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ANO 2017
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Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com
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REVISTA SÍSIFO
ANO 2017
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CORPO EDITORIAL
Yves São Paulo (Editor)
Marcelo Vinicius (Editor)
CONSELHO EDITORIAL
Andreia A. Marin
Bruna Torlay
Denise Kloeckner Sbardelotto
Dinameire Oliveira Carneiro Rios
Eduardo Pellejero
Luciano Donizetti da Silva
Marcos Roberto Nunes Costa
Nildo Viana
Priscila Vieira
Rodrigo Ornelas
Rodrigo Araújo
Tiago Medeiros Araujo
Valdenésio Aduci Mendes
Wanderley C. Oliveira
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sumário
Editorial........................................................................................................6
ARTIGOS E ENSAIOS
CRUZADA CONTRA A BOCA DO LIXO: saberes e discursos na
imprensa
Everton Behrmann Araújo.........................................................................114
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ENTREVISTA
CONVERSA COM CARLA DAMIÃO: sobre filosofia e filme
Rodrigo Araújo, Leidiane Coimbra...........................................................247
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EDITORIAL
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Dossiê
NOAM CHOMSKY:
propaganda e medo na política internacional
Jayme Benvenuto*
INTRODUÇÃO
Avram Noam Chomsky é o intelectual vivo mais citado do mundo, com mais de
quatro mil citações de sua obra relacionadas no Arts and Humanities Citation Index e o
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oitavo numa lista que inclui autores como Marx e Freud, entre as personalidades mais
citadas de todos os tempos. Além disso, entre os anos de 1974 e 1992, Chomsky foi
citado 1.619 vezes de acordo com o Science Citation Index (Barsky, 2004, p. 15). Ao
completar 88 anos, em dezembro de 2016, o intelectual continuava ativo na publicação
de livros, artigos e participando de filmes independentes por meio dos quais expõe seu
pensamento crítico. A visita a sua página pessoal demonstra sua ampla capacidade de
produzir ideias em áreas que incluem a linguística, a filosofia, a história, a história das
idéias, as ciências cognitivas, a psicologia, a política nacional norte-americana e a
política internacional.
Apesar da vasta produção intelectual e do reconhecimento como um intelectual
engajado, capaz de levar milhares de pessoas a auditórios ao redor do mundo 1,
Chomsky passa como mais um intelectual nos corredores do MIT, o Instituto
Tecnológico de Massachusetts, onde trabalhou por mais de quatro décadas, pelo simples
motivo de que
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A precaução quanto a ter uma agenda pública não impediu que Chomsky fosse
sistematicamente monitorado pelo governo norte-americano em suas ações acadêmicas.
“Provavelmente, esta conversa esteja sendo escutada pela Administração de Segurança
Nacional” (Halperin, 2003, p. 11), disse ele ao entrevistador.
O sistema perverso descrito por Chomsky para dominar o mundo - e que tem os
Estados Unidos, seu próprio país, como líder incontestável - é composto pelos poderes
político, militar, empresarial, midiático e educativo. Em outra ocasião e veículo, resumi
nos seguintes pontos a visão chomskyana sobre a política internacional dos nossos dias:
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18) Entre outras, a categoria jurídica “crimes de guerra” é apresentada como maleável o
suficiente para ser usada ou descartada quando se apresentar conveniente do ponto de
vista político e militar. Não fora por outra razão que os EUA anunciaram que
ignorariam o Conselho de Segurança da ONU com relação ao Iraque quando do ataque
às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, ignorando as normas multilaterais e
passando a adotar o uso da força unilateral. (Chomsky, 2004b, p. 19)
A conveniência da guerra preventiva seria a de que para se encaixar na categoria,
o alvo "precisa ser totalmente indefeso”, “ter importância suficiente para compensar o
esforço”; e “haver um meio de pintá-lo como a mais terrível e iminente ameaça à nossa
sobrevivência.” (Chomsky, 2004b, p. 23)
Além de manter o poder político global no cenário mundial, o objetivo da
grandiosa estratégia imperial conduzida pelos Estados Unidos da América seria manter
o sistema econômico capitalista. Em cada situação geopolítica objeto de sua análise,
Chomsky identifica as conexões com o poder econômico, como faz no que se refere às
intenções estadunidenses relacionadas ao conflito no Iraque:
Os programas econômicos que têm sido anunciados seguem o
estandarizado modelo neoliberal, na tentativa de transferir o controle
da economia iraquiana para corporações multinacionais e instituições
financeiras, a maior parte baseadas nos Estados Unidos. (…) Uma
base militar no Iraque será a primeira no coração da maior região de
produção energética que é verdadeiramente confiável, sempre que ao
Iraque não seja permitido ir além da independência formal.
(Halperin, 2003, p. 17; tradução do autor).
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A grandiosa estratégia imperial teria sido reforçada, sob Bill Clinton e Tony
Blair, pela ideia de um “novo internacionalismo”, a qual seria justificada pela
intolerância brutal aos grupos étnicos que incomodam o império e “seu sócio britânico”.
Segundo ele, a nova ordem internacional tratou de atribuir-se legitimidade exclusiva
para agir em nome da comunidade de nações, usando a força sempre que considerasse
adequado e em obediência às “modernas noções de justiça”.
A doutrina da nova ordem internacional global, para Chomsky, resume-se à
palavra de ordem: “os tiranos que se cuidem”. Sua análise é focada nos objetivos
anunciados pelos Estados Unidos, e certamente seu “sócio britânico” e pela OTAN para
a intervenção em diversas partes do mundo com os objetivos anunciados de “garantir a
estabilidade”; “conter a limpeza étnica”; e “garantir a credibilidade da OTAN”.
Ao tratar das intervenções humanitárias, Chomsky não se restringe a enquadrar o
termo na definição legal constante das convenções internacionais de Direito
Humanitário. Considera intervenções humanitárias as ações, embora unilaterais, de
potências militares no sentido de retórica e formalmente justificarem a manutenção da
paz em regiões conturbadas, tendo como base os princípios de respeito aos direitos
humanos e humanitários mais relevantes.
Na perspectiva chomskyana, são as grandes potências ocidentais, mais do que
tudo através da OTAN, que praticam crimes internacionais (genocídio, crimes contra a
humanidade e crimes de guerra) nos dias atuais, sob o manto de construção da
democracia e de respeito aos direitos humanos – o que constitui, por óbvio, uma
inversão na perspectiva tradicionalmente aceita, sobretudo pelos realistas. A estas ações
Chomsky contrapõe inúmeros exemplos em que as potências ocidentais toleram ou
mesmo estimulam – na medida em que emprestam apoio político, militar e financeiro –
as atrocidades cometidas pelos amigos, aqueles que, no exercício dos poderes locais,
dão sustentação à política internacional que lhes interessa. É o caso dos amigos turcos,
em 1997, sob Clinton:
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O que outros autores vêem como contingência natural da política do mais forte
sobre os mais fracos, política, financeira e militarmente, Chomsky vê como conivência
interessada em legitimar políticas semelhantes em outras partes do planeta.
Praticamente todos os governos fizeram o impossível para se aliar à
coalizão liderada pelos Estados Unidos, sempre por seus próprios
motivos. Assim, um dos primeiros países a se aliar, com grande
entusiasmo, foi a Rússia. Por que a Rússia? Porque eles querem
autorização para dar continuidade, mais ativamente, às suas próprias
atrocidades na Chechênia. A China aliou-se de muito bom grado. Eles
ficam encantados por contar com o apoio norte-americano para
repressão no ocidente da China. A Argélia, um dos maiores países
terroristas do mundo, foi recebida de braços abertos na ‘coalizão
contra o terrorismo’. [...] Atualmente, há tropas turcas em Cabul, ou
logo haverá, pagas pelos Estados Unidos para travar a Guerra contra o
Terrorismo. Por que a Turquia está oferecendo soldados? Na verdade,
eles foram o primeiro país a oferecer tropas aos Estados Unidos no
Afeganistão [...]. Foi por gratidão – porque os Estados Unidos foram o
único país que se dispôs a lhes dar apoio maciço em suas próprias
enormes atrocidades terroristas no sudeste da Turquia, nos últimos
anos. […] Clinton estava inundando o país de armas. A Turquia
tornou-se o principal destinatário de armas do mundo, além de Israel e
do Egito. (2005, pp. 21-22)
Por esse critério, os Estados violentos podem agir como quiserem, com a
aprovação das classes instruídas e da mídia. Estados com ímpetos imperiais regionais,
como a Rússia e a China, se sentiriam cômodos em seguir a doutrina norte-americana de
segurança nacional. A China estaria respondendo exatamente como esperado, através do
aumento de sua capacidade militar nuclear ofensiva, que obrigaria a Índia a responder
da mesma maneira, o que, por sua vez, obrigaria o Paquistão a responder em igual
proporção. Logo, essa cadeia atingiria o Oriente Médio e grande parte do resto do
mundo. A administração norte-americana estaria, assim, dando exemplo ao resto do
mundo ao desenvolver novas armas nucleares, o que certamente faria com que outros
viessem a agir da mesma maneira, já que não seria razoável esperar o contrário. Como
consequência, em sua visão, atualmente “o mundo é um lugar mais inseguro” (2004a, p.
34).
Em conexão com tais desenvolvimentos, está a ideia de que os grandes estados
do mundo são estados terroristas. Nesse aspecto, Chomsky vale-se dos ensinamentos de
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OS SÓCIOS DO IMPÉRIO
Se o império atual tem como nome Estados Unidos da América e seu sócio
estatal principal é o Reino Unido, na descrição de Chomsky os objetivos não são
alcançados sem que participem da grandiosa estratégia imperial os setores que lhe dão
suporte: a mídia, o poder militar, a Intelligentsia abrigada nas grandes universidades do
mundo. Os sócios do império seriam, na realidade, co-participantes de um aparato
propagandístico montado para dar sustentação ao sistema político e econômico vigente,
diante do que a economia capitalista é de fato o que move a estratégia.
A primeira operação de propaganda governamental norte-americana teria sido
produzida pelo presidente Woodrow Wilson, com a assessoria de diversos intelectuais,
por meio da Comissão Creel, com o objetivo de “transformar uma população pacifista
numa população histérica e belicosa que queria destruir tudo o que fosse alemão, partir
os alemães em pedaços, entrar na guerra e salvar o mundo.” (Chomsky, 2014, p. 7)
Segundo Chomsky, aquela teria sido o contraponto da propaganda nazista de Hitler,
“patrocinada pelo Estado, quando apoiada pelas classes instruídas” e teria como
pressuposto a ideia, comum a certo liberalismo, ao leninismo e ao nazismo, de que “as
massas ignorantes (…) são estúpidas demais para compreender sozinhas” (Chomsky,
2014, p. 8) os assuntos governamentais, em especial os de política internacional. De
acordo com essa visão, a função do “rebanho desorientado” é a de ser “expectador”.
(Chomsky, 2014, p. 8) Assim,
Para a classe política e para os responsáveis pela tomada de decisões,
elas têm de oferecer uma percepção razoável da realidade, embora
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A ideia de que “Os verdadeiros objetivos a que tais políticas visam não podem
ser revelados ao povo” casa bem a conclusão de Chomsky com ideia de uma grandiosa
estratégia imperial da qual os bobos da corte não se dariam conta de como são
utilizados pelos governos e seus sócios. O artifício para alcançar os objetivos junto às
populações manipuláveis seria o medo, uma verdadeira “artimanha" por meio da qual a
propaganda se valeria de recursos discursivos como “Império do Mal”, “guerra contra o
terror”, “quem não está conosco está contra nós”, entre outros.
No auge da Guerra Fria, mais precisamente em 1971, em debate com Michel
Foucault na TV holandesa, Chomsky contra-constrangia o sistema, afirmando:
Pelo que sei, na mídia de massas americana você não pode encontrar
um único jornalista socialista ou um único comentarista político
sindicalizado que seja socialista. Do ponto de vista ideológico a mídia
de massas é quase 100% ‘capitalista de estado’. Num certo sentido,
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Assim vista por ele, a grande mídia é aliada dos grandes estados na ocultação de
fatos de interesse de suas sociedades. Um dos aspectos em que Chomsky mais insiste
quanto ao papel desempenhado pela mídia é com relação à ocultação de informações do
grande público, com o que se manifestaria a intenção de retirar a liberdade de
informação, ao contrário do que os postulados liberais levariam a crer.
A guerra terrorista dos EUA em El Salvador não é assunto para
discussão entre pessoas respeitáveis; isso não existe. O esforço
americano de "deter" a Nicarágua é assunto discutível, mas dentro de
limites estreitos. (Chomsky, 2006, p. 65)
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BEYOND CHOMSKY
Em outro artigo a respeito do autor, publicado em 2008, concluí que "O desafio
da sociedade é imenso, considerando o quadro de análise chomskyano”. (Benvenuto,
2008, p. 145) Tendo em vista que para Chomsky “é sensato lutar por um mundo melhor,
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mas não alimentar veleidades e ilusões sobre o mundo em que vivemos” (Chomsky,
2003b, p. 157), vale a pena concluir este artigo com uma breve reflexão a respeito do
tamanho do desafio contido por trás de suas palavras.
Tomarei como elemento chave para esta breve reflexão uma das questões mais
relevantes na análise chomskyana: a ideia de que propaganda política a que ele se refere
é uma propaganda de guerra para sustentar a grandiosa estratégia imperial, embora não
exista uma guerra global em termos jurídicos. A esse respeito, Chomsky dirá que não
temos uma guerra descrita enquanto tal porque o direito internacional contemporâneo
não dá sustentação ao conceito. Em outras palavras, o sistema do qual faz parte a
intelligentsia internacional cria suas normas e definições jurídicas conforme as
conveniências políticas.
Esta condição nos coloca numa enrascada sem tamanho na medida em que, se
todos esses poderes estão articulados em torno de uma propaganda de guerra capaz de
sustentar a grandiosa estratégia imperial - e eles são de tal forma poderosos -,
poderíamos ser tentados a sustentar a conclusão de que há duas saídas possíveis.
A primeira saída seria o esclarecimento da população - como Chomsky vem
propondo por meio de suas palestras, livros e filmes. A análise chomskyana parece
conduzir à compreensão de que a alternativa é o empoderamento das pessoas, por meio
de informação, para que entendam melhor o mundo em que vivem e a partir dessa
tomada de consciência possam fazer melhores escolhas, sobretudo relacionadas aos
governos. A partir da tomada de consciência da forma como os políticos, a mídia, a
Intelligentsia e o poder militar manipulam as consciências humanas, poderia haver um
levante popular de tamanha proporção que o próprio sistema se encarregaria de se
rearrumar em termos mais democráticos.
Não se pode deixar de enxergar, entretanto, a possibilidade de que o complexo
quadro de análise proposto por Chomsky considere pouco as dissidências existentes
dentro do próprio sistema - as quais poderiam estabelecer uma permanente tensão entre
posições - e que o jogo politico esteja de tal maneira embolado que as populações,
sobretudo dos grandes países do mundo, prefiram adotar uma posição conformista.
Nesse quadro, a cada denúncia contra os pressupostos da grandiosa estratégia
imperial o sistema responderia de tal forma articulado que as palavras dos articulistas
críticos não passariam de fagulhas lançadas ao vento capazes de desaparecer sem que o
poder político, a mídia, os militares e a intelligentsia tomassem conhecimento de sua
breve existência.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CHOMSKY, N. 2003a. Contendo a democracia. Rio de Janeiro: Record.
CHOMSKY, N. 2003b. Uma nova geração decide o limite: os verdadeiros critérios das
potências ocidentais para suas intervenções militares. Rio de Janeiro: Record.
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FILMES
Manufacturing consent: Chomsky and the media. Mark Achbar e Peter Wintonick
(diretores). 1992. Austrália, Finlândia, Noruega, Canadá: Zeitgeist Films, 167 min. On
globalization. Rage against the machine. Entrevista com Zach De La Rocha. 11 min.
Poder e terrorismo: Noam Chomsky em nossa época. 2002. John Junkerman (diretor).
Nova York: First Run Features. 74 min.
Power versus justice. Fragmentos de debate na TV holandesa em 1971, publicados no
Youtube. Parte 1 (06:50 min.); Parte 2 (06:02 min.)
The corporation. Mark Achbar e Jennifer Abbott (diretores). Canadá. 145 min.
INTERNET
http://www.chomsky.info/
AUTOR
* Jayme Benvenuto é Professor Adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-
americana (UNILA) no curso de Relações Internacionais. Bolsista de Produtividade em
Pesquisa 2 do CNPq. E-mail:
benvenutolima@uol.com.br / jayme.benvenuto@unila.edu.br
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Dossiê
INTRODUÇÃO
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pelos assim ditos órgãos da opinião pública” (GRAMSCI, Q.1, § 48, p. 59[2]). Deste
parágrafo podemos deduzir dois elementos importantes da teoria de Estado gramsciana,
de clara influência maquiaveliana[3]. Em primeiro lugar o Estado moderno se mantém a
partir de um equilíbrio entre força e consenso e, portanto, o conflito está sempre
subjacente às relações sociais e políticas. De acordo com Gramsci o consenso permite à
classe ser dirigente, enquanto a força torna-a dominante (Cf. Q. 1, § 44, p. 41). Este é,
portanto, um Estado de classes e não um abstrato Estado ético. A segunda constatação
que se pode fazer é que a relação entre as classes sociais e entre estas e o Estado-
governo, ou, nos termos gramscianos, a sociedade política, é mediada pela cultura,
âmbito de ação dos aparelhos privados de hegemonia[4] em geral e especificamente dos
assim chamados “aparelhos de opinião pública”.
Para Gramsci os jornais, as revistas e o setor editorial em geral, constituem
importantes pontos de contato entre a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre a
força e o consenso. Neste sentido, podem se tornar instrumentos do Estado para
“organizar e centralizar certos elementos da sociedade civil” “quando quer iniciar uma
ação pouco popular” (cf. Q. 7, § 83, p. 914). Mas os órgãos de opinião pública são
fundamentais também para as classes não hegemônicas, isto é, o conjunto das classes
subalternas somente pode construir uma nova concepção de mundo se for capaz de
universalizar a ética e a política presente em sua filosofia, criando movimentos
culturais, “movendo” a opinião pública, em suma, criando consentimento em torno de
sua própria visão de mundo.
Neste sentido, os diferentes órgãos da opinião pública não apenas atuam na
formação do consenso, mas de fato “educam” (Cf. Q. 10, § 44, p. 1330-1331), isto é,
conformam mentalidades e aceitação em torno de determinadas ideias e políticas.
Gramsci, deste modo, contraria a ideia mesma de “opinião pública”, ou, melhor, ele põe
em relevo seu caráter “privado”, mostrando que toda opinião está ligada por muitos fios,
às vezes não imediatamente perceptíveis, aos grupos de interesse e às classes sociais.
Os aparelhos de opinião pública desempenham um papel de grande importância
no processo de luta entre hegemonias ao nível da consciência. Para o autor, em certas
circunstâncias “são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros
partidos” (Q.1, § 116, p.104). Ao demonstrar que as linhas editoriais guardam conexões
com interesses de grupos, Gramsci sinaliza para uma função que é específica dos
partidos políticos: sintetizar ou influenciar a concepção de mundo e a ética adequada à
determinada classe, universalizando-a para o conjunto da sociedade. Neste sentido,
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Nos Cadernos, contudo, Gramsci observa que no mundo moderno, “os partidos
orgânicos e fundamentais, por necessidade de luta ou por alguma outra razão,
dividiram-se em frações, cada uma das quais assume o nome de partido”, de modo que,
muitas vezes o “Estado-Maior intelectual do partido orgânico” opera como se fosse uma
“força dirigente em si mesma, superior aos partidos e às vezes reconhecida como tal
pelo público”. E arremata:
Esta função pode ser estudada com maior precisão se se parte do
ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista
(ou grupo de revistas) são também ‘partidos’, ‘frações de partido’ ou
“funções de determinados partidos” (Q. 17, §37, p. 1939).
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que as linhas editoriais guardam conexões com interesses de grupos, Gramsci sinaliza
para uma função que é específica dos partidos políticos: sintetizar ou influenciar a
concepção de mundo e a ética adequada à determinada classe, universalizando-a para o
conjunto da sociedade. Para esta função deve-se da mesma forma levar em conta a
atuação dos “intelectuais”, mas neste caso específico, sua atividade concentra-se na
capacidade de influenciar as linhas editoriais de acordo com os interesses de grupos, de
certa forma, estes indivíduos constituem-se em dirigentes dos jornais (Cf. Q. 1, § 116, p.
108-109).
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também é definido como jornal popular, por ser destinado às massas populares –, e o
jornal de opinião, que consiste num órgão de partido, e é dedicado a um público restrito.
Enquanto no último caso as conexões com a classe são evidentes, no primeiro estes
liames não são explícitos e, via de regra, são mais difíceis de perceber imediatamente.
Neste caso é necessário investigar seu editorial, o conjunto das opiniões expressas, os
interesses que defende, bem como os intelectuais que o dirigem e suas conexões
individuais para definir quantos fios o ligam a quais classes ou frações de classe. Isto
porque é de fundamental importância para as classes dominantes que os grandes
“jornais populares”, principalmente aqueles de circulação nacional, apareçam como
neutros, imparciais, defensores de supostos interesses universais, de uma indiferenciada
e homogênea sociedade civil. Os jornais populares se tornam, assim, os grandes
educadores da massa. Eles “simplificam” a realidade social para o homem médio e,
assim, naturalizam o que é social e velam o conflito entre as classes.
Ao contrário, para Gramsci, a imprensa consiste na parte mais dinâmica da
estrutura ideológica da classe dominante (Cf. Q. 3, § 49, p. 332-333), voltada para
difundir conteúdos acerca da sociedade sob uma determina perspectiva. Esta elaboração
madura de Gramsci começa a ser elaborada nos anos anteriores ao cárcere. No artigo
“Os jornais e os operários”, publicado no “Avanti!” em 22 de dezembro de 1916, o
autor afirma:
Tudo que se publica é constantemente influenciado por uma ideia:
servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato:
combater a classe trabalhadora. (...) E não falemos daqueles casos em
que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar,
iludir e manter na ignorância o público trabalhador. (GRAMSCI,
1980, p. 661).
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como uma fé, como uma religião sem deus e sem culto. Neste sentido, somente ao
tornar-se religião (laica) é que uma concepção de mundo terá impacto histórico, isto é,
se tornará hegemônica. Assim, as classes subalternas devem travar também uma batalha
cultural no interior das consciências para construir novas concepções de mundo, que
estejam em consonância com as necessidades concretas de vida, de trabalho e de fruição
do conjunto dos trabalhadores.
Destarte, encontramos outro aspecto da atuação dos dirigentes de jornais e
revistas que pode ser abordado do ponto de vista do seu caráter educativo, este se refere
à possibilidade da elevação das consciências no seio dos grupos subalternos. Neste
sentido, as redações das revistas podem funcionar como círculos de cultura, que tem a
função de “criticar de modo colegiado e contribuir para elaboração de trabalhos dos
redatores individuais, cuja operosidade é organizada segundo um plano e uma divisão
do trabalho racionalmente preestabelecidos (Q.12, §1, p. 1533).
A crítica colegiada está, portanto, voltada à educação recíproca como uma forma
de elevar o nível médio individual, no caso particular dos redatores de revista no qual
cada um é especialista em sua matéria, a troca de informações ou a crítica construtiva
constitui um meio de “alcançar o nível ou a capacidade do mais preparado” (idem).
É este “intercâmbio” de conhecimentos que dá organicidade ao grupo, e não apenas
isto, mas “criam-se também as condições para o surgimento de um grupo homogêneo de
intelectuais preparados para a produção de uma atividade ‘editorial’ regular e metódica
(não apenas de publicações de ocasião e de ensaios parciais, mas de trabalhos orgânicos
de conjunto)” (ibidem).
Temos, portanto, uma relação pedagógica entre os membros mais avançados e os
mais atrasados do grupo, o que pode resultar na elevação do nível médio. O ponto
fundamental a ser observado é que, assim como deve ocorrer no partido, esse tipo de
atividade editorial favorece a crítica da própria consciência, avançando no sentido da
formação de uma consciência integral de mundo, menos contraditória, mais próxima da
criação de uma nova cultura.
Estes organismos, contudo, que não se caracterizam por atividade política direta,
por seu modo de operar, correm o risco de perder o lastro na sociedade, isto é, de ter um
alcance tão restrito que se torna irrelevante. Desta forma só podem atingir os objetivos
como associação cultural se de fato estiverem ancorados em “um movimento de base
disciplinado, [caso contrário] tendem ou a se tornarem igrejinhas de ‘profetas
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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AUTORAS
* Luciana Aliaga é Professora do Depto. Ciências Sociais/ CCHLA-UFPB e do
Programa de pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais – PPGCPRI/
UFPB. Grupo de pesquisa Materialismo e modernidade/ CCHLA-CCSA-UFPB/UFCG.
** Andressa Lima da Silva é Aluna do curso de Serviço Social/CCHLA-UFPB, bolsista
PIBIC/ CNPq, integrante do grupo de pesquisa Materialismo e modernidade/CCHLA-
CCSA-UFPB/UFCG.
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FERNANDES, Vívian de Oliveira N. “Reflexões sobre a obra de Gramsci para o campo
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NOTAS
[1] Para datação consultar FRANCIONI, 1984, p. 141.
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Dossiê
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir mídia (veículo da ‘cultura de
massas’) como um dispositivo de saber/poder partindo da noção de genealogia. A
centralidade do texto reside na teoria de Foucault destacando os processos de uma
genealogia, a noção de modos de subjetivação, nuances do saber/poder e finalmente a
noção de dispositivo convidando o leitor a refletir: não seriam os veículos de
comunicação as maiores fontes de propagação e manutenção das ideologias em nosso
meio? Foucault usa a “genealogia do saber-poder”, para discorrer sobre a possibilidade
de construção dos saberes através de determinadas condições externas ao próprio saber,
assim, congrega em sua análise, elementos relacionais, históricos e políticos a outros
referendados no poder. O poder se exerce de forma difusa e descontínua criando vetores
ou forças que se dissipam em direções das mais diversas, o saber seria um canalizador
dessas forças ou relações de poder. Assim, o ‘saber cultural’ pode ser compreendido
como qualquer ação social que tenha relevância para determinada significação e a mídia
seria veículo de difusão desta cultura, uma parte crítica da ‘estrutura’ das sociedades
modernas. O conhecimento é uma relação estratégica, generalizante, é a luta singular do
homem com o objeto que ele quer dominar, saber, em suma é poder, resultado de lutas
constantes e cortantes. Somos compelidos a produzir “verdades” pelo poder que a exige
e que dela necessita para funcionar. As verdades são reguladas pela disciplina e por ela
observamos as relações de poder operando sobre os corpos, tornando-os dóceis e úteis.
O fato de não identificarmos diretamente a “fonte” destes discursos, pode significar que
elas já tenham sido tão fortemente incorporadas ao senso comum que não causa mais
estranhamento. Assim, para além da origem do discurso destacamos aqui sua
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ser), do cenário brasileiro para que a aproximação destes conceitos não aponte verdades,
mas condições de possibilidades.
Assim, este trabalho se propõe didático, enxuto e despretensioso. O objeto social
mídia não será foco da discussão, a centralidade é da teoria de Foucault destacando os
processos de uma genealogia, a noção de modos de subjetivação, nuances do
saber/poder e finalmente a noção de dispositivo convidando o leitor a refletir: não
seriam os veículos de comunicação as maiores fontes de propagação e manutenção das
ideologias em nosso meio?
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O Discurso é aquilo pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar.
Devemos, portanto considerar que não existe discurso neutro, desinteressado, ele estaria
intimamente ligado a desejo e poder. Cabendo a ressalva: diferente do que pontua a
psicanálise, o discurso não é apenas o que manifesta ou esconde o desejo, ele é, em si, o
próprio objeto de desejo e objeto de luta (lutamos para dominar o discurso) (BOUYER,
2009).
Neste cenário de lutas constantes cria-se um regime, ou ordem, que seleciona
“quais discursos” são ou não válidos ou interessantes, há procedimentos de controle
internos e externos nesta seleção. Os procedimentos internos são exercidos do discurso
sobre si mesmo a título de ordenação, classificação. Visam o controle da aparição do
discurso fixando regras de surgimento e significação (por meio da disciplina), e de sua
circulação ou funcionamento, qualificando os sujeitos que falam e não permitindo sua
permutabilidade, excluindo todo conteúdo inassimilável como heresia. Os
procedimentos externos de controle do discurso, também falados como procedimentos
de exclusão, orientam aquilo que entendemos como regime de verdade (VEIGA-NETO,
2007). Então como se dá e como o discurso pode ser controlado?
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visíveis que estão presentes nos discursos, será compreender as falas como práticas
sociais inexoravelmente vinculadas às relações de poder.
Foucault (2005) define que existiriam diversos mecanismos de controle externo
do discurso. Entre eles estariam a restrição da enunciação ou interdição, que pode ser
definida em linhas gerais como: “não se tem o direito de dizer tudo (...) que qualquer
um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, p. 9, 2005). Este
mecanismo estaria respaldado em três principais modalidades: o privilégio de quem
fala, o tabu do objeto e o ritual da circunstância. Outro mecanismo seria a rejeição do
discurso, na qual se utiliza um determinado aparato do saber para apontar a inadequação
daquela fala (Foucault utiliza como exemplo a loucura).
Finalmente a vontade da verdade, um procedimento de exclusão, arbitrário,
ancorado institucionalmente e eminentemente histórico. Ela “administra” nossa vontade
de saber apoiada em toda estrutura de livros, escolas, laboratórios, universidades,
orientando formas de valorização, ou não, formas de distribuição e atribuição exercendo
coerção sobre os demais discursos.
Neste prisma, não se deve simplesmente aceitar mais este discurso, o de
Foucault, sem questioná-lo. Oliveira (2011), ao analisar o uso acadêmico do “Vigiar e
punir” de Foucault no Brasil, destaca a incongruência em utilizar este referencial
indistintamente e amplamente diante da complexa realidade brasileira, segundo ele, a
despeito do cenário Francês e Inglês (à época dos escritos), em que houveram a
generalização dos dispositivos da escola, hospital, fábrica e prisão, este fenômeno nunca
foi observado em nosso meio. Para este autor a sociedade brasileira é antes de tudo
indisciplinada, argumento defendido diante dos altíssimos índices de violência que
presenciamos. Portanto, se estas instituições não atingem sua plenitude em nosso meio
não seria possível pensarmos que a mídia ocupa grande parte deste lugar?
Alguns discursos funcionariam regendo os demais, funcionando como verdade,
com regras de enunciação, técnicas de obtenção, definição de um estatuto próprio de
quem gera e define a verdade. Portanto, poder e verdade (saber-poder) fundem-se em
uma relação difusa e circular em que o poder produz e sustenta a verdade, que por sua
vez produz os efeitos do poder. Assim a verdade pode ser conceituada discursivamente,
nas palavras de Foucault: “Entendendo, por verdade, [...] o conjunto das regras segundo
as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui aos verdadeiros efeitos
específicos de poder” (FOUCAULT, 1979, p. 13). Ele diz também que há uma luta em
torno do estatuto da verdade.
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Mas como e de onde provêm estas verdades? Voltando o olhar para o cotidiano
observamos um interessante aspecto do nosso cenário: não nos incluímos no rol dos
países classicamente leitores de material impresso. Ao mesmo tempo somos
destacadamente consumidores de mídia televisiva e virtual, um dos países que mais
consome internet no mundo. Em outras palavras, a principal forma de se manter
‘informado’ na atualidade provém da mídia, ela dita nossas verdades.
Concluindo, é verificado que há três concepções fundamentais com relação ao
poder em Foucault: a primeira é que o poder tem como característica ser negativo e
positivo, desta maneira forma o indivíduo. A segunda é que o poder é um exercício e
não deve ser possuído. A terceira, o poder transpõe a dicotomia dominante e dominado.
Foucault irá instituir uma analítica de poder, e não uma teoria, pois não busca
fixar definições a procura de verdades, mas acompanhar as metamorfoses das relações
de poder. O poder não é ele que se exerce, portanto não há uma essência, nem
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1984-92
VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
AUTOR
*José Orlando Carneiro Campello Rabelo é Docente do Centro Universitário Tabosa de
Almeida – ASCES UNITA. Doutor em Psicologia Clínica – UNICAP; Mestre em
Psicologia Social – UFPE; Militante dos Direitos Humanos, psicólogo, professor e
pesquisador.
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Dossiê
Resumo: Este artigo visa se contrapor à algumas afirmações que surgiram no início dos
anos 2000, mas que se proliferaram em meios midiáticos quando do anúncio do termo
post-truth como palavra do ano de 2016 pelo grupo Oxford dictionaries. Tais
afirmações dão conta de que viveríamos, hoje, no século XXI, a “era da pós-verdade”.
A proposta de contraposição a estas alegações se dá, aqui, pelo enfileiramento de alguns
exemplos contidos em narrativas ficcionais que demonstrarão que a prática das políticas
da pós-verdade preexistem, em muito, o século XXI. A exposição se baseará no
cruzamento de informações e conceitos contidos em obras como 1984 (de George
Orwell), Matrix (das irmãs Wachowski), e Contos Amazônicos (de Inglês de Sousa),
com as proposições teóricas sobre a relação entre verdade, ficção e política como
elaboradas por autores como Pierre Bourdieu, Jacques Rancière, Juan José Saer,
Umberto Eco, entre outros.
Palavras-chave: Pós-verdade, doublethink, ficção, realidade.
1
INTRODUÇÃO: da ideia de pós-verdade
Antes de mais nada é preciso que eu admita que o passeio a que invito você hoje,
leitor, tem um objetivo. É uma proposta de contraposição à afirmações que se
proliferaram em meios midiáticos na passagem do ano de 2016 para 2017, no sentido de
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alegar que vivemos, hoje, a “era da pós verdade”.[1] Estes textos retomam a abordagem
da questão como proposta por Ralph Keyes, em seu livro The post-truth era, publicado
em 2004. E são impulsionados pela declaração do Oxford dictionary de que o
termo post-truth foi eleito a palavra do ano de 2016.[2] E pelos contextos doBrexit,
(como foi apelidada a saída do Reino Unido da União Europeia), e da eleição de Donald
Trump para a presidência dos Estados Unidos da América. Eventos ocorridos no mesmo
ano e que se mostraram ricas fontes de exemplos da política cultural que hoje
chamamos políticas da pós-verdade.
A pós-verdade, como nos explica o dicionário Oxford é um adjetivo que “se
relaciona ou denota circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes em
moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.[3] Ele não se
refere necessariamente à falsificação da verdade (embora possa também passar por
isso), mas mais especificamente à situações em que a “verdade” ou o “fato” é tido como
pouco relevante. Ou seja, algo a que todos estamos habituados, certo? Vemos (e
fazemos) isso diariamente, tanto no plano político quanto no pessoal. É uma prática
humana atemporal. Daí a minha contraposição à ideia de que vivemos na “era da pós
verdade”, como propõe os textos que citei no primeiro parágrafo.
Por contraposição, caro leitor, não pretendo dizer que discordo do fato de
vivermos numa era de pós-verdade. Mas discordo, sim, de que este momento da história
humana seja o ápice desta política cultural. Minha contraposição se baseará na defesa de
que, em fato, esta é uma política cultural que existiu e se manteve em uso constante e
corrente em toda a história humana. Que ela é parte da nossa própria capacidade de
construir conhecimento. Em suma que, para bem ou para mal, todas as eras foram da
pós-verdade. E que este “novo termo” - visto que data do final do século XX -,[4] é
apenas uma nova roupagem para uma questão que sempre foi importante para a
Filosofia, a História, a Literatura, e diversas outras áreas enquanto disciplinas.
Para defender este posicionamento é que o convido a me acompanhar neste
passeio. Que se trata de uma caminhada em forma reflexiva e textual por algumas
narrativas ficcionais que tocam, de alguma maneira, na questão da política da pós-
verdade. Admito também que a seleção das narrativas ficcionais que aqui abordaremos
se deu de maneira arbitrária – leia-se, elas estão aqui presentes porque eu quis assim -, e
poderiam ter sido facilmente outras a servirem de exemplos para esta discussão. Desta
forma, citarei aqui algumas obras literárias que me apetecem, levando você leitor a
comigo margear os rios amazônicos e conviver com alguns dos medos da população
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DO MITO DAS IDENTIDADES NACIONAIS, E DAS UTILIDADES E EFEITOS
DESTAS FICÇÕES
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após a pacata introdução nos é apresentado o contexto da guerra (SOUSA, 2005, p. 26-
27), e são descritos os efeitos iniciais da deflagração do conflito na sociedade
amazonense: a empolgação das classes mais favorecidas, e o medo do “povo miúdo”.
É-nos narrada brevemente, então, a campanha nacional operada pela monarquia
brasileira em busca de voluntários para lutar na Guerra do Paraguai. E a ironia do uso
do termo “voluntário” que intitula o conto, e que o Império dizia buscar, logo se faz
muito visível. Já que, em fato, o que ocorria era um alistamento forçado, ou mesmo uma
campanha de rapto de jovens de famílias pobres, que eram enviados para o Rio de
Janeiro e posteriormente para o front paraguaio à força. Grande parte destes jovens
morria ainda no caminho, pela má alimentação e doenças, e outros morriam no front, de
forma que muito poucos acabavam por voltar. Daí se pode entender o terrível medo da
população pobre amazonense em relação à imagem criada pela imprensa e pelo boca a
boca da época para a figura de Solano López, governante paraguaio, que faziam com
que os tapuios amazonenses, segundo o narrador do conto, imaginassem o presidente
como um “monstro devorador de carne humana” (SOUSA, 2005, p. 26).
Na sequência da narrativa, Pedro, filho de dona Rosa, acaba sendo
“voluntariado” para a guerra. E é aí que o narrador do conto se apresenta ao leitor, se
identificando como o advogado ao qual a tapuia Rosa implorou ajuda para libertar o
filho da prisão a que fora submetido, enquanto aguardava o transporte dos ditos
“voluntários” até o Rio de Janeiro (SOUSA, 2005, p.32). É pela voz dele que ouvimos
a narrativa dos horrores do recrutamento e do que proponho como relacionável com a
política da pós-verdade: segundo ele, a ignorância dos “rústicos patrícios” (elite
dominante, de origem portuguesa) era agravada pelas “fábulas ridículas editadas pela
imprensa oficiosa, dando ao nosso governo o papel de libertador do Paraguai (embora
contra a vontade do libertando o libertasse a tiro)” (SOUSA, 2005, p. 26-27). E faziam
com que esta elite extravasasse seus preconceitos e privilégio social e operasse o
alistamento forçado à população tapuia de forma violenta.
Estas “fábulas ridículas” a que o narrador do Voluntário se refere foram os
discursos que o Império brasileiro utilizava para justificar sua política intervencionista.
Como todo praticante de políticas imperialistas, o governo brasileiro justificava suas
ações como necessárias para o bem não só da própria população, mas como uma ação
necessária para o invadido. Creio que enquanto testemunhas de diversos conflitos
militares ao longo dos séculos XX e XXI, todos sabemos como isso funciona.[8] No
contexto específico da Questão Platina (do qual a guerra do Paraguai foi só um dos
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conflitos), o que ocorreu foi um confronto entre três nações de ambições imperialistas
(Brasil – Argentina – Paraguai) que, por serem vizinhas, viram seus projetos
expansionistas se chocarem.[9]
Agora pergunto a você, leitor: é possível imaginar os tipos de discursos oficiais
que foram produzidos no período, não? Quantas “fábulas” - como diz o narrador
do Voluntário -, foram elaboradas para justificar os conflitos e para fortalecer (ou
mesmo criar) um sentimento de identidade nacional nestas nações recém-fundadas. Não
é à toa que em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall tenha
escolhido nomear um capítulo como As culturas nacionais como comunidades
imaginadas. Nele, Hall explica que uma “(...) nação não é apenas uma entidade política
mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural”. Um sistema do
qual as pessoas fazem parte não só como cidadãos, mas pela participação na ideia de
nação. Concluindo que “uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica
seu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (HALL, 2011, p. 49) A
ideia de nação, então, é um discurso que se constitui por uma narrativa que vincula a
percepção de identidade do indivíduo às histórias, literatura e cultura popular. A própria
ideia de nação, se vê, perpassa uma política cultural baseada no apelo à emoção, a
crenças religiosas, e a preconceitos em detrimento da objetividade factual. Bem como a
necessidade da guerra sempre perpassa esta prática. A política da pós verdade
definitivamente não é um fenômeno característico do século XXI.
No caso do conto Voluntário acho interessante atentar, entretanto, não à
construção do discurso. Mas sim à “utilidade” que muitos encontram no discurso
construído. Relata o narrador que, durante o período de recrutamento forçado, um
fenômeno social ocorreu:
Foi então que se mostrou em toda a sua hediondez a tirania dos
mandões de aldeia. Os graúdos não perderam a ocasião de satisfazer
ódios e caprichos, oprimindo os adversários políticos que não sabiam
procurar, a serviço de abastados e poderosos fazendeiros, proteção e
amparo contra o recrutamento, à custa do sacrifício da própria
liberdade e da honra das mulheres, filhas e das irmãs (SOUSA, 2005,
p.27).
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coisas pudessem ser dissociadas), ou mesmo uma denúncia ou o que quer que seja,
levasse um rival a ser recrutado (e muito provavelmente morto na guerra), não haveria
crime. Situações como a da campanha de recrutamento citada no Voluntário permitiam
uma limpeza étnica autorizada pelo Estado. Algo que se ilustra em outra fala do
narrador:
Corri à praia, onde era imensa a aglomeração de povo à espera do
vapor que vinha entrando a boca do largo Tapajos, em busca dos
futuros defensores da pátria. Eram vinte rapazes tapuios os que a
autoridade obrigava representar a comédia do voluntariado (SOUSA,
2005, p. 33).
Claro, a longo prazo situações como esta levaram a levantes armados por parte
das incontáveis populações e povos generalizados pelos portugueses sob o termo de
“tapuios”.[10] Mas como explicita o narrador – e neste caso acho possível considerar,
para além do caráter ficcional, o Voluntário como um relato fiável historicamente, já
que o autor imprime em seus textos um período que vivenciou[11] –, entre os tapuios,
inicialmente, o efeito foi a criação de um temor gigantesco em relação a um nome:
Solano López, o bode expiatório das elites e do império para todas estas práticas
opressoras e de exploração. E aqui creio que encontramos um bom ponto para erigir
uma ponte entre as margens do Amazonas e o distópico mundo de 1984, de Orwell.
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DO PODER SOBRE A VERDADE, E DA SATISFAÇÃO PELA OPRESSÃO
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manter o controle sobre sua população. Método que Orwell chamou doublethink. E que,
como veremos, é menos uma imposição, e mais um incentivo à capacidade que nós
enquanto humanos temos de defender/acreditar em duas coisas opostas ao mesmo
tempo. E à possibilidade de conscientemente optarmos por aprofundar esta capacidade
de modo tão intenso que a contradição se torna inconsciente. Algo que, creio, seja
relacionável e ilustre bem a política cultural que discutimos neste artigo.
O 1984 é protagonizado por Winston, um funcionário qualquer do Ministério da
Verdade, cujo trabalho era editar dados e notícias passadas e presente em função do
interesse do chamado Partido (grupo dominante). Winston, conforme vamos percebendo
ao longo da leitura, parece ser um pouco mais consciente e/ou problematizador do que a
maioria de seus colegas em relação à condição em que vivem. E ele faz algumas
análises interessantes sobre como as pessoas lidam com a realidade em que se inserem,
enquanto nos explica a conduta do doublethink. Prática que é por ele definida como:
É saber e não saber, é ser consciente da completa verdade enquanto
conta mentiras cuidadosamente construídas, é manter
simultaneamente duas opiniões que se cancelam, sabendo-as
contraditórias e efetivamente acreditando em ambas, é usar a lógica
contra a lógica, é repudiar a moralidade ao mesmo tempo em que
clama por ela, (...) é esquecer qualquer fato que tenha se tornado
inconveniente e, quando for necessário, trazê-lo de volta à mente pelo
tempo necessário, para em seguida esquecê-lo outra vez. É, acima de
tudo, aplicar o mesmo processo ao próprio processo – esta é a
suprema sutileza: conscientemente induzir a inconsciência e depois,
mais uma vez, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que você
acabara de realizar (ORWELL, 1961, p. 35).[12]
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DA COMPREENSÃO E CONTROLE DA REALIDADE ATRAVÉS DA FICÇÃO
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questionamento: “se a atividade narrativa está tão intimamente ligada a nossa vida
cotidiana, será que não interpretaremos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade,
não lhe acrescentamos elementos ficcionais?” (ECO, 1994, p. 137). Uma forte
indagação que proponho encararmos sob a luz do termo que, conforme explica o fictício
livro proibido de Goldstein (parte do imaginário universo de 1984), é “o sistema de
pensamento que engloba todo o resto, e que é conhecido em
Newspeak[14] como doublethink” (ORWELL, 1961, p. 212). Sistema este que “é
aprendido pela maioria dos membros do Partido, e certamente por todos que são
inteligentes, bem como ortodoxos. Em Oldspeak é chamado, francamente, ‘controle de
realidade’” (ORWELL, 1961, p. 214). Voltamos, então, à prática do doublethink como
proposta por Orwell, que a define (através do virtual livro de Goldstein) da seguinte
maneira:
Doublethink significa o poder de manter duas crenças contraditórias
na mente simultaneamente, e aceitar ambas. O intelectual do Partido
sabe em que direção suas memórias devem ser alteradas; Ele sabe,
portanto, que está praticando truques com a realidade; Mas pelo
exercício do doublethink ele também se convence de que a realidade
não é violada. O processo tem que ser consciente, ou não seria
realizado com suficiente precisão, mas também tem de ser
inconsciente, ou traria consigo um sentimento de falsidade e,
consequentemente, de culpa. (...) (Doublethink é) contar mentiras
deliberadas enquanto genuinamente acredita-se nelas, é esquecer
qualquer fato que tenha se tornado inconveniente, e então, quando for
necessário novamente, trazê-lo de volta do esquecimento pelo tempo
necessário. É negar a existência da realidade objetiva e, durante todo o
tempo, levar em conta a realidade que se nega – tudo isto é
indispensavelmente necessário. Mesmo o uso da
palavra doublethinktorna necessário o exercício do doublethink. Pois,
ao usar a palavra, o praticante admite que alguém está adulterando a
realidade, mas, por um novo ato de doublethink, apaga esse
conhecimento; E assim indefinidamente, com a mentira sempre um
salto à frente da verdade (ORWELL, 1961, p. 214).
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DA ESCOLHA CONSCIENTE PELA INCONSCIÊNCIA
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Assim, por ser exatamente neste ponto que procurei focalizar este artigo: no ato
consciente de considerar a verdade irrelevante, de torná-la secundária frente aos nossos
interesses ou valores pessoais. Principalmente como forma de nós, enquanto seres
humanos, extravasarmos nossos preconceitos em relação ao outro, ou nos sentirmos
confortáveis com nossa própria existência e decisões. E com os olhos ainda na resolução
de Cypher, é que pergunto a você leitor: quantas vezes todos nós tomamos decisões
similares a esta? Quantas incontáveis vezes optamos por uma ignorância seletiva, por
um apagamento metódico do conhecimento de determinadas informações e
conhecimentos, em nome de nosso maior conforto? Quantas vezes induzimos nossa
própria inconsciência sobre nossas ações a fim de afastar, como sugeriu Orwell, o
sentimento de culpa que podem gerar? Seríamos todos nós, seres humanos, utilizadores
do sistema de pensamento a que Orwell chamou doublethink?
6
DA FANTASIA DO LUGAR DA VERDADE, OU DA INDISSOCIABILIDADE DA
VERDADE E DA FICÇÃO
A resposta para tais questões talvez esteja na maneira como lidamos com a
relação entre verdade e ficção. E na reflexão sobre as políticas da pós-verdade que,
reitero, definitivamente não são uma prática exclusiva do século XXI ou da
popularização da internet. Mas sim um sistema de pensamento e comportamental
existente há milênios. Para mim, a ideia de que o uso deste sistema se aprofundou na
pós-modernidade se baseia numa premissa da qual discordo: a de que o jornalismo ou
disciplinas como a História, um dia, já tiveram acesso a informações “reais”, à uma
suposta real natureza das coisas. Numa concepção de dependência hierárquica entre
verdade e ficção.
Em seu texto Reflexões sobre a pesquisa histórica, a ficção e as artes (presente
no livro História e Arte: encontros disciplinares), Rosane Kaminski nos explica,
citando Hayden White e Michel de Certeau, que a separação entre ficção e verdade vem
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CONSIDERAÇÕES FINAIS: sobre as pretensões à universalidade
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Ou seja, para Bourdieu os fins objetivos nunca são postos como tais, nem
mesmo pelos agentes mais interessados em seus resultados. E a subordinação do
conjunto de uma sociedade a uma mesma intenção objetiva, numa “espécie de
orquestração sem maestro” (BOURDIEU, 2003, p. 86-87), só pode se instituir através
de uma concordância instaurada entre os agentes daquele conjunto. Por uma assimilação
destes de seu papel dentro daquele corpo social: o que sentem que são, o que a história
fez deles e o que deles se espera. Em suma, pelo processo de incorporação que o
indivíduo faz do habitus[22] a ele destinado. Apropriação esta que pode gerar, como
sugere Bourdieu, inclusive bem estar, no sentido de pertencimento àquele lugar, de estar
a fazer o que tem de fazer, de ser destinado àquilo, e até de o fazer com gosto
(BOURDIEU, 2003, p. 87).
Vê-se que a concordância do indivíduo-agente (agente porque é atuante: age no
meio em que está inserido) com determinada atividade ou crença pode, então, muitas
vezes partir de pressupostos que não os oficialmente declarados. Mas também por
interesses particulares, credos e opiniões pessoais que não necessariamente estão
diretamente ligados à atividade geral a que se submetem. Associar isto individualmente
aos exemplos dados ao longo deste artigo – seja pelas atitudes de parte da população
ribeirinha paraense contra outra parcela dela no Voluntário, seja pela prática de
falsificação de documentos históricos como exposta por Umberto Eco em Seis passeios
pelos bosques da ficção ou como trabalhada por Winston em 1984, seja pela relação de
Syme com osproles no mesmo livro, ou seja ainda pela escolha de Cypher por um
favorecimento de seu bem estar individual através de um Doublethink forçado
em Matrix –, entretanto, nos faria alongar este passeio demasiadamente. Talvez um
novo estudo e artigo se mostrasse necessário só para isto. De forma que proponho
encararmos estas proposições de Bourdieu como uma possível conclusão à defesa do
posicionamento que aqui propus: a política cultural da pós-verdade não está vivendo seu
auge na atualidade, ela sempre existiu e atuou com intensidade. Pois esta prática cultural
é parte de nossa própria prática de construção de conhecimento e organização social. De
nossa capacidade de interpretar e nomear aquilo que nos rodeia. Que, para bem ou para
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mal, todas as eras humanas foram da pós-verdade. E aqui proponho que encerremos
nosso labiríntico passeio pelos longos corredores cognitivos da verdade, da pós-verdade
e do doublethink.
AUTOR:
*Arthur Aroha é graduado em Escultura pela Escola de Música e Belas Artes da
Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR. Atualmente é mestrando do Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná – UFPR, na área de
concentração de Estudos Literários sob orientação do Prof. Dr. Alexandre André
Nodari. E-mail: aakds@hotmail.com
REFERÊNCIAS:
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2003.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 5ª
edição. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva.
Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
KAMINSKI, Rosane. Reflexões sobre a pesquisa histórica, a ficção e as artes. In:
FREITAS, Artur (org.); KAMINSKI, Rosane (org.). História e Arte: encontros
disciplinares. São Paulo: Intermeios, 2013, p. 65-93.
MATRIX. Roteiro e direção: Lilly e Lana Wachowski. Produção: Joel Silver.
EUA/Australia: Warner Bros. Pictures/Roadshow Entertainment, 1999. 1 DVD (136
min).
ORWELL, George. 1984. New York: Signet Classics, 1961 (ano de reimpressão não
informado).
PLATÃO. Livro Sétimo. A República (ou da justiça). Trad. Edson Bini. Bauru - SP:
EDIPRO, 2006, pp. 307-344.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa
Netto. 2ª ed. São Paulo: EXO experimental; Editora 34, 2009.
SAER, Juan José. El concepto de ficción. 4ª ed. Buenos Aires: Seix Barral, 2014.
SOUSA, Inglês de. Voluntário. In: SOUSA, Inglês de. Contos amazônicos. São Paulo:
Editora Martin Claret, 2005, p. 23-36.
<https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>. Acesso
em Janeiro de 2017.
<https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth>. Acesso em Janeiro de 2017.
[1] Matérias e artigos jornalísticos que seguiram esta linha afirmativa surgiram aos montes neste período.
Aponto aqui alguns exemplos em língua portuguesa e inglesa, a título ilustrativo:
<http://www.cartacapital.com.br/revista/933/a-era-da-pos-verdade>;
<http://www.jn.pt/opiniao/jose-manuel-diogo/interior/a-era-da-pos-verdade-5507571.html>;
<http://revistacult.uol.com.br/home/2016/10/a-memetica-e-a-era-da-pos-verdade/>;
<http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/apertem-os-cintos-estamos-entrando-na-era-
da-pos-verdade/>; <https://www.nytimes.com/2016/12/27/magazine/the-problem-with-self-investigation-
in-a-post-truth-era.html?_r=0>. Acessos em Janeiro de 2017.
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[2] Anualmente o grupo Oxford dictionaries faz uma lista com os termos considerados os mais relevantes
no período, e elege um como “palavra do ano”. O anúncio do post-truth como vencedor de 2016 pode ser
encontrado em: <https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>. Acesso em
Janeiro de 2017.
[3] Tradução livre de definição apresentada em: <https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth>.
Acesso em Jan. 2017.
[4] O termo post-truth foi pela primeira vez utilizado com o sentido a ele hoje designado em 1992 por
Steve Tesich em artigo sobre a Guerra do Golfo pérsico. Informações disponíveis
em: <https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>. Acesso em Janeiro de
2017.
[5] Inglês de Sousa, nascido na então província do Grão-Pará, foi um escritor, advogado e político do
período imperial brasileiro.
[6] Tapuio é um termo generalista que foi utilizado ao longo dos séculos no Brasil para designar
quaisquer índios que não falam a língua tupi.
[7] O trecho final do conto assim diz: “Ainda há bem pouco tempo vagava pela cidade de Santarém uma
pobre tapuia doida. A maior parte do dia passava-o a percorrer a praia, com o olhar perdido no horizonte,
cantando com a voz trêmula e desenxabida a quadrinha popular:
Meu anel de diamantes
Caiu na água e foi ao fundo;
Os peixinhos me disseram:
Viva D. Pedro Segundo!” (SOUSA, 2005, p.35-36).
[8] Basta pensarmos em conflitos como as ocupações do Afeganistão, a guerra do Golfo, a invasão norte-
americana ao Iraque, a intervenção francesa na Líbia, e mais recentemente as intervenções diversas nos
conflitos na Síria, por exemplo.
[9] O período pós independências na América do Sul foi permeado ininterruptamente por conflitos assim.
Praticamente todos os países entraram em guerra com seus vizinhos. Estas novas nações aplicaram as
mesmas políticas expansionistas sob as quais elas, enquanto colônias, foram fundadas. Até porque
seguiram sendo governadas pelas mesmas elites do período colonial.
[10] Vide a revolta denominada Cabanagem (1835-1840).
[11] Toco aqui no que diversos autores, de Ginzburg e sua “contiguidade entre ficção e história”
(GINZBURG, 2007), a Rancière e suas propostas de valorização por parte do olhar do pesquisador para
com os produtos ficcionais (RANCIÈRE, 2009), entre tantos outros, discutem com afinco: as relações
entre a realidade, a pesquisa histórica, a ficção e as artes.
[12] Todas as citações de 1984 são de tradução livre.
[13] O termo prole não existe no livro à toa: Orwell se inspirou nos grandes regimes totalitários europeus
do século XX para criar o 1984. Especialmente no regime stalinista, do qual Orwell era crítico por
considerá-lo uma perversão do Socialismo democrático. O próprio conceito do doublethink foi inspirado
num discurso proferido por Stalin em 1930.
[14] Newspeak é o nome da nova língua que se desenvolvia na distopia de Orwell.
[15] Eco vai às últimas consequências e propõe que, visto que o documento chegou às mãos do próprio
Hitler, ele poderia ter influência no Holocausto (ECO, 1994, p. 143).
[16] Outras influências foram Descartes, Kant, Foucault e Derrida. Como se pode ver em entrevista com
Lana Wachowski disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=3MXR4MCuA0o&feature=youtu.be>. Acesso em Janeiro de 2017.
[17] Tradução livre.
[18] Todas as citações de El concepto de ficción são de tradução livre.
[19] Como se pode ver no trecho a seguir: “Lo mismo podemos decir del género, tan de moda en la
actualidad, llamado, con certidumbre excesiva, non-fiction: su especificidad se basa en la exclusión de
todo rastro ficticio, pero esa exclusión no es de por sí garantía de veracidad. Aun cuando la intención de
veracidad sea sincera y los hechos narrados rigurosamente exactos ––lo que no siempre es así–– sigue
existiendo el obstáculo de la autenticidad de las fuentes, de los criterios interpretativos y de las
turbulencias de sentido propios a toda construcción verbal” (SAER, 2014, p. 10).
[20] Afinal somos seres que contam parte de sua história através de narrativas como as Sagas, sejam as
irlandesas, as nórdicas, ou, porque não aplicar este termo também às narrativas sumérias, maoris,
malinesas, às de Cristóvão Colombo no Diários da Descoberta da América, entre tantas possibilidades,
quem sabe até a relatos de eventos e/ou situações bem mais recentes?
[21] O termo [verdade] foi aqui utilizado para substituir o termo original [literatura], como presente em:
“A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza
daquilo que é lido” (EAGLETON, 2003, p. 11).
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[22] O conceito de habitus (as “vestes sociais” habitadas ou encarnadas pelos membros de uma
sociedade) é trabalhado por Bourdieu no Capítulo III – A génese dos conceitos de habitus e campo – de O
poder simbólico. (BORDIEU, 2003, p. 59-74).
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Dossiê
A MULTIDÃO NO TWITTER:
a criação de memes com apropriação de fotografias
Gabriel Malinowski*
PREÂMBULO
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faz referência à escrita, outra tela é aberta. Nesse espaço, a imagem salva há pouco é
inserida juntamente a um texto. O botão “tweetar” é apertado, e a publicação entra em
rede para outros tantos usuários.
O Twitter é uma ferramenta de mensagens curtas lançada em outubro de 2006, e
que obteve um rápido crescimento no Brasil e no mundo. Nela, o usuário segue e é
seguido por outros perfis. O Twitter convida os usuários a responder à pergunta “o que
está acontecendo?” em até 140 caracteres. Dentre outras possibilidades do aplicativo,
estão a conversação entre os atores e a apropriação relacionada ao acesso à informação.
Quem é esse usuário? Como caracterizar sua atividade? De saída, pode-se dizer
que para existir esse “usuário” em rede, é indispensável a existência de tantos outros
“usuários”. A rede que os conecta fornece uma estrutura que perpassa condutas, modos
de ação e pensamento. Pode-se dizer também que Pode-se dizer também que nessa
produção, troca e propagação existe um bem valioso: a informação. A produção
imaterial de ideias, códigos, imagens, e até mesmo afetos parece ser um traço
característico daquilo que é produzido e consumido entre eles. Essas características
parecem estar no centro da questão daquilo que Antônio Negri e Michel Hardt chamam
de multidão, principalmente, quanto ao uso daquilo que os autores chamam de a
produção do comum por meio da linguagem.
Sendo assim, a proposta deste artigo é explorar a ideia de multidão no ambiente
do Twitter. O enfoque se dá na relação entre a multidão e as criações com imagem e
texto do aplicativo. Essa prática é uma forma linguística usual dentre outras utilizadas
cotidianamente no Twitter. Os efeitos desse modelo de ressignificação de fotografias
também podem ser diversos. Fez-se então um recorte de tweets do mês de dezembro de
2016 que utilizam fotos e textos para a construção de uma crítica de cunho político.
Tenta-se explorar o próprio conceito de multidão pelas práticas de criação desses
memes.
De saída, reforça-se a noção de multidão. Em seguida, aproxima-se o Twitter
desse conceito por meio de um de seus aspectos mais instigantes: sua monstruosidade.
Esse percurso serve de base para a análise de alguns posts publicados recentemente por
usuários. Acrescentando texto à fotografia, esses posts podem ser visto como memes
que alimentam a rede e conformam a comunicação entre seus usuários.
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NO CAMINHO DA MULTIDÃO
O conceito de multidão trabalhado por Antonio Negri e Michel Hardt permite
leituras profícuas acerca de alguns predicados subjetivos, políticos e tecnológicos que se
configuram nas sociedades mais fortemente tocadas pela lógica informacional do
capital. A complexidade do conceito, entretanto, traz consigo uma dupla dificuldade,
própria de grandes teorias: não ser reducionista, a ponto de desperdiçar as saborosas
suspeições dos autores; tampouco prolixo, de modo a reescrever repetidamente aquilo
que os autores já o fizeram de forma exemplar. No limite do interesse deste artigo,
segue-se aqui então uma indicação feita pelo próprio Antônio Negri (2009), em um
artigo conciso, intitulado Para uma definição ontológica da multidão. Nesse artigo,
Negri elenca de forma didática três aspectos centrais na ideia de multidão.
O caráter imanente da multidão seria o primeiro aspecto. Esse primeiro ponto
possibilita a inserção dos autores em um terreno filosófico e epistemológico específico.
Trata-se de uma demarcação teórica importante, que aposta em um projeto político para
além do terreno da representação. A multidão como imanência garante a validade
política das relações entre múltiplas singularidades. No mesmo gesto, postula uma
crítica ao pensamento político moderno dominante, que foi construído nas ideias de
representatividade e unidade, tão caras a Hobbes, Rousseau e Hegel. Abole-se na
multidão uma ideia de povo assentado na transcendência do soberano. Para Hobbes, por
exemplo, a multidão não é apta a governar. O múltiplo não conseguiria decidir, sendo
necessário assim a unidade. É a representação da multidão que conduz à necessária
unidade. A unidade, portanto, é considerada um pressuposto para a existência da paz e
do governo civil. Do contrário, subsistiria a guerra e a discórdia. A virtude política se
encontra na construção de uma unidade política. Disso resulta a importância que
Hobbes dá à noção de representação, tendo em vista que em torno dela se constitui e se
garante a unidade. A multidão, na perspectiva de Negri e Hardt (2005), não deve ser
domada mediante os mecanismos representativos. Ao contrário, trata-se do protagonista
fundamental do cenário político, ao qual se subordinam os dispositivos de
representação. Não é a representação que organiza e confere sentido à multidão, e sim a
multidão que constitui o sentido do mundo, que determina a produção do direito no
espaço político.
Negri (2009) destaca, como segundo aspecto, que a multidão é um conceito de
classe. Trata-se de um novo ponto de vista da lógica produtiva, que agrega a perspectiva
do trabalho cognitivo/imaterial como central nas sociedades capitalistas. A multidão é
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vista como classe na medida em que é aquilo que produz o comum. Além disso, como
essa produção se dá por comunicação e cooperação, constitui-se uma classe.
Obviamente, não se trata de diminuir a dimensão do trabalho industrial, mas notar a
força qualitativa de elementos imateriais presentes nos modos de produção
contemporâneos. Dois momentos teriam sido centrais para essa mudança paradigmática.
O primeiro é o momento em que o modo de produção se tornou completamente
“biopolítico”, ou seja, o ato de captura das linguagens, dos códigos, das necessidades e
dos desejos pelo capital. O segundo seria a financeirização, que mediria o valor desse
elemento comum produzido por cooperação e comunicação.
Ao longo da obra Multidão, os autores enfatizam as dimensões biopolíticas
como centrais nos atuais processos de produção. Trata-se de uma relação de poder que
está centrada na dimensão biológica, da vida. Na reconfiguração do capital e do
Império, calcados nos processos de financeirização, o biopoder é centrado nas
dimensões de comunicação e cooperação, ou seja, nas dimensões cognitivas e
imateriais, retirando daí sua mais-valia. Nesse sentido, a força do capital não seria
expropriada de um indivíduo, mas das singularidades da multidão, de suas formas de
comunicação e cooperação.
A multidão é então um conceito de classe na medida em que se constrói pela
exploração desse comum biopolítico. A multidão é, efetivamente, a classe que produz o
comum. Isso permite dizer que a multidão não é apenas explorada em sua produção –
como trata a definição de classe trabalhadora -, mas uma exploração da própria
cooperação. Assim, entender a multidão como classe, é colocar as singularidades como
centrais nos processos de produção. Nas palavras de Negri e Hardt (2005, p. 156):
A informação, a comunicação e a cooperação tornam-se as normas da
produção, transformando-se a rede em sua forma dominante de
organização. Assim é que os sistemas técnicos de produção
correspondem estreitamente a sua composição social: de um lado, as
redes tecnológicas, e de outro a cooperação dos sujeitos sociais que
trabalham. Essa correspondência define a nova topologia do trabalho e
também caracteriza as novas práticas e estruturas de produção.
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uso cotidiano, que parece trabalhar exatamente nessa agonística entre exploração da
cooperação entre singularidades e potência comunicacional e criativa daquilo que se
produz.
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que está em jogo nessa produção do comum é a participação mais ativa das
singularidades, desejos, afetos dos indivíduos na construção de um corpo, o qual seria
mitigado pela lógica capital que, num plano macro, ainda constrói uma sociedade à
revelia dessas vontades, hábitos. A produção da linguagem cômica utilizada nas
reapropriações de fotos no Twitter parece entrar nesse jogo subjetivo de produção de
hábito. Os próprios assuntos do momento no Twitter surgem nessa dinâmica, com
contaminações que encaminham determinadas ações. O uso de determinadas fotos “do
momento” atesta esse movimento, como veremos adiante.
A ideia de performance é um outro elemento trazido pelos autores para ilustrar a
produção e a produtividade do comum. A performatividade, a comunicação e a
colaboração seriam a chave do paradigma imaterial da produção. Dentre essas
performances está a performance linguística, pois se no trabalho fabril o trabalhador é
mudo, agora ele tem necessidade de habilidades linguísticas, afetivas e de comunicação.
E como a linguagem é sempre produzida em comum, ela pode ser um elemento de
criação, ou seja, uma aliada da Multidão. Entretanto, como sabemos, é exatamente no
controle do comum que o capital tem agido atualmente. O projeto de Multidão seria
possível exatamente por ter seu motor no comum. Para os autores, “essa natureza
comum da atividade social criativa é ainda mais destacada e aprofundada pelo fato de
que hoje a produção depende cada vez mais de competências e comunidades
linguísticas” (NEGRI e HARDT, 2005, p.179)
Os memes, em particular, podem ser vistos como uma produção performática
que já se tornou habitual e se configurou como um gênero linguístico. Trata-se de uma
forma de expressão que se estabelece por meio de novas tecnologias num determinado
período histórico, juntamente a todas as transformações culturais que sua inserção
acarreta. Para Lima e Castro (2016, p.39), “pode-se dizer, então, que novas formas de
‘querer-dizer’ implicam novos comportamentos comunicativos, consequentemente,
novos gêneros textuais”. Uma forma usual de meme no Twitter é a postagem de uma
foto que ganha certa visibilidade, mas que, porém, é ressiginificada por um texto que o
usuário produz, geralmente, com uso de ironia.
Como corpus de análise, buscou-se a página Melhores do Twitter, que faz uma
seleção sistemática das postagens. Optou-se por analisar apenas as postagens do mês de
dezembro que integravam memes com fotografia e texto e que faziam referência ao
atual cenário político. O conteúdo das postagens analisadas fazem referência, em sua
maior parte, à situação política no Brasil. Porém, nota-se alguns atravessamentos
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próprios à globalização. Para Negri e Hardt (2005, p.179), “essa comunidade linguística
vem antes do lucro e da construção de hierarquias locais e globais.” O post abaixo
(Figura 01), por exemplo, diz: “Depois desse cartaz na Paulista acho que agora o Estado
Islâmico vai dar uma trégua” (sic). A fotografia mostra um cartaz de fundo amarelo com
a frase “Estado Islâmico / Pare!” escrita em azul e vermelho, respectivamente. Na
disposição do cartaz, há ainda um ícone que lembra uma placa de trânsito, com uma
mão.
Figura 01
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Figura 2
O usuário que publicou esse post, como pode ser notado, é @avaaaifelipe. Uma
breve investigação nesse perfil permite aprofundar a ideia de multidão como classe.
Nota-se, no Twitter, que diferentes perfis, de adolescentes e idosos, jornalistas e
estudantes, ou ainda perfis de viés feminista, ou esportivo, ou político, todos habitam as
possibilidades de comunicação e cooperação oferecidas pela ferramenta, ainda que os
poderes e influências de cada um deles dependam de outros fatores. O ponto em
“comum” entre eles é o resultado de suas relações intelectuais e cognitivas com a
máquina, que gera informação que alimenta o todo. O perfil @vaaaifelipe, que fez a
referida publicação, conta em sua descrição apenas com a frase “não repara a bagunça”.
Com efeito, a bagunça, a bricolagem e a gambiarra são traços da multidão que o perfil
exemplifica muito bem. Note-se que esse perfil possuía 8.868 seguidores à época da
postagem. Trata-se do número de usuários que, idealmente e diretamente, entraram em
contato com as produções feitas por ele. Entretanto, como redes como o Twitter
funcionam com re-postagens, elemento que caracteriza bem a cooperação, esse número
deve ser bem maior.
As questões políticas configuradas por toda a complexa crise brasileira que
atravessou 2016 encontra sua expressão linguística do comum em praticamente todos os
posts de viés político. As críticas às medidas tomadas pelo recém-empossado presidente
são alvos de montagens humoradas. Ainda em relação ao projeto de reforma da
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previdência, o post do perfil @chatolino integra a foto (Figura 3) de uma criança com
uma roupa de gari (possivelmente de um carnaval) com o texto: “Trabalhador deverá
contribuir por 49 anos para receber teto da aposentadoria pelo INSS”. A reapropriação
da foto, a partir dessa legenda, coloca em questão a ideia de trabalho. É interessante
notar que o projeto da reforma da previdência, após muitas críticas como essas aqui
analisadas, foi estrategicamente postergado pelo governo.
Figura 3
O uso das aspas no Twitter, reproduzindo um texto tal como ele foi divulgado na
grande mídia ou como fala do senso comum, torna-se uma ferramenta expressiva e
linguística própria da ferramenta. Geralmente, após o uso das aspas com tal texto,
inicia-se um texto que o contraria, o ridiculariza, ou demonstra contradições. A foto do
menino vestido de gari possui essa função de complemento, dando outro sentido ao
texto com aspas.
Esses casos demonstrados são similares em sua linguagem comum, e
exemplificam bem algumas produções que tratam de criticar e questionar, e certamente
influenciar, as decisões políticas por meio de uma linguagem que integra apropriação de
fotos com a produção de um texto de até 140 caracteres. Esse comum, segundo Negri e
Hardt (2005), é uma produção e um processo. Os memes são amplamente difundidos na
rede e atestam um potencial inventivo e de criação da multidão. A potência dessa
multidão é um fato atestado por vários casos recentes. As hashtags mais comentadas
tem a capacidade de induzir e modificar uma realidade. “Hoje, criamos como
singularidades ativas, cooperando nas redes da multidão, vale dizer, no comum” (p.
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182). Resta saber como utilizar esse potencial de criação na conformação de uma
verdadeira democracia, onde as criações do comum assumam um papel central na
condução das vontades políticas.
AUTOR
*Gabriel Malinowski é Doutorando em Comunicação pela UERJ-RJ. Mestre em
Comunicação pela UFF-RJ (2010). Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-
RJ (2008). Graduado em Cinema pela UNESA-RJ (2006). Entre 2009 e 2016, foi
docente em cursos de Cinema, Artes Visuais e Comunicação Social; coordenou o
projeto de extensão Crescendo com Arte, que oferecia oficinas de cinema para alunos da
rede pública do município de Barra Mansa; e foi integrante do projeto de extensão
Cinema Encena, que trabalhava na relação vídeo-performance-dança. Atualmente é
bolsista FAPERJ de Doutorado. Possui artigo publicado no livro anual da SOCINE,
além de outras publicações em revistas acadêmicas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Dossiê
BELA, RECATADA E DO LAR:
RESUMO: Este artigo analisa a prática discursiva sobrea mulher “bela, recatada e do
lar” com base na categoria foucaultiana de corpos dóceis. O aporte teórico focaliza-se,
estritamente, na obra “Vigiar e Punir”, publicada por Michel Foucault em 1975.Para a
discussão da categoria corpos dóceis, delimitou-se a terceira parte do livro (disciplina),
na qual, Foucault (1987) procura pensar como se dá o processo de fabricação dos corpos
dóceis, enfatizando a disciplina como uma nova técnica de poder. Foucault descreve
quatro técnicas ou mecanismos disciplinares que envolvem o processo de formação dos
corpos dóceis, a saber: 1) arte das distribuições; 2) controle das atividades; 3)
organização das gêneses; e 4) composição das forças. Ao lado do acompanhamento dos
dados da teoria foucaultiana, foram relacionados a reportagem da revista Veja,
publicada em abril de 2016, e fragmentos do jornal do Jornal das Famílias, periódico
brasileiro do século XIX. A materialização discursiva, tanto da reportagem, quanto do
jornal, centra-se no sujeito mulher. A aproximação aponta que a mesma prática
discursiva do poder disciplinar sobreo corpo feminino encontrado no Jornal das
Famílias no século XIX, ainda está presente nos dias atuais, sendo propagada pelas
mídias como forma de manter o poder de dominação sobre as mulheres.
PALAVRAS-CHAVE: Corpos dóceis, disciplina, poder, mulher.
INTRODUÇÃO
Influente no pensamento contemporâneo, Michel Foucault também foi ativista
político, teórico social, crítico cultural, historiador criativo e professor. Para leitura de
sua obra, recomenda-se que o leitor esteja disposto a indagar a ordem social
preestabelecida, bem como, desfazer-se de premissas tidas como verdades absolutas.
Autores como Oksala (2011), esquematizam a obra de Foucault em três fases
distintas: a) a arqueologia; b) a genealogia; e c) a ética. Ressalta-se aqui a fase
genealógica, termo escolhido por Foucault para analisar o poder. Pois, é na obra
“Arqueologia do saber” que Foucault (2004) toma o discurso como uma prática social,
historicamente determinada, onde são constituídos os sujeitos e os objetos. Para ele, as
relações entre os dizeres e os fazeres, ou seja, as práticas discursivas são formas de
materializar as ações dos sujeitos na história. Uma tentativa de compreender a maneira
como as “verdades” são produzidas e enunciadas. Tal prática discursiva está explicitada
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também na obra “Vigiar e Punir”. Nela se discorre sobre conceitos como o de disciplina,
de docilização dos corpos, de panoptismo e outros.
O trabalho visa às práticas discursivas sobre a mulher “bela, recatada e do lar”
presentes no Jornal das Famílias, veiculado no século XIX, e na contemporaneidade,
presente na reportagem da revista Veja, publicada em abril de 2016. O artigo encontra-
se dividido em três seções. Na primeira, discute-se o aporte teórico, conceituando a
natureza do que Foucault assimila como corpos dóceis; seu processo de formação e suas
respectivas técnicas disciplinares. Na segunda, traça-se um breve panorama sobre o
papel desempenhado pela mulher na história do Brasil. Por fim, apresentam-se os
possíveis vínculos de aproximação do processo de docilização do corpo feminino
presenteno Jornal das Famílias e na reportagem da revista Veja.
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APORTE TEÓRICO
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La Mettrie desenvolveu em 1748 o conceito mecanicista do ser humano .
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a formação esteja concluída, desde os conteúdos mais simples até a estrutura mais
complexa.
O poder disciplinar concentra-se nos mínimos gestos (detalhes) e se acumula da
repetição; só assim, o homem pode ser considerado útil. Não obstante, o mais
importante na organização das gêneses é o exercício, pois, é na repetição que se cria o
“bom estudante” e o “funcionário exemplar”, como afirma Foucault (1987, p. 187): “o
exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da
duração, não culmina num mundo do além; mas tende para a uma sujeição que nunca
terminou de se completar”.
2
O PAPEL DA MULHER NO BRASIL
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Daí afirmar que a mulher dificilmente seria considerada uma cidadã política, pensante,
mas sim um corpo a ser domado, controlado, vigiado.
3
ANÁLISE DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS SOBRE A MULHER “BELA,
RECATADA E DO LAR”
Para compreensão de um determinado fato histórico é indispensável a análise da
prática discursiva, como propõe Foucault (2004), pois é no dizer que se fabrica as
noções, os conceitos e as verdades de um dado momento histórico. Gregolin (2007)
aponta que a análise dessas práticas é uma forma de mostrar que a relação entre o dizer
e a produção de uma “verdade” é um fato histórico.
No que tange aos textos midiáticos, Gregolin (2007) afirma que a criação de
uma “unidade” do sentido é um recurso discursivo que fica evidente nesses tipos de
textos.
Como o próprio nome parece indicar, as mídias desempenham o papel
de mediação entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia
oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor
produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a
realidade concreta. (GREGOLIN, 2007, p. 16)
3
Atualmente quase todas as edições do jornal estão disponíveis na homepage da Biblioteca Nacional
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pelo Francês Garnier para atender as necessidades das mulheres, exclusivamente, para o
entretenimento. Mas para, além disso, é possível observar o conteúdo moralizante em
todo o periódico. Como aponta Falci (2015, p. 241) “a elas certos comportamentos,
posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos.
Na primeira edição do jornal constata-se que o periódico se consuma como a
continuação da Revista Popular (de circulação mais geral), no entanto, voltado para as
atividades domésticas: “O Jornal das Famílias, pois, é a mesma Revista Popular d’ora
avante mais exclusivamente dedicada aos interesses domésticos das famílias
brasileiras.” (Jornal das Famílias, 1863, p. 02).
Conforme Castro (2014) é na leitura do editorial que se percebe como o espaço
exclusivo da leitora era destinado a tarefas domésticas, como cozinhar, costurar, cuidar
da casa, dos filhos, etc.: “as casadas dedicam-se ao cuidado com a administração do lar,
enquanto que as solteiras aprendem a cozinhar, como se estivessem se preparando para
o lar que ainda não possuíam”. (CASTRO, 2014, p. 20).
O jornal das Famílias também trazia “dicas” de beleza, de como a mulher bela
deveria cuidar de sua saúde, sua pele, traços que marcam a feminilidade: “o fundamento
das formas belas é a saúde, e para isso não ha como o movimento e o exercício ao ar
livre, alimentação substancial e regularidade de nos hábitos da vida, levantar cedo e não
deitar tarde. [...] Que uma pele macia e brilhante seja um predicado da beleza, ninguém
o contestará por certo, trata-se, porém, de saber como se conserva e mesmo como se
obtém este dote”. (Jornal das Famílias, 1863, p. 03).
Observam-se também, durante a leitura do jornal, receitas de produtos
cosméticos caseiros para cuidar da pele, dos cabelos, receitas para cozinhar, instruções
para bordar, fazer crochê ou indumentárias da época. Como exemplos, segue abaixo a
figura 01 e 02 mostrando uma receita caseira para cuidar da pela e explicações sobre
figurinos.
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Por ser um jornal que tem extensa periodicidade, as instruções sobre as tarefas
domésticas sempre se repetiam, culminando assim na organização das gêneses.
A reprodução das instruções no controle das atividades e na organização das
gêneses faria da mulher uma “boa esposa, excelente dona de casa e ótima mãe”. No que
tange a composição das forças, é arquitetada a obediência das instruções trazidas pelo
referido jornal, não só destinada às mulheres casadas, mas às solteiras, que almejavam
ao matrimônio. As mulheres solteiras do século XIX deveriam aprender com as mais
experientes, normalmente as mães. Uma tradição de aprendizagem de afazeres
domésticos que era transmitida de mãe para filha.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados da análise feita sobre as práticas discursivas no Jornal das
Famílias e na reportagem da Veja sobre Marcela Temer, mostram que a história do
poder disciplinar sobre o corpo feminino é descontínuo. Semelhante processo de
docilização encontrado no Jornal das Famílias (século XIX) também reverbera na
reportagem da Revista Veja (século XXI), em recortes temporais distintos.
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A luz da docilização do corpo, a mulher “ideal” é aquela que sabe cuidar da casa
e dos filhos, é a mulher “prendada”, “bela, recatada e do lar”. Em ambas as práticas
discursivas analisadas, tanto no jornal quanto na revista, o papel feminino impõe a total
submissão ao homem, instaurando assim o poder disciplinar do corpo da mulher. No
século XIX o único espaço da mulher era a esfera privada, a casa. Já no século XXI é
possível encontrar o corpo feminino nos espaços públicos, conquista do movimento e da
luta feminista.
Na contramão das conquistas emancipatórias da mulher, a reportagem da revista
Veja parece perpetuar o “ideal de mulher”, concedendo notoriedade a Marcela Temer,
por observar na quase primeira-dama traços da docilidade.
Desde o surgimento da imprensa, a mídia confirmou-se como forte dispositivo
capaz de disciplinar sujeitos e manter a ordem social preestabelecida. Ao lado da mídia,
a família como microssociedade, irá reproduzir a ordem social (mulher disciplina e
submissa), criando novas forças de poder, novos corpos dóceis. Ciente da maleabilidade
do poder, sensível às novas construções e usos sociais, torna-se possível assimilar a
força subjetiva que rompe com os processos de docilização.
Ainda é preciso se aprofundar e acrescentar categorias e reflexões foucaultianas
para uma análise mais consistente e aprimorada. Todavia, este trabalho fornece novos
resultados, completados pelas categorias da formação discursiva, da história
descontínua, das regularidades, das ordens do discurso, e da ideia de dispositivo. Para
além da análise do discurso, os resultados também servem ao propósito da análise
sociológica, observando questões sociais como o machismo, o papel da mulher
contemporânea, a manipulação midiática, a sociedade de controle e a sociedade
disciplinada.
AUTOR
*Romário Duarte Sanches é Doutorando em Linguística pela Universidade Federal do
Pará (UFPA). Mestre em Linguística pela mesma universidade (UFPA). Especialização
em Estudos Linguísticos e Análise Literária pela Universidade do Estado do Pará
(UEPA). Graduado em Letras/Inglês pelo Instituto de Ensino Superior do Amapá
(IESAP). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Amapá
(UNIFAP). Atua nas áreas de Letras e Linguística.
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REFERÊNCIAS:
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MARCELA TEMER: BELA, RECATADA E “DO LAR”. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/>. Acesso em: 27
de Julho de 2016.
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Dossiê
Resumo: o artigo pretende resgatar o modo como o conceito de série, ou de vida serial,
presente na Crítica da razão dialética de Sartre, e seu desdobramento naquilo que este
filósofo qualifica como êxtero-condicionamento, podem ser ferramentas conceituais
úteis para se pensar o papel e o funcionamento dos meios de comunicação de massa na
contemporaneidade. Particularmente, no que diz respeito à disseminação de discursos
ideológicos, como, por exemplo, o colonialismo e o racismo. Para tanto, se tratará,
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Em texto publicado há pouco mais de uma década, Frederic Jameson afirmava que
o conceito sartriano de série, que aparece na Crítica da razão dialética, de 1960, seria
“a única teoria satisfatória da opinião pública, a única verdadeira filosofia das mídias
elaboradas até hoje” (JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p.
27).
Sem necessariamente corroborar com o caráter peremptório da afirmação do
filósofo norte-americano, este artigo pretende resgatar o modo como a noção de vida
serial, e seu desdobramento naquilo que Sartre qualifica como êxtero-condicionamento,
podem ser ferramentas conceituais úteis para se pensar o papel e o funcionamento dos
meios de comunicação de massa, mesmo que Sartre não tenha elaborado uma teoria
completa sobre o tema. Particularmente, nossa atenção se volta ao modo de
disseminação de discursos ideológicos, como, por exemplo, o colonialismo e o racismo,
que a grande mídia pode viabilizar. Para tanto, será preciso, primeiramente, recuperar as
linhas de força do edifício teórico erigido na Crítica, para, na sequência, esclarecer o
agenciamento entre aqueles conceitos.
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II
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O que foi visto na seção precedente pode ser sintetizado no seguinte trânsito
dialético: a natureza, intrinsecamente escassa, não possibilita ao ser humano a completa
satisfação de suas necessidades (negação da própria possibilidade de existência do
homem). Este, por sua vez, cria objetos e se une aos outros para superá-la (negação da
negação). Mas, essa união cria uma reciprocidade alterada pela própria escassez, uma
união negativamente estabelecida por um fator externo, uma tensão fundamental e
inevitável em nome da sobrevivência. Segundo Sartre, toda sociedade se constitui como
uma forma de luta contra a escassez. Por conseguinte, o binômio necessidade/escassez
seria o verdadeiro “motor da História”. Ela seria o fundamento da escassez própria aos
modos de produção históricos descritos pelo marxismo; consequentemente, a via de
inteligibilidade da luta de classes.
Sempre segundo Sartre, a escassez torna os indivíduos antagonistas entre si, não
obstante forçá-los, ao mesmo tempo, a um mínimo de cooperação em nome de sua
sobrevivência. Contudo, não é apenas a escassez que, externamente, interfere e altera a
reciprocidade interindividual. De acordo com o filósofo, a própria forma com que os
seres humanos se relacionam entre si pela intermediação do campo material os opõe uns
aos outros, porquanto esta relação é, em si mesma e inexoravelmente, alienante.
Explica-se: diante da realidade da escassez, a ação de cada um é orientada em
relação à ação dos outros. Ao criar um instrumento de trabalho ou um objeto de
consumo, a pressão exercida pela escassez é afrouxada e as relações de alteridade no
interior do grupo diminuem. Não obstante, esse fenômeno positivo logo se reverte.
Justamente porque a negação originária não pode ser abolida, ela reaparece em um nível
mais elevado: o da produção social. O produto da ação humana – sua objetivação, na
linguagem hegeliano-marxista – torna-se, então, a fonte da alienação da liberdade.
Isso significa que, se a história daquilo que Marx chamava de “indústria
humana” se caracteriza por uma crescente dominação em relação à natureza, permitindo
uma autonomia crescente, Sartre entende que este processo retornaria contra o homem
desde seu bojo com o ressurgimento da negação originária tornada uma negação radical
da sociedade. Esta negação, portanto, é que demarcaria “os fundamentos reais da
alienação” (SARTRE, 1985, p. 262).
Não se trataria, destarte, de um fenômeno acidental. Na leitura de Sartre, é a
própria forma que assume a relação que os indivíduos estabelecem entre si mediados
pela matéria. Como explica o filósofo, “a matéria aliena em si o ato que a trabalha, não
tanto na medida em que ela é uma força, nem mesmo enquanto ela é inércia, mas na
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medida em que sua inércia permite absorver e retornar contra cada um a força de
trabalho dos outros” (SARTRE, 1985, p. 262). Assim, no momento do trabalho, “é o
produto que designa os homens enquanto Outros, e que se constitui a si mesmo em
outra Espécie, em contra-homem. É no produto que cada um produz sua própria
objetividade, que retorna a ele como inimigo e o constitui como Outro” (SARTRE,
1985, p. 262-3)[3].
Para corroborar sua posição, Sartre recupera o caso dos camponeses chineses,
que durante séculos desmataram seus campos para aumentar a produtividade de
alimentos. Essa prática social inicialmente positiva, com o decorrer dos anos terminaria
por arrasar culturas inteiras, devido às inundações suscitadas por este mesmo
desmatamento. Ao agir sobre a matéria, explica o autor, o homem vê sua práxis alterada
pelo concurso da ação (passada ou presente) de outrem. O resultado de minha ação nem
sempre condiz com minha intenção original (isto é, com meu “projeto”), e isso ocorre
porque minha práxis foi alterada (desviada, modificada etc.) pela práxis alheia. Essa
interferência inevitável, complementa Sartre, impede, ao final, que eu me reconheça nos
produtos oriundos de minha atividade, ou seja, em minha objetivação. Logo, bloqueia a
compreensão das causas que levaram minha ação a um resultado diverso daquele que eu
esperava. Pois, como afirmado em Questão de método – preâmbulo metodológico
da Crítica da razão dialética –, se a História me escapa, “isto não decorre do fato de
que não a faço: decorre do fato de que outro também a faz” (SARTRE, 1985, p. 74).
Assim, o homem faz a História: isto quer dizer que ele se objetiva nela
e nela se aliena; neste sentido, a História, que é obra própria detoda a
atividade de todos os homens, aparece-lhes como uma força estranha
na medida exata em que eles não reconhecem o sentido de sua
empresa (mesmo localmente eficaz) no resultado total e objetivo
(SARTRE, 1985, p. 74).
Em resumo: se, por um lado, a matéria tem como função unificar todas as práxis
individuais, singulares, parciais, por outro, essa síntese se dá de um modo específico.
Quer dizer, “não é que a matéria absorva as ações humanas e as coisifique ou as
reifique: primeiramente, ela as unifica, e ela as unifica da maneira pela qual a matéria
pode unificar, isto é, desindividualizando-as, dessingularizando-as, portanto,
massificando-as” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 305). Logo, o processo de
unificação da práxis só pode tornar esta práxis estranha a si mesma. A “objetivação é
alienação” (SARTRE, 1985, p. 274), afirma Sartre, fazendo eco a Hegel, justamente
porque, através dela, cada um “retorna a si como Outro” (SARTRE, 1985, p. 336).
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projeto de solidão de cada um faz com que a reciprocidade exista e seja negada ao
mesmo tempo.
Todas as unidades de uma série possuem a mesma propriedade. Com efeito, na
unificação em série, própria às formações coletivas do campo prático-inerte, cada
indivíduo é idêntico, intercambiável, desnecessário, separado e solitário. A mudança de
qualquer elemento e sua substituição por outro em nada alteram o quadro geral.
Novamente, todos são excedentes, redundantes. “Cada um é o mesmo que os
Outros na medida em que ele mesmo é outro” (SARTRE, 1985, p. 367-8). A série,
assim, só pode ser inteligível através do conceito de alteridade. A alteridade, enquanto
“unidade das identidades, encontra-se sempre necessariamente alhures” (SARTRE,
1985, p. 374). Mas, alhures há apenas um Outro que é outro inclusive para-si. Desse
modo, a consequência direta da alteridade (enquanto forma originária de alienação, de
degradação da liberdade) é a transformação de cada um em Outro (para-si e para-
outrem). É, portanto, promover a separação dos indivíduos mediante uma unidade
evanescente, externamente estabelecida, que conserva o antagonismo enquanto preserva
cada qual encerrado em seu próprio projeto solitário.
A vida serial, enfim, é o modo de ser do indivíduo, cuja unidade fugidia se
encontra sempre em um ser-fora, em um objeto comum, que torna cada qual Outro para
o outro e para si. Por conseguinte, viabiliza-se uma reciprocidade pela própria
alteridade, isto é, uma reciprocidade externamente constituída que conserva um
antagonismo interno. Sendo assim, há na vida serial um verdadeiro bloqueio ao
reconhecimento do outro em sua individualidade. Mais precisamente, há reificação das
relações humanas em um cenário de massificação. Com efeito, no campo prático-inerte,
é a indiferença a tônica da (falta de) percepção cotidiana do outro, que só é notado
quando interfere diretamente em nossa vida, nossos interesses etc. No dia a dia, presos
ao modo de vida serial, praticamos efetivamente aquele “solipsismo de fato” pelo qual
se definia ontologicamente a indiferença em O ser e o nada[5].
Ainda neste plano, a “multiplicidade prática” de indivíduos pode formar objetos
reais que a sociologia denomina coletivos. A origem dos coletivos é a “recorrência
social”. Tratam-se, portanto, de estruturas nas quais a serialidade se mantém. Porque sua
realidade advém da destotalização permanente da totalidade de indivíduos, o coletivo
promove uma unidade das multiplicidades orgânicas baseada na síntese passiva que
mantém os homens unidos por sua separação.
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IV
Uma vez estabelecido este quadro, torna-se finalmente possível dirigir a atenção
para como os meios de comunicação podem operar na dialética da vida serial e do
prático-inerte, assumindo um papel de disseminação de uma ideologia.
Em uma transmissão televisiva, por exemplo, cada indivíduo é outro na medida
em que é telespectador e se comunica, assim, com todos os outros nessa unidade
hesitante proporcionada pelo objeto comum. Tal fenômeno não se restringe a esse meio
de comunicação, mas, como bem nota Sartre, se verifica em todos os mass media.
“Nesse caso, o objeto prático-inerte [...]não produz apenas a unidade fora de si na
matéria inorgânica dos indivíduos: ele os determina na separação e assegura, enquanto
estão separados, sua comunicação pela alteridade” (SARTRE, 1985, p. 378).
Esta separação é fundamental para compreender como opera o discurso
ideológico para Sartre, que atualmente encontra no funcionamento dos grandes meios de
comunicação (cujos interesses e valores, enquanto empresas privadas, não se dissociam
daqueles hegemônicos na classe economicamente dominante) seu veículo preferencial
de disseminação.
Definida como “reverso simbólico da prática material”, isto é, “anverso da
alienação” (cf. BAROT. In: BAROT, 2011), a ideologia não se reduz, em Sartre, à visão
do marxismo dogmático que, minimizando a riqueza da própria concepção marxiana[6],
define-a como “falsa consciência”, “mistificação”, “ilusão” etc.[7]. Rejeitando o
dualismo base-superestrutura que ampara aquela interpretação rasteira, Sartre
compreende que a ideologia extrapola o plano meramente gnosiológico. Ela nasce das
coisas, da matéria trabalhada.
Nesse sentido, nota o filósofo, há modos seriais de comportamento, sentimentos
seriais, pensamentos seriais, que estão diretamente vinculados à compreensão da
ideologia. De fato, para Sartre, a ideologia, ideia serial, ou “ideia-exis” (como, por
exemplo, o colonialismo e o racismo), é um objeto do prático-inerte, e não um momento
consciente da ação. Sua evidência reside na dupla incapacidade em verificá-la ou de
transformá-la nos outros membros do coletivo.
Com efeito, diz o filósofo (cf. SARTRE, 1985, p. 406-9 – nota), aqui a ideia não
é práxis, mas essencialmente processo. Ou seja, desenvolve-se por meio de uma força
material externa que age sobre o pano de fundo da impotência provocada pelo
isolamento serial. Ela se torna, assim, a “unidade da série como sua razão ou seu índice
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Não obstante, para que essa interiorização seja possível em uma sociedade complexa,
institucionalizada, como a nossa, na qual as séries se multiplicam, o isolamento das
grandes cidades se intensifica, a divisão do trabalho se aprofunda e a urgência de
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sobreviver torna-se mais e mais dramática, a práxis soberana (governante, grupo, classe;
no limite, o Estado) deve ser capaz de condicionar cada um a agir à distância sobre
todos os outros, sem se apresentar enquanto tal. Ou seja, superar essas barreiras de tal
modo a, sem derrubá-las (o intuito é, na verdade, precisamente o oposto), conseguir
estabelecer entre os indivíduos a elas subjugados uma forma de sociabilidade. Sartre
denomina esse procedimento de êxtero-condicionamento.
Segundo Sartre, este novo estágio da práxis cria uma quase-unidade passiva que,
para realizar-se, precisa “fascinar cada Outro por esse falso-semblante: a totalização das
alteridades (ou seja, a totalização da série)” (SARTRE, 1985, p. 727). A armadilha do
êxtero-condicionamento reside no projeto do soberano de “agir sobre a série de maneira
a lhe arrancar, na própria alteridade, uma ação total” (SARTRE, 1985, p. 727).
Contudo, prossegue, “essa totalidade prática, ele a produz como possibilidade para a
série se totalizar conservando a unidade fugidia da alteridade, ao passo que a única
possibilidade de totalização que permanece no agrupamento inerte é dissolver nele a
serialidade” (SARTRE, 1985, p. 727).
A práxis, todavia, se conserva como liberdade transcendente. Assim sendo, a
natureza fundamental da institucionalização, sua impotência serial, separação e
reificação, que constrói a massa soberana e serializada, revelam, afinal, através da
desmistificação de sua inteligibilidade, mais uma forma de alienação da liberdade
individual. Mais uma vez, o funcionamento dos meios de comunicação de massa é o
melhor exemplo de como atualmente operariam esses dois caracteres elementares do
êxtero-condicionamento, complementando aquilo que já foi assinalado anteriormente.
De fato, na ação dos mass media, “a ação mediadora do grupo, que condiciona
cada Outro por todos os Outros, [gera uma] fascinação prática pela ilusão da serialidade
totalizada” (SARTRE, 1985, p. 728). Relembrando sua visita aos Estados Unidos, em
1946, Sartre relata (cf. SARTRE, 1985, p. 728 e ss.) que, a cada sábado, as emissoras de
rádio divulgavam a lista dos dez discos mais vendidos na semana que se encerrava. Na
semana seguinte, as pesquisas indicavam que a venda daqueles discos aumentava em
uma margem de 30 a 50%. Assim, o resultado da semana anterior era confirmado e
prolongado. A escolha dos discos, observa Sartre, era feito por um grupo de
especialistas (o “Grand Prix du Disque”) que agia sobre a massa serializada, em nome
da “opinião pública” (na verdade, das gravadoras), de modo a persuadir cada ouvinte de
que o Outro também iria comprar aqueles discos. Este Outro, consequentemente,
exigiria de mim que eu também os tivesse comprado e escutado, a fim de que não
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ficasse desinformado acerca daquilo que o “público” compra e escuta. Por minha vez,
eu faria o mesmo em relação a outrem. Os exemplos poderiam ser multiplicados.
Retomando o problema do racismo, HadiRizk nota que o êxtero-
condicionamento permite compreender melhor esse tipo de procedimento (em suas
várias manifestações fenomênicas), porquanto ele
só pode ser explicado por sua natureza serial, na qual cada um se faz
Outro que o outro “unindo-se” a ele pelo sentimento e prática da
exclusão. No fundo, tudo se passa como se cada indivíduo tentasse
exorcizar, às custas do outro, a fuga de seu próprio ser, que ele projeta
sobre um ser coletivo e unificante. Tal objeto torna-se a unidade dessa
fuga serial, tanto quanto a causa do ser-outro de cada um (RIZK,
1996, p. 186).
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VI
Diante do exposto, fica nítida a conexão que Sartre estabelece entre a vida serial
e o êxtero-condicionamento como modos de sociabilidade nos quais os mass
media podem atuar como veículos privilegiados de propagação de discursos
ideológicos, isto é, discursos que se alimentam da impotência alienante daquela tipo de
relação social. Com efeito, em uma sociedade de consumo de massas, como a atual, não
é difícil observar, a partir da hipótese de Sartre, como a publicidade se vale fartamente
de formas de êxtero-condicionamento com o intuito de assediar consumidores em
potencial e aumentar o volume de vendas de seus produtos; ou como essa forma de
dominação tornou-se indispensável para transmitir valores e conceitos de “verdade” que
assegurem a hegemonia de uma determinada visão de mundo.
Por fim, caberia ainda indagar se há, em Sartre, algum vislumbre de superação
dessa situação. A resposta se fez entrever na própria forma pela qual o filósofo apreende
a noção de ideologia. Porque não se trata de um problema exclusivamente gnosiológico,
mas de um modo de vida interiorizado por cada um, para Sartre, apenas o concurso
das práxis é capaz de, mesmo nas malhas das artimanhas que a impulsionam a reforçar a
dominação à qual estão subjugadas (isto é, o prático-inerte), criar formas diferentes de
sociabilidade que possam se contrapor à manipulação do êxtero-condicionamento.
Lutar contra uma ideologia, portanto, não se desprende da luta (necessária e
possível) contra todo o conjunto de relações (econômicas, políticas, jurídicas etc.) que a
sustenta. Pelo contrário, na medida em que todas essas esferas se dão como um todo,
não há combate a uma sem combate a outra. Como sintetiza Sartre, neste ponto
abertamente adotando a atitude de Marx em relação ao tema: “não são as ideias que
mudam os homens, não basta conhecer uma paixão por sua causa para suprimi-la. É
preciso vivê-la, opor a ela outras paixões, combatê-la com tenacidade. Em suma, se
trabalhar” (SARTRE, 1985, p. 25). Inclusive, se poderia acrescentar, nisso que é
particularmente sensível nos dias atuais, no sentido de inventar formas distintas de
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bloquear a capacidade de persuasão dos meios de comunicação. Isto é, não apenas pela
mera denúncia de seu modo de operação, mas também através da concepção de práticas
distintas de vida e disseminação de valores e ideias contra hegemônicas. Práticas
capazes de romper, ou ao menos minimizar, a alienação típica da vida serial, cuja
fraqueza a que relega os indivíduos nutre o papel contemporâneo de manipulação
ideológica da mídia e, consequentemente, reforçam aquela mesma alienação.
AUTOR
*Vinícius dos Santos é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São
Carlos e licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. Mestre e Doutor
em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, com pesquisas desenvolvidas na
filosofia de Sartre. Professor adjunto de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. e-
mail:viniciusdossantos@ufba.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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et le marxisme. Paris : La Dispute, 2011, p. 253-284.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Prefácio Jean-
Paul Sartre. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FISCHBACH, Franck. L’aliénation comme réification. In : BAROT, Emmanuel.
(dir.).Sartre et le marxisme. Paris : La Dispute, 2011, p. 285-312.
GARO, Isabelle. L’idéologie ou la pensée embarquée. Paris : La Fabrique, 2009.
JAMESON, Fredric. Entre structure et événement: le groupe. Trad. Eustache
Kouvélakis. In: KOUVÉLAKIS, Eustache & CHARBONNIER, Vincent (dir.). Sartre,
Lukács, Althusser : des marxistes en philosophie. Paris: PUF, 2005, p. 11-32.
RIZK, Hadi. La constitution de l’être social– le statut ontologique du collectif dans La
Critique de la raison dialectique. Paris: Éditions Kimé, 1996.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In :
LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais.
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SARTRE, Jean-Paul. Critique de la raison dialectique (précédé de Questions de
méthode) – tome I: théorie des ensembles pratiques. Paris: Gallimard, 1985.
________________. L’Être et le Néant– essai d’ontologie phénoménologique.Édition
corrigée avec index par Arlette Elkaïm-Sartre.Paris: Gallimard, 2007.
________________. Plaidoyerpourlesintellectuels. Paris: Gallimard, 1972.
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NOTAS
[1] Na Crítica, a práxis aparece como a ação do homem no mundo material inerte, com vistas a
transformá-lo para um determinado fim, indicado num “projeto totalizante”. Sua translucidez permite
disparar a dialética que permitirá ao filósofo reconstruir as condições de possibilidade da inteligibilidade
histórica.
[2] Cumpre ressalvar que não se trata, para Sartre, de estabelecer uma essência humana ou de afirmar que
o homem seja, naturalmente, “lobo do próprio homem”, como Hobbes. Na verdade, diz o filósofo, “é
preciso compreender, ao mesmo tempo, que a inumanidade do homem não vem de sua natureza, que,
longe de excluir sua humanidade, só pode ser compreendida por esta, mas que, enquanto o reino da
escassez não tiver chegado ao termo, haverá, em cada homem e em todos, uma estrutura inerte de
inumanidade, que, em suma, nada mais é do que a negação material enquanto ela é interiorizada”
(SARTRE, 1985, p. 242).
[3]Destarte, “o que é negativo na contra-finalidade não é o resultado da matéria enquanto tal, mas
primeiramente o resultado da produtividade humana ou da práxis investida nela, e que retorna, sob uma
forma não reconhecível, sobre os seres humanos que originalmente investiram nela seu trabalho”
(JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 23).
[4] Com efeito, a alienação, em Sartre, consiste “numa exteriorização do sujeito de tal modo que ela
engendraria da objetividade um resultado que o sujeito não pode reinteriorizar, pois não se reconhece nele
ou porque se reconhece em não se reconhecendo (sob a forma: ‘sim, fui eu quem fez isso, mas, ao mesmo
tempo, jamais quis fazê-lo’)” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 308).
[5] Cf. SARTRE, 2007, p. 420.
[6] Para a compreensão dessa riqueza, cuja apresentação seria inviável, ver GARO, 2009, indicado nas
referências bibliográficas ao final.
[7]Convém notar que, desde La légende de lavérité, texto de juventude datado do final dos anos 1920,
Sartre já discutia, mesmo que sem maior profundidade, a noção de ideologia nestes termos. Já após sua
aproximação com o marxismo, por exemplo, em uma conferência proferida na Sorbonne,
no Amphithéatre Richelieu, em 16 de maio de 1956, Sartre trata especialmente do tema da “ideologia”, de
uma perspectiva próxima àquela que seria desenvolvida no âmbito da Crítica: a ideia como fato material
(ligado ao processo de produção), mas irredutível a este, porquanto significante. Na linguagem marxista,
Sartre recusava a tese – típica do marxismo dogmático – de que a superestrutura pudesse se reduzir à
infraestrutura. O manuscrito completo da conferência se encontra depositado junto ao acervo do “Fond
Sartre” da Bibliothèque nationale de France, sob a rubrica NAF 28405.
Para uma análise mais aprofundada do tema da ideologia em Sartre, ver o já citado BAROT. In: BAROT,
2011, p. 253 e ss.
[8] No prefácio à obra de Frantz Fanon, Os condenados da terra, Sartre assinala: “Nossos soldados no
ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus; uma
vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, eles dão por assente
que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar
essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do
macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem
somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los” (SARTRE.
In: FANON, 1968, P. 9).
[9] Cumpre observar, aliás, que a hierarquização social a partir da criação da ideia de raça é inseparável
do processo que de expansão do capital na aurora da modernidade, que se inicia com a descoberta da
América, e que estabelece uma nova forma de controle e divisão do trabalho, este convertido em
mercadoria. Como explica Aníbal Quijano: “A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história
conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre
conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência
a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas
nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e
redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam
apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas
identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando
eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais
correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha.
Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação
social básicada população.[...]. Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às
relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova identidade
depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da
perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como
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naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso
significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de
superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e
durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente
universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram
postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem
como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério
fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder
da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população
mundial. [...]. As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à
natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os
elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente”
(QUIJANO, In: LANDER, 2005, p. 117-8).
[10] Trata-se, evidentemente, de um questionamento típico de uma forma de pensamento que tem o
intuito de escamotear a relação artificial (isto é, não-natural, historicamente construída) entre raça e
posição social, isto é, rejeitar a constatação de que “as ‘classes sociais’, na América Latina, têm ‘cor’”
(QUIJANO. In: LANDLER, 2005, p. 138), o que, no Brasil em particular, é de uma evidência
negligenciável apenas se pautada em um discurso completamente alheio à realidade.
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Artigos e ensaios
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localiza nesse ano o que ela chamou “a invenção da paulistaneidade”. Ela destaca o
termo “invenção” e o conceitua como um processo de construção variável ao longo do
tempo, forjado em diferentes espaços, com diversos objetivos e no caso específico da
capital paulista, diretamente atrelado aos conceitos de progresso, modernidade e
trabalho. (MATOS, 2007, p.71) Devido a esse marco simbólico para a cidade, a década
de 1950 foi marcada por uma intensificação do processo de transformações urbanas
iniciadas no começo do século. Não por acaso, o lema escolhido para as comemorações
do IV centenário foi: “São Paulo: a cidade que mais cresce no mundo”, que sintetiza a
perseguição do ideal de progresso e o tom ufanista que se queria imprimir à data. São
Paulo estava se abrindo à modernidade e seus moradores, mais do que nunca, estavam
se entusiasmando com o progresso capitalista. Para Matos, essa construção do moderno
está ligada, também, ao diagnóstico de um presente problemático e foi na projeção de
um futuro exemplar que as autoridades da época procuraram justificar algumas ações de
intervenção.
Entre as ações de intervenção que necessitavam ser justificadas para que a
população pudesse comemorar tranquilamente o IV Centenário da capital bandeirante
livre do contato com práticas e sociabilidades consideradas nocivas e degradantes, uma,
em especial, era questão de honra para o governo paulistano: a extinção da zona de
meretrício do Bom Retiro. Criada na década de 1940, por decreto do então governador
Adhemar de Barros, ficava confinada para além das linhas dos trens, nas ruas Itaibocas
e Aimorés, no Bairro do Bom Retiro. O aparelho policial via na forma confinada de
meretrício uma série de vantagens, entre as quais a possibilidade de um melhor
policiamento e higienização, além de expor menos as “boas famílias” forçadas a
transitar pela parte boêmia da cidade. (FONSECA, 1982, p.108)
No entanto, depois de alguns anos, setores da sociedade e da imprensa
começaram a cobrar do governo uma atitude em relação àquele “antro” que se
localizava no coração da metrópole. Essa demanda foi concretizada em dezembro de
1953, quando o então governador Lucas Nogueira Garcez publicou um decreto
colocando fim às atividades da Zona de Meretrício. As intenções do governador e da
Secretaria de Segurança, entretanto, não eram somente acabar com a prostituição
localizada no Bom Retiro, mas antes, por um fim definitivo à atividade da prostituição
na cidade de São Paulo.
Como já podemos supor, não foi bem-sucedida a intenção de extirpar
definitivamente, do solo da capital paulista, a prostituição e outras práticas que se
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desenvolvem em seu entorno. Com a proibição da Zona, as mulheres, sem ter de onde
tirar o seu sustento, migraram para as imediações do Bom Retiro, passando a
desenvolver suas atividades de forma ilegal nas ruas do bairro de Campos Elíseos,
potencializando, assim, a prática do chamado trottoir, atraindo para essas imediações
todas as atividades e sociabilidades que geralmente se desenvolvem em torno da
prostituição.
A historiadora Margareth Rago afirma que a atividade da prostituição
desempenha certo papel positivo na economia dos afetos em uma sociedade, sendo
praticamente impossível domar completamente a inclinação para o que chama de
“forças dionisíacas,” que correspondem ao universo do prazer e do lúdico atuantes em
seu interior. (RAGO, ano, p.12). Ao tentar reprimir essas forças, corre-se o risco de
deixar emergir o lado violento e recalcado da sociedade. Sobre essa tentativa de frear o
dionisíaco da alma humana, o lado noturno da vida, o historiador Tony Hara diz:
Seja por sabedoria imitadora ou por estupidez desesperada, os homens
tentaram construir também as suas muralhas e domesticar as forças do
mal. Ergueram-se assim, os muros do Estado, da Pátria, da família,
das escolas, dos conventos, dos hospitais psiquiátricos, das fábricas,
da identidade. Os homens construíram todas essas máquinas para
barrar as forças malditas que fazem parte do cotidiano de nossa
existência. É evidente que todo esse trabalho de esquadrinhamento
social não teve o resultado esperado, mas a consequência desses
esforços de domesticação da noite, ainda podemos sentir no tempo
atual, nesse exato instante que passa. (HARA, 2004, p.26).
A Boca do Lixo surge como refluxo causado pela ação do aparelho repressivo,
que na tentativa de extirpar as práticas “sujas” do seio da capital paulista, acabou por
espalhar essas atividades pela região central. De outra forma, o local, também, surge
como objeto forjado nas páginas dos jornais, através de um tipo de jornalismo
sensacionalista veiculado nas seções da reportagem policial que cunhou o nome do local
como “Boca do Lixo”. Pelo fato das atividades ilícitas terem se concentrado no entorno
de ruas que formavam uma espécie de quadrado, a crônica policial também se referia à
Boca como o “Quadrilátero do Pecado”. Esses termos eram usados para estigmatizar
essa área enquanto lugar onde se concentravam os piores sujeitos da cidade, onde a
legalidade e as convenções morais eram constantemente desafiadas: “seres comparáveis
aos restos, à sujeira e aos dejetos produzidos cotidianamente na cidade.”, conforme
observa a historiadora Angela Aparecida Teles.(TELES, 2012, p.50).
Faz parte da linguagem utilizada pela reportagem policial o uso exagerado de
palavras chave, ou “chavão”, para se referir a objetos, sujeitos, espaços ou temas
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uma instituição, comunidade profissional ou uma disciplina e que vai muito além de sua
própria fala. (BARROS, 2010, p.21).
A forma como essa diversidade de vozes e sujeitos é organizada e distribuída no
interior dos jornais lembra o que Michel Foucault chamou de “procedimentos internos”
de interdição do discurso, que submete o acontecimento e o acaso do discurso a uma
ordem, no caso do jornal, a sua “política editorial”, que tem relação direta com seus
interesses no jogo de poder da sociedade. Diz ele: “são procedimentos que funcionam,
sobretudo, a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição [...].”
Foucault elenca três categorias internas de interdição do discurso, as quais tentaremos
resumir conceitualmente. A categoria do “comentário” é o procedimento que permite
que seja dito algo além do texto, desde que o texto mesmo seja dito. Sobre isso temos
no jornal a seção de “cartas” ou, no jargão jornalístico mais moderno, o “Painel do
leitor”, espaço onde os leitores comentam sobre o texto. O segundo princípio, o de
“autor”, não deve ser entendido apenas como o indivíduo que produz um texto ou
pronuncia um discurso, mas um também “princípio de agrupamento do discurso, como
unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência.”, é o caso, por
exemplo, dos sujeitos que escrevem um artigo no jornal representando determinadas
instituições, para além de sua fala pessoal. E, por último, a “disciplina”, que seria,
grosso modo: um conjunto de métodos, de domínios de objetos ou corpus de
preposições consideradas verdadeiras. Não obstante, no jornal, quando se trata de falar
sobre saúde, chama-se um médico; sobre criminalidade, um criminalista, advogado;
sobre distribuição de renda, um sociólogo ou economista; e, em datas comemorativas,
um historiador. Foucault propõe uma análise do discurso enquanto prática instituinte, ou
seja, criadora de acontecimentos, imagens e comportamentos, levando-nos a perceber
nosso objeto de estudo como um efeito de construções discursivas. (FOUCAULT, 1996,
p. 26)
2.1 Um faroeste sobre o Terceiro Mundo ou toda notícia que couber a gente
publica4
4
O título dessa seção é uma alusão e colagem de trecho retirado do filme O Banido da Luz Vermelha de
Rogério Sganzerla e do artigo Jornalismo: toda notícia que couber a gente publica de Robert
Darnton; IN: O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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Essa tendência de abusar dos estereótipos, apontada por Darnton, faz com que os
repórteres policiais optem por uma redução da linguagem utilizada, pelo fato de se
propor escrever enquanto “jornalismo popular”, como se o seu público leitor fosse
formado por crianças, “o povo essa grande criança”, ironiza o historiador. Segundo ele,
é por causa dessa escolha estética que se forma o “caráter sentimental, moralista, com
ares de superioridade, do jornalismo popular”. (DARTON, op.cit., p. 91)
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segundo o jornal, acaba por incentivar a entrada de mais e mais pessoas na vida dos
delitos e do pecado, ofendendo assim, a moral e os bons costumes da população
paulistana. O impresso, que se apresentava como “jornal-magazine”, era publicado
mensalmente. Podemos notar em três editoriais diferentes, a preocupação com a
chamada “imprensa marrom”; nesses editoriais, o jornal se valia do auxílio de outros
saberes, a medicina e a criminologia, por exemplo, para sustentar sua tese de que a
reportagem policial era um mal a ser combatido e extirpado. Também, pode-se observar
a tentativa de mobilizar diversas instituições da sociedade para sua causa, como se
percebe em constantes apelos ao clero, a polícia e aos políticos. Na edição de janeiro de
1962, o jornal publicara editorial com o título “O noticiário criminoso e dissolvente”; o
uso do adjetivo “dissolvente” já deixa claro a posição contrária do jornal à forma de
narrativa veiculada nas seções dedicadas à reportagem policial dos outros jornais; e
mais, afirmava que as mesmas atuavam no sentido de atacar determinados valores caros
para a visão de mundo de A Capital, nesse sentido o editor prossegue:
Afinal, “água mole em pedra dura…”, aqui está uma das
manifestações mais merecedora de acatamento e gratidão: o presidente
do Conselho Regional de Medicina do Estado de S. Paulo, prof.
Flaminio Favero, apresentou-lhe a proposta que estudada em plenário
em sua 205ª reunião, em 14 de março, foi POR UNANIMIDADE
APROVADO, e deliberado transmitir a todos os jornais de São Paulo
e autoridades competentes.
Essa proposta refere-se ao noticiário policial, e, sendo esta folha a
única que, na imprensa nacional tem movimentado uma persistente
campanha contra tal sistema de noticiário sensacional é com a maior
satisfação que transcrevemos o texto integral do protesto, hipotecando
– lhe integral solidariedade (A Capital, janeiro de 1962. p.1).
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Ramão Gomes Portão era formado em Direito, mas atuou como editor de polícia do famoso jornal
Notícias Populares durante 20 anos e conhece bem os melindres da feitura desse tipo de reportagem.
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muitos casos, pelos manuais de redação dos jornais; eles cumprem uma função de
sobrepor a descrição dos fatos, o que dá aos títulos das reportagens uma materialidade
própria, como diz Tognolli:
No caso de um crime já disponho de todas as aberturas de matérias
possíveis realizadas pelo jornalismo policial. No caso de economia
tenho todo um componente técnico e reprodutível da linguagem a meu
serviço; os candidatos que “não alçam voo”, os partidos que “não
aquecem as turbinas” [...] para descrever a briga entre dois políticos,
me basta adotar todo o referencial da linguagem bélica: os “flancos
expostos”, os “pelotões de fuzilamento” e o “entrincheiramento” de
políticos num determinado partido.”(TOGNOLLI, ano, p.161)
AUTOR
Graduado em História pela UNEB - Universidade do Estado da Bahia (2010). Mestre
em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2015) e Doutorando em
História pela mesma instituição. Atualmente dedica-se à pesquisa em História Cultural,
nas seguintes áreas de interesse: história dos marginais, urbanidade, heterotopias, escrita
de si e estética da existência.
REFERÊNCIAS
Filmes:
SGANZERLA, Rogério; O Bandido da Luz Vermelha. Vídeo Interamericana, 1968.
Jornais:
A Platéia – 1940
A Capital – 1962
Diário da Noite – 1951/1963
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Bibliografia:
BARROS, José D’Assunção. Fontes Históricas – um caminho percorrido e perspectivas
sobre os novos tempos. In: Revista Alburquerque. Vol.3, n.1, 2010.
BENATTE, Antônio Paulo. O centro e as margens: boemia e prostituição na “capital
mundial do café”(Londrina 1930-1970). Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná, 1996.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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Artigos e ensaios
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mostra ao espectador como um corpo autônomo, a exemplo da cena em que Angela está
na praia fumando um charuto (elemento fálico que irá lhe acompanhar ao longo de todo
o filme) e ajusta a camisa molhada e transparente no corpo, com o intuito de valorizar e
evidenciar os mamilos aparentes. Nesta cena Angela é dona do próprio corpo, está em
busca de diversão e prazer.
Não é possível separar a aparência física de Helena da composição física da
personagem. Angela Carne e Osso é em certo sentido a própria Helena Ignez. A
atriz/autora é conduzida por uma narrativa cômica que se utiliza dos exageros, dos
excessos, do absurdo e do cafona como elementos de composição estética e cênica para
dar corpo e voz a uma mulher única. A poética do corpo e da voz brota dos extremos. O
corpo que agride, o corpo que sente e dá prazer, um corpo ambíguo e material.
A personagem caracteriza diferentes mulheres para diferentes homens, porém
sempre em posição de domínio. A atriz faz uso de diversos figurinos, o que contribui
para essa demarcação de personalidades. O corpo de Angela Carne e Osso veste
símbolos codificados como bota de cowboy, vestidos curtos, mas também se veste com
roupas masculinas, vestindo camisa de manga comprida, gravata , chapéu e calça
comprida, masculinizando a personagem nas cenas em que desempenha ações atribuídas
somente aos homens na época, como dirigir um carro , dar carona para um homem na
estrada, se relacionar com outra mulher ou pilotar uma moto. O diretor se apropria de
elementos e símbolos de poder do universo masculino (como o charuto, por exemplo)
para garantir a Angela Carne e Osso um patamar de igualdade com os homens.
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No caso do filme A Mulher de Todos, temos, além dos olhares masculinos, dois
olhares femininos: o da atriz para o marido/diretor/ público, e a possibilidade do olhar
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AUTORA
* Tatiana Trad é Mestra em Cultura e Sociedade pela UFBA e integrante do grupo de
pesquisa em Gênero, Cultura e Mídia “MIRADAS” / UFBA, coord. Pela Profa. Dra.
Linda Rubim.
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NOTAS
[1]
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Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Fd9u_bJ9XHY> Acesso em 17/04/2015
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Artigos e ensaios
INTRODUÇÃO
Vivemos em um contexto no qual está dado por certo que os aspectos
econômicos são determinantes do contexto sociopolítico em que vivemos. Os discursos
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Em decorrência,
Pouca ou nenhuma atenção foi dada às consequências, no plano
cultural, de um crescimento exponencial do stock de capital. As
grandes metrópoles modernas com seu ar irrespirável, crescente
criminalidade, deterioração dos serviços públicos, fuga da juventude
na anticultura, surgiram como um pesadelo no sonho de progresso
linear em que se embalavam os teóricos do crescimento. Menos
atenção ainda se havia dado ao impacto no meio físico de um sistema
de decisões cujos objetivos últimos são satisfazer interesses privados.
(FURTADO, 1974, p. 14)
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O NOVO E A REPETIÇÃO
Empreender uma analise das práticas discursivas predominantes em termos de
defesa do predomínio econômico na atualidade, em escala nacional, levaria a um estudo
que considerasse, por um lado, uma leitura do processo de enfraquecimento econômico
provocado externamente pela queda do valor das commodities no mercado
internacional; por outro, do processo de crise e oportunismo político em parte
provocado pelo desequilíbrio da balança comercial brasileira. O que infelizmente, por
questões de extensão do texto, foge ao alcance do trabalho.
Entretanto, é necessário salientar que Celso Furtado foi reconhecido e serviu de
inspiração aos últimos governos em escala nacional. Bresser-Pereira (2006) reconheceu
a influência da prática discursiva de Furtado em suas ideias. Cabe destacar que Bresser-
Pereira, mesmo tendo sido Ministro de Estado no governo FHC, por um lado,
argumentou que divergia das ideias do ex-presidente no que se refere à importância do
planejamento governamental; por outro, como um dos principais idealizadores da
formação discursiva ligada ao neo-desenvolvimentismo, influenciou fortemente as
práticas discursivas nos governos Lula e Dilma (MERCADANTE, 2010). É interessante
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lembrar que o livro escrito por Aloísio Mercadante (Ministro de Estado nos governos
petistas) e publicado em 2010 tem em seu título (Brasil: uma construção retomada) uma
referência a um dos últimos textos de Furtado (Brasil: a construção interrompida).
Mercadante (2010), na introdução de seu livro, pressupõe uma retomada da prática
discursiva de Celso Furtado.
No que se refere às aproximações com as ideias de Furtado é necessário
salientar que os governos petistas incentivaram práticas em defesa do mercado interno,
como foi por exemplo a política de conteúdo local (PROMINP, 2017) que define um
percentual mínimo de equipamentos e insumos de fabricação nacional com vistas ao
incentivo da competitividade da indústria nacional ligada à extração e transporte de
petróleo, assim como investiu em políticas sociais que melhoraram os indicadores de
qualidade de vida (IPEA, 2011). Entretanto, a ênfase sempre se manteve no aspecto
econômico como dispositivo através do qual seriam alcançadas melhores condições para
os produtos brasileiros competirem no mercado internacional sob a justificativa de que a
disponibilidade financeira determina a capacidade de investimento na esfera social
(ROUSSEFF, 2011). Pouca atenção foi dada ou mesmo foram negadas as
consequências deste processo de associação ao mercado internacional como
argumentado por Furtado (1974).
A negação e inversão – já que o crescimento econômico é posicionado como
única alternativa para melhorar as condições de vida da população em médio e longo
prazo – das consequências da estratégia econômica criou as condições para que em um
momento de crise houvesse um aprofundamento da lógica economicista que propõe o
ajuste estrutural. Estavam abertos os caminhos para o fortalecimento da formação
discursiva direcionada ao crescimento econômico.
O direcionamento dado pelo governo nacional, principalmente a partir do
impeachment ocorrido em agosto de 2016, remete para o mercado as esperanças por
melhores condições de vida à população em geral, primordialmente, por meio dos
investimentos privados incentivados em algumas das políticas. Como, por exemplo, na
definição de novas regras que reduzem o percentual de conteúdo local para a indústria
de petróleo e gás, sob a justificativa de aumento da eficiência da indústria nacional
(Agencia Brasil, 2017).
Neste último caso, as alterações nas regras governamentais são justificadas por
uma prática discursiva que coloca em primeiro plano o custo de produção dos
equipamentos e insumos para a extração de produtos petrolíferos em comparação com o
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prática discursiva predominantemente disseminada em escala nacional
coloca ênfase no aspecto econômico como suporte às políticas de cunho social.
Entretanto, o que realmente está em pauta é a adequação da estrutura socioeconômica
nacional às demandas do mercado global.
É curioso olhar para este contexto e perceber que o denominado “ajuste
estrutural” ganha conotação de prática discursiva em defesa dos interesses da população
como um todo. Entretanto, o que se constata com maior frequência é um
entrecruzamento de formações discursivas em disputa. Conflito que não é claramente
percebido por quem se utiliza exclusivamente dos meios de comunicação de massa mais
acessíveis, nos quais predomina a participação de técnicos governamentais que são
escolhidos para suas funções, em muitos casos, pela própria identificação com as
propostas vigentes.
Práticas discursivas que põem em questão a lógica predominante são
frequentemente desqualificadas como provocadoras de estagnação e, consequentemente,
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AUTOR
* Rogério Faé é professor Adjunto na Escola de Administração / Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Doutor em Administração pelo PPGA/EA/UFRGS e Pós-
Doutorado pela Essex University - UK (Ênfase em Economia Política). Email:
rogerio.fae@ufrgs.br.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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Artigos e ensaios
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1
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é comentar as reflexões contidas na obra tardia de Michel
Foucault acerca de temas como subjetividade e modo de subjetivação, servindo-se para
tal de um texto menor, qual seja, A escrita de si, como um “mapa” onde o leitor toma
conhecimento dos novos contornos tomados pela pesquisa do autor e do rumo que essa
inflexão dos temas da modernidade (saber/poder) para a antiguidade greco-
romana. Esse é um texto menor. Figura entre outros textos produzidos por Foucault nos
anos oitenta na esteira das suas pesquisas acerca da história da sexualidade por
intermédio dos ditos jogos de verdade através dos quais o ser humano se reconheceu
como “homem de desejo”, conforme Jean-François Pradeau, “as regras de conduta às
quais os antigos buscavam submeter suas práticas sexuais e os discursos com os quais
eles demandavam uma compreensão, um entendimento dessas práticas[2]”. A escrita de
si segundo o método arqueológico-genealógico é um modo de subjetivação que,
enquanto uma forma de tecnologia de si, interessa Foucault nesse momento[3].
Acreditamos que as grandes escolhas se iniciam por pequenas e esclarecidas fontes
escolhidas, aqui e ali, e pensamos demonstrar a importância deste texto – publicado pela
primeira vez na revista Corps Écrit[4] – cujas páginas saem desta pesquisa cujo lema “é
preciso dizer a verdade sobre si mesmo”[5], concede mais fomento para o curso que
aborda temas relacionados com a cultura do cuidado de si[6] na antiguidade e no início
da nossa era em função da noção (nomeada pelo autor francês) de estética da
existência[7]. Dito ainda de outro jeito, mas sem sair da cartografia proposta por ele, de
como as práticas de si – do jogo entre o conhecer e o cuidar – expressam na forma da
escrita de si uma resolução estética e ética enquanto um poder “subjetivador” que a
escrita representa.
A escrita de si foi publicada em fevereiro de 1983 (portanto um ano e cinco
meses antes de sua morte) junto com outros cinco artigos que compõem a produção do
autor no hiato que sucedeu ao lançamento de A vontade de saber (1976), e que, segundo
o autor, faz “parte de uma série de estudos sobre as ‘artes de si mesmo’, isto é, sobre a
estética da existência e o governo de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois
primeiros séculos do Império” [8]. É sabido que a obra que aqui tratamos é o resultado
de um arriscado [9] deslocamento teórico feito rumo à antiguidade, e cuja alusão aqui
tem um significado igualmente arriscado[10]. Aliás, com efeito, o risco é a condição de
todo empreendimento filosófico, diria Foucault no prefácio de O uso dos prazeres, obra
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2
A ESCRITA DE SI: HYPOMNEMATA
A leitura produz no leitor um movimento, em sua alma, que pode ser utilizado
tal qual uma “ferramenta” para auxilio na sua disposição de vida. Fazer coleta de
fragmentos dos textos lidos sugere algo de peculiar, i. e; com a coleta de citações,
“reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à memória” se forma
um conjunto de elementos componentes de uma “memória material das coisas ouvidas
ou pensadas” que um “público cultivado” chamará “livro de vida” ou “guia de
conduta”: o hypomnemata.
Assim, conforme o Vocabulário de Foucault[16] define o caderno de notas
grego, hypomnemata, tem por característica estar á mão, tal qual uma ferramenta,
conforme já dito acima, para qualquer das vicissitudes da vida que se apresente tais
como “um luto, um exílio, uma ruína, a desgraça” de um lado; e de outro, combater
“este ou aquele defeito como cólera, a inveja, a tagarelice, a bajulação” dentre outras
formas de vícios constantes na condição humana. Foucault afirma,
Não haverá que considerar esses hypomnémata como um simples
suporte de memória, que poderia consultar a cada tanto, caso se
apresentasse a ocasião. Eles estão destinados a substituir a recordação
eventualmente débil. Eles constituem, antes, um material e um quadro
para os exercícios a realizar frequentemente: ler, reler, meditar,
conversar consigo mesmo e com os outros etc. Trata-se de constituir
um logos boéthikos; um equipamento de discursos que servem de
ajuda, suscetíveis, como diz Plutarco, de levantar eles mesmos a voz e
de fazer calar as paixões, como um amo que com uma palavra aplaca
o latido dos cães (FOUCAULT, 2009, p. 221).
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A reflexão de Foucault demonstra como a práxis dos filósofos não era regida
por qualquer forma de breviário[19] (catálogo dos exercícios a serem realizados em
cada momento da vida), e sim, por técnicas (tékhne) cujo sentido era expressar uma vida
bela, exemplar. Há, contudo a distinção entre dois termos, quais
sejam, melete e gymnázein que em alguns filósofos estão separados e noutros seguem
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O termo Meléte citado acima compõe o que chamaremos aqui, para favorecer
didaticamente o entendimento, um binômio, qual seja meléte/gymnázein. Sendo que o
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outro termo, gymnázein, evoca a relação existente entre o exercício na forma intelectual,
exercício de adestramento do pensamento como prática de si, e o exercício ginástico
determinado (leitura, escrita) que é, também, da ordem de um adestramento do corpo.
O hypomnemata é um exercício de adestramento na forma da compilação. Vejamos o
que Foucault nos diz acerca do segundo termo do binômio.
Gymnázein (...) indica o fato de se fazer ginástica para si mesmo,
significa propriamente “exercitar-se”, “treinar-se” e que, parece-me,
reportar-se mais a uma prática em situação real. Gymnázein é estar
efetivamente em presença de uma situação, situação que é real, quer
se tenha artificialmente provocado e organizado, quer se a depare na
vida, e na qual se põe à prova aquilo que se faz. Esta distinção
entre meletán e gymnázein é ao mesmo tempo clara e bastante incerta.
Incerta porque há vários textos nos quais manifestamente não existe
diferença entre os dois termos, como em Plutarco, por exemplo, que
empregameletân/gymnázein quase que um pelo outro, sem diferença.
Em outros textos ao contrário, é muito claro que a diferença existe.
Em Epicteto temos pelo menos duas vezes a
série meletân/gráphein/gymnázein. Assim, meletân é meditar, é, se
quisermos, exercitar-se em pensamento. Pensamos em coisas,
pensamos em princípios, refletimos sobre eles, preparamo-nos pelo
pensamento. Gráphein é escrevê-los (portanto, pensamos em algo e o
escrevemos). (ibid, ibidem. P. 515/6)
Existe uma sutil distinção dos termos do binômio, mas nada que não
corroborasse a ideia de que o exercício do pensamento para o filósofo está numa ordem
de relação e equivalência ao do trabalho sobre o corpo na prática do exercício ginástico
e que a grafia é a terceira via, terceira forma de trabalho sobre si que caracteriza
a askesis[20] filosófica.
A redação dos hypomnemata, segundo Foucault segue um ordenamento de
acordo com três princípios fundamentais, quais sejam:
1. “A pratica de si implica leitura, pois não é possível tudo tirar do
fundo de si próprio nem armar-se por si só com os princípios da razão
indispensáveis à conduta: guia ou exemplo, o auxílio dos outros é necessário”.
2. “Embora permita contrariar a dispersão da stultitia[21], a escrita
dos hypomnemata é também (e assim deve permanecer) uma prática regrada e
voluntária da disparidade”.
3. “O contraste desejado não exclui a unificação. Esta, porem, não se
realiza na arte de compor um conjunto; deve estabelecer-se no próprio escritor,
como resultado doshypomnemata, da sua constituição (e portanto no próprio
gesto de escrever), da sua consulta (e portanto nas respectivas leituras e
releituras)”.
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Esse exercício, essa ginástica do pensamento, por fim, culmina num formato de
escrita, o caderno de notas, regido por dois princípios: “a verdade local da máxima” e “o
seu valor circunstancial de uso”. Os três princípios acima aliados a essas duas regras
vão originar um corpo correspondente, conforme diz Foucault,
“o papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um
“corpo” (quicquid lectione collectum est, stills redigat in corpus). E,
este corpo, há que entendê-lo não como um corpo de doutrina, mas
sim – de acordo com a metáfora tantas vezes evocada da digestão –
como o próprio corpo daquele que, ao transcrever as usas leituras, se
apossou delas e fez sua a respectiva verdade: a escrita transforma a
coisa vista ou ouvida “em forças de sangue” (in vires, in sanguinem).
Ela transforma-se, no próprio escritor, num princípio de ação
racional” (FOUCAULT, 2009, p.143)
Escrever tem um caráter de subjetivação conquanto seja esta escrita algo que se
insurja enquanto um “protocolo de experimentação”. Como diz Deleuze, em crítica e
clinica, “são acontecimentos na fronteira da linguagem. Porém, quando o delírio recai
no estado clínico, as palavras em nada mais desembocam, já não se ouve nem se vê
coisa alguma através dela, exceto uma noite que perdeu sua história, suas cores e seus
cantos. A literatura é uma saúde” (DELEUZE, 2011, p. 143).
3
A ESCRITA DE SI: A CORRESPONDÊNCIA ESCRITA/CUIDADO
A correspondência é uma via de “mão dupla”, vai para o destinatário
carregando “em forças e em sangue” palavras de zelo e de estímulo ao cuidado de si,
mas, não sem antes voltar-se para o remetente fazendo-o, no gesto da escrita, escutar-se
a si mesmo. Como diz Foucault, “a carta que se envia age, por meio do próprio gesto da
escrita, sobre aquele que a envia, assim como, pela leitura e releitura, age sobre aquele
que a recebe. Nessa dupla função a correspondência está bem próxima
dos hypomnemata, e sua forma muitas vezes se assemelha a eles” (FOUCAULT, 2004,
p. 153).
As cartas que Sêneca envia para seus correspondentes funcionam, por um lado
como exercício de uma escrita de si, portanto como cuidado de si, e, por outro, como
uma direção – que no caso de um Sêneca já idoso e retirado de suas funções públicas – é
exercida enquanto auxílio ao discípulo que, esse sim, exercendo função pública, é
requerente de uma demanda do velho mestre. É, portanto, pra falar nos termos de
Plutarco, a função ethopoiética (no dito de Sêneca, “ofícios recíprocos. Quem ensina se
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Escrever, com efeito, é “fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro”, e,
nesse sentido, de novo se apresenta a “mão dupla” na via expressa do “dito” que oferece
ao destinatário um “olhar omnipresente” sobre ele que é, igualmente, “uma maneira de
se oferecer”, a si mesmo que escreveu, “ao seu olhar através do que é dito sobre si
mesmo” um autorretrato. Se instala uma ação de reciprocidade naquele que escreve,
bem como naquele que lê, que é da ordem de um exercício (eis aí, de novo, o
supracitado binômio melete/gymnázein agora transformado no trinômio com a junção
do graphein) que “trabalha para a subjetivação do discurso verdadeiro, para sua
assimilação e elaboração como “bem próprio”, constitui assim, ao mesmo tempo, uma
objetivação da alma”. O preceito estoico suscitado por Sêneca nas epistolas a Lucilius
sempre é uma constante, ele diz que “devemos pautar nossa vida como se todo mundo a
olhasse”. Poderíamos ilustrar esta passagem com uma aproximação ao imperativo
categórico kantiano. Diz Foucault:
O trabalho que a carta opera no destinatário, mas que também é
efetuado naquele que escreve pela própria carta que ele envia, implica
portanto uma “introspecção”; mas é preciso compreendê-la menos
como um deciframento de si por si mesmo do que como uma abertura
que se dá ao outro sobre si mesmo. Não resta a menor dúvida de que
estamos diante de um fenômeno que pode parecer pouco
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4
CONCLUSÃO
Michel Foucault percebeu na forma como o público cultivado da antiguidade
se relacionava com a escrita enquanto sendo uma forma de subjetivação deveras
diferente da modernidade; havia uma intenção de dispor desta escrita como uma
ferramenta para agir sobre si mesmo de forma ética. Já havia visto nos exemplos de
figuras da literatura – nomes como Raymond Roussel, Blanchot, Kafka, Bataille, para
citar apenas alguns – como a escrita estabelece uma relação de subjetivação absoluta,
isto é, como, para usar uma formula de Nietzsche, se tornar o que se é. Esse é o sentido
da escrita como cuidado de si, tornar-se o que se é na medida em que se escreve com
sangue, palavras essenciais para conferir ao existir uma forma apropriadamente estética,
ou, dito de outra forma, como uma estética da existência. O próprio Foucault, diz
Ortega, se utilizou dessa forma de escrita, quando:
a situação existencial, que foi sempre para Foucault origem e causa de
cada um de seus livros, volta-se agora contra ele, pois observa-se,
precisamente em seus últimos livros, uma espécie de Philosophiae
consolatio, uma tentativa de fazer uma bela obra de uma vida
ameaçada pela presença constante da morte pela AIDS – em
concordância com a filosofia antiga, o que representa uma atualização
do estoicismo. (ORTEGA, 1999, p.23).
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Por fim, a coerência desse autor com a sua escrita sempre foi a marca presente
na forma como atuou enquanto intelectual engajado nas causas em que acreditou,
independente da história demonstrar que ele estava certo ou não[22]. No seu trabalho,
pode-se ouvir sub-repticiamente uma contraposição ao dito: “faça o que eu digo, não
faça o que eu faço”, com outro, mais afeito à estilística da existência, que diz: “faça o
que eu digo, faça como eu faço”.
AUTOR
* Roberto Kennedy de Lemos Bastos é licenciado em Filosofia pela UFBA, professor no
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 2011.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Ed. Veja, 2009.
_____. Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
_____. O Governo de si e dos Outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_____. A Coragem da Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
_____. História da sexualidade vol. II O uso dos Prazeres. Rio de Janeiro: Ed. Graal,
2001.
_____. História da sexualidade vol. III O cuidado de si. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2007.
_____. Ética, Sexualidade, Política. Col. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004.
GROSS, Frédéric. Foucault a coragem da verdade. São Paulo: Parábola editorial, 2004.
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: É Realizações
editora, 2014.
ORTEGA, Francisco. Amizade e Estética da Existência em Foucault. Rio de Janeiro:
Ed. Graal, 1999.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os Gregos. Rio de janeiro: Paz e
Terra, 2002.
VEYNE, Paul. Foucault seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
NOTAS
[1] Artigo apresentado ao curso de Pós-graduação lato sensu em Filosofia Contemporânea, da Faculdade
São Bento da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Filosofia
Contemporânea, sob a orientação do Professor Gabrielle Grossi.
[2] Ver: PRADEAU, J-F. O Sujeito antigo de uma ética moderna: acerca dos exercícios espirituais na
História da Sexualidade de Michel Foucault. In: GROSS, F. Foucault a coragem da verdade. São Paulo:
Parábola Editora, 2004. P. 131/ 153.
[3] A recepção da obra de Foucault convencionou dividir a démarche em três momentos que
corresponderiam ao objeto de investigação: arqueologia do saber, os saberes; a genealogia do poder, os
poderes disciplinares instaurados a partir dos saberes; e, finalmente, uma terceira via a estética da
existência cuja série de pesquisas corresponderia à fase final, tornando-se assim os três pilares do método.
A via arqueológica (saber); a genealógica (poder) e a via estética (sujeito). A esse respeito, conferir os
cursos de 82,83 e 84, respectivamente, A hermenêutica do Sujeito, O governo de si e dos outros, e, A
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Coragem da Verdade (O governo de si e dos outros II). Todos se encontram publicados em língua
portuguesa (vide referência bibliográfica deste artigo).
[4] Posteriormente, após sua morte, reuniram-se artigos, entrevistas, ensaios, em dois volumes chamados
‘ditos e escritos’. No Brasil encontra-se publicados em diversos volumes.
[5] A fala franca (parresía), que Foucault dedicará seus últimos cursos no Collègè de France, seria a
forma oposta à verdade epistemológica consubstanciada na “analítica” dos saberes aduzido do homem,
trata-se de uma espécie de “imperativo” que instaura no ser o ardor da obrigatoriedade moral da ação
refletir o belo. Estaria, com efeito, a fala franca relacionada com uma virtude cardeal, isto é, a coragem
(andreia), que lhe aufere uma beleza ethopoiética.
“Podemos citar, em apoio e ilustração dessa importância na cultura antiga, práticas tão frequentemente,
tão constantemente, tão continuamente recomendadas [como] o exame de consciência prescrito pelos
pitagóricos ou estoicos, de que Sêneca deu exemplos tão desenvolvidos e que voltamos a encontrar em
Marco Aurélio”. (FOUCAULT: 2011, pg. 5)
[6] “Esse princípio – creio ter tentado apresenta-lo no curso dado a dois anos [A Hermenêutica do
Sujeito] – é o da epiméleia Heautoû (do cuidado de si, da aplicação a si mesmo). Esse preceito tão
arcaico, tão antigo da cultura grega e romana, e que encontramos regularmente associado, nos textos
platônico e [mais] precisamente nos diálogos socráticos, ao gnôthi seautón, esse princípio (sautoû
epimelê: ocupa-te de ti mesmo) deu lugar, creio, ao desenvolvimento do que poderíamos chamar de
“cultura de si”, uma cultura de si na qual se vê formular, se desenvolver, se transmitir, se elaborar todo
um jogo de práticas de si”. (FOUCAULT: 2011, pg. 6)
“essas espécies de diários que recomendavam que as pessoas escrevessem sobre si mesmas, seja para
coligir e meditar as experiências tidas ou as leituras feitas, seja também para contar a si mesmo, ao
despertar, [seus] sonhos” (FOUCAULT: 2011, pg. 5).
[7] Foucault na última fase do seu trabalho, interrompido prematuramente pela sua morte, cunhou esse
noção, tal diz Castro em seu vocabulário de Foucault, que, “por estética da existência, há de se entender
uma maneira de viver em que o valor moral não provém da conformidade com um código de
comportamentos, nem de um trabalho de purificação, mas de certos princípios formais gerais no uso dos
prazeres, na distribuição que se faz deles, nos limites que se observa, na hierarquia que se respeita. A
estética da existência é uma arte, reflexo de uma liberdade percebida como jogo de poder. Nesse sentido,
haveria que caracterizar o modo de sujeição da moral grega dos aphrodisianão só como estético-político.
A problemática da liberdade, entendida como não escravidão, encontra-se no coração dessa ética: não ser
escravo dos outros, não ser escravo de si mesmo ou, em termos positivos, governo dos outros e governo
de si mesmo” (CASTRO, 2009, p. 150/1).
[8] Foucault, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Nova Vega, 2009. p. 129.
[9] O risco segundo Foucault era o de “retardar e desorganizar o programa de publicações previsto”; além
disso, abordando textos e documentos de autores de um período distante do seu horizonte de investigação
usual e, não sendo nem latinista nem helenista, podendo incorrer no equívoco de, conforme o diz,
“submetê-los sem me dar conta, a formas de análise ou a modos de questionamento que, vindos de outros
lugares, não lhe convinham”. Equívoco que, segundo Pierre Hadot, Foucault comete quando da sua
análise acerca do comportamento ético dos estóicos. Para esclarecimentos sobre esse ponto, ver HADOT,
Pierre. Reflection about the notion of care of the self. In: The Cambridge companion to Foucault, ed. Gary
Gutting. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
[10] O risco de toda hipótese é não ter bases suficientes para dar consistência à mesma, contudo, fazemos
coro com Foucault, “para quem esforçar-se, começar e recomeçar, experimentar, enganar-se, retomar de
cima a baixo e ainda encontrar meios de hesitar a cada passo, àqueles para quem, em suma, trabalhar
mantendo-se em reserva e inquietação equivale a demissão, pois bem, é evidente que não somos do
mesmo planeta” (FOUCAULT, 2001, p. 12), e mais, como ele mesmo disse na sua última entrevista ao
Le Monde, em junho de 1984, concedida a A. Fontana: “para alguns, escrever um livro sempre implica
correr algum risco. Por exemplo, não conseguir escrevê-lo. Quando se sabe de antemão onde se quer
chegar, falta a dimensão da experiência, a que consiste em escrever um livro correndo o risco de não
chegar ao fim” (FOUCAULT, 2004, p. 288), sempre há o risco de não conseguir terminar.
[11] Michel Foucault usa o termo ethopoiese que retira da obra do filósofo romano Plutarco autor de
biografias de indivíduos famosos no seu tempo e noutros tempo.
[12] Atanásio de Alexandria foi um bispo da Igreja Católica Apostólica Romana, depois tornado santo,
que viveu no século IV d. C, e era defensor da vida ascética. Foi o defensor da consubstanciação das Três
Pessoas Divinas na Santíssima Trindade, tal como definido no pelo Primeiro Concílio de Niceia em 325.
[13] Anachoresis no contexto da prática do cuidado de si, “significa ausentar-se do mundo no qual
alguém se encontra imerso, interromper o contato com o mundo exterior, não sentir sensações, não se
preocupar com o que se passa à nossa volta, fazer como se não se visse o que acontece” (CASTRO: 2009
pg. 30); dito em outras palavras, um retiro espiritual.
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[14] Askésis são todos os exercícios empreendidos por quem procura uma ascese espiritual. São bastante
conhecidos pela tradição monástica e a confissão é uma das que possuem mais reputada importância.
[15] O tema da cavalaria, por exemplo, remonta a uma organização de mundo conforme a ordem dos
costumes rígidos imposta numa conduta específica e característica, geralmente, monástica. Podemos, no
tocante à armadura, apresentar os significados simbólicos que organizam esse mundo. Um forte assento
na fé cristã e no salvacionismo. Não são homens comuns, mas, heróis. Lembramos que os heróis são a
representação divina no humano, são dotados de virtudes, armas contra a vicissitude humana. A espada de
Teseu, o escudo, o elmo, as pederneiras, enfim, “as roupas e armas” do divino para a realização
da hierofania, do cântico dos heróis.
[16] Uma ferramenta à mão (procheiron) é esse Vocabulário de Foucault escrito por Edgardo Castro. Um
ótimo exemplo de como funcionava o hypomnémata. Servia para a produção de tratados sobre os mais
variados temas, nesse caso, essa ferramenta serve para familiarizarmo-nos com o conjunto dos conceitos
de que Foucault se utiliza para pensar e realizar o seu diagnóstico do presente, dito de outra forma, a sua
ontologia do presente.
[17] Segundo Foucault, paraskeué “é o que se poderia chamar de preparação ao mesmo tempo aberta e
finalizada do indivíduo para os acontecimentos da vida. Quero com isso dizer que se trata, na ascese, de
preparar o indivíduo para o futuro, um futuro que é constituído de acontecimentos imprevistos,
acontecimentos cuja natureza em geral conheçamos, os quais porem não podemos saber quando se
produzirão nem mesmo se se produzirão” (FOUCAULT, 2004, p.387)
[18] E sabemos que a tradição filosófica da antiguidade nos diz que não podemos evitar acontecimentos,
contudo podemos lidar com a seleção dos encontros.
[19] Nome dado ao livro onde se encontra os textos que se destinam a cumprir uma “liturgia das horas”
para todo o momento do dia, no sentido de fazer com que os que se ordenarão na vida religiosa
(monástica ou não) cumpram suas funções sem jamais, contudo, esquecer-se de parar em meio a toda a
agitação da vida e recordar que a obra é de Deus.
[20] É sabido que o termo ascetismo deriva do termo grego askesis que quer dizer exercício.
[21] O termo significa, em algumas circunstancias tolice, parvoíce, noutras loucura e insanidade.
Contudo, aqui, a stultitia “é definida pela agitação do espírito, a instabilidade da atenção, a mudança das
opiniões e das vontades, e, consequentemente, a fragilidade perante todos os acontecimentos que possam
ter lugar” (FOUCAULT, 2009, p.139).
[22] Como no caso da simpatia do autor pelo oriente (oriunda da sua busca por uma forma de vida
alternativa ao modelo ocidental) e seu posicionamento favorável à revolução do Irã que Depois o Xá Reza
Pahlevi e ascendeu o Aiatolá Khomeine ao poder espiritual. A respeito desse assunto há o livro de Jane
Afary e Kevin B Anderson Foucault e a revolução Iraniana.
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Artigos e ensaios
RESUMO: Este texto destaca as reflexões de Michel Foucault acerca de sua história do
pensamento nos anos 1980, relacionando-a com os seus estudos genealógicos da década
anterior. Ele propõe uma nova política da verdade que permeie não somente o campo
da produção do conhecimento, mas também o da prática e o da militância política. A
aposta de Foucault é na desestabilização contínua das relações de poder. Por isso, ele
aponta para os limites das análises ligadas ao marxismo tradicional, principalmente no
que diz respeito às concepções de ideologia, dialética e ciência.
Palavras-chave: Foucault, história do pensamento, genealogia, nova política da
verdade.
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verdade não deve ser analisado por uma história do conhecimento que permitiria
determinar se ele diz o verdadeiro ou o falso. Esses discursos de verdade também não
devem ser analisados por uma história das ideologias, que perguntaria por que eles
dizem o falso em detrimento da verdade.
No início do curso, na “Aula de 05 de janeiro de 1983”, Foucault havia feito um
balanço de sua trajetória e, assim, explicitou as especificidades de sua “história do
pensamento” (FOUCAULT, 2010: 4). Nesse momento, ele diferenciou-se de dois outros
métodos muito utilizados no período, a história das mentalidades e a história das
representações, propondo um estudo diverso do que a maioria dos historiadores das
idéias praticava. De um lado, a história das mentalidades privilegia as análises dos
comportamentos efetivos, bem como as expressões que podem tanto preceder, seguir,
traduzir, prescrever, quanto justificar tais comportamentos. Foucault também destaca
essa diferença na “Introdução” de O Uso dos Prazeres, utilizando a sexualidade para
exemplificar a particularidade de uma história do pensamento:
(...) de que maneira, por que e sob que forma a atividade sexual foi
constituída como campo moral? Por que esse cuidado ético tão
insistente, apesar de variável em suas formas e em sua intensidade?
Por que essa“problematização”? E, afinal, esta é a tarefa de uma
história do pensamento por oposição à história dos comportamentos
ou das representações: definir as condições nas quais o ser
humano “problematiza” o que ele é, o mundo no qual ele
vive (FOUCAULT, 2006: 14).[1]
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de uma atitude que tivemos, através dos séculos ou em um momento dado, sobre a
loucura. Em vez disso, estudou-a como uma experiência no interior de nossa cultura,
tomando-a, primeiro, como um ponto a partir do qual se formou uma série de saberes
heterogêneos, ou seja, a loucura como matriz de conhecimentos. Além disso, entendeu-a
como uma forma de saber, uma junção de normas que a recortam como um fenômeno
de desvio no interior de uma sociedade. Finalmente, pensou a loucura como uma
experiência que define a constituição de um modo de ser do sujeito normal em relação
ao sujeito louco. A articulação entre esses três eixos, então, define o estudo
da “experiência”.[2]
Dessa maneira, sua proposta de pensamento foi construída a partir de três
deslocamentos conceituais. Primeiramente, ao estudar a formação dos saberes, ele
desloca o eixo da história do conhecimento em direção à análise dos saberes, e percebe
as práticas discursivas como formas de veridicção (FOUCAULT, 2005a). Em um
segundo momento, ao analisar as matrizes normativas de comportamento, não descreve
o Poder (com um P maiúsculo), as instituições de poder ou as formas gerais ou
institucionais de dominação, mas estuda as técnicas e os procedimentos pelos quais
conduzimos a conduta dos outros. A questão da norma do comportamento coloca-se nos
termos do poder que exercemos, e este, ainda, é analisado como um campo de
procedimentos de governo. Ele passa, assim, da análise do exercício do poder aos
procedimentos de governamentalidade, seguindo o exemplo da criminalidade e das
disciplinas (FOUCAULT, 2005b).
O terceiro eixo analisa a constituição do modo de ser do sujeito. E, aqui, o
objetivo foi escapar de uma teoria do sujeito, e analisar as diferentes formas pelas quais
o indivíduo se constitui como sujeito. A partir do exemplo do comportamento sexual e
da história da moral sexual (FOUCAULT, 2006; 2007a), Foucault tenta entender como,
e por quais formas concretas de relação consigo, o indivíduo foi chamado a se constituir
como sujeito moral de sua conduta sexual. Trata-se, assim, de operar os seguintes
deslocamentos: livrar-se da questão do sujeito e analisar as formas de subjetivação e,
além disso, estudá-las a partir das tecnologias da relação consigo, ou da pragmática de
si. Para Foucault, esses três eixos constituem uma história das “experiências”. E o
percurso seguido por seus estudos privilegiou a experiência da loucura, a da
criminalidade e a da sexualidade como fundamentais na constituição da cultura
ocidental.
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envolviam a medicina, a psiquiatria e a penalidade, mas ele nunca quis fazer uma
história geral das ciências humanas, nem uma crítica geral da possibilidade de todas as
ciências.
Entendo os estudos de Foucault sobre a loucura, a medicina, a prisão, a
sexualidade, o neoliberalismo como críticas severas ao modo da ciência moderna lidar
com a verdade, como o positivismo lógico, o marxismo, o humanismo, o estruturalismo.
Foucault não se aproxima, em nenhum desses casos, de um método científico que se
enxerga como neutro, ou dos procedimentos do materialismo histórico marxista que, no
entanto, também critica fortemente a sociedade liberal e burguesa. Devo acrescentar que
filósofos tais como G. Bachelard e G. Canguilhem, entre os anos de 1950 e 1960,
também problematizaram drasticamente essa relação entre a verdade e a produção do
conhecimento. Foucault inspirou-se bastante em suas reflexões arqueológicas quando
escreveu seus primeiros livros: As Palavras e as Coisas (FOUCAULT, 2007b), A
História da Loucura(FOUCAULT, 2005a), O Nascimento da Clínica (FOUCAULT,
1977), A Arqueologia do Saber(FOUCAULT, 2008).[5] Mas suas críticas da década de
1980, ligadas aos conceitos de governo de si e dos outros (FOUCAULT, 2010) e de
coragem da verdade (FOUCAULT, 2011b), possibilitaram uma nova relação entre a
produção de conhecimento e a verdade dentro do seu próprio pensamento.
Foucault inicia o curso Do Governo dos Vivos (FOUCAULT, 2011a) com a
descrição de Dion Cássio, um historiador do século II d.C., do exercício de poder no
governo do imperador romano Sétimo Severo. Ele começa com esse exemplo para
mostrar como manifestação de verdade e exercício de poder se relacionam não apenas
por uma necessidade utilitária ou econômica, dizendo: “Trata-se de uma manifestação
não econômica da verdade” (FOUCAULT, 2011a: 43-44), indicando como tanto o
modo científico, positivista e racional, quanto a forma marxista de se relacionar com a
verdade, que entende o exercício de poder como atrelado às relações econômicas, não
atentam para a importância dos efeitos de verdade produzidos pelas relações de poder.
A manifestação de poder de Severo, portanto, não era destinada a provar, demonstrar,
refutar, organizar um conhecimento, pois, para Foucault, o exercício de poder não
pressupõe somente um conhecimento útil e utilizável, mas uma manifestação de
verdade.
Em Subjetividade e Verdade (FOUCAULT, 2016), Foucault defende que a
verdade não é um conceito de conhecimento que podemos considerar como
universalmente válido e autorizado. Ela éum sistema de obrigação, e não um conteúdo
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Ao afirmar que nenhum poder é evidente ou inevitável e, assim, não deve ser
aceito, Foucault ainda se pergunta:
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Para esse discurso histórico-político, então, o corpo social não é comandado por
necessidades da natureza ou por exigências funcionais. Nele, devemos sempre
redescobrir a guerra, seus acasos e suas peripécias. Foucault considera esse discurso
importante para a sociedade ocidental, pois ele será o primeiro, desde a Idade Média,
que pode ser denominado, rigorosamente, de histórico-político. E por duas razões: a
primeira delas refere-se ao sujeito que produz esse discurso. Ele não procura a posição
do jurista ou do filósofo, isto é, a posição do sujeito universal, totalizador ou neutro.
Quem narra a história e diz a verdade está, necessariamente, de um lado ou de outro,
já que batalha para uma vitória particular. Aparece, dessa maneira, não o discurso da
totalidade, da neutralidade ou da verdade, mas um discurso de perspectiva, bem ao
modo daquela história que defendiam Nietzsche e Foucault (2005e: 30):
(…) sem dúvida, ele faz o discurso do direito, e faz valer o direito,
reclama-o. Mas o que ele reclama e o que faz valer são
os “seus” direitos –“são os nossos direitos”, diz ele: direitos
singulares, fortemente marcados por uma relação de propriedade, de
conquista, de vitória, de natureza. Será o direito de sua família ou de
raça, o direito de sua superioridade ou o direito da anterioridade, o
direito das invasões triunfantes ou o direito das ocupações recentes ou
milenares. De todo modo, é um direito a um só tempo arraigado numa
história e descentralizado em relação a uma universalidade jurídica. E,
se esse sujeito que fala do direito (ou melhor, de seus direitos) fala da
verdade, essa verdade não é, tampouco, a verdade universal do
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assim, entender a dialética como a grande volta a esse discurso, pois, como aponta
Foucault, ela atuou como a retomada e a mutação do discurso filosófico-jurídico. A
dialética codifica a luta, a guerra e os enfrentamentos dentro de uma pretensa lógica da
contradição e, ainda, retoma a totalização, a racionalidade fundamental e o sujeito
universal. Será a genealogia de Nietzsche e de Foucault que retomará esse discurso
histórico-político, e fará da história uma guerra constante.
Para Foucault, portanto, essa inversão do problema da guerra no discurso da
história, não foi o efeito do controle assumido por uma filosofia dialética sobre a
história. A modificação pela burguesia, portanto, de um discurso histórico, dos seus
elementos fundamentais que ele possuía no século XVIII foi, para Foucault,
uma “autodialetização” do discurso histórico. É a partir do século XIX que aparece essa
relação característica entre a filosofia e a história, quando a primeira encontra na
segunda e no presente, o momento em que o universal se expressa em sua verdade. No
século XVIII, a filosofia da história existia apenas como uma especulação sobre a lei
geral da história e, ésomente a partir do século XIX que começa algo novo e
fundamental, caracterizado pelas seguintes perguntas: “o que, no presente, traz consigo
o universal? O que, no presente, é a verdade do universal?” (FOUCAULT, 2005c:
284). Estas são questões tanto da filosofia quanto da história. E é, nesse momento, que
Foucault aponta o nascimento da dialética e, com ela, a colonização do discurso da
história como guerra.
O par burguesia e dialética, assim, modificou drasticamente o discurso da
história. Ao colonizar o discurso histórico-político, a dialética civilizou as contradições,
as dominações e a guerra presentes na história. Esse aburguesamento, também,
regularizou os diferentes saberes, homogeneizando-os e hierarquizando-os em torno da
ciência. Não podemos, entretanto, deixar de perceber que essa “dialetização” da história
produziu inúmeros contra-ataques, tal como a genealogia de Foucault no século XX.
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(FOUCAULT, 2005c: 10). Isso não quer dizer que o marxismo e a psicanálise, duas
teorias totalizantes, não deram instrumentos localmente utilizáveis, mas só os
forneceram com a condição de que a unidade teórica do discurso ficasse suspensa,
recortada e deslocada. Privilegiou-se, nesse período, o caráter local da crítica:
(…) caráter local da crítica, o que não quer dizer, creio eu, empirismo
obtuso, ingênuo ou simplório, o que também não quer dizer ecletismo
frouxo, oportunismo, permeabilidade a um empreendimento teórico
qualquer, nem tampouco ascetismo um pouco voluntário, que se
reduziria ele próprio à maior magreza teórica possível. Creio que esse
caráter essencialmente local da crítica indica, de fato, algo que seria
uma espécie de produção teórica autônoma, não centralizada, ou seja,
que, para estabelecer sua validade, não necessita da chancela de um
regime comum (FOUCAULT, 2005c: 10-11).
Além disso, essa crítica local ocorreu através do que Foucault denominou
como “insurreição dos ‘saberes sujeitados’” (FOUCAULT, 2005c: 11). Os saberes
sujeitados podem ser designados como os conteúdos históricos que foram sepultados e
mascarados em sistematizações formais. Isso porque, para ele, no caso da crítica efetiva
da prisão e do hospício, não foi uma semiologia da vida em hospício ou uma sociologia
da delinqüência que a permitiram, mas o aparecimento de conteúdos históricos.
Por “saberes sujeitados”, ainda, Foucault entende outra coisa: uma série de
saberes que estavam desqualificados como saberes não-conceituais, insuficientemente
elaborados, ingênuos, hierarquicamente inferiores e que estavam abaixo do nível do
conhecimento ou da cientificidade esperada. Há o reaparecimento, dessa maneira,
desses saberes denominados como “de baixo”, exatamente por serem desqualificados,
como os saberes do psiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o do médico, o do
delinqüente, etc. Esse “saber das pessoas” que, segundo Foucault,“não é de modo algum
um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, local, regional,
um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força
apenas àcoincidência que opõe a todos aqueles que o rodeiam” (FOUCAULT, 2005c:
12), que proporcionou a crítica local.
É, nesse sentido, que Foucault denomina esses últimos embates de “pesquisas
genealógicas múltiplas”, porque significavam, ao mesmo tempo, a redescoberta exata
das lutas e a memória bruta dos combates. Essas genealogias só foram possíveis pela
revogação da tirania dos discursos englobadores e de suas hierarquias. Para a
genealogia, ainda, não se trata de opor a uma teoria abstrata a multiplicidade concreta
dos fatos; também não seria o caso de desqualificar um dado conhecimento disperso,
que não é acabado e organizado em torno de um corpus reconhecido e aprovado,
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Para esta, o poder é um direito que se possuiria como um bem, e que se poderia
transferir ou alienar, através de um ato fundador de direito, que seria da ordem da
cessão ou do contrato. Todo indivíduo deteria o poder e o cederia, total ou parcialmente,
para constituir uma soberania política. Esse modelo de operação jurídica, então, defende
que o poder seria da ordem do contrato. Daí as comuns analogias entre o poder e os
bens, o poder e a riqueza.
Há, por outro lado, na concepção marxista corrente de poder algo diferente: a
sua“funcionalidade econômica” (FOUCAULT, 2005c: 19). Nesse caso, ele teria como
papel essencial manter relações de produção e, ao mesmo tempo, reconduzir uma
dominação de classe, que as modalidades próprias da apropriação das forças produtivas
tornaram possível. O poder político, assim, encontraria na economia sua razão de ser
histórica. Diante dessas duas concepções de poder, Foucault aponta o grande problema
de suas pesquisas, de suas genealogias, a partir das seguintes questões:
Primeiramente: o poder está sempre numa posição secundária em
relação àeconomia? É sempre finalizado e como que funcionalizado
pela economia? O poder tem essencialmente como razão de ser e
como finalidade servir àeconomia? Está destinado a fazê-la funcionar,
a solidificar, a manter, a reconduzir relações que são características
dessa economia e essenciais ao seu funcionamento? Segunda questão:
o poder é modelado com base na mercadoria? O poder é algo que se
possui, que se adquire, que se cede por contrato ou força, que se aliena
ou se recupera, que circula, que irriga esta região, que evita
aquela? (FOUCAULT, 2005c: 20-21).
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relações de força, num sistema político, devem ser interpretados apenas como as
continuações da guerra.
Em Segurança, Território, População (FOUCAULT, 2008b: 5-6), Foucault fala
da prática filosófica preocupada com uma política da verdade. As suas análises sobre as
relações de poder foram de extrema importância para diagnosticar as lutas, os embates,
os choques desse círculo da filosofia que compreende o combate em torno da verdade.
Mas, a política convencional não lhe provoca empolgações. Decepcionado com os
movimentos de extrema esquerda depois do “Maio de 1968”, e cansado das inúmeras
discussões em torno do marxismo, ele revela o seu desejo de “nunca fazer política”
(FOUCAULT, 2008b: 6). Sua militância, portanto, ocorria em outras frentes: “Tentei
fazer coisas que implicassem um engajamento pessoal, físico e real, e que colocassem
os problemas em termos concretos, precisos, definidos no interior de uma situação
dada” (FOUCAULT, 2008b: 31-32). As análises apresentadas nesse curso sobre o poder
pastoral contrapõem-se à concepção de ideologia, quando ele ressalta as estratégias e as
táticas:
Em vez de dizer: cada classe, ou grupo, ou força social tem sua
ideologia, que permite traduzir na teoria suas aspirações, aspirações e
ideologia de que se deduzem rearranjos institucionais, que
correspondem às ideologias e satisfazem às aspirações – conviria
dizer: toda transformação que modifica as relações de força entre
comunidades ou grupos, todo conflito que os põe em confronto ou que
os faz rivalizar requer a utilização de táticas que permitem modificar
as relações de poder e a introdução de elementos teóricos que
justificam moralmente ou fundam em racionalidades essas
táticas(FOUCAULT, 2008b: 285).
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(Este texto conjuga algumas das reflexões que realizei em: (VIEIRA, 2008) e (VIEIRA,
2015). Ambos os trabalhos foram financiados pela FAPESP.)
AUTORA
* Priscila Piazentini Vieira é professora adjunta do Departamento de História da UFPR
desde 2015. Possui graduação (2005), mestrado (2008), doutorado (2013) e é pós-
doutoranda em História pelo IFCH da UNICAMP, sob a orientação de Margareth Rago.
Entre 2010 e 2011, fez Doutorado Sanduíche na Université Est-Créteil, com a
supervisão de Frédéric Gros. Em 2005, teve sua monografia Michel Foucault e a
História Genealógica em Vigiar e Punir publicada e premiada pelo Concurso de
Monografias do IFCH da UNICAMP. Em 2015, teve sua tese A coragem da verdade e a
ética do intelectual em Michel Foucault publicada como livro pela Editora Intermeios.
Tem experiência na área de História, com ênfase em Teoria da História e História
Contemporânea.
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NOTAS
[1] Dezessete anos antes, na “Introdução” de Arqueologia do Saber, Foucault define a sua “história do
pensamento”, aproximando-a à nova história francesa, como a história das mentalidades, por exemplo.
Naquele momento, não se tratava de comparar os diferentes objetos de estudo, mas de ressaltar as noções
de tempo descontínuo e de “documento- monumento” partilhadas tanto por Foucault quanto pela
historiografia francesa. (FOUCAULT, 2008: 03-20).
[2] Outro texto que trata dessa concepção de experiência é: “Préface à l’Histoire de la sexualité”
(FOUCAULT, 1994b: 578-584).
[3] Ver: (LÊNIN, 2006).
[4] Sobre esses movimentos de “Contracultura”, ler: (ROSZAK, 1972); (PEREIRA, 1983); (REIS
FILHO, 1998);(KURLANSKI, 2005); (ARTIÈRES, 2008).
[5] Para entender essa discussão, ler: (MACHADO, 1982).
[6] Ver a coletânea de textos de Rosa Luxemburgo em: (CASTRO, 1979).
[7] Sobre Soljenítsin, ler: (CHRISTOFFERSON, 2009: 117-146).
[8] Clausewitz foi um general e estrategista militar prussiano do século XIX. O princípio, referido por
Foucault, de que “a guerra é a continuação da política por outros meios” foi desenvolvido em sua
obra Da Guerra, de 1874. (CLAUSEWITZ, 1996).
[9] Para entender a importância da guerra para a nobreza, e a identificação desta com a cavalaria, na
Idade Média, ver: (DUBY, 1989).
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Artigos e ensaios
RESUMO: Este texto discute por que a filosofia política de Roberto Mangabeira Unger
convém a quem pretende pensar o Brasil. Dividido em quatro partes, o texto aborda a
ausência da questão sobre o tipo de sociedade desejável, de acordo com o ponto de vista
dos filósofos mais lidos na academia brasileira; esboça dois grandes grupos genéricos
de respostas exitosas à questão; apresenta algumas teses gerais de Mangabeira Unger,
que servem de marcadores de seu programa filosófico; aponta, por fim, alguns
elementos de sua visão sobre o Brasil, sugerindo a relevância de seu pensamento
político para a construção de um projeto nacional.
PALAVRAS-CHAVE: UNGER, BRASIL, FILOSOFIA POLÍTICA
1
UMA PERGUNTA PARA FILÓSOFOS POLÍTICOS
A erudição e a sofisticação com que argumentam alguns dos mais prestigiados
filósofos políticos contemporâneos convencem auditórios de todo o mundo, mas
exercem especial fascínio nos ambientes acadêmicos. Se fossem puxadores de trio
elétrico, filósofos como Rawls, Habermas, Bobbio, Agamben, Derrida, Deleuze,
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do útero da Guerra Civil Inglesa, então emblema do impacto social da ausência de uma
autoridade central e absoluta empoderada pela razão. Hegel assistira à ascensão de
Napoleão, a seu ver, a superação do estado autofágico criado pelo jacobinismo e a
consumação da história no velho continente: “vi o imperador, essa alma do mundo, sair
da cidade, em viagem de inspecção; é, de fato, um sentimento maravilhoso ver
semelhante indivíduo que, concentrado aqui em um ponto, sentado em seu cavalo, se
estende sobre o mundo e o domina” – escrevera isso justamente no bojo da ocupação
francesa na Prússia, quando fora forçado ao exílio, fugindo do próprio Napoleão,
levando apenas os manuscritos de sua Fenomenologia do Espírito (1807).
Todos estes pensadores tiveram em mente – primeiramente – uma sociedade:
a sua. Ocuparam-se de seu tempo e, principalmente, de seu espaço. A tarefa de filosofar
sobre a política lhes era a própria missão de organizar, racionalmente, a sociedade,
extirpar seus males, sedimentar suas instituições, torná-la menos vulnerável e mais
próspera, mais solidária, mais livre. Suas categorias teóricas não são mais do que
experiências concretas vestidas em carapuças abstratas, nas quais, porém, menos se
ostenta arroubos de vaidade intelectual do que se cultiva sinceras preocupações voltadas
ao enfrentamento de desafios reais.
Aos filósofos contemporâneos – voltamos ao raciocínio – é mais do que
oportuno perguntar qual sociedade lhes apetece. Formulemos, então, melhor: qual
esquema global de sociedade é expressamente desejável de seu ponto de vista? Esta
pergunta tem que ser feita por quem lê o filósofo, por quem trabalha com as suas ideias,
por quem, quiçá, deseja ver realizado o seu projeto. No Brasil, a assimilação dos
filósofos mencionados no primeiro parágrafo, nas áreas das humanidades, dos estudos
jurídicos e das ciências sociais aplicadas, é imensa, como o notará qualquer curioso que
passar as vistas nos anais de congressos nacionais de pós-graduações, ou que ler as
ementas das disciplinas teóricas, ou ainda que conferir a sua continuidade/adaptação no
Ensino Médio. Se essa popularidade não sugere que há consentimentos pontuais, que
desligam elementos de um discurso de filosofia política da forma como organizar a
sociedade que ele apregoa; ela revela uma cumplicidade pusilânime, com a qual só se
pode inferir que as soluções gerais apresentadas por aqueles filósofos correspondem
perfeitamente às aspirações e aos reclames gerais da sociedade brasileira. De uma forma
ou de outra, parece permanecer robusto o abismo entre a elite pensante e a cultura
popular nacional, com seus problemas longe de terem soluções cogitáveis por gente
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paga para cogitá-las. Incongruências desse tipo nos fazem lembrar uma das deixas do
Millôr Fernandes: "Brasil, um filme pornô com trilha de Bossa Nova!" [1].
2
DUAS TENDÊNCIAS: migalhas de participação, overdose de suspicácia;
Perlustremos a gênese da bifurcação a que chegamos. A geração de pensadores
do pós-criticismo procurou responder à questão sobre a organização social apontando
para formas diferentes de combinar o socialismo (entendido como uma economia
política na qual os meios de produção pertencem ao Estado) com a democracia (o
governo gerenciado pelo conjunto da sociedade civil diversamente participativa e
representada). Contudo, o desfibramento do socialismo real trouxe uma estiagem de
ideias e esperanças que repercutiu numa dupla atitude: de um lado, a concórdia com o
projeto mais modesto e realista das socialdemocracias, isto é, a democracia política
coexistente à economia aberta e desimpedida, mas com a delegação explícita da
assistência social ao Estado; e, de outro, a mais absoluta desconfiança e revolta contra
as instituições convencionais, e às práticas e hábitos a elas associados, desconfiança
essa não suprida por um projeto que possibilitasse uma resposta positiva à questão sobre
a organização social. Tentativas de síntese entre esses dois caminhos não prosperaram -
como não vingaram mais recentemente diálogos entre burocratas e black-blocs.
Habermas e Rawls, tal como os vemos, são os melhores expoentes do primeiro
lado, assim como Foucault e Derrida do segundo. Sem ter qualquer veleidade de
escrutinar a obra destes grandes mestres, passaremos em revista a fragmentos de suas
ideias políticas, as quais chamam a atenção pelo impacto que criaram nas universidades
e nos governos de todo o mundo, inclusive no Brasil. A generosa proposta da justiça
como equidade social, por Rawls, é uma clara tentativa de atribuir função objetiva e
intransferível ao Estado, numa sociedade em que a liberdade competitiva dos mercados
é uma premissa amplamente aceita. A sociedade americana abraçou a economia de
mercado em sua eficácia para produzir riqueza, muito embora não houvesse deixado de
ostentar desavergonhadamente seus bolsões de miséria. A proposta de Rawls é a de que,
mantendo o jogo do mercado tal como ele é, podemos e devemos, por meio de um
consenso abrangente da sociedade, equipar os jogadores desassistidos para competir em
pé de igualdade com os demais, e deixar que, no certame, os de melhor desempenho
sejam vitoriosos e laureados. Trata-se de uma filosofia política que prescreve (ou que é
prescrita por) uma economia política: a filosofia que tematiza a justiça em termos de
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Mas essa não é toda a história. Além do discurso das migalhas de participação,
há um discurso mais engajado e enérgico, porém, avesso a todo e qualquer
construtivismo, apontado como ingênuo ou canalha. Trata-se de uma atitude a que se
pode chamar de overdose da suspicácia: discursos que tomaram os caminhos abertos
principalmente pelo desconstrucionismo derrideano e pelo foucauldianismo. Nas
humanidades e nos estudos literários, o desconstrucionismo penetrou com vigor
priápico e por ali espalhou sua fertilidade, tornando-se uma inevitável fonte de
articulação e referência. O combate a todas as estruturas pela desmontagem
epistemológica acumpliciou-se do discurso contra as estruturas de poder, aquele
detalhadamente concebido por Michel Foucault. Este último ou o convênio de ambos,
então, permanecem sendo as lentes por que enxergam a realidade social uma massa
túmida de sociólogos e antropólogos, bem como, e principalmente, as lideranças de
movimentos sociais organizados.
Tais atores e ideólogos oscilam entre um histérico anarquismo e um tonitruante
vácuo de ideias, quando indagados sobre qual sociedade esperam extrair de tais
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3
ROBERTO MANGABEIRA UNGER: um pensamento sem sotaque
Não há nenhuma razão para se tomar a obra de Roberto Mangabeira Unger
como o santo graal da originalidade, mas é absurdo ignorá-la por completo. E não
afirmamos isso com base em seu prestígio internacional, mas no quê seu pensamento
tem a dizer concreta e objetivamente sobre o Brasil.
Chega ao nível do anonimato a crítica que se lhe é feita, na imprensa e na
academia brasileiras, que destina-se a desqualificar a mensagem desqualificando o
mensageiro. E, para piorar, o investimento difamatório é dirigido a um aspecto
vergonhosamente liliputiano do filósofo: o seu "sotaque estrangeirado". Aliado à
excentricidade discursiva e à performance facial repleta de esgares, o sotaque conserva-
o uma figura folclórica da política nacional. As caricaturas, entretanto – e infelizmente –
, não são mais do que álibi para o cultivo de um orgulhoso desconhecimento quanto ao
conteúdo de seus mais de doze livros.
Foi Richard Rorty quem notou o que a sabedoria convencional tupiniquim ainda
não conseguiu captar: o professor Roberto, apesar de ter ajudado a reformar as escolas
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estruturas e instituições sociais que dão conteúdo aos vínculos existentes. A situação da
humanidade é a do engrandecimento contido, a experiência de seres infinitos presos em
cápsulas finitas. A relação entre as pessoas e seus vínculos é de luta, luta que requer
permanente reorganização dos componentes das estruturas e instituições. Mas Unger
também reconhece que essa luta não é percebida pelas pessoas no curso ordinário de
suas vidas, e isso deve-se a uma impetuosa campanha moldada em discursos e práticas
que atribui necessidades falsas à realidade existente. É por isso que um dos grandes
desafios empreendidos por esse filósofo está em diagnosticar as raízes fatalistas do
pensamento social (ST), que alimentam essa ilusão de necessidade, e confrontar a
filosofia política que nelas se assenta, contrapropondo-as a premissas que apostam na
contingência das coisas humanas (FN). Estas premissas compõe o escopo da ideia que
Unger denomina "sociedade como artefato" (Unger, 1997, p. 3) e que atribui a uma
longa tradição de pensadores que se seguiram a Giambattista Vico, segundo quem as
estruturas sociais nós as podemos compreender porque as criamos[3].
Com Mangabeira, a ideia de sociedade como artefato ganha uma versão
contemporânea radical na tese de que tudo é política (it's all politics): na vida social, das
culturas familiares às leis mais abstratas do Estado, tudo é resultado de conflito
interrompido, congelado. "Defeated or exhausted, people stop fighting. They accept
arrangements and preconceptions that define the terms of their practical and passionate
relations to another" (Unger, 1997, p. 72). Tais arranjos são cristalizados como
estruturas. Cada estrutura reproduz atividades de dois tipos: as mais abundantes que a
confirmam e as raras que a negam. Singularmente distinto de um pensamento marxista,
a tese de que tudo é política não compreende que a transformação social só é real
quando substitui um conjunto integrado de estruturas por outro, mas quando uma
atividade que nega uma estrutura cria instabilidades que perturbam as demais estruturas
revelando a contingência dos arranjos existentes e qualidade experimental da sociedade.
A reforma revolucionária - forma paradigmática da transformação em Unger - não se
alinha a uma visão da história linear e determinista, e aliás, a impossibilita.
O principal leitmotiv do pensamento ungeriano está justamente na proposição de
que, entre todas as atividades humanas, a filosofia e a política são como que irmãs: por
seu conteúdo, uma vez que abordam tudo e não abordam nada especificamente, e por
sua complementaridade, já que uma é o pensamento visando a ação e a outra a ação
abraçando o pensamento. Nestes termos, as categorias teóricas são chanceladas pela sua
intervenção no mundo e a ação política requer o respaldo do pensamento sobre as
200
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4
O BRASIL DESACORRENTADO
O professor e cientista político Carlos Sávio Gomes Teixeira oferece uma
divisão das tendências do pensamento social e político brasileiro em três perspectivas: à
primeira ele denomina "liberalismo culturalista", da qual destacam-se os nomes de Ruy
Barbosa, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, grupo cuja principal ideia
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financeiro, político, intelectual e midiático, toma o Brasil por uma horda de ostrogodos
dóceis, que precisa ser treinada nos preceitos da civilização. Sentindo-se iniciada nos
protocolos universais do êxito, essa mimada elite - de acordo com as pistas indicadas
por Teixeira sob a alcunha de um liberalismo culturalista - atribui o atraso brasileiro à
nossa carência cultural e institucional do atlântico-nortismo e milita para impor aqui as
práticas que vicejam alhures. Nesse discurso, as elites possuem historicamente,
conseguido uma proteção contra a rebeldia. "O que é característico do Brasil é ter elites
que, embora estéreis na criação de ideias ou instituições que interessem à humanidade,
são fecundas em estratagemas de sobrevivência" (Unger, 2001, p. 21).
Unger declara guerra a essa tendência. E sua primeira motivação reside na
percepção de que este ideário é também falido nos próprios países dos quais é
exportado. Richard Rorty captou com singular sagacidade essa característica intelectual
de Unger, de crítico da falta de fibra da elite intelectual e cultural americana, e a
interpretou como uma atitude esperançosa. Rorty associa tal atitude à origem nacional
do filósofo, ao fato de Unger ter vindo de “um país grande e retrógrado, com
gigantescas porções de matéria-prima e uma boa quantidade de acumulação de capital –
um país que começou a se lançar para frente, ainda que frequentemente tropeçando em
seus próprios pés” (Rorty, 1999, p. 240). Um país aberto a novidades em termos de
experimento social, não tendo internalizado os desalentos do velho continente europeu e
da precocemente envelhecida América do Norte um país que não pode esperar “alcançar
o que o Atlântico Norte alcançou, em igualdade e decência, pelos mesmos meios”
(Rorty, 1999, p. 240).
Unger censura, pois, tanto o atlântico norte pela falta de fibra, quanto as elites
do Brasil pelo desejo de importar instituições estrangeiras. Denomina sarcasticamente
"Suécia tropical" o ideário dominante no Brasil que é movido por questões do tipo "por
que o Brasil não é como a Noruega, a Dinamarca, a Finlândia, a França ou os Estados
Unidos?", e que, por ser dominante, é o que permanece dando as cartas nos meios
políticos e acadêmicos. Esse ideário é o coração de uma atitude que Unger tem
classificado como colonialismo mental.
Para escapar deste colonialismo, Unger propõe que o pensamento político
brasileiro costure a interpretação da realidade com propostas de intervenção. Tais
propostas são formuladas de modo a poder ganhar carne institucional, converterem-se
em arranjos institucionais concretos, aplicáveis em curto prazo. Sem inventar
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instituições do nada, o filósofo propõe uma recombinação dos elementos existentes nas
instituições existentes e com isso abre-as para inovações.
A marcha para tais inovações institucionais pressupõe uma releitura da própria
dinâmica social, na qual sobreleve-se as tensões intrínsecas à sociedade brasileira
enquanto tal. Um interessante exemplo do pensamento político de Unger, se comparado
ao de Habermas, por exemplo, é que a mobilização política pressupõe, no horizonte
habermasiano, a organização dos grupos que pleiteiam lugar de fala, e são esses grupos
os que deveriam estar à frente de lutas democratizantes e redistribuidoras. Mas, como
observa Unger:
"a sociedade civil brasileira não dispunha até recentemente de
instrumentos confiáveis de auto-organização. Tinha as organizações
ditas corporativistas que lhe foram legadas pelo regime militar de
Getúlio Vargas: o sistema de sindicatos de trabalhadores, associações
patronais e câmaras de representação e negociação desenhadas sob o
Estado Novo. Prestavam-se ora a uma tutela governamental dos
grupos de que mais diretamente dependiam as iniciativas do regime,
ora a acertos entre estes clientes coletivos e o Estado que os havia
organizado e favorecido.” (Unger, 2001, p. 21/22)
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Estado e a sociedade civil independente não pode passar nem por perto do paternalismo,
outrossim, não pode ser constituída de um abandono deliberado, sob alegação de
incapacidade sistêmica, do primeiro. As filosofias políticas que, desde Hobbes, se
ocupam em discutir a necessidade do Estado, a legitimidade do uso da força por ele, a
sua relação com o direito e com o mercado, raramente postularam o seu poder como
residindo na plasticidade que inibe a oposição à sociedade ou à economia de mercado.
Plasticidade institucional é a compreensão da contingência das estruturas sociais
somada à imaginação de formas alternativas de operacionalizá-las. É isso o que Unger
deseja. Tal plasticidade aponta, em seu caso, para uma maneira de se colocar
politicamente no debate nacional, indicando ideias institucionais que tornem realidade
um projeto de emancipação social feito em coordenação com o Estado nacional
empoderado. O projeto em questão é progressista e deve compor o conteúdo da
militância de uma política de esquerda moderna e desonerada da poluição de um
marxismo desnorteado, bem como das duas tendências pseudo-emancipadoras de que
falamos: a overdose de suspicácia e as migalhas de participação.
Para finalizar, então, as cinco ideias institucionais de Unger para a consecução
do projeto são: (1) o estabelecimento de condições práticas que incluem níveis mais
altos de poupança doméstica e estreitamento da relação entre poupança e produção; (2)
o tratamento da política social enquanto fortalecimento e capacitação que compreende
uma educação vitalícia, dirigida ao desenvolvimento de um núcleo de habilidades
práticas e conceituais genéricas; (3) a democratização da economia de mercado que se
baseia na sua reorganização com o uso do Estado para criar as condições de novos
mercados; (4) o enraizamento da solidariedade social não apenas na transferência
monetária, mas também na responsabilidade universal pelos outros; (5) a concepção de
uma política democrática de alta energia que requer uma elevação sustentada e
organizada do nível de engajamento civil. (Unger, 2008, p. 32-37).
LEGENDA:
ST: Social Theory, Its Situation and Its Task
FN: False Necessity
AUTOR
* Tiago Medeiros Araujo é doutorando em Filosofia pela Universidade Federal da
Bahia, professor de Filosofia do Instituto Federal da Bahia, órgão no qual também
exerce a chefia do Departamento de Filosofia. É autor do livro Pragmatismo Romântico
e Democracia (EDUFBA, 2016) e de artigos publicados em periódicos acadêmicos.
Além disso, é compositor e instrumentista.
205
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[3] Unger registra: Much in our modern ideas about society represents the relentless development of the
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Artigos e ensaios
RESUMO: O trabalho faz análise dos alcances e limites do conceito de sociedade civil
no pensamento político de Antônio Gramsci. O artigo está orientado pela seguinte
questão: em que medida as reflexões políticas de Antônio Gramsci sobre a sociedade
civil e o Estado projetam alcances teóricos e estratégias para repensar o problema
político do presente, ou seja, o problema da disjunção entre economia e sociedade
política e entre o Estado e a sociedade civil? No início analisa-se o conceito de Estado
amplo, no qual Gramsci localiza a relação entre a força e o consenso, a relação entre
sociedade política e sociedade civil. Neste sentido, Gramsci procura assimilar/superar a
proposta da tradição hegeliana-marxista, que leva-nos até o centro da crítica de Gramsci
perante o liberalismo económico, assim como ao economicismo atuante na tradição
marxista. Conclui-se que o pensamento de Antônio Gramsci é atual no sentido de que
continua sendo referência para questionar a perspectiva neo-liberal atual, que procura
separar a esfera econômica da esfera política.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedade civil, Estado, política, hegemonia, Moderno
Príncipe.
INTRODUÇÃO
O tema da sociedade civil regressou ao centro do debate cultural e político,
influenciado por duas vertentes: em primeiro lugar, a partir da década de 70 do século
XX, em função da chamada “revolução” neoconservadora ou neoliberal, que desejava o
questionamento do Estado como sujeito 'pleno' para sustentar a vontade de separação e
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Para Gramsci toda ciência e arte políticas baseiam-se num fato primordial e
irredutível: “existem efetivamente governantes e governados, dirigentes e dirigidos”. A
questão primordial para o pensador político é saber se tal divisão do gênero humano é
perpétua, ou é um fato histórico (C.C 15, v. 3, § 4, p. 324-325)[3]. Por isso, ao
perguntar-se quando um grupo faz sua visão de mundo prevalecer sobre a dos demais,
coloca-se, em certo sentido, o problema das organizações que sustentam essa visão de
mundo ou essa hegemonia, que, na perspectiva de Gramsci, não se reduz ao campo
nacional-popular [4]. Em outras palavras, há que se perguntar pelo “portador
material da função social da hegemonia” (COUTINHO, 1999, p. 69). A hegemonia tem
na sociedade civil seu “par lógico e político”, e esta, por sua vez, “não se sustenta fora
do campo do Estado e muito menos em oposição dicotômica ao Estado” (NOGUEIRA,
2003b, p. 222-223). Procuraremos pensar essa relação, mais adiante, em termos
dialéticos, como sugere o próprio Gramsci.
A presença do tema do Estado nas reflexões políticas de Gramsci e a nova
perspectiva que o autor procura imprimir deve-se ao fato de que o tema o obriga a
retomar sistematicamente as grandes questões políticas que Gramsci vivenciou e
acompanhou: a crise do Estado liberal, a natureza do fascismo e do Estado fascista, a
novidade do Estado dos Soviéticos e sua evolução na URSS, a experiência dos
Conselhos, os problemas do Estado socialista. Sem esquecer o pivô da análise, segundo
Buci-Glucksmann (1980, p. 26-27), que consiste nessa “surpreendente 'resistência do
aparelho de Estado', própria às sociedades ocidentais, nos países capitalistas
desenvolvidos”.
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fulminante, tal como teria ocorrido na Rússia, por exemplo, que utilizou ataques frontais
contra o poder do Estado burguês. Uma possível vitória do proletariado no Ocidente, em
termos políticos, pede a mudança de tática, segundo Gramsci. Em outros termos, a partir
de 1924, Gramsci deduz que a guerra de ataque frontal funcionou nos anos
revolucionários de 1917-1921 na Rússia, onde o "Estado era tudo e a sociedade civil
primitiva e gelatinosa". Esta estratégia frontal, porém, "não pode se repetir do mesmo
modo nos países capitalistas desenvolvidos" (GLUSCKSMANN, 1977, p. 45).
Trata-se, diz Gramsci, de "estudar com 'profundidade' quais são os elementos da
sociedade civil que correspondem aos sistemas de defesa na guerra de
posição”.[4] Gramsci sinaliza, dessa maneira, para o fato da burguesia não ter a força
como único recurso para a manutenção do status quo e para o fato de não se subestimar
o aparelho de Estado em tempos de crise. Ao contrário, o fenômeno político tornou-se
mais complexo e seu significado há que se buscar nas complexas e moleculares redes de
instituições da sociedade civil, dentre elas, o sufrágio universal, os parlamentos,
partidos de massa, sindicatos obreiros, os meios de comunicação, as escolas, igrejas,
movimentos sociais, etc., além dos aparelhos repressivos do Estado. Neste sentido, o
Estado passa a ser "um projeto de cultura" (FERREIRA, 1986, p. 209), e a base da
hegemonia ou a base histórica do Estado se manifesta através da soldagem da sociedade
civil com a sociedade política. Gramsci reconhece Lênin como o político que
compreendeu a necessidade de uma mudança na “guerra manobrada”, a qual foi
aplicada vitoriosamente no Oriente em 1917, para a “guerra de posição”, que poderia
ser a única vitoriosamente no Ocidente. Segundo Gramsci, o problema de Lênin[5] é
que não teve tempo de aprofundar a sua fórmula,
[...] a tarefa fundamental era nacional, isto é, exigia um
reconhecimento do terreno e uma fixação dos elementos de trincheira
e de fortaleza representados pelos elementos da sociedade civil, etc.
No oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e
gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma
justa relação e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente
reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era
apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma
robusta cadeia de fortalezas e casamatas [...] (C.C7, v. 3, §16, p. 262).
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função desempenhada pelo Estado, de modo mais vasto e mais sintético, na sociedade
política, ou seja, “proporciona a soldagem entre intelectuais orgânicos de um dado
grupo, o dominante, e intelectuais tradicionais. [...]” (C.C 12, v. 2, § 1, p. 24).
O caráter fundamental do Príncipe de Maquiavel, diz Gramsci, é o de não ser
um tratado sistemático, mas um livro 'vivo', no qual a ideologia política e a ciência
política fundem-se na forma dramática do 'mito'. Maquiavel deu à sua concepção a
forma da fantasia e da arte, pela qual o elemento doutrinário e racional personifica - se
em um condottiero, que representa plástica e 'antropomorficamente' o símbolo da
'vontade coletiva'. [...] O Príncipe de Maquiavel poderia ser estudado como uma
exemplificação do 'mito' soreliano, isto é, de uma ideologia política que se apresenta
não como fria utopia nem como raciocínio doutrinário, mas como uma fantasia concreta
que atua sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e organizar sua vontade
coletiva (C.C 13, v. 3, § 1, p. 13-14)[7].
A política em Maquiavel é uma atividade intelectual e ao mesmo tempo prática.
O alvo central a ser combatido, segundo as lições apresentadas por Maquiavel
no Príncipe, é o pontificado romano, instituição que deitara suas raízes no corpo social
há séculos, constituindo-se em entrave político para a formação do Estado-nação. Na
Itália, o Moderno Príncipe, segundo Gramsci, traduz-se em uma vontade coletiva
(partido) que “queira ser Estado”, independentemente da moral e da religião - tal como
vaticinara Maquiavel - não em nome de um niilismo moral, mas em nome, quiçá, do
combate aos corporativismos[7], que tem seu fundamento na própria sociedade civil. O
partido constitui, para Gramsci, elemento do "momento catártico”, célula que procura
transformar a "necessidade" em "liberdade”, a "individualidade" em "universalidade".
Ao contrário do Príncipe de Maquiavel que reivindica para si próprio o papel do
exercício do poder político em nome de uma nação, na perspectiva de Gramsci
o Moderno Príncipe constitui a primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade
coletiva que tendem a se tornar universais e totais, o qual deve e não pode deixar de ser
“o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de
resto, criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-
popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna”
(GRAMSCI, C.C 13, v. 3, § 1, p.16-18).
Na realidade, o Moderno Príncipe não é resultado de uma coletividade caótica e
indistinta, algo resultante de forças “misteriosas” e metafísicas. Esse corpo associativo
deve ser entendido como produto de “uma elaboração de vontade e pensamentos
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política para todo o corpus social. Nessa perspectiva, o Estado absorve totalmente as
manifestações políticas advindas da sociedade civil, reduzindo-a a simples massa.
Por outro lado, o 'Estado ético' é aquele que reflete a configuração de uma nova
sociedade, ou seja, da sociedade socialista, “regulada”, ideia essa que reabre, ao mesmo
tempo, a antiga discussão marxista sobre a extinção do Estado. Numa sociedade de
cunho socialista, a sociedade civil tenderia a absorver os elementos coercitivos do
Estado. A ex-URSS é um exemplo de que a promessa da extinção do Estado não pôde
ser concretizada, exatamente porque o capitalismo de Estado prevalecente não
reconheceu na sociedade civil a possibilidade de superação da condição de
heteronomia. De qualquer forma, a burocracia partidária reinante dissociou (de uma
forma talvez prevista por Gramsci), a sociedade civil do Estado burocrático, os
dirigentes dos dirigidos. Na acepção de Gramsci, uma "socieda de regulada" não
acontece sem revolução e a mesma dá mostra de sua eficácia política quando feita "por
baixo" e não "pelo alto", ou seja, quando esta mesma sociedade é capaz de promover
gradualmente a extinção dos elementos e mecanismos da coerção, quando a
sociedade civil reabsorve a sociedade política e seus elementos coercitivos.
Voltamos aqui, novamente à questão central para Gramsci: a de que uma
sociedade política, quando democrática, deveria criar as condições nas quais
desaparecesse a divisão entre governantes e governados. A socialização do poder não
significa cair na utopia de uma sociedade sem governo. O realismo político de Gramsci
é resultante das dificuldades que conheceu na prática para organizar uma vontade
coletiva. Gramsci parece não se deixar levar pela crença de que uma vontade coletiva se
reconstitua tão facilmente assim, depois que ela se desagregou. Procura, ao contrário,
não pensar “que as vontades coletivas sejam um dado de fato naturalista, que
desabrocham e se desenvolvem por razões inerentes às coisas” (C.C, 15, v. 3, § 35, p.
335-336).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quais os alcances e limites que apresenta o conceito de sociedade civil
desenvolvido por Gramsci, tendo em vista a nova configuração social e política da
atualidade, denominada mundialização? Depois de um longo tempo de ausência no
debate teórico político, o conceito de sociedade civil foi recuperado por Gramsci nos
alvores do século XX, refletindo, de certa forma, a nova configuração social, econômica
e política do período em que viveu: época de duas guerras mundiais, das intensas lutas
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expressa esse salto qualitativo na forma de conceber a política. E se há uma esfera onde
a hegemonia evidencia-se, esse espaço é a sociedade civil. Aqui podemos nos perguntar,
então, pelos alcances e limites da noção de sociedade civil em Gramsci.
Gramsci pensou e analisou o conceito de sociedade civil numa época em que a
tensão política era evidente, de modo que a relação sociedade política e sociedade civil
não escamoteavam seus conflitos. O fascismo, o nazismo, a revolução Russa e os
períodos entre guerras são prova disso. Ao mesmo tempo criticou o liberalismo
econômico que já ensaiava naquela época a tese de que economia e política são mundos
à parte, tese tão em voga na atualidade. O que pensar da ideia neoliberal de que a
política interfira o menos possível no campo das liberdades econômicas? Da ideia de
que a redenção das mazelas sociais estaria nas mãos da sociedade civil? Para chegar a
esse corolário da disjunção entre política e economia o neoliberalismo fez seus ensaios e
se lançou na conquista da hegemonia no mundo da cultura e das ideias.
As potencialidades do novo mundo no contexto do oceano da mundialização
parecem querer jogar fora a política nas águas, muitas vezes, revoltas e turvas dos
mercados. Lidamos com a ideia de que as únicas fronteiras a serem eliminadas são
àquelas referentes às fronteiras econômicas. “Lidamos com a ideia de que a economia é
boa em si, e a política um mal em si” (ASSMANN, 1996, p. 28), ou de que diante das
leis do mercado nada há a fazer senão obedecer, pois o que interessa é apenas ser
competente para obedecer ao mercado.
Ante os limites que as condições atuais apresentam para a configuração de novas
formas de direção política, a ideia de sociedade civil só faz sentido se for pensada em
“termos dialéticos”, uma visão que procure articular todas as dimensões e circunstâncias
que são amplas e complexas, que têm a ver com ‘legados históricos, tradições, culturas
e também correlações de forças, padrões de desenvolvimento econômico, relações
internacionais, equilíbrios políticos, decisões governamentais, marcos jurídicos
(NOGUEIRA, 2000, p. 246). Nesse sentido, se ainda resta alguma aposta na luta
política, essa aposta não pode se sustentar numa visão fechada ou circunscrita a
pequenos grupos que lutam por seus interesses corporativos, que lutam pela elaboração
da hegemonia visando o Estado em sentido estrito. Ora, a sociedade civil que pensa a
fundação de Estados não se coloca como “o outro lado do Estado, mas como o coração
do Estado”. E não há como se lançar nessa batalha sem a batalha de ideias, que é
essencialmente “uma batalha pelo poder, pela autoridade, pela direção” (NOGUEIRA,
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2000, p. 247-248), e também por maior liberdade, de um número cada vez maior de
pessoas.
Não se compreende Maquiavel, diz Gramsci, “se não se leva em conta que ele
supera a experiência italiana com a experiência europeia (internacional, naquela época):
sua vontade seria o tópico sem experiência européia” (C.C 6, v. 3, § 86: 241). Da
mesma forma que Maquiavel não pensara em superar a experiência política italiana
deixando de lado a experiência européia, a realidade internacional de sua época - caso
contrário permaneceria uma ação política reduzida ao campo do tópico -, da mesma
forma não se compreende Gramsci se não se leva em conta que ele procura superar a
experiência italiana apontando para uma experiência política mundial. Mesmo que a
questão do 'que fazer?' persista, e não se tenha clareza na apresentação de alternativa
possível, talvez possamos, ainda assim, analisar rigorosamente “o que existe”
(ADORNO, Apud ZIZEK, 2005: 176).
É certo que o Moderno Príncipe nos moldes bolcheviques não parece ser mais
desejável do ponto de vista político. Sua existência não deu mostras de que pudesse
aglutinar uma vontade coletiva democraticamente. Na Rússia aconteceu exatamente
aquilo que Marx e Gramsci não desejariam enquanto defensores do comunismo, ou seja,
a separação entre Estado e sociedade civil, economia e política, desenvolvendo naquele
sistema todas as características do capitalismo de Estado, ao invés de uma sociedade
que aos poucos pudesse absorver as forças opressoras do Estado. Por outro lado, não é
equivocado afirmar que a sociedade capitalista também apela para a força em momentos
de crises, mesmo que amparada no modelo democrático representativo. Desse lado, a
tentativa dos liberais é a de separar Estado e sociedade civil, apoiados nos argumentos
de que a sociedade civil é um espaço neutro e não político, espaço de trocas meramente
comerciais. Procuram afirmar que a única liberdade é a liberdade negativa, segundo a
qual a existência do outro seria necessariamente o inferno para mim.
Nesse caso não seria diferente dizer “que a minha vida exige a morte do outro,
ou que o mundo só suporta alguns seres humanos” (ASSMANN, 1996: 35). Se não é
isso que desejo para mim e para o outro, parece que a crítica à utopia liberal, mantém-se
acesa, consequentemente, a chama do ideal de um mundo para todos, também se
mantém acesa, e assim será, quem sabe, enquanto na noite da economia global existir
gatos que não são “pardos”. Em outras palavras, se a promessa de uma sociedade
humana perfeita, anunciada pela modernidade não se realizou - já que nem a liberdade
conduziu à igualdade, nem a igualdade à liberdade, resta-nos, quem sabe, a aposta na
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solidariedade, “de uma cumplicidade com outra liberdade individual”, a qual não pode
ser negociada em qualquer mercado, bolsa ou pregão. Enfim numa solidariedade que
seja caminho para um reforma moral e cultural, mas ao mesmo tempo, “contraditória,
tensa, sem resultado garantido” (ASSMANN, 1998, p 37).
Não há dúvidas que o conceito de sociedade civil em Gramsci apresenta muitos
limites para entendermos o sentido da política na atualidade. Por outro lado, o mesmo
conceito continua a lançar luzes e projetar alcances, fomentando uma relação mais
equilibrada entre Estado e sociedade civil, já que Gramsci não chega nunca a afirmar:
basta de política! Basta de Estado! Que reine o social! Ou vice-versa. Ao contrário, em
Gramsci, política é sinônimo de tensão e de resultados não garantidos, tal como
afirmado antes. Se tiver sentido redefinir a política na atualidade, então podemos
afirmar tranquilamente que Gramsci continua a projetar alcances, já que a separação
entre economia e política, tal como a desejam os neoliberais, nunca ocorre sem tensão.
O que é atual em Gramsci é exatamente isso: o fato de que política e cultura não são
esferas separadas numa sociedade, o que significa dizer que continuamos a disputar no
seio da sociedade civil atual e global uma visão de mundo e de sociedade, seja essa
visão pautada em princípios de mercado ou da solidariedade.
AUTOR
* Valdenésio Aduci Mendes é Mestre em Ética e Filosofia Política e Doutor em
Sociologia Política (UFSC). Docente no Centro Universitário Municipal de São
José/SC-USJ, exercendo atividades laborais nos cursos de Pedagogia e Ciências da
Religião. Membro do grupo de Estudos AYA – Laboratório estudos Pós Coloniais e
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NOTAS
[1] Antonio Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891, em Ales (Ilha da Sardenha), sul da Itália. Era o
quarto dos sete filhos de Franscesco Gramsci e Giuseppina Marcias. Em maio de 1928 é levado ao
“Tribunal Especial” de Roma, em função de suas atividades políticas. Em 4 de junho foi dada a Gramsci
pelo regime fascista, a sentença que o condenou a 20 anos, 4 meses e 5 dias de prisão. Foi na prisão que
escreveu os Cadernos do cárcere e as Cartas que o tornariam referencia do marxismo ocidental, falecendo
aos 27 de abril de 1937 por hemorragia cerebral.
[2] Para os efeitos de citação das obras de Gramsci, usaremos as seguintes abreviaturas: C.C = Cadernos
do Cárcere; C= Cartas do cárcere; E.P= Escritos Políticos.
[3] Para Vacca (1996, p. 108), em linguagem habermasiana, o postulado aqui, é que, diversamente do que
ocorrera até então, "as relações entre governantes e governados podem tornar-se plenamente
comunicáveis e discursivas. E que se deseja explorar suas condições”.
[4] Esta guerra "mais complexa" de longo prazo, "esta guerra do povo democrático capaz de investir a
'justa relação' do estado e da sociedade civil própria aos países ocidentais e de desenvolver a todos os
níveis da sociedade uma dialética permanente entre as massas e o Estado" (BUCI-GLUSCKSMANN,
1977, p. 46).
[5] Ilitch na linguagem dos Cadernos do Cárcere.
[6] COUTINHO (1999, p. 148) observa que a 'ocidentalidade' de uma formação social não é, para
Gramsci, um fato puramente geográfico, mas, sobretudo “um fato histórico. [...] não se limita a registrar a
presença sincrônica de formações de tipo 'oriental' e 'ocidental', mas indica também os processos
histórico-sociais, diacrônicos, que levam uma formação social a se 'ocidentalizar'”.
[7] Nas palavras de Coutinho (1999, p. 169) a tarefa do Moderno Príncipe consistiria em "superar os
resíduos corporativistas (os momentos 'egoístico-passionais') da classe operária" e contribuir para a
"formação de uma vontade coletiva nacional-popular, ou seja, de um grau de consciência capaz de
permitir uma iniciativa política que englobe a totalidade dos estratos sociais de uma nação, capaz de
incidir sobre a universalidade diferenciada do conjunto das relações sociais”.
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Artigos e ensaios
REVISITANDO A UTOPIA:
Sartre e o engajamento político-social da liberdade
Luciano Donizetti da Silva*
RESUMO: A filosofia de Sartre pretende recuperar a liberdade que todo homem é; isso
poderia estabelecer os princípios norteadores do Reino da Liberdade. Mais uma utopia?
Não. Para mostrar as diferenças entre o projeto libertário satreano e todo o romantismo
utópico, esse artigo propõe revisitar as utopias; mas não cabe aí parar: é preciso também
colocar frente a frente os projetos socialistas, sejam utópicos ou científico, e a filosofia
da liberdade, o que permitirá mostrar o alcance do engajamento da liberdade.
Palavras-chave: Liberdade; Utopia; Engajamento.
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manter-se consciente e, no mesmo ato, idêntico a si, deseja ser Deus, enfim. É por isso
que a filosofia da liberdade pode, à primeira vista, parecer bastante pessimista quando
abandona o plano ontológico e adentra o âmbito ôntico: o homem-no-mundo aparece na
filosofia de Sartre como uma espécie de deus-faltado, de paixão inútil e, no fim, a
história de cada existência não será mais que a história de um fracasso.[2] Visão
aterradora do homem, pode pensar o socialista utópico; ranço idealista burguês,
assevera o socialista científico. Mas na verdade, e esse texto pretende mostra-lo, essa é
uma leitura parcial da filosofia de Sartre: a falta ontológica, que jamais poderá ser
preenchida, nada tem de romântico ou ideal, e ainda menos trata-se de pessimismo,
quietismo ou conformismo. Ao contrário, a filosofia de Sartre preconiza o engajamento
da liberdade: a definitiva irrealização humana faz ruir toda utopia, não se nega, mas de
modo algum reduz as possibilidades futuras do homem. Sartre faz ver que não há um
modelo de homem e mundo senão como resultado de condutas opressoras; melhor, não
há modelo universal algum, e ser homem-no-mundo é inventar individualmente o que
vem a ser-homem e mundo, o que exige constituir (eleger, escolher, etc.) o mundo no
qual esse homem existe. O paradoxal, todavia, é que embora o mundo seja
contemporâneo da consciência, ainda assim ele é mais velho que o homem: pudera,
nenhum homem pode ser-no-mundo sem, antes, ter sido criança. E é daí, da alienação
da liberdade ao longo da infância (processo que se inicia a partir da entrada de
todo novo-ser-para-si no mundo), que o controle social faz com que as novas gerações
sejam submetidas a modelos pregressos, costurados às pressas e em vista de interesses
macabros que se igualam ao menos num aspecto: visam controlar a liberdade que,
segundo a filosofia de Sartre, todo homem é.[3]
Assim, se ontologicamente o homem é liberdade, e se toda realidade humana é
falta que se cava na medida em que se preenche, é de se supor que também a filosofia
da liberdade tenha seu mundo a realizar: de fato, Sartre fala de um Reino da Liberdade;
mas no tocante à realização de tal reino é preciso admitir, o filósofo é bastante
pessimista: “Logo que existir, para todos, uma margem de liberdade real para além da
produção da vida, o marxismo desaparecerá; seu lugar será ocupado por uma filosofia
da liberdade” (SARTRE, 2002, p. 39). A condição do reino da liberdade, essa margem
de liberdade real para todos, situa-se tão longe da realidade que Sartre mesmo admite
que tal reino não pode ser sequer imaginado na década de 1960 (SARTRE, 1986); e
seria possível imaginá-lo nos dias de hoje? Cabe a cada homem ou mulher responder a
isso, mas parece claro que a história da filosofia está referta desse assunto: a utopia, ou
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novamente como animal (como se ele não o fosse, desde sempre!) – o fato é que tudo
que o Demiurgo cria é belo e bom, e será o domínio das paixões (leia-se negação do
corpo e exaltação da alma) o metro que permitirá ao homem voltar ao céu e ali viver
como um deus, ou sofrer o castigo acima indicado.[4] A república platônica, por sua
vez, aposta na educação como meio de superar as mazelas sociais; mas, não se pode
esquecer, o prudente legislador usará de artifícios para separar os homens de acordo
com a natureza de sua alma: às almas de bronze comércio, agricultura e artesanato; a
defesa da cidade ficará por conta de pessoas de alma de prata e, claro, a alma de
ouro governará. Modelo igual ao social será aplicado ao agir individual, na medida em
que a parcela racional da alma deverá – sempre – sobrepor-se às parcelas apetitiva e
irascível.[5] O projeto humano de mundo, seja judaico-cristão ou caudatário da
demiurgia, tem até a utopia de Thomas More o papel de modelo originário: no
princípio, Adão e Eva no paraíso, ou a felicidade das almas bem-aventuradas numa
existência divinal; e sem liberdade. Diferentemente disso, é notório que a proposta de
uma república ideal nada tem de primevo: trata-se de constituir um legislador que
estabeleça um modelo educacional que lhe permita mais bem conhecer a índole dos
educandos, e num ato de sabedoria, encaminhá-los para um mundo onde sejam mais
úteis à coletividade na medida em que mais adequados estejam a seu tipo de alma. Mas
também aí a regra se repete: nenhum espaço de liberdade, visto que o homem é
determinado socialmente por sua essência. Os modelos que antecedem
a República pretendem-se originários, pois projetam a realização do Paraíso para o fim
da história (Jesus voltaria e instauraria o reino de Deus), ao passo que a pretensão
platônica em sua República não aponta para algo quase que mítico – como toda sorte
de bem-aventurança – mas para a realização de um futuro possível a partir do passado.
A felicidade humana originária (e mítica) é, até a proposta de uma república ideal, o
modelo a partir do qual o mundo humano deveria ser erigido; a partir de então trata-se,
efetivamente, de inventar o real peça a peça – afinal, foi Sócrates mesmo (ou Platão, se
se preferir) e nenhum Deus ou Demiurgo, quem talhou esse belo homem para
essa república justa, tanto quanto antes (Timeu) havia projetado livremente seu paraíso
e as regras para aí entrar.
Assumir o trabalho divino na criação do mundo humano é um ato de liberdade
que responde em parte a questão suscitada acima: sim, o homem pode inventar seus
modelos de mundo. Dito de outro modo, como para o existencialismo jamais houve um
Deus (ser impossível) senão como desejo humano de preencher sua falta existencial, o
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fato é que a função demiúrgica sempre esteve a cargo do homem: foi ele quem
livremente inventou seus deuses, seus mitos, sua essência ou natureza. Assim como
Sartre mostra a respeito de Descartes que, em suas meditações e por razões
históricas (submissão à Igreja), reserva a Deus o papel exclusivo do homem na
constituição das ordens de razões, a humanidade desde seus primórdios teria erigido em
Deus (ou numa natureza ou essência míticas) um dos mais fortes e
resistentes parapeitos contra a angústia.[6] A utopia será, nesse sentido, a assunção de
que, seja em nome de Deus ou de qualquer essencialismo, quem de fato decide seu
mundo é o homem; mas, e isso não é um detalhe, ele apenas o faz a partir de modelos
do passado. Ainda que o Reino de Deus, ou qualquer outro modelo, sejam colocados
como algo a ser alcançado, há que se considerar que nesse caso não caberá ao
homem escolher seu futuro: assim como a história da luta de classes levará,
irremediavelmente, ao comunismo – como mais tarde pensará Marx – a realização
dessas utopias calcadas no mito exigirá sempre a ação de uma força
estrangeira (Jesus, leis dialéticas ou mão invisível, tanto faz); e não importa o que se
faça, o resultado será sempre o mesmo. O homem (ou a humanidade), agindo
evidentemente de má-fé, transfere sua responsabilidade por seu mundo ao
transcendente. Pior, ele pode – também num ato de má-fé – depositar o fardo de
escolher e realizar ele mesmo seu mundo nalguma força estranha, que está para além
da liberdade.[7] A filosofia da liberdade rechaça todas essas empreitadas porque, ainda
que prometam a felicidade futura, o fazem a partir do passado e, ainda pior, retiram do
âmbito da liberdade – que é e somente poderia ser humana – seu poder constituidor de
mundo. Afinal, se é o homem o demiurgo que organiza o real peça a peça, seria forçoso
acreditar que algo além do homem possa realizar, por ele, sua felicidade. A alternativa
platônica e sua república, ainda que deplorável no tocante à liberdade humana
(essencialismo, tipos de almas), dá um passo importante ao resgatar o
papel inventivo humano; mas, e essa é a segunda grande dificuldade para se falar
no reino da liberdade, ele o faz a partir do modelo de virtude e justiça calcados na
tradição e história gregas. Ora, com isso tanto os filósofos quanto o cordeiro (ou seu
arauto, São João) não fazem mais que aliviar a consciência que sofre: ao cristão pobre,
que aguarda seu paraíso, virão se juntar proletários de todas as faces e recantos, tanto
aqueles que aguardam o equilíbrio forjado pelo egoísmo e ganância capitalista quanto
aqueles que esperam a justiça promovida pela completa e absoluta submissão
da liberdade e responsabilidade humanas a uma classe (ditadura do proletariado); ao
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homem que confia numa mão invisível não há nada a fazer tanto quanto também nada
pode aquele homem que deixa a cargo da dialética decidir seu futuro. Negar a liberdade
é submeter-se ao mito, não importa a bandeira ou credo; deixar para outro, seja Jesus,
Marx ou Smith, a realização do reino humano, é negar absolutamente a
responsabilidade do homem por seu mundo. Sem o engajamento da liberdade, é a má-fé
que se institucionaliza.
Assim, chega-se ao pai de Utopia, essa ilha onde a
realidade existente (problemas sociais aos olhos do homem Thomas) obedece ao
princípio da igualdade, justiça e liberdade; e virtude, é claro, afinal o ano era 1516. Mas
também aí está vedado ao homem escolher livremente seu destino: a
moralidade utópica funda-se, mais uma vez, no transcendente. A ordem social, toda
essa beleza de um mundo em que basta conhecer uma cidade para ter conhecido todas,
onde ouro e pedras preciosas não podem concorrer com o brilho do sol ou a beleza da
lua, etc., funda-se num ato de fé: a alma imortal, e a crença nalguma providência divina;
é daí, da completa submissão da liberdade de inventar, que More constitui um modelo
de mundo donde possa brotar uma lei que proíba a qualquer homem de ser indigno a
ponto de admitir que a alma morre com o corpo ou que o universo se move ao acaso e
não pela ação de Deus.[8] Difícil admitir que a utopia deixe entrever uma renovação
total do homem e do mundo, sobretudo porque ela toma seu modelo do passado: ainda
que queira distinguir-se do modelo cristão, o fato é que, em nome da
razão, Utopia realiza o mundo do homem racional. A exigência de respeito ao outro,
somada ao nível de autocontrole individual preconizado por More, faz do homem
utopiense já um Deus; ou ao menos semideus, pois somente assim Utopia pode ser
verossímil. Diferentemente do paraíso judaico-cristão ou platônico, More e
sua utopia parece propor a superação do passado em vista de um futuro outro; isso
facultaria ao homem mundano-concreto antever sua condição, seu possível, ou
o possível social humano. Mas apenas parece, pois além de praticamente repetir Platão
na determinação de uma essência humana, Utopia prevê um homem a tal ponto
idealizado que tudo aquilo que a razão – ou o bom senso – indica, é ali tomado como
que desejo natural humano. Talvez, já que o exercício é mesmo imaginário,
Utopia paire nalgum céu inteligível, mas está a tal ponto distante de qualquer realidade
(não confundir com possível humano) que se torna compreensível a acusação de que
utopia é u-topos, esse lugar nenhum que jamais será algum lugar.[9] E isso não é razão
para lamentos: a considerar o simétrico, pouco interessante e nada desafiador mundo
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imaginado por Thomas More, é melhor mesmo que Utopia (tanto quanto o paraíso onde
cabe ao homem contemplar Deus) jamais se realize. Chega-se sem rodeios aos modelos
de mundo que a modernidade propôs: a fé moderna, não apenas na razão, mas
no necessário progresso daquilo que consideraram homem e mundo (sujeito e objeto),
vai provocar as mais bizarras proposições de mundos a fazer; a liberdade humana,
de inventar o real peça a peça torna-se explícita nas utopias do século XVII – a
negação da liberdade, de toda liberdade, também.
A ciência, essa invenção humana de todas as épocas, tem na Europa do século
XVII seu momento áureo: parecia ao homem ter encontrado o bálsamo para todas as
suas dores. Deus ainda permanece nessas utopias, mas a influência do controle das
paixões a fim de evitar a pena eterna abre espaço para outra modalidade mitológica: o
progresso humano que viria da evolução científica. É assim que o debate filosófico,
antes voltado ao plano político ou religioso – lugar da moral –, é agora elevado ao nível
artístico e científico;[10] a liberdade humana, antes devotada a seres e
modelos divinos de antanho, será agora devota de outra de suas invenções:
a técnica feita ciência. E Tommaso Campanella é, em 1623, o inaugurador dessa utopia
da ciência: sua Cidade do Sol, governada por Hoh – sacerdote todo-poderoso – com a
ajuda de Potência, Sapiência e Amor, rivaliza em criatividade com a República de
Platão. Nessa cidade, protegida por muros em sete níveis, a reprodução obedecerá aos
comandos de Mor (Amor) a fim de melhorar o homem (algo que Platão já havia
sugerido ao legislador prudente); a eugenia platônica (ou grega) se faz europeia. Mais
ainda, em vista de melhoria da raça, a misoginia e o pensamento diretivo agigantam-se,
a família deixa de ser o núcleo primeiro da sociedade e a educação limita-se
à doutrinação estatal.[11] A liberdade do homem é, dessa feita, submetida a um modelo
ainda mais despótico que o próprio Deus: esse pretendeu legislar sobre o agir humano,
ao passo que a ciência pretende legislar sobre aquilo que o homem é; a propriedade é
coletiva nessa cidade ensolarada, mas nota-se que também as mulheres são coletivas –
ou, leia-se: a mulher é objeto de posse. E a infância idem: meninos e meninas seriam,
desde os dois anos de idade, educados para repetir o modelo proposto; o paradoxo
de propor uma mudança que pretende inviabilizar toda mudança futura – resultante da
desconsideração de que todo homem é liberdade – impõe-se. E Francis Bacon, o último
medieval e o primeiro moderno, repete o modelo: difícil dizer se o filósofo vê a ciência
moderna com olhos medievais ou se ele cientifica o Deus medieval, mas é inegável que
o papel antes reservado ao divino passa agora para a mão do homem. Não todo homem,
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não qualquer homem, mas sim o homem de ciência; esse sacerdócio, que ora em diante
vai presidir o controle de todo ato livre, terá seu auge durante a Segunda Grande Guerra,
com o extermínio científico (cianureto, câmaras, transporte, etc.) dos judeus, e isso
calcado em princípios científicos (a superioridade ariana não é, ao menos para
os nazistas, senão uma constatação científica).[12]
Outra vez o sacerdócio, homens que seriam mercadores da luz e que buscariam
toda sorte de conhecimentos para a casa de Salomão, centro ao mesmo tempo de
constituição de saber e, sobretudo, de controle social a partir de pesquisas feitas por
todo o mundo; trata-se de uma espécie de ciência iniciática (a cargo dos depredares,
homens de mistério, pioneiros do mistério, compiladores, doadores e benfeitores,
luminares, intérpretes da natureza e inoculadores – homens que teriam um alto grau de
luzes e, por isso, podem penetrar mais fundo que os demais nos mistérios da natureza)
sustentada numa hierarquia rígida pela qual homens mais do que homens(cientistas-
sacerdotes) – a elite científica – decidem o que cabe aos demais homens saber; Bens
além, esse laboratório gigante no qual a criatividade do homem Francis encerra sua
humanidade feliz, revela ainda as enormes e quiméricas pretensões científicas de
Bacon: criar chuva, neve, granizo, vento; talvez controlar a vida e a morte. Ora, se o
para-si é o trabalho de buscar realizar-se em-si-para-si, pode-se dizer que nessa utopia a
elite é – pela inventividade de Bacon – aquilo que mais se aproxima da ideia desse
de Deus faltado. Mas não sem o despropósito de fazer Deus descer do céu para habitar
um templo na terra (Salomão); ou seria melhor dizer que o homem (elite científica) foi,
ao menos imaginariamente, elevado à grandeza divina, e assim pode controlar a
natureza? E, claro, a liberdade inventiva, aquela de constituir o real peça a peça, fica
restrita aos homens de ciência.[13] Isso posto, nada mais é preciso para descrever um
mundo onde há igualdade, justiça e felicidade graças ao desenvolvimento da ciência
(razão); todavia, parece mais fácil acreditar na chegada do Reino do Céu de que admitir
que o controle da natureza vise o bem-estar de todos os homens e não apenas daqueles
da casa de Salomão que, efetivamente, detém esse saber e, assim, detém todo o poder.
Dignos de nota são, ainda, a Pansophie de Comenius, e sua fé inabalável na educação
como promotora da libertação humana (que o fez antecipar Montessori em três séculos),
e a tentativa de Glanvill, de ainda no século XVII, complementar Bacon.[14]
De fato, as utopias merecem reparos. Talvez isso não se aplique àquelas
propostas, como o Reino prometido por Jesus ou o paraíso anunciado por Platão, pois
nessas Deus mesmo decide pelo homem; mas nota-se que no âmbito utópico – de todas
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as utopias – o que ressalta é a norma social. Não ocorreu ao Platão da república, nem a
More, Campanella ou Bacon, buscar no futuro o mundo desejado; assim, ainda que
esses arautos de suas fantasias as prometam para uma realização futura, fica evidente
que elas nascem do passado de cada um deles e, mais, pretendem manter leis e costume
de antes. Se a ética visa o passado, nada de estranho que tais utopias preservem valores
(e preconceitos) de seu tempo ou de tempos antanho (como o caso da Bíblia); mas o
intelectual do século XIX exige uma pesquisa séria, e essa seriedade parece encontrar
seu lugar na utopia socialista; ou melhor, chega de utopias, é a hora do
socialismo científico. Não se nega que, do ponto de vista do presente, há uma diferença
importante entre o socialismo reacionário e o socialismo utópico; mas parece bastante
suspeita a distinção desse – utópico – e aquele que se pretende científico. Antes, porém,
de mais uma vez a liberdade humana prestar subserviência à ciência, cumpre visitar o
socialismo utópico, essa vertente que aos olhos marxistas aparece como ignorante
da maturidade de seu momento histórico;[15] de fato, a revolução a partir desses
modelos revela-se impossível, além do que toda mudança proposta exige a boa
vontade dos opressores (recorrem ao espírito de justiça humano). Saint Simon será o
primeiro socialista a ser visitado; e chega a ser anedótica sua proposta de promover a
liberdade, a igualdade e a paz a partir da constituição de uma fraternidade de
industriais, artistas, cientistas, etc. que administrem o país (França) visando o
crescimento econômico e, desse, a felicidade geral (todos os homens).[16] A moral, que
preconiza que cada homem colocará o melhor de si a serviço dos demais, realiza no
plano subalterno(operariado) mesmo sonho outrora atribuído
aos industriais (e comerciantes): a moral teria por base a liberdade de consciência; e
a escolha – é inacreditável – teria por base o princípio de que todos os homens devem se
ver como irmãos. Assim, o mais rico vai se preocupar com o mais pobre, e aquele que
sabe com o ignorante, pelo fato que são (ou aprenderam que todos os homens são)
irmãos;[17] Marx tem mesmo razão ao questionar o método (ou a falta dele) desse
socialismo, que acredita – segundo Marx, porque idealista pequeno-burguês – no
homem compassivo, que ama seu próximo pelo simples fato que ele está ali, perto.
O Reino de Jesus parece mais verossímil.
Fourier, e sua proposta de cooperativismo, leva vantagem em relação às demais
proposições: de fato é possível (embora pouco provável) que o homem
possa, livremente, fazer acordos de cooperação; mais do que isso, o homem François
Marie Charles – livremente – inventou e deixou de herança para todo socialismo
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rebaixado ao plano dos insetos, não lhe cabendo sequer escolher como se vestir. Em
ambos os casos, não se pode esquecer, o que se perde é a liberdade.
Em sua ontologia Sartre insiste em mostrar a absoluta positividade do Ser, que
não pode senão ser o que é; mas, ainda assim, esse Ser se mostra de duas maneiras: em-
si e para-si (fenômeno). Ora, se de acordo com Kant o ser não é um predicado real, a
ontologia “limitar-se-á a declarar que tudo se passa como se o Em-si, em um projeto de
fundamentar a si mesmo, se concedesse a modificação do Para-si. Compete à metafísica
formar as hipóteses que irão permitir conceber esse processo como um acontecimento
absoluto que vem coroar a aventura individual que é a existência do ser” (SARTRE,
1997, p. 757).[22] A metafísica materialista, por sua vez, não somente responde que é o
Ser e por que ele se faz mundo, mas também afirma um mundo anterior que prepara o
que se pode considerar mundo humano. Assim, “Dogmático quando afirma que o
universo produz o pensamento, o materialismo passa imediatamente ao ascetismo
idealista” (SARTRE, 1949, p. 143-4) e dialeticamente joga a metafísica contra a
ciência, e essa contra aquela; o resultado não poderia ser mais nefasto: o homem é
reduzido a mero objeto dentre outros e, pior, submetido a leis materiais que
determinariam de antemão seu agir mundano-concreto. Para Engels isso nada mais seria
que resultado de um processo evolutivo de milhões de anos; porém, lembra Sartre,
também o que se pode chamar de história é algo eminentemente humano.[23] Assim, “A
ciência é feita de conceitos, no sentido hegeliano do termo. A dialética em sua essência
é, ao contrário, o jogo de noções” (SARTRE, 1949, p. 153), donde que o movimento
dialético seja o contrário daquele da ciência; noutros termos, sem liberdade não faz
muito sentido pensar a existência concreta, viva e orgânica. É o caso de Engels e
sua metafísica, quando pretendem fazer crer que o mundo seja movimento
resultante desde o universo científico até o plano realista da vida particular.
Apesar de Engels, de Marx, e do aspecto científico desse socialismo, para Sartre
ciência e dialética estão em planos inversos: à ciência cabe investigar as condições
gerais e abstratas do universo; a dialética, por sua vez, almeja a totalidade concreta.
Ainda, se a ciência expressa o ponto de vista burguês, como entender que marxistas
busquem nela argumentos e provas do materialismo? Inegável que a ciência seja
materialista; mas também não o é a burguesia? A esse respeito diz Sartre:
eu vejo claramente duas classes em luta: uma, a burguesia é
materialista, seu método de pensar é a análise, sua ideologia é a
ciência – outra, o proletariado é idealista, seu método de pensar é a
síntese, sua ideologia é a dialética. E como existe luta entre as classes,
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A passagem de um a outro, ou melhor, essa confusão forjada entre as classes não parece
incomodar aqueles que promanam a ortodoxia materialista; ao contrário, tanto mais se
satisfazem quanto mais seu discurso é confuso e contraditório (irredutibilidades
redutíveis). A causalidade materialista fica no ar; não cabe, como se pretende, explicar
um fenômeno social por outro, ou deduzir o psíquico do biológico e, menos ainda, o
biológico a partir de leis físico-químicas. Essa pecha positivista, que Sartre denuncia no
materialismo dialético, acaba sendo escamoteada pela exigência científica; “a noção de
causa está suspensa entre as relações científicas e as sínteses dialéticas”, donde “o
materialismo sendo, (...) uma metafísica explicativa (...), utiliza por princípio o esquema
causal” (SARTRE, 1949, p. 156). O resultado não poderia ser pior: reduz o espírito à
matéria, explica o psíquico pelo físico. A riqueza do fato histórico acaba por reduzir-se
a aspectos causais, lineares e determinantes; e, ao contrário do que propôs o mestre
Marx (dialética), a ortodoxia dialética – que pretende falar em nome do proletariado –
recorre à ciência como sua panaceia, repetindo a ideologia burguesa.
A filosofia da liberdade não pode satisfazer-se com isso; menos ainda o futuro
humano – essa fonte de possíveis, que jamais seca – pode estar restrito a leis que o
definem de antemão. A utopia, de More e de todos os homens que negaram a liberdade
em favor de algum modelo de mundo e homem, repete-se nessa ciência utópica que, por
suas leis, vai realizar a história humana; a filosofia da liberdade, ao contrário, não
oferece modelos, não pode antevê-los, não pretende controlar o que virá – saber do
futuro não é muito diferente de prometer que, no fim da história, o Reino dos Céu sou
o Paraíso Platônico serão realizados. Note-se que o paradoxo inicial se reapresenta: o
homem já nasce com passado, ou seja, há uma norma social atuando; e é dela que
se indica o que será (ou deve ser) o futuro. Assim, como a liberdade é negada em seu
todo, até mesmo Kant pensa uma natureza humana cabível de bem e mal; mas o que
seria um ato bom ou mal em geral? Ou alguma sorte de bem não situado? Essa natureza
originariamente malévola teria de saber de si antes de ser para, assim, constituir o mal
de sua ação antes da situação – absurdo que não incomoda o velho moralista, satisfeito
com as amarras do sonho idealista e, também, por ter reduzido a liberdade a uma ideia.
Mas a ortodoxia dialética, com sua causa infundada cientificamente, torna-se uma
noção vulgar e prática – ou, conforme afirma Sartre, “A consciência das massas tem
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uma verdade prática porque ela é expressão necessária de uma situação, e porque suas
reivindicações englobam seu próprio ultrapassar rumo a uma sociedade na qual ‘o
homem seja o ser supremo para o homem’” (SARTRE, 1964a, p. 29).
Mas, vale lembrar, em temos de utopia é preciso ser radical e a raiz é o homem;
e ser-homem é ser liberdade, insiste Sartre. A liberdade, ou o homem livre, é o ser
supremo para o homem. Um círculo vicioso evidente? Não. É verdade que a filosofia de
Sartre, ao propor o engajamento da liberdade, propõe partir do homem situado e chegar
à liberdade social; mas cada homem, ao assumir seu projeto de ser-homem, executa
(realiza em seu ser) um modelo de mundo como ele deveria ser. A ética do
porvir (toda ética, portanto) emana daquilo que é o modo de ser humano no mundo, ou
seja, parte-se da liberdade situada para, livremente, inventar o futuro (acordo de
liberdades, ou Grupo em Fusão, SARTRE, 2002, pp. 501 ss). As barreiras que
impedem pensar uma ética do porvir se revelam em sua crueza: o homem é liberdade
que se elege em situação; a liberdade somente se realiza sobre o passado que cada
homem herda de outros homens. Mesmo assim o homem permanece abertura ao
futuro, ainda que suas possibilidades próprias lhe sejam negadas pelo ser-para-outro. A
má-fé, enquanto tentação determinista de, de fora, explicar esse fenômeno, impõe-se: a
ciência cria tipologias, esquarteja a existência em partes correlacionadas (primeira
infância, segunda infância, etc.) ou propõe soluções ainda mais bizarras, como sugerir
estruturas (modelos de ser) que podem explicar o um a partir do outro. A
fenomenologia não pode fazê-lo, e denuncia a prática de ignorar que cada homem, em
todas as suas manifestações mundano-concretas, é liberdade; e defende: nenhum homem
ou ciência é capaz de levar a cabo essa tarefa pelo outro. Ninguém pode saber do fim da
história; ele sempre será, em seu todo, invenção.
Enfim, engajar a liberdade é pré-requisito para a ética do porvir; nesse sentido
Sartre desmistifica pressupostos éticos que servem de base para a constituição
de utopias e, em certa medida, também do socialismo – ao menos, do socialismo sem
liberdade. Admitir a liberdade exige abrir mão de certezas sobre o futuro, é verdade;
mas negá-la exige manter a crença de que o homem é determinado em seu passado.
Assim sendo, a crença socialista na ciência se amplia: a ética é um projeto que, com
ajuda especializada, pode-se levar a termo. A fé nalgum fim da história resiste, mesmo
depois de tantos fracassos em sua realização; não faltam homens para repetir o projeto
absurdo de alcançar a Totalidade, o Ser, a Substância no qual o movimento que cada
homem é encontre repouso. Também não faltarão homens que insistirão num hábito,
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apreendido ainda na infância, de não se sentir responsável por seu ser, abrindo mão de
sua liberdade para livrar-se de sua responsabilidade (má-fé); outros tantos preferirão o
paraíso imaginado à alguma livre realização de si, e preferem entregar sua liberdade na
mão do primeiro líder – religioso ou político – que, com mais eficiência, aliviá-lo de si
mesmo (e de sua culpa). Que seja! A liberdade, quando engajada na história, revela que
o homem é livre e responsável; revela mais: cada homem é livre em sua situação, não
importa qual seja ela. A ética, o futuro humano, é um caminho que se trilha, e não a
reificação do próprio caminho.
AUTOR
*Luciano Donizetti da Silva possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal
do Paraná (1999), mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade
Federal do Paraná (2002) e doutorado em História da Filosofia pela Universidade
Federal de São Carlos (2006). Atualmente é professor de Filosofia na Universidade
Federal de Juiz de Fora, MG, no Instituto de Ciências Humanas, Departamento de
Filosofia. Bolsista CAPES, Estágio Sênior (Université Jean Moulin, Lyon), processo n°
2631/15-6.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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241
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NOTAS
[1] ORWELL, 2000, p. 114.
[2] “Toda realidade humana é uma paixão, já que projeta perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo
tempo, constituir o Em-si que escape à contingência sendo fundamento de si mesmo, o Ens causa sui que
as religiões chamam de Deus. Assim, a paixão do homem é inversa à de Cristo, pois o homem se perde
enquanto homem para que Deus nasça. Mas a ideia de Deus é contraditória, e nos perdemos em vão; o
homem é uma paixão inútil” (SARTRE, 2011, p. 750).
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[3] “A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível: a essência do ser humano acha-
se em suspenso na liberdade. Logo, aquilo que chamamos liberdade não pode se diferençar do ser da
‘realidade humana’. O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre o ser do
homem e seu ‘ser-livre’” (SARTRE, 2011, p. 68).
[4] “Aquele que viver bem durante o tempo que lhe cabe, regressará à morada do astro que lhe está
associado, para aí ter uma vida feliz e conforme. Mas, se se extraviar, recairá sobre si a natureza de
mulher na segunda geração; e se, mesmo nessa condição, não cessar de praticar o mal, será sempre gerado
com uma natureza de animal, assumindo uma ou outra forma, conforme o tipo de mal que pratique. Ao
mudar o seu estado anterior, não se verá livre destes sofrimentos, enquanto for arrastado pelo percurso do
Mesmo e do Semelhante com a vasta massa formada de fogo, água, ar e terra que depois se juntou a ele;
só quando dominasse por meio da razão essa massa turbulenta e irracional, voltaria à forma do seu estado
primeiro e ideal” (PLATÃO, 2011, p. 119).
[5] Donde a justiça deva ser ensinada nessa República Ideal, pois, “_ Na verdade, a justiça é, ao que
parece, algo semelhante com a única diferença que ela não rege os negócios externos do homem, mas
seus negócios internos, seu ser real e o que lhe concerne realmente, não permitindo a qualquer das partes
da alma que cumpra uma tarefa alheia, nem às outras três partes que usurpe as respectivas funções. Ela
quer que o homem regule bem os seus verdadeiros negócios domésticos, que assuma o comando de si
próprio, ponha ordem em si e ganhe sua própria amizade; que estabeleça um perfeito acordo entre os três
elementos de sua alma, como entre os três termos de uma harmonia, a mais alta, a mais baixa, a média e
as intermediárias se existirem, e que, unindo-as em conjunto, ele se torne, de múltiplo que era,
absolutamente uno, temperante e harmoniosos; que somente então se ocupe, se é que se ocupa, de adquirir
riquezas, de cuidar do corpo, de exercer atividades na política ou nos negócios privados, e que tudo isso
considere e denomine bela e justa a ação que salvaguarda e contribui para a ciência que preside tal ação;
que, ao contrário, denomine injusta a ação que destrói esta ordem e ignorância , a opinião que preside esta
última ação” (PLATÃO, 1965, pp. 234-5).
[6] SARTRE, 1947.
[7] O sonho humano de ser-deus, preenchendo em definitivo sua falta de ser originária, realiza-se nas
promessas do cordeiro imolado tanto quanto na crença moderna no fim da história; assim, a
revelação coloca Jesus como aquele que – descendo do céu – vai instaurar seu reino. Ou seja, “quem
vencer, eu o farei coluna no templo do meu Deus, e dele nunca sairá; e escreverei sobre ele o nome do
meu Deus, e o nome da cidade do meu Deus, a nova Jerusalém, que desce do céu, do meu Deus, e
também o meu novo nome” (BÍBLIA, 1993, Ap 3:12); esse reino virá, não importa o que faça o homem:
“E levou-me em espírito a um grande e alto monte, e mostrou-me a grande cidade, a santa Jerusalém, que
de Deus descia do céu.
E tinha a glória de Deus; e a sua luz era semelhante a uma pedra preciosíssima, como a pedra de jaspe,
como o cristal resplandecente” (BÍBLIA, 1993, Ap. 21:10-11). Noutro termos, mas ainda na crença de
que a salvação virá de outro lugar que não a liberdade humana, Marx e Engels também fazem suas
predições: “Para nós, o comunismo não é um estado que deva ser implantado, nem um ideal a que a
realidade deva obedecer. Chamamos comunismo ao movimento real que acaba com o atual estado de
coisas. As condições deste movimento resultam das premissas atualmente existentes” (MARX-ENGELS,
1999a, p. 43), donde “Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classe,
surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do desenvolvimento de
todos” (MARX-ENGELS, 1999, p. 44). E, não muito distante daí, ainda que fazendo coro no partido
adversário do comunismo, tem-se Adam Smith e sua mão invisível: “Geralmente, na realidade, ele não
tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo (...); ao orientar sua
atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas o seu próprio ganho e,
neste, como em muitos outros casos, é levado como que por uma mão invisível a promover um objetivo
que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo não
faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir seus próprios objetivos, o indivíduo muitas vezes
promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quanto tenciona realmente promovê-lo”
(SMITH, 1983, p. 379, grifo nosso).
[8] Considerando-se que “Os utopienses creem, portanto, que depois desta vida, os vícios serão punidos e
a virtude, recompensada. Aqueles que negam essa proposição deveriam ser considerados abaixo da
condição humana, uma vez que estão degradando a sublimidade de sua própria alma e se reduzindo à
condição do animal que possui apenas seu corpo material perecível. Esses indivíduos nem deveriam ser
considerados como cidadãos, uma vez que, certamente iriam trair e desrespeitar as leis e os costumes da
sociedade se não fossem contidos pelo medo. Quem irá duvidar de que um homem, que nada teme além
da lei e que não tem nenhuma esperança numa vida depois da morte, fará de tudo para infringir as leis de
seu país por meio da astúcia ou da violência para satisfazer sua avidez por vantagens pessoais. Assim, a
alguém que compartilha uma tal visão não se concede honrarias e nem se confiam funções e
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responsabilidades públicas, sendo visto por todos como um ser sórdido e de natureza baixa. Ainda assim,
não o punem por isso, pois estão convencidos de que ninguém escolhe sua fé apenas por um mero ato de
vontade” (More, 2004, p. 116), onde seria o espaço da liberdade?
[9] Que o alvo de More seja a Inglaterra do século XVI não muda o fato de que, nessa utopia, os valores
pregressos – a escravidão e o machismo, por exemplo – serão a tônica dessas leis que fazem
de Utopia a melhor das repúblicas; boa, mas talvez aqueles homens destinados à escravidão não estejam
de acordo, afinal, “quão suaves e práticas são essas leis que procuram punir e eliminar os vícios e salvar o
homem. Os criminosos são tratados de tal modo que são levados a ver a necessidade de serem honestos e
de repudiarem o mal que fizeram antes. Há tão poucos riscos de reincidência que os viajantes, que vão de
um lado para outro do país, os têm como guias da mais alta confiança, trocando os nos limites de cada
distrito. Com efeito, o escravo não tem a menor possibilidade de realizar um roubo, uma vez que não tem
arma e qualquer dinheiro em sua posse o denunciaria. Se for apanhado, o castigo o espera; nenhuma
esperança há de fuga. Como esconder-se?” (MORE, 2004, p. 24); e, não se pode esquecer, as mulheres
(fisicamente mais fracas que o homem) tem seu papel bem definido: como “Em cada família, é o mais
velho que governa a casa; as mulheres devem obediência aos maridos; os filhos, aos pais e, de um modo
geral, os mais jovens obedecem aos mais velhos” (MORE, 2004, p. 63), ela meramente fará parte de uma
estrutura já definida. Isso nem é tão mal assim, num mundo que – contrariamente à todo futuro – esforça-
se por cristalizar-se: “Relações sexuais antes do casamento, quando devidamente comprovadas, são
motivo de punições severas tanto ao homem quanto à mulher, que não podem mais se casar pelo resto da
vida, a menos que sua pena seja suspensa pelo perdão do príncipe. Adicionalmente, o pai e a mãe, chefes
da família em cuja casa o ato foi praticado, ficam publicamente desonrados por terem sido relapsos em
seus deveres” (MORE, 2004, p. 93); ainda, “Os sacerdotes são também responsáveis pela educação das
crianças e dos jovens. O aprendizado de boas maneiras e de moral é considerado como tão importante
quanto o conhecimento. Desde o início, procuram inculcar na mente das crianças, cuja alma é ainda tenra
e dócil, princípios que serão úteis à preservação da comunidade. Aquilo que é plantado na mente das
crianças continuará vivo na mente dos adultos e torna-se de grande valor para o fortalecimento da
comunidade: o declínio das sociedades pode sempre ser traçado a partir dos vícios que emergem de
atitudes erradas” (MORE, 2004, p. 121).
[10] “À Sapiência compete a direção das artes liberais, mecânicas, e de todas as ciências, bem como a dos
respectivos magistrados, dos doutores e das escolas de instrução. Obedecem-lhe, pois, tantos magistrados
quantas são as ciências. Há um magistrado que se chama Astrólogo, outro Cosmógrafo, Aritmético,
Geômetra, Historiógrafo, Poeta, Lógico, Retórico, Gramático, Médico, Fisiólogo, Político, Moralista,
havendo para eles um único livro chamado Saber, no qual, com maravilhosa concisão e clareza, estão
inscritas todas as ciências” (CAMPANELLA, 2002, p. 10).
[11] Nesse sentido, “Se uma mulher não é fecundada pelo homem que lhe é destinado, é confiada a
outros; se, finalmente, se revela estéril, torna-se comum, mas lhe é negada a honra de sentar-se entre as
matronas na assembleia da geração, no templo e à mesa. Assim procedem para que, por motivos de
luxúria, não procurem elas a esterilidade. As que concebem ficam, por quinze dias, dispensadas de
qualquer fadiga. Começam, em seguida, trabalhos fáceis que lhes fortifiquem a prole (...), os médicos só
lhes permitem alimentos profícuos” (CAMPANELLA, 2002, p. 25). A crença na utopia científica é
tamanha que caberá ao médico decidir a alimentação da mãe, ao físico decidir os dois anos pelos quais a
criança deverá ser amamentada; em seguida ela será entregue ao mestre para “quase que como um
divertimento, a aprender o alfabeto, a explicar as pinturas, a exercitar-se na corrida, na luta, e depois a
estudar as histórias expostas pelas pinturas e as diferentes línguas. Até aos seis anos de idade, vestem uma
elegante roupa multicor” (CAMPANELLA, 2002, p. 25). Resta o espaço de liberdade: ao menos a cor da
roupa das crianças não foi decidida de antemão, mas está decretado que será elegante e colorida; fica
patente que, apesar de toda boa vontade do filósofo italiano, o caso é com isso todo possível humano é
negado, e a liberdade reduzida quando muito ao mero arbítrio.
[12] Após lembrar que Bacon captou muito bem o sentido da ciência, mesmo não sendo matemático,
pode-se ler em O conceito de Iluminismo que “o iluminismo se auto-reconhece até mesmo nos mitos.
Quaisquer que sejam os mitos para os quais essa resistência possa apelar, esses mitos, pelo simples fato
de se tornarem argumentos numa tal contestação, aderem ao princípio da racionalidade demolidora pela
qual censuram o iluminismo. O iluminismo é totalitário” (ADORNO-HORKHEIMER, O conceito de
Iluminismo, p. 21).
[13] Como pode um mundo perfeito negar a liberdade sexual, quase que seguindo à risca a totalidade das
limitações propostas pelos judeus? “Entendereis que não há sob o céu nação mais casta que Bens além,
nem tão livre da corrupção e da torpeza. É a nação virgem do mundo. (...). Pois nada há entre os mortais
de mais belo e admirável que a mente casta deste povo. Sabei também que entre eles não há bordéis,
casas dissolutas, nem cortesãs nem qualquer coisa do gênero” (BACON, 1979, p. 258). Todavia, a
maneira de levar essa castidade aos jovens não parece muito santa ou, mesmo, justa: “Não são
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invalidados os casamentos feitos sem o consentimento dos pais, mas são castigados os herdeiros, pois os
filhos nascidos de tais matrimônios não são admitidos à herança em mais que a terça parte dos bens
possuídos pelos seu pais” (BACON, 1979, p. 260); qual seria mesmo a culpa dos netos (ainda não
nascidos)? E antes de dar asas à imaginação, para descrever toda a ciência divinizada que, no lugar de
Deus, deveria controlar a liberdade humana, o filósofo ainda brinda seu leitor com a benção de um
mensageiro judeu em língua espanhola: “Deus vos abençoe, meu filho; vou oferecer-vos a joia mais
preciosa que possuo; pelo amor de Deus e dos homens, vou fazer-vos
uma relação da verdadeira organização da casa de Salomão” (BACON, 1979, p. 262, grifo nosso).
[14] “Houve, de fato, na Inglaterra, a partir de 1650, aproximadamente, um admirável impulso do que se
chamava a nova filosofia, filosofia experimental ou filosofia eficaz (effective philosophy), isto é, o
conjunto de ciências experimentais da natureza. A Sociedade Real de Londres, fundada em 1645, e
oficialmente reconhecida em 1662, a obra do físico Robert Boyle (1627-1691), sobretudo a obra de
Newton (1642-1727), assinalam os momentos desse desenvolvimento. A obra coletiva da Sociedade Real,
o catálogo que tenta inventariar os fenômenos da natureza, é um ensaio destinado a realizar a primeira
exigência da ciência baconiana: a História. E Glanvill, em seu Scepsis scientifica(1665), vê ‘na Nova
Atlântida, o projeto profético da Sociedade Real’. O mesmo Glanvill, nessa obra, exprime bem o espírito
da Sociedade, ao mostrar a incerteza de nossos conhecimentos acerca de todas as matérias de que trata a
filosofia cartesiana: união da alma e do corpo, natureza e origem da alma, origem dos corpos vivos,
ignorância das causas (‘não podemos conhecer, dissera Hume, que uma coisa é causa de outra, senão
enquanto a esperamos; esse caminho não é infalível’); mas opõe-lhe a fecundidade em descobertas da
parte prática e experimental da filosofia, essa ‘nova filosofia para a qual dirige seu discurso’” (BREHIER,
1977, p. 45). Sobre a pedagogia de Jan Amós Komenský, ver COMENIUS, 1999.
[15] “É precisamente uma vantagem da nova tendência não antecipar dogmaticamente o mundo, mas de
somente buscar encontrar o novo mundo através da crítica do mundo que nos precede. Até o momento os
filósofos tiveram a solução de todos os enigmas, encerrados em seus escritórios, e ao estúpido mundo
exotérico, bastava abrir sua boca para que caíssem nela as pombas assadas [palomas asadas] do
conhecimento absoluto” (MARX, 1843, tradução nossa).
[16] A filosofia de Saint-Simon, sobretudo seu socialismo, revela aspectos absolutamente atuais: “Porque
a ignorância, a superstição, a preguiça e o gosto pelo lazer dispendioso forma o apanágio dos chefes
supremos da sociedade, e que as pessoas capazes, econômicas e trabalhadoras não são empregadas senão
como subalternos e como instrumentos. Porque (...) os homens mais imorais são chamados a formar os
cidadãos na virtude, e que, sob a relação da justiça distributiva, esses são os grandes culpados que são
encarregados de punir as faltas dos pequenos delinquentes” (SAINT-SIMON, 2003, p. 78). Ainda assim,
também o homem Claude-Henri é vítima de seu otimismo, e nem mesmo os santos teriam a conduta
pretendida pelo filósofo para o grupo social mais voraz de todos: “A indústria é uma: todos seus membros
são unidos pelos interesses gerais da produção, por uma necessidade que todos têm de segurança no
trabalho e de liberdade nas trocas. Então, os produtores de todas as classes, de todos os países, são
essencialmente amigos; não há nada que se oponha à sua união, e a coalizão de seus esforços aparece-
nos...” (SAINT-SIMON, 2003, p. 58) como condição indispensável para que a indústria liberte o homem
(trabalhador) do trabalho; ora, o contrário disso parece bem mais plausível.
[17] A igualdade terá, contudo, seus limites: “Cada um obterá um grau de importância e de benefícios
proporcional `sua capacidade e à sua situação [mise]; isso constitui o mais algo grau de igualdade que seja
possível e desejável. Tal é a característica fundamental das sociedades industriais (...). Não esqueçamos
também que, em uma sociedade de trabalhadores, tudo tende naturalmente a ordem; a desordem vem,
sempre e em última análise, de quem não faz nada[fainéants]” (SAINT-SIMON, 2003, p. 83).
[18] Mesmo com todo seu esforço libertário, o socialismo de Fourier mostra que os valores nutridos pelo
homem Charles acabam por estabelecer, nessa filosofia que almeja a liberação, um limite
intransponível para liberdade (ética do porvir); é assim que o estado perfeito é aquele no qual háunião
absoluta entre ordem e liberdade, o que faz dessa mero destino humano: “Nosso destino é avançar; cada
período social deve avançar rumo ao superior: a promessa [voeu] da natureza é que a barbárie tende à
civilização e chega aí por degraus; que a civilização tende ao garantismo [garantisme], que o garantismo
tende à associação simples e, assim, os demais períodos” (FOURIER, 1973, p. 145). E ao homem, ou à
liberdade, cabe algo? Se o destino se encarrega do destino humano, não há alternativa: essa teoria
libertária, porque define liberdade, aos olhos da filosofia da liberdade adentra o plano da má-fé.
[19] Ainda que seja considerado o socialista utópico mais importante, a filosofia de Robert Owen tem,
como um de seus pilares, o fato de que nenhum homem é responsável por aquilo que é (faz, escolhe),
visto sua existência estar ligada ao ambiente e à hereditariedade; feito isso, nem mesmo sua radical
crítica de toda religião pode minimizar o caráter absolutamente de má-fé dessa livre invenção do
socialismo, conf. OWEN, 2017.
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[20] A ideias de Proudhon foram expressas em seu Système de contradictions économiques (ou
Philosophie de la misère, PROUDHON, 1846), e teve sua contrapartida com Miséria da
Filosofia(MARX, 1985), a resposta crítica de Marx. É claro que o homem Pierre-Joseph é, tal qual Marx,
uma liberdade situada; anarquista, defensor da liberdade política e social, crítico da propriedade privada e
da desigualdade, ainda assim ele não está imune aos valores de seu tempo (há em sua filosofia traços
de antissemitismo e misoginia, repetindo norma do século XIX). Mesmo assim, especificamente no
tocante à sua polêmica com Marx – sobre os rumos da revolução comunista – o único caminho plausível
de resposta é o julgamento da história; e, nesse, parece que A filosofia da miséria teve mais acertos que
erros, conf. ANSART, 1969.
[21] Também o homem Immanuel, em 1793 (A religião nos limites da razão), não mede palavras em suas
investidas contra a autonomia do homem; note-se, a propósito, o que Kant afirma sobre o exercício da
liberdade num mundo moral – bem e mal estariam arraigados na natureza humana. Esse mal originário,
“A inveja, a ânsia de domínio, a avareza e as inclinações hostis a elas associadas assaltam a sua natureza ,
em si moderada, logo que se encontra no meio dos homens, e nem sequer é necessário pressupor que estes
já estão mergulhados no mal e constituem exemplos sedutores; basta que estejam aí, que o rodeiem, e que
sejam homens, para mutuamente se corromperem na sua disposição moral e se fazerem maus uns aos
outros” (KANT, 2008, p. 108).
[22] “Ser não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa acrescentar-se
ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas. No
uso lógico é simplesmente a cópula de um juízo” (KANT, 2001, p. 504).
[23] A respeito nota-se que chegam a ser hilárias as análises feitas por Sartre de exemplos tomados por
Engels da física e da química (SARTRE, 1949, pp. 148-51).
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Entrevista
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Você tem nos falado nos últimos anos sobre uma recente tendência na filosofia
contemporânea que é a “filosofia do filme”. Poderia nos falar um pouco sobre o
significado e o valor dessa pesquisa para a filosofia e para o cinema?
A própria terminologia “filosofia do filme”, film-philosophy, em inglês, corresponde um
pouco a necessidade de separar o que seria o meio (o filme) da função do espectador,
isto é, da recepção do filme. Trata-se de pensar por meio do filme como meio, como
veículo e não na relação com o público primeiramente. Josef Früchtl publicou um livro
em 2004 no qual situa três gêneros de filme; o western (o faroeste ou filme de cowboy),
o filme de gângster e o filme de ficção científica. Ele associa estruturas de pensamento,
digamos assim, a esses gêneros. Em comum nesses gêneros há a apresentação de um
“herói problemático”, ou seja, uma acepção moderna de herói. O título de seu livro é –
Das unverschämte Ich (o eu impertinente ou sem vergonha). Quem é esse herói que
ainda ousa “dar as caras” na tela de cinema e ao que ele está relacionado? É muito
interessante verificar nos três gêneros uma interpretação que passa pela decadência da
figura do herói. Do filme de fronteira à constituição ao vilarejo, à fase em que, dentro
do mesmo gênero, o western, surge uma tendência psicologizante, que caracteriza com
clareza aquele herói que decididamente deixou de ser o herói dos primeiros filmes,
aquele que já era distante do herói antigo. Früchtl cita como exemplo o filme High
Noon (Matar ou o morrer, de 1952) dirigido por Fred Zinnemann, sobre o sujeito que
quer ser herói e a cidade diz “não, a gente não precisa mais de herói, está tudo bem aqui,
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saia daqui com a sua esposa e seja feliz, a gente não quer confusão”. Há um limite,
portanto, daquilo que já deixou de ser herói e que se torna cada vez mais moderno. Sua
referência é Hegel e a ideia da consciência dilacerada. Não vou repetir a interpretação
pertinente e primorosa que ele desenvolve, mas podemos dizer que a tese central de seu
livro é a ambiguidade do herói, que – na modernidade - já não existe em sua inteireza,
mas que ressurge no cinema, ao constituir um tipo de personagem que vive o conflito de
não poder ser mais herói. O romantismo, associado ao filme de gângster, corresponde
àquele herói desorientado que busca algo, mas decididamente não sabe mais o que é.
Uma fome por algo que se revela como uma espécie de vício; vício por alguma coisa
que ele não sabe o que é, porque deixou de reconhecer o objeto de sua procura. O
gângster é a figura do capitalista às avessas, já dentro do contexto social da cidade – não
mais do vilarejo -, da metrópole, diferentemente do cowboy que vive no ambiente
inóspito da grande planície, imerso em sua solidão, eventualmente enfrentando regiões
de fronteira, na construção e estruturação de vilarejos, micro modelos de constituição da
sociedade moderna. Früchtl acaba fazendo uma leitura da modernidade e do que seria o
heroísmo na modernidade associado a esses gêneros de filme que comportam estruturas
filosóficas que primeiro notaram os sintomas da modernidade e a crise da subjetividade.
O último gênero considerado, da ficção cientifica, surge em conjunção com Nietzsche,
Deleuze e a pós-modernidade. É possível ver o quanto a ficção cientifica se constitui
como gênero híbrido em relação aos outros gêneros, já que nela, em Matrix, por
exemplo, vemos verdadeiras cenas de duelo, de reconstituição do agonístico romântico,
nas cenas de embates, também existentes nos filmes de gângsters. Quer dizer, pode ser
visto como uma reunião de outros modelos e gêneros. Alguns dos exemplos de
correspondência citados, como o Exterminador do futuro, são de filmes produzidos para
o grande público, não são filmes de arte, caracterizados pela busca por uma imagem
com valor de autenticidade. São filmes muitas vezes rejeitados pelos intelectuais mais
acostumados à crítica do espetáculo, da imagem-clichê ou da indústria cultural. Tais
filmes, conhecidos como blockbusters, são vistos por Früchtl como portadores de temas
que projetam essa figura de um “herói impossível”, mas que insiste em se colocar em
cena, num futuro que repete modelos, ações e situações de outros gêneros. Sua teoria do
filme não trata, portanto, do que se vê ou se gosta, de sermos guiados por um
sentimento em relação ao filme, mas do que existe num filme que leva a pensar e que
pode se relacionar com o pensamento já existente. Também não se trata de uma falsa
relação na qual exista uma sobreposição da filosofia ao filme, mas estruturas de
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pensamento que acabam por ser representadas nessa figura de um herói fracassado, por
princípio, que é o herói moderno.
O livro de Josef Früchtl se chama O eu impertinente. Uma história heroica da
modernidade[1] (Das unverschämte Ich. Eine Heldengeschichte der Moderne),
seguindo a tradução de língua inglesa, pode ser traduzido como impertinente. Poderia
ser também aquele que é sem vergonha, aquele que perdeu a vergonha, uma referência
à Mínima moralia, de Adorno, em referência ao eu que perdeu todo o pudor de falar o
que quer: o eu fascista. Penso que quando Früchtl escolheu esse título para falar do
cinema, não estava pensando exatamente no valor moral ou político, no “eu” fascista
moral e politicamente localizado, mas naquele que ainda ousa dar as caras nas grandes
telas do cinema, por isso “impertinente”, por ousar dar as caras no local ao qual ele não
mais pertence. Pertinência como sinônimo de pertença, como condição de pertencer
plenamente a um contexto. O comportamento impertinente revela moralmente o
desajuste ao meio, mas queria que fosse entendido de maneira tão neutra quanto seu
antônimo: pertinente. É pertinente, ou seja, cabível naquela circunstância ou local. Na
contramão do que seria a morte do herói da pós-modernidade, Früchtl afirma e assume a
pós-modernidade como mais uma faceta da modernidade, uma subjetividade que ainda
se afirma no cinema. Digamos que o filme se constitui como prova de que a
subjetividade moderna – entendida como frágil, num mundo no qual o sentido não é
mais revelado – não está superada. Recentemente, Früchtl retomou o sentido moral da
palavra, tal qual aparece em Minima Moralia, aforismo 29, como o “eu sem-vergonha”,
em consonância com uma reflexão sobre a política desenvolvida no projeto “A arte da
democracia emotiva”. Sua mais recente palestra tem por título, justamente,
“Democracia para cidadão sem-vergonha”.
Voltando aos filmes, podemos assistir aos mesmos filmes que Früchtl assistiu e
não concordar com absolutamente nada do que ele diz, mas se lemos ou conhecemos
Hegel e as fontes sobre as quais ele fala, você pensa “faz sentido” no espírito da
“filosofia do filme”. Associações que são feitas e que nos dá a pensar por meio do filme,
saindo um pouco das teorias de cinema que ficam preocupadas com o aspecto
mercadológico de produção, ou artístico - elenco, ator, diretor, fotógrafo -, no limite a
construção do show business com calçadas da fama, culto ao estrelato, o glamour dos
festivais de cinema e seus tapetes vermelhos com as estrelas servindo de modelos a
grandes costureiros e joalherias, etc. Esse ambiente de sedução e de espetáculo diminui
consideravelmente quando nos atemos ao nexo filme e filosofia. Há um professor
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filme” venha desses lugares. Existem muitos encontros a este respeito. Tem um grupo
que vi há pouco em Portugal, um grupo, digamos, mais continental, que trabalha
“filosofia e filme” pensando o documentário, trazendo os realizadores para o evento,
ouvindo o que eles têm a dizer, sem que sejam grandes teóricos de sua própria obra ou
em geral, inserindo os artistas no debate com os teóricos mais acadêmicos, filósofos ou
mesmo profissionais de outras áreas, o que confere um caráter interdisciplinar e
possibilita ouvi-los sem endeusá-los. Até porque geralmente a realização ganhou um
sentido mais amplo com o meio digital e os realizadores são produtores ou diretores de
filmes de produções pequenas, o que permite um diálogo mais modesto, digamos assim,
sem tapetes vermelhos, ao se buscar, junto com os realizadores, pensar o alcance
filosófico do próprio filme, ampliando o alcance filosófico em relação à obra.
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filme você tem, pela montagem, uma sequência que parece golpear o sujeito na cadeira,
impossibilitado de parar para pensar, atordoado com a mudança rápida de fotogramas
em movimento sequencial. Ele está falando do início da recepção do cinema, claro, que
geraria, inconscientemente, uma espécie de catarse vingativa da opressão da técnica.
Então o sujeito aprenderia no cinema a reagir à opressão da técnica do lado de fora da
sala de cinema. Esse seria um lado positivo, de aprendizagem, etc, que não é de empatia
e que também não é de estranhamento, como no teatro brechtiano, mas de tensão e
relaxamento ao mesmo tempo, dependendo do filme, já que não é todo filme capaz de
criar esse efeito. Marcar essa diferença é difícil mesmo porque o filme está mexendo
com as emoções o tempo todo. Eu não concordaria com os extremos, mas acho que
quando ele lida com os extremos ele também está jogando com duas possibilidades para
que o leitor faça uma mediação: esse aqui é de empatia e esse aqui é de estranhamento,
mas no cinema é difícil separar os dois. O que ele quer dizer do dadaísmo, do teatro
épico em relação ao cinema tem a ver com o efeito da montagem, de acostumar o
sujeito com as interrupções “contínuas” ou frequentes, mas que no fim causaria um
relaxamento psíquico que seria uma reversão, uma pirueta contra aquilo que o oprime
no mundo do trabalho industrializado e da vida nos grandes centros urbanos. Ele vai
longe nessa interpretação que é do coletivo, do público massivo e não do indivíduo
separado e é por isso que não dificilmente podemos falar em juízo estético. Trata-se de
um mecanismo que ele enxerga, trazendo os filmes grotescos que causam o riso e
favorecem o reverso relaxante daquilo que seria a opressão por meio da técnica.
Falávamos hoje sobre outro assunto, sobre esses dispositivos de vigilância de
todos os tipos. Benjamin lida o tempo todo com essa ambiguidade da técnica. Ao
mesmo tempo em que o facebook por meio dos algoritmos, dessas combinações em que
as pessoas fazem aqueles testes e pensam “puxa, como sabem que sou isso? É isso
mesmo que sou!”..., e por meio deles tornam-se informações a serem comercializadas; é
também, por meio das redes sociais, por exemplo, que a nova onda feminista pôde se
afirmar. Há outras manifestações como o próprio Wikileaks... Ou seja, existem furos
nessa rede “big brother” de dominação que mostra de novo a ambiguidade da técnica.
Qual é a proporção de liberdade? Difícil determinar, mas cada vez menor aos comuns
dos mortais e cada vez mais beligerante na prática que burla os mecanismos e
compartilha do lado criminoso que permeiam as redes, sistemas, causando ameaças
como a mais recente que paralisou os serviços de saúde do Reino Unido. Da mesma
maneira que a técnica elaborada pode iludir por meio da empatia, podendo levar o
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A gente sabe que você teve uma experiência fora da academia com o cinema feito
em São Paulo. Certamente essa sua vivência despertou seu interesse pela “filosofia
do filme” e, consequentemente, a levou a construção do “Kinosophia”, onde você
também fala em partir para a realização de algo prático. Como o grupo tem
projetado esta realização?
Durante minha formação filosófica, durante a graduação, eu trabalhava na Secretaria de
Cultura (Municipal de São Paulo) com pesquisa e documentação em cinema. Eu era
muito jovem e aprendia com pesquisadores formados e cineastas como Olga Futemma,
Inimá Ferreira Simões, Albert Roger Hemsi e Rubens Machado... Nós
acompanhávamos, assistíamos filmes brasileiros do circuito, escrevíamos comentários
críticos, discutíamos os comentários em reunião e eu vivi a cena que ainda existia no
cinema em São Paulo, do cinema alternativo ao da produção da Boca do Lixo, dos
cineclubes, havia muitos cineclubes e de lá para cá nunca deixei o cinema... Quando
terminei a graduação, pensei que fosse trabalhar com cinema e aí veio o governo Collor
e fechou a Embrafilme e quase acabou a produção de filmes, com aquilo que mantinha o
cinema. As grandes salas de cinema fecharam ou foram fragmentadas em pequenas
salas. Surgiu o vídeo. Eu tinha uma produtora, trabalhei muito com vídeo, mas era o
VHS, era muito ruim a qualidade, tinha o Betamax, mas era caro, então era toda aquela
coisa de sempre trocar equipamento... O trabalho em grande parte era técnico, sem
grandes voos, cansativo e, de certa forma, burro. Então voltei para a filosofia e meu
projeto de mestrado que apresentei à professora Jeanne Marie (Gagnebin) era voltado
para a resenha A crise do romance... (de Walter Benjamin) e dela (da resenha), na qual
aparece o romance Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, iria para a série televisiva
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intensidade da experiência ainda aurática, então você quer fazer só aquilo naquele
momento. Benjamin viu isso e isso só se intensificou de lá pra cá.
Mas retomando o “Kinosophia”, eu nunca deixei de relacionar o filme e a
filosofia, assistia muitos filmes, afinal a praia do paulistano era o cinema, então eu
tenho um repertório muito vasto, mas sentia dificuldade aqui em falar sobre filmes que
ninguém sabe, ninguém viu. Ao mesmo tempo, ficar só passando filme demora e
sabemos que as pessoas não têm mais tempo para ver. Ficar dando sua versão sobre o
filme é como falar com as paredes, então pensei numa maneira de criar uma motivação,
por exemplo, em torno do filme preto e branco ao apresentar Limite, de Mário Peixoto,
que é um grande filme, um ensaio fotográfico belíssimo do cinema nacional. E lidar
com situações de outros filmes – não sei porquê quase todos são em preto em branco –,
situações aporéticas, situações que colocam certas pessoas em risco, uma encruzilhada,
um beco sem saída. Começamos a observar que isso ocorre com três personagens, que
existe uma triangulação na composição e só então depois disso (dessas percepções)
começaríamos a exercitar a criação de um roteiro e sua filmagem. Não pensando em
fazer um grande filme, mas em criar alguns episódios que pudessem lidar com situações
aporéticas, uma ideia a ser concluída ainda. Outra atividade foi a criação de um tipo de
oficina, principalmente para professores do ensino médio e que foi muito interessante,
que era lidar com conceitos e fazer um filme no papel por meio de um storyboard. Fiz
uma oficina desta no Rio de Janeiro, na UFRJ, sobre o feminismo em torno de um
conceito x e então os grupos trabalhavam algo em torno de quatro horas, eles faziam
algo e, claro que eu falei um pouco sobre a linguagem, qual o efeito que se vai buscar
com esse enquadramento, ângulo ou aquele movimento, dada a dificuldade de se fazer
algo assim. Aqui eu fiz com uma classe grande de cem alunos e com uma oficina para
professores de ensino médio e foi muito interessante porque as pessoas falavam “ah, nós
vamos fazer um filme”, mesmo não sabendo desenhar, mas tentando. Então você joga
com um conceito como “alienação” e pergunta: como que você conta uma história em
imagens que traduza este conceito? Ao final nós “passamos” o filme na parede e as
pessoas viam, avaliavam e escolhiam qual era o mais criativo. Eu me lembro que os
professores adoraram, então foram essas tentativas que aconteceram. Os alunos,
principalmente da licenciatura, aproveitaram a ideia em oficinas para estudantes na
disciplina de filosofia.
Há também eventos no Brasil, com pessoas muito interessantes, uma delas é
Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho, professora de filosofia antiga da UFMG,
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que faz eventos muito interessantes sobre filme e estudos da antiguidade. Recebemos a
visita do professor grego Konstantinos Nikoloutsos, que mostrou filmes em que a
antiguidade era representada na década de cinquenta aqui no Brasil. Ele conhecia mais
os filmes do que os alunos, filmes produzidos pela Atlântida em que Oscarito, por
exemplo, fazia Romeu e Grande Otelo, Julieta. Uma maneira de lidar com a referência
da antiguidade nos filmes, não no sentido de tornar o filme um substituto da epopéia,
mas de ver como a indústria cinematográfica acaba mostrando a antiguidade no cinema.
– Maria Cecília esteve na UFG, a convite do Kinosophia para ministrar um mini-curso
sobre Elektra: “Três versões de Elektra no cinema”, versões que não são literais, mas
são versões nas quais ela reconhece o mito de Elektra, explica a razão disso e como os
mitos são fontes de muitas histórias ainda, disfarçados na estória, e de como a força dele
é que chama a atenção do público. São pesquisas aprofundadas que parecem infinitas
porque também as referências em filmes são igualmente infinitas. Agora é muito
interessante que um professor grego, da Universidade da Filadélfia, venha falar de
filmes brasileiros que não despertam interesse em nenhum brasileiro! Ele poderia estar
só falando dos filmes dos grandes diretores gregos, que obviamente estão mais ligados à
tradição. Outro evento que Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho organiza, e do
qual participei[5] provocou uma série de reflexões, ao relacionar determinados filmes de
escolha do conferencista com uma ou mais paixões que Aristóteles distingue em sua
obra Retórica das paixões. Foram os mais variados filmes e as mais variadas
associações. Em agosto haverá um outro encontro, no qual faremos relações com o
conceito de Enargeia na antiguidade clássica e em filmes. Entre os estetas analíticos,
alguém como Noël Carroll, por exemplo, apresentou no Colóquio “Filme e Filosofia”,
em Lisboa, 2014, um trecho de um filme, mostrando um corredor e um movimento
de zoom; com base nesta cena ele escolhe falar de tempo e espaço por meia hora. A
estória não importa, o filme e tudo o que o envolve não importa, não importa se tem
mito ou não, nem a recepção do público, mas apenas uma divagação sobre tempo e
espaço com base naquele trecho de filme. Trata-se de uma espécie um minimalismo
teórico que utiliza uma cena apenas de um filme para refletir sobre as categorias de
tempo e o espaço. O segundo Colóquio Internacional - Filosofia e Filme que ocorreu em
Karlsruhe, Alemanha, em 2016, mostra a tendência da estética analítica, sem perder de
vista a abrangência dos temas que envolvem a discussão sobre a relação proposta,
incluindo diretores e escolhendo um foco de análise, sendo o documentário o foco da
última edição.
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Em resumo, podemos repetir com Josef Früchtl que o cinema está para o século
XXI como a literatura do século XIX para o século XX. Um meio de expressão
transformado em várias dimensões, seja a física na criação – da película ao meio digital
-, ou na recepção – que se desprendeu da sala grande do cinema e se fragmentou em
telas de diferentes tamanhos; seja a disposição estético-reflexiva alterada pela mudança
física do meio. Refletir sobre as mudanças não conflita com o pensar por meio do filme,
mas embasa e alimenta o próprio modo de pensar.
ENTREVISTADORES
*Rodrigo Araújo é professor de filosofia do IFBA e doutorando em filosofia pela
UFBA, onde desenvolve uma pesquisa sobre a escrita na obra de Walter Benjamin, sob
a orientação da professora Dra. Silvia Faustino. Na área do cinema, é autor, dentre
outros trabalhos, do curta-metragem Show de calouros, co-dirigido por Diego Haase.
NOTAS
[1] A tradução é da própria Carla Damião, conforme pode ser conferida em DAMIÃO, Carla
Milani. Inquietude: revista dos estudantes de filosofia da UFG, Vol. 3, n. 2, 2012. <acessado em
19.05.2017>.
[2] Cf. DAMIÃO, Carla Milani. Revista Trama, Vol. 6, n. 1, 2015, <acessado em 19.05.2017>.
[3] O filme Branco sai, preto fica (2014), dirigido por Adirley Queirós, foi exibido durante o “II
Colóquio internacional de estética: estética em preto e branco” (UFG, 2017), como parte das atividades
do “Kinosophia”, grupo de pesquisa sobre “filosofia do filme”, coordenado por Carla Damião. A edição
seguinte exibiu o curta-metragem Show de calouros (2016), dirigido por Diego Haase e Rodrigo Araújo.
Em ambos os casos, as sessões foram seguidas de conversas entre os realizadores e a plateia sobre o
processo de criação e produção fílmica.
[4] Adeus à linguagem, de Jean Luc Godard (2014).
[5] Cf. DAMIÃO, Carla Milani. ‘O desprezo, a cólera e o riso: o filme ‘The Butcher Boy’, de Neil Jordan
sob uma perspectiva aristotélica’. Nuntius, v. 11, p. 33-46, 2015.
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