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Revista de Morfologia Urbana (2017) 5(1), 15-26 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
16 ‘Uma Cidade Industrial’ de Tony Garnier: repensando a gênese do urbanismo progressista
tarde, a forma da cidade moderna, expressa de zoneamento que foi quase contemporâneo
na Carta de Atenas, manifesto do urbanismo ao dos alemães. Inteiramente baseado na
progressista. Diferentemente de outras clareza do desenho e na forma arquitetônica
concepções de cidade da época, em seu plano dos edifícios’. Garnier pretendia, com o
era permitido o crescimento não só da cidade zoneamento e outros elementos, estabelecer
como um todo, mas também de suas partes um contraponto ao processo de expansão do
específicas. tecido urbano das cidades no final do século
A Figura 2 apresenta desenhos realizados XIX e início do século XX (Choay 1998
por Garnier sobre a sua concepção de cidade. [1965]). Com relação a esse processo, ele não
A facilidade de reconhecimento das foi explícito em seu texto, como os utopistas
propostas urbanas através de formas puras foi socialistas foram, ao proclamarem o quanto o
expressada na Cidade Industrial e também capitalismo havia sido a causa determinante
em trabalhos dos teóricos do urbanismo das transformações urbanas e a consequente
progressista. degradação das condições de vida nas
Calabi (2015 [2012], p. 135) revela, que cidades.
‘o plano proposto por Tony Garnier para sua Diversos princípios sustentados por
cidade imaginária é outro exemplo de plano Garnier acabaram por influenciar a forma
20 ‘Uma Cidade Industrial’ de Tony Garnier: repensando a gênese do urbanismo progressista
salubridade da cidade’ (Richardson, 2013 orientada para o sul, bastante grande para que
[1876]), p. 7, tradução do autor). haja luz no cômodo todo e para deixar que os
No plano da Cidade Industrial, as áreas raios do sol entrem amplamente. Qualquer
destinadas à implantação da indústria e o habitação ou outra construção pode
centro antigo foram separadas das demais compreender um ou vários lotes, mas a
áreas, implicando uma rígida setorização e a superfície construída deverá ser sempre
tentativa de proporcionar melhores condições inferior à metade da superfície total, sendo
sanitárias, afastando o uso mais impactante que o restante do lote forma um jardim
do restante da cidade antiga, pois, para público utilizado pelos pedestres; queremos
Garnier, ela possuía um valor simbólico. dizer que cada construção deve deixar, na
Observa-se na forma proposta da Cidade parte não construída de seu lote, uma
Industrial ‘o conceito progressista de ordem, passagem livre que vai da rua à construção
em oposição à pretensa desordem do uso e situada atrás. Esta disposição permite que se
ocupação do solo da cidade do século XIX’ atravesse a cidade em qualquer sentido, sem
(Choay, 1965 [1998], p. 21). Garnier ser preciso passar pelas ruas; o solo da cidade
expressou essa premissa de ordem em seu em qualquer sentido visto em conjunto, é
discurso, quando anunciou parte da ideia de como um grande parque, sem nenhum muro
setorização: ‘A fábrica principal está divisório limitando terrenos’ (Garnier, 1989
localizada na planície, na confluência da [1917], p. 13, tradução do autor).
torrente e do rio. Uma estrada de ferro de A circulação, um dos principais elementos
tráfego intenso passa entre a fábrica e a da forma da Cidade Industrial proposta por
cidade, que está muito acima, num planalto. Garnier, era desenvolvida em espaços
Acima, espalham-se os estabelecimentos próprios, sendo a de pedestres separada do
sanitários; que estão, assim como a própria tráfego automotor e em meio ao verde,
cidade, ao abrigo dos ventos frios, expostos permitindo maior segurança e melhor
ao sul, em terraços do lado do rio. (...) O ambientação humana.
terreno onde serão construídos os bairros As circulações automotoras do modelo de
residenciais divide-se primeiro em ilhotas de Garnier e do próprio progressismo teriam
150 metros no sentido leste-oeste e de 30 menor impacto sobre os espaços habitados,
metros no sentido norte-sul; essas ilhotas ao considerarem a diminuição dos contatos
dividem-se em lotes de 15 por 15 metros, diretos e a previsão de cortinas verdes de
sempre com um lado lindeiro à rua’ (Garnier, separação; enquanto na cidade tradicional, a
1917 [1989], p. 12, tradução do autor). multiplicidade de lotes em contato direto com
É compreensível que este conceito se as vias de circulação dificultaria o isolamento
traduzisse para Garnier (1989 [1917]) não só do tráfego automotor, com seus índices
na especialização funcional dos espaços frequentemente elevados e agressivos de
urbanos, mas também em critérios de poluição sonora e atmosférica.
ocupação do solo que seriam precisos e A eficiência dessa circulação e da
racionais, no controle do adensamento ambientação seria proporcionada por ‘uma
demográfico e das formas de assentamento rede de ruas paralelas e perpendiculares (...)
das edificações no terreno, conforme os seus as ruas norte sul têm 20 metros de largura,
desenhos presentes no livro ‘Uma Cidade arborizadas dos dois lados (...)’ (Garnier,
Industrial’. O autor exaltou a necessidade do 1989 [1917], p. 13, tradução do autor).
controle sobre a produção arquitetônica, a A busca da separação entre pedestres e
ocupação das edificações e os grandes veículos tem raízes diversas e pode-se
espaços verdes que as envolveriam e as mencionar o plano de Idelfons Cerdá para a
isolariam do tráfego – premissas que expansão de Barcelona e o projeto de
passaram a ser adotadas pelo modelo Frederick Law Olmsted para o Central Park
progressista. Segundo Garnier: ‘Ao buscar as em Nova Iorque. Percebe-se que, se por um
disposições que satisfazem melhor as lado, o automóvel possibilitava a difusão de
necessidades materiais e morais do indivíduo, modelos de urbanização periféricos aos
fomos levados a criar regulamentos sobre grandes centros urbanos, por outro, alguns
essas disposições (...). Na habitação, os profissionais buscavam isolá-lo do contato
dormitórios devem ter pelo menos uma janela com os pedestres, possivelmente por
22 ‘Uma Cidade Industrial’ de Tony Garnier: repensando a gênese do urbanismo progressista
fisicamente o modelo tradicional. Ao reduzir Por fim, entende-se que a análise crítica
o número de vias, aumenta-se os grandes das premissas propostas por Garnier, que
espaços verdes por entre as edificações, ideia ainda são referências de projetos urbanos,
utilizada, tanto no modelo da Cidade podem ampliar a discussão de uma cidade
Industrial, como no conjunto Estados Unidos. onde todos tenham acesso mais justo às
Também os elementos de Garnier estão oportunidades que a vida urbana pode
presentes na arquitetura, como a oferecer.
padronização das construções, o uso de
materiais industrializados, a combinação
entre as elevadas densidades demográficas e Referências
as baixas taxas de ocupação do solo, não Benevolo, L. (1998 [1960]) História da
condicionados pela dimensão dos lotes o que arquitetura moderna (Editora Perspectiva, São
possibilita uma implantação livre no terreno Paulo).
em função da eliminação dos lotes. Calabi, D. (2015 [2012]) História do urbanismo
O modelo de Garnier influenciou todo um europeu: questões, instrumentos, casos
conjunto de arquitetos e urbanistas do século exemplares (Perspectiva, São Paulo).
XX, os quais, uns mais, outros menos, Choay, F. (1970) City planning in the 19th century
expressaram em suas propostas urbanísticas e (Brasiller, Nova Iorque).
arquitetônicas parte dos princípios da Cidade Choay, F. (1996) ‘Destinos da cidade européia:
séculos XIX e XX’, Revista de Urbanismo e
Industrial. Passados tantos anos da utilização
Arquitetura 4, 6-21.
desse modelo, critica-se os princípios de Choay, F. (1998 [1965]) O urbanismo: utopias e
organização espacial urbana, que ao final, realidades, uma antologia (Perspectiva, São
subjuga-se ao discurso de um especialista ou Paulo).
de um conjunto de especialistas, apartado das Costa, L. (1991) Plano Piloto de Brasília
vontades e dos anseios da população e (ArPDF, Brasília).
fechado à dinâmica natural dos fatos e Frampton, K. (2003 [1980]) História crítica da
significados urbanos. arquitetura moderna (Martins Fontes, São
Garnier, em seus desenhos e textos, Paulo).
advertiu sobre o avanço da produção do Freitag, B. (2006) Teorias da cidade (Papirus,
Campinas).
espaço capitalista no tecido tradicional das
Garnier, T. (1989 [1917]) Une cité industrielle:
cidades, um tipo de produção que não étude pour la construction des villes
respeitava a ambiência da cidade e a (Architectural Press, Nova Iorque).
qualidade de vida da população, a não ser Geddes, P. (2002 [1915]) Cidades em evolução
quando essas situações começavam a afetar (Papirus, Campinas).
as classes dominantes. As mudanças que Guadet, J. (1896) Elements et theorie de
ocorreram no mundo, nas esferas política, l’architecture (Ecole Nationale Supérieure des
cultural e econômica, a partir do lançamento Beaux Arts, Paris).
do seu livro, não eliminaram a atualidade de Howard, E. (2002 [1898]) Cidades-jardins de
muitos dos elementos que configuravam a amanhã (Editora Hucitec, São Paulo).
Koholsdorf, M. E., Koholsdorf, G. e Holanda, F.
forma urbana da Cidade Industrial. Esses
(2015) Brasília: permanência e metamorfoses.
elementos continuam sendo adotados, em Del Rio, V. e Siembieda, W. (eds.) Desenho
legitimando projetos e práticas urbanas urbano contemporâneo no Brasil (Rio de
atuais, que procuram melhorar a qualidade de Janeiro: LTC) 39-55.
vida nas cidades. La Bibliographie. Tony Garnier. Musée Urbain
Verifica-se resquícios das propostas de Tony Garnier, Lyon (FR)
Garnier nas práticas urbanas (http://www.museeurbaintonygarnier.com)
contemporâneas que promovem consultado em 10 de Outubro de 2016.
megaprojetos, grandes operações urbanas, Le Corbusier (2000 [1923]) Por uma arquitetura
obras de infraestrutura e no discurso (Editora Perspectiva, São Paulo).
Montaner, J. M. (1987) Tony Garnier: la
modernizador de políticos e especialistas,
anticipación de la ciudad industrial, Annals d’
que provocam quebras de laços afetivos arquitectura 4, 81-92.
com as cidades, processos de elitização do Mumford, L. (1998 [1961]) A cidade na história:
espaço e aumento dos processos de suas origens, transformações e perspectivas
segregação espacial. (Martins Fontes, São Paulo).
26 ‘Uma Cidade Industrial’ de Tony Garnier: repensando a gênese do urbanismo progressista
‘The Industrial City’ by Tony Garnier: rethinking the genesis of progressive urbanism, in the centenary of
its publication
Abstract. At the beginning of the twentieth century, the French architect Tony Garnier designed a plan
for a new city called ‘The Industrial City’. However, the proposal was considered too radical by his
peers. In 1917 Garnier used this plan as the basis of the book: Une cité industrielle, étude pour la
construccion des villes. The book received much criticism both by academics and professionals. Yet, some
years later, it was considered by many authors as one of the most significant planning publications of the
twentieth century, becoming a source of inspiration for the proposals of many progressive architects,
such as Le Corbusier, and having significant impact on the urban form of cities around the world. 100
years have passed since the publication of the book. Professionals working in the urban and architectural
fields should reflect on the breadth of the Industrial City proposal. This paper aims at analysing the
elements of urban form proposed by Garnier in his book, as well as the consequences of the use of these
elements and the importance they had in architecture and urbanism. Research is based on primary
sources, namely the book itself, and on secondary sources, including the critique of the book. The paper
concludes that, even after all the years since the publication of the book, many elements proposed by
Garnier in his definition of the urban form of the Industrial City are still informing contemporary urban
projects and practices at many different scales.