosso).
[14] “Houve, de fato, na Inglaterra, a partir de 1650, aproximadamente, um admirável impulso do que se
chamava a nova filosofia, filosofia experimental ou filosofia eficaz (effective philosophy), isto é, o
conjunto de ciências experimentais da natureza. A Sociedade Real de Londres, fundada em 1645, e
oficialmente reconhecida em 1662, a obra do físico Robert Boyle (1627-1691), sobretudo a obra de
Newton (1642-1727), assinalam os momentos desse desenvolvimento. A obra coletiva da Sociedade Real,
o catálogo que tenta inventariar os fenômenos da natureza, é um ensaio destinado a realizar a primeira
exigência da ciência baconiana: a História. E Glanvill, em seu Scepsis scientifica(1665), vê ‘na Nova
Atlântida, o projeto profético da Sociedade Real’. O mesmo Glanvill, nessa obra, exprime bem o espírito
da Sociedade, ao mostrar a incerteza de nossos conhecimentos acerca de todas as matérias de que trata a
filosofia cartesiana: união da alma e do corpo, natureza e origem da alma, origem dos corpos vivos,
ignorância das causas (‘não podemos conhecer, dissera Hume, que uma coisa é causa de outra, senão
enquanto a esperamos; esse caminho não é infalível’); mas opõe-lhe a fecundidade em descobertas da
parte prática e experimental da filosofia, essa ‘nova filosofia para a qual dirige seu discurso’” (BREHIER,
1977, p. 45). Sobre a pedagogia de Jan Amós Komenský, ver COMENIUS, 1999.
[15] “É precisamente uma vantagem da nova tendência não antecipar dogmaticamente o mundo, mas de
somente buscar encontrar o novo mundo através da crítica do mundo que nos precede. Até o momento os
filósofos tiveram a solução de todos os enigmas, encerrados em seus escritórios, e ao estúpido mundo
exotérico, bastava abrir sua boca para que caíssem nela as pombas assadas [palomas asadas] do
conhecimento absoluto” (MARX, 1843, tradução nossa).
[16] A filosofia de Saint-Simon, sobretudo seu socialismo, revela aspectos absolutamente atuais: “Porque
a ignorância, a superstição, a preguiça e o gosto pelo lazer dispendioso forma o apanágio dos chefes
supremos da sociedade, e que as pessoas capazes, econômicas e trabalhadoras não são empregadas senão
como subalternos e como instrumentos. Porque (...) os homens mais imorais são chamados a formar os
cidadãos na virtude, e que, sob a relação da justiça distributiva, esses são os grandes culpados que são
encarregados de punir as faltas dos pequenos delinquentes” (SAINT-SIMON, 2003, p. 78). Ainda assim,
também o homem Claude-Henri é vítima de seu otimismo, e nem mesmo os santos teriam a conduta
pretendida pelo filósofo para o grupo social mais voraz de todos: “A indústria é uma: todos seus membros
são unidos pelos interesses gerais da produção, por uma necessidade que todos têm de segurança no
trabalho e de liberdade nas trocas. Então, os produtores de todas as classes, de todos os países, são
essencialmente amigos; não há nada que se oponha à sua união, e a coalizão de seus esforços aparece-
nos...” (SAINT-SIMON, 2003, p. 58) como condição indispensável para que a indústria liberte o homem
(trabalhador) do trabalho; ora, o contrário disso parece bem mais plausível.
[17] A igualdade terá, contudo, seus limites: “Cada um obterá um grau de importância e de benefícios
proporcional `sua capacidade e à sua situação [mise]; isso constitui o mais algo grau de igualdade que seja
possível e desejável. Tal é a característica fundamental das sociedades industriais (...). Não esqueçamos
também que, em uma sociedade de trabalhadores, tudo tende naturalmente a ordem; a desordem vem,
sempre e em última análise, de quem não faz nada[fainéants]” (SAINT-SIMON, 2003, p. 83).
[18] Mesmo com todo seu esforço libertário, o socialismo de Fourier mostra que os valores nutridos pelo
homem Charles acabam por estabelecer, nessa filosofia que almeja a liberação, um limite
intransponível para liberdade (ética do porvir); é assim que o estado perfeito é aquele no qual háunião
absoluta entre ordem e liberdade, o que faz dessa mero destino humano: “Nosso destino é avançar; cada
período social deve avançar rumo ao superior: a promessa [voeu] da natureza é que a barbárie tende à
civilização e chega aí por degraus; que a civilização tende ao garantismo [garantisme], que o garantismo
tende à associação simples e, assim, os demais períodos” (FOURIER, 1973, p. 145). E ao homem, ou à
liberdade, cabe algo? Se o destino se encarrega do destino humano, não há alternativa: essa teoria
libertária, porque define liberdade, aos olhos da filosofia da liberdade adentra o plano da má-fé.
[19] Ainda que seja considerado o socialista utópico mais importante, a filosofia de Robert Owen tem,
como um de seus pilares, o fato de que nenhum homem é responsável por aquilo que é (faz, escolhe),
visto sua existência estar ligada ao ambiente e à hereditariedade; feito isso, nem mesmo sua radical
crítica de toda religião pode minimizar o caráter absolutamente de má-fé dessa livre invenção do
socialismo, conf. OWEN, 2017.

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[20] A ideias de Proudhon foram expressas em seu Système de contradictions économiques (ou
Philosophie de la misère, PROUDHON, 1846), e teve sua contrapartida com Miséria da
Filosofia(MARX, 1985), a resposta crítica de Marx. É claro que o homem Pierre-Joseph é, tal qual Marx,
uma liberdade situada; anarquista, defensor da liberdade política e social, crítico da propriedade privada e
da desigualdade, ainda assim ele não está imune aos valores de seu tempo (há em sua filosofia traços
de antissemitismo e misoginia, repetindo norma do século XIX). Mesmo assim, especificamente no
tocante à sua polêmica com Marx – sobre os rumos da revolução comunista – o único caminho plausível
de resposta é o julgamento da história; e, nesse, parece que A filosofia da miséria teve mais acertos que
erros, conf. ANSART, 1969.
[21] Também o homem Immanuel, em 1793 (A religião nos limites da razão), não mede palavras em suas
investidas contra a autonomia do homem; note-se, a propósito, o que Kant afirma sobre o exercício da
liberdade num mundo moral – bem e mal estariam arraigados na natureza humana. Esse mal originário,
“A inveja, a ânsia de domínio, a avareza e as inclinações hostis a elas associadas assaltam a sua natureza ,
em si moderada, logo que se encontra no meio dos homens, e nem sequer é necessário pressupor que estes
já estão mergulhados no mal e constituem exemplos sedutores; basta que estejam aí, que o rodeiem, e que
sejam homens, para mutuamente se corromperem na sua disposição moral e se fazerem maus uns aos
outros” (KANT, 2008, p. 108).
[22] “Ser não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa acrescentar-se
ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas. No
uso lógico é simplesmente a cópula de um juízo” (KANT, 2001, p. 504).
[23] A respeito nota-se que chegam a ser hilárias as análises feitas por Sartre de exemplos tomados por
Engels da física e da química (SARTRE, 1949, pp. 148-51).

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Entrevista

CONVERSA COM CARLA DAMIÃO:


sobre filosofia e filme
Rodrigo Araújo*
Leidiane Coimbra**

Carla Milani Damião é professora da Universidade Federal de Goiás (FAFIL-


UFG), doutora em Filosofia pela Unicamp e concluiu seu pós-doutorado na
Universidade de Amsterdã (UvA) em 2014. Em 2006, publicou pela editora Loyola o
livro “Sobre o declínio da sinceridade: Filosofia e autobiografia de Jean-Jacques
Rousseau a Walter Benjamin”, resultado de sua tese de doutorado. Pesquisadora dos
escritos do filósofo alemão Walter Benjamin, sua trajetória é marcada por intensa
investigação em estética e filosofia da arte. Coordenou o GT de Estética da Associação
Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), é participante da Associação
Brasileira de Estética (ABRE) e atualmente desenvolve uma pesquisa sobre Teoria

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Crítica, Gênero e Estética, além de coordenar o Grupo de Estudos Kinosophia, relativo à


Filosofia do Filme. Publicou inúmeros trabalhos sobre estes temas.
Numa dentre outras quentes noites da cidade de Goiânia (GO), Carla Damião,
generosamente, nos recebeu em sua casa para uma conversa sobre estética, Walter
Benjamin e, particularmente, sobre Filosofia do Filme. A filosofia e o cinema estão
desde muito cedo presentes em sua trajetória, ao menos desde o período em que ainda
cursava a graduação em filosofia e trabalhava na Secretaria de Cultura Municipal de
São Paulo com pesquisa e documentação em cinema. Vivenciou de perto a cena do
cinema alternativo feito em São Paulo e a lendária Boca do Lixo, de onde despontaram
cineastas como Carlos Reichembach e Mojica, entre outros. Carla estava especialmente
feliz naquela noite: vinha de uma reunião na qual o colegiado de pós-graduação da
FAFIL-UFG acabara de aprovar a inclusão da linha de Estética e Filosofia da Arte no
Programa.

Você tem nos falado nos últimos anos sobre uma recente tendência na filosofia
contemporânea que é a “filosofia do filme”. Poderia nos falar um pouco sobre o
significado e o valor dessa pesquisa para a filosofia e para o cinema?
A própria terminologia “filosofia do filme”, film-philosophy, em inglês, corresponde um
pouco a necessidade de separar o que seria o meio (o filme) da função do espectador,
isto é, da recepção do filme. Trata-se de pensar por meio do filme como meio, como
veículo e não na relação com o público primeiramente. Josef Früchtl publicou um livro
em 2004 no qual situa três gêneros de filme; o western (o faroeste ou filme de cowboy),
o filme de gângster e o filme de ficção científica. Ele associa estruturas de pensamento,
digamos assim, a esses gêneros. Em comum nesses gêneros há a apresentação de um
“herói problemático”, ou seja, uma acepção moderna de herói. O título de seu livro é –
Das unverschämte Ich (o eu impertinente ou sem vergonha). Quem é esse herói que
ainda ousa “dar as caras” na tela de cinema e ao que ele está relacionado? É muito
interessante verificar nos três gêneros uma interpretação que passa pela decadência da
figura do herói. Do filme de fronteira à constituição ao vilarejo, à fase em que, dentro
do mesmo gênero, o western, surge uma tendência psicologizante, que caracteriza com
clareza aquele herói que decididamente deixou de ser o herói dos primeiros filmes,
aquele que já era distante do herói antigo. Früchtl cita como exemplo o filme High
Noon (Matar ou o morrer, de 1952) dirigido por Fred Zinnemann, sobre o sujeito que
quer ser herói e a cidade diz “não, a gente não precisa mais de herói, está tudo bem aqui,

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saia daqui com a sua esposa e seja feliz, a gente não quer confusão”. Há um limite,
portanto, daquilo que já deixou de ser herói e que se torna cada vez mais moderno. Sua
referência é Hegel e a ideia da consciência dilacerada. Não vou repetir a interpretação
pertinente e primorosa que ele desenvolve, mas podemos dizer que a tese central de seu
livro é a ambiguidade do herói, que – na modernidade - já não existe em sua inteireza,
mas que ressurge no cinema, ao constituir um tipo de personagem que vive o conflito de
não poder ser mais herói. O romantismo, associado ao filme de gângster, corresponde
àquele herói desorientado que busca algo, mas decididamente não sabe mais o que é.
Uma fome por algo que se revela como uma espécie de vício; vício por alguma coisa
que ele não sabe o que é, porque deixou de reconhecer o objeto de sua procura. O
gângster é a figura do capitalista às avessas, já dentro do contexto social da cidade – não
mais do vilarejo -, da metrópole, diferentemente do cowboy que vive no ambiente
inóspito da grande planície, imerso em sua solidão, eventualmente enfrentando regiões
de fronteira, na construção e estruturação de vilarejos, micro modelos de constituição da
sociedade moderna. Früchtl acaba fazendo uma leitura da modernidade e do que seria o
heroísmo na modernidade associado a esses gêneros de filme que comportam estruturas
filosóficas que primeiro notaram os sintomas da modernidade e a crise da subjetividade.
O último gênero considerado, da ficção cientifica, surge em conjunção com Nietzsche,
Deleuze e a pós-modernidade. É possível ver o quanto a ficção cientifica se constitui
como gênero híbrido em relação aos outros gêneros, já que nela, em Matrix, por
exemplo, vemos verdadeiras cenas de duelo, de reconstituição do agonístico romântico,
nas cenas de embates, também existentes nos filmes de gângsters. Quer dizer, pode ser
visto como uma reunião de outros modelos e gêneros. Alguns dos exemplos de
correspondência citados, como o Exterminador do futuro, são de filmes produzidos para
o grande público, não são filmes de arte, caracterizados pela busca por uma imagem
com valor de autenticidade. São filmes muitas vezes rejeitados pelos intelectuais mais
acostumados à crítica do espetáculo, da imagem-clichê ou da indústria cultural. Tais
filmes, conhecidos como blockbusters, são vistos por Früchtl como portadores de temas
que projetam essa figura de um “herói impossível”, mas que insiste em se colocar em
cena, num futuro que repete modelos, ações e situações de outros gêneros. Sua teoria do
filme não trata, portanto, do que se vê ou se gosta, de sermos guiados por um
sentimento em relação ao filme, mas do que existe num filme que leva a pensar e que
pode se relacionar com o pensamento já existente. Também não se trata de uma falsa
relação na qual exista uma sobreposição da filosofia ao filme, mas estruturas de

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pensamento que acabam por ser representadas nessa figura de um herói fracassado, por
princípio, que é o herói moderno.
O livro de Josef Früchtl se chama O eu impertinente. Uma história heroica da
modernidade[1] (Das unverschämte Ich. Eine Heldengeschichte der Moderne),
seguindo a tradução de língua inglesa, pode ser traduzido como impertinente. Poderia
ser também aquele que é sem vergonha, aquele que perdeu a vergonha, uma referência
à Mínima moralia, de Adorno, em referência ao eu que perdeu todo o pudor de falar o
que quer: o eu fascista. Penso que quando Früchtl escolheu esse título para falar do
cinema, não estava pensando exatamente no valor moral ou político, no “eu” fascista
moral e politicamente localizado, mas naquele que ainda ousa dar as caras nas grandes
telas do cinema, por isso “impertinente”, por ousar dar as caras no local ao qual ele não
mais pertence. Pertinência como sinônimo de pertença, como condição de pertencer
plenamente a um contexto. O comportamento impertinente revela moralmente o
desajuste ao meio, mas queria que fosse entendido de maneira tão neutra quanto seu
antônimo: pertinente. É pertinente, ou seja, cabível naquela circunstância ou local. Na
contramão do que seria a morte do herói da pós-modernidade, Früchtl afirma e assume a
pós-modernidade como mais uma faceta da modernidade, uma subjetividade que ainda
se afirma no cinema. Digamos que o filme se constitui como prova de que a
subjetividade moderna – entendida como frágil, num mundo no qual o sentido não é
mais revelado – não está superada. Recentemente, Früchtl retomou o sentido moral da
palavra, tal qual aparece em Minima Moralia, aforismo 29, como o “eu sem-vergonha”,
em consonância com uma reflexão sobre a política desenvolvida no projeto “A arte da
democracia emotiva”. Sua mais recente palestra tem por título, justamente,
“Democracia para cidadão sem-vergonha”.
Voltando aos filmes, podemos assistir aos mesmos filmes que Früchtl assistiu e
não concordar com absolutamente nada do que ele diz, mas se lemos ou conhecemos
Hegel e as fontes sobre as quais ele fala, você pensa “faz sentido” no espírito da
“filosofia do filme”. Associações que são feitas e que nos dá a pensar por meio do filme,
saindo um pouco das teorias de cinema que ficam preocupadas com o aspecto
mercadológico de produção, ou artístico - elenco, ator, diretor, fotógrafo -, no limite a
construção do show business com calçadas da fama, culto ao estrelato, o glamour dos
festivais de cinema e seus tapetes vermelhos com as estrelas servindo de modelos a
grandes costureiros e joalherias, etc. Esse ambiente de sedução e de espetáculo diminui
consideravelmente quando nos atemos ao nexo filme e filosofia. Há um professor

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escocês (o professor David Sorfa)[2] que criou uma pós-graduação em “filosofia do


filme” na Universidade de Edimburgo, na Escócia. Fiz uma entrevista com ele
interessada na maneira como ele formou este curso. E ele dizia: “nós não estamos
interessados na figura do diretor”. Isso é também um pouco radical porque se
considerarmos um diretor como Lars Von Trier ou um Béla Tarr, como poderemos
ignorar o que eles pensaram ao criar estéticas e filmes como Dogma 95 ou O Cavalo de
Turim (Tarr)? Se pensarmos na estética da fome de Glauber ou nos filmes ensaios de
Sganzerla, é impossível não considerar o diretor. É provável que Sorfa estivesse
referindo à indústria do cinema e ao filme do grande produtor, no qual o diretor é parte
executora.

Existem pesquisas de “filosofia do filme” em torno do cinema brasileiro?


Existem muitas teses, muitos trabalhos sobre o cinema marginal, o cinema novo, sobre
Glauber Rocha, mas quase sempre tentando enxergar em Glauber um estilo, se é
barroco, se é trágico, se é Trauerspiel, mas ainda assim com essa dúvida: o que estou
fazendo é filosofia ou é teoria do cinema? E aí as referências bibliográficas que
encontramos têm sempre uma tendência maior em lidar com teoria do cinema. Ismail
Xavier, Jean Claude Bernardet e Paulo Emílio são as fontes de pesquisa que orientam a
dissertação como um corpus de referência sobre o assunto. As pessoas têm um pouco de
acanhamento teórico no Brasil, embora não exista acanhamento na prática de realização
de filmes. Acho que a tradição anglo-saxã ousa ter uma liberdade de pensar o que bem
queira em relação ao filme, por isso a tendência maior de utilizar o termo “filosofia do

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filme” venha desses lugares. Existem muitos encontros a este respeito. Tem um grupo
que vi há pouco em Portugal, um grupo, digamos, mais continental, que trabalha
“filosofia e filme” pensando o documentário, trazendo os realizadores para o evento,
ouvindo o que eles têm a dizer, sem que sejam grandes teóricos de sua própria obra ou
em geral, inserindo os artistas no debate com os teóricos mais acadêmicos, filósofos ou
mesmo profissionais de outras áreas, o que confere um caráter interdisciplinar e
possibilita ouvi-los sem endeusá-los. Até porque geralmente a realização ganhou um
sentido mais amplo com o meio digital e os realizadores são produtores ou diretores de
filmes de produções pequenas, o que permite um diálogo mais modesto, digamos assim,
sem tapetes vermelhos, ao se buscar, junto com os realizadores, pensar o alcance
filosófico do próprio filme, ampliando o alcance filosófico em relação à obra.

Cumprir um pouco do que o próprio Benjamin pensa a respeito da tarefa da


crítica...
Exato. Para pensar conjuntamente, ir além do próprio objeto. Recentemente
organizamos o II Colóquio Internacional de Estética – Estética em Preto e Branco e
fiquei muito feliz em trazer o Adirley Queirós, assim como foi o teu caso[3], foi muito
bacana porque as pessoas discutiram... É isso, pensar com o realizador sem endeusá-lo,
sem criar aquela falsa aura em torno da produção e também não ficar falando apenas
sobre o orçamento, a produção do filme.

Recuando um pouco em suas pesquisas, em seu livro Sobre o declínio da


sinceridade, baseada no texto de Walter Benjamin A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica, você sugere haver dois tipos de filme. Aquele que gera o
efeito da distração, mas que produz algum tipo de aprendizado em relação à
técnica; e outro que produz empatia, que mantém a ilusão de identidade por meio
da projeção ou transferência. É possível manter essa fronteira tão claramente?
Quero dizer, é possível identificar com clareza esta divisão entre um e outro tipo de
filme?
Muito do que falei no meu livro foi seguindo Walter Benjamin, que compactua com
Brecht da crítica ao espetáculo que gera empatia. Neste caso menos focado no próprio
filme e mais na recepção, aquilo que ele julga ser o aprendizado por meio do filme é
mais ou menos o que ocorria no teatro épico, só que no cinema ele diz não ser possível
parar para pensar. Enquanto no teatro épico você tinha interrupções mais claras, no

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filme você tem, pela montagem, uma sequência que parece golpear o sujeito na cadeira,
impossibilitado de parar para pensar, atordoado com a mudança rápida de fotogramas
em movimento sequencial. Ele está falando do início da recepção do cinema, claro, que
geraria, inconscientemente, uma espécie de catarse vingativa da opressão da técnica.
Então o sujeito aprenderia no cinema a reagir à opressão da técnica do lado de fora da
sala de cinema. Esse seria um lado positivo, de aprendizagem, etc, que não é de empatia
e que também não é de estranhamento, como no teatro brechtiano, mas de tensão e
relaxamento ao mesmo tempo, dependendo do filme, já que não é todo filme capaz de
criar esse efeito. Marcar essa diferença é difícil mesmo porque o filme está mexendo
com as emoções o tempo todo. Eu não concordaria com os extremos, mas acho que
quando ele lida com os extremos ele também está jogando com duas possibilidades para
que o leitor faça uma mediação: esse aqui é de empatia e esse aqui é de estranhamento,
mas no cinema é difícil separar os dois. O que ele quer dizer do dadaísmo, do teatro
épico em relação ao cinema tem a ver com o efeito da montagem, de acostumar o
sujeito com as interrupções “contínuas” ou frequentes, mas que no fim causaria um
relaxamento psíquico que seria uma reversão, uma pirueta contra aquilo que o oprime
no mundo do trabalho industrializado e da vida nos grandes centros urbanos. Ele vai
longe nessa interpretação que é do coletivo, do público massivo e não do indivíduo
separado e é por isso que não dificilmente podemos falar em juízo estético. Trata-se de
um mecanismo que ele enxerga, trazendo os filmes grotescos que causam o riso e
favorecem o reverso relaxante daquilo que seria a opressão por meio da técnica.
Falávamos hoje sobre outro assunto, sobre esses dispositivos de vigilância de
todos os tipos. Benjamin lida o tempo todo com essa ambiguidade da técnica. Ao
mesmo tempo em que o facebook por meio dos algoritmos, dessas combinações em que
as pessoas fazem aqueles testes e pensam “puxa, como sabem que sou isso? É isso
mesmo que sou!”..., e por meio deles tornam-se informações a serem comercializadas; é
também, por meio das redes sociais, por exemplo, que a nova onda feminista pôde se
afirmar. Há outras manifestações como o próprio Wikileaks... Ou seja, existem furos
nessa rede “big brother” de dominação que mostra de novo a ambiguidade da técnica.
Qual é a proporção de liberdade? Difícil determinar, mas cada vez menor aos comuns
dos mortais e cada vez mais beligerante na prática que burla os mecanismos e
compartilha do lado criminoso que permeiam as redes, sistemas, causando ameaças
como a mais recente que paralisou os serviços de saúde do Reino Unido. Da mesma
maneira que a técnica elaborada pode iludir por meio da empatia, podendo levar o

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sujeito a concordar com Leni Riefenstahl, no filme Triunfo da vontade, no qual se


constrói a imagem do salvador, o pai de todos, na pessoa de Hitler, podemos também
pensar criticamente sobre aquilo que aparece como opressão, por meio do trabalho, e
também por meio da crítica jocosa que é feita por Chaplin, em O grande ditador. Há
sempre o uso de extremos, de ambiguidades e nunca certezas absolutas, Benjamin leva a
pensar que tem isto, mas que também tem aquilo... nunca um ou outro filme, é um e
outro filme.

Você coordena um grupo na Universidade Federal de Goiás que discute a filosofia


do filme, o “Kinosophia”. Poderia nos falar um pouco dessa sua experiência com os
estudantes de filosofia?
Ele teve início com alguns queridos estudantes – um inclusive que nem estudava aqui, a
exemplo de Jadson Teles, que estudava em Brasília e é de Sergipe – que tinham em
comum a paixão pelo cinema, cinéfilos incorrigíveis (e eu nem gosto muito de
cinéfilos), cinéfilos que gostavam de teoria sobre o filme. Eles vinham com Deleuze,
Bazin e eu com Benjamin. Começamos a nos reunir para discutir as teorias, só que as
pessoas que se agregavam, que chegavam ao grupo não conheciam muito as referências
dos filmes de referência nas discussões. Então começamos a fazer ciclos de filmes em
torno de um tema, particularmente após a visita de Josef Früchtl em 2013, que nos
ofereceu um minicurso sobre o livro já mencionado e foi em torno da visita dele que
publicamos três artigos, em seções especiais na revista Inquietude, a revista dos alunos
da FAFIL-UFG. Este estudo foi muito instigante para pensar um repertório que muitas
pessoas hoje em dia recusam assistir. Por exemplo, o gênero do Western, faroeste em
nossa tradução ou filme de cowboy, do “cara pálida” exterminador de índios; ou o outro
tipo de exterminador, de “caras verdes”, Exterminador do futuro, ficção cientifica, não,
o que é isso? As pessoas não queriam assistir por uma espécie de novo preconceito. Se
formos negar a existência desses conflitos históricos, sabendo-os em perspectiva racista
e etnocêntrica, não deveríamos ler uma boa parte dos escritos de grandes filósofos como
Hume, Rousseau e Kant. Há uma perspectiva e contexto histórico a ser pensado. Mas
quando passávamos esses filmes geradores de antipatia, lotávamos as plateias,
submetidas ao sentimento de empatia gerados pelos filmes. Os que resistiam ao
processo de sedução e não assistiam os filmes, criticavam: “filme americano, a filosofia
foi vendida!” “O imperialismo, a indústria cultural!” e assim por diante... Aí no ciclo
seguinte resolvemos falar de cinema brasileiro, de 2001, uma odisseia no espaço, ficção

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científica... Mostramos o avô da personagem-inteligência-artificial Hall, de 2001..., que


é Alphaville, resultado: terminou o filme e ficamos eu e Fernando Ferreira, que
projetava o filme, na sala vazia. Passamos O bandido da luz vermelha, de Rogério
Sganzerla, e o Sganzerla já parece estranho à plateia mais jovem... Agora, o filme do
Godard é insuportável para essas pessoas, elas não conseguem assistir o
filme Alphaville, de Godard, não conseguem. Isso foi interessante porque nesse
processo percebemos o quanto as pessoas estão instruídas a assistir certo tipo de filme, e
mesmo aquelas que condenam politicamente o enlatado, aquele que recebemos
diariamente na televisão e no cinema, não têm paciência de assistir outro tipo de filme
considerado “mais difícil”. E algo interessante a notar nisso, é o que Früchtl e outros
teóricos dizem, é que o cinema está para o nosso século, mais ou menos como a
literatura no século XX. Os grandes romances que orientaram o século XIX, no século
XX as pessoas passaram a ler menos e ver mais filmes. Hoje em dia, as pessoas
assistem episódios, séries, não suportam assistir filmes inteiros, pois os meios que elas
assistem não é mais o da grande tela. Então essa paciência de assistir um filme
como Alphaville – imagina assistir num celular – mostra como a recepção mudou.
Precisamos pensar o tempo, o espaço e a recepção, principalmente o espaço e o meio
em que está sendo exibido o filme.

E as séries mudaram o tempo também, não é? Há pouco tempo nós tínhamos


séries de 20min, mas hoje temos episódios de 50 min. Não é um longa-metragem,
mas também não é mais um curta.
Sim, você vai ao cinema e tem filmes de 4 horas, 3 horas, eles estão criando outra
temporalidade para provocar o espectador, ou o 3D, como este último de Godard[4].
Quer dizer, cria-se estranheza e isso continua sendo genial porque esse é o efeito que
Benjamin esperava de um espectador que pode ser motivado a pensar.

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A gente sabe que você teve uma experiência fora da academia com o cinema feito
em São Paulo. Certamente essa sua vivência despertou seu interesse pela “filosofia
do filme” e, consequentemente, a levou a construção do “Kinosophia”, onde você
também fala em partir para a realização de algo prático. Como o grupo tem
projetado esta realização?
Durante minha formação filosófica, durante a graduação, eu trabalhava na Secretaria de
Cultura (Municipal de São Paulo) com pesquisa e documentação em cinema. Eu era
muito jovem e aprendia com pesquisadores formados e cineastas como Olga Futemma,
Inimá Ferreira Simões, Albert Roger Hemsi e Rubens Machado... Nós
acompanhávamos, assistíamos filmes brasileiros do circuito, escrevíamos comentários
críticos, discutíamos os comentários em reunião e eu vivi a cena que ainda existia no
cinema em São Paulo, do cinema alternativo ao da produção da Boca do Lixo, dos
cineclubes, havia muitos cineclubes e de lá para cá nunca deixei o cinema... Quando
terminei a graduação, pensei que fosse trabalhar com cinema e aí veio o governo Collor
e fechou a Embrafilme e quase acabou a produção de filmes, com aquilo que mantinha o
cinema. As grandes salas de cinema fecharam ou foram fragmentadas em pequenas
salas. Surgiu o vídeo. Eu tinha uma produtora, trabalhei muito com vídeo, mas era o
VHS, era muito ruim a qualidade, tinha o Betamax, mas era caro, então era toda aquela
coisa de sempre trocar equipamento... O trabalho em grande parte era técnico, sem
grandes voos, cansativo e, de certa forma, burro. Então voltei para a filosofia e meu
projeto de mestrado que apresentei à professora Jeanne Marie (Gagnebin) era voltado
para a resenha A crise do romance... (de Walter Benjamin) e dela (da resenha), na qual
aparece o romance Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, iria para a série televisiva

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transformada em filme de Fassbinder, Berlin, Alexanderplatz. Mas parei na literatura, na


pequena resenha A crise do romance”, na qual, além da presença do conceito de
montagem como um forte elemento de elogio, havia uma comparação estranha, entre o
escritor francês André Gide a Alfred Döblin . Aí a Jeanne Marie disse: “estranho
como Benjamin gosta do André Gide”. Concordei, fui atrás e agora estou traduzindo os
textos que ele escreveu sobre Gide – e ele realmente tinha uma verdadeira paixão pelo
Gide, que hoje em dia não é bem um escritor muito querido. Então isso tudo do cinema
ficou em segundo plano, mas eu sempre trabalhei com o ensaio sobreA obra de arte na
era de sua reprodutibilidade técnica e principalmente sobre essa recepção e sobre o
que ela significava. Acho que o ponto de vista de Benjamin é mais sociológico do que
de alguém que faça “filosofia do filme”, ele não se concentra tanto nas questões
formais, embora tenha contribuído para distinções importantes na transformação que o
aparato técnico do cinema realiza na cena, na atuação, na recepção do filme, e na
vontade de exposição das pessoas que torna qualquer ser humano em ator. Então nisso
ele é super atual, a alta exposição pessoal o tempo todo sem a necessidade de estudar
para ser ator, numa distinção com o teatro. E a montagem, quer dizer, o que ele vê no
romance de Berlin, Alexanderplatz, como principal, como um “sal épico”, como ele diz,
é a montagem. E pela ideia de montagem nos aproximamos novamente do filme. São
mecanismos internos, mas ao mesmo tempo uma sociologia e psicologia da recepção
que é formada a partir daí. Com isso, acho que ele consegue antever aquilo que
podemos perceber na mudança de recepção dos meios mais recentes, como é que as
pessoas se habituam à nova tecnologia, como as crianças se relacionam com ela e isso
em relação à plateia e ao filme. Não há mais distanciamento. A proximidade é cada
vez maior e a rapidez da montagem, no sentido amplo de como isso é veiculado, torna
as pessoas cada vez mais distraídas e, ao mesmo tempo, concentradas na distração, mas
não no sentido da imersão absoluta, como concentração absoluta numa única coisa.
Hoje eu estava conversando com uma pessoa que trabalha num consultório médico e ela
dizia; “estou ficando esquecida, não me lembro de mais nada. Antes eu anotava aqui e
lembrava, agora eu vejo o computador e o whatsapp, não lembro mais das coisas”. Não
é uma questão de memória, ela está lidando de maneira esforçada, porque não é natural
para ela isso, diferente da criança que já está fazendo uma tarefa, e olhando aqui e ali,
ela tem uma concentração diferente e distraída ao mesmo tempo. E a pessoa um pouco
mais velha, que começou a lidar com esses meios agora, pensa: “eu perdi a
concentração, não consigo mais lembrar”! A memória está relacionada com a

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intensidade da experiência ainda aurática, então você quer fazer só aquilo naquele
momento. Benjamin viu isso e isso só se intensificou de lá pra cá.
Mas retomando o “Kinosophia”, eu nunca deixei de relacionar o filme e a
filosofia, assistia muitos filmes, afinal a praia do paulistano era o cinema, então eu
tenho um repertório muito vasto, mas sentia dificuldade aqui em falar sobre filmes que
ninguém sabe, ninguém viu. Ao mesmo tempo, ficar só passando filme demora e
sabemos que as pessoas não têm mais tempo para ver. Ficar dando sua versão sobre o
filme é como falar com as paredes, então pensei numa maneira de criar uma motivação,
por exemplo, em torno do filme preto e branco ao apresentar Limite, de Mário Peixoto,
que é um grande filme, um ensaio fotográfico belíssimo do cinema nacional. E lidar
com situações de outros filmes – não sei porquê quase todos são em preto em branco –,
situações aporéticas, situações que colocam certas pessoas em risco, uma encruzilhada,
um beco sem saída. Começamos a observar que isso ocorre com três personagens, que
existe uma triangulação na composição e só então depois disso (dessas percepções)
começaríamos a exercitar a criação de um roteiro e sua filmagem. Não pensando em
fazer um grande filme, mas em criar alguns episódios que pudessem lidar com situações
aporéticas, uma ideia a ser concluída ainda. Outra atividade foi a criação de um tipo de
oficina, principalmente para professores do ensino médio e que foi muito interessante,
que era lidar com conceitos e fazer um filme no papel por meio de um storyboard. Fiz
uma oficina desta no Rio de Janeiro, na UFRJ, sobre o feminismo em torno de um
conceito x e então os grupos trabalhavam algo em torno de quatro horas, eles faziam
algo e, claro que eu falei um pouco sobre a linguagem, qual o efeito que se vai buscar
com esse enquadramento, ângulo ou aquele movimento, dada a dificuldade de se fazer
algo assim. Aqui eu fiz com uma classe grande de cem alunos e com uma oficina para
professores de ensino médio e foi muito interessante porque as pessoas falavam “ah, nós
vamos fazer um filme”, mesmo não sabendo desenhar, mas tentando. Então você joga
com um conceito como “alienação” e pergunta: como que você conta uma história em
imagens que traduza este conceito? Ao final nós “passamos” o filme na parede e as
pessoas viam, avaliavam e escolhiam qual era o mais criativo. Eu me lembro que os
professores adoraram, então foram essas tentativas que aconteceram. Os alunos,
principalmente da licenciatura, aproveitaram a ideia em oficinas para estudantes na
disciplina de filosofia.
Há também eventos no Brasil, com pessoas muito interessantes, uma delas é
Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho, professora de filosofia antiga da UFMG,

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que faz eventos muito interessantes sobre filme e estudos da antiguidade. Recebemos a
visita do professor grego Konstantinos Nikoloutsos, que mostrou filmes em que a
antiguidade era representada na década de cinquenta aqui no Brasil. Ele conhecia mais
os filmes do que os alunos, filmes produzidos pela Atlântida em que Oscarito, por
exemplo, fazia Romeu e Grande Otelo, Julieta. Uma maneira de lidar com a referência
da antiguidade nos filmes, não no sentido de tornar o filme um substituto da epopéia,
mas de ver como a indústria cinematográfica acaba mostrando a antiguidade no cinema.
– Maria Cecília esteve na UFG, a convite do Kinosophia para ministrar um mini-curso
sobre Elektra: “Três versões de Elektra no cinema”, versões que não são literais, mas
são versões nas quais ela reconhece o mito de Elektra, explica a razão disso e como os
mitos são fontes de muitas histórias ainda, disfarçados na estória, e de como a força dele
é que chama a atenção do público. São pesquisas aprofundadas que parecem infinitas
porque também as referências em filmes são igualmente infinitas. Agora é muito
interessante que um professor grego, da Universidade da Filadélfia, venha falar de
filmes brasileiros que não despertam interesse em nenhum brasileiro! Ele poderia estar
só falando dos filmes dos grandes diretores gregos, que obviamente estão mais ligados à
tradição. Outro evento que Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho organiza, e do
qual participei[5] provocou uma série de reflexões, ao relacionar determinados filmes de
escolha do conferencista com uma ou mais paixões que Aristóteles distingue em sua
obra Retórica das paixões. Foram os mais variados filmes e as mais variadas
associações. Em agosto haverá um outro encontro, no qual faremos relações com o
conceito de Enargeia na antiguidade clássica e em filmes. Entre os estetas analíticos,
alguém como Noël Carroll, por exemplo, apresentou no Colóquio “Filme e Filosofia”,
em Lisboa, 2014, um trecho de um filme, mostrando um corredor e um movimento
de zoom; com base nesta cena ele escolhe falar de tempo e espaço por meia hora. A
estória não importa, o filme e tudo o que o envolve não importa, não importa se tem
mito ou não, nem a recepção do público, mas apenas uma divagação sobre tempo e
espaço com base naquele trecho de filme. Trata-se de uma espécie um minimalismo
teórico que utiliza uma cena apenas de um filme para refletir sobre as categorias de
tempo e o espaço. O segundo Colóquio Internacional - Filosofia e Filme que ocorreu em
Karlsruhe, Alemanha, em 2016, mostra a tendência da estética analítica, sem perder de
vista a abrangência dos temas que envolvem a discussão sobre a relação proposta,
incluindo diretores e escolhendo um foco de análise, sendo o documentário o foco da
última edição.

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Em resumo, podemos repetir com Josef Früchtl que o cinema está para o século
XXI como a literatura do século XIX para o século XX. Um meio de expressão
transformado em várias dimensões, seja a física na criação – da película ao meio digital
-, ou na recepção – que se desprendeu da sala grande do cinema e se fragmentou em
telas de diferentes tamanhos; seja a disposição estético-reflexiva alterada pela mudança
física do meio. Refletir sobre as mudanças não conflita com o pensar por meio do filme,
mas embasa e alimenta o próprio modo de pensar.

[créditos de imagens: Mariana Andrade]

ENTREVISTADORES
*Rodrigo Araújo é professor de filosofia do IFBA e doutorando em filosofia pela
UFBA, onde desenvolve uma pesquisa sobre a escrita na obra de Walter Benjamin, sob
a orientação da professora Dra. Silvia Faustino. Na área do cinema, é autor, dentre
outros trabalhos, do curta-metragem Show de calouros, co-dirigido por Diego Haase.

**Leidiane Coimbra é doutoranda em filosofia pela UFG, onde desenvolve uma


pesquisa sobre técnica e estética na obra de Martin Heidegger sob a orientação da
professora Dra. Carla Damião. Vem desenvolvendo instalações artísticas com
fotografias instantâneas que remontam ao seu trabalho em torno da natureza da técnica e
suas imbricações na contemporaneidade.

NOTAS
[1] A tradução é da própria Carla Damião, conforme pode ser conferida em DAMIÃO, Carla
Milani. Inquietude: revista dos estudantes de filosofia da UFG, Vol. 3, n. 2, 2012. <acessado em
19.05.2017>.
[2] Cf. DAMIÃO, Carla Milani. Revista Trama, Vol. 6, n. 1, 2015, <acessado em 19.05.2017>.
[3] O filme Branco sai, preto fica (2014), dirigido por Adirley Queirós, foi exibido durante o “II
Colóquio internacional de estética: estética em preto e branco” (UFG, 2017), como parte das atividades
do “Kinosophia”, grupo de pesquisa sobre “filosofia do filme”, coordenado por Carla Damião. A edição
seguinte exibiu o curta-metragem Show de calouros (2016), dirigido por Diego Haase e Rodrigo Araújo.
Em ambos os casos, as sessões foram seguidas de conversas entre os realizadores e a plateia sobre o
processo de criação e produção fílmica.
[4] Adeus à linguagem, de Jean Luc Godard (2014).
[5] Cf. DAMIÃO, Carla Milani. ‘O desprezo, a cólera e o riso: o filme ‘The Butcher Boy’, de Neil Jordan
sob uma perspectiva aristotélica’. Nuntius, v. 11, p. 33-46, 2015.

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estrangeiras e, muito excepcionalmente, ser usado para ênfase. As referências finais,
dispostas em ordem alfabética pelo sobrenome do primeiro autor, editadas sem
parágrafo, com espaçamento simples na mesma referência e duplo entre referências,
devem obedecer à seqüência a seguir, conforme o caso:

- Livros
SOBRENOME, Iniciais dos primeiros nomes. Título. Cidade: Editora, Ano da edição
utilizada.

- Artigos em Periódicos
SOBRENOME, Iniciais dos primeiros nomes. Título. In: Título do Periódico. Cidade,
volume, número, período e ano, páginas.

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- Coletâneas e capítulos de livros


SOBRENOME, Iniciais dos primeiros nomes (do autor). Título. In: SOBRENOME(S) e
NOME(S) ABREVIADO(S) DO(S) ORGANIZADOR(ES). Título do Livro. Cidade:
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Feita esta primeira avaliação, sendo deferidos os trabalhos, estes são encaminhados a
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