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III - A NATUREZA DE NOSSA PRISÃO.

E.M.1

Este é o principal momento de todo o processo de aprendizado, a razão


de sua existência. Tudo o que até agora foi apresentado é conhecido graças a
outras fontes há muito tempo, fontes diversas das informadas ao leitor neste
texto. Porém, no momento em que a última peça do quebra-cabeça (que se
perdoe a ironia) foi descoberta pela atual humanidade, quase tudo pode ser
exposto. A qualquer momento, qualquer pessoa pode juntar as peças
descobertas e perceber a verdade. A partir de agora, antigos votos de discrição
podem ser quebrados. A humanidade conseguiu chegar às portas da verdade por
si própria, ainda que aos tropeços.

Imagine o leitor um peixe que sempre esteve em cativeiro, criado para


o abate. Esse peixe nasceu num tanque e ali viveu toda sua vida. Para ele, o
tanque é o mundo, o tanque é tudo, e a existência da água é algo que não
percebe pois foi onde nasceu e sempre esteve imerso. Assim, esse peixe não
conhece os oceanos e tampouco percebe aqueles que o mantêm no tanque. Se
não percebe a água e a natureza de sua prisão, como entenderá os seres que
vivem na superfície e o capturaram?

Imagine-se ainda que há outro peixe no tanque, um que nasceu livre


nos oceanos e sabe o caminho para escapar do cativeiro pouco antes do abate.
O peixe cativo também poderia beneficiar-se desse conhecimento, desde que,
antes, entendesse que está preso, que nasceu num tanque e que está destinado
a morrer.

Mas como o peixe que nasceu livre poderia apresentar ao seu


companheiro essas coisas? Como explicaria ao seu colega de cativeiro o que é
água? Como descreveria a natureza do tanque, sua finalidade, e a identidade de
quem o aprisiona?

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
!Et!in!Arcadia!ego!
1!
!
“O ser humano nasce livre, mas por todo o lugar está acorrentado”,
disse Rousseau, sem suspeitar do significado mais profundo de suas palavras. O
ser humano está cativo em uma prisão que sequer pode conceber, pois toma o
cativeiro pelo mundo a seu redor. O prisioneiro ignora o propósito de sua prisão,
e a natureza de quem o mantém em tal condição, pois é como o peixe que sequer
reconhece a natureza da água.

FAMILIARIDADE COM O DESCONHECIDO


A fábula dos peixes é útil para expor claramente que o desafio é
de natureza informacional: o peixe cativo não entende o que é água (e assim
ignora seus captores na superfície) e toma o tanque pelo mundo (e assim ignora
a prisão e os oceanos).

Quando se tenta transmitir uma informação fundamentalmente


contraintuitiva [[Nota do editor: antes da reforma ortográfica da língua
portuguesa de 1990, havia hífen em contraintuitivo (“contra-intuitivo”). Não há
mais.]], o destinatário da mensagem não consegue compreendê-la. Sua mente
não encontra nenhuma referência, em seu universo de vivências, para o que lhe
foi transmitido. Portanto, ele não sabe como categorizar, e muito menos o que
fazer com a informação.

Logo, só é possível superar a barreira pela gradual familiarização com


o contraintuitivo, usando recursos que associam o desconhecido ao familiar,
empregando-se metáforas, alegorias, parábolas e símbolos. E como chegamos à
terceira etapa do processo de aprendizado, a etapa principal e por isso mesmo a
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!
mais difícil, todos os recursos à disposição precisam ser usados para familiarizar
o ego humano com uma realidade surpreendente.

Por isso foi um notável caso de sincronicidade o fato de o diretor de


cinema Darren Aronofsky ter lançado, no exato momento em que se começa esta
terceira etapa, um filme de título “Mother!”, que atualiza o mito hebraico da
criação do mundo usando situações e personagens que correspondem a história
do Jardim do Éden conforme narrada por uma importante heresia judaico-cristã.

Como será exposto, o mito do Jardim do Éden foi, como tantos outros
mitos da região da antiga Mesopotâmia, uma das formas de registrar e transmitir
às gerações futuras um importante evento histórico, ocorrido ao sudeste da atual
Turquia, há doze mil anos, e que revela a natureza da “prisão” em que agora
estamos.

Cartão distribuído a críticos na exibição de “Mother!”: um octógono, o símbolo de Peixes e um ponto


de exclamação.

Não se pretende afirmar que o autor do filme, Darren Aronofsky, apesar


de sua origem judaica (e da influência de mitos bíblicos, da gematria e
da cabala em seus trabalhos), tentou conscientemente modernizar a história da
criação segundo uma antiga heresia, a fim de informar ao espectador a natureza
da prisão cognitiva em que vivemos (embora sua afirmação de que associou a
arquitetura à forma octogonal por essa forma “ser a perfeita forma para um
cérebro” seja um indício relevante). Isso pouco importa, e a real intenção de
Aronofsky é totalmente irrelevante. O fato é que o filme pode ser perfeitamente
interpretado conforme mitos da região em que há doze mil anos algo importante
aconteceu, o que convém ao processo de aprendizado.

3!
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A QUEDA HUMANA
Faz parte da loucura ignorar-se o quão louco se é, faz parte da
estupidez subestimar o quanto se ignora. Qualquer ser racional que observar a
humanidade a distância concluirá que a raça humana é, a um só tempo, louca e
estúpida.

Só a necessidade de dar exemplos desse fato já é um exemplo em si,


mas outros não faltam. O filme de Aronofsky, Mother!, mostra uma síntese de
todos os horrores perpetrados pela humanidade circunscritos ao cenário de uma
casa. Guerras, genocídios, linchamentos, infanticídios, fratricídios, fanatismos,
degradação ecológica, histeria coletiva, exaltação do terror: basta abrir os livros
de história ou os jornais do dia para ter-se essas e tantas outras provas de que
o ser humano não só parece vocacionado à violência e à destruição, mas agride
e destrói justificando-se em motivações claramente insanas.

No fundo, todos intuímos isso. No limiar do inconsciente, todos temos


a impressão de que algo está errado com o ser humano. Intimamente, sem
conseguir explicar porque, sentimos que algo vai mal com o mundo, e há muito
tempo.

Algo está fora dos eixos. Desconfiamos em nosso íntimo que o mundo
não deveria ser assim, que a humanidade não precisava ser assim, que
poderíamos viver de outro modo. Suspeitamos que a humanidade como um todo,
e cada ser humano em particular, tem sido e é mais infeliz nesta vida do que
precisava ser.

Porém, a mentalidade que herdamos do século XX refuta essa suspeita,


e propõe que se trata de uma sensação sem fundamento. Argumenta-se que é
mera ilusão, decorrência da eterna insatisfação humana com o momento
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presente. Mas essa mentalidade reflete um século em que o espírito humano
perdeu todo seu ânimo ao tentar realizar a utopia através de ideologias políticas,
encontrando sua primeira mais eloquente voz com o pai da psicologia moderna,
Sigmund Freud.

Em 1895, Freud afirmou que a função da terapia deveria ser “a troca


da miséria neurótica do paciente pela infelicidade comum”, forma “normal e
adaptada” de vivermos neste mundo. Para ele, a “infelicidade comum”, ordinária,
era o estado natural do ser humano, o melhor que podemos esperar da vida. Tal
lógica disseminou-se da psicanálise para todo o espírito do século XX e deixou
seu legado à geração atual.

“Ignis natura renovatur integra.”

Mas é fácil demonstrar o quanto a retórica propugnada por Freud e seus


filhos é equivocada, já que ignora um dos aspectos fundamentais da evolução e
prende-se à superstição de que a história humana é um caminho de constante
progresso. Mas nem todos os caminhos da evolução prosperam, e muitos de seus
caminhos levam a becos sem saída. E a história humana também, guardadas as
devidas proporções, está sujeita a acidentes e erros irreversíveis, até mesmo
fatais.

É o que o arqueólogo Ian Hodder, responsável pelas recentes


escavações em uma região da Anatólia, expõe ao descrever nosso atual
enredamento num mundo que criamos após um erro desastroso cometido há
doze mil anos.

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Nossa intuição está certa. Há algo errado com o ser humano. Há algo
errado com o nosso mundo. Alguma coisa saiu mesmo fora dos eixos em
determinado momento, desviou-se mesmo de seu devido caminho e nos colocou
aqui, enredados como um peixe capturado pelas redes do pescador.

O sofrimento humano além da proporção do que nosso senso comum


considera minimamente suportável sempre esteve presente em toda nossa
história registrada e ainda está por toda parte ao nosso redor. Mas esse
sofrimento não é uma regra, e sim um acidente recente (na história de nossa
evolução, dez mil anos é um minuto). Por muito tempo, o ser humano está
enredado em um estado de cegueira involuntária, no qual não pode aspirar a
nada melhor do que viver alguns anos de “infelicidade comum”, pontuados por
descansos casuais em felicidades transitórias, até que a morte, sempre
inexorável, chame seu nome, não sem antes deixar herdeiros para repetir o
mesmo ciclo.

Mantida a cegueira involuntária, a melhor opção continua sendo a


normalização da angústia. Ao menos a prosperidade da indústria
neurofarmacológica, com seus antidepressivos e ansiolíticos, estará assegurada.

Mas se houve um erro em nosso passado, se as coisas nem sempre


foram assim, quando, onde e como ele ocorreu?

Para compreender como ele ocorreu, pode ser útil o estudo de uma
antiga interpretação herética sobre o mito bíblico da criação do mundo.

O MITO
É provável que um evento ocorrido entre as populações pré-neolíticas
que viviam na atual Turquia, e que causou tamanho impacto humanidade até os
dias de hoje, tenha sido de algum modo registrado por quem o vivenciou, e assim
transmitido às gerações seguintes.

Em um tempo sem escrita, fatos importantes eram registrados na


forma de mitos. Assim, é possível que alguns dos mitos da região em que
localizado o sítio arqueológico de Göbekli Tepe, onde o evento ocorreu, tratem
do grande desvio de curso da humanidade. E Göbekli Tepe está na borda mais
noroeste da Mesopotâmia, justo a região de gênese dos primeiros impérios
registrados na história e das culturas suméria, babilônica, assíria e hebraica.

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Mas que tipo de mito? A própria natureza do erro, como se verá,
recomenda que se pesquise entre os mitos que contam a história da criação do
mundo, pois o erro está relacionado com aquilo que tomamos, desde então, pelo
mundo ao nosso redor.

Portanto, é possível que mitos da região que contam a criação do


mundo contenham pistas sobre a natureza do grande desvio de curso da
humanidade.

De todos os mitos dessas culturas, adota-se o mito do Jardim do Éden


não só por dispensar a apresentação da lenda ao leitor, mas por ser a variação
de um mito mais antigo, de origem babilônica.

Relato babilônico do Jardim do Éden.

Além disso, há uma interpretação da história Jardim do Éden que


encontra correspondência com a narrativa do filme de Aronofsky e com o assunto
principal desta etapa. Essa interpretação tem origem em uma heresia que, por
sua vez, nasceu da lenda sobre quatro sábios que visitaram o Éden muito tempo
depois de Adão e Eva serem expulsos.

E o que esses quatro sábios lá viram faz com que repensemos aquilo
que nossos antepassados chamavam de Paraíso.

O ÉDEN

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!
Diz uma antiga lenda hebraica que apenas quatro sábios visitaram o
Jardim do Éden. O primeiro olhou o Éden e morreu, o segundo olhou e ficou
louco, o terceiro olhou e blasfemou, e apenas um olhou e voltou em silêncio.

É curioso o Éden dessa lenda. Sempre nos foi dito que o Jardim do Éden
era a glória de Deus manifesta em bosques idílicos, lugar de deleite e santidade,
em que todos os animais vivem em comunhão. Porém, a lenda dos quatro sábios
sugere um local bem diferente, capaz de enlouquecer ou matar de parada
cardíaca mesmo um sábio que apenas ouse olhar ao redor. Da perspectiva dessa
lenda, o Éden parece menos com um lugar geográfico e mais com uma realidade
de nível superior, que pode desafiar os limites da compreensão humana até o
limiar de um colapso.

Na primeira etapa desse ciclo de aprendizado, expôs-se a maior


descoberta da história, feita no início do século XX. Essa descoberta é sobre a
natureza da realidade que está ao nosso redor.

Apesar de sua importância e de estar devidamente documentada, a


verdade sobre a realidade é tão contraintuitiva que não a reconhecemos, mesmo
estando diante de nossos olhos. Foi preciso décadas para que um cientista, Hugh
Everett III, sugerisse a interpretação mais evidente sobre o cenário que havia se
descortinado aos olhos dos cientistas em laboratórios por todo o mundo. Bastou
a Everett não impor uma limitação arbitrária ao modelo matemático de Erwin
Schrödinger, que descreve com perfeição a descoberta, para que a natureza da
realidade fosse revelada.

E o cenário que a ciência descobriu foi que vivemos em um lugar em


que múltiplas realidades alternativas coexistem e emergem a cada instante
diante de nossos olhos. Um lugar em que todos os elementos de cada uma dessas
realidades estão entrelaçados entre si, em uma relação de complementaridade
fundamental.

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!
Posters de divulgação de “Mother!”. Clique para ampliar.

Por isso não vemos nem percebemos as outras realidades emergentes.


Elas não estão entrelaçadas com nossos órgãos sensoriais e com nada que
percebemos ao nosso redor no nível macroscópico, nível em que as realidades
alternativas são intangíveis umas em relação às outras. Só observando o mundo
microscópico das partículas subatômicas é que percebemos a existência do
hipercontexto.

Este é o universo do lado de fora, despido de todos os seus véus: um


universo em que tudo o que existe está em contínua emergência diante de novas
possibilidades de entrelaçamento com tudo a seu redor, criando novas
configurações de mundos a cada instante. A riqueza de probabilidades
concretizadas desde o início deste universo é inconcebível pela mente humana.

Retomando a história dos quatro sábios, Santo Agostinho talvez


explicasse o fato de que alguns deles entraram em colapso ao visitar o Éden
atribuindo esse tipo de reação à condenação humana após o Pecado Original.
Esses sábios seriam filhos de uma época em que o ser humano acostumou-se
tanto com a lama deste mundo, enredou-se tanto nas armadilhas da condenação
de Adão e Eva, que um vislumbre do Paraíso pode ser o suficiente para matá-
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los. Diferente do primeiro casal, as gerações futuras de seres humanos, com a
expulsão do Éden, seriam como o cão criado toda vida numa cela escura e
pequena, e que entra em surto quando de súbito se vê a céu aberto, no meio da
natureza, em um dia ensolarado.

Se for assim, o problema que pode levar à morte ou à loucura não está
no Paraíso em si, e sim na mente do ser humano atual, que não suporta sua
visão por estar habituado à sua prisão. Essa explicação agostiniana, vista dessa
perspectiva, nos daria uma pista importante não só sobre a natureza do Jardim
do Éden, mas sobre a natureza da condenação pelo chamado “Pecado Original”.

No filme de Aronofsky, a residência do casal está no que parece ser


uma clareira ensolarada e verdejante, cercada por árvores altas e exuberantes.
O espaço lá fora parece imenso e iluminado. Contudo, toda a história se passa
dentro da casa, um espaço que parece sempre escuro e claustrofóbico.

A casa de “Mother!”

Qualquer ocidental conhece a fábula de como o ser humano teria


sido expulso do Paraíso. Mas uma reflexão mais detida faz saltar aos olhos como
essa é uma ideia estranha. A própria intuição humana sugere que o Paraíso,
como manifestação da glória divina, deveria ser maior, mais amplo, que o lugar
miserável em que pecadores são condenados a viver. Além disso, quando alguém
é condenado, de regra ocorre justo o contrário: não sai de um lugar no qual não
poderá mais entrar, mas entra em um lugar do qual não poderá sair.

O fato de raramente nos causar estranheza a noção de que Adão e Eva


foram expulsos do Paraíso deveria nos dizer alguma coisa. É como se
estivéssemos aprisionados em algo que consideramos ser “o” mundo, pois nele

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nascemos e fomos criados, e nos causa estranheza que alguém possa ser
condenado a entrar neste mundo. O mito assim relata pois é a única forma de
explicar o inconcebível: fomos expulsos para a prisão.

Mas qual é a natureza dessa prisão que, apesar de nos encerrar,


tratamos como “o lado de fora”? Qual é a natureza da casa no filme de Aronofsky?
Porque não percebemos que esse lugar é uma prisão?

A antiga lenda que conta a história do Demiurgo, presente no filme de


Aronofsky, Mother, tenta dar a resposta com uma linguagem alegórica.

SOFIA E DEMIURGO
No filme de Aronofsky, temos dois personagens principais: o poeta e
sua esposa. O poeta está obcecado com a missão de escrever o poema de sua
vida, que parece ser inspirado na vida do casal. Mas, paradoxalmente, ele não
dá suficiente atenção à mulher, e permite que estranhos disponham do seu lar
até construírem um inferno repleto de dor, crime e destruição – um microcosmo
que reflete nossa sociedade. O poeta se envaidece facilmente com a admiração
de estranhos, e usa literalmente a esposa para tentar construir o mundo perfeito,
que jamais se concretiza. Na verdade, parece haver uma identidade mais
profunda entre o poema e a própria realidade em que ambos vivem, como a
leitura dos versos pela esposa revela.

Já esposa é devota ao marido, e claramente se confunde com a própria


casa – a casa é também a esposa, o cenário todo ao redor dos personagens é
criado a partir dela e sustentado por ela. “Ela trouxe vida para toda casa”, o
poeta afirma, referindo-se à mulher. A esposa diz aos convidados que precisa
“terminar a casa”. Ao reclamar ao marido que ele não conclui sua poesia, ela
afirma que construiu a casa inteira, “parede por parede” enquanto ele nada
escreveu. Em certos momentos, quando conectada com essas mesmas paredes,
ela consegue sentir o coração pulsante da casa.

Na verdade, se o filme for interpretado segundo uma antiga heresia


sobre a criação e o Jardim do Éden, a esposa não é só a casa, mas todo o cenário
ao redor.

Essa heresia tem raízes que remontam às origens do Talmude, numa


polêmica e obscura lenda sobre “Dois Poderes nos Céus”. O primeiro herético

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teria sido o personagem dessa lenda, um rabino de nome Elisha ben Abuyah,
também chamado “Archer” (“o outro”).

E quem é Archer? Ele é um dos quatro sábios que teriam visitado o


Jardim do Éden. Mais exatamente, aquele que proferiu uma blasfêmia.

Segundo a lenda, ao chegar no Jardim do Éden, Archer viu ali não a


Deus, mas a outra entidade, uma segunda força que ele tomou por uma segunda
divindade. Assim, Archer teria blasfemado que “há dois poderes no Céu”, e não
um só. E ao retornar do Jardim do Éden, ele teria começado a defender entre
que os ensinamentos originais da tradição hebraica eram entendidos da forma
errada, exortando aos estudantes do Torá que abandonassem seus estudos para
dedicarem-se a uma atividade prática mais importante. Qualquer que fosse essa
atividade, não ficou registrada oficialmente para a posteridade.

Os fatos por trás dessa lenda resultaram no desenvolvimento de um


conjunto de heresias pré-cristãs que propunham uma releitura da narrativa
bíblica de criação do mundo. Segundo essa releitura, na criação do mundo
haveria dois personagens centrais: o Demiurgo e Sophia.

Sophia era considerada uma espécie de manifestação feminina do


“Poder Transcendente” de Deus. Devido a um “erro” de Sophia, dela nasceu o
Demiurgo, uma criatura imperfeita, que se ilude e que acredita ser o próprio
Deus do Velho Testamento (“Eu sou o que sou”, diz o poeta na cena final do filme
de Aronofsky). Preso a esse delírio, o Demiurgo usa a própria Sophia para
construir este mundo em que vivemos, aprisionando em cada ser humano uma
centelha divina retirada do âmago de Sophia – e, portanto, uma manifestação
do verdadeiro Deus.

Portanto, segundo essa antiga tradição, todos nós estamos presos a


este mundo, condenados por uma potência que se apresenta a nós como se fosse
o Deus verdadeiro, mas que apenas nos mantém separados do verdadeiro Poder
Transcendente, do qual somos parte e Sophia é manifestação imediata.

Nossos antepassados, justo por apresentarem a narrativa de eventos


históricos com o uso de alegorias, conferiam humanidade aos elementos
principais de suas histórias. Que alternativa tinham para descrever eventos que
estavam além de sua compreensão?

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O “erro” de Sophia não precisa ser considerado como o engano de uma
divindade, mas no sentido de um sistema que apresenta uma falha. O
“Nascimento” do Demiurgo não precisa ser interpretado no sentido humanizado
de gestação e parto. O sexo de Sophia talvez tenha a ver muito mais com uma
representação arquetípica profunda que relaciona mulher à espacialidade e à
matéria (talvez por causa da experiência primordial no útero) do que com
gêneros biológicos.

E, mais importante, o “mundo” criado por um Demiurgo não precisa ser


interpretado no sentido literal do universo físico que conhecemos. Afinal, hoje
sabemos que “o universo físico que conhecemos” é, na verdade, um mundo
simulado por nossos cérebros com uma fração dos dados que nossos órgãos
sensoriais filtram da realidade exterior.

No filme “Mother”, de Aronofsky, temos também uma mulher que não


é uma mulher, mas uma outra coisa, que doa a sua própria essência para que se
construa uma casa que não é uma casa, na qual um poeta, que não é um poeta,
possa atuar como se fosse Deus, arruinando tudo em virtude de sua delirante
vaidade diante de uma poesia que não é uma poesia. A única coisa literal neste
filme é que o resultado disso tudo são as guerras, o fanatismo, os genocídios, a
degradação ambiental e todo o inferno que nós construímos aqui na Terra.

Mas o que exatamente seriam Sophia e Demiurgo, o que a esposa e o


poeta do filme de Aronofsky representam?

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O TÚNEL DA CONSCIÊNCIA
Quando o século vinte fez a maior descoberta da humanidade e
constatou a existência do hipercontexto, o mistério também passou a ser o
funcionamento da mente humana. Macroscopicamente, não percebemos as
outras realidades alternativas pois não estão entrelaçadas, e toda e qualquer
interação entre dois corpos macroscópicos só ocorre se estiverem entrelaçados
na mesma realidade. É o mesmo fenômeno subjacente à gravidade.

Mas ainda assim, se vivemos no hipercontexto, então a vida de cada um de nós


é como uma árvore, que ramifica-se em várias versões desde o momento do
nascimento, conforme escolhas e acasos fazem emergir novas realidades.

Mas como não percebemos isso? Como sequer suspeitamos dessa


ramificação da realidade quando fazemos uma escolha? Como o cérebro e a
consciência humana lidam com o hipercontexto? É como se a vida fosse um
labirinto no qual adiante de nós há múltiplos caminhos sinuosos, mas por algum
motivo quando olhamos para trás vemos só uma estrada reta.

Após pesquisar dezenas de definições sobre o que é a “consciência”, o


filósofo Thomas Metzinger surpreendeu-se ao encontrar elementos comuns a
todas elas, que podem levar a uma definição simples, embora não
intuitiva: consciência é a aparência de um mundo construída pelo cérebro.

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Símbolo de Peixes presente no isqueiro oculto nos posters do filme “Mother!”, com o qual a mulher
incendeia a casa.

Mas nossos sentidos são limitados e condicionados por razões


evolutivas. Portanto, a consciência não é tanto uma imagem da realidade quanto
um “túnel” que nossa mente constrói para que “atravessemos” o mundo real,
rejeitando a cognição de tudo aquilo que seja desnecessário para nossa
sobrevivência.

Há um outro motivo para a consciência construir um modelo de mundo


o mais simplificado possível. É que esse processo consome energia, pois é preciso
construir e atualizar dinamicamente, a cada fração de segundo, um modelo de
mundo tridimensional e detalhado que represente aspectos importantes da
realidade circundante. E economia de energia é um fator crítico para qualquer
organismo. Portanto, esse mundo virtual, que representa o universo exterior,
precisa ser o mais simplificado possível.

A consciência, portanto, pode ser considerada um sistema de


informação sofisticado, que tem a função de representar para o organismo um
modelo de mundo com o qual pode operar, a fim de assegurar sua sobrevivência.
A consciência desempenha esse papel construindo, com as informações que
representa, um modelo de mundo coerente, que serve de túnel para o organismo
operar adequadamente na realidade circundante. Esse modelo omite todos os

15!
!
aspectos do mundo exterior que não sejam remotamente importantes para a
sobrevivência do organismo.

Um conceito importante que o estudo da consciência tomou da


arquitetura é a “transparência fenomênica”. A transparência fenomênica ocorre,
por exemplo, quando observamos atentos o vôo de um pássaro através de uma
janela, e nesse momento a janela desaparece de nosso campo de consciência.
Algo semelhante ao que ocorre quando assistimos a um filme e deixamos de
perceber os contornos da tela.

A consciência constrói uma “aparência de mundo” que tomamos por


realidade, e os elementos estruturantes dessa construção são “fenomenicamente
transparentes”. É como esconder nos bastidores, atrás das cortinas do palco, as
cordas e estruturas que sustentam o cenário de uma peça. Se não houvesse essa
transparência, não confundiríamos esse modelo tridimensional de mundo
construído pela consciência com a própria realidade, e tampouco nossos
antepassados descreveriam um erro nessa consciência como “a criação mítica do
mundo”.

A transparência fenomênica, por fim, também é a chave para explicar


porque o ser humano não percebe a natureza de sua prisão.

O mundo construído pela consciência, a realidade virtual sofisticada, é


o mundo que o leitor observa ao seu redor nesse momento. Embora você
confunda o túnel construído pela sua mente com o mundo real, e seus sentidos
lhe passem a percepção de que esse “mundo real” é exatamente aquilo que “está
lá fora” (conferindo-lhe espacialidade, perspectiva, tato, cor, forma e som), na
verdade o mundo real é uma coisa bem diferente.

Esse túnel ou construção da aparência de um mundo é representada


alegoricamente na lenda segundo a qual o Demiurgo fez Sophia construir o
universo em que vivemos. Essa é a casa que a mulher do filme Mother!, constrói
e sustenta.

A figura mítica de Sophia e a personagem da obra de Aronofsky são a


própria consciência humana, construindo um espaço que será representado para
o indivíduo como se fosse o próprio mundo, mas que é apenas uma versão
simplificada de uma realidade infinitamente mais complexa.

Mas quem é o Demiurgo no mito, quem é o poeta no filme?

16!
!
UMA VOZ QUE NARRA UMA HISTÓRIA
O cérebro humano precisa construir, através da consciência, um modelo
de mundo que seja uma representação de baixa dimensionalidade da realidade
exterior, como se esse modelo de mundo fosse uma realidade “virtual”. A
finalidade desse modelo é justamente executar duas tarefas importantes para o
organismo que o criou. A primeira tarefa é descrever o mundo exterior a fim de
identificar potenciais fontes de perigo, alimento ou reprodução (função
cognitiva). A segunda é escolher, entre as ações possíveis do organismo, aquela
que seja mais adequada ao que está acontecendo no mundo assim descrito
(função decisória).

A consciência, portanto, é um sistema cognitivo/decisório. E para


desempenhar suas atribuições, ela desenvolve, no centro desse modelo de
mundo, um tipo de identidade, uma imagem que a consciência equipara ao
próprio organismo a que pertence: é o sujeito de toda a experiência do mundo
exterior, o protagonista que decide e age.

Tal sujeito é o ego, e embora Metzinger pareça por vezes confundir a


consciência com ego (a ponto de utilizar a expressão “túnel do ego”), tratam-se
de coisas distintas. O ego é algo distinto da consciência, e só é definido como
“centro da consciência” porque ela própria, a consciência, “escolheu” representar
o ego como o protagonista que anda por esse “túnel”. Não há, na verdade,
nenhum sujeito no túnel, pois o ego é apenas uma ilusão da consciência, e uma
ilusão que está desempenhando uma função que usurpou há doze mil anos atrás.

No mito gnóstico de Sophia e Demiurgo, atualizado para o imaginário


contemporâneo na alegoria de Aronofsky, a manifestação feminina do Poder
Transcendente é a consciência humana. É a mãe/esposa que constrói um mundo
para um poeta que usurpa um lugar e se declara Deus. Um mundo em que ele
troca um ambiente vasto e iluminado por um lugar escuro e enclausurado. E isso
apenas para que possa escrever a si próprio uma narrativa sobre como será
magnífica a vida que não poderá viver, pois sabota esse projeto de vida,
enchendo sua consciência de vozes alheias, invasores desconhecidos. O resultado
disso tudo é ódio, fanatismo, opressão, guerras, crimes e miséria.

17!
!
A melhor metáfora para o atual ego humano é a de uma voz que conta
uma história para si mesma, e que continuamente repete a palavra “Eu”. Essa
voz é como alguém que está em uma biblioteca, consultando um livro, um
“manual de como interpretar o mundo exterior e reagir ao que acontece”. Esse
livro é composto de memórias do passado e definições sobre quem se é – uma
mistura de tudo que o cérebro registrou. Além disso, esse livro possui muitas
instruções sobre como reagir a um só determinado tipo de situação. O conteúdo
do livro não obedece qualquer ordem, e apresenta informações e instruções
contraditórias.

O ego só existe no instante presente, e está continuamente contando


uma história para si mesmo sobre quem é e sobre o que está fazendo neste exato
momento. Para contar essa história, ele faz contínuas consultas àquele livro, e
as páginas e capítulos que escolhe ler é que definem como deve se sentir e agir
quando algo ocorre lá fora. A escolha de como faz a consulta é um pouco
arbitrária, e baseada em hábitos e condicionamentos: as páginas mais marcadas
pelo uso tendem a ser novamente consultadas e servir de guia para o que sente
e faz. Mas também é possível que às vezes a escolha do ego seja induzida, ou
até mesmo que algo altere sua capacidade de focar em determinados conteúdos,
ou mesmo de conhecer todas as linguagens em que esse livro pode ser escrito.

O ego em si não é um mal, o ego em si não é o erro: o problema é que


o ego, conforme a lenda do Demiurgo, acha que é Deus. Decifrado-se o mito
sobre Sophia e Demiurgo com a desumanização de todos os personagens, parece
que a lenda descreve que um módulo do sistema informacional da consciência
acabou alocado para uma posição que não lhe é destinada, sendo-lhe atribuídas

18!
!
funções que não tem competência algorítmica para desempenhar. Essa é uma
primeira percepção mais definida que temos do erro, mas ainda é incompleta.

No segundo texto, veremos o quanto o poema que o personagem do


filme de Aronofsky escreve é a chave para entendermos o grande erro da história
humana, e qual a verdadeira natureza do insondável mito do Pecado Original que
nos “expulsou” do Éden, prendendo-nos em uma prisão que não enxergamos.
Basta lembrar que, no filme de Aronofsky, só após a pedra (fruto proibido) ser
“quebrada” pelo casal de visitantes (Adão e Eva) e seus filhos (Caim e Abel)
participarem de um crime é que o poeta consegue inspiração para escrever sua
história, não tendo escrito uma só linha até aquele momento.

Precisamos, antes, fixar alguns pontos sobre o sistema


Sophia/Consciência e Demiurgo/Ego.

CINCO PONTOS
Em outras palavras consciência é um sistema informacional
autoconsciente (como diria Descartes, a consciência não apenas sabe – ela sabe
que sabe). Esse sistema informacional filtra as informações transmitidas pelos
órgãos sensoriais e constrói um modelo de mundo que simula o mundo real em
uma versão de baixa dimensionalidade, com atualização dinâmica e
transparência fenomênica de sua estrutura. Esse modelo de mundo, ou “túnel”,
é o que tomamos por realidade, e em seu centro está o ego humano, cujo
protagonismo é mantido por uma narrativa interna obsessiva e que naturalmente
resulta em sofrimento e destruição.

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Temos, assim, os elementos principais para prosseguir e compreender
a origem do maior erro da história humana. E alguns pontos precisam, porém,
ser fixados sobre as noções apresentadas a seguir.

O primeiro ponto é que, conforme demonstrado, a consciência é


responsável pela construção de um modelo de mundo que, tal como um túnel,
ajuda o organismo a passar pelo hipercontexto sem perceber a contínua
emergência de novas realidades alternativas. Esse modelo é aquilo que vemos
ao nosso redor quando estamos despertos. Essa construção é como uma obra de
engenharia da natureza (espontânea e não intencional como todas as edificações
da natureza). E obras podem ser executadas de várias maneiras, sendo possível
construir vários tipos de túneis, adotar estratégias diferentes de design e
tecnologias diferentes de material de construção. Ou seja, a consciência pode
construir outros túneis, poderia representar a realidade circundante de outras
formas além dessa que vemos. No filme de Aronofsky, a esposa sustentava a
casa com sua própria essência para tentar realizar o mundo que o poeta desejava
e descrevia em seus versos – em termos literais, a consciência humana está,
neste momento, aprisionada em determinada representação da realidade
moldada pelo ego.

Projeto da casa de “Mother!”.

O segundo ponto é que, tratando-se de uma obra de engenharia


informacional extremamente complexa, o material de construção desse túnel é
algo que chamamos de linguagem, entendendo-se como tal não apenas a

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linguagem verbal, mas qualquer sistema de símbolos que possa representar e
transmitir informação complexa. E há várias linguagens possíveis para a
construção de um modelo de mundo, sendo a verbal a mais restrita. No filme de
Aronofsky, o poeta está obcecado em escrever uma narrativa poética que evoca,
na própria consciência, um projeto de mundo que ele mesmo sabota, conduzindo
tudo à destruição – e ele precisa sabotar, pois o projeto é inviável. Em termos
literais, há um erro na estrutura desse sistema representacional, que resulta no
sofrimento do organismo e numa espiral de destruição retroalimentada que se
replica também no contexto social em que vivemos.

O terceiro ponto é que a consciência desenvolveu um determinado


tipo de protagonista para ser o centro das vivências desse modelo de mundo
construído pelo cérebro: o ego, que não tem substância, sendo ele próprio uma
simulação dentro de uma simulação, um protagonista criado pela consciência
para viver no centro de mundo criado por ela. Tal como Sophia e Demiurgo na
lenda, poeta e esposa no filme. Porém, o ego humano, tal como o vivenciamos,
é apenas uma dentre tantas outras formas que a consciência poderia escolher
para articular a ação do organismo com base no modelo de mundo de baixa
dimensionalidade que simula. Em outras palavras, não só o mundo construído
pela consciência poderia ser outro, mas também o protagonista no centro desse
mundo poderia diferente. No filme de Aronofsky, essa outra possibilidade está
representada nas diversas formas com as quais a consciência sugere ao ego qual
caminho deve ser tomado para que o erro seja equacionado e corrigido antes
que se destrua a própria estrutura da consciência.

Detalhe do poster do filme “Mother!”, revelando a solução simbólica do erro na consciência, que é
sabotada pelo poeta.

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O modelo de mundo em que cada um de nós vive em sua cabeça é, em
grande parte, consensual. Como diz Metzinger, é uma realidade virtual que roda
em tempo real e online, comunicando-se com outras realidades virtuais. Se não
fosse assim, a sobrevivência da espécie seria comprometida pela dificuldade de
comunicação entre os membros de um grupo de seres humanos – e, como
veremos, a formação de redes de transmissão de informação é um padrão básico
na história da evolução. A consciência, enquanto sistema informacional, existe
inclusive com a função de tornar mais eficiente a comunicação entre membros
de uma tribo que busca coletivamente pela sobrevivência, e tem seu
desenvolvimento retroalimentado pelas soluções encontradas pelo grupo para
aprimorar essa comunicação. Assim, o erro em um sistema pode rapidamente
replicar-se em outros sistemas cognitivos pelas vias de comunicação humanas,
que moldam o mundo consensual, como a cultura e a família. Replicações de erro
são eventualidades comuns na história da evolução, podendo resultar na extinção
de espécies.

O quinto ponto é lembrar que a evolução não segue uma trajetória


evolutiva em linha reta na direção ao progresso. A trajetória é tortuosa, pois a
evolução ocorre em passos cegos, sem intencionalidade manifesta, e por vezes
dá círculos até um ponto sem saída. A natureza ensaia todos os caminhos
possíveis da evolução num processo de tentativa e erro, e faz frente aos erros
com a força bruta dos números: quanto mais espécies, quanto mais variabilidade
de organismos, melhor. Os vestígios de espécies extintas a milhares de anos,
como os dinossauros, são testemunhas de quantas foram as vítimas dos erros e
acasos da história evolutiva. Porém, na natureza, alguns erros não são fruto do
acaso, mas podem ser provocados, induzidos ou facilitados, e até mesmo
parasitas podem tirar proveito de más escolhas evolutivas. Do ponto de vista dos
lobos selvagens que a humanidade domesticou e manipulou geneticamente até
produzir criaturas tão indefesas quanto o chihuahua, tratou-se de um erro
provocado pelo mero capricho de uma outra espécie.

O mais importante, o emergencial nesse tipo de situação, não é


identificar se o erro foi acidental ou provocado, mas reconhecer que se trata de
um erro que produz muito sofrimento entre nós, e que pode levar à destruição

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da espécie humana. E, a partir disso, tentar identificar qual a natureza do erro
original, sua origem e como foi replicado.

Trata-se de uma análise objetiva, que parte de princípios autoevidentes


e não se apoia apenas no mito do Jardim do Éden. Embora o erro esteja presente
em mitos de criação do mundo tal como aquele modernizado no filme de
Aronofsky, ele foi factual, teve data e local para ocorrer. Deixou vestígios
arqueológicos tão eloquentes quanto sua primeira e maior consequência.

No mito bíblico, a primeira e maior consequência da Queda do Homem


foi um crime, um homicídio entre irmãos. A descrição mítica dessa história
descreve claramente o primeiro grande impacto do erro na vida humana, que se
reproduz até hoje.

A REVOLUÇÃO NEOLÍTICA
No filme de Aronofsky, o mito de Adão e Eva é atualizado para nossos
tempos, uma forma hábil de sobrepor origem e consequências do Erro Original.
Não temos o primeiro casal no auge de sua vida de semideuses no Éden, mas
como casal envelhecido, que precisa confrontar a mortalidade humana. A
lembrança da morte e da velhice após uma vida de decepções acumuladas está
sempre presente. Adão está doente, irá enfrentar em breve o fim da vida. O
terror existencial da finitude humana se insere na narrativa, para estabelecer
onde está a fratura original do erro que se perpetuou na consciência.

Contrasta-se a origem mítica da humanidade com o resultado final da


queda do homem: tem-se um casal típico de classe média, um tanto ridículo,
emaranhado em conflitos familiares e tentando buscar alguma transcendência no
culto ao poeta. Com a chegada do casal de visitantes, também surge o primeiro
sinal de culto e religiosidade: o casal tem a foto do poeta, ambos tratam seu
escritório de criação um lugar sagrado, e lá sabem de uma pedra importante, um
objeto do qual não podem se aproximar. Essa pedra, essa “coisa” é também
objeto de fetiche e culto pelo próprio poeta.

A seguir, após a pedra ser quebrada pelo casal, surgem seus filhos. A
discórdia entre os irmãos se acirra até que um mata o outro, em uma clara
representação do mito de Caim e Abel. No filme, o irmão homicida parece estar
excessivamente preocupado com dinheiro de uma herança, evocando novamente
a relação do ser humano com a riqueza material.
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Na história bíblica, Caim mata Abel por inveja, já que Deus aceitou sua
oferenda na forma do sacrifício de um animal, rejeitando a oferta de Caim,
consistente no produto de seu trabalho na agricultura. Como consequência, Caim
tornou-se o único filho vivo de Adão e Eva, e pode ser considerado como o
ancestral comum de toda a humanidade [[Segundo a narrativa hebraica, é
verdade, Adão e Eva tiveram outros filhos e filhas. Porém, essa interpretação do
mito que o literaliza como uma narrativa sequencial é propriamente do tipo
religiosa, ou seja, não é a forma adequada de interpretar os mitos, que devem
ser interpretados como uma forma de linguagem ou ferramenta informacional,
guardando entre si não uma relação de sequência narrativa, mas de
correspondência simbólica. Mais sobre isso será exposto no futuro.]].

O mistério dessa lenda, a razão pela qual Deus teria rejeitado a


oferenda de Caim, produto da agricultura, será analisado com maior atenção na
segunda parte desta etapa. De qualquer modo, estudiosos do Torah também
sempre discutiram qual a verdadeira natureza do fruto proibido. Tradições mais
antigas como o Sefer Ha Yetzirah afirmam que o fruto proibido não era a maçã,
mas o trigo. No Talmude Babilônico, Rabbi Yehuda também menciona uma
tradição mais antiga segundo a qual o fruto proibido era, na verdade, o trigo. Na
verdade, em hebraico, a palavra para trigo (‫ )ח יטה‬tem origem na palavra
“pecado” (‫)חט‬.

É uma ideia estranha, que só é compreendida se decifrarmos o mito do


Jardim do Éden. Temos, de qualquer forma, uma associação entre o erro e o
trigo, por mais inconsistente que possa parecer neste momento.

Decifrar o mito de Caim e Abel, e desvendar a associação entre trigo e


fruto proibido depende de lembrarmos que nossos antepassados viveram
por centenas de milhares de anos em pequenos grupos nômades. Esses grupos
obtinham seu sustento da caça de animais e, principalmente, da coleta de
vegetais que encontravam à livre disposição no meio ambiente.

Em determinado momento (da perspectiva histórica, da noite para o


dia), tudo mudou. Foi um evento que ocorreu em vários povos ao redor do
planeta sem que houvesse contato entre essas populações. E seu impacto na
história humana foi tão profundo que historiadores e arqueólogos o chamam de
revolução: a “Revolução Neolítica”.

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Modelo de primeira residência no início da “Revolução Neolítica”. O culto religioso era realizado
dentro da própria moradia de cada família.

Muitos também chamam a Revolução Neolítica de ” Agrícola” pois sua


característica mais notável foi a transição do estilo de vida da caça e coleta para
um estilo de vida baseado no cultivo de trigo. Já foi confirmado por sítios
arqueológicos como Çatalhöyük que a “domesticação” de trigo selvagem pela
agricultura foi a primeira etapa dessa revolução. A transição da caça de animais
para a criação e abate de rebanhos foi posterior.

Por muitos anos, historiadores e arqueólogos consideraram a Revolução


Neolítica como um “mal necessário”, um pressuposto inevitável de nosso
progresso. Ela representaria um passo importante e inevitável no caminho que
nos conduziu ao domínio do mundo, ao aumento de nossa inteligência, a uma
maior qualidade de vida e ao fim da violência no mundo selvagem. Tratava-se
da hipótese acalentada por Hobbes: o estado natural era um estado de
brutalidade e privação, e apenas através do sacrifício e concessões recíprocas
abandonamos esse estágio primitivo e alcançarmos o progresso humano.

Porém, com o prosseguimento das descobertas arqueológicas, essa


noção acabou refutada pelos fatos. Na verdade, a Revolução Neolítica foi um
passo em falso, e evidências demonstram que Rousseau tinha, de certa forma,
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razão: o ser humano havia nascido livre, mas um tipo de contrato escravizou-o
e agora estamos, por todos os lados, preso a correntes.

Há cerca de dez mil anos atrás, a humanidade tomou um desvio em


sua rota que resultou naquilo que Harari afirma ser “a maior fraude da história”.

Um erro que tornou o cotidiano de cada ser humano mais difícil e menos
gratificante, empobreceu nossa dieta, piorou as condições gerais de vida e foi
até mesmo contrário à nossa disposição anatômica, representando
uma concreta violência para nosso corpo. No sítio arqueológico de
Çatalhöyük (sul da Anatólia), em que se descobriu uma das primeiras
aglomerações humanas após a Revolução Neolítica, os ossos de adultos tinham
lesões próprias de osteoperiostite e osteoartrite, sinal de uma vida sujeita a
transporte de muito peso e de trabalho excessivo. Esse tipo de agressão ao
próprio corpo era algo sem precedentes no período pré-Neolítico.

Ao lado das desvantagens, essa transformação no nosso estilo de vida


não trouxe nenhuma vantagem. Descobertas da equipe do arqueólogo Klaus
Schmidt em Gobekli Tepe (no sudeste da Turquia) revelaram como é falaciosa a
tese de que a revolução agrícola deixou o ser humano mais inteligente, ou que
foi condição necessária ao desenvolvimento da civilização, ciência e tecnologia.
Como o historiador Yuval Harari conclui, há qualquer evidência suportando tais
crenças. Ao contrário, há evidências de que nossos antepassados que coletavam
e caçavam tinham domínio de técnicas sofisticadas, capazes de espantosas
proezas arquitetônicas e com um notável conhecimento de astrologia.

Além disso, tampouco essa mudança melhorou nossa dieta, aumentou


nossa segurança ou diminuiu a violência entre seres humanos, ao contrário do
que supunha Hobbes. Na verdade, há indicativos de que após a Revolução
Neolítica a vida humana passou a sujeitar-se maiores riscos, inclusive com o
aumento de agressões e hostilidades entre grupos e perpetração sistemática da
violência dentro de cada grupo. A escravidão começou com a Revolução Neolítica,
e o sacrifício de seres humanos também.

Todos os indicativos apontam hoje para o fato de que a Revolução


Neolítica, tal como se deu, não era um passo necessário ao progresso humano.
Na verdade, em outras tramas de realidade existentes no hipercontexto, em que
a história da humanidade seguiu caminhos diferentes daqueles tomados por
nossos antepassados no momento da última singularidade, a evolução da

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civilização entre os seres humanos ocorreu de outra forma, e inclusive a passos
mais largos, sem resultados tão nocivos para a qualidade da vida humana.

Na verdade, além do historiador Yuval Harari, arqueólogos como Ian


Hodder e David Lewis-Williams demonstraram que a Revolução Neolítica foi a
responsável por uma organização da vida humana que resultou na criação de
castas sociais, repressão da mulher, degradação ambiental, instrumentalização
da religião como forma de domínio e imposição das principais injustiças humanas
registradas na história e ainda presentes no mundo atual.

Como o Pecado Original, a Revolução Neolítica teria sido um erro, um


desvio do caminho que ocorreu na singularidade de doze mil anos atrás. Por isso
o trigo está associado ao fruto proibido, como um indicativo de onde, no mito
bíblico, deve-se procurar a origem do erro.

O fruto proibido porém, não é o trigo, pois o erro cometido pelo homem
não começou com a sedentarização de grupos nômades e invenção da
agricultura. Como o arqueólogo Jacques Cauvin propôs e as pesquisas de campo
de Klaus Schmidt e Ian Hodden confirmaram, o erro cometido pelo ser humano
ocorreu não no mundo exterior, mas em primeiro lugar na sua consciência, o
local que há doze mil anos foi palco de uma singularidade. Pelo que se descobriu
em Göbekli, a Revolução Neolítica, nas palavras de Jacques Cauvin, não começou
com uma revolução da agricultura, mas com uma revolução cognitiva.

O UMBIGO DO MUNDO
Em outubro de 1994, um velho pastor curdo, Savak Yildiz, notou algo
estranho numa pequena colina próxima a cidade de Sanliurfa. A colina era
chamada pela tradição de Göbekli Tepe, ou seja “Colina do Umbigo”, e já havia
sido explorada superficialmente pelo arqueólogo Peter Benedict em 1963, que se
equivocou ao interpretar o local como um cemitério bizantino sem importância.
Mas ao limpar a terra que cobria o objeto que viu, o velho curdo constatou que
se tratava de uma grande pedra esculpida de forma curiosa. Yildiz era um simples
pastor, mas não um tolo. Ele sabia que não era o tipo de coisa que se esperava
encontrar em um cemitério.

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Foto real de Savak Yildiz.

No ano seguinte, em 1995, os arqueólogos Harald Hauptmann e Adnan


Misir começaram as escavações, e logo o arqueólogo alemão Klaus Schmidt
assumiu os trabalhos. As escavações prosseguem até hoje, pois o que o pastor
curdo descobriu é esplêndido. Tratava-se da, nas palavras de Lewis-Williams, “do
sítio arqueológico mais importante do mundo”.

Em Göbekli Tepe há um complexo de estruturas arquitetônicas de


tamanho considerável. Tratam-se de pedras com mais de cinco metros de altura,
cada qual pesando mais de quinze toneladas, sempre dispostas ao redor de duas
outras pedras com altura e peso semelhantes. Muitas dessas pedras estão
repletas de relevos de animais dispostos de formas curiosas, junto a estranhas
figuras geométricas. As duas pedras centrais, em particular, possuem relevos
que deixam clara a intenção de que representassem figuras humanas.

O que torna Göbekli Tepe extraordinário é uma série de constatações


arqueológicas impressionantes.

Em primeiro lugar, as construções ali escavadas foram datadas entre


10.000 e 9.000 A.C., ou seja, justo no início da Revolução Neolítica. Em segundo
lugar, os responsáveis por erguer aqueles monumentos ainda eram nômades que
viviam da caça de animais e da coleta de alimentos.

Em terceiro, próximo dali descobriu-se a primeira variedade de trigo


selvagem domesticadopelo ser humano, ou seja, o trigo que começamos a

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plantar e que deu origem a todas as espécies de trigo utilizadas pela nossa
civilização hoje em dia. Em quarto lugar, tratam-se de estruturas que exigem um
sofisticado conhecimento de arquitetura e astronomia, além de uma operosa
organização do trabalho. São habilidades que até então não se pensava ser do
domínio de nossos antepassados pré-Revolução Neolítica.

Por fim, em quinto lugar tratam-se de construções que não têm


qualquer objetivo prático, inexistindo qualquer indício de habitação humana na
região. Na verdade, o único propósito das construções ali descobertas era
religioso, a serviço de uma casta de sacerdotes. Assim, em Göbekli Tepe está
aquilo que se pode chamar de o mais antigo templo da humanidade, construído
justamente no momento em que a Revolução Neolítica começou.

Essas constatações levam a conclusões inevitáveis.

Por muito tempo, tentou-se descobrir o que levou a humanidade a


abandonar o estilo de vida de coleta e caça para adotar a vida sedentária de um
agricultor, com impacto tão negativo na sua qualidade de vida. Predominavam
entre os arqueólogos as hipóteses de que uma abrupta mudança climática, crise
populacional ou escassez de alimentos teria imposto a nossos antepassados a
Revolução Neolítica.

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Porém, em Göbekli Tepe há construções erguidas imediatamente antes
de a Revolução Neolítica acontecer, e essa Revolução ocorreu exatamente ali,
pois a primeira domesticação de trigo selvagem foi feita nas proximidades. Além
disso, seu gigantismo deixou claro que a agricultura não era um requisito para a
emergência de sociedades complexas. Na verdade, Göbekli Tepe demonstrou que
os povos nômades eram muito mais inteligentes e tinham uma cultura muito
mais sofisticada do que se supunha, eliminando a presunção de que a revolução
agrícola nos tornou mais inteligentes e hábeis.

As descobertas em Göbekli Tepes foram assim reunidas às descobertas


por arqueólogos como Ian Hodder (em Çatalhöyük), Jean Perrot (em Ain Mallaha)
e Jacques Cauvin (em Mureybit). O cenário formado pela reunião de evidências
não deixou dúvidas de que a Revolução Neolítica não foi determinada por
pressões climáticas, populacionais ou ambientais, embora esses fatores possam
ter colaborado, mas por uma mudança na estrutura da consciência humana.

Nas palavras de Cauvin, a Revolução Neolítica, que tornou a vida


humana tão pior sem qualquer razão aparente, é uma “clara demonstração do
fato de que o homem não poderia transformar completamente a forma como
explora seu ambiente natural sem adotar ao mesmo tempo uma diferente
concepção de mundo e de si mesmo enquanto inserido neste mundo”. Houve,
antes de tudo, uma mudança na psicologia coletiva que é expressa na
emergência de novos mitos.

Portanto, a Revolução Neolítica, antes de ser uma revolução agrícola,


foi em primeiro lugar uma Revolução Simbólica. Mais exatamente, uma revolução
da consciência – se entendermos por “revolução” algo cujos resultados são
desastrosos.

Os sítios arqueológicos em Göbekli, Çayönü e Nevali Çori, todos


relacionados ao surgimento da Revolução Neolítica, estavam associados à uma
explosão do simbolismo religioso sem precedentes na história humana. Nas
palavras do arqueólogo Lewis-Williams, tratou-se de um contrato da consciência
afiançado por castas sacerdotais. No termo cunhado por Julian Jaynes, foi o
momento da reestruturação do túnel da consciência naquilo que chamou
de Mente Bicameral. Como Cauvin disse, foi o momento em que nasceram os
deuses em nossas mentes. Como os mitos do Jardim do Éden e do
Demiurgo/Sofia, foi a “origem do mundo”.

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Porém, há mais um detalhe que os arqueólogos não deixaram passar.
O fato é que o complexo religioso encontrado em Göbekli Tepe foi completamente
enterrado pela ação humana consciente, e não como resultado de algum evento
natural. Na verdade, o que ocorreu em Gobekli Tepe é tão hediondo que em
algum momento nossos antepassados tentaram enterrar as memórias dos crimes
ali cometidos, embora as consequências já fossem irreversíveis.

A SINGULARIDADE
Há doze mil anos, ocorreu uma singularidade [[“Singularidade” é o
tema do próximo texto, mas pode ser definida como “o processo de emergência
de uma função que transcende seus elementos constituintes.”]]. Foi quando a
raça humana cometeu um grande erro. Agora, estamos para enfrentar uma nova
singularidade. Se essa próxima singularidade herdar os erros da anterior,
evocaremos o inferno na Terra. Se corrigirmos o erro a tempo, poderemos
construir uma utopia.

O erro cometido pela humanidade há doze mil anos colocou a todos em


uma prisão. Olhe ao seu redor: essa é sua prisão, aquilo que você vê. Mas se
uma prisão, onde estão os muros? Por que o prisioneiro, olhando ao redor, não
consegue encontrar suas correntes?

Na primeira parte desta terceira etapa, apresentou-se o mito de Sophia


e Demiurgo, e como esse mito pode ser considerado uma analogia sobre a
consciência e o ego. Explicou-se a natureza da consciência humana enquanto
criadora de uma “realidade virtual” (como diz Thomas Metzinger) que nosso
cérebro constrói como “o mundo real”, mas que não passa de uma versão de
baixa dimensionalidade construída pelo cérebro para representar uma fração do
que está acontecendo lá fora, no hipercontexto.

No centro desse modelo está o ego, entronizado e envaidecido com a


narrativa que conta a si mesmo sobre quem ele próprio é. Miticamente, o ego é
como um déspota que constrói, com a consciência, um mundo enclausurado e
escuro. Já tecnicamente, o ego é um módulo da consciência que foi deslocado de
suas funções originais para ocupar uma posição que não lhe compete.

Esse é o motivo de não percebermos os muros de nossa prisão: os


muros formam a estrutura do próprio mundo criado pela consciência a partir do
erro cometido por nossos antepassados. Esse é um exemplo de “transparência
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!
fenomênica”: é impossível perceber aquilo que é elemento estruturante da
própria percepção. Como quem olha uma paisagem para fora da janela e deixa
de ter consciência da própria janela, ou quem assiste um filme e deixa de ver os
limites da tela, não percebemos a moldura com a qual o cérebro pendura na sua
parede a imagem da realidade.

Também na primeira parte da terceira etapa se expôs como os antigos


mitos sobre a origem do mundo encontram correspondência com as recentes
descobertas sobre a origem da Revolução Neolítica, feitas em Göbekli Tepe e
Çatalhöyük. Com essas descobertas a Revolução Neolítica, por fim foi
desmascarada, e arqueólogos e historiadores concluíram que se tratou da “maior
fraude da história” (Yuval Harari) e do “primeiro Grande Erro da espécie humana”
(David Lewis-Williams). Foi quando se descobriu que, antes da Revolução
Neolítica, nossos antepassados possuíam uma cultura sofisticada e complexa
(com conhecimentos de engenharia, astronomia e tecnologia surpreendentes),
além de se beneficiarem de uma melhor qualidade de vida, melhor saúde, melhor
dieta, maiores estímulos ao desenvolvimento da inteligência e, por fim, maior
longevidade.

Quando se fala em “erro” e “história”, é importante atentar para o fato


de que a natureza aleatória da evolução reflete na natureza aleatória da própria
história. Em outras palavras, às vezes uma civilização ou mesmo uma espécie
inteira pode tomar caminhos errados, e às vezes esses caminhos podem tornar-
se irreversíveis. Em um nível extremo, a irreversibilidade pode ser cognitiva, a
ponto de ser impossível sequer cogitar que as coisas poderiam ter sido diferentes,
que poderíamos ter conquistado tudo o que já conquistamos sem tanto
sofrimento – e inclusive mais rapidamente. Basta pensar no quanto se retrocedeu
na Idade Média, quando o grego Eratóstenes, dois séculos antes da Era Cristã,
já sabia que a Terra era redonda e havia praticamente acertado o cálculo de sua
circunferência. Basta pensar em quantas vezes a guerra e a opressão política
amarraram os pés da evolução humana.

Achamos que a Revolução Neolítica nos trouxe benefícios porque


avaliamos o pouco que ela nos deu como suficiente e apropriado, já que não
conhecemos outras possibilidades. Somos incapazes de conceber outras formas
melhores de viver, e outras formas melhores de progredir. É uma espécie de
transparência: não podemos saber de outras possibilidades, pois quando

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!
olhamos para trás enxergamos o passado a partir do pequeno buraco que há na
parede de nossa cela.

Mas qual a natureza exata dessa prisão? Qual foi o fruto proibido que
nossos antepassados provaram?

A resposta pode ser graficamente representada na seguinte imagem,


distribuída pela equipe de divulgação do filme Mother!, de Darren Aronofsky,
entre críticos e jornalistas por ocasião de sua estreia:

Cartão distribuído a críticos na exibição de “Mother!”: um octógono, o símbolo de Peixes e um ponto


de exclamação.

É uma feliz coincidência que esse diagrama possa ser usado para refletir
a natureza do erro que determinou a tragédia da consciência humana, um erro
batizado pelo psicólogo Julian Jaynes de “Mente Bicameral” e que o arqueólogo
Jacques Cauvin identificou como a revolução cognitiva que desencadeou a
Revolução Neolítica.

O símbolo central dessa imagem é o símbolo de Peixes, presente no


filme em um isqueiro de Adão e oculto em cartazes promocionais da obra. Trata-
se de um símbolo antigo, que tem origem em uma das estrelas da
constelação Alpha Piscium, que era chamada no oriente-médio de “a corda”,
tanto para simbolizar a corda que permite levar um balde ao fundo de um poço
como a corda que une dois peixes nadando em sentidos opostos.

Tem-se, assim, um símbolo de separação de dois sistemas distintos,


unidos por apenas um ponto de contato.

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Isqueiro com o símbolo de Pisces como detalhe dos cartazes promocionais de “Mother”.

Na parte superior do diagrama, temos um octógono dentro de um


círculo, forma constante na arquitetura da casa em que o
filme Mother! transcorre e de grande importância no mito original sobre Sophia
e Demiurgo. Sabemos, por entrevistas do diretor Darren Aronofsky, que sua
intenção era evocar o significado do octógono na alquimia e doutrinas que
associam o número oito aos arquétipos do infinito e da regeneração. Aronofsky
também falou de seu interesse pelodo octógono enquanto “perfeita forma para o
cérebro humano”.

Tem-se, assim, a imagem de um mandala, um símbolo da perfeita


organização psíquica.

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!
O octógono é uma forma onipresente na casa construída por Sophia.

Na parte inferior do diagrama, está um ponto de exclamação, último


caractere do título do filme. Trata-se, em primeiro lugar, de um recurso
linguístico, o que é importante para revelar a natureza essencial do erro cometido
por nossos antepassados. Além disso, o ponto de exclamação é um sinal que tem
origem medieval, tratando-se inicialmente de um “i” acima de um “o”, para
representar a palavra latina “io”. Essa palavra é derivada do grego “ió“, que por
um lado é o caso acusativo do substantivo ιός (iós – “vírus”, “veneno”) e de outro
remete ao também grego “iώ”, que em latim vulgarizado é equivalente a “ego”.
Também por isso, em línguas latinas “io” deu origem à primeira pessoa do
singular, como são exemplos o “io” italiano, o “yo” espanhol e o “eu” português.

Tem-se, assim, a um só tempo um recurso linguístico, uma alusão ao ego e a


ideia de vírus ou infecção.

Em resumo, reunindo os três símbolos em um mesmo diagrama, tem-


se a descrição de dois sistemas separados, unidos por uma estreita ponte de
comunicação (a “corda” do símbolo de Peixes ao centro): acima, um sistema que
representa a organização ideal da consciência humana; abaixo, um sistema
associado ao ego, com natureza mesmo tempo linguística e viral. Esse diagrama

35!
!
é a exata representação daquilo que Julian Jaynes chamou de “Mente Bicameral”
que produziu nossa atual consciência.

O NASCIMENTO DA LINGUAGEM
No filme de Aronofsky, o mito do Demiurgo é apresentado como a
história de um poeta, que escreve um grande poema, e sua esposa, que reforma
uma casa com a qual ela própria se confunde. Linguagem é o instrumento do
ofício do poeta, ou melhor, o instrumento para orientar Sophia sobre como a casa
deve ser construída. Quando o poeta termina sua poesia, a leitura dos versos
evoca em Sophia a imagem da casa e da vida que ele projeta viver ao seu lado.

A consciência é Sophia e a casa ao mesmo tempo, e o ego humano é o


Demiurgo e sua poesia. E há um motivo pelo qual o ego utiliza a linguagem para
orientar a consciência durante a construção de seu “mundo“. Linguagem é
informação, e informação é a “substância” de que é feita a consciência.

Como Jaynes e Jacques Cauvin propuseram, e acabou confirmado pelas


descobertas dos arqueólogos Klaus Schmidt (em Göbekli Tepe), Harald
Hauptmann (em Nevali Çori) e Ian Hodder (em Çatalhöyük), a Revolução Agrícola
foi antecedida de uma alteração na estrutura da consciência que Cauvin chamou
de “Revolução Simbólica”. Jaynes demonstrou que essa revolução simbólica foi
resultado emergente de uma singularidade que ocorreu no momento em que a
linguagem humana desenvolveu-se a tal ponto que pressionou a alteração da
própria consciência. A partir desse ponto, a forma como a consciência passou a
vivenciar as experiências psíquicas (fossem elas sensações, emoções,
pensamentos ou decisões) sofreu uma profunda transformação.

Os primitivos seres humanos, organizados em bandos, fortaleceram sua


associação com o uso de sistemas rudimentares de comunicação que se
desenvolveram até o nascimento das primeiras linguagens. Com tempo, a
comunicação tornou-se progressivamente mais eficiente, permitindo a
articulação de táticas durante a caça, a transmissão de conhecimento sobre como
produzir ferramentas e outras tantas vantagens evolutivas. Mas como a
consciência é um sistema de informação, e a linguagem é ela própria um sistema
para a transmissão de informação, imediatamente surgiu uma relação de
influência recíproca. Nessa relação, a consciência estimulava o aumento da
complexidade da linguagem humana, e a linguagem, por sua vez, criava

36!
!
ferramentas para a consciência desenvolver-se – um processo sempre a serviço
a sobrevivência do organismo através da cooperação com a tribo.

É assim que a linguagem foi interiorizada na construção do modelo de


mundo que o cérebro apresenta ao organismo como “realidade”. A linguagem
passa assim a integrar a consciência humana, o “mundo” que percebemos, e
assume aos poucos uma posição privilegiada, viralizando-se em quase todos os
processos mentais.

Através de uma extensa pesquisa, Julian Jaynes demonstrou que


quando nossos antepassados começaram a pensar utilizando as primeiras
palavras e frases criadas originalmente para a comunicação do grupo, com toda
certeza essas palavras eram percebidas de uma forma totalmente diferente de
como as percebemos hoje em dia. A execução de uma tarefa mental como pensar
em palavras, banal para qualquer homo sapiens moderno, foi vivenciada de
forma intensa por nossos ancestrais quando o fizeram pela primeira vez. Somos
hoje o resultado de uma transformação que ocorreu há milênios, e o modo como
nossos pensamentos se desenvolvem em nossa cabeça não nos causa
estranheza. Na verdade, pensar tal como fazemos é automático, mas nem
sempre foi assim.

O desenvolvimento da linguagem produziu impactos dramáticos na


consciência do homo sapiens primitivo. “Cada novo estágio de desenvolvimento
das palavras literalmente criava novas percepções e interesses, e essas novas
percepções e interesses resultavam em mudanças culturais importantes, que se
refletem nos registros arqueológicos” [[Jaynes, Julian. The Origin of
Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind, p. 132.]].

Quando nossos antepassados elaboraram os primeiros pensamentos na


forma de frases rudimentares, reproduzindo na consciência a comunicação
realizada entre os membros do grupo, certamente essas palavras não foram
“ouvidas” como se viessem do próprio pensador. A elas era atribuída um outro
sujeito, que falava com o pensador, representando a experiência psíquica que o
pensador vivenciava naquele momento. Mesmo se as repetisse em voz alta, o
indivíduo entenderia que as palavras antes foram ouvidas de alguém. Afinal,
palavras eram ditas de alguém para alguém, e era nesse contexto que nossos
antepassados as desenvolveram – assim, uma frase na consciência era atribuída
a uma comunicação de outra entidade, de outro ser. À medida que o uso de

37!
!
frases tornava-se recorrente, frases eram atribuídas a sujeitos diferentes que
representavam experiências psíquicas específicas.

Cientes dessa personificação que o ego faz das experiências psíquicas


quando a consciência passa a servir-se da linguagem, Jung e Jaynes
documentaram a proximidade entre o estado de alucinação de pacientes
diagnosticados com esquizofrenia e os fundamentos da percepção de mundo por
qualquer ser humano. Mais ainda, apresentaram provas de que alucinações
auditivas e visuais são experiências comuns não apenas entre esquizofrênicos e
consumidores de substâncias alucinógenas: também uma razoável parte das
pessoas consideradas “normais”, que vivem bem adaptadas à sociedade,
costumam ouvir vozes e ter outras alucinações que racionalizam e tentam de
alguma forma ignorar. Esses eventos podem ocorrer aleatoriamente, mas há
uma predominância de casos de alucinação de pessoas “normai” reportados em
situações de elevado estresse, trauma ou excitação emocional que provoque
alguma ruptura cognitiva.

Quando nossos primitivos antepassados escutaram em sua consciência


as primeiras frases, essas palavras não apenas eram atribuídas a entidades que
representavam as emoções e pensamentos associados a determinadas frases.
Essas frases eram literalmente ouvidas por aquele que as pensava, em um caso
de alucinação auditiva que não raras vezes vinham acompanhadas de alucinações
visuais.

Registros históricos deixam claro que nossos antepassados realmente


viam diante de si entidades que representavam as experiências psíquicas que
estavam sendo processadas por sua consciência, deixando relatos escritos sobre
espíritos e divindades vistos por coletividades. Os humanos da era paleolítica
responsáveis pelas imagens na caverna de Chauvet pintaram seres sobrenaturais
ao lado de animais não como evocações artísticas de fantasias religiosas. Eram
entidades realmente vistas por eles. As pinturas de caçadas em que seres
sobrenaturais eram representados ao lado de caçadores e presas apenas
reproduziam uma vivência tal como era percebida pelo cérebro primitivo.

38!
!
Experiências psíquicas significativas eram acompanhadas de
alucinações específicas. As “figuras de transformação” dos antigos Olmecas têm
essa mesma origem, pois entidades que representavam experiências psíquicas
fundamentais eram percebidas na forma de um conjunto de atributos animais
arquetípicos (“fúria do tigre”, “coragem do leão”,” esperteza da raposa” ainda
são expressões usuais hoje em dia) associados a características antropormóficas
básicas. E como Lewis-Williams demonstrou, o consumo de substâncias
alucinógenas durante rituais praticados por sacerdotes e xamãs conferia aos
arquétipos durante rituais a forma de manifestações abstratas, geométricas, tal
como retratados em locais de culto.

39!
!
Essas ideias podem parecer estranhas, mas convém recordar o conceito
de consciência de Thomas Metzinger, já apresentado: consciência é uma
aparência de mundo criada pelo cérebro para representar ao organismo uma
versão de baixa dimensionalidade do mundo real. E somente recentemente
começamos a nos dar conta da extensão desse fenômeno. Por milênios, a mente
humana foi condicionada a considerar que aquilo que existe diante de seus olhos
(isto é, aquilo que sua consciência cria e apresenta como realidade visual e
espacial) é o mundo real. Mas, na verdade, onde se lê “mundo” em todos os
relatos míticos sobre a criação do mundo, entenda-se “simulação ou simulacro
de mundo de baixa dimensionalidade construído pela consciência e apresentado
como mundo real”.

Por isso é que quando nossos antepassados ouviam vozes e tinham


alucinações com entidades que representavam experiências psíquicas que
estavam sendo vivenciadas em sua consciência naquele momento, eles apenas
estavam integrando essas experiências psíquicas à percepção do mundo
circundante. Não é algo em essência diferente do que alguém faz hoje em dia,
quando projeta conteúdo psicológico reprimido em situações externas que não
têm relação direta, mas simbólica, com tais conflitos. A percepção dos humanos
de cem mil anos atrás não fazia qualquer distinção entre o conteúdo de sua
psique e o conteúdo do mundo circundante. Essa distinção é moderna, pois nossa

40!
!
consciência atual é resultado recente de uma sucessão de singularidades, e
começou no momento em que o ser humano deu voz, pela primeira vez, às forças
fundamentais da psique. O ego humano, então rudimentar como o ego dos
demais primatas, ouviu pela primeira vez a voz dos arquétipos.

A LINGUAGEM ARQUETÍPICA
Enquanto trocavam correspondência sobre a relação entre matéria e
consciência, o físico Wolfgang Pauli e o psicólogo Carl Gustav Jung chegaram a
uma precisa definição de arquétipo no âmbito hipercontexto.

“Arquétipo é uma probabilidade de experiência psíquica”, foi a


definição formulada por Pauli, que Jung acolheu em seu sistema. Assim como a
função de onda é o conjunto de todas as probabilidades de um objeto ser e estar
ao mesmo tempo, no âmbito do hipercontexto as probabilidades de futuro de um
mesmo indivíduo, que darão origem a realidades alternativas, apresentam-se
como um conjunto de probabilidades de experiência psíquica. A cada
probabilidade de experiência psíquica, portanto, corresponde pelo menos um
arquétipo.

Pauli acreditava que essa definição de arquétipo enquanto que o


associava a função de onda da matéria poderia revelar uma ordem de realidade
superior, situada além do aparente abismo entre matéria e espírito. Afinal,
experiências psíquicas são rigorosamente tudo o que conseguimos experimentar
em relação à realidade. Não temos acesso direto aos objetos do mundo exterior,
mas apenas a sua imagem representada em nosso cérebro. Portanto, para a
consciência, a percepção de futuros prováveis no hipercontexto poderia ser
percebida em termos de experiências psíquicas prováveis. A função de onda que
é o destino de um ser humano, ramificando-se em vários caminhos, é composta
a cada momento pelas experiências psíquicas que várias versões de um mesmo
indivíduo estão vivenciando naquele exato instante.

41!
!
Carl Gustav Jung (esq.) e Wolfgang Pauli (dir.)

Segundo Jung e Pauli, portanto, o arquétipo é uma probabilidade de


experiência psíquica, diante dos futuros que tem a probabilidade de emergir a
partir do momento presente. Se um indivíduo corre risco de vida em um acidente
de trânsito e seu futuro ramifica-se na morte e na sobrevivência, a função de
onda diante desse indivíduo, no exato momento do acidente, possivelmente será
integrada pelo arquétipo da Morte e pelo arquétipo do Renascimento. Assim,
Pauli e Jung deduziram que a relação entre os arquétipos ativados para um
indivíduo em determinado instante de sua função de onda não operava de
acordo com uma relação de causalidade, mas de sincronicidade, ou seja,
em um plano complementaridade fundamental entre todas as coisas aqui e
agora.

Com isso em mente, é possível compreender uma pequena fração de


como funciona a consciência do Eu Superior ao perceber o conjunto de vidas
alternativas de cada versão do mesmo indivíduo . Operando no hipercontexto, o
Eu Superior não percebe essas múltiplas vidas da mesma forma como cada ego
as percebe. Em outras palavras, a percepção total do Eu Superior não é mera
soma das percepções de cada ego. O Eu Superior trata as realidades alternativas
não em termos de fatos particularizados (área de atuação do ego), mas em
termos de probabilidades de experiências psíquicas que se manifestam e se
sobrepõem. Em outras palavras, em termos de arquétipos.

42!
!
Assim, dois ou mais egos de um mesmo indivíduo podem estar
passando por experiências concretas muito diferentes, mas que correspondem à
mesma experiência psíquica fundamental. Uma versão alternativa do mesmo ser
humano pode ter mudado de país, outra sobrevivido a um acidente
potencialmente fatal, e ainda uma terceira pode ter começado em uma área
profissional totalmente nova. Em todas essas situações, é provável que um
arquétipo relacionado à experiência psíquica de renascimento esteja igualmente
ativado.

Portanto, na perspectiva do Eu Superior, a cada instante o retrato de


todas as vidas alternativas é pintado em termos de quais arquétipos estão
ativados em quais vidas, agrupando sob a regência de um mesmo arquétipo
aquelas vidas que convergiram para a mesma experiência psíquica fundamental.
Por esse motivo é que foi usada, na segunda etapa desse ciclo de aprendizado,
a metáfora do sistema operacional de um ambiente de rede, quando se descreveu
o sistema que une todas as versões de um mesmo indivíduo no hipercontexto.

Estrutura geométrica do Grupo de Lie E8. Quem tem entendimento, entenda.

Nessa “rede”, a linguagem na qual o Self ou Eu Superior opera é


composta por arquétipos atribuídos dinamicamente às versões alternativas de
um mesmo indivíduo. Em outras palavras, o Self percebe a cada instante o

43!
!
conjunto de todas as vidas alternativas do mesmo indivíduo como uma função
de onda representada por arquétipos.

O conjunto de arquétipos e sua dinâmica constitui, então, uma


linguagem peculiar à psique inserida no hipercontexto.

Essa era a linguagem que nossos ancestrais deveriam ter desenvolvido


ao reestruturar a consciência há doze mil anos, quando a percepção dos
arquétipos pressionou a singularidade. A linguagem verbal, destinada a
descrever a relação de causalidade que comanda as interações no fluxo do tempo
em um só contexto (realidade alternativa) deveria ser apenas um dos módulos
de compreensão do mundo, junto com uma linguagem arquetípica destinada a
mapear a realidade em termos de conjunto de probabilidades de experiência
psíquica.

Quando uma singularidade ocorreu para nossos ancestrais, abriu-se a


possibilidade de a consciência humana desenvolver uma visão correspondente
ao Eu Superior em relação ao seu momento presente (as experiências psíquicas
ativadas neste momento para o ego) e ao seu futuro (as experiências psíquicas
ativadas em cada futuro provável para aquele ego no hipercontexto, e que se
concretizarão como realidades alternativas emergentes). Diante da humanidade,
estava a chance de construir um modelo de mundo ou túnel da consciência (nos
termos de Metzinger), que representasse também as experiências psíquicas
correspondentes ao seu momento presente e às probabilidades de futuro. Isso
possibilitaria que a mente desenvolvesse uma gradual percepção das realidades
alternativas diante de si a cada instante, tornando cada consciência individual
um instrumento ainda mais eficiente para a sobrevivência do organismo no
hipercontexto.

Porém, o fenômeno documentado nas evidências arqueológicas de


Göbekli Tepe e na narrativa do Gênesis revela que nossos antepassados
cometeram um grande erro diante de uma ruptura cognitiva produzida pela
própria percepção dos futuros prováveis. Disso emergiu não uma linguagem
plena, capaz de construir uma consciência e uma percepção do mundo que
abrisse uma janela para o hipercontexto. Surgiu, em seu lugar, uma linguagem
limitada, que nos aprisionou a uma forma também limitada de perceber a
realidade, na qual o mundo material adquiriu uma ilusória aparência de
permanência e estabilidade.

44!
!
MORTE
É uma triste verdade que a história humana, em todos rumos que
tomou no hipercontexto, raramente foi uma história de sucesso. A evolução joga-
nos em um campo de batalha no qual há inúmeras formas de perder-se a vida e
poucas de sobrevivermos e progredirmos enquanto espécie. Nem mesmo
dinossauros são páreos para o puro acaso, que pode varrer do planeta milhões
de espécies num só golpe de azar. Porém, nas tramas de realidade em que a
humanidade tomou um melhor caminho, chama a atenção uma característica
peculiar daquelas tramas de realidade menos felizes, como a que nasceu o leitor.
Algo causa estranheza, até mesmo alarme, pois revela o nível de adoecimento
da espécie humana naquele contexto.

Essa característica é a capacidade que o indivíduo comum tem de viver


como se a morte não existisse.

Em 1973, Ernest Becker apresentou uma hipótese sobre a relação da


psique humana diante a morte. Basicamente, Becker propôs que nós, seres
humanos, construímos a personalidade humana e a cultura com o objetivo de
nos protegermos da devastadora consciência da inevitabilidade de própria nossa
morte.

O trabalho de Becker, porém, embora notável, era baseado unicamente


em leituras de grandes pensadores como Otto Rank e Kierkegaard. Foi necessário
o labor de vinte e cinco anos para que os psicólogos Jeff Greenberg, Sheldon
Solomon e Tom Pyszczynski colhessem provas e documentassem, em
experimentos controlados, a verdade da proposta de Becker, confirmando aquilo
que outros pesquisadores já haviam concluído. Em 2015, a equipe publicou os
resultados de seus experimentos, em que demonstram que a psique humana e
a organização da própria sociedade são, de fato, estruturadas para cumprir uma
específica missão: manter a consciência humana afastada da percepção da
inevitabilidade de sua própria morte.

45!
!
Como disse Becker, o sentimento básico de todo o ser consciente de
seu futuro é o medo da morte, de modo que “tudo o que o ser humano faz em
seu mundo simbólico é uma tentativa de negar e superar seu grotesco destino”
de organismo fadado à decomposição. “A ideia da morte e o medo que ela inspira
perseguem o animal humano como nenhuma outra coisa”, e assim constituem
“uma proposição universal da condição humana”, que conduz a uma
desonestidade fundamental do indivíduo “acerca de si mesmo e de toda sua
situação”. “O homem literalmente se entrega a um esquecimento cego utilizando-
se de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da
realidade de sua situação que se constituem formas de loucura – loucura
aprovada pelo consenso social, loucura compartilhada, loucura disfarçada e
dignificada, mas ainda assim loucura”.

Obviamente, qualquer pessoa hoje em dia sabe que vai morrer. Mas
esse saber é quase todo ele retórico, uma noção vaga sobre a mortalidade, que
raramente é levada em conta quando se trata de dimensionarmos nossa
perspectiva das coisas, estabelecermos uma hierarquia de valores e orientarmos
nossas decisões pessoais. Não sentimos realmente que vamos morrer, salvo nas
raras vezes em que um acidente ou doença fatal nos submete à experiência
psíquica da morte. Nesses casos extremos, o efeito ao menos temporário na vida
de quem se salva é uma transformação radical de seus valores e prioridades.
Porém, com o passar do tempo, a mente humana, mesmo após sentir
realmente a existência da morte, volta à executar sua programação padrão e

46!
!
esquece gradualmente essa experiência psíquica. E assim o faz porque foi
programada para esquecer da morte.

Costumamos julgar nossos antepassados sob o filtro de nossos


preconceitos, como se fossem versões menos desenvolvidas do ser humano
atual. Na verdade, se um ser humano atual fosse transportado para a mente de
um ancestral de 10.000 A.C., ficaria assustado com sua percepção do mundo. Só
porque hoje estamos condicionados a viver como se a morte não existisse, não
significa que as coisas sempre foram dessa maneira. Criar essa autoilusão deu
trabalho, custou vidas e levou tempo.

Estamos tão profundamente e por tantos milênios mergulhados em


uma estrutura da consciência fabricada justo para nos permitir ignorar a real
existência da morte que jamais nos ocorre que, quando uma espécie animal
adquire determinado nível de consciência, e passa a perceber a inevitabilidade
da morte, essa experiência é aterrorizadora.

A consciência animal vivencia as experiências psíquicas apenas à


medida que acontecem. Por isso, os animais vivem basicamente em um eterno
presente. O desenvolvimento da linguagem, porém, deu ao homo
sapiens ferramentas conceituais para que elaborasse a noção de futuro e de
probabilidades de futuro. Pela primeira vez, um ser humano foi capaz de concluir
qual era o seu destino final. Ao observar a morte ao seu redor manifestando-se
sob diversas máscaras, pela primeira vez o homo sapiens foi capaz de perceber
que a cortina de fundo de todas as probabilidades de experiências psíquicas em
seu futuro é, ela própria, uma experiência psíquica fundamental, a da própria
morte de seu ego.

47!
!
Nossos antepassados, quando a linguagem pressionou a evolução da
consciência, não estavam municiados com os mecanismos protetores que o ser
humano de hoje tem à sua disposição para viver em total ignorância da própria
morte. O estado inevitável do ego humano nessas condições é de puro terror.
Observe-se aqueles que padecem de depressão, de ansiedade, de transtornos
obsessivos-compulsivos e de síndrome do pânico na sociedade atual: essas não
são doenças da modernidade, mas amostras do que é a condição humana quando
há um falha no sistema de proteção criado na consciência, e que deve afastar o
ego da verdade sobre sua própria impermanência.

No âmbito do hipercontexto, esse foi um dos grandes filtros que marcou


os rumos da humanidade. Becker chegou a utilizar uma metáfora extrema para
descrever a condição humana: somos “deuses com ânus”. De um lado, a mente
do homo sapiens distingue-o dos demais animais, e o torna capaz de sonhar com
o infinito, a eternidade, a imortalidade. Porém, essa mente está aprisionada a
um corpo que produz fezes, machuca-se e foi programado para a decomposição.

Na próxima etapa, falaremos mais sobre a verdadeira natureza da


informação no âmbito do hipercontexto. Mas nesta etapa é importante notar que
o fundamento dessa condição humana é o atrito entre a tendência que tem a
informação de tornar-se independente da matéria, e portanto indestrutível, e a
impermanência dessa própria matéria. Nas palavras de Becker, “o homem é um

48!
!
verme e alimento para os vermes. Este é o paradoxo: ele está fora da natureza
e inapelavelmente nela; ele é dual, está lá nas estrelas e, no entanto, acha-se
alojado num corpo cujo coração pulsa e que respira e que antigamente pertenceu
a um peixe a ainda traz as marcas das guelras para prová-lo. Seu corpo é um
invólucro de carne, que lhe é estranho sob muitos aspectos – o mais estranho e
mais repugnante dos quais é o fato de que ele sente dor, sangra e um dia irá
definhar e morrer. O homem está literalmente dividido em dois: tem uma
consciência de sua esplêndida e ímpar situação de destaque da natureza, dotado
de uma dominadora majestade, e no entanto retorna ao interior da terra, uns
sete palmos, para cega e mudamente apodrecer e desaparecer para sempre.
Estar num dilema desses e conviver com ele é assustador.”

As poucas versões em que história humana foi bem sucedida trataram-


se casos em que a humanidade conseguiu equacionar essa questão existencial
através de uma reestruturação da consciência que enfrentasse esse trauma de
forma adequada. Na verdade, o conhecimento real da inevitabilidade da morte é
importante, e foi um dos fatores importantes para o desenvolvimento intelectual
e material nas tramas de realidade em que a humanidade mais progrediu. Afinal,
não há melhor motor para o progresso humano, inclusive tecnológico, que a
pressão da inevitabilidade da morte.

Esse, porém, não foi o caso da humanidade na trama de realidade que


resultou na Revolução Neolítica. O motor para o progresso humano foi outro: foi
a fuga, a cegueira voluntária, a ignorância estrutural. Na trama de realidade que
originou o mundo em que estas palavras são escritas, o ser humano defrontou-
se com sua mortalidade (Gênesis 3:3), e foi expulso do Jardim do Éden. Como a
presa que cai numa armadilha, a humanidade foi induzida a fugir e a entrar em
uma cela, como se ali pudesse encontrar proteção, e não escravidão.

FRUTO PROIBIDO
No filme de Aronofsky, a cena do fruto proibido é representada justo
por uma queda: a essência de Sophia, associada a uma pedra ou cristal que era
fonte de inspiração para o poeta, cai de uma estante no chão, por obra de Adão
e Eva.

A noção de “queda do homem”, como forma de descrever o momento


em que o primeiro casal morde o fruto da árvore do conhecimento, é comum nas

49!
!
vertentes cristãs do mito. Está presente, porém, também na representação
hebraica que associa a “queda” de um tipo de conhecimento com a existência do
mundo material em que estamos vivendo, mundo material esse associado com a
figura da manifestação feminina de Deus (Barbelo ou Sophia).

Há poucas informações no mito sobre a natureza do fruto proibido.


Tem-se uma associação primitiva com o trigo, o que vincula a história do Jardim
do Éden à Revolução Agrícola. Mas sabemos das descobertas de arqueólogos
como Ian Hodder e Klaus Schmidt que a Revolução Agrícola ocorreu em um
momento posterior, sendo antecedida daquilo que Cauvin chama de “revolução
simbólica” – ou, mais apropriadamente, de revolução cognitiva.

Além disso, no mito, o fruto proibido não é descrito sequer


remotamente como trigo ou outro cereal, pois vem de uma árvore. Essa árvore
é chamada de “Árvore do Conhecimento” (o complemento “do Bem e do Mal” é
uma intromissão tardia), e situava-se no Jardim do Éden, estando de alguma
forma relacionada com a questão do livre arbítrio humano, ou seja, com a
responsabilidade de entender as consequências das escolhas que fazemos e de
orientar nosso comportamento a partir desse entendimento. O leitor que já se
familiarizou com a existência do hipercontexto pode perceber as implicações
desse tipo de entendimento sobre probabilidades de futuro e decisões presentes,
e como o próprio destino humano, ramificando-se em realidades alternativas a

50!
!
partir de escolhas e acasos, assemelha-se a uma árvore. Logo, o fruto proibido
não é a agricultura, mas algo que lhe antecedeu, relacionado a uma
transformação cognitiva.

Para decodificar-se o mito do Fruto Proibido, é preciso recordar que


seus criadores não conheciam a escrita e transmitiram o registro de um evento
através de uma alegoria. É preciso também lembrar que o Éden, ao menos da
perspectiva de lendas como a dos quatro sábios que o visitaram, é um algo muito
diferente do que poderíamos imaginar. Trata-se de um lugar (se é que podemos
chamar de “lugar”) que desafia a capacidade de compreensão humana: um
estado de consciência superior. Portanto, a árvore do conhecimento e seu fruto
representam algo bem diferente de uma árvore real.

Árvore do conhecimento, em hebraico, é Cheit Eitz Ha-Da’at, sendo


que Da’at significa “conhecimento” em um sentido muito específico da tradição
hebraica. Há muito o que se falar sobre esse sistema conceitual, que revela
fragmentos de uma genuína linguagem arquetípica. Mas, no momento, importa
entender que tipo de conhecimento é esse, representado por “Da’at”.

O conhecimento contido no Fruto Proibido está associado, segundo a


tradição, com a região da garganta humana, e se trata do mesmo tipo de
conhecimento ou logos com que o poder divino criou o mundo. Ou seja, é o
conhecimento relacionado à linguagem (região da garganta) que pode estruturar
a consciência humana.

Ainda segundo a tradição, Da’at é um tipo de conhecimento superior,


não intelectual, que se recebe através de um profundo engajamento emocional
com quem o transmite. Por isso a palavra “Da’at” é usada para nomear o
conhecimento que uma pessoa pode ter de Deus através de uma convivência
íntima e profunda em sua própria vida (Da’at Elohim). E é importante observar
que, segundo a tradição, esse tipo de relação com a divindade através
de Da’at estaria em oposição à relação que se opera mediante oferendas e
sacrifícios: “Porque quero e o conhecimento (Da’at) de Deus, mais do que os
holocaustos” é uma passagem tradicional atribuída ao profeta Hoshea.

Como o rabi Shimon Leiberman definiu, “Da’at é a ponte entre a ideia


e a realidade”. Ou seja, é uma ponte entre o plano das probabilidades e o plano
em que uma das probabilidades é concretizada – entre hipercontexto e contexto.
E Gershom Scholem, outra autoridade da simbologia relacionada a esse mito,

51!
!
explica que a tradição vê Da’at como uma “unidade que reúne atributos opostos
e que dá origem a uma síntese que supera essa oposição”.

Se todas essas definições forem aplicadas ao mito segundo a linguagem


arquetípica, Da’at parece corresponder ao que Jung definiu como “função
transcendente”. Em outras palavras, Da’at seria a conexão entre a consciência e
o Eu Superior, entre o mundo representado enquanto trama de realidade para o
ego e o mundo representado enquanto sucessão de probabilidades de
experiências psíquicas para o Eu Superior. Nesse sistema, a consciência seria
estruturada em torno da função transcendente, como num mandala, e o ego
animal deixaria de ocupar posição central, assumindo funções apenas
operacionais.

Porém, quando a tradição hebraica representa as manifestações divinas


em um diagrama, não se tem um mandala, mas uma estrutura que recorda o
diagrama da mente bicameral apresentado no início deste texto: o mundo dos
homens em uma posição inferior, separado de uma estrutura maior, a qual se
conecta apenas por um elo. E, nesse diagrama hebraico, Da’at é indicado por
uma ausência. Em outras palavras, no universo tal como construído e
apresentado a nós pela consciência, o tipo de conhecimento representado
por Da’at não está presente. Haveria em seu lugar, alguns dizem, uma espécie
de ruptura, de abismo, que no filme de Aronofsky está presente na fenda ou

52!
!
ferida que se abre no chão da casa, que corresponde à própria ferida que o poeta
abre no peito de Sophia para retirar seu coração/cristal.

A estrutura resultante é como se um fruto ou “módulo” tivesse sido


retirado de seu devido lugar, resultando em um desequilíbrio ou mal-
funcionamento de todo o sistema. Se Da’at é uma ponte, ela desmoronou.
Se Da’at é um tipo de conhecimento via engajamento emocional, esse
conhecimento não nos é acessível. Se Da’at, na anatomia humana, é associado
à garganta, desconhecemos algum tipo de linguagem.

O gesto de comer o fruto proibido causa estranheza, e muitas


especulações infundadas se inspiram no fato de que foi uma mulher que se
deixou seduzir pela tentação da serpente. Mas a relação da mulher com o pecado
original tem muito mais a ver com a antiga tradição que associa o arquétipo de
“mundo exterior” à mulher (pois o primeiro mundo exterior percebido por todos
nós foi o ventre materno) do que com qualquer questão de gênero. É a mesma
relação entre Sophia, enquanto manifestação feminina da divindade, e o mundo
material, e a mesma relação entre a personagem do filme de Aronofsky e a casa
que construiu.

Assim, Eva e Sophia estão presentes no mito para indicar a consciência


enquanto “representação de mundo”. No filme de Aronofsky, que moderniza um
conjunto de mitos para o público atual, o poeta (Demiurgo, o ego) precisa que
sua esposa (Sophia, a consciência), agonizando como resultado das ações dele
próprio, permita a extração de sua essência na forma de um cristal, com o qual
ele poderá tentar construir o mundo tal como idealiza em sua poesia, ou seja,
com a linguagem. Adão e Eva, porém, surgem, ao mesmo tempo recordando o
poeta da verdade da morte (Adão está desenganado pelos médicos, no filme) e
envaidecendo-o com sua idolatria (primeira aparição, no filme, da idolatria que
resultará em religiões que cultuam o poeta). E a seguir Adão e Eva quebram o
cristal que representa a um só tempo a essência de Sophia e o fruto proibido,
deixando-a cair no chão, e fazem isso exatamente no momento em que a esposa-
Sophia diz ao poeta-Demiurgo (por sugestão de Eva) que há algo errado, que é
preciso que eles tenham um filho. Esse filho é a Função Transcendente (tal como
a iconografia de Maria com o Menino Jesus e Ísis com o Jovem Hórus o
representam), arquétipo que o ego resiste em criar na consciência, pois seu
surgimento implica em aceitar sua impermanência e desimportância.

53!
!
Com todos esses elementos reunidos, tem-se a chave para decodificar
um dos mais obscuros e antigos mitos. Na narrativa do Jardim do Éden e do Fruto
Proibido, a consciência, em sua função de representação de mundo (ou seja,
Eva), retirou de um sistema de linguagem superior e transcendente (ou seja, a
árvore do conhecimento, Da’at), um módulo (um de seus frutos). Disso resultou
uma fratura ou falha estrutural do sistema de representação da realidade (tal
como descrito pela “ausência” de Da’at e pelo abismo), e assim o ser humano
perdeu sua conexão com uma forma de consciência transcendente (ou seja, o
primeiro casal foi expulso do Éden). Como resultado, a humanidade teve de
construir seu mundo apenas com as partes remanescentes dessa estrutura
fraturada (todos os descendentes do primeiro casal suportam o resultado da
condenação).

Jung e seus discípulos identificaram em pacientes psiquiátricos a


curiosa tendência de desenharem um mesmo tipo de padrão geométrico circular.
Esse padrão, conforme observaram, também estava onipresente em sonhos de
pacientes, sendo, além disso, recorrente em representações religiosas. Mais que
isso, descobriram que estimular as pessoas a desenharem tal padrão
impulsionava o processo de autocura, de auto-regeneração da psique.

Sabemos que esse padrão geométrico era chamado de Mandala por


Jung, e sabemos que representa um modelo básico de organização da rede

54!
!
formada pela união do Self aos egos que vivem em realidades alternativas. Mas
a mandala também é a estrutura de organização ideal dos arquétipos na própria
consciência humana, pois representa a dinâmica que deveria ter surgido como
resposta adequada à singularidade que ocorreu há doze mil anos.

Mandala elaborado pelo próprio Jung, para representar suas experiências psíquicas.

Portanto, se a estrutura organizativa da mandala é recorrente em


sonhos e no processo auto-curativo da psique humana é por um só motivo:
aprisionados, uma parte de nossa mente elabora a ideação da cura total, e
obsessivamente tenta representar aquela que deveria ter sido a estrutura da
consciência humana se um erro não tivesse ocorrido no passado. Não é por outro
motivo que a imagem da mandala é tão recorrente em todas as religiões.

Mas de onde, afinal, vieram as religiões?

O NASCIMENTO DA RELIGIÃO
Estamos tão acostumados à ideia da religião que jamais nos ocorre que
ela nem sempre existiu. Não nos ocorre usualmente que a religião, enquanto
“ficção intersubjetiva” (como diria Yuval Harari), em algum momento foi
inventada.

Se por um lado a espiritualidade, ou seja, a abertura à possibilidade de


perceber manifestações que não parecem existir enquanto realidade material
(essa é a disposição psíquica necessária ao desenvolvimento de uma linguagem

55!
!
arquetípica, como veremos), seja uma prática muito mais antiga e espontânea,
o surgimento da religião enquanto sistema organizado em torno de “deuses”, isto
é, entidades que deveriam ser idolatradas e para as quais se prestava algum tipo
de sacrifício ritual, é algo bem diferente. Religião é a perversão da
espiritualidade.

Podemos apenas imaginar como era a mente do homo sapiens no


mesolítico, quando a linguagem arquetípica manifestou-se a partir do
desenvolvimento de signos linguísticos, dando voz e personalidade aos
arquétipos. Por parecerem dotados de autonomia ao homo sapiens primitivo, já
que eram suas as vozes ouvidas pela primeira vez na mente humana, os
arquétipos foram tratados como se fossem eles próprio entidades “reais”, tais
como os animais e os seres humanos. E essas alucinações não eram apenas
individuais, mas também coletivas. E Jaynes deixa claro que foi graças a essas
alucinações coletivas que as primeiras sociedades complexas puderam surgir,
superando as restrições da natureza que condenavam o ser humano ao
tribalismo.

As evidências arqueológicas deixam claro que a formação das primeiras


cidades dependia da colaboração de centenas de pessoas. Porém, a cooperação
entre seres humanos na natureza está limitada ao chamado número de Dunbar.
É que o limite cognitivo de interação entre seres humanos numa tribo não pode
ultrapassar 150 membros. Ultrapassado esse número, espontaneamente um
segundo grupo resulta da divisão do primeiro. Com essa restrição, é impossível
desenvolver sociedades complexas, dependentes da coordenação de centenas ou
milhares de pessoas.

56!
!
Imagem do deus Hitita Sharruma com o rei Tudhaliyi. Jaynes chama a atenção para o fato de o deus
segurar o braço do rei, como se guiando-o.

Assim, a associação de grandes populações nas primeiras cidades só seria


possível se algum novo tipo de sistema de comunicação existisse. Yuval Harari
demonstrou em seu livro Sapiens a importância de ficções intersubjetivas como
“dinheiro”, “lei” e “governo” para a coesão de grandes grupos de humanos. Se
dois perfeitos desconhecidos compartilham das mesmas ficções intersubjetivas,
tratando-as por reais, podem interagir no mesmo contexto imediatamente,
confirmando a coesão social em um grupo numeroso.

Mas as primeiras ficções intersubjetivas possuíam uma aparência muito


mais concreta para os povos primitivos. Seria pouco razoável supor que
abstrações complexas como dinheiro, rei e lei tivessem surgido de imediato na
mente do homo sapiens. Assim, potências que representavam emoções ou
ideações humanas eram percebidas como entidades sobrenaturais. Não é por
outra razão que as primeiras cidades possuíam um deus como patrono ou
fundador, e que no centro dessas cidades havia uma estátua de tal divindade,
em geral dentro de um templo ou no centro de uma praça. Essas estátuas
ganhavam vida em alucinações coletivas, incorporando arquétipos que permitiam

57!
!
a coordenação de grupos compostos por centenas e até mesmo milhares de
pessoas, conseguindo assim superar, pela primeira vez, a limitação do número
de dumbar.

Alucinações coletivas são fenômenos bem estudados pela psicologia


desde o século dezenove, quando Brière de Boismont documentou casos de
histeria de massa em que grande número de pessoas não só compartilhavam de
uma mesma experiência psíquica, mas também acreditavam compartilhar da
visão de uma mesma entidade espiritual. Nessas situações, os participantes não
enxergam e escutam exatamente a mesma coisa. Na verdade, cada participante
tem sua alucinação particular, mas acredita estar vendo e ouvindo a mesma coisa
que os demais. E, de regra, embora subjetivo e individual, o conteúdo dessa
alucinação corresponde à experiência psíquica que está sendo vivenciada
coletivamente, e por isso a vivência simbólica de cada indivíduo corresponde à
experiência de todas as pessoas no nível arquetípico, havendo uma convergência
alucinatória.

Nobres assírios diante do trono de seu deus, que está vazio. A ilustração é comentada por Jaynes, que
chama a atenção para a ênfase nos dedos apontando como se algo estivesse no trono.

Essa é a razão de tradicionalmente as principais divindades das religiões


antigas não possuírem uma única aparência, mas serem descritas por um
conjunto de imagens e de seres associados àquele determinado Deus. Por
exemplo, entre os Gregos o deus Dionysus aparecia em uma grande variedade
de formas, como leopardo, cabra (Dionysus Eriphos), touro (Dionysus

58!
!
Taurokephalos), falo priápico, criança, homem barbado, adolescente púbere,
espírito negro (Dionysus Melanaigis) ou hermafrodita. Entre os antigos nórdicos,
Wotan era representado com um velho com capa e chapéu com abas largas, um
cavalo de oito pernas, um poderoso monarca sentado em seu trono, um corvo,
um guerreiro montado em seu cavalo e um barqueiro de longas barbas.
Quetzalcoatl, entre os astecas e olmecas, era retratado como serpente com
penas, serpente com uma crista multicolorida, ser antropomórfico com um bico
de ave, entre outras imagens. Essas versões de um mesmo deus são derivações
mitológicas das variadas formas como cada indivíduo percebe, em uma
alucinação coletiva, o arquétipo na experiência compartilhada pelo seu grupo.

Mas se alucinações coletivas são a base potencial do desenvolvimento


de uma linguagem arquetípica, então como seria a comunicação por meio de
uma linguagem desse tipo, que transmite vivências psíquicas com uma
simbologia correspondente à subjetividade de cada indivíduo, mas conectada à
experiência coletiva de todos os participantes?

Na verdade, como Thomas Metzinger expôs em obras como The Ego


Tunnel e Being No One, rigorosamente o mundo que vemos ao nosso redor e que
tomamos por realidade não passa de uma alucinação coletiva, se por alucinação
entendermos uma simulação neurológica apresentada por nosso cérebro como
se fosse o mundo real. O fato de que hoje essa alucinação coletiva está limitada
apenas àquilo que vemos de concreto em nossa trama de realidade é justamente
a consequência do erro que ocorreu há doze mil anos, em lugares como Göbekli
Tepe.

Antes de Göbekli Tepe, a linguagem dos nossos antepassados não se


restringia apenas às palavras, mas incluía gestos, expressões faciais e outras
formas de comunicação não verbal. As palavras eram apenas o primeiro recurso
da linguagem, destinado principalmente a representar as coisas (se entendermos
por “coisa” aquilo que não é sujeito de experiências psíquicas) que existem em
determinada trama de realidade, sendo essa a razão de sua origem. As palavras
e sons rudimentares eram os blocos de construção principal, mas não exclusivos,
de um sistema de linguagem mais complexo, pelo qual se podia evocar, por meio
de signos visuais e sonoros, a “presença” dos arquétipos. Os arquétipos,
destinados a representar experiências psíquicas no hipercontexto, formavam
uma linguagem superior, que só poderia ser corretamente utilizada por uma

59!
!
consciência mais desenvolvida que a de nossos antepassados, ainda centrada no
ego.

Não somos capazes de realmente vivenciar como seria a linguagem


arquetípica tal como percebida por nossos antepassados. E isso porque aquilo
que somos hoje, o ego que possuímos atualmente, é justamente o resultado,
consolidado por milênios, da perda dessa habilidade de interagir com o
hipercontexto e com o Eu Superior por meio da linguagem arquetípica. Por razões
que logo serão expostas, perpetuamos a existência do ego animal, conferindo-
lhe uma estrutura informacional constituída por uma linguagem corrompida,
restritiva e aprisionante.

A FUGA
O ego não é exclusividade dos seres humanos. Todos os animais mais
complexos, notadamente os mamíferos, possuem um modelo de ego. Diz-se
“modelo” pois é exatamente do que se trata: o ego é um modelo informacional
construído pelo cérebro humano e colocado no centro daquele modelo de mundo
de baixa dimensionalidade que é representado pela consciência como sendo a
realidade.

É importante deixar claro sobre qual o material de que é composto essa


arquitetura da consciência: de informação. E informação é algo que não existe
materialmente. A única coisa que tem existência material são os dados: uma
sequência de DNA é um dado, mas só com a transcrição é que começa a se tornar
informação, ou seja, um processo de organização e dinâmica da matéria,
encadeado em determinada sequência significativa.

Mas informação em alto nível de complexidade, ou seja, informação


sobre informação, não tem obrigatoriamente um suporte material (algo na
matéria que lhe dá suporte exclusivo), mas apenas um correspondente material
(algo na matéria que lhe representa transitoriamente) como é o caso de uma
imagem apresentada pela combinação de certos pixels em uma tela e que pode
deslocar-se para qualquer ponto dessa tela, transitando para diferentes pixels.
Algo que não existe concretamente (no sentido material) e que sequer precisa
guardar unívoca correspondência e dependência em relação a determinado
suporte material – isso é informação de nível superior, e é o que nossos
antepassados chamavam de espírito. Esta é a distinção entre espiritualidade e

60!
!
religião: tratar signos complexos de informação como se fossem um
manifestação literal de entidades divinas.

Deuses sumérios: a religião é a perversão da espiritualidade.

A consciência animal, portanto, é dotada de um ego rudimentar, uma


unidade informacional destinada a conduzir a vida do organismo dentro de uma
só trama de realidade. No período pré-neolítico, a linguagem desenvolveu-se a
ponto de dar expressão viva aos arquétipos. Pela primeira vez, nossos
antepassados percebiam as experiências psíquicas não somente enquanto
estavam acontecendo, como é o caso dos outros animais: as experiências
psíquicas eram, a partir de então, percebidas enquanto padrão que se repetia, e
sua manifestação no futuro era percebida como conjunto de probabilidades. Em
situações de estresse coletivo, esses arquétipos eram percebidos como
alucinações coletivas, e a origem dos primeiros “encantamentos” e “palavras
mágicas” vem da capacidade que tinham certas palavras de evocar determinados
arquétipos em situações ritualizadas.

A partir desse momento, cabia à humanidade perceber que aquelas


entidades vistas e ouvidas em determinadas situações não possuíam, de fato,
individualidade e autonomia tal como um ser vivo possui. Jung descreveu os
arquétipos como “complexos psíquicos parcialmente autônomos”, a fim de

61!
!
evidenciar que se tratam de sistemas de informação que possuem, enquanto
“palavras” do “vocabulário” de uma linguagem complexa, certa autonomia no
desempenho de sua “função sintática”, destinada a expressar as várias vidas
alternativas de um mesmo indivíduo no hipercontexto. Porém, não se tratam
realmente de entidades dotadas de personalidade, autonomia e subjetividade.

A pressão para esse salto evolutivo da consciência (perceber os


arquétipos enquanto representações, e não seres reais) era inerente à própria
aquisição da linguagem arquetípica. A percepção dos arquétipos relacionados à
probabilidade de morte, principalmente em representações associadas a grandes
predadores e animais peçonhentos, colocava o ego primitivo no centro de uma
arena psíquica. Diante de si, pela primeira vez, estava a compreensão da finitude
do ego quando percebida da perspectiva de uma trama de realidade. E essa
percepção não era meramente conceitual, mas se manifestava na figura de
entidades aparentemente mortais. Dessa arena, o ego só poderia escapar com
sucesso através autotranscendência, processo pelo qual acabaria por instaurar,
em sua consciência, aquilo que Jung chamou de função transcendente – uma
ponte com o Eu Superior, em torno da qual se organizariam os demais conteúdos
da psique.

Contudo, havia um outro caminho, igualmente conveniente ao ego


animal, pois também permitia isolar o trauma de perceber a experiência psíquica
da morte na condição de probabilidade futura. Tratava-se de uma solução
engenhosa e eficiente, embora suas consequências só pudessem ser percebidas
muito tempo depois, quando se tornassem irreversíveis.

Em algumas dessas tramas, a humanidade escolheu a solução de


abertura ao aprendizado da linguagem arquetípica. Em outras, escolheu solução
diferente. No nosso caso, a arena foi montada em Göbekli Tepe, e nossos
antepassados saíram dela graças à segunda opção.

A solução engenhosa consistia em seguir o caminho diverso: a fim de


afastar a vivência aterrorizante de arquétipos associados à morte, ao invés de
reconhecer todos os arquétipos como parte de uma linguagem superior, outro
caminho viável era isolar o ego animal e negar-se a perceber a existência
dos arquétipos.

É importante lembrar que isso ocorreu como tentativa da mente


humana de lidar com um processo extremamente traumático, na qual percebia

62!
!
a possibilidade da morte do ego a cada momento. O psicólogo Otto Rank falava
sobre o terror do mundo, o terror diante do mysterium tremendum et
fascinosum da realidade que nos cerca, com suas inúmeras possibilidades de
futuro. Conforme pesquisadores como Becker, Greenberg e Sheldon Solomon
demonstraram, a percepção constante da morte, como resultado do
desenvolvimento da linguagem, foi sentido como um genuíno trauma, causador
de uma ruptura cognitiva. E uma das formas de reagir ao trauma é a fuga
dissociativa, pelo qual a mente do indivíduo isola-se da experiência
traumatizante, recusando-se a reconhecê-la e protegendo dessa forma o ego a
fim de que ele continue, mesmo em situação de alto estresse, minimamente
operacional.

Mas como fazer isso? Como passar a não ver e ouvir aquilo que estava
sendo visto e ouvido de forma tão clara em alucinações individuais e coletivas?
Como não perceber mais o que estava diante de nossos olhos?

Isso leva à teoria do psicólogo Wilhelm Reich sobre as “várias mortes”


de Cristo.

A hipótese de Reich foi a de que Cristo existiu enquanto personalidade


histórica, tratando-se de alguém liberto das amarras que prendem o ser humano
à sua consciência limitada. Para Reich, o protagonista da teodiceia cristã seria
alguém dotado de uma consciência plenamente evoluída. Seus contemporâneos
não o teriam comprendido, pois seu público era constituído de pescadores
analfabetos e pessoas do povo. E foi assim, a partir da ignorância do aprisionado
que recusa reconhecer a liberdade refletida nos olhos de ser humano, que
aqueles ao redor desse ser desperto e livre começaram a “crucificá-lo” de várias
formas simbólicas, antes de crucificá-lo fisicamente.

De todas as formas de morte, a mais insidiosa consistiu, segundo Reich,


em tratá-lo como se fosse um deus. Ao tratá-lo como divindade, aqueles a seu
redor já partiram do pressuposto de que sua consciência evoluída era algo
“divino”, e portanto inacessível ao ser humano “pecador”. Seu exemplo vivo,
sobre a possibilidade de todos também sermos sãos, despertos e livres, tornou-
se miragem, e ao invés de entendermos as verdadeiras palavras de Cristo,
construímos novas prisões para o espírito humano na forma de dogmas, religiões,
opressão moral e inquisições. Foi assim que uma mensagem de amor ao próximo

63!
!
converteu-se em discurso legitimador das fogueiras da Santa Inquisição e de
guerras no nome de Deus.

Portanto, para Reich, a forma mais insidiosa de ignorar o que Cristo


teria dito seria não reprimindo sua mensagem, mas deturpando-a e
interpretando-a como mensagem religiosa.

A lógica por trás da teoria de Wilhelm Reich é interessante: uma forma


de não enxergar aquilo que está diante de nossos olhos é tratar tal coisa por
outra coisa, rejeitando, com base em uma visão religiosa, a possibilidade de
acesso humano a essa outra coisa. Trata-se do desenvolvimento da religião como
técnica de mascarar uma percepção que a consciência se recusa a reconhecer. A
religião torna-se instrumento de deturpação de uma mensagem, na qual
mensageiro e mensagem são literalizados e tratados como objeto de idolatria.

E a primeiro mito do Gênesis a tratar da religião enquanto sistema de


culto ritual e cerimônia litúrgica foi no mito-gêmeo de Caim e Abel, que conta a
história do primeiro homicídio.

CAIM E ABEL
Os mitos do Fruto Proibido e de Caim e Abel são gêmeos. Tentam
descrever, de duas perspectivas, a mesma singularidade que ocorreu há doze mil
anos. Enquanto a história do pecado original é uma alegoria sobre a natureza da
Revolução Cognitiva que resultou na mente bicameral, a história do primeiro
homicídio bíblico é uma alegoria sobre a origem da Revolução Neolítica, unindo
em uma só trama religião, sacrifício e agricultura. O mesmo pode ser dito sobre
o mito da Torre de Babel, no plano da linguagem.

No filme de Aronofsky, a noite chega após um dos filhos do casal que


representa Adão e Eva matar seu irmão, por sentir-se preterido em relação a
uma herança. E é para participar da cerimônia de velório da vítima que uma
multidão invade a casa pela primeira vez. Curiosamente, são as “vozes” dessa
multidão que o poeta escuta durante tal cerimônia que lhe dão a inspiração para
concluir sua poesia. Somente a partir desse momento é que o poeta passa a
realmente escrever no filme. Antes, não conseguia colocar uma só linha no papel,
como se não dominasse a linguagem. E a poesia criada mediante essa inspiração,
quando concluída, será tratada pela multidão não como obra de arte, mas como

64!
!
objeto de culto, como mensagem divina em torno da qual religiões se organizam
e disputam a posse da verdade.

Caim e Abel, o contexto de prática religiosa é evidente.

Segundo o Gênesis, Caim mata Abel dominado pela ira, pois Javé
preferiu o sacrifício de um animal, feito por Abel, e rejeitou a oferenda de Caim,
produto da agricultura. O contexto do evento, portanto, é o religioso, de adoração
ritualizada da divindade através de uma oferenda. Caim é a agricultura, Abel é o
sacrifício. Na versão bíblica da lenda de Caim e Abel, já há o vestígio da transição
entre sacrifício de humanos para o de animais, evidente na dualidade de Abel ser
ao mesmo tempo, na história, a vítima humana que sacrifica uma vítima animal.
Assim, a ideia de que a agricultura está relacionada com a morte de alguém no
contexto da prática religiosa está subjacente a toda narrativa.

A interpretação literal dessa lenda traz a ideia de que se está contando


uma história, o que é uma forma equivocada de interpretar um mito. Um mito
não conta uma história, da mesma forma que um sonho não conta uma história.
E aprendemos com Jung, Elíade e Campbell a não interpretar mitos e sonhos
como tentativas de apresentar uma narrativa coesa e literal – até porque
literalizar é o próprio da interpretação religiosa.

O mito é uma representação alegórica de algo que não pode ser descrito
com o universo conceitual conhecido pela consciência humana. A religião é
65!
!
justamente a escolha por tratar o mito como uma narrativa literal (em maior ou
menor grau), enquanto a disposição adequada [[Que poderíamos definir como
“espiritualidade autêntica”.]] trata o mito como ferramenta informacional, ou
seja, como uma informação transmitida através de um sistema de linguagem
superior (superior em nível de complexidade, domínio e abstração).

No mito, tem-se a associação entre ritual de sacrifício, representado


por Abel, e agricultura, representado por Caim. A versão mais moderna da
história, apresentada no Gênesis, tenta explicar que Caim matou Abel movido
por inveja diante da preferência de Deus. Porém, essa é uma tentativa tardia
feita pela própria religião, que literaliza o mito utilizando o típico recurso de expor
a motivação dos personagens sob o enfoque da lição moral. Desse ponto de vista
religioso, o mito ganha a forma de uma história sobre um crime.

Porém, a narrativa de Caim e Abel apresenta o nascimento da primeira


religião mediante a ritualização do sacrifício humano, indicando a estreita relação
entre essa prática e a agricultura. Caim, pai da agricultura, mata Abel porque ele
foi “escolhido” por Javé, estando a “escolha” de alguma forma associada
simbolicamente à ideia de oferenda sacrificial. Convém lembrar que nos
sacrifícios ritualizados, a vítima costuma ser tratado como alguém “ungido” ou
“escolhido” pela divindade – sublimação mítica do anseio animal por sua presa.

Isso pode parecer chocante, mas apenas do ponto de vista de uma


sociedade que se deixou seduzir pela reinterpretação higienizada de mitos muitos
antigos, reinterpretação essa transmitida oralmente por muitas gerações antes
de sacerdotes as registrarem por escrito com propósito religioso e educador. Há
uma estreita relação entre a origem da religião e o surgimento da agricultura, e
esse elo é o primeiro assassinato em nome dos deuses na forma de sacrifício
ritual.

Jacques Cauvin já no título de sua principal obra, Naissance des


divinités, naissance de l’agriculture (“Nascimento das divindades, nascimento da
agricultura”), deixa claro que a intervenção ambiental necessária para o
surgimento da agricultura tem por pressuposto a criação de uma cosmovisão
centrada na percepção de que os deuses poderiam ser aliciados para pouparem
os homens e beneficiarem a agricultura. E essa origem comum entre religião e
agricultura acabou sendo confirmada com a descoberta, no fim do século
passado, de Göbekli Tepe, o berço da Revolução Neolítica. Como diz o

66!
!
arqueólogo Lewis-Williams em The Neolithic Mind, o “contrato cognitivo” que foi
pactuado pela raça humana nesse lugar foi assinado em nome de todos nós pela
primeira casta de sacerdotes usando o sangue da primeira vítima humana,
sacrificada na primeira religião.

Klaus Schmidt, líder da equipe de arqueólogos em Göbekli Tepe,


acredita que seja a esse local que os mitos sumérios se referiam ao contar a
história do Monte Dul-kug, espaço sagrado em que pela primeira vez os deuses
da primeira religião, os Anunnaki, foram cultuados [[Schimidt, Göbekli Tepe,
206.]]. Ali foi criado o primeiro sistema religioso, ou seja, a primeira literalização
dos arquétipos, tratados como espíritos e deuses a serem temidos e cultuados.
Dali se originaram todas as demais culturas da antiga Mesopotâmia. Da mitologia
babilônica à gematria hebraica, do gnosticismo ao neoplatonismo, tem-se um
conjunto de reinterpretações e desenvolvimentos de uma narrativa mitológica
que foi criada naquele local.

Os Anunnaki em uma representação Assíria.

Os arqueólogos estão certos que as monumentais estruturas em


Göbekli Tepe tinham exclusivo propósito cerimonial, pois não há absolutamente
nenhum vestígio de assentamento humano na área. Além disso, a enorme
quantidade de fragmentos de pedras lapidadas na forma de pontas de lança e

67!
!
outros tipos de armas deixa claro que se tratava de um lugar de peregrinação de
um culto violento, baseado na guerra ou na caça. Especula-se que o afluxo
constante de peregrinos ao local foi o que acabou forçando o desenvolvimento
da agricultura, como técnica inventada para alimentar centenas de pessoas. É o
que indica o fato de que a origem do trigo, primeiro cereal cultivado pelo homo
sapiens, ter sido rastreada até as vizinhanças de Göbekli Tepe.

Nas enormes e pedras de até quinze toneladas que foram encontradas


em Göbekli Tepe, a representação de animais peçonhentos e de predadores
mostrando garras e presas transmite a ideia de violência e medo. Há imagens de
corpos humanos sem cabeça, agitando-se com vida diante de uma plateia de
escorpiões e abutres, e totens retratando criaturas que brotam do estômago de
seres humanos cercados por serpentes. Sem dúvida, tratava-se de uma cultura
sofisticada para o período, com uma enorme riqueza de símbolos e grande
habilidade na construção de estruturas com pedras que pesavam toneladas
Porém, a impressão de que ali havia medo e sofrimento sempre persistiu, por
mais que os pesquisadores tentassem manter sua objetividade.

Raposa e javali, em posições de ataque, mostrando suas presas. Observe a representação dos genitais
masculinos – segundo Ian Hodder, para evocar agressividade.

68!
!
Mas os fatos acabaram por confirmar essa impressão. Nos primeiros
meses de 2017, os arqueólogos que trabalham em Göbekli Tepe anunciaram a
descoberta de um número impressionante de vestígios de crânios humanos
separados dos corpos de forma artificial, com sinais claros de cortes e incisões
que sugerem seu uso ritualístico no local, inclusive pendurados por cordas.

Observando os vestígios arqueológicos, pode-se facilmente reconstruir


o cenário original. Quem ali estivesse durante uma das cerimônias via-se entre
dois monólitos representando deuses de cinco metros de altura, cercados por
enormes pedras com imagens de leões, lobos, serpentes, ursos, hienas, abutres
e homens sem cabeça. Mas não apenas relevos e esculturas eram aterrorizantes.
Os espectadores ou vítimas dos rituais ali realizados estavam diante de cabeças
de vítimas humanas penduradas para evocar algum tipo de sentimento,
possivelmente pouco agradável.

Achados de Göbekli Tepe. À esquerda, seres emergindo do peito e ventre de um homem (serpentes
flanqueiam a figura). À esquerda, um predador, possivelmente um leopardo.

Na verdade, os elementos desse cenário são completados pela


descoberta em Çayönü Tepesi, outro sítio arqueológico pré-neolítico da região,
de um fosso no qual estavam fragmentos de ossos de pelo menos 450 indivíduos.
O destino dessas pessoas foi revelado quando também se descobriu próximo à

69!
!
construção uma faca esculpida em sílica e um altar sacrificial esculpido numa
pedra de uma tonelada, na qual se encontrou vestígios de sangue humano e
animal.

Peças de Göbekli Tepe. A – Estátua humana que foi propositalmente decepada; (B) Urso segurando a
cabeça de um homem; (C) Escorpiões e Abutres, um homem sem cabeça e com ereção situa-se abaixo
do Escorpião, enquanto um abutre segura uma cabeça humana (interpretação dos arqueólogos).

Mas qual a razão desses rituais? Por que tantas pessoas peregrinavam
até aquela região com tanta frequência a ponto de surgir a agricultura para
alimentá-los? Por que os construtores de Göbekli Tepe tiveram tanto trabalho
erguendo aqueles monumentos com pedras que pesam toneladas? Por que a
evocação do terror, por que o sacrifísio? Qual o motivo de tanto esforço e
sofrimento? Apenas em nome de uma fantasia religiosa? É pouco provável.

Na verdade, essas perguntas encontram resposta em certos


precedentes, casos em que civilizações recentes surgiram centradas no sacrifício
humano como forma de aliciamento dos deuses e organização social.

A COSMOVISÃO DA PRESA
Quando a inteligência do Velho Mundo cuidou de estudar as principais
sociedades da mesoamérica, ficou escandalizada com suas práticas religiosas,

70!
!
com seus mitos cheios de sangue, deuses carnívoros e sacrifícios humanos. A
frequência com que corpos decapitados, corações arrancados e entidades
vestidas de pele humana são retratados na arte Olmeca, Maia e Asteca fez H. G.
Wells sugerir seriamente que esses povos sofriam de algum tipo de psicose
coletiva.

Essa é apenas a vaidade do britânico eurocêntrico, supondo que sua


origem necessariamente deveria ser mais nobre e menos insana diante da
violência, do terror, da crueldade. Porém, a civilização que foi tardiamente levada
a tribos britânicas nasceu na antiga Mesopotâmia, e os arqueólogos atuais, com
o apoio da tecnologia mais recente, não se cansam de descobrir que as primeiras
civilizações dessa região, os sumérios e os babilônios, também se banhavam no
sangue vertido para deuses sedentos de vidas humanas. Além disso, o paralelo
entre muitos mitos da região mesopotâmica e a mesoamérica pré-colombiana
são desconcertantes.

Ocorre então que práticas religiosas como as dos Olmecas, Maias e


Incas estão longe de ser anomalias na história do desenvolvimento da civilização
ao redor do planeta. Tratam-se de povos que revelam com clareza o que ocorre
quando o homo sapiens cria, a um só tempo, a primeira civilização e a primeira
religião: a pedra de fundação é o sacrifício humano.

E quando se estuda a primeira civilização da mesoamérica pré-


colombiana, os Olmecas, matriz para os posteriores Maias e Astecas, tem-se uma
sociedade estratificada, controlada por uma casta de sacerdotes a serviço de uma
religião politeísta, em que os principais deuses são predadores como o jaguar e
animais peçonhentos como a serpente, em homenagem aos quais aqueles
sacerdotes sacrificavam vidas humanas como prática habitual de culto.

O etnólogo Michael Winkelman é uma das maiores autoridades entre os


pesquisadores que buscam entender a relação entre sacrifício humano e
desenvolvimento da sociedade. Em 1998, estudou profundamente comunidades
mesoamericanas na busca daquelas que praticavam sacrifício humano como
forma de comportamento normativo e associado ao benefício da coletividade. Em
todos os casos, tratavam-se de grupos “com uma forte dependência da
agricultura, sedentários ou com residência relativamente permanente”.

71!
!
A conclusão de Michael Winkelman dá voz à conclusão de outros tantos
pesquisadores, principalmente de arqueólogos municiados de evidências que
estabelecem uma relação entre sacrifício, agricultura, criação de um sistema de
castas e organização política das primeiras cidades. Mais de uma equipe de
pesquisadores colheu evidências de que o ritual de sacrifício humano transitou
de forma voluntária e sacralizada de ofertar uma vítima aos deuses para uma
forma de consolidar uma divisão de castas através da escolha de quem seria
sacrificado.

O arqueólogo David Lewis-Williams apresentou mais um fator político


para os rituais de sacrifício em Göbekli Tepe. É que graças ao desenvolvimento
da primeira religião, surgiu a primeira casta de sacerdotes, e assim a primeira
forma de domínio do ser humano pelo ser humano nasceu. Não tardou para que
novas castas e estratificações sociais surgissem a partir da matriz sacerdotal,
assegurando a manutenção do sistema social pelo sacrifício ritual de vozes
dissonante ou grupos situados na base da pirâmide.

Os antigos xamãs, versados em técnicas que estimulavam estados


alterados de consciência, dominavam com maestria os primeiros rudimentos de
linguagem arquetípica criados pelo homo sapiens. Thomas Metzinger observou
que druidas, pajés e xamãs tinham como ofício explorar, mediante o uso de
alucinógenos ou procedimentos indutivos de transe como o temazcal, outras
possíveis arquiteturas para a consciência e diferentes modelos de representação
do mundo.

72!
!
Com a singularidade, uma oportunidade política surgiu para que esses
“profissionais” a serviço de suas tribos criassem a primeira casta sacerdotal,
detentora do conhecimento de como apaziguar e agradar aos deuses. O que
houve foi algo semelhante ao que ocorreria se engenheiros e programadores
responsáveis pela primeira superinteligência artificial a utilizassem para seu
benefício pessoal. No caso dos sacerdotes de Göbekli Tepe, isso foi possível
porque eles ofereceram às suas tribos um produto de que necessitavam: uma
suposta “cura” para o terror diante da consciência da morte. Essa “cura” foi a
mente bicameral.

A mente bicameral, em que o ego começa a interagir com os arquétipos


como se fossem deuses, e não como elementos de uma linguagem superior, foi
o primeiro passo para o que se consolidou como o isolamento definitivo do ego
na consciência. O fenômeno que Jaynes equivocadamente chamou de “origem
da consciência pela ruptura da mente bicameral” (título de sua principal obra) foi
apenas a conclusão de um processo de fuga dissociativa da psique humana que
começou exatamente com a produção desse sistema bicameral. No fim desse
processo, o ego ficou totalmente isolado, senhor único da consciência humana,
sem tomar conhecimento de qualquer verdade que possa ameaçar sua ilusão de
autoimportância e imortalidade.

73!
!
Essa situação foi resultado do caminho escolhido pelo ser humano
diante da singularidade produzida por uma linguagem que demandava a
reestruturação da consciência a fim de superar do terror da morte. Não se tratou
de uma escolha consciente, mas de uma escolha conveniente – e não apenas sob
o aspecto da casta sacerdotal que foi criada.

Por milhões de anos, o homo sapiens e seus ancestrais ocuparam uma


posição intermediária na hierarquia da cadeia alimentar. Primatas caçavam
roedores e outros animais de pequeno porte, ao mesmo tempo em que fugiam
dos grandes predadores, situados no topo da pirâmide. Na verdade, as evidências
arqueológicas revelam que a maior parte da carne consumida por nossos
antepassados não era por eles caçada, mas obtida de carcaça de vítimas de
grandes predadores, de modo que nossos rivais eram abutres e hienas. O fato
de que os fósseis de homo habilis sempre são descobertos junto a pedras
lascadas indica, inclusive, que nossos ancestrais inventaram as primeiras
ferramentas não para o nobre uso da caça, mas para a mais modesta atividade
de extrair o máximo de carne deixada nos ossos de um cadáver.

Em determinado momento, tudo isso mudou. Graças ao surgimento da


linguagem, foi possível aos seres humanos combinar estratégias para caçarem
animais de grande porte e repelir o ataque de grandes predadores. Graças ao
surgimento da linguagem, instruções mais complexas sobre como preparar
ferramentas e armas puderam ser transmitidas. Há uma estreita relação entre
linguagem, cérebro e as primeiras ferramentas, e essa dinâmica fez com que o
humilde homo sapiens ascendesse na sociedade animal. Subitamente, com a
linguagem, o ser humano pulou da modesta posição que ocupava na cadeia
alimentar para o time de elite, ao lado de leões, lobos e leopardos.

Mas algumas dezenas de milhares de anos não passam minutos de na


história evolutiva, e os circuitos neurológicos e a programação animal que
herdamos de nossos ancestrais mais remotos não nos preparou para vivermos e
pensarmos como grandes predadores. Por milhões de anos, os hominídeos só
souberam fugir desses carnívoros vorazes. Até mesmo nosso sistema nervoso
está condicionado para que nossas reações e decisões correspondam a lógica de
quem é caçado, e não de quem caça.

74!
!
Pilar de Göbekli Tepe. Animais peçonhentos como serpentes, escorpiões e aranhas também estão
presentes no local.

Não convém subestimar o peso que a condição de animal caçado teve


em nossa evolução. Aumentar as possibilidades de sobrevivência diante de
predadores com músculos, garras presas e mandíbulas poderosas foi um dos
principais fatores da adaptação evolutiva a estimular a associação entre humanos
e, portanto, a impulsionar a criação das primeiras formas de linguagem. O
próprio Darwin considerava que os hominídeos não teriam evoluído como animais
sociais se um deles pudesse, sozinho, enfrentar os predadores habituais. O
desenvolvimento da linguagem é uma resposta à nossa inferioridade animal.

E a experiência psíquica de ansiedade e medo constante das garras de


um predador continuou presente na cosmovisão humana. Porém, como o
desenvolvimento da linguagem, essa experiência manifestava-se em alucinações
auditivas e visuais que eram compartilhadas pelo grupo a que pertencemos em
situações de estresse coletivo. Perceber tais alucinações como predadores
superiores, situados no topo da pirâmide alimentar do universo (ou seja,
percebê-los enquanto deuses), ajustava-se perfeitamente ao condicionamento
de nossa psique.

75!
!
Antigos xamãs ameríndios.

A humanidade subiu ao topo da cadeia alimentar, mas ficou presa aos


fantasmas de seu passado ancestral. Assim, sua reação diante desses arquétipos
apenas simulou a reação condicionada em nosso sistema nervoso por milhões de
anos de sobrevivência nessa condição.

Walter Burkart, em seu clássico Structure and History in Greek


Mythology and Ritualpropõe que imaginemos um grupo de seres humanos
primitivos cercados por um predador. Seu comportamento pode ser deduzido do
comportamento de outros animais hoje em dia, em idêntica situação.
“Usualmente”, diz Burkart, “haveria apenas uma forma de salvação: um membro
do grupo precisava tornar-se presa de carnívoros famintos, e desse modo os
demais poderiam se salvar por enquanto”.

E não é por acaso que essas duas palavras, “sacrifício” e “salvação”,


são bem conhecidas nas litanias da Igreja Católica. O comportamento padrão dos
hominídeos na cadeia alimentar, em que uma vítima, voluntariamente ou não,
sacrificava-se em nome do grupo, foi repetido na cadeia alimentar imaginária
que o homem estabeleceu com os arquétipos que representavam a experiência
psíquica do Mal e da Morte, e essa foi a matriz original de todas as religiões.

Por milênios, o terror da presença de um grupo de carnívoros famintos


era aplacado quando alguém se tornava vítima e o restante do grupo salvava-
76!
!
se. Os primeiros rituais realizados diante do que se interpretou como entidades
superiores, acima dos seres humanos na cadeia alimentar do universo, os
deuses, foi o ato de ofertar vidas humanas como repetição maníaca de uma
situação recorrente na natureza. Tratou-se de tentativa de eliminar a percepção
de um suposto mal repetindo um procedimento que aplaca a fome de predadores
na natureza.

O sacrifício humano está presente nas religiões de ontem e de hoje com


muito pouca sutileza, reproduzindo a oferta de uma vítima sacrificial a deuses
que evocavam as mesmas experiências psíquica de morte e terror que os grandes
predadores. Trata-se de uma reação ao trauma da consciência da morte que é
similar ao trauma de vítimas de longo período de cativeiro que, após serem
libertadas, ainda se comportam como se estivessem cativas.

Quando subimos de posição na cadeia alimentar, graças ao


desenvolvimento da linguagem, e nos tornamos predadores, levamos conosco a
cosmovisão de animais caçados e amedrontados. Quando tivemos acesso, graças
também à linguagem humana, à percepção de uma linguagem superior, com a
qual poderíamos reescrever a estrutura de nossa consciência, decidimos isolar o
trauma do conhecimento da morte do ego isolando esse mesmo ego em uma
consciência incapaz de interpretar as experiências psíquicas.

Ritual de sacrifício em ânfora grega.

Temos, diante de nós neste momento, a percepção daquilo que emergiu


da singularidade de doze mil anos atrás segundo perspectiva hipercontextual e

77!
!
contextual da psique humana. No hipercontexto, ou seja, da perpectiva da função
de onda que é a vida humana, em que os arquétipos são probabilidades de
experiência psíquica, a consciência do indivíduo foi reestruturada para isolar-se
do conhecimento da linguagem arquetípica, naquilo que Jaynes chamou de
mente bicameral. No contexto, da perspectiva evolutiva e histórica, a
humanidade lidou com o trauma da percepção da morte e com a súbita posição
de vantagem na cadeia alimentar reajustando o sistema de forma retrógrada:
inserindo o novo mundo na lógica de uma antiga cosmovisão de inferioridade.
Inventou-se a religião.

O elo que une ambos aspectos da singularidade é o sacrifício. O


sacrifício humano ritualizado é a um só tempo a manifestação literal de um
comando em linguagem arquetípica (que buscava justamente reproduzir essa
mensagem ou estrutura informacional na Matriz, de isolamento) e a gênese das
primeiras religiões organizadas. Michael Winkelman observou que a relação entre
números de sacrifícios em uma comunidade é inversamente proporcional à
hierarquização das crenças religiosas, como se o sacrifício fosse “um mecanismo
para alcançar uma forma de integração religiosa em sociedades carentes de um
sistema integrativo e hierárquico de crença”.

Embora o sacrifício seja um ato essencialmente repugnante, foi custoso


à humanidade abandonar sua prática. E mesmo após abandonado, tão forte foi
sua presença que sempre deixava sua marca. Nas religiões que se
desenvolveram a partir das primeiras, animais passaram a substituir seres
humanos, e nas mais recentes esconde-se por trás de reinterpretações como o
sacrifício de mártires cristãos e da autoimolação de monges budistas. No primeiro
caso, a própria Paixão de Cristo apresenta a biografia de Jesus como a do cordeiro
oferecido em sacrifício para salvar toda a humanidade. Já na tradição budista o
mito da imolação surgiu cedo, nas primeiras obras de sua literatura, e é
interessante notar que em uma das mais populares narrativas do Jataka é sobre
como em outra encarnação Buda teria dado seu próprio corpo em sacrifício para
que uma tigresa alimentasse sua cria – justo uma narrativa envolvendo a
experiência fundamental humana enquanto caça de grandes predadores.

78!
!
Sacrifício de crianças na antiga Babilônia (fonte: “Human Sacrifices on Babylonian Cylinders,
William Hayes Ward).

O sacrifício humano tem essa influência na formação da cosmovisão


religiosa justamente por se tratar de um procedimento que provocava, ao menos
inicialmente, elevado estresse na comunidade (situação em que os arquétipos
tendem a se manifestar como alucinações coletivas) e em parte por reproduzir,
diante dos arquétipos, o mesmo comportamento ancestral do ser humano diante
de animais poderosos e ameaçadores. Com o sacrifício, o homem mesolítico dava
a si mesmo uma explicação sobre quem ou o que eram os arquétipos que
passaram a ter voz e se comunicar com ele, inserindo-os na sua cosmovisão
primitiva de vítima de um grupo de carnívoros. Basta observar os relevos e
estátuas das entidades cuja presença os antigos construtores de Göbekli
pretendiam evocar durante os rituais ali realizados. Como Ian Hodder diz, são
animais agressivos, notadamente predadores, de regra em posição de ataque,
exibindo suas garras e presas.

Mais ainda, do ponto de vista ritualístico, como forma de interação


possível com os arquétipos (contextualizados como deuses), o ritual de sacrifício
nada mais era do que uma literalização da linguagem que, toda vez que repetida,
expressava-se em linguagem arquetípica, criando uma barreira de recusa
fundamental do conhecimento da Matriz. Rejeitando os arquétipos enquanto
módulos de uma linguagem superior, o ser humano reteve apenas uma parte
elementar da dimensão linguística adquirida, e com ela construiu a mente
bicameral, na qual os arquétipos se manifestavam apenas enquanto deuses. O
passo seguinte foi ampliar esse isolamento com aquilo que Jaynes identificou
como o surgimento da consciência, mas que se tratou apenas da consolidação
do ego como senhor absoluto da consciência, dispensando até mesmo a
percepção dos arquétipos como divindades.
79!
!
Para Gobekli Tepe afluíam tribos de caçadores-coletores que
peregrinavam de todas as regiões da antiga Mesopotâmia, a fim de que cada
uma oferecesse suas vítimas ao sacrifício, forma de apaziguar os grandes deuses
que se revelavam na forma da alucinação de animais com garras e presas
poderosas. Ali xamãs reuniram-se e aos poucos formaram a primeira casta
sacerdotal, isolando na consciência humana a percepção de um arquétipo na
forma de alucinações que eram tratadas não como elementos de uma linguagem
que representava a experiência psíquica que estava sendo ou seria vivenciada,
mas como entidades sobrenaturais, que eventualmente se comunicavam com os
mortais.

Mas esse isolamento do ego como senhor da consciência, apesar de ser


uma solução diante do trauma do terror diante da morte, foi na verdade uma
forma de a humanidade desviar-se de seu melhor futuro e cair em uma
armadilha, enredando-se até não conseguir mais retornar. Sua consciência
tornou-se sua própria prisão.

A PESTE EMOCIONAL
Peregrinando até locais de culto como Göbekli Tepe, as tribos de homo
sapiens reuniram-se sob o comando de uma casta de sacerdotes para lidar a um
só tempo com dois problemas resultantes do desenvolvimento da consciência a
partir da linguagem: com o desajuste de sua cosmovisão após a súbita ascensão
ao topo da cadeia alimentar e com o terror e ansiedade que vem da percepção
da própria mortalidade. Emergiu dessas cerimônias a mente bicameral e a
primeira religião, perversão da espiritualidade enquanto abertura para a
linguagem arquetípica.

Há muito o que falar sobre a natureza dos rituais realizados em Göbekli


Tepe e os relevos em certas pedras encontradas no sítio arqueológico. Mas, no
momento, o que importa é que essa transformação da espiritualidade dos
caçadores-coletores na religião dos agricultores deu-se pelo manejo da
linguagem arquetípica por xamãs durante rituais que literalizavam a experiência
psíquica de terror diante da morte tal como percebida toda vez que um predador
cercava um grupo humano. O sacrifício cerimonial evocava o estresse coletivo, e
o estresse coletivo sob a influência de alucinógenos tornava mais vívida a

80!
!
percepção dos arquétipos que se desejava “invocar”, e cuja fúria pretendia-se
aplacar com a oferenda de uma vida humana.

Mas a estratégia de fuga dissociativa consistente em tratar os


arquétipos como deuses a serem apaziguados eliminou a possibilidade de
desenvolvermos uma linguagem arquetípica. Esse processo de idolatria
posicionou os arquétipos na zona de transparência fenomênica da consciência,
como diria Metzginger – ou no inconsciente coletivo, como diria Jung.
Desenvolveu-se, em relação ao ego e à consciência, uma ignorância fundamental
de qualquer linguagem arquetípica. Restou à consciência reestruturar-se apenas
com o conteúdo mais elementar da linguagem humana: as palavras.

As percepções conscientes não dependem da linguagem para sua


ocorrência, mas a linguagem influencia decisivamente a forma como as
percepções conscientes ocorrem e são processadas. A linguagem orienta
a sintaxe do pensamento e a construção de decisõesimportantes à sobrevivência
do organismo. Na verdade, a linguagem verbal participa ativamente da
consciência em níveis mais fundamentais, como a percepção de tempo, a atenção
visual e as emoções.

Portanto, a linguagem verbal estrutura o modelo de mundo construído


pela consciência ainda quando não pensamos estritamente na forma de narrativa
verbal. A linguagem verbal se viralizou na consciência e tornou o ego humano
um incansável “falador interno”, e qualquer pessoa que pratica pela primeira vez
alguma técnica de meditação budista observou como é difícil silenciar esse
“falador” maníaco por apenas alguns minutos. Jaymes Joyce, ao introduzir a
técnica literária do “fluxo” da consciência, ilustrou como as palavras e associação
de palavras se sucedem na mente do homo sapiens nos dias de hoje, ainda que
produzam apenas lixo e ruído a maior parte do tempo.

Desse modelo de mundo, porém, estão excluídas as experiências


psíquicas, por ausência de uma linguagem adequada para descrevê-las. Não é
que as experiências psíquicas não nos ocorrem – elas continuam ocorrendo o
tempo todo. Mas elas não integram a consciência humana pois essa consciência
utiliza uma linguagem verbal descritiva, e palavras são totalmente
incompetentes quando se trata de descrever experiências psíquicas
fundamentais, a fim de que sejam assimiladas pela consciência da forma correta.

81!
!
Somos praticamente cegos em relação à sucessão de experiências
psíquicas, portanto. Elas nos ocorrem, mas lidamos com elas inconscientemente,
na medida em que determinam nossas reações emocionais e influenciam nosso
comportamento sem muitas vezes percebermos.

A ausência de uma linguagem capaz de representar à consciência as


experiências psíquicas que ocorrem no hiper contexto torna qualquer um de nós
um livro aberto para quem está familiarizado com a linguagem arquetípica.
Mesmo a publicidade e a política atuais começam a fazer uso progressivo dessa
zona cega em nossa cognição para manipular medos e desejos de espectadores
e eleitores.

Um dos fragmentos de linguagem arquetípica ainda existentes no


legado humano, aquela que é chamada de “Linguagem do Crepúsculo” no
ocidente, é melhor traduzida do sânscrito Sāṃdhyābhāṣā por “Linguagem
Intencional”, e não por acaso. Não se referindo a coisas, mas a experiências
psíquicas, e não tratando de eventos, mas de configurações na sincronicidade, a
linguagem arquetípica seria a forma possível de informar e configurar o contexto
emocional em que qualquer diálogo ocorre. Em síntese, a linguagem arquetípica
teria a função de “metalinguagem”, de informar a intenção com que algo está
sendo dito.

Desprovidos de uma forma de reconhecer os arquétipos atuantes em


qualquer tipo de interação humana, seja de natureza íntima ou política, os seres
humanos possuíam apenas as palavras para transmitir sentimentos e intenções
que deveriam contextualizar a comunicação. As palavras, porém, são
insuficientes para expressar os complexos e ambivalentes sentimentos humanos,
e apenas produzem mais discórdia, divergência e oposição quando usados como
única forma de interação humana, ainda que para o intercâmbio de ideias. Na
retórica religiosa fundamentalista, nas intermináveis discussões entre casais e
nos violentos embates sobre política em redes sociais tem-se exemplos de como
a comunicação feita apenas com palavras só aumenta a incompreensão.

Goebbels, sempre desagradável, resumiu o século XX em uma só frase:


“uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Essa é uma das
consequências modernas de um antigo mal, que contaminou também a própria
verdade: uma verdade repetida mil vezes perde seu sentido, torna-se lugar
comum. Repita-se uma palavra um determinado número de vezes e ela perde

82!
!
seu significado, parece um som estranho. Tal é o limite da palavra, uma
ferramenta extremamente útil (assim como o ego) mas nociva quando sua
funcionalidade é desviada.

Essa “cegueira”, esse “analfabetismo” para lidarmos com as


experiências psíquicas que nos ocorrem, incrivelmente não nos causa
estranheza. O ser humano é nada mais que uma vítima de experiências psíquicas
que o possuem transitoriamente. Os homens fazem planos, mas seus planos são
malogrados por emoções confusas e decisões motivadas por impulsos mal
compreendidos.

“As tendências à dissociação caracterizam a psique humana e são


inerentes a ela; sem isto, os sistemas psíquicos parciais nunca a teriam cindido,
ou melhor, não teriam gerado espíritos ou deuses”, ensina Jung. Nossa
verdadeira e única religião, lembra ele, é o “monoteísmo de uma consciência”,
uma “possessão da consciência que ocasiona uma negação fanática da existência
dos arquétipos”.

Isso, para Jung, representa um “grande perigo psíquico”, pois os


arquétipos, embora não sejam reconhecidos pela consciência, continuam
atuantes, influenciando nossas condutas. “Tal fato, evidente nos casos de
neuroses, também o é no campo dos fenômenos psíquicos de caráter coletivo”,
e após escrever estas palavras Jung faz alusão ao nazismo.

Mas o nazismo é somente um dos mais recentes casos em que a


cegueira arquetípica mergulhou o mundo no sangue e na destruição. Da
inquisição espanhola aos atentados terroristas modernos, da Guerra Fria com sua
corrida armamentista à degradação irreversível do meio ambiente, qualquer
observador que examine nossa história com objetividade chegará à conclusão de
que se trata de uma história de “loucura consensual, compartilhada, disfarçada
e dignificada, mas loucura ainda assim”, nas palavras de Becker.

E o cotidiano de qualquer ser humano está cheio de situações em que


coisas foram ditas e feitas sob o domínio de alguma emoção que se tem
dificuldade de controlar ou mesmo de perceber objetivamente. Muitas das
principais decisões de uma pessoa ao longo de sua vida são tomadas sob o
domínio de algum tipo de errônea percepção emocional da situação. Num nível
mais extremo, as prisões de todo o mundo estão repletas de casos em que a
possessão por algum tipo de conteúdo psíquico incontrolável levou ao crime.

83!
!
Se negamos a existência dos arquétipos, demonstra Jung, nem por isso
seu efeito em nossas vidas cessará, embora não possamos mais compreendê-
los. “Eles tornar-se-ão um fator inexplicável da perturbação, que atribuímos a
algo fora de nós mesmos”. Isso, no âmbito individual, desencadeia neuroses,
depressões, ataques de pânico, transtornos obsessivos e ataques de ansiedade,
e no âmbito coletivo “desencadeia alucinações coletivas, incidentes de guerra,
revoluções – em resumo, psicoses destruidoras de massa.”

O ser humano de hoje tem a seus pés toda a criação. Senhor do mundo,
não há grande predador que lhe oponha resistência. Com seu mundo imaginário,
construído por linguagem e regido por ficções como Leis, Dinheiro e Nações, foi
capaz de criar armas de destruição em massa e vencer os limites da atmosfera
terrestre. Porém, triste primata, não encontra genuína alegria em tudo o que faz,
não vê propósito em seus dias, escraviza-se pelas ficções que ele próprio criou,
da sua vida por elas, sente-se sempre incompleto, em desconforto e
desequilíbrio. O homem nasce livre, lembra Rosseau, e por todos os lados está
acorrentado. E “de que adianta uma pessoa ganhar o mundo inteiro, se perder a
própria alma?”

O ENREDAMENTO
Nos cartazes do filme Mother!, o filho de Sophia é associada ao próprio
cristal, mas com uma forma circular (perfeita, mandálica) e não assimétrica,
como o cristal do filme, que o poeta retira de sua esposa agonizante. Por outro
lado, o poeta trata o cristal de uma forma bem curiosa: embora a pedra venha
de Sophia, devota-lhe uma reverência que não devota à própria Sophia. O poeta
protege o cristal, coloca-o em um pedestal em sua estante, coisifica-o.

As consequências do “pecado original”, da perda de um módulo da


linguagem, foram mais concretas do que as confusões emocionais que
atrapalham o destino humano. Como Ian Hodder, arqueólogo chefe da equipe
responsável pelas escavações em Çatalhöyük, demonstrou que após a Revolução
Neolítica a identidade humana passou a ser definida por uma relação de
interdependência não com outros seres vivos, mas com “coisas”.

A essa relação, Hodder deu o nome de enredamento. O enredamento


no mundo das coisas é uma consequência inevitável do isolamento da linguagem
arquetípica, pois a partir de então a consciência humana só pode representar o

84!
!
mundo material e as relações de causalidade, fixando sua atenção linguística nas
coisas.

“Enredamento” é um nome apropriado para descrever a relação entre


identidade humana e coisas, pois peixes enredam-se em redes assim como o ser
humano enreda-se na matéria. Quando a vida humana começa a depender de
coisas e, tomados pelo terror diante da morte e impermanência, passamos a
buscar nas coisas a sensação de estabilidade e permanência que a vida orgânica
não possui, caímos em uma armadilha. Quanto mais dependíamos da matéria,
mais surgiam novas ramificações de dependência, mais a identidade humana, no
contexto da sociedade, dependia de vínculos com a matéria. Esse processo atinge
um ponto de irreversibilidade ao qual já chegamos. Não há como voltar, estamos
irreversivelmente enredados na matéria, e ela nos define enquanto seres
humanos.

Essa relação de dependência entre ser humano e coisas, resultado da


ignorância de uma linguagem arquetípica, “produz e contém a ação humana,
levando os seres humanos a enredamentos dos quais se torna difícil se
desconectar”, nas palavras de Hodder. Porque humanos dependem de coisas que
precisam ser mantidas para que se possa depender delas, humanos são
aprisionados nas vidas e temporalidades das coisas, com suas vicissitudes e
insaciáveis necessidades”. Hodder conclui que “coisas parecem como a Hidra,
exigindo uma habilidade hercúlea para que possam parar de se multiplicar e
aprisionar, e ainda assim esse aprisionamento é sedutor e produtivo” ao ser
humano.

85!
!
Hodder elaborou um procedimento para estabelecer as teias de interdependência entre humanos e
coisas no contexto das primeiras populações neolíticas.

Basta calcular a quantidade de tempo da sua vida que um ocidental


médio gasta com atividades indesejadas, a que se submete para poder comprar
coisas materiais e, após as adquirir, manter e preservar tais aquisições. O trágico
é que a maior parte dessas coisas materiais, cuja aquisição e manutenção
consomem tempo de vida, são totalmente desnecessárias, são adquiridas apenas
porque a consciência humana foi manipulada para desejar essas coisas e
encontrar gratificação em sua posse.

Basta também pensar na contínua troca de veículos, equipamentos


eletrônicos e roupas que uma sociedade maníaca estimula como forma de
legitimação e status social. Basta pensar na quantidade alarmante de lixo que
uma família comum produz semanalmente em qualquer país ocidental. Basta
pensar em quantos governos corruptos e investidores inescrupulosos arruínam
nações e devastam o meio ambiente em nome da riqueza material. Desprovidos
de uma linguagem arquetípica, voltada ao mundo interior e que nos permitisse
trabalhar e lidar conscientemente com nossas experiências psíquicas, acabamos
procurando no mundo material a pouca gratificação e controle que podemos ter
em nossas vidas. E isso entronizou a violência como forma precípua de ação
humana.

A restrição do acesso da consciência apenas a um tipo elementar de


linguagem, apropriada apenas para descrever coisas e processos causais, e não
experiências psíquicas de seres vivos e processos sincronísticos, levou
progressivamente à própria coisificação dos próprios seres vivos. A começar
pelos animais, que deixaram de ser tratados como sujeitos eles próprios de
experiências psíquicas, dotados de subjetividade e vida emocional, para serem
tratados como coisas, sujeitando-se uma violência que transborda a natural
violência decorrente da simples caça.

O historiador Yuval Harari deixa claro em sua obra Sapiens que “para a
grande maioria dos animais domesticados, a Revolução Agrícola foi uma
catástrofe terrível”, e por isso ele a chama de “o maior crime praticado pela
humanidade”. “A fim de transformar bois, cavalos, jumentos e camelos em
animais de carga obedientes, seus instintos naturais e laços sociais tiveram de
ser destruídos, sua agressividade e sexualidade contidas e sua liberdade de
movimento, restringida”. “No caso de animais como bois, ovelhas e homo

86!
!
sapiens, cada um com um mundo complexo de sensações e emoções, temos que
considerar em que medida o sucesso evolutivo se traduz em experiência
individual”, sugere Harari.

Porcos para o abate: “coisa” é o que não é igual ao sujeito.

Pode-se definir violência como o ato de coisificar um ser vivo, ou seja,


de negar-lhe o status de ser senciente e tratá-lo como coisa. Desde as inevitáveis
microviolências do cotidiano, em grande parte importantes para o
desenvolvimento psíquico, até as mais aberrantes formas de homicídio e abuso
físico, sempre se trata de coisificar um ser humano ou animal, tratando-o como
se não fosse detentor do direito de sentir e ter seus sentimentos considerados.
Violência é coisificação, e uma das primeiras formas de coisificação do próprio
ser humano surgiu na Revolução Neolítica, com a escravidão.

As evidências arqueológicas demonstram que a escravidão surgiu com


a invenção da agricultura, mas essa é apenas a coisificação humana mais
evidente. Qualquer outra forma de hierarquia social só foi desenvolvida a partir
da Revolução Neolítica, algo absolutamente impensável para as tribos de
caçadores e coletores de outrora.

Após compararem dezenas de sociedades primitivas, uma equipe de


pesquisadores da Alemanha, Austrália e Estados Unidos, coordenada por Joseph

87!
!
Watts, psicólogo do Max Planck Institute e da Universidade de
Oxford, demonstraram que a prática do sacrifício humano teve um papel
fundamental em nosso modelo de sociedade, pois o sacrifício humano promoveu
e manteve as primeiras sociedades divididas em classes. Como Lewis-Williams e
Pearce propuseram, a começar pela criação da primeira casta sacerdotal, a
humanidade concebeu a organização política de sociedades complexas,
compostas por centenas de indivíduos, segundo uma lógica procedural de
domínio e repressão.

Mas construir uma cosmovisão que autoriza a tratar outros seres vivos,
humanos ou não, como “coisas”, sujeitando-os à violência de forma socialmente
aceita, exige que se estabeleça um critério consensual para definir “o que é ou
não uma coisa”. E o critério fundamental que se desenvolveu e foi utilizado de
diversas formas, por distintos sistemas sociais e a serviço dos mais variados
interesses foi o da alteridade. Essa genuína tecnologia da opressão, que autoriza
até mesmo que antigos senhores tornem-se tão cruéis quanto seus algozes assim
que chegam ao poder, essencialmente prescreve a seguinte norma de
julgamento: “aquilo que não é igual a mim é coisa e, portanto, pode ser tratado
como tal”.

O critério da alteridade, decorrente da queda da linguagem e pelo qual


um outro ser vivo torna-se coisa foi adaptado a vários tipos de situações. A partir
de sua invenção, qualquer elemento de desigualdade que pudesse autorizar a
coisificação do outro ser vivo e que se mostrasse socialmente conveniente para
determinado grupo social foi utilizado como forma de legitimar a violência contra
o outro. Desde as primeiras desigualdades óbvias, como as de natureza sexual,
que permitiu o desenvolvimento de um sistema patriarcal, até as politicamente
mais elaboradas, como os casos em que a violência é exercida por quem se
considera vítima e portanto autorizada a coisificar o opressor, não houve caminho
inexplorado na busca de legitimar algum tipo de domínio sobre o outro ser vivo,
seja para usá-lo ou meramente assegurar sua sujeição.

O critério da alteridade é elástico e fundamenta toda forma violência, e


não apenas a social. Os casos anormais de maldade humana, como aqueles que
se manifestam em psicopatologias violentas, são claramente casos de uso
extremo desse critério coisificador: o psicopata, apesar de ele próprio sofrer e

88!
!
sentir, recusa-se a reconhecer o sofrimento de todos a seu redor. O psicopata,
enquanto tal, trata todos os seres vivos como coisas.

TORRE DE BABEL
No mito da Torre de Babel, tal como contado no Genesis, os seres
humanos se reúnem para construir uma grande torre que lhes permitiria chegar
aos céus. Porém, como consequência desse ato arrogante, Deus lhes pune
fazendo com que os seres humanos não mais compartilhassem da mesma
linguagem, de forma que cada qual passa a falar uma língua diferente dos outros.

Apenas a ingenuidade supõe que os povos antigos teriam interesse em


mitos que explicassem distinções linguísticas entre populações. Os grandes mitos
não se destinam a explicar curiosidades culturais, mas eventos importantes para
determinado povo ou cultura. E, novamente, a ideia de punição divina, inserida
no mito, é uma típica interpretação tardia que pretende apresentar o mito como
fábula de exortação moral sobre a humildade. Mas interpretação religiosa do mito
da Torre de Babel foi sistematicamente refutada por Theodore Hilbert em
seu estudo sobre a lenda.

A origem do nome “Babel” é explicado no Gênesis através do uso de um verbo


que poderíamos traduzir com o neologismo “babelizar”, significando “misturar”.
Isso porque “Babel” é derivado verbo “balal” (‫בּל ַל‬
ָ ) que, como mais de um
intérprete observa, é uma palavra raramente usada no Velho Testamento e
sempre no sentido de misturar a farinha decorrente dos cereais com os
adequados óleos antes de fazer um ritual de oferenda de pão a Javé – forma
tardia de sublimação do sacrifício de seres humanos e animais a deuses.

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Em sua pesquisa etimológica e bíblica, Theodore Hilbert deixa claro que
esse é o significado original da palavra, e que os tradutores sempre
incorretamente a traduziram por “confundir” (no sentido de “confundir as
línguas”) sem qualquer justificativa para isso senão a motivação religiosa da
tradução. Tem-se, assim, a um só tempo uma alusão à agricultura e ao ritual de
oferecer alimento à divindade, e dessa forma o Gênesis conta que a ruína dos
homens em Babel foi ter sua língua “misturada”, tal como se faz com uma
oferenda a deuses. E as oferendas de pão e cereais são uma elaboração tardia
dos antigos rituais de sacrifício.

Como chave final para a interpretação, outro significado para o nome


“Babel” sugerido por etimologistas e teólogos é o nome sumério “bab ilim”, que
significa “Portão da Divindade”. Portanto, o mito fala da possibilidade de a
humanidade atingir um nível superior de consciência (alcançar os céus) em um
período em que todos compartilhavam de uma mesma linguagem. Também fala
de um momento, posterior, no qual houve uma “mistura” ou “sacrifício” da
linguagem como forma de “oferenda” religiosa. A consequência, segundo o mito,
foi que a partir de então os seres humanos não conseguiram mais se entender.
Perdeu-se, para sempre, a linguagem antiga, que permitia a perfeita
compreensão entre todos e a construção de uma estrutura que conduziria a

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humanidade até Deus. Trata-se da narrativa sobre a renúncia da linguagem
arquetípica por nossos ancestrais.

Mas como uma linguagem arquetípica permitiria o correto


entendimento entre os seres humanos? Basta que recordemos os casos em que
experiências psíquicas eram vivenciadas coletivamente, momentos esse em que
os mesmos arquétipos se manifestavam para quase todos os envolvidos, embora
essa manifestação fosse adaptada a cada subjetividade. Por sua sobreposição
simbólica, os arquétipos permitiam a comunicação de experiências psíquicas pelo
engajamento emocional sem perda da individualidade. Quando a compreensão
entre duas pessoas era atingida, ela não precisava limitar-se à compreensão
intelectual, restringida às palavras. A compreensão também poderia ser
emocional.

O sentido original de glossolalia não está relacionado à palavras sem


sentido ou em línguas estrangeiras, mas de “linguagem onírica”, linguagem dos
sonhos, em geral atribuída por gregos e romanos à “linguagem divina”. Da
mesma forma, a tradição hebraica fala de situações em que alguém em êxtase
fala a “linguagem dos anjos” (como no caso das filhas de Jó). No cristianismo,
quando alguém recebe em si o Espírito Santo, como descrito em Atos, pode
comunicar-se em uma língua na qual é compreendido por todos a seu redor, não
importa o idioma que falem. A glossolalia é, portanto, na tradição hebraico-cristã
o oposto da “babelização” ou sacrifício da linguagem.

Mas o impacto de uma linguagem arquetípica vai muito além da


capacidade de comunicação profunda entre seres humanos. A linguagem
arquetípica é uma forma de a consciência humana começar a perceber o
hipercontexto, na medida em que a função de onda que é a vida de um indivíduo
(ou seja, o somatório de todas as suas versões distribuídas em realidades
alternativas distintas) é adequadamente percebida pela psique humana através
dos arquétipos. E isso porque os arquétipos são, conforme a perfeita definição
de Wolfgang Pauli, probabilidades de experiências psíquicas no hipercontexto –
ou seja, a forma fundamental como o tipo de vida orgânica que nós, seres
humanos, percebemos a realidade.

O desenvolvimento de uma linguagem arquetípica influenciaria a


estrutura da consciência humana, tal como o uso de qualquer linguagem
elaborada tem o potencial de fazer. Com uma estrutura diferente daquela que

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emergiu de Göbekli Tepe, essa consciência não estaria centrada no ego, e sim
naquilo que Jung chamou de função transcendente – o ponto de abertura ao Eu
Superior.

O mundo representado por essa consciência teria a habilidade de tornar


perceptível as probabilidades de experiência psíquica que um indivíduo tem
diante de si, em seu futuro, a cada momento. Compreendendo a natureza dessas
probabilidades, o indivíduo assim versado em uma linguagem arquetípica pode,
com suas ações presentes, compreender e influenciar ativamente a função de
onda que seu destino realmente é.

Ao mesmo tempo, quanto ao momento presente, aquele que tem


domínio de uma linguagem arquetípica está consciente do arquétipo que está
ativado a cada instante, em relação de complementaridade (sincronicidade)
como tudo o mais. Com constante atenção à sucessão contínua de experiências
psíquicas em sua mente, tal indivíduo não se torna mais prisioneiro de estados
emocionais incontroláveis, e muito menos pode ser presa daqueles que dominam
algum tipo de linguagem crepuscular ou outras formas de manipulação
emocional.

Compreendendo os padrões de experiência psíquica fundamentais,


dotados de profundas raízes biológicas, aquele que domina uma linguagem
arquetípica pode não apenas ajustar-se perfeitamente à experiência psíquica do
momento. Também pode desenvolver, conforme sua propensão criativa e
curiosidade, uma nova paleta de emoções que são inconcebíveis para quem está
preso às cores primárias da herança animal.

EPÍLOGO
“Há algo que acontece”, escreveu Wilhelm Reich, “desde há muito
tempo, no interior da sociedade humana, que torna impotente qualquer tentativa
que vise esclarecer este grande enigma, bem conhecido de todos os grandes
líderes da humanidade ao longo de milênios: o homem nasce livre, mas vive a
sua vida como escravo. Nenhuma resposta foi encontrada até hoje. Deve haver,
no interior da sociedade humana, alguma coisa que atua de modo a impedir que
se coloque a questão correta de maneira a chegar-se à resposta correta. Há algo
que atua, contínua e eficazmente, desviando a atenção dos caminhos,
cuidadosamente camuflados, que levam até onde a atenção se deveria focalizar.

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O instrumento usado por esse algo bem camuflado para desviar a atenção do
enigma fundamental é a evasiva de todo o ser humano em relação à vida. O
elemento escondido é a peste emocional do homem.”

Ao longo dessa parte final da terceira etapa, foi apresentada a natureza


da “peste emocional” que nos torna prisioneiros há milênios. Também se
apresentou a razão de jamais conseguirmos formular “a questão correta, para
chegar-se à resposta correta”: parte da questão e da resposta está na zona de
transparência da consciência, pois ali nossos ancestrais colocaram todo o
conteúdo arquetípico, como forma de isolar o terror da própria mortalidade do
ego.

Mas, se a humanidade desviou-se do melhor caminho há doze mil anos,


haveria como retrocedermos? Podemos restaurar a humanidade ao período
anterior ao “maior erro da história”?

Infelizmente, como Ian Hodder demonstrou, a armadilha na qual nos


enredamos há milhares de anos é um sistema irreversível – ou seja, não há como
retroceder sequisermos escapar. Nossa dependência das coisas enquanto
definidoras de nossas próprias identidades individuais, enquanto estruturadoras
do mundo em que hoje em dia nós, seres humanos, vivemos, tornou esse
enredamento irreversível.

E embora alguns indivíduos e pequenos grupos possam ensaiar versões


de vida alternativa e pré-neolítica, e algumas melhorias possam ser feitos no
sistema, na prática a identidade humana já está em simbiose com os objetos
materiais há tanto tempo e tão profundamente que não há como desmontar essa
armadilha sem desestruturar diretamente quem nós somos. Tentar retroceder
seriamente em qualquer aspecto da vida humana resultaria em tanta resistência
emocional e exigiria tanto sacrifício que seria o caso de cogitar que certas
cirurgias podem ser mais fatais ao paciente que a própria doença.

Em resumo, não há como voltar atrás. Nessa armadilha em que nos


enredamos à matéria, só podemos ir para frente.

Mas inclusive nisso a sabedoria dos rudimentos de linguagem


arquetípica que encontramos em tradições marginais da história como a alquimia
revela-se surpreendentemente atual. Diante do dilema do espírito preso à
matéria, os alquimistas medievais já tinham uma resposta que se mostra
oportuna para a humanidade neste momento. Mais que isso, é uma resposta que
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parece corresponder ao que se espera de uma situação como a presente, em que
a humanidade está próxima a uma encruzilhada de implicações dramáticas para
seu destino.

Para os alquimistas, se o espírito está preso à matéria, a solução não é


resgatar apenas o espírito. É preciso salvar também a própria matéria.

Este era o exato fundamento de toda obra alquímica: converter a


matéria mais reles em “ouro” – em outras palavras, a matéria insuflada pela
consciência humana ao mesmo tempo em que essa consciência dá um salto
evolutivo na direção de um nível superior de percepção da realidade. Trata-se do
mesmo evento, o hiper-humanismo, visto de duas perspectivas: na contextual,
é o transumanismo, na hipercontextual, é aquilo que Pierre de Chardin, batizou
de consciência coletiva. O processo é de emergência de uma nova consciência
humana, a partir do aprimoramento de uma linguagem arquetípica ancestral no
âmbito da revolução tecnológica.

Para corrigirmos o erro de nossos antepassados, precisamos


desenvolver a linguagem que eles deveriam ter desenvolvido, a fim de
compreendermos o alfabeto secreto que está diante de nossos olhos aqui e
agora. Isso permitirá que o homo sapiens desperte para sua dimensão emocional
e finalmente cure seu espírito adoecido. Só assim a revolução tecnológica que
está por vir não reproduzirá e aprofundará as perturbações em nossa sociedade,
abrindo uma janela para que interesses alóctones se infiltrem nesta trama de
realidade.

Neste momento da história humana, a falha na singularidade de doze


mil anos atrás tende a prejudicar singularidade que está para emergir como
resultado do desenvolvimento da comunicação humana. Nossa consciência está
para dar um salto evolutivo, mas um erro inicial que se agravou
progressivamente ao longo de nossa história é como uma pedra que nos pode
fazer tropeçar e cair no abismo. Trata-se da inteligência artificial, e a diferença
entre o salto e a queda será apresentada na última e quarta etapa deste ciclo de
aprendizado.
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