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INSTITUTO DE ECONOMIA
Campinas
2016
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ECONOMIA
Campinas
2016
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ECONOMIA
DEFENDIDA EM 25/02/2016
COMISSÃO JULGADORA
Campinas
2016
À minha família
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO
A partir da Restauração Meiji, ocorrida em 1868, quando uma parte da aristocracia
samurai se levantou contra o governo e realizou a transição para o sistema imperial,
inúmeras reformas no sentido da modernização do país foram estabelecidas a partir de
cima e de forma autoritária. Em algumas décadas o Japão deixaria de ser uma sociedade
agrária, tornando-se uma sociedade industrial e iniciando sua expansão colonial na Ásia.
Dado o contexto internacional de expansão do imperialismo ocidental, a prioridade do
governo imperial foi o de transformar o Japão em um estado forte e rico, capaz de
renegociar a sua posição internacional e competir em pé de igualdade com os avançados
países do Ocidente1. Para isso, era preciso que o país se reorganizasse internamente de
forma a se industrializar e também se lançar na corrida imperialista. Como explica Gabriel
Cohn (1978, p. 286), o desencadear de um processo de industrialização capitalista,
(...) implica num conjunto de exigências econômicas e históricas, internas e
externas à sociedade dada, suficientemente complexo para admitir uma
ampla gama de formas de realizações, e permite advertir, desde logo, que a
industrialização, longe de ser uma fase “natural” do desenvolvimento
histórico de todas as nações, é um processo difícil, que só alcança êxito à
custa de reorganizações de tensões muito intensas no interior de uma
sociedade.
Nesse contexto, o Japão enfrentava diversas dificuldades de um país cujos líderes
tinham o objetivo de iniciar sua industrialização e precisavam reorganizar suas tensões
internas. E dada a escassez de capitais e a perda constante de recursos desde a assinatura
dos “Tratados Infames” pelo Shogun, no contexto da abertura dos portos em 1854, bem
como a consciência de que os empréstimos internacionais elevariam ainda mais a
vulnerabilidade do país, a consolidação os objetivos governamentais teve uma única fonte
inicial de financiamento: a agricultura 2.
1
Como explica Gabriel Cohn (1978, p. 284), “a crise do sistema de base não-industrial oferece o que se poderia
chamar de ‘oportunidade’ histórica para a sua mudança. Para que isso resulte um movimento industrializante
(isto é, capaz de introduzir uma ‘cunha’ suficientemente profunda no sistema para que a expansão industrial
possa ganhar dinâmica própria), é necessária a presença de simultânea de um conjunto de condições históricas”.
2
Entre os fatores históricos essenciais para a criação das condições internas para a industrialização capitalista
estão a existência de um forte excedente, exprimível em termos monetários, relativo ao necessário para a simples
manutenção do sistema; em seguida, uma parcela significativa desse excedente, ao invés de distribuir-se por todo
o conjunto social, deve concentrar-se em poder de um grupo minoritário; depois, esse grupo beneficiado pela
concentração da renda derivada do excedente deve ser suficientemente diferenciado para incorporar elementos
aptos e assumirem novas formas de comportamento econômico em relação àquelas vigentes no sistema original:
a incorporarem e introduzirem inovações na atividade econômica; por último, esses novos agentes econômicos
devem contar com um suprimento de mão de obra e de consumidores para novos produtos (o que já impõe
limites à concentração da renda), assim como matéria-prima disponível (ou transportável) e fontes de energia.
2
Assim, o Estado Imperial estabeleceu novos parâmetros para o imposto sobre o uso da
terra, modificando a forma como a arrecadação era feita em relação ao Período Tokugawa. No
entanto, a estrutura de propriedade da terra e de organização da produção que foi adotada pelo
governo advém de transformações que já estavam em movimento desde a segunda metade do
século XVIII no Japão, ocorrendo a sua consolidação e legitimação na Era Meiji, de acordo
com os interesses do governo e dos grandes proprietários de terras. Ou seja, dentro dos
marcos de uma modernização conservadora3. Assim, para poder compreender essa transição
do chamado “feudalismo japonês” para o capitalismo, escolheu-se tratar a questão da estrutura
agrária. Julga-se que este elemento da transição, sendo uma ponte entre uma sociedade
eminentemente rural e o capitalismo, apreende as transformações estruturais na propriedade,
bem como das relações sociais, evidenciando os impulsos específicos para o surgimento do
capitalismo e rápida industrialização 4.
Tendo como ponto de partida, o texto da Ellen Wood (1998), chamado “As Origens
Agrárias do Capitalismo”, afirma-se que também para o caso específico do Japão, o
capitalismo tem suas origens no campo e não nas cidades. Segundo a autora, é preciso “não
uma simples extensão ou expansão do escambo e da troca, mas uma transformação completa
nas práticas e relações humanas mais fundamentais, uma ruptura nos antigos padrões de
interação com a natureza na produção das necessidades vitais básicas” (WOOD, 1998, p. 13).
WOOD (1998) complementa que a diferença essencial entre todas as sociedades pré-
capitalistas e capitalista não está relacionado com o fato da produção ser rural ou urbana, mas
sim com a forma como se estabelecem as relações de propriedade entre produtores e
apropriadores. E para isso, compreender como se deu o processo de expropriação do
3
O conceito de modernização aqui utilizado é provenitente de Formação econômica do Brasil (1959) de Celso
Furtado, em que, a modernização, ao invés de se superar os elementos arcaicos presentes na formação social
brasileira, transformava-os em elementos constitutivos do capitalismo nacional, como elementos da acumulação
capitalista. Essa noção advém da interpretação de Weber (1983), em que “a modernização é um processo de
mobilização dos componentes sócio-economicos numa determinada direção, cujo resultado mais imediato pode
ser visto pelo aumento da produtividade do trabalho e a ampliação das redes produtivas” (BRITO, RIBEIRO,
2003).
4
Tomamos aqui o termo industrialização, como um processo. Nas palavras de Gabriel Cohn (1978, p. 283), “é
um conjunto de mudanças, dotada de uma certa continuidade e sentido. Seu sentido é dado pela transformação
global de um sistema econômico-social de base não-industrial (...). É por operar num sistema que a
industrialização implica em um conjunto articulado de mudanças, e é por essa via que ela se distingue da simples
criação de indústrias: pode ocorrer, num momento dado, em uma economia de base não-industrial, um “surto
industrial” sem continuidade, por resumir-se no surgimento de unidades manufatureiras isoladas do contexto
econômico-social global e condendadas (...) a desempenharem um papel marginal, nas franjas do sistema. Já a
instauração de um processo industrializante tem raízes mais profundas, que por vezes nem mesmo se traduzem
imediatamente na criação de indústrias, mas que configuram um movimento que, uma vez iniciado é irreversível.
Desde que articuladas as forças econômicas e sociais conducentes à industrialização, e desencadeado (o próprio
termo é ilustrativo) o processo, a alternativa não é mais a volta ao estado anterior, mas a estagnação. Vale dizer:
a industrialização só se concebe numa situação de crise do sistema que lhe dá origem, e se define como uma
solução possível para essa crise, através da rearticulação do sistema.”
3
camponês à terra, cumprindo o seu papel de produtor rural de forma submissa à ordem
shogunal.
Essa submissão à ordem estabelecida é expressa na forma como a maioria das revoltas
camponesas foram realizadas neste período. Apesar de ter sido período de intensa mobilização
camponesa, muitos autores consideram esse período pacífico, pela forma como os protestos
eram organizados (VLASTOS, 1986; BIX, 1986). As reivindicações eram feitas através de
petições, uma forma de expressão de descontentamento que era legitimada pelo Estado, que
cobravam do Estado uma atitude benevolente em momentos de dificuldade no pagamento dos
tributos em arroz. Reivindicando a noção de papeis, o objetivo dos camponeses era poder
continuar como um camponês honrado, sem perder a sua propriedade por inadimplência,
enquanto era papel do Estado, garantir que isso acontecesse. Enquanto as petições que
reclamavam das elevadas taxações eram proibidas e seus elaboradores severamente punidos, o
Estado agiu de forma a aliviar os impostos em momentos de adversidade climática ou quando
uma aldeia estava visivelmente sofrendo com as pesadas taxações, com provas concretas da
fome e inanição.
O segundo capítulo analisa o período que vai de meados do século XVIII à meados de
XIX, tendo como ponto final a Restauração Meiji. Este período é marcado pelas
transformações mais aceleradas, onde o comércio precipita as transformações que iam
acontecendo no campo, juntamente com a expansão das cidades-castelo, bem como dos
grandes centros urbanos, como Edo, Osaka e Kyoto. Nesta segunda fase, o campo se
reorganiza para conseguir pagar os tributos em arroz e produzir outras culturas ou
manufaturas para colocar à venda nos mercados locais ou para entregar aos grandes
mercadores. Estes últimos também se inserem na estrutura do campo na figura de financiador
de empreendimentos de expansão da produção, bem como de fonte de empréstimo para o
camponês em momentos de dificuldade de pagamento dos impostos. Esta mesma posição é
ocupada pelas famílias tradicionais e mais ricas das aldeias que vão concentrando cada vez
mais terras em um processo de desapropriação do camponês mais pobre que se acelera nesse
período, transformando-o em arrendatário. Uma das características da peculiaridade do caso
japonês está no fato de que as desapropriações não expulsaram o camponês do campo e nem
gerou grandes latifúndios monocultores. Dada a estrutura do ie, a terra, fonte de conexão com
os ancestrais, tinha uma grande representatividade para a família camponesa e, dessa forma,
abandonar a terra seria a prova concreta do fracasso, o que fez com que os camponeses se
mantivessem nos lotes cultivados, agora na condição de arrendatários.
5
Outro ponto que cabe ser ressaltado nesse capítulo, é que as políticas do próprio governo
Tokugawa contribuiram para a desagregação do seu sistema shogunal. Com a obrigatoriedade
da saída do samurai do campo e a ordem dada aos daimyo de passarem longos períodos em
Edo (sankin kotai), foi necessário o desenvolvimento de uma rede de comunicação, transporte
e comércio para abastecer as cidades-castelo e os grandes centros urbanos que se expandiram
nesse período. Dada essa situação, a classe mercadora que ficava abaixo dos camponeses na
pirâmide social começou a expandir sua riqueza, enquanto a elite política e a classe samurai ia
se endividando e deteriorando as contas públicas. Em um primeiro momento, a conexão dessa
expansão com a produção agrícola do campo é limitada às regiões próximas das cidades, onde
os mercadores autorizados pelo governo faziam o transporte das mercadorias.
No entanto, a partir de meados do século XVIII, tornou-se cada vez mais fácil ao
camponês colocar qualquer excedente no mercado e a expansão da classe mercadora que foi
para o interior auxiliou na produção voltada ao comércio. Apesar desse impulso, o comércio
deve ser entendido não como a causa da expansão da produção de um excedente no campo,
mas como uma força que precipita transformações que já estavam em movimento nesse
período, quais sejam: as melhorias nos métodos e técnicas de cultivo, as atividades paralelas à
agricultura e ao cultivo do arroz e a expansão das desapropriações dos pequenos camponeses
transformados em arrendatários. Acredita-se que a paz estabelecida pelo Shogunato
Tokugawa, bem como a estrutura de pequeníssimas propriedades contribuiu para a expansão
da produção no campo e não o comércio.
A expressão dessas transformações é evidenciada pela mudança nos objetivos e nas
formas das revoltas camponesas. Dada a diferenciação que se expande no campo, com maior
distanciamento entre o pequeno produtor e os camponeses mais ricos e com o novo papel do
mercador que se torna detentor de direitos de uso e posse da terra e importante credor dos
camponeses que não conseguiam pagar todo valor dos impostos e sobreviver. A desintegração
das antigas noções de solidariedade e dependência que existiam na aldeia revolta os pequenos
camponeses que passam a usar a violência contra a camada superior que está no campo. Dada
a impossibilidade do Estado em controlar o processo de desapropriação, as petições enviadas
à este perdia o sentido e o embate direto no campo tomou a forma de destruição de casas e
propriedades em busca de justiça.
Por fim, o terceiro capítulo trata da institucionalização dessas transformações que
ocorreram na estrutura da propriedade da terra pelo Governo Meiji. A relação entre o
proprietário da terra e os arrendatários, despossuídos de terra e de direitos é coroada pelo
6
governo imperial que se alia ao grande proprietário para garantir o financiamento dos projetos
de modernização. As taxações sobre o campo eram a única fonte segura de financiamento do
Governo e a sua reorganização era urgente. Nos primeiros anos do novo governo foi feita a
Reforma do Imposto Territorial que definiu novos parâmetros de avaliação da terra e do
montante de imposto a ser pago em dinheiro. A terra passa a ser efetivamente uma
propriedade e sua alienação torna-se legalizada. No entanto, nenhuma política de
redistribuição de terras ou de regulação da relação proprietário-arrendatário foi realizada,
mantendo o pequeno camponês em situação de dificuldade, ampliando ainda mais o processo
de desapropriação. Em meio à inúmeras mudanças o ie é mantido pelo Governo, como sendo
a base da sociedade camponesa e também daquela que vai para cidade. Apesar da introdução
das noções individualistas do ocidente no que tange à questão da propriedade, o Estado
utilizou-se das noções familiares baseadas no ie para organizar a educação e o discurso
nacionalista que seria fundamental às empreitadas imperialistas e às diversas guerras em que o
Japão se envolveu.
Também neste período as revoltas camponesas conseguiram expressar as transformações
que a Reforma do Imposto Territorial trouxe para a vida campesina. No entanto, o
autoritarismo do Estado Imperial, e a articulação desse governo com os grandes proprietários
de terras rapidamente desarticulou as forças de questionamento dos levantes, sendo um
período marcado por um número relativamente inferior de revoltas.
Dada essa evolução da estrutura agrária no Japão em direção ao capitalismo,
observou-se que a compreensão das relações de propriedade do período Meiji com as grandes
ondas de desapropriação só poderiam ser feitas dentro de uma noção de longa duração, em
que o que se estabelece no capitalismo teve raízes históricas em um período anterior, onde as
forças de transformação já estavam colocadas em movimento. Para isso, julgou-se necessário
retornar ao período Tokugawa para que ficasse claro como a propriedade da terra foi se
estruturando. Por essa razão estabeleceu-se esse recorte temporal, que abrange 3 séculos de
transformações lentas e aceleradas na direção da constituição do capitalismo japonês ao final
do século XIX.
7
1.1 A geografia
O estudo da questão da terra e da agricultura japonesa tem como ponto de partida a
compreensão da sua peculiar geografia, pois norteia a questão da disponibilidade de água e
terras agricultáveis no país. O Japão é formado por uma cadeia de ilhas, com 4 principais e
mais de 6 mil que se espalham entre a Rússia ao norte e Taiwan mais ao sul. Como indicado
na Tabela 1 abaixo, de acordo com a Agência Nacional de Terras do país, 66,7% das terras do
país são florestas e 13.9% são campos destinados à agricultura.
Tabela 1: Distribuição das Terras no Japão (1992)
Tipo de uso da terra Área (1,000km2) Percentagem
Agricultura 52.6 13.9
Florestas 252.1 66.7
Deserto 2.6 0.7
Águas 13.2 3.5
Estradas 11.7 3.1
Residencial 16.5 4.4
Outros 29.1 7.7
Total 377.8 100.0
sociedade japonesa desde antes do período Tokugawa e cujo conceito continua existindo até
hoje.
1.2 O sistema ie
A importância de iniciar o estudo da questão agrária no Japão pela compreensão do
sistema ie está relacionado ao fato de que esse sistema, sendo a base da organização da
sociedade camponesa, perpassa todo o período analisado, adaptando-se às transformações que
foram ocorrendo na economia e na política. E em cada momento o Estado utilizou-se do
mesmo para gerar uma relativa coesão social, aproveitando-se das noções de cooperação,
solidariedade, dependência e obediência que norteiam as suas relações internas, refletindo
essas ideias na relação do camponês com o governo.
Ao final do período Sengoku (1467-1603) e início do período Tokugawa (1603-1867),
os camponeses passaram a adotar nomes de famílias e a definir com mais precisão os seus
lotes de terra e suas casas (SAKATA, 2011). E este processo pode ser considerado como a
origem do sistema ie, pois apesar de ser comumente aceito que o ie, nas aldeias camponesas
do Japão, seja a definição da família, muitos autores defendem que o ie não pode
simplesmente ser entendido como família, incluindo também as propriedades, os ancestrais e
os que ainda estão por vir (BITO,1991; SAKATA, 2011; NAKANE, 1991; SHIMIZU, 1987;
FUKUTAKE, 1982). O ie era a unidade social e econômica que formava a base da estrutura
produtiva japonesa e expressava mais do que simples membros de uma família. Segundo
Fukutake esse ie (1982, p. 28),
É um conceito que transcende a ideia de “família” como um grupo de
indivíduos que atualmente fazem parte dela. O mesmo foi concebido
incluindo a casa e a propriedade, os recursos para manter a ocupação
familiar e os túmulos dos ancestrais, como uma unidade advinda de um
prolongamento de um passado distante para um presente e ocupando uma
certa posição no sistemas de status das aldeias ou das cidades. O ie, nesse
sentido, era muito mais importante do que os indivíduos que eram, em algum
momento, os seus membros vivos, e era visto como natural que as
personalidades individuais dos membros das famílias fossem ignorados ou
sacrificados pelo bem do todo.
A imagem abaixo expressa a constituição de um ie. Como pode ser observado, o ie,
em termos físicos, conta com um lote de terra onde se localiza a casa e os lotes nos quais
estão os arrozais e os cultivos de subsistência, bem como os túmulos de seus ancestrais. Ou
13
seja, mais do que uma família, pode-se considerar o ie como um grupo corporativo com ampla
variedade de funções, desde econômicas e políticas a domésticas e religiosas dos membros
atuais, das quais era necessário fazer parte para ter qualquer tipo de posição ou participação
social dentro da aldeia (SHIMIZU, 1987, p. 85).
Imagem 1: O Sistema ie
Casa, propriedades,
recursos da
ocupação
Ancestrais
Mortos recentemente
---Linha da morte---
Yome Yoshi
(Esposa) Aposentados (Esposo)
Entra → Entra →
Chefe
Filhas Filhos
se Sucessor mais
casam novos
←Saem Filhos ←Saem
---Linha do
nascimento---
Descendentes
Fonte: elaboração própria a partir de Hendry (1987)
Assim, dado que o ie era a base da organização social e produtiva, para que um
membro da aldeia pudesse participar da produção e ter o direito de enterrar seus mortos, era
preciso que ele fizesse parte de um determinado ie (SHIMIZU, 1987).
The village consists of territorial groupings of ie, and people take part in
village politics as representatives of ie. It is impossible even to imagine an
individual who does not belong to an ie because of the extreme difficulties
that such an individual would have in social like. In brief, the social
attributes of an individual are defined by reference to the ie and not vice
versa (SHIMIZU, 1987, p. 86).
14
sistema familiar como empregados, servos ou até mesmo filhos adotivos de famílias mais
ricas. A estrutura da casa e da família permitiu que o camponês tivesse um apoio maior para
sua sobrevivência dada a possibilidade de contar com os outros membros de sua ie,
fortalecendo os laços cooperativos e garantindo a perpetuação da família. Assim, observa-se
que era preciso de fato fazer parte de um ie para ser possível viver na aldeia e até mesmo
sobreviver no campo.
Esse sistema foi capaz de garantir certa estabilidade à organização social da aldeia e
também ao sistema produtivo, incutindo de dentro da família a noção de papéis e de
responsabilidade filial definida em termos de líderes e seguidores. A começar de dentro da
própria família, as relações eram discriminatórias e estratificadas, com claros níveis de
prioridade na sucessão, além de que essa noção de estrato superior e inferior extrapolava para
a relação entre as ie 7 . Ao longo de todo o período analisado neste trabalho, apesar das
transformações econômicas e sociais, o ie manteve-se inalterado. De fato, notadamente, a
partir da segunda metade do período Tokugawa, as relações entre os ie de diferentes estratos
são alteradas com a mudança das noções de cooperação impulsionada pela penetração mais
significativa do comércio nas aldeias. No entanto, as ideais que norteavam o ie e o seu papel
na sociedade não foi alterado, reforçando a importância desse sistema familiar na
sobrevivência e na organização da produção. Dadas essas características do sistema ie, o
governo Tokugawa conseguiu habilmente utilizar-se desse sistema para garantir a produção e
o pagamento dos impostos, perpetuando os valores de lealdade e obediência que seriam muito
úteis para o controle social. O mesmo seria feito pelo Governo Meiji, que em meio às diversas
mudanças no sentido da modernização, manteve a família como base da sociedade na virada
do século XIX.
O sistema ie, a despeito das modificações econômicas e sociais que ocorrem ao longo
do período Tokugawa, perpetua-se. E, para entender a relação entre as transformações da
estrutura da terra e o sistema ie, existem três elementos que se relacionam e que precisam ser
levados em consideração: o Taiko Kenchi (agrimensura da terra), o sistema Kokudaka (base
do sistema fiscal do Shogunato Tokugawa) e a separação rígida dos estratos sociais (com
destaque para a separação do samurai em relação ao camponês). Estes elementos foram
estabelecidos pelo Estado com o intuito de solucionar os problemas de financiamento, bem
7
Segundo Shimizu (1987), dentro das aldeias existiam 3 níveis de classificação das ie: dominante, médio e
subordinado, com suas específicas noções de prestígio e honra.
16
como de controle político e social8 que se faziam necessários, dado o recente estabelecimento
da paz após décadas de guerras entre domínios. Passemos para a explicação de cada um
desses elementos.
8
Uma outra forma de controle político e social que era feito, mas que está relacionado aos estratos mais elevados
da sociedade foi o Sankin Kotai, que era a obrigatoriedade do daimyo de manter sua família na capital Edo e
permanecer por longos períodos nesta cidade. Dessa forma, o governo conseguia controlar as atividades dos
daimyos que moravam em longínquos feudos (VLASTOS, 1986)
9
Para mais detalhes sobre o período Sengoku, ver Hall (1990)
10
Oda Nobunaga fora um guerreiro samurai que iniciou a unificação do Japão no final da Era Sengoku, era
marcada pelas guerras e constantes conflitos militares. Oda Nobunaga iniciou o processo de avaliação da
produtividade da terra na década de 1580, mas seu limitado poder político e econômico fez com que fosse
necessário aceitar algumas formas alternativas de avaliação e cadastramento das terras conhecido como
sashidashi (Wakita, 1991).
11
A agrimensura da terra realizada por Toyotomi Hideyoshi redefiniu a composição da classe camponesa e
estabeleceu o montante de imposto sobre a terra que os cultivadores eram capazes de entregar ao seu senhor.
Motivações políticas da agrimensura da terra e da definição dos responsáveis pelos seus cultivos acompanharam
os aspectos econômicos, dado que assim poderia salvaguardar a autoridade que havia conquistado, bem como
medir com maior precisão o valor dos feudos que estavam sob o seu domínio. Também era preciso um controle
sistemático das capacidades produtivas do país dado os elevados gastos que se tinha na unificação do país,
organização de estradas e infraestrutura, além do poderio militar (FURUSHIMA, 1991, p. 480; OSAMU,1991 p.
102)
12
A agrimensura da terra (Kenchi) foi iniciado por Toyotomi Hideyoshi e completado por Tokugawa Ieyasu.
17
era el total de todas las consechas em las tierras cultivadas de esse feudo,
expresado en la quantidad teórica de arroz. (AKAMATSU, 1977, P. 294).
Através dessa unidade de medida, era possível indicar o tamanho dos domínios
controlados pelo bakufu (governo central) e a área de responsabilidade de cada daimyo, bem
como os seus estipêndios pagos em arroz. Ou seja, era possível definir, por meio do
kokudaka, a posição social e a riqueza dos membros da sociedade (SATO, 1990, p. 39).
Finalizada a agrimensura da terra, fazia-se o registro do camponês responsável pelos
pagamentos do imposto pelo uso da terra. Cabe destacar que não havia uma noção de
propriedade privada da terra pelos camponeses, mas sim de direitos de uso e posse da mesma.
Mostrado em Wakita (1991, p.104), um dos registros remanescentes da aldeia Fukita na
província Settsu mostra como o registro da terra era preenchido. No documento era incluindo
a localização ou o nome do lote, uma avaliação de sua qualidade geral, os fins de seu uso, a
área e a quantidade esperada de rendimento, bem como o nome do camponês responsável pelo
seu cultivo.
Nome do campo/localização: Kaito
Qualidade (Superior, média, pobre): Superior
Uso (arrozal, campos não irrigados, habitação): arrozal
Área: 1 tan (993 m²)
Rendimento: 1 koku e 5 to (aproximadamente 7.5 alqueires)
Registrado para: Yohei (nome do chefe da família)
(WAKITA, 1991, p. 104)
De fato, no momento da realização dos registros, houve uma certa dificuldade em
definir quem realmente detinha o direito de uso e posse da terra e, assim, durante os períodos
de avaliação do solo e cadastramento, os inspetores costumavam dar o direito de posse aos
camponeses que provavam terem pago os impostos nos anos anteriores e aos camponeses que
estavam cultivando determinado lote no momento do cadastramento (WAKITA, 1991, p.
109). Aqueles que possuíam o nome registrado ficavam, então, sujeitos a diversas leis e
regulamentos, como a proibição da alienação permanente da terra, decretada em 1643, ou a
proibição do parcelamento da terra, imposta em 1673. Também havia regulamentações sobre
o que poderia ser produzido nos lotes. Posteriormente, esses decretos acabaram sendo
relaxados e, enquanto o camponês pagasse devidamente seus impostos e não cometesse
nenhum crime, o seu direito de posse estava assegurado, podendo até mesmo comprar e
vender lotes de terra, como será explicado no capítulo 2 (WAKITA, 1991, p. 109).
18
13
No entanto, cabe destacar que a necessidade de pagamento da taxa de acordo com o Kokudaka influenciou no
desenvolvimento econômico da sociedade levando os camponeses a cultivar o arroz deforma intensiva. Isso
limitava a participação do camponês no mercado, mas não de forma absoluta. Em alguns daimyos havia
incentivo para o cultivo de produtos comercializáveis e, em regiões como Osaka, a concentração do cultivo de
algodão fazia com que primeiro fosse preciso comprar o arroz no mercado para realizar o pagamento dos
impostos (Wakita, 1991, p. 110)
19
14
Após derrotar a coalizão de senhores de guerra rivais na batalha de Sekigahara em 1600, Tokugawa Ieyasu
determinou que mais de um quarto do país fosse definido como terras do Shogunato Tokugawa, terras estas que
incluíam as três maiores cidades do Japão (Edo, Osaka e Kyoto). O resto do país foi dividido em han e atribuídos
para mais de 200 senhores chamados daimyos. Os daimyos eram divididos em dois tipos, os fudai, que eram os
20
terras ao qual havia sido designado, podendo ser substituído por outro daimyo a qualquer
momento, caso isso se fizesse necessário (VLASTOS, 1986, p. 7). Cada daimyo ficava com a
responsabilidade de gerenciar as fontes de rendimentos de cada região a qual era responsável
e o Shogun, ao mesmo tempo em que realizava este controle, agia como se fosse um grande
daimyo, retirando os rendimentos de seus territórios e pagando as despesas do governo central
(Bakufu). Abaixo dos daimyos vinham os camponeses que cultivariam diretamente essa terra.
Assim, através do Kenchi e sua política de identificação de um camponês específico
com seu respectivo lote de terra, o direito de uso e posse de toda terra arável tornara-se um
simples acordo entre os senhores e o camponês, sem uma noção de propriedade privada, nem
pelo lado do daimyo, que poderia ser transferido para outro domínio por ordem do governo
central, e nem pelo lado do camponês, que tinha apenas o seu nome registrado como
responsável pelo cultivo de uma determinada terra devendo pagar os devios impostos em
arroz pelo seu uso (SATO, 1990, p. 38).
A principal taxa que precisava ser paga pelo camponês era a que recaía sobre a terra,
denominada nengu 15 , que baseava-se no kokudaka de cada terra. Essa taxa sobre a terra
constituía a taxa de uso dos arrozais, das terras elevadas e dos lotes residenciais (SATO, 1990,
p. 42). Como já explicado, a taxação era cobrada pelo senhor sobre toda comunidade
campesina de uma determinada aldeia e não especificamente sobre um camponês ou uma
família, sendo que apenas os registrados como responsáveis por um lote é que deveriam pagar
a taxa (SMITH, 1988, p. 52). Ou seja, no caso de um camponês não conseguir atingir o
montante necessário para pagar o seu nengu, a comunidade deveria suprir esse déficit,
gerando uma responsabilidade comunal pelo pagamento dos impostos, característica essa
bastante específica do Japão Tokugawa16 (SATO, 1990, p. 42). Além do nengu pago em cada
“vassalos hereditários” e os tozama, “senhores externos”. O primeiro grupo havia declarado fidelidade ao
Shogun antes da batalha de Sekigahara e aqueles que eram de maior confiança participavam ativamente da
administração diária do Bakufu. Já o segundo grupo era formado pelos guerreiros que haviam declarado a sua
fidelidade ao Shogun após esta batalha e, sendo menos confiáveis (VLASTOS, 1986, p. 6).
15
Além do nengu, existiam outras taxas chamadas komononari que eram requeridas pelo uso de ativos fixos, tais
como barcos, ferramentas e até o uso das terras florestais. Essas taxas não eram uma porcentagem da produção
sendo cobradas apenas quando o uso de algum dos itens acima era feito. Havia também uma espécie de corveia
imposta a cada camponês registrado e que era calculado como uma porcentagem do kokudaka.
16
Essa responsabilidade comunal vinha desde a necessidade do trabalho comunitário para a preparação do solo
para o plantio de arroz, além da construção e manutenção do sistema de irrigação, atividades estas que não
poderiam ser realizadas por apenas uma família. Além do plantio de arroz, também a construção de casas e
infraestrutura eram feitas em comunidade e, mesmo os lotes sendo de responsabilidade de cultivo de uma só
família, o uso de áreas comunais, como as florestas e o sistema de irrigação, envolvia a todos em uma atividade
conjunta (SMITH 1959). Ou seja, se um ie não consegue pagar o seu imposto ou participar dessas atividades
coletivas, o grupo como um todo teria que suprir esse trabalho.
Fukutake (1989) explica que as aldeias camponesas eram normalmente localizadas em regiões isoladas tendo um
caráter de autossuficiência, constituindo microcosmos que circunscreviam a produção e o consumo dos
21
camponeses. Além disso, muitas vezes as aldeias entravam em choque por disputas de água para irrigação, o que
fornecia mais um elemento de pertencimento. Em termos espirituais, a natureza unitária da vila era simbolizada
pelo ujigami, um templo da divindade que protegia cada aldeia e suas respectivas famílias que vinham se
perpetuando por várias gerações.
17
Feito pelo porto de Nagasaki, exclusivamente com a China, Coréia e Holanda.
18
Mas a porcentagem taxada era bem menor como será explicado no capítulo 2.
22
19
No entanto, como explica Elisonas (1991, p. 264), apesar da proibição do porte de armas, os camponeses
poderiam ser chamados para a guerra caso isso fosse necessário. Ou seja, os camponeses não estavam excluídos
por completo das obrigações militares.
20Os samurais que ficaram no campo passaram, então, a ter o seu nome registrado como cultivador de uma determinada propriedade de terra, por meio do kenchi, não tendo
mais o direito de possuírem armas, tornando-se apenas camponeses.
23
etc. À essa responsabilidade dava-se o nome de Bu-yaku (夫役). Assim, segundo o autor, em
um sentido amplo, a palavra Yaku, significava as obrigações sociais que uma família
camponesa ou samurai deveria observar dentro da sociedade. E por conta dessas obrigações,
mesmo o pequeno camponês fazia parte da comunidade aldeã, compartilhando o pagamento
de impostos e todas as outras responsabilidades que deveriam ser cumpridas dentro da
sociedade.
Dentro dessas obrigações, o kokudaka representava a base econômica necessária ao
samurai para que esse observasse as suas obrigações em termos militares ou políticos,
enquanto para o camponês representava a quantidade de arroz necessária para pagar os
tributos e também cumprir as obrigações como Bu-yaku. No caso do samurai, os seus
estipêndios, que eram pagos pelo shogun ou pelo daimyo, eram em troca da proteção, ou seja,
das funções militares do samurai. Por este sentido e pelo fato dessa relação ser hereditária,
Bito (1992) compara este sistema com o sistema feudal europeu e sua relação de suserania e
vassalagem. No entanto, a especificidade do Japão, segundo o autor, está no fato de que o
kokudaka, que era a base do pagamento dos estipêndios, tinha caráter nacional/público e não
privado, sendo que as obrigações (yaku) por parte dos samurais também não eram um serviço
prestado de forma individual ao seu senhor, mas sim uma obrigação em termos militares e
administrativos de um membro que faz parte da instituição, ou seja, de uma relação
burocrática. O mesmo acontecia para a função ou obrigação (yaku) do camponês. Apesar de
ter a obrigação de fornecer a mão de obra e os produtos cultivados na forma de imposto pelo
uso da terra para o seu senhor, assim como no caso do feudalismo europeu, os camponeses
não pertenciam ao senhor, e as cobranças de impostos sedavam sobre um determinado grupo
(BITO, 1992).
No entanto, mais do que um papel advindo de uma responsabilidade dividida pelas
camadas sociais, é preciso considerar a noção de obediência. Nesta formação de consciência
de papéis dentro de cada classe, a educação 23 teve importante função para moldar a sociedade
e manter o status quo da rígida estratificação social. Nas palavras de Kobayashi (1965, p.
288),
23
A educação era secular por completo. Como explica Kobayashi (1965), em primeiro lugar a educação estava
sob o controle do governo secular ou de indivíduos privados e, mesmo com a participação de alguns monges
budistas na educação dos camponeses, o budismo como religião não tinha nenhuma política educacional
específica. O conteúdo da educação do período Tokugawa também nunca fora religioso, sendo que os livros
eram do Confucionismo ou seculares. Apesar do Confucionismo poder funcionar como religião, em termos
educacionais, tratava-se de instruções seculares na literatura, ética, etc., não havendo conflito entre Estado e
religião.
25
daquele que tinha o direito de uso da terra que cultivava. Assim, o sistema gonin-gumi criava
uma noção de cooperação e dependencia dentro de um grupo em que cada membro passava a
ser responsável pelas ações dos outros membros (BEFU, 1968, p. 35-36). “Um crime
cometido por um membro era um crime de todos os outros membros e o acobertamento de um
crime cometido pelo membro também era um crime de todos os membros” (BEFU, 1968, p.
36). Assim, toda aldeia tinha um interesse ativo no comportamento de cada ie, espiando e
corrigindo a conduta uns dos outros, resolvendo as disputas na medida do possível por meio
de conciliação (MOORE, 1966). No entanto, segundo o mesmo autor, aquele que denunciasse
um crime cometido pelo membro de seu grupo poderia ter a sua punição abrandada, podendo
até mesmo ser recompensado. Cabe destacar que este sistema não era útil apenas na criação
de responsabilidades conjuntas de observância das leis, mas também tinha a função de mútua
assistência entre as famílias25 (HALL, 1991, p. 172). Mas a difamação, ostracismo e outras
sanções mais graves, tais como a reunião à porta de uma determinada família batendo em
panelas ou mesmo o banimento (fazendo com que o camponês acabasse morrendo de fome
sem auxílio e sem terra para cultivar), ajudavam a criar um conformismo significativo dentro
da aldeia26 (MOORE, 1966, p. 261).
Assim, pode-se observar como o Estado, instituindo a agrimensura da terra, o sistema
de impostos e a separação do samurai em relação ao camponês, pôde se aproveitar do sistema
ie, com todos seus valores e sua hierarquia para moldar uma sociedade que cumpria seu papel
designado e agia com temor e obediência nas atividades diárias. Dada essa estrutura, é preciso
entender como a aldeia e o cultivo de arroz, a base do imposto, foram estabelecidos no
período Tokugawa para que fique mais claro como se davam as relações econômicas e sociais
dentro da aldeia.
25
Moore (1966, p. 260) destaca que além do sistema gonin-gumi, existiam também as proclamações públicas e
avisos afixados nas aldeias que tinham como objetivo estimular os camponeses a terem bom comportamento,
contendo forte tom confucionista de obediência e submissão à moral e ética estabelecida.
26
A partir da segunda metade do período Tokugawa a educação aflorou uma certa consciência de classe entre os
camponeses que mudaram a atitude em relação à camada governante expressas nas diversas revoltas camponesas
que se tornaram cada vez mais violentas. Entretanto, cabe destacar que este antagonismo entre as classes era
minimizado por uma limitada possibilidade de ascensão social. Segundo Kobayashi (1965, p. 294), através da
educação e das habilidades individuais, era possível passar para a classe samurai e assim, jovens ambiciosos da
classe camponesa que poderiam se tornar um elemento de descontentamento na sociedade poderia ser elevado ao
status de samurai ou equivalente, perdendo seu antagonismo de classe. Para o mesmo autor, o moralismo do
Confucionismo também não gerava nenhum espaço para a crítica do sistema de classes e a própria estrutura do
ensino, que era voltada para vocações e prática, não criava um ambiente de discussão para desenvolver mentes
críticas. Assim, era possível se ter um controle relativamente rígido dos camponeses que muitas vezes se
levantaram contra os pesados impostos, mas nunca contra a ordem senhorial estabelecida (VLASTOS, 1986).
27
27
Além disso, ficava proibido aos camponeses de estrato superior que empregassem arrendatários para
trabalharem nas suas terras, estipulando que aquele que realmente cultivava a terra tinha que pagar os devidos
impostos diretamente ao proprietário, evitando, assim, que houvesse uma maior exploração do agricultor, bem
como a prevenção do processo de concentração da terra (FURUSHIMA, p. 483)
- Discrete social units consisting of Member of the immediate Family were to become the principal the principal
source of the annual land revenues, and the act of cultivation was now deemed as the most important criterion
for determining who possessed the land and who paid the annual rent.
28
Cabe destacar a especificidade da Região de Kinai, considerada a mais desenvolvida no Japão neste período.
As propriedades em Kinai tendiam a ser substancialmente menores do que em outros lugares. Segundo a análise
de dados feita por Miyagawa,Mitsuri (1953, p. 15-16), nesta região, as propriedades com o tamanho de 3 tan ou
menos representavam entre 70 e 80% das propriedades enquanto em outras localidades, esse tamanho não
representava mais de 50% das propriedades (SMITH, 1953, p. 3-4). Segundo este autor, esta peculiaridade indica
o nível de desenvolvimento econômico e não tem a ver com uma questão geográfica ou climatológica. O padrão
de cultivo e de propriedades que existia de forma ampla no Japão teria prevalecido anteriormente nesta região
enquanto o presente padrão de Kinai estava se tornando mais comum em outras áreas conforme o tempo passava.
Esta região, como explica Smith (1953), era particularmente urbana e com manufaturas, além de ser a região que
abrigava a corte imperial. A vida urbana se desenvolveu primeiro em Kinai. Kyoto, Fushimi, Osaka e Sakai eram
as 4 cidades que já existiam no final de 1590 e totalizavam uma população de aproximadamente 40 mil pessoas.
Em outras partes do país, as regiões que se localizavam próximas de cidades castelo vivenciavam, neste período,
um desenvolvimento econômico mais próximo do que ocorria em Kinai, com agricultura comercial,
propriedades pequenas e de trabalho intensivo, sendo que a produção agrícola era combinada com outras
atividades.
28
Essa diferenciação ocorreu pela permissão de retenção de direitos de posse e de cultivo sobre
terras hereditárias, ou seja, as propriedades maiores pertenciam às famílias tradicionais de
determinada aldeia. Assim, a política de Toyotoni Hideyoshi foi a de respeitar os direitos
sobre a terra enquanto designava direitos mais seguros de uso e posse ao camponês
(WAKITA, 1991, p. 108).
A extensão de terra maior pertencia ao núcleo familiar direto que tinha suas terras
hereditárias registradas no kenchi, constituído pelo casal e os filhos solteiros. Esta família
distinguia-se do restante do grupo não apenas por possuir uma unidade produtiva maior, mas
também por terem posição superior em cerimônias religiosas de invocação de proteção na
aldeia, bem como cargos de oficiais da aldeia por serem de famílias tradicionais. Segundo
Furushima (1991, p. 486), muitos samurais, notadamente na região Kinai, Kanto e Tosan,
puderam permanecer com os direitos de cultivo e posse sobre as terras hereditárias, tornando-
se camponeses29. Dada essa posição superior, as próprias vestimentas, moradias e até mesmo
os templos que estas famílias frequentavam eram diferentes, o que criava uma distinção
dentro da camada camponesa (SMITH, 1959; FURUSHIMA, 1991).
Com a ocasional ajuda dos vizinhos e parentes, os camponeses eram capazes de
trabalhar em uma propriedade média, mesmo nos períodos mais intensos de trabalho. Mas a
dificuldade aumentava, de fato, nas propriedades maiores. Essas, diferentemente das pequenas
unidades que eram cultivadas apenas pelo trabalho familiar30, não podiam ser cultivadas nesse
mesmo sistema, precisando contar com membros que pertenciam à extensão da família. Logo,
chamavam-se parentes que não eram diretamente descendentes da família nuclear, além de
pessoas que eram ligadas ao proprietário, não por sangue ou casamento, mas que foram
29
Mas em aldeias próximas à Kyoto, essas famílias camponesas continuavam sendo consideradas com status
samurai (Furushima, 1991, p. 487).
30
Exceto na região de Kinai, onde havia a mão de obra formada por arrendatários (kosaku).
29
incorporadas à família por laços servis hereditários31 ou apenas para o cultivo da terra32. Este
modo de organização do trabalho era chamado de tezukuri33 (SMITH, 1959).
Esses servos eram originários de famílias que não possuíam uma unidade produtiva
grande o suficiente para sustentar todos os seus membros ou camponeses que não tiveram
seus nomes registrados no kenchi. Mas como a família constituía o único meio de
organização da produção na maior parte do Japão do século XVII, Smith (1959) explica que
neste modelo de organização do trabalho das propriedades maiores, os servos (gennin) eram
de certa forma incorporados à família. Não era possível pensar na lavoura dissociada da
estrutura familiar que contava com a força dos jovens e a sabedoria dos mais velhos. E isso é
de fundamental importância, pois é através deste processo que aqueles que não possuíam o
direito de uso das terras eram incorporados à sociedade camponesa Tokugawa, já que o
mercado e as cidades não haviam se desenvolvido o suficiente para absorvê-los. Além disso,
segundo o mesmo autor, essa possibilidade de envio de membros da família (que eram
vendidos ou dados de presente) para trabalharem nas propriedades maiores eliminando, assim,
algumas bocas para serem sustentadas, fez com que as propriedades camponesas em sua
maioria se mantivessem com escala reduzida ao longo de todo período Tokugawa e tornou-se
uma alternativa ao infanticídio, muito comum neste período (SMITH, 1959, p. 16).
A criança que passava a viver com a família com posse da terra recebia basicamente o
mesmo tratamento de um filho; frequentava as mesmas escolas e recebiam os ensinamentos
da moral e conduta de respeito aos mais velhos. Esta criança, ao se casar, iniciaria um novo
núcleo familiar com o apoio da família que o recebera quando criança (SMITH, 1959, p. 17).
O inchaço que ia ocorrendo na família nuclear era evidente e o número crescente de membros,
tornava a estrutura produtiva ineficiente.
Todavia, a moral familiar e a opinião pública não permitiam que os detentores de
terras maiores simplesmente eliminassem seus servos, como um dia sua família o fez. Dessa
31
Os servos hereditários eram chamados de fudai, moravam com os seus senhores, sendo os senhores os
responsáveis pela alimentação e vestimenta, bem como pela conduta dos seus servos na aldeia (SMITH, 1959).
Segundo o autor, essa categoria de servos representava aproximadamente 10% da população camponesa no
século XVII. Em algumas propriedades maiores, observavam-se entre 5 e 10 servos fudai, havendo registros de
famílias com mais de 20.
32
Os nago tinham diversos níveis de status, mas em sua maioria eram camponeses que ficam responsáveis por
cultivar um pequeno lote de terra do proprietário, prestando serviços, sendo que não moravam na mesma casa
que o dono da terra como os fudai. O nago não tinha a responsabilidade de pagar as taxas da aldeia ou, mesmo
que pagasse em nome do proprietário, não era considerado membro da aldeia em diversos aspectos. Não tinha
direito ao uso das terras comuns e nem direito sobre a água e nem direito a opinar nas discussões da aldeia
(SMITH, 1959).
33
A forma de organização do trabalho e cultivo da terra passaria de tezukuri para kosaku diante da expansão dos
mercados. Segundo Smith (1959), essa transformação inicia-se sob um estímulo do cultivo comercial, que não
pode ser datado como um poderoso movimento em todo o país até o século XVIII.
30
forma, a solução dada era a partição das unidades produtivas aos grupos conjugais que se
formavam nos ciclos externos, ou seja, formavam-se novos ie (SMITH, 1959, p 17). No
entanto, o autor destaca que essa partição da terra representava um lote extremamente
pequeno, de baixa produtividade e/ou com localização não privilegiada e que gerava muito
mais benefício ao grande proprietário, que se livrara da ineficiência com perdas desprezíveis,
do que para o novo ie o qual, por sua vez, mal conseguia se sustentar. De fato, o objetivo não
era deixar a família subsidiária na melhor situação possível mantendo-os presos às obrigações
que essas relações geravam (SMITH, 1959, p. 40).
Apenas liberar essa mão de obra excedente com um pequeno lote de terra não era o
suficiente para garantir a sobrevivência dessa nova família e, assim, como explica Smith
(1959, p. 20), a família nuclear continuava dando suporte com animais, alimentos,
vestimentas, ferramentas e moradia até que fosse possível à nova família se estabelecer de
forma mais firme. Mesmo tendo o seu lote de terra, os servos mantinham-se com forte relação
de dependência em relação à família nuclear, devendo retribuir a ajuda com sua obediência e
fornecimento de mão de obra quando solicitados na lavoura ou em construções e reparos,
dado que a mão de obra insuficiente era o gargalo dos proprietários de terras maiores.
Ocorriam, assim, trocas de capital por trabalho em uma relação de dependência e noção de
obrigação para com a família. Através dessas relações, o grupo como um todo foi capaz de
atingir certa autossuficiência que seria impossível de se atingir sozinho, dado o isolamento
físico e pelo estado rudimentar do mercado no início do século XVII34 (SMITH, 1959, p. 50)
Apesar da partilha da terra, cabe destacar que o direito sobre o uso da água e das terras
comunais 35 eram mantidos sob o poder das famílias nucleares. Além disso, a divisão da terra,
muitas vezes, não era acompanhada de fornecimento de moradia variando também o tamanho
da propriedade de acordo com a proximidade do núcleo familiar, agindo como uma
importante força de manutenção e reforço da hierarquia que existia na sociedade camponesa,
separando os ie de acordo com sua posição dentro da aldeia 36 (SMITH, 1959, p. 42).
34
Smith (1959, p. 52) argumenta que essa noção de solidariedade dentro da comunidade variava de acordo com
o desenvolvimento econômico da região, dado que em algumas áreas mais avançadas, havia uma tendência do
mercado transformar esse padrão, fazendo com que, muitas vezes, as famílias subsidiárias superassem as
famílias nucleares em termos econômicos.
35
As terras comunais eram formadas por florestas de onde os camponeses tiravam a madeira necessária para a
construção de casas, canais de irrigação, lenha, etc., além de alimentos como frutas e cogumelos. Em momentos
de quebra de colheita e fome, brotos, raízes e gramíneas serviam para a alimentação do camponês e, por conta
desse papel importante que as terra comunais tinham, os camponeses tinham grande preocupação pela sua
supervisão e uso. Havia um acordo dentro de cada aldeia pelo seu uso e qualquer infração deste acordo era
rigidamente punida (FURUSHIMA, 1991, p 504).
36
Segundo Smith (1959, p. 42), entre 40 e 80% daqueles que possuíam terras aráveis não possuíam moradia
própria.
31
37
Esses sistemas foram fundamentais para expandir as áreas de cultivo de arroz, sendo fortemente incentivadas
pelo daimyo que via nesses projetos a possibilidade de expandir seus rendimentos em arroz. No início do período
Edo, os daimyo normalmente tomavam a iniciativa no financiamento, bem como no aliciamento de mão de obra,
através de seu poder político (FURUSHIMA, 1991, p. 499)
32
grande valia. A imagem acima mostra que, em um lote, há 7 pessoas, o que poderia indicar a
participação de vizinhso ou parentes neste período de intenso trabalho.
A noção de solidariedade incutida no plantio no arroz também existia por conta do
pagamento dos censos senhoriais, como explicado anteriormente, que eram cobrados, de
modo geral, sobre uma aldeia, dado que a divisão do que cada camponês deveria pagar, de
acordo com a produtividade da sua terra, era feita pelos agentes do senhor ou camponeses de
categoria superior. A cooperação também existia em áreas que se engajavam nos cultivos
comerciais, pois era preciso drenar os lotes onde o arroz havia sido plantado para se cultivar
produtos como algodão, tabaco, etc. depois de finalizada a colheita do arroz (FURUSHIMA,
1991, p. 516).
Pode-se notar que não apenas a água que precisava ser usada coletivamente, mas o
próprio plantio de arroz não só criava uma solidariedade e uma vigilância na atitude de cada
um dentro da aldeia e que colaboraram para manter a cooperação nos campos japoneses, mas
também agia como mecanismo de controle dos indivíduos. As famílias com lotes maiores
conseguiam manter um fluxo adequado de mão de obra para os períodos mais críticos,
enquanto conseguia manter seu poder administrativo sustentando suas propriedades sem ter
problemas de eficiência. Por outro lado, os camponeses com minúsculas unidades produtivas,
ao mesmo tempo em que forneciam a mão de obra nos momentos em que o plantio de arroz
nos campos maiores demandava, eram beneficiados pelo uso de ferramentas e animais
isponibilizados pelos camponeses do estrato superior. Essa relação que o plantio de arroz
criou foi de fundamental importância para a manutenção da ordem no campo, até a aceleração
das transformações e a entrada do comércio nas relações pessoais, como será tratado no
capítulo 2.
Assim, através da análise anterior observa-se que a estrutura criada pelo Estado para a
organização da produção em pequenos lotes cultivados por diversos ie e as pesadas taxações
cobradas pelo uso da terra criava diversos níveis de solidariedade e cooperação dentro de uma
aldeia. A dura vigilância e obediência extrita aos papeis definidos, bem como a autoridade do
Estado mantinham os camponeses presos à seus ie, honrando o nome da família pela
observância das leis. No entanto, as dificuldades encontradas pelos camponeses para pagarem
todo o montante dos impostos diante de inúmeras adversidades, fez com que surgisse uma
necessidade de mobilização para lutar contra as pesadas taxações. O próximo item tratará
dessas mobilizações camponesas para que fique claro quais as dificuldades encontradas pelo
camponês e como as relações entre os ie eram estabelecidas no momento das revoltas.
34
temporal analisado e que vai até a segunda metade do século XVIII, o campo era estruturado
basicamente em pequenas unidades produtivas familiares em que se tinha o uso e posse da
terra definido pelo registro do nome do camponês no kenchi. Apesar da existência também de
algumas poucas propriedades maiores, havia uma solidariedade dentro da classe camponesa
imposta pela especificidade do cultivo do arroz e das atividades comunais, bem como por uma
similaridade muito grande nos costumes e na organização de cada família (SMITH, 1959;
FURUSHIMA, 1991). Assim, havia uma classe camponesa que se identificava como tal, dada
a divisão social feita pelo Shogunato Tokugawa, que definiu claramente as obrigações e
deveres, bem como o papel de cada classe social (BITO, 1991). Ou seja, apesar de existir essa
diferenciação interna, as famílias das propriedades maiores e menores não tinham grande
diferenciação em termos de papéis econômicos neste primeiro período (VLASTOS, 1986).
Além disso, para Vlastos (1986), a relação que existia entre o senhor e o camponês
também facilitava a formação de uma consciência dos interesses de classe na camada
camponesa. Desde a implantação do sistema de arrecadação dos impostos pelo uso da terra,
que era medido em arroz, o volume da exploração do camponês ficava claro, visto que
sobrava para o camponês, na melhor das hipóteses, apenas aquilo que era necessário para sua
sobrevivência. Nas palavras de Vlastos (1986, p. 12), “the issue of conflict was clear: what the
lord took, the peasant lost”.
Na primeira metade do período Tokugawa, os movimentos camponeses tinham
objetivos específicos que representavam esforços conscientes para melhorar sua situação
(VLASTOS 1986). Os motivos do descontentamento variavam entre as quebras na colheita e
as condições endêmicas, ou seja, a impossibilidade de muitos camponeses produzirem o
montante de arroz necessário para pagar os devidos impostos e sobreviver a cada ano (BIX,
1986; Vlastos, 1986). Tanto no caso de problemas climáticos, quanto no de impossibilidade
constante de pagar os impostos, durante o século XVII, a forma mais comum de manifestar o
descontentamento campesino era por meio de petições ao senhor do domínio, onde era pedida
a sua “benevolência” para que os camponeses em dificuldade pudessem “continuar como
camponeses honrados”39, que era como os camponeses registrados no kenchi (honbyakusho)
se definiam (VLASTOS, 1986).
No entanto, Vlastos (1986) observa essa “benevolência”, que era a palavra utilizada
pelos camponeses em suas petições de forma bastante crítica, argumentando que não se
tratava de uma postura moral baseada no confucionismo, como já tratado anteriormente. Para
39
Os que participavam das petições eram apenas os camponeses registrados no kenchi, não incluindo a camada
que não possuía nenhuma terra registrada em seu nome (VLASTOS, 1986).
36
o autor, a relação do pequeno camponês com o senhor era envolta em inúmeras contradições
que, no curto prazo, só poderiam ser resolvidas com “procedimentos administrativos regulares
para prover ajuda emergencial e extração moderada da taxação” (VLASTOS, 1986, p. 16).
Também a justificativa de poderem “continuar como camponeses honrados” não estava
diretamente relacionada à questão de sobrevivência e fome, mas acima de tudo à sua
solvência. Continuar como camponeses tinha um significado social bastante preciso dentro da
estrutura estratificada estabelecida pelo bakufu, pois aqueles que não conseguiam honrar os
seus compromissos no momento do pagamento do nengu perdiam o seu título legal da terra,
sendo obrigados a migrarem ou a se tornarem servos de outra família, o que seria o
equivalente a desonrar o seu ie (VLASTOS, 1986, p. 17).
Além disso, mesmo os camponeses de estratos mais elevados participavam ativamente
das demonstrações de descontentamento, dado que a insolvência de alguns camponeses
impactava diretamente no montante pago de arroz pela aldeia como um todo, isto é, o
montante de arroz que deixava de ser pago deveria ser suprido pelos outros, o que não era
benéfico para a comunidade. Ou seja, não se pode afirmar que não havia uma solidariedade
dos camponeses de estratos mais elevados mas, de fato, havia um interesse dos camponeses
com lotes maiores em manter esses camponeses mais pobres cultivando sua parcela do nengu
pela saúde de suas próprias finanças.
Cabe também destacar que não havia um questionamento da ordem pelos camponeses.
Estes apenas queriam continuar sendo camponeses, requerendo melhorias limitadas em sua
vida, dentro da ordem estabelecida. Essas melhorias limitadas, então, estavam fortemente
relacionadas com as taxações sobre o campo, pois, nos dois motivos ressaltados acima, o que
se pedia era uma redução da taxação, não de forma permanente, mas como forma de
negociação em períodos de dificuldade, confiando na “benevolência” do senhor.
Vlastos (1986, p. 31) detalha o caso de Fukushima, onde inúmeras reavaliações do
solo com aumento das taxações ocorreram ao longo do século XVII e que tinham como
objetivo prevenir que os camponeses acumulassem de forma excessiva. E ao longo deste
período, inúmeras petições foram emitidas ao governo central, detalhando a situação de
dificuldade que os camponeses encontravam, argumentando que, sem uma diminuição da
taxação ou ajuda para a aquisição de sementes, muitos camponeses se tornariam insolventes,
não podendo mais cultivar a terra. Em uma das petições, o pedido é “restore the condition of
landholding peasants that they may continue as farmers” (KICHINOSUKE, 1969, p. 478-
37
479). Ou seja, não se tinha um questionamento da ordem, mas sim um desejo de se manter
como camponês efetivo, ou seja, sem perder sua unidade produtiva.
Em outra petição, em 1712, na aldeia de Nakahata, a reclamação era devida às 4
elevações da taxação que haviam ocorrido nas últimas décadas e que deixaram inúmeros
camponeses mais pobres e com terras menos férteis sem condições de pagarem as taxações.
Segundo esta petição, 30 anos antes dos sucessivos aumentos, a aldeia contava com 900
residentes e, naquele momento, a população havia encolhido para 712 residentes, sendo que
87 eram camponeses sem terra que, em vez de deixar a aldeia, foram forçados a servir
camponeses mais ricos em aldeias vizinhas (VLASTOS, 1986p. 33-34). Apesar da queda na
população, a vila mantinha-se responsável pelo mesmo valor do nengu, o que aumentava a
taxação sobre os camponeses remanescentes, criando um ciclo vicioso. Também nesta
petição, pedia-se “benevolent consideration so that we can continue forever as peasants of the
domain” (KICHINOSUKE, 1969, p. 542).
Assim, os camponeses, apesar de concluirem as petições clamando pela
benevolência do seu senhor e afirmando o desejo de continuar sendo camponeses, todo
argumento ao longo da petição era racional e com apelo econômico. Justificava-se,
habilmente, que o grande abandono de campos de arroz impactaria nas finanças do governo,
que sofreria com a situação de dificuldades no campo (VLASTOS, 1986, p. 35). E, diante de
problemas climáticos fora de controle do camponês, era preciso que a “benevolência” do
senhor funcionasse, pelo bem do camponês e, principalmente, de sua própria finança. Na
verdade, como indicou Vlastos (1986, p. 44), “the constraints on benevolence, therefore, were
institutional and operated regardless of the good intentions and sincerity of the lord of the
domain”. Ou seja, como já destacado, mais do que uma moral advinda do confucionismo, a
benevolência era uma forma de ajustar a extorsão dos camponeses.
O uso das petições era generalizado, pois qualquer tipo de mobilização coletiva com
distribuição de circulares e aglomerações eram estritamente punidas para servir de exemplo
(VLASTOS, 1986, p. 42). Assim, havia um processo definido para demonstrar
descontentamento e que funcionou durante o século XVII ao XVIII. As petições escritas eram
permitidas pelo governo central, pois essas eram um canal efetivo de comunicação com a
aldeia, sendo uma forma de compreender o que estava ocorrendo na aldeia, como problemas
na lavoura ou reclamações de coletores de taxas que alertavam o governo central sobre
problemas de corrupção (VLASTOS, 1986, p. 42).
38
Contudo, nem todas as petições eram aceitas, sendo ilegais as reclamações que
alegavam que as taxações eram abusivas e que requeriam reduções permanentes, podendo
sofrer penalizações duras para servir como exemplo. Para Vlastos (1986), a razão para não se
aceitar este tipo de petição era a impossibilidade de mensurar exatamente a necessidade de
redução. De fato, era muito mais fácil para o governo identificar a necessidade de redução da
taxação com um problema no cultivo devido a alterações climáticas. Fora estes casos,
reduções só seriam autorizadas quando os danos já estivessem sido concretizados, isto é,
quando já estivessem ocorrendo abandonos dos lotes com inúmeros camponeses falidos. E,
assim, não havia de fato uma noção de justiça na qual o camponês esperava receber uma
parcela justa da sua produção. Mas eles demandavam os meios para “continuarem sendo
camponeses” (FUKUYA, p. 66). E, apesar do elevado custo, grande parte dos apelos diretos
ao governo obtiveram sucesso no cancelamento ou reduções das taxações. Enquanto ambos os
lados executavam seus papeis, estas ações coletivas resolveram inúmeros conflitos relativos à
taxação da terra.40 A partir desta análise do uso das petições e não da força no campo, Najita e
Scheiner (1968, p. 56) argumentam que
Peasants believed and acted as if they lived in a world of justice where they
were ensured a hearing of their demands by a lord who owed them his
benevolence because of his commitment to a higher justice (gi) and to the
Shogun; and peasants believed they were owed such a justice.
Ao final do século XVII, as revoltas camponesas, apesar de manterem o mesmo teor
das reivindicações alteraram a forma de ação. Apesar de manterem as limitadas
reivindicações, os atores que tomavam a liderança do processo foram alterados e a
radicalização aumentou, com maior uso da força. A radicalização foi liderada pelos pequenos
camponeses41 que tinham muito pouco a perder, enquanto os chefes das aldeias e as famílias
mais abastadas que assumiam cargos administrativos na aldeia eram severamente punidos
pela participação e a denúncia era bastante recompensada (FUKAYA, 1973, p. 66). As
transformações que ocorrem na forma de executar as demonstrações de insatisfação e protesto
fazem parte de mudanças sociais e econômicas maiores, que levaram a uma diferenciação
mais acentuada dentro da camada camponesa, diante da aceleração da penetração do comércio
nas aldeias autossuficientes. Dado esse novo cenário que surgia, medias extraordinárias com
uso da violência e apelos emocionais foram necessários para angariar apoio daqueles que
40
Nem todos os protestos camponeses foram pacíficos no início do período Tokugawa, mas esses só ocorriam
após o governo não aceitar as petições enviadas.
41
Os pequenos camponeses, tendo menos acesso ao ensino nas escolas, sofriam menos influência da moral
confucionista (VLASTOS, 1986).
39
organização da produção no campo e um novo papel do mercador. Isso aconteceu tanto pela
separação do camponês em relação ao samurai, obrigando-o a morar nas cidades-castelo ou
em Edo e pelo Sankin Kotai, que o Daimyo e sua família eram obrigados a passarem mais da
metade de seu tempo e a gastarem grandes montantes de seus rendimentos em Edo e nas
longas viagens entre seus domínios e a capital. A política do Shogun, que visava
supervisionar de perto as ações dos daimyo, teve o efeito de tornar Edo o centro do consumo
senhorial, acelerando o crescimento da economia monetária e dos mercados nacionais, que
contribuíram para minar a ordem shogunal. De fato, para terem uma vida de luxo na capital,
os senhores daimyo precisavam vender uma grande quantidade de arroz coletados na forma de
impostos para os mercadores de Osaka, que se tornaram os maiores distribuidores de
mercadorias do Japão. Consequentemente, surgiu neste período uma camada de mercadores
enriquecidos, enquanto a população guerreira das cidades se endividava com esses próprios
mercadores, visto que o montante coletado de impostos não era suficiente para o pagamento
de suas despesas (VLASTOS, 1987; SMITH, 1959).
Nesse processo de transoformação do caráter da terra e da produção agrícola, o
comércio e as cidades tiveram um papel importante na dinamização do campo. Sendo o
responsável pela transformação do arroz em mercadoria nos grandes centros e pela
movimentação dos produtos entre o campo e as cidades, o mercador passou a ter papel de
destaque na estrutura social, realizando empréstimos e financiando expansão de terras aráveis
em articulação com os daimyo e grandes proprietários rurais. Enquanto isso, sem conseguir
extrair mais do camponês, a vida luxuosa nas cidades e seus gastos constantes com viagens e
com manutenção de duas casas, uma em Edo e outra no seu domínio deteriorou as finanças
dos daimyo e do samurai (SMITH, 1959, ROZAM,1991).
Ou seja, como pode-se observar, as próprias contradições internas do shogunato
Tokugawa foi desestruturando a ordem feudal, tendo sido as próprias políticas do governo que
dinamizaram o campo, o comércio e as cidades. No entanto, nem esse comércio e nem as
cidades eram ainda expressões do capitalismo, funcionando dentro desse modo de produção
anterior. Ademais, os citadinos não faziam parte de uma classe revolucionária, sendo todos
regulados de perto pelo governo shogunal.
Enquanto as cidades expandiam e, consequentemente, o comércio se dinamizava, no
campo, os camponeses da maior parte do Japão mantiveram-se cultivando seus arrozais e seus
cultivos de inverno, contando com boas colheitas e pagando os impostos pelo uso da terra. No
entanto, essa política de Hideyoshi, estabelecida no início do século XVII, engendrou
43
mudanças lentas e que se aceleraram no século XVIII pela dinamização das cidades e
consequente entrada do mercador no campo. E, mesmo nessas aldeias em que o foco era a
sobrevivência e o pagamento dos impostos, a produção agrícola e o comércio adicionaram
uma nova dimensão à vida no campo (VLASTOS, 1987).
Por meio da difusão das técnicas e das atividades paralelas à agricultura, que são
engendradas pelo caráter da estrutura dos lotes produtivos de pequeníssimos tamanhos, uma
camada camponesa que tinha recursos suficientes para investir no aumento da produtividade
para além do arroz foi capaz de reter um excedente cada vez maior. Esse aumento do poder
dos mercadores e dos ricos camponeses gerou uma maior diferenciação e exacerbação das
tensões sociais dentro da própria aldeia, em uma tendência que pode ser vista em diversos
pontos do país, conforme pode ser comprovado pelos dados de Smith (1988) e ressaltado em
Moore (1978), Takahashi (1959) e Vlastos (1986), entre outros autores 42. De fato, há uma
mudança da mentalidade do camponês que busca novas formas de sobreviver 43 . E esse
distanciamento ainda maior do camponês da base com o camponês rico quebrou a antiga
noção de cooperação e dependência que havia na aldeia. Apesar de não ter ocorrido uma
ruptura do sistema ie, que é reforçado diante da necessidade de perpetuar a família e organizar
a produção, a relação entre os ie é alterada e novas razões para as revoltas camponesas foram
estabelecidas.
Assim, para se compreender essas transformações ocorridas no campo e aceleradas
pela dinamização das cidades e consequentemente do comércio, serão tratados neste capítulo
a formação do excedente e a forma de sua retenção no campo, levando em consideração a
estrutura tributária (MOORE, 1967; SMITH, 1988). Também será destacado como o
camponês se insere na produção de commodities e nas atividades não agrícolas como fonte de
lucro para alguns e alternativa de sobrevivência para outros. Por fim, caberá destacar como a
diferenciação social, dentro das aldeias, foi exacerbada, gerando novas tensões sociais em um
contexto de desarticulação da noção de cooperação, ajuda mútua e obediência que existia
entre os ie maiores e menores. Os novos interesses na aldeia romperam a antiga relação entre
as famílias tradicionais e os pequenos camponeses na permuta entre capital e trabalho,
42
Levando-se em consideração que havia uma diferenciação inicial na camada camponesa estabelecida desde o
início do Kenchi, ou seja, que nem todos os camponeses conseguiam de fato manter um excedente em mãos,
ainda lutando por sua sobrevivência, é preciso ressaltar que essa diferenciação tornou-se ainda maior.
43
De fato, cabe lembrar que as transformações não tiveram a mesma velocidade em todas as partes do país,
havendo regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos que demoraram mais para modificarem a lógica da
produção. No entanto, é preciso destacar que essa tendência foi se espalhando pelo país e que, nas áreas mais
desenvolvidas no entorno de Edo, Osaka e Kyoto, as mudanças rápidas foram visíveis. Por exemplo, já ao final
do século XVI, camponeses de todas as classes cultivavam produtos voltados para o mercado na Região Kinai
(FURUSHIMA, 1991, p. 510).
44
diminuindo a noção de subordinação que a iminência da fome e inanição poderia gerar. Novas
possibilidades se abriam nas aldeias, mas nem todos puderam se beneficiar igualmente dessas
transformações.
44
Neste período, diversos tratados agrícolas foram lançados. Um dos primeiros tratados foi o Nogyo Sensho, de
Miyazaki Antei, completado em 1697, que dedicava um capítulo para cada variedade de grama, vegetais, grãos,
árvores e ervas além de capítulos para o solo, fertilização, irrigação e gestão das áreas florestais. Na introdução
do tratado, o autor explica que passou 40 anos de sua vida cultivando o solo e outros 40 anos ampliando seus
conhecimentos e coletando dados por meio de viagens feitas pelo país, testando as suas experiências e as
experiências de outros. O autor, conforme terminava cada parte do trabalho, ainda enviava o seu livro para
passar por outros especialistas, que fizeram a checagem de seu conteúdo. (Smith, 1959). Além desse trabalho,
que fora o mais significativo do período, outras publicações especializadas foram lançadas e no século XIX,
praticamente todos os cultivos tinham seus respectivos tratados especializados (SMITH, 1959, p. 89-90).
45
45
A aquisição de sal e de metais para ferramentas e itens cotidianos era basicamente feita pelo mercado,
inicialmente por trocas e posteriormente por meio do dinheiro, notadamente a partir do século XVIII
(FURUSHIMA, 1991, p. 506).
46
46
O uso de animais pelos camponeses mais pobres poderia ser feito por meio das trocas entre esses capitais e
mão de obra que ocorriam nas aldeias tradicionais japonesas. Para mais detalhes, ver item 1.2.3.
47
47
Além desse fator relativo à melhor organização dos cultivos em uma unidade produtiva menor, o crescente
custo da mão de obra também teve influência. Como explica Smith (1959, p. 105), o elevado preço que era
preciso pagar para realizar contratação de membros de fora da família agiu como força contrária à expansão do
tamanho dos cultivos. Essa elevação do preço da mão de obra será explicada mais adiante, qualificando as
transformações nas relações de trabalho que ocorreram juntamente com a expansão da agricultura comercial.
50
48
A quantidade de dados disponíveis para esse período é bastante escassa e Smith (1988) destaca que não se
deve generalizar essa tendência para todo o país, mas pelo fato de que as aldeias cujos dados estavam disponíveis
não eram próximas, pode-se pensar que essa tendência existia em outras aldeias também.
52
49
Na opinião de Smith (1988), a não reavaliação da taxação se dava pela dificuldade em mobilizar todos os
recursos necessários para esta tarefa. Além disso, a ideia de simplesmente aumentar o imposto de forma
arbitrária sem se fazer uma reavaliação da produtividade de cada aldeia seria uma fonte de distúrbio para a
ordem estabelecida, podendo causar revoltas camponesas.
54
desenvolvimento econômico e social do campo japonês. O autor não nega que o nengu, que
era pago de acordo com o kokudaka de cada lote de terra registrado no kenchi, era
excessivamente elevado, mas levanta a tese de que a mesma não era tão opressiva como
muitos historiadores defendem e que, em algumas regiões, as taxações sobre o uso da terra se
tornaram até mesmo menores, como mostram os seus dados50 (SMITH, 1988, p. 52). Sato
(1990, p. 43) complementa que na primeira metade do Shogunato Tokugawa, a taxação sobre
o camponês de fato era severa, chegando até a 60% da produção de arroz dificultando, assim,
a sobrevivência no campo. Mas ao final do século XVII, essa taxação caiu para
aproximadamente 33% diante do aumento de produtividade enquanto não se fez a revisão dos
impostos pelo governo central.
No entanto, é preciso lançar um olhar crítico sobre os dados de Smith (1959), tendo-se
a visão de que, mesmo com a possibilidade de uma camada ter conseguido permanecer com o
excedente, o imposto sobre a terra era gravoso e continuava colocando em cheque a
sobrevivência de muitos camponeses.
Average tribute rates declined over the course of the Tokugawa period, but
within fiefs, some villages always had rates higher or lower than the average;
and even when average rates were in decline, they were usually at a level
high enough to cause distress to the poorest in village (BIX, 1986, p. 13).
Além do fato de que os impostos continuavam dificultando a sobrevivência do
camponês que tinha apenas um pequeno lote de terra a ser cultivado, a classe camponesa no
Japão nunca fora uma classe homogênea, dada a existência de terras hereditárias que
permitiram à algumas poucas famílias terem propriedades maiores dentro de uma aldeia, e
isso também influenciou no pagamento do impostos51. Somada a essa diferenciação, neste
novo contexto de desenvolvimento da economia rural, aqueles que conseguiram acumular
mais excedentes preservaram suas propriedades registradas no kenchi, enquanto, no extremo
oposto, surgia uma massa de camponeses pobres, denominados mizunomi (bebedores de água)
que, por conta de dívidas ou em busca de mera sobrevivência, abriam mão de suas terras na
forma de hipotecas não pagas. Este processo será detalhado no item 2.4.1, mas cabe destacar,
neste momento, que não se pode ver os dados como se todos os camponeses tivessem tido a
oportunidade de manter um excedente para si, melhorando os cultivos e vivendo de uma
50
Como explicado anteriormente, haviam outras taxações, mas, de fato, a taxação paga em arroz pelo uso da
terra era a mais significativa de todas (Smith, 1988; Sato, 1991).
51
Na análise de Smith, “O estrato superior dos camponeses era, em vários aspectos, não apenas no padrão de
vida, muito mais próximo da classe média samurai do que da maioria dos camponeses” (SMITH, 1988, p. 70).
Para maiores detalhes sobre os dados utilizados pelo Smith, ver Smith (1988, p. 64-68)
55
forma estável. Pois é exatamente desse processo que vai se criando a classe de camponeses
com inúmeros lotes de terra (jinushi), enquanto se expande uma massa de camponeses
empobrecida que continua cultivando a mesma terra de sua família, agora não mais na
categoria de camponês registrado com direito de uso e posse da terra, mas na categoria de
arrendatário, devendo pagar, além do nengu, uma taxa pelo uso do solo àquele que agora
possuía os papeis de sua antiga unidade produtiva (TAKAHASHI, 1976).
A visão de Furushima (1991, p. 505) contribui paras se ter um olhar mais crítico com
relação a este processo, indicando mais um fator que contribuiu para a consolidação do poder
administrativo e econômico da camada camponesa capaz de reter um maior excedente em
mãos. De fato, o pagamento dos tributos dentro de uma aldeia era feito de forma coletiva,
como explicado anteriormente. Porém, as diferentes camadas de camponeses conseguiram
acumular diferentes excedentes que resultaram em diferentes investimentos em tecnologia
agrícola, não apenas pela não revisão da produtividade da terra. Furushima (1991, p. 497-498)
explica esse processo de forma clara.
O fator chave nesse processo foi que as classes rurais mais elevadas
acumularam grandes excedentes que foram usados para desenvolver e
introduzir novas tecnologias. Esse excedente foi a consequência de certas
características do sistema de coleta de impostos quando este foi
implementado. Durante o levantamento do kenchi, todas as aldeias de uma
região específica foram classificadas em três categorias de acordo com seus
rendimentos totais e todas as terras agrícolas, dentro de uma aldeia, foram
ranqueadas de acordo com as qualidades em superior, média, pobre ou até
“especialmente pobre”. (...) Apesar da multiplicidade da gradação, no
entanto, os registros documentais de regiões específicas revelam que as
gradações na escala da taxação aplicada nas terras de qualidades bastante
diferentes eram na verdade bem pequenas.
O autor continua o seu raciocínio explicando sobre o efeito dessas pequenas diferenças
nas taxações entre terras de qualidades diferentes.
No início do período Tokugawa, as taxações sobre a terra eram tipicamente
avaliadas como uma porcentagem do kokudaka total da aldeia e isso se
traduziu em uma baixa porcentagem da taxa para as terras mais produtivas e
uma taxação relativamente alta nas terras menos produtivas, dado que os
agricultores mais ricos eram os que tinham mais influência na assembleia da
aldeia que definia a divisão da responsabilidade pelas taxas. Assim, o
encargo do pagamento anual das taxas recaiu de forma desigual sobre os
56
pequenos agricultores. Aqueles que não conseguiam pagar suas dívidas eram
forçados a vender parte ou a totalidade de suas terras, tornando-se um servo
contratado. Enquanto os pequenos agricultores lutavam para sobreviver, as
classes superiores de agricultores, pagando uma proporção menor das taxas
sobre suas rendas, acumularam um excedente que proveu os fundos para o
desenvolvimento e introdução de novas tecnologias. (FURUSHIMA, 1991,
p. 498).
Ou seja, desde a primeira metade da Era Tokugawa, uma camada camponesa mais
poderosa conseguiu de fato interferir na taxação sobre a terra reforçando a diferenciação
dentro da própria classe, participando de forma ativa no processo de desapropriação do
camponês mais pobre52. E assim, apesar da política de Hideyoshi de manter as propriedades
pequenas, o período Tokugawa presenciou a queda de um tipo de propriedade de terra e o
surgimento de outro. Como já explicado, no início do período, estabeleceu-se um sistema
pouco monetizado em que alguns camponeses mais poderosos e com território maior
formavam um centro que demandava a mão de obra de membros da família e da comunidade
em tempos de colheita ou para alguma atividade específica que não poderia ser feita apenas
com os membros da família nuclear. Em áreas mais afastadas e/ou montanhosas, essa relação
do início do período Tokugawa se manteve basicamente inalterada até o século XIX. Mas, a
partir da segunda metade do período Tokugawa, o que se observou foi tendência acelerada de
desestruturação das relações de obrigações mútuas para um sistema baseado em contratos de
arrendamento e de contratação de trabalhadores temporários por salários em uma economia
crescentemente comercial (SMITH, 1959, ROZAM, 1988).
Entendida a formação do excedente na economia camponesa, é preciso entender o
desenvolvimento dos mercados e das cidades, bem como a penetração nas aldeias da figura do
mercador, que impulsionou os cultivos voltados para o comércio, reforçando o papel da terra
não só como meio de subsistência, mas também como forma de obtenção de lucro, acelerando
o processo de desapropriação dos pequenos camponeses.
mercador, bem como no que tange ao papel do mercador na sua relação com a elite política
samurai. Na rígida estrutura social, o governo Tokugawa “postulou uma economia
fundamentalmente agrária com o mínimo desenvolvimento do comércio – uma sociedade
onde o samurai governa, os camponeses produzem e os mercadores tomam conta da
distribuição” (HALL, 1970, p. 204). Rozman (1989, p. 506) complementa que as três classes
sociais rigidamente definidas no início do período Tokugawa e que dividia os samurais,
camponeses e mercadores separava cada classe por estilo de vida e distinção ocupacional,
congelando o status social e evitando a contaminação das outras classes principalmente pela
atividade comercial.
No entanto, Rozman (1989, p. 507) explica que,
Durante o período Tokugawa, os controles se tornaram menos impessoais e
arbitrários. As rígidas barreiras de classe estabeleciam um limite claro sobre
o que era permitido sem minar as oportunidades para a mobilidade e a
competição sobre regulações relativamente imparciais. Um grande número
de chonin (mercadores) e nomin (camponeses) agarraram oportunidades
dentro da ordem social Tokugawa para avançar em suas posições. No
processo, eles criaram uma força de mudança social que gradualmente
colocou em cheque as premissas em que era baseado o “controle por status”.
Na opinião de Hall (1970, p. 203), “no nível das aldeias, foi a transformação da
propriedade da terra e as atividades comerciais que levaram à desagregação da economia das
aldeias tradicionais e os diversos deslocamentos sociais que geraram problemas para as
autoridades”. Ou seja, dado o desenvolvimento comercial que se expande a partir das maiores
necessidades das cidades por produtos do campo, o aumento da agricultura comercial minou
não apenas os mecanismos de controle do comércio feito pelo Estado, mas também todo o
sistema baseado em uma fixa divisão do trabalho entre os diversos estratos do sistema ie e da
noção de papeis dentro da sociedade.
Novas relações baseadas no mercado passaram a minar o antigo papel das obrigações
e relações familiares dentro das comunidades aldeãs e o sistema baseado em pequenos lotes
cultivados por famílias registradas no kenchi começou a se desintegrar (Rozam, 1988, p, 518).
Cabe destacar, como já fora ressaltado anteriormente, que o sistema ie não é desagregado
pelas transformações econômicas e sociais que ocorreram neste período. No entanto, a relação
entre os ie são alteradas pela mudança nas relações cooperativas que existiam entre os
camponeses com terras maiores e aqueles que possuíam apenas pequenos lotes.
58
Além da desagregação das relações sociais estabelecidas dentro das aldeias, outra
fonte de desestabilização da rígida estratificação social fora o sucesso de inúmeros
mercadores que passaram a burlar os controles do governo. O lugar dos mercadores na
estrutura social Tokugawa era abaixo dos camponeses e acima daqueles considerados como
intocáveis (eta) ou não-humanos (hinin). Ou seja, socialmente falando, os mercadores
estavam em uma posição de pouco respeito dentro da sociedade, dado seu papel de transportar
mercadorias e alimentos dentro do país. No entanto, em algumas ocasiões, os mercadores
tinham sucesso e acabavam acumulando uma grande fortuna, considerada incompatível com
sua posição social (NOBUHIKO, 1991).
Para entendermos como o comércio vai inserindo novas relações sociais e
econômicas, bem como novas mentalidades no campo, parte-se da análise das cidades que
tiveram amplo crescimento notadamente a partir do século XVIII. Cabe destacar que as
cidades sempre existiram no país e que, com o Sankin Kotai, ou seja, a política de
estabelecimento temporário do daimyo em Edo, seu crescimento tornou-se cada vez mais
vigoroso.
Mesmo nos tempos anteriores ao estabelecimento da paz pelo shogunato Tokugawa, o
Japão possuía ilhas espalhadas de agricultura comercial, mas até 1600, os camponeses ainda
produziam basicamente para se alimentarem e para se vestirem, para pagarem taxas em
espécie e para estocar qualquer coisa que sobrasse das colheitas boas para uma necessidade
nas possíveis colheitas ruins. No entanto, a vida rural em tempos de paz e a retirada da classe
samurai, artesã e mercadora do campo para as cidades-castelo alterou gradualmente a lógica
do cultivo de subsistência para um que atendesse ao mercado e às taxações na forma de arroz.
Nem todos conseguiam mais cultivar a terra e garantir sua subsistência e, para atender a esses
centros, as ilhas de agricultura comercial se expandiram e começaram a preencher o entorno
das economias autossuficientes. Assim, para a questão referente às transformações na direção
da comercialização da produção, é preciso compreender as transformações econômicas e
sociais que impulsionaram a dinamização do comércio a partir da Pax Tokugawa e da
separação dos estratos sociais, que dividiu os moradores do campo e os moradores das cidades
(NOBUHIKO, 1991).
Entre 1550 e 1700, o Japão tornou-se uma das sociedades mais urbanizadas do mundo.
Como explica Nobuhiko (1991, p. 519),
No início dessa era, a antiga capital Kyoto era a única cidade com mais de
100 mil residentes, e apenas algumas outras contavam com mais de 10 mil
pessoas. Mas, no ano de 1700, quatro novas comunidades já haviam
59
Para se entender esse processo de expansão urbana, cabe voltar para a origem das
cidades-castelo (jokamachi) na Era Sengoku, ou seja, na metade do século XVI. Essas
cidades, que eram um aglomerado de pessoas ao redor de castelos espalhados pelo país, não
passavam de alguns milhares de pessoas. Nobuhiko (1991, p. 520) destaca que os samurais
(bushi) moravam nas aldeias agrícolas controlando os seus próprios domínios, mas, aos
poucos, começaram a formar castelos fortificados em posições estratégicas para melhor
proteção, pois o Japão desse período era marcado por diversas guerras. Nessas localidades, os
samurais mantinham artesões para a manufatura de espadas, bem como mercadores para
transportarem produtos e trabalhadores para projetos de construção.
61
53
Em áreas próximas às cidades, trocavam-se dejetos humanos por vegetais e arroz, desenvolvendo um ativo
comércio de dejetos humanos em Osaka e Edo, bem como nas proximidades de cidades castelo
(FURUSHIMA, 1991, p. 508). Como explica Sato (1991, p. 74), nas vilas que circundavam as cidades a
produção era voltada em grande parte para os vegetais, que encontravam uma crescente demanda na crescente
população urbana. Barcos transportavam os vegetais através dos rios e voltavam com os lixos e dejetos humanos
para as aldeias para serem usados como fertilizantes. Essa estrutura solucionou o problema dos lixos urbanos e
mantinha a fertilidade do solo no campo.
62
54
Como destaca Furushima (1991, p. 508), em regiões mais afastadas, o uso de enxada e de foice demorou mais
para se difundir, mas “na maioria das regiões, as mudanças vieram mais rápidas e foi o produto não apenas do
desejo do agricultor de produzir mais, mas também pelo desejo do seu senhor para que fizesse isso”.
63
com o que era mais adequado a cada região, iniciando um processo de especialização regional
(FURUSHIMA, 1991).
Os cultivos especializados eram definidos como 3 árvores e 3 plantas. As três árvores
eram o chá, a amora (produzia papel e também importante na sericultura) e laca (produzia
verniz), enquanto as três plantas eram cânhamo, cártamo e anil. Além disso, nessa agricultura
“autossuficiente”, outro fator importante era a capacidade do agricultor em produzir outros
produtos durante o inverno e de utilizar as técnicas agrícolas difundidas, como explicado
anteriormente (SATO, 1990, p. 73). Nas pequenas propriedades, o arroz tomava conta de todo
o lote durante a primavera e o verão, sobrando apenas uma outra estação para se realizar o
cultivo (FURUSHIMA, 1991). Havia casos em que era possível plantar alguns vegetais e
grãos como soja, tabaco e algodão, mas apenas para consumo da família. Smith (1988, p. 97-
98) retrata o caso do condado Wakae que tinha condições de solo e clima desfavoráveis ao
cultivo do arroz, mas, no início do período Tokugawa, o mesmo era cultivado amplamente
para a alimentação e o pagamento de taxas. No entanto, no início do século XVII, o algodão,
que era propício às condições da região, passou a ser cultivado e facilmente vendido em
Osaka.
Além dessa melhoria na agricultura, Smith (1988) faz também uma pioneira análise de
dados para avaliar o desenvolvimento da indústria rural e atividades paralelas à agricultura
que surgiram neste mesmo período 55 . O desenvolvimento comercial que tomou forma no
período Tokugawa, notadamente pelo já tratado desenvolvimento das técnicas produtivas e
consequente geração do excedente e pela expansão das cidades, teve impacto importante na
produção agrícola, além de forte influência nas atividades não agrícolas que se espalharam
pelo país. De fato, como já destacado anteriormente, não se pode falar de um
desenvolvimento econômico homogêneo dentro do país, mas cabe destacar a tendência que
existia em diversas localidades, sejam elas nas proximidades das cidades centrais do Japão ou
de rotas comerciais, sejam pelos aspectos climáticos que limitavam o cultivo agrícola do
arroz, mas que abriram oportunidades para atividades paralelas à agricultura.
The growth of by-employments and manufacturing in rural japan during the
last century of Tokugawa rule profoundly affected village social structure.
The most remarkable change was the appearance of great numbers of
peasants who owned little or no land and could not subsist by farming alone
(SMITH, 1988, p. 99).
55
Takahashi (1953, P. 81) explica que nem sempre o aparecimento de indústrias rurais ocorreu de forma
espontânea. Muitas vezes, a própria política senhorial incentivava o desenvolvimento de atividades paralelas
para que, assim, pudesse garantir o fornecimento adequado dos censos senhoriais.
64
56
Esta pesquisa foi enviada em 1840 para diversas aldeias e consistia em um questionário que tinha o objetivo de
juntar informações para propósitos administrativos. Os dados enviados de Kaminoseki foram os mais detalhados
e datam de 1843. Os dados enviados são referentes à geografia (solo e clima), agricultura (tipo de cultivo,
instalações de irrigação, calendário agrícola, etc.), demografia (população por sexo, número de famílias por
ocupação e status, etc.), rendimentos (em termos agrícolas e industriais) e despesas (taxações, fertilizantes,
matéria prima, reposição de ferramentas e materiais, etc.) (SMITH, 1988, p. 75-76)
66
time to cut firewood and gather grass for compost [traditional female farm
work].57
Cabe destacar que, mesmo nesta estrutura que associava o cultivo agrícola e as
atividades complementares fora da agricultura, a responsabilidade familiar do ie não perdeu
sua força, pois se deu continuidade à organização produtiva em termos familiares, que agiu
como forma de reforçar a cooperação dentro da família nuclear. Muitas vezes, as atividades
não agrícolas eram feitas em locais separados da unidade produtiva familiar 58 , mas os
membros que saíam para realizar estas atividades tinham a consciência de que os rendimentos
pertenciam ao grupo da sua família, e o seu zelo pelo bem estar da mesma era essencial para
manter esse fluxo de mão de obra sem desintegrar a cooperação interna (SMITH, 1988, p. 84-
85).
Em todas as regiões do país, há relatos de chefes de aldeias e de especialistas em
agricultura que reclamavam da escassez de mão de obra para contratar em momentos de
necessidade, diante da existência de atividade paralelas à agricultura que estavam disponíveis
aos pequenos camponeses e aos arrendatários. E os documentos disponíveis para esta
constatação abarcam também leis que surgiram já no século XVII que definiam uma maior
regulação do comércio e das indústrias nas aldeias, assim como de manifestos de mercadores
das cidades-castelo, que pediam proteção contra os pequenos mercadores das aldeias que
cresceram em número neste período 59(SMITH, 1988, p. 92). Ou seja, as atividades paralelas
ao cultivo do arroz e à agricultura de subsistência deram uma alternativa de sobrevivência ao
camponês que, se articulando com os mercadores, tinham a possibilidade de adquirir fundos
que complementavam a sua renda.
Outro exemplo é o que ocorreu na região de Shindatsu, caso que será retomado no
item 2.3.2 sobre as revoltas camponesas 60. A título de esclarecimento, será feita uma breve
discrição da produção do bicho-da-seda nesta região.
57
Tradução de Smith (1988).
58
Por exemplo, em Kaminoseki, as mulheres passavam a temporada da fabricação do sal na região costeira
trabalhando nesta atividade. Há relatos também em Kyushu que afirmava que nos períodos fora da fabricação do
açúcar e da cera, muitos habitantes trabalhavam como diaristas por mais de um mês nas províncias vizinhas. Em
Shinshu e Mikawa, de 10 a 20% da população das aldeias estavam fora da aldeia, trabalhando em atividades
paralelas (SMITH, 1988, p. 93).
59
Nem todas as atividades de indústrias rurais ou comerciais eram limitadas a pequenas unidades produtivas.
Havia, já no século XVIII, mercadores rurais que rivalizavam diretamente com os grandes mercadores de Edo e
Osaka. Além disso, há relatos de atividades como a fabricação de vinho, molho de soja, cerâmicas e ferro que
empregavam mais de setecentos trabalhadores.
60
Ao final do período Tokugawa, foi registrada uma das maiores movimentações campesinas na região, com
dezenas de milhares de participantes e o motivo do levante está intimamente relacionado com o desenvolvimento
da sericultura na região.
67
Para a sericultura, é preciso que seja uma região com grande quantidade de amoreiras
e a região de Shindatsu era geograficamente favorável mais para a sericultura do que para o
cultivo do arroz. Já no início do século XVII, o daimyo incentivava essa indústria com o
intuito de enriquecer os seus domínios. Com a proibição da importação de seda chinesa ao
final do século XVII, a produção nacional cresceu rapidamente e casas comerciais de Kyoto
estabeleceram filiais em Shindatsu para ter contato direto com os mercadores da região
(VLASTOS, 1986, p. 94).
No início do período Tokugawa, a maioria dos produtores de seda eram ricos
camponeses que se dedicavam ao melhoramento das técnicas de cultivo e à qualidade dos
produtos. No entanto, na segunda metade do século XVIII, a descoberta da influência do calor
no desenvolvimento do bicho-da-seda ajudou as pequenas famílias camponesas a integrarem a
sericultura com as atividades tradicionais da agricultura, pois, acelerando esse
desenvolvimento, era possível evitar que os picos de trabalho das duas atividades
coincidissem. Além dessa vantagem, a sericultura era uma atividade intensiva em mão de
obra, pois a produção não poderia ser mecanizada e uma família camponesa poderia ser tão
produtiva quanto um grande sericultor (VLASTOS, 1986, p. 99-100)
Ademais, o trabalho familiar era mais vantajoso por diversas razões. Segundo Vlastos
(1986, p. 100), “the health of silkworms and the quality of the silk ultimately depended on
meticulous execution of a great number of tasks. Carelessness, inattention, or bad judgement
at any point (…) could jeopardize the entire enterprise”. E, por isso, o uso da mão de obra
familiar, de fato, era o mais indicado, pois a correta atenção e dedicação geraria uma
recompensa a todos e tinha-se um incentivo para melhorar constantemente as técnicas e as
habilidades na produção. Inclusive, a mão de obra familiar não era paga e, dado que as
mulheres eram as mais indicadas para o trabalho, não influenciava no trabalho masculino. Por
outro lado, os empreendimentos maiores demandavam a contratação de trabalhadores por
curtos períodos e que precisavam de constante acompanhamento e orientação para executarem
as atividades de forma correta. Recebendo os pagamentos por dia, não se tinha nenhuma
participação nos lucros do empreendimento e, assim, os custos de supervisão dessas
atividades nos produtores maiores impactavam no rendimento dos negócios (VLASTOS,
1986, p. 100). Dadas essas características da produção, Vlastos (1986) conclui que,
Thus, there was little to prevent poor peasants from becoming producers if
they had suficiente Manpower. Even if they borrowed to finance operating
expenses, the entire production process took less than two months, which
allowed a quick return on investment.
68
Outro fator que atraía o pequeno camponês era que a taxação dos campos com
amoreiras era significativamente inferiores aos arrozais e qualquer espaço disponível era
utilizado para esse fim. Dessa forma, a sericultura não competia diretamente com o cultivo
tradicional, contribuindo para a complementação da renda do pequeno camponês, por meio da
venda do bicho-da-seda nas feiras locais ou a mercadores itinerantes. Vlastos (1986) reforça
que a sericultura não era a única fonte de renda complementar, mas dados e textos evidenciam
que a sericultura salvou milhares de camponeses que teriam sido expulsos do campo ou que
teriam se transformado em arrendatários, perdendo assim o status de camponês.
Nakamura (1985, p. 28) ressalta também que, ao final do período Edo,
aproximadamente 20-25% dos agricultores trabalhavam em outras atividades além do cultivo
da terra como artesãos e carpinteiros e as mulheres, na fiação e tecelagem, enquanto outros
fundaram lojas, bares e restaurantes. No inverno, ocorria uma migração do campo para a
cidade e muitos passavam a realizar atividades comerciais. Com a impossibilidade de se viver
apenas da agricultura, a consequente dinamização da economia fez com que a quantidade de
dinheiro em circulação aumentasse e o Shogun chegou até a estimular a economia nacional
com políticas expansionistas de emissão de moeda.
Assim, com esse avanço na urbanização e com a interpenetração do comércio no
campo e do desenvolvimento das indústrias rurais como atividade complementar ao cultivo
agrícola, o sistema tradicional da propriedade tezukuri, onde as famílias se organizavam em
torno das grandes propriedades com as quais estavam de alguma maneira interligada, como
explicado anteriormente, ia se alterando. A tendência que se instaurou foi que,
A família continuou sendo a unidade de cultivo, mas o mercado tendeu a
separar a mão de obra do pertencimento ao grupo e das obrigações sociais; o
trabalho perdeu muito de sua significância e passou a ser tratado como uma
entidade econômica (SMITH, 1959, p. 108).
Conforme já explicado, as duas principais formas de organização da produção no
entorno das grandes propriedades eram os servos hereditários (fudai) e os nago, além das
ajudas dos vizinhos e membros da família subsidiária. Primeiro, no que tange aos servos
hereditários, o seu fornecimento por famílias pobres ainda quando criança apenas poderia ser
mantido caso não houvesse nenhuma outra forma de sobrevivência fora da estrutura agrária da
aldeia. No entanto, à medida que o comércio passou a entrar nas aldeias, novas formas de
trabalho mais livres surgiram nos negócios de transporte, comércio, indústria artesã e até
mesmo na agricultura (SMITH, 1959, p. 109). Por outro lado, a liberação dessa mão de obra
também era vantajosa para os grandes proprietários, que tinham inúmeras responsabilidades
69
para com aqueles inseridos na família, dado que se podia contratar mão de obra apenas
quando necessários sem precisar arcar com essas obrigações quase familiares. A forma
dominante de mão de obra passaria a ser os “hokonin”, que eram contratados para trabalharem
por períodos e salários fixos. Contudo, dentro dessa categoria, existia uma importante
diferenciação que é feita por Smith (1959, p. 109): aqueles que eram atados ao trabalho por
dívida (adiantamento do pagamento), sendo trabalhos de longo período, e aqueles contratados
por períodos curtos e por salário. O autor classifica o primeiro grupo como sendo “hokonin” e
o segundo grupo como “wage labor”.
Essas transformações geraram uma escassez de mão de obra. Como explica Smith
(1959, p. 111),
A oferta de mão de obra estava baixa após 1700, porque o capital no
comércio e na indústria estava crescendo mais rápido do que a população.
Apesar de todas as tentativas artificiais, o trabalho era drenado da agricultura
para setores da economia que estavam se expandindo rapidamente. Este
dreno era parcialmente refletido pelos movimentos da população das aldeias
para as cidades – mas apenas parcialmente, pois o comércio e a indústria não
eram fenômenos exclusivamente urbanos. Mesmo assim, os registros
populacionais indicam a perda de mão de obra das aldeias e o crescimento da
população urbana durante os últimos três quartos do século XVIII, quando a
população do país estava estática como um todo.
Conforme os agricultores se engajavam cada vez mais em atividades paralelas à
agricultura (by-employment), mercadores começaram a se mudar para áreas rurais com o
objetivo de ajudar os agricultores a reunirem matérias-primas e processarem produtos finais e,
então, transportarem os produtos para os mercados de varejo das cidades. Nesse momento, a
porcentagem de agricultores engajados no comércio cresceu e muitas aldeias perderam sua
identidade agrícola. A evolução das aldeias em cidades locais é comumente considerada como
sendo um fenômeno do século XIX, mas o processo começou bem antes (SMITH, 1959).
Ao final do século XVIII, os laços que haviam moldado as classes sociais em uma
estrutura coerente começaram a se desintegrar de forma mais acelerada com o
desenvolvimento comercial. No século XVII, a sociedade era organizada e mantida estável
através das obrigações mútuas e no papel (yaku) que cada uma tinha que desempenhar.
Como explica Nobuhiko (1991, p. 593),
O Daimyo contava com os mercadores e artesãos no fornecimento de
produtos e serviços e os senhores retribuíam fornecendo um ambiente dentro
das cidades-castelo e domínios que respondiam às necessidades e desejos
70
61
Neste contexto, o uso do termo desapropriação refere-se à perda do direito de uso da terra como camponês
cujo nome está devidamente registrado no kenchi.
71
posse, a alienação e divisão das terras, hipotecando os pequenos lotes com o intuito de
conseguir dinheiro emprestado, sendo que muitas vezes a transferência da terra tornava-se
inevitável diante da impossibilidade de cumprir com o pagamento das dívidas. Esse processo
gerou uma concentração dos direitos de posse da terra, ao mesmo tempo em que criou as
bases da agricultura moderna japonesa com sua relação peculiar entre o proprietário da terra
não agricultor (Jinushi) e o pequeno camponês arrendatário dependente (Kosaku). A
peculiaridade está no fato de que a propriedade se concentrava, enquanto os camponeses que
perdiam suas terras continuavam cultivando esse mesmo lote, agora na categoria de
arrendatário (TAKAHASHI, 1953).
Aqui, cabe destacar que essa noção de arrendatário (tenant) é diferente do arrendatário
inglês, que é impelido pelo mercado e pela pressão dos senhores a aumentar a sua
produtividade e vender sua produção em um mercado com elevada concorrência, tendo o
risco de perderem seus contratos de aluguel, caso não dessem conta de gerar todo montante de
lucro necessário. Assim, os arrendatários ingleses, juntamente com os proprietários, estavam
constantemente preocupados com os improvement, ou seja, os melhoramentos na terra para
irem ao mercado garantir seus lucros (WOOD, 1998, p. 19). Já para o caso japonês, o
arrendatário é formado por meio de dois processos como já mostrado anteriormente. Um deles
é pela perda das terras pela hipoteca. Nesse caso, o camponês não abandona a sua terra, mas
se sujeita a trabalhar sobre pesadas taxações para um novo “proprietário da terra”, pois a sua
terra faz parte do seu ie, como fora explicado no capítulo 1. O pequeno lote de terra que
pertencera a seus ancestrais tinha um valor muito além do econômico e permanecer na aldeia
significava permanecer seus ancestrais também haviam sido enterrados, constituindo mais
uma forma de laço com a terra. Assim, abandonar a terra é uma decisão que envolve
desagregar um ie, e essa decisão não era amplamente adotada pelos camponeses
(FURUSHIMA). Era preferível permanecer na terra e tentar sobreviver, do que abandoná-la e
seguir em busca de oportunidades nas cidades.
Essa relação, que criou o futuro grande proprietário de terras e aliado do governo
Meiji, seria mantida e reforçada pelo imperador, sendo apenas eliminada na reforma agrária
após a Segunda Guerra Mundial62 (Norman, 1910 P. 136; Takahashi, 1953, P. 75-76). Este
processo também ajuda a clarificar como a já heterogênea camada campesina pode ter as
diferenciações ainda mais alargadas e também a esclarecer como o mercador vai entrando na
62
O governo de ocupação norte-americano no Japão, conhecido como SCAP, introduziu uma reforma da
propriedade da terra, beneficiando a grande maioria de arrendatários de terra, com o intuito de reduzir o poder
dos ricos proprietários de terra que deram apoio ao expansionismo japonês nos anos 1930 (NAKAMURA, 1986).
72
lógica shogunal, não apenas como aquele que transporta produtos e transforma arroz e
dinheiro, mas como detentor de direitos de uso da terra, movimentando grandes quantidades
de dinheiro no campo e nas cidades. Enquanto o Daimyo e os samurais encontram
dificuldades para manterem o luxo nas cidades, esta figura com grande poder econômico
começa a desestruturar a base da rígida estrutura social japonesa do período Tokugawa.
uso e posse da terra fosse vantajosa para os camponeses e mercadores ricos. Em oposição a
este valor da terra, nas regiões produtoras de seda ou sal, não era preciso ter uma propriedade
maior para se ter a geração de um excedente maior, enquanto os arrozais e campos de algodão
demandavam grandes quantidades de terra para se ter maior produção. Por fim, em locais
concentrados no cultivo de arroz, não havia uma alternativa à sobrevivência senão as
atividades tradicionais e algum cultivo de inverno que poderia complementar a renda e
garantir a subsistência do camponês e sua família. Já em regiões concentradas na sericultura,
por exemplo, esta atividade se tornava uma fonte de sustento e, mesmo com minúsculos lotes
de terra que não garantiam o sustento da família, tinha-se uma renda que passava pelo
mercado, evitando que os camponeses perdessem suas terras, tornando-se arrendatários
(VLASTOS, 1986, p. 109).
Assim, apesar do processo de desapropriação não ter ocorrido em todas as partes do
Japão, acredita-se que seja de fundamental importância ressaltar esse processo, pois esta é
uma forte tendência que foi coroada no contexto da Restauração Meiji, quando a terra passou
a ser efetivamente uma propriedade privada e o governo legitimou a relação entre o novo
proprietário de terra e seus arrendatários, que continuam pagando taxas em espécie em pleno
processo de modernização capitalista japonesa. Além disso, essa tendência que se exacerba a
partir da segunda metade do período Tokugawa e que ganha impulso no século XIX deve ser
entendida como uma das facetas da desarticulação da antiga noção de cooperação que existia
dentro da aldeia camponesa, dadas as possibilidades de acumulação pelo uso extensivo da
terra, concentrada nas mãos de alguns ricos camponeses e mercadores. Essa tendência
também tornaria a ser uma das razões para as inúmeras revoltas camponesas que ocorreram
no período.
Como já destacado, as expropriações dos camponeses mais pobres eram feitas pelos
camponeses ricos, ou seja, famílias tradicionais da aldeia, e pelos mercadores enriquecidos,
mesmo com a proibição de transferência de terra determinada pelo governo central. E a
expropriação e a exploração dos camponeses por essa camada abastada poderia se dar de duas
maneiras. A primeira forma era por dívidas. Dadas as inúmeras dificuldades enfrentadas pelos
camponeses que não conseguiam sustentar todos os membros de sua família apenas com o seu
pequeno lote de terra, sujeito a todas as vicissitudes climáticas, muitos pediam empréstimo a
essas famílias tradicionais ou aos mercadores, dando como garantia os seus papeis de registro
no kenchi. Em documentos de registro de petições deste período, há relatos, por exemplo, de
aldeias de Tsuyama, que alegavam 5 a 10 mortes por inanição por ano entre os camponeses,
74
enquanto o mesmo número de camponeses falidos tinham seus lotes confiscados diante da
impossibilidade de pagamento de todo montante devido de imposto (BIX, 1986, p. 11).
Assim, na impossibilidade de realizar todos os devidos pagamentos, o camponês se
endividava e hipotecando a terra, acabava muitas vezes perdendo-a. Entretando, em vez de
deixarem a terra, essa mesma família camponesa que perdera a terra continuava cultivando o
mesmo lote que antes havia sido registrado em nome de sua família pelo kenchi, mas agora na
categoria de arrendatário e não mais de honbyakusho. Ou seja, não tinha mais o status de um
legítimo camponês, devendo agora realizar os pagamentos em espécie do montante referente
às taxações sobre o uso da terra e também compartilhar a colheita com aquele que passou a
possuir os papeis de registro da terra (TAKAHASHI, 1953, p. 76-77).
A segunda forma de aquisição de terras era através do processo de expansão dos
terrenos aráveis, incentivados pelos próprios senhores daimyo. Com o intuito de aumentarem
seus rendimentos por meio da expansão dos cultivos, os próprios daimyo buscaram terras não
registradas no kenchi onde seria preparada uma nova infraestrutura de irrigação e a preparação
do solo. No entanto, como era preciso um montante considerável de recursos a serem
investidos para, por exemplo, captar água para os arrozais e arar esses terrenos que eram
menos produtivos, contou-se com o apoio financeiro de mercadores e camponeses ricos, bem
como com uma abundante mão de obra camponesa. No momento em que essas terras se
encontravam prontas para serem cultivadas, os financiadores eram autorizados a ficarem com
todo o lote arado, pois o que importava ao daimyo era o devido pagamento dos impostos.
Assim, era dado o direito de uso e posse ao mercador ou ao camponês que arrendava os lotes
para camponeses pobres, muitos deles que já haviam trabalhado na preparação do solo. Os
arrendatários pagavam, assim, uma taxa pelo uso do solo ao detentor dos direitos de uso e
posse e também pagavam ao daimyo pelo uso do solo. Como essas novas terras preparadas
para o cultivo sofriam uma taxação menor dos censos senhoriais, essa categoria de
proprietário não camponês aumentou no decorrer do período do Shogunato Tokugawa
(TAKAHASHI, 1953, p.78).
E essa especificidade é de extrema importância, pois o próprio mercador entra para a
estrutura de classes do sistema senhorial japonês de forma sui generis, intervindo no campo,
financiando projetos de expansão de terras aráveis e de irrigação em aliança com o daimyo e
os grandes proprietários de terras. O mercado, que na rígida estrutura social estabelecida pelo
shogunato de Toyotomi Hideyoshi estava posicionado abaixo dos camponeses, com mera
função de deslocamento de produtos, passa a ascender economicamente, tendo importante
75
papel no financiamento tanto da produção campesina, como do governo, cada vez mais
endividado e sem recursos para financiar sua pesada estrutura burocrática apenas com os
impostos recolhidos dos camponeses.
Outro ponto que deve ser destacado é que não havia nenhuma regulação, por parte do
governo, da relação entre o arrendatário e aquele que tinha o direito de uso da terra. Dessa
forma, os já gravosos impostos cobrados pelo governo eram acrescidos de uma taxação sobre
a qual o governo não tinha nenhum controle. E isso dificultou ainda mais a vida do pequeno
camponês que não podia contar com a “benevolência” do governo em momentos de
dificuldade e nem com a cooperação do “dono” da terra onde trabalhava, pois perdendo sua
terra e seu título de camponês, manter o seu ie, ou seja, as terras onde seus ancestrais
trabalharam e sua família atual, era a prioridade (VLASTOS, 1986).
No entanto, cabe ressaltar que apesar dessas transformações no campo e do
surgimento do capital mercantil, nesse período não havia uma estrutura de propriedade da
terra de caráter capitalista. Na realidade, esta nova estrutura e o capital mercantil que vai se
desenvolvendo vem apenas reforçar uma “servidão feudal”, não polarizando capital e o
trabalho assalariado, mas criando uma diferenciação dentro da camada camponesa que
contribuiu para atar o camponês desapropriado à terra. Ou seja, não se pode falar em
capitalismo, pois o modo de produção e não as transformações que ocorrem na terra ou nos
produtos agrícolas, nem mesmo um possível “espírito capitalista” que determina uma
produção capitalista. É preciso não apenas a transformação dos produtos agrícolas em
mercadoria, mas também os trabalhadores, que devem ser assalariados livres e não
camponeses presos à terra (TAKAHASHI, 1953, p. 79-80).
No entanto, é possível, seguindo a interpretação de Ellen Wood (1998), identificar
como a origem do capitalismo japonês estava no campo. Apesar da diferença do caráter do
arrendatário inglês e do japonês, existiu no Japão uma camada camponesa que juntamente
com os mercadores, foram capazes de expandir as terras aráveis, elevar a produtividade
agrícola e se engajar em atividades paralelas ao cultivo do arroz e à agricultura de
subsistência, com expansão dos cultivos comerciais e desenvolvimento da indústria
doméstica. Essas diferenciações gerou uma camada que conseguiu investir na produção e
contar com a mão de obra de camponeses empobrecidos que pagavam pelo uso da terra tanto
para o governo, como para o novo “proprietário da terra”. E esse ator econômico deve ser
ressaltado, pois o seu caráter é pouco alterado após a Restauração Meiji, servindo aos
76
interesses do governo imperial, sem abrir mão dos laços feudais estabelecidos entre
proprietário e arrendatário.
Assim, após essa breve análise das transformações no campo, é possível compreender
que havia uma crise estrutural do sistema senhorial e shogunal do Japão. As diferenciações
dentro da aldeia e a ascensão da classe mercadora, poderosa em termos econômicos, se
expressava de um lado pelo enriquecimento de uma camada que acumulava direitos de
propriedade, enquanto o pequeno camponês não tinha condições de sobreviver com o que
sobrava após o pagamento dos impostos. Dada essa situação, o crédito e as hipotecas
passaram a ter importante papel na vida camponesa, que acabava se endividando
excessivamente, sem poder se proteger das condições impostas pelos seus credores e sem
poder contar com a proteção do governo ou dos chefes de aldeia, que também se
beneficiavam da nova situação. Isso gerou uma deterioração na atmosfera social que
acompanhava a sociedade camponesa e suas relações internas, bem como a inicial relação do
camponês com o mercador, que tinha caráter colaborativo e que era importante para a
sobrevivência da família no campo. Conflitos dentro da classe e entre as classes se
exacerbaram neste período, e revoltas camponesas com novas demandas e novas formas
passaram a ocorrer com mais frequência na segunda metade do período Tokugawa.
camponeses com bom acesso ao mercado de Osaka buscavam aumentar a sua produtividade,
utilizando novas técnicas e novos tipos de fertilizantes, vendendo o montante produzido que
excedia as taxações e sua sobrevivência (VLASTOS, 1986, p. 73-74). A partir dessas novas
possibilidades, um novo processo foi engendrado em algumas regiões que eram mais
propícias ao cultivo de determinados itens comerciais como, algodão, tabaco, açúcar, etc.
Essas novas possibilidades também se abriram pelo lado das pequenas manufaturas rurais,
desenvolvendo a sericultura, a fiação do algodão, a fabricação de ceras e papéis, etc. como já
mostrado no item 2.2.
O desenvolvimento comercial teve dois impactos na vida aldeã. Em primeiro lugar, as
relações de cooperação e também de obediência dentro das aldeias foram rompidas. Por um
lado, os pequenos camponeses tinham a possibilidade de se estabelecerem de forma mais
independente, sem a necessidade de depender da relação de troca entre capital e mão de obra
para sobreviver 63 (VLASTOS, 1986, p. 74-75). Por outro lado, a nova função da terra, não
apenas como meio de sobrevivência, mas também como fonte de lucro e poder, engendrou o
processo de desapropriação dos camponeses, também já tratado anteriormente. Já em regiões
em que a terra tinha um menor peso como fonte de rendimentos, as atividades paralelas
ganharam destaque como meio de sobrevivência para o pequeno camponês e como meio de
acumulação para os ricos camponeses e mercadores. Esses dois movimentos geraram duas
novas razões para a manifestação camponesa: os descontentamentos por conta da
diferenciação dentro da aldeia com maior exploração dos pequenos camponeses e as
tentativas de pagamento dos impostos ao governo não em arroz, mas em dinheiro. Esses dois
grandes motivos expressam como o mercado contribuiu para a desagregação da cooperação
interna e transformação da lógica da produção que passa do autoconsumo para interações
mais profundas com o mercado.
Além dessas insatisfações com relação aos chefes de aldeia, havia também as revoltas
contra as famílias tradicionais (das quais o chefe da aldeia também pertencia) e os novos
mercadores, que emprestavam dinheiro aos camponeses com a terra em garantia, processo
esse já explicado em detalhe, e que muitas vezes abusavam de seu poder para conseguirem
expropriar um camponês. Vlastos (1986, p. 82-86) utiliza uma petição de meados dos anos
1800, na região de Shindatsu, enviada pelo assistente do chefe da aldeia ao governo central, e
que continha o registro do processo de desapropriação de um camponês que pedira dinheiro
63
Mas este movimento ocorreu com velocidades diferentes em cada região do Japão, sendo a região Kinai a
pioneira neste processo de transformação. No entanto, durante a última fase do período Tokugawa esta já era
uma tendência que ficava clara, ou seja, cada vez mais o camponês entrava na dinâmica do mercado.
78
emprestado para um rico comerciante de seda da região. Com a petição, o assistente pedia ao
governo para que intervisse na situação a fim de que se chegasse a um acordo. Esta petição
será relatada de forma resumida a seguir e, apesar de ser bastante descritivo, acredita-se que é
ilustrativo para compreender uma das importantes razões para os camponeses se organizarem
e realizarem grandes revoltas.
Neste caso o camponês Kichiroji fora expropriado por um rico camponês e comerciante de
seda, Yoshino Shutaro, com o apoio do chefe de sua família nuclear, Shozaemon. O incidente
se iniciou em 1863, quando Kichijiro pediu dinheiro emprestado para Shutaro. Kichijiro
deveria pagar todo o valor emprestado com juros, até o final do ano, ou perderia a sua terra
que havia sido dada como garantia. No entanto, antes do prazo final, Shutaro deu os papeis da
dívida de Kichijiro para o chefe da família nuclear, Shozaemon, assumindo que Kichijiro não
daria conta de devolver o dinheiro até o prazo final, dando o direito sobre a terra para
Shozaemon. Superando todas as expectativas, Kichijiro voltou para devolver o dinheiro a
Shutaro antes do prazo e, nesta ocasião, Shutaro explicou a ele que agora era Shozaemon
quem possuía seus papéis. No entanto, ao falar com Shozaemon, este explicou que os papéis,
na realidade, ainda estavam com Shutaro. Voltando a falar com o mesmo, Kichijiro tentou por
várias semanas pagar o dinheiro devido, sem sucesso. Após a virada do ano, ao tentar
novamente devolver o dinheiro, Kichijiro foi informado de que o prazo para o pagamento
havia expirado e que não teria sua terra de volta.
Indo reclamar com o chefe da aldeia, este recomendou a Kichijiro que não levasse o caso
adiante, dado que seria inútil tentar qualquer medida contra pessoas de tanto poder.
Consultando outros oficiais da aldeia, estes recomendaram que ele fizesse um acordo informal
com Shozaemon para que pudesse continuar trabalhando em sua terra como arrendatário. O
chefe de aldeia recomendou que aceitasse essa situação, pois, caso recusasse, não poderia
mais contar com nenhuma ajuda. Sem ter o que fazer, Kichijiro aceitou trabalhar nas terras
que agora pertenciam a Shozaemon, pagando um aluguel anual de sete hyo (sacas) de arroz.
No ano seguinte, mesmo com problemas na colheita, Shozaemon aumentou o pagamento
anual de arroz em mais dois hyo (sacas). Kichijiro tentou negociar, mas Shozaemon o
ameaçou de despejo. Assim, Kichijiro novamente aceitou a situação, devendo pagar o
montante maior de aluguel no ano.
Dada a situação precária em que se encontrava e diante da quebra da colheita, Kichijiro
acabou utilizando toda a sua produção de arroz para alimentar a sua família, não sobrando
nada para pagar Shozaemon. Quando Shozaemon soube do ocorrido, avisou a Kichijiro que
79
iria substituí-lo por outro arrendatário caso não pagasse todo o valor devido. Kichijiro,
pedindo ajuda a vizinhos e parentes, conseguiu o montante de um hyo que não foi aceito por
Shozaemon.
Neste contexto, a carta de petição foi enviada pelo assistente do chefe da aldeia, pedindo
ao governo que desse uma ordem a Shozaemon, para que aceitasse o um hyo de arroz como
uma parcela do pagamento. Não se sabe qual o fim da história, mas, três anos depois, na
grande revolta de Shindatsu, casas de Shozaemon e de seus parentes, bem como sua fábrica de
sakê foram atacadas e destruídas por camponeses locais. Vlastos (1986) especula quantos
camponeses teriam sido vingados por este ato coletivo. Este caso mostra como as
desapropriações poderiam ocorrer de forma arbitrária, mesmo sendo a transferência de
direitos de uso da terra proibida pelo governo. Fica claro, também, como os ricos camponeses
e mercadores, contando com o auxílio dos chefes de aldeia, conseguiam extorquir os
camponeses, de uma forma a não restar alternativa, a não ser se tornarem arrendatários. A
antiga relação de cooperação que existia entre os estratos camponeses deixava de agir como
força de união da heterogênea camada camponesa.
A segunda causa refere-se ao novo caráter da produção camponesa que passava também a
visar o mercado. Vlastos (1986) demonstra que os camponeses de regiões com mais ligação
com os grandes centros ou que eram propícias à produção de produtos voltados ao mercado,
não queriam mais pagar as taxações em arroz pelo uso da terra, solicitando a comutação do
pagamento em dinheiro, pois dada essa produção voltada para o mercado, era difícil até
mesmo produzir o próprio arroz para alimentação (VLASTOS, p. 80). Como mostrado na
Tabela 2 a seguir, na região de Shindatsu 64, grande produtora de seda, as revoltas que tinham
como causa o pagamento das taxas em produto foram predominante a partir de 1800.
Tabela 2: Principais causas dos protestos camponeses em Shindatsu, de 1700 à 1867
Causa 1700-1799 1800-1867
Aumento das taxações e pesquisas cadastrais 5 (28%) -
Pagamento das taxas em produtos 1(6%) 10 (36%)
Ajuda e isenções 7 (38%) 7 (25%)
64
Apenas 30% das terras da região eram próprias para o cultivo do arroz e, muitas vezes, essa produção não era
suficiente nem ao menos para a sobrevivência dos seus membros, devendo ocorrer a compra do produto através
do mercado (VLASTOS, 1986, p. 81)
80
vendiam sua produção pouco a pouco, nos mercados locais ou para alguns mercadores
itinerantes, não tendo um montante significativo de recursos em mãos ao longo do ano,
utilizando a renda para sobreviver juntamente com a família. Os camponeses ricos, mesmo
tendo que pagar mais impostos, não viam isso como um problema, já que a concorrência
passaria a diminuir conforme os pequenos produtores fossem falindo (VLASTOS, 1986, p.
121).
Pedindo ajuda do chefe da aldeia para levar seu pedido de diminuição das taxas para o
governo, os pequenos camponeses não obtiveram sucesso, dado que o chefe da aldeia também
era um grande produtor de seda. E, não tendo recursos suficientes para levaram as demandas
para o governo central, a solução encontrada fora a revolta. Rapidamente os informativos
sobre o levante circularam entre as aldeias e, apesar de avisos e tentativas de se chegar a um
acordo, as dificuldades climáticas da colheita de arroz na região deixaram os camponeses
famintos e dezenas de milhares de camponeses se mobilizaram por uma semana de junho de
1866, realizando ataques contra as propriedades dos camponeses ricos e chefes de aldeia da
região (VLASTOS, 1986, p. 126). No total foram 184 casas e negócios destruídos em 63
aldeias. E mesmo com fome, Vlastos (1986, p. 137-139), baseando-se nos documentos do
período, afirma que os camponeses destruíram imensas quantidades de comida, roupas, seda e
até mesmo dinheiro.
Esses relatos das áreas mais inseridas na economia comercial, bem como as revoltas
camponesas diante das desapropriações e abuso de poder dos chefes de aldeia, indicam a
repulsa dos pequenos camponeses por aqueles que se tornaram obcecados pelo interesse
individual, deixando de lado as noções de cooperação que outrora existira na aldeia. De fato,
os pequenos camponeses também se engajaram nas trocas comerciais, mas o seu objetivo era
o sustento de sua família e a melhoria na condição de vida que era bastante precária. Como
mostrado no capítulo anterior, as antigas relações de cooperação e dependência foram sendo
desestruturadas ao longo do período, acelerando-se na segunda metade do período Tokugawa.
Esta aceleração pode ser comprovada pela maior quantidade de revoltas que ocorreram na
segunda metade do período. Como evidenciado na Tabela 3 abaixo quase duas mil revoltas
ocorreram durante a segunda metade do período Tokugawa, enquanto, na primeira metade,
aproximadamente oitocentos e cinquenta revoltas foram registradas. E as formas das revoltas,
que são diferentes entre os dois períodos, também ajudam a comprovar essa quebra na relação
estável da aldeia, como será explicado a seguir.
82
subsistence farmers of the early Tokugawa period, however, for their survival
they depended on the exchange value of the commodities they produced rather
than seigneurial benevolence. In fact, there was little that even the most
benevolent daimyo could do to protect them, as he could not regulate the
economic behavior of thousands of individual participants in the market. The
interest rate moneylenders charged, how much rice village merchants sold and
at what prices, and the rents demanded by landlords were beyond the
regulatory powers of the feudal ruling class.
Assim, a entrada das relações comerciais na aldeia e as transformações que esta acarretou
na noção de uso da terra alterou as antigas relações que, de uma certa forma, criavam uma
dependência e uma necessidade de subordinação e obediência dos camponeses com menores
lotes de terra em relação às famílias tradicionais e aos chefes de aldeia. E dada essa nova
situação, não podendo mais contar com a “benevolência” dos daimyo e do governo central, os
camponeses passam a se organizar de forma mais ativa, buscando alternativas para serem
escutados nos momentos de crise.
Na primeira metade do período Tokugawa, quando as relações comerciais ainda não
haviam entrado de forma significativa na economia camponesa, era possível pedir a
intervenção do governo, nos momentos de crise, através do uso das petições. Havia um
interesse comum e uma movimentação coletiva de todos os estratos que lutavam contra os
pesados impostos e a corrupção dos fiscais do governo. Todavia, com o desenvolvimento dos
mercados, a interdependência que existia na aldeia foi abandonada. E, da mesma forma que o
pequeno camponês buscou sobreviver por meio de atividades complementares aos cultivos
tradicionais, o rico camponês e o chefe da aldeia também começaram a utilizar a terra e a sua
posição econômica e social em benefício próprio. A função (yaku) do chefe de aldeia, que era
a de organizá-la e de defender os interesses dos camponeses foi abandonada. E, aos pequenos
camponeses, sobrou a mobilização social e o uso da violência para serem ouvidos de alguma
maneira65.
65
Cabe destacar que havia diferenças regionais no país, sendo que inúmeras aldeias afastadas dos grandes
centros se mantiveram com pouquíssima transformação até a Era Meiji, ou mantendo um ritmo mais lento de
mudanças. Mas o que se objetiva mostrar, como já ressaltado anteriormente, é que havia uma tendência clara de
que “na segunda metade do período Tokugawa, a elevada produtividade, o cultivo comercial, as atividades
paralelas à agricultura e a manufatura aumentaram significativamente a participação do camponês no mercado”
(VLASTOS, 1986, p. 75). E isso, de fato, alterou a forma como o camponês manifestava suas insatisfações.
84
A Restauração Meiji, que se inicia a partir de 1866, com o taisei no kan (que significa a
transferência do poder estatal shogunal ao imperador), constituiu um processo político,
econômico e social que conduziu à modernização de todo o aparado do Estado e
gradualmente das forças produtivas, dissolvendo o chamado regime feudal japonês 66 .
Considera-se que este é o marco histórico do início da moderna sociedade japonesa. Neste
processo de modernização, o Estado voltou-se mais ativamente para a construção de uma
infraestrutura que preparou as bases para a moderna indústria, comércio e finanças que foram
indispensáveis para o rápido desenvolvimento do país (CRAWCOUR, 1988, p. 385).
Em um contexto de expansão dos conflitos imperialistas na Ásia, o Estado japonês teve
como imediata preocupação a defesa nacional contra o poder estrangeiro e a proteção militar
contra os dissidentes do novo regime (YOSHINO, 1968, p 20; HOBSBAWM, 1977, p. 234).
Sob o lema “enrich the country and strenghthening the armed forces”, a saída para a
superação do seu atraso tecnológico foi a absorção da tecnologia ocidental com rápida
adaptação às realidades japonesa.
Assim, desde o início da Era Meiji, a necessidade de instalação de um parque
industrial que atendesse aos interesses bélicos do país e substituísse a importação de produtos,
que levava deixava a balança comercial deficitária, foi vista como algo intrinsecamente
relacionado com o objetivo de se tornar uma nação dominante. Além disso, diante da sua
condição de país pobre em recursos naturais e do seu território pequeno e relevo bastante
acidentado, o Japão permanecia em posição subserviente em relação às nações ocidentais. Os
66
A crise política da década de 1860 foi o resultado de um processo de desarticulação das forças que
sustentavam o shogunato tanto em termos internos quanto externos. Não é possível afirmar qual força foi maior e
qual foi menos importante, mas é possível enfatizar que dada a crise interna, a pressão internacional que se dá a
partir da abertura dos portos na década de 1950 acelerou o processo de mudança do regime. Como já visto no
capítulo 2, o final do século XVIII e início do XIX já evidenciava alguns elementos da crise do Shogunato
Tokugawa. Notadamente nas décadas de 1830 e 1840, chamado de período Tempo, o Japão foi devastado por
problemas na agricultura e diante dessa crise, o governo não conseguiu mediar de forma eficiente a situação,
abrindo brecha para as diversas revoltas camponesas que abalaram o período. Muitos historiadores consideram
esse período, bem como as reformas que foram realizadas (Reformas Tempo) como sendo a evidenciação da
crise do Shogunato, pois houve uma tomada de consciência por parte do governo de que era preciso tomar
algumas medidas para sustentar a situação. Ou seja, como já mostrado, essa desarticulação do governo
Tokugawa fora um processo longo que se acelerou em meados do século XIX 66 (BEASLEY, 1989). Pelo lado
externo, a tomada de consciência da inferioridade do Japão em relação aos países imperialistas ocidentais
também já havia ocorrido há algumas décadas. A derrota chinesa na Guerra do Ópio (1838-1842) deixou claro
que a supremacia chinesa poderia ser facilmente abalada pelo poderio bélico ocidental. E nesse contexto, cabe
destacar que a preparação da repulsa nacional pelo estrangeiro imperialista já vinha sendo estruturada através do
ensino nacional (kokugaku) (JANSEN, 1989).
85
homens de Estado japoneses tinham consciência de que o Japão, ainda exportando seda e chá,
só poderia sobreviver no mercado mundial dominado pelas potências ocidentais caso se
tornasse um exportador de produtos manufaturados (HOBSBAWM, 1977). E o imperialismo
não tardaria a mostrar-se como fundamental à continuidade da expansão, expressando-se em
um primeiro lugar como busca de terras agricultáveis e posteriormente como fonte de
matérias primas e manufaturados.
Os obstáculos à industrialização eram evidentes, dado que se tratava de um país que
tinha se deparado com o expressivo avanço tecnológico ocidental após anos de isolamento
(HALL, 1970). Além disso, a Revolução Industrial já adentrara em sua segunda etapa,
demandando ainda mais tecnologia e recursos com produções em elevadíssimas escalas. E
nesse contexto específico, a participação do Estado foi decisiva na centralização dos capitais e
para a implantação da infraestrutura moderna foi crucial (ALONSO, 1985: 247-251).
Os gastos do governo advinham da modernização, mas também da manutenção de
uma estrutura senhorial do período Tokugawa, dado o pagamento de pensões aos daimyo e
Samurais que abriram mão de suas terras e seu status social 67. Segundo Vlastos (1989), no
início de 1870, esses estipêndios e as dívidas dos senhores que foram assumidas pelo novo
governo consumia a maior parte dos recursos do governo. Esse acordo entre o novo governo e
a antiga elite foi uma das formas que o governo encontrou para evitar grandes conflitos
armados entre o novo governo e os daimyo e inserir a antiga classe dominante, da qual essa
nova elite política também fazia parte, dentro do sistema burocrático de Meiji, permitindo que
conseguissem se sustentar e viver sem grandes adversidades.
Para sustentar toda essa nova estrutura de governo e seguir com os planos de
modernização, a única forma viável de financiamento fora o reforço das taxações no campo.
Não era considerado uma opção ao governo imperial se endividar com recursos externos, o
que poderia colocar em cheque a sua soberania, aumentando ainda mais a sua vulnerabilidade.
E além do financiamento, o campo também foi responsável pela geração de mão de obra
67
Diferentemente do caso das Revoluções Ocidentais onde os direitos feudais foram abolidos, no Japão o Estado
realizou a compra das “propriedades” (han) dos senhores (daimyo) e criou novas unidades administrativas
denominadas ken, unificando assim, o território nacional sob o comando de um Estado moderno (TAKAHASHI,
1985, p. 92). Ou seja, os daimyo não saíram prejudicados no processo.
Como explica Takahashi (1953, P. 92), em troca das suas propriedades, eram pagas prestações em arroz (karoku).
Além disso, entre 1872 e 1873, o novo governo cancelou o papel moeda irregular que foi colocado em circulação
por estes mesmos daimyo ao final do período Tokugawa e cancelou seus imensos empréstimos. Aos mercadores
usurários foram fornecidos títulos de empréstimos reembolsáveis pelo governo. Em 1875, as prestações que
eram pagas em arroz passaram a serem pagas em dinheiro (kinroku), graças à Reforma do imposto territorial,
sendo que no ano seguinte, foram reconvertidas em rendas pagas pelo Estado e que poderiam ser livremente
negociáveis. Para Takahashi, assim foi o processo de desaparecimento do regime político senhorial existente no
Shogunato Tokugawa.
86
assalariada para o mercado de trabalho, muitas delas com amplo conhecimento técnico por
conta das indústrias rurais que se desenvolveram pelo país no período Tokugawa. Assim,
neste capítulo serão tratadas as transformações no campo que ocorreram a partir da
Restauração, para que a fonte de recursos do governo fosse garantida. No entanto, essas
mudanças aceleradas não seriam sentidas sem distúrbios no campo. E dessa forma, será
tratado também as revoltas camponesas que marcaram o período. O objetivo desse capítulo
não é o detalhamento do processo político que culminou na restauração, dado que há uma
vasta literatura sobre o tema. A proposta é detalhar o que de fato ocorreu no campo para
sustentar os projetos de rápida modernização japonesa.
68
A reforma estava praticamente concluída entre 1876 e 1877, no que se refere às terras para a produção agrícola,
como arrozais e campos de cultivo. Foi feita a distribuição das notas de propriedade, bem como a medição das
87
terras e suas corretas demarcações sendo que entre 1881 e 1882 completou-se a reforma no que tange a estradas
e bosques. Foi feita também uma diferenciação das terras que era propriedade privada das terras do Estado.
88
interferir nas transações de terras que ocorriam dentro de sua jurisdição. O pagamento dos
impostos era uma responsabilidade individual, devendo o seu proprietário se desfazer da terra
quando não tivesse mais a possibilidade de realizar os devidos pagamentos.
O ponto mais importante da reforma, para os seus formuladores, era garantir uma
receita estável para o governo, ou seja, que esta não flutuasse de acordo com a produção,
como era no período Tokugawa, estruturando um sistema de taxação unificado que fosse de
fácil arrecadação e de difícil evasão. Como já explicado na seção anterior, a taxação no
período Tokugawa era baseada no kokudaka de cada lote que formavam uma aldeia, devendo
ser pago em arroz, de acordo com o nengu definido. Enquanto isso, na Reforma, um
procedimento uniforme de avaliação das taxações baseado nos valores de mercado das terras
foi elaborado, e uma taxa fixa de 3% sobre o valor da terra deveria ser paga em dinheiro,
diretamente ao Estado por cada proprietário de terra, não mais em espécie e nem baseando-se
na produtividade do lote (kokudaka) (VLASTOS, 1989, p. 374). Segundo Takahashi (1953, p.
97), com a cobrança dos 3%, os novos impostos territoriais representavam, economicamente
falando, um equivalente dos antigos censos senhoriais. Ou seja, essa Reforma Agrária apesar
de propor mudanças que reestruturavam de forma fundamental o antigo sistema de
propriedade e de pagamento de impostos, conseguiu habilmente manter os mesmos níveis da
taxação do período Tokugawa.
Determinava-se também que a taxa arrecadada não seria alterada de acordo com o
sucesso ou o insucesso de uma colheita (VLASTOS, 1989, p. 374; NORMAN, 1940 p. 142).
Ou seja, ao mesmo tempo que se tinha a libertação do pequeno proprietários camponês das
amarras do feudalismo, com o novo governo, perdia-se um certo “paternalismo” do senhor
que tinha a preocupação de checar se o camponês tinha o mínimo para sobreviver 69. Além
disso, os camponeses pobres foram prejudicados também por conta da delimitação das terras
que eram propriedade privada e das terras que eram estatais. Muitas áreas comunais, estradas
e bosques que eram utilizados coletivamente pelos camponeses para conseguirem lenha,
69
Nas palavras de Norman (19.., p. 143), “that they neither died or lived.” Mas como destaca o autor, Kanda
Kohei, um dos principais arquitetos da reestruturação da taxação sobre a terra, criticou em 1871 aqueles que se
opunham à liberação da venda e divisão das terras ao argumentarem que isso prejudicaria o pequeno camponês
aumentando ainda mais a distância entre o rico e o pobre. Kohei respondeu a críticas com o argumento de que os
sábios e diligentes se tornam ricos e que os tolos e desocupados empobrecem. Alegava-se que ao proibir a
alienação da terra, tentando-se não criar ampla diferenciação do rico e do pobre, isso prejudicaria os sábios e
diligentes, encorajando os ociosos e ineficazes. Para Kohei, o paternalismo feudal e a noção de responsabilidade
comunal tinha que ser suprimida pelo direito individual da propriedade da terra.
Segundo Vlastos (1989, p. 379), na Era Meiji, reduções nas taxações apenas eram permitidas quando as perdas
na colheita representavam mais de 50% do que havia sido cultivado.
89
fertilizantes, material para construção das casas, etc. foram abolidas e passaram a ser de
propriedade do Estado70 (NORMAN, 1940).
Se produziu durante a Restauração, uma espécie de emancipação do campesinato,
como ocorreram em outras sociedades modernas. Mas essa emancipação camponesa não teve
o mesmo caráter do que ocorreu na Revolução Francesa. Na realidade, o que se observou foi
uma emancipação da classe detentora de terra, com maior benefício para aqueles que
detinham maior número de lotes agricultáveis. A diferenciação dentro do campesinato já
vinha avançando desde a segunda metade do período Tokugawa.
O que ocorreu de fato é que, ao mesmo tempo em que o governo não poderia deixar de
taxar o campo, estabeleceu-se uma aliança entre o governo e os grandes proprietários de terra
que não poderia ser abalada por pesados impostos. Assim, a elaboração da Reforma, envolvia
a necessidade de se manter a taxação sobre a terra sem gerar problemas para o novo governo.
Como explica Vlastos (1989, p. 373),
Apesar dos líderes não verem nenhuma alternativa à manutenção das
elevadas taxas na agricultura, eles não poderiam arcar com a perda da
aliança dos agricultores com o Estado. Havia pouca razão para temer uma
revolução rural. Mas até uma resistência passiva na forma de suspensão das
taxas poderiam restringir o tesouro e pequenos e não violentos protestos
sempre tinham a possibilidade de se intensificar. (...) O dilema enfrentado
pelo governo Meiji era como assegurar a cooperação dos agricultores com o
novo sistema de taxação sem reduzir substancialmente os recursos da
taxação sobre a terra. Parte da solução envolveu a eliminação das restrições
feudais na propriedade da terra e na legalização das relações capitalistas de
produção, mudanças bem recebidas e que beneficiaram particularmente os
grandes proprietários.
Como introduzido anteriormente, os responsáveis pelos pagamentos dos impostos
eram os proprietários que tinham suas terras devidamente registradas como suas pelo novo
levantamento cadastral do governo, nada sendo feito para regular a relação entre o
proprietário de terra e seu arrendatário. E como ressalta Vlastos (1989, p. 375), “os
proprietários eram responsáveis pelo pagamento da taxa anual, sendo que eram livres para
taxar qualquer aluguel (de arrendamento) que o mercado pudesse suportar”. Ou seja, nenhuma
cláusula e nenhuma proteção foi direcionada aos arrendatários, cujo número de já havia se
70
Takahashi (1965, P. 128-129) indica que os confiscos de terras feitos pelo império ocuparam mais da metade
das terras do país. O autor mostra que eu 1881, as terras imperiais e estatais representavam 5.276.702 cho
(1cho=aproximadamente 1ha) enquanto as terras particulares constituíam 11.388.479 cho. Já em 1890, as terras
imperiais e estatais representava, 21.323.261 cho enquanto as terras privadas representavam 12.138.383.
90
71
Ellen Meiksins WOOD, As origens agrárias do capitalismo. Trad. Lígia Osório Silva. Revista. “Crítica
Marxista”, São Paulo, n. 10, 2000
93
Total de Mulheres na
Ano Mulheres
trabalhadores indústria (%)
1882 51,189 35,535 69%
1895-1899* 425,602 252,651 59%
1900-1904 472,955 291,237 62%
1905-1909 637,043 391,003 61%
1910-1914 828,942 592,320 71%
Fonte: Norman, p. 152 (*Média de 5 anos)
Além do envio das filhas para o trabalho nas fábricas, outra peculiaridade no Japão era
o envio temporário dos filhos e filhas mais novos para as cidades. Como explica Norman
(1940), ao buscarem empregos nas cidades e não terem sucesso, esses filhos tinham para onde
voltar, não se tornando mendigos ou fontes de distúrbios nas cidades. Além disso, por conta
de casamento ou para ajudar a família no período da colheita, os filhos buscavam trabalhos
temporários nas cidades, voltando para o campo quando fosse necessário. Para o autor, essa
possibilidade de retorno solucionou o problema do desemprego, dado que o governo e os
industriais não tinham que fazer basicamente nada em relação a esse problema social,
enquanto o grande proprietário tinha a possibilidade de manter um grande número de
camponeses no campo à elevados alugueis.
96
A situação nas cidades também não era favorável ao camponês, dadas as mazelas da
industrialização rápida praticada pelo governo, que demandava uma mão de obra barata e
abundante. Apesar do seu rápido desenvolvimento, como explica Norman (p, 159) não era
possível absorver todos na indústria. Assim, enquanto a situação do arrendatário e do pequeno
camponês deteriorava, com envio de membros da família para as cidades em busca de
complementação da renda, a revisão das taxações sobre a terra beneficiaram os grandes
proprietários. Segundo Vlastos (1989, p. 379), a necessidade de se pagar os impostos em
dinheiro e não mais em espécie possibilitou o contato muito mais amplo do proprietário de
terra com o mercado. Além disso, a taxa constante cobrada pelo governo possibilitou ao
grande proprietário gerar mais rendimentos pelo maior investimento e por mais inovação
tecnológica. Por fim, o autor também destaca que com a propriedade da terra garantida, não
havia mais a necessidade de se manter os arrendatários que perderam suas terras por dívidas,
através dos antigos contratos de arrendamento permanente, como ocorria no período
Tokugawa. Os proprietários podiam agora vender a terra livremente, bem como renegociar a
taxa que deveria ser paga pelos arrendatários, podendo inclusive trocá-los, sem nenhuma
regulação que protegesse os camponeses.
Além disso, como explica Takahashi (1953) e Nakamura (1966), a posição econômica
do grande proprietário de terra foi reafirmada com a redução dos impostos territoriais em
1877 de 3% para 2,5%. Enquanto foi permitido aos proprietários de terra reduzirem o
montante pago ao governo, não houve nenhuma regulação sobre os arrendatários que
continuaram pagando o mesmo montante aos proprietários de terra.
Na opinião de Vlastos (1989, p. 378), a reforma na taxação sobre a terra representou
para o governo um sucesso em termos econômico e político.
Dada a magnitude das mudanças e dos interesses envolvidos, o conflito era
inevitável. Era natural que os proprietários buscassem avaliações menores
[do valor de seus terrenos] embora o governo não pudesse arcar com
substancial redução das receitas. Dado esses fatos, o número de protestos foi
pequeno: noventa e nove incidentes entre 1874 e 1881, dos quais 37 foram
conflitos entre proprietários de terra e arrendatários, não envolvendo
diretamente o Estado. Maioria das disputas relativas às avaliações eram
eventualmente resolvidas através de negociações e compromissos, sem
recorrer à prisões e à força armada.
Crawcour (1989) também conclui que apesar do objetivo da reforma fosse assegurar
esses recursos indispensáveis ao governo japonês, seus efeitos foram muito além disso. Dada
97
72
O esboço de 1890 era baseado no modelo do individualismo francês e foi fortemente criticado por intelectuais
conservadores e pelos próprios políticos (SAITO; SATO, 2011 p. 12-13)
99
de família tradicionais e conscientes ainda seguiam esta ideia” (BEKER, 1921, p. 673). Ou
seja, mesmo com as mudanças em termos legais da noção de propriedade, o sistema ie se
manteve como forma de organização familiar e de propriedade, mas neste último caso, de
maneira informal, perdendo a terra um pouco do seu caráter de parte constituinte do ie. E
tanto em Tokugawa como em Meiji, a percepção e a expectativa das pessoas em relação à
família permaneceu inalterada. Assim, a noção de solidariedade de grupo e de obediência que
existia dada a estrutura do ie e das aldeias, ofereceu uma forma de controle tanto de
comportamento como de convencimento para a busca de novos objetivos fundamentados pelo
Estado Imperial.
A educação também fora moldada utilizando-se desse sistema de solidariedade e
obediência dentro da família. O Documento Oficial sobre a Educação no Japão de 1890
evidencia este caráter mantido na sociedade moderna em benefício dos objetivos imperiais e
de modernização do país.
Nossos Antepassados Imperiais fundaram Nosso Império sobre uma base
ampla e duradoura e implantaram a virtude com firmeza e profundidade;
Nossos súditos, sempre unidos em lealdade e respeito filia, ilustraram,
gerações após gerações, a beleza que daí deriva. É a gloria do caráter
fundamental de Nosso Império, de onde também reside a fonte de nossa
Educação. Sejais súditos Nossos, filiais com vossos pais, afetuosos com
vossos irmãos e irmãs; como maridos e esposas, conservai a harmonia e
como amigos, sejais verdadeiros; conduzi-vos com modéstia e moderação;
estendei a vossa benevolência à todos; prossegui a vossa aprendizagem e o
cultivo das artes e, a partir destes, desenvolvei as faculdades intelectuais e
aperfeiçoai as capacidades morai; sobretudo, promovei o bem público e
favorecei o interesse comum; Respeitai sempre a Constituição e observai as
leis; se alguma emergência se apresentar, oferecei-vos valentemente e
conservai e mantende assim a prosperidade do Nosso Trono Imperial,
coetâneo dos céus e da terra. De tal sorte que, não só sereis Nossos bons e
fiéis súditos, como também rendereis homenagens às melhores tradições de
seus antecessores. O caminho que aqui se indica é no fundo os ensinamentos
que nos legaram Nossos Antepassados Imperiais para que fossem observadas
tanto por Seus Descendentes como por seus súditos, infalíveis para todas as
idades e verdadeiros em qualquer lugar. Nosso Desejo é levar este legado no
coração com toda a reverência, em comum convosco, súditos Nossos, que
juntos poderemos alcançar a mesma virtude (SMITH, 1986, p. 20-21).
100
73
No entanto, o número de revoltas foi bem menor pois, como explica Takahashi (1976), existiu em um primeiro
momento, uma esperança de que o retorno do imperador traria mudanças drásticas que favoreceriam a toda
camada camponesa.
101
de 50% nos territórios pertencentes aos shogun, com palavras como “aliviar o sofrimento do
povo” ao eliminar as práticas do período Tokugawa (VLASTOS,1989). Afirmava-se também
que todas as terras do país seriam divididas entre os camponeses (NORMAN, 1940, p. 71).
Diante dessa expectativa de que o novo governo levaria a cabo drásticas mudanças, as
revoltas camponesas que vinham acontecendo em grande quantidade nas últimas décadas do
período Tokugawa deram lugar para um relativa paz (TAKAHASHI, 1976, p. 147)
No entanto, como explica Vlastos (1989), essa promessa de redução das taxações foi
apenas uma estratégia para fomentar levantes nas províncias do Shogun que ainda não tinham
aceitado a volta do imperador, para que essas revoltas enfraquecessem e evitassem que fosse
concentrados esforços contra o novo governo. Nas palavras do autor,
Depois da família Tokugawa e da maioria de seus vassalos Daimyo se
renderem na primavera de 1868 sem lutar uma única batalha, nada mais foi
dito sobre esse tema e com a vitória garantida, a necessidade mais urgente do
novo governo passou a ser o pagamento de suas contas (VLASTOS, 1989, p.
369)
Como já explicado anteriormente, manter o a base das finanças como sendo a taxação
sobre o camponês foi, a princípio, a única alternativa viável. E perder o apoio dos grandes
proprietários e dos camponeses enriquecidos não era uma opção aceitável, pois qualquer tipo
de revolta, por menor que fosse, poderia se generalizar e causar grandes danos à ordem
estabelecida. Por isso, o governo fez algumas concessões aos grandes proprietários, como
explicado no item 3.1.
No entanto, quando a Reforma do Imposto Territorial definiu uma taxação
basicamente idêntica ao que era cobrado pelo Shogun, essa situação “fez renascer uma
solidariedade entre todo o campesinato” (TAKAHASHI, 1976, p. 147). Sob liderança do
campesinato rico, o objetivo das revoltas era a redução da taxação sobre o solo. No entanto,
Vlastos (1989, p. 381) tem um olhar mais crítico que de Takahashi (1976) indicando que na
realidade, aqueles que mais se prejudicaram com a elevada taxação, ou seja, os pequenos
proprietários camponeses que foram à falência e os arrendatários sem direitos sobre a terra,
tinham muito pouco poder e normalmente não eram mobilizados por serem a classe “mais
volátil e potencialmente mais militantes” (VLASTOS, 1989, p. 381). Ou seja, mais do que
uma reorganização de todas as camadas camponesas, a clivagem que existia entre os ricos e
pobres foi de fato mantida e reforçada.
Na realidade, os grandes proprietários e camponeses ricos participaram do processo de
implementação da revisão das taxações sobre a terra juntamente com o governo em um
102
trabalho exaustivo de coleta de dados e de identificação de cada parcela de terra que deveria
ser registrada e, ao receberem como resultado a pesada taxação de 3% sobre o valor da terra
se sentiram injustiçados e se organizaram para protestar (VLASTOS, 1989). E o relativo
baixo número de revoltas nesse período se deu basicamente por conta da forma como os
líderes estabeleceram as negociações que eram feitas através de petições e processos legais,
ou seja, eram demonstrações de descontentamento realizadas dentro da lei. Como explica
Vlastos (1989),
Se o número de protestos e levantes nas aldeias é um indicador do grau de
agitação social, o Japão rural era pacífico no contexto da concretização da
Restauração Meiji. De acordo com os dados de Aoki Koji, existiram 343
incidentes entre 1868 e 1872. Os protestos de camponeses, que haviam
aumentando constantemente ao fiinal de Tokugawa atingiu um pico histórico
em 1869. A partir de 1870, no entanto, o número de incidentes declinou
rapidamente e em 1872 apenas 30 incidentes foram registados. (VLASTOS
1989, p. 368)
Inicialmente os protestos eram contra a forma como a reavaliação das terras eram
feitas pela comissão do governo. Na definição do valor da terra, para que se fosse cobrado 3%
de imposto sobre esse valor, muitos camponeses se sentiam injustiçados, pois muitas vezes
era atribuída às terras, um valor irreal e que penalizaria o camponês. Em um dos maiores
protestos, registrado em 1876 na província de Wakayama, os prefeitos enviaram petições
dentro da lei, pedindo por reavaliação do solo, pois os preços atribuídos eram excessivamente
elevados. Após uma redução de 5% do valor, quase metade do que havia sido pedido, muitos
prefeitos voltaram a pedir reduções. A ação do governo foi a de realizar punições e até mesmo
a prisão de alguns líderes do movimento. E mesmo diante de protestos e demonstrações contra
essa atitude, o governo agiu com autoridade, prendendo mais de 1000 pessoas e condenando
688 por encorajar distúrbios públicos (VLASTOS, 1989, p. 375). Vlastos (1989) explica que
em outras revoltas o governo também agiu de forma dura, com punições e prisões, sem dar
espaço para amplas mobilizações sociais. O pico de levantes camponeses foi em 1876, dado
que em 1875 foi estabelecida uma comissão de avaliação dos lotes que, seguindo o imperativo
de garantir os recursos necessários para financiar a modernização, foi bem menos generosa
nas avaliações, com inspeções in-loco para evitar qualquer tipo de queixa por parte dos
camponeses.
Após a redução do imposto de 3% para 2,5%, em 1877, que beneficiou principalmente
a camada mais rica, seus membros buscaram estruturar um pacto com o governo, diminuindo
103
sua participação aberta nos levantes populares. No final desse mesmo ano, mais uma
concessão foi feita, permitindo a redução do pagamento dos impostos em caso de perda de
mais de mais de 50% da plantação, por desastres naturais e adversidades climáticas. Além
disso, para distritos localizados em regiões distantes de mercados, foi permitido o pagamento
dos impostos em espécie (VLASTOS, 1989, p. 376) Por isso, as revoltas relativa à Reforma
do Imposto Territorial não foram quantitativamente elevadas e perdeu força ao longo do
tempo. Segundo Vlastos (1989, p. 378), entre 1874 e 1881, as revoltas estavam basicamente
relacionadas à taxação sobre o campo e o número registrado foi de 99 incidentes. Desse total,
37 conflitos foram entre proprietários e arrendatários, não envolvendo diretamente o Estado.
De uma certa forma, a reavaliação do solo foi bom para os ricos camponeses que não
eram mais taxados de forma arbitraria, como era feito pelo governo Tokugawa. Existia uma
norma no cálculo dos valores e em muitos casos, os próprios proprietários participavam do
processo de avaliação do solo. Além disso, a taxação fixa beneficiou os camponeses com
mais recursos, pois através de investimentos e inovações tecnológicas, foi possível a obtenção
de mais lucros com a taxação fixa. E com a redução da taxação e meio por cento, a camada
camponesa mais rica definitivamente abandonou os protestos.
Por outro lado, a classe de pequenos camponeses e arrendatários não tiveram os
mesmos benefícios. Essa classe marginalizada que não se ajustava aos interesses do governo
teve suas necessidades sociais sacrificadas em benefício da rápida acumulação de capital. E
no nível da classe camponesa, a privatização das propriedades e a eliminação da aldeia como
unidade fiscal fez com que a falência de alguns camponeses que não conseguiam pagar os
impostos monetários deixasse de ser um problema coletivo e passasse a ser individual, ou
seja, de cada família camponesa. Sem a mínima proteção comunitária que a aldeia do Período
Tokugawa fornecia, o pequeno camponês tornou-se livre das amarras feudais, mas se
empobreceu ainda mais. E como já evidenciado, aumentou o número de arrendatários e
daqueles que buscavam alternativas para sobreviver nas atividades fora da agricultura 74
(VLASTOS, 1989). O pagamento em dinheiro das taxações também dificultava a vida do
camponês que precisava ir ao mercado para transformar aproximadamente 30% da sua
produção em moeda, independentemente das condições de mercado e do nível de preço do
arroz. A classe arrendatária também mantendo-se na terra e pagando imposto em espécie para
74
A partir dos anos 1880 e ao longo das primeiras décadas do século XX, os embates seriam notadamente entre
os kosaku e os jinushi, ou seja, entre o camponês arrendatário e o grande proprietário em um contexto de maior
agitação social do país com a criação dos sindicados proletários que se expandiam nos centros industriais
(TAKAHASHI, 1976).
104
o dono do lote não tinha nenhuma proteção do governo e nenhum tipo de regulação sobre a
exploração feita pelo proprietário.
De 1877 a 1881, 29 dos 49 incidentes registrados foram conflitos entre arrendatários e
proprietários (VLASTOS, 1989, p. 380). E os motivos estavam ligados aos pesados alugueis,
que se mantiveram elevados mesmo após a diminuição em meio por cento no imposto sobre a
terra. Mas nenhuma se mostrou efetiva, ou atingiu grandes proporções.
Através da análise feita acima, é possível concluir que apesar de ter colocado o fim no
sistema senhorial e shogunal dos Tokugawa, o governo levou a cabo uma a reforma agraria
(chiso-kaisei) de 1875-1882, que alterou o estatuto jurídico dos camponeses, mas não se
tomou nenhuma medida para que os mesmos efetivamente se tornassem livres. O novo
governo se limitou a transformar os impostos pagos em espécie aos senhores em impostos
territoriais (chiso) pagáveis em dinheiro ao novo governo, com carga praticamente idêntica ao
cobrado sobre os camponeses do período Tokugawa.
Legitimando a estrutura da propriedade que vinha se formando desde o período
anterior, o governo aumentou ainda mais a desigualdade que existia no campo, levando
pequenos camponeses proprietários à falência e mantendo os camponeses pobres como
arrendatários de parcelas minúsculas de terras. Ao não abolir as relações no campo existentes
no final do período Tokugawa, o governo Meiji introduziu-as e reforçou-as como sendo
elementos constitutivos do novo capitalismo japonês, ampliando ainda mais a diferenciação
entre a classe camponesa, em busca de uma rápida acumulação de capital para fazer frente às
necessidades da industrialização e modernização para enfrentar rapidamente o imperialismo
ocidental.
A situação do campo apenas seria transformada com a reforma agrária do pós Segunda
Guerra Mundial, feita pela força de ocupação denominada Comando Supremo das Forças
Aliadas (SCAP) e que tinha como objetivo eliminar as forças “feudais” que se mantiveram no
campo japonês. Para isso, a propriedade dos jinushi foram eliminadas, pulverizando as
grandes propriedades concentradas em pequenas propriedades cultivadas por camponeses
(TAKAHASHI, 1965).
75
Os primeiros territórios fora do país adquiridos pelo Japão foram as ilhas Bonin, Ryukyu e Kurile, além de
fortalecer a sua presença e garantir a posse de Hokkaido, com amplo programa de colonização. No entanto, mais
do que uma expansão imperialista, essas conquistas territoriais estavam mais ligadas à uma reafirmação da
autoridade japonesa em uma região que tradicionalmente fazia parte da esfera de influência japonesa (PEATTIE,
1988, p. 224).
106
76
Nesta nova fase do capitalismo, o Estado assume o papel de garantir a acumulação dos grandes capitais tanto
dentro do país, quanto fora, através das conquistas territoriais, dada a necessidade de novos territórios para
expandir e manter o processo de acumulação.
107
criada pelo governo (PEATTI, 1988, p. 240). Uma das justificativas era o uso da noção de
“família imperial” que ligava todos os japoneses à família imperial, pela sua origem única,
como sendo todos filhos de Amaterasu 77 . Esse princípio poderia ser expandido para as
populações que passariam a fazer parte do império japonês, mas obviamente a relação
respeitosa entre membros da mesma família nunca veio a se concretizar.
Para tratar da relação econômica que foi estabelecida entre o Japão e suas duas
principais colônias, Coréia e Taiwan, é preciso compreender que o país foi capaz de investir
em uma ampla infraestrutura nas colônias que expandiu significativamente as suas produções
agrícolas e industriais. As autoridades coloniais do período exaltavam com grande satisfação
os seus feitos, chamando a atenção das nações ocidentais. No entanto, o imperialismo, mesmo
japonês, não deixaria de ser autoritário e fortemente explorador, deixando marcas na
sociedade local.
Os jornalistas japoneses nessas décadas (1900-1920), falavam com orgulho
das conquistas atingidas como um novo poder colonial e os japoneses nas
colônias construíram um estilo de vida e um ambiente estruturado sob o
privilégio, dinheiro e a autoridade, não sendo diferente dos Europeus nas
colônias tropicais. Por essa razão e por conta do sucesso de seus esforços,
dada a eficiência japonesa, os comentários ocidentais sobre o colonialismo
japonês este estágio era majoritariamente favorável. Visitantes britânicos e
americanos em Taiwan e Coréia, falavam do ‘incrível progresso’ de Taiwan
sob a administração japonesa e da ‘coragem, devoção e visão’ dos
administradores japoneses na Coréia após séculos de ‘decadência racial e
política’. Poucos observadores estrangeiros amenizaram esses elogios
notando que o colonialismo japonês era severamente autoritário e bastante
explorador, tanto que os taiwaneses tinham pouca afeição pelos governantes
coloniais e as atitudes dos coreanos para com os governantes era de ultraje e
desespero. Sem dúvida, essa visão benigna do exterior era em grande parte
moldada pelo fato de que, pelo menos por fora, o colonialismo japonês e seu
estágio eram bastante semelhantes ao das nações europeias (PEATTIE,
1988, p. 233).
De fato, o governo japonês realizou inúmeros investimentos nesses dois países,
desenvolvimento de infraestruturas básicas em diversas frentes, como transporte,
comunicação e educação, bem como de melhorias agrícolas. Segundo Peattie (1988), o
77
Amaterasu, a Deusa do sol ou da luz é considerada na mitologia japonesa como sendo a primeira ancestral da
dinastia imperial japonesa.
109
o tradicional sistema de propriedade da terra do país, sendo apenas uma forma de se ter uma
fiscalização melhor dos cultivos e dos impostos a serem coletados. Entretanto, é preciso
observar essas informações de forma crítica, pois o governo realizou políticas que
direcionaram os cultivos de acordo com os interesses do Japão, influenciando diretamente na
vida do agricultor. Passemos para o caso Coreano.
Explicando o caso da Coréia, Kimura (1995) utiliza dados que evidenciam como a
Coréia, de fato, não foi um importante mercado consumidor para os produtos manufaturados
japoneses, pois no início do século XX, o mercado nacional japonês já absorvia
aproximadamente 80% do total da produção, sendo que as exportações para a Coréia
representavam apenas de 1 à 3% do total da produção manufatureira do país, com destaque
para os tecidos em algodão 78 . Ou seja, a Coréia não tinha o papel de absorvedor dos
manufaturados japoneses.
Na realidade, o papel da Coréia estava relacionado à exportação de produtos primários
e notadamente do arroz, a base da alimentação japonesa, que representava a maior parte dos
envios ao Japão, em termos de valor (KIMURA, 1995). E o papel da Coréia como fornecedor
de alimento fora fundamental, pois como já fora ressaltado, na virada do século, o Japão
enfrentou graves problemas de insuficiência de produção do arroz nacional. Neste contexto o
governo tinha três alternativas para lidar com esse problema. Segundo Kimura (1995, p. 558)
estas opções seriam: “(a) aumentar a produtividade doméstica da agricultura, (b) importar
arroz estrangeiro (gaimai) do sudeste asiático e (c) importar arroz da colônia”. O autor explica
que a primeira opção seria a mais custosa, demandando investimentos significativos sem a
garantia de um retorno, enquanto a segunda opção geraria uma grande saída de recursos do
país e uma dependência da alimentação do país em outros países, o que aumentaria a
vulnerabilidade japonesa. Assim, os investimentos na Coréia para a produção do arroz
pareciam representar a alternativa mais vantajosa ao governo.
Assim, nas duas primeiras décadas do século XX, o governo japonês investiu e deu
apoio institucional ao cultivo de arroz na Coréia, expandindo terras agricultáveis com grandes
projetos de irrigação e introdução de novas técnicas para a expansão da produtividade do
cultivo do arroz. E assim, a Coréia se tornou principal fornecedor de arroz para o Japão neste
período (PEATTIE, 1988, p. 256).
78
Segundo os dados analisados por Kimura (1995), antes da Segunda Guerra Mundial, os tecidos de algodão era
o carro chefe das manufaturas japonesas e uma grande parte era exportada. No entanto, o principal destino das
exportações eram a China e a Índia, bem como o sudeste asiático, não incluindo a Coréia.
111
CONSIDERAÇÕES FINAIS
camada camponesa se uniu internamente para defender interesses comuns, mas também se
posicionou de lados opostos quando os interesses dos pequenos camponeses eram opostos aos
interesses dos camponeses e mercadores enriquecidos. Mas cabe destacar que as revoltas
ocorridas no Japão são marcadas por uma ausência de questionamento da ordem, ou seja, o
camponês, querendo se manter nesta condição e não aspirando uma posição acima, pediam
para que as taxações fossem amenizadas ou para que o processo de expropriação fosse
interrompido. Ao longo de séculos de luta, algumas concessões foram feitas, mas o pequeno
camponês viu suas condições de vida deterioradas em contrapartida ao enriquecimento de
alguns.
No período Meiji, o Estado se aliou aos proprietários de terra para garantir o
financiamento de modernização. Enquanto o Estado fazia concessões à essa camada mais
poderosa, os pequenos camponeses e arrendatários, que não se encaixavam nos planos de
modernização do governo, tiveram suas possibilidades de sobrevivência no campo limitadas,
com massiva exploração para o benefício da modernização. Outra expressão da questão da
terra no contexto da modernização foi o imperialismo japonês, que estruturando a produção
de arroz e açúcar na Coréia e em Taiwan, desarticulou a produção interna desses países em
benefício próprio. Mesmo em contexto de escassez de capitais, o Japão inicia sua expansão
colonial com o objetivo estratégico de se proteger das ameaças imperialistas ocidentais e
garantir o seu crescimento rumo à uma economia industrializada e moderna.
Assim, explorando internamente os pequenos camponeses e arrendatários que saindo
do campo vão ser duramente explorados nas grandes fábricas capitalistas como assalariados, o
Japão tambémse lança na expansão colonial para reorganizar a produção agrícola de outros
países visando o seu próprio benefício. E essa estrutura concentrada de terras e que manteve o
mesmo caráter “semi-shogunal” só serial alterada com aredistribuição de terras após a
Segunda Guerra Mundial.
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