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ISSN 1984-7025
n. 01, ano 01, 2009
289 pp
Brasília, DF
Ministro da Justiça
Tarso Genro
EDITORES
Thadeu de Jesus e Silva Filho Marcelo Ottoni Durante
Ministério da Justiça Ministério da Justiça
COMITÊ EDITORIAL
César Barreira (UFC) José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)
Michel Misse (UFRJ) Guaracy Mingardi (RENAESP – SENASP – MJ)
Maria Stela Grossi Porto (UnB) Marcelo Ottoni Durante ( SENASP – MJ)
Melissa Pongeluppi (SENASP – MJ) Thadeu de Jesus e Silva Filho (SENASP – MJ)
CONSELHO EDITORIAL
Antônio Rangel Bandeira (VIVARIO) Maira Baumgarten (FURG)
Cláudio Beato (UFMG) Naldson Costa (UFMT)
Cristina Villanova (RENAESP – SENASP – MJ) Renato Lima (FSEADE)
Jorge Zaverucha (UFPE) Ricardo Balestreri (RENAESP – SENASP – MJ)
Juliana Barroso (RENAESP – SENASP – MJ) Roberto Kant de Lima (UFF)
Ivone Freire Costa (UFBA) Rodrigo Azevedo (PUCRS)
Wilson Barp (UFPA) Sergio Adorno (USP)
Capa
Rafael Rodrigues de Sousa
Emerson Soares Batista Rodrigues
Diagramação
Rafael Rodrigues de Sousa
Emerson Soares Batista Rodrigues
As matérias veiculadas nos trabalhos e artigos são de inteira e exclusiva responsabilidade dos autores
ISSN 1984-7025
Coleção Segurança com Cidadania / Secretaria Nacional de Segurança Pública do
Ministério da Justiça - Ano I, 2009, n. 01. Brasília, DF.
Editorial 7
Apresentação 9
Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública | 7
Por outro, serão efetuadas análises de séries estatísticas dos diversos tipos de
delito, no país, estados, capitais, regiões metropolitanas e municípios. Vamos salientar
a importância da produção de sistemas de gestão da informação, de modelos de análise
dos indicadores relevantes, da utilidade do georeferenciamento de dados e informações
e da montagem de cenários e simulações para a tomada de decisão dos operadores
de segurança pública. Tal conjunto de informações poderá servir de subsídio para
sistemas de avaliação de instituições, programas e projetos na área da redução da
violência e da criminalidade e no setor da segurança pública.
Esta Coleção propõe-se ainda a analisar a crise das organizações policiais e das
distintas experiências de reformas, desde o sistema de educação policial, passando
pela investigação policial e polícia judiciária, as delegacias das mulheres, as graves
violações dos direitos humanos, as greves das polícias, a violência policial, e a
implantação de novas tecnologias de gestão nas organizações policiais.
Também as instituições do poder judiciário, no âmbito criminal e penal serão
analisadas criticamente, efetuando-se e reconstrução de estratégias, representações e
decisões dos operadores do direto.
Com urgente atualidade, publicaremos textos sobre o sistema prisional dos
diversos agentes sociais envolvidos e da crise das penas restritivas de liberdade, das
experiências de penas alternativas e das organizações envolvidas com os egressos do
sistema penitenciário, assim como das causas sociais, institucionais e biográficas de
elevada reincidência criminal.
Enfim, os textos pretendem estimular a avaliação das políticas de segurança
pública, com a definição de indicadores de avaliação dessas políticas sobre todos os
momentos, níveis e territórios do país, em particular a avaliação dos diferentes planos
nacionais. No Governo Fernando Henrique Cardoso (1996-2002), o Programa Nacional
de Direitos Humanos (PNDH) (1966), o Plano Nacional de Segurança Pública (2000)
e as aplicações pelos Planos Estaduais do Fundo Nacional da Segurança Pública. No
Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), pretendemos avaliar o SUSP –
Sistema Nacional de Segurança pública e os Planos Estaduais. No segundo mandato
Luiz Inácio Lula da Silva (2006-2010), serão realizados estudos sobre a eficiência e
eficácia das ações propostas no PRONASCI – Programa Nacional de Segurança com
Cidadania.
Este campo de saber teve na coleção Polícia e Sociedade, da EdUSP, coordenada
pelo Prof. Sérgio Adorno (do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo) um marco na atualização do conhecimento internacional sobre esta área no
Brasil.
Quiçá possam esses textos da Coleção Segurança com Cidadania prosseguir nesta
seara, oferecendo material didático, pautado pelo avanço teórico-metodológico das
ciências e pela interpretação da sociedade brasileira e latino-americana para o ensino
da Segurança Pública.
Nosso objetivo ao publicar textos sobre a multidimensionalidade dos fenômenos
das violências e a complexidade da segurança pública será dar visibilidade à
compreensão das questões sociais mundiais que constituem desafios à consolidação
e aprofundamento da democracia. Ao propor reflexões sobre alternativas de políticas
sociais, de políticas públicas de segurança e de ações da sociedade civil, assumimos o
compromisso com a o avanço do processo civilizatório na sociedade contemporânea.
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APRESENTAÇÃO
Os textos aqui incluídos resultam do Concurso Nacional de Pesquisas realizado
pela SENASP, iniciados na Gestão do Prof. Luiz Eduardo Soares e concluídos na gestão
do Dr. Luiz Fernando Correa, em convênio com a ANPOCS – Associação Nacional de
Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais no período de 2003-2005.
Com o objetivo de oferecer um panorama amplo das questões envolvidas no
campo da segurança cidadã em um Estado Democrático de Direito, selecionamos
textos que abordam, de modo rigoroso e inovador, alguns dos temas relevantes para
o ensino da RENAESP – Rede de Altos Estudos em Segurança Pública da SENASP.
Aliando problemáticas densas com pesquisas empíricas, utilizando dados quantitativos
e informações provenientes de documentos e de entrevistas, tais artigos podem ser
estimulantes aos alunos e estudiosos dos dilemas do controle social em uma sociedade
democrática, porém desigual, diversa e marcada pela exclusão social.
Neste quadro, realça a função social dos profissionais de segurança pública em
contribuir ao Estado democrático de direito e à extensão do processo civilizatório no
Brasil. O primeiro conjunto de pesquisas analisa dimensões das organizações policiais,
do policiamento comunitário e da investigação policial.
Karina Rabelo L. Marinho e Almir de Oliveira Junior (Mudanças em organizações:
o caso do policiamento) abordam as características organizacionais, associadas a
diferentes modelos de organizações policiais, sobretudo a arranjos organizacionais
estruturais nos quais as estratégias manifestam-se. Procuram conhecer as implicações
do processo de mudança do modelo profissional-burocrático de policiamento para o
modelo de policiamento comunitário. Procuram mostrar como os principais elementos
de mudança estão associados à distribuição do poder organizacional, bem como das
definições de atividades e missões das organizações. Tomam como referência empírica
o Policiamento Comunitário nas Cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Vitória.
No modelo comunitário, o estreitamento da relação entre organização e ambiente
externo pode gerar importantes alterações nos fatores determinantes de distribuição
de poder, definição de missão e atividades.
O artigo de Adriano Oliveira, Jorge Zaverucha e Ernani Rodrigues (Polígono da
Maconha: contexto socioeconômico, homicídios e atuação do Ministério Público)
tem como objetivos: 1) contextualizar as condições socioeconômicas do Polígono
da Maconha, em Pernambuco, nas regiões do Sertão e do São Francisco; 2) analisar
relações de causalidade entre tráfico de drogas e o elevado número de homicídios;
3) avaliar a eficiência do Ministério Público no enfrentamento ao cultivo e tráfico de
maconha no Polígono. Após detalhada análise, os autores chegaram a importantes
conclusões: primeiro, a análise do contexto sócio-econômico do Polígono da Maconha,
não detectou uma razão principal para o cultivo e tráfico de drogas. Porém, verificou-
se que há grupos organizados plantando e comercializando maconha. Percebeu-se a
ineficiência e ineficácia do aparelho coercitivo do Estado: a atuação da Polícia Civil
na investigação de crimes é praticamente inexistente. Em terceiro lugar, é razoável
admitir que a ousadia dos delinqüentes cresça com o aumento da probabilidade de
êxito do crime. No Polígono da Maconha não há disputa por território por existir
grande disponibilidade de terras para a produção. Porém, o mercado local é fonte
secundária de renda para o atravessador da droga; assim, o grande número de
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homicídios existentes na região não deve ser imputado ao cultivo e tráfico de droga.
Para municípios sem perspectivas de geração de emprego, o cultivo e tráfico de droga
resultam em fonte de renda que alimenta a cadeia econômica da região.
O segundo conjunto de texto estuda as representações sociais acerca dos policiais
na sociedade brasileira, sejam aquelas produzidas pela imprensa escrita, sejam as
inscritas nos Códigos de Deontologia Policial. Na mesma perspectiva, a análise do
trabalho policial permite perceber a relação entre a insegurança profissional e produção
da insegurança pública.
O artigo de Kathie Njaine, Simone Gonçalves de Assis, Queiti Batista Moreira
Oliveira, Fernanda Mendes Lages Ribeiro, Raquel de Vasconcelos Carvalhães de
Oliveira (A imagem do policial na mídia escrita: estudo comparativo de quatro capitais
brasileiras) buscou investigar a cobertura da mídia escrita sobre as ações policiais,
tendo em vista a importância do papel desse meio de comunicação na percepção
pública da força policial. O conhecimento sobre como as mensagens são produzidas
pelas mídias e como as mesmas atendem a diferentes interesses e estratos sócio-
econômicos também podem contribuir para entender o funcionamento da imprensa
e da atuação de jornalistas responsáveis pela construção dos textos. Outro aspecto
relevante do estudo refere-se às diferentes visões das instituições policiais (civil,
militar e federal) representadas pelos jornais. Concluem que a permanência de um
estilo jornalístico policialesco ainda é freqüente em alguns jornais, deixando de lado a
cobertura mais contextualizada das questões de segurança pública para um jornalismo
mais factual. Poucos jornais cobram de forma mais aprofundada as ações policiais,
produzindo uma representação das polícias e seus operadores de forma analítica e
reflexiva. Verifica-se que as imagens construídas pela mídia escrita tendem a criar
estereótipos em relação ao policial e suas corporações que estão ligados a uma idéia
de irregularidade, brutalidade, truculência e corrupção. Esses estereótipos tomam
proporções simbólicas significativas no imaginário social. Por outro lado, policiais
e suas corporações também constroem imagens estereotipadas da mídia em geral.
Essa imagem negativa da mídia vem contribuindo para uma animosidade entre essas
instituições sociais, não colaborando para um entendimento mais aprofundado de
questões cruciais que envolvem o trabalho da polícia e seu papel na sociedade.
Maria Stela Grossi Porto e Arthur Trindade Maranhão Costa (Representações
sociais nos Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá) indagam como
a experiência policial pôde ser transformada em códigos de deontologia e normas
de conduta, bem como seus efeitos sobre o sistema de treinamento e avaliação das
polícias. Partindo da constatação de que, nas últimas décadas, vários países criaram
códigos de deontologia e normas de conduta visando aumentar o controle sobre a
atividade policial cotidiana. Em todos os casos, a adoção destes códigos e normas
implicou em transformações no treinamento e na supervisão da atividade policial. Este
criterioso trabalho permitiu chegarem a algumas conclusões: primeiro, recomendam
que sejam promovidas ações de sensibilização para a necessidade de controlar o
uso da força policial; segundo, sugerem a elaboração de normas de conduta policial.
Terceiro, consideram que é adequar o treinamento - uma das formas utilizadas pelas
polícias para capacitar seus membros ao emprego adequado da força - às necessidades
do policiamento. Finalmente, recomendam a necessidade de adequar o sistema de
avaliação ou o sistema de controle interno das condutas policiais.
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Maria Cecília de Souza Minayo, Edinilsa Ramos de Souza, Patrícia Constantino,
Simone Gonçalves de Assis, Raquel Vasconcellos Carvalhaes de Oliveira (A (In) Segurança
Profissional e (In) Segurança Pública) escreveram um estudo comparativo entre a Polícia
Civil e a Policia Militar do Estado do RJ quanto à concepção e à administração individual
e coletiva dos riscos profissionais, de segurança pessoal e de saúde ocupacional no
exercício da Segurança Pública. Os principais objetivos da investigação foram produzir
informações estratégicas capazes de subsidiar ações dos profissionais, da Corporação
e de seus gestores, visando à adequação dessas Instituições às necessidades atuais da
segurança pública. Concluem que os policiais, sobretudo os operacionais civis e militares,
vivenciam um conflito entre o enfrentamento desejado pela instituição que ressalta os
atributos e as marcas da masculinidade e os sentimentos de medo da morte, justificados
pelas situações de risco reais e imaginárias a que estão submetidos. Ressaltam ser
“urgente que nos comovamos com as absurdas taxas de morte dos policiais, ressaltando
que não existe fatalidade nessa imensa perda de vidas que tanto afeta as famílias e a
sociedade como um tudo”. Enfim, um dos grandes desafios do Brasil e do Rio de Janeiro
em particular é criar um ambiente e uma cultura de segurança pública e cidadã.
O terceiro conjunto de textos salienta o novo papel dos municípios e das guardas
municipais na Segurança Pública.
Tulio Kahn e André Zanetic (O Papel dos Municípios na Segurança Pública) revelam
que a ampliação das intervenções na esfera da segurança ocorreu depois da Constituição
de 1988. O acesso aos recursos federais pelos municípios foi vinculado à apresentação de
projetos consoantes com a política de segurança pública do Governo Federal. A SENASP
também tem orientado aos municípios a elaborarem um Plano Municipal de Segurança
Urbana, composto de diagnósticos dos problemas existentes e de ações relevantes para
seu enfrentamento. Assim, os anos 1990 também marcaram o envolvimento maior dos
municípios na esfera da segurança, através da criação ou ampliação das Guardas Civis,
de Secretarias e Planos Municipais de Segurança ou da regulamentação – através de
Leis e Decretos Municipais de aspectos relevantes para a segurança. Também relevantes
foram os investimentos municipais em programas sociais de caráter preventivo, focados
especificamente na questão da criminalidade e da violência.
Os autores mostraram que a ação das prefeituras na esfera da segurança tem tido
algum impacto: as denúncias criminais – matéria prima do trabalho policial – crescem
consideravelmente quando as prefeituras se envolvem na divulgação do Disque
Denúncia; a Lei Seca pode contribuir para diminuir a quantidade de homicídios. Se
corretamente alocada a guarda municipal pode contribuir para a redução dos índices
de criminalidade contra o patrimônio. Quanto aos projetos de inclusão social e
de prevenção primária e secundária a literatura especializada já mostrou como os
indicadores sociais influenciam os níveis gerais de criminalidade de uma determinada
área. Vimos aqui como de certa forma eles foram importantes na explicação do porque
a queda dos homicídios em São Paulo ocorreu em determinado tipo de municípios
e não em outro. A pesquisa mostra que a participação dos municípios na esfera da
segurança pública é crescente e promissora e que o problema só pode ser debelado
com a colaboração de todas as forças vivas da comunidade.
Marcos Luiz Bretas e David Pereira Morais (Guardas Municipais: Resistência e
Inovação) observam que, no quadro da reformatação institucional promovida pela
Assembléia Nacional Constituinte, combinava-se uma experimentação de novas
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formas de poder com uma manutenção dos formatos tradicionais. Ao mesmo tempo
em que a nova Constituição manteve os velhos modelos das polícias e suas atribuições,
mencionou pela primeira vez neste nível jurídico a presença, ou antes, a possibilidade,
das Guardas Municipais. Após cuidadosa análise das várias dimensões das guardas
municipais, afirmam que um grupo expressivo de Guardas já se organiza em torno de
uma proposta clara de ação, que encontra respaldo em setores do poder público tanto
municipal como federal. São aqueles que pretendem fazer da Guarda uma polícia
local, enfrentando criminosos e, para isso, necessariamente armados. Reconhecer o
fortalecimento de tendências é o caminho necessário para uma atuação que permita
definir como o processo será conduzido, e que diretrizes conformarão o emprego das
Guardas.
O quarto grupo de estudos foca a formação e a capacitação profissional dos
profissionais em segurança pública: dos peritos criminais; dos agentes penitenciários;
e a análise sociológica e pedagógica do ensino policial.
Michel Misse, Alexandre Giovanelli, Décio Nepomuceno da Silva e Carlos Eduardo
Medawar (Avaliação da formação e da capacitação profissional dos peritos criminais
no Brasil) realizaram um diagnóstico da formação e da capacitação profissional dos
peritos criminais no Brasil, no intuito de propor uma melhor formação profissional
nos estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais. A pesquisa teve os seguintes objetivos
específicos: realizar um levantamento comparativo dos requisitos para ingresso na
carreira de perito criminal; verificar a adequação do ambiente de trabalho para a
aplicação e uso dos conhecimentos adquiridos; analisar a percepção dos peritos
criminais quanto às deficiências e necessidades dos cursos de formação e atualização
oferecidos atualmente; analisar suas representações a respeito da carreira, do trabalho
em relação às expectativas durante a qualificação.
Os autores fazem considerações finais, das quais vale destacar: 1) a seleção dos
peritos criminais para ingresso na carreira deve ser por áreas específicas e não deve ser
aberto a qualquer curso de graduação; 2) A inadequabilidade do ambiente de trabalho
tende a ter como conseqüência o aumento da ineficiência de cursos específicos de
especialização e aprofundamento; 3) Isso indica novamente que alguns conteúdos
essenciais para os peritos devem estar sendo negligenciados, notadamente as partes
técnica e científica; 4) Um dos principais atores que tem influência na qualidade do
exame pericial é a polícia militar, porém a falta de uma cultura que respeite o local de
crime faz com que muitas vezes a própria população contamine as provas prejudicando
o trabalho do perito. 5) A ausência de indicadores estatísticos confiáveis referentes
às demandas periciais e à produção de exames, laudos e produtividade é um fator
limitante ao planejamento, gerenciamento e avaliação sistemática dos Institutos.
Em suma, “Não investir na formação policial do perito tem como conseqüência a
produção de um funcionário ineficiente e expõem ao risco a vida do próprio profissional
e a sociedade. Por outro lado a precariedade na formação policial do perito criminal
tende a afrouxar os laços sociais que ligam a perícia ao restante do corpo policial,
gerando uma tendência à fragmentação das relações sociais dos peritos com seus
pares”.
Lourdes Bandeira e Analía Soria Batista (Trajetórias Profissionais e Carreira dos
Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás) partiram do interesse em contribuir
para uma melhor compreensão do universo laboral dos agentes penitenciários, fazendo
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recomendações para orientação de políticas de seleção, formação e treinamento destes
agentes públicos. Mais recentemente, foi evidenciado o interesse pelo trabalho dos/as
agentes penitenciários/as ou agentes prisionais, uma vez que o desconhecimento em
relação ao trabalho destes/as ensejou que se criassem certas representações sociais,
predominantemente “negativas”. No geral, são considerados/as despreparados/as,
repressivos/as, violentos/as e até mesmo acabam sendo vistos/as como torturadores
carrascos e desumanos. Pode considerar-se que as relações e interações sociais nos
presídios e penitenciárias acontecem entre dois grupos socialmente estigmatizados:
agentes e internas/os; embora permaneçam diferenciados do ponto de vista das
hierarquias e dos poderes presentes nas organizações Prisionais.
A pesquisa realizada procurou compreender as carreiras e trajetórias profissionais
dos agentes penitenciários com vistas a realizar recomendações para ajustamento
dos perfis profissionais desses agentes às necessidades de segurança e respeito
pelos direitos humanos. Entre essas, caberia salientar “a necessidade de construir
uma carreira profissional específica para a profissão de Agente Penitenciário a nível
nacional que considere uma redução das defasagens, do ponto de vista do tempo de
formação, do conteúdo programático dos cursos, dos níveis salariais, entre outros”. E
a “criação de mecanismos e de estratégias para quebrar uma cultura ainda persistente
na instituição penitenciária que se caracteriza por uma ambigüidade com relação ao
tratamento que deve ser dispensado aos internos, isto é, ora tratados com respeito, ora
tratados com desprezo e humilhação”.
Sugerem, ainda, “realizar campanhas de valorização e reconhecimento do
trabalho realizado pelos Agentes”; e “pensar estratégias para administrar de maneira
adequada as diversas lógicas contraditórias presentes nas Penitenciárias: a lógica da
segurança e a lógica da reintegração”
O texto de José Vicente Tavares dos Santos, Jorge Zaverucha, Ricardo Balestreri,
Roberto Kant de Lima e Júlio Alejandro Quejada Jelves (A Educação Policial: limites
e possibilidades para a democracia ampliada) parte da concepção do ofício de policial
como um agente voltado para a segurança do Estado e a proteção da sociedade. Afirmam:
“Como a função do Estado é servir à sociedade, devemos, através da educação, fazer
com que o policial reconheça que o Estado é um meio e não um fim: o policial deve
ser um profissional que trabalha em favor da sociedade, garantindo a segurança do
cidadão”. Orientados pelo paradigma da autonomização moral e intelectual e tendo
como perspectiva as análises complexas da sociedade no Século XXI, propõem que a
formação dos policiais incorpore a contemporaneidade do saber crítico em Ciências
Humanas e Jurídicas. Para desenvolver as habilidades e competências em regulação de
conflitos, na prevenção de crimes, na repressão profissional e na investigação criminal,
é necessário uma perspectiva complexa e holística.
O objetivo é a construção de um saber teórico-prático processual e reflexivo,
fundado no princípio da complexidade, que reconhece a multidimensionalidade do
social, a incorporação do indeterminismo, da incerteza e do risco nas ações coletivas
e a ruptura epistemológica no processo de conhecimento das situações sociais. Esta
modalidade de saber teórico-prático poderá contribuir para a renovação das práticas
policiais no Brasil, no sentido de adicionar-lhes qualitativamente justiça, equidade
social, eficiência e eficácia, o que poderá agregar confiança e legitimidade às
organizações policiais brasileiras.
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Em suma, mediante várias abordagens e metodologias, a amplitude das pesquisas
apresentadas neste volume salienta as enormes possibilidades para uma Educação
Policial contemporânea, incorporando a pedagogia libertadora e o rigor teórico-
metodológico, a fim de construirmos uma segurança com cidadania na sociedade
democrática.
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A IMAGEM DO POLICIAL NA MÍDIA ESCRITA:
ESTUDO COMPARATIVO DE QUATRO CAPITAIS BRASILEIRAS
Kathie Njaine1
Simone Gonçalves de Assis2
Queiti Batista Moreira Oliveira 3
Fernanda Mendes Lages Ribeiro4
Raquel de Vasconcelos Carvalhães de Oliveira5
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa buscou investigar a cobertura da mídia escrita sobre as
ações policiais, tendo em vista a importância do papel desse meio de comunicação na
percepção pública da força policial.
As teorias de comunicação têm demonstrado que a ação jornalística não se
restringe somente à construção da notícia enquanto tarefa intrínseca dos profissionais
que trabalham na mídia. Para muitos teóricos alguns temas permanecem na mídia
enquanto houver um interesse do próprio setor em fazê-los entrar no “debate público”.
Desse modo, mais que o simples registro, o tratamento jornalístico a determinadas
questões ou passa por um interesse público ou são de interesse do jornalismo porque
mobiliza emoções, dramas e o comércio desse produto. Para Champagnhe (1997:64)
a mídia age sobre o momento e fabrica coletivamente uma representação social que,
mesmo quando está muito afastada da realidade, perdura apesar dos desmentidos
ou das retificações posteriores porque ela nada mais faz, na maioria das vezes, que
reforçar as interpretações espontâneas e mobiliza, portanto, os prejulgamentos e
tende, por isso, a redobrá-los.
Para Rebelo (2000) o papel da mídia impressa se realiza em dois planos: um que
procura narrar as notícias do dia, procurando cumprir sua função informativa; outro,
no qual se configura e expressa um sistema de valores, em consonância com o lugar
de fala do jornal. Desse modo, essa não é uma narrativa qualquer, é a narrativa do
jornal, não mais se restringindo sobre “aquilo de que se fala”, mas prevalecendo no
plano do discurso, “de que modo se fala” e “porque se fala”. Os dois planos tornam
o jornal socialmente reconhecido pelos leitores, o que inclui, obviamente também, o
reconhecimento do estilo e do perfil do jornalista. Essa atividade da informação escrita
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três estratégias: (1) a estratégia da fonte que cede ao jornal somente as informações
que interessa a ela serem difundidas; (2) a estratégia do jornal que difunde somente
as informações que julga mais condizentes com o seu projeto editorial; (3) a estratégia
do leitor, que como destinatário último, se interessa somente pelas informações que
coadunam com o seu quadro de referência. Essa síntese da circulação da informação
é para Rebelo, a estrutura que funda o sistema de comunicação de massa, formada
pelo jornalista e a fonte.
Mídia e Polícia
Não se pode generalizar a respeito da atuação jornalística. Alguns estudos sobre
a representação de eventos violentos na mídia mostram que grande parte da cobertura
policial caracteriza-se por ser um jornalismo informativo e factual (Ramos e Paiva, 2005).
A maioria das matérias faz parte das seções do cotidiano e questões mais
aprofundadas sobre as ações policiais são tratadas por jornalistas especializados e
em seções especiais. Outra parte dessa cobertura dedica-se a um tipo de jornalismo
sensacionalista, espetacular, próprio do universo do fait divers, cujas características
são a exposição da violência, da morte, do acidente, do bizarro do comportamento do
homem. (Angrimani, 1995; Njaine & Minayo, 2002)
A imprensa escrita tem evoluído na cobertura policial, principalmente com a
mudança editorial de alguns jornais conhecidos com os atributos de “espreme que
sai sangue”. Mas ainda se verifica um tipo de jornalismo ambíguo, onde o suspeito
é exposto na mídia e pré-julgado, a vítima é exibida como um cardápio de horror e
a questão dos direitos humanos é muitas vezes ignorada. O enfoque na atuação da
polícia ocupa um espaço considerável dos jornais, principalmente no que se refere
às ocorrências violentas urbanas. Nessa cobertura, de modo geral, há uma ênfase no
aumento da criminalidade e uma tendência em destacar a incapacidade do Estado em
oferecer segurança pública de qualidade para a população. No entanto, nesse avanço
da mídia escrita, observa-se também uma melhor cobertura em relação à violação dos
direitos, que se deve a uma melhor qualificação de jornalistas nessa área. O tema dos
direitos humanos também está mais presente na formação e capacitação de policiais.
Alguns órgãos de imprensa têm protagonizado também a discussão sobre
questões de segurança pública, como a Rede Gazeta, que juntamente com a Assembléia
Legislativa do Espírito Santo, vêem coordenando o Projeto Pacto pela Paz, lançado em
setembro de 2005. O projeto conta com o apoio de algumas empresas privadas e já
abordou temas como família, drogas e desigualdade social.
O Jornal O Dia, do Rio de Janeiro, também tem dedicado grandes matérias
jornalísticas que ampliam a visão sobre a questão da segurança pública. A matéria do
dia 8 de maio de 2005 (pgs. 18 e 19) aborda a discriminação sofrida pelos filhos de
policiais militares, após a chacina da Baixada Fluminense, em 31 de março de 2005.
O jornal coloca que após essa chacina aumentou a reação negativa da população em
relação à PM. O comando geral da PM colocou, inclusive, à disposição a assessoria
jurídica da corporação e possibilidade de atendimento psicológico para aqueles
policiais que se sentirem ofendidos, diz o jornal. Outro aspecto que O Dia aborda
é a dificuldade desses policiais alugarem casas, sob a alegação de que eles atraem
conflitos para a área. Esse tipo de atuação do jornalismo impresso contribui para
18 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
acarretaram a morte de 276 pessoas em nove anos. Aponta uma provável conivência
por parte do poder público com esses atos muitas vezes ilegais dos policiais em serviço
ou não. Essa atuação vem gerando opiniões dicotômicas na sociedade que, por um lado
exige mais segurança, por outro despreza essa corporação e seus membros.
A ambigüidade não se restringe à ação policial nem à mídia, mas retrata os valores
presentes em uma parcela da sociedade brasileira, fortemente preconceituosa e favorável
às violações (Lima, 2002). Um percentual significativo de brasileiros concorda plenamente
que a polícia tem direito de revistar pessoas suspeitas em função da aparência – 22%
dos cariocas, 27% dos pernambucanos e 31% dos paulistas (Cárdia, 1999).
Pesquisas acadêmicas vêm relatando a visão negativa que a população tem da
polícia, em consonância com imagens veiculadas pela mídia. Estudo realizado com
1220 jovens do Rio de Janeiro mostra que eles consideram a polícia como o agente
principal da violência naquela cidade. Deram nota 3 para a atuação policial, num
continuum que variou de 0 a 10 (Minayo et al, 1999). A imagem que os próprios
policiais fazem de seu trabalho reflete essa visão pejorativa: 1458 policiais civis do
Rio de Janeiro reconheceram que o ajuizamento da sociedade sobre seu trabalho é
negativo e preconceituoso. Revelaram a falta de reconhecimento, a depreciação e a
incompreensão da sua missão. A mídia foi apontada por esses profissionais como
responsável pela rejeição social que a categoria hoje possui, no intuito sensacionalista
de vender jornais e revistas e aumentar a audiência televisiva (Gomes et al, 2003).
Baierl (2004) em entrevistas com policiais e moradores do município de Santo
André (SP) mostra como essa percepção pública da instituição policial é permeada
pelo medo. A autora coloca que,
A população, que deveria olhar a polícia como alguém em quem confiar, ao
contrário, identifica-a como sujeitos truculentos, que desrespeitam a lei e agridem as
pessoas indistintamente, em vez de transmitir segurança. (pp. 156)
Essa autora aponta que a polícia civil, em especial, e a polícia militar são os
sujeitos que mais provocam medo na população, tanto nas favelas quanto nos bairros
de classe média. Conseqüentemente, as respostas à presença da polícia como garantia
de segurança eram desqualificadas.
Entretanto, a autora ressalta que os próprios policiais também se sentem vulneráveis
á violência das cidades, enquanto trabalhadores. Alguns depoimentos de policiais, sobre
seu trabalho, revelam como essa violência os atinge e como a mídia colabora em boa
parte com essa situação de disseminação do medo (Baierl, 2004: 157).
Essa situação de elevada tensão profissional se manifesta em problemas de saúde
física e emocional relacionados ao estresse. Policiais civis do Rio de Janeiro, com menos
de dez anos de trabalho policial, têm menor índice de sofrimento psíquico (13,2%) dos
que os têm entre onze e vinte anos de serviço (24%). Essa angústia emocional ficou
refletida nos mais elevados níveis de nervosismo, tensão, agitação, insônia, tristeza e
sentimento de inutilidade. Esse grau de sofrimento emocional gerado pela profissão
retorna à sociedade através dos conflitos envolvendo policiais, agravando a situação
de violência social (Assis et al, 2003). Esses aspectos relacionados ao sofrimento
decorrente do trabalho policial, pouco são trabalhados pela mídia.
Devido à freqüência e diferenciação com que a instituição policial e seus
operadores aparecem nos jornais, torna-se pertinente investigar como esses atores são
representados e como essa representação influencia a formação da opinião pública em
OBJETIVOS
a) identificar, descrever e analisar as representações sociais e percepções
coletivas das organizações policiais e seus operadores na mídia escrita das
capitais: Rio de Janeiro (O Globo e O Povo), São Paulo (Folha de São Paulo e
20 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Diário Popular), Vitória (Gazeta e A Tribuna) e Recife (Diário de Pernambuco
e Folha de Pernambuco);
b) comparar as imagens sobre as organizações policiais e seus operadores
veiculadas em jornais dirigidos aos estratos populares e médios/altos;
c) distinguir, sempre que possível, a imagem disseminada pela mídia segundo
as diferentes unidades que compõem a organização policial: Polícias Civil,
Militar e Federal;
d) refletir sobre propostas de uma mudança de enfoque da relação polícia versus
sociedade e a mídia.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo quanti-qualitativo sobre a imagem da polícia na mídia
escrita. No estudo quantitativo foram analisadas 2851 matérias jornalísticas publicadas
na imprensa escrita, publicadas nos meses de outubro e novembro de 2004. Para o
estudo qualitativo, foram selecionadas 480 matérias classificadas como negativas e
positivas em relação à atuação policial. Foram pesquisados oito jornais das quatro
capitais brasileiras com elevadas taxas de homicídios: São Paulo; Rio de Janeiro; Recife
e Vitória (tabela 1).
Tabela 1
Jornais analisados referentes aos meses de outubro e novembro de 2004
22 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
tiragem; circulação; público-alvo; custo unitário e custo de assinatura. Buscou-se
também, quando possível, ilustrar a descrição dos jornais com um pouco de suas
respectivas histórias, de sua formação, sobre como surgiram, etc.
Dos oitos jornais pesquisados, tem-se que a cada dois jornais de cada capital,
um é dirigido aos estratos sociais médios e elevados e outro aos estratos populares.
Esse direcionamento a públicos diferentes pode ser aferido pelo valor cobrado pelo
periódico diariamente/mensalmente, por seu lay-out que dispõe de fotografias e
manchetes mais apelativas e/ou informativas e pela definição e classificação de suas
seções, por exemplo.
Tabela 2
Informações sobre os jornais analisados
SÃO PAULO
Folha de São Paulo 304.389 332.539 R$3,50 R$2,20 R$478,00 Standard -- Cotidiano
Diário de São Paulo 74.789 101.303 R$2,50 R$1,30 R$384,00 Standard Globo São Paulo
RIO DE JANEIRO
O Globo 268.813 296.410 R$3,00 R$2,00 R$514,00 Standard Globo Rio
O Povo - 32.000 R$ 0,70 R$ 0,70 Não tem Standard nenhum Polícia
ESPÍRITO SANTO
A Gazeta 26.414 31.784 R$ 2,00 R$1,50 R$ 381,60 Standard Globo Cidade
A Tribuna 47.183 52.326 R$ 1,50 R$ 1,00 R$ 345,00 Tablóide -- Polícia
PERNAMBUCO
Diário de Pernambuco 37.424 32.137 R$3,00 R$ 1,50 R$ 625,50 Standard Grupo Vida
Associados urbana
Folha de Pernambuco 30.068 36.223 R$ 1,00 R$ 1,00 R$ 365,00 Standard nenhum Polícia
Na análise dos dados trabalha-se, portanto, com dois grupos de jornais: voltados
para as classes populares (estratos C, D e E) e para as classes médias e altas (estratos
A e B). O critério para a definição desses grupos foi o preço do jornal e a denominação
das seções. Os dois grupos ficaram assim criados:
• Jornais direcionados para as classes populares: Diário de São Paulo, Folha de
Pernambuco, O Povo e A Tribuna;
• Jornais direcionados para as classes médias e altas: Folha de São Paulo, Diário
de Pernambuco, O Globo e A Gazeta.
Os dados dos jornais – O Globo e O Povo, no Rio de Janeiro/RJ; Folha de São Paulo
e Diário de São Paulo/SP, em São Paulo; A Gazeta e A Tribuna, em Vitória/ES; Folha de
Pernambuco e Diário de Pernambuco, em Pernambuco/PE, foram obtidos através de
páginas eletrônicas dos respectivos jornais, no órgão regulador Instituto Verificador de
Circulação (IVC) e na Associação Nacional de Jornais (ANJ). Com exceção do jornal
O Povo, que não possui página eletrônica e não consta como pertencente aos órgãos
pesquisados, foi realizado um contato com a redação para obter alguns dados sobre
esse veículo.
No ranking dos maiores 30 mercados editoriais, segundo IVC, em agosto de
2005, os jornais estudados estão assim classificados: Folha de São Paulo (1° lugar);
RESULTADOS
Um total de 2851 matérias foram analisadas considerando-se os meses de
outubro e novembro de 2004. Dentre as 2851 notícias analisadas, os jornais que mais
informaram sobre polícia foram O Povo (RJ), a Tribuna (ES), O Globo (RJ) e o Diário
de São Paulo (SP). Considerando-se o total de notícias segundo o Estado, tem-se que o
Rio de Janeiro contribuiu com 37,4% do total, seguido pelo Espírito Santo com 28%,
São Paulo com 21,2% e Pernambuco com 13,2%.
Vale a pena destacar que os dois jornais com mais notícias policiais se dirigem
prioritariamente aos estratos populares – O Povo, com uma média diária de dez notícias
e A Tribuna, com quase nove (tabela 3). No pólo oposto tem-se que os dois que menos
informam a respeito direcionam-se mais para as camadas altas e médias da população
– Folha de São Paulo e Diário de Pernambuco, cada um com menos de 6% do total de
matérias investigadas e quantidade inferior a 3 notícias diariamente.
Tabela 3
Distribuição proporcional das matérias segundo jornais
24 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
deles é descritiva dos fatos, não aprofundando para a população o conhecimento e nem
a complexidade dos temas de segurança pública. Há um percentual de 15% de matérias
analíticas e apenas 1,1% apresentam proposições para os problemas enfrentados.
Tabela 4:
Nível de aprofundamento das matérias
NÍVEL DE APROFUNDAMENTO N %
DAS MATÉRIAS (N=2848)
26 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Outras fontes de informação relatadas em 15% das matérias policiais são algumas
categorias profissionais tais como: comerciantes e vendedores, médicos, advogados,
profissionais que trabalham com o trânsito como taxistas e rodoviários, e professores
e alunos. Os diretores costumam falar pelas empresas/instituições que dirigem. Dão
ainda importante contribuição às matérias as testemunhas, as vítimas e seus familiares
e o poder executivo.
Observando-se o grupo dos jornais mais populares em relação aos voltados
para as camadas médias e elevadas, verifica-se distinção entre os dois grupos em
relação a algumas fontes de informação: a) policial e corporação federal: jornais mais
elitizados utilizam mais essa fonte de informação (p<.001); b) corporações militar e
civil mais presentes nas mídias populares (p<.05); c) poder executivo: mais utilizado
como fonte de informação pelos jornais mais elitizados (12,3% contra 6,6% nos mais
populares; p<.001)
Tabela 6
Corporações policiais presentes nas matérias
Tabela 7
Presença de policiais relatados nas matérias
28 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 8
Personagens presentes nas matérias policiais
Tabela 9
Personagens com voz direta nas matérias policiais
Atores (N=2848) N %
Policial
Policial Militar 199 7,0
Policial Civil 70 2,5
Policial Federal 26 0,9
Guarda Municipal 15 0,5
Policial Técnico 13 0,5
Policial Rodoviário 4 0,1
Policial sem especificação 17 0,6
CORPORAÇÃO POLICIAL
Polícia Militar 19 0,7
Polícia Civil 13 0,5
Guarda Municipal 3 0,1
Polícia Federal 5 0,2
Corporação policial sem especificação 7 0,2
OUTROS
Delegado(a) 374 13,1
Vítima adulta 221 7,8
Familiar(es) da vítima 185 6,5
Suspeito/acusado/criminoso 119 4,2
Poder executivo 118 4,1
Categoria profissional 99 3,5
População em geral 95 3,3
Testemunha(s) 92 3,2
Poder judiciário 48 1,7
Familiar(es) do suspeito/acusado/criminoso 37 1,3
Órgão público de segurança 34 1,2
Representante do Ministério Público 31 1,1
Especialista 24 0,8
Vítima criança/adolescente 20 0,7
Sociedade civil organizada 15 0,5
Poder legislativo 15 0,5
Jornalista 14 0,5
Forças armadas 9 0,3
Representante do Ministério da Justiça 8 0,3
Segurança privada 7 0,2
Corregedor 6 0,2
Universidades e centros de pesquisa 5 0,2
Órgão internacional 5 0,2
Outra mídia (TV, internet, etc.) 2 0,1
Defensoria pública 1 0,1
Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente 1 0,1
Conselhos tutelares, de direitos 1 0,1
30 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Além de ter uma voz mais ou menos atuante na notícia, os personagens aparecem
ora como protagonistas da ação, ora como coadjuvantes. Esse destaque que é dado a
esses personagens também compõe a forma como são construídas essas narrativas, que
evidenciam a posição do personagem na cena do evento. Protagonistas e coadjuvantes
se alternam na cena de acordo com a importância dos mesmos nos acontecimentos.
Não necessariamente protagonistas e coadjuvantes têm voz direta nas matérias.
Na análise vê-se que o papel de protagonista é dado mais para os suspeitos/
acusados/criminosos e vítimas adultas e crianças/adolescentes, principais atores do
texto narrado. Das corporações aparecem como relevantes o papel da Guarda Municipal
e da Polícia Federal. Dentre os que menos protagonizam matérias estão Polícia Técnica
e Rodoviária. Alguns títulos de matérias dão essa noção: “Bandidos ameaçam lojistas
na Praia do Suá”, “Estudante é baleado e pode ficar paraplégico”, “Sobrinho mata tio”,
“Polícia Federal prende uma quadrilha acusada de armar o tráfico”.
Os jornais mais populares dão espaço a vários protagonistas se comparados
aos mais elitizados, destacando-se: suspeitos, acusados ou criminosos (81,5% versus
61,4%); vítimas adultas e crianças/adolescentes (76,6% contra 59,7%; p<.001);
policial militar (44,2% contra 34,9%; p.<.05); e familiares dos suspeitos, acusados
ou criminosos (25,9% versus 1,7%). Por procurarem atender aos interesses de
seu público, cada jornal busca fornecer aos diferentes estratos sociais fatos que se
aproximam de suas realidades.
Tabela 10
Tipos de notícias policiais
TIPOS (N=2850) N %
Reportagem 2.488 87,3
Nota 352 12,4
Artigo assinado 3 0,1
Coluna 3 0,1
Editorial 1 0,0
Tabela 11
Fotos que ilustram notícias policiais
32 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
notícias o box apresentou a cronologia dos eventos narrados nas matérias e em 34
notícias, destacou a visão da população sobre o assunto. Outros tipos mencionados
são, especialmente os que trazem informações de alguns dados que antecederam o
acontecimento e de depoimentos de vítimas, familiares, testemunhas.
Tabela 12
Box apresentados com as notícias
Três jornais se destacam por apresentar mais ilustrações tipo Box (p<.001): A
Tribuna (28,4%), A Gazeta (22,8%) e Folha de São Paulo (13,3%); no pólo oposto
estão Folha de Pernambuco (3,9%) e O Povo (2,7%).
Estatísticas são recursos ainda menos utilizados que as fotografias e os box, sendo
sinalizadas em apenas 4,6% das notícias. Dentre elas, apenas 43 matérias (1,5%)
trouxeram números da Secretaria de Segurança Pública; outras 26 de outros órgãos
públicos, seguidas por dados de Centros de Pesquisa (14 matérias) e de Empresas
Privadas como IBOPE e Datafolha (7). Outras estatísticas estiveram presentes em 62
matérias, provenientes de Ong, Associação de hotéis e de policiais, Conselho tutelar,
sindicatos e serviço funerário, bem como fruto de trabalhos acadêmicos.
Os jornais mais populares utilizam este recurso em menor intensidade que
os direcionados às camadas mais elevadas (3,4% versus 6,8%, respectivamente;
p<.001). Quanto a pouca utilização de estatísticas destacam-se O Povo (1,8%) e Folha
de Pernambuco (2,7%) e entre os que mais apresentam este recurso informacional
estão Folha de São Paulo (12%) e O Globo (6,5%).
O uso de desenhos e ilustrações está presente em 2,1% das notícias, sobressaindo
figuras que ilustram a reconstituição dos crimes (tabela 13).
Tabela 13
Desenhos e ilustrações apresentadas nas notícias
Tabela 14
Objetivos das ações policiais mencionados nas notícias
OBJETIVOS (N=2848) N %
Apreensão de suspeitos/acusados/criminosos 889 31,2
Investigação 873 30,6
Outros 583 20,4
Registro de ocorrência 390 13,7
Operações de busca 201 7,1
Crime cometido pelo policial/corporação 181 6,3
Apreensão de armas 143 5,0
Crime cometido contra o policial/corporação 124 4,3
Apreensão das drogas 116 4,1
Manutenção da ordem pública 104 3,6
Ocupação de áreas 100 3,5
Apreensão de adolescentes 79 2,8
Apreensão de objetos roubados 78 2,7
Apreensão de materiais piratas/contrabando 39 1,4
Intervenção em presídios 39 1,4
Blitz 29 1,0
Combate à exploração sexual infantil 18 0,6
Combate à exploração sexual 17 0,6
Recolhimento de criança e adolescente em situação de rua 15 0,5
Intervenção em instituições de cumprimento de Medida Sócio-educativa 5 0,2
Combate à exploração do trabalho infantil 1 0,1
Combate ao trabalho escravo - -
34 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
vítimas de violência, transferência de presos, entre outros objetivos destacados em
menor freqüência.
Tabela 15
Informações sobre vítimas existentes nas matérias
VÍTIMAS %
Fatalidade* 60,9
Sexo** 92,0
Faixa etária** 64,9
Categoria profissional** 62,1
Cor da pele** 6,8
* Dado computado para a totalidade das matérias (N=2851)
** Dado computado para parte das matérias – com vítimas (N= 1720)
Tabela 16
Informações sobre suspeitos/acusados existentes nas matérias
SUSPEITOS/ACUSADOS/CRIMINOSOS %
Fatalidade* 49,9
Sexo** 85,3
Faixa etária** 41,5
Categoria profissional** 24,8
Cor da pele** 11,3
* Dado computado para a totalidade das matérias (N=2851)
** Dado computado para parte das matérias – com vítimas (N= 1395)
Em 49,9% das notícias há dados que informam se a vítima veio ou não a óbito,
com predominância dessa informação entre os jornais voltados para as classes médias
ou altas (67,5% versus 40,4% nos populares; p<.001). Há também distinções entre
36 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
os jornais (p<.000): O Povo e Folha de São Paulo são os que menos informam (8,1%
e 7,8%, respectivamente) e O Globo e A Gazeta estão entre os que mais apresentam
dados exatos (82,6% e 77,9%).
Os dados sobre a fatalidade existente nas notícias mostram que em 5,6% das
matérias os acusados morreram; em 44,5% os suspeito foram vítimas de alguma
violência, mas não apresentaram lesões e em 3,8% das notícias há lesões relatadas.
A cor da pele dos suspeitos está apresentada em 11,3% das matérias, destacando-
se os jornais populares (13,9%), em detrimento dos voltados para classes médias
(8,3%; p<.001). Distinções entre jornais também são notadas (p<.001): O Povo
(4,1%) e Folha de São Paulo (7,7%) trazem muito pouco esta informação em relação
a Folha de Pernambuco (14,1%) e Diário de São Paulo (18,2%.)
A cor da pele de um primeiro suspeito foi relatada em 10,9% das matérias
que mencionavam os suspeitos dos crimes, com 4,5% de brancos, 6,2% negros ou
pardos e 1,4% de cor da pele amarela. Informação sobre um segundo suspeito mostra
detalhamento da cor em 6%, predominando a informação sobre cor negra ou parda.
Informação sobre a idade dos suspeitos foi mencionada em 41,5% das notícias
em que se identificam pessoas acusadas ou suspeitas. Essa informação está mais
presente entre os jornais populares (46,3% contra 36%; p.<001). A idade de um
primeiro ou único suspeito foi apontada em 40,1%, apresentando as seguintes faixas
etárias: 0,4% das vítimas têm até 11 anos de idade; 7,5% são adolescentes entre 12
e 17 anos; 12,8% são jovens de 18 a 24 anos; 14,5% são adultos entre 25 e 39 anos;
4,3% entre 40 e 60 anos; e 0,5% são idosos acima de 60 anos.
Em relação a um segundo acusado há menos dados informativos, em 28,1%
das notícias com mais de um acusado constatou-se que predominam as faixas dos
adolescentes (6,6%) e jovens adultos (18 a 30 anos), com 18,7%.
A categoria profissional dos suspeitos é citada 24,8% das matérias. Os jornais
voltados para classes mais elevadas predominam entre os que mais fornecem essas
informações (27,3% versus 22,6%; p<.05). Em relação a categoria profissional do
primeiro ou único suspeito, 11,5% das notícias possuem essa informação, destacando-
se entre eles: policiais militares e civis (na ativa ou afastados), empresários,
comerciantes, desempregados, estudantes estão entre os mais apontados. A existência
de um segundo suspeito foi realçada em 5,6% das notícias pertinentes.
O sexo dos suspeitos é informado em 85,3% das notícias pertinentes, destacando-
se nos jornais populares (87,4% versus 83%; p<.05). Em relação ao primeiro suspeito,
os homens predominam com 80,4%; as mulheres somam 4,7% e a não informação
é de 14,8%. Dados sobre o sexo de um segundo suspeito reiteram a predominância
masculina (71,6%).
Tabela 17
Temas específicos das categorias policiais destacados nas matérias
TEMÁTICAS (N=2848) N %
Crime ou denúncia cometido pelas forças 157 5,5
Questões gerais de segurança pública 133 4,7
Crime ou denúncia contra as forças 127 4,5
Outros 41 1,4
Treinamento/qualificação de pessoal 35 1,2
Aumento de contingente 26 0,9
Processo de admissão/concursos 11 0,4
Questões de saúde do policial 9 0,3
Atividades lucrativas extras 2 0,1
Tabela 18
Tipos de crimes ou denúncias cometidos por policiais destacados nas matérias
TIPOS (N=2843) N %
Homicídio 91 3,2
Corrupção 48 1,7
Lesão corporal/maus-tratos 47 1,6
Envolvimento com tráfico 14 0,5
Tortura 12 0,4
Humilhação/abuso de poder 8 0,3
Desvio de armas 8 0,3
Outros 48 1,7
38 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Outros crimes/denúncias cometidos por policiais são: seqüestro, facilitação
de fuga, tentativa de homicídio, roubo, atentado, formação de quadrilha, ameaças,
ataque a ônibus e contra instalações da polícia, bala perdida, disparo de arma de fogo
em via pública, briga, chacina, rebelião, depredação, desvio de conduta, consumo de
drogas, envolvimento com atividade ilegal, estacionamento irregular, excesso de força,
extorsão, facilitação de fuga e de laudo, falta ao trabalho, fraude processual, grupo de
extermínio, motim, porte ilegal de armas e serviços privados.
Dentre os crimes/denúncias contra as forças, destacam-se as mortes de policiais
em serviço ou fora dele (tabela 19), também mais comentado pelos jornais de maior
custo (2,6% versus 1,3%; p<.05).
Tabela 19
Tipos de crimes ou denúncias cometidos contra policiais destacados nas matérias
Tabela 20
Leis mencionadas nas matérias policiais
LEIS (N=2848) N %
Código Penal 23 0,8
Estatuto da Criança e do Adolescente 15 0,5
Constituição Federal 10 0,4
Lei de Execuções Penais 2 0,1
Declaração Internacional dos Direitos Humanos - -
Outras 38 1,3
Tabela 21
Nível de aprofundamento das matérias em relação aos policiais
APROFUNDAMENTO (N=1900) N %
Factual 1600 84,2
Negativo 269 14,2
Positivo 31 1,6
Tabela 22
Atributos positivos e negativos segundo inserção dos policiais nas corporações
Positivo* Negativo*
Policial
N % N %
Militar 23 69,7 196 63,6
Civil 8 24,2 62 20,1
Guarda Municipal - - 14 4,6
Federal 2 6,1 19 6,2
Técnico - - 4 1,3
Rodoviário - - 13 4,2
*Há notícias que falam sobre mais de uma polícia
As matérias que falam sobre as corporações também são, em sua maioria, factuais
(91,2%), especialmente entre os jornais populares (85,9% versus 71,6%; p<.001).
Os jornais voltados para as camadas elevadas apresentam mais atributos negativos
e positivos, especialmente Folha de São Paulo, A Gazeta e Diário de Pernambuco.
Atributos positivos e negativos dessas corporações são mencionados em muito poucas
matérias (tabela 23).
Tabela 23
Nível de aprofundamento das matérias em relação às corporações
APROFUNDAMENTO (N=2.526) N %
Factual 2.304 91,2
Negativo 134 5,3
Positivo 88 3,5
40 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Observando-se de forma isolada os atributos positivos e negativos, tem-se o
mesmo quadro relatado para os policiais. Sobressai a corporação militar, seguida pela
civil (tabela 24).
Tabela 24
Atributos positivos e negativos segundo corporação
Positivo* Negativo*
Policial
N % N %
Polícia Militar 48 46,6 98 61,6
Policia Civil 31 30,1 42 26,4
Guarda Municipal 4 3,9 5 3,1
Policia Federal 17 16,5 5 3,1
Polícia Técnica 2 1,9 4 2,5
Polícia Rodoviária 1 1,0 5 3,1
* Há notícias que falam sobre mais de uma polícia.
Em relação às idéias que as matérias apresentam sobre a ação policial podem ser
visualizadas na tabela 25. Como se pode perceber, a maioria das notícias passa a visão
de ação legalmente desencadeada pelas forças policiais (88,8%), seguido pela idéia de
ação ilegal em 7,9%.
Tabela 25
Idéias sobre as ações policiais presentes nas matérias
IDÉIAS (N=2851) N %
Ação legal 2531 88,8
Ação ilegal 224 7,9
Organização e estratégias do exercício da profissão 208 7,3
Outras 50 1,8
42 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
“policialesca”. O tipo de cobertura das ações negativas das polícias destaca a violência
policial em geral, os homicídios cometidos por policiais, as prisões e os acontecimentos
cotidianos das cidades paulistas.
Entre os jornais do Rio de Janeiro, O Globo, mais voltado para as camadas
médias, e altas, divulga muitos detalhes técnicos das operações policiais nacionais. Há
uma cobertura focada nos andamentos judiciais, dando destaque aos grandes eventos
que têm repercussão internacional como, por exemplo, as chacinas e a participação
da PM nesses crimes. As grandes investigações conduzidas pela Polícia Federal
também são enfocadas, propiciando uma leitura globalizada. Evidentemente, como
um dos maiores grupos empresariais que contam com vários veículos de comunicação
e com ampla cobertura, atinge a uma parcela significativa de leitores cujo perfil se
caracteriza por serem consumidores de informações que atendem majoritariamente a
seus interesses. O jornal O Povo, essencialmente voltado para camadas mais pobres, é
bastante popular na cidade do Rio de Janeiro e reconhecido por seu público, apesar do
número de exemplares ser bem menor que os demais jornais. Suas matérias referem-se
aos acontecimentos mais ordinários da vida cotidiana, e duas de suas principais fontes
são as vozes da população e a própria polícia. O gênero jornalístico caracterizado
pela reportagem policial, explora também imagens de crimes e vítimas e suspeitos/
acusados/criminosos expostos cruamente nas páginas do jornal. Os tipos de aspectos
negativos das ações policiais mais destacados pelo O Povo são os homicídios cometidos
por policiais, violência policial em geral, corrupção policial, maus-tratos físicos contra
suspeitos/acusados e criminosos.
O Diário de Pernambuco, direcionado às camadas elevadas, dá destaques aos
acontecimentos do Estado e da grande região metropolitana, mas também cita bastante
os acontecimentos violentos de outros estados brasileiros, principalmente da Região
Sudeste e do Distrito Federal. A relevância dos aspectos negativos das ações policiais
no Diário de Pernambuco é, eventualmente, articulada à possibilidades de resolução
de alguns problemas e monitoramento da atuação violenta ou ineficaz das polícias.
Esse fato pode ser exemplificado pelo espaço dado às reivindicações da população por
políticas de segurança mais eficazes e a questão da violência no contexto dos direitos
humanos. Nesse contexto destacam-se os homicídios e outras violências praticadas
por policiais, maus-tratos físicos contra suspeitos/acusados/criminosos e população
em geral. A Folha de Pernambuco pode ser caracterizada como um jornal popular que
trata a questão da violência de forma extremamente sensacionalista (“Chove bala na
comunidade do Coque”) e expõe os atores da violência em fotos espetacularizadas, como
cadáveres com os corpos deteriorados e pessoas detidas como supostos criminosos.
Sua cobertura sobre as ações policiais explora subliminarmente a ineficácia da polícia,
contrapondo-a com a quantidade de notícias sobre assassinatos. A voz da população
é uma das fontes de informação do jornal, destacando denúncias contra os abusos e
violências das polícias. Depreende-se da narrativa da notícia que a cobertura in loco
das ações policiais e dos crimes são características marcantes do jornal, assim como a
divulgação de detalhes específicos da violência colhidos nas delegacias, como o lugar
exato de partes de corpos feridos.
Entre os jornais do Espírito Santo, A Gazeta atende a um perfil mais elitizado,
tendo como uma das suas principais fontes de informação a própria população que
se manifesta durante a cobertura das matérias nos locais de ocorrência dos eventos.
“... quando um assaltante foi executado por um policial, anos atrás, em frente a
um shopping da cidade, muita gente aplaudiu” (O Globo, 18/11/2004).
“A violência policial é utilizada como política de segurança n Estado do Rio.
Toda vez que ocorrem mortes em confrontos com a polícia, as autoridades
comemoram e, em vez de punidos, os acusados são promovidos” (A Gazeta,
22/10/2004.
De certa maneira, todos os jornais convergem em suas visões sobre esse tipo de
crime, tratado pela imprensa como hediondo. Como revelam algumas narrativas:
“Arquivo morto – 72% dos casos de mortes de civis por policiais militares são
arquivados a pedido do Ministério Público (...) o encerramento do caso, antes
mesmo de virar processo, está longe de ser uma exceção na Justiça de São
Paulo” (Folha de São Paulo, 29/11/2004)
44 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
“Mais uma vez o BOPE está sob suspeita” (O Povo, 11/11/2004)
“A promotora (...) disse que o deputado do Rio (...) teria se reunido com ex-
policiais para formar um grupo de extermínio” (O Globo, 12/11/2004).
46 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
“Foi a segunda vez que apanhei. Na primeira, minha mãe presenciou parte do
espancamento... Eles achavam que a gente tinha roubado alguém” (Folha de
Pernambuco 31/10/2004)
“...ele negou tudo que disse nos depoimentos anteriores alegando que foi
ameaçado, torturado e sofreu coação por parte de policiais civis para confessar.”
(A Gazeta 20/10/2004)
“Mais uma vez camelôs pegos pela GCM foram agredidos e detidos.” (Diário de
São Paulo, 19/10/2004)
“... a punição para os que agem de forma truculenta é difícil devido à legislação.
Além de ser complicado provar, pois em vários casos é a palavra da vítima
contra a dos policiais, denuncia de espancamento sempre dá apenas Termo
Circunstanciado de Ocorrência.” (Folha de Pernambuco, 31/10/2004)
48 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
militar sobre os crimes militares no pós 88, revela que o despreparo técnico
profissional, as condições adversas de trabalho, estresse, a desestrutura familiar
e as relações dentro da corporação são dos motivos mais freqüentes (para os
crimes militares).”(Folha de Pernambuco 31/10/2004)
“outros vizinhos do adolescente afirmaram que a vítima pediu socorro por alguns
minutos e os PMs se negaram a atende-lo” (Folha de Pernambuco, 4/11/2004).
“Os presidiários fizeram um túnel da cela 11 – o local sai no pátio do DPJ. No
momento da fuga havia dois policiais de plantão.” (A Tribuna, 25/10/2004)
“Logo que me identifiquei, percebi que eram truculentos. Um deles perguntou
o que deveriam fazer e, quando expliquei a situação, ele disse que aquilo
(prostituição infantil) era um fato corriqueiro e que eu deveria deixar as crianças
se divertirem.”(Folha de Pernambuco, 14/10/2004)
Há a presença direta de falas dos próprios policiais a respeito das más condições
de trabalho, que têm como um de seus principais efeitos o mau funcionamento.
50 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
as associações de comerciantes e de moradores dos bairros atingidos por problemas
como furtos e roubos, a fim de organizar as reivindicações e orientar ações.
“Se a polícia não tivesse agido rapidamente, teria sido um massacre” (Folha de
São Paulo, 23/11/2004).
“Uma hora depois, sem que fosse necessário sequer um tiro, 14 traficantes
armados com fuzis e munição suficientes para sustentar um longo tiroteio
estavam dominados, algemados e de partida para a cadeia na caçamba dos
carros da PF (...) Era o fim de uma operação que começou a ser planejada seis
meses antes no setor de inteligência...” (O Globo, 7/11/2004)
“Policiais do 5º BPM esbanjam bons resultados em serviço (...) Graças à rápida
atuação da polícia...”.(O Povo, 22/11/2004)
“Estamos provando que investimento em segurança pública é fundamental,
quando o dinheiro é aplicado em tecnologia, inteligência e policiais especializados
– afirma o delegado federal...”(O Globo, 7/11/2004)
Outras ações das polícias são representadas nos jornais Diário de São Paulo e
A Tribuna referindo-se à atividade das polícias, nem sempre ligadas à segurança
pública, mas que são realizadas como ajuda no parto e salvamento de suicidas.
“Eles dizem que a grande dificuldade para ajuda-la a dar a luz foi a falta de
material de primeiros socorros no local. ‘Nem luvas recebemos da Prefeitura’.”
(Diário de São Paulo, 7/11/2004).
52 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
policias, uma moralização das mesmas é percebida em alguns trechos de reportagens,
como este:
CONCLUSÕES
É necessário analisar continuamente essas formas de representação na mídia, para
que se tenha uma concepção atualizada das mudanças que se dão tanto no campo
da produção de informação quanto nas próprias polícias. A permanência de um estilo
jornalístico policialesco ainda é freqüente em alguns jornais, deixando de lado a cobertura
mais contextualizada das questões de segurança pública para um jornalismo mais factual.
Alguns jornais atuam de forma mais aprofundada as ações policiais, produzindo uma
representação das polícias e seus operadores de forma analítica e reflexiva. Entretanto,
a representação negativa, embora presente em uma parcela pequena de matérias se
comparadas ao total de matérias factuais, produz um sentido impactante na percepção
da atuação das polícias, conforme alguns estudos já vêm apontando. As manchetes, os
atributos utilizados para qualificar negativamente as ações policiais, o enquadramento
das fotografias são alguns dos elementos que devem ser aprofundados na perspectiva
do discurso e da construção de sentidos sobre essas corporações. O material empírico
analisado, porém, não contemplou um estudo sobre as imagens, mas procurou apreende-
las sob a ótica de produção de textos, ou seja, essas imagens contêm poder de fala e
como tal, também devem ser analisadas em outros estudos.
Dos aspectos positivos apreendidos, ainda verifica-se uma ausência de melhor
qualificação das matérias e uma inexistência de questões que deveriam ser abordadas,
além da baixa freqüência com que essas representações aparecem, em relação ao
complexo tema da segurança pública e das instituições policiais como instituições
prestadoras de serviço à sociedade.
Verifica-se que as imagens construídas pela mídia escrita tendem a criar
estereótipos em relação ao policial e suas corporações, que estão ligados a uma idéia
de irregularidade, brutalidade, truculência e corrupção. Esses estereótipos tomam
proporções simbólicas significativas no imaginário social. Uma grande parcela das
notícias informa sobre as ações legais da polícia. Mas é na narrativa das ações ilegais
que se concentra um poder de disseminação dessa visão negativa, extremamente
rechaçada pela população em geral, principalmente por referir-se a uma instituição
pública e que tem como dever protegê-la.
Por outro lado, policiais e suas corporações também constroem imagens
estereotipadas da mídia em geral, conforme apontaram algumas pesquisas. Essa
imagem negativa da mídia vem contribuindo para uma animosidade entre essas
instituições sociais, não colaborando para um entendimento mais aprofundado de
questões cruciais que envolvem o trabalho da polícia e seu papel na sociedade.
Alguns aspectos, ainda pouco divulgados e disponíveis, hoje, em institutos de
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Créditos
56 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
CÓDIGOS DE DEONTOLOGIA POLICIAL NO BRASIL
E NO CANADÁ: ANÁLISE DOS DOCUMENTOS E DAS
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
INTRODUÇÃO
A relação entre as polícias e a comunidade tem sido objeto de debate nas
sociedades democráticas. As instituições policiais são aquelas organizações destinadas
ao controle social com autorização para utilizar a força, caso necessário (Bayley, 1975).
Nos regimes democráticos, a atividade policial requer um equilíbrio entre o uso da força
e o respeito aos direitos individuais. Assim, podemos afirmar que a especificidade da
atividade policial nos regimes democráticos é a necessidade de limitar e administrar o
uso da força legal, sem abrir mão de suas prerrogativas de controle social.
Nos últimos anos, diversos países têm enfrentado o desafio de limitar e
controlar o uso da força legal. Basicamente, os esforços se concentraram na criação
de mecanismos institucionais de responsabilização e controle da atividade policial.
Entretanto, a qualidade e eficácia desses mecanismos, que visam a inibir a violência
policial, são questões ainda pouco problematizadas tanto no interior das próprias
polícias quanto fora dela, pelos pesquisadores. Além de fatores internos à organização
policial, a análise e a compreensão de tais questões passam, igualmente, pelas relações
entre polícia e sociedade.
Nesse sentido, alguns estudos internacionais buscaram entender os padrões
de relacionamento entre a polícia e a sociedade (Bayley, 1994; Geller e Toch, 1996;
Skolnick e Fyfe,1993; Monjardet, 2003), e dois temas têm sido destacados: as formas
de reforçar os vínculos entre a polícia e a comunidade e a necessidade de controlar a
atividade das polícias. Entretanto, pouco se sabe sobre as diferentes dinâmicas sociais,
políticas e institucionais para a implantação das reformas nas polícias.
No Brasil, a situação não é muito diferente. A partir de 1980, constatou-se o
crescimento dos estudos sobre as polícias, constituindo-se no que Kant de Lima et alii
(2000) denominaram de “sociologia da organização policial contemporânea”. Apesar
dos esforços, pouco se avançou na compreensão dos mecanismos de administração
do uso da força legal, de seus instrumentos de controle e avaliação, bem como das
dificuldades políticas, culturais e institucionais para sua implantação.
Sem uma clara diferenciação entre violência policial e uso da força legal não é
possível estabelecer mecanismos destinados ao controle e supervisão das atividades
policiais. Até que ponto e sob que circunstâncias é legítimo, ou admissível, o uso
da força? Qual é a linha demarcatória entre força legítima e violência policial? Estas
questões têm sido debatidas pela literatura especializada (Klockars 1996; Muniz et alii
1999; Mesquita Neto 1999; Costa 2003a; Costa e Medeiros 2002, Porto 2000, Adorno
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 57
2002). Os estudos destacam que essa linha demarcatória não é fixa. O limite entre
força legítima e violência varia em função da forma como cada sociedade interpreta a
noção de violência e representa a função policial.
Além dos problemas para definir o que é violência policial, há também a
dificuldade de controlar e monitorar a atividade policial. O enorme poder discricionário
de que gozam as polícias está no centro da questão (Walker 1993; Bandeira & Costa
2003). Possivelmente, dentre os agentes estatais, os policiais estão entre aqueles que
possuem maior liberdade para exercer suas funções, tanto em termos do exercício da
autoridade quanto em relação aos controles a que estão submetidos.
Nesse sentido, podemos descrever a atividade policial como um sistema perito,
ou seja, como “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que
organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”
(Giddens 1991:35). Conhecemos muito pouco dos códigos e procedimentos adotados
pelos policiais para o exercício da autoridade que lhes foi delegada. Na maioria dos
casos, torna-se difícil para um leigo avaliar se a conduta policial foi adequada ou
não. Assim, o controle da atividade policial para ter eficácia, deveria levar em conta
os códigos de deontologia e a normas de conduta, uma vez que estas representam a
experiência acumulada pelos policiais.
Os problemas de definição do que vem a ser violência policial e monitoramento
das práticas cotidianas da polícia têm gerado dificuldades para a eficiência de três
dos principais mecanismos de controle da atividade policial existentes: a legislação, o
controle externo e a justiça.
A legislação penal e processual penal é instrumento fundamental de controle da
atividade policial. Isso se deve ao fato de boa parte das ações policiais estarem ligadas
ao controle da criminalidade, sendo as polícias parte direta ou indireta do processo
penal. Nesse campo, o poder legal conferido às polícias varia bastante. Alguns países
introduziram mudanças na legislação penal, processual penal e na jurisprudência
dos tribunais com o objetivo de limitar e controlar a atividade policial. Entretanto, o
efeito dessas decisões tem sido bastante variado, uma vez que não são muito claras
a respeito de como a polícia deveria proceder. Na prática, as mudanças na legislação
penal e processual penal só têm efeitos concretos sobre a conduta policial quando
os departamentos de polícias decidem reformular suas normas internas de condutas
(Skolnick e Fyfe, 1993).
A implantação de órgãos de controle externo da atividade policial é fenômeno
relativamente recente. A partir de 1970, várias polícias passaram a conviver com
mecanismos de controle externo. Apesar da enorme variação quanto a sua estrutura,
uma questão mostra-se presente em todos os casos: Pode o controle externo ser mais
eficaz que o controle interno? Em função das dificuldades de definição da violência
policial e de monitoramento do policiamento, dificilmente o controle externo poderá,
efetivamente, limitar e controlar o uso da força legal. Por outro lado, o controle
externo permite que a noção de força legítima seja interpretada de acordo com os
valores existentes na sociedade. Portanto, podemos afirmar que os controles internos
e externos não se excluem, ao contrário, são complementares (Bayley, 1991 e 1994).
Outro mecanismo de controle da atividade policial existente é o sistema judicial,
desde que seja independente dos outros poderes políticos. Também é importante que o
sistema judicial disponha de instrumentos legais e de condições materiais que tornem
58 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
possível a investigação das denúncias e a punição dos policiais faltosos. Com relação ao
Brasil, vários autores têm apontado a incapacidade da polícia de investigar denúncias
contra policiais e a deficiência da justiça militar de punir os policiais violentos (Costa
2003 e Cano 1997).
Entretanto, estas não são as únicas dificuldades encontradas nos sistemas judiciais
para controlar a atividade policial. Em diversos países, salvo nos casos mais graves,
juizes e tribunais têm encontrado grandes dificuldades para avaliar a adequabilidade
da conduta policial cotidiana. Analisando as mudanças ocorridas no sistema judicial
dos EUA, alguns autores têm apontado as suas deficiências para limitar e controlar o
uso da força legal (Cheh 1996; Chevigny 1995). Neste caso, o problema repousa na
dificuldade de definir, a partir de uma perspectiva externa, o que é violência policial.
Em que circunstâncias é admitido o uso da força e qual a intensidade a ser
empregada? Como mencionado anteriormente, tais questões podem ser respondidas a
partir da própria experiência das polícias. O exercício continuado da atividade policial
possibilita a acumulação de conhecimentos que permitem a análise das situações na
quais a força deve ser empregada, bem como qual a melhor forma de fazê-lo, de
modo a melhor proteger os próprios policiais e os cidadãos. Um número excessivo de
policiais e civis mortos ou feridos indica que estes conhecimentos não estão sendo
corretamente empregados. Esses conhecimentos podem ser incorporados ao trabalho
cotidiano dos policiais.
Para tal, devem ser transformados em códigos de deontologia e normas de
conduta. Isso permite que as condutas individuais sejam avaliadas não só com relação
a sua legalidade, mas também do ponto de vista profissional. Condutas que contrariem
tais códigos e normas podem e devem ser punidas administrativamente, uma vez
que podem ser avaliadas e supervisionadas a partir desses critérios. Os códigos de
deontologia e as normas de conduta policiais são os objetos desta pesquisa.
Nas últimas décadas, vários países criaram códigos de deontologia e normas de
conduta visando aumentar o controle sobre a atividade policial cotidiana. Em todos os
casos, a adoção destes códigos e normas implicou em transformações no treinamento
e na supervisão da atividade policial. Resta saber como a experiência policial pôde ser
transformada em códigos de deontologia e normas de conduta, bem como seus efeitos
sobre o sistema de treinamento e avaliação das polícias. Este é o nosso problema de
pesquisa.
O trabalho desenvolvido foi motivado e financiado pela Secretaria Nacional de
Segurança Pública (SENASP), do Ministério da Justiça.1 Adotamos o método comparado
para estudados os mecanismos internos de controle do uso da força legal existentes
em diferentes polícias. Foram analisados os códigos e manuais em uso na Policia
Militar do Distrito Federal (Brasil) e no Ottawa Police Service (Canadá). Também
foram conduzidas entrevistas como policiais destas duas instituições. Obviamente
este trabalho não pretendeu tomar nenhum sistema policial como um modelo a
ser seguido. A comparação neste caso serviu apenas para esclarecer aspectos ainda
não conhecidos sobre os conteúdos e os processos de implantação dos códigos de
1 Além dos autores participaram desta pesquisa: Pedro de Albuquerque Neto, Rodrigo Figueiredo
Suassuana, Priscila A. Landim de Castro, Rafael A. da Costa Alencar, Marília Barbosa de Barcelos e
Guilherme Almeida Borges.
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 59
deontologia e das normas de conduta, além de verificar especificidades e os aspectos
comuns aos diferentes sistemas policiais dos países em análise.
Inicialmente discutimos a natureza e os tipos de poder discricionário que os policiais
possuem. Em seguida, estudamos algumas das formas mais frequentemente utilizadas
para controlar este poder discricionário. Numa outra seção, analisamos e comparamos os
conteúdos dos códigos e manuais utilizados em Brasília e Ottawa. Depois, comparamos
as representações dos policiais brasileiros e canadenses sobre a natureza da atividade
policial e as formas de controlá-la. Ao invés de apresentarmos uma conclusão, optamos
por relacionar as recomendações que nosso trabalho produziu.2
60 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Descobrindo o Poder Discricionário
Antes de limitar e estruturar o poder discricionário da polícia é necessário
reconhecer a sua existência. Samuel Walker (1995) mostrou que no caso dos EUA este
reconhecimento só aconteceu a partir da década de 60. E foi apenas nos meados dos
anos 70 que alguns departamentos de polícia daquele país tomaram medidas visando
limitá-lo e estruturá-lo. O mesmo pode ser dito com relação ao Canadá e a Inglaterra.
Portanto, a discricionariedade policial é uma “descoberta” relativamente recente.
Segundo Walker, a discricionariedade policial foi “descoberta” no final da década
de 60 através de uma pesquisa nacional conduzida pela American Bar Foundation
sobre o sistema de justiça criminal. Os resultados da pesquisa evidenciaram o enorme
grau de liberdade que os agentes do sistema criminal dispunham quando precisavam
tomar suas decisões. Ficou evidente que as ações dos policiais, juízes, promotores e
advogados públicos não se limitam ao texto da lei.
A partir daí, iniciou-se um longo e amplo debate sobre a conveniência e os
problemas relacionados ao poder discricionário. Praticamente todos os estudiosos
do sistema de justiça criminal passaram a reconhecer os efeitos perversos da
discricionariedade. Desde então, a discussão sobre discricionariedade tem girado em
torno das áreas onde é possível e necessário limitá-la, bem como sobre as formas mais
adequadas de estruturá-lo.
As pressões para controlar o poder discricionário vêm de diversos lados. Há casos
em que o poder judiciário desempenhou papel relevante na estruturação do poder
discricionário. Nos EUA, as inúmeras decisões da suprema corte norte-americana têm
afetado a atividade policial. Na maior parte, são decisões que dizem respeito aos
procedimentos adotados pela polícia do que propriamente à legislação criminal. Desde
a década de 60, a Suprema Corte federal tem tomado decisões sobre a constitucionalidade
de determinadas práticas policiais, especialmente os interrogatórios.
Embora as decisões da suprema corte de justiça americana tenham servido para
restringir o uso de interrogatórios nas investigações policiais, nem todas as decisões
judiciais têm conseguido mudar determinadas práticas policiais. Nos últimos anos, a
justiça federal dos EUA tem se manifestado sobre o uso de animais e instrumentos de
alta tecnologia nas operações de busca e apreensão. Como apontam Skolnick e Fyfe
(1993), o efeito dessas decisões têm sido bastante variado, uma vez que não são muito
claras a respeito de como a polícia deveria proceder. Na prática, as decisões judiciais
sobre conduta policial só têm efeitos concretos quando os departamentos de polícias
decidem reformular suas normas de condutas.
Outra fonte de pressão para que os departamentos de polícia passem a regular
melhor as atividades dos seus membros vêm das autoridades políticas. Normalmente
pressionados pela sociedade civil (movimentos sociais, ativistas políticos e organizações
não-governamentais) os governos determinaram às polícias que estabelecessem
normas de condutas para lidar com situações específicas. Esse foi, por exemplo, o
caso da província de Ontário no Canadá. Lá, o governador, depois de intensa pressão
do movimento feminista local, determinou a todos os departamentos de polícia sobre
sua autoridade que estabelecessem diretrizes e normas de condutas que obrigassem
a instauração de investigações policiais e processos judiciais nos casos de violência
doméstica (parttner assault), mesmo quanto as vítimas decidem retirar as queixas.
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 61
Finalmente, as pressões para a criação de normas de condutas podem vir do
interior das próprias polícias. Uma vez que tais normas servem também para proteger
os policiais, posto que estabelecem orientações claras sobre como proceder, sua
implantação tem sido uma reivindicação dos sindicatos de policiais. Foi o caso do
Código de Deontologia da Police Nationale francesa. Sua criação resultou das pressões
do sindicato de policiais daquela instituição.
Estruturar o poder discricionário da polícia significa definir as áreas e atividades
que precisam de certa liberdade de ação, estabelecer seus limites e preparar os
policiais para exercê-lo da forma mais adequada possível aos anseios e necessidades
da população (Goldstein 2003). A estruturação do poder discricionário não é tarefa
fácil, uma vez que não é possível estabelecer orientações sobre todas as atividades e
situações que os policiais se deparam nas ruas. Na prática, somente algumas situações
mais sensíveis têm sido objeto de atenção dos administradores de polícia.
Há inúmeras áreas onde os policiais exercem freqüentemente sua capacidade
discricionária, a saber: a) na aplicação seletiva das leis; b) nas escolhas dos objetivos e
prioridades para as políticas de segurança; c) na escolha dos métodos de intervenção e
d) na escolha do estatuto legal a ser empregado. Para cada área, iniciativas vêm sendo
tomadas a fim de limitar e estruturar as escolhas feitas pelos policias.
62 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
e não técnicas e, portanto, devem ser tomadas por um corpo político. Nesse sentido,
podemos identificar inúmeras iniciativas visando o estabelecimento de órgãos com
responsabilidade sobre a elaboração das políticas públicas de segurança, bem como
a ampliação da representatividade e da participação da população no seu processo
decisório.
Nos países anglo-saxões (Canadá, EUA, Irlanda e Austrália), alguns departamentos
de polícia têm implantado comitês de Polícia (Police Boards), compostos por membros
da sociedade civil, da sociedade política e das polícias. Juntamente com as polícias e
os governos locais, tais comitês são encarregados de ditar as políticas de segurança
pública. No Brasil, os secretários de segurança pública, nomeados pelos governadores
eleitos, são os responsáveis por estas tarefas. Tanto no caso dos países anglo-saxões
quanto do Brasil, tais órgãos têm encontrado dificuldades para se impor junto às
polícias. Em alguns casos eles não controlam o orçamento dos departamentos de
polícia, não possuem autoridade de fato sobre os chefes de polícia e tampouco possuem
capacidade técnica para planejar, elaborar e implementar políticas de segurança.
Além destes órgãos podemos verificar o surgimento de conselhos comunitários
de segurança. Normalmente estes conselhos são resultado da nova filosofia de poli-
ciamento comunitário e destinam-se a abrir espaços para os cidadãos participarem da
elaboração das políticas de segurança a serem implantadas nas suas comunidades.
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 63
Para lidar com esta questão, alguns países estabeleceram competências distintas
para suas agências de polícias. No Brasil, Argentina e EUA, por exemplo, existem
polícias federais com competências exclusivas sobre determinados temas. A existência
de diferentes agências policiais num mesmo território pode gerar conflitos de compe-
tências. Há também países como o Canadá onde, em determinadas cidades, uma única
polícia é encarregada de aplicar diferentes estatutos legais. Nestes casos, as polícias
podem dispor sobre quanto aplicar um ou outro estatuto.
Nas duas situações, as autoridades políticas têm estabelecido normas claras
quanto à competência e jurisdição das agências policiais. E quando não o fazem são
fortemente pressionados pelas polícias a fazê-lo. Ou seja, está é uma área onde a
discricionariedade policial é pouco incentivada.
64 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de muitos dos códigos policiais implantado nos países europeus (Charmoillaux, 1996).
Os códigos de deontologia estabelecem as regras e as obrigações essenciais que se
colocam aos policiais, inscrevendo-se num quadro jurídico de referência, que define
com precisão a natureza das modalidades da ação policial e determina os princípios
e valores que devem nortear as atitudes e comportamentos dos policiais, dentro da
corporação e em sua relação com o público.
A deontologia é, etimologicamente, a ciência dos deveres e objetiva, no presente
contexto, fazer com que os policiais predisponham-se a aderir a um sistema de valores
que associe eficácia e respeito pelas pessoas e pelas liberdades fundamentais, dentro e
fora do exercício de sua profissão. Convém lembrar que na maioria dos países em que
o código de deontologia foi criado objetivou-se modificar as concepções tradicionais da
prática policial, sobretudo em relação à discricionariedade usada na prática profissional.
O policial, ao contrário do que ocorre entre os profissionais liberais, desempenha suas
funções demarcadas por uma rígida estrutura hierárquica, embora nem sempre essa
estrutura seja considerada, principalmente nas situações de patrulhamento de rua.
Pelo contrário, em sua prática cotidiana o policial age freqüentemente fora da
estrutura hierárquica, dispondo de grande autonomia de ação. Nessas situações, os
policiais não necessariamente regem suas ações pelo regulamento, leis ou normas
de conduta. Guiam-se, no geral, pelo que denominam de sua própria experiência.
A existência dessa margem de iniciativa da ação do policial constitui-se exatamente
o espaço que deve ser ocupado pela deontologia. Portanto, instituir um código de
deontologia significa reconhecer, concomitantemente, a responsabilidade e a autonomia
do policial. Nas últimas décadas, observou-se o surgimento de códigos de deontologia
policial em diversos países. Tal fenômeno inscreve-se às tentativas de melhor lidar
com a questão do controle da atividade policial.
Os códigos de deontologia estabelecem princípios e valores que devem nortear
as atividades profissionais. Entretanto, sem uma clara definição da forma como
proceder cotidianamente, tais princípios e valores dificilmente terão aplicação efetiva.
Exatamente por este motivo, algumas polícias elaboram normas administrativas de
conduta para complementar (ou por em prática) os conteúdos prescritos nos códigos
de deontologia.
Um dos autores mais influentes sobre o tema, Kenneth Davis (1971), argumenta
que algum tipo de discricionariedade nas atividades do sistema de justiça criminal é
inevitável. Para ele, o problema não reside na existência da discricionariedade, mas sim
na falta de controle sobre ela. Uma vez limitada e estruturada, pode passar a ser algo
positivo relacionado ao exercício da profissão de polícia. Finalmente, Davis sustenta
que a melhor forma de lidar com a discricionariedade é através da criação de normas
administrativas destinadas a regular o exercício da atividade policial. Passados mais
de trinta anos do lançamento do seu livro, suas conclusões de forma geral continuam
válidas e bastante influentes.
A criação de normas administrativas permite um equilíbrio entre o que prescreve
a legislação e o que realmente a polícia faz no seu dia-a-dia. Embora a legislação
possa orientar algumas atividades da polícia, principalmente aquelas relacionadas ao
controle da criminalidade, na prática há inúmeras questões não prescritas na lei que
tem enorme repercussão no exercício da atividade policial. Pode-se dizer que a lei
prescreve o que deve ser feito, mas não diz quase nada sobre quando e como fazer.
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 65
A ausência de normas administrativas reguladoras da atividade policial faz com
que a distância entre a lei e a atividade cotidiana das polícias seja muito grande. Para
cobrir esta lacuna, freqüentemente cobra-se dos policiais que usem o “bom senso”
ao tomarem suas decisões. Nestes casos, normalmente o que acontece é a descoberta
pelo policial, ao sair do seu treinamento básico, que muito pouco daquilo que lhe
foi ensinado parece aplicar-se às situações que ele encontra no cotidiano da sua
atividade. Em geral ele aprende informalmente com os colegas mais antigos uma série
de conhecimentos e práticas a serem empregados no dia-a-dia.
Tais conhecimentos e práticas informais podem ser, às vezes, ilegais. Apesar disso,
é apenas com eles que os policiais irão enfrentar os desafios da sua profissão. Estas
práticas, quando não são ilegais, são de alguma forma, úteis às polícias. Do contrário, a
atividade de policiamento seria ainda mais caótica do que nos parece hoje. Mesmo que
haja um grande esforço dos chefes de polícia, estas práticas informais não deixarão de
existir. Portanto não se trata de acabar com as práticas informais, mas sim reconhecê-
las para que possam ser abertamente submetidas à apreciação crítica da sociedade.
O desafio atual das instituições policiais que já implantaram normas administrativas
para regular algumas das atividades dos seus membros é evitar que estas normas
tornem-se meras formalidades. Ou seja, evitar que a discricionariedade migre da
aplicação da lei para o cumprimento das normas administrativas. Em muitos casos é
exatamente isso que acontece, uma vez que a simples existência de uma norma não
garante o seu cumprimento.
Uma norma é uma diretriz formal destinada a orientar condutas individuais.
Para tal, ela precisa ser coercitiva e específica. Coercitiva porque necessita obrigar os
membros da instituição a adequarem-se às condutas prescritas. Específica, uma vez
que as normas genéricas possibilitam diferentes interpretações sobre o seu conteúdo,
deixando de uniformizar as condutas individuais.
Uma vez que são internas à instituição, somente a adesão dos membros da
polícia, principalmente dos mais graduados, à idéia de que as normas administrativas
são importantes instrumentos de gestão das instituições policiais, poderá fazer com
que elas não se tornem meras formalidades. Do contrário, o peso das práticas informais
e a relutância dos policiais mais graduados poderá torná-las sem efeito.
Para que as normas administrativas limitem e estruturem de fato a discricionariedade
policial, é necessário adequar o sistema de treinamento e de avaliação das condutas
individuais. É preciso estabelecer um sistema de avaliação que faça os policiais mais
responsáveis pelos seus atos. A estruturação do poder discricionário aumenta também
a capacidade de controle dos administradores de polícia sobre o pessoal operacional.
Ou seja, facilita a supervisão da atividade policial. Além disso, a estruturação também
permite a melhoria do treinamento policial. Este passa a ser mais específico, no qual
os policiais recebem orientações claras e objetivas sobre como proceder nas situações
que encontrarão na prática da sua profissão.
66 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
foram escolhidas por se tratarem de duas instituições bastante diferentes, no que diz
respeito a suas formas de organização institucional. Optou-se por comparar instituições
policiais já que é a partir delas que as atividades de policiamento são desenvolvidas.
Buscou-se explorar o contraste para, através dele, avançar no entendimento de novas
categorias de análise.
Foram considerados apenas aqueles estatutos que tem força de lei, uma vez
que o caráter coercitivo é característica essencial dos códigos de deontologia. O eixo
condutor do estudo foi a análise das relações polícia/ sociedade e dos mecanismos de
controle social que regulam a atividade do policial, em sua dupla vertente, da função
e da profissão. Privilegiou-se o controle interno buscando-se saber em que medida
este interfere na prática diária do policial e nas formas através das qual esta prática
é avaliada.
A pesquisa procedeu por meio de duas estratégias: a análise dos documentos
acima mencionados e entrevistas com informantes-chaves nas instâncias de: a)
direção de ensino, b) formação/ treinamento e c) avaliação das polícias pesquisadas.
A documentação disponível foi trabalhada através da análise de conteúdo, a partir
da seguinte categorização (que abarca o conteúdo dos documentos, seu grau de
especificidade/generalidade e seu caráter restritivo ou não face à discricionariedade:
a) definição de termos, considerações iniciais e considerações finais; b) organização
interna; c) deveres, direitos e proibições; d) procedimentos profissionais e e) outros.
Como “definição de termos, considerações iniciais ou finais” foram classificados
aqueles artigos que traziam conceitos gerais e definições que serviriam de base para
a interpretação dos demais artigos. Por exemplo, artigos definindo ou diferenciando
policiais e funcionários civis. Também foram classificados nesta categoria os conteúdos
que tratam da competência e da abrangência de cada documento.
Muitos conteúdos foram classificados como “organização interna”. De forma geral,
os que tratam da organização e da distribuição de competências dos diferentes órgãos
e seções de cada organização policial; os que descrevem a estrutura (composição e
competência) de determinada unidade policial; os que tratam das relações entre estas
diferentes unidades.
Na categoria “deveres, direitos e obrigações” foram incluídos os itens que descrevem
os direitos e prerrogativas dos policiais em geral. Também os conteúdos que descrevem
as especificidades de determinadas funções policiais. Nos documentos brasileiros e
canadenses foram encontrados artigos tratando dos direitos trabalhistas dos policiais
(férias, remunerações e licenças) e conteúdos sobre direitos e prerrogativas judiciais. Os
itens referentes às obrigações funcionais dos policiais foram classificados desta forma.
Os “procedimentos profissionais” dizem respeito a conteúdos relativos à descrição
dos procedimentos para o exercício da profissão de polícia. Nesta categoria estão desde
a previsão para o estabelecimento de procedimentos profissionais até a descrição de
procedimentos específicos. Finalmente, foram classificados como “outros” os conteúdos
que não puderam ser classificados em nenhuma das categorias anteriores.
Os artigos ou seções foram a unidade de análise considerada. Embora, freqüen-
temente os artigos ou seções possuam inúmeros incisos ou alíneas, os mesmos foram
considerados no seu conjunto e não separadamente. Cada unidade de análise foi
analisada separadamente por pelo menos dois pesquisadores. Ao final do processo,
compararam-se todas as análises realizadas. Os itens que apresentaram divergências
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 67
foram revistos a fim de dirimir os conflitos de interpretação e construir coletivamente
uma interpretação sobre os documentos analisados.
68 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
do cidadão. Observe-se a título de exemplo, o artigo 29 da sessão que trata da ética
policial militar:
Tal conteúdo nada teria de muito grave se, no domínio dos procedimentos profis-
sionais, o legislador detalhasse melhor as especificidades para a atividade policial que
daí poderia decorrer, mas não é o que acontece. Da mesma forma, a tradução destes
princípios norteadores em normas ou manuais práticos orientadores de conduta seria
uma maneira de compensar o caráter geral dos deveres policiais, mas aí também a
lacuna é enorme.
Gráfico 1
Estatuto da PMDF: conteúdo dos artigos
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Definição de Organização Deveres e Procedimentos Outros
Termos Direitos Profissionais
Gráfico 2
Código de Conduta Ética da PMDF
9
0
Definição de Organização Deveres e Direitos Procedimentos Outros
Termos Profissionais
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 69
O Estatuto é um documento centrado nos deveres ligados à disciplina e à hierarquia,
estando fortemente impregnado da cultura hierárquica. O grau de generalidade de sua
formulação torna bastante difícil, senão impossível traduzi-los em subsídios para a
formulação de normas de conduta profissionais. Seus deveres são, em sua esmagadora
maioria, os deveres do cidadão.
Situação semelhante pode ser constatada pela leitura dos 09 artigos que compõem
o Código de Ética, como mostrado no gráfico número 02. O conteúdo contempla deveres
do cidadão mais do que do profissional.
Chama também a atenção o fato de o código se definir como um código de ética
Profissional e não se referir à profissão policial.3 Nenhum parágrafo deste artigo trata
de modo específico da relação do policial com a sociedade. Fato que chama a atenção,
posto que se trata de um código de deontologia policial. O artigo 03, que trata do
desempenho das funções, diz ao policial que ele deve:
Art 3º, Inc. I – se esforçar para atuar oportunamente, sem permitir que seus
sentimentos (prejudiciais), animosidade ou amizades influam em suas decisões;
Art 3º, Inc. II – não ceder ante o delito e perseguir incansavelmente os
delinqüente, fazendo cumprir a lei com cortesia e de forma apropriada, sem
temor nem favoritismo, malícia ou má vontade; sem empregar força ou violência
desnecessária, nem aceitar gratificações ou suborno;
Art 3º, Inc. III – lutará constantemente para lograr estes objetivos e ideais: de
dedicar a Deus, à Pátria e a profissão que houvera escolhido e fazer cumprir
a lei com o sacrifício da vida se for necessário, como um dia jurou ante nossa
Bandeira Nacional.
3 Grifos nossos
70 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de conseqüências bastante diferenciadas, tais como ‘o patriotismo’, ‘o civismo,’ e ‘o
aprimoramento técnico profissional,’ e ‘a dedicação na defesa da sociedade’.
O capítulo 05 intitula-se “Princípios Consagrados de Ética profissional para o
Policial Militar”. Na forma de definir a responsabilidade no trabalho, explicita-se a
proteção e o socorro à comunidade, que se concretiza, no entanto, pela defesa de suas
leis e, mais especificamente, da Constituição Federal. Ou seja, mais uma vez, a relação
com a comunidade é apresentada através da proteção às leis.
No Estatuto, tanto quanto no Código, há uma enorme lacuna no tocante
a procedimentos profissionais. O Manual Básico de Policiamento, utilizado no
treinamento básico dos policiais, não contém normas de condutas específicas para os
policiais e sim uma descrição dos principais tipos de policiamento utilizados no Distrito
Federal: policiamento ostensivo, policiamento de trânsito e rodoviário, policiamento
de guardas, policiamento escolar e policiamento feminino. No que diz respeito ao
uso da força, não diz como os policiais deveriam proceder, não contém nenhuma
prescrição sobre quando e como usar o armamento. O mesmo pode ser dito quanto à
forma de abordagem policial, da conduta com presos, da perseguição motorizada e do
tratamento da violência doméstica.
Os manuais existem, mas não fazem parte do dia-a-dia da prática policial
como orientadores de condutas, não se incorporando como valores e padrões de
comportamento, definidores de posturas profissionais. Enquanto não se estruturar a
profissão e o conceito de profissionalismo a partir de valores, saberes e práticas que
orientem a conduta policial, sobretudo no momento em que a ação rápida exige os
condicionamentos necessários, tenderão a prevalecer o senso comum e o bom senso,
situação que remete ao arbítrio do ator a decisão sobre a melhor forma de agir, no
momento do exercício da profissão.
4 No Brasil, cabe aos secretários de segurança pública exercerem boa parte das funções políticas e
administrativas do Solicitor General.
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 71
O Police Services Act foi criado para substituir o Police Act de 1946, a fim de
tratar mais adequadamente as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas
nas últimas quatro décadas. O PSA buscou fortalecer as relações entre a polícia e
a comunidade, sendo bastante enfático sobre a necessidade de parceria com a
comunidade. Dentre as várias mudanças introduzidas no novo código de deontologia
destaca-se a ênfase na natureza dos serviços prestados à comunidade e na necessidade
de aumentar o controle da atividade policial.
O novo código estabelece que os chefes das polícias municipais implementem a
filosofia de policiamento comunitário, voltada para a solução de problemas (community-
oriented policing). De forma geral, o PSA confirma a tendência, verificada desde a
década de 80, de enfatizar a necessidade de aproximar polícia e comunidade. Não por
acaso, a expressão serviço foi incorporada ao título do novo código canadense.
Para melhorar o controle sobre as atividades policiais, dois novos mecanismos
são criados pelo PSA. O artigo 113 estabelece que todos os serviços de polícia na
província de Ontário deverão implantar uma unidade especial de investigações Special
Investigations Unit (SIU). Cabe a esta nova unidade conduzir investigações sobre os
desvios de condutas que por ventura forem cometidos por policiais. Esta unidade
especial deverá reportar-se diretamente ao Ministério Público de Ontário.
Além disso, o Police Services Act passou a uniformizar e detalhar mais os proce-
dimentos a serem seguidos para lidar com as queixas e reclamações dos cidadãos a
respeitos dos serviços prestados pela polícia. A parte IV do PSA estabelece os procedi-
mentos a serem seguidos por todos os serviços de polícia. Também trata das funções e
deveres dos chefes de polícia, bem como dos direitos e deveres dos policiais acusados.
Outra novidade do código canadense foi a criação de um órgão de controle
externo para supervisionar as atividades de todos os membros dos serviços de polícia
de Ontário. A seção 21 criou a Ontario Civilian Commission on Police Services (OCCPS).
A comissão serve como instância quase judicial destinada a servir como corte de
apelação dos processos disciplinares conduzidos por cada serviço de polícia. Ela pode
conduzir suas próprias investigações, requerer investigações especiais dos serviços de
polícia, bem como rever as decisões dos chefes de cada departamento de polícia.
Da mesma forma que o código de conduta ética do DF, o Police Services Act é
carente de conteúdos voltados a procedimentos, como indicado gráfico de número 03,
e o gráfico comparativo entre eles. Os conteúdos relacionados a questões organiza-
cionais são os mais freqüentes seguidos daqueles que tratam dos direitos, deveres e
obrigações dos policiais.
72 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 3
Police Services Act
Gráfico 4
Comparação entre os Códigos
Gráfico 5
Conteúdo dos artigos – composição dos códigos (%)
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 73
De modo semelhante ao Estatuto do Distrito Federal, o código de Ottawa não
estabelece de forma clara como os policiais deveriam exercer suas funções. Apenas
fornece os princípios que deveriam nortear o trabalho dos policiais. O artigo 42 do
Police Services Act estabelece os deveres dos policiais:
Art 42 (a) – preservar a Paz; Art 42 (b) – prevenir crimes e outras ofensas e
prover assistência e encorajamento para que outras pessoas o façam; Art 42
(c) – assistir as vítimas de crimes;
Art 42 (d) – prender criminosos e outras pessoas que possam legalmente ser
postas em custódia; Art 42 (f) – executar mandatos que possam ser executados
por policiais e desempenhar suas obrigações relativas; Art 42 (g) – desempenhar
as obrigações legais que o chefe de polícia lhes destinar.
Estas obrigações são por demais vagas para orientar as condutas policiais. Nada
dizem sobre como “prevenir crimes”, “assistir vítimas”, “prender criminosos”, “executar
mandatos” ou “desempenhar obrigações legais”. Entretanto, e esta é uma distinção
importante, face a estas lacunas, em 1999, o Solicitor General de Ontário estabeleceu o
Adequacy and Effectiveness of Police Services. A análise dos seus conteúdos evidencia
uma preocupação maior com o estabelecimento de procedimentos profissionais e
normas de condutas policiais, como mostra o gráfico 6.
Gráfico 6
Adequacy and Effectiveness of Police Services – conteúdo dos artigos
74 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
procedimentos tratam dos mais variados assuntos como uso da força policial, violência
doméstica, controle de tráfico, perseguições motorizadas e proteção à testemunha.
Tradicionalmente os serviços de polícia de Ontário adotam as mesmas normas de
condutas e procedimentos profissionais. Esta medida facilita o treinamento básico dos
policiais cuja primeira parte é unificada, como indicado, mais abaixo.
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 75
sistematizado através de situações problemas pode ser um caminho frutífero já que
incorpora a experiência, um saber prático do qual se poderia, certamente, retirar
procedimentos concretos de atuação. Além de evitar a proliferação de formas múltiplas
de ação, as quais, ainda que centradas na experiência não chegam a se traduzir em
processos estruturantes de uma prática profissional.
Mesmo quando se insiste na questão da legalidade como um divisor de águas entre
violência policial e uso da força legítima, a afirmação não se faz acompanhar da referência
a um ordenamento específico direcionado ao tema, produzido pela corporação. Ao
contrário, o mais longe que vão os informantes nesta direção é a referência à legislação
federal, a qual necessariamente tem que ser referência para qualquer cidadão, militar
ou civil. Valeria a pena insistir em um aspecto: não se está afirmando que não exista
nenhuma norma ou manual prático de conduta mas sim que eles, quando existem, não
têm, na maioria das vezes estatuto de lei (são, no mais das vezes, obras de referência)
nem são orientadores na/da prática policial. Nas entrevistas realizadas, não se conseguiu,
de imediato, acesso a estes manuais, o que se coloca como um sinalizador a apontar que
eles não acompanham o policial em seu trabalho diário.
A dificuldade na articulação entre a teoria e a empiria não passa despercebida aos
que estão atuando na área de formação do policial. Fica claro, sobretudo, a dificuldade
em mudar a cultura institucional que, até bem pouco tempo, defendia precisamente
como valor o que hoje tende a ser percebido como violência. Este ‘gap’ou defasagem
geracional é, sem, dúvida uma variável que vale a pena explorar, pois ela está na raiz de
algumas dificuldades em mudar a cultura institucional – de um policiamento centrado
na repressão para os modelos mais atuais de policiamento, centrados na prevenção.
Na questão da formação e do treinamento, que é central para a idéia de uma
polícia profissional, os conteúdos relativos à utilização da arma de fogo revelam a
ausência de padronização: predominam técnicas diferenciadas, a critério do instrutor
e, o que é mais crucial, filosofias – ou doutrinas, como se diz no âmbito da instituição
– também distintas.
Os conteúdos ligados ao uso da força e, com menor intensidade, à discricionariedade
são os que maiores diferenças parecem trazer quando se compara as representações
sociais dos policiais do Distrito Federal e de Ottawa. Chama, particularmente, a
atenção, em Ottawa, a referência explícita aos códigos: o Código Penal em primeiro
lugar – até aí nada de distinto do que ocorre no DF – mas também a referência ao PSA
e aos procedimentos de rotina, que incluem a justificação, através de relatório escrito,
detalhando o porque de tal ou qual intervenção realizada na atuação prática. Aliado
a estes documentos observa-se que a afirmação sobre a utilização do ‘Modelo de uso
da força de Ontário’, é recorrente nos relatos e se constitui em prescrição que tem
força de lei, à qual o policial terá, portanto, que se ater e com base na qual terá que
defender, em caso de julgamento por eventuais desvios de comportamento. A idéia
de responsabilização (accountability), com fundamento no PSA e no Código Criminal
está presente em vários dos depoimentos analisados.
76 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
claramente a respeito do caráter positivo ou negativo desta que é uma característica
não apenas da sua profissão, mas de várias outras.
Inquirido sobre como lidar com a discricionariedade o policial apresenta, quase
invariavelmente uma resposta defensiva, como se estivesse subtendido que falar em
discricionariedade é mencionar um defeito, uma lacuna, uma arbitrariedade em sua
forma de atuar que merece recriminação. Em outras palavras, é como se os entrevistados
se defendessem por se sentirem (ou antes mesmo de se sentirem) acusados de algum
deslize. Afora estas coincidências, as representações sociais dos policiais acerca da
discricionariedade e de como lidar com ela mostram algumas distinções nas formas
como são elaboradas em ambas as instituições analisadas.
A fragmentação e a diversidade de respostas apontam, no caso do Distrito
Federal, para uma ausência de procedimentos padronizados capazes de estruturar
a discricionariedade. Sabe-se da dificuldade e da impossibilidade de tipificar o
imprevisível, de normatizar o acaso. O que não significa que não se possa reconstituir
e organizar a própria experiência de modo a constituir um conjunto de ‘situações-
problema’ ou ‘típicas’ a partir das quais se estruturar práticas. A insistência nas
normas e nos procedimentos contrasta com a não disponibilidade destes no dia-
a-dia do trabalho policial. Quando solicitados a indicar as normas que orientam a
prática policial, as respostas apontaram para os ordenamentos legais que regem a
vida dos civis, sem fazer referência a algo de mais específico; não se está supondo
que seja desejável uma receita pronta para cada situação, mas que possa ser buscada
uma padronização que aponte ao policial, em cada contexto, o espectro possível de
variações na conduta e, mais do que isto, a que parâmetros legais tal ou qual ação e/
ou intervenção está submetida. O ator social, sobretudo quando se trata de um agente
de segurança pública, precisa estar consciente em relação ao ordenamento legal no
qual se enquadram suas ações e /ou desvios de conduta.
No caso de Ottawa, além do procedimento rotineiro de relatórios escritos, detalhando
e justificando ações da atividade policial, parece ressaltar dos depoimentos o fato de que
discricionariedade é coisa para assuntos menores, transgressões no trânsito, ou coisas
do gênero. Nas demais situações, o policial não deve (ou, uma nuance interessante, não
precisa) usar de discricionariedade; ele aplica a lei. O que, em última instância, não
deixa de ser uma forma velada de negar a discricionariedade, de não responsabilizá-
la pela prática policial em momentos cruciais de sua atuação. Na prática, no entanto,
o policial tem, de fato, uma margem de liberdade para tomar decisões. Assumir sua
existência poderia ser mais produtivo do que a simples negação da discricionariedade.
Profissionalização
Embora, em termos gerais, admitam que a profissionalização dependa do
treinamento e da formação, os entrevistados, na polícia militar do DF, não apontam
seus conteúdos. Por exemplo, em uma corporação de cerca de 15 mil policiais, como
é a do Distrito Federal, é impossível poder se afirmar que 3.000, 4.000 ou 5.000 deles
tenham tido a mesma formação quanto ao uso de arma de fogo.
A idéia de profissão supõe que se tenha consenso, por exemplo, sobre o que é
ser policial. Questionados a este respeito, alguns respondentes definem o policial pelo
aspecto moral: pela metáfora do sacerdócio e da missão. Outros encaram-na como um
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 77
trabalho, como qualquer outro. Para outros ainda, a metáfora é a do mágico, significando
ser o policial aquele que faz o possível e o impossível, o esperado e o inesperado, numa
alusão, indireta e implícita é verdade, à ausência de rotinas profissionais.
Alguns admitem que a natureza dessa função faz do policial alguém diferente
do cidadão comum – pois cumprir sua função nesse caso pode ser sinônimo de matar
ou morrer – ele afirma que, em certo sentido, o poder sobre a vida e a morte é o
diferencial entre ser policial ou civil: mata e morre em nome da lei mas também
acima da lei e contra a lei. A consciência das lacunas, das necessidades em matéria de
formação existe. Falta, entretanto, traduzir essas necessidades ressentidas, em critérios
organizadores de padrões de conduta e em políticas de segurança pública.
No contexto canadense, há, em Ottawa, a preocupação com um levantamento
continuado dos problemas existentes, os quais são submetidos a um processo de
discussão na corporação, com o objetivo de superá-los. Em seguida, maior efetividade
do Código de Ética, que padroniza princípios. Um aspecto importante, segundo alguns
depoimentos, é a profundidade do processo de recrutamento, incluindo uma boa
investigação do candidato, de sua família e de sua vida anterior ao processo de seleção.
Este recrutamento é seguido de um curso no Ontario Police College (equivalente à
Academia de Policia), praticando uma metodologia de ‘resolução de problemas’, que
é o ‘Performances Manegement Cases’, e atuando a partir de um constante processo
de supervisão, requisito que se articula, em termos de eficácia, à responsabilização
(accountability, feita por escrito e atingindo não só o policial autor de um dado ato
mas seu superior hierárquico. Os ‘performance management cases’ estão referidos a
situações concretas – problemas reais acontecidos na corporação- mas mantidos no
anonimato, em termos de seus autores, metodologia que parece facilitar a melhor
visualização do problema.
A função policial
A diferença entre profissionalização e função não é de fácil percepção, para a
maioria dos entrevistados, sem grandes distinções entre os depoimentos colhidos no
Distrito Federal e em Ottawa. No primeiro caso, há os que enfatizam a função de
proteger o cidadão, voltando um pouco à questão da missão ou à questão do policial
como relações públicas; há ainda aqueles que representam o ‘ser policial’ como algo
próximo a ser pai, médico, e até mesmo, psicólogo, sociólogo, características todas
elas longínquas de um perfil profissional.
No segundo caso, nada de radicalmente diferente: os depoimentos admitem que
a função policial compreende de tudo um pouco: proteger a comunidade, servir e
proteger o público, proteger e fazer cumprir as leis, educar, manter a paz, preservar
a vida e a propriedade o que, à semelhança do contexto brasileiro, distancia mais do
que aproxima as representações sociais que o policial canadense faz de si mesmo do
que se poderia definir como um perfil profissional.
As entrevistas sinalizam múltiplas indagações e apontam para a necessidade
de se aperfeiçoar cada vez mais o conhecimento das representações como uma das
formas possíveis de se avançar o conhecimento dos sentidos e conteúdos das práticas
que fazem do policial alguém, que de uma forma ou de outra, convive diariamente
com a violência e precisa se instrumentalizar para enfrentá-la dentro da observância
78 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
dos direitos humanos em todos os momentos de sua prática, a qual comporta, na
maioria das vezes, uma relação direta com a sociedade.
Refletindo sobre os temas da profissionalização e da função policial, e sobre
como são abordados pelos entrevistados, um outro tema vem à tona: a multiplicidade
de concepções, as definições que insistem no aspecto emocional, na responsabilidade
da missão, dentre outras coisas, apontam para uma lacuna identitária, articulada
à falta de reconhecimento social que produz, por sua vez, um déficit de auto-
reconhecimento, como já apontado neste último capítulo. No contexto brasileiro, tal
lacuna está, certamente, articulada a esta representação que alguns policiais fazem de
si mesmos como alguém que trata, trabalha, lida como o “lixo” da sociedade. Poder-
se-ia, talvez, falar de um bloqueio face ao processo de construção de uma identidade
coletiva, que pode, no limite, impossibilitar que estes indivíduos se auto-reconheçam
como sujeitos de uma profissão.
No contexto canadense embora também não se tenha estruturado de modo
conclusivo a idéia de profissão já se poderia, talvez, falar da existência desta dimensão
‘serviço’ a qual, traduzido em serviço para a sociedade, não deixa de ser um passo
importante para que se possa falar da construção da profissão policial.
RECOMENDAÇÕES GERAIS
A forma de utilização da força tem conseqüência direta sobre a legitimidade de
que goza a polícia junto à população. Para lidar com esta questão é necessário criar e
aperfeiçoar mecanismos de controle do uso da força. Existem vários mecanismos para
este controle. Eles não são mutuamente excludentes, ao contrário, se complementam
(capítulo 2). Entretanto, qualquer destes mecanismos só terá eficácia se contar
com uma forte adesão dos policiais ou, pelo menos, dos seus dirigentes. Portanto,
recomendamos que sejam promovidas ações de sensibilização para a necessidade de
controlar o uso da força policial.
De acordo com as pesquisas realizadas sobre o assunto, a criação e adoção de
códigos de deontologia e normas administrativas têm se revelado um dos mecanismos
mais eficazes para controlar do uso da força. À exemplo da PMDF, algumas polícias
brasileiras já contam com códigos de deontologia, entretanto, carecem de normas
de condutas que estruturem melhor a discricionariedade policial. Recomendamos a
elaboração de normas de conduta policial.
O treinamento é uma das formas utilizadas pelas polícias para capacitar seus
membros ao emprego adequado da força. Entretanto, sem a adoção de normas claras
que orientem as condutas policiais, os esforços despendidos no treinamento serão
inócuos. Além disso, é importante considerar a necessidade de uniformização e de
continuação do treinamento. Sugerimos que é necessário adequar o treinamento às
necessidades do policiamento.
Os esforços de controlar o uso da força policial não se restringem ao treinamento.
Também é necessário aperfeiçoar o sistema de controle interno das condutas policiais.
Nos casos de acusação de desvio de conduta, é importante adequar os procedimentos
de apuração e julgamento aos conteúdos dos códigos de deontologia e das normas
de condutas. Recomendamos a necessidade de adequar o sistema de avaliação das
condutas policiais.
Códigos de Deontologia Policial no Brasil e no Canadá: análise dos documentos e das representações sociais | 79
RECOMENDAÇÕES ESPECÍFICAS PARA A SENASP:
A criação de um modelo nacional de uso da força policial permitirá a uniformização
das condutas policiais. Apesar das diferenças regionais, a criação de um modelo
nacional poderia fomentar a constituição da identidade profissional dos policiais. Além
disso, proporcionaria uma economia de esforços, bem como permitiria intercambio e
ações conjuntas. Na criação deste modelo, é preciso incorporar as necessidades, os
saberes e as experiências das polícias. Para tal, sugere-se a constituição de uma equipe
de policiais especialistas em treinamento do uso da força para pensar e elaborar o
modelo nacional. Recomendamos que a SENASP coordene os esforços para a criação
de um modelo nacional de uso da força policial.
Tomando o cuidado de não ferir as autonomias federativas, a SENASP pode
incentivar a adoção do modelo nacional pelas diferentes polícias existentes no
Brasil. Para isso, o condicionamento dos repasses dos recursos do Fundo Nacional
de Segurança Pública (FNSP) seria ferramenta valiosa para a implementação desse
modelo. Recomendamos, portanto, que a SENASP incentive a adoção do modelo
nacional de uso da força.
A implementação de um modelo nacional de uso da força passa necessariamente
pela sua adoção nos sistemas de treinamento e de controle interno. É importante
adequá-lo aos sistemas existentes nos estados. Para tanto, sugere-se um amplo
levantamento dos modelos de ensino profissional existentes, a fim de incorporar suas
variações na elaboração do modelo nacional de uso da força. Bem como submeter o
modelo nacional a um amplo debate com representantes das polícias, da sociedade
civil e especialistas na área de segurança pública. Sugerimos à SENASP também que
incentive a adequação dos sistemas de treinamento e avaliação policial ao modelo
nacional de uso da força.
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82 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
O PAPEL DOS MUNICÍPIOS NA SEGURANÇA PÚBLICA
Tulio Kahn1
André Zanetic
1 A elaboração desta pesquisa só foi possível graças à colaboração e apoio de diversas pessoas e
entidades. Agradeço em especial ao Ministério da Justiça pela bolsa concedida, à Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo por me liberar durante a realização do projeto e ao Centre for Brazilian Studies de
Oxford por me receber entre abril e junho de 2005. Inúmeras pessoas fizeram comentários e contribuições
ao projeto, em especial Albert Fischlow e Nauro Campos, que se prontificaram a ler e comentar o texto.
2001 74 18.732.539,9
2002 10 5.904.000
2003 6 10.309.264
2004 69 25.385.880,96
Total 60.331.684,86
Entre 2001 e 2004 o Governo Federal investiu cerca de 60 milhões de reais nos
municípios (14 milhões apenas para a cidade de São Paulo) através dos recursos do
Fundo Nacional de Segurança Pública, instituído com o objetivo de apoiar projetos
na área de segurança pública e de prevenção à violência. O acesso aos recursos
pelos municípios foi vinculado a apresentação de projetos consoantes com a política
de segurança pública do Governo Federal, e para tanto devia atender a algumas
solicitações específicas, como possuir Guarda Municipal, realizar ações de policiamento
comunitário ou terem Conselho de Segurança Pública.
A SENASP também tem orientado aos Municípios que elaborem um Plano
Municipal de Segurança Urbana, composto de diagnósticos (área geográfica, problemas
da região, principais crimes e ocorrências policiais, características sociais, econômicas,
etc) dos problemas existentes e de ações relevantes para seu enfrentamento, abrindo
a possibilidade de realização de convênio com a SENASP, tanto para os diagnósticos
quanto para a realização de ações efetivas. O valor total dos projetos tem sido distribuído
entre concedente e proponente, com 80% do valor total do projeto para o primeiro e
20% para o segundo, obrigando o município interessado a investir em segurança.
Paralelamente, os anos 90 também marcaram o envolvimento maior dos municípios
na esfera da segurança, através da criação ou ampliação das Guardas Civis, de
Secretarias e Planos Municipais de Segurança ou da regulamentação – através de Leis
e Decretos Municipais de aspectos relevantes para a segurança, como o controle de
bebidas alcoólicas, e a divulgação de serviços como o Disque Denúncia. Particularmente
relevantes foram os investimentos municipais em programas sociais de caráter
preventivo, focados especificamente na questão da criminalidade e da violência. Ou
então o redirecionamento dos investimentos dos projetos sociais tradicionais para as
áreas e grupos de risco, ou seja, levando explicitamente em conta o potencial preventivo
das políticas públicas municipais. Esta tendência de crescimento da participação dos
municípios na segurança coincide internacionalmente com o aparecimento no campo
da segurança de teorias como broken windows e policiamento comunitário e orientado
a problema – teorias que apontam também para a necessidade de incluir outros
recursos – além dos tipicamente policiais – para a solução de problemas criminais.
O fato é que, tanto o governo federal como os municipais passaram na última
década a atuar de forma mais intensa na esfera da segurança, reconhecendo a relevância
da problemática para a população e que para equacioná-la são necessários mais do
que novas armas e viaturas para as polícias estaduais ou o endurecimento penal.
O quadro abaixo dá uma idéia deste processo, analisando particularmente a Região
84 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Metropolitana de São Paulo. Dos 39 municípios que fazem parte da RMSP, oito adotaram
leis de incentivo à divulgação do Disque Denúncia e todos eles depois de 2001 – uma
vez que o serviço entrou em funcionamento apenas em 2000. Igualmente, todos os 16
municípios com lei seca adotaram-na neste mesmo período. As guardas municipais
são mais antigas, mas dos 27 municípios com guardas na RMSP, 17 criaram-nas a
partir de 1991.
Tabela 2
Crescimento da participação dos municípios da RMSP na segurança
27,8
26,5
26,0
25 25,2
24,2
23,4
21,7
20,8
20,4
20 19,8 19,8
18,7
16,5 16,4
15 14,9 14,6 14,9
13,4
12,2 12,2
11,4
10
0
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
Fonte: Datasus
Tabela 3
Principal responsável pela solução dos problemas de segurança na cidade
1º lugar ago/03 Jun-04
Prefeitura 27%
Na sua opinião, a solução dos seguintes problemas
Governo do Estado 49% (policiamento) deveria ser responsabilidade do:
governo federal 25.40
Governo Federal 19%
governo estadual 29.20
Não sabe/ Não respondeu 5% prefeitura 17.10
todos 24.20
1º + 2º lugares ago/03 nenhum 0.20
ns/nr 4.10
Prefeitura 55%
Governo do Estado 83%
86 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
A ATUAÇÃO MUNICIPAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO
Neste trabalho estaremos examinando especificamente o impacto de alguns
programas municipais sobre a criminalidade, tomando como referência principalmente
os 39 municípios da Região Metropolitana de São Paulo, onde o problema da segurança
pública foi e – apesar da melhora – continua sendo especialmente grave. Com 47% da
população do Estado de São Paulo, a RMSP concentra 80% dos roubos de veículos,
67% dos roubos e 63% dos homicídios, mais do que justificando a escolha da área.
Tabela 4
Ocorrências policiais registradas – jan e fev de 2005
Tabela 5
Estado de São Paulo – 1996-2004
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 1999-2004
Homicídio doloso 10.447 10.567 11.861 12.818 12.638 12.475 11.847 10.953 8.934 -30,30
População 34.074.126 34.932.345 35.367.254 35.891.661 37.546.640 38.052.554 38.500.000 39.067.518 39.677.130
Taxa 30,66 30,25 33,54 35,71 33,66 32,78 30,77 28,04 22,52 -36,95
Fonte: Fundação SEADE / SSP/SP
Desarmamento
Existem alguns fortes indícios de que boa parte dos homicídios em São Paulo
deve-se a conflitos interpessoais – sem qualquer relação com o tráfico de drogas, crime
organizado ou outras dinâmicas ligadas ao mundo do crime propriamente dito. Dados do
IML com relação às vítimas de homicídio mostram que, das vítimas para as quais exames
foram solicitados – cerca de metade dos casos – 42% apresentavam resíduos de álcool
88 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
no sangue na ocasião da morte. Em 25% dos casos a vítima morreu com apenas um tiro
e em 64% dos casos o tiro não atingiu a cabeça, sugerindo uma fraca intencionalidade
por parte do autor. Em 10% dos casos a autoria dos homicídios é conhecida no momento
em que a ocorrência é registrada na polícia. 9% dos homicídios ocorrem dentro de
residências e 1,3% de frente à residência da vítima. Boa parte dos homicídios ocorre nas
noites e madrugadas dos finais de semana, como veremos adiante. Em resumo, parcela
considerável dos homicídios envolve pessoas que se conhecem e resultam de processos
de altercações sob efeito de álcool, quando muitas vítimas são mortas com apenas um
tiro. Muitos dos que cometem homicídios não têm a clara intenção de matar, mas como
a arma de fogo exige menos esforço físico e psicológico por parte do agressor e é mais
letal do que outros tipos de armas, o desfecho morte é potenciado.
Todas estas evidências sugerem que a retirada de armas de fogo em circulação
pode evitar o desfecho letal de parte destes conflitos interpessoais. Diferentemente das
mortes premeditadas, nestes casos o resultado morte não ocorreria caso não houvesse a
disponibilidade de uma arma de fogo no momento da “escalada”, isto é, um processo de
altercação entre vítima e agressor que culmina numa agressão com arma de fogo (Wells, 2002).
Armas Perdidas
Gráfico 2
Quebra na série de armas perdidas pela população, em dezembro de 2003
Diferentemente das armas apreendidas pela polícia, que pode refletir em alguma
medida o esforço policial, o número de armas perdidas pela população é claramente
uma medida da disponibilidade de armas legais num determinado local e tempo. A
Secretaria de segurança pública mantém um registro de armas perdidas, declaradas em
Boletim de Ocorrência pelos proprietários que temem ser culpabilizados caso as armas
sejam utilizadas em algum crime. Por motivos óbvios, a série reflete apenas a perda
de armas legalmente registradas. O número de armas perdidas no Estado vem caindo
progressivamente nos últimos anos – indicador da menor disponibilidade de armas em
circulação – e a série apresenta duas quebras nítidas, a última delas em dezembro de
2003, que reduziu em 4,2 a quantidade de armas perdidas por mês.
90 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
uma diminuição de 45 homicídios por mês na cidade de São Paulo. Por algum motivo,
as séries de homicídios dolosos para a grande São Paulo e Estado não mostram uma
mudança de nível neste período, embora a série histórica de internações por agressões
intencionais com arma de fogo do Datasus sugira também uma quebra em novembro
de 2003.
Gráfico 3
Quebra na série de homicídios dolosos na Capital, em Novembro de 2003
Gráfico 4
Quebra na série de agressões intencionais por arma de fogo (datasus)
em Novembro de 2003
Tabela 6
A tabela abaixo sumariza os resultados encontrados
data da queda absoluta
queda
Série alteração de no número de
percentual
nível na série casos
Armas apreendidas Estado 12/2003 -425 -12,9
Homicídio Capital 11/2003 -45,4 -14,8
Porte de arma GSP 02/2004 -29,9 -14,8
Agressões intencionais com armas de fogo Estado 11/2003 -41,7 -17
Latrocínio Estado 09/2003 -7,8 -17,8
Porte de armas Capital 09/2003 -60,2 -19,4
Porte de arma Estado 11/2003 -283,2 -21,7
Armas perdidas Capital 12/2003 -4,22 -25,5
Latrocínio Capital 02/2004 -4,83 -25,9
92 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
suicídios, por exemplo – devem aumentar em relação aos consumados, se as armas
de fogo estiverem saindo de circulação. O infocrim aponta que de fato tanto os
homicídios quanto os suicídios tentados em São Paulo estão crescendo. O ato deixa de
ser consumado porque o meio utilizado é menos letal do que a arma de fogo.
Tabela 7
THE ESTIMATED MODEL PARAMETERS
STANDARD P T
MODEL COMPONENT LAG COEFF
# (BOP ERROR VALUE VALUE
Y(T) = 194.92
Gráfico 6
O modelo utilizando o suicídio com arma de fogo como preditor explica cerca de
61% da variação encontrada na série de agressões intencionais com arma de fogo e
ilustra a relação entre a disponibilidade de armas e os homicídios. O modelo confirma
a hipótese segundo a qual a queda dos homicídios no Estado de São Paulo se deve em
boa parte à gradativa redução das armas de fogo em circulação, como apontado por
diversas evidências.
Alternativamente, usamos também a série de armas perdidas como uma variável
substituta “proxi” para a quantidade de armas em circulação, baseado na hipótese que
quanto mais armas em circulação, maior também o número de armas extraviadas.
94 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Seguindo o mesmo procedimento, introduzimos o número de armas perdidas num
modelo causal como variável preditora da quantidade de homicídios. O modelo
confirma que a quantidade de armas em circulação é um preditor relevante da
quantidade de homicídios (t = 3,82; sig. >.0003).
É importante ter este processo em mente como pano de fundo para interpretar a
atuação dos municípios na esfera da segurança pública, que coincide temporalmente
com o período de queda dos homicídios e outros indicadores criminais, mas que
não explica sozinho estes fenômenos. Embora o Estatuto do Desarmamento e ações
municipais como a adoção da Lei Seca tenham contribuído para a drástica diminuição
dos homicídios em São Paulo, vimos que a queda começa por volta de 1999 e atinge
praticamente todas as grandes cidades do Estado. As ações da polícia estadual e
as mudanças na política estadual com relação aos homicídios, neste sentido, são
importantes para a compreensão do fenômeno.
96 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
O mais provável é que políticas especificamente de segurança, atuando homoge-
neamente em âmbito estadual, tenham sido as principais responsáveis pela drástica
queda dos homicídios em São Paulo em apenas cinco anos, enquanto os homicídios
estão crescendo em Minas Gerais e caindo ligeiramente no Rio de Janeiro no mesmo
período.
Trata-se de um processo relativamente recente e pouco documentado, de modo
que é arriscado chegar a conclusões definitivas a esta altura; nos EUA ainda hoje
se discutem as causas da redução generalizada da criminalidade no país na década
passada: crescimento econômico, tolerância zero, legalização do aborto, crescimento
da população prisional, mudanças demográficas, estabilização do mercado de drogas,
inúmeras hipóteses foram aventadas para tentar explicar o fenômeno.
Em linhas gerais, o que se pode avançar sobre o tema é que não se trata nem
de fenômeno nacional nem de processo exclusivo de São Paulo. As maiores reduções
ocorreram nas cidades maiores e, dentro da Capital, a queda foi generalizada em
diversos tipos de bairros e tipos de local.
Não houve necessariamente uma diminuição no grau de violência da sociedade,
mas antes uma diminuição no grau de letalidade desta violência, provavelmente
derivada da redução do estoque de armas de fogo em circulação. Mudanças macro-
sociais como a elevação da qualidade de vida no Estado, a diminuição dos fluxos
migratórios e a diminuição dos jovens de 10 a 19 anos na composição demográfica da
população podem ter desempenhado algum papel no processo.
No campo das políticas públicas, para ficar apenas no âmbito da repressão, além da
restrição às armas e do aumento rápido das taxas de encarceramento, a implementação
da Lei Seca em diversos municípios da Região Metropolitana, a ênfase policial na captura
e aprisionamento de homicidas perigosos e no combate ao tráfico de entorpecentes,
desempenharam certamente algum papel para a obtenção deste resultado.
Sabe-se que, ao lado das armas de fogo, as bebidas alcoólicas são um dos mais
importantes fatores criminógenos, ou seja, fatores na presença dos quais, num contexto
já violento, a violência é potencializada (Parker et all, 1988; Norstrom, 1998; Markowitz,
2000; Exum, 2002; Duque e outros, 2003; Longshore et all, 2004; Wagenaar, 2004).
Entre outros efeitos, o álcool diminui a capacidade cognitiva e aumenta a probabilidade
de respostas agressivas do indivíduo na presença de uma provocação (Exum, 2002).
O indivíduo alcoolizado apresenta déficits tanto na atenção como na capacidade
de julgamento e fica mais vulnerável não apenas à vitimização por homicídio mas
também em outras situações envolvendo acidentes e violências. Álcool e violência
estão associados seja pelos efeitos farmacológicos da bebida, seja porque indivíduos
violentos ou com intenção de cometer violência bebem ou ainda porque o consumo
de álcool e o comportamento violento são ambos indicadores de uma dimensão que
pode ser denominada “comportamento de risco” (Markowitz, 2000).
Trata-se de analisar, porém, principalmente, a influência do álcool dentro de
um determinado contexto, como claramente mostram os mapas de concentração de
homicídios em São Paulo e outras cidades. Estamos falando da existência de processos
sociais que envolvem aspectos coletivos na vida da comunidade local – coesão social,
Gráfico 7
Brazil – Recorded aldult per capita consumption (age 15+)
Sources: FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), Word Drink Trends 2003
98 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
O aumento no consumo de bebidas no Brasil entre 1961 e 1997 pode estar
relacionado a diversos fatores, como por exemplo, por hipótese: a) a intensa e irrestrita
propaganda do produto nos meios de comunicação, voltada principalmente para os
jovens, associando bebida a status e outros símbolos positivos. Cerca de 5% dos
comerciais e nada menos que 27% das vinhetas exibidas na TV são propagandas de
bebidas (Pinski, I USP, 1994, tese de mestrado: Análise da Propaganda de Bebidas
Alcoólicas na Televisão Brasileira, citado em Alcohol and Public Health in 8 developing
Countries, WHO, 1999); b) redução dos custos de produção, principalmente depois
do programa pró-álcool – que barateou os custos dos destilados de cana de açúcar;
c) mudanças nos padrões culturais e religiosos com relação ao consumo de bebidas,
principalmente entre mulheres e jovens; d) tolerância policial com relação a crimes de
menor gravidade, como embriaguez; e) tolerância administrativa com relação à licença
para a venda de bebida e aumento na densidade de bares nas periferias dos grandes
centros urbanos; e f) mudança nos invólucros, que tornaram mais fácil o transporte,
manuseio e consumo de bebidas (bebidas em lata, garrafas menores, abertura sem
abridor de garrafas).
Este crescimento vertiginoso no consumo de bebidas nas últimas décadas – de
1,88 litro per capta em 1961 para 5,32 litros por capta por ano em 2001, 182% de
crescimento – transformou o Brasil num país de consumo “médio” para os padrões
mundiais, uma vez que a média per capta de consumo de álcool é de 5,1 litros.
O caso brasileiro chama a atenção não tanto pela taxa de consumo per capta,
mas antes por apresentar uma elevada taxa de dependência de álcool entre os adultos:
11,2% dos consumidores podem ser considerados dependentes de álcool, o que deixa
o Brasil apenas atrás da Polônia entre os países analisados. Entre os homens adultos
com idade de 18 a 24 anos, a taxa de dependentes chega a 26.3%, colocando o Brasil
entre os cinco da lista com mais jovens dependentes.
Levantamentos realizados nos anos 90 pelo CEBRID – Centro Brasileiro de
Informações sobre Drogas Psicotrópicas – estimam que entre 6,6 e 11,2% da população
brasileira pode ser considerada dependente de álcool. Entre os jovens do sexo masculino,
a prevalência de dependentes de álcool sobe para 23,7%, de acordo com a pesquisa
realizada em 2001 nas 107 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes. Cerca
de 69% dos pesquisados revelaram ter usado álcool alguma vez na vida, sendo a
prevalência elevada mesmo entre adolescentes entre 12 a 17 anos (48,3%).
Digno de nota é o dado segundo o qual 7,9% dos homens declararam já ter
discutido com outras pessoas após a ingestão de bebidas alcoólicas. (Galduroz e
Caetano, 2004) A relação entre uso de álcool e violência é evidenciada também num
artigo citado de Duarte e Carlini-Cotrim, que analisaram 130 processos de homicídios
ocorridos entre 1990 e 1995 em Curitiba: segundo o estudo, 53,6% das vítimas e
58,9% dos autores estavam sob efeito de bebidas alcoólicas no momento do crime.
Não existem dados disponíveis sobre o consumo de álcool no Estado, mas
algumas evidências indiretas apontam para uma eventual diminuição do consumo
mais pesado de álcool em São Paulo. Na ausência de dados fidedignos sobre o consumo
de álcool, é possível utilizar como variável substituta (proxi) diversos indicadores da
área da saúde relacionados a doenças e mortalidade causadas pelo álcool, uma vez
que diversos estudos mostraram através de análises de séries temporais que existe
uma relação forte e positiva entre o consumo de álcool e morbidade por doenças
100 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 9
se que o uso pesado de pelo menos uma droga no último mês foi mais freqüente entre
os estudantes que não tiveram uma educação religiosa durante a infância. O uso no
último mês de cocaína, ecstasy e o abuso de remédios foram mais freqüentes entre
os estudantes que não tinham religião e que não tiveram uma educação religiosa na
infância. A conclusão é que religião tem uma forte influência sobre uso de drogas e
álcool entre adolescentes. (Dalgalarrondo e outros, 2004).
Uma pesquisa de vitimização realizada pelo Instituto Futuro Brasil – IFB em 2003,
em que foram entrevistadas 5000 pessoas nos 96 distritos da cidade de São Paulo, traz
importantes informações sobre a relação entre álcool, religiosidade e vitimização. Os
dados mostram que o hábito de consumir bebida alcoólica é maior entre os homens
(59,2%) do que entre as mulheres (39,8%) P <,000. As diferenças de idade também
são significativas, sendo a população de 20 a 39 anos a que mais consome álcool
(54,3%), seguida da faixa de 40 a 59 anos (49,6%) e dos adolescentes de 16 a 19
anos (45,6%). Na população de 60 ou mais anos essa proporção cai para 29,2%.
O consumo também tende a ser maior entre os mais ricos do que entre os mais pobres,
em relação linear:
O(A) Sr(a) costuma tomar alguma bebida alcoólica, mesmo que muito raramente
ou em ocasiões muito especiais? sim
Tabela 10
Classe %
A 64,2
B 53,2
C 46,7
D 41,9
E 34,1
Como vemos na tabela abaixo, há uma estreita relação entre consumo de álcool
e ser vítima de algum crime ou se envolver em algum tipo de ocorrência delituosa
(quanto maior o consumo, maior a vitimização). As diferenças são expressivas, e
mesmo nos casos em que não há uma associação significativa os dados apontam
sempre no sentido de maior propensão ao envolvimento com ocorrências entre os que
costumam consumir álcool.
As diferenças observadas na relação entre álcool e vitimização ocorrem de
forma homogênea entre as classes sociais, apesar dos mais ricos tenderem a ser mais
vitimizados do que os mais pobres. No entanto, a força das associações difere em
alguns tipos de crime. Nos crimes contra o patrimônio, por exemplo (sobretudo roubo
e furto de carro / moto), a associação tende a ser maior entre os mais ricos. As questões
que envolvem a presença de armas de fogo (já foi ameaçado por arma de fogo, alguém
disparou uma arma de fogo contra o(a) sr(a), já foi ferido com arma de fogo alguma
vez na vida) são as que tem as associações mais significativas, apontando o álcool
como elemento potencializador do ato agressivo, tal como observado na literatura,
o que evidencia novamente a hipótese da combinação entre álcool e violência. Essas
associações tendem a ser mais fortes entre os mais pobres.
102 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 11
Consumo de álcool X vitimização
O(A) Sr(a) costuma tomar alguma bebida
alcoólica, mesmo que muito raramente
ou em ocasiões muito especiais?
Sim Não Total P
Nos últimos 12 meses foi vítima de algum furto ou roubo? sim 14,1% 9,8% 11,9% ,000
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
20,7% 12,1% 16,3% ,000
teve carro ou moto roubado furtado? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
39,9% 29,4% 34,5% ,000
teve algum outro bem roubado ou furtado? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
14,3% 8,5% 11,4% ,000
sofreu alguma forma de agressão física? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
28,9% 17,0% 22,8% ,000
foi ameaçado com uma arma de fogo? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
5,4% 2,4% 3,9% ,000
alguém disparou uma arma de fogo contra o(a) sr(a)? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
10,0% 6,1% 8,0% ,000
foi ameaçado por algum outro tipo de arma? sim
Nos últimos 12 meses foi vítima de alguma outra forma
2,6% 1,4% 2,0% ,009
de violência ou crime? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
1,6% ,7% 1,2% ,021
foi ferido por uma arma de fogo? sim
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
19,5% 17,2% 18,3% ,060
teve sua casa invadida por assaltantes? sim
Nos últimos 12 meses foi vítima de alguma agressão física? sim 2,6% 1,8% 2,2% ,150
Alguma vez na sua vida o(a) sr(a)...
2,0% 1,5% 1,7% ,334
foi ferido por algum outro tipo de arma? sim
Fonte: IFB
Quadro 1
Consumo de álcool X agressão
O(A) Sr(a) costuma tomar alguma bebida
alcoólica, mesmo que muito raramente ou
em ocasiões muito especiais?
Sim Não Total P
Alguma vez na sua vida o(a) Sr(a)... usou ou mostrou uma arma
4,0% 2,0% 3,0% ,000
para se defender? sim
Nos últimos 12 meses, quantas vezes o(a) Sr(a) gritou contra alguém
que estivesse dirigindo um carro para demonstrar que não gostava de
23,3% 13,6% 18,3% ,000
seu modo de dirigir? Às vezes, três a cinco vezes / Freqüentemente,
seis ou mais vezes
Nos últimos 12 meses, quantas vezes, no meio de algum problema,
o(a) Sr(a) gritou contra alguém que não era seu familiar? Às vezes, 16,8% 8,4% 12,5% ,000
três a cinco vezes / Freqüentemente, seis ou mais vezes
Menos
De 1 a 3 Ao menos Mais de
Nunca de uma
vezes ao uma vez uma vez Total P
participa vez ao
mês por semana por semana
mês
costuma tomar bebida
classe A 64,6% 70,4% 71,8% 58,2% 43,5% 62,4% ,004
alcoólica
costuma tomar bebida
classe B 59,5% 57,7% 57,2% 46,9% 40,2% 52,4% ,000
alcoólica
costuma tomar bebida
classe C 58,5% 53,4% 50,9% 40,8% 27,4% 44,8% ,000
alcoólica
costuma tomar bebida
classe D 59,0% 46,2% 47,5% 31,7% 18,4% 40,2% ,000
alcoólica
costuma tomar bebida
classe E 57,9% 71,4% 38,5% 26,1% 8,1% 35,7% ,000
alcoólica
Fonte: IFB
Tabela 14
Tipo de Religião
evangélico católico outro Total P
Costuma tomar bebida alcoólica 26,8% 53,5% 53,6% 49,1% ,000
Fonte: IFB
104 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
adesão impressionante nos últimos anos, sobretudo em suas vertentes mais modernas,
como a Igreja Universal do Reino de Deus, os evangélicos compõem hoje cerca de 20%
da população paulistana, sendo que 69,1% tem entre 16 e 39 anos, confirmando um
perfil mais jovem em relação às outras religiões. A tendência a beber menos quanto
menor o nível de renda é muito mais clara entre os evangélicos: na classe E, 7,5%
dos evangélicos costumam consumir álcool, enquanto entre os católicos, na mesma
classe, a proporção é de 50,7% e entre os freqüentadores de outras religiões 57,1%. Os
evangélicos mais pobres, além de consumirem menos álcool, são os mais assíduos aos
cultos de sua religião, respondendo ao apelo focado na população mais carente que
é característico dos pastores evangélicos, hoje cada vez mais influentes nos meios de
comunicação, possuindo canais próprios de televisão e diversas estações de rádio.
Apesar do enfoque da pesquisa não permitir tirar maiores conclusões sobre essas
relações, podemos inferir que o crescimento das igrejas evangélicas e a participação da
população mais pobre pode ter relações com a vitimização desse público, principalmente
com relação aos homicídios, cuja população de risco é a mais jovem e mais pobre.
A relação entre tipo de igreja freqüentada e as diferentes categorias de vitimização
não sugere diferenças importantes, no entanto é possível supor que o envolvimento
com atos ilícitos poderia ser maior nessa população não fosse a influência da igreja
evangélica, que arregimenta justamente a parcela da população mais vulnerável à
violência. Exemplo disso é a relação com o uso de armas entre os que consomem
álcool, e sua presença nitidamente menor entre os mais assíduos aos cultos.
Curiosamente, apesar dos mais ricos terem maior prevalência de consumo de
álcool, as classes mais baixas são as que vão aos bares e botecos da cidade com maior
freqüência. Na classe E, aqueles que disseram freqüentar bar ou botequim quase
todos os dias somam 15,5%, enquanto os que disseram freqüentar uma ou duas vezes
por semana são 27,9%, totalizando 43,4%. Na classe D, essa parcela totaliza 36,6%,
enquanto nas classes A e B os números são de 19,4% e 24,3%. Quando perguntados
especificamente sobre o tipo de estabelecimento em que costumam beber, 47% dos
consumidores da classe E freqüentam bares, lanchonetes ou padarias. Nas outras
classes, essa freqüência cai progressivamente: 31% na classe D, 26,8% na C, 18,5%
na B e 14,7% na classe A.
Essa alta freqüência dos mais pobres pode estar refletindo a ausência de outros
recursos sociais, concentrando a população nos bares existentes nos bairros da
periferia, sobretudo os mais jovens, que consomem em maior quantidade e vão aos
bares com freqüência muito maior que os mais velhos (43% entre 16 e 19 anos e
33,4% entre 20 e 39 anos costumam ir a um bar ao menos uma vez por semana).
Dessa forma, em ambientes marcados pela carência de atenção dos recursos públicos
e vitalidade comunitária, o efeito do álcool e o contexto dos botecos podem estar
funcionando como mais um elemento intensificador da violência.
106 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Chama atenção a alta prevalência de utilização do álcool entre as vítimas de
homicídio que tiveram o exame toxicológico realizado (42,5%) apontando que mais
estudos devam ser realizados para elucidar o papel do álcool na potencialização dos
conflitos sociais que resultam em morte, em nosso meio. Esse resultado é próximo ao
encontrado em pesquisa realizada com vítimas não fatais de agressões atendidas em
um importante serviço de emergência do Município de São Paulo, onde percentual de
alcoolemia encontrado foi 46,2%. O perfil desses pacientes, maior prevalência no sexo
masculino e na faixa etária de 25 a 44 anos, também coincide com o encontrado no
presente. Os resultados encontrados em Cali, Colômbia, entre as vítimas de homicídios,
são menores, variando entre 13,0 e 23,4%, no período de 1993 a 1998.
Este perfil epidemiológico – vítimas e autores alcoolizados, concentração das
mortes nas noites e nos finais de semana – fez com se pensasse numa legislação para
o fechamento dos bares neste período, como forma de diminuir as mortes2. Os efeitos
desta medida serão explorados no próximo tópico.
2 Curiosamente, apenas 2% dos homicídios ocorrem dentro de “bares”, “boates” ou “lanchonetes”, segundo a
classificação de tipo de local adotada pelo Infocrim; é possível contudo que outros casos tenham sido classificados na
categoria “estabelecimentos comerciais”, no interior dos quais ocorrem 3,9% dos assassinatos em São Paulo.
108 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Mapa 1
Tabela 16
forçando “dummys” para avaliar a intervenção e assumindo
a priori um modelo AR1 para descrever as séries
Detecção de Intervenções
Em razão destas dificuldades, utilizamos um procedimento alternativo proposto
por Box-Jenkins chamado “intervention detection”, mencionado anteriormente
quando analisamos os efeitos do Estatuto do Desarmamento sobre várias dimensões
ligadas a armas de fogo. Trata-se como vimos de um procedimento empírico do
tipo “data driven”, que deixa os dados falarem por si só, sem assumir nenhum
modelo apriorístico nem forçar datas específicas para as quebras de nível. Se um
110 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
“outlier” existe na série – como uma queda significativa nos homicídios –, então ele
é simplesmente detectado.
A identificação do momento exato da quebra nem sempre é perfeita quando o
número de casos é pequeno e sujeito a flutuações aleatórias e, como vimos, além disso,
a publicação da Lei (situação de jure) não coincide necessariamente com o momento em
que ela começa a afetar a realidade (situação de fato), assumimos aqui que se a data da
quebra identificada na série é “próxima” da data da publicação da Lei, podemos assumir
que a responsável pela queda foi efetivamente à introdução da medida.
A tabela abaixo resume os resultados encontrados. Para Osasco e Diadema
utilizamos também a série histórica de “agressões intencionais cometidas por arma de
fogo” do Datasus, como um teste de validade para as séries policiais. Das 16 cidades,
encontramos quebras de nível significativas e negativas, conforme o esperado, em 6
delas, nomeadamente Osasco, Embu, Diadema, Mauá, Itapevi e Barueri. Embu-Guaçú
portanto sai da lista de cidades onde o impacto foi significativo. Novamente, são as
cidades com maiores quantidades mensais de casos de homicídio.
Observe-se que quando não forçamos uma dummy para a data da intervenção,
mas deixamos para as características intrínsecas aos dados a seleção do momento da
quebra, vemos que as quebras de nível em Itapevi e Barueri ocorreram muito tempo
depois da entrada em vigor da medida, de modo que é arriscado dizer que as reduções
dos homicídios nestas duas cidades se devem a medida. Muito provavelmente trata-se de
falsos positivos que o primeiro procedimento não permitia separar dos demais casos.
Tabela 17
DATA DA LEI
CIDADE RESULTADO INTERVENÇÃO SECA HIATO R AIC T P ANTES EFEITO DEPOIS
OSASCO LEVEL ago/03 23/12/2002 8 MESES DEPOIS 0,72 135,60 -10,46 0 27,7 -12,8 14,9
OSASCO SUS LEVEL dez/02 23/12/2002 MESMO MÊS 0,56 266,60 -9,54 0 17,2 -10,1 7,1
EMBU LEVEL set/02 18/12/2002 3 MESES ANTES 0,61 122,70 -6,43 0 15,1 -6,4 8,7
DIADEMA LEVEL jul/02 13/03/2002 4 MESES DEPOIS 0,42 142,20 -6,01 0 19,8 -7,5 12,3
DIADEMA SUS LEVEL abr/01 13/03/2002 11 MESES ANTES 0,62 256,86 3.81 0,003 23,2 -11,9 11,3
MAUA LEVEL ago/02 3/7/02 1 MÊS DEPOIS 0,30 138,40 -4,83 0 15,5 -4,83 10,67
ITAPEVI LEVEL abr/03 21/9/2001 20 MESES DEPOIS 0,41 101,50 -4,2 1E-04 9,3 -3,3 6
BARUERI LEVEL set/03 29/3/2001 30 MESES DEPOIS 0,28 97,60 -2,72 0,009 8,2 -3,8 4,4
SUZANO PULSE 21/06/2002 0,14 95,00 6,4
SAO LOURENÇO DA
25/06/2002
SERRA PULSE 0,36 -93,20 0,15
FERRAZ DE
3/9/02
VASCONCELOS PULSE / SEASP 0,43 66,80 4,71
ITAPECERICA DA
4/7/02
SERRA NO OUTLIER 0,00 82,00 6,2
JANDIRA NO OUTLIER 30/8/2001 0,00 66,80 3,6
JUQUITIBA PULSE / SEASP 29/5/2002 0,62 -23,30 0,61
POA SEASP 4/8/04 0,31 -8,16 1,3
SAO CAETANO DO
SUL PULSE 1/7/04 0,52 -22,00 0,91
EMBU GUAÇU NO OUTLIER 4/1/03 0,08 41,80 2,8
VARGEM GRANDE
12/12/03
PAULISTA PULSE 0,66 -32,70 0,59
Os casos de Osasco, Embu, Diadema e Mauá, portanto, são os únicos que oferecem
evidências consistentes com uma redução dos homicídios num período relativamente
próximo ao da adoção da Lei Seca. Reduções, aliás, bastante significativas: considerando
que estas 4 cidades adotaram a medida de controle de venda de álcool ao redor de 2002,
cerca de 750 vidas foram poupadas nestes dois anos. Isto representa nada menos do que
cerca de 21% da queda total de homicídios verificada no Estado entre 2002 e 2004.
Observe-se que as quatro cidades onde o efeito foi mais pronunciado têm
também guardas municipais, que auxiliam na tarefa de fiscalização e implementação
da Lei Seca. Talvez sejam necessárias a combinação e o efeito interativo da existência
da Lei Seca e da Guarda para que os efeitos sejam observados – embora a condição
Tabela 18
Evolução dos Homicídios em cidades sem Lei Seca, como Grupo de Controle
Das três cidades do grupo de controle apenas Santo André teve uma alteração
significativa do nível de homicídios: uma quebra clara em janeiro de 2004, que reduziu
em 4,3 a média de homicídios mensal da cidade e que pode ser considerada como
um efeito do Estatuto do Desarmamento adotado em dezembro de 2003. Portanto,
estes resultados reforçam a hipótese de que as quedas observadas nos homicídios das
cidades do grupo experimental se deveram efetivamente à adoção da Lei Seca.
112 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
A criação de Guardas parece ocorrer na forma de contágio: a proximidade
geográfica com um município que tem guarda aumenta a probabilidade de criação
num município contíguo. Com efeito, os coeficientes de auto-correlação espacial
sugerem que a distribuição dos municípios com Guarda Municipal não é aleatória,
mas concentrada em alguns clusters.
Das 180 Guardas, 104 são forças pequenas, com um efetivo de até 50 guardas.
Mas o efetivo somado das Guardas no Estado é de 19.687 pessoas, das quais 11.162
estão na Região Metropolitana de São Paulo e 6.350 apenas na Guarda de São Paulo.
Em média as guardas possuem um efetivo de 30 funcionários: média jogada para cima
por conta de São Paulo, que isoladamente responde por um quarto do efetivo total de
guardas do Estado de São Paulo.
Parece existir uma relação clara e linear entre tamanho do município e existência
de Guarda Municipal: quanto maior a população do município, maior a probabilidade
de existência de Guarda. Assim, por exemplo, 10% dos municípios com até 5.000 hab.
têm Guardas, em contraste com 100% dos municípios com mais de 500.000 habitantes.
Há também uma associação significativa com criminalidade: os municípios
com índices mais altos de criminalidade têm maior probabilidade de criar Guardas
Municipais. Apenas 9% dos municípios com baixa criminalidade têm guardas,
em contraste com 52% dos municípios de alta criminalidade. Finalmente, merece
destaque o fato de que das 180 Guardas existentes no Estado, 128 estão localizadas
em municípios com elevadas taxas de urbanização e renda.
As Guardas Municipais, embora limitadas constitucionalmente em suas funções,
na prática realizam um elevado número de atividades, freqüentemente extrapolando
seus limites legais. Entre outras atividades executadas pelas Guardas vale a pena
mencionar: Proteção dos Bens, Serviços e Instalações do Município, Patrulhamento
Ostensivo a Pé e Motorizado dos Próprios Municipais, Atendimento de Ocorrências
Policiais, Fiscalização do Trânsito, Ronda Escolar, Auxílio à Polícia Militar, Auxílio ao
Público, Posto de Guarda em Bairros, Entradas da Cidade e Outros Locais, Barreira
Física ou Cancelas em Bairros, Entradas da Cidade e Outros Locais, Patrulhamento
Ostensivo Montado, Serviços Administrativos, Vigilância e Segurança Patrimonial,
Defesa Civil e Proteção Ambiental.
Apenas na Grande São Paulo o efetivo somado das guardas atinge mais de 11 mil
pessoas, o que é mais do que todo o efetivo da Polícia Federal no país e equivale a 9%
de todo efetivo policial do Estado de São Paulo, que em 2005 estava em torno de 122
mil policiais. Portanto, é de se esperar que se há um efeito significativo das Guardas
em alguns municípios do Estado este deve aparecer mais claramente nos municípios
desta região.
Quatro municípios da Grande São Paulo criaram suas guardas entre os anos de
2001 e 2004, período para o qual temos séries mensais de crimes para testar os efeitos
da Guarda Municipal sobre certos crimes: Suzano, Embu, Mogi das Cruzes e Vargem
Grande Paulista. Ainda que nem sempre ande armada nem tenha poder de polícia, as
guardas fazem um trabalho de fiscalização ostensiva sobre certas áreas – especialmente
onde existe concentração de equipamentos municipais. É possível afirmar que elas
exercem algum efeito intimidatório sobre aqueles criminosos dispostos a cometer
crimes contra o patrimônio, pois na pior das hipóteses a guarda pode acionar pelo
rádio as polícias civil e militar.
Tabela 19
Roubo de Veículo
LEVEL
GUARD T
CIDADE RESULTADO INTERVENTION DELAY R AIC P BEFORE EFFECT AFTER
CREATION VALUE
DATE
VARGEM
1 MONTH
GRANDE LEVEL OUTUBRO 2003 23/09/03 .48 93 -4,67 .000 6,9 -3,5 3,4
AFTER
PAULISTA
2 MONTHS
EMBU LEVEL AGOSTO 2003 19/06/03 .65 205 -7,8 .000 43,6 -18,8 24,8
AFTER
114 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de 10,1 para 5,9 por mês dois meses após. A análise da série de “roubos outros” em
Suzano revela uma mudança de patamar neste tipo de crime em abril de 2003, só que
para cima: de 71,3 para 91,4 por mês, crescimento que deve ter contribuído para a
decisão da criação de uma guarda na cidade 8 meses depois, em dezembro de 2003,
mas cujos efeitos são ainda imperceptíveis.
Tabela 20
Furto de Veículo
LEVEL
GUARD T
CIDADE RESULTADO INTERVENTION DELAY R AIC P BEFORE EFFECT AFTER
CREATION VALUE
DATE
VARGEM
2 MONTHS
GRANDE LEVEL JULHO DE 2003 23/09/03 .53 63 -3,82 .0004 3,9 -2,1 1,8
BEFORE
PAULISTA
Tabela 21
Roubo outros
LEVEL
GUARD T
RESULTADO INTERVENTION DELAY R AIC P BEFORE EFFECT AFTER
CIDADE CREATION VALUE
DATE
VARGEM 2
GRANDE LEVEL NOVEMBRO 2003 23/09/03 MONTHS .64 87,8 -6 .000 10,12 -4,2 5,9
PAULISTA LATER
SUZANO LEVEL ABRIL 2003 18/12/03 .40 231,8 5,61 .000 73,6 17,8 91,4
Em resumo, nos quatro casos para os quais existiam dados mensais disponíveis
para os últimos anos, a criação da Guarda parece ter tido um efeito mais consistente
apenas em Vargem Grande Paulista. Com efeito, o Município de Vargem Grande Paulista
vem adotando nos últimos anos uma série de medidas para lidar com a criminalidade
local: a guarda foi criada em setembro de 2003, assim como um Departamento de
Segurança Pública e Patrimônio e a Lei Seca adotada em dezembro de 2003. Entre
os projetos preventivos municipais merecem menção o Centro de Atendimento
Profissional – CAP, o Beisebol Solidário, o Centro Acadêmico de Orientação Cívica ao
Adolescente de Vargem Grande Paulista, CAPAZ e a Renda Cidadã.
Com apenas 38 Km quadrados de área e 32 mil habitantes, os 37 guardas
municipais representaram um aumento expressivo na fiscalização ostensiva da cidade,
que contava com cerca de 39 policiais militares e 20 policiais civis em 2002. O caso
de Vargem Grande sugere que no contexto de uma cidade pequena do ponto de vista
do território e da população, totalmente urbana, um aumento expressivo do efetivo
ostensivo somado a outras medidas de combate a criminalidade podem ter um efeito
significativo sobre certos crimes.
A criação de guardas municipais pode ter efeitos positivos também sobre uma
série de outros indicadores que não foram mensurados aqui, tais como na sensação de
segurança dos munícipes, no trânsito local, na defesa civil ou no socorro a acidentes
e nos atendimentos sociais; ela pode liberar policiais civis e militares de algumas
funções menos importantes e permitir seu uso no combate direto à criminalidade.
Em todo caso, a criação de uma Guarda Municipal é uma medida cara e não por
acaso apenas os municípios mais ricos decidiram arcar com estes custos, que envolvem
116 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Em contraposição ao modelo tradicional de “segurança pública”, centrada no
controle repressivo-penal do crime, surgiram novas propostas de intervenção em âmbito
municipal que apresentam uma abordagem alternativa da questão da segurança,
enfatizando o caráter interdisciplinar, pluriagencial e comunitário na problemática.
Este modelo alternativo partilha da visão de que “segurança” deve deixar de ser
competência exclusiva das policias para converter-se em tema transversal do conjunto
das políticas públicas municipais, uma vez que a ação policial é somente uma das
formas de se abordar uma conduta anti-social.
Pluriagencialidade quer dizer que a segurança pública diz respeito a múltiplas
agências dentro do município, para além da Guarda Municipal. Ao enfatizar a
participação comunitária, por fim, ressaltam que segurança pública é função do poder
público, mas exercida em conjunto com a comunidade, tanto no planejamento como
na execução de programas preventivos.
Tabela 22
Mapa 3
118 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
conflito no seio da família, o combate à violência de gênero ou contra crianças ou
ações em que a juventude é vítima ou autora de violência, as manifestações locais de
insegurança geradas por situações que não são da competência dos municípios (como
o narcotráfico, por exemplo), os riscos ambientais e as diversas formas de convivência
cidadã.” Item n. 5 da Declaração Final do Seminário “Ciudades mas Seguras”
O texto que abre este tópico consta da Declaração Final elaborado pelos prefeitos
da Grande São Paulo que se reuniram em Guarulhos em 2003 num seminário para
avaliar a participação dos municípios na esfera da segurança. O tema dos painéis
propostos – como “prevenção da delinqüência através de ações integradas de inclusão
e participação social e de melhorias urbanas” – bem como o teor da Declaração,
deixam claro que para as Prefeituras o combate à criminalidade e insegurança passa
pela questão dos investimentos sociais, muitos dos quais são da alçada municipal.
De fato, a literatura criminológica confirma o vínculo entre criminalidade e
diversas modalidades de privação social e econômica. Assim por exemplo, sabe-se
que em quase todos os países, o homicídio é um fenômeno altamente concentrado no
espaço: algumas poucas áreas são responsáveis por uma enorme quantidade de casos
enquanto na maioria das áreas a ocorrência de homicídios é relativamente baixa. Por
traz desta concentração espacial existem diversos fatores como carências sociais e
econômicas, estrutura da população e estrutura familiar (Baller et all, 2001; Ceccato,
Haining and Kahn, 2004).
A literatura criminológica já há muito tempo estabeleceu co-variáveis importantes
para a explicação da distribuição epidemiológica dos homicídios: densidade popula-
cional, taxa de urbanização, desigualdade econômica, proporção de famílias dirigidas por
mulheres, renda, proporção de homens jovens na população, concentração de favelas,
etc. (Cruz, 2004) A geografia dos homicídios em São Paulo é largamente explicada, por
exemplo, por fatores ligados à pobreza, além de padrões de uso do solo e atividades
criminais relacionadas ao tráfico de drogas. (Ceccato, Haining and Kahn, 2004) Em
outras palavras, sabe-se que as condições sócio-econômicas e demográficas afetam os
níveis de criminalidade, sendo possível estimar as taxas de homicídios de determinada
área com certa precisão apenas pelo conhecimento destas covariáveis.
A concentração espacial dos homicídios pode ser vantajosa do ponto de vista
da implementação de políticas sociais preventivas: alocando recursos para áreas
e populações mais afetadas, obtemos mais resultados com menos recursos. Uma
hipótese para a queda dos homicídios no Estado de São Paulo desde 2000 é de que
diversos Municípios estariam investindo em programas sociais de natureza preventiva
“secundária” – nos últimos anos: bolsas para estudantes pobres, programas de emprego
para jovens, centros de esporte, lazer e cultura na periferia, etc. Além deste trabalho de
prevenção “secundária” (atuando sobre fatores e grupos de risco), poder-se-iam somar
os efeitos da prevenção primária, que consiste em melhorar universalmente a qualidade
de vida da população, através de ações do Município e do Estado em saneamento
básico, coleta de lixo, melhorias na saúde, moradia e educação, entre outros.
Embora vários analistas mencionem os efeitos preventivos destas ações, poucos
conseguiram demonstrar o vínculo entre elas e a queda dos homicídios, pois não existe
um levantamento exaustivo dos programas de prevenção secundária executados pelos
municípios nestes anos, e muito menos sobre a cobertura, escala e intensidade em
que foram realizados ou se realmente atingiram os locais e grupos mais vulneráveis.
Quadro 2
categoria de crescimento* grupo de queda do hd entre 2000 e 2004 Crosstabulation
120 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
com armas de fogo vêm caindo nos últimos anos – validando os dados policiais – as
agressões com outros tipos de arma estão crescendo. Embora o resultado seja menos
letal, os dados sugerem que não é a “violência” como um todo que está em queda.
No âmbito policial, é possível verificar que outros indicadores de violência
interpessoal no Estado estão estáveis – como as lesões corporais dolosas – ou aumentando
como as vias de fato, injúrias, exercício arbitrário das próprias razões, difamações,
calúnias, ameaças e outros indicadores de conflitos interpessoais. A única exceção é a
série de “desentendimento” que claramente cai em São Paulo desde 1999, mas é possível
especular que a categoria simplesmente vem sendo menos utilizada no infocrim e que
não se trata necessariamente de uma queda real. Assim, pode-se mesmo dizer que os
homicídios estão caindo apesar da continuidade da violência na sociedade. A não ser que
se consiga explicar como os projetos de prevenção e inclusão afetam apenas os homicídios
e não os outros tipos de crimes contra a pessoa, fica difícil argumentar que eles são os
responsáveis pela queda recente da criminalidade no Estado, que além do mais foi abrupta.
Como vimos anteriormente, o mais provável é que a violência tenha se tornado
simplesmente menos letal, em função da redução do número de armas de fogo em
circulação.
Isto não quer dizer que a ação social preventiva das prefeituras e do Estado
seja ineficaz para a contenção da criminalidade. É interessante observar que, não
por acaso, a queda dos homicídios ocorre de forma mais intensa precisamente nos
municípios com melhores indicadores sociais.
Quadro 3
Case Summaries
Quadro 4
Case Summaries
Grupo 2000 Revisto - homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio homicídio
polo Mean 88,30 89,56 90,35 97,96 107,06 107,19 105,12 97,22 90,58
N 81 81 81 81 81 81 81 81 81
dinâmicos e baixo Mean 33,96 41,60 41,79 51,08 56,85 51,48 53,25 51,85 46,10
desenvolvimento social N
48 48 48 48 48 48 48 48 48
saudáveis e baixo Mean 1,10 1,12 1,23 1,30 1,41 1,44 1,39 1,63 1,54
desenvolvimento N 211 211 211 211 211 211 211 211 211
econômico
transicção social e Mean 2,52 2,91 3,33 3,81 3,84 4,25 3,97 3,94 3,73
baixo desenvolvimento N 191 191 191 191 191 191 190 191 191
econômico
baixo desenvolvimento Mean 2,51 3,09 2,73 3,64 3,04 2,89 2,89 3,09 3,22
econômico e social N 114 114 114 114 114 114 114 114 114
Total Mean 15,17 16,12 16,33 18,30 19,81 19,53 19,33 18,31 16,98
N 645 645 645 645 645 645 644 645 645
Mapa 4
CONCLUSÕES
Segurança Pública vem deixando progressivamente de ser um tipo de atividade
predominantemente estadual. Neste setor está ocorrendo uma erosão da atuação
do governo, provocada pelas iniciativas comunitárias de autodefesa, pela expansão
122 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
das atividades da indústria da segurança e pela crescente participação do governo
Federal e dos municípios no tema da segurança pública. Entre as causas desta erosão
da atuação do governo estadual sobre a segurança estão o aumento do crime, do
sentimento de insegurança e o reconhecimento de que o poder público estadual não
pode sozinho atender a todas às necessidades específicas de segurança demandadas
pela sociedade.
No Brasil, a questão da segurança pública vinha sendo entendida restritivamente,
até os anos 90, como questão de justiça criminal – polícia, tribunais e sistema
carcerário. Pelo arranjo federativo brasileiro, a maior parte destas tarefas sempre
coube ao poder público estadual. Com efeito, a constituição coloca os estados como
os principais responsáveis pela gestão da segurança, cabendo ao governo municipal
diminuta parcela desta responsabilidade. Mas os municípios deram-se conta de que
têm em suas mãos instrumentos extremamente importantes para colaborar com a
questão da segurança.
Vimos como diversos municípios criaram novas guardas municipais, agora com
funções que extrapolam na prática a proteção do patrimônio da cidade. Elaboram-
se Planos Municipais de Direitos Humanos e Segurança Pública, com diversos itens
diretamente voltados ao problema da segurança e começaram a surgir Secretarias
Municipais de Segurança. Diversos municípios criaram formas de incentivar a
divulgação do Disque Denúncia e adotaram leis para restringir o uso de bebidas
alcoólicas. Este esforço multi-agencial é louvável e promissor, na medida em que a
população não quer saber se o problema é de alçada federal, estadual ou municipal.
Este movimento, como vimos, não foi casual: diversas pesquisas de opinião pública
revelaram que a criminalidade, ao lado do desemprego, são as maiores preocupações do
eleitorado e os prefeitos não poderiam ficar alheios ao problema.
Uma aposta consistente de prevenção ao crime é aquela baseada em projetos
que têm as seguintes características: um diagnóstico preciso que determine os
desafios, fatores de risco e recursos da comunidade; um plano de ação que estabeleça
prioridades, identifique programas que podem ser modelos úteis e defina objetivos de
curto e longo prazo; um processo de implementação rigoroso que inclua o treinamento
e coordenação dos parceiros envolvidos; avaliações que forneçam retornos tanto sobre
os processos quanto sobre os resultados obtidos; uma coalizão de atores chave com
lideranças fortes e staff de apoio administrativo; uma estratégia de comunicações
que pode mobilizar profissionais e cidadãos e é sensível à idade, gênero e diferenças
culturais. Estes são, em linhas gerais, os ingredientes para políticas bem sucedidas
de prevenção ao crime, identificados na literatura3. E estes projetos, freqüentemente,
podem prescindir perfeitamente da existência de efetivos policiais.
Embora de maneira limitada, procuramos mostrar aqui que a ação das prefeituras
na esfera da segurança tem tido algum impacto: as denúncias criminais – matéria
prima do trabalho policial – crescem consideravelmente quando as prefeituras se
envolvem na divulgação do Disque Denúncia; a Lei Seca, quando adequadamente
implementada, contribui para diminuir significativamente a quantidade de homicídios.
Se corretamente alocada, por outro lado, a guarda municipal pode contribuir para a
3 Confira “100 Crime Prevention Programs to Inspire Action Across the World”. International Centre
for the Prevention of Crime, Canadá, 2001. No governo federal, o PIAPS é atualmente o programa que
mais se aproxima destas premissas, embora esteja ainda em fase de gestação.
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126 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
AVALIAÇÃO DA FORMAÇÃO E DA CAPACITAÇÃO
PROFISSIONAL DOS PERITOS CRIMINAIS NO BRASIL
Equipe da Pesquisa
Pesquisadores
Alexandre Giovanelli (coordenação técnica)
Décio Nepomuceno da Silva
Carlos Eduardo Medawar
Estagiários
Daniel de Pádua Fernandes Ribeirinha
Wilson Santos de Vasconcelos
Auxiliares de pesquisa
Heloísa de Oliveira Duarte
Marina Fernandes
Realização
Fundação Universitária José Bonifácio
UFRJ – NECVU
INTRODUÇÃO
A Perícia Criminal tem papel preponderante, principalmente no que concerne ao
desenvolvimento e uso de tecnologias, já bastante desenvolvidas em outros países,
as quais permitem uma investigação eficiente, bem como a produção de provas,
necessárias ao andamento e conclusão do inquérito judicial. Tal amplitude encerra uma
complexidade e uma diversidade de técnicas que pressupõem uma sólida formação
desses profissionais para o bom desempenho de suas funções. A questão da formação
torna-se ainda mais crítica quando se considera que o perito criminal transita entre as
esferas tecno-científica, jurídica e policial, o que exige desse profissional uma ampla
gama de conhecimentos e treinamento que possibilitem a qualificação adequada para
o exercício de uma função altamente complexa e singular.
Todavia essa formação e capacitação devem vir acompanhadas da adequação
do ambiente de trabalho, quer seja através de instalações adequadas para tipos de
atividades específicas, quer seja pelo provimento e manutenção das tecnologias
necessárias ao “fazer” científico atual.
Assim, a avaliação da formação e capacitação da perícia criminal é imprescindível
como instrumento para aperfeiçoamento da gestão do Estado, devendo ser entendida
como um processo sistemático de compreensão contextualizada de uma atividade,
com o objetivo de contribuir para o seu aperfeiçoamento e facilitar o processo
decisório. No presente trabalho buscou-se fazer uma avaliação diagnóstica geral, com
Objetivos
O presente projeto propôs-se a realizar um diagnóstico da formação e da capacitação
profissional dos peritos criminais no Brasil, no intuito de propor, uma melhor formação
profissional. Na impossibilidade de uma avaliação estado por estado, foram definidos
dois importantes estados da Federação para a realização da pesquisa de campo: Rio de
Janeiro e Minas Gerais. A pesquisa teve os seguintes objetivos específicos:
• Realizar um levantamento comparativo dos requisitos para ingresso na carreira
de perito criminal, bem como dos demais requisitos exigidos pelos cursos de
formação, capacitação e atualização de peritos criminais dos estados de Minas
Gerais e Rio de Janeiro;
• Verificar a adequação do ambiente de trabalho para a aplicação e uso dos
conhecimentos adquiridos pelo profissional;
• Analisar comparativamente a percepção dos peritos criminais quanto às
deficiências e necessidades dos cursos de formação e atualização oferecidos
atualmente;
• Identificar os atores envolvidos no processo de perícia, o que poderia contribuir
para a melhoria da eficiência da Perícia Criminal.
• Avaliar comparativamente o grau de satisfação ou insatisfação dos peritos em
atividade, relacionando entre si suas representações a respeito da carreira, do
ambiente de trabalho, das atividades específicas desenvolvidas, etc com suas
expectativas forjadas durante a qualificação;
• Propor sugestões que contemplem a resolução de alguns dos problemas
identificados bem como o aperfeiçoamento dos pontos positivos reconhecidos
durante a pesquisa.
Metodologia
A pesquisa foi realizada com base no método comparativo, sendo escolhidos
para estudo dois Institutos de Criminalística; um do Estado do Rio de Janeiro e outro
do Estado de Minas Gerais. Foram utilizadas as seguintes técnicas de coleta e análise
de dados:
a) entrevistas: Foram realizadas em cada um dos estados, entrevistas com os
respectivos diretores dos Institutos de Criminalística, assim como os seus superiores
imediatos: o Diretor Geral de Polícia Técnica do Rio de Janeiro (DGPTC-RJ) e o
Superintendente de Polícia Técnica de Minas Gerais. Foram realizadas, ainda,
entrevistas com os representantes de classe dos respectivos estados, a fim de confrontar
as expectativas na formação e capacitação com a representação que é feita da realidade
vigente. Finalmente foram entrevistados dois professores-organizadores de cursos de
formação ou especialização, além dos gestores da Academia de Polícia responsáveis
pela elaboração das ementas de cursos de cada Estado. As entrevistas abordaram
as seguintes linhas temáticas: Formação e Capacitação, Estrutura, Gestão Pessoal e
128 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Identidade.Todas as entrevistas foram gravadas mediante concordância explícita do
entrevistado e garantia de seu uso somente na pesquisa.
b) Realização de uma enquête (survey). Foi elaborado um questionário contendo
itens que visavam avaliar a percepção dos peritos criminais quanto ao processo de
formação, capacitação, valorização do trabalho e condições de trabalho e o grau atual
de satisfação com as atividades desempenhadas. Os questionários, a serem auto-
administrados, foram testados e distribuídos para uma amostra significativa de postos
ou seções de perícia nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. A representatividade
dos questionários preenchidos ficou assegurada por uma alta taxa de resposta, que
pode ser considerada de “adequada” a “muito boa” (Babbie, 1999, p. 253).
c) Realização de grupos focais. Foram realizados dois grupos focais com peritos
criminais dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. A técnica de grupo focal seguiu
a metodologia proposta por Krueger (1996) e adaptada por Neto et al. (2001), em que
a entrevista é direcionada a um grupo com características identitárias selecionadas,
tendo um moderador e um relator como partícipes. O grupo focal consistiu de seis a
oito peritos criminais participantes e de dois pesquisadores na função de moderador e
relator, além de um operador de gravação. A técnica de grupo focal objetivou realizar
um delineamento das relações da Perícia Criminal com outras instituições da Justiça.
Os participantes do grupo focal foram informados, antes da dinâmica, das seguintes
garantias: 1) solicitar, a qualquer tempo, maiores esclarecimentos sobre a pesquisa;
2) sigilo absoluto de nomes, lotação ou quaisquer características de identificação;
3) possibilidade de não responder a quaisquer questões; 4) desistir, a qualquer tempo,
de participar da pesquisa.
d) Análise documental. O material documental referente às ementas das disciplinas
oferecidas nos cursos de formação para Peritos Criminais do Rio de Janeiro e de Minas
Gerais foram obtidos junto às respectivas Academias de Polícia. Da mesma forma a
existência de cursos de capacitação e sua periodicidade foram avaliadas através da
análise documental. Estes dados possibilitaram verificar a adequação e suficiência dos
cursos oferecidos, de acordo com a percepção dos peritos captada por meio das outras
técnicas utilizadas.
e) Uso das estatísticas oficiais. Foram obtidas e utilizadas estatísticas oficiais de
homicídios nos dois estados, de modo a permitir uma comparação entre efetivos de
peritos de local e volume da demanda de perícia externa nesses casos, mas a insuficiência
ou má qualidade dos dados não permitiu maior aprofundamento de análise, incluindo
outras ações periciais.
f) Etnografia da recepção dos pesquisadores nos dois estados. Anotamos em diário,
observações sobre as diferenças de recepção dos pesquisadores nos dois estados, sob a
suposição de que poderiam indicar diferentes valores quanto às expectativas de mudanças.
ESTRUTURAS INSTITUCIONAIS
Uma comparação das estruturas institucionais dos dois Institutos de Criminalística
foi realizada, visando verificar semelhanças ou diferenças que poderiam incidir sobre
a avaliação preconizada na pesquisa. Não foram encontradas diferenças fundamentais
que pudessem produzir uma interveniência significativa em nossa análise:
1) Contingente e distribuição de peritos. O Instituto de Criminalística de Minas Gerais
600
500
400
RM Rio de Janeiro
300
RM Belo Horizonte
200
100
0
1/1/2002
1/3/2002
1/5/2002
1/7/2002
1/9/2002
1/11/2002
1/1/2003
1/3/2003
1/5/2003
1/7/2003
1/9/2003
1/11/2003
1/1/2004
1/3/2004
1/5/2004
1/7/2004
1/9/2004
1/11/2004
Finalmente, este dado foi cruzado com o quantitativo de peritos para ambos
os estados. No Rio, o número de peritos para atendimento de locais de homicídios é
de cerca de 40 profissionais, enquanto em Minas é de cerca de 45 peritos. Ou seja,
embora o número de ocorrências de homicídios seja muito superior no Rio de Janeiro,
o número de profissionais é praticamente o mesmo nos dois estados:
Desse resultado pode-se esperar que as condições de demanda de perícia de local
no Rio de Janeiro em relação ao número de peritos em condições de atende-la possam
influir, de algum modo, sobre os resultados de avaliação no Estado em comparação com
Minas Gerais. Não foi possível, no entanto, controlar a interveniência dessa variável
em nossa análise devido à baixa qualidade dos dados disponíveis, especialmente
quanto aos demais delitos e ações periciais.
130 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
à sede da perícia criminal de Belo Horizonte, para iniciarmos nossos trabalhos, cerca
de 15 peritos criminais já se encontravam numa sala de reuniões nos aguardando,
prontos para nos atender em quaisquer necessidades. Isso nos possibilitou que, com
eficácia, apesar do curto espaço de tempo que dispúnhamos para ficar naquela cidade,
pudéssemos realizar, em apenas dois dias, o grupo focal; três entrevistas de suma
importância; a distribuição de todos os questionários para as várias divisões da polícia
técnica mineira, inclusive para as seções do interior, além de uma visita bastante
proveitosa aos laboratórios e diversos setores da sede da perícia criminal.
Conforme observações ao longo do período que permanecemos em contato com
os peritos de Minas Gerais, percebemos um elevado grau de entrosamento entre os
mesmos. Segundo depoimentos diversos, como pudemos observar tanto no grupo
focal, como nas entrevistas, este nível de entrosamento, longe de ser exclusivamente
interno, abrangia os outros seguimentos da Polícia Civil e marcava, com cordialidade
e respeito, o relacionamento com a Polícia Militar. Essa relação pode ser percebida,
inclusive no processo de formação dos policiais nas academias de polícia. Os peritos
criminais de Belo Horizonte mantêm um intercâmbio vivo com os outros segmentos
da polícia civil e com a polícia militar dentro de atividades na academia, posto que
compõem o quadro de docentes dessa instituição.
Anterior e posteriormente à visita feita a Belo Horizonte, procedemos a algumas
entrevistas, distribuição de questionários e a realização do grupo focal de peritos
no Rio de Janeiro. A primeira entrevista realizada, com um dos gestores da Polícia
Técnica, já foi um indício importante das dificuldades que teríamos que enfrentar.
Ela foi precedida pela seguinte frase do entrevistado, após as apresentações formais:
“isso não vai demorar muito não, não é?”. Como decorrência, a entrevista decorreu
de maneira fria, entrecortada por respostas breves, de uma objetividade claramente
cerceadora de prolongações.
A segunda entrevista, realizada com outro gestor da Polícia Técnico Científica do
Rio de Janeiro, foi mais cordial e extensiva, da qual tiramos bons subsídios para nossa
pesquisa, entretanto, também reafirmando o mito do “descomprometimento” carioca
(categoria usada em vários depoimentos), aconteceu com duas horas e meia de atraso,
depois de esperarmos exaustivamente pelo término de uma reunião marcada para a
mesma hora.
O grupo focal que reunia os peritos do Rio de Janeiro também se iniciou com
bastante atraso, seguido de alguns contratempos. O grupo focal foi iniciado com cinco
pessoas, entre as quais o presidente da Associação de Peritos. No transcorrer da dinâmica
houve, ainda, algumas intervenções de peritos que não estavam participando do grupo.
Os telefones celulares e as atividades normais do escritório, ao lado, interromperam o
processo por algumas vezes, sem que as pessoas se dessem conta da importância do
momento. Embora houvesse motivação dos participantes nas questões propostas para
a discussão, a falta de um maior compromisso com a atividade, indicada pela postura
da maioria dos participantes, era patente.
O grupo focal no Rio prosseguiu em meio a questionamentos e demonstração
de uma completa insatisfação com o poder público (Polícia Civil) e com os diversos
órgãos de chefia. Esse grau de insatisfação era agravado com a repetida reclamação
de falta de verbas e de condições salariais e da precariedade das instalações e das
condições de trabalho. O relacionamento com as outras esferas da Polícia Civil nos
O Processo de Seleção
O Curso de Formação
132 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
participantes do grupo focal, como suficiente e adequado para capacitar os Peritos
no desenvolvimento de suas atividades cotidianas, pois ele propicia uma “formação
generalista de todas as áreas, independente da formação universitária”. Por outro
lado, no Rio de Janeiro os conteúdos foram considerados insuficientes, pois “a teoria
não se coaduna com a realidade prática”. Segundo o presidente da Associação do
Rio de Janeiro: “o curso ele não é o que se possa ter como de boa qualidade. Talvez
não alcance até uma qualidade mediana”. Para ele os professores e instrutores levam
muitas questões acadêmicas para o perito o que não interessa ao perito. Tal diferença
provavelmente estaria relacionada ao tempo de duração dos cursos de formação.
Enquanto em Minas o período é de 6 a 8 meses, no Rio de Janeiro este mesmo curso
foi oferecido em 45 dias, no último concurso.
Capacitação continuada
Convênios e Pesquisa
134 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Valorização do trabalho
136 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
não ocorre pelo fato de a prova ser direcionada para as áreas tecnológicas, exigindo
maiores conhecimentos nestas áreas.
Tabela 1
Distribuição Percentual de peritos criminais por faixa etária
nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais
Estado
Faixa etária
Rio de Janeiro Minas Gerais
Até 25 anos 0,8 0
De 26 a 30 anos 14,2 13,7
De 31 a 35 anos 20,1 16,8
De 36 a 40 anos 12,7 14,0
De 41 a 45 anos 19,4 21,4
De 46 a 50 anos 13,4 10,6
De 51 a 55 anos 7,5 10,6
De 56 a 60 anos 3,7 3,1
Mais de 60 8,2 9,9
Cor – O gráfico 4.1 mostra que a maior parte dos peritos criminais se auto-
declararam como brancos, tanto em Minas Gerais (76,9%) quanto no Rio de Janeiro
(75,8%). Menos de 1% se declararam de cor preta em ambos os estados. A freqüência
de pretos foi bem menor do que a de amarelos. A predominância dos que se auto-
declararam brancos também é bem superior ao observado por Minayo & Souza (2003)
para o quadro de policiais civis do Rio de Janeiro (65%).
Gráfico 1
Freqüência de cor de pele auto-declarada pelos peritos criminais
de Minas Gerais (MG) e Rio de Janeiro (RJ)
100
90
75,8 76,9
80
RJ MG
frequência (%)
70
60
50
40
30 20,5 20,3
20
10 3,0 2,2 0,8 0,6
0
Branca Amarela Parda Preta
Estado Civil – O perfil dos peritos criminais nos dois estados, em relação ao
estado civil também foi semelhante. A maior parte da população é composta por
casados ou em união livre (70,1% no Rio de Janeiro e 67,1% em Minas Gerais). Os
solteiros foram a segunda categoria mais freqüente, perfazendo um total de 18,7%
Gráfico 2
Tempo de ingresso na perícia criminal (freqüência) dos profissionais
de Minas Gerais (MG) e do Rio de Janeiro (RJ)
60
50,8 RJ MG
50 44,1
40
freqüência
30 25,0
23,8
15,9
20 13,6 12,5
10,6
10 3,8
0,0
0
< 1 ano 1a4 5 a 12 13 a 20 > 20 anos
tempo na perícia (anos)
138 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 2
Freqüência (%) de peritos transferidos de setor/atividade em relação ao tempo de exercício
na profissão (tempo na perícia). Estado de Minas Gerais
Tabela 3
Freqüência (%) de peritos transferidos de setor/atividade em relação ao tempo de exercício
na profissão (tempo na perícia). Estado do Rio de Janeiro
Gráfico 3
Freqüência do tipo de atividade desenvolvida
pelos peritos criminais do Rio de Janeiro
20,5 26,2
interna não espec interna não espec
9,5 13,0
61,4 58,5
interna espec interna espec
13,5 5,1
15,9 15,4
externa não externa não
48,6 espec 44,9
espec
0,0 0,0
externa espEc 14,9 externa espec 22,0
140 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 4
Escolaridade dos peritos criminais nos estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais
Estado
Escolaridade
Rio de Janeiro Minas Gerais
Secundário incompleto 0,0 2,5
Secundário completo 1,5 3,1
Superior incompleto 1,5 2,2
Superior completo 38,8 45,0
Especialização 35,8 27,3
Mestrado 16,4 14,0
Doutorado 6,0 5,9
Gráfico 4
Percepção dos peritos de Minas Gerais (MG) e do Rio de Janeiro (RJ)
quanto ao estímulo oficial tendo em vista o aprimoramento técnico
(crescimento na carreira, apoio institucional)
38,9
Nunca 42,9
54,5
Raramente 54,9
6,6
Freqüentemente 2,3
RJ MG
0,0
sempre 0,0
0 10 20 30 40 50 60
frequência (%)
Curso de Formação
142 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
As perguntas referentes ao curso de formação da Academia de Polícia basearam-se
na percepção dos peritos quanto a utilização das técnicas aprendidas nas atividades
práticas cotidianas, treinamento policial e aspectos jurídicos relevantes para o
exercício das funções. De uma maneira geral, os peritos criminais do Rio de Janeiro
consideraram sua formação técnica regular (36,8%) ou boa (32,3%) (Gráficos 4.5A
e 4.5B). Em Minas Gerais os resultados são parecidos. 41,7% dos peritos criminais
deste estado consideram as técnicas aprendidas no curso de formação regulares e 29%
consideraram boas.
Gráfico 5
Percepção dos peritos em relação à qualidade do curso de formação
para ingresso na carreira, considerando-se os seguintes aspectos:
técnico-científico, jurídico e treinamento policial
35 35
30 30
25 25
20 20
15 15
10 10
5 5
0 0
Excelente Bom Regular Ruim Péssimo Excelente Bom Regular Ruim Péssimo
É importante ressaltar que as polícias técnicas dos dois estados estão inseridas
dentro da instituição policial e, portanto, tem as mesmas funções e deveres básicos
daqueles atribuídos aos demais policiais civis lotados nas unidades policiais. Dessa
forma as técnicas de abordagem policial, além de uso e manejo de arma de fogo, são
imprescindíveis à formação do perito. Entretanto, a grande maioria destes profissionais
se referiu ao curso de formação como sendo ruim ou péssimo no Rio de Janeiro (53%)
e em Minas Gerais (46,8%) (Gráficos 4.5A e 4.5B).
Além da função policial e técnica, as atividades periciais também possuem uma
forte interface com o mundo jurídico. Novamente o curso de formação foi considerado
de má qualidade pelos peritos, sendo que os aspectos jurídicos tiveram a pior
conceituação. Cerca de 59,7% de todos os peritos do Rio de Janeiro consideraram
o curso de formação ruim ou péssimo, enquanto 53% dos peritos de Minas Gerais
atribuíram estes conceitos ao curso de formação.
Embora o grau de insatisfação dos peritos criminais do Rio de Janeiro e de
Minas Gerais tenha sido parecido, os peritos criminais deste último estado tenderam a
apresentar proporções ligeiramente menores de rejeição (atributos ruim ou péssimo)
em relação ao curso de formação.
Além disso, houve uma diferenciação das respostas de acordo com a área de
formação. Os peritos formados na área de Ciências Sociais, tanto do Rio de Janeiro
quanto de Minas Gerais tiveram uma percepção mais positiva do curso do que aqueles
Atualização e pesquisa
Gráfico 6
Participação dos peritos em Congressos de Criminalística e em congressos não ligados à
Criminalística, considerando-se participações superiores a cinco congressos. MG – Minas
Gerais e RJ – Rio de Janeiro
60 Não criminalística (RJ) criminalística (RJ) 40 Não criminalística (MG) criminalística (MG)
35
50
30
frequência (%)
frequência (%)
40
25
30 20
20 15
10
10
5
0 0
De 1 a 4 De 5 a 12 De 13 a 20 Mais de 20 De 1 a 4 De 5 a 12 De 13 a 20 Mais de 20
anos anos anos anos anos anos anos anos
tempo na perícia tempo na perícia
144 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
tange ao estímulo a atividades de pesquisa. A falta de estímulo oficial está relacionada
com questões estruturais: falta de equipamentos e instalações físicas adequadas e
ausência de verbas para pesquisa, os quais foram abordados na análise qualitativa.
O interesse dos peritos em desenvolver atividades de pesquisa fica patente
quando se observa o elevado percentual de profissionais que declararam que seus
respectivos institutos deveriam desenvolver atividades de pesquisa em ciência forense
(94,7% no Rio de Janeiro e 95,8% em Minas Gerais).
Da mesma forma, a maioria dos peritos criminais do Rio de Janeiro (78,4%)
e de Minas Gerais (81,7%) consideram que as instituições ou centros de pesquisa
deveriam dar suporte forma às atividades desenvolvidas pelos peritos. Somente 1,5%
dos profissionais do Rio de Janeiro e 0,6% dos profissionais de Minas Gerais acharam
que não era necessário ter qualquer vínculo com instituições de pesquisa.
Os peritos criminais podem ser divididos em dois grupos principais de acordo com
as atividades desempenhadas: peritos de local e peritos internos. Os Peritos de local
trabalham basicamente com a dinâmica de eventos criminosos, e para isso necessitam
concatenar diferentes vestígios de uma cena de crime e a partir daí tirar suas conclusões.
Por outro lado, os peritos internos realizam exames em objetos específicos, extraindo
vestígios que permitam relacionar aquele objeto a um fato delituoso real ou potencial.
Essa delimitação do trabalho estaria relacionada a uma prática cotidiana específica
para cada uma das duas atividades. A percepção dos peritos quanto às necessidades e
especificidades das atividades foi analisada (Tabela 4.5).
Tabela 5
Percepção dos peritos quanto as características que um perito de local (local)
e um perito interno (interno) devem possuir para cada um dos estados.
Foram consideradas as freqüências acumuladas dos escores muito importante
e importante atribuídos pelos peritos.
Gráfico 7
Grau de especialização requerida para os peritos de local e internos,
segundo a percepção dos peritos de Minas Gerais
0 10 20 30 40 50 0 10 20 30 40 50 60
frequência (%) frequência (%)
Gráfico 8
Grau de especialização requerida para os peritos de local e internos, segundo a percepção
dos peritos do Rio de Janeiro
0 10 20 30 40 50 60 0 10 20 30 40 50 60
frequência (%) frequência (%)
Grande parte dos peritos considerou que tanto nas condições atuais quanto em
condições ideais os peritos de local e o perito interno deveriam ter um conhecimento
abrangente, mas atuarem em uma área específica. Entretanto, os peritos de local,
em ambos os estados escolheram mais freqüentemente as opções relacionadas com
uma atuação mais abrangente, enquanto os peritos internos escolheram com mais
freqüência as opções de atuação mais especializadas.
146 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 9
Percepção dos peritos quanto à valorização pelo setor de investigação,
nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro
RJ MG
11,2
Nunca 10,4
34,2
Raramente 38,8
32,6
Parcialmente 35,1
11,8
Frequentemente 12,7
10,2
Sempre
3,0
0 10 20 30 40
frequência (%)
Gráfico 10
Percepção dos peritos quanto à valorização pela Justiça (Juízes e Promotores), nos estados
de Minas Gerais e Rio de Janeiro
RJ MG
2,8
Nunca 4,5
20,8
Raramente 21,6
29,5
Parcialmente 33,6
25,8
Frequentemente 27,6
21,1
Sempre
12,7
0 10 20 30 40
frequência (%)
Gráfico 11
Insatisfação dos Peritos por Estado vs. Tempo na Polícia Técnica (em anos)
Insatisfação em MG Insatisfação no RJ
40,00%
35,00%
Percentual de Insatisfação
30,00%
25,00%
20,00%
15,00%
10,00%
5,00%
0,00%
1a4 5 a 12 13 a 20 Mais de 20
Tempo na Polícia Técnica (em anos)
148 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 12
Insatisfação dos Peritos por Estado vs. Escolaridade
Insatisfação em MG Insatisfação no RJ
80,00%
70,00%
Percentuala de Insatisfação
60,00%
50,00%
40,00%
30,00%
20,00%
10,00%
0,00%
Graduação Especialização Mestrado Doutorado
Escolaridade
Gráfico 13
Insatisfação dos Peritos por Estado vs. Percepção dos Peritos sobre o grau
de valorização de seu trabalho pelos investigadores da Polícia Civil
Insatisfação em MG Insatisfação no RJ
70,00%
60,00%
Percentual de Insatisfação
50,00%
40,00%
30,00%
20,00%
10,00%
0,00%
Parcial Raro Nunca
Gráfico 14
Insatisfação dos Peritos, por Estado vs. Tipo de Atividade Atual
70,00%
50,00%
40,00%
30,00%
20,00%
10,00%
0,00%
Perícia Perícia Perícia Perícia Perícia Cargos
externa externa não- interna interna não- interna e
específica específica específica específica externa não-
específica
Tipo de Atividade Atual
O processo seletivo para a formação dos futuros peritos criminais nos estados do
RJ e MG é realizado por meio de concurso público uma vez que a constituição de 1988
determina que o ingresso no serviço público somente deve ocorrer mediante concurso.
Nos dois estados a profissão de perito criminal é destinada a profissionais de nível
superior, entretanto o estado de MG apresenta historicamente um número de concursos
superior ao do estado do RJ. O RJ realizou apenas dois concursos um no final da
década de 80 e outro no final da década de 90. Apesar dos dois estados selecionarem
os seus futuros profissionais, para o curso de formação em suas respectivas Academias
de Polícia (ACADEPOL) da mesma forma: a) prova de conhecimentos, b) exame físico,
c) exame psicotécnico; eles se diferenciam no fato que no RJ a prova de conhecimentos
é por carreira enquanto em MG qualquer profissional de nível superior pode concorrer,
ou seja no RJ os biólogos irão concorrer apenas entre si diante de uma prova que
versa sobre conhecimentos de biologia e em MG eles terão que concorrer com os mais
variados profissionais (engenheiros, químicos, antropólogos e etc) em uma prova de
conhecimentos gerais. Esta forma de seleção vem excluindo alguns profissionais de
interesse para a perícia mineira, como peritos contábeis.
150 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
A diferença observada na formação dos peritos mineiros nos anos considerados
está na presença de uma formação em um eixo alicerçado nas ciências sociais, a fim
de compreender a evolução histórico-social da sociedade, da segurança pública e da
polícia, que no ano de 2005 contemplou uma carga horária de 310 horas, contrapondo-
se à absoluta ausência deste eixo temático em 2002. O número de horas destinadas
às disciplinas teóricas específicas de formação dos peritos mineiros em 2002 foi de
406 horas, enquanto em 2005 foi reduzida para 240 horas. No Rio de Janeiro em 2000
destinou-se 226 horas para as disciplinas específicas.
Disciplinas Curriculares
Tabela 6
Curso de Formação de Peritos Criminais em 2000
do Estado do Rio de Janeiro
Tabela 7
Curso de Formação dos Peritos Criminais em 2002 do Estado de Minas Gerais.
Ciclo Comum ou Básico
Tabela 9
Ciclo de Atividades Complementares
Disciplinas Carga Horária
Comunicação Social 08
Defesa Pessoal e Educação Física 30
Informática 34
Manejo e emprego de Armas de Fogo 30
Primeiros Socorros e Medicina Preventiva 08
Sistema de Informações Policiais 12
Redação Instrumental 20
Telecomunicações 08
Treinamento de Ação Policial 24
Subtotal 174
Tabela 10
Ciclo de Estágio
Disciplinas Carga Horária
Estágio Profissionalizante 210
Visitas a Unidades Policiais 24
Palestras 08
Subtotal 242
152 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Curso de Formação dos Peritos Criminais em 2005 do Estado de Minas Gerais.
Tabela 11
Eixo I – Formação Humana, Histórica e Social
Tabela 12
Eixo II – Formação Técnico-Procedimental
1) Consideramos que a seleção dos peritos criminais para ingresso na carreira deve ser
por áreas específicas e não deve ser aberto a qualquer curso de graduação. Os editais
devem exigir qualificação específica na inscrição para o concurso, possibilitando à
instituição um maior controle no preenchimento de vagas específicas de acordo com
suas demandas de qualificações.
Em ambos os estados observou-se que os cursos de formação visam a uma
capacitação generalista dos peritos em termos técnicos e científicos, o que é algo
desejável, segundo percepção dos próprios profissionais. Isso porque os peritos lidam
com atividades que necessitam de uma capacidade interdisciplinar para enxergar
154 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
vestígios, concatenar fatos e compreender a dinâmica de eventos criminosos. Entretanto,
a própria palavra “perito” pressupõe ao menos a especialização em uma determinada
área ou assunto, o que implica em um aprofundamento disciplinar do profissional,
diferenciando-o do leigo. Não possuir esta especialização do conhecimento põe em
risco a própria legitimidade do processo investigativo da perícia.
Assim, após o curso de formação, observamos que não houve uma política de
fomento à especialização do conhecimento técnico, através de cursos de capacitação,
estímulo à participação em atividades de pesquisa ou cursos de atualização. A escassez
de aprofundamento científico e tecnológico foi mais claramente evidenciada em dois
resultados obtidos no survey: a) os peritos criminais formados nas áreas de ciências
humanas e sociais consideraram que os conhecimentos adquiridos em sua formação
básica eram mais aplicáveis no cotidiano das atividades periciais do que seus colegas
formados em outras áreas. b) O mesmo grupo de peritos formado na área de Ciências
Humanas e Sociais considerou os cursos de formação qualitativamente melhores do
que os profissionais formados nas áreas Biomédicas e Exatas.
Em relação aos conhecimentos de abordagem e operacionalidade policial, o
curso de formação do Rio de Janeiro foi, comparativamente ao de Minas, totalmente
inadequado. Nesse sentido, o curso de Minas Gerais foi bastante amplo e completo. Um
fator positivo no currículo do curso de formação de Minas Gerais foi a presença de uma
área temática voltada para a compreensão da evolução histórica da sociedade, do Estado
e das políticas de segurança pública. A falta de um currículo policial na formação básica
do perito do Rio de Janeiro tem uma implicação óbvia para o adequado desempenho do
perito criminal, uma vez que, para o Estado, este profissional tem os mesmos direitos
e deveres de um policial civil. Não investir na formação policial do perito tem como
conseqüência a produção de um funcionário ineficiente (pelo menos em um primeiro
momento) e expõem ao risco a vida do próprio profissional e a sociedade.
Por outro lado a precariedade na formação policial do perito criminal tende a
afrouxar os laços sociais que ligam a perícia ao restante do corpo policial, gerando uma
tendência à fragmentação das relações sociais dos peritos com seus pares. Certamente
tal conflito tem conseqüências para a qualidade das atividades de perícia, uma vez
que o trabalho deste último profissional depende da ação anterior de outros policiais a
fim de garantir a fidelidade dos materiais e eventos remetidos ou solicitados à perícia.
Além disso, a satisfação geral do perito em relação às suas atividades parece estar
relacionada com a valorização que seus pares policiais fazem do serviço pericial.
Em relação à abordagem jurídica do curso de formação, novamente Minas Gerais
contempla maior carga horária para este tipo de conhecimento. Entretanto, dada a
atividade pericial apresentar-se intrinsecamente relacionada ao mundo jurídico, faz-
se necessário uma maior implementação nesta área, conforme os próprios peritos se
ressentiram.
Portanto, o curso de formação de Minas Gerais foi qualitativamente superior ao
do Rio de Janeiro e apresenta um leque de disciplinas adequadas para a formação geral
do perito criminal, as quais podem servir de modelo para um currículo básico do perito
criminal no Brasil. Essas disciplinas compõem os alicerces para os principais exames
realizados pelos peritos criminais, estejam eles nos Institutos Sedes de Criminalística
ou no interior.
156 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
análise qualitativa. No entanto, a análise quantitativa demonstrou que o grau de
insatisfação dos peritos em relação à preservação do local foi semelhante ao do Rio de
Janeiro. Este fato pode estar associado à falta de capacitação dos policiais militares em
relação à preservação das provas periciais, não obstante sua “boa vontade”. A falta de
conhecimentos sobre a preservação da(s) prova(s) periciais não se restringem a polícia
militar mas também aos Policiais Civis que são os responsáveis pelo encaminhamento
de provas periciais aos institutos. A falta de uma cultura que respeite o local de crime
faz com que muitas vezes a própria população contamine as provas prejudicando o
trabalho do perito.
O caminho seguido por MG pode ser uma solução para a questão da preservação
do local e das provas uma vez que há uma política oficial de integração entre as
polícias e entre as carreiras da polícia civil. Isto pode ser constato na participação de
professores de diferentes carreiras (peritos, delegados, policiais civis) e instituições
(Polícia Militar) em cursos oferecidos pela Academia de Polícia Civil de Minas Gerais
destinados aos diferentes órgãos que compõe a Secretaria de Defesa Social.
Referências Bibliográficas
Babbie, Earl. Métodos de Pesquisas de Survey. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.
Carlson. LC & Thorns. Betty. Applied Statistical Methods. Ed.Pretince –Hall. Inc.
Krueger, R. 1994. Focus groups: a pratical guide for applied research. London: Sage
Publications
Minayo, Maria Cecília & Souza, Edinilsa Ramos. Missão Investigar. Entre o Ideal e a
Realidade de Ser Policial. Ed Garamond Ltda.
Morgan, DL & Krueger, RA. The focus group kit. Californis: Sage Publications
Neto, Otávio Cruz et all. Grupos Focais e Pesquisa Social. O Debate Orientado como Técnica
de Investigação.
Soares, LE. 2000. Meu Casaco de General. 500 dias no front da segurança pública do Rio de
Janeiro. Ed. Companhia das Letras.
Fontes Primárias
Programa do Curso de Formação para o cargo de Perito Criminal – Rio de Janeiro, 2000.
Programa do Curso de Formação Policial da Academia de Polícia de Minas Gerais, 2002
Programa do Curso de Formação Policial da Academia de Polícia de Minas Gerais, 2005.
INTRODUÇÃO
O tema do policiamento em esfera municipal não é propriamente novo no Brasil.
Desde a formação do Estado Nacional brasileiro, no século XIX, inúmeras formas de
policiamento foram tentadas, fazendo experiências melhor ou pior sucedidas, até que
foi se tornando hegemônico o modelo atualmente conhecido de duas polícias estaduais,
uma civil e outra militar. Mas a definição de um modelo, que só vem a se completar
com a extinção pelo governo militar das Guardas Civis, não significa que ele seja
bem sucedido e produza os resultados esperados, procedendo de forma satisfatória.
Muito pelo contrário, a década de 1980 produziu, ao mesmo tempo, o processo de
afastamento dos militares do poder com a implantação de um regime democrático,
e uma aceleração da violência urbana que colocou em questão os serviços policiais,
produzindo críticas às polícias, além de inúmeras propostas de modelos alternativos
para ampliar a segurança pública.
É nesse quadro que devemos pensar a corrente voga de Guardas Municipais. Não
cabe aqui fazer uma análise aprofundada do quadro político no período, mas importa
ressaltar que uma parte importante do movimento social em direção à democracia
trazia embutida uma grande desconfiança em relação às instituições do Estado,
especialmente àquelas que traziam em si a caracterização de militares ou policiais.
Nesse quadro, foram privilegiadas as ações de descentralização, expressas no incentivo
a atuação das instituições não governamentais ou na ampliação das atribuições de
poder mais próximas às chamadas “comunidades”, isto é, ao poder local/municipal.
A questão da segurança não escapou deste movimento. Falava-se muito em “polícia
comunitária” e se discutia o papel do município na segurança pública.
O movimento descentralizador teve presença marcante na elaboração da nova
constituição, consagrando uma curiosa contradição de registrar de forma centralizada
uma expectativa descentralizadora. Mas parece importante observar que, no quadro
desta reformatação institucional promovida pela Assembléia Nacional Constituinte,
combinava-se uma experimentação de novas formas de poder com uma manutenção
dos formatos tradicionais. Ao mesmo tempo em que a nova Constituição manteve os
velhos modelos das polícias e suas atribuições, mencionou pela primeira vez neste
nível jurídico a presença, ou antes a possibilidade, das Guardas Municipais. A redação
*
O trabalho de coleta de dados contou com a colaboração de Susana Cesco. Gostaríamos também
de agradecer ao comando das Guardas Municipais no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, que nos
garantiram total apoio e cooperação.
160 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
estrutura interna como no projeto de difusão nacional de um modelo de Guarda.4 Uma
parte significativa deste projeto obedece a um modelo característico de instituição
militar, que procura basear sua estrutura e métodos em tradições constituídas no
tempo,5 o que faz com que as Guardas busquem histórias e continuidades em outras
instituições municipais, que apresentam pouca ou nenhuma semelhança com as
Guardas atuais. Algumas, de fato, representam administrativamente a continuação de
velhas instituições, mas sempre alteradas significativamente no quadro das reformas
do Estado, já mencionadas, a partir dos anos 1980. Mesmo as Guardas mais recentes,
já vão estabelecendo sua história, e é freqüente a produção de relatórios ou folhetos
marcando a passagem dos dez anos de uma Guarda Municipal.6 Ao mesmo tempo,
uma pesquisa no site dedicado a brasões policiais localizados no Geocities já conta
com 29 brasões de Guardas Municipais de regiões as mais diversas do Brasil, desde
Aracaju até Vinhedo.7
A literatura de conteúdo mais acadêmico sobre as Guardas é muito escassa e
recente. Mas toda ela parece partir de um suposto semelhante, e que é compartilhado
pelo presente trabalho, ao apresentar o interesse nas Guardas Municipais justificado
pela possibilidade de constituir algo novo no campo da segurança pública, produzindo
um ator distinto dos atualmente presentes e definindo métodos e atribuições que se
distinguem do que fazem as forças policiais estaduais ou federais. Num sentido mais
radical, o trabalho de Benedito Mariano avança ao ponto de pensar as novas Guardas
como alternativas a um modelo de policiamento baseado nas polícias civil e militar,
resquício histórico que deveria ser superado.8 Outros trabalhos não pensam numa
substituição do atual modelo, mas numa complementaridade.9 Existem sempre nestes
trabalhos menções a resistências, à permanência da força de uma tradição, mesmo
nestas instituições tão recentes, mas o foco destes trabalhos tem sido sempre as
inovações, deixando o problema da resistência apenas como o registro de um temor.
Esta questão está na origem da proposta deste trabalho. Como lidar com estas
instituições, com a sua construção de memória, e direcioná-las positivamente no trato
da segurança pública. Como lidar com a extensão e o volume de um pensamento já
consolidado que pode significar um forte obstáculo à utilização das Guardas como
agentes da inovação no campo da segurança pública. Nossa intenção de partida era
trabalhar sobre duas Guardas, a do Rio de Janeiro e a de Belo Horizonte, buscando
4 Foge do âmbito deste trabalho mas permanece como questão o estudo das associações de Guardas,
dos diversos sites na Internet e mesmo das comunidades no Orkut que permitem observar projetos de
“nacionalizar” lógicas e valores de guardas municipais.
5 Talvez o melhor exemplo venha de 1993-2000. Panorâmica da GMRio: “A Guarda Municipal da
Cidade do Rio de Janeiro, cuja criação foi autorizada há cerca de oito anos atrás pelo Legislativo
Municipal, na verdade é a continuação de uma filosofia de trabalho dentro da área de segurança
pública que remonta à época da fundação da cidade do Rio de Janeiro, com a chegada de Estácio
de Sá” p. 6.
6 Ver, por exemplo, A Guarda Municipal de Barueri está comemorando: 10 anos, 1995-2005, caderno
de 28 páginas distribuído no XVI Congresso Nacional de Guardas Municipais, realizado de 9 a 11 de
novembro de 2005, em Foz do Iguaçu.
7 http://geocities.yahoo.com.br/brasoespoliciais/links.html
8 Benedito Mariano, Por um novo modelo de polícia no Brasil. A inclusão dos municípios no sistema
de segurança pública. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2004.
9 Consultar os artigos publicados em João Trajano Sento-Sé (org.), Prevenção da Violência. O papel
das cidades. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.
• 19 inspetores
• 108 subinspetores
• 291 Guardas Municipais 3
• 2.698 Guardas Municipais 2
• 2.468 Guardas Municipais 1
O nível mais alto da tabela ainda não foi preenchido. Estes homens e mulheres
dividem-se por 15 inspetorias e uma série de grupamentos especiais, de acordo com
a tabela a seguir:
10 Vale registrar que os trabalhos que citamos optaram por investigar as guardas através de seus
gestores. Preocupados com políticas inovadoras, ouviram os formuladores mas não dedicaram atenção
aos executores, personagens fundamentais na compreensão de atividades de segurança pública.
11 Essa é uma das principais queixas dos Guardas, que aspiram a um Estatuto próprio que lhes
garanta a posição e os direitos de servidores do Município. Isso é percebido no Plano Estratégico da
Guarda para o período 2001/2005: “O clima organizacional encontrado na empresa é de ansiedade pela
implantação do Plano de Carreira, Cargos e Salários e de ceticismo quanto à possibilidade de mudanças
estruturais que possam beneficiá-los. O clima é muito influenciado pelos valores desenvolvidos pela
cultura da organização, onde a ascensão interna é conseguida através da influência pessoal a despeito
do mérito e talento individuais.” Por outro lado, como trabalhadores da iniciativa privada, o controle
das licenças médicas escapa da administração da Guarda, o que também tem efeitos negativos.
A questão é complexa e divide os gestores. Até onde pude perceber os Guardas são francamente
favoráveis à criação de um estatuto. Isso pode ser percebido no informativo sindical Fala Rio.
162 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Áreas circunscricionais das Guardas Municipais na Cidade do Rio de Janeiro
1ª Praça XV: Centro da cidade, Santo Cristo, Saúde, Cajú, Gamboa, Aeroporto, Castelo,
Fátima, Lapa, Praça Mauá, Rio Comprido, Estácio, Catumbi, Cidade Nova e Santa Tereza.
2ª Lagoa: Copacabana, Leme, Lagoa, Gávea, Ipanema, Jardim Botânico, Leblon, São
Conrado, Vidigal e Rocinha.
4ª Barra da Tijuca: Barra da Tijuca, Camorim, Grumari, Itanhangá, Joá, Piabas, Recreio
dos Bandeirantes, Vargem Grande e Vargem Pequena.
5ª Bangu: Bangu, Senador Camará, Padre Miguel, Deodoro, Campo dos Afonsos,
Sulacap, Magalhães bastos, Malett, Realengo e Vila Militar.
6ª Madureira: Irajá, Colégio, Vicente de Carvalho, Vila da Penha, Vila Cosmos, Vista Alegre,
Bento Ribeiro, Campinho, Cascadura, Engenheiro Leal, Madureira, Cavalcante, Marechal
Hermes, Oswaldo Cruz, Quintino Bocaiúva, Honório Gurgel, Vaz Lobo, Rocha Miranda,
Turiaçu, Anchieta, Guadalupe, Parque Anchieta, Guadalupe, Ricardo de Albuquerque,
Pavuna, Acari, Barros Filhos, Coelho Neto, Costa Barros e Parque Columbia.
7ª Praça Seca: Anil, Curicica, Freguesia, Gardênia Azul, Jacarepaguá, Pechincha, Praça
Seca, Tanque, Taquara, Vila Valqueire e Cidade de Deus.
8ª Tijuca: São Cristovão, Benfica, Mangueira, Vasco da Gama, Triagem, Tijuca, Praça
da Bandeira, Alto da Boa Vista, Vila Isabel, Andaraí, Grajaú e Maracanã.
10ª Cidade Nova: Centro Administrativo São Sebastião, Palácio da Cidade e Gávea
Pequena.
12ª Jardim Carioca: Bancários, Cacuia, Cidade Universitária, Cocotá, Freguesia (Ilha),
Galeão, Jardim Guanabara, Tauá, Moneró, Pitangueiras, Portuguesa, Praia da Bandeira,
Ribeira, Zumbi, Jardim carioca e Ilha de Paquetá.
13ª Campo Grande: Campo Grande, Santíssimo, Senador Augusto Vasconcelos, Cosmos
e Inhoaíba.
14ª Santa Cruz: Santa Cruz, Sepetiba, Paciência, Guaratiba e Pedra de Guaratiba.
15ª Engenho de Dentro: Jacarezinho, Vieira, Fazenda Abolição, Água Santa, Cachambi,
Consolação, Encantado, Engenho de Dentro, Engenho Novo, Lins de Vasconcelos,
Méier, Piedade, Pilares, Riachuelo, Rocha, São Francisco Xavier, Sampaio Correa, Todo
os Santos e Jacaré.
12 Num sistema fortemente hierarquizado como são as polícias militares e, em grau menor, a polícia
civil e a Guarda Municipal, os gestores têm uma visão própria do perfil adequado de agente. Aqueles que
correspondem á visão do gestor podem ser bem aproveitados e colocados em posições que correspondem
a seus perfis, mas aqueles que não correspondem ao perfil desejado pela gestão podem ser “castigados”
com designações onde não aproveitam suas melhores habilidades. Não cabe aqui discutir, ainda que
mereça registro, que outra forma de colocação – que aparece com freqüência em reclamações – é a
indicação política, onde méritos ou habilidades específicas não são levadas em consideração.
13 Convém ressaltar que a Guarda Municipal do Rio tem seu comando num prédio que pertenceu
ao antigo Batalhão de Guardas do Exército, com espaço e capacidade para instalações de excelente
qualidade. Parte do prédio já está renovado, especialmente a parte destinada a cursos e treinamento.
A parte destinada às unidades ainda deixa muito a desejar. Diversos guardas notaram esta disparidade
entre o lado nobre do prédio e o lado plebeu.
14 Uma revisão da extensa literatura sobre diferentes perfis policias pode ser encontrada em Robert
Reiner, The Politics of the Police. Harvester Wheatsheaf, 1992, cap. 3. Existe edição em português.
164 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
explorar as diferenças de perfil que pode variar de acordo com experiências anteriores
de ocupação15, com a turma em que entraram na Guarda, e mesmo com os setores nos
quais estão lotados.
A supervisão da Guarda, ao longo de sua existência, tem estado na mão de
oficiais da Polícia Militar. Os dois comandantes foram coronéis da reserva. A pesquisa
feita pela SENASP sobre o perfil das Guardas tem mostrado que isso é bastante
comum, como já foi mencionado, mas os efeitos ainda precisam ser melhor avaliados.
A vinculação policial militar parece sugerir um “controle externo”, de uma instituição
com atuação marcante na segurança pública, que buscaria parceiros subordinados.16
Nesse sentido, a Guarda do Rio se caracteriza por um discurso de não ser polícia,
pela negação do emprego de armas pelos Guardas, o que a coloca quase que isolada
no cenário nacional, e parece ir contra o desejo de boa parte dos seus próprios
Guardas.17 Ao mesmo tempo, o relacionamento entre o estado e o município no Rio
de Janeiro não é bom, o que parece estimular disputas e mesmo conflitos abertos
entre os Guardas e os policiais civis e militares e mesmo com o Corpo de Bombeiros.
Estas disputas podem ganhar aspectos quase anedóticos – ainda que não se deva
perder de vista sua gravidade – quando acompanhamos os conflitos entre Guardas e
Bombeiros, que disputam o monopólio do salvamento de afogados, ou mesmo quem
se responsabiliza por pingüins extraviados. A batalha pelo pingüim perdido faz parte
do anedotário dos Guardas cariocas e ilustra as racionalidades em conflito. Num dia
de inverno, os guardas municipais do grupamento de praia recolheram um pingüim
que chegou a praia. Os bombeiros “exigiram” que eles entregassem o animal. Como os
próprios guardas admitem, a atribuição de destinar estes animais é de fato do Corpo de
Bombeiros, mas as disputas já vinham ocorrendo e o tom empregado pelos bombeiros
não agradou. Os guardas diagnosticam – não sem razão – um comando nos bombeiros
de praia com uma especial predileção por ser fotografado resgatando animais e sem
muito interesse por normas de polidez. Nesse ponto instaurou-se a confusão, travando-
se uma pequena batalha pelo pingüim. Não era propriamente uma disputa sobre quem
tinha razão, mas um embate simbólico sobre disputas organizacionais, num ambiente
onde a racionalidade da gestão deveria esperar cooperação e não conflito.18
Uma forma importante de análise que precisa ser feita é como as Polícias
Militares pensam a presença das Guardas, que projeto desenvolvem de relacionamento
e que atribuições pensam que as Guardas devem ter. Não parece haver uma doutrina
15 Não é possível definir aqui se as experiências anteriores expressam uma determinada “vocação”
ou se são elas que formam uma determinada atitude diante do trabalho. O que podemos perceber é a
diferença de certos grupos.
16 A relação entre a Polícia Militar dos Estados e as prefeituras é tema ainda não abordado. Como a
maior parte dos estudos privilegia os grandes centros, essa relação é menos visível. Mas as indicações
recebidas de diversas partes do país parecem indicar que as restrições orçamentárias das polícias são
parcialmente resolvidas com a colaboração municipal, que se responsabiliza pela manutenção de
instalações, viaturas e fornecimento de combustível. O tema merece atenção.
17 Leitura semelhante é apresentada no município próximo de São Gonçalo, onde o comandante
da Guarda também é policial militar, citado no trabalho de João Trajano Sento-Sé e Otair Fernandes,
“A Criação do Conselho Comunitário de Segurança em São Gonçalo”. In João Trajano Sento-Sé, op. cit.,
pp. 255-282.
18 Esse é um bom exemplo da distinção entre pesquisas com gestores e na base. Entre gestores, fala-
se em cooperação ou no máximo queixa-se do desinteresse; na base operacional os conflitos são reais
e abertos. Em outras situações ocorre o inverso; os gestores brigam mas as bases cooperam.
19 Em Minas Gerais é possível perceber grupos distintos de policiais militares disputando o controle
das diferentes Guardas, o que produz um difícil diálogo entre municípios.
20 Infelizmente o prazo do trabalho não permitiu avaliar o processo de entrada dos novos Guardas.
Havia uma expectativa de que os atuais guardas contratados fossem bem sucedidos no concurso,
o que parece não ter ocorrido; com apenas um terço dos atuais guardas sendo aprovados. Isso tem
sido fonte de tensão e aumenta o debate sobre a maior adequação de candidatos selecionados numa
prova, mas de origem civil, em contraposição a guardas com experiência e, principalmente, tidos como
“vocacionados”. O mesmo tema é discutido, na polícia civil do Rio Grande do Sul, por Acácia Maria
Maduro Hagen, O Trabalho Policial: estudo da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul. Tese de
Doutorado, UFRGS, 2005.
166 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de Belo Horizonte se revela um excelente campo de estudo. Mais detalhes serão
apresentados à frente, na discussão de temáticas presentes no trabalho das Guardas.
21 Esse tema pode ser melhor explorado. Algumas guardas fazem seleções com vagas separadas para
homens e mulheres, designando mesmo funções diferentes. Outras fazem o concurso indistintamente,
como é o caso do Rio de Janeiro. O caso de Belo Horizonte é peculiar. Nesse momento não há
mulheres. O projeto do comando ao estabelecer as normas do concurso que se realiza era de designar
um número limitado de vagas para mulheres, o que foi alterado. Diante disso foi realizada uma seleção
única, obedecendo a critérios iguais, onde as mulheres terminaram por ser eliminadas.
22 Talvez seja o lugar para mencionar que, ao contrário do Rio, as instalações da Guarda de Belo
Horizonte são ainda muito precárias. Vários projetos existem, e nos foram mostrados, para obter um
melhor local mas nada ainda é definitivo.
23 Nunca é demais insistir nessa ambigüidade de ser militares e guardas que teoricamente não deveriam
sê-lo. Um depoimento na comunidade Guarda Municipal BH é ilustrativo: ”Com relação a Guarda
Municipal, vale a pena lembrar que todos os seus atuais integrantes são oriundos das Forças Armadas,
o que comprova suas qualidades como militares. Porém a Guarda não é uma instituição Militar, embora
esteja moldada como tal”. Em www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=2256873&tid=12997453,
consultado em 5/12/2005.
24 “Hoje passei por uma situação muito constrangedora,..., num fechamento de rua, vi duas mulheres
serem assaltadas e não pude fazer nada, pois não tinha rádio, o lugar era um pouco deserto, e não
tinha nenhuma arma. Me pergunto: o que aquelas mulheres pensaram de mim? Me senti um inútil”
www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=345990&tid=21998523
168 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
buscando agir como polícia e fazer-se reconhecer como tal.25 Como já foi mencionado,
esse tema tem tido um aspecto dramático no processo de seleção dos guardas em
Belo Horizonte. Os guardas de origem militar e que estão trabalhando, sentem que
a “vocação” que possuem está sendo derrotada pela lógica impiedosa do concurso
público, que seleciona pessoas com um conhecimento superior, mas que não possuem
o desejo e a vocação para fazer o trabalho da Guarda. Seriam oportunistas que procuram
o conforto de um emprego público, mas que não serão necessariamente nas guardas,
e deixarão esse emprego por outro que pague melhor a qualquer momento.26 Desse
grupo saem aqueles que são vocacionados para trabalhos de Operações Especiais ou
Tático Móvel. Esses guardas demonstram preferência por atividades onde haja esforço
físico e a possibilidade permanente de conflito: “nós trabalhávamos o plantão inteiro
equipados, entendeu? Na eminência de um conflito. Então se ocorreu um ataque de
fogos, geralmente é fogos ou pedras, mas já ouve de armas de fogo. Então ocorreu um
ataque, você vai fazer um cerco, vai patrulhar, vai tentar encontrar a pessoa que atacou
vai correr atrás. Você encontrou um suspeito, impossível você passar direto, você
tem que revistá-lo, quem revista é policia”.27 São aqueles que se sentem confortáveis
com o risco. É um grupo eminentemente masculino. A presença feminina não parece
ser propriamente incômoda, mas estabelece-se uma relação de “proteção”, onde as
mulheres são colocadas fora da linha de frente.
Esse grupo tem sempre como referência as guardas de São Paulo, que, segundo
eles, têm uma ação muito mais policial, funções e equipamento de polícia. Cidades
como Jundiaí, Indaiatuba, Cotia são citadas como exemplos, justificados pela quase
substituição da Polícia Militar pelos guardas, que fariam segurança em presídios,
prisões, e – um dos grandes objetos de desejo – teriam até helicópteros!28
25 Este estilo de guarda é o mais visível, senhor de uma agenda bastante clara, que transparece em
grupos de discussão, associações e encontros de Guardas Municipais. O tema central nesses grupos e
eventos é a discussão da proposta de emenda constitucional 534/2002 que, caso aprovada, reconhecerá
o papel das guardas na segurança pública. O acompanhamento e a tentativa de lobby no processo
político é evidente.
26 Esse é um dos problemas mais visíveis na Guarda do Rio de Janeiro, bem mais do que na de
Belo Horizonte. Como a Guarda experimentou uma depreciação salarial marcante ao longo dos anos,
quase todos os guardas têm expectativas de conseguir um emprego melhor, além de já terem outras
ocupações nas horas de folga. Parece possível que os Guardas de Belo Horizonte, que estão vendo seus
empregos ameaçados pelo concurso, se mostrem mais reticentes sobre a procura de outros empregos
ou ocupações paralelas. A exceção visível era a denúncia de que um grande número de guardas
preferiu deixar Belo Horizonte, optando por prestar concurso para Guardas Municipais da Grande elo
Horizonte. Os dados da administração não confirmam essa evasão significativa, mas, entre os guardas,
os que saíram tiveram grande visibilidade.
27 Depoimento de guarda do Grupo de Ações Especiais – RJ. A referência mais intensa desse grupo
são os conflitos travados com camelôs nas ruas do centro do Rio, que tiveram um momento de grande
intensidade mas hoje estão controlados.
28 As informações passadas pelos guardas não são necessariamente acuradas; muitas informações se
misturam mas deixam evidente a construção de um modelo. O uso de helicópteros é registrado na página
da Guarda Municipal de Novo Hamburgo, RS, ali, segundo o prefeito: “O crime está profissionalizado,
não podemos enfrentar a violência de uma maneira antiga. Outras ações iriam apenas amenizar o
problema e acreditamos que o helicóptero vá realmente fazer a diferença e diminuir a criminalidade.”
Citação tomada do jornal NH, de 16 de abril de 2003, disponível em http://www.novohamburgo.
rs.gov.br/sec/semtras/gm/index.htm.
29 Isso não deixa de ser verdade também nas polícias. Muitas delas se sentiriam mais confortáveis
sem o controle do trânsito.
170 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
As atribuições da Guarda
Este ponto pode ser abordado de forma menos problemática, pois os pontos
mais complexos estão ligados à questão anterior. As tarefas concedidas as guardas
podem ser interpretadas como restritivas ou absolutamente abertas. A forma de
intervenção vai se definindo no que se pode considerar como um expansionismo que
vai caracterizando as Guardas. Fruto de demandas e lutas sociais, em alguma medida
ainda sem a imagem negativa dos outros agentes de segurança pública, as Guardas
parecem aspirar por mais. O que deve ser esse mais, pode não estar expresso de forma
muito clara, mas certamente passa por um contingente maior, melhores instalações
e equipamentos. O raciocínio é institucionalmente simples: se existem demandas,
atendê-las seria fonte de poder e prestígio. Pode ser que o resultado não seja esse mas
essa é a concepção que parece informar boa parte dos guardas. Aqui a grande divisão
está relacionada com os administradores. Por agendas políticas ou policiais, eles têm
interesse no desenvolvimento das guardas, mas direcionadas para agendas próprias ou
restritas. No caso do Rio, o tema da ordem urbana, nos termos definidos pelo prefeito,
se impõe, levando ao polêmico embate com camelôs pelas ruas do centro da cidade,
dando uma visibilidade freqüentemente negativa para a Guarda. No caso de Belo
Horizonte, existe a preocupação de conter o espaço da guarda, avançar lentamente,
definindo termos de bom relacionamento com a Polícia Militar.
A questão central parece ser o tornar-se ou não polícia. O acompanhamento da
PEC 534/2002 no Congresso Nacional demonstra o interesse dos Guardas em que isso
seja realidade, reunindo desde grupos mais duros até propostas como a de Benedito
Mariano, que vê as guardas como a nova alternativa policial. Mas para o tratamento
desse tema, as Guardas de Belo Horizonte e do Rio não são os melhores exemplos.
Num outro nível, essa mesma discussão pode ser travada sobre um conjunto
de atribuições. Escolas, próprios municipais, trânsito, parecem ser destinações muito
visíveis para as Guardas. Mas é preciso observar a capacidade destas guardas de formular
temas e formatos novos, adequando sua estrutura a demandas contemporâneas.
Nesse sentido, a criação de guardas ambientais, o patrulhamento de praias e locais
turísticos, vai abrindo novos horizontes para o trabalho das Guardas, ampliando a
possibilidade de construí-las como instituições novas e positivas.30 Ao mesmo tempo,
essas atividades, se mal sucedidas, podem produzir um desgaste para as guardas, e
ampliar os argumentos para a expansão dos poderes. Isso fica particularmente visível
numa cidade turística como o Rio de Janeiro, onde a violência contra visitantes tem
um caráter extremamente desagradável e negativo para os gestores urbanos. Deixar
isso como responsabilidade de outros pode não parecer uma má idéia.
O equipamento
O principal tema de discussão a respeito de equipamento é, sem dúvida, o uso de
armas. Tem sido visível a tendência das guardas de se armar, o que vem ao encontro
30 Isso não significa que as polícias não estejam trabalhando nestes campos. Mas neste caso a atividade
é subordinada a outras mais visíveis e consagradas, deixando muito a desejar como construtora de
imagem. A Guarda, por não ter ainda função bem definida, pode se beneficiar disso.
31 Esse tipo de controle, que leva ao quase não uso do armamento disponível, tem sido utilizado em
municípios de São Paulo, como nos foi apontado em Osasco pelo secretário Benedito Mariano.
32 Recentemente o governo estendeu – pelo decreto 5871/2006 – o porte de arma dos guardas para
além de seu município. Isso demonstra bem como é difícil pensar no uso de armas só nas situações de
risco mais visível.
33 É o caso dos primeiros cursos da Guarda Municipal do Rio de Janeiro.
172 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
treinamento, capacitando os guardas para usá-las. A melhoria material das Guardas
vai tornando o treinamento mais confortável, melhor estruturado. Entrar na Guarda,
em uma fase anterior, parecia um desafio. Hoje, tornou-se mais simples e tem atraído
pessoal cada vez mais qualificado.34
Os guardas, depois de formados, enfrentam condições de trabalho percebidas de
forma diversa. Como já mencionamos, alguns se sentem vocacionados para o trabalho,
e encontram gratificação na atividade. Outros buscam apenas um emprego, uma
forma de sobrevivência. Mas para todos, as condições de emprego são um tema caro
e importante. No caso da Guarda do Rio, a situação de contratados pela CLT é uma
reclamação permanente. A queda dos padrões salariais também foi fortemente sentida.
Tudo isso tem produzido um guarda sem expectativas de se sentir recompensado
plenamente enquanto guarda, buscando alternativas fora da Guarda. Deve ser feito
um estudo mais aprofundado sobre a rotatividade de pessoal das Guardas, mas as
indicações de percepção são de que o problema é grave.
34 Mais uma vez, sente-se o impacto da crise econômica com ampliação do acesso ao ensino superior.
Os candidatos à Guarda vão se tornando cada vez mais qualificados formalmente. As tensões geradas
por essa competição já foram mencionadas anteriormente.
Adriano Oliveira*
Jorge Zaverucha
Ernani Rodrigues
INTRODUÇÃO
O Polígono da Maconha, em Pernambuco, é composto, tradicionalmente,
pelas cidades pernambucanas que formam as regiões do Sertão e do São Francisco1.
No Sertão, destacam-se como áreas de intensa produção e tráfico de maconha os
municípios de Salgueiro, Mirandiba, Serra Talhada e Imbimirim. Na região do São
Francisco, pontificam os municípios de Belém do São Francisco, Cabrobó, Carnaubeira
da Penha, Floresta, Lagoa Grande, Orocó e Santa Maria da Boa Vista.
O município de Petrolina, localizado na região do São Francisco não é reconhecido
como área de produção de maconha. Contudo, o tráfico e o consumo em Petrolina são
considerados intensos, tanto por conta de sua localização geográfica2 como por ser
uma cidade mais desenvolvida economicamente em relação às outras que compõe o
Polígono.3
Ressalte-se não haver consenso sobre a definição das cidades que fazem parte
do Polígono da Maconha. Relatório, assinado pela Corregedora-Geral do Ministério
Público de Pernambuco (MPPE), Maristela de Oliveira Simonin, e por Gustavo
Augusto R. de Lima, presidente da Associação do Ministério Público de Pernambuco4,
informa que o Polígono é formado pelos seguintes municípios: Floresta, Belém do São
Francisco, Cabrobó, Orocó, Santa Maria da Boa Vista, Tacaratu, Petrolândia, Itacuruba
e Carnaubeira da Penha.
Divergências geográficas à parte, este artigo tem três grandes objetivos: 1) contex-
tualizar as condições socioeconômicas do Polígono; 2) analisar se estão presentes
relações de causalidade entre tráfico de drogas e o elevado número de homicídios
em alguns municípios da região; 3) avaliar a eficiência do Ministério Público no
enfrentamento ao cultivo e tráfico de maconha no Polígono.
Julgamos importante lançar luzes sobre o contexto socioeconômico em que
ocorre a produção e o tráfico de droga no Polígono da Maconha. Assim sendo, será
possível ao leitor examinar minuciosamente as variáveis que proporcionam o cultivo
e o tráfico intenso de maconha.
CONTEXTO SOCIOECONÔMICO
Foram selecionados três indicadores com o objetivo de entender o contexto
sócio-econômico dos municípios inseridos no Polígono da Maconha5. E de que modo
este contexto influi no tráfico de drogas. São eles:
1) Índice de Desenvolvimento Humano (IDH-M);
2) Renda per capita;
3) Índice Gini.
5 Todos os dados correspondem ao ano de 2000. Foram coletados no Atlas Brasil e no IBGE.
6 O IDH médio do Polígono da Maconha é de 0,654. Já o de Pernambuco é de 0,705.
7 O IDH de Ibimirim é de 0,566.
176 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 1
IDH dos municípios e de Pernambuco
0,8
0,7
0,6
0,5
IDH 0,4 IDH
0,3
0,2
0,1
0
O e
Pe ó
Pe iran tu
M eiro
Fl ha
Ta dia
am a
Sa Sa lina
La Ib ta
a rim
co
Pe có
Ca . F.
tro V.
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Pe B.
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S
lâ
or
G
m
.
a
lé
a
Be
r.
Ca
Municípios
Gráfico 2
Renda per capita versus IDH
Renda per capita
250 0,8
200 0,6
150
IDH
0,4
100
50 0,2
0 0
Pernambuco
Belém S. F.
Santa M. B.
Petrolândia
Itacuruba
Cabrobó
Grande
Petrolina
Tacaratu
Mirandiba
Ibimirim
Floresta
Orocó
Salgueiro
Car. Da
Lagoa
Penha
V.
8 O estado de Pernambuco tem o IDH de 0,705. Neste caso, ele é considerado um território de médio
desenvolvimento humano. De 1991 para 2000, o IDH de Pernambuco avançou 13,71%. Educação (48,4%)
e longevidade (34,4%) foram os fatores que mais contribuíram para este crescimento. A variável renda
contribuiu com 17,2%. Inferências semelhantes são encontradas na evolução do IDH dos municípios
do Polígono da Maconha.
9 Razão entre o somatório da renda per capita de todos os indivíduos e o número total desses
indivíduos. A renda per capita de cada indivíduo é definida como a razão entre a soma da renda de
todos os membros da família e o número de membros dessa família. Valores expressos em reais de
1º de agosto de 2000.
Gráfico 3
Índice Gini
0,8
0,7
0,6
ìndice Gini
0,5
0,4 Gini
0,3
0,2
0,1
0
Santa M. B. V.
Pernambuco
Lagoa Grande
Car. Da Penha
Belém S. F.
Petrolândia
Cabrobó
Petrolina
Tacaratu
Mirandiba
Ibimirim
Floresta
Orocó
Salgueiro
Municípios
A maioria dos municípios do Polígono possui o índice de Gini igual ou acima de 0,60.
Orocó (0,59), Itacuruba (0,59), Petrolândia (0,58), Tacaratu (0,58) e Mirandiba (0,55)
possuem o índice Gini abaixo 0,60. Neste sentido, não é possível justificar a produção e
o tráfico de maconha por conta do grau de concentração de renda. Outros municípios,
com elevado índice de concentração de renda, localizados em outras regiões do estado
de Pernambuco, não são reconhecidos como produtores e áreas de intenso tráfico.
Portanto, conclui-se que as variáveis socioeconômicas per se não ajudam a
decifrar as causas que proporcionam a produção e o tráfico de maconha no Polígono.
178 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Evidentemente, essas variáveis não podem ser desprezadas. Outras causas devem ser
buscadas, como, por exemplo, a ausência do poder coercitivo estatal no Polígono.
Gráfico 4
Taxa de homicídios por 100.000 habitantes – Ano 200211
Olinda
Recife
Mirandiba
Tacaratu
Itacuruba
Petrolândia
Santa M. B. V.
Municípios
Salgueiro
Petrolina
Orocó
Lagoa Grande
Taxa por 100.000
Ibimirim
Floresta
Car. Da Penha
Cabrobó
Belém S. F.
0 50 100 150
Índices
Gráfico 5
Análise comparativa dos índices de Homicídios (2000)
100
Recife
80 Lagoa Grande
Vitória
60
Santa Maria
40 Porto Velho
20 Floresta
Rio de Janeiro
0
Petrolina
1° Ranking 2° Ranking 3° Ranking 4° Ranking
Gráfico 6
Análise comparativa dos índices de Homicídios (2002)
120
Recife
100 Belém do São francisco
80 Vitória
60 Petrolândia
40 Porto Velho
Petrolina
20
Rio de Janeiro
0
Ibimirim
1° Ranking 2° Ranking 3° Ranking 4° Ranking
180 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
é o período de 1999 a 2000. Neste período, ocorre uma variação positiva de 37,41%.
Em Belém do São Francisco, no período de 2001 a 2002, ocorre a mais alta variação
positiva envolvendo todos os municípios do Polígono, 431,95%.
Os municípios Belém do São Francisco (24,58%), Ibimirim (88,98%), Petrolina
(22,22%), Santa Maria da Boa Vista (31,06%), Petrolândia (91,17%) e Itacuruba
(3,14%) apresentaram no período de 1998 a 2002 variação acumulada positiva.
Destaque para a cidade de Petrolândia que apresentou a maior variação acumulada.
Os outros municípios apresentaram variações negativas. Carnaubeira da Penha, apesar
de no ano de 1998 ter apresentada a maior taxa de homicídios por 100.000 habitantes
entre os municípios do Polígono no período analisado, obteve a mais alta variação
acumulada negativa, ou seja, 79,8%.
É interessante observar com mais atenção as taxas de homicídios em alguns
municípios do Polígono. Carnaubeira da Penha, em 1998, apresentou uma taxa de
homicídios de 145,06. Nos anos seguintes, as taxas foram de: 18,17 (1999), 19,22
(2000), 38,76 (2001) e 29,30 (2002). Após o ano de 1998, não ocorreu uma grande
incidência de homicídios quando comparado a 1998. Além disto, nos outros anos,
nenhum índice chegou a se aproximar ao obtido no ano de 1998.
O município de Belém do São Francisco apresentou duas altas taxas de homicídios.
Em 1998, com 85,91; e em 2002, com 107, 03. Nos anos de 1999, 2000 e 2001, os
índices foram de 53,20, 34,64 e 20,12 respectivamente. Em Floresta no ano de 1998, o
índice de homicídios foi de 127,49. Nos outros anos, as taxas foram de 50,03 (1999),
68,75 (2000), 51,66 (2001) e 43,17 (2002).
Nestes municípios não há um padrão de regularidade na prática de homicídios.
Em determinado instante (To) há alta incidência de homicídios, e logo após, nos
instantes (T1,....., Tn) ocorrem variações negativas. Seguido de variações positivas.
O mais importante a constatar neste fenômeno é a presença, num determinado instante,
de um alto índice de homicídios. Neste caso, verifica-se no gráfico 7 a presença de
picos de homicídios. Os picos mais visíveis são os de Carnaubeira da Penha, em 1998;
e Belém do São Francisco, no ano de 2002.
Existe alguma causa ou conjunto de causas que possibilitam a presença de picos
de homicídios em determinados instantes? Será testada a possibilidade deste pico
ser explicado por causas temporais. Ou seja, fatores que atuaram ocasionalmente e,
mesmo assim, contribuíram para elevação das taxas de homicídios.
Além dos picos de homicídios, chamam atenção no gráfico 7 a seguir, os índices
de homicídios do Recife e Rio de Janeiro quando comparados com alguns municípios
do Polígono da Maconha. No ano de 1998, as cidades de Carnaubeira da Penha e
Floresta tiveram taxas de homicídios por 100.000 habitantes maiores do que a capital
de Pernambuco, o Recife. Em 2002, Belém do São Francisco apresentou, também,
índices maiores do que o do Recife.
A cidade do Rio de Janeiro, área de intensos conflitos provocados por disputas por
pontos de drogas, apresenta taxas de homicídios menores do que alguns municípios
do Polígono. Desde 1998, Petrolina vem apresentando índices de homicídios maiores
do que o Rio de Janeiro. Petrolândia apresenta estes resultados desde 1999. Em
determinados anos, algumas cidades do Polígono tiveram níveis de homicídios mais
altos do que o Rio de Janeiro em anos específicos.
160
140
Belém de S. F.
120
Cabrobó
Carnaubeira
Floresta
100 Ibim irim
Lagoa Grande
Orocó
Petrolina
80
Salgueiro
Santa Maria
Petrolândia
60 Itacuruba
Tacaratu
Mirandiba
Recife
40
Rio de Janeiro
20
0
1998 1999 2000 2001 2002
182 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 8
Média da taxa de homicídios (1998-2002)
0,45
0,40
0,35
0,30 Belém do São Francisco
0,25 Carnaubeira da Penha
0,20 Floresta
0,15 Lagoa Grande
0,10
0,05
0,00
1998 1999 2000 2001 2002
Gráfico 9
Proporção de homicídios como causa de mortalidade
120
100
80
Recife
60 Rio de Janeiro
Polígono da Maconha
40
20
0
1998 1999 2000 2001 2002
Será que Lagoa Grande, apesar de não possuir no período analisado picos de
homicídio, possui uma maior proporção de homicídios como causa de mortalidade? Os
municípios que possuem picos de homicídios apresentam uma taxa média de homicídios
superior aos que não possuem estes picos? O gráfico 10 responde a estas indagações.
Lagoa Grande
Car. Da Penha
Petrolândia
Cabrobó
Petrolina
Tacaratu
Mirandiba
Ibimirim
.Belém de S. F
Floresta
Orocó
Salgueiro
Santa M. BV
Surpresas ocorrem ao analisar-se a média da taxa de homicídios e da proporção
como causa de mortalidade. Municípios que possuem picos de homicídios, acima de
100,00 por 1000.000 habitantes, não estão entre os que possuem a maior média de
ocorrência de homicídios entre 1998 a 2002. Do mesmo modo, ocorre com a proporção
de homicídios como causa de mortalidade.
Petrolândia (68,63), Floresta (68,22), Petrolina (66,86) e Orocó (63,22) aparecem
como os municípios que possuem a maior taxa média de homicídios no período
analisado – 1988 a 2002. No que condiz a proporção média de homicídios como causa
de mortalidade, as cidades de Lagoa Grande (0,25), Belém do São Francisco (0,17),
Santa Maria da Boa Vista (0,17) e Carnaubeira da Penha são as que lideram o ranking
– vide gráfico 10.
Não existe coincidência entre as cidades com maior média de homicídios e as
que têm maior proporção média de homicídios como causa de mortalidade. Este é um
ponto importante. Os dados da proporção de homicídios como causa de mortalidade
colocam o município de Lagoa Grande no topo. Como já foi dito, esta cidade possui
regularidade em suas taxas de homicídios por 100.000 habitantes. Isto poderia explicar
a alta proporção de homicídios. Contudo, Petrolina, também, apresenta essa mesma
regularidade. Mas nem por isto, está entre as quatro cidades com a maior proporção
média de homicídios. Portanto, municípios que possuem regularidade nos índices de
homicídios, não apresentam, necessariamente, uma maior proporção de homicídios
como causa de mortalidade.
Identificar as causas que levam à prática dos homicídios é uma tarefa árdua e
complexa. Por conta dos órgãos públicos, em geral, não possuírem dados. E quando
os têm, dificilmente os tornam públicos. Mesmo diante destas limitações, tentou-
se especular sobres as causas dos homicídios no Polígono da Maconha. Bem como
decifrar o motivo da alta proporção de homicídios como causa de mortalidade em
Lagoa Grande.
No dia 18 de outubro de 2002, quatro homens armados com pistolas e espingardas
calibre 12 promoveram uma chacina na fazenda Curral do Meio, localizada no município
de Belém do São Francisco. Cinco irmãos foram torturados e executados diante da
mãe, esposas e filhos. De acordo com a Polícia Federal, a chacina foi motivada por
conta dos irmãos terem abrigado um fazendeiro conhecido como Antônio Bagaceira.
Ele seria responsável pelo assassinato de outro fazendeiro: Zeílton Gomes Tavares12.
184 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Em números absolutos, foi no ano de 2002 que Belém de São Francisco conheceu
o maior número de homicídios: 21. As vítimas da chacina ocorrida na fazenda Curral
do Meio representam 23,8% do total de homicídios perpetrados em 2002. Este dado
nos permite afirmar que fatos pontuais, como chacinas, ocasionam aumento da taxa
de homicídios na região do Polígono.
Há uma outra hipótese tanto para a presença de picos como para as altas taxas
de homicídios: os conflitos entre famílias. Em Belém de São Francisco, as famílias
Benvindo e Araquan sempre se digladiaram. O representante mais conhecido das
duas famílias eram, respectivamente, Chico Benvido e Cleiton Araquan. Ambos foram
mortos pelas Polícias13.
Relatório reservado da Polícia Federal, de janeiro de 2004, afirma que as mortes
de Cleiton Araquan e Chico Benvindo possibilitaram a redução dos índices de violência
no Polígono da Maconha.
Segundo fontes policiais e do Ministério Público, os dois representantes das
famílias utilizavam o tráfico de drogas, os assaltos nas estradas e a bancos, para
angariar recursos com o objetivo de sobreviver e de se armar. Neste sentido, atividades
ilícitas financiavam os conflitos familiares14.
De acordo com fontes da Polícia Civil de Belém de São Francisco, em 12 de
outubro de 2002, três agricultores foram assinados com vários tiros de fuzil na ilha
dos Brandões em Belém do São Francisco. Este assassinato foi cometido pelo grupo
chefiado por Cleiton Araquan. O motivo da chacina deveu-se, supostamente, ao fato de
um dos agricultores, em depoimento à Polícia Civil, ter acusado o grupo de Araquan de
assassinarem o seu filho.Neste mesmo depoimento, o referido agricultor denunciou um
plantio de maconha dos Araquan que foi, posteriormente, erradicado pela Polícia15.
No ano de 2002, duas chacinas ocorreram. Totalizando oito mortos. Este número
significa que das 21 mortes ocorridas em Belém de São Francisco no ano de 2002, 38%
foram provocados por chacinas. Ambas as matanças foram por motivo de vingança16.
Os conflitos de famílias não se restringem à Belém do São Francisco. Em
Floresta, grupos familiares, especialmente os Ferraz e os Novaes, por várias vezes,
radicalizaram seus conflitos, resultando em mortes. Segundo Gomes (1999), na cidade
de Floresta, uma das principais ruas da cidade demarca a fronteira entre as famílias
rivais. Segundo ao autor, em cidades onde existem tais tipos de conflitos é impossível
ser neutro, é preciso tomar partido “de alguma das facções, ser protegido por esta, e
ficar alerta às possíveis ações da outra” (1999:8).
Em outubro de 2002, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
promoveu a transferência de 82 chefes de família, ligados tanto aos Araquan como aos
Torres17, para cidades do Piauí. O objetivo era amenizar o clima de tensão que estava
13 Em 04 de abril de 2003, após perseguição policial, Chico Benvindo foi morto pela Polícia Militar em
Belém do São Francisco. Cleiton Araquan foi morto por policiais federais em um confronto ocorrido na
cidade de Pilão Arcado, interior da Bahia, em 25 de setembro de 2003.
14 Em novembro de 2000, os Araquan e Benvindo firmaram um acordo de paz o qual foi intermediado
pela Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco. Em mais de 14 anos de conflitos, de acordo
com um comerciante da cidade, mais de 100 pessoas foram mortas. Entrevista em 12/01/2003.
15 Entrevista em 12/01/2003.
16 Entrevista com policiais civis em 12/01/2003.
17 Torres é família tradicional na cidade de Mirandiba.
186 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Uma outra hipótese levantada pelo mesmo delegado é a presença dos chamados
crimes de proximidade ocorridos nas agrovilas, localizadas na redondeza de Lagoa
Grande. Crimes de proximidade caracterizam-se pela vítima e o acusado se conhecerem
e/ou estarem próximos. Este delegado ressalva que os crimes de proximidade
ocasionados pelo alto consumo de álcool são peculiares a todos os municípios do
Polígono da Maconha23.
Portanto, conclui-se que os homicídios no Polígono da Maconha ocorrem devido
a múltiplos fatores: 1) por conta de conflitos familiares que redunda em chacinas; 2)
alto consumo de álcool que acarretam crimes de proximidade, e 3) tráfico de drogas.
Portanto, são diminutos os homicídios associados ao tráfico de drogas.
23 Ibidem.
24 Os dados foram obtidos ao serem analisadas as denúncias do MPPE.
25 A média de pessoas denunciadas por tráfico em cada peça denunciativa é de 2,20. Já ocorreu de 6
pessoas serem denunciadas numa mesma denúncia.
26 A média de indivíduos denunciados por cultivo de maconha é de 1,20. Ao analisar as denúncias,
constato que o máximo de pessoas denunciadas por cultivo em cada denúncia é dois.
27 Deve ser levado em consideração o fato da PM efetuar o policiamento ostensivo além de possuir
um maior efetivo região. Inclusive, com ações desenvolvidas por policiais deslocados do Recife para
operações como Paz nas Estradas.
28 A média de denunciados é de 1,79; a mediana de um e o desvio padrão de 1,188.
29 A média de pessoas denunciadas por tráfico em cada peça denunciativa é de 2,13. A mediana é de
2,00. Já ocorreu de 5 pessoas serem denunciadas numa mesma denúncia.
30 A média de indivíduos denunciados por cultivo de maconha é de 2,20. A mediana é de 2,00. Ao analisar
as denúncias, constato que o máximo de pessoas denunciadas por cultivo em cada denúncia é quatro.
188 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
homicídio; 11,6% tráfico de drogas; 10% tentativa de homicídio; 1,66% plantação/
cultivo de maconha. Ao contrário dos municípios analisados anteriormente, o crime
que predomina nas denúncias é o homicídio. Convém relembra que Santa Maria da
Boa Vista não apresenta picos de homicídios, e nem está inserida no ranking das
cidades com maiores taxas de homicídios..
Note-se que 47% das prisões foram realizadas pela PM; 32% pela Polícia Civil;
16% pela Polícia Federal; e 5,2% em ação conjunta das Polícias. Neste caso, a Polícia
Civil aparece em segundo lugar como instituição que mais efetuou prisões. Ao contrário
dos outros municípios analisados.
Os dados revelam que em Santa Maria da Boa Vista existe uma menor incidência
de grupos organizados atuando no tráfico e no cultivo da maconha31. A Polícia Civil
apresenta resultados significantes na sua atuação coercitiva. O crime de homicídios é
que tem uma maior quantidade na região
No período de 1999 a 2003, na cidade de Salgueiro, foram denunciadas 142
pessoas – em um total de 80 peças denunciativas. A média de idade dos acusados
é de 37 anos e 87,5% das denúncias versam sobre tráfico de drogas; 11,25 % sobe
plantação/cultivo de maconha; e 1,25% sobre homicídios. Constata-se que as taxas
deste tipo de crime estão entre as mais baixas dos municípios do Polígono (ver gráfico
7). Portanto, deve existir relação entre diminutas denúncias sobre homicídios e a sua
freqüência. Claro, a ineficácia por parte da Polícia Civil na identificação dos atores
criminais é um ponto a ser considerado.
Em Salgueiro, 49% das prisões foram realizadas pela PM; 36% pela PF32; 10% pela
PC; e 3,9% em ação conjunta das Polícias. Informo que desde o ano 2000, foi instalada
na cidade de Salgueiro uma delegacia da Polícia Federal. Neste sentido, a instalação
da delegacia poderá ter acarretado uma maior presença policial e conseqüentemente
mais prisões, com regularidade, foram feitas. Novamente, a Polícia Civil aparece com
uma atuação pífia.
Em Salgueiro predomina a atuação de grupos organizados no tráfico de drogas33
e no cultivo da maconha34. A PM, novamente, mostra-se mais presente na região.
O tráfico de drogas é a atividade criminal predominante.
Em Cabrobó, 111 pessoas foram denunciadas. Este quantitativo refere-se aos anos
de 2000, 2002 e 200335. Nestes anos foram apresentadas 59 denúncias. Mais uma vez,
houve a presença de mais de uma pessoa denunciada por denúncia. Das denúncias,
66,1% versam sobre o tráfico de drogas; 28,8% referem-se à plantação/cultivo de
maconha; 3,3% faz menção a outros crimes; e 1,7% tem como crime o homicídio.
A média de idade dos acusados é de 34 anos.
A PM realizou 68% das prisões; 28% pela Polícia Federal e 3,5% em ação
conjunta das Polícias. Com base nas denúncias analisadas, a presença da Polícia
31 O número máximo de pessoas denunciadas por tráfico de drogas foi de 5. Este mesmo valor para
as pessoas denunciadas por plantação/cultivo de maconha.
32 Em 2000, foi instalada em Salgueiro uma delegacia da Polícia Federal. Isto levou a um aumento do
número de prisões na região. Entrevista sigilosa com policiais federais em 12/01/2003.
33 A média de pessoas denunciadas por denúncias é de 1,73. A mediana é 1. O máximo de pessoas
encontradas numa mesma denúncia é de 6.
34 Dois é a média de pessoas denunciadas por denúncias. A mediana também é este valor. O máximo
de pessoas encontradas numa mesma denúncia é de 4.
35 Não conseguimos dados para o ano de 2001.
CONCLUSÃO
A análise do contexto sócio-econômico do Polígono da Maconha, não detectou
uma razão principal para o cultivo e tráfico de drogas. Ou seja, nem o Índice de
Desenvolvimento Humano, nem a renda per capita nem o grau de concentração
de renda explicam, per se, os ilícitos cometidos nesta região. Outras cidades, com
piores níveis de IDH, com menor renda per capita e maior concentração de renda não
enveredaram para o tráfico e consumo de drogas.
Dados do Ministério Público de Pernambuco mostraram que há, majoritariamente,
grupos organizados plantando e comercializando maconha. Mesmo diante deste
quadro de ilicitude, percebeu-se a ineficiência e ineficácia do aparelho coercitivo do
Estado. O próprio Ministério Público apresenta sérias deficiências na sua atuação. O
Judiciário não disse a que veio. Até porque testemunhas de crimes, negam-se a prestar
depoimento público com receio de perderem a vida.
A atuação da Polícia Civil na investigação de crimes ocorridos, é, praticamente,
inexistente. A Polícia prende mais traficantes do que plantadores de maconha. Quando
o lógico seria o inverso. Contudo, para uma área imensa de plantação é necessário
helicóptero para visualizar, com mais rapidez, os pés de maconha. No entanto, as
polícias estaduais não possuem este tipo de aeronave estacionada na região. Às vezes,
a Polícia Federal desloca uma de suas aeronaves para fazer este serviço.
É razoável admitir que a ousadia dos bandidos cresce com o aumento da
probabilidade de êxito do crime. Tanto é que a instalação de uma delegacia da Polícia
Federal em Salgueiro, em 2000, trouxe efeitos benéficos no combate ao cultivo e tráfico
de drogas. Bem como inibiu os assaltos nas estradas que cortam o Polígono que já
estiveram intransitáveis por conta do aumento da bandidagem.
Segundo fontes policiais, o tráfico de drogas no Polígono abastece secundariamente
os municípios da região. A maioria da produção é escoada para Regiões Metropolitanas
do Nordeste. A localização geográfica do Polígono é estratégica nesta distribuição.
Quando a droga chega nestas metrópoles é que se dá a disputa, geralmente bélica,
por território. O objetivo é monopolizar a venda da droga para os cativos mercados
consumidores.
No Polígono da Maconha não há disputa por território por existir grande
disponibilidade de terras para a produção. E o mercado local, como dito acima, é
fonte secundária de renda para o atravessador da droga. Portanto, o grande número de
190 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
homicídios existente na região, ao contrário do que diz o senso comum, não deve ser
imputado ao cultivo e tráfico de droga
Não se deve olvidar que o problema da droga não é apenas uma questão de
polícia. Para municípios sem perspectivas de geração de emprego, o cultivo e tráfico
de droga resultam em fonte de renda que alimenta a cadeia econômica da região.
Gerando, inclusive, impostos para as prefeituras locais.
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INTRODUÇÃO
Neste trabalho apresentamos a síntese de um estudo comparativo entre a Polícia
Civil e a Polícia Militar do Estado do RJ quanto à concepção e à administração individual
e coletiva dos riscos profissionais, de segurança pessoal e de saúde ocupacional no
exercício da Segurança Pública. Ele é fruto de uma pesquisa empírica de cunho
quantitativo e qualitativo realizada no ano de 2005 (Minayo et al, 2005), financiada
pela Secretaria Nacional de Segurança Pública
Os principais objetivos da investigação foram (a) produzir informações
estratégicas; (b) capazes de subsidiar ações dos profissionais, da Corporação e de
seus gestores, (c) visando à adequação dessas Instituições às necessidades atuais da
segurança pública.
As informações aqui apresentadas fazem parte de um conjunto de resultados
muito mais amplos e completos sobre: (1) organização funcional da Polícia Militar e
da Polícia Civil do Rio de Janeiro desde sua origem, suas transformações, sua inserção
no cenário internacional e sua configuração atual; (2) ampla descrição metodológica
do trabalho, o que permite a sua replicação para qualquer um dos estados brasileiros;
(3) perfil sócio-demográfico dos policiais; (4) suas condições de trabalho, de saúde e
de qualidade vida e (5) conclusões ressaltando pontos estratégicos para a ação política
e programática (Minayo et al, 2005).
O estudo de 2005 teve origem em indagações levantadas em pesquisa anterior
(Minayo; Souza, 2003), por isso, constituiu uma continuidade de reflexão sobre
condições de trabalho, saúde e vida das Corporações voltadas à Segurança Pública.
A hipótese que orientou a análise comparativa é de que encontraríamos uma
situação mais exacerbada de riscos pessoais e coletivos no exercício profissional entre
os policiais operacionais, sobretudo entre os Policiais Militares, tendo em vista a sua
exposição ostensiva no processo de trabalho de segurança pública.
Os conceitos centrais do trabalho são risco, segurança, trabalho, saúde e
qualidade de vida. Os dois primeiros dizem respeito à condição intrínseca à profissão
de policial. A instituição policial se destaca na sociedade brasileira, pelo seu papel
estabelecido no art. 144 do Capítulo III da Constituição Federal que trata da Segurança
Pública. A polícia civil tem uma função judiciária (§ 4o. art.144) e à polícia militar
cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (§ 5o, art.144), ambas
2 Não entrarei aqui, no mérito da terminologia “pós-moderna” que aqui uso no sentido de mencionar
as mudanças que vêem ocorrendo com as formas de violência social no mundo atual (Wieviorka,
1997; 2006).
196 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
exercidas pelos policiais e o nível de bem estar e de problemas sanitários que
apresentam no campo físico e mental. Na vinculação entre processo de trabalho e
saúde, várias e imbricadas dimensões devem ser contempladas a partir de conceitos-
mediadores (Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997). Alguns dos mais importantes são:
(a) aspectos sócio-históricos que se atualizam na cultura organizacional; exigências
requeridas (requerimentos) pela natureza da atividade; (b) riscos presentes nas
atividades em questão; (c) maior ou menor vulnerabilidade de determinados grupos
que exercem tarefas específicas; (d) penosidade do trabalho; (e) desgaste psicossocial;
(e) perda de capacidade corporal e psíquica (Déjours; Abdoucheli, 1994).
MATERIAL E MÉTODO
Aplicamos a estratégia de triangulação de métodos (Minayo et al, 2005), lançando
mão de técnicas quantitativas e qualitativas. Entendemos triangulação de métodos
como a dinâmica de pesquisa que integra a análise da magnitude e do significado dos
fenômenos e processos e a inclusão da participação dos atores que vivenciam esses
processos. Tendo em vista a natureza e a complexidade do objeto de investigação –
as condições de vida, de trabalho e saúde de policiais civis do município do Rio de
Janeiro – consideramos que esta seria a abordagem mais apropriada, uma vez que
ela conjuga a utilização de recursos diferenciados de coleta de dados e os métodos
conservam sua especificidade no diálogo inter ou transdisciplinar.
Abordagem Quantitativa
→ O plano de amostragem
Adotamos uma amostra aleatória simples de conglomerados. Entendemos como
conglomerado a unidade física (uma delegacia, academia de polícia, batalhão etc),
com o seu respectivo grupo de profissionais. Na amostra observaram-se diferenciações
características do processo de trabalho das duas Corporações. Em ambas foram
estudadas unidades administrativas e unidades operacionais (delegacias, batalhões).
As amostras foram calculadas a partir de listagens fornecidas pela Secretaria de
Segurança Pública e da Polícia Militar, contendo todas as unidades policiais da capital
do estado e o efetivo de cada uma delas especificado segundo os cargos.
Um dos critérios para o sorteio das unidades foi a natureza do processo de
trabalho. Assim, por exemplo, ao selecionar uma unidade operacional, incluíram-se os
policiais que participaram da pesquisa. A seleção dessas pessoas teve como critério as
diferenciações dos cargos: na Polícia Civil (delegado, inspetor, etc) e na Militar (oficial,
sub-oficial, cabo e soldado).
Conforme mostra a tabela 1 na Polícia Civil foram selecionadas 38 unidades e
2.746 policiais, tendo sido pesquisadas 39 unidades e 1.458 policiais.
198 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 1
Distribuição dos estratos das unidades da Polícia Civil segundo amostra calculada,
contingente real e amostra pesquisada
Tabela 2
Distribuição dos estratos das unidades da Polícia Militar
segundo amostra calculada, contingente real e amostra pesquisada
200 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
tarefas diárias caso fique doente); afetiva (demonstração de afeto e amor, capacidade
de abraçar e de amar); e de interação positiva (diversão em conjunto com outros,
capacidade de relaxar, de fazer coisas agradáveis e de distrair a cabeça). Cinco escores
são obtidos, um para cada dimensão.
As perguntas são introduzidas pela frase “se você precisar...” seguida pelo tipo
de apoio. As opções de resposta são apresentadas da mesma forma para todos os itens:
nunca, raramente, às vezes, quase sempre, sempre. A validade de face e a de conteúdo
dos itens foram consideradas adequadas pelos investigadores do Estudo do Pró-Saúde
(Chor et al, 2001) e de Sherbourne & Stewart apud Chor et al (2001). Quanto à validade
de construto, esses pesquisadores identificaram alta correlação entre as dimensões de
apoio social e outros conceitos que, teoricamente estão relacionados, como solidão
(correlação negativa), dinâmica familiar, conjugal e saúde mental (correlação positiva).
Os autores originais também observaram bons resultados em relação à consistência
interna (alfa de Cronbach superior a 0,91) e à estabilidade das medidas após um
ano (acima de 0,72), para as dimensões de apoio social. A média dos escores foi de
83,3 para a dimensão de interação social positiva/apoio afetivo; 78,6 para a dimensão
emocional/informação e 80,8 para a dimensão apoio material. A média global foi de
80,8. O coeficiente alpha de Cronbach foi igual ou maior do que 0,83 para todas as
dimensões.
A avaliação da saúde mental dos policiais foi executada por meio da aplicação de
uma escala chamada Self-Reported Questionnaire – SQR20 desenvolvida por Harding et
al. (1980). A escala utilizada no trabalho possui 20 itens medindo sofrimento psíquico
(distúrbios não psicóticos). São elas: sentir dor de cabeça freqüente; ter falta de apetite;
dormir mal; assustar-se com facilidade; apresentar tremor na mão; estar nervoso, tenso
ou agitado; apresentar má digestão; sentir dificuldade de pensar com clareza; sentir-
se triste; chorar facilmente; ter dificuldade em realizar tarefas diárias com satisfação;
sentir dificuldade em tomar decisões (indeciso); apresentar dificuldade no serviço;
sentir-se incapaz de realizar algo útil; perder o interesse pelas coisas; sentir-se inútil;
pensar em suicídio; sentir desconforto estomacal; mostrar cansaço constante; cansar-
se com facilidade. O alpha de Cronbach encontrado no presente estudo é de 0,8346
confirmando que os 20 itens indicam uma única característica.
Além das duas escalas citadas foram pesquisados indicadores de Qualidade
de Vida (Minayo e Souza, 2003), subdividindo-se em objetivos e subjetivos. Os
indicadores subjetivos corresponderam ao que o policial percebe, sente e valoriza
em relação a vários aspectos de sua vida. Para este trabalho foi utilizado um sub-
item dos indicadores subjetivos (o grau de satisfação composto por 16 variáveis sobre
relacionamento e grau de satisfação existencial). As cinco opções de resposta variaram
em três gradientes: satisfeito, nem satisfeito/nem insatisfeito e insatisfeito.
→ Expansão da amostra
Expandir as informações significa utilizar procedimentos estatísticos que
permitem cobrir a totalidade da população da pesquisa, fazendo que dados obtidos
a partir de um certo número de policiais passem a representar o coletivo deles no
município do Rio de Janeiro e não apenas aqueles que responderam ao questionário
(Carlini-Cotrim et al, 1993).
A partir das informações geradas no levantamento de campo, os pesos para cada
indivíduo participante da pesquisa foram calculados segundo seu estrato de alocação.
A variável peso foi criada no banco. E a partir do comando weight do pacote estatístico
SPSS todas as estimativas foram calculadas e ponderadas por este fator de expansão.
Tabela 3
Distribuição dos policiais civis que compõem a amostra, segundo os cargos
CARGOS POLICIAIS N %
1 – AUTORIDADES DE POLÍCIA 50 3,4
Delegado 50 3,4
2 – AGENTES DE POLÍCIA ESTADUAL DE APOIO TÉCNICO-CIENTÍFICO 378 26,1
Perito Legista 34 2,3
Perito Criminal 84 5,8
Perito Criminal Auxiliar 1 0,1
Papiloscopista Policial 190 13,1
Técnico Policial de Necropsia 32 2,2
Auxiliar Policial de Necropsia 33 2,3
Médico Policial 1 0,1
Enfermeiro 1 0,1
Auxiliar de enfermeiro policial 2 0,1
202 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
3 – AGENTE DE POLÍCIA ESTADUAL DE INVESTIGAÇÃO E PREVENÇÃO 1.023 70,5
Inspetor de Polícia 681 46,9
Detetive inspetor 134 9,2
Detetive 531 36,6
Técnico Policial de Laboratório 12 0,8
Técnico Policial de Telecomunicações 4 0,3
Oficial de Cartório Policial 222 15,3
Escrivão 73 5,0
Escrevente 149 10,3
Investigador Policial 120 8,3
Operador Policial de Telecomunicações 22 1,5
Motorista Policial 55 3,8
Fotógrafo Policial 12 0,8
Carcereiro Policial 31 2,1
Total 1.451 100,0
Tabela 4
Distribuição dos policiais militares que compõem a amostra, segundo os cargos
CARGOS POLICIAIS N %
Coronel 5 0,4
Tenente-Coronel 9 0,8
Major 19 1,7
Capitão 13 1,2
Primeiro-Tenente 11 1,0
Segundo-Tenente 21 1,9
Sub-Tenente 20 1,8
Primeiro-Sargento 36 3,3
Segundo-Sargento 161 14,5
Terceiro-Sargento 120 10,8
Cabo 180 16,3
Soldado 513 46,3
Total 1108 100,0
Abordagem qualitativa
Construímos os dados qualitativos exercitando a triangulação (intrínseca), a partir
de múltiplos informantes, observadores e técnicas de aproximação e compreensão da
realidade. Elaboramos todos os instrumentos coletivamente e buscamos que fossem
criticados por especialistas ad hoc nas áreas de saúde do trabalhador e de segurança
pública.
Tomamos como ponto de partida para a elaboração dos roteiros, as discussões da
equipe em torno da leitura de várias pesquisas sobre os indicadores de qualidade de
204 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
vida, sobre o perfil de saúde de distintas categorias profissionais e sobre a descrição
das condições do trabalho policial. Realizamos alguns seminários internos voltados
para a discussão dos marcos teóricos da investigação. E retomamos as entrevistas
realizadas na fase exploratória do trabalho, com informantes-chave tanto da polícia
civil como da militar, para examinar a adequação de nossos instrumentos à realidade
da Polícia Civil.
Também pudemos nos beneficiar dos debates realizados pela equipe sobre os
resultados da pré-análise das respostas aferidas pelo instrumento quantitativo. Os
resultados significativos estatisticamente e a análise inicial das freqüências deram
pistas para a abordagem de certas questões que deveriam ser aprofundadas nos grupos
focais e nas entrevistas. Permitiram-nos também, perceber a necessidade de esclarecer
determinados temas que queríamos investigar.
No exercício de triangulação metodológica com os pesquisadores da área
quantitativa, pudemos definir algumas categorias para guiar a “conversa com finalidade”
sobre cada um dos três grandes eixos do trabalho (qualidade de vida, condições de
saúde e condições de trabalho). Dada a sinergia entre esses três componentes, muitas
vezes uma questão acabava por complementar o enfoque dos dois outros campos.
Assim, por exemplo, ao perguntarmos sobre o que afetaria a saúde do policial, as suas
condições de trabalho acabariam, inevitavelmente, por surgir no relato.
Incluímos nos roteiros as seguintes temáticas: qualidade de vida nos âmbitos
de trabalho, da família e da comunidade; condições de trabalho do setor; sugestões
para melhoria dessas condições; riscos e estratégias para lidar com estes; relações de
trabalho; reconhecimento do trabalho policial atribuído pela sociedade e pela própria
instituição policial. A fim de facilitar a análise comparada, o roteiro dos gestores teve
a mesma base de conteúdo que o dos policiais.
Trabalhamos basicamente com três técnicas: grupo focal, entrevista individual e
observações de campo.
Organizamos as entrevistas de forma semi-estruturadas, ou seja, pautamo-nos por
um roteiro, tendo-o como guia, porém, levando em conta a interação entre entrevistado
e pesquisador, permitindo assim o aprofundamento de assuntos e pontos de vista.
A observação de campo, no caso deste estudo, constituiu-se apenas em aporte
complementar. Realizamos observações durante as diversas visitas para a aplicação
dos questionários da amostra quantitativa. O período de aplicação dos questionários,
levando em conta a apresentação dos instrumentos, distribuição, monitoramento e
recolhimento dos mesmos, levava uma média de sete a doze dias. Assim, a equipe
destinada a cobrir cada unidade ficou responsável pela elaboração de um diário de
campo. Seguindo um roteiro construído pelo grupo de pesquisa, buscamos mapear
observações sobre as condições e relações de trabalho e as impressões e expectativas
geradas pela pesquisa.
→ Comparação
206 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
torno de cada eixo temático e apreendendo as especificidades e as intersecções entre
as duas corporações policiais.
Canção do BOPE
→ Contextualização
208 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
deste trabalho, dentro das abordagens epidemiológica e social. Ou seja, o conceito de
risco diz respeito, ao mesmo tempo, à probabilidade das ocorrências de lesões, traumas
e mortes e ao significado da escolha profissional que traz, intrinsecamente, o gosto pelo
afrontamento e pela ousadia como opção e não como destino (Berstein, 1997; Castiel,
1999; Giddens, 2002). Seja no sentido de perigo ou de escolha, o conceito de risco
desempenha um papel estruturante das condições laborais, ambientais e relacionais
para esse grupo social, uma vez que seus corpos estão permanentemente expostos e
seus espíritos não descansam (Gomes et al, 2003). Eles vivem o que Giddens (2002, 42)
denomina de “risco de alta conseqüência”. A vivência dos riscos pode ser constatada na
taxas de mortalidade e de morbidade por agressões de que são vítimas, dentro e fora
das corporações, taxas essas, muito mais elevadas que as da população em geral.
→ Percepção de Risco
Tabela 5
Distribuição dos policiais civis e militares segundo
percepção de risco em sua atividade policial
Tabela 6
Distribuição dos policiais civis e militares segundo
percepção de risco para a família
210 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
para o “combate”. Em segundo lugar, ao tomarem decisões hierarquicamente e, por
isso, serem obedecidos sem direito a questionamentos como determinam as normas
disciplinares, suas ordens deverão ser cumpridas, muitas vezes pondo em risco seus
subordinados e a população.
Um dos gestores entrevistados falou, emocionado, da quantidade de vidas que
“ele já perdeu” em confronto. Encara essa situação como um fracasso e como perda
enquanto autoridade pública. Mostrando um certo incômodo com a posição de ter
sempre que decidir hierarquicamente, esse mesmo gestor comentou sobre a posição
maniqueísta que ele e outros de sua mesma patente precisam assumir na execução de
seu trabalho, sem titubeios: “é o bem (policial) contra o mal (bandidos)”. Segundo ele,
é pela via dessa “ideologia” que o confronto é possível. Na sua ótica, o enfrentamento
só se justifica por um ideal. Mas diz: “se você pensar bem, isso é um ato de loucura”
(Gestor Operacional).
Se o risco na jornada de trabalho está mais presente no discurso dos policiais
operacionais (mais ainda na Policia Militar do que na civil), o risco que correm no
espaço externo é sentido e vivenciado por todos os policiais das duas categorias.
Embora, também nesse caso, os policiais militares afirmaram mais que os civis,
viverem em perigo nos dias de folga e em outras atividades profissionais. O trajeto
para casa, as folgas e o lazer são momentos “inseguros” na concepção de todos. Os
civis consideram correr muito risco de vida nos transportes coletivos (tabela 7). Todas
estas diferenças são estatisticamente significativas.
Ao considerarmos a soma dos riscos percebidos, observamos que do total de
policiais militares 94,1% se dizem em risco fora do trabalho, contra 86,3% dos civis,
sendo essa diferença significativa estatisticamente.
Tabela 7
Distribuição dos policiais civis e militares segundo
percepção de risco fora das Corporações
O risco real é vivido pelos policiais civis e militares do Rio de Janeiro, através
da vitimização por traumas, lesões ou mortes, provocados pelas situações de
enfrentamento para prevenir crimes, atuar contra a criminalidade e manter a ordem.
O objeto geral de sua atividade é o controle da violência social. Dados da Secretaria
Nacional de Segurança Pública/Senasp (Senasp, 2005) do Ministério da Justiça ajudam
212 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
a estimar numericamente esse objeto de trabalho: para o ano de 2003 houve registro
de 6.707.955 ocorrências criminais nos Estados e de 2.264.829 nas capitais do Brasil.
No Estado do Rio de Janeiro foram registradas 433.988 ocorrências, sendo 228.243
delas na Capital.
A violência social é um fenômeno complexo e difícil de ser definido. Esse tipo de
fenômeno discrepa entre a sua ocorrência real e as sensações que gera. No imaginário
social, os sentimentos de medo e de insegurança levam a confundir crimes reais e
percepções subjetivas sobre os riscos de ser vítima da criminalidade, em proporções
inversas. Uma dessas discrepâncias diz respeito à crença de um permanente aumento
da delinqüência, o que às vezes é real e outras, não. Outra idéia muito corrente é de
que o Rio de Janeiro é local mais violento e de maior criminalidade do país. Estatísticas
da Secretaria Nacional de Segurança Pública de 2002, por exemplo, evidenciam que
isto não é verdade. Foi feita uma lista classificatória dos 27 estados do país que se
reproduz abaixo, em que o Rio de Janeiro se classifica nas unidades da federação de
médio índice de criminalidade:
214 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 8
Distribuição proporcional dos policiais civis e militares
segundo os riscos sofridos durante o trabalho policial
Afastamento temporário
2000 2001 2002 2003 2004
LTS
Número médio
Oficial 22,3 27,9 30,3 41,1 43,6
Praça 539,8 685,0 801,8 919,3 1124,2
Proporção média
Oficial 4,0 3,9 3,6 4,3 3,7
Praça 96,0 96,1 96,4 95,7 96,3
Razão de número médio – Praça/Oficial 24.2 24.6 26.5 22.4 25.8
IFP
Número médio
Oficial 79,2 105,0 136,6 162,7 211,1
Praça 1081,1 1307,0 1796,8 2123,2 3540,3
Proporção média
Oficial 6,8 7,4 7,1 7,1 6,0
Praça 93,2 92,6 92,9 92,9 94,0
Razão de número médio – Praça/Oficial 13.6 12.4 13.2 13.0 16.8
Ressaltamos que o número médio de oficiais com LTS cresceu 95,5% no período,
enquanto o de praças mais que duplicou (108,3%). O número médio de praças, vítimas
de agravos que exigiram afastamento é mais de 20 vezes o de oficiais, representando
cerca de 96% das LTS no período. São as praças, como já dissemos, que estão na linha
de frente nos confrontos.
Mais relevante ainda é o crescimento geral e as diferenças entre as duas categorias
no que concerne a Incapacitações Físicas Parciais (IFP): o número médio de oficiais com
lesões e traumas cresceu 166,5% no período e o de praças, 227,5%. O número médio
de praças, no início da série era cerca de 13 vezes maior que o de oficiais, passando
a ser 16.8 vezes em 2004. Os praças corresponderam a 93% dos incapacitados físicos
retirados dos serviços ostensivos para realizar tarefas internas, no período. No ano de
1997, 50,2% das LTS e 42,8% das IFP foram provocadas por traumas; e 5,6% das LTS
e 16,9% das IFP deveram-se a problemas psiquiátricos (Muniz & Soares, 1998). Em
ambos os casos, ressaltamos a incidência dos riscos no estresse vivido no trabalho.
O gráfico 1 apresenta as taxas de vitimização dos policiais militares, nelas
incluídas mortes e casos de ferimentos por ação violenta em serviço, em folga e todos
os dados em conjunto.
216 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Gráfico 1
20,00 )
)
15,00 ) ) )
)
) )
) ) )
10,00 #
$ # #
# $ # # $
$ # $ # $ $
# #
$ #
5,00 $ $ $
0,00
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Serviço $ 7,20 7,90 9,50 7,30 5,40 5,90 5,10 5,50 6,90 8,10 7,30
Folga # 8,30 6,90 10,50 8,30 6,40 6,00 7,70 6,60 6,30 8,90 8,80
Total ) 15,50 14,80 20,00 15,50 11,80 11,90 12,90 12,10 13,20 17,00 16,10
Fonte: Dados de Muniz e Soares (1998) para os anos de 1994 a 1997 e da Assessoria de Imprensa da
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro para os demais anos
(*) Taxas por 1000 policiais
Dos 4.518 policiais mortos e feridos por todas as causas, de 2000 a 2004, 56,1%
foram vitimados durante as folgas, contra 43,9%, em serviço. Nesse período, a ação
violenta representou 57,2% das causas de suas mortes e ferimentos, proporção que
cresceu nos últimos dois anos, passando de 53,2% em 2002, para 63,7% e 67,1% em
2003 e 2004, respectivamente.
Do total de 758 policiais mortos, 173 (22,8%) estavam em serviço. Quando
mortos em serviço por ação violenta, essa proporção é um pouco maior (26,4%). Os
dados evidenciam um crescimento desde o ano de 2002 da proporção de óbitos em
serviço por ação violenta, passando de 75% para 88%, o que merece atenção das
autoridades governamentais. O número de policiais que perderam a vida em serviço
foi 2.5 vezes maior em 2004 quando comparado ao ano de 2000.
Se por um lado cresceu a vitimização dos policiais – de todas as três categorias
– também é verdade que de 2003 para 2004 houve crescimento de 2,6% no número
de ocorrências criminais no Rio de Janeiro: foram 536.163 em 2003 e 550.262 em
2004. Os delitos violentos não letais contra a pessoa cresceram 4,6%, passando de
5.054 para 5.286. A ocorrência de assaltos a transeuntes se elevou em 24,4%; os
assaltos a ônibus subiram 11,7%; e os latrocínios cresceram 3,4%. Em contraposição,
diminuíram as seguintes ocorrências: assaltos a bancos, 33,9%; seqüestros, (33,3%);
roubos de carga (21,8%); assaltos a estabelecimentos comerciais (18,4); assaltos a
residências (6,7%); homicídios dolosos (2,8%); e roubos e furtos de veículos (2,6%)
(Vasconcelos & Goulart, 2005). Coincidindo com a vitimização dos policiais, a maioria
dos crimes notificados na cidade aconteceu na Zona Norte da cidade.
Os dados de óbitos por ação violenta indicam que morreram 2.8 vezes mais
policiais militares em folga em 2004, do que os que se encontravam em serviço. No
entanto, a importância da ação violenta tem maior magnitude na mortalidade desses
últimos (ela representa 83,2% das causas de morte dos policiais que morreram em
serviço, comparados aos 68,5% dos que morreram em folga).
218 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Sobre o risco real que leva à vitimização, Lemgruber (2004) numa pesquisa
realizada para a Ouvidoria da Polícia do Rio de Janeiro apresenta o seguinte quadro:
no Município, a taxa de assassinatos por dez mil policiais militares vem apresentando
fortes oscilações, percebendo-se uma tendência de queda entre 1995 e 2001. Já em
São Paulo, com exceção do último ano da série, os índices aumentam nesse mesmo
período, em função sobretudo, do aumento das mortes durante as folgas. A Polícia
Militar do Rio Grande do Sul apresenta taxas consideravelmente menores que as do
Rio e São Paulo, exibindo, ademais, uma tendência descendente nos últimos anos.
Mas, sempre, nos dois primeiros estados, os períodos de folga apresentam maior risco
do que o trabalho de policiamento. Esses dados sugerem que, muito provavelmente,
maiores taxas de vitimização no tempo fora do trabalho oficial se devam a dois fatores:
à prestação de serviços de segurança privada e ao fato de boa parte dos policiais
serem emboscados nas suas áreas de residência onde haja confrontos violentos. Não
podemos, em muitos casos, descartar a hipótese de vinganças e execuções associadas
ao envolvimento de agentes da lei em redes e práticas criminosas.
Gráfico 2
Taxas de homicídio por 10 mil Policiais Militares nos Estados do
Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul – 1995/2001
50
41,7 43,0
40 34,0 35,1
31,0
27,3
30 25,5 23,1
16,8 15,6
20
11,5
9,6 8,2
10 5,6
3,4 2,4
7,4 1,6
0
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
RJ SP RS
Gráfico 3
Taxas(*) de mortalidade de policiais civis do Rio de Janeiro
5,00
$
4,00 #
$ $
3,00 # #
$
#
2,00 $
$ # $
#
1,00 # $
$
) ) # #
) )
) ) ) )
0,00 )
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Serviço ) 0,70 0,40 0,73 0,44 0,34 0,32 0,28 0,58 0,00
Folga # 4,00 3,00 1,04 0,76 1,72 0,65 1,49 2,75 3,04
Total $ 4,70 3,40 1,78 1,20 2,07 0,97 1,77 3,34 3,04
Fonte: Dados de Muniz e Soares (1998) para a cidade nos anos de 1994 e 1995 e dados da Polícia
Civil do Estado para os demais anos
(*) Taxas por 1000 policiais
220 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Comparação entre as duas corporações – Durante a série estudada houve
crescimento da vitimização nas duas categorias estudadas, sobretudo considerando-se
as lesões não fatais nos primeiros anos deste século, com relevância para 2003 e 2004.
As principais causas de morte, lesões e traumas se devem a agressões e a acidentes
de trânsito, o que coincide hoje com informações sobre a vitimização das populações
trabalhadoras no Brasil na conjuntura atual (Minayo-Gomez, 2005). Porém, isso ocorre
de forma muito mais insidiosa entre policiais civis e militares na situação do Rio de
Janeiro.
Embora os servidores das duas corporações conformem uma categoria específica
de trabalhadores em elevado risco para mortes e morbidade por violências e acidentes,
existem diferenciações internas entre os dois grupos, o que corresponde, dentre outros
motivos, ao processo de trabalho de cada um.
Merece atenção a vitimização dos agentes de segurança em suas folgas, tanto em
acidentes de trânsito como por agressões. No caso dos confrontos, algumas evidências
podem ser ressaltadas. Uma delas se deve ao trabalho extra, também chamado “bico”.
Elevado percentual de policiais (Minayo & Souza, 2003) tem um segundo emprego na
área de segurança privada (de banco, patrimonial, de grupos, de pessoas), continuando
assim a usar o tempo livre com atividades de similar elevado risco. Outro motivo se
deve à presença dos policiais, como cidadãos, em cenas de conflitos em bairros, em
bares e em transportes quando, por via de sua função, acabam se envolvendo. Muitos,
também, são vítimas de emboscadas de delinqüentes. Esse último motivo leva a que
seja comum o fato dos policiais esconderem seus distintivos e profissão, visando a
diminuir as ameaças e ataques que lhes são impingidos. Não deve ser descartado
também o fato de que, no ambiente de trabalho das corporações, esses agentes
desfrutem de maior proteção grupal e desenvolvam técnicas de cuidados muito mais
estruturadas e precisas.
Fica patente que, comparativamente, a Polícia Militar é a que sofre mais
agressões e morte, apresentando taxas de mortalidade e de morbidade elevadíssimas.
Esse privilégio negativo pode ser constatado quando tomamos, por exemplo, dados
para o ano de 2000. No Brasil, a taxa de mortalidade por homicídio na população geral
foi de 26,7 por 100 mil habitantes e essa taxa na população masculina foi de 49,7. Na
capital do Rio de Janeiro, as taxas são mais elevadas que a média do país tanto para a
população geral (49,5/100.000) como para a população masculina (97,6/100.0000).
As taxas de mortalidade por agressões e acidentes de trânsito para os agentes da
segurança pública (das duas categorias) são ainda mais elevadas que as da população
da cidade do Rio de Janeiro. Na Polícia Militar, em 2000, a taxa de mortalidade por
agressões chegou a 356,23/100.000! Na polícia civil, essa taxa, considerando-se todas
as causas, no mesmo ano foi de 206,80/100.000. Portanto, comparativamente, a
Polícia Militar apresenta uma mortalidade por violência 3.65 vezes maiores do que
a da população masculina da cidade do Rio de Janeiro e 7.2 vezes a da população
geral da cidade. Quando comparamos com o Brasil, as taxas são 7,17 vezes as da
população masculina e 13.34 vezes as da população geral. O risco de morte entre
Policiais Militares é também maior l.72 do que em relação à Polícia Civil.
Quando observamos as informações sobre internações hospitalares motivadas
por agressão, em 2000 elas corresponderam à taxa de 0,10 por 1.000 habitantes na
população geral e a 0,34 por mil 1.000 na população masculina do país. As taxas de
ALGUMAS CONCLUSÕES
Todas as informações quantitativas e qualitativas do estudo aqui apresentado
evidenciam que os policiais militares e civis do Rio de Janeiro, além de viverem o risco
com profissão são as maiores vítimas do desempenho de suas atividades. Policiais
que sofreram elevado risco decorrente do trabalho são aqueles que mais vivenciaram
violências do tipo: ferimento por projétil de arma de fogo ou por arma branca, agressão
física, violência sexual, tentativa de suicídio e tentativa de homicídio.
Entre policiais civis constatamos que profissionais de nível médio enfrentaram
duas vezes maior risco de violência que os que possuem nível superior. Os que optam
por aproveitar o tempo de lazer fora de casa também vivenciam 2,2 mais risco de
sofrer violência do que os que passam mais tempo em casa lendo, descansando ou
dormindo. O que vem mostrar a urgência de se criarem meios de proteção dos policiais
fora do tempo que passam na Corporação, como resume o quadro a seguir.
222 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Tabela 9
Variáveis associadas ao risco sofrido por policiais civis
Intervalo Intervalo
Razões Razões
Variáveis (N=853) de de
brutas ajustadas
confiança confiança
PERFIL
Tempo de serviço Até 10 anos 2,22 1,17 4,25 2,44 1,18 5,01
De 11 a 20 anos 1,54 0,72 3,31 1,73 0,78 3,86
21 anos ou mais 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
SAÚDE
Deficiência auditiva Sim 3,29 1,85 5,87 2,98 1,61 5,52
Não 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Nevralgias/Neurites Sim 5,13 2,56 10,27 4,11 1,97 8,60
Não 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
CONDIÇÕES DE TRABALHO
Exerce outra atividade sem descanso Sempre/muitas vezes 5,24 2,84 9,66 4,98 2,61 9,51
Ás vezes/poucas vezes 2,51 1,34 4,71 2,30 1,20 4,42
Nunca 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
224 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
duas Corporações o clamor por instâncias de apoio ao enfrentamento dos eventos
traumáticos. Observamos a insistência dessa demanda, ainda que, no caso da polícia
militar existam nos batalhões oficiais psicólogos. No entanto, seus serviços são
muito pouco procurados, possivelmente porque os policiais enxerguem neles mais
uma instância hierárquica do que um serviço de apoio. Isso se pode depreender dos
depoimentos de alguns em que fica clara a discriminação negativa em relação aos
colegas que procuram os psicólogos, como se eles estivessem baixando a guarda e
admitindo que estariam ficando loucos. Um dos gestores administrativos afirma em
sua entrevista, de forma crítica, que a formação voltada para valores humanos e que
leve em conta questões emocionais dos policiais não é “prioridade da instituição”.
Os efeitos psicológicos reativos que resultam do temor do risco potencial e vivido
são múltiplos: negação: “não podemos pensar que ele existe”; naturalização: “faz parte
do nosso dia a dia”, “a gente se acostuma com essa realidade”; escárneo: “eles riem do
risco, é como se fosse uma brincadeira, brincam com a realidade como se estivessem
em uma ficção” (gestor operacional) e enfrentamento: “é no próprio combate que a
gente resolve o medo”. Um dos profissionais, nas discussões de um grupo focal para
operacionais apontou ainda duas estratégias que utilizam para amenizar os efeitos do
risco: “ou a cachaça ou a religião”. Em momento anterior já nos referimos às elevadas
proporções de policiais militares e civis que fumam e bebem, certamente dentre outros
motivos, por razões associadas ao estresse no trabalho. O apego à religião, como uma
maneira de se sentirem mais protegidos, também foi mencionado por vários policiais
de ambas as categorias.
Estudando trabalhadores em geral Dejours (1999) também encontrou, dentre
as estratégias utilizadas pelos que exercem atividades de elevado risco, a negação
do perigo, o escárnio do medo, a supervalorização da virilidade e o consumo de
substâncias.
Em relação ao enfrentamento, Le Breton (1995) aponta a atitude “contrafóbica”,
que leva o ser humano em situações de risco a encará-lo ao invés de fugir ou evitar.
Desta maneira, o indivíduo luta contra a angústia, atirando-se em sua direção e
colocando-se corpo a corpo com o desafio. Uma vez enfrentado, o medo se dissipa e
cria a sensação de domínio sobre ele.
É preciso ressaltar também que o risco vivenciado pelos policiais não tem
apenas uma conotação negativa. Ao contrário, a escolha profissional que corresponde
ao sentido relacionado à aventura e ousadia, como já discutido por vários autores
(Spink, 2002; Le Breton,1991; Muniz,1999, dentre outros) surgiu no discurso dos
profissionais da Polícia Civil e da Polícia Militar, na fala dos cabos e soldados, nas
unidades operacionais e no grupo operacional especial. A adrenalina produzida pelo
inusitado, segundo eles, “vicia” e os motiva para ação. Muniz (1999) em seu estudo
“Ser Policial é, sobretudo, uma razão de ser”, já havia apontado para a exaltação da
jovialidade na polícia e dos atributos típicos da juventude que escolhe essa profissão,
dando vazão ao sentido de aventura dessa fase da vida: “o espírito aventureiro, o
dinamismo, a canalização das energias pelas ações, o encantamento da superioridade
e a disponibilidade para enfrentar os perigos e riscos”, fazem parte do “ethos” do
trabalho operacional. Esses atributos são usados também na construção de estratégias
para minimizar os perigos reais e próximos, no momento das operações.
226 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Enfim, um dos grandes desafios do Brasil e do Rio de Janeiro em particular é
criar um ambiente e uma cultura de segurança pública e cidadã, o que certamente tem
a ver com a questão social e com o processo de democratização e “cidadanização” da
maioria dos brasileiros. Isso inclui também formas, instrumentos e tecnologias menos
agressivos de controle da violência, da criminalidade e do clima de acirramento social.
Desta maneira, o exercício da segurança pública se encontrará com os princípios da
segurança humana. Deixará de transformar-se numa profecia de morte dos policiais,
servidores que têm a obrigação constitucional de manter a ordem e coibir o crime e
não o destino ou a fatalidade de viver e morrer vítimas da insegurança social.
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Página de Créditos
Este trabalho constitui parte de uma pesquisa maior denominada Estudo comparativo sobre
riscos profissionais, segurança e saúde ocupacional dos policiais civis e militares do Estado
do Rio de Janeiro, realizada pelo Claves/Fiocruz e financiada pelo SENASP e concluída em
dezembro de 2005, da qual participaram os seguintes coordenadores e pesquisadores:
Coordenação
Maria Cecília de Souza Minayo e Edinilsa Ramos de Souza (coordenadoras)
Patrícia Constantino (coordenadora do trabalho de campo)
Equipe de pesquisa
Simone Gonçalves de Assis, Raimunda Matilde do Nascimento Mangas, Miriam Schenker,
Maria de Lourdes Tavares Cavalcante, Francisco Adolpho da Cunha Barros, Flávio Augusto
Pinto Correa, Júlio César Vasconcelos da Silva, Cleber Nascimento do Carmo, Thiago de
Oliveira Pires, Bruna Soares Chaves, Vanessa dos Reis de Souza, Raquel Vasconcellos
Carvalhaes de Oliveira e Nilton C. dos Santos
Técnico de Informática:
Marcelo da Cunha Pereira
Apoio Administrativo:
Marcelo da Silva Motta e Jerônimo Rufino dos Santos Junior
230 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
MUDANÇAS EM ORGANIZAÇÕES – O CASO
DO POLICIAMENTO
3
Karina Rabelo L. Marinho1
4
Almir de Oliveira Junior2
Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública/UFMG,
INTRODUÇÃO
No contexto atual das sociedades democráticas têm sido freqüentes as pressões
sobre as organizações policiais para que alterem sua estrutura convencional, fortemente
burocratizada. As razões para esse tipo de demanda costumam apoiar-se em uma
dupla justificativa. Por um lado, na desconfiança sobre sua eficácia no combate à
criminalidade; de acordo com esta crítica, as estratégias tradicionais de policiamento
não têm sido capazes de alcançar a complexidade dos problemas diante dos quais se
encontra. Ou seja, a descrença na eficácia organizacional, no caso das instituições
de polícia está associada principalmente à evolução dos números de ocorrências
criminais, fenômeno amplamente divulgado pelos meios de comunicação e percebidos
pelas populações brasileiras.
Outro motivador para alterações no arranjo organizacional da polícia está na
crescente perda de legitimidade do formato autoritário destas organizações frente às
demandas de expansão do sistema democrático representativo para todas as esferas
institucionais, nas sociedades liberais contemporâneas. O que se exige na arena social é
232 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
seu processo de definição, os elementos relativos à tarefa, ambiente, etc. Para ele
“(...) as organizações são criadas para produzir alguma coisa (...) Neste processo,
as organizações utilizam energia humana e não humana para transformar “matéria
prima” em um produto desejável. (...) (PERROW, 1976, p. 74)
Segundo ele, uma organização formal implica também a especialização e a
divisão do trabalho para a execução do produto, além de formas de resolução para a
neutralização ou relação com o ambiente no qual se situa, já que “O ideal, do ponto
de vista da produção eficiente é que as organizações contem com um ambiente estável
e que seu pessoal não seja influenciado por fatores alheios à organização.” (PERROW,
1976, p. 75)
Entretanto, como as influências ambientais não podem ser neutralizadas de
maneira definitiva, as organizações desenvolvem normas e regulamentos que não se
relacionam diretamente com o processo produtivo em si. Em suma, as organizações
formais ou burocráticas implicam, em alguma medida, a especialização, controle das
influências exercidas por um ambiente, nem sempre estável e previsível. A atuação
policial é afetada por aspectos cognitivos e comportamentais que se desenvolvem
devido às especificidades do ofício, relacionado a fortes pressões externas. Os policiais
estão envolvidos com um trabalho em relação ao qual existem muitas expectativas
e cobranças por parte da sociedade, ao mesmo tempo em que devem lidar com um
processo de estigmatização que lhes é imposto por essa mesma sociedade. Por esse
ponto de vista relacional, fica claro que ser policial não é uma experiência que possa
deixar de marcar profundamente a história de vida de um indivíduo. Trata-se de um
profissional que tem que se expor às mais diversas situações de conflito. Seja com
criminosos, ou mesmo com não-criminosos que, por exemplo, se sentem ofendidos em
seus direitos por ocasião de uma “batida” ou “blitz” policial, entre outras situações.
A obra de Max Weber representa contribuição fundamental para a teoria das
organizações, uma vez que trata a questão da burocracia como um problema tipicamente
sociológico, possibilitando que as organizações sejam vistas como um fenômeno cuja
natureza é eminentemente social. Para Weber, o desenvolvimento burocrático no
contexto dos estados modernos deveu-se ao crescente processo de racionalização que
aí se deu. Em outras palavras, a racionalidade da vida moderna acabou por engendrar
um significativo impulso em direção à burocratização nas mais diversas esferas da
vida social. O desenvolvimento da burocracia, assim, apóia-se em sua superioridade
técnica, maior capacidade de continuidade, unidade, redução de atrito e diminuição de
custos, no contexto de uma estrutura especializada, profissional e, portanto, impessoal.
Por isso identifica-se internamente nas organizações policiais uma hierarquia rígida,
com ampla ritualização de comportamentos no nível das relações interpessoais entre
seus agentes, além de um treinamento padronizado voltado para um grande número
de regras formais, relacionadas de forma legal e doutrinária às suas atividades-fim.
A busca de legitimação por parte da organização leva a ostentação de certas
práticas rituais, não necessariamente ligadas a uma lógica instrumental, que reforçam
mitos compartilhados por sua clientela, indivíduos ostentam performances que, do
ponto de vista dos espectadores (superiores, colegas), dão supostamente a impressão
de eficiência profissional. Isso é diferente de afirmar que a cultura organizacional5 seja
5 A dimensão da cultura refere-se aos valores, crenças e atitudes dentro do contexto ocupacional e
organizacional de polícia. O conceito de cultura policial vem sendo citado constantemente na literatura
Portanto, a polícia pode ser compreendida como uma forma de ação coletiva
organizada em torno da missão de produzir segurança por meio de uma dupla função:
por um lado, a aplicação da lei, e por outro, a manutenção da ordem. Para a consecução
de sua finalidade, ela apresenta determinada divisão de tarefas, estrutura hierárquica,
caráter de profissionalização, estabelecimento de normas, enfim, aspectos a partir dos
quais se pode definir polícia como uma organização formal. Mas, ao mesmo tempo,
recente sobre organizações policiais, uma vez que a adoção do modelo de policiamento comunitário
em várias partes do mundo tem levantado certa discussão sobre a “necessidade” de mudanças na
cultura tradicional das polícias (BAYLEY & SKOLNICK, 2002, COSTA & MEDEIROS, 2003, GOLDSTEIN,
2000, MOORE, 2000, SAPORI & SOUZA, 2001).
234 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
ela tem uma cultura organizacional, que afeta e dá sentido ao modo como a polícia
pensa e trabalha, e uma identidade que a definem como instituição social. O presente
artigo baseia sua interpretação na definição de polícia vista como organização formal
e como instituição social, sujeita aos conceitos tipicamente organizacionais.
AS MUDANÇAS ORGANIZACIONAIS
De acordo com a teoria das organizações, mudanças organizacionais são
advindas tanto de fatores internos à organização, quanto daqueles externos a ela.
No que diz respeito aos fatores internos, o efeito estrutural da ação social pode
produzir consequências não desejáveis pela organização (MERTON, 1965). Estes
efeitos constituem, potencialmente, importante fonte de energia para a mudança
organizacional, uma vez que, as organizações burocráticas, como mostrou Merton,
tendem à priorização dos métodos de operação que geram previsibilidade e controle,
em detrimento de suas finalidade. Esta transformação de meios em fins, denominada
por Merton ritualismo, constitui fonte de demandas por mudanças.
Um estudo de Reiss enfatiza que no decorrer do século passado as organizações
policiais foram pressionadas a se adaptarem às mudanças de tecnologia, às mudanças
no crescimento e composição da população das cidades e na organização social e política
de governos (REISS, 2003). Dessa forma, o patrulheiro foi substituído por policiais em
unidades especializadas. Reformadores tentaram neutralizar o apadrinhamento político
sobre a polícia e controlar a proteção policial aos criminosos e atividades criminosas
organizadas, com isso tomou-se duas linhas principais: primeiro, transformou-se a
burocracia quase militar das organizações policiais em uma burocracia legalista e
tecnocrática, cujos membros estão comprometidos com uma comunidade profissional
cujas formas de subordinação e trabalho os colocam à parte da comunidade que
policiam. O segundo passo, resultante de intervenções tecnológicas, realizada algum
tempo depois, foi centralizar territorialmente o policiamento. Como parte desse
processo, o patrulhamento a pé foi substituído pelo motorizado.
Essas mudanças caracterizaram claramente um policiamento profissionalizado
que contrasta com o policiamento exercido no início do século XX em bairros e
comunidades locais das grandes cidades. Nesse modelo mais antigo de polícia, o
oficial da ronda servia para prevenir ocorrências, buscar e dar respostas a crimes e
disputas civis ocorridos em seu turno. O carro de patrulha, o telefone e o rádio para
intercomunicação mudaram tudo isso, criando uma estratégia reativa de patrulhamento
policial, do tipo “prestações de serviço”. Talvez o maior impacto da tecnologia tenha
sido solidificar a centralização burocrática do comando e do controle. A separação
entre o trabalho dos policiais e as comunidades por eles policiadas foi completa em
termos organizacionais. Segundo Bretas a polícia é um excelente exemplo de um órgão
público moderno:
236 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
que articulam causa e efeito no processo de trabalho. O conceito de tecnologia constitui,
portanto, a articulação desses dois fatores em diferentes combinações.
O modelo burocrático, tal qual preconizado pelo tipo ideal de Weber, pode ser
entendido como uma forma de conjugação de um baixo grau de variabilidade e de
incerteza na medida em que, idealmente, procura estabelecer a rotina como base de sua
consecução de tarefas. Em consonância com esse modelo, o policiamento profissional
irá caracterizar-se pela exclusividade da operação em torno do cumprimento das leis
penais, segundo procedimentos padronizados (CERQUEIRA, 1999).
A função policial, no contexto desse arranjo tecnológico, é fortemente limitada
pela exclusividade sobre o controle da criminalidade e prisão de delinquentes e
criminosos. A missão organizacional no contexto profissional de policiamento, assim,
não é analiticamente problematizável, uma vez que fortemente vinculada a fatores
estritamente relativos ao controle do crime. De acordo com este modelo de polícia:
Todas as atividades que eram solicitadas à polícia pela comunidade que não
fossem restritas ao cumprimento das leis penais eram consideradas pelos
policiais como trabalho de assistência social e inadequadas para a polícia.
(CERQUEIRA, 1999, p. 06)
Isso não significa afirmar que as atividades desenvolvidas pela polícia, do ponto de
vista empírico, restrinjam-se à execução da lei penal – law enforcement –, desprezando
qualquer atividade relativa à manutenção da ordem – keeping the peace -6 Sabe-se
que grande parte do trabalho policial é dedicado a atividades que não se relacionam
diretamente com crimes, sobretudo crimes violentos. No entanto, do ponto de vista
analítico, a ênfase formal desse modelo de policiamento mantém as conceitualizações
acerca de sua missão organizacional sob as limitações implicadas na burocracia. Assim,
a missão do modelo tradicional é preconizada a partir fundamentalmente da aplicação
da lei. No contexto dessa missão policial, a eficácia técnica adquire centralidade, daí
sua exclusividade para a consecução da missão, devendo a comunidade, leiga, manter-
se afastada dos assuntos relativos à polícia.
Deste modo, a missão da polícia, no contexto tradicional, é delineada de modo
a diminuir a variabilidade da natureza da atividade policial: a organização diminui as
incertezas com as quais se depara por meio da limitação conceitual de sua missão em
torno da aplicação da lei. Se a aplicação da lei e o controle da criminalidade constituem
o objeto central da missão da polícia tradicional, a padronização dos fatores relativos
à atividade policial também adquire centralidade. Ora, o segundo elemento, de acordo
com Perrow (1976), relativo à tecnologia de uma organização, refere-se ao grau de
incerteza nos procedimentos que articulam causa e efeito. Nessa medida, o modelo
tradicional de policiamento representa esforços relativos não apenas à missão ou ao
objeto da organização, mas também no que diz respeito à consecução das atividades
dos policiais.
Com a missão organizacional sendo definida com base na aplicação da lei, a
polícia tradicional burocrática enfatizará os aspectos mais rotineiros da atividade
6 Apesar do fato de grande parte das operações policiais rotineiras destinarem-se à manutenção da
ordem e à assistência à população, a polícia constantemente reivindica o deslocamento destas ações para
outros serviços púbicos, enfatizando o uso exclusivo de seus recursos no controle da criminalidade.
238 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
controles internos que asseguram a imparcialidade profissional e a padronização das
tarefas policiais. Com isso, o modelo tradicional pode limitar suas fontes de incerteza,
advindas do ambiente, isolando-o da organização. Ou seja, se os focos de tensão
organizacional encontram-se nas fontes de incerteza ambiental, o distanciamento
entre polícia e comunidade tornará viável uma maior centralização da autoridade e do
poder organizacional.
Entretanto, o controle das fontes de incerteza refere-se não apenas às características
do ambiente externo, mas também às maneiras através das quais as informações
acerca do ambiente e das tarefas são distribuídas no contexto da organização. Todo
ator organizacional dispõe, em alguma medida, de informações acerca das atividades
e do ambiente da organização, e tais informações são interpretadas pelos indivíduos
de modo diferenciado. Organizações dotadas de características mais próximas à
burocracia ideal irão minimizar o acesso dos profissionais de linha às informações
mais estratégicas, no sentido de coordenar as ações individuais, o que significa maior
centralização burocrática.
O policiamento tradicional, nesse sentido, incorpora a divisão de trabalho e a
unidade de comando, premissas da teoria burocrática da administração, à sua estrutura
organizacional. A distribuição das informações organizacionais se dá, nesse modelo,
de maneira verticalizada, em que o líder, ao situar-se na fronteira entre ambiente e
organização, mantém o controle das fontes de incerteza.
A importância atribuída pelo policiamento tradicional à racionalidade de sua
missão e consecução de tarefas faz com que a unidade de procedimentos deva ser
mantida. Assim, se os indivíduos mantêm interpretações diferenciadas acerca das
informações recebidas, a discricionariedade deverá ser evitada.
Finalmente, o tipo de tarefa desempenhada pelo ator organizacional também
implica maior ou menor acesso à tomada de decisão e, portanto, às fontes de poder.
Se, no modelo tradicional de policiamento, a coordenação, padronização e rotinização
das atividades de patrulha adquirem caráter central, o poder atribuído a estes agentes
será menor, bem como haverá maior controle sobre suas atividades, devido à baixa
complexidade de suas tarefas cotidianas. Em outras palavras, o agente de linha, nesse
tipo de organização, acaba por deter uma parcela diminuta de informações acerca da
maneira como sua tarefa deverá ser realizada, o que implicará menores liberdades na
tomada de decisão.
O ambiente externo à organização é, então, um elemento de fundamental
importância para a compreensão das maneiras como a polícia se estrutura, tanto do
ponto de vista de sua constituição tecnológica, interna, quanto no que diz respeito à
distribuição de poder e às possibilidades de tomada de decisão. De acordo com Selznick
(1972), entretanto, os efeitos não racionais da ação social permanecem presentes
no contexto organizacional, fazendo parte da formação de sua identidade. Ou seja,
a organização assenta-se em valores que se constituem no âmbito da comunidade
que a cerca. Esta identidade transcende a lógica instrumental da organização. Em
dissonância com essa perspectiva, o policiamento tradicional permanece apoiando-
se nas premissas da eficiência técnica. Nesse sentido, prioriza as táticas de respostas
rápidas às chamadas dos cidadãos, o patrulhamento em automóveis em detrimento do
policiamento a pé, maneiras limitadas de contato com a comunidade que a legitima.
240 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS DO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO
De modo significativamente diverso, o modelo organizacional do policiamento
comunitário supõe a flexibilização da estrutura burocrática, uma vez que suas
estratégias incorporam novos elementos à missão organizacional. Supondo que o
ambiente no qual se insere seja mais complexo, fonte de sua legitimação, a perspectiva
comunitária de policiamento demanda relações mais intensas com as comunidades,
o que por sua vez, exige uma menor padronização das tarefas, já que os policiais
passam a lidar com mais situações excepcionais na consecução de seu trabalho.
Tarefas que se dão desse modo exigem ações inovadoras por parte do pessoal
de linha da organização, em uma situação em que há a transferência da tomada de
decisão para os atores organizacionais mais próximos do processo produtivo. A idéia
fundamental por trás do policiamento comunitário é que o trabalho conjunto e efetivo
entre polícia e a comunidade pode ter um papel importante na redução do crime e
na promoção da segurança. Enfatiza que os próprios cidadãos são a primeira linha de
defesa na luta contra o crime. Assim, define-se como uma estratégia organizacional
para que os esforços policiais sejam mais bem mobilizados, por fazer necessário que a
polícia se torne aberta aos problemas que as comunidades identificam.
Esse modelo, portanto, exige uma estrutura organizacional descentralizada, onde
as regras de conduta profissional surgem mais como parâmetro de ação do que como
molde para os comportamentos, e as informações seguem um percurso horizontal e
não verticalizado.
A dimensão tecnológica do policiamento comunitário irá supor, no que diz
respeito ao grau de variabilidade da missão organizacional, a incorporação de uma
gama de elementos não formalmente contidos no modelo tradicional. À aplicação da
lei, assim, acrescentam-se os problemas relativos à ordem nos espaços públicos, tidos
pelo modelo comunitário de policiamento não como função residual, mas, sim, como
aspecto central da atividade policial.
A incorporação desses elementos significa maior variabilidade e complexificação
da missão organizacional da polícia, na medida em que a eficácia técnica no combate
à criminalidade deixa de ser entendida como a única missão policial e a conquista da
legitimidade para a consecução das atividades desloca-se para uma área fundamental
dos objetivos organizacionais. No contexto relativo às estratégias comunitárias,
portanto, a missão deixa de ser um limitador da variabilidade da natureza das
atividades policiais. As incertezas com as quais a organização se depara surgem com
maior freqüência, o que faz com que sua missão e seus objetivos específicos sejam
problematizáveis do ponto de vista analítico.
Tal conformação tecnológica implicará, também, alterações relativas ao nível
de incerteza, contidas nos procedimentos que articulam causa e efeito, elemento
constituinte do design tecnológico de uma organização, segundo Perrow (1976).
Assim, a complexificação da missão policial acarretará atividades menos rotineiras no
contexto do trabalho policial e sua padronização será mais difícil de ser alcançada,
uma vez que se refere a contatos mais próximos com os membros das comunidades.
As estratégias de atuação, portanto, serão alteradas em conformidade com a
ampliação da missão organizacional. Ao incorporar a importância relativa à redução do
medo da população às funções da polícia, por exemplo, o policiamento a pé mostrou-
8 Ainda que esse tipo de patrulha não tenha afetado a ocorrência de crimes.
9 Herman Goldstein (em Improving Policing: A Problem Oriented Approach – 1979) introduz
questões relativas à aplicação do método de solução de problemas, considerando-o mais eficaz do
que a confrontação direta ou a ênfase conferida aos métodos reativos e repressivos do trabalho
policial. A metodologia de solução de problemas consiste em quatro etapas distintas. A primeira
delas, “identificação”, tem como objetivo descobrir quais os problemas associados aos incidentes, a
seleção de prioridades e a definição de responsabilidades. A segunda fase, de “análise”, consiste na
compreensão mais profunda do problema, através do seu estudo de forma mais detalhada. Conhecimento
minucioso das ocorrências dos delitos, sua distribuição espacial, temporal suas possíveis causas é de
grande importância para a etapa de intervenção. O objetivo da fase de “resposta” ou a intervenção
propriamente dita, é selecionar uma solução, um plano de ação estratégico e implementá-lo. Por fim,
a fase de “avaliação”, procura criar critérios objetivos para avaliação do funcionamento e efetividade
das intervenções implementadas.
242 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de poder no contexto organizacional podem ser compreendidas em termos de três
fatores gerais: a configuração do ambiente externo no qual a organização se situa, o
tipo de distribuição das informações organizacionais na cadeia hierárquica e o grau
de incerteza contido na consecução das tarefas. O ambiente organizacional, assim,
possui valor estratégico na medida em que suas fontes de incerteza são material para
a detenção de poder. Ao aproximar polícia e comunidade, as estratégias comunitárias
de policiamento incorporam, portanto, novas formas de engendrar autoridade que não
coincidem vis à vis com a estrutura formal, diferenciando-a de maneira mais enfática
das bases reais de poder organizacional.
Além disso, a ampliação das relações entre polícia e comunidade enfraquece
os controles internos sobre os policiais e as possibilidades de padronização das
tarefas que eles desempenham, na medida em que há um maior acesso destes atores
organizacionais às fontes de incerteza provenientes do ambiente externo, como já
mencionado. A motivação, também por essa via, torna-se instrumento mais favorável
do que o controle rígido sobre as atividades.
Tal configuração exige descentralização do poder, em consonância com modelos
menos burocráticos de organização. Em suma, mesmo que a aplicação da lei seja a
principal fonte de legitimidade da atuação policial, a comunidade passa também a
desempenhar o papel de fonte de autoridade para muitas das atividades desenvolvidas
pela polícia. A aceitação da discricionariedade é oriunda também da importância
atribuída pelo policiamento comunitário à legitimidade conferida pelo ambiente, o
que faz com que as interpretações dos indivíduos acerca das informações recebidas
das comunidades sejam incorporadas.
Finalmente, é importante mencionar que tarefas dotadas de um maior grau de
incerteza em seu processo de consecução implicam maior autonomia para quem
a desempenha. Por tudo o que foi dito até aqui, pode-se concluir que o policial
comunitário, por lidar com uma missão e com um ambiente organizacionais mais
heterogêneos e, portanto, mais complexos, estará desempenhando funções em que o
nível de incerteza e conseqüentemente de autonomia e possibilidades de tomada de
decisão serão maiores do que no modelo profissional de policiamento, onde as tarefas
são rigidamente padronizadas.
Entretanto, no contexto do policiamento comunitário, a diminuição do controle
exercido pela organização sobre seus profissionais corresponde a um maior grau de
controle da comunidade sobre a organização. Assim, às questões relativas à eficiência
no cumprimento de sua missão, cerne do policiamento profissional, soma-se a
necessidade de busca de legitimidade e credibilidade no contexto social democrático.
Ao deslocar sua missão de uma ênfase legalista para atividades de implementação da lei
e manutenção da ordem pública, o policiamento comunitário inviabiliza medições de
resultados que se dêem estritamente pelo número de prisões efetuadas, por exemplo.
As estratégias para avaliação do policiamento, nesse contexto, tendem a ser mais
genéricas e mais difíceis de serem implementadas, dada a amplitude das parcerias
entre polícia e comunidade. Elas devem, portanto, acrescentar ao seu escopo medidas
não apenas relativas ao processo de implementação do policiamento e às taxas de
criminalidade, mas também relativas às percepções que a população tem acerca da
ocorrência de crimes, ao medo da criminalidade e à idéia que mantém acerca das
organizações policiais.
Tabela 1
Comparação dos modelos de policiamento
244 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
da polícia brasileira, uma vez que institucionaliza uma maior preocupação com a
qualidade da interação entre agentes policiais e a população. Dados da pesquisa
realizada pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG,
para Secretaria Nacional de Segurança Pública10 lançam luzes sobre novas definições
situacionais que emergem no cotidiano da atuação policial.
A análise dos discursos proferidos por atores organizacionais das instituições
militares em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Vitória, muito pode revelar acerca dos atuais
padrões de policiamento, no que concerne aos elementos abordados anteriormente.
Os policiais entendem suas atividades como idealmente relacionadas estrita e
preferencialmente aos objetivos de combate ao crime. Idealmente, mas não de fato. Ser
policial significa atuar nas mais diversas áreas, cumprindo tarefas que seriam, segundo
a perspectiva dos policiais, de outros órgãos. A polícia, assim, acaba por se constituir
em ponto de referência para a sociedade, atuando em tarefas mais heterogêneas do que
aquelas definidas idealmente pela organização. O policial compreende que a realidade
é complexa demais para ser esgotada no contexto organizacional.
Apesar da identificação desta heterogeneidade, há uma maior associação da
atividade policial com o combate ao crime organizado no Rio de Janeiro, do que em
Vitória e Belo Horizonte. Mais do que isso, a atividade policial é tida como autêntica
apenas quando diretamente relacionada ao combate à criminalidade. Assim, a
descrição do cotidiano do policial carioca enfatiza a violência de modo marcadamente
mais acentuado:
“Da dificuldade que é, você lidar com vários tipos de crime, com todo tipo de
situações, desde uma briga de casal quanto a um assalto a banco, um tráfico...
Traz tudo que é pior para a gente entrar, trabalhar em morro, que é um tráfico
muito pesado, com armamento muito pesado e que a televisão não mostra. O
que mostra na televisão talvez não seja nem um décimo do que realmente a
gente vê, de tudo que a gente sabe que acontece”. (Soldado, Rio de Janeiro)
“Se você não punir quem comete crime, de forma que a pessoa se assuste...
Tipo... Vamos dizer que seja aprovado uma... uma... Não vou dizer pena de
morte, mas prisão perpétua, eu tenho certeza que muito bandido vai ficar com
medo de ser preso. – Imagina, “pô”, nunca mais eu vou sair... Eles vão ter medo.
Mas não tem, eles sabem que vão entrar e vão sair. ” (Soldado, Rio de Janeiro)
246 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de contatos inter pessoais e, portanto, de confiança, através da fixação de policiais
em determinados locais de atuação. A confiança, portanto, deve ser conquistada, e,
segundo os próprios policiais – praças e oficiais – a aproximação tem sido realizada a
partir de iniciativas das organizações policiais e não de associações ou membros das
comunidades. Ainda assim, o relacionamento entre polícia e comunidade parece ser
positivo onde existem organizações comunitárias em forma de conselhos de segurança.
Outros dos elementos levantados como obstáculo ao estabelecimento de boas
relações com as comunidades, dizem respeito ao medo que os indivíduos sentem
de serem identificados como delatores de práticas ilegais, e pelas diferenças de
mobilização encontradas em diferentes comunidades. Assim, parece haver associação
entre relacionamento polícia-comunidade e denúncias, realizadas pelos membros das
populações, às polícias.
Os modos de relacionamento com a sociedade civil, ainda, podem variar de
acordo com o estrato social com o qual os policiais se relacionam. Assim, o contato
com membros das classes populares é, de acordo com os policias, mais satisfatório,
enquanto as classes abastadas entendem o policial como um indivíduo que não obteve
sucesso na estrutura social. Portanto, a independência entre a abordagem policial e
os diferentes estratos que compõem a sociedade é impossibilitada pelos modos como
policiais são recebidos por diferentes populações.
Entretanto, enquanto em Belo Horizonte e Vitória os obstáculos ao estabelecimento
de relacionamento entre polícia e comunidade encontram-se na imagem policial,
associada ao autoritarismo e à punição, ou à desarticulação comunitária que a torna
incapaz de ações conjuntas, no Rio de Janeiro, outras questões foram destacadas.
A principal delas diz respeito à presença do crime organizado. Segundo essa
perspectiva, traficantes de drogas assumem a autoridade no contexto de aglomerados
urbanos e favelas, impedindo qualquer possibilidade de articulação comunitária
com as organizações policiais. Mas a autoridade exercida pelo crime organizado nos
aglomerados do Rio de Janeiro se reflete, sobretudo, no medo que a população parece
ter de ser penalizada por se relacionar com policiais.
A presença policial passa a ser repudiada pelos membros das comunidades, pois
representa o desencadeamento de situações de grande violência. Em outras palavras,
os policiais entrevistados acreditam no estabelecimento de uma rotina entre crime
organizado e população, cuja ruptura, pela polícia, pode representar riscos maiores do
que aqueles oferecidos pela presença dos criminosos. A ação policial – preventiva ou
repressiva – também é dificultada pela configuração física dos aglomerados urbanos.
Enfim, nas três organizações estudadas os praças não percebem, do ponto de
vista da sociedade, a confiança necessária para um verdadeiro trabalho de parceria
com os grupos externos à polícia militar. Esse sentimento de distância em relação aos
outros grupos e cidadãos é reforçado principalmente pela imagem negativa passada
pela imprensa e pelos militantes ligados aos movimentos de direitos humanos, muitas
vezes acusados de “politicagem”:
“A imprensa só sabe dar moral pra vagabundo, só fala a duas semanas só fala
de Bem-te-vi, quer falar da vida do Bem-te-vi, das mulheres que o cara teve, ta
fazendo o que? ta exaltando, ta incentivando a criança a ser bandido (soldado
– Rio de Janeiro)
“E a polícia mais antiga não tinha esse contato com a comunidade hoje é o
contrário, e a polícia de comando antigamente não achava certo que o policial
fazia o contato com a comunidade, hoje em dia, é essencial esse contato”
(soldado – Belo Horizonte)
“Polícia interativa é o que deveria ser feito. Mas uma coisa é o que deveria ser
feito, o que o pessoal lá de cima quer que a gente faça e outra bem diferente
é que eles dão recursos para gente fazer, tá entendendo? Polícia interativa é o
ideal? É. Então... mas, e os recursos, os treinamentos, o pessoal necessário, as
condições... não tem” (soldado – Vitória)
248 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
implementação do policiamento comunitário. Ao contrário, a busca de interatividade
policial com as comunidades pobres, como demonstraram algumas experiências que
de fato ocorreram no Espírito Santo, é possível e é um dos caminhos mais eficazes para
superar a imagem estigmatizada da polícia militar e diminuir a violência policial. É claro
que no Rio de Janeiro, onde o controle de determinados territórios pelos traficantes
coloca os militares em real estado de guerra, a repressão e a inteligência policial terão
que ser reforçadas. O policiamento comunitário também não é uma panacéia capaz de
resolver todos os problemas de segurança pública em todos os lugares.
250 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
a consecução de tarefas relativas à manutenção da ordem. Nesse sentido, a comunidade
deve passar a ser compreendida como elemento importante na identificação e soluça
de problemas. A ela cabe sugerir medidas necessárias para o combate à criminalidade
e desordem. Do policiamento orientado para o evento, o que se sugere é o policiamento
orientado para o problema, de modo que o policial possa distinguir diferentes formas
de situações passíveis de motivar delitos ou eventos relacionados à desordem o que,
segundo os princípios do policiamento comunitário, demanda envolvimento das
comunidades.
Outra questão a ser destacada diz respeito à definição feita pelos membros
das organizações acerca do policiamento comunitário. Gerais ou abstratas, não
encontram correspondência, nos discursos analisados, com metodologias ou formas
de operacionalização. A dificuldade de transpor uma filosofia comunitária para o plano
do trabalho cotidiano ainda parece ser um dos principais obstáculos à implementação
do policiamento comunitário.
O que se tem, portanto, é que, nas três organizações policiais pesquisadas, não
parece haver compatibilidade entre as estruturas organizacionais formais – constituídas
de modo fortemente centralizador – e os elementos que compõem o modelo comunitário
de policiamento. Ora, diante do fato de tratar-se de organizações apontadas como
pioneiras ou bem sucedidas nos processos de implementação do policiamento
comunitário, acreditamos ter havido forte confusão entre estratégias focalizadas de
metodologias comunitárias e os processos de implementação do modelo.
A expressão “policiamento comunitário”, deste modo, tem sido usada para designar
uma série de iniciativas que refletem muito mais o estilo profissional de determinados
comandantes ou lideranças organizacionais do que um modelo organizacional
propriamente dito. No entanto, a expressão deveria dizer respeito a mudanças no contexto
organizacional como um todo, bem como nas lideranças das unidades policiais, entre
o “staff”, supervisão, no processo de recrutamento, treinamento, avaliação, ambiente
de trabalho e na relação que a polícia mantém com o ambiente institucional no qual
se situa. Portanto, alterações nessa direção requerem, se forem efetivadas, mudanças
simultâneas nas mais diversas áreas afetadas pelo empreendimento.
Em suma, a manutenção da atual estrutura organizacional das organizações
policiais impossibilita o processo de implementação do policiamento comunitário. Diante
disto, um equívoco comum tem sido atribuir a ineficácia das organizações policiais
exclusivamente à precariedade dos equipamentos utilizados por policiais, quando
investimentos em educação – especialmente do pessoal de linha – flexibilização da
estrutura policial, como já destacado e sistematização e maior circulação da informação
organizacional ao longo da estrutura hierárquica parecem ser mais urgentes. Tal
processo exige participação das instâncias decisórias da polícia, além do esclarecimento,
especialmente daqueles que atuam de maneira mais direta com a população.
Existem problemas que só um treinamento mais intensivo e sólido poderia sanar.
Deve-se enfatizar a importância de lidar de forma sistemática com a informação, no
nível de dados estatísticos pormenorizados de crimes nas áreas dos batalhões, que
sejam disponibilizados aos praças e que eles saibam trabalhar. Isso seria fundamental
para o desenvolvimento de um policiamento voltado para solução de problemas, de
forma que os agentes partissem de uma avaliação das situações e da formulação de
estratégias pró-ativas ao invés de meramente reativas.
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Lourdes Bandeira1
Analía Soria Batista
INTRODUÇÃO
Esse artigo analisa os resultados da pesquisa realizada no contexto dos projetos
aprovados pelo Edital de pesquisa aberto pela SENASP/ANPOCS em janeiro de 2005,
na linha: Construção das Carreiras e das Trajetórias Profissionais dos Operadores
da Justiça Criminal e Segurança Pública, com o projeto: Perfis Profissionais dos
Agentes Penitenciários do Distrito Federal e do Estado de Goiás, cujo Relatório
completo encontra-se disponível no site da SENASP2.
O interesse que nos orientou na escolha da temática foi o de contribuir para
uma melhor compreensão do universo laboral dos agentes penitenciários, fazendo
recomendações para orientação de políticas de seleção, formação e treinamento destes
agentes públicos.
Há décadas existe uma sólida tradição de pesquisa empírica sobre as prisões em
numerosos países, notadamente nos Estados Unidos, Inglaterra e França (Chauvenet,
1994; Badinter, 1992; Casadamont, 1985; Faugeron, 1992) e esse tema veio a se constituir
uma das áreas de estudos também no Brasil, a partir das últimas décadas do século
XX. Contudo, quando os pesquisadores se interessaram pelas questões de segurança,
de modo geral, o fizeram em relação aos presos e a situação das prisões, centrando
suas referencias nas reformas penais e prisionais assim como sobre os/as detentos/
as tratando de explorar a cultura prisional de res-socialização/reabilitação do/a
detento/a, o fenômeno da prisionerização, o tempo prisional, assim como da cultura
dos/as detentos/as ou presos/as, as formas de controle, entre outros aspectos.
Mas recentemente, foi evidenciado o interesse pelo trabalho dos/as agentes
penitenciários/as ou agentes prisionais, uma vez que o desconhecimento em relação
ao trabalho destes/as ensejou que se criassem certas representações sociais,
predominantemente “negativas”. No geral, são considerados/as despreparados/as,
repressivos/as, violentos/as e até mesmo acabam sendo vistos/as como torturadores-
carrascos e desumanos.
Os/as agentes estão encarregados/as de “manusear”, como enfatizaram, com
pessoas socialmente desclassificadas sujeitando-se desse modo, cotidianamente,
aos perigos da “contaminação”, pela proximidade com os detentos. Em função dos
contatos exigidos pela natureza do trabalho que realizam, não raro, são representados
como um grupo de risco pela sociedade. As denúncias veiculadas pela mídia sobre o
comportamento observado como desumano e/ou ilícito destes/as, pode reforçar ainda
mais as representações sociais estigmatizadoras. Em função disso, pode considerar-se
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 255
que as relações e interações sociais nos presídios e penitenciárias acontecem entre
dois grupos socialmente estigmatizados: Agentes e internas/os; embora permaneçam
diferenciados do ponto de vista das hierarquias e dos poderes presentes nas
organizações Prisionais.
Goffman (1982:13)3 indica que o termo estigma é usado com referencia a um
atributo profundamente depreciativo, sendo necessário situá-lo no marco de relações
sociais específicas, pois um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a
normalidade de outrem. De fato, do ponto de vista dos/as internos/as, a identidade de
“guarda de presídio” é depreciativa, visão que pode também estar presente em uma
parte da sociedade, e vice-versa. Para os/as Agentes, e em geral para a sociedade, a
identidade de detento/a é desvalorizada, sendo alvo de preconceito.
O conhecimento empírico sistematizado sobre o desempenho funcional dos/
as agentes penitenciários/as, pode ser avaliado como sendo ainda insuficiente e,
portanto, a nosso ver, merece que se questione o universo das carreiras e trajetórias
profissionais desses agentes, assim como a natureza de seu trabalho considerado como
uma atividade bastante peculiar.
Observa-se que no Brasil vem ocorrendo um aumento significativo da população
carcerária4, a partir das duas últimas décadas, apresentando significativas mudanças
em suas características seja do ponto de vista da origem sócio-econômica, seja da
diversidade dos tipos de crimes, criminalidades e delitos. As condições de vida dos/
as detentos/as não evoluíram, na mesma intensidade, e as estatísticas, embora nem
sempre reflitam a plena realidade, apresentam aspectos análogos para a situação dos
diversos estados da federação, sobretudo em relação à precariedade das condições
materiais que caracterizam as instituições prisionais brasileiras.
A reconstrução das trajetórias profissionais dos/as agentes penitenciários exigiu
apelar, para sua adequada compreensão, a diversos procedimentos metodológicos que
compreenderam: a realização de entrevistas, escutas e conversas com os diversos atores
que participam (direita ou indiretamente) da produção, reprodução e transformação,
material e simbólica de importantes aspectos da instituição prisional. Em razão dessa
exigência, durante a pesquisa foi realizado um conjunto de oitenta e cinco entrevistas
com Agentes Penitenciários/as e Prisionais no Distrito Federal e de Goiás; nove
entrevistas com diretores e autoridades da área de segurança pública; nove entrevistas
com Agentes que organizaram visitas guiadas às instalações das unidades Prisionais
pesquisadas, vinte e quatro entrevistas com setenta e dois familiares de detentos e
dezenove grupos focais com oitenta e cinco internas/os de distintos complexos
Prisionais5, somando um total aproximado de 168 horas de gravação.
256 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
O trabalho iniciou-se com as demandas institucionais de liberação legal do
acesso às dependências das instituições. Essas transcorreram sem problemas na prisão
masculina e com maior demora no presídio feminino – Colméia, no DF. Ao contrário
de Goiás que o acesso foi de imediato. Talvez essa diferença se deva a natureza
institucional diversa da gestão estadual sobre os presídios. A pesquisa foi iniciada com
um longo processo de observação etnográfica realizado no interior das dependências
prisionais, observando-se as instalações, a movimentação interna de agentes e presos/
as, nas prisões masculinas e femininas, tais como: os tipos de celas individuais e
coletivas, a circulação dos/as detentos/as pelos pátios internos, o recolhimento às
celas, a distribuição do jantar, a chegada de novos detentos, o funcionamento da
escola, da biblioteca e do templo, instalados no interior da prisão, destacando-se as
diferentes tipificações dos/as presos/as existentes aqueles que possuem curso superior
e ex-policiais estão localizados em celas mais amplas, higiênicas e com mais condição
de circulação, pois há um pequeno pátio interno exclusivo, e as celas estão localizadas
no mesmo corredor da igreja. Há aqueles que estão em regime de solitária, em celas
fechadas minúsculas, escuras com higiene precária, parecem estar amontoados, além
de serem muitos em uma mesma cela.
Além desses percursos percorridos foram observadas as atividades e as rotinas
de trabalho dos/as agentes prisionais, tais como: a distribuição de refeições, a descida
dos presos ao pátio, o retorno às celas e o registro dos/as internos/as uma vez nas
celas ou “confere” ou “recolhimento”, a movimentação no pátio, a chegada e a saída
de presos/as, os desempenhos nas oficinas de trabalho, a circulação dos agentes entre
os presos, os postos de guarda, as formas de controle que exercem sobre os presos, o
atendimento no posto médico, as revistas, o estresse, por vezes manifesto no trabalho,
entre outros.
Na parte externa do complexo prisional masculino, sobretudo no DF, se utilizou a
observação in lócus para observar o funcionamento das diversas oficinas de trabalho,
consideradas como locais de aprendizagem e onde os detentos podem exercer sua
sociabilidade com vistas à expectativa do processo de ressocialização, conforme nos
foi descrito pelos agentes que conduziam a visita aos presídios masculinos. Assim,
após essa passagem pelas dependências internas e externas da prisão, tendo como
objetivo, observar as ações e os desempenhos dos/as agentes prisionais, descrita,
detalhadamente, no relatório final da pesquisa, o que nos possibilitou ter uma
compreensão sobre a prática profissional dos/as agentes prisionais.
Esse artigo compreende as seguintes partes: a) Caracterização das unidades
prisionais estudadas; b) Caracterização do perfil sócio-demográfico dos/as agentes;
c) Carreiras e trajetórias profissionais dos/as agentes penitenciários/as no DF e Goiás;
d) O lócus do trabalho: divisão técnica do trabalho e divisão sexual do trabalho; e,
e) A dupla missão dos/as agentes penitenciários: segurança e re-inserção.
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 257
CARACTERIZAÇÃO DESCRITIVA DAS UNIDADES PRISIONAIS VISITADAS
As unidades prisionais estudadas no Distrito Federal, onde atuam os/as agentes
penitenciários/as são apresentadas, resumidamente, a seguir:
258 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
tratamento psiquiátrico está isolada dos blocos do presídio feminino, funciona à parte
das outras unidades da Comeia. Este prédio destinado à ala psiquiátrica abriga os
reclusos todos os homens do DF que estão sujeitos à medida de segurança, porque
são portadores de Transtorno Mental. Neste prédio atuam três Agentes homens. É
importante ressaltar que as mulheres em tratamento psiquiátrico convivem com as
demais internas, não há alas especiais para estas. Além do prédio que abriga os presos
psiquiátricos, os demais blocos abrigam as presas, sendo que na parte térrea localiza-se
a administração e as oficinas de trabalho para as presas, uma minúscula biblioteca.
No presídio feminino encontramos o Núcleo de Apoio Materno Infantil- NUAM,
que recebe as mulheres que entraram grávidas ou que engravidaram por meio das
visitas íntimas. No último prédio há três andares, onde se localiza a sala de revista das
visitas de visitas, com detector de metais e espelho.
Há o pátio, com uma quadra de vôlei seguida de uma área livre, espaços para os
momentos de lazer. Visitamos também a capela onde as atividades religiosas católicas
realizadas e as demais são realizadas no pátio ao ar livre.
Nos andares superiores h localizam-se as celas onde cabem cerca de 14 internas.
Há também uma cela especial onde ficam as internas que têm bebês com menos de
seis meses de idade. Há também uma cela especial para as internas mais idosas e
doentes.
Foram-se observados, além das dependências internas do presídio feminino, os
locais-oficinas de atividades: salão de beleza, salas de aula, sala de confecção de
artesanatos (bijuterias, arranjos, bordados, crochês, etc).
A função básica das agentes é de exercer o controle sobre as detentas que circulam
sistematicamente pelo interior das alas da prisão, observando a movimentação, com o
intuito de evitar brigas, discussões, solicitações desnecessárias, pedidos excessivos, por
exemplo, para irem ao serviço médico. “A prática de uma espécie de “chantagem” de
controle institucionalizada, que se caracteriza pelo considerado “mau comportamento”
equivale a perda da visita. O medo de perder a visita é a maior preocupação das
internas, porque esta representa o elo com o mundo externo. Este contato contribui
para a ordem e segurança no Presídio feminino na medida em que, acende nelas a
vontade de saírem da cadeia e as deixam mais calmas embora deprimidas em razão
da saudade dos filhos, companheiros, parentes etc. mas é ao mesmo tempo, uma
estratégia de atuação das agentes femininas. As detentas internalizam esse controle
externo, transformando-o em autocontrole em suas práticas que vão se modificando
com a limitação e a repetição de atos e comportamentos.
No que tange às relações homossexuais, presentes em todas as prisões, nem na
Comeia nem na PAPUDAS, estas são aceitas com a possibilidade de uso do parlatório,
isto é o local onde os/as detentos/as realizam a visita íntima. Mesmo sabendo que as
relações homossexuais ocorrem até mesmo entre as internas e os internos de ambas as
Penitenciárias, sobre isso há, por parte do/as agente, um “desconhecimento”.
Em Goiás, foram analisadas as instituições que compreendem o complexo
penitenciário da Agência Prisional-Goiana, localizado na BR 153 km 611, na Área
Industrial em Aparecida de Goiânia que compreende: a Casa de Prisão Provisória
(CPP-subdivida em quatro blocos), a Penitenciária Odenir Guimarães (POG, presídio
masculino), o Centro de Inserção Consuelo Nasser (presídio feminino), o Núcleo de
Custódia (presídio de segurança máxima), e a Colônia Agro-Industrial é a unidade
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 259
de regime semi-aberto em Goiás. No conjunto há, aproximadamente, 7.414 presos
recolhidos, e são 596 agentes prisionais, destes 68 são mulheres. Vale destacar dois
aspectos: primeiro, há uma queixa generalizada em relação ao número reduzido de
agentes penitenciários em todas as instituições penitenciárias estudadas; segundo,
há presença dos/as agentes em relação ao número de presos é completamente
desproporcional de um lugar para outro. Enquanto que na PAPUDA, tem-se a relação
de um agente para 25 presos, na Comeia a relação é de um para oito; em Goiás, no
conjunto tem-se um agente por 12 detentos.
260 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
de nove metros de altura e três de profundidade. Há cerca de dois Agentes Prisionais
que atuam como plantonistas. Estes recebem um treinamento e curso de formação
diferenciado dos que atuam em outras unidades.
Abriga internos transferidos de várias unidades da Agência, identificados com
perfil de liderança negativa, com a finalidade de desfazer o elo e a influência diante
da população carcerária. Há também os “mega-traficantes”, os internos acusados
de tentarem ou lograrem êxito em fugas e também aqueles que cumprem punição
disciplinar. São classificados como ameaça à normalidade de segurança do sistema,
identificados tanto quanto ofensivos ao sistema prisional quanto ao restante da
população carcerária. O reeducando é constantemente analisado ao cessar sua punição
disciplinar ou seu perfil de liderança, ele é reintegrado à unidade de origem.
3.4. Centro de Inserção Social Consuelo Nasser (CIS). Presídio feminino de regime
fechado localiza-se em frente ao presídio masculino POG. O CIS abriga 65 reeducandas
em regime fechado. Há muros de 5 metros de altura e duas guaritas inoperantes em
razão do reduzido número de Agentes. Existe apenas um bloco no centro, térreo, mal
conservado e relativamente pequeno, onde fica a secretaria, as celas e a cozinha. Atrás
do bloco há uma pequena plantação de hortaliças, dois conjuntos de mesas e bancos
de concreto. As detentas circulam pelos pátios e são inexpressivas as atividades de re-
educação realizadas no presídio feminino.
3.5. A Casa de Prisão Provisória (CPP). O acesso dá-se via uma guarita da Polícia
Militar. Esta é ampla, há diversas salas para realizar as revistas no dia de visitas e um
detector de metais. Ao passar pela guarita, tem-se acesso ao prédio administrativo
da CPP, onde além das salas do serviço burocrático, localiza-se também o setor
de atendimento ao interno: salas de atendimento médico, odontológico, jurídico,
psicológico e de assistência social.
Foi com base nesse conjunto de instituições prisionais que se estabeleceu a base
empírica de nosso trabalho, tanto em relação à coleta das informações etnográficas,
assim como a realização das entrevistas com os/as agentes, e com alguns membros
responsáveis pela administração das instituições prisonais, além dos grupos focais
realizados com os/as detentos/as.
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 261
continua sendo um espaço da “fantasia corporificada” por um número expressivo de
migrantes em busca de mobilidades social (Nunes, 2004). Grande parte das famílias
das/os Agentes Penitenciárias/os do Distrito Federal vieram de outros Estados da
Federação, sobretudo da região Nordeste. Há também um grupo significativo de Agentes
entrevistadas/os que vieram à Brasília para realizar o concurso público com vistas a
ingressar na carreira policial, como agente penitenciário. Muitos foram incentivados
pelos seus familiares. No conjunto foram unânimes em afirmar que a profissão os atraia
pelo salário oferecido, pela estabilidade que ainda representa um emprego público.
No DF, a maioria concentra-se na faixa etária de 30 a 45 anos; 59% dos agentes
entrevistados têm escolaridade de nível superior e 68% são casados. Vale esclarecer
que, atualmente, o nível de formação exigido para a carreira de Agente Penitenciário
no DF é o curso superior completo. Mais de um terço declarou-se católico.
Entre a formação dos Agentes Penitenciários, o curso de Direito aparece em
primeiro lugar. Os motivos para a escolha desse curso mereceriam um estudo à parte,
mas com base nos relatos, realizar o curso de direito é relativamente fácil, depois,
ingressar na carreira é difícil, principalmente para aqueles que não têm origem familiar,
tradicionalmente, envolvida com a profissão. Consideram como a maior dificuldade é
de ser aprovado pela Ordem dos Advogados do Brasil-OAB. Em contraponto, o curso de
direito oferece maiores possibilidades para a realização de concursos públicos6. Outra
característica a destacar diz respeito à experiência anterior ao ingresso na carreira. Os
Agentes mais antigos e ingressados antes da exigência de nível superior completo, no
momento da realização do concurso, trazem em sua experiência profissional anterior,
passagem(ns) pelo exército e/ou pela polícia militar. A área militar e de segurança
foram praticamente o único campo de atuação desses Agentes ao longo de suas vidas,
constituindo-se como um continuum, como uma trajetória linear iniciada com o
serviço no exército.
Já a experiência profissional daqueles agentes mais jovens que ingressaram nos
últimos anos, trazem experiências profissionais efêmeras e com pouca perspectiva de
futuro. O concurso público e ingresso na carreira de Agente Penitenciário representaram
a tentativa de sair de uma trajetória labiríntica e incerta em busca de estabilidade no
emprego e de garantia de um salário condizente com os altos custos de vida na capital
federal.
Tais situações refletem-se no quadro relativo ao tempo na carreira e a experiência
como Agente Penitenciário e demonstra a diversidade geracional existente entre os
Agentes no Distrito Federal: há duas divisões explícitas: um terço está na carreira no
intervalo de 1 a 5 anos, enquanto um terço está na carreira há mais de 15 anos, o que
caracteriza a presença de duas gerações bem distintas.
Em relação as agentes femininas entrevistadas nas unidades Prisionais da
Papuda e Comeia, no DF, já haviam trabalhado em outras profissões e a opção pela
carreira está também relacionada à perspectiva concreta de estabilidade no emprego e
de melhores salários (“é um concurso que paga bem”). Ganhar um bom salário para
elas, está associado aos projetos familiares como o de garantir uma boa formação para
os filhos, ter condições de “pagar uma escola particular”. Quanto às características
6 Vale registrar, que no DF, existem mais de dez cursos de direitos em instituições privadas, sendo
apenas um na universidade pública. Estima-se que a cada ano sejam formados mais de 1500 bacharéis
em direito, e o exame de ingresso na OAB/DF não aprovados um percentual superior a 20%.
262 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
sócias demográficas: 70% encontram-se na faixa etária entre 30 e 39 anos. Em 60%
são mulheres casadas e com filhos. Entre as entrevistadas, a maioria das Agentes
tem nível superior completo. Com escolaridade secundária encontram-se aquelas que
trabalham a mais tempo na instituição, entre as quais, uma Agente que ingressou em
1977 na carreira e que à época da entrevista estava com 48 anos de idade e prestes a
aposentar-se.
Vale destacar que a exigência do nível superior para o exercício da profissão é
considerada um aspecto que ainda causa surpresa para muitas pessoas, inclusive para
os familiares das Agentes, que se perguntam pela real necessidade do título acadêmico
para exercer uma função definida como “cuidar de presa/o” (leia-se cuidar de alguém
que não preta, do abjeto).
A religião é vista como um aspecto importante na vida pessoal e profissional,
independentemente de ser católica, pertencente ou outra confissão religiosa, pois 70%
declararam-se católicas ou evangélicas.
Poucas declararam ter experiência anterior, ao ingresso na carreira de agente,
em alguma outra instituição militar; ao contrário dos agentes masculinos. Muitas
realizaram o curso de direito e/ou de administração, um terço tem formação na área
de humanidades. As equipes de trabalho são formadas por Agentes com formações
diversas e diversidade profissional parece representar um enriquecimento da equipe
como um todo, mas também certo descontentamento e frustração pessoal por ver que
os estudos realizados, servem apenas para a “função de abrir cadeado, fechar cadeado
e fazer escolta de interno”.
Para a uma parte das agentes, sonhavam com outra profissão, de ser professora,
por exemplo; no entanto, a experiência no campo da Educação acabou sendo frustrada,
foi então que optaram por uma carreira no setor público, onde ainda há os melhores
salários, “sem olhar muito para o que iriam fazer”, como relatou uma Agente graduada
em Educação Física, ex-funcionária do Departamento da polícia federal e há seis anos
na carreira de Agente Penitenciária. Ao contrário dos agentes masculinos, não sofreram
forte influencia familiar na escolha para se tornarem agentes.
No caso de Goiás existem duas modalidades de Agentes Prisionais: os que
ingressam mediante concurso público para o qual se exige o segundo grau completo, e,
os denominados “comissionados”, que ingressam mediante indicação de autoridades e
gozam de uma experiência mais longa no trabalho como Agentes Prisionais. Possuem
nível de escolaridade, no geral, inferior ao segundo grau completo, são mais velhos,
estão na faixa de 40 e mais anos e são casados. Ao contrário dos/as concursados/
as que são mais jovens (40%), na faixa de 25 a 29 anos. Estes, em torno de 60%
são solteiros e 70% tem 2º. Grau completo. O fato de serem jovens indica que para
muitas/os esta atividade representa seu primeiro emprego com carteira assinada. Em
relação aos agentes masculinos, aproximadamente 50% apresenta alguma experiência
profissional anterior. A maioria explicitou ter alguma prática religiosa.
Entre os Agentes Prisionais jovens ingressados, via concurso público, observa-
se uma trajetória semelhante à dos Agentes Penitenciários do DF, em relação a uma
trajetória de instabilidade do vínculo empregatício, com sucessivas tentativas anteriores
de ingresso no mercado de trabalho, e com dificuldades de ordem financeira. Muito/
as foram influenciados/as por parentes e familiares a ingressar na carreira, uma vez
que 35% dos/as agentes entrevistados em Goiás têm parentes na área de segurança
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 263
pública ou militar. Além da influencia familiar houve também a atração pelo salário que,
embora inferior ao valor dos/as agentes do DF é considerado razoável para a região.
Paradoxalmente, os Agentes que ingressaram através do concurso público, são
unânimes quanto à relação estabelecida com a profissão e com tempo que pretendem
dedicar à mesma. Ou seja, pelos múltiplos riscos que a profissão oferece, insegurança
devido às condições precárias de trabalho, a superlotação das unidades Prisionais, os
salários que são baixos, todos estes elementos fazem com que a profissão seja vista
como um trabalho “temporário” ou como mais um dos tantos “bicos” realizados até
então, ainda que com carteira assinada e com estabilidade profissional.
Portanto, além de trampolim, a profissão é vista como uma garantia de
“estabilidade” econômica (não para sempre) que possibilita organizar o tempo livre
para estudar e preparar-se para um novo concurso, sobretudo para aqueles/as que já
concluíram o ensino superior.
Em relação as agentes femininas que ingressaram por concurso, 45% das
entrevistadas situam-se na faixa etária de 25 a 29 anos, 57% são casadas e 29% tem
curso superior completo, e 86% declarou ter uma religião; 43% das agentes femininas
pertencem a algum tipo de associação profissional, recreativa ou comunitária. Entre
as agentes mulheres, 45% informaram que tem algum tipo de experiência profissional
anterior, embora não relacionada com a área de segurança pública. Também, um terço
foi influenciada por familiares para ingressar na profissão. Em relação ao tempo de
carreira as agentes femininas de Goiás apresentam dois grupos distintos: um terço
está na faixa de 1 a 5 anos enquanto que o outro está na faixa de 10 a 15 anos, o que
indica a existência de duas gerações bem explícitas. Além das dificuldades já citadas,
as Agentes Prisionais percebem uma ruptura em seus estilos de vida e que alteraram
profundamente suas relações sociais.
A maioria dos/as agentes, aparenta ter uma descendência afro-brasileira, embora
essa questão não fosse diretamente mencionada pelos/as mesmas. Percebeu-se certo
constrangimento em relação à auto-nominação da cor/etnia. Em relação aos detentos,
a maioria daqueles e daquelas que lotam os presídios são descendentes de afro-
brasileiros.
264 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
uma “trilha” e a trajetória uma “construção quotidiana”, constituída pelas inúmeras
experiências dos/as trabalhadores/as, tais como os motivos que levaram à escolha
profissional, a experiência do preconceito com relação à profissão, a influência da
adesão a uma determinada moral religiosa nas interações sociais dentro do presídio,
as vivencias relativas ao primeiro dia de trabalho, as demandas do trabalho real sobre
o pano de fundo dos conhecimentos técnicos e saberes em geral, adquiridos durante o
curso de formação, as relações e interações com as pessoas detidas, as características
do estilo de gestão prisional, entre outros. Isto é, o universo material e simbólico da
instituição prisional.
A seguir, analisamos aspectos e significados considerados centrais das duas
dimensões mencionadas da profissão de agente penitenciário, a carreira e sua trajetória
profissional.
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 265
básicas: a primeira está relacionada à diferença salarial, seguida da diferença de grau
de escolaridade como um todo. Observamos, ainda, uma diferença no que diz respeito
à idade das/os entrevistadas/os, principalmente entre os Agentes do sexo masculino.
As/Os Agentes Penitenciárias/os do DF possuem dois regimes de trabalho, o
regime de plantão e o regime de expediente. Os que estão no plantão trabalham 24
(vinte e quatro) horas, seguidos de 3 (três) dias de folga. As/Os que estão no expediente
trabalham 8 (oito) horas diárias. Além disso, os plantonistas possuem muito mais
contato com as/os presas/os, se comparados as/aos Agentes do expediente. Estes
geralmente executam trabalhos burocráticos.
Após a aprovação em concurso público no DF, a/o candidata/o realiza um
curso de formação na Academia de Polícia, como policial com especialização em
segurança penitenciária. De acordo com as informações da Academia de Polícia, o
Agente Penitenciário tem as seguintes atribuições: “Vigiar os detentos e reclusos,
observando e fiscalizando o seu comportamento para prevenir quaisquer alterações
da ordem interna e impedir eventuais fugas. Efetuar rondas periódicas de acordo
com as escalas preestabelecidas. Conduzir e escoltar detentos e reclusos quando
encaminhados à Justiça, ao Instituto Médico Legal, aos Hospitais, às Delegacias e a
outros estabelecimentos. Proceder à contagem dos Internos em suas celas, realizar
revistas aos visitantes e internos. Executar outras tarefas correlatas”.
O processo de formação do/a agente penitenciário responde a informações e
aspectos técnicos, estes, relativos aos procedimentos específicos do desempenho das
tarefas e atividades. Nesse sentido as disciplinas ministradas no curso de formação
de Agente Policial no Distrito Federal são: de defesa pessoal, aulas sobre drogas,
tiro com arma de fogo, direção defensiva, entre outros. O processo educativo, isto
é, aquele destinado ao qualificar os agentes, é mais escasso e está concentrado em
oferecer a disciplina dos direitos humanos. Resta indagar em que medida o ensino
dos direitos humanos responde também a uma necessidade internamente percebida
pela categoria ou trata-se de uma exigência formal dos novos currículos de formação
destes agentes?
As/Os Agentes Penitenciárias/os são instruídos a tratar os presos com urbanidade
e respeito, evitando ao máximo qualquer tipo de envolvimento emocional, ou de
estabelecer qualquer tipo de vínculo. Existe uma grande diferença entre o aprendizado
teórico na academia e a atividade prática na Penitenciária, de forma que as/os
Agentes aprendem os detalhes do trabalho no dia a dia, observando as ações dos mais
experientes.
O curso de formação para Agente Penitenciário de acordo com as/os entrevistadas/
os do DF e Goiás foi avaliado como sendo muito curto. Em especial no caso de Goiás,
há relatos que informam que o curso foi de apenas um mês, contribuindo muito pouco
para as atividades práticas. Com o agravante de que os agentes de Goiás ingressam
na carreira com escolaridade média. Além disso, poucos professores mantinham
contato atualizado com o Sistema Prisional, de maneira que não acompanhavam as
mudanças inerentes a esse tipo de instituição, especialmente em Goiás. Um elemento
mencionado pelo conjunto dos/as agentes, diz respeito a distancia entre o ensino
teórico e o trabalho cotidiano no presídio, uma vez que o trabalho prático é aprendido
mediante a observação das/os colegas de profissão mais antigas/os e de seus conselhos
e orientações.
266 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
O curso de formação, na visão de alguns/as Agentes, poderia melhorar no
sentido de atualizar-se para poder acompanhar as transformações que ocorrem no
Sistema Penitenciário, assim como com a mudança e complexidade relativa aos delitos
e a criminalidade. A penitenciária está sempre em mutação, na medida em que há
uma condição de imprevisibilidade relativa ao comportamento humano e, portanto
sempre há novas situações a serem enfrentadas, por um lado, e por outro, mesmo que
houvesse a possibilidade de um processo de formação continuada, ainda assim não
seria suficiente.
O fato de a/o aprovada/o no concurso de Agente Penitenciária/o no DF entrar
para a Academia de Polícia como policial civil, para depois especializar-se em segurança
penitenciária acaba definindo características mais militares, como a disciplina, a ordem,
a hierarquia e a segurança, no trabalho do Agente brasiliense, ou seja, enquanto os/
as brasilienses possuem treinamento policial, os Agentes Prisionais goianos possuem
pouco treinamento policial e se reconhecem como funcionários públicos e educadores.
Essa diferença de procedimento é observada na duração dos cursos de formação de
cada sistema: enquanto os Agentes brasilienses passam de 3 a 6 meses na Academia
de Polícia, os Agentes goianos tiveram de 10 a 15 dias de aulas no curso formação.
Portanto, pode observar-se que existem duas modalidades de carreira de agente
penitenciário: o policial civil na condição de agente penitenciário no DF e o civil
na condição de agente prisional em Goiás. Em relação aos primeiros, destaca-se o
reconhecimento do status profissional, o que lhe garante um salário maior; segundo,
como estes agentes possuem nível de escolaridade superior, isso lhes garante um
exercício legítimo da autoridade. Isto significa que são considerados com status
profissional mais reconhecido. Em quanto que os agentes de Goiás sofrem de certa
ambigüidade profissional uma vez que sem ser policiais, isto é, sem pertencer a uma
corporação policial cujo ethos está centrado em valores tais como: hierarquia, disciplina
e respeito, aqueles agentes no exercício de suas funções, devem, por conta das exigências
do trabalho, agir como se fossem policias, embora, na prática eles/as careçam dessa
socialização, o que os leva a agir segundo suas próprias convicções e valores, cujas
conseqüências podem desencadear maior espaço de discricionariedade.
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 267
o mundo e a si mesmo. Essa atividade tem conteúdo (tarefas, atividades, processos)
objeto, instrumentos, tempo, sendo realizada a partir da divisão técnica, sexual e
social, tendo diferentes significados para quem a realiza. Assim, o trabalho humano
se expressão nas dimensões objetiva e subjetiva (Soria Batista, 2002).
O motivo a orientar a escolha profissional no caso dos agentes penitenciários,
(originários pelo comum de famílias de classe média e classe média baixa: funcionários
públicos, pequenos comerciantes, trabalhadores rurais ou da iniciativa privada, entre
outros), é o emprego, suas condições de segurança (estabilidade, aposentadoria, etc.).
Nesse sentido, os/as agentes não podem ser considerados fora da lógica que guia a
escolha profissional do restante dos servidores públicos brasileiros. Contudo, no caso
dos/as agentes, identificamos a experiência de uma tensão entre essa motivação e a
estigmatização de que é alvo o trabalho propriamente dito. Nesse caso, o status de
cidadão e o sentimento de dignidade que esse confere vêem-se “ameaçados” pelas
exigências reais do trabalho, relativas ao contexto prisional, que são socialmente
desvalorizadas. No raro, a sua escolha profissional lhes exigirá lidar também com a
preocupação e o medo por parte dos familiares e amigos.
A falta de reconhecimento social do trabalho nos presídios influencia na
produção de discursos justificadores com relação à escolha realizada, tais como
aqueles que afirmam ser a profissão de agente penitenciário uma etapa transitória na
vida profissional, uma passagem de estabilidade (emprego) e desconforto (trabalho)
para um emprego público caracterizado também pelo status positivo do trabalho que
lhes será exigido, isto é, pelo reconhecimento social.
Em verdade, a paz no presídio que poderia ser considerada como resultado de
um trabalho bem feito, não raro desperta suspeita com relação aos métodos utilizados
para conseguir esse objetivo; já a “guerra interna” e seus desdobramentos para fora do
mundo carcerário, são, do ponto de vista da sociedade, indicativo da incompetência
dos agentes. De modo que no interior da categoria como defesa na luta contra a
estigmatização e a vergonha atribuída de maneira impiedosa pela coletividade.
Em sínteses, a condição de cidadão relativa ao vínculo de emprego formal é afetada
pela falta de reconhecimento social do ponto de vista da sua condição profissional.
É seguramente, o primeiro dia de trabalho que irá revelar para este/a profissional,
de maneira mais evidente, essa tensão que o perseguira durante toda sua trajetória
profissional: os aspectos positivos do emprego, manifestos na proteção e no status de
cidadão do ponto de vista sócio – econômico, e os aspectos negativos do trabalho, que
socialmente não é valorizado. Este temor inicial é relativo às representações sociais
negativas sobre a prisão, mas o trabalho na instituição parece mudar essa experiência
inicial negativa.
No entanto, na luta pela construção de uma identidade positiva a pesar da
atribuição identitária negativa da sociedade7, os/as agentes, enquanto categoria produz
seus próprios motivos para se orgulharem enquanto trabalhadores/as, por exemplo,
uma trajetória sem máculas do ponto de vista individual, caracterizada pela ausência
de suspeições ou acusações vindas da sociedade a qual servem. Para muitos/as, o dia
exato da aposentadoria é aguardado com ansiedade, pois uma trajetória socialmente
268 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
inquestionável pode vir a ser destruída, em um segundo, por motivo de alguma crise
no presídio, comprometendo-os /as em alguma ação que possa ser posteriormente
questionada pela sociedade.
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 269
a imprevisibilidade do comportamento dos detentos que cria esse espaço que se traduz
numa exigência de autonomia para o agente. Essa autonomia precisa da contenção de
um parâmetro ético claro, para regular o uso da força que a situação pode demandar
utilizar, sem que as ações dos agentes para colocar sob controle as pessoas presas, sob
determinadas situações críticas, se desdobrem em violências desnecessárias.
A dimensão da autonomia no trabalho tem sido analisada de maneira muito
positiva na literatura sobre os aspectos psico-sociais do trabalho nas organizações,
na medida em que o/a trabalhador/a teria uma margem de liberdade para decidir
e controlar seu próprio trabalho, diferente da situação clássica caracterizada pelo
predomínio da dimensão prescritiva do trabalho que cerceia a liberdade do trabalhador.
Contudo, no caso dos agentes, a discricionariedade se transforma numa exigência que
cria conflitos na medida em que pode exigir tomar decisões mais ou menos pessoais
e imediatas sobre como agir sob condições inesperadas. Os reclamos sobre a distancia
que existe entre os conhecimentos e saberes ministrados no curso de formação e
as necessidades reais do trabalho no presídio é, efetivamente o espaço criado pelo
inesperado, chamado de discricionariedade, que lhe exige a escolha de procedimentos
adequados. Isso indica a necessidade de contar com algum tipo de parâmetro tanto
técnico quanto ético para agir.
Caso ele não manifeste capacidade de agir no enfrentamento do inesperado
será cobrado duplamente: pela hierarquia da corporação e pela sociedade. A primeira
o acusará de incompetência e de omissão no cumprimento de seu desempenho
profissional; a sociedade o acusará de falta de iniciativa ou até alguns não hesitaram
de chamá-lo de “covarde”.
Observa-se que há uma adesão à religiosidade significativa entre os agentes. A
adesão à religiosidade pode influenciar o trabalho realizado pelas/os Agentes na prisão?
O espaço de autonomia/discricionariedade do agente precisa ser “auto-alimentado” por
valores morais que possam servir de parâmetros em face das demandas inesperadas
do trabalho com os internos.
A pesquisa indicou que, da perspectiva dos/as Agentes, as crenças religiosas
têm influência na visão que se tem das/os internas/os e por essa via, nas interações
sociais ao interior do presídio. Quando essa religiosidade está ausente ou não é
experimentada de maneira mais profunda, prevalecem outras visões institucionais
sobre as/os internas/os, em geral, influenciadas pelas exigências do tipo de trabalho
que o Agente realiza junto ao interno e pelas experiências vividas nesse ambiente.
É evidente que os/as Agentes comungam com uma série de discursos sobre
os/as internos/as. Esses discursos “produzem” as/os internas/os, sujeitando-as/os à
determinadas definições. Existem os discursos institucionais sobre as/os detentos, que
são compartilhados por um número significativo de Agentes e outros discursos mais
atrelados à moral oriunda da religiosidade de cada Agente.
Desse modo, do ponto de vista doa/as Agentes, o/a interna/o pode ser um/uma
pecadora/r que precisa de arrependimento e compaixão ou alguém que “tem o destino
dele”, precisando passar por essa situação. Para outras/os Agentes, a/o interna/o é
alguém que tem uma “influência maligna” em sua vida. Entre outros, esses modos
de compreender a situação de encarceramento acabam tendo impacto nas interações
entre Agentes e internas/os no dia-a-dia, “conspirando” a favor ou contra a política
institucional de reintegração da/o interna/o à sociedade.
270 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
Evidentemente, as representações sobre os internos orientadas pela prática
moral religiosa podem oferecer o cenário sobre o qual os agentes decidem sobre como
agir em situações críticas ou inesperadas com relação os detentos. Em situações de
enfrentamento ou de conflitos onde as ordens e os procedimentos conhecidos e as
hierarquias estão difusas só resta o agente agir, e este o fará, seguramente, com base
nos seus próprios parâmetros morais, sobretudo se a ética profissional (deontologia)
está pulverizada.
Portanto a discricionariedade não diz respeito, exclusivamente, a condição de
autonomia do agente como um elemento de sua mais plena liberdade e racionalidade.
Na verdade, essa discricionariedade é um espaço vivenciado de maneira conflitiva
pelo agente, não uma escolha individual mais uma imposição da própria lógica do
trabalho que lhe exige ser e comportar-se como uma pessoa autônoma: sem omissões
e sem excessos.
Até que ponto a adesão a práticas religiosas – mais ou menos fundamentalistas-,
permitem o/a agente penitenciário/a agir efetivamente “sem omissões e sem excessos”
isto é, profissionalmente e com humanidade? A partir das entrevistas realizadas
observou-se que nem sempre as práticas religiosas garantem essa forma de agir. Ao
contrário, encontramos relatos de uso da força, da violência e a tortura, justificados
pela própria convicção moral internalizada. Um exemplo contundente é que um
número significativo dos agentes entrevistados mostra-se favorável à pena de morte.
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 271
gestão prisional. Até porque a administração do presídio pode vir a se caracterizar pela
presença de diferentes estilos, característicos ao próprio administrador. Na situação de
Goiás a orientação mais geral sobre a importância do respeito aos direitos humanos no
presídio foi acompanhada pelo estabelecimento de uma perspectiva de gestão prisional
baseada no objetivo da pacificação das relações e interações sociais entre os diferentes
atores. Isso não significa que essa perspectiva pacificadora seja um desdobramento
apenas, da orientação humanizadora do presídio. Até porque se observou que são
diversos os fatores que permitem compreender a adoção dessa estratégia de gestão. As
diferencias se evidenciam para DF e para Goiás. No primeiro a orientação mais geral
sobre o respeito ao detento foi acompanhada por um endurecimento das estratégias
de controle dentro do presídio, em função de uma racionalidade material e de poder
assegurada pelo pertencimento a uma corporação. Enquanto que em Goiás manteve-
se a diretriz com relação a utilizar estratégias diversas e não apenas disciplinadoras,
para garantir a paz dentro do presídio.
Essa gestão prisional diversificada acaba sendo observada de maneira diferente
pelas pessoas presas. No caso do DF, a relação entre internos e agentes é baseada na
desconfiança, no disciplinamento e no distanciamento, mais do que isso, trata-se de
um relacionamento entre “inimigos”, detentos e agentes. Isso significa que o objetivo
do disciplinamento se obtém sobre a base da iniciativa dos agentes do estado, pelo
controle sistemático, o cumprimento rigoroso das rotinas, por um espaço físico mais
ordenado e por uma vigilância constante e uma inteligência prisional a serviço da
segurança.
No caso de Goiás, embora exista desconfiança o distanciamento entre os agentes
e os detentos, isso é menos evidente e o disciplinamento é trocado por acordos que
se materializam em compensações materiais e simbólicas para ambos, agentes e
detentos. Ou seja, a paz dentro do presídio resulta de uma serie de acordos entre
os atores centrais destinados a evitar os episódios comuns, tais como fugas, mortes,
brigas, etc, que se vem a tona e desacreditam a instituição prisional.
Um elemento reiteradamente apontado para o caso do DF é o “endurecimento”
da política de segurança na unidade estudada. A pesquisa apontou uma ruptura na
gestão prisional nos últimos anos da década de 90, que indica um antes e um depois
nessa gestão.
Segundo depoimentos dos/as Agentes mais antigos, antes a unidade tinha
praticamente os mesmos problemas que outros presídios do DF: demasiadas regalias
para os internos, indisciplinas, organizações internas na forma de comandos. Quando
uma nova gestão teve início, uma série de regalias teria sido eliminada, como as
visitas os finais de semana, que agora acontecem durante a semana, a possibilidade de
armar barracas nos pátios da unidade durante o período de visitas, onde seguramente
aconteciam os encontros íntimos, a organização coletiva dos presos. Em Goiás a
organização de comandos de alas é observada como um elemento que pode, embora
de maneira contraditória, contribuir para a pacificação dentro do presídio. Em Brasília,
essas organizações são apontadas como o germe da violência dentro do presídio, sendo
sistematicamente combatidas.
Assim, o estudo apontou para a presença de dois tipos de políticas de segurança
nas penitenciárias analisadas. O primeiro corresponde ao adotado na penitenciária
masculina do DF e que decidimos denominar como: tipo de segurança baseada na
272 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
iniciativa do Estado sem participação dos internos. O segundo, está presente na Agência
Prisional de Goiás, denominado tipo de segurança baseada na iniciativa do Estado com
participação dos internos.
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 273
interna da direção da instituição. Ainda a indeterminação das funções se manifesta
pela variedade das atividades que são desempenhadas pelos/as agentes. Um/a agente
pode, em um mesmo mês desempenhar muitas funções, no interior da prisão desde
exercer a guarda dos presos, supervisionar as celas, como até ser deslocado para os
trabalhos administrativos ou mesmo ser transferido para supervisionar as oficinas
ou para algum outro posto fixo. Vale dizer que muitos acabam não passando bem de
trabalhar diretamente ligado aos presos, sobretudo os/as agentes mais jovens.
As agentes femininas não trabalham no interior da prisão masculina, pois a
condição de ser mulher as remete ao trabalho externo, seja de natureza administrativa,
seja de guarda na entrada da prisão e de revista das visitas femininas e dos postos
de controle (mirador). Esta variedade de funções atesta a necessidade de que o/a
agente acaba desenvolvendo qualificações variadas e universais. Também não há,
necessariamente, a consideração de um vínculo entre a formação do/a agente e seu
desempenho profissional, pois aquele/a que é formado/a em educação física ou
em pedagogia, por exemplo, não necessariamente, estará desenvolvendo atividades
relacionadas a sua formação com os detentos/as. Evidencia-se assim a necessidade de
uma densa capacidade de adaptação por parte dos/as agentes, a cada nova função, a
cada novo diretor, a cada nova mudança de horários, etc. Não existe uma deontologia
profissional comum estabelecida, do ponto de vista de que suas prescrições definem
atribuições específicas contidas em uma lei.
O regulamento rege que os/as agentes devem ser extremamente rigorosos/as
com os/as detentos/as não possibilitando qualquer tipo de aproximação. Na realidade,
nem sempre funciona assim. Devem conhecer de cor todas as suas responsabilidades
relativas as condições de segurança ( consignes de securité).
Do ponto de vista da gestão do tempo carcerário, há uma dupla situação: individual
e coletiva, pois, a gestão do tempo carcerário se constitui no princípio dominante da
organização do trabalho na prisão, areticulando-se a gestão dos “movimentos” ou das
“mobilidades” dos/as presos no interior dos espaços carcerários. Em outras palavras,
a regulamentação do tempo e do espaço, em efeito, é ordenada em função do conceito
fundamental de movimento.
O movimento dos/as detentos/as organiza a divisão de trabalho entre os/as
agentes penitenciários e os demais funcionários das prisões. Em outras palavras, a
movimentação dos/as detentos/as mobiliza o conjunto de todos/as os/as funcionários/
as da prisão, desde a sucessão de tarefas de controle e de atendimento a serem
realizadas durante o dia, os/as detentos é quem delimitam o tempo gasto nas diversas
tarefas dos/as agentes (da saída das células, do banho de sol, das refeições, da ida ao
médico/enfermaria ou psicólogo, a escola, as oficinas, do esporte, no grupo religioso,
etc). Assim, o movimento, princípio central da organização das atividades dos/as
detentos/as e das tarefas dos/as agentes, está na centralidade da lógica da organização
burocrática da prisão. Pois, organiza o ritmo de trabalho de cada um, sincronizando,
o de todos na mesma seqüência temporal.
274 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
assegurar a guarda dos/as detentos/as e de preservar sua segurança no interior da
organização prisional”, afirmaram alguns. A idéia de Segurança Pública – prescrição
conhecida que está em lugar privilegiado nos manuais, assim como na cabeça dos/
as agentes, constitui-se na espinha dorsal da instrumentalização das atividades. O
fracasso manifesto nesta função é a rebelião dos/as prisioneiros/as. Assim, os postos
de trabalho são hierarquizados pela ordem de responsabilidades que cabem a cada um
dos/as agentes, em função do controle da segurança.
Um outro indicador de garantia da função de segurança é a estrutura hierárquica
paramilitar que predomina nas prisões estudadas, sobretudo no DF, cuja característica
principal é de controle de possíveis crises ou de rebeliões. Ou seja, como nos afirmou
um agente, em caso de crise há uma hierarquia organizacional que é capaz de mobilizar
em pouco tempo o maior contingente de membros da organização. A instituição
prisional, a semelhança de outras organizações como a polícia, o exército e o corpo de
bombeiros, compartilha algumas características do tipo: uma disciplina individual e
coletiva acentuada e rígida, a disponibilidade e a mobilidade dos/as agentes, em tempo
real. Tais características possibilitam que os/as agentes possam ser interpelados/as a
qualquer momento, independentemente de estarem fora de seu horário de trabalho
formal. Por sua vez, tal disponibilidade torna possível a troca e a substituição de
funções, o que acarreta mais uma dificuldade em relação à condição de especialização
da função de agente. Em relação à disciplina, exige um controle tanto dos/as agentes
quanto dos/as detentos, isto é de parte a parte (Chauvenet et al.1994).
É a segurança que define o conteúdo da função delegada ao agente. É fundada
sobre o olhar. Visualizar de uma só vez o conjunto das celas de um andar, ou dos/
as prisioneiros/as no pátio. Abrir e fechar celas, acompanhar a chegada e a saída de
presos/as. Outra tarefa é o controle do efetivo, isto é, de saber onde se encontram
os/as presos sob sua responsabilidade de guarda direta, não importando o que ele/a
esteja fazendo, no momento. A segurança do olhar se relaciona a segurança da escuta,
isto é, das rondas, da escuta de ruídos, barulhos estranhos tudo passa a ser motivo de
vigilância e de segurança. Esta necessidade de olhar acaba desenvolvendo no/a agente
uma capacidade/habilidade própria de observação muito aguçada que é completamente
diferenciada das pessoas externas à prisão. A agilidade, a mobilidade, a rapidez do
olhar, um “dom da obliqüidade’, assim como de uma sensibilidade auditiva aguçada
fazem do/a agente um/a pessoa com “qualificações típicas” e exclusivas de sua
profissão, pois lhe permitem prever e, consequentemente, prevenir incidentes futuros.
Tais qualificações não os abandonam quando estão vivendo fora de seu trabalho.
Outro aspecto de perturbação para o/a agente pode ser o excessivo silêncio que
pode predominar entre os presos/as, é considerado anormal, pois, segundo os/As
agentes é indicativo de que algo negativo poderá vir a acontecer, uma tensão inabitual,
uma excitação anormal, uma tentativa de fuga que se anuncia. Nestas situações,
mais explicitamente, a segurança proporcionada pelos/as agentes penitenciários deve
garantir, tanto a ordem no interior da prisão (brigas, disputas, acerto de contas entre
membros de gangues entre os/as próprios/as internos/as, e também a prevenção de
suicídio do/a detento/a), como, a missão mais global de proteção da sociedade.
Há centralização da autoridade e circulação rápida e eficaz das informações,
pois tudo se relaciona com a direção do presídio. Os/as agentes dispõem menos
de autonomia em relação as suas atividades, pois tudo depende das ordens e das
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 275
consignes dadas a cada novo. A pesquisa apontou existir uma relação entre a atividade
de trabalho realizada pelas/os Agentes junto às/aos internas/os e as representações
que estas/es têm sobre estas/es detentas/os. As/Os Agentes que lidam com atividades
de segurança tendem a representar a/o interna/o como inimiga/o. E os que assistem
as/os internas/os no dia-a -dia, no caso de Brasília os Chefes de Pátio, como crianças
que reclamam muito.
No DF, o trabalho de segurança junto às/aos internas/os é organizado com base
em regras e procedimentos que conduzem a uma rotinização do trabalho. Essa pode
constituir-se em uma armadilha para as/os Agentes, na medida em que a mecanização
dos gestos pode atrapalhar a atenção, considerada sempre necessária no ambiente
prisional. As principais atividades diárias realizadas junto às/aos detentos são: tirar
as/os detentos das celas para o banho de sol, promover o recolhimento e realizar o
confere. Outra atividade, não necessariamente quotidiana, é a revista às/aos detentas/
os. A precaução que “deve” acompanhar estas atividades permite entender o fato das/
os internos serem representados como inimigas/os e sociopatas.
Se por um lado, discursivamente, exige-se da/o Agente a imparcialidade com
relação ao tratamento dado à/ao interna/o, aconselhando evitar conhecer os crimes por
eles cometidos, de um outro, essa “massa carcerária” é representada como “perigosa”,
independentemente do crime cometido. A periculosidade seria a característica de
todos e qualquer interno.
Na visão das/os Agentes que cuidam da segurança, o importante é evitar ser
surpreendido pelos acontecimentos, indicando a presença de uma visão sobre a/o
interna/o como alguém que está constantemente pensando em construir armadilhas.
A pesquisa apontou que a segurança, considerada nas Unidades estudadas como
uma atividade tipicamente masculina aparece construída sobre uma tripla exigência para
a/o Agente, com relação às/aos internas/os: vigiar, desconfiar e controlar (Chauvenet
et al.1994). Como indicado, essa tripla exigência desenha relações e interações sociais
extremamente complexas do ponto de vista da gestão quotidiana do trabalho, nos seus
aspectos materiais e simbólicos, perpassando o conjunto das atividades de trabalho que
se desempenham em contanto direto com as/os internas/os. De fato, esse tripé aparece
associado, principalmente, a duas representações sociais que as/os Agentes têm sobre
as/os internas/os: a/o interna/o como inimigo e a/o interna/o como psicopata ou
sociopata. As práticas relativas à vigilância, desconfiança e controle seriam orientadas
por essas representações sociais das/os Agentes sobre as/os internas/os. Esse “saber”
institucional sobre as/os internas/os, opera justificando essas práticas e tornando
absoluto o interesse pela segurança dentro do presídio, estabelecendo uma contradição
entre as ações relativas à política de segurança e as ações relativas à política de
reintegração social da/o interna/o controlar (Chauvenet et al.1994).
Há a prisão da/o interna/o é há a prisão da/o Agente. A prisão da/o Agente
que cuida da segurança, na Unidade penitenciária masculina analisada em Brasília
parece estar aderida à lógica do trabalho que realiza. A organização do trabalho é
rotineira, exigindo gestos e procedimentos repetitivos que acabarão construindo para
a/o Agente a prisão do automatismo. A automatização que permitiria liberar a mente
para “outros vôos”, no caso da realização de outros trabalhos igualmente repetitivos,
é geradora de uma armadilha no contexto do trabalho da/o Agente. Percebem as/
os Agentes que a perda da atenção relativa à cadência do automatismo poderá ser
276 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
advertida “pela lente” das/os internas/os, que tentarão se aproveitar desse momento
para desafiar a autoridade.
As/Os Agentes consideram o próprio trabalho como rotineiro. É o trabalho
definido como “manusear com a/o detenta/o”, ter contato físico e visual com o preso,
isto é, tocar com as mãos e percorrer com os olhos o corpo da/o interna/o, trabalho
considerado perigoso. Nos labirintos simbólicos do presídio as experiências são vividas
de maneira contraditória. De fato, a/o interna/o é construído pela/o Agente como
alguém que está permanentemente “maquinando” para conseguir fugir do presídio,
isto é, pensando em como construir ciladas para distrair a atenção dos guardas. Essa
representação sobre a/o interna/o estabelece o parâmetro da desconfiança como
uma alavanca do trabalho de segurança: vigiar, desconfiar e controlar. Para fugir da
rotinização do trabalho e de seus perigos iminentes, as/os Agentes implementam uma
diversidade de estratégias.
Foucault (2000) analisa a lógica arquitetônica do Panopticom8 (definido
inicialmente por Jeremy Bentaham) destinada ao controle visual e permanente dos
internos. Na análise do poder indica que o poder deve ser analisado como algo que
funciona em cadeia, não está localizado aqui ou ali, nem está nas mãos de alguns.
O poder não é um bem, mas é algo que se exerce em rede, e nessa rede todos os
indivíduos circulam, sendo que qualquer um pode estar em posição de ser submetido
ao poder, mas também de exercê-lo.
A experiência das/os Agentes estudados indica a presença de a dimensão especular
do controle. A pesquisa apontou que as/os Agentes percebem que estão sendo vigiadas/
os pelas/os próprias/os internas/os, experimentando que seus comportamentos são
permanentemente submetidos à uma meticulosa avaliação. Nas percepções destas/es
Agentes a “lente” dos considerados “inimigos” parece transcender o plano objetivo do
próprio comportamento, perscrutando a gestualidade sustentada pelos sentimentos
e as emoções, complexidades lidas e interpretadas pelas/os internas/os à luz do que
realmente interessa: as potenciais fragilidades das/os Agentes Penitenciárias/os. Na
visão destes últimos, são essas fragilidades que poderão indicar para as/os internas/
os o caminho da fuga e da liberdade.
Observou-se que a relação com o “outro”, denominado pelas/os Agentes de
“interno”, é dinamizada pelo significado de “inimigo”. Por isso, as relações e interações
sociais podem aparecer dominadas por uma espécie de “lógica de guerra” permanente,
indicativa de uma cultura do conflito. Essa “guerra” se processa bem menos em
ações espetaculares e muito mais na forma de uma luta silenciosa caracterizada por
constantes e insidiosas escaramuças. O território onde essa “guerra” torna-se possível
8 Foucault, (2000), aponta que o Panopticon era um edifício em forma de anel, com um pátio no
meio do qual havia uma torre central, com um vigi-lante. Esse anel dividia-se em pequenas celas que
davam tanto para o interior quanto para o exterior, permitindo que o olhar do vigilante as atravessasse.
Essa forma arquitetônica das instituições valia para as escolas, hospitais, prisões, fábricas, hospícios.
Tratava-se de um espaço fechado, recortado e vigiado em todos os seus pontos. Nele os indivíduos
estavam inseridos num lugar fixo, com os menores movimentos e acontecimentos controlados. O poder
era exercido segundo uma figura hierárquica contínua, no qual cada um podia ser constantemente
localizado, examinado e distribuído. Nessa perspectiva, a forma de poder exercida no panoptismo
repousou, sobretudo no exame. O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção
que normaliza. É um controle normalizante,uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir.
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 277
é literalmente ocupado pelas/os detentas/os; trata-se do pátio e da cela. Segundo as/
os Agentes, sob determinadas circunstâncias, esses territórios podem transformar-se
em verdadeiras armadilhas, sendo observados como recintos perigosos.
A iminência desse perigo pode ser destruída sistematicamente por revistas
surpresas que pretendem restaurar a ordem supostamente sob ameaça. As vezes estas
revistas acontecem por simples rotina, outras, devido a algum tipo de denúncia. Estas
se originam das/os próprias/os internas/os ou pela via dos familiares, e podem estar
mascarando vinganças interpessoais ou desafios entre quadrilhas ou grupos rivais dentro
da prisão. Essas irrupções restabelecem o princípio da ordem através da desorganização
do dia-a-dia das/os internas/os, destruição que acabará revelando o que teima em
permanecer oculto, pondo o cotidiano das/os internas/os de maneira impiedosa
nas “lentes do poder”. È por isso que a entrada no território do “inimigo” é bastante
escandalosa, acompanhada de gritaria, de comandos verbais e de cachorros latindo.
As/Os internas/os ficam confusos e aturdidos, prontos para “revelar” os indícios das
práticas e comportamentos transgressores. A nudez que será exigida poderá constituir-
se na ante-sala de todas as revelações possíveis, voluntárias e/ou forçadas.
Eis aqui um elemento que permite compreender a contradição que pode se
estabelecer nas prisões entre a lógica da segurança e a lógica da reintegração da/o
interna/o, ambos os presentes no plano formal da LEP9 e no conjunto das práticas
sociais que caracterizam estas instituições. Parece evidente que os projetos dirigidos
à reintegração das/os detentas/os precisam ser gestionados por funcionários que
efetivamente comunguem com “fantasias de resgate” das/os internas/os. Mas, na
Unidade estudada, percebe-se um discurso quase psiquiátrico sobre as/os internos,
que lhes atribui poderes ancorados numa espécie de hiper-racionalidade que agiria
como uma arma mortal sobre aqueles Agentes mais humanos, crédulos e, quem sabe,
frágeis emocionalmente, isto é, capazes de se comover.
A armadilha do trabalho rotineiro reside em sua própria natureza. “A rotina
engole”, expressão utilizada pelas/os Agentes entrevistadas/os, pode significar “A
rotina devora, consome“. A rotina pode subverter a ordem das coisas, na medida em
que o próprio trabalho pode constituir-se em armadilha. Os procedimentos, os gestos,
os movimentos realizados quotidianamente na função que desempenham levam a
cadência e repetição mecânica. É a mecanização do gesto que pode denunciar para
um observador atento um déficit de atenção. Isso significa que o trabalho traduz uma
contradição: de um lado, a busca de segurança, calcada em procedimentos reiterados
da maneira o mais perfeita possível; e de um outro a rotinização/mecanização que
pode causar um déficit de atenção e conduzir à fragilização. Para as/os Agentes,
as/os internas/os seriam as/os primeiras/os beneficiárias/os da fragilização das/os
Agentes, e as/os primeiras/os a perceber, nos bastidores de um trabalho de rotina, o
esmorecimento de quem o realiza.
A rotinização do trabalho que poderia levar a um maior controle sobre o mesmo
aparece como uma ameaça surgida do mandato técnico. É a organização do trabalho
da/o Agente que invoca a rotinização dos gestos e dos movimentos, sendo essa mesma
organização técnica que lhe consome a atenção que lhe permitiria ficar alerta para
enfrentar qualquer imprevisto.
278 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
c) A divisão sexual do trabalho nas unidades estudadas
A repartição ou a distribuição das mulheres e dos homens por atividades, com
papéis sexuais específicos e com prerrogativas pré-definidas é, provavelmente, uma
das mais antigas clivagens construídas entre os sexos no mundo do trabalho. Nas
instituições Prisionais da sociedade contemporânea permanece, ainda que de forma
mais atenuada, essa divisão tradicional do trabalho entre os Agentes Penitenciários
homens e as Agentes Penitenciárias mulheres. Levando em consideração que o
conceito de divisão sexual do trabalho utilizado é o de Kergoat, tomamos por esta
divisão a idéia de que “é pré-existente como noção, mas posterior como problemática”
(Kergoat, 1992: 16).
As sociedades modernas instauraram uma separação entre duas esferas de
atividades: a da mercadoria, do trabalho e das atividades ditas “sociais” e a do privado,
e mais particularmente, da família e das atividades ditas “naturais”. Nessa divisão tem
presença uma ordem social que inscreve as mulheres no espaço doméstico/privado e
os homens no espaço dos negócios, público. Essa divisão, instalada desde o período
colonial-escravocrata no Brasil, atribuiu um conteúdo, e mais ainda, um estatuto
diferenciado ao trabalho dos homens e das mulheres. Como se observará mais adiante
isto também acontece nas prisões.
À noção moderna de trabalho está associada à idéia de valor, que se tornou
central. O trabalho sendo um produtor de valor deve ser medido e avaliado. Torna-se
assim uma mercadoria como qualquer outra. A noção de trabalho doravante define
aquilo que se vende e que se compra no mercado: o mercado de trabalho. Ao mesmo
tempo, as atividades de produção de bens e de serviços que não transitam pelo mercado
de trabalho, pois estão excluídas em termos da definição de trabalho, são consideradas
desprovidas de valor. Em outras palavras, elas não têm valor. Isto caracteriza em parte
a desvalorização do trabalho da Agente Penitenciária.
Portanto, o trabalho como fator de produção tornou-se o referente da concepção e
da organização da sociedade. Assim o trabalho-mercadoria passa a ser o “fundamento”
da relação social e conseqüentemente da cidadania. As transformações institucionais
que se instalaram com o processo de divisão social do trabalho revelam uma ordem
social que comporta uma “ordem de sexo” de classificar e hierarquizar os componentes
sociais deste processo – daí a divisão sexual do trabalho estabelecida.
Não é o produto ou o serviço que distingue o trabalho doméstico e sua definição
mercantil de trabalho, mas a natureza da relação ou do estatuto sob o qual é realizado10.
Segundo Hirata (2002), a conceitualização da divisão sexual do trabalho, em termos
da relação social, baseia-se na idéia de uma relação antagônica, oposta, entre homens
e mulheres. A divisão sexual do trabalho é considerada um aspecto da divisão social
do trabalho e nela a dimensão opressão/exploração está fortemente contida. Essa
divisão sexual e técnica é acompanhada de uma hierarquia clara do ponto de vista
das relações sexuadas de poder, o que se expressa nas relações de trabalho entre as
Agentes e os Agentes.
Em entrevista com o então Chefe das/os Agentes Penitenciárias/os do CIR-DF,
10 Por exemplo: fritar um bife em um restaurante ou para a família. No primeiro caso, a pessoa
desenvolve suas competências no contexto de um contrato de trabalho. No segundo, sob o estatuto de
esposa(o) ou de parente. Não se trata mais de um trabalho, mas de uma tarefa.
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 279
foi-nos dito que as mulheres, preferencialmente, trabalham nos cargos burocráticos
do presídio. Assim, a maioria das mulheres sequer chega a sair do prédio onde fica a
administração e adentrar o mundo dos internos.
Como podemos observar, efetivamente os trabalhos em pátio e de escolta são
feitos majoritariamente pelos Agentes homens enquanto que as mulheres se mantêm
nas funções de escriturária, relatora, serviço social e outras funções administrativas.
Algo interessante a ser destacado é que alguns Agentes Penitenciários homens
chegaram a citar que algumas mulheres sabem desta “facilidade” do trabalho que
é destinado à elas na penitenciária. E, por isso, algumas entrariam na profissão já
sabendo que sua função teria menos perigo e/ou mais segurança que a da maior parte
dos homens que trabalham no presídio.
Outro fato importante é que as próprias mulheres, segundo descrição de um
entrevistado do CIR-DF pedem para assumir estes cargos administrativos e não entrar
em contato com os internos.
Embora com expressões e modalidades diferenciadas – no tempo e nos lugares
–, a divisão sexual do trabalho encontra-se nas Instituições Prisionais e é, no geral,
estruturada em função de um princípio hierárquico: o trabalho masculino tem sempre
valor superior ao trabalho feminino (Kergoat, 1992). Portanto, vale dizer que a divisão
sexual do trabalho é sempre indissociável das relações sociais entre homens e mulheres,
que são relações desiguais, hierarquizadas, assimétricas e antagônicas. Relações de
opressão e de exploração entre duas categorias de sexo socialmente construídas. Tão
forte é tal opressão que hoje se encontra quase que inquestionavelmente, enraizada
nos valores sociais, tanto de homens quanto de mulheres, que reproduzem essa lógica
diariamente, como vimos acima nos relatos que apontam as Agentes Penitenciárias
como prisioneiras dessa mesma lógica. Essa teoria da divisão sexual do trabalho
constitui-se como alternativa aos paradigmas sociológicos que não levam em
consideração a “sexualização” do social.
Alguns teóricos chegaram a acreditar que, como por encantamento, com o fim
do taylorismo, por suposto, se colocaria fim aos sofrimentos físicos que acompanham
a/o trabalhadora/o. Erro duplo: não só porque o taylorismo não desapareceu, mas
porque nessa fase/momento desloca a responsabilidade da organização da produção
sobre ombros das/os próprias/os trabalhadoras/es, onde as novas formas de trabalho
se revelam, particularmente, estressantes (Hirata, 2002).
As/Os trabalhadoras/es, em geral, se queixam da quantidade de tarefas, do escasso
tempo disponível para ser realizada uma atividade, de receber ordens contraditórias, do
peso da responsabilidade de não poder errar na execução da tarefa. Conclusão: fadiga
generalizada, estresse, dores dorsais, dor de cabeça, desânimo... Em síntese, sofrimentos
físicos variados. Tais sintomas também são extensivos ao universo prisional atingindo
as/os Agentes Penitenciárias/os na sua capacidade de trabalho. Ficar muito tempo
realizando a mesma tarefa com uma postura inadequada, o risco e a tensão cotidianos,
carregar pesos desproporcionais, risco de cair, risco de trabalhar com barulho ou
ruído agudo, etc. Estes, entre outros “sintomas” do mundo do trabalho, evidenciam
que praticamente todas as profissões são simultaneamente tocadas por um rápido
aumento das pressões físicas ou morais. Em outras palavras, o aumento das dores e
dos sofrimentos físicos e mentais que são, no geral, passados despercebidos, fazendo
280 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
parte das minúsculas mortes cotidianas. Do estresse ao assédio moral não existe mais
do que um passo11. As chefias pressionam persistentemente suas/seus subordinadas/
os e para se livrar dos “inconvenientes”, o assédio passa a ser cada vez mais utilizado.
Observou-se entre os Agentes práticas de assédio moral horizontalizadas.
No caso das Agentes, o trabalho se torna ainda mais estressante porque, por
serem vistas como profissionais que produzem menos e/ou pior, elas precisam se
esforçar mais para provar o mesmo que os homens, para demonstrar que também são
capazes e eficientes. Essa cobrança exagerada acaba por tornar ainda mais o trabalho
das mulheres possível de ocasionar males à sua saúde mental e física. Deste modo,
estas mulheres acabam por optar em sair de cargos que exigem muito delas.
Para concluir, constatou-se que os conflitos presentes no trabalho vão ser deslocados
para as relações familiares, ocasionando práticas de violência das futuras gerações.
11 O conhecido livro de Marie-France Hirigoyen: O assédio moral. Paris, Syros, 2000), assim como o livro
da Viviane Forrester: O Horror Econômico. Fayard, 2000).
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 281
– A distribuição sexuada do trabalho
No geral, as mulheres ainda continuam a ocupar empregos cujas características
lembram, freqüentemente, aquelas realizadas no contexto familiar-doméstico, seja
pelo tipo de atividade concernida, seja pela natureza dos postos/funções de trabalho
exercidos, o que se repete nas prisões. Mais o trabalho se assemelha aos atributos
do trabalho doméstico, mais o trabalho será feminizado. No caso da prisão, trata-
se da assistência social e dos cargos de administração, etc. A primeira característica
da divisão do trabalho doméstico é de se caracterizar/inscrever em um contexto de
“disponibilidade” próxima aos serviços familiares. Constatam-se que os trabalhos
relativos – ao cuidado de crianças, adultos e idosos doentes, como dos empregos
domésticos, são praticamente exercidos pelas mulheres. Fenômeno extensivo aos países
desenvolvidos como a França, no qual 80% (1990) do setor de serviços é exercido
por mulheres. Jornais nacionais anunciaram recentemente o aumento da presença das
mulheres no mercado de trabalho. Onde? Em que atividades? No setor de serviços
domésticos com os salários inferiores ou mesmo em outros serviços também com
salários inferiores. A inserção das mulheres nos trabalhos ditos mais “feminizados”
parte da própria vontade de algumas delas, inclusive das Agentes Penitenciárias.
Outro elemento de clivagem ainda persistente entre homens e mulheres é tanto em
relação à formação como em relação às profissões tecnológicas. A divisão sexuada
do acesso às tecnologias é fundada sobre a relação remetida à natureza, definida,
diferentemente para o masculino e o feminino. A submissão para as mulheres não
ocorreria apenas pela dominação dos homens, mas pela condição do feminino ligado
à natureza que fundamentaria a condição de exclusão das mulheres da legitimidade
tecnológica. Por exemplo, nas instituições Penitenciárias é mais comum se observar
o porte de armas pelos Agentes masculinos enquanto que as mulheres Agentes, em
geral, se recusam a portar armas. Ora, uma das clivagens mais discriminatórias entre as
profissões masculinas e femininas repousa sobre a tecnologia reconhecida da profissão.
Portanto, trabalho mais qualificado = ao masculino, cuja associação ancestral remete
ao homem como portador da lógica e da cultura, enquanto que a mulher da natureza.
Outra dificuldade reside no reconhecimento das qualificações para os serviços
das mulheres e dos homens.
À diferença dos empregos industriais, os empregos na área de serviços mobilizam,
ao lado das competências técnicas/tecnológicas, competências pessoais que são
difíceis de serem mensuradas, uma vez que estas competências não passam apenas
pela objetivação e formação do diploma, mas passam pelo processo de socialização
e pela experiência individual e coletiva da/o trabalhadora/r. Daí as competências
consideradas femininas adquiridas na esfera privada-familiar na prática das funções
domésticas são percebidas pela “cultura organizacional” e pelos próprios trabalhadores
como sendo “qualidades naturais”, vinculadas à identidade pessoal e feminina e que
acabam por não ser consideradas para uma relação salarial. No caso das Agentes,
embora ingressem na profissão sob o mesmo processo dos Agentes masculinos
(concurso público) e receberem as mesmas condições salariais, isso não lhes garante
uma condição mais eqüitativa no universo prisional.
Portanto, encontra-se aqui uma oposição entre o pólo das representações sociais
que associa a subordinação da tecnologia e da natureza ao masculino e aquele que
conjuga o natural e a submissão à natureza ao feminino. Se a tecnologia, enquanto
282 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
tal, simboliza um poder sobre a natureza, é associada ao masculino e ao trabalho
qualificado; portanto, os serviços, definidos pelo relacional, são excluídos de uma
representação em termos da tecnologia e são vistos como pertencentes a um universo
de trabalho onde são solicitadas qualidades inerentes à natureza feminina.
Trajetórias Profissionais e Carreira dos Agentes Penitenciários: Distrito Federal e Goiás | 283
instituição e com os detentos, evitando desse modo a situação traumática
do “primeiro dia na prisão”;
• Criação de mecanismos e de estratégias para quebrar uma cultura ainda
persistente na instituição penitenciária que se caracteriza por uma
ambigüidade com relação ao tratamento que deve ser dispensado aos internos,
isto é, ora tratados com respeito, ora tratados com desprezo e humilhação;
• Necessidade de formular claramente o conceito de reintegração social do
interno;
• Rever a natureza das atividades de trabalho (ocupações) exercidas pelos
detentos e suas relações com o mercado de trabalho;
• Expandir quantitativamente e qualitativamente essas atividades em duas
direções: 1. de maior inclusão dos próprios detentos e 2. atividades mais
criativas do ponto de vista manual e intelectual;
• Há uma dimensão formal que estabelece o imperativo da reintegração do
interno à sociedade, porém isso não tem eficácia do ponto de vista material
nem social, o que se traduz nos persistentes índices de reincidência criminal.
Em razão disso há necessidade de discutir quais são as possibilidades reais
de ressocializar os internos do ponto de vista do papel do Estado, dos
Agentes e da sociedade;
• Necessidade de realizar campanhas de valorização e reconhecimento do
trabalho realizado pelos Agentes permitindo que a experiência deles seja
socialmente compartilhada com uma diversidade de profissionais que, de
maneira direta ou indireta, atua na área;
• No contexto da valorização profissional dos Agentes Penitenciários possibilitar
que suas experiências sejam conhecidas e discutidas com os gestores de
políticas públicas na área de segurança publica;
• Pensar estratégias para administrar de maneira adequada as diversas lógicas
contraditórias presentes nas Penitenciárias: a lógica da segurança e a lógica
da reintegração, por exemplo.
• Criação de uma política sistemática de acompanhamento da saúde mental
dos Agentes Penitenciários, facilitando as intervenções de profissionais
externos qualificados no atendimento coletivo e individual dos Agentes,
dentro de uma concepção de clínica do trabalho;
• Criar mecanismos para dar suporte aos Agentes no contexto das relações
familiares, quando estas se tornam conflitivas por conta do trabalho;
• Programar estratégias para tornar fluída a relação entre a sociedade e a
Penitenciária incentivando relações mais intensas e deste modo minimi-
zando o isolamento em que caracteristicamente se encontram as instituições
Prisionais; e
• Necessidade de “homogeneizar” a administração penitenciária, promovendo
cursos de formação em gerenciamento Prisional e eventos que possibilitem a
socialização das experiências e a discussão das estratégias mais adequadas.
284 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
considerando suas particularidades culturais, políticas e sócio-demográficas,
isso é o que podemos inferir a partir da pesquisa comparativa realizada.
• Recomenda-se a organização de um programa de educação continuada
dirigido aos Agentes que contemple as seguintes possibilidades de cursos
e de conteúdos:
• Comunicação interpessoal, considerando a perspectiva de gênero, étnico-
racial, geracional, entre outros;
• Acesso às práticas religiosas no interior da instituição Prisional deveria
estar articulado à gestão interna do presídio no sentido de permitir o
desenvolvimento de um programa sobre temas mais humanitários evitando
o sectarismo e o radicalismo;
• Promoção de um seminário semestral com os diretores dos presídios e os
Agentes Penitenciários, centrado na discussão das políticas de pacificação
dentro das penitenciarias, procurando identificar quais são as melhores
práticas promotoras dessa paz nas instituições;
• Oferecer, aos Agentes, treinamento em temas médicos (toxicologia, enfermi-
dades infecto contagiosas, doenças sexualmente transmissíveis, etc.);
• Oferecer aos Agentes atualização razoável em temas jurídicos;
• Oferecer aos Agentes treinamento no uso legal da força e na defesa pessoal;
• Oferecer aos Agentes treinamento em liderança organizacional;
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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286 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
INSTRUÇÕES AOS AUTORES
- Em caso de livro:
MINGARDI, Guaracy. Tiras, Gansos e Trutas: cotidiano e reforma na polícia civil. São
Paulo: Editora Página Aberta, 1992.
- Em caso de artigo:
SANDES, Wilkerson Felizardo. “Uso não letal da força na ação policial: formação, tecnologia
e intervenção governamental”, in Revista Brasileira de Segurança Pública, Ano 1. Edição
2., 2007.
- Em caso de coletânea:
CARUSO, Haydée Glória Cruz; MUNIZ, Jacqueline de Oliveira; BLANCO, Antonio Carlos
Carballo (orgs). Policía, Estado y Sociedad: prácticas y saberes latinoamericanos. Rio de
Janeiro: PUBLIT Soluções Editoriais, v. 01., 2007.
288 | Coleção Segurança com Cidadania [Volume I] Subsídios para Construção de um Novo Fazer Segurança Pública
- Em caso de dissertação de mestrado ou de tese de doutorado:
RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes. Administração da Justiça Criminal na cidade do
Rio de Janeiro: uma análise dos casos de homicídio doloso. Tese de Doutorado. Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2009.
V. Outros
12. Não serão devidos nem direitos autorais, nem qualquer outra remuneração, de nenhuma
natureza, pela publicação de artigos na Coleção Segurança com Cidadania.
13. O envio do artigo para candidatura à publicação implica autorização tácita para ser
publicado no periódico, caso obtenha parecer favorável.
14. Os autores receberão gratuitamente três exemplares do número da revista no qual seu
artigo está publicado.
15. O conteúdo do artigo é de responsabilidade do autor.