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Mumford aponta, perspicazmente, a combinação de artefato e ação humana que jaz sob esta
classificação: “...o usuário destro de um instrumento torna-se mais preciso e mais automático, em soma,
mais mecânico, na medida em que seus movimentos originariamente voluntários se convertem em
reflexos; por outra partem até na máquina mais completamente automática, deve intervir em algum
momento... a participação consciente de um agente humano” (1963:10).
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Alusão à conhecida tese de M. Weber sobre a vinculação entre o ascetismo calvinista e o espírito do
Capitalismo.
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Neologismo que o autor não explica.
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Como é sabido, foi esta uma etapa de acelerada degradação da vida da população
trabalhadora, sobre tudo na medida em que ela se amontoava nas cidades e distritos
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O sucesso desta nova invenção é tanto mais notável por quanto tão pouco da
prévia tecnologia da carruagem podia ser aplicado ao novo meio de transporte. A
estrada de ferro foi a primeira indústria a se beneficiar do uso da eletricidade, pois
o telégrafo tornou possível um sistema de sinalização à distância e de controle
remoto, e foi na estrada de ferro que o escoamento da produção bem como o
ajustamento e a intervinculação das diversas partes da mesma tomou seu lugar
uma geração antes que tabelas, programas e planejamentos similares fossem
implantados na indústria como um todo. A invenção dos dispositivos necessários
para assegurar regularidade e segurança (...) e a perfeição do sistema para
transportar mercadorias e transitar a diversas velocidades e sob diferentes
condições climáticas de um ponto a outro, foi uma das realizações técnicas e
administrativas soberbas do século dezenove (...). Dentro das limitações sociais do
período, a estrada de ferro foi ao mesmo tempo a mais característica e a mais
eficiente forma de técnica (1963:199).5
assinala que diversos inventos surgiram da observação científica dos organismos vivos
(v.g., o telefone inspirado pelo ouvido humano), e acrescenta que os aperfeiçoamentos
estéticos de aviões, trens e carros, por exemplo, inspirados em formas de órgãos
animais, conduziram a desempenhos mais eficientes (1963:253). Junto com esse
movimento, Mumford percebe uma tendência salutar na tecnologia deste período a
evitar ou diminuir os prejuízos ao meio ambiente e à saúde humana causados pela
utilização inconsciente ou negligente de forças e materiais. Acredita também haver uma
propensão a eliminar ou reduzir o papel das máquinas, exceto quando são
imprescindíveis. No entanto, reconhece que na maioria dos casos, novos conhecimentos,
inventos e recursos são utilizados com mentalidade paleotécnica: o transporte movido a
eletricidade e gasolina originou cidades congestionadas, “centros metropolitanos
defeituosos” que não deveriam mais existir. De maneira análoga, as estruturas de aço e
concreto, que permitem humanizar a arquitetura, são usadas para aumentar a saturação
edilícia e a diminuição da luz solar, e o estudo psicológico dos seres humanos é aplicado
a condicioná-los para o consumo (1963:265).
Como produto dessa evolução, vivemos numa civilização da máquina,
caracterizada pela automação crescente, a regularização do tempo, a velocidade, a
multiplicação de bens, a padronização de desempenhos e de produtos e o aumento da
interdependência coletiva. Mas os problemas desta civilização (“materialismo do
supérfluo”, tirania da rotina, destruição ambiental, etc.), assim como os fenômenos
compensatórios (exaltação do sexo, entusiasmo excessivo pelo esporte, saudosismo,
literatura e cinema de escape...) revelam que a vida mecanizada não pode ser
satisfatória.
Por todos os indícios, o mero volume da tecnologia, seu mero poder e ubiqüidade,
não constituem nenhuma prova do seu relativo valor humano ou do seu lugar na
economia de uma sociedade humana inteligente. O próprio fato de que se
encontrem resistências, reversões, arcaísmos, no momento das maiores realizações
técnicas – até entre aquelas classes que, desde o ponto de vista da riqueza e do
poder, mais se beneficiaram da vitória da máquina - nos faz duvidar tanto da
eficiência quanto da suficiência do inteiro esquema de vida que a máquina
produziu até aqui... (1963:317)
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Entre outros exemplos, M. menciona a criação de jóias artificiais, cuja beleza não depende da raridade
ou do prestígio do material utilizado, mas “é questão de cor, forma, linha, textura, ajuste, símbolo” (p.
354). Obviamente, inovações técnicas como o cinema trouxeram consigo novas experiências estéticas.
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mencionados. O principal obstáculo para que isso ocorra está representado, para
Mumford, pela associação da tecnologia com o Capitalismo e o “esquema burguês de
civilização”, orientado exclusivamente ao proveito comercial e o esbanjamento.
O “mito da máquina”
Retomando, trinta anos depois, a análise da evolução tecnológica da
humanidade, Mumford questiona em The Myth of The Machine (dois volumes: Technics
and Human Development, 1967, e The Pentagon of Power, 1970), a pressuposição
comum a diversos autores de que o homem seja essencialmente produtor e usuário de
ferramentas. O ser humano deve ser entendido, segundo Mumford, como homo sapiens
e não como homo faber.8 Tudo quanto ele realizou e realiza no âmbito da produção de
ferramentas e máquinas exprime suas diversas capacidades e anseios que transcendem
as necessidades puramente orgânicas. “O que é especificamente humano, argumenta
nosso autor, é a capacidade do homem para combinar uma ampla variedade de
propensões animais em uma entidade cultural emergente: uma personalidade humana”
(1967:6). O homem tem uma atividade cerebral que supera a necessária para sobreviver
em nível puramente animal e que canaliza na produção de formas simbólicas (cultura).
A fabricação e o uso de instrumentos não puderam ter estimulado o crescimento do
cérebro, afirma Mumford. Pelo contrário, é a posse (prévia) de um cérebro maior e uma
mente mais poderosa, o que explica a peculiaridade das ferramentas humanas. 9 Mais do
que por fabricar, o homem se singulariza por brincar, criar símbolos e, sobre tudo, por
falar. Em resumo, a tese de Mumford é que o ser humano é um animal que “faz sua
mente” (mind-making), que se auto-governa e auto-desenha (1967:9). Para tanto, ele
tem uma “ferramenta para todo propósito”: “seu próprio corpo, ativado pela mente”, e
um cérebro “sempre vigilante”. Essa mente especial permite ao homem colocar-se
problemas gratuitos, fabricar padrões de significado e dar respostas contra-adaptativas
às demandas do ambiente.10 Ela fez com que o homem criasse, não apenas a linguagem
(um produto extremadamente complexo, presente em culturas que possuem ferramentas
muito toscas), mas o ritual (a primeira forma de ordem) e a organização social. Graças a
ela, o homem tornou-se autoconsciente, capaz de incessante busca, de incansável
curiosidade, de um “experimentalismo aventureiro” e uma ousadia em correr riscos.
Sobre tudo, sua mente lhe permitiu relacionar as partes da sua experiência em
totalidades “visíveis ou lembradas, imaginadas ou antecipadas” (1967:26). Em conjunto,
tratava-se de uma capacidade ambivalente, pois o excesso de cérebro e mente podia ter
também conseqüências negativas.
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A própria idéia de que o homem seja essencialmente fabricante é para Mumford um produto da
sociedade tecnológica.
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Mumford faz notar que diversos animais produzem instrumentos mais perfeitos que os humanos, e que
crianças pequenas, que sabem falar e raciocinar, não mostram particular interesse no uso de ferramentas,
nem procuram fabricá-las (1967:5-6).
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M. reconhece que suas teses são especulativas, baseadas em deduções e analogias (por exemplo, entre
criança e adulto e entre homens de diversas culturas), porém defende a necessidade de que o “generalista”
(como ele) especule para dar sentido a evidências esparsas. Ficar apenas no que se pode afirmar com base
na especialização seria para M. uma atitude cientificamente “embrutecedora” (1967:14-19)
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cultura suficientemente exaustiva para fazer uso de pelo menos uma parte das
imensas potencialidades do cérebro. Por sua vez, o desenvolvimento trouxe seus
próprios perigos e incapacidades. Ás vezes, quando o complexo cultural se tornou
demasiadamente estruturado, ou demasiado firmemente atado a reter aquisições
passadas, como ocorreu repetidamente em grupos tribais e civilizados, não deixou
lugar para crescimento mental em novas áreas. Mas por outra parte, quando a
estrutura cultural se enfraqueceu e se desmanchou, ou quando por qualquer razão
seus componentes não puderam ser internalizados, o cérebro incessantemente
ativo, altamente carregado, desenvolveu uma hiperatividade de forma maníaca e
destrutiva, comportando-se como um motor de corrida que se queima por falta de
carga. Hoje, apesar do imenso acervo cultural à disposição do homem ocidental,
estamos demasiado intimamente familiarizados com ambas as possibilidades
(1967:41).
humanas aumentando a riqueza material. Por trás desse esforço estava um “impulso
obsessivo” de conquistar a Natureza e controlar a vida (1970:164). As idéias de ordem
e de previsibilidade se apoderaram de todas as áreas da vida. A máquina, com seu
movimentos repetitivos, seus processos despersonalizados e suas metas quantitativas
abstratas foi aos poucos convertendo-se na substância da existência social. Surgiu um
novo complexo sócio-cultural: o “pentágono de poder” constituído pela aliança do
poder propriamente dito, a propriedade, a produtividade o proveito e o prestígio. Cada
um desses elementos pré-existia já em complexos orgânicos dos quais foi retirado
quando os freios culturais foram destruídos passando doravante a funcionar num
complexo novo, orientado à expansão indefinida do poder e à obtenção igualmente
indefinida do dinheiro. Esse “pentágono” jaz, segundo Mumford sob todos os sistemas
sócio-políticos desde aquela época (tanto o Capitalismo, por exemplo, quanto o
fascismo).
O resultado é uma sociedade (a industrial) em que o homem tem apenas uma
missão: conquistar a Natureza: comandar espaço e tempo, acelerar os processos,
apressar o crescimento e o transporte, apagar distâncias, substituir o natural pelo
artificial... “Há uma única velocidade eficiente: mais rápido; um único destino atraente:
mais longe; uma única medida desejável: maior; uma única meta quantitativa racional:
mais” (1970:173). A mecanização e a automação marcham em uma direção: a do
“grande cérebro” (computador) que controle o homem que o criou e termine por
eliminá-lo. No entanto, a técnica totalitária da “civilização” não representa, apesar da
sua expansão, o conjunto da tecnologia humana. Mumford acredita que subsiste uma
técnica democrática (responsável pela maioria das invenções de uso universal), ligada ás
pequenas comunidades: a “tradição politécnica”, antes mencionada. Ela deve ser
mantida a revitalizada, em oposição à megatécnica, como parte do esforço para reagir a
“civilização”. Mumford considera como o problema central de nossa época: “Criar seres
humanos capazes de compreender sua própria natureza o suficiente para controlar, e
quando necessário for suprimir, as forças e mecanismos que produziram” (1970:187).
Como pista e como estímulo desse esforço, Mumford reitera nesta obra a sua
percepção de uma tendência crescente a apreciar o caráter orgânico da Natureza e a
dependência do homem com relação ao mundo orgânico mais do que ao mundo físico
ou ao mundo artificial mecânico. Essa tendência, estimulada pela evolução da biologia e
o surgimento da ecologia, se manifesta na percepção (ou recordação) da importância de
traços orgânicos tais como o crescimento, a auto-organização, a criatividade, a
transcendência com relação a limitações físicas ou mesmo orgânicas. Na opinião de
Mumford, prosseguir e fortalecer essa tendência seria o único que pode fazer com que o
homem reverta o processo de desumanização devido ao culto da megamáquina e a
busca do poder, colocando em seu lugar o alcance da plenitude humana.
Assim voltamos à idéia básica subjacente a este livro. Se devemos evitar que a
megatécnica continue controlando e deformando cada aspecto da cultura humana,
seremos capazes de fazer isso tão somente com o auxílio de um modelo
radicalmente diferente [de vida] derivado diretamente, não das máquinas mas dos
organismos vivos e dos complexos orgânicos (ecossistemas)(...)
Este novo modelo substituirá com o passar do tempo a megatécnica com
uma biotécnica, e esse é o primeiro movimento para passar do poder à plenitude.
Uma vez que uma cosmovisão orgânica está ascendendo, o propósito que move
uma economia de plenitude será, não mais inserir funções humanas na máquina,
mas desenvolver as incalculáveis potencialidades de auto-atualização e auto-
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transcendência do homem, recuperando para ele próprio muitas das atividades que
ele demasiado indolentemente entregou ao sistema mecânico.(1970:395). .
REFERÊNCIAS:
Mumford, L. 1963 (orig. 1934 Technics and Civilization). New York and Burlingame:
Harcourt, Brace and World.
Mumford, L. 1967 Technics and Human Development. The Myth of the Machine, vol. I.
New York: Harcourt Brace.
Mumford, L. 1970 The Pentagon of Power. The Myth of the Machine, vol. II. New York:
Harcourt Brace.
Obs.: Texto inédito, de autoria de Alberto Cupani, para uso exclusivo dos alunos do
Curso de Filosofia da UFSC.