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Fenômenos culturai s no amálgama social: reu nião de artigos do I CIPCS

Gênero e Sexualidade: construções na e pela Cultura

A PROTAGONISTA DE “JOGOS VORAZES” E A CONSTRUÇÃO DE


GÊNERO POR MEIO DA LITERATURA
THE PROTAGONIST OF “THE HUNGER GAMES” AND THE BUILDING OF
GENDER THROUGH LITERATURE
Renata Kabke Pinheiro
Doutora em Letras – Linguística Aplicada/Universidade Federal de Pelotas
rekabke@gmail.com

RESUMO
A literatura, seja na forma oral ou escrita, é parte importante da cultura de
um povo, e mesmo em um mundo onde a globalização faz com que as
fronteiras culturais sejam bastante permeáveis, sua influência na construção
de identidades é inegável. No caso de identidades de gênero e das
repercussões que a discriminação nesse campo traz, a construção da
identidade de jovens leitoras que podem ver um modelo de mulher na
protagonista de uma obra literária, a investigação de que modelo é esse
reveste-se de grande importância. Assim, o objetivo deste trabalho é
investigar como a mulher é representada na imag em da protagonista de
"Jogos Vorazes" (2008), da autora americana Susan Collins. O livro tem
como público -alvo jovens de 9 -12 anos, mas atrai leitores/as de diversas
idades, culturas e gêneros há 10 anos, tendo inclusive já sido transformado
em filme. Por meio da análise da descrição dos atributos físicos e de
personalidade, assim como o poder da protagonista, Katniss, verifica -se que
há uma mudança no paradigma do modelo da “heroína”, resultando em um
novo discurso em relação à mulher colocado em circulaçã o para quem lê a
obra – seja homem, mulher, jovem ou adulto. Com isso, confirma -se ainda
o fato de que o livro, enquanto artefato cultural, contribui para construções
de gênero, tanto pela manutenção como pela quebra de modelos e
estereótipos.
Palavras-chave: Jogos Vorazes. Literatura. Gênero.
ABSTRACT
Literature, whether in oral or written form, is an important part of any
country’s culture, and even in a world where globalization makes cultural
borders be quite permeable, its influence on the building of personal
identities is undeniable. When it comes to gender identities and the
repercussions that prejudice related to them causes, the building of
identities of young female readers’ – who may see a female role model in
the protagonists of literary works –, investigating what model this is
becomes of utmost importance. Thus, the aim of this work is to investigate
hoe women are portrayed in the image of Katniss, the protagonist of The
Hunger Games (2008), written by the American author Susan Collins. The
book is aimed at young people (9 -12 years old), but it has conquered readers
of all ages, cultures and genders over 10 years, having even been
transformed into a movie. Through the analysis of Katniss’ physical
description, as well as of her personality and the power she displays, we
can see there is a change in the established “heroine” model, resulting in
the setting in motion of a new discourse about women for those who read
the book – be it a man, a woman, young or old. As a result, the fact that the
book, as a cultural artifact, contributes to the building of gender
conceptions both by maintaining and by deconstructing models and
stereotypes is also confirmed.
Keywords: The Hunger Games. Literature. Gender.

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Gênero e Sexualidade: construções na e pela Cultura

Introdução

A construção da identidade pessoal de qualquer ser humano é um processo deveras


complexo, sobre o qual atuam diversos fatores e que sofre influência das mais variadas fontes.
Quando se trata da identidade de uma mulher – em especial sua identidade de gênero90 –, dentre
esses fatores estão os modelos que são apresentados a ela como um ideal de realização pessoal,
sucesso e felicidade (LITOSSELITI; SUNDERLAND, 2002)91, modelos esses que estão
presentes em anúncios publicitários, revistas, filmes e no meio que nos interessa: livros. Neste
trabalho, considero livros como artefatos culturais, ou seja, um dos meios presentes em uma
cultura que “transmitem uma variedade de formas de conhecimento que, embora não sejam
reconhecidos como tais, são vitais na formação de identidades e subjetividades” (SILVA, 2001,
p. 140)
Tais modelos apresentados às mulheres têm, além da variedade de meios pelos quais
são disseminados, a capacidade de atravessar limites territoriais, e em um mundo em que a
globalização faz as fronteiras culturais serem bastante permeáveis, mesmo países com tradições
bastante fortes e resistentes se veem “invadidos” por costumes – e consequentemente, modelos
– de outros lugares e culturas. Um exemplo disso são as noivas japonesas que, segundo o
costume milenar desse país, no dia do casamento vestem o traje tradicional (que pode ser
trocado várias vezes ao longo do dia, conforme a situação econômica da família da noiva) e a
elaborada peruca negra acompanhada da também tradicional maquiagem branca, semelhante a
uma máscara, para a celebração da cerimônia xintoísta. Há algumas décadas, no entanto, elas
cada vez mais optam por incluir – ou mesmo substituir o traje tradicional da cerimônia por –
um longo e farto vestido de noiva branco estilo ocidental, e as festas já incorporaram até mesmo
o corte de um enorme bolo de casamento decorado com as miniaturas do casal em trajes de
cerimônia também ocidentais (GOLDSTEIN-GIDONI, 2000).
Esse modelo de noiva, apoiado em um discurso de “realização da mulher com o
casamento” e apregoado como um dos ápices da vida dela, certamente foi difundido pelo
cinema e pelas revistas femininas, mas a literatura também tem nisso sua parcela de
responsabilidade ao perpetuar o mito do “casaram e viveram felizes para sempre”. Nesse
sentido, Funck (1998) afirma que mitos relacionados às mulheres podem ser e muitas vezes são

90
Neste trabalho considero gênero sob a perspectiva de Butler (1990), ou seja, como “[...] a estilização repetida
do corpo, um conjunto de atos repetidos que se consolida ao longo do tempo para produzir a aparência de
substância, de um tipo natural de ser” (BUTLER, 2003, p. 59).
91
Todas as citações de obras originalmente em língua inglesa e não publicadas em português são de minha
tradução.

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tanto cristalizados e perpetuados quanto questionados por meio de personagens nas quais
milhares de leitoras se espelham:

[A] literatura, como um dos veículos ou locais para a construção ideológica da


subjetividade marcada pelo gênero, se torna importante não como um mero reflexo da
experiência feminina (como na ficção realista), mas como o próprio instrumento da
possível construção de posições não-hegemônicas já que, ao colocar em circulação
diferentes discursos alternativos, ajuda a construir igualmente posições-sujeito
alternativas e resistentes. (FUNCK, 1998, p. 25)

Autores como Eagleton (2003), Cranny-Francis (1990) e Fairclough (1991) também


atestam que a literatura, mais do que uma forma de entretenimento, tem reflexos na
disseminação, perpetuação e cristalização de discursos92. Isso ocorre porque quem lê já traz
consigo um conjunto de discursos aos quais se afilia e, ao mesmo tempo, tem em seu repertório
de conhecimentos outros tantos com os quais não concorda. Dessa forma, quando lemos um
texto todos esses discursos e as ideologias neles contidas entram em circulação por meio de
estruturas narrativas e personagens literárias já consagradas e com as quais também já estamos
familiarizados/as. São elas que produzem os significados que consideramos “naturais” e
“fantásticos”, que produzem e disseminam os pressupostos, conflitos e padrões que criam
limites para nossa experiência. Portanto, as narrativas podem funcionar, em uma escala ampla,
como um sistema de representações pelos quais nós imaginamos o mundo (DUPLESSIS, 1985).
Dito isso, surge a questão: qual gênero literário seria mais propício a exercer influência
sobre quem lê ou que facilitaria a chegada dos discursos e ideologias ali presentes até ele/a? Na
opinião de Cranny-Francis (1990), é a ficção, já que se trata de um gênero literário
extremamente popular e, ao mesmo tempo, ela consegue configurar-se como um “local para a
descrição alegórica de injustiças sociais deslocadas no tempo e/ou lugar da sociedade do leitor,
mas ainda claramente reconhecíveis como uma critica àquela sociedade” (CRANNY-
FRANCIS, 1990, p. 9). A ficção distópica – caso de “Jogos Vorazes” – faz exatamente isso,
refletindo o pessimismo das pessoas frente à realidade de seu tempo e criticando aspectos da
sociedade de sua época, inclusive no que se refere a representações e papéis de gênero, assim
como ideologias circulantes.

92
Neste trabalho considero discurso sob a ótica de Kress (1985), ou seja, como “um conjunto de possíveis
declarações a respeito de uma determinada área que organiza e dá estrutura ao modo como se deve falar sobre um
assunto, objeto ou processo em particular. Com isso, ele fornece descrições, regras, permissões e proibições em
relação a ações sociais ou individuais” (KRESS, 1985, p.7).

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Como podemos ver, não apenas quem lê, mas o próprio texto literário encontra-se à
mercê de ideologias, exatamente como ocorre com a linguagem diária (FAIRCLOGH, 1991),
fato reiterado por Eagleton (2003, p. 120) ao dizer que por ser a língua “um campo de forças
sociais que nos modelam até as raízes, é uma ilusão dos acadêmicos considerar a obra literária
como uma arena de possibilidades infinitas que fogem a isso”.
Retornando à questão da construção das identidades, elas então não apenas sofrem
influência dos discursos em circulação na sociedade, mas encontram-se também à mercê dos
textos literários. Shotter e Gergen (1989), por exemplo, veem as identidades como imersas em
discursos advindos de textos, discursos esses concomitante e paradoxalmente habilitantes e
restritivos:

[t]extos culturais fornecem a seus ‘habitantes’ os recursos para a formação dos eus;
eles apresentam uma variedade de potenciais habilitantes, enquanto simultaneamente
estabelecem um conjunto de limites restritivos além dos quais os eus não podem ser
facilmente construídos. (SHOTTER; GERGEN, 1989, p. x)

No caso de identidades de gênero e das repercussões que a discriminação nesse campo


traz, a construção da identidade de jovens leitoras que podem ver na protagonista de uma obra
literária um modelo de mulher, a investigação de que modelo é esse reveste-se de grande
importância. Litosseliti e Sunderland (2002) sugerem, então, que um enfoque discursivo na
análise de textos pode facilitar o estudo dos modos complexos e frequentemente sutis pelos
quais identidades de gênero são representadas, construídas e contestadas por meio da
linguagem.
Esse foi, então, o ponto de origem do objetivo deste trabalho, que é investigar como a
mulher é representada na imagem de Katniss, a protagonista de "Jogos Vorazes" (2008), da
autora americana Susan Collins. Por meio da análise da descrição dos atributos físicos e de
personalidade de Katniss, busquei verificar se há uma mudança no paradigma do modelo da
“heroína”, resultando em um novo discurso em relação à mulher colocado em circulação para
quem lê a obra – seja homem, mulher, jovem ou adulto – ou se há uma manutenção e
consequente cristalização de discursos normativos em relação ao tipo de características tidas
como “necessárias” em uma mulher.

A obra
O livro “Jogos vorazes”, da autora americana Susan Collins, publicado em 2008, é o
primeiro volume de uma trilogia que já vendeu mais de 26 milhões de cópias. Ao ser escrita a
obra teve jovens de 9 a 12 anos como público-alvo, mas há 10 anos atrai leitores/as de diversas

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idades, culturas e gêneros, tendo em 2012 sido transformada em um filme assistido por um
público de mais de 50 milhões de espectadores só nos Estados Unidos93.
A trama se deserola em um mundo pós-apocalíptico, mais especificamente em um país
chamado Panem, composto pelo rico Capitol (uma espécie de capital centralizadora) e 12
distritos em situações diversas de pobreza. Em Panem, a cada ano duas pessoas – que podem
até mesmo ser crianças – são sorteadas para participar compulsoriamente em um reality show
de competição televisionado para todo o país. Essa competição, denominada “Jogos Vorazes”,
nada mais é do que uma batalha de sobrevivência e luta mortal entre os/as participantes até que
só reste uma pessoa. A protagonista, Katniss, uma jovem de 16 anos, se oferece para participar
no lugar da irmã menor (que fora sorteada) e, contrariando as expectativas dos organizadores
da competição, vence o jogo e ainda salva seu companheiro de distrito que, pelas regras, deveria
ser morto por ela.

Análise
Uma obra que já vendeu mais de uma dezena de milhões de cópias tem, sem dúvida
alguma, um poder de repercussão enorme. Quaisquer discursos ali circulantes certamente
atingiram um público gigantesco, e o fato de “Jogos Vorazes” ter extrapolado seu público-alvo
de Young Readers (9-12 anos) implica reconhecer que esses discursos chegaram não só a
pessoas jovens – que podem tanto ser apresentadas a novos modos de pensar como ver outros
já ultrapassados e inadequados para os dias atuais serem reforçados –, mas também adultas, que
podem ver antigas ideias e posicionamentos ser tanto reiterados quanto questionados,
propiciando terreno para uma mudança social.
Como já dito, “Jogos Vorazes” reflete em sua trama distópica o pessimismo reinante na
sociedade de 2008 (ano de sua publicação) em virtude da crise econômica que assolava o mundo
na época, e traz à baila um fenômeno muito em voga desde o início do século XXI que
ultrapassou barreiras tanto geográficas como culturais: os reality shows. No livro, são retratados
diversos aspectos ligados a esses programas como, por exemplo, a nova espécie de voyeurismo
surgida com eles, na qual se assiste ao vivo a cada momento da vida de outras pessoas e que,
em “Jogos Vorazes”, é levado ao extremo oposto: o público assiste em tempo real às mortes
delas na competição. Também é mostrado como, nesse tipo de show televisivo, o conflito e o
romance são supervalorizados, da mesma forma que a produção visual das pessoas para a TV.

93
Dados obtidos no site Box Office Mojo. Disponível em:
<http://www.boxofficemojo.com/movies/?page=intl&adjust_mo=&adjust_yr=1&id=hungergames.htm> Acesso
em: 29 maio, 2018.

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Esse último aspecto, exemplificado no “embelezamento” de Katniss antes de sua apresentação


aos telespectadores e depois de vencer a competição é, em minha opinião, um dos temas mais
significativos presentes na obra, já que pode ter importante influência na construção da
identidade das leitoras, especialmente as mais jovens. Todos esses tópicos são tratados de forma
crítica ao longo da trama, variando entre a crítica aberta, verbalizada pela protagonista e/ou
outras personagens, e a descrição sarcástica de fatos, ações e pessoas.
Outro ponto digno de nota é que “Jogos Vorazes” foi escrito por uma autora, quer dizer,
trata-se de uma mulher produzindo não um romance, uma história de amor, mas uma obra
distópica repleta de violência. Já há aí, então, uma quebra de paradigma, pois essas são
características tradicionalmente associadas no meio literário a autores homens. Além disso, o
protagonismo é dado a uma mulher, e isso em um livro que não gira em torno do enredo típico
da “Heroína Que Se Apaixona / Namora/ Se Casa (com a infalível complicação durante o
namoro e/ou casamento)” (RUSS, 1973, p. 9), mas que tem uma trama de ação ancorada em
luta, esforço físico e coragem.
A narração em 1ª pessoa empregada pela autora tem, por sua vez, o efeito de criar uma
maior possibilidade de identificação de quem lê com a personagem e, considerando que essa é
uma técnica presente na literatura de diversas culturas, tal identificação pode se dar mesmo em
lugares onde quem lê que não se reconheça de imediato no mundo de Panem, pois os conflitos
e dilemas pelos quais Katniss passa são comuns a pessoas de todas as origens. Já o público para
quem a obra foi originalmente escrita (pré-adolescentes) é perceptível não por Susan Collins
ter optado por uma escassez de cenas de violência e morte – ao contrário, elas são muitas –,
mas na forma como corpo da protagonista é (re)tratado e como o romance entre Katniss e Peeta,
seu companheiro de distrito, se desenvolve. Nos dois casos, tudo é descrito com extrema
discrição, sem a erotização e a necessidade de recorrer a cenas de sexo que muitas vezes
parecem caracterizar outros grandes sucessos literários e cinematográficos deste século.
Em relação ao aspecto do visual da personagem, enquanto no filme Katniss é
apresentada em roupas colantes, sensuais, que exibem as formas de seu corpo durante a
competição de vida e morte, no livro as roupas dadas a ela são fundamentalmente práticas,
voltadas à sobrevivência, sem o menor traço de preocupação estética ou em mostrar o corpo da
protagonista:
 “[...] calça marro-amarelada simples, blusa verde claro, cinto marrom vigoroso, e um
fino casaco de capuz preto que cai nas minhas coxas” (COLLINS, 2008, p.144);

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 “As botas, usadas sobre meias muito justas, são melhores do que eu podia ter esperado.
Couro macio diferente do de casa. Essas aqui têm uma sola de borracha estreita e
flexível. Bons para corrida” (COLLINS, 2008, p.144).
Já em relação ao aspecto físico da protagonista, as partes do corpo de Katniss que são
mencionadas no livro o são porque ela está ou contando sobre ferimentos que sofreu e dores
que sente, ou descrevendo de forma crítica os procedimentos de “embelezamento” pelos quais
os produtores da competição a fazem passar, o que não é o padrão em livros com heroínas.
Tanto a menção ao corpo reduzida apenas ao necessário, diminuindo a importância
normalmente atribuída a ele em nossa cultura, como a ausência do usual desfile de adjetivos
enaltecendo a aparência da protagonista – que em outras obras infalivelmente é muito bela –
contrastam com o “embelezamento” de Katniss, que tem sua imagem adequada aos padrões
tradicionais e esperados de “feminilidade”, mas durante todo o processo o critica e reclama de
ter de se submeter a ele.
Esse é um dos elementos mais significativos que encontrei em “Jogos Vorazes”:
percebe-se ali um discurso que não compactua com o excesso de importância dado ao corpo e
a valorização da aparência física que ocorrem no mundo atual. Mais do que isso: é dada voz
tanto à crítica como ao desagrado com tal prática, como podemos ver nesta descrição da
depilação a que Katniss é submetida antes de aparecer na TV: “Minhas pernas, braços, torso,
axilas, e partes das minhas sobrancelhas tinham sido livradas dos pelos, deixando-me como um
pássaro depenado, pronto para assar. Eu não gosto disso.” (COLLINS, 2008, p. 61. Grifo meu).
Essa passagem indica para quem lê – e em especial para as mulheres, que por conta de uma
imposição social, muitas vezes se sentem na obrigação de estarem depiladas – que, sim, existe
a possibilidade de não gostar dessa obrigação e que não é errado se rebelar contra ela. Em
outras palavras, é colocado em circulação um discurso completamente diferente do usual para
personagens femininas, para as quais a adequação a um padrão de beleza pré-determinado é
algo visto como “natural”, e não como uma obrigação imposta às mulheres em geral. Percebe-
se aí mais uma quebra de paradigmas em “Jogos Vorazes”, desta vez no que se refere à
“desobrigação” de as mulheres gostarem de – e mesmo de terem de se submeter a –
procedimentos de embelezamento muitas vezes desagradáveis.
Ainda sobre a descrição física de Katniss, ela, ao contrário das protagonistas de outras
obras, não descreve a si própria em detalhes – diz apenas que tem “cabelo liso escuro, pele cor
de oliva, [...] olhos cinzentos” (COLLINS, 2008, p. 9) – e, também contrariando o padrão das
heroínas, seu cabelo não ganha destaque: ele passa todo o tempo preso em uma trança
(COLLINS, 2008, p. 5; 16; 55; 63; 67; 86; 120; 143; 175; 198; 226; 322; 363). Além disso, a

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personagem não é descrita nem por ela mesma e nem por outras personagens como sendo bela
ou linda; ela se torna bela quando se veste bem e usa maquiagem – como qualquer mulher no
mundo real. Esse discurso dá à leitora – especialmente às jovens que estão construindo sua
identidade – uma opção à aparentemente inescapável obrigação de ser bela e, principalmente,
de ser ou estar sempre bela, e pode ser observado em trechos como estes:
 “Você parece bonita,” diz Prim numa voz quieta. “E nada comigo mesma,” eu falo.
(COLLINS, 2008, p. 16);
 “Eu não estou bonita. Eu não estou linda. Eu estou tão radiante quanto o sol”
(COLLINS, 2008, p. 121);

 “E lá estava eu, ruborizando e confusa, bonita pelas mãos de Cinna, desejável pela
confissão de Peeta, trágica pelas circunstâncias, e por tudo em conta, inesquecível”
(COLLINS, 2008, p. 136).
Essa reiteração ao longo da obra de que a heroína é uma pessoa comum – ou seja, alguém
com quem a leitora pode se identificar e que pode ser um modelo de mulher para ela – , sem a
obrigação e/ou a preocupação de ser bonita e sem o constante elogio por parte dos homens, é
sem dúvida outro ponto significativo de “Jogos Vorazes”. É claro que pode ser argumentado
que Katniss tem um preparo físico e um treinamento que a tornam especial e, portanto, diferente
e até distante da realidade da leitora, mas há outro aspecto da descrição de Katniss que permite
a identificação de quem lê com ela: sua personalidade.
Se em relação à parte física as menções ao corpo se resumem ao estritamente necessário
e o uso de adjetivos elogiosos é limitado, quando se trata de caracterizar a personalidade da
jovem a parcimônia se repete, porém existe uma diferença: as ações e pensamentos da
personagem traçam um retrato bastante rico de uma mulher em que qualquer pessoa pode se
espelhar.
Em uma das poucas ocasiões em que adjetivos são empregados, Hamlich (o técnico que
treina Katniss e Peeta, seu companheiro de distrito, para a competição) descreve a moça dizendo
“Já sei que é habilidosa com uma faca”, ao que ela retruca “Na verdade não. Mas consigo caçar
[c]om arco e flecha” (COLLINS, 2008, p. 89). Perguntada se é boa com essas armas, ela
reponde que é “mais ou menos”, mas Peeta a contradiz, dizendo que ela é “excelente”
(COLLINS, 2008, p. 89). Arco e flecha são armas que, na literatura, as mulheres “têm
permissão” de utilizar (ao contrário da espada que é, tradicional e simbolicamente, masculina),
mas o fato de que ela é excelente no manejo delas – além de ser realmente hábil com a faca –

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já demonstram que um certo poder lhe é dado, e ele é reconhecido por duas personagens
masculinas.
Ela é também impetuosa, corajosa e resiliente, sendo a primeira característica
reconhecida tanto por Hamlich – que diz “Muita... [b]ravura!” (COLLINS, 2008, p. 25) – como
por Cinna (o estilista que cuida das roupas de Katniss): “ ‘Ninguém consegue evitar admirar o
seu espírito’. Eu não tenho certeza do que exatamente isso significa, mas sugere que eu sou
uma lutadora. De um jeito meio corajoso” (COLLINS, 2008, p. 122).
Nesse trecho, como se pode ver, além de Cinna a própria Katniss se define como
lutadora e corajosa, e é ela também que, em três outros momentos, reflete sobre sua natureza
resiliente (COLLINS, 2008): “Eu me endureço como aço e subo os degraus” (p. 24); “[N]ão é
da minha natureza desistir sem lutar, mesmo quando as coisas parecem insuperáveis” (p. 37) e
“Eu vou morrer, de meu próprio jeitinho, invicta” (p. 282). Além disso, a mãe de Peeta também
a define como “sobrevivente” (COLLINS, 2008, p. 90) e, no somatório de tudo isso, temos a
descrição de uma jovem que personifica a bravura, que enfrenta e sobrevive às adversidades, e
em qualquer cultura esse é um exemplo em que muitas leitoras podem encontrar inspiração para
basear construir sua identidade de mulher.
Dentre as características da personagem reveladas por seus pensamentos e não expressas
por meio de um adjetivo está a de ser impiedosa, como se percebe em “[E]u não sou do tipo
que perdoa” (COLLINS, 2008, p. 9) e “Se Cato saísse pelas árvores agora, eu não fugiria, eu
atiraria. Descubro que estou na verdade antecipando o momento com prazer” (COLLINS, 2008,
p. 196). É também por meio do que passa na mente de Katniss – e, claro, por meio de tudo o
que faz ao longo da trama – que vemos que ela é rebelde:
 “Eu quero fazer alguma coisa [...] para mostrar ao Capitol que não importa o que eles
nos forcem a fazer existe uma parte de cada tributo que eles não podem comandar”
(COLLINS, 2008, p. 233);
 “Agora estou determinada a vingá-la, a fazer sua perda inesquecível, e posso apenas
fazer isso ganhando e através disso me fazendo inesquecível” (COLLINS, 2008, p.239);
 “[A]quela coisa dos loucamente apaixonados que é a minha defesa por haver desafiado
o Capitol” (COLLINS, 2008, p. 355).
Ser impiedosa e rebelde, apesar de serem atributos vistos como positivos em homens,
não são traços tidos como “femininos”. Por essa razão, eles podem ser vistos como negativos
na caracterização de Katniss, ainda mais se considerarmos que ela também é rotulada como
sendo mal-humorada e hostil: “Acho que eles gostaram do seu temperamento. [...] Eles tem um
show para carregar. Eles precisam de alguns jogadores esquentadinhos” (COLLINS, 2008, p.

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108) e “[Q]uando você abre sua boca, você parece mais mal-humorada e hostil” (COLLINS,
2008, p. 117).
Por outro lado, algumas características “tipicamente femininas” foram dadas à
protagonista, sugerindo que, ainda que haja uma quebra de paradigma com traços como
“corajosa”, “lutadora” e “impiedosa”, ela não é completa. Katniss, como é esperado das
mulheres, se preocupa em cuidar de outras pessoas – da mãe, da irmã, de Peeta –, é protetora e
abnegada, abrindo mão de algumas coisas e até mesmo se dispondo a sofrer punições em favor
de outros:
 “Eu protejo Prim de toda maneira que eu posso” (COLLINS, 2008, p. 16);
 “O que me assusta de verdade é o que eles podem fazer com a minha mãe e Prim, como
minha família pode sofrer agora por causa da minha impulsividade” (COLLINS, 2008,
p. 103);
 “Por ela, tenho que parecer o menos desesperada possível” (COLLINS, 2008, p. 168);
 “Aposto que ela raramente tem carne. ‘Pegue a outra,’ eu digo” (COLLINS, 2008, p.
201);
 “[S]ou eu a culpada por ter tido a ideia. Eu sou a instigadora. Sou eu que merece a
punição” (COLLINS, 2008, p. 357).
Obviamente se preocupar e cuidar de outras pessoas – especialmente da família – e se
oferecer estoicamente para sofrer punições não são características exclusivamente de mulheres
– muitos homens fazem isso –, mas a inclusão dessas características de cuidadora abnegada que
muitas vezes são divulgadas como “femininas” tem uma dupla e paradoxal repercussão no que
se refere a Katniss. Positivamente, isso humaniza a protagonista, desfazendo uma possível
impressão de que ela é uma máquina de matar insensível, mas ao mesmo tempo – agora de
modo negativo – o estereótipo de que toda mulher tem instintos “maternais” e não só se
preocupa com o bem-estar de outras pessoas como se sacrifica por aquelas a quem ama é
reiterado. Katniss é, sem dúvida, uma personagem complexa – como o são muitas mulheres –
e são essas diversas faces de sua personalidade que a aproximam das leitoras de diversas
culturas, oportunizando que elas vejam na protagonista de “Jogos Vorazes” alguém corajosa,
batalhadora e vencedora, em quem elas podem se espelhar.

Conclusão

Após observar todos esses trechos de “Jogos Vorazes”, é possível ver que convivem
nessa obra discursos diferentes e opostos, um que quebra paradigmas ao mostrar uma heroína

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que é forte, rebelde e nem um pouco preocupada em se adequar a padrões de beleza, e outro
que reitera modelos de feminilidade de aparência e comportamento. Ainda aparecem também
perpetuadas na obra o “cuidar dos outros”, a paciência e a abnegação como características
inerentemente femininas, mas a personagem se destaca pela inteligência, rebeldia, coragem,
habilidade, e mesmo força e resiliência, sendo por vezes até implacável. No entanto, é possível
ver na trama uma espécie de punição por Katniss ser corajosa e rebelde: ela é “mal-humorada”,
“hostil” e “esquentadinha”.
Apesar de alguns estereótipos ainda serem repetidos e, dessa forma, perpetuados, há em
“Jogos Vorazes” uma mudança no modelo da heroína protagonista, resultando em um novo
discurso em relação à mulher colocado em circulação para quem lê a obra – seja homem,
mulher, jovem ou adulto, seja qual for a cultura em que essa pessoa se insere. Além disso, o
livro, enquanto artefato cultural, mostra que tem sua parcela de contribuição nas construções
de gênero, tanto pela manutenção como pela quebra de modelos e estereótipos.

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Gênero e Sexualidade: construções na e pela Cultura

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