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Susan Lewis é uma reconhecida autora britânica, com cerca de 20 títulos

publicados que contam com mais de 2 milhões de exemplares vendidos em


todo o mundo.
Tendo iniciado a sua vida profissional na televisão, após a bem-sucedida
edição de quatro romances, mudou-se de Londres para o Sul de França, onde
agora vive e escreve.
A não perder, da mesma autora:
Um Amor Inesperado
“Sensual e excitante.”
Sunday Times

“É simplesmente cativante, muito bem escrito


(…) Aconselho vivamente a todos!”
Leitora no blogue Club de Leitura
Desaparecido
“Mistério e romance par excellence.”
Sun

“Uma história que, sem dúvida, mexe com as nossas emoções. Afinal, poderia
perfeitamente ser verídica…”
Leitora no blogue O paraíso é uma espécie de livraria
Depois da Luz
“Susan Lewis é uma autora que mexe connosco, com as nossas emoções e
sentimentos. Uma autora que expõe com clareza, com um texto muito direto ao
qual não se fica indiferente. Fala de assuntos atuais, situações que podem ser
vividas por cada um de nós, situações reais.”
Blogue Esmiúça o Livro
Escândalos em Família
Susan Lewis

Publicado em Portugal por:


Porto Editora, Lda.
Divisão Editorial Literária – Porto
Email: delporto@portoeditora.pt

Título original:
Lost Innocence
Copyright © Susan Lewis 2009

Imagens da capa: © Getty Images


Design da capa: Arrow Books
Design de nome da autora: www.ruthrowland.co.uk

1.ª edição em papel: setembro de 2012

Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer
processo eletrónico, mecânico, fotocópia, gravação, sistema de armazenamento e disponibilização de informação ou outros, sem
prévia autorização escrita da Editora.

ZZZZ

Este livro respeita as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


para James, com amor
Agradecimentos
Recebi tantos conselhos e apoio durante a pesquisa para este livro, que é
difícil saber por onde começar os meus agradecimentos, uma vez que toda a
gente contribuiu de forma tão inestimável e empenhada. Não obstante, penso
que a minha maior dívida de gratidão é para com Ian Kelcey, da Kelcey and
Hall, que não só me proporcionou a inspiração para Jolyon Crane, como
também me guiou pacientemente pelo processo de levar a julgamento um caso
de violação. Se cometi erros, asseguro que são inteiramente de minha autoria.
O agente Carl Gadd, da polícia de Avon e Somerset, é o meu herói – muito
obrigada, Carl, pelo seu incrível apoio e pelas informações vitais acerca dos
procedimentos em matéria de detenção e interrogatório. Ainda na força de
polícia de Avon e Somerset, gostaria de agradecer à agente Liz Cole, da
Equipa de Investigação de Crimes Sexuais, pela quantidade de dados
pormenorizados fornecidos sobre o papel desempenhado pelos agentes desta
equipa. Agradeço também a Mark Barton, do Ministério Público, por me
ajudar a entender os rudimentos do papel da Acusação no iniciar de um
processo judicial. Por último, mas não menos importante, um grande obrigada
a Melissa Cullum, do Departamento de Comunicação da força policial de
Avon e Somerset.
Os meus agradecimentos e afeto, uma vez mais, à minha querida amiga
Lesley Gittings, que tão generosamente pôs ao meu serviço o seu tempo e
amplos conhecimentos de Somerset para me ajudar a situar o livro
geograficamente. O meu obrigada e afeto igualmente para Clare Tupman,
escultora de excecional talento, cujas criações de extraordinária beleza
serviram de inspiração para as esculturas de Alicia. Em
www.claretupmansculpture.co.uk poderá vê-las com os seus próprios olhos.
Agradeço também a Jake Tupman pela enérgica e divertida visita guiada a
Bruton, aliada às suas preciosas perspetivas sobre a mente dos jovens da sua
idade. Um grande obrigada a Lisa Trowbridge, amiga querida e veterinária
maravilhosa que me proporcionou tantos conselhos úteis, tal como a David
Anderson, Bridge Master da Ponte Suspensa de Clifton, por partilhar comigo
os seus conhecimentos especializados sobre este excecional monumento.
Gostaria de agradecer de novo à minha editora, Susan Sandon, pelo seu
extraordinário apoio e conselhos perspicazes, um obrigado que estendo a
Georgina Hawtrey-Woore, Kate Elton, Rob Waddington, Trish Slattery, Louisa
Gibbs, Louise Campbell, David Parrish e aos restantes membros da equipa da
Arrow. E, é claro, ao meu querido amigo e agente, Toby Eady.
Por último, um agradecimento muito especial a Rachel Herrington, cujo
generoso donativo à Autism Speaks resultou na utilização do seu nome para a
personagem da amiga mais chegada de Alicia no romance.
Capítulo Um
Em Holly Wood, nunca acontecia nada. Enterrada no coração do Somerset
rural como uma ameixa num pudim, mais não era que um sonolento lugarejo,
delimitado em três lados por um rio serpenteante e ligado às aldeias vizinhas
por vastas clareiras cobertas de erva e um emaranhado de caminhos rurais,
que fluíam por entre as sebes como veias numa errância sem plano. A
localidade só tinha para mostrar umas poucas centenas de construções,
algumas do século dezasseis, outras da era vitoriana e outras, ainda, como a
avenida de bangalôs que se enrolava como uma cauda animada em torno do
limite sul da aldeia, dos anos sessenta. Recentemente, uma coleção uniforme
de novas construções brotara no que antes fora o Bluebell Field, ao lado de
Bruton Road. As casas mantinham-se juntas como um grupo de alunos novos às
portas de uma velha escola, ainda demasiado desajeitados para serem aceites
na multidão, mas esperando a oportunidade, ansiosos e tímidos.
A rua principal de Holly Wood era simultaneamente peculiar e banal,
começando num dos extremos com um socalco com quatro casinhas típicas do
campo, dignas de um postal, seguidas pela oficina de mecânica e serviço de
táxi de Tom Sebastian, vindo depois o Friary com a sua fachada Tudor de
imitação e letreiro de néon balançante, onde as letras O, P e N se acendiam
quando o balcão de peixe e batatas fritas estava a servir comida. Ao lado,
ficava o velho Midland Bank, que há muito fechara as portas, depois vinha o
Neeve’s, a loja da aldeia, que funcionava também como posto dos correios até
às reduções de custos ocorridas recentemente. Agora, os habitantes tinham de
guiar seis quilómetros e meio até Bruton para comprar selos, levantar
encomendas e receber os vales de reforma, e quem não tinha carro aceitava de
bom grado uma boleia ou apanhava o autocarro oitenta e cinco, que descrevia
um tortuoso percurso pitoresco até à cidade medieval de Wells. A seguir à
loja, vinha a curva para Holly Way, onde as casas mais caras da aldeia davam
para o rio; depois ficava St Gregory’s, a velha e decadente igreja normanda,
aconchegada no meio da sua desordem de tortas lápides de relevo desbotado,
como um avô severo que vigia a sua prole adormecida. A rua principal era
cortada ao meio por uma estreita faixa verde, onde o obelisco de Holly Wood,
um monumento de guerra, e dois bancos de jardim com reluzentes placas de
bronze se erguiam, como sentinelas, em ambas as extremidades de um cuidado
canteiro de beijos-turcos, ou cravos-de-defunto, ou cíclames, dependendo da
altura do ano – e do que Mimi, a florista, tivesse em armazém.
Em frente à igreja havia uma longa faixa ajardinada que pertencia ao
Traveller’s Rest, ao passo que o pub, cujo aconchegante interior era dominado
por uma grande lareira de pedra e abundantes vigas tortas de madeira negra,
ficava na esquina de The Close – uma rua estreita e frondosa que descia até ao
rio, para depois infletir a marcha, oferecendo uma estrada alternativa de saída
da aldeia. Na esquina oposta havia um muro alto de tijolos que rodeava um
terreno baldio, ao lado do qual ficava uma loja de caridade entaipada. Acima
dela, elevava-se o campanário de uma velha torre de relógio como um chapéu
de mágico gigante, depois vinha o empório floral de Mimi, com os seus
coloridos cestos suspensos e a muito apreciada franchise da Interflora.
Seguiam-se-lhe mais algumas casinhas de fachadas planas e uma pequena
fiada de lojas vazias que antes eram ocupadas pelo talho do Stan, a frutaria da
Goldie e a loja da Felicity, a costureira. Agora, a Felicity subia bainhas e
ocasionalmente desenhava um ou outro vestido de casamento em casa,
enquanto Stan oficiava atrás do balcão do talho do supermercado Tesco da
zona e Goldie trabalhava para um paisagista.
Embora Holly Wood fosse decididamente uma aldeia agradável, com os
seus sedutores enclaves de ruas empedradas, e reclamasse a glória de ter
outrora dado refúgio ao Rei Charles em fuga – o esconderijo era tão secreto,
que mesmo os locais pareciam não saber exatamente onde ficava –, não era
suficientemente atrativa para desviar muitos visitantes das ofertas mais
exóticas do condado, como as de Glastonbury, Wells e Cheddar. No entanto, a
placa que assinalava a aldeia, a cerca de uma milha da entrada, era com
frequência fotografada por turistas e viajantes mais empreendedores, que
pareciam apreciar a ideia de tropeçar numa placazinha tão peculiar, com
pretensões de altivez e glamour no coração da Inglaterra rural.
Apesar de os residentes de Holly Wood serem, genericamente, pessoas
amigáveis, preferiam que os turistas tirassem as suas fotografias e se fossem
rapidamente embora, uma vez que não apreciavam particularmente serem
observados, ou que lhes perguntassem em que filmes já tinham aparecido, ou
onde morava George Clooney, a que se seguiam risos sarcásticos, como se
fosse a primeira vez que alguém dizia a piada. Na verdade, não lhes agradava
de todo ver as suas existências espiolhadas por estranhos, em especial os que
tentavam mudar as coisas, ou dizer-lhes como viver as suas vidas. Havia
interferências que não podiam evitar, como as dos vereadores do condado,
mandões, com as confusas regras sobre reciclagem e as ainda mais bizarras
latas de tinta amarela para prevenir o estacionamento na rua principal –
imposição rigorosa e universalmente ignorada. Os residentes de Holly Wood
orgulhavam se de serem uma comunidade que se autorregulava com sucesso,
com um ativo esquema de Vigilância de Bairro, um serviço de motorista para
os idosos e doentes altamente eficiente – sustentado por peditórios porta a
porta levados a cabo semanalmente pelas Escuteiras – e uma consciência
ambiental (depois de resolverem a confusão em torno da utilização de vidrões
e plasticões) que lhes havia merecido rasgados elogios no Fosse Way
Magazine e no The Buzz, dois oráculos de grande prestígio na zona.
No dia em que Alicia Carlyle se dirigiu à aldeia, no seu carro solitário
serpenteando pela luxuriante manta verde do campo, com uma pequena mala e
um computador portátil no banco de trás do seu Renault em segunda mão e uma
mágoa no coração demasiado viva para lhe poder pôr o dedo, não havia
qualquer indicação do que se seguiria. A tranquilidade estival tinha o carácter
suave e inabalável de um quadro e a cabeça de Alicia concentrava-se apenas
numa coisa: esvaziar-se do que deixara para trás. O que a esperava após uma
longa ausência – não por escolha sua – podia ser pior, mas também não ia
pensar nisso. Iria simplesmente prosseguir a viagem, manter os olhos na
estrada e os pensamentos ocupados em questões descomplicadas, como a
necessidade de comprar leite quando chegasse à aldeia, e o facto de tudo lhe
parecer tão maravilhosamente familiar e convidativo sob o generoso brilho da
luz do sol.
Alicia era alta, muito magra, com cabelo comprido louro e frisado, que lhe
caía pelas costas num emaranhado de espirais cheias de vida. Os olhos eram
azuis claros – tão claros e convidativos, costumava Craig dizer, como uma
onda tropical antes de chegar à praia. Dão-me vontade de avançar por eles
adentro, para poder ficar ainda mais perto de ti e, se calhar, descobrir o que
se esconde nas profundezas mais escuras. Alicia sorriu ao recordar as
palavras, mas depois os seus lábios tremeram e contraíram-se quando a dor
lançou o seu manto escuro sobre a recordação. Naquela altura não tinha
segredos nenhuns e, tanto quanto sabia, ele também não.
A boca grande e vermelha de Alicia era um elemento vital do seu belo
sorriso, tão contagioso como o timbre do seu riso juvenil. Apesar de ter
completado trinta e nove anos há uma semana, os acontecimentos dos últimos
dois anos – e, em particular, dos últimos seis meses – faziam-na sentir-se mais
perto dos cinquenta. Nas semanas anteriores tinham-lhe aparecido várias rugas
e o seu rosto, como o seu interior, tinha-se povoado de sombras. Naquele dia
estava vestida com o seu habitual visual de calças de ganga justas com rasgões
nos joelhos, camisa branca comprida com um cinto descaído e colete bordado
à mão, juntamente com o seu característico boné masculino, que completava o
conjunto – um look muito apreciado por Darcie, a sua filha de doze anos
viciada em moda.
Alicia crescera em Holly Wood. Depois de deixar a aldeia para estudar
História da Arte em Oxford Brookes, ainda voltava, de visita, com
regularidade, passando longos fins de semana com a mãe, assim como as
férias de verão e o Natal. Este hábito não mudara depois de conhecer Craig e
de se casar. Tinham apenas falhado o Natal do ano em que Darcie nascera,
altura em que Monica tinha ido para Londres para ajudar a tomar conta de
Nathan, de cinco anos.
Alicia nunca teria conseguido sobreviver aos primeiros dezoito meses da
vida de Darcie sem o apoio da mãe, e o mesmo se passava com Craig. O
terror de poderem perder o seu precioso bebé a qualquer momento tornava-
lhes impossível continuarem a funcionar como uma família normal, até o
misterioso vírus que atacava o pequeno coração da bebé ser diagnosticado e
tratado, ou recuar por vontade própria. Monica esteve lá em todos os
momentos, calma e firme, apertando as rédeas em torno dos seus medos
desenfreados, e mantendo constantemente as suas esperanças vivas, mesmo nas
horas mais sombrias. E, igualmente importante, Monica fora maravilhosa com
Nat, fazendo-o sentir-se especial e o centro do mundo para ela, enquanto a
mãe e o pai estavam no hospital, forçando a irmã a permanecer entre os vivos.
O vírus misterioso nunca fora identificado, mas hoje ninguém adivinharia o
início de vida difícil de Darcie. Ela era a imagem da saúde, tão alegre e
sociável como qualquer menina da sua idade, com um coração que batia no
lugar certo e uma autoestima, digamos, bastante desenvolvida. Só pensar em
Darcie era suficiente para aquecer o coração de Alicia por completo e,
quando adicionava ao quadro o seu jovem e bonito filho, agora com dezassete
anos, recordava-se de todos os motivos que tinha para estar grata.
Agora, ao sair da estrada principal A37, afastando-se da vista distante de
Glastonbury Tor para iniciar o percurso sinuoso para Holly Wood, Alicia
sentia as entranhas insuportavelmente tensas. Perguntava a si mesma quanto a
aldeia poderia ter mudado desde a última vez que a vira, mesmo sabendo que
quase de certeza não mudara nada, porque tal nunca acontecia. Era uma das
coisas que mais lhe agradavam em Holly Wood, mas também o que temia.
Nunca teria deixado de vir ali, se a mãe não tivesse insistido. Teria encontrado
coragem para enfrentar a confusão em que estavam todos mergulhados, mas
Monica não podia suportar o conflito que se desenvolvera entre Alicia e o seu
irmão mais velho, Robert, que ainda vivia na aldeia com a esposa, Sabrina, e
a jovem, volúvel e requintadamente bela filha desta, Annabelle. Embora nem
Robert nem Alicia fossem responsáveis por aquilo que causara a divisão no
seio da família, sempre que Alicia estava por perto, Monica sentia-se
obrigada a escolher um dos lados, sem nunca o fazer. Quando adoeceu com
cancro, Alicia desistiu de discutir. O stress só iria piorar a situação da mãe e
o seu grande amor por ela fazia-a desejar que vivesse por muitos e longos
anos, mesmo que não a pudesse ir visitar.
Monica morrera há um ano. Nessa altura, estava num hospital para doentes
terminais a dezasseis quilómetros de Holly Wood, por isso Alicia pôde visitá-
la sem lhe causar perturbação. Permanecera ao lado da mãe até ao fim,
segurando-lhe as mãos, acariciando-lhe o rosto e jurando pela vida dos filhos
que a perdoava por a ter afastado de si.
– Não te quis excluir da minha vida – disse Monica em voz rouca, com as
lágrimas a correrem dos olhos amarelados. – Sabes que te amo do fundo do
coração, não sabes?
– É claro – tranquilizou-a Alicia. – Era uma situação impossível. Estavas
no meio…
– Mas a culpa não foi tua. Deveria ter-te apoiado.
– Isso não interessa, mãe. Eu sobrevivi e foi importante para ti poderes
continuar a viver lá em casa.
Monica não contestou. Não podia, quando Holly Wood era o único lar que
tinha conhecido nos últimos quarenta e dois anos – nos dezanove antes disso,
vivera numa aldeia vizinha, onde crescera. Nos últimos dias de vida da mãe, a
pedido desta, Alicia trouxe Nat e Darcie para se despedirem. Tinha sido de
cortar o coração ver Darcie, que na época mal tinha onze anos, soluçar
agarrada à mão ossuda da avó, pedindo-lhe para não morrer, mas mais difícil
ainda foi a forma como Nat, de quinze anos, que sempre adorara a avó, se
tinha recusado a aproximar-se mais do que da extremidade da cama. O seu
rosto pálido e bonito exibia a sua dor, mas o facto de Monica não ter querido
incluir o pai nas suas despedidas finais era uma desconsideração que não
podia perdoar.
Craig tampouco assistiu ao funeral. Alicia e ele tinham concordado que
seria melhor assim. Alicia sabia que Nat ainda estava confuso com as
decisões que os pais tinham tomado, mas explicá-las tê-lo-ia confundido e
magoado ainda mais, e ninguém, Alicia menos que qualquer outra pessoa,
desejava isso.
Esta era, assim, a primeira vez, desde o funeral da mãe, que Alicia ia pôr
os pés na aldeia onde crescera com Robert, onde a mãe organizara todos os
eventos de caridade e o pai, à imagem do avô, fora médico de clínica geral.
Em crianças, tinham sido muito dedicados ao pai, que possuía o dom mágico
de fazer tudo ficar bem quando o fim do mundo se aproximava rapidamente,
transformando pequenas conquistas nos maiores triunfos com o seu riso
estrondoso e elogios fáceis. Perdê-lo quando ainda estavam na adolescência
abrira os olhos de Robert e Alicia para a arbitrariedade cruel da vida. Robert
tomou consciência deste facto de forma particularmente dolorosa, uma vez que
o pai se afogou ao tentar salvá-lo de uma corrente traiçoeira quando estavam
de férias em Espanha. Apesar de terem decorrido mais de vinte anos sobre
este terrível acontecimento, ainda mal se passava um dia sem que Alicia não
pensasse no pai, e Alicia sabia que o mesmo acontecia com Robert. Durante
os últimos dois anos, deu consigo muitas vezes a pensar como reagiria o pai
aos acontecimentos que tinham desfeito a sua família. Quão diferente o seu
mundo poderia agora ser se o pai ainda estivesse entre eles.
O sentimento de estranheza no seu interior começou simultaneamente a
agudizar-se e a ficar mais suave, à medida que o vulto preguiçoso da aldeia
apareceu no horizonte. Era uma vista maravilhosa, mas que, ao mesmo tempo,
lhe causava dor. Junto à povoação, o novo bairro aquecia-se ao sol, parecendo
demasiado polido e vistoso ao lado do conjunto de edifícios a cair de velhos,
como uma rapariga de baixo nível às portas de uma mansão majestosa com
esperanças de ser aceite, como dissera certa vez Craig.
A rua principal estava deserta quando Alicia entrou na aldeia, não se
vendo vivalma nem mesmo na esplanada do pub, tanto quanto podia perceber.
No entanto, a notícia do seu regresso espalhar-se-ia rapidamente, uma vez que
a sua decisão de parar na loja da aldeia para comprar o leite de que se
esquecera no Sainsbury, à saída de Londres, teria o condão de pôr as coisas
em andamento.
A peculiar lojinha não mudara muito – o mesmo sininho por cima da porta,
o aroma familiar a alcaçuz e tabaco, e as prateleiras repletas de frascos,
caixas e latas dos anos setenta. O balcão de charcutaria estava no lugar do
costume, cheio de fiambres de Wiltshire, fatias de bacon do campo curado,
carne salgada de fabrico local e suculentas porções de queijo de Cheddar. A
gaveta do dinheiro fora substituída por uma versão mais moderna, mas os
jornais continuavam em exibição numa prateleira em frente à arca dos gelados
e uma ilha oval no meio da loja permanecia lar de todo o género de artigos,
desde saquinhos de chá Tetley a bisnagas de Germolene e grelhadores para
churrasco descartáveis em tabuleiros de folha de alumínio. O que antes era o
posto dos correios fora transformado num grande balcão refrigerado, que
vendia pãezinhos acabados de fazer, tartes de carne da Cornualha, quiches,
Ovos Escoceses e uma seleção impressionante de refrigerantes. Havia até,
reparou Alicia, um balcão de frio separado para o vinho e duas mesas tipo
bistrô que exibiam menus para o chá, escritos em pequenas lousas entaladas
entre o açucareiro e os temperos. Era a resposta de Holly Wood à cultura dos
cafés.
Quando a Sra. Neeve apareceu de rompante vinda das traseiras, Alicia
pegou num pacote de meio litro de leite e agarrou na mala para pagar.
– São sessenta pence – anunciou a Sra. Neeve, não a reconhecendo de
imediato.
Alicia entregou-lhe o dinheiro e sorriu à medida que o rosto da Sra. Neeve
passava de inexpressivo a curioso para, depois, exibir um espanto e prazer
genuínos.
– Alicia? – perguntou, inclinando a cabeça para um dos lados. – Sim, é
verdade. Diabos me levem. Que surpresa. Não sabia que vinhas. Como estás,
minha querida?
– Estou bem – garantiu-lhe Alicia. – E a senhora?
– Oh, sabes como é, não me quero queixar, mas esteve tanto calor nestes
últimos dias… Vens de visita, é? Quanto tempo vais ficar? – A sua voz
adquiriu um tom mais sombrio. – Lamento imenso a tua perda. Sei como vocês
eram próximas, por isso deve ter sido difícil para ti nestes últimos…
– Obrigada – disse Alicia suavemente. – Estou a ver que o posto dos
correios se foi. Deve sentir a falta de estar à frente daquilo.
– Oh, e sinto, é verdade, mas não havia nada a fazer. Não que a gente não
tenha lutado para o manter. Se calhar até nos viste nas notícias. Já sabes como
a Sabrina é quando começa uma das campanhas dela. Quase sempre ganha,
Deus a abençoe, quer esteja a resolver uma questão dos idosos ou a proteger a
vida selvagem ou a tentar salvar o nosso velho postozinho dos correios. Mas
fez-nos lutar um bocado mais do que muitos, porque era a nossa segunda
batalha. És capaz de te lembrar de como ganhámos a primeira há alguns anos.
Mas para esta não havia hipótese. Tinham as ideias resolvidas, precisavam de
cortar custos e tínhamos a cabeça no cepo, não havia nada a fazer. Acho que
para a Sabrina o golpe foi duro. Ela não gosta disso – de perder, e na altura
nem parecia andar em si… Agora está muito melhor, agrada-me dizer. Ou pelo
menos estava, da última vez que a vi, mas já sabes como isto é, um dia bem,
no outro em baixo. Acho que nunca descobriram qual era o mal dela, não é?
Ainda no outro dia estava a dizer à Mimi, ela tenta fazer demasiada coisa ao
mesmo tempo, esse é o problema. Devia ter um bocadinho mais de calma. Vê
se me entendes, nem sei onde metade de nós estaria sem ela. Metemo-nos
numa alhada do caneco quando tivemos de organizar a festa de verão sozinhos,
por causa do problema que ela teve, e o festival das colheitas. E no Natal
ainda não estava grande coisa…
Alicia sorria educadamente, sabendo que teria de se habituar a ouvir o
nome de Sabrina, mas desejando apenas encontrar uma frase de saída
adequada sem parecer grosseira.
– Mas olha só para mim aqui a tagarelar – disse a Sra. Neeve
maternalmente –, e nem sequer te perguntei pelos miúdos. Também vieram?
Adorava vê-los. Devem ter mesmo crescido desde a última vez que os vi.
– Se calhar até de mais – disse Alicia num tom irónico. – Não me vou
esquecer de os mandar vir vê-la quando chegarem. Agora tenho de ir, obrigada
pelo leite – e, antes que a velha e mexeriqueira senhora pudesse tomar fôlego
para prodigar mais louvores à duvidosa Sabrina, ou perguntar de novo quanto
tempo Alicia iria ficar, bateu rapidamente em retirada.
Sabia que, quando chegasse a casa da mãe, a notícia da visita surpresa
estaria a zumbir pelas linhas telefónicas de Holly Wood como uma corrente
elétrica, espevitando o interesse de todos. Provavelmente, teriam uma ideia do
motivo para ela aparecer naquele momento, alguns falariam mesmo com o tipo
de autoridade que sugeria estarem na posse de informação privilegiada,
embora isto não fosse verdade porque Alicia não tinha falado com ninguém
antes de vir. Durante algum tempo, equacionou a ideia de entrar em contacto
com a sua mais antiga e querida amiga, Rachel Herrington, mas acabara por
decidir esperar até se instalar antes de informar Rachel de que estava de volta.
Rachel sentir-se-ia obrigada a arranjar um tempo para a vir cumprimentar,
mas, como única veterinária em muitos quilómetros ao redor, era um luxo que
não se podia permitir.
Alicia contornou com o carro o parque relvado da aldeia, como os
moradores lhe chamavam, apesar da sua estreiteza e falta de relva, e sentiu
que se começava a formar um caroço na garganta. Seria capaz de suportar
guiar por The Close, e depois ir até casa da mãe, sem a mãe estar lá? Tinha
feito isto uma única vez, após o funeral, mas o lugar estava tão lotado de
carpideiras que o vazio não tivera uma real oportunidade para se fazer sentir.
Agora, depois de a evitar durante um ano, temia o que poderia encontrar:
janelas quebradas, ratos, bolor, um jardim que se tornara irremediavelmente
selvagem? Perguntou a si própria como podia ter permitido que aquilo que
fora o orgulho e alegria da sua mãe se degradasse assim. Sentiu tanta vergonha
que quase travou a fundo para se impedir de continuar a avançar.
Alguns minutos depois, ainda estava sentada no carro em frente à Old
Coach House, olhando a relva recém-cortada e os cestos de flores frescas
pendurados de ambos os lados da porta da frente negra. Em tempos passados,
era aqui que as carruagens eram estacionadas, enquanto os seus proprietários
aburguesados descansavam na pousada local. Os seus bisavós tinham
transformado o edifício numa casa, cujo interior passara por várias mudanças
ao longo dos anos, ao passo que o exterior, que estava classificado, nunca fora
alterado, mas somente restaurado. Agora, as suas paredes Hamstone cor de
mel, as janelas arqueadas de armação de metal e o telhado de ardósia negra
reluziam molhados, por efeito de uma chuva de verão que caíra poucos
minutos antes. Fazia o lugar parecer novo e lustroso. A roda de carruagem
decorativa ao lado da porta parecia tão polida como a aldrava de bronze, e a
clematite amarela em flor, que subia ao longo da treliça, era tão abundante e
saudável como sempre fora no tempo da mãe.
Era como se alguém estivesse a viver ali, ou à espera dela, mas não podia
ser. A única explicação que lhe ocorria era a de que Robert tivesse decidido
tomar conta da casa, ou talvez pagar a alguém para o fazer.
Sentindo a tensão crescer dentro dela, Alicia pegou na mala e saiu do
carro. No calor de julho, o cheiro da terra molhada misturando-se com um
perfume de rosas assaltou-a imediatamente. Parte do odor vinha das plantas
híbridas que ladeavam o caminho do jardim, o resto flutuava desde a porta ao
lado, onde floresciam as requintadas rosas premiadas de Jerry. O vizinho
instalara uma nova pérgula por cima do portão da frente, reparou Alicia, que
estava coberta por uma planta trepadeira de flores de um rosa vivo e, ao lado,
havia uma pequena e ornamentada caixa de correio que a irmã, Emily, que
morava num dos bangalôs à beira-mar, tinha sem dúvida escolhido por ele, e à
qual vinha provavelmente puxar o lustro diariamente. Alicia deu a volta ao
carro e foi abrir o portão da frente. Apesar de as dobradiças rangerem, não
estava a precisar de uma pintura, nem o caminho empedrado parecia
particularmente atacado pelas ervas daninhas. Alicia olhou para o velho cedro
que dominava um dos lados do jardim e, imediatamente, lhe vieram à memória
clarões de piqueniques de há muito tempo sob a sua sombra poderosa, e
escaladas temerárias pelos seus ramos elevados. Podia ouvir os ecos de
Robert e ela a rirem enquanto se aproximava da porta da frente, e do seu pai a
dizer-lhes para terem cuidado.
Alicia remexeu a mala à procura da chave. Não pensava realmente que a
mãe estava dentro de casa, mas o seu coração batia tão depressa que tinha as
mãos a tremer e, apesar de ter feito uma viagem tão longa, não estava
inteiramente segura de ter coragem para entrar.
– Alicia! És tu?
Com um sobressalto, Alicia virou-se. Do outro lado da estrada, onde antes
ficavam os estábulos, havia agora um desnível com casas vitorianas
alegremente pintadas de rosa, verde-água claro, azul-celeste, amarelo vivo,
com uma fileira de garagens mais à frente, na direção do rio, cada uma pintada
para combinar com a casa a que pertencia. Da casa cor-de-rosa saía uma
mulher da idade de Alicia, rechonchuda, de cabelos encaracolados, com um
sorriso jovial e a coxear visivelmente.
– És mesmo tu – exclamou a mulher alegremente. – Que bom ver-te!
Alicia começou a descer o caminho para a ir cumprimentar.
– Cathy – disse calorosamente. – É tão bom ver-te.
– Estava a pensar se virias – disse Cathy, agarrando nas mãos de Alicia e
olhando-a nos olhos. – Soube o que aconteceu ao Craig… Lamento muito.
– Obrigada – murmurou Alicia. Tinham passado seis meses e ainda
parecia que fora tudo ontem. Alicia engoliu em seco e procurou soar o mais
agradável possível. – Como estás?
Os olhos escuros de Cathy permaneceram dois pesarosos lagos de
compaixão.
– A pergunta importante é: como estás tu? – insistiu Cathy. – Deve ter sido
um choque terrível. No teu lugar, não sei o que teria feito.
Alicia abanou a cabeça.
– Como é que as crianças reagiram?
– Mal, mas as coisas estão a melhorar.
– Eles vieram contigo? Quanto tempo vais ficar? Já sabes, se precisares de
alguma coisa… O meu pai agora está sempre em casa, e eu só estou a alguns
quilómetros daqui.
– Obrigada – disse Alicia de novo.
– Alicia! – Desta vez, a voz vinha do cimo da rua. Era Maggie Cox,
proprietária do Traveller’s Rest e uma das mais antigas amigas da mãe. – Mal
ouvi que estavas cá – disse Maggie, envolvendo Alicia num abraço afetuoso –,
disse ao Andy, tenho de ir ver como ela está. Sabes que podes contar com o
apoio de todos, não é, amor? É o que a tua mãe teria desejado, e é assim que
vai ser.
As defesas de Alicia começavam a esmorecer. Eles não conheciam a
verdade, não podiam, e, por serem tão leais e amáveis, desejava não ter de os
enganar.
– Como está o Andy? – perguntou. – Da última vez que soube, vocês iam
os dois abrir um bar em Espanha.
– Oh, um dia destes havemos de fazer isso – assegurou Maggie. – Quando
tivermos tempo. Cathy, é o teu Matthew a chorar?
Cathy espetou a orelha.
– Caramba, é mesmo – respondeu Cathy. – Estou a ficar tão surda como o
nosso pai – e, apertando a mão a Alicia apressadamente e lembrando-lhe onde
a podia encontrar, iniciou o caminho de volta para a casinha cor-de-rosa do
pai.
Com uma risadinha, Maggie disse:
– É boa rapariga, aquela. Tem filhos a mais, mas é de muito bom coração.
– Quantos é que ela tem agora? – perguntou Alicia.
– O Matthew é o quarto. Mas, e os teus? Como estão os dois? Aposto que
o teu Nathan se está a transformar num belo rapaz. Que idade tem ele agora?
– Dezassete.
A referência ao filho serenou Alicia, parecendo remover os espinhos da
sua tensão. Tocando-lhe no rosto com a mão, Maggie disse:
– Deve ter sido horrível para ti, assim tão de repente. Quando soube, disse
logo ao Andy, será que a Alicia vem para cá? Fico contente por teres vindo,
amor. Podemos tomar conta de ti como a tua mãe teria gostado. Vou visitar a
campa dela, sabes, ao segundo domingo do mês, pôr-lhe flores. O Robert
também vai quando está cá, mas deves saber isso. Eu disse ao Andy, as flores
devem ser de todos, mas o Robert está cá mais vezes, por isso tem lógica que
seja ele a pô-las, em nome deles.
Apercebendo-se de que Maggie estava a avançar desculpas para o facto de
Alicia não visitar a campa da mãe, esta sentiu-se corar.
– Nos próximos dias vou em pessoa – garantiu.
– É claro. Se quiseres, vou contigo.
– Obrigada – disse Alicia, perguntando a si própria quantas vezes o
prometera desde que chegara.
Ao ouvir um carro virar para a rua, as duas mulheres desviaram o olhar e,
ao aperceberem-se de quem se tratava, o coração de Alicia deu um salto de
alegria. Os olhos de Maggie tinham uma expressão divertida.
– Devia saber que ela não tardaria a aparecer por aqui – comentou. –
Sempre foram inseparáveis, vocês as duas. Onde estava uma, de certeza que
encontrávamos a outra.
Alicia sentia as emoções a ponto de transbordar, à medida que um
vigoroso Honda atrevido se aproximava, estacionando atrás do seu Renault
gasto.
– Que diabos fazes aqui? – disse num tom de censura, enquanto Rachel
dava a volta ao carro para a vir abraçar, com o seu rosto muito corado, o
cabelo escuro e brilhante e os olhos de um verde cristalino – Como
soubeste…?
– Sei tudo – informou Rachel –, mas não graças a ti. Teria vindo mais
cedo, mas infelizmente tive de ressuscitar um hamster.
– Mais cedo? – riu Alicia. – O teu consultório fica a, pelo menos, vinte
minutos daqui, e eu não cheguei há mais de dez. Nem a mexeriquice de Holly
Wood consegue viajar tão depressa.
– Não te fies nisso. À vinda para cá, recebi pelo menos cinco chamadas a
informar-me de que tinhas chegado, mas nenhuma se compara à que recebi há
uma hora atrás, a dizer-me que estavas a caminho.
Alicia exibiu uma expressão de compreensão.
– A não ser que Holly Wood tenha instalado uma torre de vigia – disse –,
acho que deves ter sido informada por um dos meus filhos.
– Correto – sorriu Rachel. – Olá, Mags, desculpa nem te ter
cumprimentado…
– Oh, não te preocupes comigo – atalhou Maggie. – Já me vou embora.
Apareçam mais tarde, vocês as duas. Ofereço-vos um copo.
– Então, e porque não me disseste tu mesma que vinhas para cá? –
perguntou Rachel, examinando Alicia com um olhar direto enquanto Maggie
caminhava de volta para o pub. – Emagreceste – continuou –, e estás um
bocado pálida, mas também não é de admirar. Desculpa não ter ido a Londres
desde…
– Não faz mal. Sei que estás muito ocupada, e eu consegui aguentar-me.
Os olhos de Rachel mostravam a sua preocupação.
– Consegues sempre – disse –, mas desta vez…
– Desta vez foi mais difícil, é verdade. Há coisas que ainda não te contei.
A casa… – a voz falhou-lhe e Alicia tapou a boca com a mão, enquanto Rachel
a rodeava com um braço.
– Anda. Vamos para dentro – disse Rachel suavemente. – Acho que ainda
deves ter uma chave.
Respirando fundo, Alicia forçou um sorriso e exibiu a chave.
– Acho que o Robert deve andar a vir cá – disse, enquanto percorriam o
acesso à casa. – O jardim está em tão bom estado que alguém deve ter tratado
dele. Sinto-me horrivelmente mal por não vir cá há tanto tempo.
Tirando-lhe a chave da mão, Rachel meteu-a na fechadura e abriu a porta
de par em par.
– Bem-vinda a casa – disse suavemente.
Engolindo em seco em resposta à emoção crescente, Alicia preparou o
espírito e cruzou a ombreira, entrando no espaçoso átrio de entrada com o
chão de pavimento de lajes, onde uma ampla escada de madeira de corrimão
esculpido ascendia junto a uma parede com a pedra exposta, e um grande
espelho de moldura dourada cobria a outra. O cabide, a mesa do telefone e a
sapateira estavam no mesmo lugar de sempre, tal como a poltrona de veludo
cor de vinho, o vaso oriental pintado à mão com longas hastes de bambu de
imitação, e o pequeno baú vitoriano onde a família costumava depositar as
chaves quando entravam. Contudo, o que mais a emocionou foi o cheiro a
sândalo misturado com limpa-móveis e um certo aroma a citrinos que era
indefinivelmente a sua mãe. À medida que o sentimento de perda irrompeu de
dentro dela, Alicia fechou os olhos e mordeu o lábio com força. Sabia bem
que a mãe não ia sair a correr da sala de estar para a vir cumprimentar, mas
desejava-o tanto que quase conseguia acreditar que tal podia acontecer.
– É óbvio que alguém tem vindo limpar a casa – disse por fim.
– E arejá-la – acrescentou Rachel.
Alicia continuou a olhar em volta do átrio, ouvindo ecos de vozes, pés a
trovejar nas escadas, música estridente num quarto, a mãe nos seus afazeres na
cozinha. As três portas que davam para o átrio estavam fechadas, e ela não
estava totalmente segura de que quisesse atravessar alguma delas. A porta aos
pés da escada dava para a pequena sala de espera do consultório do pai, que
vinha a seguir. Após a morte do pai, permanecera intocada durante vários anos
até que, por fim, a mãe encontrara coragem para transformar aquela ala da
casa num pequeno escritório para si e numa grande sala de jogos para os
netos.
A porta no final do átrio conduzia à cozinha, mas era a porta à direita que
Rachel já estava a abrir. Alicia seguiu-a até à sala, onde as vigas de carvalho
baixas, a lareira com bancos laterais e salamandra, as janelas com assento e
os grandes sofás de cor rosa-escuro com poltronas que não combinavam eram
como fantasmas do passado, simplesmente a passar tempo, aguardando o seu
regresso. Parecia um sonho, uma bizarra ilusão atemporal. Se fechasse os
olhos e os voltasse a abrir, poderia ver a mãe ajoelhada na lareira a polir o
latão da salamandra, ou batendo numa almofada para lhe dar volume, ou de pé
junto à janela a corrigir a dobra de uma cortina. A imprevisibilidade de
encontrar o lugar assim era quase insuportável. Era como se o tempo não
tivesse passado desde o dia terrível em que ela e Robert tinham levado a mãe
para o hospital – mas passara, e tantas outras coisas tinham mudado, que era
agora difícil arranjar maneira de as coisas fazerem sentido.
Rachel mudou de posição até ficar na frente dela, olhando-a com
curiosidade nos olhos. A sua cómica preocupação desenhou um sorriso nos
lábios pálidos de Alicia. Isto era outra coisa que não mudara ao longo dos
anos, graças a Deus, a amizade delas e a compreensão mútua que muitas vezes
não precisava de uma só palavra. Alicia olhou em volta de novo, observando
as aguarelas amadoras que pintara anos atrás, de vistas da rua principal da
aldeia e do memorial de guerra; de Glastonbury Tor; de Somerset Levels; da
Abadia de Bath; havia até uma da estação de Castle Cary. Que diabos a teriam
levado a pintar aquilo, perguntava Alicia agora. E porque as teria conservado
a sua mãe? E, contudo, todos os quadros que pintara antes de sair de casa
estavam ali, em algum lugar. Monica costumava mudá-los de sítio de vez em
quando, mas o lugar de destaque, por cima da lareira, fora sempre ocupado
pela sua preferida, a ponte em arco que atravessava o rio para Holly Copse.
Ao olhar para ela, um sorriso distante curvou os lábios de Alicia. Regressava
a um tempo em que quase nunca pousava os pincéis e as tintas. Agora nem
sequer tinha nenhuns, a não ser que houvesse algum material de pintura
escondido no sótão. Os seus esforços artísticos concentravam-se
presentemente na escultura, em peças satíricas ou pungentes feitas de bronze e
aço.
Colocando-se ao seu lado, Rachel observou também o quadro. Tinham
passado vinte anos, ou mais, desde que Alicia fora pela última vez ao Copse,
que na verdade tinha tamanho suficiente para se lhe poder chamar um bosque.
Em pequenos, era o lugar onde o pai costumava levá-los para colher amoras
na primavera, ou fazer piqueniques no verão, ou apanhar castanhas no outono,
ou recolher pinhas para as decorações de Natal. À noite, nas suas imaginações
férteis, enchia-se de bruxas, fadas, duendes, de todos os tipos de monstros
assustadores. Era o cenário das visitas de estudo escolares à natureza e,
posteriormente, dos ritos de passagem da adolescência. Foram muitas as festas
dadas lá, quando andavam no último ano do liceu. Consumia-se bebida em
excesso, fumava-se erva, e tanto ela como Rachel tinham dado os seus
primeiros beijos adultos no recanto debaixo da elevação conhecido como
Declive dos Amantes. Duas das suas amigas tinham mesmo perdido a
virgindade lá, ou, pelo menos, era o que diziam.
– Os teus filhos costumam ir lá? – perguntou Alicia a Rachel, que emitia
um suspiro sonhador.
– Agora vão menos do que costumavam – respondeu Rachel. – Já são
demasiado crescidos para verem aquilo como uma aventura, e demasiado
novos para irem às raves.
Alicia sorriu. Uma vez que Rachel e David tinham esperado para constituir
família, a sua filha mais velha, Una, era da idade de Darcie, e Todd só há
pouco cumprira nove anos.
– Então ainda há lá festas? – disse Alicia, avançando pela sala dentro.
– Pelo que ouvi, transformaram-se num dos eventos de presença
obrigatória da região. Aparentemente, agora há miúdos que vêm de muito
longe. Têm todos carros ou motos ou algum tipo de meio de transporte. Até
vêm de Londres de comboio, segundo dizem.
Com tantas escolas públicas e privadas num raio de trinta quilómetros de
Holly Wood, nunca faltariam jovens para as festas, pensava Alicia enquanto
atravessava a área dedicada à sala de jantar e abria a porta da cozinha.
– Vamos tomar um chá? – sugeriu. – Ou um vinho, se não tiveres de voltar
ao trabalho.
Rachel fez uma careta.
– Ótima ideia, mas infelizmente não trouxe nada comigo.
– Não há problema. Vim prevenida. Tenho tudo no carro.
Rachel estava adequadamente impressionada.
– Então, por que esperamos? – sorriu. – Vamos buscar o vinho. Tirei o
resto do dia… – interrompeu-se quando o telefone começou a tocar no átrio. O
seu olhar encontrou o de Alicia.
– Atende tu – disse Alicia. – Se for o Robert, diz-lhe que… – Diz-lhe que
nunca mais lhe voltarei a falar enquanto aquela cabra estiver a viver sob o
mesmo teto que ele. – Diz-lhe que não estou.
Enquanto Rachel percorria o átrio, Alicia voltou-se. Os seus olhos
estavam muito abertos e vidrados e já não viam o que a rodeava. Eram olhos
que queriam esquecer aquilo que tinham visto, apagar as imagens que os
assombravam, sem nunca conseguirem.

– Craig! Já viste que horas são? – gritou Alicia. – Anda lá, senão vamos
chegar atrasados.
– Já vou – gritou Craig em resposta.
Alicia voltou rapidamente para a sua elegante e recém-instalada cozinha
de granito preto e carvalho branqueado, onde Darcie estava empoleirada num
banquinho na ilha do centro, engolindo Coco Pops enquanto via uma emissão
de GMTV no plasma, e a chaleira assobiava sobre o fogão Aga, pedindo
desesperadamente para a tirarem dali. Fazendo-lhe a vontade, Alicia escaldou
algumas folhas de hortelã fresca num copo para si e, em seguida, despejou a
água sobre um saquinho de chá de pequeno-almoço para Craig, enquanto
sacudia fatias de pão de cereais acabadas de sair da torradeira e girava sobre
si mesma para tirar uma compota do frigorífico. Não era frequente
adormecerem, mas naquela manhã acontecera, e agora era pouco provável que
conseguissem levar os filhos à escola a tempo.
– A que horas tem o pai de estar no tribunal, sabes? – perguntou Alicia a
Darcie.
Engolindo uma colher generosa dos seus cereais favoritos, Darcie abanou
a cabeça. Os seus grandes olhos castanho-chocolate permaneceram colados ao
ecrã. Aparentemente, o que Andrew Castle tinha a dizer naquela manhã era
ainda mais fascinante do que o exemplar mais recente da heat, que se
encontrava aberto ao lado da taça de cereais, mas entretanto abandonado.
Sabendo que Craig não ficaria bem impressionado com a revista, Alicia
agarrou-a e enfiou-a na sua grande mala. Discussões eram algo de que não
precisava naquela manhã.
– Ei! – protestou Darcie. – Isso é meu.
– Devolvo-ta logo à noite – respondeu Alicia –, mas já sabes o que o teu
pai pensa desta revista.
– Ele é tão antiquado – resmungou Darcie.
– Vai lá prender o teu cabelo – disse Alicia.
– Não podes fazer tu isso? Trouxe a escova para baixo.
– Acho que nessa frase falta um “por favor”… – disse Alicia, começando
a desembaraçar as espirais louras de Darcie, tão parecidas com as suas.
– Prende-o com uma trança em cima, por favor – disse Darcie, passando-
lhe a escova.
– Hoje tens aula de teatro a seguir à escola?
– Não, foi cancelada, mas a Sra. Jay vai dar-nos uma aula de dança de
substituição, por isso saio às cinco. Vais-me buscar?
– Não, esta semana é a mãe da Verity que faz a ronda da tarde. A
propósito, é melhor ligares à Verity para lhe dizeres que estás atrasada.
Quando Darcie foi desligar o telemóvel do carregador, Alicia
acompanhou-a, continuando a entrançar-lhe o cabelo. Finalmente, Craig e
Nathan começaram a descer, com os pés a trovejarem sobre as escadas e as
vozes sobrepondo-se mutuamente enquanto conversavam. Quando chegaram à
cozinha, Craig dizia:
–… por isso, a coisa não deu porque ela não tinha cerejas suficientes no
bolo dela.
Nat sorriu.
– Que quer isso dizer? – perguntou.
– Que ela não tinha fruta que chegasse – respondeu Craig, e Nat desatou a
rir.
– O Oliver disse isso? – exclamou, referindo-se ao parceiro de Craig na
sala de audiências, que era mais conhecido pelo seu conservadorismo que por
algum tipo de humor atrevido.
– Juro-te, foi o que ele disse – respondeu Craig, rindo também, enquanto
tirava o saquinho de chá da sua chávena.
Com o seu espesso cabelo negro-azeviche, olhos escuros intensos e
feições requintadamente moldadas, era um homem extraordinariamente
atraente, cujo metro e oitenta e sete fazia por vezes parecer ainda mais
intimidante que o seu ar de Queen’s Counsel1 extremamente bem sucedido.
Naquela manhã, com o seu fato Armani escuro, camisa branca reluzente e
gravata cinzenta escura solta à volta do colarinho, parecia tão charmoso e
devasso como um playboy que passou a noite inteira acordado, uma vez que
era evidente que ainda não tinha tido tempo de se barbear.
– É uma tirada brilhante… – disse Nat, uma cópia a papel químico do pai,
à exceção dos olhos, enquanto começava a comer os Weetabix que a mãe já
tinha preparado.
– Tenho de me lembrar disto. Não tem cerejas que chegue no bolo.
– Vocês os dois são tão sexistas – disse Darcie, enquanto Alicia acabava
de prender o seu cabelo entrançado. – Ainda está a chover? Se estiver, não há
educação física.
– Mas precisas na mesma de levar o saco – disse-lhe Alicia.
– Onde está?
– Na entrada, pronto para levares.
– Ótimo. Pai, não te esqueceste de que vais dar uma palestra ao décimo
segundo ano, pois não? – perguntou.
– É claro que não – assegurou o pai, desligando o telemóvel do
carregador. – Está marcado na minha agenda.
– Só não quero que me deixes ficar mal ao esqueceres-te, ou se de repente
cancelares porque te surgiu um grande caso.
– Não te vou desapontar – disse Craig, dando-lhe um beijo na testa. – Vais
lá estar?
– Daah, tenho doze anos, ainda ando no oitavo– recordou-o Darcie –, mas
toda a gente sabe que és meu pai, por isso não me compliques a vida e vê se
apareces. E também não digas demasiadas piadas, está bem?, porque, vais-me
desculpar, pai, mas não tens mesmo piada nenhuuuma.
Os lábios de Alicia expeliram uma gargalhada repentina, diante da cómica
expressão magoada de Craig e, depois de tirar a chávena da mão do marido,
substituiu-a pela sua pasta, dizendo:
– Tens de ir, ou o Nat chega atrasado. Barbeia-te no carro. A que horas
tens de estar no tribunal?
Craig olhou para o relógio de pulso.
– Dentro de pouco mais de uma hora – respondeu com uma careta. – Anda,
filho, vamos embora.
– Levem os casacos – avisou Alicia nas suas costas –, está um frio de
rachar lá fora, esta manhã. E tenham cuidado com o gelo nas estradas.
– Espera aí, pai – disse Nat, começando a subir as escadas –, tenho de ir
buscar o portátil.
Voltando atrás para beijar Alicia nos lábios, Craig disse:
– Devo chegar outra vez tarde, logo à noite, por isso não esperes por mim
acordada.
– Outra vez? – gemeu Alicia. – Já passava da uma quando vieste para a
cama.
– Hoje devo chegar mais cedo – assegurou Craig. – Depois ligo-te para
dizer a que horas venho.
Quando se preparava para virar as costas a Alicia, esta fê-lo voltar atrás e
olhou-o diretamente nos olhos. Não precisava de lhe dizer o que a
incomodava, Craig saberia sem que tivesse de verbalizar as suas suspeitas.
– Juro que não é o que estás a pensar – disse ele suavemente –, e tens de
parar de fazer estas coisas. Está tudo acabado, e não quero ter de te continuar
a dizer isso.
– Achas que sou parva? – murmurou Alicia.
– Alicia, para – resmungou Craig entre dentes. – Agora não temos tempo
para isto, e já sabes que estou a trabalhar num caso muito difícil…
– Está bem, desculpa. É só que… Não consigo…
– Eu sei, mas não tens razão – e, sentindo que os olhos de Darcie os
observavam, beijou Alicia de novo nos lábios, piscou o olho à filha e
desapareceu pelo átrio fora.
– Nat – gritou, enquanto agarrava na gabardina. – Tenho o carro parado à
frente de casa, por isso vê se te despachas.
– Já estou a ir – respondeu Nat. – Posso guiar eu?
– Nos teus sonhos.
– Na semana passada deixaste.
Craig já tinha saído, fechando a porta da frente atrás dele para conservar o
calor em casa, e o som dos seus passos no curto caminho da frente
pavimentado a azulejos teve um fim abrupto quando alcançou o seu Mercedes
Classe S.
Ele tinha razão, pensava Alicia, enquanto preparava o saco de Darcie para
a escola. Ela tinha de ultrapassar aquilo. Ele não era o único homem casado
no mundo que tivera um caso – tantos tinham feito o mesmo, e os seus
casamentos sobreviveram. O deles também podia, ou melhor, já tinha
sobrevivido, mas se ela continuava assim, nunca confiando nele, sempre a
questionar onde Craig estava e com quem estava, acabaria por tornar as suas
vidas insuportáveis , e então perdê-lo-ia realmente. O simples pensamento de
que isto pudesse acontecer cavou um medo tão profundo no seu coração, que
Alicia podia sentir-se a começar a cair, mergulhando cada vez mais fundo,
num lugar onde não conseguia ver qualquer luz e onde poderia nunca ser
encontrada. Iria mudar, disse a si mesma com firmeza. A partir daquele mesmo
dia. Não ia inspecionar mais o telemóvel dele, ou os seus e-mails, e nunca
mais ia voltar a falar na outra mulher. No sábado seguinte faziam dezanove
anos de casados, por isso ia tratar de que os miúdos não estivessem em casa e
ia preparar um jantar à luz das velas, como costumavam fazer… Também
colocaria velas por toda a casa de banho e no quarto. Craig gostava de
romance, ambos gostavam, e ultimamente tinha havido muito pouco entre eles.
– Hoje vais ao teu estúdio? – perguntou Darcie, pousando a taça de cereais
na banca.
– Se tiver tempo – respondeu Alicia, colocando a carteira e o telemóvel no
saco. – Sou capaz de ter uma nova encomenda, já te disse? Bolas, esqueci-me
de contar ao teu pai. Nat, estas chaves são tuas? – perguntou em voz alta,
quando Nat apareceu a descer as escadas aos saltos.
– Sim, acho que sim – respondeu e, correndo pelo átrio fora, segurando o
portátil e a mochila no mesmo braço, deu-lhe um ruidoso beijo na face,
agarrou as chaves e, depois de depositar outro beijo na testa de Darcie, disse:
– Até logo. Não se esqueçam de que logo à noite a Summer vem comigo.
– Quem me dera que ele estivesse a falar da estação do ano e não da
namorada2 – murmurou Darcie. – Detesto quando está tanto frio.
– Anda lá – disse Alicia –, temos de nos ir embora. Já ligaste à Verity?
– Mandei-lhe uma mensagem.
– Mãe, meteste aqueles CD vazios no meu saco? – gritou Nat da porta.
– Sim.
– OK. Obrigada. Fui.
Nathan abriu a porta e Alicia tinha acabado de pegar no comando para
desligar a televisão quando ouviu o grito. O tom daquela palavra única – Pai!
– gelou-lhe o sangue. De súbito, estava a correr, com Darcie colada aos seus
calcanhares. Quando abriu a porta de par em par, Nat estava junto ao carro,
dobrado sobre o pai, que tinha o corpo caído meio dentro, meio fora do lugar
do condutor.
– Craig – disse Alicia sem fôlego, e, correndo pelo caminho abaixo, caiu
no chão junto a eles. – Que foi? Que aconteceu? – gritou, tremendo tão
violentamente que lhe afetava o raciocínio.
– Não sei – respondeu Nat. – Pai – chamou ele ansiosamente, abanando
Craig pelo braço. O corpo de Craig estava inerte, o seu rosto acinzentado, a
boca tinha um tom azul arroxeado. – Que lhe aconteceu? – perguntou Nat numa
voz rouca, enquanto Alicia, quase sem saber o que fazia, encostou o ouvido ao
peito do marido.
– Chama uma ambulância – disse roucamente.
Lívido, Nat procurou desajeitadamente o telemóvel.
– Mãe! – gemeu Darcie, com as mãos tapando a boca.
– Craig. Oh, meu Deus, por favor, Craig – gritou Alicia, começando a
bater-lhe com as mãos no peito.
– Não, mãe, não! – berrou Darcie.
– Preciso de uma ambulância, por favor – disse Nat ao telefone.
– Vai ver se o Dr. Cramer está em casa – gritou Alicia para Darcie.
Darcie desatou a correr pela rua fora e entrou desarvorada pelos portões
da casa quatro números mais abaixo.
Nat olhava horrorizado para o pai enquanto comunicava ao operador o seu
endereço. No extremo da praça, os carros rugiam e assobiavam ao longo de
King’s Road. Uma sirene, demasiado rápida para ser para eles, carpia e
apitava como uma gaita de feira. Alicia agarrou Craig pelas lapelas e sacudiu-
o, como se a sua raiva e pânico pudessem injetar alguma vida no corpo do
marido. A cabeça de Craig pendia para um lado, os olhos estavam
semicerrados como se olhassem para ela de uma maneira algo cansada e
divertida.
– Vais chegar atrasado – disse Alicia furiosa, por entre soluços.
– Ele vem já – disse Darcie, correndo de volta para junto deles.
Minutos depois, o Dr. Cramer deixou-se cair ao lado de Alicia, de joelhos
no mesmo charco de água. Alicia afastou-se, permitindo-lhe chegar a Craig,
mas sabia, mesmo antes de o médico se virar e abanar a cabeça, que já era
tarde de mais. Apertou uma mão sobre a boca à medida que um soluço
histérico irrompia do seu coração.
– Craig! – gritou desesperadamente. – Craig, não!
E, atirando-se a Craig, agarrou-se a ele com força, e continuava agarrada
ao corpo do marido, dizendo o seu nome por entre soluços, quando a
ambulância chegou e gentilmente a desprendeu dele.

1 N. da T.: o termo não tem correspondente em português. O Queen’s Counsel (ou King’s Counsel
quando o monarca é homem) é um advogado escolhido para representar e aconselhar juridicamente a
rainha de Inglaterra. Normalmente, só recebem esta nomeação advogados de renome e méritos
reconhecidos.
2 N. da T.: jogo de palavras ocasionado pela coincidência entre o nome da personagem e summer, verão.
Capítulo Dois
Rachel estava à procura de copos e um saca-rolhas enquanto Alicia
descarregava as compras que tinha trazido no carro. O frigorífico já estava
ligado, assim como os outros eletrodomésticos, embora Alicia ainda não
tivesse verificado se estavam todos a trabalhar bem. A cozinha era grande e
maravilhosamente acolhedora, com um fogão quase novo num nicho em arco,
numa parede onde tachos e panelas de cobre pendiam de ganchos de aço e uma
coleção de bules em miniatura enfeitava uma grossa prateleira de madeira.
Havia armários de treliça branca com superfícies de madeira de faia reluzente,
num estilo rural muito típico da mãe, com uma grande pia quadrada em frente
de uma enorme janela saliente onde Monica costumava cultivar diversas ervas
aromáticas. Também havia um aparador de cozinha antigo, onde estavam em
exibição as melhores peças de porcelana Royal Doulton. Portas de sacada
conduziam ao pátio das traseiras e ao jardim. A mesa no centro era de pinho
velho, enquanto as seis cadeiras apresentavam uma mistura estranha de faia e
carvalho.
– Vamos lá para fora? – perguntou Rachel, enchendo dois copos com um
Pinot Grigio muito claro.
– Porque não? – respondeu Alicia. – Vou procurar algo para comermos e é
capaz de haver um guarda-sol no barraco.
Tinha tirado o boné e abanava agora os cabelos. O volume e a suavidade
da sua cabeleira faziam-na parecer mais nova, mais vulnerável. O telefonema
de quinze minutos antes fora de Mimi, a florista, que também era tia de Rachel.
Mimi queria exprimir as suas condolências a Alicia e dizer-lhe que, se
precisasse de alguma coisa, só tinha de lhe ligar.
– O Pete gostará muito de aparecer por aí e ajudar no que puder – lembrou
Mimi a Rachel, referindo-se ao seu marido de humor seco e sofrimentos de
longa data, cujos serviços eram regular e indiscriminadamente oferecidos
sempre que Mimi encontrava algo para lhe dar a fazer. Certa vez, tinha mesmo
avançado o seu nome para proferir o sermão, quando o cónego Jeffries ficara
doente com gripe, ignorando alegremente o facto de Pete não ser nem
ordenado, nem um bom orador, nem mesmo um cristão particularmente devoto.
E, assim, chegou ao fim o primeiro momento de pavor de cortar o fôlego.
Não fora Robert a telefonar, facto pelo qual Alicia estava bastante grata, pois
realmente não se sentia ainda pronta para enfrentar aquele problema particular.
Nos seus piores momentos, perguntava a si própria se teria energia para
enfrentar o que quer que fosse, uma vez que perder o marido e a mãe num
espaço de tempo tão curto a despedaçara por completo. Agora, nada lhe
parecia certo, não se sentia bem dentro da sua própria pele, nem lhe parecia
mesmo ser a pessoa que pensava os seus pensamentos. Às vezes, era como se
o mundo inteiro estivesse a fugir-lhe das mãos e ela estivesse presa a ele
apenas por um fio finíssimo. Bastaria inspirar profundamente para encontrar
de novo o equilíbrio, ou talvez o peso do ar fosse de mais para ela e Alicia
mergulhasse irremediavelmente no vazio.
Deixando Rachel a preparar as bebidas e um prato de aperitivos, foi abrir
a porta do barracão do jardim, e logo se viu transportada num turbilhão até à
sua própria infância e à dos seus filhos. A mistura acre de creosoto, aguarrás e
terra evocava tantas cenas do passado, que Alicia quase ergueu as mãos para
as impedir de se avolumarem. Não podia permitir que as suas memórias
sequestrassem o presente e tomassem conta dele. Tinha de as manter
sepultadas, cuidadosamente guardadas num local onde estavam a salvo e bem-
amadas, para as ir buscar uma de cada vez, não todas juntas de rompão, para a
varrerem como uma onda de saudade e desespero. Rapidamente começou a
vasculhar por entre os utensílios de jardinagem, brinquedos velhos,
espreguiçadeiras e latas de tinta em busca do guarda-sol que tinha a certeza de
estar lá em algum lugar. Acabou por encontrá-lo enfiado atrás de uma velha
máquina de costura a pedal que pertencera à avó; puxou por ele, sacudiu-lhe
as teias de aranha e levou-a até à mesa, onde Rachel já se estava a deleitar
com o maravilhoso dia de verão.
O jardim das traseiras, como o da frente, tinha um relvado verde
exuberante com uma banheira para pássaros em pedra no meio e, num dos
cantos, uma macieira cujos ramos carregados de frutos se inclinavam sobre os
arbustos coloridos. Muitas luas atrás, houvera um baloiço e um escorrega no
relvado, e nos dias quentes de verão Monica costumava encher uma piscina
infantil para as crianças chapinharem na água e se refrescarem. A maioria dos
contemporâneos de Alicia teria boas lembranças deste jardim, fosse de
brincarem a vestir-se com as roupas da loja de beneficência de Monica, ou
aos médicos e enfermeiros com uma bem abastecida caixa de primeiros
socorros e um velho estetoscópio do pai, ou a encenarem peças dirigidas por
Mimi e Monica. Alguns dos melhores jogos, no entanto, tinham sido criados
por Robert que, já naquela altura, era um ás para inventar dispositivos
estranhos e fascinantes capazes de voar, falar ou andar, ou qualquer outra
coisa que não fosse suposto fazerem. Não foi surpresa para ninguém que se
tivesse tornado cientista, dirigindo agora os laboratórios de pesquisa do
Ministério da Defesa em Wiltshire, com uma equipa de outras duas centenas
de cientistas trabalhando sob as suas ordens. Apesar de todos os seus projetos
serem top secret, mesmo que Robert fosse livre para os discutir, os detalhes
seriam certamente demasiado complicados para a cabeça da maioria deles.
Depois de enfiar o guarda-sol numa base de ferro fundido e de o abrir para
criar alguma sombra, Alicia puxou uma cadeira e sentou-se com um suspiro,
deixando que a sensação transmitida pelo jardim assentasse à sua volta. O céu
era de um azul perfeito e profundo, o ar estava quente e húmido, e somente o
trinado ocasional de um tentilhão e algumas borboletas esvoaçantes
quebravam o seu silêncio. Estar ali parecia certo a Alicia, reconfortante e
seguro, e no entanto, ao mesmo tempo, tinha a sensação de algo estar
completamente errado.
Apercebendo-se de que Rachel a observava, Alicia pegou na sua bebida
para lhe fazer um brinde.
– À tua – disse. – Obrigada por estares aqui. Provavelmente, tinha-me ido
abaixo se tivesse vindo até aqui sozinha.
Não duvidando disto nem por um segundo, Rachel disse:
– Fico contente por a Darcie ter tido o bom senso de me ligar.
– Ah, então foi ela que me delatou. Pensava que tinha sido o Nat. Quando
ela ligou disse-te que estava em França?
Rachel pareceu surpreendida.
– Não, que é que ela está lá a fazer?
– Os pais de uma das amigas dela têm uma casa na Bretanha e vai ficar
com eles até à segunda semana de agosto. Ela precisava de umas férias – e de
um tempo longe de mim, para dizer a verdade.
Rachel olhou para ela sem se alterar.
– Ela está preocupada contigo – disse suavemente.
Alicia assentiu com a cabeça.
– Estamos todos preocupados uns com os outros.
– É claro.
Ficaram em silêncio por uns momentos, bebendo pequenos goles das suas
bebidas e desfrutando do prazer fácil e familiar de simplesmente estarem
juntas.
– Devia cá ter vindo depois de a minha mãe morrer – disse Alicia por fim.
– Queria vir. Sempre detestei pensar neste sítio vazio e deixado ao abandono,
com as coisas todas dela… Mas não conseguia enfrentar isto. Na verdade,
enfrentá-la a ela – disse Alicia com uma risada áspera e sem humor. – O meu
marido e a minha cunhada. Que anedota. Que cliché tão triste, tão sórdido.
Rachel não disse nada em contrário, uma vez que também não nutria
qualquer apreciação por Sabrina.
– O Craig ofereceu-se para vir comigo mais de uma vez – prosseguiu
Alicia –, mas eu não o queria perto dela. Não parava de o imaginar aqui, neste
jardim ou dentro de casa, a pensar nela e no que ela estaria a fazer, se ela seria
capaz de pressentir que ele estava por perto. Talvez ele descobrisse uma
maneira de a informar de que vinha para cá, para que pudessem tentar
encontrar-se em segredo. Imaginei todos os tipos de comunicações telepáticas
entre ambos, que os podiam fazer encontrar-se na rua principal, ou no pub,
fazendo parecer que se tratava de uma coincidência, quando na verdade tinham
uma ligação entre eles que transmitia mensagens como um telefone, ou email,
ou carta. – O sorriso de Alicia ensombrava-se cada vez mais com uma tristeza
amarga. – Por isso, quando o Robert ligou a perguntar se devia começar a
limpar a casa, deixei-o fazer tudo sozinho. Ele disse que só ia dar as roupas da
nossa mãe e alguns livros, e que esperaria até eu me sentir pronta a lidar com
o assunto para tomar decisões em relação à mobília e à casa. Só peço a Deus
que a mulher dele não tenha posto um dedo nas coisas da minha mãe. Acho que
ele não a deixava, sabendo o que eu pensaria do assunto. Se deixou, prefiro
não saber. – Virou-se para olhar para Rachel e a sua expressão suavizou-se ao
imaginar o rosto amável e sério do irmão. – Estes dois últimos anos devem ter
sido realmente duros para ele – continuou –, com a mulher a ter um caso, a
morte da mãe, nós deixarmos de ter um relacionamento quando costumávamos
ser tão chegados. Gostava de tentar compensá-lo, mas é difícil ver como,
enquanto ele continuar casado com ela.
Rachel, que sempre achara notável que os dois casamentos tivessem
conseguido sobreviver à aventura, disse:
– Sabes como é que eles se estão a dar, atualmente?
Alicia abanou a cabeça.
– Nas poucas ocasiões em que falei com o Robert, ele nunca falou nela, e
eu nunca perguntei.
– Que disseste aos miúdos? Ele foi sempre um tio tão fantástico e eles
eram muito chegados à Annabelle, antes de tudo ir por água abaixo.
– Sempre fui bastante vaga sobre o assunto, dizendo somente que a Sabrina
e eu não nos dávamos bem e que tínhamos decidido que era melhor não nos
encontrarmos muito. Mas eles sentiram a falta de vir cá. Pelo menos a minha
mãe costumava ir a Londres com muita frequência, antes de o cancro a afetar
mesmo a sério – disse Alicia, suspirando e engolindo as lágrimas. – É uma
lista dos diabos, não é? – perguntou. – Primeiro, o meu marido tem um caso
que abre um fosso entre mim e o meu irmão, um ano mais tarde a minha mãe
morre e, seis meses depois disso, o meu marido cai fulminado por uma
embolia pulmonar; nem consigo imaginar o que virá a seguir.
– Seja o que for, as coisas não podem ficar piores do que estão –
assegurou Rachel de maneira expressiva.
Os olhos de Alicia dirigiram-lhe um aviso.
– Por favor, não tentes o destino – disse Alicia de maneira premente e
sóbria. – Costumava pensar assim, e acabei por estar sempre enganada, por
isso as minhas reservas de otimismo esgotaram-se. É melhor limitarmo-nos a
viver um dia de cada vez, e agradecer a Deus pela maneira maravilhosa como
os miúdos se têm portado e pelo apoio que me têm dado. Sobretudo o Nat –
disse, tentando sorrir. – Ele é tão estoico, capaz e adulto, e muito mais coisas
que me enchem de orgulho, mas continua sem querer falar do pai. Acho que
ainda nem sequer chorou a morte dele. – Ergueu o olhar e, apesar da coragem
que estava a tentar convocar, a sua desolação interior transpareceu quando
sussurrou numa voz trémula: – O Craig era o herói dele. Sabes como o Nat o
idolatrava. Nada que o Craig fizesse podia estar errado.
A expressão de Rachel mostrou a sua solidariedade.
– É óbvio que nunca lhe contaste sobre o caso.
– É claro que não, e agora que o Craig está morto não há necessidade
nenhuma de ele saber. De qualquer forma, já não havia. – Inspirou de maneira
profunda e incerta. – O Nat sempre acreditou que o pai nos era completamente
leal, o pilar da família, o que até era verdade, por isso não há motivo para
pensar de outra forma. – Alicia olhou para Rachel com um sorriso débil. –
Quem poderia imaginar que ele ia morrer tão novo? – disse sombriamente. –
Não parecia possível, pois não? Ainda não parece.
Já a par dos detalhes de como o dinâmico, charmoso e carismático Craig
Carlyle fora arrancado à família no auge da vida, Rachel colocou a mão no
braço de Alicia num gesto de conforto sem esperança. Craig e Alicia tinham
certamente tido as suas dificuldades nos últimos anos, mas Rachel nunca
duvidara do quanto Alicia o amava. Assim, perdê-lo daquele modo, logo após
a morte de Monica e sem qualquer aviso, quando as coisas estavam apenas a
começar a ficar bem de novo, fora totalmente devastador para Alicia e para os
filhos. Não era de admirar que, seis meses depois, os três ainda estivessem a
recuperar do choque.
– Onde está o Nat agora? – perguntou Rachel.
Alicia engoliu um gole de vinho.
– Continua em Londres. Está a trabalhar à experiência com o Henry
Taverston esta semana.
Reconhecendo o nome, Rachel pareceu surpreendida.
– E porque não com alguém do gabinete do Craig? – perguntou.
– O Nat e o pai decidiram que o Nat devia abrir as asas um pouco, e não
ficar demasiado debaixo da proteção dele; por isso o Craig fez preparativos
no sentido de ele passar esta semana com o Henry, e mais outra com o Jolyon
Crane em Bristol, no fim de agos…
Alicia baixou os olhos enquanto a sua voz era engolida por uma onda de
dor. Segurando-lhe na mão enquanto a amiga lutava com as emoções, Rachel
esperou pacientemente, desejando poder dizer ou fazer alguma coisa para lhe
atenuar a perda. Nos últimos meses tinham passado muitas horas ao telefone,
revivendo os tempos felizes, bem como a traição, os momentos finais da vida
de Craig e o pesadelo que se lhe seguira. Aceitar e lidar com a morte súbita de
um companheiro, e de um pai, era certamente uma das provas mais difíceis que
a vida poderia colocar no nosso caminho.
– Quanto tempo pensas ficar? – perguntou Rachel, enquanto Alicia
estendia a mão para o vinho.
Alicia manteve os olhos baixos ao responder.
– Esta agora é a minha casa. A casa de Londres foi vendida.
Rachel mal conseguiu evitar que o queixo lhe caísse.
– Nem sabia que a tinhas posto à venda – disse cautelosamente.
– Os carros também se foram – continuou Alicia. – Na verdade, o stand
ficou com os dois Mercedes, como pagamento das prestações em dívida.
O choque de Rachel aumentava.
– Mas aqueles carros valiam uma fortuna…
– Tal como a casa. Quase dois milhões, dá para acreditar? Vendi-a com o
recheio e tudo, e, depois de pagar a hipoteca, fiquei com a fantástica soma de
duas mil quinhentas e quarenta libras, mais o pouco dinheiro que ainda tenho
na minha conta pessoal.
Rachel parecia mais perplexa e alarmada que nunca.
– Não estou a entender – disse.
– O empréstimo não tinha seguro – explicou Alicia –, e da maneira que os
preços têm descido… Tive de vender a casa praticamente pelo que pagámos
por ela.
– Mas como pode alguém como o Craig não ter… Desculpa, não estou a
ajudar. Estou só admirada…
– É natural. Eu também fiquei. Há um ano contraímos uma nova hipoteca
para libertar algum capital e, aparentemente, o Craig ainda estava a negociar o
seguro do empréstimo quando morreu.
– Então, o seguro não estava ativado? – Rachel nem queria acreditar no
que ouvia.
Alicia abanou a cabeça. Rachel procurou algo que dizer, mas as palavras
não apareciam. No fim, perguntou:
– E que aconteceu a esse dinheiro que libertaram com a hipoteca?
O olhar de Alicia encontrou o dela e depois desceu de novo.
– O Craig deu-o – respondeu.
Rachel tinha a certeza que não ouvira bem.
– É uma longa história – começou Alicia –, mas há uma família… Há um
casal que perdeu ambos os filhos num incêndio e Craig achou que, se não
tivesse livrado o incendiário de uma acusação anterior, este teria ficado atrás
das grades e as crianças ainda estariam vivas. Queria tentar ajudar os pais,
fazer algo para tornar o seu futuro mais suportável, e então deu-lhes o
suficiente para comprarem outra casa. Era muito melhor do que aquela que
tinham perdido, e que – olha só a ironia – não tinha seguro, de modo que
haviam perdido a casa e os filhos. Craig fez o que pôde para preencher uma
das lacunas, e, a seguir, como que para continuar a compensar os erros, passou
a aceitar muitos mais casos pro bono, o que trazia algum conforto à sua
consciência, apesar de os nossos rendimentos terem começado a diminuir. Ele
dizia-me que ficaria tudo bem, que íamos ultrapassar aquilo, e tenho certeza de
que o teríamos feito, se tivéssemos a oportunidade, mas infelizmente não
tivemos.
Pensando que a amiga já tinha passado por muito, Rachel só conseguia
olhar para ela com piedade e frustração. Queria ajudar, precisava
desesperadamente de fazer este fardo adicional desaparecer, mas já era tarde
de mais. A casa tinha sido vendida, e Alicia estava ali.
– Não posso acreditar que não me contaste nada disto antes – disse por
fim.
Alicia abanou a cabeça, parecendo também não compreender a sua atitude.
– Suponho que desejava que nada disto fosse real, perder a nossa casa, ter
de mudar toda a nossa vida… Pensava sempre que os problemas iam
desaparecer, ou algo iria acontecer para solucionar tudo…
Rachel recostou-se para trás na cadeira, ainda demasiado atordoada pela
notícia para conseguir abarcá-la por completo. Virou-se para olhar para o
outro lado do jardim, como se em algum lugar além dele pudesse encontrar
uma explicação racional para este golpe suplementar que Alicia recebera.
– Não sei que dizer – murmurou, virando-se de novo para a amiga.
Alicia sorria debilmente. Olhava um casal de toutinegras a chapinhar na
banheira para pássaros, pensando em quanto prazer a mãe retirava de observar
aves. Não se permitiria sentir a falta, ansiar por que a mãe se viesse sentar
com elas; em vez disso, ia dizer a si mesma que Monica estava lá, na sua
própria dimensão, vendo-as, ouvindo, importando-se.
– Agora ainda deves dinheiro? – perguntou Rachel.
– Não, graças a Deus, mas foi por pouco. De qualquer maneira, mesmo que
tivéssemos seguro, continuaria a não ser capaz de manter a casa ou pagar o
colégio dos miúdos sem o rendimento do Craig, por isso acho que vender a
casa e deixar Londres era inevitável.
Rachel olhava-a com ternura, perguntando a si própria como conseguia
Alicia parecer tão calma e falar de maneira tão branda, quando por dentro
devia estar feita em pedaços.
– Não paro de pensar em como ele era, nos últimos meses – disse Alicia
com voz incerta. – Andava muito mais stressado do que nos deixava entender a
todos, tenho a certeza disso. Andava preocupado comigo, por eu estar tão
perturbada com a morte da minha mãe e ter tanto medo que ele ainda se
andasse a encontrar com ela. Ele jurou-me que não andava, mas nunca fui
suficientemente corajosa – ou estúpida – para acreditar. Ele trabalhava sempre
até tão tarde. Sei que isso não é invulgar para um advogado, mas…
– Não faças isso – interrompeu Rachel. – Tens de tirar esses pensamentos
da tua cabeça porque não te vão ajudar em nada.
Alicia bebeu outro gole de vinho e sentiu a sua acidez na língua, um
instante de distração da ferida muito mais amarga que queimava no seu
coração.
– Pelo menos, o Craig usou algum do capital que libertámos para liquidar
o imposto sucessório sobre esta casa – as palavras pareciam vir de uma parte
longínqua e desligada do seu ser –, ou agora eu e os miúdos seríamos sem-
abrigo. Pergunto-me se ele terá feito isso para ter a certeza de que tínhamos
um sítio para morar antes de nos abandonar para ir viver com ela.
Rachel engoliu em seco. Embora não pudesse acreditar que isto fosse
verdade, entendia perfeitamente os motivos para Alicia pensar assim.
– Tens alguma prova de que ele se andava a encontrar com ela outra vez? –
perguntou.
Sentindo a negação espetar as garras no seu coração, Alicia teve
dificuldade em manter a voz firme quando disse:
– Não descobri nada e, acredita em mim, fartei-me de procurar – disse,
olhando para Rachel e, depois, desviando o olhar novamente. – Ele sempre
disse que aquilo tinha sido um erro terrível e que nunca faria nada parecido de
novo. De acordo com as evidências, estava a dizer a verdade, mas tinha
havido tantas mentiras, e ele tinha sido tão bom a ocultar a verdade da
primeira vez… Isto é, partindo do princípio de que aquela foi a primeira vez.
Tanto quanto sei, podem ter havido outras antes e depois… Não sei. Partilhei a
minha vida com ele durante os últimos vinte anos e agora começo a pensar que
na verdade nunca o conheci.
Ouvindo a tensão quebrar a voz da amiga, Rachel pousou a sua mão sobre
a dela.
– Nunca conhecemos os outros tão bem como pensamos – disse
suavemente –, mas acima de tudo ele era um bom homem e um ótimo pai.
Alicia desviou o rosto, precisando de engolir em seco para conseguir
falar.
– O mais ridículo é que – disse zangada – ainda estou aqui a sofrer porque
o amava tanto que quase desejo ter morrido com ele. Não é estúpido? O tipo
tem um caso, mente-me e engana-me, e eu ainda… – respirou ansiosamente. –
Estou tão furiosa com ele por ter morrido – gritou. – Ainda mais furiosa do
que estou por causa da aventura, ou do seguro. Mas onde é que isso me está a
levar? A lado nenhum. E, de todas as maneiras, o importante agora não sou eu,
nem ele, não é? São os miúdos. A Darcie vai conseguir lidar com tudo, a
mudança de escola… Ainda é suficientemente nova para não lhe fazer uma
diferença de maior, mas para o Nat pode ser um desastre. Ele está a ponto de
começar o décimo segundo, e tem tido notas tão boas, apesar da morte do pai!
Ele queria muito que o Craig tivesse orgulho nele. Tem a entrevista marcada
para a admissão a Oxford em dezembro, e agora tem de… Agora tem de…
Ao ver Alicia ir-se abaixo, Rachel deu rapidamente a volta à mesa para a
abraçar.
– Chhh, vai ficar tudo bem – disse, tentando acalmá-la. – O Nat é um rapaz
inteligente, não vai deixar que isto interfira, porque entende que, por vezes, a
vida não é tão justa como gostávamos que fosse.
– Tens razão, ele é assim, e está a tentar convencer-me de que não se
importa de acabar o décimo segundo ano numa das escolas daqui. Insiste que
vai “dar uma dimensão maior à educação dele”. – Alicia soluçou de novo. –
Não é típico? A dizer o que pensa que eu quero ouvir, porque não quer que
fique ansiosa ou preocupada, quando a vida inteira dele se está a desfazer aos
bocados.
– Mas não está nada. O Nat tem a resistência da mãe dele, lembra-te disso,
e o intelecto do pai, aliado ao seu charme determinado, por isso vai sair-se tão
bem em Stanbrooks ou Bruton como teria feito em Westminster.
Alicia riu por entre as lágrimas.
– Não vai ser Bruton, não temos dinheiro para isso – respondeu –, e se não
te conhecesse diria que vocês os dois estão combinados, porque isso é
exatamente o que ele diz – disse Alicia, com um suspiro trémulo. – Sei que sou
mãe dele e é natural que diga isto, mas ele está-se mesmo a tornar num rapaz
extraordinário. É tão atencioso e solidário, e também inteligente, ambicioso…
Desculpa, eu…
– Também é bastante divertido quando quer – continuou Rachel –,
extremamente generoso, um grande irmão, o melhor filho do mundo e, já agora,
não vamos esquecer que é lindo de morrer.
Alicia rebentou a rir.
– Também é irritantemente teimoso, cheio daquela arrogância adolescente,
impaciente, ferve em pouca água e, agora, demasiado crescido para se sentir
minimamente intimidado pela mãe.
Rachel sorria.
– Se bem conheço o Nathan Carlyle, agora deve pensar que o papel dele é
tomar conta de ti – disse.
– E é disso que tenho medo. Ele é responsabilidade minha, não ao
contrário, mas tenho de me lembrar de que as coisas ainda são muito recentes.
Se tudo correr bem, quando ele estiver empenhado a preparar os exames finais
e a planear o seu ano sabático… Ainda não lhe disse que não vamos ter
dinheiro para isso…
– Que é que estás a dizer? – atalhou Rachel. – Hoje em dia, os miúdos
financiam essas viagens sozinhos e tenho a certeza de que isso não vai ser
problema para o Nat.
– Provavelmente não, mas o meu filho tem grandes planos para o futuro…
– E todos se vão realizar, por isso para de te massacrares por agora. Ele
vai ficar bem. Vão os dois ficar bem.
Alicia esforçou-se por sorrir.
– Sobretudo graças à minha mãe – disse. – Se não me tivesse deixado a
casa e a loja, não sei o que faríamos à nossa vida.
– Ela sempre teve o hábito de salvar as situações – disse Rachel, com os
olhos cheios de memórias queridas.
Alicia assentiu com a cabeça, perguntando a si própria se a mãe as estaria
a ouvir. Nesse caso, talvez também fosse capaz de ouvir os seus pensamentos,
as palavras não verbalizadas de amor e gratidão e de uma saudade que nada
poderia nunca preencher.
– O Robert alguma vez te falou da tua herança? – perguntou Rachel,
pegando num biscoito salgado.
Sentindo um acesso de culpa pela forma como o irmão tinha sido excluído
daquela parte do testamento da mãe, Alicia abanou a cabeça.
– Não, mas acho que ele sabe que a intenção da nossa mãe era compensar-
me pela forma como me afastou daqui.
– E atualmente ele está tão bem na vida, que o dinheiro nem lhe faria falta.
Mas, vendo bem, também tu estavas quando ela fez o testamento. Quando foi a
última vez que falaste com ele?
Alicia emitiu um suspiro apreensivo.
– No funeral do Craig – respondeu. – Não pensei mesmo que ele fosse,
mas fiquei contente por vê-lo.
– É claro que ele te iria apoiar – disse Rachel.
Alicia esboçou um sorriso ténue.
– Só agradeço a Deus por ele ter deixado aquela bruxa má da mulher dele
em casa. Se ela tivesse aparecido, juro que teria perdido a cabeça.
– Já somos duas, mas, felizmente, ou ela não teve coragem de aparecer ou
descobriu uma pontinha extraviada de decência que a persuadiu a fazer o mais
correto.
Alicia foi percorrida por um sobressalto.
– Tenho medo só de pensar em como ela vai reagir quando souber que
regressei.
– Dadas as circunstâncias, não acho que sejas tu quem se deva preocupar.
De qualquer maneira, pelo que ouvi, hoje em dia ela não tem mãos a medir
com a filha.
– A Annabelle? Ela sempre foi uma miúda tão querida, apesar de ter por
mãe a Sabrina.
– Mm – murmurou Rachel sombriamente –, acho que vais descobrir que
ela está bastante diferente do anjinho que costumavas conhecer. Não que a
veja muitas vezes, mas já sabes como as pessoas falam. Sempre me espantou
como nunca se soube do Craig e da Sabrina.
Odiando ouvir os dois nomes associados, Alicia obrigou-se a ultrapassar
o sentimento, dizendo:
– Gostaria de pensar que é um grande segredo, mas toda a gente sabe como
nós as duas somos chegadas, por isso, se sabem, provavelmente nunca
falariam disso contigo.
– És capaz de ter razão. Disseste ao Robert que vinhas hoje?
– Não, mas se ele estiver por aí, por esta altura já deve saber que estou cá.
– Não duvido – concordou Rachel –, o que quer dizer que ele deve
provavelmente estar fora numa das suas viagens, porque tenho a certeza de que
entraria em contacto contigo mal soubesse. Como poderia deixar de o fazer?
És irmã dele e, apesar da proximidade que vocês sempre tiveram poder estar
sepultada sob os efeitos daquela aventura ressentida, no fundo do meu coração
sei que continua lá e, se calhar, completamente intacta.
Capítulo Três
Passava pouco das nove da manhã quando Sam Ellery, o carteiro local,
entrou na aldeia de bicicleta para começar a sua ronda. Tendo pouco que
distribuir no saco para os residentes e comerciantes da rua principal, em breve
estava na Holly Way, a elegante rua ladeada de áceres que se afastava da rua
principal numa curva, como a pá de uma ventoinha, para terminar num
frondoso beco sem saída com uma pequena ilha no centro, onde quem estava
perdido podia dar a volta. Agora que as escolas tinham fechado para o verão,
apenas havia pássaros para o saudar nessa manhã, chilreando e voando sobre
os galhos ricamente densos, e um ou outro gato repousando languidamente
sobre o capô de um carro caro, ou esperando pacientemente frente a algum
portal onde o deixassem entrar para tomar o pequeno-almoço. O ar estava
quente e perfumado com uma mistura agradável de madressilva, jasmim e o
odor persistente da torrada que alguém queimara. O carteiro podia ouvir o rio
à distância, borbulhando sobre as pedras no seu caminho para o dique, e o som
da Radio Two vindo de uma janela aberta.
Depois de deixar um pequeno pacote no número oito, e um punhado de
postais de aniversário no número 10, Sam pedalou na bicicleta ao longo das
quatro casas seguintes que não tinham entregas nessa manhã até à magnífica
mansão Queen Anne do fim da rua. Era a única residência em Holly Way que
tinha na frente portões elétricos e uma câmara de vigilância que registava
todas as movimentações no exterior. Sam sabia que a segurança se devia ao
trabalho de Robert Paige, mas não saberia dizer exatamente o que Robert
fazia, exceto que era algo de científico. Havia uma grande quantidade de
entregas especiais para Robert e, caso ele não estivesse em casa para assinar
os recibos, Sam teria de levar as encomendas de volta e deixar um bilhete
para avisar Robert, quando regressasse, de que havia algo para ele.
Aparentemente, nem mesmo a Sra. Paige podia receber o seu correio, embora
Sam nunca tivesse perguntado porquê. Simplesmente cumpria com o sistema,
tal como lhe tinham dito para fazer, metendo-se na sua própria vida e sentindo-
se secretamente contente por, no seu trabalho, não estar sujeito ao mesmo tipo
de pressões que Robert Paige provavelmente tinha no dele.
Apoiando a bicicleta contra os loureiros impenetráveis, estava prestes a
tocar no intercomunicador quando ouviu um carro a entrar na rua. Voltando-se,
semicerrou os olhos contra o sol da manhã, tentando perceber quem era. Sam
conhecia toda a gente, e gostava de acenar aos seus clientes, mas ainda não
conseguia distinguir a quem o carro pertencia. Definitivamente não era um
veículo que reconhecesse, mas afinal isso era natural, porque agora podia ver
que se tratava de um táxi, e parecia estar a dirigir-se para o fim da rua.
Logo a seguir, os sólidos portões negros atrás de si começaram a deslizar,
abrindo-se. O táxi abrandou, esperando para entrar, e, quando o automóvel
parou por completo, o vidro da janela de trás desceu.
– Bom dia, Sam – disse Robert Paige. – Tens alguma coisa para mim?
Sam ergueu o grande envelope castanho que se preparava para entregar.
– Uma coisa da Florida – disse, levando-lhe o envelope. – Preciso que
assines, por isso, hoje, o nosso timing foi bom. Como tens passado?
Acordaste cedo, para um sábado.
Conhecia Robert Paige desde o dia em que Donald e Monica tinham
chegado do hospital de Yeovil com aquela trouxinha aos berros, o que ia para
quase quarenta e um anos, e logo desde aí tinha-se afeiçoado ao rapaz.
– Venho direto de Heathrow – disse Robert, decidindo sair do táxi ali, em
vez de esperar que o carro avançasse para lá dos portões. – Apanhei o avião
da noite de Washington.
– Outra vez a confraternizar na Casa Branca? – brincou Sam enquanto
passava a Robert o livro de recibos para este assinar.
Robert riu.
– Desta vez, estive ocupado de mais para os conseguir meter na agenda –
gracejou. – Da próxima vez que lá for, mando-lhes cumprimentos teus.
Era um homem bem-parecido, na opinião de Sam, talvez a ganhar um
pouco de barriga ultimamente, e começara a perder o cabelo louro nos últimos
anos, mas os seus olhos azuis possuíam uma genuína cordialidade que nunca
deixava de lembrar Sam Donald, o pai, e no seu sorriso havia uma alegria
contagiosa que tanto Robert como Alicia tinham herdado da sua bela e meiga
mãe. Pegando no livro de novo com um risinho discreto, Sam observou Robert
enquanto este retirava a pasta do táxi e pagava ao motorista.
– Bem, é melhor ir indo – disse, quando o táxi começou a fazer inversão
de marcha. – Oh, a propósito, que bom a Alicia estar de visita, não é? Ainda
não a vi, mas a minha patroa esteve a falar um bocadinho com ela ontem no
pub. É uma pena o que aconteceu ao marido dela, não? Deve ter sido um
choque terrível, assim tão de repente, e tudo. E os miúdos ainda tão novos.
Fez-me pensar em como perdeste o teu pai quando tinhas mais ou menos a
mesma idade.
Lembrando-se tarde de mais de como o seu velho companheiro de escola,
Donald Paige, encontrara a morte, Sam sentiu um calor desconfortável
irradiar-lhe do pescoço.
– Sim, bem, foi bom ver-te, como sempre, meu rapaz – murmurou, pegando
na bicicleta. – Para hoje dão sol, e bem jeito nos faz, com toda a chuva que
tivemos.
Robert ficou a ver Sam afastar-se na bicicleta, consciente de que não
chegara a tranquilizar o velho, dizendo-lhe que a sua observação sobre o pai
não o ofendera, mas ainda estava sob o efeito da surpresa de ouvir que Alicia
estava em Holly Wood. Devia sentir-se feliz e, em algum lugar distante, sabia
que o estava, mas antes disso havia a compreensão do que aquilo iria
significar para a mulher. Já conseguia sentir uma consternação horrível
cavando no seu interior, e, lutando contra um desejo quase irresistível de virar
costas e voltar direito para Washington de novo, esperou que os portões
fechassem e encaminhou-se para casa.

Sabrina Paige já estava ocupada a preparar o pequeno-almoço de boas-


vindas ao marido quando ouviu os portões para o curto caminho de acesso
abrirem e um táxi entrar. Sabia mais ou menos quando o esperar, porque
Robert tinha ligado do aeroporto para lhe dizer que o avião chegara a horas,
altura em que tinha rolado prontamente da cama, tomado um duche e vestido
uns corsários, que realçavam na perfeição as suas pernas compridas, e um
colete de seda acobreado, que revelava generosamente os seus ombros e
braços tonificados e conferia um brilho cintilante à sua pele naturalmente
morena. O denso cabelo escuro e brilhante estava descuidadamente preso com
uma mola na nuca e os seus exóticos olhos castanhos escuros oblíquos e boca
sensual eram subtilmente realçados por uma utilização cuidadosa da
maquilhagem. Aos quarenta anos, Sabrina ainda era uma mulher
excecionalmente bela. No entanto, nos últimos tempos, a sua famosa beleza
ardente adquirira um ar ligeiramente devastado sob o efeito dos excessos de
emoção e, talvez, de um pouco de vinho a mais.
Quando Robert entrou pela porta da sua espaçosa cozinha em estilo rural,
Sabrina virou-se para ele com um sorriso carinhoso e aproximou-se para o
abraçar. Uma vez que Robert apanhara um voo noturno, depois de comer,
gostaria provavelmente de dormir para recuperar da diferença de fuso horário
e, embora ela não estivesse realmente com vontade de voltar para a cama, se
ele quisesse, não lhe diria que não.
– Estás com um ar cansado – murmurou, perscrutando-lhe o rosto. –
Dormiste alguma coisa no avião?
– Um bocadinho – respondeu Robert, e, deixando cair a pasta sobre a
mesa, soltou o nó da gravata e começou a abrir o envelope que acabara de
receber.
– Tens fome? – perguntou Sabrina, regressando para junto do fogão Aga
onde estava a derreter manteiga para fazer ovos mexidos.
Já sabia que não devia manifestar interesse pelo correio, sobretudo quando
era algo que só podia ser entregue contra a assinatura de Robert. O trabalho do
marido sempre fora confidencial, que era algo que Sabrina sempre tinha
achado irresistivelmente atraente. Ela adorava o ar de importância e
exclusividade que envolvia a sua investigação, e a forma como ele era
altamente considerado na sua área. E o facto de ser um funcionário do governo
suficientemente destacado para ser convidado para funções sociais em alguns
dos endereços de maior prestígio no mundo era um afrodisíaco tão grande para
ela como era motivo de inveja para todas as suas amigas.
– Mm – murmurou Robert, inspecionando rapidamente os documentos que
retirara do envelope. Abrindo o fecho de mola da pasta, meteu-os lá dentro e
abriu um exemplar do Financial Times.
– Está tudo bem por aqui? – perguntou, tirando o casaco. – Onde está a
Annabelle?
Partindo ovos para dentro de uma taça, Sabrina disse:
– Ainda deitada, é claro. Não faço ideia das horas a que chegou ontem à
noite. Ela gostava que eu acreditasse que chegou às onze, mas fui verificar à
uma da manhã e o quarto dela estava vazio, de modo que voltou a sair às
escondidas depois disso.
Robert acenava com a cabeça, como costumava fazer quando não estava a
prestar muita atenção. Depois, aparentemente apercebendo-se do que fora dito,
ergueu os olhos.
– Agora ela está cá – disse, mas sem transformar a frase numa pergunta.
– Está, mas não sozinha. A Georgia está na outra cama e acho que há
alguém a dormir num saco-cama no chão. O quarto está uma confusão tão
grande que é impossível distinguir o que quer que seja.
Relaxando, Robert colocou-se atrás dela e beijou-lhe a nuca.
– Cheiras bem – murmurou, apertando mais os braços à volta dela.
– E tu precisas de fazer a barba. Queres que corte o salmão fumado e o
misture com os ovos, ou preferes à parte?
– À parte – respondeu Robert e, dando-lhe uma palmada na anca, foi
encher uma chávena de café.
Depois de beber um gole, virou-se e encostou-se ao móvel atrás dele.
Durante vários minutos, observou a mulher a bater os ovos e juntar-lhes sal e
pimenta preta. Quando Sabrina se baixou para tirar pratos quentes do forno,
notou o contorno da tanga que ela usava e, uma vez que a tinha visto nua tantas
vezes, conseguia facilmente evocar uma imagem das nádegas suavemente
arredondadas e da pele suave. Já sabia que a mulher não estava a usar sutiã,
pois os seus mamilos notavam-se visivelmente através do fino top, e as suas
calorosas boas-vindas diziam-lhe que não seria rejeitado caso quisesse levá-
la para a cama. O que Robert também sabia era o motivo pelo qual ela estava
a ser tão conjugal e acolhedora, e magoava-o muito mais do que deixava
transparecer sentir o fantasma do amor passado da esposa intrometer-se de
novo entre eles.
Quando Sabrina pousou os pratos ao lado de um pacote de salmão fumado,
Robert bebeu outro gole do café e disse, num tom bastante casual:
– Ouvi dizer que a Alicia está cá.
Sabrina continuou a colocar as fatias de salmão nos pratos e, a seguir,
voltou para o fogão fingindo que não tinha ouvido.
– Tu sabias? – perguntou.
– É claro – respondeu Sabrina. A seguir, disse com um suspiro: – Suponho
que aquele intrometido do carteiro te informou.
– O nome dele é Sam. Então, porque não me disseste quando falámos
ontem à noite?
– Porque – disse Sabrina, pegando na frigideira para começar a deitar os
ovos batidos – não queria que viesses com isso na cabeça durante o voo para
cá.
Robert avaliou-a um instante e decidiu que podia ser verdade, pois, apesar
dos sentimentos de Sabrina por Craig e das terríveis profundezas em que se
afundara depois da rutura entre ambos, nunca pusera realmente em questão o
quanto ela se preocupava com ele.
– Vais vê-la? – perguntou ela, voltando a colocar a frigideira sobre o disco
quente.
– É minha irmã, porque não a iria ver?
Sabrina voltou-se de frente para ele.
– Já sei quem ela é – disse asperamente –, e podia dar-te várias razões
para não a ires ver, sendo a primeira a tua lealdade para comigo.
Ao ouvir isto, as sobrancelhas de Robert fizeram um movimento de
surpresa que a fez corar, mas a única resposta do marido foi beber outro gole
de café enquanto se aproximava da mesa e abria o jornal. Recordando como
era importante mantê-lo do lado dela, Sabrina dominou a frustração e acabou
de lhe preparar o pequeno-almoço.
– Suponho que ela não te disse que vinha – continuou Sabrina, quando já
estavam os dois sentados, com os pratos à frente.
– Se me tivesse dito, eu tinha-te contado – respondeu Robert, começando a
comer.
Sabrina cortou uma fina fatia de salmão, mas, descobrindo que não tinha
vontade de comer, pousou o garfo e pegou no café.
– Não sei como podes estar aí sentado tão calmamente – disse, – quando
sabes que…
– Sabrina, vamos mudar de assunto antes de começarmos a dizer coisas de
que nos vamos arrepender os dois.
– Foste tu que tocaste no assunto.
Robert não podia negá-lo, mas agora, vendo como ela estava a encarar as
coisas, gostava de ter deixado a questão lá fora, para ser varrida com as folhas
do chão, queimada e transformada em cinzas que o vento levasse consigo.
– Só não compreendo o que ela está a fazer aqui – continuou Sabrina num
tom zangado. – Ela tem aquela casa enorme em Londres e só Deus sabe quanto
dinheiro no banco. Podia ir para qualquer lado, por isso, porque…
– Não percebo porque é que te estás a preocupar com isso! – interrompeu
ele num tom irritado. – Considerando que ela perdeu o marido há tão pouco
tempo, seria um pouco mais caridoso da tua parte começares a tentar compor
as coisas entre vocês.
O coração de Sabrina estremeceu com as palavras, enquanto os seus olhos
se abriram, incrédulos, antes de dar uma gargalhada desdenhosa.
– Mesmo que eu quisesse, que não quero, achas mesmo que ela me ia
ouvir? Está tão cheia de ódio que nem sequer me ia deixar passar da porta.
– Então, tenta ligar-lhe.
– Não sejas engraçado, não te assenta bem. E aquela porta – prosseguiu –
é tão tua como dela…
– Não vamos falar disso outra vez. A minha mãe deixou a casa à Alicia
por uma boa razão…
– Tu eras filho dela, o mais velho. Tinhas direito a…
– Se as circunstâncias tivessem sido diferentes, tenho a certeza de que
tínhamos herdado os dois, mas agora estás a entrar num território muito
perigoso, por isso vamos mudar de assunto e acabar o pequeno-almoço.
Comia mais ovos, se houver.
Levantando-se da mesa, Sabrina agarrou na frigideira e deitou-lhe as duas
últimas colheres de ovos mexidos no prato.
– Quando falares com ela – disse, num tom abrupto –, acho que deves
deixar claro que é má ideia ela ficar cá.
– Quem disse que ela vai ficar cá?
– Foi o que ouvi dizer, mas ela agora deve estar a nadar em dinheiro, por
isso pode viver em qualquer lado. Não tem de ser aqui.
– Holly Wood é a casa dela.
– Não! É a nossa casa. Ela não vive cá pelo menos há vinte anos e mal cá
pôs os pés nos últimos dois.
– Já sabemos porquê.
Apesar dos maxilares terem ficado tensos e de dar consigo a ansiar pelo
apoio de Craig, Sabrina optou por ignorar a referência, dizendo:
– Ela faz ideia de como ficaste perturbado quando a tua mãe te excluiu do
testamento? Alguma vez lhe disseste?
– Ela não precisa que eu lhe diga, e quem sofreu mais com isso foste tu,
não eu. Pela parte que me toca, a Alicia merece ficar com a Coach House.
A observação fez passar um clarão de raiva pelos olhos de Sabrina.
– Queres saber o que eu penso? – perguntou, furiosa. – Penso que tens
medo dela.
Robert pestanejou espantado.
– Nunca a confrontas por causa de nada – acusou Sabrina, num tom
acalorado. – Deixas que ela me trate como se eu fosse uma espécie de pária,
deixa-la passar impune e, agora que voltou para cá e se prepara para me tornar
a vida insuportável, vais-te limitar a deixá-la fazer o que quer.
– Estás a fazer imensas suposições…
– Porque te conheço, Robert Paige. Vais-te enterrar no teu trabalho, como
sempre fazes, e fingir que não se passa nada. Bem, deixa que te diga uma
coisa…
– Já chega! – exclamou Robert num tom agressivo. – Não sei porque te
estás a enervar tanto com isto, e muito menos consigo perceber porque te estás
a comportar como se fosses a parte ofendida, quando sabemos os dois que está
muito longe de ser o caso.
Corando profundamente, Sabrina disse:
– Bem, obrigada pelo teu apoio. Devia saber que ainda me continuas a
culpar pelo que aconteceu…
– Porque foste tu a responsável, Sabrina. Tu e o Craig. Se não tivessem
tido um caso, a minha família não teria sido despedaçada como foi, e a minha
mãe não teria tido de viver no pavor de vos ver às duas discutirem na frente
dela, como aconteceu quando tudo se soube. Foi isso que impediu a Alicia de
vir cá, sabes disso tão bem quanto eu. Não podia suportar a ideia de aquilo se
repetir, ou de as pessoas descobrirem o que se passava, não por causa das
consequências para ela, mas pela vergonha que eu iria passar se toda a gente
descobrisse que a minha mulher me tinha enganado com o meu próprio
cunhado. Foi por isso que a Alicia mal foi visitar a minha mãe até ela estar no
hospital para doentes terminais, para a poupar ao medo de outro confronto, e
foi por isso que a minha mãe lhe deixou a casa a ela, para a tentar compensar
pela forma como a afastou. Por isso, Sabrina, é verdade, tens culpa do que
aconteceu, juntamente com o Craig, mas agora ele está morto, por isso tens de
a carregar sozinha, e, embora eu te possa ter perdoado, nem por um instante
imagino que a minha irmã tenha feito o mesmo, ou o venha a fazer.

Annabelle não ficou para ouvir a resposta da mãe à diatribe de Robert,


estava com demasiado medo de que Sabrina saísse intempestivamente da
cozinha e chocasse de frente com ela. Assim, girando silenciosamente sobre os
pés descalços, correu pelo átrio e subiu a escada atapetada até ao seu próprio
domínio pessoal na extremidade do primeiro andar. Vestia apenas uns calções
de pijama muito finos e a mesma t-shirt branca justíssima que usara na festa
para a qual se tinha esgueirado na noite anterior. O sutiã que tinha ao início da
noite ficara algures pelo caminho, provavelmente entre os lençóis da cama dos
pais de Melody Gillman. Tinha de se lembrar de ligar à Melody para lhe pedir
que fosse ver, antes que o sutiã caísse nas mãos erradas.
– Então, que aconteceu aos batidos? – perguntou Georgia, piscando os
olhos turvos deitada na cama extra, enquanto Annabelle voltava a entrar no
quarto.
Afastando com as mãos o seu abundante cabelo escuro do rosto manchado
de rímel, Annabelle estava de costas para a porta, com uma mão na maçaneta
redonda de latão, a outra pousando sobre os seus seios jovens e perfeitos. Os
seus olhos cor de bronze cintilavam, os lábios cheios em forma de coração
estavam recurvados num maldoso sorriso satisfeito.
Emergindo de um saco-cama coberto de roupa, Catrina bocejou e gemeu.
– Porquê essa cara? – perguntou em voz rouca. – Meu Deus, a minha
cabeça dói tanto. Diz-me, fiz mesmo aquilo que penso, ontem à noite? Estava
aqui deitada a pensar nisso… – a voz de Catrina esmoreceu quando ela se
encolheu sob os efeitos da ressaca.
Annabelle arqueou as sobrancelhas imaculadamente depiladas,
transformando-se, sem o saber, numa versão mais nova da mãe.
– Depende do que pensas que fizeste – respondeu, afastando-se da porta
em direção ao toucador, um impressionante móvel de canto cheio de gavetas,
armários e espelhos, coberto de produtos de maquilhagem, acessórios para o
cabelo, livros, revistas e bijutaria suficiente para adornar uma dúzia de
sessões fotográficas.
– Merda, olha para o estado em que estou – resmungou Georgia, olhando-
se num espelhinho de mão.
– Eu estou igual – gemeu Annabelle, franzindo a testa ao ver o seu reflexo
no espelho. – Ainda bem que não dei de caras com a Mulher-Demónio e o Dr.
Anormal quando fui lá abaixo.
– Onde estão os batidos? – repetiu Georgia, com a garganta irritantemente
seca.
A seguir, balançou as longas pernas para fora da cama e tentou levantar-se,
mas não conseguiu ir mais longe antes de se desequilibrar e cair para trás na
cama, a lamentar-se e a rir.
– Estás tão pedrada – informou-a Annabelle, começando a esfregar a pele
com uma toalhita desmaquilhante.
– Onde está o meu telemóvel? – perguntou Catrina. – É melhor mandar uma
mensagem à minha mãe para lhe dizer onde estou, ou ela vai acabar por fazer
algo tresloucado como chamar a polícia, ou ligar ao meu pai para lhe dizer
que já não aguenta mais. Porcaria de carteira.
– Então, como correu com o Marty ontem à noite? – perguntou Annabelle a
Georgia. – Estavas tão bêbada quando voltaste para a festa, que pensei que ias
vomitar.
– Acho que chegámos a vias de facto quando fomos lá fora – confessou
Georgia. – Não me consigo lembrar bem. E tu?
Annabelle sorriu mostrando os dentes, e exibiu três dedos. Os olhos de
Georgia arregalaram-se.
– Estás a brincar.
– Quê? Que aconteceu? – quis saber Catrina.
– Ela esteve com três ontem à noite – disse Georgia.
Catrina olhou para Annabelle, extremamente impressionada. A mais nova
estava a converter-se na mais ousada.
– Ainda não bateste o recorde – disse, referindo-se ao limiar de quatro
rapazes por noite que ela própria estabelecera algumas semanas antes –, mas
não deixa de ser espantoso. Quem foram? Sei que um foi o colega do Carl,
como é que ele se chama mesmo?
– Tom – informou Georgia.
– É isso. Foi mesmo a primeira vez dele?
Annabelle assentiu com a cabeça, prosseguindo com a inspeção do seu
reflexo.
– Foi por isso que eu disse que sim – lembrou Annabelle. – Ele até é giro
e eu estava numa onda de generosidade, mas não acho que vá repetir. O Carl
foi igual ao de sempre, só vê sexo à frente, mas depois alguém entrou no
quarto e tentou juntar-se a nós. Agora não me lembro do nome dele… Acho
que é Jason, ou Justin. Na verdade, é capaz de ser James. De qualquer
maneira, eu não ia deixar, mas o Carl disse que ele era um tipo porreiro, por
isso pensei, bolas, porque não? Nunca fui para a cama com três na mesma
noite, ao contrário de algumas – acrescentou, olhando de soslaio para Catrina.
– Mas pronto, não é nada comparado com o que a Melody fez. Viram-na na
cozinha?
– Meu Deus, vi, vi – guinchou Georgia muito excitada. – Ela só se estava a
servir do Rudi para mostrar à Katie Bridge como fazer um broche, depois
começaram-lhe a dar vómitos e teve de ir a correr para a casa de banho. Foi
tão nojento! Disseram-me que ela depois desmaiou, e é capaz de ser verdade,
porque não me lembro de a ver mais antes de virmos embora.
– Isso foi porque não conseguias ver mesmo nada – recordou-lhe
Annabelle.
– E o Archie? – perguntou Catrina. – Sempre apareceu?
– Disse-te isso à vinda para cá – respondeu Catrina com desalento. – Ele
apareceu, mas trouxe a F-F-Felicity com ele, não é verdade? É mesmo um
estupor. Quando falei com ele de tarde, prometeu que se ia livrar dela e que ia
sozinho, mas ela esteve sempre coladinha a ele.
– Mas ainda te enrolaste com ele – lembrou Georgie.
– Foram só uns beijos rápidos atrás da casa dos convidados. Na verdade,
é suposto encontrarmo-nos hoje de tarde. Ele disse que me ia buscar de carro
atrás da estação. Ainda tenho de descobrir como chegar lá. Annabelle,
precisamos de líquidos, pá, está-me a faltar o ar.
– Tudo bem, eu vou lá abaixo de novo – respondeu Annabelle, passando
uma escova pelo cabelo. – Há bocado não pude ir à cozinha porque a Demónia
e o Anormal estavam a ter uma discussão qualquer por causa da minha tia
Alicia. Parece que ela voltou para Holly Wood e a criatura-mãe não está muito
contente com isso. Elas odeiam-se.
– Porquê? – perguntou Catrina sem um interesse real, fazendo um esforço
para ser educada.
Annabelle levantou-se da cadeira estofada.
– Não faço ideia – respondeu alegremente. – Tudo o que sei é que, se a
Alicia ficar cá, o mais provável é que o meu primo Nathan venha visitá-la, ou
mesmo morar para aqui.
– Oh, não, o famoso Nathan – disse Georgia, sarcástica, fazendo Catrina
rir.
– Então, pode ser que o conheçamos, finalmente – disse Catrina.
Por instantes, vislumbrou-se preocupação através da habitual carapaça de
mulher crescida de Annabelle.
– Se conhecerem, façam o favor de se manter afastadas. Ele é meu –
comunicou acaloradamente.
– Ele é teu primo – disse Georgia. – Isso é nojento.
– Não somos parentes de sangue.
– Mesmo assim, não é correto.
– Quem disse? Bem, vou lá abaixo outra vez ver o que consigo encontrar
para beber – e comer. Se o meu telemóvel tocar e for o Carl, digam-lhe que
gostei do amigo dele, o Jason, ou lá como ele se chama, por isso ele deve
trazê-lo a casa do Ed hoje à noite.
Pegando num roupão pendurado na porta, vestiu-o e correu
silenciosamente pelas escadas abaixo. Agora não se ouviam vozes na cozinha
e, quando Annabelle empurrou a porta cautelosamente, para seu alívio não
havia sinal de ninguém lá dentro. A última coisa que queria era um confronto
com a mãe quando Robert estava por perto para oferecer o seu apoio conjugal,
especialmente quando era provável que tudo acabasse com ela a ser castigada
por se ter esgueirado de casa na noite anterior. Ainda assim, mesmo que a
proibissem de sair, isso não a impediria de ir à festa em casa de Ed nessa
noite. Toda a gente ia estar lá e Ed tinha um novo fornecedor de ecstasy, e ela
definitivamente não ia perder isso.
Annabelle foi até ao frigorífico e agarrou num cestinho duplo de morangos,
outro de amoras e num prato de manga em fatias, que pousou ao lado da
liquidificadora antes de descascar um par de bananas. Pensava na discussão,
sentindo-se percorrida por peculiares arrepiozinhos de excitação. A Demónia
e Craig. Espantoso. Nojento, mas ainda assim espantoso. Na verdade,
explicava muita coisa, exceto, talvez, porque Robert não tinha posto a mãe
fora de casa. Talvez não quisesse parecer hipócrita, já que tinha dormido com
a mãe enquanto ela ainda estava casada com o primeiro marido, o entediante
pai de Annabelle. Pensando bem, a mãe era uma espécie de traidora em série,
porque Annabelle tinha a certeza de que ela tinha tido outras aventuras antes
de Robert aparecer. Era provavelmente dela que Annabelle herdara a sua
própria líbido hiperativa, decidiu com um risinho. Adorava a maneira como
Carl e os amigos se referiam a ela nestes termos.
De qualquer forma, não importava, só se podia sentir aliviada por Robert
não as ter posto fora dali, porque viver naquela casa, em Holly Wood, era
fantasticamente fixe a valer, e o último lugar onde ela queria ir parar era em
alguma casa bi-familiar sem nível ou apartamento em Bath ou Bristol, ou pior,
Londres, sem dinheiro, porque não havia maneira alguma de a mãe conseguir
ganhar algo parecido com a fortuna que Robert recebia. Pior ainda seria ver-
se recambiada para viver com o pai, não só porque este agora vivia noutro
planeta, ou perto disso, porque a Austrália era longe à brava, mas também
porque tinha uma nova família que, pelas fotos que o pai enviara, parecia um
bando de grunhos.
Foi somente quando desligou a liquidificadora que Annabelle se
apercebeu de que a mãe estava de pé atrás dela, com as mãos nas ancas,
aparentemente prestes a ter um ataque de nervos.
– Esquece, mãe – disse, antes de a mãe poder atacar.
– Onde estiveste ontem à noite? – exigiu Sabrina saber.
– Saí.
– Já sei disso. Tens quinze anos, minha menina, e de acordo com as regras
desta casa tens de chegar até às onze da noite e não voltar a sair.
– Sim, sim, blá, blá, blá.
– Onde estiveste?
– Acabei de te dizer, fui sair.
– Annabelle, olha para mim.
– Para quê?
– Já disse para olhares para mim.
– Estou ocupada, não vês?
– Eu juro, vou mandar-te para casa do teu pai se não começares a mostrar
mais respeito por mim.
– Oh, essa é nova. Nunca ouvi isso antes. És capaz de me dar licença, se
faz favor? Preciso de tirar uns copos do armário.
– Quem está lá em cima? – perguntou Sabrina, desviando-se e pensando,
não pela primeira vez, que Annabelle raramente a olhava nos olhos.
– Não tens nada com isso.
O rosto de Sabrina contraiu-se de raiva.
– Se houver rapazes no teu quarto…
Annabelle suspirou e revirou os olhos.
– Já que queres saber, estão lá a Georgie e a Catrina. OK? Satisfeita?
A expressão de Sabrina permanecia tensa.
– Gostava que tivesses amigas da tua idade – disse. – Está bem, já sei que
as conheces desde sempre, mas elas agora andam no décimo segundo ano e
tu…
– Há bolachas ou algo do género? – interrompeu-a Annabelle. – Estamos a
morrer de fome.
– Chama-se a isso ressacar – disse Sabrina, abrindo um armário por
completo. – É o que acontece quando se bebe de mais, e permite que te
lembre, mais uma vez, que és menor de idade…
De súbito, Annabelle arrotou, o que a fez rir.
– Desculpa, isto não devia ter saído – disse, pressionando os dedos contra
os lábios.
Sabrina abanou a cabeça repugnada.
– Houve drogas, lá onde quer que tenhas estado a noite passada? –
perguntou sem rodeios.
– Oh, mãe, vê se atinas, sim?
– Exijo uma resposta.
– Mas não vais ter uma, porque, se disser que não, não vais acreditar em
mim e, se disser que sim, vais-te passar da cabeça.
Sentindo-se atingida por uma frustração intolerável, Sabrina disse:
– Um dia destes, a tua atitude vai meter-te em grandes sarilhos, minha
menina.
Annabelle não se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a colocar as
bebidas num tabuleiro, pegou nas bolachas e encaminhou-se para a porta.
– Houve uma altura em que tinha orgulho de dizer que eras minha filha –
disse Sabrina, com a voz trémula de raiva e desespero. – Agora só sinto
vergonha, e sabes porquê? Porque pareces uma vadia, e não me admirava se
descobrisse que é assim que te comportas.
– Sabes que mais – disse Annabelle maliciosamente –, a Alicia não é a
única por aqui que não te suporta, porque estou sempre cá eu – e, deixando a
mãe com lágrimas de fúria e impotência a arder-lhe nos olhos, foi alimentar as
amigas.
Voltando-se para a banca, Sabrina colocou as mãos na borda e segurou-se
firmemente. Não se atrevia a soltar as suas emoções, com medo de poderem
irromper de dentro dela furiosa e rapidamente de mais. Robert não ia tolerar
se achasse que ela ainda estava a sofrer por Craig, Deus sabe como já fora
suficientemente difícil para ele quando lhe dera a notícia da morte do cunhado.
Numa atitude típica, a princípio Robert fora gentil e paciente, mostrando-se
compreensivo, apesar do muito que o magoava, para com o facto de ela
precisar de algum tempo e espaço para aceitar a perda. Seria demasiado
esperar que continuasse a ter consideração pelos seus sentimentos quando, aos
olhos dele, não tinha direito a eles, mas como podia ela simplesmente pô-los
de lado como se não existissem, quando, na maior parte do tempo, eram a
única parte dela que lhe parecia real?
Enquanto Robert estava no funeral, ao qual a proibira de assistir, ela tinha
ido à igreja, ali em Holly Wood, e sentara-se sozinha na parte de trás, falando
baixinho com Craig dentro da sua cabeça, sentindo as palavras no seu coração.
Disse-lhe o quanto ainda o amava e sempre iria amar. Pensou neles juntos
quando riam e faziam amor, esquecendo a dor e a infelicidade que quase a
tinham destruído depois de acabarem. Então nunca acreditara, e continuava a
não acreditar, que ele tinha deixado de a amar. Não importa o que ele dissera a
Alicia, ou a si mesmo, ela sempre soube que, no fundo do seu coração, ele
continuou a pertencer-lhe. Era por isso que tinha achado a separação
impossível de aceitar, e a notícia da sua morte um golpe tão terrível. Os
sonhos, a certeza de que um dia ficariam juntos, não poderiam nunca, tornar-se
realidade. E, se não podiam, ela tinha de perguntar a si própria se fazia algum
sentido continuar a viver.
Se não fosse por Robert e Annabelle, realmente não faria, e ela tinha
causado tantos danos no seu relacionamento com eles que, muitas vezes,
receava que pudessem estar mesmo melhor sem ela. Perguntou a si própria se,
havendo uma porta que pudesse abrir e a levasse até Craig, seria capaz de
entrar. Seria realmente capaz de virar costas a duas pessoas que amava tanto, a
quem se sentia ligada como ao seu próprio coração, para estar com outra que
já não se encontrava neste mundo, e ainda assim significava mais para ela do
que a própria vida? A resposta foi que não sabia, mas uma parte de si estava
sem fôlego com o alívio de não existir tal porta, para não ter de fazer a
escolha.
Capítulo Quatro
– Olá, mãe, desculpa, acordei-te?
– Não, de maneira nenhuma – mentiu Alicia, esforçando-se por acordar
totalmente. – Está tudo bem?
Não, que horas são? Ou, como estás, querida? Ou, esqueceste-te de alguma
coisa? Já um mar de receios se apertava em torno do seu coração, afogando-
lhe o bater. Era assim que seria dali em diante, viver sempre no medo de ser
atingida por outra catástrofe imprevista?
– Está tudo bem – disse Darcie alegremente. – É só que o meu telemóvel
pode não ter rede no sítio para onde vamos hoje, e não queria que te
preocupasses se não me conseguires ligar.
– Onde vão vocês? – perguntou Alicia, olhando para o relógio. Ainda
eram apenas sete e meia da manhã, oito e meia em França.
– Oh, vamos só fazer uma caminhada pela natureza, mas parece que há
alguns sítios bastante isolados.
– Não te esqueças de levar um chapéu e de te besuntares toda com protetor
solar fator trinta – advertiu-a Alicia, pensando na delicada pele clara da filha.
– Sim, sim. E como estás tu? Desculpa não ter atendido ontem, quando
ligaste. A Verity e eu fomos com a irmã dela à aldeia, onde havia uma espécie
de festa. Sempre chegaste a ir ao churrasco em casa da Rachel?
– Fui – confirmou Alicia. – Eles mandam-te todos saudades. A Una está
mortinha por te ver.
– Diz-lhe que eu também – disse Darcie numa voz vibrante, sem
acrescentar que Una era a única coisa boa de se mudar para ali. Alicia,
contudo, conseguiu intuir o resto da frase.
– E que vais fazer hoje?
Alicia pensou bem, e depois, lembrando-se, sorriu invadida por uma onda
de prazer.
– O Nat chega esta tarde – recordou à filha. – Vou buscá-lo à estação às
três.
– Sim, é verdade. A Summer vem com ele?
– Sim. Parece que vai ficar até quarta.
– Hmm.
– Que foi?
– Nada.
– Anda lá, diz.
– É só que não sei se ela é bem de confiança – confessou Darcie.
Sabendo que era improvável Darcie achar de confiança quem quer que
ameaçasse roubar-lhe o precioso afeto de Nat, Alicia disse:
– O Nat gosta dela, é isso que importa.
– E tu, gostas? Diz a verdade.
– É boa rapariga.
Alicia não iria além disto, sabendo como era provável que Darcie
acabasse por dizer ao irmão. Não que tivesse algo contra Summer, que, é
preciso dizer, sempre apoiara Nat ao longo dos últimos meses; a questão era
que, tal como Craig, preferia que o filho não estivesse envolvido numa relação
tão séria ainda tão novo.
– Vais deixá-los dormir juntos? – perguntou Darcie.
Reprimindo uma gargalhada, Alicia disse:
– Ele não me pediu permissão para isso, de modo que vou preparar o meu
antigo quarto para a Summer e o do tio Robert para o Nat.
– Então, isso quer dizer que estás a dormir no quarto da avó?
O sorriso de Alicia vacilou quando olhou em torno do espaço familiar,
banhado agora no rico brilho dourado do sol da manhã, que tentava desbravar
o seu caminho através das cortinas de tom acobreado. Para Alicia era lógico
começar a dormir ali de imediato, mas, mesmo depois de duas noites na
sumptuosa cama de trenó da mãe, ainda era difícil aceitar que tudo aquilo era
agora dela, ou que a mãe não entraria pela porta a qualquer momento,
surpreendendo-se ao encontrá-la ali.
– Sim, estou – confirmou. – É um bocado estranho, mas em breve
estaremos todos integrados.
– Sim, acho que tens razão – disse Darcie, num tom que não parecia nada
convencido.
– Quando eras mais nova, adoravas esta casa – lembrou Alicia. – Eras
capaz de me suplicar para te trazer cá.
– Eu sei, mas nessa altura não tínhamos de morar aí. Não que me importe –
acrescentou apressadamente –, porque até é um sítio mesmo fixe, só que vai
ser um bocado diferente de viver em Londres, e vou sentir a falta de todos os
meus amigos.
– Eu sei, querida – disse Alicia suavemente –, mas farás outros amigos, e a
Verity, ou quem quer que queiras, pode sempre vir passar uns dias aqui. Tu
também as podes ir visitar durante as férias.
– Sim – respondeu a filha num tom inexpressivo.
Darcie não era estúpida, pensava Alicia, sabia que a vida em Londres
continuaria sem ela e depressa seria esquecida, mas, se tudo corresse bem,
com o seu natural espírito positivo e carácter descontraído, quando estivesse
integrada na sua nova escola seria tão popular e feliz como fora em St. Paul.
– Então, já viste o tio Robert? – perguntou Darcie, mudando de assunto.
– Não. Ontem à noite ele deixou-me uma mensagem a dizer que gostava de
passar por cá, se eu estivesse livre, mas quando vi já era tarde de mais para
lhe ligar.
– A Sabrina e a Annabelle vêm com ele?
– Ele não disse nada – respondeu Alicia.
Apesar de Darcie saber que a mãe e Sabrina não se davam bem, não fazia
ideia do motivo, e Alicia preferia que as coisas se mantivessem assim.
– Gostava de ver a Annabelle quando for para aí – disse Darcie. – Ela
sempre foi muito simpática para mim e, afinal, é minha prima. Ou algo do
género, de qualquer maneira.
Apercebendo-se de como era importante para Darcie conhecer pessoas na
aldeia, Alicia disse:
– Tenho a certeza de que ela vai gostar de te ver.
Mesmo que isto fosse verdade, Alicia sabia que Sabrina provavelmente
faria os possíveis para demover a filha, mas deixaria este assunto espinhoso
para outro dia. Não fazia sentido preocupar-se com ele agora.
– Falaste com o Nat este fim de semana? – perguntou.
– Sim, ontem à tarde. Parece que a experiência de trabalho dele correu
mesmo bem. Diz que está ansioso por passar também uns tempos com o Jolyon
no mês que vem, e a Summer tem andado a chateá-lo para ir para Itália com
ela e a família dela no próximo… Oh, desculpa, mãe, acho que tenho de ir. O
pai da Verity acaba de chegar com as coisas para o nosso piquenique, por isso
tenho de ir ajudar a preparar tudo. Fica bem, OK? Tenho mesmo saudades
tuas.
– Eu também tenho saudades tuas – disse Alicia, sentido uma ânsia
poderosa de envolver a filha com força nos seus braços e nunca mais a largar.
– Ligo-te logo à noite, se não voltarmos muito tarde. Manda saudades
minhas ao Nat – e à Summer, se achares que deves. Podes mandar de certeza à
Rachel e à Una, e ao tio Robert. Adoro-te, mãe, adoro-te, adoro-te.
– Eu também – sussurrou Alicia e, depois de esperar que Darcie
desligasse, voltou a pousar o telemóvel na arca de carvalho baixa que servia
de mesa de cabeceira e recostou-se para trás nas almofadas.
Sentia o coração tão carregado que tinha dificuldades em respirar, e os
seus músculos estavam tensos, como que para impedir as emoções que se
avolumavam dentro dela de fugirem ao seu controlo. As manhãs eram sempre a
pior altura, quando acordava com os ténues vestígios de um sonho desvane-
cendo-se da sua mente até à consciência insuportável de que o seu mundo se
havia desmoronado lhe dilacerar o coração. Craig desaparecera. Já não fazia
parte da sua vida, nunca mais faria. A realidade era tão dura que ainda estava
a lutar para a aceitar. A cada dia que passava, parecia sentir mais a falta dele,
não menos. Nem mesmo a confusão que o marido deixara atrás dele, ou a
traição, a conseguia libertar das garras do seu desejo. Queria-o de volta com
tanta veemência que, por vezes, o esforço de se obrigar a sair da cama estava
quase para além das suas forças. Fora assim que se sentira durante os dias e
semanas que se seguiram à descoberta do seu caso, só que agora era pior,
porque desta vez não havia mesmo nada a fazer.
Levando as mãos ao rosto, tentou deter as memórias daquele tempo, mas já
a inundavam, preenchendo-lhe o coração, preenchendo-lhe a mente,
materializando-se com uma realidade mais clara e mais insistente do que
aquela em que vivia.

– Então, onde está o nosso aniversariante? – exclamou Rachel, abrindo


caminho pelo átrio até à cozinha, onde Alicia dava instruções ao pessoal do
catering. A casa e o seu pequeno jardim estavam a abarrotar com os amigos e
parentes, ali reunidos para festejar o quadragésimo aniversário de Craig.
– Deve estar aí fora, nalgum sítio – respondeu Alicia, envolvendo Rachel,
e depois o marido desta, Dave, num abraço acolhedor.
– Já começava a pensar que não aparecerias.
– Desta vez não foi culpa minha – disse Rachel, antes que Dave a pudesse
culpar. – Posso ter tido de tratar de um gato doente, mas aqui sua excelência
teve de resolver uma disputa com um dos seus inquilinos. Não perguntes, é
demasiado aborrecido para contar. Alguém me dê só uma bebida, por favor.
Tenho a garganta seca.
No momento em que um dos empregados do catering lhe passou um copo
de champanhe, Nat entrou na cozinha com Annabelle, perguntando se podiam
mudar a música.
– À vontade – disse Alicia –, mas vão ter de se haver com o pai. Criou
este mix especialmente para hoje.
– Onde está ele? – perguntou Dave. – Temos de lhe fazer um brinde.
Deixámos o presente dele no átrio, junto aos outros.
– Ótimo – respondeu Alicia, fazendo um aceno de cabeça para que o
empregado começasse a servir outra travessa de canapés. – Pode abrir mais
garrafas – disse a outro empregado. – Ah, é verdade, tu querias mais copos.
Estão numa caixa, ali. Nat, querido, podes passar-me… Excelente, obrigada –
disse, enquanto Nat levava a caixa até à mesa.
– Também me vão dar um copo? – pediu Nat. – O pai disse que hoje eu
podia.
– Para brindares – lembrou-lhe Alicia.
– Tenho quase quinze anos, pelo amor de Deus – protestou Nat.
– Nem pensar – bradou Rachel. – Deixa-me ver-te bem por trás desse
cabelo todo.
Rindo, Nat recuou. Não deixava que ninguém lhe tocasse na franja, e,
gesticulando na direção de Annabelle, a sua escrava adoradora, escapou-se
para a sala de estar.
– Borbulhas na testa – murmurou Alicia, quando o filho já não a podia
ouvir.
– Ah – disse Rachel com um ar entendido.
– Então, trouxeram as malas? – perguntou Alicia. – Vão ficar no quarto de
hóspedes. A minha mãe fica com a Darcie, no colchão desdobrável, e o Robert
e a Sabrina vão dormir no sofá-cama no escritório.
– Vamos buscá-las mais logo – respondeu Rachel. – Está cá imensa gente
que não vejo há séculos e estou a morrer de vontade de os ir cumprimentar.
Quantas pessoas convidaste, afinal?
– Oitenta, acreditas? Vai lá. Hás de encontrar o Craig por aí, em algum
sítio. Já vou ter contigo.
Depois de Rachel e Dave se embrenharem na multidão, Alicia, aflitíssima,
encaminhou-se para a casa de banho do andar de baixo. Para seu espanto,
havia uma fila, pelo que, depois de mandar mais um empregado servir uma
bandeja de copos cheios, correu rapidamente pelas escadas acima para usar a
casa de banho do quarto de hóspedes, que era a mais próxima.
Quando abriu a porta do quarto já estava a puxar o vestido para cima, até
que, apercebendo-se de que havia alguém lá dentro, se deteve abruptamente,
embaraçada, deixando-o cair de novo. Preparava-se para sair discretamente
quando percebeu que era Sabrina quem estava deitada de costas na cama, com
as pernas enroladas em volta de alguém que, em cima dela, se movia com tanta
intensidade que nenhum deles se apercebera de que já não estavam sozinhos.
As calças do homem estavam descidas até aos joelhos, a camisa estava aberta,
e o primeiro pensamento de Alicia foi: Porque é que aquele homem tem a
camisa do Craig vestida? Então, quando a verdade desferiu o seu golpe
terrível, Alicia deu um passo atrás.
Durante alguns segundos apáticos e intermináveis, permaneceu onde
estava, incapaz de se mover, ou de acreditar no que estava a ver. Os dois
empurravam o corpo um contra o outro, ofegavam, gemiam, encorajavam-se
mutuamente, alheios a tudo para lá da tempestade de uma erupção que se
aproximava. Na cabeça de Alicia, algo não estava a funcionar bem. A sua
mente estava a distorcer o que via, pregava-lhe partidas, levava-a a tirar
conclusões erradas, fazia-a ver coisas que não estavam lá. Craig não faria
aquilo, ele não faria aquilo.
Então, apercebeu-se de que Sabrina olhava para ela e, para seu horror, em
vez de se comportar como qualquer outra mulher apanhada em flagrante,
afastando Craig e procurando as roupas com pressa, a cunhada apenas sorriu.
Havia um frio brilho de triunfo nos seus olhos e, quando se agarrou mais a
Craig, pediu-lhe para ser mais rápido.
No instante em que Craig começou a ejacular, Alicia virou as costas e saiu
do quarto. Sentia-se maldisposta de formas que nunca imaginara possíveis.
Cada parte de si precisava de expelir a traição que deixara para trás; a sua
mente, o seu estômago, o seu coração, a sua alma queriam livrar-se dela.
Alicia foi até ao topo da escada e ficou ali a tremer. Não tinha a certeza de
quanto tempo se passou antes de Craig sair do quarto, poderiam ter sido
segundos ou minutos: ela só sabia que, quando os braços dele a envolveram, a
vontade de o empurrar pelas escadas abaixo a dominou. Craig agarrou o
corrimão a tempo, conseguindo endireitar-se antes de iniciar um mergulho
descendente.
– Alicia, ouve-me – murmurou Craig num tom urgente. – Bebi de mais, não
sabia o que estava a fazer…
– Não fales comigo – respondeu Alicia num silvo. Tentou libertar-se, mas
Craig segurou-a com força.
– Não podes voltar lá para baixo assim – disse.
– Há quanto tempo dura isto? – perguntou Alicia numa voz entrecortada.
– Acabou de acontecer… Eu…
– Diz-lhe a verdade, Craig – disse Sabrina da porta.
Craig voltou-se.
– Sabrina, vai…
– Começou – disse Sabrina a Alicia – quando estivemos todos juntos em
Itália, no verão passado.
Alicia cambaleou. Andavam a foder assim há um ano? Todas as vezes que
ela pensara que Craig estava a trabalhar até mais tarde, ou fora da cidade, ou a
falar ao telefone com colegas e clientes… Porque não percebera que era um
embuste? Como podia não ter suspeitado? Olhou para o marido e ficou
apavorada ao ver o seu aspeto pálido e inseguro. Aquele caso era sério.
Significava mesmo alguma coisa para ele.
– O Robert sabe? – ouviu-se a si própria perguntar, numa voz que vinha do
fundo de um vazio.
– Ele anda demasiado ocupado e quase nunca está cá – respondeu Sabrina
numa voz arrastada.
Alicia virou-se para olhar para ela. Aquilo não tinha qualquer importância
para Sabrina. Não a incomodava ter sido apanhada na cama com o marido da
cunhada, ou ter traído um homem bom que a amava. Pelo contrário, parecia
quase satisfeita consigo mesma.
– Sai daqui – disse Alicia.
Craig objetou.
– Alicia, o Robert e a tua mãe estão lá em baixo…
– Sei-o bem, por isso podes-lhes ir explicar porque é que ela tem de se ir
embora, e depois a festa está terminada – e, fazendo um esforço para se
libertar do abraço de Craig, começou a subir o segundo lanço de escadas, em
direção ao seu próprio quarto.
– Alicia – chamou Craig nas suas costas. – Pensa nas crianças. Que lhes
vou dizer se tu…
Alicia virou-se e dirigiu-se a ele furiosa.
– Devias ter pensado nisso antes de baixares as calças por causa daquela
pega – disse com raiva.
– Como te atreves? – gritou Sabrina.
– Baixem a voz – implorou Craig. Estava agora branco como a cal e mais
agitado do que Alicia alguma vez o vira.
– Sabrina, seja qual for a desculpa que arranjes, tens de te ir embora –
disse-lhe Craig.
Sabrina olhou-o fixamente.
– Porque é que não lhe dizes a verdade? – perguntou. – Estás sempre a
dizer que queres deixá-la, por isso, aproveita a oportunidade.
Alicia cambaleou de novo e olhou para Craig com tanta mágoa e espanto,
que era incapaz de falar, de pensar, de qualquer coisa para além do choque e
da dor.
– Não lhe dês ouvidos – disse Craig. – Não é verdade. Não te quero
deixar.
– Mas andas a comê-la há um ano?
Craig abanou a cabeça.
– Não, quer dizer, sim, mas…
– Mãe! Estás aí em cima? – gritou Darcie do fundo das escadas. – O Nat
está a mudar a música e o pai vai-se passar dos carretos. Sabes por onde ele
anda?
– Estou aqui – respondeu Craig, não deixando de fixar Alicia. – Não faz
mal se o Nat…
– Sai-me da frente – disse Alicia entre dentes. – E não tragas a tua pega de
volta para a festa, ou juro que vou contar a toda a gente agora mesmo como
tens estado a celebrar os teus quarenta anos.

Balançando as pernas para fora da cama, como que para escapar do horror
daquele dia, Alicia empurrou o cabelo para trás e tentou impedir-se de pensar
nele. Mas a sua imagem insistia, aproximando-se dela em ondas sucessivas de
recordações torturantes, lembrando-a de como, nos dias e semanas que se
seguiram, Craig continuou a jurar que Sabrina não significava nada para ele.
Nada acontecera em Itália, disse-lhe. Sabrina mentira, ele não sabia por que
razão. Não, claro que não estava a planear vê-la novamente. Jurou pela vida
dos filhos que continuava a amar Alicia, e que nada no mundo era mais
importante para ele do que manter a família unida. Foi tão convincente como
caberia a um advogado experiente, e Alicia até acreditou nele durante algum
tempo, mas depois deu por si a fazer algo que nunca fizera, inspecionando lhe
o telemóvel e verificando os extratos dos seus cartões de crédito. Para seu
horror, depressa se tornou evidente não só que Craig mentira sobre a duração
da aventura, mas também que esta ainda estava longe de terminar.

– Não entendo – disse Alicia furiosa, quando o confrontou. – Que é que ela
tem? Tu ama-la? É isso que se passa? Queres deixar-nos, dar cabo desta
família e ir viver com ela?
– Não, é claro que não – gritou Craig. – Tu e os miúdos são tudo para mim,
já sabes disso…
– Então, porque estás a fazer isto? O problema não é propriamente não
termos vida sexual, ou sou só eu que me sinto satisfeita com ela? Devo ser,
porque tu és o único que anda à procura de satisfação fora de casa. Ela dá-te
mais prazer? Ela faz-te coisas que…
– Alicia, para – suplicou Craig, com o bonito rosto emaciado. – Não há
nada de mal no nosso relacionamento. Eu amo-te tanto como sempre amei, e
talvez mais.
– Então, porquê? – repetiu Alicia em desespero. – Explica-me, para eu
perceber porque estás a fazer isto.
Craig baixou a cabeça, abanando-a.
– Quem me dera poder – repetiu Craig, em voz rouca. – Não quero dizer
que a culpa é toda dela, ou fazer-me de inocente… Eu só… É uma coisa…
– É o quê? – gritou Alicia, com vontade de o esbofetear, de lhe bater para
o fazer sentir a dor dela.
Craig continuava a abanar a cabeça. Craig Carlyle, o grande orador, o
advogado brilhante que encontrara palavras para defender algumas das mais
baixas formas de vida humana – pedófilos, gângsters, assassinos em série –
não conseguia encontrar palavras para se defender a si próprio.

Alicia sabia que o devia ter obrigado a sair de casa nessa altura, ou ter
saído ela mesma, mas não tinha feito nenhuma destas coisas, principalmente
porque não conseguira arranjar coragem para contar aos filhos o que se estava
a passar. Eles adoravam o pai, Craig era tudo para eles, e a verdade patética
era que, por mais que Alicia o odiasse por aquilo que estava a fazer, também
não conseguia deixar de o amar. Ele não era apenas alguém que a traíra, era o
homem cujo amor pelos filhos lhe fazia saltar o coração, cujo sorriso ainda
era capaz de a derreter da cabeça aos pés, cuja presença mantinha de pé o
mundo que tinham construído juntos e fazia todos os dias valerem a pena. Vira-
o chorar por causa de um caso trágico em que estava a trabalhar, conhecia a
bondade que demonstrava para com as vítimas e as suas famílias. Craig era
muito mais do que aquela loucura com Sabrina, por isso ela não podia deitar
assim tudo a perder. Por fim, acordaram que, desde que ele terminasse
definitivamente tudo com Sabrina, Alicia lhe daria outra oportunidade.
Agora, nunca haveria maneira de saber de que forma Craig rompera com
Sabrina, mas, o que quer que lhe tivesse dito, depressa se tornou claro que a
cunhada não estava pronta a dar o assunto por encerrado. Não parava de ligar,
de manhã à noite, muitas vezes bêbada e transtornada de desgosto e de raiva,
ameaçando Alicia ou suplicando a Craig para se encontrar com ela. Jurou que
terminaria o seu casamento com Robert, se Craig cumprisse o prometido e
deixasse a esposa. Craig negou firmemente ter feito tal promessa.
– Nunca tive nenhuma intenção de te deixar por causa dela, nem de mais
ninguém – reiterou certa vez, depois de Sabrina os ter voltado a acordar, com
mais um dos seus telefonemas embriagados, a altas horas da madrugada.
– Então, porque é que ela diz isso?
– Não sei. Ela está a inventar coisas, a dizer o que ela própria quer ouvir,
mas é tudo um disparate. Dela, só quero que me deixe em paz.
Então, Alicia foi até Holly Wood para confrontar Sabrina. Por essa altura,
Robert já sabia do caso e estava tão arrasado quanto a irmã, mas não fazia
ideia de que Alicia ia até à aldeia, ignorando, assim, a louca ideia de a mãe
servir de mediadora entre as duas. Só descobriu quando a terrível zaragata que
irrompera entre ambas as mulheres já terminara, e Sabrina regressou a casa
com o nariz a sangrar e enormes punhados de cabelo arrancado da cabeça.
Robert dirigira-se imediatamente a casa da mãe, onde foi encontrar Alicia
num estado muito semelhante, mas a sua maior preocupação era Monica.
– Como foste capaz de fazer isto? – gritou para Alicia. – Olha para ela. É
tua mãe, por amor de Deus. Onde é que tinhas a cabeça, não sabes como ela
está doente?
– Desculpa – gritou Alicia. – Não queria que isto acontecesse…
– Robert, acalma-te – pediu Monica. – Eu estou bem, só um pouco pisada
de quando as tentei separar. Mas vai passar.
– Isso não me chega – rosnou Robert, ainda de olhos cravados em Alicia.
– Quero que te vás embora daqui agora mesmo…
– Robert, não – protestou Monica. – Ela está a sofrer tanto como tu e,
desculpa dizer-te isto, mas a Sabrina é muito mais culpada do que a tua irmã.
Tendo de admitir que era verdade, Robert voltou-lhes as costas com uma
expressão inflexível, mas não antes que Alicia pudesse ver como estava
despedaçado por dentro. Aproximou-se e pousou-lhe a mão no ombro e,
quando o irmão se voltou, olharam profundamente nos olhos um do outro. A
seguir, Robert envolveu-a nos seus braços e abraçaram-se com força. Se a mãe
não estivesse presente, Alicia tinha a certeza de que teriam começado ambos a
chorar e procurado conforto um junto do outro, mas Monica já passara por
emoções que chegassem para um dia. Estava cansada, precisava de se deitar, e
Robert tinha de voltar para junto de Sabrina.

Uma semana mais tarde, quando Alicia ligou à mãe para lhe dizer que ia
passar uns dias à aldeia, Monica pediu-lhe que não fosse. Provavelmente,
seria melhor que ficasse longe de Holly Wood uns tempos, disse Monica, da
melhor maneira que pôde, e, uma vez que a mãe parecia tão fraca e cansada,
Alicia não insistira. Em vez disso, permitira-se ser banida da casa onde
crescera, da aldeia onde sentia que pertencia, e da companhia da mãe que
adorava, tudo porque Sabrina não queria largar Craig.
Mais tarde, Alicia soube pela mãe que Robert ameaçara divorciar-se de
Sabrina se esta não se controlasse e deixasse de assediar Craig com
telefonemas e emails. Aparentemente, assustada com a perspetiva de acabar
sem nenhum dos dois, Sabrina desistira finalmente da perseguição, mas os
danos causados nos dois casamentos eram já incalculáveis e, no caso de
Alicia, pareciam mesmo irreparáveis. Apesar de continuarem juntos, e de se
empenharem a fundo em recuperar o que tinham perdido, as coisas nunca mais
voltaram a ser as mesmas entre o casal. Como uma jarra de grande valor que
cai ao chão, a confiança de Alicia estilhaçara-se e, por mais que se esforçasse
por colar os pedaços e reconstruí-la, as fendas notavam-se sempre.
Agora, era impossível saber se, na altura, Craig começara a aceitar mais
trabalho para preencher o vazio deixado por Sabrina. Alicia queria acreditar
que tudo fora motivado pela necessidade de equilibrar as finanças familiares,
pois, se achasse que o stress e o cansaço que tinham tomado conta do marido
eram culpa de Sabrina, isto significaria que Craig a devia ter amado de
verdade, para sentir tanto a sua perda. Alicia não podia de modo algum
admitir esta possibilidade, porque o ciúme e o ódio que sentia em relação a
Sabrina não seriam propriamente uma ajuda na vida nova que estava a tentar
construir para si e para os filhos. Só esperava que a cunhada tivesse decidido
manter-se afastada deles, pois não tinha o mínimo desejo de, alguma vez na
vida, voltar a ter qualquer tipo de relação com ela.

Ao meio-dia, Alicia estava a pé, vestida e a passar a ferro lençóis


acabados de lavar, para ir fazer as camas nos quartos que lhe haviam
pertencido e ao irmão. Todos os objetos que restavam da infância de ambos
tinham sido arrumados no sótão há anos, doados à loja social da mãe ou a
vendas de beneficência ou, simplesmente, deitados fora. Presentemente, a
decoração dos dois quartos era mais dominada pelo estilo das lojas Laura
Ashley do que pelos posters de cantores pop. No entanto, as camas
continuavam a ser de solteiro, e os armários e prateleiras conservavam uma
impressionante coleção de jogos de tabuleiro e livros infantis, uma herança
dos dias em que Nat e Darcie costumavam vir passar temporadas à aldeia.
Nesse mesmo dia, durante algum tempo, Alicia considerara a ideia de ir
assistir à missa das onze horas, não porque fosse particularmente religiosa ou
sentisse necessidade de comunicar com Deus, mas simplesmente porque o
pensamento de estar perto dos pais – que se tinham casado naquela igreja, iam
lá a maioria dos domingos e estavam agora sepultados no cemitério contíguo –
a reconfortava. Contudo, acabara por decidir adiar a visita até haver menos
gente no local. Frágil como estava, não queria correr o risco de se ir abaixo
numa altura em que todos a observavam.
Agora, enquanto dobrava um lençol, que colocou em cima de outro, e
começava a alisar os vincos de uma fronha que retirara do cesto, pensava, não
pela primeira vez, onde poderiam os seus restos mortais ser enterrados,
quando chegasse a sua altura. Uma vez que Craig estava sepultado em
Berkshire, junto à mãe e ao tio, algo em que o seu autoritário pai insistira,
deveria ir também para lá? Ou seria aceitável ficar junto aos pais, num lugar
que conhecia e amava? Tratava-se de um dilema algo piegas, que não tinha de
ser resolvido imediatamente, mas, se ela e Craig se tivessem dado ao trabalho
de discutir o assunto, o marido poderia agora estar ali, em Holly Wood, onde
Alicia achava que pertencia. Porém, o simples pensamento de Sabrina a
colocar flores na sepultura, sentando-se junto a ela como uma viúva trágica,
fazia-a sentir-se grata por Craig não estar ali, e fora o motivo pelo qual
acabara por ceder às exigências do sogro.
Virou-se para pegar no telemóvel que tocara, leu a mensagem que e sentiu
uma agradável onda de calor varrer aqueles pensamentos sombrios. Era Nat,
informando-a de que o comboio não tinha atraso, pelo que chegaria dali a
pouco menos de duas horas. Alicia respondeu rapidamente, dizendo-lhe que
estaria à espera dele na estação e, depois de mandar a mensagem, ergueu os
olhos ao ouvir o portão da frente abrir-se. Vendo Robert avançar pelo caminho
de acesso à casa, sentiu um espasmo de culpa e nervosismo nas entranhas. Já
lhe devia ter devolvido a chamada, mas não o fizera, pois não conseguira ligar
para o número de telemóvel que tinha dele e não quisera correr o risco de lhe
ligar para casa e ser Sabrina a atender.
Pousou o ferro, desligou a ficha e foi abrir a porta da frente, no preciso
instante em que o irmão erguia a mão para bater.
– Olá – disse Robert, com um sorriso matreiro e a mão ainda no ar. –
Espero que não haja problema em aparecer sem avisar?
– É claro que não – tranquilizou-o Alicia, sentindo-se percorrida por uma
vacilante sensação de alívio. Independentemente do que acontecera entre os
cônjuges de ambos, o amor e a preocupação que sentia para com o irmão não
haviam mudado. – Gosto muito de te ver – disse e, para o provar, avançou na
sua direção para o abraçar.
Sentiu-se tão segura e acarinhada nos braços do irmão como sempre e,
quando Robert prolongou o abraço um pouco mais do que esperava, como que
para lhe transmitir que o seu afeto permanecia inalterado, Alicia sentiu as
lágrimas picarem-lhe os olhos.
– Não sejas todo simpático comigo – avisou-o –, já sabes que não gostas
de ver mulheres chorar.
Robert riu baixinho.
– Eu disse isso? – perguntou, seguindo-a para dentro de casa.
– Costumavas dizer, quando éramos mais novos, em especial depois de te
esforçares para me fazer chorar.
Robert fez uma careta.
– Devia ser mesmo um brutinho.
– Não tenhas dúvidas – provocou-o Alicia.
O irmão riu.
– Ouviste a mensagem que te deixei ontem à noite? – perguntou, enquanto
se dirigiam para a cozinha.
– Sim, mas não consegui ligar-te para o telemóvel e não me apetecia muito
telefonar-te para casa.
Robert suspirou, exasperado consigo mesmo.
– Mudei de telemóvel há um mês, devia ter-me lembrado de te dizer. Seja
como for, como estás?
Alicia encolheu os ombros.
– Vou-me aguentando. Parto do princípio de que foste o responsável por
manter a casa em bom estado…
– Sim, mas não pessoalmente – respondeu Robert. – Paguei à Sra. Jessop
para continuar a vir cá limpar depois de levarmos a mãe para o hospital, e o
marido dela começou a tratar do jardim.
– Obrigada – disse Alicia serenamente.
Não sabia se devia mencionar o facto de Robert não ter sido contemplado
como herdeiro da mãe, ou perguntar ao irmão o que pensava do assunto. Se se
importasse, Alicia sabia que não seria por dinheiro, mas por razões
sentimentais, e não o podia propriamente recriminar por isso.
– Sei o que estás a pensar – disse Robert –, mas não faz mal. A casa deve
ficar para ti.
Alicia engoliu em seco e tentou sorrir.
– Sabes que és sempre bem-vindo aqui.
– Espero que sim – respondeu Robert. – Agora, tenho direito a um chá?
Os olhos de Alicia brilharam alegremente.
– Tenho sumo de groselhas negras – disse.
Uma vez que fora uma das suas bebidas preferidas em criança, o sorriso
de Robert não se fez esperar.
– Então, que tal um chá, seguido de um sumo de groselhas negras? –
sugeriu.
Agradada pela ideia, Alicia voltou-se para encher a chaleira, sentindo-se
ainda mais feliz do que esperara por ver o irmão ali, mas, quando o silêncio
caiu entre eles, sentiu que um embaraço se infiltrava como uma sombra.
Consternou-a, apesar de achar que era algo natural, pois esta era a primeira
vez que estavam juntos desde o dia em que Robert a mandara sair daquela
casa. A seguir a isso, todas as suas conversas sobre a mãe aconteceram por
telefone, e a única vez que se tinham encontrado fora no hospital, ao visitar
Monica, ou no funeral desta. Robert também assistira ao funeral de Craig, o
que a fazia sentir amor e admiração pelo irmão, mas houvera tanta gente
presente e Alicia continuava mergulhada num transe tão grande que, mesmo
nas ocasiões em que tinham conseguido falar cara a cara, mal se lembrava do
que qualquer um dos dois dissera.
– Continuas a tomar o chá sem leite ou açúcar? – perguntou, retirando duas
canecas do armário.
Parecendo contente por Alicia se ter lembrado, Robert acenou com a
cabeça.
– E tu também?
Alicia sorriu e retribuiu o aceno. Começava a sentir-se mais relaxada e
tinha vontade de abraçar o irmão de novo.
– Como estão os miúdos? – perguntou Robert, cruzando os braços e
encostando-se a um balcão.
– Estão a aguentar-se – respondeu –, mas já sabes como eram próximos do
pai, sobretudo o Nat.
– Não deve ter sido fácil para ele – concordou Robert.
Sabendo que, mais do que qualquer outra pessoa, o irmão seria capaz de
compreender aquilo por que Nat estava a passar, uma vez que também perdera
o pai quando era adolescente, Alicia disse:
– Acho que ele gostaria de ter um tio presente de novo, se achares que
pode ser.
Robert olhou para ela com uma expressão terna.
– Não imagino que algum dia possa ocupar o lugar do Craig – disse –, mas
farei o possível por apoiar o Nat em tudo o que puder.
Alicia sorriu. Não imagino que algum dia possa ocupar o lugar do
Craig. Não podia deixar de perguntar a si própria se o irmão alguma vez tinha
dito estas mesmas palavras a Sabrina. Se as dissera, preferia nem saber.
– Ele já vem a caminho – disse, abrindo uma caixa de Earl Grey e
colocando dois saquinhos nas canecas. – Vou buscá-lo à estação às três.
Robert olhou para o relógio. Eram apenas doze e trinta, Alicia ainda tinha
muito tempo até lá.
– E a Darcie? – perguntou.
– Está a passar férias com uma amiga em França, volta a meio de agosto.
Parece-me esquisito não a ter por perto, mas tenho de admitir que me sinto
algo aliviada por ter algum tempo para mim. Os últimos meses têm sido um
desafio a vários níveis.
– Não duvido.
Robert preparava-se para dizer algo mais, quando o telemóvel da irmã
começou a tocar. Era Rachel, que ligava para confirmar se Alicia continuava
na disposição de sair nessa noite.
– É claro – confirmou Alicia. – Estou a preparar um churrasco para o Nat
e a Summer às cinco, por isso, encontramo-nos no pub às sete?
– Perfeito. Alguma novidade?
– O Robert está cá – respondeu Alicia, olhando de relance para o irmão.
– Ah-ha – disse Rachel, num tom de compreensão. – Então, não te prendo
mais. Cumprimenta-o da minha parte, e logo à noite já me contas tudo.
– Era a Rachel – disse Alicia a Robert quando desligou. – Pediu-me para
te dizer olá.
Robert devolveu o cumprimento com um arquear das sobrancelhas e, a
seguir, retirou do fogão a chaleira que fervia e encheu ambas as canecas.
– Sentamo-nos aqui ou lá fora? – perguntou.
– Importas-te que fiquemos cá dentro? Preciso de acabar de passar a ferro,
mas abre as portas para arejar e eu vou buscar as coisas à sala.
Depois de Alicia ter instalado a tábua de engomar na cozinha, e de os dois
irmãos terem prolongado os amáveis comentários o máximo de tempo
possível, Robert disse por fim:
– Acho que não faz sentido continuar a fingir que os boatos ainda não me
chegaram aos ouvidos, por isso vou direito ao assunto. É verdade que estão a
planear ficar em Holly Wood?
Sem erguer os olhos do caminho que o ferro abria, alisando os vincos da
fronha de uma almofada, Alicia acenou com a cabeça.
– Sim, estamos – confirmou.
Sentia as entranhas começarem a dar um nó. O irmão iria opor-se-lhe,
pedir-lhe para se ir embora? Não estava com vontade de um confronto
daqueles, mas não podia propriamente censurá-lo por se preocupar com o
facto de Sabrina e ela coexistirem no mesmo local.
– Achas que é uma decisão sensata? – perguntou Robert.
Pousando o ferro, Alicia levantou a cabeça e fixou-o com um olhar firme.
– Esta é a minha casa, Robert…
– Estou a falar de mudar os miúdos de escola – interrompeu-a o irmão,
aparentemente percebendo para onde Alicia estava a dirigir a conversa. – De
certeza que perderem o pai já é perturbação que chegue. Porque vendeste a
casa? Isso é mesmo verdade?
– Sim, é – respondeu Alicia rigidamente. A seguir, decidindo resolver o
assunto de uma vez por todas, disse: – Já não temos dinheiro. O empréstimo
bancário não tinha seguro e tínhamos algumas dívidas… Se a mãe não me
tivesse deixado esta casa, não teríamos para onde ir.
Robert sentou-se em silêncio durante alguns segundos, digerindo aquela
bomba inesperada e sabendo, como Alicia sabia, que aquela fora a razão pela
qual a mãe deixara a casa à irmã. Depois da traição de Craig, Monica quis ter
a certeza de que Alicia ficava protegida, na eventualidade de o marido a
voltar a desiludir. Como a mãe fora perspicaz – embora Robert duvidasse que
alguma vez tivesse imaginado uma situação assim.
– Sei que vais dizer que podia ter vendido a casa e a loja – prosseguiu
Alicia –, mas o dinheiro não teria chegado, e já perdi coisas a mais nos
últimos tempos. Desculpa, mas não suportaria ter de me despedir também
deste sítio.
– Não ia dizer isso – assegurou Robert. – Mais do que qualquer pessoa,
compreendo o que esta casa significa para ti, e, mesmo que a Sabrina não me
perdoasse este desabafo, acho que fizeste bem em vir para cá. É um sítio
familiar, tens a Rachel por perto, e a mim também. Mas que vais fazer em
relação à escola dos miúdos? Sobrou-te dinheiro suficiente para os manteres
em escolas privadas?
– Não, mas tanto eu como tu saímo-nos bem na escola de Stanbrooks,
sobretudo tu, por isso tenho a certeza de que será suficientemente boa para a
Darcie e o Nat.
Robert acenou com a cabeça com uma expressão grave.
– Preferias que fossem alunos internos e ficassem lá durante a semana? –
perguntou. – Libertava-te de…
– Não posso pagar as propinas nem para um deles, deixa lá…
– São meus sobrinhos e, nestas circunstâncias, é o mínimo que posso fazer.
Apanhada de surpresa pela inesperada generosidade, que a comoveu
profundamente, Alicia demorou algum tempo a responder.
– Obrigada – disse calmamente. – És muito generoso, mas não posso
aceitar.
– Talvez devesses pensar no assunto.
Alicia olhou-o com uma expressão franca.
– Já pensaste no que a tua mulher diria se descobrisse? – contrapôs. –
Não, Robert, ouve-me, por favor. Não vim para aqui para te arranjar sarilhos.
Só quero prosseguir com a minha vida da melhor maneira possível, e dar aos
meus filhos alguma sensação de segurança, depois de tudo aquilo por que
passaram. Se as circunstâncias fossem diferentes, ficaria muito feliz de te
deixar pagar a escola ao Nat, mas não quero ser responsável por te causar
mais problemas em casa, e os dois sabemos que isso vai acontecer se fizeres
algo para me ajudar.
Suspirando, Robert recostou-se para trás na cadeira.
– Então, que vais fazer? – perguntou, desistindo temporariamente da oferta.
– De que forma pretendes sustentar-te?
– Para dizer a verdade – disse Alicia, tirando um lençol do cesto –, vou
voltar a abrir a loja.
Robert parecia confuso.
– Mas a loja não dá dinheiro nenhum…
– Vou transformá-la numa espécie de galeria para vender as minhas
esculturas – respondeu. – Nas traseiras, há um espaço que posso usar como
estúdio, e pensei que também podia promover outros artistas e artesãos locais,
cobrando-lhes uma comissão. Posso aprender a fazer joias, e nada me impede
de comprar vários artigos para vender aqui com lucro. Seria uma espécie de
loja de recordações artística, se quiseres.
– Estou a ver – disse Robert, num tom que conseguiu transmitir,
simultaneamente, dúvida e encorajamento. – Parece que pensaste bastante no
assunto, por isso desejo-te as maiores felicidades. Já conseguiste vender
alguma das tuas esculturas?
– Para dizer a verdade, já, através de uma galeria em Primrose Hill. Uma
foi vendida por mil e quinhentas libras, e vendi outras duas por setecentas
cada. Depois de a dona ter retirado a comissão dela e o IVA, fiquei com um
bocadinho mais de mil libras.
O irmão arregalou os olhos. Alicia sorriu.
– Estás admirado por ter conseguido um preço tão alto pelas esculturas?
– Não, estou chocado com a percentagem que a galeria cobra. Se é assim
tão alta, deves mesmo vender o teu trabalho diretamente. De quanto precisas
para começar?
– Tenho dinheiro suficiente – assegurou-lhe Alicia, esperando que fosse
verdade. – E tenho seis peças acabadas, prontas para serem expostas. Sete, se
contar com aquela em que estou a trabalhar agora.
– Onde estão?
– Continuam em Londres. Amanhã chega uma carrinha de mudanças com os
nossos objetos pessoais. Vendi tudo o resto juntamente com a casa.
Como era fácil dizer aquelas palavras, Vendi tudo o resto juntamente com
a casa. No entanto, a realidade era devastadora, separar-se de tudo aquilo que
Craig e ela tinham construído e comprado juntos. Era como se outra pessoa se
apossasse da sua existência, apropriando-se dos seus sonhos e vivendo as suas
vidas de forma estranha e diferente. Algum dia conseguiria pensar naquela
casa como propriedade de outras pessoas que não eles?
Claramente ainda a tentar perceber de que forma a irmã tinha perdido tudo,
Robert disse:
– Mas a venda já é mesmo definitiva?
– Sê-lo-á no final da próxima semana. Tenho de admitir que o
acontecimento me causa pavor, mas provavelmente serei capaz de dormir
melhor depois de estar tudo finalizado. O comprador fez um grande negócio e
não são de prever problemas ou atrasos.
Robert continuava a não parecer favoravelmente impressionado.
– Porque não me contaste o que se passava? – perguntou. – Talvez pudesse
ter feito alguma coisa.
Resolvendo ser novamente franca com o irmão, Alicia disse:
– A tua mulher não teria gostado disso e, sinceramente, Robert, ela era a
última pessoa com quem me apetecia lidar quando a verdade me caiu em cima
como um penedo.
– Mas…
– Agora já está tudo resolvido – disse Alicia, interrompendo-o. – Estamos
livres das dívidas e aqui em Holly Wood, prontos para começar de novo. Só
tenho pena que não nos possamos ver tanto como gostaria, mas já sabes que és
sempre bem-vindo nesta casa, sozinho ou acompanhado pela Annabelle, se ela
quiser vir. A Darcie gostaria muito de a ver…
Reparando na máscara que cobriu o rosto do irmão, Alicia disse:
– Mas sem pressões. Como disse antes, não te quero causar problemas em
casa.
– Não é isso – disse Robert –, a questão é que a Annabelle poderá não ser
grande influência para a Darcie nos tempos que correm. Ela está a passar por
uma fase… como se diz? Problemática? Sim, por uma fase problemática.
Alicia arqueou as sobrancelhas interrogativamente. Robert estava prestes a
explicar-se quando, discretamente, a lealdade o obrigou a deter-se.
– Está tudo bem – tranquilizou-o Alicia. – Sei como os adolescentes são,
embora me considere sortuda por o Nat não me ter feito passar pelos
pesadelos que vi algumas das minhas amigas enfrentarem. Tem os seus
momentos rebeldes, como é óbvio, e só tem dezassete anos, por isso ainda não
saímos completamente da zona de perigo, mas, até agora, tudo bem.
Robert sorriu afetuosamente.
– Presumo que ele pretenda seguir as pisadas do pai.
Alicia baixou o olhar enquanto acenava afirmativamente.
– Completamente. Acho que nada o poderia dissuadir. O Craig e ele
tinham tudo planeado, os exames finais, para começar, as universidades, com
Oxford como primeira escolha, como é natural, sendo a alma mater do Craig;
as firmas e os gabinetes de advogados a que se candidataria para fazer estágio,
os exames da ordem, os jantares, até ao momento em que pudesse ir trabalhar
com o pai como advogado júnior.
– Espero que o Craig tenha percebido a sorte que tinha – murmurou
Robert, com uma nota de amargura na voz.
Alicia olhou para ele. Seria tolo pensar que o irmão sentia por Craig mais
afeto do que ela própria sentia por Sabrina… E saber quanto a aventura de
ambos o magoara fê-la odiar a cunhada ainda mais, por não tratar Robert com
o amor e respeito que este merecia.
– Acho que percebia – disse Alicia suavemente. – Sempre foi louco pelos
miúdos.
Robert parecia querer dizer algo mais, mas, o que quer que fosse, acabou
por não ser verbalizado, e Alicia perguntou a si própria se, juntamente com os
seus ressentimentos em relação a Craig, o irmão sentia a sua velha tristeza por
não ter filhos seus. Algum tempo antes, Robert e Sabrina haviam passado pelo
tumulto de esperanças e desespero dos tratamentos de fertilidade, sem
sucesso, e, por fim, Robert declarara-se perfeitamente satisfeito com o seu
papel de padrasto e tio dedicado. Embora fosse excelente em ambos os casos,
Alicia e a mãe sabiam muito bem como se sentia desiludido consigo mesmo
por não ser capaz de ter um filho biológico.
– Não tenho dificuldade nenhuma em imaginar o Nat como um advogado
de renome, um dia destes – disse Robert, cujo tom terno transmitia apenas
amor pelo sobrinho, sem qualquer ciúme ou raiva em relação a Craig. – Vai-te
deixar muito orgulhosa.
Adorando o irmão pelo seu afeto por Nat, Alicia disse:
– Já estou, e é por isso que rezo muito para que a perda do pai e esta
mudança, no último ano, não o faça perder o norte. Acho que não conseguiria
suportar isso.
– Ele sempre teve a cabeça bem no sítio – lembrou-lhe Robert, de modo
tranquilizador. – Acho que não tens nada com que te preocupar nesse aspeto.
Alicia sorriu.
– Obrigada. E agora, antes que continue com estas insuportáveis conversas
vaidosas de mãe, posso perguntar-te como vão as coisas no mundo da alta
ciência?
Os olhos de Robert exibiram uma expressão divertida.
– Alicia, já vi a tua expressão entediada demasiadas vezes para cair na
tentação de ir pelo mesmo caminho outra vez. Ainda é tudo muito aborrecido e
altamente confidencial, e tão frustrante como pode ser quando há tantos
governos envolvidos. Mas uma coisa posso dizer-te, desde que não contes a
ninguém: o meu último projeto desenvolveu um efeito secundário bastante
interessante, que poderia eventualmente, e sublinho o eventualmente, fornecer
um novo género de fonte de energia, capaz de arrumar com a dependência das
alternativas ligadas ao petróleo. Contudo, ainda há um longo caminho a
percorrer antes de se atingir a viabilidade, e, por agora, não queremos que a
imprensa saiba disto, porque pode dar azo a mal-entendidos ou enormes
exageros.
Alicia inclinou a cabeça para o lado com ar divertido, enquanto
contemplava o irmão.
– Sempre soube que podíamos confiar no meu irmão para resolver os
problemas do mundo – ironizou.
Robert riu.
– Neste momento, ficaria contente se conseguisse resolver alguns dos
problemas da minha irmã, mas está a ser ainda mais difícil lidar com ela do
que com o atual governo norte-americano, e isso já diz muito.
– Tenho a certeza que sim, mas, honestamente, não preciso de ajuda. E
para de tentar virar a conversa para mim, porque ainda não terminei contigo.
Continuas a viajar tanto como dantes?
– Mais ainda – suspirou Robert. – Só voltei ontem de Washington e já vou
para Helsínquia na terça. A seguir vou ao Dubai, e depois a Roma. Depois
disso, vou passar um mês com a minha equipa no laboratório.
– Que stress – concordou Alicia. – Os laboratórios ainda são na Terra de
Ninguém?
Era assim que se referiam sempre ao Wiltshire, uma vez que a localização
exata da unidade de pesquisa onde Robert trabalhava era tão confidencial
como os projetos em si.
O irmão acenou afirmativamente com a cabeça.
– Pelo menos, quando estou lá posso vir dormir a casa.
– O que deve ser um grande consolo para a tua mulher – comentou Alicia,
esperando que a sua voz não transmitisse demasiada animosidade. – Ela
alguma vez vai contigo nas viagens?
– Agora vai menos do que dantes. Tem medo de estar longe da Annabelle
durante muito tempo, apesar de a filha insistir que é perfeitamente capaz de
tomar conta dela.
Alicia sorriu.
– Quase que a posso ouvir – disse. – Que idade tem ela agora? Quinze,
dezasseis?
– Parece mais ir a caminho dos vinte e cinco… Felizmente, não me faz a
vida tão negra como à mãe, o que também não diz grande coisa, uma vez que
estou fora muitas vezes.
Incapaz de sentir qualquer compaixão por Sabrina, Alicia disse:
– Vocês os dois sempre foram muito próximos.
– Gosto de pensar que sim, mas, atualmente, acho que ela me vê menos
como um pai do que como um palerma sem cérebro que perdeu o contacto com
o mundo real.
– Que encantadora.
– Também sabe sê-lo, quando lhe dá jeito, o que em geral acontece quando
quer alguma coisa, mas acho que a maioria dos miúdos é assim.
Alicia revirou os olhos, concordando.
– A Darcie já domina a arte na perfeição – confessou. – Conseguia fazer
do Craig gato-sapato em dez segundos.
Robert sorriu.
– Ela deve sentir a falta dele – disse num tom que conseguiu exprimir mais
empatia para com Darcie do que antipatia para com Craig.
Alicia baixou o olhar ao acenar afirmativamente com a cabeça. Após uns
instantes, Robert olhou para o relógio.
– Acho que tenho de voltar para casa – disse. – A Sabrina está a participar
numa caminhada qualquer para fins beneficentes e a Annabelle está em casa de
uma amiga, por isso posso fechar-me no meu escritório sem me acusarem de
falta de atenção. E tu tens de ir para a estação.
– Ainda tenho muito tempo – lembrou-lhe Alicia –, mas preciso de fazer as
camas. Não, não te preocupes, não te vou tentar convencer a ajudar-me, mas,
se hoje estás sozinho, porque não vens até cá para o nosso churrasco, às
cinco? Sei que o Nat ia adorar ver-te.
A expressão de Robert era mais eloquente que as suas palavras, quando
disse:
– Nada me agradaria mais, mas acho que é melhor deixar para outra altura.
Vir cá hoje já criou uma… – Robert procurou a palavra – situação, por isso
não quero piorar as coisas.
– É claro. Eu percebo. Só quero que saibas que esta continua a ser a tua
casa, sempre que cá quiseres vir.
Pondo-se de pé, Robert envolveu-a num abraço fraterno.
– Obrigada – disse, com evidente sinceridade.
Ao afastar-se, Alicia olhou para os seus olhos maravilhosamente meigos.
– Diz-me – disse, com a voz ligeiramente trémula –, fizemos bem em
perdoar-lhes?
Robert inspirou e expirou lentamente.
– Perguntei a mesma coisa a mim próprio muitas vezes – admitiu –, e a
única resposta é que o amor pode tornar-te tão fraco como te torna forte, e
quando tens medo de perder alguém, começas a agarrar-te a essa pessoa,
mesmo que fosse melhor para ti deixá-la partir.
Entendendo perfeitamente o que Robert queria dizer, Alicia disse:
– Achas que a perdoaste mesmo? No fundo do teu coração?
Robert pensou de novo no assunto por alguns instantes.
– Provavelmente, tanto quanto tu perdoaste o Craig – respondeu. –
Esquecer é que é o maior problema.
– É, não é? – Alicia suspirou. – Mas percebes que eu não posso perdoá-
la?
Robert olhou-a com tristeza e beijou-a na testa.
– Talvez um dia tenhamos conseguido deixar isto para trás, e perdoar e
esquecer já não sejam um problema – disse. – Por agora, acho que ainda
andamos aos tropeções à procura do caminho para lá chegar.
Com a certeza de que o irmão estava já algo mais adiantado do que ela no
seu perdão a Craig, deu-lhe o braço e levou-o à porta.
– Diz ao Nat que eu disse olá – disse Robert, ao sair.
– É claro. E não te esqueças de me mandar uma mensagem com o teu novo
número de telefone.
– Com certeza.
Alicia ficou a olhar para o irmão enquanto este percorria o caminho de
acesso, já não vendo o homem em que Robert se tornara, mas recordando o
rapaz que um dia fora e um tempo em que a vida parecera tão simples e
inocente – e não contaminada pelo egoísmo de dois amantes que lhes tinham
provocado tanta tristeza e tanta mágoa.
Capítulo Cinco
Sabrina caminhava sem parar. Os seus pés percorriam os quilómetros e o
coração marcava o ritmo. Acabara de cair um aguaceiro, mas nem ela nem os
seus parceiros de marcha tinham parado. A caminhada tinha fins beneficentes.
Eles, que tinham tanto, estavam a angariar dinheiro para ajudar quem nada
tinha.
Apesar de as pernas lhe doerem, e de sentir as calças do fato de treino
apertadas, prosseguiu, mal sentindo a dor ou se apercebendo do que quer que
fosse à sua volta. Era amparada pelas memórias, impelida pelo seu amor
agora impossível, movida para a meta por vãs promessas infantis de que Craig
estaria à espera para a abraçar quando cruzasse a linha de chegada. Era por
ele que estava a fazer aquilo, para provar que nunca desistira dele e para
mostrar a si própria que nunca o faria.

Há uma semana que estavam em Itália e o calor não lhes dava tréguas. As
oliveiras plantadas em socalcos, que cobriam as encostas em redor da casa de
campo que ocupavam, reluziam como prata sob o sol da tarde, o solo estava
rachado, seco e poeirento. Ali em cima, naquele monte onde a vivenda
repousava como uma pequena fortaleza vigiando as curvas e elevações do
vale, havia uma piscina perfeita e cristalina, onde se podiam refrescar, e
pérgulas cheias de sombra por onde podiam caminhar ou deitar-se a
descansar, densamente perfumadas por jasmins e rosas coloridas.
Uma hora antes, Alicia e Monica tinham partido para Siena, levando
consigo Annabelle e Darcie. Os homens não tinham mostrado qualquer
interesse em acompanhá-las e Sabrina desistira no último minuto, alegando
que estava demasiado calor para se irem meter entre multidões de turistas, e
que não conseguia suportar todas aquelas filas intermináveis para ver umas
igrejas a cair de velhas e um monte de santos torturados. Preferia ficar a
relaxar na piscina com um bom livro, disse, mas mais tarde, quando estivesse
menos calor, iria de carro à aldeia fazer compras para o jantar. Nessa noite era
a sua vez de cozinhar e estava a pensar servir uma série de entradas, que
pensava comprar no Luigi, junto com massa fresca e todos os outros deliciosos
ingredientes de que precisava para fazer o molho.
Agora, ao emergir das sombras da sala de estar, onde Nat e Robert
jogavam xadrez em frente da ampla lareira vazia, o súbito brilho do sol fê-la
franzir os olhos. Fez os óculos de sol descerem-lhe da cabeça para proteger os
olhos e, depois, atravessou o terraço num passo descontraído, desceu as
escadas, onde as flores de bela-emília caíam como empoeiradas estrelas azuis
sobre a velha pedra rugosa, e dirigiu-se à piscina.
Perguntou a si própria porque se sentia sempre tão excitada ao sol. Talvez
fosse o calor, que a forçava a tirar a roupa, ou a sensação do ar no corpo
quase nu. Ou talvez fossem os olhares que ela e Craig tinham andado a trocar
nos últimos dias. Sabia que ele a desejava tanto quanto ela o desejava a ele,
podia vê-lo nos seus olhos e senti-lo na tensão que faiscava entre eles como os
clarões dos relâmpagos que riscavam o céu noturno.
Ao caminhar agora na direção dele, sensações intensas e refinadas
começavam a dardejar entre as suas pernas. Faziam-na querer tocar-se, ou
arrancar as pequenas peças do reluzente biquíni que usava, para se abandonar
ao poder de um desejo exaltador.
Embora Craig tivesse os olhos fechados, deitado à sombra de um guarda-
sol, Sabrina adivinhou que só estava a dormitar, se é que dormia de todo.
Contemplou o seu corpo com avidez. Era longo e firme e ainda estava
molhado da água da piscina. Nos últimos dias, passara muitas horas a desejar
poder despir-lhe os calções para ter uma visão completa. Na sua mente, não
tinha problemas em visualizar imagens do seu pénis, inchado de desejo,
pulsando só para ela, ou dos seus dedos longos deslizando sobre os seus
seios. Na sua imaginação, já tinham ido para a cama cem vezes, de forma
selvagem, transpirada, insaciável – naquele dia, teve a certeza de que isso se
tornaria realidade.
– Olá – murmurou Craig, abrindo os olhos quando a sombra dela se
estendeu sobre ele.
Sabrina sorriu e espreguiçou-se com indolência, erguendo os braços acima
da cabeça. Gostava da firmeza do seu ventre e de sentir a reduzida parte de
baixo do biquíni deslizar para onde deveria haver pelos púbicos, mas não
havia.
– Devem estar quase quarenta graus – comentou Craig, olhando para o sol.
– Hmm – respondeu Sabrina e, soltando o cabelo, deitou-se na
espreguiçadeira ao lado da dele.
Durante muito tempo, mantiveram-se em silêncio, escutando apenas o
zumbido das cigarras e a vibração da bomba que filtrava a água da piscina.
Sabrina perguntou a si própria se Craig erguera o joelho para esconder uma
ereção, e sorriu secretamente. Desejava-o mais do que alguma vez quisera
algum homem na vida e intuía que ele sentia o mesmo. A única diferença entre
eles era que Craig ainda estava a tentar resistir ao sentimento.
Sentiu-o virar-se para olhar para ela e esperou que falasse, mas passaram
alguns instantes até que Craig disse, em voz rouca:
– Ficas incrível com esse biquíni.
Sabrina sorriu.
– Fico contente por gostares, porque comprei-o a pensar em ti.
A carga sexual entre ambos intensificou-se e subitamente queimava mais
que o sol.
Craig não disse nada.
Os olhos de Sabrina permaneceram fechados por trás dos óculos escuros,
o coração batia-lhe tranquilamente sob o mamilo endurecido.
– Ninguém vai saber – disse suavemente.
Como Craig não respondeu, voltou-se para ele e descobriu-o a olhar
fixamente para além dela, para a casa.
– Não podemos fazer isso – disse ele. – Há demasiado em risco.
– Só se eles descobrirem e, se tivermos cuidado, não há maneira de isso
acontecer.
Sabrina absteve-se de lhe dizer, nesta altura, que o risco a enlouquecia,
mas ele em breve teria oportunidade de o descobrir.
Craig desviou os olhos, parecia mais sem fôlego. Passaram-se alguns
minutos expectantes. No fim, aceitando que fazer algo pela primeira vez ali,
naquela casa, seria demasiado difícil para ele, Sabrina balançou as pernas
para fora da espreguiçadeira, pousou os pés no chão e disse:
– Vem comigo comprar qualquer coisa para o jantar.
Craig ergueu o olhar, encontrando o dela, e, quando Sabrina passou as
costas da mão sobre os seios, viu-o engolir em seco.
– Onde está o Nat? – perguntou ele.
– Continua a jogar xadrez com o Robert.
Craig acenou com a cabeça e disse, com uma nota de ironia na voz:
– Por uma vez na vida, não está a jogar às damas com a Annabelle.
Divertida, Sabrina respondeu:
– Achas que é isso que fazem, quando se fecham no quarto dela?
– Na idade deles, espero bem que sim.
Provocadora, Sabrina disse:
– Na idade deles, era isso que terias feito? Jogar às damas?
Craig riu.
– Duvido. – A seguir, pondo-se de pé, disse: – Vou ver se algum deles quer
vir connosco.
Escondendo o desapontamento, Sabrina viu-o agarrar na toalha e no livro e
disse-lhe, enquanto Craig se afastava:
– Vou ter contigo ao carro daqui a dez minutos.
Ele ergueu a mão para lhe dizer que ouvira e, presumivelmente, que estaria
lá. Se tudo corresse bem, sozinho.
Entrando na casa por uma porta lateral, Sabrina subiu até ao seu quarto,
amarrou uma saída de praia por cima do biquíni em jeito de vestido, apanhou
o cabelo atrás e agarrou na mala. Despiria a saída de praia ao chegar ao carro
– talvez também despisse o biquíni, desde que Robert e Nat não viessem.
Quando chegou à sala de estar, foi encontrar ambos ainda concentrados no
seu jogo. Não havia sinal de Craig.
– Algum de vocês quer ir à aldeia? – perguntou, reprimindo um bocejo.
Robert abanou a cabeça, dizendo:
– O Craig já nos veio perguntar e estou prestes a ser derrotado, por isso
vamos ficar cá.
Durante um instante, Sabrina fingiu interesse pelo tabuleiro e, depois,
sentindo os olhos de Nat fixá-la, olhou para ele e sorriu. Nat não devolveu o
sorriso e Sabrina pôde sentir a sua antipatia. Sabia há muito que o sobrinho
não gostava dela, sobretudo porque não era suficientemente sofisticado para o
esconder, e o sentimento era mútuo. Sabrina não tinha paciência para os
meninos que se achavam homens muito antes do tempo, e que a olhavam com
olhos que pareciam ver de mais. Nat não podia saber em relação ao pai e a ela
porque, de momento, não havia nada para saber, mas, como pequeno estupor
presunçoso que era, fazia-a sempre sentir que sabia que ela não era de
confiança.
Tornando o seu sorriso mais doce, beijou a cabeça de Robert e saiu em
direção ao carro. Este estava estacionado numa clareira no fim do caminho de
acesso, da vista da casa, virado para a estrada que serpenteava no exterior da
propriedade. Como de costume, não havia sinais de qualquer trânsito, apenas
um par de lagartixas atravessavam a estrada a correr para se esconderem à
sombra de um cato do outro lado.
Craig já estava no banco do condutor, com o motor a trabalhar. Desatando
a saída de praia, Sabrina sentou-se no banco do passageiro ao lado dele e,
quando os olhos de ambos se encontraram, teve a certeza de que, por fim,
tinham chegado a um ponto de não retorno.

Alicia esperava perto do portão de saída quando o comboio de Nat entrou


na estação de Castle Cary, mesmo à hora. Dentro de si, sentia esvoaçar um
alegre grupo de ansiosas borboletas, lembrando-a de como costumava sentir-
se quando começou a relacionar-se com Craig (e também depois, a seguir à
aventura, mas de um modo terrível, quando até mesmo pensar nele fazia as
suas entranhas contraírem-se de medo). Agora, sentia apenas uma alegre
antecipação, sabendo que o filho estava no comboio e, pela primeira vez em
três dias, poderia envolvê-lo nos seus braços e saber que estava seguro.
Quando as portas se abriram e as pessoas começaram a descer, Alicia
procurou Nat com o olhar ao longo da plataforma, pronta para acenar logo que
o visse. Já podia imaginar o seu rosto, iluminando-se quando a avistasse, e
Summer, com o seu cabelo em tons de outono e bonitas faces cheias de sardas,
saltitando ao lado dele.
Os minutos passaram. A plataforma começou a esvaziar-se e, a cada
segundo que decorria, as centelhas da sua antecipação transformavam-se em
pó. Nat enviara-lhe uma mensagem para dizer que vinha no comboio, logo
tinha de estar ali. Talvez tivesse saído antes por alguma razão, mas, nesse
caso, ter-lhe-ia ligado para a avisar. Ela não o devia ter visto. De alguma
forma, a multidão ocultara-o e ele já estava lá fora, à procura dela. Mas não
havia multidão nenhuma, não tinham descido do comboio mais do que uma
dúzia de pessoas, e Alicia estava mesmo no portão.
O pânico tomou conta dela quando o guarda começou a fechar as portas.
Tinha de o deter. Não podia deixar o comboio partir até Nat ter saído.
– Desculpe-me – disse, num tom agudo e trémulo. Mas que ia dizer ao
homem? – O senhor viu…? O meu filho devia vir neste comboio…
– Olá, mãe!
Alicia ergueu os olhos, e o alívio propagou-se tão rapidamente pelo seu
interior que quase a fez chorar. Nat estava ali. Nada de mal lhe acontecera. O
seu precioso menino estava a salvo, gingando na sua direção, no seu passo
adolescente e cheio de estilo, com um pesado saco pendurado no ombro, jeans
escuros e t-shirt suficientemente justa para mostrar como estava perto de se
tornar um homem. Já era quase tão alto como o pai e, ultimamente, começara a
barbear-se todos os dias. Felizmente, a sua voz há muito se livrara dos tons
agudos da puberdade e a sua pele estava mais ou menos livre dos pontos
negros que faziam o rosto de alguns dos seus amigos menos sortudos parecer o
interior de um kiwi, como Craig dissera certa vez, fazendo-a chorar de riso.
Quando Nat chegou junto dela, os seus olhos azuis-esverdeados, uma cópia
dos dela, cintilavam divertidos, e o seu deslumbrante sorriso de dentes
brancos, similar ao de Craig, derreteu-lhe o coração. Deixando cair o saco
sem preocupação, agarrou-a nos seus braços.
– Adormecemos – disse – e só acordámos há pouco, mesmo à justa.
– Típico – censurou-o Alicia, segurando-lhe o rosto entre as mãos e
contemplando o com uma adoração maternal; o cabelo escuro de Nat caía-lhe
por cima dos olhos e descia-lhe pelo pescoço abaixo, mas não o mandaria
cortá-lo, desistira há muito de o fazer.
Depois de o abraçar de novo, virou-se para cumprimentar Summer, que,
com o seu metro e sessenta, era muito mais baixa que Nat, embora as suas
sandálias de plataforma com saltos de dez centímetros a tornassem quase tão
alta como Alicia.
– Olá, minha querida, como estás? – disse Alicia, dando-lhe um abraço
caloroso. – Fico muito contente por teres vindo.
– Obrigada por me receber cá. – Summer sorriu. – Estou mesmo ansiosa.
O Nat diz que a casa é mesmo gira e que a aldeia também é muito fixe. É um
nome fantástico, não é? Foi mesmo o máximo dizer aos meus amigos que vinha
para a casa da mãe do Nat em Holly Wood. Eles ficaram incrédulos.
Rindo, Alicia disse:
– Receio que aqui não tenhamos passeios da fama ou avenidas com
estrelas no chão, mas na rua principal há um pub simpático e, de vez em
quando, os Holly Wood Players levam à cena uma boa peça.
– Oh, sim, é como a paródia do Sonho de Uma Noite de Verão – disse Nat
sarcástico, enquanto se dirigiam para a saída. – Lembras-te de quando
representaram a peça junto ao Holly Copse e a cauda do Puck ficou presa num
galho e ele não a conseguia soltar?
Alicia desatou a rir.
– E a Titânia caiu de um ramo no meio da cena de outra personagem.
– Oh, meu Deus, tinha-me esquecido dessa – exclamou Nat. – Acabámos
por ter de nos vir embora por nos estarmos a rir tanto.
Deliciada por Nat se recordar tão bem daqueles acontecimentos, apesar de
na altura ter apenas doze anos, Alicia deu o braço a Summer, dizendo:
– Vamos passar por cima do facto de a Brenda Lovejoy, que fazia de
Titânia, ter fraturado uma costela ao cair. A minha família deixou-me ficar
mesmo mal naquela noite…
– O quê?! Eras tu quem mais se ria – protestou Nat. – O pai teve de te
tapar a boca para te tentar fazer parar…
– E depois foi ele que se passou completamente, quando um cão entrou a
correr no palco e roubou o protagonismo todo. A avó também não se portou
melhor, a rir como uma adolescente. Ainda não tenho a certeza se a Darcie
percebia do que se estava a rir, mas começou a fazer tanto barulho, que foi
principalmente por causa dela que tivemos de nos vir embora.
Era evidente que Summer estava a apreciar o momento.
– Parece que foi uma altura mesmo divertida – comentou.
– Em miúdos, adorávamos vir cá – disse Nat, enquanto atravessavam para
o parque de estacionamento. – A avó tinha tudo em casa dela, todos os
brinquedos e coisas de que gostávamos, e levava-nos a lugares como Wookey
Hole, Cheddar e Glastonbury. Contei-te, não contei, que o meu pai e eu fomos
ao festival o ano passado, e no ano anterior? E foi espetacular, das duas vezes.
Surpreendida e animada por ouvir Nat falar do pai quando mal se referira
a ele nos últimos meses, Alicia começou a procurar as chaves do carro na
mala.
– Oh – disse Summer, evidentemente espantada quando pararam junto ao
Renault. – Que aconteceu ao Mercedes?
Alicia olhou rapidamente para Nat. Este exibia uma expressão
desconfortável, mas acabou por dizer:
– Não era prático aqui no campo, e a minha mãe precisava de uma carrinha
para transportar as esculturas dela.
– Ah, sim – disse Summer, corando ligeiramente. – Esta é mesmo fixe –
acrescentou. – Adoro a cor.
Uma vez que o automóvel era bege, Alicia teve a certeza de que Summer
estava a tentar emendar a gafe, e dirigiu-lhe um sorriso agradecido.
– Venham daí, vamos para casa – disse, abrindo o porta-bagagens. Depois
de depositar a bagagem de ambos no interior, deu por si a transbordar de
felicidade, quando, depois de fechar a porta traseira, Nat lhe deu mais um
abraço rápido. A vida parecia-lhe quase completa agora que o filho estava ali,
e a chegada de Darcie seria mais uma fonte de alegria; e, com o tempo, depois
de se habituarem à ausência de Craig, o vazio horrível e doloroso que este
deixara atrás de si iria por fim – por favor, meu Deus! – começar a
desvanecer-se.

Quarenta minutos depois, estavam de volta à Coach House e, enquanto Nat


e Summer iam até aos seus quartos no andar de cima desfazer as malas, Alicia
trataria de pôr o churrasco em marcha – frango e salsichas caseiras para ela e
Nat, atum marinado em soja para Summer, que decidira tornar-se vegetariana.
Alicia preparara as saladas previamente: uma salada Waldorf crocante, das
preferidas de Nat; uma salada de queijo de cabra cremoso com tomates cereja;
e uma mistura saborosa de batatas novas esmagadas, funcho e cebolinho.
Depois de acender o gás no grelhador cilíndrico que ela e Craig tinham
comprado para a mãe anos antes, empurrou para o fundo do espírito as
memórias que se acumulavam e começou a arrumar a mesa. A julgar pelos
aromas deliciosos que flutuavam por sobre os altos muros de pedra que
rodeavam o jardim das traseiras, era óbvio que um ou mais dos seus vizinhos
preparava o seu próprio banquete de fim de tarde. Alicia podia ouvir o
murmúrio das suas vozes, temperado por gargalhadas e o tilintar de copos, e,
em algum lugar distante, alguém cortava a relva. Era uma tarde de domingo
perfeita e sonolenta, com borboletas da sorte e belas-damas esvoaçando ao
redor dos arbustos de alfazema, e o trinado melodioso de um tordo vindo da
pereira da casa ao lado.
– Esta casa é tão gira – disse Summer, saindo pela porta das traseiras
vestida com calções de ganga pelos joelhos e umas mais sensatas chinelas de
meter o dedo. Tinha pernas bonitas, apesar da baixa estatura, e uma pele
sumptuosamente jovem e suave, que exibia agora generosamente, usando
apenas, na parte de cima, um minúsculo biquíni vermelho às pintas.
– Parece um daqueles lugares que vemos nos postais e velhos quadros do
campo – acrescentou.
Alicia sorriu. Sabia que Summer não estava a ser condescendente, por isso
não ficaria ofendida.
– Foi um ótimo lugar para viver em pequena – disse –, e para trazer as
crianças de férias, quando eram mais novos.
– O Nat estava-me a contar, no comboio, como era a melhor coisa do
mundo vir cá no Natal, quando a avó o deixava assar castanhas na lareira e o
pai fingia sempre que não havia presentes.
– Sim, ele gostava de os arreliar – concordou Alicia. A seguir, incapaz de
se controlar, perguntou: – O Nat fala-te muito do pai, ultimamente?
Summer encolheu os ombros.
– Não propriamente – respondeu –, mas acho que devia, porque não é bom
acumular as coisas dentro de nós.
– É isso que achas que ele está a fazer?
A pergunta era tola, é claro que Nat estava a deixar os sentimentos
acumularem se dentro dele. Summer corou ligeiramente, parecendo
embaraçada por a convidarem a entrar num território proibido.
– Há dias, perguntei-lhe se alguma vez tinha chorado desde que o pai
morreu – disse –, e ele respondeu que isso não o traria de volta, por isso, para
quê chorar?
Alicia sentiu o coração apertar-se. Embora a resposta não fosse uma
surpresa, pois Nat já lhe dissera a mesma coisa quando ela própria lhe
perguntara, continuava a perturbá-la.
– Mas acho que não tem motivos para se preocupar com ele a sério –
tranquilizou-a Summer, aparentemente sentindo a necessidade de aligeirar as
coisas. – Ele tem a cabeça no sítio, por isso tenho a certeza de que vai ficar
bem.
Alicia acenou com a cabeça e sorriu.
– Também tenho a certeza de que sim – murmurou, desejando acreditar
naquilo que dizia, sem no entanto o conseguir. – Agora, que queres beber? Há
muitos sumos de frutas, ou Coca-Cola. Ou podes beber vinho, se preferires.
– Oh, eu sirvo as bebidas – ofereceu-se Summer –, só tem de me dizer
onde estão os copos.
– Já estão na mesa – disse Alicia, apontando –, mas as bebidas estão no
frigorífico.
– Acho que o Nat deve beber uma cerveja – disse Summer, voltando-lhe as
costas para se dirigir à cozinha. – É o que costuma beber nos churrascos.
Esperando que o seu sentido de propriedade sobre o filho não tivesse
transparecido de forma demasiado intensa, Alicia deixou-a ir e foi verificar o
grelhador. Algum dia teria de se acostumar a partilhá-lo, por isso talvez
pudesse tentar ver este relacionamento como um ensaio, em vez de uma
intromissão, sobretudo porque gostava bastante da rapariga. O que até dava
jeito, disse a si própria uns minutos depois, quando se virou e os viu aos
beijos na cozinha. Nat estava bastante apaixonado, a mãe nunca duvidara
disso, e o facto de dormirem juntos há, pelo menos, seis meses – Alicia só
sabia porque Nat contara ao pai – não parecia ter-lhe arrefecido os
sentimentos. Pelo contrário, aproximara-os mais, o que Alicia até teria achado
bem se o filho fosse dez anos mais velho.
Contudo, o que importava agora era que Summer o fazia feliz e, apesar de
Nat poder ser uma bomba-relógio de emoções, pelo menos a namorada não
contribuía para piorar a situação. E, a julgar pela breve troca de palavras
entre ambas momentos antes, também não era insensível àquilo por que o filho
estava a passar.
– Mãe, vais beber vinho? – gritou Nat da cozinha.
– Gostava muito – gritou Alicia em resposta. – Podes trazer a carne? Esta
coisa já está quente.
Quando Nat trouxe o tabuleiro e o pousou na mesa ao lado dela, Alicia
cheirou o seu hálito a cerveja e virou-se para olhar para ele. Desejava
acariciar-lhe o rosto e abraçá-lo, mas sabia que não era a coisa mais indicada
a fazer.
– Mãe, és demasiado emotiva – disse Nat baixinho. – Eu estou bem, OK?
– É claro que estás – respondeu Alicia, simulando um risinho.
Ter-lhe-ia Summer contado sobre a sua conversa? Ou seriam as suas
preocupações realmente exageradas? Com certeza era isso, e ela precisava de
descontrair.
– Por favor, diz-me que não te magoei – disse Nat, num tom meio irritado,
meio a brincar.
– Não magoaste – garantiu-lhe ela. – E tens razão, ando um bocado
sensível. Acho que ainda me estou a tentar habituar a ver este lugar como a
nossa casa. Mudando de assunto, o tio Robert passou por aqui e manda-te
cumprimentos.
– Aqui tem o seu vinho, Alicia – disse Summer, aparecendo atrás deles
com um grande copo de Chardonnay. – Também enchi um para mim, espero
que não haja problema.
– É claro que não – tranquilizou-a Alicia calorosamente. – Serve-te
daquilo que quiseres, não tens de pedir.
Summer sorriu e apoiou a cabeça em Nat, que a rodeou com um braço.
– É o meu? – disse Nat, quando se começou a ouvir um telemóvel tocar
dentro de casa. – É capaz de ser o Simon Forsey, mandei-lhe uma mensagem a
dizer que vinha para cá.
Contente por ver que o filho já estava a reatar as amizades com os amigos
que tinha na zona, Alicia brindou com Summer e deu-lhe um abraço impulsivo.
Tudo se iria compor, disse a si própria com convicção. Os próximos dias iam
correr bem, e esse era o único futuro que Alicia conseguia contemplar no
momento.

– Ah, então decidiste vir para casa – disse Sabrina com vivacidade,
quando Annabelle entrou pela porta, coberta de contas tilintantes e com uma
minissaia esvoaçante que deixava quase completamente à mostra as suas
longas pernas nuas.
– Sim, apeteceu-me – respondeu Annabelle num tom alegre, escancarando
a porta do frigorífico. – Há Babybels? Estou esfomeada.
– Estão na segunda gaveta, com os outros queijos, mas não exageres,
vamos jantar ao pub.
– Fixe. A Georgie vem a caminho, também pode ir connosco?
– Não vejo porque não. Ela vai dormir cá?
– Espero que sim. Então, como correu a caminhada de beneficência?
Conseguiste chegar ao fim?
Uma onda de infelicidade invadiu o coração de Sabrina. Sim, conseguira
chegar ao fim, mas não experimentara qualquer sentimento de realização ao
atravessar a meta, apenas um regresso à forma de que o seu mundo se revestia
agora, triste e vazio, por um lado, e repleto de culpa e confusão, por outro.
– Olááá! Então, chegaste ao fim? – insistiu Annabelle.
Compondo rapidamente uma expressão animada, Sabrina disse:
– Se toda a gente der o dinheiro, acabei de angariar mil e quinhentas libras
para a Shelter. Não é bestial?
Annabelle parecia impressionada.
– É o máximo – concordou, retirando o invólucro vermelho de um dos
queijinhos e dando-lhe uma dentada. – Quem me dera que conseguisses
angariar esse dinheiro para mim. Então, onde está o Robert?
– No escritório dele, é claro. Por falar nisso, liga-lhe e diz-lhe que vou
servir uma bebida para os dois. Já é tempo de ele sair dali.
Servindo-se do intercomunicador que estava ligado ao escritório de
Robert, uma espécie de bunker extravagante situado na extremidade do jardim,
Annabelle disse:
– Terra chama Robert, Terra chama Robert, vem para casa tomar uma
vodka com água tónica, se faz favor – e, retirando o dedo do botão, sentou-se
pesadamente à mesa e abriu o exemplar da revista Style daquele dia.
– Trouxeste algum saco contigo? – perguntou Sabrina, colocando gelo em
dois copos altos.
– A mãe da Georgie traz-me o saco no carro dela.
– Então, como vieste para cá?
– Apanhei boleia.
– Hã? De quem?
Annabelle virou uma página.
– De uma pessoa amiga. Jesus, olha-me para estes sapatos. Ficavam
mesmo bem com o vestido púrpura que comprei quando fomos a Bath na
semana passada, e só custam quatrocentas e sessenta libras.
Sabrina olhou-a de lado, sem perceber bem se ela estava ou não a brincar.
– Então, quem te trouxe a casa? – repetiu.
– Acabei de te dizer, uma pessoa amiga.
Virou outra página e começou a comer um segundo queijinho.
– Essa pessoa amiga era rapaz ou rapariga?
– Hmm, deixa-me pensar. Sim, acho que devia ser um rapaz, mas, antes
que te comeces a passar, não, não fizemos nenhuma paragem para ter sexo no
banco de trás – disse Annabelle, metendo o resto do queijo na boca. – Fizemos
isso ontem à noite.
Com imagens das vezes em que Craig e ela tinham feito amor num carro a
passarem-lhe pela cabeça, Sabrina olhou de novo para Annabelle. A filha
estava a tentar provocá-la, por isso resolveu não entrar no jogo, e deitou duas
generosas doses de vodka por cima do gelo, antes de voltar a abrir o
frigorífico para ir buscar a água tónica.
– E como se chama ele? – perguntou, esforçando-se por manter um tom
casual.
– Quem?
– O rapaz que te trouxe a casa.
Annabelle encolheu os ombros.
– Não sei. Não perguntei.
Sabrina suspirou, exasperada. Estava a esforçar-se tanto por se relacionar
com a filha, mas não recebia nada em troca.
– Annabelle, porque tem tudo de ser tão difícil contigo? – perguntou,
tentando não parecer que a estava a criticar.
Annabelle ergueu as mãos.
– Tu perguntas, eu respondo, o que é que há de difícil nisso? – exclamou.
– Dantes, tínhamos ótimas conversas sobre todos os assuntos – lembrou-a
Sabrina. – Agora, mal consigo que me digas uma palavra que faça sentido.
Annabelle atirou a cabeça para trás.
– Humm, deixa-me ver, e isso deve ser porque… Ah, sim, sou estúpida,
não tenho cérebro e só ando aqui a ocupar espaço.
Sabrina olhou-a agastada.
– Mas porque…?
– Era uma piada! – atalhou Annabelle.
– Mas alguém aqui alguma vez te disse essas coisas? – perguntou Sabrina,
horrorizada com a hipótese de poder tê-lo feito.
– Daaa! Ainda agora te disse, era uma piada.
Annabelle voltou a mergulhar na leitura da revista, mas Sabrina ficou a
olhar fixamente para ela, desejando dizer algo mais, sem contudo conseguir
alinhavar as palavras, por medo do rumo que as coisas podiam tomar.
– Ah, querido, cá estás – disse, ao ver Robert entrar pela porta das
traseiras. – Pensei que era melhor arrancar-te do escritório agora, ou ias lá
ficar a noite inteira.
– Ainda bem que o fizeste – respondeu Robert, indo lavar as mãos na
banca. – Estava quase a adormecer. Acho que ainda devem ser os efeitos da
diferença de fuso horário. Olá, Annabelle. Como vai a vida?
– Tudo bem – respondeu ela, continuando a folhear a revista enquanto lhe
acenava.
– Recebi a tua mensagem – disse Robert a Sabrina. – Então, devo-te
quinhentas libras. Muitos parabéns. Quantos quilómetros foram mesmo?
– Trinta e dois – respondeu Sabrina, passando-lhe uma toalha. – Podes
passar me um cheque, sei que tens cobertura.
Robert sorriu e inclinou-se para a frente para a beijar levemente enquanto
secava as mãos.
– Pensei que podíamos ir jantar ao pub – disse Sabrina, voltando a
pendurar a toalha e passando-lhe uma bebida. – A Annabelle e a Georgie vêm
connosco.
De imediato, Robert exibiu uma expressão de desconforto.
– Humm, estava a pensar que podíamos fazer um churrasco – disse. – Está
uma tarde agradável e este ano ainda não usámos o grelhador.
Sabrina franziu a testa, dizendo:
– Já reservei uma mesa.
– Mas é fácil cancelar.
Sabrina olhou-o fixamente. Depois, compreendendo qual era o problema,
começou a empalidecer.
– Talvez não me apeteça cancelar – disse obstinadamente.
– Acho que talvez te apeteça – disse Robert, num tom agradável.
Apercebendo-se da tensão entre ambos, Annabelle ergueu os olhos.
– É só uma ida ao pub – disse. – Qual é o problema?
Ignorando-a, Sabrina disse a Robert:
– Posso dar-te uma palavrinha, por favor? Em privado?
– Oh, não se incomodem por minha causa – disse Annabelle, fechando a
revista –, também já ia para o meu quarto. Mandem a Georgie subir quando ela
chegar.
Depois de a porta se fechar atrás da filha, Sabrina esperou até ouvir o som
dos seus passos afastarem-se antes de se voltar para Robert.
– Presumo que a tua irmã vá ao pub esta noite – disse tensamente.
Robert acenou com a cabeça e bebeu um gole da sua bebida.
– Vai-se encontrar com a Rachel – confirmou – e, a não ser que me engane
muito, acho que preferias não estar sob o mesmo teto que ela – ou na mesma
esplanada, dado o bom tempo.
O rosto de Sabrina contraía-se mais a cada segundo que passava.
– Não vejo por que motivo tenhamos de mudar os nossos planos por causa
dela – disse asperamente.
– Então, vai – respondeu Robert –, mas, se não te importas, eu fico em
casa.
Sabrina pousou ruidosamente o copo sobre o tampo da bancada.
– Esta aldeia é a nossa casa – disse, furiosa –, é onde eu vivo e tenho todo
o direito a ir ao pub quando bem me apetecer.
– Não discuto isso, só estou a dizer que não vou passar a noite a ignorar a
minha própria irmã, que é o que vais querer que eu faça, nem me vou resignar
a ser testemunha de um confronto embaraçoso entre vocês as duas. Há outros
pubs…
– Então, ela que procure um. Nós vamos ao Traveller’s.
– Já te disse que vou ficar em casa.
Uma vez que Robert sabia perfeitamente que Sabrina não iria ao pub sem
ele, a frustração desta atingiu um ponto de ebulição.
– Que aconteceu quando foste visitá-la hoje? – perguntou Sabrina, fazendo
um esforço heroico para controlar a sua fúria.
– Não aconteceu nada. Bebemos um chá e conversámos um bocado.
Depois, vim-me embora.
– Descobriste quais são os planos dela?
– Sim. Vai ficar a viver em Holly Wood e pôr os filhos a estudar em
Stanbrooks.
Sabrina deixou cair o queixo de espanto, enquanto os seus olhos se
arregalavam, horrorizados.
– Mas ela não pode fazer isso – protestou. – O Nathan anda em
Westminster. O Craig nunca haveria de querer que ele saísse de lá.
– Correndo o risco de referir o óbvio, o Craig já não tem voto na matéria.
A casa de Londres foi vendida e os objetos pessoais deles devem chegar
amanhã.
Sabrina tinha a expressão de alguém que apanhou uma bofetada.
– Vamos antes ao Wheatsheaf – sugeriu Robert. – Está-me a apetecer um
bom bife e o deles não costuma desiludir.
– E que vai ela fazer aqui? – perguntou Sabrina. – Viver uma vida de
dondoca rica?
– Na verdade, vai reabrir a loja e pôr as esculturas dela à venda –
respondeu Robert, desagradado com a conversa, apesar do tom descontraído
que conseguia manter.
Sabrina olhava-o silenciosa e incrédula.
– Também espera poder promover alguns dos talentos locais – continuou,
decidindo contar-lhe tudo. – Nas palavras dela, será uma espécie de loja de
recordações artística.
Os olhos de Sabrina faiscaram.
– Em Holly Wood não há lojas de recordações – cuspiu Sabrina, num tom
mordaz.
Robert quase sorriu, mas conseguiu controlar-se.
– A seguir, vai tentar chamar turistas à aldeia, e este sítio não tem nada que
ver com isso. Não queremos estranhos por aqui a vadiarem pelas nossas ruas,
a olharem-nos especados pelas janelas, a roubarem-nos os nossos lugares de
estacionamento.
– Ela precisa de ganhar a vida – disse Robert serenamente.
Sabrina fixou-o, incapaz de acreditar no que ouvia.
– Estás-me mesmo a pedir que acredite que…
– Ela teve de vender a casa de Londres – interrompeu-a Robert –, mas não
vou entrar em mais detalhes acerca disso, porque não seria correto tendo em
conta os teus sentimentos em relação a ela.
O facto de Craig não ter deixado a família tão bem financeiramente como
Sabrina teria imaginado abalou-a de tal forma, que só passados alguns
instantes conseguiu dizer:
– É engraçado como nunca tens problemas em ser-lhe leal a ela, mas,
quando se trata de mim, pareces esquecer o que isso significa.
Robert olhou-a fixamente até que Sabrina se apercebeu de como o seu
comentário era incorreto, sobretudo considerando o modo como o marido
ficara ao lado dela durante a crise terrível que se seguiu à rutura forçada com
Craig.
– Desculpa – murmurou –, não devia ter dito aquilo.
– Porque não começas a pensar em pedir-lhe desculpas? – atreveu-se
Robert a sugerir. – Uma vez que vão morar na mesma aldeia, o natural é que
acabem por dar de caras uma com a outra…
– Não tenho nada por que pedir desculpas – atalhou Sabrina zangada. –
Não a ela.
– Como podes dizer isso, quando o Craig era casado com ela…
– Então, era a ele que lhe cabia pedir desculpas, como eu te pedi a ti.
Suspirando, Robert voltou a pegar no copo e bebeu outro gole.
– Não sei porque tens tanta má vontade contra ela – disse. – Desde o início
que não gostaste da Alicia…
– Desculpa lá! – interrompeu-o Sabrina ferozmente. – Ela é que sempre se
achou melhor do que toda a gente…
– Se te tivesses dado ao trabalho de a conhecer mesmo a sério, terias visto
como estás enganada.
– E que tal ela dar-se ao trabalho de me conhecer a mim? Mal falou
comigo da primeira vez que estivemos juntas.
– Não preciso de te lembrar como a Darcie estava doente, na altura.
– Há outras pessoas com filhos doentes que se dão ao trabalho de ser
educadas. Ela nem foi ao nosso casamento e, caso te tenhas esquecido, fui
sempre uma anfitriã muito generosa quando eles vinham para cá, o que é mais
do que posso dizer acerca dela quando fomos a Londres.
Robert pestanejou de espanto.
– É óbvio que tens uma ideia da hospitalidade muito diferente da minha –
disse –, mas esta discussão é inútil e não nos leva a lado nenhum. O problema
agora, tanto quanto posso ver, é que não consegues enfrentar as tuas próprias
culpas e, a não ser que o faças, o mais provável é que sejas tu quem vai sofrer
mais.
– A sério? – disse Sabrina num tom hostil. – Já vamos ver isso. Ela pode
ter nascido nesta aldeia, mas sou eu quem vive aqui há doze anos e sou eu que
estou na junta de freguesia. Estás a ver aquela lojinha pirosa que ela
imaginou? Vai abri-la por cima do meu cadáver!
Quando a porta se fechou silenciosamente atrás dele, Sabrina deixou-se
cair numa das cadeiras da cozinha e afundou o rosto entre as mãos. Tinha
vontade de chorar e de gritar e de arrancar os cabelos, sentia-se tão ignorada e
infeliz! Ninguém se preocupava, nem por um instante, com o modo como a
morte de Craig a poderia ter afetado, e a luta para manter a sua dor oculta
estava a tornar-se cada vez mais difícil. Agora, com Alicia a aparecer assim e
a planear ficar na aldeia, era como se alguém lá em cima a estivesse a tentar
castigar, fazendo-a parecer mais insignificante do que nunca. Meu Deus, como
odiava Alicia por ser a esposa por que toda a gente sentia compaixão, como se
tivesse sido a única mulher que importara para Craig. Se não fosse pelos
filhos, ele tê-la-ia deixado há dois anos, e Sabrina desejava desesperadamente
que o tivesse feito, pois, na sua cabeça, não tinha qualquer dúvida de que
Craig ainda hoje estaria vivo, se tivesse tido coragem de partir e recomeçar
uma vida nova com ela.
Capítulo Seis
Alicia estava nas traseiras da antiga loja da mãe, no espaço que tencionava
usar como estúdio. Para qualquer outra pessoa, este provavelmente não teria
parecido nada inspirador, mas, com o seu olhar artístico, Alicia era capaz de
ver para além de todas as teias de aranha e excremento de ratos, caixas e
livros apodrecidos, vidros partidos, pia suja, canos enferrujados e tinta a
descascar das paredes – perspetivando uma sala ampla e luminosa, com
portadas que davam para um pequeno pátio traseiro com enlameados vasos de
flores e a casa de banho exterior (todavia por explorar). Embora o espaço
fosse mais pequeno do que se lembrava, definitivamente tinha tamanho
suficiente para lá trabalhar, ao passo que na loja havia muito espaço para
prateleiras e expositores, e uma janela saliente onde as suas peças podiam ser
mostradas ao mundo que passava lá fora.
Como Holly Wood não atraía muitos visitantes, teria de ser imaginativa e
estar altamente motivada para vender o seu próprio trabalho, mas tinha amigos
em Londres, que tinha a certeza que a ajudariam com os seus conselhos e
talvez encaminhassem mesmo um cliente ou outro – ou mais – na sua direção.
A nível local, podia fazer publicidade nas revistas da freguesia e nos jornais
do West Country – quando pudesse pagar. Para começar, podia ser boa ideia
elaborar um folheto para colocar nos principais postos de turismo do condado,
bem como em vários edifícios de interesse público e pubs gastronómicos.
Entretanto, precisava de libertar espaço para que os homens das mudanças
pudessem entregar a sua mesa de trabalho, equipamento de soldadura e
esculturas acabadas. Como a única escova visível estava carcomida pelo
caruncho e não tinha cerdas, teria de voltar depressa à Coach House para
arranjar outra. Aproveitaria para trazer também alguns sacos de lixo, um
balde, esfregões, detergente e luvas de borracha.
Ao sair da loja, trancou a porta com a antiquada chave, recolheu um saco
abandonado cheio de sapatos velhos que alguém deixara sabe-se lá quando, e
virou na direção do pub. Continuava um pouco cansada por causa dos copos
da noite anterior, mas fora divertido sentar-se na esplanada do Traveller’s
com Nat e Summer, e Rachel e a família desta, conseguindo até relaxar durante
algumas horas antes de o verdadeiro desafio ter início naquele dia.
Afortunadamente, Sabrina e Robert não tinham aparecido. Maggie dissera-lhe
que o irmão e a cunhada tinham feito uma reserva, mas que esta fora cancelada
à última hora, o que não foi problemático para Maggie, uma vez que havia
muita gente à espera para ocupar o seu lugar. Alicia sentia que escapara
realmente por pouco, embora, como é óbvio, o temido encontro tivesse de
acontecer mais cedo ou mais tarde. Quando acontecesse, seria a primeira vez
que as duas estariam frente a frente desde o dia em que se tinham pegado à
frente de Monica – para além do funeral da mãe, onde se ignoraram
mutuamente de forma estudada – e, de momento, a única coisa que Alicia
conseguia sentir pela cunhada era uma enorme vontade de lhe bater outra vez.
Ao virar a esquina para The Close, animou-se ao ver o carro de Rachel
estacionado atrás da carrinha das mudanças.
– Que estás aqui a fazer? – exclamou, assim que Rachel saiu pela porta da
frente com Nat.
– Tinha uma consulta ao domicílio em Sheep Lane – respondeu Rachel,
aproximando-se para lhe dar um abraço –, e pensei em passar por aqui para
ver como as coisas estavam a correr. Como está a loja?
– Precisa de muito amor, carinho e braços que a limpem, mas não parece
haver fugas na canalização, por isso não deve demorar muito para a pôr em
condições. Aqui o meu ágil filho ofereceu-se para a pintar, não foi, meu
querido?
– Ofereci? – pestanejou Nat.
Alicia sorriu.
– Ofereci – confirmou ele.
Rachel riu.
– O meu consultório inteiro precisa de ser pintado – disse a Nat –, se
quiseres ganhar algum dinheiro.
– Assim está melhor – respondeu ele, esfregando as mãos. – Só há trabalho
escravo por aqui, e eu tenho uma namorada cara para sustentar.
– O que estás a dizer de mim? – perguntou Summer, saindo de casa num
passo saltitante, vestida com um minúsculo vestido justo e umas volumosas
sandálias de plataformas entrançadas.
– Sra. Carlyle? Está aí? – chamou um dos homens das mudanças do cimo
das escadas. – Quer que lhe montemos esta secretária? Temos tempo.
– O senhor é um anjo – respondeu Alicia. – Obrigada.
– A maioria das tuas coisas já está lá dentro – disse-lhe Nat. – Agora eles
estão no quarto da Darcie. No meu já terminaram, por isso não falta muito para
que possam ir para a loja.
– Nesse caso, preciso de voltar lá para arranjar espaço – respondeu
Alicia, entrando pela porta.
– Vais na direção errada – disse Nat.
– Escovas, vassouras, baldes – informou-o a mãe.
Olhando para o relógio, Rachel disse:
– Tenho meia hora antes de voltar para o consultório, vou-te dar uma
ajuda.
Dez minutos depois, Alicia e Rachel estavam a carregar e a varrer entulho
da sala dos fundos para a loja, onde Nat e Summer o estavam a enfiar em
sacos, para o levar para o depósito de lixo. Ainda não tinham conseguido abrir
nenhum caminho evidente até ao futuro estúdio, mas, ao ritmo que levavam,
conseguiriam criá-lo até os homens das mudanças chegarem.
– Precisam de mais um par de mãos? – perguntou uma voz da porta da
frente. Era a tia de Rachel, Mimi, que vinha da florista, na porta ao lado. – O
Pete está livre, se quiserem que faça alguma coisa.
– Penso que por agora damos conta do recado – riu Alicia, indo abraçá-la.
– A não ser que o Pete esteja com vontade de meter as mãos numa velha
casa de banho suja – gritou Rachel.
Os diabólicos olhos de Mimi cintilaram.
– Vou-lhe telefonar e mandá-lo vir para aqui agora mesmo – disse –, e
depois vou trazer café para todos.
– É uma querida – disse Alicia.
Mimi tinha acabado de sair quando Alicia ouviu mais vozes na frente da
loja e, erguendo os olhos, sentiu as entranhas darem uma guinada de
desconforto quando percebeu de quem se tratava.
– Oh, caramba – murmurou Rachel.
Annabelle, com um deslumbrante ar adulto, olhava Nat de maneira
provocadora, enquanto a sua amiga examinava Summer com descaramento. No
entanto, não era em vão que Summer era filha de um conde, e o olhar que
devolveu à rapariga foi tão fulminante e desdenhoso, que esta corou e desviou
os olhos.
– Annabelle – disse Alicia num tom caloroso, avançando rapidamente pela
loja. – Que bela surpresa!
– Olá – respondeu Annabelle, despregando os olhos de Nat.
– Ouvi dizer que estavam cá e viemos dizer olá. Há séculos que não nos
vemos. Pensei que se tivessem esquecido de nós. Ah, sim, os meus pêsames
pelo tio Craig. Foi terrível.
Alicia manteve o sorriso enquanto abraçava a enteada do irmão, que
provavelmente não tivera intenção de que as suas condolências soassem como
um grosseiro pensamento tardio.
– Obrigada – disse. – É bom ver-te. Tornaste-te numa bela jovem.
Annabelle exibiu uma expressão vaidosa e olhou para Nat.
– Então, quanto tempo cá ficam? – perguntou.
– Agora vivemos aqui – respondeu Alicia, ainda abalada pelo aspeto
adulto e aparentemente seguro de Annabelle. – Estamos a arranjar a loja, para
a transformar numa espécie de ateliê-galeria.
– Fixe – disse Annabelle, lançando outro olhar na direção de Nat, que
entretanto se virara para continuar a encher sacos.
– Olá, eu sou a Alicia – disse Alicia à outra rapariga.
– Oh, desculpa – disse Annabelle –, esta é a minha amiga Georgie.
– Olá – disse Georgie, acenando com os dedos.
Annabelle voltou a sua atenção para Summer.
– E tu és…? – perguntou, de forma rude.
– Esta é a Summer, a namorada do Nat – informou Alicia.
Annabelle olhou Summer de cima a baixo.
– Muito gosto em conhecer-te também, namorada do Nat – disse, numa voz
arrastada. – Vestido engraçado. D&G?
Summer assentiu. O seu rosto pálido e sardento refletia a confusão que lhe
causava aquele comportamento que não entendia.
– Mmm, bem me parecia – comentou Annabelle. Depois, voltando-se para
Nat, disse: – Temos de pôr os assuntos em dia. Talvez possamos jogar umas
damas.
Pela maneira como Nat corou e Georgie riu, Alicia calculou que o
comentário fosse um eufemismo sexual que, provavelmente, apenas os
adolescentes compreendiam.
– Temos de ir – murmurou Georgie. – Eles vão chegar a qualquer
momento.
Annabelle virou-se para Alicia.
– Fico muito contente por estares cá – disse. – Vais ter de ir lá a casa um
dia destes, sei que a minha mãe adoraria ver-te – e, com um sorrisinho doce,
começou a caminhar para a porta. – Ah, no caso de estares interessado – disse
a Nat –, vai haver uma rave no Copse dentro de duas semanas. Vai toda a
gente.
– Sim, o Simon Forsey disse-me – respondeu Nat.
Annabelle ergueu as sobrancelhas.
– Então, talvez venham os dois – murmurou e, pestanejando de forma
escandalosamente sugestiva, seguiu Georgie para a rua.
– Quem raio era aquela? – perguntou Summer, mal Annabelle ficou fora do
alcance da sua voz.
– Uma espécie de prima, mas não de verdade – respondeu Nat. – A mãe
dela casou com o irmão da minha mãe. De qualquer maneira, esquece-a, ela
não é ninguém.
Alicia pestanejou ao ouvi-lo falar assim de alguém de quem antes fora
bastante próximo, mas na verdade ficava contente, considerando o quanto seria
embaraçoso se ambos se tornassem amigos de novo. Regressando ao estúdio,
as suas sobrancelhas arquearam-se diante do olhar de Rachel.
– Por falar em miúdas desavergonhadas…
– É assustadora – concordou Alicia. Se a mãe não fosse a Sabrina, teria
pena da pobre mulher.
– Mas como é, não vamos perder tempo com isso. Que foi aquilo sobre
jogar às damas?
– Não faço ideia. Deve ser preciso ter a idade deles para perceber.
Rachael abanava a cabeça, enquanto observava um BMW descapotável
parar do outro lado da rua para Annabelle e Georgie entrarem.
– Não éramos assim quando tínhamos a idade delas, pois não? – disse. –
Sei que já nos interessávamos por rapazes na altura, mas não me lembro de
sermos tão descaradas.
– Estás a brincar comigo? Eu só com dezoito anos consegui olhar para um
rapaz na cara.
Rachel riu.
– Sim, foi mesmo isso. Tinhas mas é uns catorze, mas também não
passávamos disso, e de uns beijinhos. Quanto àquela rapariga, se ainda é
virgem, eu sou um cavalo falante.
Alicia riu, e depois deu um gritinho, quando Nat apareceu por trás dela e
lhe enfiou um dedo nas costelas.
– Os homens das mudanças acabaram de ligar, vêm a caminho – disse ele.
– Vou voltar para casa para continuar a separar as coisas. Liga-me se
precisares. – E, depois, aproximando-lhe a boca do ouvido, disse: – Quando
terminarmos, quero perguntar-te uma coisa.
– Então, o que é que ela queria dizer com aquilo das damas? – perguntou
Summer enquanto caminhava com Nat de volta para a Coach House.
A expressão de Nat contraiu-se ligeiramente.
– Oh, ela estava só a ser infantil – respondeu, irritado. – Não ligues. Não é
alguém com quem tenhamos de nos preocupar.
– Mas se é tua prima…
– Não é minha prima a sério, e, de qualquer forma, não faz diferença
nenhuma. Nunca estamos com eles. Quer dizer, a minha mãe ainda se dá com o
irmão, ou pelo menos ontem encontraram-se, mas foi a primeira vez desde há
uma eternidade. Tirando o funeral do meu pai.
– A sério? Tiveram alguma zanga ou algo do género?
– Eles, não. Quem não se fala são a minha mãe e a mulher dele, a Sabrina.
Houve qualquer coisa entre elas há dois anos, mas não me perguntes o quê,
nunca aprofundei o assunto.
Summer encolheu os ombros e desviou-se para o lado no portão de
entrada, para deixar passar dois dos homens das mudanças que iam a sair.
– A minha mãe tem tudo praticamente pronto lá – disse-lhes Nat. –
Basicamente, as esculturas são inquebráveis, mas pesam uma tonelada, e as
ferramentas de soldadura dela são mais preciosas que joias, por isso, boa
sorte!
– Aquele computador que tem no seu quarto é impressionante – comentou
um dos homens. – Não me importava de ter um assim para o meu rapaz.
Nat desviou o olhar para o lado.
– Era do meu pai – disse.
O homem das mudanças piscou o olho a Summer amigavelmente e
prosseguiu na direção do camião.
– Vais falar com a tua mãe sobre dormirmos no mesmo quarto? – disse
Summer baixinho, quando já estavam dentro de casa, envoltos nos braços um
do outro.
– Hmm, na altura certa. Mais logo vou-te mostrar o Copse, vaiser uma boa
oportunidade para estarmos um bocado sozinhos.
Ao beijar Summer, Nat deu consigo a pensar na primeira vez que beijara
Annabelle, no quarto desta em casa do tio. Na altura, ela tinha doze anos e ele
quatorze.

– Pensei que era suposto estarmos a jogar às damas – disse ela para o
provocar; estavam ambos sentados na borda da cama, de mãos dadas e com os
lábios a centímetros um do outro, a seguir ao seu primeiro e breve contacto.
– Não gostaste? – perguntou Nat, sentindo-se quente, inseguro e hirto de
pavor diante do pensamento de alguém poder entrar no quarto.
Annabelle baixou o olhar enquanto considerava a pergunta e, a seguir,
voltou a fixar os olhos em Nat com uma expressão de sedução infantil.
– Porque não repetimos? Depois já te posso dizer o que penso – disse.
Subjugado pela resposta dela, Nat encostou de novo a sua boca à de
Annabelle, sentindo os seus lábios tremerem ligeiramente enquanto os movia
um pouco, abrindo-os a seguir. Os lábios dela eram suaves e submissos e
separaram-se de uma forma que o fez sentir-se simultaneamente embriagado e
receoso – era tão bom! Olhou-a à socapa e viu que os olhos dela estavam
fechados. Esforçava-se por ignorar o que estava a suceder numa zona do seu
corpo mais abaixo, mas, a cada segundo, tornava-se mais volumoso e mais
urgente. Tocou-lhe no pescoço, acariciando-lhe a pele enquanto continuava a
beijá-la, pensando se se atreveria a usar a língua. Já tinha beijado assim outras
raparigas, mas tinham a idade dele, por isso não houve problema. Annabelle
ainda era muito nova e não a queria assustar. Nesse momento, sentiu a língua
dela tocar-lhe os lábios e, de súbito, sentiu uma ereção tão grande que o fez
sentir-se tonto de desejo e de embaraço, um embaraço torturante.
– Oh, meu Deus – riu Annabelle, quando se apercebeu do que estava a
suceder.
– Desculpa – murmurou Nat, tentando afastar-se dela.
– Não tens de pedir desculpa – disse ela. – É bom isso ter acontecido.
Significa que gostas mesmo de mim.
– É claro que gosto de ti – respondeu Nat, pensando que precisava de se
enfiar na casa de banho.
– Eu também gosto mesmo de ti – disse Annabelle. – Beijas muito melhor
do que qualquer outro rapaz que conheça.
Nat olhou para ela espantado.
– Não faças essa cara – riu ela. – Já tive montes de namorados. Bem,
houve dois, pelo menos, que beijei. Para dizer a verdade, estava a treinar com
eles para quando te beijasse a ti, porque sempre achei que isto ia acabar por
acontecer. Tu não?
Corando, Nat disse:
– Sim, suponho que sim. Olha, espera aqui, OK? Já volto.
– Abro o tabuleiro das damas, para o caso de alguém aparecer? –
perguntou Annabelle.
– Hã, sim, faz isso – respondeu Nat e, fechando a porta da casa de banho
atrás de si, encostou-se a ela, expirando profunda e tremulamente.
Ela excitava-o mesmo a sério, e mostrava-se tão disposta, que ele não
sabia o que fazer a seguir. Em alguma parte estranhamente insensata da sua
cabeça, queria ir perguntar ao pai, mas era um caminho absolutamente a não
seguir e, de qualquer maneira, não era propriamente como se nunca tivesse
apalpado uma rapariga. Ao pensar em acariciar Annabelle, os seus olhos
fecharam-se e quase gemeu ao sentir a renovada rigidez entre as suas virilhas.
A melhor coisa que podia fazer agora, decidiu, era voltar lá para baixo,
onde estava toda a gente a ver um DVD. Se ela quisesse fazer alguma coisa da
próxima vez que lá fosse, ou quando estivessem em casa dele, em Londres,
alinharia, mas já estavam ali em cima há tempo suficiente. A última coisa que
queria era despertar as suspeitas de alguém, pois esse simples pensamento
fazia-o arder por dentro e por fora com a mais completa, paralisante e
embaraçosa vergonha.

A tarde estava a terminar quando Alicia finalmente deixou a loja para


regressar à Coach House, cansada, suja e muito necessitada de um longo banho
de imersão. Recebera tantas visitas durante o dia, de moradores que queriam
exprimir-lhe apoio na sequência da sua perda ou conselhos em relação ao seu
futuro, ou perceber o que estava a preparar, ou, em alguns casos, ajudar com o
trabalho, que não conseguira avançar tanto quanto tinha planeado. No entanto,
já conseguira retirar a maior parte do lixo do local, o lavatório e a sanita
estavam mais ou menos acessíveis, e as suas preciosas esculturas, apesar de
continuarem armazenadas nos respetivos caixotes, estavam pelo menos no
local certo.
Quando abriu a porta de casa, o som dos Radiohead que saía das colunas
do iPod de Nat fê-la gemer e desejar voltar a sair. No entanto, em vez de subir
ao primeiro andar para pedir ao filho que baixasse o volume, serpenteou por
entre as caixas no átrio até à cozinha, abriu o frigorífico e pegou numa garrafa
de cerveja gelada. Depois de encher um copo, ouviu duas mensagens no
atendedor de chamadas, ambas de amigos de Londres, a perguntar como
estavam a correr aqueles primeiros dias e pedindo-lhe para lhes ligar quando
tivesse tempo, e depois saiu de casa para se ir sentar no jardim. Ainda havia
uma montanha de coisas para desempacotar, mas tinha o verão inteiro para
isso e, agora, só queria fechar os olhos, desfrutar da sua bebida e tentar não
pensar no motivo por que estava ali. Durante algum tempo, o seu espírito
vagueou sonhador, parecendo flutuar num mundo aberto, vazio, onde nada a
impulsionava ou a retinha. Estava livre dos seus próprios pensamentos, liberta
da dor, desligada das memórias. Tudo era claro e branco, imaculado e
perfeito, de uma forma que não tinha substância ou significado ou peso que a
pudesse puxar para baixo. Quanto tempo se passou antes de voltar a aterrar?
Segundos, minutos? Alicia não fazia ideia. Só sabia que estava de volta a
Londres e se sentia excitada e feliz ao ouvir Craig meter a chave à porta.

Despedindo-se rapidamente da mãe ao telefone, desligou e atravessou a


cozinha velozmente.
– Consegui! – gritou, ao entrar no átrio. – Passei no exame. Agora já sou
uma soldadora diplomada.
Deixando a pasta cair no chão, Craig riu encantado, enquanto rodopiava
orgulhoso com ela nos braços.
– A minha mulher, a miúda do maçarico! – brincou. – Todo aquele esforço
e agora já nos podes arranjar o carro, reparar os canos e soldar raladores de
queijo a maçanetas de latão para fazer arte moderna.
Alicia riu e atirou a cabeça para trás para que Craig a pudesse beijar
intensamente.

Agora, sentada no jardim da mãe, sorria por entre as lágrimas ao


relembrar aqueles momentos, muito antes do caso com Sabrina, quando estava
tão habituada à felicidade deles e tinha tanta certeza do amor do marido que
nunca lhe passara pela cabeça que algo pudesse acontecer para estragar tudo.
Naquela noite, tinham festejado em casa, na companhia de Nat e Darcie,
que na altura tinham doze e sete anos, e que não conseguiam perceber por que
motivo a mãe queria ser soldadora, ou mesmo, no caso de Darcie, o que fazia
realmente um soldador. Para eles, só importava que os pais estavam bem-
dispostos e que a mãe, nas palavras do pai, se iria tornar numa artista
mundialmente famosa, fazendo esculturas de aço inoxidável.

– Pensava que as tuas esculturas eram de bronze – disse Nat, confuso.


– Não, plasticina – corrigiu-o Darcie.
– Faço os moldes em plasticina – explicou Alicia –, e depois as esculturas
são feitas enchendo-os com bronze fundido. Mas agora também posso fazer
esculturas em aço.
– Porque queres fazer uma coisa dessas? – perguntou Nat, fazendo uma
careta.
Alicia lançou um olhar impotente a Craig e ergueu as mãos.
– Porque é o que agora me está a apetecer – respondeu, rindo.
– A tua mãe é uma artista que segue os caprichos do seu espírito –
informou-os Craig, colocando uma taça de massa chinesa a fumegar em cima
da mesa. – O que é uma coisa boa, pois são tão bonitos como ela.
– Hoje conheceste algum assassino? – perguntou-lhe Darcie, mudando de
assunto, que lhe parecia disparatado, e regressando ao interesse macabro que
desenvolvera nos últimos tempos pelo universo do pai.
– Não, mas almocei com o Pai Natal, que me disse o que te ia trazer este
ano – respondeu Craig.
– Mas ainda não lhe mandei a carta – protestou Darcie.
– Foi o que eu lhe disse, por isso acho que te deves despachar a escrever-
lhe.
– Podemos oferecer um capacete de soldador à mãe – sugeriu Nat.
– Já tenho o equipamento todo – disse Alicia. – Agora que acabei o curso,
preciso é de um lugar para trabalhar. Adoraria um estudiozinho só para mim,
se pudesse ser.
– Abracadabra, disse o génio – gracejou Craig –, o seu desejo é uma
ordem. Vamos encontrar um sítio até ao final da semana.

E encontrara – um pequeno ateliê em Fulham com uma renda choruda, de


que Alicia tivera de abdicar muito antes de vender a casa. De qualquer dos
modos, depois da morte de Craig, perdera o ânimo criador.
Bebendo um gole da cerveja, forçou o espírito a afastar-se das
recordações, com as quais lhe era demasiado difícil lidar quando estava tão
cansada e se sentia tão ansiosa em relação à ideia de nunca mais ser capaz de
criar o que quer que fosse. Os seus pensamentos regressaram ao novo estúdio
que estava a tentar montar, e a seguir deu consigo a pensar na imprevista visita
de Annabelle, nessa mesma tarde. Ver a menina com um ar tão adulto, e com
um comportamento tão abertamente provocador, constituíra uma experiência
perturbadora. Não que Annabelle não tivesse sempre tido uma certa faceta
sedutora e perspicaz, parecendo compreender o poder que o seu aspeto físico
lhe conferia, mas antes possuía também alguma doçura e inocência que
pareciam agora ter desaparecido por completo. E se a forma como agira em
relação a Nat era indício do seu comportamento para com o sexo oposto, então
Robert tinha razão, não seria boa ideia Darcie, jovem e impressionável,
passar muito tempo com ela. Na verdade, pensando bem, Alicia preferiria que
Darcie não se desse com ela de todo.
– Ei, já chegaste – disse Nat, surgindo na entrada da cozinha. – Não te ouvi
entrar.
– Porque será…? – disse Alicia sorrindo, apercebendo-se de que a música
baixara de volume. – Onde está a Summer?
– A tomar banho. Queres outra? – perguntou Nat, fazendo um gesto com a
cabeça na direção do copo de cerveja.
– Sim, porque não? – respondeu Alicia.
Estava a tentar não se sentir irritada pelo facto de Summer estar a ocupar a
casa de banho, para onde desejava ir, recordando a si própria que era assim
que as coisas seriam dali em diante, com apenas uma casa de banho para
todos, por isso seria melhor acostumar-se.
Depois de ir buscar mais duas garrafas de cerveja, Nat voltou a encher-lhe
o copo e puxou uma cadeira para se sentar.
– Está tudo bem na loja? – perguntou. – Estava a preparar-me para ir lá ter,
ver como as coisas estavam a correr.
– Ainda há muito a fazer, mas as coisas vão-se compor. E como correu
contigo, já conseguiste arrumar as tuas coisas?
– Bem. A minha secretária é um bocado pequena de mais para o meu
computador, mas não é grave.
– Vamos ter de chamar alguém para montar a televisão na parede do teu
quarto e do da Darcie – disse Alicia, sentindo subitamente um grande cansaço
ao pensar em tudo o que ainda tinha de fazer e de pagar para fazerem. – E
devíamos encomendar uma nova antena parabólica para a TV por cabo.
– Eu trato disso – disse Nat –, mas não há pressa, nesta altura do ano
também nunca há nada de jeito para ver. Tirando o críquete.
Sorrindo ao ver como o filho tentava fazê-la sentir-se melhor, Alicia
estendeu a mão e deu-lhe um apertãozinho no braço.
– Tens a cara suja e uma teia de aranha no cabelo – disse ele.
– E fica-me bem?
Nat riu, inclinando a cerveja para beber.
Passaram-se alguns minutos em silêncio. A música extinguira-se agora por
completo, por isso tudo o que conseguiam ouvir era o zumbido distante de um
avião que passava e o agradável canto dos grilos. Um cão começou a ladrar
nas proximidades, seguido por uma voz que o chamava para dentro. Depois,
ouviram um carro começar a subir a rua e, quem quer que fosse, prosseguiu
caminho. Alicia estava a sentir tanto prazer em estar ali sentada, apenas na
companhia do filho, que quase não ouviu, quando Nat perguntou serenamente:
– Sentes a falta dele?
As palavras apertaram-lhe o coração e Alicia sentiu o peso da perda que o
filho sentia como se fosse sua. Daria tudo para voltar a transformar o mundo
dele no lugar seguro e feliz de antes.
– Sim, muito – respondeu.
Nat acenou com a cabeça. O seu rosto empalidecia e a sua boca tinha uma
expressão tensa.
– E tu? – perguntou Alicia.
Nat baixou os olhos e contemplou a cerveja.
– Tento não pensar nisso – respondeu.
Desejando desesperadamente pousar a sua mão sobre a dele, mas intuindo
que o filho não apreciaria o gesto, Alicia disse:
– Não há nada de mal em sentir a falta dele.
– Eu sei, só estou a dizer que… – Nat remexeu-se na cadeira com um ar
desconfortável e voltou a levar a garrafa à boca. – Esta tarde fomos até ao
Copse – disse abruptamente. – Não mudou nada.
Entristecida pela mudança de assunto, mas com esperanças de que não
passasse de um rodeio para aquilo que Nat queria dizer, Alicia esperou que o
filho continuasse.
– Há uma coisa que ando para te pedir – disse Nat, ao fim de algum tempo.
– Quer dizer, se não achares mal… Importavas-te que a Summer e eu
ficássemos no mesmo quarto?
Sorrindo apesar da sua mágoa, pois sabia que este era um pedido que o
filho teria achado muito mais fácil fazer ao marido, Alicia disse:
– Por mim, tudo bem, mas o quarto só tem uma cama de solteiro. Não vão
ficar muito confortáveis.
– Nós arranjamo-nos – respondeu Nat, lançando-lhe um olhar de relance.
Instantes depois, voltou a olhar para Alicia e, quando começou a sorrir, a mãe
imitou-o. – Obrigada – disse.
Alicia bebeu um gole da sua cerveja e, depois, inclinou a cabeça para a
frente.
– Estás bem? – perguntou Nat.
– Estou só cansada. Temos de pensar no que vamos fazer para o jantar. Às
segundas, o Friary está fechado, senão podíamos comer peixe com batatas
fritas. Tens fome?
– Estou esfomeado. Podia ir até Bruton de carro buscar umas pizas.
Nat passara no exame de condução uma semana antes de Craig morrer, mas
praticamente não voltara a conduzir desde aí, e Alicia não se sentia muito
tranquila em deixá-lo guiar um carro que não conhecia sem que ela estivesse
ao seu lado, pelo menos da primeira vez.
– Podíamos ir juntos – sugeriu.
– Eu posso ir sozinho – insistiu Nat. – Mãe, tens de parar de te preocupar
sempre comigo. Eu já guiei o Mercedes do pai…
– Só uma vez, e ele estava ao teu lado – e o meu Renault ainda tem muito
para andar para atingir a categoria daquele carro.
Para sua surpresa, Nat riu.
– Lá nisso tens razão – disse ele. – É uma bela carripana, mas se lhe
fizesse alguma amolgadela, o arranjo não ia ficar tão caro como no Mercedes.
– És tu que me preocupas, não o carro, mas tudo bem, para mostrar a
minha fé em ti, podes levá-lo. Vou tomar um banho enquanto vais. Parto do
princípio de que a Summer vai contigo.
– Sim. Queremos aproveitar ao máximo o nosso tempo juntos, antes de ela
se ir embora na quarta – disse, bebendo outro gole de cerveja. – Disse-te que
os pais dela me convidaram a ir com eles a Itália?
Alicia sentiu as entranhas contraírem-se.
– A Darcie disse-me qualquer coisa – respondeu, controlando uma ânsia
repentina de o agarrar. – É muito simpático da parte deles. – E depois, fazendo
um esforço para falar, perguntou: – Queres ir? Por mim, não há problema, se
quiseres. Não seria justo se a Darcie fosse a única a ter férias. Tu também
precisas.
– Não, está tudo bem – respondeu Nat.
– Se estás preocupado comigo, não é preciso. Tenho tanto que fazer, que o
tempo vai passar a voar.
– Está tudo bem, estou contente por estar aqui. Vou pintar a loja e ajudar a
fazer um folheto publicitário para ti, e posso ir-me encontrando com os meus
amigos antes de começar as aulas na escola nova.
– Nat, não tens de tomar conta de mim – disse Alicia suavemente. – Quero
que faças o que te fizer mais feliz, e se o que queres é ir a Itália…
– Não é, a sério. Não devia ter falado nisso. É só que a Summer não queria
que pensasses que eles não me tinham convidado.
Alicia sorriu.
– É simpático da parte dela. – A seguir, lembrando-se das palavras do
filho ao despedir-se dela na loja, perguntou: – Era disso que querias falar
comigo? Ou não, era sobre ficarem no mesmo quarto?
Nat inspirou fundo e contemplou o jardim.
– Na verdade, não era de nenhuma das coisas – respondeu. – Quer dizer,
era, porque é óbvio que queria falar delas… Bem, mas o que te queria
perguntar, a sério, era por que motivo tu e a Sabrina não se falam? Quer dizer,
não me faz diferença nenhuma – continuou apressadamente –, seja como for,
nunca gostei dela, mas se causa problemas entre ti e o tio Robert isso não é
bom, sobretudo agora que vamos morar aqui.
Comovida pela preocupação do filho em relação a ela, e o seu evidente
desejo de compreender uma situação que provavelmente nunca fizera qualquer
sentido para ele, Alicia conseguiu contornar a questão, dizendo:
– O tio Robert e eu conseguimos lidar com a situação, não te preocupes.
Ele sabe que a Sabrina e eu nunca nos demos bem desde o início, e, em vez de
continuarmos a fingir que gostamos uma da outra, decidimos que se calhar era
melhor não nos relacionarmos.
Nat assentiu e, parecendo mais ou menos satisfeito com a resposta,
levantou-se.
– Trago meia para cada um de uma Quatro Estações e meia de Chouriço? –
perguntou.
Alicia ergueu os olhos para ele.
– A Summer também pode querer trocar ou partilhar a piza – lembrou-lhe
com tato.
Nat corou ligeiramente.
– É claro. Bolas, podemos todos partilhar – declarou. – Vou procurá-la.
Porta-te bem e tenta tomar banho até eu chegar. Não vou muito à bola com esse
visual de bruxa.
Capítulo Sete
– Catrina, és tão indecente – disse Annabelle numa vozinha aguda, caindo
para trás na cama e esperneando no ar de entusiasmo.
– Que foi? – respondeu Catrina olhando para Georgie, com um ar muito
inocente. – Acho que é uma grande ideia.
– Quem vai? – perguntou Georgie.
– Toda a gente. O Theo, o Kennedy, a Melody, o Carl, o grupo todo do
costume e mais alguém que a gente convide. Vai ser espetacular. O primo do
Theo vai-lhe arranjar ecstasy, e é capaz de também ir, e a Petra disse que,
provavelmente, consegue alguma erva do tio, sabem, aquele de East Lydford,
que cultiva. Temos mesmo de ir. Não podemos falhar.
– Estás coberta de razão – concordou Annabelle, sentando-se na cama e
passando os dedos pelo cabelo para o empurrar para trás. – E sabes o que é
mesmo o máximo? – perguntou maliciosamente. – Não vamos ter problemas
para decidir o que vestir.
Quando rebentaram a rir, alguém bateu à porta, fazendo com que se
calassem bruscamente.
– Quem é? – perguntou Annabelle numa voz hostil.
– Quem achas que é? – respondeu Sabrina do patamar. – Vou sair. O
Robert está no escritório, mas vai sair daqui a uma hora, se quiseres boleia
para Wells.
– Fixe – gritou Annabelle em resposta. A seguir, disse entre dentes: –
Agora, vê se desapareces. Não precisamos de ti para mais nada.
Uma vez que não ouviu os passos da mãe a afastarem-se, Annabelle
esgueirou-se silenciosamente até à porta, rodou a chave, abriu e espreitou lá
para fora. Como não encontrou ninguém à escuta, voltou para dentro e fez sinal
a Georgie para pôr música enquanto voltava a trancar a porta.
– OK, onde é que íamos? – disse, sentando-se de pernas cruzadas numa
almofada no chão, ao lado de Catrina. – Jesus Cristo, uma festa na piscina em
topless. Vai ser tãããão louco!
– Então, estão mesmo a fim? – perguntou Catrina. – Ótimo, porque já disse
ao Theo que íamos.
– Na verdade, acho que ele devia fazer uma festa de nudismo – disse
Annabelle ousadamente. – De qualquer das maneiras, depois de tomarmos
umas bebidas e um ecstasy e saltarmos para a piscina, a roupa vai acabar por
sair toda.
– É o teu telemóvel? – perguntou Georgie a Catrina, reconhecendo o toque.
Estendendo a mão para o sítio atrás de si onde deixara o aparelho, em
cima da cama, Catrina verificou quem estava a ligar, atendendo de imediato.
– Olá, Archie – disse, olhando para as amigas com um sorriso radioso –,
tudo bem?
Georgie olhou para Annabelle.
– Aposto contigo que ela vai acabar por concordar ir ter com ele –
murmurou.
Sem parecer particularmente interessada no assunto, Annabelle disse:
– É claro, acaba sempre.
Georgie encolheu os ombros.
– Não deixava ninguém fazer gato-sapato de mim assim – comentou.
– Isso é porque não estás apaixonada.
– Lá isso é que estou. Bem, mais ou menos. Estava a pensar, porque não
convidas o teu primo para a festa? Ia ser espetacular se ele viesse, não ia?
Annabelle semicerrou os olhos e, detetando neles um olhar altamente
malicioso, Georgie começou a sorrir.
– Tenho de ir ter com ele em frente ao posto da Shell às três – disse
Catrina, atirando o telefone para o chão.
– Já sabes que ele vai para a cama contigo e depois te leva de volta a casa,
não sabes? – disse Georgie.
– Tu tens é ciúmes – retorquiu Catrina. – Então, que se passa? – perguntou
a Annabelle.
– A Georgie teve uma ideia brilhante – comunicou Annabelle. – Vamos
convidar o meu primo Nat para a festa.
Catrina não pareceu muito impressionada.
– Grande coisa – disse, remexendo no seu estojo de maquilhagem. –
Acham que ele vai?
– Só vamos saber se o convidarmos.
– Se for, primeiro é para mim – declarou Georgie.
Os olhos de Annabelle faiscaram.
– Podes é ir para o inferno – disse, furiosa.
Georgie riu, mostrando-lhe que estava a brincar.
– A questão é: como te vais livrar da ruivinha? – disse. – Não queremos
que ela venha atrás dele, e eu, já agora, não quero ver aquela cabra de nariz
empinado nua.
– Sim, que nojo, com aqueles pelos cor de ferrugem – disse Catrina,
enquanto punha rímel nos olhos.
Annabelle deu uma risadinha
– Ela não interessa para nada. O que temos de fazer é descobrir o número
de telemóvel dele para o podermos convidar.

June Downey-Marsh sentiu a intensidade do olhar de Sabrina mesmo antes


de erguer os olhos do computador na sua frente. Com o seu lustroso cabelo
louro escuro, olhos cor de avelã e boca de expressão juvenil, não aparentava
os seus quarenta e seis anos. No entanto, apesar do aspeto atraente, depois de
se divorciar ainda não tinha conseguido encontrar um tipo rico para substituir
aquele que imprudentemente deixara escapar. Assim, vivia presentemente num
apartamento modesto, no segundo andar de uma imponente mansão, a meio
caminho entre Shepton Mallet e Holly Wood. Era aqui que Sabrina e ela se
encontravam agora, não no apartamento, mas num dos escritórios atrás da
grande casa, alugado pelo National Trust. Era neste local, com as suas
incríveis vistas para um jardim aquático, relvado magnífico e estátuas
renascentistas, que elaboravam o jornal quinzenal gratuito que tinham criado e
que em grande parte financiavam, destinado a informar a população da zona
envolvente.
– Queres mesmo fazer isto? – perguntou June com um ar sério.
A expressão no rosto de Sabrina contraiu-se.
– Aquela loja só tem licença para venda a retalho – disse num tom severo
–, o que quer dizer que ela vai estar a cometer uma ilegalidade se abrir um
negócio de produção.
– Mas fazer escultura será um negócio de…?
– Mais ainda, ela quer começar a atrair turistas a Holly Wood e as pessoas
de Holly Wood não querem isso.
– Perguntaste-lhes?
– Não preciso. Vivo entre eles, por isso sei o que pensam sobre a aldeia
ser invadida por autocarros cheios de japoneses e americanos de calças aos
quadrados.
– Sabrina, acorda, não é uma lojinha de arte que vai pôr Holly Wood em
qualquer mapa turístico e, mesmo que o fizesse, ninguém viria cá, porque
Holly Wood não tem mais nada para oferecer.
– Pensava que me apoiavas nisto – disse Sabrina, com um ar zangado.
– E apoio, estou só a tentar apontar as falhas na tua argumentação. E esta
carta – acrescentou, indicando o documento no ecrã do computador – é
demasiado emotiva. Tens de a reescrever de maneira mais sóbria e explicar
racionalmente porque é que a loja não deve ser usada como uma… unidade de
produção.
Sabrina olhou para a sua própria cópia da carta, que redigira antes de vir
para ali.
– A questão é que – continuou June – mesmo que a consigas impedir de
transformar a loja num ateliê, ela continua a ter o direito de vender as
esculturas dela, e qualquer outra coisa que lhe apeteça.
– Não se o resto da aldeia não quiser que ela reabra a loja. Podia elaborar
uma petição.
– Sabrina, poupa-te a essa vergonha. Ela é natural da aldeia. Todos a
conhecem desde bebé e toda a gente adorava a mãe dela. Estou a avisar-te
para teu próprio bem, eles não vão tomar o teu partido contra ela, não por
causa de uma coisa assim.
Sabrina fechou os olhos, frustrada.
– June, tenho de fazer alguma coisa para me livrar dela – gemeu. – Não
podemos viver na mesma aldeia, sabes isso tão bem quanto eu, por isso ajuda-
me lá, vê se te lembras de algum plano.
Recostando-se para trás na cadeira, June cruzou os braços e olhou Sabrina
com tristeza.
– Não vais gostar de ouvir isto – disse –, mas receio que tenha de
concordar com o Robert. Devias tentar fazer as pazes com ela. Não, ouve-me
– pediu, quando Sabrina parecia prestes a explodir. – O mais provável é ela
não querer voltar a relacionar-se contigo…
– Poupa as palavras, June – atalhou Sabrina. – Não há hipótese nenhuma
de eu voltar a falar com ela. No meu lugar, tu voltavas, depois de tudo o que
aconteceu? O que havia entre mim e o Craig era amor. Se não fosse ela…
Ao ver os seus olhos encherem-se de lágrimas, June murmurou algo em
solidariedade. Mais do que ninguém, à exceção de Robert, sabia como Sabrina
sofrera após a rutura com Craig. O desgosto consumira-a tão vorazmente como
o próprio caso, mas June nunca pôde perceber se Craig ficara igualmente
perturbado ou obcecado. Era evidente que, enquanto estava a acontecer, a
aventura significara algo para ele, pois tinham passado cada minuto disponível
juntos, viajando para trás e para a frente por todo o país, encontrando-se a
meio caminho em hotéis de luxo ou motéis baratos, nas casas de ambos, por
vezes até no carro. Em segredo, June sempre tivera medo de como aquilo iria
acabar, porque as relações com aquele nível de intensidade estavam quase
sempre condenadas ao desastre e, quando a terrível explosão finalmente
chegou, assistiu a exibições de emoção como raramente vira. E muitas e
longas foram as noites em que fez companhia a Sabrina, vendo-a dar cabo de
si, tão desesperada para ver Craig ou apenas ouvi-lo, enquanto jurava as
piores vinganças imagináveis a Alicia, que teve medo de a deixar sozinha.

– Tenho de falar com ele – disse Sabrina numa voz engasgada, entornando
o vinho enquanto estendia a mão para o telefone. – Não posso continuar assim.
Preciso de lhe dizer aquilo que sinto.
– Ele já sabe o que sentes – disse June de maneira amável –, e já passa da
uma da manhã.
Estavam no quarto de Sabrina. Robert estava ao lado, no quarto de
hóspedes, onde dormia desde o dia em que Craig dissera a Sabrina que estava
tudo acabado. Três meses banido da sua própria cama era mais do que a
maioria dos homens conseguiria suportar, mas Robert escondia a sua própria
mágoa, esforçando-se por ser paciente e compreensivo e pedindo ajuda a June
sempre que necessário, pois quando Sabrina se embriagava, não o suportava
junto dela.
– Não importa a hora que é – mastigou Sabrina numa voz arrastada. – Sei
que ele deve estar acordado a pensar em mim. – A sua cara enrugou-se,
enquanto as lágrimas lhe voltavam a correr pelas faces já devastadas. – Não
consigo suportar pensar que ele também está a sofrer – lamentou-se. – Temos
de estar juntos. É errado estarmos assim separados um do outro. – Deitou mais
vinho no copo. – Sabes que ela fez chantagem para ele ficar com ela, não
sabes? – continuou, num tom inflamado. – Ameaçou contar aos miúdos tudo
sobre nós e virá-los contra ele, e o Craig não suportaria isso. O Nat e a Darcie
são tudo para ele. – Bebeu mais vinho e teve um soluço. – Costumávamos falar
de como seria maravilhoso se pudessem vir viver connosco – prosseguiu –,
como seríamos uma família, nós todos. A Annabelle dava-se tão bem com os
filhos dele. Já eram como irmãos, mas aquela cabra não o largou. –
Balançava-se com intensidade e, quando a sua cabeça pendeu para a frente,
começou novamente a chorar. – Ele nunca a amou de verdade – soluçou –, mas
foi só quando nos envolvemos que percebeu como o casamento deles era
superficial. O que existia entre nós… Eu nunca tinha sentido nada assim antes.
Nem ele. Não nos conseguíamos fartar um do outro.
Parecendo aperceber-se de novo de que tinha o telemóvel na mão, olhou-o
com os olhos turvos e, lembrando-se de repente do motivo por que pegara
nele, abriu a tampa. Marcou o número mal conseguindo ver o que fazia, devido
ao que já bebera e chorara, mas tudo o que June podia fazer era olhá-la
impotente, sabendo que teria uma reação violenta se tentasse detê-la.
– Sou eu – disse Sabrina numa voz empastada quando Craig atendeu. – Sei
que é tarde…
June ouviu-o dizer:
– Agora não posso falar contigo. Tens de parar de ligar para cá.
– Craig, por favor, ouve-me. Farei qualquer coisa…
– Não quero que faças qualquer coisa. Lamento…
– Por favor, vamos só falar – suplicou Sabrina. – É só isso que te peço.
– Já não há mais nada a dizer.
– Sei que ainda me amas. Só não podes dizer isso por ela estar aí.
– Tenho de desligar.
– Não! Não desligues. Craig, por favor. Pego no carro e vou até
Londres…
Então, ouviu-se a voz de Alicia ao telefone:
– Se voltares a ligar para cá, apresento queixa contra ti por assédio.
A seguir, a chamada desligou-se.
– Oh, meu Deus, não consigo suportar isto – disse Sabrina a ferver de
raiva, rolando pela cama com os joelhos contra o peito enquanto soluçava. –
Ela não o deixa falar comigo. Sabe o quanto significo para ele e tem medo que
ele a deixe. Se ele não a deixar, June, juro-te que me mato. Estou a falar a
sério, não posso continuar assim. Nada faz sentido sem ele.
Esperando que Robert não as estivesse a ouvir, June tentou confortá-la.
– Mãe? Que se passa?
Sobressaltada, June voltou-se e sentiu o coração doer-lhe de pena ao ver a
pobre Annabelle na ombreira da porta. Embora não fosse a primeira vez que
via a mãe em semelhante estado, era evidente que estava bastante assustada.
– Está tudo bem – disse June, aproximando-se dela. – Ela vai ficar bem.
– Não vou nada – disse Sabrina numa voz sufocada. – Nada vai ficar bem
até estarmos de novo juntos.
Annabelle olhou para June com uma expressão confundida.
– Ela está a falar de quem? – perguntou.
– De ninguém – respondeu June, tentando levá-la para fora do quarto.
– Estou a morrer – disse Sabrina arquejante, deitada na cama. – O meu
coração está a desfazer-se e ninguém nesta casa se importa.
– Sabrina – disse June bruscamente, na esperança de a fazer parar.
– Eu importo-me, mãe – disse Annabelle a tremer.
– Vai-te embora – gritou Sabrina. – Não te quero aqui.
– Ela bebeu de mais – sussurrou June para Annabelle, que começava a
chorar. – Anda, vou-te meter na cama.
– Ela é mesmo estúpida, a portar-se sempre assim – soluçou Annabelle,
enquanto June lhe aconchegava os lençóis. – Não devia beber álcool, porque
diz coisas horríveis e magoa as pessoas.
– Eu sei – disse June baixinho –, mas tens de perceber que ela não fala a
sério.
– Seja como for, não me importa, porque tenho os meus amigos e o resto
das pessoas.
– E o Robert – lembrou June.
– Sim, ele também.
Depois de lhe dar um beijo na testa, June voltou ao quarto de Sabrina e
encontrou-a de novo ao telefone com Craig.
– Se não te encontrares comigo, juro que me mato – exclamou Sabrina.
June não conseguiu ouvir a resposta dele, pelo que apenas podia imaginar
como Craig se sentia zangado, receoso ou culpado.
– Mato-me mesmo – gritou Sabrina. – Está bem, então diz que me amas. É
claro que podes. Não me interessa que ela esteja aí. Não! Não está nada
acabado, Craig. Nunca vai acabar e tu sabes bem, porque não é isso que
nenhum de nós quer.

Uma vez que June nunca falara sobre o relacionamento ou a rutura com
Craig, não fazia ideia do que este realmente sentia em relação a tudo. Tudo o
que sabia era que, até ao dia da sua morte, Sabrina nunca deixara de acreditar
que, de alguma maneira, voltariam a estar juntos.
– As últimas palavras que ele me disse – murmurou Sabrina, enquanto June
ia buscar café para ambas – foram “amo-te”. Nunca mais falei com ele depois
disso, mas ainda era como se fôssemos almas gémeas, duas metades da mesma
pessoa. Sei que, com ela, ele não tinha nada disso.
E, no entanto, foi com ela que ele ficou, pensava June, e se acreditas que
foi por causa dos filhos, desculpa, mas estás a enganar-te a ti mesma,
porque os filhos sobrevivem aos divórcios, e, se duas pessoas se amam tanto
como pareces pensar que tu e o Craig se amavam, nada os consegue
separar.
– Mas estás feliz com o Robert – disse em voz alta, no que era mais uma
declaração que uma pergunta.
Sabrina suspirou.
– Suponho que sim. Quer dizer, sim, é claro, mas não tem nada que ver
com aquilo que sentia pelo Craig. Nem chega lá perto.
– Talvez o tipo de relacionamento que tens com o Robert seja mais…
saudável?
Sabrina acenou afirmativamente com a cabeça, mas não parecia estar a
ouvir. A seguir, os seus olhos fixaram-se novamente em algo que escrevera
sobre a loja de Alicia.
– Tenho de a fazer sair de Holly Wood – disse com determinação. – Este
sítio não chega para nós as duas e, pela parte que me toca, ela tem de aprender
que não pode ter sempre tudo – disse, erguendo o olhar quando June lhe
passou uma chávena de café. – Pode ter conseguido tirar-me o Craig – disse,
numa voz frágil –, mas juro que a mato antes de a deixar fazer o mesmo com o
meu lar.

Alicia preparava-se para sair de casa quando o seu telemóvel tocou,


pousado sobre a mesa da entrada, lembrando-a oportunamente de o levar com
ela. Agarrando-o, segurou-o debaixo do queixo enquanto inspecionava a
correspondência que Sam acabara de enfiar pela abertura na porta da frente.
– Olá, é a Alicia? – perguntou alguém alegremente do outro lado.
Reconhecendo a voz de Annabelle, e perguntando a si mesmo o que era
feito do “tia”, Alicia respondeu:
– Sim, sou eu. Que bom ouvir-te. Hoje levantaste-te cedo.
– Oh, sim, bem, fiquei a dormir em casa de uma amiga, já a conheceste, a
Georgie, e digamos que ainda não nos fomos propriamente deitar. Mas não é
por isso que te estou a ligar. Esperava que me pudesses dar o número de
telemóvel do Nat. Há uma festa e montes de amigos dele vão, e pensei que ele
também pudesse gostar de vir.
– Estás a falar da festa no Copse? Porque acho que ele já vai…
– Oh, não, isso é só dentro de quinze dias. Esta é no sábado. Vai lá estar
toda a gente e eu pensei que, se ele vai ficar a morar aqui, é uma boa
oportunidade para reatar com o pessoal todo. Querem todos que ele vá e
fizeram-me prometer que o convencia, por isso, se me pudesses dar o número
dele…
Suspeitando que Nat poderia preferir que Annabelle não tivesse o seu
contacto, sobretudo enquanto Summer estivesse por ali, Alicia disse:
– Acho que lhe posso levar o telemóvel lá acima. Parece-me que o ouvi
levantar-se há uns minutos.
– Oh, não, não é preciso – respondeu Annabelle. – Ainda não tenho a
morada exata da festa, por isso, se me pudesses só dar o número dele, eu
ligava-lhe mais tarde para lhe dar todos os pormenores.
Não gostando de se sentir manipulada, Alicia disse:
– Para dizer a verdade, tenho o número dele neste telemóvel, por isso vou
ter de desligar e de te voltar a ligar.
– Tudo bem – respondeu Annabelle numa voz animada. – Eu espero pela
tua chamada. Oh, a propósito, acho fantástico o que estás a fazer com a loja. É
mesmo o que Holly Wood precisa, algo artístico, com classe. Diz-me se te
puder ajudar em alguma coisa.
Depois de lhe agradecer educadamente, Alicia desligou, intuindo que a
oferta de ajuda tinha mais por objetivo irritar Sabrina do que fazer algo por
ela, o que até estava bem, desde que Alicia não se deixasse arrastar para a
contenda entre mãe e filha. Foi só quando chegou ao fundo da rua que lhe
ocorreu a maneira mais que óbvia de desencorajar Annabelle e, com um
sorriso que teria feito Nat rir se tivesse visto, tirou o telemóvel da carteira.

Do outro lado da linha, Annabelle estava espraiada em cima da cama de


Georgie, vestida com um top reduzido e boxers masculinos, ocupada a admirar
as suas pernas enquanto Georgie tagarelava ininterruptamente sobre se deveria
ou não pedir que a deixassem inscrever-se no ginásio Cowshed, em Babington,
por ocasião do seu décimo sétimo aniversário, no próximo mês de março.
– Deve ser ela – interrompeu-a Annabelle, carregando nas teclas do
telemóvel depois de receber uma mensagem.
Continuou a sorrir de maneira presumida e sonolenta até ler a mensagem
de Alicia: Dei o teu número ao Nat para ele te ligar. Beijo. Os olhos de
Annabelle brilharam de frustração e a sua bonita boca contraiu-se.
– Merda! – resmungou.
– Que foi? – perguntou Georgie de imediato.
– Ela só lhe pediu para ele me ligar, e já sabemos que a ruiva o vai
impedir.
Georgie exibiu um sorriso presunçoso.
– Está-te mesmo a afetar, não está, ele não parecer interessado?
– Estás muito enganada acerca disso, porque eu sei que ele está. Já te
contei as coisas que costumávamos fazer quando os nossos pais julgavam que
estávamos a jogar às damas no quarto. Ele foi praticamente o primeiro.
– Sim, quando tinhas aí uns onze anos.
– Tinha doze e ele catorze, para sermos exatos. Nós beijamo-nos, tocamos
um no outro e eu até lhe fiz sexo oral algumas vezes.
– Deve ter sido mesmo assim. Estás é a sonhar.
– Não, não estou a sonhar. E ele está mesmo interessado em mim, só não o
quis mostrar em frente da ruiva – e, se queres saber a minha opinião, a
estúpida da mãe dele está a tentar separar-nos por causa da zanga dela com a
Demónia.
– É verdade, que se passa entre elas? – perguntou Georgie, erguendo a
mão para inspecionar as unhas.
Os olhos de Annabelle estreitaram-se ao recordar aquilo que ouvira
naquela manhã de sábado. Era muito louco. Contudo, naquele momento não lhe
apetecia tocar no assunto, pelo que se limitou a dizer:
– Quem sabe? E a quem é que isso importa? A mim só me interessa fazer
com que o Nat vá à festa do Theo no sábado à noite.
Georgie bocejou e rolou, deitando-se de barriga para baixo, enquanto
Annabelle ia abrir a janela.
– Vais-lhe dizer que tipo de festa é? – perguntou. – Quer dizer, se chegares
a falar com ele.
Annabelle encolheu os ombros e permaneceu à janela, contemplando o
vale na direção de Holly Wood, envolto na bruma da manhã.
– Não sei. Vou decidir quando puser o plano B em ação.
– O que é o plano B?
Quando Annabelle se virou, tinha nos olhos aquela expressão perigosa que
invariavelmente fazia o coração de Georgie bater de excitação.
– Já vais descobrir – murmurou Annabelle e, voltando para a cama,
deitou-se de costas, deleitando-se nos seus pensamentos sobre o que ia
acontecer.
Alicia estava tão concentrada em raspar e limpar as paredes para que Nat
pudesse pintar, que nem ouviu quando entraram na loja. Só se apercebeu de
que Robert estava ali quando se voltou para ir, novamente, encher o balde e o
viu na ombreira da porta, percorrendo o local com o olhar.
– Bolas, pregaste-me um susto – disse, num tom de censura. – Há quanto
tempo estás aí?
– Um minuto, ou nem tanto.
Ao vê-lo observar as paredes de tinta rachada e cheia de bolhas de ar, as
lâmpadas nuas, o balcão poeirento e as prateleiras vazias, adivinhou o que o
irmão estava a pensar antes mesmo de este falar.
– Meu Deus, este lugar faz-me voltar ao passado – disse, abanando a
cabeça de espanto. – É engraçado como me faz pensar em quando éramos
crianças, apesar de a mãe ter mantido isto aberto mesmo até adoecer.
Alicia sorriu.
– Gosto de pensar que ela ainda está aqui– disse, esperando que o irmão
não se sentisse pouco à vontade com a fantasia.
Robert, contudo, continuava mergulhado na nostalgia.
– E parece mesmo que está – disse. – A mãe adorava este sítio, toda a
gente que entrava e saía, tantos sacos amontoados que mal nos podíamos
mexer, à espera de serem esvaziados, com todos os tesouros que
costumávamos encontrar.
– Até sermos adolescentes, depois já ninguém nos conseguia convencer a
fazer aquilo – riu Alicia.
Robert sorriu e, durante vários minutos, perderam-se ambos pelas
memórias do passado, recordando os jogos que costumavam inventar com os
amigos, que eram inevitavelmente convidados a passar por lá sempre que
recebiam novos donativos. Tinham brincado aos índios e cowboys com
chapéus amassados e toucados de penas comidos pelas traças; aos demónios e
fantasmas servindo-se de velhos casacos negros e enormes camisas brancas;
ou imitavam pessoas muito gordas quando apareciam nos sacos grandes
ceroulas e cuecas. De vez em quando, algo mágico caía de um bolso, ou era
descoberto no fundo de uma mala de mão, como um colar de contas de cristal
lascadas ou um relógio de peito sem ponteiros, que Robert utilizara para fazer
o motor de uma ratazana de brinquedo bastante realista, proporcionando-lhes
intermináveis horas de divertimento. Ou, em certa ocasião maravilhosa, um
anel de diamantes verdadeiros, que a mãe devolvera à dona que, de tão feliz
por o encontrar depois de pensar tê-lo perdido há tantos anos, fez um donativo
de cinquenta libras à loja e presenteou Robert e Alicia com uma nota de dez
xelins para cada um.
– Tinha-me esquecido disso – riu Alicia –, e a mãe era demasiado educada
para lhe dizer que aquelas notas já não estavam em circulação.
– E então o pai deu-nos cinquenta pence para nos compensar.
Os dois suspiraram e sorriram, após o que Alicia se aproximou do irmão
para lhe dar um abraço.
– Mas então, que vieste cá fazer? – perguntou, levando o balde até à pia. –
Não ias hoje para a Finlândia?
– Vou-me embora daqui a meia hora, e pensei em passar para ver como
estavas. Na verdade, acabo de vir da Coach House, onde estive a conversar
um bocadinho com o Nat e a namorada dele.
– A sério? – perguntou Alicia, agradada. – Então, ainda os encontraste.
– Mesmo à justa, pelos vistos.
– Que achaste do Nat?
– Pareceu-me bem, mas a altura também não era a mais propícia para
tentar puxar nenhum assunto sério. Sugeri encontrarmo-nos quando voltar,
talvez para fazermos uma caminhada ou irmos passar o dia ao campo de
críquete. Ele pareceu gostar da ideia.
– Se a coisa envolve críquete, é natural.
Robert sorriu enquanto a via torcer uma esponja para recomeçar o
trabalho.
– A mãe ficaria contente por saber que vais voltar a abrir a loja – disse.
Alicia olhou-o nos olhos.
– Obrigada por dizeres isso – disse numa voz suave.
– A minha oferta continua de pé, se houver algo que possa fazer… Já sei,
não me queres causar problemas, mas se vires que começas a ter
dificuldades…
– Não deixarei de te dizer – disse Alicia, sabendo que não o faria. A
seguir, começando a esfregar uma parede que antes raspara, disse: – A Sabrina
sabe que estás aqui?
– Disse-lhe que te ia fazer uma visitinha antes de partir – respondeu
Robert. – Hoje é o dia em que a revista é impressa na gráfica, por isso ela já
saiu de casa há uma hora.
Surpreendida, Alicia disse:
– Que revista?
– Para dizer a verdade, é mais um boletim informativo, mas não fui eu que
disse isto. Ela e a June Downey-Marsh iniciaram-na há mais ou menos um ano
para informar as comunidades da zona. Estás a ver o tipo de publicação,
resultados das reuniões da junta de freguesia, notícias sobre vizinhos, eventos
e mexeriquices. Fazem publicidade a alguns negócios locais, o que ajuda a
cobrir os custos, e por vezes até têm lucro.
Alicia passou a esponja por água.
– Que bom que ela encontrou serventia para os seus talentos jornalísticos –
murmurou, tentando em vão não parecer sarcástica.
Robert olhou-a de lado. Alicia sorriu de maneira doce. Ambos sabiam
como Sabrina sempre exagerara em relação ao breve período que passara a
trabalhar no Daily Mail, há pelo menos duas décadas, quando, a acreditar nas
suas palavras, fora uma repórter de nomeada, prestes a ter a sua própria
coluna, até que cometeu o enormíssimo erro de se casar. Na realidade, não
passara de uma secretária ao serviço dos subeditores que gostava de exagerar
a sua importância e, tanto quanto se sabia, nunca publicara o que quer que
fosse, pelo menos não com o seu nome verdadeiro.
– Mas diz-me lá outra vez, quanto tempo vais ficar fora? – perguntou
Alicia, decidindo deixar de falar da esposa do irmão.
– Dez dias, e gostava que me prometesses que não vai rebentar nenhuma
guerra até eu voltar.
– Ah – disse Alicia com um ar entendido –, então foi por isso que vieste
até aqui.
– Só em parte. Estou mesmo interessado naquilo que estás a fazer com a
loja e queria ver o Nat antes de partir. Quanto tempo achas que ainda vais
demorar até poderes abrir?
– Espero que não muito, para poder atrair os turistas de verão, mas se
calhar estou a ser ambiciosa de mais.
Robert não discordou.
– Uma vez mais, se precisares de dinheiro…
– Uma vez mais, obrigada.
Robert olhou para ela diretamente, arqueando as sobrancelhas como se
esperasse por mais alguma coisa. Adivinhando-lhe os pensamentos, Alicia
disse:
– Ah, a promessa – não queres guerras durante os próximos dez dias.
– Preferia que não houvesse guerras nunca, ponto final.
– Bem, estamos em sintonia, por isso, se te faz sentir mais descansado
enquanto estás fora, prometo que, se acontecer alguma coisa, não vou ser eu a
começar.
Robert exibiu um sorriso irónico.
– Foi mais ou menos isso que a Sabrina disse, por isso vou esperar que
ambas mantenham a promessa e se lembrem de que ninguém ganha nada em
prolongar esta contenda.

***

Craig estava de pé com as costas apoiadas contra a porta do quarto de


hotel, com os braços cruzados enquanto contemplava Sabrina. Nos seus olhos
muito negros, brilhava uma expressão que misturava divertimento e desejo
puro. Sabrina despia-se como uma profissional, tirando o vestido, a seguir as
meias, depois o sutiã preto rendado, rodando as ancas, olhando para ele por
cima do ombro, enrolando-se no poste da cama com o mesmo abandono e
provocação de uma stripper a dançar no varão.
Quando a música do iPod – Voulez-vous coucher avec moi – finalmente
chegou ao fim, Sabrina voltou-se para lhe atirar um beijo brincalhão à Marilyn
Monroe e, depois, olhou-o nos olhos com uma expressão devassa.
– Nunca conheci ninguém como tu – disse Craig, enquanto as notas finais
se extinguiam.
Sabrina sorriu.
– Disse-te que tinha uma surpresa para ti – disse, bamboleando-se na
direção dele. – Gostaste? – perguntou, enfiando uma mão entre as pernas de
Craig. – Hmm, sim, gostaste – murmurou e, pressionando os seus lábios contra
os dele, enfiou-lhe a língua na boca.
Agarrando-a pela cintura, Craig apertou-a contra ele e, fazendo-a inclinar-
se para trás, cobriu-lhe o peito de beijos urgentes e esfomeados. As suas mãos
moveram-se até às nádegas dela, abrindo-se sobre a carne sedosa, mas,
quando tentou tirar-lhe as calcinhas, Sabrina deteve-o.
– Surpresa número dois – sussurrou e, voltando para a cama, deitou-se de
costas e afastou as pernas. As calcinhas eram abertas em baixo.
– Jesus – murmurou Craig e, despindo-se rapidamente, deitou-se sobre ela,
perdendo-se no seu calor vibrante.
Fizeram amor de forma selvagem e violenta, com Sabrina a pedir-lhe para
lhe bater e morder. Craig não a deixou fazer-lhe o mesmo, mas a forma como
ela reagiu às palmadas que lhe dava nas nádegas e nos seios fê-lo disparar
velozmente em direção ao clímax, e para além dele. Sabrina também precisava
de um orgasmo e, uma vez que Craig sabia o quanto aquilo a excitava, pô-la
em frente da janela, onde qualquer pessoa que entrasse no hotel a poderia ver.
A seguir, pôs-se de joelhos e usou os dedos e a língua para a conduzir ofegante
aos espasmos de um prazer magnífico.
Mais tarde, quando estavam os dois deitados na cama, ainda nus e a beber
champanhe, Sabrina olhou-o nos olhos com uma expressão de adoração e
disse:
– Já te disse que o sexo contigo é o melhor de sempre?
Craig sorriu e deu-lhe um beijo breve.
– Uma vez ou duas – respondeu.
– Tu sentes o mesmo? – perguntou Sabrina.
Craig bebeu um pouco de champanhe e voltou-lhe as costas para pousar o
copo.
– Não me consigo cansar de ti – disse, envolvendo-a nos seus braços. –
Não me farto de pensar que isto tem de acabar, mas depois telefonas-me e, mal
ouço a tua voz, sei que tenho de te ver.
Contente com a resposta, Sabrina aconchegou-se mais contra ele.
– Amas-me? – murmurou, ao fim de alguns instantes.
– Sim – respondeu Craig.
– Mais do que a ela?
– Não perguntes isso. Estes momentos são nossos, não vamos estragar
isso.
Esticando a cabeça, Sabrina beijou-o nos lábios.
– Quanto tempo achas que vai durar o julgamento? – perguntou, referindo-
se ao caso de fogo posto julgado no tribunal de Bristol, em que Craig defendia
o arguido.
– Uns dois dias.
Sabrina sorriu.
– Isso quer dizer que vais ficar cá duas noites?
Craig acenou com a cabeça, rindo quando ela emitiu um ronco de alegria.
– Suponho que isso queira dizer que vais ficar comigo – brincou Craig.
Deitando-se de costas, Sabrina observou o dossel de seda prateada que
cobria a cama, gemendo suavemente quando Craig lhe começou a acariciar as
pernas.
– De todos os hotéis em que já ficámos, este é o meu preferido – decidiu
Sabrina. – Gosto de tudo nele, do parque com os veados, por onde passámos
ao entrar, ao pátio onde tomámos aqueles cocktails da primeira vez que cá
viemos, lembras-te?
– É claro – respondeu Craig, vendo como os mamilos dela se enrugavam e
endureciam ao tocar-lhes.
– E da velha sala de refeições abafada e desta suite maravilhosa, porque
foi aqui que me disseste pela primeira vez que me amavas. Sabias?
Craig acenou afirmativamente com a cabeça, passando-lhe a mão sobre o
rosto e pelos cabelos.
– Não gostavas que ficássemos juntos para sempre? – disse Sabrina,
beijando-lhe a palma da mão.
– Noutra vida, poderia ser possível – respondeu Craig, percorrendo o seu
corpo com os dedos até ao ponto em que as suas pernas se uniam.
Afastando as pernas, Sabrina disse:
– Podemos sempre criar outra vida. Eu, tu e os miúdos. Não gostarias
disso?
– Parece-me de sonho – sussurrou Craig.
Fizeram amor novamente, mais devagar e mais ternamente que antes, e,
depois de comerem, deram um passeio pelo parque que rodeava o hotel,
agasalhados contra o frio, acenando aos veados do bosque que os olhavam
sem pestanejar, na penumbra na extremidade do parque. Aqueles preciosos
momentos roubados, quando o resto do mundo parecia tão longe, ficariam para
sempre gravados na memória de Sabrina.
Quando regressavam pelo caminho de acesso ao hotel, pararam para olhar
para a janela do seu quarto.
– Estás a pensar em mim ali em cima, nua? – perguntou Sabrina.
– Sim – respondeu Craig, apertando-a contra si com mais força. – Penso
em ti a toda a hora – disse e, erguendo-lhe o queixo, beijou-a com uma ternura
que a atingiu diretamente no coração.

Sentada sozinha no escritório, Sabrina colocou uma mão no peito como


que para estancar a dor da sua perda. June saíra uns momentos antes para ir ao
seu apartamento procurar um comunicado de imprensa em falta e, desde o
instante em que se ausentara, Sabrina não fizera outra coisa senão pensar em
Craig. Sabia que não era prudente insistir em reviver recordações felizes, por
causa do sofrimento que traziam, mas, enquanto recordava, o amor e a alegria
eram tão reais que parecia que o tempo tinha voltado para trás e tudo estava de
novo a acontecer.
Agora, o passado desvanecera-se e ela estava ali, naquele escritório, e
começava a sentir-se como se sentira logo após terem terminado, tão
desesperada por vê-lo que parecia que de outro modo não poderia continuar a
existir.
Com um soluço de angústia, pensou no quanto tentara esquecê-lo, e dos
progressos que finalmente começara a fazer. Agora, desde a sua morte e com
Alicia ali tão perto, era como se estivesse a ser sugada de novo para aquela
época terrível, em que o seu sofrimento fora tão angustiante que quase
enlouquecera.
A tarde ia a meio quando Alicia deixou Nat e Summer a lixar as paredes
da loja e saiu para ir à B&Q comprar uma montanha de materiais de
bricolagem. A temperatura ia quase nos 32 graus, fazendo-a sentir-se sonolenta
enquanto caminhava de volta para a Coach House, mas mal tinha tempo para
se dar ao luxo de um bocejo, muito menos de uma sesta, se queria cumprir o
seu autoimposto prazo de abertura de 1 de agosto.
Ao sair de carro da aldeia, olhou para o espelho retrovisor e viu
Annabelle e a amiga caminhando pela rua principal em direção à loja. Não
havia forma de dizer se tencionavam entrar, mas Alicia tinha a certeza que sim,
e esteve meio tentada a voltar, nem que fosse apenas para que houvesse um
adulto presente em cena. Porém, suspeitando que Nat não gostaria de ver a
mãe correr em seu auxílio, enviou mentalmente uma mensagem silenciosa de
apoio moral ao filho e a Summer, e partiu. Felizmente, falara a Nat do
telefonema de Annabelle nessa manhã, por isso, pelo menos ele estaria
preparado se ela mencionasse o assunto – o que mais Annabelle poderia sacar
da cartola ficaria para Alicia descobrir mais tarde.
Na loja, Summer estava no estúdio à procura de um novo pedaço de lixa
quando ouviu vozes na frente e se virou, vendo entrar a prima de Nat com ar
de vadia, acompanhada pela amiga com aspecto semelhante. Summer ficou
imediatamente rígida, tanto pelo nervosismo como pela antipatia,
especialmente em relação à prima que, no dia anterior, não fizera qualquer
segredo da atração que sentia por Nat. Não que Summer a achasse uma rival a
temer: Annabelle podia ser muito atraente, mas Summer sabia que Nat não ia à
bola com raparigas tão óbvias quanto ela, ou que se comportavam como
galdérias, coisa que a prima em definitivo fazia.
Desejando ter pelo menos posto rímel antes de ir para a loja, caminhou até
ao arco, de modo a mostrar a Annabelle que estava ali. Annabelle, no entanto,
estava em plena cavaqueira com Nat, enquanto a amiga parecia estar a enviar
uma mensagem a alguém. Por isso, de momento, Summer era invisível.
– … então, quando não me ligaste, eu pensei que era melhor vir cá em
pessoa – dizia Annabelle, enrolando uma mecha de cabelo à volta de um dedo.
–, porque já sei como as mães são. Esquecem-se sempre de dar os recados.
– Não, a minha mãe disse-me que ligaste – disse Nat –, mas hoje temos
estado ocupados.
Annabelle lançou um olhar de admiração ao seu peito e ombros nus.
– Hmm, posso ver isso – comentou, aparentemente inabalada pela resposta
desencorajadora. – Estás-lhe mesmo a dar a valer.
Claramente desagradado com a grosseira tentativa de sedução da prima,
mas mantendo-se amável, Nat perguntou:
– Como tens passado?
– Oh, estou bem – respondeu Annabelle, mudando o peso do corpo de
perna e atirando o cabelo para trás. – Mas este calor está-me a afetar os
nervos um bocado, por isso é que a festa do Theo no fim de semana vai ser tão
fixe. A tua mãe disse-te?
– Ela disse que ia haver alguma coisa, mas não disse exatamente o quê.
Annabelle sorriu e Summer sentiu a garganta seca. Era como observar uma
planta carnívora a preparar-se para capturar a presa.
– Não, bem, não lhe podia dar os pormenores – murmurou Annabelle –,
porque é uma festa, tipo, mesmo especial, e sei mesmo que vais querer vir.
Summer trespassava Nat com o olhar e, quando este olhou para ela, tanto
Annabelle como Georgie se voltaram.
– Oh – disse Annabelle, como se acabasse de sentir um mau cheiro –, não
vi que estavas aí.
Os seus olhos percorreram Summer de cima a baixo de uma forma que fez
esta corar.
– Obrigado pelo convite, Annabelle – disse Nat –, mas não vamos poder
ir. Já temos planos para sábado.
Annabelle virou-se de novo para ele.
– Mas ainda não te disse que tipo de festa é – lembrou-o – e, para ser
franca, não penso que vás querer faltar quando souberes.
– O que quer que seja, como acabei de te dizer, já temos planos para essa
noite.
Annabelle lançou um rápido olhar de relance a Summer.
– Podes levar a tua namorada, se quiseres – disse. – Tenho a certeza de
que o Theo não se vai importar.
Nat olhou de novo para Summer, que rezava para que este não revelasse
que ela não ia estar na aldeia, pois sabia que, mal Annabelle descobrisse, as
suas mandíbulas se fechariam à volta dele.
– Como disse – repetiu Nat –, já estamos ocupados.
– É uma festa em topless na piscina – informou Annabelle, olhando-o nos
olhos com uma expressão ardente. – Pode ser igual a quando costumávamos
jogar às damas, só que melhor.
Enquanto Nat corava e Georgie dava uma risadinha, Summer disse:
– Não quero ser mal-educada, Annabelle, mas acho que o Nat já te
respondeu e temos muito que fazer aqui, por isso, se não te importas…
Annabelle lançou-lhe um olhar cujo objetivo era fazer Summer sentir-se
pequena e insignificante, e atingiu os objetivos. A seguir, voltando-se de novo
para Nat, como se Summer se tivesse eclipsado numa nuvem de poeira, disse:
– Tu lembras-te de quando jogávamos às damas, não lembras? Quem
perdia uma peça tinha de tirar alguma coisa, até nenhum de nós não ter nada
vestido, e depois…
– Isso foi há muito tempo – interrompeu Nat bruscamente. – Éramos
miúdos. Não passava de um jogo.
Annabelle encolheu os ombros.
– Mas jogávamos muito, não era? Tu costumavas pegar na minha mão e pô-
la sobre a tua coisa…
– Annabelle, queres ir embora? – interrompeu Summer. – Nós não vamos à
festa, o Nat agora é crescido e tu também tens de crescer.
Annabelle arqueou as narinas. Ninguém falava com ela assim sem levar o
troco, e muito menos uma ruiva anã de cara suja, com sardas e pestanas
brancas.
– Como era o teu nome, mesmo? – disse num tom desdenhoso.
Summer olhou para Nat.
– Summer – respondeu, sentindo a tensão avolumar-se dentro de si em
antecipação do discurso ofensivo que se seguiria, esperando que Nat
intercedesse para pôr fim à cena.
Contudo, apesar dos seus olhares irados e raiva fervilhante, Annabelle não
tinha maturidade suficiente para desferir aquele tipo de golpe quando
necessário. Tudo o que conseguia era portar-se como uma prostituta.
– OK, Georgie, não temos mais nada a fazer aqui – e, girando sobre os
sapatos caros de saltos de madeira, atirou o cabelo para trás e saiu da loja
num passo furioso.
– Fiuuu! – suspirou Nat mal ambas saíram. – Ela é mesmo uma peça.
– Se tivesse mesmo um cérebro seria fatal – disse Summer num tom de
desprezo. – Onde é que tinhas a cabeça, para te envolveres com ela?
– Já te disse, éramos miúdos. Foi tudo uma brincadeira e não estivemos
envolvidos.
– Bem, pelo que ela diz, não é isso que parece, com vocês a tirarem a
roupa um para o outro…
– Summer, não vás por aí – interrompeu-a Nat. – É isso que ela quer, tentar
causar problemas entre nós, por isso não lhe faças a vontade.
Todavia zangada, mas compreendo a lógica do que Nat dizia, Summer
voltou para o estúdio. Seguindo-a, Nat rodeou-a com os braços e olhou-a nos
olhos.
– Não tens nada com que te preocupar, no que a ela diz respeito – disse,
numa voz meiga. – Ela não significou nada para mim naquela altura, e de
certeza que agora muito menos.
– Mas o que é que ela vai fazer, quando eu me for embora? – protestou
Summer. – É isso que me preocupa.
– Não interessa o que ela faz. Não me vou relacionar com ela de maneira
nenhuma, por isso não é problema – disse, beijando-a suavemente. – Juro-te,
da próxima vez que nos virmos, se calhar já nem nos vamos lembrar de quem
ela é.

– Não é justo – resmungou Annabelle. – Tu ganhas sempre. Tens a certeza


de que não estás a fazer batota?
Nat sorriu.
– Absoluta – respondeu, afastando para o lado o tabuleiro das damas. – Já
sabes o que acontece agora.
Annabelle deu uma risadinha, gemendo quando os dedos de Nat se
apertaram à volta do seu pulso.
– Chiuu – avisou Nat. – Fechaste a porta à chave, não fechaste?
– É claro – respondeu Annabelle, começando a parecer ansiosa.
– Não tens de ter medo de mim – disse Nat. – Não te vou fazer mal.
Annabelle riu de novo, e depois afastou-se para o lado quando ele se veio
sentar junto dela.
– Aqui – disse Nat, pegando-lhe na mão.
Deixando-o guiar os seus dedos, apertou-os à volta dele e susteve a
respiração.
– Também te posso tocar? – sussurrou ele tremulamente.
Annabelle acenou com a cabeça, e depois começou a respirar
entrecortadamente quando os dedos dele lhe percorreram o peito.
– Gostas? – perguntou ele.
– Sim. – Engoliu em seco. – É mesmo bom. – A seguir, disse timidamente:
– Podes tocar-me lá em baixo, se quiseres.

Nat sabia que nunca conseguiria esquecer a vontade que sentira de se


deitar sobre Annabelle e penetrá-la. Nunca tinha ido tão longe, mas intuía que
ela deixaria se ele quisesse. Talvez o tivesse feito, se não tivessem ouvido
alguém a subir as escadas.

– A cabra – dizia Annabelle furiosa, enquanto atravessava com Georgie


para Holly Way –, quem é que ela pensa que é para me dizer que tenho de
crescer? Devia ter-lhe dado um soco, ou dizer-lhe que ela não estava
convidada para a festa, porque ninguém quer ver aquelas mamas brancas de
tábua e aquela pássara feia cor de cenoura. Que nojo, ela é tão horrível que
não entendo como o Nat consegue olhar para ela, já para não falar em ir para a
cama.
– Seja como for – disse Georgie, encolhendo os ombros –, ele não vem
mesmo à festa, por isso lá se vai o plano B.
– Ela não vai ganhar – mastigou Annabelle, mal ouvindo a amiga. – Estou
a dizer-te, mesmo que ele não vá no sábado, eu sei que ele quer estar comigo
e, quando isso acontecer, ela vai saber tudinho.
Capítulo Oito
Ao longo dos dias seguintes, à exceção da viagem para levar Summer à
estação, onde Alicia se despediu no carro, permitindo assim aos jovens um
pouco de privacidade para as suas próprias despedidas, Nat e a mãe mal
saíram da loja. Graças ao muitíssimo paciente marido de Mimi, Pete, e à sua
carrinha de confiança, o entulho que restava fora transportado para o depósito
do lixo, e expositores novinhos em folha, feitos de materiais reciclados,
começavam a tomar forma no pátio. Enquanto Pete serrava, martelava, furava
e aplainava na sua mesa de trabalho Workmate, Nat caiava as paredes e Alicia
pintava madeiras e caixilhos de janelas, enquanto Mimi fornecia refrescos sem
parar.
À noite, depois de uma salada rápida, ou de um prato de peixe com batatas
fritas comprado no Friary quando estava demasiado cansada para fazer alguma
coisa, Alicia trabalhava no computador no seu quarto, projetando papel
timbrado, cartões de visita, folhetos promocionais e um logótipo, enquanto Nat
se concentrava na criação de um site. As questões práticas relacionadas com a
abertura e a gestão de um negócio eram a sua maior dor de cabeça, mas
Maggie veio em sua salvação, sentando-se com ela no pub, uma tarde, e
analisando tudo o que era necessário para começar, desde um contabilista e
seguros a um transportador de confiança, no caso de precisar de enviar as suas
esculturas ou outros artigos para destinos distantes.
Na sexta-feira, graças a uma chuva de recomendações, possuía uma lista
para todas as categorias e, quando Sam apareceu às duas da tarde com uma
entrega especial que continha uma máquina para pagamento com cartões e a
comunicação de que poderia começar a utilizá-la a partir da quarta-feira
seguinte, Alicia declarou que era altura de festejar. Não importava que o
telefone ainda não estivesse ligado, e que o fornecimento de energia elétrica
funcionasse nos moldes do código Morse – tinham conseguido tanta coisa em
menos de uma semana que mereciam uma régia noite de folga.
– Até que enfim – riu Rachel, quando Alicia e Nat se juntaram a ela e a
Dave no seu pub local, perto de Ditcheat. – Já andávamos a pensar se alguma
vez te veríamos de novo.
Embora Alicia preferisse ir ao Traveller’s, tendo evitado Sabrina por
pouco uma vez, não estava ainda preparada para arriscar de novo, sobretudo
não estando Robert por perto.
– Onde estão os miúdos? – perguntou, percorrendo a esplanada com o
olhar, tentando descobri-los.
– Foram os dois dormir em casa de amigos – respondeu Dave, com uma
expressão alegre nos olhos que mostrava como lhe agradava ter a esposa só
para si naquela noite. – Amanhã de manhã estão de volta, e querem ambos
saber se te podem ir ajudar na loja.
– É isso mesmo – comentou Nat alegremente. – Não vejo porque é que
tenho de ser o único que ela escraviza, por isso tragam-nos lá.
Rindo enquanto o abraçava, Rachel disse:
– Tens tinta nas sobrancelhas e ainda nem ganhaste uma corzinha. Ela está
mesmo a matar-te de trabalho.
Alicia sorriu afetuosamente quando Nat olhou para ela e lhe piscou o olho.
– Então, que vamos beber? – perguntou. – O Nat vai conduzir, por isso…
– Já tratamos disso – interrompeu Dave. – Não é todos os dias que uma
mulher recebe a sua primeira máquina para pagamento com cartões, por isso
achámos que devíamos beber champanhe.
Alicia arregalou os olhos e desatou a rir.
– Mas quem paga sou eu – insistiu. – A ideia de festejar foi minha e…
– Senta-te e vê se te comportas – disse Dave. – Isto pagamos nós, e o
jantar também é oferta nossa.
– Oh, não – disse Alicia num tom sério. – Sei muito bem como vai o
mercado imobiliário, por isso…
– A minha mulher é rica – recordou Dave. – Está a encher-se de dinheiro
naquele consultório, que é outra coisa que temos de festejar, e finalmente
arranjou um sócio que deve começar a trabalhar em setembro, pelo que, se
calhar, até a vou começar a ver de vez em quando.
– Isso é ótimo – exclamou Alicia, dando um abraço a Rachel. – Tinha-me
esquecido de que estavas à procura de um sócio.
– Não é para admirar, já que andei quase um ano a tentar encontrar alguém
e o assunto já aborrecia, mas hoje não estamos aqui para falar de mim. O
assunto és tu e este novo começo. Só é uma pena que a Darcie não possa estar
aqui connosco.
– Não penso que ela fosse concordar contigo – disse Nat. – Está a divertir-
se tanto em França que mal tem tempo para nos telefonar, a não ser que queira
os meus conselhos de irmão sobre como dar a entender a um rapaz que gosta
dele.
– Ao que o Nat respondeu – interveio Alicia – que, se ele fosse francês,
lhe devia dizer tire-toi, que basicamente quer dizer “desaparece”, e, se fosse
inglês, lhe devia dar o seu número, para o Nat tratar dele pessoalmente.
Rindo, Rachel disse:
– Que prestável. Tenho a certeza de que ela apreciou imenso.
– É uma forma de o dizer – respondeu Nat, acomodando-se no banco
corrido ao lado da mãe.
– Ah, aí vem o champanhe – anunciou Dave, avistando uma empregada que
caminhava sobre a relva transportando um balde de gelo e quatro copos.
Instantes depois, brindavam uns aos outros e bebiam os primeiros goles de
um apetecido Laurent Perrier deliciosamente gelado.
– OK, os menus – disse Dave. – Ela esqueceu-se de os trazer.
– Eu vou lá dentro – disse Nat, pondo-se de pé. – Alguém quer frutos
secos ou batatas fritas?
– Traz alguns sacos – respondeu Alicia.
Enquanto o filho se afastava, Alicia fechou os olhos e deixou que o puro
prazer de relaxar na companhia dos seus amigos mais próximos se
sobrepusesse à sua mágoa e lhe animasse o espírito.
– Jesus, que semana – murmurou, esticando as costas. – Desde que não
pense em mais nada, estou a começar a ficar bastante entusiasmada.
Lançando um olhar breve a Dave, Rachel retirou da sua carteira um
boletim informativo com letras verdes sobre um fundo amarelo suave e
passou-o a Alicia. Mal o viu, esta compreendeu do que se tratava e o seu
coração entristeceu-se.
– The Buzz – disse, lendo o título. – Que original3.
– Trouxe isso – disse Rachel –, porque achei que ainda não devias ter
visto, senão tinhas-me dito qualquer coisa ao telefone. O Dave achou que
devíamos esperar para te mostrar, mas penso que é melhor leres enquanto
estás aqui. Dentro há um artigo que é claramente dirigido a ti.
Pousando o boletim, Alicia disse:
– Não quero ler nada do que ela tenha para dizer. Faz-me só um resumo.
– Basicamente, enumera todas as razões pelas quais Holly Wood não deve
querer turistas na aldeia, nem atividades que os chamem cá. Fala do lixo no
chão, de falta de estacionamento e de pessoas a espreitarem pelas janelas, e de
como toda a gente teria de pagar impostos mais altos se houvesse mais lixo
para recolher, ruas para limpar e manutenção em geral para fazer.
– Que cabra – mastigou Alicia.
– Eu sei. Está obviamente a tentar assustar os teus vizinhos, para pensarem
duas vezes antes de te apoiarem. Não refere o teu nome, como é evidente, é
demasiado esperta para isso, mas a mensagem é clara. Termina com um
parágrafo sobre certas licenças que são necessárias para um espaço de venda
a retalho funcionar como unidade de produção, e como é importante que os
habitantes de Holly Wood se assegurem de que toda a gente cumpre a lei.
Alicia parecia preocupada.
– Que licenças? – perguntou. – Ela tem razão? Preciso de alguma licença?
– Possivelmente – respondeu Dave com ar pesaroso. – Ainda não tive
tempo para analisar todas as secções e cláusulas palermas dos regulamentos
municipais, mas a julgar por isto diria que ela o fez, por isso tu devias fazer o
mesmo.
O rosto de Alicia estava tenso de fúria.
– Que diferença lhe faz se eu faço esculturas e algumas peças de joalharia
nos fundos da loja? – disse em voz alta. – Mas a questão não é essa, não é
verdade? Esta é a maneira que ela arranjou para tentar fazer com que eu vá
embora. Bem, pode tirar daí as ideias. Metade da aldeia já passou pela loja
para me ajudar, ou mostrar apoio, e sei que a outra metade ficará do meu lado
se for preciso. Pelo amor de Deus, estamos a falar de uma galeria de arte de
meia-tigela. As pessoas não vão propriamente começar a vir em massa a Holly
Wood para ver as minhas obras desconhecidas. Quem me dera.
– Na segunda vou fazer umas investigações para ti – disse Dave. – Não
deve ser difícil encontrar a informação necessária e, se precisares mesmo de
uma licença, pedimo-la. Problema resolvido.
– Depende do tempo que demorar. Preciso de abrir o mais rapidamente
possível.
– Estão todos com um ar muito sério – disse Nat, pousando na mesa
amendoins e biscoitos salgados juntamente com os menus.
Alicia falou-lhe do problema com a licença, omitindo o facto de ter sido
Sabrina a dar-se ao trabalho de lhe chamar a atenção para o assunto. Nat
pareceu imediatamente tão preocupado quanto ela.
– Não podemos ter atrasos – disse. – Vai estragar-nos completamente a
vida para o verão. Mas espera, se o problema é tu fazeres coisas na loja,
podes sempre montar o estúdio em casa, no antigo quarto de jogos, até chegar
a licença. Já sei que a solução não é perfeita, porque precisas mesmo de estar
na loja, mas eu posso lá estar para atender os clientes durante agosto e, se tudo
correr bem, quando chegar a altura de começar a escola já terás os
documentos necessários.
Alicia brindou-o com um sorriso radioso.
– É isto que adoro em ti – disse a Nat, dando-lhe um ruidoso beijo na
cabeça –, tens sempre uma solução para tudo.
– Na verdade, não foi muito difícil – murmurou, visivelmente satisfeito
consigo mesmo. A seguir, agarrou no telemóvel que tocava e atendeu: – Estou!
Ah, olá, sim, está tudo bem. E consigo?
Quando Nat se levantou da mesa, Alicia ficou a vê-lo afastar-se para a
extremidade da esplanada em busca de maior privacidade.
– Não me parecia que fosse a Summer – comentou –, para variar. Devem
falar pelo menos umas cinco vezes ao dia.
– Como foi tê-la aqui? – perguntou Rachel.
– Correu tudo bem. Ela é bastante descontraída e não teve qualquer
problema em se adaptar. Oh, ainda não tive oportunidade de te contar isto, mas
há dias houve uma discussão com a Annabelle. Pelo que ouvi, a Summer
meteu-a na linha.
– Ainda bem – aplaudiu Rachel. – Alguém precisava de o fazer. Vi essa
miúda ontem em Bath. A sério, pela maneira como se pavoneava até parecia
que era alguma top model. E depois riu-se, e fazia uma barulheira tão
escandalosa que dava vontade de nos encolhermos, ou de lhe dar uma
bofetada, ou as duas coisas, e as amigas são iguais. Mostram mais carne do
que a montra de um talho… e porque é que estas miúdas tão novas têm de
abrir tanto a boca quando riem? É horrível de ver.
Alicia revirou os olhos e virou-se para Nat, que regressava à mesa.
– Tudo OK? – perguntou.
– Sim, era o Jolyon Crane – disse ele.
O rosto de Alicia iluminou-se.
– Era sobre o teu estágio com ele? As coisas ainda vão para a frente?
– Sim, com certeza. Ele estava a ligar para nos convidar para jantar na
sexta que vem.
– Que ótimo. Onde?
– Aparentemente, reservou uma mesa num sítio chamado… Hunting Street
House?
O sorriso de Alicia esmoreceu à medida que sentia o coração apertar-se.
– Huntstrete House? – disse, pensando nos extratos do cartão de crédito de
Craig que inspecionara e nas vezes que aquele hotel aparecia.
– É isso. Porquê, há algum problema?
– Não, não – mentiu, esforçando-se por recuperar a boa disposição. Não ia
dizer ao filho que se tratava de um dos locais onde o seu pai e Sabrina se
costumavam encontrar. – A Marianne também vai?
– A mulher dele? Não sei, não perguntei.
– Bem, acho que vamos descobrir quando lá chegarmos – disse, abrindo o
seu menu. – Vejamos, o que vamos comer?
Enquanto percorria a generosa lista de pratos da cozinha local, Alicia mal
conseguia ver as palavras. Embora ainda não tivesse efetivamente posto os
olhos em Sabrina, parecia que, para onde quer que se virasse, a maldita
mulher estava lá, como um inimigo à espreita para a atormentar. Tinha-se
intrometido no seu casamento e quase o destruíra. Afastara-a do irmão e
tornara-lhe praticamente impossível ver a mãe. Agora, estava a tentar impedi-
la de abrir a loja. Continuava até a assombrar conversas inócuas, aparecendo
como uma sombra por trás das palavras, obscurecendo a sua inocência e
arrastando Alicia de volta para um dos momentos mais dolorosos da sua vida.
Tinha de fazer qualquer coisa para se libertar dela, para criar uma
existência que já não pudesse ser afetada por ela, ou o seu futuro acabaria tão
manchado por Sabrina como o seu passado.

– Isto chega? – perguntou Robert a Annabelle, enquanto depositavam um


saco cheio de palha na mala do seu carro.
– Sim, acho que sim. Deve chegar – respondeu Annabelle. – Só gostava
que fosse verde, é só isso.
Sem se lembrar de nenhuma sugestão que possibilitasse a Annabelle
alterar a cor, Robert meteu na mala uma grande caixa de legumes, com cuidado
para não esmagar a valiosa palha. Fechando a porta, acenou em agradecimento
a Maggie, que geria a loja de produtos agrícolas, e entrou no carro.
– Então, ainda não posso perguntar para que é isto? – disse, enquanto
viravam para a estrada principal.
– Ainda não – respondeu Annabelle. – Primeiro quero ter a certeza de que
funciona, mas obrigada por me trazeres – e por pagares.
Robert olhou-a de relance.
– Estás a precisar de dinheiro? – perguntou cuidadosamente.
Annabelle encolheu os ombros.
– Um bocado, sim. Hoje em dia parece que o dinheiro já não me chega
para nada. Está tudo tão caro.
Uma vez que Annabelle recebia uma generosa mesada, que fora transferida
para a sua conta há apenas uma semana, Robert pensava, bastante preocupado,
em que a poderia andar a gastar. No entanto, abordar o assunto não seria tarefa
fácil, dado o carácter irritável da enteada nos últimos tempos; mas se
Annabelle andava a esbanjar o dinheiro em álcool ou, pior, em substâncias
ilegais, coisa de que Sabrina e ele começavam a suspeitar, tinham de saber.
– Quanto te sobra? – perguntou cautelosamente.
Annabelle fez uma careta.
– Sei lá. Umas vinte, acho – disse, virando-se para olhar para ele, com um
súbito sorriso adorável e os olhos a pestanejar. – Suponho que não haverá
hipótese de me dares um adiantamento sobre a mesada do mês que vem? –
perguntou.
Robert preparava-se para dizer que não, quando optou por se afastar de
uma recusa absoluta e disse:
– Poderá haver, se souber em que andas a gastar o dinheiro.
Annabelle exibiu uma expressão carrancuda e voltou-se para olhar pela
janela. Robert lançou-lhe outro olhar breve e, a seguir, desviou-se para
ultrapassar uma carroça carregada de feno.
– Se só te sobram vinte libras, deves ter comprado algo mesmo caro – fez
Robert notar.
Annabelle emitiu um suspiro breve e disse:
– Porque é que toda a gente odeia que eu tenha o que quero?
Erguendo as sobrancelhas, Robert disse:
– Não sabia que alguém criticava as tuas escolhas, ou te tentava impedir
de as fazeres. Só estou a tentar perceber para onde pode ter ido uma quantia de
dinheiro tão grande em menos de uma semana.
– Que é isto, um interrogatório ou algo do género? – disse Annabelle
bruscamente, na defensiva.
– Não, estou só a tentar descobrir se andas a comprar coisas que não
devias. Como drogas ou álcool.
Annabelle assumiu de imediato uma atitude hostil.
– Não, não ando a gastar o dinheiro em drogas ou álcool – respondeu num
tom zangado e, atirando o cabelo para trás, virou a cara e voltou a olhar pela
janela, aparentemente decidindo ignorá-lo.
Adivinhando pelo tom da resposta de Annabelle que se aproximara da
verdade – se é que não acertara realmente em cheio –, Robert sentiu-se
invadido por uma onda de consternação. Se não tivesse de partir para o
estrangeiro mal a deixasse em casa, estaria na disposição de insistir no
assunto, nem que fosse para a fazer perceber o quanto aquelas coisas eram
realmente perigosas, mesmo que fosse só para experimentar. Melhor ainda
seria se conseguisse persuadi-la a dar-se com um grupo diferente de amigas,
com raparigas da sua idade em vez de Georgie e das outras, que eram pelo
menos um ou dois anos mais velhas. O problema era que Annabelle e Georgie
se conheciam há muito tempo; por isso, sabia que não tinha hipótese
praticamente nenhuma de a convencer de que podia andar com as pessoas
erradas.
– Alguma das tuas amigas consome drogas? – aventurou-se, resolvendo ir
direito ao assunto.
Brindando-o com um dos seus superiores suspiros de sofrimento,
Annabelle disse:
– Nã-ão!
– E álcool?
– Oh, por amor de Deus, toda a gente toma uma bebida de vez em quando.
Não tem nada de mal. É perfeitamente legal.
– Não no teu caso.
– Oh, Robert, por favor, não insistas. Começas a parecer-te com a mãe, e
sempre pensei que tinhas um espírito mais aberto do que isso.
Perguntando a si mesmo se era suposto esta afirmação ser um elogio,
Robert disse:
– A tua mãe só te chateia a cabeça porque se preocupa contigo.
– Errado. A mãe só se preocupa com ela mesma e com aquilo que o resto
do mundo pensa dela.
Robert abanou a cabeça de maneira triste.
– Ela, por vezes, pode dar essa impressão – admitiu –, mas posso garantir-
te que ninguém é mais importante para ela do que tu.
Para sua surpresa, Annabelle não o contestou, limitando-se a regressar à
sua contemplação da paisagem rural, enquanto remexia distraidamente no
telemóvel que tinha na mão.
– Se tens razão – disse de súbito –, então porque é que nunca me quis perto
dela quando supostamente esteve doente, aquele tempo todo? Ela foi uma
completa cabra para mim, naquela altura, e não me esqueci de algumas das
coisas que ela me disse.
Com vontade de parar o carro para lhe pegar nas mãos enquanto
respondia, mas sabendo que ela se afastaria de imediato se o fizesse, porque
era assim que reagia sempre que o assunto era abordado, Robert disse:
– A tua mãe estava a passar por uma depressão muito grave…
– Sim, sim, pobre mãe, vamos todos ter pena dela. Na verdade, sei
exatamente qual era o problema dela…
Alarmado, Robert disse:
– Que queres dizer?
Annabelle encolheu os ombros de um modo que parecia acentuar a sua
hostilidade e erguer mais barreiras que nunca.
– Ela estava a passar por muitas coisas, nessa altura – disse Robert com
cautela.
– Sim, tudo bem, eu sei. Olha, tenho de ligar à Georgie. Disse-lhe que
ligava ao meio-dia e já passam dez minutos.
Enquanto Annabelle marcava o número, Robert fixou os olhos na estrada à
sua frente, consciente da amargura e da mágoa antigas que se arrastavam atrás
de si como um lastro. Aquela maldita aventura era como uma assombração –
por vezes desaparecia, mas a seguir regressava, muitas vezes tão nítida e cruel
como se ainda estivesse a acontecer. Na altura, quase o despedaçara – mas
pior do que isso fora ver a mulher sofrer tão miseravelmente por causa de
outro homem. Agora, era mais capaz de se desligar das suas emoções sempre
que o fantasma erguia a cabeça, mas nem sempre. A dor continuava lá, de
mãos dadas com um profundo sentimento de traição, enterrado, mas
garantidamente vivo.
Robert perguntou a si mesmo se Annabelle teria realmente descoberto o
caso de Craig e da mãe, ou se estava a usar o seu truque habitual de tentar
parecer mais entendida do que era na realidade. Desde que Annabelle mudara
tanto e começara a exibir aquelas atitudes, era difícil dizer o que se estava a
passar na sua cabeça, mas Robert nunca duvidou de quantos danos e quanta
dor as erráticas oscilações de Sabrina entre a histeria e a melancolia lhe
tinham causado.
Annabelle ainda estava a falar ao telefone quando entraram pelos portões
da residência e, depois de tirar o seu saco de palha do porta-bagagem,
esfumou-se para dentro de casa sem sequer olhar para trás. Robert sentiu-se
profundamente triste ao perceber como se estavam a afastar. Costumava dizer
a si mesmo, durante aqueles terríveis meses negros a seguir ao caso, que,
depois de o pior passar, iam ser capazes de compor as coisas e, de alguma
maneira, tudo voltaria a ser como dantes. Compreendia agora como fora
ingénuo e como se enganara a si mesmo. A traição e o esgotamento de Sabrina
tinham-nos mudado a todos, de formas que ainda mal conseguiam ver ou
compreender. Era como se as memórias prosseguissem a destruição,
desgastando os seus laços e resistindo às suas tentativas para os tentar manter
juntos.
– Vais sair já? – perguntou Annabelle, enquanto Robert levava os legumes
para a cozinha.
– Receio que tenha de ser – respondeu ele, olhando para o relógio. – Já
estou em risco de perder o avião.
– Diz lá outra vez, onde vais agora? – perguntou Annabelle, começando a
comer uma cenoura.
– Roma. Estou de volta no fim de semana. Sabes onde está a tua mãe?
Annabelle abanou a cabeça.
– Não faço ideia, mas deve estar nalgum sítio com a June, como de
costume.
– OK, ligo-lhe quando for na estrada. Ficas bem?
Annabelle olhou para ele com um ar surpreendido.
– É claro – respondeu. – Porque não ficaria?
Robert sorriu.
– Não faço ideia – disse e, depois de lhe dar um abraço afetuoso, que para
sua grande alegria Annabelle retribuiu, saiu em direção ao carro.

Uma hora depois, Sabrina deteve-se bruscamente à entrada da cozinha,


sem poder acreditar no que via.
– Bem, aí está algo que nunca esperei ver – disse, pousando os sacos do
supermercado em cima da bancada. – Mas que estás a fazer?
– Se queres mesmo saber, estou a tentar fazer uma saia de palha –
respondeu Annabelle, pincelando um cinto de couro branco com cola.
– Nunca teria adivinhado – disse Sabrina. – Onde arranjaste a palha?
– Numa loja de produtos agrícolas, onde mais seria? E se vais ficar aí a
criticar-me, bem podes desaparecer.
Sabrina arqueou as sobrancelhas.
– Na verdade, até te ajudava, se soubesse para que isso serve– disse,
começando a colocar as compras no frigorífico.
– É para uma festa de disfarces, OK? Vou de havaiana, por isso preciso da
saia.
Sabrina pareceu impressionada pela escolha.
– Vais precisar de uma lei – disse.
Annabelle olhou para ela.
– É a grinalda – disse Sabrina, revirando os olhos.
– Quem dá a festa?
– Um amigo.
– E esse amigo tem nome?
– Merda, não está a colar. Isto está a deixar-me louca. Toma, faz tu.
– Uma vez que pedes com tanta educação, não.
– Oh, mãe, por favor. Não tenho mais nada para levar, por isso tenho
mesmo de fazer isto.
Aproximando-se da mesa, Sabrina observou a confusão e suspirou.
– Era melhor se colasses a palha em papel, e depois cosesses a um tecido
– disse.
– Boa ideia! – exclamou Annabelle. – Vou buscar a máquina de costura –
disse Annabelle pondo-se de pé, antes de se lembrar de perguntar: – Temos
máquina de costura?
Sabrina abanou a cabeça.
– Porque não? – perguntou Annabelle furiosa. – Toda a gente tem máquina
de costura tirando tu, porque não és como as outras mães. Tens de comprar
tudo, ou arranjar quem o faça por ti. Nunca fazes nada.
– Isto não é mesmo a melhor maneira de conseguires que te ajude – disse
Sabrina. – Por isso, a não ser que te acalmes e comeces a falar comigo de
forma educada, podes limpar o chiqueiro que fizeste e ir à festa vestida de
farrapos.
– Que engraçada! – No entanto, Annabelle estava demasiado entusiasmada
com a ideia de ir à festa vestida com uma saia de havaiana para deixar a sua
frustração interferir. Assim, compondo o seu melhor sorriso doce, disse – Por
favor, mãezinha, podes-me ajudar?
Sabrina olhou-a de lado.
– Sou capaz, depois de ter acabado isto – respondeu –, mas só se lavares
as alfaces antes de as meteres no frigorífico.
Annabelle suspirou com impaciência, mas conseguiu morder a língua e
deter a resposta hostil que lhe aflorou aos lábios.
– OK, está combinado – disse. – Agora, onde vamos arranjar o tecido?
– Podemos usar um lençol velho, e depois podes tapá-lo com o cinto. Que
vais usar em cima?
Annabelle engoliu em seco.
– Não sei. Um dos meus biquínis, acho. E uma lei. Podes fazer-me uma?
– Provavelmente. Tens de ir buscar flores à Mimi e arame para as
prendermos.
– Achas que ela também vende arame?
– Deve vender.
– OK, vou lá agora e trato das alfaces quando voltar. Posso pôr as flores
na tua conta?
Sabrina suspirou.
– Suponho que sim.
E, afastando-se para o lado para deixar Annabelle passar, aproximou-se
depois para inspecionar mais de perto a desordem em cima da mesa. A saia
era um desastre tão grande que uma criança de seis anos teria sido capaz de
fazer melhor. Abanando a cabeça com desalento, Sabrina foi até ao andar de
cima procurar um lençol velho, tirando a sua caixa de costura da escrivaninha
ao voltar para o rés do chão. Quando Annabelle regressou, a saia estava
praticamente feita.
– Onde te meteste? – perguntou Sabrina quando a filha entrou pela porta
com um ramo de crisântemos, margaridas, dálias de várias cores e um punhado
de clarkias.
– Encontrei alguns amigos – respondeu.
– Não estiveste com aquela gente dos bairros novos, pois não?
– E se estivesse? És mesmo snob. E eles andam na minha escola, por isso
não os posso ignorar, pois não? Seja como for, era isto que querias? As flores
chegam?
Sabrina assentiu com uma expressão zangada.
– Acho que sim – respondeu. – Toma, experimenta – e, cortando a linha
com os dentes, ergueu a saia para Annabelle ver.
– Meu Deus, és um génio – disse Annabelle arrebatada, agarrando na saia
e encostando-a a si. – Achas que podíamos tingir a palha de verde?
– Não – respondeu Sabrina firmemente. – Está muito bem assim. As flores
vão dar cor ao visual todo.
– Vamos fazer a grinalda agora?
– Parece que vai ter de ser. Mas quero que me ajudes. Também gostava de
saber quem dá a festa e onde vai ser.
Annabelle emitiu um longo suspiro de sofrimento.
– É em casa do Theo McAllister, está bem? Conheces a mãe dele, a
Jemima.
– Tens razão, conheço, por isso também sei que o Theo tem dezanove anos.
Não achas que és um bocado nova de mais para ires a…
– Oh, pelo amor de Deus, és tão preconceituosa em relação às idades.
Hoje em dia ninguém liga a isso. Somos todos amigos, é isso que importa.
– Mas como é que alguém da tua idade se torna amiga de alguém que já
anda na faculdade? Vocês não convivem propriamente na escola…
– Temos amigos comuns, OK?
– Que amigos?
– Oh, mãe, deixa lá isso.
– As perguntas que te faço são perfeitamente naturais. Não percebo porque
estás tão na defensiva.
Com outro suspiro de impaciência, Annabelle disse:
– O primo da Georgie, o Hugh, estuda em Manchester com ele, OK? E a
irmã da Cat já andou com ele. Estás satisfeita?
Sabrina estava e não estava, mas aquilo exibia todos os sinais de ir a
caminho de descambar em mais uma discussão acalorada, pelo que decidiu
não insistir.
– Onde está o arame? – perguntou.
– No meu saco. Começo a cortar as cabeças das flores?
– Acho que é melhor ser eu a fazer isso. Podes ir tratando das alfaces, mas
primeiro vai guardar a caixa de costura.
– Onde a ponho?
– Se alguma vez fizesses alguma coisa, saberias que costuma estar na
gaveta de baixo da escrivaninha.
Annabelle franziu o nariz.
– E isso o que é?
– Oh, pelo amor de Deus, pousa isso e trata da alface.
Annabelle sorriu.
– Estava a brincar – disse. – Sei o que é uma escrivaninha – e, agarrando
na caixa de costura, saiu com ela para o átrio. Quando regressou, Sabrina
começava a cortar as cabeças das dálias.
– Que vais fazer hoje à noite? – perguntou Annabelle, procurando o
lavador de legumes.
– A June e eu vamos ao ginásio uma hora – respondeu Sabrina –, e depois
devemos jantar juntas por lá.
– Parece fixe. Na verdade, não me importava que me oferecesses um
cartão de membro do clube de fitness de Babington quando fizer dezasseis
anos.
– Se achasse que o ias mesmo usar para alguma coisa, eras capaz de ter
sorte. Podíamos ir juntas.
– Sim, bem, pensando melhor…
Fazendo um esforço para não se sentir magoada, Sabrina deixou passar a
resposta e trabalhou em silêncio durante algum tempo, pensando na conversa
que tivera com Robert ao telefone acerca de Annabelle e do uso que esta dava
à sua mesada.
Annabelle, por seu lado, pensava em como ia deixar toda a gente de boca
aberta quando aparecesse nessa noite na festa vestida de havaiana. Por fim,
quando acabou de lavar as alfaces e se veio sentar à mesa, Sabrina disse:
– Há algo que gostava de te perguntar.
– O que é? – perguntou Annabelle distraidamente. Inspecionava o trabalho
da mãe e, até ali, estava satisfeita com o que via. – Jesus Cristo, não vais
voltar outra vez àquela coisa das drogas – disse, subitamente alerta. – Já disse
ao Robert, não tenho nada a ver com isso.
– Espero que seja verdade – disse Sabrina, procurando olhá-la nos olhos.
Annabelle, contudo, continuava a olhar para as flores.
– Não, é mentira – disse Annabelle sarcasticamente –, porque, como
sabemos, tudo o que eu digo…
– Está bem, está bem – atalhou Sabrina. – Na verdade, não era só disso
que queria falar… – continuou e, apesar de saber que nada de bom poderia
sair dali, ganhou coragem e disse: – Gostava de saber se ainda és virgem…
Houve uns instantes de silêncio antes de Annabelle erguer a cabeça, com
uma expressão completamente ultrajada.
– Isso não é mesmo nada assunto teu – disse.
– Na verdade, tudo o que fazes é assunto meu – corrigiu-a Sabrina –, e isso
não é resposta nenhuma. És ou não és?
– Desculpa, mas não tenho conversas destas com ninguém a não ser com as
minhas melhores amigas.
– Depreendo daí que não és – disse Sabrina, sentindo uma horrível
sensação de fracasso alastrar dentro dela.
– Depreende o que quiseres, é contigo.
Retomando o que estava a fazer num esforço para esconder as lágrimas
que brotavam dos seus olhos, Sabrina disse:
– Espero que estejas a usar contracetivos.
– Oh, por favor, podemos mudar de assunto?
– Só estou a dizer que, se és sexualmente ativa, tens de usar preservativos.
E isto não quer dizer que te dê permissão para teres intimidades com rapazes,
só quero que não corras perigos se isso acontecer.
– Mãe, está tudo sob controlo, OK? Mete isso na tua cabeça e para de nos
embaraçar a ambas.
Sabrina respirou fundo.
– Claro, se ainda és virgem…
– Oh, por amor de Deus – gritou Annabelle, erguendo-se de um salto –,
estás a deixar-me maluca. Eu faço o que quero, OK?
– Não, está muito longe de estar OK, e se vais insistir nessa atitude
podemos parar já com o que estamos a fazer e ficas em casa hoje à noite.
Annabelle rangeu os dentes enquanto fervia de frustração.
– És tão irritante – mastigou. – Aqui estamos nós, sentadas a passar um
bom bocado, e tinhas de o estragar com essa conversa estúpida.
– Desculpa, só estou a tentar…
– Chatear-me, como fazes sempre. Muito bem, conseguiste, já estás
contente?
– Essa não era a minha intenção. Eu simplesmente queria…
– Se não te calares agora mesmo, vou-me embora daqui.
– Não fales comigo dessa maneira. Eu sou tua mãe, ou mostras respeito
por mim ou vais mesmo ficar de castigo.
– Eu vou à festa logo à noite e, se me tentares impedir, vais-te arrepender.
O rosto da Sabrina empalideceu ao olhar para ela.
– Estás a ameaçar-me? – perguntou.
– Só te estou a dizer para me deixares em paz.
Sabrina deixou cair o fio e as flores.
– Vai para o teu quarto – disse –, e podes desistir da ideia de ir a essa
festa, porque isso não vai acontecer.
– Não me podes impedir.
Sabrina levantou-se e, agarrando no braço de Annabelle, começou a puxá-
la na direção da porta.
– Tire as mãos de cima de mim – disse Annabelle furiosa, conseguindo
libertar-se ao contorcer o corpo. – Não me podes dizer o que fazer.
O rosto de Sabrina estava lívido de raiva.
– Oh, posso sim, e estás de castigo durante o resto do verão.
– Nem pensar – zombou Annabelle, e tentou passar pela mãe forçando o
caminho.
Sabrina tentou trazê-la de volta agarrando-a pelos ombros, mas Annabelle
afastou-lhe as mãos e empurrou-a contra a parede.
– Annabelle! – gritou Sabrina, enquanto a filha agarrava na sua mala e na
saia de palha e se dirigia para a porta. – Volta aqui!
Ignorando-a, Annabelle saiu intempestivamente da cozinha e dirigiu-se ao
portão. Sabrina foi atrás dela, mas quando chegou à rua Annabelle já estava a
dobrar a esquina para a via principal. Como não tinha meio de transporte, iria
sem dúvida direita ao Tom Sebastian para apanhar um táxi, pelo que Sabrina
voltou para dentro de casa e pegou no telefone.
Felizmente, ambos os taxistas estavam ocupados, o que significava que
Annabelle teria de esperar que um dos carros regressasse, ou apanhar o
autocarro. Mesmo que ainda estivesse na aldeia, Sabrina não tinha qualquer
intenção de arriscar um confronto em público, por isso tentou ligar para o
telemóvel da filha. A chamada foi parar à caixa de correio e Sabrina estava
prestes a deixar uma mensagem quando o telefone fixo tocou. Levantando o
auscultador, inspirou fundo para o discurso furioso com que se preparava para
brindar Annabelle, mas reparou no número no visor mesmo a tempo. O seu
tom de voz mudou completamente, ao dizer:
– Jennifer, que surpresa agradável! O Robert e eu ainda há umas noites
estivemos a falar de si, a pensar como estariam todos.
– Oh, connosco está tudo bem –a resposta surgiu num inconfundível
sotaque americano. – E como vai a Sabrina?
– Melhor que nunca – assegurou Sabrina e, com todos os pensamentos
sobre Annabelle eclipsados pela possibilidade de receber um valioso convite
para a casa de férias da família Bingleigh em Cap d’Antibes, algures em
agosto, sentou-se para dar total atenção à chamada.

***

– Annabelle? És tu? – disse Alicia, vinda do pátio e vendo a rapariga


diante da montra da loja a olhar para a rua.
Annabelle voltou-se e acenou. Estava a falar com alguém ao telemóvel,
mas desligou assim que Alicia se aproximou da frente da loja.
– Olá – disse. – Estou à espera de um táxi para me levar, por isso pensei
em passar por aqui para ver como estão as coisas.
Sabendo instintivamente que era mentira, ou pelo menos não toda a
verdade, Alicia disse:
– Como podes ver, vão progredindo. Talvez possamos, e sublinho o talvez,
estar prontos para abrir dentro de duas semanas.
Diz isto à tua mãe, pensou com raiva.
– Fixe. Vais fazer algum tipo de festa de abertura?
Como não estava disposta a admitir diante de Annabelle que não tinha
dinheiro para tal, Alicia respondeu:
– Tenho andado a pensar nisso, mas ainda não tenho a certeza.
Annabelle fitou de novo a rua, e a seguir olhou em volta mais uma vez,
observando as paredes recém-pintadas e o espaço vazio onde antes estava o
balcão. Os seus olhos encontraram-se depois com os de Alicia e, durante um
instante surpreendente, pareceu a Alicia que estavam turvos de lágrimas.
– Adorava quando a avó tinha esta loja – disse Annabelle numa voz rouca,
olhando em volta novamente. – Eu passava a vida a vir cá, e ela deixava-me
passar revista às coisas que chegavam. – Exibiu um sorriso hesitante. –
Lembras-te de como a Darcie e eu nos vestimos aquele ano no Natal? –
perguntou. – Tínhamos todas aquelas contas e outras coisas, e o Nat fez uma
cartola de papelão e decorou-a com as fitas de enfeitar a árvore.
Alicia observava-a de perto, apercebendo-se, com um profundo sentimento
de tristeza, que nunca se incomodara muito a pensar no modo como a morte da
mãe poderia ter afetado Annabelle.
– Sim, lembro-me – disse suavemente. – Vocês fizeram-nos rir tanto que a
avó ficou com soluços e não conseguíamos fazê-la parar.
Annabelle riu.
– E então o Tio Craig saltou-lhe de trás do sofá e quase a matou de susto.
Ela ficou mesmo zangada com ele, não foi?, mas os soluços pararam.
– Pararam, sim – respondeu Alicia. A seguir, atrevendo-se a dar um passo
em frente, perguntou: – Presumo que sintas falta dela, não é?
Os olhos de Annabelle vaguearam pela loja enquanto acenava com a
cabeça.
– O Robert também – disse. – Por vezes, vamos buscar os álbuns de fotos,
para a ver e para falar sobre as coisas que costumava dizer e fazer. A mãe
também sente falta dela, mas não se junta a nós, fica só a ouvir-nos ou afasta-
se para fazer um chá. – Olhou novamente para Alicia e, parecendo sair
repentinamente do seu devaneio, começou a esticar o pescoço para olhar para
a sala dos fundos. – O Nat não está cá? – perguntou, regressando
imediatamente à sua personagem de Miss-Com-Estilo.
– Não, ele hoje foi ao críquete com o Simon.
Annabelle pareceu desde logo interessada.
– A sério? E a namorada dele?
– Está com os pais em Itália.
A forma como os olhos de Annabelle se arregalaram disse imediatamente a
Alicia que, quase garantidamente, cometera um erro, mas já era tarde de mais.
– Bem, podes esperar pelo teu táxi aqui…
– Na verdade, acho que vou esperar lá fora – interrompeu Annabelle. –
Deve estar a chegar a qualquer momento. Eles disseram que o táxi estava neste
lado de Bruton, quando fui lá – e, acomodando um estranho molho de palha
que segurava sob o braço, saiu da loja.
Assim que se afastou o suficiente para Alicia não a conseguir ouvir,
Annabelle marcou o número de Georgie no telemóvel.
– Olá, sou eu de novo – sussurrou. – A Melody ainda está contigo?
– Sim, está no duche.
– Vai lá e diz-lhe que tem de convidar o Simon Forsey para logo à noite.
– Espera aí, ela acabou de sair. – Annabelle ouviu enquanto Georgie
transmitia a sua mensagem. Retomando a chamada, Georgie disse: – Ela quer
saber porque é que não podes fazer isso tu mesma?
– Porque é nela que ele está interessado, e ele está com o Nat no críquete,
por isso, se ele vier, o Nat poderá vir também.
Georgie passou a informação, voltando em seguida com a resposta:
– Ela diz que faz o que queres, mas só se te mantiveres afastada do Theo
logo à noite.
– Está combinado. Diz-lhe para falar com ele agora, e que me ligue de
volta quando tiver notícias. O meu táxi já chegou, por isso devo estar aí dentro
de menos de dez minutos. Mas não tenho dinheiro comigo, por isso vais ter de
me emprestar algum até o Robert voltar. A Demónia não está lá de muito bom
humor comigo de momento.

3 N. da T.: em inglês, um dos significados de buzz é rumor, boato.


Capítulo Nove
– Não sei o que fazer com ela – disse Sabrina a June, quando se
encontraram nessa noite. – Não é que ela me tenha propriamente agredido,
mas, pela forma como se tem portado ultimamente, já não ponho a hipótese de
lado.
June sorriu enquanto o empregado lhes voltava a encher os copos.
– Estou tão contente por ter tido só rapazes – disse, num comentário que
não tinha exatamente o condão de animar a amiga. – Toda a gente sabe que as
raparigas são piores.
Os lábios de Sabrina comprimiram-se.
– Diz isso à Brenda Loveday, cujo filho de dezasseis anos anda a dormir
na rua e diz que é melhor que viver lá em casa – comentou.
– Hmm, bem visto – concordou June. – Mas onde está a Annabelle agora?
– Não sei. Na tal festa, suponho. Não atende o telemóvel, ou pelo menos
não me atende a mim. Sinceramente, nunca me senti tão furiosa, ou tão
impotente. Ela faz sempre o que quer, fala comigo como se eu fosse uma
idiota, e parece ter desistido totalmente de tentar sequer ser simpática. Estou a
chegar a um ponto em que sinto que não gosto lá muito dela, o que é uma coisa
horrível de se dizer em relação à nossa própria filha.
– Acredita, não és a única – tranquilizou-a June, perguntando a si própria
se Sabrina realmente não saberia por que motivo Annabelle se tornara assim,
ou se estava simplesmente a ignorá-lo, não querendo aceitar que a
responsabilidade podia ser sua.
– Então, porque foi a discussão, desta vez? – perguntou.
Sabrina suspirou e pegou no seu copo de vinho.
– Começou quando lhe perguntei se ainda era virgem.
June ergueu as sobrancelhas.
– Sim, isso é capaz de provocar uma discussão – comentou. – E então, é ou
não é?
– Só Deus sabe. Aparentemente, não é assunto meu.
– O que significa que, provavelmente, não é?
Sabrina abanou a cabeça com desânimo.
– Já vi a maneira como ela olha para os rapazes, por vezes até para
homens adultos. Parece uma mulher com o dobro da idade, pela forma como
os consegue provocar. – A seguir, com uma nota de humor, acrescentou: – Nem
imagino a quem é que ela sai assim.
June riu.
– É provável que o facto de a própria mãe ser a maior sedutora do mundo
tenha tido algum efeito – brincou June.
Sabrina fez uma careta.
– Não é assim que me sinto nesta altura – suspirou. – Longe disso. Ela
arrasa-me o charme todo e, nos últimos tempos, tenho pensado tanto no Craig
que ando a ficar mesmo deprimida… – disse, baixando o olhar até ao copo ao
sentir a tristeza emergir de novo. – De qualquer maneira, se a Annabelle se
limitasse a flirtar com os rapazes, não havia problema, mas se ela vai até ao
fim, preciso de saber que, pelo menos, se está a proteger.
Tenho de pôr um ponto final nisso – pensava June, para quem Sabrina não
parecia realmente estar a envolver-se no problema. Estava simplesmente a
dizer o que achava que se devia dizer, e andava com a cabeça tão ocupada
com Craig e Alicia que não conseguia ver as coisas claramente.
– Mais do que uma gravidez, são as doenças que me preocupam –
prosseguiu Sabrina –, mas não consigo comunicar com ela.
Não, suponho que não consegues, pensou June com um suspiro interior.
– Bem, os adolescentes são assim – disse. – Como se dá o Robert com ela
ultimamente? Eles tinham uma ótima relação, talvez ele possa fazer alguma
coisa para a voltar a meter na linha.
Sabrina abanava a cabeça.
– Ele tenta, mas está fora tantas vezes, que os dois mal se veem e, quando
isso acontece, não quero destruir a frágil ligação que ainda têm pedindo-lhe
que entre a matar. Ele não é pai dela e provavelmente a Annabelle não
pensaria duas vezes antes de lhe esfregar isso na cara se ele lhe tentasse impor
regras rígidas.
Não que June sentisse empatia pelos sentimentos da amiga, mas sabia que
não devia exprimi-la prontamente de mais, ou correria o risco de Sabrina
deslizar para mais uma choradeira a propósito de Craig.
– É uma pena que não tenhas deixado o Robert adotá-la quando ele
mostrou vontade – disse.
Sabrina sorriu debilmente.
– Talvez – respondeu –, mas na altura ainda pensava, ainda tinha
esperanças de que o Craig e eu… – Fez um gesto com a mão, como que para
afugentar as palavras que se seguiam. – Se o Robert fosse legalmente pai da
Annabelle, isso teria tornado o divórcio mais difícil. E, se eu lhe pedisse para
a adotar agora, provavelmente ele iria pensar que era apenas porque a morte
de Craig conseguiu aquilo que mais nada conseguira: fazer-me, por fim,
aceitar que nunca ficaríamos juntos.
– Hmm – murmurou June, compreendendo o dilema e perguntando a si
mesma se, na verdade, Sabrina já aceitara a irreversibilidade da situação.
– Eu sei que é uma loucura – disse Sabrina numa voz trémula –, mas
continuo a imaginar que ele vai ligar, ou até mesmo entrar pela casa dentro.
Não consigo realmente acreditar que ele partiu para sempre.
– Muitas vezes é assim, quando perdemos alguém que amamos – disse
June suavemente.
– Estávamos sempre a falar da casa que íamos comprar em Itália –
continuou Sabrina –, algures perto daquela onde ficámos todos, quando
percebemos pela primeira vez o que sentíamos um pelo outro. Seria como
voltar ao início, era o que ele costumava dizer, e fazer tudo como
quiséssemos, sem sermos obrigados a esconder o que sentíamos por causa do
Robert e da Alicia.
June já ouvira tudo aquilo antes, pelo que se limitou a sorrir e a continuar
a escutar Sabrina como a amiga dedicada que era, sem conseguir dizer-lhe
quanto daquela história era verdade e quanto era pura fantasia. Sabia apenas
como toda a gente era capaz de conceber, na sua cabeça, uma imagem
idealizada das coisas, eliminando todas as imperfeições que teriam estragado
a recordação. Por fim, disse:
– Lamento que estejas tão em baixo esta noite. Gostava de poder dizer ou
fazer alguma coisa para te sentires melhor.
Sabrina suspirou tristemente.
– Eu estou bem – insistiu Sabrina. – Esta situação com a Annabelle é que
me pôs realmente em baixo, e ter a minha cunhada a viver na vizinhança torna
tudo dez vezes pior, mas, para dizer a verdade, hoje até recebi boas notícias.
A Jennifer Bingleigh ligou para nos convidar outra vez para a sua casa de Cap.
O Robert ficou encantado quando lhe disse. Está a precisar de umas férias.
Estamos ambos.
Lutando contra a inveja que sentia, June disse:
– Que sorte. A Annabelle também vai?
– É claro. Não a posso deixar aqui e, quem sabe, talvez passar algum
tempo juntas, longe dos amigos dela, naquele sítio tão bonito, nos ajude a
ultrapassar esta fase desagradável – disse, bebendo um gole de vinho. – E tu?
Já tens planos para as férias?
– Nada de tão glamoroso, porque, infelizmente, as mulheres solteiras como
eu não recebem convites para passar férias em mansões de luxo em Cap
d’Antibes, por isso, provavelmente vou até à Irlanda, outra vez, passar uma
semana com a minha irmã.
Sabrina abanou a cabeça com um ar de desespero.
– Temos mesmo de fazer alguma coisa para te arranjar um homem – disse
com determinação. – Não podes continuar assim, é inadmissível. Talvez
pudéssemos criar uma secção de anúncios para encontros no The Buzz. Assim
tinhas a oportunidade de ser a primeira a escolher de entre os candidatos.
June sorriu.
– Acho que vais descobrir que o Príncipe Perfeito e o Senhor Ideal não
precisam de publicar anúncios para encontrar par e, mesmo que publicassem,
não iam querer alguém da minha idade. Mas falando do The Buzz, parto do
princípio de que não houve reações ao teu artigo sobre o turismo em Holly
Wood.
Sabrina abanou a cabeça.
– Não dela, mas algumas pessoas vieram falar comigo, preocupadas com a
possibilidade de verem aparecer à porta de casa estranhos com câmaras de
vídeo e aqueles copos de café para levar. Há uma reunião da junta na terça que
vem. Se conseguir convencer os membros da assembleia a assinarem uma
petição contra a loja, podemos mandá-la para a câmara antes que tomem uma
decisão acerca de emissão da licença, porque de certeza que, por esta altura,
ela já pediu uma.
June preparava-se para responder quando uma voz ao seu lado disse:
– Sabrina? Desculpem, espero que não estejamos a interromper nada.
Sabrina ergueu os olhos, sentindo-se ainda mais deprimida quando viu
Clarissa Booth, que morava numa das casas maiores da urbanização nova, a
sorrir para ela.
– Que sorte encontrá-la aqui – disse Clarissa, enquanto o seu marido de
aspeto duvidoso acenava com a cabeça, olhando Sabrina de uma maneira que
a fez sentir vontade de tomar um banho.
– Vamos fazer uma reuniãozinha no sábado com um grupo de gente do mais
selecionado, se é que me entende, e íamos ficar contentíssimos se pudesse ir.
Sabrina olhou a mulher de modo tão gelado que o seu sorriso começou a
esmorecer.
– Receio que não esteja livre no próximo sábado – mentiu Sabrina. – Ou
em qualquer outro sábado, para dizer a verdade – acrescentou
expressivamente.
Clarissa recuou.
– Ah, estou a ver – disse, corando até às raízes do seu cabelo escuro
ondulado. – Desculpe tê-la incomodado – e, dando o braço ao marido,
arrastou-o rapidamente dali.
– Aquilo foi um bocado rude de mais – comentou June, vendo o par
afastar-se.
– Eles são swingers – sussurrou Sabrina. – Estavam a convidar-me para ir
até lá colocar as minhas chaves na taça e, muito possivelmente, passar a noite
com aquela nojenta amostra de homem com quem ela estava. Ugh – disse com
um estremecimento, sentindo de novo a pele percorrida por arrepios. – Mas
que grandessíssima lata! Como é que ela se atreve a pensar que estaria
interessada em ir às festazinhas dela?
– Ah, mas a questão é – disse June disse com um ar pensativo –, algum
deles está na junta de freguesia?
Os olhos de Sabrina arregalaram-se de horror e depois, pela primeira vez
naquela noite, começou a rir.
– Graças a Deus, não – disse e, chamando o empregado, pediu uma
segunda garrafa de vinho.

– Dá-me um bocado – gritou Annabelle, agarrando numa garrafa de cidra


que Georgie passava a Catrina.
– Não bebas tudo – protestou Catrina, quando Annabelle inclinou a garrafa
para beber.
– Caramba, isto é tão fantástico – disse Annabelle, excitada e arquejante. –
Nem acredito que estamos a fazer isto. Já chegaram mais raparigas?
Georgie espreitou por trás das cortinas. Embora, entre Theo e os amigos,
houvesse pelo menos quinze pessoas numa confusão de calções e chinelos à
volta da piscina, por enquanto não havia qualquer sinal de raparigas.
– Não achas que só nos convidou a nós, pois não? – perguntou Catrina
ansiosamente. – Porque só somos uma, duas, três, quatro… oito, e olha
quantos eles são.
– Pelas minhas contas, isso dá dois para cada uma – disse Melody,
gracejando. – Eu fico com o Theo hoje à noite – disse para Annabelle. –
Lembras-te?
– É melhor que o Simon Forsey apareça – avisou-a Annabelle. –
Acompanhado pelo Nat.
– Katie, despacha-te lá a fazer esse charro – pressionou Georgie. –
Estamos a morrer.
– Alguém sabe se o Theo arranjou o ecstasy? – perguntou Catrina com um
ar sério. – Precisamos dele agora. Alguém devia ir ali buscar os comprimidos.
– Não sei porque é que nos estamos a preocupar assim – disse Melody. –
Não é como se a gente não os conhecesse, ou eles nunca nos tenham visto o
peito. Por isso, vamos lá parar de nos escondermos aqui como um bando de
virgens, que já sabemos que nenhuma é, e vamo-nos portar como adultas.
– Ótimo, então vai tu primeiro – disse Georgie.
– Nem pensar – respondeu Melody, recuando.
– Bem, alguém tem de ser a primeira.
– Podemos sair todas juntas – disse Catrina numa vozinha aguda.
– Não, acho que a Annabelle deve ser a primeira – decidiu Melody.
Annabelle exibiu uma expressão surpreendida e algo insegura.
– Vá lá. Não estás com medo… – disse Melody.
– É claro que não – afirmou Georgie. – Anda lá, Annabelle.
– Sim, deves mesmo ser tu a primeira – concordou Catrina. – Ficas
fantástica com essa saia. Foi uma ideia tão fixe. Quem me dera ter pensado
nisso.
– Estás ótima com esses calções – assegurou-lhe Annabelle. – É o que
toda a gente está a usar, tirando a Georgie, com aquela sainha aos folhos toda
atrevida. Que tens por baixo disso, Georgie? – perguntou Annabelle
provocando-a, tentando puxar a saia para cima.
– Isso é assunto meu, e de mais alguém que queira descobrir – contrapôs
Georgie, afastando-a –, por isso guarda as mãozinhas para ti.
– Oh, meu Deus, adoro esta canção – disse Katie num gemido, quando se
começou a ouvir o tema Chasing Pavements, de Adele. – Andem lá, vamos
dançar. Annabelle, abre caminho.
– OK, é agora – anunciou Annabelle.
E, depois de as restantes raparigas se juntarem atrás dela como um séquito
dedicado, saiu para o terraço sob a luz do entardecer, com os seus jovens
seios nus de grandes mamilos escuros espreitando por entre o véu sedoso dos
seus cabelos longos. Parecia Cleópatra em pessoa apresentando-se a Marco
António; a Rainha de Sabá trazendo presentes a Salomão; Kate Moss a
desfilar, com o mundo inteiro a babar-se diante da sua magnificência.
Demorou apenas um instante para os rapazes se aperceberem de que o
contingente feminino chegara e, à medida que se viravam para observar o
sensacional espetáculo de oito raparigas em topless caminhando na sua
direção, começaram a assobiar e a aplaudir, dando palmadas nas costas uns
dos outros, como a felicitarem-se por terem tido uma ideia tão brilhante.
Adorando a atenção que recebia, Annabelle pavoneou-se na frente do grupo,
atirando o cabelo por cima do ombro de um dos lados, e depois do outro, para
revelar o peito por completo. Segundos depois, estava no meio da multidão,
vendo bebidas e comprimidos de ecstasy a serem-lhe oferecidos de todos os
lados, ao passo que algumas das raparigas saltaram para a piscina,
rapidamente seguidas por um punhado de rapazes, e outras davam gritinhos e
risadinhas enquanto faziam poses para as câmaras de Carl e Kennedy.
– E se eu desse um trato a esse relvado? – murmurou Theo ao ouvido de
Annabelle.
Dirigindo-lhe um olhar ardente, Annabelle disse:
– A saia não é para sair.
– Já vamos ver isso – respondeu ele com um sorriso e, aproximando-se
dela, mergulhou-lhe a língua na boca.
– A-hã – tossiu Melody atrás deles.
Annabelle virou-se e, sorrindo docemente, disse:
– Talvez mais tarde, Theo.
E, afastando-se, cedeu o lugar a Melody e foi procurar mais ecstasy.
Uma hora depois, à medida que o sol desaparecia por trás dos montes
distantes e as luzes do jardim se acendiam, Annabelle estava estendida numa
cadeira de rede suspensa, sentindo-se cheia de amor pelo mundo, pelos seus
amigos, aquela festa, a vida, até mesmo pela sua mãe. Tudo era tão belo,
maravilhoso e perfeito, que Annabelle tinha vontade de despejar quantidades
infindáveis de amor sobre toda a gente, para os fazer sentir tão felizes e
relaxados como ela estava. Tinha um sorriso beatífico e os olhos turvos e
sonhadores; queria ficar ali deitada para sempre, vestida apenas com a sua
saia de havaiana, com as hastes de palha abrindo-se em torno das suas coxas,
passando a mão ligeiramente sobre os seus seios nus – a não ser que alguém
fosse até ali fazê-lo por ela.
Carl estivera deitado a seu lado, mas levantara-se para ir buscar mais
bebidas há algum tempo e ainda não regressara. Annabelle conseguia ouvir
alguém a chapinhar na piscina e, mais perto de si, um casal enrolado em cima
da relva. A música era como luz que se derramava dentro dela, preenchendo-a
com sons que a faziam querer dançar como um anjo. Podia voar pelo jardim,
subir acima das árvores, ascender ao céu.
Virou a cabeça para o lado e viu Georgie, a sua melhor amiga no universo
inteiro, caminhando com um passo oscilante na sua direção. A saia de Georgie
desaparecera, só tinha agora vestida a parte de baixo de um biquíni, e trazia na
mão uma bebida aromatizada com álcool e um volumoso charro fumado até
meio.
– Ei – disse Georgie numa voz arrastada, rodando em torno dos pilares
que sustentavam a cadeira de rede e quase tropeçando. – Nem adivinhas quem
acabou de aparecer.
– Diz-me – sussurrou Annabelle, estendendo a mão para pegar na bebida.
– O Simon Forsey – anunciou Georgie. Teve um soluço enquanto passava a
bebida a Annabelle. – E adivinha quem está com ele?
–Oh, meu Deus – disse Annabelle numa voz pastosa. – Estás a falar a
sério? Onde está ele? Diz-lhe que tem de vir até aqui, porque eu amo-o.
Georgie levou o charro à boca, aspirando profundamente, e depois
estendeu o a Annabelle. Esta pô-lo entre os lábios, mas depois a sua mão
escorregou até ao chão, arrastando o charro consigo. Ajoelhando-se, Georgie
apanhou o, voltou a pôr-se de pé e começou a atravessar o relvado aos
ziguezagues na direção da horta. Annabelle continuou a pairar num plano
diferente, inspirando profundamente e gemendo de prazer ao expirar. Nat
estava ali, o belo e maravilhoso Nat, por quem sempre tinha sido apaixonada e
que queria amar, amar e amar e amar, e depois amar um pouco mais.
Do outro lado da piscina, onde estavam as bebidas, Nat e Simon
observavam, de cerveja na mão, a cena improvável que se desenrolava à sua
volta. A lua tornava tudo ainda mais surreal, como se fosse uma pintura de um
bacanal obsceno, que ocasionalmente ganhava vida. Era óbvio que toda a
gente estava pedrada, ou embriagada, ou ambos. Perto deles, um casal
beijava-se com indolência ao som de uma batida tecno, uma rapariga nua
boiava no meio da piscina, assemelhando-se a uma estrela-do-mar. Havia
outras pessoas deitadas em espreguiçadeiras ou sobre a relva.
– Ei – sussurrou melosamente uma Melody seminua, aproximando-se deles
–, isto é uma festa em topless. Não é suposto terem as t-shirts vestidas.
Simon sorriu e olhou-a nos olhos, ainda sem coragem de olhar para onde
queria. Era tão alto e atlético como Nat, mas tinha a pele muito mais clara e
não era tão bem-parecido.
– Penso que podemos remediar isso – respondeu e, pousando a cerveja,
puxou a t-shirt por cima da cabeça.
– Hmm – murmurou Melody num tom de aprovação. – Tu também – disse a
Nat.
– Estou bem assim – disse ele, mostrando a garrafa de cerveja como se a
rapariga lhe tivesse oferecido uma bebida.
Sem se deixar perturbar, Melody virou-se de novo para Simon.
– Sempre vieste – disse.
– Parece que sim – respondeu este, continuando a olhá-la nos olhos
enquanto bebia um gole da cerveja. – Tens um peito espantoso – disse.
Nat deu uma gargalhada repentina e desviou-se um pouco.
– Obrigada – disse Melody com um ar brincalhão e, pegando na mão de
Simon, começou a puxá-lo atrás de si. – Anda daí, vamo-nos conhecer um
pouco melhor – murmurou.
Olhando por cima do ombro, Simon encolheu os ombros e sorriu
mostrando os dentes como que para dizer:
– Que posso fazer?
Nat brindou-lhe com a cerveja, dizendo-lhe para se divertir.
Agora sozinho, continuou a beber e a olhar em volta. Parecia que todos
estavam aos pares, ou mesmo em grupos de três, e, uma vez que não tinha
realmente vontade de se envolver numa orgia, ficou onde estava. Assim que
terminasse a cerveja, iria embora, não porque fosse um puritano, pois, pela
parte que lhe tocava, cada um era livre de viver a vida como queria, mas
porque tinha de conduzir, e a última coisa que queria era ficar sem carta
quando acabara de a conseguir. A isto, juntava-se o facto de ter dito a Summer
que não iria àquela festa de maneira nenhuma, por isso, se ficasse apenas uns
minutos para ser sociável, poderia com toda a honestidade dizer-lhe que só
fora até ali para fazer companhia a Simon até ele se integrar.
Pensando melhor, Simon já estava bem integrado e, uma vez que não havia
ninguém com quem pudesse socializar, no sentido convencional, podia muito
bem ir-se embora. Assim, engolindo o resto da cerveja, estava prestes a
escapar-se quando viu uma rapariga balançando-se indolentemente para a
frente e para trás deitada numa rede, na extremidade da piscina. Até então,
partira do princípio de que Annabelle estava algures dentro de casa, enrolada
com um ou dois dos rapazes, mas, para sua surpresa, ela parecia estar sozinha.
Sem perceber inteiramente porque fazia aquilo quando poderia facilmente
ter-se ido embora sem falar com ela, pegou numa lata de Coca-Cola e
encaminhou-se na sua direção para a cumprimentar. Não queria pensar que o
seu motivo era apenas dar uma espreitadela aos seios dela, mas, se quisesse
ser honesto consigo mesmo, tinha de admitir que era uma parte. Annabelle
sempre fora extraordinariamente atraente e, agora que tinha aquela figura
incrível que nenhum homem com sangue nas veias podia ignorar, sentia-se tão
atraído por ela como antigamente, quando tinham usado os jogos de damas
como cobertura para as suas explorações infantis.
– Olá – disse Nat quando chegou junto dela.
Annabelle abriu os olhos pestanejando e, quando focou o olhar e viu Nat,
soltou um suspiro de puro prazer.
– Olá – murmurou também. – Olha quem cá está. Onde está a cenoura?
– O nome dela é Summer – replicou Nat. – Está em Itália.
– Ah, sim. – Os lábios de Annabelle curvaram-se num delicioso sorriso
satisfeito e inspirou longamente, fechando os olhos. – Ótimo – sussurrou com
um suspiro.
Nat baixou o olhar para o seu peito e sentiu uma vaga de luxúria contrair-
lhe as virilhas. Os mamilos dela eram dois picos escuros e completamente
eretos, que coroavam duas elevações firmes cobertas por uma pele
perfeitamente bronzeada. Sabia que, se se inclinasse e lhe tocasse, Annabelle
não faria nada para o impedir. Contudo, por mais irresistível que ela lhe
parecesse, Nat obrigou-se a desviar o olhar.
– Sabia que virias – disse Annabelle suavemente.
– A sério? – A sua voz soava demasiado áspera naquele cenário
soporífico. – É engraçado, porque eu não sabia.
Annabelle sorriu de modo sonhador.
– Amo-te – suspirou, erguendo as mãos por trás da cabeça.
Nat bebeu um gole da Coca-Cola e ouviu-se a si mesmo dizer:
– Mas então, porque estás sozinha?
Abrindo as mãos, Annabelle disse:
– Quem sabe? De qualquer maneira, agora não estou, porque tu estás aqui,
e eu estou tão feliz que era capaz de me ir embora a flutuar por aí fora, mas se
fosse, tu ficarias aqui na mesma, e eu amo-te e quero ficar contigo.
– O que é que tomaste? – perguntou Nat, sentindo-se ridiculamente
quadrado.
Annabelle sorriu e deu uma risadinha.
– Porque não te vens sentar aqui? Há muito espaço.
– Estou bem assim – disse Nat, dando um passo atrás quando Annabelle
estendeu um braço para o agarrar.
Espreguiçando-se langorosamente, Annabelle arqueou as costas, erguendo
os seus seios provocadoramente na direção dele.
– Achas que estão maiores? – perguntou. – Podes tocar-lhes, se quiseres.
Afastando-se, Nat descalçou os sapatos e foi sentar-se na borda da
piscina, mergulhando os pés na água. Apesar de ter uma grande ereção, não ia
permitir-se fazer aquilo. É claro que podia sentir vontade, mas por norma não
ia para a cama com raparigas que se ofereciam como Annabelle fazia e, além
disso, amava Summer.
– Não me digas que és tímido – provocou Annabelle. – Antes não eras
assim.
– Isso foi há muito tempo.
– Mas não te esqueceste, pois não? Posso ver que não.
Sem se incomodar a responder, Nat bebeu outro gole da Coca-Cola e
ergueu um pé da água, dobrando a perna para poder apoiar o cotovelo sobre o
joelho.
– Pareces-te com o teu pai – disse Annabelle. – Mas toda a gente te deve
dizer isso.
Nat continuou a não responder. Não havia nada que pudesse dizer, e
garantidamente não se ia envolver numa conversa sobre o pai com Annabelle,
sobretudo ali.
– Deve ter sido horrível para ti…
– Vamos mudar de assunto – interrompeu-a Nat.
Annabelle desviou o olhar para o lado e, depois, voltou a olhar para ele.
– Desculpa, não te queria perturbar.
– Não perturbaste.
Passaram-se alguns minutos. Nat apercebeu-se de uma rapariga que
vagueava por entre as árvores vizinhas como uma sílfide, e de um murmúrio
baixo de vozes, agora que a música se calara. Theo, o anfitrião, emergiu da
piscina na extremidade oposta e saltitou nu pelo terraço até à casa. Um ou dois
minutos depois, começou a circular pelo jardim o som obsessivo dos Take
That, tão efémero e inebriante como o fumo perfumado.
– A tua mãe ainda está muito abalada por causa da morte dele, não é? –
disse Annabelle.
Nat ficou tenso. Porque não esquecia ela o assunto?
– A minha também.
Nat franziu a testa e olhou ligeiramente para trás, na sua direção. Que
diabos tinha a mãe dela a ver com aquilo? Não se poderia importar menos
com o que Sabrina sentia sobre a morte do seu pai – ou sobre o que quer que
fosse, já agora. Porque se importaria, quando a mulher era uma cabra de
primeira que odiava a sua mãe de morte? Se aquela era a forma desajeitada de
Annabelle lhe dizer como o pai fora especial para toda gente, teria feito
melhor em deixar a mãe de fora. Pensando bem, já não tinha mais nada a fazer
ali, decidiu Nat, e pôs-se de pé. Não fazia sentido nenhum continuar na festa
quando não tinha qualquer intenção de se pedrar, nem qualquer interesse em
iniciar e muito menos em alimentar uma conversa fútil com uma Annabelle
drogada.
– Até logo – disse brevemente e, pegando nos sapatos, caminhou para o
bar, enfiou a lata num saco de plástico e saiu por um portão lateral. Simon
facilmente arranjaria boleia para casa se precisasse, mas o mais provável era
que tal só acontecesse já de manhã.

Quando Nat parou em frente da Coach House eram quase duas da


madrugada, pelo que, ao ver as luzes ainda acesas na sala de estar, sentiu o
corpo inteiro estremecer de medo. O seu pensamento imediato foi que
acontecera algo a Darcie e, saltando do carro, correu pelo caminho de acesso
e entrou pela porta da frente.
– Mãe! – chamou, abrindo a porta da sala de estar. Estava prestes a gritar
de novo pela mãe, quando a viu enroscada numa das poltronas, dormindo
profundamente.
O alívio que sentiu foi tão grande que o entonteceu e, abrindo caminho por
entre as caixas que a mãe estivera obviamente a desempacotar, estava prestes
a acordá-la quando viu o álbum de casamento aberto no seu colo. Ajoelhou-se
ao lado dela e olhou para a fotografia que Alicia estivera a ver antes de
adormecer. Apercebeu-se de que era uma das preferidas da mãe, uma foto em
que Alicia tinha um ar radiante, vestida com o seu lindo vestido reluzente, com
o pai de pé ao lado, alto e impressionante na sua casaca em cinzento-escuro e
gravata cor de limão, olhando para a mãe com o seu ar tipicamente sarcástico
enquanto esta ria ruidosamente de algo que ele acabara de dizer. Nat não se
lembrava agora do que era, mas o pai contara-lhe uma vez e fizera-o rir muito.
Sentiu um nó na garganta ao pensar na mãe ali sozinha, revisitando as suas
memórias sem ter ninguém com quem as partilhar. A mãe amava o pai tão
profundamente que a sua morte devia ter deixado uma lacuna terrível na vida
dela. Eles tinham sido tão felizes juntos, sempre a rirem, a tocarem-se, a
partilharem pequenas coisas dos seus dias, principalmente sobre ele e Darcie,
mas também sobre muitas outras coisas, como os casos em que o pai estava a
trabalhar, ou as novas ideias que a mãe estava a desenvolver na sua atividade
artística. Arranjavam sempre tempo para os ouvir – a ele e à irmã e a todos os
seus disparates infantis, fazendo-os sentirem-se as pessoas mais importantes
do mundo, mesmo quando ainda eram muito novos.
Também houvera tempos sombrios, noites em que tinham discutido muito, e
ele ouvira a mãe chorar e gritar, mas sempre escondera a cabeça debaixo dos
cobertores, sem querer ouvir. Nessa altura, já tinha idade suficiente para saber
que todos os casais discutem, mas odiava ouvir os pais a levantarem a voz um
para o outro, de modo que se esforçava deliberadamente por ignorar o que se
passava.
Perguntava agora a si próprio o que teria acontecido para tornar a mãe tão
infeliz antes de o pai morrer. Supunha que poderia tentar adivinhar, se
quisesse, mas preferia não o fazer. Ou podia perguntar à mãe, mas também não
queria fazer isso. Porém, houve uma noite em que soube que algo tinha
transtornado o pai. Uma noite que jamais esqueceria.

– Nathan, és capaz de te vir sentar à mesa, por favor? – disse a mãe


bruscamente, irritada. – O jantar está pronto e podes mandar essa mensagem
depois.
– Estou quase a acabar – contrapôs Nat, prosseguindo com o que estava a
fazer.
– Onde está o pai? – disse Darcie, aparecendo de rompante na cozinha. –
Estava aqui quando cheguei a casa.
– Foi correr – disse Alicia. – Volta daqui a nada. Agora senta-te na mesa tu
também, por favor. Nathan, a ti não te volto a dizer. E porque tens essa camisa
vestida? Deverias guardá-la para a minha exposição na sexta…
– Tenho um encontro, lembras-te? – protestou Nat. – Ela finalmente
concordou em sair comigo.
– Quem? – perguntou Darcie.
– Quem haveria de ser? A Summer Corby.
– É um nome bonito – disse Darcie. – Summer. Muito melhor que o meu.
Mas porque tinham de me chamar Darcie? – perguntou à mãe.
– Foi o teu pai que escolheu, e é um lindo nome. OK, Nat, passa-me o
prato. Queres muito ou pouco molho?
– Muito, se for carbonara… Oh, pelo amor de Deus! – exclamou,
erguendo-se de um salto quando Alicia deitou uma colher de molho de tomate
sobre a sua massa e lhe salpicou a camisa. – Olha o que fizeste, sua estúpida.
Que se passa contigo? Não posso usar isto…
– Nathan! – gritou Craig.
Nathan voltou-se, horrorizado ao ver o pai de pé na ombreira da porta a
olhar para ele de forma ameaçadora.
– Mas olha o que ela…
– Vai para a sala agora – rosnou Craig, com uma expressão de autêntica
fúria nos olhos negros.
Lívido, Nat saiu da mesa e dirigiu-se ao átrio, desviando-se do pai ao
passar. Craig cheirava a suor e ao ar frio lá de fora e exalava um ligeiro odor
a álcool. Depois de fechar a porta da sala de estar, Craig puxou a toalha de
trás do pescoço e pousou-a com força no braço do sofá.
– Nunca mais te quero ouvir falar assim com a tua mãe, estás-me a
perceber? – disse Craig aos berros.
De cabeça baixa, Nat acenou afirmativamente.
– Responde-me.
– Sim, percebo – disse.
– Senta-te aqui – disse Craig, indicando o sofá.
Sabendo que não devia fazer zangar o pai quando este estava com aquele
tipo de humor, Nat acomodou-se nas sumptuosas almofadas em pele de cor
creme.
– A tua mãe é a pessoa mais importante da tua vida – disse Craig num tom
duro. – Espero que compreendas isso.
– Sim, é claro – mastigou Nat.
– Ela adora-te, e eu sei que tu também a amas, mas o amor nem sempre
chega, filho. Tem de haver respeito, e aquilo que eu acabei de ouvir não
mostra respeito nenhum. É isso que pensas da tua mãe, que ela não te merece
respeito nenhum?
– Não, é claro que não.
– Alguma vez me ouviste falar com ela assim?
– Não, nunca.
– Então, porque falaste tu?
– Não sei. Quer dizer, estava zangado porque… Olha para a minha camisa.
– Não me interessa a tua maldita camisa, o problema é a tua atitude. Hoje à
noite tens um encontro com uma rapariga de quem gostas, não é? Mas de que te
adianta, se não a souberes tratar bem?
– Pai, desculpa. Não disse aquilo a sério…
– Depois de dizeres, já não podes voltar atrás. Que te sirva de lição para
aprenderes a pensar antes de falares
– Sim, pai.
– Antes de mais nada, vais pedir desculpa à tua mãe.
– É claro.
– E vais lavar tu a camisa como castigo.
Nat acenou afirmativamente, aliviado por ver que se estava a escapar com
uma punição tão leve. A seguir, o pai desferiu o golpe fatal.
– Agora, vais ligar à tua nova namorada e dizer-lhe que pedes muita
desculpa, mas esta noite afinal não vais poder sair. Depois, vais para o teu
quarto e quero que escrevas um texto sobre o respeito.
Nat olhava-o fixamente, com uma expressão horrorizada de protesto.
– Pai, não, por favor… Juro que não quis ser malcriado. Eu peço
desculpas à mãe, faço tudo o que quiseres, mas, por favor, não me impeças de
sair esta noite.
Craig mostrou-se inflexível.
– Um dia, quando fores advogado – disse – e tiveres de lidar quase todos
os dias com homens que agridem verbal e fisicamente as mulheres, as
namoradas, as mães, vais-te lembrar deste dia e vais perceber que aquele
comportamento monstruoso começa no seio da família. São quase sempre
cópias exatas do pai deles, e não é esse tipo de homem que eu sou, Nat.
Desprezo os abusadores e não vou tolerar que te comportes assim, nem de
longe. Respeito a tua mãe. Amo-a mais do que sou capaz de dizer. E é assim
que quero que sejas com as raparigas que conheceres, sempre respeitador e,
um dia, quando conheceres a rapariga ideal, leal e afetuoso também. Parecem-
te bons conselhos?
– Sim – assentiu Nat.
– É assim que vais ser? Alguém respeitoso, afetuoso e leal?
– Sim – prometeu Nat.
– Craig, já chega – disse Alicia, entrando na sala. – O Nat está
arrependido do que fez e tu não devias estar a descarregar as tuas frustrações
nele.

***

Apercebendo-se de que a mãe tinha acordado e o observava, Nat olhou


para ela e sorriu.
– Em que estás a pensar? – murmurou Alicia, tocando-lhe no rosto.
Nat fez uma careta e desviou os olhos.
– Para dizer a verdade, pensava na altura em que o pai me deu um sermão
por te faltar ao respeito. – Lembras-te de como ficou furioso?
– Sim, lembro – disse Alicia, sentando-se mais direita. – Ele andava a
passar um mau bocado.
O comentário despertou o interesse de Nat.
– Que queres dizer? – perguntou com cuidado.
Alicia passou as mãos pelo rosto e reprimiu um bocejo. Não ia dizer ao
filho que, naquela noite, o pai estava zangado por se sentir culpado e por
causa da raiva que sentia por si próprio por a trair, mas podia contar-lhe o
resto.

Depois de mandar Nat para a cozinha, Alicia fechou a porta da sala e


disse:
– São bons ensinamentos, Craig, porque de facto ele deve respeitar as
mulheres, mas ambos sabemos que a tua explosão foi mais motivada pelos teus
próprios sentimentos do que pelo que o Nat disse.
Craig nem sequer tentou negar.
– Lamento – disse, passando as mãos pelo cabelo. – Sei que a minha
reação foi excessiva, mas isto de não sermos tão próximos como dantes está a
dar cabo de mim. Quem me dera poder fazer o tempo voltar para trás, ou
fazer-te acreditar que não tens nada com que te preocupar quando chego tarde,
ou vou trabalhar para fora, ou mesmo quando atendo um telefonema. Tu és tudo
para mim…
Craig esfregou os olhos com a mão fechada e, para alarme de Alicia, esta
viu que o marido chorava.
– Desculpa – disse Craig num soluço, quando Alicia se aproximou para o
reconfortar. – Não é só o que se passa connosco… Hoje recebi uma notícia…
– Os seus olhos fecharam-se ao recordar a terrível novidade. – Lembras-te do
caso de fogo posto em Bristol? – perguntou.
Alicia franziu a testa
– Isso foi há dois meses – respondeu. – O processo não foi anulado?
Craig acenou afirmativamente.
– Consegui que anulassem as acusações devido a um pormenor técnico. O
agente que fez a detenção não seguiu os devidos procedimentos… – Deteve-se
para respirar. – O canalha do incendiário atacou de novo – disse. – Uma
jovem mãe perdeu os dois filhos num incêndio ontem à noite. – Craig mal
pronunciou as últimas palavras, com a voz sufocada pelo remorso, e enterrou
o rosto no ombro de Alicia, que o envolveu num abraço apertado. – Mas por
que raio aquele maldito polícia não fez o trabalho dele como devia ser? –
disse numa voz rouca. – Tudo o que tinha de fazer era garantir que o preso era
devidamente informado dos seus direitos… Mas é a mim que culpo. Sabia que
era provável que ele voltasse a cometer um crime, mas agarrei-me à lei e fiz
dela uma paródia naquele tribunal. O meu triunfo patético custou àquela
mulher inocente o que de mais importante há no mundo. Meu Deus, que se
passa comigo, Alicia? Porque vejo as coisas de forma tão errada?

Quando acabou de contar a história, Alicia olhou Nat nos olhos e partiu-
lhe o coração ver como ficara abalado pela situação do pai. A consciência de
Nat tinha o mesmo nível de integridade – demasiado grande, diriam alguns,
para um advogado, mas eram cínicos que não tinham tido o privilégio de
conhecer Craig Carlyle.
– Então, era por isso que ele estava tão chateado comigo naquela noite –
disse Nat. – Ele estava a lidar com aquilo tudo?
E com muito mais, pensava Alicia.
– Mas a culpa não foi dele, pois não? – disse Nat.
Alicia abanou a cabeça
– A culpa era toda do incendiário, mas o teu pai sentiu-se responsável,
apesar de se ter limitado a fazer o seu trabalho.
Nat pensou uns instantes.
– Esse tipo agora está na cadeia? – perguntou.
– Sim. Apanhou prisão perpétua, mas o pai não teve nada a ver com o
julgamento. Limitou-se a dar todo o seu dinheiro à família das vítimas, e é
por isso que agora estamos aqui em apuros financeiros, pensou Alicia.
Contudo, pelo menos tinha os seus filhos, e dinheiro nenhum poderia
compensar a sua perda.
Nat acenou com a cabeça. Nos seus olhos, começou a brilhar uma pequena
luz, quando disse:
– Convenceste-o a mudar de ideias e a deixar-me ir ter com a Summer,
lembras-te?
Alicia sorriu.
– Mas tiveste na mesma de escrever aquele texto.
Nat revirou os olhos.
– Nem me fales. Demorei uma semana a redigir aquelas duas mil palavras
sobre o respeito. E ainda tive de lavar a camisa.
Alicia riu. Nat olhou para as mãos, que repousavam entre as da mãe.
– Ele era uma pessoa mesmo especial, não era? – disse baixinho.
Alicia pensou na traição, mas a seguir lembrou-se do seu olhar terno, do
orgulho e da alegria que sentia por causa dos filhos, e da sua integridade que
fora nele muito mais visível do que as fraquezas.
– Sim – sussurrou, ainda não habituada a falar do marido no passado –,
sim, era.
Capítulo Dez
– Aparentemente, as coisas mudaram desde o nosso tempo – comentou
Rachel secamente ao almoço, na terça-feira seguinte. – Isso parece-me mais
uma orgia do que uma festa. Aposto que a Jemima e o Bob McAllister não
sabiam nada do assunto.
– Tenho a certeza de que tens razão – concordou Alicia, partindo um
pedaço de pão. – Disseram-me que eles foram passar um mês à Grécia.
– Que sorte. Mas então, sabes se o Nat participou?
Alicia abanou a cabeça enquanto comia.
– Acho que se tivesse participado não me diria, mas, segundo ele, limitou-
se a beber uma cerveja e a conversar uns minutos com a Annabelle antes de se
vir embora. Parece que ela estava completamente pedrada.
– Mas porque é que isso não me surpreende?
– Segundo o Simon, aquele grupinho é conhecido por se meter neste tipo
de coisas, por isso, definitivamente, não quero a Annabelle nem perto da
Darcie. Penso que o Robert compreenderá, porque ele próprio já sugeriu que
poderia não ser boa ideia.
– Vais contar-lhe da festa?
Alicia suspirou.
– Não sei. Sinto que devia, mas o Nat não quer. Diz que toda a gente vai
saber que foi ele quem contou, e isso não será grande começo para ele aqui,
embora não esteja particularmente interessado em fazer parte daquele grupo.
– Hmm, é uma escolha difícil – murmurou Rachel, sorrindo para a
empregada que vinha trazer os seus pratos de gambas frescas.
Estavam na esplanada do Traveller’s, debaixo de um grande guarda-sol
azul, que protegia por completo a sua mesa do sol tórrido e espreitava para a
tranquila rua principal, do outro lado do muro.
– Estou contente por teres aparecido – disse Alicia, sacudindo o
guardanapo no ar para o desdobrar. – Estava a precisar de uma pausa – e, para
dizer a verdade, tenho uma novidade.
– Ah sim? – disse Rachel, toda ouvidos.
Alicia fez uma careta, enquanto sentia o coração apertar-se.
– Hoje de manhã recebi uma chamada do meu procurador em Londres. A
venda da casa está resolvida. Por isso – prosseguiu, erguendo o seu copo de
vinho –, vamos brindar à minha nova vida?
Deixando transparecer a preocupação que sentia enquanto estendia a mão
para a sua Coca-Cola, Rachel disse:
– Como estás a reagir?
Alicia pensou nas suas bonitas mobílias, nos quadros e nos tapetes que
Craig e ela tinham escolhido juntos, nas mesas, nos sofás, nas camas, nas
lindíssimas casas de banho e na cozinha de vanguarda, e sentiu que, nalgum
lugar profundo dentro dela, algo se despedaçava.
– Mal – admitiu –, mas grata por estar longe. Seria muito mais difícil se
ainda estivesse em Londres.
– É claro. Fizeste bem em partir antes de o acordo ser finalizado. Assim,
já te despediste de tudo. Como reagiu o Nat?
– Ainda não lhe disse. Sabe que o fecho do negócio está iminente, mas não
quero dar muita importância ao assunto. Se perguntar alguma coisa, digo-lhe,
caso contrário vou deixá-lo partir do princípio que se concretizou.
– Onde está ele hoje?
– Foi outra vez ao críquete. Não o posso obrigar a passar as férias inteiras
encafuado na loja, por isso estou eu a pintar o teto, como poderás notar pelo
meu cabelo.
Rachel sorriu diante das erráticas manchinhas brancas que salpicavam a
franja e o rabo de cavalo de Alicia.
– Continuando a falar da loja e da tua nova vida – disse, descascando uma
gamba –, o Dave tem feito umas pesquisas acerca das tuas licenças, etc., e
imprimiu o que encontrou até agora… – Limpando as mãos a um guardanapo
de papel, procurou dentro da sua mala e retirou um pequeno envelope. –
Basicamente, se queres fazer tudo dentro da legalidade, e não deves fazer as
coisas de outra forma, receio que não tenhas hipótese de abrir até daqui a,
pelo menos, seis semanas. E mesmo assim ainda podes ter de esperar até
poderes realmente trabalhar no teu estúdio.
À medida que o desespero se instalava, Alicia perdeu o apetite.
– Porque é que tem de ser sempre tudo difícil? – murmurou, frustrada.
– Pelo que pude perceber – continuou Rachel –, tens de começar por
submeter um pedido para alteração da finalidade do local, para o poderes
registar como uma loja de arte e artesanato. O pedido tem uma taxa de
trezentas e trinta e cinco libras, que tens de enviar juntamente com as
informações sobre quantos metros quadrados serão destinados ao espaço de
vendas e quantos ao ateliê. Tens de fazer uma lista do tipo de equipamento que
vais usar para fazer as esculturas, que é onde se podem verificar mais atrasos,
porque, como sabemos, fazes muito trabalho de soldadura, e para conseguir
autorização para isso tens de entrar em contacto com os organismos ligados à
proteção ambiental e à inspeção técnica de edifícios. O mais certo é que
precises também do OK dos bombeiros. Está tudo aí, e a maior parte das
coisas é uma ridícula perda de tempo, que é o normal ao lidar com as
autoridades a nível local.
O rosto de Alicia empalidecia progressivamente com a tensão.
– Contudo, a boa notícia é que – continuou Rachel num tom animado – o
Dave tem um contacto na secção de planeamento urbano, que vai tentar
acelerar as coisas, e o Dave logo vai passar por lá com os miúdos para te
ajudar a medir o espaço.
Alicia olhou para Rachel, mal ouvindo o que esta dizia.
– Como é que eu fui tão estúpida? – disse. – Porque não me apercebi de
que seria necessário passar por estes procedimentos todos? Sou como uma
imbecil cabeça de vento que pensa que pode fazer qualquer coisa só porque
lhe parece boa ideia.
– Nunca fizeste nada disto, como poderias saber? – disse Rachel, num tom
protetor. – Além disso, não se pode esperar que alguém pense em tudo quando
está a passar pelos problemas que tu enfrentas.
Alicia continuava a parecer irritada consigo mesma.
– Vai tudo correr bem, garanto-te – disse Rachel com determinação. – Só
vai demorar um bocadinho mais do que tinhas pensado.
– Mas o tempo não está a jogar a meu favor. Tenho de começar a ganhar
dinheiro muito em breve, ou só Deus sabe o que faremos…
– OK, o Dave e eu falámos sobre isso… Já sei que provavelmente vais
dizer que não, mas ouve-me só…
– Não vou aceitar que me emprestes dinheiro. É a maneira mais rápida de
perder amigos.
– Não te vou propor emprestar-te dinheiro. Vou propor-te comprar uma
parte do teu negócio. Posso ser uma sócia não ativa, ou acionista, se quiseres,
e, quando começares a ter lucro, fico com uma percentagem. Entretanto, tens
algum capital para te aguentares.
Alicia, contudo, abanava a cabeça.
– É uma ótima oferta, mas sei como o mercado imobiliário vai mal
ultimamente, por isso, com o Dave a ganhar menos dinheiro…
– Ele tem seis propriedades alugadas nos arredores de Frome – lembrou
Rachel. – Na verdade, as casas para alugar estão a ter mais procura do que
nunca, por isso estamos muito longe de ter de viver apenas do meu salário.
– Fico feliz por saber, mas, de qualquer maneira, não posso aceitar o teu
dinheiro.
– Que vais fazer, então? OK, há os bancos, mas atualmente não há
garantias de que te emprestem o dinheiro de que precisas, e ainda tens de
pensar nos juros que vais pagar e no tempo que vão demorar a processar o teu
pedido de empréstimo. Tu própria o disseste, tempo é algo que não tens.
– Hei de arranjar alguma solução – disse Alicia. – Arranjo um emprego
qualquer. Precisas de uma rececionista? Ou talvez a Maggie precise de ajuda
aqui, no pub.
– Devias começar a trabalhar para aumentar o stock da loja – lembrou
Rachel. – De momento, só tens seis esculturas e, mesmo com a melhor vontade
do mundo, sabes que não se vendem propriamente como caramelos.
– Baixo os preços.
– Mesmo que faças isso, continuas a precisar de ter mais artigos para
vender, e para isso precisas de ocupar o teu tempo a criar e a procurar outros
artistas para promover – disse Rachel, erguendo o olhar para alguém atrás de
Alicia que lhe chamou a atenção.
– Quem é? – perguntou Alicia, olhando por cima do ombro.
– Não tenho a certeza – disse Rachel, sorrindo e acenando educadamente
na direção de um homem de boa aparência que acabara de entrar na esplanada.
– Sei que já o vi… Oh, é isso, ele levou o cão à clínica na semana
passada, tinha a pata ferida. Provavelmente, não me consegue identificar fora
dali. De todas as maneiras – continuou Rachel, retomando a conversa –, há
mais uma alternativa.
Alicia engoliu em seco.
– Se estás a falar do Robert, ele já se ofereceu para me ajudar e eu também
já recusei.
– Mas porquê?
– Porque não quero pensar em como aquela pega reagiria se descobrisse
que ele me tinha emprestado dinheiro, em especial para uma loja que ela está a
tentar impedir que eu abra. Não que me importasse de a fazer subir pelas
paredes, tu percebes, mas não quero transformar a vida do meu irmão num
completo inferno.
Compreendendo o ponto de vista da amiga, Rachel pegou no copo e bebeu
um gole.
– Então, sou eu ou a Santa Casa da Misericórdia – disse.
Alicia continuava a não dar mostras de ceder.
– Já te disse, hei de pensar em qualquer coisa – disse. – Entretanto, ainda
tenho algum dinheiro no banco, e um plafond de cinco mil libras que o banco
ainda não viu razões para cancelar, graças a Deus. Deve dar para nos manter
durante algum tempo e para comprar as coisas que o Nat e a Darcie precisam
para a escola. Até pode dar para comprar alguns materiais para começar a
trabalhar em joalharia, porque não vou poder soldar no antigo quarto de jogos.
– Alicia suspirou pesadamente, abanou a cabeça e olhou para a sua bebida. –
Sabes, estava mesmo a pensar que ia conseguir cumprir o meu prazo de
abertura no início de agosto – disse, rindo de maneira amarga. – Sei que não é
a Sabrina que faz as regras, mas não posso deixar de a culpar por isto.
– É verdade que ela parece ter ganhado o primeiro round – admitiu Rachel
–, mas isto ainda só está a começar e eu conheço-te, Alicia Carlyle. Vai ser
preciso mais do que umas burocracias e uma cabra com mais veneno que
miolos para te derrubar.
Alicia ergueu os olhos.
– Mas não vai ser nada agradável – disse.
– Não, porque esse adjetivo nunca se usa quando a tua cunhada está
envolvida.
Alicia exibiu um ténue sorriso.
– Na verdade, vi-a a sair da loja da aldeia ontem de manhã. Caminhou
para Holly Way como se aquilo fosse um desfile triunfal de uma pessoa só.
Era tão óbvio que esperava que eu estivesse a ver que até podia ter sido
cómico, se não fosse tão patético.
– Vais ter de estar face a face com ela, mais cedo ou mais tarde – disse
Rachel. – Já pensaste em como vais lidar com a situação?
– Acho que depende de onde ocorrer e em que circunstâncias. Mas tenho
de admitir que, quanto mais tempo passa, mais ansiosa fico. Só espero que a
situação não descambe numa discussão feia ou pior, porque se isso
acontecer… – Inspirou e abanou a cabeça devagar. – Só rezo a Deus que não
aconteça – concluiu Alicia, sem querer alongar-se mais.
Depois de acompanhar Rachel ao carro, estacionado em frente à igreja,
Alicia caminhou de volta pela rua principal com o espírito ensombrado pelo
pequeno envelope castanho que levava consigo. Independentemente do quanto
o contacto de Dave pudesse acelerar a sua candidatura, o senso comum dizia-
lhe que tinha de desistir por completo da ideia de abrir a loja em agosto,
porque simplesmente tal não ia acontecer. Em vez disso, teria de gastar o seu
tempo a andar para trás e para diante entre os diversos gabinetes da
administração pública local, para lhes levar o último documento inútil que se
tinham esquecido de pedir da última vez que lá fora, adaptando a sua
candidatura de modo a satisfazer alguém que, provavelmente, não percebia
nada do seu trabalho; ou gastá-lo-ia a esperar horas e horas à porta do
santuário privado de algum funcionário do planeamento, enquanto ele ou ela se
deleitavam no pouco poder que tinham sobre os meros mortais.
Com estes pensamentos sombrios às voltas na cabeça, intensificados por
aquilo que tinha vontade de fazer a Sabrina, Alicia demorou algum tempo a
dar-se conta de que havia um homem diante da loja, a olhar pela janela. A
irritação agudizou a dor que sentia na cabeça. Seria possível que algum
funcionário da câmara já se tivesse lembrado de passar por lá, sem qualquer
marcação? Seria mesmo típico de Sabrina, com todos os seus contactos,
conseguir convencê-los a fazer aquilo, e, não estando com disposição para
lidar com o estranho educadamente, Alicia sentiu-se seriamente tentada a dar
meia-volta e a voltar para casa. No entanto, mais de perto, os calções caqui e
o polo branco de aspeto caro combinados com o cabelo prateado, que lhe
dava um ar definitivamente distinto, faziam o desconhecido destoar da imagem
que tinha dos abelhudos dos serviços municipais.
Protegendo os olhos do sol com a mão enquanto se aproximava, Alicia
disse:
– Posso ajudar?
Quando o homem se voltou para ela, Alicia reparou no notável contraste
entre as suas sobrancelhas negras e o cabelo de tom muito mais claro. A pele
do seu rosto estava bronzeada, o que fez os seus dentes parecerem mais
brancos quando sorriu de uma forma que transformou a sua expressão séria.
– Olá – disse o homem. – Estou à procura da Alicia Carlyle. Disseram-me
que a poderia encontrar aqui, mas parece que isto está fechado.
Apercebendo-se de súbito de que aquele era o homem que Rachel
reconhecera no pub, e experimentando uma sensação de estranheza, como se
também ela o conhecesse de algum lado, Alicia disse:
– Sou eu. Por favor, não me diga que tínhamos algo marcado e me esqueci.
O desconhecido sorriu de uma forma que lhe adensou as rugas em torno
dos olhos azuis-escuros, e Alicia perguntou a si própria se não estaria muito
mais próximo dos quarenta que dos cinquenta que inicialmente lhe atribuíra.
– Chamo-me Cameron Mitchell – disse, estendendo-lhe a mão.
Alicia engoliu em seco, esforçando-se por não parecer demasiado
desajeitada quando estendeu também a mão para o cumprimentar. Agora já não
tinha dificuldades em reconhecê-lo, pois qualquer pessoa do seu círculo sabia
exatamente quem ele era. Na sua qualidade de crítico e negociante de arte
altamente respeitado, Cameron Mitchell lançara vários talentos de renome.
Também deitara por terra a ascensão de outros artistas, sendo por isso olhado
com algum pavor por desconhecidos como ela, que ainda aspiravam a ser
descobertos. Mas que diabos fazia ele ali? Que garrafa esfregara ela para que
aquela espécie de génio se apresentasse na aldeia, no preciso dia em que, em
Londres, os seus sonhos eram vendidos por um agente imobiliário, ao passo
que no Somerset os via asfixiados pelos regulamentos municipais?
– Parece que temos uma amiga comum, a Antonia Bassingham – explicou o
homem. – A Antonia pediu-me para lhe vir dizer olá da parte dela, se
conseguisse dar consigo.
Alicia quase deixou cair o queixo. Perdera a conta das vezes em que
praticamente suplicara a Antonia que a apresentasse àquele homem, mas
Antonia, uma das anfitriãs mais famosas de Londres reconhecida pela sua
destreza em cultivar contactos sociais, nunca o fizera. Agora, de repente, ali
estava ele à porta dela – e logo em Holly Wood, de entre todos os lugares do
mundo!
– Então, olá – disse Cameron, como se Antonia ali estivesse, o que os fez
sorrir a ambos. – Prazer em conhecê-la.
– O prazer é meu – disse Alicia, fazendo um gesto desajeitado na direção
da loja. – A Antonia explicou-lhe…? Como pode ver, ainda não estamos
abertos…
– Não se preocupe – respondeu ele –, ela avisou-me de que,
provavelmente, a loja ainda não estaria em pleno funcionamento, mas, para
dizer a verdade, não estou aqui por motivos profissionais. Isto não quer dizer
que não gostasse de ver o seu trabalho – acrescentou atenciosamente –, mas é
que estou a pensar comprar uma casa algures nesta zona e a Antonia disse-me
que a Alicia era daqui e, assim sendo, talvez me pudesse dar algumas
indicações.
Apanhada de surpresa pelo carácter inesperado daquilo, mas
imediatamente grata pela oportunidade de ajudar alguém que, se quisesse,
poderia fazer muito por ela, Alicia disse:
– Por coincidência, acabei de saber que, nas próximas semanas, vou ter
mais tempo disponível do que imaginava, por isso terei todo o gosto em ajudá-
lo. Anda à procura de algum sítio em particular? Onde está alojado?
– Uns amigos simpáticos emprestaram-me uma casa durante o verão. Fica
em Wyke Champflower, conhece?
– Sim, é claro. É um sítio muito bonito.
Cameron acenou com a cabeça.
– Sim, pelo menos o que resta dele. Umas quantas casas desordenadas e
uma quinta de laticínios onde fazem queijo, tanto quanto pude ver… Mas é
disto que estou à procura – de um típico estilo rural à inglesa.
Alicia riu.
– É americano? – Não se lembrava de se ter apercebido que Cameron
falava com sotaque americano sempre que o ouvira na rádio ou na TV, mas
agora conseguia notar.
– Meio americano, por parte da mãe – respondeu ele. – O meu pai é
escocês e eu nasci em França, mas isso foi só porque estava cheio de pressa
de vir ao mundo. Por outras palavras, pus um fim brusco a umas férias idílicas
saltando cá para fora cinco semanas antes do tempo.
Alicia disse com ironia:
– E é por isso que agora tem o hábito de aparecer de surpresa?
Os olhos de Cameron brilharam divertidos.
– Parece que sim – confessou. – Desculpe, acho que devia ter ligado
primeiro, mas está um dia tão bonito que resolvi sair para explorar um pouco a
zona, e, quando dei comigo por estes lados, lembrei-me de que a Antonia me
tinha falado de si. Ela disse que acabou de se mudar para cá, não é verdade?
Alicia acenou afirmativamente, sentindo toda a alegria esfumar-se do seu
sorriso.
– O meu marido faleceu há alguns meses – disse – e não podíamos
continuar a… – Alicia deteve-se. O homem não precisava de saber a história
da vida dela. – Quer entrar? – sugeriu, agarrando nas chaves da carteira. –
Posso oferecer-lhe um chá, ou talvez ainda haja limonada fresca no frigorífico,
se preferir algo mais frio. É feita por alguém de cá, que a vende na loja da
aldeia. É muito boa.
– Então, vou experimentar – respondeu Cameron, seguindo-a para o
interior.
– Como pode ver, ainda estamos a terminar tudo – disse Alicia em jeito de
desculpa, enquanto o homem observava o espaço em seu redor. E quase
estremeceu ao recordar a sua moderna e brilhante galeria em Londres, onde
estivera há uns anos numa exposição; mas agora não se atrevia a mencionar o
facto, porque não conseguia recordar o nome do artista promovido por
Cameron nessa ocasião.
– Quando planeia abrir? – perguntou Cameron, enquanto Alicia caminhava
pelo estúdio ainda cheio de caixas, vassouras, produtos de limpeza e o seu
equipamento ali depositado sem cerimónias.
– Se me tivesse perguntado isso ontem – respondeu Alicia por cima do
ombro –, dar-lhe-ia uma resposta muito diferente. Como as coisas estão agora,
já me sentirei com sorte se conseguir abrir ainda nesta década.
Cameron caminhou até ao arco que separava os dois espaços, detendo-se
ali.
– O que a está a atrasar?
– Dizer que a culpa é dos regulamentos municipais não andará muito longe
da verdade – respondeu, lavando dois copos.
Cameron fez uma careta.
– Dantes, aqui era a loja solidária da minha mãe – explicou. – Agora quero
transformá-la numa coisa diferente e, como uma tonta, não pensei nos
regulamentos em termos de ambiente, saúde, segurança, nas condições do
edifício, nas licenças comerciais, enfim, nos quilómetros de papelada
necessários para abrir um negócio. Mas não veio até aqui para me ouvir
queixar-me da burocracia, o que é uma pena, porque neste momento está
mesmo a apetecer-me despejar o saco. Contudo, vou poupá-lo, se prometer vir
à inauguração, quando finalmente puder abrir. Se estiver pela zona, é claro –
acrescentou Alicia apressadamente, embaraçada pela ousadia do seu convite.
– Não estou à espera que venha de Londres…
– Londres não é assim tão longe, e não vejo razão para não vir – disse
Cameron. – Se na altura já tiver encontrado casa, pode ser uma maneira de
conhecer alguns dos vizinhos.
– Mas não conhece mesmo ninguém? – perguntou Alicia, passando-lhe um
copo de limonada de sabor não muito intenso.
Cameron sorriu e fez um brinde a Alicia antes de beber um gole.
– Hmm, é muito boa – concordou.
Alicia piscou os olhos de uma forma que o fez rir.
– OK, é altura de contar a verdade – disse Cameron. – Há cinco ou seis
anos que venho para esta zona, e, normalmente, fico na casa de uns amigos, do
outro lado de Bruton. Os Carmichaels, conhece?
Alicia abanou a cabeça
– Acho que não. Porquê, devia?
– Apenas porque a Antonia tem um parentesco qualquer com a Felicity
Carmichael, e como a Alicia e a Antonia são amigas… Mas adiante, devo
provavelmente conhecer um punhado de pessoas através deles, mas a maior
parte está a passar o verão fora e, além disso, são pessoas bastante
aficionadas aos cavalos, o que não é realmente o meu género. Desde já peço
desculpas se também gosta de equitação.
Alicia abanou a mão num gesto de rejeição.
– Tenho pavor de cavalos – garantiu. – A minha filha, ao contrário, diz que
é a única coisa boa de nos mudarmos para cá, poder aprender a montar e ter o
seu próprio cavalo. Ainda estou a tentar arranjar coragem para lhe dizer que
não é provável que isso aconteça. Mas quando arranjar, já vai saber, porque
vai ouvir a gritaria dela em Wyke.
Cameron parecia divertido.
– Que idade tem ela?
– Doze. Também tenho um filho com dezassete, que está a encarar a
mudança com muito estoicismo, pelo menos até agora.
– Mas, então, que pretende exatamente fazer com a loja? – perguntou
Cameron, olhando de novo à sua volta.
Perguntando a si mesma se ele estava genuinamente interessado, ou só a
tentar ser educado, Alicia resolveu-se pela primeira hipótese e lançou-se
numa visita guiada acerca das futuras utilizações do espaço, depois de todos
os expositores, prateleiras e pedestais estarem montados nos respetivos
lugares, e de como esperava promover, igualmente, o trabalho de outros
artistas.
– Mas provavelmente coisas diferentes da escultura – disse –, para evitar
conflitos com o meu trabalho.
– A não ser que os estilos sejam completamente diferentes.
– É claro, mas já não me dedico muito à pintura, por isso pensei que
algumas obras abstratas, de pintores com talento, seriam uma ótima maneira de
encher as paredes e dar alguma visibilidade a artistas promissores.
– Já viu alguma coisa que lhe agrade?
Alicia abanou a cabeça.
– Só chegámos há dez dias e, até agora, temos concentrado as nossas
energias em pôr este sítio em condições. Como pode ver, ainda temos muito
que fazer. Quando chegar o momento certo, vou-me dedicar à procura dos
talentos locais, e depois coloco alguns anúncios em bibliotecas e nas lojas da
zona. E nos jornais também, se puder pagar, para informar o mundo da nossa
existência.
Parecendo achar o plano razoável, Cameron disse:
– Seria demasiado presunçoso da minha parte sugerir que combinássemos
uma busca de talentos com a minha procura de casa?
Controlando a custo o seu entusiasmo, Alicia disse:
– Gostaria imenso. Afinal, não consigo pensar em ninguém mais
qualificado do que o Cameron para descobrir um talento em desenvolvimento,
e posso imaginar o impacto que terá, sobre os meus futuros protegidos, ver
Cameron Mitchell bater-lhes à porta.
Ele sorria e começava a protestar.
– Não, a sério – insistiu Alicia –, sei o que eles pensam, porque eu própria
fiquei pasmada quando o vi. Para dizer a verdade, ainda estou. Está mesmo
aqui, ou isto é tudo um sonho?
– Se quiser, posso dar-lhe um beliscão – sugeriu ele –, mas se calhar não é
um comportamento muito cavalheiresco.
Alicia riu, apercebendo-se, com uma estranha sensação de leveza, de que
se estava a divertir. Talvez o copo de vinho ao almoço lhe tivesse subido à
cabeça, mas, mesmo que fosse isso, Cameron não se parecia nada com os
outros críticos de arte que conhecera. Em geral, eram pessoas extremamente
pomposas, que se compraziam em enaltecer a sua própria importância, e
demasiado exclusivas para repararem em alguém exterior ao seu pequeno
mundo elitista, ou se darem ao trabalho de ser agradáveis.
– Bem, acho que já lhe tomei tempo de mais – disse Cameron, pousando o
copo em cima da bancada de trabalho, já cheia de coisas amontoadas. – Antes
de ir embora, seria possível…
– Oh, não – protestou Alicia –, por favor, não me peça para lhe mostrar
alguma coisa agora. Ainda está tudo embalado, como veio nas mudanças, e
tem de ser exposto de maneira adequada, para conseguir o melhor efeito.
Desculpe, espero que não se importe? De certeza que, quando as vir, vai
detestar à mesma, mas pelo menos saberei que… – Alicia deteve-se quando
viu Cameron erguer as mãos.
– Compreendo perfeitamente – disse ele – e, para dizer a verdade, só ia
pedir-lhe se podia ir à casa de banho antes de partir.
Alicia sentiu-se corar enquanto desatava a rir.
– É ao fundo do pátio – disse, apontando para fora, com vontade de dar um
abraço com força ao tio de Rachel, Pete, por ter arrancado a velha sanita suja,
substituindo-a por um vistoso modelo amarelo que arranjara no… bem, já
sabia que não devia perguntar onde. OK, as paredes ainda não tinham sido
pintadas e, até agora, Pete ainda não conseguira aparecer com um lavatório da
mesma cor – ou de outra qualquer – para substituir o que caíra da parede. No
entanto, o importante era que o autoclismo funcionava maravilhosamente e o
pequeno cubículo de tijolo vermelho registara melhorias tão grandes desde a
altura em que tivera de forçar a porta para a abrir pela primeira vez, que não
ia perder tempo a sentir vergonha. Enquanto Cameron ziguezagueava por entre
a velha banheira para pássaros e um banco de madeira que Alicia estava a
lixar, esta pressionou as mãos contras as faces, ainda mal conseguindo
acreditar que aquele homem estivesse ali. Tinha vontade de agarrar no telefone
e ligar a Rachel, ou melhor ainda, de telefonar a Antonia a agradecer, mas isto
teria de esperar até ele se ir embora.
– Alicia? Estás aí? – perguntou Mimi em voz alta, da porta. – Ah, cá estás
– disse Mimi com um sorriso radioso, quando Alicia apareceu no arco. –
Reparei que a porta estava aberta e queria ter a certeza de que eras mesmo tu,
porque há pouco vi um homem a cirandar lá fora. Não lhe pude perguntar o
que andava aqui a fazer, porque me chegou uma encomenda. Viste-o? Pensei
que pudesse ser um amigo teu, porque estava muito bem vestido e era muito
atraente – disse Mimi piscando o olho. A seguir, a sua boca desenhou um “O”,
quando viu Cameron entrar de novo no estúdio. Pela expressão deste, era
claro que a ouvira.
– Oh, estou para aqui a tagarelar e tu acompanhada – disse Mimi,
começando a dirigir-se para a porta.
– Cameron, esta é a Mimi – disse Alicia, agarrando na mão de Mimi e
puxando-a para trás. – É dona da florista ao lado e conheço-a desde bebé.
Mimi, este é o Cameron Mitchell.
Duvidava que o nome dissesse alguma coisa à velha senhora, mas mesmo
assim gostava de o dizer. Sorrindo ao aproximar-se, Cameron disse:
– Tenho muito gosto em conhecê-la, Mimi. Estive a admirar os seus
arranjos ao passar.
Mimi corou de orgulho.
– É muito amável – respondeu, apertando-lhe a mão timidamente. – Tento
sempre fazer o melhor, e é agradável quando as pessoas reconhecem o meu
trabalho. Mas não vou interrompê-los mais. Tenho muito que fazer aqui ao
lado. O Pete vai passar por cá mais tarde – disse a Alicia – para instalar
aqueles canos de que vocês falaram.
– Estupendo – disse Alicia sorrindo, mas Mimi já avançava em direção à
porta.
– Acho que é altura de eu também ir embora – disse Cameron, olhando
para o relógio. – O Jasper deve estar a pensar no que me terá acontecido,
nunca saí por tanto tempo.
Alicia dirigiu-lhe um olhar interrogador.
– O Jasper é um cão – explicou Cameron. – Costuma ir para todo o lado
comigo, mas cortou a pata numa pedra no fim de semana e a veterinária achou
que ele precisava de repouso… Ah, foi ela que vi no pub antes. A veterinária.
Bem pensei que a tinha reconhecido. E era você que estava com ela?
Desculpe, só a vi de costas, mas o cabelo…
– Era eu – confirmou Alicia.
– O mundo é tão pequeno – disse ele em tom de brincadeira. – Aqui
estamos nós, e já temos duas pessoas em comum, a Antonia e a veterinária.
Quem sabe onde isto irá terminar?
Rindo, Alicia disse:
– Realmente, quem sabe?
Só quando viu Cameron atravessar para a elevação onde tinha estacionado
o carro, Alicia percebeu que não tinha o seu número. O seu primeiro instinto
foi correr atrás dele, mas Cameron sabia como entrar em contacto com ela,
pelo que, em vez de dar uma imagem demasiado ansiosa, optou por voltar para
a loja, sorrindo calorosamente para si mesma. Este inesperado empurrão para
o seu ânimo viera tão a calhar que Alicia queria acreditar que era a forma de a
vida lhe dizer que a sorte podia mudar. A vida não tinha de ser só perda e luta,
maridos que morrem cedo de mais e cunhadas que deviam estar no inferno. Às
vezes, aconteciam coisas boas, e Alicia não conseguia deixar de pensar que a
súbita e imprevista aparição de Cameron Mitchell era uma coisa muito boa.

– Annabelle, quero que me ajudes com isto, por favor – chamou Sabrina
do interior do quarto da filha. Atirando os lençóis para trás, ajoelhou-se para
inspecionar debaixo da cama. – Meu Deus, há quanto tempo está isto aqui? –
perguntou, curvando os lábios numa expressão de repulsa enquanto arrastava
de debaixo da cama um prato de comida coberta de bolor, com um garfo e uma
faca espetados e tufos de cotão agarrados.
– Deixa isso – disse Annabelle bruscamente, de dentro da casa de banho.
– Este sítio é uma pocilga e quero-o limpo hoje, agora – disse Sabrina
numa voz dura. – A Rhoda recusa-se a vir limpar aqui, e não a posso culpar.
– Gosto de tudo como está, e é o meu quarto, por isso, aqui sou eu que
mando – retorquiu Annabelle.
Decidindo não se envolver numa discussão tão inútil, Sabrina continuou a
apanhar do chão roupas e sapatos, revistas velhas, lenços de papel usados,
artigos de maquilhagem, os comandos das infindáveis engenhocas eletrónicas
da filha e um sortido repugnante de sacos de doces e batatas fritas.
– Mas nunca deitas nada disto ao lixo? – perguntou. – Nem nunca pões
nada na máquina de lavar? – acrescentou, erguendo um par de jeans brancos
muito engelhados e sujos com marcas de batom e sabe-se lá que mais.
– Não. Quando preciso, compro outros – respondeu Annabelle,
aparecendo no quarto vestida com um fino robe de seda. Tinha uma toalha na
cabeça e bolinhas de algodão entre os dedos, enquanto esperava que o verniz
vermelho secasse.
– Não tens piada – disse Sabrina.
– Quem diz que estava a brincar?
Olhando para ela, tão jovem, bonita e insuportavelmente presumida,
Sabrina esteve prestes a lançar-se noutro sermão sobre a forma como
Annabelle a desafiara indo à festa no sábado, quando uma deprimente
sensação de cansaço a penetrou até aos ossos. Acabariam apenas a gritar uma
com a outra, e já tinham feito isto tantas vezes nos últimos dias que não o
conseguiria suportar novamente. Então, voltou-se, puxou a roupa da cama e
começou a fazer um monte com os lençóis.
– Tenho um bocado de medo do que possa encontrar aqui – comentou com
um ar sério.
– Mas agora já podes sair? – disse Annabelle, sentando-se em frente ao
espelho. – Preciso da minha privacidade… Oh não, espera, podes ajudar-me a
fazer a depilação? Sozinha não consigo, dói-me demasiado.
– Devias vir comigo ao salão de beleza em Babington e fazer isso como
deve ser – disse Sabrina. – Vou lá na sexta-feira. Posso marcar para ti, se
quiseres.
– Fixe. Vais fazer depilação brasileira?
Sabrina ergueu as sobrancelhas.
– É possível.
Annabelle sorriu para a mãe no espelho.
– Aposto que o Robert fica mesmo com tusa quando tu…
– Podes parar com isso imediatamente – interrompeu-a Sabrina. – Não vou
discutir a minha vida amorosa contigo, sobretudo com esse tipo de linguagem.
Annabelle encolheu os ombros.
– Como queiras – e, despindo a toalha, começou a escovar o cabelo.
– Podes emprestar-me o teu produto da Leonor Greyl? – perguntou. – Põe
o teu cabelo mesmo suave e brilhante.
– Se fosses a algum sítio especial, até diria que sim, mas é demasiado caro
para usar todos os dias, sobretudo com este calor, quando, de qualquer
maneira, vais usar o cabelo preso.
Revirando os olhos, Annabelle encheu a mão com uma grande bola de
musse capilar John Frieda e começou a aplicá-la nos cabelos.
– O telefone está a tocar – disse.
– Obrigada, estou a ouvir. Ora bem, vou levar este monte lá para baixo,
para a lavandaria – disse Sabrina, apanhando do chão a toalha que Annabelle
largara e arremessando-a para cima dos lençóis. – Quero este quarto limpo
como deve ser antes de saíres, ou não sais de todo.
Esperando até a porta se fechar, Annabelle mastigou entre dentes:
– Desanda – e começou à procura do seu telemóvel.
– Olá – disse quando Georgie atendeu. – Também estás a ter uma quarta-
feira deprimente?
– Um bocado – respondeu Georgie numa voz pesarosa. – E tu?
– O mesmo. Precisamos de mais ecstasy.
– Ou erva, ou qualquer outra coisa.
– Ainda te apetece ir ao Clark’s Village logo? Fazer compras costuma
animar-nos.
– OK. Na verdade, preciso de comprar qualquer coisa para a rave porque
não tenho mesmo nada para vestir.
– Eu também não. Mas como vamos até lá?
– Vou perguntar à minha mãe se nos leva, se a tua te puder trazer até cá.
Oh, a propósito, os meus pais vão estar fora durante todo o fim de semana da
rave, por isso podes ficar cá, se quiseres.
– Bestial. Conta comigo, mas não deixes a minha mãe perceber que a tua
não vai estar, ou ela vai-se começar a passar outra vez. Desde que voltei no
domingo que ela não para de me chatear por ter ido à festa no sábado à noite, a
horrorosa. Dava-lhe uma coisa se soubesse que vou à rave.
Os olhos de Annabelle fecharam-se à medida que se enchiam subitamente
de lágrimas. Porque é que toda a gente passava a vida a atacá-la? Não era
justo, não fazia nada que todas as suas amigas não fizessem, mas a sua mãe,
uma maldisposta obcecada pelo controlo e de espírito fechado, que na
realidade não se importava com nada, tinha de continuar a pregar-lhe
sermões como se estivesse a falar com alguma delinquente. Jesus, metia-lhe
nojo.
– Para falar a sério, estava a pensar – disse numa voz trémula – que podia
ligar ao Nat para lhe perguntar o que vai fazer logo à noite.
– Já arranjaste o número dele?
– Posso ligar-lhe para casa. Se for a Alicia a atender, desligo.
– Sei que não vais gostar de ouvir isto – disse, numa voz que indicava as
dúvidas que sentia –, mas não acho mesmo que ele esteja interessado. Quer
dizer, na festa ele teve uma oportunidade perfeita…
– Sim, e se tivéssemos estado sozinhos…
– Ele podia ter-te levado para algum lado…
– A casa não era dele, por isso…
– Aguenta aí um minuto – interrompeu-a Georgie e, tapando o bocal do
telefone, gritou: – Estou cá em cima. OK. Desço num instante. – Depois,
retomando a conversa com Annabelle, disse: – Que estavas a dizer?
– Estávamos a falar do Nat, e digo-te que ele está interessado. Caso
contrário porque teria vindo falar comigo na festa?
Com um suspiro, Georgie disse:
– Adiante. Depois diz-me o que aconteceu se lhe chegares a ligar, senão
encontramo-nos aqui às duas.
Depois de desligar, Annabelle atirou o telemóvel para cima da cama e saiu
para o patamar.
– Mãe! – gritou.
Não houve resposta.
– Mãe…
– Estou ao telefone – disse Sabrina, aparecendo no átrio.
– Desculpa. Podes dar-me boleia para casa da Georgie dentro de uma
hora?
– Espera – disse Sabrina para a pessoa com quem falava ao telefone. –
Dou, desde que o teu quarto esteja limpo – disse.
– Argh – disse Annabelle num tom sarcástico e, voltando-se, bateu a porta
com força e começou a enfiar tudo o que se encontrava no chão dentro de
armários, debaixo da cama ou atrás das cortinas. A seguir, abrindo uma gaveta,
agarrou em todos os seus perfumes e artigos de maquilhagem de cima do
penteador e enfiou-os lá dentro, no emaranhado de roupa interior, antes de
ligar o secador para varrer o pó e resíduos restantes para o chão, longe da
vista. Depois, secou o cabelo, com menos cuidado do que o habitual porque,
como a mãe fizera notar, ultimamente usava-o muitas vezes preso, delineou os
olhos de preto, em cima e em baixo, e puxou do fundo do roupeiro um vestido
azul curto que apertava com fitas atrás do pescoço. Por último, atou umas
sandálias romanas em redor dos tornozelos e parou em frente do grande
espelho para admirar o seu reflexo.
Não estava mal. Parecia ter pelo menos dezoito anos, e o seu bronzeado
começava realmente a notar-se. Para ver o contraste com as partes de pele não
bronzeada, levantou a bainha do vestido e sentiu uma forte pontada de malícia
ao contemplar a sua própria nudez. Adoraria sair sem calcinhas, ia dar-lhe um
gozo tão grande! Imaginem só, se o vento soprasse ao passar um camião, ou se
ela se inclinasse num café e houvesse algum tipo sentado atrás dela… Teria
uma visão e peras, e ela podia fingir que não fazia ideia de que a estavam a
observar.
Resolvendo enfiar uma tanga na mala, para o caso de mais tarde lhe
apetecer vestir roupa interior, caiu pesadamente sobre a cama e agarrou no
telemóvel. Enquanto percorria os números, a vontade de chorar dominou-a de
novo, tal como tinha acontecido durante toda a manhã e, enterrando a cabeça
na almofada, começou a soluçar. Desejava que Robert voltasse para casa e
fizesse algo para que ficasse tudo bem de novo. A sua vida era horrível, estava
tudo mal. Queria fugir com Nat, cujo pai morrera, injustamente. Nat não
merecia perder o pai, ninguém merecia, e, à medida que se sentia invadida por
ondas adicionais de um desespero angustiante, enterrou o rosto na almofada
com mais força. Detestava ser rejeitada. Era mesmo horrível, mas ela não
tinha a certeza de que fora isso que acontecera no sábado à noite, porque não
se conseguia lembrar corretamente. Sabia que tinha dito algo sobre o pai dele,
mas estava apenas a tentar ser agradável. De qualquer forma, sabia que Nat a
desejava a sério, estava apenas a fazer-se difícil ou a fingir ser fiel àquela
namorada estúpida. Logo que o apanhasse sozinho, sabia que tudo se ia passar
como desejava, porque os homens eram todos iguais – tudo o que queriam era
sexo e, uma vez que Nat estivera mortinho por ir para a cama com ela no
passado, não conseguia ver nenhuma razão para não o querer agora.
Finalmente, agarrando de novo no telemóvel, limpou as lágrimas com uma
mão e, depois de ter a certeza de que tinha varrido um pouco da tristeza de
dentro dela, marcou o número da casa de Nat.
Capítulo Onze
– Podes atender? – disse Alicia, quando o telefone fixo começou a tocar na
cozinha; estava a cortar fruta para fazer uma salada e tinha as mãos pegajosas
com sumo de laranja e morango.
Inclinando a cadeira para longe da mesa onde estava a mandar emails no
portátil de Alicia, Nat estendeu a mão para o telefone sem fios pousado sobre
a bancada atrás dele.
– Estou, fala o assistente pessoal de Alicia Carlyle – disse.
Quando Alicia se voltou, Nat piscou-lhe o olho, mas, a seguir, o seu bom
humor esmoreceu ao ouvir a voz da pessoa do outro lado da linha.
– Olá. É a Annabelle.
Nat não disse nada. Annabelle inspirou fundo.
– Estava a pensar se estarias livre logo à noite, pensei que talvez
pudéssemos…
– Não estou – interrompeu-a ele.
– … jogar às damas.
Nat permaneceu em silêncio.
– Então, não queres mudar de planos? – disse Annabelle numa voz rouca.
– Não – respondeu Nat. – Obrigada por ligares – e desligou.
– Quem era? – perguntou Alicia, indo lavar as mãos.
Nat encolheu os ombros.
– Era uma chamada de telemarketing. Ligaste ao Jolyon para perguntar a
hora do jantar, na sexta?
– Sim, vamo-nos encontrar às oito, por isso temos de sair daqui por volta
das seis e meia. Ainda é um bom bocado até Huntstrete.
– Posso guiar, se quiseres beber – ofereceu-se Nat.
Alicia sorriu e deu-lhe um beijo na cabeça. O filho não podia imaginar o
quanto precisaria de uma bebida para conseguir ultrapassar o facto de
poderem estar sentados na mesma mesa que o pai partilhara com Sabrina, ou a
olhar para jardins onde podiam ter passeado juntos. O mais provável, porém,
era que Craig e Sabrina tivessem passado o tempo todo numa das suites de
luxo, rebolando na cama, cobertos de suor, arquejantes de desejo, sem se
conseguirem fartar um do outro, nunca pensando em ninguém senão neles
mesmos.
– Mãe?
– Sim?
Alicia manteve as costas viradas para Nat enquanto limpava a superfície
da bancada.
– Estás bem?
– Sim, estou ótima.
Passaram-se alguns segundos.
– Queres dizer alguma coisa neste email para o avô?
– Está bem – disse –, diz-me quando acabares de escrever.
Uma vez que o pai de Craig estava agora inválido, incapaz de viajar para
longe, após a morte de Craig passou a ser da responsabilidade dela levar os
filhos a visitá-lo. Durante os primeiros dois meses tinham ido todas as
semanas, mas depois, por algum motivo, o velho pareceu começar a culpar
Alicia pela morte precoce do filho, tornando as suas visitas difíceis e
dolorosas. Assim, o contacto limitava-se agora aos emails e a alguns
telefonemas ocasionais, principalmente com Nat e Darcie, raramente com
Alicia, o que a perturbava mais do que queria admitir, pois era como perder
outra parte de Craig.
Quando o telefone tocou de novo, Nat disse:
– Podes atender desta vez? Detesto a insistência daquelas pessoas.
Secando as mãos, Alicia pegou no telefone sem fios.
– Estou? – disse, enquanto voltava a pendurar o pano de cozinha.
– Alicia, querida, é a Antonia. Recebi a tua mensagem. Fico muito contente
por o Cameron te ter ido visitar. Ele é o máximo, não é?
– Sim, hãã… – Alicia lançou a Nat um olhar ansioso e dirigiu-se para a
sala de estar. – Foi muito simpático da tua parte pô-lo em contacto comigo.
– Oh, não custou nada. Temos de ajudar os amigos nos tempos difíceis.
Como vão as coisas por aí, querida? É muito deprimente?
– Não diria isso. É apenas diferente.
Antonia foi percorrida por um arrepio audível.
– Receio que o campo não seja mesmo para mim – disse –, mas,
aparentemente, o Cameron adora. Espero mesmo que vocês os dois se deem
bem. Tenho a certeza absoluta de que vão dar.
– Estava aqui a pensar – disse Alicia, baixando a voz na esperança de que
Nat não a pudesse ouvir –, se ele seria, sabes, gay?
Antonia rebentou a rir.
– Oh, Alicia, és tão engraçada – exclamou. – É bom saber que não
perdeste o teu sentido de humor.
– Na verdade, estava…
– Oh, querida, desculpa, tenho de ir, acabou de entrar alguém, mas liga-me
quando quiseres. Gosto sempre de te ouvir. Beijinho, beijinho – e desligou,
deixando Alicia com um vago sentimento de ridículo e uma forte esperança de
que a sua pergunta não chegasse aos ouvidos de Cameron Mitchell que, na
verdade, não lhe parecera gay, mas considerando a profissão dele…
– Quem era? – perguntou Nat, quando a mãe voltou para a cozinha.
– Oh, só uma amiga de Londres. A Antonia. És capaz de te lembrar dela.
Nat encolheu os ombros.
– Ela foi a alguma das tuas exposições?
– Para dizer a verdade, foi a todas.
Houvera apenas três, todas realizadas numa pequena galeria em Fulham,
que costumava ser uma garagem até o negociante de arte a ter transformado
numa salle d’exposition, como gostava de lhe chamar, para começar o seu
negócio. Para Alicia, a melhor parte das exposições consistira,
invariavelmente, no envolvimento de Craig e dos miúdos na sua organização,
fotografando as esculturas, projetando cartazes, contribuindo com ideias para
publicidade, compilando listas de endereços e ajudando a transportar tudo do
estúdio para a galeria. Conseguira mesmo vender algumas peças durante a
primeira e segunda exposições, embora suspeitasse de que Craig poderia estar
por trás de, pelo menos, uma das aquisições, uma vez que a peça fora
comprada pelo seu colega Oliver Mendenhall. No entanto, após a última
exposição, recebera uma encomenda de uma amiga americana de Antonia, uma
cliente genuína, e a carta que a mulher lhe enviara quando a bailarina chegou
aos Estados Unidos estava tão repleta de agradecimentos e elogios que,
durante semanas, a sua confiança estivera nos píncaros.
– Então – disse Nat, sem parar de escrever os seus emails –, ele é gay?
Alicia virou-se para ele.
– Não estava à escuta – disse Nat –, mas também não sou surdo.
– Nem sequer sabes de quem eu estava a falar.
– Não, mas imagino que fosse do tipo que apareceu na loja ontem. A Mimi
disse-me.
Obrigadinha, Mimi. Provavelmente, dissera também a Nat como Cameron
era um homem atraente, coroando a informação com uma piscadela entendida.
Decidindo que a única forma de lidar com a situação era ser absolutamente
honesta, Alicia disse:
– É um negociante de arte que poderá ajudar bastante o nosso pequeno
empreendimento a levantar voo. Em troca, vou ajudá-lo a encontrar casa.
Nat moveu o rato sobre a almofada.
– Sim, vais mesmo – murmurou.
– Que significa isso?
– Nada.
– Nathan, se há algo que queres dizer…
– Não tenho nada a ver com o que tu fazes – replicou secamente –, mas o
pai só morreu há seis meses, por isso, não achas que é um bocado cedo de
mais para te envolveres com outra pessoa?
Fechando os olhos enquanto ela própria se encolhia diante da ideia, disse:
– Não foi por isso que ele veio aqui. Não, ouve – disse, interrompendo
Nat quando este começava a contestá-la –, tens razão, é demasiado cedo para
começar a pensar nessas coisas, e juro-te que não penso, por isso não tens
nada com que te preocupar.
Nat continuou a escrever no computador e Alicia podia sentir a sua
frustração acumulada. Sabia que o filho tinha vontade de gritar com ela por ter
sequer falado com outro homem, quando o seu pai era a pessoa mais
importante no mundo e ninguém, ninguém poderia alguma vez tomar o seu
lugar.
– Então, achas que algum dia te voltarás a casar? – perguntou Nat
abruptamente.
– Não – respondeu Alicia. – Quer dizer, não consigo ver isso a acontecer.
Na verdade, não me consigo ver a amar outra pessoa que não o teu pai.
Uma vez que era verdade, e era sem dúvida o que o filho queria ouvir,
Alicia não teve problema nenhum em dizer estas frases. Contudo, só Deus
sabia como, por vezes, desejava que a traição de Craig tivesse destruído não
só o amor como a confiança, pois, assim, ser-lhe-ia muito mais fácil lidar
tanto com a perda como com o receio angustiante da razão pela qual o marido
andara tão stressado nos últimos meses de vida.
A expressão de Nat permanecia tensa quando fechou o portátil.
– Nat, por favor, não vamos ficar zangados por algo que nem sequer existe
– implorou, quando o filho se começou a levantar da mesa.
– Não estou zangado – respondeu. – Aquilo que fazes é assunto teu.
– Onde vais?
– Buscar uma bebida ao frigorífico. Posso?
Sorrindo ao acenar com a cabeça, Alicia resolveu que era provavelmente
melhor não voltar a tocar no assunto de momento, e pegou numa panela para
pôr alguns ovos a cozer.
– Faço uma salada niçoise para o almoço? – perguntou.
– Fixe – respondeu Nat. Após uns instantes, acrescentou: – É a preferida
da Darcie.
Aquelas cinco palavrinhas soavam como um ramo de oliveira, e foi assim
que Alicia decidiu encará-las.
– Estou mesmo a começar a sentir a falta dela. Tu não? – perguntou.
– Isto está muito calmo, sem ela aqui a mandar em nós – concordou Nat. –
Falaste com ela esta manhã? Não ligou enquanto estavas a tomar duche?
– Sim, liguei-lhe de volta a caminho da loja. Ela tinha uns belos
comentários a fazer acerca das licenças de que preciso para abrir a loja.
Suponho que lhe contaste tudo.
Nat acenou afirmativamente.
– Acho que ela não percebe muito bem o que se está a passar e ficou
furiosa por eu perceber.
Alicia arqueou as sobrancelhas.
– Vamos arranjar as licenças – garantiu-lhe, – por isso não quero que te
preocupes com o assunto. Só vai demorar um bocado mais do que
pensávamos.
– E como vais arranjar dinheiro até lá?
Apanhada de surpresa, Alicia voltou-se para olhar para ele.
– Ainda não estamos falidos – disse. – OK, a nossa vida não vai ser como
dantes, mas vamos conseguir sobreviver.
– Não estou a ver como – contrapôs Nat. – Seja como for, não vendes
esculturas suficientes para nos poderes sustentar, e se não tiveres a loja para
as pores à venda…
– Há sempre o eBay e o nosso site, quando estiver a funcionar…
– Isso continua a não ser suficiente. De qualquer maneira, estive a pensar e
decidi que devia esquecer a escola e arranjar um emprego. Talvez estejam a
precisar de alguém numa das fábricas da zona, ou numa quinta. Podem não
pagar grande coisa, mas será melhor que passarmos fome.
Alicia olhava-o horrorizada.
– Não vamos passar fome – disse energicamente –, e tu vais acabar os teus
estudos da forma que sempre planeámos. Não, Nat, ouve-me – disse Alicia
quando o filho começava a protestar –, a tua única responsabilidade é para
contigo mesmo e a realização do sonho que começaste a perseguir nas pegadas
do teu pai. É o que ele desejaria, e garantidamente é o que eu quero. Por isso,
não quero ouvir falar mais desse disparate de saíres da escola para arranjares
um emprego. Vai tudo correr bem. Tenho dinheiro suficiente para nos manter
pelo menos até ao final do ano e, nessa altura, a loja já deve estar aberta.
– Mas, e se não venderes nada? Desculpa, não estou a dizer mal das tuas
esculturas, porque as acho ótimas, mas não tens lá muitas, e ao ritmo a que se
vendem… Bem, percebes o que estou a dizer.
– A loja não vai depender só das minhas esculturas. Já sabes isso, vamos
mudar de assunto.
Embora o filho claramente quisesse continuar a discussão, optou antes por
sair para o jardim e, conhecendo-o como conhecia, Alicia adivinhou que o
motivo por que desistira tão rapidamente fora o medo de dizer algo que
pudesse magoá-la ainda mais do que já magoara. Embora Alicia adorasse o
modo como Nat era sensível em relação aos seus sentimentos, odiava o facto
de o filho estar tão preocupado com as finanças da família, porque dizer a si
próprio que tinha de assumir as responsabilidades do pai não ia ajudá-lo a ter
boas notas nos exames. Nat precisava de ser como os outros rapazes da sua
idade, concentrando-se apenas no que tinham a fazer naquela fase de
preparação para a sua vida adulta.
– Onde para o Simon? – perguntou Alicia, num esforço para normalizar as
coisas mostrando vontade de conversar, quando Nat regressou trazendo alguns
copos que tinham ficado lá fora.
– Em casa, acho. Não sei.
– Hoje não se vão encontrar?
– Hoje à tarde vou começar a pintar o estúdio. Mas vou precisar de mais
tinta.
–Agora que já não podemos abrir tão cedo, não há pressa! Por isso,
porque não levas o carro e vais sair com o Simon?
– Não há problema. Gosto de pintar e será bom saber que está tudo pronto
antes de…
– Nat, são as férias de verão. Não é que não precise da tua ajuda ou não a
aprecie, mas quero que te divirtas.
– Estou-me a divertir.
– Como? A pintar paredes e a fazer-me companhia aqui? Devias estar com
pessoas da tua idade.
– Estive numa festa na semana passada, fui ao críquete com o Simon e vou
a uma rave no fim de semana. Estou a fazer coisas normais para alguém da
minha idade, OK?
– OK, desculpa. Quero ter a certeza de que não ficas em casa só para não
me deixares sozinha.
– Não é por isso que cá estou – disse. – Estou a responder a emails, a
fazer revisões e a projetar o teu site. – Nesse momento, o telefone tocou de
novo e Nat disse: – É a minha vez. Estou? Ah, olá, Sim. Tudo bem? Sim,
deixei o telemóvel lá em cima.
Enquanto o filho conversava ao telefone, Alicia começou a tirar os
caroços às azeitonas para a salada e a cortar tomates, mas foi-lhe impossível
não ouvir quando Nat começou a falar sobre a rave de sábado à noite, com
menções a hardcore – que ela sabia ser um tipo de música tecno –, meia dúzia
ou mais de DJ, a expectativa da presença de cerca de mil pessoas e a dúvida
sobre se a polícia apareceria ou não à meia-noite para tentar acabar com
aquilo. Quando Nat desligou, o almoço estava pronto e Alicia esperava por
ele na mesa do jardim.
– Então – disse Alicia enquanto Nat puxava uma cadeira –, esta rave não é
propriamente legal?
– Não faço ideia – respondeu Nat. – Algumas são, outras não.
– Não achas que devias descobrir se esta é?
– Mãe, é aqui ao lado, em Holly Copse, por isso não há de ser nada de
extraordinário, pois não?
– Não sei. Se houver drogas envolvidas…
– E quem disse que vai haver?
– Pensava que esse era o objetivo destas raves.
– Para alguns, é. Eu vou lá pela música e pelo ambiente. Só isso já dá
pedrada suficiente, não é preciso tomar nada.
– E álcool?
– Bem, vou beber alguma coisa, como é óbvio.
– E que tipo de coisa?
– Vamos levar vodka, por isso, na segunda, é provável que tenha uma
ligeira ressaca.
Alicia revirou os olhos.
– É coisa para durar toda a noite?
– Deve ser. São sempre. Dura pelo menos até às cinco, de qualquer
maneira.
Desejando poder convencê-lo a não ir, mas com medo de provocar uma
discussão se tentasse, Alicia disse:
– Desde que te mantenhas longe das drogas. A última coisa de que precisas
é de ter cadastro por uma coisa dessas, se a polícia chegar a aparecer.
– Por favor, para de te preocupar. Vai correr bem. Vai correr tudo bem,
vais ver.
Embora ainda estivesse longe de estar feliz por Nat ir à festa, Alicia
resolveu não insistir mais, e o seu olhar desceu quando aquelas palavras, vai
correr bem, vai correr tudo bem, vais ver, ecoaram do passado, ditas por
Craig, depois de mais um telefonema histérico de Sabrina.

Alicia e Darcie estavam na salinha a ver televisão, enquanto Craig e Nat


se fecharam na sala de estar para um dos seus habituais ensaios para os
debates de quinta à noite. Desde que Nat se juntara à equipa de debates da
escola, o pai começara a treiná-lo na arte de apresentar os seus argumentos, e
o prazer que ambos retiravam das suas batalhas intelectuais era sempre
evidente nos seus rostos quando finalmente emergiam da sala.
Naquela noite, contudo, enquanto passavam os créditos finais de
EastEnders, Alicia ouviu Nat sair de rompante para o átrio e Craig a gritar
algo atrás dele.
– Que se passa? – perguntou, saindo da salinha.
– É ele! – gritou Nat, a meio das escadas. – Ele não me ouve. Continua a
dizer que falhei alguns pontos quando…
– Desculpa – interrompeu-o Craig. – Sei que esta noite não estou nas
melhores condições. Se calhar não devíamos ter começado. Podemos tentar
outra vez amanhã?
– Amanhã tenho râguebi.
– OK, então no fim de semana. É evidente que pesquisaste sobre o assunto
e estás a defender a tua posição de maneira brilhante, por isso mereces a
minha atenção a cem por cento. Podemos fazer assim? No domingo de tarde?
– Talvez – disse Nat e, sentindo-se ainda visivelmente furioso e
desapontado, subiu as escadas a correr.
Alicia olhou para Craig. Este suspirou e passou as mãos pelo cabelo.
– Tenho algum trabalho para fazer – disse.
Fechando a porta da salinha para que Darcie não os conseguisse ouvir,
Alicia disse:
– Que tens? Percebi que se passava alguma coisa quando chegaste a casa
hoje…
– Não importa – disse num tom irritado. – Não é nada.
Alicia empalideceu enquanto continuava a olhar para ele.
– Ela ligou-te outra vez, não foi? – disse, sentindo a cabeça começar a
andar à roda.
– Não! OK, ligou.
Alicia tentou engolir, mas sentia a garganta completamente seca.
– Estiveste com ela? – perguntou.
– Não, é claro que não.
O rosto de Alicia estava tão tenso que a sua boca mal pareceu mexer-se
quando disse:
– Mas queres?
Craig olhou-a nos olhos.
– Mas que pergunta é essa? – disse.
Empurrando-o para a sala de estar e batendo a porta atrás deles, Alicia
disse:
– É uma pergunta perfeitamente razoável, à qual pareces incapaz de
responder. Por isso, vou perguntar-te outra vez: queres estar com ela?
– Não, não quero estar com ela.
– Então, porque estás tão tenso?
– Porque ela não me deixa em paz e passa a vida a ameaçar que se vai
suicidar… Que raio vou fazer se ela for avante?
Resistindo ao desejo de responder “cantar no funeral dela”, Alicia
voltou-lhe as costas e afundou-se num dos sofás, segurando a cabeça entre as
mãos.
– Desculpa – disse Craig, sentando-se junto a ela. – Não é que eu ainda
goste dela, juro-te, mas da maneira que ela parece estar a sofrer…
– E achas que isso me importa para alguma coisa? – disse Alicia com
raiva, erguendo o olhar.
– Não, é claro que não, mas pelo amor de Deus, não quero ser responsável
pela morte de alguém.
– Não! Se ela cometer suicídio, a decisão é dela. Não tens nada a ver com
isso.
– Quem me dera que conseguisse ver as coisas assim, mas não sou capaz.
– Então, aprende. Continuas a dizer-me que está tudo acabado, mas pelo
estado em que estás agora… Pensas nela a toda a hora.
– Isso não é verdade. Hoje foi a primeira vez que ela ligou desde há uma
semana. Esperava… Pensei, quando ela parou de ligar, que finalmente
compreendera as coisas, mas parece que me enganei.
– Então, deixa-me falar com ela. Comigo não vai deixar de perceber a
mensagem.
Craig abanou a cabeça.
– Lembras-te do que aconteceu da última vez que vocês as duas…
– Não me vou encontrar com ela – cuspiu Alicia, estendendo a mão. – Dá-
me o teu telemóvel – disse.
Craig franziu a testa, inseguro em relação ao que fazer.
– Disse para me dares o teu telemóvel. Ela vai atender se pensar que és tu.
– Alicia, isto não é boa ideia.
– Quero o teu telemóvel – exigiu Alicia a ferver de raiva. – Se a Sabrina
pensa que vai fazer chantagem contigo para te encontrares com ela usando
aquelas ameaças de suicídio ridículas, que, digo-te já, não tem intenção
nenhuma de cumprir, pode tirar daí as ideias.
– Não te vou dar o telemóvel.
O rosto de Alicia ficou branco como a cal.
– Se não dás, é porque tens alguma coisa a esconder – disse, numa voz
perigosamente baixa.
Suspirando, Craig tirou o telefone do bolso e passou-lho.
– Tens o número dela oculto sob que identidade? – perguntou, começando
a percorrer a lista de contactos de Craig.
– Keats.
Alicia olhou para ele, com vontade de lhe bater.
– O facto de ainda teres o número dela já é mau que chegue, agora gravá-
lo com o nome de um poeta… Como raio queres que acredite que acabou
tudo?
– Alicia, para com isso, por favor – implorou Craig.
Encontrando o contacto, Alicia marcou o número e caminhou até à janela,
trémula, enquanto esperava que Sabrina atendesse.
– Amor, por fim. Sabia que havias de ligar…
– Não é o Craig, sua pega – disse Alicia a ferver. – Sei que lhe voltaste a
ligar, a ameaçar que te vais matar, por isso, se calhar, podias fazer-nos um
favor a todos e ir para a frente com isso.
Sabrina arquejou.
– Sua cabra! – gritou. – Não vou falar contigo…
– Também não vais falar com ele. Vê se nos deixas em paz, Sabrina. Já
fizeste mal …
– Não sou eu que lhe ligo – atalhou Sabrina furiosamente. – É ele que me
liga a mim, porque não me consegue esquecer, como eu não o consigo
esquecer a ele. Nós estamos apaixonados…
– És uma mentirosa, estás a delirar – disse Alicia, olhando para Craig
desesperada. – Ele não te suporta.
Craig teve um movimento de recuo e Sabrina gritou:
– Era isso que tu gostavas de pensar, mas deixa que te diga uma coisa:
cada vez que ele faz amor contigo, é em mim que pensa. Cada vez que olha
para ti, deseja que fosse eu, e ambas sabemos que tens andado a pensar onde
ele está realmente quando te diz que vai ficar a trabalhar até tarde. Bem, está
comigo. Nós não acabámos, Alicia, e nunca vamos acabar.
Alicia tremia descontroladamente quando Craig se aproximou para lhe
tirar o telefone das mãos.
– Sabrina, tens de procurar ajuda – disse calmamente e, sem esperar pela
resposta, terminou a chamada e desligou o telefone.
– Ouviste o que ela disse? – perguntou Alicia numa voz rouca.
– Mais ou menos. Não é verdade, espero que saibas isso.
Alicia virou-lhe o rosto. Agarrando-a, Craig obrigou-a a olhar para ele.
– Não é verdade – insistiu. – Nunca mais a vi desde o dia em que lhe disse
que estava tudo terminado.
– Então, onde tens estado quando supostamente estás a trabalhar até tarde?
– Supostamente, não, é no escritório que tenho estado.
– Então, como é que ela sabe…
– Alicia, estás a cair na armadilha dela. Trabalhar até tarde faz parte da
vida de qualquer advogado. Toda a gente sabe isto, incluindo a Sabrina, por
isso está a usar a situação para tentar interferir entre nós de novo.
Alicia abanava a cabeça.
– Queria acreditar em ti – disse –, mas tenho medo.
– Se te ajudar, podes inspecionar o meu telemóvel – disse Craig, tentando
passar o aparelho a Alicia novamente. – Vais encontrar uma chamada dela, a
que recebi hoje, mas é tudo. Não lhe liguei, não me encontrei com ela e não
quero encontrar-me com ela.
Os olhos de Alicia nadavam em lágrimas de insegurança quando olhou
para ele.
– Tens a certeza? – perguntou.
– É claro que tenho a certeza.
Alicia baixou a cabeça e, deixando que Craig a puxasse para ele, encostou
o rosto no seu ombro enquanto a sua mente girava com aquele caos de mentiras
e traição.
– Vai correr bem – disse Craig, abraçando-a com força. – Vai correr tudo
bem, vais ver.
– Estiveste a chorar? – perguntou Sabrina, lançando um olhar rápido a
Annabelle enquanto a levava a casa de Georgie.
– Não – respondeu Annabelle de forma brusca, mantendo o rosto desviado.
– Estiveste, sim, consigo notar na tua voz. Que se passa?
– Nada.
Sabrina olhou-a de relance de novo.
– É alguma coisa…
– Muda de assunto, OK? Estou bem.
Para seu alívio, a mãe limitou-se a suspirar e continuou a guiar. Se tivesse
insistido, Annabelle sabia que não teria conseguido suportar, porque
continuava tão suscetível que não se podia permitir pensar em nada,
especialmente em Nat, ou começaria outra vez a chorar. Ele não devia ter-lhe
desligado o telefone daquela maneira. Fora cruel e malcriado e fizera-a sentir
que era uma estúpida e uma horrorosa e que não significava nada para
ninguém. Ela só estava a querer ser amiga dele, mas ele mal se dignara a falar
com ela.
– A mãe dele devia lá estar – disse Georgie para a confortar, quando
estavam no seu quarto e Annabelle lhe contou o que acontecera, por entre uma
tempestade de lágrimas.
– Sim, pensei nisso – disse Annabelle numa voz lamentosa, limpando as
lágrimas dos olhos. – Não é mesmo verdade que ele não gosta de mim, pois
não?
– Não, é claro que não. Só disse que ele não estava interessado porque me
estava a sentir uma porcaria. Está a ser uma quarta deprimente, lembras-te?
Estamos as duas em baixo.
– Precisamos de erva.
– Eu sei. Oh, que se lixe o Clark’s Village, vou dizer à minha mãe que
mudámos de ideias e depois ligo à Melody. Ela costuma sempre saber onde
arranjar erva.
Quando Georgie saiu do quarto, Annabelle enroscou-se no assento da
janela e contemplou o vale com um olhar ausente. Pensava em Nat e na mãe
dela, e em como tudo antes era fantástico, desejando, do fundo do coração, que
as coisas pudessem voltar a ser o que eram.

– Estas são as melhores férias de sempre, não são? – disse Annabelle,


suspirando feliz, quando a mãe entrou no seu quarto na torre da casa de campo
italiana.
Sabrina sorriu e passou-lhe a mão suavemente pelo rosto.
– Completamente – disse Sabrina baixinho. Havia nela um brilho que a
fazia parecer mais bonita que nunca, e o coração de Annabelle encheu-se de
amor e orgulho por Sabrina ser sua mãe. – É o sítio ideal para nos
apaixonarmos – murmurou Sabrina.
Annabelle corou até à raiz dos cabelos. Apercebendo-se, Sabrina sorriu
ainda mais.
– Está tudo bem – disse gentilmente –, não me surpreende que te tenhas
apaixonado pelo Nat. Vocês sempre foram muito próximos e ele é muito
atraente.
Nos olhos de Annabelle, um delirante fulgor apaixonado quebrou a sua
indecisão.
– Achas que ele sente o mesmo? – perguntou timidamente.
Sabrina riu de um modo que tinha sempre o condão de iluminar o mundo
de Annabelle.
– Como poderia não sentir? – respondeu Sabrina, abraçando-a. – E não te
vou perguntar o que vocês os dois têm andado a fazer quando vão passear por
entre as oliveiras, ou desaparecem para jogar algum jogo. Itália é um sítio tão
romântico…
– Não fazemos nada – protestou Annabelle, corando tanto que doía.
Parecendo admirada, Sabrina disse:
– Queres dizer que ele ainda não te beijou?
Annabelle baixou a cabeça enquanto um sorriso lhe despontava no rosto.
– Bem, sim, beijou – admitiu. – Para dizer a verdade, montes de vezes –
acrescentou a seguir.
Sabrina riu de novo e, rindo também, Annabelle envolveu-a com os seus
braços e tombaram ambas sobre a cama abraçadas. Embora quisesse perguntar
a opinião da mãe sobre até onde devia deixar Nat ir, sabia que, por ter apenas
treze anos, a mãe veria aquele relacionamento de forma muito diferente se
soubesse o que passava pela cabeça de Annabelle. Mas, logo que fizesse
dezasseis anos, não haveria problema nenhum porque, nessa altura, podiam
dizer a toda a gente que se queriam casar depois de acabarem os estudos.
– Primeiro temos de ir para a faculdade – insistira Nat, quando tinham
discutido o assunto nesse dia, deitados no seu pequeno nicho secreto no olival
atrás da casa –, e talvez devêssemos esperar até eu passar o meu exame para a
ordem para fazermos planos mais concretos.
– É claro – concordou Annabelle, sentindo um calor mais quente que o sol
deslizar entre as suas pernas quando Nat a puxou para ele. – Achas que eles
ficarão chocados ao saber que nos queremos casar? – sussurrou tremulamente.
– Provavelmente, mas que é que isso importa?
Contemplando-o com adoração, Annabelle disse:
– Eu amo-te mesmo a sério.
– Eu também te amo – murmurou Nat, e cobriu a boca dela com a dele.
– Ele beija bem? – perguntou Sabrina maliciosamente, quando estavam as
duas deitadas em cima da cama, lado a lado.
Annabelle corou de novo.
– Sim – respondeu. – Quer dizer, nunca beijei mais ninguém, mas sei que
ele é o melhor.
Sabrina virou a cabeça para olhar para ela.
– É porque ele descende dos melhores – disse serenamente –, e mais nada
serve para a minha menina. Mas tens de me prometer que as coisas não irão
mais longe do que isso. Ele é mais velho que tu e tu és muito bonita, por isso
ele pode sentir-se tentado a persuadir-te a ir mais além, sobretudo quando a
maior parte do tempo andas vestida só com um biquíni.
– Não te preocupes – disse Annabelle desviando o olhar, contente por a
mãe não poder imaginar que era Nat, e não ela, quem mais se retraía dos dois.
A seguir, num acesso de euforia, sorriu e enroscou-se em Sabrina, dizendo: –
Quem me dera que não tivéssemos de voltar para casa amanhã, tu não?
– Hmm – respondeu Sabrina, contemplando os frescos do teto enquanto
passava a mão pelo cabelo de Annabelle com indolência. – Acho que vamos
ambas ficar com recordações muito especiais destas férias, minha querida, e
talvez um dia possamos mesmo voltar cá. Gostavas de viver em Itália?
– De viver? – repetiu Annabelle surpreendida. – Só se o Nat estivesse cá.
Sabrina sorriu.
– É claro – disse – e, quem sabe, talvez esteja.
Capítulo Doze
O sorriso acolhedor de Sabrina desapareceu rapidamente ao olhar para
Robert. O marido acabara de chegar, um dia mais cedo do que o previsto, mas,
em vez de vir direto para casa, onde ela o esperava, fora primeiro ver a irmã.
– Estou a ver – disse ela, sentindo-se desorientada e zangada, e insegura
quanto ao que dizer. – Bem, talvez te apeteça voltar para lá e passar mais
algum tempo com ela – cuspiu rispidamente. – Afinal, será que interessa
alguma coisa eu ter cancelado os meus compromissos esta manhã para estar
aqui, contigo?
Parecendo imediatamente arrependido, Robert disse:
– Não precisavas de ter feito isso. Quando te telefonei, disse-te que não ia
ficar cá muito tempo. Tenho de estar no laboratório daqui a duas horas. Só vim
a casa trocar de roupa e ver o correio. Pensei que talvez pudéssemos ir jantar
fora esta noite.
Sabrina ainda se sentia ofendida com a falta de consideração de Robert ao
ousar ir ver a irmã antes de correr para casa.
– Tens a certeza de que não preferes levar a Alicia? – disse friamente.
– Querida, não sejas infantil – respondeu ele. – Claro que prefiro levar-te
a ti. De qualquer forma, ela vai encontrar-se com um dos antigos colegas do
Craig em Hunstrete House.
Sabrina ficou rígida. Apercebendo-se, Robert sentiu como que um punho a
fechar-se dentro do seu peito, e desejou poder retirar o que dissera.
– Um dos vossos locais de encontro? – perguntou, conseguindo manter um
tom suave, mas enfatizado, contudo, por uma sagacidade que dava ao seu
sorriso uma expressão acutilante.
Sabrina voltou-lhe as costas, com vontade de pegar nas chaves do carro.
Robert não queria uma discussão – acima de tudo, queria tomá-la nos braços e
recomeçar aquele regresso a casa do início, talvez até recomeçar aquele
casamento do início, mas ouviu-se a si próprio dizer:
– Soube que conseguiste prejudicar os planos da Alicia para abrir a loja.
Sabrina rodou sobre os calcanhares, com uma expressão de ultraje que não
conseguia ocultar por completo a culpa nos seus olhos.
– Não sou eu quem faz as regras – respondeu asperamente.
– Mas imagino que nem sabias quais eram até teres ido investigar – disse
Robert. A seguir, olhou-a nos olhos. – Isso não a vai parar – disse calmamente.
– Ela vai conseguir todas as licenças ou autorizações…
– Porquê? Vais ajudá-la?
– Não tenho nenhuma influência sobre as autoridades locais. Ela vai con-
segui-las através dos canais próprios, portanto só conseguiste atrasar o
inevitável.
Apesar de o seu rosto estar extremamente tenso e de os olhos faiscarem em
todas as direções enquanto tentava pensar no que dizer, Sabrina sabia bem que
o marido lhe levaria a melhor se aquilo se transformasse numa discussão a
sério. Então, tentando inverter a situação, disse:
– É isto que queres, Robert? Estar sempre no meio, com ela de um lado e
eu do outro? Porque espero que percebas que é assim que vai ser, se ela ficar
por cá.
Receando que a esposa tivesse razão, Robert disse:
– Não tem de ser assim.
– Não há outra forma.
Suspirando, Robert agarrou no correio e começou a passar os envelopes
em revista. Iam ter de encontrar uma maneira de lidar com a situação, mas, de
momento, não percebia como isso ia ser possível.
– Onde está a Annabelle? – perguntou. – Trouxe-lhe o perfume que ela
pediu.
Ainda não disposta a mudar de assunto, Sabrina disse:
– Diz-me, defendes-me quando falas com ela? Ou ficas só a ouvi-la a
fazer-se de vítima, a dizer mal de mim e…
– Sabrina, por favor, não faças isto. Estou cansado, tenho muito em que
pensar e não vou deixar que me envolvas nesta campanha ridícula que pareces
ter iniciado. Foste tu quem procedeu mal quando dormiste com o marido dela,
e agora estás a agravar as coisas ao tentar impedir que a Alicia tenha uma
forma de ganhar a vida. Por isso, porque não segues com a tua vida e deixas
que ela faça o mesmo?
– Antes de te ires embora – gritou Sabrina, quando Robert se preparava
para sair –, talvez possas pensar no favor que lhe fiz, ao chamar-lhe a atenção
para as licenças. Se não tivesse feito isso, ela estaria a funcionar ilegalmente
e, decerto acabavam por lhe fechar a loja.
– Boa tentativa – respondeu ele, voltando-se para trás – mas, como ambos
sabemos, não houve qualquer altruísmo no teu gesto.
– De acordo, mas, por favor, tenta compreender como a vida vai ser difícil
com ela aqui. Olha para nós agora. Acabaste de voltar para casa, depois de
dez dias longe, e já estamos zangados, o que não teria acontecido se não a
tivesses ido ver.
– Na verdade, fui ver o Nat. Queria convidá-lo para ir comigo ao Lord’s
na próxima semana, mas ele não estava. Então, fiquei a conversar um
bocadinho com a Alicia.
– Vais levar o Nathan ao Lord’s? – perguntou Sabrina sem fôlego,
parecendo tão abalada como se o marido lhe tivesse batido.
– O Nat é meu sobrinho – lembrou Robert. – O pai dele morreu há pouco
tempo, o que significa que agora tenho um papel a desempenhar na sua vida, e
quero fazê-lo.
– Estou a ver. – A mente de Sabrina girava de pavor, à medida que as
ramificações daquilo que Robert acabara de dizer começavam a apossar-se
dela. Ia perder o marido, conseguia senti-lo bem dentro de si, e não era capaz
de o suportar. – Então, e a Annabelle? – disse roucamente. – Ou ela já não
conta nada?
Robert olhou-a com uma expressão dura.
– Nunca me acuses de não me interessar pela Annabelle – rosnou. – Levá-
la-ia a qualquer sítio onde ela quisesse ir, se ela quisesse ir comigo, mas a
Annabelle está naquela idade em que prefere estar com os amigos, como bem
sabes. E, já agora, onde está ela? Estava com esperanças de a ver antes de ir
para o laboratório.
– Na verdade, cedi-lhe a minha marcação no salão de beleza de Babington.
Levei-a lá há uma hora e depois voltei para casa, pensando que poderíamos
passar algum tempo juntos antes de ter de a ir buscar.
Sabrina tinha um ar tão perdido e inseguro que Robert pousou a
correspondência e aproximou-se dela, envolvendo-a nos braços.
– Desculpa – murmurou, com os lábios encostados ao cabelo dela. – Não
foi o melhor regresso a casa, pois não?
Sabrina agarrou-se a ele com força como se tivesse medo que Robert a
largasse. Depois, erguendo o olhar, começou à procura de algo nos olhos dele
– de quê, não tinha a certeza.
– Eu amo-te, Robert – disse ela. – Sabes isso, não sabes?
– Sim – respondeu Robert, seguro de que era verdade, mas sabendo
igualmente, com uma velha e familiar mágoa, que não era o mesmo que a
esposa sentira por Craig.
– Sei que estraguei tudo – disse Sabrina, numa voz entrecortada –, mas
estou… Tem sido tão difícil desde que… – a voz sufocou-se-lhe num soluço e
Sabrina pressionou os dedos contra a boca. – Vou conseguir recompor-me –
disse, tentando soar determinada. – Vai ficar tudo bem.
– Claro que vai – disse Robert, desejando conseguir acreditar naquilo.
Os olhos de Sabrina, luminosos mas trágicos, fixaram os dele.
– Vais ajudar-me? – murmurou, num queixume.
Robert engoliu em seco, ao mesmo tempo que acenava com a cabeça,
desejando poder ignorar as dúvidas que se acumulavam no seu espírito.
– Sei que isto não é fácil para ti – disse suavemente –, mas tentar magoar a
Alicia só vai tornar as coisas piores.
– Eu sei – concordou Sabrina –, mas talvez não fosse tão difícil para mim
se sentisse que estás do meu lado a cem por cento.
– E estaria, se tivesses razão. O que não significa que permita que a minha
irmã diga o que quiser sobre ti sem te defender, mas tenho de admitir, Sabrina,
que a forma como estás a agir… Ver-te assim… Bem, começa a preocupar-me
de diversas formas.
Sentindo uma onda de pânico irromper-lhe no peito, Sabrina agarrou-se à
camisa de Robert e ergueu os olhos para ele, tentando fingir confusão, mas
ambos sabiam o que aquelas palavras queriam dizer.
– Compreendo que a morte do Craig tenha sido um choque para ti – disse
Robert –, mas continuares tão zangada com a Alicia, tanto tempo depois do
vosso caso, leva-me a pensar que ainda não o conseguiste esquecer por
completo. E, se é assim, tenho de perguntar a mim próprio se quero continuar a
viver com alguém que, provavelmente, só está comigo porque o homem que
realmente ama ou não a amava o suficiente para deixar a mulher, ou já não está
cá para cumprir as promessas que possa ter feito para o futuro. – Como
Sabrina começasse a protestar, Robert pousou-lhe um dedo sobre a boca. –
Pensa no assunto – disse, sentindo-se atormentado pela verdade das suas
palavras e, beijando-lhe os lábios brevemente, agarrou no correio e saiu em
direção ao seu escritório.

***

– Sabrina, sou eu. Lamento o que aconteceu ontem à noite. A Alicia insistiu
em usar o meu telefone para te ligar. Estás bem?
– Agora estou – disse ela, soando congestionada e trémula pelo muito que
chorara. – Ela odeia-me tanto.
– Não penses nisso. Mas, por favor, diz-me que não vais fazer nada
estúpido.
– Não quero continuar sem ti…
– Vais conseguir ultrapassar isto, Sabrina, garanto-te. E pensa na tua
família.
– Não posso. Só consigo pensar em ti e em como tudo era maravilhoso
quando estávamos juntos. Todas as coisas que me disseste… Tu ainda me
amas, eu sei que é verdade, por isso não negues.
– Não vou negar, só quero que aceites que não nos podemos ver mais.
– Querido, eu percebo que te preocupes com os teus filhos, mas os miúdos
vão sobreviver, sobrevivem sempre.
– Sabrina, ouve-me. Não vou deixar a Alicia.
– Então, porque me disseste que o farias?
– Na altura… Eu… Eu não devia ter dito aquilo. Lamento que te tenha
deixado acreditar que podíamos ficar juntos.
– Ainda podemos. Eu sei que é isso que queres, no fundo do teu coração.
Diz-me que não pensas em mim.
– Claro que penso em ti.
Sabrina ficou muito quieta dentro do carro, sentindo as palavras dele a
envolvê-la tão terna e apaixonadamente como o seu abraço.
– Sabrina, por favor, não digas à Alicia que estou contigo quando não
estou – implorou Craig. – Isso não me vai fazer mudar de ideias em relação a
nós.
– Gostavas de fazer amor comigo outra vez? – disse Sabrina, soando triste
e desesperada.
Do outro lado houve apenas silêncio.
– Pode acontecer – continuou Sabrina –, só tu estás a impedir isso.
– Sabes porquê.
– Mas tu queres.
Craig ficou em silêncio de novo.
– Sabes, ainda estou no teu coração e, por mais que o tentes negar, estarei
sempre.
– Deixa-me ir – disse ele suavemente.
– Diz que me amas.
– Não.
– Diz, e não te voltarei a ligar mais.
– Prometes?
– Sim.
– Ok. Amo-te.
– Estou? Alicia, é o Cameron Mitchell. Espero que não seja má hora para
ligar.
Olhando rapidamente para a parte da frente da loja, onde Nat estava a
misturar tinta, Alicia saiu para o pátio das traseiras, dizendo:
– Claro que não. Como estás?
– A sobreviver ao calor – respondeu ele. – Dizem que no fim de semana
vão estar mais de 30 graus.
– A sério? Então tenho de encher a minha piscina insuflável.
Rindo, Cameron disse:
– Aqui há uma piscina e, se quiser cá vir, terei muito gosto em deixar a
Alicia usá-la. O único problema é que o Jasper é capaz de lhe fazer
companhia, ele adora nadar. E dá um bom banho a quem estiver próximo,
quando sai da piscina e se sacode.
Divertida com a imagem, Alicia disse:
– O Jasper é de que raça?
– É um golden retriever, com bastante personalidade. Mas não é por causa
dele que estou a ligar. Estive a ver os meus emails e, nem de propósito, o
clube de apreciadores de vinho a que pertenço vai realizar uma prova de
champanhe nos paços do concelho de Wells na próxima quinta à noite. Se não
achar demasiado presunçoso da minha parte, estava a pensar se não gostaria
de ir comigo…?
Imediatamente perturbada pelo que parecia assemelhar-se, de modo
preocupante, a um convite para um encontro romântico, Alicia avançou mais
para o fundo do pátio ao ouvir Nat trazer o escadote para o estúdio. Sentia-se
lisonjeada, claro, quem não se sentiria, mas ainda era muito, muito cedo para
sequer pensar numa coisa daquelas…
– Se tiver disponibilidade e lhe apetecer – prosseguiu Cameron –, estava a
pensar que a seguir podíamos ir comer qualquer coisa, e assim eu podia
mostrar-lhe alguns dos folhetos promocionais que recebi de propriedades.
Disseram-me que o Montague Inn, no Montague de Shepton, é um restaurante
muito bom.
– Sim, é verdade – concordou Alicia, que já lá estivera muitas vezes no
passado, geralmente com Craig, agarrando-se primeiro à parte da questão com
que era mais fácil lidar. A sua mente rodopiava, pensando em todas as
objeções possíveis: ainda não estava pronta para começar uma relação com
alguém; o filho não ia gostar; Darcie também não; não queria mentir à família;
mas, ao mesmo tempo, havia outra voz que lhe dizia para parar de exagerar,
Cameron estava só a ser simpático e, pensando em quem ele era e no quanto
podia ajudar o seu pequeno negócio – já para não falar na sua carreira
incipiente, se gostasse do seu trabalho… Por fim, quase com surpresa, ouviu-
se a si mesma dizer:
– Sim, seria ótimo.
– Excelente – disse ele. – A prova começa às seis e meia, por isso vou
buscá-la às seis e reservo uma mesa para as oito e meia. Está bem assim para
si?
– Sim – disse Alicia, perguntando a si mesma quem era a mulher que
assumira o comando das suas respostas. – Fico a aguardar.
Só depois de desligar se apercebeu de que, provavelmente, Cameron não
sabia onde ela morava, mas não havia problema. Agora tinha o número dele no
telemóvel e, assim, podia sempre telefonar-lhe e sugerir que se encontrassem
na loja, o que, de qualquer forma, seria mais sensato do que ele ir buscá-la a
casa. Ou, então, também podia cancelar o encontro, o que era o mais provável.
Regressando ao estúdio, pousou o telemóvel sobre o escorredor e estava
pronta para recomeçar a rebocar a parede, tarefa interrompida pelo
telefonema, quando parou para pensar. Não queria começar a esconder coisas
de Nat. O convite era inofensivo, mas não iria parecer assim se o filho
descobrisse mais tarde e percebesse que ela o escondera deliberadamente.
Então, assumindo um tom meio excitado, meio surpreendido, disse:
– Nem vais imaginar quem era.
Nat olhou para ela do cimo da escada.
– Suponho que não fosse a Darcie.
Alicia sorriu.
– Não. Era o crítico de arte, o Cameron Mitchell, que veio cá à loja há
dias.
A expressão de Nat ensombrou-se imediatamente.
– O que é que ele queria? – perguntou.
– Na verdade, queria convidar-me para uma prova de champanhe em Wells
na quinta-feira.
A expressão no rosto de Nat endureceu.
– Querido, não fiques assim – implorou Alicia. – Estás a dar demasiada
importância ao assunto.
Olhando para o teto, o filho continuou com a pintura.
– Ele vai ficar por cá durante o verão – prosseguiu Alicia – e não conhece
muita gente, por isso a Antonia deu-lhe o meu número. Não há mais nada para
além disso.
– A vida é tua – retorquiu ele. – Se quiseres sair com alguém, é lá contigo.
Respirando fundo, Alicia disse:
– Olha, eu juro que não é mesmo nada daquilo que estás a pensar. O
Cameron é muito influente no mundo da arte. Umas palavras elogiosas da parte
dele e os meus preços provavelmente iriam duplicar, até triplicar. Pensa só na
diferença que isso representaria para nós.
Nat voltou a meter o rolo no tabuleiro, revestiu-o de mais tinta e continuou
com o seu trabalho. Alicia observou-o, dividida entre a frustração e a
compreensão.
– Ele tem uma piscina e um golden retriever – arriscou, alguns minutos
mais tarde, tentando quebrar a hostilidade do filho com o seu tom de
brincadeira.
– Já não tenho seis anos – lembrou Nat. – E também não sou teu pai, por
isso podes fazer o que quiseres.
– Na verdade, se calhar também podias vir – sugeriu, sem ter a certeza se
aquilo era boa ideia ou não.
Nat deu uma gargalhada sem alegria.
– Muito obrigado, mas não estou para servir de pau de cabeleira. Tenho
coisas melhores para fazer, como ir ao Lord’s com o tio Robert, caso tenhas
esquecido.
– Ah, sim, é verdade – disse ela, com vontade de abraçar o irmão por ter
feito Nat ganhar o dia, a semana, quem sabe até se o verão inteiro, ao convidá-
lo para o encontro internacional de críquete.
Decidida a desistir de conquistar a aprovação do filho, Alicia voltou ao
trabalho, sentindo-se um pouco desanimada e ansiosa, e começou a perguntar a
si própria se Craig se importaria que ela fosse. Provavelmente, não ficaria
entusiasmado, tinha sido sempre muito possessivo em relação a ela; ou, então,
não se importaria nada, uma vez que o convite era, definitivamente, apenas
platónico – e, pensando no que o Craig fizera no passado, não percebia porque
se estava a atormentar com a questão.
Durante vários minutos, trabalharam ambos em silêncio até que, por fim,
Nat disse:
– Podias ter ido sair com ele e eu nunca teria sabido.
Surpreendida por o filho voltar ao assunto, Alicia manteve-se concentrada
no que estava a fazer e respondeu:
– Não preferes que eu seja honesta contigo em vez de andar a tentar
esconder as coisas?
Passaram uns momentos, mas, por fim, Nat acabou por responder, num tom
um pouco ressentido:
– Suponho que sim. – Uns instantes mais tarde, acrescentou: – Na
realidade, não tenho nenhum problema em que vás sair com ele, mas não quero
que te aproveites do facto de não estar aqui para voltares tarde para casa, OK?
Ou que fiques fora toda a noite e ganhes má reputação. Quero-te em casa e na
cama às onze e meia, ou vamos ter problemas.
Rindo de alívio, Alicia foi ao frigorífico buscar uma bebida para os dois.
Não acreditava que o filho já tivesse ultrapassado a sua resistência à ideia de
a mãe ter um amigo masculino, mas sabia que, tal como ela, Nat não ficaria
feliz se se mantivesse um mau clima entre ambos. A melhor coisa a fazer,
decidiu, enquanto lhe passava um sumo gelado de groselha negra, era
apresentá-lo a Cameron o mais cedo possível – e a Jasper, uma vez que os
seus dois filhos adoravam cães. Desta forma, tudo seria franco e Nat veria por
si próprio que não havia motivos para se preocupar; ninguém estava a tentar
tomar o lugar do pai.
– OK, é tempo de acabarmos por aqui – disse, uma hora depois, quando o
telemóvel de Nat apitou com uma mensagem. – Precisamos os dois de tomar
um duche e tirar a tinta do cabelo antes de irmos para Hunstrete.
Como Nat não respondia, Alicia ergueu o olhar e viu-o de olhos fixos na
mensagem.
– Está tudo bem? – perguntou.
– Sim, tudo – respondeu Nat, guardando o telemóvel.
– Tens a certeza? Pareces um pouco… aborrecido?
– Já disse que está tudo bem. É só o Simon, por causa de amanhã à noite.
Nada de importante.
Não insistindo mais, Alicia começou a arrumar as coisas o melhor que
podia, pronta para recomeçar na manhã seguinte, enquanto Nat dobrava o
escadote e o arrumava no pátio. Sabia que não o podia pressionar sobre o
verdadeiro conteúdo da mensagem. Guardar as coisas para ele era outro dos
traços que Nat herdara do pai – contudo, ao contrário de Craig, o filho
geralmente acabava por lhe contar as coisas. Só precisava de tempo para
chegar a esse ponto.

– Olá, Nat, sou eu – exclamou Darcie ao telefone. – Onde estás?


– A falar contigo ao telefone – respondeu ele.
– Engraçadinho. Eu estava a tentar falar com a mãe, mas o telemóvel dela
dá sempre ocupado. Estão juntos?
– Sim. Ela está a conduzir e a conversar com a Rachel no auricular. Está
tudo bem?
– Tudo. Bom, para dizer a verdade, nem tudo. Estou um bocado chateada.
– Não me digas que estás com saudades nossas – brincou Nat, dizendo
depois para Alicia: – Mãe! Acabaste de ser filmada por aquela câmara.
– Eu sei, eu vi – resmungou Alicia, aliviando demasiado tarde a pressão
sobre o acelerador. – Era mesmo o que precisava, uma multa por excesso de
velocidade.
– Onde vão? – perguntou Darcie.
– Vamo-nos encontrar com o Jolyon – lembrou Nat. – Então, porque estás
chateada?
– Oh, tive uma pequena discussão com a Verity. Ela às vezes dá-me cabo
dos nervos. Quem me dera poder ir para casa amanhã, em vez de ter de
esperar por sábado.
– Ainda fazes as pazes com ela antes disso – disse Nat.
– Sim, espero que sim. Mas parece-me que já estou fora há séculos. Diz-
me, como é viver aí?
– É fixe.
– Não digas à mãe, mas estou cheia de medo de voltar para casa sem o pai.
Sentindo as palavras da irmã deslizarem sobre ele como uma capa gelada,
Nat voltou-se para olhar pela janela.
– As coisas são mesmo más, sem ele?
– Às vezes – respondeu brevemente.
– Ainda tenho o número do telemóvel dele gravado no meu. Estou sempre
com vontade de lhe ligar.
Também Nat conservava ainda o número, e chegara mesmo a marcá-lo
algumas vezes.
– Não queria mesmo, mesmo mudar de escola – queixou-se Darcie. –
Detesto ter de deixar todos os meus amigos. Quer dizer, quem é que quer ficar
aí enfiado, no meio de nada? Eu não, de certeza.
– Tens amigos aqui – lembrou-lhe Nat.
– Sim, tipo… um.
– A Una está toda satisfeita com o teu regresso. Acho que ela e a Rachel
estão a planear uma festa qualquer para te apresentar a outras miúdas da tua
idade.
– Eu sei, ela contou-me. É muito querido da parte delas, não é? E tenho de
admitir que vai ser bom poder estar mais com a Una. Até foi por isso que a
Verity ficou toda rabugenta, porque eu estava ao telefone com ela. Até parece
que não posso ter outras amigas.
– Isso já lhe passa.
– Sim, acho que sim. Ah, a propósito, a Una diz que toda a gente anda a
falar sobre a Annabelle, e de ela estar toda maluquinha por ti. É verdade?
Os maxilares de Nat contrairam-se.
– Vamos esquecer o assunto, Darce. Ela está só a fazer joguinhos e a ser
estúpida.
– E então, tu não gostas dela? Sempre achei que gostavas.
– Isso foi há anos, quando éramos miúdos. Estou espantado por ainda te
lembrares.
– E ela continua bonita de morrer? Aposto que sim.
Nat engoliu em seco.
– Não está mal – respondeu, pensando no quanto já se sentira atraído por
Annabelle no passado, e sentindo que, provavelmente, poderia vir a sentir o
mesmo, se não fosse Summer.
– A Una diz que algumas amigas da Annabelle andam a apostar que ela não
vai conseguir nada contigo.
Uma vez que a mensagem que recebera de Simon dizia o mesmo, a
novidade de Darcie já não era surpresa.
– É tudo muito infantil – disse. – Estou a tentar não ligar.
– Sabes que mais, és demasiado fixe para teu próprio bem – disse Darcie.
– Falando por mim, mal posso esperar por vê-la. Quando era pequena, queria
mesmo ser como ela. Já conseguistes descobrir porque é que a mãe e a
Sabrina não se falam?
– Não.
Darcie suspirou intencionalmente.
– E será que me dirias, se tivesses descoberto?
– Depende da razão.
– E a mãe está aí ao lado, por isso não podes dizer nada de qualquer
maneira. Estou a perceber. A propósito, como está a Summer? Ainda em
Itália?
– Claro. Só foi há uns dias.
– Estás com saudades dela?
– Sim.
Darcie esperou.
– É tudo? – insistiu.
– Que mais queres?
– Não sei, alguma coisa um pouco mais saudosa, ou apaixonada, ou não
aguento estar separado dela, acho eu. Mas adiante, a mãe ainda está a falar
com a Rachel?
– Está. Digo-lhe para te ligar quando acabar, queres?
– OK, mas logo à noite não. Vamos já sair e não quero falar com ela
quando toda a gente puder ouvir. Diverte-te com o Jolyon. Ah, é verdade, e
quero saber tudo sobre a rave quando ligar no sábado, meu sortudo. Quem me
dera ir.
– És muito nova.
– Não te drogues.
– Agora passaste a ser minha mãe?
– Só te estou a dizer… Podes ficar podre de bêbedo, mas não pedrado.
Isso era o que o pai costumava dizer.
– Um dia destes, tens de deixar de ouvir as conversas dos outros.
– Isso querias tu.
– Fica bem, então. E faz as pazes com a Verity.
– Ela é que começou.
– Mas já és suficientemente crescida para esqueceres o assunto. Ligo-te no
sábado, mas, se calhar, já tarde.
Quando Nat desligou, Alicia olhou-o de relance.
– Ela está bem? – perguntou.
– Acho que está com saudades nossas.
– O sentimento é mútuo. Já está longe há muito tempo.
Ele acenou afirmativamente e virou a cabeça para ver a paisagem exterior,
enquanto a mãe terminava a conversa com Rachel.
– Onde estamos? – perguntou, enquanto Alicia retirava o auricular e o
arrumava no porta-luvas.
– Já chegamos – respondeu ela e, abrandando, virou para um conjunto de
portões sombreados por árvores. Depois, acelerou um pouco ao longo de um
parque com veados em direção a uma casa senhorial de pedra ao estilo de
Bath, de aspeto tranquilo, que se situava no fim do caminho. Apesar de se
esforçar por não imaginar Craig e Sabrina juntos naquele local, era como se os
seus fantasmas a rodeassem, pairando diante do carro, movendo-se
invisivelmente pelos relvados, passando através das janelas, vagueando pela
entrada, confundindo se com o próprio tecido que compunha o lugar. O que
andaria ela a fazer, perguntou a si própria, enquanto eles estavam aqui,
saciando o seu amor proibido? Será que alguma vez pensaram nela, ou em
Robert, ou nas possíveis consequências da sua traição?
– Isto é um bocado de assombrar, não é? – comentou Nat, quando pararam
na zona de estacionamento e contemplou as paredes cobertas de trepadeira da
grandiosa fachada georgiana. Grãos de quartzo brilhavam como joias
escondidas sob o sol do fim da tarde e o parque em volta refletia-se nas
janelas entreabertas, como fragmentos de uma miragem.
– O pai sempre gostou muito deste sítio – disse Alicia, procurando não
tentar adivinhar em que quarto é que o marido ficara com Sabrina.
– Então, já cá estiveste antes – disse Nat, voltando-se para a olhar.
– O pai às vezes fazia uma reserva, quando estava a trabalhar num caso em
Bristol – respondeu Alicia, evitando a questão, e, entregando as chaves ao
filho, que conduziria no regresso a casa, abriu a porta do carro.
Com um ar extremamente elegante, vestido com as suas calças de sarja
clara e camisa branca bem engomada, Nat contornou o carro para se juntar a
Alicia, oferecendo-lhe o braço. Sorrindo e extremamente orgulhosa do seu
bonito filho, que já estava uns bons cinco centímetros mais alto que ela e,
aparentemente, não sentia qualquer embaraço em escoltar a mãe, Alicia deu-
lhe o braço e disse a si própria que tinha de esquecer o que ali acontecera no
passado, ou acabaria por arruinar a noite.
Seguindo as indicações para a receção, passaram debaixo de um arco e
avançaram para um pátio lajeado, onde havia cerca de uma dúzia de mesas
sob a proteção de guarda-sóis e vários convidados bebiam cocktails de fim de
tarde. Vendo-os, Jolyon Crane ergueu-se imediatamente da mesa, aproximando
se para os cumprimentar. Era um homem grande em todos os sentidos,
elevando-se acima de ambos e engolindo-os, um de cada vez, num robusto
abraço afetuoso. O seu sorriso era amplo, os olhos verdes cintilavam de
alegria e a voz maravilhosa, de veludo profundo, parecia ecoar do mais
profundo do seu ser.
– É bom ver-vos – disse, colocando uma mão no ombro de Nat e dando-
lhe um apertão carinhoso, ao estilo de um tio. – Devo dizer que olhar para ti
faz-me lembrar os meus dias de Oxford. O teu pai e eu devíamos ser só uns
dois anos mais velhos que tu quando nos conhecemos. Como os anos passam!
Mas por ti não têm passado, querida Alicia.
– Nem por ti – respondeu Alicia, tomando a mão que Jolyon lhe oferecia
para a conduzir à mesa que ocupava.
Apesar de Jolyon ter estado no funeral de Craig, Alicia já não se lembrava
se tinham falado, ou durante quanto tempo ele ficara na receção que se seguiu.
Contudo, recordava-se de que, na sua condição de um dos mais velhos e
queridos amigos de Craig, Jolyon lera o elogio fúnebre, de sua própria
autoria, e, juntamente com Robert e Oliver Mendenhall, desempenhara
discretamente o papel de anfitrião, conversando com os convidados e
aceitando as condolências na receção.
– A Marianne não se vai juntar a nós? – perguntou Alicia, quando se
sentaram.
– Tenho pena, mas não. Ela queria, mas tinha uma conferência médica de
que não conseguiu livrar-se. Mas manda saudades e disse-me para te lembrar
que podes ficar uns dias em nossa casa, quando o Nat estiver a fazer o estágio
connosco, o que estamos ansiosos por que aconteça. Vai ser ótimo ter gente
nova lá em casa. Agora, o que queres beber? Eu estou no gin tónico.
– Então, eu vou no mesmo, obrigada – respondeu Alicia, olhando para o
empregado que se aproximava.
– Um shandy para mim – pediu Nat –, e gostava de saber onde é a casa de
banho dos homens.
– É por aquela porta ali – disse Jolyon, apontando para um lado afastado
do pátio – e, a seguir, à direita.
Depois de Nat e o empregado terem saído, Jolyon assentou as mãos na
mesa e fixou os seus calorosos olhos verdes em Alicia.
– Ainda bem que tenho uns momentos a sós contigo – disse. – O Oliver e
eu estivemos a falar e há uma coisa que precisamos de te dizer.
À medida que o medo de mais dívidas ou de qualquer outra catástrofe
inimaginável tomava conta dela, Alicia sentia crescer dentro de si a vontade
de fugir a correr.
– Posso estar a ser intrometido – continuou Jolyon – e, nesse caso, só tens
de me dizer para parar, mas o Oliver e eu gostaríamos de ser mentores do Nat
durante os estudos dele. O Nat é um rapaz inteligente, graças a ti e ao pai, é
claro, e se trabalhar muito, o que sei que fará, terá um bom futuro à sua frente.
Não queremos que isso seja prejudicado pela perda prematura que sofreu. O
percurso para se tornar advogado é caro, como sabes, com todos os seus
rituais arcaicos, como os jantares que terá de…
– Antes de continuares – interrompeu Alicia –, o pai do Craig ofereceu-se
para pagar essas despesas. Ele não tem muito dinheiro, mas está tão
determinado como nós em garantir que Nat vá longe na vida, e quer dar o seu
contributo para isso.
Jolyon sorriu.
– Ainda bem para o William – disse. – Conhecendo-o, sei que ficará
orgulhoso por estar a contribuir para a educação do neto.
– Ele queria que o Nat continuasse em Westminster – confidenciou Alicia
–, mas as propinas eram demasiado caras para as posses dele, e havia também
a questão de saber onde é que o Nat iria viver depois de termos vendido a
casa.
Jolyon abanava pesarosamente a cabeça.
– Foi mau, teres de fazer isso – murmurou. Depois, vendo como Alicia
baixava o olhar, deteve-se. – Mas não precisas de estar a discutir a situação
comigo agora – disse gentilmente. – Diz-me só, como é que o Nat está a lidar
com tudo?
Alicia suspirou.
– Não tenho a certeza de que o esteja a fazer – respondeu. – Só menciona o
pai muito de passagem e, tanto quanto sei, ainda não chorou a morte dele.
Acho que tem medo de, se o fizer, ter de reconhecer que o Craig partiu para
sempre.
A expressão de Jolyon era de simpatia e bondade.
– Foi uma altura terrível para o perder, se bem que nenhuma altura é boa –
disse. – Como está a ser a mudança para Holly Wood?
– Ainda estamos no início mas, para já, não está a ser má de todo.
– O teu irmão ainda vive lá, não é?
Alicia acenou com a cabeça. Jolyon suspirou fundo, pensando nas
implicações do facto.
– E estou certo em pensar que o Nat não sabe nada sobre aquele assunto
lamentável…?
Detestando que os amigos de Craig soubessem de Sabrina, e continuando
sem perceber se estariam ao corrente do caso enquanto este decorria, Alicia
disse:
– Nem pensar. A situação já está a ser suficientemente difícil para ele sem
isso, portanto, a última coisa de que o Nat precisa é de ver o pai cair do
pedestal por causa dela.
– Claro, e desculpa ter falado no assunto, só queria perceber como as
coisas estão e dizer-te que o Oliver e eu o iremos apoiar na universidade em
tudo o que pudermos. E, claro, estaremos sempre disponíveis se ele precisar
de falar sobre algum assunto, dos estudos ou de qualquer outra coisa.
– Obrigada – disse Alicia suavemente. – É bom saber isso.
Alicia apercebia-se de que aquela generosidade não se devia apenas à
grande estima que os amigos do Craig sempre haviam tido por ele, mas
também aos laços exclusivos e profundos da fraternidade a que pertenciam.
Bastava ser filho de Craig e querer seguir Direito para Nat ter ganho o seu
apoio incondicional.
– Ah, aqui está ele – disse Jolyon, olhando para Nat, que regressava à
mesa. – Então, estás com vontade de te juntares a nós no final do mês?
– Sem dúvida – garantiu Nat. – O meu pai estava muito empenhado em que
eu visse o que acontece no terreno, como ele dizia. Muitos advogados só
tomam conta dos processos quando vão a julgamento, mas no teu ramo, como
solicitador, acompanhas as coisas logo desde o início. Vocês sabem tudo
aquilo por que uma pessoa passa até ser presente a julgamento.
– Eu sempre achei que o teu pai era um advogado de primeira por causa da
experiência que teve, no início, como solicitador – disse Jolyon. – Ele
interessava-se mesmo pelas pessoas e pela forma como a lei as tratava. Houve
muitas ocasiões fantásticas em que um polícia sádico ou arrogante deixou o
banco das testemunhas com o seu caso e, às vezes, a sua reputação destruídos
graças ao interrogatório do Craig. Ah, a ementa, excelente! – disse, e depois,
num tom mais baixo: – Se tiverem veado, não aconselho… Um dos parentes do
bicho pode estar a ver ali do parque.
Alicia sorriu.
– Vens cá muito? – perguntou.
– Agora já não, mas a Marianne e eu fizemos aqui a nossa festa de
casamento… Bem, mas tu sabes isso, porque estiveste presente. É uma pena,
mas entrou um pouco em declínio depois disso. Em geral, a comida continua
boa, mas o sítio parece um pouco gasto, não achas? Precisa de uma
remodelação. Não sei como são os quartos, mas acho que ainda custam umas
centenas de libras, por isso é de esperar que as camas sejam confortáveis e as
casas de banho agradáveis.
– Tenho a certeza de que são excelentes – murmurou Alicia, mantendo os
olhos na ementa. De certeza que Jolyon não teria feito aquele comentário se
soubesse que Craig e Sabrina costumavam encontrar-se ali.
– Mãe, eles têm figos com presunto de Parma! – disse Nat numa voz aguda.
– É o que ela vai querer – disse para Jolyon. – É um dos pratos preferidos da
minha mãe.
– E também vou querer rodovalho – acrescentou Alicia, certa de que, se
constasse da ementa, teria sido a escolha do Craig quando estivera ali. Tentou
imaginar os gostos de Sabrina, até que percebeu que só se estava a magoar e,
pousando a ementa, agarrou no copo.
O resto da noite decorreu de maneira agradável, principalmente porque
Alicia adorava ouvir Nat falar sobre os seus projetos e sentiu orgulho ao ver
como o filho escutava Jolyon de forma tão atenta. Era a primeira vez que o via
tão animado desde a morte do pai e, sabendo que era a sua paixão pelo Direito
que o estava a transformar, sentia-se grata a Jolyon por compreender aquela
necessidade do filho e por estar presente do modo que só um homem – e um
advogado – podia estar.
Nat ia ficar bem, disse a si própria, quando finalmente saíram do hotel
com as afetuosas despedidas de Jolyon ainda a ecoar nos ouvidos. Não
precisava de se preocupar: o filho era um jovem determinado e inteligente,
com o seu caminho já delineado e com um número suficiente de pessoas que
gostavam dele para garantir que se manteria nesse rumo. Não era que Nat já
não precisasse do pai, isso nunca iria suceder, mas, graças ao convite de
Robert para o jogo de críquete e às promessas de Jolyon naquela noite, Alicia
já não sentia que carregava sozinha o fardo de tentar preencher uma lacuna na
vida do filho.

Na noite seguinte, Georgie e Annabelle saltavam e rodopiavam com a


multidão no meio do Copse. Já lá estava tanta gente que praticamente
dançavam em uníssono, com os seus corpos, leves e enérgicos, iluminados
pelos lasers e envolvidos numa bruma viscosa de falso nevoeiro. O ritmo era
elétrico, palpitante, zumbia pelos membros, explodia dentro das cabeças,
sacudia as suas vítimas em ataques de felicidade, enquanto o chão pulsava, as
árvores vibravam e a noite ganhava vida com o som. Os DJ e a sua magia
high-tech formavam um hexágono à volta da clareira aberta, misturando,
rodando e arranhando sons e ritmos de selva, tecno, ácido e gabba. Uma
floresta de braços erguia-se para as estrelas, dedos estendidos como que para
agarrar as lâminas eletrónicas que cortavam o negro do ar. Substâncias ilegais
circulavam como caramelos, de ecstasy a cogumelos, erva, LSD e cocaína.
Garrafas vazias de vodka e sambuca atulhavam o chão, juntamente com latas
de Red Bull, caixas de bebidas aromatizadas com álcool e maços de cigarros.
Casais abraçavam-se e riam, gritavam e uivavam, e desapareciam como
espetros em direção à escuridão profunda para discutir a vida, a política, o
universo ou para se enrolarem até a lua se diluir em nada e o sol se levantar
como um queijo cor de tangerina.
Annabelle acabava de estar com Theo no Declive dos Amantes, e estava
pronta para recomeçar de novo. Era uma noite para sexo, drogas, música e
mais sexo. O rapaz que agora dançava com ela era um deus. Roçava-se nela e
Annabelle levantava os braços para o deixar aproximar-se. Adorava as mãos
dele nas suas ancas, abanando-a, encaixando-se nela, queria mais, mais, mais.
Georgie escapuliu-se com Carl e Annabelle continuou a dançar. Katie e
Catrina aproximaram-se dela. Melody apareceu com Kennedy. Petra
desapareceu com um novo amigo. Archie estava estendido na relva, a recitar
poesia aos planetas. Georgie regressou e abraçou a Annabelle.
– Adoro-te – gritou ao ouvido de Annabelle.
– Também te adoro – gritou Annabelle em resposta. Pegou num charro que
passava, inalou profundamente e entregou-o a alguém.
– Sim, sim – cantou Georgie a plenos pulmões.
– Onde está o Carl? – berrou Annabelle.
– Quem?
– Carl.
– Ali. – Georgie agitou um braço sonhadoramente, depois inclinou a
cabeça para trás, a rir.
Annabelle guinchou quando o rapaz com quem dançava a agarrou por trás
e a virou.
– Sou o Neil. Como te chamas? – gritou o rapaz.
– Princesa Annabelle – respondeu ela, avançando para ele.
Com um sorriso aberto, ele ajoelhou-se, segurando-lhe as ancas, enquanto
ela girava encostada ao rosto dele.
– Estás numa de vodka? – berrou ele.
– Manda vir – respondeu Annabelle num berro.
O rapaz mergulhou na multidão e Annabelle voltou-se para Georgie.
– Isto é maravilhoso. Quero fazer sexo com toda a gente, inclusive tu.
Georgie uivou como uma criatura do outro mundo e, puxando Annabelle
para os seus braços, pressionou a sua boca contra a dela. Beijando-se, as suas
mãos percorriam os corpos uma da outra e, quando alguém as separou, outra
boca encontrou a de Annabelle. Depois, Annabelle estava a beijar outra
pessoa, e a seguir mais outra. Toda a festa se transformava numa grande,
deslumbrante e maravilhosa orgia de beijos.
Neil descobriu-a de novo e, enlaçando-a pela cintura, levou-a ao colo na
direção das árvores. Tinha vodka e erva e uma pequena dose de cocaína.
Annabelle bebeu e fumou e pestanejou para deter as lágrimas, enquanto
aspirava a substância branca. Neil beijava-a e despia-a e Annabelle estava a
adorar tudo. Havia outras pessoas perto deles, contorcendo-se na relva. A
música rugia e estremecia. Estava bem dentro dela, batendo-lhe no coração,
acelerando-lhe o sangue, bombeando-lhe o ar para dentro e fora dos pulmões.
Ela era a música…
No outro lado do Copse, Nat segurava uma cerveja e observava o tropel,
agitado e palpitante, dos dançarinos. Apesar de a batida martelar o seu
cérebro e de se mover ao seu ritmo, sentia-se distante, friamente sóbrio e
quase zangado por ser tão difícil envolver-se naquilo. Ele já tinha estado em
raves e havia sido fácil integrar-se, fundir-se com o resto das pessoas, mas,
naquela noite, isso não estava a acontecer. Queria deixar-se ir, ficar tão
bêbado e pedrado que se conseguisse diluir naquele aglomerado de
humanidade anónima, transpirada, pulsante. Então, não saberia onde ele
próprio acabava e a pessoa seguinte começava. Podia deixar de ser ele e
flutuar no ar até algum sítio, num êxtase bem-aventurado. O grande buraco
dentro dele seria preenchido, a escuridão seria iluminada. Não haveria mais
questões ou dúvidas ou medos, tudo voltaria a ser como deveria, como tinha
sido antes.
Bebeu outro gole de cerveja, mas o líquido perdera o gás. Tentou o charro
que o Simon lhe passara, e inalou fundo, ficando à espera da apaziguadora
onda de serenidade. Tentou outra vez, e mais outra. Não funcionava. A sua
tensão aumentava. Queria gritar de cólera. Palavras que não se atrevia a dizer
estavam a irromper dentro dele, a soltarem-se como gritos do seu cérebro, a
queimarem-lhe o peito… Estava tudo errado, já nada estava bem…
– Fala comigo, amor – murmurou alguém ao seu ouvido, mas Nat não
ouviu.
Achava que conhecia a rapariga, mas não tinha a certeza e não lhe
importava. Ele era uma das árvores da floresta, ela era uma trepadeira a
enroscar-se à sua volta, mas fácil de arrancar. Deixou de reparar nela. Já não
conseguia ver. Não conseguia ouvir nem falar. Só conseguia sentir as luzes a
cortarem-no como lâminas e o vazio dentro dele, que crescia sem parar e o
enchia de frustração e ódio. Qual a razão de ser de tudo? O mundo era um
lugar sem sentido. Ele era inútil, a sua mãe estava a sofrer e nunca mais veria
o pai…
Annabelle regressava à festa, sacudindo-se ao ritmo da batida, de olhos
semicerrados, braços abertos, contorcendo-se em torno de quem passava.
Encontrou Georgie com Theo e Cat, espraiados na relva, golpeando o ar com
as mãos e abanando as cabeças ao ritmo da batida hardcore. Baixou-se, junto
deles e agarrou numa garrafa de Bacardi.
– Já viste o Nat? – perguntou numa voz arrastada, enquanto Georgie se
encostava a ela.
O braço de Georgie esculpiu um semicírculo no ar cintilante.
– Está ali, nalgum sítio – respondeu, a apontar para nenhum lugar em
particular. – Com a Melody.
Annabelle levantou-se cambaleando.
– Lindo – murmurou Theo, reparando que ela não tinha calcinhas.
Sorrindo, Annabelle levantou a bainha para que ele visse melhor. A seguir,
deixou o grupo sobre a relva. Já não precisava deles.
Encontrou Nat do outro lado do Copse, com Melody agarrada a ele. Simon
estava com uma rapariga que Annabelle nunca vira antes.
– Olá – balbuciou, quase dando um empurrão a Nat enquanto tentava
afastar Melody dele.
– Olá – disse Melody numa voz enrolada, voltando a apoiar a cabeça
sobre o ombro de Nat.
Annabelle olhou Nat nos olhos de modo intenso. Os seus rostos eram
iluminados por clarões de vermelho, verde, amarelo e azul. Os lábios de
Annabelle curvaram-se num sorriso ao baixar os olhos para a boca dele. Nat
girou a cabeça para beber mais cerveja. Annabelle estendeu as mãos para
Melody de novo e fê-la rodopiar até à multidão ondulante. Quando voltou, Nat
afastava-se, abrindo caminho através das dúzias de bastões de luz que haviam
surgido no matagal como cogumelos eletrónicos. Annabelle seguiu-o,
mantendo a distância, esperando que ele olhasse para trás, mas Nat não o fez.
Ele sabe que vou atrás dele. É o que ele quer. Eu amo-o, amo-o, amo-o.
Alcançou-o na margem do rio, perto do Declive dos Amantes. Nat estava
parado, com o olhar fixo em nada. A música permanecia uma presença
latejante, entremeada por conversas e risos. Havia corpos por todo o lado,
contra árvores, debaixo de arbustos, estirados ao acaso na relva. Apanhando a
mão dele, Annabelle arrastou-o para o declive. A gravidade empurrou-o, mas
Nat não se deteve no fundo e, largando com violência a mão dela, continuou a
andar.
– Vá lá, tu sabes que queres – riu Annabelle, saltitando atrás dele.
Nat continuou a andar, aumentando o passo. Já não devia estar muito longe
da ponte.
– É só sexo – gritou ela, tentando agarrar-lhe o braço. – Vamos lá.
Nat voltou-se para a olhar, com o rosto tenso de frustração.
– Não é não, que parte é que não compreendes? – perguntou.
Annabelle riu alegremente.
– A parte que é mentira – disse e, deixando-se cair na direção dele,
envolveu-o com os braços e tentou beijá-lo.
Virando-lhe o rosto, Nat agarrou-lhe os pulsos e afastou-a para o lado.
– Que se passa? – exclamou Annabelle alegremente. – Oh, meu Deus, não
me digas que ainda és virgem.
Ignorando-a, Nat continuou a andar.
– Porque não deixas que eu te ensine? – disse Annabelle, dançando diante
dele. – Anda lá, ambos sabemos que queres….
– Sai da minha frente – atalhou Nat rudemente.
– Qual é o problema? – riu-se ela. – Se serviu para o teu pai e a minha
mãe, porque é que não há de servir para nós? Vai ser como uma transmissão
para outra geração de… – Annabelle deteve-se quando a mão de Nat se fechou
como uma garra à volta do seu braço.
– Que estás a dizer? – perguntou Nat com raiva, mas, no próprio momento
em que fazia a pergunta, as memórias começavam a fluir, a transformar-se, a
precipitar-se na base do seu crânio, como elementos reluzentes de um
caleidoscópio.
– Estás a mentir – rugiu ele, num tom que fez o queixo de Annabelle cair.
– Retira o que disseste! Admite que estás a mentir! – gritou. Nos seus olhos,
começavam a aparecer lágrimas.
– Não – gritou Annabelle, enquanto Nat apertava mais o punho à volta do
seu braço. – Solta-me – e, empurrando-o, virou-se para fugir, mas o seu pé
ficou preso numa raiz, fazendo-a cair.
As suas nádegas estavam expostas, as pernas afastadas. Tentou levantar-se,
mas ele estava em cima dela, imobilizando-a. As suas mãos rodearam-lhe a
garganta, apertando e sufocando-a. Annabelle lutou para se libertar, mas Nat
era demasiado pesado e ela não conseguia mover-se. A raiva e a dor dele
estavam fora de controlo. Nat mal sabia o que fazia. Não conseguia pensar.
Não conseguia fazer nada a não ser mantê-la ali.
– Nat – arquejou Annabelle. – Nat… Larga-me… Eu…
– Retira o que disseste – gritou ele. – Retira.
A música rugia e pulsava, furiosas centelhas de luz faiscavam por entre as
árvores, e Annabelle continuava ali, contorcendo-se debaixo dele, berrando,
gritando, mas tudo o que Nat conseguia ouvir eram as palavras terríveis que
ela pronunciara.
Capítulo Treze
Pouco passava das nove da manhã de segunda-feira quando Annabelle
entrou na cozinha. Sabrina estava sentada à mesa, à espera de ser atendida por
alguém da British Telecom, pronta para soltar o seu discurso sobre a decisão
da empresa de eliminar cabines telefónicas em zonas rurais.
– Voltaste cedo – disse a Annabelle, mal olhando para cima enquanto
continuava a rever a sua lista de objeções. – A mãe da Georgie trouxe-te?
Só passados uns momentos é que Sabrina se apercebeu de que Annabelle
permanecia de pé junto à mesa, em silêncio. Olhou para cima e sentiu as
entranhas gelarem lentamente.
– Meu Deus – murmurou, pousando o auscultador.
– Não faças nenhum escândalo – disse Annabelle.
– Que te aconteceu? – balbuciou Sabrina, tão atordoada pelos ferimentos
no rosto da filha que não conseguia raciocinar.
Annabelle tentou responder, mas as palavras emaranharam-se na sua
garganta enquanto tentava não chorar.
– Tens de me dizer – disse Sabrina, aproximando-se dela e afastando-lhe
os cabelos para trás para ver melhor.
– Não interessa.
– Que aconteceu? – perguntou Sabrina num tom determinado. – Tens de me
dizer.
– Eu… fui violada – disse Annabelle numa voz sufocada.
Sabrina ficou paralisada com o choque.
– Que queres dizer? – perguntou estupidamente.
– Fui violada – gritou Annabelle. – Não sabes o que isso quer dizer?
– Oh, meu Deus – murmurou Sabrina, começando a tremer. Aquilo não
podia estar a acontecer. Precisavam de começar aquela conversa do início.
– Tens… tens a certeza? – gaguejou.
– Claro que tenho a certeza, sua idiota!
– Annabelle, para – gritou Sabrina, agarrando a filha quando esta lhe virou
as costas, preparando-se para fugir a correr. – Desculpa. Eu… Isto é… Estás
bem?
– Que achas? Olha para mim!
Sabrina estava a olhar. Alguém atacara a sua menina e tudo o que
conseguia pensar era que aquilo não podia ser verdade.
– Quando é que isto aconteceu? – perguntou.
– No sábado à noite.
Os olhos de Sabrina abriram-se muito.
– Mas porque é que só me estás a dizer agora? – exclamou. – Onde tens
estado?
– Em casa da Georgie. Não podia vir para aqui, porque tinha medo que
armasses um pé de vento.
– E quê, agora é suposto não o fazer?
– Não, eu só… Não grites comigo. A culpa não foi minha.
Sabrina não se apercebera de que havia levantado a voz e envolveu
Annabelle nos seus braços.
– Não, é claro que não foi – disse, sentindo-se percorrida por vagas de
horror. – Oh, minha menina, minha pobre menina. – As lágrimas escorriam-lhe
dos olhos. Mas que ia fazer? Como podia remediar aquela situação? – Temos
de chamar a polícia – disse, num tom decidido. – Se alguém te magoou…
– Que queres dizer com se? Achas que estou a mentir?
– Claro que não. Agora, quero que te sentes aqui enquanto faço a chamada.
Vai ficar tudo bem, OK? Quem quer que tenha sido, eles vão apanhá-lo…
– Eu sei quem foi. Estava lá, lembras-te?
Sabrina pestanejou. Porque é que ainda não lhe perguntara aquilo? Que se
passava com ela, que não se conseguia lembrar das perguntas certas?
– Quem foi? – perguntou Sabrina numa voz rouca.
– Foi o Nathan Carlyle – cuspiu Annabelle.
Sabrina cambaleou. Annabelle colocou a cabeça entre as mãos. Ouvindo a
sua voz como se viesse de muito longe, Sabrina disse:
– O Nathan Carlyle fez-te isto?
– Foi o que acabei de dizer. Estás surda ou quê?
– Não, eu… Que aconteceu exatamente? Onde estavas tu?
– Não importa. Liga para a polícia. Eles têm de o prender.
– Claro, mas… Quando é que tudo aconteceu?
– Já te disse, no sábado à noite.
– Mas então, porque é que tu…? Eles vão querer saber porque só vais
apresentar queixa agora.
– Porque tinha bebido e tomado drogas, OK? Foi por isso que não pude
voltar para casa, porque sabia que ias logo chamar a polícia e, se eles
encontrassem aquilo tudo no meu organismo, iam dizer que a culpa era minha.
Até me podiam prender…
Sabrina pestanejou quando finalmente compreendeu a verdade.
– Estiveste naquela rave – disse.
– Daah.
– Mas tu só tens quinze anos!
– Por isso mesmo! Álcool, drogas…
Apercebendo-se de que se estavam a afastar da questão principal, Sabrina
disse:
– Mas não entendes? É ilegal para qualquer pessoa ter sexo contigo,
independentemente de estares sob a influência de álcool e drogas ou não. Por
isso, nunca pode ser culpa tua. Agora, vou chamar a polícia e esse rapaz vai
pagar pelo que fez.
– É isso mesmo – mastigou Annabelle –, e é o que ele merece.

Passou mais de meia hora até um carro-patrulha aparecer. O polícia que


saiu do carro era jovem, desengonçado e sofria de uma erupção tardia de acne
no rosto. Assim que o viu, Sabrina teve vontade de o mandar embora.
Precisavam de uma mulher, de uma detetive, com experiência, patente e
autoridade suficientes para proceder a uma detenção imediata.
No entanto, o agente Mervin Mellows revelou-se surpreendentemente
confiante, não se deixando intimidar facilmente por aquela mãe dominadora
que o questionou enquanto Mellows tentava explicar que agentes mais
graduados, de Bath ou Bristol, as iriam contactar em breve. Na sua qualidade
de polícia local, destacado em Wells, tinha ido vê-las para lhes assegurar a
seriedade com que a polícia estava a encarar aquela chamada. Para além
disso, teve um comportamento respeitoso e delicado para com Annabelle,
enquanto anotava os pormenores essenciais da sua história.
– Então, conhece a pessoa que a atacou? – disse, desviando o olhar do seu
bloco de notas.
– Que a violou – corrigiu Sabrina.
Mellows manteve o olhar em Annabelle.
– O nome dele é Nathan Carlyle – disse.
Mellows tomou nota.
– É daqui?
– Sim. Mora no outro lado da aldeia. É o sobrinho do meu padrasto.
O agente franziu os olhos enquanto tentava perceber.
– É filho da irmã do meu marido – explicou Sabrina.
– Obrigada – disse Mellows, anotando a informação.
Estava prestes a dirigir-se novamente a Annabelle quando Sabrina disse:
– Não o vão prender? Ele vive na Coach House, em The Close.
Provavelmente está lá agora.
– Peço desculpa, mas as coisas não funcionam assim – disse Mellows
educadamente.
Sarbina irritou-se.
– Mas deviam. Sabe-se lá se ele não estará a planear fazer o mesmo a
outra pessoa!
Decidido a não se deixar arrastar para aquela discussão, Mellows disse a
Annabelle:
– Vou informar a esquadra de tudo o que me disse até agora e, depois,
talvez possamos ir ao Copse para me mostrar onde tudo aconteceu.
Annabelle olhou para a mãe.
– Não quero voltar lá – protestou num gemido.
– Não, é claro que não – respondeu Sabrina suavemente. – Isto é
absolutamente necessário? – perguntou friamente a Mellows.
– A equipa forense vai precisar de uma localização o mais precisa
possível para poder recolher provas – explicou.
Na impossibilidade de contra-argumentar, Sabrina virou-se para
Annabelle.
– Vai tudo correr bem – assegurou-lhe. – Eu vou estar contigo e, mal
indiques o local, podemos vir embora imediatamente.
Os olhos de Annabelle regressaram nervosamente ao agente Mellows.
– É isso – confirmou o polícia. – Não terá de ficar lá muito tempo. Só
preciso que me dê uma localização o mais exata possível e, a seguir, trago-a
de volta aqui. Por essa altura, já deverá haver alguém da EICS, a Equipa de
Investigação de Crimes Sexuais, a querer falar consigo.
Annabelle empalideceu.
– Isso parece um bocado exagerado – disse, num tom de dúvida.
– Uma violação é um assunto muito sério – lembrou o agente e, pondo-se
de pé, saiu em direção ao carro, para comunicar por rádio com a esquadra.
Annabelle e Sabrina esperaram em silêncio, já que nenhuma das duas
sabia o que fazer ou o que dizer.
– Devia ligar ao Robert – disse Sabrina, olhando para o telefone com um
ar nervoso.
Annabelle não se pronunciou e a mãe ficou onde estava.
– Se calhar, devíamos esperar até sabermos o que vai acontecer – decidiu
Sabrina.
Para alívio seu, o polícia voltou e perguntou-lhes se estavam prontas a ir
até ao Copse. Fazendo um esforço para não se sentir intimidada pela enorme
máquina policial que a história da filha pusera em andamento, Sabrina rodeou
Annabelle com um braço e conduziu-a ao carro da polícia. O agente Mellows
abriu a porta traseira para que entrassem e, de seguida, deslizou para trás do
volante e fez inversão de marcha para seguir por Holly Way em direção à rua
principal. Sabrina ia sentada muito junto a Annabelle, com o olhar fixo na sua
frente, mas apercebeu-se de que, ao passarem, o cónego Jeffries ergueu os
olhos do seu jardim, e desejou ter-se lembrado de levar a filha no seu próprio
carro.

Duas horas mais tarde, o relógio da torre por cima da loja de Alicia dava
meio-dia. O sol brilhava ardentemente sobre a rua principal, recozendo as
velhas pedras da calçada e fazendo murchar as flores do memorial de guerra.
Depois de os sinos se calarem, a aldeia voltou a mergulhar numa calma
inquietante. O local parecia completamente deserto – não se via qualquer sinal
de vida em lado nenhum, nem mesmo no pub, que tinha as portas abertas e
exibia, frente à entrada, um convidativo letreiro que publicitava um almoço de
dois pratos por sete libras e cinquenta. Contudo, todas as mesas e cadeiras na
esplanada estavam vazias.
No extremo de The Close, uma multidão começava a reunir-se na margem
do rio, na tentativa de observar o que se passava no Copse para lá da ponte
pedonal. A zona pululava com polícias. Metros de fita azul e branca rodeavam
o desordenado aglomerado de árvores e havia pelo menos uma dúzia de carros
da polícia estacionados por todo o lado, alguns com as luzes ainda ligadas,
outros com os rádios a trabalhar.
Do local onde os aldeões se agrupavam, não se conseguia ver grande
coisa. A cena do crime propriamente dita não era visível dali, tal como a
maioria das atividades de busca que decorriam. Ainda ninguém sabia o que
acontecera, mas os boatos circulavam a grande velocidade. Alguém sofrera
uma overdose por causa de drogas. Uma rapariga fora atacada. Um rapaz
enforcara-se. Tinham descoberto um cadáver.
Sem vontade de continuar ali a ouvir aquilo, Alicia abriu passagem por
entre a multidão e encetou o caminho para casa. Dava-lhe uma sensação
estranha ver tanta atenção concentrada na periferia da sua pequena aldeia. Era
como se estivessem a ser invadidos – e, de certa forma, estavam, pois, fosse
qual fosse a razão que levara a polícia até ali naquele dia, quase de certeza
iria percorrer as casas de Holly Wood uma a uma para descobrir o que os
habitantes locais tinham visto ou ouvido.
A Coach House estava em silêncio quando Alicia entrou. Adivinhando que
Nat ainda devia estar deitado, resolveu deixá-lo dormir e foi para a cozinha
preparar o almoço. Apesar de o filho ter estado na rave no sábado à noite,
ouvira-o chegar a casa por volta da uma da manhã e, uma vez que no dia
anterior Nat não mencionara qualquer acontecimento invulgar na festa, Alicia
só podia presumir que, o que quer que tivesse levado a polícia ali, sucedera
depois de o filho se vir embora.

– Podemos sempre ir até aí – disse o agente da EICS a Sabrina ao telefone


–, mas, se a Annabelle estiver de acordo, vamos ter de lhe fazer um exame
médico e aqui temos as instalações necessárias. Terei muito gosto em ir até aí
buscá-la.
– Não é necessário – disse Sabrina. – Diga-me onde estão situados e eu
vou aí levá-la.
Depois de lhe dar a morada, o agente disse:
– Pode trazer as roupas que a Annabelle usava na altura, por favor?
Alguma das peças foi lavada?
– Que eu saiba, não. Não me vou esquecer de as levar.
Meia hora depois, Sabrina e Annabelle saíam da aldeia de carro. As mãos
de Sabrina agarravam o volante com tanta força que mal se conseguia mexer
para trocar de mudança ou ligar os piscas. Ainda não telefonara a Robert, mas,
mais tarde ou mais cedo, teria de o fazer. A seu lado, Annabelle olhava pela
janela com ar ausente. As nódoas negras no seu rosto e pescoço destacavam-se
vividamente contra a palidez da sua pele. As suas mãos estavam apertadas em
dois punhos ansiosos e tinha os joelhos muito juntos.
Enquanto atravessava o condado, seguindo as indicações do GPS, para um
local chamado Pilning, Sabrina continuava a tentar absorver a enormidade do
que estava a acontecer. O facto de Nathan ser filho de Craig distorcia a
situação por completo. Estava a tornar-lhe impossível pensar corretamente, a
não ser que se lembrasse de que Nat também era filho de Alicia. Então, a sua
fúria crescia a um ponto em que nenhuma vingança seria suficiente. Como se
atrevia aquele estuporzinho convencido e arrogante a tocar na sua filha?
– Mãe, vais depressa de mais – queixou-se Annabelle.
– Desculpa – disse Sabrina e, aliviando a pressão sobre o acelerador,
lançou um olhar rápido à filha. – Já não deve faltar muito – continuou, tentando
sorrir. – Como te sentes?
Annabelle respondeu numa vozinha frágil:
– Não sei. Um bocado esquisita e assustada.
Estendendo a mão para agarrar na da filha, Sabrina apertou-a de maneira
reconfortante e disse:
– Não tens de ter medo de nada. Só tens de lhes dizer o que aconteceu e,
depois, podemos voltar para casa outra vez.
Engolindo em seco, Annabelle voltou-se para a janela para olhar de novo
para a paisagem rural que atravessavam.
– Achas que já o prenderam? – perguntou, ao fim de algum tempo.
– Espero que sim – respondeu Sabrina e, recordando a forma como o rapaz
costumava olhar para ela, tão fria e entendida, sentia-se contente por, já que
tinha de haver um culpado, ser ele.
No instante seguinte, estava a desfazer-se em lágrimas e teve de parar o
carro na berma da estrada para se tentar recompor.
– Desculpa – disse, numa voz entrecortada, enquanto Annabelle a tentava
reconfortar. – É que não suporto pensar que alguém te fez mal – disse,
agarrando o rosto da filha entre as mãos. – Vais ficar bem – disse com
determinação. – Não me interessa que ele seja filho… sobrinho do Robert. Vai
pagar por aquilo que fez.
Annabelle engoliu em seco, enquanto as lágrimas lhe começavam também
a correr dos olhos.
– Sim – sussurrou. – Sim, ele devia pagar.

Nat estava sentado na borda da cama, com os cotovelos apoiados nos


joelhos e segurando a cabeça com as mãos, como se esta fosse demasiado
pesada para se erguer sozinha. A mãe já o chamara várias vezes para ir
almoçar, mas tinha tanto medo que não conseguia sair do quarto. Era como se,
permanecendo ali sem se mexer e quase sem respirar, o pesadelo que tentava
abater-se sobre ele não fosse capaz de o alcançar.
– Vou dizer a toda a gente que me violaste – gritara Annabelle, enquanto
ele se afastava.
Era isto que ela tinha feito? Era por isso que a polícia andava a vasculhar
o bosque inteiro? E se Annabelle cumprira a ameaça, por que motivo a busca
começara apenas naquela manhã? Se realmente falara a sério, então de certeza
que teria ido à polícia de imediato, pelo que, se calhar, a busca não tinha nada
a ver com ele. Talvez tivesse acontecido alguma coisa depois de ele se vir
embora. Toda a gente sabia que havia leis contra as raves, por isso talvez a
polícia estivesse lá a recolher provas do uso de drogas, antes de interrogarem
quem quer que conseguissem deter que tivesse estado presente. Era possível,
repetia para si próprio, era realmente possível.
De súbito, pondo-se de pé de um salto, começou a caminhar pelo quarto.
Para a frente e para trás, para a frente e para trás. Annabelle nunca deveria ter
falado no pai dele. Teria conseguido suportar tudo, menos aquilo. Aquelas
mentiras nunca deveriam ter saído da boca dela. Queria fazê-las voltar para
trás, empurrá-las pela sua garganta abaixo, para fazê-la querer vomitar,
engasgar-se com elas, tal como ele se sentia engasgado desde então. O seu pai
nunca teria traído a sua mãe. Ele amava-a. Eles eram felizes juntos, a família
era tudo para ele, não havia maneira nenhuma de o pai poder ter tido um caso
com Sabrina. Nat não queria, não podia pensar no facto de a mãe e Sabrina se
detestarem mutuamente. Se o fizesse, teria que aceitar que Annabelle podia ter
dito a verdade e, se tinha, tudo aquilo em que acreditara, o amor do pai, o laço
que mantivera a família unida, mas, acima de tudo, a honestidade de Craig, a
sua integridade e todas as outras coisas que este tinha pregado a Nat sobre o
respeito, a lealdade e o amor, tudo seria mentira.
Sufocando um soluço, apertou mais as mãos à volta da cabeça. Havia tanta
confusão e raiva dentro dele, que sentia que poderia explodir. Porque não
estava o pai ali para responder às suas perguntas? Por que motivo a mãe não
lhe dissera a verdade? Será que achava que ele era uma criança, que não
conseguiria lidar com aquilo?
Inspirando profundamente, passou as mãos sobre o rosto e sentiu a cabeça
começar de novo a girar, com o horror daquilo que Annabelle podia estar a
contar à polícia. Teria de encontrar maneira de bloquear aqueles pensamentos,
ou de escutar aquela vozinha que lhe dizia que a busca da polícia podia nada
ter a ver com ele. No entanto, o medo que alastrava na sua cabeça continuava a
insistir na mesma ladainha terrível. O que lhes estava ela a dizer? Quanto
daquilo era verdade, e quanto era mentira?

O sargento-detetive Clive Bevan estava na sede do DIC, o Departamento


de Investigação Criminal da polícia de Avon e Somerset, em Feeder Road,
Bristol, avaliando a informação que tinha até ao momento sobre o caso de
violação que acabava de lhes ser comunicado. Era um homem de quarenta e
poucos anos, de apresentação cuidada, com cabelo escuro brilhante, maxilares
quadrados e fortes e olhos implacavelmente penetrantes que, em geral, não
demoravam muito a furar a carapaça das histórias que escutava para detetar a
mentira.
Como era ainda demasiado cedo para formar uma opinião sobre o que
tinha agora na frente, estava a concentrar-se sobretudo na idade da vítima,
porque, se ocorrera um ato sexual, quer tivesse sido consensual ou não, era
garantido que fora cometido um crime. No entanto, este “se” permanecia um
elemento-chave, uma vez que ainda não tinham entrevistado ambas as partes e
a sua longa experiência ensinara-lhe que casos desta natureza, envolvendo
dois adolescentes numa festa, muitas vezes desapareciam por si antes de
alguém ser acusado.
– Já há notícias da equipa de investigação forense? – perguntou a Morley
Croft, um dos detetives sob as suas ordens, que lia a mesma informação no
ecrã.
– Ainda estão a passar a zona a pente fino – respondeu Croft.
– O Dickon está a perguntar quando tenciona ir até lá.
– Ele sabe que não posso ir até ao local do crime até ela acabar de o
processar – respondeu Bevan num tom irritado.
– Por causa dos perigos de contaminação das provas – disse Croft.
– Exatamente – confirmou Bevan. – A seguir vou falar com a vítima e não
quero levar indícios da cena do crime agarrados à sola dos sapatos para as
instalações de processamento de violações. As únicas provas recolhidas lá
devem vir da vítima. E tu, meu amigo, vais buscar o rapaz para o
interrogarmos. Onde é que ele vive mesmo?
– Na mesma aldeia que ela, perto de onde tudo aconteceu. Um lugar
chamado Holly Wood, dá para acreditar?
Bevan franziu o nariz.
– Onde diabos fica isso? E, por favor, não me digas que é na Califórnia.
– É como se fosse – respondeu Croft –, porque fica longe como tudo. É
depois de Shepton Mallet, quase a chegar a Yeovil, segundo o mapa.
Bevan exibiu um grande sorriso.
– Vais gostar de passar um dia no campo – disse, estendendo a mão para as
chaves do carro. – Leva o miúdo para Bath, se eles tiverem espaço, e eu vou
ter contigo lá. Ian – disse para outro detetive que, servindo-se de um marcador
negro, fazia uma lista dos detalhes do caso num quadro branco –, vai com ele e
peçam a cooperação de um polícia local para a busca.
– Sim, sargento – respondeu Ian Grange, colocando a tampa no marcador.
– Se o miúdo tentar resistir, algemem-no – disse Bevan a Croft –, caso
contrário, tentem ser discretos. E não se esqueçam de recolher e etiquetar
todas as peças de roupa que ele usou no sábado à noite.
– E qualquer outra coisa que pensemos que pode ser relevante –
acrescentou Croft –, mas limitando a busca ao quarto do rapaz e às áreas
comuns.
– É isso – anuiu Bevan, emitindo a seguir um suspiro de irritação ao
recordar o elemento mais complicado do caso. – Mas porque é que tinha de
acontecer no meio do raio de uma rave? – resmungou. – Se tivermos de
começar a localizar aqueles miúdos todos… Mas não vamos ficar já
deprimidos. Ainda há uma boa hipótese de a miúda mudar de ideias, mesmo
antes de falarmos com ela, por isso, se calhar ainda acabamos a ver o jogo
descansadamente mais logo, com uma cerveja na mão.

– Tens a certeza de que era aqui que devíamos vir? – disse Annabelle com
ar de dúvida, enquanto Sabrina virava de uma rua secundária ladeada de
árvores para uma rampa de acesso asfaltada.
Na sua frente, havia uma grande casa independente, cujas paredes creme e
grandes janelas de caixilhos pintados a azul a faziam parecer-se mais com uma
residência privada do que com qualquer esquadra de polícia que alguma vez
tinham visto.
– Foi este o endereço que me deram – respondeu Sabrina, estacionando o
seu Lexus dourado ao lado de um Citroën C4 negro. Havia outros carros no
pátio de entrada, mas nenhum tinha visíveis as insígnias da polícia. – Espera
aqui – disse a Annabelle –, vou ver.
Mal tinha saído do carro quando a porta da frente se abriu e uma mulher
jovem e atraente, com abundantes cabelos louros encaracolados e um sorriso
amistoso, avançou para a cumprimentar.
– Olá – disse a mulher, estendendo uma mão a Sabrina para a
cumprimentar. – Sou a agente Lisa Murray. É a Sra. Paige?
Sabrina acenou com a cabeça e estendeu a mão à mulher.
– Falámos ao telefone – esclareceu Lisa Murray.
– A Annabelle está no carro – disse Sabrina.
Curvando-se para poder espreitar para o carro, a agente sorriu
calorosamente e disse:
– Olá, Annabelle. Sou a Lisa. Queres entrar?
Saindo cautelosamente do carro, Annabelle olhou para a mãe e, a seguir,
contornou o veículo para lhe dar o braço, enquanto a agente Lisa Murray as
conduzia para o interior.
– Pensei que isto era a casa de alguém – disse Annabelle numa voz rouca.
– São as instalações especiais da EICS – explicou Lisa –, a Equipa de
Investigação de Crimes Sexuais. Achámos que é mais fácil as pessoas falarem
connosco se estiverem num ambiente algo mais acolhedor, mais parecido com
uma casa do que uma esquadra de polícia.
Annabelle acenou ligeiramente com a cabeça e encostou-se mais ainda à
mãe.
– Agora vou levá-las até à sala de espera – disse Lisa, que caminhou por
um corredor atapetado de azul, passando por duas portas fechadas e dirigindo-
se a uma sala no final.
Annabelle lançou um olhar a Sabrina. Não era propriamente um lugar
assustador, mas estava silencioso como uma morgue e cheirava como um
quarto de hospital cheio de mofo.
– É aqui – disse a agente, indicando-lhes que entrassem para uma espécie
de sala de estar com um grande sofá de aspeto confortável, dois cadeirões e
uma mesa de centro com revistas e uma caixa de Kleenex. Numa das paredes
alinhavam-se vários cacifos e via-se um televisor antiquado no espaço entre
as janelas de vidros foscos, cujos estores balouçavam suavemente com a
corrente produzida pela porta aberta.
– O sargento-detetive Bevan vem a caminho. É o agente encarregado da
investigação.
Annabelle recuou, encostando-se à mãe.
– Não quero falar com um homem – protestou.
Lisa sorriu com empatia.
– Está tudo bem, sou eu que vou falar contigo – assegurou-lhe. – Mas ele
vai estar a ouvir tudo. Agora, querem-se sentar? Ali atrás há uma cozinha,
posso fazer um café, se quiserem…
Annabelle abanou a cabeça.
– Eu não quero, obrigada.
– Eu também não – disse Sabrina, puxando Annabelle para que se sentasse
junto a ela no sofá.
Sentando-se na extremidade de um dos cadeirões, Lisa entrelaçou as mãos
e olhou-as com uma expressão amável.
– Agora, vou rever os procedimentos convosco – disse –, só para terem
uma ideia do que vai acontecer. O médico já está cá. Está na sala de exames
médicos, por onde passámos ao vir para aqui. Não te importas que te façamos
um exame? – perguntou a Annabelle.
Annabelle engoliu em seco e acenou com a cabeça.
– Acho que não – respondeu.
– Podes dizer-me se tomaste banho depois de aquilo acontecer?
Annabelle arregalou os olhos.
– É claro que tomei! – respondeu, indignada.
A expressão de Lisa permaneceu amigável.
– Não faz mal – disse –, só torna a busca de ADN um pouco mais difícil,
mas não impossível.
Annabelle acalmou-se.
– O médico vai-te examinar em busca de ferimentos – prosseguiu Lisa. –
Os que tens na cara e no pescoço são óbvios, mas pode haver outros, nas tuas
costas ou nos teus braços, por exemplo, que ainda nem sequer notaste. Ele vai
examinar o teu corpo todo e fazer esfregaços secos e húmidos, o que quer
dizer que em alguns vai usar água destilada e, noutros, não. Não te vai tirar
fotografias. Vai ser tudo assinalado num esquema que representa o teu corpo.
Para o exame interno, o médico vai usar um espéculo. Sabes o que é?
Annabelle abanou a cabeça.
– É um instrumento que facilitará a abertura da vagina, para ele poder
fazer vários esfregaços que poderão, ou não, resultar na recolha de ADN que
corresponda ao atacante.
Annabelle pareceu encolher-se por completo, enquanto, a seu lado, o
corpo de Sabrina parecia contrair-se numa gigantesca cãibra resultante da
tensão.
– Uma vez que a violação ocorreu na madrugada de domingo – continuou a
agente –, é possível que já não encontremos este tipo de vestígios, mas isso
não quer dizer que não avancemos com uma acusação. Só a tua idade já torna
qualquer tipo de relacionamento sexual ilegal. – Depois de observar uma troca
de olhares entre mãe e filha que não foi capaz de interpretar, Lisa Murray
prosseguiu: – Para além de sémen, o médico também vai procurar indícios de
traumas internos, nódoas negras ou lesões nos tecidos, esse tipo de coisas.
Também vai ter de te cortar as pontas das unhas e recolher vestígios de
debaixo das unhas e nos pelos púbicos. Tens…? – perguntou suavemente. –
Sei que, atualmente, a moda é as raparigas tirarem tudo.
– Ela fez depilação às virilhas na sexta-feira – respondeu Sabrina pela
filha.
– Na verdade, fiz depilação brasileira – disse Annabelle numa voz ténue.
Sabrina virou-se para ela, perplexa.
– Mas tu és demasiado nova para…
Interrompeu-se, apercebendo-se de que não era nem o local nem o
momento mais indicado para ter aquela discussão. A agente, cuja formação era
demasiado boa para lhe permitir exibir frustração pela ausência de pelos
púbicos, disse:
– Está tudo bem. Tenho a certeza de que não será um problema. Agora,
tenho de te perguntar se sangraste desde o incidente e se usaste um tampão ou
um penso higiénico?
Annabelle abanou a cabeça.
– Quer dizer, houve um pouco de sangue, mas não pus nada.
– Trouxeste tudo o que tinhas vestido naquela noite? – perguntou Lisa,
olhando para Sabrina.
– Está tudo num saco, no carro – respondeu Sabrina.
– OK. Talvez possa ir buscar as roupas enquanto registamos o depoimento
da Annabelle.
– Mas eu não vou estar com ela? – objetou Sabrina. – Acho que devia.
– Desculpe, mas temos de falar com ela a sós.
– Mas ela tem menos de dezasseis anos…
– É igual, temos na mesma de falar com ela a sós. – Voltando-se para
Annabelle, perguntou: – Não te importas?
Annabelle parecia insegura.
– Gostava que a minha mãe estivesse presente durante o exame médico –
disse.
– Com certeza. Agora, a última coisa que tenho de te dizer antes de o
médico te examinar é que ele vai recolher duas amostras de sangue. Sei que o
incidente se deu há mais de vinte e quatro horas, mas ainda temos de investigar
a presença no teu sangue de álcool ou drogas… Pela tua cara, posso ver que
há hipótese de encontrarmos alguma coisa, mas não te preocupes, mesmo que
tenhas consumido substâncias ilegais, isso não nos interessa. É só uma
formalidade que temos de levar a cabo e que nos poderá ajudar a determinar o
teu estado psicológico na altura.
As unhas de Annabelle enterravam-se-lhe nas palmas das mãos. Já não
sabia se queria ir para a frente com aquilo, estava tudo a ser diferente do que
esperava, com todos aqueles testes, procedimentos e tudo o resto. Parecendo
ler-lhe o pensamento, Lisa disse:
– Sei que, ao início, pode parecer tudo um pouco assustador, mas, depois
de conversarmos e de fazeres o exame, podes ir para casa e o sargento-
detetive Bevan depois trata de tudo.
Annabelle mal olhou para ela. A seguir, num tom de voz que surpreendeu
Lisa pela sua dureza, tendo em conta o quanto parecera frágil e insegura até
então, perguntou:
– Ele já foi preso?
– Não tenho a certeza – respondeu Lisa cuidadosamente. – O sargento-
detetive Bevan poderá dizer-nos quando chegar.

Vendo o nome de Rachel no visor do telemóvel, Alicia atendeu de


imediato.
– Olá – disse. – A que devo este prazer, bem no meio do teu horário de
atendimento?
Com uma entoação irónica, Rachel disse:
– Pensei que te devia manter a par dos últimos acontecimentos em Holly
Wood.
Alicia riu.
– E tu estás a par deles porque…?
– O cónego Jeffries acabou de cá vir trazer o gato e sabes como gosta de
se pôr a mexericar. Segundo parece, hoje de manhã esteve um carro da polícia
à porta da casa do teu irmão.
O sorriso de Alicia extinguiu-se.
– Mas há mais – continuou Rachel –, de acordo com o nosso cónego.
Quando o polícia saiu, a Sabrina e a Annabelle foram com ele, e regressaram
uma meia hora depois.
O raciocínio de Alicia disparava em demasiadas direções, e nenhuma lhe
transmitia nada de bom.
– E o que podemos deduzir daí? – perguntou, na esperança de que Rachel
pudesse dar-lhe uma visão mais otimista dos acontecimentos.
– Não faço ideia, mas, o que quer que seja que motivou a busca no bosque,
parece envolver a Annabelle.
– Vou ligar ao Robert – disse Alicia e, depois de se despedir rapidamente
da amiga, começou a procurar o número de Robert no telemóvel.
– Mas que coincidência – disse Robert, quando atendeu. – Ia ligar-te agora
mesmo. Sabes que há uma feira de arte em Somerton, no fim de agosto? Está
anunciada no jornal local. Pode ser que ainda haja tempo para inscreveres as
tuas esculturas.
– Obrigada, mas já tentei e as inscrições fecharam há um mês – disse
Alicia. – Que se passou, para a polícia ir a tua casa hoje de manhã?
Houve um instante de atordoado silêncio antes de Robert responder.
– A polícia esteve em minha casa? Tens a certeza? Sabes porquê?
– É o que te estou a perguntar. Onde estás?
– No laboratório.
– Bem, tudo o que te posso dizer é que estão a fazer uma busca qualquer no
Copse e, aparentemente, a Sabrina e a Annabelle saíram acompanhadas por um
polícia hoje de manhã.
Houve outro momento de espantado silêncio e, depois, Robert disse:
– Vou telefonar à Sabrina e já te volto a ligar.
Quando deixou de ouvir o irmão, Alicia desligou também o telemóvel e,
resolvendo abandonar o novo desenho em que estava a trabalhar, fechou o
portátil e meteu-o na pasta para o levar com ela para casa. Uma vez que
passava das duas da tarde, Nat já devia estar levantado e, se não estivesse, ia
insistir para que a deixasse entrar no quarto, porque não era nada típico do
filho ficar assim metido na cama até tão tarde. Se estivesse doente, poderia ser
necessário chamar um médico e, se estava deprimido, Alicia também
precisava de saber. Estava mesmo a virar para The Close quando passou por
ela um Ford Focus azul-escuro, seguido por um carro com as insígnias da
polícia. Para seu sobressalto, pararam ambos diante da Coach House e,
quando viu dois homens de fato saírem cá para fora, apossou-se dela um
terrível pressentimento.
– Faz favor…? – gritou, correndo em direção aos homens e esforçando-se
por não deixar o seu pânico crescente tomar-lhe conta da voz.
O detetive Morley Croft voltou-se. A aparência impressionante do seu
rosto, provavelmente de origens africanas, era perturbada por uma cicatriz
rosada que lhe atravessava a face.
– É a Sra. Carlyle? – perguntou.
– Sim. Em que os posso ajudar?
– É a mãe de Nathan Carlyle?
– Sim – respondeu Alicia numa voz fina e aguda como uma lâmina.
– Sou o detetive Morley Croft – disse o agente – e este é o detetive
Grange. Gostaríamos de falar com o seu filho, se ele estiver em casa.
A cabeça de Alicia girava tão rapidamente que mal conseguia falar. Estava
tudo bem, tentava dizer a si própria. Os polícias estavam só a fazer o trabalho
deles. Toda a gente estava a ser interrogada e Nat tinha tanto a esconder como
ela. Aquilo eram interrogatórios de rotina porque o filho estivera na rave.
Tentou sorrir, como se a simpatia dela pudesse fazê-los repensar qualquer
intenção mais sinistra.
– Não querem entrar? – disse. – Ele ainda estava deitado quando saí, mas
tenho a certeza de que agora já deve estar a pé. Posso saber de que se trata?
– Precisamos de falar com o Nathan – respondeu Croft inexpressivamente.
– Mas isto tem a ver com o que aconteceu no bosque, não é?
O detetive não respondeu, limitando-se a seguir Alicia para dentro de casa
com o colega mesmo atrás, enquanto os dois polícias de uniforme esperavam
no exterior. Alicia sentia o peito tão comprimido que praticamente parara de
respirar.
– Vou chamá-lo – conseguiu dizer.
– Mãe? – disse Nat, do cimo das escadas.
Alicia olhou para cima e sentiu uma ânsia avassaladora de o empurrar de
volta para o quarto, como se esconder o filho pudesse protegê-lo de algo que
nem sequer podia nomear.
– Estás a pé. Ótimo – ouviu-se a si própria dizer. – Estes senhores querem
falar contigo. – Virou-se para Croft. – Podem ir para ali – disse, apontando
para a sala de estar. – Querem tomar um chá?
Croft observava Nat, que se deteve a meio das escadas. O seu jovem rosto
empalideceu de tal forma que Alicia soluçou de medo.
– É Nathan Douglas Carlyle? – perguntou Croft.
– Sim – balbuciou Nat.
– É capaz de me dizer a sua data de nascimento?
– Dez de novembro de 1992.
Croft acenou com a cabeça.
– Nathan Douglas Carlyle, está detido pela violação de Annabelle Preston
e devo adverti-lo de que…
– Oh, meu Deus! – gritou Alicia, sobrepondo-se às palavras do polícia.
– Eu não a violei – gritou Nat. – Ela…
Acabando de informar Nat dos seus direitos, Croft disse:
– Aguenta aí, rapaz, não digas mais nada. Tenho de registar as tuas
respostas e, se calhar, podes querer esperar até teres um advogado que te
represente.
Os olhos de Nat estavam tão arregalados que quase pareciam querer
saltar-lhe das órbitas. A boca tremia-lhe de uma forma que despedaçava o
coração de Alicia.
– Ele não fez isso – insistiu Alicia numa voz trémula. – Se o
conhecessem…
– Desculpe, Sra. Carlyle, mas precisamos de fazer uma busca aqui em
casa.
– Mas ela é uma mentirosa – gritou Alicia. – Ela…
– Mãe, não digas mais nada.
– Mas não a podem deixar fazer uma coisa destas. Têm um mandado de
busca? – perguntou, virando-se para Croft.
– Ao abrigo da Secção 17 do regulamento em matéria de polícia e recolha
de evidências criminais, nesta fase não precisamos de um mandado –
informou-a o detetive. – Queremos apenas levar as roupas que o Nathan usou
no sábado à noite…
– Não precisam de revistar a casa por causa disso. Nós podemos dar-vos
as roupas.
– Se puderes mostrar ao detetive Grange onde fica o teu quarto, Nathan…
– disse Croft. – Todas as áreas comuns vão ser revistadas – explicou Croft a
Alicia –, incluindo a casa de banho.
– Mas estão à procura de quê? – exclamou. – Se só querem as roupas
dele…
– Também temos de levar o computador e o telemóvel do Nathan, tal como
qualquer outra coisa que achemos relevante.
– Mas eu estou a dizer-lhes que essa rapariga é uma mentirosa – disse
Alicia quase a gritar, enquanto Nat subia de novo as escadas.
– Sra. Carlyle, quer vir comigo, por favor? – disse Croft, agarrando-lhe
suavemente no braço. – Sei que isto foi um choque para si. Há alguém a quem
possa ligar?
– O meu marido é advogado – disse irrefletidamente.
– Então, talvez lhe queira ligar.
– Não posso – disse Alicia, com a voz a quebrar-se de desespero –, ele…
– Alicia tapou a boca com a mão para se impedir de soluçar. – Ele morreu há
seis meses – conseguiu dizer.
– Lamento – disse Croft num tom respeitoso. – Não há outra pessoa?
– Que vão fazer ao meu filho? Estou-lhes a dizer, ele é…
– Vamos levá-lo para interrogatório – explicou Croft.
– Annabelle Preston acusou-o de um delito muito grave, por isso compete-
nos fazer as devidas investigações.
– Foi a mãe dela que a convenceu a fazer isto – disse Alicia num tom
premente. – Tem andado a tentar livrar-se de mim…
– Acho que seria melhor se seguisse o conselho do seu filho e não dissesse
mais nada – sugeriu Croft amavelmente.
– Ele é bom rapaz – disse Alicia, começando a perder o controlo. – Não
seria capaz de fazer nada de mal, juro-lhes. Quer seguir Direito, como o pai
dele.
– Agora vou assistir nas buscas – disse Croft. – No lugar da senhora,
respirava fundo e depois trataria de ligar a um advogado.
Compreendendo a lógica daquele conselho, Alicia encaminhou-se para a
cozinha, mas havia tantos medos a rodopiar dentro da sua cabeça que, quando
lá chegou, demorou um momento a lembrar-se do que queria fazer. Ainda tinha
a mala ao ombro, por isso, tirando para fora o telemóvel começou a procurar o
número do escritório de Jolyon. As suas mãos tremiam devido ao choque, mas,
à terceira tentativa, conseguiu marcar o número.
– Posso falar com o Sr. Crane, por favor? – perguntou, quando a chamada
foi atendida por uma telefonista.
– Vou passar à secretária dele. – Um instante depois, Alicia ouviu outra
voz, que perguntava em que a podia ajudar.
– Preciso de falar com o Jolyon – disse Alicia numa voz entrecortada. – O
meu nome é Alicia Carlyle. Por favor, diga-lhe que é uma emergência.
– Desculpe, Sra. Carlyle, o Jolyon neste momento está no tribunal. Posso
passar-lhe uma mensagem sua, se quiser.
Alicia esforçava-se novamente por dominar o seu pânico.
– Pode pedir-lhe para me ligar logo que possível? – perguntou. – Diga-lhe
que é sobre o Nat.
– Com certeza. Vou até lá agora e entrego-lhe o recado pessoalmente.
– Obrigada – murmurou Alicia.
Depois de desligar, Alicia ficou a olhar para o telefone, pensando em
Robert e em Rachel, mas todavia incapaz de ligar para qualquer um deles.
Estava à espera que tudo aquilo se revelasse um engano terrível. Os polícias
iam encontrar algo que provaria que Nat nunca poderia ter cometido aquele
crime horrível.
Porém, não houve nenhum pedido de desculpas pelo erro cometido, nem
nenhuma descoberta milagrosa. Alicia ouviu apenas o som de passos pesados
nas escadas, seguido por uma busca completa à cozinha, à sala de estar e à
velha sala de jogos, com os polícias a meterem coisas dentro de sacos de
plástico que selavam e, por fim, Nat aproximou-se dela para a abraçar antes
de o escoltarem até ao carro.
– Vai ficar tudo bem – sussurrou numa voz pesada. – Não te preocupes.
Olhando-o nos olhos, Alicia sentiu o coração partir-se em mil pedaços. O
filho tinha um ar tão desorientado, receoso e vulnerável como quando era
criança.
– Vou contigo – disse Alicia.
– Não acho que eles deixem. Já não tenho idade para isso.
Ouvindo a troca de palavras, Croft disse:
– Vamos levá-lo para a esquadra de Bath – disse, voltando-se quando um
dos polícias em uniforme se aproximou, vindo do carro.
– Em Bath não têm espaço – disse o agente. – Vamos ter de o levar para
Bristol.
– Não há problema – disse Alicia a Nat. – Já liguei ao Jolyon, por isso, há
uma hipótese de ele já lá estar quando chegares. – A seguir, perguntou ao
polícia: – Para que esquadra vão levá-lo?
– Southmead – respondeu o agente.
Jolyon devia saber onde aquilo ficava. Ia ligar-lhe para transmitir a
informação e, depois, metia-se no carro e ia também para lá.
– Vai ficar tudo bem – disse a Nat, abraçando-o com força. – Nós os dois
sabemos que ela está a mentir, portanto vamos esclarecer isto tudo e, antes de
dares por isso, estás de volta a casa.
Capítulo Catorze
– Annabelle, este é o sargento-detetive Bevan, de quem te falei – disse
Lisa Murray quando Bevan se juntou a elas numa divisão que não diferia muito
da sala de espera, excetuando o facto de, neste novo espaço, os móveis serem
estofados em veludo castanho e haver duas câmaras, cada uma num canto, com
dois microfones estrategicamente colocados nas paredes.
– Olá, Annabelle – disse Bevan, apertando-lhe a mão.
Annabelle manteve os olhos baixos.
– Olá – respondeu.
– Já fizemos o exame médico, sargento – disse Lisa. – Não custou assim
tanto, pois não? – disse a seguir para Annabelle.
Annabelle abanou a cabeça.
– Tens alguma questão? – perguntou-lhe Bevan.
– Onde está a minha mãe?
– Está na sala de espera – respondeu a agente Murray. – O sargento Bevan
acabou de recolher o depoimento dela.
– Tem a certeza de que ela não vai conseguir ouvir nada do que eu diga?
Disse-me que não…
– Tenho a certeza absoluta.
Aquilo espicaçou o interesse de Bevan. O que é que a rapariga não queria
que a mãe soubesse?
– Suponho que a Lisa te explicou que a função dela é servir de ligação
entre ti e o DIC – disse. – Ela tem formação especial nesta área, portanto não
te preocupes, nada do que digas a vai impressionar.
Annabelle olhou para a agente. Lisa Murray sorriu.
– Estás à vontade para usares a linguagem com que te sintas mais
confortável para nos contares o que aconteceu – disse. – Tal como o sargento-
detetive Bevan disse, não vou ficar embaraçada, mas, antes de começarmos,
tenho de realçar a importância de dizeres a verdade. A violação é um crime
muito grave, mas mentir também é um delito sério, pelo qual podes ser
processada em tribunal. Tens consciência disto?
Annabelle fez um movimento de cabeça, entre o assentimento e a negação.
– Eu… acho que sim – respondeu. A seguir, olhou para Bevan e pareceu
mirrar.
– Compreendes que, com base nas declarações que prestares aqui, hoje –
prosseguiu Bevan –, poderás ter de comparecer no tribunal e ser sujeita a um
contrainterrogatório agressivo por parte da defesa?
Os olhos de Annabelle abriram-se de inquietação, mas estava ao corrente
do facto, por isso limitou-se a acenar brevemente com a cabeça.
– A não ser que o Nathan se dê como culpado, é claro – acrescentou Lisa.
– Ele vai dizer que não fez nada – disse Annabelle –, mas fez.
Lisa deu-lhe um apertãozinho no braço.
– Senta-te confortavelmente neste sofá aqui – disse, indicando-lhe o sofá
para onde as câmaras estavam dirigidas. – Vou dar uma palavrinha rápida ao
sargento-detetive Bevan, na sala audiovisual aqui ao lado, antes de
começarmos.
Quando a porta se fechou atrás deles e Bevan teve a certeza de que não
podiam ser escutados, observou o rosto de Annabelle num dos ecrãs e disse:
– Bem, que achas dela até agora? Está a ser honesta?
Apesar de Bevan ser um oficial de patente superior, fora do trabalho era
também companheiro de Lisa, vivendo com ela na mesma casa, pelo que esta
achou que não eram necessárias formalidades.
– Para dizer a verdade, Clive, ainda não formei grande ideia dela –
confessou. – É óbvio que está nervosa, e ligeiramente na defensiva, o que está
de acordo com o comportamento normal das vítimas, e já viste as nódoas
negras que ela tem…
– Mas… – acrescentou Bevan.
– Não sei. É evidente que lhe aconteceu algo no sábado à noite, ou algures
durante o fim de semana, mas já vi demasiados mentirosos convincentes
passarem por aqui para fazer julgamentos precipitados numa fase tão precoce.
Bevan acenou com a cabeça.
– Então, acho que é altura de ouvirmos o que ela tem para nos dizer em
primeira mão – disse o sargento-detetive e, despindo o casaco, sentou-se em
frente do ecrã, enquanto Lisa voltava à sala onde Annabelle esperava.
Alguns minutos mais tarde, depois de iniciar a gravação em DVD
explicando oficialmente a Annabelle os seus direitos e o funcionamento dos
procedimentos, Lisa começou por perguntar-lhe com quem fora à rave e que
tipo de coisas estivera a fazer antes de encontrar Nat.
– Sobretudo a dançar e… a apanhar uma pedrada – respondeu Annabelle,
desviando os olhos para o lado com uma expressão culpada.
– Com quem estiveste a dançar?
– Com toda a gente. A Georgie. A Melody. O Theo. Um tipo chamado Neil.
– O Theo é teu namorado?
– Mais ou menos. Somos todos um grupo.
– Então, estavas lá com ele…
– Estava lá com o grupo todo, mas logo no início afastámo-nos os dois
para… estarmos um bocado juntos. Bom, acho que não foi bem no início,
porque já estava um bocado pedrada. Depois, aquele tal Neil começou, tipo, a
atirar-se a mim, por isso fui dar uma volta com ele também.
– Que fizeste com ele?
Annabelle corou violentamente.
– Umas coisas – mastigou entre dentes. – Nada de mais.
– Podes ser mais precisa? – perguntou Lisa.
Annabelle encolheu os ombros com um ar inseguro.
– Curtimos um bocado – disse – e ele… meteu os dedos dentro de mim.
O olhar de Lisa tornou-se mais penetrante.
– Tiveste relações sexuais com ele? – perguntou.
Annabelle engoliu em seco e abanou a cabeça.
Lisa deixou passar alguns segundos e, depois, disse:
– OK, então como é que tu e o Nathan acabaram por se encontrar na festa?
Ele veio à tua procura ou foi ao contrário?
– Foi ao contrário. Quando soube que ele estava lá, fui procurá-lo. Ele
estava com a minha amiga Melody, mas eu sabia que ele não estava
interessado nela, portanto tratei de o livrar dela.
– E ele ficou-te agradecido?
Annabelle acenou com a cabeça.
– Quer dizer, não disse que estava agradecido, nem nada assim, mas deu
para ver.
– E que aconteceu então?
Annabelle desviou os olhos de novo, enquanto o seu rosto voltava a corar.
– Ele afastou-se em direção às árvores e eu segui-o.
– Porque o seguiste? Ele pediu-te?
Annabelle abanou a cabeça.
– Não propriamente, mas sabia que ele queria… você sabe.
– Queria o quê? – perguntou Lisa.
Annabelle olhou ansiosamente para a porta.
– Tem a certeza de que a minha mãe não pode ouvir? – perguntou.
– Absoluta – garantiu Lisa.
– OK. Bem, sabia que ele queria fazer sexo.
– Ele disse-te isso?
– Não foi preciso. Eu conseguia ver isso e não tinha nada contra. Quer
dizer, não era como se nunca tivéssemos feito nada antes.
Lisa ergueu as sobrancelhas.
– Então, tiveste relações sexuais com o Nathan em ocasiões anteriores? –
perguntou.
– Não, mas fizemos outras coisas.
– Tais como…?
– Você sabe, outras coisas. Mostrámos um ao outro certas partes do corpo
e tocámo-nos – disse, com um sorriso embaraçado.
– Podes ser mais precisa?
Suspirando, Annabelle revirou os olhos e disse:
– Deixei-o ver as minhas maminhas e ele mostrou-me o coiso.
– Referes-te ao pénis dele?
– Sim.
– Ele tocou-te?
– Si-im. E eu a ele, mas nunca fomos até ao fim.
– Praticaram algum tipo de sexo oral?
As defesas de Annabelle iam crescendo.
– Sim, já que quer saber, mas só uma vez.
– Estou a ver. E quando sucedeu tudo isto?
Annabelle encolheu os ombros.
– Há dois ou três anos, acho eu. Costumávamos fechar-nos no quarto, em
casa dele ou na minha, a fingir que estávamos a jogar algum jogo, como
damas, por exemplo, e então, está a ver, fazíamos essas coisas.
– Então, tu tinhas que idade na altura? Doze anos?
– Doze, treze, e ele tinha catorze, quinze.
– Nessa altura, ele alguma vez te tentou forçar a ter relações sexuais?
– Forçar, propriamente, não, mas definitivamente queria. Eu também, mas
tínhamos os dois medo que alguém entrasse.
– Então, participaste de livre vontade nesses… jogos?
– Sim.
– Podes dizer-me que idade tinhas quando perdeste a virgindade?
– Tinha quase catorze.
– Foi com o Nat?
– Não. Foi com um rapaz da minha escola chamado Dean Foster. Ele agora
vive no Canadá, mas costumava fazer parte do nosso grupo.
– O mesmo grupo com quem foste à rave no sábado à noite?
– Exato. Alguns andavam na minha escola, antes de irem para a
universidade, mas ficámos sempre em contacto e vemo-nos durante as férias.
– OK. Mas voltando ao Nathan e às vossas primeiras experiências juntos:
prolongaram-se durante um longo período de tempo?
Annabelle franziu os lábios enquanto pensava.
– Acho que duraram mais ou menos um ano – disse. – Acho que teriam
continuado mais tempo, até podia ter perdido a minha virgindade com ele, se
as nossas mães não se tivessem zangado. Depois disso, nunca mais nos vimos,
até o Nat se mudar para Holly Wood há umas semanas.
– Então, não tiveste nenhum contacto com ele durante quanto tempo?
– Uns dois anos, suponho. As nossas mães odeiam-se mesmo uma à outra,
e eu sei porquê. A minha mãe teve um caso com o pai dele – disse, com um
sorriso de desprezo. – Não é mesmo uma malvadez?
Ocorriam a Lisa outras palavras para classificar a situação, mas as
atividades dos adultos interessavam-lhe menos do que descobrir o que
sucedera no fim de semana anterior.
– Vamos voltar à festa – disse. – Seguiste o Nathan pelo bosque dentro,
certa de que ele queria ter relações contigo. Porque tinhas tanta certeza?
Annabelle encolheu os ombros.
– Tinha, é tudo. Você sabe, foi a maneira de ele olhar para mim. Era como
se não quisesse, mas, ao mesmo, tempo quisesse. E eu estava pedrada, por
isso pensei, porque não? Quer dizer, não era como se nunca tivéssemos feito
nada antes e eu, sabe, eu curto-o a sério… Ou melhor, curtia, até ele me atacar
daquela maneira. – Engoliu em seco enquanto os seus olhos se enchiam de
lágrimas. – Ele não devia safar-se sem lhe acontecer nada depois daquilo que
me fez – disse, alvoroçada.
Lisa limitou-se a olhar para ela.
– Não devia – insistiu Annabelle.
– É claro que não, e isso não vai acontecer, se conseguirmos provar que
ele é culpado.
Annabelle pareceu refletir sobre a afirmação durante alguns instantes e
depois, aparentemente satisfeita, fungou e atirou o cabelo para trás.
– De qualquer maneira, como estava a dizer – prosseguiu –, eu ia atrás
dele e ele fingia que não via, mas depois parou junto ao Declive dos Amantes
e esperou que eu o apanhasse. Eu puxei-o para a margem do rio, mas, então,
ele afastou-se outra vez. Eu comecei a brincar, a perguntar se ele ainda era
virgem e ofereci-me para lhe mostrar como se fazia. E depois falei na aventura
da minha mãe com o pai dele e ele ficou maluco. Agarrou-me e disse que eu
estava a mentir e tentou obrigar-me a dizer que não era verdade. Começou a
chorar e chamou-me cabra e outras coisas… Estava mesmo furioso. Tentei
fugir dele, mas tropecei e então ele atirou-se para cima de mim e pôs-me as
mãos no pescoço.
– Estavas caída de frente ou de costas no chão, quando ele se atirou para
cima de ti?
– Tinha caído de frente. Estava a sufocar, tentava gritar, mas ele não me
largava. Eu tentava empurrá-lo de cima de mim, mas ele era pesado de mais.
Então, puxou a minha saia para cima e começou a penetrar-me.
– Com o pénis dele?
– Sim. Fazia aquilo com muita força. Eu gritava para ele parar, mas ele
não parava.
– Alguém tentou vir em teu socorro?
– Não. A música estava mesmo alta, por isso acho que ninguém deve ter
conseguido ouvir.
– Há alguma hipótese de o Nathan poder ter pensado que estava a fazer
aquilo que querias?
– Nem pensar! Ele sabia que me estava a fazer mal, mas, de repente, parou
e levantou-se. Disse que eu era uma puta e que ele não queria nada com putas
e começou a andar dali para fora. Eu corri atrás dele e tentei bater-lhe, mas
ele agarrou-me na mão e deu-me um soco aqui, junto ao olho.
– Quantas vezes te atingiu?
– Duas ou três, acho. Atirou-me ao chão e gritei-lhe que ia dizer a toda a
gente que ele me tinha violado.
– E o que é que ele disse?
– Nada, virou-se e fugiu dali a correr.
– E então o que fizeste?
– Fui ter com os meus amigos. Estava a tremer e a chorar muito e, por
causa de todo o álcool e drogas que tinha tomado, sentia a cabeça mesmo
esquisita, mas sabia o que tinha acontecido. Ainda não estava assim tão
pedrada.
– Que aconteceu quando encontraste os teus amigos?
– Ficaram muito chocados e acharam aquilo horrível. Então, a Georgie
levou-me para casa dela.
– Porque não para a tua?
– Já era suposto passar o fim de semana em casa da Georgie e não queria
que a minha mãe soubesse que tinha ido à rave ou que estava drogada.
– Mas tinhas sido violada. Com certeza que ela iria achar isso muito mais
grave, não?
Annabelle engoliu em seco com força.
– Suponho que sim, mas com a minha mãe nunca se sabe, por isso decidi
ficar em casa da Georgie até me ter passado a pedrada toda.
– O que aconteceu hoje de manhã…?
– Sim. Os pais da Georgie iam voltar do fim de semana na Irlanda,
portanto eu sabia que, mal me visse, a mãe dela ia imediatamente ligar à
minha. E, de qualquer maneira, pensei que já tinha passado tempo suficiente
para aquilo sair tudo do meu organismo, no caso de vocês me tirarem sangue.
– Mas percebes que, independentemente de teres consumido substâncias
ilegais e, no teu caso, o próprio álcool cai nessa categoria, o que quer que
tenhas tomado só é relevante na medida em que possa ter afetado a tua
memória ou a tua compreensão do que estava a acontecer?
– Sim, mas lembro-me de tudo. Aconteceu tudo exatamente como acabei de
dizer.
Lisa acenou com a cabeça e inclinou-se para a frente na cadeira.
– Agora vou até ali falar com o sargento-detetive Bevan – disse – para
saber se há alguma coisa específica que ele queira que eu te pergunte.
Enquanto saio, pensa em tudo aquilo que me contaste e vê se há algo que
queiras mudar ou acrescentar.
Os olhos de Annabelle abriram-se muito com uma expressão insegura
enquanto via Lisa erguer-se.
– Acredita em mim, não acredita? – disse numa voz trémula.
Lisa sorriu e deu-lhe uma palmadinha no braço.
– É claro – disse e, depois de dizer as horas para um dos microfones, saiu
da sala.

Bevan esperou que a porta da sala audiovisual se fechasse atrás dela antes
de perguntar:
– Acreditas nela porque a lei assim exige, uma vez que ela é menor de
idade, ou porque achas que está a dizer a verdade?
– Para ser honesta, é mais pelo segundo motivo – respondeu Lisa. – Não
está a tentar transmitir uma imagem inocente. Admitiu que teve um
comportamento oferecido e os ferimentos são visíveis.
– Há traumatismo na área genital?
– Sim.
– Lesões vaginais interiores?
– Algumas. E tu, o que achas do que ouviste até agora?
– Não tenho a impressão de que esteja a inventar a história, mas gostava
de saber mais sobre o que aconteceu quando ela foi até ao bosque com os
outros dois. Se teve relações sexuais com eles, isso pode explicar o
traumatismo vaginal.
– Mas não os ferimentos no rosto.
– Talvez não, mas ela pode tê-los arranjado de outra maneira. O tempo que
ela passou com a amiga, antes de voltar para casa, para junto da mãe, está a
incomodar-me – disse. – As raparigas desta idade podem ser uma grande
chatice, com as histórias que armam quando lhes dá na veneta.
– É claro que vais interrogar a amiga.
– Obviamente. Só pergunto a mim próprio se elas realmente
compreenderão como esta acusação é grave. Ela tem noção de que este rapaz
pode passar até dez anos na prisão se for considerado culpado?
– Não lhe perguntei, mas, se ele a violou, é bom que seja devidamente
castigado. Seja como for, ainda não sabemos o que ele tem a dizer sobre isto.
Talvez admita que teve relações com ela.
– Se admitir, quer o sexo tenha sido forçado quer não, é sempre passível
de acusação, por causa da idade dela.
– Se ele souber que ela só tem quinze anos.
– Eles são primos, bem, mais ou menos, portanto ele deve ter alguma ideia
da idade dela, e a ignorância não é uma boa defesa, como bem sabes. Seja
como for, já vamos ver. De momento, quero saber mais acerca do que
aconteceu com os outros dois rapazes e se ela se lembra de ver alguém por
perto quando o jovem Carlyle alegadamente a estava a violar.
Quando voltou à sala de registo de depoimentos, Lisa colocou a segunda
questão a Annabelle. Esta abanou a cabeça lentamente enquanto pensava.
– Não me consigo lembrar de ver ninguém – respondeu. – Quer dizer,
havia imensa gente ali à volta, mas acho que éramos os únicos no Declive.
Estava muito escuro e ele estava em cima de mim, por isso era difícil de ver.
– E quando foste atrás dele e disseste que o ias acusar de violação?
Lembras-te de ter visto alguém nessa altura?
– Não propriamente. Estava muito nervosa, por isso não estava a prestar
muita atenção a nada.
Lisa sorriu.
– É claro – disse. – Agora, voltando aos outros dois rapazes com quem te
afastaste primeiro, o Theo e o Neil… Dizes que não tiveste relações sexuais
com eles?
Annabelle começou de novo a corar.
– Não – respondeu num tom franco. – Só curtimos, você sabe, o normal.
– Explica-te melhor.
– Bem, com o Theo, beijámo-nos e ele apalpou-me e eu também o apalpei
a ele.
– Praticaram sexo oral?
– Não.
– E com o Neil? Que sucedeu com ele?
– Foi mais ou menos o mesmo, mas também houve algum sexo oral. Ah,
sim, e, como disse antes, ele meteu-me os dedos.
– Se eu for falar com esses rapazes, eles vão confirmar o que acabaste de
me dizer?
O rubor nas faces de Annabelle intensificou-se.
– Não sei. Quer dizer, deviam, mas estavam mesmo pedrados, por isso
podem não se lembrar de tudo tão bem quanto eu.
– Tens as moradas deles?
– Sei a do Theo, mas só conheci o Neil naquela noite – disse Annabelle. O
seu rosto começou a contorcer-se. – Agora acha que eu sou uma pega, não
acha? – disse, num queixume.
– É claro que não.
Era mentira, mas ser promíscua não tornava impossível a Annabelle ser
violada, que era tudo o que interessava a Lisa agora. Alguns minutos mais
tarde, de regresso à sala audiovisual, Lisa esperou que Bevan terminasse a sua
chamada para Morley, antes de dizer:
– Depreendo que o rapaz já está sob custódia policial?
– Na esquadra de Southmead – confirmou Bevan. – Então, acreditas que
ela não teve relações com os outros dois?
– E isso importa, uma vez que ela não os está a acusar de a terem violado?
– Importa – respondeu Bevan, pondo-se de pé. – Ouvi o suficiente por
agora. É altura de ir ver o que o jovem Nathan Carlyle tem a dizer em sua
defesa.
***

Passara mais de uma hora desde que Nat fora trazido para a área de
detenção da esquadra de Southmead, onde lhe tinham lido os direitos antes de
lhe tirarem as impressões digitais, o fotografarem para os registos e
recolherem algumas amostras de ADN. A seguir, pediram-lhe para retirar
todos os acessórios e peças de vestuário, que foram metidos em sacos e
levados dali, deixando o com um macacão descartável azul pálido, para se
tapar, e um par de chinelos de cartão.
Estava agora trancado numa cela com uma única janela, na parte superior
da parede traseira, demasiado alta para conseguir ver para o exterior, mesmo
que não estivesse tapada por tijolos de vidro opacos. Havia um beliche de
cimento a poucos centímetros acima do chão, coberto por um fino colchão de
plástico, uma sanita de aço inoxidável sem assento, com algumas folhas de
papel higiénico áspero ao lado, e um olho mágico na parede que permitia aos
agentes observarem o ocupante na sua privacidade.
A janela de postigo da porta da cela estava bem fechada e Nat esforçava-
se deliberadamente por não olhar para ela, porque, de cada vez que o fazia,
começava a sentir-se devorado por sentimentos de pânico e claustrofobia.
Estava sentado na beira da cama, que era tão baixa que os seus joelhos
ficavam quase à altura dos ombros.
– É a única disponível – dissera o agente de serviço à área de detenção. –
Costumamos usá-la para meter os bêbados, porque assim não têm muito
espaço para cair.
Nat não queria realmente pensar sobre os ocupantes anteriores da cela,
mas era melhor do que atormentar-se com o pesadelo que enfrentava. O
problema é que não conseguia pensar em mais nada. Tinha agora tanto medo
que era praticamente impossível impedir-se de chorar. Mas não iria chorar,
porque as lágrimas não fariam o problema desaparecer, da mesma forma que
não trariam o seu pai de volta. Eram inúteis, infantis e fracas.
Perguntou a si mesmo, com raiva, se o pai estaria lá em cima, em algum
lugar, a assistir ao desenrolar daquele horror. O pai queria que Nat visse o que
acontecia na antecâmara dos processos judiciais, aquilo por que uma pessoa
acusada tinha de passar antes de um advogado tomar conta do caso. Bem,
agora os seus desejos estavam certamente a ser concretizados. Teria o pai
visto o que sucedera na noite de sábado? O que teria ele a dizer sobre aquilo?
Iria negar que teve um caso com aquela cabra da Sabrina? Nat cerrou os
punhos com fúria. Como fora o pai capaz de fazer aquilo à mãe? Era um
mentiroso e um hipócrita e Nat estava contente por ele estar morto.
Engolindo outro acesso de emoção, encostou os nós dos dedos contra a
testa e pressionou com força. Não conseguia suportar a ideia de a mãe ser
magoada, muito menos pelo pai. Aquilo destruía por completo a imagem que
Nat tinha do pai, transformando a sua integridade numa farsa e fazendo uma
paródia da honra que tanto defendera. Agora, já não fazia sentido chorar a sua
perda, ele não valia a pena, e, contudo, a mãe, apesar de tudo o que deve ter
sofrido, ainda sentia a sua falta e ansiava por ele do fundo do coração. O que
fazia Nat odiá-lo ainda mais, porque o pai não merecia ser amado por alguém
tão bom e decente como a esposa que traíra. Como pudera fazer aquilo? E
porque não estava agora ali, para responder pelos seus erros? Escolhera o
caminho dos covardes, abandonando-os a todos à tristeza e à mágoa que
causara e não lhes deixando em herança senão mentiras e enganos.
Ouvindo o som de passos no exterior, Nat ergueu a cabeça e, ao ver a
janelinha abrir-se de repente, sentiu as entranhas desfazerem-se. Um rosto
brilhante de olhos esbugalhados espreitou para o interior.
– O teu advogado chegou – disse o sargento de serviço.
O coração de Nat subiu-lhe à garganta enquanto se erguia a custo. Viu a
porta abrir-se por completo e os joelhos quase lhe falharam quando viu o rosto
sólido e familiar de Jolyon. Durante um desconcertante momento, pensou que
se tratava do seu pai.
– Nat, meu rapaz – disse Jolyon, aproximando-se para o abraçar. – Não te
preocupes, filho, vai ficar tudo bem. Vamos tirar-te daqui num instante.
– Podem usar a sala de interrogatórios ao fundo – informou o agente.
Alguns minutos depois, Nat e Jolyon estavam sentados em lados opostos
de uma mesa de fórmica muito arranhada, numa sala insonorizada tão pequena
como a cela que Nat acabara de deixar, mas sem quaisquer janelas.
– Desculpa ter demorado algum tempo a chegar – disse Jolyon. – Vim logo
que pude. Estás bem? Precisas de alguma coisa?
Nat abanou a cabeça.
– Só preciso que isto acabe – disse, com os olhos a arder de emoção. –
Não a violei – disse ferozmente.
– É claro que não – reiterou Jolyon, parecendo tomar aquilo como uma
verdade incontestável. – Tive uma conversa com o agente de serviço e o
detetive Croft, que me puseram ao corrente dos factos. Disseram-me que quem
está responsável pela investigação é o sargento-detetive Bevan. Ele vem a
caminho e deve estar cá dentro de uns dez minutos, mas não precisas de te
preocupar com isso. Podemos demorar o tempo que for necessário a discutir o
assunto, e depois vamos preparar uma declaração para lhe entregar. Isto
significa que não tens de responder a nenhuma pergunta, a não ser que queiras.
Compreendes?
Nat acenou com a cabeça.
– Conhece-o? – perguntou. – Como é ele?
– Diria que é duro, mas sabe ouvir e, em geral, sempre o achei justo. –
Estendendo a mão para a pasta, Jolyon retirou um bloco e uma caneta. – Bem –
disse num tom profissional –, vamos direitos ao assunto. Diz-me o que
aconteceu, começando pelo princípio.
Nat inclinou-se para a frente na cadeira, pressionando os punhos fechados
contra a mesa e balançando-se para a frente e para trás enquanto se preparava
psicologicamente para iniciar o relato. Depois de uns quantos começos em
falso, conseguiu finalmente dizer a Jolyon a que horas chegara à rave, quem o
acompanhara e que quantidade de álcool tinha bebido quando se encontrou
com Annabelle. Seguidamente, contou-lhe como Annabelle se aproximara
dele, afastando a outra rapariga com quem estava.
– Ela estava totalmente passada – disse, observando a mão de Jolyon
moverse sobre a página.
– Fazes ideia do que tinha tomado?
– Havia muito ecstasy a circular, e também erva.
– Mas chegaste a vê-la consumir alguma coisa?
Nat abanou a cabeça.
– OK, continua.
– Pela maneira como ela me olhava, pude ver que ia começar a atirar-se a
mim, por isso virei costas e fui-me embora. Fosse como fosse, não tinha
mesmo vontade de estar ali, e pensei que o melhor era voltar para casa.
– Ela já se tinha atirado a ti antes?
– Mais ou menos, sim.
Jolyon acenou com a cabeça e fez uma nota na margem da folha.
– Já vamos voltar a isso – disse. – Que aconteceu quando te foste embora?
– Ela seguiu-me, mas só me apercebi disso quando parei no cimo de uma
encosta que há lá. Ela apareceu atrás de mim, agarrou-me pela mão e puxou-
me para o fundo. Quando chegámos lá abaixo, eu libertei a mão e tentei afastar
me, mas ela continuou a vir atrás de mim. Dizia “Vá lá, tu sabes que queres”.
Eu disse-lhe para me deixar em paz, mas ela não ligou. Começou a perguntar
se eu era virgem e se queria que ela me ensinasse. Nessa altura, eu já estava a
ficar mesmo chateado, porque não havia forma de ela aceitar um “não”.
Continuou a falar, a dizer coisas estúpidas… Disse uma data de disparates e,
no fim…
– Que tipo de disparates?
Nat baixou a cabeça.
– Não me lembro bem – mastigou. – Eram umas coisas malucas e eu não
conseguia fazer com que ela se calasse. Agarrei-a… Ela empurrou-me e
começou a correr dali para fora, mas tropeçou e caiu. Eu estava tão furioso
que mal sabia o que fazia. Queria que ela retirasse aquilo que tinha dito, mas
ela não quis, por isso atirei-me para cima dela e tentei obrigá-la. Ela estava…
– Que foi que ela disse que querias que retirasse?
– Agora não me lembro, mas na altura chateou-me a valer, como se ela me
estivesse a tentar provocar mesmo a sério.
Jolyon ergueu os olhos da página. Nat engoliu em seco e apertou os punhos
com mais força. Jolyon continuou a olhar para ele
– OK – disse o advogado finalmente. – Ela estava caída de frente ou de
costas, quando te atiraste para cima dela?
– De frente.
– E que fizeste, então?
– Deitei-lhe as mãos ao pescoço. Ela estava a sufocar e gritava para eu a
largar. Então, apercebi-me do que estava a fazer e tirei as mãos do pescoço
dela. Ela começou a rir e disse, “Vá lá, come-me. Sabes bem que queres.” – A
boca tremeu-lhe e Nat baixou o olhar para as mãos. – Ela não trazia roupa
interior e tinha a saia levantada até à cintura – disse, num tom abalado.
– Então, ela incitou-te a teres relações sexuais com ela?
Nat acenou afirmativamente.
– Eu não queria, mas, ao mesmo tempo, queria.
– Então, estavas sexualmente excitado?
– Sim, não, não me consigo lembrar bem. Só sei que me queria afastar
dela. Levantei-me e ela rolou no chão e deitou-se de costas. Pareceu-me que a
cara dela estava a sangrar, mas ela continuava a rir e a dizer-me para a comer.
Chamei-lhe puta e disse-lhe que não queria nada com putas. Depois, quis vir
embora de novo, mas ela veio atrás de mim outra vez. Tentou dar-me um soco,
mas eu impedi-a e afastei-a de mim. Acho que lhe bati na cara ao tentar afastá-
la, mas não tenho a certeza. Aconteceu tudo muito depressa. Ela caiu outra vez
e começou a gritar comigo, a dizer que ia contar a toda a gente que eu a tinha
violado. Eu já não a conseguia ouvir. Era tudo demasiado louco. Ela estava
bêbada e pedrada e dizia umas coisas… Só queria fugir dela, por isso corri
para casa e desliguei o telemóvel, para o caso de ela me tentar ligar.
– E tentou?
– Não tinha mensagens quando o liguei de manhã.
– E essa foi a última vez que a viste? Quando a deixaste ali no bosque,
meia nua?
– Sim.
Jolyon passou rapidamente os olhos pelas suas notas e recostou-se para
trás na cadeira.
– Não me parece que estejas metido num grande problema – declarou. –
Desde que não tenhas tido relações sexuais com a rapariga, não há aqui caso
nenhum.

– Robert, sou eu – disse Alicia, usando o auricular para falar com o irmão
enquanto conduzia. Sabia que estava a infringir o limite de velocidade,
representando um perigo para os outros condutores, mas tinha de ir ter com o
filho.
– Olá – respondeu Robert. – Ainda não consegui falar com a Sabrina…
– Então, não sabes que a Annabelle acusou o Nat de violação?
– O quê?
– Vieram prendê-lo há umas horas.
– Jesus Cristo…
– A tua maldita mulher está a usar a filha para tentar arruinar a vida ao meu
filho – gritou.
– Onde estás? – perguntou Robert.
– Vou a caminho da esquadra de Southmead, em Bristol. Foi para onde o
levaram.
– Mas isto só pode ser um engano… – disse Robert.
– Eu sei isso – gritou. – A Annabelle está a mentir e, se acreditarem nela,
vai arruinar a vida do meu filho para sempre. Diz à tua maldita mulher para
parar com o que está a fazer ou vai-se arrepender – e, incapaz de continuar a
falar com o irmão, arrancou o auricular do ouvido e arremessou-o para o
assento do passageiro.

O sargento-detetive Bevan caminhava para a frente e para trás, olhando


para o relógio com impaciência.
– Quanto mais vão eles demorar ali dentro? – perguntou, irritado.
– Devem estar a preparar uma declaração – disse Croft.
– Obrigado, já tinha conseguido perceber isso – replicou Bevan, abrindo a
tampa do telemóvel que começara a tocar. – Estou? Fala Bevan – disse num
tom agressivo.
– Olá, Clive – disse uma voz feminina do outro lado. – Soube que está a
investigar um suspeito de violação.
Bevan ficou maldisposto. Era mesmo daquilo que precisava, ter a
inspetora Ash a meter-se no assunto.
– Olá, inspetora – disse. – Sim, está correto.
– E o rapaz que foi detido chama-se Nathan Carlyle?
– Com efeito.
– E isso não lhe diz nada?
– Mas devia, inspetora?
– Se estivesse no meu caso, sim. O pai dele é, ou melhor, era o Queens
Counsel Craig Carlyle.
Bevan esteve prestes a emitir um gemido audível. Odiava casos que
envolvessem membros das famílias de advogados proeminentes e, neste em
particular, o poderio do sistema legal ia passar-lhe por cima como um tanque;
por outro lado, não havia no departamento nenhum detetive que não soubesse o
que Caroline Ash sentia em relação a Craig Carlyle, e isto não augurava nada
de bom.
– Estou a ver – foi tudo o que conseguiu responder, num murmúrio.
– Vai precisar de ter muito cuidado neste caso – advertiu-o a inspetora. –
Quero que me mantenha ao corrente de todas as etapas da investigação,
porque, se esse rapaz é culpado, não quero que os amiguinhos do pai consigam
encontrar buracos na lei para ele se escapar. Está-me a compreender?
– Perfeitamente, inspetora.
– Que aspeto tem a coisa até agora?
– Ainda não falei com o rapaz, mas a rapariga apresenta ferimentos e a
história dela parece credível.
– Quem é o advogado do jovem Carlyle?
– O Jolyon Crane.
– É claro. Para o menino do papá, só o melhor.
– A propósito, inspetora, o melhor acabou de sair da sala de
interrogatórios, por isso agora tenho de ir – e, depois de se despedir
rapidamente, desligou.
– Jolyon – disse o sargento-detetive, estendendo a mão para cumprimentar
o advogado que se aproximava.
– Clive. Prazer em vê-lo – respondeu Jolyon. – Preparámos uma
declaração. Não deve demorar muito tempo a ler.
Bevan acenou com a cabeça e, fazendo um sinal a Croft para que os
acompanhasse, seguiu Jolyon para a sala de interrogatórios. Desta vez, Jolyon
sentou-se no mesmo lado da mesa que Nat, informando-o tranquilamente sobre
o que iria suceder a seguir, enquanto Bevan quebrava o selo de duas cassetes
áudio, antes de as inserir no gravador.
Depois de todos os presentes se terem identificado e Bevan se ter
certificado de que Nat compreendia os seus direitos, Jolyon leu a declaração
previamente elaborada com a versão de Nat acerca dos acontecimentos de
sábado à noite, enquanto Bevan tomava notas. Depois de Jolyon terminar, o
sargento-detetive disse:
– Obrigado. Posso ficar com uma cópia?
– É claro – disse Jolyon.
Bevan virou depois a sua atenção para Nat, olhando-o atentamente. Nat
podia sentir o seu interior agitar-se. A transpiração fazia o macacão de tela de
papel colar-se-lhe ao corpo. Sentia o peito apertado, tinha falta de ar, mas
continuou a olhar para Bevan de um modo que fazia os seus olhos parecerem
selvagens e apáticos.
– Muito bem, então nega ter tido relações sexuais com Annabelle Preston
na noite de vinte e nove de julho – começou Bevan.
Uma vez que não se tratava de uma pergunta, Nat não respondeu.
– E isso é verdade? – perguntou Bevan.
O rosto de Nat ficou muito vermelho.
– Sim – disse debilmente.
– Diz que ela o provocou, o incitou a ter sexo com ela, mas que a rejeitou.
Está correto?
– Sargento, tem a declaração – lembrou-lhe Jolyon.
Bevan não desviou os olhos de Nat.
– O senhor e Annabelle Preston são primos por afinidade, não são? –
disse.
Nat acenou com a cabeça.
– Pode responder por palavras, por favor? – disse Bevan, olhando para o
microfone na parede.
– Sim – disse Nat.
– Então, conhece-a desde há quanto tempo…? A maior parte da vida dela?
– Sim.
– Já alguma vez teve algum tipo de relacionamento sexual com ela? Quer
dizer, antes de sábado à noite.
Nat corou de novo.
– Não – respondeu. – Bem, acho que fizemos umas coisas quando éramos
mais novos.
– Que quer dizer com “fizemos umas coisas”?
– Eram brincadeiras de miúdos, já sabe.
– Não, não sei. Explique-me.
– Sargento, isto não é relevante – interrompeu Jolyon.
Apesar de Bevan estar a morrer por mostrar o seu desacordo, decidiu não
insistir no assunto de momento. Após alguns segundos, disse:
– Disse que ficou muito zangado quando ela o seguiu para o bosque, mas
não explica o que ela lhe disse para o fazer zangar…
– É irrelevante – interveio Jolyon.
Bevan olhou para ele.
– O meu cliente negou ter violado essa rapariga, portanto, o que quer que
ela possa ter dito ou feito para o fazer zangar não tem qualquer importância
para a questão – explanou Jolyon.
Bevan mordeu o lábio superior enquanto os seus olhos se desviavam de
novo para Nat.
– Admite que lhe bateu? – perguntou.
– Acidentalmente – respondeu Nat. – Quando a empurrei, acho…
– Também admite que a tentou estrangular…
– Sim, mas não durante muito tempo. Eu só…
– É suficiente – advertiu Jolyon, pousando a mão sobre o braço de Nat. –
Não precisas de dizer mais nada.
Bevan olhou para o advogado de maneira hostil.
– Diz que, quando ela se voltou no chão e olhou para si, tinha a cara a
sangrar – disse a Nat. – Como é que acha que isso aconteceu?
– Não sei. Talvez tenha batido numa pedra ao cair.
– Tem a certeza de que não a deitou ao chão, com um soco?
– Tenho. Não lhe bati de todo, pelo menos não de propósito.
– E também não a violou?
– Não. De certeza que não.
Bevan recostou-se para trás na cadeira.
– OK – disse secamente – Acho que terminámos – e, depois de dizer as
horas para o registo, desligou o gravador.
Nat olhou para ele com cautela, sem conseguir acreditar que aquilo
terminara tão depressa. No entanto, assim parecia, porque toda a gente se
estava a pôr de pé.
– E agora, que vai acontecer? – perguntou a Jolyon enquanto seguiam os
detetives para o corredor.
– Aqui este sargento simpático vai libertar-te – respondeu Jolyon. – Não é
assim, Bob?
O agente encarregado da área de detenção, que estava no seu posto de
trabalho atrás de um balcão bastante alto, olhou para Bevan, que entrava no
gabinete por uma porta lateral. Bevan acenou brevemente com cabeça.
– Precisamos de estabelecer as condições – disse.
– É claro – respondeu Jolyon afavelmente. – A mãe do meu cliente já
chegou?
– Está à espera na receção.
– A minha mãe está cá? – disse Nat.
Não queria que a mãe o visse assim, mas, ao mesmo tempo, mal podia
esperar para sentir o conforto familiar dos seus braços à volta dele.
– Eu pedi-lhe para te trazer algumas roupas – disse Jolyon –, portanto, vou
buscá-las. Quando querem que ele se apresente aqui de novo? – perguntou ao
agente.
– Deixe-me ver – disse o sargento, consultando o registo de apresentações.
– Dentro de uma semana? – perguntou a Bevan.
Bevan acenou com a cabeça.
– OK, na próxima segunda-feira às quatro horas – declarou o sargento –,
se toda a gente estiver disponível. Entretanto, não se deve aproximar de
Annabelle Preston ou ter qualquer tipo de contacto com ela. Compreende estas
condições?
– Sim – respondeu Nat.
Deixando o sargento a explicar a Nat as consequências de infringir estas
medidas de coação, Bevan voltou atrás para apertar a mão a Jolyon, despediu-
se educadamente dele e usou o seu cartão para sair pela porta traseira, de
abertura eletrónica.
– Não apertou lá muito com ele ali dentro, sargento – disse Croft, enquanto
se dirigiam aos seus carros. – Que aconteceu quando falou com a rapariga?
– Diz que ele a violou, é claro, e francamente, neste ponto, inclino-me a
acreditar nela, porque o meu instinto diz-me que aquele rapaz está a mentir.
Mas vamos manter uma mente aberta, sim? Pelo menos até quarta ao fim da
tarde.
– Porquê até quarta ao fim da tarde?
– Porque, meu amigo, é nessa altura que vão chegar os resultados do todo-
poderoso ADN.
Capítulo Quinze
Quando Sabrina e Annabelle entraram na cozinha, encontraram Robert à
espera.
– Mas que diabos se está a passar? – perguntou ele. – Tentei ligar-te várias
vezes…
– Desculpa, tive de desligar o telemóvel – disse Sabrina.
– Estás bem? – perguntou Robert a Annabelle.
– Acho que sim – respondeu Annabelle numa voz débil.
Os olhos de Robert abriram-se de choque ao aperceber-se finalmente das
nódoas negras de Annabelle.
– Não tinha percebido que… – gaguejou, sentindo um arrepio de horror
percorrê-lo. Com certeza que Nat não poderia ter feito aquilo…
– Estás ferida? – perguntou, sem saber se deveria aproximar-se dela ou
não, ou o que deveria fazer de todo.
Sabrina rodeou Annabelle com um braço, dizendo:
– Foi um dia longo. Deves estar cansada. Queres comer ou beber alguma
coisa?
– Não, acho que vou só para o meu quarto deitar-me – respondeu
Annabelle.
Alarmado por aquela fragilidade tão pouco característica, e ainda abalado
pelos ferimentos no seu rosto, Robert ficou a olhar a enteada enquanto esta se
ia embora. De súbito, para sua surpresa, Annabelle voltou atrás e abraçou-o.
– Não quero que penses que sou um grande aborrecimento – disse,
abraçando-o com força.
– Não és nada disso – assegurou-lhe Robert, passando-lhe a mão pelo
cabelo. – Se alguém te fez mal…
– Não quero falar disso – disse, afastando-se de repente. – Vou para o meu
quarto.
Durante alguns segundos, depois de Annabelle ter ido embora, Robert
continuou a olhar para a porta, com medo de tomar consciência dos seus
pensamentos, receoso da direção que seguiam. Então, virando-se para Sabrina,
que retirava da mala todos os folhetos de aconselhamento que a agente Lisa
Murray lhe dera, disse:
– Ela está bem?
– Tu viste o estado dela, o que achas? – respondeu Sabrina asperamente.
Sentindo-se horrivelmente desorientado, Robert disse:
– Devias ter-me telefonado. Quando a Alicia me ligou para dizer…
– Nem digas o nome dela – interrompeu-o Sabrina.
Sem saber como lidar com a situação, Robert esperou alguns instantes
antes de dizer:
– Mas o que é que aconteceu, exatamente?
Sabrina ergueu a cabeça, com os olhos carregados de ódio.
– Ele violou-a, foi isso que aconteceu – disse, a ferver de raiva. – O teu
sobrinho, o filho dela, atacou a minha filha sexualmente.
– Mas se isso é verdade…
– Que queres dizer, se é verdade? – cuspiu Sabrina com agressividade. –
Estás a dizer que a Annabelle está a mentir?
– Não, é claro que não, eu…
– Bem, foi isso que pareceu e, como sabemos que pões sempre a tua irmã
em primeiro lugar, acho normal que penses que o filho dela é inocente e a
minha filha uma mentirosa. Nem esperaria outra coisa de ti.
– Não é isso que estou a dizer, só estava a tentar…
– Para! Não quero ouvir mais nada – disse Sabrina furiosamente e,
olhando-o com uma expressão mordaz, voltou ao que estava a fazer.
Robert observou-a com um sentimento de impotência, tentando pensar em
algo para dizer que não provocasse outra explosão por parte da mulher.
– Pensei que ela tinha ido passar o fim de semana a casa da Georgie –
arriscou por fim. – Por isso, como foi que… Quer dizer…
– Ela estava em casa da Georgie, mas elas foram àquela maldita rave.
Robert arregalou os olhos.
– Não olhes para mim assim – exclamou Sabrina na defensiva. – Não sabia
que ela ia. Pelo amor de Deus, não achas que eu a ia deixar ir se soubesse,
achas?…
– Não, é claro que não – respondeu Robert –, mas há muito tempo que te
ando a tentar dizer que ela se devia dar com raparigas da idade dela.
– Achas que não sei isso? Mas tenta convencê-la! Ela conhece a Georgie
desde que entrou na escola, e já sabes como é teimosa.
– Mesmo assim, temos de ser mais severos.
– Agradeço os teus conselhos, mas agora já é um bocado tarde, e espero
que não me estejas a tentar culpar por isto…
– Para, para – interrompeu-a Robert, erguendo a mão –, é claro que não,
mas tens de admitir que não temos tido o controlo que devíamos sobre a vida
dela, e isso tem de mudar. Mas agora diz-me, o que vai acontecer a seguir?
Sabrina demorou um momento a acalmar-se, antes de responder.
– A polícia está à espera dos resultados de ADN para o acusar
formalmente.
Esforçando-se por nem sequer pensar nesta eventualidade, Robert passou a
mão pelo queixo por barbear e disse:
– Sabes onde ele está?
Sabrina rosnou incrédula.
– E como havia de saber? – perguntou. – Estive com a Annabelle o dia
inteiro, a tentar ajudá-la a suportar esta provação terrível. É natural que faça
isso, sendo mãe dela, ao passo que tu, como padrasto, estás claramente mais
preocupado com o tarado que a atacou.
– Isso não é verdade – protestou Robert, lançando um olhar para o
telefone, que começara a tocar. – Mas eles são duas crianças…
– Ele não é criança nenhuma – disse Sabrina. A seguir, agarrou no telefone.
– Estou – disse bruscamente. – Oh, sim, olá. Como vai? – Um instante depois,
a sua voz tornou-se mais suave, ao dizer: – Agradeço imenso a sua
preocupação, é muito amável. Sim, receio que seja mesmo assim. Bem, ela
está muito abalada, como é óbvio. Oh, sim, é mesmo verdade que ele a
violou… Eu sei, é terrível. Eu mesma mal posso acreditar. Está bem, obrigada
por ligar, é claro que não deixarei de lhe dizer se puder fazer alguma coisa. É
muito gentil da sua parte querer ajudar.
Quando Sabrina desligou, Robert observava-a de rosto tenso.
– Isso era mesmo necessário? – perguntou.
– As pessoas estão preocupadas e têm o direito de saber o que se está a
passar.
– Estás a tentar inflamar os ânimos – acusou Robert – e, apesar do que
possas pensar, isso não vai ajudar a Annabelle. Se ela foi vítima de um
trauma, e só de olhar para ela dá para ver que sim, a última coisa de que
precisa é de ser usada como arma de arremesso na vingança da mãe.
Sabrina abriu a boca de espanto.
– Como te atreves a dizer isso? – exclamou. – Em todos estes anos que…
Todos os anos que te conheço… Eu nunca… Oh, Jesus – Sabrina engasgou-se
com as suas palavras, indo-se abaixo. – Não acredito que isto esteja a
acontecer – soluçou, cobrindo o rosto com as mãos. – Já é tudo tão horrível e
agora ainda conseguiste tornar as coisas piores.
Compreendendo por fim como aquilo também representava uma provação
terrível para Sabrina, e perturbado por ter contribuído para piorar a situação
ainda mais, Robert aproximou-se e abraçou-a.
– Desculpa – murmurou, apertando-a junto a si. – Estamos todos muito
nervosos e em estado de choque com a situação.
– É claro que estamos, porque é horrível, horrível, e tu sugerires que eu
possa estar contente por isto ter acontecido à Annabelle…
– Não era isso que estava a tentar sugerir – assegurou Robert. – Nesta
altura, tudo está a correr mal, por isso talvez fosse melhor tomarmos uma
bebida e tentarmos acalmar-nos antes de darmos seguimento a esta conversa.
Limpando as lágrimas com os dedos, Sabrina olhou-o nos olhos. Robert
devolveu-lhe o olhar, procurando segredos ocultos ou o mais pequeno vestígio
de maldade na expressão da mulher, mas o que viu foi apenas uma espécie de
impotência e uma necessidade de apoio que penetrou fundo no seu coração.
Abraçou-a de novo, desejando, acima de tudo, remediar a situação para todos,
mas não se conseguia lembrar de nada que pudesse dizer e que ajudasse a
melhorar as coisas.
– Obrigada – disse Sabrina, quando Robert lhe deu um copo de vinho. –
Desculpa, não devia ter tido uma atitude hostil quando entrei. Tive tanto medo
que tivesses tomado o partido do Nathan… – Bebeu um gole de vinho. –
Compreendo como isto te coloca numa posição difícil, e sei que não queres
pensar que ele seja capaz de fazer algo tão mau, mas juro-te, Robert, ela não
está a mentir. Consigo sempre perceber quando ela mente, mas desta vez sei
que não está a mentir.
Engolindo um grande gole da bebida, Robert continuou a olhar para
Sabrina, não duvidando da sua sinceridade, mas, ao mesmo tempo,
desesperadamente, não querendo acreditar que Nat pudesse fazer uma coisa
daquelas. Por fim, disse:
– A polícia pôs-te em contacto com o serviço de apoio à vítima?
Sabrina acenou com a cabeça.
– Segundo parece, vão entrar em contacto connosco. Também trouxe alguns
folhetos e outro material para casa. Se calhar podíamos vê-los juntos.
– É claro. Talvez pudéssemos perguntar à Annabelle se os quer ver
connosco.
Sabrina preparava-se para responder quando o telefone tocou de novo.
– Se for outro vizinho – disse Robert –, por favor não faças o mesmo.
O corpo de Sabrina ficou rígido.
– Se me perguntarem o que aconteceu, vou ter de lhes dizer a verdade –
disse, pegando no auscultador. – Estou? – disse, olhando para Robert. – Ah,
Cónego Jeffries, prazer em ouvi-lo. Sim, está tudo bem, obrigada. Mais ou
menos, seja como for. Sim, receio que a Annabelle tenha sido vítima de um
crime. Não, não foi nada agradável. Sim, penso que o Nathan foi detido. Não
sei dizer… – De súbito, o seu rosto exibiu uma expressão surpreendida. – Ah,
sim? – disse friamente. – Estou a ver. Bem, obrigada por me informar.
– Que aconteceu? – disse Robert, quando a esposa desligou
– Aparentemente, o teu sobrinho já voltou para casa – disse num tom
azedo.
Vendo-se de novo numa situação delicada, Robert optou por beber outro
gole em vez de se arriscar a fazer algum comentário errado.
– Quero que me digas que não vais começar a ir visitá-los – disse Sabrina.
Já estava à espera daquilo; Robert respirou fundo.
– Talvez se eu falasse com o Nat…
Sabrina olhou para ele com uma expressão feroz.
– Isto não é mais fácil para a Alicia que para ti – lembrou-lhe Robert
suavemente.
– E achas que isso me importa?
– Eu sei que não, mas importa-me a mim. Não, por favor, não vamos
discutir por causa de uma situação que ainda nem se colocou. Agora temos de
nos concentrar na Annabelle e analisar o material que trouxeste para casa,
para estarmos mais bem informados acerca daquilo que devemos fazer.

Alicia observava Nat do outro lado da mesa da cozinha. O filho tinha a


cabeça baixa e as mãos cruzadas frouxamente na frente dele. Apesar de quase
lhe ter caído nos braços quando finalmente o libertaram, mal dissera uma
palavra durante todo o caminho para casa e, agora, continuava a não querer
falar.
– Tens a certeza de que não queres nada? – perguntou Alicia de novo. –
Não comeste o dia inteiro.
Nat abanou a cabeça. Parecia tão tenso e tão perto de se ir abaixo, que
Alicia tinha medo de que uma simples palavra ou gesto o pudessem fazer
descontrolar-se.
– E se eu fizesse alguma coisa? – sugeriu. – Depois, podes decidir se
queres ou não.
– Não quero nada – disse Nat.
Mordendo o lábio, Alicia voltou-se e observou o jardim. Estava a tentar
imaginar o que Craig faria, procurando lembrar-se de alguma orientação, mas,
de cada vez que pensava no marido, apetecia-lhe amaldiçoar a injustiça da
vida por Craig não estar ali agora, quando o filho mais precisava dele.
– Queres contar-me como correu na polícia? – experimentou
cautelosamente.
Nat manteve a cabeça baixa.
– Não disseram grande coisa.
Uma vez que Jolyon lhe contara, enquanto Nat se vestia, que tinham
preparado uma declaração para entregar à polícia, Alicia imaginava que,
provavelmente, não o tinham submetido a um grande interrogatório, mas
continuava sem saber o que o filho dissera a Jolyon, excetuando que negara
tudo e que Jolyon acreditava nele.

– O Jolyon não pode entrar em pormenores – disse a Rachel, quando a


amiga apareceu mais tarde para lhe dar apoio e as duas foram até à esplanada
do pub para poderem falar sem correrem o risco de Nat as ouvir. – E o Nat
não parece querer contar-me nada.
– O Jolyon deu-te alguma ideia do que acontece a seguir?
– Aparentemente, a polícia anda a falar com as pessoas para ver se alguém
viu alguma coisa, mas ele disse-me para não me preocupar, pois
provavelmente isto termina tudo mal os resultados dos testes de ADN
cheguem.
– E quando vai ser isso? – perguntou Rachel, contente por Alicia estar de
costas para um casal de moradores dos bairros novos, que olhava na sua
direção e cochichava.
– Na quarta-feira, segundo parece.
Rachel estava surpreendida.
– Tão depressa? Pensava que esses testes demoravam séculos.
– Também eu, mas, aparentemente, nestes casos fazem tudo muito mais
rapidamente – disse Alicia, suspirando profundamente. A seguir, ergueu o
olhar para Maggie, que saía do pub.
– Olá, minha querida – disse Maggie, dando-lhe um abraço. – Ouvi dizer
que estavas aqui. Como estás?
– Já estive melhor – respondeu Alicia, imaginando que a aldeia inteira já
devia saber o que se passava.
– Isto é tudo um grande disparate – disse Maggie com veemência. – Não
me interessa o que toda a gente diz, eu sei que o teu Nat nunca faria nada
assim.
O rosto de Alicia ficou lívido.
– As pessoas estão a dizer que ele fez? – perguntou a tremer.
Apercebendo-se de que dera um passo em falso, Maggie corou.
– Bom, só algumas – disse, tentando corrigir o erro. – Mas ouve bem o que
te digo: à minha beira, ninguém diz uma coisa dessas. Toda a gente sabe como
é a Annabelle. Aposto que ela provocou alguma situação em que acabou por
ser atacada e agora está a tentar pôr as culpas no Nat. E já sabemos quem a
convenceu a fazer isso.
Alicia engoliu em seco e baixou os olhos.
Suspeitando de que metera outra argolada, Maggie olhou para Rachel.
– Bem, tenho de ir indo – disse desajeitadamente. – Vou mandar trazer-vos
mais uma rodada, OK?
Rachel agradeceu com um aceno de cabeça e virou-se de novo para Alicia.
– Ela é capaz de ter razão – disse. – A Sabrina pode estar a empolar a
situação toda.
Alicia não discordava, mas de momento apenas conseguia pensar em Nat e
naquilo por que o filho deveria estar a passar.
– Só não percebo por que motivo ele se fechou assim, em copas – disse.
– Deve sentir-se embaraçado. No fim de contas, estamos a falar de uma
situação sexual e tu és mãe dele. Os rapazes podem sentir-se muito
constrangidos com este género de coisas, especialmente nesta idade.
– Mas ele sempre foi bastante aberto comigo. É verdade que,
provavelmente, era com o pai que falaria primeiro. Não paro de pensar no
quanto ele deve estar a sentir a falta do Craig. Sei que, pelo menos, eu estou.
Rachel sorriu e apertou-lhe a mão.
– Já falaste com o Robert? – perguntou.
– Não, desde que lhe liguei para lhe contar o que estava a acontecer. Ele
ficou tão chocado quanto eu, como é óbvio. É estranho que a Sabrina não lhe
tenha dito nada, não achas? – Os seus olhos fecharam-se, à medida que a
enormidade de tudo aquilo se abatia sobre ela de novo. – Só de pensar no que
estão a fazer ao meu filho – disse, levando a mão à cabeça ao sentir uma dor
aguda –, dá-me vontade de ir até lá torcer o pescoço daquela mulherzinha. Isto
pode arruinar a vida do Nat.
– Não, se a Annabelle estiver a mentir – lembrou Rachel – e, como
sabemos que está, podes deixar de te preocupar com isso.

– Foi uma coisa mesmo séria – disse Annabelle a Georgie, que a viera
visitar para saber como as coisas tinham corrido com a polícia. – Tivemos de
ir até Bristol, a uma unidade especial para vítimas de crimes sexuais. Para
dizer a verdade, era um sítio um bocado estranho, parecia a casa de alguém,
não que desse vontade de lá morar. De qualquer maneira, tive de fazer um
exame médico, porque eles tinham de recolher amostras, tirar sangue e coisas
do género, e depois levaram-me para uma sala onde havia câmaras para
poderem ver tudo o que eu dizia. Foi uma coisa mesmo fora, sabes, com um
monte de detetives e polícias especiais.
Com um ar vagamente horrorizado, Georgie perguntou:
– E que lhes contaste?
Annabelle encolheu os ombros.
– Tudo – respondeu. – Tinha de ser, não era, senão não fazia sentido
nenhum ir até lá.
Concordando, Georgie acendeu um cigarro e foi abrir a janela.
– Sabes o que lhe vão fazer? – perguntou, expelindo o fumo para o
exterior.
– Parece que o prenderam, mas há pouquinho a minha mãe disse-me que o
soltaram outra vez.
– Porquê, vão-no deixar safar-se assim?
– Ela acha que não. Ele deve ter saído sob caução ou algo assim.
Georgie acenou com a cabeça e inalou uma nova baforada.
– Toda a gente fala do assunto – disse. – Os polícias andam por aí a
recolher declarações…
– Oh, meu Deus! Lembrei-me agora. Dá-me o teu telemóvel. Tenho de ligar
ao Theo. Sabes se ele já falou com a polícia?
– Vai falar amanhã. Onde está o teu? – perguntou Georgie passando-lhe o
telefone.
– Ficaram com ele. Tens o número dele nos contactos?
A seguir, encontrando o número, Annabelle marcou-o e encostou o
telemóvel ao ouvido.
– Raios! Vai ter ao voicemail! – murmurou. – Vou ter de deixar mensagem.
Theo, sou eu, a Annabelle. A Georgie diz que a polícia vai falar contigo
amanhã, por isso, diz-lhes que só curtimos, OK? Não lhes digas nada sobre
irmos até ao fim. Eu não lhes contei isso, portanto as nossas histórias têm de
bater certo e, assim, não vais ter problemas por causa da porcaria da minha
idade. Ah, e podes enviar-me uma mensagem se conheceres um tipo chamado
Neil? Manda para o telemóvel da Georgie, OK? – Fechando a tampa do
telemóvel, tirou um cigarro do maço de Georgie e acendeu-o. – Devia ter-lhes
dado um nome falso, em vez de dizer que ele se chamava Neil – disse,
expelindo uma nuvem de fumo e irritada consigo mesma por aquilo só lhe
ocorrer agora.
– Se calhar, ele também não te disse o nome verdadeiro dele – disse
Georgie, optando pela visão mais otimista.
– É verdade. Espero que tenhas razão. E tu, quando vais falar com a
polícia?
– Vão a minha casa amanhã de manhã, pelas dez, para a minha mãe poder
lá estar. Mas tenho de te dizer: a minha mãe não está nada contente com isto.
Nem queria que eu viesse cá hoje, por isso disse-lhe que ia a casa da Cat e, a
caminho de Bruton, convenci o meu vizinho a dar-me boleia para cá.
– Qual é o problema dela? – perguntou Annabelle secamente. – Acha que
tenho alguma doença, ou algo do género?
– Não, só acha que me andas a desencaminhar, a levar-me para raves e
sítios assim, como se eu não soubesse pensar por mim.
O rosto de Annabelle empalidecia, a confusão que sentia transparecia nos
seus olhos.
– Esquece-a – disse Georgie, fazendo um gesto de rejeição com a mão. –
Isto há de passar-lhe.
Resolvendo seguir o conselho da amiga, Annabelle pegou num espelho de
mão para observar as suas nódoas negras.
– Ainda continua muito inchado – disse, tocando com o dedo na
protuberância por cima de um dos seus olhos. – Então, que vais dizer à polícia
quando falares com eles?
Georgie encolheu os ombros e sacudiu a cinza do cigarro para uma
chávena.
– O que quiseres que eu diga.
Annabelle pensou em como o depoimento de Georgie a poderia ajudar,
mas, depois de analisar diversos cenários possíveis, pensou nas suas próprias
declarações e disse:
– Acho que deves manter as coisas o mais simples possível, como falámos
ontem.
– Como queiras, desde que ele não se consiga safar.
Um pálido círculo formou-se em torno dos lábios de Annabelle, quando
esta os comprimiu com raiva.
– Não há hipótese – disse com desdém. – Ele violou-me e sabe o que fez,
portanto, pela parte que me toca, vai para a cadeia e, se tudo correr bem, fica
lá o resto da vidinha dele.
Nat estava deitado na cama, vestindo apenas os boxers, com os braços e as
pernas estendidos sobre os lençóis enrugados e o rosto virado para a parede.
Precisava de tomar um duche e de se barbear e o seu cabelo escuro estava
oleoso, mas não se importava com nada disto. Que lhe importava sentir-se
limpo, se tudo o que queria era estar morto? Uma parte dele queria perguntar à
mãe sobre a aventura do pai, mas outra preferia morrer a fazê-lo. Ela devia
ter-lhe contado. OK, de certa forma ele compreendia porque não o fizera, mas
se tivesse…
Ouvindo alguém bater à porta, Nat disse:
– Não quero pequeno-almoço, obrigado.
– Sou eu – disse Simon, espreitando com a cabeça pela abertura da porta.
– Posso entrar?
Fazendo um esforço para se sentar, Nat esfregou o rosto.
– É claro – disse.
Fechando a porta, Simon foi sentar-se num dos pufes junto à secretária de
Nat.
– Então, como estás? – perguntou.
Nat exibiu um sorriso amargo.
– Estou ótimo – respondeu. – Não há nada melhor do que isto, ser acusado
de um crime que não cometi.
Simon olhou-o com simpatia.
– Ontem, um polícia veio falar comigo – disse.
– Não perderam tempo.
Simon encolheu os ombros.
– Eu disse-lhes como ela é e como estava pedrada quando foi atrás de ti
para o bosque. Ah, sim, e também lhes contei como ela afastou aquela Melody
de ti para se poder aproximar.
Nat acenou com a cabeça e engoliu em seco, sentindo a garganta dar um
nó.
– O que é que as pessoas pensam? – perguntou. – Que sou culpado?
Simon fez uma careta.
– Algumas – respondeu com franqueza –, mas a maioria acha que ela está a
mentir e que, mesmo que não esteja, teve o que mereceu.
O rosto de Nat endureceu.
– Isso ajuda muito – comentou num tom cortante
Mortificado, Simon disse:
– Que aconteceu ao certo, quando ela te seguiu? Segundo parece, ela tem a
cara cheia de nódoas negras…
– Não quero falar mais disso – interrompeu-o Nat. – Ela está a mentir,
OK?
– Sim, bem, eu sei isso, mas que houve para ela apresentar queixa? Eles
não vão…
– Nós tivemos uma discussão, OK? Ela conseguiu chatear-me mesmo a
sério, acabou por cair ao chão e eu agarrei-a pelo pescoço. Foi uma coisa
mesmo estúpida e, quando percebi o que estava a fazer, larguei-a. Então, ela
começou outra vez a provocar-me para eu me enrolar com ela e eu disse que
não queria nada com putas e vim-me embora. Foi quando ela disse que ia dizer
a toda a gente que eu a tinha violado. É óbvio que não gosta que lhe chamem
puta. Voltaste a vê-la depois de eu me vir embora?
– Acho que sim, ao longe. Estava com aquela amiga dela, a Georgie.
– Que estavam a fazer?
– A beber, a dançar um bocado…
Nat franziu os olhos.
– Ela estava a dançar depois de, supostamente, eu a ter violado? – disse
num tom fulminante. – Não parece nada alguém que está em sofrimento, pois
não? Contaste isso à polícia?
– É claro. Achei que era algo que eles iam gostar de saber e que te ia
ajudar. – A seguir, Simon desviou ligeiramente o olhar. – Aqui entre nós, meu,
depois de tudo aquilo que tinha bebido e tomado, é um bocado difícil lembrar-
me exatamente de quando as coisas aconteceram. Quer dizer, sei que a vi, mas,
para ser honesto, pode ter sido antes de ela ter ido atrás de ti. Mas a polícia
não precisa de saber disso, pois não? O que importa é tirar-te desta confusão
toda.

– Como te sentes? – perguntou Sabrina, indo abrir as cortinas do quarto de


Annabelle.
– Bem, acho eu – respondeu Annabelle, deitando-se de barriga para cima.
– Que horas são?
– Quase meio-dia. Tens fome?
– Não sei.
Sabrina sentou-se junto dela e afastou-lhe o cabelo do rosto.
– Tens dores? – perguntou.
– Nem por isso. Quer dizer, só um bocado – disse, franzindo a testa e
fechando os olhos como se lhe doesse a cabeça.
Enquanto a observava, Sabrina pensava em Craig e no que este faria se
estivesse ali. Saber que quase garantidamente estaria a defender o filho fez o
seu coração agitar-se com emoções terríveis. Finalmente, Annabelle abriu os
olhos e Sabrina sorriu-lhe com ternura.
– Queres ficar na cama, hoje? – perguntou. – É capaz de te fazer bem
descansares um pouco.
Annabelle acenou com a cabeça.
– Sim, talvez – disse numa voz frágil.
Depois de se inclinar para lhe dar um beijo na testa, Sabrina pôs-se de pé.
– Mãe? – disse Annabelle, quando Sabrina estava junto à porta.
– Sim? – respondeu Sabrina, voltando-se.
O rosto de Annabelle começou a contorcer-se de emoção.
– A culpa não foi minha – disse, a chorar. – Quer dizer, talvez ao princípio
tenha tido um bocado de culpa, mas nunca esperei que ele…
– Chiuu – acalmou-a Sabrina, voltando para junto da cama para a
reconfortar –, o que quer que ele tenha feito, mesmo que lhe tenhas dado a
ideia errada porque tinhas bebido de mais, nunca pode ser por culpa tua.
Annabelle fungou e olhou-a de olhos muito abertos e agitados.
– Queres que fique aqui sentada até adormeceres? – perguntou Sabrina.
– Não. Não há problema, fico bem.
Depois de lhe dar outro beijo, Sabrina pegou numa chávena que continha
os restos de uma bebida e três beatas, mas, decidindo que não era a altura
certa para tentar disciplinar a filha, limitou-se a levá-la consigo sem dizer
nada. Mal a porta se fechou atrás dela, Annabelle agarrou no telemóvel que
Georgie lhe deixara e ligou a Theo.
– A polícia já foi aí? – perguntou, quando Theo atendeu.
– Acabaram de se ir embora, mas não te preocupes, eu disse-lhes
exatamente o que tu disseste.
– Fixe. Obrigada. E o tal Neil, conheces?
– Nunca ouvi falar dele, porquê?
– Não importa. Hei de resolver tudo. O pessoal ainda vai todo a Wells na
sexta à noite?
– Sim, mas não acho que seja boa ideia tu vires.
– Porque não? Não fiquei inválida…
– Não, mas és menor de dezasseis anos e ninguém se quer arriscar a ter
problemas outra vez. Volta quando fores mais crescida, Annabelle – e, a
seguir, desligou.

***

Jolyon ergueu os olhos quando a esposa espreitou por detrás da porta do


seu escritório. Fazendo-lhe um sinal para entrar, disse para o telefone:
– Desculpa, Alicia, nesta fase não há mais nada que te possa dizer. A
polícia tem de recolher provas e declarações…
– Mas não seria preciso, se esperassem pelos resultados dos testes de
ADN – protestou Alicia. – Andam a interrogar a aldeia inteira…
– Eu sei que deve ser difícil para ti, mas eles têm de seguir os
procedimentos oficiais.
Com um suspiro angustiado, Alicia disse:
– Eu sei, e desculpa estar a incomodar-te, mas é que estou a ficar maluca,
aqui metida. Há rumores a circular, as pessoas já estão a tomar partidos e o
Nat recusa-se a sair de casa.
Consternado ao ouvir aquilo, embora não surpreendido, Jolyon disse:
– Como está ele hoje?
– É uma boa pergunta. Não faço ideia. Ele não fala comigo. Pelo menos,
não sobre o que se está a passar ou o que sente.
Sentindo a frustração de Alicia, Jolyon disse:
– Isto vai tudo acabar em breve. Os resultados devem chegar amanhã, por
isso devemos saber mais coisas na quinta ou na sexta, o mais tardar.
– Devo esperar que eles me telefonem? Como vou saber?
– Podes não saber mais nada até o Nat se ir apresentar na esquadra na
segunda-feira, mas farei os possíveis por obter mais informações deles antes
disso.
– Obrigada – disse Alicia afetuosamente. – Na verdade, há mais uma coisa
de que te queria falar, antes de desligares. Receio que possa demorar um
bocado a pagar-te…
– Nem penses nisso agora – interrompeu-a Jolyon.
– Mas…
– Não há discussão.
– Obrigada – disse Alicia de novo e, depois de se desculpar uma vez mais
pelo incómodo, desligou o telefone.
– Presumo que fosse a Alicia – disse Marianne Crane, enquanto Jolyon
pousava o auscultador.
Marianne era uma mulher de quarenta e poucos anos, magra e de pele
clara, com uma elegante cabeleira castanho-avermelhada, olhos escuros e
intensos e um sorriso vivo.
– Era – confirmou Jolyon. – Receio que ela esteja a ficar com os nervos
em franja.
– Com algo assim a pairar por cima dela, não é de espantar. Houve algum
desenvolvimento, desde ontem?
– E achas que me diriam, se houvesse? – disse Jolyon num tom sardónico.
– Oh, eu conheço-te, Jolyon Crane – disse a mulher –, tens um espião em
todos os sítios.
– E tu vê lá se não te esqueces disso – advertiu-a ele num tom brincalhão.
– Mas diz-me, que te traz a Small Street a meio da tarde? Hoje não há bebés
para vir ao mundo?
– Não tenho nenhum agendado – respondeu Marianne, aproximando-se da
janela para perceber o que estava a causar a agitação no exterior. – Há algum
caso importante a ser julgado no tribunal? – perguntou. – A imprensa parece
estar a reunir-se.
– Um dos jogadores do Bristol City vai ser julgado por agressão –
respondeu Jolyon. – Então, que pensa fazer com o seu tempo livre, Sra. Crane?
– Ir às compras, acho, até o meu marido estar disponível para me levar a
jantar. Apetecia-me ir ao Hotel du Vin. Está bem para ti?
Uma vez que o local ficava a menos de cinco minutos a pé do escritório,
no limite do centro da cidade, Jolyon concordou prontamente.
Depois de a esposa sair, continuou a matutar sobre a infeliz situação em
que Nathan Carlyle se tinha metido. Estava naquela profissão há tempo
suficiente para saber como o desgosto podia desorientar as pessoas e levá-las
a fazer coisas que, de outra forma, nunca fariam – de facto, os seus ficheiros e
as cadeias nacionais estavam repletas de exemplos destes. Não que pensasse
que Nat violara aquela rapariga, mas sabia de fonte segura (dissera-lhe o
sargento-detetive Bevan, durante uma conversa oficiosa diante do tribunal,
nessa manhã) que Annabelle lhe contara sobre o caso de Craig com a mãe
dela, antes da disputa entre ambos. Jolyon não tinha dúvidas de que este facto
desempenhara um papel importante na situação, fazendo Nat perder a cabeça e
tentar estrangular a rapariga, e quase de certeza era o motivo pelo qual estava
a ser tão difícil ao rapaz abrir-se com a mãe. No dia anterior, nem sequer fora
capaz de falar no assunto com ele, facto que revelara a Jolyon o quanto Nat
estava a ter dificuldades em lidar com a imagem subitamente manchada do
carácter impoluto do pai.
Com um suspiro, Jolyon voltou-se de novo para o computador e abriu o
ficheiro com as notas que tomara no dia anterior para as rever. Não passara da
primeira página quando a secretária o informou de uma chamada da parte de
Oliver Mendenhall.
Levantando o auscultador, Jolyon rodou a cadeira para ficar de frente para
a janela.
– Olá, Oliver – disse Jolyon, cumprimentando o antigo colega de Craig.
– Recebi a tua mensagem sobre o Nathan – disse Oliver. – Como vão as
coisas?
– Para ser honesto, estou preocupado – respondeu Jolyon. – Os testes de
ADN chegam amanhã, mas, independentemente do resultado, considerando a
idade da rapariga e o historial entre as duas mães, tenho um pressentimento de
que o problema não se vai resolver facilmente.
– Então, temos de arranjar maneira de isso acontecer – afirmou
Mendenhall.

Lisa Murray estava no jardim das traseiras da casa geminada de tijolo


vermelho onde vivia com o sargento-detetive Clive Bevan, cujo problemático
divórcio continuava por resolver. A casa, que Lisa conseguira comprar graças
a uma pequena herança da avó e a um empréstimo avultado, ficava em Bristol,
na zona de Bradley Stoke, que de notório só tinha para exibir a sua
classificação duvidosa como uma das maiores urbanizações privadas do país,
ou pelo menos da zona sudoeste.
Uma vez que estava uma noite bastante agradável, Lisa decidira colocar a
mesa no pátio, preparando-se para um churrasco que Clive e ela decidiram
organizar para alguns amigos – que não eram da polícia. Fazia-lhes bem
afastarem-se do trabalho sempre que podiam, apesar de, invariavelmente, as
conversas acabarem por recair sobre os casos em que estavam a trabalhar –
sem mencionar nomes –, uma vez que o público em geral parecia não se cansar
de ouvir falar de crimes.
Ouvindo a porta da frente fechar-se, Lisa acabou de prender a toalha à
mesa e voltou para dentro de casa para ir buscar os pratos.
– Olá – disse ao ver Bevan entrar na cozinha com um ar cansado, a morrer
de calor e invulgarmente desalinhado. – O dia correu mal?
– Pode dizer-se que sim – respondeu, aproximando-se para lhe dar um
beijo rápido nos lábios. – O futebolista psicopata safou-se com uma multa, um
idiota de um operador de câmara quase me atirou ao chão com a porcaria do
aparelho, a minha em-breve-futura-ex-mulher limpou a nossa conta conjunta e
os depoimentos que estamos a recolher daquela catrefada de miúdos do caso
de Holly Wood são uma treta mais disparatada do que aquelas telenovelas que
tu vês.
– Deixa-me preparar-te uma bebida – disse Lisa para o serenar.
– Desde que seja algo forte – respondeu Bevan, tirando a gravata com um
puxão. – A que horas chega toda a gente?
– Só às oito, por isso tens muito tempo para tomares um duche e te
descontraíres. Vai-te sentar no jardim. Eu levo as bebidas lá para fora.
Alguns minutos mais tarde, estavam deitados lado a lado numa cadeira de
rede suspensa, absorvendo o odor a terra dos jardins recentemente regados e o
cheiro de fazer crescer água na boca do churrasco de algum vizinho.
– Então – disse Lisa –, quais são as novidades no caso de Holly Wood?
Com um suspiro prolongado, Bevan disse:
– Está a ser extremamente complicado localizar os miúdos que lá
estiveram, como podes imaginar, mas, a julgar pelas declarações que
conseguimos até agora, ninguém testemunhou a agressão. Porém, o que se está
a tornar claro é que a nossa Annabelle e os compinchas são um grupinho
bastante malcomportado, que se mete em todo o tipo de coisas, desde troca de
parceiros a festas em topless, sanduíches…
– Sanduíches?
Bevan ergueu uma sobrancelha.
– Ora pensa lá.
Lisa pensou e, quando a imagem de uma rapariga nua entre dois rapazes
lhe surgiu na cabeça, fechou os olhos.
– Lindo – murmurou.
Bevan sorriu mostrando os dentes.
– Então, não és a favor?
Lisa olhou-o de lado.
– Até podia ser, se arranjasses um clone – provocou-o.
– Aí está a resposta certa – riu Bevan, beijando-a. – Seja como for, são
tudo testemunhos indiretos e, em grande medida, irrelevantes – prosseguiu. – A
equipa forense, por outro lado, desencantou alguns itens de bastante interesse
no bosque, sendo talvez o mais interessante umas calcinhas de fio dental.
As sobrancelhas de Lisa arquearam-se, antecipando o rumo que aquilo
poderia tomar.
– Mandámo-las para o laboratório para análise – continuou o sargento-
detetive –, mas lembro-me da alegação do Nathan Carlyle de que a Annabelle
não usava roupa interior, pelo que, partindo do princípio de que o rapaz está a
dizer a verdade e não foi ele próprio quem lhe tirou as calcinhas – e a
Annabelle não nos disse nada disto, portanto acho que podemos excluir a
possibilidade –, será que ela já apareceu na festa assim, ou despiu as
calcinhas quando estava com um dos outros dois e, a seguir, tornou a vesti-las
sem se incomodar?
– E eu estou a pensar – disse Lisa – que havia umas calcinhas de fio dental
entre as peças de roupa que ela nos trouxe para análise.
Bevan acenou com a cabeça.
– Assim, ou as que estão agora a ser processadas no laboratório não são
dela, ou são, o que significa que ela antes agarrou num par do cesto da roupa
suja para nos trazer. Agora, vou lá acima tomar um duche e, depois, volto para
baixo e começo a tratar do churrasco.
Depois de ele se ir embora, Lisa continuou a balançar-se na rede durante
algum tempo, refletindo sobre a conversa que tinham acabado de ter e as suas
impressões iniciais em relação a Annabelle Preston. A rapariga era muito
bonita e, à imagem da maioria dos adolescentes, provavelmente era muito
mais segura e arrogante entre os seus amigos do que mostrara no dia anterior,
nas instalações da polícia. No entanto, Lisa sentira nela uma vulnerabilidade
genuína que estava muito mais de acordo com a sua idade do que aqueles
rumores sobre o seu comportamento. A mãe também lhe parecera interessante:
uma beleza cheia de inseguranças sob aquela camada superficial, e a agente
não conseguia deixar de perguntar a si própria se os problemas da mãe
estariam relacionados com a aventura que Annabelle revelara a Nathan
Carlyle na noite de sábado.
Quer estivessem quer não, não era particularmente relevante em si mesmo
– toda a gente à face da terra carregava consigo as cicatrizes de experiências
passadas –, mas o facto aumentava a crença de Lisa de que, no sábado à noite,
Annabelle Preston provocara algo em Nathan Carlyle que a transformara na
vítima de um ato de violação não calculado e bastante violento.
Na noite seguinte, pouco depois das cinco da tarde, Bevan estava no
gabinete da inspetora Caroline Ash a dar-lhe as últimas informações sobre o
caso de Holly Wood, quando ligaram do laboratório com os resultados dos
testes de ADN. À medida que ouvia, a expressão de Bevan tornou-se
inescrutável.
A inspetora Ash observava-o atentamente, percorrendo-lhe o rosto com os
seus duros olhos verdes como se procurasse um ponto de entrada. A inspetora
era uma mulher impressionante de amplas proporções e uma ambição tão
feroz, que a poderia já ter feito subir uns degraus se o Queen’s Counsel Craig
Carlyle não tivesse posto um fim súbito e trágico à sua trajetória ascendente.
O facto de a inspetora ter feito asneira, esquecendo-se de informar
devidamente um detido dos seus direitos e permitindo a Carlyle libertá-lo com
base num pormenor técnico, não era a questão, pela parte que lhe dizia
respeito. A questão era que Craig Carlyle sabia muito bem que o seu cliente
era um incendiário compulsivo com três condenações anteriores, que, para
bem da sociedade, deveria ter ficado atrás das grades. Contudo, em vez de
fazer o que era correto e ignorar o seu erro processual, servira-se daquela
criatura desprezível para ajustar contas com ela por causa de um julgamento
anterior em que a inspetora lhe levara a melhor. A criatura fora então libertada
e, menos de um mês depois, Caroline Ash estivera entre os agentes chamados
a um incêndio em Fishponds Road, onde uma mãe gritava histericamente
porque os dois filhos estavam presos dentro da sua casa em chamas; um
incêndio ateado pelo miserável cliente de Carlyle. Ambas as crianças tinham
morrido.
– E então? – perguntou, quando Bevan voltou a guardar o telemóvel num
bolso interior.
Quando Bevan lhe respondeu, a ruga entre os olhos da inspetora
acentuouse. Bevan pôs-se de pé e voltou para a sua secretária. Depois de
informar o resto da equipa, pegou no telefone para ligar a Lisa.
– Os resultados chegaram – disse.
– E…?
– E estão os dois a mentir.
Capítulo Dezasseis
– Não sei se será boa ideia – disse Alicia a Nat. – Vamos ter de tapar a
carpete e arranjar um sítio para meter a mobília toda.
– Podemos arranjar uma tela de plástico para o chão – sugeriu Nat –, e
porque é que não nos livramos da mobília de uma vez? Nunca ninguém usa
esta sala e os móveis não são valiosos, pois não?
Alicia abanou a cabeça enquanto contemplava a ala da Coach House, há
muito sem uso, onde funcionara outrora o consultório do pai e a respetiva sala
de espera até a mãe transformar o espaço numa sala de jogos para as crianças,
com um pequeno escritório para si no lado que dava para o jardim.
– Acho que devíamos conservar as coisas da avó – disse, abrindo uma
arca de madeira para ver o que havia no interior e descobrindo-a cheia de
livros e velhos jogos de tabuleiro. – Mas podemos dar os brinquedos e os
móveis em miniatura.
Uma vez que teria sido demasiado estranho Nat e Robert irem ao jogo de
críquete planeado para aquele dia, Nat insistira com a mãe para começarem a
converter a ala abandonada num estúdio temporário que Alicia pudesse usar,
até ter a licença para trabalhar na loja. Isto significaria transportar a sua
bancada de trabalho e alguns materiais até à Coach House, mas Nat tinha a
certeza de que Simon e alguns outros amigos iriam ajudar na tarefa.
– Tens de te concentrar noutras coisas, mãe – dissera Nat na noite anterior
–, ou vais pôr-nos aos dois malucos com essa preocupação toda.
– Tens razão – concordara Alicia –, desculpa. Eu sei que vai correr tudo
bem, só que é muito difícil pensar noutra coisa enquanto a situação não estiver
resolvida. Espero que não nos façam esperar até segunda-feira para nos
dizerem os resultados.
Agora, ao ver o filho movimentar-se pela sala, tão semelhante a um homem
adulto em aparência e atitude, sem contudo deixar de ser o seu menino
querido, Alicia sentiu um espasmo de puro amor formar-se na garganta. Nat
era uma parte tão importante dela que, por vezes, era como se ainda
estivessem unidos fisicamente. Nas veias dele corria o sangue dela, Nat via o
mundo por idêntica perspetiva e partilhava com a mãe uma sensibilidade que o
pai havia adorado em ambos. Apenas uma mãe com um filho rapaz poderia
compreender a complexidade da relação de Alicia com Nat e perceber a
indestrutibilidade do laço que os unia.
– Que é? – disse Nat, apercebendo-se de que a mãe o observava.
Sorrindo, Alicia resistiu à vontade de o abraçar, abanando a cabeça
ligeiramente. Por favor, meu Deus, disse para si própria enquanto continuava
a passar revista às bonecas e aos Action Men, não o magoes mais. Ele é uma
pessoa boa, nunca fez mal a ninguém. Não merece o que lhe está a
acontecer, sobretudo numa altura em que ainda está a tentar ultrapassar a
perda do pai.
Ouvindo um carro estacionar na rua, Alicia olhou para verificar se alguém
se dirigia à Coach House. Não estavam à espera de visitas, mas, com alguma
sorte, Rachel poderia ter arranjado um tempinho livre para aparecer por lá.
Contudo, quando viu quem se aproximava, sentiu que o chão lhe fugia de
debaixo dos pés. Que fazia o detetive Croft ali de novo, acompanhado de outro
homem que ela não conhecia? Com certeza não viriam informá-la dos
resultados do ADN pessoalmente. Devia ter acontecido qualquer outra coisa.
Sentindo Nat aproximar-se e ficar de pé atrás dela, Alicia ergueu os olhos
para ele e, durante um instante totalmente desorientador, foi como se um raio a
tivesse atingido. Nat estava tão pálido que parecia que lhe tinham sugado todo
o sangue do corpo. Os seus olhos estavam muito abertos e brilhantes e a boca
desaparecera numa linha fina e tensa.
– Está tudo bem – disse Alicia, dando-lhe um apertãozinho no braço –,
provavelmente estavam aqui perto e devem ter mais algumas perguntas que te
querem fazer.
Quando Alicia chegou à porta da frente, o detetive Croft já lá estava, mas
foi o outro homem quem falou.
– Sra. Carlyle – disse, num tom sombrio como a morte –, sou o sargento-
detetive Bevan. O Nathan está?
– Hãã, sim, ele… – Alicia calou-se, voltando-se para trás ao ver Bevan
olhar para além dela.
– Nathan Carlyle – disse Bevan, avançando para o interior da casa –, está
preso pela violação de Annabelle Preston no dia vinte e nove de julho…
– Não! – gritou Alicia. – Não é verdade. Por favor…
Bevan prosseguiu:
– Tem o direito de se manter em silêncio, mas poderá prejudicar a sua
defesa se, ao ser interrogado, não mencionar factos que depois invoque em
tribunal. Tudo o que disser poderá ser usado como prova contra si.
Horrorizada, Alicia viu Croft agarrar Nat pelo braço. O rosto do filho era
uma máscara. Era como se Nat se tivesse refugiado muito fundo dentro de si
mesmo, deixando apenas uma carapaça.
– Não te preocupes, querido – disse Alicia, ouvindo o rugir de uma
tempestade distante enquanto os polícias passavam com o filho na sua frente. –
Vamos resolver isto. Vou ligar ao Jolyon agora.
Nat murmurou qualquer coisa para Bevan, que acenou com a cabeça e, a
seguir, o rapaz voltou-se e abraçou a mãe.
– Gosto muito de ti – sussurrou com a boca encostada à cabeça dela –,
gosto mesmo muito de ti.

Alicia ficou à porta, vendo o Focus afastar-se. Podia ver Nat no banco
traseiro com Croft, mas o filho não se voltou para olhar para trás. Mal o carro
desapareceu de vista, Alicia correu até à cozinha e agarrou no telefone. As
mãos tremiam-lhe tanto que mal conseguia marcar o número. Respirou fundo,
apertou as mãos uma contra a outra e tentou de novo.
– O Jolyon está? – disse, quando a telefonista atendeu. – Tenho de falar
com ele. É da parte da Alicia Carlyle.
– Vou passar a chamada.
– Alicia – disse Jolyon alguns segundos mais tarde.
– Jolyon, eles levaram-no – exclamou Alicia numa voz aguda e angustiada.
– O Nat foi acusado do crime…
– Aguenta aí. Repete-me exatamente aquilo que eles disseram.
– Disseram que o iam prender pela violação de…
– OK, já chega, ainda não é uma acusação formal. Vou descobrir o que se
passa. Sabes para onde o levaram?
– Não perguntei. Eu… aconteceu tudo tão depressa! Jolyon, estão a
cometer um erro terrível…
– Tenta ficar calma – aconselhou Jolyon num tom firme. – É óbvio que
surgiram novas provas.
– Eles já têm os resultados do ADN?
– Não sei. Deixa-me tratar disto.
– Não pode ser isso. Ele não a violou.
– Ligo-te mal saiba o que se passa.
Depois de desligar, Alicia fez um esforço para respirar profundamente,
mas tinha o peito demasiado apertado. Não parava de ver Nat no banco
traseiro do carro, só e com medo, vítima de uma injustiça demasiado terrível.
Não permitiria que fizessem aquilo ao filho dela. O desgosto por que Nat
estava a passar já não era suficiente? Que poderia sair de bom de lhe
destruírem a vida? Nada, a não ser que se fosse uma cabra traidora com
vontade de se vingar da mãe dele.
Alicia saiu de casa e atravessou a aldeia sem parar para pensar no que
estava a fazer. Os portões da casa de Robert estavam abertos. Alicia bateu três
vezes com a aldrava na porta com tanta força, que quase lascou a madeira.
Quando a porta se abriu, os olhos de Sabrina arregalaram-se com o choque.
– Mas que raio…
– Onde está ela? – disse Alicia com raiva. – Quero falar com ela.
– Como te atreves…?
– Ela está a mentir e tu sabes disso. Foste tu que a convenceste. Tu és…
– Ele violou-a – interrompeu-a Sabrina furiosamente.
– Estás a arruinar a vida de um rapaz inocente, porque não consegues
suportar o facto de o Craig não me ter deixado – gritou Alicia. – Ele é filho do
Craig, pelo amor de Deus. Porque lhe queres fazer mal?
– Devias perguntar-lhe a ele porque quis fazer mal à minha filha. Ele
atacou-a e depois violou-a como um animal selvagem.
– Quero falar com a Annabelle.
– Ela não está.
– És uma mentirosa. Tu…
– Não preciso disto – disse Sabrina, começando a fechar a porta.
Alicia impediu-a enfiando um pé pela abertura.
– Onde está ela? – gritou. – Tenho de…
– Mantém-te longe dela – silvou Sabrina. – A Annabelle já sofreu o
suficiente às mãos da tua família.
– Mas porque não pensas no mal que isto lhe está a fazer? Usares a tua
filha assim…
– Ninguém a está a usar. A Annabelle tem ferimentos que chegue para
provar o que ele lhe fez.
– Não foi o Nat quem os fez. Tu és doente, Sabrina, sabes disso? És
obcecada e doente. Isto devia ser entre nós as duas. Arrastares duas crianças
para o meio disto…
– O teu filho meteu-se em problemas sozinho, ninguém teve de o arrastar.
Agora sai daqui antes que chame a polícia.
– Não me vou embora sem falar com a Annabelle – disse Alicia. A seguir,
deu alguns passos para trás, erguendo os olhos para a fachada da casa. –
Annabelle! – gritou. – Por favor, preciso de falar contigo.
– Quantas vezes tenho de te dizer que ela não está? Agora vai para casa e
não te voltes a aproximar de nós.
Antes que Sabrina conseguisse fechar a porta, Alicia atirou-se contra ela.
– Se o meu filho for condenado por um crime que não cometeu, venho cá e
mato-te – cuspiu com cólera.
– Já chega. Vou apresentar queixa contra ti por me ameaçares de morte.
Meu Deus, não admira que o Craig estivesse morto por se ver livre de ti. Tu és
doida. Doida ou estúpida, era o que ele costumava dizer de ti.
– E sabes o que dizia de ti? Que só servias para uma coisa, e nem sequer
eras lá muito boa nisso. E agora parece que estás a ensinar a tua filha a ser
como tu, porque toda a gente sabe que ela é uma ordinária…
Alicia recuou quando Sabrina ergueu a mão.
– Nunca o devia ter deixado ficar contigo – rosnou Sabrina. – Foi só por
causa dos miúdos. O Craig estava mortinho que crescessem para se poder ver
livre de ti. Sabes quais foram as últimas palavras que ele me disse? Amo-te.
Era isso que ele sentia por mim. Quais foram as últimas palavras que ele te
disse a ti?
Alicia começou a responder aos gritos, mas Sabrina não se deteve.
– Tu foste a razão para o Craig andar tão stressado que o coração dele
explodiu. Mataste-o, sua cabra, e agora tens a ousadia de vir até aqui, acusar-
me de mentir e acusares a minha filha de… – Sabrina deteve-se quando um
carro subiu pelo acesso à casa.
– Que diabos se passa aqui? – exclamou Robert, saltando do carro.
– Porque não lhe perguntas a ela? – gritou Sabrina. – Ela veio até cá e
tentou entrar à força…
– Alicia? – disse Robert, virando-se para a irmã.
– Prenderam-no – disse Alicia numa voz trémula. – A polícia levou-o.
Meu Deus, Robert, não consigo suportar isto. Tens de a fazer parar. Ela já
arruinou a minha vida uma vez, por favor não a deixes fazer o mesmo de novo.

***

– Trouxemos o rapaz para Bath – disse Bevan à Inspetora Ash ao


telemóvel. – Não o conseguimos levar para Trinity Road.
– OK. Presumo que o Jolyon Crane já vá a caminho.
– Penso que sim.
– Esse rapaz não se vai safar disto – declarou a inspetora. – Não é uma
ameaça, é um facto.
Sabendo que a inspetora tinha razão, Bevan disse:
– O pai já morreu, senhora inspetora, vai ser uma vitória de Pirro.
– Tudo o que me importa, sargento, é que se faça justiça. Aprenda com os
meus erros: nada de deslizes processuais, tudo como manda o figurino. Onde
está ele agora?
– Estamos a elaborar o expediente da detenção. Quem está de serviço hoje
é o Kevin Wheeler, por isso temos a certeza de que fará um trabalho
minucioso.
– Bom. Dê-me notícias quando acabar o interrogatório.
Depois de desligar, Bevan voltou-se para o balcão da área de detenção
onde Nat, calado e de rosto lívido, ouvia o sargento de serviço perguntar-lhe
se compreendera os direitos que tinha acabado de lhe explicar. No momento
em que Nat acenou afirmativamente com a cabeça, o telemóvel de Bevan tocou
de novo.
– Estou? – disse Bevan num tom brusco.
– Sargento, tenho aqui ao telefone uma Sra. Paige muito furiosa, é a mãe
da…
– Eu sei quem é. Qual é o problema?
– Não tenho a certeza. Ela insiste em falar consigo…
– Passe a chamada – atalhou o sargento-detetive, afastando-se para que
Nat não pudesse ouvir.
Um instante depois, Bevan ouviu a voz histérica de Sabrina do outro lado
da linha.
– Sargento, acabo de ser ameaçada na minha própria casa pela mãe do
Nathan Carlyle – disse Sabrina num tom acalorado. – Quero apresentar queixa
contra ela e preciso de saber…
– Espere, espere – disse Bevan. – Que quer dizer com “ameaçada”?
– Exatamente isso. Ela veio até aqui como uma louca, acusando a minha
filha de mentir e depois disse que me ia matar. Espero que a detenham,
sargento, porque ela é…
– Onde está ela agora?
– O meu marido levou-a para casa. Ela estava completamente
descontrolada. Ela é louca e perigosa.
– OK, vou lá mandar alguém.
– Obrigada. E espero que lhe imponham algumas medidas de coação…
– Sra. Paige – interrompeu-a Bevan –, presumo que ainda não tenha
recebido uma chamada da parte da Lisa Murray?
Houve alguns segundos de silêncio antes de Sabrina responder:
– Não. Devia?
– Provavelmente, ela vai entrar em contacto convosco durante a próxima
hora – disse o sargento-detetive. – Precisamos de falar com a Annabelle de
novo.
– Porquê?
– A Lisa explica-lhe quando ligar. Agora receio que tenha de desligar. Vou
mandar alguém por causa da sua queixa – e, antes de Sabrina poder retomar os
seus protestos, Bevan desligou.
Encontrando Croft sozinho no balcão da área de detenção enquanto o
agente de serviço conduzia Nat a uma cela, Bevan contou-lhe do telefonema de
Sabrina, comentando:
– Aquela família é uma maldito ninho de vespas, mas é melhor pedires a
uma dos polícias locais para irem fazer uma visitinha à Sra. Carlyle. Desta vez
basta um aviso, mas que ela perceba bem que tem sorte por não a prendermos.
– Vou já tratar disso, sargento.
– Antes de ires, diz-me, ainda não há sinais do Jolyon Crane?
– Aparentemente, está preso no trânsito, mas deve cá chegar dentro de
meia hora.

– Tens a certeza de que estás bem? – perguntou Robert a Alicia. – Precisas


de alguma coisa?
– Não, está tudo bem – respondeu Alicia inexpressivamente, mantendo a
cabeça entre as mãos enquanto permanecia sentada à mesa da cozinha.
Observando-a com preocupação, Robert passou-lhe a mão pela cabeça.
Alicia sentou-se para trás na cadeira.
– Por favor, não faças isso – disse a tremer. – Tens de ir para casa. A
Sabrina não vai gostar se ficares cá muito tempo.
– Eu resolvo as coisas com ela. É contigo que estou preocupado. Que vais
fazer?
– Que queres dizer? Que vou fazer agora, ou em relação ao Nat?
– Ambos.
– Acho que não há nada que possa fazer, exceto esperar por notícias do
Jolyon. Segundo parece, têm-no preso em Bath.
– Queres que te leve até lá?
Alicia abanou a cabeça lentamente.
– O Jolyon disse que não me vão deixar vê-lo e podem mantê-lo lá durante
a… noite. – A última palavra foi abafada por um soluço e Alicia encostou o
punho fechado à boca.
– Não sei o que descobriram – disse angustiada –, mas o que quer que seja
não faz diferença, porque ele não fez aquilo.
Uma vez que nem Annabelle nem Sabrina estavam por perto para o ouvir,
Robert respondeu:
– É claro que não. É óbvio que há aqui um mal-entendido…
– Tens de falar com a Annabelle – suplicou Alicia, agarrando na mão do
irmão. – É a Sabrina que a está a convencer a fazer isto, mas se conseguires
falar com ela a sós… Tens de a fazer entender que a situação é muito séria e as
consequências que pode ter para o futuro do Nat.
– Vou tentar – prometeu Robert, sentindo a sua lealdade tão dividida que
não sabia para onde se virar. – Agora, acho que tenho de me ir embora – disse
ao fim de uns instantes. – Queres que telefone à Rachel e lhe peça para vir até
cá?
– Deixa estar, eu ligo-lhe. Obrigada por me trazeres a casa. Espero que ela
não te cause demasiados problemas. De certeza que acha que o teu lugar é ao
lado dela, não ao meu.
Robert sorriu debilmente.
– Liga-me mal tenhas novidades – disse e, dando-lhe um beijo rápido no
rosto, foi-se embora.

– Nunca deixa de me espantar – disse Bevan a Jolyon enquanto se dirigiam


à sala de interrogatórios – como estes miúdos supostamente brilhantes
conseguem ser tão estúpidos.
Como o próprio Jolyon já se deparara com a anomalia diversas vezes,
limitou-se a abanar a cabeça, partilhando da consternação do detetive.
Descobrir que Nat fazia parte desta categoria não era algo de que estivesse à
espera e não lhe agradava em absoluto.
Quando chegaram à porta, Bevan deteve Jolyon.
– Não lhe devia estar a dizer isto – disse, em voz baixa – mas a inspetora
quer uma condenação neste caso e, neste momento, não estou a ver como isso
possa deixar de acontecer.
A expressão de Jolyon manteve-se impassível ao responder:
– Presumo que estejamos a falar da Caroline Ash?
Bevan acenou com a cabeça. Jolyon não fez quaisquer comentários.
– Isto pode demorar um bocado – avisou, quando Bevan abriu a porta.
– Já imaginava que sim – respondeu o sargento-detetive.
Jolyon encontrou Nat na sala de interrogatórios afundado numa cadeira,
com as pernas afastadas e os braços cruzados enlaçando o peito. A cabeça
pendia-lhe para a frente, mas ergueu os olhos quando Jolyon entrou.
– Estás bem? – perguntou Jolyon, colocando a pasta em cima da mesa.
Nat respondeu com um ténue encolher de ombros. Jolyon sabia que a
atitude distante de Nat era provocada tanto pelo medo como pela vergonha e o
embaraço. Tirou um bloco e uma caneta da pasta, fechou-a e sentou-se.
– Eu sei que o sargento Bevan já te informou de que o teu sémen foi
detetado numa das amostras vaginais – disse, indo direito ao assunto –, por
isso talvez me possas explicar por que diabos mentiste quando devias saber o
que os testes de ADN iriam revelar.
Nat manteve a cabeça baixa e começou a balançar os joelhos de um lado
para o outro.
– Pensei… – disse hesitante. – Não me vim, por isso pensei que… –
Calou-se, erguendo um ombro.
Aprendendo, uma vez mais, que não devia partir do princípio de que as
outras pessoas sabiam algo só porque ele sabia, Jolyon disse:
– Não é preciso ter um orgasmo para deixar vestígios de sémen.
Nat continuou com a cabeça baixa. Jolyon suspirou.
– Bem, acho que aprendeste esta lição da pior maneira – disse. – Mas
agora vamos às boas notícias: o teu sémen não foi o único que os testes
detetaram.
Nat olhou para ele cautelosamente. Sentindo-se mal por as boas notícias
acabarem aqui, Jolyon prosseguiu:
– Receio que a má notícia seja que tu és o único de quem ela apresentou
queixa. Portanto, Nat, tenho de te perguntar: forçaste a rapariga a ter sexo?
Nat abanou a cabeça.
– Não – respondeu num tom sincero. – Aconteceu tudo exatamente como
lhe contei.
– Excetuando o facto de teres tido relações com ela – disse Jolyon, num
tom assertivo.
– Sim, mas… Era ela que queria. Estava ali, de pernas abertas, a incitar-
me, portanto… Antes de dar por isso, estava a fazer aquilo… Quer dizer, era
como se não estivesse em mim, mas mal caí na real, levantei-me. Odiei-me a
mim próprio por… – Deteve-se quando Jolyon ergueu a mão.
– Agora tenho de te fazer uma pergunta muito importante – disse Jolyon. –
Quando estavas a fazer isso, tinhas consciência da idade que ela tinha?
Nat engoliu em seco com força e levou uma mão ao rosto.
– Acho que… Eu… Ela tem uns dezasseis, não é? Ou…
– Já chega – interrompeu-o Jolyon abruptamente. – Demonstrar o teu
desconhecimento da idade exata dela é a única coisa que te pode salvar agora,
e Deus sabe como vai ser difícil, dado o facto de vocês serem praticamente
primos. É que, Nat, independentemente de ela ter querido ou não, é ilegal ter
relações sexuais com uma rapariga de quinze anos e receio que seja essa a
idade dela.
Nat parecia ter sido atingido por um raio.
– É melhor dizer-te isto já – prosseguiu Jolyon –, e depois vamos começar
a tentar resolver as coisas. Para começar, todas as pessoas que cometerem este
crime são automaticamente inscritas na Lista Nacional de Abusadores Sexuais.
Nat ficou muito pálido.
– Mas…
– Espera, ouve-me. A questão agora já não é que a relação tenha sido
consensual ou não, porque, mesmo que ela admitisse que não foi violada, e
ninguém está a dizer que a Annabelle vai fazer isso, ainda há o problema da
idade dela. Também temos de levar em consideração as lesões que ela tem no
rosto e na zona genital, que podem deitar por terra a hipótese de uma acusação
mais leve, de sexo com uma menor. Basicamente, Nat, agora podem cair-te em
cima com tudo o que têm, e receio que não tenhas ajudado nada a tua situação
ao mentir.
Nat tinha um ar tão chocado que Jolyon tentou parecer menos severo antes
de continuar.
– Vamos fazer tudo o que pudermos para te tirar desta confusão, mas não
nos tornaste a vida fácil.
Os olhos de Nat pareciam vazios, a sua mente estava entorpecida pelo
choque.
– Quanto… E se ela continuar a dizer que eu a violei? – perguntou. –
Quanto tempo irei para a prisão?
Não vendo sentido nenhum em assustar Nat de morte revelando-lhe a
sentença máxima a que poderia estar sujeito, Jolyon disse:
– Não vamos pensar nisso agora. Vamos trabalhar no sentido de te livrar
de todas as acusações, porque a última coisa de que precisas, filho, é de
começar a tua vida com o teu nome naquela lista.
Subitamente, Nat agarrou a cabeça com ambas as mãos.
– Não consigo suportar isto – disse numa voz sufocada, quebrada de terror.
– Se ela me tivesse deixado em paz, mas não deixou… Continuou a falar, a
falar, e depois disse que o meu pai e a… Meu Deus – engoliu em seco,
enterrando o rosto nas mãos. – Não lhe devia ter prestado atenção. Devia ter
continuado a andar…
Num tom muito suave, Jolyon disse:
– Ela contou-te acerca do caso que a mãe dela teve com o teu pai.
Nat continuou a olhar para baixo.
– Não fazias ideia, antes disso?
Nat abanou a cabeça. Apesar de a provocação não servir de defesa
naquelas circunstâncias, Jolyon estava agora mais preocupado com o trauma
pessoal que o rapaz estava a viver.
– Ela disse… Ele costumava fazer discursos sobre o respeito e a lealdade
– disse Nat numa voz rouca. – Como foi capaz de… – A voz quebrou-se-lhe e
Nat apertou a cabeça ainda com mais força.
– Ele era bom homem, Nat, apesar daquilo que fez.
– A minha mãe sabe? Ela sabe, não sabe?
– Sabe, sim.
Nat gemeu de fúria e desespero. Ao fim de algum tempo, Jolyon disse:
– Vou buscar-te um copo de água, e depois vamos começar a elaborar um
novo depoimento para o sargento Bevan. Precisas de mais alguma coisa?
Nat ergueu por fim os olhos para ele.
– A minha mãe está lá fora? – perguntou.
– Não. Não tenho a certeza de quanto tempo vais ficar aqui, por isso disse-
lhe para esperar em casa.
– Está bem – disse Nat absortamente. – Fez bem.
– Não, ainda não tenho notícias – disse Alicia a Rachel ao telefone –, mas
o Jolyon disse que provavelmente só me poderia dizer alguma coisa muito
mais tarde.
– OK. Vou ter contigo logo que possa, mas estou à espera que me tragam
um cão que foi atropelado e só quando ele chegar é que vou perceber se terei
de o operar ou de o abater. Bom, esperemos que não seja necessário fazer
nenhuma das duas coisas, só estou a dizer que a segunda demorará menos. Que
estás a fazer agora?
– Nada. Estou só à espera. A Darcie ligou há uns minutos. Apercebeu-se
de que havia qualquer coisa de errado, mas como lhe podia contar o que se
está a passar? – Os olhos de Alicia encheram-se de lágrimas. – Ela deve
voltar no sábado e eu tinha pensado… Acreditei mesmo que tudo isto estaria
resolvido antes de ela chegar.
– Tudo pode acontecer até lá – disse Rachel num tom tranquilizador –, por
isso não comeces a stressar também por causa dela. Já tens preocupações que
cheguem com… Não estão a tocar à tua campainha?
Alicia olhou para o fundo do átrio.
– É melhor ir ver quem é – disse. – Falamos quando chegares – e,
desligando o telefone, limpou as lágrimas do rosto e respirou fundo várias
vezes antes de ir abrir a porta.
Durante um instante, olhou para o homem de pé na sua frente sem se
conseguir lembrar de quem era.
– Alicia? Está bem? – perguntou ele.
Ao reconhecê-lo, Alicia sentiu um espasmo de desespero no coração.
– Cameron – disse, tentando recompor-se. – Desculpe… Eu… Perdi a
noção dos dias.
– Aconteceu alguma coisa? – perguntou Cameron. – Parece perturbada.
Alicia soluçou, quase com vontade de rir.
– É o… Receio que não possa acompanhá-lo esta noite. Devia ter ligado…
– Não tem importância. Posso fazer alguma coisa por si?
Alicia fechou os olhos. Devia convidá-lo a entrar? Desculpar-se e pedir-
lhe para ir embora? Não sabia o que fazer. Então, para seu horror, um carro da
polícia surgiu na rua.
– Que se passa? – perguntou Cameron, seguindo a direção do seu olhar.
Alicia não respondeu, continuando apenas a olhar para o carro, apertando
as mãos contra a garganta. Estavam a trazer Nat para casa. Tinham-se
apercebido de que fora cometido um erro terrível e haviam-no libertado. No
entanto, quando o carro parou em frente à casa, saiu apenas um polícia em
uniforme.
– Alicia, deixe-me ajudar – disse Cameron, quando a viu começar a
tremer. – Diga-me o que passa.
– Não posso – disse, com os olhos fixos no agente. Porque estava ele ali?
Já tinham levado o filho, com certeza não quereriam revistar a casa outra vez?
– Sra. Carlyle? – perguntou o polícia.
– Sim – respondeu Alicia, quase num sussurro.
– Sou o agente Darren Whitby. Posso entrar um momento, por favor?
– Oh, meu Deus, houve um acidente – exclamou, tapando a boca com a
mão.
– Não, não – assegurou-lhe o polícia. – Não é nada do género.
Parecendo não saber o que fazer, mas relutante em abandonar Alicia,
Cameron disse:
– Vou esperar no pub, para o caso de…
– Não, entre – disse Alicia de súbito.
Que importava que mal o conhecesse, ou que Cameron provavelmente se
fosse afastar dela, como se Alicia tivesse sarna, depois de descobrir o que se
estava a passar? Naquele instante, não conseguia enfrentar o polícia sozinha.
Depois de os conduzir à sala de estar, sentou-se na borda do sofá enquanto
o jovem polícia se sentava num dos cadeirões e Cameron se afastava
ligeiramente, permanecendo de pé junto à janela.
– Receio – começou o agente Whitby – que tenha recebido uma queixa
contra si da parte da Sra. Paige.
Alicia sentiu a cabeça começar a andar à roda.
– Ela diz que a senhora foi até casa dela e a ameaçou…
– Ela está a fazer a filha dela acusar o meu filho de violação – atalhou
Alicia. – Eu queria falar com a Annabelle…
– Nós compreendemos como esta situação está a ser difícil para si – disse
Whitby com simpatia –, mas tenho de a advertir para, de momento, não se
aproximar nem da sua cunhada nem da filha dela. Se o fizer, receio que tenha
de a deter e tenho a certeza de que isso é a última coisa que a senhora quer.
– E quanto à filha dela ficar longe do meu filho? – gritou Alicia
desesperadamente.
O polícia ergueu-se.
– O seu irmão convenceu a esposa a não apresentar uma queixa formal
contra si – disse –, por isso, por favor, faça como lhe disse e não volte a ir lá.
O polícia saiu sozinho enquanto Alicia ficava a contemplar a lareira,
incapaz de olhar para Cameron ou de pensar no que dizer.
– Se me disser onde estão as coisas, posso preparar uma bebida para
ambos – sugeriu Cameron calmamente.
Olhando para ele rapidamente, Alicia obrigou-se a levantar.
– Só tenho vinho – disse. – Pode ser?
– É perfeito. Branco ou tinto? E, por favor, fique aqui, sou capaz de abrir
uma garrafa de vinho sozinho, desde que saiba onde está.
Sorrindo tenuemente do comentário, Alicia deu-lhe instruções para
encontrar o vinho e recostou-se contra as almofadas enquanto Cameron ia
tratar de tudo. Aquilo era tudo um pesadelo, dizia a si própria, tinha de ser, ou
ela ia perder a cabeça.

O sargento-detetive Bevan não gostava que o tentassem enganar e, apesar


de estar disposto a ouvir o rapaz e talvez até a dar-lhe o benefício da dúvida,
a forma como o miúdo estava para ali a mentir e a balbuciar como um atrasado
mental, com Jolyon Crane constantemente a lembrar-lhe de que não tinha de
responder, estava a irritá-lo seriamente.
– Está realmente a pedir-me para acreditar que não sabia a idade de
Annabelle Preston até lhe dizerem hoje? – disse num tom áspero. – É
praticamente parente dela. Conheceu-a quase a vida inteira, e contudo…
– Sargento, o meu cliente já respondeu à pergunta – interrompeu Jolyon.
– Com outra mentira – replicou Bevan, fixando o topo da cabeça de Nat
com um olhar penetrante. – Quantas mais contou, meu rapaz? – perguntou. –
Disse que não teve relações sexuais com ela, mas já sabemos que teve. Agora
está a tentar dizer-me que pensava que ela tinha dezasseis anos. Pareço-lhe
estúpido? Por acaso tenho “anjinho” escrito na testa? O Nathan sabia muito
bem que idade ela tinha…
– Qual é a sua questão, sargento? – perguntou Jolyon.
Bevan olhou para ele de repente.
– A minha questão é – disse para Nat –, violou Annabelle Preston? Já
sabemos que teve com ela relações sexuais não permitidas por lei, mas ela
afirma que a violou. É verdade?
– Não – disse Nat com veemência, antes que Jolyon pudesse lembrar a
Bevan de novo que o seu cliente já respondera àquela pergunta.
– Não acredito em si – disse Bevan –, e sabe porquê? Porque acho que
quer ir para a cama com a Annabelle desde que ela tinha doze anos e vocês
costumavam fazer umas brincadeiras no quarto dela. Ela costumava provocá-
lo, deixava-o avançar e, depois, recuava. Acho que foi isso que ela fez no
sábado e você já estava farto daquilo. Não a ia deixar continuar a fazer o
mesmo. Você desejava-a, por isso possuiu-a, apesar de ela o tentar impedir.
Não foi isso que aconteceu?
– Não! Quer dizer…
– Sim? Que quer dizer?
– Ela estava a dizer-me para fazer aquilo, e quando eu fiz, ela…
– Ela fez o quê? Tentou libertar-se e fugir de si? Gritou-lhe para você
parar?
– Não. Disse-me para continuar.
– Então, ela está a incitá-lo a continuar, diz-lhe que você é o máximo, e de
repente você pensa “Ena, agora acho que lhe vou dar uma sova”?
– Não! Quando me apercebi do que estava a fazer, parei.
Bevan não podia ter parecido mais incrédulo.
– Quando se apercebeu do que estava a fazer?! – repetiu num tom
agressivo.
Nat baixou a cabeça.
– Não foi assim, como o senhor está a fazer parecer – disse.
– Então, diga-me como foi.
– Está tudo na declaração, sargento – disse Jolyon.
– Sim, mas gostava de ouvir da boca dele.
– Não tens de responder – disse Jolyon a Nat.
Nat olhou para Bevan.
– Ela disse-me que o meu pai teve um caso com a mãe dela – disse. – Eu
não queria acreditar. Tive ódio dela por dizer aquilo…
– Você odiava-a – atalhou Bevan, consciente de que Jolyon fechava os
olhos em desespero. – Então, nutrindo esses sentimentos pela Annabelle, teve
relações sexuais com ela e agora está a pedir-me para acreditar que esse ato
não teve nada de violento. Era o que ela queria, que alguém que a odiava a
empurrasse contra o chão, a agarrasse pelo pescoço e a penetrasse com tanta
força até a zona genital dela ficar roxa…
– Não sei como isso aconteceu – disse Nat. – Eu não fui bruto, nem nada
do género.
– A sério? Bem, eu acho que você estava tão furioso que nem fazia ideia se
estava a ser bruto ou não, nem tampouco se importava. Pela parte que lhe dizia
respeito, a Annabelle estava a pedi-las. Andava há anos a provocá-lo e você
ia dar-lhe o que ela merecia, quer ela quisesse quer não. E o facto de ela não
querer foi tão irrelevante para si como a idade dela. Não lhe importou
minimamente que ela tivesse dezasseis anos, quinze ou doze, você ia chegar
até ao fim.
– Estamos à espera da sua pergunta – disse Jolyon bruscamente.
Bevan sentou-se para trás na cadeira.
– Sabe que mais – disse –, acho que não tenho mais perguntas porque já
está tudo bastante claro para mim. Aqui o Nathan violou a prima no sábado à
noite, e a sua repentina amnésia acerca da idade dela não vai pegar, porque ele
teve um relacionamento sexual ilícito com ela desde que ela era uma criança
de doze anos. E sabe o que isso faz de si, Nathan?
– Se fosse a si, sargento, não ia mais longe – advertiu Jolyon.
– Eu sei que está a tentar dizer que sou um tarado – gritou Nat –, mas não é
verdade. Quando ela tinha doze anos, nós só curtimos, como fazem as miúdas
todas…
– Como sabe que as outras miúdas de doze anos fazem essas coisas? –
interrompeu-o Bevan. – Porque as tem feito com elas? É nisso que se está a
tornar, Nathan? Num pervertido? Num pedófilo?
O rosto de Nat empalideceu e Jolyon deu um murro irado na mesa.
– Este interrogatório terminou – disse a Bevan.
– Essa decisão não lhe cabe a si – respondeu Bevan num tom abrupto.
– O meu cliente não vai responder a mais perguntas, por isso terminou – e,
colocando a pasta em cima da mesa, começou a arrumar as suas coisas.
Bevan levantou-se energicamente e saiu da sala. Encontrou o sargento de
serviço a preparar um chá na kitchenette da área de detenção.
– Quero que mantenha o Nathan Carlyle cá – disse Bevan bruscamente.
O sargento ergueu as sobrancelhas.
– Sob que pretexto? – perguntou.
– A forte probabilidade de ele tentar assediar a vítima. A mãe dele
ameaçou a mãe da vítima hoje. Vivem na mesma aldeia e acho que não
podemos ter a certeza de que ele se vá manter longe dela.
Colocando um saquinho de chá no caixote do lixo, o sargento dirigiu-se à
sua secretária.
– É melhor o Sr. Crane vir até cá – disse.
Na sala de interrogatórios, Jolyon explicava a Nat o que provavelmente
iria acontecer a seguir.
– O mais provável é quererem manter-te aqui, mas, dado que não tens
condenações anteriores, pode ser que consiga que te libertem à minha
responsabilidade – disse Jolyon, omitindo o facto de a sua mãe ter levantado
os maiores obstáculos à sua libertação quando ameaçou Sabrina, porque isto
era algo que Nat não precisava de saber. – Acho que, de momento, o melhor
para ti será ficares o mais longe possível de Holly Wood – aconselhou.
Nat não se opôs. Acima de tudo, sentia-se aliviado por poder adiar o
momento em que enfrentaria a mãe. Qualquer pensamento para além desse era
demasiado aterrorizador para ser sequer contemplado.
Capítulo Dezassete
– Bem, penso que agora já estás arrependido de me teres vindo visitar –
disse Alicia, tentando sorrir para Cameron do outro lado da mesa. – E não
consigo acreditar que realmente te contei aquilo tudo.
Os olhos escuros de Cameron ainda exibiam a mesma profundidade de
compreensão que a encorajara a dizer mais do que, noutras circunstâncias,
teria sido normal.
– Estás a passar por um momento difícil – disse Cameron, voltando a
encher os copos de ambos – e, obviamente, precisavas de falar com alguém,
por isso estou contente por estar cá.
Alicia olhou para ele e depois desviou os olhos, perguntando a si própria
o que estaria Cameron realmente a pensar, e se deveria continuar a beber.
Agora estavam no jardim, sentados sob o brilho claro das luzes exteriores
depois de, entre os dois, beberem quase uma garrafa de vinho inteira enquanto
Alicia desfiava a triste história da aventura de Craig com Sabrina e da prisão
de Nat. Não escondera nada e agora só conseguia pensar que, a um nível
subconsciente, agira assim para tentar afastá-lo, destruir qualquer hipótese de
Cameron vir a ajudá-la no seu trabalho, porque se habituara de tal maneira a
ver tudo correr mal que queria despachar aquela próxima desilusão o mais
depressa possível.
– Então, não vais saber o que vai acontecer ao Nat até que o Jolyon
telefone – disse Cameron, pegando no copo.
Alicia abanou a cabeça.
– O facto de que ele possa ter mentido à polícia… – Alicia calou-se,
engolindo em seco. Ele não a tinha violado, simplesmente não podia tê-la
violado. – O Jolyon não falou nisto quando ligou, mas a idade da Annabelle…
Mesmo que ela possa ser persuadida a desistir da acusação de violação… – A
voz de Alicia vacilou, incapaz de pronunciar as palavras de que se compunha
o seu medo.
Cameron olhava para ela com grande compaixão.
– Ele vai ter os melhores advogados a defendê-lo – lembrou-lhe – e, se a
acusação de violação se resumir à palavra dela contra a dele, é bem possível
que a polícia desista do caso.
– A mãe dela não vai deixar que isso aconteça – disse. – Mesmo que
consigamos fazer cair a acusação de violação, ela vai insistir em que
processem o Nat por relações sexuais ilícitas com uma menor. Então, de uma
maneira ou de outra, ele… – Deteve-se, tapando a boca com a mão. – Se eles
puserem o nome dele na Lista Nacional de Abusadores Sexuais…
– Acho que, por agora, devias parar de te atormentar com esse tipo de
pensamentos – aconselhou Cameron gentilmente. – Não sabes se isso vai
acontecer e não consigo imaginar os colegas do teu marido a permiti-lo. Eles
hão de arranjar uma maneira de resolver isto, vais ver.
Esforçando-se por sorrir ao olhar para ele, Alicia disse:
– Estás a ser muito simpático e paciente, e agora já deves estar cheio de
fome…
Cameron arqueou uma sobrancelha ironicamente.
– Estou com uma fome de lobo – admitiu.
A ligeireza do tom dele alegrou um pouco o sorriso de Alicia.
– Desculpa, prendi-te aqui todo este tempo – disse –, a falar sem parar…
– Ainda temos uma reserva no Montague Inn – disse Cameron –, se te
sentires em condições. Senão, talvez possamos desenrascar algo aqui. Apesar
de parecer suspeito ser eu a dizê-lo, tenho um grande dom para a cozinha.
Continuando a sorrir, Alicia disse:
– Não te posso deixar ter esse trabalho todo por mim, mas preferia ficar
aqui, se não te importares, para o caso de o Jolyon telefonar.
– Não há problema, e podemos cozinhar juntos. Que te parece?
Excetuando dizerem-lhe que estava a ter um pesadelo e que, a qualquer
momento, iria acordar e encontrar Nat lá em cima no quarto, Alicia não se
conseguia lembrar de nada que lhe soasse melhor.
– Parece-te bem uma massa? Tenho um pouco de salmão fumado e natas
azedas, e no frigorífico há um crumble de amora que a tua fã, a Mimi, trouxe
há pouco.
Cameron franziu os olhos com uma expressão de contentamento.
– Ah, grande Mimi – disse, agarrando na garrafa e em ambos os copos
enquanto se punha em pé. – É um dos meus preferidos.
– Na verdade – disse Alicia, enquanto se dirigiam para dentro –, lembras-
te da minha amiga Rachel, a veterinária?
Cameron acenou com a cabeça.
– Deve estar a chegar a qualquer momento, por isso devíamos fazer
comida que chegue para ela também.
– Sem problema. Vai dar-me a oportunidade de lhe agradecer por ter
atendido o Jasper assim, tão em cima da hora. Isto é, desde que não te
importes que eu esteja aqui. Talvez vocês as duas queiram falar…
– Não, por favor, fica. Ela vai gostar de te conhecer melhor, e dar-te de
jantar é o mínimo que posso fazer para agradecer teres-me ouvido. – Sorriu
ironicamente. – Para dizer a verdade, tenho medo do que ficaste a pensar disto
tudo, mas só te posso dizer que, até há poucos meses, éramos uma família
normalíssima.
Os olhos de Cameron iluminaram-se maliciosamente.
– Tenho de te contrariar nesse ponto – disse –, pois todas as evidências
sugerem que semelhante coisa não existe.
– OK – admitiu Alicia, deitando azeite numa panela –, tens razão, mas
definitivamente estávamos todos vivos e do lado certo da lei. É quase
inacreditável a velocidade a que a vida pode mudar, não é? – acrescentou,
perturbada pela forma como acabara mais ou menos de brincar sobre a morte
de Craig.
Então, a terrível diatribe de Sabrina voltou a espetar as garras no seu
coração. Foi só por causa dos miúdos… O Craig estava mortinho por se ver
livre de ti. As últimas palavras que ele me disse foram “amo-te”. Quais
foram as últimas palavras que ele te disse a ti? Alicia levou a mão à cabeça,
como que para deter aquele eco estridente. Seria verdade que Craig só estava
à espera que os filhos crescessem para ir viver com Sabrina? Seriam os filhos
realmente o único motivo por que pusera fim à ligação? A última coisa que o
marido lhe dissera fora que ela estava enganada se pensava que o caso com
Sabrina ainda não tinha acabado…
– A Rachel costuma ter muito apetite? – perguntou Cameron,
interrompendo o tormento.
Alicia olhou para ele de forma inexpressiva.
– Nem por isso – respondeu, confusa. – Porquê?
Cameron acenou com a cabeça na direção da panela, onde quase meio litro
de azeite começava a aquecer. Rapidamente, Alicia tirou a panela do lume e
agarrou no jarro que Cameron lhe passou para verter para lá a maior parte do
líquido.
– Desculpa, eu, de repente…
– Não peças desculpa – disse ele, dirigindo-se ao frigorífico – diz-me só
onde estão as cebolas. Ah, salmão fumado, natas azedas – disse, tirando os
alimentos para fora – e, a não ser que me engane muito, aquilo é uma
campainha.
Alicia pestanejou, meio à espera que Cameron retirasse o objeto do
frigorífico. Apercebendo-se depois de que tinham tocado à porta, dirigiu-se
para a entrada. Era Rachel.
– Temos companhia – disse, enquanto se abraçavam. – O Cameron
Mitchell está cá. Esqueci-me da prova de champanhe desta noite…
– Para dizer a verdade, lembrei-me disso no caminho para cá – disse
Rachel, – e pensei se te terias lembrado de cancelar. Fico muito feliz que não
o tenhas feito, porque isso quer dizer que tiveste alguém para te fazer
companhia. E espero – prosseguiu, entrando na cozinha e sorrindo para
Cameron – que ela lhe tenha estado a mostrar a artista brilhante que é. É bom
vê-lo de novo. Como está o Jasper?
– Estou espantado por se lembrar do nome dele – respondeu Cameron,
claramente satisfeito com o facto. – Ele vai ficar muito impressionado quando
eu lhe disser, isto é, quando parar de amuar por não o ter trazido esta noite.
– Devia tê-lo trazido, a Alicia adora cães, não é, querida? O vinho já
acabou? Espero que tenhas mais.
– Isso não falta – tranquilizou-a Alicia. – Fiquei com metade da adega do
Craig, que agora está aqui na cave.
– Eu vou lá, se me disseres onde é – ofereceu-se Cameron.
– Há umas garrafas aqui no armário – disse Alicia –, mas só de tinto. Está
bem para todos?
– Só quando estiver aberto – disse Rachel, procurando um saca-rolhas.
Estou cansada e muito necessitada de uma bebida depois de quase perder a
mais amorosa cocker spaniel por causa de uma rutura do baço. Mas acho que
ela vai ficar bem. Amanhã de manhã veremos.
Enquanto lhe passava a garrafa de vinho, Alicia disse:
– Receio que tenha estado para aqui a aborrecer o Cameron com os meus
problemas, e não lhe poupei muitos pormenores.
Rachel virou-se, olhando-o com surpresa.
– Ela é normalmente muito reservada e tímida com as pessoas que não
conhece, por isso, não sei como conseguiu que ela desabafasse…
– Ele estava aqui quando a polícia me veio dar um puxão de orelhas por
ter ameaçado a Sabrina – disse Alicia.
O queixo de Rachel caiu.
– Ela fez queixa de ti à polícia? A vaca. Acho que vou lá dar-lhe uns
sopapos, assim vai ter algo de que realmente se queixar.
– Ela já tem – lembrou sombriamente Alicia. – Agora, por favor, podemos
mudar de assunto? Não queria que o Cameron ficasse muito tempo a matutar na
imagem de duas mulheres adultas a fazerem uma peixeirada. Em vez disso,
vamos falar sobre ele. Já que sabes tudo sobre mim, Cameron, e tudo o que
sabemos sobre ti é que tens um cão chamado Jasper e queres comprar uma
casa no Somerset…
– Isso é tudo o que sabes dele? – protestou Rachel. – Pensava que tinhas
dito que o Cameron era Deus no mundo da arte…
– Sim, disse isso – interveio Alicia antes que Rachel se pudesse alongar –,
mas ele vai ter sempre gente a tentar impingir-lhe o seu trabalho, por isso
estava a tentar ser diferente, a vender-lhe os meus problemas e a fingir não
saber quem ele realmente é.
Aparentemente divertido com a situação, Cameron disse:
– Posso ser quem quiseres, desde que me dês de comer. Não há uns
salgadinhos para irmos petiscando?
– Deve haver batatas fritas – respondeu Rachel, abrindo as portas de um
armário. – Esta família tem uma paixão por batatas fritas. Ah, aqui estão elas,
sabor a vinagre e sal. Caramba, isto lembra-me o passado, a vasculhar os
armários, a dar à língua e a embebedar-nos enquanto cozinhamos. Temos de
admitir uma coisa sobre o teu marido, Alicia, o homem sempre teve um grande
faro para o vinho. É casado, Cameron?
– Não tens de responder – disse Alicia, atirando a Rachel um olhar
expressivo.
– Não me importo – disse Cameron. – A minha mulher e eu separámo-nos
há cerca de um ano. Pode dizer-se que ela me trocou por um modelo mais
novo, porque o atual namorado dela, se não fosse tão precoce, se calhar ainda
andaria de calções. Não que esteja chateado, está a ver, mas não me teria
importado de lhe chegar a roupa ao pelo quando aquilo aconteceu.
Rachel e Alicia riram, mas, tomando consciência da seriedade da situação,
Alicia disse:
– Ainda têm contacto um com o outro?
– Só para tratar de questões relacionadas com filhos ou divórcio.
– Quantos filhos têm?
– Cinco ou seis – disse Cameron alegremente.
Alicia abriu a boca de espanto, até que viu o brilho nos olhos dele e
começou a rir.
– OK, são três – admitiu Cameron –, mas muitas vezes parecem ser cinco
ou seis, têm tantos amigos. São só raparigas, e já voaram todas para fora do
ninho, exceto quando precisam de dinheiro ou de um ombro para chorar.
Então, a casa do paizinho é o melhor sítio da cidade.
– Tem fotografias? – perguntou Rachel.
– Não comigo, mas tenho um álbum inteiro na casa onde estou, caso
passem por lá.
Engasgando-se com uma risada, Rachel pousou o copo e começou a tirar
pratos e individuais de um armário para pôr a mesa no exterior. Quando se
sentaram para comer eram quase nove e meia e, não se tendo apercebido de
que era tão tarde até olhar de relance para o relógio, Alicia sentiu um calafrio
de medo por Nat. Porque é que Jolyon ainda não lhe telefonara? O que estava
a demorá-lo?
– Vai ficar tudo bem – sussurrou Rachel, apercebendo-se do seu
nervosismo.
– Mas olha para as horas.
– O Jolyon vai telefonar assim que houver algo de novo.
Alicia olhou para Cameron e, a par com a sua preocupação, sentiu uma
vaga de gratidão pela providencial distração das últimas horas. Se tivesse
estado sozinha, provavelmente já teria roído as unhas e comido os dedos, ou
cavado um sulco na carpete de andar para trás e para a frente, ou arrancado
metade dos cabelos. Assim, conseguira passar alguns minutos seguidos sem
pensar em Nat, ou Craig, e, quando tal aconteceu, foi até capaz de disfarçar a
angústia com um sorriso.
Não obstante, o peso da sua preocupação com o filho estava agora a
oprimi-la intensamente. Como fora capaz de passar aquelas horas a divertir-
se, enquanto Nat estava a passar por uma provação tão terrível? Mesmo que
não pudesse estar com ele, deveria pelo menos ter ligado a Jolyon para saber
o que se passava, ou ficar sentada ao pé do telefone à espera de notícias. Em
vez disso, convidara um homem que era praticamente um estranho a entrar em
sua casa, deixara-o enchê-la de vinho e simpatias e cozinhar-lhe o jantar,
enquanto se comprazia numa horrível arenga feita de queixas e pena de si
própria. Era óbvio que estava a perder o controlo, a deixar de conseguir ver
as coisas da perspetiva certa ou mesmo de saber como se comportar. Mal
podia acreditar, agora, que se envolvera numa zaragata com Sabrina. Mas
onde diabos tinha a cabeça? Durante todo aquele tempo tinha conseguido
evitá-la e agora, como a louca que Sabrina a acusara de ser, tinha de ir armar
uma cena tão degradante, mas tão degradante, que só queria enfiar-se em
algum sítio para nunca mais sair.
– Alicia – disse Rachel suavemente –, não estás a comer nada.
Alicia olhou para ela.
– Eu estou… – Alicia calou-se, sentindo o coração apertado assim que o
telefone começou a tocar dentro de casa.
– Queres que atenda? – ofereceu-se Rachel.
– Não, eu vou lá – disse Alicia e, pousando o guardanapo, correu para a
cozinha e fechou a porta.
– Estavas a dormir? – perguntou Jolyon quando Alicia atendeu.
– Não. Como está ele? O que se está a passar?
– Está cansado e um pouco em estado de choque com tudo o que está a
acontecer, mas, em geral, está-a aguentar-se bem.
– Mas… ele mentiu? – perguntou Alicia, apesar de saber que se tratava de
uma questão sem sentido, agora que os resultados do teste de ADN tinham
chegado. Mas talvez tivesse havido um erro, ou uma contaminação de
provas…
– Aparentemente, o Nat pensava que, por não ter ejaculado, não
encontrariam vestígios de sémen seu, por isso mentiu – disse Jolyon.
Alicia sentia dificuldades em aceitar a verdade.
– Então, ele teve mesmo relações sexuais com ela?
– Temo que sim.
– Oh, meu Deus – murmurou, colocando a mão sobre a boca. – E foram…?
E foram…? – Alicia não conseguia dizer a palavra.
– Isso ainda está por esclarecer – respondeu Jolyon –, mas ele admitiu que
odiava a Annabelle quando o fez, porque ela acabara de lhe contar sobre o
caso do Craig com a mãe dela.
Os olhos de Alicia fecharam-se em desespero. A sua garganta estava tão
contraída que não conseguia falar. Sempre soubera que aquilo iria devastar o
filho caso um dia descobrisse, mas nunca imaginou que as coisas chegassem
àquele ponto…
– Eles já o acusaram oficialmente? – conseguiu por fim perguntar.
– Não. Vão falar novamente com a Annabelle amanhã de manhã, portanto
irá depender muito do que ela disser desta vez. Informalmente, foi-me dito que
o Nat não foi o único com quem ela teve sexo no sábado à noite.
O coração de Alicia deu um pequeno salto de esperança.
– Queres dizer que mais alguém poderia ter-lhe causado as lesões?
– É possível, mas não quero dar muita importância a isso nesta fase,
porque ainda há muito caminho a percorrer e também temos o problema da
idade dela.
Lembrando-se de que aquela ameaça horrível não desapareceria
facilmente, Alicia disse:
– Não importa o que diz a Annabelle, a Sabrina não vai deixá-lo escapar
depois de…
– Não penses nela agora – aconselhou Jolyon. – Concentra-te
simplesmente em ti mesma e tenta ter uma boa noite de sono. Vou levar o Nat
para casa comigo.
Compreendendo imediatamente porquê, Alicia disse:
– Queres dizer que ele não pode vir para cá porque fui a casa da
Annabelle esta tarde?
– Não ajudou em nada a situação, mas não te martirizes, a maioria de nós
teria feito o mesmo no teu lugar.
Retirando pouco conforto daquilo, Alicia disse:
– Posso falar com ele?
– Claro. Farei com que ele te telefone do carro quando estivermos a
caminho de casa, mas, se fosse a ti, não esperaria demasiado. Ele não está
apenas exausto, mas também profundamente envergonhado por ter mentido e
sente que está a desiludir-te muito.
– Mas tens de lhe dizer que não está – exclamou Alicia. – Se tanto, é ao
contrário.
– Na verdade, penso que foi o Craig quem nos desiludiu a todos – disse
Jolyon num tom sóbrio e, despedindo-se serenamente, terminou a chamada.
Enquanto pousava o auscultador, Alicia refletia sobre estas palavras.
Jolyon tinha razão, é claro, Craig tinha-os desiludido. Se não a tivesse
enganado com Sabrina, se não tivesse contraído uma nova hipoteca sobre a
casa, se não tivesse saído de cena da maneira mais fácil, ao morrer, nada
daquilo estaria a acontecer. Não estariam sequer em Holly Wood, e muito
menos a enfrentar aquela ameaça ao futuro de Nat que o iria destruir por
completo se Jolyon não conseguisse resolver as coisas. E, no entanto, Alicia
ansiava por Craig agora mais do que em qualquer outro momento da sua vida,
porque estava absolutamente aterrorizada com a perspetiva de Jolyon não
conseguir fazer algo que, a seus olhos, se afigurava um milagre.

Lisa Murray interessava-se sempre por saber onde e como viviam as


vítimas dos casos em que trabalhava. Por vezes, a visita podia acrescentar
uma nova dimensão à avaliação que fizera do carácter das vítimas ou, pelo
menos, trazer novas perspetivas da sua personalidade. Lisa achava que,
quando estavam no seu ambiente natural, as pessoas normalmente se tornavam
mais confiantes, abrindo-se de uma forma que a atmosfera estéril de Pilning,
apesar de todos os esforços para lhe dar um ar acolhedor, muitas vezes
impedia. Em alguns casos, descobria uma personalidade completamente
diferente, que emergia da carapaça protetora que as vítimas haviam adotado
nas instalações da EICS – e, no caso de Annabelle Preston, isso começava a
acontecer.
Não havia dúvida nenhuma que a rapariga tinha uma vida privilegiada, ali,
naquele lugarejo frondoso, com todas as mordomias com que a maior parte das
raparigas da idade dela só podiam sonhar. Parecia-lhe duvidoso que a
rapariga apreciasse a sorte que tinha, uma vez que exibia em relação a tudo um
ar de indiferença ou de quem acha que aquilo lhe é devido. Porém, quando os
miúdos cresciam rodeados de todos os confortos que o dinheiro podia
comprar, estes acabavam por lhes parecer normais. Assim, Lisa não ia julgar
Annabelle com demasiada severidade por parecer não se aperceber de que
nem toda a gente vivia numa mansão Queen Anne restaurada a preceito, com
pelo menos seis quartos, um Mercedes e um Lexus na entrada e uma decoração
cuidada ao pormenor em todas as divisões.
Aquilo que não estava disposta a perdoar a Annabelle, contudo, era a
maneira como tinha mentido no seu depoimento inicial, porque uma mentira
num depoimento era como uma gota de veneno num copo de água. A água
poderia manter o seu aspeto inócuo, e talvez até acabasse por não fazer mal,
mas só um idiota beberia daquele copo sem, primeiro, descobrir por que
motivo o veneno fora lá parar e quais os danos que poderia causar.
A expressão de Annabelle exibia um misto de desafio e mau humor ao
observar Lisa do outro lado de uma mesinha de rebordo dourado,
cuidadosamente posicionada entre os sofás lacados, exatamente iguais, em que
se sentavam ambas. A sala estava decorada num estilo revivalista clássico,
dos arabescos nas paredes e da escrivaninha em madeira de bordo à grandiosa
lareira em mármore e pedra calcária. As cores eram suaves e de bom gosto,
com uma carpete marfim, objetos no mesmo tom e um papel de parede com
listras verdes, que combinava na perfeição com as copiosas sedas que
emolduravam e cobriam as janelas.
Lisa repetiu a questão:
– Porque não nos disseste que tiveste relações sexuais com os outros dois
rapazes?
Annabelle mantinha uma expressão carrancuda, mas, por trás dela, Lisa
começava a detetar uma atitude defensiva e uma insegurança que lhe
interessavam bem mais que o seu típico comportamento de adolescente.
– Não vai dizer nada disto à minha mãe, pois não? – perguntou.
– Não. Agora, por favor, responde à pergunta.
– OK, se quer saber, eu não vos disse nada porque sabia que iam pensar
que eu era uma… Bem, você sabe… Que eu ia para a cama com qualquer
um… Mas mesmo que fosse, e não vou, não foram eles que me violaram, foi o
Nathan Carlyle.
Lisa olhou-a diretamente nos olhos, em parte à espera que Annabelle
desviasse o olhar, mas esta não o fez.
– As lesões nos teus órgãos genitais poderão ter resultado de teres
relações sexuais com eles? – perguntou.
– Nã-ão, porque eles não me estavam a violar.
– Pediste ao Theo para mentir no depoimento dele?
Annabelle corou.
– Tinha de ser, não tinha? Ou as nossas declarações não iam bater certo.
– Já contactaste o Neil a pedir-lhe para fazer o mesmo?
Num esforço para disfarçar o seu embaraço, Annabelle inclinou a cabeça e
franziu a boca.
– Não – respondeu.
– Porquê?
Annabelle não respondeu.
– É porque não sabes onde o encontrar? Na verdade, provavelmente nem
tens a certeza absoluta de que o nome dele seja Neil, pois não?
– Foi o nome que ele disse e não vejo razão nenhuma para ter mentido.
– Tens o hábito de fazer sexo com rapazes que não conheces?
As narinas de Annabelle dilataram-se.
– As coisas não são assim – protestou. – Quando estamos numa festa e
toda a gente se está a divertir é como se estivéssemos apaixonados pelo
mundo inteiro, por isso, o importante não é se conhecemos a pessoa ou não, ou
como se chama este ou aquele, porque toda a gente está na boa e é normal
fazermos sexo com quem quisermos.
– E tu quiseste com ele e com o Theo McAllister, mas não com o Nathan
Carlyle?
– Está correto.
Lisa esperou até Annabelle se aperceber do seu erro. Não demorou muito.
– Quer dizer, eu queria com o Nat – corrigiu-se Annabelle – até ele ter
começado a agir como um animal. Nessa altura, assustou-me e eu quis fugir
dele, mas ele não deixou. Já lhe disse, tive medo que ele me matasse. Olhe,
ainda tenho as marcas no meu pescoço para provar isso.
Uma vez que Nathan admitira tê-la agarrado pelo pescoço, Lisa não
perguntou se era possível que os outros rapazes fossem responsáveis por
aquelas nódoas negras. Em vez disso, perguntou:
– As calcinhas que levaste para Pilning na segunda-feira não foram as
mesmas que usaste no sábado à noite, pois não?
Annabelle foi percorrida por um sobressalto, à medida que o seu rosto
corava mais e mais.
– Que quer dizer? – disse asperamente.
– Acho que percebes a pergunta perfeitamente.
Annabelle franziu mais os lábios.
– Temos as calcinhas que usaste naquela noite – disse Lisa. – Foram
encontradas pela equipa forense no bosque.
Annabelle engoliu em seco com força e baixou os olhos.
– Pensava que na segunda-feira te tinha explicado bem a gravidade de
mentir à polícia – disse Lisa num tom duro. – Isto não é uma brincadeira,
Annabelle. Está em jogo o futuro de um jovem e, agora que sabemos que
mentiste acerca do número de parceiros sexuais que tiveste e que entregaste
provas falsas, está a tornar-se muito difícil acreditar no resto das coisas que
nos contaste.
Annabelle permaneceu sentada, muito quieta, com o seu rosto jovem e belo
assemelhando-se a uma máscara de culpa e ressentimento.
– Então…?
Annabelle começou a falar, mas, então, o seu rosto contorceu-se e os olhos
encheram-se-lhe de lágrimas.
– Não menti em relação às outras coisas – insistiu. – Juro que não menti.
Ele agarrou-me como se me fosse matar e eu tive mesmo medo. Ele estava
mesmo passado da cabeça e…
– … tu também – atalhou Lisa. – Portanto, tens a certeza de que te lembras
realmente do que aconteceu? Ele podia estar só a fazer de conta, a representar
um papel, e tu, sob a influência das drogas, deturpaste as coisas…
– Se é isso que ele diz, está a mentir – exclamou Annabelle. – As intenções
dele eram mesmo sérias e eu tenho sorte em estar viva.
Lisa limitou-se a olhar para ela.
– Não sei porque está a ser tão má para mim – disse Annabelle num
queixume. – Fui eu que fui violada. Fui eu quem ele atirou ao chão e tentou
estrangular.
– No teu depoimento original, disseste que tropeçaste e que, depois, ele se
atirou para cima de ti – recordou-lhe Lisa.
– Sim, bem, foi isso que aconteceu.
– Isso o quê, que ele te atirou ao chão ou que se atirou para cima de ti?
– Que se atirou para cima de mim.
Lisa acenou com a cabeça. A seguir, deixou passar uns instantes, curiosa
em ver se o silêncio deixaria Annabelle ainda mais na defensiva, fazendo-a,
eventualmente, enredar-se mais na teia de mentiras que havia urdido. Não que
duvidasse de que a rapariga tinha sido violada, pelo menos era notório que
esta acreditava que sim. A questão era apurar o que realmente acontecera, de
modo a tornar a sua história credível para um júri, pois, da maneira que as
coisas estavam, o caso não chegaria sequer ao tribunal. Por fim, Annabelle
ergueu os olhos e, para surpresa de Lisa, todo o seu antagonismo e hostilidade
tinham desaparecido. No seu lugar, havia agora uma rapariga de quinze anos
completamente desorientada, que perdera por completo a confiança em si
mesma.
– Lamento imenso – disse, numa voz trémula. – Não vos devia ter mentido.
Foi errado da minha parte e quem me dera não ter feito isso, porque agora
posso ver como foi estúpido. Foi só que… Quer dizer… Não queria que
pensassem que eu era uma… – Annabelle encolheu os ombros, em vez de dizer
“puta” ou “ordinária” ou “pega”, que eram as palavras que Lisa supunha que
lhe estavam a passar pela cabeça –, e também não queria que o Theo tivesse
problemas devido à minha idade.
– Bem, agora é um bocado tarde para isso – disse Lisa. – Qualquer pessoa
que tenha um relacionamento sexual com uma rapariga com menos de
dezasseis anos está a cometer uma ilegalidade…
– Mas foi de minha livre vontade!
– Isso não importa. Continua a ser um crime, por isso, agora, vai depender
do Serviço de Acusação da Coroa querer processá-lo ou não.
Annabelle dificilmente poderia ter parecido mais desesperada.
– Por favor, não façam isso – suplicou. – Já estou a perder todos os meus
amigos como as coisas estão…
– Annabelle, tu és uma rapariga inteligente. Sabes que és demasiado nova
para teres vida sexual ativa…
– Mas toda a gente faz o mesmo. Não sou só eu…
– Mas é de ti que estamos a falar e não é de mais referir como prejudicaste
a tua posição ao mentir. Se tudo isto for presente a um júri, vai ser muito
difícil obter uma condenação, depois de teres mentido e adulterado provas.
Provavelmente, a acusação de relações sexuais ilícitas não será questionada,
porque o Nat já não nega que houve um relacionamento sexual contigo.
Portanto, agora, Annabelle, quero que penses muito bem no que te vou
perguntar e, depois, quero que me digas a verdade e só a verdade. O Nathan
Carlyle violou-te?

Annabelle ergueu a cabeça. Apesar de a sua voz ser baixa e as suas


palavras trémulas, não houve nela qualquer hesitação quando disse:
– Sim. Ele violou-me mesmo.
A inspetora Caroline Ash não gostava particularmente do advogado de
acusação da Coroa, e ficaria a gostar ainda menos daquele homenzinho com
cara de fuinha se este decidisse que não havia provas suficientes para levar o
caso a julgamento. Raios para a rapariga. Se não tivesse mentido nas suas
declarações iniciais, o caso poderia ir tranquilamente a caminho de um
Tribunal da Coroa. Assim, como as coisas estavam, o fuinha não parecia lá
muito animado.
Ao contrário daquilo que Clive Bevan pensava, ali sentado com o seu
cabelo imaculado e aquele ar de ator de telenovela, pela parte que lhe tocava,
aquela acusação não tinha nada de vingativo. Tratava-se, antes, da pura
vontade de obter justiça para uma rapariga que podia ter um comportamento
questionável, e cuja honestidade era extremamente duvidosa, mas a agente
Lisa Murray da EICS estava convencida de que a rapariga dizia a verdade
quando afirmava ter sido violada e, atendendo ao seu historial de avaliações
acertadas, para Caroline Ash isto era suficiente.
– Mas não têm quaisquer provas efetivas – assinalou o fuinha, pela
enésima vez. – Trata-se de um daqueles clássicos casos em que só temos as
declarações dos dois e cada um diz o contrário. E, se isto é tudo o que temos,
a acusação vai ser rejeitada antes de…
– Quantas vezes mais terei de referir o mesmo? – interrompeu Bevan,
lançando-se no seu próprio discurso já muito reiterado – Temos as nódoas
negras, o sémen, a confissão do Nathan Carlyle de que a odiava… Aquele
rapaz está a mentir, acredite no que lhe digo. Aquele relacionamento não teve
nada de consensual e garanto-lhe que, se o pusermos a depor, o júri vai ver
para lá de todas as mentiras dele.
Por fim, após horas de conversações, pressões, tentativas de bajulação e
até, ocasionalmente, alguma discussão mais racional, o fuinha acabou por
assinar a acusação, deixando a inspetora Ash com a presunçosa esperança de
que Craig Carlyle estivesse a assistir a tudo de lá de cima, e o sargento-
detetive Bevan com uma chamada para fazer.

***

Não era todos os dias que um dos melhores advogados do país aparecia
para tratar da fiança de um detido. Quando o Queen’s Counsel Oliver
Mendenhall entrou na área de detenção com Jolyon Crane e Nathan Carlyle,
houve um momento de silêncio assombrado. Mendenhall tinha uma figura
intimidante, com o seu metro e noventa, olhos castanhos de coruja, imponente
nariz romano e uma boca fina e determinada, cujo aspeto melhorava bastante
quando sorria. Contudo, não se viam vestígios de qualquer sorriso enquanto
Mendenhall falava calmamente com o seu cliente, antes de o apresentar ao
agente encarregado da área de detenção para conhecer formalmente a
acusação.
– Devem estar preocupados, se já foram buscar os pesos pesados – disse
Bevan baixinho a Croft.
Quando Nat avançou, o seu rosto estava tão pálido que quase se podiam
ver os ossos sob a lividez da pele. Os seus olhos estavam brilhantes de medo
e dilatados de pânico. Aquilo era uma acusação oficial. Ia mesmo a
julgamento por violação.
Bevan começou pelas advertências oficiais. Inicialmente, as palavras
pareceram fazer ricochete no choque em que estava mergulhado, mas, depois,
como um rádio que sintonizava e perdia de novo a estação, começaram a
penetrar na sua consciência…
– … poderá prejudicar a sua defesa se, ao ser interrogado, não mencionar
factos que depois invoque em tribunal… – Depois disto, desapareceram de
novo e a próxima coisa que Nat ouviu foi: – Compreendes, rapaz?
Nat olhou para Bevan.
– Ele compreende – interveio Mendenhall.
Nat sentiu a mão do advogado pousar no seu ombro e, a seguir, sentiu-se
de novo completamente entorpecido. A área de detenção parecia-lhe um local
estranho e apinhado de gente, parte de um mundo em que entrara por engano e
do qual, estupidamente, não conseguia escapar. Era como se tivesse ficado
preso numa rede onde, a cada movimento que fazia para se libertar, só
conseguia enredar-se mais e mais. O pai estava ali, mas Nat não podia chegar
junto dele. A luta estava a transformar-se em pânico, o pai virava-lhe as
costas…
A mão de Oliver apertou-lhe o ombro novamente e Nat apercebeu-se de
que o agente encarregado da área de detenção e Croft estavam a olhar para
ele. Havia também uma mulher que nunca vira antes. Algures em segundo
plano, havia polícias a andar de um lado para o outro. Numa cela, um bêbado
chamava por Deus aos gritos.
– Nathan Douglas Carlyle – disse Bevan gravemente –, está acusado de, na
noite de vinte e nove de julho, na aldeia de Holly Wood, no Somerset, tendo
menos de dezoito anos de idade, designadamente dezassete, ter
intencionalmente penetrado com o seu pénis a vagina de Annabelle Preston, de
quinze anos de idade, sem o consentimento dela, não podendo razoavelmente
presumir que a vítima tinha dezasseis anos de idade ou mais. – Bevan deteve-
se e olhou para Nat. – Tem alguma coisa a dizer?
– Não – respondeu Mendenhall.
A resposta foi registada no computador e, seguidamente, o agente carregou
com o pé num botão por baixo da sua mesa.
– Faça o favor de assinar – disse, quando um pequeno visor eletrónico se
iluminou sobre o balcão, em frente de Nat.
Pegando na caneta que Mendenhall lhe colocou na mão, Nat olhou para o
aparelho. Mendenhall murmurou-lhe algo ao ouvido e Nat estendeu o braço,
inscrevendo uma trémula imitação do seu nome sobre o visor. Sentindo-se
prestes a vomitar, afastou-se do balcão outra vez e tentou ouvir enquanto o
agente de serviço e Mendenhall falavam entre si, mas as palavras eram como
flechas que não conseguiam furar a superfície do seu entendimento. Escutou
qualquer coisa sobre a não existência de condenações anteriores, seguida pela
fixação de medidas de coação e, depois, uma data: seis de agosto.
Enquanto Jolyon e Mendenhall o conduziam em direção à porta das
traseiras da esquadra, ouviu o sargento-detetive Bevan dizer a alguém:
– É um crime grave; por essa razão o processo vai direito para um
Tribunal da Coroa.
Mendenhall voltou-se, dirigiu a Bevan um olhar fulminante e depois, com
um aceno de cabeça para o agente que esperava para abrir a porta, saiu para o
exterior e consultou o relógio.
– Tenho de voltar para Londres – disse a Nat –, mas não quero que te
preocupes com nada. Vamos resolver isto tudo.
Nat olhou-o com uma expressão de sofrimento. Mendenhall brindou-o com
um dos seus raros sorrisos.
– Entendes o que vai acontecer a seguir? – disse. – Eu vim cá tratar da
fiança, para que pudesses ser libertado e ficar sob a custódia do Jolyon até
quarta-feira, que é quando tens de comparecer perante o Tribunal de Menores.
O Jolyon vai contigo nessa ocasião, porque é só uma formalidade. Ele vai-me
informar dos prazos para apresentação de intimações, coisa que faremos
juntos, a não ser que consiga fazer com que a Coroa veja a razão e arquive o
caso antes de as coisas chegarem tão longe.
Encontrando forças no tom confiante de Mendenhall, foi com uma voz
menos trémula que Nat disse:
– Obrigado.
Mendenhall acenou com a cabeça e, depois de uma breve troca de
palavras com Jolyon, despediu-se de ambos com um aperto de mão e entrou
para o carro. Enquanto saía do parque de estacionamento da esquadra,
Mendenhall ligou a Alicia.
– Ele está com o Jolyon – disse, quando ela atendeu. – Marcaram a
audiência no Tribunal de Menores de Wells para a próxima quarta-feira. Não
vai ser nada de mais, só vai servir para marcar datas, e há uma boa hipótese
de conseguir o arquivamento do processo pouco depois disso.
– Obrigada – sussurrou Alicia.
– Não te preocupes – disse Mendenhall –, ele está em boas mãos – e,
desligando, ligou ao seu assistente, pronto para lhe dar instruções sobre as
pessoas a contactar e os locais a visitar para conseguir o apoio de que poderia
vir a necessitar nas semanas que se avizinhavam.
Capítulo Dezoito
Alicia acordou sobressaltada. O seu coração batia descompassadamente e
tinha o corpo alagado de suor. Estava a sonhar e, no seu sonho, Nat violava
Annabelle com o rosto desfigurado de raiva, investindo contra ela com fúria
enquanto a rapariga gritava e lhe suplicava para parar. A seguir, já não era
Nat, mas um estranho, um monstro, e a menina que estava a ser atacada era
Darcie, enquanto Sabrina observava, procurando afastar Craig quando este
tentava salvar a filha.
Respirando fundo várias vezes, Alicia passou a mão pelo cabelo,
esperando que as imagens acabassem de se desvanecer. Então, ainda trémula e
desnorteada, balançou as pernas para fora da cama e desceu às apalpadelas
até à cozinha para preparar um chá. Eram cinco da manhã e o sol começava a
despontar, pelo que já não iria voltar para a cama, sobretudo porque a última
coisa que queria era mergulhar novamente naquele pesadelo horrível. Naquele
dia tinha muito que fazer. Assim, num esforço para varrer do cérebro tudo o
que a pudesse atrapalhar e assegurar a si mesma de que, realmente, não
acreditava que Nat pudesse ter feito aquilo, procurava lembrar-se
continuamente da calma e da assertividade com que Oliver Mendenhall falara,
quando lhe telefonara na noite anterior. Depois de conversar com ele, já não
lhe parecia que Nat e ela estavam presos numa linha férrea, diante de um
comboio que avançava a grande velocidade. Apesar de tudo, só Deus sabia
como o seu horror atingira um novo patamar quando Jolyon ligara para a
informar de que o filho seria formalmente acusado.
Agora, tinha de se preparar para enfrentar a próxima provação: ir buscar
Darcie ao comboio e decidir o que lhe contar, quando a filha perguntasse onde
estava o irmão. Sabendo como Darcie provavelmente reagiria mal, precisava
de lhe apresentar as coisas da maneira mais leve possível, ou talvez lhe
pudesse simplesmente dizer que Nat fora estagiar com Jolyon mais cedo do
que o previsto. Era capaz de se conseguir safar com a mentira, pois,
independentemente das provas que a polícia achasse que tinha, Oliver e Jolyon
conseguiriam certamente miná-las de tal forma, que os juízes não iriam sequer
conseguir perceber como o caso pôde chegar a tribunal, se, com efeito, lá
chegasse. O espetro da acusação de sexo ilícito com uma menor continuava a
pairar no horizonte, Alicia sabia-o bem, mas quando falara com Jolyon antes
de ir dormir, na noite anterior, este dera uma importância quase nula ao
assunto, dizendo-lhe para não pensar mais nisso, porque encontrariam uma
maneira de arquivar também essa acusação.
Decidindo não se atormentar com o que Sabrina poderia ter a dizer a este
respeito, Alicia foi até ao andar de cima para tomar um duche e se vestir.
Quando procurava uma blusa limpa no roupeiro, para usar com as calças de
ganga, pensou ter sentido um leve vestígio da água de colónia de Craig. Sabia
que, provavelmente, isto se devia ao facto de o odor ter ficado impregnado em
algum dos seus vestidos, mas deu por si a pensar no marido tão intensamente
que conseguiu sentir a sua presença e de uma maneira tão forte, que se voltou,
quase esperando vê-lo ali. O quarto estava vazio, mas, quando Alicia fechou
os olhos para conter as lágrimas, foi invadida pela memória de como ele a
costumava abraçar, com as coxas pressionadas contra as dela, com as ancas, o
peito, o corpo inteiro envolvendo-a de forma tão protetora e carinhosa, que
Alicia quase ergueu os braços para o abraçar.
– Se estás aí, se me consegues ouvir – sussurrou na sua mente –, por favor
diz-me o que fazer. Temos de o ajudar.
Não houve resposta, nem Alicia realmente esperara que houvesse, mas o
silêncio pareceu-lhe mais denso, estranhamente mais próximo e tão carregado
como o seu coração.
Depois de vestir a blusa, escovou o cabelo e foi até ao quarto de Darcie,
do outro lado do patamar. Durante um longo momento, limitou-se a contemplar
as coisas da filha, desejando não pensar em nada senão nela durante uns
momentos. Darcie estava fora há tanto tempo, e tinham acontecido tantas
coisas desde aquela última semana, que Alicia se sentia agora culpada por
achar que a filha lhe merecera menos atenção ultimamente. Felizmente, Darcie
ignorava a negligência por completo.

– Mãe, pai, tenho de escrever uma adivinha para a aula de Inglês, por isso,
aqui está – anunciou Darcie, entrando na salinha onde Alicia e Craig estavam
relaxadamente sentados no sofá, a ver TV. Tirando o som ao televisor, Craig
disse:
– OK, esquilinho, manda lá.
Darcie colocou-se no meio da divisão, segurando o caderno nas mãos e
balançando o corpinho magro de um lado para o outro enquanto lia em voz
alta.
– Qual é a coisa que não tem tempo nem espaço, pode fazer-nos rir e
chorar e está sempre connosco, mesmo que não a possamos ver nem tocar? Ah,
sim, e pode partilhar-se, mas se calhar vou deixar esta parte de fora.
Intrigado, Craig olhou para Alicia. Alicia esforçava-se por descortinar a
resposta, mas, no fim, teve de se dar por vencida.
– Querem que vos dê uma pista? – perguntou Darcie.
– Sim, por favor – respondeu Craig.
– Pode escrever-se um livro com este nome para contar coisas da nossa
vida…
– Hmm, um livro com o mesmo nome… – repetiu Craig.
Alicia sorriu, suspeitando que o marido já devia ter adivinhado a resposta.
No entanto, como Alicia bem sabia, Craig nunca iria responder, para não
estragar o momento de triunfo da filha. Darcie continuava com os olhos
colados no pai e o seu bonito rosto brilhava de excitação. Como sempre, era a
ele que ela queria impressionar.
– OK, desisto – disse Craig por fim.
– São as memórias – exclamou Darcie, comemorando a vitória aos saltos.
Craig pareceu totalmente espantado.
– É claro – disse. – As memórias. Inventaste a adivinha sozinha?
Darcie acenou com a cabeça orgulhosamente.
– E só tens nove anos?
Darcie acenou com a cabeça de novo.
– Então, acho que isto merece um abraço de pai muito especial – declarou
Craig e, pondo-se de pé de um salto, agarrou-a nos seus braços e rodopiou
com ela pela sala enquanto Darcie soltava gritinhos deliciada.

Alicia sorria agora, enquanto entalava a roupa da cama de Darcie. Como


vinha a propósito lembrar-se desta adivinhazinha astuta, depois de, pouco
antes, ter mergulhado tão a fundo nas suas próprias recordações. Darcie tinha
razão, elas não tinham tempo ou espaço, porque podiam materializar-se com a
menção de uma simples palavra, a perceção do aroma mais ínfimo.
Ouvindo o telefone tocar no seu próprio quarto, Alicia deixou a cama de
Darcie a meio para ir atender, na esperança de que pudesse ser Nat, ou talvez
Robert.
– Olá, Sra. Carlyle. É a Summer. Como está?
– Oh, Summer – disse Alicia, conseguindo, sem saber como, manter um
tom ligeiro e casual. – Estou ótima. Como estás? Que tal Itália?
Itália, onde Craig e Sabrina tinham começado a sua aventura.
– É muito quente e muito aborrecida, a maior parte do tempo. Ando a
tentar falar com o Nat há uma eternidade, mas ele não atende o telefone. Está
aí?

Já suficientemente preparada para esta eventualidade, uma vez que muitos


dos amigos de Nat de Londres lhe tinham ligado ao longo dos últimos dias
para tentar falar com ele, Alicia disse:
– Olha, o Nat arranjou forma de perder o telemóvel e vai estar em casa do
Jolyon Crane, em Bristol, durante os próximos dias, para o ajudar com um
caso. Assim, vai ganhando alguma experiência de trabalho antecipadamente.
Mas logo à noite vou falar com ele e peço-lhe para te ligar.
– Seria possível dar-me o número dele? – perguntou Summer. – Passou
quase uma semana desde que falámos pela última vez. Começo a achar que ele
se interessou por outra pessoa.
Não querendo pensar na reação de Summer se soubesse a verdade, nem
achando que lhe coubesse a ela contar-lhe, Alicia disse:
– É claro que te posso dar o número, mas receio que tenha deixado a
minha agenda na loja e tenho de sair daqui a pouco para ir buscar a Darcie,
por isso mando-to mais logo, se não te importares.
– É claro, tudo bem. Não se esqueça de dizer olá da minha parte à Darcie.
Deve estar mesmo contente por vê-la ao fim de todo este tempo.
Alicia sorriu, sentindo o coração enternecer-se.
– Tens razão – disse com sinceridade, apesar de saber que o reencontro
não seria fácil. Darcie era demasiado sensível aos estados de espírito da mãe
para que Alicia conseguisse esconder muita coisa dela, para além de que
ainda teria de lidar com a sua relutância em ir viver para a aldeia.
Depois de prometer de novo a Summer que lhe enviaria uma mensagem,
Alicia desligou e voltou para o quarto de Darcie. Detestava ter de mentir, quer
sobre a mensagem quer sobre o que se estava a passar, mas que escolha tinha?
Não podia contar a verdade a Summer ou aos amigos de Nat, era a última
coisa que o filho desejaria, nem tampouco seria capaz de pensar nas palavras
certas para o fazer. Tudo o que podia esperar era conseguir lidar com os
próximos dias e, a seguir, se fosse possível, tentar voltar ao normal. Ouvindo
o telefone tocar de novo, regressou ao seu quarto e, para alívio seu, desta vez
era Rachel.
– Olá, como estás? – perguntou Rachel.
– Mais ou menos, obrigada. Estou a preparar-me para o pé de vento que aí
vem.
– Quando a vais buscar?
– Dentro de uma hora. A família com quem ela esteve a passar férias vem
no mesmo comboio, mas seguem para Dorset.
– Então, calhou bem. Mas diz, mais logo vais trazê-la cá? Ou preferes que
a gente vá aí?
– É igual. Ou melhor, vamos nós até aí. Preciso de sair um bocado de casa
e de ficar longe do telefone.
– Não há problema. Aches que convide o Cameron também? O Dave ia
adorar conhecê-lo.
– Não – respondeu Alicia, sabendo bem que Rachel se estava a armar em
casamenteira, o que não lhe agradava de todo. – Não quero que a Darcie fique
com a ideia errada, nem ele, já agora. Seja como for, o Cameron foi passar o
fim de semana a Londres.
– A sério? E como é que sabes?
– Ontem ele ligou-me para agradecer o jantar de quinta-feira e perguntar se
havia novidades do Nat.
– Disseste-lhe que ele tinha sido oficialmente acusado?
– Sim. Não sei bem o que lhe disse, porque quando lhe liguei estava
passada, tinha acabado de falar com o Jolyon, mas no fim do telefonema acho
que já não estava tão histérica. – Alicia deteve-se e inspirou fundo, sentindo
um pavor familiar apoderar-se de novo do seu coração. – Vai correr tudo bem
– disse com firmeza, mais para si própria do que para Rachel.
– É claro que sim – concordou Rachel. – Agora, antes de ir, tens tido
notícias do Robert?
– Nenhumas, para dizer a verdade. Ele telefonou ontem à noite, depois de
eu lhe mandar uma mensagem sobre a acusação, dizendo-me para lhe ligar se
precisasse de alguma coisa, mas acho que não há muito mais que ele possa
dizer, nesta fase. O meu irmão está numa posição horrível e imagino que ela
não fosse reagir muito bem se ele viesse até cá.
– Não consigo perceber por que motivo ele continua casado com aquela
bruxa – resmungou Rachel.
– Acho que é por uma coisa que se chama amor e, como se costuma dizer,
o amor tem razões que a razão desconhece.
– É verdade, não é? Seja como for, agora o Oliver está a tratar do caso,
por isso é tempo de relaxares e deixares a tua cunhada preocupar-se com o
que vai fazer quando a polícia processar a filha dela por mentir.

***

– Annabelle? Estás bem? Posso entrar? – disse Sabrina, espreitando pela


porta do quarto da filha.
– Sim, está tudo bem – respondeu Annabelle, afastando o cabelo do rosto
enquanto se virava de frente.
– Já passa do meio-dia – disse Sabrina, começando a apanhar as roupas
que Annabelle espalhara pelo chão.
– A sério?
Preocupada com o estado apático e indiferente da filha nos últimos dias,
Sabrina sentou-se na cama e pousou-lhe a mão na testa.
– Sentes-te mal? – perguntou.
– Não, só estou cansada e farta que toda a gente continue a falar do que
aconteceu.
– É claro – disse Sabrina, acariciando suavemente o rosto de Annabelle. –
É melhor não pensares no assunto por agora, até a Lisa vir até cá para te
começar a preparar para ires a tribunal.
Os olhos de Annabelle fitaram os da mãe por alguns instantes e, depois,
virou a cabeça para o lado.
– Queres que te prepare um banho? – ofereceu Sabrina.
– Não.
– E algo para comer?
– Não tenho fome.
– Então, vais ficar aqui assim o dia inteiro?
– Se calhar.
– Não queres vir a Babington amanhã, comigo e com a June? Ou podemos
ir às compras, se quiseres.
– Não me apetece fazer nada – disse Annabelle, virando-se para o outro
lado. – Só quero que me deixem em paz.
Compreendendo que a realidade daquilo que lhe acontecera, combinada
com o que teria de enfrentar nos meses seguintes, se abatera finalmente sobre a
filha, Sabrina passou-lhe a mão pela cabeça, dizendo:
– Lembra-te, quando chegar a altura, não é mesmo necessário que vás a
tribunal. Se não o quiseres ver, e tenho a certeza de que não queres, podes
testemunhar por videoconferência.
– Mas não te queres calar?! – cuspiu Annabelle com raiva, com a boca
encostada ao travesseiro. – És igual a toda a gente. Disse-te que não queria
falar no assunto e continuas a bater na mesma tecla. Não foste tu que foste
violada. E não é a ti que as pessoas andam a chamar mentirosa.
Sabrina franziu a testa.
– Quem é que anda a dizer isso? – perguntou.
– Não importa.
– Importa, sim. Suponho que sejam os amigos do Nat?
– Sim, e também alguns dos meus. Acham que inventei tudo, porque ele…
Porque ele não queria nada comigo, mas, se isso é verdade, então como
arranjei estas nódoas negras todas? E como é que o… tu sabes, aquele líquido
dele apareceu dentro de mim? Não chega lá sozinho, pois não?
– Não, é claro que não, mas não tens de dar justificações a ninguém. Eles
vão engolir as palavras quando o Nathan for para a prisão e, nessa altura, já
terás visto quem são os teus amigos de verdade.
Annabelle virou-se para a mãe e olhou para ela.
– Não acho que tenha nenhum – disse, chorosa. – Toda a gente se está a
virar contra mim. Estão todos do lado dele, não é justo.
– Tenho a certeza de que estás a exagerar – disse Sabrina suavemente, –
porque a Georgie passa o tempo a ligar para cá, para saber como estás. A
Catrina também. Estão mesmo preocupadas contigo…
– Sim, mas não me vêm visitar, pois não? As mães não as deixam…
O rosto de Sabrina ficou petrificado.
– Que queres dizer com isso, que as mães não as deixam? – perguntou.
– O que acabei de dizer. Oh, meu Deus, não te comeces já a passar. Não
me importa minimamente, OK? Pela parte que me toca, podem todas ir morrer
longe.
– Queres que fale com as mães delas? – arriscou Sabrina, encolerizada por
alguém rejeitar assim a filha como se esta fosse, de algum modo, responsável
por aquilo que lhe acontecera.
– Não! Não te atrevas a ir falar com ninguém. Seja como for, prefiro estar
sozinha.
Sabrina, contudo, ainda não estava pronta para desistir.
– Não há mais ninguém que possas convidar a vir cá? Tens tantos
amigos… e isso mostraria às mães da Georgie e da Catrina que nem toda a
gente anda tão equivocada como elas. Acham que ser violada é contagioso, ou
algo do género?
– Podes esquecer o assunto, por favor? – disse Annabelle zangada. – Já te
disse, não me importam minimamente.
– Talvez não, mas acho completamente inaceitável…
– Mas isto não é sobre ti.
– Não, é claro que não, mas estou a pensar em ti e em como seria
agradável teres companhia logo à noite, enquanto o Robert e eu vamos a casa
dos Willoughbys.
Annabelle olhou-a, com um misto de súplica e ressentimento nos olhos.
– Tens mesmo de sair? – perguntou, num tom de quem já sabia a resposta.
Sabrina suspirou suavemente.
– Querida, sabes que ficaria aqui contigo se pudesse, mas a Helen
Willoughby teve muito trabalho para…
Annabelle virou-se para o outro lado.
– Não interessa – disse, com o rosto encostado à almofada.
Sabrina ficou a olhar para a cabeça dela, sentindo-se exasperada e
terrivelmente dividida.
– Agora já é muito em cima da hora para cancelar, iam ficar muito
desapontados – disse.
O que Sabrina não disse à filha foi que, naquele jantar, estaria um
convidado com parentesco com a família real a cujo clube de leitura gostaria
de se juntar, pois imaginou que Annabelle não encararia a coisa lá muito bem.
– Mas se estivesses doente, terias de desmarcar – fez notar Annabelle.
– Mas não estou.
– Podes fingir que sim.
– Isso seria desonesto e, como já estamos a ter problemas pelo mesmo
motivo…
– Oh, vai-te lixar – rosnou Annabelle. – Não sei porque finges que te
importas comigo, quando sabemos as duas que não é verdade. Não, não me
toques. Vai-te embora. Não te quero mais aqui.
– Não me vou embora assim – contrapôs Sabrina. – Não estás a ser
razoável. É ridículo sugerir que não me importo contigo, quando sabes bem
que não há ninguém no mundo mais importante para mim do que tu.
Annabelle virou-se para a frente de um salto.
– És tão mentirosa! – exclamou. – A única pessoa importante para ti és tu
mesma. E então, todo aquele tempo que fingiste estar doente depois de o Craig
te dar com os pés? Nessa altura não te importaste de dar tampa a toda a gente,
pois não? Passavas o dia inteiro metida na cama…
– Mas que estás a dizer? – atalhou Sabrina, horrorizada. Não fazia ideia de
que Annabelle sabia da ligação com Craig, e ver o assunto exposto assim,
daquela maneira…
– Mal soube do vosso caso – cuspiu Annabelle –, começou tudo a fazer
sentido, como as discussões que costumavas ter com o Robert, todas aquelas
vezes que não querias comer e andavas a chorar pelos cantos, sempre amuada,
a dizer que preferias estar morta. Alguma vez paraste para pensar como aquilo
me fazia sentir? Disseste-me que já nada te importava e que não tinhas razão
nenhuma para viver. É isso que eu importo para ti. Nem sequer sirvo de razão
para viveres. Toda a gente dizia que estavas com uma depressão, mas a
verdade é que estavas mas é toda lixada por causa dele, portanto não tentes
dizer que não és uma mentirosa, porque eu sei que és.
– Annabelle, ouve-me…
– Não! – disse Annabelle com fúria. – Deixa-me, não estou interessada em
nada que tenhas para me dizer – e, libertando-se, saltou da cama e correu para
a casa de banho, trancando a porta trás de si.
Abalada pelo choque e pela culpa, Sabrina continuou sentada na cama,
sem saber o que fazer a seguir. Não podia simplesmente ir-se embora, mas
também não podia explicar tudo a Annabelle assim, daquela maneira, sem se
preparar. De todas as formas, a filha não estava em condições de a ouvir.
Nesse momento, ouvindo Robert entrar no quarto, Sabrina voltou-se, sentindo
o coração apertado.
– Tu… Tu ouviste alguma coisa? – gaguejou.
– Ouvi o suficiente – respondeu ele.
Sabrina levou as mãos ao rosto.
– Anda daí – disse Robert –, deixa-a estar, por agora. Mais logo vou tentar
falar com ela.
Erguendo a cabeça para olhar para o marido, Sabrina sentiu as emoções
crescerem e agitarem-se dentro dela. Robert sempre tivera jeito para lidar
com Annabelle, por isso era mesmo melhor deixar as coisas a seu cargo.
– Eu não te mereço – disse, aproximando-se dele.
– Não – respondeu Robert, desviando o rosto quando Sabrina o tentou
beijar –, acho que não mereces.
Sabrina olhou para ele com uma expressão insegura, mas Robert limitou-se
a desviar-se para o lado para a deixar passar e, depois de ela sair do quarto,
fechou a porta e começou a descer as escadas.
– Robert – chamou Sabrina.
– Agora não – respondeu Robert.
Sabrina observou o marido até este desaparecer de vista, sentindo-se
desorientada, receosa e zangada consigo mesma, por não saber o que fazer.
Tudo estava a correr horrivelmente mal. A vida dela parecia ter fendas abertas
em tantos sítios que, a qualquer momento, se poderia desintegrar. De algum
modo, tinha de manter as coisas no seu devido lugar. Era importante que
Robert compreendesse que nada daquilo era culpa dela. Não fora ela a
responsável pelo ataque a Annabelle, nem fora sentido o que dissera à filha,
depois da rutura com Craig. Naquela altura, não estava no seu perfeito juízo.
Robert sabia isso, portanto, de certeza que não a podia estar a culpar pelo que
estava agora a acontecer.
Quando se viu no seu quarto, sozinha, começou a andar para a frente e para
trás, tentando pensar no que fazer em relação a Annabelle, mas era como se as
acusações da filha tivessem aberto as portas de uma represa, porque a sua
mente, o seu coração, todo o seu corpo estavam a ser inundados pelas
recordações de Craig, e de quanto ambos tinham significado um para o outro.
Para quem estava de fora, a maneira como ela se desmoronara quando o caso
terminou poderá ter parecido demasiado dramática, uma reação excessiva, até
mesmo uma monstruosa autoindulgência, mas se percebessem como o amor
deles era intenso, como sempre estavam desesperados por se verem de novo,
como nunca se conseguiam fartar um do outro, para, a seguir, serem separados
daquela forma…

– Sabrina, sou eu – disse Craig calmamente. – Tenho de te ver.


– É claro – murmurou Sabrina. Tinham passado duas semanas desde que
Alicia os apanhara juntos e uma desde que Craig lhe dissera que queria
acabar. Mas tudo o que isto fizera fora intensificar ainda mais o desejo de
estarem um com o outro. – Quando?
– Esta noite. Não vou poder demorar muito tempo. Podes encontrar-te
comigo na área de serviço da autoestrada?
– Aquela onde nos encontrámos antes?
– Sim. Estou a ficar louco por não te ver.
– Eu também. Penso em ti a cada minuto, dia e noite. Quando o Robert me
toca, tenho de fingir que és tu. É a única maneira de o suportar.
– Não fales nele. Quero-te toda só para mim.
– Eu também te quero só para mim. Devíamos ficar juntos, para sempre.
– Sim.
– Isso é possível.
Houve uma pausa.
– Aparece logo à noite – disse Craig suavemente. – Não leves nada
vestido por baixo do casaco.

Naquela noite, o seu reencontro foi simultaneamente mais intenso e mais


terno que nunca. Os carros que passavam inundavam o seu de luz, iluminando
as exigências insaciáveis que faziam um ao outro. Sabrina não se importou que
os vissem, queria que o mundo inteiro fosse testemunha do amor selvagem e
apaixonado que sentia por Craig. Depois daquela noite, tinham continuado a
encontrar-se, sabendo como era escusado tentarem ficar longe um do outro.
Mas, então, Alicia começara a espiar o telemóvel e os extratos do cartão de
crédito de Craig e não demorara muito a descobrir a verdade.
Quando Craig lhe ligara pela segunda vez para lhe dizer que estava tudo
terminado, Sabrina suplicou-lhe que se encontrasse com ela, mas ele não
acedeu. Craig sabia o que aconteceria se concordasse, sabia que nunca se
conseguiriam separar e, uma vez que não podia correr esse risco, impôs a si
mesmo despedir-se dela por telefone. Sabrina teve a certeza de que Craig não
conseguiria manter a decisão; que, a exemplo da última vez, em breve lhe
ligaria de novo. No entanto, à medida que os dias passavam e ele não a
contactava, quer por telefonemas quer por mensagens, nem tampouco atendia
as suas chamadas, a horrível realidade de como seria impossível continuar a
viver sem ele começou a abater-se sobre ela.
De alguma maneira, tinha de fazer com que Annabelle entendesse que o
que acontecera durante aqueles terríveis meses negros, depois de Alicia lhe
roubar Craig, fora uma desesperada e dolorosa luta pela sobrevivência. Sem
Craig, a sua vida perdera todo o propósito e todo o significado, nada parecia
valer a pena, tudo o que lhe interessava era recuperar o que lhe pertencia por
direito. O que não equivalia a dizer que Sabrina tivesse deixado de se
importar com a filha – simplesmente, não fora capaz de o mostrar naquela
altura.

– Mãe! – bradou Darcie, acenando de uma janela aberta enquanto o


comboio entrava na estação de Castle Cary. – Estou aqui!
Rindo quando a porta se abriu por completo e Darcie saltou para a
plataforma, Alicia correu para a agarrar.
– Olá, querida – exclamou, abraçando-a com força. A seguir, afastou-a um
pouco para a ver melhor. – Uau, que belo bronzeado – declarou, segurando o
rosto jovem e vivaz de Darcie entre as mãos –, e o teu cabelo está tão louro! –
acrescentou, sacudindo os cachos de caracóis sedosos e rebeldes de Darcie,
que agora exibiam um tom platinado. – Estás um espanto.
– Faço os possíveis – disse Darcie num tom animado. – Onde está o Nat?
– Está a passar uns dias em Bristol.
– Quê? Queres dizer que ele não está cá para me dar as boas-vindas? Que
chunguice. Espera até eu o apanhar, vou-lhe mesmo… Oh meu Deus, depressa,
temos de ir buscar as minhas malas.
O pai de Verity já carregava uma grande mala e um saco de viagem na sua
direção, enquanto Verity tentava ultrapassá-lo para um abraço final. Alguns
minutos depois, as portas fecharam-se com força e, quando o comboio iniciou
a sua marcha para fora da estação, Alicia e Darcie permaneceram na
plataforma, de braço dado, a acenar a Verity e à família desta.
– Não vais chorar? – perguntou Alicia, olhando para Darcie.
– Não, está tudo bem. Ontem à noite já chorámos tudo.
Alicia sorriu e, sentindo-se profundamente grata por aquela mala
monstruosa ter quatro rodas, e assim não serem obrigadas a carregá-la pelas
escadas acima e depois pelo passadiço da estação, começou a puxar a mala
através da plataforma, em direção à saída.
– Então, divertiste-te muito? – perguntou a Darcie, que punha o saco ao
ombro com ligeireza.
– Foi fantástico. Quer dizer, houve momentos menos bons, quando sentia
saudades de casa ou a Verity me irritava, mas no geral foi o máximo – disse,
virando o bonito rosto para a mãe. – Senti muito a tua falta, se é isso que
queres saber, portanto espero que também tenhas sentido a minha.
– Oh, acho que sim, de vez em quando – brincou Alicia.
Darcie riu e deu-lhe uma cotoveladinha. Então, a sua expressão
ensombrou-se, quando Alicia se deteve junto ao velho Renault.
– Tinha-me esquecido de que agora tínhamos este carro – disse, com
desânimo. – Não tens vergonha de te verem a andar com ele?
– Não, e se tu tiveres, podes sempre ir a pé – respondeu Alicia, a quem o
snobismo da filha desagradara.
Darcie olhou-a de relance e, voltando a exibir o seu sorriso travesso,
agarrou a mãe num abraço capaz de quebrar costelas.
– Gosto tanto que sejas minha mãe – disse, quando Alicia abriu o porta-
bagagens. – Devias ouvir a mãe da Verity, nunca para de lhe chagar os
ouvidos. Se fosses assim, eu fugia de casa.
– Se eu fosse assim, acho que até eu fugia – brincou Alicia.
Rindo com vontade, Darcie largou o saco no porta-bagagens, ajudou a içar
a mala lá para dentro e, a seguir, contornou o carro até ao assento do condutor.
– Oops, tenho de me habituar, estou de volta a casa – disse com uma
risadinha, apercebendo-se de que confundira o automóvel inglês da mãe, de
volante à esquerda, com um veículo da Europa continental. – Para dizer a
verdade, este carro não está assim tão mal, pois não? É capaz de ser ótimo
para levares os teus trabalhos para a fundição. Fizeste alguma coisa desde que
aqui estás? Como vai o estúdio? A loja já está aberta? Tens de me contar tudo.
Estou mesmo a leste do que se passa.
Esperando que a filha apertasse o cinto, Alicia ligou o motor e, à saída do
parque, virou à direita em direção a casa.
– A Rachel convidou-nos a ir lá a casa hoje à noite – disse. – A Una está
morta por te ver.
– Ah, é bestial, porque também estou ansiosa por vê-la, e ao Todd, que é
tão giro, mas isto do Nat ainda me está a chatear. Imaginem só, não estar cá
para me receber. Ele prometeu que estaria, e nem sequer falo com ele desde
segunda-feira. Porque é que teve de ir para Bristol?
– Está a ajudar o Jolyon a preparar alguns casos. É uma boa experiência e
acho que a mudança de cenário lhe está a fazer bem.
– Mas ele nem há três semanas está cá. Isto é assim tão mau?
Revirando os olhos, Alicia disse:
– Não é mau de todo. Depois de te habituares, vais gostar – disse Alicia,
pensando em como as palavras lhe surgiam facilmente, enquanto o pavor da
realidade continuava a espreitar nas sombras, pronto a saltar para cena como
uma vingativa criatura demoníaca.
– Acho que não tenho escolha, pois não? Ainda bem que, pelo menos, vou
poder continuar a ter as minhas coisas todas. O meu computador já está
montado?
– O Nat instalou-o na semana passada. Tal como a tua TV e o DVD.
– Ele é o máximo. Fico mesmo contente por ele não ter ido para Itália com
a Summer. O melhor é estarmos todos juntos, não é?
Sorrindo ao ver como a filha passava convenientemente por cima da sua
estadia de um mês em França, Alicia concordou:
– É verdade, e ainda temos muito para fazer em casa e na loja, isto é, se
todos quiserem contribuir.
– Não há problema nenhum. Estou prontinha para trabalhar. As coisas
nunca vão voltar a ser o que eram, sem o pai – disse, com uma súbita tristeza
–, mas continuo a querer que ele tenha orgulho de nós, sabes, só para o caso de
estar a ver de lá de cima. Eu acredito mesmo que está, tu não?
– Tenho a certeza – disse Alicia, em parte porque era o que Darcie queria
ouvir e em parte porque ela própria também queria acreditar naquilo. –
Preciso de passar pela loja da aldeia a caminho de casa, para comprar leite e
um postal para o aniversário do Tod, amanhã. Queres ser tu a escolher?
– Claro, porque não? Já lhe compraste uma prenda?
– Sim, está embrulhada, já pronta para levarmos hoje à noite.
Cerca de vinte minutos depois, ainda a ouvir Darcie tagarelar sobre as
suas aventuras em França, Alicia parou diante da loja da Sra. Neeve e cruzou
os dedos, como sempre fazia agora quando se encontrava na rua principal, na
esperança de não dar de caras com Sabrina – ou qualquer outro dos vizinhos
cuja lealdade fora comprada, pelo menos na sua opinião, por alguma das
iniciativas caridosas da cunhada.
– Olá – disse Alicia, entrando na loja.
No interior, encontrou a Sra. Neeve atrás do balcão, como de costume, e
Sally Hopkins, uma vizinha, encostada do lado de fora. Quando ambas as
mulheres se voltaram, o seu sorriso começou a esmorecer, pois nenhuma
mostrou intenções de responder à sua saudação.
– Hãã, vou tirar algum leite – disse Alicia, apontando para o frigorífico. –
A Darcie está à procura de um postal de aniversário. Sabe? Ela acabou de
voltar de França, não foi, querida?
– O leite acabou – disse a Sra. Neeve quando Alicia começava a abrir o
frigorífico.
– Mas está mesmo a…
Apercebendo-se do que estava a acontecer, Alicia largou a porta e,
passando um braço pelas costas de Darcie, conduziu-a de volta à rua.
– Que foi aquilo? – disse Darcie num murmúrio audível. – Havia muito
leite, via-se de cá de fora.
– Eu sei.
– Então, porque é que não disseste nada?
Sem conseguir dizer se se sentia mais ofendida pelas duas mulheres na loja
ou aliviada por lhe fazerem ver, tão depressa, que tinha de contar a Darcie o
que se estava a passar, antes que a filha soubesse por outra pessoa, Alicia
disse:
– Anda, entra no carro, vou levar-te a casa.
Depois de chegarem a casa, Alicia esperou que Darcie fosse inspecionar o
quarto, ver o email e, a seguir, fê-la sentar-se à mesa da cozinha com um copo
de sumo de frutas e alguns biscoitos e disse:
– Fofinha, tenho de te contar uma coisa que não é… – À medida que o
rosto de Darcie começou a empalidecer, Alicia deteve-se rapidamente,
apercebendo-se do seu erro. Falara num tom demasiado sombrio, fazendo
Darcie imaginar o pior.
– É o Nat, não é? – disse Darcie, pondo-se de pé. – Oh, meu Deus…
– Chiuu, para, não aconteceu nada de mal ao Nat, juro-te – disse Alicia. –
Se quiseres, podemos ligar-lhe e ele pode dizer-te isso pessoalmente.
– Então, que é? – disse Darcie, com um ar extremamente ansioso e quase a
chorar.
– Senta-te outra vez – disse Alicia, puxando uma cadeira para si própria. –
Tem a ver com o Nat, mas não da maneira que estás a pensar.
Com os olhos muito abertos e fixos na mãe, Darcie sentou-se de novo na
cadeira.
– Aconteceu uma coisa na rave do último sábado – prosseguiu Alicia,
sentindo-se espantada por aquilo ter acontecido há apenas uma semana,
quando lhe parecia que passara uma eternidade. – Não sei exatamente o quê,
só sei que as coisas se descontrolaram e a Annabelle acabou a acusar o Nat
de… Bem, ela acusou-o de a violar.
O queixo de Darcie caiu.
– É claro que não é verdade – disse Alicia rapidamente –, mas a polícia
tomou conta do caso e, agora, querem levá-lo a tribunal por um crime que não
cometeu.
Darcie começou a abanar a cabeça energicamente.
– Não, eles não podem fazer isso! – disse, num tom excitado. – Ele nunca
faria nada assim. Eles perceberam tudo mal. Tens de os impedir, mãe. Se o pai
estivesse aqui, ele…
– O Oliver e o Jolyon estão a tratar do caso – disse Alicia, pegando-lhe
nas mãos. – Essa é, em parte, a razão pela qual o Nat está com o Jolyon
agora…
– Mas ela está a mentir – exclamou Darcie. – Porque é que eles lhe dão
ouvidos? O tio Robert não a consegue fazer parar com isso?
– Tenho a certeza de que tem tentado, mas…
– Vou até lá – disse Darcie, erguendo-se de um salto. – Vou…
– Não, querida – disse Alicia, agarrando-a e puxando-a para si. – Não
podes ir até lá, nenhum de nós pode.
– Mas tens de fazer alguma coisa – insistiu Darcie. – Não a podemos
deixar fazer isto, assim.
– De momento, não há nada que possamos fazer – explicou Alicia –,
exceto confiar no Oliver e no Jolyon. Se nos aproximarmos da Annabelle, ou
da mãe dela, vamos piorar as coisas para o Nat, e não queremos isso, pois
não?
– Não, mas… – De repente, Darcie arregalou os olhos. – Meu Deus, foi
isso que se passou na loja, não foi? A Sra. Neeve não te quis vender o leite
porque acha que o Nat fez aquilo. Tens de lhe dizer que ela está errada, mãe. O
Nat nunca faria mal a ninguém e ela não tem o direito de julgar as pessoas
assim. A lei diz que ele é inocente até prova em contrário, por isso ela não se
devia meter em coisas que não lhe dizem respeito.
– Talvez, mas as pessoas têm sempre uma opinião, não podemos fazer nada
quanto a isso, e… Oh, fofinha, não chores. Vai ficar tudo bem – disse Alicia
num tom reconfortante, abraçando-a com força.
– Já não queríamos vir para cá, para começar – lamentou-se Darcie –, e
agora estão a fazer isto ao Nat… Não é justo, mãe – disse Darcie, erguendo o
olhar para Alicia. – Não podemos voltar para Londres? Por favor. Lá, não lhe
poderão fazer nada.
– Chiuu – sussurrou Alicia, beijando-lhe a testa e passando-lhe a mão
pelos cabelos.
– A Annabelle é tão má – disse Darcie num tom feroz. – Ela não vai levar
a melhor. Não vai. E queres que te diga porquê? Porque eu não a vou deixar.

Quando Annabelle entrou na cozinha, usando uma blusa sem mangas por
cima de um comprido páreo azul, os seus olhos estavam cansados e injetados
de sangue e o rosto exibia manchas vermelhas irregulares.
– Onde vai a minha mãe? – perguntou a Robert, enquanto o carro de
Sabrina descia o acesso à casa.
– Buscar a Bethany Cottle – respondeu Robert, concentrado nos papéis
espalhados à sua frente na mesa.
– Para quê? – perguntou Annabelle com animosidade. – Não me dou com
ela e, seja como for, já disse que preferia ficar sozinha logo à noite.
Robert fez um gesto na direção do telefone.
– Podes sempre ligar à tua mãe e dizer-lhe para voltar para trás – disse,
virando uma página.
Ignorando a sugestão, Annabelle foi até ao frigorífico e tirou para fora um
grande bloco de queijo Cheddar. Depois de cortar uma grossa fatia, olhou para
Robert de relance. – Queres uma tosta de queijo? – perguntou, num tom que o
convidava a aceitar.
– Não, obrigada – respondeu Robert, escondendo a sua surpresa, uma vez
que, desde há algum tempo, a enteada raramente se preocupava com alguém
que não ela mesma.
Depois de encontrar um pãozinho, Annabelle abriu-o, colocou o queijo no
meio e enfiou o conjunto na torradeira.
– Não é assim que se faz – disse Robert num tom suave.
– Eu sei.
Robert fez algumas anotações numa página, voltando-a a seguir.
– Queres ajuda? – perguntou.
– Está tudo bem, sei fazer isto.
Um instante depois, Annabelle retirou a sanduíche da torradeira e colocou-
a no grelhador.
– Que estás a fazer? – perguntou a Robert, erguendo os olhos do exame que
fazia às unhas.
– Faço parte do júri de um prémio para jovens cientistas – respondeu
Robert –, por isso estou a analisar alguns dos trabalhos a concurso.
– Hmm – mastigou Annabelle. – E então, prestam para alguma coisa?
– Alguns, sim.
Com um suspiro, Annabelle afastou-se até à janela e ficou a olhar para o
jardim. Robert achava-a tensa e zangada, ou talvez estivesse apenas nervosa,
não conseguia perceber bem. Então, de súbito, Annabelle disse:
– Porque não a deixaste?
Sabendo exatamente o que Annabelle queria dizer, mas mantendo o ar de
quem continuava mergulhado nas suas leituras, Robert disse:
– As coisas não eram assim tão simples.
Annabelle permaneceu de costas voltadas para ele.
– Porque não? Oh, queres dizer que esta casa é tua, por isso terias de a
expulsar daqui para fora. Mas porque não o fizeste? Era isso que eu faria, se
estivesse no teu lugar.
– Não teve nada a ver com a casa – respondeu Robert –, mas com o laço
que a tua mãe e eu partilhamos, apesar de tudo o que se passou.
Depois de digerir a resposta, Annabelle voltou-se e encostou-se ao balcão
da cozinha.
– Mas não te incomodou vê-la perder a cabeça por causa de outro homem?
– perguntou, exasperada.
– É claro que sim.
– Então, não compreendo porque não lhe disseste para se ir embora.
Robert pousou a caneta, sentou-se para trás na cadeira e fixou-a. Embora
Annabelle tentasse fazer parecer que a conversa era sobre a mãe, Robert sabia
que, na verdade, o assunto era ela própria, e a forma como lidara com os
últimos dois anos.
– O que a tua mãe sentia pelo Craig – disse, decidindo ser o mais honesto
possível, apesar do quanto aquilo o estava a magoar – era como uma
obsessão. Consumia-a por completo, tornando-a quase incapaz de pensar em
qualquer outra coisa. Não há realmente explicação para estas coisas, mas elas
acontecem, é tudo. Podes chamar-lhe paixão assolapada, amor louco, fixação,
o que quiseres, mas, enquanto acontece, as pessoas envolvidas não conseguem
ver mais nada. É como se nada mais existisse. Quando a ligação da tua mãe
com Craig chegou ao fim, ela não conseguiu aguentar, foi de mais para ela.
Durante muito tempo, a Sabrina não esteve realmente no seu juízo perfeito, por
isso, de todas as vezes que ela te ignorou, ou te afastou, ou disse coisas que te
magoaram, nada disso foi a sério. Ela não conseguia evitar agir daquela forma,
estava a sofrer de um mal que demorava tempo a curar.
– Eu acho que ela estava só a ser egoísta, que só pensava nela própria sem
se importar a mínima com mais ninguém – afirmou Annabelle num tom
acalorado.
– O amor é muito egoísta – concordou Robert –, e essa foi, em parte, a
razão por que não lhe pedi para deixar esta casa. Isso também foi egoísta da
minha parte, porque não só a teria perdido a ela, o que não queria de modo
nenhum, como te teria perdido a ti, e para mim isso estava fora de questão. Eu
sei que não sou o teu pai biológico, mas penso em ti como minha filha e
antes… Bem, antes de as coisas começarem a descarrilar, não sei se te
lembras, mas, de vez em quando, costumavas chamar-me pai. Eu gostava
muito. Sentia-me mesmo muito orgulhoso ao pensar em ti como minha filha.
O rosto de Annabelle contraiu-se para ocultar a confusão que sentia.
– Acho que a devias ter expulsado daqui – disse agressivamente. – Ela não
merece uma pessoa como tu.
Robert sorriu.
– Estou a falar a sério – insistiu Annabelle. – Ela não se importa com mais
ninguém. A única coisa que lhe interessa é ela mesma.
– Ela gosta muito de ti.
Os lábios de Annabelle arquearam-se.
– Sim, está-se mesmo a ver – disse sarcasticamente. – Não a afetava
minimamente se eu me fosse embora e nunca mais voltasse.
– Na verdade, iria afetá-la muito. E a mim também, portanto, espero que
não estejas a pensar fazer isso.
Annabelle virou a cabeça para o lado. Quando parecia prestes a
acrescentar algo mais, Robert disse, num tom muito suave:
– Posso dar-te um conselho?
Annabelle ficou imediatamente tensa.
– O grelhador funciona melhor se o ligares – disse Robert.
Os olhos de Annabelle dispararam na direção do aparelho e, decidida a
não desatar a rir, disse num tom duro:
– Também já não tenho fome – e, atirando o cabelo para trás das costas,
foi-se embora para o quarto.

– Nat, querido, é a mãe. Estás bem?


– Sim, está tudo porreiro. E tu? A Darcie já chegou?
– Está mesmo aqui, mas queria falar contigo primeiro. A Summer ligou
duas vezes a pedir o teu número e não posso continuar a empatar. Que queres
que faça?
Nat estava de pé diante da enorme janela panorâmica do apartamento de
Jolyon e Marianne, contemplando uma espetacular vista da ponte suspensa de
Clifton e do parque de Leigh Woods. Mesmo lá no fundo do desfiladeiro, tão
longe que Nat mal conseguia ver, ficava a fina curva do barrento Rio Avon,
onde acabavam os suicidas que saltavam da obra-prima projetada por Brunel.
– Acho que é melhor dares-lho – disse, mal conseguindo focar o olhar no
que quer que fosse.
– OK, se tens a certeza. Está tudo bem com o Jolyon e a Marianne?
– Sim. Foram fazer umas compras. Vamos ao Colston Hall logo à noite, ver
o Billy Bragg.
– A sério? Vais gostar muito.
– Espero que sim. Posso falar com a Darcie agora? Não lhe disseste nada,
pois não?
– Fui obrigada – respondeu Alicia. – Não quis que descobrisse por outra
pessoa.
Os contornos da boca de Nat empalideceram, quando respondeu:
– OK. Então, passa-lhe o telefone.
Um momento depois, ouviu-se a voz mandona de Darcie do outro lado da
linha.
– Nat, não quero que te preocupes com nada – disse ela. – Não a vou
deixar levar a melhor. Vou falar com ela e…
– Darcie, para – interrompeu-a Nat. – Não te deves meter nisto. É um
assunto complicado e há muito em jogo, por isso, por favor, promete-me que
não vais tentar interferir.
– Mas alguém tem de fazer isso! Eu sei que o Jolyon e o Oliver estão a
fazer tudo o que podem, mas acho que alguém tem de falar com a Annabelle.
– Talvez, mas não podes ser tu. Estamos proibidos de nos aproximarmos
dela e, se tentares, só vais piorar as coisas. Portanto, fica longe dela, OK,
Darce? Toma conta da mãe e faz com que ela não se deixe ir muito abaixo.
Agora, diz-me lá o que estás a pensar fazer nos próximos dias.
– Ainda não tenho planos nenhuns – respondeu Darcie, parecendo agora
menos segura de si. – Pensei que ias cá estar, e que podíamos ajudar a mãe na
loja e coisas assim.
– Ela continua a precisar de ajuda e vai ser bom ter alguma coisa que a
distraia. Estive a tentar convencê-la a usar o antigo consultório do avô como
estúdio até poder trabalhar na loja, por isso, oferece-te para a ajudar a
arranjar o espaço.
– Gostava mesmo que estivesses aqui – disse Darcie num queixume.
– Provavelmente voltarei para aí na quarta-feira, depois da audiência –
disse Nat. – Só não posso aproximar-me da casa do tio Robert.
– E quem quer lá ir, com ela lá? – disse Darcie bruscamente. – Mas de que
audiência estás a falar?
– Tenho de ir a tribunal na quarta. Não é nada de mais, é só uma audiência
preliminar, por isso não quero que vás, OK? E tenta convencer a mãe a
manter-se também longe disto, ou só a vai enervar.
– O que é uma audiência preliminar?
– É uma audiência em que são marcadas as datas das audiências seguintes
e as duas partes têm de entregar documentos, etc., tudo coisas muito
aborrecidas, por isso não há razão nenhuma para nervosismos – disse Nat,
voltando-se a seguir ao ouvir a porta da frente abrir-se. – O Jolyon chegou –
disse –, acho que tenho de ir. Posso só dar uma palavrinha à mãe?
Um momento depois, ouvia-se a voz de Alicia:
– Olá, querido. Está tudo bem?
– Para de me perguntar isso – disse Nat abruptamente. – Não, não está tudo
bem, mas neste momento não há muito que eu possa fazer acerca disso, pois
não?
– Lamento – disse Alicia –, é a força do hábito.
Nat também lamentava, sentindo-se culpado por falar com a mãe de modo
tão agressivo, e zangado por se encontrar numa posição tão estúpida.
– Certifica-te só de que a Darcie não tenta interferir nisto – disse. – Quero
ir para casa na quarta, mas isso não será possível se ela for até lá tentar falar
com a Annabelle.
– Não te preocupes, vou-me assegurar de que ela percebe como é
importante não se meter no problema.
Depois de passar o telefone a Marianne, para que esta pudesse falar com a
Alicia, Nat foi ajudar Jolyon a trazer as compras para dentro de casa. Era bom
estar ali, onde não tinha de lidar com as preocupações e ansiedades da mãe,
mas, simultaneamente, detestava estar longe dela. Era seu dever tentar tomar
conta da mãe e ser forte para a apoiar, sobretudo agora, que sabia aquilo a que
o pai a sujeitara… Cada vez que pensava nisto, uma vaga de raiva enchia-lhe
o coração. O pai era um hipócrita, um mentiroso, um adúltero. Não era o
homem que Nat sempre pensara – mas, então, quem era ele? Sentia-se tentado
a perguntar a Jolyon, mas não conseguia reunir coragem para tocar no assunto.
Queria apenas proteger a mãe, de modo a que ninguém a conseguisse
magoar assim de novo. E, no entanto, cada minuto era agora um inferno para
ela, que não conseguia parar de se afligir com o que lhe iria acontecer a ele.
Nat sentia-se igualmente apavorado, não só pela perspetiva de ser condenado
por violação, mas também pelo que decidira fazer se tal acontecesse.
Capítulo Dezanove
Era terça-feira à noite e Alicia estava na sala de jogos/estúdio com
Darcie, a selecionar velhos jogos e brinquedos para doar a instituições de
caridade, quando o telefone começou a tocar. Uma vez que se encontrava mais
perto, Darcie arrastou o aparelho pelo chão até si e atendeu.
– Estou – disse, erguendo um pé para que a mãe pudesse puxar o saco de
lixo que se encontrava preso por baixo.
– Olá – disse um homem do outro lado. – Sei que não é a Alicia, por isso,
por acaso será a Darcie?
– Sim, sou eu – respondeu Darcie, franzindo a testa ao tentar reconhecer a
voz, até que as suas suspeitas se fizeram ouvir e uma expressão preocupada
lhe brilhou nos olhos. Era este o homem acerca de quem Nat a avisara? – Quer
falar com a minha mãe? – disse, num tom desconfiado.
– Gostava muito, obrigado. Por favor, diz-lhe que é o Cameron Mitchell.
Darcie ficou rígida. Sim, era ele, e Nat não gostava dele, portanto, ela
também não.
– Vou ver se ela está – disse num tom gelado e, tapando o bocal, sussurrou
para a mãe: – Não queres falar com ninguém esta noite, pois não?
Alicia pestanejou.
– Depende de quem for – respondeu.
– Não é ninguém. Não te preocupes, eu digo-lhe que lhe ligas noutra altura.
– Espera, espera – disse Alicia rapidamente. – Quem é?
– Um homem chamado Qualquer-coisa Mitchell – disse Darcie num tom
cansado, de ombros caídos.
Erguendo-se, Alicia pegou no telefone e foi até à cozinha.
– Olá – disse, prendendo o telefone debaixo do queixo enquanto enchia a
chaleira. – Já voltaste ao Somerset?
– Já – confirmou Cameron. – Chegámos há algumas horas, por isso o
Jasper está a descansar um bocado da viagem, que foi muito longa, e eu estou
aqui a beber qualquer coisa. Não da taça dele, é claro. Estava a ligar-te para
desejar boa sorte para o Nat e para ti, amanhã, e para perguntar se há algo que
possa fazer, como levar-te lá, ou ir-te buscar, ou o que quer que seja. Só tens
de dizer.
– É muito simpático da tua parte – respondeu Alicia calorosamente,
apercebendo-se de que, na verdade, uma parte dela gostaria de aceitar aquela
oferta de o ter como motorista. Contudo, sabendo bem como os filhos iriam
reagir se o fizesse, disse simplesmente: – Já está tudo tratado, obrigada.
– Bem, sabes onde me encontrar. Como se sente o Nat?
– Não quer falar muito no assunto, mas posso ver que está muito nervoso,
apesar de se tratar de uma simples formalidade. Não quer que vamos ao
tribunal, mas acho que se pode arrepender quando lá estiver, por isso vamos
seja como for e, se ele ficar mais nervoso, podemos esperar cá fora.
– Então a Darcie vai contigo?
– Receio que não a consiga demover.
Num tom simultaneamente solidário e divertido, Cameron disse:
– Como tenho alguma experiência com raparigas da idade dela, sei que, às
vezes, é mais fácil simplesmente ceder do que continuar a discutir. A
audiência é em Wells, não é? Não sabia que o tribunal de lá ainda funcionava.
– Aparentemente, só tem sessões uma vez por mês, por isso tivemos sorte
– se é que se pode chamar a isto sorte. Caso contrário, provavelmente,
teríamos de ir até Bristol ou Bath. Seja como for, o importante é que, a seguir,
ele volta connosco para casa. Tenho tido muitas saudades dele nos últimos
dias, apesar de ser maravilhoso ter a Darcie de volta. Ela anima mesmo a casa
e está a morrer por ver o irmão.
– Tenho a certeza que sim. – A seguir, com um suspiro de empatia,
Cameron disse: – Vamos esperar que os amigos do teu marido consigam
resolver isto em breve, para que vocês os três possam seguir com as vossas
vidas.
– Deus te ouça. Mas agora acho que tenho de começar a fazer alguma coisa
para jantar. Obrigada por ligares. Gostei muito de te ouvir.
– Tudo bem. Só não queria que pensasses que me tinha esquecido. Também
te queria falar de uma ideia que tive para a tua loja, mas agora não é boa
altura, por isso, bom apetite, e se calhar voltamos a falar amanhã.
Depois de desligar, Alicia voltou a colocar o telefone no suporte e abriu o
frigorífico para procurar inspiração para o jantar. Apesar de estar
sensibilizada com a atenção de Cameron, e curiosa em relação à ideia que este
poderia ter para a loja, os seus pensamentos rapidamente se fixaram na
provação que Nat enfrentaria no dia seguinte, e em como estava
desesperadamente preocupada com ele e com o que aconteceria nas semanas
que se avizinhavam.
– Não podes fazer isso – gritou Sabrina exasperada. – És o padrasto da
Annabelle. O que vão as pessoas pensar se apareceres no tribunal para apoiar
o agressor dela?
– O agressor dela, como tu lhe chamas – disse Robert numa voz calma –,
também é meu sobrinho, mas quem vou apoiar é a minha irmã.
– E alguém vai saber isso? Ou vais usar um cartaz?
Ignorando o sarcasmo, Robert disse:
– Vou simplesmente oferecer-me para lhe dar boleia à ida e à volta. Não
tenho intenção de assistir à audiência.
– Mas ela tem carro, não precisa que ninguém a leve. Não, Robert,
desculpa, mas não vou permitir que faças isso. A Annabelle está num estado
muito vulnerável, precisa de saber que pode contar connosco e, se descobrir
que vais levar a mãe do violador dela ao tribunal, vai pensar o mesmo que o
resto das pessoas, que não acreditas nela. Presumo que não seja o caso?
Não querendo ser arrastado para esta discussão, uma vez que mal sabia o
que pensar de tudo aquilo, Robert disse:
– Um júri vai decidir quem diz a verdade, se as coisas chegarem a esse
ponto.
Sabrina abriu muito os olhos.
– Mas que quer isso dizer? – perguntou, zangada.
– Quer dizer que os advogados dele farão tudo o que puderem para fazer
arquivar o caso e, tanto quanto sei, pode ser que consigam.
– Só por cima do meu cadáver.
Sem vontade de se envolver numa controvérsia inútil, Robert disse:
– Viste a mensagem da Joanne Willoughby? Parece que foste convidada a
juntares-te ao clube de leitura real.
O prazer de Sabrina ao ver-se aceite foi manchado pela irritação que o
comentário irónico do marido lhe provocou.
– Então, valeu a pena ir ao jantar no sábado à noite – acrescentou Robert.
– Aparentemente sim – respondeu Sabrina –, mas tu pensas que devia ter
ficado aqui com a Annabelle.
– De facto, penso.
– Ela tinha a Bethany para lhe fazer companhia, não foi como se tivesse
ficado sozinha.
– Teria sido melhor para ela tu estares aqui – respondeu Robert. A seguir,
sobrepondo-se a Sabrina quando esta começava a protestar, disse: – Não
precisas, ou não devias precisar, que eu te chame a atenção para a situação
difícil que a tua filha está a viver, ao que podemos acrescentar a necessidade
que ela tem de compreender porque as coisas descarrilaram na vossa relação.
Eu sei que andas a evitar a questão, mas só tu lhe podes explicar.
Sabrina exibiu uma expressão espantada.
– Lá porque tiraste dez minutos do teu horário preenchido para ter uma
conversinha com ela no sábado, não tens o direito de me acusares de evitar ou
negligenciar a minha filha. Tenho-a apoiado em todas as fases desta situação e
vou continuar a apoiá-la até que se faça justiça, o que é bem mais do que se
pode dizer de ti, que, à primeira oportunidade, vais a correr juntar-te à
patética claque da tua irmã.
– Nesses dez minutos, consegui aprender bastante sobre o que passa na
cabeça da Annabelle – respondeu Robert serenamente. – Não que já não
tivesse as minhas suspeitas, mas foi interessante ouvir as coisas da boca dela.
– OK, pai do ano, que descobriste que pensas que eu ainda não sei?
– Na verdade, penso que sabes, só não queres admitir aquilo que a fizeste
passar depois do fim da tua aventura. Melhor do que ninguém, sei como foi
difícil lidar contigo quando estavas a tentar ultrapassar aquilo, os teus
discursos furiosos, os teus gritos, as vezes que me pedias para te levar até ele,
ameaçando suicidar-te e mal deixando as pessoas aproximarem-se de ti. A
Annabelle também cá estava, não te esqueças! Portanto, tentares dizer a ti
própria que tudo lhe passou ao lado, ou que, por artes mágicas, conseguiu
esquecer o que sucedeu, seria enganares-te a ti própria de um modo
estupidificante. Ela andou apavorada durante aquilo tudo, como teríamos
percebido se lhe tivéssemos dado a atenção devida, por isso também me culpo
a mim. Estava tão abalado pelos efeitos daquilo em mim, sentia-me tão
rejeitado, ansioso e inútil que não consegui ver as coisas claramente. E ali
estava a Annabelle, tão vulnerável e impressionável como qualquer rapariga
da idade dela e, depois de ter de lidar com a tua rejeição e todo o teu teatro,
não é de admirar que tenha começado a procurar atenção noutro lado. Por isso,
quer gostes quer não, tu e eu temos de aceitar a nossa quota-parte de
responsabilidade pela pessoa em que a Annabelle se tornou e pela situação em
que ela está agora. Mas não quero falar mais disto esta noite. Vou dormir no
quarto de hóspedes para te dar tempo para pensares no que acabo de dizer e
para refletires no teu relacionamento com a tua filha. E, antes que fales disso
outra vez, não, não vou oferecer boleia à Alicia. Consigo ver que poderia dar
uma ideia errada e, embora não me importe minimamente com o que as
pessoas pensam, importo-me bastante com a Annabelle – e, deixando Sabrina
de olhar arregalado, com uma expressão chocada no rosto, saiu da sala e
fechou a porta.
Na manhã seguinte, Alicia e Darcie saíram de casa cedo para terem a
certeza de que chegavam ao tribunal com bastante antecedência. Estavam
ambas vestidas de cores sóbrias e com o cabelo apanhado, como se qualquer
amostra de cor ou qualquer caracol cheio de vida pudesse revelar falta de
respeito pelos procedimentos. Quando saíam da aldeia, Darcie começou a
mexer no rádio, saltando de estação em estação, como se fosse tão incapaz de
escolher uma frequência como de ficar quieta no assento. Alicia mantinha o
olhar fixo na sua frente, uma vez que não desejava qualquer contacto visual
com os vizinhos naquela manhã, mesmo com aqueles que lhe haviam desejado
boa sorte.
Graças a um telefonema breve que recebera da parte de Marianne antes de
sair, sabia que Nat e Jolyon já iam a caminho. Sentia-se, também, encorajada
pela afirmação de Marianne de que estava a fazer o mais correto, ao ignorar o
pedido de Nat para se manter afastada.
– O Jolyon pensa que ele está a tentar lidar com tudo sozinho quando, na
realidade, como todos nós quando temos um problema, está a precisar muito
da mãe – disse Marianne.
Não desejando senão apoiar Nat de todas as maneiras possíveis, mas,
simultaneamente, com vontade de o abanar até o deixar sem sentidos, por ser
tão estúpido a ponto de se envolver com uma rapariga tão volátil e vulnerável
– graças àquela mãe terrível dela – e, pior ainda, sem idade legal, Alicia
carregou no acelerador enquanto seguiam pelas estradas rurais. No entanto, ao
chegar à estrada principal, abrandou a velocidade, sabendo que ali existiam
inúmeras câmaras preparadas para disparar no instante em que infringisse os
limites.
Passado pouco mais de meia hora, entravam na velha praça do mercado do
centro de Wells, de pavimento empedrado, onde o edifício dos paços do
concelho presidia com toda a pompa e circunstância sobre a charmosa e
peculiar arquitetura tradicional inglesa à sua volta. Era uma construção grande
do século dezoito, com um pórtico ladeado por nobres pilares românicos,
janelas altas em arco e uma fachada de pedra calcária amarelada, alegremente
decorada por cestos de flores pendurados e uma série de mastros de bandeira
enormes, que se elevavam majestosamente sobre os transeuntes.
O tribunal funcionava lá dentro, à direita do átrio principal, com uma
pequena área de espera ao lado da porta principal, onde Alicia e Darcie se
sentaram calmamente, ouvindo vozes ecoando de outras partes do edifício,
apesar de não conseguirem ver ninguém. Então, ouviram passos que
atravessam as lajes na sua direção e o coração de Alicia inundou-se de amor e
ansiedade quando Nat e Jolyon apareceram na porta da sala de espera. Apesar
de Nat se ter coibido de a abraçar, não disse uma só palavra de censura em
relação à sua presença ali – de qualquer maneira, não houve tempo, porque
Darcie voou direita aos braços do irmão para o abraçar com toda a força.
– Olá, esquilinho – disse Nat, devolvendo o abraço.
– Olá, para ti também – disse Darcie. A seguir, afastou-se para olhar bem
para ele e o seu rosto começou a agitar-se. – Vai tudo ficar bem – disse, por
entre as lágrimas. – Eu sei que vai. Tenho um pressentimento e, quando tenho
estes pressentimentos, acerto sempre.
Os olhos de Nat brilhavam ao olhar para ela.
– Pensei que era eu que acertava sempre – brincou Nat.
– Não, nem pensar – tranquilizou-o Darcie. – Sou mesmo eu.
Concedendo-lhe a vitória, Nat disse:
– Estás com um bronzeado e peras.
Darcie olhou para os braços.
– Já está a desaparecer – queixou-se. Depois, esquecendo o bronzeado,
ergueu os olhos para o irmão de novo. – A seguir vens para casa, não vens?
Nat acenou com a cabeça.
– A não ser que me metam já na prisão.
– Nem brinques com coisas assim – repreendeu-o Alicia, enquanto
abraçava Jolyon. – Obrigada por o terem acolhido em vossa casa – murmurou.
– Tenho a certeza de que lhe fez muito bem.
– Gostámos muito de o ter connosco – disse Jolyon –, tirando aquele
momento mais embaraçoso em que estávamos a dar uns toques na bola ontem,
no Downs, e ele chutou contra o para-brisas de um carro-patrulha que ia a
passar.
– É óbvio que alguma coisa me puxa para eles – gracejou Nat.
Rindo, Jolyon deu-lhe uma palmadinha no ombro e olhou para o relógio.
– São quase horas – disse. Então, vendo a expressão no rosto de Alicia,
disse: – É uma coisa bastante simples, não te preocupes. – Nada de juízes
severos nem chamadas ao banco para testemunhar. É só uma formalidade que
temos de cumprir. Agora, vou descobrir o que se passa, por isso, espera aqui e
não fujas.
Cerca de quinze minutos depois, entravam no pequeno tribunal
claustrofóbico, onde foram assaltados pelos eflúvios da sua conturbada
história, que pareciam emanar das sombrias celas do andar de baixo e alastrar
como uma teia de aranha sobre os escuros painéis de madeira. As janelas eram
altas e de vidros opacos, ocultando qualquer tipo de vista, a sala exalava um
odor a pó e ar estagnado e os bancos dos advogados estavam tão juntos que
mal havia espaço para Jolyon passar e se colocar ao lado do avogado da
Acusação.
Enquanto Alicia, Nat e Darcie se instalavam na fila de cadeiras que Jolyon
lhes indicou, Alicia experimentou uma estranha sensação de dissociação, que
a puxava para fora da realidade. Era como se tivessem perdido a orientação
numa viagem que não devia ter incluído paragens e, agora, estivessem a ser
arrastados pela via errada. Não havia forma de mudar de curso, nem de voltar
para trás. Aquilo não deveria estar a acontecer. O filho não deveria estar num
tribunal nesta condição; Nat deveria estar ali como advogado, não como
arguido. Algo estava terrivelmente errado e ela precisava de encontrar uma
forma de corrigir as coisas. Sentindo a mão de Darcie deslizar para a sua,
lutou contra o pânico que crescia dentro dela e esforçou-se por se controlar.
Os advogados, vestidos com os seus fatos escuros, ergueram-se quando os
magistrados do Tribunal de Menores começaram a ocupar os seus lugares,
instalando-se no banco alto sobranceiro à sala, como gralhas à espreita. Aos
olhos de Alicia pareciam carrascos, com um único veredito possível na
cabeça. Porém, na verdade, eram três pessoas de meia idade de aspeto
absolutamente normal, dois homens e uma mulher, que sem dúvida teriam
famílias e problemas pessoais de que se ocupar por trás daquelas fachadas
implacáveis. Foi ordenado a Nat que se pusesse de pé e, sentindo-o erguer-se
ao seu lado, Alicia teve de se controlar para não lhe agarrar a mão. Depois de
o filho ter confirmado o seu nome, a acusação foi lida e Alicia sentiu-se
maldisposta. Se soubesse que seria algo tão explícito, nunca teria deixado
Darcie vir até ali.
– … ter intencionalmente penetrado com o seu pénis a vagina de Annabelle
Preston, de quinze anos de idade, sem o consentimento dela, não podendo
razoavelmente presumir que a vítima tinha dezasseis anos de idade ou mais.
O rosto de Nat estava tenso e pálido e as suas mãos apertadas em punhos
de aço. Não era suposto pronunciar-se sobre a acusação, portanto permaneceu
calado.
– Obrigado, Nathan – disse o juiz-presidente num tom suave –, podes
sentar-te.
O advogado da acusação não demorou muito a expor o seu caso, com
palavras que rodopiavam pela velha sala como morcegos. Alicia, sentindo Nat
a seu lado, rígido e imóvel, deu consigo a pensar nas almas desafortunadas
que ali haviam comparecido antes, os perversos e os oprimidos, os loucos, os
apavorados. Devia haver mais histórias ligadas àquele lugar do que seria
possível contar, mais segredos escondidos nos seus painéis de madeira
rachados e câmaras subterrâneas do que seria possível saber. Alicia sentia-se
como se ela e a sua família fossem impostores, ou atores que haviam entrado
por acidente no palco errado. Estavam dessincronizados de uma realidade que
avançava, algures, independentemente deles.
Jolyon ergueu-se para informar o tribunal das medidas e termos a que Nat
estava sujeito e pediu que as mesmas condições se mantivessem, à exceção da
sua custódia, pois Nat queria voltar a casa. Depois de consultar os colegas, o
juiz-presidente olhou para Nat com um ar sério.
– Nathan, espero que entendas que, se não respeitares as tuas medidas de
coação, serás detido e permanecerás na prisão até ao dia do teu julgamento –
disse.
Nat acenou com a cabeça. Depois de uma nova troca de palavras em voz
baixa, o juiz disse:
– Sendo assim, podes ser libertado à responsabilidade da tua mãe.
Seguidamente, foi fixada uma data para a entrega dos documentos do
processo pelas partes, exatamente dali a quatro semanas, cinco dias antes de
Nat e Darcie começarem a escola. Depois disto, o juiz-presidente deu por
finda a sessão, dizendo:
– Nathan, deves apresentar-te no Tribunal de Menores de Taunton às onze
da manhã de quinta-feira, dia onze de setembro, para a audiência de
encaminhamento do teu caso para o Tribunal da Coroa. Compreendes?
– Sim – respondeu Nat numa voz rouca.
– Obrigado. Estás dispensado.
Lá fora, na praça do mercado, clientes pouco interessados prosseguiam as
suas andanças e um casal recém-casado fazia-se fotografar diante do edifício
da câmara, para eternizar o seu dia especial. Enquanto esperava que Nat
acabasse de falar com Jolyon, Alicia deu consigo a observar os recém-
casados e a pensar no seu próprio casamento, quase vinte anos antes. Esse fora
o dia mais feliz da sua vida até então, e só o nascimento de Nat e Darcie
haviam conseguido suplantar aquela felicidade. Perguntou a si própria se teria
casado com Craig, sabendo o que sabia agora, e a resposta foi imediatamente
sim, porque, apesar da traição, amara-o de todo o coração e ainda o amava.
Nathan e Darcie não existiriam sem ele e, sem os filhos, nada faria sentido.
Voltando-se para ver onde toda a gente estava, sentiu o coração dar um
salto quando viu Nat e Darcie caminhando de braço dado na direção dos
portões do Palácio do Bispo. Nat parecia não se aperceber de que fazia as
raparigas virarem a cabeça quando passava, tal como Darcie, que parecia
completamente concentrada no que o irmão dizia. Elevando-se por trás dos
edifícios medievais para onde se dirigiam, encontrava-se a magnífica catedral
onde, até há poucos anos, costumavam assistir à Missa do Galo na véspera de
Natal. Era uma tradição que Craig adorava, apesar de não ser particularmente
religioso. Era um tempo para a família, como o marido costumava dizer, e uma
oportunidade para darem graças pela forma como tinham sido abençoados e
por se terem um ao outro.
– Estás bem? – perguntou Jolyon, pousando-lhe um braço no ombro.
– Hmm – murmurou Alicia, ainda a observar Nat e Darcie. – Estava só a
cogitar que, mesmo que penses conhecer alguém muito bem, ou que alguém te
mereça total confiança, nunca podes estar absolutamente seguro do que essa
pessoa é capaz de fazer.
– Estamos a falar do Nat? – perguntou Jolyon, surpreendido.
– Não, não – tranquilizou-o Alicia. – Falo do Craig, na verdade.
– Ah, sim – disse Jolyon, num tom de arrependimento.
Num súbito acesso de emoção, Alicia perguntou:
– Que pensas que o levou a envolver-se com ela? Foi por minha causa,
porque ele não…
A mão de Jolyon apertou a dela com força.
– Não penses mais nisso – disse. – Independentemente do que possa ter
acontecido, o Craig era muito dedicado a ti e aos filhos, nunca duvides disso.
Sentindo-se serenada por aquelas afirmações, e embaraçada pelo seu
momento de fraqueza, Alicia esforçou-se por sorrir enquanto dirigia de novo a
sua atenção para Nat e Darcie.
– Pergunto-me sobre que estarão a tagarelar aqueles dois – disse, tentando
aligeirar o momento.
Seguindo a direção dos seus olhos, o rosto de Jolyon iluminou-se de afeto
ao ver os dois jovens a conversarem de maneira tão séria. Do outro lado da
praça, Darcie dizia:
–… mas achava que eras totalmente contra este tal Cameron.
– E sou, quer dizer, era – respondeu Nat –, mas tenho andado a pensar
nisso. Eu sei que o pai não morreu assim há tanto tempo, mas há coisas que…
Olha, de qualquer maneira a mãe nem deve estar interessada nele, por isso o
que estou a tentar dizer é que ele a pode ajudar bastante no trabalho dela.
Pensa nisso, não seria excelente se a loja tivesse sucesso? E temos de
perguntar a nós mesmos se é justo querermos que ela fique sempre sozinha, só
porque não gostamos da ideia de alguém substituir o pai?
Darcie tinha um ar chocado.
– Mas ela também não quer que ninguém o substitua! – protestou.
– Agora não, é claro, mas mais tarde pode querer, e temos de pensar em
quando eu me for embora para ir para a universidade e tu estiveres mais
interessada em estar com as tuas amigas do que em ficar em casa com ela.
Nessa altura, ela vai querer companhia.
Darcie parou de andar e, quando voltou a olhar para o irmão, para
surpresa e confusão deste, exibia um sorriso de orelha a orelha.
– Que foi? – perguntou Nat.
– Disseste: quando fores para a universidade. Isso é já no ano que vem, o
que quer dizer que também achas que tudo se vai resolver – disse Darcie,
atirando-lhe os braços ao pescoço num acesso de alegria. – Eu disse-te que
tudo ia correr bem. Só tens é de acreditar nisso.

Da garganta de Sabrina saiu um som gutural de aprovação, quando esta


contemplou os jardins perfeitamente cuidados de Babington House.
– Não é maravilhoso fazermos as reuniões do The Buzz aqui, em vez de no
escritório? – comentou, observando um bando de pombas que ia bicando o
chão pelo relvado fora.
– É um paraíso – concordou June, bebendo um gole de uma limonada
gelada. – Faz-me sentir bastante decadente.
Sabrina sorriu, ocultando por completo a ansiedade que sentia em relação
a Robert e à sua contínua frieza para com ela, assim como em relação a
Annabelle e ao quanto a filha e ela se tinham distanciado. Sabrina passava a
vida a pensar em formas de corrigir os danos, mas não era fácil e, na sua
opinião, fosse como fosse, Robert estava a ser demasiado duro com ela,
tentando culpá-la por se portar de uma forma que não fora capaz de controlar.
– Não era suposto o Nathan Carlyle ir a tribunal hoje de manhã? – disse
June, deitando a cabeça para trás para apanhar sol no rosto. – Como será que
correu?
Sabrina encolheu os ombros.
– Não faço ideia – respondeu –, mas, por favor, não fales nisso em frente
da Annabelle quando ela sair. De momento, ela anda muito sensível em
relação a esse assunto.
June exibiu uma expressão solidária.
– Suponho que ela deve estar nervosa e ansiosa, a pensar em quando tiver
de depor perante o juiz – disse.
– Provavelmente, vai depor por videoconferência – disse Sabrina,
querendo mudar de assunto. – Assim, não é tão traumático.
Depois de terminar a bebida, retirou um punhado de dossiês da sua pasta
Prada e pousou-os na mesa.
– OK, vamos lá ver o que temos para o próximo número – disse, lançando-
se no trabalho com um ar profissional. – Ainda não tive resposta da British
Telecom por causa da questão das cabines em áreas rurais, por isso vou
insistir no assunto. Entrei em contacto com o nosso inútil deputado no
Parlamento, para obter os comentários dele em relação ao problema da
habitação a custos reduzidos nesta zona. Com alguma sorte, na próxima
votação sairá derrotado, porque a resposta não é prolongar aquela urbanização
horrenda na periferia de Holly Wood, que é o que ele propõe. Agora, vamos
ver, que mais temos aqui? – disse Sabrina, continuando a folhear os dossiês. –
Isto são tudo coisas sobre os eventos do momento… Oh, sim, aqui estão
algumas notas que fiz em relação a começar um banco de horas para prestar
auxílio aos mais idosos. Se calhar, podias ficar encarregada disto enquanto eu
estiver fora.
June ergueu os olhos.
– Fora? Ah, sim, tinha-me esquecido de que ias para França. Quando
partes?
– Na próxima segunda-feira. Mal posso esperar. Dez dias na Riviera
francesa. Todos aqueles iates fantásticos e aqueles restaurantes fabulosos à
beira-mar. – Sabrina soltou um suspiro extasiado. – Já combinaste as coisas
com a tua irmã? – lembrou-se de perguntar.
June exibiu uma expressão desanimada.
– Na verdade, estava a pensar ficar por aqui – disse tristemente.
Vendo Annabelle dirigir-se para elas, Sabrina compôs o seu melhor
sorriso maternal, dizendo:
– Ah, aí estás, fofinha. A tua massagem foi boa?
Annabelle afundou-se numa cadeira e agarrou no copo de Sabrina.
– Foi fixe – respondeu. – Que é isto?
– Limonada, mas está quase no fim, por isso vamos pedir mais.
Depois de chamar um empregado e de fazer o pedido, Sabrina voltou a
mergulhar nos dossiês, à procura de algo que pudesse interessar Annabelle.
– Imagino que ela te tenha estado a contar tudo sobre o seu novo clube de
leitura, não? – disse Annabelle a June.
Os olhos de Sabrina escureceram.
– Ainda não fui a nenhuma reunião – disse –, por isso não há nada para
contar.
– Que clube de leitura é esse? – perguntou June, muito interessada.
– O Robert chama-lhe o clube de leitura real – informou Annabelle –,
porque aí o número oitenta e cinco na linha de sucessão ao trono é membro.
Sabrina revirou os olhos.
– Na verdade, ela é casada com alguém que é o número catorze ou quinze
na linha de sucessão – disse a Annabelle –, mas não foi por isso que aderi ao
clube.
– Pffft! – troçou Annabelle. – Tu nem sequer gostas de ler, por isso não
consigo imaginar outra razão para te teres tornado membro.
– Por favor, ignora-a – disse Sabrina a June. – A Annabelle está
claramente de mau humor.
– Mas então, como conseguiste entrar para esse clube? – quis saber June.
Sabrina fez um gesto de rejeição com a mão.
– Foi uma coisa que surgiu quando estávamos a jantar em casa dos
Willoughbys há umas noites, e eu disse que sim. Já sabes como estas coisas
são, estás lá, por isso tens de dizer que sim, senão até parece mal-educado.
Annabelle olhava para ela com incredulidade, mas, antes que pudesse
dizer algo, June começou a queixar-se da sua vida.
– É esse o problema de ser divorciada – resmungou –, já ninguém me
convida para nada.
Sabrina mostrou-se extremamente solidária.
– É muito difícil quando estamos sozinhas – concordou. – Tenho de admitir
que, no sábado à noite, éramos só casais, não havia ninguém solteiro. Vai ser o
mesmo em casa dos Bingleighs, em França, tirando a madame aqui, é claro.
O rosto de Annabelle deixou clara a pouca vontade que tinha de ir.
– Sabes, June – prosseguiu Sabrina –, no sábado, a Joanna Willoughby
falou de alguém que podia ser interessante tu conheceres. – Sabrina franziu os
olhos enquanto se tentava lembrar exatamente do que ouvira. – Aparentemente,
ela tinha-o convidado para jantar connosco – continuou –, mas ele não pôde ir.
Mas está aqui na zona, algures para lá da estrada para Wyke, e, pelo que ela
disse, vai passar o verão inteiro por cá.
June não se incomodou em esconder o seu interesse.
– Sabes quem é? Ela contou-te algo sobre ele? – perguntou.
Agora que se começava a recordar, o rosto de Sabrina ia-se iluminando
com o entusiasmo.
– Na realidade, é um grande partido – respondeu –, e acho que já deves ter
ouvido falar nele. Cameron Mitchell? O crítico de arte?
O rosto de June perdeu o ânimo enquanto pensava.
– O nome diz-me qualquer coisa – admitiu –, mas isso de ser crítico de
arte a mim parece-me bastante gay, e como já passei por isso com o meu ex…
– Parece que ele se separou há um ano – disse Sabrina – e não ouvi dizer
que, até agora, tenha andado com mais alguém, homem ou mulher. Ele é muito
bem-parecido, pelo que pude ver na TV, mas já sabes como as pessoas podem
parecer diferentes em carne e osso, portanto, se calhar devemos esperar para
decidir quando o conhecermos pessoalmente.
– Consegues combinar isso? – perguntou June, excitada.
– Pelo menos, vou tentar, mas terás de esperar até voltar de férias. Receio
que antes não haja tempo.
– Tudo bem. Assim, pelo menos, terei algo por que esperar.
Enquanto ouvia aquela tagarelice de meia-idade, Annabelle batia
impacientemente com o pé no chão, desejando sair dali, apesar de não ter para
onde ir. Talvez conseguisse convencer a mãe a pagar-lhe outra massagem. Para
dizer a verdade, nem se importava de arranjar as unhas e ir secar o cabelo.
Havia uma festa em casa de Melody nessa noite, toda a gente ia lá estar, e
ainda não tinha usado o vestido D&G que comprara em Bath há umas semanas.
Perguntou a si própria se haveria problema em ir, mas, mesmo que não
houvesse, de maneira nenhuma iria ligar a alguém para descobrir, sobretudo
porque ninguém se incomodava em lhe ligar a ela. Exceto Bethany, que era
mais aborrecida que sei lá o quê, e Georgie que, tinha de admitir, telefonara no
dia anterior para saber como ela estava. Georgie não dissera nada a respeito
da festa, mas também não fazia mal, porque, fosse como fosse, ela não queria
realmente ir.
– Quando parte o Robert para Paris? – disse de súbito.
Sabrina voltou-se para ela.
– Amanhã – respondeu. – Porquê?
– Pensei que talvez pudesse ir com ele.
Sabrina exalou um suspiro de exasperação
– Ele vai passar o tempo todo em reuniões…
– Posso ir fazer compras e ver as vistas.
– Sozinha, não.
– Então, porque não vens também?
– Porque tenho demasiadas coisas a fazer aqui antes de irmos de férias.
Agora, por favor, podes parar de bater o pé? É muito irritante.
Annabelle virou-se para June.
– Tudo em mim é irritante para a minha mãe.
– Tenho a certeza de que isso não é verdade – contrapôs June.
– É claro que não – disse Sabrina, num tom mais zangado do que
pretendia. – Porque não vais dar um mergulho, ou ver se têm vaga para
arranjares as unhas, enquanto a June e eu planeamos o que vai sair no próximo
número?
– Na verdade – disse June, antes de Annabelle se levantar –, já estava para
dizer isto antes: pensei que talvez a Annabelle pudesse estar interessada em
escrever algo para o The Buzz. Talvez o contributo de alguém assim jovem
ajude a aumentar a circulação.
Sabrina pareceu gostar bastante da sugestão.
– É uma ótima ideia – disse, cheia de entusiasmo. – Que achas, Annabelle?
Gostavas de escrever para o jornal?
– Não sei – respondeu Annabelle, ligeiramente seduzida. – Que tipo de
coisas teria de escrever?
Sabrina olhou para June.
– Podias escrever algo sobre o que as pessoas da tua idade costumam
fazer – disse June. – Sabes, o tipo de eventos a que vão, como festivais e
concertos, e quais os melhores sítios para fazer compras. Para dizer a
verdade, tudo aquilo de que te lembrares serve.
Annabelle virou-se para a mãe. Sabrina sorriu de modo encorajador.
– Vamos fazer assim – disse Annabelle –, vou pensar no assunto – e,
pegando no seu copo de limonada, voltou para o interior.
Com um suspiro, Sabrina disse:
– Obrigada, June. Tenho andado a pensar tanto em maneiras de a incluir na
minha vida, desde que o Robert me deu um sermão por a negligenciar. Ele não
tem razão, é claro, porque eu estou sempre disponivel para ela, e ela
ultimamente só tem andado mal humorada e um pouco rude porque está a
passar por um mau bocado com toda esta situação desagradável.
Sem sequer se incomodar com as meias-verdades e a negação da realidade
presentes no discurso da amiga, June disse:
– Ela sabe que o Nathan foi hoje a tribunal?
Sabrina acenou com a cabeça.
– Tentei falar com ela sobre isso esta manhã, mas tudo o que ela disse foi:
“Daqui a pouco, toda a gente vai saber a verdade e, então, vão-se todos
arrepender por não acreditarem em mim”.
– Mas pensei que acreditavas nela.
– É claro que sim, mas, por alguma razão, ela convenceu-se de que não
acredito.

A manhã de domingo caminhava para o fim. Depois das explosões da


tempestade durante a noite, tudo estava agora mais calmo. As nuvens, depois
de se terem esvaziado profusamente sobre o campo, haviam-se contraído em
pequenos flocos brancos que flutuavam através de uma faixa de céu de um azul
perfeito, enquanto o solo exalava vapor ao secar, enchendo o ar com um aroma
fresco de terra.
Nat estava sozinho em casa, deitado na cama a tentar ler e ouvir música.
Tinha saído algumas vezes desde que voltara na quarta-feira, a maior parte das
vezes com Simon, tendo sempre o cuidado de sair da aldeia pela estrada de
baixo e de se manterem bastante recuados ao esperarem pelo autocarro para
Bruton ou Bath. Na noite anterior, a mãe levara-o a ele e à irmã a um pub em
Somerton, para mudarem de ares e se encontrarem com Rachel e a família
desta. Não tinham a certeza de que o Traveller’s ficasse à distância necessária
da casa de Annabelle, mas, mesmo que assim fosse, a forma como algumas
pessoas da aldeia olhavam e cochichavam de cada vez que os viam, ou os
ignoravam descaradamente, tornava-lhes muito desconfortável irem a qualquer
lugar na vizinhança.
Agarrando no telemóvel ao ouvir o sinal de mensagem, Nat abriu-a e, ao
constatar que era de Summer, a sua expressão ensombrou-se sob o peso da
culpa e da angústia. O que foi que fiz? Porque não falas comigo? S x. Nat
continuava a olhar para a mensagem, pensando em como responder, quando
alguém bateu à porta da frente. Deixando cair o telefone, balançou os pés para
fora da cama e saiu para o patamar. Não queria abrir com medo que fosse
alguém a insultá-lo e a dizer-lhe para se ir embora para Londres, como
sucedera há dias com um grupo de miúdos da urbanização nova, quando estava
com Simon à espera do autocarro. “Violador de merda”, gritara uma rapariga.
“Grande tarado”, gritara outra. “Volta para a tua terra”.
Quem quer que fosse, bateu de novo. Com algum receio de que lhe
metessem algo nojento ou perigoso pela caixa do correio, Nat desceu apenas
até meio da escada e berrou:
– Quem é?
– Nat? É o tio Robert.
Permitindo que, de momento, o alívio se sobrepusesse aos seus receios,
correu pelas escadas abaixo e abriu a porta.
– Desculpa ter demorado tanto – disse, afastando-se para deixar Robert
entrar.
Era melhor do que ser insultado pelos habitantes locais, pensou, mas
talvez o tio estivesse ali para lhe soltar os cães por causa de Annabelle.
Acreditaria ele no que ela lhe contara? Ia partir a louça e dizer-lhe como se
sentia envergonhado e enojado pelo que o sobrinho fizera? Se assim fosse, Nat
estava preparado para se defender – talvez até se atrevesse a perguntar ao tio
porque ficara com aquela cabra da Sabrina, depois do que ela fizera…
– Não tens nada com que te preocupar – disse Robert calmamente. – Estás
sozinho?
Nat engoliu em seco.
– Sim. A minha mãe e a Darcie foram a um mercado de artigos em segunda
mão, em Frome. Não faz o meu género. Pensava que a minha mãe tinha dito
que estavas em Paris.
– Voltei ontem à noite – respondeu Robert, seguindo-o até à cozinha. –
Amanhã vamos para fora outra vez, por isso pensei em passar cá e ver como
estavas antes de partir. Não sei se será possível beber qualquer coisa fresca?
– Oh, sim, é claro. Que te apetece? Temos limonada e sumos.
– Se houver de groselhas negras, quero sumo – respondeu Robert.
Enquanto Nat retirava alguns cubos de gelo do frigorífico e deitava água
da torneira sobre a mistura de sumo de groselhas, açúcar e ácido cítrico,
Robert puxou uma cadeira e sentou-se.
O tio não parecia zangado, mas, uma vez que nunca fora do género de se
zangar, Nat ainda não conseguia perceber como aquilo ia correr.
– Então, como estás? – perguntou Robert, enquanto Nat trazia as bebidas
para a mesa.
O sobrinho encolheu os ombros.
– Estou bem – respondeu Nat, sem saber que mais responder.
Robert olhou-o atentamente e, depois, bebeu um gole da sua bebida.
– Amanhã partimos para França durante dez dias – disse –, por isso espero
que as coisas fiquem mais fáceis para ti, por aqui.
Nat corou intensamente. Com um suspiro, Robert pousou-lhe a mão no
ombro num gesto reconfortante.
– Lamento que tudo isto esteja a acontecer – disse –, a vocês os dois…
– Se não te importas – atalhou Nat –, prefiro não falar disso.
– Eu percebo, mas vim aqui na esperança de poder fazer algo para
resolver este assunto infeliz antes que qualquer um de vocês tenha de enfrentar
a provação de um julgamento. Não vai ser uma experiência agradável…
– Não fui eu que provoquei esta situação – interrompeu-o Nat num tom
zangado. – Era com ela que devias falar.
– E vou tentar, acredita em mim. Talvez quando estivermos fora, num
ambiente diferente, ela esteja mais disposta a conversar. Entretanto, não posso
deixar de pensar se, por acaso, não poderás ter entendido mal o que ela…
– Não houve nenhum mal-entendido – exclamou Nat amargamente. – Eu
não consegui que ela me deixasse em paz. Ela continuou a vir atrás de mim e,
depois estava para ali sem roupa interior, portando-se como a pega que é.
Toda a gente sabe como a Annabelle é, porque ela já se enrolou com todos, e
não suportou que eu não quisesse… – Nat deteve-se quando a frustração e a
vergonha lhe engoliram as palavras.
Robert desviou o olhar; não gostava de ouvir falar da enteada naqueles
termos, apesar de suspeitar, há algum tempo, que a sua virtude já era coisa do
passado. Era como se os fracassos de Annabelle o atingissem na cara,
mostrando-lhe a sua inutilidade como pai e guia moral. No entanto, não podia
esquecer de quem estava a ouvir aquilo – portanto, com sorte, o panorama não
seria tão negro quanto Nat o pintava.
– Houve uma altura em que vocês gostavam muito um do outro – disse.
– Isso foi há muito tempo. Agora ela é uma pessoa diferente. Somos os
dois diferentes.
– Mas, intimamente, em muitas coisas, acho que continuam a ser as
mesmas pessoas.
Nat abanou a cabeça. Robert suspirou e tentou uma abordagem diferente.
– Estou disposto a admitir que a Annabelle tem os seus problemas – disse
desajeitadamente. – Os dois últimos anos não foram fáceis… – Deteve-se ao
ver Nat levantar-se. Então, apercebendo-se do seu erro, disse: – Eu sei que
também foram difíceis para ti, mas és mais velho e…
– Não fui eu que criei este problema – lembrou-lhe Nat com dureza. – Foi
ela, por isso, como disse antes, é com ela que deves falar.
O espetro do romance de Craig e Sabrina pairava agora sobre eles, mas, a
não ser que Nat falasse nisso, Robert não ia complicar ainda mais as coisas
fazendo-o. Para não continuar ali quieto, Nat foi até à porta e abriu-a por
completo. Morria de vontade de perguntar ao tio porque ficara com Sabrina,
como conseguia sequer olhar para a mulher depois de tudo o que ela fizera,
mas, sabendo que o seu pai era igualmente culpado, não queria correr o risco
de ouvir o tio dizê-lo, da mesma forma que não queria saber o quanto Robert
devia ter sofrido durante aquela altura. O tio era um homem bom e correto, que
Nat sabia nunca ser capaz de se comportar de maneira traiçoeira ou desleal
para com ninguém. Pensar no pai a fazer Robert de parvo era quase tão mau
como pensar naquilo que fizera à mãe. As suas traições transformavam-no no
tipo de pessoa que sempre afirmara desprezar.
Sentindo uma infelicidade sufocante oprimir-lhe o peito, estava prestes a
sair lá para fora quando Robert disse:
– Como está a tua namorada? Chama-se Summer, não é?
Nat fechou os olhos e respirou fundo. Embora a namorada fosse um tópico
difícil, custava-lhe muito menos falar dela do que do pai.
– Sim, é isso – disse, voltando-se. – Está fixe. Está com a família em Itália
– disse Nat, pensando em como o tinham convidado a ir com eles e desejando
agora, do fundo do coração, ter aceitado.
– Ela sabe o que se passa? – perguntou Robert com cuidado.
Nat abanou a cabeça.
– Não sei que fazer – confessou. – De cada vez que ela liga… Ela acha
que fez algo de errado. Passo a vida a dizer que o problema não é dela, mas
ela não acredita. Pensa que conheci outra pessoa e, nesse caso, devia ser
honesto e dizer-lhe. As coisas estão a chegar a um ponto em que já não atendo
as chamadas dela, nem lhe respondo às mensagens, e isso não está bem. Não
se devia tratar ninguém assim, mas não sei o que fazer.
Solidário com o dilema do sobrinho, Robert disse:
– Tens de lhe contar a verdade, Nat. Eu sei que vai ser difícil…
– Ela acaba tudo se eu lhe contar, eu sei que acaba, mas também, quem a
pode censurar? Ela odiava a Annabelle. Desculpa, mas a Annabelle foi tão
malcriada com ela, e passava a vida a atirar-se a mim quando a Summer
estava cá… Se tivesses visto, percebias o que quero dizer.
Inspirando e expirando devagar, Robert disse:
– Mesmo assim, receio que tenhas mesmo de lhe dizer a verdade. Como
ela vai lidar com isso, é assunto dela, mas, se continuares a evitá-la, só vais
piorar a situação.
Nat baixou os olhos. O tio tinha razão, mas o problema era encontrar as
palavras certas que lhe permitissem, apesar de tudo, ter a mínima esperança de
manter um relacionamento que começava já a desintegrar-se.
Olhando para o relógio, Robert disse:
– Tenho de ir indo
Nat acompanhou-o à porta, desejando que o tio não tivesse de ir embora,
mas sem dizer nada. Gostava de o ter por perto, apesar da sua ligação a
Annabelle e, embora não quisesse mesmo falar de certos assuntos, teria
gostado de conversar um pouco mais com ele.
– Vou dizer à minha mãe que passaste por cá – disse.
– Mais logo ligo-lhe – disse Robert. – E tu tens o meu número, por isso, se
te apetecer conversar, está à vontade…
– Obrigado. Espero que tenhas umas boas férias.
Robert abraçou o sobrinho com um sorriso amargo e, a seguir, virou-se e
avançou pelo acesso à casa. Não sabia se fizera bem em ir até ali, mas achara
importante tentar manter uma ponte entre a enteada e o sobrinho e estava
bastante confiante de o ter conseguido, apesar de, no fim, ele próprio ter
acabado a sentir-se mais dividido do que nunca. Robert sabia que, se as coisas
chegassem a vias de facto, ficaria do lado de Annabelle, mas rezava a Deus
para que não chegassem àquele ponto, pois o simples pensamento de virar as
costas a Nat era quase tão mau como a ideia de lhe virar as costas a ela.
Depois de fechar a porta, Nat regressou ao seu quarto, no andar de cima,
com a cabeça repleta de pensamentos sobre Annabelle e as ocasiões em que
costumavam estar juntos, antes de os seus pais deixarem de se visitar. Nessa
altura, tinham sido mesmo muito próximos, e Nat supunha que falara a sério
quando dissera que queria casar com ela quando fossem mais velhos, porque,
apesar de serem muito novos, não ia negar que Annabelle fora o seu primeiro
amor. Ou, pelo menos, a sua primeira paixoneta. Apesar da idade dela,
Annabelle mostrara-se disposta a envolver-se sexualmente com ele naquela
altura, logo que ele quisesse, ou pelo menos assim dissera, e fora isso que
acontecera naquele sábado à noite. Annabelle queria ir para a cama com ele e
ele tentara fugir dela, mas ela não deixara e, então, tudo se descontrolara.
Agora, ela acusava-o de violação e não fora isso que se passara, nem por
sombras.
Batendo com a porta atrás de si, Nat atirou-se para a cama e tentou
expulsar Annabelle da sua cabeça, mas diante de si desfilavam continuamente
imagens dela naquela noite, a rir e a provocá-lo, a gritar, a soluçar e, a seguir,
a rir novamente, com o rosto sujo de sangue e lágrimas, como num filme
sombrio. Annabelle sabia o que acontecera, ambos sabiam, e não fora
nenhuma violação – assim, porque estava ela a fazer aquilo?
Subindo o volume da música num esforço para bloquear os seus
pensamentos, Nat deitou-se na cama e agarrou no telemóvel. Apesar de ter
procurado o número de Annabelle, não ia arriscar ligar-lhe porque, se ela o
denunciasse, seria preso e teria de aguardar julgamento na cadeia. Aquele
simples pensamento fê-lo sentir uma onda gelada de pavor pelo corpo inteiro
e, como que para o afastar, ergueu-se para desligar a aparelhagem de som.
Então, passando em revista a lista telefónica do telemóvel, parou no número
de Summer e, sem dar a si próprio mais tempo para pensar, ligou. Apesar de
ainda não fazer bem ideia de como lhe contar o que sucedera, sabia que tinha
de seguir o conselho do tio e deixar de adiar e, quanto mais cedo o fizesse,
melhor.
– Nat, olá – disse Summer num tom alegre quando ouviu a sua voz. –
Finalmente! Onde tens estado? Porque não me…
– Summer, ouve-me, tenho de te contar uma coisa.
– Oh, meu Deus. Conheceste outra pessoa – exclamou Summer.
– Não. Não, de maneira nenhuma. Bem, não da forma que estás a pensar. –
Respirou fundo. – É só que, bem, a Annabelle…
– Não! Não me digas que é ela, não vou conseguir suportar.
Desesperado por finalmente lhe contar, Nat disse:
– Ela acusou-me de a ter violado e a polícia prendeu-me, mas não é
verdade, Summer. Eu não a forcei, ela estava a atirar-se a mim como de
costume. Já viste como ela é e, bem, não foi violação. Juro-te.
Durante um longo e torturante momento, do outro lada da linha não houve
mais do que um silêncio estupefacto e, a seguir, Summer disse:
– Então, o que me estás a dizer é que fizeste sexo com a tua prima
Annabelle?
– Sim, mas não é o que estás a pensar. Quer dizer, não foi violação, mas
também não significou nada para mim.
– Sabes que mais – disse Summer –, não é a parte da violação que me
incomoda. Quer dizer, incomoda-me, é claro, mas pelo menos, nesse caso, não
teria sido um ato de amor. Mas o facto de dizeres que não foi violação
significa que fizeste sexo com ela porque quiseste.
– Não! Foi no calor do momento… Já te disse, não significou nada…
– Mas fizeste-o! Não compreendes o que isso me diz a mim? Diz-me que te
sentiste excitado por ela e, se alguém como a Annabelle te excita, Nathan,
então tudo o que posso dizer é que te desejo muito boa sorte, porque, se és
assim tão oco, então tudo o que mereces são ordinárias como ela.
Quando Summer desligou, Nat atirou o telemóvel ao chão e mergulhou a
cabeça entre as mãos. Era como se o seu mundo inteiro se estivesse a
desmoronar e ele não sabia como o impedir. Pensou na mãe e em como a
estava a desiludir, quando tudo o que desejava era ser uma força e um apoio
para ela. Ao invés, colocara-a naquela situação e, a cada dia que passava, a
cada hora, receava mais do que nunca até onde aquilo poderia chegar e o que
seria necessário fazer para lhe pôr um fim.
Capítulo Vinte
À medida que agosto passava, o mundo parecia adquirir uma espécie de
qualidade quase surreal para Alicia, com o sol continuamente a brilhar como
se o tempo tivesse parado no dia mais quente do ano, enquanto a vida
avançava no seu modo habitualmente impenetrável. Desde que Robert fora
com a família para França, passara a ser possível aventurarem-se até à rua
principal, mas, a menos que fossem para a loja, raramente o faziam. A família
decidira que era melhor continuarem a manter-se discreta. Assim, Nat não
teria de se confrontar com a maldade e o preconceito das pessoas, nem Alicia
e Darcie teriam de sofrer a experiência intolerável de o ver suportar aquilo.
Embora alguns dos comportamentos dos seus vizinhos fossem extremamente
chocantes e ofensivos, Alicia recusou-se a desafiá-los, porque isso em nada
ajudaria Nat, nem era provável que conseguisse mudar o seu ponto de vista.
Tinha simplesmente de estar grata por não fazerem parte do júri quando
chegasse a altura do julgamento, um pensamento que, em si mesmo, fazia o seu
coração agitar-se de medo.
Embora estivessem em contacto regular com Jolyon, sabendo, por isso,
como ele e Oliver estavam a trabalhar arduamente na preparação da defesa,
Nat quase nunca falava sobre o que estava a acontecer, e Alicia não tentava
forçá-lo. O filho nem sequer se referira ao caso de Craig. Contudo, o assunto
estava ali, entre eles, como uma barreira através da qual podiam ver, mas que
não sabiam atravessar. Alicia tentou uma ou duas vezes, mas, assim que se
apercebia onde a mãe queria chegar, Nat erguia a mão e afastava-se.
Para Alicia era difícil encontrar a maneira certa para lidar com aquilo,
quando sabia que a cabeça do filho devia estar cheia com tanta confusão e
tantas perguntas. Mas, mesmo que Nat estivesse preparado para as discutir,
Alicia não sabia bem o que poderia dizer para o ajudar a compreender melhor
o comportamento do pai. Após a horrível disputa com Sabrina, as suas
próprias dúvidas e inseguranças tinham ressurgido com um ímpeto vingativo, e
não queria que Nat se apercebesse disso. Saber que a mãe ainda estava a
sofrer com a traição do pai certamente tornaria a sua desilusão e perplexidade
ainda mais difíceis de suportar.
Assim sendo, tudo o que Alicia podia fazer era vê-lo afundar-se cada vez
mais dentro de si próprio, sobretudo após os telefonemas de Jolyon, altura em
que sabia que o filho se perguntava a si mesmo porque é que os dois
advogados ainda não tinham conseguido que a acusação fosse arquivada.
Havia pouco, ou nada, que pudesse dizer para aliviar os seus medos.
Simplesmente tinham de passar por aquilo, fingindo para si mesmos, e para o
resto do mundo, que tudo se ia resolver a bem, quando, na verdade, cada vez
receavam mais e mais que não fosse assim.
Alicia só voltou a ver Cameron Mitchell dez dias após a primeira aparição
de Nat em tribunal, embora este lhe tivesse ligado algumas vezes para saber
como ela estava e lhe dizer que podia contar com ele, se precisasse de se
evadir por uns momentos. Embora tivesse adorado passar algumas horas a
conversar sobre arte, ou à procura de uma casa, ou qualquer coisa que não se
relacionasse com o julgamento que se aproximava, Alicia tinha demasiado
medo da reação de Nat e Darcie caso aceitasse o convite. Além disso, não
seria justo deixá-los, uma vez que o mundo se transformara numa panela de
pressão também para eles; e para piorar o caso deles, ninguém lhes oferecia
um escape.
– Estava a pensar – disse Cameron quando telefonou certa noite –, se
ficaste de todo curiosa em saber qual é a minha ideia para a tua loja… Ou se
calhar esqueceste-te?
– Na verdade, lembro-me muito bem – disse Alicia –, mas não queria
perguntar, caso pudesse parecer… Não sei, atrevida, suponho.
Cameron riu-se.
– Eu acho que é a última coisa que qualquer pessoa podia acusar-te de ser
– disse. – Seja como for, estou ansioso por te falar da minha ideia, mas antes,
é importante que veja o teu trabalho. Procurei na Internet, mas não consegui
encontrar nada.
– Isso é porque o Nat ainda está a trabalhar na criação de um site novo
para mim, mas adoraria mostrar-te o que tenho. Porém, não tenho a certeza de
que seja muito ao teu gosto, e considerando a tua famosa sinceridade quando
se trata de talento, ou da falta dele, tenho receio de que a minha sensibilidade
não esteja capaz de aguentar.
– OK, se prometer não te fazer passar um mau bocado, independentemente
do que achar, marcas um dia para eu ir aí?
Depois de procurar em vão uma objeção que não implicasse dizer-lhe
como os filhos se lhe opunham, Alicia respondeu:
– OK, mas se não gostares do que faço, como é que isso irá encaixar com a
tua ideia?
– Muito facilmente, mas vou conseguir explicar-te melhor assim que tiver
visto. E, só para que saibas, tenho a certeza de que o teu trabalho me vai
agradar.
Alicia não estava nem perto de estar tão convencida, já que dera uma vista
de olhos à galeria online dele e, assim, sabia que os seus gostos pendiam mais
para o abstrato e pós-modernista do que para o estilo figurativo pouco
convencional que cultivava. No entanto, disse:
– O Nat e a Darcie vão a uma exposição equestre com a Rachel na terça,
por isso, se estiveres livre nessa altura…
– Diz-me as horas e estarei lá – disse Cameron. – Ah, e tenho alguns
folhetos de propriedades às quais esperava que desses uma olhadela enquanto
estiver a avaliar as tuas esculturas, se não te importares.
– Teria todo o gosto – disse Alicia e, depois de lhe confirmar a data e a
hora, desligou e ficou a pensar sobre a combinação e em como iria dizer
aquilo a Nat e Darcie.
Por fim, saiu para o jardim onde os filhos estavam a jogar badminton com
as raquetes e os volantes gastos que tinham desencantado enquanto limpavam a
sala de jogos/estúdio. Uma vez que Nat e Simon já tinham trazido algum do
seu equipamento da loja, o espaço começara a assemelhar-se a um estúdio
temporário, mas, antes de tentar começar a trabalhar de novo, queria arrumar o
pequeno cubículo que fora o escritório da mãe de forma a transformá-lo num
espaço de armazenagem.
Enquanto observava os filhos a jogar, Alicia esforçava-se por não se focar
demasiado em Nat, pois sabia que ele pressentia e acabava por se retrair de
imediato, sobretudo nos últimos tempos quando sentia os olhos dela sobre ele.
Felizmente, não era assim com Darcie, porque pareciam tão próximos como
antes, se não mais.
– Não te tinha visto aí – disse Darcie. – Apetece-te jogar? Podes ficar do
meu lado e ajudas-me a vencê-lo, porque ele está sempre a ganhar-me.
– Foste tu que disseste para parar de te deixar ganhar – lembrou-lhe Nat,
mandando o volante disparado por cima da rede.
– Isso foi rápido de mais – reclamou Darcie ao falhar. – Anda lá, mãe,
salva-me da humilhação total. Há outra raquete na mesa.
Alicia foi buscá-la e colocou-se ao lado de Darcie no campo improvisado,
e vinte e poucos minutos depois, após muitos grunhidos, correrias e protestos
e vivas alternados, Nat revirava os olhos diante do desempenho patético da
equipa adversária feminina.
Rindo, enquanto o filho ia tomar um duche, Alicia deixou-se cair numa
espreguiçadeira, tentando abanar-se com a raquete, enquanto Darcie se deitava
de pernas afastadas na relva a recuperar o fôlego. Algumas nuvens começavam
a reunir-se, lançando uma sombra arredondada sobre a casa, mas ainda estava
muito calor e a sensação da relva fria picando-lhe suavemente entre os dedos
dos pés era tão refrescante como o pensamento da bebida gelada que Alicia
iria buscar depois de arranjar energia para tal.
– Mãe? – disse Darcie, virando a cabeça e olhando a mãe de olhos
semicerrados.
– Hmm? – respondeu Alicia, enxotando uma mosca preguiçosamente.
– Continuo a tentar perceber porque é que a Annabelle está a fazer isto.
Quer dizer, ela sempre adorou o Nat, então porque é que anda a dizer que ele a
magoou, quando toda a gente sabe que o Nat seria incapaz de fazer mal a
alguém?
Adorando a lealdade inabalável da filha, e desejando que houvesse uma
maneira de afastar a confusão do seu coração com algumas palavras simples,
Alicia suspirou e disse:
– Não sei, querida. – Alicia não queria explicar a Darcie todas as
possíveis complicações dos motivos de Annabelle, ou pôr-se a adivinhar o
que se estaria a passar na cabeça da rapariga, uma vez que só podia tentar
imaginar aquilo por que Annabelle passara depois da rutura entre Craig e
Sabrina. – Gostaria de saber.
– Mas ele fez sexo com ela, não foi? – disse Darcie. – Senão isto não
estaria a acontecer, não é?
– Receio que sim – respondeu Alicia, mantendo os olhos fechados para
que Darcie não visse a raiva e a frustração que sentia, para além de toda a
preocupação.
– A Una diz que a Annabelle tem uma certa reputação de andar com
rapazes – prosseguiu Darcie –, apesar de só ter quinze anos.
Alicia suspirou de novo.
– Sim, também ouvi isso – disse – e, se for verdade, como parece, é uma
pena que o Nat não se tenha controlado um pouco melhor, e que a Annabelle
não se valorize um bocadinho mais, para não andar para aí a dormir com
qualquer um.
– Mas o Nat não é qualquer um.
– Não, mas não é isso que interessa. Foi errado da parte dele ter sexo com
uma rapariga com menos de dezasseis anos e que nem é namorada dele.
– Porque é importante termos uma relação especial antes de fazermos algo
assim…?
– Exatamente. E mais de dezasseis anos. Na verdade, não tenho a certeza
de que o Nat se tenha apercebido de que a Annabelle ainda só tem quinze
anos, mas não interessa, o facto é que tem e agora ele está em sarilhos por
causa disso.
Ao ouvir o irmão na cozinha, Darcie não insistiu mais no assunto e, quando
Nat saiu para o jardim com três copos de sumo de groselhas negras, Alicia
evitou os olhos do filho enquanto ele lhe passava um, para que o filho não
pudesse ver como estava dececionada e zangada com ele por se ter metido
naquela trapalhada.
– Ah, sim – disse Darcie, dando a volta para deitar a cabeça no peito de
Nat quando ele se deitou na relva ao lado dela –, quem era ao telefone, agora
mesmo? Ninguém para mim, suponho?
Alicia engoliu um gole da bebida. Não queria mentir aos filhos, mas tinha
medo que qualquer menção a Cameron os começasse a fazer sentir protetores
em relação à memória do pai, e acabasse por causar um atrito de que não
precisavam mesmo nada. No entanto, não queria começar a esconder-lhes
coisas, pelo que acabou por dizer:
– Na verdade, era o Cameron Mitchell. Quer ir dar uma vista de olhos ao
meu trabalho. – Tentou não parecer defensiva, ao continuar: – Tenho a certeza
de que vai detestar, mas, se isso não acontecer, quem sabe se não poderia estar
disposto a ajudar a vendê-lo – disse Alicia, abstendo-se de acrescentar o
quanto o dinheiro lhes faria jeito, porque os filhos não precisavam realmente
de saber o pouco que lhes restava agora.
O silêncio que obteve por resposta prolongou-se o suficiente para dar a
Alicia vontade de gritar, implorando por compreensão, mas, então, para sua
surpresa, Nat disse:
– Isso é ótimo. Então, quando é que ele vem?
Admirada e confundida, Alicia levou algum tempo a responder.
– Na próxima terça. Pensei que, enquanto vocês estivessem na mostra com
a Rachel, poderia preparar-me para o pior e levá-lo à loja.
– Mas as tuas peças não continuam todas embaladas? – perguntou Darcie.
– Sim, mas…
– Já sei – interrompeu Darcie –, podíamos ajudar-te a abrir os caixotes e a
montar uma pequena exposição. Temos um monte de lençóis brancos lá em
cima que podemos colocar em cima de mesas e caixas, e o Nat pode fazer uns
textos resumidos sobre cada peça no computador.
– Podia elaborar uma brochura – disse Nat, aproveitando a deixa. – Sabes
onde está a câmara digital para tirarmos umas fotos? Seja como for, vamos
precisar de algumas para o teu site, portanto esta podia ser a oportunidade
perfeita.
Espantada, e ainda sem conseguir acreditar que aquilo estava a acontecer,
Alicia disse:
– Mas só tenho seis peças…
– São as suficientes – disse Nat. – Se as puseres a quatro mil libras cada e
venderes apenas uma…
– Quê? – riu-se Alicia. – Não as consigo vender por tanto. Nem nada que
se pareça.
– Então está na hora de o fazeres. A arte vale o que alguém estiver
disposto a pagar por ela e, se começares por um valor baixo, é um valor baixo
que te vão oferecer.
Era Craig a falar, literalmente.
– Mas ele não vai comprar nada – disse Alicia, consciente das emoções
que a percorriam. Aquilo começava a fazê-la sentir-se como nas outras poucas
ocasiões em que exibira a sua obra, quando Craig e filhos se tinham
empenhado em organizar tudo.
– Não importa – disse Nat. – É importante mostrar que te valorizas a ti
mesma. Darce, vai procurar a câmara enquanto eu vou ver se encontro algo
que possamos usar como pé de cabra.
– Ele só vem na terça – lembrou Alicia.
– Isso dá-nos três dias para criar uma exposição privada que o surpreenda
– decidiu Nat. – Vamos lá, vai ser como nos velhos tempos – e, depois de dar
à mãe um beijo na testa, dirigiu-se para o alpendre para vasculhar entre as
ferramentas, enquanto Darcie foi em busca da câmara e Alicia lutava contra as
lágrimas de culpa, por se ter zangado com eles, e de alívio, por não o ter
demonstrado.

– Estamos a ficar bons nisto – declarou Craig, afastando-se para admirar a


sua obra depois de terem terminado de montar a terceira exposição de Alicia.
– Estou a começar a pensar que podíamos entrar neste negócio.
– Isso seria tão bom – concordou Darcie, batendo palmas –, mas a mãe é a
única artista que queremos promover.
– É claro – disse Craig seriamente. – Somos muito exclusivos e só
trabalhamos com os melhores.
– Continuem a falar assim – encorajou Alicia. – Não me importo que
sejam da minha família, estou pronta a acreditar nisso.
– Tive uma grande ideia – disse Nat. – E se escrevesse as críticas da tua
exposição? Poderia vendê-las a um jornal com outro nome e fazer algum
dinheiro.
Rindo excitadamente, Darcie disse:
– E eu posso ser a tua assessora, mantendo os paparazzi à distância.
– Excelente ideia – comentou Craig num tom de aprovação –, e eu serei o
teu carregador de guarda-chuvas, porque está a chover a cântaros lá fora e
temos de estar no restaurante daqui a dez minutos para o jantar que antecede a
exposição. Está toda a gente pronta?
– Sim – responderam Nat e Darcie em coro.
– Então vão chamar um táxi, enquanto eu me aproveito da vossa cliente
número um.
– Eh, que nojo – disse Darcie, torcendo o nariz.
– Vocês só nos fazem passar vergonha – informou-os Nat, enquanto Craig
agarrava Alicia num abraço romântico.
– E vocês estão a mais – murmurou Craig contra os lábios de Alicia –, por
isso vão lá arranjar um táxi.
Depois de os filhos se terem ido embora, Craig beijou Alicia
profundamente, pressionando todo o seu corpo contra o dela e parecendo
envolvê-la com tanto afeto que a fez sentir-se como a mulher mais amada do
mundo.
– Como fazes isso? – sussurrou Alicia, enquanto Craig se afastava para
trás para a contemplar, fixando os seus olhos escuros carinhosamente nos dela.
– O quê?
– Fazer-me sentir tão especial depois de tudo o que aconteceu – disse
Alicia, engolindo em seco. – Amanhã vou estar outra vez a morrer de medo de
que estejas a pensar voltar para ela, mas, neste momento, consigo acreditar
que talvez ainda me ames.
Craig respondeu num tom grave e sincero.
– Eu sempre te amei, Alicia, desde o dia em que nos conhecemos. Isso
nunca mudou e nunca irá mudar. Um dia vais saber que te digo a verdade e
nunca mais duvidarás disso.

O coração de Alicia palpitou ao recordar aquela noite, e desejou que fosse


possível reproduzir as memórias como se fossem um filme, para que Nat se
pudesse também lembrar e ouvir as palavras que o pai dissera à mãe depois
de ele e Darcie terem saído da galeria naquela noite.
O que, contudo, não contaria ao filho era como a seguir perguntara a Craig
se ele desligaria o telemóvel o resto da noite, para o caso de Sabrina ligar e
estragar tudo. Craig concordara, e tinha-lhe mesmo dado o telefone para que
ela pudesse ter a certeza de que ele não se esgueirava para o exterior para
verificar se recebera mensagens de voz ou texto. Alicia largara o aparelho no
fundo da mala e tinham-se ambos esquecido dele até Craig sair para o trabalho
na manhã seguinte e lhe telefonar da sala de audiências a perguntar se Alicia
podia levá-lo ao Tribunal da Coroa de Knightsbridge, onde ia estar todo o dia.
Inevitavelmente, Alicia ligara o telemóvel e sentira-se imediatamente doente
de raiva e de medo ao encontrar duas mensagens de Sabrina. A primeira
informava Craig de que estaria em Londres na quarta-feira seguinte, pedindo-
lhe que confirmasse se a podia ver. A segunda dava detalhes do hotel que
reservara para ambos.

– Ela faz sempre isto – gritou Craig, quando Alicia o confrontou no


exterior do tribunal. Estava vestido com a sua toga e peruca, e tinha um ar
simultaneamente impressionante e frustrado. – Apaga as mensagens e já está.
Ela é louca. Pensa que basta aparecer para eu fazer o mesmo, mas isso não vai
acontecer. Juro-te.

Alicia acreditara nele, até que Craig passou a noite fora de casa na quarta-
feira seguinte. Apesar de telefonar para o hotel junto ao Tribunal da Coroa de
Winchester e de lhe passarem a chamada para o quarto, onde o marido
atendera de imediato, não tinha maneira nenhuma de saber se Sabrina estava
ou não com ele.

– Esta é uma casa estúpida, cheia de pessoas estúpidas, num lugar


estúpido – disse Annabelle furiosamente.
– Por favor, podes falar baixo? – silvou Sabrina entre dentes.
– Porquê? Não está aqui ninguém.
– Os empregados falam inglês – lembrou-lhe Sabrina – e, de qualquer
maneira, não aprecio que me berrem. Agora, por favor, vais fazer o que te
digo?
– Não! Não quero ir almoçar ao Eden Roc, ponto final. Odeio isto aqui.
Quero ir para casa.
– Não sejas ridícula. Não podes odiar este sítio. Olha bem para isto.
O luxo do quarto de Annabelle era realmente de tirar o fôlego, com o
pálido mármore cinzento, abundantes cortinas de seda malva e uma cama ao
estilo Louis XV. Mas era apenas uma pequena amostra daquela mansão
palaciana, oculta no meio do seu próprio parque ajardinado no lado oeste de
Cap d’Antibes.
– Não me interessa o aspeto que isto tem, não quero almoçar com todas
aquelas pessoas convencidas.
– Então, vem para o iate mais tarde.
– Não! São as mesmas pessoas. E, seja como for, eu enjoo.
– Mas nem sequer saímos do porto ontem – fez notar Sabrina
impacientemente –, como é que te podes ter sentido mal?
– Não sei. Simplesmente senti, e não vou entrar nesse barco outra vez.
Sabrina estava perto de bater com o pé de frustração.
– Sinceramente, a maior parte das raparigas da tua idade daria tudo para
ter umas férias como estas – disse irritada, permitindo que o seu temperamento
se sobrepusesse a qualquer medo e culpa que carregava dentro de si.
Não conseguia lidar com Annabelle e com tudo que tinha corrido mal entre
ambas enquanto estivessem ali, em casa de outra pessoa. Precisavam de ser
visitas agradáveis, apreciadoras da honra que lhes fora concedida e fazer tudo
o que podiam para manter os seus esqueletos escondidos no armário. Quando
voltassem para Holly Wood, haveria tempo de sobra para os arejar.
– Porque tens de ser tão difícil? – perguntou, num tom queixoso. – Estava
realmente desejosa destas férias, e agora estás a estragá-las…
– Eu não pedi para vir – gritou Annabelle. – Eles são teus amigos, não
meus, e eu detesto-os. São mesmo arrogantes…
– E tu não és, com essa atitude?
Os olhos de Annabelle cintilaram e, pressentindo uma nova explosão,
Sabrina disse rapidamente:
– Olha, querida, eu sei que estás preocupada com o processo, todos nós
estamos, mas sempre que eu falo de…
– Não quero falar sobre isso – disse Annabelle a ferver de raiva.
– Vês, não falas sobre o assunto. Então, porque não tentamos esquecê-lo
por um momento e nos divertimos?
– Não posso simplesmente esquecê-lo, sua idiota. Fui violada, OK? E, se
não queres que os teus amigos estúpidos saibam, não me deverias ter obrigado
a vir para cá.
Sabrina olhou para ela num desespero avassalador. Sabia que estava a
lidar mal com aquilo, e assim tinha sido desde que tinham chegado, mas,
tirando levar Annabelle para casa, estava completamente perdida em relação
ao que fazer com ela. Lutando para manter a voz sem qualquer tipo de emoção,
disse:
– Eu não te eduquei para seres assim malcriada e hostil com as pessoas.
Sempre te ensinei o que se deve fazer, a forma correta de ser…
– Oh, sim, tu fazes sempre a coisa mais correta e adequada, não é? Nunca
nada do que fazes é errado. Nem espero que penses que ter um caso seja algo
de errado. E não foi um caso qualquer, porque tiveste realmente de fazer as
coisas em cheio e atirares-te ao marido da tua cunhada. Isso faz de ti um
grande exemplo, não é?
O rosto de Sabrina estava branco, todo o seu corpo começava a tremer.
– O que eu fiz – começou –, a relação entre o Craig e eu… – De súbito, foi
incapaz de continuar. O esforço para manter tudo reprimido, a sua tristeza, a
perda, a confusão e o terrível sentimento de fracasso em relação a Annabelle
vieram tão rapidamente à superfície que Sabrina começou a soluçar. – Não
tens ideia daquilo por que passei… – disse com a voz a sufocar, muito
abalada. – Pareces esquecer que eu também tenho sentimentos, e da maneira
que me tratas… – Agarrou num lenço de papel de uma caixa e assoou o nariz.
– Estou a tentar ajudar-te, não percebes isso? Quero que voltemos a ser
próximas, mas tu continuas a atacar-me, e a falar da minha relação com o
Craig, a atirar-me isso à cara dessa forma… Eu amava-o, Annabelle. Não era
apenas um caso sórdido, como estás a tentar fazer parecer. Nós éramos tudo
um para o outro, e agora nunca mais estaremos juntos. Por isso, como é que
achas que me sinto?
O rosto de Annabelle estava tenso e confuso.
– Porque não vais ter com os teus amigos? – disse amargamente. – Eu vou
ficar aqui e, se começares a discutir comigo outra vez, juro que vou a correr lá
para fora e me atiro daquela varanda.
Sentado mais à frente, na mesma varanda, no exterior do quarto que
partilhava com Sabrina, Robert não conseguia ouvir tudo o que estava a ser
dito, mas o que chegava até ele era suficiente para perceber a essência da
disputa. Sabrina e Annabelle andavam a discutir uma com a outra de maneira
terrível praticamente desde a chegada ali, por isso Robert estava mais ou
menos à espera do confronto final – no entanto, nunca imaginara como aquele
poderia vir a ser revelador. Embora soubesse que Sabrina ainda sofria por
causa de Craig, era óbvio que se tinha andado a enganar quanto à extensão da
sua dor, ou simplesmente não quisera perceber. No entanto, desta vez, no lugar
das velhas feridas que se abriam com a mesma dor amarga e repetida da
rejeição e do medo de perder Sabrina, como normalmente acontecia a
qualquer menção do cunhado, Robert estava a sentir-se muito mais preocupado
em relação a Annabelle e ao modo como a tensão contínua provocada por
aquela situação começava a afetá-la.
Ao ouvir Sabrina entrar no quarto, esperou algum tempo e, depois, pousou
o livro e voltou para dentro. Não ficou surpreendido ao encontrá-la na casa de
banho a retocar a maquilhagem. A esposa precisava agora de se apressar para
se juntar aos outros convidados para o almoço.
– Estás pronto? – perguntou o seu reflexo no momento em que Robert
parou junto à porta.
– Vai tu – disse ele. – Vou ficar aqui com a Annabelle.
Embora os seus olhos mostrassem desconforto por um instante, ao
aperceber-se de que o marido devia ter ouvido a discussão, Sabrina disfarçou-
o rapidamente, dizendo:
– Ela é uma adolescente, toda a gente vai compreender se ela não for. Mas,
se tu não fores, vai parecer apenas falta de educação.
– Podes dizer-lhes que tenho de fazer um telefonema por causa do
trabalho, ou que tenho uma dor de cabeça.
Sabrina voltou-se para enfrentá-lo, parecendo nervosa e bastante insegura.
– Será a mesma dor de cabeça que andas a ter há várias noites seguidas? –
perguntou numa voz rouca.
Sabendo que a mulher não queria realmente discutir, naquele momento, a
sua relutância em fazer amor com ela, Robert disse simplesmente:
– Vai lá juntar-te aos outros.
– Robert, eu… – Sabrina estava tão perto de ir abaixo de novo que as suas
palavras foram engolidas por uma torrente de emoção, e pressionou
rapidamente os dedos sobre os lábios para tentar abafar um soluço.
Aproximando-se dela, Robert abraçou-a e beijou-lhe o cimo da cabeça,
tentando dar-lhe alguma tranquilidade, apesar de saber que ele mesmo
precisava de decidir o que se passava na sua cabeça, antes de poder conversar
com ela sobre o que estava – e não estava – a começar a acontecer entre eles.
– Se quiseres, eu fico aqui – sussurrou Sabrina, olhando para ele com os
olhos embaciados.
Robert abanou a cabeça.
– Não, vai e diverte-te – disse e, beijando-a brevemente na face, deixou-a
regressar à tarefa de repor a sua máscara de total felicidade e realização,
enquanto foi em busca de Annabelle.
Eram duas e meia de terça-feira. O marido de Rachel, David, viera buscar
Nat e Darcie há meia hora, apenas uns minutos antes de Cameron ter aparecido
com Jasper. Alicia estava agora a brincar com o cão na frente da loja, incapaz
de assistir ao escrutínio do seu trabalho por parte de Cameron na parte de trás.
Entre ambos, Nat e Darcie tinham feito um excelente trabalho ao
transformar o estúdio numa mini-galeria de aparência moderna, cobrindo tudo
com lençóis branquíssimos e usando um biombo preto de filigrana de três
painéis, cedido por Mimi, para esconder a pia e a caldeira. Mimi fornecera
também algumas plantas para ajudar na decoração e, para espanto de Alicia,
Nat e Darcie conseguiram encontrar algumas fotos antigas, que mostravam
Alicia durante o processo de criação das suas esculturas, para distribuir pelo
espaço (apesar de, com capacete de soldadura, casaco resistente ao fogo e
luvas à prova de calor, o artista fotografado poder ser qualquer um). Havia,
contudo, fotos suas a moldar plasticina para fazer as partes em bronze das
peças, onde a semelhança era muito mais óbvia, embora, verdade seja dita,
não fossem particularmente lisonjeiras.
A todas as esculturas fora atribuído algum tipo de pedestal, desde um
caixote a um vaso de flores virado ao contrário, passando por uma pilha de
tijolos que se podia desmoronar a qualquer momento, todos cuidadosamente
disfarçados pelo revestimento minimalista de lençóis brancos de algodão. A
ordem de visualização que Nat fornecera no folheto que imprimira naquela
manhã era: 1) “Sapatos de Aligátor”; 2) “Darcie a Sonhar”; 3) “Um Pássaro na
Mão”; 4) “Os Blues da Bailarina”; 5) “Passos de Caracol”; 6) “Noite de
Núpcias”.
Mantendo as costas viradas e as mãos ocupadas com o apetite insaciável
de Jasper por festas na barriga, Alicia esperou em silêncio até não conseguir
aguentar mais.
– Muito bem, já sou uma mulherzinha – disse, dirigindo-se para o arco
entre os dois espaços –, podes dizer-me sem papas na língua. São mesmo de
amador, não são? Ou talvez até isso seja lisonjeiro para mim.
A atenção de Cameron estava focada na bailarina. Olhava-a de todos os
ângulos, com um sulco profundo entre as sobrancelhas e um punho lassamente
fechado à frente da boca.
– Eu sei que não é realmente o teu género – continuou Alicia
precipitadamente –, mas algumas pessoas gostaram. Na verdade, já vendi
algumas… Bem, quatro, mas só comecei…
– Esta saia é toda feita de aço – disse Cameron, como se não acreditasse.
– É magnífica… Eu pensei que era tecido quando a vi pela primeira vez. Tem
todas as dobras, as sombras, o movimento… E a postura dela é quase fluida.
Esta posição chama-se arabesque?
Alicia acenou com a cabeça.
Cameron continuou a absorver cada detalhe, desde as madeixas
cuidadosamente moldadas dos cabelos da bailarina, à graça esbelta do seu
pescoço e ao corpete em forma de folha, até às finas pontas dos pés. – Isto está
tão bem executado – disse por fim –, que, independentemente de querermos ou
não comprar a peça, nunca nos cansamos de olhar para ela.
– O que significa que não gostas, mas…
Cameron ergueu a mão.
– Por favor, podes parar de tentar pôr palavras na minha boca? – disse.
Alicia olhou para Jasper e compôs uma expressão travessa.
– Escolheste um material invulgar – prosseguiu Cameron, avançando para
junto da peça denominada “Passos de Caracol”. – Agrada-me o humor, tanto
quanto a ternura. Isto funciona – disse num tom sincero, enquanto passava os
dedos pela casca de aço do caracol. – Uma sequência de Fibonacci.
Impressionada por Cameron saber aquilo, até se lembrar de quem ele era,
Alicia deu consigo a atrever-se a esperar que a sua pequena exposição não
fosse um falhanço total.
Apontando para o aligátor, Cameron disse:
– Calçá-lo com sapatos de pele de aligátor autêntica é bastante ousado. As
escamas dele são muito verosímeis, tal como a expressão. – Parando um
instante a ponderar a sua avaliação, prosseguiu: – Dá-me a impressão de que
te sentes mais à vontade com o aço do que com o bronze, o que não quer dizer
que a cabeça da Darcie não esteja bem conseguida, porque, para dizer a
verdade, é capaz de ser uma das peças mais fáceis de vender.
Contendo a respiração, Alicia continuou a olhá-lo e foi tal a felicidade a
crescer dentro dela, que sentiu dificuldades em controlá-la. Apercebeu-se de
que não era apenas o facto de Cameron estar, aparentemente, a gostar do
trabalho dela, mas também a sensação maravilhosa de, durante alguns minutos,
ser uma artista, uma mulher, uma pessoa para além da viúva chorosa e da mãe
angustiada.
– Sabes o que penso? – disse Cameron, recuando para ter uma visão geral.
– Acho que, se reproduzisses as peças de aço numa escala dez vezes maior,
convertendo-as numa instalação artística, o teu trabalho poderia suscitar
imenso interesse à classe endinheirada. As tuas peças seriam perfeitas para um
jardim ou um átrio de entrada, o que não significa que não seja possível
vendê-las tal como estão, pois acho que será, mas está a dar-me a impressão
de que deveriam ser maiores. – Cameron olhou para Alicia e fez uma careta,
quando viu a sua expressão de choque. – Não era o que querias ouvir?
– Não, sim, quer dizer, sempre quis fazer algo enorme – admitiu –, mas
nunca tive coragem, nem espaço.
Voltando-se para contemplar “Noite de Núpcias” outra vez, Cameron
disse:
– A forma como eles se abraçam faz-nos andar à volta do casal, uma e
outra vez, como se fosse uma valsa, por isso esta peça teria de ser exibida num
expositor redondo, que permita uma visão de trezentos e sessenta graus, ou
perde-se a fluidez. Com dez vezes este tamanho, pode até ser capaz de nos
fazer dançar.
Alicia sorria enquanto o seu coração palpitava tanto de prazer que quem se
sentia perto de desatar a dançar era ela. Aquela escultura era a preferida de
Craig, e Alicia tinha-se inspirado no modo como ele a costumava abraçar.
– Acho que ainda não é desta que vou arrumar o maçarico – murmurou
para Jasper.
Claramente satisfeito por falarem com ele, Jasper encostou-se a Alicia e
deu-lhe uma pancadinha com a cabeça.
– Para de namoriscar – disse Cameron.
– Não consigo evitar, ele é irresistível – desculpou-se Alicia.
Rindo, Cameron regressou ao seu exame das esculturas, voltando ao início
e demorando mais uns torturantes dez minutos a chegar ao fim.
– OK – disse finalmente, coçando as orelhas a Jasper quando o cão se
aproximou dele. – Confesso que me surpreendeste, Alicia. Não estava à
espera de ficar tão bem impressionado, o que talvez não seja algo muito
lisonjeiro de dizer, mas receio que seja mais frequente ficar desapontado com
o que vejo do que o contrário. Não te vou agora dizer que as tuas peças são
perfeitas, mas acho que isso se deve ao facto de não lhes estares a dar total
expressão. Podias fazer isso aumentando o tamanho. Experimenta. Um aligátor
de três metros e meio com sapatos da pele do bicho, a cem mil libras ou mais,
pode ser exatamente aquilo que algum casal de russos milionários anda à
procura. Uma bailarina com tal subtileza, com tal beleza, vai ser uma compra
obrigatória para alguém com olho para arte e um orçamento ilimitado.
Contudo, como disse, as tuas esculturas também funcionam bem tal como
estão, e provavelmente conseguirás vendê-las por mais de três mil libras cada,
mas adoraria ver todo o poder e todo o dramatismo que poderiam ganhar se
lhes ampliasses a escala.
Demasiado emocionada para comentar, Alicia ergueu as mãos numa
mistura de felicidade e lamento.
– É neste espaço que tenho de trabalhar – disse –, ou no espaço que tenho
em casa, que não é muito maior.
– Não faz mal. Deve haver por aí muitos celeiros ou ateliês que deves
conseguir alugar a um preço razoável e, mal comeces a vender estas peças
mais pequenas, vais ter fundos para o fazer.
Sentindo-se como uma criança que recebeu a visita de três Pais Natais ao
mesmo tempo, para depois descobrir que se esqueceram de lhe deixar
prendas, Alicia disse:
– É aí que reside a questão, em vender o que quer que seja, uma vez que
não posso abrir a loja… e chamar a atenção para o meu trabalho na Internet é
como pedir a um grão de areia que se faça notar numa praia de quilómetros.
– Ah, mas se o grão de areia for exposto na montra certa, para a clientela
adequada – contrapôs Cameron –, vai ter uma hipótese muito maior de
alcançar os seus quinze minutos de fama. E é aqui que entra a minha ideia em
relação à tua loja. Agora que vi o teu trabalho, não tenho nenhum problema em
fazer-te a proposta: porque não me deixas expor estas obras na minha galeria,
em Londres, até poderes abrir o teu espaço? Está aberta seis dias por semana
e o meu pessoal tem contactos com colecionadores e negociantes de arte de
todo o mundo, portanto, nem que não sirva para mais nada, pelo menos é
garantido que te vão ficar a conhecer. Entretanto, tu e eu vamo-nos lançar numa
busca dupla pelo Somerset, tu pelos talentos locais, com a minha ajuda, e eu
pela casa certa, ajudado por ti. E, com alguma sorte, no fim do dia já teremos
aquilo que procurávamos. Ou no fim do verão. Ou do ano, não importa.
Alicia olhou para ele com a certeza de que devia ter macaquinhos no
sótão, porque aquilo era simplesmente demasiado bom para ser verdade. Tanto
quanto podia ver, tinha tudo a ganhar e nada a perder, por isso, porque não
aceitaria a sua proposta?
– Não entendo porque estás a fazer isto – disse, por fim. – Mal me
conheces e não tenho propriamente o que se chama um talento excecional…
– Para dizer a verdade, até acho que tens – interrompeu-a Cameron. – E,
quanto à parte de te conhecer, vamos só dizer que, se o Jasper te aprovou,
como parece ter feito, então também estás aprovada por mim.
Rindo, e abstendo-se de fazer notar que era a primeira vez que o cão a via,
Alicia disse:
– Então, acho que devia ficar a conhecer os teus requisitos em relação à
casa que procuras, para despachar essa parte. Mas, primeiro, preciso de saber
o teu limite, para não andarmos a perder tempo.
– Recuso-me a pagar mais que um milhão – disse ele.
Esforçando-se por não perder o equilíbrio, Alicia disse:
– Estamos à procura de uma casa senhorial, majestosa?
Cameron deu uma risadinha.
– Seria preciso bastante mais que um milhão para isso – respondeu,
procurando no saco os seus prospetos de casas à venda.
– O que eu gostava era de encontrar uma casa com personalidade, mas não
demasiado velha; elegante de maneira discreta, com uma grande sala de estar
com lareira – é um requisito obrigatório, para as minhas filhas – e uma sala de
jantar com cozinha aberta, porque não somos demasiado formais. E pelo
menos quatro quartos, para cada um poder ter o seu quando elas vierem cá
ver-me. Ah, sim, e no mínimo três casas de banho.
– Campo de ténis? Piscina?
– Se conseguirmos incluir isso no pacote… – respondeu Cameron num tom
sério. – E deve ter boas vistas.
– Estou a ver – disse Alicia num tom de dúvida. – Começo a pensar que és
capaz de ter a tarefa mais fácil, mas, definitivamente, aceito o desafio – e,
apercebendo-se de que estava prestes a chorar de puro alívio, ao ver que, por
uma vez, algo parecia estar a correr bem, Alicia inclinou-se rapidamente para
Jasper para esconder o rosto no seu pelo.

Para surpresa e satisfação de Robert, Annabelle procurara-o naquela


manhã, perguntando se ainda podia aceitar a oferta que este lhe fizera no dia
anterior, e que ela então recusara, de a levar a almoçar ao centro histórico de
Antibes. Robert não fazia ideia do que acontecera para a fazer mudar de
ideias, nem se importava muito. Estava simplesmente feliz por ela o ter feito e,
depois de informar Sabrina de que precisaria de se desculpar por ele de novo
ao resto dos convidados, foi certificar-se de que lhe traziam o carro para a
frente da casa ao meio-dia.
Agora, enquanto seguia com Annabelle ao longo do Cap, com o
deslumbrante Mediterrâneo azul cintilando como diamantes lapidados a seu
lado, avançavam com uma lentidão entediante graças a todos os turistas em
viagem. No entanto, uma vez que também ele se contava entre os forasteiros de
visita ali, não podia realmente queixar-se, ao contrário de Annabelle, que
reclamou incessantemente durante todo o caminho à volta do porto, e
continuava a resmungar quando, finalmente, se sentaram na esplanada de um
café pintado de vermelho no coração do centro histórico.
Depois de se decidir por um dos seus pratos favoritos, mexilhões
marinière com batatas fritas, Annabelle sorriu encantadoramente para o
empregado, jovem e bastante atraente, e pediu uma cerveja.
– É melhor trazer antes dois panachés – disse Robert ao empregado, que,
para seu alívio, pareceu não se ter apercebido do interesse de Annabelle.
– Mas não me apetece um panaché – protestou Annabelle.
Robert fez um aceno de cabeça para o empregado, confirmando o pedido,
e disse:
– Quando a comida vier, peço um jarro de vinho rosé e podes beber um
bocado.
Parecendo satisfeita com o compromisso, Annabelle olhou em torno da
praça, observou os edifícios seculares com as suas portadas de cores
diferentes e lojas no rés do chão, entre as quais boutiques de alta-costura,
joalharias e típicos estabelecimentos provençais. Depois de terminar a
inspeção, lançou-se empenhadamente noutra arenga sobre fazer vela, a França,
pessoas convencidas, a sua vida em geral e a mãe em particular.
Robert falou muito pouco, limitando-se a ouvir ou a acenar com a cabeça
ou, então, a colocar uma questão na altura adequada. A comida chegou,
acompanhada pelo vinho. Annabelle comeu tudo e tentou convencer o padrasto
a pedir mais um jarro de vinho, quando o deles ficou vazio. Robert recusou e
sugeriu que dessem um passeio pelas muralhas e, se calhar, fizessem uma
visita ao museu Picasso para dar uma vista de olhos. Apesar de Annabelle
torcer o nariz como se não se conseguisse lembrar de nada mais aborrecido,
acabou por concordar, num tom que sugeria tratar-se apenas de um favor que
lhe fazia e não de algo que alguma vez lhe ocorreria se tivesse algo mais
excitante para fazer.
Quando voltaram para casa, ao fim da tarde, Annabelle tinha há muito
esgotado as queixas, e agora falava – e ria, até – de umas férias que tinham
feito há cinco anos em Espanha, quando ela tinha dez anos. Embora Robert
tivesse ficado impressionado com a sua memória, tinha a certeza de que ela se
enganara em alguns factos, e caíram ambos numa discussão bem-humorada
sobre quem estava certo e quem estava a inventar coisas porque lhe dava jeito.
Uma vez que os outros convidados ainda estavam a bordo do iate, Robert e
Annabelle foram os únicos presentes à hora do chá, que tomaram no chalé de
verão, junto à praia. Annabelle continuava a tagarelar sobre tudo o que lhe
vinha à cabeça, mas, uma vez que era tão repetitiva e – era preciso dizê-lo –
aborrecida, Robert não conseguia deixar de se sentir divertido pelo seu
empenho em manter aquele fluxo infindável. Adivinhou que aquela era
provavelmente a primeira vez, em muito, muito tempo, que Annabelle tinha a
atenção de um adulto a cem por cento e, se bem que tivesse gostado de a tentar
desviar para assuntos mais sérios, nem sequer experimentou. Estava a fazer a
Annabelle um bem imenso descontrair-se como fizera naquele dia – e Robert
tinha esperanças de que estivesse, também, a contribuir para reconstruir a sua
confiança nele de um modo que poderia, eventualmente, permitir-lhe abordar o
assunto de Nathan e do julgamento que se avizinhava.
Então, de repente, para sua surpresa, ela disse:
– Eu sei que te estás a aproximar de mim porque queres que eu desista da
queixa contra o Nat, mas não posso fazer isso. Não seria correto. Quando
alguém comete um crime deve pagar por isso, e eu vou assegurar-me de que o
Nat paga, senão ele ainda vai ficar a pensar que pode fazer o mesmo a outra
pessoa.

– Desculpa, Alicia – disse Rachel num tom enérgico –, não vou discutir
mais isto. Vais deixar-me pagar o transporte dessas esculturas para Londres,
ponto final.
– Mas tu… – começou Alicia.
– Mãe! – protestou Darcie. – Não podes perder esta oportunidade só
porque não temos o dinheiro disponível. E se os teus trabalhos se vão vender
tão facilmente como o Cameron acha, podes sempre devolver o dinheiro à
Rachel.
– Sim, mas o que eu…
– És capaz de parar com as objeções, por favor? – interrompeu Rachel. –
Já tomei a minha decisão, portanto, Darcie, tudo o que falta fazer agora é
encontrarmos uma empresa que transporte as peças da tua mãe. Tem de ser
uma com todas as garantias, já que agora sabemos o quanto elas valem.
– O Nat pode embalá-las – decidiu Darcie. – Ele sabe muito bem como o
fazer, porque já foi ele que tratou disso quando nos mudámos para cá. Que
queres dizer com isso, que têm de ter todas as garantias?
– Que têm de ter um seguro. Olha, para dizer a verdade, estou tentada a
comprar uma das tuas esculturas para mim. Não que antes não quisesse, mas,
como eu costumo dizer, porquê pagar algumas centenas de libras quando podes
pagar uns milhares? Ora aí tens – disse para Alicia –, fizeste a tua primeira
venda. Por isso, já me podes devolver o dinheiro e ainda nem to emprestei,
portanto, para lá de te queixar.
Não conseguindo evitar de rir, Alicia disse:
– Não me estava a opor, tu é que não me deixas falar. Aceito de bom grado
um empréstimo para pagar o transporte das esculturas para Londres, mas nem
pensar que te vou levar dinheiro por…
– Lá está ela de novo – disse Rachel para Darcie. – Vamos lá para fora
continuar a nossa conversa, ou a tua mãe vai acabar por me tirar do sério, a
tentar dar-me uma obra de arte de graça quando eu quero pagar uma pequena
fortuna.
Quando Darcie deu o braço a Rachel e a conduziu ao jardim, Alicia virou-
se para Nat, que não se tinha pronunciado desde que ela lhe falara da reação
de Cameron ao seu trabalho.
– Estás muito calado – arriscou Alicia, esperando que a descontração dos
últimos momentos não tivesse dado a Nat a impressão de que os seus
problemas tinham perdido importância.
– Estou bem – disse Nat.
– E então, achas que são mesmo boas notícias, ou estou-me a entusiasmar
demasiado?
– Parecem boas – respondeu ele.
Ainda sem conseguir perceber o que o filho estava a pensar, mas certa de
que se relacionava com o pai, Alicia disse:
– Se não as quiseres embalar…
– Não há problema, eu faço isso. Quando precisas de ter tudo pronto?
– Ainda não sei – disse Alicia.
Sentando-se à mesa, pousou as suas mãos sobre as dele, mas logo de
seguida recuou involuntariamente, quando Nat se afastou com rapidez.
– Vou para cima – disse ele. – Preciso de fazer um telefonema.
Vendo-o avançar pelo átrio fora, Alicia disse:
– Já falaste com a Summer?
Para sua surpresa, o filho voltou-se.
– Porquê? Ela ligou?
– Não, estava só a pensar se terias chegado a falar com ela a semana
passada. Como estão a correr as coisas em Itália?
Nat baixou os olhos.
– Acabou tudo – murmurou baixinho e, antes que a mãe conseguisse dizer
mais alguma coisa, começou a subir as escadas, galgando dois degraus de
cada vez em direção ao seu quarto.
Alicia ficou a olhar para o átrio. Aquela maré de infortúnio tinha de ter um
fim, implorava Alicia em pensamento. Tinha de ter, porque o filho não
conseguia aguentar mais nada – e, se ele não conseguisse, então ela também
não seria capaz.
Capítulo Vinte e Um
Alicia passara as duas últimas semanas às voltas pelo campo com
Cameron, em busca de inexplorados talentos artísticos e casas até um milhão
de libras. Na maioria das vezes, Darcie e Jasper acompanhavam-nos, e até Nat
se juntara a eles num par de ocasiões. Nat desenvolveu uma relação incrível
com o cão e levava-o em longas caminhadas para brincar incansavelmente a
atirar-lhe uma bola enquanto o resto do grupo inspecionava casas antigas em
ruínas e obras de arte tão feias de fazer cair o queixo. No entanto, a busca de
talentos não fora totalmente infértil, uma vez que haviam descoberto um
maravilhoso e exuberante hippie de sessenta anos com uma grande coleção de
aguarelas, que Alicia tinha a certeza de conseguir vender, e um oleiro rústico e
extremamente dotado que, por razões que não quiseram aprofundar, se
apresentara como Flash Gordon.
Apesar de as peças de Alicia já terem sido transportadas para Londres,
Cameron decidira mantê-las em armazém até que ela tivesse tempo para ir à
capital colaborar na organização da exposição do seu trabalho. Não era que
estivesse assim tão ocupada no Somerset, mas a relutância dos filhos em
visitar Londres, por medo de não quererem voltar para Holly Wood, estava a
refreá-la. Apesar de nunca terem realmente conversado com ela sobre o
quanto desejavam voltar para as suas antigas escolas e amigos, no fim do
verão, Alicia ouvira-os falar entre si, e o coração doía-lhe com a vontade de
fazer os seus desejos tornarem-se realidade. Daria tudo para ser capaz de
mudar o curso dos próximos meses, especialmente para fazer desaparecer o
julgamento iminente de Nat, mas Robert telefonara-lhe de França para a avisar
de que não estava a conseguir fazer progressos com Annabelle, por isso, Nat
deveria estar preparado para aquilo ir até ao fim. “Se achasse que era a
Sabrina que a estava a incitá-la a fazer isto”, dissera o irmão, “dizia-te e
punha-lhe cobro. Mas, tanto quanto pude perceber, a decisão é unicamente da
Annabelle e ela não se deixa demover.”
Desanimada e irritada com a notícia, Alicia procurou empenhar-se a fundo
na sua dupla operação de busca, mas, à medida que o dia do regresso de
Annabelle se aproximava, o humor de todos começou a mudar. Parecia que o
verão estava a chegar a um fim prematuro e nuvens escuras ocultavam o céu,
quando, na realidade, sob aquele manto, este permanecia azul e estival. No dia
antes de Annabelle voltar, o céu descobriu-se, mas, a seguir, o sol não pareceu
voltar a ter energia para brilhar tão intensamente.
A única coisa boa no regresso de Annabelle foi que coincidia com o
estágio oficial de Nat no escritório de Jolyon. Durante as duas semanas
seguintes, Nat iria para Bristol, onde já não estaria sujeito às lealdades
divididas da aldeia ou ao incómodo e humilhação de não poder ir até à rua
principal. Quando voltasse para casa, já saberia os resultados dos últimos
exames da escola, que deviam ser bons, e depois restavam apenas três dias até
Nat e Darcie começarem a escola em Stanbrooks, ele no último ano e ela no
oitavo. Alicia não sabia quem receava mais o momento, mas supunha que
fosse Nat, uma vez que metade da sua turma provavelmente já teria
conhecimento do que se passava.
– Se pelo menos o conseguisse matricular noutro sítio, longe do Somerset
– lamentou-se a Jolyon quando levou o filho de carro a sua casa, onde ficaria
durante o estágio. – O Nat não devia ter de passar por uma coisa assim; pode
afetá-lo para o resto da vida.
– Não há dúvidas de que será uma experiência que o Nat não irá esquecer
– concordou Jolyon –, mas o Oliver mantém um contacto regular com o
Serviço de Acusação da Coroa e ainda temos esperanças de conseguirmos
fazer arquivar a acusação de violação. É claro, ainda teremos a questão das
relações ilícitas devido à idade dela, mas primeiro temos de resolver o
problema maior.
– O Oliver tem de conseguir – disse Alicia com premência. – Este
julgamento não pode acontecer, não pode.
Apesar de Nat não conseguir ouvir o que a mãe e Jolyon diziam enquanto
desfazia as malas no quarto, sabia qual deveria ser o assunto, porque, a seguir
ao que lhe parecia uma trégua de duas semanas, com Annabelle longe, o seu
próprio sentido de fatalidade estava a regressar em força. Começar o ano na
nova escola era o primeiro obstáculo que teria de superar, previsivelmente
com toda a gente a tomar o partido de um ou de outro, tal como tinham feito na
aldeia, mas pior, muito pior, seria se acabasse mesmo por ser julgado. O facto
de setenta por cento dos casos de violação acabarem por ser arquivados antes
de irem a julgamento não lhe servia de grande consolação, uma vez que
esperara que Oliver tivesse conseguido anular a acusação logo a seguir à
primeira audiência. Ao invés, o tempo passava e o ministério público parecia
continuar a acreditar na solidez daquele caso. A perspetiva horrenda,
impensável, de se ver acusado de violação no tribunal, julgado por um júri e,
a seguir, possivelmente mandado para a prisão durante, pelo menos, cinco
anos, numa altura em que deveria estar a estudar na faculdade de direito,
começava a abater-se sobre ele com um peso terrível e asfixiante.

– Mãe, olha o que encontrei no fundo de uma gaveta – disse Darcie, saindo
do velho escritório da avó para a sala de jogos, onde Alicia estava a passar
em revista os dossiês e livros que tirara da secretária da mãe.
Olhando para a pequena caixa que Darcie largou sobre o banco de
trabalho, Alicia perguntou:
– Que há aí dentro?
– Sobretudo cartas do avô – disse Darcie, tirando uma para fora.
Vendo a caligrafia familiar do pai ao longo da folha que Darcie
desdobrava, Alicia sentiu a nostalgia invadir-lhe o coração.
– Quantas há? – perguntou Alicia, pegando na folha.
– Imensas. A caixa está cheia. Não é querido que a avó as tenha guardado?
Alicia sorriu.
– Quando será que ela as leu pela última vez…? – perguntou Alicia,
olhando para a data da carta que tinha na mão. Para sua surpresa, era de antes
de os pais serem casados.
– As pessoas agora já não escrevem cartas, pois não? – disse Darcie.
Alicia abanou a cabeça.
– É uma pena, mas tens razão.
– Não tens nenhuma do pai?
Desejando que as tivesse, Alicia disse:
– Guardei todos os postais que ele me enviou ao longo dos anos e mesmo
alguns dos recados que o teu pai deixava para me avisar de que ia chegar
tarde, ou pedir para ir buscar a roupa dele à lavandaria ou que lhe pusesse um
programa a gravar.
Darcie torceu o nariz.
– Guardas esse tipo de bilhetes parvos? – disse.
Sorrindo, Alicia disse:
– Os bilhetes não diziam só isso. O resto só me diz respeito a mim e tu só
vais perceber quando fores mais crescida. Será que devíamos ler estas cartas?
– Ah, acho que até devemos – disse Darcie, que claramente não partilhava
dos escrúpulos da mãe. – Quer dizer, não podemos simplesmente deitá-las
fora, seria como se não tivessem valor nenhum para nós, e isso não seria
correto. Se queres saber a verdade, acho que, se a avó estivesse aqui, nos
diria para irmos em frente. No fim de contas, se não queria que as víssemos,
porque as guardou, quando não lhe faltaram oportunidades para se livrar
delas?
– Vendo as coisas assim, acho que podíamos dar uma olhadela – disse
Alicia. – Mas só gostava de saber porque estás tão interessada.
Darcie olhou-a com uma expressão inocente.
– Nunca conheci o avô – lembrou –, por isso é uma maneira de o ouvir
falar. Bem, mais ou menos, tu sabes o que quero dizer.
Inclinando-se para lhe dar um beijo, Alicia disse:
– Sei exatamente o que queres dizer, e exprimiste-te muito bem. Agora, vai
atender o telefone e voltamos a meter as cartas na gaveta até termos tempo
para as vermos melhor.
Regressando alguns minutos mais tarde, Darcie disse:
– Era o Cameron. Pediu-me para te dizer que está a caminho e, se
quisermos sair para jantar, vai ter de ser num pub, porque ele traz o Jasper.
Sorrindo, Alicia disse:
– Vens connosco ou queres que te deixemos em casa da Rachel?
Darcie olhou para ela com um ar inseguro.
– Não há problema se eu for? – perguntou.
Surpreendida pela hesitação da filha, Alicia disse:
– Claro que não. Porque haveria de haver?
Darcie encolheu os ombros.
– Não sei. Podias preferir estar sozinha com ele e achar que eu estava a
mais.
Alicia abriu a boca de espanto, rindo.
– O Cameron e eu não temos nenhum relacionamento – disse num tom
firme. – Somos só amigos e, além disso, se ele pode trazer o Jasper, tenho a
certeza de que te posso levar a ti. Sei que ele vai insistir.
Darcie alegrou-se de imediato.
– Gosto mesmo, mesmo dele – disse num tom caloroso. – É tão engraçado,
não é? Sempre a correr atrás da bola e a tentar ser amigo de toda a gente.
Quem me dera que tivéssemos um cão, tu não?
Uma vez que, inicialmente, Alicia pensava que a filha estava a falar de
Cameron, demorou a reagir, mas finalmente disse:
– Para ser sincera, tenho andado a pensar nisso e, depois de a loja estar a
funcionar em pleno e as nossas finanças um pouco melhores, se calhar é uma
hipótese.
Darcie desatou aos saltos.
– Vamos arranjar um igual ao Jasper, por favor, por favor. São os melhores
e o Nat também quer um.
Abraçando-a, Alicia disse:
– OK, mal possamos vamos procurar na internet se alguém na zona tem
uma cadela que vá ter uma ninhada. Ou também podemos procurar um
cachorro num canil ou associação.
– Oh, sim, isso era mesmo fixe – concordou Darcie. – Desde que o cão não
tenha problemas de comportamento ou agressividade, nem nada do género.
Podíamos dar-lhe uma boa casa, não era?
– Acho que sim – disse Alicia, sentindo de súbito a dor de alargar a
família sem a presença de Craig. O seu primeiro instinto foi voltar atrás na
promessa, em vez de dar mais um passo que fosse na direção do futuro sem
ele, mas, forçando-se a sorrir para lá da mágoa que sentia no coração, disse:
– Acho que nos devemos ir arranjar, não?
Enquanto Darcie corria pelas escadas acima à sua fente, Alicia seguia-a
num passo mais calmo, consciente de que a sua relutância em planear uma vida
sem Craig ainda a estava a retrair, como se, agora, os seus sonhos estivessem
presos dentro das recordações.
– OK, cada um de vocês tem uma – anunciou Darcie, entregando uma folha
de papel ao pai, à mãe e a Nat. Então, de súbito, agarrou nas folhas de novo. –
Não, vou ler eu – decidiu, empilhando as folhas num montinho alinhado.
– O que é? – perguntou Nat, espreguiçando-se com indolência e depois
contorcendo-se a rir quando Alicia lhe espetou o dedo na barriga peluda e
exposta.
Era domingo de manhã e Craig e ela ainda estavam deitados, com Nathan
vestido com boxers e t-shirt, espraiado na cama ao lado da mãe, e Darcie, que
fora arrancar o irmão a uma bela manhã de sono para assistir ao grande
evento, sentada de pernas cruzadas e encostada ao apoio dos pés da cama.
– Daah, são os poemas que estive a escrever para vocês – lembrou ao
irmão.
Nat virou a cabeça para Alicia.
– Mal posso esperar – mastigou Nat, o que lhe mereceu uma cotovelada de
aviso nas costelas.
– Ouvi o que ele disse – queixou-se Darcie, olhando para o pai.
– Ignora-o, esquilinho – disse Craig. – O teu irmão tem um sentido
artístico subdesenvolvido, não é como tu, fofinha. Mas anda lá, brinda-nos
com a magia das tuas palavras.
Darcie riu com vontade.
– OK, aqui vai – disse, olhando para a primeira folha. – Este é para ti, pai.
– “O meu pai é advogado, forte e alto, / manda as pessoas para a prisão
por crimes que causam sobressalto, / gosto muito dele, do fundo do coração, /
tê-lo por pai é melhor que ter uma varinha de condão” – quando terminou,
ergueu os olhos, com uma expressão deliciada.
– Fantástico – disse Craig, num tom entusiasmado. – Muito bem,
esquilinho. Posso ficar com ele?
– Vou arranjar-te uma cópia – respondeu Darcie. – Agora o teu, mãe –
disse a Alicia. – Estás pronta?
Ainda a tentar disfarçar o sorriso que a resposta anterior lhe provocara,
Alicia disse:
– Prontíssima.
– “A minha mãe é escultora, magra e bela, faz coisas de aço e bronze,
segue os caprichos do espírito dela, / adoro-a muito, do fundo da alma, / tê-la
por mãe faz-me sempre manter a calma.”
Os olhos de Darcie cintilavam de orgulho ao olhar para Alicia.
– Brilhante! – declarou Alicia. – Adoro. Também me podes arranjar uma
cópia?
Darcie acenou com a cabeça com um ar importante.
– Ia terminar com o verso “E ela fez de mim uma obra de arte calma” –
disse, olhando de novo para o poema. – Ainda posso mudar, tenho de pensar.
OK, Nat, é a tua vez. Estás pronto?
– Diz lá – encorajou-a ele.
– “O meu irmão é um chato, mas gosto dele na mesma, / chama-se Nat e
não é nenhum pato”…
– Não é nenhum pato – troçou Nat. – Que tipo de poema…
Darcie ergueu os olhos, ofendida, enquanto a mãe tapava a boca de Nat
com a mão.
– Continua – disse Alicia suavemente.
Darcie olhou para ele com fúria e, depois, voltou a baixar os olhos para o
poema:
– “Chama-se Nat e é mesmo, mesmo pato” – corrigiu-se. – “É um ás no
desporto, alto e moreno, / se um dia tiver problemas, quero-o a meu lado no
terreno.”
Darcie ergueu os olhos insegura.
– É mesmo giro – disse Nat, aplaudindo. – Estamos diante de uma futura
escritora famosa. Também me podes dar uma cópia?
– Não, porque ainda dizes que te vai dar jeito na casa de banho, ou para
limpar o ranho. – A seguir, os seus olhos reluziram de novo. – Olha, também
rimou – disse, dirigindo-se ao pai.
Rindo, Craig agarrou-a nos braços e deu-lhe um grande beijo na bochecha.
– Vou mandar emoldurar os três – disse – e vamos pendurá-los nos nossos
quartos.
Darcie pareceu gostar da ideia, até que torceu o nariz, queixosa.
– Mas eu não vou ter um – fez notar.
– Oh, sim, vais – disse Craig –, porque o Nat vai escrever um para ti, não
vais, filho?
– Vão passear – exclamou Nat. – Eu…
– E – interrompeu-o Craig –, vai fazê-lo agora mesmo. De modo que
vamos lá a meter mãos à obra, Nat. Deslumbra-nos a todos com o teu génio
poético, mostra lá como és muito melhor que a tua irmã. – Depois, num
sussurro, disse a Darcie: – Não lhe vai sair nada de jeito, não te preocupes, os
teus vão ser sempre melhores.
– Ah, sim? – relicou Nat. – OK, então, assim de improviso, aqui vai… A
minha irmã é uma fofura, é querida e pouco amua, a Darcie é uma ternura e…
Vive cá na rua…
Craig piscou o olho e Darcie riu.
– Eu disse-te – murmurou Craig.
– Canta e dança bem, e com música se abana – prosseguiu Nat – e, como
qualquer rapariga, nunca se engana.
Darcie desatou a rir.
– Foi bastante bom – disse, generosa. – Exceto a parte da rua, foi um
bocado despropositado.
– Sim, como o teu verso sobre eu ser um pato.
– Eu disse que não eras, até começares a ser mau para mim – lembrou ela.
– OK, antes que se gere aqui uma discussão – interrompeu Craig –, quem
vai até à padaria comigo buscar uns croissants para o pequeno-almoço?
– Eu não – disse Nat. – Está um gelo lá fora. Vou voltar para a cama.
– Eu estou a fazer os trabalhos de casa – disse Darcie.
Craig olhou para Alicia.
– Parece que estás por tua conta – disse ela, escondendo-se sob os lençóis.
Craig virou-se de lado, para que o seu rosto ficasse mais perto do dela.
– Aposto que consigo tirar os miúdos daqui em três segundos – murmurou.
– Fui – exclamou Nat, mesmo antes de os pais se começarem a beijar.
– Eu também – disse Darcie, indo-se embora atrás do irmão.
Rindo enquanto a porta se fechava atrás deles, Alicia disse:
– Não é espantoso como ela se lembrou daquilo que tu disseste sobre eu
seguir os caprichos do meu espírito, ao criar as minhas esculturas?
– Hmm, espantoso – murmurou Craig, passando-lhe a mão pelas coxas.
Alicia fechou os olhos.
– Então, não vai haver croissants? – disse baixinho.
– Não vai haver croissants – confirmou Craig e, virando-lhe o rosto dela
para si, beijou-a profundamente enquanto a puxava para cima dele.

A manhã de poesia ocorrera apenas dois dias antes da morte de Craig, e


fora a primeira vez, em mais de um ano, que Alicia não pensou, enquanto
faziam amor, se o marido estaria a pensar em Sabrina e, talvez, a desejar estar
com ela em vez de estar ali. Inspirando agora profundamente como que para
enviar as memórias de volta para o passado, Alicia recusou pôr-se a pensar na
crueldade do destino ao levá-lo quando estavam, finalmente, a começar a
deixar os problemas para trás, e voltou os pensamentos para o presente.
Sentiu um sobressalto ao lembrar-se de que estava prestes a encontrar-se
com Cameron e, por um instante, o seu instinto foi rejeitar também esta
hipótese. Parecia-lhe errado esperar por alguém que não Craig, sair com outro
homem, mesmo que fosse apenas um amigo. Mas então, lembrando-se de como
Cameron fora amável e a tinha apoiado durante aquele verão terrível – e como
nunca pronunciara uma única palavra ou fizera um único gesto que sugerisse
que podia estar a tentar introduzir-se de forma mais permanente nas suas
vidas, relaxou de novo. Gostava muito dele, não havia dúvidas sobre isso, mas
por enquanto, pelo menos, ainda se sentia demasiado como esposa de Craig –
e, talvez, tão casada com o sofrimento agora como antes fora casada com ele.
Além disso, até saber o que ia acontecer a Nat não podia, de todo,
permitir-se pensar muito seriamente sobre qualquer outra coisa.

Sabrina estava com um humor excelente. Pela primeira vez, tudo parecia
estar a ir bem. Todos os amigos que ela queria convidar para um cocktail, no
segundo fim de semana de setembro, estavam disponíveis, o barman e os
fornecedores estavam contratados e Robert devia regressar de mais uma
viagem a Washington dois dias antes, pelo que estaria de volta a casa com
tempo de sobra. Para além do sucesso destes planos, havia também o prazer
de saber que a sua primeira reunião do clube de leitura já fora marcada para o
final da semana seguinte (de modo que teria de se pôr a ler rapidamente); The
Buzz conseguira angariar mais anúncios do que o habitual, graças ao trabalho
árduo de June naquelas três últimas semanas, e Sabrina recebera um convite
muito bem-vindo para uma festa de fim de verão em casa dos Roswells, que
eram sempre muito seletivos em relação à sua lista de convidados. Não que
Robert e ela alguma vez tivessem sido deixados de fora, mas, estando
envolvidos em toda aquela situação desagradável de inquéritos policiais e
audiências no tribunal, podiam, na perspetiva da elite da zona, ter sido
considerados personae non gratae.
Felizmente tal não acontecera e, uma vez que na semana anterior, logo
depois de voltar de França, soubera que Nathan Carlyle fora despachado para
Bristol e que os partidários de Annabelle na aldeia haviam permanecido leais,
sentia-se realmente abençoada. Agora, tudo o que tinha de fazer era ajudar
Annabelle a ultrapassar a provação que se seguiria e, se fosse feita justiça,
com alguma sorte isso poderia contribuir para as aproximar, sem que
precisasse de tocar em todo aquele assunto doloroso do seu comportamento
após a rutura com Craig. Ao mesmo tempo, poderia até tornar impossível a
permanência de Alicia na aldeia. Dois coelhos de uma só cajadada. Seria
maravilhoso.
– Mãe! – chamou Annabelle, de algum lugar em casa.
– Estou aqui – gritou Sabrina da pequena divisão que usava como
escritório. A seguir ao seu horrível confronto em França, houvera uma espécie
de tréguas desconfortáveis entre mãe e filha, principalmente, suspeitava
Sabrina, porque ambas continuavam com medo de que aquilo se repetisse. De
certo modo, passava-se o mesmo no seu relacionamento com Robert: muita
simpatia e boa disposição à superfície, enquanto, sob essa capa, algo muito
diferente se passava. Sabrina tentara abordar a questão com ele, mas o marido
evitara-a sempre, dizendo que estava demasiado calor ou que se sentia
demasiado cansado para fazer amor ou que Sabrina estava a dar importância a
mais ao assunto. “É claro que ainda te acho atraente”, assegurara-lhe Robert
ainda na noite anterior, “mas de momento não tenho mesmo vontade”.
– Mãe! – gritou Annabelle de novo.
Com um suspiro exasperado, Sabrina levantou-se da frente do computador
e foi até à porta.
– Onde estás? – perguntou.
– Cá em cima. Preciso que venhas até aqui.
– Estou ocupada. Que queres?
– Já te disse, preciso que venhas cá.
– Vou quando tiver acabado. A que horas é a tua consulta no dentista, para
eu saber quando tenho de estar pronta?
Annabelle saiu para o patamar e inclinou-se sobre o corrimão.
– Estou grávida – anunciou.
Sabrina ficou muito quieta à medida que todos os sinais que tentara ignorar
começavam a chocar dentro da sua cabeça, como num bizarro número de
circo, convertendo-se numa realidade inimaginável.
– Se pensas que isso tem piada… – disse numa voz rouca.
– Vê por ti mesma, se não acreditas – exclamou Annabelle, atirando para o
átrio um tubinho branco onde era visível uma linha azul.
Aproximando-se para o apanhar, Sabrina observou-o e sentiu a cabeça a
rodopiar. Ergueu o olhar para Annabelle, cujos olhos eram como lagos
profundos e atormentados no seu fantasmagórico rosto branco, e depois voltou
a contemplar a linha azul. Não tinha a certeza de quanto tempo ficara ali de pé,
imóvel. Só sabia que, quando ergueu de novo o olhar, Annabelle voltara para
o quarto e Sabrina não conseguia pensar em mais nada, para além do facto de
que o que segurava nas mãos representava o primeiro indício de um bebé que
tinha o sangue dela e de Craig a correr-lhe nas veias.

Os olhos ameaçadores de Oliver Mendenhall observavam Nat do lado de


lá da secretária de Jolyon.
– Continuamos a pressionar a Coroa no sentido de arquivarem a acusação
de violação – disse Oliver –, mas infelizmente o advogado encarregado está a
fazer finca-pé. É provável que esteja a receber pressões de outros lados –
acrescentou.
Contudo, não falou a Nat na história do seu pai com a inspetora Caroline
Ash, porque ainda não conseguira descobrir de que forma isso estava a pesar
no processo e, para além disso, o rapaz não precisava de saber do que se
passara. Era suficiente que Mendenhall soubesse e, apesar de não ser
totalmente desprovido de simpatia pela posição de Ash em relação ao que
sucedera depois de Craig fazer arquivar o processo contra o incendiário, a lei
era a lei. A inspetora não fizera o seu trabalho corretamente, portanto, aos
olhos de Mendenhall isso tornava-a igualmente responsável pelas trágicas
mortes que se seguiram, ou talvez ainda mais. E, no caso de Ash estar a
pressionar a Acusação, ele estava disposto a usar a rancorosa parcialidade
dela como trunfo escondido, se a Acusação cometesse o erro crasso de levar o
caso a julgamento.
– Então, ainda vou ter de ir à próxima audiência preliminar – disse Nat,
cujos olhos escuros estavam, em parte, ocultos por uma longa franja de cabelo.
– Sim – respondeu Oliver –, mas será outra vez algo curto e bastante
simples. Vão marcar a data para uma audiência de conciliação e julgamento,
que, provavelmente, deve ser umas quatro a cinco semanas depois.
– E isso será num Tribunal da Coroa?
Oliver acenou com a cabeça.
– E é nessa altura que terei de me declarar-inocente?
Oliver acenou com a cabeça novamente, apercebendo-se do pavor de Nat
quando o viu desviar os olhos.
– Agora, há um juiz em Taunton que pode julgar este tipo de casos – disse
Oliver –, mas penso que o mais provável é que o julgamento seja marcado
para Bristol. Isto é, supondo que as coisas chegam tão longe, mas continuamos
muito esperançados de que assim não seja.
Nat olhou para ele, e depois para Jolyon, que escutava a conversa de pé,
encostado ao parapeito da janela.
– Estarei a teu lado na próxima audiência preliminar – disse Jolyon – e o
Oliver substitui-me a partir da audiência de conciliação e julgamento.
Oliver olhou para o relógio.
– Receio que agora tenha de me ir embora – disse. – Tenho de estar de
volta ao tribunal às duas. Fico contente por ter tido esta oportunidade de te ver
– disse a Nat, levantando-se da cadeira. – O julgamento que me trouxe aqui
deve durar alguns dias, por isso, se te quiseres encontrar comigo entretanto, é
só dizeres.
– Obrigado – disse Nat, pondo-se também de pé e apertando a mão a
Mendenhall –, mas vou voltar para o Somerset amanhã. As aulas começam na
terça-feira.
– Ah – disse Mendenhall. – Bem, boa sorte com isso.
A expressão de Nat permaneceu tensa.
– Mas podes sempre telefonar-me se tiveres alguma questão –
tranquilizou-o Mendenhall – ou se quiseres apenas falar. Caso contrário, o
Jolyon vai-te mantendo a par de quaisquer desenvolvimentos, sobretudo se
recebermos boas notícias da parte do Serviço de Acusação da Coroa. Oh, a
propósito, o Jolyon disse-me que o ajudaste imenso nestas últimas duas
semanas. Muito bem.
Nat olhou para Jolyon e tentou sorrir em agradecimento.
Muito mais tarde nesse mesmo dia, depois de apanhar o autocarro de volta
para o apartamento de Jolyon e enquanto este participava numa reunião na
Law Society, Nat sentou-se no seu quarto durante algum tempo, tentando
decidir o que fazer. No final, sabendo que Marianne estava prestes a voltar
para casa, saiu do apartamento e atravessou a rua em direção à ponte. Ainda
era hora de ponta e os carros passavam sem interrupção, detendo-se junto às
torres de tijolos vermelhos que abrigavam as cabines das portagens, antes de
acelerarem de novo para o lado de lá.
O tempo estava cinzento e enevoado, mas não frio. O ar cheirava a fumo e
a algas do rio, e o rugido dos motores abafava o som das gaivotas e dos
passos dos transeuntes. Na realidade, Nat não se apercebia de grande coisa à
sua volta – a sua mente estava estranhamente vazia, os seus pensamentos, as
suas decisões tinham ficado suspensas.
Os peões podiam atravessar a ponte de graça, pelo que Nat caminhou ao
longo da torre Clifton, sentindo uma explosão de ar quente no rosto quando um
camião passou por ele. A faixa para peões estava isolada da estrada por uma
barreira sólida, e o guarda-corpos que o separava do vazio do outro lado
compunha-se de grossas barras de suporte que se elevavam como baluartes
para a estrutura de suspensão da ponte. Nat estudara a construção da ponte
certa vez, há oito ou nove anos. Sabia que Isambard Kingdom Brunel a
projetara e que tinha sido inaugurada em 1864, após a morte de Brunel. O
projeto fora financiado por um comerciante de vinhos local, mas Nat não se
conseguia lembrar do nome deste.
Encontrava-se agora a mais de noventa metros acima do desfiladeiro, do
outro lado da ponte, e perguntava a si próprio se realmente sentia a estrutura a
oscilar ou se era apenas a sua imaginação. Estava tão alto que o rio por baixo
mais parecia uma fita barrenta entre os bancos de lama, e os carros que
entupiam a Portway assemelhavam-se a brinquedos. Nat contemplou a cidade,
percorrendo com os olhos as estradas confusas que compõem a Bacia de
Cumberland, e depois a miríade de telhados vitorianos que se seguia até aos
Mendips, ao longe. Algures para lá daqueles montes, a mãe e a irmã andavam
na sua vida. Os seus olhos desceram de novo pelo desfiladeiro, passando
sobre a encosta de rocha escarpada muito mais depressa do que uma pessoa a
cair. No fundo, uma centelha de luz reluziu sobre a água suja e desapareceu de
seguida.
De súbito, sentiu a cabeça novamente invadida por um ruidoso caos de
pensamentos que pareciam não ter princípio nem fim. Declaro-me inocente…
Penetrou-me à força… Ela estava a pedir-me… Porque mentiu? Penetrou
com o seu pénis… Nathan Douglas Carlyle, é acusado da violação de… Nat
fechou os olhos. Sentiu-se tonto e doente. O mundo oscilava. Podia sentir toda
a gente a observá-lo. Com olhares acusatórios e depreciativos. A mãe estaria
no tribunal, dilacerada pela dor e pela vergonha. Ouviria como ele tocara em
Annabelle quando ela tinha doze anos. Tudo seria revelado. Toda a gente ia
saber e lhe chamaria tarado, pedófilo, violador. As suas mãos agarraram a
trave do guarda-corpos. Apertou-a com tanta força que sentiu os nós dos dedos
estalarem. A sua mente esvaziava-se de novo, como um coro que fazia uma
pausa para respirar. Então, conseguiu ouvir a voz do pai, mas não o que ele
dizia. Ansiava tanto pelo pai, que lhe fazia doer a alma até ao mais fundo da
sua essência. O pai teria as respostas, saberia o que fazer. Mas seria isso
possível? O pai não era quem fingia ser. Era um farsante, um mentiroso, um
traidor. Não amava a esposa, e pensar na mãe mal-amada, sabendo o quão
profundamente ela amava o pai, não era algo que Nat pudesse suportar. O
simples pensamento de alguém a causar-lhe dor fazia-o querer magoar essa
pessoa de todas as maneiras possíveis, mas o pai já não estava ali para ser
confrontado com a sua vergonha. Ao morrer, traíra a família uma vez mais.
Nat ergueu os olhos para a barreira de segurança, as barras intransigentes
que tentavam manter as pessoas no interior da ponte e a morte do lado de fora.
Se fosse para a prisão, seria tratado como a pior das escumalhas. Seria
espancado e violado, transformar-se-ia num miserável maricas desejoso de
agradar. O sonho de uma carreira como advogado terminaria no dia em que
fosse condenado e, durante o resto da vida, teria de ostentar o rótulo de
criminoso sexual. Ninguém quereria viver perto dele; onde quer que fosse,
pais assustados e vigilantes de bairro iriam expulsá-lo. Nunca arranjaria
emprego ou esposa, não teria amigos, não teria filhos.
E tudo por causa daquele momento desvairado com Annabelle.
Porque fizera ela aquilo?
Será que, se conseguisse passar as barras, se atreveria a saltar?
A resposta, percebeu Nat para sua vergonha, era não, porque não tinha
coragem. Ou talvez fosse porque sabia o que aquilo iria fazer à sua mãe. E
ainda havia – por favor, meu Deus! – uma ínfima hipótese de não ser punido
por um crime que não cometera.

Apesar de se sentir horrorizada por aquela gravidez, Annabelle tinha uma


ideia clara do que tinha de acontecer. A mãe faria uma marcação numa clínica
em Londres, depois levava-a lá de carro e, algumas horas depois, voltavam
para casa outra vez.
– É fácil – disse. – Eu sei de três miúdas que fizeram o mesmo e só
faltaram um dia à escola.
Sabrina estava chocada.
– Quem são elas? – perguntou, lançando um olhar nervoso a Robert.
Uma vez que era o marido quem pagava a educação de Annabelle,
certamente não veria com muito bons olhos o tipo de problemas em que
aquelas raparigas se andavam a meter.
– Não te posso dizer isso – respondeu Annabelle, começando a corar –
,mas não te preocupes, não andam em Bruton, se é isso que estás a pensar. A
Sadie Virran é a única de lá que ficou grávida e, se não tivesse sido estúpida a
ponto de contar a toda a gente, provavelmente não teria sido expulsa.
Os olhos de Sabrina abriram-se muito
– Então foi por isso que ela…? Pensei que tivesse a ver com drogas…
– Foi, mas…
– Estamos a desviar-nos da questão – disse Robert. – Por mais que me
desagrade a ideia de a Annabelle ter de passar por um aborto, acho que ela
tem razão, é o que se deve fazer.
– Completamente – concordou Annabelle. – Quer dizer, não posso
propriamente ter um filho na minha idade, não é? Ia arruinar a minha vida
inteira. Além disso, quem ia olhar por ele, quando eu for para a escola aqui e,
depois, entrar na faculdade?
– Um momento, antes que comecemos a tomar decisões precipitadas –
disse Sabrina. – Um aborto é algo muito sério e não deve ser encarado com a
ligeireza que pareces…
– Oh, meu Deus, não estás a dizer que devo ter o bebé, pois não? –
exclamou Annabelle. – Não há maneira nenhuma…
– Eu sei que agora esse bebé não é desejado – atalhou Sabrina –, mas mais
tarde, quando tiveres terminado os estudos e fores um bocado mais adulta,
podes sentir algo diferente. Na verdade, sei que isso acontecerá quando vires
o bebé, porque é o normal em todas as mães.
– Sim, tenho a certeza de que o bebé será mesmo muito giro e querido e
essas coisas todas, mas não posso propriamente ir para a escola com uma
grande barrigona, ou posso? E para lhe dar de mamar e tudo o resto?
– Tudo o que estou a dizer é que devemos pensar nisto racionalmente.
Compreendo que será incómodo estares grávida enquanto tens de ir às aulas,
provavelmente não poderás fazer desporto e algumas outras coisas, mas já
houve outras raparigas que…
– Eu não sou as outras raparigas! Nem sequer quero que ninguém saiba,
por isso…
– E depois – persistiu Sabrina –, quando o bebé nascer, podes voltar para
a tua vida normal e eu cá estarei para tomar conta dele.
Annabelle abriu a boca de espanto. Aquela era mesmo a mãe dela?
– Acho que não estás a perceber o mais importante, Sabrina – disse
Robert. – A questão não é participar ou não nos desportos escolares ou noutras
atividades, a questão, para começar, é a forma como ela engravidou.
– Fui violada, caso te tenhas esquecido – disse Annabelle para a mãe com
agressividade.
– Sim, mas isto é uma questão totalmente diferente – insistiu Sabrina.
Robert estava estupefacto.
– Como podes dizer uma coisa dessas? – protestou. – A questão é
exatamente a mesma e nem consigo acreditar que estamos a ter esta conversa.
Estás mesmo a dizer que queres que a tua filha tenha um bebé que foi
concebido durante uma violação?
– Bem, não é que o Nathan Carlyle seja propriamente um monstro, ou
venha do meio social errado, pois não? – disse Sabrina.
O choque de Robert atingiu novos limites e, na sua mente, fez-se luz sobre
a terrível verdade. Não podia prosseguir aquela conversa diante de Annabelle,
mas iria garantidamente levá-la a termo. Era melhor Sabrina ordenar as ideias
ou tomaria medidas drásticas para a obrigar a fazê-lo.
– O que andas a fumar, mãe? – gritou Annabelle. – Num minuto, ele é o
diabo na terra e não vês a hora de o expulsares a ele e à Alicia da aldeia, e
agora, de repente, falas dele como se fosse… – Annabelle deteve-se
subitamente, quando também ela compreendeu. – Oh, meu Deus – disse,
incrédula –, queres que eu tenha este bebé porque o Nat é filho do Craig.
– Não sejas ridícula – disse Sabrina bruscamente. – Não tem nada a ver
com isso.
– Tem, sim. Na tua cabeça, estás a começar a vê-lo como o filho que tu e
Craig nunca tiveram – disse Annabelle, olhando para Robert. Para seu horror,
apercebeu-se de que o padrasto não a ia contradizer.
– Por favor, podes parar de dizer disparates? – rosnou Sabrina. – Só estou
a pensar em ti…
– Isso é mesmo uma treta de todo o tamanho. É em ti que estás a pensar,
como sempre, e…
– Já chega – disse Sabrina furiosa, pondo-se de pé de um salto. – Estou só
a tentar mostrar-te alternativas e começas a acusar-me de…
– Alternativas que só te dão jeito a ti e a mais ninguém – interrompeu-a
Annabelle.
– Um dia destes também te podem dar jeito a ti. Não fazes ideia do que
pode acontecer no futuro. E se, por alguma razão, não fores capaz de ter mais
filhos? Nessa altura, vais arrepender-te mesmo a sério de não teres levado
esta gravidez avante.
– E se eu te dissesse que o Nathan Carlyle pode não ser o pai? – gritou
Annabelle.
O queixo de Sabrina caiu enquanto as suas faces ficavam completamente
lívidas. Annabelle também empalidecia. Era demasiado tarde para voltar atrás
e não conseguia perceber como iria sair daquela situação.
– Então se… Se o bebé não é dele, então de quem poderá ser? – gaguejou
Sabrina.
– Não sei. Eu…
Sabrina cambaleou.
– Não sabes? – exclamou. – Como podes não saber?
Annabelle franziu mais a boca e inclinou a cabeça para trás.
– Quero uma resposta – exigiu Sabrina.
Annabelle olhou para Robert, que tinha a cabeça entre as mãos.
– Não sei, porque não te quero dizer – respondeu. – Seja como for, é
possível que o pai seja o Nat, mas aposto que, agora, já não queres que tenha o
bebé, depois de saberes que não tenho a certeza.
Sentindo uma necessidade desesperada de se deitar, ou pelo menos de se
afastar da filha, Sabrina disse:
– Acho que devemos todos tentar esquecer o que foi aqui dito nos últimos
minutos e retomar a questão anterior.
Chegara à porta quando Annabelle disse:
– Isso significa que vais fazer uma marcação para mim na clínica ou não?
– Se é isso que queres – respondeu Sabrina, sem se voltar. – Amanhã trato
disso – e, antes que a filha ou o marido pudessem dizer o que quer que fosse
para a impedir, abandonou a cozinha.

– Não gostavas que tivéssemos um bebé? – murmurou Sabrina, passando a


mão pelo rosto de Craig enquanto o olhava indolentemente nos olhos.
Craig sorriu.
– Tens umas ideias muito loucas – disse.
– Seria um bebé tão bonito – disse Sabrina. – E inteligente, divertido,
amante de desporto…
– … e incrivelmente sexy, se sair à mãe – interrompeu Craig, beijando-a
nos lábios.
– Se fôssemos livres para termos filhos juntos – disse Sabrina, depois de
se beijarem de forma deliciosamente sensual durante um longo momento –, ias
querer tê-los comigo?
– É claro – murmurou Craig e, puxando-a mais para si, beijou-a de novo e,
a seguir, fez amor com ela com toda a ternura de um homem cujo desejo é
conceber uma criança perfeita com a mulher que ama.

Desde o instante em que fora buscar o filho a casa de Jolyon naquela


manhã, Alicia apercebera-se de uma mudança nele. Embora Nat estivesse
obviamente ansioso por começar as aulas numa nova escola na semana
seguinte, e não conseguisse deixar de pensar na perspetiva horrível da ida a
tribunal somente uma semana depois, o seu instinto de mãe disse-lhe
imediatamente que havia mais alguma coisa. Agora, Nat não se mostrava
apenas retraído e quieto, havia nele um ar que o fazia parecer ainda mais tenso
e frágil do que antes, como se o seu corpo inteiro se estivesse a quebrar com o
esforço para controlar as suas emoções. Alicia tinha quase medo de lhe tocar;
receava que se pudesse ir abaixo, e todavia, no mais fundo do seu coração,
sabia que era o que devia fazer. A pressão sobre Nat era agora enorme, e
Alicia não sabia se o filho estava a tentar provar a si mesmo que era homem,
guardando tudo para si, ou se tinha medo de se ir abaixo por recear que o seu
mundo inteiro se desmoronasse, mas suspeitava que fosse um pouco de ambos.
No sábado, Nat passou quase o dia inteiro no quarto, enquanto Alicia e
Darcie iam a Bath comprar materiais escolares e os obrigatórios sapatos
pretos que não podiam ser adquiridos na loja da escola. Como estava no
último ano, Nat não teria de usar uniforme, mas ainda havia uma longa lista de
artigos de que precisava, como equipamento de desporto, camisas e calças, um
casaco e uma mochila nova. No entanto, Nat não mostrara interesse em
acompanhar a mãe e a irmã a Bath para os escolher pessoalmente, o que não
correspondia de todo à sua personalidade normalmente muito preocupada com
a imagem. Não objetou em deixar a tarefa para Darcie e Alicia, como se estas
fossem a um supermercado comprar algo para o jantar.
Para alívio de Alicia, quando voltaram da viagem, pouco depois das seis,
Nat estava na cozinha a fazer uma tosta de queijo e, quando Darcie começou a
mostrar-lhe o que escolhera para ele, teve a gentileza de dizer que a irmã
tivera muito bom gosto. Darcie irradiava satisfação e, depois de o abraçar
com toda a sua energia fraternal, cortou duas fatias de pão e colocou-as no
grelhador.
– Pensei que vocês iam comer peixe com batatas fritas, esta noite – disse
Alicia, enquanto metia todos os recibos do cartão de crédito numa gaveta e
rezava para que, por artes mágicas, as contas já estivessem pagas da próxima
vez que a abrisse.
– E vamos – confirmou Darcie –, mas estou cheia de fome e não posso
esperar tanto tempo sem comer.
Alicia olhou para Nat, que compôs uma das suas expressões cómicas, sem
que no entanto os seus olhos exibissem o brilho habitual.
– Tens a certeza de que não te importas que eu saia? – disse, dirigindo a
pergunta a Darcie, embora fosse Nat quem mais a preocupava.
– É claro que não – respondeu Darcie, partindo um canto da tosta de
queijo do irmão e devorando-o.
– E que vão vocês ficar a fazer? – perguntou Alicia.
Darcie encolheu os ombros e olhou para Nat.
– Ver um filme, conversar, não sei – respondeu.
– O Simon vem até cá? – perguntou Alicia a Nat.
– Não, vai a uma festa qualquer em Shepton.
Tentando manter um tom casual, Alicia disse:
– Se também quiseres ir, não me importo de cancelar a minha saída hoje à
noite e de ficar com a Darcie.
– Não podes fazer isso! – protestou Darcie.
– Está tudo OK, não me importo de ficar aqui com a esquilinho – disse
Nat.
– Estavas toda animada com esta saída – lembrou Darcie – e não podes
dar tampa ao Cameron a esta hora. Seria mau, e uma falta de educação.
– Ele vai deixar o Jasper connosco? – perguntou Nat.
– Acho que sim.
– Fixe, podemos levá-lo a passear antes de escurecer.
Sabendo que não precisava de lembrar a Nat que limites territoriais devia
respeitar, ou a que horas deviam estar de volta a casa, Alicia deu-lhe um beijo
na testa e foi até ao andar de cima para guardar as roupas novas. A seguir,
teria mesmo de se apressar, se queria estar pronta à hora a que Cameron a
vinha buscar.
Uma hora mais tarde, ouvindo Cameron chegar com Jasper, calçou os seus
sapatos de fivela abertos atrás, pôs rapidamente umas gotas de 24 Faubourg,
da Hermès, e recuou alguns passos para se ver no espelho. No segundo em que
contemplou o seu reflexo, um sentimento de resistência ergueu-se dentro dela.
Era a primeira vez em muitos meses que se vestia para sair à noite, e ver-se
assim, tão elegante naquele vestido justo cinzento-metálico com alças
reluzentes e costas decotadas, que usara pela última vez num jantar de
caridade com Craig, estava a perturbá-la imenso. Por um momento fugaz,
quase cedeu ao impulso de o despir de novo, mas foi salva por uma centelha
de senso comum que lhe lembrou não haver nada que recear. Era apenas uma
festa, e não era como se nunca tivesse ido a uma festa sem Craig antes,
portanto não seria a primeira vez…
Bateram à porta e Alicia voltou-se para mandar entrar.
– Sou eu – disse Nat, enfiando a cabeça pela porta. – O Cameron está lá
em baixo.
– Sim, ouvi-o chegar. Já estou pronta – disse, dando depois uma voltinha
para o filho poder ver –, mas achas que estou bem?
– Estás ótima – tranquilizou-a Nat. – O cabelo fica-te bem apanhado.
Esses são os brincos que recebeste no Natal do ano passado?
Tocando nos pequenos brincos de diamantes, Alicia sentiu-se corar
enquanto acenava com a cabeça. O filho sabia que tinham sido um presente de
Craig e Alicia não podia deixar de pensar o que acharia de ter decidido usá-
los naquela noite.
– Anda daí, ou ainda te vais atrasar – disse Nat e, voltando-se, saiu para o
patamar.
Alicia pegou na carteira, verificou se tinha tudo o que precisava e, depois
de passar um brilho de lábios rosa-pálido, pegou na écharpe e seguiu o filho
até ao andar de baixo.
– Alguém viu o meu telemóvel? – disse, para esconder o seu embaraço ao
entrar na cozinha.
– Está aqui – disse Nat, desligando-o do carregador.
– Mãe, estás o máááximo – disse Darcie suavemente.
– Jasper, não! – gritou Cameron, agarrando o cão quando este entrou a
correr do exterior.
Os olhos de Jasper brilhavam ao olhar para Alicia e a sua cauda abanava
tanto que Darcie lhe deu um empurrão quando a cauda a atingiu nas pernas.
Sentindo que Cameron também a observava, Alicia enfiou o telemóvel
rapidamente na mala.
– OK, vou deixar o telemóvel ligado, para o caso de precisarem de falar
comigo – disse. – O Friary já deve estar aberto, por isso…
– Mãe, vai-te embora – disse Darcie.
– Já vou. Vocês ficam bem? – perguntou, para se certificar.
Darcie olhou para Cameron e revirou os olhos.
Aparentemente divertido, Cameron disse:
– Não vou prometer que ela estará em casa antes da meia-noite, mas vou
tentar.
– Vê se te esforças – disse Darcie num tom sério –, porque, muito
sinceramente, não vais querer ver no que ela se transforma quando dão as doze
badaladas.
Com uma gargalhada ruidosa, Cameron passou a trela de Jasper a Nat e,
agarrando numa Alicia carrancuda pelo cotovelo, conduziu-a à porta da frente.
– A tua carruagem espera-te – disse, quando saíram para o exterior. – E, já
agora, estás um espanto.

A festa de fim de verão dos Roswells era um dos grandes eventos da zona.
Toda a gente importante era convidada, dos aristocratas que detinham
propriedades na área aos políticos com cargos poderosos, das celebridades
mais requisitadas aos milionários bem relacionados. Robert era sempre
incluído na lista de convidados graças ao seu convívio frequente com
presidentes e primeiros-ministros e, como sua esposa, naturalmente esperava-
se que Sabrina o acompanhasse. Na verdade, nenhuma calamidade – ou filha
rebelde – poderia ter impedido Sabrina de ir à festa naquela noite, porque
estar presente naquele evento era absolutamente vital para a posição social de
um casal na vizinhança. E, para Sabrina, era de crucial importância que ela e
Robert mantivessem um determinado estatuto social.
Embora tivesse chovido intermitentemente todo o dia, agora, enquanto os
duzentos e tal convidados cintilantes se misturavam pela longa e soberba
galeria da mansão, as portadas da parede sul estavam abertas para permitir o
acesso ao terraço, com a sua excelente vista dos jardins e do pôr do sol.
Sabrina vagueava por entre os convidados, enquanto ia conversando
alegremente com a irmã de Archie Roswell, Camilla, cujo marido era
apontado como o próximo embaixador britânico na China, uma posição de
enorme relevância no mundo de hoje. Na fonte das sereias, recentemente
restaurada a custos astronómicos, pararam para admirar as sinuosas estátuas
de pedra que representavam as criaturas aquáticas, com jatos rendilhados
jorrando das bocas viradas para cima, antes de avançarem para se juntarem a
Felicity e Bodwin Singer-Smythe. Os Singer-Smythes eram parentes próximos
de um dos duques mais proeminentes do país e eram conhecidos por deterem
uma fortuna avaliada em aproximadamente meio bilião de libras.
Com a conversa a fluir tão agradavelmente quanto o champanhe, Sabrina
olhou em volta à procura de Robert e sorriu com aprovação quando o viu a
passear pelo jardim geométrico com Archie Roswell, aparentemente absorto
em qualquer coisa que Archie dizia. Era uma pena que Robert tivesse de fazer
uma chamada para os Estados Unidos às nove e meia, na altura em que toda a
gente estaria sentada no grande salão a jantar, mas Sabrina sabia que o marido
ia lidar com aquilo tão discretamente que estaria de volta antes que dessem
pela sua ausência. Robert era, realmente, o marido perfeito, decidiu com um
suspiro trémulo, leal, solidário e, acima de tudo, tolerante para com os seus
defeitos tolos.
Desde a cena terrível com Annabelle na quinta-feira, não a embaraçara
nem uma vez mencionando-a de novo, a não ser para concordar que deveria,
de facto, ser um assunto encerrado. A seguir, prontificou-se a levar Annabelle
a Londres para a intervenção cirúrgica e, para sua surpresa e confusão, a filha
aceitara. Como mãe de Annabelle, cabia a Sabrina levá-la, e estava mais que
disposta, mas Annabelle estava decidida – queria que fosse Robert a segurar-
lhe na mão. Assim, iriam ambos a Londres mal o marido regressasse de
Washington daí a duas semanas. Por essa altura, Annabelle teria tido algum
tempo para se voltar a integrar na escola, tirando depois um dia de folga para
“consultar um especialista sobre um pequeno problema de natureza íntima”,
diria Sabrina à diretora da escola.
Pensando melhor, enquanto ria e conversava agora com a elite da zona,
decidiu que poderia dizer antes que se tratava de algo relacionado com o
cérebro ou as costas, porque não queria que ninguém suspeitasse sequer da
verdade – ou, o que seria igualmente mau, que se tratava de uma DST.
– Sabrina, querida, tens um ar absolutamente esplêndido – disse Emily
Roswell na sua agressiva voz masculina, enquanto se aproximava do grupinho
de Sabrina. – Essa cor fica deliciosa em ti. Pela parte que me toca, pareço um
cadáver com um vestido creme, mas, com esse teu exótico tom de pele escuro,
consegues usar essa cor como ninguém.
Brindando Emily com um dos seus sorrisos mais charmosos, Sabrina
disse:
– Obrigada. Foi um presente de Robert quando estivemos em França. Na
verdade, para ser absolutamente precisa, comprou-mo quando estávamos no
Mónaco.
– Oh, pobrezinha, o Mónaco é um lugar horrível no verão – disse Emily
com uma careta. – Não me apanhavam nem a milhas dali, a são ser que
estivéssemos no nosso iate, é claro. A nossa filha, a Jacoba, tem uma casinha
lá. Adora aquilo. Todos os dias faz a viagem para a universidade, em Nice.
Falando de filhas, como passa a nossa querida Annabelle? Soube do que
aconteceu. Coisa horrível, pobrezinha. Como se tem sentido? Imagino que
deva estar terrivelmente traumatizada. De facto, estava um bocado à espera
que o Robert e tu desistissem de vir hoje à noite.
– Oh, nunca faríamos isso – assegurou-lhe Sabrina. – Gostamos tanto das
tuas festas, e a Annabelle está a lidar muito bem com tudo, agrada-me dizer.
Está a ser muito corajosa e insistiu bastante para que viéssemos esta noite.
Quando Sabrina acabou de falar, a atenção de Emily já se desviara para o
grupo seguinte e, enquanto se afastava, envolta em chiffon e L’Air du Temps,
Camilla disse:
– Sabrina, está cá uma pessoa que tenho mesmo de cumprimentar. Porque
não vens comigo e me deixas apresentar-te? Aqui entre nós – disse Camilla
baixinho, enquanto circulavam entre os convidados –, tenho um fraquinho por
ele, mas, por favor, não me denuncies. Cameron – exclamou deliciada,
estendendo os braços. – Como é bom ver-te! A Emily disse-me que eras capaz
de vir.
Virando-se para ela, os olhos de Cameron franziram-se enquanto sorria.
– Camilla, que fazes aqui? – disse calorosamente. – Pensei que estavas em
Pequim.
– Ainda não parti propriamente – respondeu ela, enquanto se abraçavam. –
É verdade que estás à procura de casa aqui na zona?
– Estou, mas receio que não tenha tido grande sorte até agora. O Ronald
está cá?
– Oh, está algures por aí, tenho a certeza de que vais dar de caras com ele
mais cedo ou mais tarde. Agora, deixa que te apresente uma grande amiga
minha. Sabrina Paige, Cameron Mitchell. O Cameron é uma das nossas
maiores autoridades em termos de arte moderna. Na verdade, são capazes de
já se terem conhecido – acrescentou, lembrando-se aparentemente só agora
dessa possibilidade.
– Não, infelizmente não – murmurou Sabrina, compondo o seu sorriso mais
ardente enquanto avançava para lhe apertar a mão –, mas já ouvi falar de si, é
claro. Muito gosto em conhecê-lo.
– Igualmente – respondeu Cameron educadamente. – Parece que a nossa
reputação nos precede, porque eu também ouvi falar de si.
Sabrina sorriu e bateu as pálpebras.
– Espero que não acredite em tudo o que ouve – disse num tom jocoso.
– Ah, mas acho que devia – disse Cameron.
Agradada pela troca de cumprimentos, Sabrina disse:
– Na verdade, estou muito contente por tê-lo conhecido porque adorava
convidá-lo para uma soirée que vamos ter no dia doze, se na altura continuar
por cá.
Seria um erro mencionar June de todo naquela fase, mas a amiga ia passar-
se dos carretos quando o visse. Ele era tão atraente!
– Tenho de voltar para Londres no dia quinze – disse Cameron –, por isso
deve ser possível, mas tenho de confirmar com a minha companheira para ter a
certeza de que não temos nada planeado para essa noite. Acho que já a
conhece… – estendendo o braço para trás de si, agarrou na mão de Alicia e
segurou-a, enquanto esta se despedia do casal com quem estava a falar e se
voltava.
O rosto de Sabrina ficou lívido. À medida que Alicia também
empalidecia, Cameron apertou-lhe mais a mão.
– Que fazes aqui? – silvou Sabrina.
– Fomos convidados – disse Cameron, antes que Alicia pudesse
responder.
– A Emily Roswell faz ideia de quem tu sejas? – cuspiu Sabrina. – Não é
possível, porque ela nunca deixaria a mãe de um violador…
– O meu filho não é nada disso – atalhou Alicia furiosamente. – A tua filha
é que é uma pega e uma mentirosa…
Sabrina quase explodiu de ira.
– Como te atreves…?
– Anda daí, Alicia – disse Cameron, tentando afastá-la.
– Não tens vergonha da forma como estás a usar a tua própria filha para
me castigares por o Craig não me ter deixado? – desafiou-a Alicia. – Podias
ter mantido as coisas entre nós…
– Foi o teu filho que atacou a minha filha – disse Sabrina a ferver de raiva.
– Ele é um rapaz perverso, um tarado…
– É um rapaz cujo pai acaba de morrer e tu estás a tentar arruinar-lhe a
vida. Porque não o deixas em paz?
– Ele merece tudo o que lhe está a acontecer. Anda a abusar da minha filha
desde que ela tinha doze anos, por isso, se fosse a ti, mantinha a Darcie
debaixo de olho ou, a seguir, ele ainda se lembra de começar a abusar da irmã.
Alicia deu-lhe um soco com tanta força, que Sabrina caiu para cima das
pessoas atrás dela. De repente, Robert estava ali e, antes que Sabrina
percebesse o que estava a acontecer, esvaziou-lhe um copo de vinho tinto no
vestido.
– Oh, meu Deus – disse Sabrina –, que fizeste… Olha para mim.
Agarrando-lhe no braço com firmeza, Robert começou a guiá-la por entre a
multidão.
– Estás bem? – murmurou Cameron, abraçando Alicia de modo protetor.
– O que ela disse… – disse Alicia sem fôlego. – Como foi capaz…? Foi
tão…
– Chiuu, eu sei. Anda, vamos para dentro.
– Acho que prefiro voltar para casa.
– Como queiras.
Voltaram costas para se irem embora e os convidados que tinham ouvido a
troca de galhardetes ficaram a vê-los afastarem-se, alguns falando baixinho
entre si com vozes abaladas pelo choque. Uma mulher, que Alicia nunca vira
antes, aproximou-se e pousou-lhe amigavelmente a mão no braço, mas outra
virou-lhe ostensivamente as costas ao cruzar olhares com ela. Quando
chegaram à frente da casa, viram Robert e Sabrina no pátio de entrada mais
abaixo, entrando no carro. Depois de dar uma gorjeta ao empregado do parque
de estacionamento, Robert fechou a porta e arrancou.
– Lamento que tenhas tido de passar por aquilo – disse Cameron, enquanto
esperavam que lhes trouxessem o carro. – A culpa foi minha…
– Não, eu é que devo pedir desculpas – interrompeu Alicia. – Imaginei que
ela estivesse aqui, mas, como uma tola, tive esperanças de que
conseguíssemos evitar-nos – disse Alicia, cobrindo o rosto com as mãos
quando sentiu uma nova vaga de horror percorrê-la. – Como pôde ela dizer
aquilo?
– Ela envergonhou-se mais do que tu – disse Cameron –, portanto, deves
tentar esquecer.
Inspirando profundamente, Alicia ergueu os olhos e disse:
– Ouve, não tens de te ir embora. Deixa-me chamar um táxi…
– Vou contigo – disse Cameron num tom firme e, quando o empregado
parou o carro à frente deles, escoltou Alicia ao lugar do passageiro.
Robert manteve um silêncio terrível enquanto guiava para casa, muito pior
do que quando perdia as estribeiras porque então, pelo menos, Sabrina podia
responder alguma coisa. Assim, não havia maneira alguma de comunicar com
ele. Estava mais zangado do que alguma outra vez, o que a estava a enervar
imenso. Embora gostasse de acreditar que o marido não ouvira o que dissera,
sabia que o mais provável era ter ouvido ou não lhe teria deitado a bebida
sobre o vestido. Era a sua maneira de assegurar que ela viria embora da festa,
Sabrina compreendia isso, mas porque não dizia ele nada?
– Acho que pelo menos devias…
Robert ergueu a mão, interrompendo-a. Irritada, mas demasiado nervosa
para discutir, Sabrina voltou o rosto na direção do crepúsculo, observando o
campo sem, contudo, o conseguir ver devido à velocidade a que seguiam.
Tinha a boca inchada e latejante no sítio onde Alicia a atingira e o seu vestido
estava estragado. O vinho infiltrara-se agora por completo no tecido,
encharcando-o e colando-lhe a seda à pele. Era como sangue, espesso e
vermelho e totalmente indelével. Se a polícia os mandasse parar, iria pensar
que ela fora esfaqueada ou baleada. Sabrina perguntou a si própria se
desejava tê-lo sido.
Talvez tivesse ido longe de mais com a observação sobre Nathan e a irmã,
mas, na verdade, quem poderia dizer que não tinha razão? O rapaz podia ser
um tarado em potência e, se fosse, o melhor seria mesmo que a sociedade se
livrasse dele rapidamente. Imaginou dizer aquilo a Robert e sentiu as palavras
murcharem dentro dela.
O medo do que as pessoas poderiam agora estar a comentar começou a
atormentá-la como agulhas na cabeça. Podiam começar a deixar de a convidar
por causa daquilo e, se assim fosse, a culpa seria de Alicia. Aquela maldita
mulher não devia estar ali, não fazia parte da sociedade da zona e nada
daquilo teria acontecido se, de alguma maneira, não se tivesse conseguido
introduzir ali com Cameron Mitchell. A mulher era uma ameaça, uma intrusa,
uma inimiga funesta, que deveria sair daquele sítio ao qual já não pertencia.
Quando Robert virou o carro para o acesso à casa, o seu rosto estava
completamente fechado, nada revelando do que sentia ou pensava. Sem
esperar que Sabrina saísse, abriu a porta do seu lado, depois fechou-a com
força e entrou em casa. Não havia nenhum sinal de Annabelle, mas a
desarrumação na cozinha mostrava que, em algum momento durante a noite, a
enteada tinha preparado alguma coisa para comer. Depois de encher um copo
com água, Robert dirigia-se ao átrio da entrada quando Sabrina disse:
– Não vais dizer nada?
Robert não se voltou, limitando-se a prosseguir o seu caminho, subindo as
escadas e passando pela porta do quarto que partilhava com Sabrina em
direção ao maior dos quartos de hóspedes. Lá dentro, pousou o copo junto à
cama e arrancou a gravata de laço. Não, não ia dizer nada, não porque não
quisesse, mas porque estava tão furioso que tinha medo de não saber quando
parar. Primeiro, precisava de se acalmar, para passar depois a concentrar-se
no trabalho que teria de realizar em Washington nas duas semanas seguintes,
antes de regressar para resolver o problema de Annabelle. Depois disso, teria
muito mais a dizer do que Sabrina alguma vez desejaria ouvir.
Capítulo Vinte e Dois
De cabeça baixa e mãos a tapar os ouvidos, Darcie saiu pelos portões da
escola a correr, ziguezagueando entre grupos compactos de estudantes e
atravessando a estrada para o sítio onde Nat a esperava, na sombra de um
enorme muro de tijolo vermelho. Una ia mesmo atrás dela, com a preocupação
estampada no bonito rosto sardento.
– Eles foram mesmo maus – disse Una ofegante, enquanto Darcie
mergulhava o rosto no ombro do irmão. – Sabes, chamaram-lhe nomes e coisas
do género. Foi horrível.
Nat, que também experimentou a sua quota-parte de insultos, abraçou
Darcie com força, dizendo:
– Desculpa, esquilinho, não devias ter de passar por isto…
– A culpa não é tua – gritou Darcie, erguendo a cabeça. – Eles são
estúpidos e só se sabem portar assim.
– Exatamente – concordou Una. – Um dia destes vão arrepender-se,
quando alguém começar a implicar com eles.
– Anda – disse Nat, pegando na mochila de Darcie e atirando-a por cima
do ombro –, vamos apanhar o autocarro.
– Onde está a mãe? – perguntou Darcie, quase em pânico. – Porque não
nos veio buscar como prometeu?
– Não recebeste a mensagem dela? – disse Nat. – Foi falar com alguém na
Câmara, por causa da loja. Só chega a casa às cinco.
Darcie manteve-se muito junto ao irmão e com o braço dado a Una do
outro lado, evitando deliberadamente olhar para alguém, quando começaram a
descer a colina em direção à paragem do autocarro. A estrada estava agora
apinhada com alunos de outras duas escolas vizinhas, que saíam pelos
respetivos portões, e dezenas de pais que tinham vindo buscar os filhos.
Annabelle caminhava pela rua principal com Georgie e Catrina, que a
tinham ido esperar à porta da sala de aulas alguns minutos antes,
aparentemente ansiosas por saber como ela estava e o que se passava com
aquela coisa da violação, como Catrina lhe chamou. Parecia que não se
importavam de estar com ela depois das aulas, mas ainda nenhuma das duas
dissera se a voltariam a convidar para as festas, ou para casa delas ou para
algum dos lugares onde costumavam ir antes de a idade de Annabelle se ter
tornado relevante.
Este primeiro dia de aulas também não tinha sido fácil para Annabelle, que
teve de suportar que a olhassem e falassem dela como se não fosse capaz de
ouvir ou notar nada. Pensavam que era estúpida ou algo do género? Só porque
fora violada não queria dizer que agora fosse cega, surda ou tivesse deixado
de ter sentimentos. Ainda bem que ninguém tentara vir dizer-lhe alguma coisa,
ou Annabelle ter-lhes-ia dado uma bofetada. Não tinham nada que ver com o
que lhe acontecera, por isso deviam limitar-se a deixá-la em paz.
– Oh, meu Deus – murmurou Georgie, parando de repente. – Olha quem
está ali.
Annabelle seguiu a direção dos seus olhos e estacou. Nat estava quase a
menos de vinte passos, do outro lado da rua, ao lado da paragem do autocarro.
– Ei, Nathan – chamou Georgie maldosamente. – Violaste alguém nos
últimos tempos?
Quando Nat lhes voltou as costas, Annabelle viu que Darcie começara a
chorar. Nat tentou confortá-la, mas, de súbito, Darcie voltou-se com raiva.
– Isto é tudo culpa tua – gritou para Annabelle –, por dizeres mentiras
sobre o meu irmão. Devias ter vergonha.
Agarrando-a, Nat fê-la voltar as costas e seguir em direção à escola.
– Vamos, não podemos estar perto dela senão arranjamos problemas –
disse.
– Mas não é justo! – protestou Darcie. – Foi ela que causou esta
situação…
– Não faças isso – suplicou Nat. – Está toda a gente a olhar. Vamos sair
daqui.
– Isso mesmo, fujam – gritou Georgie nas suas costas.
– O Robert está ali – disse Annabelle, avistando o Mercedes. – Vamos,
depressa.
Apercebendo-se de algum tipo de interação entre Annabelle e Nathan,
Robert saiu do carro sem ter ideia do que iria fazer, mas a sobrinha estava a
chorar e o sobrinho parecia abalado – não os podia deixar afastarem-se assim.
Por outro lado, Annabelle corria já em direção a ele, parecendo igualmente
infeliz e, se lhe virasse as costas agora, o pequeno capital de confiança que
conseguira construir com ela seria destruído num instante. Por fim, ao ver
Annabelle e as amigas entrarem no carro, Robert teve de aceitar que não havia
forma alguma de poder oferecer também boleia para casa a Nat e Darcie e,
uma vez que não tinha sequer a certeza de que o tivessem visto, voltou a
sentar-se ao volante, jurando fazer algo para os compensar.
– Que aconteceu? – perguntou, cruzando o olhar com Annabelle no espelho
retrovisor.
– Nada – respondeu. – Onde está a mãe?
– Teve de ficar à espera de um telefonema – mentiu.
Não lhe poderia dizer a verdade, uma vez que Sabrina não chegara
realmente a admitir que tinha medo de dar de caras com Alicia na escola, mas
Robert sabia que esta era a verdadeira razão para lhe ter pedido para vir em
vez dela. Quando chegaram a casa, depois de deixarem Georgie e Catrina nas
respetivas moradas durante a viagem, não havia sinal de Sabrina. O carro dela
também não estava, mas não havia qualquer recado a dizer onde fora nem
quando previa regressar.
– Tenta ligar-lhe para o telemóvel – disse Robert a Annabelle enquanto
esta abria o frigorífico. – Ainda tenho de redigir um documento antes de partir,
amanhã, por isso vou voltar para o meu escritório.
– Quanto tempo vais ficar fora? – perguntou Annabelle.
– Não tanto quanto esperava – respondeu. – Estou de volta no dia dez.
Robert esteve quase a acrescentar que a levaria a Londres no dia a seguir a
esse para a sua “pequena intervenção cirúrgica”, como Sabrina insistia em
chamar-lhe, mas deteve-se. Annabelle sabia a data da sua marcação e não
precisava que lhe lembrasse.
Ia a meio do jardim quando as lágrimas de Darcie e o rosto pálido de Nat
lhe pesaram de novo na consciência e, sabendo que não podia continuar sem
descobrir se tinham chegado bem a casa, mudou de direção e saiu para Holly
Way, atravessando a rua principal para The Close. Não era provável que já
tivessem voltado, mas podia sempre esperar por eles.
Uma vez que o carro de Alicia não estava no lugar habitual, não tinha
muitas esperanças de que lhe abrissem a porta quando bateu, mas, para sua
surpresa, ouviu passos nas escadas e, a seguir, Nat estava à sua frente. Pela
expressão do sobrinho, Robert soube imediatamente que o vira na escola.
– Já chegaste – disse Robert desajeitadamente.
– A mãe do Simon viu-nos e deu-nos boleia – respondeu Nat.
Robert acenou com a cabeça.
– Ainda bem. Então, onde está a tua mãe?
– Numa reunião por causa da loja.
– Estou a ver. Bom, desde que vocês estejam bem…
– Estamos ótimos, obrigado.
Robert ergueu a mão numa espécie de aceno e foi-se embora pelo caminho
de acesso. O facto de Nat não o ter convidado a entrar dizia-lhe muito
claramente como o sobrinho estava magoado, e Robert não o censurava. No
lugar de Nat, sem dúvida que se sentiria igualmente desapontado e traído, mas
bastava-lhe pensar em Annabelle e na sua gravidez, sem saber quem era o pai,
e na recusa de Sabrina em reconhecer sequer que a filha se portara como uma
vagabunda para saber onde era o seu lugar de momento.

– Onde estiveste? – perguntou Annabelle, erguendo os olhos da sua


segunda taça de flocos de milho quando Sabrina entrou.
– Fui até ao supermercado – respondeu Sabrina, pousando alguns sacos em
cima da mesa. – Como foi o teu primeiro dia de escola?
– Horrível – respondeu Annabelle de boca cheia.
Sabrina olhou para ela.
– Não quero falar sobre o assunto – disse Annabelle, continuando a comer.
– O inchaço no teu lábio está a desaparecer – comentou. – Tens a certeza de
que foste mesmo contra uma porta e não foi o Robert que te deu um soco?
– Não sejas ridícula.
– Então, porque é que ele não fala contigo?
– É claro que o Robert fala comigo. Onde está ele?
– No escritório. Disse que tinha de acabar de preparar um documento.
Acenando com a cabeça, Sabrina pôs a chaleira ao lume e começou a
arrumar as mercearias.
– Mãe? – disse Annabelle ao fim de algum tempo.
– Hmm?
– Que achas que aconteceria se eu dissesse que já não quero ir a tribunal?
Sabrina voltou-se, exasperada, mas desejando perceber o que a filha
queria antes de dizer algo de errado.
– Já te explicaram que não tens de comparecer fisicamente – lembrou. –
Podes testemunhar por videoconferência.
Annabelle olhou para a sua taça de cereais, mas tudo o que via era o rosto
de Darcie a gritar-lhe do outro lado da rua.
– Que se passa? – perguntou Sabrina cautelosamente.
– Nada, eu só…
– Só o quê? – disse Sabrina.
– Bem, estava a pensar, se calhar devíamos esquecer isto tudo.
Sabrina sentiu a cabeça começar a girar.
– Uma violação não desaparece assim – disse num tom zangado.
– Eu sei, mas as pessoas não param de falar nisso e está tudo a deixar-me
à beira de um ataque de nervos.
Sabrina abriu a boca, mas não sabia o que dizer.
– Seja como for, hoje vi a Darcie – continuou Annabelle. – Alguém me
disse que lhe andam a chamar nomes e ela parecia mesmo afetada. O Nat
também…
– Viste o Nathan – interrompeu-a Sabrina. – Esse rapaz é obrigado a
manter uma distância de…
– Eu sei, eu sei. Ele estava à espera do autocarro, por isso não estava
propriamente a tentar assediar-me nem nada do género.
– Ainda assim, está a infringir as medidas de coação…
– Oh, cala-te lá, quem me dera que nunca te tivesse dito nada.
– Annabelle, que se passa nessa tua cabecinha?
– Nada. Só senti pena da Darcie, OK?
– Bem, lamento muito que ela estivesse perturbada, mas o Nathan devia ter
pensado nisso antes de…
– Deixa lá isso – gritou Annabelle. – Não consigo falar contigo sobre
nada, por isso esquece que toquei no assunto.
O corpo de Sabrina ficou rígido sob o efeito da tensão que sentia e,
virando-se, continuou a arrumar as compras até que, incapaz de guardar a sua
frustração para si mesma por mais tempo, gritou subitamente:
– Mas aquele rapaz violou-te ou não?
– Violou, sim – gritou Annabelle em resposta.
– Então, não há aqui mais discussão. Fizeste o correto ao apresentares
queixa dele e agora precisas de ir até ao fim. Percebo que não seja fácil, por
isso talvez devêssemos ligar à agente Lisa. Ela pode conversar contigo; vais
sentir-te mais tranquila, porque tenho a certeza de que muitas vítimas de
violação passam pelo mesmo que tu estás a passar agora.
– Tanto faz – disse Annabelle, olhando para o telemóvel de Sabrina que
começara a tocar.
Vendo o nome de June no visor, Sabrina atendeu, dizendo:
– Olá! Então, como correu com o Cónego Jeffries?
– Bem, como sempre, ele gosta tanto de mexericos! Sabes, juro que o
homem é gay. Seja como for, agora já posso terminar o meu artigo sobre
Glastonbury versus Deus e, depois, tudo o que falta é a tua reportagem
exclusiva sobre a festa dos Roswells. A propósito, como foi? Imagino que lá
estivesse toda a gente, tirando moi, é claro. Deixa que te diga, não é nada
divertido ser a Cinderela na minha idade! Até as fadas-madrinhas andam à
procura de modelos mais novos…
Lançando um olhar de relance a Annabelle, Sabrina disse:
– Vou escrever qualquer coisa e mando-te por email. Quando é a próxima
reunião?
– Algures durante a semana que vem, na quinta, acho, para terminarmos a
próxima edição. Mas diz-me, o Cameron Mitchell estava na festa? Viste-o?
– Mais ou menos – respondeu Sabrina. – Mas receio que vás ter de esperar
até nos encontrarmos para te contar. O Robert vai para Washington amanhã e
quero fazer algo especial para o nosso jantar, esta noite.
Quando desligou, Annabelle ergueu-se da mesa e foi pôr a taça na pia.
– Deves ter feito grande asneira, para ele não falar contigo e lhe estares a
tentar dar graxa com jantares especiais – comentou –, mas suponho que não me
vais dizer o que foi, portanto, vou lá para cima para o meu quarto.
– Antes de te ires embora – disse Sabrina –, como te tens sentido?
Continuas com náuseas?
– Estou bem, tirando aquilo de vomitar, mas tu assististe, por isso, já não é
novidade.
– Contaste a alguém?
– Nem pensar. Nem sequer à Georgie. Não queria acabar a ter ainda mais
gente a olhar especada para mim. Ou acabar expulsa, já agora. Seja como for,
aí vem o Robert, portanto, vou deixar-te a engraxá-lo. Boa sorte – e, acenando
para a mãe de dedos cruzados, foi-se embora.
Sentindo uma horrível agitação interior quando Robert abriu a porta,
Sabrina sorriu afetuosamente ao dizer:
– Olá, tudo bem?
– Está tudo bem – respondeu Robert abruptamente, indo desligar o
carregador do telemóvel da tomada.
Passando por cima do tom brusco do marido, Sabrina disse:
– Para o jantar, pensei em fazer umas costeletas de borrego com o molho
de rosmaninho e hortelã de que tanto gostas. Queres batatas gratinadas ou
assadas, a acompanhar?
– Na verdade, vou para Heathrow esta noite – disse Robert. – O meu voo é
às nove da manhã, portanto, faz mais sentido passar a noite num hotel próximo.
– Percebo – disse Sabrina com cuidado. – OK, bem, posso sempre
congelar o borrego e cozinho-o quando voltares.
Sem responder, Robert pegou no jornal que deixara em cima da mesa e foi
para o quarto começar a fazer as malas.

– A mãe acabou de ligar – disse Nat, de pé na ombreira da porta do quarto


de Darcie. – Chega daqui a dez minutos.
Darcie ergueu o olhar do computador. Os seus olhos continuavam
avermelhados de chorar, mas mostrava-se agora mais animada.
– Ela disse como correu? – perguntou.
– Só disse que está a haver progressos e que nos contará tudo quando
chegar.
Darcie acenou com a cabeça.
– Vais dizer-lhe que o tio Robert veio cá?
– Não. Acho que não lhe devemos dizer nada. Só a vai enervar e fazer
ficar ainda mais preocupada, e ela já tem preocupações que cheguem.
– Quê, achas que a devemos deixar pensar que está tudo bem na escola?
Apercebendo-se de como aquilo iria ser difícil para a irmã, Nat disse:
– Bem, é o que eu vou fazer, mas, é claro, se tu quiseres…
– Não, vou fazer o mesmo que tu – interrompeu-o Darcie. – Também não
quero que ela se preocupe, nem tu. Sou capaz de lidar com isto – e,
levantando-se da frente do computador, aproximou-se do irmão e abraçou-o. –
Quem me dera que o pai estivesse aqui – disse numa voz quebrada. – Esforço-
me por me convencer de que as coisas não são horríveis sem ele, mas são.
Nat abraçou-a com mais força.
– Eu sei – sussurrou, encostando a cabeça dele à dela. – Lamento imenso a
forma como toda a gente te está a tratar. Não devias ter de aturar coisas
daquelas por minha causa.
– É por causa dela – lembrou Darcie num tom acalorado. – Se ela não
tivesse dito todas aquelas mentiras, isto não estaria a acontecer.
– Eu sei, mas…
– Estou mesmo contente por ter gritado com ela – continuou Darcie. –
Agora, arrependo-me de não ter ido lá dar-lhe um murro. Odeio a Annabelle
por aquilo que ela está a fazer e também já não gosto lá muito do tio Robert.
Ele devia obrigá-la a contar a verdade para isto tudo terminar.
– Há de terminar em breve – disse Nat. – Mas, agora, sê forte e deixa a
mãe pensar que está tudo bem.
Voltando para o seu quarto, Nat fechou a porta e foi sentar-se ao
computador. Havia mais sites sobre suicídio do que imaginara – tantos, que
mal sabia por qual optar. Contudo, o que tinha agora na frente seria
provavelmente o escolhido, porque a maneira de morrer que sugeriam parecia
rápida e fácil e não seria demasiado traumatizante para quem cá ficava, ou,
pelo menos, era o que diziam. Pensar na mãe e em Darcie e em como
reagiriam quando o encontrassem deu-lhe um nó na garganta. Não lhes queria
fazer aquilo, queria cá estar para cuidar delas, para se assegurar de que
ninguém lhes fazia mal, mas estavam a sofrer por causa dele – assim, que
escolha lhe restava? Se tivesse a coragem e os meios necessários, fá-lo-ia
naquele preciso instante, mas não tinha – por isso, colocando o site nos
favoritos, fechou-o e mandou um email a Jolyon. As coisas estão a ficar um
bocado difíceis para a minha mãe e a Darcie. Há novidades do Oliver?

– O fuinha não vai ter muitas dificuldades em decidir se vai levar este
caso avante – disse o sargento-detetive Clive Bevan, enquanto voltava com
Lisa para as instalações da EICS depois de acompanharem à rua um rapazinho
assustado e a respetiva mãe, ambos vítimas de agressão sexual pelo namorado
desta última, que vivia lá em casa. – Aposto que o nosso evasivo advogado da
Coroa gostaria que as coisas fossem tão claras e sólidas no caso Carlyle.
Anda a sofrer grandes pressões para reduzir a acusação.
– É engraçado falares nisso – disse Lisa, conduzindo-o à sala audiovisual
onde um dos seus colegas estava a analisar algumas partes da mais recente
gravação vídeo. – Esta manhã recebi uma chamada da Sabrina Paige, pedindo-
me para falar com a Annabelle.
– Ah sim? – disse Bevan, sentando-se na borda de uma secretária.
– Segundo a mãe, a Annabelle está a começar a ter pena do Nathan e da
irmã, por isso está a considerar desistir da queixa. A Sra. Paige acha que isto
pode ser um comportamento típico de uma vítima, pelo que gostava que eu
convencesse a filha a levar as coisas até ao fim.
Bevan fez uma cara feia.
– E que vais fazer? – perguntou.
– Falar com a Annabelle e descobrir o que ela está realmente a sentir. Mas
agora ela está nas aulas e eu, por aqui, tenho o horário bastante
preenchido.Provavelmente terá de ficar para a semana que vem.
Bevan olhou para o relógio para ver a data.
– Acho que o Nathan Carlyle tem uma audiência em tribunal dentro em
breve – disse –, a não ser que a Acusação ceda e faça a vontade aos
advogados dele. A Ash está totalmente envolvida no assunto, é claro. Tem a
mesma opinião que eu, que as mentiras do rapaz no início o vão tramar, por
isso também não facilita a pressão sobre o fuinha. Não queria estar no lugar
dele, isso de certeza, mas será interessante ver o que a jovem Annabelle tem a
dizer quando conseguires falar com ela.

– Alicia, desculpa o atraso – disse Jolyon, movendo-se velozmente pelo


restaurante do Hotel du Vin em direção a Alicia, que já o esperava sentada,
com os menus e um copo de vinho na frente. – Estes últimos dias por aqui
foram um caos. Como estás? – disse, cumprimentando-a com dois beijos nas
faces. – Agradeço-te teres-te dado ao trabalho de vir até cá de carro. Teria ido
eu até lá, mas nos próximos três dias tenho de estar no tribunal, e depois há a
audiência do Nat, e queria falar contigo antes de…
– Não há problema – tranquilizou-o Alicia. – Fico feliz por sair de Holly
Wood de vez em quando, sobretudo quando me ofereces um almoço assim.
Jolyon sorriu e, depois de pedir um copo de vinho também para si, disse:
– Conheço o menu bastante bem, por isso podemos pedir quando quiseres.
Depois de pedir uma salada de rúcula, pera, tomate e pinhões, Alicia
devolveu o menu ao empregado de mesa e olhou Jolyon atentamente.
– Desde que recebi a tua chamada, tenho andado entre a curiosidade e os
nervos, à espera de saber de que se trata – confessou. – Continuo a dizer a
mim própria que, se fossem boas notícias, não me terias feito esperar, mas
também não acho que me fizesses vir até cá para me dares más notícias,
portanto… – Alicia encolheu os ombros –… agora é contigo.
Com um sorriso caloroso, Jolyon disse:
– Primeiro que tudo, parece que a próxima audiência preliminar se vai
mesmo realizar. Como sabes, o Oliver está a fazer todos os possíveis para
fazer arquivar o caso, ou pelo menos para conseguir que reduzam as
acusações, e continua confiante de que vai conseguir uma das duas coisas. Só
é improvável que isso aconteça antes de quinta-feira, o que é uma pena,
porque, na minha opinião, o Nat já sofreu que chegue.
Alicia concordava totalmente.
– Recebeste o meu email a dizer como ele anda tenso, não recebeste? –
perguntou. – Está tão perto de se ir abaixo, que não sei quanto mais poderá
aguentar.
– Sim, recebi o teu email – disse ele –, e também recebi um do Nat, que
está preocupado contigo e com a Darcie. Não diz nada sobre os seus próprios
sentimentos, mas estão lá, nas entrelinhas. Ele está compreensivelmente muito
assustado e concordo contigo, acho que está perto de se ir abaixo. Era por isso
que queria que falássemos.
Engolindo em seco, Alicia continuou a olhá-lo nos olhos.
– Depreendo que ainda não falaste do caso do pai com ele – disse Jolyon.
Alicia abanou a cabeça.
– Tentei algumas vezes, mas ele não me deixa abordar o assunto e, para
dizer a verdade, não sei que dizer que o possa fazer sentir melhor.
Jolyon acenou com a cabeça de maneira sóbria, parecendo compreender a
posição em que Alicia se encontrava.
– O que estou a tentar dizer é que tanto o Oliver como eu achamos que ele
precisa de começar a lidar com o seu próprio sofrimento, antes que as coisas
vão mais longe. Em muitos aspetos, o Nat é como uma bomba-relógio, e não
vai ajudar nada se ele explodir à frente de um juiz.
Alicia baixou o olhar.
– Não, é claro que não – murmurou.
– Ele nunca discutiu o assunto comigo – continuou Jolyon –, mas sei que
está muito zangado e confuso. O pai dele despenhou-se daquele pedestal de
que falámos antes, e o Nat não sabe como colar os bocados. Posso entender
que não se sinta capaz de falar contigo, porque não vai querer fazer-te lembrar
de como sofreste por causa da traição do Craig, e tenho a certeza de que parte
do problema dele é tentar lidar com a tua dor. Tu significas mais para ele do
que qualquer outra coisa e tudo o que ele pode ver, neste momento, é que o pai
dele, o seu ídolo, se portou de uma forma que vai contra tudo o que sempre lhe
ensinou. Não duvido de que ele pense que odeia o Craig e gostasse de poder
descobrir uma maneira de o castigar, mas a morte não o permite, portanto,
junto com tudo o resto, o desgosto, o amor, o medo do que vai acontecer no
futuro, esses sentimentos estão a acumular-se dentro dele. Temos de arranjar
alguma maneira de o Nat os libertar e, provavelmente, tu és a única pessoa que
pode fazê-lo. Como mãe dele, podes, até certo ponto, falar pelo pai, e isso
ajudá-lo-ia mais do que qualquer outra coisa neste momento; ouvir algo do pai
que lhe permita lidar com o resto das coisas.
Recostando-se na cadeira quando lhes trouxeram a comida, Alicia mal via
o prato na sua frente enquanto pensava no que fazer. Apesar de as palavras de
Jolyon fazerem sentido, e de ela estar pronta a fazer o que quer que fosse para
ajudar o filho, não sabia realmente por onde começar.
Depois de o empregado se ir embora, disse:
– Se o conseguir convencer a falar sobre o caso do pai… Digo-lhe o
quê…? Que tipo de pormenores lhe devo revelar?
– Provavelmente, não te deves alargar muito – respondeu Jolyon –, mas
trata-o como um adulto. Admite que foi mesmo difícil para ti, que é algo que
lhe vai custar ouvir, mas se ele souber que continuaste a amar o pai apesar do
que ele te fez, pode ser-lhe mais fácil perdoar o Craig. Diz-lhe como foram as
coisas entre ti e o Craig depois do caso. Ele precisa de saber que o pai morreu
amando-te a ti e à família, e não desejando estar com outra pessoa.
Alicia sentia o coração palpitar dolorosamente.
– Entendo o que estás a dizer – respondeu – mas não sei se isso é verdade.
As coisas que a Sabrina disse, o stress com que ele andava perto do fim…
Não posso deixar de pensar que era porque queria estar com ela.
Apertando a mão de Alicia, Jolyon disse:
– Não acho mesmo que tenha sido o caso, mas é importante que o Nat
comece a ver o pai como um homem tão capaz de fraquezas de carácter, como
da força moral que ele lhe conhecia.
Já temendo a resposta, Alicia disse:
– Quando devo fazer isso?
Jolyon bebeu um gole de vinho enquanto pensava.
– Não seria sensato entrares logo a matar, pois podes fazer-lhe mais mal
do que bem. Pensa no assunto durante algum tempo, decide o que lhe vais
dizer e como vais falar com ele, e depois certifica-te de que estás sozinha em
casa com ele quando chegar a altura. Entretanto, estás à vontade para me
ligares a qualquer hora, se houver alguma coisa que queiras discutir ou
perguntar.

– Sim, sou a Sra. Paige – disse Sabrina ao telefone.


– Bom dia, é do consultório da Dra. Feverel – disse a voz do outro lado da
linha. – Estou só a ligar para confirmar a marcação da Annabelle para depois
de amanhã, às dez.
– Ah, sim, obrigada – disse Sabrina. – Ela não vai faltar.
– A Annabelle sabe que não pode comer nem beber nada durante as doze
horas anteriores, não sabe?
– Sim, sabe, mas, para dizer a verdade, é o pai que a vai levar aí.
Sabrina optou por não dizer “padrasto” pois, da forma que as coisas
estavam hoje em dia, alguém podia imaginar que Robert era o violador.
– Não há problema – disse a rececionista.
Sabrina queria explicar por que motivo, sendo mãe de Annabelle, não
estaria lá, mas, a não ser que mentisse, coisa que considerou, teria de admitir
que Annabelle não a queria presente. Não eram palavras que pudesse dizer em
voz alta a alguém, nem mesmo a ela própria, por isso, depois de agradecer
educadamente à rececionista, desligou o telefone e soltou um suspiro trémulo.
A seguir, fazendo o seu melhor para afastar a rejeição que sentia, tanto da
parte do marido como da filha, virou-se para um problema com que poderia
lidar mais facilmente: a gráfica e a sua exorbitante nova tabela de preços.

Alicia estava sentada no chão, no escritório da mãe, cercada pelas cartas


antigas do pai. A vontade de as ler tinha-se apossado dela repentinamente,
quando estava com Cameron a inspecionar um celeiro meio abandonado nessa
manhã e, quando chegou a casa, ainda não desaparecera.
Era estranho, pensava Alicia agora, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo
rosto, como os sentimentos podiam surgir assim de repente, com tal força que
pareciam ter palavras para se fazerem ouvir. Não havia forma de explicar a
súbita necessidade que sentira de entrar em contacto com o pai pela única via
que tinha – ela estava simplesmente ali, uma insistência firme, mas suave, que
a acompanhara até se sentar, meia hora antes, com aquela caixa pequena a
abarrotar.
As linhas manuscritas estavam demasiado desfocadas para que
conseguisse ler a carta que segurava na mão pela segunda vez, mas fá-lo-ia
logo que se conseguisse recompor. De dentro dela, murmúrios de gratidão
pediam para ser ditos, mas, quando Alicia tentou, foram desfeitos pelos seus
soluços. Fora realmente o pai que a guiara até àquela caixa, naquele dia? Teria
ele, de alguma outra dimensão, de alguma forma mística, conseguido fazer
chegar o seu conselho aos seus pensamentos, para que ela encontrasse aquela
carta numa altura em que não poderia estar mais necessitada?
– Obrigada – conseguiu finalmente dizer, apertando a carta contra o peito.
– Obrigada, obrigada.
Durante dias, desde que falara com Jolyon, tentara encontrar uma maneira
de abordar Nat, e agora, depois de ler aquela carta, sabia exatamente como o
fazer.
Capítulo Vinte e Três
– Sabrina, porque estás sempre a ver as horas? – queixou-se June. – Estás
à espera de alguém? Ou tens outro compromisso?
– Desculpa. Estou à espera de uma chamada do Robert, mas ainda deve ser
demasiado cedo.
– Bem podes dizê-lo. Ainda só são quatro e meia da manhã na Costa Leste
dos Estados Unidos.
– Ele já voltou ontem – disse Sabrina. – Teve de ir a Londres… Tinha de
estar presente numa reunião importante e eu… Bem, eu não paro de pensar em
como estará a correr.
– Então, porque não lhe telefonas para saber?
– Ainda não deve ter acabado. Vou tentar daqui a uma hora. Mas diz, achas
que temos o próximo número praticamente pronto?
June recostou-se e cruzou os braços. Estavam as duas no escritório que
normalmente usavam, na parte de trás da antiga mansão convertida em
apartamentos onde June morava. Naquele momento, um grupo de turistas
passeava diante da janela aproveitando para espreitar o interior.
– Mais ou menos – respondeu June, ignorando a assistência –, tirando o
artigo sobre a festa dos Roswells, que não está completo, pelo menos não de
acordo com aquilo que ouvi.
Sabrina mexeu-se desconfortavelmente na cadeira, sentindo o hematoma no
lábio superior pulsar como um farol intermitente.
– A minha cabeleireira, que por acaso também é a cabeleireira da Felicity
Singer-Smythe – disse June num tom suave –, contou-me que a Alicia te
mandou um soco e depois o Robert despejou a bebida dele no teu vestido e te
arrastou para casa. Portanto, que diabos se passou?
– Não há mais nada a contar para além disso – respondeu Sabrina,
empenhando-se ostensivamente em se concentrar no que estava a fazer.
– Mas porque te bateu ela? – perguntou June. – Com certeza não chegou
assim à tua beira e te deu um murro de repente…
– Eu disse algo – interrompeu-a Sabrina. – Quer dizer, ela disse algo,
depois eu respondi e as coisas descontrolaram-se e, sendo ela a histérica que
é, agrediu-me. Caí para cima do Robert e ele entornou a bebida por cima do
meu vestido creme, que ficou completamente estragado, graças a ela. Mais de
mil libras para o caixote do lixo. Seja como for, o Robert só ouviu o fim da
discussão, por isso, acha-me responsável pelo que aconteceu, embora tenha
sido ela a atacar-me, pelo amor de Deus! Põe-me doente ver como ele a
defende sempre. Estou a pensar deixá-lo. Pode ser que o choque o ensine a dar
mais valor à esposa, que sempre o apoiou e lhe foi leal em todas as
circunstâncias.
Exceto quando estavas a ter um caso com o cunhado dele, teve June
vontade de referir, mas teria sido cruel, pelo que, ao invés, disse:
– Se fosse a ti, pensava mesmo a sério antes de tomar uma decisão
precipitada como saíres de casa, não se vá dar o caso de ele não te deixar
voltar.
Sabrina tremeu diante da perspetiva.
– Não estava a falar mesmo a sério – disse Sabrina. – Estou só a chegar ao
fim da minha paciência com o Robert e já não estou a conseguir comunicar
muito bem com ele. Algo se passa naquela cabeça, posso-te garantir, mas ele
não me quer dizer o quê. Tudo o que sei é que parece ter formado algum tipo
de laço com a Annabelle, o que é uma coisa boa, como é óbvio, mas começo a
sentir-me excluída na minha própria casa.
– Provavelmente, deve andar a sentir-se stressado por algum motivo –
disse June caridosamente –, já sabes, é muito típico dos homens.
– Hmm – murmurou Sabrina, num tom de dúvida. A seguir, depois de um
suspiro trémulo, disse: – É engraçado, não é, como parece sempre que damos
mais valor a alguém quando achamos que podemos perder a pessoa?
– Nem me contes – respondeu June, revirando os olhos. – E tu já conheces
bem a sensação, depois da situação com o Craig.
Sabrina olhou para ela imediatamente e, a seguir, desviou os olhos de
novo.
– O que existia entre mim e o Craig era… Bem, era diferente – disse. –
Quer dizer, era especial e apaixonado… Significava tudo para mim, é claro,
mas o Craig já cá não está e o que existe entre mim e o Robert… O que nós
partilhamos… Bem, suponho que não há nada mais importante para mim.
Foi somente ao dizer estas palavras que Sabrina se começou a aperceber
da sua verdade e, de súbito, sentiu mais medo do que alguma vez sentira em
toda a sua vida.

***

A Dra. Feverel era uma mulher de meia-idade de aspeto gentil, cabelo


grisalho perfeitamente penteado e um sorriso fácil.
– Não tens de te preocupar com nada, Annabelle – disse num tom afetuoso.
– Dentro de umas horas já vais estar de novo a caminho de casa.
Annabelle olhou para Robert com uma expressão preocupada. Robert
sorriu de maneira tranquilizante e apertou-lhe a mão.
– Achas que vá ligar à mãe para lhe dizer que já estamos aqui?
Annabelle acenou com a cabeça. Não conseguia falar, estava demasiado
nervosa por causa do que ia acontecer e da incerteza sobre se iria doer ou não.
Depois de a médica a levar para dentro, Robert saiu para a rua e abriu o
telemóvel. Havia duas mensagens de Sabrina e quatro chamadas não
atendidas, também dela, mas Nat devia comparecer em tribunal às dez e só
faltavam alguns minutos, por isso tinha de ligar primeiro à irmã.
– Robert – disse Alicia baixinho ao telefone –, houve um atraso. Ainda
estamos cá fora no vestíbulo, à espera para entrar, mas é proibido falarmos ao
telemóvel aqui.
– OK, só queria que o Nat soubesse que estou a pensar nele. Ele está bem?
– Acho que sim.
Alicia olhou para o filho, sentado no sofá de couro duro diante daquele
onde ela se encontrava, com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça
para baixo. Aquele tribunal de Taunton era muito mais intimidante do que o de
Wells. Advogados de peruca e togas negras passavam de um lado para o outro,
placas em folha de ouro indicavam as galerias para o público, a sala do júri e
os aposentos do juiz e, acima deles, havia uma série de impressionantes bustos
de mármore, dignos de qualquer tribunal importante. O edifício do Shire Hall
não cumpria outro fim senão o de albergar o tribunal e, apesar de Nat ir
comparecer outra vez diante de um Tribunal de Menores, esta era a primeira
amostra do que deveria esperar quando chegasse o julgamento a sério.
– Ligo-te mais logo – disse Alicia, apercebendo-se do olhar de censura de
um vigilante que acabara de detetar a infração e, terminando a chamada,
desligou o telemóvel e enfiou-o no bolso.
Nat não ergueu a cabeça quando Jolyon fez sinal a Alicia para se juntar a
ele aos pés da escada suspensa, nem mostrou sinais de tentar ouvir a conversa
entre o seu advogado e a mãe.
– Presumo que ainda não tiveste hipótese de lhe mostrar a carta?
– Não. De momento, a Darcie anda muito carente e tem sido difícil passar
algum tempo a sós com ele. Mas hoje ele vai faltar à escola o resto do dia,
portanto espero ter oportunidade esta tarde. Mas não tem importância para o
que se vai passar esta manhã, pois não?
– Não é provável – respondeu Jolyon –, mas quanto mais cedo o fizeres,
melhor. – Jolyon olhou-a intensamente nos olhos. – Obrigado por me deixares
ver a carta – disse. – Imagino que tenha tido um efeito profundo em ti.
Alicia acenou com a cabeça e engoliu em seco: Jolyon tinha inegavelmente
razão.
– Mas o mais importante é o efeito que poderá ter no Nat – disse.
Jolyon não discordou e, quando o funcionário os chamou para a sala
número um do tribunal, indicou com um gesto a Alicia que fosse buscar Nat,
esperando depois que ambos se lhe juntassem para entrar na sala.

Não era a coisa mais fácil que Robert alguma vez fizera, mas também não
esperara que fosse, uma vez que nunca tinha lidado com assuntos do foro
ginecológico de raparigas adolescentes. Contudo, enquanto conduzia o carro
que o levava a si e a Annabelle de volta a casa, através de uma Londres
chuvosa em direção à M3, apercebeu-se de que a enteada não esperava que
ele fosse especialista naquilo por que acabava de passar – tinha somente de
colocar o tipo certo de questões e escutar quando ela tivesse vontade de falar.
– Não foi assim tão mau – disse Annabelle, movendo-se ligeiramente no
assento. – Quer dizer, não doeu nem nada assim. Não que quisesse passar pelo
mesmo de novo, entendes, mas, pelo menos, agora já está tudo tratado, por
isso a nossa vida pode voltar ao normal.
Isso nunca vai acontecer, pensou Robert tristemente para si mesmo.
– Estás desconfortável? – perguntou, quando Annabelle mudou de novo de
posição.
– Um bocadinho, mas não é grave. Tenho uns analgésicos que posso tomar
se a dor piorar.
A seguir, Annabelle ficou calada durante algum tempo, com a cabeça
reclinada no encosto do assento e os olhos semicerrados diante das apinhadas
ruas principais do sudoeste de Londres.
– Se calhar devíamos ligar à tua mãe – disse Robert pela terceira ou quarta
vez. – Ela deve estar à espera de saber notícias tuas.
Annabelle virou-se e olhou para ele.
– Amanhã, é suposto encontrar-me com aquela Lisa da EICS – disse. – Ela
vai lá a casa.
Robert acenou com a cabeça e carregou mais no acelerador, uma vez que
tinham acabado de entrar na autoestrada.
– Vão falar sobre quê? – perguntou num tom neutro.
Annabelle encolheu os ombros.
– Não sei. A mãe acha que estou a passar por uma fase típica de vítima,
por isso quer que a Lisa me esclareça as ideias, como ela diz.
– E achas que estás só a passar por uma fase? – disse. – Ou gostavas
simplesmente que tudo isto terminasse?
– Bem, é claro que gostava que terminasse, mas não tenho a certeza se
devo deixar o Nat livrar-se assim. Quer dizer, ia sentir-me muito mal se, mais
tarde, descobrisse que ele fez o mesmo a outra rapariga e eu o podia ter
impedido.
Lançando-lhe um olhar rápido, Robert disse:
– Isso és tu a falar ou é a tua mãe?
Annabelle refletiu no assunto.
– Um pouco de ambas, suponho, mas ela tem razão, não tem? Não se pode
deixar alguém safar-se de algo tão grave como uma violação.
Robert esteve a ponto de lhe perguntar se ela sabia realmente o significado
da palavra “violação”, mas, intuindo que a enteada poderia ficar ofendida,
disse antes:
– Sabes que o Nathan foi hoje a tribunal?
A forma como Annabelle desviou o rosto sugeria que sabia.
– Daqui em diante, as coisas vão ficar muito sérias – disse Robert num tom
grave. – Não que já não o sejam, mas parece que da próxima vez vai ser um
julgamento real, com um juiz a presidir à sessão e os advogados dos dois
lados a defenderem cada um o seu caso. Não vai ser agradável ver todos os
teus segredos discutidos assim, numa sessão aberta. O advogado do Nat vai
tentar passar uma imagem o mais negra possível de ti.
Annabelle ficou em silêncio durante algum tempo, digerindo a informação,
antes de dizer:
– Na verdade, não vou lá estar. Vou testemunhar por videoconferência, por
isso não vai ser assim tão mau.
– Não, é o Nat quem vai ter de enfrentar o júri.
– Mas todos os criminosos têm de o fazer – lembrou Annabelle.
– De facto, mas, por vezes, as pessoas inocentes também se podem ver
nesta situação, e serem acusados de algo que não fizeram é ainda muito pior
do que se tivessem mesmo cometido o crime.
– Isso seria terrível – concordou Annabelle –, mas o Nat fez mesmo
aquilo, Robert, a sério.
Não era a resposta que Robert desejava.
– A sério? – repetiu ele, desanimado.
Annabelle engoliu em seco, baixando os olhos.
– Sim – disse –, mas… Bem, seja como for, não quero falar mais disso – e,
ligando o telemóvel, marcou o número de Sabrina.

Tal como Jolyon e Oliver haviam prometido, a última audiência preliminar


revelara-se apenas mais uma formalidade que era necessário cumprir, desta
vez para marcar uma data para a audiência de conciliação e julgamento que
fora agendada para o dia sete de outubro, cerca de quatro semanas mais tarde.
Depois de terem almoçado com Jolyon num pub, Alicia conduziu Nat de
volta à Coach House, desejando, durante todo o caminho, conseguir dizer o
que quer que fosse para aligeirar a disposição do filho, nem que fosse por um
breve instante. Contudo, preparava-se para o confrontar com algo que poderia
mergulhá-lo ainda mais nas trevas do desespero e, apesar de dar qualquer
coisa para trocar de lugar com o filho, sabia que ele tinha de fazer aquela
viagem sozinho. Ela estaria a seu lado, é claro, e rezava para que, ao libertar
todas aquelas emoções reprimidas, o filho descobrisse dentro dele novas
reservas de energia para enfrentar as provações que se seguiriam.
– Antes de ires lá para cima – disse Alicia, quando entravam ambos pela
porta da frente –, há uma coisa que quero mostrar-te.
Não parecendo particularmente interessado, Nat limitou-se a despir o
casaco e dirigiu-se para a cozinha.
– Porque não vais antes para a sala de estar? – sugeriu Alicia. – Eu levo-a
até lá.
Fazendo o que a mãe dizia, Nat sentou-se pesadamente na ponta do sofá e
apoiou a cabeça numa das mãos enquanto esperava. Quando a mãe entrou,
olhou-a enquanto ela pousava uma caixa de aspeto velho e gasto na mesa de
centro em frente dele, sentando-se a seu lado no sofá.
– O que é? – perguntou Nat, enquanto Alicia tirava a tampa.
– São as cartas que a avó guardou ao longo dos anos. A maioria é do avô,
mas também há de outras pessoas. E até há algumas tuas e da Darcie quando
eram pequenos.
A seguir, Alicia passou-lhe uma folha de papel algo amarrotada, coberta
por uma caligrafia infantil e com estrelinhas de muitas pontas e uma grande
meia-lua desenhada no cimo. Querida avozinha, leu Nat, obrigado pelos
peluches que me deste e por me levares ao zoo. Foi muito bonito e eu gostei
de todos os animais, especialmente dos leões. Obrigado por me levares lá.
Adoro-te, Nat.
Erguendo ligeiramente as sobrancelhas, Nat devolveu a folha à mãe.
Pegando nela, Alicia reuniu coragem e disse:
– Há uma carta em particular que gostava que lesses.
Encolhendo os ombros, Nat estendeu a mão. Alicia não lhe passou o
envelope que segurava. Em vez disso, olhou-o e disse:
– É uma carta do pai para a avó, escrita há um ano.
Alicia viu a mão de Nat recuar e, quando o filho ergueu os olhos, estes
cintilavam com uma dolorosa expressão de desconfiança – de hostilidade, até.
– Acho que irá explicar as coisas muito melhor do que eu seria capaz de
fazer – disse Alicia num tom brando.
Nat começou a abanar a cabeça em recusa.
– Por favor – insistiu Alicia, puxando-o suavemente para baixo de novo,
quando Nat fez menção de se levantar. – Faz isto por mim. Eu sei que não vai
ser fácil, mas gostava mesmo que tentasses.
Os olhos de Nat regressaram à carta. O seu rosto perdera toda a cor e
parecia mais tenso que nunca.
– Que é que diz? – perguntou abruptamente.
Inspirando, Alicia convocou a sua coragem de novo e disse:
– Ele fala do que se passou com a Sabrina, e porquê… Não, Nat, senta-te,
por favor – exclamou Alicia, agarrando o filho antes que este se pudesse
erguer. – Eu sei que estás ao corrente do caso deles, por isso precisas de ler
esta carta. Ouvires o que o teu pai tem a dizer em primeira mão é a única
maneira de o compreenderes e, talvez, perdoares.
Os olhos de Nat continuavam a brilhar com um misto de angústia e
resistência quando olhou para a mãe.
– Toma – disse Alicia e, agarrando-lhe no pulso, colocou-lhe a carta na
mão.
Durante um longo momento, Nat limitou-se a segurá-la, olhando fixamente
para o nome e a morada da avó escritos na frente do envelope. A caligrafia era
tão familiar que lhe custava vê-la, mas, ao mesmo tempo, não conseguia
desviar o olhar. Tinha demasiado medo de fazer aquilo. Não tinha coragem de
ler as palavras do pai e ouvir a voz dele dentro da sua cabeça, sabendo que
seria a última vez. Seria como se o pai tivesse ressuscitado, apenas para
morrer de novo. Nat desejava tê-lo de volta com tanta intensidade que o fazia
sofrer a todos os momentos do dia. Nem sequer conseguia contemplar as
fotografias do pai por mais de um instante, portanto, como iria ser capaz de ler
uma carta inteira?
Pegando no envelope de novo, Alicia retirou as páginas do seu interior,
desdobrou-as e voltou a colocá-las na mão do filho.
– Vai ficar tudo bem – garantiu-lhe. – Vais ver.
Nat engoliu em seco para tentar eliminar o nó que crescia na garganta e
olhou para as duas primeiras palavras, Cara Monica, e depois, ao fim de
alguns instantes, deu consigo a ler o que se seguia.
Sentei-me à mesa muitas vezes para escrever esta carta, mas nunca
consegui encontrar a maneira certa de começar, muito menos de explicar a
loucura que se apoderou de mim, acabando por causar uma dor tão grande
à sua família e o afastamento que agora existe entre si e a Alicia.
Embora vocês as duas falem regularmente ao telefone, e a Monica saiba
que é sempre bem-vinda em nossa casa, é muito difícil para a Alicia não a
poder ir visitar aí. Ela entende por que razão lhe pediu para ficar longe de
Holly Wood e, uma vez que não quer dar de caras com a Sabrina na aldeia,
ou causar-lhe mais preocupação e perturbação, depois da discussão terrível
que ambas tiveram à sua frente, não tem insistido em ir. Também não estou a
fazer com que mude de ideias. O meu objetivo é apenas tentar pedir
desculpas por toda a infelicidade e angústia que as minhas ações vos
causaram. Seria demasiado esperar o seu perdão, quando eu próprio sou
incapaz de me perdoar, mas espero que acredite em mim quando lhe digo que
o meu amor por todos vocês é agora mais profundo que nunca.
Aquilo que aconteceu com a Sabrina foi, como disse atrás, uma loucura.
Mesmo agora, tenho dificuldades em explicar porquê ou como perdi todo o
juízo e toda a razão. Tudo o que posso dizer é que havia uma compulsão
dentro de mim que parecia alheia à integridade e à lealdade. Durante todo o
tempo que aquela ligação durou, odiei-me por isso e, contudo, era incapaz
de parar. Agora que já não estou sob o seu domínio, torna-se difícil
descrever aquilo que sentia ou pensava quando as coisas se estavam a
passar. Tudo o que sei agora é que, no mais fundo do meu coração, gostaria
que aquilo nunca tivesse começado.
Desde que entrei na vida da Alicia, a Monica fez-me sentir um membro
amado e bem-vindo da vossa família, por isso, saber como lhe paguei esse
afeto faz o peso da minha culpa ainda mais difícil de suportar. Não peço
pena, preciso simplesmente que saiba o quanto a respeito e gosto de si e
como realmente lamento que todos os momentos maravilhosos que passámos
juntos em Holly Wood tenham chegado ao fim. Sei o quanto a Alicia e os
miúdos sentem falta de a visitar, mas espero que, em breve, a sua saúde
melhore o suficiente para que a Mónica possa voltar a visitar-nos aqui. Se
preferir que eu não esteja quando vier, irei compreender perfeitamente e
agirei em conformidade.
Monica, não existem palavras para descrever o quanto amo a sua filha,
e peço-lhe que acredite em mim quando digo que, durante toda a relação
com a Sabrina, isso nunca mudou. Os sentimentos que eu nutria por ela
eram algo completamente à parte, como se pertencessem a outra existência,
talvez mesmo a outro homem. Emergiram de uma fraqueza dentro de mim
que eu nunca soube que existia, até que esta assumiu o controlo. É difícil
dizer se a fraqueza ou este outro homem ainda existem. Gosto de pensar que
não, mas, na minha profissão, aprendi como mesmo a pessoa mais forte pode
por vezes fraquejar e como todos nós somos capazes de fazer coisas que, em
condições normais, acharíamos impensáveis ou, até, abomináveis. Sinto-me
aliviado por dizer que o meu desvio de carácter não me levou para os
domínios da criminalidade grave, embora, às vezes, desejasse que houvesse
um castigo adequado às minhas ações que pudesse, talvez, libertar-me da
minha culpa e devolver confiança e felicidade autênticas ao coração da
Alicia.
Tenho a certeza de que, todos os dias do resto da minha vida, hei de
perguntar a mim mesmo por que motivo um homem que tinha tudo pôde
arriscar-se a perdê-lo, como eu fiz, e por tão pouco. Não é minha intenção
diminuir a Sabrina com este comentário; estou apenas a tentar ilustrar
como a Alicia é importante para mim, e como, na verdade, o sexo é
insignificante, quando pesado em comparação com todas as coisas que
realmente importam na vida. Quero que saiba que a Sabrina é uma mulher
boa e admirável que, entristece-me dizer, também perdeu a noção do que é
correto durante algum tempo. Devido às cartas que ela ainda me manda e às
mensagens que, ocasionalmente, deixa no meu telemóvel, sei que continua a
ter dificuldades em aceitar o fim da nossa ligação. Tentei falar com ela, uma
ou duas vezes, mas não adiantou. A Sabrina parece convencida de que só
fiquei com Alicia por causa dos miúdos e que, mal a Darcie saia de casa,
vamos poder ficar juntos. Se ela alguma vez lhe disser uma coisa destas,
quero garantir à Monica que não é verdade. Se alguma vez dei à Sabrina
razões para acreditar que tinha planos para abandonar a minha família,
quer agora quer em qualquer altura no futuro, foi totalmente involuntário
da minha parte, porque nunca sequer considerei tal hipótese. Lamento
realmente que a Sabrina ainda esteja a sofrer, e aceito a total
responsabilidade pela forma como as minhas palavras e ações incautas
podem tê-la levado a esperar algo que nunca poderia vir a acontecer. As
ameaças que ela faz de acabar com a vida inquietam-me imenso, mas a
minha primeira preocupação são a Alicia e os nossos filhos, e gostaria de
acreditar que a Sabrina também se preocupa demasiado com o Robert e a
Annabelle para tomar uma atitude tão drástica.
Por receio de que esta carta se esteja a transformar num dos mais
longos mea culpa da história, vou agora deixar de falar de mim e virar a
minha atenção para duas das mais brilhantes estrelas do seu céu, o Nathan
e a Darcie. Sei que a Alicia a mantém regularmente informada sobre a vida
deles e lhe envia cópias dos seus relatórios escolares, por isso deve ter
consciência da velocidade furiosa a que ambos estão a crescer. Agora, a
Darcie começa realmente a florescer, cada dia mais parecida com a mãe
dela, embora, muitas vezes, se comporte como a minha! Entre nós, adoro a
forma como ela manda em mim, tratando-me como se fosse algum
delinquentezito, para depois vir ter comigo com os seus problemas, segura
de que serei capaz de fazer com que as coisas fiquem bem de novo. Isso é o
que esperamos dos nossos pais, não é? Que possam tornar o mundo um
lugar seguro, expulsando dele todas as coisas más. É uma experiência dura,
mas salutar, quando os nossos olhos finalmente se abrem e nos apercebemos
de que eles também são humanos. Por agora, acredito que ainda estou
seguro no meu papel de principal matador de dragões da Darcie, mas, como
ela própria me informou ainda ontem, quando lhe estava a contar o meu dia
no tribunal, não me devo armar demasiado. No geral, ela continua uma
senhorita tão cheia de vida e de carinho que faz com que voltar para casa,
todas as noites, seja um completo prazer. Ah, como adorava voltar a ver o
mesmo olhar de amor e confiança nos olhos da Alicia! Mas acho que
estamos a fazer progressos e, independentemente do tempo que demorar,
estou determinado a tê-lo de volta algum dia.
Sei que, mal comece a falar do Nat, a Monica vai iluminar-se, tal como
acontece com a Alicia. Por vezes, receio a popularidade que o meu filho vai
ter junto do sexo oposto e espero que isto não o distraia muito dos seus
objetivos, mas, simultaneamente, acredito que o respeito e o amor que o Nat
tem pela mãe vão sempre garantir que tratará bem as mulheres. Pelos
relatórios escolares dele, deve saber como tem tido bons resultados, tanto a
nível académico como nos desportos. O Nat é um jovem popular e alegre, às
vezes demasiado assertivo, mas provavelmente só estou a dizer isto porque
ele me venceu num debate sobre ambiente ontem à noite. Escusado será
dizer que o Nat pertence à equipa de debates da escola, e há uma boa
hipótese de todas as suas vitórias lhe começarem em breve a subir à cabeça.
Vamos ter de manter isto controlado, mas sem impedir que a sua confiança
continue a crescer.
Estou tão orgulhoso dele, Monica, que me vêm lágrimas aos olhos ao
escrever isto. Mas longe vão os dias em que podia sentá-lo nos meus joelhos
e envolvê-lo num abraço apertado, por isso, agora, tenho de encontrar
outras maneiras de mostrar como gosto dele. Espero fazê-lo durante o
tempo que passo com ele, seja ajudando-o com os seus trabalhos de casa,
discutindo e aconselhando-o sobre as suas escolhas ou, simplesmente,
divertindo-nos juntos, em “programas de homens”. Ele é uma companhia
fantástica, sempre cheio de opiniões, mas arguto e espirituoso de uma
maneira capaz de fazer a Alicia e eu rirmos até às lágrimas. Como ele adora
estes momentos! Posso ver nos seus olhos como se sente orgulhoso e feliz
por ter causado boa impressão. É em momentos como este, quando estamos
todos juntos como uma família, que percebo o quanto poderia ter perdido, e
como estou grato por a Alicia me ter permitido ficar com ela.
Como qualquer outro pai, muitas vezes pergunto a mim próprio o que
nos irá acontecer a todos no futuro, mas eu não tenho dúvidas de que o Nat
vai realizar as suas ambições. As coisas já estão definidas para ele ir para
Direito e, uma vez que continua mais determinado do que nunca a fazê-lo, já
estou a ansiar (ou talvez a recear) o dia em que tenha de enfrentar o meu
próprio filho em tribunal. Passo a vida a dizer-lhe que, nessa altura, não o
vou deixar ganhar, e ele promete que, apesar da avançada idade que terei
então (são as palavras dele!), também não me vai facilitar a vida.
Seria indesculpavelmente vaidoso da minha parte continuar para aqui a
gabar-me dos meus filhos, só queria que tivesse a certeza do quanto os amo.
Tenho grandes esperanças de que, muito em breve, as coisas mudem de
forma a que eles a possam visitar de novo. Monica, lamento realmente muito
o sofrimento que lhe causei. Foram imensas as vezes em que me senti mais
perto de si do que da minha própria mãe, e sei que é graças a si e à
influência que teve sobre a Alicia que os meus filhos se estão a transformar
em seres humanos tão maravilhosos. Por favor, acredite que, aconteça o que
acontecer, vou lutar sempre para corrigir os meus erros e vencer as minhas
fraquezas, para que os seus netos possam sentir tanto orgulho do pai como o
pai sente deles.
Com muito afeto, do seu Craig.

Nat manteve a cabeça baixa depois de acabar de ler, ocultando o rosto,


mas Alicia podia ver os ombros tremerem ligeiramente e quase sentiu as suas
defesas começarem a estalar e a quebrarem-se. Alicia sabia que o filho estava
agora perto do abismo, e preparou-se para o amparar; quando o coração de
Nat soltou o seu primeiro e terrível soluço, envolveu-o rapidamente nos seus
braços.
– Quero que ele volte, mãe – disse Nat numa voz sufocada –, quero que ele
volte!
– Eu sei, querido – disse Alicia numa voz reconfortante, com lágrimas
correndo também pelo seu rosto.
– Pai, pai, por favor, volta! – exclamou Nat desesperado.
Alicia abraçou-o com força e beijou-lhe o cabelo enquanto a violência do
desgosto de Nat explodia dentro dele. A mágoa sacudia-o e torturava-o,
arrastando-o para um espaço de perda insuportável. Nat caiu de joelhos na sua
angústia. Alicia ajoelhou-se ao seu lado e passou-lhe a mão pelas costas
enquanto o filho soluçava contínua e dolorosamente.
– Pai! – gritou de novo. – Por favor, pai, volta! Porque é que ele morreu,
mãe? Não está certo, não é justo!
– Eu sei, querido, eu sei – disse Alicia, ainda a chorar ela própria. – Mas
o que importa agora é o quanto ele te amava e como tinha orgulho em ti.
– Ele amava-te, mãe. Amava-te de verdade.
– Eu sei, querido.
Alicia sabia-o agora, assim como sabia que realmente tudo terminara entre
ele e Sabrina. O marido não andara a torturar-se, nem a desejar estar com
Sabrina, a ficar tão stressado com as saudades e com o coração tão pesado de
culpa ao ponto de isso acabar por o matar. Alicia desejava desesperadamente
poder dizer a Craig que, finalmente, acreditava que ele nunca a quis
abandonar, que confiava nele de novo e lhe perdoava do fundo do coração. Se,
pelo menos, a mãe dela tivesse aberto a carta, teria também sabido como o
genro estava realmente arrependido. Teria ajudado muito Monica sabê-lo.
Poderia ter feito diferença para todos eles, mas agora já não fazia sentido
nenhum ficar a pensar nisto. Não podiam mudar o que acontecera, só podiam
olhar em frente e sentir-se gratos por ela ter encontrado aquela carta na altura
em que a encontrou, porque era como se o próprio Craig tivesse entrado em
cena para ajudar o filho num momento em que Nat não poderia precisar mais
dele.
– Não o posso dececionar, mãe – disse Nat arquejante, com o rosto
devastado pelas lágrimas. – Não posso deixar que tudo isto me impeça de…
– Não vai impedir – sussurrou Alicia, afastando-lhe o cabelo para trás
enquanto o beijava no rosto.
– Tu perdoa-lo? – disse Nat numa voz quebrada. – Por favor, diz que o
perdoas. Acho que ele nunca te quis magoar, ele só… Ele só…
– Está tudo bem – disse Alicia, quando o filho ficou sem palavras. – É
claro que o perdoo. Esta carta… Bem, disse-me tudo o que eu precisava de
saber. Acho que agora podemos realmente começar a chorar pelo homem que
amávamos e que, sem dúvida, também sabemos que nos amava.

Mais tarde, nesse mesmo dia, enquanto Alicia foi buscar Darcie à escola,
Nat percorreu The Close até ao rio. Embora o corpo lhe doesse, e ainda
sentisse a cabeça latejante do muito que chorara, parecia não se sentir tão
oprimido nem tão tenso como antes. Depois de ler a carta e de se ir abaixo de
um modo que não queria que ninguém, para além da mãe, algum dia visse,
sentaram-se a falar sobre o pai durante muito tempo, partilhando as suas
memórias e contando coisas que nunca antes tinham contado um ao outro.
Riram e choraram muito mais e, durante uns momentos, ficaram calmamente
sentados, sem dizer nada enquanto liam a carta de novo.
Agora, quando Nat alcançou a margem do rio, com uma chuvinha fina
substituindo-lhe as lágrimas no rosto, deu consigo a dirigir-se para a ponte
pedonal que conduzia ao Copse. Era a primeira vez que se tinha encaminhado,
ou sequer olhado naquela direção desde aquela noite terrível. Não ficou
surpreendido ao ver que não havia agora nenhuma fita policial isolando a
cena, nem carros-patrulha ou equipas forenses entupindo a estrada, nem
multidões esforçando-se para espreitar o que estava a acontecer. Tudo havia
desaparecido e o local regressara ao seu estado de antes, tranquilo e frondoso.
Entrando na ponte, Nat percorreu-a até meio e ficou a olhar para o Copse,
para lá dela. Não havia ninguém por perto, e o único ruído que quebrava o
silêncio era o do rio a deslizar sobre as rochas. Nat não sabia bem porque não
queria avançar mais nem porque viera até ali de todo. Só sabia que os seus
passos o tinham conduzido naquela direção, quase como se tivessem vontade
própria.
Perguntava a si próprio se o pai o poderia ver agora, ler os seus
pensamentos ou olhar para dentro do seu coração. Sentia-se ligado a ele de
uma forma que não sucedia desde que o pai morrera, mas não fazia ideia se se
devia a algo que vinha das profundezas do seu ser ou a algo que o transcendia.
Era um debate que gostaria de ter com o pai, se havia vida depois da morte, ou
algo do género. Lágrimas novas picaram-lhe os olhos quando o futuro bocejou
vazio diante dele. Agora, nunca saberia a opinião do pai sobre aquele assunto
e, apercebendo-se disso, sentiu a ferida daquela terrível perda abrir-se de
novo, puxando-o para o seu interior.
– Estarei sempre presente para ti, filho – disse Craig quando saíam pelos
portões da escola, lado a lado. – Foi cometida uma injustiça e nós corrigimo-
la. Nunca tenhas medo de erguer a tua voz se tiveres razão, e sê o primeiro a
pedir desculpas se achares que erraste.
O assunto que o pai o fora ajudar a resolver na escola era agora
irrelevante. O que importava eram as palavras que dissera e a forma como ele
tomara como certo nesse dia, e em qualquer outro, que o pai sempre estaria
presente para ele.
Nat olhou para baixo, para o rio e, vendo o céu refletido na água, pensou
se o facto de estar a sentir o pai tão próximo significaria que este, de facto,
estava por perto. Nat queria acreditar que sim, mas, ao mesmo tempo, não
sabia se tinha a coragem necessária. Que lhe diria, pensou, se tivesse a
oportunidade de se despedir dele? Não sabia, não conseguia pensar, mas então
vieram-lhe à cabeça os poemas tolos de Darcie, e Nat engoliu em seco,
sorrindo com embaraço. Gosto muito dele, do fundo do coração, tê-lo por pai
é melhor que ter uma varinha de condão.
Ouvindo um barulho atrás de si, Nat voltou-se e, vendo Annabelle a pouca
distância, de pé na margem do rio, sentiu-se gelar por dentro. Temendo que
pudesse ser uma armadilha, saiu rapidamente da ponte e começou a correr
pelo caminho de volta. Mal chegou a casa, agarrou no telefone para ligar a
Jolyon e informá-lo de que acabara de infringir as medidas de coação.
– Não sei se ela me seguiu ou se foi só uma coincidência – disse –, mas
achei que tinha de comunicar isto antes que ela o faça, porque a última coisa
de que preciso é de ser detido outra vez por algo que não fiz.
Capítulo Vinte e Quatro
Não era normal Robert ver-se interrompido quando trabalhava no seu
escritório de manhã bem cedo, sobretudo por alguém a bater à porta. Em geral,
quando queriam falar com ele usavam o intercomunicador. Assim, foi com um
sentimento de contrariedade e desânimo que se apercebeu de que devia ser a
esposa a trazer-lhe um pequeno-almoço que não desejava, numa tentativa de
reconquistar as suas boas graças.
– Robert? Estás aí?
Surpreendido por ouvir a voz da enteada, Robert levantou-se
imediatamente e foi abrir a porta. Annabelle estava de pé sob a chuva
miudinha que caía, com um impermeável sobre a cabeça que lhe ocultava a
parte superior do rosto.
– Estás bem? – perguntou, apressando-se a fazê-la entrar. – Ainda não
estava à espera de te ver a pé.
– Já são dez e meia – disse Annabelle.
Piscando os olhos ao olhar para o relógio, Robert sorriu ironicamente
diante do comentário, mas, ainda preocupado com Annabelle por tudo aquilo
que esta passara no dia anterior, disse apenas:
– Como te sentes?
Ela encolheu os ombros.
– Estou bem. Um bocado… sabes… lá em baixo, mas de resto estou bem.
Presumindo que a palavra em falta fosse “dorida”, Robert disse:
– Tomaste os analgésicos?
– Ontem à noite, sim, mas agora estou bem. Só me sinto um pouco cansada
e farta de tudo… – disse, encolhendo os ombros.
E também chorosa, pensou Robert, olhando para ela mas sem o dizer.
– Então, a que devo esta honra? – perguntou amavelmente, indicando-lhe
com um gesto que se sentasse num dos seus sofás para visitas.
Annabelle sentou-se na beira do sofá, enrolou o casaco numa trouxa e
pousou-o no colo e, depois de esperar que Robert se sentasse também, disse:
– Eu pensei… Bem, na verdade, queria agradecer-te por me teres levado
lá ontem.
Comovido pela gratidão de Annabelle e o esforço que fizera ao ir até ali,
Robert disse:
– Foste muito corajosa e estou extremamente orgulhoso de ti.
Annabelle ergueu um ombro de novo, mas Robert não conseguiu perceber
se o gesto pretendia diminuir a importância do seu comentário ou se Annabelle
se sentia embaraçada. O que podia, sim, perceber, era que a enteada estava ali
para mais do que um mero agradecimento, mas deixá-la-ia explicar ao seu
próprio ritmo.
– Se dependesse de mim, já teria voltado para a escola hoje – disse ela,
percorrendo com o olhar o espaço à sua volta –, mas a minha mãe combinou
com a Lisa, tu sabes, a mulher da EICS, para ela vir cá hoje de manhã.
– Ah, sim – disse Robert seriamente. – A que horas vem?
– Às onze.
A seguir, inclinando a cabeça para um dos lados, Annabelle começou a
desenhar com o dedo arabescos invisíveis no braço do sofá. Robert observou-
a sem falar, enquanto esperava que a enteada convocasse as palavras que
parecia estar a ter dificuldades em encontrar.
– Ontem vi o Nat – conseguiu Annabelle finalmente dizer, mantendo os
olhos fixos no dedo.
– A sério? – disse Robert, mantendo um tom suave, apesar de sentir o
coração começar a bater mais depressa.
Annabelle acenou com a cabeça.
– Acho que… – Annabelle inspirou fundo, mas parecia estar quase a
soluçar. – Acho que ele tinha estado a chorar – disse. – Quer dizer, de onde eu
estava era difícil dizer com certeza, mas era o que parecia. Achei, quer dizer,
pensei se poderia ter algo a ver com a ida dele a tribunal ontem.
– Suponho que sim – disse Robert.
Annabelle olhou para ele de fugida e, depois, desviou o olhar de novo.
– Então, não sabes o que aconteceu?
– Se estás a perguntar se falei com o Nat ou a Alicia, a resposta é sim, e a
próxima audiência está marcada para sete de outubro. É nessa altura que vão
marcar a data do julgamento.
Annabelle manteve os olhos baixos à medida que o rubor lhe subia do
pescoço para as faces.
– Achas… – disse ao fim de algum tempo – Quer dizer… E se eu dissesse
que já não queria participar no julgamento? Eles cancelavam tudo?
Falando agora ainda com maior cautela, Robert disse:
– Provavelmente, mas também depende dos motivos que apresentasses. Se
queres desistir da queixa… É isso que estás a dizer?
Ainda sem olhar para ele, Annabelle continuou a desenhar círculos com o
dedo à volta do braço do sofá, até que, por fim, acenou com a cabeça.
– Acho que sim – disse calmamente.
Esforçando-se por ignorar o acesso de esperança que sentia no peito, de
modo a não se precipitar, Robert disse:
– Terias de ter mesmo a certeza.
Annabelle ergueu finalmente os olhos e Robert sentiu-se sobressaltado e
preocupado ao ver a sua expressão profundamente angustiada.
– Tenho a certeza – disse ela –, mas, se retirar a queixa, toda a gente vai
dizer que sou uma mentirosa, e não sou. Disse a verdade sobre o que
aconteceu.
Robert sentiu a boca totalmente seca.
– Queres dizer que ele te violou?
– Sim.
– Então, porque queres desistir da queixa?
Annabelle encolheu os ombros.
– Porque sim.
Robert esperou.
– Isto está a deixar toda a gente infeliz e nervosa e, se vai afetar o resto da
vida dele e da minha… Quer dizer, eu sei que vai, por isso… Não vale a pena,
pois não?
Recostando-se na cadeira, Robert refletiu uns momentos.
– Já falaste com a tua mãe sobre isto? – perguntou.
Annabelle recuou por um momento e olhou para Robert como se este fosse
louco.
– Nããão –respondeu. – Já sabes como ela é. Vai-se passar da cabeça.
Começando agora a compreender melhor as coisas, Robert disse:
– Então, estás à espera que eu o faça por ti?
Annabelle olhou-o com uma expressão de súplica.
– Ela vai tentar fazer com que eu mude de ideias, ou convencer a Lisa
Murray a fazê-lo, e não quero que isto continue – lamentou-se. – É uma
estupidez a forma como as pessoas andam a distorcer tudo e a insultarem-se
umas às outras. A Darcie não fez propriamente nada de errado, pois não? Não
entendo por que razão andam a tratá-la mal.
– Mas a questão aqui não é a Darcie, ou os insultos das pessoas – lembrou
Robert num tom grave.
– Eu sei, só estou a dizer. As outras cenas todas, as idas a tribunal e ele
ficar marcado para o resto da vida… Bem, isso também é uma estupidez. Não
é como se ele me tivesse realmente magoado… a sério. Quer dizer, sobrevivi,
não é verdade?
Decidindo levar o seu papel de advogado do diabo até ao fim, Robert
disse:
– Se ele te forçou, Annabelle…
– Não quero falar mais nisso – interrompeu-o ela bruscamente. – Só quero
dizer à mãe o que decidi.
Robert olhou para ela firmemente, ainda sem certezas sobre o caminho a
seguir.
– Por favor – insistiu Annabelle.
Robert suspirou e pressionou os dedos contra os olhos.
– OK, eu falo com ela – disse por fim –, mas tu também tens de estar
presente.
Parecendo bastante relutante, Annabelle disse:
– Só se prometeres que não me deixas sozinha com ela.
Robert teve de reprimir um sorriso.
– Dou-te a minha palavra de honra. Então, quando queres ter esta
conversa? Antes de a agente da EICS chegar ou quando ela cá estiver?
Annabelle refletiu.
– Não sei. Que achas melhor?
Robert pensou também durante uns momentos antes de responder.
– Pode ser melhor dar à tua mãe uma oportunidade para se acostumar à
ideia, antes de a agente aparecer.

Vendo Robert e Annabelle atravessarem o jardim, Sabrina sentiu uma


pontada de irritação e desconforto. Aqueles dois andavam a conspirar para a
excluir, urdindo entre eles uma amizade que a deixaria de fora por completo.
Sentiu-se repentinamente desorientada, impotente e como uma intrusa na sua
própria casa.
Fazendo os possíveis por refrear os seus medos, regressou rapidamente às
boas intenções iniciais, esvaziando a cafeteira para fazer café fresco e ligando
o forno para fazer… Tentou pensar no que queria fazer, mas não se conseguia
lembrar. Não importava, disse para si mesma, já lhe ocorreria. Entretanto,
tinha de tentar ver a relação entre Robert e Annabelle sob uma luz diferente,
não como uma conspiração para a tentar excluir. Independentemente dos
segredos que os dois pudessem partilhar, ou da aproximação que pretendessem
alimentar depois da experiência que tinham vivido juntos no dia anterior, de
certeza que isso só podia ser uma coisa boa. Quanto mais afeto Robert sentisse
por Annabelle, menos probabilidades haveria de fazer algo drástico, como
acabar com o seu casamento.
Este simples pensamento causava uma tal explosão de terror no seu íntimo,
que Sabrina levou velozmente as mãos à boca para deter um soluço arquejante
que emergia da sua garganta. Tinha de se acalmar, disse para si mesma, e
urgentemente. Tudo ia correr bem, só não podia deixar aquelas paranoias
ridículas tomarem conta dela.
Como, no dia anterior, tinha comprado os biscoitos amanteigados que
Robert adorava, colocou um guardanapo rosado num prato, retirou três do
pacote e dispô-los decorativamente, antes de colocar o prato na mesa ao lado
da correspondência que chegara para o marido.
– Bom dia – disse radiosamente quando Robert entrou. – Tinha esperanças
de que te apetecesse vir até cá tomar um café. – A seguir, virando-se para
Annabelle, perguntou, com uma expressão de profunda preocupação maternal:
– Como te sentes hoje?
– Estou fixe – mastigou Annabelle, parecendo tentar esconder-se atrás de
Robert.
Sabrina olhou para ela, depois para Robert, e, quando as campainhas de
alerta começaram a soar de novo na sua cabeça, o seu sorriso esmoreceu.
– A Annabelle decidiu que quer retirar a queixa – disse Robert, indo
direito ao assunto.
Ao ouvir aquelas palavras, Sabrina sentiu um choque que lhe entorpeceu o
raciocínio.
– Conversámos sobre o assunto – prosseguiu Robert – e penso que…
– Um momento – interrompeu-o Sabrina, com uma dureza na voz que
ignorava todas as suas apreensões. – Que queres dizer, que queres retirar a
queixa? – perguntou Annabelle. – Concordámos que íamos discutir o assunto
com a Lisa.
– Sim, mas…
– Não há “mas” nenhum – disse Sabrina agressivamente. – Não podes
acusar uma pessoa de violação, e depois, de repente, dizer que afinal não fez
nada.
– Não é isso que estou a dizer – exclamou Annabelle.
– Então, que estás a dizer?
– Que não quero ir para a frente com o processo.
Sabrina virou-se para Robert.
– Isto é obra tua, não é? – disse, acusadoramente. – Convenceste-a a
desistir para salvares o teu sobrinho. Assim, mais uma vez, a tua família vem
primeiro e a minha não conta para nada.
– Isso é um completo disparate – disse Robert zangado. – A Annabelle
tomou esta decisão sozinha, eu limitei-me a ouvi-la e a vir informar-te.
Voltando-se de novo para Annabelle, Sabrina lutou para encontrar as
palavras.
– Diz-me com sinceridade – conseguiu por fim dizer –, aquele rapaz
violou te?
– Sim, mas não interessa. Não quero que isto tome conta da minha vida,
como está a acontecer. Só quero que tudo acabe.
– Então, vais deixá-lo livrar-se impunemente?
Annabelle corou e desviou o rosto.
– E tu também – disse Sabrina a Robert. – Decidiste que um violador deve
safar-se sem consequências…
– Para com os exageros – atalhou Robert. – Ele é um jovem de dezassete
anos que pode ter compreendido mal uma situação, ou reagido excessivamente
no calor do momento…
– Não ponhas palavras na boca dela – gritou Sabrina. – Como sabes o que
aconteceu, se nem sequer estavas lá?
– Só estou a tentar ver as coisas com um outro olhar…
– Não, estás só a tentar ajudar a tua irmã e, de alguma maneira, conseguiste
convencer a minha filha a colaborar contigo.
– Ele não fez nada disso – gritou Annabelle. – Eu tomei a minha decisão
sozinha.
– A sério? Então, gostava de falar contigo a sós, minha menina, para
perceber exatamente o que se passa na tua cabeça.
– Nem pensar – respondeu Annabelle, encolhendo-se atrás de Robert. –
Não vou deixar que me tentes intimidar…
– Sabrina, por favor, tens de te tentar acalmar – disse Robert. – Está
alguém à porta e deve ser a agente da EICS, que deve ter chegado mais cedo.
– Ótimo – disse Sabrina furiosa, dirigindo-se ao átrio de entrada –,
esperemos que ela te meta algum juízo na cabeça, Annabelle, porque é óbvio
que alguém precisa de o fazer.
Depois de quase arrastar uma espantada Lisa Murray pela porta dentro,
Sabrina conduziu-a diretamente à cozinha, dizendo:
– Receio que a minha filha esteja a ter uma espécie de crise, por isso,
ficava-lhe muito agradecida se pudesse falar com ela e fazê-la ver a razão.
Lisa Murray olhou de Annabelle para Robert e de Robert para Annabelle
novamente.
– A Annabelle quer retirar a queixa – informou-a Robert.
Lisa escondeu a sua surpresa e olhou de novo para Annabelle.
– Está bem – disse a agente, com cuidado.
– Está bem? – repetiu Sabrina num tom mordaz.
Ignorando-a, Lisa disse:
– Posso saber porquê, Annabelle?
– Porque se aborreceu – disse Sabrina irada. – Está há demasiado tempo à
espera de ser novamente o centro das atenções…
– Sra. Paige – interrompeu-a Lisa –, penso que seria melhor falar com a
Annabelle a sós.
– Tens a noção de que toda a gente te vai chamar mentirosa, não tens? –
prosseguiu Sabrina. – Ela continua a dizer que ele a violou – disse, voltando-
se para Lisa –, mas…
– Sabrina, já chega – disse Robert num tom enérgico. – Ou te acalmas ou
sais daqui.
Sabrina explodiu, ultrajada.
– Como te atreves a falar-me assim? – berrou. – Quem tem quinze anos
aqui é ela, não sou eu…
– Então, deixa de te portar como se tivesses – disse Robert bruscamente e,
voltando-se para Annabelle, perguntou: – Queres falar com a Lisa a sós?
Ninguém te vai obrigar a fazer nada que não queiras, portanto, tu é que sabes.
Annabelle olhou para Lisa com uma expressão de incerteza. A agente
sorriu.
– O teu padrasto tem razão – disse. – Ninguém te vai obrigar a fazer nada.
Pressentindo outra explosão de Sabrina, Robert agarrou-a firmemente pelo
braço.
– Está bem – disse Annabelle. A seguir, voltou-se para a mãe, dizendo: –
Mas não vou mudar de ideias, por isso não te convenças disso.

Quando entrou na sala de estar com Annabelle, Lisa esperou que ambas
estivessem sentadas nos sofás antes de começar a falar.
– Tens a certeza absoluta de que é isto que queres?
Annabelle acenou com a cabeça.
– O teu padrasto não te influenciou de maneira nenhuma?
– Não! Só quero que isto tudo acabe para poder seguir com a minha vida.
– Mas continuas a dizer que o Nathan te violou?
– É a verdade.
– E ficas feliz por vê-lo livrar-se assim, sem ser castigado pelo crime que
cometeu?
– Feliz, não fico, mas é melhor que arruinar o resto da vida dele, sabendo
que a culpa é minha.
– Sendo tu a vítima, a culpa nunca pode ser tua, sobretudo tendo em conta
a tua idade.
– Sabe o que quis dizer.
Lisa observou-a atentamente.
– Nas duas ocasiões anteriores em que nos encontrámos, realcei a
importância de dizeres a verdade e que consequências poderias enfrentar se
não o fizesses. Portanto, se estás a mentir acerca do facto de o Nathan te ter
violado…
– Não estou a mentir – gritou Annabelle, começando a chorar. – Só não
quero que esta confusão toda continue.
– OK – disse Lisa, pondo-se de pé. – Se tens realmente a certeza, então
vamos falar outra vez com os teus pais.
Encontrando Robert e Sabrina ainda na cozinha, Lisa manteve a mão
pousada sobre o ombro de Annabelle ao dizer:
– Estou convencida de que a Annabelle está a ser sincera na sua decisão
de desistir da queixa por violação, por isso vou contactar o sargento-detetive
Bevan para o informar. Como compreendem, poderá haver repercussões…
– Que quer isso dizer? – perguntou Sabrina, claramente ainda muito
agitada.
– Só saberei depois de falar com o sargento-detetive Bevan.
– Bem, quando falar, pode dizer-lhe que, pelo menos, quero aquele rapaz
processado por relações sexuais ilícitas.
– Vou ligar-lhe do carro a caminho de Bristol – disse Lisa. – Tenho a
certeza de que terão notícias dele até ao fim do dia.

– Bem, aí está uma coincidência interessante – comentou Bevan depois de


ouvir as novidades de Lisa. – A Annabelle Preston muda de ideias no mesmo
dia em que o advogado da Acusação faz o mesmo.
– Queres dizer que, fosse como fosse, ele tinha decidido arquivar o caso?
– perguntou Lisa, mais chocada do que esperava, uma vez que já estava a
prever aquele resultado.
– Ligaram-me há dez minutos a dizer. Tinhas o telefone desligado, por isso
não te pude informar.
– Que aconteceu?
– Se tivesse de adivinhar, diria que a pressão dos advogados do jovem
finalmente surtiu efeito. Desde o início que isto era um caso difícil de vender a
um júri, mas, pessoalmente, penso que o facto de o rapaz ter mentido ao início
ia acabar por pô-los do nosso lado. Suponho que, agora, nunca saberemos.
– Ela continua a insistir que ele a violou.
– E é melhor que não mude de ideias, ou também vai acabar por apanhar
com um processo em cima. Acreditas nela?
– Sim, para dizer a verdade. Como é que a Caroline Ash reagiu à decisão
da Acusação?
– Mal. O fuinha teve o bom senso de desaparecer do mapa depois de lhe
dar a notícia por telefone e deixou-nos aqui a aguentar a bronca. Agora, ela
quer processar o rapaz por relações ilícitas.
– A Sra. Paige também. Que achas?
Houve uma interferência na linha enquanto Bevan respondia.
– Que disseste? – perguntou Lisa quando voltou a ouvir Bevan.
Quando este repetiu a resposta, Lisa sentiu como ela própria se retraía.
– Vou deixar que sejas tu a dar-lhe essa notícia – disse –, mas, por favor,
espera até eu estar em Bristol, a salvo, antes de lhe ligares.

– Oh, meu Deus – disse Alicia tremendo, quando Jolyon lhe contou as
novidades. – Tens a certeza? Não é possível terem-se enganado?
Jolyon respondeu num tom cheio de afeto:
– Acredita em mim, não te estaria a ligar se não tivesse a certeza. O
Serviço de Acusação da Coroa arquivou a queixa.
Alicia sentiu os joelhos fraquejarem sob o efeito do alívio e deixou-se cair
pesadamente na cadeira atrás dela.
– Tenho de ligar ao Nat. Ele…
– Espera só um momento – aconselhou Jolyon. – Ainda estão a discutir a
acusação de relações sexuais ilícitas, por isso é melhor esperarmos até
sabermos o resultado final.
– Sim, é claro. Oh, meu Deus, também têm de desistir dessa. Por favor…
– Deixa isso com o Oliver. Ele pareceu-me bastante confiante quando
falámos, por isso acho que não pretende sair daquela reunião sem ter
conseguido o arquivamento.

***

A pele habitualmente suave e pálida do rosto da inspetora Caroline Ash


estava manchada de fúria enquanto lia a carta que segurava nas mãos. Na sala,
com ela, estavam Tom Bradley, o advogado da Acusação, mais conhecido
como o fuinha, e o eminente Queen’s Counsel Oliver Mendenhall.
– É claro, não haverá qualquer necessidade de enviar esta carta ao
Procurador-Geral – disse Oliver num tom ameno –, se decidirem arquivar
todas as acusações contra o meu cliente.
– Isto é chantagem! – disse Ash furiosamente.
– Não, é justiça – corrigiu-a Mendenhall. – Os senhores não têm provas
suficientes de que, de facto, ocorreu uma violação pelo que levar este caso
adiante, seja de que forma for, é, na melhor das hipóteses, um desperdício dos
dinheiros públicos e, na pior… – Oliver gesticulou, indicando a carta.
Uma vez que esta descrevia a contenda da inspetora Ash com o Queen’s
Counsel Craig Carlyle, entretanto falecido, não havia equívocos quanto ao seu
significado. A carta prosseguia sugerindo que a inspetora dava agora largas ao
seu rancor na pessoa do filho de Carlyle, tentando fazê-lo pagar por aquilo a
que se poderiam chamar os “pecados do pai”. A carta concluía com um pedido
para que o Procurador-Geral instruísse o advogado da Acusação a reavaliar e,
em última análise, arquivar o caso, estando assinada por nada mais, nada
menos que vinte dos mais influentes advogados do país.
Ash devolveu a carta, arremessando-a sobre a mesa.
– Eu sei que vocês, os advogados importantes, se acham muito espertos
quando se unem assim – disse irada –, mas são os senhores que estão a
transformar isto num assunto pessoal, não eu. A Annabelle Preston tem quinze
anos. É altura de esses miúdos que andam por aí, como o seu cliente,
aprenderem que ter relações com uma rapariga sem idade legal tem
consequências. E não falo só das gravidezes indesejadas e das doenças
sexualmente transmissíveis. Eles estão a infringir a lei…
– A senhora inspetora poderá ter razão – interrompeu-a Mendenhall – e,
até certo ponto, todos concordamos consigo, mas não a vou deixar servir-se do
meu cliente para a sua cruzada, tal como não o vou deixar ser vítima do seu
rancor. Sabemos que a própria rapariga desistiu da queixa por violação, o que
é um forte indício de que estava a mentir, e como o Nathan Carlyle não tinha a
certeza da idade dela quando os factos sucederam…
– Oh, vá contar essa a outra! – disse Ash num tom ácido. – Ele é primo
dela, por amor de Deus! E não preciso de lhe dizer que a ignorância da lei não
serve de defesa.
– E a senhora inspetora não precisa que eu lhe diga que fazer um rapaz
adolescente passar por esta provação, porque o pai dele um dia lhe levou a
melhor no tribunal, não é o tipo de comportamento imparcial que o público
espera, e merece, de alguém na posição da senhora inspetora…
– Ouça – interrompeu-o ela com determinação –, não vou negar que teria
gostado de ver o Craig Carlyle tramar-se em alguma altura da sua carreira
abominável, mas repito-lhe que o que aconteceu no passado não tem nada que
ver com esta situação. O Nathan Carlyle transgrediu a lei. Temos tudo o que
precisamos para o provar, incluindo uma confissão do próprio rapaz. Ele teve
relações sexuais com a Annabelle Preston e estou absolutamente determinada
a vê-lo processado por esta infração em conformidade com a lei, o que
incluirá o registo do seu nome na Lista Nacional de Abusadores Sexuais.
Mendenhall recostou-se na cadeira e cruzou as mãos.
– Nesse caso – disse suavemente –, insistiremos para que os outros dois
rapazes cujo sémen foi encontrado sejam igualmente processados e incluídos
na lista de abusadores.
O rosto de Ash ficou paralisado.
– Porquê arruinar a vida de um só jovem, quando podemos arruinar a de
três? – perguntou Mendenhall, como se a inspetora se estivesse a oferecer para
distribuir galardões. – É claro, estava-me a esquecer… Creio que, na verdade,
nunca chegaram a identificar um dos rapazes, pois não? Por isso, espero que
estejam preparados para começarem a usar os vossos preciosos recursos
policiais para o localizar. Também espero que não vá ter problemas em fazer a
rapariga passar pela humilhação, e talvez o trauma, de ver a sua
promiscuidade exposta e discutida assim num tribunal. Já para não falar na
angústia e na vergonha que causará às famílias dos outros rapazes, quando o
nome dos seus filhos queridos for acrescentado à Lista Nacional de
Abusadores Sexuais para o resto da vida, graças a um encontro casual com
uma rapariga de quinze anos demasiado precoce.
Ash olhou para o fuinha, que se remexeu desconfortavelmente na cadeira,
mas, aparentemente, o estuporzinho não tinha nada para dizer. Mendenhall
sabia que tinha ganhado, mas esperou pacientemente pela resposta dela. No
fim, tudo o que obteve foi um ardente olhar de ódio quando a inspetora se
ergueu e saiu furiosamente da sala, batendo com a porta atrás dela.
Mendenhall voltou-se para o fuinha.
– Presumo que vão desistir da acusação.
– Correto – respondeu o advogado e, pegando nos seus dossiês, saiu
igualmente da sala.

– Finalmente – disse Sabrina agressivamente. – Tenho estado à espera da


sua chamada, Sr. Bevan.
– É sargento-detetive Bevan, minha senhora – disse ele num tom sereno. –
Desculpe ter demorado tanto a entrar em contacto consigo, mas só agora
recebi a informação da Acusação de que não vão dar seguimento ao processo
por relações sexuais ilícitas.
Sabrina fervia por completo de indignação.
– E posso perguntar porquê? – disse entre dentes.
– Dadas as circunstâncias – respondeu –, não foi considerado o
procedimento mais adequado.
– Dadas as circunstâncias – repetiu Sabrina num tom fulminante –, diria
que é exatamente o procedimento mais adequado. O senhor sabe a idade da
minha filha e não há dúvidas de que o ato sexual ocorreu…
– Permita que a interrompa – atalhou Bevan. – É certo que o ato sexual
ocorreu, mas receio que, se acusarmos o Nathan Carlyle, sejamos obrigados a
acusar os outros dois rapazes que também tiveram relações com a sua filha
naquela noite, e isso não é um caminho que o Serviço de Acusação da Coroa
queira encetar.
Sabrina cambaleou, enquanto a sua boca se abria muito, totalmente lassa.
– Que outros dois rapazes? – perguntou numa voz débil.
Ouviu-se o som de páginas a serem folheadas, antes de Bevan dizer:
– Um é um jovem da zona chamado Theo McAllister. Infelizmente, a sua
filha não foi capaz de nos fornecer o nome completo do outro.
O rosto de Sabrina tremeu num espasmo enquanto esta tentava rejeitar o
que ouvia.
– Deve haver algum erro – disse.
– Receio que não.
Sabrina abriu a boca, mas não conseguiu articular uma única palavra.
– Sendo eu próprio pai – prosseguiu Bevan –, não consigo imaginar que
possa querer sujeitar a sua filha a…
– Obrigada, sargento-detetive – interrompeu-o Sabrina de súbito e, sem
sequer se despedir, pousou o auscultador do telefone com força, saiu de
rompante para o átrio e subiu as escadas a correr para o quarto de Annabelle.
– Mas que raio…? – exclamou Annabelle.
– Acabei de falar com a polícia – disse Sabrina, com os olhos cintilantes
de raiva –, e sabes o que me disseram?
Annabelle sentiu uma pontada de medo e recuou, encostando-se contra a
cama.
– Como queres que saiba?
– Que se passa? – perguntou Robert, aparecendo na ombreira da porta.
– Eu digo-te o que se passa! – gritou Sabrina. – Acabei de ser informada
pela polícia de que a minha filha teve relações sexuais com nada mais, nada
menos que três rapazes na noite em que o Nathan Carlyle a violou.
Chocado e surpreendido, Robert olhou para Annabelle, que exibia uma
clara expressão de culpa.
– Um deles é o Theo McAllister – prosseguiu Sabrina –, mas, segundo
parece, ela nem sequer sabe o nome do outro. – A cólera de Sabrina atingiu um
ponto quase selvagem quando começou a avançar para Annabelle. – Que se
passa contigo? – perguntou com raiva. – Tens tudo aquilo que uma rapariga da
tua idade pode desejar. Andas numa boa escola, vens de uma família decente,
tens mais dinheiro de mesada do que muitas pessoas ganham num…
– Afasta-te de mim – gritou Annabelle, passando ao lado dela e tentando
escapar em direção à porta.
– Não vais fugir disto – exclamou Sabrina. – Tu mentiste, tu…
– Eu não menti!
–… fizeste-me fazer figura de parva, desperdiçaste tempo à polícia, mas,
pior que tudo, tornaste-te numa ordinária.
Os olhos de Annabelle reluziram de fúria.
– Não te atrevas a chamar-me isso! – gritou. – És tu que…
– Já chega! – disse Robert, sentindo que aquilo estava prestes a
transformar-se num confronto físico e, passando um braço pela cintura de
Annabelle, pegou nela e levou-a para o patamar.
– Ela é tão cabra – soluçou Annabelle. – Passa a vida a culpar-me de tudo
e agora está a insultar-me…
– O que esperavas, depois de te portares assim? – berrou Sabrina. – Não
consigo imaginar o que…
– Sabrina, vai lá para baixo, ou então para o teu quarto – disse Robert
asperamente.
– Ela não se vai safar assim – retorquiu Sabrina. – Vai ser castigada por…
– Queres fazer o favor de sair? – interrompeu-a Robert irritado, enquanto
Annabelle escondia o rosto no seu peito.
– Estás proibida de sair até fazeres dezoito anos – gritou Sabrina por cima
do ombro da filha.
– Vou-me embora daqui antes disso – cuspiu Annabelle em resposta.
– Ótimo. Diz-me quando quiseres ir. Ajudo-te a fazer as malas…
Agarrando Annabelle num esforço para a impedir de dizer mais alguma
coisa, Robert levou-a de volta para o quarto e fechou a porta.
– Odeio-a – disse Annabelle a chorar, atirando-se para cima da cama. –
Ela está sempre a implicar comigo e a dizer-me coisas horríveis…
– Chiuu – disse Robert, tentando acalmá-la. – Ela não diz aquilo a sério…
– Diz, sim. Ela odeia-me, mas não me importa a mínima, porque me vou
embora desta casa. Vou encontrar outro sítio para viver, onde a minha presença
seja desejada.
– Tu és desejada aqui, mas, de momento, a tua mãe está zangada e tens de
admitir que tem razões para isso.
– Mas não é correto ela chamar-me ordinária, não com o comportamento
que ela tem. É ela quem anda aí a ter aventuras…
– Ela teve uma aventura.
– Como é que sabes? Ela pode ter dormido com montes de gente…
– Annabelle, isto não nos está a levar a lado nenhum.
Annabelle inspirou fundo para ganhar novo fôlego, mas Robert pôs-lhe
uma mão sobre a boca.
– Já chega – disse ele. – Agora, quero que fiques aqui deitada e te tentes
acalmar, porque nunca se alcança nada de positivo quando as pessoas estão
exaltadas.
– Diz-lhe isso a ela. Foi ela que começou.
Ignorando aquela beligerância infantil, Robert disse:
– Queres que te traga alguma coisa para beber?
Annabelle abanou a cabeça e, depois, o seu rosto agitou-se e começou a
chorar.
– Não é justo! – soluçou. – Estou a tentar fazer o que é mais correto, para o
Nat já não ter de ir a julgamento e a Darcie deixar de ser insultada, mas
ninguém se importa comigo.
– Isso não é verdade – disse Robert, envolvendo-a nos seus braços. – Eu
importo-me mesmo muito contigo e, no fundo do teu coração, sabes que a tua
mãe também.
– Então tem uma maneira estranha de mostrar isso, a entrar por aqui dentro
como uma louca, como se me quisesse bater ou algo do género.
– Concordo contigo, não é propriamente a melhor maneira de o demonstrar
– disse Robert –, mas tenta ver as coisas desta maneira: se ela não se
zangasse, isso significaria que não se importa realmente contigo.
Annabelle engoliu em seco e, ainda com um certo ar de insubordinação,
virou-se para a parede. Robert continuou sentado ao lado dela, segurando-lhe
na mão e perguntando a si próprio quanto de tudo o que sucedera ao longo das
últimas seis semanas seria verdade, e quanto seria uma chamada de atenção,
um grito de rebelião ou uma forma de punir a mãe. Não havia dúvidas de que
Annabelle era uma jovem muito perturbada, e algo tinha de ser feito para a
colocar de novo no caminho certo. Robert desejava saber como o fazer, mas
não ia ser presumido a ponto de achar que seria capaz de descobrir as
respostas sozinho, sobretudo quando a pessoa de quem Annabelle realmente
precisava (embora soubesse que a enteada o iria negar veementemente) era a
mãe. No entanto, quer lhe agradasse quer não, Robert tinha de aceitar que, de
momento, Sabrina não estava num estado adequado para lidar com a filha,
pelo que tinha de desencantar algum tipo de solução.
– Achas… – começou Annabelle numa voz rouca, virando-se para olhar
para ele. – Achas que o Nat aceitaria falar comigo?
Completamente apanhado de surpresa, e bastante inseguro de que Nat
acedesse, Robert disse:
– Acho que lhe podemos sempre perguntar.
– Podes fazer isso? Quer dizer, não posso ir até lá e, provavelmente, se lhe
ligar ele não vai atender… – Annabelle encolheu os ombros, aparentemente
sem saber que mais dizer.
Ainda cheio de dúvidas, Robert disse:
– Vamos fazer assim: prometi à Alicia que passava por lá esta noite, por
isso, se houver oportunidade, pergunto-lhe.
Annabelle acenou com a cabeça e, quando Robert a viu desviar os olhos
tristemente, lembrou-se de como ela era mesmo muito nova. Uma criança com
corpo de mulher, tão incapaz de lidar com a sua maturidade precoce e as suas
hormonas turbulentas como de alterar os eventos que haviam acrescentado uma
nuance tão danosa e problemática ao normal tumulto da adolescência, já de si
feito de confusão e angústia.
– Agora vou deixar-te, para poderes dormir uma sesta – disse Robert,
dando-lhe um apertãozinho na mão ao notar que os olhos de Annabelle
começavam a querer fechar-se. – Volto para ver como estás mais logo.
– OK – disse ela debilmente. – Mas não a deixes entrar aqui, está bem?
Depois de fechar a porta sem barulho atrás dele, cruzou o patamar em
direção ao quarto que partilhava com Sabrina, onde a encontrou sentada num
dos assentos de janela, torcendo as mãos e contemplando o jardim de olhos
fixos.
– Sinto-me tão humilhada – disse, quando se apercebeu de que Robert
estava ali. – Como pôde ela comportar-se assim? Mas que lhe aconteceu?
Embora Robert fosse capaz de responder às suas perguntas, não o ia fazer
naquele momento, de forma que tudo o que disse foi:
– Tenho de fazer algumas chamadas, e a seguir tenho de sair, mas amanhã,
Sabrina, tu e eu temos de conversar.

***

Apesar de, naquela noite, Alicia ter vontade de abrir infindáveis garrafas
de champanhe e festejar, sabia que as últimas seis semanas, já para não falar
nas últimas vinte e quatro horas, após a leitura da carta do pai, tinham sido
demasiado traumáticas para que Nat fosse capaz de sentir já verdadeira
alegria. Assim, prevendo o efeito profundo que as boas notícias poderiam
surtir sobre ele, Alicia esperou até chegarem a casa da escola para lhe dizer
que as acusações tinham sido arquivadas.
Durante uns momentos, Nat limitou-se a olhar para ela inexpressivamente
e, depois, quando Darcie começou a saltar de alegria, o alívio tomou conta
dele de forma tão violenta que mal conseguia respirar à medida que começou a
soluçar. Envolvendo-o nos seus braços, Alicia chorou com ele e, quando
Darcie foi agarrar-se a eles, abraçaram-se os três, beijando-se e rindo, apesar
de não conseguirem parar de chorar.
– Vês, eu disse-te que ia correr tudo bem – disse Darcie com lágrimas nos
olhos. – Eu tinha a certeza e, agora, aquelas pessoas horríveis na escola vão
parecer mesmo estúpidas. Mais – prosseguiu animadamente –, o mundo inteiro
vai saber que a Annabelle é uma mentirosa.
Imaginando já que se tinham passado mais coisas na escola do que os dois
lhe tinham dito, Alicia deixou contudo passar em branco a confissão
involuntária, dizendo:
– Na verdade, há mais uma coisa que deves saber. Aparentemente, hoje de
manhã, antes que alguém soubesse que o caso tinha sido arquivado, a
Annabelle já tinha decidido retirar a queixa.
Nat e Darcie olharam para ela espantados. Alicia sorriu e acariciou-lhes o
rosto.
– Porque é que ela fez isso? – perguntou Nat.
– Que interessa, o que importa é que fez – disse Darcie.
– O tio Robert acha que ela não conseguia enfrentar o julgamento – disse
Alicia, repetindo as palavras de Robert. – A propósito, é capaz de ser ele –
acrescentou, quando o telefone começou a tocar.
Darcie atendeu, uma vez que era quem estava mais perto.
– Fala a escrava número dois da Alicia Carlyle – disse.
Rindo do outro lado da linha, Rachel disse:
– Acabei de receber a mensagem da tua mãe sobre o Nat. São notícias
fantásticas.
– São, não são? – disse Darcie radiante. – É a Rachel – disse baixinho
para a mãe. – Chorámos todos – continuou ao telefone –, e agora ainda
estamos a tentar recuperar do choque de saber que a Annabelle, de qualquer
maneira, já tinha decidido retirar a queixa. E não fez nada de mais, a
mentirosa. Queres falar com a minha mãe?
– Por favor.
Pegando no telefone, Alicia disse:
– Imagino que tenhas estado todo o dia metida no consultório?
– Correto, e estou exausta, mas temos de festejar logo à noite. Que planos
tens?
– Para dizer a verdade, o Cameron ofereceu-se para nos levar a um sítio à
escolha do Nat, mas ainda não pude falar disso com ele. Mas, onde quer que
seja, porque não vêm ter connosco?
– Adorávamos. O Todd tem treino de futebol, mas pode sempre faltar e, se
alguém tiver mais alguma coisa agendada, vale desmarcar mal eu lhes diga.
Liga-me mal saibas onde vão.
Depois de desligar, Alicia disse a Nat:
– Então, que achas? Queres ir a algum sítio?
Nat encolheu os ombros, permanecendo com um ar aturdido e não
inteiramente capaz de acreditar naquilo tudo.
– Já sei – exclamou Darcie –, vamos àquele sítio em Wells, ao lado dos
correios. Toda a gente diz que é mesmo fixe. Não me lembro agora do nome…
Independentemente do nome, se ficava ao lado dos correios, ficava perto
do edifício da câmara e Alicia, achando que Nat não precisava de recordar a
sua primeira ida a tribunal, disse:
– Podemos sempre ir ali ao Traveller’s.
Nat voltou-se quando ouviu baterem à porta.
– Se calhar é o tio Robert – disse Alicia. – Ele disse que ia passar por
aqui depois de vocês voltarem da escola.
Corando ao recordar como fora brusco com o tio aquando da sua última
visita, Nat foi abrir a porta.
– Olá, Nat – disse Robert afetuosamente.
Nat sentiu-se corar ainda mais.
– Olá. Entra, a minha mãe está à tua espera.
– Imagino que ela já te tenha dado as boas notícias – disse Robert,
enquanto avançava pelo átrio. A seguir, deu um grito de espanto quando Darcie
lhe saltou ao pescoço de felicidade.
– Foste tu que a fizeste mudar de ideias, não foste? – insistiu ela. – Sabia
que ias conseguir. És tão inteligente.
– Na verdade, a Annabelle tomou esta decisão sozinha – disse Robert –,
mas fiquei muito contente.
– Seja como for, tudo se teria resolvido – continuou Darcie –, porque o
Oliver convenceu-os a arquivar o caso.
– Olá – disse Alicia, abraçando-o. – Obrigada por vires. Queres tomar
alguma coisa?
– Sim, até me apetecia – respondeu Robert. – Se tiveres vinho…
– Temos – informou Darcie, abrindo o frigorífico –, a não ser que a mãe o
tenha bebido todo.
Revirando os olhos enquanto puxava uma cadeira para Robert se sentar,
Alicia perguntou a Nat:
– Também queres um copo?
– Daqui a pouco – disse. – Primeiro queria ir lá acima mandar uns emails,
se não se importarem.
– É claro – disse Alicia, dando-lhe um beijo no rosto.
– Eu também! – exclamou Darcie. – Tenho de ir contar a toda a gente que o
Nat ganhou e a Annabelle é uma… – Darcie deteve-se mesmo a tempo e olhou
desconfortavelmente para o tio. – Que a Annabelle mudou de ideias – disse e,
dando a Robert outro abraço expansivo, correu pelas escadas acima atrás de
Nat.
– Desculpa aquilo – disse Alicia, começando a servir o vinho.
Robert abanou a cabeça, como que para retirar importância à situação.
Passando um copo ao irmão, Alicia agarrou depois no seu e sentou-se também
à mesa.
– Então – disse, depois de terem brindado ao fim do pesadelo –, ela tomou
a decisão mesmo sozinha ou tu ajudaste-a a chegar lá?
– Não, a decisão foi só dela – respondeu Robert. – Acho que começou a
aperceber-se de como isto estava a afetar toda a gente e daquilo por que,
provavelmente, ela própria teria de passar quando chegasse o julgamento… A
Annabelle tem imensos problemas que precisam de ser resolvidos. – Robert
olhou Alicia nos olhos. – Aquele maldito caso tem muitas culpas no cartório.
Os danos que causou, o afastamento…
Alicia baixou o olhar para o seu copo, mas, quando ia começar a
responder, Robert disse:
– Ela contou-me que viu o Nat ontem e achou que ele tinha estado a chorar,
embora seja difícil dizer se foi isso que a fez decidir.
– Sim, ele disse-me que a viu perto da ponte. O Nat teve medo que fosse
alguma armadilha para o fazer infringir as medidas de coação e ligou ao
advogado para o informar.
Robert acenou com a cabeça devagar e bebeu um gole de vinho.
– Ela continua a insistir que está a dizer a verdade – continuou Robert –,
mas gostaria de pensar que se deve ao facto de ser suficientemente esperta
para perceber que, se admitir que mentiu, há uma boa hipótese de ser
processada.
Alicia guardou a sua opinião para si, não querendo que nada estragasse
aquele dia. Contudo, se Annabelle continuava a insistir que dizia a verdade,
então aquela provação ainda não terminara.
– Então, como vão as coisas em casa? – perguntou. – Imagino que a
Sabrina não esteja muito satisfeita com a decisão.
– Não, não está – admitiu Robert, sem se alargar mais sobre o assunto.
Reunindo coragem para falar daquilo que agora lhe ocupava o pensamento,
Alicia disse:
– Não sei se estou a fazer bem em contar-te isto, mas encontrei uma carta
do Craig para a mãe em que ele fala do caso, e do que significou para ele. Eu
não ia … Bem, eu… Queres vê-la?
Depois de refletir uns instantes, Robert abanou a cabeça.
– Não, acho que não – respondeu. – Eu próprio tomei muitas decisões nos
últimos tempos, e não vejo como é que andar a repisar o passado vá servir
para alguma coisa. – Robert olhou-a nos olhos. – A carta disse-te alguma coisa
que já não soubesses?
Alicia engoliu em seco e olhou de novo para o copo.
– Digamos apenas que eliminou alguns fantasmas – respondeu. – Também
foi uma experiência catártica para o Nat, quando eu lha dei para ler.
Quando Robert bebeu mais um gole de vinho, Alicia olhou-o atentamente.
– Que se passa? – perguntou. – Vejo que alguma coisa está a preocupar-te.
O irmão fez um gesto de rejeição.
– Agora não quero falar disso – disse, ouvindo o som de passos nas
escadas. – Talvez possamos ir jantar a algum sítio na semana que vem, só nós
os dois. Há já muito tempo que não fazemos algo assim. Nessa altura,
provavelmente também já te poderei dizer mais.
Alicia ergueu as sobrancelhas.
– Agora estou curiosa. – A seguir sorriu, estendendo a mão a Nat quando
este entrou na cozinha. – Não demoraste muito – disse.
– Mandei um email coletivo ao pessoal – disse ele.
O coração de Alicia alegrou-se ao olhar para o filho. O peso parecia sair-
lhe dos ombros minuto a minuto, deixando-a agora entrever de novo o jovem
brilhante, cheio de vida e extremamente atraente que Nat sempre fora.
– Então, vou ter direito a um copo? – perguntou ele, esfregando as mãos.
– É claro. Serve-te e depois vem-te sentar connosco.
Olhando para o relógio, Robert disse:
– Na verdade, receio que não possa ficar muito mais tempo. Tenho de me
ir encontrar com um colega no laboratório antes de ele partir para o Dubai.
– Oh, esperava que pudesses ficar e conhecer o Cameron – disse Alicia.
– O Cameron? – repetiu Robert admirado.
– É o novo mentor da minha mãe – explicou Nat, sentando-se pesadamente
numa cadeira. – É super-importante no mundo da arte e tem um cão mesmo
fixe.
Robert olhou para Alicia com uma expressão de encorajamento.
– Não é o que estás a pensar – disse ela. – Somos só amigos.
– Ele vai expor as esculturas da mãe na galeria dele em Bond Street –
prosseguiu Nat –, quando ela arranjar tempo para lá ir. E tem andado a ajudá-
la a descobrir artistas locais para promover na loja.
– Bem, parece-me tudo bastante amigável – provocou-a Robert,
terminando o vinho. – Vou ficar à espera de o conhecer.
Pondo-se de pé para o abraçar, Alicia disse:
– Obrigada por vires até cá.
Robert tocou-lhe carinhosamente no rosto.
– Antes de me ir embora, há mais uma coisa – disse, desviando o olhar da
irmã para Nat. – Não sei o que vais achar disto, e é provável que amanhã ela
até mude de ideias, mas a Annabelle pediu-me para te perguntar se aceitas
falar com ela.
O copo de Nat deteve-se a meio caminho da boca enquanto o seu rosto
perdia a cor. Alicia desviou rapidamente o olhar do filho para Robert.
– Não acho que isso seja muito boa ideia – respondeu por ele.
– Não te preocupes. Como disse, o mais provável é nem acontecer –
tranquilizou-a Robert.
Nat pousou o copo.
– Desculpa – disse –, mas, depois de tudo o que se passou, não posso
mesmo confiar nela.
– Tinha a certeza de que ias pensar assim – respondeu Robert –, e não te
posso propriamente censurar – respondeu Robert e, depois de abraçar Nat,
deixou que Alicia lhe desse o braço e o acompanhasse até à porta.
– Na verdade – disse Nat, surgindo no átrio atrás deles –, diz-lhe que,
desde que haja mais alguém presente, eu vou pensar no assunto.
Capítulo Vinte e Cinco
Depois de uma noite quase sem dormir, ainda profundamente perturbada
pelo comportamento de Annabelle, e numa pilha de nervos a pensar se ainda
tinha um futuro com Robert, Sabrina mal conseguia olhar para si mesma
quando se levantou pela manhã. Ao ver-se ao espelho, as suas entranhas deram
um nó. Os seus olhos estavam vermelhos e sonolentos e a sua pele estava tão
inchada e enrugada como uma esponja velha.
Molhando o rosto com água fria, limpou-o com uma toalha e começou a
tentar reparar os danos causados por toda aquela angústia. Tinha de fazer o seu
melhor para lembrar Robert, quando este a visse, de como ele sempre a achara
atraente, ou não seria capaz de parar aquele comboio desgovernado que sentia
vir na sua direção.
Sabia que o marido já estava a pé, porque ouvira o chuveiro há cerca de
vinte minutos. Também o tinha ouvido chegar a casa da sua reunião na noite
anterior, mas quando se levantou para perguntar se ele vinha para a cama,
Robert respondera que ainda tinha muito trabalho a fazer, por isso iria dormir
no quarto de hóspedes para não a acordar. Sabrina sabia que era uma
desculpa, assim como sabia que algo de crucial mudara no seu casamento,
mas, fossem quais fossem as decisões a que Robert tivesse chegado,
continuava a acreditar que seria capaz de o fazer mudar de ideias. Precisava
de falar com ele e de explicar como fora tola ao não perceber antes como era
afortunada em tê-lo como marido. Mais do que isso, muito, muito mais,
amava-o tanto, que isso fazia com que tudo o que alguma vez pudesse ter
sentido por qualquer outra pessoa parecesse insignificante (com a possível
exceção de Craig, mas é claro que não seria tão insensível, ou estúpida, a
ponto de lhe dizer isto, e, seja como for, também já não tinha a certeza de que
fosse verdade).
Deixaria claro que estava preparada para fazer qualquer coisa que Robert
pedisse para tentar compensar toda a dor e sofrimento que lhe causara a ele e
a Annabelle. Poderiam começar de novo, dir-lhe-ia ela, passar uma esponja
sobre tudo o que sucedera, incluindo aquela terrível história da violação.
Poderia, até, considerar pedir desculpas a Alicia pelo comentário que fizera
sobre Nathan e Darcie na festa dos Roswells, se Robert assim o desejasse.
Qualquer coisa, desde que este não dissesse que já não aguentava mais estar
casado com ela.
Vestida com calças de ganga pretas e uma camisola de gola alta justa, e
com o cabelo preso na nuca com um requintado travessão de tartaruga, saiu do
seu quarto, aproximou-se do de Annabelle e encostou o ouvido à porta. Não
ouvindo nada, abriu-a. As cortinas ainda estavam fechadas e Sabrina
conseguia distinguir a forma da filha debaixo dos cobertores. Aparentemente,
Annabelle ainda dormia, pelo que fechou a porta de novo silenciosamente e
começou a descer as escadas. Precisava de resolver as coisas com Robert, em
primeiro lugar, depois estaria pronta para enfrentar a filha.
Amanhã, Sabrina, tu e eu temos de conversar, dissera ele no dia anterior.
Ao recordar aquelas palavras agora, sentia-as ecoarem tão ameaçadoramente
pela sua cabeça, como negras profecias de desgraça, que quase se deteve e
voltou a correr para o quarto. Queria esconder-se, tal como fizera após a
rutura com Craig, enfiar-se debaixo dos cobertores para tentar escapar de um
mundo que se estava a transformar num sítio em que tinha medo de existir. Mas
não era preciso ter medo, disse a si mesma com firmeza. Era apenas com
Robert que tinha de lidar, o seu marido, o homem que a amava, que a adorava,
e lhe perdoaria qualquer coisa.
Ao encontrar a cozinha vazia, pôs-se a fazer uma cafeteira de café fresco
que pôs numa bandeja com duas chávenas, uma seleção de biscoitos e uma
única rosa que arrancou de um arranjo que estava sobre a mesa, colocando-a
numa jarra delicada. Então, enchendo-se de coragem, dirigiu-se ao escritório
do marido.
– Posso entrar? – perguntou em voz alta, sem poder bater à porta.
Quando Robert abriu, o seu coração agitou-se imediatamente com a
apreensão. A expressão dele era demasiado sombria para ser acolhedora, mas
Sabrina sorriu, de qualquer maneira, dizendo:
– Espero não estar a interromper. Ouvi-te a levantar e achei que poderias
gostar de um café.
Apercebendo-se das duas chávenas quando se desviou para a deixar
entrar, Robert disse:
– Tens intenções de te juntar a mim?
– Só se não te incomodar – disse Sabrina, num tom tranquilizador. – Se
não puder ser, posso sempre…
– Tudo bem – disse ele. – Precisamos de conversar e acho que agora é um
momento tão bom como qualquer outro. Onde está a Annabelle?
– Ainda está a dormir.
Robert acenou com a cabeça e, fechando a porta, esperou que Sabrina
servisse o café, sentando-se depois no sofá diante daquele em cuja
extremidade ela se sentou nervosamente. No dia anterior, Annabelle; hoje,
Sabrina.
– Como foi a tua reunião ontem à noite? – perguntou Sabrina
descontraidamente, enquanto lhe oferecia um biscoito.
Recusando, Robert disse:
– Tal como esperava – disse Robert, bebendo um gole do seu café. A
seguir, pousou a chávena e olhou-a de novo nos olhos, com uma expressão
firme. – Espero que concordes – começou – que não podemos continuar assim,
por isso…
– Eu sei – disse Sabrina apressadamente –, e estou…
– Por favor, quero que escutes o que tenho para te dizer.
– Não, tu precisas de me ouvir…
– Sabrina!
A agudez do seu tom de voz deteve-a.
– Penso que temos de aceitar que o nosso casamento já não está a
funcionar – disse Robert num tom grave.
– Mas pode…
Robert ergueu a mão.
– Tenho-me esforçado muito, desde que se começou a desmoronar –
prosseguiu ele –, para o manter de pé, mas agora chegámos a um ponto onde
não há mais nada que possa fazer. Lamento que as coisas tenham chegado a
isto, mas…
– Não, não, espera – disse Sabrina numa voz sufocada. – Tu não percebes.
Eu amo-te, Robert, quero que fiquemos juntos…
– Quer isso seja verdade, quer não…
– É verdade. Juro-te. Agora estás zangado e perturbado, depois de tudo o
que aconteceu. Estamos todos, mas seria estúpido e errado fazer algo drástico.
Podemos fazer com que tudo corra bem de novo.
– Em todo este tempo, depois do Craig – continuou Robert, quase como se
ela não tivesse falado –, sempre acreditei que pudéssemos de algum modo
superar as dificuldades, mas a tua obsessão por ele e a forma como ainda não
o conseguiste esquecer, mesmo ao fim de tantos meses, tornam impossível
ficarmos juntos.
– Não! Por favor, não digas isso! – exclamou Sabrina, tentando dominar o
seu pânico. – Aquilo que aconteceu com o Craig… foi um equívoco completo.
Eu pensava que o Craig era o grande amor da minha vida, mas ele nunca
poderia ser, porque o grande amor da minha vida és tu. Agora sei isso, com
mais certeza do que alguma vez soube o que quer que fosse. Deixei-me levar
durante aquele caso. Não conseguia ver as coisas com clareza…
– Não foi só durante o caso – lembrou Robert. – Foi a maneira como te
comportaste depois, recusando-te a deixares-me aproximar-me de ti durante
meses, a ires-te abaixo à frente da Annabelle… Meteste-te na cama e não te
levantaste semanas a fio. Sempre a ameaçares matar-te porque não valia a
pena continuares a viver. E o mais triste de tudo isto é que ainda não pareces
perceber, ou pelo menos aceitar, o mal que causaste à tua filha durante essa
fase. Não tens nenhum relacionamento com ela, Sabrina. Ficaste tão
embrenhada em ti mesma e no teu próprio mundo que mais valia teres saído
porta fora e abandonado a Annabelle há dois anos, para o bem que lhe tens
feito desde aí.
Sabrina olhava-o com uma expressão chocada e defensiva.
– Ela não tem respeito nenhum por ti, e quem a pode censurar? A
Annabelle está completamente devastada pela maneira como lhe viraste as
costas, sente-se furiosa e frustrada e quase totalmente sem rumo. Mal sabe
distinguir o certo do errado, e uma das coisas mais trágicas que descobri, ao
longo deste verão, é o pouco respeito que ela tem por si mesma. É por isso
que vai para a cama com qualquer um que a queira. A Annabelle não se
importa consigo mesma. Pensa que não tem valor nenhum, porque foi isso que
lhe mostraste pela forma como a trataste.
O rosto de Sabrina estava lívido.
– Eu amo a minha filha – disse com voz trémula – e nunca tentes dizer que
não.
– Nunca tentaria, porque no fundo sei que a amas, mas nunca o demonstras
da forma correta. Pareces nem perceber que esta acusação de violação foi,
muito provavelmente, um grito pela tua atenção. A tua filha está a tentar chegar
até ti de qualquer maneira possível, e tu continuas a não a ouvir. Algo
aconteceu naquele bosque, em julho, e nunca te sentaste com ela para falar
disso. Há apenas dois dias, a Annabelle fez um aborto, e não tenho a certeza
que lhe tenhas sequer perguntado como está.
– É claro que perguntei…
– O teu relacionamento com a tua filha é o relacionamento mais importante
na vida de ambas. Sei que, a algum nível, sabes disso, mas ultimamente tens
dado tanta importância a ser convidada para as festas certas, ou para clubes do
livro, ou sabe Deus que mais preenche a tua agenda, que não é realmente de
admirar que, entre ti e a Annabelle, tudo se esteja a desmoronar. Ela olha para
ti em busca de orientação, como um modelo, e tudo o que vê é que dás mais
importância às trivialidades da tua vida do que a ela, ou como sucumbes por
causa de um caso de que ela nem sequer tinha conhecimento na altura. Imagina
como foi confuso e assustador para ela quando começaste a rejeitá-la. Pensa
como o seu instinto de sobrevivência estava mal preparado quando teve de
entrar em ação tão precocemente. É de admirar que tenha seguido uma direção
tão errada?
Os olhos de Sabrina estavam carregados de confusão.
– Não conseguia evitar comportar-me assim – disse, num tom queixoso. –
Quando o Craig e eu… Na altura em que fomos forçados a separar-nos…
– Vocês não foram forçados a nada – disse Robert. – O Craig escolheu
ficar com a Alicia e, na minha opinião, isso é que provocou a histeria que veio
depois. Simplesmente, não aguentaste a rejeição. Pensavas que eras melhor, ou
mais merecedora, do que a minha irmã. Na verdade, não sei o que se passava
na tua cabeça, mas a maneira como te fixaste em livrar-te dela desde que
voltou para Holly Wood só prova o que estou a dizer. Tens ciúmes da Alicia e
acho que sempre tiveste. Provavelmente, foi por isso que seduziste o marido
dela, para tentares provar a ti mesma, ou a ela, ou talvez a ambas, que ela não
podia ganhar sempre, ou que mais alguém te dá atenção, mesmo que ela não
dê. E, de facto, ela não dava quando a Darcie era bebé. Será que tudo tem
origem nisso? Não sei, o que sei é que pareces quase tão obcecada com ela
como estavas com o Craig. Tentaste impedi-la de ganhar a vida, indo mesmo
ao ponto de tentares usar a situação entre o Nathan e a Annabelle para a forçar
a sair da aldeia. Bem, Sabrina, estás certa quando pensas que vocês as duas
não podem continuar a viver aqui, mas enganas-te ao acreditar que é ela que
tem de se ir embora. Esta é a casa dela, é onde ela pertence…
Erguendo-se em pânico, Sabrina gritou:
– Este é o meu lar! Tu e eu vivemos nesta casa há mais de dez anos, o que
me torna tão membro desta aldeia quanto ela. Mais ainda, porque sou eu quem
tem estado aqui, presente, a defender as causas deles, a contribuir para as
obras de caridade, a organizar as…
– Ninguém te está a tentar tirar isso. Já fizeste muitas coisas boas desde
que vieste para cá, mas, para mim, é bastante óbvio que tu e a Alicia não
podem viver na mesma zona, e se tu e eu já não formos casados…
– Não podes simplesmente livrar-te de mim como se eu fosse lixo –
enfureceu-se Sabrina descontroladamente. – Sou tua mulher. A Annabelle é tua
enteada. Tens responsabilidades…
– Das quais não tenho intenção nenhuma de fugir. Assegurar-me-ei de que
tens dinheiro suficiente para começar de novo e vou continuar a pagar os
estudos da Annabelle até que ela termine a universidade. Além disso, faço
questão de pagar algum tipo de terapia conjunta para ti e a Annabelle, se
estiveres de acordo; mais do que tudo, quero que ela volte ao caminho certo,
ao que realmente é, à miúda que permanece por baixo de todos os estragos
provocados nos últimos tempos.
O medo e a frustração estampavam-se no rosto de Sabrina. A sua testa
estava coberta de suor e as mãos fechavam-se e tremiam. A imagem que
Robert descrevia estava completamente errada. Não fazia sentido na sua
cabeça, nem ela pretendia deixar que fizesse. Tinha de a destruir antes que se
tornasse uma realidade.
– O que ela precisa é de ficar na mesma escola – protestou zangada – e de
viver na mesma casa que tem sido o lar dela desde os cinco anos. Iria destruí-
la, se a expulsasses daqui para fora.
– Não vou fazer nada disso – interrompeu-a Robert. – Vou estar sempre
disponível para a Annabelle e vou certificar-me de que ela sabe isso, mas
nada é mais importante do que a relação dela contigo. Precisas de ajuda com
isso, Sabrina, por favor, tanto para teu bem como para o dela.
Sabrina começou a andar para a frente e para trás, torcendo as mãos à
medida que uma série de pensamentos apavorantes lhe percorria a cabeça.
Sabia que não estava a lidar com aquilo adequadamente, corria mesmo o risco
de perder, portanto, tinha de abordar a questão de outra maneira.
– OK – disse por fim –, vou fazer o que dizes e levar a Annabelle a um
psicólogo…
– A Annabelle só, não, tu também.
– Sim, eu também vou – concordou –, na condição de tentarmos resolver
as coisas entre nós.
Robert exalou um suspiro cansado e, durante um longo momento, limitou-
se a olhar para ela. Para lá da sua tristeza, a sua expressão era tão insondável
como os projetos em que trabalhava. Ao fim de algum tempo, Sabrina atreveu-
se realmente a ter esperanças de que Robert lhe fosse dar outra oportunidade.
Mas, depois, este disse:
– Lamento, Sabrina, mas já te disse…
– Não tens de tomar uma decisão agora – atalhou ela apressadamente. –
Dá-nos só uma oportunidade. Por favor. A Annabelle é… Ela confia em ti, ela
precisa de ti. Não lhe podes virar as costas agora.
– Não estou a sugerir que saiam desta casa hoje – disse Robert, cuja
expressão finalmente revelava como se sentia despedaçado. – Podemos fazer
as coisas gradualmente e, se tudo correr bem, por volta do fim do ano…
– Nessa altura já estará tudo resolvido – prometeu Sabrina, exibindo um
otimismo que cintilou como uma luz ao fundo de um túnel. – Já nos teremos
recomposto e deixado tudo isto para trás…
– Sabrina – atalhou Robert suavemente –, estás sequer a pensar se a
Annabelle deve continuar perto dos amigos que a levaram por maus caminhos
ou que, pelo menos, a encorajaram? Ou se deve continuar perto dos rapazes
que no passado se aproveitaram dela? Não seria melhor para a tua filha, e
para ti, se começassem de novo?
Sabrina olhou para ele em desespero. Não podia negar que Robert tinha
razão, mas também não ia admiti-lo. Então, os seus olhos brilharam com uma
expressão de esperança e disse:
– Já sei, porque não começamos todos de novo? Podíamos mudar-nos para
outro sítio…
– Não me estás a ouvir – disse Robert. – Já te disse, as coisas entre nós
não podem continuar assim.
– Eu sei, eu sei, mas estou disposta a mudar. Farei qualquer coisa…
– Tenho a certeza que sim, mas receio que a situação já tenha chegado
longe de mais. Os meus sentimentos por ti já não são o que eram. Ainda gosto
de ti, é claro, mas…
– Não, não digas isso – exclamou Sabrina, tapando os ouvidos. – Não
estás a falar a sério. Eu sei que pensas que sim, mas estás zangado e
perturbado, e admito que lidei mal com muitas… Terrivelmente mal. Deixa-me
corrigir a situação, Robert, por favor. Podemos procurar ajuda juntos, algum
terapeuta especializado em famílias. Podemos ir todos juntos.
Suspirando pesadamente, Robert disse:
– Não vou discutir mais contigo agora. Quero que vás embora e penses
sobre o que eu disse, que comeces a aceitar que, algures num futuro não muito
distante, vamos tomar medidas para seguirmos por caminhos separados.
– Não! Não! – exclamou Sabrina. – Eu amo-te, Robert. Juro.
– Eu sei – disse ele –, é isso que torna tudo tão difícil.

Nesse mesmo dia, muito mais tarde, Annabelle apareceu no escritório de


Robert com um ar pálido e trémulo como se tivesse estado a chorar.
– Que se passa? – perguntou Robert, com a preocupação a escurecer-lhe
os olhos ao vê-la entrar.
– A minha mãe disse-me que queres que a gente se vá embora – disse ela,
fungando e limpando as faces com as costas da mão. – A culpa é minha, não é?
Com vontade de dar um abanão a Sabrina por aquela tentativa tão estúpida
e egoísta de o abalar, Robert disse:
– Em absoluto. Não tem nada a ver contigo, tirando o facto de lamentar
muito que as coisas tenham de acontecer agora, quando nos começávamos a
aproximar de novo.
– Eu também pensava que estávamos – disse Annabelle tristemente. –
Então, porque é que temos de ir embora?
– Não é algo que vá acontecer de imediato – tranquilizou-a ele –, e podes
vir visitar-me sempre que quiseres. Vou estar sempre aqui para ti.
Annabelle abanava a cabeça.
– Compreendo porque queres que ela se vá embora – disse, lamentosa. –
Eu também ia querer, depois de tudo o que ela te fez passar, mas eu não posso
ficar contigo? Não quero viver com ela. Odeia-me e vamos estar sempre a
discutir.
– Acredita em mim, se pensasse que era a melhor solução, e se estivesse
nas minhas mãos, deixava-te ficar aqui comigo, mas uma rapariga da tua idade
não pode viver numa casa com um homem sozinho que não é o pai biológico
dela. E, além disso, não queres mesmo separar-te da tua mãe…
– Quero, sim.
Sorrindo tristemente, Robert disse:
– Isto é uma oportunidade para vocês as duas começarem a corrigir os
problemas na vossa relação e, com a ajuda adequada, não há motivos para não
voltarem a ser tão chegadas como no passado.
– Eu não quero…
– Queres, sim. E, sempre que te apetecer falar, ou afastar-te um bocado, só
tens de pegar no telefone e eu estarei aqui.
– Mas não vai ser o mesmo que só ter de atravessar o jardim para te ver,
ou entrar e encontrar-te na cozinha.
– Não, não vai – admitiu Robert, começando a sentir o vazio terrível da
ausência de Annabelle, apesar de, provavelmente, tal só acontecer dentro de
alguns meses.
Annabelle baixou a cabeça à medida que os seus olhos se enchiam de novo
de lágrimas.
– Nunca ninguém se importa comigo – disse, numa voz muito débil.
– Isso não é verdade – disse Robert, aproximando-se e abraçando-a –, e
no fundo do teu coração sabes isso. Só tens de te esforçar ao máximo por ser
paciente com a tua mãe, enquanto ela tenta resolver as coisas entre vocês. –
Levantando-lhe o queixo, Robert sorriu, olhando-a nos olhos. – É capaz de ser
uma grande aventura encontrar uma nova casa e mobilá-la e decorá-la juntas –
disse, detestando as suas palavras tanto quanto a falsa alegria que lhes tentava
imprimir.
– Podia ser, se também estivesses lá – respondeu Annabelle e, quando
baixou de novo a cabeça, Robert envolveu-a com força nos seus braços.
Aquilo estava a revelar-se muito, muito mais difícil do que esperara, e
ainda não tinha a certeza absoluta de que conseguiria ir em frente com a sua
decisão, mas, pelo menos de momento, estava determinado a manter-se firme.
– Onde está a tua mãe? – perguntou.
– Foi-se encontrar com a June. Suponho que devem estar a discutir táticas
para te fazer mudar de ideias.
Não duvidando muito, Robert fez uma cara que arrancou a sombra de um
sorriso a Annabelle.
– Nem vais adivinhar o que a June lhe disse ao telefone – confidenciou
ela, com um brilhozinho malicioso assomando por trás da sua tristeza. – Ela
disse à mãe que devíamos comprar casa algures na zona de Holly Wood e,
quando a mãe disse que aqui não havia nada à venda, a June disse que havia
uma moradia mesmo simpática à venda na urbanização nova. Aposto que
imaginas como a mãe ficou, não?
– De facto, imagino – disse Robert rindo.
Annabelle riu também, mas depois o momento de humor desvaneceu-se e
ela disse:
– Não me quero ir embora daqui, mas, para dizer a verdade, não me
importava de mudar para outra escola. Na que ando agora já não tenho amigos
nenhuns.
– Tenho a certeza de que isso não é verdade – respondeu Robert –, mas,
depois de tudo por que passaste, provavelmente seria melhor se começasses
de novo.
Annabelle não contra-argumentou, nem tampouco ergueu os olhos, e Robert
só podia imaginar a dor e a confusão que sentia no seu jovem coração. Já
passara por muito, e ali estava ele, fazendo-a sofrer ainda mais.
Finalmente, Annabelle disse:
– Então, perguntaste ao Nat se ele vinha falar comigo?
– Sim, perguntei. Ele ficou de pensar no assunto, mas disse que, se
concordar, quer que mais alguém esteja presente.
Annabelle levantou por fim a cabeça, e Robert sentiu o coração apertado
de culpa ao ver a angústia nos olhos dela.
– Tudo bem – disse Annabelle. – Não me importo, desde que a pessoa
sejas tu.

Dois dias depois, Nat percorreu The Close em direção à rua principal,
consciente de que os olhos de Darcie e da mãe o seguiam. A ansiedade e a
desconfiança em relação à motivação de Annabelle aumentavam a cada passo
que dava.
– Vê-se que nunca ficas sozinho com ela – prevenira-o Darcie
sombriamente antes de sair de casa. – Agora já sabemos do que ela é capaz e
não queremos ter a polícia à perna de novo.
– Não te preocupes – respondeu ele, passando-lhe os dedos pelo cabelo –,
o tio Robert prometeu que vai estar sempre lá, por isso vou estar tão bem
protegido por um belo pau de cabeleira como as heroínas dos teus romances
da Jane Austen.
Agora, Nat perguntava a si próprio se realmente queria que o tio ouvisse
tudo o que Annabelle pudesse ter para dizer, mas então, recordando que não
tinha nada a esconder ou a recear – para além das mentiras dela, é claro –,
avançou.
Não havia sinais de ninguém quando se aproximou da casa, no fim de
Holly Way, mas os portões estavam abertos e, para alívio seu, não se via o
carro de Sabrina em lado nenhum. Era alguém que Nat não queria mesmo ver –
nunca mais na vida, se pudesse.
Bateu duas vezes à porta e voltou-se para observar a rua de novo.
Imaginou que os rumores já voariam por Holly Wood, porque de certeza
alguém o teria visto vir para ali. Que estariam agora a pensar as pessoas que
tomaram o partido de um ou de outro? Isso importava? Realmente, não, mas
ele sabia que demoraria algum tempo até conseguir perdoar aqueles que
tinham virado a cara à mãe ao longo das últimas sete semanas.
Ouvindo passos no átrio, virou-se e exibiu um breve sorriso quando o tio
abriu a porta.
– Olá, Nat – disse Robert calorosamente, afastando-se para o deixar
passar. – Entra. Desculpa se cheiro um bocado a fumo, estou a queimar umas
coisas no jardim e a Annabelle tem estado a ajudar-me. Ela ainda está lá fora,
para dizer a verdade.
– Obrigado – disse Nat ao entrar para o vestíbulo de chão em mármore. O
odor do local envolveu-o, trazendo-lhe imagens do passado que o encheram de
nostalgia, mas fazendo-o também sentir um misto de emoções muito mais
desconfortável, à medida que os momentos íntimos passados com Annabelle
pareciam ser soprados pelo ar do quarto dela na sua direção.
– Onde está a Sabrina? – perguntou Nat, enquanto seguia Robert pela
cozinha.
– Foi fazer compras a Bath. Queres tomar alguma coisa?
– Não, acho que não, obrigado. Sabes de que é que a Annabelle quer falar
comigo?
Robert abanou a cabeça.
– Imagino que deve ser sobre o que aconteceu – disse –, mas ela não mo
disse especificamente, por isso estou como tu, às escuras.
– Mas vais estar sempre presente, não vais? – disse Nat, precisando de ter
a certeza.
– Vou, mas ela disse que, antes disso, gostava de falar contigo em privado.
Não te preocupes, ela sugeriu que fosses ter com ela ao jardim e eu fico aqui
na cozinha, de onde posso ver tudo o que se passa.
Nat olhou para o exterior onde Annabelle estava, curvada dentro de um
anoraque negro, a atirar pedaços de madeira e folhas secas para um monte
fumegante.
– Tu compreendes, não é? – disse Nat. – Só não quero que ela arme mais
nada para cima de mim.
– Acho que não precisas de te preocupar com isso – tranquilizou-o Robert.
Nat olhou-o com uma expressão ansiosa.
– Então, vou até lá agora. Achas bem? – perguntou.
Robert acenou com a cabeça.
– Vou preparar um chocolate quente, para o caso de te apetecer, quando
voltares. Hoje o ar está fresco, não achas?
Ao atravessar pelo relvado em direção à horta junto à qual Annabelle se
encontrava, atiçando o fogo com um pau, Nat agarrou num pedaço de madeira
que encontrou pelo caminho e atirou-o para as chamas reticentes ao
aproximar-se dela.
– Olá – disse Annabelle, corando ligeiramente ao olhar para ele.
Tinha o cabelo amarrado atrás com um elástico negro, descobrindo-lhe
totalmente o rosto, e os seus olhos pareciam diferentes, pensou Nat, mais
claros e menos intensos. Então, apercebeu-se de que ela não estava a usar
maquilhagem nenhuma. Dava-lhe um ar mais jovem, mais parecido com a
Annabelle que antes conhecia.
– Olá – disse Nat. – Então, de que queres falar comigo?
Annabelle encolheu os ombros.
– Só pensei, sabes, que podias querer pedir-me desculpa pelo que fizeste.
Nat ficou muito quieto.
– O que é que andas a tomar? – perguntou num tom zangado. – Não tenho
nada por que pedir desculpas…
– Tens sim, tu violaste-me…
– Violei-te, o caraças. Tu estavas a pedir-me…
– Sim, até tu começares a tentar matar-me.
– Não estava nada a tentar matar-te! Tu é que me tinhas enervado mesmo a
sério, e depois começaste a rir e a provocar-me, a incitar-me… Tiveste o que
querias, Annabelle.
– Mas disse-te para parares e quando uma rapariga te diz para parares,
tens de parar.
– E foi o que eu fiz.
– Não logo de imediato, e estavas mesmo a magoar-me e a assustar-me.
Pensei mesmo que me querias matar.
– E, mal dei conta disso, parei. Meu Deus, tu andavas por ali sem roupa
interior, seguiste-me para o bosque, até te ofereceste para me ensinar como se
faz…
– Mas não precisavas que te ensinasse, pois não? – disse Annabelle num
tom atrevido. – Exceto a não seres violento.
– OK, admito que fui um pouco bruto…
– Um pouco! Fiquei cheia de nódoas negras.
– Mas não te violei.
– Violaste, sim, e depois ainda tiveste de me dizer todas aquelas coisas
horríveis, chamar-me ordinária e dizer que esperavas não ter apanhado
nenhuma infeção porque eu era a maior puta de Holly Wood. – Os olhos de
Annabelle encheram-se repentinamente de lágrimas. – Se não tivesses sido tão
mau para mim, poderia ter sido capaz de te perdoar, mas não paravas de dizer
que eu era uma pega e que me devia manter longe das pessoas decentes porque
só servia para espalhar doenças.
– Peço desculpa por isso – disse Nat, passando a mão pelo cabelo. – Tens
razão, não devia ter dito essas coisas, mas estava zangado porque tinhas
acabado de me contar sobre o caso que a tua mãe teve com o meu pai. Não
estava a pensar corretamente, e enervaste-me tanto… Mas isso também não
quer dizer que te violei.
– Mas violaste.
– Raios – disse Nat. – Tu não…
– E mais – interrompeu-o Annabelle –, não só me devias pedir desculpas
como também me devias agradecer por ter retirado a queixa, caso contrário,
podias ter acabado por ir para a prisão.
– Nem pensar. Os meus advogados conseguiram fazer arquivar o caso
porque nunca se iria aguentar diante de um júri.
Annabelle pareceu perplexa.
– Ninguém me disse isso – respondeu. – Queres dizer que, afinal, o
processo não foi interrompido por eu ter dito que era o que queria?
Apercebendo-se de que aquilo era uma questão problemática para ela, Nat
disse:
– Podia ter sido assim, se tivesses retirado a queixa primeiro, mas por
essa altura os colegas do meu pai já tinham escrito uma carta ao Procurador-
Geral explicando por que motivos o caso nem devia ter ido avante, muito
menos até àquele ponto. Depois de a polícia tomar conhecimento, sabiam que
tinham de recuar.
O rosto de Annabelle parecia tenso e inseguro.
– Então, na realidade, nunca tive ninguém do meu lado – disse, com os
olhos a começarem a encher-se de lágrimas novamente.
– Tiveste, sim. Para começar, um dos polícias, e a tua mãe, e o tio Robert,
e metade da aldeia…
– O Robert tentou manter-se neutro.
– Bem, ele é mesmo assim.
– Na verdade, não sei se a minha mãe alguma vez acreditou em mim –
disse Annabelle tristemente. – Ela diz que sim, mas com ela nunca se sabe.
– Continua a haver aquele polícia – disse Nat desajeitadamente.
– Mas não é como ter o mundo inteiro a apoiar-me, pois não, como tu
tiveste?
– Foram só alguns advogados e, seja como for, não é essa a questão.
– Não, suponho que não – disse Annabelle, olhando de novo para as
chamas mais abaixo. – A questão é – continuou – que agora toda a gente pensa
que sou uma mentirosa e já não tenho amigos nenhuns. Quer dizer, a Georgie e
a Catrina dizem que são minhas amigas, mas já não me convidam para fazer
nada. Não que me importe, porque de qualquer maneira não queria, mas tu
continuas a ter tudo. Todos os teus amigos, a tua mãe, a Darcie… Imagino que
agora me devem odiar, tal como o resto das pessoas. O Robert é o único que
gosta de mim, mas mesmo ele não me quer aqui. Ele diz que é porque uma
rapariga da minha idade não pode viver na mesma casa com um homem
sozinho que não é pai dela, mas eu sei que é só uma desculpa.
– Na verdade, provavelmente ele tem razão – disse Nat seriamente. – Ia
parecer um bocado estranho, mas porque é que estás a dizer isso? A tua mãe
vive convosco…
– Ele anda a falar em divorciar-se dela.
Embora surpreendido, Nat não se conseguia obrigar a dizer que lamentava,
pelo que permaneceu em silêncio.
– Achas que o Robert não me quer aqui porque tenho uma reputação tão
má? – perguntou Annabelle finalmente.
– Não, deve ser por causa das coisas que as pessoas pensam que os
padrastos são capazes de fazer.
– Mas eu tenho má reputação, não tenho? É por isso que ninguém se quer
dar comigo. Quer dizer, as raparigas da minha idade. Algumas delas até nunca
tiveram namorado.
Sem saber como responder a isto, Nat contemplou a fogueira, sentindo o
calor das chamas no rosto e o fumo picando-lhe os olhos. Pensou em quando
eram mais novos e em como tinham sido chegados, não apenas devido aos
seus jogos secretos, mas porque, na verdade, se davam mesmo bem. No
entanto, agora eram pessoas diferentes, a sua inocência desaparecera por
completo e Nat sentia-se chocado e pesaroso de novo pela forma como as
coisas tinham acabado entre eles.
– É estranho, não é, que eu sinta que és a única pessoa com quem posso
falar – disse Annabelle ao fim de algum tempo. – Mas isso não te deve agradar
lá muito, porque provavelmente odeias-me mais do que toda a gente.
– Eu não te odeio.
Annabelle olhou para ele fugazmente e recomeçou a atiçar o fogo.
– Vais contar esta conversa à tua mãe? – perguntou.
– Não sei.
Annabelle encolheu os ombros.
– Tens sorte em ter uma mãe como ela. Acho que a minha nunca vai mudar.
O Robert diz que sim, com a terapia correta. – Annabelle deu uma risadinha. –
Meu Deus, como ela precisa de ir ao psicólogo! É mesmo doida, se queres
saber a minha opinião.
Nat sorriu debilmente.
– Acho que o que realmente importa – disse – é pores tudo isto para trás
das costas e arranjares uns amigos decentes.
Annabelle acenou vagamente com a cabeça.
– O Robert tem razão, talvez o melhor seja mudar para uma escola nova,
num sítio onde ninguém saiba nada de mim – disse Annabelle, e depois, de
súbito, soluçava com tanta intensidade que, antes de Nat poder refletir, já
pusera um braço à volta dela.
– Vai ficar tudo bem – disse ele quando ela escondeu o rosto no peito dele.
– Não vai nada – disse Annabelle num queixume. – Toda a gente me odeia.
Andam todos a falar de mim…
– Isso vai parar – assegurou-lhe Nat. – As pessoas estão mais interessadas
é na vida delas. Daqui a pouco, vão-se esquecer de tudo, e se te vais mudar
daqui…
– Eu sei – disse Annabelle numa voz sufocada –, mas não quero estar
sempre sozinha. Não tenho ninguém com quem falar, nem nenhum sítio para ir,
e sei que a culpa é toda minha, mas …
– Chiuuu – disse Nat, dando-lhe palmadinhas nas costas. – Isso vai mudar,
a sério, as coisas mudam sempre. Olha para nós agora. Há um mês, ninguém
pensaria que estaríamos aqui a falar assim, e foste tu que tornaste isto
possível.
Annabelle sorriu algo hesitantemente.
– Porque pensei que podias querer pedir-me desculpa – lembrou. – Ainda
acho que devias.
– E peço, por te assustar tanto naquela noite e por dizer coisas que te
magoaram tanto, mas juro-te, quando eu… Bem, tu sabes, quando fizemos
aquilo… Juro pela memória do meu pai que pensei que era o que querias e,
quando percebi que não era, parei.
Annabelle acenou com a cabeça.
– E eu juro que, quando fiz queixa à polícia, foi porque pensava mesmo
que me tinhas violado, e suponho que também te queria castigar por tudo o que
me disseste depois.
– Bem, não há dúvida de que castigaste.
– Lamento – disse Annabelle baixinho.
– Eu também – disse Nat.
De pé à janela, Robert sorriu de alívio ao testemunhar um segundo abraço
que pareceu acabar numa série de risadinhas da parte de Annabelle e numa
espécie de sorriso confundido de Nat. Enchia Robert de prazer vê-los assim,
sentia-se quase entusiasmado. Só gostava que as mães de ambos pudessem
seguir o seu exemplo. Contudo, pensando bem, Robert concluiu que teria de
esperar muito, muito tempo até ver isso acontecer.
Sabrina e June estavam sentadas no carro da primeira, estacionado diante
das garagens coloridas adjacentes à Coach House, suficientemente perto para
verem a casa mas ocultas atrás de outro carro. Observaram em silêncio
quando Alicia saiu pela porta da frente e foi deitar qualquer coisa no caixote
do lixo junto ao portão.
June lançou um olhar ansioso a Sabrina.
– Tens a certeza de que queres ir para a frente com isto? – perguntou num
tom de dúvida.
Sabrina continuou a olhar para o outro lado da rua, de olhos vidrados e
assustadoramente pálida. June não estava certa de ter sido uma boa decisão ir
até ali. Estava segura de que, se Robert soubesse, proibiria Sabrina de lá ir,
mas, por outro lado, tendo em conta as intenções de Sabrina, aquilo poderia,
na verdade, ser o que Robert desejava.
Quando a porta da frente se fechou nas costas de Alicia, June olhou de
novo para Sabrina, mas esta continuava de olhos fixos na Coach House como
se observasse a mulher que se encontrava lá dentro através das paredes.
Passaram-se mais alguns minutos, e então, abrindo subitamente a porta do
lado do condutor, Sabrina saiu. Não disse nada a June, nem hesitou quando
começou a atravessar a rua, limitando-se a manter os olhos fixos na porta de
que se aproximava.
Observando-a, June sentia-se cada vez mais preocupada com a
instabilidade que Sabrina demonstrara ao longo das últimas vinte e quatro
horas. Parecia a mulher desequilibrada dos primeiros tempos a seguir à rutura
com Craig, quando, à superfície, tudo parecia ainda estar a funcionar bem,
mas, interiormente, Sabrina já se havia desmoronado por completo. June
pensou se deveria correr atrás dela e tentar convencê-la a voltar para casa. Se
achasse que tinha alguma hipótese de ser bem-sucedida, provavelmente fá-lo-
ia, mas sabia que não tinha, por isso o melhor que podia fazer era ficar ali
sentada à espera, permitindo a Sabrina sentir-se segura, sabendo que a amiga
estava por perto se precisasse dela.

Alicia franziu a testa ao ouvir o som de alguém a bater à porta por entre o
estrondo que saía das colunas do iPod de Darcie.
– O Nat não tinha levado as chaves? – disse, olhando para o relógio.
– Não sei – respondeu Darcie, concentrada no bolo de chocolate que
estava a fazer.
Passando rapidamente as mãos por água, Alicia limpou-as ao avental
enquanto ia ver quem era.
No instante em que viu Sabrina, sentiu as entranhas gelarem de choque.
– Mas que…?
– Por favor, ouve-me – interrompeu-a Sabrina, encostando uma mão à
porta para impedir Alicia de a fechar. – Tenho algo a dizer-te. Posso… Posso
entrar?
Alicia olhou-a com uma expressão gélida.
– Não estou interessada em nada que tu…
– Por favor – disse Sabrina –, não te vou tomar muito tempo.
Alicia olhou-a fixamente, sem a mínima confiança.
– Preciso de falar contigo – disse Sabrina trémula, com os olhos a
encherem-se de lágrimas.
Apesar de não se deixar comover, Alicia saiu para o exterior, encostando a
porta.
– A Darcie está lá dentro – disse. – Não quero que ela ouça o que quer que
seja que tens para dizer, sobretudo se disser respeito ao pai dela.
Sabrina retraiu-se visivelmente. Então, com o seu olhar quebrado fixo em
Alicia, disse:
– Eu quero… Queria pedir desculpa pelo que disse na festa dos Roswells.
Alicia pestanejou, incrédula. Um instante depois, as suas suspeitas
fizeram-se ouvir.
– Porquê? – perguntou.
Sabrina pareceu desnorteada pela pergunta.
– Eu só… Foi… Não devia ter dito aquilo – conseguiu finalmente dizer.
– Estás coberta de razão, não devias, mas não vou aceitar as tuas
desculpas de maneira nenhuma, porque, francamente, estou desconfiada dos
teus motivos.
Sabrina pareceu abalada como se a possibilidade de ver as suas desculpas
rejeitadas nunca lhe tivesse ocorrido. Então, de súbito, como se algo dentro
dela tivesse mudado, os seus olhos cintilaram de irritação.
– Talvez gostasses que me pusesse de joelhos e me humilhasse – sugeriu
amargamente.
– Se quiseres, mas não vai fazer diferença. Ou foi o Robert que te
convenceu a fazer isto ou tens outra razão para vir até cá, que serve os teus
próprios interesses.
Sabrina estava prestes a contradizê-la abruptamente, quando pareceu
reconsiderar.
– OK – disse, afastando uma madeixa de cabelo do rosto –, vim até aqui
porque tinha esperanças de que pudéssemos deixar as nossas diferenças para
trás e começar de novo. Ambas adoramos o Robert, e sentir-se dividido entre
as duas como ele se sente, especialmente com toda esta situação horrível entre
a Annabelle e o Nathan, tem sido muito difícil. Penso que ele não anda bem e
temo que se continuarmos com esta… guerra, bem, isso só lhe vá fazer pior.
Alicia observava-a atentamente. Sabrina estava a representar muito bem,
tinha de admitir, mas ainda assim não a convencia.
– O meu irmão esteve aqui ontem – disse. – Não tem problema nenhum de
saúde, pelo menos nada que não se resolva se saíres da vida dele.
Sabrina recuou como se tivesse apanhado uma bofetada.
– Como saberias se ele está doente ou não? – disse, furiosa. – Não vives
com ele.
– Não preciso, para saber que estás a mentir. O que se passa realmente,
Sabrina? Não me digas que o Robert finalmente ganhou juízo e decidiu
expulsar-te de casa? É por isso que te estás a tentar desculpar? Para causar
boa impressão junto dele? Oh, meu Deus, tenho razão. Ele decidiu mesmo.
Alicia quase sentia vontade de rir. Sabrina olhou-a com uma expressão
letal, mas, quando estava prestes a debitar uma resposta encolerizada, Alicia
ergueu a mão.
– Fizeste por merecer isto, Sabrina – disse mordazmente. – Só pergunto a
mim própria porque demorou tanto tempo.
– Não aconteceria de todo, se não tivesses vindo para cá – silvou Sabrina
entre dentes. – Tudo o que correu mal na minha vida foi por tua causa.
Primeiro o Craig, depois a Annabelle…
– Não voltes a dizer o nome do meu marido na minha frente – disse Alicia
com raiva. – Tu meteste-te entre mim e ele, fizeste todos os possíveis por
destruir o nosso casamento e partiste o coração do meu irmão ao fazê-lo.
Portanto, vai para outro lado com as tuas mentiras e as tuas desculpas falsas,
Sabrina, porque aqui não convences ninguém.
– Não, espera, espera – exclamou Sabrina, agarrando Alicia pelo braço
quando esta começava a voltar-lhe as costas. – Por favor. Pensa na Annabelle.
Sei que foi um verão difícil…
Alicia deu uma gargalhada incrédula.
– … mas se o Robert nos obrigar a ir embora – prosseguiu Sabrina –, ela
não vai perder só o seu lar e os seus amigos, vai perdê-lo também a ele, e
nenhum dos dois quer realmente isso.
Apesar de algo comovida com aquela argumentação, Alicia estava
sobretudo espantada por Sabrina tentar usar Annabelle para a persuadir depois
de tudo o que se passara.
– Devias ter pensado nisso há muito tempo e, para além do mais, conheço
o meu irmão, ele nunca vai abandonar a Annabelle, mesmo que ela não esteja a
viver debaixo do mesmo teto que ele.
Sabrina levou subitamente as mãos à cabeça em frustração.
– Ouve, compreendo porque me odeias – exclamou –, mas tentares
castigar-me por uma coisa sobre a qual não tinha qualquer controlo…Não pedi
para me apaixonar pelo Craig, tal como ele não pediu para se apaixonar por
mim.
A expressão de Alicia endureceu de fúria.
– É tempo de parares de te enganar, Sabrina – disse bruscamente. – Ele
não te amava…
– Mas foi essa a última coisa que ele me disse – gritou Sabrina
desesperada. – Qual foi a…
– Já me perguntaste isso antes – atalhou Alicia com dureza – e não tens
nada com isso, mas queres que te diga quais foram as últimas palavras dele
sobre ti? Ele perguntava a si próprio como podia ter arriscado tanto por tão
pouco. Disse que tu eras uma loucura, uma obsessão, mas que o sexo contigo
não significava nada.
Sabrina recuou um passo, como se tivesse sido atingida por um raio.
– Podes acreditar no que quiseres, eu sei a verdade…
– Não, Sabrina, tudo o que sabes é o que contaste a ti própria. Nessa tua
cabecinha patética e doente, distorceste e mudaste as coisas para encaixarem
nas tuas ilusões e nas tuas fantasias, quando, o tempo todo, ele esteve aqui,
amando-me a mim e aos filhos, e fazendo os possíveis por se livrar de ti…
– És tu quem vive de fantasias – gritou Sabrina num tom de grande
sofrimento. – Ele voltou a procurar-me, lembras-te? Não me conseguia
deixar…
– Mas acabou por deixar, e a única coisa que lhe foi então difícil foi lidar
com a culpa que sentia por me ter magoado tanto. Enquanto tu, para citar as
palavras dele, não passaste de um “desvio de carácter”. Trocando por miúdos,
foste o maior erro da vida dele, do qual se arrependeu até ao dia da sua morte.
O rosto de Sabrina empalideceu e tremeu com a recusa.
– Ele não te diria isso…
– Na verdade, foi o que disse à minha mãe. Escreveu-lhe uma carta, há
mais de um ano, dizendo-lhe o que a vossa ligação significava para ele e como
a família sempre estivera e sempre estaria em primeiro lugar. Podia mostrar-te
a carta, mas não o vou fazer porque me pertence unicamente a mim e aos meus
filhos, tal como ele também pertencia. Não tinhas qualquer direito ao Craig,
Sabrina, nem quando era vivo, nem agora, que está morto. Por isso, vai-te
embora. Não te queremos mais nas nossas vidas.
Quando Alicia lhe virou as costas, algo dentro de Sabrina explodiu e,
atirando-se para a frente, bateu com o punho fechado nas costas de Alicia,
fazendo-a voar disparada contra a porta.
Atordoada pela pancada, Alicia só no último momento se apercebeu de
que Sabrina pegara numa pedra, conseguindo contudo esquivar-se antes que
ela a atingisse na cabeça.
– Nããão! – gritou June, saltando do carro.
Sabrina voltou-se de um salto, quando June desatou a correr na sua
direção.
– Não te aproximes, June – avisou-a. – Foi ela que provocou isto.
– Não, não – implorou June, tropeçando ao entrar no portão a correr.
Darcie abriu a porta por completo.
– Mãe! – exclamou, vendo Alicia tentar erguer-se do chão. – Que foi?
– Volta para dentro – disse Alicia sem fôlego, empurrando-a para o
interior.
Darcie gritou quando Sabrina se atirou de novo a Alicia. Esta desviou-se
mesmo a tempo, e a seguir pôs-se de pé, arrastando Darcie pelo átrio dentro e
batendo a porta atrás delas.
– Sua cabra! – guinchou Sabrina. – Estás a roubar tudo o que é meu, mas
não te vou deixar.
Recuando, Sabrina arremessou a pedra pela janela da sala de estar.
– Robert – disse June em pânico ao telemóvel. – Tens de vir cá. Estamos
em casa da Alicia e a Sabrina… Oh, meu Deus, ela enlouqueceu.
Dentro de casa, Alicia estava aninhada com Darcie na cozinha. Ambas
sustiveram a respiração e encolheram-se ao ouvir outra janela partir na frente
da casa. Conseguiam ouvir Sabrina a gritar e a barafustar, mas Alicia tinha as
mãos sobre os ouvidos de Darcie, tentando impedi-la de ouvir aquela loucura.
– Que se passa com ela? – gritou Darcie. – Porque é que ela está a fazer
isto?
– Ela… não sei – respondeu Alicia a tremer. – Vou ligar ao tio Robert.
Ao agarrar o telefone, saltou, quando mais uma pedra entrou disparada por
outra janela.
– Não pertences aqui! – berrava Sabrina. – Esta casa é minha e do
Robert…
June tentava agarrá-la.
– Sabrina, por favor, para – suplicou.
– Quero matá-la – disse Sabrina num silvo selvagem. – É por causa dela
que estou a perder tudo. A culpada é ela…
– Sabrina, a Darcie está lá dentro. Ela é só uma criança…
– Não me interessa – e, empurrando June, agarrou noutra pedra.
– Sabrina, tens de te controlar – implorou June de novo, tentando tirar-lhe
a pedra. – Há pessoas a ver…
– Deixa-as ver. Quero que toda a gente saiba tudo o que ela me roubou – e,
com toda a sua força, atirou a pedra contra a janela da sala de jogos.
– Oh, meu Deus – murmurou June quando o vidro se estilhaçou em mil
pedaços.
– Sabrina! – gritou Robert, surgindo a correr por The Close.
Sabrina voltou-se e, quando o viu, bradou sarcasticamente:
– Ali vem ele, armado em salvador da irmã. Começo a ter as minhas
suspeitas, sabes, com isso de a pores sempre em primeiro lugar… Mas que…?
– rosnou, enquanto June lhe prendia ambos os braços atrás das costas.
– Pelo amor de Deus, vê se te controlas – disse June baixinho enquanto
Robert entrava pelo portão a correr.
– Mas o que é que se está aqui a passar? – perguntou ele, olhando para
June. – Que faz ela aqui?
Com uma expressão de desamparo, June disse:
– Ela veio pedir desculpas…
– Quê?
– Desculpa, pensei que pudesse correr tudo bem.
Agarrando Sabrina quando esta se libertou de June, Robert virou-a para
ele e estava prestes a pedir-lhe explicações quando Nat e Annabelle
apareceram a correr ao fundo da rua.
– A minha mãe ligou-me – gritou Nat. – Que se passa?
Sabrina encolheu-se.
– Mantenham aquele rapaz longe de mim – cuspiu. – Ele é perverso. É um
violador…
Robert tapou-lhe a boca com a mão e disse a June:
– Temos de a levar para casa.
– Vou buscar o carro dela – disse June.
– Mãe, que tens? – exclamou Annabelle, com um ar aterrorizado quando
Sabrina começou a gritar continuamente como se não fosse capaz de se deter.
– Nat, vai para dentro e vê se a tua mãe está bem – disse Robert.
Tirando as chaves de um bolso, Nat olhou por cima do ombro para Sabrina
e Annabelle, e depois abriu a porta.
– Também sempre te odiei – berrou Sabrina quando Nat entrou. – Odeio-o
– disse a Annabelle. – Ele não presta. Violou-te…
– Mãe, para, por favor – suplicou Annabelle.
Robert segurava Sabrina, mas esta lutava ferozmente para se libertar. O
seu cabelo parecia um ninho de ratos e tinha o rosto manchado de lágrimas e
rímel.
– Isto é culpa tua – disse colericamente a Robert. – Vais-me expulsar de
casa. Já não gostas de nós…
– Chiuu, para com isso, por favor. Para! – ordenou Robert, abanando-a.
– Não posso – disse Sabrina, engolindo em seco. – Eu estou… Oh, meu
Deus, Robert, não consigo suportar. Não aguento mais…
Puxando-a para ele, Robert abraçou-a com força e, enquanto Sabrina
tremia e arquejava em desespero, sentiu-se invadir pela culpa e pela
consternação. Ela tinha razão, aquilo era culpa dele. Devia ter percebido
como ela estava perto do limite, como lhe seria difícil lidar com as coisas que
lhe dissera.
– Por favor, não me obrigues a sair de casa – suplicou Sabrina, agarrando-
se a ele. – És tudo o que tenho. Não serei capaz de sobreviver sozinha.
– Então e eu? – disse Annabelle. – Ainda me tens a mim.
Sabrina olhou para ela inexpressivamente. Então, parecendo compreender
de quem se tratava, começou a soluçar.
– Annabelle, minha menina – disse numa voz sufocada, levando as mãos ao
rosto. – Que foi que te fiz? Porque me odeias?
– Não te odeio – exclamou Annabelle, aproximando-se dela. – Tu só…
– Chiuu – disse Robert, interrompendo-a suavemente. – Vamos levá-la
para casa. Depois, haverá tempo para o resto.
– Sim, quero ir para casa – disse Sabrina num queixume. – Por favor,
levem-me para casa.
– A June já está aqui com o carro – disse Robert num tom reconfortante e,
conduzindo Sabrina para o portão, fez um sinal com a cabeça a Annabelle para
o abrir.
– A Annabelle também vem? – perguntou Sabrina.
– Sim, estou aqui – disse Annabelle, passando cautelosamente um braço à
volta da mãe.
– Vou chamar o médico e pedir-lhe para te receitar qualquer coisa, para te
ajudar a acalmar – disse Robert serenamente.
– Sim, sim – concordou Sabrina. – Preciso de me acalmar. Não devia ter
perdido o controlo assim, mas não consegui evitar – disse Sabrina, olhando
para Robert ansiosamente, com a cabeça e os ombros ainda sacudidos pelos
soluços. – Ela tentou… Ela tentou dizer que o Craig não me amava – disse
hesitantemente –, mas eu sei que ele amava. Mas agora não importa, pois não?
– Não – respondeu Robert e, abrindo a porta de trás do carro, esperou que
Annabelle entrasse primeiro e, então, empurrou Sabrina para o lugar ao lado
dela. – Leva-a para casa – disse a June. – Vou ver se a minha irmã está bem e
depois vou lá ter.
– Não! – gritou Sabrina. – Quem precisa de ti sou eu.
– Eu já vou lá ter – disse Robert –, mas agora, por favor, tenta controlar-te,
para bem da Annabelle, mas também por ti – e, enfiando a cabeça pela janela
do lado do condutor e inclinando-se sobre June, carregou no botão para
trancar as portas de trás.
June ergueu os olhos para ele e, depois de exibir um breve sorriso de
solidariedade e encorajamento, arrancou. Já tinham passado por aquilo antes e
sentia-se tão triste e apreensiva como Robert por verem a situação a repetir-
se.

– Estão bem? – perguntou Robert a Alicia quando Nat o conduziu à


cozinha.
– Sim – respondeu a irmã. – Estamos um bocado abaladas, mas vamos
sobreviver.
Os olhos de Darcie estavam carregados de confusão ao olhar para o tio.
– Que se passa com ela? – lamentou-se. – Porque é que ela gritou com a
mãe e nos partiu os vidros assim?
Tanto Alicia como Nat olharam para Robert, ansiosos por que este
compreendesse que Darcie ainda era demasiado nova para lhe destruírem as
suas ilusões sobre o pai. Contudo, puxando uma cadeira para se sentar e ficar
à altura de Darcie, Robert disse:
– Ela não tem andado bem, querida. Não se conseguiu controlar, mas agora
vamos procurar a ajuda de um médico. Mas não quero que fiques preocupada
a pensar que ela pode fazer isto outra vez, porque vou-me certificar de que
isso não acontece.
– Mas que é que ela tem?
Robert suspirou e afagou-lhe o cabelo.
– A Sabrina tem muitos problemas, que vêm de há muito tempo – disse –,
talvez desde quando era criança e a mãe dela fugiu de casa e a abandonou.
Darcie pareceu perturbada.
– Porque é que a mãe dela fez isso? – perguntou, parecendo incapaz de
compreender tal coisa.
– Conheceu outro homem, por isso foi-se embora e deixou a Sabrina com o
pai dela, que depois teve montes de namoradas. Isso significou que a Sabrina
cresceu sem nunca saber bem quem era a mãe. E também não tomavam lá
muito bem conta dela.
Darcie olhou para Alicia.
– Tu não eras capaz de nos deixar, pois não? – disse preocupada.
Alicia sorriu.
– É claro que não – tranquilizou-a, enquanto tentava esconder a sua
surpresa. Não fazia ideia daquela parte do passado de Sabrina.
– Na verdade, agora tenho pena dela – decidiu Darcie.
Nat virou a cara, mas Alicia pousou-lhe a mão no ombro. Quando o filho
olhou para ela, Alicia abanou a cabeça brevemente. Agora não era a altura
certa para criticar mais Sabrina, sobretudo quando Darcie estava por perto.
Pondo-se de pé, Robert disse:
– Tenho de ir ver como ela está. Ah, e vou arranjar alguém para vir
consertar as janelas.
– Não te preocupes – disse Alicia, levando-o à porta. – Vou ligar ao tio da
Rachel, o Pete. Ele deve saber o que fazer.
Quando saíram para o exterior, Robert disse:
– De certeza que estás bem?
– De certeza – garantiu Alicia. A seguir, depois de lhe ter dado um abraço,
disse: – Então, pediste-lhe que saísse de casa?
Robert suspirou e passou a mão pelo rosto.
– Não sei se isso será possível enquanto ela estiver neste estado – disse,
parecendo duvidar de tudo. A seguir, olhou Alicia nos olhos. – Culpo-me a
mim próprio pelo que aconteceu hoje – confessou. – Devia ter percebido como
ela estava frágil. Aparentemente, pedir-lhe para se ir embora foi a gota de
água.
Abraçando-o de novo, Alicia disse:
– Não podias prever que ela reagiria assim.
– Mas devia ter imaginado– contrapôs Robert. – Já vi como ela esteve
antes… E acho que desta vez é pior. Tenho de lhe arranjar ajuda médica.
– Será melhor assim – tranquilizou-o Alicia.
Robert acenou com a cabeça sobriamente. Então, parecendo animar-se um
pouco, disse:
– As coisas parecem estar a correr bem entre o Nat e a Annabelle, por
isso, com sorte, este pesadelo está a dar as últimas.
Alicia sorriu debilmente, sabendo que demoraria muito tempo até que
alguém esquecesse aquele verão terrível.
– Lamento que ainda tenhas tantos problemas a enfrentar – disse. – Sabes,
se houver algo que eu possa fazer…
Robert olhou-a com gratidão.
– Nos próximos dias tenho muito em que pensar – disse num tom cansado.
– Ia ser uma ajuda, se estivesses disponível quando precisar de discutir
alguma coisa, isto é, se achares bem.
– É claro – disse Alicia calorosamente. – Estarei sempre disponível para
ti, já sabes.
Depois de lhe tocar no rosto num gesto de carinho, Robert voltou-se para
se ir embora e o seu passo pesado parecia refletir o crescente fardo no seu
coração. Alicia ficou a olhar para ele, sentindo a sua tristeza e confusão abalá-
la como se fossem suas. Conhecendo o irmão como conhecia, não tinha
dúvidas de que faria o melhor para toda a gente antes de pensar em si próprio.
Contudo, ia fazer tudo o que pudesse para se assegurar de que Robert não era
esquecido.
Capítulo Vinte e Seis
Uma semana depois, o carro de Cameron estava estacionado diante da
Coach House, a abarrotar com malas, uma cama de cão e todos os panfletos e
bricabraque que Cameron havia reunido durante as suas incursões na região ao
longo do verão.
O outono mostrava agora os primeiros sinais, com as noites a tornarem-se
mais escuras e uma aragem fria no ar. Durante a última hora, o sol andara a
esquivar-se por entre as nuvens e o vento havia registado um abrandamento
bem-vindo, depois de se ter mostrado bastante violento e ruidoso durante a
noite.
– Esperemos que não chova até voltares para Londres – disse Alicia
quando terminaram o chá.
– A previsão não é muito má – respondeu Cameron. – Devo conseguir
chegar antes de a tempestade recomeçar. O Robert vem cá mais tarde?
– Pode ser que sim – disse Alicia.
– Gostei de o conhecer. É um homem muito interessante.
Alicia sorriu.
– Fez-lhe bem passar algum tempo contigo – disse. – Fez com que se
distraísse um bocado.
Pegando nas chávenas de ambos, Cameron levou-as para a banca.
– Ele está sob muita pressão – disse –, mas acho que chegou a algumas
boas decisões.
– Por agora, vão servir – concordou Alicia –, mas vou sentir a falta dele
enquanto estiver em Londres.
Depois de muita introspeção e de várias conversas com um psiquiatra de
Londres, Robert decidira mudar-se com Sabrina e Annabelle para uma casa
arrendada em Chelsea durante os meses seguintes, para que Sabrina ficasse
perto do médico que a estava a tratar. Entretanto, começaram a procurar uma
escola para Annabelle e, desde que Robert concordara em organizar o
trabalho para passar mais tempo em casa, pelo menos alguma da pressão
parecia ter saído dos ombros de todos eles. Não se voltou a conversar sobre a
separação de Robert e Sabrina, e Alicia sabia que, no seu íntimo, o irmão
estava aliviado por tal não acontecer, pelo menos por agora. O caminho diante
deles já seria suficientemente difícil sem a pressão de um divórcio e, além
disso, não era próprio de Robert virar as costas às pessoas que amava,
particularmente quando precisavam tanto dele.
– Uma parte de mim pensa que a Sabrina não merece este tipo de lealdade
– observou Alicia, enquanto começava a encaminhar-se com Cameron para a
porta da frente –, mas, ao mesmo tempo, continuo a dar comigo a ter pena dela.
Cameron olhou para ela com um aparente ar de surpresa. Alicia encolheu
os ombros.
– Agora que sei mais sobre o seu passado – disse –, consigo compreender
porque lhe é tão difícil esquecer o Craig. Seja como for, não quero continuar a
detestá-la. Não vai levar nenhuma de nós a lado nenhum, e se tu a tivesses
visto quando ela veio cá… Bem, digamos apenas que é evidente que ela sofreu
bastante por causa do caso e, agora, talvez fosse no interesse de todos
tentarmos deitar isto para trás das costas.
Havia uma expressão de admiração nos olhos de Cameron quando falou.
– Achas que vocês alguma vez vão ser capazes de se voltar a juntar como
uma família?
Alicia abanou a cabeça.
– Não sei – respondeu sinceramente. – Ainda é muito cedo para dizer, e a
situação é muito difícil de imaginar, mas, talvez um dia, sejamos capazes de o
fazer. De qualquer maneira, gostaria de pensar que sim, por causa do Robert,
pelo menos. Isto é, partindo do princípio de que eles ficam juntos e, desde que
ela ultrapasse isto, acho que o mais provável é ficarem.
Cameron suspirou e disse:
– Acho que nunca ninguém pensa nas possíveis repercussões, quando entra
num relacionamento ilícito, ou em quem pode acabar por pagar o preço mais
alto. O pior é quando são os filhos a fazê-lo, e não há dúvidas de que o Nat e a
Annabelle acabaram por apanhar com boa parte dos estilhaços desta situação.
– Tal como a Sabrina, quando a mãe fugiu com outro homem.
Cameron estava prestes a responder quando, por trás deles, Jasper latiu e,
voltando-se, Cameron soltou uma risadinha, ao ver como o cão tolerava
educadamente o abraço assolapado de Darcie na sala de estar, enquanto
esperava que o dono não se tivesse esquecido dele.
– Por favor, deixa-o ficar cá – implorou Darcie.
– Se pensasse que ele ficava, deixá-lo-ia – disse Cameron –, porque então
teria uma desculpa para voltar.
Surpreendida, Alicia disse:
– Tu não precisas de desculpas, és sempre bem-vindo. Só tenho pena de
não termos tido muita sorte a encontrar-te uma casa. Então, teria a certeza de
que estarias por cá mais vezes.
– Podes contar com isso – disse Cameron. – Na verdade, tenho andado a
pensar em sondar o Robert acerca de alugar a casa dele enquanto estiverem
em Londres, para poder vir cá de vez em quando, aos fins de semana.
Alicia sorriu com prazer diante da ideia.
– Isso seria ótimo – respondeu. – Tenho a certeza de que o Robert estaria
interessado. É sempre melhor ter uma casa habitada, e como ele te conhece…
– Vou esperar até que tenha a mudança para Londres definida, antes de
abordar o assunto – Então, voltando-se para Jasper. – Ei, tu. São horas de ir
embora.
Não precisando que lhe dissessem duas vezes, Jasper correu para o átrio e
colidiu diretamente contra as pernas de Cameron.
– Ele ainda não sabe muito bem quando parar – informou Cameron,
revirando os olhos.
– Adeus – disse Darcie, vindo juntar-se a eles. – Muito obrigada por tudo.
– De nada – respondeu Cameron, dando-lhe um abraço. – E obrigada por
me deixares partilhar algum do tempo da tua mãe nas últimas semanas.
– Oh, tudo bem, acho que ela gostou.
– Espero que sim – disse ele, lançando um olhar irónico na direção de
Alicia.
– Agora lembra-te da tua promessa – disse a Darcie –, vais ter de fazer
com que ela comece a criar algo de novo na segunda-feira, e se ela não o fizer,
tu vais…
– … logo telefonar-te para te dizer – finalizou Darcie. – Não há problema
nenhum. O Nat também sabe, e ela não pode discutir com ele porque ele é
maior do que ela.
– E vê se não te esqueces disso – disse Nat à mãe ao descer as escadas,
dois degraus de cada vez. – Desculpem, era o Jolyon no telefone. Vou passar
as férias intercalares com ele, se não te importares, a fazer mais um estágio.
Ele até se ofereceu para me pagar desta vez.
Alicia parecia encantada.
– Ah, e alguns amigos meus contactaram-se para descobrir quando vou
estar em Londres de novo. Por isso, achas que haveria problema se me
encontrasse com eles quando formos organizar a exposição das tuas esculturas,
no próximo fim de semana?
– É claro – tranquilizou-o ela.
Alicia estava tentada a perguntar se Nat soubera algo mais de Summer,
mas decidiu não o fazer. Era tempo de seguir em frente e, apesar de saber que
a rutura ainda incomodava o filho, tal como tudo o resto por que passara, Nat
acabaria por ultrapassar aquilo. Era só uma pena que não tivesse sido
oficialmente exonerado da acusação de violação. No entanto, não era assim
que as coisas funcionavam, como Alicia bem sabia, e o que realmente
importava era que o filho já não teria de enfrentar a provação de um
julgamento, nem se veria sujeito a mais insultos na aldeia ou na escola.
Virando-se para Cameron, Nat apertou-lhe calorosamente a mão.
– Foi ótimo ter-te conhecido – disse. – Obrigado por tudo, especialmente
pelo que fizeste pela minha mãe, e não falo apenas do trabalho.
– O prazer foi meu – assegurou-lhe Cameron.
– Ela estava muito em baixo quando chegámos…
– Olá, ainda estou aqui! – interrompeu Alicia, sentindo-se começar a
corar. – Agora desapareçam, vocês os dois, enquanto eu digo adeus ao meu
amigo.
Agarrando Jasper enquanto Nat e Darcie obedientemente desapareciam em
direção à sala de estar, Cameron abriu a porta da frente e disse:
– Vai e espera junto ao carro.
Sempre feliz por obedecer, Jasper trotou pelo caminho abaixo e deitou-se
num baque surdo ao lado do portão.
– Lindo menino – murmurou Cameron e, voltando-se para Alicia, sorriu
olhando-a nos olhos. – Posso ainda não ter encontrado a casa certa – disse –,
mas gostaria de pensar que encontrei uma nova amiga.
– Também gostaria de pensar assim – respondeu Alicia suavemente. – Tu
tornaste este verão muito mais fácil de suportar. Na verdade, mais do que isso,
conseguiste fazer-me sentir feliz e otimista em alturas em que pensava que o
universo tinha desistido de mim.
– Fico contente – disse Cameron. – Tu também fizeste uma grande
diferença no meu verão, e agora estou mais determinado do que nunca em fazer
desta zona a minha segunda casa – e, puxando Alicia para os braços, abraçou-
a com força.
– Não te esqueças, vais começar a trabalhar na segunda-feira – continuou
Cameron –, e até ao Natal deves ter tudo pronto para abrires a loja.
– Os miúdos estavam a pensar que devíamos fazer uma festa para
comemorar, com castanhas e vinho quente com canela.
Iria ser o primeiro Natal sem Craig e Alicia já estava a receá-lo
profundamente, mas, pelo menos, tinham a desejada abertura da loja no
horizonte, depois de terem investido tanto esforço nela.
– Uma ideia excelente – concordou Cameron. – Podíamos convidar os
artistas que vais promover, e também os vizinhos e a imprensa local. Vai
inaugurar os festejos natalícios de maneira muito alegre.
Sentindo-se satisfeita ao ver Cameron utilizar o plural, e esperando que as
filhas dele também pudessem estar na festa, Alicia sorriu.
– Liga-me para me dizeres se chegaste bem – disse.
– É claro – murmurou Cameron e, depois de lhe apertar a mão
carinhosamente, dirigiu-se para o carro.
Alicia ficou à porta a observar Cameron até este arrancar e, quando o
carro dobrou a esquina do pub, sentiu uma familiar sensação de perda
apoderar-se dela. A necessidade de estar com Craig acompanhava-a sempre,
mas apercebeu se de que também iria sentir a falta de Cameron – e talvez mais
do que esperava. Voltando para dentro, fechou a porta atrás de si e sentiu-se
animada pelo facto de o ir ver de novo dentro de uma semana. Ainda não tinha
a certeza sobre a sugestão de Nat de convidarem Annabelle para os ajudar a
montarem a exposição – tomaria uma decisão sobre isso depois de conversar
com Robert. No entanto, da forma como as coisas estavam em casa dela,
provavelmente faria bem à pobre rapariga afastar-se um pouco.
– Então, beijaste-o? – exigiu saber Darcie, enquanto Alicia entrou na sala
de estar.
Alicia soltou uma gargalhada de surpresa.
– Não, é claro que não – respondeu, sentindo-se a corar.
Nat observava-a atentamente.
– Não beijei! – exclamou Alicia, erguendo as mãos.
– Nesse caso – disse Nat, agarrando-a nos braços –, aqui está um para não
te sentires mal – e deu-lhe um beijo repenicado mesmo no meio da bochecha.
– E aqui está outro – gritou Darcie, saltando para se juntar a eles.
Rindo enquanto caíam sobre o sofá, Alicia apertou os braços em volta
deles e agarrou-os firmemente.
– Sabes, ando para te perguntar uma coisa – disse Nat, seguindo a direção
dos olhos dela para a fotografia do pai por cima da lareira. – O que é que o
pai disse para te fazer rir tanto naquela foto do casamento?
– Oh, sim, eu sei qual é – gritou Darcie animadamente. – O pai tem aquele
olhar típico que ele fazia, tu sabes, quando dizia alguma coisa escandalosa e
tentava não se rir.
– Então, vá lá – pediu Nat. – Desembucha.
Alicia abanava a cabeça.
– Não posso repeti-lo – disse-lhes ela, sentindo o riso a emergir do seu
interior ao evocar a memória.
– Ele disse-me uma vez o que foi – disse Nat –, mas eu esqueci-me.
– Então, deu-te a versão censurada – informou-o Alicia.
– Oh, já sei – exclamou Nat. – O que se passou foi que ele tinha passado a
cerimónia toda com a braguilha aberta.
Darcie desatou num risinho agudo. Alicia também riu.
– Foi isso – confirmou.
Nat olhou-a desconfiado.
– Não foi, não – disse. – Quer dizer, foi o que ele me disse, mas na
verdade foi outra coisa, não é?
Alicia começou a levantar-se, mas Nat puxou-a de volta para o sofá.
– Fala, ou nós torturamos-te com cócegas até dizeres – avisou-a ele.
– Está, está bem – disse Alicia sem fôlego, assim que os dois começaram
o ataque –, o que ele disse foi: Um dia vamos ter filhos e, quando isso
acontecer, por favor nunca lhes digas o que acabei de te dizer.

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