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Coleção Segurança com Cidadania

ISSN 1984-7025
n. 01, ano 01, 2009
289 pp
Brasília, DF

Coleção Segurança com Cidadania


Subsídios para a Construção de um
Novo Fazer Segurança Pública
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva

Ministro da Justiça
Tarso Genro

Secretário Nacional de Segurança Pública


Ricardo Brisolla Balestreri

Diretor do Departamento de Políticas,


Programas e Projetos
Guaracy Mingardi

Coordenador Geral de Pesquisa e Análise da


Informação
Marcelo Ottoni Durante

EDITORES
Thadeu de Jesus e Silva Filho Marcelo Ottoni Durante
Ministério da Justiça Ministério da Justiça

COMITÊ EDITORIAL
César Barreira (UFC) José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)
Michel Misse (UFRJ) Guaracy Mingardi (RENAESP – SENASP – MJ)
Maria Stela Grossi Porto (UnB) Marcelo Ottoni Durante ( SENASP – MJ)
Melissa Pongeluppi (SENASP – MJ) Thadeu de Jesus e Silva Filho (SENASP – MJ)

CONSELHO EDITORIAL
Antônio Rangel Bandeira (VIVARIO) Maira Baumgarten (FURG)
Cláudio Beato (UFMG) Naldson Costa (UFMT)
Cristina Villanova (RENAESP – SENASP – MJ) Renato Lima (FSEADE)
Jorge Zaverucha (UFPE) Ricardo Balestreri (RENAESP – SENASP – MJ)
Juliana Barroso (RENAESP – SENASP – MJ) Roberto Kant de Lima (UFF)
Ivone Freire Costa (UFBA) Rodrigo Azevedo (PUCRS)
Wilson Barp (UFPA) Sergio Adorno (USP)
Capa
Rafael Rodrigues de Sousa
Emerson Soares Batista Rodrigues

Diagramação
Rafael Rodrigues de Sousa
Emerson Soares Batista Rodrigues

As matérias veiculadas nos trabalhos e artigos são de inteira e exclusiva responsabilidade dos autores

Tiragem: 1.000 exemplares

ISSN 1984-7025
Coleção Segurança com Cidadania / Secretaria Nacional de Segurança Pública do
Ministério da Justiça - Ano I, 2009, n. 01. Brasília, DF.

Todos os direitos reservados ao

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (MJ)


SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA (SENASP)
Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede
Brasília, DF - Brasil - CEP: 70064-900
Telefone: (61) 3429.3233
Impresso no Brasil
SUMÁRIO

Editorial 7

Apresentação 9

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo


de quatro capitais brasileiras 15
Kathie Njaine, Simone Gonçalves de Assis, Queiti Batista Moreira Oliveira,
Fernanda Mendes Lages Ribeiro, Raquel de Vasconcelos Carvalhães de Oliveira

Códigos de deontologia policial no Brasil e no Canadá:


análise dos documentos e das representações sociais 57
Maria Stela Grossi Porto e Arthur Trindade Maranhão Costa

O papel dos municípios na segurança pública 83


Tulio Kahn e André Zanetic

Avaliação da formação e da capacitação profissional dos peritos


criminais no Brasil 127
Michel Misse, Alexandre Giovanelli, Décio Nepomuceno da Silva e Carlos Eduardo Medawar

Guardas municipais: resistência e inovação 159


Marcos Luiz Bretas e David Pereira Morais

Polígono da maconha: contexto socioeconômico, homicídios


e atuação do Ministério Público 175
Jorge Zaverucha, Adriano Oliveira e Ernani Rodrigues

(In)segurança profissional e (in)segurança pública 195


Maria Cecília de Souza Minayo, Edinilsa Ramos de Souza, Patrícia Constantino,
Simone Gonçalves de Assis e Raquel Vasconcellos Carvalhaes de Oliveira

Mudanças em organizações o caso do policiamento 231


Karina Rabelo L. Marinho e Almir de Oliveira Junior

Trajetórias profissionais e carreira dos agentes penitenciários:


Distrito Federal e Goiás 255
Lourdes Bandeira e Analía Soria Batista

Instruções aos autores 287


EDITORIAL
A Coleção SEGURANÇA COM CIDADANIA tem como objetivo produzir livros
que sirvam de material didático para cursos de segurança pública, em distintos
níveis e formas e em diversas instituições educacionais. Nosso público inicial são os
participantes da RENAESP – Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública –
da SENASP do Ministério da Justiça, a qual coordena, desde 2008, cerca de 60 Cursos
de Especialização em Segurança Pública, presenciais e à distância, em todas as regiões
do País.
O objetivo da coleção é reunir textos que expressem o desenvolvimento atual
dos conhecimentos no campo da segurança pública, bem como reflitam as inovações
teóricas, metodológicas e empíricas em âmbito nacional e internacional. Trata-se de
contribuir à construção de um novo paradigma para o campo de conhecimento da
segurança na sociedade contemporânea e para as políticas públicas de segurança
na sociedade brasileira: olhares complexos sobre uma realidade multidimensional,
complexa e com processos não-lineares de transformação.
Pretendemos publicar, com intenção pedagógica, estudos sobre as dimensões
sociais, econômicas, políticas, culturais e jurídicas da violência, dos processos de
criminalização e do sistema de justiça criminal.
Os objetivos desta coleção é desenvolver os seguintes temas:
• Segurança pública e cidadania
• Análise de homicídios na sociedade brasileira
• Sistemas de informação, estatísticas criminais e cartografias sociais
• Estudos sobre crime e violência no século XXI
• Organizações policiais e modelos de policiamento
• Reflexões sobre educação policial
• Meios de comunicação, violência e cidadania
• Mediação de conflitos agrários e cidadania
• Violência de gênero e cidadania
• Sociologia da violência
• Socialização, juventude e segurança
• Políticas públicas de segurança pública
• Conflitos sociais e processos de pacificação
• Direitos e segurança pública
• Perspectivas para o sistema prisional brasileiro
• Segurança pública e criminologia
• Direito penal comparado e segurança pública
Esta lista inicial de temas expressa a intenção de estudar todo o fluxo da violência,
da criminalidade e da segurança pública, e se propõe a reconstruir o discurso e as
ações das instituições, dos atores, dos ofensores da lei e das vítimas, nos módulos
principais do processo da violência e da justiça criminal.
Por um lado, serão investigadas as diversas manifestações da violência social e
da criminalidade violenta no Brasil: violência doméstica; violência sexual; violência
agrária; a relação entre juventude, escola e violência; violência no trânsito; e a relação
complexa entre violência e os meios de comunicação.

Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública | 7
Por outro, serão efetuadas análises de séries estatísticas dos diversos tipos de
delito, no país, estados, capitais, regiões metropolitanas e municípios. Vamos salientar
a importância da produção de sistemas de gestão da informação, de modelos de análise
dos indicadores relevantes, da utilidade do georeferenciamento de dados e informações
e da montagem de cenários e simulações para a tomada de decisão dos operadores
de segurança pública. Tal conjunto de informações poderá servir de subsídio para
sistemas de avaliação de instituições, programas e projetos na área da redução da
violência e da criminalidade e no setor da segurança pública.
Esta Coleção propõe-se ainda a analisar a crise das organizações policiais e das
distintas experiências de reformas, desde o sistema de educação policial, passando
pela investigação policial e polícia judiciária, as delegacias das mulheres, as graves
violações dos direitos humanos, as greves das polícias, a violência policial, e a
implantação de novas tecnologias de gestão nas organizações policiais.
Também as instituições do poder judiciário, no âmbito criminal e penal serão
analisadas criticamente, efetuando-se e reconstrução de estratégias, representações e
decisões dos operadores do direto.
Com urgente atualidade, publicaremos textos sobre o sistema prisional dos
diversos agentes sociais envolvidos e da crise das penas restritivas de liberdade, das
experiências de penas alternativas e das organizações envolvidas com os egressos do
sistema penitenciário, assim como das causas sociais, institucionais e biográficas de
elevada reincidência criminal.
Enfim, os textos pretendem estimular a avaliação das políticas de segurança
pública, com a definição de indicadores de avaliação dessas políticas sobre todos os
momentos, níveis e territórios do país, em particular a avaliação dos diferentes planos
nacionais. No Governo Fernando Henrique Cardoso (1996-2002), o Programa Nacional
de Direitos Humanos (PNDH) (1966), o Plano Nacional de Segurança Pública (2000)
e as aplicações pelos Planos Estaduais do Fundo Nacional da Segurança Pública. No
Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), pretendemos avaliar o SUSP –
Sistema Nacional de Segurança pública e os Planos Estaduais. No segundo mandato
Luiz Inácio Lula da Silva (2006-2010), serão realizados estudos sobre a eficiência e
eficácia das ações propostas no PRONASCI – Programa Nacional de Segurança com
Cidadania.
Este campo de saber teve na coleção Polícia e Sociedade, da EdUSP, coordenada
pelo Prof. Sérgio Adorno (do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo) um marco na atualização do conhecimento internacional sobre esta área no
Brasil.
Quiçá possam esses textos da Coleção Segurança com Cidadania prosseguir nesta
seara, oferecendo material didático, pautado pelo avanço teórico-metodológico das
ciências e pela interpretação da sociedade brasileira e latino-americana para o ensino
da Segurança Pública.
Nosso objetivo ao publicar textos sobre a multidimensionalidade dos fenômenos
das violências e a complexidade da segurança pública será dar visibilidade à
compreensão das questões sociais mundiais que constituem desafios à consolidação
e aprofundamento da democracia. Ao propor reflexões sobre alternativas de políticas
sociais, de políticas públicas de segurança e de ações da sociedade civil, assumimos o
compromisso com a o avanço do processo civilizatório na sociedade contemporânea.

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APRESENTAÇÃO
Os textos aqui incluídos resultam do Concurso Nacional de Pesquisas realizado
pela SENASP, iniciados na Gestão do Prof. Luiz Eduardo Soares e concluídos na gestão
do Dr. Luiz Fernando Correa, em convênio com a ANPOCS – Associação Nacional de
Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais no período de 2003-2005.
Com o objetivo de oferecer um panorama amplo das questões envolvidas no
campo da segurança cidadã em um Estado Democrático de Direito, selecionamos
textos que abordam, de modo rigoroso e inovador, alguns dos temas relevantes para
o ensino da RENAESP – Rede de Altos Estudos em Segurança Pública da SENASP.
Aliando problemáticas densas com pesquisas empíricas, utilizando dados quantitativos
e informações provenientes de documentos e de entrevistas, tais artigos podem ser
estimulantes aos alunos e estudiosos dos dilemas do controle social em uma sociedade
democrática, porém desigual, diversa e marcada pela exclusão social.
Neste quadro, realça a função social dos profissionais de segurança pública em
contribuir ao Estado democrático de direito e à extensão do processo civilizatório no
Brasil. O primeiro conjunto de pesquisas analisa dimensões das organizações policiais,
do policiamento comunitário e da investigação policial.
Karina Rabelo L. Marinho e Almir de Oliveira Junior (Mudanças em organizações:
o caso do policiamento) abordam as características organizacionais, associadas a
diferentes modelos de organizações policiais, sobretudo a arranjos organizacionais
estruturais nos quais as estratégias manifestam-se. Procuram conhecer as implicações
do processo de mudança do modelo profissional-burocrático de policiamento para o
modelo de policiamento comunitário. Procuram mostrar como os principais elementos
de mudança estão associados à distribuição do poder organizacional, bem como das
definições de atividades e missões das organizações. Tomam como referência empírica
o Policiamento Comunitário nas Cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Vitória.
No modelo comunitário, o estreitamento da relação entre organização e ambiente
externo pode gerar importantes alterações nos fatores determinantes de distribuição
de poder, definição de missão e atividades.
O artigo de Adriano Oliveira, Jorge Zaverucha e Ernani Rodrigues (Polígono da
Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público)
tem como objetivos: 1) contextualizar as condições socioeconômicas do Polígono
da Maconha, em Pernambuco, nas regiões do Sertão e do São Francisco; 2) analisar
relações de causalidade entre tráfico de drogas e o elevado número de homicídios;
3) avaliar a eficiência do Ministério Público no enfrentamento ao cultivo e tráfico de
maconha no Polígono. Após detalhada análise, os autores chegaram a importantes
conclusões: primeiro, a análise do contexto sócio-econômico do Polígono da Maconha,
não detectou uma razão principal para o cultivo e tráfico de drogas. Porém, verificou-
se que há grupos organizados plantando e comercializando maconha. Percebeu-se a
ineficiência e ineficácia do aparelho coercitivo do Estado: a atuação da Polícia Civil
na investigação de crimes é praticamente inexistente. Em terceiro lugar, é razoável
admitir que a ousadia dos delinqüentes cresça com o aumento da probabilidade de
êxito do crime. No Polígono da Maconha não há disputa por território por existir
grande disponibilidade de terras para a produção. Porém, o mercado local é fonte
secundária de renda para o atravessador da droga; assim, o grande número de

Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública | 9
homicídios existentes na região não deve ser imputado ao cultivo e tráfico de droga.
Para municípios sem perspectivas de geração de emprego, o cultivo e tráfico de droga
resultam em fonte de renda que alimenta a cadeia econômica da região.
O segundo conjunto de texto estuda as representações sociais acerca dos policiais
na sociedade brasileira, sejam aquelas produzidas pela imprensa escrita, sejam as
inscritas nos Códigos de Deontologia Policial. Na mesma perspectiva, a análise do
trabalho policial permite perceber a relação entre a insegurança profissional e produção
da insegurança pública.
O artigo de Kathie Njaine, Simone Gonçalves de Assis, Queiti Batista Moreira
Oliveira, Fernanda Mendes Lages Ribeiro, Raquel de Vasconcelos Carvalhães de
Oliveira (A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais
brasileiras) buscou investigar a cobertura da mídia escrita sobre as ações policiais,
tendo em vista a importância do papel desse meio de comunicação na percepção
pública da força policial. O conhecimento sobre como as mensagens são produzidas
pelas mídias e como as mesmas atendem a diferentes interesses e estratos sócio-
econômicos também podem contribuir para entender o funcionamento da imprensa
e da atuação de jornalistas responsáveis pela construção dos textos. Outro aspecto
relevante do estudo refere-se às diferentes visões das instituições policiais (civil,
militar e federal) representadas pelos jornais. Concluem que a permanência de um
estilo jornalístico policialesco ainda é freqüente em alguns jornais, deixando de lado a
cobertura mais contextualizada das questões de segurança pública para um jornalismo
mais factual. Poucos jornais cobram de forma mais aprofundada as ações policiais,
produzindo uma representação das polícias e seus operadores de forma analítica e
reflexiva. Verifica-se que as imagens construídas pela mídia escrita tendem a criar
estereótipos em relação ao policial e suas corporações que estão ligados a uma idéia
de irregularidade, brutalidade, truculência e corrupção. Esses estereótipos tomam
proporções simbólicas significativas no imaginário social. Por outro lado, policiais
e suas corporações também constroem imagens estereotipadas da mídia em geral.
Essa imagem negativa da mídia vem contribuindo para uma animosidade entre essas
instituições sociais, não colaborando para um entendimento mais aprofundado de
questões cruciais que envolvem o trabalho da polícia e seu papel na sociedade.
Maria Stela Grossi Porto e Arthur Trindade Maranhão Costa (Representações
sociais nos Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá) indagam como
a experiência policial pôde ser transformada em códigos de deontologia e normas
de conduta, bem como seus efeitos sobre o sistema de treinamento e avaliação das
polícias. Partindo da constatação de que, nas últimas décadas, vários países criaram
códigos de deontologia e normas de conduta visando aumentar o controle sobre a
atividade policial cotidiana. Em todos os casos, a adoção destes códigos e normas
implicou em transformações no treinamento e na supervisão da atividade policial. Este
criterioso trabalho permitiu chegarem a algumas conclusões: primeiro, recomendam
que sejam promovidas ações de sensibilização para a necessidade de controlar o
uso da força policial; segundo, sugerem a elaboração de normas de conduta policial.
Terceiro, consideram que é adequar o treinamento - uma das formas utilizadas pelas
polícias para capacitar seus membros ao emprego adequado da força - às necessidades
do policiamento. Finalmente, recomendam a necessidade de adequar o sistema de
avaliação ou o sistema de controle interno das condutas policiais.

10 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Maria Cecília de Souza Minayo, Edinilsa Ramos de Souza, Patrícia Constantino,
Simone Gonçalves de Assis, Raquel Vasconcellos Carvalhaes de Oliveira (A (In) Segurança
Profissional e (In) Segurança Pública) escreveram um estudo comparativo entre a Polícia
Civil e a Policia Militar do Estado do RJ quanto à concepção e à administração individual
e coletiva dos riscos profissionais, de segurança pessoal e de saúde ocupacional no
exercício da Segurança Pública. Os principais objetivos da investigação foram produzir
informações estratégicas capazes de subsidiar ações dos profissionais, da Corporação
e de seus gestores, visando à adequação dessas Instituições às necessidades atuais da
segurança pública. Concluem que os policiais, sobretudo os operacionais civis e militares,
vivenciam um conflito entre o enfrentamento desejado pela instituição que ressalta os
atributos e as marcas da masculinidade e os sentimentos de medo da morte, justificados
pelas situações de risco reais e imaginárias a que estão submetidos. Ressaltam ser
“urgente que nos comovamos com as absurdas taxas de morte dos policiais, ressaltando
que não existe fatalidade nessa imensa perda de vidas que tanto afeta as famílias e a
sociedade como um tudo”. Enfim, um dos grandes desafios do Brasil e do Rio de Janeiro
em particular é criar um ambiente e uma cultura de segurança pública e cidadã.
O terceiro conjunto de textos salienta o novo papel dos municípios e das guardas
municipais na Segurança Pública.
Tulio Kahn e André Zanetic (O Papel dos Municípios na Segurança Pública) revelam
que a ampliação das intervenções na esfera da segurança ocorreu depois da Constituição
de 1988. O acesso aos recursos federais pelos municípios foi vinculado à apresentação de
projetos consoantes com a política de segurança pública do Governo Federal. A SENASP
também tem orientado aos municípios a elaborarem um Plano Municipal de Segurança
Urbana, composto de diagnósticos dos problemas existentes e de ações relevantes para
seu enfrentamento. Assim, os anos 1990 também marcaram o envolvimento maior dos
municípios na esfera da segurança, através da criação ou ampliação das Guardas Civis,
de Secretarias e Planos Municipais de Segurança ou da regulamentação – através de
Leis e Decretos Municipais de aspectos relevantes para a segurança. Também relevantes
foram os investimentos municipais em programas sociais de caráter preventivo, focados
especificamente na questão da criminalidade e da violência.
Os autores mostraram que a ação das prefeituras na esfera da segurança tem tido
algum impacto: as denúncias criminais – matéria prima do trabalho policial – crescem
consideravelmente quando as prefeituras se envolvem na divulgação do Disque
Denúncia; a Lei Seca pode contribuir para diminuir a quantidade de homicídios. Se
corretamente alocada a guarda municipal pode contribuir para a redução dos índices
de criminalidade contra o patrimônio. Quanto aos projetos de inclusão social e
de prevenção primária e secundária a literatura especializada já mostrou como os
indicadores sociais influenciam os níveis gerais de criminalidade de uma determinada
área. Vimos aqui como de certa forma eles foram importantes na explicação do porque
a queda dos homicídios em São Paulo ocorreu em determinado tipo de municípios
e não em outro. A pesquisa mostra que a participação dos municípios na esfera da
segurança pública é crescente e promissora e que o problema só pode ser debelado
com a colaboração de todas as forças vivas da comunidade.
Marcos Luiz Bretas e David Pereira Morais (Guardas Municipais: Resistência e
Inovação) observam que, no quadro da reformatação institucional promovida pela
Assembléia Nacional Constituinte, combinava-se uma experimentação de novas

Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública | 11
formas de poder com uma manutenção dos formatos tradicionais. Ao mesmo tempo
em que a nova Constituição manteve os velhos modelos das polícias e suas atribuições,
mencionou pela primeira vez neste nível jurídico a presença, ou antes, a possibilidade,
das Guardas Municipais. Após cuidadosa análise das várias dimensões das guardas
municipais, afirmam que um grupo expressivo de Guardas já se organiza em torno de
uma proposta clara de ação, que encontra respaldo em setores do poder público tanto
municipal como federal. São aqueles que pretendem fazer da Guarda uma polícia
local, enfrentando criminosos e, para isso, necessariamente armados. Reconhecer o
fortalecimento de tendências é o caminho necessário para uma atuação que permita
definir como o processo será conduzido, e que diretrizes conformarão o emprego das
Guardas.
O quarto grupo de estudos foca a formação e a capacitação profissional dos
profissionais em segurança pública: dos peritos criminais; dos agentes penitenciários;
e a análise sociológica e pedagógica do ensino policial.
Michel Misse, Alexandre Giovanelli, Décio Nepomuceno da Silva e Carlos Eduardo
Medawar (Avaliação da formação e da capacitação profissional dos peritos criminais
no Brasil) realizaram um diagnóstico da formação e da capacitação profissional dos
peritos criminais no Brasil, no intuito de propor uma melhor formação profissional
nos estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais. A pesquisa teve os seguintes objetivos
específicos: realizar um levantamento comparativo dos requisitos para ingresso na
carreira de perito criminal; verificar a adequação do ambiente de trabalho para a
aplicação e uso dos conhecimentos adquiridos; analisar a percepção dos peritos
criminais quanto às deficiências e necessidades dos cursos de formação e atualização
oferecidos atualmente; analisar suas representações a respeito da carreira, do trabalho
em relação às expectativas durante a qualificação.
Os autores fazem considerações finais, das quais vale destacar: 1) a seleção dos
peritos criminais para ingresso na carreira deve ser por áreas específicas e não deve ser
aberto a qualquer curso de graduação; 2) A inadequabilidade do ambiente de trabalho
tende a ter como conseqüência o aumento da ineficiência de cursos específicos de
especialização e aprofundamento; 3) Isso indica novamente que alguns conteúdos
essenciais para os peritos devem estar sendo negligenciados, notadamente as partes
técnica e científica; 4) Um dos principais atores que tem influência na qualidade do
exame pericial é a polícia militar, porém a falta de uma cultura que respeite o local de
crime faz com que muitas vezes a própria população contamine as provas prejudicando
o trabalho do perito. 5) A ausência de indicadores estatísticos confiáveis referentes
às demandas periciais e à produção de exames, laudos e produtividade é um fator
limitante ao planejamento, gerenciamento e avaliação sistemática dos Institutos.
Em suma, “Não investir na formação policial do perito tem como conseqüência a
produção de um funcionário ineficiente e expõem ao risco a vida do próprio profissional
e a sociedade. Por outro lado a precariedade na formação policial do perito criminal
tende a afrouxar os laços sociais que ligam a perícia ao restante do corpo policial,
gerando uma tendência à fragmentação das relações sociais dos peritos com seus
pares”.
Lourdes Bandeira e Analía Soria Batista (Trajetórias Profissionais e Carreira dos
Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás) partiram do interesse em contribuir
para uma melhor compreensão do universo laboral dos agentes penitenciários, fazendo

12 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
recomendações para orientação de políticas de seleção, formação e treinamento destes
agentes públicos. Mais recentemente, foi evidenciado o interesse pelo trabalho dos/as
agentes penitenciários/as ou agentes prisionais, uma vez que o desconhecimento em
relação ao trabalho destes/as ensejou que se criassem certas representações sociais,
predominantemente “negativas”. No geral, são considerados/as despreparados/as,
repressivos/as, violentos/as e até mesmo acabam sendo vistos/as como torturadores
carrascos e desumanos. Pode considerar-se que as relações e interações sociais nos
presídios e penitenciárias acontecem entre dois grupos socialmente estigmatizados:
agentes e internas/os; embora permaneçam diferenciados do ponto de vista das
hierarquias e dos poderes presentes nas organizações Prisionais.
A pesquisa realizada procurou compreender as carreiras e trajetórias profissionais
dos agentes penitenciários com vistas a realizar recomendações para ajustamento
dos perfis profissionais desses agentes às necessidades de segurança e respeito
pelos direitos humanos. Entre essas, caberia salientar “a necessidade de construir
uma carreira profissional específica para a profissão de Agente Penitenciário a nível
nacional que considere uma redução das defasagens, do ponto de vista do tempo de
formação, do conteúdo programático dos cursos, dos níveis salariais, entre outros”. E
a “criação de mecanismos e de estratégias para quebrar uma cultura ainda persistente
na instituição penitenciária que se caracteriza por uma ambigüidade com relação ao
tratamento que deve ser dispensado aos internos, isto é, ora tratados com respeito, ora
tratados com desprezo e humilhação”.
Sugerem, ainda, “realizar campanhas de valorização e reconhecimento do
trabalho realizado pelos Agentes”; e “pensar estratégias para administrar de maneira
adequada as diversas lógicas contraditórias presentes nas Penitenciárias: a lógica da
segurança e a lógica da reintegração”
O texto de José Vicente Tavares dos Santos, Jorge Zaverucha, Ricardo Balestreri,
Roberto Kant de Lima e Júlio Alejandro Quejada Jelves (A Educação Policial: limites
e possibilidades para a democracia ampliada) parte da concepção do ofício de policial
como um agente voltado para a segurança do Estado e a proteção da sociedade. Afirmam:
“Como a função do Estado é servir à sociedade, devemos, através da educação, fazer
com que o policial reconheça que o Estado é um meio e não um fim: o policial deve
ser um profissional que trabalha em favor da sociedade, garantindo a segurança do
cidadão”. Orientados pelo paradigma da autonomização moral e intelectual e tendo
como perspectiva as análises complexas da sociedade no Século XXI, propõem que a
formação dos policiais incorpore a contemporaneidade do saber crítico em Ciências
Humanas e Jurídicas. Para desenvolver as habilidades e competências em regulação de
conflitos, na prevenção de crimes, na repressão profissional e na investigação criminal,
é necessário uma perspectiva complexa e holística.
O objetivo é a construção de um saber teórico-prático processual e reflexivo,
fundado no princípio da complexidade, que reconhece a multidimensionalidade do
social, a incorporação do indeterminismo, da incerteza e do risco nas ações coletivas
e a ruptura epistemológica no processo de conhecimento das situações sociais. Esta
modalidade de saber teórico-prático poderá contribuir para a renovação das práticas
policiais no Brasil, no sentido de adicionar-lhes qualitativamente justiça, equidade
social, eficiência e eficácia, o que poderá agregar confiança e legitimidade às
organizações policiais brasileiras.

Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública | 13
Em suma, mediante várias abordagens e metodologias, a amplitude das pesquisas
apresentadas neste volume salienta as enormes possibilidades para uma Educação
Policial contemporânea, incorporando a pedagogia libertadora e o rigor teórico-
metodológico, a fim de construirmos uma segurança com cidadania na sociedade
democrática.

José Vicente Tavares dos Santos

14 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
A IMAGEM DO POLICIAL NA MÍDIA ESCRITA:
ESTUDO COMPARATIVO DE QUATRO CAPITAIS BRASILEIRAS

Kathie Njaine1
Simone Gonçalves de Assis2
Queiti Batista Moreira Oliveira 3
Fernanda Mendes Lages Ribeiro4
Raquel de Vasconcelos Carvalhães de Oliveira5

INTRODUÇÃO
A presente pesquisa buscou investigar a cobertura da mídia escrita sobre as
ações policiais, tendo em vista a importância do papel desse meio de comunicação na
percepção pública da força policial.
As teorias de comunicação têm demonstrado que a ação jornalística não se
restringe somente à construção da notícia enquanto tarefa intrínseca dos profissionais
que trabalham na mídia. Para muitos teóricos alguns temas permanecem na mídia
enquanto houver um interesse do próprio setor em fazê-los entrar no “debate público”.
Desse modo, mais que o simples registro, o tratamento jornalístico a determinadas
questões ou passa por um interesse público ou são de interesse do jornalismo porque
mobiliza emoções, dramas e o comércio desse produto. Para Champagnhe (1997:64)
a mídia age sobre o momento e fabrica coletivamente uma representação social que,
mesmo quando está muito afastada da realidade, perdura apesar dos desmentidos
ou das retificações posteriores porque ela nada mais faz, na maioria das vezes, que
reforçar as interpretações espontâneas e mobiliza, portanto, os prejulgamentos e
tende, por isso, a redobrá-los.
Para Rebelo (2000) o papel da mídia impressa se realiza em dois planos: um que
procura narrar as notícias do dia, procurando cumprir sua função informativa; outro,
no qual se configura e expressa um sistema de valores, em consonância com o lugar
de fala do jornal. Desse modo, essa não é uma narrativa qualquer, é a narrativa do
jornal, não mais se restringindo sobre “aquilo de que se fala”, mas prevalecendo no
plano do discurso, “de que modo se fala” e “porque se fala”. Os dois planos tornam
o jornal socialmente reconhecido pelos leitores, o que inclui, obviamente também, o
reconhecimento do estilo e do perfil do jornalista. Essa atividade da informação escrita

1 Jornalista, Doutora em Saúde Pública, pesquisadora do Centro Latino Americano de Estudos de


Violência e Saúde Jorge Careli/Escola Nacional de Saúde pública/Fundação Oswaldo Cruz. (CLAVES/
ENSP/FIOCRUZ).
2 Médica, Doutora em Saúde Pública, pesquisadora do CLAVES/ENSP/FIOCRUZ.
3 Psicóloga, Mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana/Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, pesquisadora do CLAVES/ENSP/FIOCRUZ.
4 Psicóloga, Mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana/Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, pesquisadora do CLAVES/ENSP/FIOCRUZ.
5 Estatística, Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais, pesquisadora do CLAVES/ENSP/
FIOCRUZ.

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 15


apresenta diferenças em relação à mídia falada, porque, por ser menos fragmentária e
possuir uma temporalidade maior, produz efeitos de agendamento de temas (agenda-
setting) como, por exemplo, o da atuação policial. (Wolf, 2001).
A hipótese do agenda setting a que se refere o autor acima não concorda que os
meios de comunicação de massa agem persuasivamente sobre as pessoas, mas que
a compreensão que a maioria das pessoas têm de grande parcela da realidade é dada
por esses meios. Ou seja, há uma tendência a dar ênfase aos assuntos que a mídia e/
ou o jornalismo destacam, tais como os eventos violentos e as ações que envolvem
a polícia e, assim, negligencia-se ou ignora-se outros temas que não são realçados
pelos meios. Essa hipótese tem integrado as teorias de comunicação no que se refere
à compreensão do nível cognitivo, da organização dos conhecimentos e da relevância
dada pelos consumidores dessas informações.
Alguns estudiosos do funcionamento da mídia escrita destacam que esse objeto
de conhecimento merece ser aprofundado pela complexidade da questão da circulação
de informação. Consideram que para além do nível do enunciado, ou o exame do
conteúdo do jornal (o que se diz), encontra-se o nível da enunciação (o modo como
se diz), que constrói certas imagens da realidade, estabelecendo com o leitor o que
chamam de “contrato de leitura”, conforme apontado acima. A teoria da enunciação,
portanto, em relação à mídia escrita, busca conhecer o funcionamento do discurso, ou
como o jornal constrói uma relação com o leitor através dos textos, das imagens, dos
dispositivos utilizados nos títulos, subtítulos etc. (Veron, 1985; Fausto Neto, 1999).
Esses autores enfatizam que o jornal procura construir com o seu leitor uma espécie de
contrato “a priori” que corresponda às expectativas, interesses e conteúdos presentes
no imaginário do seu destinatário. Além disso, atendendo à evolução sócio-cultural do
leitor, o jornal procura acompanhar esse movimento, resguardando a fidelidade de seu
público. Todavia, por serem produtos sujeitos à comercialização, esse contrato pode
modificar se a concorrência assim o exigir.
A informação, considerada o bem mais valioso do mundo contemporâneo,
torna-se ao mesmo tempo objeto de interesses e mecanismos de desregulação e
desumanização (Elhajji, 2002). A imprensa tem tido forte influência na organização
do espaço relacional (Hobsbawn,1995; Ramonet,1996). Martin-Barbero (2001) diz que
para o poder se manter por meio da mídia, tem que dialogar com seus contrários e
com os que, por serem do meio popular, a elite considera de mau gosto, despreza
ou menospreza. Por causa dessas estratégias de concessão às diferenças, articuladas
à imposição de uma forma dominante de olhar o mundo, os meios de comunicação
acabam por ter forte influência cultural.
Ao investigar a atividade jornalística Rebelo (2000) discorda da visão muitas
vezes maniqueísta de alguns intelectuais, referindo-se a Patrick Champagne, de que o
jornalista é um mero narrador dos fatos, incapaz de comentar, interpretar. Rebelo coloca
que, os jornalistas, na sua grande maioria, são profissionais assalariados e, como tal,
estão sujeitos às condições econômicas das empresas que concorrem no mercado e às
condições tecnológicas da própria profissão, que modifica com a chegada de cada nova
tecnologia. Esse autor aborda a questão da relação entre os jornalistas e as fontes de
informação, destacando que essa negociação é, principalmente simbólica “o valor da
troca é, de alguma forma, coincidente com o valor de uso” (Rebelo: 2000:28). Assim,
a informação, da fonte até o leitor, é compreendida por esse autor como composta por

16 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
três estratégias: (1) a estratégia da fonte que cede ao jornal somente as informações
que interessa a ela serem difundidas; (2) a estratégia do jornal que difunde somente
as informações que julga mais condizentes com o seu projeto editorial; (3) a estratégia
do leitor, que como destinatário último, se interessa somente pelas informações que
coadunam com o seu quadro de referência. Essa síntese da circulação da informação
é para Rebelo, a estrutura que funda o sistema de comunicação de massa, formada
pelo jornalista e a fonte.

Mídia e Polícia
Não se pode generalizar a respeito da atuação jornalística. Alguns estudos sobre
a representação de eventos violentos na mídia mostram que grande parte da cobertura
policial caracteriza-se por ser um jornalismo informativo e factual (Ramos e Paiva, 2005).
A maioria das matérias faz parte das seções do cotidiano e questões mais
aprofundadas sobre as ações policiais são tratadas por jornalistas especializados e
em seções especiais. Outra parte dessa cobertura dedica-se a um tipo de jornalismo
sensacionalista, espetacular, próprio do universo do fait divers, cujas características
são a exposição da violência, da morte, do acidente, do bizarro do comportamento do
homem. (Angrimani, 1995; Njaine & Minayo, 2002)
A imprensa escrita tem evoluído na cobertura policial, principalmente com a
mudança editorial de alguns jornais conhecidos com os atributos de “espreme que
sai sangue”. Mas ainda se verifica um tipo de jornalismo ambíguo, onde o suspeito
é exposto na mídia e pré-julgado, a vítima é exibida como um cardápio de horror e
a questão dos direitos humanos é muitas vezes ignorada. O enfoque na atuação da
polícia ocupa um espaço considerável dos jornais, principalmente no que se refere
às ocorrências violentas urbanas. Nessa cobertura, de modo geral, há uma ênfase no
aumento da criminalidade e uma tendência em destacar a incapacidade do Estado em
oferecer segurança pública de qualidade para a população. No entanto, nesse avanço
da mídia escrita, observa-se também uma melhor cobertura em relação à violação dos
direitos, que se deve a uma melhor qualificação de jornalistas nessa área. O tema dos
direitos humanos também está mais presente na formação e capacitação de policiais.
Alguns órgãos de imprensa têm protagonizado também a discussão sobre
questões de segurança pública, como a Rede Gazeta, que juntamente com a Assembléia
Legislativa do Espírito Santo, vêem coordenando o Projeto Pacto pela Paz, lançado em
setembro de 2005. O projeto conta com o apoio de algumas empresas privadas e já
abordou temas como família, drogas e desigualdade social.
O Jornal O Dia, do Rio de Janeiro, também tem dedicado grandes matérias
jornalísticas que ampliam a visão sobre a questão da segurança pública. A matéria do
dia 8 de maio de 2005 (pgs. 18 e 19) aborda a discriminação sofrida pelos filhos de
policiais militares, após a chacina da Baixada Fluminense, em 31 de março de 2005.
O jornal coloca que após essa chacina aumentou a reação negativa da população em
relação à PM. O comando geral da PM colocou, inclusive, à disposição a assessoria
jurídica da corporação e possibilidade de atendimento psicológico para aqueles
policiais que se sentirem ofendidos, diz o jornal. Outro aspecto que O Dia aborda
é a dificuldade desses policiais alugarem casas, sob a alegação de que eles atraem
conflitos para a área. Esse tipo de atuação do jornalismo impresso contribui para

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 17


subsidiar políticas públicas de segurança e também para mostrar outros aspectos da
instituição policial e seus operadores.
Com a manchete de capa Polícia Que Não Funciona, a Revista Época do dia
3 de maio de 2004, descreve a atuação de policiais do Rio de Janeiro e São Paulo.
O subtítulo destaca que as polícias dessas duas capitais matam mais do que a dos
Estados Unidos. A partir de fontes como a Ouvidoria de Polícia de São Paulo, da
Secretaria Estadual de Segurança Pública de São Paulo, de especialistas em segurança
pública, de familiares das vítimas, de vítimas e Ongs, a publicação mostra os dados
da violência policial nessas duas capitais. A despeito dos aspectos, relacionados aos
efeitos de sentidos criados na manchete de capa da matéria, que poderiam ser objeto
de análise científica, esse tipo de reportagem também contribui para a discussão da
área de segurança pública e suas teias políticas e ideológicas. Mas, acima de tudo,
confirma o que está dito na própria matéria, que os brasileiros estão prestando mais
atenção no “lado assassino da polícia” (Época, 3/5/2004, pg. 98).
Essas representações, permanentemente na mídia escrita, têm criado tensões na
sociedade em relação à atuação policial. Policiais civis do Rio de Janeiro entrevistados
em uma pesquisa sobre suas condições de vida e saúde se queixam da indistinção de
papéis das várias corporações policiais apresentados pela mídia. Asseguram que parte
da imagem negativa que possuem se deve a ações realizadas pela Polícia Militar. Esse
fato ilustra que as “diferenças entre o ser policial civil e o ser policial militar podem
ser tênues” (Gomes et al, 2003).
Sobre a percepção da população em relação à polícia, o Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania do Rio de Janeiro (Cesec), em 2004, concluiu que apesar
da população em sua maior parte, aprovar as blitze, “quase metade avalia a PM
fluminense como pouco ou nada eficiente e considera que ela tem pouco ou nenhum
respeito aos cidadãos, sendo-lhe atribuída a menor nota quando comparada a outras
corporações policiais. Além disso, 68% classificam-na como muito corrupta e 57%
como muito violenta” (Ramos & Musumeci, 2004:5). A pesquisa aponta ainda o fato
das abordagens a veículos e a transeuntes não se basearem em critérios de fundadas
suspeitas, expressando um caráter seletivo na escolha e no tratamento dispensado
a esses “elementos suspeitos”. Essa seletividade é norteada por critérios subjetivos
e intuitivos, indicando uma abordagem discriminatória, mais violenta e coercitiva,
dirigida principalmente a jovens negros e pobres.
A década de 80 marca uma inflexão no aumento da mortalidade por violência,
representada, sobretudo, pelas altas taxas de homicídios, em quase todas as faixas de
idade, mas especialmente os jovens. A questão da qualidade da informação sobre os
eventos violentos, tanto na sua geração quanto na sua divulgação mostra que há uma
desqualificação desses dados nos órgãos oficiais e nas formas de representação desses
eventos (Njaine et al, 1997). Neste contexto permeiam as ações policiais, tanto na forma
repressiva característica dessa categoria profissional quanto no uso e abuso da força
contra a população civil indiscriminadamente. Como exemplo, tem-se uma pesquisa
que traça o perfil dos homicídios cometidos no Espírito Santo e que foram noticiados
nos jornais A Gazeta e A Tribuna no período do 1994-2002, além das dificuldades
institucionais, a polícia capixaba é citada como importante agente de violência
(Zanotelli et al, 2004). Apesar de ser relatada uma falta de informação sobre os agentes
da violência em mais de 50% das notícias, o estudo ressalta que as ações policiais

18 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
acarretaram a morte de 276 pessoas em nove anos. Aponta uma provável conivência
por parte do poder público com esses atos muitas vezes ilegais dos policiais em serviço
ou não. Essa atuação vem gerando opiniões dicotômicas na sociedade que, por um lado
exige mais segurança, por outro despreza essa corporação e seus membros.
A ambigüidade não se restringe à ação policial nem à mídia, mas retrata os valores
presentes em uma parcela da sociedade brasileira, fortemente preconceituosa e favorável
às violações (Lima, 2002). Um percentual significativo de brasileiros concorda plenamente
que a polícia tem direito de revistar pessoas suspeitas em função da aparência – 22%
dos cariocas, 27% dos pernambucanos e 31% dos paulistas (Cárdia, 1999).
Pesquisas acadêmicas vêm relatando a visão negativa que a população tem da
polícia, em consonância com imagens veiculadas pela mídia. Estudo realizado com
1220 jovens do Rio de Janeiro mostra que eles consideram a polícia como o agente
principal da violência naquela cidade. Deram nota 3 para a atuação policial, num
continuum que variou de 0 a 10 (Minayo et al, 1999). A imagem que os próprios
policiais fazem de seu trabalho reflete essa visão pejorativa: 1458 policiais civis do
Rio de Janeiro reconheceram que o ajuizamento da sociedade sobre seu trabalho é
negativo e preconceituoso. Revelaram a falta de reconhecimento, a depreciação e a
incompreensão da sua missão. A mídia foi apontada por esses profissionais como
responsável pela rejeição social que a categoria hoje possui, no intuito sensacionalista
de vender jornais e revistas e aumentar a audiência televisiva (Gomes et al, 2003).
Baierl (2004) em entrevistas com policiais e moradores do município de Santo
André (SP) mostra como essa percepção pública da instituição policial é permeada
pelo medo. A autora coloca que,
A população, que deveria olhar a polícia como alguém em quem confiar, ao
contrário, identifica-a como sujeitos truculentos, que desrespeitam a lei e agridem as
pessoas indistintamente, em vez de transmitir segurança. (pp. 156)
Essa autora aponta que a polícia civil, em especial, e a polícia militar são os
sujeitos que mais provocam medo na população, tanto nas favelas quanto nos bairros
de classe média. Conseqüentemente, as respostas à presença da polícia como garantia
de segurança eram desqualificadas.
Entretanto, a autora ressalta que os próprios policiais também se sentem vulneráveis
á violência das cidades, enquanto trabalhadores. Alguns depoimentos de policiais, sobre
seu trabalho, revelam como essa violência os atinge e como a mídia colabora em boa
parte com essa situação de disseminação do medo (Baierl, 2004: 157).
Essa situação de elevada tensão profissional se manifesta em problemas de saúde
física e emocional relacionados ao estresse. Policiais civis do Rio de Janeiro, com menos
de dez anos de trabalho policial, têm menor índice de sofrimento psíquico (13,2%) dos
que os têm entre onze e vinte anos de serviço (24%). Essa angústia emocional ficou
refletida nos mais elevados níveis de nervosismo, tensão, agitação, insônia, tristeza e
sentimento de inutilidade. Esse grau de sofrimento emocional gerado pela profissão
retorna à sociedade através dos conflitos envolvendo policiais, agravando a situação
de violência social (Assis et al, 2003). Esses aspectos relacionados ao sofrimento
decorrente do trabalho policial, pouco são trabalhados pela mídia.
Devido à freqüência e diferenciação com que a instituição policial e seus
operadores aparecem nos jornais, torna-se pertinente investigar como esses atores são
representados e como essa representação influencia a formação da opinião pública em

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 19


relação às corporações policiais, e são por ela influenciadas. O aprofundamento da
compreensão dessa relação entre a mídia e a instituição policial e a repercussão que
possui na sociedade pode contribuir para uma melhoria da imagem que hoje vigora
no meio social.
O conhecimento sobre como as mensagens são produzidas pelas mídias e como as
mesmas atendem a diferentes interesses e estratos sócio-econômicos também podem
contribuir para entender o funcionamento da imprensa e da atuação de jornalistas
responsáveis pela construção dos textos. Um outro aspecto relevante do estudo refere-
se às diferentes visões das instituições policiais (civil, militar e federal) representadas
pelos jornais que podem servir como subsídio para o aprofundamento das questões
de segurança pública.

O Crescimento dos Homicídios e da Violência em Cidades Brasileiras


As quatro capitais brasileiras selecionadas para esta investigação: Recife, Vitória,
São Paulo e Rio de Janeiro, apresentam elevadas taxas de mortalidade por homicídio
no país. Nas capitais do Sudeste sobressaem as mortes decorrentes do narcotráfico,
da formação de quadrilhas, dos grupos de extermínio e da criminalidade comum.
Em Recife agrava-se a situação pelo plantio e venda da maconha e a violência gerada
por esse processo. Nas capitais do Norte e Centro-Oeste a dinâmica deve-se mais a
conflitos de terra, áreas de garimpo, narcotráfico e tráfico de armas em região de
fronteira (Souza, Lima & Veiga, 2005).
Dados do Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde mostram
que Recife e Vitória têm um incremento das taxas de homicídio significativo entre
1997 e 1998 (entre 73,6 e 81,5 por 100 mil habitantes), reduzindo as taxas nos anos
seguintes, embora com índices muito mais elevados do que o do país. São Paulo tem
seu ápice entre 1998 e 2000 (entre 58,5 e 66,7 por 100 mil habitantes), quando também
começa a reduzir a taxa de mortalidade por homicídios. As taxas de homicídio da
cidade do Rio de Janeiro crescem no começo do período, mantendo-se em valores
relativamente estabilizados de 1996 até 2002 (entre 46,6 e 66,7 por 100 mil habitantes),
embora com taxas inferiores as das demais cidades em quase todos os anos estudados.
Para o Brasil a situação é distinta, com taxas oscilando entre 19,2 em 1992 e 28,2 por
100 mil habitantes em 2002.
Apesar das mortes por homicídios expressarem apenas uma pequena parcela da
violência brasileira, sobre elas está um grande foco de interesse da sociedade e da
mídia, que em primeira mão, associam violência à criminalidade e morte. A utilização
da taxa de mortalidade por homicídio foi um critério de seleção das cidades para a
pesquisa, visando assim compreender como se coloca a imprensa dessas cidades com
tal agravamento da violência, a respeito da atuação da polícia – o principal agente de
segurança do Estado.

OBJETIVOS
a) identificar, descrever e analisar as representações sociais e percepções
coletivas das organizações policiais e seus operadores na mídia escrita das
capitais: Rio de Janeiro (O Globo e O Povo), São Paulo (Folha de São Paulo e

20 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Diário Popular), Vitória (Gazeta e A Tribuna) e Recife (Diário de Pernambuco
e Folha de Pernambuco);
b) comparar as imagens sobre as organizações policiais e seus operadores
veiculadas em jornais dirigidos aos estratos populares e médios/altos;
c) distinguir, sempre que possível, a imagem disseminada pela mídia segundo
as diferentes unidades que compõem a organização policial: Polícias Civil,
Militar e Federal;
d) refletir sobre propostas de uma mudança de enfoque da relação polícia versus
sociedade e a mídia.

METODOLOGIA
Trata-se de um estudo quanti-qualitativo sobre a imagem da polícia na mídia
escrita. No estudo quantitativo foram analisadas 2851 matérias jornalísticas publicadas
na imprensa escrita, publicadas nos meses de outubro e novembro de 2004. Para o
estudo qualitativo, foram selecionadas 480 matérias classificadas como negativas e
positivas em relação à atuação policial. Foram pesquisados oito jornais das quatro
capitais brasileiras com elevadas taxas de homicídios: São Paulo; Rio de Janeiro; Recife
e Vitória (tabela 1).

Tabela 1
Jornais analisados referentes aos meses de outubro e novembro de 2004

Jornais Outubro Novembro Total

O Povo – RJ 321 299 620


A Tribuna – ES 318 216 534
O Globo – RJ 222 227 449
Diário de São Paulo 212 228 440
A Gazeta – ES 144 119 263
Folha de Pernambuco 111 146 257
Folha de São Paulo 84 82 166
Diário de Pernambuco 67 53 120
Total 1.479 1.370 2.849*
* Há duas notícias que não estão com o mês definido.

O critério de seleção das matérias jornalísticas é o relato da existência de qualquer


tipo de atuação das organizações policiais e de seus operadores. No trabalho empírico
e operacional sobre as mensagens veiculadas, buscou-se diferenciar os seguintes
aspectos: (a) a contextualização da instituição policial; (b) as diferentes representações
dos atores envolvidos nas ações policiais e as formas de abordagem pelos jornais; (c)
as idéias mais recorrentes atribuídas pelos periódicos, como motivos para as ações e
as interpretações sobre as conseqüências das mesmas.
A clipagem dos materiais selecionados foi realizada entre dezembro de 2004 e
maio de 2005. As notícias foram sendo recortadas, categorizadas e organizadas em
clipping que constituíram o acervo analisado. Foram elaboradas fichas para colagem
das notícias, organizadas através de um cabeçalho com o nome do jornal, página, data
e título da notícia.

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 21


Para a abordagem quantitativa foi elaborado um questionário composto por três
blocos de análise: identificação do material; caracterização da matéria jornalística;
tratamento/linguagem atribuída ao policial e às corporações. O instrumento quantitativo
foi testado durante uma semana para corrigir possíveis erros. Após as correções finais
que surgiram do pré-teste, foram impressos 3030 questionários em gráfica.
O treinamento da equipe de análise foi realizado pelas coordenadoras da pesquisa
com os profissionais responsáveis pela análise das matérias durante uma semana.
Também foram realizados treinamentos com os codificadores e digitadores.
Foi utilizado o programa EpiData 3.1 para a entrada dos dados em computador
e para a análise foi utilizado o software SPSS (Versão 10.0), visando gerar análise de
freqüências, cruzamentos de variáveis e testes de associações estatísticas. Durante o
processamento foi realizada uma crítica do banco, sorteando aleatoriamente 5% do
número total de questionários, ou seja, 143 questionários a serem revisados segundo
erros de digitação. Na crítica de erros de digitação, encontrou-se 14% dos questionários
com pelo menos um erro de digitação e média de 1,8 erros por questionário selecionado
para crítica. O banco de dados compõe-se de 369 variáveis, com 7,1% apresentando
ao menos um erro de digitação.
Para consolidação de um banco de dados mais consistente, realizou-se análise
das respostas que poderiam trazer inconsistências na etapa de análise dos dados.
Desse modo, 191 questionários (6,7% do total) foram selecionados nessa etapa e as
suas respostas corrigidas segundo consulta às reportagens e aos responsáveis por
seu preenchimento e codificação. Após a maioria dos erros terem sido corrigidos
contabilizou-se uma média de 2,3 erros/questionário. A fase de crítica de dados
demonstrou que apesar do grande volume de análises necessárias nas 2851 reportagens
e a posterior codificação e digitação realizada em tempo ínfimo, o processo apresentou
um banco de dados consistente, podendo realizar a análise de dados.
A análise quantitativa baseou-se em análise exploratória dos dados, através
de freqüências e cruzamentos, onde testes de independência como o Qui-quadrado
de Pearson ou Teste de Fisher no caso bidimensional demonstram a existência de
relações de dependência entre as variáveis estudadas, para possíveis afirmações sobre
as porcentagens. O nível de significância utilizado para demonstrar a existência de
relações foi o nível de 5%, portanto p-valores abaixo desse nível demonstram a não
existência de casualidade no cruzamento, ou seja, o comportamento do objeto é
diferenciado segundo a resposta.
Para a análise qualitativa foram recortadas matérias que representavam uma
imagem positiva ou negativa do policial ou da corporação, identificadas através da
análise do instrumento quantitativo. As notícias foram escaneadas e organizadas através
do programa americano AnSWR 6.0. Foram selecionadas 480 matérias publicadas nos
meses de outubro e novembro, e que representavam aspectos negativos e positivos das
ações policiais. Foi realizada uma análise temática a partir do método de análise de
conteúdo (Bauer & Gaskell, 2002).

Caracterização dos jornais


As principais características dos oito jornais analisados podem ser constatados
na tabela 2, em que se verificam informações como: seções onde são publicadas;

22 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
tiragem; circulação; público-alvo; custo unitário e custo de assinatura. Buscou-se
também, quando possível, ilustrar a descrição dos jornais com um pouco de suas
respectivas histórias, de sua formação, sobre como surgiram, etc.
Dos oitos jornais pesquisados, tem-se que a cada dois jornais de cada capital,
um é dirigido aos estratos sociais médios e elevados e outro aos estratos populares.
Esse direcionamento a públicos diferentes pode ser aferido pelo valor cobrado pelo
periódico diariamente/mensalmente, por seu lay-out que dispõe de fotografias e
manchetes mais apelativas e/ou informativas e pela definição e classificação de suas
seções, por exemplo.

Tabela 2
Informações sobre os jornais analisados

CIRCULAÇÃO TIRAGEM PREÇO EXEMPLAR PREÇO GRUPO


JORNAL FORMATO SEÇÃO
PAGA TOTAL
Domingo Dias úteis ASSINATURA EMPRESARIAL

SÃO PAULO
Folha de São Paulo 304.389 332.539 R$3,50 R$2,20 R$478,00 Standard -- Cotidiano
Diário de São Paulo 74.789 101.303 R$2,50 R$1,30 R$384,00 Standard Globo São Paulo

RIO DE JANEIRO
O Globo 268.813 296.410 R$3,00 R$2,00 R$514,00 Standard Globo Rio
O Povo - 32.000 R$ 0,70 R$ 0,70 Não tem Standard nenhum Polícia

ESPÍRITO SANTO
A Gazeta 26.414 31.784 R$ 2,00 R$1,50 R$ 381,60 Standard Globo Cidade
A Tribuna 47.183 52.326 R$ 1,50 R$ 1,00 R$ 345,00 Tablóide -- Polícia

PERNAMBUCO
Diário de Pernambuco 37.424 32.137 R$3,00 R$ 1,50 R$ 625,50 Standard Grupo Vida
Associados urbana
Folha de Pernambuco 30.068 36.223 R$ 1,00 R$ 1,00 R$ 365,00 Standard nenhum Polícia

Na análise dos dados trabalha-se, portanto, com dois grupos de jornais: voltados
para as classes populares (estratos C, D e E) e para as classes médias e altas (estratos
A e B). O critério para a definição desses grupos foi o preço do jornal e a denominação
das seções. Os dois grupos ficaram assim criados:
• Jornais direcionados para as classes populares: Diário de São Paulo, Folha de
Pernambuco, O Povo e A Tribuna;
• Jornais direcionados para as classes médias e altas: Folha de São Paulo, Diário
de Pernambuco, O Globo e A Gazeta.

Os dados dos jornais – O Globo e O Povo, no Rio de Janeiro/RJ; Folha de São Paulo
e Diário de São Paulo/SP, em São Paulo; A Gazeta e A Tribuna, em Vitória/ES; Folha de
Pernambuco e Diário de Pernambuco, em Pernambuco/PE, foram obtidos através de
páginas eletrônicas dos respectivos jornais, no órgão regulador Instituto Verificador de
Circulação (IVC) e na Associação Nacional de Jornais (ANJ). Com exceção do jornal
O Povo, que não possui página eletrônica e não consta como pertencente aos órgãos
pesquisados, foi realizado um contato com a redação para obter alguns dados sobre
esse veículo.
No ranking dos maiores 30 mercados editoriais, segundo IVC, em agosto de
2005, os jornais estudados estão assim classificados: Folha de São Paulo (1° lugar);

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 23


O Globo (3° lugar); Diário de São Paulo (13° lugar); A Tribuna (17° lugar); Diário
de Pernambuco (28°); Folha de Pernambuco (30°). A Gazeta não consta nesta
classificação dos maiores mercados editoriais do país.

RESULTADOS
Um total de 2851 matérias foram analisadas considerando-se os meses de
outubro e novembro de 2004. Dentre as 2851 notícias analisadas, os jornais que mais
informaram sobre polícia foram O Povo (RJ), a Tribuna (ES), O Globo (RJ) e o Diário
de São Paulo (SP). Considerando-se o total de notícias segundo o Estado, tem-se que o
Rio de Janeiro contribuiu com 37,4% do total, seguido pelo Espírito Santo com 28%,
São Paulo com 21,2% e Pernambuco com 13,2%.
Vale a pena destacar que os dois jornais com mais notícias policiais se dirigem
prioritariamente aos estratos populares – O Povo, com uma média diária de dez notícias
e A Tribuna, com quase nove (tabela 3). No pólo oposto tem-se que os dois que menos
informam a respeito direcionam-se mais para as camadas altas e médias da população
– Folha de São Paulo e Diário de Pernambuco, cada um com menos de 6% do total de
matérias investigadas e quantidade inferior a 3 notícias diariamente.

Tabela 3
Distribuição proporcional das matérias segundo jornais

JORNAIS N % MÉDIA DIÁRIA


O Povo – RJ 620 21,7 10,2
A Tribuna – ES 536 18,8 8,8
O Globo – RJ 449 15,7 7,6
Diário de São Paulo 440 15,4 7,2
A Gazeta – ES 263 9,2 4,4
Folha de Pernambuco 257 9,0 4,2
Folha de São Paulo 166 5,8 2,8
Diário de Pernambuco 120 4,2 2,0
Total 2.851 100,0 46,7

No total, os oito jornais analisados publicaram uma média diária de 47 notícias


policiais: 43,1% na seção policial, seguida pela que apresenta o cotidiano das cidades
do Rio de Janeiro, São Paulo e outras cidades. Por outras seções tem-se especialmente
o país (27,5%), geral (24,5%), seguidas por outras partes de menor freqüência como
política, esportes e economia.
Jornais populares se destacam pela intensidade com que suas matérias policiais
estão na seção “polícia” (66,3% das matérias policiais divulgadas por estes jornais),
praticamente ausente nos jornais que se dirigem para as camadas médias e altas.
Nestes últimos, as notícias estão mais distribuídas entre: “cidade” (21,4%), “cotidiano”
(16,3%), “vida urbana” (6,1%; p<.001). A exceção que se comenta é o predomínio da
seção “São Paulo”, no jornal de camada popular daquele município e da seção “Rio”,
existente em jornal de camada elevada deste município.
Outro aspecto que norteia a análise das matérias policiais nos jornais estudados é o
pouco nível de aprofundamento desses textos. Na tabela 4 vê-se que a maioria absoluta

24 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
deles é descritiva dos fatos, não aprofundando para a população o conhecimento e nem
a complexidade dos temas de segurança pública. Há um percentual de 15% de matérias
analíticas e apenas 1,1% apresentam proposições para os problemas enfrentados.

Tabela 4:
Nível de aprofundamento das matérias

NÍVEL DE APROFUNDAMENTO N %
DAS MATÉRIAS (N=2848)

Descritiva 2.667 93,5


Analítica 427 15,0
Propositiva 32 1,1

Dentre as matérias analíticas observou-se alguns excelentes exemplos da utilização


de informações complementares que ampliam o entendimento das matérias, tais como:
dados e análises estatísticas sobre ações policiais, contingente de efetivos e discussões
sobre violência provenientes de outras instituições como centros de pesquisas e órgãos
públicos em geral; boxes contendo informações adicionais apresentando comentários
de autoridades na área de segurança, de especialistas e da população; artigos legais,
cronologias dos fatos, tabelas, gráficos e mapas; desenhos e ilustrações da cena
policial, reconstituição de crimes, retratos falados. Essas matérias apresentam ainda
diversas versões sobre o mesmo fato, citando várias fontes, direta ou indiretamente,
como vítimas, policiais, suspeitos, representantes de órgãos públicos e da sociedade
civil organizada, testemunhas, especialistas, etc.
Nas raras matérias propositivas, além desses elementos, encontrou-se sugestões
para melhorias no campo da segurança pública por parte da população, de instâncias
governamentais, de órgãos públicos, de especialistas e da própria polícia.
Interessa destacar que as matérias analíticas predominam entre os jornais
voltados para as camadas elevadas (17,1% contra 13,9%; p<.05). Todavia, dentre os
populares destaca-se A Tribuna (23,2%) por apresentar muitas matérias neste sentido,
junto com a Folha de São Paulo (20,5%). O Povo quase não apresenta matérias essas
matérias mais aprofundadas (1,8%).

Abrangência das notícias


As principais cidades presentes nas matérias policiais são: Rio de Janeiro,
Vitória e São Paulo, seguidas por cidades que compõem as regiões metropolitanas
desses Estados, como Serra, Vila Velha e Cariacica (ES), Niterói, São Gonçalo, Duque
de Caxias e Nova Iguaçu (RJ) e Diadema em São Paulo. Em Pernambuco, Recife e
Jaboatão dos Guararapes destacam-se das demais. Cidades de outros estados e outras
municipalidades destes quatro estados são também citadas, porém com menor
intensidade.
As fontes de informação das matérias policiais podem ser vistas na tabela
5 a seguir. A Polícia Civil e os delegados dessa corporação são as duas fontes de
informações mais freqüentemente utilizadas nos jornais. Como se pode perceber, a
Polícia Técnica está muito pouco presente, refletindo a precária informação sobre a

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 25


apuração técnico-científica ainda existente em nosso meio. A segunda principal fonte
de informação é a corporação militar e os policiais a ela afiliados. As demais forças de
segurança são vozes muito pouco ouvidas nos jornais analisados.

Tabela 5 - Fontes de informação das matérias policiais

Fontes de informação das matérias (N=2850) N %


Policial
Policial Militar 412 14,5
Policial Civil 258 9,1
Policial Federal 48 1,7
Policial Técnico 26 0,9
Guarda Municipal 19 0,7
Policial Rodoviário 9 0,3
Policial sem especificação 41 1,4
CORPORAÇÃO
Polícia Civil 641 22,5
Polícia Militar 460 16,1
Polícia Federal 127 4,5
Polícia Rodoviária 21 0,7
Guarda Municipal 20 0,7
Polícia Técnica 16 0,6
Corporação policial sem especificação 212 7,4
OUTROS
Delegado(a) 588 20,6
Outros 427 15,0
Testemunha(s) 273 9,6
Familiar(es) da vítima 255 8,9
Poder executivo 246 8,6
Vítima adulta 239 8,4
População em geral 139 4,9
Categoria profissional 130 4,6
Suspeito/acusado/criminoso 115 4,0
Poder judiciário 83 2,9
Representante do Ministério Público 68 2,4
Agência de notícias 67 2,4
Jornalista 51 1,8
Familiar(es) do suspeito/acusado/criminoso 44 1,5
Empresa privada 38 1,3
Órgão público 36 1,3
Outra mídia (TV, internet, etc.) 31 1,1
Especialista 30 1,1
Poder legislativo 28 1,0
Vítima criança/adolescente 22 0,8
Sociedade civil organizada 20 0,7
Forças armadas 20 0,7
Ong 18 0,6
Corregedor 18 0,6
Representante do Ministério da Justiça 17 0,6
Segurança privada 17 0,6
Universidades e centros de pesquisa 15 0,5
Órgão internacional 11 0,4
Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente 6 0,2
Defensoria pública 2 0,1
Conselhos tutelares, de direitos 2 0,1

26 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Outras fontes de informação relatadas em 15% das matérias policiais são algumas
categorias profissionais tais como: comerciantes e vendedores, médicos, advogados,
profissionais que trabalham com o trânsito como taxistas e rodoviários, e professores
e alunos. Os diretores costumam falar pelas empresas/instituições que dirigem. Dão
ainda importante contribuição às matérias as testemunhas, as vítimas e seus familiares
e o poder executivo.
Observando-se o grupo dos jornais mais populares em relação aos voltados
para as camadas médias e elevadas, verifica-se distinção entre os dois grupos em
relação a algumas fontes de informação: a) policial e corporação federal: jornais mais
elitizados utilizam mais essa fonte de informação (p<.001); b) corporações militar e
civil mais presentes nas mídias populares (p<.05); c) poder executivo: mais utilizado
como fonte de informação pelos jornais mais elitizados (12,3% contra 6,6% nos mais
populares; p<.001)

Presença das corporações policiais nas matérias


As corporações policiais que mais aparecem nas matérias são as polícias civis
(60,9%) e militares (52,5%), seguidas de forma bem distante pela Polícia Federal
(tabela 6). Associando-se as matérias da Polícia Técnica à Civil, tem-se que há um
numero similar de notícias policiais envolvendo Polícias Civil e Militar. As Forças
Armadas, a Guarda Municipal e a Polícia Rodoviária estão entre as menos mencionadas
na imprensa escrita. Nota-se que algumas matérias não são suficientemente claras ao
especificar qual o tipo de polícia envolvida na ação descrita na notícia. Apenas leitores
mais qualificados podem compreender a qual polícia a notícia se refere, através da
análise das atividades específicas a cada corporação. Essa desinformação contribui para
criar estereótipos comuns em relação a todas as polícias, construindo uma imagem de
uma só unidade, distorcendo as diferenças existentes entre as corporações policiais.

Tabela 6
Corporações policiais presentes nas matérias

CORPORAÇÕES (N=2850) SIM, DE FORMA CLARA SIM, SUBENTENDIDO TOTAL


Polícia Civil 56,0 4,9 60,9
Polícia Militar 50,5 2,0 52,5
Polícia Federal 10,7 0,5 11,2
Polícia Técnica 6,1 0,4 6,5
Forças Armadas 2,8 0,4 3,2
Guarda Municipal 2,5 0,4 3,0
Polícia Rodoviária 2,5 0,4 2,9
Corporação não identificada 5,3 0,4 5,7

Não se percebem diferenças estatísticas quanto a presença das variadas corporações


nas notícias, segundo o tipo de jornal: mais elitizado ou popular. Duas exceções são
notadas: há mais matérias sobre a Polícia Federal e as Forças Armadas nos jornais
voltados para camadas mais elevadas (15,9% e 5,4%, seqüencialmente), em relação ao
constatado nos jornais mais populares (8,6% e 1,9%, respectivamente; p<.001).

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 27


Notou-se ampla diferenciação entre os jornais (p<.001) segundo a corporação
mais citada nas matérias. No que se refere a Polícia Militar, Folha de São Paulo (60,8%)
e O Povo (59,5%) destacam muito mais essa corporação; no pólo extremo, que menos
identifica essa corporação estão: Diário de São Paulo (43,0%) e Folha de Pernambuco
(44,4%). Quanto a Polícia Civil, os dois jornais de Pernambuco destacam-se bastante
no elevado percentual de notícias, próximo a 80% das matérias; os dois jornais de São
Paulo sobressaem no extremo oposto: estão entre os que menos noticiam informações
sobre essa polícia (em torno de 51%; p<.001). Informações sobre a Polícia Federal
também se distinguem entre os jornais, com predomínio do Globo (22,3%); dentre os
que menos noticiam estão O Povo (5,6%) e A Gazeta (7,2%).
Considerando-se a figura do policial, tem-se, na tabela 7 que os policiais militares
são os mais mencionados, seguidos pelos civis. Os policiais federais, presentes em
114 matérias, são mais assíduos freqüentadores dos jornais mais voltados para as
classes mais abastadas (6,4%), se comparados a escassa presença nos mais populares
(2,7%; p<.001)

Tabela 7
Presença de policiais relatados nas matérias

Policiais mencionados nas matérias (N=2849) N %


Policial Militar 992 34,8
Policial Civil 550 19,3
Policial Federal 114 4,0
Policial Técnico 46 1,6
Guarda Municipal 45 1,6
Policial Rodoviário 33 1,2
Policial sem especificação 74 2,6

Outros personagens apontados nas matérias


Além dos policiais e das corporações, outros personagens estão presentes nos
textos sobre as ações policiais. Destacam-se, especialmente, os suspeitos/ acusados/
criminosos (75%) e as vítimas adultas (52,9%), como se observa na tabela 8. Em
posição bem menos destacada estão os delegados, familiares das vítimas, testemunhas
das ações relatadas nas notícias, população em geral e o poder executivo. Todos esses
atores estão mais presentes nos jornais voltados para as classes mais abastadas,
mostrando a inserção do envolvimento maior de atores presentes no evento narrado
(p<.05) e, possivelmente, um contexto mais complexo da narrativa ao apresentar
mais versões e fatos diferenciados.

28 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 8
Personagens presentes nas matérias policiais

ATORES MENCIONADOS NAS MATÉRIAS (N=2849) N %


Suspeito/acusado/criminoso 2.137 75,0
Vítima adulta 1.508 52,9
Delegado(a) 662 23,2
Familiar(es) da vítima 541 19,0
Testemunha(s) 445 15,6
População em geral 420 14,7
Poder executivo 375 13,2
Vítima criança/adolescente 285 10,0
Poder judiciário 272 9,5
Familiar(es) do suspeito/acusado/criminoso 207 7,3
Categoria profissional 206 7,2
Órgão público de segurança 152 5,3
Representante do Ministério Público 119 4,2
Forças armadas 77 2,7
Outra mídia (TV, internet, etc.) 76 2,7
Segurança privada 76 2,7
Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente 72 2,5
Poder legislativo 68 2,4
Jornalista 60 2,1
Representante do Ministério da Justiça 58 2,0
Agência de notícias 56 2,0
Especialista 32 1,1
Sociedade civil organizada 31 1,1
Órgão internacional 25 0,9
Corregedor 22 0,8
Universidades e centros de pesquisa 18 0,6
Conselhos tutelares, de direitos 18 0,6
Defensoria pública 2 0,1

Dentre as categorias profissionais mencionadas em 7,2% das matérias estão:


advogados, comerciantes/vendedores, médicos, motoristas/taxistas/rodoviários.
Alguns atores são pouco presentes nas matérias policiais, destacando-se
órgãos cruciais como a Defensoria Pública, os Conselhos de Direitos e Tutelares e as
Universidades.

Vozes atuantes nas matérias


Os atores que têm voz direta na matéria, informando sobre as ações narradas
estão apresentados na tabela 9. Como se nota, os delegados e as vítimas adultas são os
que mais se fazem atuantes nas notícias, seguido pelos policiais militares e familiares
das vítimas. A utilização do policial como fonte principal da informação é bastante
comum nas redações dos jornais, uma vez que muitos dos eventos não são cobertos
diretamente nos locais. Algumas hipóteses podem ser aventadas sobre o uso de tal
fonte: uma é que os repórteres não se exponham aos riscos da violência e outra é a
questão do tempo disponível para cobrir os eventos distribuídos em várias partes das
cidades. As falas de autoridades superiores como os delegados é comum por serem os

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 29


porta-vozes mais autorizados a fornecer informações sobre os fatos e investigações.
As falas das vítimas adultas e familiares muitas vezes são colhidas no próprio local
do evento ou nas delegacias. Conforme observou-se nas narrativas das matérias,
essas falas, muitas vezes impregnadas de sentimentos de medo, revolta, indignação,
sofrimento e descrença na instituição policial, são ingredientes que mobilizam muitas
emoções nos leitores.

Tabela 9
Personagens com voz direta nas matérias policiais

Atores (N=2848) N %
Policial
Policial Militar 199 7,0
Policial Civil 70 2,5
Policial Federal 26 0,9
Guarda Municipal 15 0,5
Policial Técnico 13 0,5
Policial Rodoviário 4 0,1
Policial sem especificação 17 0,6
CORPORAÇÃO POLICIAL
Polícia Militar 19 0,7
Polícia Civil 13 0,5
Guarda Municipal 3 0,1
Polícia Federal 5 0,2
Corporação policial sem especificação 7 0,2
OUTROS
Delegado(a) 374 13,1
Vítima adulta 221 7,8
Familiar(es) da vítima 185 6,5
Suspeito/acusado/criminoso 119 4,2
Poder executivo 118 4,1
Categoria profissional 99 3,5
População em geral 95 3,3
Testemunha(s) 92 3,2
Poder judiciário 48 1,7
Familiar(es) do suspeito/acusado/criminoso 37 1,3
Órgão público de segurança 34 1,2
Representante do Ministério Público 31 1,1
Especialista 24 0,8
Vítima criança/adolescente 20 0,7
Sociedade civil organizada 15 0,5
Poder legislativo 15 0,5
Jornalista 14 0,5
Forças armadas 9 0,3
Representante do Ministério da Justiça 8 0,3
Segurança privada 7 0,2
Corregedor 6 0,2
Universidades e centros de pesquisa 5 0,2
Órgão internacional 5 0,2
Outra mídia (TV, internet, etc.) 2 0,1
Defensoria pública 1 0,1
Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente 1 0,1
Conselhos tutelares, de direitos 1 0,1

30 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Além de ter uma voz mais ou menos atuante na notícia, os personagens aparecem
ora como protagonistas da ação, ora como coadjuvantes. Esse destaque que é dado a
esses personagens também compõe a forma como são construídas essas narrativas, que
evidenciam a posição do personagem na cena do evento. Protagonistas e coadjuvantes
se alternam na cena de acordo com a importância dos mesmos nos acontecimentos.
Não necessariamente protagonistas e coadjuvantes têm voz direta nas matérias.
Na análise vê-se que o papel de protagonista é dado mais para os suspeitos/
acusados/criminosos e vítimas adultas e crianças/adolescentes, principais atores do
texto narrado. Das corporações aparecem como relevantes o papel da Guarda Municipal
e da Polícia Federal. Dentre os que menos protagonizam matérias estão Polícia Técnica
e Rodoviária. Alguns títulos de matérias dão essa noção: “Bandidos ameaçam lojistas
na Praia do Suá”, “Estudante é baleado e pode ficar paraplégico”, “Sobrinho mata tio”,
“Polícia Federal prende uma quadrilha acusada de armar o tráfico”.
Os jornais mais populares dão espaço a vários protagonistas se comparados
aos mais elitizados, destacando-se: suspeitos, acusados ou criminosos (81,5% versus
61,4%); vítimas adultas e crianças/adolescentes (76,6% contra 59,7%; p<.001);
policial militar (44,2% contra 34,9%; p.<.05); e familiares dos suspeitos, acusados
ou criminosos (25,9% versus 1,7%). Por procurarem atender aos interesses de
seu público, cada jornal busca fornecer aos diferentes estratos sociais fatos que se
aproximam de suas realidades.

Composição das matérias policiais


Como se pode perceber na tabela 10, as matérias analisadas fazem parte do gênero
reportagens policiais, que por excelência tratam das ações envolvendo as corporações
policiais e compõem as páginas destinadas a esse gênero. A presença maciça de
reportagens não difere nos veículos estudados, sejam eles mais populares ou mais
direcionados às camadas mais elevadas. As notas seguem em freqüência como outra
forma comum de apresentar notícias policiais.

Tabela 10
Tipos de notícias policiais

TIPOS (N=2850) N %
Reportagem 2.488 87,3
Nota 352 12,4
Artigo assinado 3 0,1
Coluna 3 0,1
Editorial 1 0,0

Todavia, constatou-se que há diferentes formatações de notícias entre os


jornais analisados. Em relação as reportagens, jornais como Diário de Pernambuco e
Folha de São Paulo apresentam quase que integralmente suas notícias em formato de
reportagem; percentual que se reduz entre os demais, até chegar a cerca de 80% entre
os jornais capixabas (p<.001). No que se refere às notas, os jornais capixabas e o Diário
de São Paulo se destacam pela maior freqüência (entre 15% e 18%), contrapondo-se a

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 31


Folha de São Paulo (1,8%) e a ausência de notas no Diário de Pernambuco no período
analisado (p<.001).
Vários recursos gráficos são utilizados pelos jornais: fotos; box; estatísticas;
desenhos e ilustrações; tabelas, gráficos e mapas. Os jornais que se destacam pela
utilização de variados recursos gráficos são Folha de São Paulo e A Gazeta, direcionados
para as camadas altas e médias da população. Dentre os que menos utilizam os vários
tipos de recursos estão O Povo e a Folha de Pernambuco, voltados para um público
mais popular. O recurso gráfico mais utilizado é o uso de fotos, em 41,1% das matérias,
seguidos pelos boxes e estatísticas.
As fotos dos locais dos eventos predominam em 19,5% das matérias (tabela 11).
As fotos dos responsáveis pelos atos ilícitos e das vítimas das violências vêm a seguir.
O policial ou a corporação em ação é objeto de fotografia em cerca de 5% dos casos.
A evidente apologia da violência física sobre os corpos das vítimas é mostrada por 4%
das matérias. Essas fotos se distinguem das demais imagens de vítimas da violência
pela opção da visualização da mutilação física explícita.

Tabela 11
Fotos que ilustram notícias policiais

CONTEÚDOS DAS FOTOS (N=2850) N %


Local do evento 556 19,5
Suspeito/acusado/criminoso/autores da violência 383 13,4
Vítima da violência 284 10,0
Policial em ação 156 5,5
Corporação policial em ação 122 4,3
Corpos feridos e mutilados 114 4,0
Arma de fogo 84 2,9
Pessoas testemunhando eventos violentos 71 2,5
Outros 378 13,3

Outros tipos de fotos apresentadas são as que mostram materiais apreendidos


pela ação policial (carros, cargas, armamentos, etc.), população em geral presente no
local do crime, familiares das vítimas, delegados de polícia, Secretários de Segurança
Pública, população de rua, bombeiros, advogados, enterros de vítimas e criminosos,
manifestação de estudantes, moradores e sem tetos, passeata de estudantes, presos
rebelados e veículos roubados ou de criminosos.
A opção por apresentar fotos ilustrativas das notícias policiais predomina entre
os jornais populares (46,9% contra 36% no outro grupo; p<.001). Os três periódicos
populares mais atuantes quanto a fotografia são: Folha de Pernambuco (66,9% de suas
matérias policiais), Diário de São Paulo (49,3%) e A Tribuna (48,5%). Em percentuais
intermediários estão todos os periódicos voltados para classes médias. O Povo é o que
menos ilustra com fotos as matérias que apresenta ao leitor (26,6%), assim como faz
com todos os demais recursos de ilustração para suas matérias.
Outros recursos gráficos como o box para ilustrar as notícias são mais raros do
que as fotos (12,8%). Como se pode perceber na tabela 12, este recurso informacional
é utilizado mais para destacar pequenas informações relatadas no texto. Em 50

32 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
notícias o box apresentou a cronologia dos eventos narrados nas matérias e em 34
notícias, destacou a visão da população sobre o assunto. Outros tipos mencionados
são, especialmente os que trazem informações de alguns dados que antecederam o
acontecimento e de depoimentos de vítimas, familiares, testemunhas.

Tabela 12
Box apresentados com as notícias

CONTEÚDO DO BOX (N=2850) N %


Informações adicionais (Ex: Saiba mais, Dicas) 140 4,9
Cronologia dos fatos 50 1,8
Comentário da população 34 1,2
Trechos de leis 16 0,6
Comentário de autoridade de área de segurança 13 0,5
Comentário de especialista 8 0,3
Outros 190 6,7

Três jornais se destacam por apresentar mais ilustrações tipo Box (p<.001): A
Tribuna (28,4%), A Gazeta (22,8%) e Folha de São Paulo (13,3%); no pólo oposto
estão Folha de Pernambuco (3,9%) e O Povo (2,7%).
Estatísticas são recursos ainda menos utilizados que as fotografias e os box, sendo
sinalizadas em apenas 4,6% das notícias. Dentre elas, apenas 43 matérias (1,5%)
trouxeram números da Secretaria de Segurança Pública; outras 26 de outros órgãos
públicos, seguidas por dados de Centros de Pesquisa (14 matérias) e de Empresas
Privadas como IBOPE e Datafolha (7). Outras estatísticas estiveram presentes em 62
matérias, provenientes de Ong, Associação de hotéis e de policiais, Conselho tutelar,
sindicatos e serviço funerário, bem como fruto de trabalhos acadêmicos.
Os jornais mais populares utilizam este recurso em menor intensidade que
os direcionados às camadas mais elevadas (3,4% versus 6,8%, respectivamente;
p<.001). Quanto a pouca utilização de estatísticas destacam-se O Povo (1,8%) e Folha
de Pernambuco (2,7%) e entre os que mais apresentam este recurso informacional
estão Folha de São Paulo (12%) e O Globo (6,5%).
O uso de desenhos e ilustrações está presente em 2,1% das notícias, sobressaindo
figuras que ilustram a reconstituição dos crimes (tabela 13).

Tabela 13
Desenhos e ilustrações apresentadas nas notícias

CONTEÚDOS DOS DESENHOS E ILUSTRAÇÕES (N=2850) N %


Reconstituição do crime 27 0,9
Cena da ação policial 6 0,2
Retrato falado 5 0,2
Charge 4 0,1
Outros 20 0,7

Outros tipos de desenhos e ilustrações apresentados são ilustrações de armas e


de locais dos crimes/acidentes.

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 33


Observa-se distinção entre os jornais segundo o público ao qual se dirige. Entre
os voltados para as camadas altas e médias são apresentados mais tabelas, gráficos
e mapas (3,7%) do que entre os populares (1,1%; p<.001). Dentre os primeiros
destacam-se a Folha de São Paulo (7,8%) e A Gazeta (4,9%); entre os populares Folha
de Pernambuco apresentou os recursos em apenas 0,4% das matérias e O Povo não os
utilizou no período avaliado.

Objetivos das ações policiais


O teor das ações policiais apresentadas nas notícias, apresentado na tabela 14,
é, principalmente, o da apreensão dos suspeitos, acusados ou criminosos, em 31,2%
das notícias (mais relatada pelos jornais populares; p<.01) e o de elucidar sobre o
processo de investigação realizado – 30,6%, mais destacado nos jornais voltados para as
classes altas (p<.05). Registros de ocorrência seguem em freqüência, porém com menor
importância, com maior destaque nos jornais populares (14,7% versus 11,8%; p<.05).

Tabela 14
Objetivos das ações policiais mencionados nas notícias

OBJETIVOS (N=2848) N %
Apreensão de suspeitos/acusados/criminosos 889 31,2
Investigação 873 30,6
Outros 583 20,4
Registro de ocorrência 390 13,7
Operações de busca 201 7,1
Crime cometido pelo policial/corporação 181 6,3
Apreensão de armas 143 5,0
Crime cometido contra o policial/corporação 124 4,3
Apreensão das drogas 116 4,1
Manutenção da ordem pública 104 3,6
Ocupação de áreas 100 3,5
Apreensão de adolescentes 79 2,8
Apreensão de objetos roubados 78 2,7
Apreensão de materiais piratas/contrabando 39 1,4
Intervenção em presídios 39 1,4
Blitz 29 1,0
Combate à exploração sexual infantil 18 0,6
Combate à exploração sexual 17 0,6
Recolhimento de criança e adolescente em situação de rua 15 0,5
Intervenção em instituições de cumprimento de Medida Sócio-educativa 5 0,2
Combate à exploração do trabalho infantil 1 0,1
Combate ao trabalho escravo - -

Outros objetivos para as ações mencionadas nas matérias são: descrição de


depoimentos realizados; informes sobre policiamentos; socorros realizados; recolhimento
de cadáver; informação sobre perícias; outros tipos de apreensão tais como veículos,
dinheiro, documentos, material pornográfico, mercadorias sem nota fiscal, explosivos
e material para falsificação de dinheiro e etc.; confronto com traficantes, socorro à

34 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
vítimas de violência, transferência de presos, entre outros objetivos destacados em
menor freqüência.

Dados sobre as vítimas existentes nas matérias


Como se pode observar na tabela 15, a informação mais apresentada pelas
notícias é sobre o sexo da vítima. Dados sobre faixa etária, fatalidade e categoria
profissional estão presentes em cerca de 60% das notícias. Já cor da pele é uma
informação quase inexistente.

Tabela 15
Informações sobre vítimas existentes nas matérias

VÍTIMAS %
Fatalidade* 60,9
Sexo** 92,0
Faixa etária** 64,9
Categoria profissional** 62,1
Cor da pele** 6,8
* Dado computado para a totalidade das matérias (N=2851)
** Dado computado para parte das matérias – com vítimas (N= 1720)

Considerando-se a totalidade das 2851 notícias analisadas, em 60,9% delas há


dados sobre a fatalidade ou não das ações sobre as vítimas, informação principalmente
apresentada nos jornais voltados para classes altas (63,5% versus 59,4% nos populares;
p<.05). Há ainda uma diferenciação entre os jornais: os dois de Pernambuco
apresentam essas informações em cerca de 86% das notícias, enquanto O Povo e
Folha de São Paulo estão entre os que menos falam sobre vítimas (em torno de 48%;
p<.001). Quase um terço das matérias (32%) apresenta vítimas fatais; vítimas não
fatais sem lesões físicas são destacadas em 20,6% das matérias; e vítimas não fatais
com lesões estão presentes em 18,1% das notícias.
Um pouco mais da metade das matérias analisadas (1720), traz informações sobre
o perfil das vítimas das ações narradas. A partir desse montante, é possível perceber
como as diferentes mídias escritas descrevem esse personagem central das notícias.
Em 6,8% das matérias com vítimas há informação sobre a cor da sua pele,
independente do jornal ter perfil mais popular ou elitizado. Há, todavia, distinções
entre os jornais (p<.001): O Povo (2%). Folha de São Paulo (3,7%), A Gazeta (4,4%)
e A Tribuna (5,2%) são os que menos têm essa informação; no extremo oposto estão:
Folha de Pernambuco (11%), O Globo (10,6%) e Diário de Pernambuco (9,6%).
A cor da pele de apenas uma vítima é informada em 6,4% das notícias (109),
indicando a péssima qualidade desses dados, estranhamente pouco registrados, face a
conhecida predominância de vítimas de cor negra entre as mortes violentas. Dentre as
vítimas cuja cor da pele estão registradas nas notícias, tem-se a prioridade de brancos
(58 vítimas), pardos e negros (44) e cor da pele amarela em sete pessoas.
A informação da cor da pele de uma segunda vítima foi relatada em 33 matérias.
Novamente percebe-se o grau de desinformação: apenas 3,8% das vítimas estavam
descritas, com 12 pessoas brancas, 18 negros e pardos e 3 de cor amarela.

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 35


Dentre as matérias com informações sobre vítimas em 64,9% há informações
sobre sua idade, independente do estrato ao qual o jornal se dirige. Dados de apenas
uma vítima estão presentes em 63,1% das notícias, mostrando que este dado desperta
mais interesse dos jornalistas do que a cor da pele. Um total de 4,9% das vítimas é de
crianças até 11 anos de idade; 7,1% são adolescentes entre 12 e 17 anos; 12,8% são
jovens de 18 a 24 anos; 19,5% são adultos entre 25 e 39 anos; 14% entre 40 e 60 anos;
e 4,8% são idosos acima de 60 anos. Como se observa, os adultos predominam entre
as vítimas que ocupam as páginas da mídia impressa.
Informações sobre uma segunda vítima estiveram presentes em 43% das matérias:
2,8% são crianças; 5,5% são adolescentes; 9,4% são jovens de 18 a 24 anos; 12,7% são
adultos entre 25 e 39 anos; 8,1% entre 40 e 60 anos; e 4,5% são idosos acima de 60 anos.
A categoria profissional esteve mencionada em 62,1% do total de notícias com
vítimas. Em relação à informação sobre uma primeira vítima, 60,4%, tem-se: estudantes,
policiais militares, comerciantes, empresários, motoristas/ taxistas/caminhoneiro, dona
de casa, aposentados, desempregados, médicos e vendedores/biscateiros. Informações
sobre categoria profissional de uma segunda vítima foram informadas em 42,1% das
matérias com a informação de mais uma vítima.
Os dados sobre sexo encontram-se descritos em 92% das matérias onde há
vítimas. Em relação a primeira ou única vítima, 91,7% das matérias retratam a
diferença existente: 22,4% do sexo feminino e 69,3% do masculino, demonstrando a
sobre-mortalidade masculina nos eventos violentos. Nas notícias com segunda vítima,
25,8% são mulheres, 53,6% homens e 20,7% não possuem essa informação. Os jornais
populares prestam mais esta informação que os demais (93,2% versus 90%; p<.05)

Dados sobre suspeitos, acusados ou criminosos nas matérias


Informações apresentadas nas matérias sobre os suspeitos, acusados ou criminosos
estão apresentadas na tabela 16. Vale apontar a menor proporção desse dado, se
comparado ao apontado sobre as vítimas. Sexo mantém-se como a variável mais bem
informada e cor da pele como a de pior qualidade.

Tabela 16
Informações sobre suspeitos/acusados existentes nas matérias

SUSPEITOS/ACUSADOS/CRIMINOSOS %
Fatalidade* 49,9
Sexo** 85,3
Faixa etária** 41,5
Categoria profissional** 24,8
Cor da pele** 11,3
* Dado computado para a totalidade das matérias (N=2851)
** Dado computado para parte das matérias – com vítimas (N= 1395)

Em 49,9% das notícias há dados que informam se a vítima veio ou não a óbito,
com predominância dessa informação entre os jornais voltados para as classes médias
ou altas (67,5% versus 40,4% nos populares; p<.001). Há também distinções entre

36 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
os jornais (p<.000): O Povo e Folha de São Paulo são os que menos informam (8,1%
e 7,8%, respectivamente) e O Globo e A Gazeta estão entre os que mais apresentam
dados exatos (82,6% e 77,9%).
Os dados sobre a fatalidade existente nas notícias mostram que em 5,6% das
matérias os acusados morreram; em 44,5% os suspeito foram vítimas de alguma
violência, mas não apresentaram lesões e em 3,8% das notícias há lesões relatadas.
A cor da pele dos suspeitos está apresentada em 11,3% das matérias, destacando-
se os jornais populares (13,9%), em detrimento dos voltados para classes médias
(8,3%; p<.001). Distinções entre jornais também são notadas (p<.001): O Povo
(4,1%) e Folha de São Paulo (7,7%) trazem muito pouco esta informação em relação
a Folha de Pernambuco (14,1%) e Diário de São Paulo (18,2%.)
A cor da pele de um primeiro suspeito foi relatada em 10,9% das matérias
que mencionavam os suspeitos dos crimes, com 4,5% de brancos, 6,2% negros ou
pardos e 1,4% de cor da pele amarela. Informação sobre um segundo suspeito mostra
detalhamento da cor em 6%, predominando a informação sobre cor negra ou parda.
Informação sobre a idade dos suspeitos foi mencionada em 41,5% das notícias
em que se identificam pessoas acusadas ou suspeitas. Essa informação está mais
presente entre os jornais populares (46,3% contra 36%; p.<001). A idade de um
primeiro ou único suspeito foi apontada em 40,1%, apresentando as seguintes faixas
etárias: 0,4% das vítimas têm até 11 anos de idade; 7,5% são adolescentes entre 12
e 17 anos; 12,8% são jovens de 18 a 24 anos; 14,5% são adultos entre 25 e 39 anos;
4,3% entre 40 e 60 anos; e 0,5% são idosos acima de 60 anos.
Em relação a um segundo acusado há menos dados informativos, em 28,1%
das notícias com mais de um acusado constatou-se que predominam as faixas dos
adolescentes (6,6%) e jovens adultos (18 a 30 anos), com 18,7%.
A categoria profissional dos suspeitos é citada 24,8% das matérias. Os jornais
voltados para classes mais elevadas predominam entre os que mais fornecem essas
informações (27,3% versus 22,6%; p<.05). Em relação a categoria profissional do
primeiro ou único suspeito, 11,5% das notícias possuem essa informação, destacando-
se entre eles: policiais militares e civis (na ativa ou afastados), empresários,
comerciantes, desempregados, estudantes estão entre os mais apontados. A existência
de um segundo suspeito foi realçada em 5,6% das notícias pertinentes.
O sexo dos suspeitos é informado em 85,3% das notícias pertinentes, destacando-
se nos jornais populares (87,4% versus 83%; p<.05). Em relação ao primeiro suspeito,
os homens predominam com 80,4%; as mulheres somam 4,7% e a não informação
é de 14,8%. Dados sobre o sexo de um segundo suspeito reiteram a predominância
masculina (71,6%).

Temas apresentados nas matérias


Alguns pontos referentes à atividade policial foram destacados pelos pesquisadores
para serem investigados nas notícias analisadas e podem ser observados na tabela 17.
Vale apontar o reduzidíssimo percentual (4,7%) de informação sobre um tema tão
relevante como as questões gerais de segurança pública, essencial ao questionamento
e aprofundamento da questão entre a população. Os jornais voltados para as classes
mais abastadas se preocupam um pouco mais com esse tema (6,7%) do que os

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 37


populares (3,6%; p<.001). Vale apontar os dois jornais de Vitória pelo maior número
desse questionamento (entre 9% e 10% das notícias), opondo-se a O Povo que não
tem material a respeito.
Crimes ou denúncias cometido pela polícia ou contra ela ocuparam cerca de 5%
das matérias, temas também mais apontados pelos jornais voltados para as classes altas
(p<.001). O Globo destaca-se de todos os demais por apresentar mais notícias sobre
crimes cometidos pela força policial ou contra ela (15% e 12,1%, respectivamente).

Tabela 17
Temas específicos das categorias policiais destacados nas matérias

TEMÁTICAS (N=2848) N %
Crime ou denúncia cometido pelas forças 157 5,5
Questões gerais de segurança pública 133 4,7
Crime ou denúncia contra as forças 127 4,5
Outros 41 1,4
Treinamento/qualificação de pessoal 35 1,2
Aumento de contingente 26 0,9
Processo de admissão/concursos 11 0,4
Questões de saúde do policial 9 0,3
Atividades lucrativas extras 2 0,1

Outros temas apresentados são o aparelhamento da guarda municipal, apuração


da denúncia pela corregedoria, más condições de trabalho, comércio de armas pela
policia, condições de trabalho, falta de investigação e policiamento, infra-estrutura
de trabalho, instalações precárias, operação nos morros, organização das policias,
planejamento estratégico da policia, recolhimento de armas, reforma de instalações
policiais, superlotação de carceragem e troca de comando policial.
Os tipos de crimes ou denúncias cometidos pelos policiais podem ser vistos na
tabela 18. Percebe-se que predominam os homicídios, seguidos pela corrupção e lesão
corporal/maus-tratos. O envolvimento com tráfico está presente em apenas 0,7% das
notícias. Os cometimentos de homicídios e a corrupção policial ocupam mais destaque
nos jornais voltados para o público de maior poder aquisitivo (p<.005), especialmente
destacado na Folha de São Paulo.

Tabela 18
Tipos de crimes ou denúncias cometidos por policiais destacados nas matérias

TIPOS (N=2843) N %
Homicídio 91 3,2
Corrupção 48 1,7
Lesão corporal/maus-tratos 47 1,6
Envolvimento com tráfico 14 0,5
Tortura 12 0,4
Humilhação/abuso de poder 8 0,3
Desvio de armas 8 0,3
Outros 48 1,7

38 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Outros crimes/denúncias cometidos por policiais são: seqüestro, facilitação
de fuga, tentativa de homicídio, roubo, atentado, formação de quadrilha, ameaças,
ataque a ônibus e contra instalações da polícia, bala perdida, disparo de arma de fogo
em via pública, briga, chacina, rebelião, depredação, desvio de conduta, consumo de
drogas, envolvimento com atividade ilegal, estacionamento irregular, excesso de força,
extorsão, facilitação de fuga e de laudo, falta ao trabalho, fraude processual, grupo de
extermínio, motim, porte ilegal de armas e serviços privados.
Dentre os crimes/denúncias contra as forças, destacam-se as mortes de policiais
em serviço ou fora dele (tabela 19), também mais comentado pelos jornais de maior
custo (2,6% versus 1,3%; p<.05).

Tabela 19
Tipos de crimes ou denúncias cometidos contra policiais destacados nas matérias

TEMÁTICAS DAS MATÉRIAS (N=2848) N %


Morte de policial em serviço 50 1,8
Morte de policial fora de serviço 32 1,1
Atentado /invasão contra instalaçõs da polícia 35 1,2
Roubo de arma/equipamento 12 0,4
Outro 43 1,5

Outros tipos de crimes ou denúncias relatados são: atentados contra policiais,


lesão corporal/agressões, ferimentos à bala, tentativas de assalto e de homicídio,
ameaças, roubos à casa e ao policial, manifestação contra policiais militares, refém e
troca de tiros.
É muito baixo o percentual de Leis mencionadas nas matérias policiais, como se
pode verificar na tabela 20. Outras leis mencionadas são o Estatuto do desarmamento
e da Polícia Militar, Código de Trânsito, leis sobre crimes contra a fauna, estatuto
militar, contravenção penal, crimes ambientais, eleitoral, dentre outras.

Tabela 20
Leis mencionadas nas matérias policiais

LEIS (N=2848) N %
Código Penal 23 0,8
Estatuto da Criança e do Adolescente 15 0,5
Constituição Federal 10 0,4
Lei de Execuções Penais 2 0,1
Declaração Internacional dos Direitos Humanos - -
Outras 38 1,3

Teor da matéria em relação ao policial e às corporações


O teor das matérias sobre os policiais, apresentado na tabela 21, mostra a
concentração de notícias factuais (84,2%). Aspectos negativos foram abordados em
14,2% das notícias, com maior destaque entre os jornais direcionados para camadas

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 39


mais elevadas (15% versus 6,4%; p<.001). O Globo destaca-se de todos os demais
jornais: 20,1% de considerações negativas, seguida pela Folha de São Paulo com
16,3%; no extremo oposto estão A Tribuna (5,6%) e O Povo (5,8%). Atributos positivos
mostraram-se presentes em apenas 1,6%.

Tabela 21
Nível de aprofundamento das matérias em relação aos policiais

APROFUNDAMENTO (N=1900) N %
Factual 1600 84,2
Negativo 269 14,2
Positivo 31 1,6

Observando-se apenas os atributos positivos e negativos segundo o tipo de


inserção do policial, tem-se que as frases e expressões citadas nas matérias voltam-se
principalmente para retratar o policial militar (tabela 22), seguido de forma distinta
pelos policiais civis.

Tabela 22
Atributos positivos e negativos segundo inserção dos policiais nas corporações

Positivo* Negativo*
Policial
N % N %
Militar 23 69,7 196 63,6
Civil 8 24,2 62 20,1
Guarda Municipal - - 14 4,6
Federal 2 6,1 19 6,2
Técnico - - 4 1,3
Rodoviário - - 13 4,2
*Há notícias que falam sobre mais de uma polícia

As matérias que falam sobre as corporações também são, em sua maioria, factuais
(91,2%), especialmente entre os jornais populares (85,9% versus 71,6%; p<.001).
Os jornais voltados para as camadas elevadas apresentam mais atributos negativos
e positivos, especialmente Folha de São Paulo, A Gazeta e Diário de Pernambuco.
Atributos positivos e negativos dessas corporações são mencionados em muito poucas
matérias (tabela 23).

Tabela 23
Nível de aprofundamento das matérias em relação às corporações

APROFUNDAMENTO (N=2.526) N %
Factual 2.304 91,2
Negativo 134 5,3
Positivo 88 3,5

40 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Observando-se de forma isolada os atributos positivos e negativos, tem-se o
mesmo quadro relatado para os policiais. Sobressai a corporação militar, seguida pela
civil (tabela 24).

Tabela 24
Atributos positivos e negativos segundo corporação

Positivo* Negativo*
Policial
N % N %
Polícia Militar 48 46,6 98 61,6
Policia Civil 31 30,1 42 26,4
Guarda Municipal 4 3,9 5 3,1
Policia Federal 17 16,5 5 3,1
Polícia Técnica 2 1,9 4 2,5
Polícia Rodoviária 1 1,0 5 3,1
* Há notícias que falam sobre mais de uma polícia.

Em relação às idéias que as matérias apresentam sobre a ação policial podem ser
visualizadas na tabela 25. Como se pode perceber, a maioria das notícias passa a visão
de ação legalmente desencadeada pelas forças policiais (88,8%), seguido pela idéia de
ação ilegal em 7,9%.

Tabela 25
Idéias sobre as ações policiais presentes nas matérias

IDÉIAS (N=2851) N %
Ação legal 2531 88,8
Ação ilegal 224 7,9
Organização e estratégias do exercício da profissão 208 7,3
Outras 50 1,8

Os jornais populares predominam entre os que avaliam as ações como legais


(91,7%, contra 83,6%; p<.001). O inverso ocorre quanto as ações ilegais, que
predominam nos jornais dirigidos aos estratos sociais mais elevados (11,8% contra
5,7% nos populares; p<.001). Também matérias sobre a organização e de exercício
da profissão são mais presentes nos jornais voltados ao público de estratos médios e
altos (p<.001)
Outras idéias presentes que refletem sobre as ações policiais são: ações prejudicadas
pelas precárias condições da instituição e de trabalho, necessidade de aproximação
com a sociedade, ataques e atentados contra policiais, atuação do poder executivo,
eficiência policial, falta de ação, falta de infra-estrutura, falta de investigação, falta de
policiamento, falta de credibilidade, falta ou demora na ação; precariedade, indignação
perante as mortes de PMs, ineficiência policial, insuficiência de atuação, integração
policia/sociedade, integração com a sociedade, más condições de trabalho, morte de
PM, morte de policiais, morte de policial, não cumprimento de prazos, necessidade da

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 41


ausência dos PMs, negligência policial, policiamento insuficiente, posse em cargo do
executivo, precariedade no atendimento.

Abordagem dos diferentes jornais quanto aos aspectos positivos e negativos


atribuídos aos policiais e às corporações
A análise de conteúdo do corpus dos textos jornalísticos aqui apresentados refere-
se a todas as 480 matérias publicadas nos meses de outubro e novembro, classificadas
como negativas (365) e positivas (115).
Para compreender o significado dessas representações negativas e positivas a
respeito das ações policiais, incluiu-se tanto o sujeito policial quanto às corporações.
Buscou-se compreender, sob a perspectiva das teorias da comunicação, como essas
notícias passam de meras transmissoras de informações, para tornarem-se também
produtoras de sentidos sobre a instituição policial, seus operadores e a questão da
segurança pública.
No conjunto analisado, observa-se que dentre os aspectos negativos e positivos
há uma clara tendência de todos os jornais em destacar os aspectos negativos
das ações policiais, conforme mostraram os dados acima. Diversas ações ilícitas e
violentas são divulgadas, a partir de fontes como a própria polícia, informações de
vítimas, testemunhas e da investigação jornalística. Essas visões configuram uma
imagem das corporações policiais e seus operadores como instâncias do serviço
público extremamente vulneráveis a julgamentos depreciativos por parte da população
em geral. As principais representações negativas da ação policial dizem respeito:
envolvimento da policia com o tráfico de drogas; falta de policiamento/falta de
segurança da população; homicídios cometidos por policiais; maus-tratos físicos contra
suspeitos/acusados/criminosos ou qualquer pessoa; corrupção policial/envolvimento
com outros crimes; efetivo insuficiente; violência em geral (discriminações, ameaças,
abordagem violenta, abusos da polícia em geral); despreparo dos policiais; omissão da
polícia; mal funcionamento/mal atendimento da polícia; desmoralização da polícia.
As raríssimas representações positivas às ações policiais podem ser apreendidas
através dos destaques aos aspectos institucionais das corporações que visam sua
melhoria. Entretanto, muitas dessas menções não vêm acompanhadas de um contexto
explicativo mais detalhado de políticas de segurança pública, de modo a proporcionar
ao leitor informações importantes para a formação de sua opinião. São esses os
aspectos positivos mais destacados pelos jornais: dicas de segurança da PM; ação
cooperativa; ação eficaz; investimento em segurança; implementação de reformas;
outras ações da polícia; melhoria do atendimento; co-responsabilidade nas ações
policiais; investimento em qualificação/capacitação; moralização da polícia.
A maioria das matérias da Folha de São Paulo, direcionado às camadas mais
elevadas, é de reportagens informativas, com citação das fontes e detalhamentos dos
passos das investigações, citando com freqüência eventos ocorridos em outros estados
brasileiros. As matérias destacam mais o envolvimento da polícia com o tráfico de
drogas, os homicídios e outros crimes cometidos por policiais e a corrupção policial.
Sua linguagem, aparentemente neutra, difere da adotada pelo Diário de São Paulo,
mais popular, que utiliza termos tais como “comparsas”, para retratar a conivência
de policiais com a criminalidade, proporcionando ao público leitor uma leitura

42 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
“policialesca”. O tipo de cobertura das ações negativas das polícias destaca a violência
policial em geral, os homicídios cometidos por policiais, as prisões e os acontecimentos
cotidianos das cidades paulistas.
Entre os jornais do Rio de Janeiro, O Globo, mais voltado para as camadas
médias, e altas, divulga muitos detalhes técnicos das operações policiais nacionais. Há
uma cobertura focada nos andamentos judiciais, dando destaque aos grandes eventos
que têm repercussão internacional como, por exemplo, as chacinas e a participação
da PM nesses crimes. As grandes investigações conduzidas pela Polícia Federal
também são enfocadas, propiciando uma leitura globalizada. Evidentemente, como
um dos maiores grupos empresariais que contam com vários veículos de comunicação
e com ampla cobertura, atinge a uma parcela significativa de leitores cujo perfil se
caracteriza por serem consumidores de informações que atendem majoritariamente a
seus interesses. O jornal O Povo, essencialmente voltado para camadas mais pobres, é
bastante popular na cidade do Rio de Janeiro e reconhecido por seu público, apesar do
número de exemplares ser bem menor que os demais jornais. Suas matérias referem-se
aos acontecimentos mais ordinários da vida cotidiana, e duas de suas principais fontes
são as vozes da população e a própria polícia. O gênero jornalístico caracterizado
pela reportagem policial, explora também imagens de crimes e vítimas e suspeitos/
acusados/criminosos expostos cruamente nas páginas do jornal. Os tipos de aspectos
negativos das ações policiais mais destacados pelo O Povo são os homicídios cometidos
por policiais, violência policial em geral, corrupção policial, maus-tratos físicos contra
suspeitos/acusados e criminosos.
O Diário de Pernambuco, direcionado às camadas elevadas, dá destaques aos
acontecimentos do Estado e da grande região metropolitana, mas também cita bastante
os acontecimentos violentos de outros estados brasileiros, principalmente da Região
Sudeste e do Distrito Federal. A relevância dos aspectos negativos das ações policiais
no Diário de Pernambuco é, eventualmente, articulada à possibilidades de resolução
de alguns problemas e monitoramento da atuação violenta ou ineficaz das polícias.
Esse fato pode ser exemplificado pelo espaço dado às reivindicações da população por
políticas de segurança mais eficazes e a questão da violência no contexto dos direitos
humanos. Nesse contexto destacam-se os homicídios e outras violências praticadas
por policiais, maus-tratos físicos contra suspeitos/acusados/criminosos e população
em geral. A Folha de Pernambuco pode ser caracterizada como um jornal popular que
trata a questão da violência de forma extremamente sensacionalista (“Chove bala na
comunidade do Coque”) e expõe os atores da violência em fotos espetacularizadas, como
cadáveres com os corpos deteriorados e pessoas detidas como supostos criminosos.
Sua cobertura sobre as ações policiais explora subliminarmente a ineficácia da polícia,
contrapondo-a com a quantidade de notícias sobre assassinatos. A voz da população
é uma das fontes de informação do jornal, destacando denúncias contra os abusos e
violências das polícias. Depreende-se da narrativa da notícia que a cobertura in loco
das ações policiais e dos crimes são características marcantes do jornal, assim como a
divulgação de detalhes específicos da violência colhidos nas delegacias, como o lugar
exato de partes de corpos feridos.
Entre os jornais do Espírito Santo, A Gazeta atende a um perfil mais elitizado,
tendo como uma das suas principais fontes de informação a própria população que
se manifesta durante a cobertura das matérias nos locais de ocorrência dos eventos.

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 43


As informações são complementadas com boxes e entrevistas com a população e
caracteriza-se por ter um perfil mais informativo. Os aspectos negativos mais enfatizados
pela A Gazeta no período foram: falta de policiamento e falta de segurança, omissão da
polícia, mau atendimento e mau funcionamento da polícia e uma visão desmoralizante
da polícia. A Tribuna, com perfil mais popular, destaca-se dos demais jornais por
ser um periódico que se dedica a cobrir as notícias sobre as ações policiais visando
fornecer vários pontos de vista dessas ações. Sua cobertura jornalística caracteriza-se
sobretudo pelo uso de diversas fontes de informação, uso da voz direta da população
e de demais atores envolvidos nos eventos, e posicionamento mais direto em relação à
atuação negativa das polícias. Os aspectos negativos mais representados na A Tribuna
no período foram: corrupção policial, falta de policiamento e falta de segurança refletida
na fala da população, maus-tratos físicos contra suspeitos/acusados e criminosos e
população em geral, omissão da polícia. Sua narrativa é rica em detalhes, porém, sem
banalizá-los, e apresenta um contexto mais aprofundado dessas ações, discutindo as
causas e apontando as soluções propostas tanto pelos envolvidos quanto a partir do
lugar de fala do próprio jornal.

Imagens negativas apresentadas nos jornais


Em síntese, as representações negativas das ações policiais, presentes nos oito
jornais nos meses de outubro e novembro, indicam que há uma visão desfavorável à
imagem dos policiais e suas corporações.
A representação dos homicídios cometidos por policiais nos jornais, possivelmente
é o aspecto que cria o maior efeito negativo sobre as ações policiais. Destacam-se a
ilegalidade, a truculência, a crueldade e a impunidade dessas ações, antevendo o forte
posicionamento dos jornais em relação a esses crimes cometidos por alguns policiais
e algumas corporações que legitimam esses atos. Há uma idéia recorrente nos jornais
de que há uma permissão para matar e de que os responsáveis por esse tipo de crime
são de alguma forma acobertados, perpetuando essa prática que tanto é repudiada por
uma parte da população mais vitimizada, quanto é aceita por outra que abona a idéia
de execução.

“... quando um assaltante foi executado por um policial, anos atrás, em frente a
um shopping da cidade, muita gente aplaudiu” (O Globo, 18/11/2004).
“A violência policial é utilizada como política de segurança n Estado do Rio.
Toda vez que ocorrem mortes em confrontos com a polícia, as autoridades
comemoram e, em vez de punidos, os acusados são promovidos” (A Gazeta,
22/10/2004.

De certa maneira, todos os jornais convergem em suas visões sobre esse tipo de
crime, tratado pela imprensa como hediondo. Como revelam algumas narrativas:

“Arquivo morto – 72% dos casos de mortes de civis por policiais militares são
arquivados a pedido do Ministério Público (...) o encerramento do caso, antes
mesmo de virar processo, está longe de ser uma exceção na Justiça de São
Paulo” (Folha de São Paulo, 29/11/2004)

44 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
“Mais uma vez o BOPE está sob suspeita” (O Povo, 11/11/2004)
“A promotora (...) disse que o deputado do Rio (...) teria se reunido com ex-
policiais para formar um grupo de extermínio” (O Globo, 12/11/2004).

No mês de outubro destaca-se uma reportagem especial que ocupou um grande


número de páginas que tratava especificamente de crimes cometidos por policiais.
Com o título “De espancamento a assassinato”, a reportagem denuncia a participação
desses profissionais em crimes como tortura, participação em grupos de extermínio e
espancamentos que levaram a morte.

“Ao invés de serem encaminhados à Diretoria de Polícia da Criança e do Adolescente


(DPCA) os suspeitos foram espancados e um deles, (...) morreu.” (Folha de
Pernambuco, 31/10/2004)

Os jornais dão também destaque ao questionamento acerca dos autos de


resistência, que muitas vezes acabam por legitimar assassinatos e dificultar a punição
dos policiais criminosos.

“... as autoridades da área de segurança se valem dos autos de resistência


para mascarar os assassinatos cometidos por policiais.” (Folha de São Paulo
22/10/2004)
“ A chacina chegou a ser registrada por policiais como autos de resistência
(Folha de São Paulo 29/10/2004)

Uma outra representação negativa diz respeito à corrupção policial, que se dá


através do envolvimento de alguns policiais com diversos tipos de crime. O destaque
a esse tipo de crime encontra uma ressonância na população em geral, e mais
especificamente, nas classes assalariadas e no contingente de trabalhadores informais
que vivem de seu trabalho. A reconstrução desse tipo crime nas narrativas jornalísticas,
em especial, a dos jornais populares, ganha cores fortes e atributos lingüísticos
negativos e irônicos empregados em algumas matérias:

“Na residência de um policial rodoviário federal (...) a polícia apreendeu dois


carros, sendo um importado (uma BMW), duas motos, sendo uma Suzuki
e uma Harley Davidson, além de 600 munições calibre ponto 40” (O Povo,
9/11/2004)
“A Polícia Rodoviária Federal que apoiou o trabalho da PF, teve que cortar
a própria carne: agentes da instituição estavam envolvidos com esquema de
corrupção e adulteração de combustíveis, entre eles o ex-superintendente...”
(O Povo, 9/11/2004)
“O traficante confidenciou aos amigos de crime que tomara a decisão porque
vinha sendo pressionado e perseguido pela chamada banda podre da polícia, um
grupo formado por policiais corruptos...” (Diário de São Paulo, 14/10/2004)

A ênfase às formas de corrupção assume um contorno de denuncia dos crimes


vivenciados cotidianamente por certos extratos mais baixos da população que, de

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 45


certo modo, vêem nesta denuncia uma forma de justiça frente a essas e outros tipos
de corrupção por parte das instituições públicas.
Principalmente, em um episódio de grande repercussão relativo a uma grande
operação policial, os jornais marcaram também a preocupação da própria polícia,
em suas investigações, com o envolvimento de policiais corruptos. Essa preocupação
concretizava-se sobretudo pelo cuidado em evitar o “vazamento de informações” que
poderia vir a impedir certas operações.

“Apenas poucos policiais foram mobilizados porque tínhamos medo de que


as informações vazassem, já que investigações apontavam que Gangan tinha
proteção de policiais”. (Diário de São Paulo, 14/10/2004)
“Nada a estranhar: o mesmo ocorre nas PMs e na Polícia Federal. Mas esse caso
chama atenção para o ponto a que chegou a infiltração do crime no poder público.
Ata a polícia precisa ter cuidado com a polícia.” (O Globo, 15/10/2004)

É destacada a prisão de policiais acusados de crimes, assim como sua


transferência de instituições militares para presídios comuns, o que ocasiona conflitos
e reivindicações dos mesmos, chamando atenção da imprensa que dá considerável
destaque à problemática.

“PMs presos no Ponto Zero, em Benfica, reclamam supostos direitos, alegando


que não são bandidos, mas agiram exatamente como criminosos ao esconder
os rostos.” (O Globo 29/10/2004)

Os maus-tratos físicos contra suspeitos/acusados/criminosos e população em


geral, é uma forma negativa da atuação policial representada nos jornais. Essa forma
se caracteriza pelo tratamento agressivo das polícias dispensado a alguns grupos
sociais mais empobrecidos ou discriminados socialmente. Alguns jornais populares
constroem suas narrativas dando voz direta a esses grupos que sofrem esses maus-
tratos “os outros PMs já chegaram batendo em minha amigas. Eu só levei um jato de
spray de pimenta no rosto” (Diário de São Paulo, 29/11/2004). As agressões praticadas
por policiais e narradas pelos jornais, produz um efeito de sentido no campo afetivo-
emocional, pois combinada com outras formas de humilhações que determinados
grupos sociais sofrem, colocam os operadores das polícias em um posição de
“carrascos” da população. Alguns trechos das narrativas refletem essa construção:

“Depois que o marginal já estava rendido, os policiais o agrediram na frente


de toda imprensa que estava no local para realizar outra reportagem” (O Povo,
15/11/2004).

Os maus-tratos praticados pelas corporações policiais são destacados pelas


notícias como um modo de funcionamento usual na abordagem de supostos suspeitos.
A freqüência desse relato aparece também na abordagem à adolescentes, o que,
por vezes, acarreta em morte e/ou graves seqüelas. A tortura, como modo de obter
informações ou até mesmo forjar “confissões”, é retratada também como um modo de
funcionamento naturalizado.

46 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
“Foi a segunda vez que apanhei. Na primeira, minha mãe presenciou parte do
espancamento... Eles achavam que a gente tinha roubado alguém” (Folha de
Pernambuco 31/10/2004)
“...ele negou tudo que disse nos depoimentos anteriores alegando que foi
ameaçado, torturado e sofreu coação por parte de policiais civis para confessar.”
(A Gazeta 20/10/2004)

Outra forma de crítica negativa percebe-se quanto ao envolvimento da polícia com o


tráfico de drogas, que coloca em jogo questões morais, éticas e institucionais relacionadas
à atuação das corporações. Entretanto, esse envolvimento diz respeito à atuação de
alguns policiais, mas pela freqüência com que esses atos são destacados na imprensa
escrita, essas representações acabam por produzir um efeito negativo generalizado sobre
as corporações na sociedade. A estreita ligação que os policiais envolvidos nesse tipo
de crime estabelecem com as pessoas envolvidas no tráfico de drogas é sublinhada nas
narrativas dos jornais, principalmente relacionadas à utilização do cargo de policial para
facilitar a libertação de presos, fornecer ilegalmente armas etc.
Em relação à falta de policiamento e a falta de segurança, os jornais privilegiam
a fala da população na voz direta, deixando entrever o sentimento de insegurança
generalizado que atinge os moradores dos grandes centros urbanos. A forma como
algumas narrativas são construídas enfatizam a má atuação da polícia nesse quesito,
não construindo parcerias com a população e obrigando-a a recorrer aos serviços
de segurança privada. Os jornais também destacam a ambigüidade que permeia o
sentimento da população, quando requer maior repressão à criminalidade, mas não
acredita na capacidade das polícias de fornecer segurança pública. Como destacam
algumas narrativas em voz direta e indireta dos jornais:

“Segurança nota zero” (Folha de Pernambuco, 27/11/2004)


“À mercê da bandidagem” (Folha de Pernambuco, 27/11/2004)
“Entregues a vontade dos bandidos” (O Povo, 20/11/2004)
“Eles (a polícia) sempre chegam depois” (O Povo, 20/11/2004)

A falta de policiamento que gera a insegurança da população é articulada em


algumas matérias à insuficiência de efetivo, porém essa questão não é problematizada.
Os assaltos e arrombamentos de lojas e casas particulares nos bairros com
policiamento deficiente são destacados, o que ocorre principalmente à noite, quando
tal insuficiência se agrava. Nas datas comemorativas e no verão, quando algumas
cidades recebem turistas, o policiamento é reforçado e a população destaca o desejo
de que permaneça dessa forma todo o ano.

“Só no carnaval é que temos policiamento. A radiopatrulha Só passa de vez em


quando”.(A Tribuna, 31/10/2004)

Uma forma de representação negativa das ações policiais bastante recorrente


refere-se à violência em geral, materializada nas discriminações raciais, sexuais, sociais,
nas ameaças, nas abordagens arbitrárias e violentas e nos abusos policiais. Algumas
narrativas relatam o risco que as populações que vivem em comunidades pobres estão

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 47


constantemente sujeitas quando ocorrem confrontos da polícia com a criminalidade.
É comum nas entrevistas com a população enfatizar a violência com que a polícia
entra nessas comunidades. Essa forma de violência vem ganhando destaque inclusive
nos jornais dirigidos aos estratos mais elevados, por ter uma visibilidade grande no
âmbito da defesa dos direitos humanos.
Outras formas desrespeitosas de tratamento da população também são
sublinhadas pelos jornais, principalmente quando são testemunhadas por organismos
não governamentais presentes hoje em várias favelas e comunidades pobres. Ainda
que não articulados explicitamente ao discurso dos direitos humanos, alguns jornais
dirigidos aos estratos populares constroem suas notícias sobre as incursões policiais e
a atuação de alguns policiais como representativas de uma ação ilegal das polícias. A
Tribuna destaca-se na representação dessas formas de violência, criticando os abusos
policiais e posicionando-se claramente em relação à ilegalidade dessas ações e através
da voz da população: “os policiais estão urinando e defecando lá (no local de visita
íntima de um presídio). Isso é um desrespeito” (...) “os policiais falam que bandido
tem que sofrer mesmo” (A Tribuna, 24/11/2004).
Entre a população mais vitimizada pela violência policial se destacam também os
vendedores ambulantes que trabalham principalmente nas ruas das grandes cidades e
que, muitas vezes, são vítimas da arbitrariedade da ação de certos policiais.

“Mais uma vez camelôs pegos pela GCM foram agredidos e detidos.” (Diário de
São Paulo, 19/10/2004)

As matérias destacam ainda a dificuldade de punição dos agressores, ilustrada


claramente no trecho:

“... a punição para os que agem de forma truculenta é difícil devido à legislação.
Além de ser complicado provar, pois em vários casos é a palavra da vítima
contra a dos policiais, denuncia de espancamento sempre dá apenas Termo
Circunstanciado de Ocorrência.” (Folha de Pernambuco, 31/10/2004)

Uma outra imagem negativa representada na mídia escrita se refere ao despreparo


da polícia, vinculada algumas vezes a uma desmoralização das ações policiais. Os
aspectos ressaltados são ações mal sucedidas que resultaram em morte ou insucesso das
operações policiais. O despreparo também é vinculado à frágil resistência psicológica
dos policiais frente a situações de conflitos, onde se deixam levar pelo emocional e
não pelo racional:

“Ao perceber que estava compondo a foto o PM desrespeitou o profissional e


com o dedo em riste ameaçou tomar a câmera fotográfica ‘Você é um bobão, um
babaca, um otário, um palhaço’, gritava descontrolado o sargento (...) diante
de vários colegas de farda que chegavam em auxílio” (O Povo, 12/11/2004).

Este despreparo psicológico aparece também atrelado ao despreparo técnico dos


profissionais:
“Um estudo realizado (...) e autorizado pelo comando geral da polícia

48 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
militar sobre os crimes militares no pós 88, revela que o despreparo técnico
profissional, as condições adversas de trabalho, estresse, a desestrutura familiar
e as relações dentro da corporação são dos motivos mais freqüentes (para os
crimes militares).”(Folha de Pernambuco 31/10/2004)

Há em algumas matérias um forte componente de linguagem que abalam a


competência das polícias:

“Depois de seguir 16 linhas de investigação, a polícia do Rio apostou suas


frágeis fichas no ex-caseiro...”(O Globo, 21/11/2004)
“Quase um ano depois o crime continua impune. Inconformada com os rumos
das investigações, a família do casal contratou um detetive particular.(...)
O especialista criticou o trabalho da polícia: o crime foi muito mal investigado”
(O Globo, 21/11/2004)

A desmoralização articulada aos despreparos dos policiais reflete-se no trecho


seguinte:

“Polícia confunde britadeira com fuzil e fere operário.” (O Povo, 10/10/2004)

Os atos de omissão da polícia são outras representações negativas das ações


policiais. As narrativas que destacam essas ações enfatizam a ausência ou negligência
de policiais em serviço

“O policial fugiu após o tiro” (Diário de Pernambuco, 4/11/2004)


“Pela porta da frente. Foi assim que o acusado (...) fugiu do DPJ (...) nenhum
dos sete policiais de plantão no local afirmou ter percebido a ação), a alegação
de que não está em sua área de atuação” (A Tribuna, 12/11/2004)
“PMs também passaram mas não prestaram socorro, alegando que se tratava de
área federal.” (O Globo, 24/11/2004)

Além disso, negar o atendimento e socorro, além de omitir-se perante o desenrolar


de um delito são aspectos bastante negativos que perpassas algumas matérias:

“outros vizinhos do adolescente afirmaram que a vítima pediu socorro por alguns
minutos e os PMs se negaram a atende-lo” (Folha de Pernambuco, 4/11/2004).
“Os presidiários fizeram um túnel da cela 11 – o local sai no pátio do DPJ. No
momento da fuga havia dois policiais de plantão.” (A Tribuna, 25/10/2004)
“Logo que me identifiquei, percebi que eram truculentos. Um deles perguntou
o que deveriam fazer e, quando expliquei a situação, ele disse que aquilo
(prostituição infantil) era um fato corriqueiro e que eu deveria deixar as crianças
se divertirem.”(Folha de Pernambuco, 14/10/2004)

O mal atendimento e o mal funcionamento das polícias são destacados em


algumas matérias, reforçando a imagem negativa das mesmas e respaldada no aumento
das denúncias que chegam às Ouvidorias de Polícia. As investigações policiais são

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 49


objeto de críticas nos jornais (“magistrado aconselhou a polícia investigar melhor”
– O Globo, 4/11/2004), (“é preciso que o serviço de inteligência da polícia descubra
quem está causando toda essa confusão” – A Gazeta, 23/11/2004). O desaparelhamento
das polícias e os erros administrativos são citados como aspectos negativos que
indicam o mal funcionamento das polícias. As perícias também são criticadas por
estarem em “estado caótico” (O Globo, 1º/11/2004) e por emissão de falsos laudos ou
pela produção desnecessária de laudos que são ridicularizados pela mídia:

“Laudo da morte de um pombo: ‘para uma estrutura de segurança pública


que tem muito mais o que fazer, pode-se dizer que é burocracia demais para
se iniciar uma tentativa decifrar o mistério de um pombo morto numa praia
deserta’” (O Globo, 24/11/2004).

Há a presença direta de falas dos próprios policiais a respeito das más condições
de trabalho, que têm como um de seus principais efeitos o mau funcionamento.

“Para eles (especialistas em segurança pública) é muito preocupante ver que


as pessoas encarregadas da segurança estão reclamando de insegurança (sobre
o uso de equipamentos com prazo de validade expirado ou sua falta, entre ele,
coletes à prova de balas e armas enferrujadas).” (O Globo, 13/10/2004)

Aspectos positivos destacados nas matérias


A pequena proporção de matérias que representam aspectos positivos das
ações policiais 4,03% referem-se a alguns temas como: orientações da polícia sobre
segurança; ação cooperativa das polícias; ação eficaz/investimento em segurança;
reorganização das polícias; melhoria do atendimento; co-responsabilidade nas ações
policiais; investimento em qualificação/capacitação; outras ações da polícia.
Em relação à divulgação de orientações da polícia sobre segurança, considera-se
que essa é uma forma positiva dos jornais representarem as ações policias. Esse aspecto
foi verificado no jornal A Tribuna que divulga em algumas de suas reportagens um
quadro com as instruções da Polícia Militar sobre segurança, dirigida à população em
geral. Há também o registro de ações das polícias com as comunidades, como rondas
escolares e eventos com as escolas das comunidades, a fim de que atuem juntas.
No que se refere à representação de ações cooperativas das polícias, foram
abordados temas como: a criação de parcerias entre o Instituto Médico Legal e os
hospitais de Recife para a melhoria e rapidez da produção de laudos; a integração
entre a Polícia Militar e uma comunidade do Rio de Janeiro:

“Tenho o projeto de desenvolver o lado assistencial e social dos nossos policiais.


Vamos promover eventos para a terceira idade e, principalmente, para as
crianças. O Batalhão também tem um papel importante na revitalização da
região” (O Povo, 22/11/2004).

Destacam-se, também, a realização de seminários e encontros das polícias com

50 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
as associações de comerciantes e de moradores dos bairros atingidos por problemas
como furtos e roubos, a fim de organizar as reivindicações e orientar ações.

“O bairro Praia do Canto, também em Vitória, porém, saiu na frente e já constata


os resultados de uma parceria firmada entre a Associação Comercial e a Polícia
Militar.”(A Gazeta, 14/10/2004)

A cooperação entre as polícias de diferentes estados, como Rio de Janeiro e


Espírito Santo, é destacada como gerando sucesso em operações, como a atuação em
caso de seqüestro.
Os jornais abordaram também a ação eficaz/investimento em segurança das
polícias. As matérias consideraram eficazes as ações com planejamento, em tempo
hábil e não violentas, dando grande destaque às operações onde não se fez uso da
arma de fogo:

“Se a polícia não tivesse agido rapidamente, teria sido um massacre” (Folha de
São Paulo, 23/11/2004).
“Uma hora depois, sem que fosse necessário sequer um tiro, 14 traficantes
armados com fuzis e munição suficientes para sustentar um longo tiroteio
estavam dominados, algemados e de partida para a cadeia na caçamba dos
carros da PF (...) Era o fim de uma operação que começou a ser planejada seis
meses antes no setor de inteligência...” (O Globo, 7/11/2004)
“Policiais do 5º BPM esbanjam bons resultados em serviço (...) Graças à rápida
atuação da polícia...”.(O Povo, 22/11/2004)
“Estamos provando que investimento em segurança pública é fundamental,
quando o dinheiro é aplicado em tecnologia, inteligência e policiais especializados
– afirma o delegado federal...”(O Globo, 7/11/2004)

A rapidez, que gera sucesso, de investigações que se utilizaram, primordialmente,


de ações de inteligência, de parcerias entre delegados, etc, são referidas nas reportagens.
A realização de operações pelas áreas consideradas problemáticas das cidades, quando
mais freqüentes, também é referida como integrando a eficácia das ações da polícia.
Os investimentos em segurança são destacados principalmente no que diz respeito
à implantação de policiais motorizados para combater seqüestros, ao planejamento
estratégico, a criação de disque-denúncias, etc.
Uma outra representação positiva das ações policiais refere-se a reorganização
da instituição policial como ações que são implementadas visando a melhoria desse
atendimento “trocou chefes da divisão, estimulou ações coordenadas. A medida,
aparentemente uma mudança burocrática, desatou os nós internos da estrutura da PF.”
(O Globo, 14/11/2004)
Em relação à melhoria do atendimento, A Tribuna destaca a presença de
policiamento nas ruas, garantindo maior segurança e reduzindo o número de
ocorrências policiais. Esse mesmo jornal dá grande destaque ao aumento da presença
feminina na polícia, que é tida como positiva em vários aspectos, principalmente no
que tange ao atendimento.
“Desde então, o papel da mulher dentro da corporação vem crescendo e tem sido

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 51


de suma importância. Ela, que tinha a sensibilidade anteriormente apontada
como defeito, demonstrou que a sensibilidade é qualidade muito importante
nas mais diversas atividades policiais.”(A Tribuna, 26/10/2004)

É dado destaque à campanha do desarmamento e às resoluções legais que a


envolvem como, por exemplo, a entrega de armas à Polícia Federal. O atendimento
aparece destacado como a implantação do policiamento ciclístico.
Um outro aspecto que representa positivamente as ações policiais refere-se
ao investimento em qualificação e capacitação de seus operadores. A Tribuna, em
18/11/2004, divulga um evento sobre o controle da criminalidade e a atuação das
polícias como parte do Seminário “Polícias, Direito e Segurança Pública em Debate”, do
Centro de Informação e Aperfeiçoamento da PM. A formação dos policiais é destacada,
sobressaindo cursos focados nos Direitos Humanos e o realizado pela SWAT. Outros
cursos, como o ministrado a porteiros, aparecem como capacitando e objetivando um
aumento da segurança em condomínios.

“A grade (do curso do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças) foi


formulada com base nos critérios da Secretaria Nacional de Segurança Pública
(SENASP). ‘Todos os estados se reuniram em Brasília e depois de três meses nossa
programação já estava pronta’, conta o oficial. Assuntos como Direitos Humanos,
noções de Direito e Segurança Pública são mencionadas, junto com mais vinte
disciplinas, em oito meses de aulas.” (Folha de Pernambuco, 31/10/2004)

Outras ações das polícias são representadas nos jornais Diário de São Paulo e
A Tribuna referindo-se à atividade das polícias, nem sempre ligadas à segurança
pública, mas que são realizadas como ajuda no parto e salvamento de suicidas.

“Eles dizem que a grande dificuldade para ajuda-la a dar a luz foi a falta de
material de primeiros socorros no local. ‘Nem luvas recebemos da Prefeitura’.”
(Diário de São Paulo, 7/11/2004).

Além das atividades operacionais, a Polícia Militar, por exemplo, desenvolve


através de seus vários órgãos, uma série de atividades sociais visando o auxilio a
população.
A atuação em auxílio e resgate de moradores de comunidades que, por algum
conflito violento, são impedidas de permanecer em suas casas, é, por vezes, referido
nas reportagens como uma atuação positiva da polícia, já que denota um sentimento
de segurança da comunidade frente à figura do policial.
A co-responsabilidade nas ações policiais são representadas nos jornais através
da divulgação de projetos e programas em parceria com a sociedade. Escolas,
comunidades, parcerias entre as próprias polícias e forças armadas, parcerias das
policias com associação de moradores e comerciantes são alguns dos exemplos citados
na imprensa escrita, em todos os jornais. Essa forma de representação contribui
significativamente para a compreensão das possibilidades de atuação policial que não
se restringem aos atos de repressão.
Como conseqüência de construções positivas nas matérias sobre as atuações das

52 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
policias, uma moralização das mesmas é percebida em alguns trechos de reportagens,
como este:

“Mesmo ganhando um salário indigno, correndo risco de vida e sendo


constantemente alvo de críticas, em alguns momentos policiais militares
conseguem mostrar a população do Rio de Janeiro, que existem profissionais
sérios e dedicados, que honram a farda que vestem.” (O Povo, 22/10/2004)

CONCLUSÕES
É necessário analisar continuamente essas formas de representação na mídia, para
que se tenha uma concepção atualizada das mudanças que se dão tanto no campo
da produção de informação quanto nas próprias polícias. A permanência de um estilo
jornalístico policialesco ainda é freqüente em alguns jornais, deixando de lado a cobertura
mais contextualizada das questões de segurança pública para um jornalismo mais factual.
Alguns jornais atuam de forma mais aprofundada as ações policiais, produzindo uma
representação das polícias e seus operadores de forma analítica e reflexiva. Entretanto,
a representação negativa, embora presente em uma parcela pequena de matérias se
comparadas ao total de matérias factuais, produz um sentido impactante na percepção
da atuação das polícias, conforme alguns estudos já vêm apontando. As manchetes, os
atributos utilizados para qualificar negativamente as ações policiais, o enquadramento
das fotografias são alguns dos elementos que devem ser aprofundados na perspectiva
do discurso e da construção de sentidos sobre essas corporações. O material empírico
analisado, porém, não contemplou um estudo sobre as imagens, mas procurou apreende-
las sob a ótica de produção de textos, ou seja, essas imagens contêm poder de fala e
como tal, também devem ser analisadas em outros estudos.
Dos aspectos positivos apreendidos, ainda verifica-se uma ausência de melhor
qualificação das matérias e uma inexistência de questões que deveriam ser abordadas,
além da baixa freqüência com que essas representações aparecem, em relação ao
complexo tema da segurança pública e das instituições policiais como instituições
prestadoras de serviço à sociedade.
Verifica-se que as imagens construídas pela mídia escrita tendem a criar
estereótipos em relação ao policial e suas corporações, que estão ligados a uma idéia
de irregularidade, brutalidade, truculência e corrupção. Esses estereótipos tomam
proporções simbólicas significativas no imaginário social. Uma grande parcela das
notícias informa sobre as ações legais da polícia. Mas é na narrativa das ações ilegais
que se concentra um poder de disseminação dessa visão negativa, extremamente
rechaçada pela população em geral, principalmente por referir-se a uma instituição
pública e que tem como dever protegê-la.
Por outro lado, policiais e suas corporações também constroem imagens
estereotipadas da mídia em geral, conforme apontaram algumas pesquisas. Essa
imagem negativa da mídia vem contribuindo para uma animosidade entre essas
instituições sociais, não colaborando para um entendimento mais aprofundado de
questões cruciais que envolvem o trabalho da polícia e seu papel na sociedade.
Alguns aspectos, ainda pouco divulgados e disponíveis, hoje, em institutos de

A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais brasileiras | 53


pesquisas como o Instituto São Paulo contra a Violência, em São Paulo, o Centro
de Estudos de Segurança e Cidadania, no Rio de Janeiro, e núcleos acadêmicos em
diversas universidades do Brasil, podem ajudar na compreensão e na problematização
de questões como: melhoria da gestão das organizações policiais; controle das polícias;
integração das ações policiais; o crescimento da segurança privada; o papel das polícias
comunitárias; adoção do plano nacional de segurança pública; condições de trabalho e
saúde dos policiais, incluindo o aparelhamento da polícia técnica, por exemplo.
Em relação ao papel da Secretaria Nacional de Segurança Pública, algumas
recomendações podem ser feitas a partir deste estudo, visando a mudança de enfoque
da relação polícia versus sociedade e mídia.
Promover seminários para jornalistas e editores de jornais de forma a divulgar
pontos importantes que possam complementar as notícias que envolvem ações
policiais, tais como: estatísticas, referências completas ao tipo de corporação envolvida
nas ações, divulgar reformas e implementação de políticas de segurança adotadas
pelas corporações.
Promover seminários com policiais e seus superiores, de todas as corporações,
sobre a percepção dos mesmos em relação a sua imagem nos meios de comunicação
e na sociedade em geral, de forma que possam expor suas opiniões, suas experiências
e propostas, através de grupos de trabalhos.
Promover encontros entre as assessorias de imprensa das corporações policiais
e jornalistas que cobrem eventos envolvendo essas corporações, para que se criem
alguns critérios para a produção da informação, tendo em vista questões éticas do
jornalismo e, principalmente, atendendo o interesse de melhoria da qualidade da
informação e melhoria da segurança para a sociedade.
Discutir com os órgãos de imprensa, sociedade civil organizada, especialistas
e corporações a questão da produção da informação e a construção do medo social
disseminado em relação à violência, de forma a contribuir para a desconstrução de
algumas percepções presentes no imaginário social.
Propiciar debates nacionais, com base em estudos, sobre a contribuição das
representações da mídia sobre as formas de violência e seu impacto na criminalização
das populações empobrecidas, a fim de subsidiar mudanças dessa visão presente na
atuação de algumas mídias e de alguns policiais, e também discutir os critérios das
ações policiais pautadas nessas formas de discriminação.
Promover pesquisas de âmbitos locais e nacionais a fim de aprofundar o
conhecimento sobre os meios de comunicação, políticas de segurança, violência social,
práticas policiais positivas, práticas policiais violentas etc, a fim de ampliar o debate
público sobre essas questões e propiciar a criação de políticas públicas que respondam
às necessidades da sociedade.

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Créditos

Equipe de pesquisadores: Simone Gonçalves de Assis (coordenação), Kathie Njaine


(coordenação), Fernanda Mendes Lages Ribeiro, Queiti Batista Moreira Oliveira, Flávia
de Assis Souza
Organização dos Clippings: Lucimar Câmara Marriel, Fernanda Mendes Lages Ribeiro,
Jacqueline Cardoso da Silva Martins, Fátima Cristina Lopes de Santos, Danúzia da
Rocha de Paula
Codificação: Bruno Njaine de Anchieta Ramos
Digitação: Dayana Monteiro Motta e Luiza Cristina Fernandes Victor
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Apoio técnico-administrativo: Marcelo Silva da Motta, Marcelo da Cunha Pereira,
Jerônimo Rufino dos Santos Júnior
Normatização da Bibliografia: Fátima Cristina Lopes dos Santos

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CÓDIGOS DE DEONTOLOGIA POLICIAL NO BRASIL
E NO CANADÁ: ANÁLISE DOS DOCUMENTOS E DAS
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Maria Stela Grossi Porto


Arthur Trindade Maranhão Costa
Departamento de Sociologia
Universidade de Brasília

INTRODUÇÃO
A relação entre as polícias e a comunidade tem sido objeto de debate nas
sociedades democráticas. As instituições policiais são aquelas organizações destinadas
ao controle social com autorização para utilizar a força, caso necessário (Bayley, 1975).
Nos regimes democráticos, a atividade policial requer um equilíbrio entre o uso da força
e o respeito aos direitos individuais. Assim, podemos afirmar que a especificidade da
atividade policial nos regimes democráticos é a necessidade de limitar e administrar o
uso da força legal, sem abrir mão de suas prerrogativas de controle social.
Nos últimos anos, diversos países têm enfrentado o desafio de limitar e
controlar o uso da força legal. Basicamente, os esforços se concentraram na criação
de mecanismos institucionais de responsabilização e controle da atividade policial.
Entretanto, a qualidade e eficácia desses mecanismos, que visam a inibir a violência
policial, são questões ainda pouco problematizadas tanto no interior das próprias
polícias quanto fora dela, pelos pesquisadores. Além de fatores internos à organização
policial, a análise e a compreensão de tais questões passam, igualmente, pelas relações
entre polícia e sociedade.
Nesse sentido, alguns estudos internacionais buscaram entender os padrões
de relacionamento entre a polícia e a sociedade (Bayley, 1994; Geller e Toch, 1996;
Skolnick e Fyfe,1993; Monjardet, 2003), e dois temas têm sido destacados: as formas
de reforçar os vínculos entre a polícia e a comunidade e a necessidade de controlar a
atividade das polícias. Entretanto, pouco se sabe sobre as diferentes dinâmicas sociais,
políticas e institucionais para a implantação das reformas nas polícias.
No Brasil, a situação não é muito diferente. A partir de 1980, constatou-se o
crescimento dos estudos sobre as polícias, constituindo-se no que Kant de Lima et alii
(2000) denominaram de “sociologia da organização policial contemporânea”. Apesar
dos esforços, pouco se avançou na compreensão dos mecanismos de administração
do uso da força legal, de seus instrumentos de controle e avaliação, bem como das
dificuldades políticas, culturais e institucionais para sua implantação.
Sem uma clara diferenciação entre violência policial e uso da força legal não é
possível estabelecer mecanismos destinados ao controle e supervisão das atividades
policiais. Até que ponto e sob que circunstâncias é legítimo, ou admissível, o uso
da força? Qual é a linha demarcatória entre força legítima e violência policial? Estas
questões têm sido debatidas pela literatura especializada (Klockars 1996; Muniz et alii
1999; Mesquita Neto 1999; Costa 2003a; Costa e Medeiros 2002, Porto 2000, Adorno

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 57
2002). Os estudos destacam que essa linha demarcatória não é fixa. O limite entre
força legítima e violência varia em função da forma como cada sociedade interpreta a
noção de violência e representa a função policial.
Além dos problemas para definir o que é violência policial, há também a
dificuldade de controlar e monitorar a atividade policial. O enorme poder discricionário
de que gozam as polícias está no centro da questão (Walker 1993; Bandeira & Costa
2003). Possivelmente, dentre os agentes estatais, os policiais estão entre aqueles que
possuem maior liberdade para exercer suas funções, tanto em termos do exercício da
autoridade quanto em relação aos controles a que estão submetidos.
Nesse sentido, podemos descrever a atividade policial como um sistema perito,
ou seja, como “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que
organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”
(Giddens 1991:35). Conhecemos muito pouco dos códigos e procedimentos adotados
pelos policiais para o exercício da autoridade que lhes foi delegada. Na maioria dos
casos, torna-se difícil para um leigo avaliar se a conduta policial foi adequada ou
não. Assim, o controle da atividade policial para ter eficácia, deveria levar em conta
os códigos de deontologia e a normas de conduta, uma vez que estas representam a
experiência acumulada pelos policiais.
Os problemas de definição do que vem a ser violência policial e monitoramento
das práticas cotidianas da polícia têm gerado dificuldades para a eficiência de três
dos principais mecanismos de controle da atividade policial existentes: a legislação, o
controle externo e a justiça.
A legislação penal e processual penal é instrumento fundamental de controle da
atividade policial. Isso se deve ao fato de boa parte das ações policiais estarem ligadas
ao controle da criminalidade, sendo as polícias parte direta ou indireta do processo
penal. Nesse campo, o poder legal conferido às polícias varia bastante. Alguns países
introduziram mudanças na legislação penal, processual penal e na jurisprudência
dos tribunais com o objetivo de limitar e controlar a atividade policial. Entretanto, o
efeito dessas decisões tem sido bastante variado, uma vez que não são muito claras
a respeito de como a polícia deveria proceder. Na prática, as mudanças na legislação
penal e processual penal só têm efeitos concretos sobre a conduta policial quando
os departamentos de polícias decidem reformular suas normas internas de condutas
(Skolnick e Fyfe, 1993).
A implantação de órgãos de controle externo da atividade policial é fenômeno
relativamente recente. A partir de 1970, várias polícias passaram a conviver com
mecanismos de controle externo. Apesar da enorme variação quanto a sua estrutura,
uma questão mostra-se presente em todos os casos: Pode o controle externo ser mais
eficaz que o controle interno? Em função das dificuldades de definição da violência
policial e de monitoramento do policiamento, dificilmente o controle externo poderá,
efetivamente, limitar e controlar o uso da força legal. Por outro lado, o controle
externo permite que a noção de força legítima seja interpretada de acordo com os
valores existentes na sociedade. Portanto, podemos afirmar que os controles internos
e externos não se excluem, ao contrário, são complementares (Bayley, 1991 e 1994).
Outro mecanismo de controle da atividade policial existente é o sistema judicial,
desde que seja independente dos outros poderes políticos. Também é importante que o
sistema judicial disponha de instrumentos legais e de condições materiais que tornem

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possível a investigação das denúncias e a punição dos policiais faltosos. Com relação ao
Brasil, vários autores têm apontado a incapacidade da polícia de investigar denúncias
contra policiais e a deficiência da justiça militar de punir os policiais violentos (Costa
2003 e Cano 1997).
Entretanto, estas não são as únicas dificuldades encontradas nos sistemas judiciais
para controlar a atividade policial. Em diversos países, salvo nos casos mais graves,
juizes e tribunais têm encontrado grandes dificuldades para avaliar a adequabilidade
da conduta policial cotidiana. Analisando as mudanças ocorridas no sistema judicial
dos EUA, alguns autores têm apontado as suas deficiências para limitar e controlar o
uso da força legal (Cheh 1996; Chevigny 1995). Neste caso, o problema repousa na
dificuldade de definir, a partir de uma perspectiva externa, o que é violência policial.
Em que circunstâncias é admitido o uso da força e qual a intensidade a ser
empregada? Como mencionado anteriormente, tais questões podem ser respondidas a
partir da própria experiência das polícias. O exercício continuado da atividade policial
possibilita a acumulação de conhecimentos que permitem a análise das situações na
quais a força deve ser empregada, bem como qual a melhor forma de fazê-lo, de
modo a melhor proteger os próprios policiais e os cidadãos. Um número excessivo de
policiais e civis mortos ou feridos indica que estes conhecimentos não estão sendo
corretamente empregados. Esses conhecimentos podem ser incorporados ao trabalho
cotidiano dos policiais.
Para tal, devem ser transformados em códigos de deontologia e normas de
conduta. Isso permite que as condutas individuais sejam avaliadas não só com relação
a sua legalidade, mas também do ponto de vista profissional. Condutas que contrariem
tais códigos e normas podem e devem ser punidas administrativamente, uma vez
que podem ser avaliadas e supervisionadas a partir desses critérios. Os códigos de
deontologia e as normas de conduta policiais são os objetos desta pesquisa.
Nas últimas décadas, vários países criaram códigos de deontologia e normas de
conduta visando aumentar o controle sobre a atividade policial cotidiana. Em todos os
casos, a adoção destes códigos e normas implicou em transformações no treinamento
e na supervisão da atividade policial. Resta saber como a experiência policial pôde ser
transformada em códigos de deontologia e normas de conduta, bem como seus efeitos
sobre o sistema de treinamento e avaliação das polícias. Este é o nosso problema de
pesquisa.
O trabalho desenvolvido foi motivado e financiado pela Secretaria Nacional de
Segurança Pública (SENASP), do Ministério da Justiça.1 Adotamos o método comparado
para estudados os mecanismos internos de controle do uso da força legal existentes
em diferentes polícias. Foram analisados os códigos e manuais em uso na Policia
Militar do Distrito Federal (Brasil) e no Ottawa Police Service (Canadá). Também
foram conduzidas entrevistas como policiais destas duas instituições. Obviamente
este trabalho não pretendeu tomar nenhum sistema policial como um modelo a
ser seguido. A comparação neste caso serviu apenas para esclarecer aspectos ainda
não conhecidos sobre os conteúdos e os processos de implantação dos códigos de

1 Além dos autores participaram desta pesquisa: Pedro de Albuquerque Neto, Rodrigo Figueiredo
Suassuana, Priscila A. Landim de Castro, Rafael A. da Costa Alencar, Marília Barbosa de Barcelos e
Guilherme Almeida Borges.

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 59
deontologia e das normas de conduta, além de verificar especificidades e os aspectos
comuns aos diferentes sistemas policiais dos países em análise.
Inicialmente discutimos a natureza e os tipos de poder discricionário que os policiais
possuem. Em seguida, estudamos algumas das formas mais frequentemente utilizadas
para controlar este poder discricionário. Numa outra seção, analisamos e comparamos os
conteúdos dos códigos e manuais utilizados em Brasília e Ottawa. Depois, comparamos
as representações dos policiais brasileiros e canadenses sobre a natureza da atividade
policial e as formas de controlá-la. Ao invés de apresentarmos uma conclusão, optamos
por relacionar as recomendações que nosso trabalho produziu.2

A POLÍCIA E O PODER DISCRICIONÁRIO


Nas últimas três décadas, um dos maiores desafios enfrentados por diversas
instituições policiais foi melhorar o controle sobre o poder discricionário dos seus
agentes, principalmente os de mais baixa hierarquia. Até então, o policial era retratado
como um mero agente do Estado encarregado de fazer com que os cidadãos cumprissem
a lei. Prevalecia a idéia de que a polícia não dispunha de liberdade discricionária ou,
pelo menos, não deveria possuí-la. Ao policial não competia fazer interpretações sobre
a validade dos estatutos legais vigentes. Tampouco cabia à polícia decidir aplicar a
lei ou não. Em geral a atividade de policiamento tem sido vista com uma aplicação
técnica do sistema de justiça criminal.
Entretanto, desde a década de 60, os estudos têm revelado que a polícia não apenas
aplica a lei, mas também a interpreta (Goldstein 1963; Skolnick 1962). Sabemos também
que os policiais decidem quando e como a lei deverá ser empregada (Mingardi 1992;
Kant de Lima 1995; Nascimento 2003). As Pesquisas têm demonstrado que outros fatores
além da legislação criminal também influenciam profundamente as escolhas feitas pelos
policiais, tais como idade, raça, classe social, etnia e religião (Ramos e Musumeci 2005).
Esses estudos têm desafiado o mito do policial neutro realizando uma tarefa técnica.
Diferente das instituições militares, as instituições policiais conferem enorme
discricionariedade aos policiais dos escalões mais baixos, dentro da hierarquia. Talvez
por isso o modelo militar de controle e supervisão venha sendo tão criticado quando
posto em uso nas polícias. Como sabemos, o policial no seu dia-a-dia é forçado a tomar
inúmeras decisões sobre quando e como sua autoridade poderá ser empregada. Não
se trata de acabar com este poder discricionário, uma vez que isso seria impossível e
tampouco desejável. Sem ele, não seria possível desempenhar as funções de polícia. Por
outro lado, em alguns casos este poder pode perfeitamente ser limitado e estruturado.
O não reconhecimento desta liberdade de escolha tem gerado inúmeros problemas
no interior das organizações policiais. De forma geral, esta situação tem forçado os
policiais a agirem sem orientações claras sobre como proceder. Em alguns casos, eles
exercem sua autoridade sem o respaldo da lei. Isso gera uma situação de enorme
insegurança, tanto para a população quanto para a polícia (Muniz 1999). Casos de
abuso de autoridade e de uso desnecessário da força são mais freqüentes quando não
existem normas que orientem e imponham limites à ação dos policiais.

2 O relatório complete da pesquisa “Condutas Policiais e Códigos de Deontologia: um estudo comparado


das relações entre a polícia e a comunidade” encontra-se disponível no sítio: http://www.mj.gov.br/
senasp/pesquisas_aplicadas/anpocs/concurso_projetos.htm

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Descobrindo o Poder Discricionário
Antes de limitar e estruturar o poder discricionário da polícia é necessário
reconhecer a sua existência. Samuel Walker (1995) mostrou que no caso dos EUA este
reconhecimento só aconteceu a partir da década de 60. E foi apenas nos meados dos
anos 70 que alguns departamentos de polícia daquele país tomaram medidas visando
limitá-lo e estruturá-lo. O mesmo pode ser dito com relação ao Canadá e a Inglaterra.
Portanto, a discricionariedade policial é uma “descoberta” relativamente recente.
Segundo Walker, a discricionariedade policial foi “descoberta” no final da década
de 60 através de uma pesquisa nacional conduzida pela American Bar Foundation
sobre o sistema de justiça criminal. Os resultados da pesquisa evidenciaram o enorme
grau de liberdade que os agentes do sistema criminal dispunham quando precisavam
tomar suas decisões. Ficou evidente que as ações dos policiais, juízes, promotores e
advogados públicos não se limitam ao texto da lei.
A partir daí, iniciou-se um longo e amplo debate sobre a conveniência e os
problemas relacionados ao poder discricionário. Praticamente todos os estudiosos
do sistema de justiça criminal passaram a reconhecer os efeitos perversos da
discricionariedade. Desde então, a discussão sobre discricionariedade tem girado em
torno das áreas onde é possível e necessário limitá-la, bem como sobre as formas mais
adequadas de estruturá-lo.
As pressões para controlar o poder discricionário vêm de diversos lados. Há casos
em que o poder judiciário desempenhou papel relevante na estruturação do poder
discricionário. Nos EUA, as inúmeras decisões da suprema corte norte-americana têm
afetado a atividade policial. Na maior parte, são decisões que dizem respeito aos
procedimentos adotados pela polícia do que propriamente à legislação criminal. Desde
a década de 60, a Suprema Corte federal tem tomado decisões sobre a constitucionalidade
de determinadas práticas policiais, especialmente os interrogatórios.
Embora as decisões da suprema corte de justiça americana tenham servido para
restringir o uso de interrogatórios nas investigações policiais, nem todas as decisões
judiciais têm conseguido mudar determinadas práticas policiais. Nos últimos anos, a
justiça federal dos EUA tem se manifestado sobre o uso de animais e instrumentos de
alta tecnologia nas operações de busca e apreensão. Como apontam Skolnick e Fyfe
(1993), o efeito dessas decisões têm sido bastante variado, uma vez que não são muito
claras a respeito de como a polícia deveria proceder. Na prática, as decisões judiciais
sobre conduta policial só têm efeitos concretos quando os departamentos de polícias
decidem reformular suas normas de condutas.
Outra fonte de pressão para que os departamentos de polícia passem a regular
melhor as atividades dos seus membros vêm das autoridades políticas. Normalmente
pressionados pela sociedade civil (movimentos sociais, ativistas políticos e organizações
não-governamentais) os governos determinaram às polícias que estabelecessem
normas de condutas para lidar com situações específicas. Esse foi, por exemplo, o
caso da província de Ontário no Canadá. Lá, o governador, depois de intensa pressão
do movimento feminista local, determinou a todos os departamentos de polícia sobre
sua autoridade que estabelecessem diretrizes e normas de condutas que obrigassem
a instauração de investigações policiais e processos judiciais nos casos de violência
doméstica (parttner assault), mesmo quanto as vítimas decidem retirar as queixas.

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 61
Finalmente, as pressões para a criação de normas de condutas podem vir do
interior das próprias polícias. Uma vez que tais normas servem também para proteger
os policiais, posto que estabelecem orientações claras sobre como proceder, sua
implantação tem sido uma reivindicação dos sindicatos de policiais. Foi o caso do
Código de Deontologia da Police Nationale francesa. Sua criação resultou das pressões
do sindicato de policiais daquela instituição.
Estruturar o poder discricionário da polícia significa definir as áreas e atividades
que precisam de certa liberdade de ação, estabelecer seus limites e preparar os
policiais para exercê-lo da forma mais adequada possível aos anseios e necessidades
da população (Goldstein 2003). A estruturação do poder discricionário não é tarefa
fácil, uma vez que não é possível estabelecer orientações sobre todas as atividades e
situações que os policiais se deparam nas ruas. Na prática, somente algumas situações
mais sensíveis têm sido objeto de atenção dos administradores de polícia.
Há inúmeras áreas onde os policiais exercem freqüentemente sua capacidade
discricionária, a saber: a) na aplicação seletiva das leis; b) nas escolhas dos objetivos e
prioridades para as políticas de segurança; c) na escolha dos métodos de intervenção e
d) na escolha do estatuto legal a ser empregado. Para cada área, iniciativas vêm sendo
tomadas a fim de limitar e estruturar as escolhas feitas pelos policias.

a) Aplicação Seletiva das Leis


A polícia é responsável por fazer cumprir todas as leis. Mas na realidade o policial
freqüentemente tem que decidir se irá multar ou não um motorista apressado, prender
ou não um marido violento, proibir ou não uma festa barulhenta, para citar apenas
algumas poucas situações. Ou seja, o policial pode de fato decidir aplicar a lei ou não.
Essa é uma questão bastante delicada. Juízes e legisladores, via de regra, têm
sido muito relutantes em aceitar a aplicação seletiva das leis por parte das polícias. Isso
implicaria em conferir às polícias poderes políticos (legislativos e judiciários) muito
mais amplos do que hoje vem sendo admitido. Na maior parte dos países, a tendência
tem sido negar tais poderes aos policiais, embora na prática eles os possuam.
Na última década, alguns departamentos de polícias passaram a tratar a questão
mais abertamente. Ao admitir isso, puderam discutir as melhores formas de estruturar
e limitar esta discricionariedade. Na área de controle de trânsito, alguns departamentos
de polícia passaram a admitir esta liberdade de ação dos policiais e ao invés de negá-la
buscou-se melhor estruturá-la através da criação de diretrizes claras sobre o assunto.
É o caso do Toronto Police Service (Canadá) e da Metropolitan Police (Reino Unido).

b) Escolha de Objetivos e Prioridades


As polícias são encarregadas de diversas funções, tais como patrulhamento
ostensivo, investigação criminal, controle de manifestações, atendimentos a emergências,
fiscalização, controle de trânsito etc. Comandantes e chefes de polícia podem, e
freqüentemente o fazem, priorizar determinados objetivos em detrimentos de outros.
Não raro privilegiam o atendimento a um tipo de problema ou a uma comunidade
específica. Tais escolhas são condicionadas por aspectos políticos, sociais e culturais.
Esta talvez seja a área onde o poder discricionário da polícia é mais reconhecido.
Além disso, é amplamente aceita a idéia de que tais escolhas dizem respeito às políticas
de segurança pública adotadas em determinado lugar. São escolhas de natureza política

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e não técnicas e, portanto, devem ser tomadas por um corpo político. Nesse sentido,
podemos identificar inúmeras iniciativas visando o estabelecimento de órgãos com
responsabilidade sobre a elaboração das políticas públicas de segurança, bem como
a ampliação da representatividade e da participação da população no seu processo
decisório.
Nos países anglo-saxões (Canadá, EUA, Irlanda e Austrália), alguns departamentos
de polícia têm implantado comitês de Polícia (Police Boards), compostos por membros
da sociedade civil, da sociedade política e das polícias. Juntamente com as polícias e
os governos locais, tais comitês são encarregados de ditar as políticas de segurança
pública. No Brasil, os secretários de segurança pública, nomeados pelos governadores
eleitos, são os responsáveis por estas tarefas. Tanto no caso dos países anglo-saxões
quanto do Brasil, tais órgãos têm encontrado dificuldades para se impor junto às
polícias. Em alguns casos eles não controlam o orçamento dos departamentos de
polícia, não possuem autoridade de fato sobre os chefes de polícia e tampouco possuem
capacidade técnica para planejar, elaborar e implementar políticas de segurança.
Além destes órgãos podemos verificar o surgimento de conselhos comunitários
de segurança. Normalmente estes conselhos são resultado da nova filosofia de poli-
ciamento comunitário e destinam-se a abrir espaços para os cidadãos participarem da
elaboração das políticas de segurança a serem implantadas nas suas comunidades.

c) Escolhas dos Métodos de Intervenção


Os policiais precisam decidir sobre como intervir. Podem usar ou não a força
que a lei lhes autoriza. Podem também aplicar uma multa ou cassar uma licença de
funcionamento. Podem proibir o acesso a uma entrada ou broquear uma via. Enfim, os
policiais dispõem de um número razoável de opções para exercerem a sua autoridade.
Entretanto, a forma que os policiais utilizam para intervir nas condutas dos
indivíduos e rotinas das comunidades têm grande repercussão sobre a vida das pessoas.
Muitas vezes, embora autorizados pela lei, os policiais agem de forma violenta e
arbitrária. Visando lidar com este problema, diversos departamentos de polícia
passaram a elaborar normas específicas para estruturar o uso da força policial.
Dado a alta repercussão e a gravidade do tema, em dezembro de 1979 a Organização
das Nações Unidas (ONU) aprovou a resolução 34/169 que prescrevia a adoção de
Códigos de Condutas para todas as polícias do mundo. Além disso, foram estabelecidos
padrões e normas de policiamento, conhecidos como Padrões Internacionais de
Direitos Humanos (International Human Rights Standards). Para lidar especificamente
com o uso da força, foram aprovados em 1990 os Princípios Básicos Para Uso da Força
e de Armas de Fogo Por Policiais. De forma geral, estas resoluções da ONU enfatizaram
a idéia de que polícia é uma profissão e que toda profissão deve estabelecer seus
próprios padrões de conduta (Das e Palmiotto 2002).

d) Escolha do Estatuto Legal a Ser Empregado


Não raro, o policial deve decidir sobre a aplicação de um dentre vários estatutos
legais. Ele pode decidir aplicar uma lei municipal, estadual ou federal. O policial deve
decidir se o incidente implica numa infração do código de posturas municipais ou num
crime previsto no código penal. Bem como, pode enquadrar uma determinada ação
como crime fiscal.

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 63
Para lidar com esta questão, alguns países estabeleceram competências distintas
para suas agências de polícias. No Brasil, Argentina e EUA, por exemplo, existem
polícias federais com competências exclusivas sobre determinados temas. A existência
de diferentes agências policiais num mesmo território pode gerar conflitos de compe-
tências. Há também países como o Canadá onde, em determinadas cidades, uma única
polícia é encarregada de aplicar diferentes estatutos legais. Nestes casos, as polícias
podem dispor sobre quanto aplicar um ou outro estatuto.
Nas duas situações, as autoridades políticas têm estabelecido normas claras
quanto à competência e jurisdição das agências policiais. E quando não o fazem são
fortemente pressionados pelas polícias a fazê-lo. Ou seja, está é uma área onde a
discricionariedade policial é pouco incentivada.

COMO CONTROLAR O PODER DISCRICIONÁRIO?


Quando a discricionariedade policial ganhou visibilidade, a idealização do policial
com mero cumpridor da lei deixou de servir de justificativa da falta de atenção para
este problema. A liberdade de ação dos policiais passou a ser bastante criticada. Algo
precisaria ser feito para lidar com esta excessiva discricionariedade. De forma geral,
podemos identificar dois tipos de iniciativas propostas para lidar com o problema:
a) buscou-se melhorar o nível de instrução e o processo de formação dos policiais
e b) estabeleceram-se códigos de deontologia e normas de condutas para orientar a
atividade policial em situações especificas.
A demanda pela melhoria no nível instrução dos policiais surgiu no final da década
de 60 em algumas cidades dos EUA e Canadá. Relatórios de comissões governamentais,
ativistas políticos e pesquisadores passaram a exigir que os departamentos de polícia
modificassem seus critérios de recrutamento, a fim de elevar o grau de escolaridade
dos policiais. A idéia era que, uma vez que desempenham funções com alto grau de
tomada de decisões, seria mais adequado contar com policiais altamente instruídos.
Entretanto, este tipo de demanda encontrou forte resistência entre os policiais
mais antigos. Para eles, a educação universitária era insuficiente para habilitar os
novatos ao exercício da função. De fato, os estudos posteriores mostraram que a
educação universitária não necessariamente implicou num padrão diferente de prática
profissional (Lint 2004).
A partir dos anos 80, pode-se observar a tendência em alguns departamentos
de polícia de incorporar na formação dos seus membros disciplinas de conteúdo
mais humanista. Uma vez que os policiais desempenham inúmeras tarefas além
das relacionadas à legislação criminal. A idéia era preparar melhor o policial para
estas outras funções. Apesar dos esforços para adequar os currículos às tarefas da
polícia, verificou-se que a simples inclusão de disciplinas não habilitava os policiais
a desempenharem satisfatoriamente suas funções. Era necessários apresentar-lhes
um conjunto de conhecimentos, habilidades e capacidades mais próximas as suas
atividades diárias. Ainda hoje, não se sabe ao certo os efeitos destas mudanças sobre
os julgamentos que os policiais fazem.
Outra iniciativa para lidar com a discricionariedade policial foi a criação de códigos
de deontologia e de normas administrativas de condutas. Um dos primeiros códigos de
deontologia que se impôs às profissões das armas foi o Código de Cavalaria, ancestral

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de muitos dos códigos policiais implantado nos países europeus (Charmoillaux, 1996).
Os códigos de deontologia estabelecem as regras e as obrigações essenciais que se
colocam aos policiais, inscrevendo-se num quadro jurídico de referência, que define
com precisão a natureza das modalidades da ação policial e determina os princípios
e valores que devem nortear as atitudes e comportamentos dos policiais, dentro da
corporação e em sua relação com o público.
A deontologia é, etimologicamente, a ciência dos deveres e objetiva, no presente
contexto, fazer com que os policiais predisponham-se a aderir a um sistema de valores
que associe eficácia e respeito pelas pessoas e pelas liberdades fundamentais, dentro e
fora do exercício de sua profissão. Convém lembrar que na maioria dos países em que
o código de deontologia foi criado objetivou-se modificar as concepções tradicionais da
prática policial, sobretudo em relação à discricionariedade usada na prática profissional.
O policial, ao contrário do que ocorre entre os profissionais liberais, desempenha suas
funções demarcadas por uma rígida estrutura hierárquica, embora nem sempre essa
estrutura seja considerada, principalmente nas situações de patrulhamento de rua.
Pelo contrário, em sua prática cotidiana o policial age freqüentemente fora da
estrutura hierárquica, dispondo de grande autonomia de ação. Nessas situações, os
policiais não necessariamente regem suas ações pelo regulamento, leis ou normas
de conduta. Guiam-se, no geral, pelo que denominam de sua própria experiência.
A existência dessa margem de iniciativa da ação do policial constitui-se exatamente
o espaço que deve ser ocupado pela deontologia. Portanto, instituir um código de
deontologia significa reconhecer, concomitantemente, a responsabilidade e a autonomia
do policial. Nas últimas décadas, observou-se o surgimento de códigos de deontologia
policial em diversos países. Tal fenômeno inscreve-se às tentativas de melhor lidar
com a questão do controle da atividade policial.
Os códigos de deontologia estabelecem princípios e valores que devem nortear
as atividades profissionais. Entretanto, sem uma clara definição da forma como
proceder cotidianamente, tais princípios e valores dificilmente terão aplicação efetiva.
Exatamente por este motivo, algumas polícias elaboram normas administrativas de
conduta para complementar (ou por em prática) os conteúdos prescritos nos códigos
de deontologia.
Um dos autores mais influentes sobre o tema, Kenneth Davis (1971), argumenta
que algum tipo de discricionariedade nas atividades do sistema de justiça criminal é
inevitável. Para ele, o problema não reside na existência da discricionariedade, mas sim
na falta de controle sobre ela. Uma vez limitada e estruturada, pode passar a ser algo
positivo relacionado ao exercício da profissão de polícia. Finalmente, Davis sustenta
que a melhor forma de lidar com a discricionariedade é através da criação de normas
administrativas destinadas a regular o exercício da atividade policial. Passados mais
de trinta anos do lançamento do seu livro, suas conclusões de forma geral continuam
válidas e bastante influentes.
A criação de normas administrativas permite um equilíbrio entre o que prescreve
a legislação e o que realmente a polícia faz no seu dia-a-dia. Embora a legislação
possa orientar algumas atividades da polícia, principalmente aquelas relacionadas ao
controle da criminalidade, na prática há inúmeras questões não prescritas na lei que
tem enorme repercussão no exercício da atividade policial. Pode-se dizer que a lei
prescreve o que deve ser feito, mas não diz quase nada sobre quando e como fazer.

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 65
A ausência de normas administrativas reguladoras da atividade policial faz com
que a distância entre a lei e a atividade cotidiana das polícias seja muito grande. Para
cobrir esta lacuna, freqüentemente cobra-se dos policiais que usem o “bom senso”
ao tomarem suas decisões. Nestes casos, normalmente o que acontece é a descoberta
pelo policial, ao sair do seu treinamento básico, que muito pouco daquilo que lhe
foi ensinado parece aplicar-se às situações que ele encontra no cotidiano da sua
atividade. Em geral ele aprende informalmente com os colegas mais antigos uma série
de conhecimentos e práticas a serem empregados no dia-a-dia.
Tais conhecimentos e práticas informais podem ser, às vezes, ilegais. Apesar disso,
é apenas com eles que os policiais irão enfrentar os desafios da sua profissão. Estas
práticas, quando não são ilegais, são de alguma forma, úteis às polícias. Do contrário, a
atividade de policiamento seria ainda mais caótica do que nos parece hoje. Mesmo que
haja um grande esforço dos chefes de polícia, estas práticas informais não deixarão de
existir. Portanto não se trata de acabar com as práticas informais, mas sim reconhecê-
las para que possam ser abertamente submetidas à apreciação crítica da sociedade.
O desafio atual das instituições policiais que já implantaram normas administrativas
para regular algumas das atividades dos seus membros é evitar que estas normas
tornem-se meras formalidades. Ou seja, evitar que a discricionariedade migre da
aplicação da lei para o cumprimento das normas administrativas. Em muitos casos é
exatamente isso que acontece, uma vez que a simples existência de uma norma não
garante o seu cumprimento.
Uma norma é uma diretriz formal destinada a orientar condutas individuais.
Para tal, ela precisa ser coercitiva e específica. Coercitiva porque necessita obrigar os
membros da instituição a adequarem-se às condutas prescritas. Específica, uma vez
que as normas genéricas possibilitam diferentes interpretações sobre o seu conteúdo,
deixando de uniformizar as condutas individuais.
Uma vez que são internas à instituição, somente a adesão dos membros da
polícia, principalmente dos mais graduados, à idéia de que as normas administrativas
são importantes instrumentos de gestão das instituições policiais, poderá fazer com
que elas não se tornem meras formalidades. Do contrário, o peso das práticas informais
e a relutância dos policiais mais graduados poderá torná-las sem efeito.
Para que as normas administrativas limitem e estruturem de fato a discricionariedade
policial, é necessário adequar o sistema de treinamento e de avaliação das condutas
individuais. É preciso estabelecer um sistema de avaliação que faça os policiais mais
responsáveis pelos seus atos. A estruturação do poder discricionário aumenta também
a capacidade de controle dos administradores de polícia sobre o pessoal operacional.
Ou seja, facilita a supervisão da atividade policial. Além disso, a estruturação também
permite a melhoria do treinamento policial. Este passa a ser mais específico, no qual
os policiais recebem orientações claras e objetivas sobre como proceder nas situações
que encontrarão na prática da sua profissão.

COMPARANDO OS CÓDIGOS DE DEONTOLOGIA


Para entender melhor a natureza e o significado dos códigos de deontologia,
decidimos comparar os códigos utilizados em duas diferentes instituições policiais:
a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) e o Ottawa Police Service (OPS) as quais

66 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
foram escolhidas por se tratarem de duas instituições bastante diferentes, no que diz
respeito a suas formas de organização institucional. Optou-se por comparar instituições
policiais já que é a partir delas que as atividades de policiamento são desenvolvidas.
Buscou-se explorar o contraste para, através dele, avançar no entendimento de novas
categorias de análise.
Foram considerados apenas aqueles estatutos que tem força de lei, uma vez
que o caráter coercitivo é característica essencial dos códigos de deontologia. O eixo
condutor do estudo foi a análise das relações polícia/ sociedade e dos mecanismos de
controle social que regulam a atividade do policial, em sua dupla vertente, da função
e da profissão. Privilegiou-se o controle interno buscando-se saber em que medida
este interfere na prática diária do policial e nas formas através das qual esta prática
é avaliada.
A pesquisa procedeu por meio de duas estratégias: a análise dos documentos
acima mencionados e entrevistas com informantes-chaves nas instâncias de: a)
direção de ensino, b) formação/ treinamento e c) avaliação das polícias pesquisadas.
A documentação disponível foi trabalhada através da análise de conteúdo, a partir
da seguinte categorização (que abarca o conteúdo dos documentos, seu grau de
especificidade/generalidade e seu caráter restritivo ou não face à discricionariedade:
a) definição de termos, considerações iniciais e considerações finais; b) organização
interna; c) deveres, direitos e proibições; d) procedimentos profissionais e e) outros.
Como “definição de termos, considerações iniciais ou finais” foram classificados
aqueles artigos que traziam conceitos gerais e definições que serviriam de base para
a interpretação dos demais artigos. Por exemplo, artigos definindo ou diferenciando
policiais e funcionários civis. Também foram classificados nesta categoria os conteúdos
que tratam da competência e da abrangência de cada documento.
Muitos conteúdos foram classificados como “organização interna”. De forma geral,
os que tratam da organização e da distribuição de competências dos diferentes órgãos
e seções de cada organização policial; os que descrevem a estrutura (composição e
competência) de determinada unidade policial; os que tratam das relações entre estas
diferentes unidades.
Na categoria “deveres, direitos e obrigações” foram incluídos os itens que descrevem
os direitos e prerrogativas dos policiais em geral. Também os conteúdos que descrevem
as especificidades de determinadas funções policiais. Nos documentos brasileiros e
canadenses foram encontrados artigos tratando dos direitos trabalhistas dos policiais
(férias, remunerações e licenças) e conteúdos sobre direitos e prerrogativas judiciais. Os
itens referentes às obrigações funcionais dos policiais foram classificados desta forma.
Os “procedimentos profissionais” dizem respeito a conteúdos relativos à descrição
dos procedimentos para o exercício da profissão de polícia. Nesta categoria estão desde
a previsão para o estabelecimento de procedimentos profissionais até a descrição de
procedimentos específicos. Finalmente, foram classificados como “outros” os conteúdos
que não puderam ser classificados em nenhuma das categorias anteriores.
Os artigos ou seções foram a unidade de análise considerada. Embora, freqüen-
temente os artigos ou seções possuam inúmeros incisos ou alíneas, os mesmos foram
considerados no seu conjunto e não separadamente. Cada unidade de análise foi
analisada separadamente por pelo menos dois pesquisadores. Ao final do processo,
compararam-se todas as análises realizadas. Os itens que apresentaram divergências

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 67
foram revistos a fim de dirimir os conflitos de interpretação e construir coletivamente
uma interpretação sobre os documentos analisados.

Distrito Federal: códigos de deontologia sem normas de conduta

No Brasil, tradicionalmente as polícias militares estiveram ligadas ao Exército.


Em alguns períodos históricos elas estiveram sobre o controle direto do Ministério
do Exército. Esta identidade entre policiais e militares teve profundas conseqüências
no desenvolvimento da deontologia policial. Muitas polícias militares adotaram
(ou adotam) o Estatuto dos Militares, elaborado pelas Forças Armadas. Bem com,
utilizam o Regulamento Disciplinar do Exército e inúmeros manuais empregados no
treinamento dos militares do Exército.
A partir da última década, está situação começou a mudar em alguns estados
brasileiros. Seguindo a tendência mundial, algumas polícias militares brasileiras criaram
seus próprios códigos de deontologia e outras iniciaram estudos para a elaboração de
manuais de conduta, como por exemplo, iniciativas verificadas em São Paulo, Minas
Gerais e Goiás, visando à criação de Códigos de Deontologia e o estabelecimento de
Procedimentos Operacionais Padrão (POP’s).
Este foi, igualmente, o caso da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) que estabe-
leceu o Estatuto da Polícia Militar do Distrito Federal, prescrevendo as responsabilidades,
os direitos e os deveres de todos os membros desta instituição policial. Em 1997, foi
criado também o Código de Ética Policial. Neste código estão descritos os princípios e
valores que deverão orientar a atividade de policiamento e as condutas dos policiais. Os
conteúdos do Estatuto e do Código de Ética evidenciam seu caráter formal, geral e pouco
restritivo quanto às orientações que disponibilizam para a conduta policial.
Dos 145 artigos do Estatuto, os conteúdos relativos a procedimentos profissionais
que regulamentam a relação da polícia com a sociedade, não estão simplesmente
contemplados. As prescrições, de caráter normativo, concentram-se, fundamentalmente
sobre organização interna da polícia, definições gerais e direitos e obrigações dos
policiais militares.
Os artigos que tratam dos aspetos organizacionais da instituição são os mais nume-
rosos. Estão, sobretudo, ligados à hierarquia e à disciplina e podem conter instruções
sobre a relação do policial com seus pares e superiores. A seguir vêm os artigos com
conteúdos administrativos e de considerações iniciais ou finais. Os deveres, os direitos
e as proibições, mais diretamente ligado à postura, que em tese poderiam trazer
prescrições de natureza moral ou profissional, ocupam o terceiro lugar na freqüência
de artigos do estatuto. Pela sua análise, percebeu-se que os princípios norteadores da
atividade profissional ocupam aí posição secundária, quando comparados a deveres e
obrigações em formulações de natureza mais geral.
A análise dos assuntos tratados no Estatuto apenas nos dá uma pista sobre seu
caráter geral e sua finalidade. O Estatuto é um documento centrado nos deveres ligados
à disciplina e à hierarquia, estando fortemente impregnado da cultura hierárquica do
exército. Aliás, hierarquia e disciplina formam o pano de fundo que organiza o conjunto
do documento. O grau de generalidade de sua formulação torna bastante difícil, senão
impossível traduzi-los em subsídios para a formulação de normas de conduta, de
procedimentos específicos, profissionais. Seus deveres são, na sua maioria, os deveres

68 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
do cidadão. Observe-se a título de exemplo, o artigo 29 da sessão que trata da ética
policial militar:

Art 29, Inc. I – amar a verdade e a responsabilidade, como fundamentos da


dignidade pessoal;
Art 29, Inc. II – exercer, com autoridade, eficiência e probidade, as
funções que lhe couberem em decorrência do cargo;
Art 29, Inc. III – respeitar a dignidade da pessoa humana.

Tal conteúdo nada teria de muito grave se, no domínio dos procedimentos profis-
sionais, o legislador detalhasse melhor as especificidades para a atividade policial que
daí poderia decorrer, mas não é o que acontece. Da mesma forma, a tradução destes
princípios norteadores em normas ou manuais práticos orientadores de conduta seria
uma maneira de compensar o caráter geral dos deveres policiais, mas aí também a
lacuna é enorme.

Gráfico 1
Estatuto da PMDF: conteúdo dos artigos
80

70

60

50

40

30

20

10

0
Definição de Organização Deveres e Procedimentos Outros
Termos Direitos Profissionais

Gráfico 2
Código de Conduta Ética da PMDF
9

0
Definição de Organização Deveres e Direitos Procedimentos Outros
Termos Profissionais

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 69
O Estatuto é um documento centrado nos deveres ligados à disciplina e à hierarquia,
estando fortemente impregnado da cultura hierárquica. O grau de generalidade de sua
formulação torna bastante difícil, senão impossível traduzi-los em subsídios para a
formulação de normas de conduta profissionais. Seus deveres são, em sua esmagadora
maioria, os deveres do cidadão.
Situação semelhante pode ser constatada pela leitura dos 09 artigos que compõem
o Código de Ética, como mostrado no gráfico número 02. O conteúdo contempla deveres
do cidadão mais do que do profissional.
Chama também a atenção o fato de o código se definir como um código de ética
Profissional e não se referir à profissão policial.3 Nenhum parágrafo deste artigo trata
de modo específico da relação do policial com a sociedade. Fato que chama a atenção,
posto que se trata de um código de deontologia policial. O artigo 03, que trata do
desempenho das funções, diz ao policial que ele deve:

Art 3º, Inc. I – se esforçar para atuar oportunamente, sem permitir que seus
sentimentos (prejudiciais), animosidade ou amizades influam em suas decisões;
Art 3º, Inc. II – não ceder ante o delito e perseguir incansavelmente os
delinqüente, fazendo cumprir a lei com cortesia e de forma apropriada, sem
temor nem favoritismo, malícia ou má vontade; sem empregar força ou violência
desnecessária, nem aceitar gratificações ou suborno;
Art 3º, Inc. III – lutará constantemente para lograr estes objetivos e ideais: de
dedicar a Deus, à Pátria e a profissão que houvera escolhido e fazer cumprir
a lei com o sacrifício da vida se for necessário, como um dia jurou ante nossa
Bandeira Nacional.

Aqui, onde o específico da função policial poderia remeter de modo direto à


questão de prescrições mais claras e objetivas quanto ao uso da força, permanece o
caráter vago. Expressões como “atuar oportunamente”, “cumprir a lei com cortesia”,
“sem empregar força ou violência desnecessária”, “se dedicar à profissão escolhida”
precisam ser definidas de forma clara e objetiva. Entretanto, isso não é feito nem
no Código e tampouco nos manuais em uso na PMDF. As possibilidades de avançar
subsídios para, num manual específico, estruturar o espaço da discricionariedade e
seu uso, são assim desperdiçadas.
Dentre os termos selecionados para figurarem em letras maiúsculas não está
contemplado o que se refere à profissão. Os princípios doutrinários, onde se inscrevem
os valores e a filosofia da atuação profissional, são apresentados no capítulo III em um
artigo construído por 23 parágrafos, que mantém o nível de generalidade mencionado
anteriormente, indo desde a observância da boa educação, da camaradagem, do
espírito de cooperação, até às exortações que incidem sobre a vida privada do cidadão
policial militar, tratando de itens como ‘segurança da comunidade’, ‘prevenção da
ordem pública’, ‘zelo pela sua competência exclusiva, na prevenção e manutenção
da ordem pública’sem, no entanto definir o que isto significa. No capítulo IV, sobre
o valor policial, mistura-se de modo abrangente e vago prescrições de conteúdos e

3 Grifos nossos

70 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de conseqüências bastante diferenciadas, tais como ‘o patriotismo’, ‘o civismo,’ e ‘o
aprimoramento técnico profissional,’ e ‘a dedicação na defesa da sociedade’.
O capítulo 05 intitula-se “Princípios Consagrados de Ética profissional para o
Policial Militar”. Na forma de definir a responsabilidade no trabalho, explicita-se a
proteção e o socorro à comunidade, que se concretiza, no entanto, pela defesa de suas
leis e, mais especificamente, da Constituição Federal. Ou seja, mais uma vez, a relação
com a comunidade é apresentada através da proteção às leis.
No Estatuto, tanto quanto no Código, há uma enorme lacuna no tocante
a procedimentos profissionais. O Manual Básico de Policiamento, utilizado no
treinamento básico dos policiais, não contém normas de condutas específicas para os
policiais e sim uma descrição dos principais tipos de policiamento utilizados no Distrito
Federal: policiamento ostensivo, policiamento de trânsito e rodoviário, policiamento
de guardas, policiamento escolar e policiamento feminino. No que diz respeito ao
uso da força, não diz como os policiais deveriam proceder, não contém nenhuma
prescrição sobre quando e como usar o armamento. O mesmo pode ser dito quanto à
forma de abordagem policial, da conduta com presos, da perseguição motorizada e do
tratamento da violência doméstica.
Os manuais existem, mas não fazem parte do dia-a-dia da prática policial
como orientadores de condutas, não se incorporando como valores e padrões de
comportamento, definidores de posturas profissionais. Enquanto não se estruturar a
profissão e o conceito de profissionalismo a partir de valores, saberes e práticas que
orientem a conduta policial, sobretudo no momento em que a ação rápida exige os
condicionamentos necessários, tenderão a prevalecer o senso comum e o bom senso,
situação que remete ao arbítrio do ator a decisão sobre a melhor forma de agir, no
momento do exercício da profissão.

Ontário: Códigos de Deontologia com Normas de Conduta

No Canadá, diversas forças policiais passaram a contar com códigos de


deontologia, a partir da década 1940. Naquele país, os códigos não necessariamente se
restringiram a uma instituição policial específica. O caráter federativo do seu sistema
político e o fato de algumas das principais organizações policiais estarem sob controle
dos municípios são aspectos importantes do sistema policial canadense. Em função
disso, algumas províncias estabeleceram autoridades responsáveis pela coordenação
e controle dos serviços de polícia: o Solicitor General.4 Para tal, estas autoridades
se valem dos códigos de deontologia e de regulamentações administrativas sobre as
condutas policiais.
É o caso da província de Ontário, onde todos os serviços policiais ali existentes
(municipais e provinciais) devem seguir o que estabelece o Police Services Act
(PAS), criado em 1990. Nele, além dos princípios norteadores das atividades policiais
também estão previstas as responsabilidades das polícias e dos seus membros. Além
disso, o código de deontologia canadense regula as relações de trabalho dentro das
organizações policiais, bem como as formas e procedimentos apresentar queixas e
reclamações sobre a conduta profissional dos policiais.

4 No Brasil, cabe aos secretários de segurança pública exercerem boa parte das funções políticas e
administrativas do Solicitor General.

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 71
O Police Services Act foi criado para substituir o Police Act de 1946, a fim de
tratar mais adequadamente as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas
nas últimas quatro décadas. O PSA buscou fortalecer as relações entre a polícia e
a comunidade, sendo bastante enfático sobre a necessidade de parceria com a
comunidade. Dentre as várias mudanças introduzidas no novo código de deontologia
destaca-se a ênfase na natureza dos serviços prestados à comunidade e na necessidade
de aumentar o controle da atividade policial.
O novo código estabelece que os chefes das polícias municipais implementem a
filosofia de policiamento comunitário, voltada para a solução de problemas (community-
oriented policing). De forma geral, o PSA confirma a tendência, verificada desde a
década de 80, de enfatizar a necessidade de aproximar polícia e comunidade. Não por
acaso, a expressão serviço foi incorporada ao título do novo código canadense.
Para melhorar o controle sobre as atividades policiais, dois novos mecanismos
são criados pelo PSA. O artigo 113 estabelece que todos os serviços de polícia na
província de Ontário deverão implantar uma unidade especial de investigações Special
Investigations Unit (SIU). Cabe a esta nova unidade conduzir investigações sobre os
desvios de condutas que por ventura forem cometidos por policiais. Esta unidade
especial deverá reportar-se diretamente ao Ministério Público de Ontário.
Além disso, o Police Services Act passou a uniformizar e detalhar mais os proce-
dimentos a serem seguidos para lidar com as queixas e reclamações dos cidadãos a
respeitos dos serviços prestados pela polícia. A parte IV do PSA estabelece os procedi-
mentos a serem seguidos por todos os serviços de polícia. Também trata das funções e
deveres dos chefes de polícia, bem como dos direitos e deveres dos policiais acusados.
Outra novidade do código canadense foi a criação de um órgão de controle
externo para supervisionar as atividades de todos os membros dos serviços de polícia
de Ontário. A seção 21 criou a Ontario Civilian Commission on Police Services (OCCPS).
A comissão serve como instância quase judicial destinada a servir como corte de
apelação dos processos disciplinares conduzidos por cada serviço de polícia. Ela pode
conduzir suas próprias investigações, requerer investigações especiais dos serviços de
polícia, bem como rever as decisões dos chefes de cada departamento de polícia.
Da mesma forma que o código de conduta ética do DF, o Police Services Act é
carente de conteúdos voltados a procedimentos, como indicado gráfico de número 03,
e o gráfico comparativo entre eles. Os conteúdos relacionados a questões organiza-
cionais são os mais freqüentes seguidos daqueles que tratam dos direitos, deveres e
obrigações dos policiais.

72 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 3
Police Services Act

Gráfico 4
Comparação entre os Códigos

Gráfico 5
Conteúdo dos artigos – composição dos códigos (%)

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 73
De modo semelhante ao Estatuto do Distrito Federal, o código de Ottawa não
estabelece de forma clara como os policiais deveriam exercer suas funções. Apenas
fornece os princípios que deveriam nortear o trabalho dos policiais. O artigo 42 do
Police Services Act estabelece os deveres dos policiais:

Art 42 (a) – preservar a Paz; Art 42 (b) – prevenir crimes e outras ofensas e
prover assistência e encorajamento para que outras pessoas o façam; Art 42
(c) – assistir as vítimas de crimes;
Art 42 (d) – prender criminosos e outras pessoas que possam legalmente ser
postas em custódia; Art 42 (f) – executar mandatos que possam ser executados
por policiais e desempenhar suas obrigações relativas; Art 42 (g) – desempenhar
as obrigações legais que o chefe de polícia lhes destinar.

Estas obrigações são por demais vagas para orientar as condutas policiais. Nada
dizem sobre como “prevenir crimes”, “assistir vítimas”, “prender criminosos”, “executar
mandatos” ou “desempenhar obrigações legais”. Entretanto, e esta é uma distinção
importante, face a estas lacunas, em 1999, o Solicitor General de Ontário estabeleceu o
Adequacy and Effectiveness of Police Services. A análise dos seus conteúdos evidencia
uma preocupação maior com o estabelecimento de procedimentos profissionais e
normas de condutas policiais, como mostra o gráfico 6.

Gráfico 6
Adequacy and Effectiveness of Police Services – conteúdo dos artigos

Uma vez que compete às autoridades municipais organizar e controlar seus


próprios serviços de polícia, o Adequacy and Effectiveness estabelece de forma clara
e obrigatória (mandatory) que os chefes de polícia elaborem normas e procedimentos
profissionais sobre determinados assuntos. Ou seja, a autoridade de segurança pública
da província de Ontário exige que as policiais municipais implantem normas de
condutas sobre uma serie de assuntos.
Entretanto, caberá aos municípios determinar o conteúdo destes procedimentos.
Para se ter uma idéia, o Ottawa Police Service conta com mais de uma centena de
normas de condutas e procedimentos policiais (policies e guidelines). Tais normas e

74 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
procedimentos tratam dos mais variados assuntos como uso da força policial, violência
doméstica, controle de tráfico, perseguições motorizadas e proteção à testemunha.
Tradicionalmente os serviços de polícia de Ontário adotam as mesmas normas de
condutas e procedimentos profissionais. Esta medida facilita o treinamento básico dos
policiais cuja primeira parte é unificada, como indicado, mais abaixo.

COMPARANDO REPRESENTAÇÕES SOCIAIS


Com relação às entrevistas, no Distrito Federal foram ouvidos dirigentes, instrutores
e alunos da Academia de Polícia e do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de
Praças, oficiais da Divisão de Ensino e da Corregedoria de Polícia Militar. Em Ottawa,
foram entrevistados policiais da Professional Standards Unit, da Policy Development
Unit e do Professional Development Centre.
Os conteúdos das respostas apontam para situações de convergência acentuada
em relação a alguns dos tópicos tratados pela análise documental, assim como indicam
se não divergências, pelo menos concepções diferenciadas entre as duas cidades,
no tratamento de questões centrais face à atuação do policial em sua relação com a
sociedade.
Dentre as principais distinções estão as que dizem respeito às concepções
acerca da diferença entre violência policial e uso da força. Também diferem quanto
às representações relacionadas à discricionariedade, embora neste segundo aspecto as
convergências ainda sejam maiores do que as divergências, conforme se percebeu a
partir das representações sociais dos policiais ouvidos.

Distinguindo Violência Policial de Uso da Força


No contexto brasileiro, mais do que a clara distinção entre as duas situações, boa
parte dos depoimentos, insiste, por um lado, na necessidade de incrementar a educação
e o treinamento como forma de evitar a violência policial; por outro, ressalta a enorme
dificuldade em traduzir para a atividade prática os princípios de cunho mais teórico,
disponíveis, seja em manuais de procedimentos operacionais, seja através da cultura
oral, como atestam alguns depoimentos. Em Ottawa a ênfase repousa, sobretudo, na
possibilidade de o policial justificar seus atos, apoiado em leis ou códigos aos quais a
ação empreendida é referida. A ação que pode ser assim justificada não é percebida
como violência policial.
No Distrito Federal, percebe-se um misto de afirmações calcadas no bom senso,
na busca de definições extraídas de situações concretas – através de exemplos e de
raciocínio circulares do tipo ‘até onde a lei assegura é uso da força’ configurando a
tautologia que, por vezes, preside a argumentação. Ao lado disso, é possível também
perceber que, na maioria das situações do dia-a-dia, cabe ao policial decidir o quanto de
força física ele vai investir, antes ou depois da imobilização, com ou sem testemunhas,
em situação de risco, ou não.
Se a autonomia presente neste contexto empírico fosse sistematizada em normas,
a regulamentação e a padronização talvez encontrassem espaço para se impor. Idéias
como as de proporcionalidade e adequação surgem com freqüência nas entrevistas,
assinalando que daí se poderia extrair padronizações de conduta. O ordenamento

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 75
sistematizado através de situações problemas pode ser um caminho frutífero já que
incorpora a experiência, um saber prático do qual se poderia, certamente, retirar
procedimentos concretos de atuação. Além de evitar a proliferação de formas múltiplas
de ação, as quais, ainda que centradas na experiência não chegam a se traduzir em
processos estruturantes de uma prática profissional.
Mesmo quando se insiste na questão da legalidade como um divisor de águas entre
violência policial e uso da força legítima, a afirmação não se faz acompanhar da referência
a um ordenamento específico direcionado ao tema, produzido pela corporação. Ao
contrário, o mais longe que vão os informantes nesta direção é a referência à legislação
federal, a qual necessariamente tem que ser referência para qualquer cidadão, militar
ou civil. Valeria a pena insistir em um aspecto: não se está afirmando que não exista
nenhuma norma ou manual prático de conduta mas sim que eles, quando existem, não
têm, na maioria das vezes estatuto de lei (são, no mais das vezes, obras de referência)
nem são orientadores na/da prática policial. Nas entrevistas realizadas, não se conseguiu,
de imediato, acesso a estes manuais, o que se coloca como um sinalizador a apontar que
eles não acompanham o policial em seu trabalho diário.
A dificuldade na articulação entre a teoria e a empiria não passa despercebida aos
que estão atuando na área de formação do policial. Fica claro, sobretudo, a dificuldade
em mudar a cultura institucional que, até bem pouco tempo, defendia precisamente
como valor o que hoje tende a ser percebido como violência. Este ‘gap’ou defasagem
geracional é, sem, dúvida uma variável que vale a pena explorar, pois ela está na raiz de
algumas dificuldades em mudar a cultura institucional – de um policiamento centrado
na repressão para os modelos mais atuais de policiamento, centrados na prevenção.
Na questão da formação e do treinamento, que é central para a idéia de uma
polícia profissional, os conteúdos relativos à utilização da arma de fogo revelam a
ausência de padronização: predominam técnicas diferenciadas, a critério do instrutor
e, o que é mais crucial, filosofias – ou doutrinas, como se diz no âmbito da instituição
– também distintas.
Os conteúdos ligados ao uso da força e, com menor intensidade, à discricionariedade
são os que maiores diferenças parecem trazer quando se compara as representações
sociais dos policiais do Distrito Federal e de Ottawa. Chama, particularmente, a
atenção, em Ottawa, a referência explícita aos códigos: o Código Penal em primeiro
lugar – até aí nada de distinto do que ocorre no DF – mas também a referência ao PSA
e aos procedimentos de rotina, que incluem a justificação, através de relatório escrito,
detalhando o porque de tal ou qual intervenção realizada na atuação prática. Aliado
a estes documentos observa-se que a afirmação sobre a utilização do ‘Modelo de uso
da força de Ontário’, é recorrente nos relatos e se constitui em prescrição que tem
força de lei, à qual o policial terá, portanto, que se ater e com base na qual terá que
defender, em caso de julgamento por eventuais desvios de comportamento. A idéia
de responsabilização (accountability), com fundamento no PSA e no Código Criminal
está presente em vários dos depoimentos analisados.

Discricionariedade: sinal positivo ou negativo?


Convidados a se situarem face à discricionariedade, os policiais de Ottawa, assim
como os entrevistados do Distrito Federal têm alguma dificuldade em se posicionar

76 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
claramente a respeito do caráter positivo ou negativo desta que é uma característica
não apenas da sua profissão, mas de várias outras.
Inquirido sobre como lidar com a discricionariedade o policial apresenta, quase
invariavelmente uma resposta defensiva, como se estivesse subtendido que falar em
discricionariedade é mencionar um defeito, uma lacuna, uma arbitrariedade em sua
forma de atuar que merece recriminação. Em outras palavras, é como se os entrevistados
se defendessem por se sentirem (ou antes mesmo de se sentirem) acusados de algum
deslize. Afora estas coincidências, as representações sociais dos policiais acerca da
discricionariedade e de como lidar com ela mostram algumas distinções nas formas
como são elaboradas em ambas as instituições analisadas.
A fragmentação e a diversidade de respostas apontam, no caso do Distrito
Federal, para uma ausência de procedimentos padronizados capazes de estruturar
a discricionariedade. Sabe-se da dificuldade e da impossibilidade de tipificar o
imprevisível, de normatizar o acaso. O que não significa que não se possa reconstituir
e organizar a própria experiência de modo a constituir um conjunto de ‘situações-
problema’ ou ‘típicas’ a partir das quais se estruturar práticas. A insistência nas
normas e nos procedimentos contrasta com a não disponibilidade destes no dia-
a-dia do trabalho policial. Quando solicitados a indicar as normas que orientam a
prática policial, as respostas apontaram para os ordenamentos legais que regem a
vida dos civis, sem fazer referência a algo de mais específico; não se está supondo
que seja desejável uma receita pronta para cada situação, mas que possa ser buscada
uma padronização que aponte ao policial, em cada contexto, o espectro possível de
variações na conduta e, mais do que isto, a que parâmetros legais tal ou qual ação e/
ou intervenção está submetida. O ator social, sobretudo quando se trata de um agente
de segurança pública, precisa estar consciente em relação ao ordenamento legal no
qual se enquadram suas ações e /ou desvios de conduta.
No caso de Ottawa, além do procedimento rotineiro de relatórios escritos, detalhando
e justificando ações da atividade policial, parece ressaltar dos depoimentos o fato de que
discricionariedade é coisa para assuntos menores, transgressões no trânsito, ou coisas
do gênero. Nas demais situações, o policial não deve (ou, uma nuance interessante, não
precisa) usar de discricionariedade; ele aplica a lei. O que, em última instância, não
deixa de ser uma forma velada de negar a discricionariedade, de não responsabilizá-
la pela prática policial em momentos cruciais de sua atuação. Na prática, no entanto,
o policial tem, de fato, uma margem de liberdade para tomar decisões. Assumir sua
existência poderia ser mais produtivo do que a simples negação da discricionariedade.

Profissionalização
Embora, em termos gerais, admitam que a profissionalização dependa do
treinamento e da formação, os entrevistados, na polícia militar do DF, não apontam
seus conteúdos. Por exemplo, em uma corporação de cerca de 15 mil policiais, como
é a do Distrito Federal, é impossível poder se afirmar que 3.000, 4.000 ou 5.000 deles
tenham tido a mesma formação quanto ao uso de arma de fogo.
A idéia de profissão supõe que se tenha consenso, por exemplo, sobre o que é
ser policial. Questionados a este respeito, alguns respondentes definem o policial pelo
aspecto moral: pela metáfora do sacerdócio e da missão. Outros encaram-na como um

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 77
trabalho, como qualquer outro. Para outros ainda, a metáfora é a do mágico, significando
ser o policial aquele que faz o possível e o impossível, o esperado e o inesperado, numa
alusão, indireta e implícita é verdade, à ausência de rotinas profissionais.
Alguns admitem que a natureza dessa função faz do policial alguém diferente
do cidadão comum – pois cumprir sua função nesse caso pode ser sinônimo de matar
ou morrer – ele afirma que, em certo sentido, o poder sobre a vida e a morte é o
diferencial entre ser policial ou civil: mata e morre em nome da lei mas também
acima da lei e contra a lei. A consciência das lacunas, das necessidades em matéria de
formação existe. Falta, entretanto, traduzir essas necessidades ressentidas, em critérios
organizadores de padrões de conduta e em políticas de segurança pública.
No contexto canadense, há, em Ottawa, a preocupação com um levantamento
continuado dos problemas existentes, os quais são submetidos a um processo de
discussão na corporação, com o objetivo de superá-los. Em seguida, maior efetividade
do Código de Ética, que padroniza princípios. Um aspecto importante, segundo alguns
depoimentos, é a profundidade do processo de recrutamento, incluindo uma boa
investigação do candidato, de sua família e de sua vida anterior ao processo de seleção.
Este recrutamento é seguido de um curso no Ontario Police College (equivalente à
Academia de Policia), praticando uma metodologia de ‘resolução de problemas’, que
é o ‘Performances Manegement Cases’, e atuando a partir de um constante processo
de supervisão, requisito que se articula, em termos de eficácia, à responsabilização
(accountability, feita por escrito e atingindo não só o policial autor de um dado ato
mas seu superior hierárquico. Os ‘performance management cases’ estão referidos a
situações concretas – problemas reais acontecidos na corporação- mas mantidos no
anonimato, em termos de seus autores, metodologia que parece facilitar a melhor
visualização do problema.

A função policial
A diferença entre profissionalização e função não é de fácil percepção, para a
maioria dos entrevistados, sem grandes distinções entre os depoimentos colhidos no
Distrito Federal e em Ottawa. No primeiro caso, há os que enfatizam a função de
proteger o cidadão, voltando um pouco à questão da missão ou à questão do policial
como relações públicas; há ainda aqueles que representam o ‘ser policial’ como algo
próximo a ser pai, médico, e até mesmo, psicólogo, sociólogo, características todas
elas longínquas de um perfil profissional.
No segundo caso, nada de radicalmente diferente: os depoimentos admitem que
a função policial compreende de tudo um pouco: proteger a comunidade, servir e
proteger o público, proteger e fazer cumprir as leis, educar, manter a paz, preservar
a vida e a propriedade o que, à semelhança do contexto brasileiro, distancia mais do
que aproxima as representações sociais que o policial canadense faz de si mesmo do
que se poderia definir como um perfil profissional.
As entrevistas sinalizam múltiplas indagações e apontam para a necessidade
de se aperfeiçoar cada vez mais o conhecimento das representações como uma das
formas possíveis de se avançar o conhecimento dos sentidos e conteúdos das práticas
que fazem do policial alguém, que de uma forma ou de outra, convive diariamente
com a violência e precisa se instrumentalizar para enfrentá-la dentro da observância

78 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
dos direitos humanos em todos os momentos de sua prática, a qual comporta, na
maioria das vezes, uma relação direta com a sociedade.
Refletindo sobre os temas da profissionalização e da função policial, e sobre
como são abordados pelos entrevistados, um outro tema vem à tona: a multiplicidade
de concepções, as definições que insistem no aspecto emocional, na responsabilidade
da missão, dentre outras coisas, apontam para uma lacuna identitária, articulada
à falta de reconhecimento social que produz, por sua vez, um déficit de auto-
reconhecimento, como já apontado neste último capítulo. No contexto brasileiro, tal
lacuna está, certamente, articulada a esta representação que alguns policiais fazem de
si mesmos como alguém que trata, trabalha, lida como o “lixo” da sociedade. Poder-
se-ia, talvez, falar de um bloqueio face ao processo de construção de uma identidade
coletiva, que pode, no limite, impossibilitar que estes indivíduos se auto-reconheçam
como sujeitos de uma profissão.
No contexto canadense embora também não se tenha estruturado de modo
conclusivo a idéia de profissão já se poderia, talvez, falar da existência desta dimensão
‘serviço’ a qual, traduzido em serviço para a sociedade, não deixa de ser um passo
importante para que se possa falar da construção da profissão policial.

RECOMENDAÇÕES GERAIS
A forma de utilização da força tem conseqüência direta sobre a legitimidade de
que goza a polícia junto à população. Para lidar com esta questão é necessário criar e
aperfeiçoar mecanismos de controle do uso da força. Existem vários mecanismos para
este controle. Eles não são mutuamente excludentes, ao contrário, se complementam
(capítulo 2). Entretanto, qualquer destes mecanismos só terá eficácia se contar
com uma forte adesão dos policiais ou, pelo menos, dos seus dirigentes. Portanto,
recomendamos que sejam promovidas ações de sensibilização para a necessidade de
controlar o uso da força policial.
De acordo com as pesquisas realizadas sobre o assunto, a criação e adoção de
códigos de deontologia e normas administrativas têm se revelado um dos mecanismos
mais eficazes para controlar do uso da força. À exemplo da PMDF, algumas polícias
brasileiras já contam com códigos de deontologia, entretanto, carecem de normas
de condutas que estruturem melhor a discricionariedade policial. Recomendamos a
elaboração de normas de conduta policial.
O treinamento é uma das formas utilizadas pelas polícias para capacitar seus
membros ao emprego adequado da força. Entretanto, sem a adoção de normas claras
que orientem as condutas policiais, os esforços despendidos no treinamento serão
inócuos. Além disso, é importante considerar a necessidade de uniformização e de
continuação do treinamento. Sugerimos que é necessário adequar o treinamento às
necessidades do policiamento.
Os esforços de controlar o uso da força policial não se restringem ao treinamento.
Também é necessário aperfeiçoar o sistema de controle interno das condutas policiais.
Nos casos de acusação de desvio de conduta, é importante adequar os procedimentos
de apuração e julgamento aos conteúdos dos códigos de deontologia e das normas
de condutas. Recomendamos a necessidade de adequar o sistema de avaliação das
condutas policiais.

Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 79
RECOMENDAÇÕES ESPECÍFICAS PARA A SENASP:
A criação de um modelo nacional de uso da força policial permitirá a uniformização
das condutas policiais. Apesar das diferenças regionais, a criação de um modelo
nacional poderia fomentar a constituição da identidade profissional dos policiais. Além
disso, proporcionaria uma economia de esforços, bem como permitiria intercambio e
ações conjuntas. Na criação deste modelo, é preciso incorporar as necessidades, os
saberes e as experiências das polícias. Para tal, sugere-se a constituição de uma equipe
de policiais especialistas em treinamento do uso da força para pensar e elaborar o
modelo nacional. Recomendamos que a SENASP coordene os esforços para a criação
de um modelo nacional de uso da força policial.
Tomando o cuidado de não ferir as autonomias federativas, a SENASP pode
incentivar a adoção do modelo nacional pelas diferentes polícias existentes no
Brasil. Para isso, o condicionamento dos repasses dos recursos do Fundo Nacional
de Segurança Pública (FNSP) seria ferramenta valiosa para a implementação desse
modelo. Recomendamos, portanto, que a SENASP incentive a adoção do modelo
nacional de uso da força.
A implementação de um modelo nacional de uso da força passa necessariamente
pela sua adoção nos sistemas de treinamento e de controle interno. É importante
adequá-lo aos sistemas existentes nos estados. Para tanto, sugere-se um amplo
levantamento dos modelos de ensino profissional existentes, a fim de incorporar suas
variações na elaboração do modelo nacional de uso da força. Bem como submeter o
modelo nacional a um amplo debate com representantes das polícias, da sociedade
civil e especialistas na área de segurança pública. Sugerimos à SENASP também que
incentive a adequação dos sistemas de treinamento e avaliação policial ao modelo
nacional de uso da força.

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82 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
O PAPEL DOS MUNICÍPIOS NA SEGURANÇA PÚBLICA

Tulio Kahn1
André Zanetic

O ALARGAMENTO CONCEITUAL E INSTITUCIONAL DA QUESTÃO DA SEGURANÇA


Até recentemente o problema da segurança pública era compreendido como
algo que diz respeito apenas ao governo estadual e, dentro dele, especificamente
aos órgãos do sistema de justiça criminal: polícia, ministério público, judiciário e
administração prisional.
O maior argumento para o não envolvimento na questão da segurança era o de
que o artigo 144 da Constituição atribui ao governo Estadual a responsabilidade pelas
polícias civis e militares. Assim, nesta concepção limitada de segurança, não haveria
muito mais o que fazer nas esferas federal e municipal. O envolvimento federal nas
questões de segurança resumia-se às ações da Polícia Federal, ao controle de algumas
atividades – armas, empresas de segurança privada, etc – bem como a elaboração de
Projetos de Lei no âmbito criminal e penal. No âmbito municipal, algumas poucas
prefeituras mantinham Guardas Civis para a vigilância dos prédios municipais
enquanto outras ajudavam de forma espasmódica as policiais estaduais, contribuindo
com combustível, equipamentos ou empréstimo de imóveis.
Na última década, todavia, parece ter havido um alargamento da questão de
segurança pública, tanto do ponto de vista conceitual quanto administrativo: de
problema estritamente policial passou a questão multidisciplinar, envolvendo diversos
níveis e instâncias administrativas. E este processo de alargamento ocorreu depois da
Constituição de 1988, que em nada alterou o papel da Federação e dos Municípios na
esfera da segurança, apesar da tendência municipalista em diversas outras esferas.
Em nível federal, são marcos desse processo de alargamento a criação da SENASP
– Secretaria Nacional de Segurança Pública em 1995, a criação do INFOSEG, do
CONASP – Conselho Nacional de Segurança Pública e a elaboração do Plano Nacional
de Segurança Pública em 2000 – que trouxe consigo o estabelecimento do Fundo
Nacional de Segurança Publica – com recursos anuais em torno de 300 milhões de
reais para investimento em recursos humanos e materiais das polícias. Com relação ao
Fundo Nacional de Segurança Pública, assinale-se que ele abriu a possibilidade para
que não apenas as polícias estaduais, mas também os municípios – apenas aqueles
com Guarda Municipal – requisitassem recursos do governo federal para projetos de
segurança. Isto significa que o governo federal viu como legítima e procurou incentivar
deste então a atuação dos governos locais; é possível até que o FNSP tenha estimulado
a criação de Guardas pelo país depois de 2000.

1 A elaboração desta pesquisa só foi possível graças à colaboração e apoio de diversas pessoas e
entidades. Agradeço em especial ao Ministério da Justiça pela bolsa concedida, à Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo por me liberar durante a realização do projeto e ao Centre for Brazilian Studies de
Oxford por me receber entre abril e junho de 2005. Inúmeras pessoas fizeram comentários e contribuições
ao projeto, em especial Albert Fischlow e Nauro Campos, que se prontificaram a ler e comentar o texto.

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 83


Tabela 1
Gastos do FNSP 2001-2004
Ano Municípios R$

2001 74 18.732.539,9
2002 10 5.904.000
2003 6 10.309.264
2004 69 25.385.880,96
Total 60.331.684,86

Entre 2001 e 2004 o Governo Federal investiu cerca de 60 milhões de reais nos
municípios (14 milhões apenas para a cidade de São Paulo) através dos recursos do
Fundo Nacional de Segurança Pública, instituído com o objetivo de apoiar projetos
na área de segurança pública e de prevenção à violência. O acesso aos recursos
pelos municípios foi vinculado a apresentação de projetos consoantes com a política
de segurança pública do Governo Federal, e para tanto devia atender a algumas
solicitações específicas, como possuir Guarda Municipal, realizar ações de policiamento
comunitário ou terem Conselho de Segurança Pública.
A SENASP também tem orientado aos Municípios que elaborem um Plano
Municipal de Segurança Urbana, composto de diagnósticos (área geográfica, problemas
da região, principais crimes e ocorrências policiais, características sociais, econômicas,
etc) dos problemas existentes e de ações relevantes para seu enfrentamento, abrindo
a possibilidade de realização de convênio com a SENASP, tanto para os diagnósticos
quanto para a realização de ações efetivas. O valor total dos projetos tem sido distribuído
entre concedente e proponente, com 80% do valor total do projeto para o primeiro e
20% para o segundo, obrigando o município interessado a investir em segurança.
Paralelamente, os anos 90 também marcaram o envolvimento maior dos municípios
na esfera da segurança, através da criação ou ampliação das Guardas Civis, de
Secretarias e Planos Municipais de Segurança ou da regulamentação – através de Leis
e Decretos Municipais de aspectos relevantes para a segurança, como o controle de
bebidas alcoólicas, e a divulgação de serviços como o Disque Denúncia. Particularmente
relevantes foram os investimentos municipais em programas sociais de caráter
preventivo, focados especificamente na questão da criminalidade e da violência. Ou
então o redirecionamento dos investimentos dos projetos sociais tradicionais para as
áreas e grupos de risco, ou seja, levando explicitamente em conta o potencial preventivo
das políticas públicas municipais. Esta tendência de crescimento da participação dos
municípios na segurança coincide internacionalmente com o aparecimento no campo
da segurança de teorias como broken windows e policiamento comunitário e orientado
a problema – teorias que apontam também para a necessidade de incluir outros
recursos – além dos tipicamente policiais – para a solução de problemas criminais.
O fato é que, tanto o governo federal como os municipais passaram na última
década a atuar de forma mais intensa na esfera da segurança, reconhecendo a relevância
da problemática para a população e que para equacioná-la são necessários mais do
que novas armas e viaturas para as polícias estaduais ou o endurecimento penal.
O quadro abaixo dá uma idéia deste processo, analisando particularmente a Região

84 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Metropolitana de São Paulo. Dos 39 municípios que fazem parte da RMSP, oito adotaram
leis de incentivo à divulgação do Disque Denúncia e todos eles depois de 2001 – uma
vez que o serviço entrou em funcionamento apenas em 2000. Igualmente, todos os 16
municípios com lei seca adotaram-na neste mesmo período. As guardas municipais
são mais antigas, mas dos 27 municípios com guardas na RMSP, 17 criaram-nas a
partir de 1991.

Tabela 2
Crescimento da participação dos municípios da RMSP na segurança

Antes dos De 1981 De 1991 Depois


Total
anos 80 a 1991 a 2000 de 2001

Lei do Disque-Denúncia RMSP 9 9


Lei Seca RMSP 16 16
Guardas Municipais RMSP 2 8 13 4 27
Secretarias Municipais RMSP 3 9 12
Guardas Municipais no Estado de São
Paulo (apenas as que sabemos a data) 7 18 20 6 51
Fonte: Fórum Metropolitano de Segurança Pública/Secretaria de Segurança Pública.

A criação do Fórum Metropolitano de Segurança em 2001, congregando os


39 prefeitos da região para trocar experiências comuns sobre o tema, sem dúvida
colaborou para aprofundar este processo, que é anterior ao Fórum como sugere a
tabela acima; a criação mesma do Fórum de prefeitos é conseqüência deste processo
de intensificação da participação das prefeituras na segurança.
Merece menção também o fato de que neste período houve igualmente um
crescimento vertiginoso do setor privado de segurança, principalmente empresas
de segurança eletrônica e de vigilância patrimonial. Como veremos adiante, foi
o crescimento da criminalidade e da sensação de insegurança nos grandes centros
urbanos o elemento impulsionador de todas estas tendências.

RAZÕES DO SÚBITO INTERESSE SIMULTÂNEO NA QUESTÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA


Não foi por iluminação do espírito santo que todos resolveram dar as mãos para
atacar o problema: políticos são em geral bastante sensíveis às preocupações de seus
eleitores e tratava-se simplesmente de fazer alguma coisa ou voltar para casa nas
próximas eleições.
Não é difícil compreender porque simultaneamente empresas privadas, governo
federal e municipais começaram a intervir de forma mais intensa na segurança pública:
1) a criminalidade cresceu rapidamente em todo pais nos anos 80, em especial os
homicídios cuja taxa passou de 11 para 27 ocorrências por 100 mil hab. entre 1980 e
2000; 2) em paralelo, houve um crescimento da sensação de insegurança, que colocou
o crime entre as principais preocupações da população, ao lado do desemprego;
3) junte-se a isso o fato de que a população culpa a todos os níveis de governo pelo
problema e não apenas ao governo estadual, detentor das polícias civil e militar.

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 85


Gráfico 1
Taxa de Homicídios por 100 mil, de 1985 a 2000
30

27,8
26,5
26,0
25 25,2
24,2
23,4

21,7
20,8
20,4
20 19,8 19,8
18,7

16,5 16,4
15 14,9 14,6 14,9

13,4
12,2 12,2
11,4

10

0
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Fonte: Datasus

As pesquisas de opinião pública sempre mostraram – como estas conduzidas


pela Ipsos Opinion em 2003 e pela CNT/Sensus em 2004 – que para a população,
embora o principal responsável pela solução dos problemas de segurança seja o
governo estadual, que controla as policiais civil e militar – os outros níveis de governo
também são co-responsáveis, principalmente a prefeitura. Parece haver a compreensão
por parte da população de que a criminalidade tem inúmeras causas – desemprego,
carências sociais – e que todos os escalões governamentais tem sua parcela de
responsabilidade.

Tabela 3
Principal responsável pela solução dos problemas de segurança na cidade
1º lugar ago/03 Jun-04
Prefeitura 27%
Na sua opinião, a solução dos seguintes problemas
Governo do Estado 49% (policiamento) deveria ser responsabilidade do:
governo federal 25.40
Governo Federal 19%
governo estadual 29.20
Não sabe/ Não respondeu 5% prefeitura 17.10
todos 24.20
1º + 2º lugares ago/03 nenhum 0.20
ns/nr 4.10
Prefeitura 55%
Governo do Estado 83%

Governo Federal 41%


Não sabe/ Não respondeu 5%

Vimos acima alguns motivos que contribuíram para a entrada e participação


mais intensas dos governos federal e municipal na questão da segurança. A questão
agora é saber como esta participação vem ocorrendo e com que resultados.

86 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
A ATUAÇÃO MUNICIPAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO
Neste trabalho estaremos examinando especificamente o impacto de alguns
programas municipais sobre a criminalidade, tomando como referência principalmente
os 39 municípios da Região Metropolitana de São Paulo, onde o problema da segurança
pública foi e – apesar da melhora – continua sendo especialmente grave. Com 47% da
população do Estado de São Paulo, a RMSP concentra 80% dos roubos de veículos,
67% dos roubos e 63% dos homicídios, mais do que justificando a escolha da área.

Tabela 4
Ocorrências policiais registradas – jan e fev de 2005

Ocorrências Estado RMSP %


Roubo de Veículos 12.241 9.777 79,87
Furto e Roubo de Veículos 30.699 21.728 70,78
Roubo 34.895 23.579 67,57
Furto de Veículos 18.458 11.951 64,75
Homicídio Doloso 1.463 933 63,77
Estupro 670 364 54,33
Tentativa de Homicídio 1.449 682 47,07
Latrocínio 65 30 46,15
Furto 87.829 34.072 38,79
Homicídio Culposo 675 231 34,22
Tráfico de Entorpecentes 2.503 846 33,80
Lesão Corporal (culp. e dol.). 55.022 18.550 33,71
Fonte: SSP/SP

Como argumentou Marx ao justificar a escolha da Inglaterra para estudar o


capitalismo, é preciso ir até onde o fenômeno está mais desenvolvido, pois a “anatomia
do homem explica a anatomia do macaco”. Portanto, se quisermos entender o efeito
das práticas municipais sobre a criminalidade é preciso olhar para onde o problema é
mais grave e as experiências municipais de prevenção ao crime mais desenvolvidas.
Do ponto de vista amostral é preciso ter em mente que se trata de uma escolha
possivelmente enviesada justamente por se tratar de uma área especialmente violenta,
cujos resultados talvez não se apliquem a outras áreas.

A INTERVENÇÃO MUNICIPAL NA ESFERA DA SEGURANÇA


1) A queda dos homicídios em São Paulo
Antes de analisarmos o impacto da Lei Seca sobre os homicídios, é conveniente
fazermos uma digressão sobre a queda dos homicídios em geral, de modo a poder
contextualizar o impacto desta relevante medida.
Depois de um crescimento contínuo desde meados dos anos 90, os homicídios
dolosos no Estado de São Paulo começaram a declinar a partir de 1999. Nos últimos
cinco anos a taxa de homicídios no Estado de São Paulo caiu 37%, diminuindo de 35,7
em 1999 para 22,5:100 mil habitantes no ano passado. Embora muitos não tenham se
dado conta, a magnitude e a rapidez da queda colocam São Paulo no mesmo patamar

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 87


de conhecidos casos de sucesso da literatura criminal internacional, como Nova Iorque,
Cali ou Bogotá. Em Nova Iorque os homicídios tiveram uma impressionante redução
de 66% num período de sete anos. Na cidade da Cali – para tomar um exemplo mais
próximo – as taxas de homicídios caíram um quarto em nove anos e em Bogotá caíram
de 80 para 23:100 mil no mesmo período.
Existem muitas dúvidas com relação ao fenômeno: por exemplo, 1) não se sabe
ao certo, por falta de estatísticas em âmbito nacional, se trata se de algo generalizado
ou específico de São Paulo 2) se a queda é produto da atuação policial, de mudanças
macro-sociais ou de ambas. Existem diversas hipóteses não testadas a respeito do que
está ocorrendo e freqüentemente os atores envolvidos procuram tirar proveito do fato,
trazendo para si a responsabilidade pela queda, mas sem apresentar dados ou uma
lógica consistente para corroborar tais afirmações.

Tabela 5
Estado de São Paulo – 1996-2004

1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 1999-2004
Homicídio doloso 10.447 10.567 11.861 12.818 12.638 12.475 11.847 10.953 8.934 -30,30
População 34.074.126 34.932.345 35.367.254 35.891.661 37.546.640 38.052.554 38.500.000 39.067.518 39.677.130
Taxa 30,66 30,25 33,54 35,71 33,66 32,78 30,77 28,04 22,52 -36,95
Fonte: Fundação SEADE / SSP/SP

Como em quase todo país, os homicídios dolosos vinham aumentando de forma


linear no Estado, desde a metade dos anos 90: em 1996, cerca de 10.500 pessoas tinham
sido vitimadas em São Paulo. Em 1999 o número de vítimas tinha aumentado para 12.818
e nada levava a crer que estávamos no preciso ponto de inflexão da curva de homicídios.
A partir daquele ano, contudo, a curva muda de direção e cai de forma também linear,
até voltarmos ao patamar de 8.934 vítimas em 2004, ou seja, uma drástica redução da
taxa de homicídios da ordem de 37% num período de apenas cinco anos.
É interessante também analisarmos o movimento de queda desagregando os
dados por tamanho de cidade: tomando a média de homicídios entre 1995 e 2003,
verifica-se que a maior responsabilidade pela queda está nos municípios de 100 a 500
mil habitantes e nos municípios com mais de 500 mil habitantes. Nos municípios com
população entre 25 e 100 mil habitantes a média de homicídios continua crescendo
e nos pequenos municípios a média de homicídios é estável. Em outras palavras,
a queda no Estado se deve principalmente às reduções observadas nos grandes
municípios, que também concentram a maior quantidade absoluta de homicídios.
Vejamos rapidamente algumas prováveis causas.

Desarmamento
Existem alguns fortes indícios de que boa parte dos homicídios em São Paulo
deve-se a conflitos interpessoais – sem qualquer relação com o tráfico de drogas, crime
organizado ou outras dinâmicas ligadas ao mundo do crime propriamente dito. Dados do
IML com relação às vítimas de homicídio mostram que, das vítimas para as quais exames
foram solicitados – cerca de metade dos casos – 42% apresentavam resíduos de álcool

88 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
no sangue na ocasião da morte. Em 25% dos casos a vítima morreu com apenas um tiro
e em 64% dos casos o tiro não atingiu a cabeça, sugerindo uma fraca intencionalidade
por parte do autor. Em 10% dos casos a autoria dos homicídios é conhecida no momento
em que a ocorrência é registrada na polícia. 9% dos homicídios ocorrem dentro de
residências e 1,3% de frente à residência da vítima. Boa parte dos homicídios ocorre nas
noites e madrugadas dos finais de semana, como veremos adiante. Em resumo, parcela
considerável dos homicídios envolve pessoas que se conhecem e resultam de processos
de altercações sob efeito de álcool, quando muitas vítimas são mortas com apenas um
tiro. Muitos dos que cometem homicídios não têm a clara intenção de matar, mas como
a arma de fogo exige menos esforço físico e psicológico por parte do agressor e é mais
letal do que outros tipos de armas, o desfecho morte é potenciado.
Todas estas evidências sugerem que a retirada de armas de fogo em circulação
pode evitar o desfecho letal de parte destes conflitos interpessoais. Diferentemente das
mortes premeditadas, nestes casos o resultado morte não ocorreria caso não houvesse a
disponibilidade de uma arma de fogo no momento da “escalada”, isto é, um processo de
altercação entre vítima e agressor que culmina numa agressão com arma de fogo (Wells, 2002).

EFEITOS DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO


Uma analise de intervenção (intervention analysis) procura avaliar o impacto
sobre a performance de um sistema depois de uma ação, comparada com a situação
anterior à ação. A metodologia é bastante utilizada para avaliar questões de controle de
qualidade e consiste em verificar a existência de alteração nos níveis da série histórica
de homicídio em cada cidade e se esta mudança foi transitória ou permanente.
Especificamente depois do Estatuto do Desarmamento em dezembro de 2003,
é possível identificar uma quebra clara no nível mensal de quatro séries históricas
relevantes: 1) armas apreendidas pela polícia; 2) armas perdidas; 3) número de
internações por agressão por arma de fogo, coletado pelo Datasus (quebra em 11/2003;
-37,6 internações por agressões intencionais por arma de fogo / mês); 4) série de
homicídios dolosos na Capital (quebra em 11/2003; -45,4 homicídios / mês).

Armas apreendidas pela polícia


O “número de armas apreendidas” pela polícia é um daqueles indicadores
que pode ser tanto interpretado como evidência da disponibilidade de armas em
circulação (apreende-se menos armas porque há menos armas nas ruas) quanto como
um indicador de atividade policial (apreendem-se menos armas porque a polícia está
realizando menos operações para tirar armas de circulação). Pelo menos no caso de
São Paulo, o número de armas apreendidos parece refletir mais a primeira dimensão
(disponibilidade de armas) do que a segunda (esforço policial). Primeiro porque a
quantidade de armas apreendidas vem caindo no Estado, não obstante o aumento da
atividade policial e o foco no controle de armas. A quantidade de armas apreendidas cai
claramente após o Estatuto do Desarmamento, que não afetou as operações policiais,
mas a decisão dos indivíduos de sair ou não armado nas ruas.
Finalmente, qualquer análise espacial que se faça das apreensões de armas em
São Paulo revela que há uma relação estreita entre o número de armas apreendidas
num setor policial e o número de homicídios naquele setor.

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 89


Tomando, portanto, o indicador “apreensão de armas pela polícia” como uma
mensuração do número de armas em circulação num determinado local e período,
vemos que o efeito do Estatuto do Desarmamento sobre a redução das armas em
circulação é claramente capturado na série histórica de apreensões de armas pela
polícia, que cai subitamente a partir de dezembro de 2003, apesar de não ter havido
diminuição na atividade policial. O Estatuto fez com que a média mensal de armas
apreendidas diminuísse em 425 armas, provavelmente porque as pessoas deixaram de
circular com as armas em função do aumento das penalidades previstas.

Armas Perdidas
Gráfico 2
Quebra na série de armas perdidas pela população, em dezembro de 2003

Diferentemente das armas apreendidas pela polícia, que pode refletir em alguma
medida o esforço policial, o número de armas perdidas pela população é claramente
uma medida da disponibilidade de armas legais num determinado local e tempo. A
Secretaria de segurança pública mantém um registro de armas perdidas, declaradas em
Boletim de Ocorrência pelos proprietários que temem ser culpabilizados caso as armas
sejam utilizadas em algum crime. Por motivos óbvios, a série reflete apenas a perda
de armas legalmente registradas. O número de armas perdidas no Estado vem caindo
progressivamente nos últimos anos – indicador da menor disponibilidade de armas em
circulação – e a série apresenta duas quebras nítidas, a última delas em dezembro de
2003, que reduziu em 4,2 a quantidade de armas perdidas por mês.

Homicídios Dolosos na Capital


A série histórica de homicídios dolosos na Capital, coletada pelo Infocrim, releva
também uma quebra no mês de novembro de 2003, que acentua a tendência de queda
anterior: esta quebra pode ser atribuída especificamente ao Estatuto e representou

90 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
uma diminuição de 45 homicídios por mês na cidade de São Paulo. Por algum motivo,
as séries de homicídios dolosos para a grande São Paulo e Estado não mostram uma
mudança de nível neste período, embora a série histórica de internações por agressões
intencionais com arma de fogo do Datasus sugira também uma quebra em novembro
de 2003.

Gráfico 3
Quebra na série de homicídios dolosos na Capital, em Novembro de 2003

Gráfico 4
Quebra na série de agressões intencionais por arma de fogo (datasus)
em Novembro de 2003

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 91


As mudanças de nível observadas nas séries histórias de crimes e indicadores
relacionados a armas evidenciam que o Estatuto contribuiu para acentuar a diminuição
do número de armas em circulação a partir do final de 2003, sendo parcialmente
responsável pela queda dos homicídios no Estado – principalmente se levarmos em
conta, como veremos adiante, que não houve uma redução generalizada da violência na
sociedade, mas apenas uma redução no grau de letalidade associada a esta violência.

Tabela 6
A tabela abaixo sumariza os resultados encontrados
data da queda absoluta
queda
Série alteração de no número de
percentual
nível na série casos
Armas apreendidas Estado 12/2003 -425 -12,9
Homicídio Capital 11/2003 -45,4 -14,8
Porte de arma GSP 02/2004 -29,9 -14,8
Agressões intencionais com armas de fogo Estado 11/2003 -41,7 -17
Latrocínio Estado 09/2003 -7,8 -17,8
Porte de armas Capital 09/2003 -60,2 -19,4
Porte de arma Estado 11/2003 -283,2 -21,7
Armas perdidas Capital 12/2003 -4,22 -25,5
Latrocínio Capital 02/2004 -4,83 -25,9

Todavia, o esforço para reduzir a quantidade de armas em circulação no Estado


de São Paulo é anterior a 2003, como veremos mais adiante.
Muito antes da aprovação do Estatuto de Desarmamento de dezembro de
2003, São Paulo já vinha adotando uma política de restrição de portes de armas e de
retirada de armas de fogo das ruas. Anualmente cerca de 40 mil armas são retiradas
de circulação pelas polícias do Estado. Entre 95 e 97 a média era de 7 mil armas por
trimestre, média que se elevou ao longo dos últimos anos para cerca de 9 mil por
trimestre. Paralelamente ao esforço de retirada das armas ilegais em circulação, a
Polícia Civil restringiu fortemente a entrada de novas armas em circulação através da
redução drástica do número de registros de novas armas. Em 1994 foram concedidas
42 mil registros de armas na Capital, em 1995 foram concedidos 31 mil registros e no
ano seguinte 22 mil. Depois de 1997 observa-se uma queda abrupta até chegar am
torno de 2.800 mil registros em 2003. Os portes de armas despencam de 68, 69 mil por
ano entre 1993 e 1994 para 2 mil em 2003.
Existem evidências de que estas medidas efetivamente reduziram o número de
armas em circulação em São Paulo ou pelo menos a circulação de armas nas ruas.
Em primeiro lugar, dados do Datasus indicam que houve uma queda no Estado no
número de lesões auto-provocadas intencionais por arma de fogo (suicídio): a literatura
criminológica sugere que, quando não existem medidas diretas da quantidade de
armas em circulação, a quantidade de suicídios cometidos com armas de fogo pode
ser tomada como uma “proxi”, uma vez que é forte a correlação observada entre
armas de fogo em circulação e suicídios com armas de fogo. Por outro lado, o Infocrim
indica uma diminuição no número de armas perdidas, o que também sugere a redução
da quantidade de armas em circulação. Finalmente, uma vez que as armas de fogo
são especialmente letais, é possível especular que os crimes tentados – homicídios e

92 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
suicídios, por exemplo – devem aumentar em relação aos consumados, se as armas
de fogo estiverem saindo de circulação. O infocrim aponta que de fato tanto os
homicídios quanto os suicídios tentados em São Paulo estão crescendo. O ato deixa de
ser consumado porque o meio utilizado é menos letal do que a arma de fogo.

ANALISANDO A RELAÇÃO ENTRE HOMICÍDIOS E ARMAS ATRAVÉS DE UM MODELO


DE TRANSFERÊNCIA DE FUNÇÃO (TRANSFER FUNCTION MODEL) E DE ANÁLISE DE
REGRESSÃO
No modelo abaixo utilizamos o número de suicídios com arma de fogo – uma
“próxi” para disponibilidade de armas – como variável explicativa para as internações
por agressão intencional por armas de fogo, ambas provenientes do Datasus. O resultado
indica que a quantidade de armas realmente afeta positivamente o nível dos homicídios
(t = 4.4, com prob. >.000), que há um componente autoregressivo de ordem 1 e 3 na
série de agressões e, além disso, que há outros “outliers” na série, como pulsos pontuais
(setembro de 1998 e novembro de 2000) e sazonais (maio de 2003).

Tabela 7
THE ESTIMATED MODEL PARAMETERS

STANDARD P T
MODEL COMPONENT LAG COEFF
# (BOP ERROR VALUE VALUE

1 CONSTANT 28.7 12.7 .0269 2.26

2 Autoregressive-Factor # 1 3 .500 .943E-01 .0000 5.30

3 Autoregressive-Factor # 2 1 .380 .106 .0006 3.57

INPUT SERIES X1 M_PROXIARMAS

4 Delta (output)-Factor # 3 1 .525 .137 .0003 3.82

5 Omega (input)-Factor # 4 0 1.34 .305 .0000 4.40

INPUT SERIES X2 I~S00063 2003/ 5 SEASP

6 Omega (input)-Factor # 5 0 60.6 13.9 .0000 4.35

INPUT SERIES X3 I~P00007 1998/ 9 PULSE

7 Omega (input)-Factor # 6 0 69.1 19.9 .0008 3.48

INPUT SERIES X4 I~P00033 2000/ 11 PULSE

8 Omega (input)-Factor # 7 0 51.8 20.1 .0118 2.58

Y(T) = 194.92

+[X1(T)][(1- .525B** 1)]**-1 [(+ 1.3405 )]


+[X2(T)][(+ 60.6161 )]
+[X3(T)][(+ 69.1371 )]
+[X4(T)][(+ 51.7989 )]
+ [(1- .500B** 3)(1- .380B** 1)]**-1 [A(T)]

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 93


Gráfico 5

Gráfico 6

O modelo utilizando o suicídio com arma de fogo como preditor explica cerca de
61% da variação encontrada na série de agressões intencionais com arma de fogo e
ilustra a relação entre a disponibilidade de armas e os homicídios. O modelo confirma
a hipótese segundo a qual a queda dos homicídios no Estado de São Paulo se deve em
boa parte à gradativa redução das armas de fogo em circulação, como apontado por
diversas evidências.
Alternativamente, usamos também a série de armas perdidas como uma variável
substituta “proxi” para a quantidade de armas em circulação, baseado na hipótese que
quanto mais armas em circulação, maior também o número de armas extraviadas.

94 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Seguindo o mesmo procedimento, introduzimos o número de armas perdidas num
modelo causal como variável preditora da quantidade de homicídios. O modelo
confirma que a quantidade de armas em circulação é um preditor relevante da
quantidade de homicídios (t = 3,82; sig. >.0003).
É importante ter este processo em mente como pano de fundo para interpretar a
atuação dos municípios na esfera da segurança pública, que coincide temporalmente
com o período de queda dos homicídios e outros indicadores criminais, mas que
não explica sozinho estes fenômenos. Embora o Estatuto do Desarmamento e ações
municipais como a adoção da Lei Seca tenham contribuído para a drástica diminuição
dos homicídios em São Paulo, vimos que a queda começa por volta de 1999 e atinge
praticamente todas as grandes cidades do Estado. As ações da polícia estadual e
as mudanças na política estadual com relação aos homicídios, neste sentido, são
importantes para a compreensão do fenômeno.

Plano de Combate aos homicídios


O DHPP – Departamento de Homicídios e Proteção à pessoa foi criado em 1996,
tendo por objetivo a investigação de homicídios e latrocínios, pessoas desaparecidas e a
proteção a vítimas e testemunhas. Na Capital, área de atuação do DHPP, os homicídios
caíram 36% entre 2000 e 2004. Parte desta queda pode ser atribuída ao Plano de
Combate aos homicídios posto em prática pelo Departamento a partir de abril de 2001,
que resultou num aumento de 770% no número de homicidas presos entre 2000 e 2004
e num aumento da taxa de esclarecimento de 20 para 48%. As principais estratégias
utilizadas foram a integração com a polícia militar, a identificação e aprisionamento
de homicidas contumazes e investimentos em inteligência e tecnologia da informação.
O recebimento de denúncias anônimas através do Disque Denúncia e a criação dentro
do DHPP do Serviço de Inteligência e Análise (SIA) foram passos importantes para a
obtenção destes resultados.
Tabela 8
Homicídios Homicídios
HD na Tx Tx %
Ano Prisões Variação Múltiplos múltiplos
Capital Capital Estado escl.
ocorridos esclarecidos

2000 165 - 53 39 5327 51,2 34,2


2001 368 123% 43 40 5174 49,3 33,2 20,4
2002 583 253% 40 39 4631 43,7 30,9 23,1
2003 1234 647% 23 22 4268 40,2 28,2 30,4
2004 1437 770% 22 20 3404 31,8 21,7 48,2
Fonte: DHPP – SSP/SP

O banco de dados da SAI contém atualmente 37 mil suspeitos cadastrados, dos


quais 28 mil com fotografias. Há também um banco de armas e outro de imagens de
cadáveres, que auxiliam no esclarecimento de casos. Como resultado, o Departamento
passou de 165 mandados cumpridos por ano em 2000, para 1437 em 2004. O papel
específico das ações policiais para a redução dos homicídios pode ser visto também
quando nos detemos sobre o fenômeno das chacinas ou homicídios múltiplos. Como
os homicídios, as chacinas também estão diminuindo desde 2000. Para os 159 casos

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 95


de homicídios múltiplos ocorridos desde 2000, a média de esclarecimentos pelo DHPP
foi de 82%.
A população carcerária no Estado cresceu de forma linear e rapidamente na
última década: de 56 mil em 1994 para cerca de 127 mil dez anos depois (junho de
2004). Qual o efeito do aumento das taxas de encarceramento sobre a redução dos
crimes em geral e dos homicídios em particular? O debate também ocorre nos EUA
onde se presenciou igualmente um crescimento acelerado das taxas de encarceramento,
paralelamente às quedas nas taxas de criminalidade, sugerindo um vínculo causal
entre os dois fenômenos.
Desde os anos 80, a participação dos homicidas na população prisional está
estabilizada ao redor dos 10%, como pode ser observado na tabela abaixo. Aplicando
este percentual, podemos estimar a quantidade de homicidas incapacitados no período:
em torno de 2000, quando os homicídios ainda cresciam no Estado, tínhamos algo em
torno de 9 mil homicidas presos em São Paulo e que atualmente teríamos algo em
torno de 13 mil homicidas presos, um crescimento considerável em menos de 4 anos.
Através do efeito “incapacitação”, cerca de quatro mil homicidas teriam sido retirados
de circulação nos últimos anos e outros tantos homicídios evitados através do efeito
“intimidação”, gerado pela prisão de criminosos conhecidos.
Analisando a queda da criminalidade em Nova Iorque, Mocan relata um efeito
positivo do aprisionamento de criminosos violentos sobre a criminalidade: um aumento
de 10% na taxa de aprisionamento de homicidas reduz os homicídios em cerca de
4%. Entre 1990 e 1999 as prisões de homicidas cresceram 72% em Nova Iorque e os
homicídios caíram 73% no mesmo período (Mocan, 2002). Em São Paulo, por sua vez,
a população prisional total cresceu 57% entre 1999 e 2004, passando de 83 mil a 131
mil presos, 139% se comparado com 1995.
Assim, mesmo que o crescimento da população prisional do Estado tenha
ocorrido de forma linear desde o começo dos anos 90 e mesmo que a porcentagem
de homicidas na população prisional tenha se mantido estável, segundo a hipótese do
“limiar”, a partir de um certo ponto entre 2000 e 2001, a grande quantidade de prisões
pode ter implicado em alguma mudança de qualidade, contribuindo para a diminuição
dos crimes de morte a partir de então.
Questão complexa e multidimensional, a criminalidade e seus movimentos
dificilmente podem sem explicados por um grupo único de fatores. O mais provável
é que diversos fatores e a interação simultânea entre eles tenham contribuído para a
queda dos homicídios no Estado. Nesta breve análise, diversos fatores importantes
ficaram de fora, tais como os efeitos dos primeiros investimentos do Fundo Nacional
de Segurança Pública (2000), da criação do Disque Denúncia (2000), da utilização do
Infocrim (2000), da criação do Fórum Metropolitano de Segurança Pública (2001) e
diversas outras mudanças positivas que ocorreram no âmbito da segurança pública no
período e que podem ter contribuído para a queda dos homicídios.
Políticas públicas preventivas, focadas em áreas e grupos de risco, são extremamente
relevantes para a prevenção de longo prazo, mas dificilmente podem ser invocados neste
momento como causa eficiente para o fenômeno da queda dos homicídios no Estado: queda
iniciada em 1999, rápida e que abrangeu homogeneamente todo o Estado e não apenas a
Capital, posto que das 19 cidades com 100 ou mais homicídios, 16 apresentaram queda
entre 2000 e 2003, bem como metade das cidades com mais de 100 mil habitantes.

96 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
O mais provável é que políticas especificamente de segurança, atuando homoge-
neamente em âmbito estadual, tenham sido as principais responsáveis pela drástica
queda dos homicídios em São Paulo em apenas cinco anos, enquanto os homicídios
estão crescendo em Minas Gerais e caindo ligeiramente no Rio de Janeiro no mesmo
período.
Trata-se de um processo relativamente recente e pouco documentado, de modo
que é arriscado chegar a conclusões definitivas a esta altura; nos EUA ainda hoje
se discutem as causas da redução generalizada da criminalidade no país na década
passada: crescimento econômico, tolerância zero, legalização do aborto, crescimento
da população prisional, mudanças demográficas, estabilização do mercado de drogas,
inúmeras hipóteses foram aventadas para tentar explicar o fenômeno.
Em linhas gerais, o que se pode avançar sobre o tema é que não se trata nem
de fenômeno nacional nem de processo exclusivo de São Paulo. As maiores reduções
ocorreram nas cidades maiores e, dentro da Capital, a queda foi generalizada em
diversos tipos de bairros e tipos de local.
Não houve necessariamente uma diminuição no grau de violência da sociedade,
mas antes uma diminuição no grau de letalidade desta violência, provavelmente
derivada da redução do estoque de armas de fogo em circulação. Mudanças macro-
sociais como a elevação da qualidade de vida no Estado, a diminuição dos fluxos
migratórios e a diminuição dos jovens de 10 a 19 anos na composição demográfica da
população podem ter desempenhado algum papel no processo.
No campo das políticas públicas, para ficar apenas no âmbito da repressão, além da
restrição às armas e do aumento rápido das taxas de encarceramento, a implementação
da Lei Seca em diversos municípios da Região Metropolitana, a ênfase policial na captura
e aprisionamento de homicidas perigosos e no combate ao tráfico de entorpecentes,
desempenharam certamente algum papel para a obtenção deste resultado.

1.1) A relação dos homicídios com o álcool

Sabe-se que, ao lado das armas de fogo, as bebidas alcoólicas são um dos mais
importantes fatores criminógenos, ou seja, fatores na presença dos quais, num contexto
já violento, a violência é potencializada (Parker et all, 1988; Norstrom, 1998; Markowitz,
2000; Exum, 2002; Duque e outros, 2003; Longshore et all, 2004; Wagenaar, 2004).
Entre outros efeitos, o álcool diminui a capacidade cognitiva e aumenta a probabilidade
de respostas agressivas do indivíduo na presença de uma provocação (Exum, 2002).
O indivíduo alcoolizado apresenta déficits tanto na atenção como na capacidade
de julgamento e fica mais vulnerável não apenas à vitimização por homicídio mas
também em outras situações envolvendo acidentes e violências. Álcool e violência
estão associados seja pelos efeitos farmacológicos da bebida, seja porque indivíduos
violentos ou com intenção de cometer violência bebem ou ainda porque o consumo
de álcool e o comportamento violento são ambos indicadores de uma dimensão que
pode ser denominada “comportamento de risco” (Markowitz, 2000).
Trata-se de analisar, porém, principalmente, a influência do álcool dentro de
um determinado contexto, como claramente mostram os mapas de concentração de
homicídios em São Paulo e outras cidades. Estamos falando da existência de processos
sociais que envolvem aspectos coletivos na vida da comunidade local – coesão social,

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 97


infra-estrutura local, controles sociais informais, subculturas de violência, pobreza,
etc – que explicam porque álcool e outras substâncias crimogênicas trazem efeitos
danosos em algumas áreas, mas não em outras. Num estudo relacionando capital
social e criminalidade em diferentes bairros de Chicago, Sampson mostra como o
grau de “eficácia coletiva” da vizinhança está associado com a redução das taxas de
homicídio (Sampson, 2003).
Dados brasileiros confirmam a presença elevada de álcool tanto entre as vítimas
como entre autores de crimes. Vejamos mais detalhadamente o perfil epidemiológico
brasileiro, tanto do uso do álcool como dos homicídios.

Uso do álcool no Brasil e Violência


São poucos os dados sobre o uso do álcool no Brasil, de modo que é possível fazer
apenas um panorama superficial com as informações existentes. Estima-se que a cerveja
represente 85% das bebidas alcoólicas consumidas no país, que é o quarto maior produtor
mundial de cerveja, tendo produzido 10,4 bilhões de litros em 2003. A média de litros
de cerveja por pessoa era de 41,2 em 1990, chegou a 50,9 em 1997 e atualmente está
em torno de 47,6 litros. Depois da cerveja, a cachaça (12 litros per capta/ano) e o vinho
(1,8 litros per capta/ano) são as bebidas mais consumidas e os jovens do sexo masculino
são os maiores consumidores. De uma maneira geral, o consumo de cerveja subiu na
década entre 3 a 5% ao ano, refletindo o aumento do poder aquisitivo da população após
o Plano Real. As padarias escoaram 85% das vendas (Sindcerv e Cipola, 2005).
Os melhores dados sobre consumo de álcool no Brasil podem ser encontrados nas
pesquisas realizadas pela Organização Mundial de Saúde, que há décadas monitora o
consumo de bebidas no mundo e seus efeitos sobre a saúde. Segundo a Organização
Mundial de Saúde, o Brasil está em 63º lugar entre 153 países no ranking de consumo
per capta de álcool. Ainda segundo o estudo da OSM feito em 1999, entre 1970 e 1990,
o Brasil teve um crescimento de 74,5% no consumo de bebidas alcoólicas.
A tabela abaixo foi extraída do Global Status Report on Alcohol 2004 e mostra
um crescimento sistemático no consumo de bebidas alcoólicas per capta no país desde
1961 até 1997, quando o pico da série é atingido – exceto de vinho, que se mantém
praticamente estável. A partir de 1997, a tendência se inverte ligeiramente.

Gráfico 7
Brazil – Recorded aldult per capita consumption (age 15+)

Sources: FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), Word Drink Trends 2003

98 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
O aumento no consumo de bebidas no Brasil entre 1961 e 1997 pode estar
relacionado a diversos fatores, como por exemplo, por hipótese: a) a intensa e irrestrita
propaganda do produto nos meios de comunicação, voltada principalmente para os
jovens, associando bebida a status e outros símbolos positivos. Cerca de 5% dos
comerciais e nada menos que 27% das vinhetas exibidas na TV são propagandas de
bebidas (Pinski, I USP, 1994, tese de mestrado: Análise da Propaganda de Bebidas
Alcoólicas na Televisão Brasileira, citado em Alcohol and Public Health in 8 developing
Countries, WHO, 1999); b) redução dos custos de produção, principalmente depois
do programa pró-álcool – que barateou os custos dos destilados de cana de açúcar;
c) mudanças nos padrões culturais e religiosos com relação ao consumo de bebidas,
principalmente entre mulheres e jovens; d) tolerância policial com relação a crimes de
menor gravidade, como embriaguez; e) tolerância administrativa com relação à licença
para a venda de bebida e aumento na densidade de bares nas periferias dos grandes
centros urbanos; e f) mudança nos invólucros, que tornaram mais fácil o transporte,
manuseio e consumo de bebidas (bebidas em lata, garrafas menores, abertura sem
abridor de garrafas).
Este crescimento vertiginoso no consumo de bebidas nas últimas décadas – de
1,88 litro per capta em 1961 para 5,32 litros por capta por ano em 2001, 182% de
crescimento – transformou o Brasil num país de consumo “médio” para os padrões
mundiais, uma vez que a média per capta de consumo de álcool é de 5,1 litros.
O caso brasileiro chama a atenção não tanto pela taxa de consumo per capta,
mas antes por apresentar uma elevada taxa de dependência de álcool entre os adultos:
11,2% dos consumidores podem ser considerados dependentes de álcool, o que deixa
o Brasil apenas atrás da Polônia entre os países analisados. Entre os homens adultos
com idade de 18 a 24 anos, a taxa de dependentes chega a 26.3%, colocando o Brasil
entre os cinco da lista com mais jovens dependentes.
Levantamentos realizados nos anos 90 pelo CEBRID – Centro Brasileiro de
Informações sobre Drogas Psicotrópicas – estimam que entre 6,6 e 11,2% da população
brasileira pode ser considerada dependente de álcool. Entre os jovens do sexo masculino,
a prevalência de dependentes de álcool sobe para 23,7%, de acordo com a pesquisa
realizada em 2001 nas 107 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes. Cerca
de 69% dos pesquisados revelaram ter usado álcool alguma vez na vida, sendo a
prevalência elevada mesmo entre adolescentes entre 12 a 17 anos (48,3%).
Digno de nota é o dado segundo o qual 7,9% dos homens declararam já ter
discutido com outras pessoas após a ingestão de bebidas alcoólicas. (Galduroz e
Caetano, 2004) A relação entre uso de álcool e violência é evidenciada também num
artigo citado de Duarte e Carlini-Cotrim, que analisaram 130 processos de homicídios
ocorridos entre 1990 e 1995 em Curitiba: segundo o estudo, 53,6% das vítimas e
58,9% dos autores estavam sob efeito de bebidas alcoólicas no momento do crime.
Não existem dados disponíveis sobre o consumo de álcool no Estado, mas
algumas evidências indiretas apontam para uma eventual diminuição do consumo
mais pesado de álcool em São Paulo. Na ausência de dados fidedignos sobre o consumo
de álcool, é possível utilizar como variável substituta (proxi) diversos indicadores da
área da saúde relacionados a doenças e mortalidade causadas pelo álcool, uma vez
que diversos estudos mostraram através de análises de séries temporais que existe
uma relação forte e positiva entre o consumo de álcool e morbidade por doenças

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 99


relacionadas ao álcool, como intoxicação, psicose, cirrose, pancreatismo e alcoolismo.
(Norstrom, 1998). Além disso, através do uso dos indicadores do sistema de saúde é
possível estimar também o consumo não registrado de álcool (importação, fabricação
caseira, etc), que é bastante elevado no Brasil, onde é grande a produção artesanal de
cachaça e outras bebidas, cujo volume de consumo se desconhece.
O fato é que, por algum motivo – cuja explicação será tentada mais adiante – a
morbidade na rede pública de saúde por “auto intoxicação voluntária por álcool” cai
de 34 por mês em 1998 / 1999 para 19 por mês em 2004 / 05, uma queda de 44% no
período. Por sua vez, os atendimentos por intoxicação por álcool na rede pública caem
de seis mil por ano em 1992 para cerca de dois mil por ano em 2004.
Além dos dados da rede pública de saúde, é possível, como vimos, estimar o
consumo através de pesquisas de consumo com amostras da população. A última
pesquisa do Cebrid realizada em 2004 – 5º Levantamento Nacional sobre o Consumo
de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes – apontou uma redução no consumo de
álcool entre os jovens com relação aos dados levantados em 1997. O problema é saber
se estas quedas se devem a redução real no consumo ou a mudanças operacionais no
atendimento médico do sistema de saúde pública ou ainda a flutuações amostrais, no
caso das pesquisas de consumo.
Mas se esta tendência de queda no consumo de álcool for correta, ela pode
explicar parcialmente a queda dos homicídios no Estado. Existem algumas possíveis
hipóteses para isso: a) mudança na propaganda alertando que bebidas alcoólicas
podem fazer mal a saúde se consumidas em excesso: em 1996 uma Lei Federal proibiu
a propaganda no rádio e na TV de bebidas que contenham mais de 13% de etanol
entre as 6:00 e 21:00 horas; b) aumento relativo do preço do álcool em função da
perda do poder aquisitivo da população, c) introdução do novo Código Nacional de
Trânsito; d) campanhas contra o uso do álcool realizadas pelas Igrejas, principalmente
evangélicas, que crescem rapidamente no país e tem meios próprios de comunicação –
e) controle mais rigoroso do consumo: a série histórica de ocorrências por “embriaguez”
registradas pela polícia no município de São Paulo mostra um crescimento entre 2000
e 2004, apontando talvez para o fato de que a polícia está mais rigorosa com relação
ao consumo excessivo de álcool, aumentando os “custos” do consumo excessivo.
O crescimento das religiões Evangélicas foi um dos fenômenos mais notáveis no
país, segundo o IBGE, que diagnosticou no último censo em 2000 que os Evangélicos
já são cerca de 15 % da população do país, com 26 milhões de seguidores. A taxa
de crescimento anual dos evangélicos no Brasil entre 1991 e 2000 foi de 7,43% e
no Sudeste está entre 7 e 10%. No Sudeste os evangélicos representam quase 22%
da população (projeção para 2004) e apenas na região metropolitana de São Paulo
os evangélicos são 3.134.940 pessoas ou 17,53% da população da RM, segundo o
censo de 2000. As Igrejas Evangélicas estão espacialmente concentradas nos bairros
periféricos de São Paulo, onde também ocorre a maioria dos homicídios. É comum
nessas Igrejas a pregação contra o consumo do álcool, drogas e a violência. Por outro
lado, diversos estudos mostram que a religião é uma dimensão importante quando se
trata de analisar o envolvimento da população – principalmente adolescente – com
álcool e drogas (Dalgalarrondo e outros, 2004). No Brasil, um estudo de 1998 investigou
2.287 estudantes de uma amostra de sete escolas públicas e privadas de Campinas,
através de um questionário de crimes auto-reportados. Entre os resultados encontrou-

100 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 9

se que o uso pesado de pelo menos uma droga no último mês foi mais freqüente entre
os estudantes que não tiveram uma educação religiosa durante a infância. O uso no
último mês de cocaína, ecstasy e o abuso de remédios foram mais freqüentes entre
os estudantes que não tinham religião e que não tiveram uma educação religiosa na
infância. A conclusão é que religião tem uma forte influência sobre uso de drogas e
álcool entre adolescentes. (Dalgalarrondo e outros, 2004).

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 101


Relação entre consumo de álcool, religião e vitimização

Uma pesquisa de vitimização realizada pelo Instituto Futuro Brasil – IFB em 2003,
em que foram entrevistadas 5000 pessoas nos 96 distritos da cidade de São Paulo, traz
importantes informações sobre a relação entre álcool, religiosidade e vitimização. Os
dados mostram que o hábito de consumir bebida alcoólica é maior entre os homens
(59,2%) do que entre as mulheres (39,8%) P <,000. As diferenças de idade também
são significativas, sendo a população de 20 a 39 anos a que mais consome álcool
(54,3%), seguida da faixa de 40 a 59 anos (49,6%) e dos adolescentes de 16 a 19
anos (45,6%). Na população de 60 ou mais anos essa proporção cai para 29,2%.
O consumo também tende a ser maior entre os mais ricos do que entre os mais pobres,
em relação linear:
O(A) Sr(a) costuma tomar alguma bebida alcoólica, mesmo que muito raramente
ou em ocasiões muito especiais? sim

Tabela 10
Classe %
A 64,2
B 53,2
C 46,7
D 41,9
E 34,1

Como vemos na tabela abaixo, há uma estreita relação entre consumo de álcool
e ser vítima de algum crime ou se envolver em algum tipo de ocorrência delituosa
(quanto maior o consumo, maior a vitimização). As diferenças são expressivas, e
mesmo nos casos em que não há uma associação significativa os dados apontam
sempre no sentido de maior propensão ao envolvimento com ocorrências entre os que
costumam consumir álcool.
As diferenças observadas na relação entre álcool e vitimização ocorrem de
forma homogênea entre as classes sociais, apesar dos mais ricos tenderem a ser mais
vitimizados do que os mais pobres. No entanto, a força das associações difere em
alguns tipos de crime. Nos crimes contra o patrimônio, por exemplo (sobretudo roubo
e furto de carro / moto), a associação tende a ser maior entre os mais ricos. As questões
que envolvem a presença de armas de fogo (já foi ameaçado por arma de fogo, alguém
disparou uma arma de fogo contra o(a) sr(a), já foi ferido com arma de fogo alguma
vez na vida) são as que tem as associações mais significativas, apontando o álcool
como elemento potencializador do ato agressivo, tal como observado na literatura,
o que evidencia novamente a hipótese da combinação entre álcool e violência. Essas
associações tendem a ser mais fortes entre os mais pobres.

102 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 11
Consumo de álcool X vitimização
O(A) Sr(a) costuma tomar alguma bebida
alcoólica, mesmo que muito raramente
ou em ocasiões muito especiais?
Sim Não Total P
Nos últimos 12 meses foi vítima de algum furto ou roubo? sim 14,1% 9,8% 11,9% ,000
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
20,7% 12,1% 16,3% ,000
teve carro ou moto roubado furtado? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
39,9% 29,4% 34,5% ,000
teve algum outro bem roubado ou furtado? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
14,3% 8,5% 11,4% ,000
sofreu alguma forma de agressão física? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
28,9% 17,0% 22,8% ,000
foi ameaçado com uma arma de fogo? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
5,4% 2,4% 3,9% ,000
alguém disparou uma arma de fogo contra o(a) sr(a)? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
10,0% 6,1% 8,0% ,000
foi ameaçado por algum outro tipo de arma? sim
Nos últimos 12 meses foi vítima de alguma outra forma
2,6% 1,4% 2,0% ,009
de violência ou crime? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
1,6% ,7% 1,2% ,021
foi ferido por uma arma de fogo? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
19,5% 17,2% 18,3% ,060
teve sua casa invadida por assaltantes? sim
Nos últimos 12 meses foi vítima de alguma agressão física? sim 2,6% 1,8% 2,2% ,150
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
2,0% 1,5% 1,7% ,334
foi ferido por algum outro tipo de arma? sim
Fonte: IFB

Para observar efeitos do álcool no comportamento agressivo, comparamos o


consumo de álcool com o uso de arma de fogo e com atitudes anti-sociais em duas
situações diferentes, como mostra a tabela abaixo. Novamente constata-se a associação
significativa entre o consumo de álcool e a atitude agressiva.

Quadro 1
Consumo de álcool X agressão
O(A) Sr(a) costuma tomar alguma bebida
alcoólica, mesmo que muito raramente ou
em ocasiões muito especiais?
Sim Não Total P
Alguma vez na sua vida o(a) Sr(a)... usou ou mostrou uma arma
4,0% 2,0% 3,0% ,000
para se defender? sim
Nos últimos 12 meses, quantas vezes o(a) Sr(a) gritou contra alguém
que estivesse dirigindo um carro para demonstrar que não gostava de
23,3% 13,6% 18,3% ,000
seu modo de dirigir? Às vezes, três a cinco vezes / Freqüentemente,
seis ou mais vezes
Nos últimos 12 meses, quantas vezes, no meio de algum problema,
o(a) Sr(a) gritou contra alguém que não era seu familiar? Às vezes, 16,8% 8,4% 12,5% ,000
três a cinco vezes / Freqüentemente, seis ou mais vezes

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 103


A relação entre álcool e comportamento agressivo também aparece de forma
homogênea entre as diferentes classes sociais, embora a associação pareça ganhar
força nas classes mais baixas em relação aos mais ricos nos três itens pesquisados.
Esses dados mostram que embora não haja dúvida na potencialização da violência
e de seus efeitos pelo álcool, essa relação deve ser observada com cuidado, pois em
diferentes contextos – como as características socioeconômicas das diferentes regiões
da cidade – esse efeito muda de qualidade, o que muda também o efeito das políticas
públicas específicas de prevenção ao uso do álcool sobre os grupos sociais.
A análise entre álcool e religiosidade também aponta aspectos interessantes. A
pesquisa mostra que quanto maior a participação em atividades religiosas, menor o
consumo de álcool. A relação é linear e aparece com relação a todas as classes sociais.
Vemos que quanto mais baixa é a classe social mais forte a associação entre aumento
da freqüência aos cultos e diminuição do consumo de álcool, observação que vai ao
encontro do fato que a maior parte dos evangélicos são provenientes das classes mais
baixas – como veremos mais adiante – e da pregação contra o uso do álcool que eles
fazem em seus cultos.
Tabela 13
Com que freqüência o(a) Sr(a) participa de atividades ou cultos dessa religião?

Menos
De 1 a 3 Ao menos Mais de
Nunca de uma
vezes ao uma vez uma vez Total P
participa vez ao
mês por semana por semana
mês
costuma tomar bebida
classe A 64,6% 70,4% 71,8% 58,2% 43,5% 62,4% ,004
alcoólica
costuma tomar bebida
classe B 59,5% 57,7% 57,2% 46,9% 40,2% 52,4% ,000
alcoólica
costuma tomar bebida
classe C 58,5% 53,4% 50,9% 40,8% 27,4% 44,8% ,000
alcoólica
costuma tomar bebida
classe D 59,0% 46,2% 47,5% 31,7% 18,4% 40,2% ,000
alcoólica
costuma tomar bebida
classe E 57,9% 71,4% 38,5% 26,1% 8,1% 35,7% ,000
alcoólica
Fonte: IFB

Ao compararmos o hábito de beber com o tipo de religião, vemos que a pregação


dos evangélicos contra a bebida realmente surte efeito. Do total de evangélicos
entrevistados, apenas 26,8% costumam tomar bebida alcoólica, contra 53,5% dos
católicos e 53,6% entre os adeptos de outra religião.

Tabela 14
Tipo de Religião
evangélico católico outro Total P
Costuma tomar bebida alcoólica 26,8% 53,5% 53,6% 49,1% ,000
Fonte: IFB

É importante considerarmos também que os evangélicos em sua maioria fazem


parte do grupo mais carente da população. De acordo com a pesquisa, os evangélicos
tem baixa escolaridade e 68,8% estão nas classes C, D e E. Religião que tem tido uma

104 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
adesão impressionante nos últimos anos, sobretudo em suas vertentes mais modernas,
como a Igreja Universal do Reino de Deus, os evangélicos compõem hoje cerca de 20%
da população paulistana, sendo que 69,1% tem entre 16 e 39 anos, confirmando um
perfil mais jovem em relação às outras religiões. A tendência a beber menos quanto
menor o nível de renda é muito mais clara entre os evangélicos: na classe E, 7,5%
dos evangélicos costumam consumir álcool, enquanto entre os católicos, na mesma
classe, a proporção é de 50,7% e entre os freqüentadores de outras religiões 57,1%. Os
evangélicos mais pobres, além de consumirem menos álcool, são os mais assíduos aos
cultos de sua religião, respondendo ao apelo focado na população mais carente que
é característico dos pastores evangélicos, hoje cada vez mais influentes nos meios de
comunicação, possuindo canais próprios de televisão e diversas estações de rádio.
Apesar do enfoque da pesquisa não permitir tirar maiores conclusões sobre essas
relações, podemos inferir que o crescimento das igrejas evangélicas e a participação da
população mais pobre pode ter relações com a vitimização desse público, principalmente
com relação aos homicídios, cuja população de risco é a mais jovem e mais pobre.
A relação entre tipo de igreja freqüentada e as diferentes categorias de vitimização
não sugere diferenças importantes, no entanto é possível supor que o envolvimento
com atos ilícitos poderia ser maior nessa população não fosse a influência da igreja
evangélica, que arregimenta justamente a parcela da população mais vulnerável à
violência. Exemplo disso é a relação com o uso de armas entre os que consomem
álcool, e sua presença nitidamente menor entre os mais assíduos aos cultos.
Curiosamente, apesar dos mais ricos terem maior prevalência de consumo de
álcool, as classes mais baixas são as que vão aos bares e botecos da cidade com maior
freqüência. Na classe E, aqueles que disseram freqüentar bar ou botequim quase
todos os dias somam 15,5%, enquanto os que disseram freqüentar uma ou duas vezes
por semana são 27,9%, totalizando 43,4%. Na classe D, essa parcela totaliza 36,6%,
enquanto nas classes A e B os números são de 19,4% e 24,3%. Quando perguntados
especificamente sobre o tipo de estabelecimento em que costumam beber, 47% dos
consumidores da classe E freqüentam bares, lanchonetes ou padarias. Nas outras
classes, essa freqüência cai progressivamente: 31% na classe D, 26,8% na C, 18,5%
na B e 14,7% na classe A.
Essa alta freqüência dos mais pobres pode estar refletindo a ausência de outros
recursos sociais, concentrando a população nos bares existentes nos bairros da
periferia, sobretudo os mais jovens, que consomem em maior quantidade e vão aos
bares com freqüência muito maior que os mais velhos (43% entre 16 e 19 anos e
33,4% entre 20 e 39 anos costumam ir a um bar ao menos uma vez por semana).
Dessa forma, em ambientes marcados pela carência de atenção dos recursos públicos
e vitalidade comunitária, o efeito do álcool e o contexto dos botecos podem estar
funcionando como mais um elemento intensificador da violência.

Álcool nas vítimas de homicídio em São Paulo


As vítimas são freqüentemente co-responsáveis no processo de “precipitação” da
violência que resulta no homicídio. (Marvin Wolfgang, “Victim-precipitated criminal
homicide”, in: Classics of Criminology, Waveland Press, 2004). Num estudo clássico
citado por Wolfgang sobre a natureza dos homicídios na Filadélfia entre 1948 e 1952,
conclui-se que 26% dos casos poderiam ser classificados como VP, ou homicídios

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 105


precipitados pela vítima, que difere dos demais casos de homicídio em algumas
características: proporção elevada do uso de faca como meio, envolvimento entre vítima
e autor, presença de álcool, presença de antecedentes criminais por agressão, entre
outras diferenças relevantes. O uso do álcool parece estar fortemente relacionado a este
processo de precipitação, pois ele aumenta a agressividade num contexto de provocação
e diminui a capacidade de julgamento do indivíduo. A CAP da SSP de São Paulo, em
conjunto com a Secretaria Estadual de Saúde, fez dois levantamentos com relação ao
uso de álcool entre as vítimas de homicídio, utilizando amostras em 2001 e 2004, cujos
resultados exploramos a seguir: de um total de 2.714 laudos examinados em 2001, o
exame toxicológico não foi solicitado para 1.492 vítimas (55,0%). Entre aquelas que
tiveram o exame solicitado, para um pouco mais que a metade (55,8%) o resultado foi
negativo. O álcool foi a substância mais utilizada entre estas vítimas (42,5%). O uso de
cocaína sozinha, ou associada ao álcool apresentou percentuais muito baixos (0,7%).
Visto não ser conhecido o critério para solicitação de exame, esses percentuais
não devem ser generalizados para o conjunto das vítimas. Feita essa ressalva, os
resultados mostrados a seguir dizem respeito somente às vítimas que tiveram o exame
solicitado. O exame toxicológico é provavelmente solicitado quando a autoridade
policial suspeita do uso de substância pela vítima, o que pode elevar os percentuais
encontrados.(Gawryszewsky, Kahn e Mello Jorge, 2004).
Foi encontrada maior proporção de consumo de álcool no sexo masculino
(44,0%), enquanto nas mulheres foi de 24,0%. Os cálculos realizados mostraram que
essa diferença é estatisticamente significativa (X2=10,4; =5%). Em relação à faixa
etária das vítimas de homicídios que tiveram o exame toxicológico realizado pelo
IML, observa-se que nas idades mais jovens e mais velhas, o percentual de resultados
positivos para o álcool é menor que a proporção da média. Porém, nas faixas mais
velhas tanto o número absoluto de vítimas quanto o percentual de exames solicitados
são menores. A faixa de 30 a 44 anos apresenta 51,2% de positividade para o álcool
entre as vítimas. Seguem-se os de 45 a 59 anos com 47,2%.
A análise do consumo de álcool (excluídos aqueles cujo exame não foi solicitado)
segundo o meio utilizado para a perpetração dos homicídios também mostrou
diferenças. Entre aqueles cometidos por arma de fogo, 41,0% das vítimas tinham feito
uso de álcool, enquanto para os outros meios (arma branca, objeto contundente etc),
esse percentual é maior, chegando a 58,9%. Essa diferença mostrou-se estatisticamente
significativa (X2=16,5;=5%).

Dia e horário da semana:


A análise dos dados do Boletim de Ocorrência, onde consta o dia e horário da
ocorrência, confirma que os dias da semana que apresentaram maior proporção dessas
ocorrências correspondem aos finais de semana, concentrando 50,0% do total de casos:
sábado (500 vítimas), domingo (462) e sexta feira (348). A quarta feira é o dia com
menor número de vítimas (233). É durante a noite e madrugada que a maior parte desses
crimes ocorreram (entre 19:00 horas e 1:00 foram registrados 41,1% dos eventos). Essa
fonte também possibilitou o conhecimento do local de ocorrência do evento, tendo sido
verificada a coincidência entre local de residência da vítima e local de ocorrência do
crime para 50,6% das vítimas. Para 24,0% dos óbitos essas localidades eram próximas
e para 17,3% deles, os locais de residência e ocorrência eram diferentes.

106 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Chama atenção a alta prevalência de utilização do álcool entre as vítimas de
homicídio que tiveram o exame toxicológico realizado (42,5%) apontando que mais
estudos devam ser realizados para elucidar o papel do álcool na potencialização dos
conflitos sociais que resultam em morte, em nosso meio. Esse resultado é próximo ao
encontrado em pesquisa realizada com vítimas não fatais de agressões atendidas em
um importante serviço de emergência do Município de São Paulo, onde percentual de
alcoolemia encontrado foi 46,2%. O perfil desses pacientes, maior prevalência no sexo
masculino e na faixa etária de 25 a 44 anos, também coincide com o encontrado no
presente. Os resultados encontrados em Cali, Colômbia, entre as vítimas de homicídios,
são menores, variando entre 13,0 e 23,4%, no período de 1993 a 1998.
Este perfil epidemiológico – vítimas e autores alcoolizados, concentração das
mortes nas noites e nos finais de semana – fez com se pensasse numa legislação para
o fechamento dos bares neste período, como forma de diminuir as mortes2. Os efeitos
desta medida serão explorados no próximo tópico.

1.2) Efeitos da Lei Seca

A limitação de horários e dias para o consumo de bebidas é uma das 31


estratégias identificadas pela Organização Mundial de Saúde para reduzir o consumo
de álcool. (Hawks, David. Prevention of Psychoactive Substance Use – a selected
review of what works in the area of prevention, WHO, 2002). Vários estudos revistos
pela OMS apontaram a relação entre o aumento do horário e dias de venda de álcool
e crescimento no número de acidentes de trânsito, agressões e violências (Chikritzhs,
1997) embora poucos estudos tenham abordado a relação entre a diminuição dos
horários e dias de venda e a diminuição da criminalidade.
Limitar o funcionamento de bares aparentemente não é uma medida popular:
ela interfere na liberdade individual, nas atividades de lazer da população, já bastante
escassas, e também afeta o comércio local. É preciso, portanto, ter fortes razões para
implementar medidas drásticas como a Lei Seca. Para a população, todavia – de acordo
com pesquisas de opinião realizada pela CNT/Census em abril de 2002 com dois mil
entrevistados em 195 municípios do país – é o vínculo da bebida com a violência
que faz com que medidas como a Lei Seca recebam aprovação. Dos entrevistados,
82,8% afirmaram que “o consumo de bebidas alcoólicas é responsável pelo aumento
da violência na sua cidade”. Esta crença é que explica porque 73% da amostra aprovou
a “limitação de venda de bebidas alcoólicas a partir de determinada hora da noite
como medida de combate à violência”.
Tabela 15
bebidas alcoólicas – limitação da venda abril de 2002 %
aprova 73,0
desaprova 24,6
ns/nr 2,5
total 100

2 Curiosamente, apenas 2% dos homicídios ocorrem dentro de “bares”, “boates” ou “lanchonetes”, segundo a
classificação de tipo de local adotada pelo Infocrim; é possível contudo que outros casos tenham sido classificados na
categoria “estabelecimentos comerciais”, no interior dos quais ocorrem 3,9% dos assassinatos em São Paulo.

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 107


Qual é a sua opinião sobre a limitação da venda de bebidas alcoólicas a partir de
determinada hora da noite como medida de combate à violência? 1- aprovo, a violência
está fortemente ligada ao consumo de álcool; 2- desaprovo, a medida contraria a
liberdade individual.

As justificativas aqui são as mesmas das utilizadas para forçar os motociclistas


a usarem capacete ou os motoristas a usarem o cinto de segurança: são equipamentos
desagradáveis, mas o impacto econômico e social dos acidentes automobilísticos por
falta de capacete ou cinto na população é tão elevado que o problema se tornou uma
questão de saúde pública; nestes casos, considera-se legítima a intervenção estatal,
forçando os indivíduos a tomarem precauções com relação à sua própria segurança,
mesmo a contragosto. Tais medidas drásticas e impopulares se justificam na medida
em que existem evidências empíricas que demonstram que o uso de capacete ou
cinto de segurança de fato contribuem para poupar vidas e custos à sociedade, cujo
interesse nestes casos se sobrepõem aos individuais. O mesmo pode ser dito, por
exemplo, com relação à proibição do uso de armas de fogo pela população, uma vez
que os homicídios por arma de fogo no país assumiram dimensões epidemiológicas:
é preciso investigar se estas limitações – diminuir os horários de funcionamento de
bares e proibição do uso de armas – são efetivas e se justificam em nome do interesse
público maior, mesmo às custas de cerceamentos individuais.
No Brasil, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira da Unifesp e o pesquisador norte-
americano Robert Reynolds, da organização internacional PIRE – voltada à avaliação
de políticas públicas – apresentaram em outubro de 2004 os resultados de um estudo
sobre a relação entre o consumo de álcool e violência na cidade de Diadema, que a
partir de julho de 2002 proibiu a venda de bebidas alcoólicas após 23h. De acordo com
a pesquisa, dados comparativos do número de homicídios em Diadema desde a data da
implantação da “lei seca” revelam que houve diminuição da violência contra a mulher
(36,54%); homicídios (23,6%) e casos de atendimento em pronto-socorros (67,68%).
Nos últimos cinco anos, 16 cidades na Grande São Paulo editaram alguma espécie
de “Lei Seca”. Em levantamento anterior realizado pela Coordenadoria de Análise
e Planejamento para avaliar o impacto destas iniciativas, constatou-se que das 11
cidades com Lei Seca para as quais a taxa de variação de homicídios entre 2001 e 2003
foi calculada, os homicídios caíram em 8. Em contrapartida, das nove cidades sem Lei
seca para as quais a taxa de variação de homicídios entre 2001 e 2003 foi calculada, os
homicídios caíram em 5. O mapa abaixo mostra em verde as cidades que adotaram a
Lei Seca na Região Metropolitana de São Paulo.
Verificamos na ocasião que a queda dos homicídios no primeiro semestre de
2003 com relação ao mesmo período de 2001 tinha sido bem maior (-9,8%) onde a Lei
Seca está em vigor, do que nas demais cidades da RM (-0,6%). Ainda que parciais, os
dados sugeriam que a Lei Seca tinha contribuído efetivamente para aprofundar queda
dos homicídios verificada na GSP a partir de 2001. Mas não é condição necessária, pois
a queda também ocorreu em alguns municípios sem Lei Seca; também não é condição
suficiente, pois alguns Municípios com Lei Seca tiveram aumento dos homicídios.

108 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Mapa 1

TESTANDO OS EFEITOS DA LEI SECA


Utilizamos dois diferentes procedimentos para testar o efeito da Lei Seca sobre
os homicídios, usando em ambos os procedimentos a série mensal de homicídios para
cada um dos 16 municípios, entre janeiro de 2001 e dezembro de 2004.
No primeiro procedimento testamos um modelo causal, onde um modelo
geral para as séries históricas é assumido a priori e uma variável dummy é utilizada
para testar a diferença de média e variância antes e depois da adoção da Lei Seca.
Assim, os meses anteriores à medida recebem um valor zero e os posteriores o valor
um, formando uma série determinística. Utilizando a série histórica de homicídios
na Região Metropolitana de São Paulo no período, detectamos a existência de um
componente auto-regressivo de ordem 1 na série, de curta memória (r2= 63 AIC=
287; t fator auto-regressivo de ordem 1= 8.7 com prob >.000). Assumimos portanto o
mesmo modelo (AR1) como válido para todas as cidades. A hipótese a ser testada em
cada caso é a de que a média de homicídios nos meses anteriores à introdução da Lei
Seca é significativamente superior à média dos homicídios nos meses posteriores e o t
de student é utilizado para verificar a significância da variável “Lei Seca”.
A tabela abaixo resume os resultados encontrados quando o modelo causal é
utilizado. Tanto o R2 quanto o AIC são medidas da qualidade de precisão e adequação
do modelo (goodness of fit), mas não são relevantes no contexto de teste de hipóteses
causais uma vez que nosso interesse não está em construir um modelo que explique a
série histórica em todas as suas nuanças para fazer previsões acuradas (forecasting).
Nosso interesse principal está nas diferenças antes e depois da intervenção e por
isso a tabela está hierarquizada de acordo com a magnitude do t encontrado para a
variável Lei Seca. Das 16 cidades pesquisas, podemos dizer que a Lei Seca contribui
para reduzir a média mensal de homicídios em 6, especificamente Embu, Mauá, Barueri,
Embu-Guaçú, Diadema e Osasco. Talvez Itapevi, se quisermos ser menos rigorosos. Note-
se que em geral estas são as cidades que apresentavam médias elevadas de homicídios
mensais, de modo que é possível que os efeitos da Lei Seca não tenham sido observados
nas demais cidades simplesmente porque a quantidade de casos é insuficiente para

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 109


avaliação. Observe-se também que no caso de Poá, Juquitiba, Ferraz de Vasconcelos
e S. Lourenço da Serra o sinal é positivo, embora nestas cidades os parâmetros sejam
não significativos e o número de casos muito pequeno para análise.
Embora bastante utilizado para testar a existência ou não de efeitos causais entre
duas variáveis, este tipo de procedimento não é de todo ideal, pois pode facilmente
induzir a identificação de falsos positivos. Estamos falando de uma Lei e, portanto é
difícil afirmar com certeza que os efeitos se manifestam exatamente a partir da data
em que a medida entrou em vigor legalmente: normalmente é preciso regulamentar
a Lei através de um decreto, operacionalizar as ações de fiscalização, etc., de modo
que é bastante provável que os efeitos se manifestem alguns meses depois da lei ter
entrado em vigor.
Por outro lado, é possível que alguns municípios tenham “testado” a medida
antes – através de operações para a fiscalização de bares e somente depois tenham
adotado a Lei Seca ou ao menos alardeado na mídia a intenção de fiscalizar a venda
de bebida.

Tabela 16
forçando “dummys” para avaliar a intervenção e assumindo
a priori um modelo AR1 para descrever as séries

Município R2 AIC T Prob Data Lei Seca Média antes Redução

Embu .39 142 -6.15 .000 12/2002 15.4 -6.8


Mauá .18 147 -3.09 .003 7/2002 15.5 -4.5
Barueri .29 96 -2.55 .014 3/2001 15 -8.0
Embu-Guaçú .17 38 -2.37 .022 4/2003 3.1 -.72
Diadema .21 155 -2.17 .035 3/2002 18.4 -4.5
Osasco .51 159 -2.04 .047 12/2002 27.1 -6.4
Poá .06 5 1.90 .063 8/2004 1.4 +.85
Juquitiba .07 9 1.85 .072 5/2002 .25 +.74
Itapevi .11 119 -1.68 .100 1/2002 9.8 -2.3
Jandira .50 66 -1.55 .127 8/2001 4.8 -1.3
S. Caetano .12 6 -1.50 .140 7/2004 1.2 -.82
Ferraz Vasc. .11 89 .25 .805 9/2002 5 +.19
S. Lourenço Serra .00 -88 .22 .829 6/2002 .13 +.02
Vg. Gd. Paulista .14 13 -.15 .880 12/2003 1 -.06
Itapecerica .00 84 -.11 .909 7/2002 6.2 -.08
Suzano .01 102 -.01 .992 6/2002 6.5 -.00

Detecção de Intervenções
Em razão destas dificuldades, utilizamos um procedimento alternativo proposto
por Box-Jenkins chamado “intervention detection”, mencionado anteriormente
quando analisamos os efeitos do Estatuto do Desarmamento sobre várias dimensões
ligadas a armas de fogo. Trata-se como vimos de um procedimento empírico do
tipo “data driven”, que deixa os dados falarem por si só, sem assumir nenhum
modelo apriorístico nem forçar datas específicas para as quebras de nível. Se um

110 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
“outlier” existe na série – como uma queda significativa nos homicídios –, então ele
é simplesmente detectado.
A identificação do momento exato da quebra nem sempre é perfeita quando o
número de casos é pequeno e sujeito a flutuações aleatórias e, como vimos, além disso,
a publicação da Lei (situação de jure) não coincide necessariamente com o momento em
que ela começa a afetar a realidade (situação de fato), assumimos aqui que se a data da
quebra identificada na série é “próxima” da data da publicação da Lei, podemos assumir
que a responsável pela queda foi efetivamente à introdução da medida.
A tabela abaixo resume os resultados encontrados. Para Osasco e Diadema
utilizamos também a série histórica de “agressões intencionais cometidas por arma de
fogo” do Datasus, como um teste de validade para as séries policiais. Das 16 cidades,
encontramos quebras de nível significativas e negativas, conforme o esperado, em 6
delas, nomeadamente Osasco, Embu, Diadema, Mauá, Itapevi e Barueri. Embu-Guaçú
portanto sai da lista de cidades onde o impacto foi significativo. Novamente, são as
cidades com maiores quantidades mensais de casos de homicídio.
Observe-se que quando não forçamos uma dummy para a data da intervenção,
mas deixamos para as características intrínsecas aos dados a seleção do momento da
quebra, vemos que as quebras de nível em Itapevi e Barueri ocorreram muito tempo
depois da entrada em vigor da medida, de modo que é arriscado dizer que as reduções
dos homicídios nestas duas cidades se devem a medida. Muito provavelmente trata-se de
falsos positivos que o primeiro procedimento não permitia separar dos demais casos.

Tabela 17
DATA DA LEI
CIDADE RESULTADO INTERVENÇÃO SECA HIATO R AIC T P ANTES EFEITO DEPOIS
OSASCO LEVEL ago/03 23/12/2002 8 MESES DEPOIS 0,72 135,60 -10,46 0 27,7 -12,8 14,9
OSASCO SUS LEVEL dez/02 23/12/2002 MESMO MÊS 0,56 266,60 -9,54 0 17,2 -10,1 7,1
EMBU LEVEL set/02 18/12/2002 3 MESES ANTES 0,61 122,70 -6,43 0 15,1 -6,4 8,7
DIADEMA LEVEL jul/02 13/03/2002 4 MESES DEPOIS 0,42 142,20 -6,01 0 19,8 -7,5 12,3
DIADEMA SUS LEVEL abr/01 13/03/2002 11 MESES ANTES 0,62 256,86 3.81 0,003 23,2 -11,9 11,3
MAUA LEVEL ago/02 3/7/02 1 MÊS DEPOIS 0,30 138,40 -4,83 0 15,5 -4,83 10,67
ITAPEVI LEVEL abr/03 21/9/2001 20 MESES DEPOIS 0,41 101,50 -4,2 1E-04 9,3 -3,3 6
BARUERI LEVEL set/03 29/3/2001 30 MESES DEPOIS 0,28 97,60 -2,72 0,009 8,2 -3,8 4,4
SUZANO PULSE 21/06/2002 0,14 95,00 6,4
SAO LOURENÇO DA
25/06/2002
SERRA PULSE 0,36 -93,20 0,15
FERRAZ DE
3/9/02
VASCONCELOS PULSE / SEASP 0,43 66,80 4,71
ITAPECERICA DA
4/7/02
SERRA NO OUTLIER 0,00 82,00 6,2
JANDIRA NO OUTLIER 30/8/2001 0,00 66,80 3,6
JUQUITIBA PULSE / SEASP 29/5/2002 0,62 -23,30 0,61
POA SEASP 4/8/04 0,31 -8,16 1,3
SAO CAETANO DO
SUL PULSE 1/7/04 0,52 -22,00 0,91
EMBU GUAÇU NO OUTLIER 4/1/03 0,08 41,80 2,8
VARGEM GRANDE
12/12/03
PAULISTA PULSE 0,66 -32,70 0,59

Os casos de Osasco, Embu, Diadema e Mauá, portanto, são os únicos que oferecem
evidências consistentes com uma redução dos homicídios num período relativamente
próximo ao da adoção da Lei Seca. Reduções, aliás, bastante significativas: considerando
que estas 4 cidades adotaram a medida de controle de venda de álcool ao redor de 2002,
cerca de 750 vidas foram poupadas nestes dois anos. Isto representa nada menos do que
cerca de 21% da queda total de homicídios verificada no Estado entre 2002 e 2004.
Observe-se que as quatro cidades onde o efeito foi mais pronunciado têm
também guardas municipais, que auxiliam na tarefa de fiscalização e implementação
da Lei Seca. Talvez sejam necessárias a combinação e o efeito interativo da existência
da Lei Seca e da Guarda para que os efeitos sejam observados – embora a condição

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 111


não seja suficiente. São Lourenço da Serra, Juquitiba e Poá adotaram a Lei Seca, mas
não tem Guarda Civil para implementá-la; ou seja, não há entre os citados nenhum
município com Lei Seca mas sem Guarda Municipal que tenha apresentado queda
significativa dos homicídios, reforçando a hipótese de que talvez as duas condições
sejam necessárias simultaneamente.
Não se pode assumir, apenas com base na existência “de jure” da Lei Seca que a
medida foi efetivamente implementada; infelizmente não temos como mensurar com
qual intensidade a Lei Seca foi implementada em cada cidade mas é possível especular
que a explicação para não encontrarmos efeitos sobre homicídios em cidades que
adotaram a medida resida na insuficiente implementação. De modo que não é possível
afirmar a priori que a Lei não funcionou em muitos municípios onde foi adotada:
investigações adicionais devem levantar em que medida houve de fato um esforço na
implementação da medida.
Além da existência ou não da guarda municipal e da intensidade da implementação,
outros fatores podem estar intervindo nos resultados, como, por exemplo, a proporção
de bares ilegais na cidade. Supõe-se que o efeito da Lei seja maior quando a maioria
dos estabelecimentos que vendem bebida alcoólica é legal; pois os ilegais não deveriam
a priori estar em funcionamento e não se importam de infringir uma lei a mais.
Além das 16 cidades com Lei Seca, tomamos o cuidado de analisar a evolução dos
homicídios no período em outras 3 grandes cidades da Região Metropolitana de São Paulo,
que não adotaram a Lei Seca, como um “grupo de controle”. A intenção é verificar se
estas cidades apresentam também alguma alteração forte de nível de homicídios e quando
esta alteração ocorre. A tabela abaixo resume os resultados do grupo de controle.

Tabela 18
Evolução dos Homicídios em cidades sem Lei Seca, como Grupo de Controle

Cidade Resultado Data T P Efeito


Guarulhos pulso 05/2004 -5,02 .000 -11,7
Santo André Level shift 01/2004 -3,89 .003 -4,3
São Bernardo pulso 02/2001 2,81 .007 14,4

Das três cidades do grupo de controle apenas Santo André teve uma alteração
significativa do nível de homicídios: uma quebra clara em janeiro de 2004, que reduziu
em 4,3 a média de homicídios mensal da cidade e que pode ser considerada como
um efeito do Estatuto do Desarmamento adotado em dezembro de 2003. Portanto,
estes resultados reforçam a hipótese de que as quedas observadas nos homicídios das
cidades do grupo experimental se deveram efetivamente à adoção da Lei Seca.

2) A criação das guardas e secretarias Municipais de Segurança


e seus efeitos sobre os crimes patrimoniais
A maior parte das Guardas Municipais do país concentra-se no Sudeste,
principalmente no Estado de São Paulo, onde estão 180 das 368 Guardas do país
(48,9%). Com efeito, dos 645 Municípios do Estado de São Paulo, 180 (27,9%) tinham
Guardas Municipais em 2001 (IBGE).

112 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
A criação de Guardas parece ocorrer na forma de contágio: a proximidade
geográfica com um município que tem guarda aumenta a probabilidade de criação
num município contíguo. Com efeito, os coeficientes de auto-correlação espacial
sugerem que a distribuição dos municípios com Guarda Municipal não é aleatória,
mas concentrada em alguns clusters.
Das 180 Guardas, 104 são forças pequenas, com um efetivo de até 50 guardas.
Mas o efetivo somado das Guardas no Estado é de 19.687 pessoas, das quais 11.162
estão na Região Metropolitana de São Paulo e 6.350 apenas na Guarda de São Paulo.
Em média as guardas possuem um efetivo de 30 funcionários: média jogada para cima
por conta de São Paulo, que isoladamente responde por um quarto do efetivo total de
guardas do Estado de São Paulo.
Parece existir uma relação clara e linear entre tamanho do município e existência
de Guarda Municipal: quanto maior a população do município, maior a probabilidade
de existência de Guarda. Assim, por exemplo, 10% dos municípios com até 5.000 hab.
têm Guardas, em contraste com 100% dos municípios com mais de 500.000 habitantes.
Há também uma associação significativa com criminalidade: os municípios
com índices mais altos de criminalidade têm maior probabilidade de criar Guardas
Municipais. Apenas 9% dos municípios com baixa criminalidade têm guardas,
em contraste com 52% dos municípios de alta criminalidade. Finalmente, merece
destaque o fato de que das 180 Guardas existentes no Estado, 128 estão localizadas
em municípios com elevadas taxas de urbanização e renda.
As Guardas Municipais, embora limitadas constitucionalmente em suas funções,
na prática realizam um elevado número de atividades, freqüentemente extrapolando
seus limites legais. Entre outras atividades executadas pelas Guardas vale a pena
mencionar: Proteção dos Bens, Serviços e Instalações do Município, Patrulhamento
Ostensivo a Pé e Motorizado dos Próprios Municipais, Atendimento de Ocorrências
Policiais, Fiscalização do Trânsito, Ronda Escolar, Auxílio à Polícia Militar, Auxílio ao
Público, Posto de Guarda em Bairros, Entradas da Cidade e Outros Locais, Barreira
Física ou Cancelas em Bairros, Entradas da Cidade e Outros Locais, Patrulhamento
Ostensivo Montado, Serviços Administrativos, Vigilância e Segurança Patrimonial,
Defesa Civil e Proteção Ambiental.
Apenas na Grande São Paulo o efetivo somado das guardas atinge mais de 11 mil
pessoas, o que é mais do que todo o efetivo da Polícia Federal no país e equivale a 9%
de todo efetivo policial do Estado de São Paulo, que em 2005 estava em torno de 122
mil policiais. Portanto, é de se esperar que se há um efeito significativo das Guardas
em alguns municípios do Estado este deve aparecer mais claramente nos municípios
desta região.
Quatro municípios da Grande São Paulo criaram suas guardas entre os anos de
2001 e 2004, período para o qual temos séries mensais de crimes para testar os efeitos
da Guarda Municipal sobre certos crimes: Suzano, Embu, Mogi das Cruzes e Vargem
Grande Paulista. Ainda que nem sempre ande armada nem tenha poder de polícia, as
guardas fazem um trabalho de fiscalização ostensiva sobre certas áreas – especialmente
onde existe concentração de equipamentos municipais. É possível afirmar que elas
exercem algum efeito intimidatório sobre aqueles criminosos dispostos a cometer
crimes contra o patrimônio, pois na pior das hipóteses a guarda pode acionar pelo
rádio as polícias civil e militar.

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 113


Mapa 2

Para testar o efeito da criação e presença das Guardas, procuramos verificar o


que ocorreu nas séries de furto de veículos, roubo de veículos e roubos, antes e depois
da criação da Guarda, nos quatro municípios. Os crimes relacionados a veículos foram
selecionados porque em geral a notificação destes crimes é elevada, em função do valor do
bem e necessidade de comprovação do crime, seja para recuperação posterior, indenização
pela seguradora ou para evitar que a culpa por crimes cometidos com o veículo recaiam
sobre o proprietário. Os roubos em geral sofrem mais com o problema da sub-notificação,
mas ainda assim são mais notificados do que os furtos – dada a gravidade da situação –
de modo que também optamos por incluí-los na análise.
Os dados de roubo de veículos sugerem que a criação da guarda municipal teve
impactos significativos em Vargem Grande Paulista e Embu. A guarda de Vargem Grande
foi criada em setembro de 2003 e no mês seguinte observamos uma mudança de patamar
na série histórica, com uma diminuição mensal de 3,5 roubos de veículo na cidade. Como
a média mensal era de 7,9 roubos de veículos em Vargem Grande, isto significou um corte
pela metade. A guarda municipal de Embu foi criada em junho de 2003 e dois meses após
presenciamos igualmente uma forte queda no número mensal de roubos de veículos, que
cai de 43,6 para 24,8 por mês. Por outro lado, nem Mogi das Cruzes nem Suzano tiveram
quedas significativas nos roubos de veículo após a criação das guardas municipais.

Tabela 19
Roubo de Veículo
LEVEL
GUARD T
CIDADE RESULTADO INTERVENTION DELAY R AIC P BEFORE EFFECT AFTER
CREATION VALUE
DATE
VARGEM
1 MONTH
GRANDE LEVEL OUTUBRO 2003 23/09/03 .48 93 -4,67 .000 6,9 -3,5 3,4
AFTER
PAULISTA
2 MONTHS
EMBU LEVEL AGOSTO 2003 19/06/03 .65 205 -7,8 .000 43,6 -18,8 24,8
AFTER

A criação da guarda em Vargem Grande Paulista parece ter contribuído também


para a queda dos furtos de veículos – embora a quebra da série seja visível dois meses
antes da criação da Guarda – e para a diminuição dos roubos na cidade, que caem

114 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de 10,1 para 5,9 por mês dois meses após. A análise da série de “roubos outros” em
Suzano revela uma mudança de patamar neste tipo de crime em abril de 2003, só que
para cima: de 71,3 para 91,4 por mês, crescimento que deve ter contribuído para a
decisão da criação de uma guarda na cidade 8 meses depois, em dezembro de 2003,
mas cujos efeitos são ainda imperceptíveis.

Tabela 20
Furto de Veículo
LEVEL
GUARD T
CIDADE RESULTADO INTERVENTION DELAY R AIC P BEFORE EFFECT AFTER
CREATION VALUE
DATE

VARGEM
2 MONTHS
GRANDE LEVEL JULHO DE 2003 23/09/03 .53 63 -3,82 .0004 3,9 -2,1 1,8
BEFORE
PAULISTA

Tabela 21
Roubo outros
LEVEL
GUARD T
RESULTADO INTERVENTION DELAY R AIC P BEFORE EFFECT AFTER
CIDADE CREATION VALUE
DATE
VARGEM 2
GRANDE LEVEL NOVEMBRO 2003 23/09/03 MONTHS .64 87,8 -6 .000 10,12 -4,2 5,9
PAULISTA LATER
SUZANO LEVEL ABRIL 2003 18/12/03 .40 231,8 5,61 .000 73,6 17,8 91,4

Em resumo, nos quatro casos para os quais existiam dados mensais disponíveis
para os últimos anos, a criação da Guarda parece ter tido um efeito mais consistente
apenas em Vargem Grande Paulista. Com efeito, o Município de Vargem Grande Paulista
vem adotando nos últimos anos uma série de medidas para lidar com a criminalidade
local: a guarda foi criada em setembro de 2003, assim como um Departamento de
Segurança Pública e Patrimônio e a Lei Seca adotada em dezembro de 2003. Entre
os projetos preventivos municipais merecem menção o Centro de Atendimento
Profissional – CAP, o Beisebol Solidário, o Centro Acadêmico de Orientação Cívica ao
Adolescente de Vargem Grande Paulista, CAPAZ e a Renda Cidadã.
Com apenas 38 Km quadrados de área e 32 mil habitantes, os 37 guardas
municipais representaram um aumento expressivo na fiscalização ostensiva da cidade,
que contava com cerca de 39 policiais militares e 20 policiais civis em 2002. O caso
de Vargem Grande sugere que no contexto de uma cidade pequena do ponto de vista
do território e da população, totalmente urbana, um aumento expressivo do efetivo
ostensivo somado a outras medidas de combate a criminalidade podem ter um efeito
significativo sobre certos crimes.
A criação de guardas municipais pode ter efeitos positivos também sobre uma
série de outros indicadores que não foram mensurados aqui, tais como na sensação de
segurança dos munícipes, no trânsito local, na defesa civil ou no socorro a acidentes
e nos atendimentos sociais; ela pode liberar policiais civis e militares de algumas
funções menos importantes e permitir seu uso no combate direto à criminalidade.
Em todo caso, a criação de uma Guarda Municipal é uma medida cara e não por
acaso apenas os municípios mais ricos decidiram arcar com estes custos, que envolvem

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 115


salários, treinamento, equipamentos e diversas outras despesas permanentes. Como
uma alternativa à criação de guardas, diversos municípios optaram por colaborar com
a polícia estadual contribuindo com o pagamento do aluguel e outros custos para a
manutenção da policial estadual na cidade. Há casos de municípios que oferecem
um salário adicional para que policiais atuem também na defesa do patrimônio
municipal. Infelizmente não é possível saber ainda qual a alternativa que resulta na
melhor relação custo/benefício: criar a própria guarda ou investir recursos adicionais
na polícia estadual alocada no município.
De qualquer forma, vale lembrar que o mais importante não é apenas a quantidade
do efetivo policial – municipal ou estadual nas ruas – mas a qualidade do serviço
realizado: se o efetivo está alocado nos locais e horários em que devem estar para
inibir a ocorrência de certos crimes ou se está disperso aleatoriamente pelo território;
se está atuando proativamente ou apenas reagindo aos chamados por serviço; se está
efetivamente nas ruas ou realizando funções burocráticas; se trabalha em conjunto
com a comunidade e mobilizando as forças da comunidade ou isoladamente.

2.1) Criação das Secretarias Municipais de Segurança

Inúmeros municípios perceberam o potencial amplo de atuação das prefeituras


através de instrumentos que vão além da guarda: benfeitorias urbanas – iluminação,
limpeza, poluição sonora, visual e ambiental; medidas para ampliar a educação,
cultura, esportes e lazer para os jovens, especialmente na periferia; atuação em parceria
com o governo Estadual; criação de conselhos de segurança com a participação da
comunidade e descentralização das ações; campanhas de mobilização, conscientização
e informação cidadã contra armas, discriminação e violência; fiscalização e concessão
de alvarás para estabelecimentos que têm envolvimento freqüente com crimes e
contravenções, como bares, desmanches e bordéis; reorientação da GCM no sentido
de uma polícia comunitária, frisando aspectos como policiamento preventivo, a pé,
recrutamento na comunidade e integração com a comunidade.
A enumeração destas propostas revela que a prefeitura tem em seu poder
instrumentos eficazes para lidar com a criminalidade. A teoria criminológica moderna
vem insistindo na relação estreita entre as ações voltadas para a melhoria da qualidade
de vida e a redução da criminalidade mais grave. E é justamente nas mãos do poder
municipal que estão concentradas muitas das atribuições e recursos para melhorar a
qualidade de vida da população. Uma janela quebrada e não consertada de imediato
atrai outras pedras, mas se ela é logo arrumada, os desordeiros são avisados de que as
pessoas daquele local se importam com o que acontece ao redor e que não vão admitir
a deterioração física e moral do bairro.
O poder municipal, se é limitado em sua capacidade de atuação repressiva por
força do art. 144 da Constituição – que restringe a atuação das Guardas Municipais à
proteção dos bens, serviços e instalações do município – por outro lado, tem em seu
poder o Plano Diretor e controla os serviços de limpeza urbana e fiscalização sanitária,
administra escolas e postos de saúde bem como diversos locais para prática de esporte
e lazer. O fato de muitos municípios não terem Guardas e da Guarda não ter poder de
polícia, obrigou os prefeitos a apostarem em outros caminhos ao trabalharem com a
questão da segurança pública.

116 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Em contraposição ao modelo tradicional de “segurança pública”, centrada no
controle repressivo-penal do crime, surgiram novas propostas de intervenção em âmbito
municipal que apresentam uma abordagem alternativa da questão da segurança,
enfatizando o caráter interdisciplinar, pluriagencial e comunitário na problemática.
Este modelo alternativo partilha da visão de que “segurança” deve deixar de ser
competência exclusiva das policias para converter-se em tema transversal do conjunto
das políticas públicas municipais, uma vez que a ação policial é somente uma das
formas de se abordar uma conduta anti-social.
Pluriagencialidade quer dizer que a segurança pública diz respeito a múltiplas
agências dentro do município, para além da Guarda Municipal. Ao enfatizar a
participação comunitária, por fim, ressaltam que segurança pública é função do poder
público, mas exercida em conjunto com a comunidade, tanto no planejamento como
na execução de programas preventivos.

Tabela 22

Em contraste com as Secretarias Estaduais de Segurança Pública, focadas na


gestão das polícias, as Secretarias, Consultorias ou Departamentos Municipais de
Segurança Pública foram criados para gerir estas diversas ações – de cunho preventivo
e repressivo – espalhadas por diferentes agências dentro da prefeitura. Simbolicamente
a criação aponta para uma elevação do status da questão da segurança dentro do
município e indica que mais recursos serão alocados para a área ou pelo menos que os
recursos atuais deverão levar em conta as questões relativas à segurança no momento
de decidir onde e como serão investidos.
De 1999 para cá, 12 municípios da Grande São Paulo criaram órgãos específicos
para centralizar e gerenciar as ações de segurança, embora na capital a Secretaria
tenha sido transformada em “Coordenadoria” em 2005, perdendo status frente a
outras áreas.
De acordo com o levantamento realizado pelo Fórum Metropolitano de Segurança,
dos 12 municípios que criaram órgãos centrais de coordenação, 10 tem guardas municipais,
8 declararam ter programas sociais específicos para prevenir a criminalidade, 7 editaram
leis incentivando a divulgação do Disque Denúncia e 5 adotaram a Lei Seca. Isto revela
que, embora a maioria dos municípios tenha adotado um “pacote” de medidas de

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 117


segurança – incentivados em boa parte pelo Fórum Metropolitano – uma medida não
leva necessariamente à outra.
Mas mais importante do que coordenar e implementar ações específicas de segurança
como as mencionadas, um órgão central pode realmente afetar a situação da segurança
pública da cidade se ele conseguir imprimir a lógica da segurança na atuação dos demais
órgãos e secretarias: opinar no Plano Diretor da cidade, indicar locais onde equipamentos
públicos com potencial preventivo devem ser instalados, direcionar programas sociais
para a população em risco – tanto de se tornar vítima quanto perpetradora de crimes –,
conseguir mostrar aos demais órgãos municipais as conseqüências criminais de alguns
projetos, como a construção de grandes projetos habitacionais concentrando populações
desfavorecidas em áreas sem infra-estrutura, escolas ou centros de atendimentos a
jovens, gigantescos e pouco administráveis, etc. Ainda é cedo para mensurar o efeito da
criação destes órgãos na criminalidade e é difícil separar o efeito do órgão em si e dos
inúmeros projetos que ele gere. Não existe tampouco qualquer material descrevendo
exaustivamente as atividades que estas secretarias vem desenvolvendo na prática.
Diferentemente das Secretarias Estaduais de Segurança, as Secretarias Municipais
surgiram num momento histórico em que já se compreendia a diferença entre “políticas
de segurança pública” e “políticas públicas de segurança”, estas últimas muito mais
amplas que as primeiras, mescladas com questões de cidadania e direitos humanos.
Se for certo que o problema da criminalidade não se esgotará e não se resolverá em
longo prazo apenas com o aperfeiçoamento do sistema de justiça criminal – então as
Secretarias Municipais de Segurança, tal como concebidas aqui – serão fortes aliadas
no esforço de prevenir a criminalidade.

Mapa 3

3) Os investimentos sociais e sua relação com a evolução dos homicídios


“As políticas municipais e regionais de segurança devem evoluir no sentido de
uma abordagem integral e multisetorial, abarcando todos os aspectos e situações
que conferem maior segurança aos cidadãos, incluindo, além da ação das forças de
segurança, as políticas de inclusão social em geral e, em particular, as relações de

118 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
conflito no seio da família, o combate à violência de gênero ou contra crianças ou
ações em que a juventude é vítima ou autora de violência, as manifestações locais de
insegurança geradas por situações que não são da competência dos municípios (como
o narcotráfico, por exemplo), os riscos ambientais e as diversas formas de convivência
cidadã.” Item n. 5 da Declaração Final do Seminário “Ciudades mas Seguras”
O texto que abre este tópico consta da Declaração Final elaborado pelos prefeitos
da Grande São Paulo que se reuniram em Guarulhos em 2003 num seminário para
avaliar a participação dos municípios na esfera da segurança. O tema dos painéis
propostos – como “prevenção da delinqüência através de ações integradas de inclusão
e participação social e de melhorias urbanas” – bem como o teor da Declaração,
deixam claro que para as Prefeituras o combate à criminalidade e insegurança passa
pela questão dos investimentos sociais, muitos dos quais são da alçada municipal.
De fato, a literatura criminológica confirma o vínculo entre criminalidade e
diversas modalidades de privação social e econômica. Assim por exemplo, sabe-se
que em quase todos os países, o homicídio é um fenômeno altamente concentrado no
espaço: algumas poucas áreas são responsáveis por uma enorme quantidade de casos
enquanto na maioria das áreas a ocorrência de homicídios é relativamente baixa. Por
traz desta concentração espacial existem diversos fatores como carências sociais e
econômicas, estrutura da população e estrutura familiar (Baller et all, 2001; Ceccato,
Haining and Kahn, 2004).
A literatura criminológica já há muito tempo estabeleceu co-variáveis importantes
para a explicação da distribuição epidemiológica dos homicídios: densidade popula-
cional, taxa de urbanização, desigualdade econômica, proporção de famílias dirigidas por
mulheres, renda, proporção de homens jovens na população, concentração de favelas,
etc. (Cruz, 2004) A geografia dos homicídios em São Paulo é largamente explicada, por
exemplo, por fatores ligados à pobreza, além de padrões de uso do solo e atividades
criminais relacionadas ao tráfico de drogas. (Ceccato, Haining and Kahn, 2004) Em
outras palavras, sabe-se que as condições sócio-econômicas e demográficas afetam os
níveis de criminalidade, sendo possível estimar as taxas de homicídios de determinada
área com certa precisão apenas pelo conhecimento destas covariáveis.
A concentração espacial dos homicídios pode ser vantajosa do ponto de vista
da implementação de políticas sociais preventivas: alocando recursos para áreas
e populações mais afetadas, obtemos mais resultados com menos recursos. Uma
hipótese para a queda dos homicídios no Estado de São Paulo desde 2000 é de que
diversos Municípios estariam investindo em programas sociais de natureza preventiva
“secundária” – nos últimos anos: bolsas para estudantes pobres, programas de emprego
para jovens, centros de esporte, lazer e cultura na periferia, etc. Além deste trabalho de
prevenção “secundária” (atuando sobre fatores e grupos de risco), poder-se-iam somar
os efeitos da prevenção primária, que consiste em melhorar universalmente a qualidade
de vida da população, através de ações do Município e do Estado em saneamento
básico, coleta de lixo, melhorias na saúde, moradia e educação, entre outros.
Embora vários analistas mencionem os efeitos preventivos destas ações, poucos
conseguiram demonstrar o vínculo entre elas e a queda dos homicídios, pois não existe
um levantamento exaustivo dos programas de prevenção secundária executados pelos
municípios nestes anos, e muito menos sobre a cobertura, escala e intensidade em
que foram realizados ou se realmente atingiram os locais e grupos mais vulneráveis.

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 119


Avaliações desta espécie são raramente encontradas na literatura mesmo nos demais
países, dada a complexidade da questão, que exige que se leve em consideração um
grande número de fatores simultaneamente.
Com relação à universalização da infra-estrutura e serviços básicos (prevenção
primária) o problema é de outra ordem: existem diversos indicadores da evolução destas
ações, inclusive indicadores agregados como o IDH ou o IPRS – para medir os avanços
obtidos na última década. Todavia, eles não permitem comparar o esforço feito por cada
município neste setor, pois cada cidade partiu desde o início de patamares bastante
diferentes: uma cidade como São Caetano, por exemplo, evoluiu pouco na década,
pois já tinha indicadores sociais bem avançados. Por outro lado, municípios mais
pobres foram os que mais evoluíram proporcionalmente, pois partiram de patamares
muito baixos. Pois é muito mais fácil aumentar, por exemplo, a alfabetização de um
município pobre de 40% para 70% do que aumentar estes níveis num município que
já contava com índices elevados de alfabetização. O resultado desta desigualdade de
ponto de partida na situação social dos Municípios é que, quando relacionamos a
evolução do IDH, IPRS ou outros indicadores de melhoria de qualidade de vida na
década com os homicídios, encontramos muitas vez uma relação inversa à esperada:
os homicídios caíram menos onde os avanços foram maiores e reduziram-se mais
justamente onde houve poucos avanços de posição.

Quadro 2
categoria de crescimento* grupo de queda do hd entre 2000 e 2004 Crosstabulation

categoria de crescimento queda

incremento grande Count 1 3 4


% within grupo de queda
7,7% 37,5% 10,3%
do hd entre 2000 e 2004
incremento gradual Count 2 4 6
% within grupo de queda
15,4% 22,2% 15,4%
do hd entre 2000 e 2004
incremento pequeno Count 10 14 5 29
% within grupo de queda
76,9% 77,8% 62,5% 74,4%
do hd entre 2000 e 2004
Total Count 13 18 8 39
% within grupo de queda
100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
do hd entre 2000 e 2004

Portanto, é preciso encontrar outras maneiras de estimar o impacto das ações


sociais sobre os homicídios e crimes em geral. Embora se saiba que o vínculo exista
e seja possível encontrar diversas razões teóricas pelas quais a melhoria da qualidade
de vida deve impactar positivamente na criminalidade interpessoal – trata-se de algo
difícil metodologicamente de comprovar.
Retornemos por um momento à questão da queda dos homicídios em São Paulo.
É possível especular que, se a queda dos homicídios se deveu à melhoria da qualidade
de vida da população nos últimos anos, então não apenas os homicídios mas outros
crimes contra a pessoa também deveriam estar em queda. Em outras palavras,
se a hipótese da prevenção e inclusão social é válida como explicação da queda,
esperaríamos encontrar uma queda generalizada dos níveis de violência interpessoal
na sociedade. Os dados todavia parecem não corroborar esta hipótese. Com efeito, a
série histórica de agressões coletada pelo DATASUS sugere que, enquanto as agressões

120 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
com armas de fogo vêm caindo nos últimos anos – validando os dados policiais – as
agressões com outros tipos de arma estão crescendo. Embora o resultado seja menos
letal, os dados sugerem que não é a “violência” como um todo que está em queda.
No âmbito policial, é possível verificar que outros indicadores de violência
interpessoal no Estado estão estáveis – como as lesões corporais dolosas – ou aumentando
como as vias de fato, injúrias, exercício arbitrário das próprias razões, difamações,
calúnias, ameaças e outros indicadores de conflitos interpessoais. A única exceção é a
série de “desentendimento” que claramente cai em São Paulo desde 1999, mas é possível
especular que a categoria simplesmente vem sendo menos utilizada no infocrim e que
não se trata necessariamente de uma queda real. Assim, pode-se mesmo dizer que os
homicídios estão caindo apesar da continuidade da violência na sociedade. A não ser que
se consiga explicar como os projetos de prevenção e inclusão afetam apenas os homicídios
e não os outros tipos de crimes contra a pessoa, fica difícil argumentar que eles são os
responsáveis pela queda recente da criminalidade no Estado, que além do mais foi abrupta.
Como vimos anteriormente, o mais provável é que a violência tenha se tornado
simplesmente menos letal, em função da redução do número de armas de fogo em
circulação.
Isto não quer dizer que a ação social preventiva das prefeituras e do Estado
seja ineficaz para a contenção da criminalidade. É interessante observar que, não
por acaso, a queda dos homicídios ocorre de forma mais intensa precisamente nos
municípios com melhores indicadores sociais.

Quadro 3
Case Summaries

homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio


baixo IDH Mean 1,93 2,33 2,30 2,60 2,79 2,67 2,67 2,68 2,56
N 164 164 164 164 164 164 163 164 164
medio IDH Mean 6,46 7,70 8,00 9,62 10,24 9,94 9,89 9,65 9,00
N 327 327 327 327 327 327 327 327 327
alto IDH Mean 48,38 49,31 49,57 54,14 59,01 58,61 57,74 54,04 49,93
N 152 152 152 152 152 152 152 152 152
Total Mean 15,21 16,17 16,37 18,36 19,87 19,59 19,38 18,36 17,03
N 643 643 643 643 643 643 642 643 643

Quadro 4
Case Summaries

Grupo 2000 Revisto - homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio
polo Mean 88,30 89,56 90,35 97,96 107,06 107,19 105,12 97,22 90,58
N 81 81 81 81 81 81 81 81 81
dinâmicos e baixo Mean 33,96 41,60 41,79 51,08 56,85 51,48 53,25 51,85 46,10
desenvolvimento social N
48 48 48 48 48 48 48 48 48

saudáveis e baixo Mean 1,10 1,12 1,23 1,30 1,41 1,44 1,39 1,63 1,54
desenvolvimento N 211 211 211 211 211 211 211 211 211
econômico
transicção social e Mean 2,52 2,91 3,33 3,81 3,84 4,25 3,97 3,94 3,73
baixo desenvolvimento N 191 191 191 191 191 191 190 191 191
econômico
baixo desenvolvimento Mean 2,51 3,09 2,73 3,64 3,04 2,89 2,89 3,09 3,22
econômico e social N 114 114 114 114 114 114 114 114 114
Total Mean 15,17 16,12 16,33 18,30 19,81 19,53 19,33 18,31 16,98
N 645 645 645 645 645 645 644 645 645

Nas tabelas acima dividimos os 645 municípios do Estado de São Paulo em 3


grupos de acordo com nível de desenvolvimento humano mensurado pelo IDH e em 5
grupos segundo a classificação do IPRS– sem levar em conta a evolução temporal do
IDH ou do IPRS mas comparando os municípios num determinado ponto do tempo

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 121


(cross-sectional). A tabela mostra que entre 1999 e 2003 houve queda nos 3 grupos,
mas especialmente no grupo de 152 municípios com alto IDH, onde a média de
homicídios caiu de 59 para 49 por ano, voltando aos níveis de 1995. O mesmo pode
ser observado quando classificamos os municípios pelo Grupo no IPRS: a queda é
maior nos municípios Pólo e chega a aumentar ligeiramente nos 114 municípios com
“baixo desenvolvimento econômico e social”.
Algo semelhante ocorre quando analisamos apenas a RMSP, área foco deste
estudo. A fim de sugerir o vínculo entre a qualidade de vida de um município e os
homicídios, dividimos os municípios da Grande São Paulo e a Capital em 3 grupos: 1)
13 municípios onde foi grande a queda observada dos homicídios entre 2000 e 2004 2)
18 municípios onde foi menor esta queda; finalmente 3) 8 municípios onde não houve
queda ou houve aumento nos homicídios no período analisado; Exploramos a partir daí
as semelhanças e diferenças de perfil sócio econômico, demográfico e criminal entre
os 3 grupos de municípios: como os gráficos deixam claro, o grupo de 8 municípios
onde não houve queda ou houve aumento dos homicídios é precisamente aquele com
os piores indicadores sociais. Com efeito, alguns gráficos sugerem a existência de uma
relação linear entre indicadores sociais e magnitude da queda dos homicídios.
Embora não possamos mensurar se os esforços preventivos recentes contribuíram
efetivamente para a queda dos homicídios, podemos concluir com base nestas
semelhanças de perfil que a existência prévia de uma comunidade saudável e com
bons indicadores sociais influencia positivamente a evolução local da criminalidade:
nestes locais a queda foi acelerada enquanto nas cidades com baixa qualidade de vida
não houve diminuição dos homicídios.

Mapa 4

CONCLUSÕES
Segurança Pública vem deixando progressivamente de ser um tipo de atividade
predominantemente estadual. Neste setor está ocorrendo uma erosão da atuação
do governo, provocada pelas iniciativas comunitárias de autodefesa, pela expansão

122 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
das atividades da indústria da segurança e pela crescente participação do governo
Federal e dos municípios no tema da segurança pública. Entre as causas desta erosão
da atuação do governo estadual sobre a segurança estão o aumento do crime, do
sentimento de insegurança e o reconhecimento de que o poder público estadual não
pode sozinho atender a todas às necessidades específicas de segurança demandadas
pela sociedade.
No Brasil, a questão da segurança pública vinha sendo entendida restritivamente,
até os anos 90, como questão de justiça criminal – polícia, tribunais e sistema
carcerário. Pelo arranjo federativo brasileiro, a maior parte destas tarefas sempre
coube ao poder público estadual. Com efeito, a constituição coloca os estados como
os principais responsáveis pela gestão da segurança, cabendo ao governo municipal
diminuta parcela desta responsabilidade. Mas os municípios deram-se conta de que
têm em suas mãos instrumentos extremamente importantes para colaborar com a
questão da segurança.
Vimos como diversos municípios criaram novas guardas municipais, agora com
funções que extrapolam na prática a proteção do patrimônio da cidade. Elaboram-
se Planos Municipais de Direitos Humanos e Segurança Pública, com diversos itens
diretamente voltados ao problema da segurança e começaram a surgir Secretarias
Municipais de Segurança. Diversos municípios criaram formas de incentivar a
divulgação do Disque Denúncia e adotaram leis para restringir o uso de bebidas
alcoólicas. Este esforço multi-agencial é louvável e promissor, na medida em que a
população não quer saber se o problema é de alçada federal, estadual ou municipal.
Este movimento, como vimos, não foi casual: diversas pesquisas de opinião pública
revelaram que a criminalidade, ao lado do desemprego, são as maiores preocupações do
eleitorado e os prefeitos não poderiam ficar alheios ao problema.
Uma aposta consistente de prevenção ao crime é aquela baseada em projetos
que têm as seguintes características: um diagnóstico preciso que determine os
desafios, fatores de risco e recursos da comunidade; um plano de ação que estabeleça
prioridades, identifique programas que podem ser modelos úteis e defina objetivos de
curto e longo prazo; um processo de implementação rigoroso que inclua o treinamento
e coordenação dos parceiros envolvidos; avaliações que forneçam retornos tanto sobre
os processos quanto sobre os resultados obtidos; uma coalizão de atores chave com
lideranças fortes e staff de apoio administrativo; uma estratégia de comunicações
que pode mobilizar profissionais e cidadãos e é sensível à idade, gênero e diferenças
culturais. Estes são, em linhas gerais, os ingredientes para políticas bem sucedidas
de prevenção ao crime, identificados na literatura3. E estes projetos, freqüentemente,
podem prescindir perfeitamente da existência de efetivos policiais.
Embora de maneira limitada, procuramos mostrar aqui que a ação das prefeituras
na esfera da segurança tem tido algum impacto: as denúncias criminais – matéria
prima do trabalho policial – crescem consideravelmente quando as prefeituras se
envolvem na divulgação do Disque Denúncia; a Lei Seca, quando adequadamente
implementada, contribui para diminuir significativamente a quantidade de homicídios.
Se corretamente alocada, por outro lado, a guarda municipal pode contribuir para a

3 Confira “100 Crime Prevention Programs to Inspire Action Across the World”. International Centre
for the Prevention of Crime, Canadá, 2001. No governo federal, o PIAPS é atualmente o programa que
mais se aproxima destas premissas, embora esteja ainda em fase de gestação.

O Papel dos Municípios na Segurança Pública | 123


redução dos índices de criminalidade contra o patrimônio. Quanto aos projetos de
inclusão social e de prevenção primária e secundária – se não foi possível estabelecer
uma prova direta e inequívoca de sua eficácia – a literatura especializada já mostrou
como os indicadores sociais influenciam os níveis gerais de criminalidade de uma
determinada área. Vimos aqui como de certa forma eles foram importantes na
explicação do porque a queda dos homicídios em São Paulo ocorreu em determinado
tipo de municípios e não em outro.
A pesquisa mostra em resumo que a participação dos municípios na esfera da
segurança pública é crescente e promissora e que o problema só pode ser debelado com
a colaboração de todas as forças vivas da comunidade. Portanto, é preciso readequar
o arcabouço legal e institucional do país – a começar pelo artigo 144 da Constituição
que define os órgãos policiais do país e suas funções – para incorporar ao sistema as
ações deste novo e relevante parceiro.

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126 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
AVALIAÇÃO DA FORMAÇÃO E DA CAPACITAÇÃO
PROFISSIONAL DOS PERITOS CRIMINAIS NO BRASIL

Equipe da Pesquisa

Coordenação Geral e Responsável Técnico


Prof. Dr. Michel Misse

Pesquisadores
Alexandre Giovanelli (coordenação técnica)
Décio Nepomuceno da Silva
Carlos Eduardo Medawar

Estagiários
Daniel de Pádua Fernandes Ribeirinha
Wilson Santos de Vasconcelos

Auxiliares de pesquisa
Heloísa de Oliveira Duarte
Marina Fernandes

Realização
Fundação Universitária José Bonifácio
UFRJ – NECVU

INTRODUÇÃO
A Perícia Criminal tem papel preponderante, principalmente no que concerne ao
desenvolvimento e uso de tecnologias, já bastante desenvolvidas em outros países,
as quais permitem uma investigação eficiente, bem como a produção de provas,
necessárias ao andamento e conclusão do inquérito judicial. Tal amplitude encerra uma
complexidade e uma diversidade de técnicas que pressupõem uma sólida formação
desses profissionais para o bom desempenho de suas funções. A questão da formação
torna-se ainda mais crítica quando se considera que o perito criminal transita entre as
esferas tecno-científica, jurídica e policial, o que exige desse profissional uma ampla
gama de conhecimentos e treinamento que possibilitem a qualificação adequada para
o exercício de uma função altamente complexa e singular.
Todavia essa formação e capacitação devem vir acompanhadas da adequação
do ambiente de trabalho, quer seja através de instalações adequadas para tipos de
atividades específicas, quer seja pelo provimento e manutenção das tecnologias
necessárias ao “fazer” científico atual.
Assim, a avaliação da formação e capacitação da perícia criminal é imprescindível
como instrumento para aperfeiçoamento da gestão do Estado, devendo ser entendida
como um processo sistemático de compreensão contextualizada de uma atividade,
com o objetivo de contribuir para o seu aperfeiçoamento e facilitar o processo
decisório. No presente trabalho buscou-se fazer uma avaliação diagnóstica geral, com

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 127


base em dois importantes estados da Federação, visando começar a suprir os dados
necessários numa situação definida como de reconhecida ausência de informações
básicas nesta área.

Objetivos
O presente projeto propôs-se a realizar um diagnóstico da formação e da capacitação
profissional dos peritos criminais no Brasil, no intuito de propor, uma melhor formação
profissional. Na impossibilidade de uma avaliação estado por estado, foram definidos
dois importantes estados da Federação para a realização da pesquisa de campo: Rio de
Janeiro e Minas Gerais. A pesquisa teve os seguintes objetivos específicos:
• Realizar um levantamento comparativo dos requisitos para ingresso na carreira
de perito criminal, bem como dos demais requisitos exigidos pelos cursos de
formação, capacitação e atualização de peritos criminais dos estados de Minas
Gerais e Rio de Janeiro;
• Verificar a adequação do ambiente de trabalho para a aplicação e uso dos
conhecimentos adquiridos pelo profissional;
• Analisar comparativamente a percepção dos peritos criminais quanto às
deficiências e necessidades dos cursos de formação e atualização oferecidos
atualmente;
• Identificar os atores envolvidos no processo de perícia, o que poderia contribuir
para a melhoria da eficiência da Perícia Criminal.
• Avaliar comparativamente o grau de satisfação ou insatisfação dos peritos em
atividade, relacionando entre si suas representações a respeito da carreira, do
ambiente de trabalho, das atividades específicas desenvolvidas, etc com suas
expectativas forjadas durante a qualificação;
• Propor sugestões que contemplem a resolução de alguns dos problemas
identificados bem como o aperfeiçoamento dos pontos positivos reconhecidos
durante a pesquisa.

Metodologia
A pesquisa foi realizada com base no método comparativo, sendo escolhidos
para estudo dois Institutos de Criminalística; um do Estado do Rio de Janeiro e outro
do Estado de Minas Gerais. Foram utilizadas as seguintes técnicas de coleta e análise
de dados:
a) entrevistas: Foram realizadas em cada um dos estados, entrevistas com os
respectivos diretores dos Institutos de Criminalística, assim como os seus superiores
imediatos: o Diretor Geral de Polícia Técnica do Rio de Janeiro (DGPTC-RJ) e o
Superintendente de Polícia Técnica de Minas Gerais. Foram realizadas, ainda,
entrevistas com os representantes de classe dos respectivos estados, a fim de confrontar
as expectativas na formação e capacitação com a representação que é feita da realidade
vigente. Finalmente foram entrevistados dois professores-organizadores de cursos de
formação ou especialização, além dos gestores da Academia de Polícia responsáveis
pela elaboração das ementas de cursos de cada Estado. As entrevistas abordaram
as seguintes linhas temáticas: Formação e Capacitação, Estrutura, Gestão Pessoal e

128 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Identidade.Todas as entrevistas foram gravadas mediante concordância explícita do
entrevistado e garantia de seu uso somente na pesquisa.
b) Realização de uma enquête (survey). Foi elaborado um questionário contendo
itens que visavam avaliar a percepção dos peritos criminais quanto ao processo de
formação, capacitação, valorização do trabalho e condições de trabalho e o grau atual
de satisfação com as atividades desempenhadas. Os questionários, a serem auto-
administrados, foram testados e distribuídos para uma amostra significativa de postos
ou seções de perícia nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. A representatividade
dos questionários preenchidos ficou assegurada por uma alta taxa de resposta, que
pode ser considerada de “adequada” a “muito boa” (Babbie, 1999, p. 253).
c) Realização de grupos focais. Foram realizados dois grupos focais com peritos
criminais dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. A técnica de grupo focal seguiu
a metodologia proposta por Krueger (1996) e adaptada por Neto et al. (2001), em que
a entrevista é direcionada a um grupo com características identitárias selecionadas,
tendo um moderador e um relator como partícipes. O grupo focal consistiu de seis a
oito peritos criminais participantes e de dois pesquisadores na função de moderador e
relator, além de um operador de gravação. A técnica de grupo focal objetivou realizar
um delineamento das relações da Perícia Criminal com outras instituições da Justiça.
Os participantes do grupo focal foram informados, antes da dinâmica, das seguintes
garantias: 1) solicitar, a qualquer tempo, maiores esclarecimentos sobre a pesquisa;
2) sigilo absoluto de nomes, lotação ou quaisquer características de identificação;
3) possibilidade de não responder a quaisquer questões; 4) desistir, a qualquer tempo,
de participar da pesquisa.
d) Análise documental. O material documental referente às ementas das disciplinas
oferecidas nos cursos de formação para Peritos Criminais do Rio de Janeiro e de Minas
Gerais foram obtidos junto às respectivas Academias de Polícia. Da mesma forma a
existência de cursos de capacitação e sua periodicidade foram avaliadas através da
análise documental. Estes dados possibilitaram verificar a adequação e suficiência dos
cursos oferecidos, de acordo com a percepção dos peritos captada por meio das outras
técnicas utilizadas.
e) Uso das estatísticas oficiais. Foram obtidas e utilizadas estatísticas oficiais de
homicídios nos dois estados, de modo a permitir uma comparação entre efetivos de
peritos de local e volume da demanda de perícia externa nesses casos, mas a insuficiência
ou má qualidade dos dados não permitiu maior aprofundamento de análise, incluindo
outras ações periciais.
f) Etnografia da recepção dos pesquisadores nos dois estados. Anotamos em diário,
observações sobre as diferenças de recepção dos pesquisadores nos dois estados, sob a
suposição de que poderiam indicar diferentes valores quanto às expectativas de mudanças.

ESTRUTURAS INSTITUCIONAIS
Uma comparação das estruturas institucionais dos dois Institutos de Criminalística
foi realizada, visando verificar semelhanças ou diferenças que poderiam incidir sobre
a avaliação preconizada na pesquisa. Não foram encontradas diferenças fundamentais
que pudessem produzir uma interveniência significativa em nossa análise:
1) Contingente e distribuição de peritos. O Instituto de Criminalística de Minas Gerais

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 129


apresenta um total de 308 peritos criminais em postos do interior e região metropolitana
e 192 na sede, em Belo Horizonte, perfazendo um total de 500 peritos criminais em
2005. No Rio de Janeiro há 193 peritos criminais em postos do interior e 110 lotados na
capital (sede), perfazendo um total de 303 peritos criminais em 2005.

OCORRÊNCIAS E VOLUME DE DEMANDA DE PERÍCIAS


Com o objetivo de verificar diferenças muito grandes na relação efetivo/volume
de demanda, que pudessem interferir sobre os resultados nos dois estados, realizamos
inicialmente uma comparação do número de homicídios da Região Metropolitana de
Belo Horizonte com a Região Metropolitana do Rio de Janeiro durante os anos de 2002,
2003 e 2004.
Gráfico 1
Homicídios Dolosos nas Regiões Metropolitanas do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte.
Mensais: 2002 - 2004 - Frequências Absolutas.
Fontes: Asplan-RJ e FJP-MG.

600

500

400

RM Rio de Janeiro
300
RM Belo Horizonte

200

100

0
1/1/2002

1/3/2002

1/5/2002

1/7/2002

1/9/2002

1/11/2002

1/1/2003

1/3/2003

1/5/2003

1/7/2003

1/9/2003

1/11/2003

1/1/2004

1/3/2004

1/5/2004

1/7/2004

1/9/2004

1/11/2004

Finalmente, este dado foi cruzado com o quantitativo de peritos para ambos
os estados. No Rio, o número de peritos para atendimento de locais de homicídios é
de cerca de 40 profissionais, enquanto em Minas é de cerca de 45 peritos. Ou seja,
embora o número de ocorrências de homicídios seja muito superior no Rio de Janeiro,
o número de profissionais é praticamente o mesmo nos dois estados:
Desse resultado pode-se esperar que as condições de demanda de perícia de local
no Rio de Janeiro em relação ao número de peritos em condições de atende-la possam
influir, de algum modo, sobre os resultados de avaliação no Estado em comparação com
Minas Gerais. Não foi possível, no entanto, controlar a interveniência dessa variável
em nossa análise devido à baixa qualidade dos dados disponíveis, especialmente
quanto aos demais delitos e ações periciais.

ANÁLISE QUALITATIVA DOS DADOS


Etnografia da recepção da pesquisa nos dois Estados

Nossa recepção em Belo Horizonte, confirmando o mito da hospitalidade mineira,


foi excepcional. A preocupação com o nosso bem estar e com todo aparato necessário
ao desenvolvimento de nossa pesquisa evidenciou-se de imediato. Quando chegamos

130 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
à sede da perícia criminal de Belo Horizonte, para iniciarmos nossos trabalhos, cerca
de 15 peritos criminais já se encontravam numa sala de reuniões nos aguardando,
prontos para nos atender em quaisquer necessidades. Isso nos possibilitou que, com
eficácia, apesar do curto espaço de tempo que dispúnhamos para ficar naquela cidade,
pudéssemos realizar, em apenas dois dias, o grupo focal; três entrevistas de suma
importância; a distribuição de todos os questionários para as várias divisões da polícia
técnica mineira, inclusive para as seções do interior, além de uma visita bastante
proveitosa aos laboratórios e diversos setores da sede da perícia criminal.
Conforme observações ao longo do período que permanecemos em contato com
os peritos de Minas Gerais, percebemos um elevado grau de entrosamento entre os
mesmos. Segundo depoimentos diversos, como pudemos observar tanto no grupo
focal, como nas entrevistas, este nível de entrosamento, longe de ser exclusivamente
interno, abrangia os outros seguimentos da Polícia Civil e marcava, com cordialidade
e respeito, o relacionamento com a Polícia Militar. Essa relação pode ser percebida,
inclusive no processo de formação dos policiais nas academias de polícia. Os peritos
criminais de Belo Horizonte mantêm um intercâmbio vivo com os outros segmentos
da polícia civil e com a polícia militar dentro de atividades na academia, posto que
compõem o quadro de docentes dessa instituição.
Anterior e posteriormente à visita feita a Belo Horizonte, procedemos a algumas
entrevistas, distribuição de questionários e a realização do grupo focal de peritos
no Rio de Janeiro. A primeira entrevista realizada, com um dos gestores da Polícia
Técnica, já foi um indício importante das dificuldades que teríamos que enfrentar.
Ela foi precedida pela seguinte frase do entrevistado, após as apresentações formais:
“isso não vai demorar muito não, não é?”. Como decorrência, a entrevista decorreu
de maneira fria, entrecortada por respostas breves, de uma objetividade claramente
cerceadora de prolongações.
A segunda entrevista, realizada com outro gestor da Polícia Técnico Científica do
Rio de Janeiro, foi mais cordial e extensiva, da qual tiramos bons subsídios para nossa
pesquisa, entretanto, também reafirmando o mito do “descomprometimento” carioca
(categoria usada em vários depoimentos), aconteceu com duas horas e meia de atraso,
depois de esperarmos exaustivamente pelo término de uma reunião marcada para a
mesma hora.
O grupo focal que reunia os peritos do Rio de Janeiro também se iniciou com
bastante atraso, seguido de alguns contratempos. O grupo focal foi iniciado com cinco
pessoas, entre as quais o presidente da Associação de Peritos. No transcorrer da dinâmica
houve, ainda, algumas intervenções de peritos que não estavam participando do grupo.
Os telefones celulares e as atividades normais do escritório, ao lado, interromperam o
processo por algumas vezes, sem que as pessoas se dessem conta da importância do
momento. Embora houvesse motivação dos participantes nas questões propostas para
a discussão, a falta de um maior compromisso com a atividade, indicada pela postura
da maioria dos participantes, era patente.
O grupo focal no Rio prosseguiu em meio a questionamentos e demonstração
de uma completa insatisfação com o poder público (Polícia Civil) e com os diversos
órgãos de chefia. Esse grau de insatisfação era agravado com a repetida reclamação
de falta de verbas e de condições salariais e da precariedade das instalações e das
condições de trabalho. O relacionamento com as outras esferas da Polícia Civil nos

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 131


foi apresentado como extremamente negativo, tanto quanto com os demais órgãos da
segurança pública, sobretudo a Polícia Militar. Esse isolacionismo foi tão marcadamente
demonstrado que percebemos uma completa desconexão entre peritos e polícia, onde
sequer os primeiros se enxergam como policiais, apesar de assim serem enquadrados
no serviço público.

O Processo de Seleção

O concurso para ingresso na carreira de Perito Criminal de Minas Gerais exige


como pré-requisito básico o nível superior em qualquer área de formação, enquanto
no Rio de Janeiro as vagas são oferecidas para áreas específicas do conhecimento.
No último concurso, realizado em 2000, estas áreas foram: Biologia, Engenharia,
Farmácia, Física e Química.
Após o concurso, o candidato aprovado passa por um curso de formação de
Peritos, ministrado pelas respectivas academias de Polícia. Este curso tem duração de
seis a oito meses em Minas Gerais e 45 dias no caso do último concurso realizado em
2000 no Rio de Janeiro. Outra diferença foi a periodicidade dos concursos públicos
para ingresso na carreira de Perito criminal dos dois estados. No Rio de Janeiro foram
abertos apenas dois concursos públicos no período de 1990 a 2000, enquanto em Minas
Gerais foram abertos sete concursos públicos nesse mesmo período. Embora o concurso
público do Rio de Janeiro seja separado por áreas de formação superior, esta forma
inicial de seleção aparentemente tem pouca influência no desenvolvimento posterior
das atividades realizadas pelos Peritos. No grupo focal, um dos participantes relacionou
a questão de se possuir nível superior mais como uma questão de reconhecimento
social do que uma necessidade técnica. Assim o diploma seria “para dar respaldo para
o que o Perito fala ou escreve”. Além disso, muitas das atividades periciais não têm
correspondência com os cursos acadêmicos regularmente oferecidos, como perícias de
acidentes de trânsito e documentoscopia. Essa visão se contrapõe àquela obtida nas
entrevistas com os gestores da Polícia Técnica, os quais consideram como relevante à
formação superior no desempenho das atividades cotidianas do Perito.
No caso de Minas Gerais o fato de o concurso possibilitar o ingresso de
profissionais de diferentes áreas do conhecimento (qualquer curso superior) não foi
visto como problema, em nenhum momento da realização do grupo focal. Ao contrário,
foi ressaltado que o rigor dos últimos concursos tenderia a selecionar profissionais
altamente qualificados. Da mesma forma que no Rio de Janeiro, há um reconhecimento
de que o as habilidades adquiridas em cursos acadêmicos, nem sempre são suficientes
para o desempenho das atividades cotidianas, pois “não existe uma disciplina, na
faculdade, que ensine a gente a fazer os exames que a gente faz.”

O Curso de Formação

O espaço mais adequado para a aquisição dos conhecimentos necessários para


o desempenho das atividades periciais seria no curso de formação oferecido pelas
Academias de Polícia de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Neste ponto há uma nítida
diferença na percepção dos peritos dos dois estados, em relação à qualidade dos
cursos oferecidos. Em Minas Gerais, o curso de formação foi considerado pelos

132 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
participantes do grupo focal, como suficiente e adequado para capacitar os Peritos
no desenvolvimento de suas atividades cotidianas, pois ele propicia uma “formação
generalista de todas as áreas, independente da formação universitária”. Por outro
lado, no Rio de Janeiro os conteúdos foram considerados insuficientes, pois “a teoria
não se coaduna com a realidade prática”. Segundo o presidente da Associação do
Rio de Janeiro: “o curso ele não é o que se possa ter como de boa qualidade. Talvez
não alcance até uma qualidade mediana”. Para ele os professores e instrutores levam
muitas questões acadêmicas para o perito o que não interessa ao perito. Tal diferença
provavelmente estaria relacionada ao tempo de duração dos cursos de formação.
Enquanto em Minas o período é de 6 a 8 meses, no Rio de Janeiro este mesmo curso
foi oferecido em 45 dias, no último concurso.

Capacitação continuada

Durante as entrevistas percebeu-se que institucionalmente inexiste por parte dos


institutos uma diretriz, que gere um programa de capacitação continuada. Existem
somente palestras ou cursos esporádicos. Entretanto, em Minas Gerais há dois cursos
regulares oferecidos pela instituição e ministrados pela Academia de Polícia: Curso
de Aperfeiçoamento Policial e o Curso de Aperfeiçoamento em Chefia. O primeiro
caso seria um curso de atualização direcionado à atividade policial. Teoricamente, o
Aperfeiçoamento Policial também seria um dos pré-requisitos para ascensão na carreira.
Entretanto, alguns questionamentos foram levantados. Este curso seria direcionado
para toda a categoria policial, não sendo específico para a polícia técnica. Segundo um
dos participantes do grupo focal, “os cursos lá (na Academia de Polícia) não são assim
muito específicos para a área de criminalística, eles são para os policiais todos.” Além
disso, não há nenhum estímulo para realização dos cursos oferecidos, pois não existe
retorno financeiro; faltam vagas para a promoção na carreira (ascensão profissional)
e o perito não é liberado de sua funções para freqüentar o curso. No caso do Curso
de Aperfeiçoamento em chefia, ele estaria relacionado à aprendizagem de conteúdos
relativos a administração pública, sem nenhuma conotação técnica ou científica.
No Rio de Janeiro não há cursos regulares de capacitação e atualização
profissionais. Em certas ocasiões são oferecidos alguns cursos, mas a maioria voltada
para a atividade policial investigativa ou ostensiva. Os poucos cursos oferecidos são
considerados insuficientes e meramente informativos, ou um “bate-papo sobre um
assunto”. A necessidade de cursos técnicos de atualização e capacitação específicos
para a perícia criminal foi ressaltada pelos peritos. A fim de sanar tal deficiência,
muitos peritos buscam a capacitação fora de suas instituições e por conta própria. Isso
ocorre tanto em Minas Gerais quanto no Rio de Janeiro.

Convênios e Pesquisa

As entrevistas demonstraram que, apesar do nome “Polícia Técnico-Científica”,


os institutos praticamente não possuem junto a universidades ou institutos de pesquisa
convênios formalizados; contudo, informalmente, alguns peritos de ambos os estados
realizam algum tipo de pesquisa em parceria junto a universidades ou centros de pesquisa.

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 133


Aprofundamento profissional e alocação de pessoal

Em muitos casos a capacitação profissional requer um aprofundamento de conhe-


cimentos. No caso dos Institutos de Criminalística, não existem mecanismos oficiais
que permitam ou estimulem este aprofundamento. Embora muitos dos profissionais
tenham uma sólida formação acadêmica, alguns inclusive com cursos de pós-graduação,
isso não é aproveitado pela instituição. No caso de Minas Gerais, existe um critério
mínimo no momento da lotação inicial, logo após o ingresso na carreira. Os profissionais
oriundos de áreas cientifico-tecnológicas são preferencialmente lotados no setor de
Laboratórios. No Rio de Janeiro não se fez referência a um critério inicial de lotação.
Em ambos os estados, os critérios de transferência de funcionários entre setores
e/ou postos, tenderiam a prejudicar o aprofundamento do conhecimento em áreas
específicas, pelo fato destas alocações de pessoal serem pautados em questões
políticas e de punição do funcionário. Isso foi visto como um empecilho para uma
maior eficiência dos serviços, pois o “laudo de um perito especialista é muito mais bem
elaborado”, segundo um dos peritos de Minas Gerais.
Houve uma concordância geral que devido à atual escassez de recursos
humanos, principalmente no interior, existe a necessidade de haver grande número de
peritos “generalistas”, os quais são capazes de realizar atividades as mais variadas.
Assim, embora a especialização seja uma tendência desejável, segundo a concepção
predominante, atualmente todos os Peritos devem ter uma formação básica generalista,
quando do ingresso na carreira. Isso facilitaria a flexibilidade para realização das
atividades, principalmente no interior.
A sede seria um espaço privilegiado, onde se concentram os melhores recursos
e equipamentos e, portanto, onde se torna possível uma maior especialização das
atividades. Isso gera um conflito claro entre peritos lotados no interior e peritos lotados
na sede e entre peritos de locais, cujas atividades demandam um conhecimento
mais generalista, e peritos lotados em laboratórios (peritos internos). Este conflito
transparece na seguinte assertiva de um perito de locais de Minas Gerais: “A visão de
laboratório também é uma visão mais elitizada”.

Capacitação versus condições de trabalho

A principal questão relacionada às condições de trabalho foi referente à deficiência


tecnológica. Este fato torna inviável a realização de cursos de especialização ou
capacitação que possibilitem ao profissional o manuseio de técnicas ou tecnologias,
pois não há a possibilidade desse funcionário aplicar os conhecimentos adquiridos,
ante a falta de recursos básicos, como aparelhos, equipamentos ou reagentes. Nesse
sentido, os investimentos em cursos de capacitação, sem o concomitante investimento
tecnológico, muitas vezes se transformam em perda de dinheiro. Segundo um perito
do grupo focal de Minas Gerais “Ele (o Perito) faz o curso, mas um bom equipamento
que ele precisa para esta tecnologia que ele foi buscar lá fora, não tem nem sequer
projeção para colocar aqui dentro”.

134 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Valorização do trabalho

A eficiência da Perícia Criminal está muito relacionada, na opinião de todos,


com a interação existente com outros setores da polícia e do Judiciário. Possíveis
conflitos entre estas esferas são afetados e afetam a formação profissional dos peritos.
A qualidade desta inter-relação parece ter implicações profundas na polícia técnica de
Minas Gerais e do Rio de Janeiro.
Em Minas Gerais, de uma maneira geral, a interação dos peritos criminais com
outros segmentos da polícia civil, polícia militar e judiciário parece ser amistosa,
embora alguns conflitos sejam percebidos. A principal questão geradora de conflito
parece ter sido a tentativa de autonomia por parte do Instituto de Criminalística de
Minas Gerais, o que gerou um evento traumático dentro da Policia Civil. Segundo os
peritos, houve um movimento de autonomia não consensual por parte dos peritos
que acabou não dando certo. Após este momento “Criou-se uma imagem negativa
dos Peritos junto a comunidade de Policia Civil”. “Então quando nós chegávamos nas
Delegacias, a gente era marginalizado...”. No Rio de Janeiro, parte significativa da
categoria reivindica junto à Assembléia Legislativa a autonomia da Perícia Criminal em
relação à Polícia Civil, o que levou recentemente à aprovação, em primeira votação, de
projeto de lei que concede autonomia administrativa à Polícia Técnica. Uma segunda
votação e a sanção da Governadora decidirão em breve sobre essa iniciativa.
Outro ponto gerador de conflito é o fato de a administração da Polícia Técnica
estar subordinada a um delegado. Ambos os representantes de classe consideraram que
os coordenadores de polícia técnicas deveriam ser peritos. Segundo o representante do
Rio de Janeiro, os peritos sofrem com a colocação de delegados na direção devido ao
fato de que eles não têm conhecimento técnico para exercer essa função.
Já sobre a relação entre a Perícia Criminal e a Polícia Militar de Minas Gerais, só
foram ressaltados os pontos positivos, no grupo focal, o que se refletiria inclusive em
uma preservação do local mais eficiente, condição considerada fundamental para o
bom desempenho dos exames dos peritos de local. O relacionamento com o Judiciário
foi considerado amigável, ou nas palavras de um perito: “eu acho que a Justiça mineira
valoriza muito nosso trabalho”.
Boa parte deste entrosamento da Perícia Criminal com outros setores poderia
ser explicada pelo fato de haver um contato freqüente durante os respectivos cursos
de formação, dos diferentes segmentos da polícia e do Judiciário. Assim, muitos
dos profissionais de um setor da polícia participam como professores nos cursos de
formação de outros setores da polícia. Em relação ao judiciário a presença de recém
ingressos dos concursos de juiz e promotor em visita ao Instituto de Criminalística
foi vista com grande admiração pelos Peritos “...a turma (juizes e promotores) está
sempre vindo à Criminalística e passam em todas as seções, eles procuram saber o
serviço da gente, a gente pára, explica, mostra, eles se interessam em olhar os casos”.
No Rio de Janeiro, a situação, tal como evidenciada nas entrevistas e no grupo
focal, é completamente diferente. Existe uma total cisão nas relações entre os diferentes
setores da polícia e a perícia criminal. A desvalorização do trabalho parece ser total em
alguns setores. Como exemplo destaca-se a impressão de um perito de local referente ao
seu contato com policial do setor especializado de homicídios. Segundo o perito, esse
policial afirmou que “nunca usou um laudo para ajudar na investigação”. Entretanto,

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 135


segundo um perito veterano, as relações eram mais amigáveis em épocas mais antigas.
Ou seja, aparentemente houve uma degeneração das relações profissionais ao longo
do tempo.
Dessa rejeição mútua entre a Perícia Criminal do Rio de Janeiro e outros setores
da Polícia Civil e Militar decorre um sentimento de não pertencimento dos peritos
criminais ao quadro da polícia civil e vice-versa. Como solução desenvolveu-se a idéia
de que a Perícia deve sair dos quadros da Polícia, ou seja, tornar-se autônoma. Dessa
relação conturbada também surgem conflitos com a Polícia Militar, o que se traduz,
em grande parte, na reclamação de falta de preservação dos locais de crime. No Rio
de Janeiro, a única relação mais amistosa seria entre a Perícia Criminal e o Judiciário.
Neste ponto todos os peritos que participaram do grupo focal concordaram que o
Judiciário valoriza o trabalho do perito.

ANÁLISE ESTATÍSTICA DA ENQUETE (SURVEY)


Foram distribuídos questionários para todos os peritos do Rio de Janeiro (303
questionários) e de Minas Gerais (500 questionários). Desse total, 323 peritos criminais de
Minas Gerais (65%) e 135 peritos do Rio de Janeiro (45%) responderam ao questionário.
No caso de Minas, a representatividade pode ser considerada “muito boa”, enquanto no
Rio apenas pode ser considerada muito próxima de ser “adequada” (Babbie, 1999).
Analisamos, portanto, 458 questionários ao todo, mas mantivemos a classificação
por estado, de modo a permitir a comparação entre o Rio e Minas. A seguir, apresentamos
a análise estatística da enquête realizada segundo as principais dimensões exploradas
no projeto.

Perfil Social dos Peritos Criminais nos dois Estados

Sexo – A população de peritos do Estado do Rio de Janeiro é composta em sua


maioria por homens (66,4%). Em Minas Gerais, a participação masculina é superior à
do Rio de Janeiro, sendo observado um contingente de apenas 20,2% de mulheres.
Faixa Etária – O quadro de peritos criminais do Rio de Janeiro e de Minas Gerais
apresenta um contingente razoavelmente bem distribuído na ampla faixa de 26 a 50
anos (Tabela 4.1). Entretanto, uma elevada porcentagem encontra-se com mais de 65
anos de idade em ambos os estados. No Rio de Janeiro isso é mais preocupante pelo
fato de os concursos públicos serem pouco freqüentes.
Áreas de Formação Superior – No Rio de Janeiro a área de formação dos peritos
é predominantemente tecnológica (62%), seguido pela área biomédica (23,3%) e de
Ciências Humanas e Sociais (14,7%). Em Minas Gerais, a freqüências foram muito
semelhantes às do Rio de Janeiro, sendo 62,7% dos peritos formados na área de
Ciências Tecnológicas, 21,1% na área das Ciências Biomédicas e 16,2% na área de
Ciências Sociais.
Estes resultados mostram que embora os critérios para seleção e concurso nos
dois estados sejam bastante diferentes, a proporção do contingente de peritos nas
grandes áreas de conhecimento permanece a mesma. Em Minas Gerais o requisito atual
para o ingresso na carreira é possuir qualquer nível superior. Teoricamente este critério
deveria levar a uma distribuição mais eqüitativa nas grandes áreas de formação. Isso

136 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
não ocorre pelo fato de a prova ser direcionada para as áreas tecnológicas, exigindo
maiores conhecimentos nestas áreas.

Tabela 1
Distribuição Percentual de peritos criminais por faixa etária
nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais

Estado
Faixa etária
Rio de Janeiro Minas Gerais
Até 25 anos 0,8 0
De 26 a 30 anos 14,2 13,7
De 31 a 35 anos 20,1 16,8
De 36 a 40 anos 12,7 14,0
De 41 a 45 anos 19,4 21,4
De 46 a 50 anos 13,4 10,6
De 51 a 55 anos 7,5 10,6
De 56 a 60 anos 3,7 3,1
Mais de 60 8,2 9,9

Cor – O gráfico 4.1 mostra que a maior parte dos peritos criminais se auto-
declararam como brancos, tanto em Minas Gerais (76,9%) quanto no Rio de Janeiro
(75,8%). Menos de 1% se declararam de cor preta em ambos os estados. A freqüência
de pretos foi bem menor do que a de amarelos. A predominância dos que se auto-
declararam brancos também é bem superior ao observado por Minayo & Souza (2003)
para o quadro de policiais civis do Rio de Janeiro (65%).

Gráfico 1
Freqüência de cor de pele auto-declarada pelos peritos criminais
de Minas Gerais (MG) e Rio de Janeiro (RJ)

100
90
75,8 76,9
80
RJ MG
frequência (%)

70
60
50
40
30 20,5 20,3
20
10 3,0 2,2 0,8 0,6
0
Branca Amarela Parda Preta

Estado Civil – O perfil dos peritos criminais nos dois estados, em relação ao
estado civil também foi semelhante. A maior parte da população é composta por
casados ou em união livre (70,1% no Rio de Janeiro e 67,1% em Minas Gerais). Os
solteiros foram a segunda categoria mais freqüente, perfazendo um total de 18,7%

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 137


do contingente de peritos no Rio de Janeiro e 23,6% em Minas Gerais. Os que se
declararam separados corresponderam a 10,4% no Rio de Janeiro e 8,7% em Minas
Gerais, enquanto que os viúvos ficaram com menos de 1% em ambos os estados. Não
houve diferença significativa nas proporções encontradas em Minas Gerais e no Rio
de Janeiro.

Dinâmica das relações de trabalho

Gráfico 2
Tempo de ingresso na perícia criminal (freqüência) dos profissionais
de Minas Gerais (MG) e do Rio de Janeiro (RJ)

60
50,8 RJ MG
50 44,1

40
freqüência

30 25,0
23,8
15,9
20 13,6 12,5
10,6
10 3,8
0,0
0
< 1 ano 1a4 5 a 12 13 a 20 > 20 anos
tempo na perícia (anos)

Os resultados mostram que cerca de metade (50,8%) do contingente de peritos


que respondeu ao questionário no Rio de Janeiro tem entre um e quatro anos de
serviço (Gráfico 4.2). Este fato aponta para o concurso público anterior, momento
em que houve um expressivo ingresso de peritos, praticamente dobrando o quadro
de funcionários; portanto não houve viés na devolução dos questionários do survey
quanto ao fato de os peritos serem recém ingressos ou “veteranos”, já que a amostra
captou a realidade observada. No caso de Minas Gerais, também foi observada uma
freqüência elevada de peritos no período de um a quatro anos (44,1%), devido a
ocorrência de sucessivos concursos públicos nos últimos quatro anos.
Quando se considera o total de mudanças de atividades e/ou setores que o
profissional está desempenhando suas atividades, o percentual de transferências
é proporcional ao tempo de exercício da profissão (Tabela 4.2 e 4.3). Quanto mais
antigo o funcionário mais a probabilidade dele ter sido transferido várias vezes.
A porcentagem de peritos antigos (mais de 20 anos) que foram transferidos três ou
mais vezes é de 58,8% em Minas Gerais e de 57,2% no Rio de Janeiro.
Assim, a porcentagem de transferências de setores ou atividades foi elevada,
mas a rotatividade é maior para a transferência de postos, o que provavelmente
estaria relacionado ao mecanismo conhecido como “punição geográfica”, em que
um funcionário muitas vezes é punido por um superior com a transferência, em
decorrência de conflitos pessoais ou desempenho insatisfatório da função.

138 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 2
Freqüência (%) de peritos transferidos de setor/atividade em relação ao tempo de exercício
na profissão (tempo na perícia). Estado de Minas Gerais

Tempo na perícia (em anos)


Transferências (número de vezes) Menos de 1 1a4 5 a 12 13 a 20 Mais de 20
0 - 58,2 33,3 30,39 0
1 - 20,9 33,3 36,4 21,4
2 - 4,5 11,1 9,1 21,4
3 - 7,5 16,7 6,1 28,6
4 - 4,5 0 12,1 14,3
5 - 3,0 5,6 3,0 0
>5 - 1,5 0 3,0 14,3

Tabela 3
Freqüência (%) de peritos transferidos de setor/atividade em relação ao tempo de exercício
na profissão (tempo na perícia). Estado do Rio de Janeiro

Tempo na perícia (em anos)


Transferências (número de vezes) <1 1a4 5 a 12 13 a 20 Mais de 20
0 100 66 45 28,9 0
1 0 11,3 30 32,9 21,6
2 0 6,4 15 10,5 19,6
3 0 9,9 7,5 6,6 29,4
4 0 4,3 0 9,2 5,9
5 0 2,1 2,5 3,9 0
>5 0 0 0 7,9 23,5

Esta alta rotatividade de setores e atividades poderia comprometer a atuação


dos peritos criminais, uma vez que as atividades demandam um aprofundamento do
conhecimento e da prática e isso requer tempo desempenhando uma mesma função.
Afora isso, o estresse causado pela instabilidade das atividades deve causar um
sofrimento psíquico, o qual deve ser analisado em estudo mais aprofundado.

Tipo de Atividade Atual

As atividades predominantes desenvolvidas pelos peritos foram de dois tipos:


atividades externas sem especialização e atividades internas especializadas. Os dados
refletem uma tendência da administração de ambos os estados em investir na especiali-
zação das atividades ligadas ao exame de materiais e entorpecentes por um lado e
na generalização das atividades ligadas aos exames de locais (homicídios, acidentes
de trânsito, arrombamentos e outros). Este investimento também se reflete na visão
do perito em relação ao papel dos profissionais lotados em cada setor, conforme foi
explicitado na análise qualitativa (entrevistas e grupos focais). No caso dos peritos
internos, a especialização é vista com mais naturalidade, havendo inclusive discursos
que procuram justificar tal tendência.

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 139


O gráfico 4.3 mostra, ainda, uma clara tendência em haver uma divisão de tarefas
em função do sexo. Enquanto o trabalho interno especializado é destinado a mulheres
(61,4% das mulheres no Rio de Janeiro e 58,5% das mulheres em Minas Gerais),
as atividades externas sem especialização são destinadas aos homens (48,6% dos
homens do Rio de Janeiro e 44,9% dos homens em Minas Gerais). Um ponto relevante
é que as atividades externas especializadas são realizadas apenas por homens em
ambos os estados, ou seja, são atividades exclusivas do sexo masculino. Esta diferença
de atividades por sexo foi significativa para os estados de Minas Gerais (χ2 = 41,5;
p= 0,001) e Rio de Janeiro (χ2 = 122,5; p= 0,001).

Gráfico 3
Freqüência do tipo de atividade desenvolvida
pelos peritos criminais do Rio de Janeiro

A) Rio de Janeiro B) Minas Gerais

2,3 feminino 0,0


feminino
burocrática 5,4 burocrática 3,7
masculino masculino
0,0 0,0
interna e externa 8,1 interna e externa 11,1

20,5 26,2
interna não espec interna não espec
9,5 13,0
61,4 58,5
interna espec interna espec
13,5 5,1
15,9 15,4
externa não externa não
48,6 espec 44,9
espec
0,0 0,0
externa espEc 14,9 externa espec 22,0

0,0 10,0 20,0 30,0 40,0 50,0 60,0 70,0 0 10 20 30 40 50 60

frequência (%) frequência (%)

Quando indagados se as atividades periciais desenvolvidas coincidem com a


área de formação, 42,1% dos Peritos do Rio de Janeiro formados na área de Ciências
Humanas e Sociais disseram que as atividades periciais coincidem com sua área de
formação. Em Minas Gerais este percentual foi de 49,0%. Somente uma pequena
parte dos peritos das áreas Biomédica (17,2%) e Tecnológica (16,5%) disseram que as
atividades coincidem com a área de atuação no Rio de Janeiro. Em Minas esta proporção
foi de 15,3% (Biomédica) e 15,6% (Tecnológica). Este resultado é inesperado, uma
vez que são esperados conhecimentos oriundos das áreas tecnológicas e da biologia
para o desempenho satisfatório de atividades tecno-científicas.

Formação básica e qualificação profissional

A distribuição de peritos segundo o grau de escolaridade, revela um padrão


esperado para a função técnica exigida. Mais de 90% do quadro possui nível
superior, sendo que no Rio de Janeiro 58,2% dos peritos apresentam algum grau de
especialização (curso de especialização, mestrado ou doutorado), enquanto em Minas
Gerais esta proporção é de 47,2% (Tabela 4.4).

140 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 4
Escolaridade dos peritos criminais nos estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais

Estado
Escolaridade
Rio de Janeiro Minas Gerais
Secundário incompleto 0,0 2,5
Secundário completo 1,5 3,1
Superior incompleto 1,5 2,2
Superior completo 38,8 45,0
Especialização 35,8 27,3
Mestrado 16,4 14,0
Doutorado 6,0 5,9

O grau de especialização acadêmica, no entanto, não está associado com um


investimento do perito para uma maior qualificação profissional em ambos os estados.
A maior qualificação é encontrada entre os recém-ingressos (1 a 4 anos) na Perícia
Criminal e há uma clara tendência a diminuição em relação ao tempo em que se está
na Perícia. Neste caso, os profissionais com menor grau de especialização são os mais
antigos na profissão. Na realidade isto poderia ser explicado pelo fato de os últimos
concursos estarem admitindo profissionais já altamente qualificados em decorrência
da competição no mercado de trabalho. Esta hipótese é corroborada pela freqüência
de respostas à questão: “Caso tenha feito um curso de especialização, mestrado
ou doutorado após o ingresso na perícia criminal, responda qual foi sua principal
motivação?”. Somente 52,9% e 57% dos peritos de Minas Gerais e Rio de Janeiro,
respectivamente, responderam esta questão; o que pode significar que praticamente
metade dos peritos já tinha cursos de pós-graduação antes de seu ingresso na perícia
criminal. Deste total foi feita uma análise das respostas com base no tempo de ingresso
na perícia criminal. Para os recém-ingressos a principal motivação para ingressar em
um curso de pós-graduação foi a de preparar-se melhor para as atividades de perícia
(50,7% em Minas Gerais e 56,8% no Rio de Janeiro), enquanto para os peritos mais
antigos esta porcentagem foi de 94,6% em Minas Gerais e 75% no Rio de Janeiro.
Embora haja uma tendência de os funcionários mais antigos (mais de 20 anos)
realizarem cursos de pós-graduação a fim de implementarem suas atividades periciais,
há proporcionalmente menos profissionais com especialização acadêmica nesta
categoria. Isso pode estar indicando que há uma saída de profissionais capacitados
para outras instituições e que não há estímulo suficiente para que os profissionais que
permanecem realizem cursos de pós-graduação.
Esta falta de estímulo pode estar relacionada a pouca aplicabilidade dos
cursos oferecidos. Quando indagados sobre se as técnicas aprendidas nos cursos
de especialização ou palestras oferecidos pela instituição, 47,7% dos peritos do Rio
de Janeiro e 39,3% dos peritos de Minas Gerais se utilizaram pouco ou nunca dos
conhecimentos adquiridos. De uma maneira geral, os mineiros acharam que os cursos
oferecidos pela instituição eram mais úteis.
A maioria dos peritos de ambos os estados considerou que há uma baixa oferta
de cursos oferecidos pelas instituições. Mais de 50% dos peritos consideram que seus

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 141


institutos oferecem raramente ou nunca oferecem cursos técnicos. 9,9% dos peritos
de Minas Gerais e 12,1% dos peritos do Rio de Janeiro nem mesmo têm conhecimento
destes cursos.
A divulgação dos poucos cursos oferecidos também foi um ponto crítico. A
maioria dos peritos criminais do Rio de Janeiro (62,6%) e de Minas Gerais (63,3%)
consideram que a instituição onde trabalham não divulga adequadamente os poucos
cursos técnicos oferecidos.
Embora os cursos sejam escassos, 80,2% dos peritos do Rio de Janeiro e 75,9%
dos peritos de Minas Gerais realizaram um ou mais cursos técnico, de extensão ou
especialização oferecidos pela Academia de Polícia ou Instituto. Este interesse na
melhoria da qualificação profissional pode ser claramente vista quando se observa que
97% dos profissionais do Rio de Janeiro teriam interesse em realizar cursos técnicos
relacionados à perícia criminal, enquanto 96% dos peritos de Minas Gerais revelaram
o mesmo interesse.
Assim, a escassez e inadequabilidade dos cursos oferecidos pelos Institutos de
Criminalística, aliado a divulgação precária dos mesmos parece ter resultado em uma
percepção negativa dos peritos em relação ao estímulo oficial para o aprimoramento
técnico (Gráfico 4.4).

Gráfico 4
Percepção dos peritos de Minas Gerais (MG) e do Rio de Janeiro (RJ)
quanto ao estímulo oficial tendo em vista o aprimoramento técnico
(crescimento na carreira, apoio institucional)
38,9
Nunca 42,9

54,5
Raramente 54,9

6,6
Freqüentemente 2,3
RJ MG
0,0
sempre 0,0

0 10 20 30 40 50 60
frequência (%)

A observação dos cursos oferecidos pelas Academias de Polícia nos últimos


cinco anos, confirma a visão dos peritos de que os cursos técnicos a eles destinados
são escassos. A maioria dos cursos oferecidos são destinados aos policiais do corpo
operacional, sendo extremamente reduzidos os cursos técnico-científicos requeridos
para atividades específicas da polícia técnica.

Curso de Formação

A maioria dos peritos criminais do Rio de Janeiro realizou os cursos de formação


na academia de Polícia (99,2%). Em Minas Gerais, todos os peritos realizaram o curso
de formação.

142 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
As perguntas referentes ao curso de formação da Academia de Polícia basearam-se
na percepção dos peritos quanto a utilização das técnicas aprendidas nas atividades
práticas cotidianas, treinamento policial e aspectos jurídicos relevantes para o
exercício das funções. De uma maneira geral, os peritos criminais do Rio de Janeiro
consideraram sua formação técnica regular (36,8%) ou boa (32,3%) (Gráficos 4.5A
e 4.5B). Em Minas Gerais os resultados são parecidos. 41,7% dos peritos criminais
deste estado consideram as técnicas aprendidas no curso de formação regulares e 29%
consideraram boas.

Gráfico 5
Percepção dos peritos em relação à qualidade do curso de formação
para ingresso na carreira, considerando-se os seguintes aspectos:
técnico-científico, jurídico e treinamento policial

A) Rio de Janeiro B) Minas Gerais


50 técnica policial jurídica 50 técnicas policiais jurídicas
45 45
40 40
frequência (%)
frequência (%)

35 35
30 30
25 25
20 20
15 15
10 10
5 5
0 0
Excelente Bom Regular Ruim Péssimo Excelente Bom Regular Ruim Péssimo

avaliação do curso de formação avaliação do curso de formação

É importante ressaltar que as polícias técnicas dos dois estados estão inseridas
dentro da instituição policial e, portanto, tem as mesmas funções e deveres básicos
daqueles atribuídos aos demais policiais civis lotados nas unidades policiais. Dessa
forma as técnicas de abordagem policial, além de uso e manejo de arma de fogo, são
imprescindíveis à formação do perito. Entretanto, a grande maioria destes profissionais
se referiu ao curso de formação como sendo ruim ou péssimo no Rio de Janeiro (53%)
e em Minas Gerais (46,8%) (Gráficos 4.5A e 4.5B).
Além da função policial e técnica, as atividades periciais também possuem uma
forte interface com o mundo jurídico. Novamente o curso de formação foi considerado
de má qualidade pelos peritos, sendo que os aspectos jurídicos tiveram a pior
conceituação. Cerca de 59,7% de todos os peritos do Rio de Janeiro consideraram
o curso de formação ruim ou péssimo, enquanto 53% dos peritos de Minas Gerais
atribuíram estes conceitos ao curso de formação.
Embora o grau de insatisfação dos peritos criminais do Rio de Janeiro e de
Minas Gerais tenha sido parecido, os peritos criminais deste último estado tenderam a
apresentar proporções ligeiramente menores de rejeição (atributos ruim ou péssimo)
em relação ao curso de formação.
Além disso, houve uma diferenciação das respostas de acordo com a área de
formação. Os peritos formados na área de Ciências Sociais, tanto do Rio de Janeiro
quanto de Minas Gerais tiveram uma percepção mais positiva do curso do que aqueles

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 143


formados nas demais áreas. Isso poderia indicar que o curso de formação estaria
mais direcionado para um tipo de público ou que os conteúdos apresentam pouca
informação técnica.

Atualização e pesquisa

A participação de peritos em Congressos de Criminalística e em congressos de


outras áreas do conhecimento foi examinada. O Gráfico 4.6 ilustra a participação de
peritos em cinco ou mais congressos, após o ingresso na carreira.
Os peritos recém ingressos tendem a participar mais de congressos não ligados
à área de Criminalística, enquanto os peritos antigos (com mais de 20 anos) tendem a
participar de mais congressos na área de Criminalística, embora tenham participação
elevada em outros tipos de congressos. Esse padrão foi observado para ambos os estados.

Gráfico 6
Participação dos peritos em Congressos de Criminalística e em congressos não ligados à
Criminalística, considerando-se participações superiores a cinco congressos. MG – Minas
Gerais e RJ – Rio de Janeiro
60 Não criminalística (RJ) criminalística (RJ) 40 Não criminalística (MG) criminalística (MG)
35
50
30
frequência (%)

frequência (%)

40
25
30 20
20 15
10
10
5
0 0
De 1 a 4 De 5 a 12 De 13 a 20 Mais de 20 De 1 a 4 De 5 a 12 De 13 a 20 Mais de 20
anos anos anos anos anos anos anos anos
tempo na perícia tempo na perícia

O aumento da participação em congressos de criminalística por parte de


funcionários mais antigos poderia ser vista como um aumento do interesse do perito
em sua atualização, tendo em vista a melhor adequação de suas atividades. Por outro
lado a menor participação dos peritos recém-ingressos poderia ser decorrente da
escassez de congressos específicos para a criminalística, ao contrário de outras áreas
do conhecimento.
Essa escassez talvez esteja relacionada ao grande interesse que os peritos de
ambos os estados demonstraram em participar de mais congressos relacionados à
Criminalística. No Rio de Janeiro 95,5% declarou ter interesse em participar de mais
congressos, enquanto em Minas Gerais esse percentual foi de 97,5%.
Outra forma de se medir a atualização dos peritos criminais seria verificar a
participação deste grupo em atividades de pesquisa, uma vez que a investigação
científica necessita pressupõem uma constante busca por conhecimentos. Neste ponto,
a maioria dos peritos do Rio de Janeiro (67,4%) e de Minas Gerais (70,8%) nunca
exerceram pesquisa na área de criminalística/ciência forense. Este fato se contrapõe ao
grande contingente de peritos que realiza ou realizou pesquisa em outras áreas, tanto
no estado de Minas Gerais (59,6%), quanto no estado do Rio de Janeiro (63,2%). Isso
demonstra que há um grande potencial não utilizado pelas instituições periciais no que

144 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
tange ao estímulo a atividades de pesquisa. A falta de estímulo oficial está relacionada
com questões estruturais: falta de equipamentos e instalações físicas adequadas e
ausência de verbas para pesquisa, os quais foram abordados na análise qualitativa.
O interesse dos peritos em desenvolver atividades de pesquisa fica patente
quando se observa o elevado percentual de profissionais que declararam que seus
respectivos institutos deveriam desenvolver atividades de pesquisa em ciência forense
(94,7% no Rio de Janeiro e 95,8% em Minas Gerais).
Da mesma forma, a maioria dos peritos criminais do Rio de Janeiro (78,4%)
e de Minas Gerais (81,7%) consideram que as instituições ou centros de pesquisa
deveriam dar suporte forma às atividades desenvolvidas pelos peritos. Somente 1,5%
dos profissionais do Rio de Janeiro e 0,6% dos profissionais de Minas Gerais acharam
que não era necessário ter qualquer vínculo com instituições de pesquisa.

Valorização do trabalho e identidade social

Os peritos criminais podem ser divididos em dois grupos principais de acordo com
as atividades desempenhadas: peritos de local e peritos internos. Os Peritos de local
trabalham basicamente com a dinâmica de eventos criminosos, e para isso necessitam
concatenar diferentes vestígios de uma cena de crime e a partir daí tirar suas conclusões.
Por outro lado, os peritos internos realizam exames em objetos específicos, extraindo
vestígios que permitam relacionar aquele objeto a um fato delituoso real ou potencial.
Essa delimitação do trabalho estaria relacionada a uma prática cotidiana específica
para cada uma das duas atividades. A percepção dos peritos quanto às necessidades e
especificidades das atividades foi analisada (Tabela 4.5).

Tabela 5
Percepção dos peritos quanto as características que um perito de local (local)
e um perito interno (interno) devem possuir para cada um dos estados.
Foram consideradas as freqüências acumuladas dos escores muito importante
e importante atribuídos pelos peritos.

Característica Local Interno Local Interno


Experiência prática 91,2 89,6 96 93,1
Treinamento 95,6 94,8 96 93,8
Equipamento 97 93,3 97,8 90,1
Apoio de peritos internos 79,3 86,7 79 87
Motivação pessoal 93,4 93,4 94,8 92,6
Vocação 88,1 86,7 86,1 86,4
Curso de aperfeiçoamento 95,5 94 96,6 92,6
Curso de pós-graduação 39,3 51,1 40,9 47,7
Curso de especialização 45,2 65,2 44,5 63,4
PG em criminalística 71,1 65,9 77,8 68,4

Não houve diferença significativa na percepção dos peritos quanto às principais


características relacionadas aos dois tipos de atividade (perícia interna e de local) ou
entre os estados, segundo o teste de Kruska-Wallis (H = 0,778; p = 0,85). No entanto,

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 145


quando perguntados sobre o grau de especialização e conhecimento que cada um
dos peritos (local e interno) deveriam possuir, houve uma pequena diferenciação
(Gráfico 4.7 e 4.8).

Gráfico 7
Grau de especialização requerida para os peritos de local e internos,
segundo a percepção dos peritos de Minas Gerais

(A) Considerando as condições atuais (B) Considerando as condições ideais


interno interno
local local
atuar e saber todas atuar e saber todas
as atividades as atividades

atuar em todas as atuar em todas as


atividades mas ser atividades mas ser
especialista especialista

atuar em uma atuar em uma


atividade e conhecer atividade e conhecer
várias várias

conhecer e atuar em conhecer e atuar em


uma atividade uma atividade

0 10 20 30 40 50 0 10 20 30 40 50 60
frequência (%) frequência (%)

Gráfico 8
Grau de especialização requerida para os peritos de local e internos, segundo a percepção
dos peritos do Rio de Janeiro

(A) Considerando as condições atuais (B) Considerando as condições ideais


interno interno
local local
atuar e saber todas atuar e saber todas
as atividades as atividades

atuar em todas as atuar em todas as


atividades mas ser atividades mas ser
especialista especialista

atuar em uma atuar em uma


atividade e conhecer atividade e conhecer
várias várias

conhecer e atuar em conhecer e atuar em


uma atividade uma atividade

0 10 20 30 40 50 60 0 10 20 30 40 50 60
frequência (%) frequência (%)

Grande parte dos peritos considerou que tanto nas condições atuais quanto em
condições ideais os peritos de local e o perito interno deveriam ter um conhecimento
abrangente, mas atuarem em uma área específica. Entretanto, os peritos de local,
em ambos os estados escolheram mais freqüentemente as opções relacionadas com
uma atuação mais abrangente, enquanto os peritos internos escolheram com mais
freqüência as opções de atuação mais especializadas.

146 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 9
Percepção dos peritos quanto à valorização pelo setor de investigação,
nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro

RJ MG
11,2
Nunca 10,4
34,2
Raramente 38,8

32,6
Parcialmente 35,1

11,8
Frequentemente 12,7

10,2
Sempre
3,0

0 10 20 30 40
frequência (%)

Gráfico 10
Percepção dos peritos quanto à valorização pela Justiça (Juízes e Promotores), nos estados
de Minas Gerais e Rio de Janeiro

RJ MG
2,8
Nunca 4,5
20,8
Raramente 21,6
29,5
Parcialmente 33,6
25,8
Frequentemente 27,6

21,1
Sempre
12,7

0 10 20 30 40
frequência (%)

Em relação à valorização profissional, a maioria dos peritos do Rio de Janeiro


(49,2%) e de Minas Gerais (45,4%) consideraram que seu trabalho nunca ou raramente
é reconhecido pelo setor de investigação da Polícia Civil. Poucos peritos do Rio de
Janeiro (3%) e de Minas Gerais (10,2%) consideraram que seu trabalho sempre é
reconhecido (Gráfico 4.9).
Em relação à valorização pela Justiça, houve um maior reconhecimento da
valorização do trabalho por parte dos peritos de ambos os estados. Somente 4,5% dos
peritos do Rio de Janeiro e 2,8% dos peritos de Minas Gerais consideraram que seus
trabalhos nunca são reconhecidos pela Justiça. (Gráfico 4.10).
A percepção dos peritos quanto à preservação das provas que são utilizadas no
trabalho de análise dos peritos foi um ponto crítico. A maioria absoluta dos peritos do
Rio de Janeiro (66,2%) e de Minas Gerais (70%) consideram que raramente as provas
são preservadas. Esse resultado também pode ser visto como uma desvalorização do

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 147


trabalho do perito, uma vez que a qualidade da atividade pericial é prejudicada pelo
manuseio ou procedimento inadequado de outros atores responsável pela preservação
do local ou objeto de investigação.
Quanto à ascensão na carreira, uma grande parte dos profissionais encontra-se
desestimulada. Em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, 32,6% dos peritos criminais
não tem expectativa de crescimento, pois ainda que não pretenda sair da carreira, se
encontra muito decepcionado com a estrutura de trabalho. Entretanto, a maior parte
dos peritos de Minas Gerais (46,8%) e do Rio de Janeiro (48,8%) ainda pretende
crescer na carreira, pois embora não fosse o seu senso profissional, se identificou com
a carreira. Não houve diferença significativa (χ2 = 9,39; p = 0,671) das opções acima
descritas em relação ao tempo de ingresso na perícia criminal.
Em relação ao grau de satisfação geral, uma porcentagem elevada dos peritos
do Rio de Janeiro se disse satisfeita (34,8%) ou pouco satisfeita (35,6%). Em Minas
Gerais essa freqüência foi de 36,6% (satisfeito) e 32,4% (pouco satisfeito).
O grau de insatisfação (categorias “muito insatisfeito” e “insatisfeito”) esteve
relacionado com diferentes fatores, dentre eles o tempo de ingresso na perícia criminal.
Os funcionários mais antigos geralmente apresentaram menor insatisfação do que os
recém ingressos (Gráfico 4.11).

Gráfico 11
Insatisfação dos Peritos por Estado vs. Tempo na Polícia Técnica (em anos)

Insatisfação em MG Insatisfação no RJ
40,00%

35,00%
Percentual de Insatisfação

30,00%

25,00%

20,00%

15,00%

10,00%

5,00%

0,00%
1a4 5 a 12 13 a 20 Mais de 20
Tempo na Polícia Técnica (em anos)

A insatisfação também foi maior entre os funcionários com grau elevado de


especialização acadêmica (doutorado) em ambos os estados. A porcentagem de
insatisfeitos, neste último caso, foi de mais de 70%. (Gráfico 4.12).
Os peritos de ambos os estados foram sensíveis à valorização de seu trabalho
pelo setor de investigação da polícia, sendo observado que os maiores valores de
insatisfação estiveram relacionados com pouca ou nenhuma valorização pelo setor de
investigação (Gráfico 4.13)
Finalmente, houve uma tendência de maior insatisfação nos serviços menos
especializados ou de cargos burocráticos. Os peritos lotados em serviços internos
também apresentaram menor insatisfação que os peritos de local (Gráfico 4.14).

148 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 12
Insatisfação dos Peritos por Estado vs. Escolaridade
Insatisfação em MG Insatisfação no RJ
80,00%

70,00%

Percentuala de Insatisfação
60,00%

50,00%

40,00%

30,00%

20,00%

10,00%

0,00%
Graduação Especialização Mestrado Doutorado
Escolaridade

Gráfico 13
Insatisfação dos Peritos por Estado vs. Percepção dos Peritos sobre o grau
de valorização de seu trabalho pelos investigadores da Polícia Civil

Insatisfação em MG Insatisfação no RJ
70,00%

60,00%
Percentual de Insatisfação

50,00%

40,00%

30,00%

20,00%

10,00%

0,00%
Parcial Raro Nunca

Percepção de Valorização Externa do Trabalho dos Peritos

Gráfico 14
Insatisfação dos Peritos, por Estado vs. Tipo de Atividade Atual

70,00%

60,00% Insatisfação em MG Insatisfação no RJ


Percentual de Insatisfação

50,00%

40,00%

30,00%

20,00%

10,00%

0,00%
Perícia Perícia Perícia Perícia Perícia Cargos
externa externa não- interna interna não- interna e
específica específica específica específica externa não-
específica
Tipo de Atividade Atual

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 149


CURSOS, CURRÍCULOS E DISCIPLINAS
Seleção dos Peritos Criminais

O processo seletivo para a formação dos futuros peritos criminais nos estados do
RJ e MG é realizado por meio de concurso público uma vez que a constituição de 1988
determina que o ingresso no serviço público somente deve ocorrer mediante concurso.
Nos dois estados a profissão de perito criminal é destinada a profissionais de nível
superior, entretanto o estado de MG apresenta historicamente um número de concursos
superior ao do estado do RJ. O RJ realizou apenas dois concursos um no final da
década de 80 e outro no final da década de 90. Apesar dos dois estados selecionarem
os seus futuros profissionais, para o curso de formação em suas respectivas Academias
de Polícia (ACADEPOL) da mesma forma: a) prova de conhecimentos, b) exame físico,
c) exame psicotécnico; eles se diferenciam no fato que no RJ a prova de conhecimentos
é por carreira enquanto em MG qualquer profissional de nível superior pode concorrer,
ou seja no RJ os biólogos irão concorrer apenas entre si diante de uma prova que
versa sobre conhecimentos de biologia e em MG eles terão que concorrer com os mais
variados profissionais (engenheiros, químicos, antropólogos e etc) em uma prova de
conhecimentos gerais. Esta forma de seleção vem excluindo alguns profissionais de
interesse para a perícia mineira, como peritos contábeis.

Formação dos Peritos Criminais

Os cursos de formação dos peritos criminais ocorrem exclusivamente dentro


das academias de polícia civil, uma vez que o perito criminal é um policial civil
com formação técnico-científica. As academias de polícia, seja em Minas ou no Rio
de Janeiro não dispõem de um corpo permanente de professores; eles geralmente
são indicados pelos Diretores ou Chefes de Departamento. Uma diferença observada
entre a Academia de MG e a do RJ é que mesmo sem ter um corpo permanente de
professores a academia mineira tem como critério de seleção não excludente o fato do
professor indicado ter realizado curso de didática na academia.
Comparando-se os currículos dos cursos de formação dos peritos criminais nos
estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro a partir dos dados disponibilizados pelas
respectivas academias, relativos aos anos de 2002 e 2005 em Minas Gerais e ao 2000
no Rio de Janeiro, observa-se uma diferença significativa nas cargas horárias: o curso
de formação mineira em 2002 teve uma carga horária de 890 horas-aula, aumentada
em 2005 para 1.546 horas-aula enquanto no Rio de Janeiro em 2000 a carga horária
foi de 226 horas-aula, ou seja, uma carga horária cerca de quatro vezes menor que a
mineira de 2002 e sete vezes menor que a de 2005.
Uma outra diferença observada na formação dos peritos é praticamente a
ausência de disciplinas específicas da ciência policial no curso de formação do Rio
de Janeiro. Neste estado, a única disciplina apresentada como específica do campo
policial foi a de “Armamento e Tiro”, com 08h de duração. Em Minas Gerais, as
ciências policiais preencheram as seguintes cargas horárias: em 2002 (202 horas) e em
2005 (756 horas).

150 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
A diferença observada na formação dos peritos mineiros nos anos considerados
está na presença de uma formação em um eixo alicerçado nas ciências sociais, a fim
de compreender a evolução histórico-social da sociedade, da segurança pública e da
polícia, que no ano de 2005 contemplou uma carga horária de 310 horas, contrapondo-
se à absoluta ausência deste eixo temático em 2002. O número de horas destinadas
às disciplinas teóricas específicas de formação dos peritos mineiros em 2002 foi de
406 horas, enquanto em 2005 foi reduzida para 240 horas. No Rio de Janeiro em 2000
destinou-se 226 horas para as disciplinas específicas.

Disciplinas Curriculares

As disciplinas curriculares oferecidas nos cursos de formação nos dois Estados


encontram-se na tabela abaixo:

Tabela 6
Curso de Formação de Peritos Criminais em 2000
do Estado do Rio de Janeiro

Disciplinas Carga Horária


Introdução a Informática 16
Exames Periciais em Locais de Acidente de Trânsito 16
Exames Periciais em Engenharia 24
Exames Periciais de Merceologia e Jogos 08
Exames Periciais em Documentoscopia e Grafotecnia 20
Exames Periciais Químicos 20
Exames Periciais de Características de Veículos 08
Exames de Explosivos e Inflamáveis 04
Papiloscopia 10
Balística 20
Armamento e Tiro 08
Exames em Locais de Morte Violenta 72
Total 226

Tabela 7
Curso de Formação dos Peritos Criminais em 2002 do Estado de Minas Gerais.
Ciclo Comum ou Básico

Disciplinas Carga Horária


Fundamentos de Criminalística 08
Legislação Disciplinar 16
Noções Gerenciais de Administração Pública 06
Noções de Direito 40
Organização Policial 16
Relações Humanas 20
Subtotal 66

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 151


Tabela 8
Ciclo Profissionalizante
Disciplinas Carga Horária
Balística Forense 22
Biologia Legal 14
Biossegurança 10
Direitos Humanos 16
Desenho Aplicado à Perícia 12
Documentoscopia 22
Engenharia Legal I e II 24
Física Aplicada 18
Fotografia Pericial 14
Identificação Civil e Criminal 24
Legislação Aplicada 06
Legislação Especial 30
Metalográfico 06
Noções de Medicina Legal 16
Novas Modalidades de Perícias 08
Perícias de Crimes Contra a Vida 50
Perícias de Crimes contra o patrimônio 36
Perícias de Trânsito 50
Química Legal I e II 16
Toxicologia 20
Trânsito e Cidadania 16
Subtotal 418

Tabela 9
Ciclo de Atividades Complementares
Disciplinas Carga Horária
Comunicação Social 08
Defesa Pessoal e Educação Física 30
Informática 34
Manejo e emprego de Armas de Fogo 30
Primeiros Socorros e Medicina Preventiva 08
Sistema de Informações Policiais 12
Redação Instrumental 20
Telecomunicações 08
Treinamento de Ação Policial 24
Subtotal 174

Tabela 10
Ciclo de Estágio
Disciplinas Carga Horária
Estágio Profissionalizante 210
Visitas a Unidades Policiais 24
Palestras 08
Subtotal 242

152 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Curso de Formação dos Peritos Criminais em 2005 do Estado de Minas Gerais.

Tabela 11
Eixo I – Formação Humana, Histórica e Social

Área Temática Carga Horária


Sociedade, Estado e Políticas Públicas 36
Segurança Pública e diversidade sócio-cultural do Povo Brasileiro 36
Direitos Humanos e Segurança Pública no contexto 36
contemporâneo – Convenções Internacionais
Segurança Pública no contexto das sociedades informacionais 36
Polícia e Sociedade Civil 36
Crime e Violência em uma abordagem interdisciplinar – Segurança 36
Pública e Psicodinâmica do Crime
História Social das Instituições Policiais na Sociedade Brasileira 36
Horário para estudo 58

Tabela 12
Eixo II – Formação Técnico-Procedimental

Área Temática Carga Horária


Técnicas e Abordagens de Investigação Policial / Defesa Pessoal 150
/ TAIP / MEAF
Perícia Profissional 240
Metodologia de Pesquisa Científica 36
Produção e Alimentação de Banco de Dados / REDS / SIP / 76
Telecomunicações
Elaboração de Relatórios- Escritura Policial 30
Investigação nos Romances Policiais Contemporâneos 16
Desenvolvimento de Competências para a Ação Policial / 278
Trânsito / Interrogatório Aplicado / Teoria e Prática do Inquérito
Policial / Identificação Civil e Criminal / Prática de Investigação
Organização da Instituição e do Processo de Trabalho / 170
Informações Jurídicas Básicas / Comunicação com a Sociedade /
Gestão de Pessoas e Qualidade de Vida / Gestão Documental

Eixo III – Formação Integrada


Neste eixo o policial aprendiz se envolve em estudos de casos com acompanhamento
dos agentes efetivos, com vistas a: Construção do conceito e prática do trabalho em
equipe, integração dos saberes e práticas interdisciplinares, celeridade e eficácia dos
trabalhos, perfazendo uma carga horária total de 240 horas/aula. Uma outra diferença
apresentada nos cursos de formação dos peritos de Minas Gerais nos anos de 2002 e
2005 encontra-se na política de integração entre as carreiras da polícia civil. Observa-
se a entrada na grade de formação de disciplinas como: “Investigação nos Romances
Policiais Contemporâneos”, “Interrogatório Aplicado”, “Teoria e Prática do Inquérito
Policial”, “Prática de Investigação”, dentre outras tradicionalmente específicas dos
cursos de delegados, detetives e escrivães.

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 153


Formação Continuada e Capacitação

Os Institutos, assim como as Academias de Polícia em ambos estados, não


dispõem de um sistema regular de formação continuada voltada especificamente para
os peritos. Os cursos, quando ocorrem, se dão a partir de uma demanda identificada
por órgãos superiores ou pelos próprios peritos como no relato: “A gente apresentava
o que agente queria e a academia ajudava a desenvolver o curso, depois veio a entrada
de verba da SENASP, específica para capacitação de policiais, a gente tem as parcerias,
então, o Instituto de Criminalística, Academia, SENASP, a grande vantagem foi que
com isso a gente conseguiu trazer o pessoal do interior para permanecer mais tempo
aqui......” (Chefe dos Postos da Perícia do Interior-MG).
O principal mecanismo utilizado para divulgação desses cursos seja em Minas
Gerais ou no Rio de Janeiro é o chamado “B.I.” (Boletim Informativo) que demonstra
ser inadequado, uma vez que na prática ele não chega aos postos de perícia e, quando
a informação chega, vem geralmente com atraso.
A Academia de Minas Gerais, apesar de não oferecer regularmente cursos
específicos para os peritos criminais, oferece com regularidade a todos os policiais
civis os cursos de: Formação de Chefia e o de Aperfeiçoamento Policial. Esses cursos
por possuírem um caráter irrestrito as diferentes carreiras da polícia civil permitem
compor turmas mistas com a presença de delegados, peritos criminais, peritos legistas
que compõe a polícia civil mineira permitindo um aprendizado conjunto a partir de
diferentes visões. Interessante ressaltar que a ACADEPOL MG também tem esses cursos
na forma de um programa de capacitação à distância permitindo que os servidores
lotados no interior possam realizá-los.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E PROPOSTAS


Concluindo este Relatório, apresentamos a seguir considerações que visam
propor aperfeiçoamentos e mudanças nos processos de formação e treinamento da
Perícia Criminal no Brasil, à luz do que foi verificado nos estados do Rio de Janeiro e
Minas Gerais. Ressaltamos, no entanto, que outras pesquisas são necessárias para se
verificar até que ponto os resultados aqui obtidos podem ser generalizados para todo
o país. Pesquisas como esta nas demais regiões do Brasil são imprescindíveis para
tomadas de decisão nos processos de reforma e modernização dos cursos de formação,
capacitação e treinamento regular de peritos criminais em nosso país. Os pontos, que
elencamos como os mais importantes, são os seguintes:

1) Consideramos que a seleção dos peritos criminais para ingresso na carreira deve ser
por áreas específicas e não deve ser aberto a qualquer curso de graduação. Os editais
devem exigir qualificação específica na inscrição para o concurso, possibilitando à
instituição um maior controle no preenchimento de vagas específicas de acordo com
suas demandas de qualificações.
Em ambos os estados observou-se que os cursos de formação visam a uma
capacitação generalista dos peritos em termos técnicos e científicos, o que é algo
desejável, segundo percepção dos próprios profissionais. Isso porque os peritos lidam
com atividades que necessitam de uma capacidade interdisciplinar para enxergar

154 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
vestígios, concatenar fatos e compreender a dinâmica de eventos criminosos. Entretanto,
a própria palavra “perito” pressupõe ao menos a especialização em uma determinada
área ou assunto, o que implica em um aprofundamento disciplinar do profissional,
diferenciando-o do leigo. Não possuir esta especialização do conhecimento põe em
risco a própria legitimidade do processo investigativo da perícia.
Assim, após o curso de formação, observamos que não houve uma política de
fomento à especialização do conhecimento técnico, através de cursos de capacitação,
estímulo à participação em atividades de pesquisa ou cursos de atualização. A escassez
de aprofundamento científico e tecnológico foi mais claramente evidenciada em dois
resultados obtidos no survey: a) os peritos criminais formados nas áreas de ciências
humanas e sociais consideraram que os conhecimentos adquiridos em sua formação
básica eram mais aplicáveis no cotidiano das atividades periciais do que seus colegas
formados em outras áreas. b) O mesmo grupo de peritos formado na área de Ciências
Humanas e Sociais considerou os cursos de formação qualitativamente melhores do
que os profissionais formados nas áreas Biomédicas e Exatas.
Em relação aos conhecimentos de abordagem e operacionalidade policial, o
curso de formação do Rio de Janeiro foi, comparativamente ao de Minas, totalmente
inadequado. Nesse sentido, o curso de Minas Gerais foi bastante amplo e completo. Um
fator positivo no currículo do curso de formação de Minas Gerais foi a presença de uma
área temática voltada para a compreensão da evolução histórica da sociedade, do Estado
e das políticas de segurança pública. A falta de um currículo policial na formação básica
do perito do Rio de Janeiro tem uma implicação óbvia para o adequado desempenho do
perito criminal, uma vez que, para o Estado, este profissional tem os mesmos direitos
e deveres de um policial civil. Não investir na formação policial do perito tem como
conseqüência a produção de um funcionário ineficiente (pelo menos em um primeiro
momento) e expõem ao risco a vida do próprio profissional e a sociedade.
Por outro lado a precariedade na formação policial do perito criminal tende a
afrouxar os laços sociais que ligam a perícia ao restante do corpo policial, gerando uma
tendência à fragmentação das relações sociais dos peritos com seus pares. Certamente
tal conflito tem conseqüências para a qualidade das atividades de perícia, uma vez
que o trabalho deste último profissional depende da ação anterior de outros policiais a
fim de garantir a fidelidade dos materiais e eventos remetidos ou solicitados à perícia.
Além disso, a satisfação geral do perito em relação às suas atividades parece estar
relacionada com a valorização que seus pares policiais fazem do serviço pericial.
Em relação à abordagem jurídica do curso de formação, novamente Minas Gerais
contempla maior carga horária para este tipo de conhecimento. Entretanto, dada a
atividade pericial apresentar-se intrinsecamente relacionada ao mundo jurídico, faz-
se necessário uma maior implementação nesta área, conforme os próprios peritos se
ressentiram.
Portanto, o curso de formação de Minas Gerais foi qualitativamente superior ao
do Rio de Janeiro e apresenta um leque de disciplinas adequadas para a formação geral
do perito criminal, as quais podem servir de modelo para um currículo básico do perito
criminal no Brasil. Essas disciplinas compõem os alicerces para os principais exames
realizados pelos peritos criminais, estejam eles nos Institutos Sedes de Criminalística
ou no interior.

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 155


O tempo de estágio também deve ser ampliado em ambos os estados de forma a
permitir que o aspirante a perito tenha contato com as mais diversas situações e, assim,
estar mais confiante quando tomar posse do cargo. É imprescindível que no decorrer
do estágio todos os peritos devam atuar nas mais variadas área, com obrigatoriedade
das seguintes disciplinas: a) Perícia de Crimes Contra a Vida; b) Perícia de Crimes
Contra o Patrimônio; c) Perícias de Acidente de Trânsito; d) Perícia de Engenharia
Legal: furto de: energia, água, sinal eletrônico; e) Perícia de Incêndios; f) Perícia
Química – caracterização de substâncias entorpecentes; g) Perícia de Balística Forense
– caracterização das armas de fogo, munições e seus componentes; h) Perícia de
Documentos- caracterização da adulteração ou falsificação

2) A inadequabilidade do ambiente de trabalho tende a ter como conseqüência o


aumento da ineficiência de cursos específicos de especialização e aprofundamento, os
quais demandam uma estrutura adequada tanto para a aplicação do curso, quanto para
a aplicação dos conhecimentos adquiridos pelo profissional. Aprofundar uma técnica
sem ter como aplicá-la é um ônus para o estado sem nenhum retorno potencial para
o profissional, para a sociedade e para o próprio estado. Assim, dadas as condições
atuais, a especialização e viabilidade de cursos de especialização é limitada à um corpo
muito restrito de peritos e alguns setores localizados na sede dos Institutos, onde a
estrutura física e material é muito superior à todos os demais postos. Portanto, uma
melhoria significativa da qualidade técnica da perícia só ocorrerá se acompanhada
de forte investimento estrutural e tecnológico, além de reformulação administrativa,
principalmente no que concerne à descentralização do aparato tecnológico. No Rio de
Janeiro este fato é ainda mais grave, uma vez que mesmo a estrutura física da sede
apresenta-se pouco equipada em comparação a Minas Gerais.

3) Embora o conteúdo do curso de formação de Minas Gerais tenha sido qualitativamente


superior ao do Rio de Janeiro, a satisfação dos peritos em ambos os estados foi
semelhante, embora com pequena tendência à classificação positiva dos mineiros. Isso
indica novamente que alguns conteúdos essenciais para os peritos devem estar sendo
negligenciados, notadamente a parte técnica e científica. Essa deficiência institucional
é acompanhada por uma busca incessante do profissional por uma melhor capacitação
profissional, o que pode ser constatado pelo: a) alto número de peritos especializados
e que realizaram cursos de especialização após o ingresso na carreira; b) o tempo
de ingresso na perícia está positivamente associado ao aumento da motivação para
realização de cursos de especialização tendo em vista a preparação para as atividades
cotidianas; c) a freqüência de participação em congressos (Criminalística e outros) foi
proporcional ao tempo de ingresso no serviço.

4) Um dos principais atores que tem influência na qualidade do exame pericial é a


polícia militar, uma vez que geralmente esta instituição é o primeiro setor da segurança
pública que entra em contato com os corpos de delito. No caso de Minas Gerais foi
observado no grupo focal e entrevistas que existe uma relação harmônica da polícia
militar com a perícia criminal. Ao contrário, no Rio de Janeiro esta relação é totalmente
conflituosa. Uma das conseqüências do bom relacionamento interinstitucional em
Minas Gerais é a preocupação da polícia militar na preservação do local, conforme

156 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
análise qualitativa. No entanto, a análise quantitativa demonstrou que o grau de
insatisfação dos peritos em relação à preservação do local foi semelhante ao do Rio de
Janeiro. Este fato pode estar associado à falta de capacitação dos policiais militares em
relação à preservação das provas periciais, não obstante sua “boa vontade”. A falta de
conhecimentos sobre a preservação da(s) prova(s) periciais não se restringem a polícia
militar mas também aos Policiais Civis que são os responsáveis pelo encaminhamento
de provas periciais aos institutos. A falta de uma cultura que respeite o local de crime
faz com que muitas vezes a própria população contamine as provas prejudicando o
trabalho do perito.
O caminho seguido por MG pode ser uma solução para a questão da preservação
do local e das provas uma vez que há uma política oficial de integração entre as
polícias e entre as carreiras da polícia civil. Isto pode ser constato na participação de
professores de diferentes carreiras (peritos, delegados, policiais civis) e instituições
(Polícia Militar) em cursos oferecidos pela Academia de Polícia Civil de Minas Gerais
destinados aos diferentes órgãos que compõe a Secretaria de Defesa Social.

5) A ausência de indicadores estatísticos confiáveis referentes às demandas periciais e


à produção de exames, laudos e produtividade é um fator limitante ao planejamento,
gerenciamento e avaliação sistemática dos Institutos. A não utilização de informações,
capazes de serem produzidas por estes dados, pode acarretar em uma má distribuição
do contingente de pessoal (peritos), assim como uma alocação inadequada de
recursos materiais. Além disso, a falta de dados pode prejudicar eventuais processos
de avaliação institucionais relacionados a intervenções ou implantação de políticas
que tragam melhorias operacionais, inclusive a avaliação da qualidade dos serviços
prestados pela perícia.

Referências Bibliográficas
Babbie, Earl. Métodos de Pesquisas de Survey. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.
Carlson. LC & Thorns. Betty. Applied Statistical Methods. Ed.Pretince –Hall. Inc.
Krueger, R. 1994. Focus groups: a pratical guide for applied research. London: Sage
Publications
Minayo, Maria Cecília & Souza, Edinilsa Ramos. Missão Investigar. Entre o Ideal e a
Realidade de Ser Policial. Ed Garamond Ltda.
Morgan, DL & Krueger, RA. The focus group kit. Californis: Sage Publications
Neto, Otávio Cruz et all. Grupos Focais e Pesquisa Social. O Debate Orientado como Técnica
de Investigação.
Soares, LE. 2000. Meu Casaco de General. 500 dias no front da segurança pública do Rio de
Janeiro. Ed. Companhia das Letras.

Fontes Primárias
Programa do Curso de Formação para o cargo de Perito Criminal – Rio de Janeiro, 2000.
Programa do Curso de Formação Policial da Academia de Polícia de Minas Gerais, 2002
Programa do Curso de Formação Policial da Academia de Polícia de Minas Gerais, 2005.

Avaliação da Formação e da Capacitação Profissional dos Peritos Criminais no Brasil | 157


GUARDAS MUNICIPAIS: RESISTÊNCIA E INOVAÇÃO

Marcos Luiz Bretas


PPGHIS/UFRJ

David Pereira Morais


UCAM*

INTRODUÇÃO
O tema do policiamento em esfera municipal não é propriamente novo no Brasil.
Desde a formação do Estado Nacional brasileiro, no século XIX, inúmeras formas de
policiamento foram tentadas, fazendo experiências melhor ou pior sucedidas, até que
foi se tornando hegemônico o modelo atualmente conhecido de duas polícias estaduais,
uma civil e outra militar. Mas a definição de um modelo, que só vem a se completar
com a extinção pelo governo militar das Guardas Civis, não significa que ele seja
bem sucedido e produza os resultados esperados, procedendo de forma satisfatória.
Muito pelo contrário, a década de 1980 produziu, ao mesmo tempo, o processo de
afastamento dos militares do poder com a implantação de um regime democrático,
e uma aceleração da violência urbana que colocou em questão os serviços policiais,
produzindo críticas às polícias, além de inúmeras propostas de modelos alternativos
para ampliar a segurança pública.
É nesse quadro que devemos pensar a corrente voga de Guardas Municipais. Não
cabe aqui fazer uma análise aprofundada do quadro político no período, mas importa
ressaltar que uma parte importante do movimento social em direção à democracia
trazia embutida uma grande desconfiança em relação às instituições do Estado,
especialmente àquelas que traziam em si a caracterização de militares ou policiais.
Nesse quadro, foram privilegiadas as ações de descentralização, expressas no incentivo
a atuação das instituições não governamentais ou na ampliação das atribuições de
poder mais próximas às chamadas “comunidades”, isto é, ao poder local/municipal.
A questão da segurança não escapou deste movimento. Falava-se muito em “polícia
comunitária” e se discutia o papel do município na segurança pública.
O movimento descentralizador teve presença marcante na elaboração da nova
constituição, consagrando uma curiosa contradição de registrar de forma centralizada
uma expectativa descentralizadora. Mas parece importante observar que, no quadro
desta reformatação institucional promovida pela Assembléia Nacional Constituinte,
combinava-se uma experimentação de novas formas de poder com uma manutenção
dos formatos tradicionais. Ao mesmo tempo em que a nova Constituição manteve os
velhos modelos das polícias e suas atribuições, mencionou pela primeira vez neste
nível jurídico a presença, ou antes a possibilidade, das Guardas Municipais. A redação

*
O trabalho de coleta de dados contou com a colaboração de Susana Cesco. Gostaríamos também
de agradecer ao comando das Guardas Municipais no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, que nos
garantiram total apoio e cooperação.

Guardas Municipais: Resistência e Inovação | 159


do artigo 144, § 8º “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à
proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.”, ao mencionar
as Guardas, ao mesmo tempo em que formaliza sua possibilidade/existência, deixa
muito em aberto o seu formato de execução. Pressionados com a crescente questão
da segurança pública, os gestores políticos municipais se atiraram de formas as mais
diversas na criação de suas Guardas. Estudo do IBAM, a partir de dados do IBGE,
menciona 969 guardas, em 1999, com uma enorme concentração nos municípios
de maior porte.1 Nesse sentido, é importante observar que, ainda que exista uma
expressão formal de sua existência, ainda não é possível afirmar com clareza o que
são as Guardas Municipais no Brasil. Criadas de formas diversas, em contextos
municipais os mais diversificados, podemos mesmo ter dúvidas sobre a viabilidade
de uma definição única para as inúmeras Guardas.2 Essa questão se reflete mesmo
sobre algumas discussões que se pretendem objetivas: quantas são as Guardas hoje?
Seria possível aceitar sem discussão os dados do IBAM/IBGE? A resposta pode variar
de acordo com os critérios que se adote para definir uma guarda; efetivos, atribuições
ou, pura e simplesmente, o nome.3
Criadas num quadro de busca de alternativas e soluções para problemas sociais
crescentes, quase sempre ligados à expansão da violência e do crime, em seus
diferentes formatos as Guardas representaram uma tentativa de inovação no quadro
das políticas de segurança. Mas a base que promovia a criação dessa nova força, além
das limitações estabelecidas pela manutenção das atribuições das forças tradicionais,
padecia também da indefinição, que permitia que se fizessem Guardas Municipais
com os propósitos e métodos os mais diversos. As Guardas terminavam por seguir as
vacilações das percepções coletivas sobre o problema da segurança pública: alguns
setores da sociedade buscavam – e buscam – formas alternativas de promoção da
segurança, através de novas práticas, comunitárias ou assistencialistas, enquanto
outros exigiam – e ainda exigem – um endurecimento das ações, uma presença maior
de forças de segurança de perfil igual ao das já existentes. Agravando esse problema, a
criação de Guardas parecia uma boa idéia aos mandatários do poder público, mas não
havia pessoal qualificado para formular um projeto de criação de Guarda, o que levou
muitos municípios a colocar suas guardas sob a direção dos especialistas em segurança
pública disponíveis, entregando estas novas organizações a policiais militares ou civis,
muitos deles impregnados com as visões mais tradicionalistas de segurança pública.
Essa presença de policiais afetou o que nos parece uma das grandes qualidades
do processo de implantação de Guardas Municipais: a possibilidade de agir sem a
preexistência de uma cultura organizacional, de saberes e práticas consolidadas e
compartilhadas pelos agentes policiais, que tanto obstáculo têm posto à reforma das
polícias. Num processo muito rápido, as Guardas Municipais também começaram a
estabelecer parâmetros de uma cultura organizacional, com reflexos tanto em sua

1 Bremaeker, François, Guardas Municipais existentes nos Municípios. Junho de 2001.


2 Um exemplo do que apontamos é a existência de uma Guarda Municipal Rural em Araucária, PR,
ou as 252 guardas em municípios com menos de dez mil habitantes indicadas pelo IBAM. Parece óbvio
que suas tarefas e mesmo seus métodos podem ser muito distintos de outras Guardas, de perfil urbano.
3 Essa parece a solução mais simples: considerar os municípios que têm uma instituição com esse
nome. Mas o problema de comparar o diferente ainda permanece sem solução.

160 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
estrutura interna como no projeto de difusão nacional de um modelo de Guarda.4 Uma
parte significativa deste projeto obedece a um modelo característico de instituição
militar, que procura basear sua estrutura e métodos em tradições constituídas no
tempo,5 o que faz com que as Guardas busquem histórias e continuidades em outras
instituições municipais, que apresentam pouca ou nenhuma semelhança com as
Guardas atuais. Algumas, de fato, representam administrativamente a continuação de
velhas instituições, mas sempre alteradas significativamente no quadro das reformas
do Estado, já mencionadas, a partir dos anos 1980. Mesmo as Guardas mais recentes,
já vão estabelecendo sua história, e é freqüente a produção de relatórios ou folhetos
marcando a passagem dos dez anos de uma Guarda Municipal.6 Ao mesmo tempo,
uma pesquisa no site dedicado a brasões policiais localizados no Geocities já conta
com 29 brasões de Guardas Municipais de regiões as mais diversas do Brasil, desde
Aracaju até Vinhedo.7
A literatura de conteúdo mais acadêmico sobre as Guardas é muito escassa e
recente. Mas toda ela parece partir de um suposto semelhante, e que é compartilhado
pelo presente trabalho, ao apresentar o interesse nas Guardas Municipais justificado
pela possibilidade de constituir algo novo no campo da segurança pública, produzindo
um ator distinto dos atualmente presentes e definindo métodos e atribuições que se
distinguem do que fazem as forças policiais estaduais ou federais. Num sentido mais
radical, o trabalho de Benedito Mariano avança ao ponto de pensar as novas Guardas
como alternativas a um modelo de policiamento baseado nas polícias civil e militar,
resquício histórico que deveria ser superado.8 Outros trabalhos não pensam numa
substituição do atual modelo, mas numa complementaridade.9 Existem sempre nestes
trabalhos menções a resistências, à permanência da força de uma tradição, mesmo
nestas instituições tão recentes, mas o foco destes trabalhos tem sido sempre as
inovações, deixando o problema da resistência apenas como o registro de um temor.
Esta questão está na origem da proposta deste trabalho. Como lidar com estas
instituições, com a sua construção de memória, e direcioná-las positivamente no trato
da segurança pública. Como lidar com a extensão e o volume de um pensamento já
consolidado que pode significar um forte obstáculo à utilização das Guardas como
agentes da inovação no campo da segurança pública. Nossa intenção de partida era
trabalhar sobre duas Guardas, a do Rio de Janeiro e a de Belo Horizonte, buscando

4 Foge do âmbito deste trabalho mas permanece como questão o estudo das associações de Guardas,
dos diversos sites na Internet e mesmo das comunidades no Orkut que permitem observar projetos de
“nacionalizar” lógicas e valores de guardas municipais.
5 Talvez o melhor exemplo venha de 1993-2000. Panorâmica da GMRio: “A Guarda Municipal da
Cidade do Rio de Janeiro, cuja criação foi autorizada há cerca de oito anos atrás pelo Legislativo
Municipal, na verdade é a continuação de uma filosofia de trabalho dentro da área de segurança
pública que remonta à época da fundação da cidade do Rio de Janeiro, com a chegada de Estácio
de Sá” p. 6.
6 Ver, por exemplo, A Guarda Municipal de Barueri está comemorando: 10 anos, 1995-2005, caderno
de 28 páginas distribuído no XVI Congresso Nacional de Guardas Municipais, realizado de 9 a 11 de
novembro de 2005, em Foz do Iguaçu.
7 http://geocities.yahoo.com.br/brasoespoliciais/links.html
8 Benedito Mariano, Por um novo modelo de polícia no Brasil. A inclusão dos municípios no sistema
de segurança pública. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2004.
9 Consultar os artigos publicados em João Trajano Sento-Sé (org.), Prevenção da Violência. O papel
das cidades. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.

Guardas Municipais: Resistência e Inovação | 161


ouvir os envolvidos e avaliar sua percepção sobre a própria atividade. Em que medida
já está constituída uma cultura nessas Guardas, orientando o trabalho dos Guardas
antigos e absorvendo os novos grupos.10 O uso das duas guardas apresenta algumas
questões bastante interessantes, ainda que deixe também de lado muitos problemas
que se acham ausentes nessas duas cidades. Fizemos uma tentativa de sanar essa
dificuldade visitando outras guardas mas deve ficar claro que o nível de observação é
muito inferior. Quando necessário recorreremos a exemplos e comentários tirados de
observações feitas em Fortaleza, Osasco e em Foz do Iguaçu.

A GUARDA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO


A Guarda Municipal do Rio de Janeiro, como diversas outras, tem sua origem
na alteração de funções de outras agências municipais. No caso específico, a Guarda
foi criada em 1993, aproveitando o pessoal contratado e treinado para fazer a vigilância
para a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB). Importa ressaltar
que ainda hoje, a turma de guardas mais antigos é composta destes oriundos da
COMLURB, com treinamento diferente das turmas posteriores. O modelo adotado foi
a criação de uma Empresa Municipal de Vigilância, responsável pela gestão da Guarda
e emprego do pessoal, que não pertence aos quadros do Município, regidos pela CLT
e demissíveis pela legislação trabalhista comum.11 Incorporando inicialmente 2.189
homens da COMLURB, a Guarda foi se expandindo e diversificando seu contingente.
Os dados obtidos em entrevista com o Diretor de Recursos Humanos em abril de 2005
mencionavam 5584 guardas, distribuídos da seguinte forma:

• 19 inspetores
• 108 subinspetores
• 291 Guardas Municipais 3
• 2.698 Guardas Municipais 2
• 2.468 Guardas Municipais 1

O nível mais alto da tabela ainda não foi preenchido. Estes homens e mulheres
dividem-se por 15 inspetorias e uma série de grupamentos especiais, de acordo com
a tabela a seguir:

10 Vale registrar que os trabalhos que citamos optaram por investigar as guardas através de seus
gestores. Preocupados com políticas inovadoras, ouviram os formuladores mas não dedicaram atenção
aos executores, personagens fundamentais na compreensão de atividades de segurança pública.
11 Essa é uma das principais queixas dos Guardas, que aspiram a um Estatuto próprio que lhes
garanta a posição e os direitos de servidores do Município. Isso é percebido no Plano Estratégico da
Guarda para o período 2001/2005: “O clima organizacional encontrado na empresa é de ansiedade pela
implantação do Plano de Carreira, Cargos e Salários e de ceticismo quanto à possibilidade de mudanças
estruturais que possam beneficiá-los. O clima é muito influenciado pelos valores desenvolvidos pela
cultura da organização, onde a ascensão interna é conseguida através da influência pessoal a despeito
do mérito e talento individuais.” Por outro lado, como trabalhadores da iniciativa privada, o controle
das licenças médicas escapa da administração da Guarda, o que também tem efeitos negativos.
A questão é complexa e divide os gestores. Até onde pude perceber os Guardas são francamente
favoráveis à criação de um estatuto. Isso pode ser percebido no informativo sindical Fala Rio.

162 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Áreas circunscricionais das Guardas Municipais na Cidade do Rio de Janeiro

1ª Praça XV: Centro da cidade, Santo Cristo, Saúde, Cajú, Gamboa, Aeroporto, Castelo,
Fátima, Lapa, Praça Mauá, Rio Comprido, Estácio, Catumbi, Cidade Nova e Santa Tereza.

2ª Lagoa: Copacabana, Leme, Lagoa, Gávea, Ipanema, Jardim Botânico, Leblon, São
Conrado, Vidigal e Rocinha.

3ª Higienópolis: Complexo do Alemão, Bonsucesso, Manguinhos, Olaria, Ramos, Baixa


do Sapateiro, Complexo da Maré, Conjunto Pinheiros, Marcílio Dias, Nova Holanda,
Parque União, Brás de Pina, Penha, Penha Circular, Inhaúma, Del Castilho, Engenho
da Rainha, Higienópolis, Maria da Graça, Tomás Coelho, Praia de Ramos, Roquete
Pinto, Rubens Vaz, Timbaú, Vila do João, Vila Esperança, Vila Pinheiro, Vigário Geral,
Cordovil, Jardim América e Parada de Lucas.

4ª Barra da Tijuca: Barra da Tijuca, Camorim, Grumari, Itanhangá, Joá, Piabas, Recreio
dos Bandeirantes, Vargem Grande e Vargem Pequena.

5ª Bangu: Bangu, Senador Camará, Padre Miguel, Deodoro, Campo dos Afonsos,
Sulacap, Magalhães bastos, Malett, Realengo e Vila Militar.

6ª Madureira: Irajá, Colégio, Vicente de Carvalho, Vila da Penha, Vila Cosmos, Vista Alegre,
Bento Ribeiro, Campinho, Cascadura, Engenheiro Leal, Madureira, Cavalcante, Marechal
Hermes, Oswaldo Cruz, Quintino Bocaiúva, Honório Gurgel, Vaz Lobo, Rocha Miranda,
Turiaçu, Anchieta, Guadalupe, Parque Anchieta, Guadalupe, Ricardo de Albuquerque,
Pavuna, Acari, Barros Filhos, Coelho Neto, Costa Barros e Parque Columbia.

7ª Praça Seca: Anil, Curicica, Freguesia, Gardênia Azul, Jacarepaguá, Pechincha, Praça
Seca, Tanque, Taquara, Vila Valqueire e Cidade de Deus.

8ª Tijuca: São Cristovão, Benfica, Mangueira, Vasco da Gama, Triagem, Tijuca, Praça
da Bandeira, Alto da Boa Vista, Vila Isabel, Andaraí, Grajaú e Maracanã.

9ª Laranjeiras: Catete, Cosme Velho, Flamengo, Glória, Humaitá, Laranjeiras e Urca.

10ª Cidade Nova: Centro Administrativo São Sebastião, Palácio da Cidade e Gávea
Pequena.

11ª Flamengo: Parque do Flamengo.

12ª Jardim Carioca: Bancários, Cacuia, Cidade Universitária, Cocotá, Freguesia (Ilha),
Galeão, Jardim Guanabara, Tauá, Moneró, Pitangueiras, Portuguesa, Praia da Bandeira,
Ribeira, Zumbi, Jardim carioca e Ilha de Paquetá.

13ª Campo Grande: Campo Grande, Santíssimo, Senador Augusto Vasconcelos, Cosmos
e Inhoaíba.

14ª Santa Cruz: Santa Cruz, Sepetiba, Paciência, Guaratiba e Pedra de Guaratiba.

15ª Engenho de Dentro: Jacarezinho, Vieira, Fazenda Abolição, Água Santa, Cachambi,
Consolação, Encantado, Engenho de Dentro, Engenho Novo, Lins de Vasconcelos,
Méier, Piedade, Pilares, Riachuelo, Rocha, São Francisco Xavier, Sampaio Correa, Todo
os Santos e Jacaré.

Guardas Municipais: Resistência e Inovação | 163


Grupamentos especiais:
• 2 Grupamentos Especiais de Trânsito (GET), criados em 1994 e 1998
• Grupamento de Apoio ao Turista (GAT), criado em 31/05/2004
• Grupamento de Defesa Ambiental (GDA), criado em 13/04/1994
• Grupamento de Ronda Escolar (GRE), criado em 01/04/1996
• Grupamento Especial de Praia (GEP), criado em 12/1999
• Grupamento de Ações Especiais (GAE), criado em 15/09/1994
• Grupamento de Tático Móvel (GTM), criado em 05/03/1994
• Grupamento de Cães de Guarda (GCG), criado em 24/03/1994

Essa diversidade permite que os Guardas se distribuam de acordo com aptidões,


ainda que seja duvidoso que as designações para as inspetorias e grupamentos sejam
sempre por processos de escolha. É comum em instituições militares – ainda que a
Guarda não se encaixe estritamente nesta definição, como discutiremos mais a frente
– a designação de pessoas sem considerar suas aptidões, destinando-as a tarefas que
têm muito pouco interesse em cumprir.12
A divisão entre os gestores, cargos de confiança da Empresa, e os guardas,
contratados através de concursos, também é muito evidente. Parte deste problema
tem sua origem no curto tempo de existência das guardas, que ainda não permitiram a
qualificação e a ascensão profissional de seus empregados. Pode-se imaginar que, num
prazo médio, mais e mais atribuições venham a ser transferidas para guardas formados
internamente. Isso já pode ser observado no treinamento: as primeiras turmas eram
treinadas em locais fora da guarda, por pessoal convidado, principalmente nas polícias.
As últimas turmas já receberam treinamento em locais da própria guarda, utilizando
instrutores internos.13
Boa parte dos trabalhos acadêmicos sobre instituições policiais confere uma ênfase
significativa à instituição e à identidade entre seus membros, sugerindo o que seria
uma cultura policial. Essa leitura tem atrativos de método, permite compreender certas
lógicas de ação policial, mas, ao mesmo tempo, deixa de lado as possibilidades de
explorar as diferenças entre os policiais, expressa em capacidades e aptidões maiores
para realizar certas tarefas e não outras.14 Nesse ponto, uma distinção clássica é entre
pessoal administrativo e pessoal de rua, sugerida por Elizabeth Reuss Ianni, que, no
caso da Guarda Municipal, parece se expressar de forma dramática entre os gestores,
cargos de confiança da Empresa, e os Guardas. Mas mesmo entre esses é importante

12 Num sistema fortemente hierarquizado como são as polícias militares e, em grau menor, a polícia
civil e a Guarda Municipal, os gestores têm uma visão própria do perfil adequado de agente. Aqueles que
correspondem á visão do gestor podem ser bem aproveitados e colocados em posições que correspondem
a seus perfis, mas aqueles que não correspondem ao perfil desejado pela gestão podem ser “castigados”
com designações onde não aproveitam suas melhores habilidades. Não cabe aqui discutir, ainda que
mereça registro, que outra forma de colocação – que aparece com freqüência em reclamações – é a
indicação política, onde méritos ou habilidades específicas não são levadas em consideração.
13 Convém ressaltar que a Guarda Municipal do Rio tem seu comando num prédio que pertenceu
ao antigo Batalhão de Guardas do Exército, com espaço e capacidade para instalações de excelente
qualidade. Parte do prédio já está renovado, especialmente a parte destinada a cursos e treinamento.
A parte destinada às unidades ainda deixa muito a desejar. Diversos guardas notaram esta disparidade
entre o lado nobre do prédio e o lado plebeu.
14 Uma revisão da extensa literatura sobre diferentes perfis policias pode ser encontrada em Robert
Reiner, The Politics of the Police. Harvester Wheatsheaf, 1992, cap. 3. Existe edição em português.

164 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
explorar as diferenças de perfil que pode variar de acordo com experiências anteriores
de ocupação15, com a turma em que entraram na Guarda, e mesmo com os setores nos
quais estão lotados.
A supervisão da Guarda, ao longo de sua existência, tem estado na mão de
oficiais da Polícia Militar. Os dois comandantes foram coronéis da reserva. A pesquisa
feita pela SENASP sobre o perfil das Guardas tem mostrado que isso é bastante
comum, como já foi mencionado, mas os efeitos ainda precisam ser melhor avaliados.
A vinculação policial militar parece sugerir um “controle externo”, de uma instituição
com atuação marcante na segurança pública, que buscaria parceiros subordinados.16
Nesse sentido, a Guarda do Rio se caracteriza por um discurso de não ser polícia,
pela negação do emprego de armas pelos Guardas, o que a coloca quase que isolada
no cenário nacional, e parece ir contra o desejo de boa parte dos seus próprios
Guardas.17 Ao mesmo tempo, o relacionamento entre o estado e o município no Rio
de Janeiro não é bom, o que parece estimular disputas e mesmo conflitos abertos
entre os Guardas e os policiais civis e militares e mesmo com o Corpo de Bombeiros.
Estas disputas podem ganhar aspectos quase anedóticos – ainda que não se deva
perder de vista sua gravidade – quando acompanhamos os conflitos entre Guardas e
Bombeiros, que disputam o monopólio do salvamento de afogados, ou mesmo quem
se responsabiliza por pingüins extraviados. A batalha pelo pingüim perdido faz parte
do anedotário dos Guardas cariocas e ilustra as racionalidades em conflito. Num dia
de inverno, os guardas municipais do grupamento de praia recolheram um pingüim
que chegou a praia. Os bombeiros “exigiram” que eles entregassem o animal. Como os
próprios guardas admitem, a atribuição de destinar estes animais é de fato do Corpo de
Bombeiros, mas as disputas já vinham ocorrendo e o tom empregado pelos bombeiros
não agradou. Os guardas diagnosticam – não sem razão – um comando nos bombeiros
de praia com uma especial predileção por ser fotografado resgatando animais e sem
muito interesse por normas de polidez. Nesse ponto instaurou-se a confusão, travando-
se uma pequena batalha pelo pingüim. Não era propriamente uma disputa sobre quem
tinha razão, mas um embate simbólico sobre disputas organizacionais, num ambiente
onde a racionalidade da gestão deveria esperar cooperação e não conflito.18
Uma forma importante de análise que precisa ser feita é como as Polícias
Militares pensam a presença das Guardas, que projeto desenvolvem de relacionamento
e que atribuições pensam que as Guardas devem ter. Não parece haver uma doutrina

15 Não é possível definir aqui se as experiências anteriores expressam uma determinada “vocação”
ou se são elas que formam uma determinada atitude diante do trabalho. O que podemos perceber é a
diferença de certos grupos.
16 A relação entre a Polícia Militar dos Estados e as prefeituras é tema ainda não abordado. Como a
maior parte dos estudos privilegia os grandes centros, essa relação é menos visível. Mas as indicações
recebidas de diversas partes do país parecem indicar que as restrições orçamentárias das polícias são
parcialmente resolvidas com a colaboração municipal, que se responsabiliza pela manutenção de
instalações, viaturas e fornecimento de combustível. O tema merece atenção.
17 Leitura semelhante é apresentada no município próximo de São Gonçalo, onde o comandante
da Guarda também é policial militar, citado no trabalho de João Trajano Sento-Sé e Otair Fernandes,
“A Criação do Conselho Comunitário de Segurança em São Gonçalo”. In João Trajano Sento-Sé, op. cit.,
pp. 255-282.
18 Esse é um bom exemplo da distinção entre pesquisas com gestores e na base. Entre gestores, fala-
se em cooperação ou no máximo queixa-se do desinteresse; na base operacional os conflitos são reais
e abertos. Em outras situações ocorre o inverso; os gestores brigam mas as bases cooperam.

Guardas Municipais: Resistência e Inovação | 165


definida para essa questão, que varia de acordo com comandos e de estado para
estado. E mesmo que se considere a presença de oficiais PM como indicativo de
uma afinidade com esta instituição, parece haver também alguns casos onde oficiais
dissidentes investem num projeto alternativo – seja de polícia, seja projeto político –
através do comando de Guardas.19

A GUARDA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE


Belo Horizonte oferece uma excelente oportunidade para estudar a implantação
de uma Guarda Municipal. O novo prefeito decidiu criar a Guarda e, para estabelecê-la,
convidou um coronel da Polícia Militar. O ato de criação é a lei n. 8486 de 20 de janeiro de
2003. O planejamento ainda se encontra em fase inicial, e no momento está sendo feito
o primeiro concurso para Guardas estatutários. Até agora a Guarda vem funcionando
com um grupo pequeno de 448 guardas contratados. O comando policial militar vem
desenvolvendo um cuidadoso planejamento das tarefas que a Guarda pode exercer –
mais no sentido do contingente restrito do que como uma definição da missão da guarda
– e cuidando para que seu pessoal se adeqüe às expectativas. A opção feita foi buscar
egressos das Forças Armadas para executar o primeiro recrutamento. Com isso o pessoal
tem uma experiência militar e já se encontra adaptado aos padrões de comportamento
militares. Com isso, embora seja uma guarda civil em sua concepção, a Guarda de Belo
Horizonte apresenta todas as características de uma corporação militar.20
Embora exista um embrião de grupamentos especiais, esse tipo de ação ainda
não é enfatizado, dando-se preferência à divisão da Guarda por nove áreas da cidade
[Centro-Sul, Barreiro, Venda Nova, Pampulha, Norte, Oeste, Nordeste e Noroeste],
e especialmente sua localização fixa em pontos escolhidos. O destaque na ação da
Guarda Municipal de Belo Horizonte é o policiamento de centros de saúde, escolas e
parques, além de outros próprios municipais. Nesse sentido, as iniciativas parecem
ser muito bem sucedidas, mas ainda muito modestas. Alguns espaços são controlados
de forma considerada muito satisfatória – Rodoviária, Parque Municipal, Centros de
Saúde – mas a visibilidade da Guarda ainda é pequena e, mesmo para esse tipo de
policiamento, a demanda excede em muito a capacidade de atendimento da Guarda. A
criação de uma Guarda pequena, que vá aos poucos adquirindo visibilidade, ocupando
mais e mais espaços, preparando seu efetivo de forma a atender demandas possíveis e
com qualificação, parece ser uma boa forma de proceder. Mas ainda deixa em aberto
como atender a demandas políticas e pressões sociais, sem falar que mesmo nesses
casos, o projeto sobre o que a Guarda Municipal deve fazer, e o como, ficam pendentes,
dependendo do sucesso de processos concretos. Por tudo isso, a Guarda Municipal

19 Em Minas Gerais é possível perceber grupos distintos de policiais militares disputando o controle
das diferentes Guardas, o que produz um difícil diálogo entre municípios.
20 Infelizmente o prazo do trabalho não permitiu avaliar o processo de entrada dos novos Guardas.
Havia uma expectativa de que os atuais guardas contratados fossem bem sucedidos no concurso,
o que parece não ter ocorrido; com apenas um terço dos atuais guardas sendo aprovados. Isso tem
sido fonte de tensão e aumenta o debate sobre a maior adequação de candidatos selecionados numa
prova, mas de origem civil, em contraposição a guardas com experiência e, principalmente, tidos como
“vocacionados”. O mesmo tema é discutido, na polícia civil do Rio Grande do Sul, por Acácia Maria
Maduro Hagen, O Trabalho Policial: estudo da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul. Tese de
Doutorado, UFRGS, 2005.

166 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de Belo Horizonte se revela um excelente campo de estudo. Mais detalhes serão
apresentados à frente, na discussão de temáticas presentes no trabalho das Guardas.

AS GUARDAS PELOS GUARDAS


Em primeiro lugar, devemos explicitar como foi procedido o trabalho de pesquisa.
No caso do Rio de Janeiro foram selecionados aleatoriamente grupos de cinco guardas
em cada grupamento ou inspetoria, reunidos, com autorização do comando, para
uma conversa gravada, com o compromisso explícito de sigilo e não identificação.
Mesmo assim ocorreu um caso de recusa de entrevista, por guardas que consideraram
a convocação para a entrevista como uma forma de punição por atitudes de oposição
ao comando. Por mais que lamentássemos essa atitude, preferimos dispensar estes
guardas, abrindo mão das entrevistas. Optamos por trabalhar com grupos devido ao
volume de entrevistas que teria de ser feito, sendo mesmo possível que em conjunto
os guardas criassem um ambiente mais aberto com maior facilidade, permitindo
uma maior troca e expressão de pensamento. Na reunião dos grupos foram buscados
dois tipos de seleção: uma que nos trouxesse guardas que ingressaram na força em
períodos diferentes, das diversas turmas, além de buscar, quando possível a presença
de guardas mulheres, que poderiam ter características e percepções específicas.21
No caso de Belo Horizonte o trabalho foi desenvolvido de forma distinta. Devido
ao pequeno contingente, o comando nos solicitou que fizéssemos o trabalho enquanto
o guarda estivesse de serviço. Por isso o trabalho feito foi correr diversos locais que
possuem guardas municipais e observá-los no serviço, para em seguida conversarmos
um pouco sobre a atuação e a percepção que têm do trabalho realizado. Foi uma
investigação mais precária, mas que se adequou às necessidades da Guarda. Realizamos
também uma reunião com o grupo de motociclistas que estava reunido para sair da
base de comando para assumir seus postos.22 Se perdemos na qualidade e atenção
dada à entrevista, tivemos oportunidade de fazer a observação dos Guardas em ação,
o que pode ilustrar certas questões de forma distinta do discurso. Não nos parece que
tenha sido a condição da entrevista o que motivou certas diferenças de fala. O ponto
mais importante é a origem militar dos Guardas de Belo Horizonte, que reforça em
muito sua tendência a adotar o discurso institucional. Mesmo assim o material é muito
significativo, especialmente quando confrontado com outras fontes.23

21 Esse tema pode ser melhor explorado. Algumas guardas fazem seleções com vagas separadas para
homens e mulheres, designando mesmo funções diferentes. Outras fazem o concurso indistintamente,
como é o caso do Rio de Janeiro. O caso de Belo Horizonte é peculiar. Nesse momento não há
mulheres. O projeto do comando ao estabelecer as normas do concurso que se realiza era de designar
um número limitado de vagas para mulheres, o que foi alterado. Diante disso foi realizada uma seleção
única, obedecendo a critérios iguais, onde as mulheres terminaram por ser eliminadas.
22 Talvez seja o lugar para mencionar que, ao contrário do Rio, as instalações da Guarda de Belo
Horizonte são ainda muito precárias. Vários projetos existem, e nos foram mostrados, para obter um
melhor local mas nada ainda é definitivo.
23 Nunca é demais insistir nessa ambigüidade de ser militares e guardas que teoricamente não deveriam
sê-lo. Um depoimento na comunidade Guarda Municipal BH é ilustrativo: ”Com relação a Guarda
Municipal, vale a pena lembrar que todos os seus atuais integrantes são oriundos das Forças Armadas,
o que comprova suas qualidades como militares. Porém a Guarda não é uma instituição Militar, embora
esteja moldada como tal”. Em www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=2256873&tid=12997453,
consultado em 5/12/2005.

Guardas Municipais: Resistência e Inovação | 167


Nossa proposta é buscar compreender como os Guardas organizam seu pensa-
mento a respeito das definições de suas atribuições e dos instrumentos que devem
ter para o exercício destas tarefas. É importante levar em conta que estes aspectos
nem sempre estão de acordo com a visão que os gestores têm dessas atribuições
e instrumentos, o que leva a um conflito pouco visível mas muito marcante em
instituições deste tipo entre determinações da hierarquia e sua apropriação/execução
por aqueles que estão na ponta do sistema. Projetos de reforma precisam conquistar
seus executores, sob pena de ficarem condenados ao papel.

Afinal o que é a Guarda?


Essa é a questão que pode ter a resposta mais simples, e ao mesmo tempo é a
mais complexa. O treinamento dos Guardas os predispõe a responder utilizando o
código aprendido, fazendo referência aos termos constitucionais e legais: o guarda
aprende a responder esta pergunta e afirmar como a Guarda se define. Mas na medida
que se discute a atividade, a imagem inicial vai sendo relativizada, se adaptando às
exigências do exercício profissional. A definição da Guarda passa então pelo dilema
de relacionar o código legal com as expectativas dos guardas e com as exigências
do público, que é percebido pelos guardas como esperando deles atitudes policiais,
de mais um agente uniformizado de controle do espaço urbano. O próprio guarda
passa a esperar que a população se comporte desta maneira.24 Esse talvez seja o
principal suporte para um conflito dos Guardas com sua norma legal; o que a lei
diz que eles devem fazer deveria ser o que a sociedade espera deles, e isso não se
reflete na percepção cotidiana dos encontros. Mas a relação entre a lei e os desejos
percebidos na população deve ser mediada pelos desejos do próprio guarda; eles
também têm sua concepção sobre como a Guarda deveria atuar. A visão dos guardas
a respeito não é consensual; alguns parecem mais adaptados ao projeto de Guarda
como instituição policial de corte clássico, enquanto outros parecem se inclinar para
um serviço municipal de caráter mais assistencial. Vamos tentar sugerir que estas
diferenças, ao menos em parte, podem ser pensadas em relação à experiência anterior
dos guardas, assim como ao lugar onde eles ficam melhor adaptados dentro das
guardas, compostas de grupamentos com perfis distintos. Os guardas pouco falam
sobre aqueles que têm perfil e concepção diferentes dos seus, não é comum a crítica
dos colegas, ainda que ela possa aparecer em uns poucos casos. Mas existe sempre
uma diferenciação marcante no discurso entre aqueles que querem fazer alguma coisa
e aqueles que têm uma visão burocrática de sua atuação – claro que quem fala sempre
quer fazer alguma coisa.
Os guardas que se destacam são aqueles que têm experiência anterior em
instituições militares ou policiais, que vêem o trabalho em segurança como exercício
de uma vocação e um estilo de vida. Para esse grupo, a posição da Guarda fora da
esfera das instituições reconhecidamente policiais é um problema, e eles estão sempre

24 “Hoje passei por uma situação muito constrangedora,..., num fechamento de rua, vi duas mulheres
serem assaltadas e não pude fazer nada, pois não tinha rádio, o lugar era um pouco deserto, e não
tinha nenhuma arma. Me pergunto: o que aquelas mulheres pensaram de mim? Me senti um inútil”
www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=345990&tid=21998523

168 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
buscando agir como polícia e fazer-se reconhecer como tal.25 Como já foi mencionado,
esse tema tem tido um aspecto dramático no processo de seleção dos guardas em
Belo Horizonte. Os guardas de origem militar e que estão trabalhando, sentem que
a “vocação” que possuem está sendo derrotada pela lógica impiedosa do concurso
público, que seleciona pessoas com um conhecimento superior, mas que não possuem
o desejo e a vocação para fazer o trabalho da Guarda. Seriam oportunistas que procuram
o conforto de um emprego público, mas que não serão necessariamente nas guardas,
e deixarão esse emprego por outro que pague melhor a qualquer momento.26 Desse
grupo saem aqueles que são vocacionados para trabalhos de Operações Especiais ou
Tático Móvel. Esses guardas demonstram preferência por atividades onde haja esforço
físico e a possibilidade permanente de conflito: “nós trabalhávamos o plantão inteiro
equipados, entendeu? Na eminência de um conflito. Então se ocorreu um ataque de
fogos, geralmente é fogos ou pedras, mas já ouve de armas de fogo. Então ocorreu um
ataque, você vai fazer um cerco, vai patrulhar, vai tentar encontrar a pessoa que atacou
vai correr atrás. Você encontrou um suspeito, impossível você passar direto, você
tem que revistá-lo, quem revista é policia”.27 São aqueles que se sentem confortáveis
com o risco. É um grupo eminentemente masculino. A presença feminina não parece
ser propriamente incômoda, mas estabelece-se uma relação de “proteção”, onde as
mulheres são colocadas fora da linha de frente.
Esse grupo tem sempre como referência as guardas de São Paulo, que, segundo
eles, têm uma ação muito mais policial, funções e equipamento de polícia. Cidades
como Jundiaí, Indaiatuba, Cotia são citadas como exemplos, justificados pela quase
substituição da Polícia Militar pelos guardas, que fariam segurança em presídios,
prisões, e – um dos grandes objetos de desejo – teriam até helicópteros!28

25 Este estilo de guarda é o mais visível, senhor de uma agenda bastante clara, que transparece em
grupos de discussão, associações e encontros de Guardas Municipais. O tema central nesses grupos e
eventos é a discussão da proposta de emenda constitucional 534/2002 que, caso aprovada, reconhecerá
o papel das guardas na segurança pública. O acompanhamento e a tentativa de lobby no processo
político é evidente.
26 Esse é um dos problemas mais visíveis na Guarda do Rio de Janeiro, bem mais do que na de
Belo Horizonte. Como a Guarda experimentou uma depreciação salarial marcante ao longo dos anos,
quase todos os guardas têm expectativas de conseguir um emprego melhor, além de já terem outras
ocupações nas horas de folga. Parece possível que os Guardas de Belo Horizonte, que estão vendo seus
empregos ameaçados pelo concurso, se mostrem mais reticentes sobre a procura de outros empregos
ou ocupações paralelas. A exceção visível era a denúncia de que um grande número de guardas
preferiu deixar Belo Horizonte, optando por prestar concurso para Guardas Municipais da Grande elo
Horizonte. Os dados da administração não confirmam essa evasão significativa, mas, entre os guardas,
os que saíram tiveram grande visibilidade.
27 Depoimento de guarda do Grupo de Ações Especiais – RJ. A referência mais intensa desse grupo
são os conflitos travados com camelôs nas ruas do centro do Rio, que tiveram um momento de grande
intensidade mas hoje estão controlados.
28 As informações passadas pelos guardas não são necessariamente acuradas; muitas informações se
misturam mas deixam evidente a construção de um modelo. O uso de helicópteros é registrado na página
da Guarda Municipal de Novo Hamburgo, RS, ali, segundo o prefeito: “O crime está profissionalizado,
não podemos enfrentar a violência de uma maneira antiga. Outras ações iriam apenas amenizar o
problema e acreditamos que o helicóptero vá realmente fazer a diferença e diminuir a criminalidade.”
Citação tomada do jornal NH, de 16 de abril de 2003, disponível em http://www.novohamburgo.
rs.gov.br/sec/semtras/gm/index.htm.

Guardas Municipais: Resistência e Inovação | 169


Mas é importante perceber que existem outros grupos e tendências dentro
da Guarda, onde a concepção de “vocação” é muito distinta. Um grupo que foge
claramente ao padrão militar é a Ronda escolar. Aqui são guardas com projetos de
prevenção, dedicados a criar condições para que os problemas da violência e do crime
não penetrem nas escolas ou que possam ser contidos no nascedouro. Mesmo assim,
estes grupos podem ser observados em duas linhas distintas: parte faz um trabalho de
prevenção e palestras, parte faz a ronda no seu sentido mais imediato, lidando com
acidentes e conflitos dentro das escolas. Esse grupo ainda mostra um certo aspecto
punitivo, que muitas vezes os coloca em choque com as diretoras e professoras das
escolas, que vêem como protetoras dos alunos. Ajustar as concepções daqueles que se
relacionam com as guardas em seu cotidiano – e deveriam cooperar nas atividades – e
as dos guardas parece ser um tema importante para consolidar o trabalho cooperativo e
preventivo de grupos que atuam em situações onde pode aparecer risco, especialmente
envolvendo menores. São momentos em que se deve perceber como não é desejável
um perfil único de guarda – ou de policial – mas sim um aproveitamento de habilidades
que deve incluir a capacidade de integrar e cooperar com outros grupos que têm um
papel menos visível mas não menor na prevenção ao crime.
O segundo grupo, que se destaca como perfil alternativo, é o Grupamento de
Trânsito. Em muitas guardas que buscam se afirmar como polícias, a imagem que
incomoda é exatamente do Guarda Municipal como encarregado de controlar o
trânsito e multar as pessoas. Esse trabalho é apresentado exatamente como o que não
deveria ser feito.29 Mas o grupo de entrevistados do trânsito era exatamente o que
tinha menos contatos prévios com atividades de segurança, e continuavam a expressar
um conjunto de preocupações que os afasta deste tipo de percepção e atividade. A
seguir discutiremos a questão do armamento mas vale notar aqui que esse grupo
considera perigoso ficar armado onde eles estão, que a convivência que estabelecem
é condicionada pela ausência da arma, e que, ao contrário do Guarda citado acima,
preferem se afastar quando percebem algum tipo de crime ocorrendo.
Ao contrário da Ronda escolar, esse grupo não parece desenvolver algum tipo
de habilidade específica direcionada a seu trabalho, a não ser a de sobreviver num
ambiente hostil. O trânsito nas grandes cidades produz uma tipo de situação onde
se perde sempre, incapaz de satisfazer aqueles que pedem ordem e desagradando
aqueles que agem em desacordo com a norma. Num certo sentido, é possível dizer
que para esta função vão aqueles que não têm interesse em outras atividades exercidas
pelos guardas. Mas isso não significa dizer que há desinteresse no trabalho, ou
descompromisso com a atuação, os grupamentos de trânsito trabalham em condições
duras e muitos querem ficar ali, apesar de certa sensação de inutilidade do trabalho,
repetidas todos os dias as mesmas infrações. Nas entrevistas não apareceu o tema da
corrupção, mas conversas informais apontam para o problema, o controle do trânsito
permitindo ganhos irregulares sem muito risco.
Assim como o grupo vocacionado para a segurança manipula o desejo social de
mais segurança, esse grupo manipula os impedimentos legais e os argumentos a favor
de uma guarda não policial. O impasse permanece.

29 Isso não deixa de ser verdade também nas polícias. Muitas delas se sentiriam mais confortáveis
sem o controle do trânsito.

170 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
As atribuições da Guarda
Este ponto pode ser abordado de forma menos problemática, pois os pontos
mais complexos estão ligados à questão anterior. As tarefas concedidas as guardas
podem ser interpretadas como restritivas ou absolutamente abertas. A forma de
intervenção vai se definindo no que se pode considerar como um expansionismo que
vai caracterizando as Guardas. Fruto de demandas e lutas sociais, em alguma medida
ainda sem a imagem negativa dos outros agentes de segurança pública, as Guardas
parecem aspirar por mais. O que deve ser esse mais, pode não estar expresso de forma
muito clara, mas certamente passa por um contingente maior, melhores instalações
e equipamentos. O raciocínio é institucionalmente simples: se existem demandas,
atendê-las seria fonte de poder e prestígio. Pode ser que o resultado não seja esse mas
essa é a concepção que parece informar boa parte dos guardas. Aqui a grande divisão
está relacionada com os administradores. Por agendas políticas ou policiais, eles têm
interesse no desenvolvimento das guardas, mas direcionadas para agendas próprias ou
restritas. No caso do Rio, o tema da ordem urbana, nos termos definidos pelo prefeito,
se impõe, levando ao polêmico embate com camelôs pelas ruas do centro da cidade,
dando uma visibilidade freqüentemente negativa para a Guarda. No caso de Belo
Horizonte, existe a preocupação de conter o espaço da guarda, avançar lentamente,
definindo termos de bom relacionamento com a Polícia Militar.
A questão central parece ser o tornar-se ou não polícia. O acompanhamento da
PEC 534/2002 no Congresso Nacional demonstra o interesse dos Guardas em que isso
seja realidade, reunindo desde grupos mais duros até propostas como a de Benedito
Mariano, que vê as guardas como a nova alternativa policial. Mas para o tratamento
desse tema, as Guardas de Belo Horizonte e do Rio não são os melhores exemplos.
Num outro nível, essa mesma discussão pode ser travada sobre um conjunto
de atribuições. Escolas, próprios municipais, trânsito, parecem ser destinações muito
visíveis para as Guardas. Mas é preciso observar a capacidade destas guardas de formular
temas e formatos novos, adequando sua estrutura a demandas contemporâneas.
Nesse sentido, a criação de guardas ambientais, o patrulhamento de praias e locais
turísticos, vai abrindo novos horizontes para o trabalho das Guardas, ampliando a
possibilidade de construí-las como instituições novas e positivas.30 Ao mesmo tempo,
essas atividades, se mal sucedidas, podem produzir um desgaste para as guardas, e
ampliar os argumentos para a expansão dos poderes. Isso fica particularmente visível
numa cidade turística como o Rio de Janeiro, onde a violência contra visitantes tem
um caráter extremamente desagradável e negativo para os gestores urbanos. Deixar
isso como responsabilidade de outros pode não parecer uma má idéia.

O equipamento
O principal tema de discussão a respeito de equipamento é, sem dúvida, o uso de
armas. Tem sido visível a tendência das guardas de se armar, o que vem ao encontro

30 Isso não significa que as polícias não estejam trabalhando nestes campos. Mas neste caso a atividade
é subordinada a outras mais visíveis e consagradas, deixando muito a desejar como construtora de
imagem. A Guarda, por não ter ainda função bem definida, pode se beneficiar disso.

Guardas Municipais: Resistência e Inovação | 171


das aspirações da maior parte dos guardas. Nos casos estudados, a Guarda de Belo
Horizonte está comprando armas enquanto a do Rio ainda resiste, sendo o caso
mais visível de um comando comprometido com uma idéia de guarda desarmada.
O primeiro ponto fundamental parece ser a definição das condições de emprego do
armamento. Nesse ponto, parece não haver um planejamento muito bem definido
e o comando da guarda de Belo Horizonte mostrou-se reticente. É preciso estudar
definições precisas para onde e quando usar armas, e como avaliar as situações em
que elas forem utilizadas. Guardas com mais tempo de uso de armas parecem ter
desenvolvido formas de avaliação, acompanhando casos envolvendo o saque das
armas ou o disparo.31 Esse processo precisa ser bem acompanhado. Por outro lado,
existe uma forte tendência a afirmar que o porte de armas deve se dar apenas em
situações específicas, que envolvam um risco maior para o Guarda. Esse é o argumento
empregado, por exemplo, em Fortaleza. Mas aqui existe o risco, bastante claro, de que
os Guardas demandarão a extensão do “privilégio”, e de que a médio prazo todos
os guardas comecem a andar armados.32 A proposta de uma guarda parcialmente
armada, por mais atraente e mesmo racional que seja, não parece encaixar-se bem nas
lutas políticas que se travam em torno da função das Guardas.
Uma segunda questão é o emprego de outro tipos de equipamento, como
armamento não letal. O Encontro de Guardas em Foz do Iguaçu, como outros eventos
semelhantes, tornou-se também uma feira de equipamento. Guardas recentes e
pequenas, como a de Florianópolis, estão investindo na compra de tasers. Esse tipo
de equipamento ainda não tem sido utilizado no Brasil, e deve ser objeto de estudo
cuidadoso para avaliar as circunstâncias de seu emprego.

O treinamento e as condições de trabalho


Aqui parece haver cada dia mais um consenso na área de segurança pública
sobre a necessidade de estabelecer parâmetros de treinamento, mais do que de
avaliação posterior de desempenho. Essa preocupação tem sido expressa nas matrizes
curriculares produzidas pela SENASP. Um tipo de estudo muito freqüente é o da
evolução dos currículos dos cursos, ainda que, surpreendentemente, em muitos casos
essa memória não exista.33 O treinamento parecia ser apenas um momento lógico,
onde veteranos das forças policiais, recrutados por influência e contatos, transmitiam
algumas noções básicas, enquanto se faziam ritos de passagem para que os novos
recrutas começassem a tornar-se parte da instituição. Hoje novas disciplinas têm
sido oferecidas, o ensino torna-se, aos poucos, mais profissional, mas, na prática,
ainda enfrenta resistência dos veteranos, dotados de um saber distinto, produzido
praticamente. As novas formas de produzir segurança que vão se constituindo nas
Guardas Municipais pedem novos treinamentos, novas especializações. Mesmo temas
complexos como o emprego de armas de fogo, demanda uma reestruturação do

31 Esse tipo de controle, que leva ao quase não uso do armamento disponível, tem sido utilizado em
municípios de São Paulo, como nos foi apontado em Osasco pelo secretário Benedito Mariano.
32 Recentemente o governo estendeu – pelo decreto 5871/2006 – o porte de arma dos guardas para
além de seu município. Isso demonstra bem como é difícil pensar no uso de armas só nas situações de
risco mais visível.
33 É o caso dos primeiros cursos da Guarda Municipal do Rio de Janeiro.

172 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
treinamento, capacitando os guardas para usá-las. A melhoria material das Guardas
vai tornando o treinamento mais confortável, melhor estruturado. Entrar na Guarda,
em uma fase anterior, parecia um desafio. Hoje, tornou-se mais simples e tem atraído
pessoal cada vez mais qualificado.34
Os guardas, depois de formados, enfrentam condições de trabalho percebidas de
forma diversa. Como já mencionamos, alguns se sentem vocacionados para o trabalho,
e encontram gratificação na atividade. Outros buscam apenas um emprego, uma
forma de sobrevivência. Mas para todos, as condições de emprego são um tema caro
e importante. No caso da Guarda do Rio, a situação de contratados pela CLT é uma
reclamação permanente. A queda dos padrões salariais também foi fortemente sentida.
Tudo isso tem produzido um guarda sem expectativas de se sentir recompensado
plenamente enquanto guarda, buscando alternativas fora da Guarda. Deve ser feito
um estudo mais aprofundado sobre a rotatividade de pessoal das Guardas, mas as
indicações de percepção são de que o problema é grave.

CONCLUSÃO: O FUTURO DAS GUARDAS


Não é possível, nesse momento, oferecer conclusões satisfatórias. As Guardas
Municipais encontram-se ainda em processo de formação, ao esmo tempo em que
certas diretrizes já estão fortemente consolidadas. Se a imagem pública da Guarda
ainda está em jogo, se suas funções ainda são imprecisas, podemos ao mesmo tempo
afirmar que um grupo expressivo de Guardas já se organiza em torno de uma proposta
clara de ação, que encontra respaldo em setores do poder público tanto municipal como
federal. São aqueles que pretendem fazer da Guarda uma polícia local, enfrentando
criminosos e, para isso, necessariamente armados. Para muitos, isso pode parecer
uma perspectiva pessimista de futuro. Mas reconhecer o fortalecimento de tendências
é o caminho necessário para uma atuação que permita definir como o processo será
conduzido, e que diretrizes conformarão o emprego das Guardas.

34 Mais uma vez, sente-se o impacto da crise econômica com ampliação do acesso ao ensino superior.
Os candidatos à Guarda vão se tornando cada vez mais qualificados formalmente. As tensões geradas
por essa competição já foram mencionadas anteriormente.

Guardas Municipais: Resistência e Inovação | 173


POLÍGONO DA MACONHA: CONTEXTO SOCIOECONÔMICO,
HOMICÍDIOS E ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Adriano Oliveira*
Jorge Zaverucha
Ernani Rodrigues

INTRODUÇÃO
O Polígono da Maconha, em Pernambuco, é composto, tradicionalmente,
pelas cidades pernambucanas que formam as regiões do Sertão e do São Francisco1.
No Sertão, destacam-se como áreas de intensa produção e tráfico de maconha os
municípios de Salgueiro, Mirandiba, Serra Talhada e Imbimirim. Na região do São
Francisco, pontificam os municípios de Belém do São Francisco, Cabrobó, Carnaubeira
da Penha, Floresta, Lagoa Grande, Orocó e Santa Maria da Boa Vista.
O município de Petrolina, localizado na região do São Francisco não é reconhecido
como área de produção de maconha. Contudo, o tráfico e o consumo em Petrolina são
considerados intensos, tanto por conta de sua localização geográfica2 como por ser
uma cidade mais desenvolvida economicamente em relação às outras que compõe o
Polígono.3
Ressalte-se não haver consenso sobre a definição das cidades que fazem parte
do Polígono da Maconha. Relatório, assinado pela Corregedora-Geral do Ministério
Público de Pernambuco (MPPE), Maristela de Oliveira Simonin, e por Gustavo
Augusto R. de Lima, presidente da Associação do Ministério Público de Pernambuco4,
informa que o Polígono é formado pelos seguintes municípios: Floresta, Belém do São
Francisco, Cabrobó, Orocó, Santa Maria da Boa Vista, Tacaratu, Petrolândia, Itacuruba
e Carnaubeira da Penha.
Divergências geográficas à parte, este artigo tem três grandes objetivos: 1) contex-
tualizar as condições socioeconômicas do Polígono; 2) analisar se estão presentes
relações de causalidade entre tráfico de drogas e o elevado número de homicídios
em alguns municípios da região; 3) avaliar a eficiência do Ministério Público no
enfrentamento ao cultivo e tráfico de maconha no Polígono.
Julgamos importante lançar luzes sobre o contexto socioeconômico em que
ocorre a produção e o tráfico de droga no Polígono da Maconha. Assim sendo, será
possível ao leitor examinar minuciosamente as variáveis que proporcionam o cultivo
e o tráfico intenso de maconha.

* Os autores são membros do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas (NIC) da UFPE.


Agradecemos a contribuição de Dalson Brito, Nara Pavão e Aécio Júnior.
1 Esta área é também reconhecida como Sertão do São Francisco.
2 O município de Petrolina está próximo dos estados da Bahia, do Piauí e do Ceará. Possui aeroporto
com capacidade para operar aviões à jato tanto para transporte de passageiro como de carga.
3 Petrolina cultiva frutas tropicais de excelência. E é grande produtora de vinho. Que são exportados
(inter)nacionalmente.
4 Relatório assinado em 24/04/1997.

Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público | 175


Em seguida, mostraremos o quantitativo de homicídios na região do Polígono
da Maconha. Os dados sobre homicídios permitirão verificar se esta área, comparada
tanto à cidade do Recife como a outros municípios, tem, proporcionalmente, um maior
número de assassinatos. Em caso positivo, testar-se-á a hipótese de que a produção e
o tráfico de drogas geram agudos conflitos de interesse. Resultando na presença de um
grande número de homicídios no Polígono.
Finalmente, analisaremos a ação do Ministério Público de Pernambuco no enfren-
tamento à produção e ao tráfico de drogas em quatro municípios do Polígono da
Maconha – Belém do São Francisco, Floresta, Santa Maria da Boa Vista, Salgueiro
e Cabrobó. A análise em torno das ações do MPPE, possibilitará respostas para os
seguintes questionamentos: 1) a produção e o tráfico de drogas, nos municípios
referidos, são realizados por grupos criminosos ou feito de modo solitário? 2) a ação
tanto das Polícias como do MPPE concentram-se no combate ao traficante ou ao
cultivador de maconha? 3) qual é a instituição policial que têm uma ação mais eficaz
no combate a produção e ao tráfico no Polígono?

CONTEXTO SOCIOECONÔMICO
Foram selecionados três indicadores com o objetivo de entender o contexto
sócio-econômico dos municípios inseridos no Polígono da Maconha5. E de que modo
este contexto influi no tráfico de drogas. São eles:
1) Índice de Desenvolvimento Humano (IDH-M);
2) Renda per capita;
3) Índice Gini.

O IDH-M engloba as seguintes informações: Produto Interno Bruto (PIB), a lon-


gevidade da população e seu nível educacional. Quando este índice está acima de
0,8 o município é considerado como de alto desenvolvimento humano. Quando o
IDH-M está entre 0,5 e entre 0,8, as cidades inseridas neste intervalo são consideradas
como de médio desenvolvimento humano. Verificando-se o gráfico 1 constata-se que
qualquer município integrante do Polígono da Maconha pode ser considerado de
médio desenvolvimento humano. Deste modo, nenhum se enquadra na definição de
baixo desenvolvimento humano6. Tal como é o IDH-M do Estado de Pernambuco.
(Gráfico 1, a seguir).
Portanto, pode-se afirmar que municípios considerados de médio desenvolvimento
humano são reconhecidos como produtores de maconha e, também, áreas de tráfico.
Assim sendo, mesmo que um município seja de baixo desenvolvimento econômico
não, necessariamente, a produção e tráfico de drogas devem florescer.
Por exemplo, a cidade de Manari, localizada no sertão pernambucano, possui
o IDH-M mais baixo do Brasil (0,467). Mesmo assim, não existem indícios de que
ocorram produção e tráfico de maconha. Embora, Manari esteja próxima à cidade
de Imbimirim – município reconhecido por possuir grupos organizados atuando no
plantio e no tráfico de maconha7.

5 Todos os dados correspondem ao ano de 2000. Foram coletados no Atlas Brasil e no IBGE.
6 O IDH médio do Polígono da Maconha é de 0,654. Já o de Pernambuco é de 0,705.
7 O IDH de Ibimirim é de 0,566.

176 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 1
IDH dos municípios e de Pernambuco
0,8
0,7
0,6
0,5
IDH 0,4 IDH
0,3
0,2
0,1
0

O e
Pe ó

Pe iran tu
M eiro
Fl ha

Ta dia

am a
Sa Sa lina
La Ib ta
a rim

co
Pe có
Ca . F.

tro V.
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go imi
ra

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br

nt lgu
S


or

G
m

.
a

a
Be

r.
Ca

Municípios

Outras variáveis, condicionais e causais devem ser levadas em consideração com


o objetivo de explicar o porquê dos municípios com médio desenvolvimento humano
serem reconhecidos como áreas de produção e tráfico de maconha. A variável IDH,
como se viu, é per se insuficiente8.
Neste sentido, analisamos o segundo indicador/variável: renda per capita da
população dos municípios do Polígono9. As cidades de Petrolina e Salgueiro apresentam
as maiores rendas per capita (vide gráfico 2). Estes dois municípios tiveram, também,
os maiores índices de IDH da região.

Gráfico 2
Renda per capita versus IDH
Renda per capita

250 0,8
200 0,6
150
IDH

0,4
100
50 0,2
0 0
Pernambuco
Belém S. F.

Santa M. B.

Petrolândia

Itacuruba
Cabrobó

Grande

Petrolina

Tacaratu

Mirandiba
Ibimirim
Floresta

Orocó

Salgueiro
Car. Da

Lagoa
Penha

V.

Municípios Per capita IDH

8 O estado de Pernambuco tem o IDH de 0,705. Neste caso, ele é considerado um território de médio
desenvolvimento humano. De 1991 para 2000, o IDH de Pernambuco avançou 13,71%. Educação (48,4%)
e longevidade (34,4%) foram os fatores que mais contribuíram para este crescimento. A variável renda
contribuiu com 17,2%. Inferências semelhantes são encontradas na evolução do IDH dos municípios
do Polígono da Maconha.
9 Razão entre o somatório da renda per capita de todos os indivíduos e o número total desses
indivíduos. A renda per capita de cada indivíduo é definida como a razão entre a soma da renda de
todos os membros da família e o número de membros dessa família. Valores expressos em reais de
1º de agosto de 2000.

Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público | 177


Deseja-se verificar se é possível justificar a produção e o comércio de drogas
pela baixa renda per capita presente nos municípios do Polígono. Dos 14 municípios
pertencentes à esta região, 4 estão entre as 100 cidades que possuem a menor renda per
capita do estado de Pernambuco. São eles: Carnaubeira da Penha, Ibimirim, Tacaratu
e Mirandiba. Estes municípios ocupam respectivamente a 2ª, a 33ª, a 37ª e a 27ª
posição no ranking das menores rendas per capita.
Por outro lado, as outras cidades do Polígono da Maconha – em sua maioria –
estão inseridas no ranking das 100 maiores rendas per capita do estado de Pernambuco.
Destaque para Petrolina, Salgueiro e Itacuruba. Estas ocupam as seguintes posições no
ranking: 8ª, 18ª e 38ª, respectivamente. O município que mais se aproxima da escala
das 100 menores rendas per capita é Orocó, ocupando a 68ª posição no ranking das
menores rendas per capita.
Portanto, é possível afirmar que o nível da renda per capita, assim como o IDH
não explicam per se a produção e o comércio de drogas nos municípios que fazem
parte do Polígono da Maconha.
Buscou-se um outro indicador/variável. O índice Gini mede o grau de concentração
de renda em um determinado grupo. Seu valor varia de 0 (zero), quando não há
desigualdade (a renda de todos os indivíduos tem o mesmo valor), a 1, quando a
desigualdade é máxima (apenas um indivíduo detém toda a renda da sociedade e a
renda de todos os outros indivíduos é nula).

Gráfico 3
Índice Gini

0,8
0,7
0,6
ìndice Gini

0,5
0,4 Gini
0,3
0,2
0,1
0
Santa M. B. V.

Pernambuco
Lagoa Grande
Car. Da Penha
Belém S. F.

Petrolândia
Cabrobó

Petrolina

Tacaratu

Mirandiba
Ibimirim
Floresta

Orocó

Salgueiro

Municípios

A maioria dos municípios do Polígono possui o índice de Gini igual ou acima de 0,60.
Orocó (0,59), Itacuruba (0,59), Petrolândia (0,58), Tacaratu (0,58) e Mirandiba (0,55)
possuem o índice Gini abaixo 0,60. Neste sentido, não é possível justificar a produção e
o tráfico de maconha por conta do grau de concentração de renda. Outros municípios,
com elevado índice de concentração de renda, localizados em outras regiões do estado
de Pernambuco, não são reconhecidos como produtores e áreas de intenso tráfico.
Portanto, conclui-se que as variáveis socioeconômicas per se não ajudam a
decifrar as causas que proporcionam a produção e o tráfico de maconha no Polígono.

178 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Evidentemente, essas variáveis não podem ser desprezadas. Outras causas devem ser
buscadas, como, por exemplo, a ausência do poder coercitivo estatal no Polígono.

TRÁFICO DE DROGAS E HOMICÍDIOS


O comércio de drogas requer, geralmente, domínio de territórios. A busca por
este domínio bem como sua manutenção gera conflitos. Como é o caso do Rio de
Janeiro. O mesmo pode ocorrer no Polígono da Maconha. Diante disto, aos índices de
homicídios na região serão analisados.
Utilizou-se do estudo comparativo para avaliar os índices de homicídios no
Polígono da Maconha. vis-a-vis os índices de Recife e Olinda. Estas cidades possuem
as maiores taxas de homicídios do Brasil. Além disto, Recife e Olinda são aglomerados
urbanos, com alta densidade populacional.
O gráfico 4 mostra o quantitativo de homicídios ocorrido no ano 200210. Todas
as cidades integrantes do Polígono estão presentes. Além dos municípios de Recife e
Olinda. Estes municípios – proporcionalmente por 100.000 habitantes – aparecem com
o maior número de homicídios. Destaque para o Recife com a maior proporção: 90,54.
Carnaubeira da Penha e Salgueirosão as cidades que têm os menores índices: 29,30 e
22, 86, respectivamente.

Gráfico 4
Taxa de homicídios por 100.000 habitantes – Ano 200211

Olinda

Recife

Mirandiba

Tacaratu

Itacuruba

Petrolândia

Santa M. B. V.
Municípios

Salgueiro

Petrolina

Orocó

Lagoa Grande
Taxa por 100.000
Ibimirim

Floresta

Car. Da Penha

Cabrobó

Belém S. F.

0 50 100 150
Índices

10 Fonte: Datasus – http://www.datasus.gov.br/, IBGE e IPEA.


11 Não existem informações quanto ao município de Itacuruba.

Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público | 179


Por conta das diferenças presentes nos âmbitos populacional e urbano são compre-
ensíveis os resultados revelados no gráfico abaixo. Contudo, chamam-nos atenção os
índices da cidade de Belém do São Francisco (107,03): são superiores aos de Recife.
Tentou-se exaurir a análise com o objetivo de encontrar alguma similaridade
entre as taxas de homicídios do Polígono e das outras regiões. O gráfico 4 comparam
os municípios do Polígono com as quatro capitais brasileiras detentoras das maiores
taxas de homicídios por 100.000 habitantes nos anos 2000 e 2002.

Gráfico 5
Análise comparativa dos índices de Homicídios (2000)

100
Recife
80 Lagoa Grande
Vitória
60
Santa Maria
40 Porto Velho
20 Floresta
Rio de Janeiro
0
Petrolina
1° Ranking 2° Ranking 3° Ranking 4° Ranking

Gráfico 6
Análise comparativa dos índices de Homicídios (2002)

120
Recife
100 Belém do São francisco
80 Vitória
60 Petrolândia

40 Porto Velho
Petrolina
20
Rio de Janeiro
0
Ibimirim
1° Ranking 2° Ranking 3° Ranking 4° Ranking

Os gráficos mostram que nos anos abordados, alguns municípios do Polígono


da Maconha possuem índices de homicídios maiores do que determinadas capitais do
Brasil. Em 2000, as cidades de Floresta (68,75) e Petrolina (65,43) tiveram taxas de
homicídios maiores dos que as cidades de Porto Velho (60,96) e Rio de Janeiro (56,41).
No ano de 2002, o município de Belém do São Francisco (107,03) aparece com taxa
maior do que a cidade do Recife (90,54). Por sinal, neste ano, outra três cidades do
Polígono (Petrolândia, Petrolina e Ibimirim) também suplantaram Vitória, Porto Velho,
e Rio de Janeiro.
Os índices de homicídios nos municípios do Polígono variam de ano para ano de
modo crescente e decrescente – ver gráfico 7 abaixo. No ano de 1998, o município de
Carnaubeira da Penha teve uma taxa de homicídios por 100.000 habitantes de 145,06.
No ano de 1999, decresceu para 87,47. Em 2001, cresceu para 101,66.
A cidade de Floresta no ano de 1998 apresentou taxa de homicídios por 100.000
habitantes de 127,49. No ano seguinte, decresceu para 60,75. A cidade de Floresta,
no período analisado (1998 a 2002), apresentou variações negativas. A única exceção

180 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
é o período de 1999 a 2000. Neste período, ocorre uma variação positiva de 37,41%.
Em Belém do São Francisco, no período de 2001 a 2002, ocorre a mais alta variação
positiva envolvendo todos os municípios do Polígono, 431,95%.
Os municípios Belém do São Francisco (24,58%), Ibimirim (88,98%), Petrolina
(22,22%), Santa Maria da Boa Vista (31,06%), Petrolândia (91,17%) e Itacuruba
(3,14%) apresentaram no período de 1998 a 2002 variação acumulada positiva.
Destaque para a cidade de Petrolândia que apresentou a maior variação acumulada.
Os outros municípios apresentaram variações negativas. Carnaubeira da Penha, apesar
de no ano de 1998 ter apresentada a maior taxa de homicídios por 100.000 habitantes
entre os municípios do Polígono no período analisado, obteve a mais alta variação
acumulada negativa, ou seja, 79,8%.
É interessante observar com mais atenção as taxas de homicídios em alguns
municípios do Polígono. Carnaubeira da Penha, em 1998, apresentou uma taxa de
homicídios de 145,06. Nos anos seguintes, as taxas foram de: 18,17 (1999), 19,22
(2000), 38,76 (2001) e 29,30 (2002). Após o ano de 1998, não ocorreu uma grande
incidência de homicídios quando comparado a 1998. Além disto, nos outros anos,
nenhum índice chegou a se aproximar ao obtido no ano de 1998.
O município de Belém do São Francisco apresentou duas altas taxas de homicídios.
Em 1998, com 85,91; e em 2002, com 107, 03. Nos anos de 1999, 2000 e 2001, os
índices foram de 53,20, 34,64 e 20,12 respectivamente. Em Floresta no ano de 1998, o
índice de homicídios foi de 127,49. Nos outros anos, as taxas foram de 50,03 (1999),
68,75 (2000), 51,66 (2001) e 43,17 (2002).
Nestes municípios não há um padrão de regularidade na prática de homicídios.
Em determinado instante (To) há alta incidência de homicídios, e logo após, nos
instantes (T1,....., Tn) ocorrem variações negativas. Seguido de variações positivas.
O mais importante a constatar neste fenômeno é a presença, num determinado instante,
de um alto índice de homicídios. Neste caso, verifica-se no gráfico 7 a presença de
picos de homicídios. Os picos mais visíveis são os de Carnaubeira da Penha, em 1998;
e Belém do São Francisco, no ano de 2002.
Existe alguma causa ou conjunto de causas que possibilitam a presença de picos
de homicídios em determinados instantes? Será testada a possibilidade deste pico
ser explicado por causas temporais. Ou seja, fatores que atuaram ocasionalmente e,
mesmo assim, contribuíram para elevação das taxas de homicídios.
Além dos picos de homicídios, chamam atenção no gráfico 7 a seguir, os índices
de homicídios do Recife e Rio de Janeiro quando comparados com alguns municípios
do Polígono da Maconha. No ano de 1998, as cidades de Carnaubeira da Penha e
Floresta tiveram taxas de homicídios por 100.000 habitantes maiores do que a capital
de Pernambuco, o Recife. Em 2002, Belém do São Francisco apresentou, também,
índices maiores do que o do Recife.
A cidade do Rio de Janeiro, área de intensos conflitos provocados por disputas por
pontos de drogas, apresenta taxas de homicídios menores do que alguns municípios
do Polígono. Desde 1998, Petrolina vem apresentando índices de homicídios maiores
do que o Rio de Janeiro. Petrolândia apresenta estes resultados desde 1999. Em
determinados anos, algumas cidades do Polígono tiveram níveis de homicídios mais
altos do que o Rio de Janeiro em anos específicos.

Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público | 181


Gráfico 7
Evolução dos homicídios (1998 a 2002)

160

140

Belém de S. F.
120
Cabrobó
Carnaubeira
Floresta
100 Ibim irim
Lagoa Grande
Orocó
Petrolina
80
Salgueiro
Santa Maria
Petrolândia
60 Itacuruba
Tacaratu
Mirandiba
Recife
40
Rio de Janeiro

20

0
1998 1999 2000 2001 2002

Ao calcular-se a taxa média de homicídios dos 14 municípios do Polígono da


Maconha, constatou-se que os seus índices são inferiores aos da capital pernambucana
e fluminense. Exceto para o ano de 1998 em relação ao Rio de Janeiro. Além disto, os
municípios do Polígono apresentam considerável instabilidade em seus índices. Em
determinado período ocorre aumento da taxa de homicídios, em outro uma redução.
A única cidade que apresenta constância/regularidade em seus consideráveis índices
no período analisado é Petrolina.
O gráfico 8 revela que no ano de 1998, o Polígono da Maconha apresentou taxa de
homicídio médio superior ao do Rio de Janeiro: 66,60 versus 62,64, respectivamente.
Neste mesmo ano, os municípios de Carnaubeira da Penha (145,06) e Floresta (127,49)
tiveram as suas maiores taxas de homicídios no período pesquisado – 1988 a 2002.
Além disto, neste mesmo período, nenhum município do Polígono chegou a ter o
índice de 145,06 referente à cidade de Carnaubeira da Penha. Friso, que entre 1998 a
2002, o Polígono da Maconha acumulou uma variação negativa de -21,5%.

182 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 8
Média da taxa de homicídios (1998-2002)

0,45
0,40
0,35
0,30 Belém do São Francisco
0,25 Carnaubeira da Penha
0,20 Floresta
0,15 Lagoa Grande
0,10
0,05
0,00
1998 1999 2000 2001 2002

Importante destacar é a proporção de homicídios como causa de mortalidade.


Em 2002, Belém do São Francisco obteve o índice de 0,26 para o total de mortalidade
acontecida. Neste ano, este município apresentou também o maior índice de homicídios
por 100.000 habitantes – 107,03. Esta correlação entre estes índices também ocorre
com os municípios de Carnaubeira da Penha e Floresta no ano de 1998.
O gráfico 7 revela, que Lagoa Grande, tal como Petrolina, apresenta relativa
estabilidade em relação à taxa de homicídios por 100.000 habitantes. Em Lagoa
Grande, no ano de 2000, foi encontrada uma taxa de homicídios de 78,38. Os outros
índices foram: 1998 (66,61); 1999 (59,89) ; 2001 (50,86); 2002 (44,87).
Observe-se que além de poucas variações nos dados, Lagoa Grande em nenhum
momento apresentou taxa de homicídios superior a 80,00. Por outro lado, esse
município, como mostra o gráfico 9, possui uma alta de proporção de homicídio como
causa de mortalidade.

Gráfico 9
Proporção de homicídios como causa de mortalidade

120

100

80
Recife
60 Rio de Janeiro
Polígono da Maconha
40

20

0
1998 1999 2000 2001 2002

Será que Lagoa Grande, apesar de não possuir no período analisado picos de
homicídio, possui uma maior proporção de homicídios como causa de mortalidade? Os
municípios que possuem picos de homicídios apresentam uma taxa média de homicídios
superior aos que não possuem estes picos? O gráfico 10 responde a estas indagações.

Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público | 183


Gráfico 10
Proporção de homicídios versus 100.000 habitantes
80 0,3
70 0,25
60
50 0,2
100.000 Hab
40 0,15
Proporção
30 0,1
20
10 0,05
0 0

Lagoa Grande
Car. Da Penha

Petrolândia
Cabrobó

Petrolina

Tacaratu

Mirandiba
Ibimirim
.Belém de S. F

Floresta

Orocó

Salgueiro

Santa M. BV
Surpresas ocorrem ao analisar-se a média da taxa de homicídios e da proporção
como causa de mortalidade. Municípios que possuem picos de homicídios, acima de
100,00 por 1000.000 habitantes, não estão entre os que possuem a maior média de
ocorrência de homicídios entre 1998 a 2002. Do mesmo modo, ocorre com a proporção
de homicídios como causa de mortalidade.
Petrolândia (68,63), Floresta (68,22), Petrolina (66,86) e Orocó (63,22) aparecem
como os municípios que possuem a maior taxa média de homicídios no período
analisado – 1988 a 2002. No que condiz a proporção média de homicídios como causa
de mortalidade, as cidades de Lagoa Grande (0,25), Belém do São Francisco (0,17),
Santa Maria da Boa Vista (0,17) e Carnaubeira da Penha são as que lideram o ranking
– vide gráfico 10.
Não existe coincidência entre as cidades com maior média de homicídios e as
que têm maior proporção média de homicídios como causa de mortalidade. Este é um
ponto importante. Os dados da proporção de homicídios como causa de mortalidade
colocam o município de Lagoa Grande no topo. Como já foi dito, esta cidade possui
regularidade em suas taxas de homicídios por 100.000 habitantes. Isto poderia explicar
a alta proporção de homicídios. Contudo, Petrolina, também, apresenta essa mesma
regularidade. Mas nem por isto, está entre as quatro cidades com a maior proporção
média de homicídios. Portanto, municípios que possuem regularidade nos índices de
homicídios, não apresentam, necessariamente, uma maior proporção de homicídios
como causa de mortalidade.
Identificar as causas que levam à prática dos homicídios é uma tarefa árdua e
complexa. Por conta dos órgãos públicos, em geral, não possuírem dados. E quando
os têm, dificilmente os tornam públicos. Mesmo diante destas limitações, tentou-
se especular sobres as causas dos homicídios no Polígono da Maconha. Bem como
decifrar o motivo da alta proporção de homicídios como causa de mortalidade em
Lagoa Grande.
No dia 18 de outubro de 2002, quatro homens armados com pistolas e espingardas
calibre 12 promoveram uma chacina na fazenda Curral do Meio, localizada no município
de Belém do São Francisco. Cinco irmãos foram torturados e executados diante da
mãe, esposas e filhos. De acordo com a Polícia Federal, a chacina foi motivada por
conta dos irmãos terem abrigado um fazendeiro conhecido como Antônio Bagaceira.
Ele seria responsável pelo assassinato de outro fazendeiro: Zeílton Gomes Tavares12.

12 Fonte: http://jc.uol.com.br/jornal/2002/10/18/not_28193.php em 12/08/2005.

184 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Em números absolutos, foi no ano de 2002 que Belém de São Francisco conheceu
o maior número de homicídios: 21. As vítimas da chacina ocorrida na fazenda Curral
do Meio representam 23,8% do total de homicídios perpetrados em 2002. Este dado
nos permite afirmar que fatos pontuais, como chacinas, ocasionam aumento da taxa
de homicídios na região do Polígono.
Há uma outra hipótese tanto para a presença de picos como para as altas taxas
de homicídios: os conflitos entre famílias. Em Belém de São Francisco, as famílias
Benvindo e Araquan sempre se digladiaram. O representante mais conhecido das
duas famílias eram, respectivamente, Chico Benvido e Cleiton Araquan. Ambos foram
mortos pelas Polícias13.
Relatório reservado da Polícia Federal, de janeiro de 2004, afirma que as mortes
de Cleiton Araquan e Chico Benvindo possibilitaram a redução dos índices de violência
no Polígono da Maconha.
Segundo fontes policiais e do Ministério Público, os dois representantes das
famílias utilizavam o tráfico de drogas, os assaltos nas estradas e a bancos, para
angariar recursos com o objetivo de sobreviver e de se armar. Neste sentido, atividades
ilícitas financiavam os conflitos familiares14.
De acordo com fontes da Polícia Civil de Belém de São Francisco, em 12 de
outubro de 2002, três agricultores foram assinados com vários tiros de fuzil na ilha
dos Brandões em Belém do São Francisco. Este assassinato foi cometido pelo grupo
chefiado por Cleiton Araquan. O motivo da chacina deveu-se, supostamente, ao fato de
um dos agricultores, em depoimento à Polícia Civil, ter acusado o grupo de Araquan de
assassinarem o seu filho.Neste mesmo depoimento, o referido agricultor denunciou um
plantio de maconha dos Araquan que foi, posteriormente, erradicado pela Polícia15.
No ano de 2002, duas chacinas ocorreram. Totalizando oito mortos. Este número
significa que das 21 mortes ocorridas em Belém de São Francisco no ano de 2002, 38%
foram provocados por chacinas. Ambas as matanças foram por motivo de vingança16.
Os conflitos de famílias não se restringem à Belém do São Francisco. Em
Floresta, grupos familiares, especialmente os Ferraz e os Novaes, por várias vezes,
radicalizaram seus conflitos, resultando em mortes. Segundo Gomes (1999), na cidade
de Floresta, uma das principais ruas da cidade demarca a fronteira entre as famílias
rivais. Segundo ao autor, em cidades onde existem tais tipos de conflitos é impossível
ser neutro, é preciso tomar partido “de alguma das facções, ser protegido por esta, e
ficar alerta às possíveis ações da outra” (1999:8).
Em outubro de 2002, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
promoveu a transferência de 82 chefes de família, ligados tanto aos Araquan como aos
Torres17, para cidades do Piauí. O objetivo era amenizar o clima de tensão que estava

13 Em 04 de abril de 2003, após perseguição policial, Chico Benvindo foi morto pela Polícia Militar em
Belém do São Francisco. Cleiton Araquan foi morto por policiais federais em um confronto ocorrido na
cidade de Pilão Arcado, interior da Bahia, em 25 de setembro de 2003.
14 Em novembro de 2000, os Araquan e Benvindo firmaram um acordo de paz o qual foi intermediado
pela Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco. Em mais de 14 anos de conflitos, de acordo
com um comerciante da cidade, mais de 100 pessoas foram mortas. Entrevista em 12/01/2003.
15 Entrevista em 12/01/2003.
16 Entrevista com policiais civis em 12/01/2003.
17 Torres é família tradicional na cidade de Mirandiba.

Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público | 185


instalado nas cidades de Mirandiba e Belém do São Francisco. Cada família, por conta
do acordo, recebeu 40 hectares em terras produtivas18.
De acordo com uma delegada da Polícia Civil de Pernambuco19., a garantia da
honra está na origem dos conflitos familiares. Motivos para os indivíduos clamarem
pelo respeito a honra são os mais diversos, desde a uma relação amorosa mal sucedida,
a qual pode estar resultar na perda da virgindade feminina, e logo após o abandono da
mulher por parte do homem; como uma disputa política ou por terra. Para a policial,
muitos indivíduos usam o tráfico de drogas como fonte de renda e para o aumento do
seu poder bélico. E melhor defender sua honra.
Constata-se que chacinas motivadas por questões pontuais são uma das causas
possíveis para os consideráveis índices de criminalidade no Polígono da Maconha. A
outra causa é o conflito entre famílias. Mas, será que possíveis disputas provenientes
do tráfico de drogas podem ser consideradas como causas de homicídios?
Passou-se a analisar as denúncias do MPPE. Ressalve-se que considerável
parcela de crimes de homicídios não são, corretamente, apurados pela Polícia Civil
de Pernambuco. Em 2002, por exemplo, ocorreram 21 homicídios em Belém do São
Francisco. Neste mesmo ano, o MPPE ofereceu 7 denúncias. Portanto, 14 (66,6%)
homicídios não foram denunciados.
Entre 2000 a 2003, foram oferecidas 16 denúncias de homicídios em Belém do São
Francisco. Deste total, apenas uma denúncia (6,3%) teve como causa de homicídio o
tráfico de drogas. Neste mesmo período, em Floresta, foram oferecidas 28 denúncias
relacionadas a homicídios.
Em nenhuma destas houve ligação entre tráfico de drogas e a consumação do
homicídio.
Em Santa Maria da Boa Vista, nos anos de 2003 e 2004, houve 45 denúncias.
Quatro delas (8,9%) tiveram como causa o tráfico de drogas. Em Salgueiro, entre 1999
e 2003, uma única denúncia foi oferecida e a causa do homicídio estava relacionada ao
tráfico de drogas. Este resultado repetiu-se em Cabrobó, entre 2000 e 200320.
Diante dos dados obtidos, conclui-se que o tráfico de drogas não é a causa
principal dos homicídios no Polígono da Maconha.
Um delegado da Polícia Civil21, que atuou muito tempo nesta região, confirma
esta conclusão. Segundo ele, no Polígono da Maconha são incipientes e diminutos os
conflitos ocasionados pelo tráfico de drogas pois existe uma grande quantidade de
terras. Conseqüentemente, conflitos não ocorrem com intensidade, pois os produtores
de maconha possuem inúmeras áreas alternativas para o cultivo.
No caso específico de Lagoa Grande, esta pode ser um ponto de desova de
cadáveres. Vitimados em Petrolina ou em Santa Maria da Boa Vista, cidades próximas
a Lagoa Grande, seriam levados para esta cidade com o objetivo de prejudicar as
investigações da Polícia Civil. Por conta disto, o registro do homicídio fica circunscrito
ao município onde o corpo da vítima foi encontrado. Esta é uma hipótese levantada pelo
delegado. Isto, todavia, esclarece, de modo limitado, a alta proporção de homicídios
como causa de mortalidade encontrada em Lagoa Grande22.

18 Fonte: http://jc.uol.com.br/jornal/2002/10/16/not_27943.php em 12/08/2005.


19 Entrevista em 25/09/2002. A policial não autorizou à sua identificação.
20 Esses foram os únicos dados obtidos junto aos órgãos estatais, mais especificamente o MPPE.
21 Entrevista em 17/08/2005. Optamos por não identificar o policial.
22 Idem.

186 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Uma outra hipótese levantada pelo mesmo delegado é a presença dos chamados
crimes de proximidade ocorridos nas agrovilas, localizadas na redondeza de Lagoa
Grande. Crimes de proximidade caracterizam-se pela vítima e o acusado se conhecerem
e/ou estarem próximos. Este delegado ressalva que os crimes de proximidade
ocasionados pelo alto consumo de álcool são peculiares a todos os municípios do
Polígono da Maconha23.
Portanto, conclui-se que os homicídios no Polígono da Maconha ocorrem devido
a múltiplos fatores: 1) por conta de conflitos familiares que redunda em chacinas; 2)
alto consumo de álcool que acarretam crimes de proximidade, e 3) tráfico de drogas.
Portanto, são diminutos os homicídios associados ao tráfico de drogas.

O MINISTÉRIO PÚBLICO E O TRÁFICO DE DROGAS


O Ministério Público (MP) é o titular da ação penal. Um acusado por crime só
poderá ser julgado caso o MP denuncie. As denúncias crimes do MP são construídas
com base no inquérito policial. Neste sentido, o MP possui posição estratégica no
arcabouço institucional coercitivo brasileiro, pois sem a ação dele o julgamento de um
crime por parte do Poder Judiciário não ocorre.
Três grandes questionamentos estão a merecer respostas: 1) O tráfico de drogas
no Polígono da Maconha é desenvolvido de modo solitário ou coletivo (grupos)? 2)
Qual instituição policial detém mais traficante ou produtores no Polígono? 3) Ocorrem
mais prisões de traficantes ou de produtores de maconha?
A atuação do MPPE foi analisada com base nas denúncias oferecidas em quatro
cidades – Belém do São Francisco, Floresta, Salgueiro e Cabrobó. O ideal teria sido que
todas as cidades inseridas no Polígono fossem objeto desse tipo de análise. Contudo,
nem sempre as promotorias tinham as denúncias arquivadas! Uma outra dificuldade foi
o deslocamento por todos os municípios do Polígono. Aconselhada pelos promotores e
policiais, a equipe de pesquisa optou em não ir a todos os municípios do Polígono por
conta de que são freqüentes os assaltos na região. Além disto, pelo tipo de trabalho a
ser pesquisado, ameaças à integridade física poderiam ocorrer.
O período analisado foi de 2000 a 2004. Porém, nem todas as promotorias
ofereceram as denúncias relativas ao período como um todo. Por conta disto, a análise
foi desenvolvida, restritamente, por municípios. Não foi possível, deste modo, uma
compreensão totalizante envolvendo todos os municípios.
Em Belém de São Francisco, entre 2000 a 2003, foram denunciadas 303 pessoas.
Num total de 132 denúncias. Isto significa que em cada denúncia mais de uma pessoa
é denunciada. No período analisado existiram 79 denúncias (59,8%) por tráfico;
16 (12,1%) por homicídios; 16 (12,1%) por tentativa de homicídio; 10 (7,57%) por
plantação/cultivo de maconha; e 11 (8,3%) por outros crimes. A média de idade dos
denunciados é de 36 anos.
Foram efetuadas pela Polícia Militar (PM) 87% das prisões, incluindo todos os
crimes; 12,2% pela Polícia Federal (PF) e 0,8% por ações conjuntas das duas Polícias24.
Estes dados revelam a inação da Polícia Civil.

23 Ibidem.
24 Os dados foram obtidos ao serem analisadas as denúncias do MPPE.

Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público | 187


Os dados referentes à Belém de São Francisco possibilitam as seguintes conclusões:
1) Lá tráfico de drogas é realizado majoritariamente em grupo25. No caso do cultivo
da maconha, há uma maior freqüência de ação solitária por parte dos cultivadores26;
2) a PM é a força policial que mais detém indivíduos27; 3) ocorrem mais prisões de
traficantes do que produtores/cultivadores de maconha. Isto significa que a Polícia
concentra suas ações muito mais na comercialização/transporte de drogas em vez do
cultivo da mesma.
No período de 2000 a 2003, em Floresta 139 pessoas cometeram crimes. No entanto,
apenas 76 denúncias foram oferecidas pelo MP. Tais dados revelam a existência de
mais de uma pessoa por denúncia. Das denúncias, 40,7% dizem respeito ao tráfico de
drogas; 36,8% a homicídios; 14,47 a tentativa de homicídio; 6,57 a plantação/cultivo
de maconha; e 1,3% a outros. A média de idade dos denunciados é de 33 anos.
Petrolândia (68,63), Floresta (68,22), Petrolina (66,86) e Orocó (63,22) aparecem
como os municípios que possuem as maiores taxas médias de homicídios entre 1998
a 2002. Neste sentido, os dados do MPPE corroboram com as taxas de homicídios
apresentados, anteriormente, referentes a Floresta.
Em Floresta, 65% das prisões foram realizadas pela PM; 8% pela Polícia Federal;
e 1% pela Polícia Civil. Este resultado mostra, mais uma vez, a ação ineficiente desta
instituição no Polígono.
O número máximo de pessoas denunciadas em uma mesma denúncia, na cidade
de Floresta, foi de oito28. Esses dados evidenciam a presença de muitas denúncias
envolvendo mais de uma pessoa, ou seja, indivíduos atuando em grupo. Os dados
relativos à Floresta possibilitam conclusões similares às de Belém de São Francisco:
1) o tráfico de drogas em Floresta é realizado, majoritariamente, de modo coletivo29.
No caso do cultivo da maconha, ao contrário de Belém de S. Francisco, há uma maior
freqüência de ação em grupo30; 2) a PM é a força policial que mais detém indivíduos;
3) ocorrem mais prisões de traficantes do que produtores/cultivadores de maconha.
Isto pode ser devido a maior dificuldade em local em prender em flagrante o plantador
do pé de maconha. Ou falta de aparelhamento policial para fiscalizar o cultivo. Como
a área é imensa é necessário o uso de helicóptero para sobrevoar a área. E este tipo de
aeronave nem sempre está disponível para a polícia.
Em Santa Maria da Boa Vista, no período de 2003 a 2004, foram denunciadas
96 pessoas, de um total de 60 denúncias. Mais uma vez, constatou-se a presença de
algumas denúncias com mais de um denunciado. A idade média dos denunciados
é de 33 anos. Setenta e cinco por cento das denúncias têm como tipo de crime o

25 A média de pessoas denunciadas por tráfico em cada peça denunciativa é de 2,20. Já ocorreu de 6
pessoas serem denunciadas numa mesma denúncia.
26 A média de indivíduos denunciados por cultivo de maconha é de 1,20. Ao analisar as denúncias,
constato que o máximo de pessoas denunciadas por cultivo em cada denúncia é dois.
27 Deve ser levado em consideração o fato da PM efetuar o policiamento ostensivo além de possuir
um maior efetivo região. Inclusive, com ações desenvolvidas por policiais deslocados do Recife para
operações como Paz nas Estradas.
28 A média de denunciados é de 1,79; a mediana de um e o desvio padrão de 1,188.
29 A média de pessoas denunciadas por tráfico em cada peça denunciativa é de 2,13. A mediana é de
2,00. Já ocorreu de 5 pessoas serem denunciadas numa mesma denúncia.
30 A média de indivíduos denunciados por cultivo de maconha é de 2,20. A mediana é de 2,00. Ao analisar
as denúncias, constato que o máximo de pessoas denunciadas por cultivo em cada denúncia é quatro.

188 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
homicídio; 11,6% tráfico de drogas; 10% tentativa de homicídio; 1,66% plantação/
cultivo de maconha. Ao contrário dos municípios analisados anteriormente, o crime
que predomina nas denúncias é o homicídio. Convém relembra que Santa Maria da
Boa Vista não apresenta picos de homicídios, e nem está inserida no ranking das
cidades com maiores taxas de homicídios..
Note-se que 47% das prisões foram realizadas pela PM; 32% pela Polícia Civil;
16% pela Polícia Federal; e 5,2% em ação conjunta das Polícias. Neste caso, a Polícia
Civil aparece em segundo lugar como instituição que mais efetuou prisões. Ao contrário
dos outros municípios analisados.
Os dados revelam que em Santa Maria da Boa Vista existe uma menor incidência
de grupos organizados atuando no tráfico e no cultivo da maconha31. A Polícia Civil
apresenta resultados significantes na sua atuação coercitiva. O crime de homicídios é
que tem uma maior quantidade na região
No período de 1999 a 2003, na cidade de Salgueiro, foram denunciadas 142
pessoas – em um total de 80 peças denunciativas. A média de idade dos acusados
é de 37 anos e 87,5% das denúncias versam sobre tráfico de drogas; 11,25 % sobe
plantação/cultivo de maconha; e 1,25% sobre homicídios. Constata-se que as taxas
deste tipo de crime estão entre as mais baixas dos municípios do Polígono (ver gráfico
7). Portanto, deve existir relação entre diminutas denúncias sobre homicídios e a sua
freqüência. Claro, a ineficácia por parte da Polícia Civil na identificação dos atores
criminais é um ponto a ser considerado.
Em Salgueiro, 49% das prisões foram realizadas pela PM; 36% pela PF32; 10% pela
PC; e 3,9% em ação conjunta das Polícias. Informo que desde o ano 2000, foi instalada
na cidade de Salgueiro uma delegacia da Polícia Federal. Neste sentido, a instalação
da delegacia poderá ter acarretado uma maior presença policial e conseqüentemente
mais prisões, com regularidade, foram feitas. Novamente, a Polícia Civil aparece com
uma atuação pífia.
Em Salgueiro predomina a atuação de grupos organizados no tráfico de drogas33
e no cultivo da maconha34. A PM, novamente, mostra-se mais presente na região.
O tráfico de drogas é a atividade criminal predominante.
Em Cabrobó, 111 pessoas foram denunciadas. Este quantitativo refere-se aos anos
de 2000, 2002 e 200335. Nestes anos foram apresentadas 59 denúncias. Mais uma vez,
houve a presença de mais de uma pessoa denunciada por denúncia. Das denúncias,
66,1% versam sobre o tráfico de drogas; 28,8% referem-se à plantação/cultivo de
maconha; 3,3% faz menção a outros crimes; e 1,7% tem como crime o homicídio.
A média de idade dos acusados é de 34 anos.
A PM realizou 68% das prisões; 28% pela Polícia Federal e 3,5% em ação
conjunta das Polícias. Com base nas denúncias analisadas, a presença da Polícia

31 O número máximo de pessoas denunciadas por tráfico de drogas foi de 5. Este mesmo valor para
as pessoas denunciadas por plantação/cultivo de maconha.
32 Em 2000, foi instalada em Salgueiro uma delegacia da Polícia Federal. Isto levou a um aumento do
número de prisões na região. Entrevista sigilosa com policiais federais em 12/01/2003.
33 A média de pessoas denunciadas por denúncias é de 1,73. A mediana é 1. O máximo de pessoas
encontradas numa mesma denúncia é de 6.
34 Dois é a média de pessoas denunciadas por denúncias. A mediana também é este valor. O máximo
de pessoas encontradas numa mesma denúncia é de 4.
35 Não conseguimos dados para o ano de 2001.

Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público | 189


Civil é, praticamente, inexistente. Mais uma vez, o quadro repete-se em Cabrobó:
1) tanto no âmbito do tráfico de drogas36 como no cultivo de maconha37, ações em
grupo predominam; 2) a PM está mais presente na região; 3) e o tráfico de drogas é a
principal atividade criminal.
Partindo dos dados fornecidos pelo MPPE, o seguinte perfil da criminalidade na
região pode ser estabelecido: grupos de criminosos atuando no tráfico de drogas e no
cultivo da maconha; a Polícia Militar e a Polícia Federal são as polícias mais presentes;
e o tráfico de drogas é a atividade criminal com maior incidência na região.

CONCLUSÃO
A análise do contexto sócio-econômico do Polígono da Maconha, não detectou
uma razão principal para o cultivo e tráfico de drogas. Ou seja, nem o Índice de
Desenvolvimento Humano, nem a renda per capita nem o grau de concentração
de renda explicam, per se, os ilícitos cometidos nesta região. Outras cidades, com
piores níveis de IDH, com menor renda per capita e maior concentração de renda não
enveredaram para o tráfico e consumo de drogas.
Dados do Ministério Público de Pernambuco mostraram que há, majoritariamente,
grupos organizados plantando e comercializando maconha. Mesmo diante deste
quadro de ilicitude, percebeu-se a ineficiência e ineficácia do aparelho coercitivo do
Estado. O próprio Ministério Público apresenta sérias deficiências na sua atuação. O
Judiciário não disse a que veio. Até porque testemunhas de crimes, negam-se a prestar
depoimento público com receio de perderem a vida.
A atuação da Polícia Civil na investigação de crimes ocorridos, é, praticamente,
inexistente. A Polícia prende mais traficantes do que plantadores de maconha. Quando
o lógico seria o inverso. Contudo, para uma área imensa de plantação é necessário
helicóptero para visualizar, com mais rapidez, os pés de maconha. No entanto, as
polícias estaduais não possuem este tipo de aeronave estacionada na região. Às vezes,
a Polícia Federal desloca uma de suas aeronaves para fazer este serviço.
É razoável admitir que a ousadia dos bandidos cresce com o aumento da
probabilidade de êxito do crime. Tanto é que a instalação de uma delegacia da Polícia
Federal em Salgueiro, em 2000, trouxe efeitos benéficos no combate ao cultivo e tráfico
de drogas. Bem como inibiu os assaltos nas estradas que cortam o Polígono que já
estiveram intransitáveis por conta do aumento da bandidagem.
Segundo fontes policiais, o tráfico de drogas no Polígono abastece secundariamente
os municípios da região. A maioria da produção é escoada para Regiões Metropolitanas
do Nordeste. A localização geográfica do Polígono é estratégica nesta distribuição.
Quando a droga chega nestas metrópoles é que se dá a disputa, geralmente bélica,
por território. O objetivo é monopolizar a venda da droga para os cativos mercados
consumidores.
No Polígono da Maconha não há disputa por território por existir grande
disponibilidade de terras para a produção. E o mercado local, como dito acima, é
fonte secundária de renda para o atravessador da droga. Portanto, o grande número de

36 A média de indivíduos de pessoas denunciadas por denúncia é de 1,87. A mediana é 1.


37 Em média, são denunciadas por denúncia, 1,65 quando o crime é cultivo de maconha. A mediana é 2.

190 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
homicídios existente na região, ao contrário do que diz o senso comum, não deve ser
imputado ao cultivo e tráfico de droga
Não se deve olvidar que o problema da droga não é apenas uma questão de
polícia. Para municípios sem perspectivas de geração de emprego, o cultivo e tráfico
de droga resultam em fonte de renda que alimenta a cadeia econômica da região.
Gerando, inclusive, impostos para as prefeituras locais.

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Polígono da Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público | 193


(IN)SEGURANÇA PROFISSIONAL E (IN)SEGURANÇA PÚBLICA

Maria Cecília de Souza Minayo1


Edinilsa Ramos de Souza
Patrícia Constantino
Simone Gonçalves de Assis
Raquel Vasconcellos Carvalhaes de Oliveira

INTRODUÇÃO
Neste trabalho apresentamos a síntese de um estudo comparativo entre a Polícia
Civil e a Polícia Militar do Estado do RJ quanto à concepção e à administração individual
e coletiva dos riscos profissionais, de segurança pessoal e de saúde ocupacional no
exercício da Segurança Pública. Ele é fruto de uma pesquisa empírica de cunho
quantitativo e qualitativo realizada no ano de 2005 (Minayo et al, 2005), financiada
pela Secretaria Nacional de Segurança Pública
Os principais objetivos da investigação foram (a) produzir informações
estratégicas; (b) capazes de subsidiar ações dos profissionais, da Corporação e de
seus gestores, (c) visando à adequação dessas Instituições às necessidades atuais da
segurança pública.
As informações aqui apresentadas fazem parte de um conjunto de resultados
muito mais amplos e completos sobre: (1) organização funcional da Polícia Militar e
da Polícia Civil do Rio de Janeiro desde sua origem, suas transformações, sua inserção
no cenário internacional e sua configuração atual; (2) ampla descrição metodológica
do trabalho, o que permite a sua replicação para qualquer um dos estados brasileiros;
(3) perfil sócio-demográfico dos policiais; (4) suas condições de trabalho, de saúde e
de qualidade vida e (5) conclusões ressaltando pontos estratégicos para a ação política
e programática (Minayo et al, 2005).
O estudo de 2005 teve origem em indagações levantadas em pesquisa anterior
(Minayo; Souza, 2003), por isso, constituiu uma continuidade de reflexão sobre
condições de trabalho, saúde e vida das Corporações voltadas à Segurança Pública.
A hipótese que orientou a análise comparativa é de que encontraríamos uma
situação mais exacerbada de riscos pessoais e coletivos no exercício profissional entre
os policiais operacionais, sobretudo entre os Policiais Militares, tendo em vista a sua
exposição ostensiva no processo de trabalho de segurança pública.
Os conceitos centrais do trabalho são risco, segurança, trabalho, saúde e
qualidade de vida. Os dois primeiros dizem respeito à condição intrínseca à profissão
de policial. A instituição policial se destaca na sociedade brasileira, pelo seu papel
estabelecido no art. 144 do Capítulo III da Constituição Federal que trata da Segurança
Pública. A polícia civil tem uma função judiciária (§ 4o. art.144) e à polícia militar
cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (§ 5o, art.144), ambas

1 Agradecemos a colaboração do técnico de informática Marcelo Cunha Pereira, e o apoio administrativo


de Marcelo da Silva Motta e de Jerônimo Rufino dos Santos Junior.

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 195


em nível estadual. Historicamente, as corporações policiais fazem parte do Estado
Moderno que toma para si o monopólio da violência como referem Foucault (1989),
Santos (1997), (Holloway, 1997), dentre outros. Podemos dizer que em todas as duas
corporações subsiste um “mito de origem” comum que se caracteriza pela missão de
preservação da ordem pública, como um dos pilares da defesa da sociedade.
Autores como Santos (1997), Bretas (1997) e Kahn (1997) analisam as
similitudes dos vários tipos de polícia no mundo e especificam seu papel nos países
periféricos. Mostram que nos últimos, os policiais tendem a exceder a seu poder, a
agir com truculência, a privilegiar as classes dominantes, acrescentando, à sua missão
constitucional, uma terceira dimensão de ordem axial e atitudinal que as tornam
autoras de várias formas de violência ilegítima, sobretudo contra os pobres e o povo
em geral. Lima & Lima em A História da Polícia do Rio de Janeiro (1942) e Thomas
Holloway (1997) em Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do
século XIX, aprofundam o tipo de caracterização citada, analisando a conformação
estrutural da Polícia no Estado.
Pretendemos mostrar que, a combinação de vários ingredientes das respectivas
culturas corporativas com as especificidades da sociedade “pós-moderna”2, inclusive
dentro de uma visão de “sociedade de risco” (Giddens, 2002) tornou a visão de segurança
pessoal no mundo atual, muito mais problemática para todos, preferencialmente para
os policiais. Resumimos a seguir, os conceitos referenciais deste estudo e a abordagem
metodológica adotada.

(1) Trabalho, condições de trabalho e processo de trabalho – Trabalho é uma


categoria estruturante, tanto das condições de saúde como das condições de existência
e de risco. Refere-se à mediação da atividade humana na construção das tecnologias,
da vida social e da identidade pessoal. Enquanto constrói e reconstrói o mundo, o ser
humano constrói e reconstrói a si mesmo.
Condições de trabalho é um conceito que se refere, ao mesmo tempo, à situação
que precede à atividade dos sujeitos e a limita e como uma resultante dos processos
sobre os quais os trabalhadores interferem, em sua dinâmica de intersubjetivação. Os
elementos que compõem esse último conceito, central para a análise referenciada no
trabalho, são: (a) a atividade prescrita e adequada; (b) o objeto e a matéria sobre os
quais o trabalhador opera; (c) os meios e os instrumentos que lhe servem de mediação;
(d) as relações que ocorrem no coletivo de trabalhadores e com as hierarquias e (e)
o mundo simbólico que aí é gerado, envolvendo as relações e a atividade técnica e se
introduzindo na produção. (Brighton Labour Group, 1991; Minayo-Gomez & Thedim-
Costa, 1997; Minayo & Souza, 2003; Minayo & Lacaz, 2005).
Do ponto de vista dos riscos e da segurança, entendemos que, se processo de
trabalho constitui um locus privilegiado da realização humana, ele também produz (em
escala específica referida às condições em que é exercido) desgaste físico e mental.

(2) Condições de Saúde – O segundo macro-conceito estruturante do estudo é condições


de saúde. No caso concreto, entende-se que existe estreita relação entre as atividades

2 Não entrarei aqui, no mérito da terminologia “pós-moderna” que aqui uso no sentido de mencionar
as mudanças que vêem ocorrendo com as formas de violência social no mundo atual (Wieviorka,
1997; 2006).

196 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
exercidas pelos policiais e o nível de bem estar e de problemas sanitários que
apresentam no campo físico e mental. Na vinculação entre processo de trabalho e
saúde, várias e imbricadas dimensões devem ser contempladas a partir de conceitos-
mediadores (Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997). Alguns dos mais importantes são:
(a) aspectos sócio-históricos que se atualizam na cultura organizacional; exigências
requeridas (requerimentos) pela natureza da atividade; (b) riscos presentes nas
atividades em questão; (c) maior ou menor vulnerabilidade de determinados grupos
que exercem tarefas específicas; (d) penosidade do trabalho; (e) desgaste psicossocial;
(e) perda de capacidade corporal e psíquica (Déjours; Abdoucheli, 1994).

(3) Risco e Percepção de Risco – Etimologicamente, a palavra risco deriva do vocábulo


“riscare”, e tem seu sentido associado à idéia de ousar. Do ponto de vista sociológico,
risco significa uma opção e não um destino (Bernstein, 1997). No caso, as duas
Corporações Policiais podem ser configuradas como organizações em que o risco
faz parte da escolha profissional e desempenha um papel inerente às condições de
trabalho, ambientais e relacionais. Os profissionais que as compõem têm consciência
disso. Seus corpos estão permanentemente expostos e seus espíritos não descansam.
Eles vivem o que Giddens (2002, p.37) denomina “risco de alta conseqüência”.
No campo da saúde o conceito de risco é central. A epidemiologia o define
como a probabilidade, frente a condições específicas de uma pessoa sofrer agravos ou
adquirir determinada enfermidade. Do ponto de vista dos Policiais Militares e Civis,
seu “risco epidemiológico” se caracteriza principalmente nos confrontos armados, nos
quais se expõem e podem perder a vida. A probabilidade que têm de sofrerem graves
lesões, traumas e mortes encontra respaldo nas altas taxas de óbito por violência
de que são vítimas, dentro e fora de seu ambiente de trabalho, taxas essas cerca de
10 vezes mais elevadas no Rio de Janeiro, do que as da população em geral, como
mostram o estudo de Muniz e colaboradores (1998) e Minayo & Souza (2003; 2005).
O sentido de risco, adequado para descrever a situação intrínseca à profissão
de policial, combina a visão epidemiológica e a visão sociológica e antropológica.
A primeira lhe dá parâmetros quanto à magnitude dos perigos, os tempos e os locais
de maior ocorrência das fatalidades. A segunda, responde pela capacidade e até pela
escolha profissional do afrontamento e da ousadia.
Nesta pesquisa analisamos o risco real e a percepção de risco, ou seja, perguntamos
como se configura este fenômeno, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo vivido no
exercício da profissão, dentro e fora do ambiente de trabalho. A ampliação do foco para
o âmbito exterior, no caso da noção de risco, se deve ao fato de que, por ser elemento
intrínseco da profissão, tanto as situações envolvidas, como as representações que
cria, impregnam, não apenas o ambiente de trabalho, mas a pessoa que assume a
identidade e incorpora a instituição.
Por fim, problematizamos o conceito de segurança em dois sentidos: pública e
pessoal. Segurança Pública, segundo Silva (1998) constitui a garantia que o Estado
oferece aos cidadãos, por meio de organizações próprias, contra todo o perigo que
possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de
propriedade dos cidadãos: é a essência da missão dos policiais e deriva do campo
jurídico. Segurança pessoal deriva do mundo do trabalho e tem um sentido normativo
e filosófico. No primeiro caso, representa a sistematização de normas destinadas a

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 197


prevenir acidentes, quer eliminando condições inseguras do trabalho, quer prevenindo
desastres ocupacionais. Cuidando da segurança pública, os policiais são, também,
servidores públicos protegidos pela Constituição que lhes assegura o direito à
integridade física e mental, no exercício do trabalho.
Do ponto de vista filosófico, o conceito de segurança se vincula às expectativas
do cidadão moderno e faz um contraponto dialético com a noção de risco: evidencia
o avanço da consciência de cidadania e de bem-estar atingido pela humanidade
em seu estágio atual. Exigência cada vez maior de segurança pessoal traz também,
simultaneamente, um sentimento também cada vez maior de insegurança.

MATERIAL E MÉTODO
Aplicamos a estratégia de triangulação de métodos (Minayo et al, 2005), lançando
mão de técnicas quantitativas e qualitativas. Entendemos triangulação de métodos
como a dinâmica de pesquisa que integra a análise da magnitude e do significado dos
fenômenos e processos e a inclusão da participação dos atores que vivenciam esses
processos. Tendo em vista a natureza e a complexidade do objeto de investigação –
as condições de vida, de trabalho e saúde de policiais civis do município do Rio de
Janeiro – consideramos que esta seria a abordagem mais apropriada, uma vez que
ela conjuga a utilização de recursos diferenciados de coleta de dados e os métodos
conservam sua especificidade no diálogo inter ou transdisciplinar.

Abordagem Quantitativa
→ O plano de amostragem
Adotamos uma amostra aleatória simples de conglomerados. Entendemos como
conglomerado a unidade física (uma delegacia, academia de polícia, batalhão etc),
com o seu respectivo grupo de profissionais. Na amostra observaram-se diferenciações
características do processo de trabalho das duas Corporações. Em ambas foram
estudadas unidades administrativas e unidades operacionais (delegacias, batalhões).
As amostras foram calculadas a partir de listagens fornecidas pela Secretaria de
Segurança Pública e da Polícia Militar, contendo todas as unidades policiais da capital
do estado e o efetivo de cada uma delas especificado segundo os cargos.
Um dos critérios para o sorteio das unidades foi a natureza do processo de
trabalho. Assim, por exemplo, ao selecionar uma unidade operacional, incluíram-se os
policiais que participaram da pesquisa. A seleção dessas pessoas teve como critério as
diferenciações dos cargos: na Polícia Civil (delegado, inspetor, etc) e na Militar (oficial,
sub-oficial, cabo e soldado).
Conforme mostra a tabela 1 na Polícia Civil foram selecionadas 38 unidades e
2.746 policiais, tendo sido pesquisadas 39 unidades e 1.458 policiais.

198 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 1
Distribuição dos estratos das unidades da Polícia Civil segundo amostra calculada,
contingente real e amostra pesquisada

Amostra calculada Contingente real Amostra pesquisada


Estratos das unidades
Pessoas Unidades nas unidades Pessoas Unidades
1–Administrativas 787 13 577 438 15(*)
2-Delegacias 811 22 732 533 21(*)
3-Técnicas(**) 1148 3 780 487 3
Total 2.746 38 2.089 1.458 39
(*) Três Delegacias de Acervo Cartorário/DEACS foram analisadas como unidades administrativas devido a
especificidade e semelhança de suas atividades. Desse modo, para efeito de análise, ficaram agrupadas 18 unidades
administrativas, 3 técnicas e 18 operacionais.
(**) Na análise atual foram excluídas todas as unidades técnicas.

Na tabela 2 encontra-se a amostra selecionada e pesquisada na Polícia Militar.


Nela, sorteamos 15 unidades e 1.700 policiais, mas foram concretamente pesquisadas 18
unidades contemplando 1.120 policiais. Vale ressaltar que, devido ao grande número de
questionários devolvidos em branco, três novas unidades tiveram de ser incorporadas à
amostra e mesmo assim não conseguimos cobrir o número previsto de indivíduos.

Tabela 2
Distribuição dos estratos das unidades da Polícia Militar
segundo amostra calculada, contingente real e amostra pesquisada

População Amostra calculada Amostra pesquisada


Estratos
Unidades Pessoas Unidades Pessoas Unidades Pessoas
Administrativo
1- Oficial 15 870 2 70 2 55
2- Não oficial 15 1788 2 144 3 59
3- Sub-oficial 15 1617 4 130 4 73
Operacional
32 598 3 48
4- Oficial 4 23
5- Não oficial 32 10.743 3 867 10 634
6- Sub-oficial 32 5.459 4 440 7 264
Total 141 21.075 18 1.700 17(*) 1.108(**)
(*) O total de 17 unidades pesquisadas não se refere à soma dos itens da coluna porque em uma mesma unidade
puderam ser pesquisados policiais de diferentes funções e estratos.
(**) Foram pesquisados 1120 policiais, porém 12 não informaram o cargo.

Os motivos para divergências entre as amostras calculadas e as pesquisadas


foram vários. Um deles é a própria natureza do trabalho e as constantes transferências
dos policiais de uma unidade para outra. Desta forma, os dados sobre o contingente
de pessoal, fornecidos pelos gestores das corporações continham muitas imprecisões
quando comparados com os efetivos reais e por isso, não coincidiam com o existente nos
locais de trabalho. Os horários de trabalho das equipes eram completamente diferentes
de uma unidade para outra, dificultando uma rotina de pesquisa. O fato dos policiais
terem muitas atividades externas e imprevistas foi também fator relevante, dificultando

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 199


o acesso da equipe de pesquisa a esses profissionais. Houve também motivações de
ordem subjetiva que tornaram difícil a coleta de dados. Por exemplo, houve policiais
que decidiram não devolver o questionário ou devolvê-lo em branco. Acreditamos que
também o estresse permanente no desempenho das atividades, sobretudo por parte
dos “operacionais”, e a descrença em qualquer mudança institucional contribuíram
para a não-adesão de muitos deles.

→ Elaboração e aplicação do questionário


Aplicamos aos servidores da Polícia Militar um questionário adaptado que havia
sido pré-testado e usado na pesquisa com a Polícia Civil, contendo questões sobre:
(1) características socioeconômicas; (2) qualidade de vida; (3) condições de trabalho
e (4) condições de saúde. Inserimos uma pergunta aberta, para que o respondente
pudesse se expressar sobre a pesquisa, sobre sua vida e sobre seu processo de trabalho.
O instrumento também foi adequado à especificidade das duas polícias, sendo que seu
formato foi submetido a técnicos e especialistas nos diversos temas tratados e a oficiais
das duas corporações.
O questionário foi autopreenchido anonimamente. Sua aplicação se deu de
diferentes formas. Na Polícia Civil ele foi entregue e recebido diretamente das mãos
do policial, em um envelope lacrado. Já na Polícia Militar, a aplicação foi realizada
em comum acordo com o Comandante de cada unidade. Em sua grande maioria ele
era entregue ao comando da unidade para que chegasse às mãos dos policiais. Outra
estratégia também utilizada foi a aplicação coletiva do questionário, pela equipe de
pesquisa, aos policiais que se encontravam em determinada unidade naquele período.
A primeira forma foi-nos indicada pelos comandantes das unidades e, concretamente,
mostrou-se como a mais eficaz. Em alguns casos, tendo em vista o caráter hierárquico
da Polícia Militar e tendo havido uma autorização oficial do Comandante Geral,
publicada na ordem do dia da Corporação, os comandantes das unidades impuseram o
preenchimento do questionário aos policiais. Se por um lado, essa foi uma fórmula que
garantiu a adesão, por outro, ela pode ter prejudicado a veracidade das informações
prestadas, o que não temos condições de avaliar.
Os questionários foram entregues dentro de envelopes lacrados, acompanhados
do termo de consentimento livre e esclarecido, conforme prevê a Resolução 196/96 do
Conselho Nacional de Saúde. Em vários casos esses instrumentos nos foram devolvidos
sem a assinatura do termo de consentimento. Foi-nos relatado por alguns policiais,
que o não-assinar era um procedimento de precaução para não serem identificados
por suas chefias.
No questionário, incorporamos algumas escalas previamente estruturadas e
validadas: Escala de Apoio Social e a SRQ20 (Self Report Questionnaire).
A Escala de Apoio Social desenvolvida por Sherbourne & Stewart apud Chor et
al (2001) possui 19 itens relativos ao apoio social e 5 de rede social. Neste trabalho,
apenas os itens referentes ao apoio social foram utilizados sendo analisados em cinco
dimensões: emocional (apoio recebido através da confiança, da disponibilidade em
ouvir, compartilhamento de preocupações e medos e compreensão dos seus problemas
por outrem); de informação (através do recebimento de sugestões, bons conselhos,
informação e sugestões desejadas); material (possibilidade de receber ajuda se ficar
de cama, para levar a pessoa ao médico, para preparar refeições e para ajudar nas

200 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
tarefas diárias caso fique doente); afetiva (demonstração de afeto e amor, capacidade
de abraçar e de amar); e de interação positiva (diversão em conjunto com outros,
capacidade de relaxar, de fazer coisas agradáveis e de distrair a cabeça). Cinco escores
são obtidos, um para cada dimensão.
As perguntas são introduzidas pela frase “se você precisar...” seguida pelo tipo
de apoio. As opções de resposta são apresentadas da mesma forma para todos os itens:
nunca, raramente, às vezes, quase sempre, sempre. A validade de face e a de conteúdo
dos itens foram consideradas adequadas pelos investigadores do Estudo do Pró-Saúde
(Chor et al, 2001) e de Sherbourne & Stewart apud Chor et al (2001). Quanto à validade
de construto, esses pesquisadores identificaram alta correlação entre as dimensões de
apoio social e outros conceitos que, teoricamente estão relacionados, como solidão
(correlação negativa), dinâmica familiar, conjugal e saúde mental (correlação positiva).
Os autores originais também observaram bons resultados em relação à consistência
interna (alfa de Cronbach superior a 0,91) e à estabilidade das medidas após um
ano (acima de 0,72), para as dimensões de apoio social. A média dos escores foi de
83,3 para a dimensão de interação social positiva/apoio afetivo; 78,6 para a dimensão
emocional/informação e 80,8 para a dimensão apoio material. A média global foi de
80,8. O coeficiente alpha de Cronbach foi igual ou maior do que 0,83 para todas as
dimensões.
A avaliação da saúde mental dos policiais foi executada por meio da aplicação de
uma escala chamada Self-Reported Questionnaire – SQR20 desenvolvida por Harding et
al. (1980). A escala utilizada no trabalho possui 20 itens medindo sofrimento psíquico
(distúrbios não psicóticos). São elas: sentir dor de cabeça freqüente; ter falta de apetite;
dormir mal; assustar-se com facilidade; apresentar tremor na mão; estar nervoso, tenso
ou agitado; apresentar má digestão; sentir dificuldade de pensar com clareza; sentir-
se triste; chorar facilmente; ter dificuldade em realizar tarefas diárias com satisfação;
sentir dificuldade em tomar decisões (indeciso); apresentar dificuldade no serviço;
sentir-se incapaz de realizar algo útil; perder o interesse pelas coisas; sentir-se inútil;
pensar em suicídio; sentir desconforto estomacal; mostrar cansaço constante; cansar-
se com facilidade. O alpha de Cronbach encontrado no presente estudo é de 0,8346
confirmando que os 20 itens indicam uma única característica.
Além das duas escalas citadas foram pesquisados indicadores de Qualidade
de Vida (Minayo e Souza, 2003), subdividindo-se em objetivos e subjetivos. Os
indicadores subjetivos corresponderam ao que o policial percebe, sente e valoriza
em relação a vários aspectos de sua vida. Para este trabalho foi utilizado um sub-
item dos indicadores subjetivos (o grau de satisfação composto por 16 variáveis sobre
relacionamento e grau de satisfação existencial). As cinco opções de resposta variaram
em três gradientes: satisfeito, nem satisfeito/nem insatisfeito e insatisfeito.

→ Trabalho de campo quantitativo


Investimos num árduo trabalho de exposição do sentido, dos objetivos e da
dinâmica do estudo para ambas as Corporações, buscando convencer a cada delegado
e a cada comandante das unidades sorteadas sobre a importância do estudo para
suas instituições e para os próprios policiais. Na Polícia Civil o trabalho de campo foi
muito árduo, exigindo esforço elevado da equipe de pesquisa para conseguir a adesão
dos gestores e dos policiais. Na Polícia Militar, talvez por causa de sua organização

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 201


hierárquica, uma vez convencido o Comandante Geral, a adesão dos outros escalões foi
mais facilitada. No entanto, mesmo nesse último caso, podemos falar de um trabalho
difícil, com idas repetidas ao campo para realizar as mesmas tarefas, evidenciando
uma cultura fechada e avessa ao olhar externo.
A cobertura de aplicação do questionário na Polícia Civil foi de cerca de 85%
do pessoal, mas o retorno de devolução e o preenchimento atingiram apenas 50% a
60% dos entrevistados. Isso se deve ao fato de que muitos policiais tenham devolvido
o questionário em branco e lacrado. Houve uma unidade em que a chefia não aceitou
participar da pesquisa.
Na Polícia Militar foram distribuídos 1.700 questionários, dos quais 199 (11,7%)
foram devolvidos sem preenchimento e 381 (22,4%) não foram sequer devolvidos,
correspondendo a uma taxa de não resposta da ordem de 34,1%. Uma unidade teve
que ser substituída porque houve grande recusa dos policiais em participar. As novas
unidades amostrais incluídas substituíram as recusas em algumas delas e supriram as
lacunas nas demais.
Nas tabelas 3 e 4 encontram-se distribuídos, respectivamente, os números de
policiais civis e militares que compõem a amostra, segundo os cargos.

→ Expansão da amostra
Expandir as informações significa utilizar procedimentos estatísticos que
permitem cobrir a totalidade da população da pesquisa, fazendo que dados obtidos
a partir de um certo número de policiais passem a representar o coletivo deles no
município do Rio de Janeiro e não apenas aqueles que responderam ao questionário
(Carlini-Cotrim et al, 1993).
A partir das informações geradas no levantamento de campo, os pesos para cada
indivíduo participante da pesquisa foram calculados segundo seu estrato de alocação.
A variável peso foi criada no banco. E a partir do comando weight do pacote estatístico
SPSS todas as estimativas foram calculadas e ponderadas por este fator de expansão.

Tabela 3
Distribuição dos policiais civis que compõem a amostra, segundo os cargos

CARGOS POLICIAIS N %
1 – AUTORIDADES DE POLÍCIA 50 3,4
Delegado 50 3,4
2 – AGENTES DE POLÍCIA ESTADUAL DE APOIO TÉCNICO-CIENTÍFICO 378 26,1
Perito Legista 34 2,3
Perito Criminal 84 5,8
Perito Criminal Auxiliar 1 0,1
Papiloscopista Policial 190 13,1
Técnico Policial de Necropsia 32 2,2
Auxiliar Policial de Necropsia 33 2,3
Médico Policial 1 0,1
Enfermeiro 1 0,1
Auxiliar de enfermeiro policial 2 0,1

202 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
3 – AGENTE DE POLÍCIA ESTADUAL DE INVESTIGAÇÃO E PREVENÇÃO 1.023 70,5
Inspetor de Polícia 681 46,9
Detetive inspetor 134 9,2
Detetive 531 36,6
Técnico Policial de Laboratório 12 0,8
Técnico Policial de Telecomunicações 4 0,3
Oficial de Cartório Policial 222 15,3
Escrivão 73 5,0
Escrevente 149 10,3
Investigador Policial 120 8,3
Operador Policial de Telecomunicações 22 1,5
Motorista Policial 55 3,8
Fotógrafo Policial 12 0,8
Carcereiro Policial 31 2,1
Total 1.451 100,0

Tabela 4
Distribuição dos policiais militares que compõem a amostra, segundo os cargos

CARGOS POLICIAIS N %
Coronel 5 0,4
Tenente-Coronel 9 0,8
Major 19 1,7
Capitão 13 1,2
Primeiro-Tenente 11 1,0
Segundo-Tenente 21 1,9
Sub-Tenente 20 1,8
Primeiro-Sargento 36 3,3
Segundo-Sargento 161 14,5
Terceiro-Sargento 120 10,8
Cabo 180 16,3
Soldado 513 46,3
Total 1108 100,0

As estimativas correspondentes ao universo de policiais militares foram realizadas


de forma indireta, mediante o uso de fatores de expansão calculados como quocientes
entre os universos, Nh, de unidades e os correspondentes tamanhos de amostra pesqui-
sada, nh. (Cochran, 1965). Aqui h representa a unidade de polícia militar pesquisada.
Para os dados analisados, após expansão da amostra, obtivemos para a Polícia
Civil um percentual de 4,8% de pessoas em cargos de Delegado; na Polícia Militar
foram 25,8% pessoas em cargos de oficiais. O grupo administrativo constitui 24% e o
operacional 76% dos pesquisados. Entre os civis esses percentuais foram de 42,9% e
57,1%, respectivamente.

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 203


→ Processamento e análise dos dados
O processamento dos dados dos policiais civis foi feito no programa Epi-info versão
6.0 e o dos policiais militares, no programa EPIDATA versão 3.1. A fim de minimizar
os erros na fase de digitação e agilizar o processamento dos dados, foram cumpridas
quatro etapas: codificação, digitação, correção e análise. Foi criado um programa para
estabelecer os valores válidos para cada questão (máscara de entrada). Com esse
programa, nenhum valor fora do previsto seria aceito no momento da digitação.
Na etapa seguinte estabelecemos regras para agilizar a digitação. Tal processo
é conhecido como codificação. O detalhamento destas regras está contido num
manual para o codificador, elaborado pela equipe de pesquisa. Esse estágio fez-
se imprescindível, visto que evitou, além de erros de digitação, a perda de tempo
provocada comumente por incompreensão das respostas.
No que diz respeito à crítica dos dados, fase em que objetivamos a eliminação dos
possíveis erros capazes de provocar enganos de apresentação e análise dos resultados,
optamos por dois processos distintos. O primeiro procedimento de crítica destinou-
se a procurar erros de codificação ou digitação dos questionários. Nesta abordagem,
optamos por realizar uma amostragem aleatória simples de 10% dos questionários.
Neste procedimento, qualquer subconjunto de n (1 ≤ n ≤ N) (elementos diferentes
de uma população de N) possui a mesma probabilidade de ser sorteado (SILVA, 1998).
Para a Polícia Civil, 8,9% dos questionários apresentaram ao menos uma falha de
digitação, mas apenas 0,93% das questões apresentaram erros. Esses resultados
evidenciaram a boa qualidade do processo.
Da amostra dos policiais militares tivemos 25,7% de questionários apresentando
ao menos uma falha de digitação. De todas as questões 9% tiveram erros. Em seguida,
rastreamos incoerências, isto é, investigamos se havia problemas com respostas a
determinadas questões que, teoricamente, deveriam se relacionar de maneira lógica.
Constatamos que 375 (33,5%) questionários apresentaram alguma inconsistência, das
quais 3,2% eram erros de digitação logo retificados e anuladas as questões incoerentes.
Na fase de análise, os bancos foram convertidos para o software SPSS versão
10.0, onde realizamos a descrição de freqüências simples e o cruzamento de variáveis.
Todas as questões foram cruzadas segundo a variável Risco Sofrido. No texto, essas
diferenças apenas são mencionadas quando estatisticamente significativas (p<0,05).
Para verificarmos diferenças estatisticamente significativas foi utilizado o teste de Qui-
quadrado de Pearson. De acordo com Siegel (1956), o teste Qui-quadrado é usado para
avaliar associação entre variáveis em tabelas de contingência, o teste permite também
avaliar o grau e a significância da associação encontrada.

Abordagem qualitativa
Construímos os dados qualitativos exercitando a triangulação (intrínseca), a partir
de múltiplos informantes, observadores e técnicas de aproximação e compreensão da
realidade. Elaboramos todos os instrumentos coletivamente e buscamos que fossem
criticados por especialistas ad hoc nas áreas de saúde do trabalhador e de segurança
pública.
Tomamos como ponto de partida para a elaboração dos roteiros, as discussões da
equipe em torno da leitura de várias pesquisas sobre os indicadores de qualidade de

204 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
vida, sobre o perfil de saúde de distintas categorias profissionais e sobre a descrição
das condições do trabalho policial. Realizamos alguns seminários internos voltados
para a discussão dos marcos teóricos da investigação. E retomamos as entrevistas
realizadas na fase exploratória do trabalho, com informantes-chave tanto da polícia
civil como da militar, para examinar a adequação de nossos instrumentos à realidade
da Polícia Civil.
Também pudemos nos beneficiar dos debates realizados pela equipe sobre os
resultados da pré-análise das respostas aferidas pelo instrumento quantitativo. Os
resultados significativos estatisticamente e a análise inicial das freqüências deram
pistas para a abordagem de certas questões que deveriam ser aprofundadas nos grupos
focais e nas entrevistas. Permitiram-nos também, perceber a necessidade de esclarecer
determinados temas que queríamos investigar.
No exercício de triangulação metodológica com os pesquisadores da área
quantitativa, pudemos definir algumas categorias para guiar a “conversa com finalidade”
sobre cada um dos três grandes eixos do trabalho (qualidade de vida, condições de
saúde e condições de trabalho). Dada a sinergia entre esses três componentes, muitas
vezes uma questão acabava por complementar o enfoque dos dois outros campos.
Assim, por exemplo, ao perguntarmos sobre o que afetaria a saúde do policial, as suas
condições de trabalho acabariam, inevitavelmente, por surgir no relato.
Incluímos nos roteiros as seguintes temáticas: qualidade de vida nos âmbitos
de trabalho, da família e da comunidade; condições de trabalho do setor; sugestões
para melhoria dessas condições; riscos e estratégias para lidar com estes; relações de
trabalho; reconhecimento do trabalho policial atribuído pela sociedade e pela própria
instituição policial. A fim de facilitar a análise comparada, o roteiro dos gestores teve
a mesma base de conteúdo que o dos policiais.
Trabalhamos basicamente com três técnicas: grupo focal, entrevista individual e
observações de campo.
Organizamos as entrevistas de forma semi-estruturadas, ou seja, pautamo-nos por
um roteiro, tendo-o como guia, porém, levando em conta a interação entre entrevistado
e pesquisador, permitindo assim o aprofundamento de assuntos e pontos de vista.
A observação de campo, no caso deste estudo, constituiu-se apenas em aporte
complementar. Realizamos observações durante as diversas visitas para a aplicação
dos questionários da amostra quantitativa. O período de aplicação dos questionários,
levando em conta a apresentação dos instrumentos, distribuição, monitoramento e
recolhimento dos mesmos, levava uma média de sete a doze dias. Assim, a equipe
destinada a cobrir cada unidade ficou responsável pela elaboração de um diário de
campo. Seguindo um roteiro construído pelo grupo de pesquisa, buscamos mapear
observações sobre as condições e relações de trabalho e as impressões e expectativas
geradas pela pesquisa.

→ Pessoas e categorias envolvidas

Na Polícia Civil, as entrevistas envolveram macro-gestores e gestores dos três


setores (operacional, técnico e administrativo). Assim, foram ouvidos responsáveis
pela Chefia de Gabinete, da Coordenadoria de Polícia Técnica e Científica, da
Coordenadoria de Polícia Especializada, da Coordenadoria de Polícia da Área da

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 205


Capital, da Superintendência Administrativa; delegados responsáveis por Delegacias
Legais (2), Tradicionais (1), Especializadas (1) e diretores de cada uma das unidades
da policia técnica (IML, ICCE e IFP). Pela natureza do trabalho e dos horários dos
profissionais, no IML foram realizadas entrevistas em substituição à técnica de grupo
focal. Foram entrevistados profissionais dos setores de toxicologia (1), patologia (1),
clínica médica (1), necropsia (2). Na Polícia Militar foram feitas 8 entrevistas, sendo
sete com gestores (dois de unidade operacional, dois de operacional especial, um
de unidade administrativa e dois de unidade de saúde), uma com uma psicóloga de
unidade operacional especial.
Os grupos focais realizados na Polícia Civil envolveram 51 profissionais (40
homens e 11 mulheres). Foram feitos, ao todo, sete encontros: três com membros de
delegacias; dois com unidades ligadas ao trabalho administrativo e dois grupos com
unidades técnica, envolvendo no Instituto Félix Pacheco, papiloscopistas de diversos
setores e no Instituto de Criminalística Carlos Éboli, peritos de diversos setores.
Na Polícia Militar foram entrevistados 92 policiais (84 homens e 8 mulheres)
em 11 grupos focais constituídos da seguinte forma: três com graduados, três com
sargentos e cinco com cabos e soldados, distribuídos de acordo com a natureza da
unidade (operacional, operacional especial e administrativa).
Os critérios para a escolha da amostra qualitativa na Polícia Militar foram: incluir
unidades da zona sul e da zona norte da cidade; de áreas pobres, de favela e de classe
média; unidades com bom relacionamento com a comunidade e com dificuldades
neste relacionamento

→ Processamento de dados e técnicas de análise

A pesquisa cumpriu as seguintes etapas:


• Transcrição e digitação das gravações das entrevistas individuais e grupais.
• Atribuição de códigos aos entrevistados e às pessoas por eles mencionadas,
para assegurar o sigilo das informações.
• Leitura compreensiva dos textos transcritos, buscando identificar
especificidades e uma visão global dos depoimentos.
• Elaboração de estruturas de análise, agrupando trechos de depoimentos mais
ilustrativos em quatro eixos temáticos: Imagem/Reconhecimento do Policial;
Processo de Trabalho, Risco; Saúde.
• Identificação das idéias centrais presentes em cada uma dos eixos.
• Identificação dos sentidos atribuídos às idéias.
• Elaboração de sínteses interpretativas de cada eixo temático.

→ Comparação

Durante todo o processo de preparação da pesquisa, de aplicação dos questionários


e do trabalho de campo qualitativo houve intensa comunicação entre os pesquisadores.
No momento da análise, essa relação se intensificou no momento de articular a
comparação e a interpretação dos dados. Foi feita um exercício bastante complexo pois
tivemos que comparar os vários estratos dentro de uma mesma Corporação e as duas
Corporações entre si. Desse processo foram obtidas novas sínteses interpretativas em

206 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
torno de cada eixo temático e apreendendo as especificidades e as intersecções entre
as duas corporações policiais.

RISCO PERCEBIDO E RISCO VIVIDO NA (IN)SEGURANÇA PÚBLICA


“O nosso trabalho é o risco”
(soldado operacional (PM-gf3.3)

Canção do BOPE

Lealdade, destemor, integridade serão os primeiros lemas,


Desta equipe sempre pronta a combater toda a criminalidade
A qualquer hora a qualquer preço
Idealismo como marca de vitória
Com extrema energia combatemos todos os nossos inimigos
Criminosos declarados em igualdade
derrotamos os omissos,
Guerra sem tréguas!
HERÓIS ANÔNIMOS
Operações especiais
E o batalhão coeso e unido
Não recua ante a adversidade
Com ousadia enfrentamos a realidade
Vitória sobre a morte é nossa glória prometida
E o batalhão coeso e unido
Não recua ante a adversidade
Com ousadia enfrentamos a realidade
Vitória sobre a morte, a nossa glória prometida!

→ Contextualização

Por ser um grupo cuja missão precípua é o enfrentamento da criminalidade, o


BOPE (Batalhão Operação Especiais) pode ser visto como o exemplo mais cabal da
visão de riscos e dos riscos reais percebidos e vividos pelos policiais em atividades
operacionais no Rio de Janeiro. Diz a letra de seu hino, “equipe pronta a combater a
criminalidade a qualquer preço e a qualquer hora”; “vitória sobre a morte”; “heróis
anônimos que enfrentam a realidade através da ousadia”. No entanto, essa ousadia
que apela ao heroísmo tem seu contraponto nas fraquezas das subjetividades que se
expressam nos problemas de saúde e ou nas cifras de morte que assustam a qualquer
mortal e que contextualizamos a seguir.
Os dados de mortalidade e de morbidade aqui apresentados podem ser
considerados inéditos na lista de temas tratados até então pelos pesquisadores de saúde
do trabalhador. Em primeiro lugar porque, tradicionalmente, os estudos se referem a
condições de saúde e trabalho dos operários industriais, o que tem a ver com uma
tendência de toda a produção acadêmica do século 20, fortemente influenciada pelas

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 207


análises marxistas do mundo social. Como evidencia a ampla revisão bibliográfica sobre
os serviços no Brasil coordenada por Melo et al. (1998), aqui e internacionalmente,
a literatura sobre esse setor é muito escassa: até hoje, os serviços continuam a ser a
parte menos entendida da economia. Esse hiato conceitual, no entanto, destoa do que
ocorre na realidade histórica: nas últimas décadas, os serviços têm representado quase
dois terços do emprego urbano metropolitano no Brasil e responde por mais da metade
do PIB, numa trajetória semelhante à dos países desenvolvidos (Melo et al., 1998).
No caso dos policiais, a falta de atenção específica a sua saúde enquanto trabalhador
pode ser explicada, de um lado, pelo hiato do conhecimento do setor serviço em geral,
como assinalamos acima, mas também tem raízes históricas mais profundas. Bretas
(1997) observa, por exemplo, que o tema polícia tem sido sistematicamente inserido
apenas como “apêndice da história das classes populares e do movimento operário,
sobre o qual a polícia estendia sua implacável repressão” (1997, 32) como numa espécie
de negação de positividade sociológica da categoria, lembrada na formalidade da
aplicação da lei. No Brasil, além de outros motivos, a aversão ao tema remonta a um
ranço de origem que opôs a população e intelectuais aos oficiais da segurança pública,
o que se acirrou nos períodos de ditadura militar no Brasil. Desta forma, a consideração
da segurança pública como assunto relevante para a construção da democracia e objeto
da ciência social vem se consolidando apenas a partir dos anos 1990.
A urgência de tratar do tema do risco e da vitimização dos policiais também
se tornou relevante por causa do aumento acelerado da criminalidade urbana, no
país. Assim, lentamente vamos superando, de um lado, o vazio da ciência social em
relação ao setor serviços e, de outro, os problemas ideológicos que excluíram da pauta
dos temas sociológicos e de saúde pública, a cidadania dos agentes de segurança e
suas condições de vida, saúde e trabalho. A literatura atual, portanto, já apresenta
conhecimentos estratégicos, frutos de investigação, dentre os quais citamos os de
Muniz & Soares (1998); Soares (1996; 2000); Santos (1997), Bretas (1997a; 1997b),
Holloway (1997), Cerqueira (1994;1996), Donnici (1990), Adorno e Peralva (1997),
Kahn (1997); Lima (1995); Amador (1999).
Do ponto de vista social, até hoje, o serviço de segurança pública no Rio de
Janeiro é malvisto e malquisto pela população em geral e por motivos diversos: os
cidadãos das classes médias e abastadas reclamam da insegurança e da ineficiência
policial, uma vez que esperariam mais rigor e vigilância dos pobres “criminógenos”,
em função da ordem burguesa; a população pobre e moradora dos bairros periféricos
sente-se discriminada e maltratada pelos agentes da lei; e os delinqüentes os tratam
como inimigo número um, buscando evadir-se de seu olhar ou mesmo controlá-los e
confrontá-los, escudados exatamente na “má fama” que os acompanha.
A opinião pública negativa faz parte do ônus da atividade policial e, nossos
estudos mostraram, acrescentando-se a outros como os de Amador (1999), um
elevado grau de sofrimento no trabalho pela falta de reconhecimento social. O conceito
negativo emitido sobre eles pelas várias camadas sociais está entranhado na cultura.
Ele legitima e naturaliza a violência que os vitimiza, muito mais do que a qualquer
outro trabalhador ou cidadão, durante a jornada de trabalho ou nos tempos de folga em
que, curiosamente, aumentam as ocorrências de lesões e traumas de que são vítimas.
Todos os policiais do Rio de Janeiro são aqui tratados como categorias que atuam
sob elevado risco. O uso desse conceito corresponde ao que foi apresentado na introdução

208 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
deste trabalho, dentro das abordagens epidemiológica e social. Ou seja, o conceito de
risco diz respeito, ao mesmo tempo, à probabilidade das ocorrências de lesões, traumas
e mortes e ao significado da escolha profissional que traz, intrinsecamente, o gosto pelo
afrontamento e pela ousadia como opção e não como destino (Berstein, 1997; Castiel,
1999; Giddens, 2002). Seja no sentido de perigo ou de escolha, o conceito de risco
desempenha um papel estruturante das condições laborais, ambientais e relacionais
para esse grupo social, uma vez que seus corpos estão permanentemente expostos e
seus espíritos não descansam (Gomes et al, 2003). Eles vivem o que Giddens (2002, 42)
denomina de “risco de alta conseqüência”. A vivência dos riscos pode ser constatada na
taxas de mortalidade e de morbidade por agressões de que são vítimas, dentro e fora
das corporações, taxas essas, muito mais elevadas que as da população em geral.

→ Percepção de Risco

Constatamos, tanto na Polícia Civil como na Polícia Militar que a freqüência do


risco e a percepção de risco, apesar de estarem presentes em todos os setores, são
muito mais elevadas nos que trabalhavam em atividades operacionais. No entanto,
embora o sentimento de ousadia, de destemor, de extrema energia esteja mais aguçado
nos operacionais e, sobretudo nos operacionais especiais, todos esses trabalhadores
dizem que ser policial já é em si um risco. Neste sentido, poucas são as diferenças
entre as duas policias (Civil e Militar), entre a natureza da unidade (operacional,
operacional especial e administrativa) e entre os cargos (oficial, sargentos ou cabos e
soldados). Todos se sentem igualmente em posição de alerta e de perigo.
A percepção de que o risco profissional abrange a todos e penetra todos os
momentos e recônditos da vida, permite ao observador concluir que, apesar de hoje
alguém estar exercendo atividade-meio, ou seja, administrativa, não lhe retira o
sentimento de risco. Esse sentimento tem várias causas: primeiramente, dentro das
Corporações, sua posição pode mudar; em segundo lugar, muitos policiais hoje lotados
em unidades administrativas tanto na Polícia Civil como na Militar, dão suporte aos
operacionais, o que, em algum sentido, aproxima suas experiências. Observamos
também que os policiais se referem mais à atividade-fim da Unidade que a seu lugar
específico no processo de trabalho, ensejando a compreensão do trabalhador coletivo
como experiência. Por sua vez, nas relações com a população, a distinção entre policial
operacional ou administrativo não é percebida, dando a todos a mesma visibilidade.
Por isso, aos cidadãos, é o fato de ter um policial por perto que lhe dá segurança, os
ameaça ou provoca neles reações violentas.
Quando consultados sobre o exercício de sua profissão, os policiais operacionais
reportaram-se imediatamente a episódios de confronto e violência, sendo que, no caso
da Polícia Militar, soldados e cabos se apresentam como o grupo que intensamente
vivencia o risco cotidiano, justamente por estarem no front das operações. Como
reforça a fala de um gestor operacional: “para o soldado o risco é a rotina” (gestor
operacional). Esse sentimento identitário conformado pelo risco é estruturante. Recente
pesquisa comparativa realizada por Constantino (2006) entre policiais civis da Capital
e do interior do Rio de Janeiro mostrou que estes últimos se sentem menos policiais
que os primeiros, exatamente porque seu trabalho nas delegacias de uma cidade do
norte do Estado praticamente não os expõe a confrontos armados.

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 209


No estudo quantitativo, levantamos algumas questões sobre percepção de risco
dos policiais sobre si e sobre suas famílias. Estes dados são apresentados nas tabelas
5 e 6. Como pode ser visualizada nos dois quadros abaixo, a percepção de risco
nos membros das duas Corporações é quase totalizante para ambas as categorias.
No entanto, ela é absoluta para os policiais militares, onde nenhum respondeu estar
isento de risco profissional.
Como seria de esperar, os policiais das duas Corporações percebem que a
extensão do risco que vivenciam é menor para suas famílias que para eles próprios.
No entanto, é forte o sentimento de que ao combaterem o crime e manterem a ordem
pública, também seus entes queridos ficam ameaçados por criminosos em elevadas
proporções: 44,2% dos militares e 36,9% civis afirmaram isso. Principalmente os
policiais militares consideram que suas famílias estão em situação de insegurança.

Tabela 5
Distribuição dos policiais civis e militares segundo
percepção de risco em sua atividade policial

Polícia Militar Polícia Civil


Risco
% %
Constante 81,1 69,2
Eventual 18,9 26,0
Não há risco - 4,8
Total 100,0 100,0
(p < 0,000)

Tabela 6
Distribuição dos policiais civis e militares segundo
percepção de risco para a família

Polícia Militar Polícia Civil


Risco
% %
Constante 44,2 36,9
Eventual 50,5 54,5
Não há risco 5,3 8,5
Total 100,0 100,0
(p < 0,000)

Na instituição militar onde os riscos e a percepção de risco são mais elevados,


os policiais graduados, mesmo os das unidades operacionais, exercem quase que
exclusivamente atividades de gestão e de comando. Há uma diferença bastante nítida
entre aqueles que planejam (oficiais) e aqueles que executam as operações (cabos
e soldados, sargentos e sub-tenentes). Os dados de vitimização colocados abaixo
confirmam o quanto tal diferença atinge negativamente os que estão no ciclo das praças.
No entanto, entre os gestores e oficiais, também há a percepção da existência do risco.
Primeiramente porque, “ocasionalmente” e em momentos especiais são chamados

210 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
para o “combate”. Em segundo lugar, ao tomarem decisões hierarquicamente e, por
isso, serem obedecidos sem direito a questionamentos como determinam as normas
disciplinares, suas ordens deverão ser cumpridas, muitas vezes pondo em risco seus
subordinados e a população.
Um dos gestores entrevistados falou, emocionado, da quantidade de vidas que
“ele já perdeu” em confronto. Encara essa situação como um fracasso e como perda
enquanto autoridade pública. Mostrando um certo incômodo com a posição de ter
sempre que decidir hierarquicamente, esse mesmo gestor comentou sobre a posição
maniqueísta que ele e outros de sua mesma patente precisam assumir na execução de
seu trabalho, sem titubeios: “é o bem (policial) contra o mal (bandidos)”. Segundo ele,
é pela via dessa “ideologia” que o confronto é possível. Na sua ótica, o enfrentamento
só se justifica por um ideal. Mas diz: “se você pensar bem, isso é um ato de loucura”
(Gestor Operacional).
Se o risco na jornada de trabalho está mais presente no discurso dos policiais
operacionais (mais ainda na Policia Militar do que na civil), o risco que correm no
espaço externo é sentido e vivenciado por todos os policiais das duas categorias.
Embora, também nesse caso, os policiais militares afirmaram mais que os civis,
viverem em perigo nos dias de folga e em outras atividades profissionais. O trajeto
para casa, as folgas e o lazer são momentos “inseguros” na concepção de todos. Os
civis consideram correr muito risco de vida nos transportes coletivos (tabela 7). Todas
estas diferenças são estatisticamente significativas.
Ao considerarmos a soma dos riscos percebidos, observamos que do total de
policiais militares 94,1% se dizem em risco fora do trabalho, contra 86,3% dos civis,
sendo essa diferença significativa estatisticamente.

Tabela 7
Distribuição dos policiais civis e militares segundo
percepção de risco fora das Corporações

Polícia Militar Polícia Civil


Risco
% %
No transporte coletivo (trajeto de ida e volta do trabalho)* 86,8 91,3
Nas folgas* 53,6 44,6
No exercício de outras atividades profissionais* 63,5 56,0
(*) Diferença estatisticamente significativa – p < 0,000.

Como estratégia para lidar com o sentimento de insegurança, a condição policial


acaba por exigir um estilo de vida diferenciado. O exercício da atividade profissional
invade a vida social e pessoal desses trabalhadores. A simbiose da natureza do trabalho
com o modo e o estilo a vida pode ser constatada no “slogan” de um dos batalhões
da PM: “O espelho reflete você e você reflete o Batalhão da Polícia Militar”. É dessa
forma que os servidores se sentem em todos os momentos de seu cotidiano, “vigiados,
tanto no Batalhão quanto fora dele”. Por isso também pautam sua vida tendo como
parâmetro, a condição policial.
A imersão total na identidade profissional é estimulada e vivida também pelos
Policiais Civis. Os membros de ambas as categorias falam da permanente necessidade

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 211


de se retirarem dela para respirar, para interagir com outros e para fugir aos riscos,
sobretudo nos momentos de folga. Ocultá-la é uma medida de proteção principalmente
porque, ao contrário da situação dos policiais em outras sociedades como nos Estados
Unidos, no Canadá, na Inglaterra, por exemplo, no Brasil e especificamente no Rio de
Janeiro, não há o cultivo de uma imagem positiva desses servidores públicos, por razões
sobejamente discutidas neste estudo. “A gente tenta como se isso fosse possível”, é o que
comenta um dos policiais operacionais. Muitos mencionam que carregam em si a “marca
da polícia”, “está no jeito”, “no olhar”, “todo mundo reconhece logo quem é policial”.
A imersão totalizante na identidade profissional contribui ainda mais para o
sentimento de insegurança e a percepção de que estão constantemente em risco.
Foi muito comentado nos grupos focais por membros das duas corporações, que as
experiências de estresse intenso e de perigo propicia uma união das equipes no processo
de trabalho: “um precisa proteger o outro”, “é o medo de morrer que aproxima” pois a
situação de perigo nivela os cargos e a natureza das atividades, no sentimento de que
“estão todos no mesmo barco”.
Os grupos focais permitiram que os policiais falassem de seus conflitos frente aos
perigos cotidianamente enfrentados. Nas unidades operacionais da Polícia Militar, dos
oficiais ao círculo das praças, todos revelaram o sentimento de medo. A experiência
concreta de situações perigosas não permite a simples negação do enfrentamento
da morte: “vemos colegas serem executados!”. Por viverem em situação-limite, os
policiais operacionais de ambas as Corporações têm uma experiência muito particular
da urgência da vida e da proximidade da morte, cuja perenidade se re-atualiza a
cada dia. Os soldados e cabos da polícia militar chegam a apontar (de certa forma
contradizendo os arroubos de heroísmo) que hoje a principal missão do policial é
“manter-se vivo, é a lógica da auto-proteção”. Todos os policiais operacionais do Rio
de Janeiro hoje se sentem “em guerra” e percebem que alguns postos de trabalho
significam sua “sentença de morte” antecipada.
Vale ressaltar que alguns batalhões em que os profissionais foram entrevistados
por nós estão localizados em área de elevado acirramento de conflitos entre traficantes
de drogas rivais que portam armas pesadas muito mais potentes do que as que os
policiais possuem. Um desses batalhões, sozinho, atende a 94 favelas onde as chamadas
“guerras do tráfico” são cotidianas. Existe a circunstância agravante de que os grupos
de traficantes são formados por jovens também ousados, aventureiros e prontos para o
combate de vida ou morte. Ressaltando o sentimento de risco e as expressões de medo,
os policiais ressaltam que a precariedade das viaturas, dos armamentos e das estratégias
de ação faz aumentar os perigos que vivenciam nos confrontos diários com criminosos
portando armamentos muito mais potentes, conhecendo em detalhes os locais de mira
e esconderijos e chantageando moradores para lhes dar guarida e proteção.

→ O risco vivido no desempenho das atividades

O risco real é vivido pelos policiais civis e militares do Rio de Janeiro, através
da vitimização por traumas, lesões ou mortes, provocados pelas situações de
enfrentamento para prevenir crimes, atuar contra a criminalidade e manter a ordem.
O objeto geral de sua atividade é o controle da violência social. Dados da Secretaria
Nacional de Segurança Pública/Senasp (Senasp, 2005) do Ministério da Justiça ajudam

212 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
a estimar numericamente esse objeto de trabalho: para o ano de 2003 houve registro
de 6.707.955 ocorrências criminais nos Estados e de 2.264.829 nas capitais do Brasil.
No Estado do Rio de Janeiro foram registradas 433.988 ocorrências, sendo 228.243
delas na Capital.
A violência social é um fenômeno complexo e difícil de ser definido. Esse tipo de
fenômeno discrepa entre a sua ocorrência real e as sensações que gera. No imaginário
social, os sentimentos de medo e de insegurança levam a confundir crimes reais e
percepções subjetivas sobre os riscos de ser vítima da criminalidade, em proporções
inversas. Uma dessas discrepâncias diz respeito à crença de um permanente aumento
da delinqüência, o que às vezes é real e outras, não. Outra idéia muito corrente é de
que o Rio de Janeiro é local mais violento e de maior criminalidade do país. Estatísticas
da Secretaria Nacional de Segurança Pública de 2002, por exemplo, evidenciam que
isto não é verdade. Foi feita uma lista classificatória dos 27 estados do país que se
reproduz abaixo, em que o Rio de Janeiro se classifica nas unidades da federação de
médio índice de criminalidade:

• Baixo índice: Ceará, Alagoas, Tocantins, Paraíba e Piauí.


• Médio índice: Maranhão, Minas Gerais, Amazonas, Mato Grosso do Sul,
Pernambuco, Pará, Roraima, Paraná, Espírito Santo, Rio Grande do Norte,
Bahia, Sergipe, Rio de Janeiro, Acre, Mato Grosso, Goiás e Santa Catarina.
• Alto índice: Rondônia, São Paulo, Rio grande do Sul, Amapá e Distrito Federal.
Fonte: Secretaria Nacional de Segurança Pública, 2002.

A sensação de insegurança crescente no Rio de Janeiro ocorre, certamente, por


vários motivos. Primeiramente, está relacionada à própria dinâmica da criminalidade
na capital, onde existe elevada concentração tanto da população do Estado (40,2%)
como dos registros de delitos (52,6%), o que difere totalmente de outras capitais e do
país. Por exemplo, em São Paulo, apenas 27,6% da população do Estado e 33% das
ocorrências criminais se concentram na capital. No país como um todo esses valores
se assemelham mais aos de São Paulo: 22,7% da população e 33,8% dos crimes se
localizam nas capitais.
A concentração de população e de crimes no espaço da capital promove um
sentimento geral de insegurança e impotência, mesmo quando se observam quedas
no número de alguns delitos. Devemos ter em conta, também, que a sociedade do
Rio de Janeiro é das mais politizadas do país e, do ponto de vista antropológico, os
sentimentos de segurança e de insegurança se vinculam às expectativas individuais
do cidadão moderno, fazendo contraponto com a noção de risco. Ela evidencia o
avanço da consciência de cidadania e de bem-estar atingido pela humanidade em seu
estágio atual. Ou seja, a exigência cada vez mais elevada de segurança pessoal traz,
simultaneamente, sentimento de maior insegurança (Chesnais, 1981; Burke, 1995).
Vários estudos feitos no Rio de Janeiro, entre eles os de Soares (1996), evidenciam
que as classes abastadas que vivem e trabalham nos espaços onde os índices de
criminalidade são relativamente baixos são as que mais se queixam de insegurança.
As informações aqui apresentadas vêm de duas fontes: dados primários da
própria pesquisa; e dados secundários fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 213


(portanto das Corporações) e do SUS. As categorias usadas para classificar os acidentes
e violências são as constantes da Classificação Internacional de Doenças (CID) em sua
10ª revisão, neste documento sendo denominadas causas externas e incluindo todos
os tipos de acidentes (trânsito e transporte, quedas, afogamentos, queimaduras etc) e
as agressões (homicídio, suicídio, lesões e ferimentos gerados em confronto etc).
É importante frisar que, na organização de suas estatísticas, cada Corporação
denomina os eventos violentos conforme sua conveniência e nem sempre os termos
empregados para designá-las são os mesmos utilizados pelo setor saúde. A Polícia Militar
os categoriza como ação violenta. A Polícia Militar usa o termo ferido para denominar
os que sofrem lesões não letais, provocadas por acidentes e ações violentas.
No caso da pesquisa com dados primários, o período é 2005, correspondendo à
realização da própria pesquisa. Para a análise de dados secundários, o período estudado
foi diferente para cada uma das instituições, mas recobrindo uma série histórica de
1994 a 2004. Também nesse caso, analisamos as informações segundo variáveis básicas
como a causa externa que provocou o óbito ou o ferimento e o fato de o agente estar
em serviço ou em folga. Calculamos proporções e taxas de mortalidade e de morbidade
segundo as variáveis estudadas. Os denominadores que usamos na construção das
taxas relativas à Polícia Civil referem-se aos efetivos de policiais, respectivamente,
informados por essa instituição. Já o denominador usado no cálculo das taxas dos
policiais militares é o efetivo médio anual, calculado a partir do número informado
para os meses de janeiro e de dezembro de cada ano. Alguns dados secundários foram
assimilados da forma como haviam sido apresentados nos estudos originais. Outros
foram recalculados e isto está indicado no texto, sempre que ocorreu.
Apresentamos a seguir uma tentativa de síntese dos fatores associados à vivencia
de risco. Tentamos consolidar as inúmeras variáveis relacionadas ao perfil dos
profissionais, com as dimensões de lazer, saúde e trabalho, para ver quais teriam mais
efeito sobre os riscos enfrentados pelos policiais. Como se pode verificar na tabela 8,
policiais civis e militares mostraram caracterização distinta.
Tomamos os seguintes itens que dizem respeito a agressões sofridas que afetaram
a vida e a saúde dos policiais no último ano: ferimentos causados por projétil de arma
de fogo e branca, agressão física, violência sexual, tentativas de suicídio e homicídios.
Constatamos, em primeiro lugar, os elevados percentuais para ambas as categorias e,
em segundo lugar, que os militares (27,3%) estão em desvantagem em relação aos
civis (17,8%, p.000).
Na tabela 8, ordenada de forma decrescente segundo o perigo vivenciado,
constatamos que em todos os tipos de risco investigados, os militares têm maiores
proporções de vítimas, com exceção de “assédio ou agressão sexual”, relatado
igualmente por pouco menos de 3% dos policiais das duas Corporações.
A agressão verbal é a principal queixa relatada pelo conjunto dos policiais,
seguida pelas quedas que ocorrem em mais elevadas proporções com os militares. As
tentativas de homicídio, as agressões físicas e as perfurações por arma de fogo são os
riscos vivenciados com maior freqüência.

214 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 8
Distribuição proporcional dos policiais civis e militares
segundo os riscos sofridos durante o trabalho policial

Riscos sofridos Civis Militares


Agressão verbal*** 30,0% 38,6%
Queda*** 11,1% 24,6%
Tentativa de homicídio*** 10,3% 18,8%
Agressão física* 8,2% 10,3%
Perfuração por arma de fogo** 4,2% 6,7%
Lesões por atropelamento ou acidente com veículo motorizado*** 1,7% 6,6%
Acidentes com animais usados no trabalho policial*** 0,5% 6,4%
Explosão com lesões (combustíveis, bujão de gás, explosivos, fogos, 0,7% 5,3%
bomba, granada, etc.)***
Contaminação por bactérias ou outros microorganismos*** 2,7% 5,1%
Queimaduras por fogo ou químicas*** 0,3% 3,3%
Perfuração por arma branca*** 1,2% 3,3%
Tentativa de suicídio*** 0,3% 2,9%
Assédio ou agressão sexual 2,8% 2,6%
Envenenamento, intoxicação por gases ou fumaça*** 0,4% 1,9%
Acidente por desmoronamento*** 0,3% 1,6%
*p<.05; **p<.005; ***p.000

Estão entre os riscos de menor incidência, queimaduras, envenenamentos e


vitimização por desmoronamento. As tentativas de suicídio, perfurações por arma
branca e assédio ou agressão sexual não são estatisticamente relevantes. No Rio
de Janeiro, os confrontos dos policiais com os delinqüentes ocorrem em sua quase
totalidade, com o uso de armas de fogo.

Policiais militares – No caso das pesquisas com dados secundários, as


informações sobre os policiais militares – resumidas a seguir, no quadro 1 – referem-
se a Licenças para Tratamento de Saúde (LTS) e Incapacidade Física Parcial (IFP),
dos Policiais Militares que requereram afastamento das atividades. Correspondem
a afastamentos temporários por agravos que os retiraram de ações operacionais
ostensivas e os mantiveram em tarefas internas. Embora as duas categorias de
afastamento se refiram a todos os tipos de agravo e não só a acidentes e violências, o
quadro tem o objetivo de mostrar como se distribuem tais ocorrências por hierarquia
dos servidores.

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 215


Quadro 1
Distribuição das licenças para tratamento de saúde (LTS) e das incapacidades físicas
parciais (IFP) dos policiais militares do Estado do Rio de Janeiro, 2000 a 2004.

Afastamento temporário
2000 2001 2002 2003 2004
LTS
Número médio
Oficial 22,3 27,9 30,3 41,1 43,6
Praça 539,8 685,0 801,8 919,3 1124,2
Proporção média
Oficial 4,0 3,9 3,6 4,3 3,7
Praça 96,0 96,1 96,4 95,7 96,3
Razão de número médio – Praça/Oficial 24.2 24.6 26.5 22.4 25.8
IFP
Número médio
Oficial 79,2 105,0 136,6 162,7 211,1
Praça 1081,1 1307,0 1796,8 2123,2 3540,3
Proporção média
Oficial 6,8 7,4 7,1 7,1 6,0
Praça 93,2 92,6 92,9 92,9 94,0
Razão de número médio – Praça/Oficial 13.6 12.4 13.2 13.0 16.8

Ressaltamos que o número médio de oficiais com LTS cresceu 95,5% no período,
enquanto o de praças mais que duplicou (108,3%). O número médio de praças, vítimas
de agravos que exigiram afastamento é mais de 20 vezes o de oficiais, representando
cerca de 96% das LTS no período. São as praças, como já dissemos, que estão na linha
de frente nos confrontos.
Mais relevante ainda é o crescimento geral e as diferenças entre as duas categorias
no que concerne a Incapacitações Físicas Parciais (IFP): o número médio de oficiais com
lesões e traumas cresceu 166,5% no período e o de praças, 227,5%. O número médio
de praças, no início da série era cerca de 13 vezes maior que o de oficiais, passando
a ser 16.8 vezes em 2004. Os praças corresponderam a 93% dos incapacitados físicos
retirados dos serviços ostensivos para realizar tarefas internas, no período. No ano de
1997, 50,2% das LTS e 42,8% das IFP foram provocadas por traumas; e 5,6% das LTS
e 16,9% das IFP deveram-se a problemas psiquiátricos (Muniz & Soares, 1998). Em
ambos os casos, ressaltamos a incidência dos riscos no estresse vivido no trabalho.
O gráfico 1 apresenta as taxas de vitimização dos policiais militares, nelas
incluídas mortes e casos de ferimentos por ação violenta em serviço, em folga e todos
os dados em conjunto.

216 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 1

Taxas(*) de vitimização de policiais militares do Estado do Rio de


Janeiro
25,00

20,00 )
)
15,00 ) ) )
)
) )
) ) )
10,00 #
$ # #
# $ # # $
$ # $ # $ $
# #
$ #
5,00 $ $ $

0,00
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Serviço $ 7,20 7,90 9,50 7,30 5,40 5,90 5,10 5,50 6,90 8,10 7,30
Folga # 8,30 6,90 10,50 8,30 6,40 6,00 7,70 6,60 6,30 8,90 8,80
Total ) 15,50 14,80 20,00 15,50 11,80 11,90 12,90 12,10 13,20 17,00 16,10

Fonte: Dados de Muniz e Soares (1998) para os anos de 1994 a 1997 e da Assessoria de Imprensa da
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro para os demais anos
(*) Taxas por 1000 policiais

Dos 4.518 policiais mortos e feridos por todas as causas, de 2000 a 2004, 56,1%
foram vitimados durante as folgas, contra 43,9%, em serviço. Nesse período, a ação
violenta representou 57,2% das causas de suas mortes e ferimentos, proporção que
cresceu nos últimos dois anos, passando de 53,2% em 2002, para 63,7% e 67,1% em
2003 e 2004, respectivamente.
Do total de 758 policiais mortos, 173 (22,8%) estavam em serviço. Quando
mortos em serviço por ação violenta, essa proporção é um pouco maior (26,4%). Os
dados evidenciam um crescimento desde o ano de 2002 da proporção de óbitos em
serviço por ação violenta, passando de 75% para 88%, o que merece atenção das
autoridades governamentais. O número de policiais que perderam a vida em serviço
foi 2.5 vezes maior em 2004 quando comparado ao ano de 2000.
Se por um lado cresceu a vitimização dos policiais – de todas as três categorias
– também é verdade que de 2003 para 2004 houve crescimento de 2,6% no número
de ocorrências criminais no Rio de Janeiro: foram 536.163 em 2003 e 550.262 em
2004. Os delitos violentos não letais contra a pessoa cresceram 4,6%, passando de
5.054 para 5.286. A ocorrência de assaltos a transeuntes se elevou em 24,4%; os
assaltos a ônibus subiram 11,7%; e os latrocínios cresceram 3,4%. Em contraposição,
diminuíram as seguintes ocorrências: assaltos a bancos, 33,9%; seqüestros, (33,3%);
roubos de carga (21,8%); assaltos a estabelecimentos comerciais (18,4); assaltos a
residências (6,7%); homicídios dolosos (2,8%); e roubos e furtos de veículos (2,6%)
(Vasconcelos & Goulart, 2005). Coincidindo com a vitimização dos policiais, a maioria
dos crimes notificados na cidade aconteceu na Zona Norte da cidade.
Os dados de óbitos por ação violenta indicam que morreram 2.8 vezes mais
policiais militares em folga em 2004, do que os que se encontravam em serviço. No
entanto, a importância da ação violenta tem maior magnitude na mortalidade desses
últimos (ela representa 83,2% das causas de morte dos policiais que morreram em
serviço, comparados aos 68,5% dos que morreram em folga).

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 217


Dos 3.760 policiais militares feridos (em serviço e em folga) 48,1% (ou 1.809
policiais) estavam em serviço. Dos que se encontravam em serviço, 1.054 (58,3%)
foram atingidos em ação violenta, o que representa uma proporção maior do que a
de 50,5% de feridos quando em folga pela mesma causa. No entanto, a ação violenta
tem crescido proporcionalmente, vitimizando também os policiais em folga. Em 2003 e
2004 ela foi responsável por patamares acima dos 70% dos casos de ferimento desses
profissionais. Em 2002, esse percentual era de cerca de 39%.
No período de 1994 a 1996 os soldados representaram 55,3% dos policiais
militares vitimados no Rio de Janeiro: aos cabos corresponderam 31,1% do total;
aos sargentos, 8%; e os oficiais, os 5,6% restantes. As circunstâncias da vitimização
em serviço foram: dinâmica criminal (cerca de 54%); trânsito (em torno de 19%); e
dinâmica conflituosa (mais ou menos 21%).
Em folga, essas proporções foram de mais ou menos 35%, 29% e 17%, respectiva-
mente. A arma de fogo foi o principal meio usado pelos agressores para matar policiais em
serviço (média de 51%) e em folga (média 55%). Os acidentes de trânsito responderam
por 20,4% das mortes em serviço e 28,1%, em folga. O local das ocorrências corresponde
às vias públicas (72,7%); ao bairro (6,3%); à vizinhança (4,6%); à residência (3,5%);
ao espaço das próprias instituições policiais e de segurança (2,8%); aos bares e similares
(2,1%); e às instituições comerciais e financeiras (3,3%).
Dos policiais militares que morreram em serviço no Rio de Janeiro, 55,3% estavam
trabalhando em policiamento geral, dos quais 41,4% faziam patrulhamento motorizado
e de rotina; 29,2% exerciam policiamento dirigido (13,1% faziam radiopatrulhamento
e atendimento aos cidadãos e 12% cumpriam operações especiais); 2,9% efetuavam
investigação e diligência; 12,7% atuavam em outros tipos de serviços; e 10,4% estavam
de sentinela ou plantão. No período de 1994 a 1996 as maiores taxas de vitimização
ocorreram entre policiais dos Batalhões servindo aos bairros de Olaria, Méier, Benfica,
Rocha Miranda e Estácio. Todos são bairros contíguos (cerca de 78) situados na Zona
Norte (Muniz & Soares, 1998).
Uma década depois dos estudos de Muniz & Soares (1998), os maiores índices
de vitimização continuam ocorrendo com policiais dos mesmos Batalhões: 9º, de
Rocha Miranda; 20º, de Mesquita; 22º, da Penha; 3º, do Méier e 16º, de Olaria. Neles
ocorreram 436 confrontos (44,4% de todos os 983 acontecidos em 2004 na cidade).
Nessas jurisdições houve 21 óbitos, quase metade dos 44 ocorridos por ação violenta
em serviço em 2004. Os policiais são caçados, atacados e executados por criminosos
(traficantes), em ações voltadas ao roubo de armas. Os próprios comandantes
das corporações, respondendo à imprensa, admitem que em alguns casos há o
envolvimento de policiais com o crime, mas afirmam que, na maioria das vezes, eles
são emboscados (Bottari, 2005a, 2005b). Além do risco intrínseco ao trabalho, outros
motivos são evocados para a vitimização. Dentre eles, citam-se alguns conhecidos
como o fato de os atuais coletes por eles usados não os protegerem contra tiros de fuzil.
E também a obsolescência dos equipamentos ofensivos, diante das armas possantes
e das táticas de ataque dos delinqüentes. Os analistas dessas questões consideram
que, no Rio de Janeiro, o crescimento das mortes, tanto de policiais como de civis,
coincide com o também crescente envolvimento de policiais com as redes de tráfico de
armas e drogas. Assim, parte das agressões seria causada por “acertos de conta” entre
criminosos e policiais corruptos.

218 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Sobre o risco real que leva à vitimização, Lemgruber (2004) numa pesquisa
realizada para a Ouvidoria da Polícia do Rio de Janeiro apresenta o seguinte quadro:
no Município, a taxa de assassinatos por dez mil policiais militares vem apresentando
fortes oscilações, percebendo-se uma tendência de queda entre 1995 e 2001. Já em
São Paulo, com exceção do último ano da série, os índices aumentam nesse mesmo
período, em função sobretudo, do aumento das mortes durante as folgas. A Polícia
Militar do Rio Grande do Sul apresenta taxas consideravelmente menores que as do
Rio e São Paulo, exibindo, ademais, uma tendência descendente nos últimos anos.
Mas, sempre, nos dois primeiros estados, os períodos de folga apresentam maior risco
do que o trabalho de policiamento. Esses dados sugerem que, muito provavelmente,
maiores taxas de vitimização no tempo fora do trabalho oficial se devam a dois fatores:
à prestação de serviços de segurança privada e ao fato de boa parte dos policiais
serem emboscados nas suas áreas de residência onde haja confrontos violentos. Não
podemos, em muitos casos, descartar a hipótese de vinganças e execuções associadas
ao envolvimento de agentes da lei em redes e práticas criminosas.

Gráfico 2
Taxas de homicídio por 10 mil Policiais Militares nos Estados do
Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul – 1995/2001

50
41,7 43,0

40 34,0 35,1
31,0
27,3
30 25,5 23,1
16,8 15,6
20
11,5
9,6 8,2
10 5,6
3,4 2,4
7,4 1,6

0
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001

RJ SP RS

Fonte: Lemgruber, J. 2005.

Policiais civis – As informações sobre a polícia civil também dizem respeito


às mortes e aos eventos não fatais causados por todas as condições e agravos,
incluindo-se as doenças, os acidentes e as violências, a partir dos dados fornecidos
pela Corporação. Essas informações diferem das apresentadas sobre a Polícia Militar,
porque houve dificuldades objetivas para obtermos dados desagregados sobre causas
externas para esse grupo.
No período de 1994 a 2004 foram aposentados por laudo médico 594 policiais
civis, envolvendo todas as causas geradoras de invalidez temporária e permanente,
incluindo-se doenças e lesões provocadas por acidentes e violência. Ao longo desses
anos, a maior taxa de aposentadorias com aval médico ocorreu em 2004 (8,9 por
mil policiais civis), enquanto a menor das taxas ocorreu em 2001, correspondendo a
3,4/1.000.

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 219


No gráfico 3 apresentamos as taxas de mortalidade dos membros da Corporação
Civil. Para os anos de 1994 e 1995 os dados abrangem os policiais mortos da cidade. No
restante do período, eles se referem ao Estado. Pelos motivos aludidos, as informações
aqui analisadas não permitem comparação entre as categorias. Morreram, por todas as
causas, 147 policiais civis no período de 1998 a 2004, dos quais a grande maioria (120
policiais) se encontrava em folga.
O ponto mais relevante das informações trazidas por esse gráfico é a elevação
das taxas de morte de policiais nos dois últimos anos, principalmente quando em
folga. Dados de Muniz & Soares (1998) para a cidade do Rio de Janeiro indicaram
para os anos de 1994 e 1995 taxas de vitimização de 20,8 e 17,5 por mil policiais,
respectivamente. Grande parte das informações estava classificada numa categoria
denominada “ofensas”. Em 1994 a taxa total de vitimização (mortos+feridos) foi de
20,8 por mil policiais civis, enquanto apenas a de ofensas não letais foi de 16,6/1.000.
Em 1995 o valor encontrado para a taxa total de vitimização foi de 17,5/1.000 e de
14/1.000 para as lesões não letais. Nesses mesmos anos, a maior parcela dos óbitos
correspondeu à de policiais em folga.

Gráfico 3
Taxas(*) de mortalidade de policiais civis do Rio de Janeiro

5,00
$
4,00 #
$ $
3,00 # #
$
#
2,00 $
$ # $
#
1,00 # $
$
) ) # #
) )
) ) ) )
0,00 )
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Serviço ) 0,70 0,40 0,73 0,44 0,34 0,32 0,28 0,58 0,00
Folga # 4,00 3,00 1,04 0,76 1,72 0,65 1,49 2,75 3,04
Total $ 4,70 3,40 1,78 1,20 2,07 0,97 1,77 3,34 3,04

Fonte: Dados de Muniz e Soares (1998) para a cidade nos anos de 1994 e 1995 e dados da Polícia
Civil do Estado para os demais anos
(*) Taxas por 1000 policiais

Dentre os policiais civis que morreram em conseqüência do desempenho de suas


atividades, 53,1% eram detetives; 10,9% carcereiros; 18% não foram especificados
quanto à função; 5% eram escrivães, 3,8% delegados e 8,4% exerciam outras funções.
As circunstâncias da vitimização em serviço corresponderam à dinâmica criminal em
52% dos casos, sendo 13,3 por ação armada de suspeitos. Os acidentes de trânsito
responderam por 22,7%, e a dinâmica conflituosa, a 18,7% dos traumas e lesões. As
circunstâncias da vitimização dos que estavam em folga foram: dinâmica criminal
(33,3% dos casos, sendo 28,8% a assaltos); acidentes de trânsito (28,8%) e dinâmica
conflituosa (25,5%).
Arma de fogo foi o instrumento responsável por 48,8 dos casos de vitimização
dos policiais civis, seguida por ocorrências envolvendo veículos (25%) e luta corporal
(13,5%). A via pública constituiu o local de 63,2% das ocorrências. Contudo, parcela
considerável de casos aconteceu em residências (6,8%), nas próprias instituições
policiais (6,4%), no bairro (5,6%) e em bares e similares (5,3%).

220 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Comparação entre as duas corporações – Durante a série estudada houve
crescimento da vitimização nas duas categorias estudadas, sobretudo considerando-se
as lesões não fatais nos primeiros anos deste século, com relevância para 2003 e 2004.
As principais causas de morte, lesões e traumas se devem a agressões e a acidentes
de trânsito, o que coincide hoje com informações sobre a vitimização das populações
trabalhadoras no Brasil na conjuntura atual (Minayo-Gomez, 2005). Porém, isso ocorre
de forma muito mais insidiosa entre policiais civis e militares na situação do Rio de
Janeiro.
Embora os servidores das duas corporações conformem uma categoria específica
de trabalhadores em elevado risco para mortes e morbidade por violências e acidentes,
existem diferenciações internas entre os dois grupos, o que corresponde, dentre outros
motivos, ao processo de trabalho de cada um.
Merece atenção a vitimização dos agentes de segurança em suas folgas, tanto em
acidentes de trânsito como por agressões. No caso dos confrontos, algumas evidências
podem ser ressaltadas. Uma delas se deve ao trabalho extra, também chamado “bico”.
Elevado percentual de policiais (Minayo & Souza, 2003) tem um segundo emprego na
área de segurança privada (de banco, patrimonial, de grupos, de pessoas), continuando
assim a usar o tempo livre com atividades de similar elevado risco. Outro motivo se
deve à presença dos policiais, como cidadãos, em cenas de conflitos em bairros, em
bares e em transportes quando, por via de sua função, acabam se envolvendo. Muitos,
também, são vítimas de emboscadas de delinqüentes. Esse último motivo leva a que
seja comum o fato dos policiais esconderem seus distintivos e profissão, visando a
diminuir as ameaças e ataques que lhes são impingidos. Não deve ser descartado
também o fato de que, no ambiente de trabalho das corporações, esses agentes
desfrutem de maior proteção grupal e desenvolvam técnicas de cuidados muito mais
estruturadas e precisas.
Fica patente que, comparativamente, a Polícia Militar é a que sofre mais
agressões e morte, apresentando taxas de mortalidade e de morbidade elevadíssimas.
Esse privilégio negativo pode ser constatado quando tomamos, por exemplo, dados
para o ano de 2000. No Brasil, a taxa de mortalidade por homicídio na população geral
foi de 26,7 por 100 mil habitantes e essa taxa na população masculina foi de 49,7. Na
capital do Rio de Janeiro, as taxas são mais elevadas que a média do país tanto para a
população geral (49,5/100.000) como para a população masculina (97,6/100.0000).
As taxas de mortalidade por agressões e acidentes de trânsito para os agentes da
segurança pública (das duas categorias) são ainda mais elevadas que as da população
da cidade do Rio de Janeiro. Na Polícia Militar, em 2000, a taxa de mortalidade por
agressões chegou a 356,23/100.000! Na polícia civil, essa taxa, considerando-se todas
as causas, no mesmo ano foi de 206,80/100.000. Portanto, comparativamente, a
Polícia Militar apresenta uma mortalidade por violência 3.65 vezes maiores do que
a da população masculina da cidade do Rio de Janeiro e 7.2 vezes a da população
geral da cidade. Quando comparamos com o Brasil, as taxas são 7,17 vezes as da
população masculina e 13.34 vezes as da população geral. O risco de morte entre
Policiais Militares é também maior l.72 do que em relação à Polícia Civil.
Quando observamos as informações sobre internações hospitalares motivadas
por agressão, em 2000 elas corresponderam à taxa de 0,10 por 1.000 habitantes na
população geral e a 0,34 por mil 1.000 na população masculina do país. As taxas de

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 221


lesões e traumas por agressões não-fatais foram de 9,29 para a Polícia Militar, nesse
mesmo ano. Comparativamente, a taxa de morbidade hospitalar da Polícia Militar em
2000 foi 92,90 vezes maior que a da população geral da cidade do Rio de Janeiro e
27.32 vezes a da população masculina do Brasil.
Como já mencionamos, em paralelo ao crescimento da vitimização dos policiais,
observamos também, a evolução das taxas de ocorrências criminais registradas no
período de 2001 a 2003 no país e no Rio de Janeiro. De acordo com dados da Secretaria
Nacional de Segurança Pública/Senasp, no Brasil houve um crescimento de 30,7% nas
taxas de ocorrência criminal, sendo de 4.952,1 em 2003. Na cidade do Rio de Janeiro
o crescimento foi de 34,1%, correspondendo à 23ª taxa média do período (3.267,9).
Em São Paulo o incremento foi de 20% e a taxa de 4.775,5, situando essa cidade na
20ª posição entre as capitais.
Dados da Senasp também evidenciaram leve redução de 4,3% nas taxas de
homicídios dolosos entre os anos de 2001 e 2003, no país. Em São Paulo, a queda
foi de 18,9% sendo a taxa de 40,0/100.000. No Rio de Janeiro, ao contrário, houve
crescimento de 3,5%, embora a taxa para 2003 seja ainda um pouco menor que a de
São Paulo (38,5/100 mil). No período, a taxa média do Brasil foi de 35,0/100.000, a de
São Paulo foi de 44,3/100.000 (sexto colocado entre as capitais) e a do Rio de Janeiro
foi de 38,8/100.000 (9ª maior taxa).

ALGUMAS CONCLUSÕES
Todas as informações quantitativas e qualitativas do estudo aqui apresentado
evidenciam que os policiais militares e civis do Rio de Janeiro, além de viverem o risco
com profissão são as maiores vítimas do desempenho de suas atividades. Policiais
que sofreram elevado risco decorrente do trabalho são aqueles que mais vivenciaram
violências do tipo: ferimento por projétil de arma de fogo ou por arma branca, agressão
física, violência sexual, tentativa de suicídio e tentativa de homicídio.
Entre policiais civis constatamos que profissionais de nível médio enfrentaram
duas vezes maior risco de violência que os que possuem nível superior. Os que optam
por aproveitar o tempo de lazer fora de casa também vivenciam 2,2 mais risco de
sofrer violência do que os que passam mais tempo em casa lendo, descansando ou
dormindo. O que vem mostrar a urgência de se criarem meios de proteção dos policiais
fora do tempo que passam na Corporação, como resume o quadro a seguir.

222 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 9
Variáveis associadas ao risco sofrido por policiais civis

Variáveis (N = 475) Razões Intervalo de Razão Intervalo de


Perfil Brutas Confiança Ajustada Confiança
ESCOLARIDADE Até 2°Grau Incompleto 1,75 (0,59 5,18) 2,80 (0,98 8,03)
2°Grau Comp./ Sup. Incomp 2,62 (1,64 4,18) 2,04 (1,21 3,44)
Sup. Comp./ Pós Graduação 1,00 - 1,000 -
Lazer/ Comunidade
LAZER DOMICILIAR Baixa 1,26 (0,47 3,33) 1,33 (0,45 3,91)
Média 2,30 (1,41 3,75) 2,23 (1,31 3,80)
Alta 1,00 - 1,000 -
Condições de Trabalho
EXERCE O TRABALHO PARA Não 2,65 (1,59 4,40) 2,29 (1,29 4,04)
O QUAL FOI TREINADO Sim 1,00 - 1,000 -
EXERCE OUTRA ATIVIDADE Sempre/muitas vezes 6,19 (2,98 12,9) 4,96 (2,24 11,0)
SEM DESCANSO Ás vezes/poucas vezes 2,54 (1,14 5,66) 2,45 (1,05 5,73)
Nunca 1,00 - 1,000
TRABALHO CAUSA ESTRESSE Freqüentemente 4,23 (2,16 8,28) 3,45 (1,60 7,43)
INTENSO As vezes 2,16 (1,09 4,29) 2,09 (0,96 4,53)
Raramente/Nunca 1,00 - 1,000 -

Três variáveis referentes às condições de trabalho se mostraram importantes para


o risco vivido pelos policiais civis: (a) treinamento insuficiente: os que não exercem
o trabalho para o qual foram treinados passaram 2,3 vezes mais por situações de
violência que os pares exercendo ações para as quais estão habilitados; (b) dupla
jornada: entre os que sempre ou muitas vezes exercem outras atividades fora da
corporação sem descanso, o risco sofrido é cinco vezes maior do que os que não
trabalham no “bico”; os que exercem atividades extras de vez em quando, o risco
é 2,5 vezes maior; (c) estresse intenso: os que sentem estresse intenso no trabalho
sofrem mais riscos que os que não se estressam. Esse risco é 3,4 vezes maior para os
freqüentemente estressados.
Entre os policiais militares, ressaltamos os principais fatores de risco de sofrer
violências: (a) tempo de serviço: policiais com menos tempo de serviço, (até 10) anos
sofreram 2,4 mais riscos no trabalho policial do que os mais antigos; (b) deficiências
auditivas e nevralgias: policiais com deficiências auditivas (3 vezes mais) e nevralgias
(4,1 vezes mais) relataram ter vivenciado mais riscos que os que não apresentam
estes problemas de saúde, indicando sofrimento físico associado a sofrimento mental,
tendo como causa principal, a vivência de situações de violência. (c) condições de
trabalho: exercer outra atividade laboral além do desempenho profissional na polícia
militar sem intervalo de descanso também se mostrou associado a vivenciar mais
riscos decorrentes do trabalho policial. Tanto os civis como os militares que têm outra
atividade permanente, vivenciam 5 vezes mais riscos de sofrer violência; e para os que
têm outra atividade esporadicamente esse risco é duas vezes maior do que para os eu
apenas cumprem sua profissão como policial.

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 223


Tabela 10
Variáveis associadas ao Risco sofrido por policiais militares

Intervalo Intervalo
Razões Razões
Variáveis (N=853) de de
brutas ajustadas
confiança confiança
PERFIL
Tempo de serviço Até 10 anos 2,22 1,17 4,25 2,44 1,18 5,01
De 11 a 20 anos 1,54 0,72 3,31 1,73 0,78 3,86
21 anos ou mais 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
SAÚDE
Deficiência auditiva Sim 3,29 1,85 5,87 2,98 1,61 5,52
Não 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Nevralgias/Neurites Sim 5,13 2,56 10,27 4,11 1,97 8,60
Não 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
CONDIÇÕES DE TRABALHO
Exerce outra atividade sem descanso Sempre/muitas vezes 5,24 2,84 9,66 4,98 2,61 9,51
Ás vezes/poucas vezes 2,51 1,34 4,71 2,30 1,20 4,42
Nunca 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00

Como podemos constatar, diferentes variáveis se encontram associadas à


vivência de risco nas duas corporações, destacando-se as condições de trabalho, em
especial, o exercício de outras atividades sem descanso, indicando sua importância
para se pensar em formas de atuar na prevenção aos riscos sofridos pelas corporações
policiais do Rio de Janeiro.
Do ponto de vista do processo e da organização do trabalho observamos alguns
fatores que predispõem à vitimização: a excessiva rotatividade dos policiais nos seus
postos de ocupação dificulta o conhecimento dos problemas e a responsabilização
pelos atos. A falta de instâncias coletivas de reflexão e avaliação do trabalho dificulta a
superação das falhas e dos problemas que acabam sendo tratados apenas nos escalões
hierárquicos superiores. O imediatismo, as condições materiais muito precárias de
trabalho, as cargas horárias excessivas, o número insuficiente de profissionais, os
salários inadequados ao risco e à importância da missão, são elementos que contribuem
para a baixa produtividade. O fato de que mais metade da corporação tenha dupla
vinculação de ocupação constitui um sério problema para a saúde, para o desempenho
profissional e para a produtividade das Corporações.
Do ponto de vista gerencial a pesquisa permite constatar que a falta de
perspectiva global do processo de trabalho das duas Corporações conduz a uma atitude
imediatista, reativa, e excessivamente focada nos aspectos operativos, provocando
grande sofrimento mental aos policiais.
É pela via da capacitação e do treinamento (formação denominada pelos
operacionais como “adestramento”), que os policiais se preparam para as missões
arriscadas. Essa idéia é ressaltada no slogan escrito no site de uma das unidades:
“ver os olhos do inimigo é importante, porém devemos estar preparados para fazê-los
se fecharem”. Frases como esta são colocadas na preparação tática desses servidores,
mas não recebem uma contrapartida de acompanhamento psicológico. Talvez por
isso, tenha sido um dos pontos relevantes das falas dos policiais operacionais das

224 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
duas Corporações o clamor por instâncias de apoio ao enfrentamento dos eventos
traumáticos. Observamos a insistência dessa demanda, ainda que, no caso da polícia
militar existam nos batalhões oficiais psicólogos. No entanto, seus serviços são
muito pouco procurados, possivelmente porque os policiais enxerguem neles mais
uma instância hierárquica do que um serviço de apoio. Isso se pode depreender dos
depoimentos de alguns em que fica clara a discriminação negativa em relação aos
colegas que procuram os psicólogos, como se eles estivessem baixando a guarda e
admitindo que estariam ficando loucos. Um dos gestores administrativos afirma em
sua entrevista, de forma crítica, que a formação voltada para valores humanos e que
leve em conta questões emocionais dos policiais não é “prioridade da instituição”.
Os efeitos psicológicos reativos que resultam do temor do risco potencial e vivido
são múltiplos: negação: “não podemos pensar que ele existe”; naturalização: “faz parte
do nosso dia a dia”, “a gente se acostuma com essa realidade”; escárneo: “eles riem do
risco, é como se fosse uma brincadeira, brincam com a realidade como se estivessem
em uma ficção” (gestor operacional) e enfrentamento: “é no próprio combate que a
gente resolve o medo”. Um dos profissionais, nas discussões de um grupo focal para
operacionais apontou ainda duas estratégias que utilizam para amenizar os efeitos do
risco: “ou a cachaça ou a religião”. Em momento anterior já nos referimos às elevadas
proporções de policiais militares e civis que fumam e bebem, certamente dentre outros
motivos, por razões associadas ao estresse no trabalho. O apego à religião, como uma
maneira de se sentirem mais protegidos, também foi mencionado por vários policiais
de ambas as categorias.
Estudando trabalhadores em geral Dejours (1999) também encontrou, dentre
as estratégias utilizadas pelos que exercem atividades de elevado risco, a negação
do perigo, o escárnio do medo, a supervalorização da virilidade e o consumo de
substâncias.
Em relação ao enfrentamento, Le Breton (1995) aponta a atitude “contrafóbica”,
que leva o ser humano em situações de risco a encará-lo ao invés de fugir ou evitar.
Desta maneira, o indivíduo luta contra a angústia, atirando-se em sua direção e
colocando-se corpo a corpo com o desafio. Uma vez enfrentado, o medo se dissipa e
cria a sensação de domínio sobre ele.
É preciso ressaltar também que o risco vivenciado pelos policiais não tem
apenas uma conotação negativa. Ao contrário, a escolha profissional que corresponde
ao sentido relacionado à aventura e ousadia, como já discutido por vários autores
(Spink, 2002; Le Breton,1991; Muniz,1999, dentre outros) surgiu no discurso dos
profissionais da Polícia Civil e da Polícia Militar, na fala dos cabos e soldados, nas
unidades operacionais e no grupo operacional especial. A adrenalina produzida pelo
inusitado, segundo eles, “vicia” e os motiva para ação. Muniz (1999) em seu estudo
“Ser Policial é, sobretudo, uma razão de ser”, já havia apontado para a exaltação da
jovialidade na polícia e dos atributos típicos da juventude que escolhe essa profissão,
dando vazão ao sentido de aventura dessa fase da vida: “o espírito aventureiro, o
dinamismo, a canalização das energias pelas ações, o encantamento da superioridade
e a disponibilidade para enfrentar os perigos e riscos”, fazem parte do “ethos” do
trabalho operacional. Esses atributos são usados também na construção de estratégias
para minimizar os perigos reais e próximos, no momento das operações.

(In)Segurança Profissional e (In)Segurança Pública | 225


Bittner (2003) quando discute a virilidade e o potencial de aventura que o risco
proporciona, conclui:

O que se requeria dos recrutas eram as virtudes másculas da honestidade, lealdade,


agressividade, e a coragem visceral. Como compensação, os policiais recebiam a
nobreza do serviço, a oportunidade de contribuir para o melhoramento da vida,
e por fim, mas não menos importante, a promessa de aventura (2003,16)

Por sua vez as Instituições Policiais buscam exaltar o heroísmo da missão. Os


profissionais, por viverem e afrontarem o risco, vêem-se e são vistos pelas Corporações
como pessoas que possuem “algo mais” do que seres comuns da sociedade: “Tem
algo neles que os faz ir de encontro ao perigo” é a opinião de um gestor. “No fundo
no fundo, a gente quer ir para a rua combater” diz um soldado que faz parte de um
grupo operacional. “Enfrentar o risco é uma questão de instinto”, diz outro soldado,
naturalizando seus atributos e acrescentando, estimulado pela energia que o grupo lhe
transmite: “O comandante fala que nós, deste Batalhão, temos um “gen” a mais”,
Num estudo sobre a Polícia Militar de Porto Alegre, Amador (2002) também fala
dos “superpoderes” que a instituição policial acaba incutindo em seus homens, criando
assim uma espécie de estratégia defensiva. Essa autora utiliza, em contraposição, o
termo “Ironia do Medo” para falar da exclusão do policial que, por ventura, manifeste
temor do enfrentamento. Nesse caso, a vítima do medo precisa se calar para não
contaminar todo o grupo, guardando para si o sofrimento psíquico que do silencio
e do sentimento reprimido lhe advém: “a palavra e o sentimento são interditados”
(Amador, 2002, 98).
A impossibilidade de expressão do medo no exercício do trabalho policial parece,
por um lado, relacionar-se à prescrição para a coragem no âmbito da organização
prescrita do trabalho policial. E, por outro lado, à possível existência de um código de
regras, criado pelo grupo de trabalho, pressupondo o banimento do medo, código ao
qual todos devem subordinar-se (Amador, 2002: 98)
No sentido tratado acima, poderíamos inferir que os policiais, sobretudo os
operacionais civis e militares, vivenciam um conflito entre o enfrentamento desejado
pela instituição que ressalta os atributos e as marcas da masculinidade e os sentimentos
de medo da morte, justificados pelas situações de risco reais e imaginárias a que estão
submetidos.
Por fim, é urgente que nos comovamos com as absurdas taxas de morte dos
policiais, ressaltando que não existe fatalidade nessa imensa perda de vidas que tanto
afeta as famílias e a sociedade como um tudo. Sobre isso, primeiramente devemos
sublinhar que há uma oscilação na série histórica de vitimização, indicando que
determinados tipos de políticas e estratégicas são mais ou menos letais.
Em segundo lugar, temos exemplos de países em que a taxa de morte de policiais
foi se reduzindo historicamente. Por exemplo, comparamos a situação brasileira com
informações sobre a polícia americana, geralmente lembrada por sua truculência e
arrojo. Dados dos Estados Unidos mostram que, de 1993 a 1995, apenas 4,9% dos
policiais que sofreram acidentes ou traumas foram atingidos por arma de fogo. Na
maioria dos casos de vitimização (81,5%), houve apenas confronto corporal. A taxa
norte-americana de mortalidade de policiais em serviço passou de 4,70/10 mil para
2,9/10 mil, entre os anos de 1980 a 1994 (Muniz & Soares, 1998).

226 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Enfim, um dos grandes desafios do Brasil e do Rio de Janeiro em particular é
criar um ambiente e uma cultura de segurança pública e cidadã, o que certamente tem
a ver com a questão social e com o processo de democratização e “cidadanização” da
maioria dos brasileiros. Isso inclui também formas, instrumentos e tecnologias menos
agressivos de controle da violência, da criminalidade e do clima de acirramento social.
Desta maneira, o exercício da segurança pública se encontrará com os princípios da
segurança humana. Deixará de transformar-se numa profecia de morte dos policiais,
servidores que têm a obrigação constitucional de manter a ordem e coibir o crime e
não o destino ou a fatalidade de viver e morrer vítimas da insegurança social.

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Página de Créditos
Este trabalho constitui parte de uma pesquisa maior denominada Estudo comparativo sobre
riscos profissionais, segurança e saúde ocupacional dos policiais civis e militares do Estado
do Rio de Janeiro, realizada pelo Claves/Fiocruz e financiada pelo SENASP e concluída em
dezembro de 2005, da qual participaram os seguintes coordenadores e pesquisadores:

Coordenação
Maria Cecília de Souza Minayo e Edinilsa Ramos de Souza (coordenadoras)
Patrícia Constantino (coordenadora do trabalho de campo)

Equipe de pesquisa
Simone Gonçalves de Assis, Raimunda Matilde do Nascimento Mangas, Miriam Schenker,
Maria de Lourdes Tavares Cavalcante, Francisco Adolpho da Cunha Barros, Flávio Augusto
Pinto Correa, Júlio César Vasconcelos da Silva, Cleber Nascimento do Carmo, Thiago de
Oliveira Pires, Bruna Soares Chaves, Vanessa dos Reis de Souza, Raquel Vasconcellos
Carvalhaes de Oliveira e Nilton C. dos Santos

Técnico de Informática:
Marcelo da Cunha Pereira

Apoio Administrativo:
Marcelo da Silva Motta e Jerônimo Rufino dos Santos Junior

230 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
MUDANÇAS EM ORGANIZAÇÕES – O CASO
DO POLICIAMENTO

3
Karina Rabelo L. Marinho1
4
Almir de Oliveira Junior2
Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública/UFMG,

Resumo: O presente artigo trata das características especificamente organizacionais,


associadas a diferentes modelos de organizações policiais. Diz respeito, portanto, não
apenas a estratégias de policiamento rotineiro, mas, sobretudo a arranjos organizacionais
estruturais, onde as estratégias diversas se manifestam. Essas discussões procuram permitir
o conhecimento das implicações do processo de mudança do modelo convencional,
profissional-burocrático de policiamento, para o modelo de policiamento comunitário.
Procuraremos mostrar como os principais elementos de mudança estão associados à
distribuição do poder organizacional, bem como das definições de atividades e missões
das organizações. Para tanto, faremos uso da pesquisa Estudo da Estratégia Organizacional
de Policiamento Comunitário nas Cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Vitória, do
Concurso Nacional de Pesquisa Aplicada em Justiça Criminal e Segurança Pública da
Secretaria Nacional de Segurança Pública, Ministério da Justiça. No modelo comunitário,
o estreitamento da relação entre organização e ambiente externo pode gerar importantes
alterações nos fatores determinantes de distribuição de poder, definição de missão e
atividades. Entre eles, menciona-se o nível de limitação de tomada de decisão, o controle
das fontes de incerteza – ambiente externo e distribuição de informações – além de
alterações na natureza da tarefa desempenhada pelo ator organizacional.

Palavras Chave: Organizações, polícia, sociedades democráticas, tecnologia organizacional.

INTRODUÇÃO
No contexto atual das sociedades democráticas têm sido freqüentes as pressões
sobre as organizações policiais para que alterem sua estrutura convencional, fortemente
burocratizada. As razões para esse tipo de demanda costumam apoiar-se em uma
dupla justificativa. Por um lado, na desconfiança sobre sua eficácia no combate à
criminalidade; de acordo com esta crítica, as estratégias tradicionais de policiamento
não têm sido capazes de alcançar a complexidade dos problemas diante dos quais se
encontra. Ou seja, a descrença na eficácia organizacional, no caso das instituições
de polícia está associada principalmente à evolução dos números de ocorrências
criminais, fenômeno amplamente divulgado pelos meios de comunicação e percebidos
pelas populações brasileiras.
Outro motivador para alterações no arranjo organizacional da polícia está na
crescente perda de legitimidade do formato autoritário destas organizações frente às
demandas de expansão do sistema democrático representativo para todas as esferas
institucionais, nas sociedades liberais contemporâneas. O que se exige na arena social é

1 Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública/UFMG


2 Professor Adjunto da PUC/MG

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 231


uma maior aproximação entre as instituições públicas de segurança – particularmente
a polícia – e os mais diferentes estratos sociais, capazes de deliberar sobre seus
próprios interesses. Esse tipo de demanda sobre as organizações policiais acaba por
gerar descrenças quanto a sua capacidade de satisfazer expectativas sociais.
O nível de confiança das populações nas organizações policiais costuma ser
aferido, entre outros indicadores, a partir da proporção de delitos não reportados a
estas organizações. Trata-se da chamada cifra negra, fenômeno amplamente conhecido
por estudiosos das questões de segurança. O número de eventos violentos não
denunciados é normalmente explicado pela ineficiência da polícia em solucionar casos
ou recuperar objetos, pela violência policial ou pela ocorrência de crimes sexuais ou
violência doméstica. Explicações desta natureza baseiam-se na hipótese da relação
custo-benefício, em que o valor da perda bem como a percepção de risco em se acionar
a polícia aparecem como fatores determinantes. No entanto, sabe-se que a decisão
de se acionar ou não a polícia é permeada por questões que podem dizer respeito
a diferentes níveis de tomada de decisão. Aqui, o tipo de configuração social, como
maiores ou menores níveis de coesão, pode constituir importante fator explicativo.
Assim, a decisão sobre o acionamento da polícia relaciona-se não apenas às relações
custo-benefício, mas também aos atributos contextuais que fornecem determinada
relação custo-benefício, bem como as normas sociais e os níveis de coesão social. Trata-
se dos atributos sociais que afetam a tomada de decisão. Ainda assim, o significativo
número de eventos criminosos não reportados é tradicionalmente utilizado como
argumento para perda de legitimidade das instituições policiais.
Diante desse panorama, o modelo de policiamento comunitário tem aparecido
como aquele capaz de reverter o quadro de desprestígio social e político das organizações
policiais. A publicisação desse modelo tem levado as autoridades policiais a tentarem
de forma simplista e, muitas vezes, acrítica, a implementá-lo sem qualquer estratégia
de mudança estrutural das velhas organizações policiais.
O presente artigo procura discutir as implicações, de natureza organizacional, do
processo de mudança do modelo convencional, profissional-burocrático de policiamento,
para o modelo, hoje tão difundido, de policiamento comunitário. Em outras palavras,
trata-se de demonstrar que a transição de uma estratégia organizacional para outra implica
mudanças significativas na estrutura e caráter da organização, com altos custos para sua
estabilidade. Para tanto, fará uso de estudos de caso realizados junto às organizações
policiais militares de Belo Horizonte, Vitória e Rio de Janeiro. Seu objetivo é, portanto,
criar condições para que sejam discutidas orientações para a implementação de tais
mudanças no contexto policial, ao delinear, com o auxílio da teoria das organizações,
quais as alterações relacionadas ao processo, do ponto de vista organizacional.

A POLÍCIA COMO ORGANIZAÇÃO


Em primeiro lugar, é indispensável definir a organização policial como um sistema
formal e burocrático, sujeito à análise organizacional. Por organização entende-se “um
instrumento técnico para a mobilização das energias humanas, visando uma finalidade
já estabelecida.” (SELZNICK, 1972, P. 05)
Ou seja, trata-se de um instrumento racional para a execução de um serviço.
Perrow (1976) entende organização de modo similar, introduzindo, ainda em

232 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
seu processo de definição, os elementos relativos à tarefa, ambiente, etc. Para ele
“(...) as organizações são criadas para produzir alguma coisa (...) Neste processo,
as organizações utilizam energia humana e não humana para transformar “matéria
prima” em um produto desejável. (...) (PERROW, 1976, p. 74)
Segundo ele, uma organização formal implica também a especialização e a
divisão do trabalho para a execução do produto, além de formas de resolução para a
neutralização ou relação com o ambiente no qual se situa, já que “O ideal, do ponto
de vista da produção eficiente é que as organizações contem com um ambiente estável
e que seu pessoal não seja influenciado por fatores alheios à organização.” (PERROW,
1976, p. 75)
Entretanto, como as influências ambientais não podem ser neutralizadas de
maneira definitiva, as organizações desenvolvem normas e regulamentos que não se
relacionam diretamente com o processo produtivo em si. Em suma, as organizações
formais ou burocráticas implicam, em alguma medida, a especialização, controle das
influências exercidas por um ambiente, nem sempre estável e previsível. A atuação
policial é afetada por aspectos cognitivos e comportamentais que se desenvolvem
devido às especificidades do ofício, relacionado a fortes pressões externas. Os policiais
estão envolvidos com um trabalho em relação ao qual existem muitas expectativas
e cobranças por parte da sociedade, ao mesmo tempo em que devem lidar com um
processo de estigmatização que lhes é imposto por essa mesma sociedade. Por esse
ponto de vista relacional, fica claro que ser policial não é uma experiência que possa
deixar de marcar profundamente a história de vida de um indivíduo. Trata-se de um
profissional que tem que se expor às mais diversas situações de conflito. Seja com
criminosos, ou mesmo com não-criminosos que, por exemplo, se sentem ofendidos em
seus direitos por ocasião de uma “batida” ou “blitz” policial, entre outras situações.
A obra de Max Weber representa contribuição fundamental para a teoria das
organizações, uma vez que trata a questão da burocracia como um problema tipicamente
sociológico, possibilitando que as organizações sejam vistas como um fenômeno cuja
natureza é eminentemente social. Para Weber, o desenvolvimento burocrático no
contexto dos estados modernos deveu-se ao crescente processo de racionalização que
aí se deu. Em outras palavras, a racionalidade da vida moderna acabou por engendrar
um significativo impulso em direção à burocratização nas mais diversas esferas da
vida social. O desenvolvimento da burocracia, assim, apóia-se em sua superioridade
técnica, maior capacidade de continuidade, unidade, redução de atrito e diminuição de
custos, no contexto de uma estrutura especializada, profissional e, portanto, impessoal.
Por isso identifica-se internamente nas organizações policiais uma hierarquia rígida,
com ampla ritualização de comportamentos no nível das relações interpessoais entre
seus agentes, além de um treinamento padronizado voltado para um grande número
de regras formais, relacionadas de forma legal e doutrinária às suas atividades-fim.
A busca de legitimação por parte da organização leva a ostentação de certas
práticas rituais, não necessariamente ligadas a uma lógica instrumental, que reforçam
mitos compartilhados por sua clientela, indivíduos ostentam performances que, do
ponto de vista dos espectadores (superiores, colegas), dão supostamente a impressão
de eficiência profissional. Isso é diferente de afirmar que a cultura organizacional5 seja

5 A dimensão da cultura refere-se aos valores, crenças e atitudes dentro do contexto ocupacional e
organizacional de polícia. O conceito de cultura policial vem sendo citado constantemente na literatura

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 233


totalmente manipulável. Ou seja, a cultura organizacional é fator estruturante da vida
social dentro da organização, ao servir, por um lado, como artifício facilitador das
ações dos atores, mas por outro também como fator limitador dessas mesmas ações.
Cabe também citar o modelo neo-weberiano (MARCH & OLSEN, 1989 e 1995,
PERROW, 1979) para análise das organizações complexas. De acordo com esse modelo,
os fenômenos micro-sociológicos que ocorrem dentro das organizações tornam-se objetos
de interesse em si próprios. A própria cultura organizacional não é uma característica
estrutural ou sistêmica que age sobre os indivíduos. Os mesmos acabam por reproduzi-la
ou modificá-la em contextos que buscam a realização de seus interesses, reconhecimento,
imagens de competência para manutenção de seus papéis formais, etc.
Segundo Prates, essa vertente neo-weberiana busca justamente certo resgate
do sujeito dentro da organização:

“A ênfase recai sobre dimensões cognitivas dos atores e, conseqüentemente,


nos cursos de ação desses atores. A estrutura organizacional é vista como um
complexo de programas de ação relacionados que se realizam, indistintamente,
no âmbito formal e informal da organização. Esta teoria destrói, portanto, a
dicotomia, tão reverenciada na teoria sociológica convencional, da estrutura
formal/informal no interior das organizações. A relação organização-ambiente
é vista à luz do conceito de absorção de incertezas, de acordo com o qual,
pessoas e organizações utilizam mapas cognitivos, apreendidos e elaborados,
para interpretar o ambiente no qual atuam.” (PRATES, 2000 b: 134)

Ainda, as organizações se institucionalizam. Apesar de se constituírem a partir


do modelo administrativo racional (com vistas à articulação de meios e fins da maneira
mais econômica) têm, num segundo momento, suas normas, regras e sentimentos de
solidariedade consolidados sob a forma de uma instituição social. Esses elementos
informais passam a ter vida própria, o que consubstancia o processo de institucionalização
(SELZNICK, 1972, PAIXÃO, 1997). Desse modo, os efeitos não racionais da ação social
são incorporados à organização, o que sugere que a interação informal, no âmbito
organizacional, possibilita o surgimento de focos próprios de identidade.

“O conceito de instituição sustentado por essa perspectiva teórica põe em


evidência as realidades de natureza simbólica que legitimam e viabilizam os
arranjos e regras de comportamento organizacional, que dão sentido de ordem
às atividades cotidianas dos seus membros.” (PRATES, 2000 b: 139)

Portanto, a polícia pode ser compreendida como uma forma de ação coletiva
organizada em torno da missão de produzir segurança por meio de uma dupla função:
por um lado, a aplicação da lei, e por outro, a manutenção da ordem. Para a consecução
de sua finalidade, ela apresenta determinada divisão de tarefas, estrutura hierárquica,
caráter de profissionalização, estabelecimento de normas, enfim, aspectos a partir dos
quais se pode definir polícia como uma organização formal. Mas, ao mesmo tempo,

recente sobre organizações policiais, uma vez que a adoção do modelo de policiamento comunitário
em várias partes do mundo tem levantado certa discussão sobre a “necessidade” de mudanças na
cultura tradicional das polícias (BAYLEY & SKOLNICK, 2002, COSTA & MEDEIROS, 2003, GOLDSTEIN,
2000, MOORE, 2000, SAPORI & SOUZA, 2001).

234 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
ela tem uma cultura organizacional, que afeta e dá sentido ao modo como a polícia
pensa e trabalha, e uma identidade que a definem como instituição social. O presente
artigo baseia sua interpretação na definição de polícia vista como organização formal
e como instituição social, sujeita aos conceitos tipicamente organizacionais.

AS MUDANÇAS ORGANIZACIONAIS
De acordo com a teoria das organizações, mudanças organizacionais são
advindas tanto de fatores internos à organização, quanto daqueles externos a ela.
No que diz respeito aos fatores internos, o efeito estrutural da ação social pode
produzir consequências não desejáveis pela organização (MERTON, 1965). Estes
efeitos constituem, potencialmente, importante fonte de energia para a mudança
organizacional, uma vez que, as organizações burocráticas, como mostrou Merton,
tendem à priorização dos métodos de operação que geram previsibilidade e controle,
em detrimento de suas finalidade. Esta transformação de meios em fins, denominada
por Merton ritualismo, constitui fonte de demandas por mudanças.
Um estudo de Reiss enfatiza que no decorrer do século passado as organizações
policiais foram pressionadas a se adaptarem às mudanças de tecnologia, às mudanças
no crescimento e composição da população das cidades e na organização social e política
de governos (REISS, 2003). Dessa forma, o patrulheiro foi substituído por policiais em
unidades especializadas. Reformadores tentaram neutralizar o apadrinhamento político
sobre a polícia e controlar a proteção policial aos criminosos e atividades criminosas
organizadas, com isso tomou-se duas linhas principais: primeiro, transformou-se a
burocracia quase militar das organizações policiais em uma burocracia legalista e
tecnocrática, cujos membros estão comprometidos com uma comunidade profissional
cujas formas de subordinação e trabalho os colocam à parte da comunidade que
policiam. O segundo passo, resultante de intervenções tecnológicas, realizada algum
tempo depois, foi centralizar territorialmente o policiamento. Como parte desse
processo, o patrulhamento a pé foi substituído pelo motorizado.
Essas mudanças caracterizaram claramente um policiamento profissionalizado
que contrasta com o policiamento exercido no início do século XX em bairros e
comunidades locais das grandes cidades. Nesse modelo mais antigo de polícia, o
oficial da ronda servia para prevenir ocorrências, buscar e dar respostas a crimes e
disputas civis ocorridos em seu turno. O carro de patrulha, o telefone e o rádio para
intercomunicação mudaram tudo isso, criando uma estratégia reativa de patrulhamento
policial, do tipo “prestações de serviço”. Talvez o maior impacto da tecnologia tenha
sido solidificar a centralização burocrática do comando e do controle. A separação
entre o trabalho dos policiais e as comunidades por eles policiadas foi completa em
termos organizacionais. Segundo Bretas a polícia é um excelente exemplo de um órgão
público moderno:

“As concepções de engenharia social, formuladas pelo pensamento científico


que dominou o séc. XIX, obtiveram pleno êxito ao dividir o estado em duas
partes: uma, política, sujeita à controvérsia partidária, representando ‘o Estado’;
e outra, administrativa, independente da política partidária, concebida tanto
quanto possível como ‘natural’ – vale dizer, administrada da única maneira

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 235


racional possível – e invisível. Daí emergiu a percepção de que as relações
entre a polícia e o público eram, ou deveriam ser, um não-assunto, uma parte
imutável do mecanismo racional da administração” (BRETAS, 1997: 10).

Porém, é muito importante destacar que os implementadores desse novo modelo


de policiamento não calcularam que os custos poderiam vir a superar os ganhos
oriundos das mudanças. Ficou claro que o volume dos chamados crescia mais do que
os recursos dos departamentos para lidar com eles, especialmente em momentos de
grande demanda. Uma das tentativas de solução do problema foi construir modelos
de decisão, que estabeleciam prioridades de atendimento pelo tipo de chamada. Mas,
já nos anos 90, o modelo mostrou claramente inadequado às demandas da sociedade
civil (BEATO, 2001 e 2002).
Goldstein (1977) afirma que o tipo de policiamento profissional-burocrático volta-
se mais enfaticamente para procedimentos destinados a diminuir o tempo de respostas
às chamadas – meios – do que para a detecção dos problemas com os quais a polícia se
defronta – fins. Quanto às demandas exógenas, o modelo de policiamento comunitário
pode ser visto como forma de adaptação da organização policial, no sentido de mantê-la
compatível com o ambiente das sociedades liberal-democráticas contemporâneas.
No Brasil, a polícia responsável pelas atividades ostensivas é dotada de uma
hierarquia verticalizada, centralizada, com forte coordenação das atividades individuais.
No entanto, desde a constituição de 1988, que confere suporte jurídico para o envolvimento
das comunidades na produção de segurança, ao estabelecer o princípio segundo o qual a
segurança é responsabilidade de todos (artigo 144), iniciativas em torno da participação
da sociedade no trabalho preventivo foram surgindo. Tais iniciativas, contudo, deram-se
de modo incipiente, com pouca ênfase sobre a doutrina do policiamento comunitário e
sem implicar alterações mais profundas, do ponto de vista organizacional, ou seja, tidas
como uma abstração, sem a articulação de órgãos específicos.
As dificuldades em torno da implementação dessa estratégia de policiamento
partem tanto da estrutura da comunidade, quanto da própria organização policial.
Trata-se da inexistência de indicadores de desempenho compatíveis com atividades
proativas, da falta de cultura participativa nas comunidades e preventiva nas polícias, do
desconhecimento acerca dos elementos dessa estratégia de policiamento, dependência
do policiamento comunitário às associações de bairro, rodízio de policiais, entre outros
aspectos. (SOUZA, 1999)

CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS DO POLICIAMENTO TRADICIONAL


Do ponto de vista organizacional mais geral, o modelo tradicional de policiamento
caracteriza-se por uma forte centralização burocrática, pelo estabelecimento de regras
para a coordenação das ações dos membros organizacionais, pela aplicação de técnicas
pré-estabelecidas de modo a obter a diminuição das incertezas no desenvolvimento
das atividades cotidianas e por um circuito de informações hierárquico – vertical – e
centralizado.
Segundo Perrow (1976), uma organização pode inicialmente ser entendida a partir
de dois fatores específicos: o grau de variabilidade da matéria a ser transformada ou o
grau de variabilidade implicada em sua missão e o grau de incerteza em procedimentos

236 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
que articulam causa e efeito no processo de trabalho. O conceito de tecnologia constitui,
portanto, a articulação desses dois fatores em diferentes combinações.
O modelo burocrático, tal qual preconizado pelo tipo ideal de Weber, pode ser
entendido como uma forma de conjugação de um baixo grau de variabilidade e de
incerteza na medida em que, idealmente, procura estabelecer a rotina como base de sua
consecução de tarefas. Em consonância com esse modelo, o policiamento profissional
irá caracterizar-se pela exclusividade da operação em torno do cumprimento das leis
penais, segundo procedimentos padronizados (CERQUEIRA, 1999).
A função policial, no contexto desse arranjo tecnológico, é fortemente limitada
pela exclusividade sobre o controle da criminalidade e prisão de delinquentes e
criminosos. A missão organizacional no contexto profissional de policiamento, assim,
não é analiticamente problematizável, uma vez que fortemente vinculada a fatores
estritamente relativos ao controle do crime. De acordo com este modelo de polícia:

Todas as atividades que eram solicitadas à polícia pela comunidade que não
fossem restritas ao cumprimento das leis penais eram consideradas pelos
policiais como trabalho de assistência social e inadequadas para a polícia.
(CERQUEIRA, 1999, p. 06)

Isso não significa afirmar que as atividades desenvolvidas pela polícia, do ponto de
vista empírico, restrinjam-se à execução da lei penal – law enforcement –, desprezando
qualquer atividade relativa à manutenção da ordem – keeping the peace -6 Sabe-se
que grande parte do trabalho policial é dedicado a atividades que não se relacionam
diretamente com crimes, sobretudo crimes violentos. No entanto, do ponto de vista
analítico, a ênfase formal desse modelo de policiamento mantém as conceitualizações
acerca de sua missão organizacional sob as limitações implicadas na burocracia. Assim,
a missão do modelo tradicional é preconizada a partir fundamentalmente da aplicação
da lei. No contexto dessa missão policial, a eficácia técnica adquire centralidade, daí
sua exclusividade para a consecução da missão, devendo a comunidade, leiga, manter-
se afastada dos assuntos relativos à polícia.
Deste modo, a missão da polícia, no contexto tradicional, é delineada de modo
a diminuir a variabilidade da natureza da atividade policial: a organização diminui as
incertezas com as quais se depara por meio da limitação conceitual de sua missão em
torno da aplicação da lei. Se a aplicação da lei e o controle da criminalidade constituem
o objeto central da missão da polícia tradicional, a padronização dos fatores relativos
à atividade policial também adquire centralidade. Ora, o segundo elemento, de acordo
com Perrow (1976), relativo à tecnologia de uma organização, refere-se ao grau de
incerteza nos procedimentos que articulam causa e efeito. Nessa medida, o modelo
tradicional de policiamento representa esforços relativos não apenas à missão ou ao
objeto da organização, mas também no que diz respeito à consecução das atividades
dos policiais.
Com a missão organizacional sendo definida com base na aplicação da lei, a
polícia tradicional burocrática enfatizará os aspectos mais rotineiros da atividade

6 Apesar do fato de grande parte das operações policiais rotineiras destinarem-se à manutenção da
ordem e à assistência à população, a polícia constantemente reivindica o deslocamento destas ações para
outros serviços púbicos, enfatizando o uso exclusivo de seus recursos no controle da criminalidade.

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 237


policial. Assim, os resultados do policiamento são medidos pelo número de prisões
efetuadas e ocorrências registradas. Ou seja, esse modelo de policiamento tem como
medida de eficiência os resultados relativos a atividades reativas e não proativas,
cerne do modelo comunitário. O problema aqui, segundo os defensores das estratégias
comunitárias, é que esse tipo de medição da atividade tende a destacar o que for mais
visível em sua consecução, quando o trabalho policial de manutenção da ordem e de
prevenção de ocorrências refere-se a atividades não mensuráveis desta maneira.
De todo modo, o trabalho policial no contexto do modelo tradicional pode ser visto
como uma alternativa de diminuição das incertezas, dado seu recorte. A atividade é
definida, assim, com base, por um lado, na delimitação do seu objeto e, por outro lado,
no grau de atuação dos agentes de linha. No que diz respeito à delimitação do objeto, a
redução das incertezas é alcançada através da padronização. Ao policial cabe o emprego
de determinadas táticas de combate ao crime, táticas estas que se destinam não apenas a
atender às demandas externas, mas também a estabelecer o controle interno dos policiais,
dada sua predeterminação e seu alto grau de padronização. Essas táticas referem-se à
atuação do policial sobre as oportunidades para o cometimento de delitos, ou os riscos,
numa perspectiva preventiva que não encontra respaldo nas práticas cotidianas. Se a
consideração dos riscos como elemento direcionador da atividade policial implicaria
maior padronização dessa atividade, a ênfase sobre os aspectos repressivos – e reativos
– significa uma acentuação maior ainda desta padronização.
Outro aspecto característico da atuação policial do modelo tradicional refere-se
às atividades engendradas pelo agente de linha. De acordo com o modelo tecnológico,
a limitação da tomada de decisão por parte desses atores organizacionais também
constitui importante mecanismo de redução de incerteza, dado que os vários papéis
desempenhados pelas pessoas, fora da organização, afetam de muitas formas a
consecução das tarefas dentro dela. O estabelecimento de bases previsíveis e de rotina
pode se dar, assim, por meio da já destacada padronização das atividades policiais e
das limitações ao uso do discernimento pessoal. A existência de um sistema burocrático
centralizador, desta forma, cumpre o papel de coordenar as tarefas policiais. Nesse
contexto, a impessoalidade na consecução das atividades é caracteristicamente
importante, distanciando o policial dos membros das comunidades.
Como conclusão inicial, pode-se agora localizar, analiticamente, o modelo
tradicional de policiamento dentro de um continuum que parte de um alto grau
de burocratização em direção à modelos menos burocráticos. Toda organização é
burocrática em algum grau. O que caracteriza o modelo tradicional do ponto de vista
tecnológico – principalmente se colocado em oposição às estratégias comunitárias – é
sua proximidade a níveis mais elevados de burocratização, níveis estes advindos da
padronização da missão e das atividades.
Uma organização pode ser entendida, também, a partir das maneiras com que a
autoridade e o poder são distribuídos em seu contexto. Um dos focos de poder em uma
organização encontra-se no controle de suas fontes de incerteza, fontes que se situam,
principalmente, nas relações que a organização mantém com seu ambiente externo
(CROZIER, 1969). Dessa maneira, o ambiente é tido como um limitador da racionalidade
burocrática, devendo por isso, ser neutralizado, em contextos mais burocráticos.
O movimento de reforma, ao dar início ao modelo tradicional de policiamento,
limita, como visto, a relação entre a polícia e a comunidade, no sentido de fortalecer os

238 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
controles internos que asseguram a imparcialidade profissional e a padronização das
tarefas policiais. Com isso, o modelo tradicional pode limitar suas fontes de incerteza,
advindas do ambiente, isolando-o da organização. Ou seja, se os focos de tensão
organizacional encontram-se nas fontes de incerteza ambiental, o distanciamento
entre polícia e comunidade tornará viável uma maior centralização da autoridade e do
poder organizacional.
Entretanto, o controle das fontes de incerteza refere-se não apenas às características
do ambiente externo, mas também às maneiras através das quais as informações
acerca do ambiente e das tarefas são distribuídas no contexto da organização. Todo
ator organizacional dispõe, em alguma medida, de informações acerca das atividades
e do ambiente da organização, e tais informações são interpretadas pelos indivíduos
de modo diferenciado. Organizações dotadas de características mais próximas à
burocracia ideal irão minimizar o acesso dos profissionais de linha às informações
mais estratégicas, no sentido de coordenar as ações individuais, o que significa maior
centralização burocrática.
O policiamento tradicional, nesse sentido, incorpora a divisão de trabalho e a
unidade de comando, premissas da teoria burocrática da administração, à sua estrutura
organizacional. A distribuição das informações organizacionais se dá, nesse modelo,
de maneira verticalizada, em que o líder, ao situar-se na fronteira entre ambiente e
organização, mantém o controle das fontes de incerteza.
A importância atribuída pelo policiamento tradicional à racionalidade de sua
missão e consecução de tarefas faz com que a unidade de procedimentos deva ser
mantida. Assim, se os indivíduos mantêm interpretações diferenciadas acerca das
informações recebidas, a discricionariedade deverá ser evitada.
Finalmente, o tipo de tarefa desempenhada pelo ator organizacional também
implica maior ou menor acesso à tomada de decisão e, portanto, às fontes de poder.
Se, no modelo tradicional de policiamento, a coordenação, padronização e rotinização
das atividades de patrulha adquirem caráter central, o poder atribuído a estes agentes
será menor, bem como haverá maior controle sobre suas atividades, devido à baixa
complexidade de suas tarefas cotidianas. Em outras palavras, o agente de linha, nesse
tipo de organização, acaba por deter uma parcela diminuta de informações acerca da
maneira como sua tarefa deverá ser realizada, o que implicará menores liberdades na
tomada de decisão.
O ambiente externo à organização é, então, um elemento de fundamental
importância para a compreensão das maneiras como a polícia se estrutura, tanto do
ponto de vista de sua constituição tecnológica, interna, quanto no que diz respeito à
distribuição de poder e às possibilidades de tomada de decisão. De acordo com Selznick
(1972), entretanto, os efeitos não racionais da ação social permanecem presentes
no contexto organizacional, fazendo parte da formação de sua identidade. Ou seja,
a organização assenta-se em valores que se constituem no âmbito da comunidade
que a cerca. Esta identidade transcende a lógica instrumental da organização. Em
dissonância com essa perspectiva, o policiamento tradicional permanece apoiando-
se nas premissas da eficiência técnica. Nesse sentido, prioriza as táticas de respostas
rápidas às chamadas dos cidadãos, o patrulhamento em automóveis em detrimento do
policiamento a pé, maneiras limitadas de contato com a comunidade que a legitima.

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 239


Fazendo uso dos conceitos trabalhados por Scott e Meyer, esta relação com a
comunidade pode ser explicada por meio da maneira como a organização policial
profissional entende e classifica seu ambiente. Assim, a polícia acaba por ver o
ambiente no qual se situa como essencialmente técnico, isto é, dotado de baixo grau
de incerteza tecnológica, com predominância da lógica da eficiência, e não como
ambiente institucional, composto por organizações dependentes das atribuições das
comunidades para a conquista de legitimidade.
Ainda segundo a perspectiva apresentada por estes autores, a polícia tradicional
harmoniza-se mais com as finalidades estabelecidas internamente para suas atividades
do que com as normas institucionais do ambiente no qual se situam. A estrutura
interna da organização, que privilegia os elementos institucionais ambientais, é reflexo
de mitos que são construídos fora da organização. Esta, muitas vezes, incorpora
elementos legitimados externamente, elementos estes que não necessariamente
são os mais eficientes, mas que representam ganhos de legitimidade. No caso do
modelo tradicional de policiamento, a organização acaba por se constituir menos em
conformidade com os valores democráticos da sociedade do que com seus critérios
internos de eficácia no combate à criminalidade. Ao assentarem suas atividades na
coordenação eficiente e no controle das atividades produtivas, o modelo tradicional
minimiza a relevância do ambiente institucional no qual se insere.
O policiamento tradicional, ainda, supõe que seu ambiente seja menos
problematizável do que perspectivas organizacionais que operam sob a lógica da
conformidade aos valores comunitários que a engendraram. Isso pode ser visto a
partir da conceitualização que este modelo estabelece para suas atividades de rotina.
De acordo com Q. Wilson, principal teórico do modelo tradicional, os policiais devem
procurar conhecer detalhadamente seus setores de patrulhamento, de modo a poder
incidir sua atuação sobre os riscos aí existentes. Supõe, assim, um alto nível de
controle da organização sobre seu ambiente externo, por meio da sistematização das
situações diante das quais se encontre. Esta delimitação do ambiente organizacional
implica uma ênfase maior da organização policial sobre o controle da criminalidade em
detrimento dos problemas relativos à manutenção da ordem e das questões que dizem
respeito ao medo que os membros da comunidade sentem do crime. A própria cultura
organizacional “militarizada” reforça a distância entre o policial e a comunidade na
qual atua como fator fundamental da garantia de sucesso profissional.
Ao supor que a organização policial deva apoiar-se predominantemente nos
critérios racionais de eficiência técnica, o modelo tradicional minimiza a atuação da
população nas questões relativas à segurança, delimita sua missão privilegiando não
as questões relacionadas à constituição da ordem nas comunidades, mas o combate
à criminalidade e desconsidera a importância da sensação subjetiva de medo da
população.7 Seu ambiente é entendido, portanto, como técnico, menos complexo ou
problematizável e mais passível, por isso, de ter suas influências neutralizadas pela
organização.

7 Isso em suas atuações verificadas empiricamente (CERQUEIRA, 1999). No modelo analiticamente


proposto por O. Wilson o medo da população é considerado, em uma suposição de que as patrulhas
motorizadas, por conferirem a impressão de que a polícia se encontra em todas as partes da cidade em
qualquer tempo, são capazes de diminuir a sensação de medo dos cidadãos.

240 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS DO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO
De modo significativamente diverso, o modelo organizacional do policiamento
comunitário supõe a flexibilização da estrutura burocrática, uma vez que suas
estratégias incorporam novos elementos à missão organizacional. Supondo que o
ambiente no qual se insere seja mais complexo, fonte de sua legitimação, a perspectiva
comunitária de policiamento demanda relações mais intensas com as comunidades,
o que por sua vez, exige uma menor padronização das tarefas, já que os policiais
passam a lidar com mais situações excepcionais na consecução de seu trabalho.
Tarefas que se dão desse modo exigem ações inovadoras por parte do pessoal
de linha da organização, em uma situação em que há a transferência da tomada de
decisão para os atores organizacionais mais próximos do processo produtivo. A idéia
fundamental por trás do policiamento comunitário é que o trabalho conjunto e efetivo
entre polícia e a comunidade pode ter um papel importante na redução do crime e
na promoção da segurança. Enfatiza que os próprios cidadãos são a primeira linha de
defesa na luta contra o crime. Assim, define-se como uma estratégia organizacional
para que os esforços policiais sejam mais bem mobilizados, por fazer necessário que a
polícia se torne aberta aos problemas que as comunidades identificam.
Esse modelo, portanto, exige uma estrutura organizacional descentralizada, onde
as regras de conduta profissional surgem mais como parâmetro de ação do que como
molde para os comportamentos, e as informações seguem um percurso horizontal e
não verticalizado.
A dimensão tecnológica do policiamento comunitário irá supor, no que diz
respeito ao grau de variabilidade da missão organizacional, a incorporação de uma
gama de elementos não formalmente contidos no modelo tradicional. À aplicação da
lei, assim, acrescentam-se os problemas relativos à ordem nos espaços públicos, tidos
pelo modelo comunitário de policiamento não como função residual, mas, sim, como
aspecto central da atividade policial.
A incorporação desses elementos significa maior variabilidade e complexificação
da missão organizacional da polícia, na medida em que a eficácia técnica no combate
à criminalidade deixa de ser entendida como a única missão policial e a conquista da
legitimidade para a consecução das atividades desloca-se para uma área fundamental
dos objetivos organizacionais. No contexto relativo às estratégias comunitárias,
portanto, a missão deixa de ser um limitador da variabilidade da natureza das
atividades policiais. As incertezas com as quais a organização se depara surgem com
maior freqüência, o que faz com que sua missão e seus objetivos específicos sejam
problematizáveis do ponto de vista analítico.
Tal conformação tecnológica implicará, também, alterações relativas ao nível
de incerteza, contidas nos procedimentos que articulam causa e efeito, elemento
constituinte do design tecnológico de uma organização, segundo Perrow (1976).
Assim, a complexificação da missão policial acarretará atividades menos rotineiras no
contexto do trabalho policial e sua padronização será mais difícil de ser alcançada,
uma vez que se refere a contatos mais próximos com os membros das comunidades.
As estratégias de atuação, portanto, serão alteradas em conformidade com a
ampliação da missão organizacional. Ao incorporar a importância relativa à redução do
medo da população às funções da polícia, por exemplo, o policiamento a pé mostrou-

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 241


se mais eficiente do que o patrulhamento motorizado, por permitir maior proximidade
entre policiais e cidadãos.8
A ampliação da missão organizacional, além disso, fará com que surja a
concepção segundo a qual as atividades policiais são complexas demais para que
sejam conduzidas estritamente no âmbito policial. Tal concepção acarretará duas
conseqüências, de um ponto de vista mais geral. Em primeiro lugar, no que diz respeito
à conceitualização do objeto sobre o qual a atividade policial incide. Às concepções
de risco, implicadas no modelo tradicional, contrapõe-se o conceito de problema
preconizado pelo policiamento comunitário. De maneira resumida, os riscos referem-se
às situações passíveis de gerar incidentes delituosos. A concepção de problema amplia
tal perspectiva na medida em que implica a obtenção de conhecimentos mais vastos
acerca de comportamentos e problemas sociais que surgem em uma comunidade. As
estratégias serão implementadas a partir de definições especificas acerca da natureza
dos problemas. Em outras palavras, se o conceito de risco, na prática das organizações
policiais, significou a consideração de incidentes isolados, o conceito de problema
procura identificar suas causas e conseqüências, de modo a neutralizar sua atuação,
numa perspectiva preventiva. Também aqui, as comunidades, antes afastadas das
estratégias de policiamento, são tidas como elemento de fundamental importância
para a delineação das formas de intervenção nos problemas.
Uma segunda conseqüência da ampliação da missão policial diz respeito à prática
da atividade da policia pelos agentes de linha. A aproximação com a comunidade e
a metodologia de solução de problemas9 implicam a necessidade de consideração do
discernimento do agente de linha, em uma menor padronização de seu trabalho e em
maiores possibilidades para a tomada de decisão. A descentralização organizacional
constitui, portanto, exigência desse modelo de policiamento. A rigidez das regras é
substituída pela motivação dos policiais, o que diminui a intensidade do controle para
o desempenho de suas tarefas.
Em resumo, o policiamento comunitário associa-se a uma conformação
tecnológica em que, por um lado, o grau de variabilidade da missão é maior e,
por outro lado, as incertezas contidas no processo de trabalho ocorrem com maior
intensidade. De um ponto de vista analítico, portanto, o modelo comunitário de
policiamento caracteriza-se por uma menor aproximação a padrões burocráticos de
organização. Nesse sentido, suas características relativas à distribuição de autoridade
e poder também merecem ser pormenorizadas. Como já mencionado, as relações

8 Ainda que esse tipo de patrulha não tenha afetado a ocorrência de crimes.
9 Herman Goldstein (em Improving Policing: A Problem Oriented Approach – 1979) introduz
questões relativas à aplicação do método de solução de problemas, considerando-o mais eficaz do
que a confrontação direta ou a ênfase conferida aos métodos reativos e repressivos do trabalho
policial. A metodologia de solução de problemas consiste em quatro etapas distintas. A primeira
delas, “identificação”, tem como objetivo descobrir quais os problemas associados aos incidentes, a
seleção de prioridades e a definição de responsabilidades. A segunda fase, de “análise”, consiste na
compreensão mais profunda do problema, através do seu estudo de forma mais detalhada. Conhecimento
minucioso das ocorrências dos delitos, sua distribuição espacial, temporal suas possíveis causas é de
grande importância para a etapa de intervenção. O objetivo da fase de “resposta” ou a intervenção
propriamente dita, é selecionar uma solução, um plano de ação estratégico e implementá-lo. Por fim,
a fase de “avaliação”, procura criar critérios objetivos para avaliação do funcionamento e efetividade
das intervenções implementadas.

242 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de poder no contexto organizacional podem ser compreendidas em termos de três
fatores gerais: a configuração do ambiente externo no qual a organização se situa, o
tipo de distribuição das informações organizacionais na cadeia hierárquica e o grau
de incerteza contido na consecução das tarefas. O ambiente organizacional, assim,
possui valor estratégico na medida em que suas fontes de incerteza são material para
a detenção de poder. Ao aproximar polícia e comunidade, as estratégias comunitárias
de policiamento incorporam, portanto, novas formas de engendrar autoridade que não
coincidem vis à vis com a estrutura formal, diferenciando-a de maneira mais enfática
das bases reais de poder organizacional.
Além disso, a ampliação das relações entre polícia e comunidade enfraquece
os controles internos sobre os policiais e as possibilidades de padronização das
tarefas que eles desempenham, na medida em que há um maior acesso destes atores
organizacionais às fontes de incerteza provenientes do ambiente externo, como já
mencionado. A motivação, também por essa via, torna-se instrumento mais favorável
do que o controle rígido sobre as atividades.
Tal configuração exige descentralização do poder, em consonância com modelos
menos burocráticos de organização. Em suma, mesmo que a aplicação da lei seja a
principal fonte de legitimidade da atuação policial, a comunidade passa também a
desempenhar o papel de fonte de autoridade para muitas das atividades desenvolvidas
pela polícia. A aceitação da discricionariedade é oriunda também da importância
atribuída pelo policiamento comunitário à legitimidade conferida pelo ambiente, o
que faz com que as interpretações dos indivíduos acerca das informações recebidas
das comunidades sejam incorporadas.
Finalmente, é importante mencionar que tarefas dotadas de um maior grau de
incerteza em seu processo de consecução implicam maior autonomia para quem
a desempenha. Por tudo o que foi dito até aqui, pode-se concluir que o policial
comunitário, por lidar com uma missão e com um ambiente organizacionais mais
heterogêneos e, portanto, mais complexos, estará desempenhando funções em que o
nível de incerteza e conseqüentemente de autonomia e possibilidades de tomada de
decisão serão maiores do que no modelo profissional de policiamento, onde as tarefas
são rigidamente padronizadas.
Entretanto, no contexto do policiamento comunitário, a diminuição do controle
exercido pela organização sobre seus profissionais corresponde a um maior grau de
controle da comunidade sobre a organização. Assim, às questões relativas à eficiência
no cumprimento de sua missão, cerne do policiamento profissional, soma-se a
necessidade de busca de legitimidade e credibilidade no contexto social democrático.
Ao deslocar sua missão de uma ênfase legalista para atividades de implementação da lei
e manutenção da ordem pública, o policiamento comunitário inviabiliza medições de
resultados que se dêem estritamente pelo número de prisões efetuadas, por exemplo.
As estratégias para avaliação do policiamento, nesse contexto, tendem a ser mais
genéricas e mais difíceis de serem implementadas, dada a amplitude das parcerias
entre polícia e comunidade. Elas devem, portanto, acrescentar ao seu escopo medidas
não apenas relativas ao processo de implementação do policiamento e às taxas de
criminalidade, mas também relativas às percepções que a população tem acerca da
ocorrência de crimes, ao medo da criminalidade e à idéia que mantém acerca das
organizações policiais.

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 243


Medir a atuação policial implica considerações acerca de qual atividade a polícia
desempenha e como ela a desempenha, elementos já descritos das mudanças da
estratégia tradicional para a estratégia comunitária. Assim, a avaliação do desempenho
organizacional no contexto do policiamento comunitário deverá enfatizar elementos
que vão além dos chamados indicadores tradicionais, objetivos, para a incorporação
de indicadores mais amplos e complexos de desempenho.
O maior grau de controle da atividade policial pelos setores da comunidade é
decorrente também da maneira como a organização policial comunitária define seu
ambiente externo. Dado o alto grau de incerteza implicado nas relações mantidas
entre a polícia e as comunidades, o ambiente organizacional do modelo comunitário
de policiamento deixa de ser definido estritamente como técnico, em que predomina
a lógica da eficiência, e passa a ser definido como institucional, fonte de recursos
relativos à legitimidade para a organização.
O policiamento comunitário, desse modo, e em oposição ao modelo preconizado
pela reforma, procura sintonizar-se com as normas institucionais e com os valores
democráticos de seu ambiente, maximizando sua relevância e complexificando suas
definições. A metodologia de solução de problemas descrita por Goldstein (1977)
– identificação do problema, análise, resposta e avaliação – supõe, assim, que a
organização policial não detém um alto nível de controle sobre os fatores ambientais
que, por isso, devem ser compreendidos de maneira mais pormenorizada. Em suma,
trata-se de um ambiente externo, definido pela própria organização como institucional,
problematizável e menos passível de neutralização racional.
O quadro seguinte procura sintetizar as principais características dos modelos
tradicional e comunitário de policiamento, no que diz respeito à análise organizacional.

Tabela 1
Comparação dos modelos de policiamento

Matéria Prima Objeto Modelo Ambiente Tarefa Missão


Policiamento
profissional Não Homogêneo e Poucas Situações Eficácia
Analisável Burocrático1
Problematizável Técnico Excepcionais Técnica2

Policiamento Não Incorporação de Não Heterogêneo e Muitas Situações


Legitimidade4
Comunitário Analisável Novos Elementos Burocrático3 Institucional Excepcionais

Fonte: Marinho, 2002

AS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS MILITARES NO RIO DE JANEIRO,


BELO HORIZONTE E VITÓRIA
O campo das políticas públicas é muito complexo, pois, além de bens públicos
strictu sensu, o estado fornece aos cidadãos também um grande conjunto de bens
simbólicos. O que se produz na área de segurança pública, em larga medida, diz
respeito à segunda categoria citada. A polícia ostensiva é uma das faces mais visíveis
do estado e sua atuação é fundamental na determinação do grau de segurança subjetiva
da população, além de empregar uma imagem de ordem às relações cotidianas das
pessoas. A polícia comunitária implica a tentativa de certa reorganização operacional

244 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
da polícia brasileira, uma vez que institucionaliza uma maior preocupação com a
qualidade da interação entre agentes policiais e a população. Dados da pesquisa
realizada pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG,
para Secretaria Nacional de Segurança Pública10 lançam luzes sobre novas definições
situacionais que emergem no cotidiano da atuação policial.
A análise dos discursos proferidos por atores organizacionais das instituições
militares em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Vitória, muito pode revelar acerca dos atuais
padrões de policiamento, no que concerne aos elementos abordados anteriormente.
Os policiais entendem suas atividades como idealmente relacionadas estrita e
preferencialmente aos objetivos de combate ao crime. Idealmente, mas não de fato. Ser
policial significa atuar nas mais diversas áreas, cumprindo tarefas que seriam, segundo
a perspectiva dos policiais, de outros órgãos. A polícia, assim, acaba por se constituir
em ponto de referência para a sociedade, atuando em tarefas mais heterogêneas do que
aquelas definidas idealmente pela organização. O policial compreende que a realidade
é complexa demais para ser esgotada no contexto organizacional.
Apesar da identificação desta heterogeneidade, há uma maior associação da
atividade policial com o combate ao crime organizado no Rio de Janeiro, do que em
Vitória e Belo Horizonte. Mais do que isso, a atividade policial é tida como autêntica
apenas quando diretamente relacionada ao combate à criminalidade. Assim, a
descrição do cotidiano do policial carioca enfatiza a violência de modo marcadamente
mais acentuado:

“Da dificuldade que é, você lidar com vários tipos de crime, com todo tipo de
situações, desde uma briga de casal quanto a um assalto a banco, um tráfico...
Traz tudo que é pior para a gente entrar, trabalhar em morro, que é um tráfico
muito pesado, com armamento muito pesado e que a televisão não mostra. O
que mostra na televisão talvez não seja nem um décimo do que realmente a
gente vê, de tudo que a gente sabe que acontece”. (Soldado, Rio de Janeiro)

A ênfase atribuída sobre a violência no cotidiano do policial carioca se reflete no


rigor em que cabos e soldados reivindicam a aplicação e dureza nas penalidades:

“Se você não punir quem comete crime, de forma que a pessoa se assuste...
Tipo... Vamos dizer que seja aprovado uma... uma... Não vou dizer pena de
morte, mas prisão perpétua, eu tenho certeza que muito bandido vai ficar com
medo de ser preso. – Imagina, “pô”, nunca mais eu vou sair... Eles vão ter medo.
Mas não tem, eles sabem que vão entrar e vão sair. ” (Soldado, Rio de Janeiro)

No contexto dessa missão policial, a eficácia técnica adquire centralidade,


daí sua exclusividade para a consecução da missão, devendo a comunidade, leiga,
manter-se afastada dos assuntos relativos à polícia, limitando sua atuação à denúncia
de situações específicas. Ora, tal limitação mostra-se compatível com o modelo reativo
tradicional, e não com diagnóstico de situações capazes de gerar a ocorrência de

10 “Estudo da estratégia organizacional de policiamento comunitário nas cidades de Belo Horizonte,


Rio de Janeiro e Vitória”.

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 245


crimes, condição para atuações preventivas. Por outro lado, a formação policial surge
associada à prática, ao cotidiano, ao aprendizado que ocorre durante o processo
de inclusão do individuo na organização policial, o que mais uma vez encontra-se
associado à ausência de padronização.
Apesar da heterogeneidade das situações engendradas no contexto da prática
policial, a tomada de decisão cotidiana é localizada em situação periférica pela
organização policial, mas em situação central pela prática diária. No entanto, se o agente
de linha destaca a tomada de decisão como ponto importante de seu trabalho, o oficial
entende a tomada de decisão como atribuição do comando da organização policial.
Parecem existir, no imaginário policial mineiro, duas polícias, no que diz respeito
aos níveis de rigidez hierárquica organizacional. Fala-se, em Belo Horizonte, de uma
“velha polícia”, caracterizada pela rigidez de comando, pela hierarquia fortemente
centralizada, pelo distanciamento com as comunidades e pela disciplina autoritária da
organização policial.
Segundo os discursos, tanto de praças quanto de oficiais, a “velha polícia” foi
substituída – a partir do movimento implementado por policias mineiros em 1997, a
greve amplamente mostrada pela mídia, com fortes repercussões – por uma organização
mais flexível, dotada de uma disciplina menos centralizada, a “nova polícia”. No Rio
de Janeiro e em Vitória, no entanto, o que se argumenta é que a norma policial se
confunde com a punição a desvios de regras administrativas de baixa importância na
consecução das atividades cotidianas, ou no desempenho do “verdadeiro” trabalho
policial de combate ao crime. Policiais, mais especificamente praças, acreditam não
encontrar apoio de seus superiores que forneça respaldo a suas decisões na linha
do processo produtivo organizacional. A dramaticidade das situações violentas
protagonizadas por policiais é colocada em segundo plano diante do cumprimento de
normas meramente administrativas
Apesar da manifesta flexibilização da estrutura hierárquica e disciplinar da Polícia
Militar de Minas Gerais, praças e oficiais discordam no que diz respeito aos modos de
relacionamento estabelecido entre eles. Assim, enquanto praças afirmam haver forte
separação entre pessoal de linha organizacional e pessoal responsável pela tomada de
decisão, numa permanência da rigidez de estruturas hierárquicas e de cargos antigos,
oficiais afirmam ter havido flexibilização dessa estrutura.
Para cabos e soldados, enquanto o oficialato toma decisões de natureza
organizacional, cabe a eles a tomada de decisão no exercício cotidiano, ainda que de
maneira não manifesta dentro da estrutura formal da organização. Assim, a flexibilização
da tomada de decisão organizacional, atribuída à “nova polícia”, após a greve de 1997,
não encontra respaldo, em Belo Horizonte, nos modos de relações estabelecidos entre
praças e oficias, ou na natureza dos processos de tomada de decisão.
Por outro lado, as maneiras pelas quais os policiais acreditam serem vistos
pela sociedade civil de um modo geral e pela comunidade em que atuam, em
especial, são marcadamente negativas, parte em função de uma herança do período
ditatorial brasileiro, em que as organizações policiais eram tidas exclusivamente
como instrumento de vigilância e repressão, parte em função de sua estrutura militar
centralizada, como destacado nas considerações anteriores.
No entanto, iniciativas em torno da implementação do policiamento comunitário
parecem obter sucesso no incremento desta relação, por possibilitar o estabelecimento

246 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de contatos inter pessoais e, portanto, de confiança, através da fixação de policiais
em determinados locais de atuação. A confiança, portanto, deve ser conquistada, e,
segundo os próprios policiais – praças e oficiais – a aproximação tem sido realizada a
partir de iniciativas das organizações policiais e não de associações ou membros das
comunidades. Ainda assim, o relacionamento entre polícia e comunidade parece ser
positivo onde existem organizações comunitárias em forma de conselhos de segurança.
Outros dos elementos levantados como obstáculo ao estabelecimento de boas
relações com as comunidades, dizem respeito ao medo que os indivíduos sentem
de serem identificados como delatores de práticas ilegais, e pelas diferenças de
mobilização encontradas em diferentes comunidades. Assim, parece haver associação
entre relacionamento polícia-comunidade e denúncias, realizadas pelos membros das
populações, às polícias.
Os modos de relacionamento com a sociedade civil, ainda, podem variar de
acordo com o estrato social com o qual os policiais se relacionam. Assim, o contato
com membros das classes populares é, de acordo com os policias, mais satisfatório,
enquanto as classes abastadas entendem o policial como um indivíduo que não obteve
sucesso na estrutura social. Portanto, a independência entre a abordagem policial e
os diferentes estratos que compõem a sociedade é impossibilitada pelos modos como
policiais são recebidos por diferentes populações.
Entretanto, enquanto em Belo Horizonte e Vitória os obstáculos ao estabelecimento
de relacionamento entre polícia e comunidade encontram-se na imagem policial,
associada ao autoritarismo e à punição, ou à desarticulação comunitária que a torna
incapaz de ações conjuntas, no Rio de Janeiro, outras questões foram destacadas.
A principal delas diz respeito à presença do crime organizado. Segundo essa
perspectiva, traficantes de drogas assumem a autoridade no contexto de aglomerados
urbanos e favelas, impedindo qualquer possibilidade de articulação comunitária
com as organizações policiais. Mas a autoridade exercida pelo crime organizado nos
aglomerados do Rio de Janeiro se reflete, sobretudo, no medo que a população parece
ter de ser penalizada por se relacionar com policiais.
A presença policial passa a ser repudiada pelos membros das comunidades, pois
representa o desencadeamento de situações de grande violência. Em outras palavras,
os policiais entrevistados acreditam no estabelecimento de uma rotina entre crime
organizado e população, cuja ruptura, pela polícia, pode representar riscos maiores do
que aqueles oferecidos pela presença dos criminosos. A ação policial – preventiva ou
repressiva – também é dificultada pela configuração física dos aglomerados urbanos.
Enfim, nas três organizações estudadas os praças não percebem, do ponto de
vista da sociedade, a confiança necessária para um verdadeiro trabalho de parceria
com os grupos externos à polícia militar. Esse sentimento de distância em relação aos
outros grupos e cidadãos é reforçado principalmente pela imagem negativa passada
pela imprensa e pelos militantes ligados aos movimentos de direitos humanos, muitas
vezes acusados de “politicagem”:

“A imprensa só sabe dar moral pra vagabundo, só fala a duas semanas só fala
de Bem-te-vi, quer falar da vida do Bem-te-vi, das mulheres que o cara teve, ta
fazendo o que? ta exaltando, ta incentivando a criança a ser bandido (soldado
– Rio de Janeiro)

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 247


“Principalmente enquanto a segurança pública estiver veiculada com a política
nada vai pra frente. Porque os políticos têm que estar bem com a população,
então não podem deixar a polícia fazer o papel dela” (cabo – Rio de Janeiro)

Mas, em praticamente nenhum momento da pesquisa se pôde associar a falta


de consciência dos praças sobre a importância da estratégia de interação com a
população como obstáculo para sua implementação. Muito pelo contrário, mesmo
com muitas reclamações sobre a falta de treinamento e recursos, humanos e logísticos,
os policiais militares de todas as três instituições estudadas mostram-se interessados
no policiamento comunitário, ou pelo menos não se opõem a ele.

“E a polícia mais antiga não tinha esse contato com a comunidade hoje é o
contrário, e a polícia de comando antigamente não achava certo que o policial
fazia o contato com a comunidade, hoje em dia, é essencial esse contato”
(soldado – Belo Horizonte)
“Polícia interativa é o que deveria ser feito. Mas uma coisa é o que deveria ser
feito, o que o pessoal lá de cima quer que a gente faça e outra bem diferente
é que eles dão recursos para gente fazer, tá entendendo? Polícia interativa é o
ideal? É. Então... mas, e os recursos, os treinamentos, o pessoal necessário, as
condições... não tem” (soldado – Vitória)

O que, no início da pesquisa, parecia uma oposição ideológica, no sentido dos


militares preferirem fortemente a estratégia repressora ao invés da preventiva, no
decorrer da pesquisa passou a se mostrar algo bem mais elaborado. Os praças têm a
capacidade de realizar uma crítica das contradições das polícias militares das quais
fazem parte. De um lado, o policiamento comunitário é a doutrina oficial, por outro,
as instituições não fornecem os treinamentos, os recursos humanos e logísticos para
efetiva operacionalização de uma polícia moderna.
As questões organizacionais de nível estrutural, como o distanciamento e
dificuldade de troca de informações com a polícia civil, o descompasso entre praças
e oficiais, o déficit do sistema prisional (refletido na decepção do militar que prende
o criminoso e não o vê ser punido), acabam tendo mais peso negativo para uma
verdadeira evolução atual do policiamento comunitário que a cultura do policial. Em
termos da preparação da mentalidade do militar, o que deve ser trabalhado é a sua
auto-estima, tanto com intervenção psicológica como midiática, com campanhas no
sentido de melhorar a imagem do policial militar.
Os resultados da pesquisa também são contundentes em mostrar que, em
nenhuma das três instituições estudadas, os praças recebem uma formação continuada.
Os policiais de Vitória, por exemplo, citaram que já foram à Universidade Federal do
Espírito Santo aprender a respeito de geoprocessamento de dados, mas que isso não
teve nenhuma continuidade. Com relação às próprias técnicas de interação com a
comunidade e à metodologia de resolução de problemas, grande parte dos entrevistados
podem citar pouco a respeito de seus conhecimentos, pois apenas realizaram um curso
rápido a vários anos atrás.
Ainda que a violência policial nos aglomerados urbanos seja um problema a ser
considerado seriamente, essa não deve ser vista simplesmente como um obstáculo para

248 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
implementação do policiamento comunitário. Ao contrário, a busca de interatividade
policial com as comunidades pobres, como demonstraram algumas experiências que
de fato ocorreram no Espírito Santo, é possível e é um dos caminhos mais eficazes para
superar a imagem estigmatizada da polícia militar e diminuir a violência policial. É claro
que no Rio de Janeiro, onde o controle de determinados territórios pelos traficantes
coloca os militares em real estado de guerra, a repressão e a inteligência policial terão
que ser reforçadas. O policiamento comunitário também não é uma panacéia capaz de
resolver todos os problemas de segurança pública em todos os lugares.

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES PRÁTICAS


De um modo geral, as sociedades contemporâneas têm vivenciado mudanças
estruturais no âmbito social, econômico e político, que são refletidas em suas
instituições; estas passam a ser vistas como prestadoras de serviços na medida em
que sua sobrevivência vincula-se à crença de seus clientes na pertinência do que nelas
é produzido (PRATES, 2000a). Assim, da ênfase estritamente sobre a racionalidade
econômica, passa-se a agregar fatores que também do ponto de vista do ambiente
organizacional constituem motivadores relevantes para a mudança, como as dimensões
sociais de sua consecução de tarefas.
Por se desenvolver em um ambiente institucional altamente elaborado, as
organizações policiais na sociedade contemporânea têm sua sobrevivência e sucesso
fortemente vinculados à outros fatores além da coordenação e do controle de suas
atividades. A resposta às pressões legítimas das comunidades, em um contexto em
que a liberdade política e os direitos civis adquirem centralidade, passa a ser fator
determinante para a vida da organização policial brasileira e é nesse âmbito que o
ambiente irá exercer pressões por mudanças em direção a estratégias comunitárias de
policiamento.
Diante deste panorama, um dos problemas mais importantes com os quais a
polícia irá se deparar está na conciliação de diferentes demandas diante da necessidade
de resguardar sua identidade, e ainda, na conciliação de sua tradição com as demandas
comunitárias por novas estratégias de atuação. Seu grande desafio será, portanto,
desenvolver a capacidade de conjugar eficiência e sintonia com as comunidades,
diante da necessidade de se levar em conta a existência de uma ampla rede de relações
externas à polícia e que exerce sobre ela grande influência.
Mudanças tão significativas podem levar ao esvaziamento da identidade das
organizações policiais. Nesse sentido, a liderança da organização desempenha
papel fundamental, na medida em que pode mediar a interação entre identidade
organizacional e os valores que emergem da comunidade na qual se insere. O líder de
organizações com as características do policiamento comunitário, assim, não apenas
deverá coordenar as atividades dos membros da organização, mas também ser um
anteparo às aspirações da comunidade. Como resolução dos problemas implicados
no processo de mudança, a organização policial poderá enfatizar sua sobrevivência,
privilegiando o ambiente como fornecedor de recursos, o que pode acarretar prejuízos
para sua identidade e baixa competência para absorver as pressões ambientais – trata-
se do modelo oportunístico de resolução do conflito entre categorias de norma e de
eficiência (PRATES, 2000a). Mas ela pode, também, enfatizar sua identidade, procurando

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 249


manter um equilíbrio entre critérios institucionais e ambientais, de modo a minimizar
os problemas de articulação – modelo de barganha institucional (PRATES, 2000a).
Apesar da heterogeneidade da atuação policial descrita por membros das três
organizações pesquisadas, observou-se uma reivindicação do trabalho de polícia em
torno da missão estrita de combate à criminalidade. De acordo com a crítica a esse
modelo, a criminalidade não pode ser prevenida exclusivamente por meio da aplicação
da lei. A polícia deve buscar outras formas de prevenção de crimes, o que acarreta na
ampliação da missão policial.
Propostas em torno da implementação do policiamento comunitário, assim,
implicam em importantes alterações relativas ao nível de incerteza contido nos
procedimentos que articulam causa e efeito, elemento constituinte do design
tecnológico de uma organização, segundo Perrow (1976). Essa perspectiva contraria
reivindicações em direção a uma maior normatização da tarefa policial, destacada por
importante número de entrevistados e participantes de grupos focais.
A complexificação da missão policial deve acarretar atividades menos rotineiras
no contexto do trabalho policial e sua padronização será mais difícil de ser alcançada,
uma vez que se refere a contatos mais próximos com os membros das comunidades.
Trata-se da institucionalização organizacional de práticas já implementadas pelos
agentes de linha, como a tomada de decisão em atividades cotidianas, e da incorporação
de atividades que tradicionalmente não são vistas como atividades de polícia.
Por tudo o que foi mencionado até aqui, os modelos policiais apresentados pelos
resultados tendem a enfatizar mais suas formas de implementação de atividades do
que suas finalidades propriamente ditas. Ou seja, transformam os meios em finalidades
em si mesmas, investindo grande quantidade de recursos nas respostas rápidas às
chamadas, dando pouca ênfase à detecção dos problemas capazes de gerar demandas,
em uma perspectiva mais reativa do que proativa.
De uma perspectiva administrativa, as decisões são tradicionalmente tomadas
no topo da hierarquia, raramente ocorrendo de modo participativo ou colegiado. Tal
sistema de controle e comando é paradoxal, uma vez que ignora comportamentos
individuais, relativos ao pessoal da linha organizacional, em um contexto de atividades
que requerem decisões complexas no instante em que ocorrem. Assim, se o trabalho
policial inclui altos níveis de discricionariedade, a administração das polícias militares em
Belo Horizonte, Vitória e Rio de Janeiro mantêm um sistema de controle centralizado, o
que faz com que sua estrutura formal e informal de autoridade sejam incongruentes.
Essa é, provavelmente, a mudança mais significativa decorrente da filosofia do
policiamento comunitário. Ao policial comunitário cabe a função de analisar incidentes
e problemas com liberdade para escolher entre alternativas de ação. A diversificação
das opções de ação é também responsável por uma maior complexificação das agências
policiais, uma vez que conferir maiores responsabilidades ao agente de linha pode
significar mudanças profundas nos padrões de recrutamento e treinamento, bem como
nas formas de controle e avaliação do trabalho policial.
Diferente do que é reivindicado por policiais, a implementação do policiamento
comunitário deve gerar, também, um menor volume de normas, menor rigidez no
exercício da autoridade militar e no controle hierárquico centralizado, de modo a
motivar a tomada de decisões e atos independentes no contexto da atividade policial.
Do ponto de vista da eficiência, o envolvimento com a comunidade é fundamental para

250 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
a consecução de tarefas relativas à manutenção da ordem. Nesse sentido, a comunidade
deve passar a ser compreendida como elemento importante na identificação e soluça
de problemas. A ela cabe sugerir medidas necessárias para o combate à criminalidade
e desordem. Do policiamento orientado para o evento, o que se sugere é o policiamento
orientado para o problema, de modo que o policial possa distinguir diferentes formas
de situações passíveis de motivar delitos ou eventos relacionados à desordem o que,
segundo os princípios do policiamento comunitário, demanda envolvimento das
comunidades.
Outra questão a ser destacada diz respeito à definição feita pelos membros
das organizações acerca do policiamento comunitário. Gerais ou abstratas, não
encontram correspondência, nos discursos analisados, com metodologias ou formas
de operacionalização. A dificuldade de transpor uma filosofia comunitária para o plano
do trabalho cotidiano ainda parece ser um dos principais obstáculos à implementação
do policiamento comunitário.
O que se tem, portanto, é que, nas três organizações policiais pesquisadas, não
parece haver compatibilidade entre as estruturas organizacionais formais – constituídas
de modo fortemente centralizador – e os elementos que compõem o modelo comunitário
de policiamento. Ora, diante do fato de tratar-se de organizações apontadas como
pioneiras ou bem sucedidas nos processos de implementação do policiamento
comunitário, acreditamos ter havido forte confusão entre estratégias focalizadas de
metodologias comunitárias e os processos de implementação do modelo.
A expressão “policiamento comunitário”, deste modo, tem sido usada para designar
uma série de iniciativas que refletem muito mais o estilo profissional de determinados
comandantes ou lideranças organizacionais do que um modelo organizacional
propriamente dito. No entanto, a expressão deveria dizer respeito a mudanças no contexto
organizacional como um todo, bem como nas lideranças das unidades policiais, entre
o “staff”, supervisão, no processo de recrutamento, treinamento, avaliação, ambiente
de trabalho e na relação que a polícia mantém com o ambiente institucional no qual
se situa. Portanto, alterações nessa direção requerem, se forem efetivadas, mudanças
simultâneas nas mais diversas áreas afetadas pelo empreendimento.
Em suma, a manutenção da atual estrutura organizacional das organizações
policiais impossibilita o processo de implementação do policiamento comunitário. Diante
disto, um equívoco comum tem sido atribuir a ineficácia das organizações policiais
exclusivamente à precariedade dos equipamentos utilizados por policiais, quando
investimentos em educação – especialmente do pessoal de linha – flexibilização da
estrutura policial, como já destacado e sistematização e maior circulação da informação
organizacional ao longo da estrutura hierárquica parecem ser mais urgentes. Tal
processo exige participação das instâncias decisórias da polícia, além do esclarecimento,
especialmente daqueles que atuam de maneira mais direta com a população.
Existem problemas que só um treinamento mais intensivo e sólido poderia sanar.
Deve-se enfatizar a importância de lidar de forma sistemática com a informação, no
nível de dados estatísticos pormenorizados de crimes nas áreas dos batalhões, que
sejam disponibilizados aos praças e que eles saibam trabalhar. Isso seria fundamental
para o desenvolvimento de um policiamento voltado para solução de problemas, de
forma que os agentes partissem de uma avaliação das situações e da formulação de
estratégias pró-ativas ao invés de meramente reativas.

Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 251


A distância entre o agente que atua nas ruas e o oficial que toma as decisões
também deve ser encurtada, de forma que a identidade institucional do praça seja
reforçada positivamente. Ele tem consciência de ser uma das faces mais visíveis do
estado, e acredita ser suficientemente competente para cumprir esse papel, portanto
percebe como descrédito a falta de participação na elaboração das estratégias de
ação da organização. Compartilha de forma generalizada da filosofia de policiamento
comunitário, mas perde um pouco do compromisso com a mesmo devido às brechas
deixadas para que se torne um crítico da própria estrutura da organização policial
militar, altamente burocrática e que não tem investido de forma satisfatória na
estratégia interativa de policiamento.

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Mudanças em organizações – o caso do policiamento | 253


TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS E CARREIRA DOS AGENTES
PENITENCIÁRIOS: DISTRITO FEDERAL E GOIÁS

Lourdes Bandeira1
Analía Soria Batista

INTRODUÇÃO
Esse artigo analisa os resultados da pesquisa realizada no contexto dos projetos
aprovados pelo Edital de pesquisa aberto pela SENASP/ANPOCS em janeiro de 2005,
na linha: Construção das Carreiras e das Trajetórias Profissionais dos Operadores
da Justiça Criminal e Segurança Pública, com o projeto: Perfis Profissionais dos
Agentes Penitenciários do Distrito Federal e do Estado de Goiás, cujo Relatório
completo encontra-se disponível no site da SENASP2.
O interesse que nos orientou na escolha da temática foi o de contribuir para
uma melhor compreensão do universo laboral dos agentes penitenciários, fazendo
recomendações para orientação de políticas de seleção, formação e treinamento destes
agentes públicos.
Há décadas existe uma sólida tradição de pesquisa empírica sobre as prisões em
numerosos países, notadamente nos Estados Unidos, Inglaterra e França (Chauvenet,
1994; Badinter, 1992; Casadamont, 1985; Faugeron, 1992) e esse tema veio a se constituir
uma das áreas de estudos também no Brasil, a partir das últimas décadas do século
XX. Contudo, quando os pesquisadores se interessaram pelas questões de segurança,
de modo geral, o fizeram em relação aos presos e a situação das prisões, centrando
suas referencias nas reformas penais e prisionais assim como sobre os/as detentos/
as tratando de explorar a cultura prisional de res-socialização/reabilitação do/a
detento/a, o fenômeno da prisionerização, o tempo prisional, assim como da cultura
dos/as detentos/as ou presos/as, as formas de controle, entre outros aspectos.
Mas recentemente, foi evidenciado o interesse pelo trabalho dos/as agentes
penitenciários/as ou agentes prisionais, uma vez que o desconhecimento em relação
ao trabalho destes/as ensejou que se criassem certas representações sociais,
predominantemente “negativas”. No geral, são considerados/as despreparados/as,
repressivos/as, violentos/as e até mesmo acabam sendo vistos/as como torturadores-
carrascos e desumanos.
Os/as agentes estão encarregados/as de “manusear”, como enfatizaram, com
pessoas socialmente desclassificadas sujeitando-se desse modo, cotidianamente,
aos perigos da “contaminação”, pela proximidade com os detentos. Em função dos
contatos exigidos pela natureza do trabalho que realizam, não raro, são representados
como um grupo de risco pela sociedade. As denúncias veiculadas pela mídia sobre o
comportamento observado como desumano e/ou ilícito destes/as, pode reforçar ainda
mais as representações sociais estigmatizadoras. Em função disso, pode considerar-se

1 Professoras do Depto. de Sociologia da Universidade de Brasília/UnB.


2 Site: < http://www.mj.gov.br/senasp/pesquisas_aplicadas/anpocs/concurso.htm>.

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 255
que as relações e interações sociais nos presídios e penitenciárias acontecem entre
dois grupos socialmente estigmatizados: Agentes e internas/os; embora permaneçam
diferenciados do ponto de vista das hierarquias e dos poderes presentes nas
organizações Prisionais.
Goffman (1982:13)3 indica que o termo estigma é usado com referencia a um
atributo profundamente depreciativo, sendo necessário situá-lo no marco de relações
sociais específicas, pois um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a
normalidade de outrem. De fato, do ponto de vista dos/as internos/as, a identidade de
“guarda de presídio” é depreciativa, visão que pode também estar presente em uma
parte da sociedade, e vice-versa. Para os/as Agentes, e em geral para a sociedade, a
identidade de detento/a é desvalorizada, sendo alvo de preconceito.
O conhecimento empírico sistematizado sobre o desempenho funcional dos/
as agentes penitenciários/as, pode ser avaliado como sendo ainda insuficiente e,
portanto, a nosso ver, merece que se questione o universo das carreiras e trajetórias
profissionais desses agentes, assim como a natureza de seu trabalho considerado como
uma atividade bastante peculiar.
Observa-se que no Brasil vem ocorrendo um aumento significativo da população
carcerária4, a partir das duas últimas décadas, apresentando significativas mudanças
em suas características seja do ponto de vista da origem sócio-econômica, seja da
diversidade dos tipos de crimes, criminalidades e delitos. As condições de vida dos/
as detentos/as não evoluíram, na mesma intensidade, e as estatísticas, embora nem
sempre reflitam a plena realidade, apresentam aspectos análogos para a situação dos
diversos estados da federação, sobretudo em relação à precariedade das condições
materiais que caracterizam as instituições prisionais brasileiras.
A reconstrução das trajetórias profissionais dos/as agentes penitenciários exigiu
apelar, para sua adequada compreensão, a diversos procedimentos metodológicos que
compreenderam: a realização de entrevistas, escutas e conversas com os diversos atores
que participam (direita ou indiretamente) da produção, reprodução e transformação,
material e simbólica de importantes aspectos da instituição prisional. Em razão dessa
exigência, durante a pesquisa foi realizado um conjunto de oitenta e cinco entrevistas
com Agentes Penitenciários/as e Prisionais no Distrito Federal e de Goiás; nove
entrevistas com diretores e autoridades da área de segurança pública; nove entrevistas
com Agentes que organizaram visitas guiadas às instalações das unidades Prisionais
pesquisadas, vinte e quatro entrevistas com setenta e dois familiares de detentos e
dezenove grupos focais com oitenta e cinco internas/os de distintos complexos
Prisionais5, somando um total aproximado de 168 horas de gravação.

3 Goffman (1982) aborda o problema do preconceito e da discriminação indicando a dinâmica


do estigma, definido como uma marca, um rótulo que se coloca em pessoas com certos atributos
que se incluem em determinadas classes ou categorias diversas, porém comuns na perspectiva de
desqualificação social.
4 Fonte: Em 2005 o total da população prisional do Brasil era: 336.358, aumentando para 361.402, em
2006.Depto. Penitenciário Nacional. Sistema Penitenciário no Brasil. Dados Consolidados. Ministério
da Justiça, 2006. Site: www.mj.gov.br/depem.
5 Devem-se registrar a boa vontade das autoridades da área de segurança pública, especialmente, os/
as Agentes Penitenciárias/os / Prisionais, familiares e detentos/as em cooperar com a pesquisa. Em
especial gostaríamos de destacar e agradecer a cooperação das/os principais atores dessa pesquisa,
ou seja, as/os Agentes Penitenciárias/os do Distrito Federal e as/os Agentes Prisionais de Goiás. Os/

256 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
O trabalho iniciou-se com as demandas institucionais de liberação legal do
acesso às dependências das instituições. Essas transcorreram sem problemas na prisão
masculina e com maior demora no presídio feminino – Colméia, no DF. Ao contrário
de Goiás que o acesso foi de imediato. Talvez essa diferença se deva a natureza
institucional diversa da gestão estadual sobre os presídios. A pesquisa foi iniciada com
um longo processo de observação etnográfica realizado no interior das dependências
prisionais, observando-se as instalações, a movimentação interna de agentes e presos/
as, nas prisões masculinas e femininas, tais como: os tipos de celas individuais e
coletivas, a circulação dos/as detentos/as pelos pátios internos, o recolhimento às
celas, a distribuição do jantar, a chegada de novos detentos, o funcionamento da
escola, da biblioteca e do templo, instalados no interior da prisão, destacando-se as
diferentes tipificações dos/as presos/as existentes aqueles que possuem curso superior
e ex-policiais estão localizados em celas mais amplas, higiênicas e com mais condição
de circulação, pois há um pequeno pátio interno exclusivo, e as celas estão localizadas
no mesmo corredor da igreja. Há aqueles que estão em regime de solitária, em celas
fechadas minúsculas, escuras com higiene precária, parecem estar amontoados, além
de serem muitos em uma mesma cela.
Além desses percursos percorridos foram observadas as atividades e as rotinas
de trabalho dos/as agentes prisionais, tais como: a distribuição de refeições, a descida
dos presos ao pátio, o retorno às celas e o registro dos/as internos/as uma vez nas
celas ou “confere” ou “recolhimento”, a movimentação no pátio, a chegada e a saída
de presos/as, os desempenhos nas oficinas de trabalho, a circulação dos agentes entre
os presos, os postos de guarda, as formas de controle que exercem sobre os presos, o
atendimento no posto médico, as revistas, o estresse, por vezes manifesto no trabalho,
entre outros.
Na parte externa do complexo prisional masculino, sobretudo no DF, se utilizou a
observação in lócus para observar o funcionamento das diversas oficinas de trabalho,
consideradas como locais de aprendizagem e onde os detentos podem exercer sua
sociabilidade com vistas à expectativa do processo de ressocialização, conforme nos
foi descrito pelos agentes que conduziam a visita aos presídios masculinos. Assim,
após essa passagem pelas dependências internas e externas da prisão, tendo como
objetivo, observar as ações e os desempenhos dos/as agentes prisionais, descrita,
detalhadamente, no relatório final da pesquisa, o que nos possibilitou ter uma
compreensão sobre a prática profissional dos/as agentes prisionais.
Esse artigo compreende as seguintes partes: a) Caracterização das unidades
prisionais estudadas; b) Caracterização do perfil sócio-demográfico dos/as agentes;
c) Carreiras e trajetórias profissionais dos/as agentes penitenciários/as no DF e Goiás;
d) O lócus do trabalho: divisão técnica do trabalho e divisão sexual do trabalho; e,
e) A dupla missão dos/as agentes penitenciários: segurança e re-inserção.

as Agentes que concordaram em participar dessa pesquisa, responderam cuidadosamente às nossas


questões e suportaram a nossa presença durante os longos períodos de observações em relação às
rotinas cotidianas de seu trabalho. O anonimato prometido nos impede de agradecer nominalmente
àqueles e àquelas que participaram como parte integrante deste trabalho, assim como aos membros
das administrações penitenciárias do Distrito Federal e do estado de Goiás, que permitiram nosso
acesso às dependências internas dos presídios.

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 257
CARACTERIZAÇÃO DESCRITIVA DAS UNIDADES PRISIONAIS VISITADAS
As unidades prisionais estudadas no Distrito Federal, onde atuam os/as agentes
penitenciários/as são apresentadas, resumidamente, a seguir:

1) Centro de Internação e Reeducação-CIR, conhecido como – Papuda

Tinha à época da pesquisa aproximadamente, 1500 detentos e eram 60 os


agentes penitenciários, sendo que em torno de 20% do sexo feminino. É o presídio
masculino composto por quatro blocos de três andares, cada um com um pátio no
térreo para o banho de sol. São ao todo 24 alas, onde ficam as celas, distribuídas nos
dois andares dos quatro blocos. O tamanho das celas e o dos pátios é diferente. Para
se chegar às alas é preciso subir rampas cercadas por grades. Há celas que abrigam
dois presos e outras que abrigam teoricamente sete, mas na realidade o dobro. Estas
se diferenciam nas alas que são tidas como as “melhores” ou as “piores” o que é
entendido em termos de disciplina: as mais disciplinadas e as menos disciplinadas
e também menos limpas. Nota-se que as primeiras são mais limpas, iluminadas e
arejadas, ao contrário das outras. A Administração distribui os detentos nas alas de
acordo com o comportamento. Assim, formam-se alas tidas como mais “tranqüilas”
e outras, “problemáticas”. As mais disciplinadas têm prioridade no recebimento de
benefícios, como trabalhar, ser pastinha (representante da ala que se comunica com o
Chefe de Pátio), etc.
É importante ressaltar que às/aos Agentes que atuam nos pátios e nas celas
é proibido portarem armas de fogo, estas/es utilizam somente porrete. Quando
necessitam de apoio armado solicitam pelo rádio. Em cada bloco há um Chefe de Pátio
responsável pela segurança e organização da área, possui um rádio para se comunicar
com outros setores, são eles que recebem os pedidos dos detentos. O chefe de pátio é
o elo de comunicação do interno com a Instituição Prisional.

2) Núcleo de Custódia Feminino de Brasília (Comeia/ NCFB)

O Núcleo de Custódia Feminino de Brasília se localiza a cerca de 40 quilômetros


da rodoviária do Plano Piloto, próximo à cidade satélite do Gama, isolado de Brasília.
Abriga aproximadamente 360 detentas e tem 42 agentes penitenciárias, sendo que
20% são do sexo masculino. Toda a sua estrutura localiza-se em uma área retangular.
Há partes cercadas por muros de concreto com arame farpado e outras apenas por
cercas de arame farpado. Os prédios são distantes entre si, bem espalhados por todo
o espaço existente.
Obsevou-se que logo na entrada, há uma pequena guarita, onde trabalham, em
geral, dois Agentes Penitenciários homens que identificam e controlam quem entra e
quem sai do presídio. Todos os visitantes devem deixar seus documentos, têm seus
nomes anotados em ordem de chegada em uma lista sempre disponível em cima de
uma mesa.
São quatro blocos, um para a Administração, contíguo ao prédio do regime
semi-aberto. Um localizado na entrada principal, onde funciona a ala de tratamento
psiquiátrico com aproximadamente 70 internos, todos os homens. Esta unidade de

258 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
tratamento psiquiátrico está isolada dos blocos do presídio feminino, funciona à parte
das outras unidades da Comeia. Este prédio destinado à ala psiquiátrica abriga os
reclusos todos os homens do DF que estão sujeitos à medida de segurança, porque
são portadores de Transtorno Mental. Neste prédio atuam três Agentes homens. É
importante ressaltar que as mulheres em tratamento psiquiátrico convivem com as
demais internas, não há alas especiais para estas. Além do prédio que abriga os presos
psiquiátricos, os demais blocos abrigam as presas, sendo que na parte térrea localiza-se
a administração e as oficinas de trabalho para as presas, uma minúscula biblioteca.
No presídio feminino encontramos o Núcleo de Apoio Materno Infantil- NUAM,
que recebe as mulheres que entraram grávidas ou que engravidaram por meio das
visitas íntimas. No último prédio há três andares, onde se localiza a sala de revista das
visitas de visitas, com detector de metais e espelho.
Há o pátio, com uma quadra de vôlei seguida de uma área livre, espaços para os
momentos de lazer. Visitamos também a capela onde as atividades religiosas católicas
realizadas e as demais são realizadas no pátio ao ar livre.
Nos andares superiores h localizam-se as celas onde cabem cerca de 14 internas.
Há também uma cela especial onde ficam as internas que têm bebês com menos de
seis meses de idade. Há também uma cela especial para as internas mais idosas e
doentes.
Foram-se observados, além das dependências internas do presídio feminino, os
locais-oficinas de atividades: salão de beleza, salas de aula, sala de confecção de
artesanatos (bijuterias, arranjos, bordados, crochês, etc).
A função básica das agentes é de exercer o controle sobre as detentas que circulam
sistematicamente pelo interior das alas da prisão, observando a movimentação, com o
intuito de evitar brigas, discussões, solicitações desnecessárias, pedidos excessivos, por
exemplo, para irem ao serviço médico. “A prática de uma espécie de “chantagem” de
controle institucionalizada, que se caracteriza pelo considerado “mau comportamento”
equivale a perda da visita. O medo de perder a visita é a maior preocupação das
internas, porque esta representa o elo com o mundo externo. Este contato contribui
para a ordem e segurança no Presídio feminino na medida em que, acende nelas a
vontade de saírem da cadeia e as deixam mais calmas embora deprimidas em razão
da saudade dos filhos, companheiros, parentes etc. mas é ao mesmo tempo, uma
estratégia de atuação das agentes femininas. As detentas internalizam esse controle
externo, transformando-o em autocontrole em suas práticas que vão se modificando
com a limitação e a repetição de atos e comportamentos.
No que tange às relações homossexuais, presentes em todas as prisões, nem na
Comeia nem na PAPUDAS, estas são aceitas com a possibilidade de uso do parlatório,
isto é o local onde os/as detentos/as realizam a visita íntima. Mesmo sabendo que as
relações homossexuais ocorrem até mesmo entre as internas e os internos de ambas as
Penitenciárias, sobre isso há, por parte do/as agente, um “desconhecimento”.
Em Goiás, foram analisadas as instituições que compreendem o complexo
penitenciário da Agência Prisional-Goiana, localizado na BR 153 km 611, na Área
Industrial em Aparecida de Goiânia que compreende: a Casa de Prisão Provisória
(CPP-subdivida em quatro blocos), a Penitenciária Odenir Guimarães (POG, presídio
masculino), o Centro de Inserção Consuelo Nasser (presídio feminino), o Núcleo de
Custódia (presídio de segurança máxima), e a Colônia Agro-Industrial é a unidade

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 259
de regime semi-aberto em Goiás. No conjunto há, aproximadamente, 7.414 presos
recolhidos, e são 596 agentes prisionais, destes 68 são mulheres. Vale destacar dois
aspectos: primeiro, há uma queixa generalizada em relação ao número reduzido de
agentes penitenciários em todas as instituições penitenciárias estudadas; segundo,
há presença dos/as agentes em relação ao número de presos é completamente
desproporcional de um lugar para outro. Enquanto que na PAPUDA, tem-se a relação
de um agente para 25 presos, na Comeia a relação é de um para oito; em Goiás, no
conjunto tem-se um agente por 12 detentos.

3) Unidades Prisionais visitadas em Goiânia-GO

O complexo penitenciário da Agência Prisional Goiana, localizado na Área


Industrial em Aparecida de Goiânia compreende: a Casa de Prisão Provisória (CPP –
subdividida em quatro blocos), fica a Penitenciária Odenir Guimarães (POG, presídio
masculino), o Centro de Inserção Consuelo Nasser (presídio feminino), o Núcleo de
Custódia (presídio de segurança máxima) e a Colônia Agro-Industrial, sendo apenas
este de regime semi-aberto, os demais, em regime fechado. Há outras unidades da
Agência em Goiânia, Luziânia e outras cidades menores em Goiás.

3.1. A Penitenciária Odenir Guimarães (POG) é a unidade masculina de regime


fechado. Na entrada do complexo ficam os Policiais Militares, responsáveis pela revista
de quem entra e saí do presídio, assim como efetuam a revista dos internos que entram
ou saem do presídio. Dois Agentes Prisionais controlam a entrada e a identificação de
veículos e de visitantes. A infra-estrutura do prédio está muito deteriorada, é da década
de 60. Um dos Agentes entrevistados afirmou que o que mais despertou sua atenção
no primeiro dia de trabalho foram as condições precárias da estrutura física em que
se encontra o complexo prisional. Tal situação reforça a sensação de impotência dos
Agentes, de instabilidade e de imprevisibilidade, “onde tudo pode vir a acontecer”.
Eles afirmaram inúmeras vezes acreditar que basta “os presos quererem pra cadeia
virar”. Sentem-se fragilizados diante da deficiência da estrutura física do presídio e
expostos porque esse fator reforça no imaginário o poder do preso em detrimento do
poder da/o Agente.. Essa representação pode resultar em uma assimetria de poder real
entre interno e Agente a partir do momento que ambos orientam sua conduta por essa
percepção. Há um clima de insegurança e tensão que a qualquer momento ameaça à
estabilidade na POG.

3.2. Núcleo de Custódia é a unidade de Segurança Máxima em Goiás, adjunto ao


prédio da Administração Central da Agência Prisional. O acesso à unidade de Segurança
Máxima apenas é possível através da sala do Diretor desta unidade. Nesta sala, há
uma porta de ferro ou chumbo, na qual se tem acesso a um corredor, onde há outra
porta de ferro ou chumbo maior e mais pesada que a primeira. Nesta porta, permanece
um Agente Prisional que identifica aqueles que são autorizados a adentrar ao presídio.
A porta abre e fecha automaticamente por um sistema acionado por esse Agente.
Esta unidade localiza-se em um prédio novo, construído para ser um hospital
de custódia no complexo prisional. Por ser o prédio em melhores condições de infra-
estrutura é onde funciona o Núcleo de Custódia. Está rodeado por muros com cerca

260 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de nove metros de altura e três de profundidade. Há cerca de dois Agentes Prisionais
que atuam como plantonistas. Estes recebem um treinamento e curso de formação
diferenciado dos que atuam em outras unidades.
Abriga internos transferidos de várias unidades da Agência, identificados com
perfil de liderança negativa, com a finalidade de desfazer o elo e a influência diante
da população carcerária. Há também os “mega-traficantes”, os internos acusados
de tentarem ou lograrem êxito em fugas e também aqueles que cumprem punição
disciplinar. São classificados como ameaça à normalidade de segurança do sistema,
identificados tanto quanto ofensivos ao sistema prisional quanto ao restante da
população carcerária. O reeducando é constantemente analisado ao cessar sua punição
disciplinar ou seu perfil de liderança, ele é reintegrado à unidade de origem.

3.3. A Colônia Agro-Industrial é a unidade de regime semi-aberto. Os presos


diferenciam-se em: 1) aqueles que executam trabalho externo; b) aqueles que trabalham
dentro da própria unidade da Colônia Agro-Industrial; c) aqueles que não trabalham
e que vivem sob condições de regime fechado, apenas têm o direito de cinco saídas
ao ano para visitar a família por sete dias; d) há também internos que estão sob a
condição do “seguro”, são isolados dos demais por problemas de convívio; por fim, e)
os reeducandos que cumprem castigo, com direito a apenas duas horas de banho de sol.

3.4. Centro de Inserção Social Consuelo Nasser (CIS). Presídio feminino de regime
fechado localiza-se em frente ao presídio masculino POG. O CIS abriga 65 reeducandas
em regime fechado. Há muros de 5 metros de altura e duas guaritas inoperantes em
razão do reduzido número de Agentes. Existe apenas um bloco no centro, térreo, mal
conservado e relativamente pequeno, onde fica a secretaria, as celas e a cozinha. Atrás
do bloco há uma pequena plantação de hortaliças, dois conjuntos de mesas e bancos
de concreto. As detentas circulam pelos pátios e são inexpressivas as atividades de re-
educação realizadas no presídio feminino.

3.5. A Casa de Prisão Provisória (CPP). O acesso dá-se via uma guarita da Polícia
Militar. Esta é ampla, há diversas salas para realizar as revistas no dia de visitas e um
detector de metais. Ao passar pela guarita, tem-se acesso ao prédio administrativo
da CPP, onde além das salas do serviço burocrático, localiza-se também o setor
de atendimento ao interno: salas de atendimento médico, odontológico, jurídico,
psicológico e de assistência social.
Foi com base nesse conjunto de instituições prisionais que se estabeleceu a base
empírica de nosso trabalho, tanto em relação à coleta das informações etnográficas,
assim como a realização das entrevistas com os/as agentes, e com alguns membros
responsáveis pela administração das instituições prisonais, além dos grupos focais
realizados com os/as detentos/as.

CARACTERIZAÇÃO DO PERFIL SÓCIO-DEMOGRÁFICO DOS/AS AGENTES


ENTREVISTADOS/AS
De modo geral pode-se traçar um “perfil” sócio demográfico dos/as agentes
penitenciários, sem esquecer todos os riscos que isto implica. O Distrito Federal

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 261
continua sendo um espaço da “fantasia corporificada” por um número expressivo de
migrantes em busca de mobilidades social (Nunes, 2004). Grande parte das famílias
das/os Agentes Penitenciárias/os do Distrito Federal vieram de outros Estados da
Federação, sobretudo da região Nordeste. Há também um grupo significativo de Agentes
entrevistadas/os que vieram à Brasília para realizar o concurso público com vistas a
ingressar na carreira policial, como agente penitenciário. Muitos foram incentivados
pelos seus familiares. No conjunto foram unânimes em afirmar que a profissão os atraia
pelo salário oferecido, pela estabilidade que ainda representa um emprego público.
No DF, a maioria concentra-se na faixa etária de 30 a 45 anos; 59% dos agentes
entrevistados têm escolaridade de nível superior e 68% são casados. Vale esclarecer
que, atualmente, o nível de formação exigido para a carreira de Agente Penitenciário
no DF é o curso superior completo. Mais de um terço declarou-se católico.
Entre a formação dos Agentes Penitenciários, o curso de Direito aparece em
primeiro lugar. Os motivos para a escolha desse curso mereceriam um estudo à parte,
mas com base nos relatos, realizar o curso de direito é relativamente fácil, depois,
ingressar na carreira é difícil, principalmente para aqueles que não têm origem familiar,
tradicionalmente, envolvida com a profissão. Consideram como a maior dificuldade é
de ser aprovado pela Ordem dos Advogados do Brasil-OAB. Em contraponto, o curso de
direito oferece maiores possibilidades para a realização de concursos públicos6. Outra
característica a destacar diz respeito à experiência anterior ao ingresso na carreira. Os
Agentes mais antigos e ingressados antes da exigência de nível superior completo, no
momento da realização do concurso, trazem em sua experiência profissional anterior,
passagem(ns) pelo exército e/ou pela polícia militar. A área militar e de segurança
foram praticamente o único campo de atuação desses Agentes ao longo de suas vidas,
constituindo-se como um continuum, como uma trajetória linear iniciada com o
serviço no exército.
Já a experiência profissional daqueles agentes mais jovens que ingressaram nos
últimos anos, trazem experiências profissionais efêmeras e com pouca perspectiva de
futuro. O concurso público e ingresso na carreira de Agente Penitenciário representaram
a tentativa de sair de uma trajetória labiríntica e incerta em busca de estabilidade no
emprego e de garantia de um salário condizente com os altos custos de vida na capital
federal.
Tais situações refletem-se no quadro relativo ao tempo na carreira e a experiência
como Agente Penitenciário e demonstra a diversidade geracional existente entre os
Agentes no Distrito Federal: há duas divisões explícitas: um terço está na carreira no
intervalo de 1 a 5 anos, enquanto um terço está na carreira há mais de 15 anos, o que
caracteriza a presença de duas gerações bem distintas.
Em relação as agentes femininas entrevistadas nas unidades Prisionais da
Papuda e Comeia, no DF, já haviam trabalhado em outras profissões e a opção pela
carreira está também relacionada à perspectiva concreta de estabilidade no emprego e
de melhores salários (“é um concurso que paga bem”). Ganhar um bom salário para
elas, está associado aos projetos familiares como o de garantir uma boa formação para
os filhos, ter condições de “pagar uma escola particular”. Quanto às características

6 Vale registrar, que no DF, existem mais de dez cursos de direitos em instituições privadas, sendo
apenas um na universidade pública. Estima-se que a cada ano sejam formados mais de 1500 bacharéis
em direito, e o exame de ingresso na OAB/DF não aprovados um percentual superior a 20%.

262 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
sócias demográficas: 70% encontram-se na faixa etária entre 30 e 39 anos. Em 60%
são mulheres casadas e com filhos. Entre as entrevistadas, a maioria das Agentes
tem nível superior completo. Com escolaridade secundária encontram-se aquelas que
trabalham a mais tempo na instituição, entre as quais, uma Agente que ingressou em
1977 na carreira e que à época da entrevista estava com 48 anos de idade e prestes a
aposentar-se.
Vale destacar que a exigência do nível superior para o exercício da profissão é
considerada um aspecto que ainda causa surpresa para muitas pessoas, inclusive para
os familiares das Agentes, que se perguntam pela real necessidade do título acadêmico
para exercer uma função definida como “cuidar de presa/o” (leia-se cuidar de alguém
que não preta, do abjeto).
A religião é vista como um aspecto importante na vida pessoal e profissional,
independentemente de ser católica, pertencente ou outra confissão religiosa, pois 70%
declararam-se católicas ou evangélicas.
Poucas declararam ter experiência anterior, ao ingresso na carreira de agente,
em alguma outra instituição militar; ao contrário dos agentes masculinos. Muitas
realizaram o curso de direito e/ou de administração, um terço tem formação na área
de humanidades. As equipes de trabalho são formadas por Agentes com formações
diversas e diversidade profissional parece representar um enriquecimento da equipe
como um todo, mas também certo descontentamento e frustração pessoal por ver que
os estudos realizados, servem apenas para a “função de abrir cadeado, fechar cadeado
e fazer escolta de interno”.
Para a uma parte das agentes, sonhavam com outra profissão, de ser professora,
por exemplo; no entanto, a experiência no campo da Educação acabou sendo frustrada,
foi então que optaram por uma carreira no setor público, onde ainda há os melhores
salários, “sem olhar muito para o que iriam fazer”, como relatou uma Agente graduada
em Educação Física, ex-funcionária do Departamento da polícia federal e há seis anos
na carreira de Agente Penitenciária. Ao contrário dos agentes masculinos, não sofreram
forte influencia familiar na escolha para se tornarem agentes.
No caso de Goiás existem duas modalidades de Agentes Prisionais: os que
ingressam mediante concurso público para o qual se exige o segundo grau completo, e,
os denominados “comissionados”, que ingressam mediante indicação de autoridades e
gozam de uma experiência mais longa no trabalho como Agentes Prisionais. Possuem
nível de escolaridade, no geral, inferior ao segundo grau completo, são mais velhos,
estão na faixa de 40 e mais anos e são casados. Ao contrário dos/as concursados/
as que são mais jovens (40%), na faixa de 25 a 29 anos. Estes, em torno de 60%
são solteiros e 70% tem 2º. Grau completo. O fato de serem jovens indica que para
muitas/os esta atividade representa seu primeiro emprego com carteira assinada. Em
relação aos agentes masculinos, aproximadamente 50% apresenta alguma experiência
profissional anterior. A maioria explicitou ter alguma prática religiosa.
Entre os Agentes Prisionais jovens ingressados, via concurso público, observa-
se uma trajetória semelhante à dos Agentes Penitenciários do DF, em relação a uma
trajetória de instabilidade do vínculo empregatício, com sucessivas tentativas anteriores
de ingresso no mercado de trabalho, e com dificuldades de ordem financeira. Muito/
as foram influenciados/as por parentes e familiares a ingressar na carreira, uma vez
que 35% dos/as agentes entrevistados em Goiás têm parentes na área de segurança

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 263
pública ou militar. Além da influencia familiar houve também a atração pelo salário que,
embora inferior ao valor dos/as agentes do DF é considerado razoável para a região.
Paradoxalmente, os Agentes que ingressaram através do concurso público, são
unânimes quanto à relação estabelecida com a profissão e com tempo que pretendem
dedicar à mesma. Ou seja, pelos múltiplos riscos que a profissão oferece, insegurança
devido às condições precárias de trabalho, a superlotação das unidades Prisionais, os
salários que são baixos, todos estes elementos fazem com que a profissão seja vista
como um trabalho “temporário” ou como mais um dos tantos “bicos” realizados até
então, ainda que com carteira assinada e com estabilidade profissional.
Portanto, além de trampolim, a profissão é vista como uma garantia de
“estabilidade” econômica (não para sempre) que possibilita organizar o tempo livre
para estudar e preparar-se para um novo concurso, sobretudo para aqueles/as que já
concluíram o ensino superior.
Em relação as agentes femininas que ingressaram por concurso, 45% das
entrevistadas situam-se na faixa etária de 25 a 29 anos, 57% são casadas e 29% tem
curso superior completo, e 86% declarou ter uma religião; 43% das agentes femininas
pertencem a algum tipo de associação profissional, recreativa ou comunitária. Entre
as agentes mulheres, 45% informaram que tem algum tipo de experiência profissional
anterior, embora não relacionada com a área de segurança pública. Também, um terço
foi influenciada por familiares para ingressar na profissão. Em relação ao tempo de
carreira as agentes femininas de Goiás apresentam dois grupos distintos: um terço
está na faixa de 1 a 5 anos enquanto que o outro está na faixa de 10 a 15 anos, o que
indica a existência de duas gerações bem explícitas. Além das dificuldades já citadas,
as Agentes Prisionais percebem uma ruptura em seus estilos de vida e que alteraram
profundamente suas relações sociais.
A maioria dos/as agentes, aparenta ter uma descendência afro-brasileira, embora
essa questão não fosse diretamente mencionada pelos/as mesmas. Percebeu-se certo
constrangimento em relação à auto-nominação da cor/etnia. Em relação aos detentos,
a maioria daqueles e daquelas que lotam os presídios são descendentes de afro-
brasileiros.

CARREIRAS E TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS


DOS/AS AGENTES PENITENCIÁRIOS/AS NO DF E GOIÁS
O estudo das carreiras e trajetórias profissionais dos agentes penitenciários
diz respeito a uma tripla dimensão, formal, real e simbólica da construção de uma
carreira profissional. A carreira é o percurso prescrito para cada profissão, que se
manifesta na regulação do ingresso, estabelecendo os critérios de seleção; de formação,
estabelecendo a duração do curso de formação específico e os conhecimentos técnicos
relativos à profissão, e aí por diante. Destacamos, não entanto, que no marco destas
prescrições não há lugar para os significados simbólicos que podem afetar o status
social da carreira, assim como a própria condição identitária dos/as agentes.
A trajetória profissional é o percurso realmente realizado na construção de uma
identidade profissional, abarcando experiências “antes” e “durante” a profissão,
especialmente do mundo do trabalho que aparecem entremeadas com diversas
circunstancias da vida da pessoa. De modo que a carreira pode ser considerada

264 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
uma “trilha” e a trajetória uma “construção quotidiana”, constituída pelas inúmeras
experiências dos/as trabalhadores/as, tais como os motivos que levaram à escolha
profissional, a experiência do preconceito com relação à profissão, a influência da
adesão a uma determinada moral religiosa nas interações sociais dentro do presídio,
as vivencias relativas ao primeiro dia de trabalho, as demandas do trabalho real sobre
o pano de fundo dos conhecimentos técnicos e saberes em geral, adquiridos durante o
curso de formação, as relações e interações com as pessoas detidas, as características
do estilo de gestão prisional, entre outros. Isto é, o universo material e simbólico da
instituição prisional.
A seguir, analisamos aspectos e significados considerados centrais das duas
dimensões mencionadas da profissão de agente penitenciário, a carreira e sua trajetória
profissional.

Carreiras dos Agentes Penitenciários/ Prisionais do Distrito Federal e de Goiás

As/Os Agentes Penitenciárias/os do Distrito Federal são admitidos na profissão


mediante a realização de concurso público, com grau universitário, para ingressar
na policia civil, passando a pertencer a esta corporação na sua condição de agentes
penitenciários. Em Goiás existem dois tipos de Agentes Prisionais, aqueles que
ingressam por concurso público cuja exigência educacional é de possuir segundo
grau completo, embora um número significativo possua formação universitária; o
segundo grupo é constituído pelos que ingressam mediante indicação de autoridades,
que são denominados “comissionados”, para os quais não há exigência de algum
nível específico de escolaridade, embora, informalmente se lhes exige “experiência”
de trabalho no sistema prisional.
Estes últimos são mais antigos e numerosos (60%) e possuem mais experiência,
um fator de suma importância na legitimação da carreira de um Agente. No entanto,
possuem baixo nível de escolaridade se comparados as/aos Agentes concursadas/os.
As/Os Agentes comissionadas/os também não possuem estabilidade profissional, pois
são passíveis de serem demitidos tão logo acabe seu contrato. Em geral, esse contrato
tem um período de dois anos, renovável por mais dois.
Existem diferenças significativas entre as exigências de escolaridade entre
os agentes no DF e Goiás, que se manifestam em níveis salariais diferenciados. A
remuneração do Agente brasiliense está em torno de R$ 4.223,73; enquanto a
remuneração do Agente goiano é em média de R$ 950,00.
A diferença salarial entre os agentes penitenciários do DF e Goiás, soma-se
à jornada de trabalho. Nos Presídios de Goiás as visitas dos familiares se realizam
nos finais de semana e nos feriados nacionais, nesse sentido os/as Agentes também
trabalham nos feriados, no entanto não recebem nenhuma gratificação por isso. No
Distrito Federal as visitas ocorrem em dias de semana determinados (quarta e quinta),
logo muitas/os Agentes não trabalham nos finais de semana.
As/Os Agentes comissionadas/os também não se encontram em uma situação
estável, podendo ser demitidas/os tão logo acabe seu contrato, que no geral é para
o período de dois anos. Até o momento das entrevistas só havia sido realizado um
concurso público para Agentes Prisionais no Estado de Goiás. Nesse sentido, percebem-
se entre as/os Agentes entrevistados no Distrito Federal e Goiás três diferenças

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 265
básicas: a primeira está relacionada à diferença salarial, seguida da diferença de grau
de escolaridade como um todo. Observamos, ainda, uma diferença no que diz respeito
à idade das/os entrevistadas/os, principalmente entre os Agentes do sexo masculino.
As/Os Agentes Penitenciárias/os do DF possuem dois regimes de trabalho, o
regime de plantão e o regime de expediente. Os que estão no plantão trabalham 24
(vinte e quatro) horas, seguidos de 3 (três) dias de folga. As/Os que estão no expediente
trabalham 8 (oito) horas diárias. Além disso, os plantonistas possuem muito mais
contato com as/os presas/os, se comparados as/aos Agentes do expediente. Estes
geralmente executam trabalhos burocráticos.
Após a aprovação em concurso público no DF, a/o candidata/o realiza um
curso de formação na Academia de Polícia, como policial com especialização em
segurança penitenciária. De acordo com as informações da Academia de Polícia, o
Agente Penitenciário tem as seguintes atribuições: “Vigiar os detentos e reclusos,
observando e fiscalizando o seu comportamento para prevenir quaisquer alterações
da ordem interna e impedir eventuais fugas. Efetuar rondas periódicas de acordo
com as escalas preestabelecidas. Conduzir e escoltar detentos e reclusos quando
encaminhados à Justiça, ao Instituto Médico Legal, aos Hospitais, às Delegacias e a
outros estabelecimentos. Proceder à contagem dos Internos em suas celas, realizar
revistas aos visitantes e internos. Executar outras tarefas correlatas”.
O processo de formação do/a agente penitenciário responde a informações e
aspectos técnicos, estes, relativos aos procedimentos específicos do desempenho das
tarefas e atividades. Nesse sentido as disciplinas ministradas no curso de formação
de Agente Policial no Distrito Federal são: de defesa pessoal, aulas sobre drogas,
tiro com arma de fogo, direção defensiva, entre outros. O processo educativo, isto
é, aquele destinado ao qualificar os agentes, é mais escasso e está concentrado em
oferecer a disciplina dos direitos humanos. Resta indagar em que medida o ensino
dos direitos humanos responde também a uma necessidade internamente percebida
pela categoria ou trata-se de uma exigência formal dos novos currículos de formação
destes agentes?
As/Os Agentes Penitenciárias/os são instruídos a tratar os presos com urbanidade
e respeito, evitando ao máximo qualquer tipo de envolvimento emocional, ou de
estabelecer qualquer tipo de vínculo. Existe uma grande diferença entre o aprendizado
teórico na academia e a atividade prática na Penitenciária, de forma que as/os
Agentes aprendem os detalhes do trabalho no dia a dia, observando as ações dos mais
experientes.
O curso de formação para Agente Penitenciário de acordo com as/os entrevistadas/
os do DF e Goiás foi avaliado como sendo muito curto. Em especial no caso de Goiás,
há relatos que informam que o curso foi de apenas um mês, contribuindo muito pouco
para as atividades práticas. Com o agravante de que os agentes de Goiás ingressam
na carreira com escolaridade média. Além disso, poucos professores mantinham
contato atualizado com o Sistema Prisional, de maneira que não acompanhavam as
mudanças inerentes a esse tipo de instituição, especialmente em Goiás. Um elemento
mencionado pelo conjunto dos/as agentes, diz respeito a distancia entre o ensino
teórico e o trabalho cotidiano no presídio, uma vez que o trabalho prático é aprendido
mediante a observação das/os colegas de profissão mais antigas/os e de seus conselhos
e orientações.

266 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
O curso de formação, na visão de alguns/as Agentes, poderia melhorar no
sentido de atualizar-se para poder acompanhar as transformações que ocorrem no
Sistema Penitenciário, assim como com a mudança e complexidade relativa aos delitos
e a criminalidade. A penitenciária está sempre em mutação, na medida em que há
uma condição de imprevisibilidade relativa ao comportamento humano e, portanto
sempre há novas situações a serem enfrentadas, por um lado, e por outro, mesmo que
houvesse a possibilidade de um processo de formação continuada, ainda assim não
seria suficiente.
O fato de a/o aprovada/o no concurso de Agente Penitenciária/o no DF entrar
para a Academia de Polícia como policial civil, para depois especializar-se em segurança
penitenciária acaba definindo características mais militares, como a disciplina, a ordem,
a hierarquia e a segurança, no trabalho do Agente brasiliense, ou seja, enquanto os/
as brasilienses possuem treinamento policial, os Agentes Prisionais goianos possuem
pouco treinamento policial e se reconhecem como funcionários públicos e educadores.
Essa diferença de procedimento é observada na duração dos cursos de formação de
cada sistema: enquanto os Agentes brasilienses passam de 3 a 6 meses na Academia
de Polícia, os Agentes goianos tiveram de 10 a 15 dias de aulas no curso formação.
Portanto, pode observar-se que existem duas modalidades de carreira de agente
penitenciário: o policial civil na condição de agente penitenciário no DF e o civil
na condição de agente prisional em Goiás. Em relação aos primeiros, destaca-se o
reconhecimento do status profissional, o que lhe garante um salário maior; segundo,
como estes agentes possuem nível de escolaridade superior, isso lhes garante um
exercício legítimo da autoridade. Isto significa que são considerados com status
profissional mais reconhecido. Em quanto que os agentes de Goiás sofrem de certa
ambigüidade profissional uma vez que sem ser policiais, isto é, sem pertencer a uma
corporação policial cujo ethos está centrado em valores tais como: hierarquia, disciplina
e respeito, aqueles agentes no exercício de suas funções, devem, por conta das exigências
do trabalho, agir como se fossem policias, embora, na prática eles/as careçam dessa
socialização, o que os leva a agir segundo suas próprias convicções e valores, cujas
conseqüências podem desencadear maior espaço de discricionariedade.

Trajetórias Profissionais dos Agentes Penitenciários/ Prisionais do


Distrito Federal e de Goiás

As trajetórias profissionais dos agentes penitenciários podem ser organizadas em


função de algumas zonas de sentido produzidas durante as entrevistas em profundidade
com esses/as profissionais, e que mencionamos da seguinte maneira: a) Contradições
simbólicas do emprego público: cidadania e preconceito; b) Discricionariedade: a insidiosa
insuficiência da teoria em face das exigências práticas; c) Duas gerações de agentes: desprezo
e dignidade no tratamento da pessoa presa.

a) Contradições simbólicas do emprego público: cidadania e preconceito


O emprego formal é o modo característico de acesso à cidadania social nas
modernas sociedades capitalistas. Esse status de cidadão significa contar com a
proteção de sistemas de seguridade social em face, por exemplo, dos riscos comuns da
vida (doenças, acidentes, velhice, etc.). O trabalho é atividade dirigida a transformar

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 267
o mundo e a si mesmo. Essa atividade tem conteúdo (tarefas, atividades, processos)
objeto, instrumentos, tempo, sendo realizada a partir da divisão técnica, sexual e
social, tendo diferentes significados para quem a realiza. Assim, o trabalho humano
se expressão nas dimensões objetiva e subjetiva (Soria Batista, 2002).
O motivo a orientar a escolha profissional no caso dos agentes penitenciários,
(originários pelo comum de famílias de classe média e classe média baixa: funcionários
públicos, pequenos comerciantes, trabalhadores rurais ou da iniciativa privada, entre
outros), é o emprego, suas condições de segurança (estabilidade, aposentadoria, etc.).
Nesse sentido, os/as agentes não podem ser considerados fora da lógica que guia a
escolha profissional do restante dos servidores públicos brasileiros. Contudo, no caso
dos/as agentes, identificamos a experiência de uma tensão entre essa motivação e a
estigmatização de que é alvo o trabalho propriamente dito. Nesse caso, o status de
cidadão e o sentimento de dignidade que esse confere vêem-se “ameaçados” pelas
exigências reais do trabalho, relativas ao contexto prisional, que são socialmente
desvalorizadas. No raro, a sua escolha profissional lhes exigirá lidar também com a
preocupação e o medo por parte dos familiares e amigos.
A falta de reconhecimento social do trabalho nos presídios influencia na
produção de discursos justificadores com relação à escolha realizada, tais como
aqueles que afirmam ser a profissão de agente penitenciário uma etapa transitória na
vida profissional, uma passagem de estabilidade (emprego) e desconforto (trabalho)
para um emprego público caracterizado também pelo status positivo do trabalho que
lhes será exigido, isto é, pelo reconhecimento social.
Em verdade, a paz no presídio que poderia ser considerada como resultado de
um trabalho bem feito, não raro desperta suspeita com relação aos métodos utilizados
para conseguir esse objetivo; já a “guerra interna” e seus desdobramentos para fora do
mundo carcerário, são, do ponto de vista da sociedade, indicativo da incompetência
dos agentes. De modo que no interior da categoria como defesa na luta contra a
estigmatização e a vergonha atribuída de maneira impiedosa pela coletividade.
Em sínteses, a condição de cidadão relativa ao vínculo de emprego formal é afetada
pela falta de reconhecimento social do ponto de vista da sua condição profissional.
É seguramente, o primeiro dia de trabalho que irá revelar para este/a profissional,
de maneira mais evidente, essa tensão que o perseguira durante toda sua trajetória
profissional: os aspectos positivos do emprego, manifestos na proteção e no status de
cidadão do ponto de vista sócio – econômico, e os aspectos negativos do trabalho, que
socialmente não é valorizado. Este temor inicial é relativo às representações sociais
negativas sobre a prisão, mas o trabalho na instituição parece mudar essa experiência
inicial negativa.
No entanto, na luta pela construção de uma identidade positiva a pesar da
atribuição identitária negativa da sociedade7, os/as agentes, enquanto categoria produz
seus próprios motivos para se orgulharem enquanto trabalhadores/as, por exemplo,
uma trajetória sem máculas do ponto de vista individual, caracterizada pela ausência
de suspeições ou acusações vindas da sociedade a qual servem. Para muitos/as, o dia
exato da aposentadoria é aguardado com ansiedade, pois uma trajetória socialmente

7 A crise de identidade profissional, produto da estigmatização social se manifesta em diversas


modalidades de sofrimento psicológico e moral. (Soria Batista, 1999).

268 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
inquestionável pode vir a ser destruída, em um segundo, por motivo de alguma crise
no presídio, comprometendo-os /as em alguma ação que possa ser posteriormente
questionada pela sociedade.

b) Discricionariedade: a insidiosa insuficiência da teoria em face


das exigências práticas do trabalho
Em geral, as narrativas sobre o primeiro dia de trabalho das/os Agentes na prisão
revelam as representações sociais negativas sobre a situação de encarceramento. Ter
que trabalhar em um espaço social como a prisão gera expectativas e temores. Mas
medo de quê? Quem está por trás das grades? A sociedade bane as/os transgressoras/es
do convívio social e os encarcera, quase sempre, em algum lugar distante, escondido.
O coletivo social precisa acreditar que as/os prisioneiras/os se diferenciam de maneira
substancial das/os “cidadãs/ãos normais”, que o estigma (simbólico) de presidiária/o
se desdobra em algum sinal que torna visível a suposta “anormalidade”. Isso gera
expectativas e temores tanto nas/os Agentes que estão ingressando quanto naqueles
que visitam, por diversos motivos, as unidades penitenciárias. Talvez a impressão
mais marcante seja a perturbadora “normalidade” dos/as que foram colocadas/os por
trás das grades. Esta normalidade exige que a/o Agente se diferencie do/a detento/a,
em função do linguajar utilizado, da vestimenta, do asseio pessoal, entre outros.
O ingresso no local de trabalho, a sucessão dos dias e as exigências concretas da
realidade do trabalho no presídio acabarão revelando para estes/as trabalhadores/as
em que medida as habilidades e competências adquiridas durante o curso de formação
profissional resultam adequadas para a gestão quotidiana do trabalho. Os/as agentes
do DF e Goiás são praticamente unânimes com relação à queixa da distancia existente
entre a teoria discutida nas disciplinas que estruturam o curso de formação profissional
e as exigências práticas do trabalho, apontando uma avaliação extremamente negativa
em relação ao curso de formação apontando a quantidade insuficiente de horas
dedicadas à formação, a superficialidade dos conteúdos ministrados e a distância
entre a teoria e a realidade do trabalho na prisão, a insuficiência de equipamentos
e de instrumentos de trabalho, e a ausência de apoio institucional do ponto de vista
psicológico e do reconhecimento da complexidade da profissão.
A burocratização do trabalho de segurança, por exemplo, limita o espaço
de autonomia do/a agente para tomar decisões sobre como proceder em face de
determinadas circunstâncias, como em situações de fuga. Mas, o trabalho no presídio
é caracterizado tanto pelas exigências da repetição mecânica quanto pelo novo. O
“novo” é a dimensão comportamental dos/as detentos/as, os subterfúgios, armadilhas,
ações, estratégias, o inesperado. Evidente que o trabalho de segurança no presídio se
alimenta do saber e das experiências das gerações de agentes mais velhos, sobretudo
no DF, mas, essa acumulação que permite o registro e a padronização de respostas
em face de determinados fatos, será sempre insuficiente na medida da existência da
imprevisibilidade relativa do comportamento dos homens. De modo que a percepção
sobre que o curso de formação não consegue encurtar a distancia entre a teoria e
a prática, se alimenta desse espaço de imprevisibilidade. É a imprevisibilidade do
comportamento humano que cria o espaço de discricionariedade para o/a agente. Não
seria correto dizer simplesmente que estes/as funcionários/as públicos/as gozam de
ampla discricionariedade, como se isso fosse uma espécie de privilegio. Ao contrário, é

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 269
a imprevisibilidade do comportamento dos detentos que cria esse espaço que se traduz
numa exigência de autonomia para o agente. Essa autonomia precisa da contenção de
um parâmetro ético claro, para regular o uso da força que a situação pode demandar
utilizar, sem que as ações dos agentes para colocar sob controle as pessoas presas, sob
determinadas situações críticas, se desdobrem em violências desnecessárias.
A dimensão da autonomia no trabalho tem sido analisada de maneira muito
positiva na literatura sobre os aspectos psico-sociais do trabalho nas organizações,
na medida em que o/a trabalhador/a teria uma margem de liberdade para decidir
e controlar seu próprio trabalho, diferente da situação clássica caracterizada pelo
predomínio da dimensão prescritiva do trabalho que cerceia a liberdade do trabalhador.
Contudo, no caso dos agentes, a discricionariedade se transforma numa exigência que
cria conflitos na medida em que pode exigir tomar decisões mais ou menos pessoais
e imediatas sobre como agir sob condições inesperadas. Os reclamos sobre a distancia
que existe entre os conhecimentos e saberes ministrados no curso de formação e
as necessidades reais do trabalho no presídio é, efetivamente o espaço criado pelo
inesperado, chamado de discricionariedade, que lhe exige a escolha de procedimentos
adequados. Isso indica a necessidade de contar com algum tipo de parâmetro tanto
técnico quanto ético para agir.
Caso ele não manifeste capacidade de agir no enfrentamento do inesperado
será cobrado duplamente: pela hierarquia da corporação e pela sociedade. A primeira
o acusará de incompetência e de omissão no cumprimento de seu desempenho
profissional; a sociedade o acusará de falta de iniciativa ou até alguns não hesitaram
de chamá-lo de “covarde”.
Observa-se que há uma adesão à religiosidade significativa entre os agentes. A
adesão à religiosidade pode influenciar o trabalho realizado pelas/os Agentes na prisão?
O espaço de autonomia/discricionariedade do agente precisa ser “auto-alimentado” por
valores morais que possam servir de parâmetros em face das demandas inesperadas
do trabalho com os internos.
A pesquisa indicou que, da perspectiva dos/as Agentes, as crenças religiosas
têm influência na visão que se tem das/os internas/os e por essa via, nas interações
sociais ao interior do presídio. Quando essa religiosidade está ausente ou não é
experimentada de maneira mais profunda, prevalecem outras visões institucionais
sobre as/os internas/os, em geral, influenciadas pelas exigências do tipo de trabalho
que o Agente realiza junto ao interno e pelas experiências vividas nesse ambiente.
É evidente que os/as Agentes comungam com uma série de discursos sobre
os/as internos/as. Esses discursos “produzem” as/os internas/os, sujeitando-as/os à
determinadas definições. Existem os discursos institucionais sobre as/os detentos, que
são compartilhados por um número significativo de Agentes e outros discursos mais
atrelados à moral oriunda da religiosidade de cada Agente.
Desse modo, do ponto de vista doa/as Agentes, o/a interna/o pode ser um/uma
pecadora/r que precisa de arrependimento e compaixão ou alguém que “tem o destino
dele”, precisando passar por essa situação. Para outras/os Agentes, a/o interna/o é
alguém que tem uma “influência maligna” em sua vida. Entre outros, esses modos
de compreender a situação de encarceramento acabam tendo impacto nas interações
entre Agentes e internas/os no dia-a-dia, “conspirando” a favor ou contra a política
institucional de reintegração da/o interna/o à sociedade.

270 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Evidentemente, as representações sobre os internos orientadas pela prática
moral religiosa podem oferecer o cenário sobre o qual os agentes decidem sobre como
agir em situações críticas ou inesperadas com relação os detentos. Em situações de
enfrentamento ou de conflitos onde as ordens e os procedimentos conhecidos e as
hierarquias estão difusas só resta o agente agir, e este o fará, seguramente, com base
nos seus próprios parâmetros morais, sobretudo se a ética profissional (deontologia)
está pulverizada.
Portanto a discricionariedade não diz respeito, exclusivamente, a condição de
autonomia do agente como um elemento de sua mais plena liberdade e racionalidade.
Na verdade, essa discricionariedade é um espaço vivenciado de maneira conflitiva
pelo agente, não uma escolha individual mais uma imposição da própria lógica do
trabalho que lhe exige ser e comportar-se como uma pessoa autônoma: sem omissões
e sem excessos.
Até que ponto a adesão a práticas religiosas – mais ou menos fundamentalistas-,
permitem o/a agente penitenciário/a agir efetivamente “sem omissões e sem excessos”
isto é, profissionalmente e com humanidade? A partir das entrevistas realizadas
observou-se que nem sempre as práticas religiosas garantem essa forma de agir. Ao
contrário, encontramos relatos de uso da força, da violência e a tortura, justificados
pela própria convicção moral internalizada. Um exemplo contundente é que um
número significativo dos agentes entrevistados mostra-se favorável à pena de morte.

c) Duas gerações de agentes: desprezo e dignidade no tratamento


da pessoa presa
O compromisso do Brasil ao assinar a convenção das Nações Unidas contra a
tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes estabelecerá
um antes e um depois na formação profissional dos agentes penitenciários, criando
certa conflitualidade entre distintas gerações de agentes. Isso não significa que o
conjunto dos agentes mais antigos observe as pessoas presas com desprezo ou que a
totalidade dos agentes mais novos preservem a dignidade das pessoas pressas. Contudo,
permanece certa clivagem entre as gerações, o que aponta para a heterogeneidade da
categoria nesse importante quesito que é o tratamento da pessoa que cumpre pena
privativa da liberdade. Os/as agentes mais novos/as são unânimes ao destacar a
importância outorgada ao tratamento da pessoa presa no curso de formação. A ênfase
no conceito viril da valentia no dia a dia do tratamento com a pessoa presa deu lugar
a ênfase no conceito civilizatório de urbanidade, como modo predominante de se
relacionar com quem cometeu desvio comportamental.
A mudança comum no sistema penitenciário do DF e de Goiás é relativa ao
tratamento que deve ser dispensado ao interno, no sentido do respeito aos direitos
humanos. Esse elemento indica certa ruptura com relação ao passado, embora
persistam certas continuidades que se manifestam em comportamentos tradicionais,
nem sempre diretamente atribuíveis aos trabalhadores mais antigos.
Em Goiás os esforços pela humanização do presídio aparecem também no modo
como são denominados as/os detentas/os do regime semi-aberto ou aberto, que
recebem o nome de “reeducandos”.
Importa destacar, não entanto, que esse diferencial de formação, não
necessariamente, será acompanhado pela mesma orientação no que diz respeito à

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 271
gestão prisional. Até porque a administração do presídio pode vir a se caracterizar pela
presença de diferentes estilos, característicos ao próprio administrador. Na situação de
Goiás a orientação mais geral sobre a importância do respeito aos direitos humanos no
presídio foi acompanhada pelo estabelecimento de uma perspectiva de gestão prisional
baseada no objetivo da pacificação das relações e interações sociais entre os diferentes
atores. Isso não significa que essa perspectiva pacificadora seja um desdobramento
apenas, da orientação humanizadora do presídio. Até porque se observou que são
diversos os fatores que permitem compreender a adoção dessa estratégia de gestão. As
diferencias se evidenciam para DF e para Goiás. No primeiro a orientação mais geral
sobre o respeito ao detento foi acompanhada por um endurecimento das estratégias
de controle dentro do presídio, em função de uma racionalidade material e de poder
assegurada pelo pertencimento a uma corporação. Enquanto que em Goiás manteve-
se a diretriz com relação a utilizar estratégias diversas e não apenas disciplinadoras,
para garantir a paz dentro do presídio.
Essa gestão prisional diversificada acaba sendo observada de maneira diferente
pelas pessoas presas. No caso do DF, a relação entre internos e agentes é baseada na
desconfiança, no disciplinamento e no distanciamento, mais do que isso, trata-se de
um relacionamento entre “inimigos”, detentos e agentes. Isso significa que o objetivo
do disciplinamento se obtém sobre a base da iniciativa dos agentes do estado, pelo
controle sistemático, o cumprimento rigoroso das rotinas, por um espaço físico mais
ordenado e por uma vigilância constante e uma inteligência prisional a serviço da
segurança.
No caso de Goiás, embora exista desconfiança o distanciamento entre os agentes
e os detentos, isso é menos evidente e o disciplinamento é trocado por acordos que
se materializam em compensações materiais e simbólicas para ambos, agentes e
detentos. Ou seja, a paz dentro do presídio resulta de uma serie de acordos entre
os atores centrais destinados a evitar os episódios comuns, tais como fugas, mortes,
brigas, etc, que se vem a tona e desacreditam a instituição prisional.
Um elemento reiteradamente apontado para o caso do DF é o “endurecimento”
da política de segurança na unidade estudada. A pesquisa apontou uma ruptura na
gestão prisional nos últimos anos da década de 90, que indica um antes e um depois
nessa gestão.
Segundo depoimentos dos/as Agentes mais antigos, antes a unidade tinha
praticamente os mesmos problemas que outros presídios do DF: demasiadas regalias
para os internos, indisciplinas, organizações internas na forma de comandos. Quando
uma nova gestão teve início, uma série de regalias teria sido eliminada, como as
visitas os finais de semana, que agora acontecem durante a semana, a possibilidade de
armar barracas nos pátios da unidade durante o período de visitas, onde seguramente
aconteciam os encontros íntimos, a organização coletiva dos presos. Em Goiás a
organização de comandos de alas é observada como um elemento que pode, embora
de maneira contraditória, contribuir para a pacificação dentro do presídio. Em Brasília,
essas organizações são apontadas como o germe da violência dentro do presídio, sendo
sistematicamente combatidas.
Assim, o estudo apontou para a presença de dois tipos de políticas de segurança
nas penitenciárias analisadas. O primeiro corresponde ao adotado na penitenciária
masculina do DF e que decidimos denominar como: tipo de segurança baseada na

272 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
iniciativa do Estado sem participação dos internos. O segundo, está presente na Agência
Prisional de Goiás, denominado tipo de segurança baseada na iniciativa do Estado com
participação dos internos.

d) O Locus do Trabalho: Divisão Tecnica de Trabalho


e Divisão Sexual do Trabalho
Um número não desprezível de Agentes experimenta mudanças nas suas vidas
familiares depois que ingressam na profissão. A rotina de trabalho considerada
estressante influencia o comportamento das/os Agentes. Há relatos de Agentes que
afirmam terem se tornado mais “brutos” ou “violentos” com a família, chegando por
conta desses comportamentos à separação. Outros manifestam traços de paranóia, isto
é, sentem-se constantemente ameaçados ou perseguidos, e por essa razão mudam as
rotinas quotidianas, os lugares que freqüentam os amigos que cultuam. Sentimentos
de ansiedade, insônia e depressão também foram apontados como características
emocionais destas/es trabalhadoras/es.
Os aspectos indicados nos levaram a indagar sobre a natureza do trabalho dos/
as agentes nos presídios, apontando dimensões tais como: a) a situação de trabalho
instrumentalizada e a divisão técnica do trabalho; b) a natureza do trabalho de
segurança e representações sociais sobre os internos e, c) a divisão sexual do trabalho
nas unidades estudadas.

a) A Situação de trabalho instrumentalizada e a divisão técnica do trabalho


O/a agente é um/a executor. Ele/a não dispõem nem dos direitos nem dos
meios de decisão em relação as atividades que desenvolve e sobre os recursos que
utiliza.Desta perspectiva ele/a está na posição idêntica de um/a policial ou de um/a
trabalhador/a. A posição instrumental da profissão dos/as agentes penitenciários/as
participa da razão instrumental que define todo o aparelho do Estado: seus objetivos,
funções, as orientações profissionais lhe são prescritas pelas dimensões do político.
Um dos corolários desta instrumentalização é a ausência de vocação própria, por parte
dos/as agentes penitenciários/as. Neste sentido pode-se destacar que em boa parte,
os/as agentes, escolheram ingressar nesta profissão por razões negativas: condição de
desemprego, instabilidade ou falta de emprego; as motivações positivas são inerentes à
profissão: estabilidade profissional e condições salariais razoáveis, comparativamente
a outras profissões, são as mais recorrentes. O que não implica que em boa parte dos/
as entrevistados/as sente vergonha de desempenhar esta função, sobretudo quando
afirmam que não querem que seus filhos/as sigam a mesma função. Alguns escondem
de seus filhos o que fazem, assim como sentem vergonha de se identificarem como
agentes penitenciários/as, pois consideram a profissão abjeta. Aqueles/as que se
declaram ter vocação para esta profissão, sobre eles/as pesa uma suspeição. Outro
traço da instrumentalização da profissão de agente se caracteriza pela indeterminação
das funções (como é o caso dos policiais). As funções são estabelecidas a partir da
indefinição – da necessidade ou da disponibilidade, uma vez que sempre há déficit do
número de agentes necessários.
Indeterminadas as atividades estão sujeitas as modificações das regras que
as governam: leis, códigos, regulamentos, etc. dependendo da hierarquia que dá as
ordens e que define os meios de sua execução. Isso significa que dependem da política

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 273
interna da direção da instituição. Ainda a indeterminação das funções se manifesta
pela variedade das atividades que são desempenhadas pelos/as agentes. Um/a agente
pode, em um mesmo mês desempenhar muitas funções, no interior da prisão desde
exercer a guarda dos presos, supervisionar as celas, como até ser deslocado para os
trabalhos administrativos ou mesmo ser transferido para supervisionar as oficinas
ou para algum outro posto fixo. Vale dizer que muitos acabam não passando bem de
trabalhar diretamente ligado aos presos, sobretudo os/as agentes mais jovens.
As agentes femininas não trabalham no interior da prisão masculina, pois a
condição de ser mulher as remete ao trabalho externo, seja de natureza administrativa,
seja de guarda na entrada da prisão e de revista das visitas femininas e dos postos
de controle (mirador). Esta variedade de funções atesta a necessidade de que o/a
agente acaba desenvolvendo qualificações variadas e universais. Também não há,
necessariamente, a consideração de um vínculo entre a formação do/a agente e seu
desempenho profissional, pois aquele/a que é formado/a em educação física ou
em pedagogia, por exemplo, não necessariamente, estará desenvolvendo atividades
relacionadas a sua formação com os detentos/as. Evidencia-se assim a necessidade de
uma densa capacidade de adaptação por parte dos/as agentes, a cada nova função, a
cada novo diretor, a cada nova mudança de horários, etc. Não existe uma deontologia
profissional comum estabelecida, do ponto de vista de que suas prescrições definem
atribuições específicas contidas em uma lei.
O regulamento rege que os/as agentes devem ser extremamente rigorosos/as
com os/as detentos/as não possibilitando qualquer tipo de aproximação. Na realidade,
nem sempre funciona assim. Devem conhecer de cor todas as suas responsabilidades
relativas as condições de segurança ( consignes de securité).
Do ponto de vista da gestão do tempo carcerário, há uma dupla situação: individual
e coletiva, pois, a gestão do tempo carcerário se constitui no princípio dominante da
organização do trabalho na prisão, areticulando-se a gestão dos “movimentos” ou das
“mobilidades” dos/as presos no interior dos espaços carcerários. Em outras palavras,
a regulamentação do tempo e do espaço, em efeito, é ordenada em função do conceito
fundamental de movimento.
O movimento dos/as detentos/as organiza a divisão de trabalho entre os/as
agentes penitenciários e os demais funcionários das prisões. Em outras palavras, a
movimentação dos/as detentos/as mobiliza o conjunto de todos/as os/as funcionários/
as da prisão, desde a sucessão de tarefas de controle e de atendimento a serem
realizadas durante o dia, os/as detentos é quem delimitam o tempo gasto nas diversas
tarefas dos/as agentes (da saída das células, do banho de sol, das refeições, da ida ao
médico/enfermaria ou psicólogo, a escola, as oficinas, do esporte, no grupo religioso,
etc). Assim, o movimento, princípio central da organização das atividades dos/as
detentos/as e das tarefas dos/as agentes, está na centralidade da lógica da organização
burocrática da prisão. Pois, organiza o ritmo de trabalho de cada um, sincronizando,
o de todos na mesma seqüência temporal.

b) A natureza do trabalho de segurança e representações sociais


sobre os internos
A função instrumental do desempenho do/a agente se organiza também em
torno da noção e da prática de segurança. “A função principal dos/as agentes é de

274 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
assegurar a guarda dos/as detentos/as e de preservar sua segurança no interior da
organização prisional”, afirmaram alguns. A idéia de Segurança Pública – prescrição
conhecida que está em lugar privilegiado nos manuais, assim como na cabeça dos/
as agentes, constitui-se na espinha dorsal da instrumentalização das atividades. O
fracasso manifesto nesta função é a rebelião dos/as prisioneiros/as. Assim, os postos
de trabalho são hierarquizados pela ordem de responsabilidades que cabem a cada um
dos/as agentes, em função do controle da segurança.
Um outro indicador de garantia da função de segurança é a estrutura hierárquica
paramilitar que predomina nas prisões estudadas, sobretudo no DF, cuja característica
principal é de controle de possíveis crises ou de rebeliões. Ou seja, como nos afirmou
um agente, em caso de crise há uma hierarquia organizacional que é capaz de mobilizar
em pouco tempo o maior contingente de membros da organização. A instituição
prisional, a semelhança de outras organizações como a polícia, o exército e o corpo de
bombeiros, compartilha algumas características do tipo: uma disciplina individual e
coletiva acentuada e rígida, a disponibilidade e a mobilidade dos/as agentes, em tempo
real. Tais características possibilitam que os/as agentes possam ser interpelados/as a
qualquer momento, independentemente de estarem fora de seu horário de trabalho
formal. Por sua vez, tal disponibilidade torna possível a troca e a substituição de
funções, o que acarreta mais uma dificuldade em relação à condição de especialização
da função de agente. Em relação à disciplina, exige um controle tanto dos/as agentes
quanto dos/as detentos, isto é de parte a parte (Chauvenet et al.1994).
É a segurança que define o conteúdo da função delegada ao agente. É fundada
sobre o olhar. Visualizar de uma só vez o conjunto das celas de um andar, ou dos/
as prisioneiros/as no pátio. Abrir e fechar celas, acompanhar a chegada e a saída de
presos/as. Outra tarefa é o controle do efetivo, isto é, de saber onde se encontram
os/as presos sob sua responsabilidade de guarda direta, não importando o que ele/a
esteja fazendo, no momento. A segurança do olhar se relaciona a segurança da escuta,
isto é, das rondas, da escuta de ruídos, barulhos estranhos tudo passa a ser motivo de
vigilância e de segurança. Esta necessidade de olhar acaba desenvolvendo no/a agente
uma capacidade/habilidade própria de observação muito aguçada que é completamente
diferenciada das pessoas externas à prisão. A agilidade, a mobilidade, a rapidez do
olhar, um “dom da obliqüidade’, assim como de uma sensibilidade auditiva aguçada
fazem do/a agente um/a pessoa com “qualificações típicas” e exclusivas de sua
profissão, pois lhe permitem prever e, consequentemente, prevenir incidentes futuros.
Tais qualificações não os abandonam quando estão vivendo fora de seu trabalho.
Outro aspecto de perturbação para o/a agente pode ser o excessivo silêncio que
pode predominar entre os presos/as, é considerado anormal, pois, segundo os/As
agentes é indicativo de que algo negativo poderá vir a acontecer, uma tensão inabitual,
uma excitação anormal, uma tentativa de fuga que se anuncia. Nestas situações,
mais explicitamente, a segurança proporcionada pelos/as agentes penitenciários deve
garantir, tanto a ordem no interior da prisão (brigas, disputas, acerto de contas entre
membros de gangues entre os/as próprios/as internos/as, e também a prevenção de
suicídio do/a detento/a), como, a missão mais global de proteção da sociedade.
Há centralização da autoridade e circulação rápida e eficaz das informações,
pois tudo se relaciona com a direção do presídio. Os/as agentes dispõem menos
de autonomia em relação as suas atividades, pois tudo depende das ordens e das

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 275
consignes dadas a cada novo. A pesquisa apontou existir uma relação entre a atividade
de trabalho realizada pelas/os Agentes junto às/aos internas/os e as representações
que estas/es têm sobre estas/es detentas/os. As/Os Agentes que lidam com atividades
de segurança tendem a representar a/o interna/o como inimiga/o. E os que assistem
as/os internas/os no dia-a -dia, no caso de Brasília os Chefes de Pátio, como crianças
que reclamam muito.
No DF, o trabalho de segurança junto às/aos internas/os é organizado com base
em regras e procedimentos que conduzem a uma rotinização do trabalho. Essa pode
constituir-se em uma armadilha para as/os Agentes, na medida em que a mecanização
dos gestos pode atrapalhar a atenção, considerada sempre necessária no ambiente
prisional. As principais atividades diárias realizadas junto às/aos detentos são: tirar
as/os detentos das celas para o banho de sol, promover o recolhimento e realizar o
confere. Outra atividade, não necessariamente quotidiana, é a revista às/aos detentas/
os. A precaução que “deve” acompanhar estas atividades permite entender o fato das/
os internos serem representados como inimigas/os e sociopatas.
Se por um lado, discursivamente, exige-se da/o Agente a imparcialidade com
relação ao tratamento dado à/ao interna/o, aconselhando evitar conhecer os crimes por
eles cometidos, de um outro, essa “massa carcerária” é representada como “perigosa”,
independentemente do crime cometido. A periculosidade seria a característica de
todos e qualquer interno.
Na visão das/os Agentes que cuidam da segurança, o importante é evitar ser
surpreendido pelos acontecimentos, indicando a presença de uma visão sobre a/o
interna/o como alguém que está constantemente pensando em construir armadilhas.
A pesquisa apontou que a segurança, considerada nas Unidades estudadas como
uma atividade tipicamente masculina aparece construída sobre uma tripla exigência para
a/o Agente, com relação às/aos internas/os: vigiar, desconfiar e controlar (Chauvenet
et al.1994). Como indicado, essa tripla exigência desenha relações e interações sociais
extremamente complexas do ponto de vista da gestão quotidiana do trabalho, nos seus
aspectos materiais e simbólicos, perpassando o conjunto das atividades de trabalho que
se desempenham em contanto direto com as/os internas/os. De fato, esse tripé aparece
associado, principalmente, a duas representações sociais que as/os Agentes têm sobre
as/os internas/os: a/o interna/o como inimigo e a/o interna/o como psicopata ou
sociopata. As práticas relativas à vigilância, desconfiança e controle seriam orientadas
por essas representações sociais das/os Agentes sobre as/os internas/os. Esse “saber”
institucional sobre as/os internas/os, opera justificando essas práticas e tornando
absoluto o interesse pela segurança dentro do presídio, estabelecendo uma contradição
entre as ações relativas à política de segurança e as ações relativas à política de
reintegração social da/o interna/o controlar (Chauvenet et al.1994).
Há a prisão da/o interna/o é há a prisão da/o Agente. A prisão da/o Agente
que cuida da segurança, na Unidade penitenciária masculina analisada em Brasília
parece estar aderida à lógica do trabalho que realiza. A organização do trabalho é
rotineira, exigindo gestos e procedimentos repetitivos que acabarão construindo para
a/o Agente a prisão do automatismo. A automatização que permitiria liberar a mente
para “outros vôos”, no caso da realização de outros trabalhos igualmente repetitivos,
é geradora de uma armadilha no contexto do trabalho da/o Agente. Percebem as/
os Agentes que a perda da atenção relativa à cadência do automatismo poderá ser

276 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
advertida “pela lente” das/os internas/os, que tentarão se aproveitar desse momento
para desafiar a autoridade.
As/Os Agentes consideram o próprio trabalho como rotineiro. É o trabalho
definido como “manusear com a/o detenta/o”, ter contato físico e visual com o preso,
isto é, tocar com as mãos e percorrer com os olhos o corpo da/o interna/o, trabalho
considerado perigoso. Nos labirintos simbólicos do presídio as experiências são vividas
de maneira contraditória. De fato, a/o interna/o é construído pela/o Agente como
alguém que está permanentemente “maquinando” para conseguir fugir do presídio,
isto é, pensando em como construir ciladas para distrair a atenção dos guardas. Essa
representação sobre a/o interna/o estabelece o parâmetro da desconfiança como
uma alavanca do trabalho de segurança: vigiar, desconfiar e controlar. Para fugir da
rotinização do trabalho e de seus perigos iminentes, as/os Agentes implementam uma
diversidade de estratégias.
Foucault (2000) analisa a lógica arquitetônica do Panopticom8 (definido
inicialmente por Jeremy Bentaham) destinada ao controle visual e permanente dos
internos. Na análise do poder indica que o poder deve ser analisado como algo que
funciona em cadeia, não está localizado aqui ou ali, nem está nas mãos de alguns.
O poder não é um bem, mas é algo que se exerce em rede, e nessa rede todos os
indivíduos circulam, sendo que qualquer um pode estar em posição de ser submetido
ao poder, mas também de exercê-lo.
A experiência das/os Agentes estudados indica a presença de a dimensão especular
do controle. A pesquisa apontou que as/os Agentes percebem que estão sendo vigiadas/
os pelas/os próprias/os internas/os, experimentando que seus comportamentos são
permanentemente submetidos à uma meticulosa avaliação. Nas percepções destas/es
Agentes a “lente” dos considerados “inimigos” parece transcender o plano objetivo do
próprio comportamento, perscrutando a gestualidade sustentada pelos sentimentos
e as emoções, complexidades lidas e interpretadas pelas/os internas/os à luz do que
realmente interessa: as potenciais fragilidades das/os Agentes Penitenciárias/os. Na
visão destes últimos, são essas fragilidades que poderão indicar para as/os internas/
os o caminho da fuga e da liberdade.
Observou-se que a relação com o “outro”, denominado pelas/os Agentes de
“interno”, é dinamizada pelo significado de “inimigo”. Por isso, as relações e interações
sociais podem aparecer dominadas por uma espécie de “lógica de guerra” permanente,
indicativa de uma cultura do conflito. Essa “guerra” se processa bem menos em
ações espetaculares e muito mais na forma de uma luta silenciosa caracterizada por
constantes e insidiosas escaramuças. O território onde essa “guerra” torna-se possível

8 Foucault, (2000), aponta que o Panopticon era um edifício em forma de anel, com um pátio no
meio do qual havia uma torre central, com um vigi-lante. Esse anel dividia-se em pequenas celas que
davam tanto para o interior quanto para o exterior, permitindo que o olhar do vigilante as atravessasse.
Essa forma arquitetônica das instituições valia para as escolas, hospitais, prisões, fábricas, hospícios.
Tratava-se de um espaço fechado, recortado e vigiado em todos os seus pontos. Nele os indivíduos
estavam inseridos num lugar fixo, com os menores movimentos e acontecimentos controlados. O poder
era exercido segundo uma figura hierárquica contínua, no qual cada um podia ser constantemente
localizado, examinado e distribuído. Nessa perspectiva, a forma de poder exercida no panoptismo
repousou, sobretudo no exame. O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção
que normaliza. É um controle normalizante,uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir.

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 277
é literalmente ocupado pelas/os detentas/os; trata-se do pátio e da cela. Segundo as/
os Agentes, sob determinadas circunstâncias, esses territórios podem transformar-se
em verdadeiras armadilhas, sendo observados como recintos perigosos.
A iminência desse perigo pode ser destruída sistematicamente por revistas
surpresas que pretendem restaurar a ordem supostamente sob ameaça. As vezes estas
revistas acontecem por simples rotina, outras, devido a algum tipo de denúncia. Estas
se originam das/os próprias/os internas/os ou pela via dos familiares, e podem estar
mascarando vinganças interpessoais ou desafios entre quadrilhas ou grupos rivais dentro
da prisão. Essas irrupções restabelecem o princípio da ordem através da desorganização
do dia-a-dia das/os internas/os, destruição que acabará revelando o que teima em
permanecer oculto, pondo o cotidiano das/os internas/os de maneira impiedosa
nas “lentes do poder”. È por isso que a entrada no território do “inimigo” é bastante
escandalosa, acompanhada de gritaria, de comandos verbais e de cachorros latindo.
As/Os internas/os ficam confusos e aturdidos, prontos para “revelar” os indícios das
práticas e comportamentos transgressores. A nudez que será exigida poderá constituir-
se na ante-sala de todas as revelações possíveis, voluntárias e/ou forçadas.
Eis aqui um elemento que permite compreender a contradição que pode se
estabelecer nas prisões entre a lógica da segurança e a lógica da reintegração da/o
interna/o, ambos os presentes no plano formal da LEP9 e no conjunto das práticas
sociais que caracterizam estas instituições. Parece evidente que os projetos dirigidos
à reintegração das/os detentas/os precisam ser gestionados por funcionários que
efetivamente comunguem com “fantasias de resgate” das/os internas/os. Mas, na
Unidade estudada, percebe-se um discurso quase psiquiátrico sobre as/os internos,
que lhes atribui poderes ancorados numa espécie de hiper-racionalidade que agiria
como uma arma mortal sobre aqueles Agentes mais humanos, crédulos e, quem sabe,
frágeis emocionalmente, isto é, capazes de se comover.
A armadilha do trabalho rotineiro reside em sua própria natureza. “A rotina
engole”, expressão utilizada pelas/os Agentes entrevistadas/os, pode significar “A
rotina devora, consome“. A rotina pode subverter a ordem das coisas, na medida em
que o próprio trabalho pode constituir-se em armadilha. Os procedimentos, os gestos,
os movimentos realizados quotidianamente na função que desempenham levam a
cadência e repetição mecânica. É a mecanização do gesto que pode denunciar para
um observador atento um déficit de atenção. Isso significa que o trabalho traduz uma
contradição: de um lado, a busca de segurança, calcada em procedimentos reiterados
da maneira o mais perfeita possível; e de um outro a rotinização/mecanização que
pode causar um déficit de atenção e conduzir à fragilização. Para as/os Agentes,
as/os internas/os seriam as/os primeiras/os beneficiárias/os da fragilização das/os
Agentes, e as/os primeiras/os a perceber, nos bastidores de um trabalho de rotina, o
esmorecimento de quem o realiza.
A rotinização do trabalho que poderia levar a um maior controle sobre o mesmo
aparece como uma ameaça surgida do mandato técnico. É a organização do trabalho
da/o Agente que invoca a rotinização dos gestos e dos movimentos, sendo essa mesma
organização técnica que lhe consome a atenção que lhe permitiria ficar alerta para
enfrentar qualquer imprevisto.

9 Lei de Execuções Penais – LEP.

278 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
c) A divisão sexual do trabalho nas unidades estudadas
A repartição ou a distribuição das mulheres e dos homens por atividades, com
papéis sexuais específicos e com prerrogativas pré-definidas é, provavelmente, uma
das mais antigas clivagens construídas entre os sexos no mundo do trabalho. Nas
instituições Prisionais da sociedade contemporânea permanece, ainda que de forma
mais atenuada, essa divisão tradicional do trabalho entre os Agentes Penitenciários
homens e as Agentes Penitenciárias mulheres. Levando em consideração que o
conceito de divisão sexual do trabalho utilizado é o de Kergoat, tomamos por esta
divisão a idéia de que “é pré-existente como noção, mas posterior como problemática”
(Kergoat, 1992: 16).
As sociedades modernas instauraram uma separação entre duas esferas de
atividades: a da mercadoria, do trabalho e das atividades ditas “sociais” e a do privado,
e mais particularmente, da família e das atividades ditas “naturais”. Nessa divisão tem
presença uma ordem social que inscreve as mulheres no espaço doméstico/privado e
os homens no espaço dos negócios, público. Essa divisão, instalada desde o período
colonial-escravocrata no Brasil, atribuiu um conteúdo, e mais ainda, um estatuto
diferenciado ao trabalho dos homens e das mulheres. Como se observará mais adiante
isto também acontece nas prisões.
À noção moderna de trabalho está associada à idéia de valor, que se tornou
central. O trabalho sendo um produtor de valor deve ser medido e avaliado. Torna-se
assim uma mercadoria como qualquer outra. A noção de trabalho doravante define
aquilo que se vende e que se compra no mercado: o mercado de trabalho. Ao mesmo
tempo, as atividades de produção de bens e de serviços que não transitam pelo mercado
de trabalho, pois estão excluídas em termos da definição de trabalho, são consideradas
desprovidas de valor. Em outras palavras, elas não têm valor. Isto caracteriza em parte
a desvalorização do trabalho da Agente Penitenciária.
Portanto, o trabalho como fator de produção tornou-se o referente da concepção e
da organização da sociedade. Assim o trabalho-mercadoria passa a ser o “fundamento”
da relação social e conseqüentemente da cidadania. As transformações institucionais
que se instalaram com o processo de divisão social do trabalho revelam uma ordem
social que comporta uma “ordem de sexo” de classificar e hierarquizar os componentes
sociais deste processo – daí a divisão sexual do trabalho estabelecida.
Não é o produto ou o serviço que distingue o trabalho doméstico e sua definição
mercantil de trabalho, mas a natureza da relação ou do estatuto sob o qual é realizado10.
Segundo Hirata (2002), a conceitualização da divisão sexual do trabalho, em termos
da relação social, baseia-se na idéia de uma relação antagônica, oposta, entre homens
e mulheres. A divisão sexual do trabalho é considerada um aspecto da divisão social
do trabalho e nela a dimensão opressão/exploração está fortemente contida. Essa
divisão sexual e técnica é acompanhada de uma hierarquia clara do ponto de vista
das relações sexuadas de poder, o que se expressa nas relações de trabalho entre as
Agentes e os Agentes.
Em entrevista com o então Chefe das/os Agentes Penitenciárias/os do CIR-DF,

10 Por exemplo: fritar um bife em um restaurante ou para a família. No primeiro caso, a pessoa
desenvolve suas competências no contexto de um contrato de trabalho. No segundo, sob o estatuto de
esposa(o) ou de parente. Não se trata mais de um trabalho, mas de uma tarefa.

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 279
foi-nos dito que as mulheres, preferencialmente, trabalham nos cargos burocráticos
do presídio. Assim, a maioria das mulheres sequer chega a sair do prédio onde fica a
administração e adentrar o mundo dos internos.
Como podemos observar, efetivamente os trabalhos em pátio e de escolta são
feitos majoritariamente pelos Agentes homens enquanto que as mulheres se mantêm
nas funções de escriturária, relatora, serviço social e outras funções administrativas.
Algo interessante a ser destacado é que alguns Agentes Penitenciários homens
chegaram a citar que algumas mulheres sabem desta “facilidade” do trabalho que
é destinado à elas na penitenciária. E, por isso, algumas entrariam na profissão já
sabendo que sua função teria menos perigo e/ou mais segurança que a da maior parte
dos homens que trabalham no presídio.
Outro fato importante é que as próprias mulheres, segundo descrição de um
entrevistado do CIR-DF pedem para assumir estes cargos administrativos e não entrar
em contato com os internos.
Embora com expressões e modalidades diferenciadas – no tempo e nos lugares
–, a divisão sexual do trabalho encontra-se nas Instituições Prisionais e é, no geral,
estruturada em função de um princípio hierárquico: o trabalho masculino tem sempre
valor superior ao trabalho feminino (Kergoat, 1992). Portanto, vale dizer que a divisão
sexual do trabalho é sempre indissociável das relações sociais entre homens e mulheres,
que são relações desiguais, hierarquizadas, assimétricas e antagônicas. Relações de
opressão e de exploração entre duas categorias de sexo socialmente construídas. Tão
forte é tal opressão que hoje se encontra quase que inquestionavelmente, enraizada
nos valores sociais, tanto de homens quanto de mulheres, que reproduzem essa lógica
diariamente, como vimos acima nos relatos que apontam as Agentes Penitenciárias
como prisioneiras dessa mesma lógica. Essa teoria da divisão sexual do trabalho
constitui-se como alternativa aos paradigmas sociológicos que não levam em
consideração a “sexualização” do social.
Alguns teóricos chegaram a acreditar que, como por encantamento, com o fim
do taylorismo, por suposto, se colocaria fim aos sofrimentos físicos que acompanham
a/o trabalhadora/o. Erro duplo: não só porque o taylorismo não desapareceu, mas
porque nessa fase/momento desloca a responsabilidade da organização da produção
sobre ombros das/os próprias/os trabalhadoras/es, onde as novas formas de trabalho
se revelam, particularmente, estressantes (Hirata, 2002).
As/Os trabalhadoras/es, em geral, se queixam da quantidade de tarefas, do escasso
tempo disponível para ser realizada uma atividade, de receber ordens contraditórias, do
peso da responsabilidade de não poder errar na execução da tarefa. Conclusão: fadiga
generalizada, estresse, dores dorsais, dor de cabeça, desânimo... Em síntese, sofrimentos
físicos variados. Tais sintomas também são extensivos ao universo prisional atingindo
as/os Agentes Penitenciárias/os na sua capacidade de trabalho. Ficar muito tempo
realizando a mesma tarefa com uma postura inadequada, o risco e a tensão cotidianos,
carregar pesos desproporcionais, risco de cair, risco de trabalhar com barulho ou
ruído agudo, etc. Estes, entre outros “sintomas” do mundo do trabalho, evidenciam
que praticamente todas as profissões são simultaneamente tocadas por um rápido
aumento das pressões físicas ou morais. Em outras palavras, o aumento das dores e
dos sofrimentos físicos e mentais que são, no geral, passados despercebidos, fazendo

280 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
parte das minúsculas mortes cotidianas. Do estresse ao assédio moral não existe mais
do que um passo11. As chefias pressionam persistentemente suas/seus subordinadas/
os e para se livrar dos “inconvenientes”, o assédio passa a ser cada vez mais utilizado.
Observou-se entre os Agentes práticas de assédio moral horizontalizadas.
No caso das Agentes, o trabalho se torna ainda mais estressante porque, por
serem vistas como profissionais que produzem menos e/ou pior, elas precisam se
esforçar mais para provar o mesmo que os homens, para demonstrar que também são
capazes e eficientes. Essa cobrança exagerada acaba por tornar ainda mais o trabalho
das mulheres possível de ocasionar males à sua saúde mental e física. Deste modo,
estas mulheres acabam por optar em sair de cargos que exigem muito delas.
Para concluir, constatou-se que os conflitos presentes no trabalho vão ser deslocados
para as relações familiares, ocasionando práticas de violência das futuras gerações.

– As desigualdades da presença feminina no mundo do trabalho


O acesso e a participação das mulheres a partir das três últimas décadas passadas
no mercado de trabalho aumentou consideravelmente. Porém, o ingresso das mulheres
e dos homens não segue a mesma dinâmica e percurso e nem lhes garante o mesmo
lugar/posto/função. Além disso, a própria motivação para a busca de trabalho, em
certos casos, se diferencia.
Mesmo com o processo de desnaturalização da categoria de mulher e de homem,
a partir de sua heterogeneidade interna – pois são perpassados por vários tipos de
pertença e de estatutos (jovens-idosas; brancas-não brancas; com filhos-sem filhos;
ricas-pobres, entre outras) – romper com estas categorias monolíticas, encerradas em
si mesmas não está sendo fácil. Todas, de maneiras próprias, interferem na dinâmica
e na cultura de como é pensada e de como funciona a relação homem-mulher nos
espaços de trabalho. Certamente o peso histórico das representações sociais não
deve ser menosprezado quando se trata de discutir essa relação ainda vista como de
dependência. O lugar do homem e da mulher na sociedade em geral e na esfera do
trabalho em particular foi definido pela diferença e separação dos espaços de ação.
O que ainda persiste dessa construção histórica? Como se manifesta essa herança na
divisão sexual do trabalho?
Em outras palavras, passaram a surgir modos para diferenciar ou distinguir –
material e simbolicamente – não somente os homens e as mulheres, mas também
diferenciar a maneira como as mulheres e homens se inserem nas relações de trabalho,
de como constroem seus itinerários sócio-profissionais, seus destinos ocupacionais
almejados e alcançados, assim como os padrões salariais que lhes são destinados e as
expectativas profissionais construídas entre os assim designados homens e mulheres.
As mulheres, mesmo com mais anos de escolaridade, não vivenciam a igualdade
de oportunidades e a segurança de eliminar as marcas da segregação – ocupacional
salarial e simbólica – garantindo a almejada condição de equidade na esfera pública. As
desigualdades são extensivas aos rendimentos, aos padrões de inclusão. No caso das
Agentes Penitenciárias estas também apresentam elevados níveis de escolaridade.

11 O conhecido livro de Marie-France Hirigoyen: O assédio moral. Paris, Syros, 2000), assim como o livro
da Viviane Forrester: O Horror Econômico. Fayard, 2000).

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 281
– A distribuição sexuada do trabalho
No geral, as mulheres ainda continuam a ocupar empregos cujas características
lembram, freqüentemente, aquelas realizadas no contexto familiar-doméstico, seja
pelo tipo de atividade concernida, seja pela natureza dos postos/funções de trabalho
exercidos, o que se repete nas prisões. Mais o trabalho se assemelha aos atributos
do trabalho doméstico, mais o trabalho será feminizado. No caso da prisão, trata-
se da assistência social e dos cargos de administração, etc. A primeira característica
da divisão do trabalho doméstico é de se caracterizar/inscrever em um contexto de
“disponibilidade” próxima aos serviços familiares. Constatam-se que os trabalhos
relativos – ao cuidado de crianças, adultos e idosos doentes, como dos empregos
domésticos, são praticamente exercidos pelas mulheres. Fenômeno extensivo aos países
desenvolvidos como a França, no qual 80% (1990) do setor de serviços é exercido
por mulheres. Jornais nacionais anunciaram recentemente o aumento da presença das
mulheres no mercado de trabalho. Onde? Em que atividades? No setor de serviços
domésticos com os salários inferiores ou mesmo em outros serviços também com
salários inferiores. A inserção das mulheres nos trabalhos ditos mais “feminizados”
parte da própria vontade de algumas delas, inclusive das Agentes Penitenciárias.
Outro elemento de clivagem ainda persistente entre homens e mulheres é tanto em
relação à formação como em relação às profissões tecnológicas. A divisão sexuada
do acesso às tecnologias é fundada sobre a relação remetida à natureza, definida,
diferentemente para o masculino e o feminino. A submissão para as mulheres não
ocorreria apenas pela dominação dos homens, mas pela condição do feminino ligado
à natureza que fundamentaria a condição de exclusão das mulheres da legitimidade
tecnológica. Por exemplo, nas instituições Penitenciárias é mais comum se observar
o porte de armas pelos Agentes masculinos enquanto que as mulheres Agentes, em
geral, se recusam a portar armas. Ora, uma das clivagens mais discriminatórias entre as
profissões masculinas e femininas repousa sobre a tecnologia reconhecida da profissão.
Portanto, trabalho mais qualificado = ao masculino, cuja associação ancestral remete
ao homem como portador da lógica e da cultura, enquanto que a mulher da natureza.
Outra dificuldade reside no reconhecimento das qualificações para os serviços
das mulheres e dos homens.
À diferença dos empregos industriais, os empregos na área de serviços mobilizam,
ao lado das competências técnicas/tecnológicas, competências pessoais que são
difíceis de serem mensuradas, uma vez que estas competências não passam apenas
pela objetivação e formação do diploma, mas passam pelo processo de socialização
e pela experiência individual e coletiva da/o trabalhadora/r. Daí as competências
consideradas femininas adquiridas na esfera privada-familiar na prática das funções
domésticas são percebidas pela “cultura organizacional” e pelos próprios trabalhadores
como sendo “qualidades naturais”, vinculadas à identidade pessoal e feminina e que
acabam por não ser consideradas para uma relação salarial. No caso das Agentes,
embora ingressem na profissão sob o mesmo processo dos Agentes masculinos
(concurso público) e receberem as mesmas condições salariais, isso não lhes garante
uma condição mais eqüitativa no universo prisional.
Portanto, encontra-se aqui uma oposição entre o pólo das representações sociais
que associa a subordinação da tecnologia e da natureza ao masculino e aquele que
conjuga o natural e a submissão à natureza ao feminino. Se a tecnologia, enquanto

282 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
tal, simboliza um poder sobre a natureza, é associada ao masculino e ao trabalho
qualificado; portanto, os serviços, definidos pelo relacional, são excluídos de uma
representação em termos da tecnologia e são vistos como pertencentes a um universo
de trabalho onde são solicitadas qualidades inerentes à natureza feminina.

– Reapropriação do espaço-tempo como elemento de um processo de subjetivação


As relações masculino e feminino em relação ao uso do tempo e com o espaço
prisional revelam lógicas diferentes, senão opostas, pois são o produto de uma
socialização marcada pela divisão sexual dos “papéis”, desde a socialização primeira.
Por causa dessa socialização específica, pressupõe-se que a mulher detém/mantém
uma relação “privilegiada” ou “própria” com o espaço privado. Mas ela está associada
a esse espaço a partir de um quadro bem preciso da vida familiar. É responsável, ainda,
por uma função social, a de mãe de família conectada à reprodução, aos cuidados com
o corpo e com a criação do bem-estar, ao qual é vinculada/associada ou está ligada
necessariamente; não como sendo um indivíduo isolado. Fora desse contexto a mulher
perde essa função pela existência do modelo de apropriação do espaço e do tempo no
qual ela foi socializada. Ela aprendeu menos a habitar o lugar do que mais a torná-lo
funcional e confortável para permitir aos seus melhor habitá-lo. Ela é responsável pelo
espaço doméstico em sua totalidade, mas é geralmente privada do prazer de possuir
um tempo só para si e seu tempo é largamente sujeitado a ser consumido em função
dos interesses do grupo familiar-doméstico.
Portanto, mesmo quando a Agente mulher assume as funções em condições
mais próximas em relação ao Agente masculino há, no geral, a persistência em mantê-
la como subordinada, simbólica e materialmente, ao domínio masculino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: REORIENTAÇÃO DA PROFISSÃO DE AGENTE PENITENCIÁRIO

A pesquisa realizada procurou compreender as carreiras e trajetórias profissionais


dos Agentes Penitenciários com vistas a realizar recomendações para ajustamento
dos perfis profissionais desses agentes às necessidades de segurança e respeito pelos
direitos humanos. Essa adequação precisa de uma articulação entre o nível das políticas
públicas e o nível das políticas locais.
A seguir apontamos aspectos que poderiam orientar esses dois níveis da política:

a) Do ponto de vista macro-social (políticas públicas)


• Uma constatação que se faz com base na pesquisa e na literatura pertinente
é o número insuficiente de Agentes em relação ao número de internos
correspondentes, sendo que em certas instituições a defasagem é muito
significativa;
• Necessidade de construir uma carreira profissional específica para a profissão
de Agente Penitenciário a nível nacional que considere uma redução
das defasagens, do ponto de vista do tempo de formação, do conteúdo
programático dos cursos, dos níveis salariais, entre outros;
• Necessidade de eliminar a distância entre a teoria dos cursos de formação
e a realidade do trabalho nas Penitenciárias, a partir da organização de
processos sistemáticos de aproximação com o cotidiano e as rotinas da

Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 283
instituição e com os detentos, evitando desse modo a situação traumática
do “primeiro dia na prisão”;
• Criação de mecanismos e de estratégias para quebrar uma cultura ainda
persistente na instituição penitenciária que se caracteriza por uma
ambigüidade com relação ao tratamento que deve ser dispensado aos internos,
isto é, ora tratados com respeito, ora tratados com desprezo e humilhação;
• Necessidade de formular claramente o conceito de reintegração social do
interno;
• Rever a natureza das atividades de trabalho (ocupações) exercidas pelos
detentos e suas relações com o mercado de trabalho;
• Expandir quantitativamente e qualitativamente essas atividades em duas
direções: 1. de maior inclusão dos próprios detentos e 2. atividades mais
criativas do ponto de vista manual e intelectual;
• Há uma dimensão formal que estabelece o imperativo da reintegração do
interno à sociedade, porém isso não tem eficácia do ponto de vista material
nem social, o que se traduz nos persistentes índices de reincidência criminal.
Em razão disso há necessidade de discutir quais são as possibilidades reais
de ressocializar os internos do ponto de vista do papel do Estado, dos
Agentes e da sociedade;
• Necessidade de realizar campanhas de valorização e reconhecimento do
trabalho realizado pelos Agentes permitindo que a experiência deles seja
socialmente compartilhada com uma diversidade de profissionais que, de
maneira direta ou indireta, atua na área;
• No contexto da valorização profissional dos Agentes Penitenciários possibilitar
que suas experiências sejam conhecidas e discutidas com os gestores de
políticas públicas na área de segurança publica;
• Pensar estratégias para administrar de maneira adequada as diversas lógicas
contraditórias presentes nas Penitenciárias: a lógica da segurança e a lógica
da reintegração, por exemplo.
• Criação de uma política sistemática de acompanhamento da saúde mental
dos Agentes Penitenciários, facilitando as intervenções de profissionais
externos qualificados no atendimento coletivo e individual dos Agentes,
dentro de uma concepção de clínica do trabalho;
• Criar mecanismos para dar suporte aos Agentes no contexto das relações
familiares, quando estas se tornam conflitivas por conta do trabalho;
• Programar estratégias para tornar fluída a relação entre a sociedade e a
Penitenciária incentivando relações mais intensas e deste modo minimi-
zando o isolamento em que caracteristicamente se encontram as instituições
Prisionais; e
• Necessidade de “homogeneizar” a administração penitenciária, promovendo
cursos de formação em gerenciamento Prisional e eventos que possibilitem a
socialização das experiências e a discussão das estratégias mais adequadas.

b) Do ponto de vista micro-social (das políticas localizadas)


• Considera-se fundamental que se atente para as peculiaridades dos sistemas
Penitenciários e das unidades Prisionais nos diferentes Estados da Federação

284 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
considerando suas particularidades culturais, políticas e sócio-demográficas,
isso é o que podemos inferir a partir da pesquisa comparativa realizada.
• Recomenda-se a organização de um programa de educação continuada
dirigido aos Agentes que contemple as seguintes possibilidades de cursos
e de conteúdos:
• Comunicação interpessoal, considerando a perspectiva de gênero, étnico-
racial, geracional, entre outros;
• Acesso às práticas religiosas no interior da instituição Prisional deveria
estar articulado à gestão interna do presídio no sentido de permitir o
desenvolvimento de um programa sobre temas mais humanitários evitando
o sectarismo e o radicalismo;
• Promoção de um seminário semestral com os diretores dos presídios e os
Agentes Penitenciários, centrado na discussão das políticas de pacificação
dentro das penitenciarias, procurando identificar quais são as melhores
práticas promotoras dessa paz nas instituições;
• Oferecer, aos Agentes, treinamento em temas médicos (toxicologia, enfermi-
dades infecto contagiosas, doenças sexualmente transmissíveis, etc.);
• Oferecer aos Agentes atualização razoável em temas jurídicos;
• Oferecer aos Agentes treinamento no uso legal da força e na defesa pessoal;
• Oferecer aos Agentes treinamento em liderança organizacional;

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Carinho e Trabalho. Petrópolis: Vozes, 1ª. Edic. 1999.
WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001.
ZAFFARONI, E. R. Em Busca das Penas Perdidas. Rio de Janeiro, Revan. 1991.

286 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
INSTRUÇÕES AOS AUTORES

I. Colaboração aceita pela Coleção Segurança com Cidadania


Os textos destinados à publicação na Coleção Segurança com Cidadania deverão ser
inéditos, não submetidos a outro veículo e concernentes aos seguintes temas:
• Segurança pública e cidadania
• Análise de homicídios na sociedade brasileira
• Sistemas de informação, estatísticas criminais e cartografias sociais
• Estudos sobre crime e violência no século XXI
• Organizações policiais e modelos de policiamento
• Reflexões sobre educação policial
• Meios de comunicação, violência e cidadania
• Mediação de conflitos agrários e cidadania
• Violência de gênero e cidadania
• Sociologia da violência
• Socialização, juventude e segurança
• Políticas públicas de segurança pública
• Conflitos sociais e processos de pacificação
• Direitos e segurança pública
• Perspectivas para o sistema prisional brasileiro
• Segurança pública e criminologia
• Direito penal comparado e segurança pública

II. Da Ocasião da Publicação


Os números da Coleção Segurança com Cidadania são temáticos. Por isso, as chamadas
para artigos serão destinadas a captar textos relacionados especificamente ao tema do
número do periódico em ocasião. As chamadas serão publicadas no portal:
http://www.segurancacidada.org.br

III. Apreciação pelo Comitê e Conselho Editoriais


1. Os trabalhos serão apreciados pelo Comitê e pelo Conselho Editoriais, que poderão
recorrer a consultores ad hoc, caso não disponham de especialista na área abordada no
artigo. Os autores serão notificados da aceitação ou da recusa de seus textos.
2. Eventuais sugestões de modificações de estrutura e/ou conteúdo serão notificadas ao
autor, que se encarregará de fazê-las no prazo máximo de 30 dias corridos.
3. Não serão permitidas modificações depois que os textos receberem o aceite.

Instruções aos Autores | 287


IV. Forma de apresentação dos originais
4. Os artigos deverão ser escritos em português, gravados em formato .doc do Microsoft
Word ou outro formato de editores de texto compatíveis com softwares de código aberto,
obedecendo o seguinte:
Papel: A4
Margens: 2,5cm;
Espaço entre linhas: 1,5;
Fonte: Times New Roman, tamanho 12
Número de páginas: entre 15 (mínimo) e 20 (máximo, incluindo bibliografia e notas)
5. Os artigos deverão ser acompanhados de resumo em português, com tradução para
o inglês e o espanhol, que sintetize os propósitos, métodos e principais conclusões. A
identificação dos autores deve apresentar o título acadêmico recebido e a instituição ao
qual está vinculado.
6. Referências a obras e autores deverão ser apresentadas no corpo do texto, na forma
(Sobrenome: ano, página).
7. As notas de rodapé deverão ser de natureza substantiva, nunca referência.
8. Figuras e desenhos deverão ser produzidos em formato eletrônico, vetorizados e enviados
no mesmo arquivo do texto.
9. Tabelas, quadros e gráficos deverão ser numerados e produzidos em formato .xls ou
.doc, ou qualquer outro formato de editores de texto compatíveis com softwares de código
aberto.
10. Os artigos deverão ser enviados através do sistema eletrônico disponibilizado no
website do periódico (http://www.segurancacidada.org.br) , que disponibilizará a tela de
submissão de artigos durante o período de chamadas.
11. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas ao fim do texto, ordenadas
alfabeticamente pelo último sobrenome do autor, de acordo com o seguinte:

- Em caso de livro:
MINGARDI, Guaracy. Tiras, Gansos e Trutas: cotidiano e reforma na polícia civil. São
Paulo: Editora Página Aberta, 1992.

- Em caso de artigo:
SANDES, Wilkerson Felizardo. “Uso não letal da força na ação policial: formação, tecnologia
e intervenção governamental”, in Revista Brasileira de Segurança Pública, Ano 1. Edição
2., 2007.

- Em caso de coletânea:
CARUSO, Haydée Glória Cruz; MUNIZ, Jacqueline de Oliveira; BLANCO, Antonio Carlos
Carballo (orgs). Policía, Estado y Sociedad: prácticas y saberes latinoamericanos. Rio de
Janeiro: PUBLIT Soluções Editoriais, v. 01., 2007.

288 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
- Em caso de dissertação de mestrado ou de tese de doutorado:
RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes. Administração da Justiça Criminal na cidade do
Rio de Janeiro: uma análise dos casos de homicídio doloso. Tese de Doutorado. Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2009.

V. Outros
12. Não serão devidos nem direitos autorais, nem qualquer outra remuneração, de nenhuma
natureza, pela publicação de artigos na Coleção Segurança com Cidadania.
13. O envio do artigo para candidatura à publicação implica autorização tácita para ser
publicado no periódico, caso obtenha parecer favorável.
14. Os autores receberão gratuitamente três exemplares do número da revista no qual seu
artigo está publicado.
15. O conteúdo do artigo é de responsabilidade do autor.

Instruções aos Autores | 289

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