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E.M.1
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!Et!in!Arcadia!ego!
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“O ser humano nasce livre, mas por todo o lugar está acorrentado”,
disse Rousseau, sem suspeitar do significado mais profundo de suas palavras. O
ser humano está cativo em uma prisão que sequer pode conceber, pois toma o
cativeiro pelo mundo a seu redor. O prisioneiro ignora o propósito de sua prisão,
e a natureza de quem o mantém em tal condição, pois é como o peixe que sequer
reconhece a natureza da água.
Como será exposto, o mito do Jardim do Éden foi, como tantos outros
mitos da região da antiga Mesopotâmia, uma das formas de registrar e transmitir
às gerações futuras um importante evento histórico, ocorrido ao sudeste da atual
Turquia, há doze mil anos, e que revela a natureza da “prisão” em que agora
estamos.
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A QUEDA HUMANA
Faz parte da loucura ignorar-se o quão louco se é, faz parte da
estupidez subestimar o quanto se ignora. Qualquer ser racional que observar a
humanidade a distância concluirá que a raça humana é, a um só tempo, louca e
estúpida.
Algo está fora dos eixos. Desconfiamos em nosso íntimo que o mundo
não deveria ser assim, que a humanidade não precisava ser assim, que
poderíamos viver de outro modo. Suspeitamos que a humanidade como um todo,
e cada ser humano em particular, tem sido e é mais infeliz nesta vida do que
precisava ser.
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Nossa intuição está certa. Há algo errado com o ser humano. Há algo
errado com o nosso mundo. Alguma coisa saiu mesmo fora dos eixos em
determinado momento, desviou-se mesmo de seu devido caminho e nos colocou
aqui, enredados como um peixe capturado pelas redes do pescador.
Para compreender como ele ocorreu, pode ser útil o estudo de uma
antiga interpretação herética sobre o mito bíblico da criação do mundo.
O MITO
É provável que um evento ocorrido entre as populações pré-neolíticas
que viviam na atual Turquia, e que causou tamanho impacto humanidade até os
dias de hoje, tenha sido de algum modo registrado por quem o vivenciou, e assim
transmitido às gerações seguintes.
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Mas que tipo de mito? A própria natureza do erro, como se verá,
recomenda que se pesquise entre os mitos que contam a história da criação do
mundo, pois o erro está relacionado com aquilo que tomamos, desde então, pelo
mundo ao nosso redor.
E o que esses quatro sábios lá viram faz com que repensemos aquilo
que nossos antepassados chamavam de Paraíso.
O ÉDEN
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Diz uma antiga lenda hebraica que apenas quatro sábios visitaram o
Jardim do Éden. O primeiro olhou o Éden e morreu, o segundo olhou e ficou
louco, o terceiro olhou e blasfemou, e apenas um olhou e voltou em silêncio.
É curioso o Éden dessa lenda. Sempre nos foi dito que o Jardim do Éden
era a glória de Deus manifesta em bosques idílicos, lugar de deleite e santidade,
em que todos os animais vivem em comunhão. Porém, a lenda dos quatro sábios
sugere um local bem diferente, capaz de enlouquecer ou matar de parada
cardíaca mesmo um sábio que apenas ouse olhar ao redor. Da perspectiva dessa
lenda, o Éden parece menos com um lugar geográfico e mais com uma realidade
de nível superior, que pode desafiar os limites da compreensão humana até o
limiar de um colapso.
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Posters de divulgação de “Mother!”. Clique para ampliar.
Se for assim, o problema que pode levar à morte ou à loucura não está
no Paraíso em si, e sim na mente do ser humano atual, que não suporta sua
visão por estar habituado à sua prisão. Essa explicação agostiniana, vista dessa
perspectiva, nos daria uma pista importante não só sobre a natureza do Jardim
do Éden, mas sobre a natureza da condenação pelo chamado “Pecado Original”.
A casa de “Mother!”
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nascemos e fomos criados, e nos causa estranheza que alguém possa ser
condenado a entrar neste mundo. O mito assim relata pois é a única forma de
explicar o inconcebível: fomos expulsos para a prisão.
SOFIA E DEMIURGO
No filme de Aronofsky, temos dois personagens principais: o poeta e
sua esposa. O poeta está obcecado com a missão de escrever o poema de sua
vida, que parece ser inspirado na vida do casal. Mas, paradoxalmente, ele não
dá suficiente atenção à mulher, e permite que estranhos disponham do seu lar
até construírem um inferno repleto de dor, crime e destruição – um microcosmo
que reflete nossa sociedade. O poeta se envaidece facilmente com a admiração
de estranhos, e usa literalmente a esposa para tentar construir o mundo perfeito,
que jamais se concretiza. Na verdade, parece haver uma identidade mais
profunda entre o poema e a própria realidade em que ambos vivem, como a
leitura dos versos pela esposa revela.
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teria sido o personagem dessa lenda, um rabino de nome Elisha ben Abuyah,
também chamado “Archer” (“o outro”).
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O “erro” de Sophia não precisa ser considerado como o engano de uma
divindade, mas no sentido de um sistema que apresenta uma falha. O
“Nascimento” do Demiurgo não precisa ser interpretado no sentido humanizado
de gestação e parto. O sexo de Sophia talvez tenha a ver muito mais com uma
representação arquetípica profunda que relaciona mulher à espacialidade e à
matéria (talvez por causa da experiência primordial no útero) do que com
gêneros biológicos.
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O TÚNEL DA CONSCIÊNCIA
Quando o século vinte fez a maior descoberta da humanidade e
constatou a existência do hipercontexto, o mistério também passou a ser o
funcionamento da mente humana. Macroscopicamente, não percebemos as
outras realidades alternativas pois não estão entrelaçadas, e toda e qualquer
interação entre dois corpos macroscópicos só ocorre se estiverem entrelaçados
na mesma realidade. É o mesmo fenômeno subjacente à gravidade.
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Símbolo de Peixes presente no isqueiro oculto nos posters do filme “Mother!”, com o qual a mulher
incendeia a casa.
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aspectos do mundo exterior que não sejam remotamente importantes para a
sobrevivência do organismo.
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UMA VOZ QUE NARRA UMA HISTÓRIA
O cérebro humano precisa construir, através da consciência, um modelo
de mundo que seja uma representação de baixa dimensionalidade da realidade
exterior, como se esse modelo de mundo fosse uma realidade “virtual”. A
finalidade desse modelo é justamente executar duas tarefas importantes para o
organismo que o criou. A primeira tarefa é descrever o mundo exterior a fim de
identificar potenciais fontes de perigo, alimento ou reprodução (função
cognitiva). A segunda é escolher, entre as ações possíveis do organismo, aquela
que seja mais adequada ao que está acontecendo no mundo assim descrito
(função decisória).
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A melhor metáfora para o atual ego humano é a de uma voz que conta
uma história para si mesma, e que continuamente repete a palavra “Eu”. Essa
voz é como alguém que está em uma biblioteca, consultando um livro, um
“manual de como interpretar o mundo exterior e reagir ao que acontece”. Esse
livro é composto de memórias do passado e definições sobre quem se é – uma
mistura de tudo que o cérebro registrou. Além disso, esse livro possui muitas
instruções sobre como reagir a um só determinado tipo de situação. O conteúdo
do livro não obedece qualquer ordem, e apresenta informações e instruções
contraditórias.
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funções que não tem competência algorítmica para desempenhar. Essa é uma
primeira percepção mais definida que temos do erro, mas ainda é incompleta.
CINCO PONTOS
Em outras palavras consciência é um sistema informacional
autoconsciente (como diria Descartes, a consciência não apenas sabe – ela sabe
que sabe). Esse sistema informacional filtra as informações transmitidas pelos
órgãos sensoriais e constrói um modelo de mundo que simula o mundo real em
uma versão de baixa dimensionalidade, com atualização dinâmica e
transparência fenomênica de sua estrutura. Esse modelo de mundo, ou “túnel”,
é o que tomamos por realidade, e em seu centro está o ego humano, cujo
protagonismo é mantido por uma narrativa interna obsessiva e que naturalmente
resulta em sofrimento e destruição.
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Temos, assim, os elementos principais para prosseguir e compreender
a origem do maior erro da história humana. E alguns pontos precisam, porém,
ser fixados sobre as noções apresentadas a seguir.
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linguagem verbal, mas qualquer sistema de símbolos que possa representar e
transmitir informação complexa. E há várias linguagens possíveis para a
construção de um modelo de mundo, sendo a verbal a mais restrita. No filme de
Aronofsky, o poeta está obcecado em escrever uma narrativa poética que evoca,
na própria consciência, um projeto de mundo que ele mesmo sabota, conduzindo
tudo à destruição – e ele precisa sabotar, pois o projeto é inviável. Em termos
literais, há um erro na estrutura desse sistema representacional, que resulta no
sofrimento do organismo e numa espiral de destruição retroalimentada que se
replica também no contexto social em que vivemos.
Detalhe do poster do filme “Mother!”, revelando a solução simbólica do erro na consciência, que é
sabotada pelo poeta.
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O modelo de mundo em que cada um de nós vive em sua cabeça é, em
grande parte, consensual. Como diz Metzinger, é uma realidade virtual que roda
em tempo real e online, comunicando-se com outras realidades virtuais. Se não
fosse assim, a sobrevivência da espécie seria comprometida pela dificuldade de
comunicação entre os membros de um grupo de seres humanos – e, como
veremos, a formação de redes de transmissão de informação é um padrão básico
na história da evolução. A consciência, enquanto sistema informacional, existe
inclusive com a função de tornar mais eficiente a comunicação entre membros
de uma tribo que busca coletivamente pela sobrevivência, e tem seu
desenvolvimento retroalimentado pelas soluções encontradas pelo grupo para
aprimorar essa comunicação. Assim, o erro em um sistema pode rapidamente
replicar-se em outros sistemas cognitivos pelas vias de comunicação humanas,
que moldam o mundo consensual, como a cultura e a família. Replicações de erro
são eventualidades comuns na história da evolução, podendo resultar na extinção
de espécies.
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da espécie humana. E, a partir disso, tentar identificar qual a natureza do erro
original, sua origem e como foi replicado.
A REVOLUÇÃO NEOLÍTICA
No filme de Aronofsky, o mito de Adão e Eva é atualizado para nossos
tempos, uma forma hábil de sobrepor origem e consequências do Erro Original.
Não temos o primeiro casal no auge de sua vida de semideuses no Éden, mas
como casal envelhecido, que precisa confrontar a mortalidade humana. A
lembrança da morte e da velhice após uma vida de decepções acumuladas está
sempre presente. Adão está doente, irá enfrentar em breve o fim da vida. O
terror existencial da finitude humana se insere na narrativa, para estabelecer
onde está a fratura original do erro que se perpetuou na consciência.
A seguir, após a pedra ser quebrada pelo casal, surgem seus filhos. A
discórdia entre os irmãos se acirra até que um mata o outro, em uma clara
representação do mito de Caim e Abel. No filme, o irmão homicida parece estar
excessivamente preocupado com dinheiro de uma herança, evocando novamente
a relação do ser humano com a riqueza material.
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Na história bíblica, Caim mata Abel por inveja, já que Deus aceitou sua
oferenda na forma do sacrifício de um animal, rejeitando a oferta de Caim,
consistente no produto de seu trabalho na agricultura. Como consequência, Caim
tornou-se o único filho vivo de Adão e Eva, e pode ser considerado como o
ancestral comum de toda a humanidade [[Segundo a narrativa hebraica, é
verdade, Adão e Eva tiveram outros filhos e filhas. Porém, essa interpretação do
mito que o literaliza como uma narrativa sequencial é propriamente do tipo
religiosa, ou seja, não é a forma adequada de interpretar os mitos, que devem
ser interpretados como uma forma de linguagem ou ferramenta informacional,
guardando entre si não uma relação de sequência narrativa, mas de
correspondência simbólica. Mais sobre isso será exposto no futuro.]].
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Modelo de primeira residência no início da “Revolução Neolítica”. O culto religioso era realizado
dentro da própria moradia de cada família.
Um erro que tornou o cotidiano de cada ser humano mais difícil e menos
gratificante, empobreceu nossa dieta, piorou as condições gerais de vida e foi
até mesmo contrário à nossa disposição anatômica, representando
uma concreta violência para nosso corpo. No sítio arqueológico de
Çatalhöyük (sul da Anatólia), em que se descobriu uma das primeiras
aglomerações humanas após a Revolução Neolítica, os ossos de adultos tinham
lesões próprias de osteoperiostite e osteoartrite, sinal de uma vida sujeita a
transporte de muito peso e de trabalho excessivo. Esse tipo de agressão ao
próprio corpo era algo sem precedentes no período pré-Neolítico.
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civilização entre os seres humanos ocorreu de outra forma, e inclusive a passos
mais largos, sem resultados tão nocivos para a qualidade da vida humana.
O fruto proibido porém, não é o trigo, pois o erro cometido pelo homem
não começou com a sedentarização de grupos nômades e invenção da
agricultura. Como o arqueólogo Jacques Cauvin propôs e as pesquisas de campo
de Klaus Schmidt e Ian Hodden confirmaram, o erro cometido pelo ser humano
ocorreu não no mundo exterior, mas em primeiro lugar na sua consciência, o
local que há doze mil anos foi palco de uma singularidade. Pelo que se descobriu
em Göbekli, a Revolução Neolítica, nas palavras de Jacques Cauvin, não começou
com uma revolução da agricultura, mas com uma revolução cognitiva.
O UMBIGO DO MUNDO
Em outubro de 1994, um velho pastor curdo, Savak Yildiz, notou algo
estranho numa pequena colina próxima a cidade de Sanliurfa. A colina era
chamada pela tradição de Göbekli Tepe, ou seja “Colina do Umbigo”, e já havia
sido explorada superficialmente pelo arqueólogo Peter Benedict em 1963, que se
equivocou ao interpretar o local como um cemitério bizantino sem importância.
Mas ao limpar a terra que cobria o objeto que viu, o velho curdo constatou que
se tratava de uma grande pedra esculpida de forma curiosa. Yildiz era um simples
pastor, mas não um tolo. Ele sabia que não era o tipo de coisa que se esperava
encontrar em um cemitério.
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Foto real de Savak Yildiz.
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plantar e que deu origem a todas as espécies de trigo utilizadas pela nossa
civilização hoje em dia. Em quarto lugar, tratam-se de estruturas que exigem um
sofisticado conhecimento de arquitetura e astronomia, além de uma operosa
organização do trabalho. São habilidades que até então não se pensava ser do
domínio de nossos antepassados pré-Revolução Neolítica.
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Porém, em Göbekli Tepe há construções erguidas imediatamente antes
de a Revolução Neolítica acontecer, e essa Revolução ocorreu exatamente ali,
pois a primeira domesticação de trigo selvagem foi feita nas proximidades. Além
disso, seu gigantismo deixou claro que a agricultura não era um requisito para a
emergência de sociedades complexas. Na verdade, Göbekli Tepe demonstrou que
os povos nômades eram muito mais inteligentes e tinham uma cultura muito
mais sofisticada do que se supunha, eliminando a presunção de que a revolução
agrícola nos tornou mais inteligentes e hábeis.
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Porém, há mais um detalhe que os arqueólogos não deixaram passar.
O fato é que o complexo religioso encontrado em Göbekli Tepe foi completamente
enterrado pela ação humana consciente, e não como resultado de algum evento
natural. Na verdade, o que ocorreu em Gobekli Tepe é tão hediondo que em
algum momento nossos antepassados tentaram enterrar as memórias dos crimes
ali cometidos, embora as consequências já fossem irreversíveis.
A SINGULARIDADE
Há doze mil anos, ocorreu uma singularidade [[“Singularidade” é o
tema do próximo texto, mas pode ser definida como “o processo de emergência
de uma função que transcende seus elementos constituintes.”]]. Foi quando a
raça humana cometeu um grande erro. Agora, estamos para enfrentar uma nova
singularidade. Se essa próxima singularidade herdar os erros da anterior,
evocaremos o inferno na Terra. Se corrigirmos o erro a tempo, poderemos
construir uma utopia.
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olhamos para trás enxergamos o passado a partir do pequeno buraco que há na
parede de nossa cela.
Mas qual a natureza exata dessa prisão? Qual foi o fruto proibido que
nossos antepassados provaram?
É uma feliz coincidência que esse diagrama possa ser usado para refletir
a natureza do erro que determinou a tragédia da consciência humana, um erro
batizado pelo psicólogo Julian Jaynes de “Mente Bicameral” e que o arqueólogo
Jacques Cauvin identificou como a revolução cognitiva que desencadeou a
Revolução Neolítica.
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Isqueiro com o símbolo de Pisces como detalhe dos cartazes promocionais de “Mother”.
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O octógono é uma forma onipresente na casa construída por Sophia.
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é a exata representação daquilo que Julian Jaynes chamou de “Mente Bicameral”
que produziu nossa atual consciência.
O NASCIMENTO DA LINGUAGEM
No filme de Aronofsky, o mito do Demiurgo é apresentado como a
história de um poeta, que escreve um grande poema, e sua esposa, que reforma
uma casa com a qual ela própria se confunde. Linguagem é o instrumento do
ofício do poeta, ou melhor, o instrumento para orientar Sophia sobre como a casa
deve ser construída. Quando o poeta termina sua poesia, a leitura dos versos
evoca em Sophia a imagem da casa e da vida que ele projeta viver ao seu lado.
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ferramentas para a consciência desenvolver-se – um processo sempre a serviço
a sobrevivência do organismo através da cooperação com a tribo.
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frases tornava-se recorrente, frases eram atribuídas a sujeitos diferentes que
representavam experiências psíquicas específicas.
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Experiências psíquicas significativas eram acompanhadas de
alucinações específicas. As “figuras de transformação” dos antigos Olmecas têm
essa mesma origem, pois entidades que representavam experiências psíquicas
fundamentais eram percebidas na forma de um conjunto de atributos animais
arquetípicos (“fúria do tigre”, “coragem do leão”,” esperteza da raposa” ainda
são expressões usuais hoje em dia) associados a características antropormóficas
básicas. E como Lewis-Williams demonstrou, o consumo de substâncias
alucinógenas durante rituais praticados por sacerdotes e xamãs conferia aos
arquétipos durante rituais a forma de manifestações abstratas, geométricas, tal
como retratados em locais de culto.
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Essas ideias podem parecer estranhas, mas convém recordar o conceito
de consciência de Thomas Metzinger, já apresentado: consciência é uma
aparência de mundo criada pelo cérebro para representar ao organismo uma
versão de baixa dimensionalidade do mundo real. E somente recentemente
começamos a nos dar conta da extensão desse fenômeno. Por milênios, a mente
humana foi condicionada a considerar que aquilo que existe diante de seus olhos
(isto é, aquilo que sua consciência cria e apresenta como realidade visual e
espacial) é o mundo real. Mas, na verdade, onde se lê “mundo” em todos os
relatos míticos sobre a criação do mundo, entenda-se “simulação ou simulacro
de mundo de baixa dimensionalidade construído pela consciência e apresentado
como mundo real”.
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consciência atual é resultado recente de uma sucessão de singularidades, e
começou no momento em que o ser humano deu voz, pela primeira vez, às forças
fundamentais da psique. O ego humano, então rudimentar como o ego dos
demais primatas, ouviu pela primeira vez a voz dos arquétipos.
A LINGUAGEM ARQUETÍPICA
Enquanto trocavam correspondência sobre a relação entre matéria e
consciência, o físico Wolfgang Pauli e o psicólogo Carl Gustav Jung chegaram a
uma precisa definição de arquétipo no âmbito hipercontexto.
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Carl Gustav Jung (esq.) e Wolfgang Pauli (dir.)
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Assim, dois ou mais egos de um mesmo indivíduo podem estar
passando por experiências concretas muito diferentes, mas que correspondem à
mesma experiência psíquica fundamental. Uma versão alternativa do mesmo ser
humano pode ter mudado de país, outra sobrevivido a um acidente
potencialmente fatal, e ainda uma terceira pode ter começado em uma área
profissional totalmente nova. Em todas essas situações, é provável que um
arquétipo relacionado à experiência psíquica de renascimento esteja igualmente
ativado.
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conjunto de todas as vidas alternativas do mesmo indivíduo como uma função
de onda representada por arquétipos.
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MORTE
É uma triste verdade que a história humana, em todos rumos que
tomou no hipercontexto, raramente foi uma história de sucesso. A evolução joga-
nos em um campo de batalha no qual há inúmeras formas de perder-se a vida e
poucas de sobrevivermos e progredirmos enquanto espécie. Nem mesmo
dinossauros são páreos para o puro acaso, que pode varrer do planeta milhões
de espécies num só golpe de azar. Porém, nas tramas de realidade em que a
humanidade tomou um melhor caminho, chama a atenção uma característica
peculiar daquelas tramas de realidade menos felizes, como a que nasceu o leitor.
Algo causa estranheza, até mesmo alarme, pois revela o nível de adoecimento
da espécie humana naquele contexto.
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Como disse Becker, o sentimento básico de todo o ser consciente de
seu futuro é o medo da morte, de modo que “tudo o que o ser humano faz em
seu mundo simbólico é uma tentativa de negar e superar seu grotesco destino”
de organismo fadado à decomposição. “A ideia da morte e o medo que ela inspira
perseguem o animal humano como nenhuma outra coisa”, e assim constituem
“uma proposição universal da condição humana”, que conduz a uma
desonestidade fundamental do indivíduo “acerca de si mesmo e de toda sua
situação”. “O homem literalmente se entrega a um esquecimento cego utilizando-
se de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da
realidade de sua situação que se constituem formas de loucura – loucura
aprovada pelo consenso social, loucura compartilhada, loucura disfarçada e
dignificada, mas ainda assim loucura”.
Obviamente, qualquer pessoa hoje em dia sabe que vai morrer. Mas
esse saber é quase todo ele retórico, uma noção vaga sobre a mortalidade, que
raramente é levada em conta quando se trata de dimensionarmos nossa
perspectiva das coisas, estabelecermos uma hierarquia de valores e orientarmos
nossas decisões pessoais. Não sentimos realmente que vamos morrer, salvo nas
raras vezes em que um acidente ou doença fatal nos submete à experiência
psíquica da morte. Nesses casos extremos, o efeito ao menos temporário na vida
de quem se salva é uma transformação radical de seus valores e prioridades.
Porém, com o passar do tempo, a mente humana, mesmo após sentir
realmente a existência da morte, volta à executar sua programação padrão e
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esquece gradualmente essa experiência psíquica. E assim o faz porque foi
programada para esquecer da morte.
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Nossos antepassados, quando a linguagem pressionou a evolução da
consciência, não estavam municiados com os mecanismos protetores que o ser
humano de hoje tem à sua disposição para viver em total ignorância da própria
morte. O estado inevitável do ego humano nessas condições é de puro terror.
Observe-se aqueles que padecem de depressão, de ansiedade, de transtornos
obsessivos-compulsivos e de síndrome do pânico na sociedade atual: essas não
são doenças da modernidade, mas amostras do que é a condição humana quando
há um falha no sistema de proteção criado na consciência, e que deve afastar o
ego da verdade sobre sua própria impermanência.
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verme e alimento para os vermes. Este é o paradoxo: ele está fora da natureza
e inapelavelmente nela; ele é dual, está lá nas estrelas e, no entanto, acha-se
alojado num corpo cujo coração pulsa e que respira e que antigamente pertenceu
a um peixe a ainda traz as marcas das guelras para prová-lo. Seu corpo é um
invólucro de carne, que lhe é estranho sob muitos aspectos – o mais estranho e
mais repugnante dos quais é o fato de que ele sente dor, sangra e um dia irá
definhar e morrer. O homem está literalmente dividido em dois: tem uma
consciência de sua esplêndida e ímpar situação de destaque da natureza, dotado
de uma dominadora majestade, e no entanto retorna ao interior da terra, uns
sete palmos, para cega e mudamente apodrecer e desaparecer para sempre.
Estar num dilema desses e conviver com ele é assustador.”
FRUTO PROIBIDO
No filme de Aronofsky, a cena do fruto proibido é representada justo
por uma queda: a essência de Sophia, associada a uma pedra ou cristal que era
fonte de inspiração para o poeta, cai de uma estante no chão, por obra de Adão
e Eva.
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vertentes cristãs do mito. Está presente, porém, também na representação
hebraica que associa a “queda” de um tipo de conhecimento com a existência do
mundo material em que estamos vivendo, mundo material esse associado com a
figura da manifestação feminina de Deus (Barbelo ou Sophia).
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partir de escolhas e acasos, assemelha-se a uma árvore. Logo, o fruto proibido
não é a agricultura, mas algo que lhe antecedeu, relacionado a uma
transformação cognitiva.
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explica que a tradição vê Da’at como uma “unidade que reúne atributos opostos
e que dá origem a uma síntese que supera essa oposição”.
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ferida que se abre no chão da casa, que corresponde à própria ferida que o poeta
abre no peito de Sophia para retirar seu coração/cristal.
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Com todos esses elementos reunidos, tem-se a chave para decodificar
um dos mais obscuros e antigos mitos. Na narrativa do Jardim do Éden e do Fruto
Proibido, a consciência, em sua função de representação de mundo (ou seja,
Eva), retirou de um sistema de linguagem superior e transcendente (ou seja, a
árvore do conhecimento, Da’at), um módulo (um de seus frutos). Disso resultou
uma fratura ou falha estrutural do sistema de representação da realidade (tal
como descrito pela “ausência” de Da’at e pelo abismo), e assim o ser humano
perdeu sua conexão com uma forma de consciência transcendente (ou seja, o
primeiro casal foi expulso do Éden). Como resultado, a humanidade teve de
construir seu mundo apenas com as partes remanescentes dessa estrutura
fraturada (todos os descendentes do primeiro casal suportam o resultado da
condenação).
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formada pela união do Self aos egos que vivem em realidades alternativas. Mas
a mandala também é a estrutura de organização ideal dos arquétipos na própria
consciência humana, pois representa a dinâmica que deveria ter surgido como
resposta adequada à singularidade que ocorreu há doze mil anos.
Mandala elaborado pelo próprio Jung, para representar suas experiências psíquicas.
O NASCIMENTO DA RELIGIÃO
Estamos tão acostumados à ideia da religião que jamais nos ocorre que
ela nem sempre existiu. Não nos ocorre usualmente que a religião, enquanto
“ficção intersubjetiva” (como diria Yuval Harari), em algum momento foi
inventada.
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arquetípica, como veremos), seja uma prática muito mais antiga e espontânea,
o surgimento da religião enquanto sistema organizado em torno de “deuses”, isto
é, entidades que deveriam ser idolatradas e para as quais se prestava algum tipo
de sacrifício ritual, é algo bem diferente. Religião é a perversão da
espiritualidade.
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Imagem do deus Hitita Sharruma com o rei Tudhaliyi. Jaynes chama a atenção para o fato de o deus
segurar o braço do rei, como se guiando-o.
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a coordenação de grupos compostos por centenas e até mesmo milhares de
pessoas, conseguindo assim superar, pela primeira vez, a limitação do número
de dumbar.
Nobres assírios diante do trono de seu deus, que está vazio. A ilustração é comentada por Jaynes, que
chama a atenção para a ênfase nos dedos apontando como se algo estivesse no trono.
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Taurokephalos), falo priápico, criança, homem barbado, adolescente púbere,
espírito negro (Dionysus Melanaigis) ou hermafrodita. Entre os antigos nórdicos,
Wotan era representado com um velho com capa e chapéu com abas largas, um
cavalo de oito pernas, um poderoso monarca sentado em seu trono, um corvo,
um guerreiro montado em seu cavalo e um barqueiro de longas barbas.
Quetzalcoatl, entre os astecas e olmecas, era retratado como serpente com
penas, serpente com uma crista multicolorida, ser antropomórfico com um bico
de ave, entre outras imagens. Essas versões de um mesmo deus são derivações
mitológicas das variadas formas como cada indivíduo percebe, em uma
alucinação coletiva, o arquétipo na experiência compartilhada pelo seu grupo.
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consciência mais desenvolvida que a de nossos antepassados, ainda centrada no
ego.
A FUGA
O ego não é exclusividade dos seres humanos. Todos os animais mais
complexos, notadamente os mamíferos, possuem um modelo de ego. Diz-se
“modelo” pois é exatamente do que se trata: o ego é um modelo informacional
construído pelo cérebro humano e colocado no centro daquele modelo de mundo
de baixa dimensionalidade que é representado pela consciência como sendo a
realidade.
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religião: tratar signos complexos de informação como se fossem um
manifestação literal de entidades divinas.
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evidenciar que se tratam de sistemas de informação que possuem, enquanto
“palavras” do “vocabulário” de uma linguagem complexa, certa autonomia no
desempenho de sua “função sintática”, destinada a expressar as várias vidas
alternativas de um mesmo indivíduo no hipercontexto. Porém, não se tratam
realmente de entidades dotadas de personalidade, autonomia e subjetividade.
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a possibilidade da morte do ego a cada momento. O psicólogo Otto Rank falava
sobre o terror do mundo, o terror diante do mysterium tremendum et
fascinosum da realidade que nos cerca, com suas inúmeras possibilidades de
futuro. Conforme pesquisadores como Becker, Greenberg e Sheldon Solomon
demonstraram, a percepção constante da morte, como resultado do
desenvolvimento da linguagem, foi sentido como um genuíno trauma, causador
de uma ruptura cognitiva. E uma das formas de reagir ao trauma é a fuga
dissociativa, pelo qual a mente do indivíduo isola-se da experiência
traumatizante, recusando-se a reconhecê-la e protegendo dessa forma o ego a
fim de que ele continue, mesmo em situação de alto estresse, minimamente
operacional.
Mas como fazer isso? Como passar a não ver e ouvir aquilo que estava
sendo visto e ouvido de forma tão clara em alucinações individuais e coletivas?
Como não perceber mais o que estava diante de nossos olhos?
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converteu-se em discurso legitimador das fogueiras da Santa Inquisição e de
guerras no nome de Deus.
CAIM E ABEL
Os mitos do Fruto Proibido e de Caim e Abel são gêmeos. Tentam
descrever, de duas perspectivas, a mesma singularidade que ocorreu há doze mil
anos. Enquanto a história do pecado original é uma alegoria sobre a natureza da
Revolução Cognitiva que resultou na mente bicameral, a história do primeiro
homicídio bíblico é uma alegoria sobre a origem da Revolução Neolítica, unindo
em uma só trama religião, sacrifício e agricultura. O mesmo pode ser dito sobre
o mito da Torre de Babel, no plano da linguagem.
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objeto de culto, como mensagem divina em torno da qual religiões se organizam
e disputam a posse da verdade.
Segundo o Gênesis, Caim mata Abel dominado pela ira, pois Javé
preferiu o sacrifício de um animal, feito por Abel, e rejeitou a oferenda de Caim,
produto da agricultura. O contexto do evento, portanto, é o religioso, de adoração
ritualizada da divindade através de uma oferenda. Caim é a agricultura, Abel é o
sacrifício. Na versão bíblica da lenda de Caim e Abel, já há o vestígio da transição
entre sacrifício de humanos para o de animais, evidente na dualidade de Abel ser
ao mesmo tempo, na história, a vítima humana que sacrifica uma vítima animal.
Assim, a ideia de que a agricultura está relacionada com a morte de alguém no
contexto da prática religiosa está subjacente a toda narrativa.
O mito é uma representação alegórica de algo que não pode ser descrito
com o universo conceitual conhecido pela consciência humana. A religião é
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justamente a escolha por tratar o mito como uma narrativa literal (em maior ou
menor grau), enquanto a disposição adequada [[Que poderíamos definir como
“espiritualidade autêntica”.]] trata o mito como ferramenta informacional, ou
seja, como uma informação transmitida através de um sistema de linguagem
superior (superior em nível de complexidade, domínio e abstração).
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arqueólogo Lewis-Williams em The Neolithic Mind, o “contrato cognitivo” que foi
pactuado pela raça humana nesse lugar foi assinado em nome de todos nós pela
primeira casta de sacerdotes usando o sangue da primeira vítima humana,
sacrificada na primeira religião.
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outros tipos de armas deixa claro que se tratava de um lugar de peregrinação de
um culto violento, baseado na guerra ou na caça. Especula-se que o afluxo
constante de peregrinos ao local foi o que acabou forçando o desenvolvimento
da agricultura, como técnica inventada para alimentar centenas de pessoas. É o
que indica o fato de que a origem do trigo, primeiro cereal cultivado pelo homo
sapiens, ter sido rastreada até as vizinhanças de Göbekli Tepe.
Raposa e javali, em posições de ataque, mostrando suas presas. Observe a representação dos genitais
masculinos – segundo Ian Hodder, para evocar agressividade.
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Mas os fatos acabaram por confirmar essa impressão. Nos primeiros
meses de 2017, os arqueólogos que trabalham em Göbekli Tepe anunciaram a
descoberta de um número impressionante de vestígios de crânios humanos
separados dos corpos de forma artificial, com sinais claros de cortes e incisões
que sugerem seu uso ritualístico no local, inclusive pendurados por cordas.
Achados de Göbekli Tepe. À esquerda, seres emergindo do peito e ventre de um homem (serpentes
flanqueiam a figura). À esquerda, um predador, possivelmente um leopardo.
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construção uma faca esculpida em sílica e um altar sacrificial esculpido numa
pedra de uma tonelada, na qual se encontrou vestígios de sangue humano e
animal.
Peças de Göbekli Tepe. A – Estátua humana que foi propositalmente decepada; (B) Urso segurando a
cabeça de um homem; (C) Escorpiões e Abutres, um homem sem cabeça e com ereção situa-se abaixo
do Escorpião, enquanto um abutre segura uma cabeça humana (interpretação dos arqueólogos).
Mas qual a razão desses rituais? Por que tantas pessoas peregrinavam
até aquela região com tanta frequência a ponto de surgir a agricultura para
alimentá-los? Por que os construtores de Göbekli Tepe tiveram tanto trabalho
erguendo aqueles monumentos com pedras que pesam toneladas? Por que a
evocação do terror, por que o sacrifísio? Qual o motivo de tanto esforço e
sofrimento? Apenas em nome de uma fantasia religiosa? É pouco provável.
A COSMOVISÃO DA PRESA
Quando a inteligência do Velho Mundo cuidou de estudar as principais
sociedades da mesoamérica, ficou escandalizada com suas práticas religiosas,
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com seus mitos cheios de sangue, deuses carnívoros e sacrifícios humanos. A
frequência com que corpos decapitados, corações arrancados e entidades
vestidas de pele humana são retratados na arte Olmeca, Maia e Asteca fez H. G.
Wells sugerir seriamente que esses povos sofriam de algum tipo de psicose
coletiva.
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A conclusão de Michael Winkelman dá voz à conclusão de outros tantos
pesquisadores, principalmente de arqueólogos municiados de evidências que
estabelecem uma relação entre sacrifício, agricultura, criação de um sistema de
castas e organização política das primeiras cidades. Mais de uma equipe de
pesquisadores colheu evidências de que o ritual de sacrifício humano transitou
de forma voluntária e sacralizada de ofertar uma vítima aos deuses para uma
forma de consolidar uma divisão de castas através da escolha de quem seria
sacrificado.
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Com a singularidade, uma oportunidade política surgiu para que esses
“profissionais” a serviço de suas tribos criassem a primeira casta sacerdotal,
detentora do conhecimento de como apaziguar e agradar aos deuses. O que
houve foi algo semelhante ao que ocorreria se engenheiros e programadores
responsáveis pela primeira superinteligência artificial a utilizassem para seu
benefício pessoal. No caso dos sacerdotes de Göbekli Tepe, isso foi possível
porque eles ofereceram às suas tribos um produto de que necessitavam: uma
suposta “cura” para o terror diante da consciência da morte. Essa “cura” foi a
mente bicameral.
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Essa situação foi resultado do caminho escolhido pelo ser humano
diante da singularidade produzida por uma linguagem que demandava a
reestruturação da consciência a fim de superar do terror da morte. Não se tratou
de uma escolha consciente, mas de uma escolha conveniente – e não apenas sob
o aspecto da casta sacerdotal que foi criada.
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Pilar de Göbekli Tepe. Animais peçonhentos como serpentes, escorpiões e aranhas também estão
presentes no local.
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Antigos xamãs ameríndios.
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contextual da psique humana. No hipercontexto, ou seja, da perpectiva da função
de onda que é a vida humana, em que os arquétipos são probabilidades de
experiência psíquica, a consciência do indivíduo foi reestruturada para isolar-se
do conhecimento da linguagem arquetípica, naquilo que Jaynes chamou de
mente bicameral. No contexto, da perspectiva evolutiva e histórica, a
humanidade lidou com o trauma da percepção da morte e com a súbita posição
de vantagem na cadeia alimentar reajustando o sistema de forma retrógrada:
inserindo o novo mundo na lógica de uma antiga cosmovisão de inferioridade.
Inventou-se a religião.
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Sacrifício de crianças na antiga Babilônia (fonte: “Human Sacrifices on Babylonian Cylinders,
William Hayes Ward).
A PESTE EMOCIONAL
Peregrinando até locais de culto como Göbekli Tepe, as tribos de homo
sapiens reuniram-se sob o comando de uma casta de sacerdotes para lidar a um
só tempo com dois problemas resultantes do desenvolvimento da consciência a
partir da linguagem: com o desajuste de sua cosmovisão após a súbita ascensão
ao topo da cadeia alimentar e com o terror e ansiedade que vem da percepção
da própria mortalidade. Emergiu dessas cerimônias a mente bicameral e a
primeira religião, perversão da espiritualidade enquanto abertura para a
linguagem arquetípica.
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percepção dos arquétipos que se desejava “invocar”, e cuja fúria pretendia-se
aplacar com a oferenda de uma vida humana.
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Somos praticamente cegos em relação à sucessão de experiências
psíquicas, portanto. Elas nos ocorrem, mas lidamos com elas inconscientemente,
na medida em que determinam nossas reações emocionais e influenciam nosso
comportamento sem muitas vezes percebermos.
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seu significado, parece um som estranho. Tal é o limite da palavra, uma
ferramenta extremamente útil (assim como o ego) mas nociva quando sua
funcionalidade é desviada.
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Se negamos a existência dos arquétipos, demonstra Jung, nem por isso
seu efeito em nossas vidas cessará, embora não possamos mais compreendê-
los. “Eles tornar-se-ão um fator inexplicável da perturbação, que atribuímos a
algo fora de nós mesmos”. Isso, no âmbito individual, desencadeia neuroses,
depressões, ataques de pânico, transtornos obsessivos e ataques de ansiedade,
e no âmbito coletivo “desencadeia alucinações coletivas, incidentes de guerra,
revoluções – em resumo, psicoses destruidoras de massa.”
O ser humano de hoje tem a seus pés toda a criação. Senhor do mundo,
não há grande predador que lhe oponha resistência. Com seu mundo imaginário,
construído por linguagem e regido por ficções como Leis, Dinheiro e Nações, foi
capaz de criar armas de destruição em massa e vencer os limites da atmosfera
terrestre. Porém, triste primata, não encontra genuína alegria em tudo o que faz,
não vê propósito em seus dias, escraviza-se pelas ficções que ele próprio criou,
da sua vida por elas, sente-se sempre incompleto, em desconforto e
desequilíbrio. O homem nasce livre, lembra Rosseau, e por todos os lados está
acorrentado. E “de que adianta uma pessoa ganhar o mundo inteiro, se perder a
própria alma?”
O ENREDAMENTO
Nos cartazes do filme Mother!, o filho de Sophia é associada ao próprio
cristal, mas com uma forma circular (perfeita, mandálica) e não assimétrica,
como o cristal do filme, que o poeta retira de sua esposa agonizante. Por outro
lado, o poeta trata o cristal de uma forma bem curiosa: embora a pedra venha
de Sophia, devota-lhe uma reverência que não devota à própria Sophia. O poeta
protege o cristal, coloca-o em um pedestal em sua estante, coisifica-o.
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mundo material e as relações de causalidade, fixando sua atenção linguística nas
coisas.
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Hodder elaborou um procedimento para estabelecer as teias de interdependência entre humanos e
coisas no contexto das primeiras populações neolíticas.
O historiador Yuval Harari deixa claro em sua obra Sapiens que “para a
grande maioria dos animais domesticados, a Revolução Agrícola foi uma
catástrofe terrível”, e por isso ele a chama de “o maior crime praticado pela
humanidade”. “A fim de transformar bois, cavalos, jumentos e camelos em
animais de carga obedientes, seus instintos naturais e laços sociais tiveram de
ser destruídos, sua agressividade e sexualidade contidas e sua liberdade de
movimento, restringida”. “No caso de animais como bois, ovelhas e homo
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sapiens, cada um com um mundo complexo de sensações e emoções, temos que
considerar em que medida o sucesso evolutivo se traduz em experiência
individual”, sugere Harari.
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Watts, psicólogo do Max Planck Institute e da Universidade de
Oxford, demonstraram que a prática do sacrifício humano teve um papel
fundamental em nosso modelo de sociedade, pois o sacrifício humano promoveu
e manteve as primeiras sociedades divididas em classes. Como Lewis-Williams e
Pearce propuseram, a começar pela criação da primeira casta sacerdotal, a
humanidade concebeu a organização política de sociedades complexas,
compostas por centenas de indivíduos, segundo uma lógica procedural de
domínio e repressão.
Mas construir uma cosmovisão que autoriza a tratar outros seres vivos,
humanos ou não, como “coisas”, sujeitando-os à violência de forma socialmente
aceita, exige que se estabeleça um critério consensual para definir “o que é ou
não uma coisa”. E o critério fundamental que se desenvolveu e foi utilizado de
diversas formas, por distintos sistemas sociais e a serviço dos mais variados
interesses foi o da alteridade. Essa genuína tecnologia da opressão, que autoriza
até mesmo que antigos senhores tornem-se tão cruéis quanto seus algozes assim
que chegam ao poder, essencialmente prescreve a seguinte norma de
julgamento: “aquilo que não é igual a mim é coisa e, portanto, pode ser tratado
como tal”.
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sentir, recusa-se a reconhecer o sofrimento de todos a seu redor. O psicopata,
enquanto tal, trata todos os seres vivos como coisas.
TORRE DE BABEL
No mito da Torre de Babel, tal como contado no Genesis, os seres
humanos se reúnem para construir uma grande torre que lhes permitiria chegar
aos céus. Porém, como consequência desse ato arrogante, Deus lhes pune
fazendo com que os seres humanos não mais compartilhassem da mesma
linguagem, de forma que cada qual passa a falar uma língua diferente dos outros.
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Em sua pesquisa etimológica e bíblica, Theodore Hilbert deixa claro que
esse é o significado original da palavra, e que os tradutores sempre
incorretamente a traduziram por “confundir” (no sentido de “confundir as
línguas”) sem qualquer justificativa para isso senão a motivação religiosa da
tradução. Tem-se, assim, a um só tempo uma alusão à agricultura e ao ritual de
oferecer alimento à divindade, e dessa forma o Gênesis conta que a ruína dos
homens em Babel foi ter sua língua “misturada”, tal como se faz com uma
oferenda a deuses. E as oferendas de pão e cereais são uma elaboração tardia
dos antigos rituais de sacrifício.
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humanidade até Deus. Trata-se da narrativa sobre a renúncia da linguagem
arquetípica por nossos ancestrais.
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emergiu de Göbekli Tepe, essa consciência não estaria centrada no ego, e sim
naquilo que Jung chamou de função transcendente – o ponto de abertura ao Eu
Superior.
EPÍLOGO
“Há algo que acontece”, escreveu Wilhelm Reich, “desde há muito
tempo, no interior da sociedade humana, que torna impotente qualquer tentativa
que vise esclarecer este grande enigma, bem conhecido de todos os grandes
líderes da humanidade ao longo de milênios: o homem nasce livre, mas vive a
sua vida como escravo. Nenhuma resposta foi encontrada até hoje. Deve haver,
no interior da sociedade humana, alguma coisa que atua de modo a impedir que
se coloque a questão correta de maneira a chegar-se à resposta correta. Há algo
que atua, contínua e eficazmente, desviando a atenção dos caminhos,
cuidadosamente camuflados, que levam até onde a atenção se deveria focalizar.
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O instrumento usado por esse algo bem camuflado para desviar a atenção do
enigma fundamental é a evasiva de todo o ser humano em relação à vida. O
elemento escondido é a peste emocional do homem.”
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