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Instituto de Treinamento e Pesquisa em

Gestalt-Terapia de Goiânia – ITGT

Volume XXIV – N. 3

2018
Goiânia – Goiás
http://pepsic.bvs-psi.org.br
Ficha Catalográfica

Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies/


Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de
Goiânia – Vol. 24, n. 3 (2018) – Goiânia: ITGT, 2018.

165p.: il.: 30 cm

Inclui normas de publicação

ISSN: 1809-6867

1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de


Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia.

CDD 616.891 43

Citação:
REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 24, n. 3, 2018. 165p

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Volume XXIV – N. 3 – Set/Dez, 2018

Expediente

Editor
Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná)

Editores Associados
Camila Muhl (Universidade Federal do Paraná)
Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)
Danilo Suassuna Martins Costa (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt Terapia de Goiânia)
Paulo Coelho Castelo Branco (Universidade Federal da Bahia)
Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)

Consultores Especiais de Fenomenologia


Antonio Zirión Quijano (Universidad Nacional Autónoma de México)
Pedro M. S. Alves (Universidade de Lisboa, Portugal)

Conselho Editorial
Adelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Paulo)
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
André Barata (Universidade da Beira Interior, Portugal)
Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)
Daniela Schneider (Universidade Federal de Santa Catarina)
Danilo Saretta Veríssimo (Universidade Estadual Paulista/Assis)
Ileno Izidio da Costa (Universidade de Brasília)
Irene Pinto Pardelha (Universidade de Évora)
José Olinda Braga (Universidade Federal do Ceará)
Lester Embree (Florida Atlantic University) (in memoriam)
Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)
María Lucrecia Rovaletti (Universidade de Buenos Aires)
Marcos Aurélio Fernandes (Universidade de Brasília)
Marisete Malaguth Mendonça (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Marta Carmo (Universidade Federal de Goiás)
Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Michael Barber (Saint Louis University)
Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Rosemary Rizo-Patrón de Lerner (Pontificia Universidad Católica del Perú)
Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Editores de Texto – Suporte Técnico
Josiane Almeida
Silvana Ayub Polchlopek

Capa, Diagramação e Arte Final


Innovart Publicidade

Bibliotecário
Arnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)

Financiamento
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT-GO)

Apoio
Associação Brasileira de Psicologia Fenomenológica (ABRAPEF)

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de seguimento que se fizer necessária, deve ser submetida eletronicamente
endereçada ao site: <http://submission-pepsic.scielo.br/

Editor
Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies.
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Fone/Fax: (62) 3941-9798

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- Dialnet
- Ebsco
- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)
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- Lilacs
- Psicodoc
- Redalyc
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Qualis CAPES 2015–A2


ISSN 1809-6867 versão impressa
ISSN 1984-3542 versão on-line

As opiniões emitidas nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatidão e adequação das referências bibliográ-
ficas são de exclusiva responsabilidade dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.
A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que citada a fonte.
SUMÁRIO

EDITORIAL......................................................................................................................... IX

ARTIGOS: RELATOS DE PESQUISA

• Grupo Interventivo com Genitores (as) de Crianças Vítimas de Violência Sexual....... 265
Gledson Wilber de Souza (Universidade Federal do Vale do São Francisco) & Shirley Macêdo (Universidade Federal
do Vale do São Francisco)

• Relacionamento Amoroso Conjugal Duradouro na Contemporaneidade: Uma Análi-


se Fenomenológica de Vivências................................................................................. 275
Lucas Baptista Albertoni (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais), Sônia Regina Corrêa Lages (Universi-
dade Federal de Juiz de Fora)

• Gestaltpedagogia e Relação Dialógica: Contribuições para a Formação de Profissio-


nais de Saúde............................................................................................................... 287
Graciana Sulino Assunção (Universidade de Brasília) & Elizabeth Queiroz (Universidade de Brasília)

ARTIGOS: ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

• Prosperidade, Contestação e Tecnocracia: O Pensamento Rogeriano em seu Contex-


to de Gestação.............................................................................................................. 300
Emanuel Meireles Vieira (Universidade Federal do Pará), Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro (Universi-
dade Federal do Ceará), Jacqueline de Oliveira Moreira (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) &
Andréa Maris Campos Guerra (Universidade Federal de Minas Gerais)

• Fenomenologia da Vida em Pesquisas Clínicas......................................................... 312


Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Paulo), Erika Rodrigues Colombo (Universidade de São
Paulo), Jacqueline Santoantonio (CAPS-UNIFESP), José Tomás Ossa Acharán (Universidade de São Paulo), Julio
César Menéndez Acurio (Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo)

• Phenomenology of Life in Clinical Researches.......................................................... 319


Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Paulo), Erika Rodrigues Colombo (Universidade de São
Paulo), Jacqueline Santoantonio (CAPS-UNIFESP), José Tomás Ossa Acharán (Universidade de São Paulo), Julio
César Menéndez Acurio (Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo)

• Metà-hodós: da Fenomenologia Hermenêutica à Psicologia.................................... 329


Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

• Metà-hodós: From the Hermeneutic Phenomenology to the Psychology................. 340


Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

• Phenomenology and Relativity: Husserl, Weyl, Einstein, and the Concept of Essence.... 350
Giorgio Jules Mastrobisi (University of Salento, Lecce, Italy)

• Fenomenologia e Relatividade: Husserl, Weyl, Einstein e o Conceito de Essência....... 358


Giorgio Jules Mastrobisi (Universidade di Salento, Lecce, Italy)

• Sistema Único de Saúde e a Reforma Psiquiátrica: desafios e perspectivas........... 366


Tatiana Benevides Magalhães Braga (Universidade Federal de Uberlândia) & Marciana Gonçalves Farinha
Sumário

(Universidade Federal de Uberlândia)

VII Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): vii-viii, set-dez, 2018
Sumário

• A (Des)Conexão Criança e Natureza sob o Olhar da Gestalt-Terapia e Ecopsicologia.... 379


Fernanda Nascimento Pereira Doca (Universidade de Brasília) & Marco Aurélio Bilibio (Instituto Brasileiro de
Ecopsicologia)

REVISÃO CRÍTICA DE LITERATURA

• Produção Acadêmica sobre a Desocupação em Jovens Recém-Graduados sob a


Perspectiva Fenomenológico-Existencial................................................................... 390
Malu Nunes Oliveira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Cíntia Guedes Bezerra Catão (Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte) & Elza Maria do Socorro Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do
Norte)

TEXTOS CLÁSSICOS

• Sobre Norma, Saúde e Doença. Sobre Anomalia, Hereditariedade e Procriação......... 404


Kurt Goldstein (1934)
Sumário

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): vii-viii, set-dez, 2018 VIII
EDITORIAL

Iniciamos o terceiro número da situações clínicas; Metà-hodós: da Fenomenologia


Phenomenological Studies – Revista da Hermenêutica à Psicologia de autoria de Ana Maria
Abordagem Gestáltica, com um conjunto de três Lopez Calvo de Feijoo (UERJ) discute contribuições
pesquisas. Grupo Interventivo com Genitores (as) de de Husserl e Heidegger aplicadas à pesquisa em
Crianças Vítimas de Violência Sexual, de Gledson Psicologia; Fenomenologia e Relatividade: Husserl,
Wilber de Souza & Shirley Macêdo (UNIVASF), Weyl, Einstein e o Conceito de Essência, de Giorgio
faz uso das Versões de Sentido em encontros Jules Mastrobisi (Universidade di Salento, Lecce,
de grupo, propiciando acolhimento e reflexão. Italy) procura demonstrar como a intersubjetividade
Relacionamento Amoroso Conjugal Duradouro na fenomenológica atua na constituição das essências.
Contemporaneidade: Uma Análise Fenomenológica Sistema Único de Saúde e a Reforma Psiquiátrica:
de Vivências, de Lucas Baptista Albertoni (PUC- desafios e perspectivas de Marciana Gonçalves
MG) & Sônia Regina Corrêa Lages (UFJF) busca Farinha & Tatiana Benevides Magalhães Braga
compreender as relações contemporâneas, (UFU), apresenta as transformações no processo de
situando-as entre a desromantização e a abertura. constituição da saúde mental e suas aproximações
Em Gestaltpedagogia e Relação Dialógica: e distanciamentos com a Saúde Coletiva no Brasil;
Contribuições para a Formação de Profissionais e A (Des)Conexão Criança e Natureza sob o Olhar
de Saúde de Graciana Sulino Assunção & Elizabeth da Gestalt-Terapia e Ecopsicologia de Fernanda
Queiroz (UnB) apresentam um programa de ensino Nascimento Pereira Doca (IGTB) & Marco Aurélio
sobre “Relação profissional de saúde-paciente” em Bilibio (IBE) apresenta uma reflexão com base na
estudantes dos cursos de graduação em saúde. Gestalt-terapia e na Ecopsicologia sobre a conexão
Na sequência, temos um conjunto de natural e espontânea entre a criança e a natureza.
estudos teóricos, envolvendo importantes autores Finalizamos com uma revisão intitulada
como Carl Rogers, Michel Henry, Martin Heidegger, Análise da Produção Acadêmica sobre a
Edmund Husserl, Hermann Weyl e Albert Einstein: Desocupação em Jovens Recém-Graduados sob a
Prosperidade, Contestação e Tecnocracia: O Perspectiva Fenomenológico-Existencial de Malu
Pensamento Rogeriano em seu Contexto de Nunes Oliveira, Cíntia Guedes Bezerra Catão & Elza
Gestação, de Emanuel Meireles Vieira (UFPA), Maria do Socorro Dutra (UFRN); e com a tradução
Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro (UFC), de um excerto de Kurt Goldstein, intitulado
Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-MG) & Andréa Sobre Norma, Saúde e Doença. Sobre Anomalia,
Maris Campos Guerra (UFMG), problematiza as Hereditariedade e Procriação, de sua famosa
condições culturais a partir das quais foi construído o obra de 1934, The organism: A holistic approach to
pensamento de Carl Rogers; Fenomenologia da Vida biology derived from data in man.
em Pesquisas Clínicas, de Andrés Eduardo Aguirre
Antúnez (USP), Erika Rodrigues Colombo (USP),
Jacqueline Santoantonio (CAPS-UNIFESP), José Boa leitura a todos.
Tomás Ossa Acharán (USP), Julio César Menéndez Adriano Holanda (Editor)
Acurio (FCM-Santa Casa de São Paulo), apresenta
uma possível operacionalidade da Fenomenologia (Este número foi finalizado em 26 de junho de 2018)
da Vida de Michel Henry e seu método em
Editorial

IX Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): ix-xi, set-dez, 2018


EDITORIAL

We started this third issue of Menéndez Acurio (FCM-Santa Casa de São Paulo),
Phenomenological Studies – Revista da present a possible operationalization of Michel
Abordagem Gestáltica, with three researches: Henry’s Phenomenology of Life and his method
Intervention Group with Parentes of Children in clinical situations. Metà-hodós: from the
Victims of Sexual Violence, by Gledson Wilber de Hermeneutic Phenomenology to the Psychology, by
Souza & Shirley Macêdo (UNIVASF), uses Sense Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (UERJ) discusses
Versions in group encounters, fostering reception contributions of Husserl and Heidegger applied
and reflection about their experiences. Long-lasting to research in Psychology. Phenomenology and
conjugal loverelationships in thecontemporaneity: Relativity: Husserl, Weyl, Einstein and the Concept
a phenomenological analysis of experiences, of Essence, de Giorgio Jules Mastrobisi (Universidade
by Lucas Baptista Albertoni (PUC-MG) & Sônia di Salento, Lecce, Italy), tries to demonstrate
Regina Corrêa Lages (UFJF) seeks to understand how phenomenological intersubjectivity acts
contemporary relations, situating them between in the constitution of essences. Unified Health
non-romantic love and openness. Gestaltpedagogy System and Psychiatric Reform: challenges and
and dialogical relationship: Contributions for the perspectives by Marciana Gonçalves Farinha
training of health professional, by Graciana Sulino and Tatiana Benevides Magalhães Braga (UFU),
Assunção & Elizabeth Queiroz (UnB) present a presents the transformations in the mental health
teaching program on “Relation professional of constitution process and their approximations and
health and patient” in undergraduate students of distancing with the collective health in Brazil; and
health. The (dis)connection child and nature depicted by
In the sequence, we have a set of theoretical gestalt-therapy and ecopsychology, by Fernanda
studies involving important authors such as Carl Nascimento Pereira Doca (IGTB) and Marco Aurélio
Rogers, Michel Henry, Martin Heidegger, Edmund Bilibio (IBE) presents a reflection based on Gestalt
Husserl, Hermann Weyl and Albert Einstein. therapy and Ecopsychology on the natural and
Prosperity, contestation and technocracy: the spontaneous connection between child and nature.
rogerian thought in its context of gestation, by We conclude with a review entitled
Emanuel Meireles Vieira (UFPA), Francisco Pablo Academic Production on Unemployement in Young
Huascar Aragão Pinheiro (UFC), Jacqueline de Learning: A Phenomenological-Existential Analysis
Oliveira Moreira (PUC-MG) and Andréa Maris by Malu Nunes Oliveira, Cíntia Guedes Bezerra
Campos Guerra (UFMG), aims to debate the Catão and Elza Maria do Socorro Dutra (UFRN).
cultural conditions from which Carl Rogers’
thinking was created. The paper Phenomenology
of Life in clinical researches, by Andrés Eduardo Good Reading
Aguirre Antúnez (USP), Erika Rodrigues Colombo Adriano Holanda (Editor)
(USP), Jacqueline Santoantonio (CAPS-UNIFESP),
José Tomás Ossa Acharán (USP) and Julio César (This issue was finished at June, 26, 2018)
Editorial

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): ix-xi, set-dez, 2018 X


EDITORIAL

Principiamos el tercer número de operatividad de la Fenomenología de la Vida de


la Phenomenological Studies – Revista da Michel Henry y su método en situaciones clínicas;
Abordagem Gestáltica, con trés investigaciones. Metà-hodós: de la Fenomenologia Hermenêutica
Grupo Interventivo con Padres y Madres de Niños hacia a la Psicologia, de Ana Maria Lopez Calvo
Víctimas de Violencia Sexual, de Gledson Wilber de Feijoo (UERJ) discute contribuciones de Husserl
de Souza & Shirley Macêdo (UNIVASF), hace y Heidegger aplicadas a la investigación en
uso de las Versiones de Sentido en encuentros Psicología. Fenomenología y Relatividad: Husserl,
de grupo, propiciando acogida y reflexión. Weyl, Einstein y el Concepto de Esencia, de Giorgio
Relacionamiento amoroso conyugal duradero en Jules Mastrobisi (Universidade di Salento, Lecce,
la contemporaneidad: un análisis fenomenológico Italy), busca demostrar cómo la intersubjetividad
de vivencias, de Lucas Baptista Albertoni (PUC- fenomenológica actúa en la constitución de las
MG) y Sônia Regina Corrêa Lages (UFJF) busca esencias. Sistema de Salud y Reforma Psiquiátrica:
comprender las relaciones contemporáneas, Retos y Perspectivas de Marciana Gonçalves
situándolas entre el amor desromantizado y la Farinha y Tatiana Benevides Magalhães Braga
apertura. Gestaltpedagogia y relación dialogica: (UFU), presenta los cambios en la constitución
Contribuciones para la formación de profesionales del proceso de salud mental y sus similitudes y
de la salud, de Graciana Sulino Assunção y diferencias con la salud pública en Brasil; y (Des)
Elizabeth Queiroz (UnB) presentan un programa conexión niño y naturaleza segun la terapia de la
de enseñanza sobre “La relación entre profesional gestalt y la ecopsicología, de Fernanda Nascimento
de salud-paciente” en estudiantes de los cursos de Pereira Doca (IGTB) y Marco Aurélio Bilibio (IBE)
graduación en salud. presenta una reflexión basada en la terapia Gestalt
En la secuencia, tenemos un conjunto y la Ecopsicología sobre la conexión natural y
de estudios teóricos, involucrando a importantes espontánea entre los niños y la naturaleza.
autores como Carl Rogers, Michel Henry, Martin Finalizamos con una revisión titulada
Heidegger, Edmund Husserl, Hermann Weyl y Producción Académica en el Desempleo em Jóvenes
Albert Einstein. Prosperidad, contestación y Recién Graduados: Análisis Fenomenológica-
tecnocracia: el pensamiento rogeriano en su Existencial de Malu Nunes Oliveira, Cíntia Guedes
contexto de gestación, de Emanuel Meireles Vieira Bezerra Catão y Elza Maria do Socorro Dutra (UFRN);
(UFPA), Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro y con la traducción (al portugués) de un capítulo de
(UFC), Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-MG) Kurt Goldstein, intitulado Sobre Norma, Salud y
y Andréa Maris Campos Guerra (UFMG), pretende Enfermedad. Sobre Anomalía, Hereditariedad y
problematizar las condiciones culturales a partir Procreación, de su obra de 1934, The organism: A
de las cuales se construyó el pensamiento de Carl holistic approach to biology derived from data in man.
Rogers. Fenomenología de la vida en investigaciones
clínicas, de Andrés Eduardo Aguirre Antúnez Buena lectura a todos.
(USP), Erika Rodrigues Colombo (USP), Jacqueline Adriano Holanda (Editor)
Santoantonio (CAPS-UNIFESP), José Tomás Ossa
Acharán (USP) y Julio César Menéndez Acurio (FCM- (Este numero fue finalizado en 28 de Junio de 2018)
Santa Casa de São Paulo), presenta una posible
Editorial

XI Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): ix-xi, set-dez, 2018


A rtigos :
R elatos D e P esquisa ....................
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.1

GRUPO INTERVENTIVO COM GENITORES (AS) DE


CRIANÇAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL
Intervention Group with Parentes of Children Victims of Sexual Violence

Grupo Interventivo con Padres y Madres de Niños Víctimas de Violencia Sexual

GLEDSON WILBER DE SOUZA


SHIRLEY MACÊDO

Resumo: Esta pesquisa fenomenológica-interventiva teve como objetivo principal compreender o sentido da
experiência de ser genitor (a) de criança vítima de violência sexual, buscando possibilitar a ressignificação da realidade
e a elaboração de estratégias de enfrentamento. Em três encontros semanais de uma hora e meia, cinco genitores e o
próprio pesquisador registraram o sentido de suas experiências dos encontros em Versão de Sentido (VS). De posse de
todas as VS’s, foi possível compreender que o sofrimento presente na vida dos colaboradores está relacionado com a
lentidão entre denúncia do abuso e conclusão de trâmites jurídicos. O processo levou os colaboradores a mudanças em
modos de subjetivação, principalmente, devido à ampliação da visão sobre si mesmos, o que resultou em ressignificação
da própria história de vida e na construção de projetos futuros. Além da oportunidade de minimizar seu sofrimento
pelo compartilhamento deste com outros, eles criaram como estratégia de enfrentamento da realidade: a construção
de vínculos sociais para partilhar suas experiências, falar sobre o próprio sofrimento e cuidar de si. Concluiu-se,
principalmente, que a prática dos encontros foi absorvida pelos colaboradores como estratégia de autocuidado, e o
acolhimento ofertado deve focá-los para além da condição de genitores de vítimas de violência sexual.
Palavras-chave: Violência Sexual Infantil; Família; Pesquisa Fenomenológica

Abstract: This phenomenological-intervention research had as its main objective understanding the experience of
being a parent of a child victim of sexual violence, seeking to re-signify reality and the elaboration of coping strategies.
In three one-and-a-half-hour weekly meetings, five parents and the researcher themselves recorded the meaning of
their experiences and encounters in Sense Version (SV). With the possession of all SVs, it was possible that the
present suffering in the employees’ lives is related to a slowness between denouncing the abuse and completing legal
procedures. The process led the employees to change in modes of subjectivation, mainly due to the enlargement of
the vision about themselves, which resulted in a re-signification of their own life history and the construction of
future projects. In addition to the opportunity to minimize their suffering by sharing it with others, they have created
strategies of coping with reality: to build social bonds to share their experiences, talk about their own suffering and
take care of themselves. It was mainly concluded that the practice of the meetings was absorbed by the collaborators
as a strategy of self-care, and the embracement offered must focus on them beyond the condition of parents of victims
of sexual violence.
Keywords: Child Sexual Violence; Family; Phenomenological Research

Resumen: Esta investigación fenomenologico-interventiva tuvo como principal objetivo comprender el sentido de las
experiencias de padres de niños víctimas de abuso sexual, buscando redefinir la realidad elaborando estrategias para
afrontar la misma. En tres encuentros semanales de una hora y media, cinco padres y el investigador registraron el
sentido de sus experiencias en VS., con éstas fue posible comprender que el sufrimiento de los familiares se puntualiza
Relatos de Pesquisa
en la burogracia jurídica. En los colaboradores este proceso generó cambios en modos de subjetivación, principalmente
en la ampliación de su visión sobre sí mismo. Esto concluye con la redefinición de sus vidas y la construcción de
futuros proyectos. Al Compartir con otros sus experiencuas tienen la posibilidad de minimizar el sufrimiento, por lo
que generaron vínculos sociales. Como conclusión principal, las actividades fueron aprovechadas por padres como
estrategias de auto-cuidado, y la recepción debe enfocarse en padres de víctimas de abuso sexual
Palabras clave: Violencia Sexual Infantil; Familia; Investigación Fenomenológica

Introdução manter os altos índices de violência sexual infantil,


o Brasil é tido, no âmbito internacional, como um
No Brasil, as situações de maus-tratos dos países que mais luta contra essa problemática,
infantis ganharam visibilidade no final da década graças à criação de uma legislação de caráter
de 1980. Foi nesse momento que a Constituição protetivo (Lima & Alberto, 2010).
-

Federal, de 1988, e o Estatuto da Criança e do A violência sexual infantil pode se


Adolescente (ECA), de 1990, passaram a exigir a apresentar através do abuso ou exploração sexual.
A r t i g o s

notificação de casos suspeitos ou confirmados de O abuso pode se configurar como todo jogo ou ato
violência infantil. A partir disso, então, as políticas sexual seja ele hétero ou homossexual, entre um
de proteção à criança e ao adolescente começam ou mais adultos com uma criança ou adolescente,
a se firmar. Um dado importante é que, apesar de tendo o objetivo de estimular sexualmente a

265 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 265-274, set-dez, 2018
Gledson Wilber de Souza; Shirley Macêdo

criança ou adolescente, ou para obter satisfação podem interferir de modo significativo no


sexual do próprio abusador, podendo ser utilizado desenvolvi­mento de uma criança. Acreditam que os
o uso de força, ameaça ou indução da vontade da danos vão desde comportamentos não adaptativos e
vítima (Azevedo, 1997). A exploração sexual é uma déficits emocionais, até transtornos mentais graves,
forma de violência sexual baseada numa lógica de como: comportamento impulsivo, transtorno de
mercantilização e uso de poder, buscando obter hiperatividade, problemas de aprendizado escolar,
vantagem ou proveito lucrativo a partir do uso assim como transtornos da conduta e abuso de
do corpo da criança ou do adolescente, seja pela substâncias psi­ coativas na adolescência. Essas
ação criminosa individual ou a partir de uma rede consequências não atingem somente a criança ou o
de abuso (Leal, citado por Conselho Federal de adolescente, mas também a família, que, ao mesmo
Psicologia, 2009). tempo em que vivencia o processo de sofrimento,
Esses tipos de violência podem ocorrer precisa se estruturar para oferecer cuidado e
em dois contextos: no âmbito familiar, onde o proteção à vítima.
agressor se encontra em um lugar de confiança, Frente a tais perspectivas teóricas e
cuidado e poder em relação à criança; e no âmbito partindo de uma concepção diferente que não busca
extrafamiliar, quando o agressor não faz parte estabelecer relações causais, mas sim compreender
diretamente das relações familiares, como, por a singularidade de experiências humanas, a
exemplo, vi­zinhos ou desconhecidos (Habigzang, participação como estagiário do CREAS Municipal
Ramos & Koller, 2011). de Petrolina nos atendimentos feitos a esse tipo de
Apesar de distintos, esses conceitos revelam demanda permitiu que se constatasse o quanto a
a realidade de violação de direito vivenciada por escuta e a intervenção psicológica são importantes
inúmeras crianças e adolescentes. Entretanto, no processo de ressignificação de uma realidade
apesar de hoje ser um assunto tratado nas academias para pessoas que vivenciam sofrimento, no caso,
de ensino superior, nas produções científicas e genitores (as) que passaram pela experiência de
nos meios de comunicação, nem sempre houve terem filhos que sofreram violência sexual. Dessa
uma preocupação quanto à proteção e cuidado de forma, percebeu-se que o trabalho de acolhimento
crianças e adolescentes. e cuidado continuado deveria ser destinado
Mesmo existindo essa militância ativa, por não apenas à criança violentada, mas também
algumas razões, muitos dos casos de violência sexual ao (à) genitor (a), que, indiretamente, também é
contra crianças no Brasil não são contabilizados agredido(a). E é a partir disso que essa pesquisa se
nas estatísticas produzidas. Dentre esses motivos, propôs a compreender a realidade desses sujeitos e
é possível elencar como os mais significativos: a interferir na ressignificação do possível sofrimento
dificuldade de diagnóstico, o desconhecimento vivenciado pela agressão.
sobre a problemática e o receio de fazer a denúncia, Assim, parece necessário pensar sobre
pelo motivo de, na maioria dos casos, o agressor a importância da família em todo o processo
fazer parte do núcleo familiar (Zambon, Jacintho, que envolve esse tipo de violência, desde a sua
Medeiros, Guglielminetti & Marmo, 2012). Apesar descoberta até o momento de superação dos
dessa dificuldade, através dos registros do Sistema danos. Segundo Lima e Alberto (2010), “o apoio
de Informação de Agravo de Notificação (SINAN), familiar torna-se fator imprescindível para o
no Brasil, foram atendidas em 2011, um total de encaminhamento da situação de violência vivida
10.425 crianças e adolescentes vítimas de violência pela criança e pelo adolescente” (p.130). Dessa
sexual, sendo a maioria do sexo feminino: 83,2%, forma, é muito relevante que os serviços da rede de
com poucas oscilações entre as faixas etárias combate à violência pensem em formas de atender
(Waiselfisz, 2012). essas famílias, melhor preparando-as para lidar
De 2011 até os dias atuais, a realidade não com os traumas gerados pela agressão levando em
mudou. Segundo a Secretaria Especial de Direitos conta que genitores (as) ou entes próximos também
Relatos de Pesquisa

Humanos, no primeiro trimestre de 2015 o Disque são violentados.


100 recebeu, somente no Nordeste brasileiro, 1.191 É um acontecimento que muda a estrutura
denúncias de casos de violência sexual contra familiar e atinge todos os envolvidos naquele ciclo,
crianças e adolescentes. Mais especificamente, como bem enfatiza Paula (2011):
na cidade de Petrolina, em Pernambuco, segundo
os dados que constam nos registros do Centro de Esta ruptura se dá a partir do momento
Referência Especializada em Assistência Social em que há a ocorrência de um evento
(CREAS) Municipal, no ano de 2015 foram não programado, de caráter traumático
acompanhados, no total, 31 casos de violência como a agressão sexual, que promove o
sexual infanto-juvenil. Já no ano de 2016, de janeiro rompimento da família com os seus projetos
a junho, foram atendidos 31 novos casos, ou seja, de continuidade de uma perspectiva,
apenas no primeiro semestre de 2016 já se alcançou previamente elaborada e esperada, sobre o
o número total de 2015. Os indicadores mostram, cotidiano (p.27).
-

portanto, a necessidade de se pensar formas de


enfrentamento da situação. Em certa medida, os familiares acabam
A r t i g o s

Para além de números, autores como vivenciando a violência de forma ampliada,


Zambon et al. (2012) defendem que as experiências principalmente no que diz respeito ao julgamento
de violência sexual ocorridas durante a infância social e à autocobrança por terem falhado no papel

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 265-274, set-dez, 2018 266
Grupo Interventivo com Genitores (as) de Crianças Vítimas de Violência Sexual

de protetores. Isto porque o medo de ser julgado, Objetivos


na maioria das vezes, é maior que a expectativa de
apoio através de sua rede social (Paula, 2011). É Nessa pesquisa, que se propôs a montar um
por esse motivo que as famílias acabam assumindo grupo interventivo para genitores (as) que enfrentam
uma postura de afastamento do convívio com a a problemática em questão, teve-se como objetivo
comunidade, como afirma Costa, Penso, Rufini, geral compreender o sentido da experiência de ser
Mendes e Borba (2007, p.251): “o silêncio contínuo genitor (a) de criança vítima de violência sexual,
e auto-imposto pode levar ao sentimento de buscando intervir na ressignificação da realidade
humilhação social e consequente isolamento e na elaboração de estratégias de enfrentamento.
individual e familiar”. Portanto, compreende-se o Como objetivos específicos, buscou-se: descrever o
quanto esses indivíduos precisam de uma atenção sentido da experiência de ser genitor (a) de criança
direcionada, em espaços de acolhimento integral, ou adolescente vítima de violência sexual; descrever
nos quais, para além de receber orientações sobre o processo vivido por esses sujeitos durante a
que passos seguir no cuidado das crianças, possam pesquisa; identificar as mudanças nos modos de
sentir-se acolhidos e cuidados, possibilitando seu subjetivação desses sujeitos durante o próprio
fortalecimento não apenas como genitores (as), mas processo de pesquisa; e elencar as estratégias de
também como atores e atrizes sociais. enfrentamento construídas ao longo do processo.
São muitos os fatores que influenciam na
fragilização dos genitores (as). Sanderson (2005,
citado por Costa, et al. 2007), por exemplo, fala Método
sobre o sentimento de traição vivenciado: primeiro
eles se sentem traídos pelo abusador da criança A presente pesquisa tratou-se de um estudo
(por geralmente o agressor ser alguém de confiança) qualitativo interventivo de inspiração humanista-
e, ao mesmo tempo, sentem-se traidores, por não fenomenológica, que produziu conhecimentos
terem protegido o suficiente. Uma dualidade de a partir da criação de encontros intersubjetivos
sofrimento que acaba se intensificando, entre outros de produção de sentido, focado em significados
motivos, devido à convivência diária com a criança que os sujeitos atribuíram às suas experiências ao
ou o adolescente, que faz recordar cotidianamente o compartilhá-las num contexto de diálogo.
sentimento de culpa. Sem contar com a quantidade Para melhor compreensão do que seja a
de vezes que tanto genitores (as) como as vítimas abordagem fenomenológica em pesquisa, parte-se
são obrigados a relatar o fato nos órgãos da rede de das ideias de Capalbo (1994, citado por Garnica,
apoio. É comum ouvir as queixas sobre a repetição 1997), que a define como método descritivo que se
da história do abuso e o desgaste causado por ela ocupa do vivido, e de Amatuzzi (2008), que assevera
(Costa et al.,2007). que uma pesquisa fenomenológica é focada no
Por todo esse desgaste, o isolamento social sentido da experiência humana.
parece ser uma alternativa de enfrentamento que os Dentre as diversas perspectivas em
pais utilizam diante da problemática. Paula (2011) pesquisas fenomenológicas, elegeu-se aquela que
comenta que: mescla pressupostos filosóficos de Merleau-Ponty
e Gadamer: a hermenêutica-colaborativa (Macêdo,
2015). Merleau-Ponty vê na fenomenologia a
O acontecimento do abuso sexual oportunidade de ilustrar as relações vividas entre
dificilmente chega a ser comentado no o homem e o mundo, valorizando o encontro entre
ambiente de trabalho ou vizinhança, ou o meu eu e o mundo e entre o meu eu e as coisas,
mesmo, em muitos casos, no ambiente sendo possível essa relação por intermédio do corpo
religioso do qual fazem parte; (...) O abuso (Spíndola, 1997). Para uma melhor compreensão
sexual contra crianças e adolescentes da proposta de pesquisa aqui trabalhada, se faz
Relatos de Pesquisa
desperta na sociedade uma dura cobrança necessário o esclarecimento de dois conceitos
sobre os pais da criança, (...) Esse tipo de merleau-pontyanos: a epokhē incompleta e a
violência é encarado socialmente como algo intercorporeidade. Sobre a epokhē, Merleau-
imperdoável que deveria ser evitado pela Ponty vem contrapor o pensamento de Husserl
família, principalmente se a violência foi criticando o que este defende em relação à redução
cometida por um parente (p. 28). completa de si para compreender a experiência
do outro. Merleau-Ponty defende justamente a
impossibilidade de uma redução completa. Para ele,
Partindo dessa contextualização, são
no encontro com o outro, ao tentar compreender a
indagações desta pesquisa saber quais os sentidos
sua experiência, a sua visão, o sentido que esse outro
da experiência de ser genitor (a) de criança
dá as coisas, é impossível a suspensão completa de
ou adolescente vítima de violência sexual.
si para o alcance do outro (Macêdo, 2015).
Como se daria um processo interventivo de
Isso se dá pelo fato de serem sujeitos
-

compartilhamento de experiências entre esses (as)


sociais e estarem existindo no mundo da vida
genitores (as)? É possível que haja mudança nos
(Lebenswelt). Numa pesquisa, por exemplo,
A r t i g o s

modos de subjetivação desses sujeitos ao longo de


pesquisador e pesquisado interagem entre si, estão
um processo interventivo? Se sim, que mudanças
envolvidos no mundo, o que para uma pesquisa
seriam essas e que estratégias de enfrentamento da
fenomenológica é bastante positivo, porque, para
realidade poderiam ser construídas?

267 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 265-274, set-dez, 2018
Gledson Wilber de Souza; Shirley Macêdo

compreender a experiência do outro, é importante A pesquisa foi realizada no Centro de


estar implicado com esse outro com o qual se Referência Especializada em Assistência Social
interage (Ashworth,1996, citado por Macêdo, (CREAS) em Petrolina-PE. O CREAS, segundo o
2015). É a impossibilidade de uma redução total Portal Brasil, é responsável pelo atendimento de
que Merleau-Ponty chama de epokhēé incompleta. indivíduos ou famílias em situação de risco social
Merleau-Ponty também se refere a corporeidade ou que tiveram seus direitos violados. Conta,
e intercorporeidade, fazendo uso do conceito de geralmente, com uma equipe multiprofissional
consciência perceptiva, que seria uma consciência composta por profissionais como: psicólogo,
aberta ao mundo. Ele acredita numa consciência assistente social, advogado, educador, auxiliar
situada no corpo e este corpo no mundo. O de serviços gerais e coordenador. No CREAS
próprio corpo no núcleo do sujeito e esse sujeito Petrolina, o atendimento de assistência ao genitor
como um ser encarnado no mundo. Ele entende (a), à criança, ao adolescente ou à família é feito
que a consciência, sendo compreendida como semanalmente ou quinzenalmente, a depender do
perceptiva, está inseparavelmente ligada ao corpo, nível de gravidade de cada caso.
em permanente diálogo com o mundo, e a relação Vale a pena salientar que o CREAS Petrolina
do homem com o mundo se dá pela relação direta foi o espaço que forneceu anuência para que a
corpo-mundo, posto que é corpo vivido, corpo pesquisa fosse realizada, devido à viabilidade de
sentido, corpo no mundo. contato dos pesquisadores com o público alvo. No
Esta noção o permitirá avançar no entanto, a pesquisa não consistiu numa atividade
entendimento da relação eu-outro, proposta a partir da instituição e, por isso, não teve participação de
da experiência do corpo, pela intercorporeidade: equipe multidisciplinar, prerrogativa das ações de
o eu e o outro são órgãos de uma só carne. uma instituição dessa ordem, embora se reconheça
Dessa forma, “não se pode, ao tentar conhecer a a importância dos resultados de um estudo como
experiência de outro, suspender a prioris porque se esse para possíveis reconfigurações em atividades
estaria ocultando o sujeito que conhece o mundo do do CREAS.
mundo a ser conhecido, e isto é um contrassenso, Para facilitar a abordagem e o convite para
porque o corpo e o mundo são a mesma textura participação na pesquisa, foi preciso realizar três
ontológica” (Macêdo, 2015, p. 125). reuniões visando alcançar o máximo de potenciais
Já no que diz respeito à hermenêutica colaboradores. Nestas reuniões foram explicitados
filosófica de Hanz Georg-Gadamer, para esta pesquisa, aos genitores (as) os objetivos e procedimentos
faz-se necessária a compreensão de dois conceitos: a da pesquisa, realizado o convite de participação
fusão de horizontes e a tradição, os dois elementos na pesquisa e acordado com os interessados o
fundamentais que permitem, num diálogo, a calendário dos encontros. Dos (as) genitores (as)
contestação da verdade e a construção de um novo contatados (as), cinco deles se disponibilizaram
saber. Portanto, aqui compreenderemos tradição como a participar do grupo, sendo dentre os cinco, um
a “tensão entre a novidade e aquilo que já se conhecia casal (homem e mulher) e mais três genitoras, todos
de experiências passadas” e fusão de horizontes como atendendo aos seguintes critérios de inclusão: ser
o “intercruzamento de diversas visões panorâmicas ou genitor (a) de criança vítima de violência sexual
perceptivas de mundo, num movimento de diacronia independente de quando tenha acontecido a
e sincronia de tradições, a partir do qual os horizontes violência; estar cadastrado e ter tido o primeiro
fazem conexão e os sujeitos se engajam num diálogo” atendimento no CREAS Petrolina; ser alfabetizado;
(Macêdo, 2015, p.126-127). Então, só se pode falar e ter disponibilidade para participar de no mínimo
em diálogo gadameriano quando a ampliação do 75% dos encontros. E como critério de exclusão
conhecimento transforma o sujeito, suas atitudes, estar realizando atividade de grupo em outro
produzindo um saber mais autêntico. serviço psicológico (por se compreender que
Como resultado da articulação dos saberes essa participação paralela poderia interferir nos
Relatos de Pesquisa

filósofos supracitados, Macêdo (2015) propôs a resultados da pesquisa).


Hermenêutica Colaborativa. A proposta dá ênfase à Visando uma melhor avaliação dos
intersubjetividade (Merleau-Ponty, 1945/2006) e ao resultados do grupo interventivo, foi solicitado
diálogo (Gadamer, 2003), resultando num método que, ao longo do período da coleta, os sujeitos não
que busca promover uma ação intersubjetiva participariam de outros atendimentos psicológicos
criativa de produção de sentidos, na qual os sujeitos ofertados pelo CREAS, com exceção de alguma
se engajam e, encarnados que estão no mundo, demanda emergencial. O estudo foi registrado sob
compartilham experiências pela intercorporeidade, CAEE 59319416.3.0000.5196 e autorizado pelo
produzindo novos sentidos para suas experiências. Comitê de Ética e Deontologia em Pesquisas com
Foi embasada na Hermenêutica Colaborativa e, Seres Humanos (CEDEP/UNIVASF) pelo parecer
por assim dizer, sendo guiada pela fenomenologia 1.778.934. Foi conduzido concomitantemente
de Merleau-Ponty e a hermenêutica filosófica de à realização de encontros grupais e teve como
Gadamer, que essa pesquisa pretendeu criar um facilitador o próprio autor da pesquisa. Devido à
-

espaço de compartilhamento e ressignificação disponibilidade de tempo dos (as) genitores (as) e


de experiências vivenciadas pelos (as) genitores ao fato do período da coleta ter proximidade com
A r t i g o s

(as), aqui denominados colaboradores, tratando- as festividades e recessos de final de ano, foram
se, portanto, de uma pesquisa fenomenológica realizados três encontros semanais, com duração
interventiva e colaborativa. média de uma hora e 30 minutos cada. Houve uma

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 265-274, set-dez, 2018 268
Grupo Interventivo com Genitores (as) de Crianças Vítimas de Violência Sexual

programação para cada encontro, objetivando a a construção dos projetos. Entendeu-se que todas
construção de um contexto de diálogo e confiança as estratégias pensadas e construídas estavam na
genuína entre os membros, para que houvesse dependência do processo vivido pelos colaboradores
respeito por cada descrição e história ali relatada. no grupo.
Utilizaram-se materiais como argila, música, É importante ressaltar que em todos os
recortes de revista e fotografias, considerando encontros, antes de iniciada a atividade do dia, era
recursos artísticos como dispositivos clínicos para realizada uma dinâmica quebra-gelo tendo como
a manifestação da dimensão simbólica do sujeito, foco o relaxamento corporal através da respiração e
linguagem que permite transmitir sentimentos como principal instrumento a música. Além disso,
e emoções que o discurso lógico/dialético não é não houve falta nos encontros por parte de nenhum
capaz de exprimir (Lima et al., 2013). Coube ao (a) dos (as) genitores (as), o que contribuiu na
pesquisador promover um espaço de facilitação vivência ter sido realmente um processo coletivo.
para o processo, sendo sua experiência o ponto A coleta de dados se deu pela escrita de
crucial para compreender a experiência do outro. Versões de Sentido (VS), instrumento proposto
No primeiro encontro, antes das atividades por Amatuzzi (1996) e que tem sido utilizado
serem iniciadas, foram apresentados a cada por diversos pesquisadores desde sua criação (a
colaborador, através da leitura do Termo de exemplo de Macêdo, 2000 e Boris, 2008). Esses
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os autores entendem que a VS, ao ser lida num
objetivos, métodos e as finalidades da pesquisa, encontro, favorece a versação e conversação sobre
assim como lhes foram garantidos total sigilo e o sentido de uma experiência imediatamente após
preservação das suas identidades. ela ter sido vivida, até que se chegue à explicitação
Finalizado isso, foi estabelecido um contrato compartilhada dos significados vividos.
de convivência entre os participantes e o pesquisador.
Este contrato partiu de definições básicas como: Segundo Amatuzzi (2008), a VS é:
manter os encontros em sigilo, não chegar atrasado, um relato livre que não tem pretensão de ser
respeitar as diferenças dos participantes, desligar o um registro objetivo do que aconteceu, mas
celular durante a atividade e não faltar mais de 25% sim de ser uma reação viva a isso, escrita
dos encontros. Após o estabelecimento do contrato, ou falada imediatamente após o ocorrido, e
foi realizada a atividade de modelagem em argila como uma palavra primeira. Consiste numa
para facilitar a expressão do sentido da experiência fala expressiva da experiência imediata
de ser genitor (a) de criança vítima de violência de seu autor, face a um encontro recém-
sexual. No círculo hermenêutico proposto pela terminado. (p. 76)
metodologia aqui empregada (Melo, Anjos, Lima
& Santos, 2015), a argila permite que o sujeito se Foi solicitado aos (às) genitores (as)
implique com a experiência ali rememorada, sendo participantes da pesquisa que produzissem uma VS
um recurso expressivo para a exploração do sentido ao final de cada encontro e que as lessem no encontro
dessa experiência, que, ao ser compartilhada em posterior ao de sua escrita, sendo esse diálogo a base
contexto de diálogo, facilita-se sua ressignificação para se compartilhar os sentidos da experiência do
pelos envolvidos no processo. encontro anterior no encontro posterior. Após o
No segundo encontro, foi realizada uma primeiro encontro, o tempo dos demais foi dividido
dinâmica de grupo com o uso de fotos antigas em parte para a leitura e exploração da VS; parte
(infância ou adolescência), solicitadas aos para novas atividades; e, nos cinco minutos finais,
colaboradores no final do primeiro encontro. Esta foi solicitada a escrita da próxima VS, que foi lida
dinâmica teve como objetivo favorecer o resgate no encontro posterior e assim sucessivamente. No
da consciência histórica, permitindo a apropriação último encontro, foi solicitada a escrita da VS nos
subjetiva de características pessoais passadas que últimos 30 minutos, para que a última VS pudesse
Relatos de Pesquisa
pudessem viabilizar o enfrentamento da realidade ser escrita e (con)versada no mesmo dia, já que não
da violência sexual sofrida pelos filhos. Cada haveria mais encontros.
colaborador apresentava sua foto, explicando o Ao final da pesquisa, todas as VS’s
contexto da escolha, sendo posteriormente levado a foram analisadas pela equipe (pesquisador e
refletir sobre características pessoais passadas que orientadora) no intuito de compreender se os
poderiam ajudar no enfrentamento das adversidades colaboradores revelaram, através da escrita, os
presentes. sentidos de suas experiências, o processo vivido
No terceiro e último encontro todos ao longo dos encontros, as mudanças nos modos
estavam envolvidos na elaboração do que de subjetivação (sentir, pensar e agir) durante o
Ayres (2005) denomina de projeto de felicidade processo e a construção conjunta de estratégias de
humana, visando a construção de estratégias para enfrentamento da realidade.
enfrentamento da situação de violência vivida pela As Versões de Sentido foram analisadas
família. Importante ressaltar que esta perspectiva fenomenologicamente a partir dos seguintes passos
-

concebe a felicidade não como um bem concreto, (Amatuzzi, 2008, 2009; Macêdo, 2000, 2015):
mas uma disponibilidade para projetos existenciais
A r t i g o s

que favoreçam a superação de momentos limitantes a. Leitura integral/contato com o todo: foram
na vida do sujeito. Essa atividade foi desenvolvida realizadas as leituras no encontro posterior
utilizando recortes de revistas como material para ao da escrita da VS, do conteúdo da mesma

269 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 265-274, set-dez, 2018
Gledson Wilber de Souza; Shirley Macêdo

por cada autor, quantas vezes fossem Os pseudônimos escolhidos, portanto,


necessárias, para que os membros do grupo foram retirados das espécies Agrias Claudia
alcançassem os significados da experiência. Claudina, Caligo Beltrão, Colobura Dirce, Eudeides
b. Encontro com os significados: exploração Isabella Dianasa e Hleiconius Sara Apseudes,
dos significados a partir de um diálogo contidas no site Tudo sobre borboletas (2016). Vale
em que todos os sujeitos envolvidos no salientar que a análise final realizada pela equipe de
encontro puderam se colocar /compreender/ pesquisa foi validada em uma entrevista devolutiva
interpretar, estando as possibilidades com os colaboradores, sem que houvesse nenhuma
dos significados da experiência sujeitas à sugestão de mudança.
confirmação do autor da VS. No primeiro encontro, através da análise das
c. Presentificação do sentido da VS: anotações do pesquisador, foi possível compreender
o pesquisador juntamente com os quais os principais fatores que influenciaram no
colaboradores, procuraram entrar em sofrimento sentido por eles. Segundo os genitores
consenso sobre o sentido de cada VS, que (as), o abuso é como um marco na vida da família,
apenas era validado pelo autor que a escreveu. que, após o episódio de violência, a tristeza é um
d. Síntese do processo individual: com sentimento que se faz presente no cotidiano e
a finalização de todos os encontros, a que mesmo tentando não se consegue esquecer.
equipe de pesquisa sintetizou o processo Afirmaram também que se sentem impotentes
vivido por cada colaborador e o convidou diante do tempo de espera e do perigo a que acabam
a participar da análise, confirmando, sendo expostos a partir do momento em que fazem
propondo alterações ou mesmo negando a a denúncia do abuso e o agressor continua em
análise realizada. liberdade. Afirmaram que a lentidão dos processos
e. Síntese do processo grupal: após a síntese jurídicos gera muito sofrimento. Segundo eles,
do processo individual de cada colaborador, é preciso ter muita coragem para não desistir
a equipe de pesquisa compreendeu o que durante o caminho, e por isso entendem os pais que
de comum houve para os(as) genitores(as), abandonam a luta por não aguentarem o sofrimento
tentando generalizar o processo vivido. da espera.
Esse sofrimento relacionado à lentidão do
Como a pesquisa fenomenológica se processo revela dois fatores preocupantes. Um diz
faz ao caminhar, durante o processo de coleta e respeito ao aumento da situação de vulnerabilidade
análise de dados, foi percebida a necessidade de enfrentada pela família graças à lentidão do sistema
analisar, também, como dados da pesquisa, as VS’s jurídico; o outro é o fato de os genitores (as)
e anotações produzidas pelo pesquisador no final acabarem associando a resolução do problema à
de cada encontro realizado, visto que os conteúdos responsabilização do agressor, o que denuncia uma
de suas VS’s e a percepção sobre elas poderiam visão bastante restrita da problemática. Lembra-
contribuir de forma significativa na clarificação se aqui Silva, Ferriani e Silva (2012), autores que
dos resultados encontrados. Dessa forma, para fazem refletir como é extremamente preocupante
além de trazer o que foi compreendido das VS’s entender a resolubilidade da violência sexual apenas
dos colaboradores, foi articulado a isto o sentido relacionada com a responsabilização do agressor.
produzido pelo próprio pesquisador durante os Já no que diz respeito às VS’s dos
encontros. Outra peculiaridade do processo diz colaboradores, houve algo inusitado. No final de
respeito a uma colaboradora que produziu suas cada encontro, quando eles tinham a tarefa de
VS’s através de desenhos, o que apesar de destoar escrever o material sobre o que haviam vivenciado
do movimento do grupo, não impossibilitou a naquele momento, revelaram que ter um(a)
expressão do sentido da sua experiência, visto filho(a) abusado(a) sexualmente é uma experiência
que os significados presentes na produção foram carregada de dor e sofrimento, entretanto as VS’s
Relatos de Pesquisa

esgotados durante os encontros. retrataram mais o quanto o encontro foi significativo


do que a condição de genitor propriamente dito.
O investimento na escrita acabou sendo para
Resultados e Discussão falar sobre os benefícios de terem participado do
encontro, e quando falavam sobre si, faziam isso
Tendo sido concluídas as análises dos para além do papel de ser pai ou mãe da vítima
dados e entendendo que esses resultados falam de de violência sexual. Vejam-se, como exemplo,
um processo de transformação e mudança, foram os seguintes registros: “Esse encontro foi muito
escolhidos para os colaboradores da pesquisa gratificante pois me deu a oportunidade de expor
nomes fictícios que fazem referência a espécies minhas experiências, dificuldades e sofrimentos.”
de borboletas, na tentativa de preservar suas (Beltrão) e “Esse encontro foi muito importante
identidades e simbolizar o processo vivenciado por pois conheci pessoas diferentes, estórias de vidas
eles, que os mesmos nomearam de renovação. No diferentes e quase iguais à minha; está sendo muito
-

entanto, o pesquisador percebeu que o processo de bom participar desse grupo.” (Isabella)
renovação foi transforma(dor), visto que saíram do É possível, portanto, correlacionar com
A r t i g o s

“casulo” (lugar de sofrimento) e se perceberam como a literatura quando Costa et al. (2007) referem o
seres de outras possibilidades, como liberta(dores), quanto os genitores (as) sofrem com a repetição
em busca do novo sobre eles mesmos. da história do abuso. Pareceu que, ao chegarem no

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 265-274, set-dez, 2018 270
Grupo Interventivo com Genitores (as) de Crianças Vítimas de Violência Sexual

grupo e terem a oportunidade de serem cuidados, experiências, foi possível fazer relações entre a sua
eles acabaram se afastando do lugar de genitores (as) história e a história do outro, elencando diferenças
e começaram a cuidar de si como pessoas, para além e semelhanças, e isso fez com que eles pudessem
dos filhos ou da família. O movimento de foco no conhecer outras formas de lidar com as dificuldades
próprio processo pareceu estar associado à exaustão e construir, através do diálogo, novas maneiras de
que envolveu tratar do assunto abuso sexual. enxergar os fatos, o que certifica a operacionalidade
Como o segundo encontro teve o objetivo do método da hermenêutica colaborativa de
de favorecer o resgate da consciência histórica, Macêdo (2015) como um dispositivo de construção
foi possível perceber a partir das VS’s resultados conjunta e produção intersubjetiva de sentido.
que se referiam às mudanças nos modos de Como exemplo disto, podemos lembrar Isabela,
subjetivação (sentir, pensar e agir) e às estratégias ao afirmar: “Esse encontro foi muito importante
de enfrentamento desenvolvidas no processo. Ficou pois conheci pessoas diferentes, estórias de vidas
claro que o resgate de vivências passadas acabou diferentes e quase iguais a minha, está sendo muito
enriquecendo o enfrentamento dos dias atuais, tal bom participar desse grupo.”
como propõem as últimas produções científicas da Apresentando resultados mais recentes
autora da Hermenêutica Colaborativa e sua equipe da operacionalidade prática da hermenêutica
de pesquisa (a exemplo do proposto por Souza, colaborativa, estudos propõem que intervenções
Lima & Macêdo, 2017), e isto se deu porque muitas com o uso do método permitem o alívio do
características dos colaboradores que seriam sofrimento quando os colaboradores de uma
importantes para o enfrentamento do sofrimento ou pesquisa compartilham experiências, além de
das dificuldades atuais, acabaram sendo perdidas enfatizarem que conhecer a experiência do outro
com o passar do tempo e, através da atividade por si só favorece a ressignificação da própria
proposta no grupo, foi possível fazer esse resgate. experiência do sofrimento (Melo et al., 2015; Souza
Sobre isso, é preciso entender que, et al., 2017). Portanto, os resultados da presente
como já defendido por Paula (2011), o abuso é pesquisa também levam a refletir como a percepção
como uma ruptura, um evento traumático que do sofrimento alheio e a abertura conjunta para
talvez impossibilitasse os genitores (as) darem compartilhar o sofrimento são favorecedores da
continuidade aos projetos de vida; um marco na vida ressignificação da experiência e produção de novos
dos colaboradores, de uma forma que pôde tê-los sentidos.
paralisado no acontecido, o que acabou dificultando Ainda relacionado com o compartilhamento
vislumbrar novas perspectivas de vida e de futuro. de experiências, para os colaboradores, a
Dessa forma, ao chegarem no grupo, eles estavam oportunidade de conhecer novas pessoas, construir
focados no lugar de sofrimento e na experiência novos vínculos e fazer novos amigos é vista como
traumática vivenciada e, nesse processo de resgate, uma forma de enfrentamento do sofrimento, isto
puderam olhar para si, buscando outras alternativas porque se sentem mais fortalecidos por fazerem
para o presente e se conectando com quem eles parte de uma rede de apoio. Como dito por Costa
são através de quem eles foram no passado. Então, et al. (2007), após o abuso, é bastante comum que
esse processo de olhar para o passado pareceu a família da criança acabe entrando em um ciclo
representar tanto uma mudança de posicionamento de isolamento social por conta de todo julgamento
quanto uma forma de fortalecimento diante da moral a que acaba sendo exposta. Por esse motivo,
situação de violência enfrentada. Como mostram os estar em um grupo de pessoas que compreendem
exemplos de fala a seguir: o seu sofrimento e construir, a partir da troca de
experiências, vínculos sociais, parece ter sido um
Podemos perceber nesse encontro o quanto ganho muito significativo para os colaboradores.
fomos felizes e nem sempre percebemos, Sobre isso, Dirce, uma colaboradora, afirma: “Foi
porque antes não dávamos muito valor bom, encontrei uma nova amiga e falei o que estava
Relatos de Pesquisa
às pequenas coisas, mas são coisas muito sentindo.”
importantes que fazem a gente feliz. Outro resultado encontrado diz respeito
Saudade dos tempos de jogar bola com os à escuta e à expressão. Para eles, o exercício de
amigos e conversar. (Beltrão) ter sido escutado e a oportunidade de expressar
os sentimentos contribuíram no processo de
Falar do passado foi muito bom, porque melhora. Segundo as anotações do pesquisador,
relembrei de muita coisa boa que hoje não os colaboradores afirmaram que não costumavam
vivemos mais. Como sempre fui guerreira, dispor de um espaço onde podiam expressar a dor,
trabalhei muito cedo, mas agradeço a o sofrimento, os desejos e os projetos, e por isso
Deus e a meus pais por ter me incentivado parece ter sido muito significativo usufruir de um
a trabalhar, porque hoje, enfrento tudo e dispositivo que possibilitasse isto, principalmente
não tenho medo de enfrentar a vida hoje. por compartilhar desse lugar com outros (as)
(Claudia) genitores (as) que compreendiam a dor sentida. Eles
-

começaram a perceber que, a partir da expressão


No que diz respeito ao compartilhamento de seus sentimentos, o sofrimento vivido podia
A r t i g o s

de experiências, os colaboradores revelaram que florescer em novas perspectivas e vivências. Como


esse partilhar de histórias promoveu a diminuição é possível perceber na VS de Dirce: “Hoje foi bom
da dor. Segundo eles, a partir da troca de porque consegui falar o que estava sentindo.”

271 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 265-274, set-dez, 2018
Gledson Wilber de Souza; Shirley Macêdo

E no desenho de Sara: Com a finalização do processo, os


colaboradores revelaram o sentimento de renovação
diante da experiência vivenciada, comunicando
isto apesar da dor e do sofrimento ainda serem
presentes. Eles registraram, através da escrita das
VS’s, que a vivência dos três encontros possibilitou
cuidar do sofrimento e levar os dias de uma forma
mais saudável, mesmo não esquecendo a causa da
dor. São exemplos disso a colaboradora Dirce: “Para
mim foi bom. Renovada.” e Sara na VS produzida
através do desenho:

Figura 1. Coração que floresce.

Nessa VS (produzida no segundo encontro),


o desenho foi interpretado no terceiro encontro
como um coração que chega no grupo cheio de dor
e sofrimento, entretanto começou a florescer em
novas perspectivas. Aqui, é possível argumentar
que uma produção artística, como dispositivo de
expressão subjetiva e via de acesso à subjetividade
favoreceria, em um dizer merleau-pontyano (Silva,
1994), o pensamento sensível, pois que também
é linguagem falante. As VS’s de Sara estiveram Figura 2. Mudança.
carregadas de sentido, e a colaboradora, em sua
mudez de escrita, não deixou de revelar o sentido Na VS desenhada parece que a finalização
de sua experiência com uma riqueza de detalhes do processo no grupo permitiu uma mudança
que algumas VS’s escritas não conseguiam revelar. em modos de subjetivação da colaboradora. Um
A partir das anotações do pesquisador coração que chega machucado e outro que sai mais
e da análise das VS’s do terceiro encontro, foi leve. A religião, representada pela cruz, é outro
possível destacar dois sentidos em comum entre os instrumento de enfrentamento da violência.
colaboradores: o planejamento dos projetos futuros Interessante perceber que esse desenho
e o sentimento de renovação. Os colaboradores talvez represente o processo vivido por todos os
afirmaram que desenvolver projetos familiares é colaboradores, porque o estudo possibilitou uma
uma forma de melhorar a qualidade de vida, visto experiência de autocuidado que convocou os
que pensar no futuro é uma oportunidade de refletir participantes a olharem para o seu próprio caminhar.
sobre o momento atual sem necessariamente estar Eles foram convidados a repensar sobre quem
preso a ele. Percebeu-se que o mesmo paradigma são em meio a uma rotina repleta de distrações.
que envolve o resgate do passado se faz presente Utilizaram cada encontro como um degrau no
na projeção do futuro. Ao chegarem no primeiro processo de aproximação das suas singularidades
encontro, os colaboradores demonstraram uma certa e investiram nas suas próprias escolhas e desejos,
Relatos de Pesquisa

estagnação de vida no acontecimento do abuso, o que que por tantas vezes foram colocados em segundo
os impossibilitava de vislumbrar outros lugares. Ao plano em nome da família e das responsabilidades.
serem convocados a projetarem no último encontro Foi visível o quanto eles estiveram envolvidos com
o que estaria por vir, eles repensaram sobre esse a experiência e, mesmo sabendo quando seria o fim
lugar de sofrimento: “O encontro de hoje me fez daquele trajeto no grupo, em nenhum momento
pensar nos projetos familiares, o que podemos fazer deixaram de aproveitar o caminho.
para melhorar nossa qualidade de vida.” (Beltrão).
E Claudia também afirma que:
Conclusão
Quando cheguei no segundo encontro foi
surpreendente na forma que as coisas foram Tendo sido alcançados os objetivos
sendo conduzidas, coisas que não tinha propostos, os resultados dessa pesquisa reafirmam
nada a ver com o decorrer da situação, que grupos interventivos para genitores (as) de
-

fazia todo sentido. Que falar de hoje, foi crianças vítimas de violência sexual se configuram
maravilhoso. Porque falar de você mesmo como uma prática de cuidado e atenção a esse
A r t i g o s

é difícil olhar para dentro de você e poder público. Por este motivo, é importante que haja
falar de você. E falar do futuro é poder viver investimento na construção desses espaços com a
mais o presente. (Claudia) clareza de que, a partir disso, as instituições estarão

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 265-274, set-dez, 2018 272
Grupo Interventivo com Genitores (as) de Crianças Vítimas de Violência Sexual

prestando assistência não somente aos genitores Referências


(as), mas também aos seus filhos, entendendo que
a proteção e educação das crianças são perpassadas Amatuzzi, M. M. (1996). O uso da versão de sentido na for-
pelo processo pessoal dos pais e mães. No entanto, mação e pesquisa em psicologia. Campinas, SP: Alínea.
reconhece-se a necessidade de compreender a
Amatuzzi, M.M. (2008). Por uma psicologia humana.
singularidade de cada processo vivenciado.
Campinas, SP: Alínea.
É importante destacar que o instrumento de
coleta de dados (VS), apesar de ter possibilitado o Amatuzzi, M.M. (2009). Psicologia fenomenológica: uma
acesso às experiências dos colaboradores, limitou, aproximação teórica humanista. Estudos de Psicolo-
em certa medida, a profundidade do registro do que gia, Campinas, 26 (1), 93-100.
foi vivenciado nos três encontros, visto que muito
do que foi dito e experienciado não se fez presente Ayres, J.R.C.M. (2005). Hermenêutica e humanização das
nas produções escritas ou desenhadas. No que diz práticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 10 (3),
respeito às VS’s desenhadas, faz-se necessário uma 549-560.
reflexão sobre a ampliação das suas possibilidades
de produção (que até o momento se restringia a um Azevedo, M.A. (1997). Infância e violência doméstica:
relato escrito), já que, através de desenhos, também fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez.
foi possível a uma colaboradora expressar o sentido
de sua experiência. Boris, G.D.J.B. (2008). Versão de Sentido: um instrumen-
Por esses motivos, sugerem-se novos to fenomenológico-existencial para a supervisão de
estudos com o uso da VS a partir de outros tipos terapeutas iniciantes. Psicologia Clínica, Rio de Ja-
de registros linguísticos; assim também que sejam neiro, 20 (1), 165-180.
desenvolvidas pesquisas tendo como instrumento Conselho Federal de Psicologia (2009). Serviço de Pro-
de coleta de dados, para além da VS, a gravação teção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas de
em áudio dos encontros e o uso de diário de Violência, Abuso e Exploração Sexual e suas Famí-
bordo, objetivando registros mais completos das lias: referências para atuação do psicólogo. (1º ed).
vivências. Acredita-se que o aumento do número Brasília. Recuperado em 28 de outubro, 2017, de
de colaboradores e de encontros, bem como a http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2009/10/
possibilidade de desenvolver o estudo em outras CREPOP_Servico_Exploracao_Sexual.pdf
localidades, possa contribuir para o enriquecimento
da produção científica na área. Costa, L. F., Penso, M. A., Rufini, B. R., Mendes, J. A. A., &
Entretanto, apesar das limitações, foi Borba, N. F. (2007). Família e abuso sexual: silêncio
possível compreender que a metodologia utilizada, e sofrimento entre a denúncia e a intervenção te-
a hermenêutica-colaborativa, possibilitou rapêutica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 59(2),
muitos ganhos aos participantes do grupo. A 245-255. Recuperado em 24 de julho, 2016, de http://
operacionalidade prática dos encontros foi pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&-
absorvida pelos colaboradores como uma pid=S1809-52672007000200013&lng=pt&tlng=pt.
estratégia de autocuidado, visto que compartilhar
experiências, falar sobre o sofrimento e construir Garnica, A.V.M. (1997). Algumas notas sobre pesquisa
vínculos no grupo foram tidas como formas de qualitativa e fenomenologia. Interface - comunica-
enfrentar e minimizar a dor. ção, saúde, educação, 1(1), 109-122. Recuperado
Para os pesquisadores foi bastante em 24 de julho, 2016, de http://www.scielo.br/pdf/
gratificante perceber o alcance dos objetivos da icse/v1n1/08.pdf
pesquisa e ver o quanto o processo de renovação
e transformação também esteve relacionado ao seu Habigzang, L.F., Ramos, M. S., & Koller, S. H. (2011). A
próprio caminhar. A interseção entre cuidar da dor revelação de abuso sexual: As medidas pela Rede de Relatos de Pesquisa
do outro e ao mesmo tempo pesquisá-la, foi uma apoio. Psicologia: Teoria e Pesquisa. 27(4), 467-473.
experiência que contribuiu no desenvolvimento de Recuperado em 23 de julho, 2016, de http://www.
uma escuta mais sensível e uma postura profissional scielo.br/pdf/ptp/v27n4/10.pdf
mais empírica na vivência enquanto estagiário de
Lima, J.A., & Alberto, M. F. P. (2010). As vivências ma-
Psicologia. Somado a isso, a finalização do estudo
ternas diante do abuso sexual intrafamiliar. Estudos
possibilitou aos pesquisadores uma entrada mais
de psicologia, 15(2), 129-136. Recuperado em 23
segura no mercado de trabalho no que concerne à
de julho, 2016, de http://www.scielo.br/pdf/epsic/
demanda da violência sexual, a escuta psicológica
v15n2/01.pdf.
e o acolhimento de famílias nos serviços de
assistência social. Lima, M.C.P., Martins, K.P.H., Rocha, L.P., Parente Jr, P.A.,
Espera-se, dessa forma, que este estudo Castro, I.P., Pinheiro, N.M., Domingues, M. (2013).
contribua na sensibilização das instituições de Arte e mediação terapêutica: sobre um dispositivo
acolhimento desse público, assim como dos
-

com adolescentes na clínica-escola. Revista Mal-Es-


profissionais de Psicologia que venham a atender tar e Subjetividade, 13(3-4): 775-796.
essa demanda, no intuito de construir um olhar
A r t i g o s

e uma escuta mais sensíveis à delicadeza e Macêdo, S. M. (2000). Psicologia clínica e aprendizagem
complexidade que envolve o fenômeno estudado. significativa: relatando uma pesquisa fenomenoló-
gica colaborativa. Psicologia em Estudo, 3 (2), 49-76.

273 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 265-274, set-dez, 2018
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 265-274, set-dez, 2018 274
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.2

RELACIONAMENTO AMOROSO CONJUGAL


DURADOURO NA CONTEMPORANEIDADE:
UMA ANÁLISE FENOMENOLÓGICA DE VIVÊNCIAS
Long-lasting conjugal loverelationships in thecontemporaneity:
a phenomenological analysis of experiences

Relacionamiento amoroso conyugal duradero en la contemporaneidad:


un análisis fenomenológico de vivencias
Lucas Baptista Albertoni
Sônia Regina Corrêa Lages

Resumo: O objetivo central deste trabalho foi investigar como se configura a estrutura da experiência de relaciona-
mentos amorosos conjugais duradouros na contemporaneidade. Para empreender o estudo, foi feita uma pesquisa de
campo na região da Grande Belo Horizonte junto a pessoas que vivem essa modalidade de relacionamento, seleciona-
das a partir de critérios objetivos (amostra intencional). Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestru-
turadas e de caráter não diretivo, no intuito de preservar o dinamismo característico da experiência. Foram expostos os
trechos das entrevistas previamente gravadas e transcritas, que revelavam mais claramente o fenômeno investigado.
A análise fenomenológica se fez presente nesse momento e contribuiu para o alcance de unidades de sentido que, em
seguida, foram discutidas amplamente, após serem sintetizadas em dois eixos: 1) a experiência do amor conjugal dura-
douro enquanto desprovida do romântico; 2) a experiência do amor conjugal duradouro como abertura. Sendo assim,
na análise do modo como os sujeitos elaboram sua experiência, compreendeu-se a sua estrutura como integradora de
amor desromantizado e abertura.
Palavras-chave: Fenomenologia; Amor; Conjugalidade; Duradouro; Contemporaneidade.

Abstract: The main objective of this study was to investigate how the structure of the experience of long-lasting
conjugal love relationships is configured. To accomplish this endeavor, field research was conducted in the Greater
Belo Horizonte area with people selected through objective criteria (intentional sample), who experience the referred
relationship model. For the data collection, non-directive and semi-structured interviews were conductedin order
to preserve the dynamics of the experience. Excerpts from previously recorded and transcribed interviews, which
more clearly revealed the phenomenon investigated, were exposed. The phenomenological analysis was used at this
moment and contributed to the achievement of meaningful units, which were discussed more broadly after being
synthetized in two axes: 1) the experience of long-lasting conjugal love as deprived of romanticism; 2) the experience
of long-lasting conjugal love as openness. Therefore, in the analysis of how the subjects elaborate their experience, it
was possible to understand the structure as integrating non-romantic love and openness.
Keywords: Phenomenology; Love; Conjugality; Long-lasting experience; Contemporaneity.

Resumen:El objetivo central de este trabajo fue investigar cómo se configura la estructura de la experiencia de relacio-
namientos amorosos conyugales duraderos en la contemporaneidad. Para emprender el estudio, fue hecha una investi-
gación de campo en la región del Gran Belo Horizonte junto a personas que viven esta modalidad de relacionamiento,
Relatos de Pesquisa
seleccionadas a partir de criterios objetivos (muestra intencional). Para la recolección de datos, fueron realizadas
entrevistas semiestructuradas y de carácter no directivo, con la intención de preservar el dinamismo característico de
la experiencia. Fueron expuestos los fragmentos de las entrevistas previamente grabadas y transcritas, que revelaban
más claramente el fenómeno investigado. El análisis fenomenológico se hizo presente en este momento y contribuyó
para alcanzar unidades de sentido, que enseguida fueron discutidas ampliamente después de haber sido sintetizadas
en dos ejes: 1) la experiencia del amor conyugal duradero como carente de romántico; 2) la experiencia del amor con-
yugal duradero como apertura. Por consiguiente, en el análisis de la forma como los sujetos elaboran su experiencia,
se entendió su estructura como integradora de amor desromantizado y apertura.
Palabras-clave: Fenomenología; Amor; Conyugalidad; Duradero; Contemporaneidad.

Introdução cientes na tentativa de compreendê-lo. Quanto ao


empreendimento de tomar a investigação de uma de
-

Diante da multiplicidade de eixos e áreas en- suas manifestações, o amor conjugal, a situação ain-
volvidas no estudo do amor, há variadas complica- da se torna mais difícil, especialmente com a inser-
A r t i g o s

ções na abordagem do tema, que, em seus excessos, ção do qualificativo “duradouro”, que afunila o cam-
despejam incontáveis inferências capazes de gerar po e levanta curiosidades estimulantes ao debruce.
confusão e desorientação ou, por vezes, são insufi- Busca-se embasamento e orientação deste tra-
balho a partir da elucidação de conceitos vitais. O

275 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018
Lucas Baptista Albertoni; Sônia Regina Corrêa Lages

conteúdo abrange, dessa forma, um aporte teórico- do outro convida a pessoa a olhar para si mesma
-metodológico da Fenomenologia/Análise Fenome- e se posicionar.O protótipo de todo relacionamen-
nológica (Ales Bello, 2004, 2006; Amatuzzi, 1996, to social é uma conexão intersubjetiva de motivos.
2009; Husserl, 1952/2006a; Stein, 2003; van der Entender o mundo por meio de suas próprias expe-
Leeuw, 1933/1964), aproximação escolhida para se riências e compreender o outro implica a explicação
dirigir ao investigado. Isto significa entender que a das experiências individuais vividas em relação, e
discussão adquire um intuito de compreender a ex- tal processo de apreensão ocorre em um “espaço”
periência de amor conjugal duradouro do ponto de compartilhado. Amatuzzi (2009) diz que “o contex-
vista da pessoa que a vive. to da experiência é interpessoal: nascemos em um
O objetivo geral foi investigar como se confi- grupo humano e vivemos junto a outros.” (p. 96).
gura a estrutura da experiência de relacionamentos Sendo assim, a maneira fenomenológica de pensar
amorosos conjugais duradouros na contemporanei- considera o encontro das subjetividades.
dade. Ainda que exemplificativo do momento atual, Outro aspecto a ser salientado são os subsí-
este termo carece de especificidades que permitem dios trazidos pela fenomenologia para a definição
uma caracterização mais detalhada de um perfil de de pessoa, os quais guarnecem fundamentos para
indivíduo específico desta época. Por este motivo, a compreensão de uma estrutura comum humana.
encontra-se na literatura sociológica atual, possi- Por sua vez, as vivências têm particularidades que
bilidades de se compreender o retrato do indiví- delimitam pontos reveladores do ser humano e se
duo do agora através dos aportes dos proponentes configuram como bases da subjetividade, (Hus-
da“pós-modernidade”1. Se a leitura pode ser feita a serl, 1952/2006a; Ales Bello, 2004). Tais pontos são
partir dessa ótica, em que se está diante de uma ob- constituídos por três dimensões básicas: corpórea,
jetalização das relações, uma exacerbação de praze- psíquica e espiritual.2Diante disso, o entendimento
res imediatos, de fenômenos relacionais efêmeros e da subjetividade estende-se a uma proposta antro-
líquidos, onde se nota uma fragilização e um afrou- pológica que vai desde a diferenciação das quali-
xamento de laços na contemporaneidade (Bauman, dades de vivência até a legitimação de dimensões
2004, 2007, 2008; Illouz, 2011; Lipovetsky, 1989, distintas do humano.
2004, 1987/2009), por que algumas pessoas perma- Subjetividade, intersubjetividade e mundo, por-
necem em relações amorosas conjugais se há uma tanto, são discutidos todo o tempo conforme acontece
legitimação da desnecessidade de permanência? O o trânsito entre o pessoal, o interpessoal e a cultura,
que torna o duradouro possível? que assume significado mais ativo e vivo, contraria-
mente a um produto acabado (Amatuzzi, 2008).
A obra de Buber (1923/2015) dialoga com a
Referencial teórico-metodológico e
leitura fenomenológica de maneira mais próxima
procedimentos da pesquisa quando oferece consistência para se resgatar a pes-
soa dentro de um espaço inter-humano, a partir
Fenomenologia, subjetividade e intersubjetividade do conceito de “relação dialógica”,no sentido de
abertura ao outro. É necessário que esta relação e o
contato com a alteridade provoquem o contato com
A fenomenologiaevita dicotomias quando o a própria experiência e solicitem um nível de res-
assunto é subjetividade, pois articula sujeito e obje- posta mais profundo, pois só é possível vincular-se
to como elementos de uma mesma raiz. Dirige um quando o outro, ao invés de ser mero objeto, passa
olhar para o que brilha, o fenômeno,na observação a ganhar efetiva importância para a vida da pessoa
ativa de sua manifestação e na investida de sua que a ele se une (Buber, 1923/2015; Stein, 2003).
compreensão (Ales Bello, 2004, 2006). Ela permite
um entendimento da relação entre pessoa e mundo
através da análise da realidade enquanto percebida
por alguém, ou, nas palavras de Amatuzzi (2008): Análise fenomenológica e procedimentos
Relatos de Pesquisa

“Não é o mundo em si, mas o mundo tal como ex- metodológicos


perienciado pelo homem”. (p. 48). É tomando as
vivências e a vida da consciência como parâmetro A maioria das abordagens do tema se dedica
que se almeja uma compreensão do mundo do su- a análises históricas, antropológicas e sociológicas,
jeito e do contexto cultural, que é profundamente de modo que é notável uma necessidade de se lan-
alcançado pela investigação da subjetividade e, çar um olhar ao amor do ponto de vista da expe-
consequentemente, da intersubjetividade. riência da pessoa. O trabalho se centrou na volta
A vida humana acontece em um contexto com aos dados primordiais da experiência (Andrade e
outros humanos. Nesse sentido, pode-se dizer de Holanda, 2010), deflagrada na relação interpessoal
um nós, pois o mundo é comum, e todos vivem, e intersubjetiva entre os sujeitos. Barreira e Raniere
compartilham e interpretam esse espaço (Ales (2013) dizem que a entrevista fenomenológica tem
Bello, 2006). Todo o processo se dá pelo reconhe- uma maneira própria de funcionamento por não
-

cimento da alteridade, na medida em que o olhar partir de teorias prévias para se aproximar dos fe-
nômenos.
A r t i g o s

1 Embora o contexto atual seja muito referido como “contemporaneida-


de”, recebe inúmeros nomes, interpretações e leituras advindos de pontos Para evitar desvios, o trabalho utilizou de
de vistas distintos de autores diversos. Entre as várias concepções, estão amostragem intencional. Dedicou-se a encontrar
a de “pós-modernidade” ou “modernidade líquida”, do sociólogo polonês
Zygmunt Bauman, e a de “hipermodernidade”, do filósofo francês Gilles 2 Vale advertir que a palavra espírito em nada se relaciona com religiosi-
Lipovetsky. dade ou “entidade superior”.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018 276
Relacionamento Amoroso Conjugal Duradouro na Contemporaneidade: Uma Análise Fenomenológica de Vivências

pessoas representativas do recorte da investigação: o fenômeno investigado e é uma tentativa clara de


aquelas que declaravam que estavam em relação, descontaminar o conhecimento sobre o objeto (Gas-
que havia amor na relação e que consideravam vi- par &Mahfoud, 2010), por vezes carregado de pré-
ver relações amorosas conjugais duradouras. Foram -conceitos. A epochè, facilitando uma mudança que
buscados relacionamentos de longevidades diferen- abandona a atitude natural – quando se passa a ver
tes e, apesar de o trabalho contemplar uma amos- o mundo do sujeito como fenômeno –, abre espaço
tra pequena, tentou-se, ainda assim, formá-la com para a “redução fenomenológica” (Andrade & Ho-
alguma diversidade, pois como afirmam Gaspar e landa, 2010, p. 262),que pode ser entendida como
Mahfoud (2010), “quanto mais explicitamos dife- o recurso que propicia a aproximação da essência,
renças existentes entre um sujeito e outro, mais po- ou seja, aquilo que é verdadeiramente inerente ao
demos apreender com certeza e rigor a estrutura da fenômeno.
experiência investigada”. (p. 5). O trabalho seguiu os passos metodológicos
A escolha do local deixou-se a critério dos propostos por van der Leeuw (1933/1964): (1) lei-
próprios entrevistados. No caso de incômodo pela tura atenta e repetida das transcrições das entrevis-
falta de privacidade da própria residência ou dos tas; (2) releitura, tendo como eixo a vivência cons-
espaços conhecidos, disponibilizou-se um espa- ciente e a atenção às ressonâncias provocadas no
ço alternativo. O Centro de Psicologia Humanista pesquisador; (3) suspensão de convicções pessoais
(CPHMINAS), uma instituição sem fins lucrativos para a apreensão do sentido; (4) estabelecimento
que funciona atualmente em uma casa localizada de categorias iniciais em que se buscará ressaltar
no bairro Prado, em Belo Horizonte, possui uma as conexões de sentido existentes; (5) vivência de
estrutura com salas de atendimento que muito se compreensão do fenômeno e correção continuada
adequam a situações de entrevista, por serem priva- das análises por meio do retorno ao depoimento e
tivas e aconchegantes. ao que foi suspenso; (6) exame das compreensões
Realizaram-se oito entrevistas de caráter se- alcançadas em espaços coletivos e confronto com
miestruturado, gravadas em áudio, preservando-se o referencial teórico-metodológico adotado; (7) re-
as características próprias dos depoimentos de cada construção da experiência vivida pelo sujeito e for-
um dos entrevistados, no intuito de capturar o maior malização da experiência-tipo3 para acessar a com-
quilate da cena, para privilegiar o vivido. Optou-se preensão da vivência.
pela transcrição de três das entrevistas, acreditando Apoiado na fenomenologia enquanto referen-
que, por sua riqueza, pudessem revelar elementos cial teórico, entende-se que os âmbitos particulares
mais expressivos.Foram levados em consideração o da experiência (normalmente mais superficiais ou
grau de aprofundamento e a qualidade da descrição explícitos) provocam a emergência dos âmbitos es-
da experiência, haja vista que são requisitos para pecíficos a ela. Identifica-se o ponto de saturação
uma boa análise a partir dessa metodologia. de dados no momento em que algumas informações
As entrevistas fenomenológicas tiveram como obtidas no campo começam a repetir-se insistente-
ponto de partida uma pergunta norteadora do pro- mente, em direção a uma redundância. Para a feno-
cesso, voltada aos objetivos da pesquisa, ao mes- menologia, não se trata de uma repetição por inci-
mo tempo não denunciadora do problema central: dência de palavras, mas sim em relação ao retorno
“como é estar com (...) há (...) anos?”. Foi utilizado às unidades de sentido, as quais, ao serem analisa-
o critério característico de condução não diretiva, das, apontam para uma especificidade.
de modo a alcançar um nível de profundidade sa-
tisfatório, como expressam Smith e Eatough (2010).
O foco não é no material concreto ou nas informa-
ções genéricas (Amatuzzi, 1996), nem na opinião Apresentação dos resultados
dos entrevistados, mas na expressão da experiência
que subjaz à fala, pois “o depoimento não é sempre
Maria Rita: “é difícil”
Relatos de Pesquisa
a manifestação direta e imediata do vivido em ques-
tão”. (Amatuzzi, 2008, p. 59). Sendo assim, os entre-
vistados puderam transitar por onde encontraram Em uma agradável manhã de sol brando, “Ma-
mais sentido, o que assegurou um aprofundamento ria Rita”,4 uma senhora católica, se encontrava na
e genuinidade dos achados. O estudo preocupou-se janela de casa a contemplar o movimento da rua à
com o objetivo de manter o relato espontâneo, o que espera da minha chegada. Com um vigor invejável
não é o mesmo que tê-lo arbitrariamente (Barreira & para uma franzina mulher de 87 anos, ela veio, a
Ranieri, 2013). passos curtos e firmes, portando a penca de cha-
Em seguida, os dados foram trabalhados sob a ves e um olhar vexado. Fui conduzido até a sala de
luz da análise fenomenológica, que investiga a orga- estar, onde nos acomodamos um de frente para o
nização e a manifestação das vivências (Amatuzzi, outro, sentado eu no sofá e ela, em uma poltrona.
1996; Ales Bello, 2004). A epochè,atitude crítica de Estava visivelmente acanhada com a situação
suspensão de juízos, crenças e conhecimento teóri- de entrevista, mas o estranhamento se confirmou
-

co prévio (Ales Bello, 2004; Garnica, 1997; van der


Leeuw, 1933/1964), foi condição para a modalidade 3 Esta se refere exatamente a uma estrutura encontrada a partir dos
A r t i g o s

sentidos que se abrem aos sujeitos em suas experiências (van der Leeuw,
de análise escolhida, objetivando captar fragmentos 1933/1964).
essenciais constituintes do fenômeno. Tal atitude 4 Todos os entrevistados e as demais personagens presentes nas histórias
evita a sobreposição de categorias de sentido sobre narradas receberam nomes fictícios, segundo Termo de Consentimento Li-
vre e Esclarecido.

277 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018
Lucas Baptista Albertoni; Sônia Regina Corrêa Lages

passageiro, pois, mediante o início da conversa, que fez o alicerce aqui dessa casa. (...) Hoje em
uma certa tensão esvaiu-se. “É difícil” – ecoou a dia ninguém sabe o que é sofrimento não, (...)
voz aguda e delicada em resposta à pergunta sobre eu falo, eles nasceram em berço de ouro e não
como é viver há 67 anos em relação com “Seu Ema- sabe, não sabe o que tá falando ainda, viu.
nuel” (marido).
“Ser difícil” foi um termo usado no início e O aprofundamento na dita “dificuldade”, tão
permaneceu recorrente no depoimento. E não só enfatizada, acontece na rememoração de situações
o difícil como conectado ao relacionamento, mas fastidiosas vividas pelo casal. Ausência de dinhei-
também às próprias vidas. Elas aconteceram muito ro, perda de emprego do marido, dificuldade de mo-
tempo juntas, e isso é o que a entrevistada mostra radia, o trabalho na construção da casa, sem muita
no início da entrevista quando seu marido tratou de ajuda. Maria Rita ergueu a própria casa, tijolo por
toda a família em alguns momentos. Eles já estavam tijolo, junto com o marido. Ela apela a Deus, en-
juntos. Algo sob a dificuldade da situação familiar quanto a principal razão da superação de todos os
do marido ilumina os caminhos de uma admiração desafios, mas não deixa de reconhecer o trio: “eu,
de Maria Rita por Seu Emanuel. Deus e ele”, sugerindo que, além do poder divino, o
O assunto segue com fluidez para questões próprio casal era o único suporte, e que eles (Maria
ligadas ao tato cotidiano entre os cônjuges. Maria Rita, Emanuel e Deus) foram os responsáveis pela
Rita explica sobre situações de discórdia, apresen- construção de tudo. Nada obstante, delineia-se uma
tando um funcionamento específico do casal: cumplicidade e um companheirismo, que se anun-
ciam como parte de uma vivência do acompanhar
Às vezes, um respondia [brigando] e [o outro] um ao outro, do apoiar, às vezes por meio da sim-
não respondia. Aí ficava calado, fechava a ples presença nas situações corriqueiras que a vida
boca né... [Porque] se continuar, ia pra frente, presenteia. A camaradagem que permeia a convi-
né. (...) E foi indo assim (risos). Na mesma hora vência denota o entendimento dos dois, um ao lado
tava tudo do mesmo jeito, graças a Deus, viu. do outro.
(...) Ô.... ele nunca falou comigo: “Você não vai O final da fala revela como reconhece o tama-
sair!” (...) Ele nunca falou assim...5 nho de seu sofrimento, uma vez que crê ser inigua-
lável ao sofrimento das pessoas atualmente: “hoje
Parece que os cônjuges encontraram mecanis- em dia ninguém sabe o que é sofrimento não”. A
mos próprios e particulares de manutenção da rela- partir da análise dessa passagem, Maria Rita relata
ção. E é disso que ela trata anteriormente, após ter acreditar que conhece o sofrimento como ninguém,
expressado a admiração pelo marido. A mulher diz até porque são inúmeras as vivências de dor junto
que quando um “respondia” (no sentido agressivo ao marido.
da discussão), o outro “ficava calado”. Ou seja, ha- Um acontecido recente de semelhante sofrimen-
via uma vontade ou um dever de não contrariar. Ela to teria sido um acidente com Seu Emanuel. Ele exer-
complementa associando essa forma de relacionar ce, até hoje, com mais de 90 anos, o ofício de marce-
como peça chave para uma permanência juntos: “e neiro, mantendo sua oficina de trabalho no porão da
foi indo assim”. Essa maneira própria de adminis- casa. Muito provavelmente por causa da idade (já não
trar conflitos aparenta ser um tipo de sabedoria prá- bastasse o risco inerente ao trabalho), ele perdeu há
tica que está conectada a uma postura de tolerância. alguns meses um dedo na serra de corte de madeira.
De outra parte, certo respeito ou permissividade são Infelizmente, esse não foi seu primeiro acidente. A
similarmente identificados quando ela afirma que entrevistada conta sobre como foi a situação:
nunca sofreu de proibições do marido.
A história é permeada por dificuldades narra- Muito difícil, viu. (...) Tinha que por comida na
das. Repetidas são as vezes em que a entrevistada boca dele! Um dia, uma conhecida (...) veio com
Relatos de Pesquisa

dá o testemunho de solavancos resultantes do árduo o marido dela, né. (...) Eu fiquei sem jeito de dar
cenário da vida que levaram. Quando entra profun- ele o café, e sem jeito de não dar o café. Aí eu
damente nos obstáculos vividos, ela compartilha: peguei e fui molhando o pão, o biscoito na boca
dele e ia com o café. Aí o casal chegou em casa
Era sofrimento desde menina e depois que ca- e falou assim: “ó, se eu precisar você faz comi-
sou também. É uai, sem dinheiro. Essa cons- go assim, igual ela fez?” Aí o outro respondeu
trução aqui é Deus, porque não tinha dinhei- assim: “e se eu precisar, você faz?” E ficou por
ro, era o que ele ganhava. (...) Deus mandou isso mesmo (risos). (...) Aquelas máquinas são
a empresa, lá eles mandaram embora e Deus perigosas; três máquinas. Todo mundo quer que
ajudou que a gente veio pra cá. De noite, de ele pare. (...) Alá, máquina tá ligada (barulho de
manhã, e de madrugada, de sábado e domingo máquina ao fundo).(...) É perigoso sim, na hora
a gente fazia o alicerce aqui. (...) Eu, Deus e ele que as máquinas começam a rodar você precisa
de ver, ninguém vê elas rodarem não.
-

5 De forma a preservar a máxima fidedignidade dos depoimentos colhi-


dos, a transcrição da oralidade não sofreu revisão gramatical. As interven-
Maria Rita deu comida na boca de Seu Ema-
A r t i g o s

ções se restringem ao acréscimo de elementos em parênteses – para marcar


ênfase na fala dos entrevistados, reações como riso etc. – e em colchetes nuel. Fragilizado e incapacitado, ele precisava de
– para apontar conectivos e outras palavras omitidas das falas (elipses), cuja cuidado. A franzina senhora deixa escapulir um
ausência, na transcrição, poderia comprometer a apreensão do sentido por estranhamento ou constrangimento de fazê-lo, es-
parte do leitor.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018 278
Relacionamento Amoroso Conjugal Duradouro na Contemporaneidade: Uma Análise Fenomenológica de Vivências

pecialmente na frente de outras pessoas. Em segui- esfera de sua intimidade conjugal. Polyanna se sen-
da, manifesta orgulho, ao perceber que seu gesto foi te emocionada ao contar:
legitimado e apreciado pelo casal que visitava. Ela
ri da situação, claramente satisfeita. Pode ser que Aí a gente começou até assim... ir em tipo Can-
o gesto – de dar comida na boca de seu marido – ção Nova, sabe? (...)E a gente começou a ouvir
lhe parecesse uma grande exibição de intimidade, umas palestras, umas coisas, e lá aconteceu uma
e que justamente esse fato provocasse um recato de coisa com ela [Lurdinha, a companheira](...) ela
sua parte. Contudo, o prazer do reconhecimento re- falou assim: “ah, tive a impressão que... o Cristo
cebido sobrepôs-se ao desconforto. tava caminhando aqui” (voz engasgada, choro).
A despeito de seu cuidado, também a preo- Aí (...) teve um momento lá, que ela sentiu, como
cupação fez aflorar o amor pelo marido. A mulher se ela tivesse (...) tomado um choque... que fosse
apresenta ciência sobre os riscos de se trabalhar no seu corpo todo (...) E aí, ela me contou isso
com as serras, já que “ninguém vê elas rodarem”. quando a gente chegou em casa e tal.... (...) a
Ademais, quando afirma que “todo mundo quer que gente até chorou (chora bastante, pausa longa)
ele pare”, ela não se deixa de fora, dirigindo a mão (...) Aí nós conversamos e falamos assim: vamos
ao peito. Tanto cuidado como preocupação apare- fazer um negócio então? (emocionada, com fala
cem juntos nesse instante da entrevista. meio descontrolada) A gente vai é... abrir mão,
De uma forma geral, as adversidades enredam né (engasgada), (...) a gente vai parar de ter o re-
uma história comovente, saturada de eventos peno- lacionamento sexual. Aí ainda falei assim: “mas
sos e de condições desgastantes pelas quais, a duras nós não vamos parar de beijar nem nada não, e
custas, passou o casal. Tendo viva para si a condi- tal, porque aí também é demais”.
ção de dificuldade que permeou sua vida com o es-
poso, Maria Rita tem também consciência de que
desfrutou de bons momentos. Ela pontua, ao fim Lurdinha teve um potente contato com o
da entrevista, que ainda que a construção da casa transcendente; uma revelação. Polyanna, por sua
fosse tanto uma prioridade quanto uma urgência, vez, partilha com a companheira a vivência, como-
havia a chance de criar e aproveitar momentos de ve-se, demonstrando enorme cumplicidade. A troca
entretenimento e de descanso, afinal “não pode ser envolveu um diálogo, um compartilhamento e uma
só trabalhar também não”. decisão sobre o ocorrido, tendo Polyanna valoriza-
Por um breve momento, a impressão é de que do a importância do fato e da vivência de Lurdinha.
ela tenta “atenuar” a qualidade do sofrimento. Po- O evento instaurou um drama e um dilema
rém, constata-se que esse intento é uma organiza- que não era esperado, instigando naturalmente uma
ção interna para lhe ceder uma justificativa – de negociação. Explícita a necessidade de Lurdinha,
que podia se sentir bem –, pois já está muito claro Polyanna reivindicou: “mas nós não vamos parar de
que havia grande sofrimento. Sendo assim, a con- beijar (...) porque aí também é demais”. O confron-
clusão que parece apropriada não é de que ela que- to, em seu significado de convocação à presença, ao
ria abrandar o que de negativo lhe sucedia, mas de posicionamento e à produção de sentido da relação,
que o fazia enquanto solução para que pudesse usu- sucede.
fruir do prazer, que também era vivido. Percebe-se o quanto ter que abrir mão da parte
sexual da vida conjugal representou um esforço ou
um preço alto pago “por um amor maior”. Houve,
por fim, um consentimento quanto a essa abnega-
Polyanna: sacrifício em nome do transcendente ção, o que fez emergir uma experiência de renúncia,
que não se conecta apenas ao pacto de abstinência
Para um primeiro contato, Polyanna pareceu do sexo, mas, sobretudo, se refere à experiência de
relativamente tranquila. Sentada perto à beira do Polyanna quando esta abre mão de seus desejos e
vontades por Lurdinha (que trouxe a proposta ini-
Relatos de Pesquisa

sofá, repousando os cotovelos sobre os joelhos e


cabeça sobre as palmas das mãos, Polyanna inicia cial). A renúncia, portanto, significou um esforço
o relato de sua história de nove anos de relaciona- sofrido que implicou privação e abstinência, ou
mento, deixando vagar o olhar em busca do contato seja, um sacrifício pela necessidade da parceira.
com a experiência. Por seu amor e companheirismo e na tentativa de
Ela atravessa um primeiro instante onde com- favorecer a continuidade da relação, Polyanna con-
partilha como foi se descobrir homossexual e como sentiu.
foi a surpresa dessa descoberta. Assim, inaugura o À parte o amor religioso, que é um ponto cen-
assunto da relação atual, a qual não se deu por vias tral na relação, transborda também o amor conjugal.
da paixão, mas que representou grande impacto, Fazer permanecer o amor ou alimentá-lo se unia à
pois o vivido foi algo como um sentimento inédito- vontade de corresponder a essa expectativa, tão im-
-mágico. Ela mesma explica que “mágico” é apenas portantemente revelada. O gesto é uma explicitação
uma palavra para ajudar a descrição, para torná-la de doação. De uma forma geral, independentemen-
-

fácil, mas o que realmente deveria ser dito está além te da vontade de Polyanna de atender à demanda
das palavras. suscitada pela vivência de Lurdinha, o fato de tê-la
A r t i g o s

Em seguida, ela se dirige a um momento dis- tomado como fundamental no prosseguimento de


tinto, deixando de falar sobre o estabelecimento da sua própria relação demonstra a generosidade e o
relação em questão e entrando progressivamente na ímpeto de cuidar. O cuidado certamente se articula
com a renúncia, o sacrifício e a doação.

279 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018
Lucas Baptista Albertoni; Sônia Regina Corrêa Lages

Com o passar do tempo, segundo a narração da Às vezes, a gente olha pela emoção... do que
entrevistada, as coisas também mudaram para ela. a gente fez, ou se faz ainda (choro, voz trê-
Soube-se que, anteriormente, a proposta de absti- mula)... e fica uma (...) saudade [ênfase] de
nência em devoção partia de Lurdinha, mas Polyan- algo diferente (choro intenso), entendeu? (...)
na esclarece: por mais que a gente (...) goste, né, de alguma
coisa, a gente tem que tentar, entre aspas, é...
Com o tempo, a gente foi conversando mais (...) seguir um certo... entendeu?
e ficando mais religiosa, (...) aí nós entramos
num acordo de novo, e paramos de beijar. E Polyanna sente muita nostalgia de momentos
vamos viver agora como amigas e tal, mas as- anteriores do relacionamento, quando talvez por
sim... a gente não vai deixar de dormir junto... não conhecer ainda o que conhece hoje, se sentia
não vai deixar de brincar. Então, a minha vida muito livre para usufruir da relação. Quando afirma
hoje com ela... é como se... (engole seco) a gen- que “por mais que a gente (...) goste (...) a gente tem
te fosse... duas irmãs, entendeu? Mas é lógico que (...) seguir um certo”, ela, em outras palavras,
que o carinho e o amor, ele continua, ele vai está dizendo que por mais que sinta algo que consi-
ser eterno, né... (...) Igual uma vez nós vimos dere imoral, deve agir dentro do que para ela é uma
uma moça dando uma entrevista na televisão, moralidade e que representa um valor muito forte,
no estrangeiro, que ela dorme com rapazes, o que pode ser bem entendido a partir da passagem
e tal. Os rapazes pagam a ela pra dormir de a seguir:
conchinha, porque ela tem aquele negócio ali...
de atender as pessoas daquela forma e... (...) é Aí que veio essa questão dessa abstinência
comprovado que aquilo faz um efeito benéfico. nossa e tal... (...)Eu sou feliz do jeito que eu tô
hoje, e eu sou feliz na opção (engasgada) e no
Ela também sofre uma transformação, quan- que nós fizemos, né, mas... (...) eu falo assim:
do se torna mais devota e religiosa. O envolvimen- “mas será que a gente não precisaria de mais
to ocorre cada vez em maior grau de reciprocidade: coisa tipo, nem dormir junto (ênfase)... enten-
em Polyanna e em Lurdinha crescem a renúncia e o deu?” Pra ser um certo perfeito (engole seco).
sacrifício. Assegura nossa protagonista, no entanto, (...) Mas... eu sei que, acaba que, o amor, (con-
que o amor permanece e também o carinho, colocan- trolando o choro) ele até aumentou, entendeu?
do em evidência um companheirismo. Esse “viver (...) É legal como tudo isso que a gente fez, au-
junto” não inclui mais vivências afetivo-sexuais, de mentou mais, fortaleceu mais, entendeu?
modo que sugere uma mudança no amor conjugal
das duas, ou pelo menos, na manifestação dele. Mas A entrevistada vive um grande dilema: fun-
este amor “vai ser eterno” – isso é o que Polyanna crê. cionar segundo uma moral cristã, condenadora do
A entrevistada compara o que elas têm ao amor entre sexo homossexual, vivendo o que crê ser o certo e
irmãs, por não visar à satisfação sexual nem realizá- em harmonia também com as crenças da parceira,
-la. Mas o que fica bastante característico é a necessi- ou atender seu desejo de estar mais próxima e des-
dade de vivenciar formas particulares de realização frutar dos prazeres do sexo e de uma relação mais
emotivo-afetivas juntas. Sempre juntas. afetivo-sexual.
O mais curioso da situação é que, no caso das A partir de sua história, sabe-se que, atualmen-
duas amantes, há significativa diferença quando te, ela opta pela primeira opção, o que não exclui o
comparado à entrevista da televisão: ambas esco- autoquestionamento e alguma hesitação quando se
lhem “dormir de conchinha” apenas uma com a ou- flagra a si mesma em seu desejo. De outra parte, no
tra e não com qualquer um(a). A opção segue sendo momento que consuma qualquer ímpeto dessa or-
a de permanecer juntas. A vontade de dividir expe- dem, escorrega sobre o solo da culpa, denunciando
Relatos de Pesquisa

riências e de compartilhar a dimensão afetivo-emo- que o dilema é presente. O que se conclui é que
cional aponta para apenas uma pessoa: Lurdinha. a vontade de estar junto é maior, e Polyana afirma
Polyannanão hesita quando diz o seguinte: “com o veementemente que o amor aumentou diante de
passar do tempo, eu fui aprendendo a gostar mais toda essa tensão. Enfim, falar de amor por Lurdinha
(ênfase), a me apaixonar (ênfase)... e amar (ênfase), é falar igualmente do sacrifício que é lidar com seu
entendeu? Acredito sim que a paixão (...) não fica desejo ou com a renúncia dele.
eternamente, mas o amor sim, entendeu?
Ela acrescenta à concepção trazida sobre o
amor e aqui explica que ele é uma construção a pra-
zo e que a convivência o edifica, assim como o fez Castanheira: as picuinhas do convívio
na sua relação com Lurdinha. O momento “mági-
co”, segundo sua lógica, haveria servido para provo-
car a escolha da parceira; contudo, a sustentação da O homem tem estatura mediana e olhar cal-
-

relação seria realizada pelo assentamento do sen- mo; é relativamente calvo e usa óculos. Desde o
timento. Ela escolheu dar espaço ao amor em uma princípio, tive a impressão de moderada ansiedade,
A r t i g o s

relação inicialmente banhada de paixão. porém a percepção acabou por revelar o brilho de
Novamente, muita emoção irrompe quando ela uma imensa vontade de compartilhar sua história.
fala sobre as escolhas e a caminhada de sacrifícios: Em poucos minutos, o que era ansiedade se conver-
teu em entusiasmo. Sua narrativa é integralmente

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018 280
Relacionamento Amoroso Conjugal Duradouro na Contemporaneidade: Uma Análise Fenomenológica de Vivências

abundante em detalhes e envolvente em cada pe- que aparecem, senão às diferenças, desconfortavel-
queno fragmento. mente acentuadas pelo convívio. O policial Casta-
Castanheira é um policial recentemente refor- nheira mostra isso de forma simples e clara. Em sua
mado que vive mudanças provenientes da nova fase história, tolerância e negociação despontam como
de vida. Ele inicia seu relato trazendo o impacto in- imperativos, mas podem se anunciar de jeitos dife-
cipiente que afeta diretamente seu relacionamento rentes. Ele prossegue: “Isso também, (...) causa (ên-
conjugal: fase) um certo desconforto entre os dois. Você quer
até falar alguma coisa... mas você não quer magoar
É um baque muito grande... você passar 24 ho- ela também. Aí, você deixa pra lá... mas, às vezes,
ras com uma pessoa, mesmo que você tenha você tem que dar aquela espetadinha.
um relacionamento duradouro com ela, mas Apreende-se a negociação mencionada ante-
ali você vai passar a ficar 24 horas com ela. riormente e um tipo de cuidado: renunciar ao de-
Você acorda com ela e dorme com ela. Já era sejo da crítica e ponderar o ímpeto são artimanhas
assim... Agora o que você vai fazer de traba- para não magoar. Portanto, identifica-se uma estra-
lho em casa é com ela ao lado... Então começa, tégia desenvolvida para manter um bom funciona-
assim, umas picuinhas bobas... isso aí é fato mento ou para assegurar a manutenção da relação,
(ênfase)... não tem jeito... entendeu? ainda que, às vezes, tenha que ser dada “aquela es-
petadinha”.
Em uma mudança brusca na narrativa, Casta-
Conta sobre essa reconfiguração, pois passa a nheira apresenta um esboço de uma história que,
conviver mais intensamente com a esposa, por estar como todas as outras, deveria ser apenas mais uma
em casa a maior parte do tempo, ao seu lado. Nesse em que ele se envolve emocionalmente com quem
sentido, os dois são confrontados todo o tempo com se relaciona. E ele tem justificativas para convencer
as presenças um do outro, e a convivência, segundo que esse envolvimento seria como outro qualquer,
Castanheira, leva a “picuinhas”, que podem ser en- pois como pessoa é cuidadoso e solícito, além de
tendidas como implicâncias. “Já era assim”, ou seja, sensível. No entanto, foi diferente: a descrição não
já havia, pode-se dizer, aborrecimentos naturais ao diz do envolvimento com a mulher com a qual per-
convívio, entretanto, agora este é tão mais intenso manece por 33 anos, mas sim de um acontecimento
que gera essas amolações excessivas e inevitáveis – em que o objeto de amor foi uma cidadã que havia
“não tem jeito”. Ele prossegue: cometido um crime. O policial sublinha o que lhe
atraiu: a sensação de ser valorizado, pois ele tentava
Ela é uma mulher muito assim... além de ser prestar uma ajuda e a pessoa estava “reconhecendo
cuidadosa com tudo o que ela tem, ela é muito isso”, “sentindo isso”. Ele explica:
meticulosa, muito detalhista.(...)Porque inclu-
sive até quando eu faço ela vem corrigindo.... Na época, eu estava tendo um... como diz o
Você fica naquela... eu estou fazendo um ser- outro: um transtorno de relacionamento. (...) É
viço que vai ser corrigido. Além de ser vigiado, complicado, porque foi a única vez na minha
vai ser corrigido. Então pra que eu vou fazer? vida que eu esqueci o que eu sentia pela minha
Te desestimula. mulher, talvez até igual eu falei, provocado
pela situação geral né... e eu cheguei inclusive
O entrevistado avança, então, com uma des- a falar assim, no tapa (bate com uma mão na
crição da esposa em sua forma de ser e desempe- outra): “infelizmente não dá mais, eu vou pro-
nhar atividades, tentando explicar o porquê das curar outro relacionamento, até inclusive eu já
implicâncias. Sua mulher é “picuinha” com ele estou envolvido, e não dá mais pra gente ficar
porque é demasiadamente cuidadosa, meticulosa e junto”. A minha mulher saiu de 62 pra 48 qui-
detalhista. Em outras palavras, ela implica porque los... Você imagina o que ela sofreu... e calada.
Relatos de Pesquisa

quer tudo ao seu modo, e ainda que isso represente


uma qualidade, provoca desconfortos. Castanheira O momento representou algo muito único. Ele
por vezes se desestimula para tarefas do cotidiano, afirma que essa foi a única vez em que esqueceu o
que perdem o sentido quando se exige que sejam que sentia pela mulher, “provocado” pela situação.
performadas de maneira perfeita (na maior parte Entende-se que, na fixação do amor-paixão – cons-
das vezes, necessitam ainda de uma revisão). Ele tatado na provocação que menciona – escapa a pon-
se sente desconsiderado em seu esforço. Está mos- deração sobre o relacionamento com o qual tinha o
trando, portanto, algo que acontece mediante toda compromisso conjugal, e ele se deixa absorver com-
essa reconfiguração: uma desmotivação ou deses- pletamente pela outra mulher (ou é de alguma for-
timulação.Nota-se um realce dos problemas, clara- ma “capturado” pela conjuntura das ocorrências).
mente entendido como elemento do convívio e com O fato incontestável é o abalo experimentado pela
nuances incidindo na qualidade dele (as diferenças relação, demonstrado tanto pelo sofrimento da es-
-

entre ele e a esposa são percebidas como “baque”). posa (que perdeu 14 quilos) quanto pela iniciativa
Isto é, Castanheiraestá mais sensível a aspectos não momentânea de contar a ela sobre seu envolvimen-
A r t i g o s

antes captados. to com outra pessoa, em proposição do término do


Se as presenças confrontam o próprio casal, casamento.
infere-se que a permanência supõe a tolerância e Ele faz um relato detalhado de como foi o en-
a negociação frente a essas exigências e cobranças volvimento – desde o momento em que se apaixo-

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Lucas Baptista Albertoni; Sônia Regina Corrêa Lages

nou, até as consequências que ele gerou. Ao assumir serviram incrivelmente para fortalecer a relação. O
seu relacionamento extraconjugal, viveu as conse- policial mostra que uma de suas principais queixas
quências em casa e no trabalho: o distanciamento dos momentos ruins que a relação passou foi “ex-
da mulher, que estava em profunda amargura, e tinta”, mediante os eventos dramáticos conectados
um processo no trabalho. Foi um “inferno”, como ao relacionamento extraconjugal e às elaborações
cita Castanheira. No final das contas, foi livrado da do casal. A relação deixou de ser fria e distante e
acusação, mas a exposição dele e de sua esposa foi os dois fazem mais questão de expressar afeições:
tremenda, pois tiveram que prestar contas para a “a gente ficou mais chegado... mais atenção um ao
polícia. A esposa foi “convidada” a depor e se sur- outro (...) Até hoje a gente é como se fosse dois na-
preendeu ao saber a finalidade da intimação, mas morados. (...) cafuné, um carinho”. A adversidade é
reagiu de um modo inesperado, entrando em defesa comparada a um estímulo que “despertou” o casal
do próprio marido, o qual se espantou. de um adormecimento afetivo. Castanheira avança:
A forma como o homem expõe a história, me-
diante gestos, tom de voz e explicação dos fatos, Me arrependo muito... (...). Não só a exposição
sugere grandiosa admiração pela esposa. Em meio dela, mas o interno dela também, o interior. (...)
a tanto sofrimento, em meio à dor e à sensação de Ela saiu de 62 e foi pra 48 quilos. É muito sofri-
ter sido enganada, ela foi capaz de defendê-lo e ro- mento para uma pessoa só. (...) Eu sentia que
gar a continuidade da relação. Observando a paixão às vezes eu ia trabalhar e quando eu voltava
em que se encontrava e confiando em seu amor, ela ela tava com o olho inchado de chorar, quando
afirma sua posição. A partir disso, assimila-se a de- eu chegava em casa. Entendeu? É... E a minha
cisão de permanência através da confiança. No caso mulher, (...)não merecia, aí por isso meu arre-
da esposa, ela confiava na índole de Castanheira, pendimento. Ela não merecia que eu deixasse
na pessoa dele e, além do mais, em seu sentimento acontecer isso que aconteceu. (...) Eu acho que
por ele. Esses foram os fatores definitivos. O que ela tem o coração muito bom.
sucedeu foi o seguinte:
Não é difícil identificar, por inúmeras das fa-
Aquilo realmente, opa, acendeu uma luzinha, las, o cuidadoque tem com sua esposa. Ele se con-
né. Aí realmente, e dali pra frente a gente nun- sidera imensamente o seu bem-estar. Portanto, a
ca mais [falou do assunto]. A gente vê... eu noto culpa se faz presente quando relembra o mal que
que até hoje, mesmo passado muito tempo, (...) causou a alguém de tamanha importância, demons-
que ela vê uma cena de traição na novela, eu trando muita compaixão. Além do mais, “ficou uma
acho que ela remete o pensamento. ferida”, e isso confirma o quanto o ocorrido ainda é
atual na vida conjugal.
Ao vivenciar toda a situação, que envolveu Neste momento, as memórias do percurso vêm
tanto sofrimento, dor, mas também publicação de à tona, pois a participação dela em sua vida pro-
amor, desejo de prosseguir e vontade de superação fissional foi intensa. Novamente aflora o orgulho e
por parte da esposa, Castanheira diz que “acendeu fortalece a impressão de que há uma extraordinária
uma luzinha”, “foi uma luz vermelha de pare” – ges- importância atribuída à doação da mulher. Alguém
ticulou, apresentando a palma da mão. As marcas que o ajudava no serviço, que se sujeitava a algu-
são inevitáveis e ele nos mostra como não existe mas situações por ele, por seu amor e companhei-
“borracha” para apagar os eventos passados. No en- rismo. E toda essa memória é visitada com muito
tanto, prevaleceu o projeto a dois com a esposa, ain- carinho, com um gosto especial. Assim sendo, doa-
da pressupondo reflexos do ocorrido, os quais são ção, companheirismo e compreensão são palavras
irremediáveis. substanciais na relação desse casal.
Recontou com detalhes sobre o seu envolvi- Todo o prazer identificável nessa rememora-
Relatos de Pesquisa

mento extraconjugal, compartilhando as minudên- ção traz o policial para um encontro com sua re-
cias que configuraram sua história e sua experiên- lação atualmente. Ele se vê satisfeito, ao observar
cia e mergulhou na busca de causas para explicar o sobressaírem os gestos afetivos, o cuidado, a proxi-
ocorrido. A próxima transição, contudo, traz provo- midade. Talvez por receio de perder tais qualidades
cação e é excepcionalmente reveladora: relacionais, ele projeta o futuro com esperanças da
manutenção da relação, quando logo em seguida
Eu acho que isso aí foi uma experiência... Não afirma: “Felizmente este resgate está sendo dura-
precisava ter havido, mas houve e... através douro. Eu espero que não chegue naquele ponto que
dela, desse acontecimento, o nosso relaciona- chegou, lá no passado da gente... Espero que não
mento melhorou mil por cento. A gente ficou chegue nisso nunca mais”.
mais chegado... (...). Até hoje a gente é como Segundo ele, estar em relação duradoura tem
se fosse dois namorados. Tá parado os dois no a ver também com presenciar novidades constante-
sofá, vendo uma TV, cafuné, um carinho. En- mente. A convivência é uma progressão do aprendi-
-

tendeu? zado, algo que oferece oportunidades, inclusive de


questionar a vida, os sentidos e as crenças:
A r t i g o s

Os drásticos eventos que fizeram parte da vida


de Castanheira e sua esposa, apesar de terem gera- O mais engraçado, Lucas, é o seguinte: por
do tantos infortúnios, dores, sentimentos e mágoas, mais que você acha que conhece a pessoa,

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018 282
Relacionamento Amoroso Conjugal Duradouro na Contemporaneidade: Uma Análise Fenomenológica de Vivências

sempre tem uma novidade, e isso é que é o gos- presente, isto é, o espaço em que as experiências
toso. (...) A gente já foi católico junto, a gente já subjetivas se dão. Esta consideração demonstra que
foi umbandista quinze anos os dois juntos. (...) as essências estão para além da estrutura da pessoa,
Hoje ela é evangélica e eu que já fui evangéli- pois se localizam em uma realidade em que a pes-
co, hoje sou ateu. soa se situa.
A segunda compreensão possível do desro-
O casal, junto, passou a se conhecer mais, des- mantizado se conecta à sua natureza de indeter-
de os detalhes que advêm dos estímulos às presen- minação e incerteza. Albertoni (2011) afirma que
ças, até a companhia na descoberta e na afirmação “basta estar em contato para que as pessoas so-
das crenças. Tendo buscado juntos um contato com fram influências diretas em seus campos experien-
o transcendente, cada qual encontrou uma razão ciais” (p. 89), o que intensifica a torrente natural
que culminou em um sistema distinto; entretanto, de eventos inesperados. Isto nega a possibilidade
criou-se um novo desafio para o intenso contato e dos relacionamentos se etiquetarem incólumes de
novos ajustes conjugais. influências, ou principalmente daquelas que são
Na parte final da entrevista, sem se dar conta, efetivamente problemas. O real incide, balança e
ele retoma os assuntos do início, voltando às im- abala. Assim acontece naturalmente.
plicâncias presentes na convivência diária. Na con- Tomar os relacionamentos enquanto enqua-
cepção de Castanheira, o que o casal vive hoje é co- dres na ilusão do controle parece ser contrário ao
rolário de um processo natural do convívio de anos. duradouro. Na ciência de que há uma espontanei-
Uma nova fase, um novo momento a se enfrentar, dade de afetações corriqueiras e de que as paixões
o qual carrega consigo as dificuldades peculiares a no âmbito da psique são incontroláveis, assim como
ele. Em certo ponto, ele diz que “isso é nossa prova são os eventos ordinários pertencentes à esfera do
de fogo”, ou seja, assume que é como se essa etapa cotidiano e do real, se reconhece que os relacio-
fosse decisiva como provação para a vida conjugal. namentos amorosos conjugais duradouros não são
Ou seja, mais uma, entre várias outras já atraves- providos de garantias tranquilizadoras. Exatamente
sadas. Há uma ideia de naturalidade subjacente ao por essa razão, escala-se o potencial de duradouro
seu discurso. pela disponibilidade de aprofundamento na inde-
O conteúdo amoroso, entretanto, é irrefutável, terminação e incerteza com o outro.
saltando aos olhos em episódios alternantes, seja No caso da primeira entrevistada, o relato pro-
na tentativa do agrado, seja na disponibilidade de voca a impressão de um funcionamento preserva-
superar as dificuldades e os duros eventos do pas- dor de uma estabilidade e gera um palpite de que a
sado; seja na própria tolerância, ou no cuidado e no relação está se regando do controle contra qualquer
companheirismo. A entrevista é arrematada com a tipo de intercorrência. A análise do trecho irá reve-
expressão deste último, identificado nos entremeios lar, contudo, que Maria Rita e seu Emanuel agem
de seu desejo: quer se aventurar mais ainda com a com naturalidade e espontaneidade em seus mo-
esposa. Acampar e conhecer lugares. “Eu gosto de mentos de discórdia e intrigas, que não enunciam
mostrar novidades para ela” representa a aspiração vigilância ou monitoramento de seus passos. Ao in-
de introduzir-lhe o novo, mas, sobretudo, seu pro- vés disso, o convívio, em sua sabedoria, produziu
fundo anseio de vivenciar a vida com ela. um movimento interacional leve no desempenho
da conjugalidade. O mais evidente é sua aceitação
quanto à intransigência das vicissitudes, que soam
tão fluidas em sua narrativa como os câmbios da
Discussão dos resultados sombra diante do deslocamento do sol.
Os entrevistados demonstram como é prosai-
co e habitual ter a relação conduzida por curvas às
A experiência do amor conjugal duradouro enquanto vezes oblíquas, que prontamente movem a relação
Relatos de Pesquisa

desprovida do romântico para direções malquistas e destituem o lugar de


tranquilidade, exigindo adaptabilidade e resiliência
extraordinárias. O “jogo de cintura” e a maleabili-
O elemento desromantizado dos relaciona- dade são básicos enquanto instrumentos de perma-
mentos amorosos conjugais duradouros possui al- nência.
gumas características próprias, que foram eviden- Vislumbrando a incerteza e a indeterminação
ciadas a partir da experiência dos entrevistados. do amor, de uma forma geral, encontra-se a ausên-
A primeira delas é ser um acontecimento, isto é, o cia de receitas e de fórmulas para a sua durabili-
desromantizado é flagrado em seu lugar no dura- dade. Se a ideia ou o desejo era decorar o futuro
douro assim como o próprio duradouro é percebido mediante o sentimento presente, o abismo que está
em uma relação conjugal amorosa, ou, antes, como entre o agora e o depois imprime a realidade da con-
o amor em si é percebido em um relacionamento jugalidade: é impossível preparar o conto de fadas
conjugal. A tomada de consciência de que se está feliz dos anos conseguintes, indefinidos e à mercê
-

em uma relação duradoura sucede em um momen- de variáveis e fatores indomesticados.


to em que o duradouro já se encontra e que é uma O terceiro e último ponto a ser destacado é o
A r t i g o s

configuração. desromantizado enquanto desidealizado e medío-


Ponderação e reflexão estão envolvidas nos cre. A fantasia é algo infalivelmente presente, pois
relacionamentos, mas o aspecto de “acontecimen- há o desejo máximo de realização. Por este motivo,
to” diz respeito ao encontro com uma objetividade

283 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018
Lucas Baptista Albertoni; Sônia Regina Corrêa Lages

haverá esforços desmedidos no desenho de um pro- A experiência do amor conjugal duradouro


jeto ideal. No entanto, quanto mais incide o tempo, enquanto abertura
menos capricho imaginativo de irrealidades e mais
doses de verdades. Isso é uma rasteira no desejo de A abertura enseja os potenciais que o durar
perfeição incitado pela idealização – uma desro- exige: é apenas mediante sua ingerência que se con-
mantização que assola as partes. De acordo com a verte possível a experiência das adversidades que
contribuição de Rogers (1976), pode-se inferir que envolvem extremos e convidam a experimentações
a fantasia de uma relação sem conflito está fora de contrastantes: prazer e desprazer, alegria e sofri-
parâmetros reais e assim fadada ao fracasso, pois os mento, altos e baixos, no inconstante leva e traz que
relacionamentos são construções que exigem traba- a dinâmica pendular da vida incute. A abertura se
lho e até mesmo malabarismo para serem mantidos. mostrou tanto como decisão de permanência como
Com ou sem rodeios, a centralidade das nar- acontecimento do duradouro.
rativas se volta para uma simplicidade e uma me- Do campo de uma psicologia perceptual,
diocridade corriqueiras, em que não se pleiteia ou como localiza Saint-Arnaud (1984), há um prima-
brota um feitiço realizador eterno. Polyanna, a se- do da subjetividade pelo qual se caminha na dire-
gunda entrevistada, até expõe como foi presenteada ção do entendimento da pessoa humana. Isso não
inicialmente em sua relação pelo “pó do encanta- escapole de um prisma fenomenológico em que se
mento”, cujo propósito era sinalizar-lhe seu destino lida com a realidade enquanto percebida por al-
com a parceira. Plausível e indubitável, até porque guém. Tomando neste momento o referencial sub-
a experiência é uma realidade a trazer consigo uma jetivo, rema-se para a área das decisões que defi-
verdade, mas há de se convir que a “polinização” nem a permanência em relacionamentos amorosos
não foi suficiente para garantir a fecundidade da conjugais duradouros.
permanência do encanto, já que ambas passaram A relação se mantém quando cada uma das
por graves dilemas e sofrimentos. Mais clara é a ex- partes resolve permanecer, quando cada uma deci-
periência do policial quando conta que sua relação de investir e trabalhar na manutenção do projeto.
implicou exposição, perdas, julgamentos em uma Arrebatados pelo cotidiano, por eventos dramáti-
situação específica, mas que também traz provoca- cos ou catastróficos (não importa de que ordem), os
ções e desentendimentos cotidianos. envolvidos podem ser provocados a um confronto
Embora a visão de um amor desromantizado se com o outro e consigo mesmos, e o posicionamento
mostre, não tem como intenção sugerir desesperan- será obrigatório: ele é uma exigência da realidade.
ça no amor e nos relacionamentos, cujos atrativos, Neste ponto, as contribuições de Ales Bello (2004,
prazeres e realizações são claros. Porém, desperta a 2006) ajudam a compreender o registro ético do
crítica e o olhar para o real da relação, que é alheio espírito na tomada de decisões, pois é justamente
à opulência arrogante do lirismo. o espaço subjetivo que cuida das ressonâncias do
Se por algum momento pode trazer aversão psíquico. No caso dos entrevistados, houve a afir-
com sua presença, o amor desromantizado é anta- mação da continuidade apesar dos intempéries.
gonicamente aquele que defere a durabilidade, pois A história de Castanheira mostrou bem como
permanece a relação que o suporta e que com ele o momento de traição convocou as presenças para
dialoga. Os depoimentos trazem as marcas de so- se ocuparem de seus destinos, pois a esposa este-
frimentos que parecem fazer parte da longevidade. ve diante do dilema de romper a relação ou não,
Frankl (1977/2015) declara que o núcleo da discus- considerando-se a infidelidade e, por consequên-
são não deve estar no sofrimento em si ou no prazer, cia, dor e exposição experimentadas.Com Polyan-
mas no posicionamento frente a ele(s) e, embora na não foi diferente. Diante das circunstâncias,
afirme repetidas vezes que há produções de senti- houve a necessidade de reafirmação do programa
do que podem ser feitas sem sofrimento, em algum conjugal: renunciar ou não aos prazeres do corpo?
trecho de suas ponderações, deixa dúvida quanto à Nada mais difícil que realizar esta escolha que,
Relatos de Pesquisa

probabilidade de que ele seja evitado.6 de maneira geral, envolvia necessariamente uma
A conjugalidade pode passar por ritos luxu- renúncia. Resta apenas aceitar e reconhecer que
riantes ou cerimônias solenes, por ostentações sun- “fica uma (...) saudade” do que já foi vivido e de
tuosas ou pelo avassalamento designado pela pai- algo diferente da configuração recém estabelecida
xão. No entanto, a posteriori não se prestará tanto a com estas privações.
juramentos e se estabelecerá em convívio modesto. Muitas vezes, as pessoas extraem sentidos
Tal forma de realização visa ao compartilhar, e ele diversos que estimulam as novas decisões de con-
se dilui nas pequenas causas e coisas da costumeira tinuidade de forma fluida. Embora a narrativa de
rotina. É definitivamente desromantizado porque Maria Rita expresse uma naturalidade convincen-
sai de um plano especialíssimo para se tornar, de te de desdobramentos que sucederam em sua vida
um modo, igual aos outros, medíocre. conjugal, não é por este motivo que se pode as-
sumir um enfraquecimento de decisões. Sua ética
-

subjaz cada momento onde se porta ao lado de Seu


Emanuel para seguir enfrentando as adversidades.
A r t i g o s

6 “O sentido é possível mesmo a despeito do sofrimento – desde que, Do ponto de vista da subjetividade, é notório como
naturalmente, o sofrimento seja inevitável. Se ele fosse evitável, no entanto, o aspecto “abertura como decisão” se faz presen-
a coisa significativa a fazer seria eliminar sua causa, fosse ela psicológica, te todo o tempo.Peter (2005) alerta que não deve
biológica ou política”. (Frankl, 2015, p. 138). A palavra grifada pelo próprio
autor cria o problema: “se ele fosse”é porque não é? haver qualquer sinal de espanto ao se falar de “de-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018 284
Relacionamento Amoroso Conjugal Duradouro na Contemporaneidade: Uma Análise Fenomenológica de Vivências

cisão de amor”, simplesmente pelo fato de que é -se uma forma de fazer laços em uma experiência
possível. A decisão é então um ato não instintivo e social que acontece e que representa uma abertura
voltado ao sentido. elementar.
Já a abertura como acontecimento do duradou-
ro aponta para uma verdade para além da decisão
da pessoa. Sim, pois o decidir ocorre em um plano Considerações Finais
que é igualmente abertura antecipada à decisão de
permanência nos relacionamentos. O duradouro
Das unidades de sentido apreendidas com
aponta para o abrir-se ao amor (e, em consequência,
base nas experiências subjetivas presentes nos de-
ao continuar amando), neste movimento que é cria-
poimentos, acompanhou-se o movimento de mostra
tividade e geração.
do duradouro, que acabou por se situar entre os do-
Em todos os depoimentos, observou-se um
mínios do desromantizado e da abertura. Esse foi o
tipo de cadência de acontecimentos que destapa-
ponto central do encontrado, por compreender os
ram um mistério de permanência. Deparar-se com
dois referidos elementos enquanto estruturantes da
o duradouro é compreender que aquela relação só
experiência investigada, classificada como expe-
permaneceu por via de uma brecha para o porvir.
riência-tipo dos relacionamentos amorosos conju-
Peter (2005), recorrendo às ideias de Viktor Frankl,
gais duradouros.
diz que o homem é transcendente, ou seja, dirige-se
O desromantizado se destacou como resul-
ao mundo, sendo este um espaço denso de seres e
tante de uma série de condições sugestivas de uma
de significados a serem realizados. Sem explicar a
experiência desprovida de determinação e certeza.
durabilidade dos relacionamentos, os entrevistados
Por outro lado, também se mostrou carente de idea-
expõem as histórias e a continuidade dos mesmos
lização e importância sobrenatural, as quais são
como fatos brutos, tomando-as como este espaço de
características que eventualmente fazem parte de
realização possível.
relacionamentos em processo de adesão e engaja-
Mahfoud (2012) chama atenção para o ponto
mento. Ademais, seu caráter de acontecimento, que
imprescindível da espera, que também se configura
é prévio às decisões, também traz provocações acer-
como abertura. Articula o sentido com a expectativa
ca de seu mistério e de sua intransigência.
de uma correspondência de algo que valha a pena
Com efeito, o desromantizado é definitivamen-
e que seja realizador. Seu ponto de vista fica mais
te parte dessa experiência-tipo. Entretanto, coexiste
claro quando fala de como isso acontece a partir do
e interage com a abertura que se sustenta enquanto
contato com outra pessoa: promessas e expectativas
decisão e acontecimento, na qual alguém a expressa
são geradas e significam, por si só, uma experiência
em ação de posicionamento ou que, de repente, é
de abertura que é realização. No entanto, a realiza-
vista como o algo que antes da decisão já funda as
ção não está apenas no cumprimento das promes-
relações e o seu durar. É a abertura que coloca os se-
sas, mas também na “experiência de abertura, con-
res diante do mistério vindouro. Enfim, o amor des-
creta, ainda que limitada” (p.211), que abre espaço
romantizado e a abertura são os componentes mais
para possibilidades de realização sempre maiores.
essenciais da estrutura do relacionamento amoroso
Neste sentido, ainda que em todos os depoi-
conjugal duradouro.
mentos seja possível identificar uma espera de pos-
Por fim, em respeito ao tema, duradouro ou
sibilidades em um horizonte futuro, também são
não, inexistem fórmulas e receitas para controlar o
exibidas as evidências de uma realização constante.
amor em sua essência. Esse desfecho de uma ideia
O policial Castanheira se lamuria a respeito das pi-
também desromantizada não deve ser encarado
cuinhas da relação, porém, declara, em alusão às
como ultraje, mas sim enquanto a verdade mais
realizações que são cotidianamente presentes, que
simples, antiga e agora renovada sobre o fenôme-
“sempre tem uma novidade, e isso é que é o gostoso”.
no. Tampouco a abertura pode ser agarrada: ainda
Além disto, as promessas e os anseios são conco-
que exista a chance de voluntariamente abrir-se em
Relatos de Pesquisa
mitantes: “eu gosto de mostrar novidades para ela”.
operação de decisão, há uma mistura de responsa-
Buber (1923/2015) usa o termo “relação dia-
bilidade com hesitação, por localizar-se também em
lógica” para designar a qualidade da relação que é
meio a obscurantismos e ares nebulosos, demons-
totalidade e fundamento da existência do homem.
trando que há uma parcela de indeterminação e
Este autor apresenta sua noção de outro enquanto
descontrole também sobre ela.
aquele que não se reduz a um mero objeto. Essa ex-
periência estruturante se concretiza na confirmação
mútua entre dois parceiros através de abertura. Von
Zuben (1981) reafirma o “entre” colocado por Bu- Referências
ber enquanto o local mais importante da relação, Albertoni, L. B. (2011). As atitudes transferenciais e a
no qual acontecem os eventos autenticamente hu- ACP. Revista do NUFEN, 3(1), 65-91.
manos. Sobre o amor, Buber (1923/2015) profere:
“o amor acontece (...) Não está ligado ao Eu de tal Ales Bello, A. (2004). Fenomenologia e ciências humanas:
-

modo que o Tu fosse considerado um conteúdo, um psicologia, história e religião. Bauru: EDUSC.
objeto: ele se realiza, entre o Eu e o Tu”. (p. 59).
A r t i g o s

O amor, nesse ponto de vista, é um formador Ales Bello, A. (2006). Introdução à Fenomenologia. Bau-
de vínculos e ultrapassa o sentimento, tornando- ru: EDUSC.

285 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018
Lucas Baptista Albertoni; Sônia Regina Corrêa Lages

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A r t i g o s

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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 275-286, set-dez, 2018 286
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.3

GESTALTPEDAGOGIA E RELAÇÃO DIALÓGICA:


CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO DE
PROFISSIONAIS DE SAÚDE

Gestaltpedagogy and dialogical relationship: Contributions for the training of health professional

Gestaltpedagogia y relación dialogica: Contribuciones para la formación de profesionales de la salud

Graciana Sulino Assunção


Elizabeth Queiroz

Resumo: A influência da qualidade da relação profissional de saúde-paciente no tratamento das doenças e na promo-
ção de saúde tem indicado necessidade de assistência fundamentada na integração das competências técnicas e rela-
cionais. A Gestaltpedagogia apresenta-se como possibilidade para ensino de ações que envolvam saúde e educação. Os
elementos do interhumano, que caracterizam uma relação como dialógica para Buber, apresentam-se como proposta
para formação de profissionais de saúde. Este artigo objetiva apresentar as contribuições de um programa de interven-
ção gestaltpedagógico, com enfoque na Relação Dialógica, para o ensino do tema “Relação profissional de saúde-pa-
ciente” em estudantes dos cursos de graduação em saúde da Universidade de Brasília, constituído por uma Oficina
de 10 encontros. Participaram deste estudo cinco estudantes. Foi realizada análise compreensiva dos dados resultados
desta pesquisa-ação. Constatou-se que a Oficina propiciou integração entre teoria e prática; incremento para formação
humanizada e espaço de abertura para exposição de opiniões e discussão multiprofissional, tendo sido efetiva para
ensino da relação profissional de saúde-paciente. Participantes avaliaram a intervenção como relevante e necessária
para formação. Espera-se que seja reaplicada e contribua para formação dos profissionais de saúde, e em longo prazo,
para possíveis transformações na qualidade da assistência integral à saúde dos pacientes.
Palavras-chave: Relação profissional de saúde-paciente; Formação em saúde; Gestaltpedagogia; Dialógica.

Abstract: The influence of the quality of the healthcare professional-patient relationship in the treatment of diseases
and in the health promotion has indicated the necessity of assistance based on the integration of the technical and
relational competences. The Gestaltpedagogy presents itself as a possibility for teaching actions involving health and
education. The interhuman elements, which characterize a relation as dialogical for Buber, are presented as a proposal
for the training of health professionals. This article aims to present the contributions of a gestalt pedagogical interven-
tion program, focusing on the Dialogical Relation, to teach the theme “Healthcare professional-patient relationship” in
students of undergraduate health courses at the University of Brasília, constituted by a Workshop of 10 meetings. Five
students participated in this study. A comprehensive analysis of the data from this research-action was performed. It
was found that the Workshop provided an integration between theory and practice; increment for humanized training
and made it possible to present opinions and multiprofessional discussion, having been effective for teaching the pro-
fessional relation of health-patient. Participants assessed the intervention as relevant and necessary for their training.
It is expected that it will be reapplied and contribute to the training of health professionals, and in the long term, to
possible changes in the quality of integral assistance of patients. Relatos de Pesquisa
Keywords: Healthcare professional-patient relationship; Health training; Gestaltpedagogy; Dialogical.

Resumen: La influencia de la calidad de la relación profesional de salud-paciente en el tratamiento de las enfermeda-


des y en la promoción de la salud ha indicado necesidad de asistencia fundamentada en la integración de las compe-
tencias técnicas y relacionales. La Gestaltpedagogía se presenta como posibilidad para la enseñanza de acciones que
involucran salud y educación. Los elementos del interhumano, que caracterizan una relación como dialógica para
Buber, se presentan como propuesta para la formación de profesionales de la salud. Este artículo tiene como objetivo
presentar las contribuciones de un programa de intervención gestaltpedagógico, con enfoque en la Relación Dialógica,
para la enseñanza del tema “Relación profesional de salud-paciente” en estudiantes de los cursos de graduación en
salud de la Universidad de Brasilia, constituido por un Taller de “ 10 encuentros. En este estudio participaron cinco
estudiantes. Se realizó un análisis comprensivo de los resultados de esta investigación-acción. Se constató que el Taller
propició integración entre teoría y práctica; El incremento para la formación humanizada y el espacio de apertura para
la exposición de opiniones y la discusión multiprofesional, habiendo sido efectiva para la enseñanza de la relación
-

profesional de salud-paciente. Los participantes evaluaron la intervención como relevante y necesaria para la forma-
ción. Se espera que sea reaplicada y contribuya a la formación de los profesionales de la salud, ya largo plazo, para
A r t i g o s

posibles transformaciones en la calidad de la asistencia integral a la salud de los pacientes.


Palabras clave:Relaciónprofesionalde lasalud-paciente; Formación ensalud; Gestaltpedagogía; Dialógica.

287 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 287-297, set-dez, 2018
Graciana Sulino Assunção; Elizabeth Queiroz

Introdução 1923/2004; Mendonça, 1995). Para Martin Buber


(2007), a existência humana só pode ser compreen-
A interação com o paciente é reconhecida dida em relação, pois para que o homem exista
como valiosa e crucial na construção de uma assis- como humano é necessário que exista também ou-
tência humanizada (Nakano, 2013). À medida que tro homem com quem ele possa se relacionar. Men-
se avança nas pesquisas e reflexões sobre a temática donça (1995) acrescenta que para Buber o distintivo
da relação profissional de saúde-paciente, seja nos do homem não é sua racionalidade e sim sua capa-
aspectos específicos de cada profissão da área da cidade de ser dialógico, de constituir-se no “entre”.
saúde, seja na humanização dessa relação ou nas O entre (Zwieschen) é entendido como o espaço on-
habilidades interpessoais necessárias para uma re- tológico, gerador do ser do homem (Zuben, 2003).
lação de qualidade, depara-se com a discussão da Buber (1923/2004, 2007) reconhece a dimen-
formação dos recursos humanos em saúde (Abbad, são ontológica no encontro entre pessoas e identi-
Parreira, Pinho & Queiroz, 2016; Araújo, 2011; Ba- fica alguns elementos que se manifestam neste en-
tista & Batista, 2004;Costa & Pereira, 2015; Mitre et contro homem-homem, os quaisestão no domínio
al., 2008; Sucupira, 2007). do interhumano e caracterizam uma relação como
Branch Jr. et al. (2001) apontam que apesar de dialógica. Didaticamente, eles podem ser organiza-
repetidos apelos sobre a importância da humani- dos como presença, comunicação genuína, confir-
zação do cuidado em saúde durante a formação de mação e inclusão (Buber, 1923/2004, 2007; Hycner,
profissionais, são pouco conhecidas técnicas real- 1995; Hycner&Jacobs, 1997; Zuben, 2003).
mente eficazes de se fazer isso. De acordo com esses Presença é o elemento fundamental para uma
autores, a formaque se supõe que a atitude humani- relação dialógica. Estar presente é uma atitude que
zadaé aprendida pelos estudantes seria por meio da vai muito além da presença física, é estar disponí-
observação, tendo os membros do corpo docente de vel, ser autêntico, deixando-se tocar e mobilizar
sua formação como modelos. pelo que acontece na relação. Significa, pois, trazer
Para Muniz e Chazan (2010), a conduta que o para a relação a plenitude de nós mesmos (Buber,
professor demonstra no encontro professor-aluno1, 1923/2004). Buber (1965, conforme citado por Hyc-
tem muito mais alcance do que o que é dito. Bran- ner & Jacobs, 1997, p. 39) define presença como um
ch Jr. et al. (2001) afirmam que encontrar um jeito “voltar-se para o outro”. Essa atitude possibilita o
de ser verdadeiro e humanizado nas interações com encontro, a abertura ao diálogo e o contato pessoa
os estudantes, pode ser tão eficaz quanto tentar se a pessoa.
expressar humanisticamente nas interações de cui- Comunicação genuína e sem reservas é a dis-
dado com os pacientes. Portanto, uma maneira de posição para se envolver honestamente no diálogo
embasar os futuros profissionais de saúde na cons- e também criar condições para isso acontecer. Sem
trução de um relacionamento humano com o pa- reservas, vale ressaltar, não significa sem discerni-
ciente é vivenciar a relação professor-aluno de for- mento. Palavras ditas impulsivamente, não relevan-
ma significativa (Esperidião, 2003). tes à tarefa, podem atrapalhar o diálogo genuíno.
Assim, tanto na relação do profissional de saú- O que deve ser sem reservas é a disponibilidade
de com seu paciente quanto na relação do profes- para um diálogo verdadeiro (Buber, 2007; Hycner,
sor com os estudantes de cursos da área de saúde, 1995;Hycner & Jacobs, 1997). Isso implica em dizer
expressa-sea necessidade de focar no desenvolvi- genuinamente o que for necessário para o desen-
mento tanto de competências técnicas quanto rela- volvimento da relação já que “em geral os homens
cionais, cuidar tanto da competência interpessoal não falam realmente um-ao-outro, mas, cada um,
do aluno quanto do desenvolvimento das habilida- embora esteja voltado para o outro, fala na verdade
des técnicas específicas de cada profissão, propor- a uma instância fictícia, cuja existência se reduz ao
cionando uma formação integral desses estudan- fato de escutá-lo” (Buber, 2007, p. 145).
tes-profissionais (Esperidião, 2001;Branco, 2003, Outro elemento da essência da relação dialógi-
Relatos de Pesquisa

Mello Filho & Burd, 2010). ca é a confirmação. O ser humano tem a necessida-
Pensar na mudança dos modelos de assistên- de de ser confirmado para se sentir visto e valoriza-
cia e no ensino na saúde implica em contemplar as do como pessoa. “Existimos enquanto pessoas que
pessoas que formam o sistema. Neste sentido, con- necessitam ser confirmadas em sua singularidade
siderar a especificidade da relação profissional de por pessoas que são essencialmente outras singula-
saúde-paciente, tão criticada e debatida no contexto ridades” (Friedman, 1985, p. 119). Tal confirmação
da saúde, é antes de tudo abordar questões relati- não significa uma aprovação, mas uma aceitação do
vas à relação humana (Canto, Machado, & Manfroi, outro como parceiro de uma conversa genuína. “O
2011). que quer que eu seja contrário ao outro, eu disse
A base da existência humana é relacional, se- Sim à sua pessoa” (Buber, 1923/2004, p. 154).
gundo a filosofia existencialista. Isso implica em A inclusão significa dar “um impulso audacio-
uma mudança de paradigma do Eu como sistema so, que exige uma agitação muito intensa de nosso
fechado e individualizado para o Eu como realidade ser, para dentro da vida do outro” (Buber, 1923/2004,
-

relacional, constituindo-se no face a face dialogal p. 81). É uma forma de sentir o que o outro está vi-
com um Tu, diferente desse Eu. Essa alteridade é venciando, em um determinado momento, sem per-
A r t i g o s

condição necessária à constituição do Eu (Buber, der sua própria identidade; é tentar experienciar o
1 Apesar de discussões no campo da Pedagogia sobre os termos que o outro está experienciando e simultaneamente
professor/educador e aluno/estudante, neste trabalho eles serão uti- se manter centrado em si mesmo. É o movimento
lizados como sinônimos.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 287-297, set-dez, 2018 288
Gestaltpedagogia e Relação Dialógica: Contribuições para a Formação de Profissionais de Saúde

de ir e vir, de estar centrado na própria existência e pedagógicos é que ela leva em conta o aspecto emo-
ainda assim ser capaz de passar para o outro lado. cional no processo de aprendizagem, estimulando o
Ao realizar esse movimento, tornamo-nos verdadei- aluno como um organismo integral.
ros companheiros de viagem pela vida do outro e Vale ressaltar que esse estímulo do aspecto
esse outro se sente profundamente compreendido. emocional visa acessar o estudante na sua totalida-
Significa ver o mundo pelos olhos do outro, imagi- de e, por meio de vivência dos conteúdos, deixar
nar concretamente a realidade do outro em si mes- marcas de aprendizagem. O processo de ensino par-
mo de maneira tão completa quanto possível (Hyc- te das possibilidades, necessidades e experiências
ner, 1995; Hycner & Jacobs, 1997). dos estudantes pelo método da vivência. Começa
Ao enfatizar os elementos do interhumano, das necessidades dos indivíduos para desencadear
Buber (2007) realça a necessidade de cuidado com um processo de crescimento que tem como meta a
nossa competência interpessoal. Para ele toda exis- modificação do indivíduo e do meio. Branch Jr. et
tência real é relação, com o outro ou com o mundo. al. (2001) incentivam o uso de diferentes estratégias
A proposta de estabelecer, entre as partes de uma educacionais, atentando-se para o fato que devem
relação,uma vivência de encontro, na qual os par- ser especificamente escolhidas para coincidir com
ceiros envolvidos podem (e devem) se manifestar as necessidades de uma situação de aprendizagem,
de forma autêntica, também está presente no mo- seu conteúdo e as necessidades e preferências dos
delo de ensino denominado Gestaltpedagogia (Li- alunos. A Gestaltpedagogia elenca alguns princí-
lienthal, 1993, 1997; Costa, 2002; Woldt, 2009).A pios orientados pelas ideias teóricas e práticas da
Gestaltpedagogia é uma proposta didática pensada Gestalt-terapia (Burow & Scherpp, 1985; Pierre-
por diversos autores, entre eles destaca-se Hilarion -Carl, 2016). Dentre estes princípios, Lilienthal
Petzold, nas décadas de 1960 e 1970 e mais ampla- (1993) enfatiza que o tripé fundamental formado
mente divulgada pelo livro homônimo escrito por pelos princípios da concentração sobre o contato,
Olaf-Axel Burow e Karheinz Scherpp, publicado no do estímulo à consciência e do aqui-e-agora, é es-
Brasil em 1985. Essa proposta sugere uma metodo- sencial porque todos os outros princípios gestaltpe-
logia de ensino-aprendizagem que inclui a educa- dagógicos se baseiam nele. Esses três conceitos se
ção dos professores, a educação da pessoa como um encontram intimamente relacionados e a ausência
todo, a integração de conhecimentos, a integração de um deles implica na impossibilidade de susten-
intercultural e o equilíbrio entre teoria e prática, tação desse tripé. Portanto, toda metodologia ges-
e propõe que o aprendizado ocorra pelo experien- taltpedagógica procura ensinar no tempo e espaço
ciar de si mesmo, do mundo, dos recursos pessoais, presente, estimulando o contato do aluno consigo
conduzindo à conscientização e autoconhecimento mesmo, com os outros e com o mundo que o cerca,
(Burow & Scherpp, 1985; Lilienthal, 2004). auxiliando na tomada de consciência para promo-
Burow e Scherpp (1985) destacam que para o ver mudanças, incentivando escolhas responsáveis
ensino gestatpedagógico é importante levar em con- e impulsionando o desenvolvimento do autossu-
sideração três pontos: porte (Burow&Scherpp, 1985; Lilienthal, 1993).
1) a Gestaltpedagogia exige um comportamen- Há que se ressaltar também que a Gestaltpe-
to diferente por parte do professor: a base dessa me- dagogia considera um ensino que visa a unidade
todologia é a modificação da relação interpessoal indivíduo-meio para que as ações promovidas na
entre estudante e professor, focando na relação in- escola tenham reflexo direto no meio social. O pro-
tersubjetiva. Para o professor deve ser prioridade a fessor orientado gestaltpedagogicamente deve ter
relação com o aluno e depois o tema da aula. Além em mente que os objetivos, os meios e os conteúdos
disso, deve existir coerência entre as verbalizações de ensino possuem uma dependência recíproca e
e as ações do professor; necessitam se harmonizar proporcionando um en-
2) a Gestatpedagogia objetiva o desenvolvi- sino significativo à vida (Burow & Scherpp, 1985).
mento da personalidade dos estudantes: na inter- Tem-se observado iniciativas de transformação
Relatos de Pesquisa
subjetividade o estudante é visto, aceito e com- nos processos de formação profissional em saúde
preendido como um ser humano total, como sendo principalmente fundamentadas nas metodologias
uma unidade orgânica de sentir, pensar e agir, em ativas, as quais surgem em contraposição às meto-
relação com o ambiente em que vive. Deve-se de- dologias tradicionais de ensino-aprendizagem (Cos-
senvolver uma situação horizontal de ensino ao ta & Pereira, 2015). Essas metodologias pretendem
contrário da usual verticalidade; suprir a necessidade atual de “formar profissionais
3) métodos e princípios gestálticos podem como sujeitos sociais com competências éticas, po-
ser utilizados para alcançar, tanto objetivos tra- líticas e técnicas e dotados de conhecimento, racio-
dicionais, quanto novos: as possibilidades dessa cínio, crítica, responsabilidade e sensibilidade para
metodologia alcançam os conteúdos intelectuais as questões da vida e da sociedade, capacitando-os
comumente ensinados e também atingem objetivos para intervirem em contextos de incertezas e com-
emocionais e sociais de ensino. plexidades” (Mitre et al., 2008, p. 2135).
O objetivo central da Gestaltpedagogia descri- Essa modalidade de ensino possui como prin-
-

to por Burow e Scherpp (1985) é possibilitar ao in- cipais aspectos a aprendizagem significativa, a in-
divíduo o desenvolvimento completo de suas capa- dissociabilidade entre teoria e prática, o respeito à
A r t i g o s

cidades e de todo seu potencial, criando condições autonomia do estudante, o trabalho em pequenos
necessárias para que isso aconteça. Um dos aspec- grupos, a educação permanente e a avaliação forma-
tos que difere a Gestaltpedagogia de outros meios tiva (Siqueira-Batista & Siqueira-Batista, 2009). Ou-

289 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 287-297, set-dez, 2018
Graciana Sulino Assunção; Elizabeth Queiroz

tro aspecto da educação ativa é que se fundamenta profissional de saúde-paciente” em estudantes dos
na relação dialógica entre educador e educando, pos- cursos de graduação em saúde da Universidade de
sibilitando o aprendizado conjunto (Pereira, 2007; Brasília (UnB).
Vignochi, Benetti, Machado, & Manfroi, 2009).
Os avanços sobre o tema relação profissional
de saúde-paciente podem, cada vez mais, serem Metodologia
observados na literatura nacional e internacio-
nal (Campos, Minayo, Akerman, Júnior, & Carva- O programa de intervenção proposto foi uma
lho, 2009; Kickbush, 2003; Schiavo, 2007; Wright, Oficina com 10 encontros em grupo, os quais foram
Sparks, & O’Hair, 2008). No entanto, ao olhar para construídos e aplicados fundamentados na propos-
o contexto educacional das ciências da saúde na ta metodológica de ensino-aprendizagem da Ges-
atualidade, apesar de tentativas em algumas univer- taltpedagogia tendo como conteúdo conceitos da
sidades de promover um ensino mais humanizado Relação Dialógica de Martin Buber. Cada encontro
compreendendo o homem em sua totalidade (Bran- teve duração de uma hora e meia, e aconteceu duas
co, 2003; Costa, Canela, Drumond, Dias, & Santa, vezes por semana. Houve entrevista pré e pós-inter-
2010; Mello Filho & Burd, 2010), observam-se es- venção, preenchimento de Instrumento de Autoa-
tudos que apontam uma priorização da educação valiação e de Formulário de Feedback. A descrição
teórica e técnica (Caprara & Rodrigues, 2004; Roc- detalhada da Oficina, os instrumentos usados, as-
co, 2010; Sucupira, 2007; Traverso-Yépez & Morais, sim como todos os resultados da pesquisa, podem
2004). Araújo (2011) afirma que “parece haver uma ser conferidos na dissertação de mestrado da pri-
distância entre a concepção de conhecimento do- meira autora deste artigo.
minante nas escolas e os atuais requerimentos exi- O critério de inclusão para a Oficina foram: 1)
gidos dos profissionais, caracterizando um abismo estar devidamente matriculado nos cursos de gra-
entre teoria e prática” (p. 63). duação de Ciências Farmacêuticas, Enfermagem,
Amâncio Filho (2004) assegura que é necessá- Medicina, Nutrição, Odontologia e Psicologia do
rio aprofundar a reflexão sobre os meios e os modos campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília
como a formação profissional na área da saúde vem (UnB); 2) não estar no primeiro semestre do curso;
ocorrendo, isto é, verificar “se os conteúdos curri- 3) ter disponibilidade para participação de pelo me-
culares e as metodologias de ensino utilizadas per- nos oito encontros, sendo obrigatória a presença no
mitem ao aluno apreender tanto os procedimentos primeiro e segundo encontros; 4) não ter duas faltas
técnicos indispensáveis ao exercício profissional consecutivas ou três alternadas; 5) concordar em
como, também, desenvolver visão crítica em rela- participar do estudo e assinar o Termo de Consen-
ção ao processo de trabalho e ao mundo que o cir- timento Livre Esclarecido (TCLE). Foram excluídos,
cunda” (p. 379). automaticamente, os estudantes que não atendiam
Nessa perspectiva, o uso de metodologias vol- a esses critérios.
tadas para a formação dos estudantes na sua tota- Mediante a aprovação do Comitê de Ética em
lidade, como a Gestaltpedagogia, converge com a Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde (CE-
preocupação na assistência integral ao paciente. P-FS) da UnB, com número de registro 038/12, as
Sobre o uso da metodologia gestaltpedagógica, Li- coordenações dos cursos foram contatadas para co-
lienthal (1998) esclarece: laborar na divulgação da pesquisa. Também foram
realizadas como estratégias de divulgação: cartazes
Vejo a Gestalt como um excelente e fascinan- espalhados na universidade, solicitações a profes-
te instrumento para pensar o indivíduo e a sores de acesso à lista de e-mail dos estudantes
questão social. Em seu bojo estão uma sólida matriculados, ida da pesquisadora às salas de aulas
visão de homem e um sólido posicionamen- dos cursos para divulgar diretamente aos estudan-
to político. (...) Com ela não fico restrito so- tes, e divulgação por meio dos centros acadêmicos.
Relatos de Pesquisa

mente a intervenções terapêuticas na assep- Além disso, alguns estudantes tiveram a iniciativa
sia do meu consultório. Ela me dá liberdade de publicar a pesquisa em redes sociais na internet.
de intervir numa gama enorme de situações. Participaram da Oficina: um estudante de En-
Posso trabalhar onde quer que haja relações fermagem, um de Medicina, um de Nutrição e dois
humanas. Psicólogos, Pedagogos, Médicos, de Psicologia. O tamanho da amostra impediu a ca-
enfim, todos os profissionais de saúde/educa- racterização de cada um dos participantes, sob risco
ção são, em minha opinião, por excelência os de identificação. Assim, optou-se pela apresentação
profissionais das relações humanas. Saúde/ global do perfil sociodemográfico do grupo: idade
educação é para mim uma unidade, não um variou entre 18 e 20 anos, apontando um perfil jo-
binômio; uma unidade que visa um cidadão vem; apenas um homem fez parte da intervenção,
saudável. (pp. 40-41) dado não surpreendente levando-se em conta a
prevalência de mulheres nos cursos de saúde; to-
dos eram solteiros, sem filhos e não possuíam outra
-

Objetivo graduação; apenas um participante estava traba-


lhando no momento da pesquisa, como estagiário;
A r t i g o s

Apresentar as contribuições de um programa em relação à religião, três se definiram cristãos, um


de intervenção gestaltpedagógico, com enfoque na protestante e um respondeu não praticar nenhuma
Relação Dialógica, para o ensino do tema“Relação religião.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 287-297, set-dez, 2018 290
Gestaltpedagogia e Relação Dialógica: Contribuições para a Formação de Profissionais de Saúde

Os dados coletados na íntegra da pesquisa fo- Pesquisadora e estudantes agruparam, então,


ram analisados utilizando-se métodos quantitativos essas palavras por significados semelhantes e depois
e qualitativos. Neste artigo, serão apresentados os sintetizaram a ideia principal de cada grupo de pala-
resultados da análise compreensiva de alguns as- vras transformando-o em uma só palavra. Ao serem
pectos desta pesquisa-ação, eleitos pela relevância listadas as palavras finais, os estudantes verificaram
para alcançar o objetivo aqui proposto. se elas realmente identificavam o que entendiam por
“relação humana de qualidade”. As palavras finais
foram: respeito, reciprocidade, paciência, empatia,
Resultados e discussão cortesia, atenção, responsabilidade e segurança.
A seguir, foi pedido que os estudantes avalias-
Pautada no princípio gestaltpedagógico da exi- sem se a forma como vivenciaram a atividade teve
gência de um comportamento diferente por parte ou não relação com as palavras identificadas. P1,
do professor, foram explicados para os participantes P3 e P4 sinalizaram afirmativamente com a cabeça.
no primeiro encontro a forma como se trabalharia P5 disse que sim, que “foi bem aberto para nos co-
na Oficina, a metodologia da Gestaltpedagogia, e o locarmos, teve empatia na forma como entramos em
conteúdo que seria trabalhado, a Relação Dialógica. um consenso com as palavras”. P2 disse que “teve
O oferecimento dessas informações objetivou uma relação sim”. A vinculação entre teoria e prática
comunicação direta e clara, e incentivar a modifica- foi prioridade da pesquisadora na execução da in-
ção da relação interpessoal entre os participantes. tervenção, tendo em vista que esse também é um
Desde esse primeiro encontro, a pesquisadora es- ponto de destaque na Gestaltpedagogia. A relação
timulou a fala dos participantes, enfatizando a im- horizontal professor-aluno foi foco na postura as-
portância da troca de informações e opiniões entre sumida na condução da Oficina, coerente com os
todos os participantes, promovendo uma relação pressupostos da proposta gestaltpedagógica (Burow
intersubjetiva (Burow & Scherpp, 1985). & Scherpp, 1985).

Figura 1. Palavras evocadas pelos participantes sobre “relação humana de qualidade”.

A composição do grupo, com estudantes de di- Do segundo ao nono encontro foram apresen-
ferentes cursos, possibilitou a discussão da relevân- tados os conceitos buberianos de presença, comu-
cia do trabalho em equipe multiprofissional para nicação genuína, confirmação e inclusão, sendo
atingir as metas da assistência integral à saúde.Foi reservados dois encontros para cada conceito. A de-
Relatos de Pesquisa
uma preocupação constante da pesquisadora, criar finição de dois encontros para cada um dos elemen-
um espaço de abertura e receptividade para as falas, tos se deu em função da dificuldade de constituição
incentivando a formação de grupos de discussão, do grupo e prazo para conclusão do mestrado. Ape-
atribuindo o mesmo nível de importância em rela- sar dessas dificuldades, a programação da Oficina
ção aos participantes, numa relação de diálogo con- respeitou a necessidade de um tempo mínimo para
forme preconizado na literatura (Burow & Scherpp, que os estudantes entrassem em contato com um
1985; Freire, 1968/2012; Pereira, 2007). referencial não abordado diretamente nos cursos da
Os objetivos do primeiro encontro foram de- UnB (este dado pode ser consultado na íntegra da
senvolver um clima de confiança entre os partici- pesquisa).
pantes, estabelecer princípios para o funcionamen- A sequência das atividades se constituíada se-
to do grupo, promover o contato dos estudantes guinte forma: em um encontro era feito um experi-
com a relação entre teoria. Para atingir esses obje- mento e depois apresentado o conceito por meio de
tivos, foi propostoum exercício no qual os estudan- slides, com discussão dos aspectos teóricos e a prá-
-

tes foram convidados a evocar palavras associadas tica vivenciada; no outro era proposta uma ativida-
à expressão “relação humana de qualidade”. Essas de que associava o conceito apresentado à relação
A r t i g o s

palavras foram anotadas em um programa de edi- com o paciente. Ainda que os temas dos encontros
ção de texto em um notebook e projetadas por um tenham sido pré-definidos, a condutora da Oficina
aparelho de datashow (Figura 1). estava sempre atenta aos alunos procurando trans-

291 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 287-297, set-dez, 2018
Graciana Sulino Assunção; Elizabeth Queiroz

mitir o conteúdo a partir de seus interesses, assu- expectativa foi alcançada ou não. Todos os partici-
mindo a postura de mediadora entre os conceitos pantes afirmaram que sua expectativa foi alcança-
buberianos e os participantes (Lilienthal, 1993). da, evidenciando comprometimento com a tarefa. A
Portanto, levando em consideração o princípio ges- Tabela 1 apresenta as expectativas de cada um dos
taltpedagógico de que “partindo das necessidades participantes e os comentários anotados no último
dos indivíduos, tenta-se desencadear um processo encontro do grupo.
de crescimento, que tem como meta a modificação Os resultados sugerem que a Oficina teve boa
do indivíduo e do meio” (Burow & Scherpp, 1985, aceitação dos participantes, tanto em relação ao
p. 110), algumas atividades tiveram pequenas alte- conteúdo quanto à metodologia, inclusive supe-
rações visando uma aproximação com as necessida- rando suas expectativas o que pode indicar uma
des dos estudantes. aproximação da integração entre teoria e prática
Todos os encontros incluíram espaço de dis- preconizada por estudiosos da área (Branch Jr. et
cussão com o objetivo de promover a reflexão do al., 2001; Esperidião, 2001, 2003, 2005).
conceito apresentado e articulação com a situação Por meio dos comentários do 10º encontro
de interação com os membros do próprio grupo e compilados na Tabela 1, pode-se observar que hou-
com futuros pacientes, objetivo final do processo de ve ampliação do conhecimento por parte dos estu-
formação profissional. Além disso, a exploração da dantes, reafirmação da importância da relação com
interdependência entre os elementos do interhuma- o paciente, alargamento do entendimento da atua-
no foi recorrente entre os participantes. ção dos profissionais de saúde, maior valorização
A promoção constante da integração teoria e das relações interpessoais, aprimoramento das suas
prática contribuiu na tentativa de promoção de um atitudes, e maior preparação para se relacionar com
aprendizado integral. O ensino integral, valorizan- o paciente, o que sugere uma mudança na visão de
do competências técnicas e relacionais (Esperidião, mundo e homem dos participantes da pesquisa a
2001, 2003, 2005), pode ser mais eficazmente trans- partir dessa experiência.
mitido por meio de metodologias ativas (Branch Quando questionados sobre o ensino do tema
Jr. et al., 2001). Essas metodologias possuem como da pesquisa na universidade, os estudantes foram
principais aspectos a aprendizagem significativa, a unânimes em comentar sua defasagem, relatando o
indissociabilidade entre teoria e prática, o respeito enfoque prioritariamente teórico quando discutido
à autonomia do estudante, o trabalho em pequenos em seus cursos:
grupos, a educação permanente e a avaliação for-
mativa (Siqueira-Batista & Siqueira-Batista, 2009). “Ah... através da palavra do professor mesmo,
Todos esses aspectos foram planejados e implemen- explicando, (...) falando, mas é sempre uma
tados na Oficina. coisa bem superficial, teórica” (P1 - pré).
Atenta ao fato de que uma atitude humanizada
é mais comumente é aprendida pelos estudantes é “Do curso especificamente, (...) assim, quase
por meio da observação (Branch Jr. et al., 2001), a nada. A parte que a gente aprende é a par-
pesquisadora assumiu uma postura de valorização te mais biológica, assim, das coisas, né?! Por
da relação entre seres humanos em todos os encon- exemplo, a gente trabalha muito (...) com caso
tros da Oficina, tanto por meio do conteúdo que era clínico, eles falam que estão tentando aproxi-
ensinado quanto da sua relação com os estudantes, mar a gente da realidade. Só que essa apro-
já que para Muniz e Chazan (2010) a conduta que ximação da realidade é assim: “mulher de 45
o professor demonstra no encontro professor-aluno, anos, 1,70, dor no abdomên”. Eu não acho que
tem muito mais alcance do que o que é dito. Esse as- isso seja realmente se aproximar da realidade,
pecto não foi despercebido pelos estudantes, como né?!” (P2 - pré).
evidenciado na verbalização a seguir:
“Eu julgo que eu ouvi muito pouco. (...) eu fiz
Relatos de Pesquisa

“gostei também que deu abertura, né?! Lá, uma uma pesquisa, (...) que eu tive contato, que eu
coisa que eu fiquei, assim, fascinado, que às pude ler algumas coisas também sobre alguns...
vezes não acontece em sala de aula, e que eu (...) O que eu aprendi é mais autônomo mesmo,
achei muito bom, é que cada um podia falar (...) eu quis estudar mais isso, mas ninguém
realmente o que estava pensando e era valori- nunca me falou mais sobre isso, entendeu? (...)
zado” (P1 - pós2). Mas, assim, foram pouquíssimas vezes mesmo,
mais em pesquisas, ou sei lá, uma palestra,
Essa fala também ilustra o incentivo à relação uma coisa sem ser uma aula assim. Acho que
dialógica entre educador e educando, possibilitan- foi mais os lugares que eu ouvi” (P5 - pré).
do o aprendizado conjunto (Pereira, 2007; Vigno-
chi, Benetti, Machado, & Manfroi, 2009). No último Esse dado corrobora com a literatura sobre a
encontro foi entregue uma folha contendo a trans- formação brasileira em saúde de que, apesar de ten-
crição da expectativa que os estudantes tinham do tativas em algumas universidades de promover um
-

trabalho no 1º Encontro da Oficina. Foi pedido en- ensino mais humanizado (Branco, 2003; Costa et
tão que completassem essa folha verificando se a al., 2010; Mello Filho &Burd, 2010), estudos apon-
A r t i g o s

2 Para evitar a repetição de palavras ao longo do texto, serão usa- tam uma priorização da educação teórica e técnica
das as abreviações “pré” e “pós”, para designar relatos feitos antes e (Caprara & Rodrigues, 2004; Rocco, 2010; Sucupira,
após a intervenção, respectivamente. 2007; Traverso-Yépez & Morais, 2004).

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 287-297, set-dez, 2018 292
Gestaltpedagogia e Relação Dialógica: Contribuições para a Formação de Profissionais de Saúde

Tabela 1
Expectativas Em Relação à Oficina e Comentários Sobre Seu Alcance

Relatos de Pesquisa
-
A r t i g o s

293 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 287-297, set-dez, 2018
Graciana Sulino Assunção; Elizabeth Queiroz

Ao se comparar esses dados com os resultados respeito. Esses conceitos ajudam a gente a colo-
do questionamento sobre as possíveis contribuições car muita coisa em prática, coisas que às vezes
da Oficina para aprendizagem do tema, nota-se exa- são muito teóricas: tem que ser humanizado,
tamente a contraposição ao ensino teórico na uni- tem que respeitar o paciente, tem que fazer
versidade. Os participantes relataram sobre a rela- isso. Mas, não falam como fazer” (P3).
ção entre teoria e prática presente na intervenção:
O relato de P3 remete também à reflexão le-
“O que a gente ia aprendendo a gente colocava vantada por Amâncio Filho (2004) a respeito sobre
em prática, né. Você estava num ambiente que os meios e os modos como a formação profissional
a pesquisadora falava uma coisa, e logo depois na área da saúde vem ocorrendo.
a gente já estava botando em prática, né?!” (P1
- pós). “O curso foi excelente. Teve muita teoria que
foi vinculada com a prática. A cada teoria cria-
“Melhorou também a questão de que eu vejo va uma expectativa para a aula prática. Isso
mais claro de como colocar em prática a hu- tornou o aprender dinâmico e mais fácil, pois
manização, assim, sabe?” (P3 - pós). para lembrar dos conceitos, basta lembrar das
experiências. Essa matéria é importante não só
“Acho que as técnicas utilizadas, como eram para cursos da saúde, mas para todo aquele
muito práticas, a gente via a teoria e via a curso que envolva relações interpessoais. Alter-
prática, isso proporcionou a gente a aprender namos, a todo momento, entre paciente e cura-
a aplicar aquilo na realidade. (...) A gente fez dores um dos outros” (relato colhido no formu-
umas simulações também de atendimento. Aí, lário de feedback - anônimo).
a gente conseguiu ver todos os conceitos ali, aí
eu acho que isso ajudou bastante mesmo” (P5 Essa última verbalização exemplifica o
- pós). princípio da Gestaltpedagogia de que se pode alcan-
çar, com essa metodologia, tanto objetivos tradicio-
A segunda parte do 10º encontro foi reservada nais quanto novos, ou seja, conteúdos tradicionais
para conhecer a avaliação e o feedbackdos estudan- da formação em saúde relacionados a conteúdos
tes sobre o trabalho realizado e encerrar a Oficina. técnicos/acadêmicospodem ser transmitidos conju-
Inicialmente, os participantes foram estimulados gando a estimulaçãodos estudantes integralmente,
a comentar a respeito do trabalho. Mesmo sendo visando acessá-losem sua totalidade, por meio de
anunciada a não obrigatoriedade da participação, vivência dos conteúdos, deixando marcas de apren-
todos fizeram comentários.É sabido que algumas dizagem.O processo de ensino dessa metodologia
propostas de mudança levam tempo para produzir parte das possibilidades, necessidades e experiên-
efeitos, todavia a constante reflexão sobre a prática, cias dos estudantes, pelo método da vivência. Co-
impulsiona sua implementação. Práticas de saúde meça das necessidades dos indivíduos para desen-
humanizadas e comprometidas socialmente são cadear um processo de crescimento que tem como
mais prováveis de surgirem em ambientes de ensi- meta a modificação do indivíduo e do meio (Burow
no que incentivem o desenvolvimento da sensibi- & Scherpp, 1985; Lilienthal, 1997, 2004).
lidade por parte de seus estudantes para uma ação Em todos os encontros foi pedido que os es-
mais participativa (Amâncio Filho, 2004; Traverso- tudantes escrevessem uma palavra que traduzisse
-Yépez & Morais, 2004). P2 e P3 comentam: como estavam se sentindo antes do início das ati-
vidades e ao final das mesmas, visando estimular o
“Comecei a pensar na minha turma. Com todo contato dos participantes consigo mesmo, promo-
mundo que você conversa ninguém é contra a ver conscientização e estimular a atenção ao aqui-a-
humanização do atendimento, ninguém é con- gora que é o tripé fundamental da Gestaltpedagogia
Relatos de Pesquisa

tra conversar com o paciente, tratar ele bem. (Lilienthal, 1993; Pierre-Carl, 2016). Essas palavras
Aí comecei a pensar assim: então, por que às serviram também como um feedback processual
vezes não acontece, se todo sabe que deve ser para que a condutora pudesse adequar a condução
feito? Estava conversando com um amigo sobre das atividades às necessidades dos participantes
a Oficina (...) e ele disse: “o que você está fa- (Burow & Scherpp, 1985).
lando é óbvio”. (...) Não sei se é óbvio, acho que Pôde ser observado, a partir da tabulação das
é simples, né, um pouquinho diferente. Porque palavras de cada encontro, que as palavras iniciais
se fosse óbvio todo mundo faria, se todo mun- mais frequentes entre os estudantes eram: cansado,
do tivesse certeza daquilo, todo mundo faria. ansioso, tranquilo e curioso, que podem estar asso-
Acho que é simples, é fácil. E acho que quando ciadas ao que haviam vivenciado momentos antes
a gente para para esquematizar, isso é isso, isso do início da Oficina. Em relação às palavras finais,
não é aquilo, aí você começa a pensar de ver- a maioria refletiu aspectos de motivação, tranquili-
dade no que você está fazendo, como você está dade, consciência e reflexão. Interessante perceber
-

fazendo, né?!” (P2). que esse exercício foi incorporado como um recurso
cotidiano em situações adversas, ainda que não pre-
A r t i g o s

“Esses conceitos se aplicam muito na prática. visto como objetivo da Oficina, como relatado por
Todo mundo já viu e consegue lembrar de al- uma das participantes:
gum fato, mas ninguém parou para pensar a

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 287-297, set-dez, 2018 294
Gestaltpedagogia e Relação Dialógica: Contribuições para a Formação de Profissionais de Saúde

“(...) nós também fizemos avaliação da pala- zação didática dos conceitos, com aplicação prática
vra. “Você senta, para, pensa numa palavra”. da teoria apresentada, a abertura para participação
Isso eu achei muito bom, porque eu sou uma dos componentes, o interessante assunto-tema da
pessoa muito ansiosa, aí eu vou fazer uma pro- intervenção, proporcionando um diferencial na for-
va, ou eu estou estudando, a minha cabeça está mação dos participantes, foram os principais bene-
assim, a mil por hora, aí eu paro e falo: “Como fícios enunciados. O tamanho da amostra foi perce-
foi que ela fez? Vou pensar numa palavra! Um bido como uma desvantagem. Há que se considerar
minuto pra você respirar”! Isso eu aprendi tam- que o interesse prévio dos participantes no tema da
bém. Eu não sei nem se estava no cronograma, pesquisa caracteriza um viés importante à recepti-
mas eu levei muito em consideração. (...) Meio vidade para a Oficina o que traz a necessidade de
que abriu os olhos, entendeu”? (P1 - pós). cautela na consideração desses dados.
Os resultados apontam que existe uma sen-
Em relação às limitações da Oficina, as respos- sibilização e demanda do estudante em busca de
tas sinalizaram que o grupo foi pequeno, que po- habilidades interpessoais que possam favorecer sua
deria ser expandido para mais estudantes na uni- atuação profissional e que o uso de uma metodo-
versidade, que o horário dificultou a participação, e logia diferenciada, como a Gestaltpedagogia, pode
que poderia ter tido uma duração mais longa.A as- contribuir na educação integral do estudante.
siduidade dos participantes aos encontros também Ressalta-se, no entanto, que o desenvolvimen-
sugere receptividade e aprovação da Oficina Rela- to de habilidades interpessoais é uma competência
ção Profissional de Saúde-paciente: dos 10 encon- processual, portanto, passível de modificação ao
tros realizados, todos estudantes participaram de longo do tempo o que demanda uma avaliação em
no mínimo oito, como preconizado nos critérios de longo prazo. Assim, outros estudos devem ser reali-
inclusão. Enfatiza-se que o grupo terminou com a zados com um número maior de participantes, que
mesma quantidade de componentes que começou, contemplem os demais cursos da área da saúde e
o que é diferente do que comumente se observa em com possibilidades de followup, para verificar se o
atividades grupais, nas quais é comum a perda de conteúdo aprendido é incorporado ou não nas ati-
participantes no decorrer do trabalho. tudes dos estudantes.
Assim, ao realizar uma análise geral da avalia- As convergências percebidas pela pesquisa-
ção do programa de intervenção pelos participan- dora puderam ser confirmadas no que se refere às
tes, bem como dos resultados obtidos ao final do contribuições da aplicabilidade da Gestaltpedago-
estudo, é possível afirmar que, apesar das limita- gia e da Relação Dialógica para o aprimoramento da
ções da pesquisa, o estudo evidenciou contribui- qualidade das relações na área da saúde. Foi gratifi-
ções para o ensino do tema “Relação profissional cante a percepção da receptividade dos estudantes
de saúde-paciente” em estudantes de graduação da à Oficina, o acompanhamento do desenvolvimento
área da saúde. de cada um do primeiro para o último encontro, e
a ampliação que fizeram dos conteúdos aprendidos
para além da relação com o paciente.
Considerações finais A Oficina delineada é um modelo que pode
ser reaplicado para o desenvolvimento de habili-
Partiu-se da necessidade, verificada na litera- dades interpessoais, identificadas como carências
tura, de estudos com enfoque empírico para a for- na formação de recursos humanos em saúde, e
mação integral dos futuros profissionais de saúde imprescindíveis para as mudanças que garantirão
brasileiros uma vez que pensar na mudança dos a assistência integral ao paciente. Representa, por
modelos de assistência implica em contemplar as conseguinte, uma importante contribuição de um
pessoas que formam esse sistema.Durante séculos referencial teórico ainda pouco conhecido e difun-
os aspectos técnicos foram priorizados na formação dido entre docentes responsáveis pelo desenvolvi-
Relatos de Pesquisa
do profissional de saúde. Contudo, cada vez mais a mento dos profissionais de saúde brasileiros.
demanda é por um cuidado integral da pessoa e não
da doença, explicitado em todas as políticas públi-
cas mundiais. Nesse sentido, aspectos interpessoais Referências
passam a ser objetivos novos a serem incorporados
pelos cursos, que tradicionalmente negligenciavam Abbad, G. da S., Parreira, C. M. de S. F., Pinho, D. L. M.,
o desenvolvimento dessa competência. & Queiroz, E. (2016). Ensino na saúde no Brasil: De-
Foi verificado que a Oficina Relação Profis- safiios para a formação profissional e qualificação
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-

siderados pelos estudantes interessantes e de fácil Araújo, M. M. T. (2011). Comunicação em cuidados pa-
entendimento e aplicação; e à abertura para exposi-
A r t i g o s

liativos: Proposta educacional para profissionais de


ção de opiniões e discussão multiprofissional. saúde (Tese de Doutorado). Universidade de São
Foram citadas muitas vantagens em contrapo- Paulo, São Paulo.
sição a poucas limitações da Oficina. A esquemati-

295 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 287-297, set-dez, 2018
Graciana Sulino Assunção; Elizabeth Queiroz

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Graciana Sulino Assunção: Graduação em Psicologia


pela PUC-GO, Mestrado em Processos de Desenvolvimen-
to Humano e Saúde pela UnB, especialização em Gestal-
t-terapia e em Terapia de Criança, Casal e Família pelo
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia
de Goiânia (ITGT). Formação em Orientação Profissional,
Terapia de Grupo e Terapia de Curta-Duração. Psicóloga
clínica e supervisora no SOLUS Instituto de Desenvolvi-
mento Humano. Email: gracianasa@hotmail.com

Elizabeth Queiroz: Psicóloga, mestrado (1993) e douto-


rado em Psicologia pela Universidade de Brasília (2003).
Relatos de Pesquisa
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Univer-
sidade de Brasília. Tem experiência na área de Psicolo-
gia, com ênfase na área de saúde, reabilitação, atuação
e formação profissional em saúde. Email: bethqueiroz@
unb.br

Recebido em 14.02.17
Primeira decisão editorial em 27.04.17
Segunda decisão editorial 01.09.2017
Aceito em 03.01.18
-
A r t i g o s

297 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 287-297, set-dez, 2018
298
299
A rtigos :
E studos T eóricos ou H istóricos ....
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.4

PROSPERIDADE, CONTESTAÇÃO E TECNOCRACIA:


O PENSAMENTO ROGERIANO EM SEU CONTEXTO
DE GESTAÇÃO
Prosperity, contestation and technocracy: the rogerian thought in its context of gestation

Prosperidad, contestación y tecnocracia: el pensamiento rogeriano en su contexto de gestación

Emanuel Meireles Vieira


Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro
Jacqueline de Oliveira Moreira
Andréa Maris Campos Guerra

Resumo: O artigo pretende problematizar as condições culturais a partir das quais foi construído o pensamento de Carl
Rogers. Discutem-se acontecimentos ocorridos na sociedade estadunidense a partir do início da segunda guerra mun-
dial até o fim da década de 1970. Entende-se que a guerra representou uma oportunidade para que os Estados Unidos
iniciassem um ciclo economicamente virtuoso. Havia, nesse período, uma forte sensação de prosperidade para parte
de sua população associada ao advento de uma classe média com tendências conservadoras. Paralelamente, surgiram
movimentos contestatórios de populações historicamente marginalizadas que buscavam direitos civis e questionavam
os modos de organização social e cultural vigentes. A partir disto, desenvolveu-se uma psicologia mais prática e que
fugia de referenciais tecnocráticos de produção e validação de conhecimento. Dentro desse contexto cultural, indica-se
que Rogers respondia, entre outros, aos temas: autenticidade atrelada à busca de tornar-se pessoa; tecnocracia como
elemento a ser questionado na vida e na produção de conhecimento; e, por fim, cuidado de si vinculado ao sério risco
de se cair num modo narcísico de existência.
Palavras-chave: Abordagem Centrada na Pessoa; Contexto Cultural Estadunidense; Psicologia Humanista

Abstract: The paper aims to debate the cultural conditions from which Carl Rogers’ thinking was created. Events that
happened in american society from the beginning of second World War until the end of 1970’s are discussed. It is
understood that the war represented an opportunity for the United States to start a new economically virtuous cicle.
There was, during this time, a strong feeling of prosperity for part of its population combined with the advent of a con-
servative middle class. In parallel, contestatory movements of historically marginalized populations emerged. These
movements sought civil rights and questioned the ways of social and cultural organization in force. Therefore, it was
developed a more practical psychology which evaded itself from technocratic references of production and validation
of knowledge. Within this cultural context, it is indicated that Rogers responded, among others, to the themes: authen-
ticity tied to the quest to become a person; technocracy as an element to be questioned in life and in the production of
knowledge; And, finally, self-care linked to the serious risk of falling into a narcissistic way of existence.
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

Keywords: Person-Centered Approach; American Cultural Context; Humanistic Psychology.

Resumen: El artículo pretende problematizar las condiciones culturales a partir de las cuales se construyó el pensa-
miento de Carl Rogers. Se discuten acontecimientos ocurridos en la sociedad estadounidense a partir del inicio de la
segunda guerra mundial hasta el final de la década de 1970. Se entiende que la guerra representó una oportunidad
para que los Estados Unidos iniciasen un ciclo económicamente virtuoso. En ese período, había una fuerte sensación
de prosperidad para parte de su población asociada al advenimiento de una clase media con tendencias conservadoras.
Paralelamente, surgieron movimientos contestatarios de poblaciones históricamente marginadas que buscaban dere-
chos civiles y cuestionaban los modos de organización social y cultural vigentes. A partir de esto, se desarrolló una
psicología más práctica y que huía de referenciales tecnocráticos de producción y validación de conocimiento.Dentro
de ese contexto cultural, se indica que Rogers respondía, entre otros, a los temas: autenticidad ligada a la búsqueda de
convertirse en persona; tecnocracia como elemento a ser cuestionado en la vida y en la producción de conocimiento;
y, por fin, cuidado de sí vinculado al serio riesgo de caerse en un modo narcisista de existencia.
Palabras-clave: Enfoque Centrado en la Persona; Contexto Cultural Estadonidense; Psicología Humanista.

Introdução adequadamente sem que se analisem os fenômenos


-

históricos que a tornaram possível. Neste sentido,


A Psicologia é um conhecimento histórico. para que se compreenda a gênese de algumas ideias
A r t i g o s

Isso implica em dizer que, mais do que nos determos psicológicas, é necessário que se entendam suas
à sucessão cronológica e epistemológica de ideias, condições de possibilidade, ou seja, que fenômenos
cabe-nos reconhecer que a própria concepção de sociais as tornaram possíveis em uma época e não
fenômeno psíquico não pode ser compreendida em outra.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 300-311, set-dez, 2018 300
Prosperidade, Contestação e Tecnocracia: o Pensamento Rogeriano em seu Contexto de Gestação

Como inspiração para o tipo de de trabalho significativas e lucrativas” (Foertsch,


questionamento lançado acima, tomaremos 2008, p. 10, tradução nossa). Isso significou para os
Figueiredo (1992), que nos aponta que nem sempre Estados Unidos, além do risco à vida dos soldados,
houve uma noção de subjetividade privatizada e uma curiosa junção de sacrifício por parte de civis
que, portanto, aquilo que naturalizamos indivíduo (com racionamentos de comida, petróleo e outros
é uma invenção moderna. O referido autor faz bens materiais básicos) e abertura de possibilidades
alusão a uma série de mudanças que se sucederam de inclusão produtiva.
na sociedade ocidental após a Idade Média e que Com o fim do conflito, os Estados Unidos
tornaram possível a concepção de que cada pessoa estavam numa situação absolutamente diversa da
é única e, assim, dotada de singularidade. Europa (Hobsbawm, 1994/2004). Além da expansão
Nesse lastro, a despeito dos muitos textos da indústria, o Servicemen’s readjustment act,
que tratam de uma história da Abordagem Centrada também conhecido como GI Bills, um fundo a
na Pessoa (ACP), não se encontra um debate mais partir do qual o governo estadunidense facilitou o
consistente em torno do ambiente histórico e acesso de veteranos de guerra a moradia, crédito,
cultural com o qual esta teoria da psicologia dialoga instituições de ensino, entre outros serviços e bens
em sua gênese (Cury, 1987; Rogers & Russell, 2002; de consumo, colaborou no processo de formação
Kirschenbaum, 2007; Moreira, 2010; Castelo Branco, e fortalecimento da classe média americana
2010). Para que possamos nos lançar ao desafio de (Foersctch, 2008), identificada por Reisman
responder a esse tipo de questão, interessa-nos (1950/1971) como “(...) o burocrata, o empregado
analisar o período compreendido entre os anos assalariado no domínio dos negócios”.
1940 e o fim da década de 1970, nos Estados Unidos Os EUA assumiram a posição de
quanto aos eventos ocorridos naquela sociedade representantes de um bloco ocidental hegemônico
e de que modo eles ajudaram a construir uma em defesa de uma sociedade tida como livre, contra
concepção específica de Psicologia e, ainda mais a expansão do comunismo, representada por outra
especificamente, a teoria de Carl Rogers. A questão grande potência fortalecida no conflito: a União
que nos guiará será: com que acontecimentos Soviética – URSS (Foertsch, 2008). Esta situação,
históricos, dentro e fora do campo da Psicologia, segundo Hobsbawm (1994/2004), marcou o início
Rogers dialogava enquanto produzia sua obra? de um segundo ciclo no século XX, situado entre
Dito de outro modo: a quais provocações, de seu 1945 e 1973, de grande força do capitalismo,
contexto cultural, Rogers estaria respondendo? de prosperidade para os países tidos como
Inicialmente, discorrer-se-á sobre o contexto desenvolvidos e grande tensão mundial: a Guerra
cultural estadunidense compreendido entre as Fria. Tamanha prosperidade nos EUA resultou num
décadas de 1940 e 1970, uma vez que foi esse clima extremamente conservador – no sentido de
período em que se desenvolveu mais fortemente a manutenção do status quo – naquele país durante o
obra rogeriana. Em seguida, discutir-se-á o contexto fim da década de 1940 e os anos 1950, de tal forma
de desenvolvimento da Psicologia estadunidense que, fosse membro ou simpatizante dos partidos
e sua relação com a emergência da obra rogeriana. Democrata ou Republicano, havia um consenso
Finalmente, será apresentada uma reflexão sobre de uma ameaça constante no ar (Halliwell, 2007).
de que modo os valores e questões emergentes no Não por acaso, um dos grandes temas era o da
período analisado se relacionam com temáticas autenticidade. Afinal, se o risco de assunção do

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
abordadas por Rogers. comunismo era tão forte — e ele poderia estar em
qualquer lugar —, como saber em quem confiar?
Há que se ressaltar que, embora tenha
A Segunda Guerra Mundial nos Estados havido um enorme incremento no consumo
Unidos: Prosperidade num Mundo em Ruínas e na classe média americana, este fenômeno
não aconteceu de forma igualitária e universal.
Segundo Foertsch (2008), os anos 1940 Populações bastante significativas de setores
começaram para o mundo em 1939. Como é historicamente marginalizados, como jovens,
sabido, em primeiro de setembro daquele ano, a negros, mulheres e homossexuais, viram-se sem o
Alemanha, violando um pacto de não agressão, devido reconhecimento coletivo (Halliwel, 2007).
invadiu a Polônia e, então, se iniciou a Segunda As mulheres, por exemplo, após a guerra, receberam
Guerra Mundial. Inicialmente, o conflito não enorme pressão para voltar aos seus postos de donas
contou com a participação dos Estados Unidos, que de casa. O questionamento do modelo de sociedade
faziam negócios com ambos os lados em guerra e, que se desenvolvia, porém, tinha pouco espaço,
assim, aumentavam os lucros de suas indústrias. A pois os intelectuais eram associados pela mídia ao
decisão de tomar partido no embate só ocorreu após grande inimigo comunista do período da Guerra
o ataque japonês à base de Pearl Harbor (Foertsch, Fria. Segundo Halliwell (2007), no âmbito da classe
2008). média branca americana, raramente se questionava;
A decisão estadunidense envolveu toda consumia-se. Isto caracterizaria a década de 1950
-

a população e movimentou a economia, de modo como uma era de anti-intelectualismo, com enorme
que setores tradicionalmente marginalizados importância dada ao mercado, embora, conforme
A r t i g o s

da atividade produtiva, como “(...) mulheres de se verá mais adiante, houvesse interrogações e
classe média, brancos pobres, americanos de cor, tentativas de explicação sobre o que ocorria naquele
e os deficientes físicos (...) tiveram oportunidades contexto – algo que viria a se consolidar na década

301 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 300-311, set-dez, 2018
Emanuel Meireles Vieira; Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro; Jacqueline de Oliveira Moreira; Andréa Maris Campos Guerra

seguinte. Riesman (1950/1971), por exemplo, mesmos direitos civis que brancos até então.
estabelece interessante reflexão sobre o período Assim, eles não podiam votar nem frequentar as
em questão, e entende que o tipo de sociedade que mesmas escolas que os brancos. A situação era
se apresentava àquele tempo era alterdirigida, em mais tensa no Sul do país, tido como mais atrasado
contraposição às mais tradicionais, tidas por ele economicamente e com uma presença maciça de
como traditivas, e as de transição, por ele definidas população afrodescendente, além de uma elite
como introdirigidas. As sociedades traditivas extremamente conservadora quanto à manutenção
seriam aquelas que preservariam a estabilidade e de seus privilégios (Monteith, 2008). Foi nessa
envolveriam o medo da vergonha, com referencial região dos EUA que se iniciou o movimento sit-
coletivista. As sociedades intradirigidas teriam in, em que estudantes negros passaram a ocupar
como marca a expansão individual e a mobilidade espaços antes destinados apenas a brancos. Foram
pessoal, portanto com mais instabilidade e uma crescentes e variadas as formas de protesto por todo
tensão entre o indivíduo e a tradição introjetada, o país, que resultaram na aprovação de uma série
resultando em culpa. Na alterdireção, por sua vez, de direitos civis, em 1965, pelo Senado americano,
prevaleceria o tempo presente, com menor peso da conhecida como Lei dos Direitos Civis (Civil Right
tradição e maior velocidade na familiarização do Acts).
estranho – o consumo imediato da mais absoluta A incidência da Lei dos Direitos Civis
novidade, gerador de ansiedade. não atingiu apenas a discriminação racial, mas
Ansiedade pelo ajustamento, pela também questões de gênero e quaisquer outros
necessidade de conseguir acompanhar um grupo tipos de discriminação em locais e instituições
de referência, cada vez mais ditado pelos meios públicas ou privadas. Isto não significou, porém,
de comunicação de massa, na busca de referências o fim da segregação, senão que abriu o caminho
abaladas por transformações tão profundas no para muitas outras lutas e conquistas que viriam
modo de organização social. Afinal, a urbanização (Brownell, 2011). Isto se deu através de uma série
acelerada dos países desenvolvidos, a prosperidade de ações estatais de estímulo à criação de novas
econômica, a sinalização de mudanças nas relações oportunidades para as referidas populações, como
raciais, o aumento do poder da mídia (Hobsbawm, a Comissão para Igualdade de Oportunidade
1994/2004), entre outras, são alterações de Emprego – Equal Employment Opportunity
significativas na configuração de uma sociedade. Comission (Farber & Bailey, 2001).
Para Riesman (1950/1971), no período em Uma das reverberações das lutas pelos
tela, a necessidade de saber quem se é dá lugar à de se direitos civis foi a “nova” esquerda. Nova,
sentir aceito num grupo que se tem como referência porque não se associava necessariamente a ideias
para valores, de modo que esta é inversamente marxistas, mas se baseava na crença em uma
proporcional àquela. Tal característica incide, por sociedade fundamentada no amor, na fraternidade
exemplo, sobre educação e trabalho, de modo que e na paz (Farber & Bailey, 2001). Isto moldava os
é a capacidade de se relacionar com pessoas e se diversos movimentos da nova esquerda – um
adequar a elas que ganha relevo nestes dois âmbitos. “movimento” fundamentalmente levado a cabo por
Riesman ainda se questiona sobre o espaço jovens universitários que sonhavam com uma nova
existente para a autonomia diante da necessidade sociedade.
de ajustamento ao grupo. Afinal, as instituições Vários autores (Gair, 2007; Suri, 2009;
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

que tradicionalmente moldavam estes limites já Brownell, 2011) são unânimes em entender que a
estavam àquela época em franca decadência. Assim, nova esquerda é fruto da prosperidade econômica
Riesman (1950/1971) identificava a necessidade de dos EUA, pois os jovens viveram tempos de muito
apontar caminhos utópicos rumo à autonomia. Para menos trabalho e mais acesso a bens de consumo
o referido autor, era preciso criar uma linha tênue e educação do que seus pais, remanescentes da
entre a convivência com o coletivo e a possibilidade crise econômica de 1929. Neste sentido, para Gair
de reconhecimento das aspirações individuais. (2007), trata-se, em parte, de conflito geracional.
O lugar de protagonista assumido pela juventude
pode ser entendido na medida em que os arranjos
Os Anos de 1960: Prosperidade e familiares no pós-guerra mudaram drasticamente.
Questionamento no Mesmo Cenário A tradição (Riesman, 1950/1971) dá lugar ao novo e,
mesmo a atitude pública perante o comportamento
Paralelamente ao crescimento econômico, sexual, sofreu mudanças bastante profundas, de
ocorreu nos EUA um processo de luta pelos direitos modo que o sexo antes do casamento, a união entre
civis que evidenciou que a prosperidade não homossexuais, a possibilidade de a mulher sair da
atingia as populações mencionadas acima. Se os casa antes de casar, entre outros, passaram a ser
EUA tinham como bandeira a liberdade contra uma comportamentos aceitáveis.
ditadura comunista, esse valor não se aplicava a Segundo Hobsbawm (1994/2004), a
todos os seus habitantes. Até 1948, por exemplo, as radicalização política dos anos 1960 pertencia
-

forças armadas americanas eram segregadas a partir aos jovens da nova esquerda, que se recusavam a
da cor da pele das pessoas que delas faziam parte reconhecer o lugar da autoridade adulta. Ainda de
A r t i g o s

(Farber & Bailey, 2001; Foertsch, 2008). acordo com Hobsbawm, a ascensão da juventude
Outra demonstração de segregação racial na década de 1960 trazia três novidades, a
dizia respeito ao fato de negros não terem os saber: a juventude não era mais um estágio de

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 300-311, set-dez, 2018 302
Prosperidade, Contestação e Tecnocracia: o Pensamento Rogeriano em seu Contexto de Gestação

passagem, mas um ideal a ser atingido; tornou- se insurge é o da bomba atômica, que demonstra
se um comportamento dominante nas economias todo o compromisso do industrialismo maduro
de mercado desenvolvidas; criou-se um mercado com o genocídio, de modo que, em nome do avanço
consumidor jovem, pois a cultura da juventude tecnocrático, verdadeiros absurdos eram cometidos.
se internacionalizou através de vários bens de Não por acaso, os jovens da contracultura,
consumo cultural, como roupas, revistas e discos. sem saber definir muito bem o que queriam, tinham
Uma variação peculiar do novo cenário clareza do modelo que não gostariam de adotar como
era a contracultura, que se caracterizava pela filosofia de vida. Por isso, entendiam que a mudança
busca de modos alternativos à cultura jovem a ser conduzida dizia respeito à consciência, e não
do consumo de classe média. Foram várias as à ideologia, de tal forma que “(...) a construção da
comunidades alternativas criadas em todo o boa sociedade não é uma tarefa primordialmente
território estadunidense em que se tentava ter uma social, e sim psíquica” (Roszak, 1968/1972, p.
vida própria, fora dos padrões consumistas em que 61). Era, portanto, o envolvimento pessoal, o
se modelava a sociedade dos EUA, vivendo coletiva sentido da experiência para si, o que importava.
e cooperativamente (Brownell, 2011). Sem crer nas Destarte, entendia-se que, pelo apego a ideologias,
instituições de então, os jovens da contracultura especialmente à tecnocracia, havia-se esquecido da
viam nas relações pessoais, e não nas formais, a dimensão humana, pessoal, em última instância do
origem das mudanças em seu país (Hobsbawm, envolvimento da pessoa em ação. Inevitavelmente,
1994/2004). Para Gair (2007), se os protestos perguntava-se sobre o que é ser uma pessoa e quais
contra as guerras e o movimento dos direitos civis os elementos intrinsecamente humanos. Como
tinham como interesse mudar o mundo, o uso de consequência, “(...) a consciência de classe cede
drogas ilícitas, especialmente o LSD, “(...) oferecia lugar, como princípio generativo à (...) consciência
a promessa de transcendência do mundo” (p. 135, da consciência” (Roszak, 1968/1972, p. 72, grifo do
tradução nossa). Brownell (2011), por seu turno, autor). Valorizava-se, assim, um campo místico,
considera que o LSD funcionava como meio para uma sabedoria pré-reflexiva, oriunda da expressão
expansão do eu – a grande busca da época – e imediata da experiência do aqui-e-agora.
condição para desenvolvimento de um senso de Tratava-se, portanto, de um misticismo
comunidade. que encontrava no corpo uma realidade em que
Campos (2006) atesta que os jovens da se amparasse e fizesse sentido, que rejeitava a
contracultura contestavam um estilo de sociedade ciência, o academicismo, a tecnocracia e todas as
que privilegiava “(...) aspectos técnico-racionais formas que tentassem tornar objetivas experiências
em detrimento dos sociais e humanos, reforçando humanas que não poderiam ser assim reduzidas.
uma tendência crescente para a burocratização da Afinal, para Roszak (1968/1972), a ciência elimina
vida social” (p. 242). Reconhecia-se, portanto, que o o prazer e a relação direta com o mundo, ou seja,
modo vigente, e tido por muitos como tão próspero, elimina a pessoa como totalidade. Ainda segundo
era insuficiente na busca sobre o sentido da própria o aludido autor, porém, a contracultura corria o
existência, sem uma clara separação entre as esferas risco de sucumbir a dois perigos: não aprofundar
política e pessoal. As críticas ao modelo consumista seu relacionamento com os menos favorecidos
não significavam, porém, uma ruptura com valores economicamente; e se tornar mais um espetáculo a
muito caros à cultura americana, “(...) como a entreter uma sociedade consumista.

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
liberdade individual de escolha, como alternativas
a um capitalismo corporativo que eles percebiam
corromper ideais americanos” (Gair, 2007, p. 26). A Retomada de uma Onda Conservadora em
Tratava-se de uma busca por autenticidade, Meio a Desejos de Mudança
por novos modos de vida que, consoante Suri
(2009), encontrava suas raízes no movimento Se as duas décadas anteriores foram
beat que dominou a arte estadunidense da década de prosperidade financeira para o mundo
de 1950, tendo como ícones artistas como o desenvolvido, foi na década de 1970 que o mundo
escritor Jack Kerouac e o poeta Allen Ginsberg, vivenciou uma crise que se estenderia durante
entre outros. Esses artistas buscavam, através dos mais de 20 anos. Períodos sucessivos de recessão
vários de tipos de expressão, algo mais natural, em econômica tomavam conta do planeta em seus
oposição ao mundo pré-fabricado da indústria. Era diversos continentes – com exceção de parte da Ásia
um questionamento sobre o sentido da vida boa. (Hobsbawm, 1994/2004). Os Estados nacionais,
Roszak entendia que a juventude envolvida na propulsores e organizadores do que Hobsbawn
contracultura se levantava contra a tecnocracia, “(...) (1994/2004), em referência ao período do pós-
aquela sociedade na qual os governantes justificam- guerra, compreende como Era de Ouro, haviam
se invocando especialistas técnicos, que, por sua perdido poder de controle e planejamento da
vez, justificam-se invocando formas científicas de economia, de tal forma que as grandes companhias,
conhecimento. E além da autoridade da ciência
-

com sedes em vários locais do mundo, lucravam


não cabe recurso algum” (Roszak, 1968/1972, p. cada vez mais, e o aumento das desigualdades
21). Roszak ainda considerava a tecnocracia como
A r t i g o s

também seguia esta proporção. Houve um severo


totalitária, uma vez que a palavra final é a técnica, embate entre os economistas que apostavam no
revestida de uma pretensa neutralidade conferida à Estado de Bem-Estar Social, surgido no pós-guerra,
ciência e à razão. A metáfora que melhor representa e os neoliberais, que acreditavam que o mercado
o modelo de sociedade contra o qual a contracultura

303 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 300-311, set-dez, 2018
Emanuel Meireles Vieira; Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro; Jacqueline de Oliveira Moreira; Andréa Maris Campos Guerra

se regulava a partir da livre concorrência e sem a social, o que lhe gera “(...) ansiedade, depressão,
intervenção estatal (Hobsbawm, 1994/2004). descontentamento vago, um senso de vazio interno”
O pleno emprego rapidamente já não (Lasch, 1979/1991, p. 13).
era mais uma realidade. A ideia era aprofundar a O homem apresentado por Lasch busca
lógica de fazer mais e ganhar mais com menos, a o prazer obsessivamente, mas tende sempre à
partir da aceleração da substituição do trabalho frustração, pois o faz calcado em fantasias primárias.
humano pelo uso de máquinas através do avanço Assim, ocorre uma reprodução mecanizada da
da informática e da robótica. Isto tirou força cultura, com uma proliferação audiovisual da
do movimento trabalhista e fortaleceu grupos sociedade daquele tempo (e da atual), de tal
xenófobos, bem como movimentos ligados à causa maneira que se prejudica o próprio senso de
ecológica (Hobsbawm, 1994/2004). realidade do indivíduo (Lasch, 1979/1991). Para
O conservadorismo político também Lasch, cabia ao terapeuta, figura que, conforme
ocorreu num plano cultural mais amplo. Líderes se verá mais à frente, ganhou imensa notoriedade
fundamentalistas ganharam espaço na mídia e nos pós-guerra dos EUA, e não ao padre ou outra
arrebanharam cada vez mais adeptos a suas seitas. figura tradicional, cuidar do vazio existencial deste
Era comum o aumento de venda de publicações indivíduo, que a ele recorre “(...) na esperança de
vinculadas a visões religiosas, além de emissoras alcançar o equivalente moderno da salvação, saúde
de rádio e televisão evangélicas (Suri, 2009; mental” (1979/1991, p. 13, tradução nossa). Isto
Kaufman, 2009). Havia uma tensa convivência tornava a terapia uma antirreligião, não pelo uso
entre manifestações cada vez mais frequentes por de métodos científicos ou explicações do plano
direitos de minorias historicamente desprezadas e da racionalidade, senão que por sua ênfase no
grupos conservadores. agora. Esta ênfase, segundo Lasch (1979/1991),
De acordo com Kaufman (2009), há evidenciava a falta de futuro da sociedade que,
entendimentos de que a década de 1970 funcionou assim, “(...) não se importa com nada além de suas
como uma individualização da busca pela necessidades imediatas. Mesmo quando terapeutas
compreensão de si mesmo que tanto marcou falam de necessidade de ‘significado’ e ‘amor’,
os grupos da contracultura. A autodescoberta, definem amor e significado como o preenchimento
a autorrealização e afins podem ter tido como das necessidades emocionais do paciente” (p. 13,
resultado um indivíduo autocentrado. Uma tradução nossa). A crítica elaborada por Lasch,
experiência que sofreu as mudanças citadas por como se pode perceber, gira em torno da ideia
Kaufman é a de ver um filme. Nos cinemas, até a de um indivíduo pouco afeito ao encontro com a
década 1970, isso ocorria coletivamente. Com os alteridade, mesmo que esteja com outras pessoas, e
aparelhos de videocassete, foi possível realizar esta de uma psicologia que mantém estas ilusões.
mesma atividade sozinho, no conforto do seu lar. O contexto descrito acima incidiu
Essa característica individualista forneceu diretamente sobre os rumos adotados pela Psicologia
a Lasch (1979/1991) a condição de qualificar a estadunidense. Afinal, a convivência entre guerra,
década em questão como uma época da cultura prosperidade, contestação e conservadorismo
do narcisismo. Para Lasch (1979/1991), havia uma criou novas demandas para o entendimento e o
crise espiritual nos anos 1970 no sentido de que acolhimento da experiência humana. O significado
se enfatizava muito a vida presente em detrimento do que é propriamente humano passou a ocupar
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

de um senso de continuidade histórica. Assim, o debates e a Psicologia não fugiu desse clamor. Neste
sonho de transformar o mundo deu lugar à busca sentido, a seguir, será feita uma discussão sobre de
pela sobrevivência física e psíquica. que modo os acontecimentos acima possibilitaram a
A fome das pessoas naquele contexto, Rogers conquistar um espaço até então inédito para
de acordo com Lasch (1979/1991), era de “(...) a Psicologia aplicada, especialmente nos campos
sentimento, ilusão momentânea, de bem-estar da psicoterapia e do aconselhamento psicológico.
pessoal, saúde e segurança psicológica” (p. 7, Posteriormente, como consequência de todo o
tradução nossa). Para Lasch, segundo Wanderley contexto, serão apontadas três grandes questões a
(1999), a burocratização, a sobrevalorização da que o pensamento de Rogers estava atrelado em seu
imagem, as ideologias terapêuticas, a racionalização desenvolvimento, a saber, a autenticidade no âmbito
da vida interior, o culto ao consumismo e as das relações humanas, o questionamento de um
mudanças na vida familiar – acontecimentos que modelo tecnocrático de produção de conhecimento
se fortaleceram no pós-guerra, conforme já visto em Psicologia e, por fim, o risco que a revolução
– levaram a uma cultura narcísica. De inspiração interior proposta pela contracultura e abraçada pela
psicanalítica, Lasch compreende que, com a perda psicologia humanista tinha de se tornar uma forma
de credibilidade das autoridades modernas, o de narcisismo nos termos discutidos por Lasch
superego assume formas infantilizadas, baseadas (1979/1991).
nas fantasias sádicas sobre os pais, em detrimento
da formação do ego que se dá nas experiências
-

posteriores à primeira infância. É, portanto, a partir A Gestação do Pensamento Rogeriano no


dessas fantasias, que o indivíduo passa a interagir
A r t i g o s

Cenário do Pós-guerra Estadunidense


com a realidade e, por isso mesmo, a sensação
é de vazio. É como se ele passasse a buscar em A Psicologia foi uma das profissões que
si mesmo os recursos que, de fato, estão na vida mais passaram por transformações a partir do que

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 300-311, set-dez, 2018 304
Prosperidade, Contestação e Tecnocracia: o Pensamento Rogeriano em seu Contexto de Gestação

houve nos EUA, seja quanto a uma redefinição de organizacional” (Pickren, 2007, p. 280). A clínica,
seus interesses teóricos, seja na própria identidade portanto, atividade marginal antes do início do
da profissão. Essas mudanças seguramente foram conflito, passou a ganhar importância, embora
cruciais para que Rogers e todos os outros chamados ainda ficasse inicialmente restrita à aplicação e
“humanistas” desenvolvessem seus trabalhos. interpretação de testes (Grogan, 2008). Somente em
Até a Segunda Guerra Mundial, a Psicologia nos 1941, um grupo de trabalho do qual Rogers fazia
EUA valorizava demasiadamente as atividades de parte organizou uma conferência para discutir a
laboratório (Grogran, 2008), a ponto de Capshew formação de psicólogos clínicos e definiu a atividade
(1999) identificar que esse tipo de trabalho da Psicologia Clínica como “(...) a técnica e a arte
tinha uma função quase religiosa, e com grande de aplicar princípios psicológicos aos problemas
prevalência de uma perspectiva behaviorista. Por da pessoa individual visando proporcionar-lhe um
isso, a maioria dos psicólogos tinha a docência ajustamento mais satisfatório” (Rogers, 1941 citado
como atividade e a Psicologia Clínica era vista como em Capshew, 1999, p. 135).
algo menor, incapaz de ser investigada nos moldes Para Grogan (2008), financiamento de
científicos e praticada por mulheres, que ganhavam pesquisas, crescimento populacional, urbanização,
menos do que homens com titulação equivalente. expansão do ensino superior e escassez de
A tensão entre o aspecto científico e a atividade outros profissionais, especialmente psiquiatras
profissional naquele país pendia fortemente para contribuíram para a expansão na Psicologia nos
aquele vinculado a mensuração, previsão e controle. EUA durante o pós-guerra. Especialmente, o
A contribuição de psicólogos em várias financiamento de pesquisas através dos fundos
atividades durante a Segunda Guerra Mundial foi Veterans Administration e Public Health Service
decisiva para uma mudança que se consolidaria a foi decisivo nesse processo. Para Kirschenbaum
partir dos anos 1960. Essa transformação tem como (2007), o crescimento da psicologia clínica àquela
foco a legitimidade de uma Psicologia aplicada época se deve ao reconhecimento da necessidade
a situações e contextos cotidianos, não restrita de profissionais de saúde mental, por conta
ao âmbito dos laboratórios. Para Grogan (2008), da Segunda Guerra Mundial, da demanda por
a tensão entre ciência e profissão presente no um trabalho clínico pedido pela Associação de
referido contexto era reflexo do embate entre visões Veteranos de Guerra (Veterans Administration), da
atomistas e holísticas quanto ao objeto sobre o qual expansão de planos de saúde como um benefício
se debruçava a Psicologia. Foi, portanto, o segundo trabalhista e do estabelecimento do National Institut
grande conflito bélico mundial que forçou os of Mental Health. Assim, a Psicologia Clínica passou
acadêmicos a tentarem produzir respostas para as a ocupar espaços em programas de graduação e pós-
questões consideradas de maior relevância social. graduação nos EUA.
Em 1939, logo após a guerra ser iniciada, a American Isso coincide exatamente com o período
Psychological Association (APA) e a American em que Rogers começou a desenvolver seu trabalho
Association for Applied Psychology (AAAP) formaram autoral de forma mais consistente. Em 1942, havia
um comitê consultivo unificado cuja função era lançado Counseling and Psychotherapy, que,
informar aos psicólogos a respeito de oportunidades embora não tenha sido recebido entusiasticamente
em agências civis e militares durante o período do pela academia, teve boa circulação diante da
conflito. Havia um entendimento de que os recursos crescente demanda por trabalhos que envolvessem

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
militares eram divididos em mecânico e humano, intervenção terapêutica impulsionada pelo retorno
de modo que caberia à Psicologia cuidar do último, dos veteranos de guerra (Rogers & Russell, 2002).
o que levaria a Robert Yerkes, um dos responsáveis Durante a guerra, Rogers havia participado
junto ao National Research Council (NRC) para a de vários grupos de trabalho para definir a atuação
atuação dos psicólogos nas instituições militares, a do psicólogo, trabalhando para agências civis e
defender a ideia de que a Psicologia atuaria como militares, além de ter suas técnicas de entrevista
uma engenharia mental (Capshew, 1999), cujo foco (até então denominadas de aconselhamento não-
era o aperfeiçoamento da adaptação de pessoas. diretivo) amplamente utilizadas. Segundo De
A aplicação de testes para a seleção de Carvalho (1999), a terapia desenvolvida por Rogers
pessoal era a atividade que tinha mais destaque. foi amplamente utilizada por ser “(...) simples,
Além disso, as atividades dos psicólogos, todas informal, breve e requerer pouco treinamento” (p.
dizendo respeito ao fator humano do âmbito militar, 142, tradução nossa). Rogers foi contratado para dar
eram “(...) visão, controle de tiro, comunicações, cursos breves sobre como trabalhar com os veteranos
seleção e treinamento” (Capshew, 1999, p. 146, que voltaram da guerra a partir de sua recém-criada
tradução nossa). Skinner, cujas pesquisas envolviam terapia não-diretiva e lançou um manual sobre a
o uso de pombos para guiar mísseis em combate, temática (Rogers & Wallen, 1946/2000).
era exceção. Todas essas atividades envolviam Essa ascensão fez com que Rogers fosse
desenvolvimento e aplicação de pesquisas, o que, na convidado a assumir um cargo de professor na
prática, significou o fim das fronteiras estabelecidas Universidade de Chicago, onde a promessa de
-

entre teoria e prática (Capshew, 1999) coordenação de um centro de aconselhamento


Com a maior evidência de atividades e de uma máquina mais moderna para gravar as
A r t i g o s

práticas, foram privilegiadas pelos fundos entrevistas foi decisiva para sua mudança. Rogers
governamentais para pesquisa as áreas “(...) foi o primeiro a gravar sessões de psicoterapia para
clínica, aconselhamento, educacional e industrial/ posterior e incansável análise com seus estudantes

305 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 300-311, set-dez, 2018
Emanuel Meireles Vieira; Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro; Jacqueline de Oliveira Moreira; Andréa Maris Campos Guerra

e parceiros. Suas primeiras gravações, porém, psicanalistas neofreudianos, como Karen Horney,
ocorriam muito precariamente, com a utilização Erich Fromm e Harry Sullivan, que criticavam o
de discos que precisavam ser trocados a cada 3 modelo de desenvolvimento humano para o qual a
minutos. Isso não impediu que ele publicasse, em financeiramente próspera sociedade estadunidense
1942, o caso Bryan, primeiro transcrito e publicado caminhava (Castelo Branco, Vieira, Cirino &
integralmente (Rogers & Russell, 2002). Moreira, 2016; Grogan, 2012).
Gradativamente, a Psicologia Clínica Rogers, que certamente se identificava
avançou de um lugar reduzido à interpretação de com a ideia de dar um novo significado à ciência
testes à possibilidade de intervenção vinculada à psicológica, ocupava uma posição ambígua no
ideia de adaptação demandada durante o conflito. chamado movimento humanista, tentando conciliar
Não por acaso, em 1946, Rogers, cujas pesquisas se a tradição do método experimental às propostas
concentravam no âmbito da Psicologia Clínica, foi daquele movimento (Vieira, 2017). Se, por um lado,
eleito presidente da APA (Capshew, 1999). se reconhecia como um teórico cujas contribuições
Embora a clínica conquistasse um espaço eram limitadas às técnicas que havia criado, portanto
cada vez mais significativo, as pesquisas em fora do mundo acadêmico (Rogers, 1974), por outro
Psicologia da década de 1950 tinham uma faceta nutria verdadeira paixão pelo método científico
nomotética e quantificadora, ou seja, era preciso (Rogers & Coulson, 1968/1973). Para Grogan (2012),
estabelecer leis gerais e replicáveis para um o contexto de questionamento dos anos 1960, que
determinado fenômeno a partir de alguma medida prenunciava uma série de mudanças na cultura
que pudesse indicá-lo (Capshew, 1999). Mesmo estadunidense, alimentou o ímpeto dos psicólogos
pesquisas vinculadas à Psicologia Clínica, como humanistas, entre eles Rogers, em seu âmbito de
as realizadas por Rogers, tinham essa marca. Não atuação. Suas ideias se espalharam velozmente
era incomum encontrar entre os escritos do Rogers pelos EUA e passaram a ganhar destaque tanto no
medidas estatísticas que tentassem validar aquilo âmbito acadêmico quanto no profissional.
que ele tentava provar através da psicoterapia Uma das manifestações culturais que mais
(Rogers, 1951/1975, 1957/1992; 1961/2001a; Rogers se identificaram com a Psicologia Humanista foi a
& Dymond, 1954). A tecnocracia que, conforme contracultura, materializada a partir do Movimento
já se viu, foi um forte traço dos EUA pós-guerra do Potencial Humano (Human Potential Movement),
atingia diversos âmbitos – inclusive o da pesquisa que se valeu “(...) das mais diversificadas técnicas
em Psicologia Clínica. grupais, corporais, bioenergéticas, de massagens, da
Para compreender especificamente o lugar filosofia oriental, etc” (Campos, 2006, p. 251) para
de Rogers na discussão entre clínica e pesquisa, é a promoção do potencial humano diante de uma
preciso tomar como referência seu contexto, qual sociedade vista como opressora. Segundo Campos
seja o fato de que a pesquisa em Psicologia nos (2006), vigorava neste movimento a filosofia do
EUA só se justificava a partir de um compromisso drop out, ou seja, cair fora do sistema político e
com o método científico extraído da lógica social, bem como do predomínio da racionalidade
laboratorial. Rogers, inclusive, é extremamente científica.
reconhecido como aquele que tirou a psicoterapia Nesse contexto, no final de 1963, Rogers
de uma dimensão privada, quanto à análise de seu deixou a Universidade Wisconsin para se aposentar
conteúdo, para a esfera pública da investigação da vida acadêmica e se dedicar a atividades ligadas
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

científica e, certamente, deve isso a uma formação a trabalhos com grupos, no Western Behavioral
que valorizava exclusivamente aquilo que poderia Science Institute (WBSI). Juntamente com a
ser demonstrado e quantificado em pesquisa (Rogers Universidade, Rogers deixou de fazer psicoterapia
& Russell, 2002; Kirschenbaum, 2007). Ocorre que, individual, e passou a se dedicar intensamente
conforme se verá adiante, a ciência, pelo menos no a trabalhos com grupos (Rogers & Russell, 2002;
período em que Rogers produziu, não abria espaço Kirschenbaum, 2007). Na avaliação de Grogan
para a liberdade e a genuinidade, ou seja, para a (2008), houve, certamente, um desequilíbrio
possibilidade de que a fruição da experiência não entre a dimensão experiencial do conhecimento
tivesse parâmetros enrijecidos por métodos a serem (sobretudo do autoconhecimento) e a exploração
reproduzidos. intelectual de suas implicações. Mesmo uma
É exatamente contra formas tecnocráticas ferramenta acadêmica como Journal of humanistic
de se fazer Psicologia que, no início dos anos Psychology se tornou algo próximo disso, ao
1960, se insurge a Psicologia Humanista (Rogers reproduzir os defeitos do movimento. Em entrevista
& Russell, 2002). De acordo com Grogan (2008), a Grogan (2008), Richard Farson, um dos diretores
questões como a identidade diante de um mundo do WBSI, onde Rogers trabalhou durante 4 anos,
capitalista e, como eram os EUA, próspero, bem diz que, em nome da tentativa de não adotar uma
como a definição de saúde mental para além da perspectiva reducionista sobre o humano (como os
doença, foram fundamentais para o humanismo. humanistas acreditavam que faziam a psicanálise
O momento de emergência das ideias humanistas e o behaviorismo), os humanistas foram ao outro
-

na Psicologia era exatamente aquele em que alguns extremo, reduzindo-o a sentimentos, emoções e
estadunidenses estavam se perguntando sobre seus escassa reflexão.
A r t i g o s

valores e questionando o modelo de sociedade Apesar de uma marcante influência


em viviam. Contribuíram significativamente nos vários campos de atuação do psicólogo –
para estes questionamentos as reflexões de especialmente na clínica – não é difícil encontrar

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Prosperidade, Contestação e Tecnocracia: o Pensamento Rogeriano em seu Contexto de Gestação

textos discutindo os motivos de um declínio do mas que se preocupasse com a singularidade da


humanismo a partir da segunda metade dos anos experiência humana ia fortemente de encontro ao
1970 e, até mesmo, a viabilidade de sua sobrevivência pensamento conservador vigente e ao encontro de
no cenário contemporâneo (Cain, 2003; Serlin, anseios emergentes nos movimentos contestatórios
2011). Para Grogran (2012), a falta de credibilidade discutidos acima. Para Rogers (Rogers & Kinget,
acadêmica, somada ao conservadorismo que se 1962/1977), a gênese do sofrimento humano
aprofundou nos EUA a partir dos anos 1970, fez reside no desenvolvimento da necessidade de
com que o interesse pela Psicologia Humanista se sentir-se aceito por outros significativos, por ele
reduzisse progressivamente. Afinal, filosoficamente, denominados pessoas-critério, na medida em que
a Psicologia Humanista punha em xeque muitas isto entraria em contradição com as necessidades
relações de poder estabelecidas em nosso cotidiano, organísmicas do indivíduo.
como entre professor e aluno, e terapeuta e cliente No pensamento clínico de Rogers, portanto,
(Rogers, 1977/2001b), se apresentando como um ser pessoa significa afirmar-se como singularidade
risco aos defensores do status quo. Outro fator diante do mundo. A busca humana primordial,
que contribuiu para a decadência do humanismo para Rogers (1961/2001a), é a de entrar em contato
nos EUA foi o afastamento que o movimento com questões existenciais como o sentido da
produziu em relação à academia. Rogers via isto vida, a liberdade, entre outras, o que, em Riesman
com preocupação: “(...) a Psicologia Humanista (1950/1971), pode ser entendido através do drama
não está bem representada nos cursos das grandes da multidão solitária. Nesse sentido, a emergência
universidades. Se a Psicologia Humanista tiver dessa autenticidade se dá na medida em que o
que ter um futuro maior terá que de alguma forma terapeuta oferece uma relação cuja premissa básica é
penetrar nas universidades mais profundamente. de confiança e de acolhimento da diferença e na qual
Terá que encontrar caminhos para fazer pesquisa” se afirma como pessoa genuinamente interessada na
(Rogers & Russell, 2002, p. 304, tradução nossa). compreensão da experiência do outro.
No cenário delineado, portanto, na virada A partir de suas observações clínicas, Rogers
dos anos 1970 para a década posterior, o humanismo (1961/2001a) conclui que, quando o cliente é livre
não tinha mais a mesma relevância de 20 anos para escolher, opta por confiar num processo de
antes. Na avaliação de Grogan (2012), era como se abertura à experiência presente, em vez de ceder à
o contexto indicasse que a Psicologia Humanista necessidade de cumprir com a expectativa alheia – o
havia falhado em suas promessas, pois, na década que ele chama, inspirado por Kierkegaard, de tornar-
de 1980, 45% dos americanos sentia que a vida se o que se é (Pinheiro & Vieira, 2011). Ser uma
havia piorado, já que conviviam com estagnação pessoa, portanto, implica em algo muito próximo
econômica, aumento de índices de criminalidade, do que Riesman visualizava como saída para a
além de crise energética. Grogan avalia que Rogers personalidade alterdigirida, ou seja, a necessidade
encontrava uma receptividade maior fora de seu de maior autoconsciência e reconhecimento das
país do que lá. Foi neste período, aliás, que Rogers emoções e limitações de cada um perante as
veio ao Brasil (Rogers, 1980/1983). demandas por aderir passivamente ao coletivo. Nem
Como se pode perceber, há uma interseção Rogers, nem Riesman, apostam que daí resultaria
entre a cultura e o desenvolvimento da Psicologia algum tipo de atitude individualista, pois creem
nos EUA no que tange às questões que marcaram numa convivência em que se afirmam as diferenças,

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
aquele país entre as décadas de 1940 e 1970. Os num processo de recíproco e contínuo de abertura à
questionamentos que rondavam o período em alteridade, o que não necessariamente é verdadeiro
questão, portanto, podem ser elencados para nos (Vieira & Freire, 2006; Vieira & Pinheiro, 2015).
dar mais ferramentas no intuito de compreender em
que lugar o pensamento de Rogers se produzia. Não
pretendemos com eles totalizar o período discutido, O Pensamento Tecnocrático em Questão
mas apontar tendências e caminhos que, mesmo à
revelia da vontade de Rogers, estavam presentes em O questionamento da tecnocracia como
sua época e lugar. modo de validação do conhecimento, ainda que
ambiguamente, é outra marca profunda da obra
rogeriana. Rogers, desde muito cedo, desenvolve
A Autenticidade e a Busca por Tornar-se uma uma concepção de aconselhamento que desafia a
Pessoa ideia de que o terapeuta precisa ser um especialista
sobre a personalidade humana, ou ter uma aguçada
Um tema emergente a partir das discussões habilidade psicodiagnóstica (Rogers & Wallen,
acima é o da autenticidade. Num período em que 1946/2000). Coloca em xeque a autoridade do
a desconfiança e a tarefa de aparentar ser de uma terapeuta como um técnico e o apresenta como uma
forma que pudesse ser aceita por um determinado pessoa interessada em outra. Longe, portanto de um
grupo dominavam as relações, as possibilidades de tecnocrata, o terapeuta se apresentava como alguém
-

uma expressão autêntica estavam na pauta do dia. para quem, no momento imediato do encontro com
Quais os espaços para se expor sem desconfiança o outro, a teoria era nociva.
A r t i g o s

numa cultura assim? Uma psicologia que não Para Rogers (1961/2001a), os lugares
tivesse a adaptação como meta de seu trabalho, ocupados por terapeuta e cientista são deveras
distintos e, mesmo quando tenta pô-los em diálogo,

307 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 300-311, set-dez, 2018
Emanuel Meireles Vieira; Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro; Jacqueline de Oliveira Moreira; Andréa Maris Campos Guerra

o faz de modo a dizer de um através da realidade coletivos se resumissem a espaços protegidos, com
do outro. Dito de outra forma: se o cientista é duração limitada e artificial como os grupos de
o que observa, analisa e extrai uma forma de encontro, numa realização quase profética do que
funcionamento da relação, e o terapeuta tem como Lasch identificou como cultura do narcisismo.
tarefa se entregar ao encontro interessado diante Rogers via nos grupos uma possibilidade
do outro, o único diálogo possível entre eles é de mudança que se expandiria para dimensões
através de uma redefinição de ciência. Isso ocorre além do momento presente. Suas tentativas de
na medida em que Rogers tenta pensar a ciência mediação de conflitos entre grupos historicamente
como atividade que envolve escolha de valores, rivais (Rogers, 1977/2001b; Rogers & Russell,
seja a partir do tema que o cientista escolhe, ou dos 2002) evidenciam uma constante preocupação de
métodos que utiliza em sua pesquisa. Rogers se viu que seu trabalho pudesse contribuir para a paz
às voltas com um forte embate entre sua formação mundial, por exemplo. Para Rogers, os grupos
acadêmica de pesquisador e a descoberta de uma eram uma ferramenta que poderia levar a uma
liberdade no encontro com o outro que não tinha melhor convivência coletiva (Farson,1979). Não por
lugar na ciência. acaso, Figueiredo (1991), ao tentar delinear o lugar
Podemos dizer que o questionamento sobre a epistemológico que ocupa a Psicologia Humanista
tecnocracia no pensamento rogeriano se faz presente no que ele chama de Matrizes do Pensamento
também na discussão sobre o sentido de uma vida Psicológico, compara-a a seitas em que a linguagem
boa (Rogers, 1961/2001a; Vieira & Freire, 2012). Isto e o abandono da linguagem verbal bastariam para
está em consonância com o movimento dos direitos uma relação genuína com o mundo. Neste sentido,
civis e a nova esquerda que, embora tivessem como o autor referido aponta para o perigo ideológico
objetivo demandas coletivas, enfocavam o valor do ideário humanista de afirmar uma liberdade
do indivíduo ou, ainda, a libertação do eu (self). irrefletida, incapaz de pensar os condicionantes
Tal questão que, de acordo com Grogan (2012), que a impedem de ocorrer. Outra crítica relevante
esteve presente em vários debates da democracia é feita por May (1982/1989) quando coloca a Rogers
americana. Esta visão também é compartilhada por o problema do mal. Nela, o autor aponta uma
Campos (2006) que vê a Psicologia Humanista em unidimensionalidade da experiência humana nas
sintonia com as mudanças que se apresentavam ideias do criador da ACP ao sobrevalorizar uma
na cultura americana. Rogers também se pergunta dimensão positiva da natureza humana (Rogers,
sobre que modelo de vida a Psicologia ajuda a 1957/2014) que por vezes ignora o seu avesso.
construir e afirma, num claro embate com Skinner, Quando Rogers raciocina assim, atribui à cultura
que o que faz a vida ser boa não é a possibilidade de o corrompimento dessa natureza positiva e, desta
ser controlado pelo outro, mas a liberdade (Rogers, forma, ignora que os processos culturais são criações
1961/2001). humanas. Nesse sentido, deixaria de reconhecer
Mesmo sendo um assumido admirador do uma dimensão de historicidade na experiência do
método científico (Rogers & Coulson, 1968/1973; sujeito, uma vez que isto o lançaria num campo de
Rogers & Russell, 2002; Kirschenbaum, 2007), solipsismo cuja fonte para o desenvolvimento seria
Rogers não deixava de se questionar quanto aos uma bagagem natural garantida na filogênese.
impasses éticos que seu trabalho envolvia. A teoria Grogan (2008), por sua vez, associa os
que desenvolveu é toda voltada para a afirmação do grupos de encontro ao individualismo americano.
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

valor da pessoa, e toma este valor, inclusive, como A transformação de si, portanto, em muitos
algo decisivo não apenas no plano da construção momentos, suplantou qualquer sonho de mudança
teórica, mas na experiência, de modo pré-reflexivo. do mundo concreto e diminuiu a virulência crítica
Toda a atuação do terapeuta gira em torno da que o movimento poderia ter. O que se viu após o
afirmação dessa ideia em suas atitudes, de tal forma movimento dos grupos de encontro e das reflexões
que isto é comunicado e sentido na interação. de Lasch foi um aprofundamento de uma cultura
narcísica e, portanto, com pouco espaço para
uma convivência com a alteridade – o que é bem
Narcisismo e a Busca da Compreensão de si distinto da tolerância. Ao que parece, a despeito
das aspirações rogerianas, seu escopo teórico não
Se havia a necessidade de um saber foi capaz de prever este desdobramento.
engajado e um questionamento sobre o sentido de
uma ciência humana, a busca por uma compreensão
de si por vezes tendia a reforçar uma cultura Considerações Finais
narcísica e, portanto, pouco preocupada com o
que ocorria ao redor. A linha entre autodescoberta Abordamos neste trabalho as condições de
e narcisismo era bastante tênue e sua tensão possibilidade para a gestação do pensamento de
atravessava (e atravessa até hoje) todos os saberes Rogers. Como se pôde ver, o contexto da segunda
e práticas psicológicas. Havia, e por vezes ainda grande guerra produziu uma série de modificações
-

há, o iminente risco de que a necessidade de na sociedade estadunidense, como prosperidade,


mudança psíquica que tomou o lugar da mudança protestos de populações marginalizadas e focos
A r t i g o s

da estrutura social na contracultura (Roszak, de conservadorismo convivendo num mesmo


1968/1972) pudesse significar aniquilamento território em diferentes décadas. Vale dizer que
da convivência em sociedade. Ou ainda, de que a separação por décadas é mais didática do que

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 300-311, set-dez, 2018 308
Prosperidade, Contestação e Tecnocracia: o Pensamento Rogeriano em seu Contexto de Gestação

real, visto que é impossível delimitar exatamente Campos, R. F. (2006). Os anos 60 e o projeto de Psicologia
em que momento cada movimento se inicia e se Humanista. Epistemo-Somática (Belo Horizonte), 3
finda. O que interessa de fato é que a relação entre (2), set/dez, 242-260.
todos esses acontecimentos criou condições para
que Rogers, entre outros pensadores da Psicologia Capshew, J. H. (1999). Psychologists on the march: Sci-
Humanista, atentasse para um novo modo de ence, practice, and professional identity in America,
fazer Psicologia. 1929-1969. New York: Cambridge University Press.
Tais condições estavam associadas, dentre
Castelo Branco, P. C. (2010). A noção de organismo no
outros, ao fato de a Psicologia fora do laboratório,
fieri teórico de Carl Rogers: uma investigação epis-
tida como um campo de segunda categoria, ter
temológica. Dissertação de Mestrado em Psicologia.
conquistado um novo patamar a partir da atuação
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Uni-
junto aos veteranos de guerra, impulsionada pela
versidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil.
necessidade do desenvolvimento de um método
simples e prático que pudesse amenizar seu Castelo Branco, P. C., Vieira, E. M., Cirino S. D. & Moreira,
sofrimento. Destacou-se, ainda, o financiamento J. O. (2016). Influências da Psicanálise neofreudiana
de pesquisas por parte do fundo estatal dos na psicoterapia de Carl Rogers. Contextos clínicos, 9
veteranos de guerra que patrocinou novas (2), 279-289. DOI: 10.4013/ctc.2016.92.12.
iniciativas neste sentido. Por outro lado, num
contexto em que a desconfiança dava o tom dos Cury, V. E. (1987). Psicoterapia centrada na pessoa: evo-
modos de vinculação e cuja realização pessoal lução das formulações sobre a relação terapeuta-
estava ligada a ideias de consumo e aceitação pelo -cliente. Dissertação de Mestrado em Psicologia.
grupo, tal Psicologia, em resposta ao sofrimento Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica,
derivado da forma de organização vigente, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
se propôs a pensar no que significa ser uma
pessoa imersa em relações abertas e genuínas. De Carvalho, R. J. (1999). Otto Rank, the rankian circle
Essa temática ganha força quando se alia a um in Philadelphia, and the origins of Carl Rogers’ per-
questionamento sobre uma idolatria em torno de son-centered psychotherapy. History of Psychology,
maneiras tecnocrática de compreensão do real. 2 (2), 132-148. DOI: 10.1037/1093-4510.2.2.132.
Desta forma, parece-nos evidente que a
Farber, D. & Bailey, B. (2001). The Columbia guide to Ameri-
produção do pensamento de Rogers não se deu
ca in the 1960s. New York: Columbia University Press.
apenas pela influência deste autor por outros
pensadores de seu tempo. No que pese a importância Farson, R. (1979). Carl Rogers, revolucionário tranquilo.
de várias reflexões em seu contexto, interessou- Em R. I. Evans. Carl Rogers: o homem e suas ideias
nos entender algumas das perguntas a que Rogers (pp. 25-36). São Paulo: Martins Fontes.
respondia e de que modo isso ocorreu, bem como
os riscos implicados neste processo. Vale dizer que Figueiredo, L. C. M. (1991). Matrizes do pensamento psi-
o exercício aqui proposto não se encerra em si, cológico. Petrópolis: Vozes.
tampouco tem a pretensão de passar a limpo todo o
contexto em que a produção rogeriana se deu, dados Figueiredo, L. C. M. (1992). A invenção do psicológico:
os limites que ele possui. Não foram abordados, quatro séculos de subjetivação – 1500 -1900. São

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
por exemplo, elementos de sua biografia pessoal Paulo: Escuta.
ou acadêmica, visto que nos interessava mais um
panorama cultural geral que nos permitisse uma Foertsch, J. (2008). American Culture in the 1940s. Edin-
compreensão das condições de possibilidade de burgh: Edinburgh University Press.
gestação do pensamento em tela. Tampouco se Gair, C. (2007). The american counterculture. Edinburgh:
discutiu sua relação com outros pensamentos da Edinburgh University Press.
Psicologia Humanista, que, a seu modo, respondiam
a questões semelhantes às suas, pois entendemos Grogan, J. L. (2008). A cultural history of the humanistic
que, se assim fizéssemos, poderíamos abordar a psychology movement in America. Tese de doutora-
questão por um prisma mais epistemológico do que do em Psicologia. Graduate School of The Universi-
cultural. Esperamos, contudo, que o texto possa ty of Texas, Austin, EUA.
cumprir sua missão de provocar novas reflexões em
torno daquilo que produziu uma obra tão profícua Grogan, J. (2012). Encountering America: humanistic psy-
quanto o de Rogers. chology, sixties culture & the shaping of the modern
self. New York: Harper Perennial.

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309 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 300-311, set-dez, 2018
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Rogers, C. R. (2001a). Tornar-se pessoa. São Paulo: Mar- Emanuel Meireles Vieira possui Graduação em Psicologia
tins Fontes. (Originalmente publicado em 1961). pela Universidade Federal do Ceará, Mestrado em Psicolo-
gia pela mesma Universidade e Doutorado em Psicologia
Rogers, C. R. (2001b). Sobre o poder pessoal. São Pau- pela Universidade Federal de Minas Gerais Professor Ad-
lo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em junto II da Faculdade de Psicologia da Universidade Fede-
1977). ral do Pará (UFPA), onde coordenou o serviço de Plantão
Psicológico da Clínica-Escola entre 2010 e 2013. Endereço
Rogers, C. R. & Coulson, W. (1973). O homem e a ciência
Institucional: Faculdade de Psicologia, Instituto de Filoso-
do homem. Belo Horizonte: Interlivros. (Original-
fia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará. Rua
mente publicado em 1968).
Augusto Corrêa, 01, Guamá, Belém - Pará, CEP 66073-040.
Rogers, C. R. & Dymond, R. F. (Orgs.) (1954). Psychother- Email: emanuel.meireles@gmail.com
-

apy and personality change. University of Chicago


Press. Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro é professor
A r t i g o s

do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Cea-


Rogers, C. R. & Kinget, G. M. (1977). Psicoterapia e rela- rá (Campus de Sobral). Possui Graduação em Psicologia,
ções humanas (Vol 1). Belo Horizonte: Interlivros. Mestrado em Psicologia e Doutorado em Educação pela
(Originalmente publicado em 1962) Universidade Federal do Ceará.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 300-311, set-dez, 2018 310
Prosperidade, Contestação e Tecnocracia: o Pensamento Rogeriano em seu Contexto de Gestação

Jacqueline de Oliveira Moreira é Doutora em Psicologia


Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
lo. Atualmente é Professora Adjunto III da Pontifícia Uni-
versidade Católica de Minas Gerais, integrando o corpo
docente do mestrado e doutorado em Psicologia. Bolsista
Produtividade PQ2 do Cnpq e Pesquisador Mineiro FAPE-
MIG (2014-2017).

Andréa Maris Campos Guerra possui Graduação em


Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Gra-
duação em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de
Juiz de Fora, Mestrado em Psicologia Social pela Univer-
sidade Federal de Minas Gerais e Doutorado em Teoria
Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
sendo atualmente Professora Adjunta do Departamento e
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais.

Recebido em 12.07.2017
Aceito em 06.11.2017

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A r t i g o s

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Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.5

FENOMENOLOGIA DA VIDA EM PESQUISAS


CLÍNICAS

Phenomenology of Life in clinical researches

Fenomenología de la vida en investigaciones clínicas

Andrés Eduardo Aguirre Antúnez


Erika Rodrigues Colombo
Jacqueline Santoantonio
José Tomás Ossa Acharán
Julio César Menéndez Acúrio

Resumo: Apresentaremos uma possível operacionalidade da Fenomenologia da Vida de Michel Henry e seu método
em situações clínicas. Neste método investigamos o conceito desenvolvido por Michel Henry nesta fenomenologia
denominado corpopropriação e a intuição reflexiva na compreensão e intervenção clínica. É a relação terapêutica em
instituições de saúde que é colocada em primeiro plano, tanto nos cuidados a um paciente adulto com transtorno
psiquiátrico quanto em grupo com crianças acolhidas. Verifica-se como os terapeutas se corpo-apropriam de seus
pacientes e como estes se corpo-apropriam de seus sofrimentos nos cuidados clínicos, bem como o uso das reflexões
intuitivas no diálogo. Os resultados nos mostram que um corpo doente pode ser humanizado na relação terapêutica e
tem possibilidades de encarnar vivências, ampliando assim a mobilidade afetiva, do sofrer ao fruir de si. No entanto,
se a relação não tiver sustentação e continuidade, dificilmente se consegue a estabilidade dessa transformação, mas
deixa marcas enraizadas em cada encontro inter-humano.
Keywords: Corpopropriação. Michel Henry. Psicoterapia. Atendimento em Grupo. Crianças acolhidas.

Abstract: We will present a possible operationalization of Michel Henry’s Phenomenology of Life and his method in clin-
ical situations. This method investigates the concept developed by Michel Henry in this phenomenology called corp-
spropriation and the reflexive intuition in the comprehension and clinical intervention. It is a therapeutic relationship
in health institutions that is placed In the foreground, both in the care of an adult patient with psychiatric disorder and in
a group with sheltered children. It is verified how therapists body-apropriation of their patients and how they body-ap-
propriate their sufferings in clinical care, as well as the use of intuitive reflections in dialogue. The results show that a sick
body can be humanized in the therapeutic relationship and has possibilities of embodying experiences, thus increasing
the affective mobility, of suffering when enjoying oneself. However, if the relationship does not have support and conti-
nuity, it is difficult to achieve the stability of this transformation, but leaves marks rooted in each inter-human encounter.
Keywords: Corpspropriation, Michel Henry, Psychotherapy. Group Therapy. Sheltered children.
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

Resumen: Presentaremos una posible operatividad de la Fenomenología de la Vida de Michel Henry y su


método en situaciones clínicas. En este método investigamos el concepto desarrollado por Michel Henry
en esta fenomenología denominado cuerpopropriación y la intuición reflexiva en la comprensión e inter-
vención clínica. Es la relación terapéutica en instituciones de salud que es colocada en primer plan, tanto
en el cuidado a un paciente adulto con trastorno psiquiátrico como en grupo con niños huérfanos. Se veri-
fica cómo los terapeutas se apropian de sus pacientes y cómo éstos se apropian de sus sufrimientos en los
cuidados clínicos, así como el uso de las reflexiones intuitivas en el diálogo. Los resultados nos muestran
que un cuerpo enfermo puede ser humanizado en la relación terapéutica y tiene posibilidades de encarnar
vivencias, ampliando así la movilidad afectiva, del sufrir al goce de sí. Sin embargo, si la relación no tiene
sustentación y continuidad, difícilmente se consigue la estabilidad de esa transformación, pero deja mar-
cas enraizadas en cada encuentro interhumano.
Palabras clave: Cuerpopropriación. Michel Henry. Psicoterapia. Terapia en Grupo. Niños húerfanos.

Introdução O objeto e método da fenomenologia


-

Nesta investigação, propomos pensarmos O objeto da fenomenologia não é precisamente


como o conceito de corpopropriação e intuição re- o fenômeno, o que aparece, mas o ato de aparecer,
A r t i g o s

flexivas podem ser compreendidos na psicoterapia como aparece, e é esse objeto que a diferencia de
de um paciente com transtorno psicótico e em rela- todas as outras ciências (Henry, 2014, p.39). Assim,
ção às crianças abrigadas atendidas em grupo. abre-se um campo novo e infinito de investigações

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 312-318, set-dez, 2018 312
Fenomenologia da Vida em Pesquisas Clínicas

(Henry, 2014, p.41), não só à fenomenologia tradi- abrir-se a algo outro. O sofrimento não sente nada
cional como à própria psicologia clínica. outro, mas tão só a si mesmo. ‘Sentir seu sofrimen-
A fenomenologia clássica tem princípios bá- to’ é uma expressão imprópria. Implica uma rela-
sicos. O primeiro: a tanto aparecer, tanto ser. Ao ção com o sofrimento.” (Henry, 2014, p.88). Obser-
aparecer algo a mim, esse algo ao mesmo tempo é, vamos que o sofrimento não se relaciona com ele
assim, aparecer é ser. Por exemplo, ao aparecimen- mesmo, sofre-se a si mesmo, daí uma inversão fe-
to de uma imagem, não importa o conteúdo des- nomenológica do modo de pensar de Michel Henry
sa imagem, mas o fato dela aparecer, daí depende e sua fenomenologia não-intencional, a Vida (e o
toda a existência e seu poder, o poder aparecer. O sofrimento) não tem intenção alguma, mas é nossa
segundo: direto às coisas mesmas, ao que aparece consciência a que busca o sentido para a mesma,
tal como aparece. Não é o conteúdo do fenômeno, daí a importância da clínica.
mas o que faz desse conteúdo um fenômeno, com
sua fenomenalidade pura, que é o seu aparecer. É o
objeto que constitui o método. Uma questão escla- Operacionalidade ou relação entre
recedora cuja inversão fenomenológica é proposta fenomenologia e práticas clínicas
por Michel Henry: “Qual é a necessidade de um mé-
todo para ir ao aparecer e conhecê-lo, se é o próprio Apresentaremos duas situações clínicas, uma
aparecer que vem para nós e se faz conhecer por si se refere à relação dual entre terapeuta e um pacien-
mesmo? (Henry, 2014, p.49)”. te com transtorno psiquiátrico em uma instituição
O princípio dos princípios desde Husserl - §24 pública filantrópica e outra, referente ao trabalho
de Ideias I (conforme citado por Henry, 2014) - é em grupo com crianças de uma casa abrigo em ins-
a intuição como conceito fenomenológico, que se tituição pública universitária. Para a explanação
refere ao modo de aparecer e não a um objeto, por desses casos com adultos e crianças, e de acordo
isso é uma intuição doadora de sentido, um modo com a fenomenalidade do pathos e da fenomenolo-
de aparecer é um modo de doação. O modo como gia não-intencional, uma expressão de Michel Hen-
se dá a nós é uma doação originária, daí o grau de ry ecoará em toda nossa exposição: “as crianças e
evidência e certeza. Tudo o que vejo é uma doação os seres humanos em geral fazem seus movimentos
originária e evidente, ao contrário de uma lembran- sem pensar neles, mas não, todavia, sem conhecê-
ça, pois posso equivocar-me desta. Assim, a estru- -los” (Henry, 2012a, p.72).
tura da consciência dá à intuição seu caráter doador
pela intencionalidade. O objeto é visível, colocado
diante de; a intencionalidade é esse fazer ver que Atendimento em Psicoterapia
revela um objeto. Duplo sentido: o que aparece é o Como pesquisar a relação em primeira pessoa
objeto em seu modo próprio de aparecer visível a se o que está em causa é a relação como nós? Um
nós (Henry, 2014, p.53-55). dos caminhos que encontramos para pesquisar a
Porém Henry (2014, p.58) indaga: “Ou existe relação em primeira pessoa é por meio da explora-
outro modo de revelação além do fazer ver da inten- ção daquilo que o clínico está sentindo na presen-
cionalidade – uma revelação cuja fenomenalidade ça do paciente. O terapeuta sente aquilo que está
já não seria a do “lá fora”, desse pré-plano de luz sendo vivido em cada momento relacional, explo-
que é o mundo?” e afirma que não há na fenome- rando assim o campo intersubjetivo, ou mais espe-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
nologia clássica uma resposta a essa questão. Daí cificamente como o campo interpessoal ecoa em si.
nasce sua proposta de uma fenomenologia material, Esta forma do terapeuta/pesquisador posicionar-se
não-intencional, concreta. junto ao outro potencializa o aparecimento de ca-
Na clínica usamos a linguagem na qual se va- racterísticas importantes da afetividade da pessoa,
loriza o verbo e sua verbalização. De acordo com surgindo na relação um sentir que é pré-temático e
Henry (2014) a linguagem é um revelador, é uma pré-simbólico, mas que é vivido em relação ou em
manifestação de si para alguém. Revela parte do so- uma interioridade recíproca que nos informa sobre
frimento. Já o sofrimento, “para aquele que sofre, os aspectos pré-reflexivos do paciente, do próprio
nada pode atacar seu sofrimento. O sofrimento não corpo vivente deste.
tem portas nem janelas, nenhum espaço fora dele Apresentaremos uma situação clínica com um
ou nele oferecido à sua fuga. (...) Sem escapatória paciente. Ele foi encaminhado ao Setor de Saúde
possível. Entre o sofrimento e o sofrimento não há Mental de um Hospital Público filantrópico após
nada. Para aquele que sofre, enquanto sofre, o tem- uma tentativa de suicídio, com o diagnóstico de de-
po não existe” (Henry, 2014, p.88). pressão bipolar e episódios psicóticos.
Em Sofrimento e Vida, Michel Henry mostra A primeira questão que chamou a atenção do
como vida e sofrimento são indissociáveis. Em uma terapeuta foi o olhar do rapaz, era um olhar fixo e
das descrições sobre o sofrimento ele afirma: “O so- o terapeuta teve a sensação de vazio. Durante os
frimento não é afetado por outra coisa, mas por si primeiros encontros, sua narrativa era desafetada e
mesmo, é uma auto afecção no sentido radical de
-

com conteúdos pesados. Por exemplo, tentou o sui-


que é afetado, e o é por si mesmo. Ele é ao mesmo cídio perfurando a região do coração com uma faca.
tempo o afetante e o afetado, o que faz sofrer e o que
A r t i g o s

O terapeuta percebia que o jovem vivia isso sem de-


sofre, indistintamente. É o sofrimento que sofre. Ele mostrar emoção, mas com um modo de olhar inten-
não se encontra na superfície de uma pele que não é so e frio. O paciente dizia ao terapeuta que os mé-
ele. O sofrimento não sente nada, sentir-se é sempre dicos lhe disseram que se tivesse introduzido a faca

313 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 312-318, set-dez, 2018
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez; Erika Rodrigues Colombo; Jacqueline Santoantonio; José Tomás Ossa Acharán; Julio César Menéndez Acúrio

no seu tórax, alguns milímetros para a esquerda, ele trazendo um sofrimento intenso, chorando bastan-
estaria morto, que teve sorte. O terapeuta pergunta te. O psicoterapeuta acompanhava-o de forma com-
como se sentia falando sobre isso. O paciente res- preensiva, não interferindo sua narrativa. A relação
ponde que era difícil descrever e fica em silêncio. O ocorria em um registro pré-temático com a presença
paciente reiterava que naquele momento era claro de silêncios. O paciente não falava muito, precisa-
para ele, que tinha que se matar e novamente fica va estar com alguém que o acompanhasse em seu
em silêncio. sofrimento, que ele pouco compartilhava. Foi então
O paciente fala que está vivo, mas por pouco que começaram a aparecer temáticas relacionadas a
estaria morto. Ao ser solicitado a falar sobre, ele outras pessoas significativas de sua família.
mostra a dificuldade em usar o arcabouço represen- O paciente se pergunta como tinha tentado se
tativo de seu intelecto e memória, mas refere que matar e chora. Justifica que fez isso para tentar sal-
naquele momento era lúcido o dever em se matar, var a vida de sua filha. Ao verbalizar isso perce-
em cometer o suicídio. A fenomenologia da Vida de beu o quanto estava equivocado. Se dá conta que
Michel Henry mostra que o ser humano não pode se teria deixado a menina crescer sem um pai e que
descolar da vida que está em si, se distanciar dela. só estava pensando nele mesmo. O terapeuta olha-o
Christophe Dejours (Kanabus, 2014) atenta que em atentamente e percebe uma sensação de profunda
Henry se abre uma via para pensar a psicopatolo- frustração, dor e desamparo. O rapaz conta que des-
gia da negação de si, da vida, da recusa da vida e de seus 12 anos ele ajuda nos afazeres de casa, com
do distanciamento de si. O jovem queria se matar obras. Diz que tinha que ajudar, pois seu pai bebia
enfiando uma faca em seu tórax, de modo à expe- muito e sua mãe não dava conta de sustentar os fi-
rienciar uma mutilação de seu corpo, talvez para lhos. Ele era o mais velho e até hoje ajuda. Mostra
aliviar sua dor. uma preocupação por estar afastado do trabalho e
Nesta primeira fase do tratamento, ele de- que a filha pensaria que é uma pessoa desocupada,
monstrava uma relação despersonalizada com ou- que não gosta de trabalhar. Se preocupa com a ima-
tras pessoas, tendo apenas um caráter funcional, gem que passará para ela. O terapeuta lhe diz que
desprovido de envolvimento afetivo-emocional. As reconhece que ele está passando por um momento
temáticas apresentavam ideias delirantes e para- muito difícil em sua vida, mas está vindo à terapia
noides de perseguição, onde relatava que os outros sem faltar às sessões, para lidar com essas questões.
queriam lhe fazer mal. Também contava episódios Comenta que percebe que ele é corajoso. O rapaz
de ilusões visuais e de outros onde ele perdeu a no- concorda e afirma que tem a percepção que está
ção de temporalidade. tomando um tempo para se recuperar e descansar
O paciente conta que uma vez estava em seu para poder se reeguer.
local de trabalho, quando uma das máquinas de fo- Nas sessões seguintes o jovem ficou mais pró-
tocópias começou a levitar em sua frente. O tera- ximo fisicamente do terapeuta, cumprimentavam-
peuta perguntou como ele se sentia e ele respondeu -se com abraços no início e no fim de cada encon-
que estava apreciando a máquina voar e girar na tro. As temáticas apresentadas começaram a deixar
sua frente. Disse que não sentiu medo nem se assus- de ser apenas focadas nele, incluindo o outro, por
tou. O paciente acreditava que naquele momento exemplo, sua filha. Apareceram motivações e pro-
sua consciência estava tão acelerada que conseguia jetos futuros. Neste momento do processo terapêu-
ver as teorias avançadas da matemática. Em segui- tico, ele teve vontade de voltar a se relacionar e ter
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

da comentou que sentia falta dessa capacidade que um projeto com outras pessoas, buscando desse
tinha. Acrescenta em seguida que isso dificultava modo encontrar outro sentido em sua vida. O te-
seu sono, pois não conseguia dormir, por dias se- rapeuta percebe que as temáticas passaram a ficar
guidos não percebia a passagem das horas. O tera- mais centradas nas problemáticas cotidianas, não
peuta pergunta se sente falta dessa capacidade e o apenas em si mesmo, onde o estado emocional do
paciente responde afirmativamente, mas por outro paciente alternava rapidamente entre a alegria para
lado acreditava que assustava as pessoas. um momento de abatimento e tristeza profunda.
É a partir dessa fenomenalidade da alucinação Foi notável ao terapeuta observar o surgimento
que procuramos compreender o agir humano desse de humor durante as sessões. Em situações quando
rapaz e com ele a essência de uma clínica reposi- o paciente falava de forma fria no início do acom-
cionada e refundada pela fenomenologia da vida de panhamento, no decorrer do processo isso foi se
Michel Henry (Martins & Antúnez, 2016). É como transformando, conseguindo satirizar essas expe-
se ele procurasse a prova de si pelo sentir: “não riências que anteriormente eram narradas e vividas
senti...” e o pensamento acelerou, primazia nesse com muito sofrimento. O estado emocional do jo-
momento da representação desencarnada. Porém, vem mostrava-se mais estável, mas continuava com
algo sente, a falta: “sinto falta...” e no diálogo com o queixas físicas como falta de energia, dificuldade
terapeuta traz um dado relacionado ao afastamento em dormir e em acordar.
dos outros, à dificuldade no estabelecimento do en- O paciente fica preocupado com o futuro da
contro: “assustava as pessoas”. sociedade, onde acredita que esta deve ser domi-
-

O terapeuta observava como isso se modifica- nada pelo capitalismo da pós-modernidade, mas na
va através do acompanhamento das narrativas, do realidade é o sistema capitalista chegando a um fim,
A r t i g o s

que ele sentia e relatava sobre e oferecendo espa- onde este sistema não quer ceder e vai acabar com a
ço para que ele pudesse se expressar. O rapaz, em humanidade. Comenta que sente falta da militância
poucas sessões, começou a manifestar emoções, política, das discussões políticas e filosóficas, que o

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 312-318, set-dez, 2018 314
Fenomenologia da Vida em Pesquisas Clínicas

faziam sentir-se parte de algo. Fala de sua dúvida se sua relação de vinte anos com pacientes psiquiátri-
o aceitariam novamente, pois assustou as pessoas e cos em Ateliê de Pintura de Livre-Expressão. A ob-
o expulsaram. O terapeuta reafirma a importância servação e a análise do trabalho de Michel Ternoy
dele fazer parte de tal grupo . O rapaz disse que tem estão pautadas no método fenômeno-estrutural de
vontade de retornar, ler e estudar, que isso lhe faz Minkowski. O projeto foi implantado no Brasil no
bem, além de cuidar de seu corpo praticando espor- Centro de Atenção Psicossocial no CAPS UNIFESP
tes. Mostra perspectivas futuras, como submeter-se (Santoantonio, 2014), no atendimento a pacientes
ao Enem. Ele expressa a certeza de ser aprovado, psiquiátricos adultos e funciona desde 1999. Em
basta se organizar e estudar. O terapeuta reconhece 2013, surgiu o projeto piloto com crianças abrigadas.
tais projetos e o rapaz comenta que se sente melhor A atividade em grupo funciona assim: em de-
e acredita que seja graças à ajuda do terapeuta, que terminado horário, os pacientes são avisados que
comenta que ele também o vê melhor, mas credita à o ateliê vai ter início e podem, então, se dirigir ao
relação de ambos, não só a ele terapeuta. local para participar. O material é composto por fo-
Vimos como o terapeuta saiu do uso da primei- lhas, de preferência papel de alta densidade e qua-
ra pessoa para o uso do pronome nós. O paciente re- lidade, lápis de cor, de cera, borracha, régua etc. To-
cuperou a autonomia para vir às sessões, pois vinha dos desenham inclusive os terapeutas. Cada pessoa
com sua mãe, que fazia questão em trazê-lo. Ele vol- faz um desenho, por cerca de uma hora, e depois os
tou a desejar se integrar na sociedade. Este relato de desenhos são afixados num quadro de cortiça. No
parte do trabalho terapêutico teve um intervalo de segundo momento, as pessoas se voltam para o qua-
15 meses e duas internações de 40 dias, nas quais dro e começam a dialogar. Os terapeutas convidam
consideramos as evoluções alcançadas. os pacientes a contarem o que sentiram e/ou pensa-
Na relação clínica proporcionou-se um acom- ram ao criar seus desenhos. Eles começam a falar
panhar para corpopropriar seu sofrimento de modo de sua própria criação e também da dos outros. E
encarnado. Acolhimento e compreensão numa rela- assim por diante.
ção que leva em conta a experiência afetiva do cor- No contexto psiquiátrico, percebemos ao lon-
po, não como representação cognitiva, mas como go desses anos, que os pacientes apreciam essa ati-
uma apropriação da subjetivação relacional. Isso vidade e querem participar. Não só por causa das
causa um impacto qualitativo na recuperação das técnicas e procedimentos, mas também pela forma
potencialidades relacionais e na busca de transfor- e pelo modo como são tratados e respeitados em sua
mação e sentido para sua vida. produção e expressão, na mais singela produção de
Na relação observamos em momentos agudos uma imagem ou desenho e no que eles verbalizam
a sintomatologia intensa que culminavam em isola- a partir da imagem.
mento relacional. A falta de compreensão das pes- Há muitas perspectivas dentro da psicologia
soas com quem ele se relacionava parecia levá-lo a que interpretam o significado do desenho à luz de
um isolamento afetivo. À medida que se aproxima- teorias psicanalíticas ou psicodinâmicas. O que
va do terapeuta diminuía a intensidade sintomato- queremos saber é o que o criador revela do signi-
lógica. Existia nele uma relação direta entre a forma ficado de sua própria obra e não a interpretação da
como ele sentia as vivências relacionais e como ele mesma. A intensão não é fazer uma obra de arte.
se percebia a si mesmo: mostrou possibilidades de Nossa intenção é possibilitar uma expressão por
perceber o outro como uma pessoa, alguém com ca- meio da imagem. Tanto a imagem como sua narrati-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
ráter singular, assim sentia sua ipseidade nas rela- va revela muito da manifestação de uma expressão
ções com dinamismo e transformação continua. da vida daquela pessoa, naquele momento.
Era no encontro que se potencializava a pos- Em 2008-2010 realizou-se uma pesquisa,
sibilidade da transformação das modalidades de apoiada pelo CNPq1 com pacientes adultos e em
seu sofrimento. O sofrimento pode ser assim trans- 2013-2014 realizamos um Projeto Piloto para expe-
formado na relação fora dela, corpopropriado pela rimentar esta modalidade de atendimento em ateliê
pessoa que acompanhamos. Mas é preciso notar de desenho com crianças de uma determinada Casa
também como o terapeuta se corpopropriou e se en- Abrigo de São Paulo2. Algumas crianças estudavam
riquece como terapeuta ao acompanha-lo em suas de manhã e outras à tarde. As que estivessem livres
vivências. Não apenas o paciente é tocado no ínti- no horário estabelecido, vinham ao ateliê, que acon-
mo do seu ser, mas o terapeuta também é tocado, tecia sempre no mesmo horário. Nenhuma criança
devido ao poder da dialética afetiva que é viven- era obrigada a participar, mas convidada a vir e vi-
ciada no momento do encontro, nesta relação real nham as que assim se interessassem. Em algumas
e profunda que é criada e desenvolvida encontro a sessões atendemos dez crianças, mas a média geral
encontro. foi de cinco crianças por sessão. A idade variava
entre quatro e 16 anos. Não havia restrição de idade
e foi muito interessante ver a interação entre crian-
Atendimento em Grupo ças de várias idades, até para poder compreender a
dinâmica entre elas.
-

Trata-se de um projeto de extensão que inves-


1 Apoio: CNPq, processo 400163/2007-1. Aprovado pela Plataforma
tigou as possibilidades de um Ateliê de Desenho de
A r t i g o s

Brasil e Comitê de Ética em Seres Humanos do Instituto de Psicologia da


Livre-Expressão com crianças de uma Casa Abrigo. Universidade de São Paulo.
A base desse trabalho investigativo ancora-se no 2 Disciplina 4702893 Estágio Supervisionado I (Graduação) realizado
doutorado defendido por Ternoy (1997), a partir de na Clínica Psicológica Durval Marcondes, do Instituto de Psicologia da Uni-
versidade de São Paulo.

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Diferente de pacientes adultos de um CAPS, gão estava dormindo e não parecia um dragão amea-
as crianças se conheciam e conviviam em tempo çador. E quando o irmão mais novo viu, arregalou
integral. Elas comunicavam o que viviam fora, para os olhos e disse “faz um pra mim?” E o irmão dele:
dentro do ateliê. Nosso objetivo com essas crianças “eu também quero!” E a terapeuta pensou “como
foi construir um espaço de acolhimento, para que vou fazer um monte de dragões agora?” E então ela
pudessem de alguma forma, resgatar sua individua- disse: “olha, cada um faz o seu, vocês podem tentar
lidade, subjetividade ou pessoalidade – que acaba olhar e copiar do meu e vai ser mais legal, porque
ficando perdida, quando elas tinham que dividir cada um vai fazer algo que sairá do seu jeito e não
tudo dentro do abrigo, as roupas, os quartos, nada do meu”. Então, o mais novo queria colocar a folha
era só delas – no encontro com os terapeutas. por cima do desenho, para copiá-lo. Mas a folha de
Também queríamos permitir que elas pudes- Canson é muito grossa e não transparente. No fim,
sem se expressar. É comum em estágios dentro de eles concordaram em tentar copiar e fazer cada um
abrigos ouvirmos dos cuidadores que eles não têm o seu.
acesso às histórias das crianças. Mesmo a responsá- Ao final desse encontro, os terapeutas pendu-
vel que trazia as crianças ao ateliê, não tinha acesso raram os desenhos no quadro de cortiça e o irmão
aos prontuários. Observamos um não dito no espa- mais velho foi falar do seu: “o meu dragão não ficou
ço do abrigo. tão bom quanto o da tia, mas é o filhote do dragão
O projeto piloto funcionou durante um ano dela, então a tia é minha mãe”. Outro menino, tam-
e meio, encerrado devido a um grande período de bém de sete anos, se sentou no colo da terapeuta e
greve e por problemas no transporte da Casa Abri- disse “não, ela é minha mãe!” E os dois começaram
go, que ficou impossibilitada de trazer as crianças à a discutir sobre isso, enquanto outra menina corria
Universidade pública. Tivemos a experiência práti- e plantava bananeira no meio deles.
ca na qual os focos eram a vivência que sentíamos Nessa primeira sessão, a cuidadora entrou na
e observávamos nas experiências. Com os adultos sala e os terapeutas a deixaram participar do ateliê
frequentadores do CAPS, todos desenhavam e con- – depois ela acabou não querendo mais entrar – e
versavam sobre as produções, de forma facultativa. foi ela quem acabou acalmando os ânimos para que
Mas, no primeiro encontro com as crianças, perce- os terapeutas pudessem terminar a sessão. Também
bemos que este segundo momento não seria possí- chamava atenção as marcas de violência que as
vel. crianças traziam no próprio corpo. Havia um meni-
Depois disso, abandonamos essa ideia e pas- no, o que sentou no colo da terapeuta no primeiro
samos a conversar de forma mais livre, enquanto dia, que tinha os braços marcados por queimaduras
fazíamos os desenhos. Nós víamos as crianças fa- de ponta de cigarro que os próprios pais infligiram.
zendo algo interessante e dialogávamos na mesma Outras crianças também tinham marcas, de cortes
hora sobre suas ações. Tudo começou, então, a fluir ou de esfoliações que surgiam ao brincar. E algumas
melhor e coisas interessantes começaram a surgir tinham o costume de cutucar casquinhas de ferida
de forma espontânea. As sessões também ficaram e arrancar até sangrar.
mais calmas, sem nós tentarmos organizar as crian- Ao longo do tempo os terapeutas perceberam
ças em volta do quadro. que, de alguma forma, as crianças estavam apresen-
O material produzido abriu uma possibilidade tando uma abertura maior para falar de coisas que
de compreensão fenomenológica das vivências da- no começo elas não falavam. Elas passaram a fazer
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

quelas crianças, a partir da semântica pessoal que comentários sobre suas famílias e sobre coisas que
elas traziam, de forma espontânea e peculiar. Des- aconteciam no próprio abrigo.
tacaremos, a seguir, alguns pontos que marcaram Certa vez, uma menininha, de sete anos, amá-
mais fortemente essa experiência. Acompanhamos vel e carinhosa, mas ao mesmo tempo agitada e elé-
a agitação das crianças, principalmente no começo trica, contou que já tinha sido adotada, mas havia
e no final da sessão. Elas chegavam correndo e de- sido devolvida. Então a terapeuta perguntou “mas
pois iam embora correndo. Após o primeiro encon- você sabe por que devolveram você?” Ela respon-
tro as crianças já sabiam o que ia acontecer e, nos deu: “ah tia, é que eu fazia muita bagunça, né”. Te-
ajudavam a organizar a sala. Nas primeiras sessões, rapeuta respondeu: “ué, mas criança faz bagunça,
elas corriam e pulavam muito. Certo dia, uma das não faz?” Então ela parou, olhou para a terapeuta
meninas, a mais agitada, subiu nas prateleiras subi- e disse “gostei de você, tia!” e continuou seu dese-
tamente, de tal forma que os terapeutas perceberam nho, como se nada tivesse se passado.
a tempo de tirá-la de lá, antes que ela caísse. Ao Os mais velhos eram mais fechados, as crian-
longo do tempo foram se acalmando. ças menores tinham mais facilidade de comentar as
A necessidade de contato era evidente. Elas coisas – apesar de parecer que uma criança menor
chegavam correndo e abraçavam os terapeutas, teria mais dificuldade de lidar com o tipo de violên-
querendo sentar no colo e pedindo ajuda com seus cia e sofrimento que elas passavam. Parecia que as
desenhos. Percebemos que necessitavam de algo e crianças mais velhas estavam mais endurecidas em
ao seu modo comunicavam que era importante para relação ao que provavelmente tinham vivido.
-

elas e para a dinâmica do que acontecia entre os Também se observou que as crianças gostavam
envolvidos. de partilhar suas produções. Muitas vezes elas colo-
A r t i g o s

Na primeira sessão havia dois irmãos, um de cavam o nome de outra criança que não estava pre-
quatro e outro de sete anos. A terapeuta desenhou sente e diziam “esse aqui eu vou levar pra fulano”,
um dragão e pintou-o de verde. No desenho o dra- “esse aqui eu fiz pra ciclano”. Se umas crianças

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 312-318, set-dez, 2018 316
Fenomenologia da Vida em Pesquisas Clínicas

faltassem por algum motivo, por ir ao médico, por potencialidades enfiadas na alma humana, o
exemplo, eles diziam “fulano não veio hoje, mas tesouro de suas ideias inatas, o infinito de seu
vou levar esse desenho pra ele”. Era claro que eles poder de sentir, de alcançar a felicidade (Hen-
queriam compartilhar o que estavam vivendo ali. ry, 2012b, p.162).
Diante de tudo que observamos, achamos perti-
nente, numa interlocução com a obra de Henry, apre- Considerações Finais
sentarmos alguns trechos de sua obra que servirão
para reflexão acerca da experiência vivida no ateliê Poder resgatar a individualidade em comuni-
com as crianças abrigadas. “Estamos diante da con- dade e poder repensar a dimensão política e a di-
cepção de que o indivíduo se constitui a partir da mensão da cidadania não são poderes opostos, mas
interioridade do mundo vivido na qual a experiência co-constitutivos (Martins3, 2016). Se a criança não
com o outro não é uma questão derivada, mas essen- teve a experiência da família, pode ter uma expe-
cial e constitutiva” (Santoantonio, 2014, p.265). riência de familiaridade e de proximidade com o
Segundo Henry (2009, p.113) “o eu [moi] re- terapeuta. Nessa relação a criança pode vivenciar
presenta-se, projeta-se diante de si e implica-se em de forma positiva o enredo afetivo com o outro eu.
sua própria representação de uma maneira muito Na fenomenologia do tocar os fenômenos tocar e
mais essencial e, precisamente, por uma necessida- ser tocado se co-constituem, sendo a dialética dos
de essencial: porquanto em sua própria representa- afetos essa co-constituição. Não se opõe individual
ção todo representável possível é representado ao e comunitário, porque o primeiro é essencialmente
eu [moi] que se representa, diante de si, nos domí- comunitário.
nios de si [par-devers lui]. Assim, o eu [moi] é pres- A clínica dual e em grupo refletida e operacio-
suposto em qualquer representação não a posteriori nalizada pelo método da fenomenologia de Michel
como objeto que ela descobre, mas a priori como Henry nos mostra que não há uma necessidade pri-
pertencendo à constituição do campo no interior do mordial de um método para ir em direção ao apa-
qual se fará a descoberta, na medida em que um recer que está diante de nós, pois tal aparecer vem
tal campo se constrói precisamente como lançado para nós e se faz conhecer por si mesmo, em sua
por ele, diante dele, em seus domínios [par-devers presença e em suas expressões verbais. O modo de
lui] – na medida em que essa retro referência ao eu aparecer é distinto de focalizar um objeto, daí a in-
[moi] é, por conseguinte, idêntica à estrutura desse tuição doadora de sentido ser um modo de doação
campo e à sua abertura”. Assim, o eu das crianças que precisa na clínica, ser contemplado, cuidado e
implicaram-se na relação de modo essencial, elas se dialogado. Além do que se revela no visível diante
representam, manifestam suas vidas e as possibili- de nós via intencionalidade, existe outro modo de
dades que necessitam. revelação, a não-intencionalidade, aquilo que é in-
Michel Henry afirma: visível e que não está na exterioridade, mas na vida
que está em cada um de nós.
Seria erro grave conceber a pintura e a arte em Na clínica usamos o diálogo não verbal e ver-
geral como meios encarregados de enunciar bal, ambos são reveladores da manifestação das vi-
conteúdo diferente deles. Quando ela se tor- das que se encontram. A questão da temporalidade
nou a vida, em lugar dos objetos, ela ainda pre- é colocada em outro plano, já que para aquele que
cede sua expressão artística, tornando-a afinal sofre o tempo não existe (Henry, 2014).

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
tão inútil quando se tratava de recopiar um Verificamos assim, como os terapeutas se cor-
mundo já presente. É verdade que nossa vida popropriaram de seus pacientes, adultos e crian-
nos importa e interessa mais do que este mun- ças, de seus sofrimentos nos cuidados terapêuticos,
do, nem que seja por esta propriedade extraor- como usaram as reflexões intuitivas no diálogo e nos
dinária, que a define: sentir a si mesmo, expe- encontros e como expusemos os acontecimentos das
rimentar a si mesmo – aquela felicidade com modalidades afetivas relacionais. Tais resultados nos
coisas tão cruelmente desprovidas. A ponto de mostraram as potencialidades que o método fenome-
elas continuarem mudas e insatisfeitas sob o nológico criado por Michel Henry operacionalizado
olhar do homem, esperando que ele lhes con- nas relações clínicas pode potencializar que um cor-
fira essa presença que elas parecem ter por si po doente possa ser humanizado na relação e tem
mesmas, mas que, em realidade, só se devem possibilidades de vislumbrar a encarnanação de vi-
à subjetividade, ao experimentar-a-si-mesmo vências, para além de um corpo funcional e biológi-
em que tudo se experimenta e se torna vivo co, ampliando assim a mobilidade afetiva, do sofrer
(Henry, 2012b, p.155). ao fruir de si. No entanto é preciso ter cautela, já que,
tais resultados não são definitivos, pois se a relação
Mais à frente, afirma: não tiver sustentação e continuidade ao longo de um
tempo vivido que seja necessário ao(s) paciente(s),
Antes de ser o sonho luminoso dos mundos dificilmente se conseguirá estabilidade em transfor-
ainda não nascidos e seu jorrar deslumbrante, mações, porém marcas serão sempre enraizadas em
-

a imaginação é o próprio histórico da subjeti- cada encontro inter-humano, não apenas naqueles
vidade, a expansão de seu pathos, o movimen- ditos terapêuticos.
A r t i g o s

to pelo qual cada sonoridade desperta uma


em si e depois outra. Assim se erguem suces-
3 Comunicação pessoal disponível em https://www.youtube.com/
sivamente para cumprir sua cultura todas as watch?v=vIGuo15yYs4&list=PLUPuVFeR5HFwgWtFI9p-9dSU5c-
FrKzErO&index=7

317 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 312-318, set-dez, 2018
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez; Erika Rodrigues Colombo; Jacqueline Santoantonio; José Tomás Ossa Acharán; Julio César Menéndez Acúrio

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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 312-318, set-dez, 2018 318
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.6

PHENOMENOLOGY OF LIFE IN CLINICAL RESEARCH


Fenomenología de la vida en investigaciones clínicas

Fenomenologia da Vida em Pesquisas Clínicas


Andrés Eduardo Aguirre Antúnez
Erika Rodrigues Colombo
Jacqueline Santoantonio
José Tomás Ossa Acharán
Julio César Menéndez Acúrio

Resumo: Apresentaremos uma possível operacionalidade da Fenomenologia da Vida de Michel Henry e seu método
em situações clínicas. Neste método investigamos o conceito desenvolvido por Michel Henry nesta fenomenologia
denominado corpopropriação e a intuição reflexiva na compreensão e intervenção clínica. É a relação terapêutica em
instituições de saúde que é colocada em primeiro plano, tanto nos cuidados a um paciente adulto com transtorno
psiquiátrico quanto em grupo com crianças acolhidas. Verifica-se como os terapeutas se corpo-apropriam de seus
pacientes e como estes se corpo-apropriam de seus sofrimentos nos cuidados clínicos, bem como o uso das reflexões
intuitivas no diálogo. Os resultados nos mostram que um corpo doente pode ser humanizado na relação terapêutica e
tem possibilidades de encarnar vivências, ampliando assim a mobilidade afetiva, do sofrer ao fruir de si. No entanto,
se a relação não tiver sustentação e continuidade, dificilmente se consegue a estabilidade dessa transformação, mas
deixa marcas enraizadas em cada encontro inter-humano.
Keywords: Corpopropriação. Michel Henry. Psicoterapia. Atendimento em Grupo. Crianças acolhidas.

Abstract: We will present a possible operationalization of Michel Henry’s Phenomenology of Life and his method in clin-
ical situations. This method investigates the concept developed by Michel Henry in this phenomenology called corp-
spropriation and the reflexive intuition in the comprehension and clinical intervention. It is a therapeutic relationship
in health institutions that is placed In the foreground, both in the care of an adult patient with psychiatric disorder and in
a group with sheltered children. It is verified how therapists body-apropriation of their patients and how they body-ap-
propriate their sufferings in clinical care, as well as the use of intuitive reflections in dialogue. The results show that a sick
body can be humanized in the therapeutic relationship and has possibilities of embodying experiences, thus increasing
the affective mobility, of suffering when enjoying oneself. However, if the relationship does not have support and conti-
nuity, it is difficult to achieve the stability of this transformation, but leaves marks rooted in each inter-human encounter.
Keywords: Corpspropriation, Michel Henry, Psychotherapy. Group Therapy. Sheltered children.

Resumen: Presentaremos una posible operatividad de la Fenomenología de la Vida de Michel Henry y su método en
situaciones clínicas. En este método investigamos el concepto desarrollado por Michel Henry en esta fenomenología
denominado cuerpopropiación y la intuición reflexiva en la comprensión e intervención clínica. Es la relación tera-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
péutica en instituciones de salud que es colocada en primer plan, tanto en el cuidado a un paciente adulto con tras-
torno psiquiátrico como en grupo con niños huérfanos. Se verifica cómo los terapeutas se apropian de sus pacientes y
cómo éstos se apropian de sus sufrimientos en los cuidados clínicos, así como el uso de las reflexiones intuitivas en el
diálogo. Los resultados nos muestran que un cuerpo enfermo puede ser humanizado en la relación terapéutica y tiene
posibilidades de encarnar vivencias, ampliando así la movilidad afectiva, del sufrir al goce de sí. Sin embargo, si la
relación no tiene sustentación y continuidad, difícilmente se consigue la estabilidad de esa transformación, pero deja
marcas enraizadas en cada encuentro interhumano.
Palabras clave: Cuerpopropiación. Michel Henry. Psicoterapia. Terapia em Grupo. Niños húerfanos.

Introduction therapist. The authors of this paper argue that the


terms “objective” and “subjective” are no longer va-
In 2001, Michel Henry lectured a conference lid in clinical research, as the relationships in the
for doctors in Portugal and since then we have been phenomenology of life approach are processes ori-
working on the extent of his phenomenology of life ginally affective, whose phenomenality obeys dy-
in interdisciplinarity. On that occasion, Florinda namics which precede and establish the subject-ob-
Martins argued the thesis that subjectivity is not ject duality itself. In a clinical relationship, and in
extrinsic or a supplement to science, as science sa- an investigation thereof, we propose the transcen-
tisfies a demand from subjectivity (Antúnez, 2015, dence of this subjectivity versus objectivity duali-
-

p.318). A new, promising affective disposition of ty, in the interest of the person-person relationship
life in us as revelation of the other as affect, signi- and the affective dialectic revealed in the, and as a,
A r t i g o s

ficantly affecting clinical researches, not only with relationship.


regards to medicine, but also to psychology, emer- If Henry (2000) states that the clinical look is,
ged. The patients we worked with have the desire nowadays, one of the last havens of culture, it is
to understand themselves, that is why they seek the because all objective knowledge is permeated by

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Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

someone who sees. What is seen in a radiography is – owning the affective change experienced in their
something other than the objective body, but it in- living body – that Henry (1965; 2012ª) calls body-
terprets the result of this observation for the living, -propriation.
ailing flesh that is the patient. This is also applica- We insist on the idea of inverting the unders-
ble to psychology, for instance, when dealing with tanding of the phenomenon as “an impression in
serious psychological evaluations. According to the interior of objectivity, as the representation,
Henry (2003), the power and joy of living can be evidence and concept, but the representation and
given back to an ailing life (Antúnez, 2015). objectivity become an impression in the interior of
We have previously investigated the phenome- the phenomenality of life of each person” (Antúnez,
nality of psychological treatment with an emphasis 2015, p.320). Thus, we will be attentive to the con-
on the phenomenality of the unpredictable in daily tingent phenomena the relational life presents us
life (Antúnez & Martins, 2013), which occasionally with, particularly in the practice, that are not sub-
debilitates and disturbs the human being. Thus, ject to theoretical processes preceding them. The
the therapist has with their patient the possibility predominance of the theoretical in the therapeutic
of responding to the affective transitivity of expe- phenomenality is impossible, as the phenomenality
riences that occur in a relationship and that always of the unpredicted “is in itself its own proof in what
occur in community. it is to become and what will happen to it” (Antú-
The interdisciplinary work is important to psy- nez, 2015, p.320).
chology, as it is a means of seeking other knowledge Our viewpoint on this method does not negate
that addresses this unpredictability and the fragili- an intentional phenomenality. On the contrary, it
ty of inter-human phenomena (Antúnez, 2015). It is turns to that which, in it, is most primal and fun-
in the “living-life/living-living relationship that the damental in human relations: that which allows for
therapist will look for narratives and outcomes of intentionality is in the life of each of us experienced
the experiences that disturb the patient” (Antúnez, as pathos. A pathos that establishes the intentional
2015, p.320). Some works by Henry (2000; 2003; phenomenality itself and exists without its consent,
2009; 2012ª) help us in this interdisciplinarity, and for that reason it is also often called co-pathos:
showing the operationality of this phenomenology “it is the phenomenality of the affection of the life
in the medical and health practices, as well as in of our experiences in co-pathos” (Antúnez, 2015,
the clinical practice. p. 320). The affective narrative of our intentional
The dialog between patient and therapist oc- living with the life background which effects it is,
curs via conversations whose rationality is sought then, our focus of attention. Therefore, every repre-
not on previous representations that patient and sentation in our minds is closely connected to the
therapist have regarding an event, but on the pro- affective phenomenalities, which originally consti-
cessing of the experience that “is evidence of itself tute us.
in its own appearance, which carries within it- It is the passage from suffering to fruition of
self the reason of its appearance” (Antúnez, 2015, the affective modalizations in the life of each and
p.320). It is not only a conversation, but also a livin- every one of us that will be put to the test in this
g-living contact revealing the invisible in each and work method. If each patient who seeks us brings
between them, that is, there is an impressionality with them difficulties they cannot handle, these
that each of them is deeply touched, through the difficulties would be in relation to others and it will
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

other’s glances, gestures, non-verbal behavior, and be in a relationship that we will try to resolve such
presence. The therapist committed to an understan- difficulties. Offering in the relationship possibili-
ding attitude, of openness to the not knowing and ties of new relations that had not yet existed in the
searching for ways out of the obstacles that appear life of those suffering.
in the life of the patient, which sometimes are re- The difficulties inside them are experienced
produced in the therapeutic relationship, adopts in their lives and, as such, are felt in their body.
an attentive attitude to the knowledge that reveals That is why we point out that, with regard to the
itself within them, in the encounter, and in the life phenomenology of the body, Henry’s (2012a, p.7)
of the patient. intention was to establish “the concrete character
The daily experiences are in constant change, of subjectivity showing that our subjectivity is in-
such as the experiences in each of us, a pure, dy- distinct from our body itself”. (...) “If the body is
namic uninterrupted motion of life itself, always in subjective, its nature is contingent on the nature of
relation to the “other”. Our focus is to investigate subjectivity. (...) Life was not to be perceived either
life as it appears in the clinical practice, in each of as intentionality or transcendence, but by exclu-
us and in the relationships. It is important therefore sion, as outside itself, outside both of them”. Thus,
to investigate the person-person relationship, in the for Michel Henry, corporeality has a key, new place
first person, in which the “I-you” is the relationship in this conception.
between one “I” and another “I”, each responding to We highlight that the importance of the notion
the affective modifications in themselves – the self of body-subjectivity to psychology led us to con-
-

of the patient and the self of the therapist – which duct an investigation based on interdisciplinarity
are the affective changes in a corporeality that is and whose operationality will be verified in our cli-
A r t i g o s

the living body of each – therapist and patient – and nical cases. To that end, we begin with the question
made in the reflective intuitions in both individuals of how Michel Henry defines corporeality. He him-
in the relationship. It is this activity of each self self provides an answer:

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 319-328, set-dez, 2018 320
Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing

Corporality is an immediate pathos defining with an existence which is not abstract but real or
our whole body, before it emerges to the wor- felt (Henry, 2012a, p.32). For Biran, true metaphy-
ld. It is from this primal corporeality that it sics is a psychology, and it seeks the principles of a
derives its fundamental potentialities, namely, psychology, as it, as a science, requires a principle.
being a force and acting, acquire habits, re- In a footnote, Henry (2012a, p.33) states “thus,
membering – in the way in which it does it: with regard to life, psychology is contingent; in
outside any representation (Henry, 2012a, p.7). fact, as a science it is essentially historical”. But the
science we seek focuses on the affective dialectic in
We can investigate how the corporeality/sub- the encounter. The judgements of the psychology,
jectivity of the therapist behaves in relation to the based on Biran’s thesis, are judgements based on
corporeality/subjectivity of the patient, which for- data as intuitive judgements. They are made based
ces and actions appear outside representation and, on something that precedes them and is more pri-
a posteriori, how we can use this representation to mitive but is nevertheless apprehensible. This so-
understand and deal with the issues presented. The mething is the internal apperception of the event.
priority is given not only to the representations, but A first intuitive judgement is the one of personal
to what the fundamental and primal potentialities existence (the cogito), which is also a reflective ju-
of the encounter between pathos, in pathos-with, dgement, which, according to Michel Henry, “is not
demand from them. the therapist’s privilege, it is a natural judgement”
Henry (2012a, p.8) establishes a dialog with that spontaneously expresses natural life and is a
Maine de Biran, philosopher whose work has od- judgement as old as the judgement of our existence
dly never been translated within the United States. (Henry, 2012a, p.34).
For Henry, this relates to a deception connected to
the essence of Life: “In the invisibility of its night,
however, life is restricted to itself. It gives to each, Body-propriation
to the unequivocal in their bodies, themselves”.
Despite the relentlessness of science in acknowled- Kanabus (2014) shows us the many forms in
ging “the monstrous objectivity of technique”, that which Michel Henry uses such concept: corps-pro-
is what “life’s relentless desirte to keep on living” priation in La Barbarie, corpspropriation in Phéno-
illustrates. menologie de la Vie Tome IV, co-propriation in From
Michel Henry’s conception of life invites us Communism to Capitalism and copropriation in
to rethink clinical practice, not based on a priori The Genealogy of Psychoanalysis. From this article
theories, or techniques for handling life’s difficul- by Benoît Kanabus we paraphrase aspects that are
ties, but in a setting in which “life [also] may reveal important to the therapist. The therapist must act
itself. It does not need anything other than itself in “employing the internal powers of their body in the
order to appear to us; it is a self-givenness, the ‘pri- sense of effort if they want to achieve a result whi-
mitive fact’’’ (Henry, 2012a, p.8). Thus, we embrace ch is in itself subjective” (Kanabus, 2014, p.106).
what is revealed in us, in our self-givenness when So that the therapist and the patient will take into
in contact with somebody, who with their suffering account that it is through the internal exercise that
wants to continue to live some other way. “A body change will occur. The patient has “a life that seeks,
which is an ‘I’” (Henry, 2012a, p.18) is the center of in its body-propriation of the world, to become a

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
human reality. selfhood [ipseity], a uniqueness, by responding to
For Henry (2012a, p.18), “the first philosopher its fundamental needs” (Kanabus, 2014, p.108). And
and actually the only one, in the long history of hu- the therapeutic encounter allows this body-propria-
man thought, that understood the need to origina- tion by being actively present to the needs of the
rily define our body as a subjective body was Maine other, as, according to Henry (2015), we transform
de Biran, this prince of thought, who deserves to be the world to a point where it is impossible to con-
perceived by us, along with Descartes and Husserl, template a landscape without seeing in it the effect
as one of the true founders of a phenomenological of a given praxis.
science of human reality”. He then indicates the dis- Based on a comparison of the Man-Machine
tant relation of this authentic conception and psy- work relation, we will then attempt to revert it to
chology: “A body which is subjective and an ego”, a Man-Man relation: “working with a machine is
summarizing (Henry, 2012a, p.21) Biran’s thought. to inhabit it with your body, to experience your
In the phenomenological assumptions of bira- machine in your body, to make the machine an ex-
nian ontology, Michel Henry shows us that Biran tension of the body” (Kanabus, 2014, p.111). When
understands the cogito “not as a reflective and inte- working with the patient, we must inhabit them
lectual act, but as an action, an effort, a movement” with our body, experience them as an extension of
(Henry, 2012a, p.23), focusing on the “subject of re- ourselves, so as to help them promote that which is
flection or internal apperception” (p.23). Reflection not possible in their life. As our sense of effort, to
here means “that which does not move towards this transform. We know that in certain psychopatholo-
-

world, but turns inwards, and remains by its own gies, our body reacts differently from outside this
side in its distance between it and everything else” field. Our experience is different for each person
A r t i g o s

(Henry, 2012a, p.24). Thus, it is by expanding on we interact with.


the knowledge of Maine de Biran and citing him When Henry (2012a) uses the term body-pro-
that Michel Henry reveals to us a science identified priation he is referring to the body itself which, in

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Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

an embodied and sensorial relation, transforms it- constitutes the method. An enlightening question
self and, in this process, not only transforms the whose phenomenological inversion is proposed by
world but also appropriates and transforms itself Michel Henry: “Why do we need a method to reach
(Ferreira & Antúnez, 2014, p.152). Martins (2014, the appearing and knowing it, when the appearing
p.58) remarks that “for Michel Henry my body is a itself reaches us and makes itself known through
body in its own right, or, in accordance with Biran, itself?” (Henry, 2014, p.49).
I am my body – cogito. And as the cogito – defined The principle of principles from Husserl – Pa-
by the phenomenality of feeling, this is an a priori ragraph 24 of Ideas I (as cited by Henry, 2014) – is
union: body-propriation.” intuition as a phenomenological concept, which re-
Body-propriation is the appropriation and con- fers to the mode of appearing, not to an object. Hen-
trol over the powers of the body, which allows the ce it is a meaning-giving intuition; a mode of appea-
constitution of the Self and of its action in the world ring is a mode of givenness. The mode in which they
(Ferreira & Antúnez, 2014, p.153). Kanabus (2014, give themselves to us is an original givenness, hen-
p.109) resorts to Christophe Dejours, who takes up ce the degree of evidence and certainty. Everything
the concept of body-propriation in the work practi- I see is a primal givenness which is evident, unlike
ce to understand the process of subjectification of a memory, as I can be mistaken about it. Thus, the
individuals at work. Such process can occur outsi- structure of consciousness gives intuition is giving
de psychoanalysis: “In this case, the subjectification nature through intentionality. The object is visible,
relates to something else, namely the conditions placed in front of; the intentionality is this “to make
due to which the world (matter, tools, technical ob- see” that reveals an object. Double meaning: what
jects) can be appropriated by a subject on the one appears is the object in its own mode of appearing
hand, and the ways in which those appropriations visible to us (Henry, 2014, p.53-55).
takes place (as affective experience of the body, not However, Henry (2014, p.58) inquires: “Or is
as cognitive representation) on the other” (Dejours, there another mode of revelation other than the “to
2012, p.43). Thus, we can use the concept of body- make see” of intentionality – a revelation whose
-propriation in clinical investigations of one-on-one phenomenality is not of the “outside”, of this pre-
and group relationships with the following ques- -plane of light which is the world?” and states that
tion: how can we body-appropriate our patients’ life there is no answer to this question in classical phe-
and suffering? How can they body-appropriate the nomenology. Hence his proposition of a material,
therapeutic relationship? To that end, what Chris- not-intentional, concrete phenomenology.
tophe Dejours warns us about in an interview given In the practice we use the language in which
to Kanabus (2015) is very useful; he draws attention language itself and verbalization are held in high
to the unfinished bodies of psychotic patients, the regard. According to Henry (2014), language is a
difficulties somatizing patients have of appropria- form of revelation, a manifestation of the self to
ting their bodies or psychosomatic cases. someone else. It reveals part of the suffering. As
In this investigation, we propose reflecting on for the suffering, “for the one suffering, nothing
how this concept may be understood in the psycho- can attack their suffering. Suffering has no doors
therapeutic treatment of a patient with a psychotic or windows, no space outside of it or in it for their
disorder and with regard to children in care seen in escape. (...) There is no possible way out. Between
group therapy. suffering and suffering there is nothing. For the
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

one suffering, as they suffer, time does not exist”


(Henry, 2014, p.88).
Object and method of phenomenology In Souffrance et Vie, Michel Henry shows us
that life and suffering are inseparable. In one of
The object of phenomenology is not exactly the descriptions on suffering he argues: “Suffering
the phenomenon, the apparent, but the act of is affected not by something else, but by itself; it is
appearing, the way in which it appears, and it is a self-affection in the radical sense that it is affec-
this object that makes phenomenology different ted, and by itself. It is at the same time the thing
from all other sciences (Henry, 2014, p.39). Thus, a that affects and the thing affected, the thing that
new, infinite field of investigation is revealed (Hen- causes suffering and the thing that suffers, indis-
ry, 2014, p.41), not only to traditional phenomeno- tinctly. It is the suffering that suffers. It is not on
logy but also to clinical psychology itself. the surface of a skin that is not it. Suffering does
Classical phenomenology has basic princi- not feel anything, feeling oneself is always ope-
ples. First: so much appearance, so much being. ning oneself to something ‘other’. Suffering feels
As something appears to me, it, at the same time, no other, only itself. ‘To feel one’s own suffering’
is; thus, appearing is being. For example, when is an inadequate expression. It presupposes a re-
an image appears, its content does not matter, lation with the suffering.” (Henry, 2014, p.88). We
what matters is that it appears. All its existence remark that the suffering is not related to itself, it
and power, the power to appear, is contingent to suffers itself, hence a phenomenological inversion
-

that. Second: right to things themselves, to what of the way of thinking of Michel Henry and his no-
appears in the way in which it appears. It is not t-intentional phenomenology; Life (and suffering)
A r t i g o s

the content of the phenomenon, but what makes has no intention whatsoever, it is our awareness
this content a phenomenon, with its pure pheno- that seeks a meaning for itself, hence the impor-
menality, that is its appearing. It is the object that tance of the practice.  

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 319-328, set-dez, 2018 322
Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing

Operationality or relation between at that time the obligation to kill himself, to commit
phenomenology and clinical practices suicide was lucid. Michel Henry’s phenomenology
of Life shows us that a human being cannot deta-
We will present two clinical situations; one is ch themselves from the life that is in them, they
a one-on-one relationship between therapist and a cannot distance itself from it. Christophe Dejours
patient with a psychiatric disorder in a philanthro- (Kanabus, 2014) notes that, in Henry, a pathway to
pic public institution; the other is related to group reflecting on the psychopathology of the denial of
therapy with children in care in a higher education the self and of life, the refusal of life, and the dis-
public institution. tancing from the self, is opened. The young man
To explain these cases with adults and chil- wanted to kill himself by shoving a knife into his
dren, and in accordance with the phenomenology chest, so as to experience a mutilation of his body,
of pathos and with the not-intentional phenome- maybe to ease his pain.
nology, a phrase by Michel Henry will echo throu- In this first phase of treatment, he demons-
ghout our exposition: “children and human beings trated a depersonalized relationship with other
in general make their movements without thinking people, with only a functional nature, devoid of
about them but not, however, without knowing affective and emotional involvement. The themes
them” (Henry, 2012a, p.72). had delusional and paranoid ideas of persecution,
where he stated that other people wanted to do him
harm. He also reported episodes of visual illusions
Psychotherapy Practice and others where he lost the notion of temporality.
The patient reports that once he was at his
How to investigate the relationship in the first workplace, when one of the photocopiers began le-
person when the matter in hand is the relationship vitating before him. The therapist asked how did he
as a we? One of the courses we discovered to inves- feel and he replied that he was enjoying seeing the
tigate the relationship in the first person is through machine fly and spin before him. He said he felt no
exploring that which the therapist feels in the pre- fear and was not startled. The patient believed that
sence of the patient. The therapist feels that whi- his conscience then was so accelerated that he cou-
ch is experienced in each relational moment, thus ld see advanced math theories. He then noted that
exploring the intersubjective field, or more speci- he misses this ability he had. He then added that
fically how the interpersonal field echoes in them. it made his sleep difficult, as he could not sleep,
This approach by the therapist/researcher in rela- for days he did not notice the hours going by. The
tion to an “other” fuels the appearance of important therapist asks him whether he misses this and the
characteristics in the person’s affectivity; a “to feel” patient replies positively, on the other hand he be-
emerges in the relationship which is pre-thematic lieved he frightened people.
and pre-symbolic but experienced in relation or in It is from this phenomenality of the halluci-
a two-way interiority that informs us on the pre-re- nation that we try to comprehend this young man’s
flective aspects of the patient, of their living body human “acting” and with it the essence of a practice
itself. which has a new approach and a new basis due to
We will present a clinical situation with a pa- Michel Henry’s phenomenology of life (Martins &
tient. He was referred to the Mental Health Division Antúnez, 2016). It is as if he was looking for evi-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
of a philanthropic Public Hospital after an attemp- dence of himself through feeling: “I felt no...” and
ted suicide, with the diagnosis of bipolar depres- his mind raced, the primacy of disembodied repre-
sion and psychotic episodes. sentation in that moment. However, there is a fee-
The first question that caught the attention of ling, he misses: “I miss...” and in the dialog with the
the therapist was the young man’s eyes; he had a therapist he brings a piece of information related to
fixed gaze, and the therapist felt an emptiness in it. his detachment from other people, the difficulty in
During the first encounters, his narrative was de- establishing contact: “frightened people”.
void of feelings and had dark contents. For exam- The therapist observed how this changed by
ple, he attempted suicide by piercing his heart area following up on the narratives, on what he felt and
with a knife. The therapist noticed that the young conveyed and providing room for him to express
man experienced it without showing any emotions, himself. The young man, in a few sessions, started
but with an intense, cold gaze. The patient said to to manifest emotions, bringing an intense suffering,
the therapist that the doctors told him that had he crying a lot. The psychotherapist was understan-
inserted the knife a few millimeters to the left he ding, and did not interfere with his narrative. The
would not be alive at the time of the interview, that relationship had a pre-thematic tone, with the pre-
he was lucky. The therapist asks how he felt talking sence of silences. The patient seldom spoke, he nee-
about it. The patient answers that describing it was ded to be with someone who accompanied him in
difficult and becomes silent. The patient reiterated his suffering, which he hardly shared. It was then
that, at that time, it was clear to him that he had to that themes related to other significant persons in
-

kill himself, and again becomes silent. his family began to appear.
The patient says he is alive, but that he came The patient asks himself how could he have
A r t i g o s

really close to dying. When asked to talk about tried to kill himself and cries. He justifies it saying
it, he has difficulty using the representative fra- that he did it to try to save his daughter’s life. As he
mework of his intellect and memory but relates that verbalizes this he realized how wrong he was. He

323 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 319-328, set-dez, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

realizes that he would have left his daughter to grow is feeling better and that he believes this is due to
up without a father, and that he was only thinking the therapist’s help, who says he also believes he is
about himself. The therapist watches him intently better, but he thinks it is due to their relationship,
and notices a feeling of deep frustration, pain and not just him the therapist.
helplessness. He tells that he helps with the hou- We saw how the therapist moved from the
sework, with repairs, since he was 12 years old. He use of the first person to the use of the pronoun
says he had to help, as his father drank a lot and “we”. The patient regained his autonomy and star-
his mother was not able to provide for the children ted coming to the sessions alone, as he was being
by herself. He was the eldest and still helps out. He accompanied by his mother, who insisted on brin-
shows concern with being on leave from work and ging him. He regained the desire to be integrated
with the possibility that his daughter would think with society. This partial report of the therapeutic
of him as lazy, someone who does not like to work. work spanned 15 months and involved two 40-day
He worries about the image he is leaving her. The hospitalizations, where we considered the progress
therapist tells him that he acknowledges that he is achieved.
going through a really rough patch in his life, but In the clinical relationship the therapist provi-
he is coming to therapy without missing sessions ded the patient with help in the body-appropriation
to deal with these questions. He tells him that he of his suffering in an embodied manner. Acceptance
notices he is brave. The young man agrees and says and understanding in a relationship that takes into
that he is aware he is taking a time off to recover account the affective experience of the body, not as
and rest in order to get better. cognitive representation, but as an appropriation
In the following sessions the young man was of the relational subjectification. This qualitatively
physically closer to the therapist, they greeted with impacts the regaining of relational potentialities
hugs before and after each session. The themes pre- and the search for transformation and a meaning
sented started to focus on things other than him, to his life.
including the “other”; his daughter, for example. We see in the relationship in acute moments
Motivations and future projects appeared. At that the intense symptomatology that culminated in re-
moment of the therapeutic process, he wished to lational isolation. The lack of understanding from
associate and have projects with other people again, people with whom he associated with seemed to
thus seeking to find a new meaning to his life. The lead him to an affective isolation. As he became
therapist notices how themes are now more focu- closer to the therapist the intensity of his symp-
sed on daily life issues, not only on himself, where tomatology decreased. There was in him a direct
the patient’s emotional state quickly fluctuated be- proportionality between how he felt his relatio-
tween joy and moments of despondency and deep nal experiences and how he perceived himself: he
sadness. showed the possibility of perceiving the “other” as
It was remarkable for the therapist to see the a person, someone with a unique nature, thus he
appearance of humor during the sessions. In situa- experienced his ipseity in his relationships with
tions where the patient spoke with an unemotional dynamism and continuous transformation.
voice at the beginning of the sessions, after a whi- It was in the encounter that the possibility of
le during the process he was able to be humorous transformation of the modalities of his suffering
about some experiences that were narrated and ex- was augmented. The suffering can thus be transfor-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

perienced with great suffering. The emotional state med in the relationship outside of it, body-appro-
of the young man was more stable, but he still had priated by the person we are treating. However, it is
physical complaints, such as lack of energy and di- also important to pay attention to how the therapist
fficulty sleeping and waking up. body-appropriated themselves and is enriched as a
The patient is concerned about the future of therapist as they accompany him in his experien-
society, as he believes it should be dominated by ces. Not only the patient is touched in the core of
post-modernity’s capitalism, but in reality it is the his being, but also the therapist, due to the power of
capitalist system coming to an end, where this sys- the affective dialectic experienced at the moment of
tem does not want to concede and will end human the encounter, in this real, deep relationship estab-
kind. He says he misses taking part in political ac- lished and developed with every encounter.
tivism, in political and philosophical discussions,
which gave him the feeling of being part of some-
thing. He speaks of his doubt on whether they wou- Group Therapy
ld take him back, as he frightened people and they
threw him out. The therapist reiterates the impor- This was an extension-program project inves-
tance of him being part of this group. The young tigating the possibility of a Free-Expression Drawing
man said he wanted to go back, read and study, that Workshop with children in a Shelter Home. This
those things were good for him, in addition to take investigative work is based on the doctoral disser-
care of his body by playing sports. He shows future tation presented by Ternoy (1997), in its turn based
-

perspectives. Such as applying for Enem [Brazilian on his twenty-year relationship with psychiatric
National High School Examination]. He expresses patients in a Free-Expression Drawing Workshop.
A r t i g o s

the certainty of approval, he just needs to organi- The observation and analysis of Michel Ternoy’s re-
ze his schedule and study. The therapist acknow- search is based on Minkowski’s phenomenon-struc-
ledges these projects and the young man says he tural method. The project was implemented in Bra-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 319-328, set-dez, 2018 324
Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing

zil at the Center for Psychosocial Support –­­ CAPS to create a place of acceptance, so that they could
at UNIFESP (Santoantonio, 2014), in the treatment somehow regain their individuality, subjectivity or
of adult psychiatric patients, and is in operation personhood – which can get lost when they have
since 1999. In 2013, the pilot project with children to share everything in the shelter; clothes, rooms,
in care was introduced. nothing was theirs alone – in the encounter with
The group activity takes place as follows: at a the therapists.
given time, patients are informed that the workshop We also wanted to allow them to express them-
will begin and they may then go to the location to selves. In internships in shelters it is usual to be
participate. The materials are sheets of paper, pref- told by the caretakers that they do not have access
erably of a high grade and quality, colored pencils, to the children’s history. Even the person in charge
wax pencils, erasers, ruler etc. Everyone draws, in- who brought the children to the workshop did not
cluding the therapists. Each person draws a draw- have access to the medical charts. We noticed an
ing, for about an hour, and the drawings are then “unsaid” in the shelter.
pinned to a pinboard. The pilot project was active for a year and
After that, everyone faces the board and a dia- a half, after which it ended due to a long period
log begins. Therapists invite patients to share what of strikes and issues with transportation from the
they felt and/or were thinking while creating their Shelter Home, which was unable to bring the chil-
drawings. They start to talk about their own cre- dren to the public University. We had the practical
ation and also the creation of others. And so on. experience in which our focus was what we felt and
In the psychiatric context, we have noticed observed in our experiences. With the CAPS adults,
through the years that patients enjoy this activity everyone that drew and talked about the creations
and want to participate. Not only for the techniques did it in a voluntary basis. However, in our first ses-
and procedures, but also for the way in which they sion with the children, we realized that this second
are treated and respected in their creation and ex- part would not be possible.
pression, in a most honest and simple creation of After that, we abandoned that idea and began
an image or drawing and in which they verbalize talking with an open-ended approach, while draw-
from the image. ing. We would see the children doing something
There are many perspectives in psychology interesting and promptly start a dialog about their
that interpret the meaning of the drawing in light of actions. From then on everything had a better flow,
psychoanalytic and psychodynamic theories. What and interesting things started to appear sponta-
we want to know is what the creator reveals of the neously. Sessions became calmer, without us trying
meaning of their own work, and not its interpre- to organize the children around the board.
tation. The intention is not to create a work of art. The material produced opened the possibili-
Our intention is to allow for an expression through ty of a phenomenological comprehension of those
images. Both the image and its narrative reveal a lot children’s experiences, based on the individual
about the manifestation of that person’s expression semantics they introduced, in a spontaneous and
of life at that moment. peculiar manner. We will now present some spe-
In 2008-2010, a research was conducted, fund- cific points that strongly marked this experience.
ed by the CNPq1 [National Council of Scientific and We observed that the children were agitated, par-
Technological Development], with adult patients ticularly at the start and at the end of the session.

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
and in 2013-2014 we conducted a Pilot Project They came running and also left running. After the
to investigate this modality of treatment in draw- first encounter the children already knew what
ing workshops with children in a specific Shelter would happen and helped us organize the room. In
Home in São Paulo2. the earlier sessions, they ran and jumped a lot. In
Some of the children studied in the morning one of them one of the girls, the most agitated one,
and some in the afternoon. The ones free at the giv- suddenly climbed on the shelves, but the therapists
en time came to the workshop, which always took saw it and brought her down before she fell. They
place at the same time. No child was forced to par- became calmer over time.
ticipate; they were invited and the ones interest- The need for contact was evident. They came
ed came. Some sessions had ten children, but the running and hugged the therapists, wanting to sit
overall average was five children per session. Age on their laps and asking for help with their draw-
ranged between four and sixteen years. There was ings. We notice they had a need for something, and
no age limit and it was very interesting to see the they were communicating in their own way that it
interaction between children of different ages, par- was important to them and to the dynamics of what
ticularly to be able to understand their dynamics. was taking place between the people involved.
Unlike adult patients in a CAPS, the chil- In the first session there were two brothers,
dren knew each other and lived together full time. one aged 4 and the other aged 7. The therapist drew
They expressed in the workshop what they experi- a dragon and painted it green. In the drawing, the
enced outside it. Our goal with these children was dragon was sleeping and did not look like a menac-
-

ing dragon. When the younger brother saw it, his


1 Funding: CNPq, process 400163/2007-1. Approved by Plataforma eyes widened and he said “could you draw one for
A r t i g o s

Brasil and Ethics Committee – Human Beings of the Psychology Institute of


Universidade de São Paulo [São Paulo University]. me?” And his brother: “I want one too!” And the
2 Discipline 4702893 Supervised Internship I (Graduate Program) in the therapist thought “how am I going to draw a bunch
Psychological Clinic Durval Marcondes, in the Psychology Institute of Uni- of dragons now?” And then she said: “look, you
versidade de São Paulo.

325 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 319-328, set-dez, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

each draw your own dragon. You can try looking In light of everything we observed, we think
at and copying mine and it will be cooler, because it is relevant, in a dialog with Henry’s work, to pre-
each of you will be creating something your own sent some excerpts from his work for a reflection
way, not mine.” The younger brother then wanted on what we experienced in the workshop with the
to place a sheet over the drawing to copy it, but the children in care. “We are dealing with the concept
Canson sheet was too thick and was not transpar- that the individual is formed by the interiority of
ent. In the end, they agreed to try to copy and to the world lived in which the experience with the
draw each his own drawing. ‘other’ is not a secondary consideration, but ra-
At the end of this session, the therapists ther essential, fundamental” (Santoantonio, 2014,
pinned the drawings to the pinboard and the older p.265)
brother spoke about his: “my dragon is not as good According to Henry (2009, p.113) “the self
as the miss’s, but it is her dragon’s baby, so the miss [moi] represents itself, projects itself before itself
is my mother!” Another boy, also aged seven, sat on and involves itself in its own representation in a
the therapist’s lap and said: “no, she is my mother!” much more essential way, precisely due to an es-
And then both boys began arguing about it, while sential need: as in its own representation every
a girl was running and doing handstands between possible thing representable is represented to the
them. self [moi] which represents itself, before itself, in
On this first session the caretaker entered the its possessions [par-devers lui]. Therefore, the self
room and the therapists let her participate in the [moi] is assumed in any representation not a poste-
workshop ­­ – she afterwards decided she did not riori, as the object it discovers, but a priori, as part
want to enter the room anymore – and it was she of the formation of the field in which the discovery
who calmed down the children so that the thera- will be made, to the extent that such field is created
pists could finish the session. precisely as if thrown by it, before it, in its posses-
It also caught our attention the signs of vio- sions [par-devers lui] – to the extent that this back-
lence that the children had in their bodies. There -reference to the self [moi] is, therefore, identical to
was a boy, the one who sat on the therapist’s lap on the structure in this field and to its opening”. Thus,
the first day, with arms scarred by cigarette burns the self of the children were involved in the rela-
inflicted by his own parents. Other children also tionship in an essential way; they represent them-
had marks, such as cuts and scrapes from playing. selves, manifest their lives and the possibilities
And some had the habit of picking scabs until they they need.
would bleed. Michel Henry states:
Over time, the therapists noticed that the chil-
dren were somehow more open to talking of things It would be a grave mistake to perceive pain-
they did not talk about in the beginning. They start- ting and art in general as means of expressing
ed making comments about their families and about a content different from them. When it became
things that happened in the shelter home. life, replacing objects, it still precedes its artis-
There was a loving, affectionate, but at the tic expression, eventually making it as useless
same time agitated, 7-year girl, who told us that she as when recopying an already present world. It
had already been adopted, but was later returned. is true that our life matters to us and interests
So the therapist asked “do you know why they re- us more than this world, even if it is by this
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

turned you?” She replied: “well, miss, I was always extraordinary property which defines it: to
jumping up and down and being noisy and could feel oneself, experience oneself – that happi-
not sit still”. The therapist replies: “well, children ness with things so cruelly deficient. To such
are like that, aren’t they?” So she paused, looked at an extent that they remain silent and unsatis-
the therapist and said “I like you, miss!” and contin- fied under the gaze of man, waiting for him
ued drawing, as if nothing had happened. to grant them this presence which they seem
The older children were more reserved; the to have by themselves, but, in reality, are due
young ones could comment on things more easily only to subjectivity, to the self-experiencing in
­– in spite of the fact that we usually have the im- which everything experiments itself and beco-
pression that a younger child would find it more mes alive (Henry, 2012b, p.155).
difficult to deal with the type of violence and suf-
fering they went through. It seemed as if the older Further ahead, he states:
children were more closed with regard to what they
probably experienced. Prior to being the luminous dream of yet
It was also observed that the children enjoyed unborn worlds and their ravishing surge, ima-
sharing their creations. They would many times gination is the history of subjectivity itself, the
write the name of another child who was not pre- expansion of its pathos, the motion through
sent and say “this one I’ll take to so-and-so”, “this which each sonority awakens one in itself and
one I made for so-and-so”. If any children missed then another. Thus they rise in succession to
-

the workshop for any reason, to go to a doctor for fulfill their culture in all the potentialities bu-
instance, they would say “so-and-so didn’t come to- ried in the human soul, the treasure of their
A r t i g o s

day, but I’ll take this drawing to them”. It was clear innate ideas, the infinity of their power of
that they wanted to share what they were experien- feeling, of reaching happiness (Henry, 2012b,
cing in there. p.162).

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 319-328, set-dez, 2018 326
Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing

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Henry, M. (2014). Encarnação – uma filosofia da carne.
Thus we verified how the therapists body-ap-
(C. Nougué, Trad.) São Paulo: É Realizações.
propriated their patients, adults and children alike,
their sufferings in the therapeutic care, how they Henry, M. (2015). Phénoménologie de la vie V. Paris: PUF.
used intuitive reflections in the dialog and en-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
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FrKzErO&index=7

327 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 319-328, set-dez, 2018
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versité de Lille III, Lille, France.

Andrés Eduardo Aguirre Antúnez – Professor Livre-Do-


cente do Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo. Membro do GT
Psicologia e Fenomenologia – ANPEPP. Co-coordenador
do Núcleo de Pesquisas e Laboratório Prosopon. Ende-
reço Institucional: Av. Professor Mello Moraes, 1.721 –
Cidade Universitária, São Paulo/SP – CEP: 05508-030.
E-mail: antunez@usp.br

Erika Rodrigues Colombo – Mestranda do Programa de


Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psico-
logia, Universidade de São Paulo. Membro do Núcleo de
Pesquisa e Laboratório Prosopon. Endereço Institucional:
Av. Professor Mello Moraes, 1.721 – Cidade Universitária,
São Paulo/SP – CEP: 05508-030. E-mail: erika.colombo@
usp.br

Jacqueline Santoantonio – Doutora em Ciências, psicó-


loga do Centro de Atenção psicossocial CAPS UNIFESP.
Membro do Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon.
Endereço: Rua Botucatú, 723. CEP: 04023-062. São Paulo.
E-mail: jacqueline.santoantonio@uol.com.br

José Tomás Ossa Acharán – Doutorando do Programa de


Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psico-
logia, Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES. Mem-
bro do Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon. En-
dereço Institucional: Av. Professor Mello Moraes, 1.721
– Cidade Universitária, São Paulo/SP – CEP: 05508-030.
E-mail: tomas.ossa@usp.br

Julio César Menéndez Acurio – Psiquiatra. Faculda-


E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

de de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.


Membro do Núcleo de Pesquisa e Laboratório Pro-
sopon. Endereço Institucional: Rua Doutor Cesá-
rio Motta Júnior, 61 - Vila Buarque, São Paulo - SP,
01221-020. E-mail: dr.julioacurio@gmail.com

Received on 12.12.2016
First Editorial Decision on 03.09.2017
Accepted on 10.08.2017
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A r t i g o s

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 319-328, set-dez, 2018 328
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.7

METÀ-HODÓS: DA FENOMENOLOGIA
HERMENÊUTICA À PSICOLOGIA
Metà-hodós: from the Hermeneutic Phenomenology to the Psychology

Metà-hodós: de la Fenomenologia Hermenêutica hacia a la Psicologia


Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Resumo: Com este manuscrito pretendemos esclarecer como a ideia de método – como antecipação do caminho certo
e reto de investigação de um tema, de modo que possamos conquistar certezas absolutas – obscureceu a noção mais
originária de metà-hodós, que traz a ideia de que o caminho se faz ao caminhar. Passamos, então, a mostrar que esta
noção foi primeiramente assumida por Husserl, em sua máxima de que devemos tomar o fenômeno tal como ele se dá
em seu campo de mostração. Heidegger adiciona a esta noção a perspectiva hermenêutica. Por fim, mostraremos como
a Psicologia pode se apropriar da fenomenologia hermenêutica de modo a deixar que o fenômeno de seu interesse
possa aparecer em seu campo de aparição e, também, nos mostrar o caminho que nos conduz ao sentido do fenômeno.
Com esse esclarecimento pretendemos encaminhar mais um modo de proceder nas pesquisas em Psicologia.
Palavras-chave: Método; Fenomenologia; Hermenêutica; Psicologia.

Abstract: In this manuscript we pretend to clarify how the idea of method, as anticipation of the right and straight
way of the research toward absolute trues, obscured the more original notion of metà-hodós, according to which one
finds the way by walking the way. To do so we show the notion that was assumed by Husserl in his maxim about the
phenomenon that we should let it show itself. Heidegger adds to this notion the hermeneutic perspective. Lastly, we
show the way the Psychology incorporates hermeneutical phenomenology so that the phenomenon shows itself, and
thus shows us the way that leads us to the meaning of it. With this clarification we intend to bring another way to carry
out research in Psychology.
Keywords: Method; Phenomenology; Hermeneutic; Psychology.

Resumen: Con este manuscrito queremos aclarar cómo la idea de método como anticipación del camino cierto y recto
de investigación de una temática por lo que podemos obtener certeza absoluta, oscureció la noción de metà-hodós, que
trae la idea de que el camino se hace al caminar. Pasamos, entonces, para mostrar que esa noción fue asumida primero
por Husserl en su máxima que dice para tomarnos el fenómeno como él se muestra en su campo de mostración. Heide-
gger añade a esa noción la perspectiva hermenéutica. Por último, mostraremos cómo la psicología puede apropiarse de
la hermenéutica fenomenológica para permitir que el fenómeno de interés pueda darse a ver en su campo de aparición
y también nos indica el camino que nos lleva al sentido del fenómeno. Con esa aclaración se pretende avanzar de otra
manera para llevar a cabo la investigación en Psicología.
Palabras-clave: Método; Fenomenología; Hermenéutica; Psicología.

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Introdução Podemos – a título de exemplo da presença
do método no modo de fazer de algo – acompanhar
Fogel (1998) esclarece, acerca do método da Fi- como se deu a exposição de cada um dos partici-
losofia: “O ‘metà’ contido em ‘método’ (metà-hodós) pantes de O Banquete, de Platão (2015). Essa ati-
diz ‘de acordo com’ ou ‘junto de’ o caminho” (p.29). vidade discursiva teve como anfitrião Agatão, que
Não há dúvida nenhuma de que, qualquer que seja fez os convites e organizou tudo o que constaria do
a atividade humana, ela sempre se dará junto a, de banquete: alimentos, vinhos, músicas e os diálogos.
acordo com algo a fazer, por meio de. Mas agora Durante o banquete, foram apresentados sete dis-
cabe perguntar o porquê de ter de pensar em mé- cursos, cujo tema era Eros, o deus do amor, profe-
todo, uma vez que desde sempre nos encontramos ridos por Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes,
junto de, de acordo com. Aqueles que se encontram Agatão, Sócrates e Alcebíades. O Banquete, desde
inseridos na vida acadêmica, cada vez mais, vêm a ideia da reunião, passando pela organização e
sendo exigidos no sentido de orientar seu pensa- chegando aos discursos, sem dúvida aconteceu de
mento pelo bom uso da razão. Caso assim não fa- acordo com um caminho em que havia uma anteci-
çam, correm o risco de serem excluídos do seu ofí- pação que se traçava junto ao caminhar.
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cio de ensinar. Assim, se Platão, Machado de Assis, Quanto ao tema, cada orador apresentou as
Tchekhov, dentre outros, estivessem no mundo de suas teses sobre Eros e cada um o fez ao seu modo.
A r t i g o s

hoje, seriam proibidos de lecionar na academia – Ao acompanhar cada um desses oradores em suas
uma vez que não faziam bom uso da razão de acor- performances, podemos ver o modo como ordena-
do com um método rigoroso e, portanto, careciam vam as suas palavras, seus argumentos, suas iro-
de metodologia? nias, seus contra-argumentos, suas discordâncias a

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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

fim de convencer os ouvintes da verdade daquilo se apresentava na tradição moderna de modo que,
que afirmavam sobre o deus do amor. A apresenta- ao ser posto, se retraía naquilo que foi pensado. Hei-
ção de Sócrates surpreendeu todos os participantes, degger (1927/1998) inicia suas investigações com a
como também surpreende o leitor pelo seu estilo destruição fenomenológica da história da ontologia
totalmente diverso dos demais. Sócrates iniciou sua para que, dessa forma, o que se havia velado pudesse
apresentação sem afirmar nada; ele estranhou, per- se desvelar. Em Ser e tempo, a investigação do sen-
guntou, inquiriu, e, por fim, questionou as verda- tido do ser já se apresenta desse modo com relação à
des que haviam sido anteriormente defendidas. Só- noção de sujeito, como mostraremos a seguir.
crates, de modo sutil e perspicaz, trouxe questões Para falar de metà-hodós tal como apropriado
que desconstruíam as verdades estabelecidas nos por Heidegger em suas obras e, portanto, do modo
discursos anteriores e, assim, pôs por terra tudo o como ele compreende a questão do método, temos
que havia sido estabelecido como verdades últimas que atentar ao fato de que em Ser e tempo (Heide-
a respeito de Eros. E, ainda, afirmou que tudo aqui- gger, 1927/1998) ele se apropria da fenomenologia
lo que havia questionado, bem como o modo como por meio da destruição fenomenológica da ideia de
o fizera, fora aprendido com uma mulher, Diotima, subjetividade. E assim, inicia retomando os funda-
que segundo ele, era uma sábia nos assuntos do mentos da metafísica, em sua analítica existencial.
amor. Assim, Sócrates diz que aprendeu o método Ele aplica o método fenomenológico, fundado em
de questionar por meio da experiência e, portanto, um modelo binário: velamento e desvelamento –
junto ao tema a ser questionado. Ou seja, o tema a em que, ao pensar meditativamente o ser que se en-
ser questionado caminhava junto ao próprio ques- contra velado, conduzimos o pensamento no senti-
tionar, tratava-se do metà-hodós. do do desvelamento do ser. Stein (1983) esclarece
Acompanhando os passos dos pensadores gre- que o modelo binário em Heidegger ocorre pelo fato
gos na conquista de um método, seguiremos toman- dele não lançar mão da dialética, uma vez que esta
do o método como um lugar no qual o caminho da se traduz em um modelo triádico. E, por fim, o fi-
investigação copertence ao tema investigado por lósofo caracteriza o método fenomenológico como
aquele que persegue o tema. Pretendemos conquis- especulativo e totalizador, cujo encaminhamento se
tar, assim, o espaço que denominamos mais originá- dá pela questão do sentido do ser.
rio – ou seja, anterior a qualquer compreensão teóri- Heidegger (1927/1988) nos mostra, da mesma
ca – no qual a existência se dá. Para falar de método forma que Sócrates mostrou aos participantes do
como um caminho possível para as investigações banquete, que antes de proferirmos verdades como
em Psicologia, iremos acompanhar os passos segui- se fossem irredutíveis, é preciso questioná-las. Tan-
dos por Heidegger, que empreende essa mesma ta- to em Heidegger como em Sócrates podemos cons-
refa ao proceder em seu exercício do pensamento tatar que aquele que, eloquentemente – seja pela
acerca da temática existência em sua facticidade. estratégia da oratória ou a loquacidade da ciência
Mas, ao afirmar que seguiremos os passos da filo- – postula verdades, não pensa. Sócrates procedeu
sofia, não poderíamos recair nas sérias críticas que junto aos seus ouvintes pela maiêutica, a fim de
se dirigem à impossibilidade de realizar tal trans- destruir, ironicamente, as verdades que haviam
posição? Para responder à questão proposta, vamos sido postuladas pelos eloquentes oradores. Hei-
acompanhar o que nos diz Stein (1983) acerca da degger segue o mesmo caminho de destruição das
relação da filosofia com as ciências humanas. verdades, tal como postas pela história da ontolo-
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Para Stein (1983), as investigações filosóficas gia, por meio da fenomenologia. A fenomenologia,
se desenvolvem, atualmente, em três direções ine- para o filósofo alemão, é a proposta de um cami-
rentes à filosofia e estas direções permitem com- nho de questionamento do pensamento. Trata-se de
preender a relação da filosofia com as ciências um pensar que deixa aparecer o velado justamente
humanas, no tocante ao método: a) a analítica da quando se retira. A fenomenologia como método de
linguagem em suas múltiplas variantes; b) a escola pensamento opera com o binômio velamento-des-
da teoria crítica e as diversas tendências que visam velamento. Sobre isso afirma Stein (1983): “O ser
dar uma solução dialética ao problema da relação é fenômeno, no sentido fenomenológico, mostra-se,
entre teoria e praxis; c) a hermenêutica filosófica portanto, ocultando-se” (p.24).
que procura mostrar como a compreensão não é, Em Ser e tempo, Heidegger (1927/1998) analisa
primeiramente, um elemento metódico, mas uma a etimologia do termo fenomenologia, para assim
forma de exercício da vida social, vida que, em úl- podermos nos situar naquilo que o fez apropriar-se
tima análise, não é uma comunidade de linguagem. da fenomenologia como caminho de esclarecimen-
Com base nas considerações de Stein, que to. Fenomenologia deriva do grego phainomenon
apontam para a possibilidade da transposição dos e, também, refere-se ao verbo phanestai. Trata-se,
métodos da Filosofia para a Psicologia, continue- portanto, simultaneamente, de um discurso no qual
mos a acompanhar o metà-hodós com que Heideg- algo se revela como tal e de um mostrar das coisas.
ger (1920-1921/2010;1921-1922/2011;1927/1998) Assim, passamos a entender que fenômeno é tudo o
desenvolve seus temas. Primeiramente, podemos que se dá a conhecer, e que é o nosso interesse pelo
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constatar que, nele, método e objeto são analisados que se mostra que nos conduz à interrogação do fe-
em uma unidade totalizadora. Assim, em suas aná- nômeno. O filósofo da Floresta Negra deixa claro
A r t i g o s

lises da história da filosofia, por exemplo, Heidegger que a fenomenologia de Husserl o atraiu pela sua
procura questionar os textos da tradição de modo máxima “às coisas elas mesmas”, que ele esclarece
que o impensado possa se desvelar, já que o tema de seguinte forma:

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Metà-Hodós: da Fenomenologia Hermenêutica À Psicologia

A palavra fenomenologia exprime uma máxima o que acontece que nós – homens da ciência – ao
que se pode formular na expressão as coisas em pensarmos, esquecemo-nos da possibilidade de
si mesmas! – por oposição às construções sol- caminhar de modo a apreender o sentido daquilo
tas no ar, às descobertas acidentais, à admissão que se mostra como fenômeno? Nosso argumento
de conceitos só aparentemente verificados, por a respeito do esquecimento de nossa possibilidade
oposição às pseudo-questões que se apresen- de compreender se dá na direção do obscurecimen-
tam muitas vezes como problemas ao longo de to do pensamento meditativo, que se acentua pelo
muitas gerações (Heidegger, 1998, p.57). projeto de controle inaugurado na modernidade. O
domínio do pensamento que antecipa e calcula fez
Heidegger (1998) diz ainda sobre a fenomeno- com que, cada vez mais, os estudiosos de diferentes
logia que: “A expressão fenomenologia diz, antes áreas do saber se preocupassem com o método e a
de tudo, um conceito de método. Não caracteriza consequente metodologia. Sabemos que os mode-
a quididade dos objetos de investigação filosófica, los da ciência moderna descrevem a natureza como
mas o seu modo, como eles o são” (p.57). No entan- algo que guarda em seu interior uma verdade, que
to, Heidegger não se detém nessa máxima da feno- pode ser alcançada desde que utilizemos o método
menologia; ainda, em Ser e tempo ele aponta para correto e seguro. Assim, desvelaremos todos os seus
a ideia de que o ser-em sempre já compreende. E segredos e mistérios, podendo nos tornar seus amos
toda a compreensão apresenta, previamente, uma e senhores. A ciência desenvolve seus métodos e
visão, uma posição e uma compreensão. Encontra- metodologias de modo a poder conquistar e domi-
mos, nessa expressão, a circularidade hermenêuti- nar todas as intempéries. Passamos, então, a encon-
ca. Todo e qualquer modo de lida com as coisas que trar concepções diferentes de método, que surgem
nos vêm ao encontro já está previamente estabele- com o projeto presente no interior da filosofia da
cido pelo horizonte histórico de determinação de subjetividade.
sentidos e significações.
Ao tomarmos a fenomenologia e a hermenêu-
tica como um caminho possível de investigação das As Diferentes Perspectivas de Método
temáticas em Psicologia, nós consideramos que a
atitude fenomenológica nos permite ir ao fenômeno Nos gregos antigos, tal como mostramos ante-
tal como ele se mostra, e que o elemento herme- riormente em O Banquete de Platão (2015), a ver-
nêutico em si mesmo é a condição do Dasein que dade era tratada como algo que se encontrava na
já sempre se compreende em seu ser. Com isso, ordem do discurso. E este, por sua vez, era facil-
afirmamos o metà-hodós, também, como o cami- mente destituído da verdade que se estabelecera,
nho mais original que em si mesmo já comporta um como nos mostrou o discurso de Sócrates. Na Idade
modo de fazer, investigar, enfim conquistar o sen- Média, a verdade passa a ser ditada por dogmas, tal
tido daquilo que, ao mesmo tempo que se mostra, como podemos acompanhar em Santo Agostinho
se retrai. (2011) ao se referir à vontade, afirmando: a vontade
Em Psicologia, uma perspectiva hermenêutica não deseja nada necessariamente, reside na razão,
para a investigação de um fenômeno pode ser reali- pela qual somos senhores de nossa vontade. Em
zada quando se procura o modo de articulação exis- São Tomás de Aquino (2002) a postura dogmática
tencial, que se constitui em meio ao espírito de sua aparece quando ele se refere, por exemplo, à natu-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
época. Por esse motivo é que podemos caminhar de reza da alma e de suas operações: a alma dá vida
modo a saber como cada época, em sua estrutura ao corpo; produz conhecimento sensível, domina
geral, toma o sentido do fenômeno que pretende- o concreto pela inteligência divina, domina toda a
mos investigar. sua vida pela liberdade. Com a falência da verdade
Com os esclarecimentos acima, poderemos instaurada pela dogmática, aquele que posiciona a
estudar o tema de modo a não tomar a perspecti- verdade deixa de ser de natureza divina, abrindo-se
va moderna como a única e definitiva verdade. E, o caminho da metafísica da subjetividade, na qual
assim, poder investigar de modo a alcançar aquilo o método passa a ser tomado como um modo de se
que está em jogo, deixando que o fenômeno apare- alcançar uma determinação essencial da verdade,
ça em seu caráter fenomenal. Uma atitude feno- fundamentalmente e exclusivamente conquistada
menológica, ante as experiências concretas do fe- pela razão do homem. Ainda sob o prisma da meta-
nômeno que se pretende investigar, diz respeito a física da subjetividade, surge o método dialético-es-
poder acompanhar a experiência e, assim, ver o que peculativo, idealizado por Hegel com a finalidade
ela tem a nos dizer. Ao acompanhar fenomenolo- de alcançar o espírito absoluto por meio da análise
gicamente o sentido que se encontra no âmbito de da história da humanidade.
uma determinada experiência, precisamos, em um O método científico foi inaugurado pela filoso-
primeiro momento, recuar ante as interpretações da fia moderna, sob a idealização de Descartes. O mé-
tradição, subtraindo a conotação moralizante do fe- todo cartesiano é entendido em suas diferentes eta-
nômeno em questão. E, assim, acompanhar os veto- pas por preceitos lógicos e regras; diz Feijoo (2003)
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res internos mobilizadores da experiência, de modo que as regras são: da evidência, da análise, da sín-
que a dinâmica e a estrutura do próprio fenômeno tese e da classificação exaustiva. A verdade apenas
A r t i g o s

se deem a conhecer. pode ser pressuposta quando se mostra evidente; há


No entanto, há algo que precisamos ques- a decomposição do todo, em todas as partes pos-
tionar: se o Dasein já, previamente, compreende, síveis, de modo que as respostas aos enigmas da

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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

natureza possam ser alcançadas; efetua-se a síntese tido mais originário, tal como os gregos antigos fa-
dessas partes para, por fim, alcançar a ordenação do ziam, ou seja, pela aletheia.
pensamento. Pela exaustão, mantém-se a crença de
que toda a natureza estará sob controle. Como nos
diz Stein (1983), trata-se de uma sucessão ordenada O Método Fenomenológico Hermenêutico nas
de diversos passos da reflexão: demonstração, ex- Investigações heideggerianas
posição e sistematização de conhecimentos. O mé-
todo foi compreendido pela modernidade por meio O método, em suas diferentes modulações, é
da equação sujeito-objeto, na qual o sujeito é que uma questão que pode ser encontrada em variados
posiciona o objeto e assim, por meio do pensamento estudos desenvolvidos por Heidegger. Sobre o modo
racional – isto é, da representação, já que pensar é como ele procede ao desenvolver o tema da fenome-
representar –, o sujeito conquista o real verdadeira- nologia da vida religiosa, conta-se que o filósofo ha-
mente. Segundo Fogel (1998), “O real, a ‘coisa’, se via sido convidado pela Universidade de Freiburg a
determina como objeto, ou seja, como o que é posto proferir aulas de Religião. Durante três a quatro me-
em contraposição ao sujeito” (p. 2). ses, no entanto, Heidegger só havia falado em her-
O método tal como sistematizado por Descar- menêutica e os alunos queixaram-se pelo fato de que
tes vai se tornar fundamentalmente importante para no curso não estava sendo discutida a temática pro-
a metodologia própria das ciências modernas. A fí- posta. Por isso Heidegger, na primeira parte de suas
sica moderna se insere nesse projeto na busca pela aulas, faz considerações metodológicas e na segun-
fórmula do mundo. Por meio da física “O ser do ente da parte apresenta questões religiosas por meio da
se dissolveu no método da total calculabilidade” hermenêutica da vida fática da experiência religio-
(Stein, 1983, p.18). E, desse modo, o método torna- sa. Em Fenomenologia da vida religiosa, Heidegger
-se submerso na calculabilidade. O método, como (1920-21/2010) esclarece o modo como ele investiga
caminho metodologicamente estruturado com fins hermeneuticamente a fé do apóstolo Paulo. Para ini-
de antecipação e correção, passa a ser apropriado ciar esse estudo, Heidegger começa mostrando o que
pelas diferentes disciplinas científicas com fins de ele entende por introdução e vida fática.
investigação e pesquisa. O método toma formas es- Heidegger (2010) diz que introduzir uma ques-
pecíficas, dependendo das ciências que o utiliza – e tão não quer dizer que estamos mostrando o meio
todas as disciplinas passam a querer conquistar o para chegar a um fim. Para descrever uma experiên-
ideal de antecipação, certeza e controle com fins de cia existencial não é necessário nenhum instrumen-
transformação da realidade. to mediador – assim, introduzir um estudo dirigido
Na modernidade, inauguram-se novos cami- à vida religiosa, como ele fez no curso sobre Reli-
nhos e a metafísica esmera-se no sentido de alcançar gião, quer dizer se abrir para o lugar onde já se está,
a determinação essencial da verdade. O verdadeiro ou seja, para a vida fática, onde o que se quer inves-
passa a ser apenas o seguro, o certo, o representado. tigar já sempre se encontra. Para Heidegger, tanto
E para que a verdade, a segurança e a certeza sejam a filosofia quanto a ciência surgem da vida fática.
alcançadas é decisivo que o sujeito esteja certo e Heidegger (2010), então, na investigação da vida fá-
seguro de si mesmo. O método próprio da filosofia tica de Paulo, coloca em questão a experiência da
e da metafísica encontra-se na essência da subjeti- fé. Ele afirma que para alcançar essa experiência é
vidade e, portanto, centrado no sujeito, passando imprescindível que aquele que investiga se coloque
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a ser o procedimento desse sujeito que assegura e no horizonte onde o fenômeno mesmo – no caso a
conquista o ente como objeto para o sujeito. fé – acontece, sem que haja nenhuma mediação, ou
Em conclusão, podemos observar que a ques- seja, sem que se diga de antemão o que é a fé.
tão do método ganha contornos totalmente distin- O filósofo (Heidegger, 2010), dando continui-
tos nos diferentes horizontes epocais. Nos gregos dade às suas aulas, mostrando o modo como pro-
antigos, método como metà-hodós dizia respeito a cedia em sua investigação acerca da fé de Paulo,
um modo de fazer sem nenhum distanciamento en- toma as cartas de Paulo aos tessalonicenses. Inicia
tre a atitude teórica e a prática. O modo de fazer e a esclarecer o seu método com a seguinte questão:
o próprio fazer constituíam-se em uma unidade in- Como se realiza a explicação fenomenológica em
dissociável. Nos medievais, o método predominan- seu material? ‘Material’ diz respeito àquilo que pos-
te era a dogmática, que propunha relações deduti- sui um sentido metodológico determinado. A expli-
vas que posicionavam a verdade sobre tudo o que cação do fenômeno a partir do material se realiza
havia na Terra. Na idade moderna, passa a predo- em níveis também determinados. Dado que o pro-
minar a imposição do sujeito, que pelo pensamen- blema fundamental da investigação da fé realizada
to se torna capaz de representar toda a realidade. por Heidegger se encontra na experiência fática,
Cabe ressaltar que tanto o método cartesiano como cabe esclarecer o que ele entende por facticidade.
o especulativo-dialético de Hegel se encontram na Facticidade se refere ao nosso existir em uma situa-
tradição das filosofias da subjetividade. Para Hei- ção determinada. Como a estruturação do espaço
degger (citado por Stein, 1983) é com Hegel que a existencial é temporal, o modo como cada homem
-

filosofia conquista a plenitude do método e, com existe é temporal, isto porque envolve sempre a
isso, também a plenitude do velamento da questão ideia de projeto do campo existencial. O professor
A r t i g o s

do ser e o consequente esquecimento da diferença conclui que, a partir de um diálogo com os limi-
ontológica. É por esse motivo que Heidegger quer tes fáticos presentes na temporalidade daquilo que
retomar o modo de tematizar o fenômeno no sen- queremos investigar, poderemos nos comportar no

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Metà-Hodós: da Fenomenologia Hermenêutica À Psicologia

presente com esses entes que, mesmo ocorridos no diz ele que, nesse momento, passamos a escrever a
passado, vêm ao nosso encontro. Esclarecido esse epístola com Paulo. Realizamos com ele mesmo a
ponto, Heidegger passa para o seu segundo esclare- escrita, ou seja, nós a ditamos. De que modo faze-
cimento, a seguir. mos isso? Por meio das respostas às seguintes ques-
Já que a vida fática é historicamente constituí- tões: Qual a situação na qual se encontra Paulo ao
da, então o primeiro que se deve determinar pré- escrever a Epístola aos Tessalonicenses? Como ele
-fenomenologicamente é o histórico-objetivamente a experienciava? Como lhe é dado o mundo com-
dado, ou seja, o como da situação histórica, a sua partilhado na situação da escrita da epístola? Isso
conexão fenomenal, sempre já partindo dos moti- está vinculado à questão de como Paulo se encontra
vos fenomenologicamente dados. Diz Heidegger neste mundo compartilhado. “O conteúdo do mun-
(2010): “O histórico-objetivo que se ressalta deve do compartilhado deve ser visto em sua determina-
ser considerado, obtendo assim uma tonalidade bilidade, no contexto junto ao como da referência
própria e, desse modo, deve ser fixada” (p.76). É a com este mundo compartilhado. Portanto, trata-se
vida fática que traz a noção de história – logo, em de expor a determinação fundamental dessa refe-
uma perspectiva fenomenológica cabe descrever a rência” (p. 78).
vida fática na qual nós sempre nos encontramos. Sobre as dificuldades metodológicas a que
Nesse aspecto, Heidegger (2010) esclarece que “fe- Heidegger (2010) se referiu anteriormente, no en-
nomenologia é filosofia e vice-versa” (p.10). caminhamento de seu método de investigação da
Heidegger (1920-21/2010) continua a esclare- escrita de Paulo, ele diz que com elas esbarramos
cer que para investigar fenomenologicamente faz-se quando da virada do complexo histórico-objetivo
necessário uma concretização existencial, que não para a situação histórico-originária. São elas: a lin-
pode se dar por meio de um encadeamento lógico. guagem, a empatia e a transposição.
Assim, ele nos mostra como procedeu em sua in- A exposição mediante a linguagem é uma difi-
vestigação abstendo-se de tal encadeamento. Nas culdade, já que a linguagem da consideração temá-
Epístolas Paulinas, Heidegger procede à explicita- tica não é a linguagem originária. E a terminologia
ção fenomenológica da primeira Epístola aos Tessa- conceitual mais originária na experiência fática da
lonicenses. Esse é o material que possui um sentido vida de Paulo não é aquela com a qual estamos acos-
metodológico determinado. A explicação fenome- tumados. E, além disso, da terminologia originária
nológica desse fenômeno se dará, primeiramente, é que deriva a terminologia conceitual temática.
tendo em conta aquilo a que Heidegger (2010) se Essa derivação traz problemas. Por esses motivos,
refere no parágrafo 23, “As dificuldades metodoló- a virada radical na terminologia conceitual para a
gicas: Qual é a situação histórica objetiva de Paulo originária é imprescindível. Porém, temos que ter
ao escrever esta epístola?” (p.78). A situação é de- em mente a impossibilidade de alcançar a termino-
terminada da seguinte forma: a epístola foi escrita logia originária em sua totalidade. Conclui Heideg-
em Corinto durante sua primeira viagem missio- ger (2010): “toda e qualquer coisa explicada não é
nária, que o levou primeiramente a Filipos e dali, compreensível enquanto seu complexo de sentido
após três semanas, para Tessalônica. A oposição dos anunciado não tiver sido realizado” (p.76).
judeus aos cristãos obrigou Paulo a abandonar a ci- A empatia (Einfühlung) está presente na situa-
dade às escondidas, partindo para Atenas, de onde ção, já que: “A empatia dá-se na experiência fática
Paulo mandou Timóteo retornar a Tessalônica. Pau- da vida – fenômeno histórico originário que não se

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lo volta a se encontrar com Timóteo em Corinto. pode resolver sem o fenômeno da tradição em sen-
Paulo escreve a epístola imediatamente após sua tido originário –, o mundo circundante ganha assim
chegada em Corinto. Diz Heidegger: “Se expuser- seu sentido a partir da compreensão da situação”
mos isso histórico-objetivamente, Paulo aparecerá (p.77). Com isso, Heidegger nos mostra que a empa-
como missionário, que fala como um pregador am- tia se dá na cadência do sentido que se apresenta na
bulante comum, sem maiores alardes” (p.78), por situação, portanto, ao investigar o fenômeno em ou-
isso, teremos que passar para o segundo momento. tro tempo, a empatia não pode se repetir. A empatia
Obtenção da realização da situação histórica não é algo que possamos produzir pela vontade, ela
do fenômeno – para obter a realização histórica do se dá em situação totalmente independente do que-
fenômeno, ou seja, o horizonte histórico de deter- rer empatizar. Acredita Heidegger que ao assumir
minação de sentidos em que a situação aparece em uma atitude fenomenológica abre-se o espaço da
sua pluralidade de tal modo que não nos é dado experiência mesma, no caso a experiência religiosa
interpretar nada sobre a complexidade do que se de Paulo. Nessa situação, Heidegger, para realizar
mostra – logo, o que nos cabe é ir ao encontro da sua investigação, prescindiu de qualquer presença
articulação da pluralidade e complexidade da si- efetiva, como também de qualquer transcendência
tuação para então descrevê-la. Para tanto, devemos, ao próprio fenômeno. Apenas pela atitude fenome-
primeiramente, alcançar ‘a situação a ser enfatiza- nológica podemos nos aproximar do pathos – afinal,
da’ da pluralidade; depois, mostrar o sentido pri- é o pathos que nos liga uns aos outros e que permite
meiro ou ‘arcôntico’ (dominante) da situação que se que nos compreendamos uns aos outros –, mas não
-

pretende expor; e, por fim, alcançar o fenômeno a podemos estar no mesmo pathos.
partir do complexo fenomenal e começar, a partir Por fim, a terceira dificuldade diz respeito à
A r t i g o s

desse complexo, a consideração sobre a origem. transposição. Heidegger se refere à transposição


Heidegger (2010) apresenta, na Epístola de como uma dificuldade metodológica, no que diz
Paulo, a realização histórica do fenômeno, e então, respeito à Epístola de Paulo: “Poderíamos dizer: é

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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

impossível, isto é, limitadamente possível transpor meio para chegar a um fim. E com isso a busca do
a situação exata de Paulo. Pois não conhecemos seu sentido das coisas fica totalmente obscurecida pelas
mundo circundante” (Heidegger, 2010, p.78-79). determinações tecnicistas – que no fundo são meras
Toda a significação tem um objeto e a concretiza- abstrações, cálculos, mensurações e antecipações.
ção é o sentido que afinal determina o objeto – a Heidegger (1954/2012b), ainda, refere-se à ex-
situação pioneira envolve muitos elementos, mas o periência essencial que aponta para a limitação das
que dá unidade, sentido a esses elementos? O ser ciências, que é a de não perceber o incontornável
da situação é o seu sentido de ser e é esse sentido como inacessível. É no incontornável que o ser é
que Heidegger está buscando. E esse sentido se abre pensado e dito. O objeto propriamente dito da filo-
pela experiência fenomenológica e não empírica. sofia por seu caráter de incontornabilidade torna-se
Pelo fato da experiência ser fenomenológica é que inacessível ao método das ciências. Em Ciência e
a transposição aponta como possibilidade de rea- pensamento de sentido, Heidegger (2012b) ainda
lização. esclarece que a existência na sua totalidade não se
Por meio da explicitação fenomenológica da pode alcançar por nenhuma norma que transcenda
situação histórico-objetiva e da situação histórica o próprio existir, ou seja, por um critério normativo
do fenômeno, bem como considerando as barreiras prescritivo, positivo e abstratamente posicionado.
encontradas na interpretação da situação de Paulo, Ele desenvolveu seu método de investigação dos
Heidegger – em sua descrição fenomenológica do fenômenos que se apresentam na ordem do incon-
ato de fé, por meio da experiência religiosa de Paulo tornável em sua analítica. Ele pretendia, em seu
– conclui que não se pode pensar a fé sem o elemen- metà-hodós, alcançar o modo de vigência do real,
to transformação. A fé exige uma transformação, a ou seja, o modo de viger, de desvelar das coisas.
partir dela mesma, em sua concretização. O caráter Heidegger (2012b) aponta para o caráter incontor-
religioso depende do ato intencional, no caso, o ato nável do objeto da psiquiatria, concluindo que essa
de fé, que abre a experiência religiosa de Paulo. E é área do saber jamais poderá alcançar o sentido do
essa experiência que pode ser descrita fenomenolo- fenômeno que investiga quando lhe impõe contor-
gicamente. nos, uma vez que a existência, quando retirada de
No entanto, não só em Fenomenologia da vida seu fluxo temporal, se retrai. Por analogia, concluí-
religiosa o filósofo se refere à questão do método. mos que o mesmo ocorre com a Psicologia. Tanto a
Heidegger (1921-22/2011), em uma preleção datada Psiquiatria quanto a Psicologia que se pautam nas
de 1921-1922 na Universidade de Friburgo, desen- ciências naturais tratam da vida mental do homem
volve a questão introdutória a respeito de uma de- em suas manifestações da doença – o que inclui
finição principal, ou seja, o indicativo formal para sempre a saúde –, que se apresentam pela e a par-
explicar as categorias do fenômeno fundamental da tir do que vige na integração corpo, alma, mente e
vida, na perspectiva da determinação da facticidade espírito, constitutivos de todo homem. Naquilo que
da vida. vige como fenômeno da Psiquiatria e Psicologia, o
Em 1927, no parágrafo 7, em uma exposição modo já vigente do homem ser apresenta-se e ex-
provisória, Heidegger (1927/1998) discute ligeira- põe-se a cada vez. Assim, partimos da tese de que
mente o método, explicitando que com fenomeno- a ek-sistencia permanece como o incontornável da
logia pretende denominar um método da filosofia Psiquiatria e da Psicologia – por esse motivo é que
científica em geral. Ainda no parágrafo 7 de Ser e precisamos retomar o metà-hodós na investigação
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

tempo, ele esclarece como se apropria do método daquilo que nos interessa.
fenomenológico na sua investigação do ser do ente Por fim, concluímos que no desenrolar de suas
ou o sentido do ser em geral. Neste parágrafo, o fi- diferentes modalidades de caminhar junto às coi-
lósofo mostra de forma provisória o caminho que sas, o filósofo apropria-se, em um primeiro momen-
ele tomou para tentar superar o método próprio da to, da fenomenologia de Husserl para proceder às
filosofia moderna. As investigações das filosofias suas investigações. Com isso, podemos constatar
da subjetividade procediam de modo a promover a presença de três momentos constitutivos de sua
o velamento do ser, ou melhor, o esquecimento de análise: a redução fenomenológica, a descrição dos
seu sentido. Heidegger tinha como pretensão alcan- vetores internos ao fenômeno e a explicitação das
çar o fenômeno que ele queria investigar, inician- experiências, que para o filósofo são sempre his-
do pela superação do pensamento que toma como toricamente constituídas (Feijoo & Mattar, 2014).
referência a subjetividade. Nesse mesmo parágrafo, Heidegger apropria-se do modo fenomenológico de
Heidegger assume seu caminho pela fenomenologia investigação, ao mesmo tempo que considera que o
no sentido do desvelamento da história do ser, onde fenômeno se constitui circularmente em um deter-
a pergunta que impera na investigação do conteúdo minado horizonte histórico. Por considerar a feno-
da coisa não é o quê da coisa, mas o como. Heide- menologia e a hermenêutica conjuntamente, passa
gger (2003) refere-se ao método moderno de inves- a denominar seu método de fenomenologia-herme-
tigação, em Ser e tempo, da seguinte forma: “Uma nêutica.
simples técnica para a manipulação dos objetos” Nas suas obras posteriores, Heidegger quase
-

(p.51). Mais adiante, completa: “vazia descrição da não se refere mais à fenomenologia, inclusive pare-
técnica” (p.52). Com isso, Heidegger está se referin- ce que ele prescinde de qualquer discussão metodo-
A r t i g o s

do a técnica que fica reduzida a uma perspectiva lógica. No entanto, no interior do desenvolvimento
antropológica e instrumental, sob a lógica da fun- do seu pensamento, método, objeto e pensamento
cionalidade, ou seja, a ação do homem como um se apresentam de forma unitária, o que podemos

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 329-339, set-dez, 2018 334
Metà-Hodós: da Fenomenologia Hermenêutica À Psicologia

constatar em seu texto de 1954, denominado A do objeto da Psicologia, bem como da necessidade
questão da técnica – o filósofo chamará a atenção de uma teoria científica que sustentasse sua prática.
para duas determinações essenciais da constituição No Brasil, dentre os muitos textos a esse respeito,
de mundo moderno: a) Gestell, em que a natureza a publicação de Garcia-Roza (1977) ganhou noto-
se desabriga em um total obscurecimento da mo- riedade. Ele polemiza a pretensão da Psicologia na
rada do ser, ou seja, sua historicidade. O homem conquista de uma unidade como campo de saber
esquecido de seu elemento original corre o perigo científico e conclui seu pensamento defendendo a
de retrair o verdadeiro. Mas onde há esquecimento, manutenção da pluralidade desse campo de saber
há também a possibilidade da lembrança capaz de que se faz presente em seu fazer.
corresponder aos apelos daquilo que lhe é mais ori- De modo diverso, Rauter (1995) compartilha
ginal, Ereignis. b) Ereignis, que é o acontecimento da tese de Garcia-Roza (1977), defendendo que a
apropriativo que evoca o comum pertencimento de Psicologia, para resguardar o espaço paradoxal de
homem e ser, que acontecem e se apropriam mu- sua função, não deve ter pretensões de estabelecer
tuamente. Por isso é que Heidegger afirma que seu uma identidade fixa para essa área de saber. Coim-
caminho de investigação é o questionamento. E que bra (1995) coloca-se radicalmente contra o movi-
questionar aquilo em que estamos imersos é prepa- mento da Psicologia como área de especialização,
rar-se para uma relação mais livre com aquilo que bem como do psicólogo em seu fazer de especia-
se apresenta (Heidegger, 1954/2012 a). lista. Figueiredo (1995; 1996), diante da crise do
Ao acompanhar Heidegger (Stein, 1983), con- modelo epistemológico, questiona se a Psicologia
cluímos que para investigar um fenômeno, temos poderia, sem esse modelo, justificar-se teórica e me-
que ter em mente que não é possível promover uma todologicamente.
diferenciação entre caminho de pensamento (mé- Primeiramente, defendemos que para atuar
todo), o que se pretende pensar (tema) e o próprio no metà-hodós, teríamos que prescindir de um ob-
ato de pensar (pensamento). Cabe ressaltar que essa jeto posicionado e delimitado de estudo. Trata-se
tríade na investigação se constitui em uma unidade de um caminho de investigação condicionado por
indissociável, sem nenhuma mediação. E é tendo um conhecimento que requer prudência, no senti-
em mente essa tríade que iremos percorrer um ca- do de quanto mais experiência, maior a conquista
minho rigoroso de investigação das temáticas de in- desse caminhar. Não há uma medida definida nem
teresse em Psicologia. aquém, nem além desse modo de estar junto às coi-
sas. Tratar-se-ia de um saber específico que se con-
quista no próprio ato de caminhar? Para responder
A Transposição da Fenomenologia a tal questão, precisamos primeiramente esclarecer
Hermenêutica Para a Psicologia como aconteceu o emergir da subjetividade como
objeto da Psicologia, como faremos a seguir.
Para podermos defender a transposição do Os filósofos voltados para a filosofia da ciên-
método fenomenológico hermenêutico da Filosofia cia, como Immanuel Kant (1724-1804) e Auguste
para a Psicologia, primeiramente trataremos de re- Comte (1798-1857), já se referiam à impossibilida-
lembrar e refletir sobre a atmosfera de críticas e de de de constituição da Psicologia como disciplina
ceticismo que envolve as pesquisas e seus respecti- científica. Kant constrói uma epistemologia de base
vos métodos em Psicologia. transcendental, por isso não pergunta pelo objeto,

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Em 1956, quando a Psicologia já acreditava mas pela possibilidade de conhecimento do objeto.
que havia estabelecido sua área de saber e as di- Os argumentos de Kant (1781/2001) com relação à
ferentes vertentes haviam se estabelecido com seu insustentabilidade dessa área de saber como disci-
objeto posicionado e seu método, Georges Cangui- plina científica dirigiam-se ao fato de que o objeto
lhem pôs essa disciplina em questão, ao proferir temático dessa disciplina – a saber, a alma – pode-
uma conferência no Collège Philosophique, publi- ria ser postulado no âmbito prático, mas não pode-
cada em 1958 na Revue de Métaphysique et de Mo- ria, objetivamente, ser cognoscível. Desse modo, a
rale, referindo-se à indefinição dessa área de estudo alma não pode ser tomada como objeto científico.
e também pondo em dúvida a eficácia do psicólogo O conceito de alma que sustenta a psicologia racio-
(Canguilhem, 1999). Canguilhem (1958/1999) ava- nal e empírica não possui fenomenalidade. Logo,
lia que a Psicologia, por sua indefinição, mantém não pode ser acessado fenomenicamente, conclui
uma eficácia totalmente infundada: “De fato, de o filósofo, já que o objeto de estudo dessa área de
muitos trabalhos da Psicologia, se tem a impres- saber não é passível de alcance. Comte (1830/1991)
são de que misturam uma filosofia sem rigor, uma constrói uma epistemologia positiva, perguntando
ética sem exigência e uma medicina sem controle” pelo modo como se deve descrever as positividades
(p.104). Portanto, Canguilhem postula que para que do objeto empírico. Com a sua exigência da posi-
a Psicologia pudesse conquistar um espaço de reco- tividade inerente ao objeto de estudo, ele descarta
nhecimento, seria imprescindível que ela se consti- totalmente a possibilidade da construção de uma
tuísse com rigor, no entanto, superando um “certo teoria voltada para o estudo do psiquismo. Defen-
-

empirismo compositório, literalmente codificado dia o positivista que, se o objeto da psicologia tives-
para fins de ensino” (Japiassú, 1995, p.17). se sua base na fisiologia, essa área de estudo seria
A r t i g o s

A partir da problemática levantada por Can- desnecessária, uma vez que a biologia a ela já se
guilhem, proliferaram os posicionamentos contra e dedicava. Se o seu objeto fosse o social, essa área de
a favor da tentativa de posicionamento e definição estudo já estava sendo contemplada pela sociologia.

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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Logo, considerando os argumentos de Kant e um caminho de reflexão que nos permita colocar os
Comte (ambos oriundos da epistemologia) desde a estudos e campo de práticas em psicologia fenome-
fundação das disciplinas científicas, a Psicologia nológico-existencial em um espaço também mais
não poderia se constituir como ciência, uma vez originário, ou seja, a existência.
que ou apresentava o problema do acesso por via É, justamente, o mais originário que a feno-
da dedução do seu objeto específico, ou não pos- menologia de Husserl (1910/2007b) vai privilegiar
suía um objeto para o qual dirigir empiricamente como um tema que merece ser pensado. E, ainda,
os seus estudos. O primeiro elabora uma epistemo- afirma o fenomenólogo que a Psicologia deveria se
logia transcendental, preocupado com a condição ater ao estudo da intencionalidade para, assim, re-
de possibilidade de conhecimento do objeto. O se- tirar toda e qualquer necessidade de se constituir
gundo constrói uma epistemologia positiva voltada como área de saber que estabeleça posicionalmente
para o dado empírico. Assim, de acordo com esses o seu objeto. Heidegger (1927/1998), com a radica-
dois filósofos, a Psicologia como área de saber fica- lização da intencionalidade até o espaço historica-
ria totalmente inviabilizada. mente constituído, é que vai apontar um caminho
Todas as tentativas de circunscrever a subjeti- para poder pensar um saber em Psicologia em que
vidade, seja no âmbito da Filosofia, seja no âmbito se torne totalmente desnecessário encontrar um ob-
da Psicologia, são alvo de críticas dirigidas a essa jeto posicionado, delimitado e substancializado.
forma de propor o problema. No século XIX, as fi- Acompanhando a fenomenologia e a ontologia
losofias da subjetividade entram em crise. A ques- fundamental em Husserl (1900/2007b) e Heidegger
tão passa a ser sobre como, uma vez estabelecida a (1927/1998), respectivamente, iniciaremos a trilhar
cisão sujeito e objeto, poderemos sair do âmbito de um caminho possível para propor um método em
uma interioridade – sujeito, para acessar, verdadei- Psicologia que prescinda totalmente de um objeto
ramente, o objeto que se encontra na exterioridade. posicionado. Cabe ressaltar que não pretendemos
Nesse percurso, pode acabar por acontecer uma fal- dispor dessas filosofias como uma aplicação direta
sificação do objeto. O mesmo equívoco com relação para a Psicologia. Se assim fosse, estaríamos apenas
ao acesso pode estabelecer-se, no caminho contrá- substituindo as bases teóricas. Pretendemos somen-
rio, com o objeto empiricamente dado para dar-se te seguir à margem (Campos, 2014) do caminho to-
a conhecer pelo sujeito. Com esse impasse, urge a mado por essas filosofias, para nos apropriarmos de
necessidade de discernimento do que ocorre com modo autônomo de uma Psicologia que busca suas
relação ao acesso. bases no ato mesmo de existir. Trata-se, portanto,
A tentativa de constituir um objeto posiciona- de seguir os passos argumentativos dessas filosofias
do e limitado é justamente o que coloca sob suspeita para conquistarmos nossos objetivos.
(Mattar, 2011) as psicologias. Husserl (1936/1989) O que estamos tentando defender como outra
nos chama a atenção para a necessidade de ir além possibilidade de investigação em Psicologia ainda
da dicotomia sujeito e objeto, pelo fato de que foi não se esgota com Husserl em sua proposta de fe-
essa cisão o motivo pelo qual a crise da filosofia da nomenologia, que ele mesmo denominou de psi-
subjetividade se instaurou. Seguindo em paralelo cologia fenomenológica. A nossa proposta não só
à trilha do caminho percorrido por Husserl para a suspende as verdades estabelecidas pelas teorias
superação da crise dos universais, é que defende- em Psicologia, que partem de visadas que pressu-
mos que a Psicologia precisa discernir que o que ela põem uma natureza humana, tomada como objeto
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

vem instituindo como objeto não tem objetualidade assentado em uma substancialidade, como também
nenhuma. Por esse motivo, pensar em uma psico- considera que a não substancialidade torna possí-
logia no caminho da fenomenologia consiste, num vel uma reconfiguração historicamente constituída.
primeiro momento, em colocar em questão os dis- Os campos intencionais aparecem não só tempo-
cursos da Psicologia com relação aos seus objetos. ralmente, mas também como espaços hermeneuti-
Considerando que a exigência de posicionamen- camente condicionados. Para tomar o caminho no
to do objeto é o que coloca em crise os discursos sentido hermenêutico, seguiremos, na constituição
teóricos, bem como as práticas da Psicologia, pre- de nossa psicologia, a trilha para a qual Heidegger
cisamos abandonar a necessidade ilusória de ope- (1929/2006) nos acena em sua fenomenologia her-
rar com objetos posicionados e substancializados. menêutica.
Só assim poderemos pensar em meio aos campos Para investigar um fenômeno no caminho do
intencionais, logo, sem determinação atemporal e metà-hodós, temos que considerar os campos in-
sem substancialidade espacialmente definida. tencionais historicamente constituídos, podendo,
Como vimos, a questão da exigência da deter- dessa forma, subtrair totalmente a necessidade de
minação do objeto pelo sujeito, para que uma espe- operarmos com um objeto próprio à Psicologia - ou
cífica área de estudo seja considerada científica, é melhor - tomar seu objeto como totalmente desti-
motivo de debate entre os estudiosos da Filosofia tuído de realidade, aquilo que aparece no campo
e da Psicologia. Após ter acompanhado em parte hermenêutico: a existência. Consideramos que é
esse debate, iremos – junto a uma certa filosofia preciso, para articular uma proposta em Psicologia
-

que pretende encontrar algo da ordem do mais ori- nessas bases, descrever as concreções existenciais
ginário do que a relação sujeito e objeto – buscar condicionadas pelos envios historiais. Neste sen-
A r t i g o s

a originalidade a partir da qual aparece aquilo que tido, a Psicologia que queremos pensar não parte
denominamos psiquismo. Assim, acompanhando de objetividades categoriais, mas sim, como propõe
ao largo esses argumentos, pretendemos encontrar Heidegger (1920-1921/2010), de indicativos formais:

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 329-339, set-dez, 2018 336
Metà-Hodós: da Fenomenologia Hermenêutica À Psicologia

“Na metodologia chamamos de indício formal (For- Ciências Humanas, em geral, têm pensado o
male Anzeige) o emprego de um sentido que guia fenômeno que pretendemos investigar. Para
a explicação fenomenológica. Aquilo que o sentido tanto, realizamos uma consulta às bases de
formalmente indicado traz constitui o horizonte no dados e bibliotecas virtuais, tais como Google
qual os fenômenos que se pretende distinguir serão Scholar, Lilacs, Scielo, Mendeley, utilizando
vistos” (p.52). Isso, no entanto, sem emitir opiniões, as palavras-chave de nosso interesse. Locali-
nem nada que traga pressuposições ou preconceitos zamos os artigos publicados sobre o tema, in-
acerca daquilo que se pretende analisar. dicando um intervalo de tempo em que dis-
Seguir os indicativos formais quer dizer partir cutiam, ainda que de forma indireta, a mesma
de indícios, forma, que só ganham materialidade na problemática de nossa investigação. E, tam-
existência ou na história. O acontecimento-apropria- bém, por meio da pesquisa bibliográfica elege-
tivo constitui a identidade-forma que vai conquis- mos as fontes primárias que iremos utilizar na
tar a diferença com a materialidade historicamente investigação em questão.
constituída, para assim preencher o sentido, que será
sempre epocal, ou seja, conquistado na existência. 2 - Investigação hermenêutica: em uma perspecti-
Para pensar o mundo que é o nosso, ao qual Heideg- va fenomenológica e hermenêutica, considera-
ger denomina Era da técnica, entendemos que é por mos que o modo de ser dos homens se consti-
meio da materialidade, ou seja, das determinações tui em meio ao espírito de sua época. Por esse
desse mundo, que acontece a cadência daquilo que motivo é que precisamos saber como cada épo-
conduz nosso modo de ser. Logo, são as determina- ca tomou o fenômeno que pretendemos inves-
ções da técnica, tais como: efetivação, funcionali- tigar, para podermos compreender aquilo que
dade, correção, que preenchem existencialmente o estava em jogo nessa decisão. Com esse escla-
acontecimento-apropriativo que é o nosso. recimento, poderemos estudar o tema de modo
Em síntese, indo ao encontro do que nos diz a não tomar a perspectiva moderna que afirma
Stein (1983), concluímos que o método fenomenoló- veemente uma única e definitiva verdade. E,
gico se situa nos antípodas da subjetividade. Junto à assim, poder abrir um espaço de investigação
fenomenologia e à hermenêutica é que encontramos para alcançar o que está em jogo naquilo que
outro caminho de investigação de nossas temáticas investigamos, podendo o fenômeno aparecer
em Psicologia Existencial. Partimos da consideração em seu caráter fenomenal.
inicial de que o hermenêutico em si mesmo é a con-
dição do Dasein, que já sempre se compreende em 3 - Acompanhamento fenomenológico da expe-
seu ser. Por isso, sempre já estamos em uma com- riência concreta do que se quer investigar:
preensão daquilo que nos vem ao encontro. para podermos acompanhar o fenômeno que
Para investigar um tema em Psicologia, cada nos interessa, procedemos à nossa investiga-
vez mais nos é exigida uma metodologia, totalmen- ção acompanhando a experiência, para deixar
te definida em seus limites e em sua efetividade. que ela, a própria experiência, fale o que tem
Podemos, para alcançar a tal objetividade, proceder a nos dizer. Ao acompanhar fenomenologica-
ao planejamento de nossas investigações por meio mente o sentido que se encontra no âmbito do
de três procedimentos que não contradizem em ab- fenômeno, precisamos, em um primeiro mo-
soluto a ideia de objetividade e rigor. Para alcan- mento, recuar diante das interpretações cor-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
çarmos os nossos objetivos, utilizaremos o método rentes sobre o tema, subtraindo as diferentes
fenomenológico-hermenêutico, tal como utilizado conotações que circunscrevem o fenômeno.
por Heidegger, ou seja, reconstruindo, destruindo Após essa postura metodológica, precisamos
fenomenologicamente as verdades estabelecidas e acompanhar os vetores internos mobilizadores
construindo outras possibilidades de pensar o fe- do movimento do fenômeno – para, afinal, al-
nômeno em questão. Para tanto, teremos que pri- cançarmos a dinâmica e a estrutura do próprio
meiramente suspender toda e qualquer perspectiva fenômeno.
em Psicologia que tome para seus estudos um obje-
to definido em suas propriedades e limitado espa- 4 - Por fim, para a obtenção da realização da situa-
cialmente. Após tal procedimento, deixaremos que ção histórica do fenômeno, tal como fez Heide-
aquilo que constitui o tema de estudo em Psicologia gger (1920-21/2010) em Fenomenologia da vida
apareça em seu campo de aparição e nos mostre o religiosa, temos que caracterizar a pluralidade
caminho que conduz ao sentido do fenômeno. do que se encontra na situação, de tal modo
Para finalizar, mostraremos a seguir um modo que não se interprete nada sobre seu complexo
de pesquisar que segue as determinações fenomeno- próprio. Com isso, podemos alcançar a articu-
lógicas e hermenêuticas por meio de procedimentos lação da pluralidade situacional. Retornamos
metodológicos dos quais podemos nos apropriar à vida fática, ou seja, ao elemento pelo qual o
para proceder às investigações em Psicologia: fenômeno se manifesta em diferentes momen-
tos históricos, assim como se apresenta na voz
-

1 - Revisão narrativa da literatura: com base em daqueles que experienciam a situação feno-
uma revisão narrativa da literatura, procede- menal. Dessa forma, as vozes historicamente
A r t i g o s

mos a uma localização, análise, síntese e in- constituídas apresentam-se como condição de
terpretação das investigações críticas sobre o possibilidade para que os discursos plurais e
modo como a Psicologia, em específico, e as singulares acerca do ato possam aparecer.

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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Considerações Finais Referências

Com a exposição em defesa da fenomenolo- Agostinho, S. (2011). Confissões. Petrópolis: Vozes.


gia hermenêutica como caminho de investigação
Aquino, S. T. (2002). Suma Teológica. São Paulo: Loyola
em Psicologia, não queremos atribuir um sentido
depreciativo aos outros métodos empregados pelas Campos, E. (2014). Psicologia de Kierkegaard: um jeito de ver
ciências. O que pretendemos é salvaguardar outras à margem. In Feijoo & Protásio, Angústia e repetição:
possibilidades de encaminhar o pensamento, já que da filosofia à psicologia. Rio de Janeiro: Edições IFEN.
há uma tendência acentuada de nos valermos, em
nossos estudos, da metodologia que impera nas Canguilhem, G. (1999). Que é a psicologia? Revista Impulso.
ciências modernas e que se acentua nas filosofias 26 (11).
da subjetividade. Com o domínio do método das
ciências naturais, os estudiosos e pesquisadores Coimbra, C. (1995). Guardiães da ordem. Rio de Janeiro: Ofi-
podem acabar por acreditar que este é o único e cina do Autor.
inquestionável modo de se fazer ciência. E, assim,
esses teóricos do método podem, em suas imposi- Comte, A. (1991). Tópicos de filosofia positivista. Os Pensa-
ções, desconhecer os limites que se encontram no dores. São Paulo: Nova Cultural. (Original publicado
interior de seus procedimentos. E, uma vez esses em 1830).
estudiosos extrapolando na imposição de limites de Feijoo, A.M. (2003). A clínica psicológica: do modelo mo-
suas metodologias, podem acabar por impor o seu derno ao contemporâneo. In Caderno de Estudos e
caminho de investigação a todas as outras áreas de Pesquisas, (3) 18, pp15-28.
estudo. Propomos, então, retornar ao sentido origi-
nal de método, isto é, metà-hodós, que além de ser Feijoo, A.M. & Mattar, C.M. (2014). A Fenomenologia
o lugar do qual todos os métodos e metodologia par- como Método de Investigação nas Filosofias da
tem para poderem se constituir metodologicamen- Existência e na Psicologia. Psicologia: Teoria e Pes-
te, é também o lugar que deixa aparecer outros mo- quisa, 30 (4), 417- 423.
dos possíveis de acompanhar os acontecimentos. O
que defendemos é um caminhar junto ao fenômeno, Figueiredo, L.C. (1995). Modos de subjetivação no Brasil e
de modo a poder ver, ouvir e atender aquilo que o outros escritos. São Paulo: Escuta/Educ.
fenômeno tem a dizer, ou seja, que possamos pres-
cindir, mesmo que em parte, de qualquer mediação Figueiredo, L.C. (1996). Revisitando as psicologias: da
teórica ou metodológica. epistemologia à ética das práticas e discursos psico-
Acompanhando o metà-hodós do tema que nos lógicos. Petrópolis: Vozes/Educ.
propusemos investigar, iniciamos por introduzir-
Fogel, G. (1998). Da solidão perfeita: escritos de filosofia.
-nos na questão que nos abre para esse lugar. Para
Petrópolis, RJ: Vozes.
tanto, temos que nos colocar no horizonte onde o
fenômeno mesmo acontece sem colocar nada, ne- Garcia-Roza, L.A. (1977). Psicologia: um espaço de disper-
nhuma mediação, entre a experiência que se inves- são do saber. São Paulo: Revista Radice, 1 (4).
tiga e o investigador.
Elegemos o metà-hodós como um caminho Heidegger, M. (1998). Ser e tempo. (Márcia de Sá Caval-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

possível e mais originário de investigar os fenôme- canti, Trad.). Petropólis, Vozes. (Original publi-
nos existenciais. Isso porque consideramos que a cado em 1927)
existência se apresenta sempre em sua incontorna-
bilidade. E, ao querer aprisionar qualquer elemento Heidegger, M. (2006). Os conceitos fundamentais da metafí-
existencial dando-lhe contornos ou retirando-o do sica: mundo, finitude e solidão. Rio de Janeiro: Forense
seu caráter temporal, aquilo que se mostra imedia- Universitária. (Original publicado em 1929)
tamente retrai-se.
Pelos motivos elencados acima é que conti- Heidegger, M. (2010). Fenomenologia da vida religiosa.
nuamos a insistir em propor o metà-hodós como Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Uni-
nosso caminho de investigação. Sabemos que ao versitária São Francisco (Original publicado em
1920-1921).
investigar desse modo corremos o risco de sermos
banidos da academia e de qualquer possibilidade Heidegger, M. (2011). Interpretações fenomenológicas
de conquistar o status de cientista. Por outro lado, sobre Aristóteles: introdução à pesquisa fenome-
se agimos cegamente, do modo como propõem as nológica. Petrópolis: Vozes (Original publicado em
ciências naturais, além de perdermos a oportuni- 1921-1922).
dade de resistir ao imposto, abrindo espaço para
outras possibilidades de pensamento, estaremos Heidegger, M. (2012a). A questão da técnica. Ensaios e
totalmente divorciados daquilo que é o nosso in- conferências (p. 11-38). Petrópolis: Vozes e Bragan-
teresse, ou seja, a existência em seu mistério e in- ça Paulista: Editora Universitária. (Original publi-
-

contornabilidade. cado em 1954).


A r t i g o s

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 329-339, set-dez, 2018 338
Metà-Hodós: da Fenomenologia Hermenêutica À Psicologia

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vimento.

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo é Doutora em Psicologia,


Professora Adjunta da UERJ, atuando no Programa de Pós-
graduação em Psicologia Social e no Curso de graduação
em psicologia. Coordena na UERJ o Laboratório de

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Fenomenologia e Estudos em psicologia Existencial
(LAFEPE). Vice-diretorado Instituto de Psicologia. É
bolsista produtividade- PQ2/CNPQ e Procientista da UERJ.
Participa do GT Psicologia & Fenomenologia da ANPEPP
(Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
psicologia). Sócia fundadora do Instituto de Psicologia
Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN),
Presidente da Asociación Latino-americana de Psicoterapia
Existencial (ALPE). Endereço Institucional: Rua São
Francisco Xavier - 524 - Maracanã - Rio de Janeiro, CEP
20550-013. Email: ana.maria.feijoo@gmail.com

Recebido em 23.11.2016
Primeira Decisão Editorial em 22.03.017
Aceito em 02.08.2017
-
A r t i g o s

339 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 329-339, set-dez, 2018
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.8

METÀ-HODÓS: FROM THE HERMENEUTIC


PHENOMENOLOGY TO THE PSYCHOLOGY
Metà-hodós: da Fenomenologia Hermenêutica à Psicologia

Metà-hodós: de la Fenomenologia Hermenêutica hacia a la Psicologia


Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Resumo: Com este manuscrito pretendemos esclarecer como a ideia de método – como antecipação do caminho certo
e reto de investigação de um tema, de modo que possamos conquistar certezas absolutas – obscureceu a noção mais
originária de metà-hodós, que traz a ideia de que o caminho se faz ao caminhar. Passamos, então, a mostrar que esta no-
ção foi primeiramente assumida por Husserl, em sua máxima de que devemos tomar o fenômeno tal como ele se dá em
seu campo de mostração. Heidegger adiciona a esta noção a perspectiva hermenêutica. Por fim, mostraremos como a
Psicologia pode se apropriar da fenomenologia hermenêutica de modo a deixar que o fenômeno de seu interesse possa
aparecer em seu campo de aparição e, também, nos mostrar o caminho que nos conduz ao sentido do fenômeno. Com
esse esclarecimento pretendemos encaminhar mais um modo de proceder nas pesquisas em Psicologia.
Palavras-chave: Método; Fenomenologia; Hermenêutica; Psicologia.

Abstract: In this manuscript we pretend to clarify how the idea of method, as anticipation of the right and straight
way of the research toward absolute trues, obscured the more original notion of metà-hodós, according to which one
finds the way by walking the way. To do so we show the notion that was assumed by Husserl in his maxim about the
phenomenon that we should let it show itself. Heidegger adds to this notion the hermeneutic perspective. Lastly, we
show the way the Psychology incorporates hermeneutical phenomenology so that the phenomenon shows itself, and
thus shows us the way that leads us to the meaning of it. With this clarification we intend to bring another way to carry
out research in Psychology.
Keywords: Method; Phenomenology; Hermeneutic; Psychology.

Resumen: Con este manuscrito queremos aclarar cómo la idea de método como anticipación del camino cierto y recto
de investigación de una temática por lo que podemos obtener certeza absoluta, oscureció la noción de metà-hodós, que
trae la idea de que el camino se hace al caminar. Pasamos, entonces, para mostrar que esa noción fue asumida primero
por Husserl en su máxima que dice para tomarnos el fenómeno como él se muestra en su campo de mostración. Heide-
gger añade a esa noción la perspectiva hermenéutica. Por último, mostraremos cómo la psicología puede apropiarse de
la hermenéutica fenomenológica para permitir que el fenómeno de interés pueda darse a ver en su campo de aparición
y también nos indica el camino que nos lleva al sentido del fenómeno. Con esa aclaración se pretende avanzar de otra
manera para llevar a cabo la investigación en Psicología.
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

Palabras-clave: Método; Fenomenología; Hermenéutica; Psicología.

Introduction We can - as an example of method in the way


of doing something - follow up how the exposition
Fogel (1998) clarifies, concerning the me- of each of the participants in Plato’s Symposium
thod of Philosophy that “the ‘meta’ contained in (2015) took place. This discursive activity was hos-
‘method’ (meta-hodos) says ‘according to’ or ‘next ted by Agathon, who made the invitations and or-
to’ the path” (p.29). There is no doubt that, wha- ganized everything that would appear in the sym-
tever human activity, it will always be given to, posium: food, wine, music and dialogues. During
according to something to do, by means of. But the symposium, seven discourses were presented,
now we must ask why we have to think about whose theme was Eros, the god of love, uttered by
method, since we are always together with, ac- Phaedrus, Pausanias, Eryxymachus, Aristophanes,
cording to. Those who are inserted in the acade- Agathon, Socrates and Alcibiades. The Sympo-
mic life, more and more, are being demanded to sium, from the idea of ​​the meeting, through the or-
orient their thinking by the good use of reason. ganization and reaching the speeches, undoubtedly
If they do not, they run the risk of being exclu- happened along a path where there was an antici-
ded from teaching. So if Plato, Machado de Assis, pation that was traced along the way.
-

Chekhov, among others, were in the world today, On the subject, each speaker presented his
would they be forbidden to teach at the academy theses on Eros and each one did it in his own way.
A r t i g o s

- since they did not make use of reason according By accompanying each of these orators in their
to a rigorous method and therefore lacked metho- performances, we can see how they ordered their
dology? words, their arguments, their ironies, their counte-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 340-349, set-dez, 2018 340
Metà-Hodós: from the Hermeneutic Phenomenology To the Psychology

rarguments, their disagreements in order to convin- with the phenomenological destruction of the his-
ce listeners of the truth of what they said about the tory of the ontology so that what was veiled could
god of love. The presentation of Socrates surprised be unveiled. In Being and Time, the investigation
all participants, as well as it surprises the reader by of the sense of being already presents itself in this
his style totally different from the others. Socrates way with respect to the notion of subject, as we
began his presentation without saying anything; he will show next. To speak of meta-hodos as appro-
wondered, asked, inquired, and finally questioned priated by Heidegger in his works, and therefore,
the truths that had been previously advocated. So- in the way he understands the question of method,
crates, in a subtle and insightful way, brought forth we must pay attention to the fact that in Being and
questions that deconstructed the truths set forth in Time (Heidegger, 1927/1998) he appropriates the
previous discourses, and thus laid to rest all that phenomenology through the phenomenological
had been established as ultimate truths about Eros. destruction of the idea of ​​subjectivity. And so, he
And he said that everything he had questioned, as begins by retaking the foundations of metaphysics
well as the way he had done it, had been learned in his existential analytic. He applies the phenome-
from a woman, Diotima, who, according to him, nological method, based on a binary model: veiling
was wise in matters of love. Thus, Socrates says and unveiling - in which, by thinking meditatively
that he learned the method of questioning throu- about the Being that is veiled, the thinking is con-
gh experience, therefore, close to each subject he ducted in the direction of the unveiling of Being.
investigated. That is, the subject to be questioned And, finally, the philosopher characterizes the phe-
went along with the question itself, and this way we nomenological method as speculative and totalizer,
have the meta-hodos. whose modus operandi is given by the question of
Following the steps of Greek thinkers in gaining the sense of Being.
a method, we will continue to take the method as a Heidegger (1927/1988) shows us, just as Socra-
place in which the path of inquiry belongs together tes showed the participants at the symposium, that
with the subject investigated by that one who pur- before we utter truths as if they were irreducible, we
sues the theme. We intend to conquer, thus, the spa- must question them. In both Heidegger and Socrates
ce that we call more originary - that is, prior to any we can see that he who, eloquently - whether by the
theoretical understanding - in which existence takes strategy of oratory or the loquacity of science - postu-
place. To speak of method as a possible way for in- lates truths, does not think. Socrates used maieutic
vestigation in Psychology, we will follow Heidegger’s with his hearers, in order to destroy, ironically, the
steps. He undertakes this same task by proceeding in truths which had been postulated by the eloquent
his exercise of thought about existence in its factici- orators. Heidegger follows the same path of destruc-
ty. But by affirming that we will follow the steps of tion of truths, as they were put forth by the history
philosophy, could we not fall in the serious criticism of ontology, through phenomenology. Phenomenolo-
that are directed at the impossibility of carrying out gy, for the German philosopher, is the proposal of a
such a transposition? To answer the proposed ques- path of questioning of thought. It is a thought that
tion, we will follow Stein (1983) about the relation of lets the veiled come out just when the same thought
philosophy with human sciences. withdraws. Phenomenology as a method of thought
For Stein (1983), philosophical investigations operates with the binomial veiling-unveiling. Stein
are currently developed in three directions that are (1983) states: “Being is a phenomenon, in the phe-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
inherent to philosophy, and these directions allow nomenological sense, is therefore hidden” (p.24).
us to understand the relationship between philoso- In Being and Time, Heidegger (1927/1998) analyzes
phy and the human sciences, regarding the method: the etymology of the term phenomenology, so that
a) the analytic of language in its multiple variants; we can situate ourselves in what made him take ow-
b) the school of critical theory and the various ten- nership of phenomenology as a way of clarification.
dencies that aim to give a dialectical solution to the Phenomenology derives from the Greek phainome-
problem of the relation between theory and praxis; non and, also, refers to the verb phanestai. It is, the-
c) philosophical hermeneutics that seeks to show refore, simultaneously a discourse in which some-
how understanding is not, first of all, a methodical thing is revealed as such and a show of things. Thus,
element, but a form of exercise of social life, a life we come to understand that phenomenon is all that
that is ultimately not a community of language. is known, and that it is our interest in what is shown
Based on Stein’s considerations, which point that leads us to interrogate the phenomenon. Heide-
to the possibility of transposing the methods from gger makes it clear that Husserl’s phenomenology at-
Philosophy to Psychology, we continue to follow tracted him by his maxim “to the things themselves”,
the meta-hodos with which Heidegger (1920-1921 / which he clarifies as follows:
2010, 1921-1922 / 1927/1998) develops his themes.
First, we can see that in it, method and object are The word phenomenology expresses a maxim
analyzed in a totalizing unit. Thus, in his analyzes that can be formulated in the expression the
of the history of philosophy, for example, Heideg- things in themselves! - as opposed to loose
-

ger seeks to question the texts of the tradition so conceptions, accidental discoveries, admis-
that the unthought in them can reveal itself, since sion of only apparently verified concepts; as
A r t i g o s

the theme was presented in the modern tradition in opposed to pseudo-questions which often ari-
a way that it was concealed in what was thought. se as problems over many generations (Heide-
Heidegger (1927/1998) begins his investigations gger, 1998, p.57).

341 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 340-349, set-dez, 2018
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Heidegger (1998) also says about phenomeno- thin it a truth that can be achieved as long as we use
logy that: “The term phenomenology means, first the correct and safe method. Thus, we will unveil
and foremost, a concept of method. It does not cha- all its secrets and mysteries, so that we can become
racterize the quiddity of objects of philosophical in- its masters. Science develops its methods and me-
quiry, but their mode, as they are” (p.57). However, thodologies in order to be able to conquer and do-
Heidegger does not dwell on this maxim of pheno- minate all that may happen; that is a project present
menology; still, in Being and Time he points to the in the philosophy of subjectivity which leads us to
idea that being-in always already understands. And different conceptions of method.
all understanding presents, in advance, a vision,
a position and an understanding. We find, in this
expression, the hermeneutical circularity. Each and The Different Perspectives of Method
every way of dealing with the things that come to us
is already established by the historical horizon of In ancient Greece, as we showed earlier in Pla-
determining meanings and significations. When we to’s Symposium (2015), truth was treated as some-
take phenomenology and hermeneutics as possib- thing in the order of discourse. And the discourse,
le ways of investigating themes in Psychology, we in turn, was easily devoid of the very truth that had
consider that the phenomenological attitude allows been established, as Socrates’ speech had shown
us to go to the phenomenon as it appears, and that us. In the Middle Ages, truth is taken dogmatically.
the hermeneutic element in itself is the condition of With the falling down of truth as established by
Dasein that already always understands itself in its dogmatism, the path of the metaphysics of subjec-
Being. With this, we affirm the meta-hodos, also, as tivity opens up, in which the method is taken as
the most original way that in itself already entails a a way of achieving an essential determination of
way of doing, investigating, at last conquering the truth, fundamentally and exclusively conquered
meaning of that what, at the same time that shows by reason. Still under the prism of the metaphysics
itself, retracts. of subjectivity, the dialectical-speculative method
In Psychology, a hermeneutic perspective for arises, idealized by Hegel, in order to reach the ab-
the investigation of a phenomenon can be realized solute spirit through the analysis of the history of
when the existential way of articulation is sought, humanity.
which is constituted in the midst of the spirit of The scientific method was inaugurated by
its time. For this reason we can investigate and get modern philosophy under Descartes’ thinking. The
to know how each epoch, in its general structure, Cartesian method is understood in its different sta-
takes the meaning of the phenomenon that we in- ges by logical precepts and rules; Feijoo (2003) says
tend to investigate. that the rules are: evidence, analysis, synthesis and
With the above clarifications, we can study exhaustive classification. Truth can only be presu-
the subject, not taking the modern perspective as pposed when it becomes evident; there is the de-
the definitive truth. And thus, we can open up a composition of the whole, in all possible parts, so
space of inquiry to achieve what is at stake, letting that the answers to the enigmas of nature can be
the phenomenon appear in its phenomenal charac- reached. The synthesis of these parts makes it pos-
ter. A phenomenological attitude, given the con- sible to attain the order of thought. By exhaustion,
crete experiences of the phenomenon that we are the belief is maintained that all nature will be un-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

trying to investigate, is about being able to follow der control. As Stein (1983) tells us, it is an ordered
the experience and thus see what it has to say. By succession of several steps of reflection: demonstra-
following phenomenologically the meaning that is tion, exposition and systematization of knowledge.
found within a given experience, we must, at first, The method was understood by modernity through
retreat before the interpretations of tradition, sub- the subject-object equation, in which the subject is
tracting the moralizing connotation of the pheno- that which positions the object and thus, through
menon in question. And thus, we accompany the rational thought - that is, throught representation,
internal vectors mobilizing the experience, so that since to think is to represent -, the subject really
the dynamics and the structure of the phenomenon conquers the real. According to Fogel (1998), “The
itself are known. real, the ‘thing’, is determined as an object, that is,
However, there is something we need to ask: as what is placed in opposition to the subject” (p.2).
if Dasein previously understands, how can we ex- The method as systematized by Descartes will be-
plain that we men of science, in our own thinking, come fundamentally important for the methodolo-
forget the possibility of apprehending the meaning gy proper to the modern sciences. Modern physics
of what appears as a phenomenon? Our argument is inserted in this project in search of the formula of
about forgetfulness of our understanding possibili- the world. Through physics “The Being of the being
ty tries to cope with the obscuring of our meditative was dissolved into the method of total calculabili-
thought, which is accentuated by the project of con- ty” (Stein, 1983, p. 18). And so, the method beco-
trol that started in modernity. The domain of thou- mes submerged in the calculability. The method, as
-

ght that anticipates and calculates has made more methodologically structured path for the purpose of
and more scholars of different areas of knowledge anticipation and correction, is now appropriated by
A r t i g o s

concerned with the method and the consequent different scientific disciplines for research purpo-
methodology. We know that the models of modern ses. The method takes specific forms, depending on
science describe nature as something that holds wi- the sciences that use it - and all disciplines begin

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 340-349, set-dez, 2018 342
Metà-Hodós: from the Hermeneutic Phenomenology To the Psychology

to achieve the ideal of anticipation, certainty and in the course on Religion, means to open oneself to
control for the purpose of transforming reality. the place where one already is, that is, to the factual
In modernity, new paths are opened and me- life, where what one wants to investigate is always
taphysics strives to achieve the essential determi- there. For Heidegger, both philosophy and science
nation of truth. The true becomes only the sure, arise from the factual life. Heidegger (2010), then,
the right, the represented. And to achieve truth, se- in the investigation of Paul’s factual life, calls into
curity and certainty, it is decisive that the subject is question the experience of faith. He affirms that in
sure of itself. The proper method of philosophy and order to reach this experience it is imperative that
metaphysics is found in the essence of subjectivity the investigator is placed on the horizon where the
and, therefore, centered on the subject. The proce- phenomenon itself (faith) happens, without any
dure of this subject ensures and conquers the being mediation, that is, without saying what faith is be-
as object for the subject. forehand.
In conclusion, we can observe that the ques- The philosopher (Heidegger, 2010), showing
tion of the method gains completely different lines how he proceeded in his investigation of Paul’s
in the horizon of different epochs. In ancient Gree- faith, considers Paul’s letters to the Thessalonians.
ce, a method like meta-hodos was about a way of He begins to clarify his method with the following
doing something without any distance between the question: How is his material phenomenologically
theoretical the practical attitudes. The way of doing explained? “Material” refers to what has a certain
and the doing itself constituted an inseparable uni- methodological meaning. The explanation of the
ty. In Middle Ages, the predominant method was phenomenon from the material takes place at de-
dogmatic, which proposed deductive relations that termined levels as well. Since the fundamental pro-
stablished the truth of everything that was on Ear- blem of Heidegger’s investigation of faith lies in the
th. In the modern age, the imposition of the subject factual experience, it is necessary to clarify what he
dominates, by becoming capable of representing all means by facticity. Facticity refers to our existing in
reality through thinking. It is noteworthy that both a given situation. Since the structuring of existential
the Cartesian and speculative dialectical method of space is temporal, the way in which each human
Hegel are in the tradition of the philosophies of sub- being exists is temporal, since it always involves
jectivity. For Heidegger (apud Stein, 1983), it is with the idea of ​​the existential field project. The profes-
Hegel that philosophy gains the fullness of method sor concludes that, from a dialogue with the factual
and thus also the fullness of the veiling of the ques- limits present in the temporality of what we want
tion of Being and the consequent forgetting of the to investigate, we can cope with those entities in
ontological difference. It is for this reason that Hei- the present, because even that they happened in the
degger wants to retake the mode of thematizing the past, they always come to us. Having clarified this
phenomenon in the most primordial sense, as the point, Heidegger goes on to his second clarification.
ancient Greeks did, that is, by the aletheia. Since factual life is historically constituted, then
the first to be determined pre-phenomenologically
is that which is historical-objectively given, that is,
The Hermeneutic Phenomenological Method in the historical situation, its phenomenal connection,
the Heideggerian Investigations. always starting from the phenomenologically given
motifs. Heidegger (2010) says: “The objective-histo-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
The method, in its different modulations, is an rical that stands out must be considered, so that it
issue that can be found in several studies develo- gets a tone of its own and, therefore, this tone must
ped by Heidegger. About the way in which he pro- be fixed” (p.76). It is the factual life that brings the
ceeds to develop the theme of The phenomenology notion of history - therefore, in a phenomenological
of religious life, it is said that the philosopher had perspective it is necessary to describe the factual
been invited by the University of Freiburg to lecture life in which we always find ourselves. In this re-
on religion. For three to four months, however, Hei- gard, Heidegger (2010) clarifies that “phenomenolo-
degger had only spoken in hermeneutics and the gy is philosophy and vice versa” (p.10).
students complained about the fact that the course Heidegger (1920-21/2010) continues to clari-
was not being discussed. That is why Heidegger, in fy that to investigate phenomenologically it is ne-
the first part of his classes, makes methodological cessary an existential concretion, which cannot be
considerations and in the second part presents re- done by means of a logical chain. Thus, he shows
ligious questions through the hermeneutics of the us how he proceeded in his investigation by re-
factual life of religious experience. In Phenome- fraining from such a chain.
nology of religious life, Heidegger (1920-21/2010) In the Pauline Epistles, Heidegger proceeds to
clarifies how he hermeneutically investigates the the phenomenological explication of the first Epist-
faith of the apostle Paul. To begin his investigation, le to the Thessalonians. This is the material that has
Heidegger starts presenting what he means by intro- a certain methodological meaning. The phenome-
duction and factual life. nological explanation of this phenomenon will be
-

Heidegger (2010) says that introducing a ques- given, firstly, taking into account what Heidegger
tion does not mean that we are showing the means (2010) refers to in paragraph 23, “The methodolo-
A r t i g o s

to an end. In order to describe an existential expe- gical difficulties: What is the objective historical
rience, no mediating instrument is necessary - thus situation of Paul in writing this epistle?” (P.78). The
to start a study directed at religious life, as he did situation is determined as follows: the epistle was

343 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 340-349, set-dez, 2018
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

written in Corinth during his first missionary jour- tion, since: “Empathy takes place in the factual ex-
ney, which took him first to Philippi and thence, perience of life - an original historical phenomenon
after three weeks, to Thessalonica. The opposition that cannot be resolved without the phenomenon
of the Jews to the Christians forced Paul to leave of tradition in the original sense - the surrounding
the city in secret, leaving for Athens, where Paul world thus gains its meaning from the understan-
sent Timothy to return to Thessalonica. Paul meets ding of the situation” (p.77). Heidegger shows us
Timothy again in Corinth. Paul writes the epistle that empathy occurs in the cadence of meaning pre-
immediately after his arrival in Corinth. Heideg- sented in the situation, so when investigating the
ger says: “If we expose this historically-objectively, phenomenon in another time, empathy cannot be
Paul will appear as a missionary, who speaks like a repeated. Empathy is not something we can produ-
common traveling preacher without anything very ce by will, it is in a situation totally independent of
special to be considered” (p. 78), so we will have to the desire to empathize. Heidegger believes that by
move on to the second moment. assuming a phenomenological attitude, the space of
Obtaining the historical situation of the phe- experience opens itself, in this case the space of the
nomenon - to obtain the historical realization of religious experience of Paul. In order to carry out
the phenomenon, we must characterize the plura- his research, Heidegger dispensed with any effec-
lity of what is in the situation, in such a way that tive presence, as well as any transcendence to the
we do not decide anything about its own complex phenomenon itself. Only by the phenomenological
- therefore, we have to face the articulation of the attitude can we approach the pathos - after all, it is
situational plurality. To do so, we must, first of all, the pathos that binds us to each other and allows us
achieve ‘the situation to be emphasized’ amidst the to understand one another - but we cannot be in the
plurality; then, we must show the first or ‘arctic’ same pathos.
(dominant) sense of the situation to be exposed; Finally, the third difficulty concerns transpo-
and, finally, reach the phenomenon from the phe- sition. Heidegger refers to transposition as a me-
nomenal complex and begin, from this complex, thodological difficulty with regard to the Epistle of
the consideration of the origin. Paul: “We could say: it is impossible, that is, it is
Heidegger (2010) presents, in the Epistle of hardly possible to transpose the exact situation of
Paul, the historical realization of the phenomenon, Paul. Because we do not know his surrounding wor-
and then, he says that, at that moment, we begin to ld” (Heidegger, 2010, p.78-79). All signification has
write the epistle with Paul. We do the writing our- an object, and concretization is the sense that ulti-
selves, that is, we dictate it. In what way do we do mately determines the object - the pioneer situation
this? Through the answers to the following ques- involves many elements, but what provides these
tions: What is Paul’s situation by writing the Epist- elements with unity and meaning? The being of the
le to the Thessalonians? How did he experience it? situation is his sense of being and it is this sense
How is the shared world given to him in the situa- that Heidegger is seeking. And this sense is opened
tion of the writing of the epistle? This is linked to by phenomenological rather than empirical expe-
the question of how Paul finds himself in this sha- rience. Given that the experience is phenomenolo-
red world. “The content of the shared world must gical, such a transposition reveals itself as possible.
be seen in its determinability, in the context next to Through the phenomenological explanation
the how of reference with this shared world. “The- of the historical-objective situation and historical
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

refore, the task here is to expose the fundamental situation of the phenomenon, as well as conside-
determination of this reference” (p. 78). ring the barriers encountered in the interpretation
Regarding the methodological difficulties that of Paul’s situation, Heidegger - in his phenomeno-
Heidegger (2010) referred earlier in his analysis of logical description of the act of faith, through Paul’s
Paul’s writings, he says that with them we come to religious experience - concludes that one cannot
the point of turning the historical-objective com- think of faith without the element of transformation.
plex into the historical-original situation. They are: Faith demands a transformation, from within itself,
language, empathy and transposition. as it obtains concretization. The religious charac-
 Exposure through language is a difficulty, sin- ter depends on the intentional act, in this case, the
ce the language of thematic consideration is not the act of faith, which opens the religious experience of
original language. And the most original concep- Paul. And it is this experience that can be described
tual terminology in the factual experience of Paul’s phenomenologically. However, not only in Pheno-
life is not the one with which we are accustomed. menology of religious life does the philosopher re-
And, in addition, from the original terminology is fer to the question of method. Heidegger (1921-22
derived the thematic conceptual terminology. This / 2011), in a lecture dated from 1921-1922 at the
derivation brings problems. For these reasons, the University of Freiburg, develops the introductory
radical shift from conceptual terminology to the question about a main definition, that is, the formal
originating terminology is imperative. However, indicative in order to explain the categories of the
we must bear in mind the impossibility of reaching fundamental phenomenon of life, in the perspecti-
-

the original terminology in its entirety. Heidegger ve of the determination of the facticity of life.
(2010) concludes: “Every explained thing is not un- In 1927, in paragraph 7, in a provisional expo-
A r t i g o s

derstandable until its complex of announced mea- sition, Heidegger (1927/1998) slightly discusses the
ning has not been realized” (p. 76). method, explaining that phenomenology for him
Empathy (Einfühlung) is present in the situa- means a method of scientific philosophy in general.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 340-349, set-dez, 2018 344
Metà-Hodós: from the Hermeneutic Phenomenology To the Psychology

Still in paragraph 7 of Being and Time, he clarifies internal vectors to the phenomenon and the explicit-
how he appropriates the phenomenological method ness of the experiences, which for the philosopher
in his investigation of the Being of the being or the are always historically constituted (Feijoo & Mattar,
sense of Being in general. In this paragraph, the 2014). Heidegger appropriates the phenomenologi-
philosopher shows in a provisional way the path he cal mode of investigation, while considering that the
took to try to overcome the modern philosophy me- phenomenon is constituted circularly in a certain
thod. The investigations of the philosophies of sub- historical horizon. By considering phenomenology
jectivity proceeded in such a way as to promote the and hermeneutics together, he names his method as
veiling of being, or rather, the oblivion of its mea- phenomenological-hermeneutic.
ning. Heidegger intended to reach the phenomenon In his later works, Heidegger is hardly con-
that he wanted to investigate, beginning with the cerned with phenomenology, actually he seems
overcoming of the thought that takes as reference to dispense with any methodological discussion.
the subjectivity. In this same paragraph, Heidegger However, within the development of his thought,
assumes his path through phenomenology in the method, object and thought are presented in a uni-
sense of the unveiling of the history of being, where tary way, which we can see in his 1954 text, The
the question that prevails in the investigation of the Question Concerning Technology - the philosopher
content of the thing is not the what of the thing, will draw attention to two essential determinations
but its how. Heidegger (2003) refers to the modern of the constitution of the modern world: a) Gestell,
method of inquiry, in Being and Time, as follows: “A in which nature goes down in a total obscuration
simple technique for the manipulation of objects” of the dwelling of Being, that is, its historicity. That
(p.51). Further, complete: “empty description of te- one who forgets their original element runs the risk
chnique” (p.52). of withdrawing the true. But where there is forget-
Heidegger (1954 / 2012b), also, refers to the es- fulness, there is also the possibility of recollection
sential experience that points to the limitation of the capable of responding to the appeals of what is
sciences, which is that of not perceiving the inesca- most original to it, Ereignis. b) Ereignis, which is the
pable as inaccessible. It is within the inescapable Event that evokes the common belonging of human
that Being is thought and said. The proper object of and Being that happen and are mutually appropri-
philosophy by its character of inescapability beco- ated. That is why Heidegger says that his path of
mes inaccessible to the method of the sciences. In inquiry is questioning. And to question what we are
Science and thought of meaning, Heidegger (2012b) immersed in is to prepare for a freer relationship
still clarifies that existence in its totality cannot be with what is presented (Heidegger, 1954/2012 a).
reached by any norm that transcends existence it- In accompanying Heidegger (Stein, 1983), we
self, that is, by a prescriptive normative criterion, conclude that in order to investigate a phenome-
positive and abstractly positioned. In his analytic, non, we must bear in mind that it is not possible
he developed his method of investigating the phe- to promote a differentiation between the path of
nomena that are presented in the order of the uncon- thought (method), what one intends to think (sub-
trollable. He intended, in his meta-hodos, to reach ject) and the act of thinking (thought). It should be
the mode of validity of the real, that is, the way of emphasized that this triad in research constitutes
becoming vigorous, of unveiling of things. Heide- an inseparable unit, without any mediation. And it
gger (2012b) points to the inescapable character of is with this triad in mind that we will go through a

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
the object of psychiatry, concluding that this area of​​ rigorous path of investigation of the themes of inter-
knowledge can never reach the meaning of the phe- est in Psychology.
nomenon that it investigates. And that is so because
it imposes contours to its object, but once the exis-
tence is removed from its temporal flow, it retracts The Transposition of Hermeneutic
itself. By analogy, we conclude that the same is true Phenomenology to Psychology
of psychology. Both Psychiatry and Psychology deal
with the mental life in its manifestations of disease In order to defend the transposition of the
- always including health -, which are presented by hermeneutic phenomenological method from Phi-
and from what exists in the integration of body, soul, losophy to Psychology, we will first try to remem-
mind and spirit, constitutive of every human being. ber and reflect on the atmosphere of criticism and
In what respects as a phenomenon of Psychiatry skepticism that surrounds the researches and their
and Psychology, the already existing mode of being respective methods in Psychology.
is presented and exposed each time. Thus, we start In 1956, when Psychology already believed
from the thesis that ek-sistance remains the essen- that it had established its area of ​​knowledge and
tial of Psychiatry and Psychology - that is why we the different strands had established themselves
need to take up the meta-hodos in the investigation with its positioned object and its method, Georges
of what interests us. Finally, we conclude that in the Canguilhem put this discipline in question, when
unfolding of his different ways of walking alongside giving a conference in Collège Philosophique, pub-
-

things, the philosopher appropriates, in a first mo- lished in 1958 in the Revue de Métaphisique et de
ment, the phenomenology of Husserl to carry out Morale, referring to the lack of definition of this
A r t i g o s

his investigations. Thus, we can verify the presen- area of ​​study and also questioning the effectiveness
ce of three constitutive moments of his analysis: the of the psychologist (Canguilhem, 1999). Cangui-
phenomenological reduction, the description of the lhem (1958/1999) says that psychology, because of

345 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 340-349, set-dez, 2018
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

its lack of definition, has a totally unfounded ef- of ​​knowledge is not reachable. Comte (1830/1991)
ficacy: “In fact, from many works of psychology, constructs a positive epistemology, questioning the
one has the impression that they mix a philosophy way to describe the positivities of the empirical ob-
without rigor, an ethics without requirement and a ject. With its demand for the positivity inherent in
medicine without control” (p.104). Therefore, Can- the object of study, it totally rules out the possibility
guilhem postulates that in order for Psychology to of constructing a theory directed toward the study
conquer a space of recognition, it would be essen- of the psyche. The positivist argued that if the ob-
tial for it to be rigorously established, overcoming ject of psychology had its basis in physiology, this
a “certain compositional empiricism, literally codi- area of ​​study would be unnecessary, since biology
fied for teaching purposes” (Japiassú 1995, p.17). was already devoted to it. If its object was social,
From the problematic raised by Canguilhem, the this area of ​​study was already being contemplated
positions against and in favor of the attempt of po- by sociology. Therefore, considering the arguments
sitioning and defining the object of the Psychology of Kant and Comte (both from the epistemology),
proliferated, arising the debate about the necessity from the perspective of the founding of the scien-
of a scientific theory that would support its practi- tific disciplines, Psychology could not constitute
ce. In Brazil, among the many texts in this respect, itself as science, since it presented the problem of
the publication of Garcia-Roza (1977) gained noto- access by means of deduction of its specific object,
riety. He engages in a polemical controversy when or it did not possess an object for which to conduct
he attacks the pretension of Psychology in the con- his studies empirically. The first elaborates a trans-
quest of a unit as a field of scientific knowledge and cendental epistemology, concerned with the condi-
concludes his thought defending the maintenance tion of possibility of knowledge of the object. The
of the plurality of this field of knowledge. second constructs a positive epistemology focused
Nowadays Rauter (1995) shares Garcia-Roza’s on empirical data. Thus, according to these two
(1977) thesis, arguing that Psychology, in order to philosophers, Psychology as an area of ​​knowledge
protect the paradoxical space of its function, shou- would be totally unfeasible.
ld not have the pretensions of establishing a fixed All attempts to circumscribe subjectivity, whe-
identity for this area of ​​knowledge. Coimbra (1995) ther in the field of Philosophy or in the field of Psy-
argues radically against the movement of Psycho- chology, are subject of criticisms directed at this
logy as an area of ​​specialization, as well as against way of proposing the problem. In the nineteenth
the psychologist as a specialist. Figueiredo (1995, century, the philosophies of subjectivity went into
1996), faced with the crisis of the epistemological crisis. The question becomes how, once the subject
model, questions whether Psychology could, wi- and object split, we can move out of the scope of
thout this model, be justified theoretically and me- an interiority – subject – in order to truly access the
thodologically. object that lies outside. In this way, a forgery of the
Firstly, we argue that in order to act in meta- object can end up happening. The same misconcep-
-hodos, we would have to do it without a positioned tion about access can be established with the object
and delimited object of study. It is a path of inves- empirically given to make itself known by the sub-
tigation conditioned by a knowledge that requires ject. With this impasse, there is an urgent need for
prudence: the more the experience, the greater the discernment of what happens in relation to access.
achievement of this walk. There is no measure defi- The attempt to constitute a positioned and li-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

ned neither short nor beyond that way of being clo- mited object is precisely what puts psychologies un-
se to things. Is it a specific knowledge that is gained der suspicion (Mattar, 2011). Husserl (1936/1989)
in the very act of walking? In order to answer this draws attention to the need to go beyond the di-
question, we first need to clarify how the emergen- chotomy subject and object, because it was this
ce of subjectivity as an object of Psychology happe- split the reason why the crisis of the philosophy of
ned, as we will do next. subjectivity was established. Following in parallel
Philosophers focused on the philosophy of to the path taken by Husserl to overcome the cri-
science, such as Immanuel Kant (1724-1804) and sis of universals, we argue that Psychology needs
Auguste Comte (1798-1857), already referred to the to discern that what it has been instituting as an
impossibility of the constitution of Psychology as a object has no objectuality at all. For this reason, to
scientific discipline. Kant constructs a transcenden- think of a psychology in the path of phenomeno-
tally based epistemology, so his questioning is not logy consists, in the first moment, in questioning
about the object, but for the possibility of knowing the discourses of Psychology in relation to its objec-
the object. Kant’s (1781/2001) arguments concer- ts. Considering that the requirement of positioning
ning the unsustainability of this area of ​​knowledge the object is what puts the theoretical discourses
as a scientific discipline were directed to the fact as well as the practices of Psychology in crisis, we
that the thematic object of that discipline -the soul- must abandon the illusory need to operate with po-
could be postulated in the practical realm but could sitioned and substantialized objects. Only in this
not, objectively, be knowable. In this way, the soul way can we think in the midst of the intentional
-

cannot be taken as a scientific object. The concept fields, therefore, without timeless determination
of the soul that underlies rational and empirical and without spatially defined substantiality.
A r t i g o s

psychology has no phenomenality. Therefore, it As we have seen so far, the question of the
cannot be accessed phenomenally, concludes the subject’s requirement to determine the subject in
philosopher, since the object of study of this area order to be considered a specific area of ​​study is

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 340-349, set-dez, 2018 346
Metà-Hodós: from the Hermeneutic Phenomenology To the Psychology

a matter of debate among scholars of Philosophy that we want to think of is not based on categorical
and Psychology. After having followed this debate objectivities but rather, as Heidegger (1920-1921 /
in part, we will - together with a certain philoso- 2010) proposes, on formal indicatives: “In the me-
phy that seeks to find something of the order of the thodology we call a formal clue (Formale Anzeige)
more original than the relation subject and object the phenomenological explanation. That what the
- seek the originality from which appears what we formally indicated meaning brings up is the hori-
call psychism. Thus, following these arguments, we zon on which the phenomena to be distinguished
intend to find a way of reflection that allows us to will be seen” (p. 52). This, however, without giving
place the studies and field of practices in pheno- opinions, nor anything that brings presuppositions
menological-existential psychology in a space also or prejudices about what is intended to analyze.
more originating, that is, in the existence. To follow the formal indicatives means to start
It is, precisely, the most original that Husserl’s from clues, form, that only gain materiality in exis-
phenomenology (1910 / 2007b) will privilege as tence or history. The Event (Ereignis) constitutes
a theme that deserves to be thought. And yet, the the identity-form that will conquer the difference
phenomenologist says that Psychology should stick with the historically constituted materiality, in or-
to the study of intentionality in order to remove any der to fill the sense, which will always be epochal,
need to become an area of ​​knowledge that positio- that is, conquered in existence. To think of the wor-
nally establishes its object. Heidegger (1927/1998), ld that is ours, which Heidegger calls the Era of te-
with the radicalization of intentionality to the his- chnique, we understand that it is through the ma-
torically constituted space, is that one who will teriality, that is, through the determinations of this
point the way to think a knowledge in Psychology world that the cadence of what drives our way of
in which it becomes totally unnecessary to find a being happens. Therefore, it is the determinations
positioned object, delimited and substantialized. of the technique, such as: effectiveness, functiona-
Accompanying the phenomenology and the lity, correction, that existentially fill the Event, whi-
fundamental ontology in Husserl (1900 / 2007b) ch is ours.
and Heidegger (1927/1998), respectively, we will In summary, in agreement with Stein (1983),
begin to work out a possible way to propose a me- we conclude that the phenomenological method is
thod in Psychology that totally disregards a posi- situated at the antipodes of subjectivity. It is along
tioned object. It is important to emphasize that we with phenomenology and hermeneutics that we
do not intend to have these philosophies as a direct find another way of investigating our themes in
application to Psychology. If this were so, we wou- Existential Psychology. We start from the initial
ld be just replacing the theoretical foundations. We consideration that the hermeneutic in itself is the
intend to follow only the margin (Campos, 2014) of condition of Dasein, which is already always un-
the path taken by these philosophies, to appropria- derstood in its being. Therefore, we are always in
te autonomously a Psychology that seeks its basis an understanding of what comes to us.
in the very act of existing. We will, therefore, follow To investigate a theme in Psychology, we are
the argumentative steps of these philosophies to increasingly required a methodology, fully defi-
achieve our goals. What we are trying to defend as ned in its limits and in its effectiveness. We can, to
another possibility of investigation in Psychology achieve this objectivity, proceed with the planning
is not yet exhausted with Husserl in his proposal of our investigations by means of three procedures

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
of phenomenology, which he himself termed phe- that do not contradict at all the idea of ​​objectivity
nomenological psychology. Our proposal not only and rigor. To reach our objectives, we will use the
suspends the truths established by the theories in phenomenological-hermeneutic method, as used by
Psychology, which start from a view that presu- Heidegger, that is, phenomenologically destroying
pposes a human nature, taken as object based on a established truths and constructing other possibili-
substantiality, but also considers that non-substan- ties of thinking about the phenomenon in question.
tiality makes possible a reconfiguration historically To do so, we must first suspend any perspective in
constituted. Intentional fields appear not only tem- Psychology that takes for its studies an object defi-
porarily, but also as hermeneutically conditioned ned in its properties and limited spatially. After this
spaces. To take the path in the hermeneutical sense, procedure, we will let that which constitutes the
we will follow, in the constitution of our psycholo- subject of study in Psychology appear in its field of
gy, the path through which Heidegger (1929/2006) appearance and show us the path that leads to the
directs us to in his hermeneutic phenomenology. meaning of the phenomenon.
In order to investigate a phenomenon in the To conclude, we will show below a way of re-
path of meta-hodos, we have to consider the inten- search that follows the phenomenological and her-
tional fields historically constituted, and, in this meneutical determinations through methodological
way, we can completely subtract the need to opera- procedures that we can appropriate to carry out the
te with an object proper to Psychology. Or rather, in investigations in Psychology:
so doing, we can take its object as totally devoid of 1- Narrative review of literature: based on a
-

reality, that which appears in the hermeneutic field: narrative review of the literature, we proceed to lo-
existence. We consider that it is necessary to articu- cate, analyze, synthesize and interpret the critical
A r t i g o s

late a proposal in Psychology in these bases, to des- investigations about the way in which Psychology,
cribe the existential concretions conditioned by the in particular, and the Human Sciences, in general,
historical sendings. In this sense, the Psychology think the phenomenon that we intend to investiga-

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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

te. To do so, we consulted the databases and virtual the philosophies of subjectivity. With the mastery
libraries, such as Google Scholar, Lilacs, Scielo, of the method of the natural sciences, scholars and
Mendeley, using the keywords of our interest. We researchers may end up believing that this is the
located the published articles on the subject, indi- only and unquestionable way of doing science. And
cating an interval of time in which they discussed, so, these method theorists can, in their impositions,
albeit indirectly, the same problem of our investiga- ignore the limits that are within their procedures.
tion. And, also, through the bibliographic research And, once these scholars extrapolate in imposing
we chose the primary sources that we will use in their methodologies limits, they may end up impo-
the investigation in question. sing their path of inquiry to all other areas of stu-
2. Hermeneutic research: in a phenomenologi- dy. We propose, therefore, to return to the original
cal and hermeneutic perspective, we consider that sense of method, that is to say, meta-hodos, which,
the way of being of human beings is constituted in apart from being the place from which all methods
the midst of the spirit of their time. That is why we and methodology start to be methodologically cons-
need to know how each epoch has taken the phe- tituted, is also the place that allows other possible
nomenon we intend to investigate so that we can ways of accompanying the events. What we defend
understand what was at stake in that decision. With is a walk alongside the phenomenon, so that we can
this clarification, we can study the subject so as not see, hear and attend to what the phenomenon has
to take the modern perspective that vehemently af- to say, that is, even in part, without any theoretical
firms a single and definitive truth. This way we are or methodological mediation.
able to open a space of investigation to reach what Accompanying the metaphor of the theme we
is at stake in what we investigated, and the pheno- set out to investigate, we begin by introducing ou-
menon can appear in its phenomenal character. rselves to the question that opens us to this place.
3- Phenomenological accompaniment of the To do so, we have to place ourselves on the horizon
concrete experience of what one wants to investi- where the phenomenon itself happens without pu-
gate: in order to be able to follow the phenomenon tting anything, no mediation, between the experi-
that interests us, we proceed with our investigation ment being investigated and the researcher.
accompanying the experience, so that we can let the We chose the meta-hodos as a possible and
very experience speak what it has to tell us. By ac- more original way of investigating the existential
companying phenomenologically the meaning that phenomena. This is because we consider that exis-
lies within the scope of the phenomenon, we need, tence always presents itself in its inescapability,
in a first moment, to retreat before the current inter- and, because when we try to imprison any existen-
pretations on the subject, subtracting the different tial element by contouring it or withdrawing it from
connotations that circumscribe the phenomenon. its temporal character, that which shows itself im-
After this methodological stance, we must follow mediately withdraws.
the mobilizing internal vectors of the movement of For the reasons listed above we continue to
the phenomenon - in order to attain the dynamics insist on proposing the meta-hodos as our resear-
and structure of the phenomenon itself. ch path. We know that by investigating in this way
4- Finally, in order to obtain the historical we run the risk of being banned from academia and
situation of the phenomenon, as Heidegger did from any possibility of gaining the status of scien-
(1920-21 / 2010) in The Phenomenology of religious tist. On the other hand, if we act blindly, in the way
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

life, we must characterize the plurality of what is in the natural sciences propose, in addition to losing
the situation, in such a way that we do not interpret the opportunity to resist to what is imposed, ope-
anything about its own complex. With this, we can ning space for other possibilities of thought, we will
reach the articulation of the situational plurality. be totally divorced from what is our interest, i. e.,
We return to the factual life, that is, to the element the existence in its mystery and inescapability.
by which the phenomenon manifests itself in diffe-
rent historical moments, just as it presents itself in
the voice of those who experience the phenomenal Referências
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(Original publicado em 1781).


A r t i g o s

Mattar, C. (2011). Interfaces e inquietações no diálogo en-


tre Kierkegaard e Foucault: filosofia antiga, psicolo-
gia e processos de subjetivação. Tese de doutorado.
PPGPS, UERJ.

349 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 340-349, set-dez, 2018
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.9

PHENOMENOLOGY AND RELATIVITY: HUSSERL,


WEYL, EINSTEIN, AND THE CONCEPT OF ESSENCE
Fenomenologia e Relatividade: Husserl, Weyl, Einstein e o Conceito de Essência

Fenomenología y Relatividad: Husserl, Weyl, Einstein y el Concepto de Esencia


Giorgio Jules Mastrobisi

Abstract: This paper aims to draw a new conception of “essence”, starting from the analysis of Husserl’s works (e.g.
Philosophy of Arithmetic, Logical investigations, Ideas) and comparing with the Einstein and Weyl considerations (most
of them unpublished) about grounding a new physical method which combines “philosophical analysis of essence”
and “mathematical construction”. The research about the physical nature of space-time provides us with an example
of pure phenomenological analysis of essences. In developing this conception of essence, phenomenological subjecti-
vity and consciousness play an important role in order to depict a relatively objective representation of thingly reality.
For this reason, the principal purpose of this paper is seeking to address the complementarity between objectivity and
subjectivity in the representational consciousness and in its production of essences; moreover, this study aims to de-
monstrate how phenomenological intersubjectivity acts on the constitution of essences, so that we might consider the
intersubjective essences’ constitution as one possible case of constructing a real world.
Keywords: Phenomenology, Relativity, Essence, Consciousness, Subjectivity.

Resumo: O objetivo deste artigo é desenhar uma nova concepção de “essência”, a partir da análise das obras de Husserl
(por exemplo, Filosofia da Aritmética, Investigações Lógicas, Ideias) e comparando com as considerações de Einstein
e Weyl (a maioria delas inéditas) sobre fundamentar um novo método que combina “análise filosófica da essência”
e “construção matemática”. A pesquisa sobre a natureza física do espaço-tempo nos fornece um exemplo de análise
fenomenológica pura das essências. Ao desenvolver essa concepção de essência, a subjetividade e a consciência feno-
menológicas desempenham um papel importante para representar uma representação relativamente objetiva da reali-
dade das coisas. Por essa razão, o objetivo principal deste trabalho é buscar a complementaridade entre objetividade e
subjetividade na consciência representacional e na produção de essências; Além disso, este estudo tem como objetivo
demonstrar como a intersubjetividade fenomenológica atua na constituição das essências, para que possamos conside-
rar a constituição das essências intersubjetivas como um caso possível de construção de um mundo real.
Palavras-Chave: Fenomenologia, Relatividade, Essência, Consciência, Subjetividade.

Resumen: Este trabajo pretende dibujar una nueva concepción de “esencia”, comenzando por el análisis de las obras
de Husserl (por ejemplo, Filosofía de la aritmética, Investigaciones lógicas, Ideas) y comparando las consideraciones
de Einstein y Weyl (la mayoría de ellas inéditas) sobre cómo establecer un nuevo físico método que combina “análisis
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

filosófico de la esencia” y “construcción matemática”. La investigación sobre la naturaleza física del espacio-tiempo
nos proporciona un ejemplo de análisis fenomenológico puro de las esencias. Al desarrollar esta concepción de la
esencia, la subjetividad fenomenológica y la conciencia juegan un papel importante para representar una representa-
ción relativamente objetiva de la realidad de las cosas. Por esta razón, el propósito principal de este artículo es tratar
de abordar la complementariedad entre la objetividad y la subjetividad en la conciencia representacional y en su pro-
ducción de esencias; además, este estudio pretende demostrar cómo la intersubjetividad fenomenológica actúa sobre
la constitución de las esencias, de modo que podríamos considerar la constitución de las esencias intersubjetivas como
un posible caso de construir un mundo real
Palabras-Clave: Fenomenología, Relatividad, Esséncia, Consciencia, Subjetividad.

Introduction thinking (Einstein, 1936, p. 349; Husserl, 1954, p.


112; Merleau-Ponty, 1960, p. 194). It is for this rea-
In the same year as Husserl’s Crisis, in a wri- son that the critical thinking of the physicist cannot
ting entitled Physics and Reality, Albert Einstein be restricted to the examination of the concepts of
(1936) affirmed that the physicists see themselves his own specific field (Einstein, 1936, p. 349).
as working with a rigid system of fundamental con- In Formal and transcendental Logic Husserl
cepts and fundamental laws which are clearly well (1929) had just affirmed that the special sciences
-

established, but that this is a serious problem at a fail to understand the essential one-sidedness of
A r t i g o s

time when the very foundations of physics itself their productions; in fact, they relate their combi-
have become problematic. ned researches to the universality of being and its
For the great scientist the science as a who- fundamental essential unity. The present condition
le is nothing more than a refinement of everyday of European sciences necessitates radical investi-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 350-357, set-dez, 2018 350
Phenomenology and Relativity: Husserl, Weyl, Einstein, and the Concept of Essence

gations of sense, so these sciences have lost their essence itself is dependent upon the concrete indi-
great belief in themselves, in their absolute signifi- vidual. The overall theme then is that each of the
cance (Husserl, 1929, pp. 4-5). But Husserl’s Sense- two sides of this relationship, the formal/essential
-investigation (die Besinnung) signifies nothing but and the material/individual/empirical necessarily
the attempt actually to produce the sense itself, the stands in relationship to the other in a way that both
sense in the mode of full clarity or essential possi- maintains the difference between the two poles, but
bility (Husserl, 1929, p. 9). I want to assume that at the same time shows how neither can be appro-
the existence of real thing, which is the object of priately comprehended apart from its relationship
physics, is only given and can only be given as the or relativity to the other side (Zahavi, 2016, p.293).
intentional correlate of the processes of conscious- Relativity and objectivity thereby show themselves
ness of a pure meaning-bestowing ego (Weyl, 1918, not as mutually exclusive alternatives, but as neces-
p. 69). The physical world, with which we reckon sarily each connected to the other in this concep-
continually in our daily lives, this objective world is tion of essence. In this sense, we could speak about
of necessity relative; it can be represented by num- a phenomenological Relativity.
bers or other symbols only after a system of coor- In an attempt to solve the question mentioned
dinates has been arbitrarily carried into the world. above, in the first two sections I will show why
Intuitive space and intuitive time are the adequate and how space and time, to which the Theory of
medium in which physics is to construct the ex- Relativity is intimately connected, can be conside-
ternal world. The investigations concerning space red as essences in a phenomenological sense and
and time appear to us to be a good example of the how they could save their objectivity in science.
analysis of essences (die Wesenanalyse) striven for I am going to affirm that every essence relating to
by phenomenological philosophy, an example that something physical is a composition of different
is typical for such cases where a non-immanent es- layers many-sidedly of different visions, a kind of
sence is dealt with. What remains is ultimately a essence of a different category many-sidedly cons-
symbolic construction of exactly the same kind as tituted in my consciousness. For this conception
that which Hilbert carries through in mathematics are very important the early Husserl’s studies (Hus-
(Weyl, 1949, pp. 113-116). serl, 1886/1901) about the concept of number, the
Precisely for these reasons, the formulation of mathematical-logical notions of konnective Verbin-
Einstein’s theory of Relativity – according to Her- dung and Variations-Rechnung, such as Riemann’s
mann Weyl, one of Albert Einstein’s most important formulation of a n-dimensional multiplicity theory
discussion partners and collaborators – realizes “a (Husserl, 1891, p. 232; Becker, 1923, p. 401; Boi,
method which combines Wesenanalyse (analysis of 1995, pp. 127-172). On the other hand, I pay at-
essence) with mathematische Konstruktion (mathe- tention to define the role of phenomenological
matical construction)” (Weyl, 1956, p. 26). subjectivity, and so, the role of observer, with his
In this article I intend to clarify that the con- psycho-physiological structures and functions (ki-
cept of essence – which Einstein and Weyl received nesthesis) (Husserl, 1973, p. 85; Husserl, 1992, p.
from Husserl’s phenomenology – is on one hand 90-97; Farber, 1940, pp. 307-325), the knower in the
strictly connected to this pair of opposites: subjec- relationship between perception and reality.
tive-absolute and objective-relative and on the other In the final two sections, I try to explain my
hand how this conception is always to be consi- ideas about the importance of the Life-world and

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
dered in a re-defining intersubjectivity manner as intersubjectivity in the physical constitution of es-
consequence of irreducibility between the Erleben sences. In fact, the knowledge of the objective-s-
(experiencing) and the Erfassen (understanding) in cientific world is grounded in the self-evidence of
the process of understanding thingly reality. To this the life-world: things, objects are given phenome-
interpretation all sense-objects are – as essence in nologically as being valid for us in each case, but in
phenomenological sense – only a specific and pos- principle only in such a way that we are conscious
sible manner of consciousness-givenness in a conti- of them as things or objects within the world-ho-
nuous intersubjective process of clarifying and un- rizon. In this life-world the co-subjects of this ex-
derstanding their totality and objectivity (Zahavi, perience themselves make up, for me and for one
2003, p. 112). another, an openly endless world of possible ins-
At the same time I try to point out that for Hus- truments (as symbolic constructions of mathemati-
serl what the knower intends is not merely what he cs and geometry) that allow us to represent an in-
or she directly experiences, but what is objective tersubjectively well established series of essences.
in the sense of that which can be in theory expe- The relativity of these essences shows the existence
rienced by any knower or a community of knowers of a possible manner of consciousness-givenness in
in which each individual is aware of him or her- a continuous process of clarifying and re-defining
self as merely one fallible instance of the process of their objectivity and validity (Husserl, 1992, pp. 33-
knowing in general. Husserl also shows how these 36). This infinite and important process I’ll call the
essences, these formal structures are also relative intersubjectivity constitution of essences. The con-
-

in the sense of pointing necessarily to a tode ti, a clusion is based on some unpublished reflections
concrete, independently existing individual object by Albert Einstein that seem to me taking for gran-
A r t i g o s

of which they are the formal structures (Husserl, ted and answering to this Husserl’s great problem of
1913a, p. 28; Zhok, 2012, p. 120). In this sense, the intersubjective constitution of the world.

351 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 350-357, set-dez, 2018
Giorgio Jules Mastrobisi

Essence-eìdos as reality of a different category but in the intuition; any possible object – logically
and the role of Subjectivity. speaking – has prior to all predicative thinking, pre-
cisely its modes of becoming the object of an ob-
We refer ourselves to the conception of essen- jectivating, an intuiting regard which reaches it in
ce, not in metaphysical sense of substance, the Aris- its personal selfhood, which seizes upon it. Seeing
totelic concept of ousìa, but in the Platonic one of an essence is seeing in the pregnant sense and not
eidos, idea, that directly involves the act of seeing. a mere and perhaps vague making-present. The
Nevertheless, the eidos, in this sense, is a result, seeing is an originarily presentive intuition, sei-
a copy of those realities that “I saw”, in an higher zing upon essence in its personal selfhood (Hus-
world, upon this material one. For this reason, the serl, 1913a, p. 10). Phenomenologically, we can say
research into essences (Wesensforschung) is the per- that natural world is thinkable as the correlate of
fect coordination between the Ideenschau and Idee- consciousness, and what the things are, they are
nerkenntnis, that we define as a priori knowledge as things of experience. Experience itself gives us
(Husserl, 1988, p. 13). their sense: the Erlebnisse, as well as our ways to
Husserl seems to hold this important characte- live experience, as thing perceptions, are our corre-
rization of concept of essence, but his conception of lates of our factual experience in which real world
eidos, free from the Platonic transcendent relevan- seems to us one of many possible worlds, correlates
ce, is deeply influenced by that of Kant (Husserl, of eidetic possible modification of our experiencing
1956, pp. 256-258). In Kantian philosophy the es- consciousness idea (Husserl, 1913a, p. 10).
sence is: “the first inner principle which concerns This eidos must manifest itself throughout all
the possibility of the existence of something in ge- the potential forms of mental being in particular
neral” (Kant 1973, p. 467); so, the psycho-physiolo- cases, must be present in all the synthetic combi-
gic inner act of seeing and the logic concept of pos- nations and self-enclosed wholes, if it is to be at all
sibility are bound together in the phenomenological thinkable that is, intuitively conceivable. Phenome-
conception of essence, which constitutes the basis nological psychology, not as naiveté, but as an eide-
of all our experience and knowledge. tic phenomenology is therefore exclusively directed
In Ideas I Husserl defines the essence as an ob- toward the invariant essential forms. For instance,
ject of new kind, an individual object which gives the phenomenology of perception of bodies will be
itself in an eidetic vision. Experience is therefore the presentation of invariant structural systems wi-
an empirical vision, consciousness of an individual thout which perception of a body and a syntheti-
object: what is seen when that occurs is the cor- cally concordant multiplicity of perceptions of one
responding pure essence, or Eidos, whether it be and the same body as such would be unthinkable
the highest category or a particularization thereof (Husserl, 1997, p. 24).
– down to full concretion. The specific character of In this way, Husserl (1917) clearly says that
certain categories of essences is such that essences experience of something external, of something
belonging to them can be given only one-sidedly, physical is itself a mental experience, but related
in a sequence many-sidedly, yet never all-sidedly. to the physical through our intentional experien-
Correlatively, the individual singularization corres- ce. Naturally the experienced physical thing itself,
ponding to such essences can then be experienced which is presupposed as what is physically actual
and otherwise objectivated only in inadequate one- in the world, the thingly real, with all its real mo-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

-sided empirical intuitions (Husserl, 1913a, p. 10). ments of necessity does not belong to the inventory
Every essence relating to something physical of essences proper to us in our experiencing life-
is a composition of different layers many-sidedly of -process (Husserl, 1976, pp. 376-377).
vision: the Ding is not given in itself as a spatial Husserl (1936) affirms that in consciousness
constituent, but it is a kind of essence many-sidedly the organs of perception play a constant role, specifi-
constituted in my consciousness. For this reason, cally their function in seeing, hearing, etc., together
the early Husserl’s studies about the concept of with the ego’s motility belonging to what is called
number, besides that notions of konnective Verbin- kinesthesis. Thus sensibility, the ego’s active functio-
dung (collective representation) and Variations-Re- ning of the living body (Leiblichkeit) or the bodily or-
chnung (calculus of variations) furnish the formal gans, belongs in a fundamental way to all experience
and mathematical basis for his conception of essen- of bodies. It proceeds in consciousness only in com-
ce, such as Riemann’s formulation of a n-dimensio- bination with the kinesthetically functioning living
nal multiplicity or variety (Husserl, 1983, pp.408- body, the ego functioning here in a peculiar sort of
411). Particularly relevant, from this point of view, activity and habituality (Husserl, 1954, p. 109).
is the Husserlian formulation in the Prolegomena to Therefore, purely in terms of perception, phy-
the Logical Investigations of a multiplicities theory sical body and living body (Körper and Leib) are es-
or doctrine in which the mathematician theorizes sentially different ‒ living body, that is, understood
his thought objects as objects that produce possib- as the only one which is actually given to me as
le relations of such determined forms in a formal such in perception, my own living body (Husserl,
-

ontology (Husserl, 1913b, p. 247; Husserl, 1901, 1954, p. 109; Husserl, 1992, p. 90), the privileged
pp.110-112). observer (the Beobachter in Einstein’s Relativity as
A r t i g o s

Therefore, an essence is consciousness of so- origin point of frame-system). However, though the
mething, an object, a something to which the intui- objects of the world, if they are to show their very
tional regard is directed and which is itself given own being, necessarily show themselves as physi-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 350-357, set-dez, 2018 352
Phenomenology and Relativity: Husserl, Weyl, Einstein, and the Concept of Essence

cal bodies, this does not mean that they show them- earlier and later (Weyl, 1952, p. 5). That is to say,
selves only in this way; and similarly we, though every material thing can, without changing content,
we are related through the living body to all objects equally well occupy a position in space different
which exist for us, are not related to them solely as from its present one. This is immediately gives us
a living body (Husserl, 1954, pp. 109-110). the property of the homogeneity of space which is
The consciousness of the world, then, is in cons- the root of the congruence conception (Ryckman,
tant motion; we are conscious of the world always in 2005, p. 145-176).
terms of the different ways of being conscious. Consciousness, without surrounding its
immanence, becomes a piece of reality. Moreover,
as result of this, consciousness spreads out its web,
Essence and real world. in the form of time, over reality. Change, motion,
elapse of time, becoming and ceasing to be, exist
In general, we ascribe a real existence to ma- in time itself; just as my will acts on the external
terial things, and we accept them as constituted, world through and beyond my body as a motiva-
shaped, and colored in such and such a way, and ting power, so the external world is in its turn active
so forth, as they appear to us in our perception in (Wirken). In fact in physics we can see how cosmic
general (Weyl, 1952, p. 3). These material things time and physical form are bound together with
are immersed in a manifold of analogous realities one another. The new solution of the problem of
which unite to form a single ever-present world of amalgamating space and time offered by the Theory
space to which I, with my own body, belong. of Relativity – according to Weyl – brings with it a
With Kant, Hermann Weyl (1918) in his grea- deeper insight into harmony of action in the world
test work Space, Time, Matter affirms that space is (Weyl, 1952, p. 6).
only a form of our perception; and in the realm of In a similar “transcendental” sense Einstein
physics it is perhaps only the Theory of Relativity (1936) affirms that physics treats directly only sense
which has made it quite clear that the two essences, experiences and the understanding of their connec-
space and time, have no place in the world cons- tion. But, at first glance, even the concept of the real
tructed by modern mathematical physics (Weyl, external world of everyday thinking rests exclusively
1952, pp. 3-4). on sense impressions. Einstein is well aware that
Real world, and every one of its constituents the first step in the positing of a real external world
are, and can only be given – Weyl says – “as inten- is the production of some sort of order among sen-
tional objects of acts of consciousness” (Weyl, 1952, se impressions by the creation of general concepts,
p. 5). I “have” the perception, but it is only when relations between these concepts, and by relations
I make this perception in turn the intentional ob- between the concepts and sense experience. It is in
ject of a new inner perception that I “know” some- this sense that the world of our sense experiences is
thing regarding it. In this second act the intentional comprehensible. The fact that it is comprehensible
object is immanent: like the act itself, it is a real is - in Einstein’s opinion - a miracle (Einstein, 1936,
component of my stream of experiences; whereas in p. 351). The connection of the elementary concepts
the primary act of perception the object is transcen- of everyday thinking with complexes of sense expe-
dent: it is given in an experience of consciousness riences can only be comprehended intuitively, and
but is not a real component of it. What is immanent it is unadaptable to scientifically logical fixation. In

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
is absolute, it is exactly what it is in the form in Einstein’s formulation there exists for the individual
which I have it in its essence, by acts of reflection. an I-time, or subjective time, which in itself cannot
On the other hand, transcendental objects be measurable. But I can associate numbers with the
have only a phenomenal existence in my stream events in such a way that a greater number is asso-
of consciousness; they are essences because “I see” ciated with the later event than with an earlier one.
them as appearances presenting in manifold ways This association I can define by means of a clock by
and in manifold “gradations” (Weyl, 1952, p. 5). It comparing the order of events furnished by the clock
is the nature of a real thing to be inexhaustible in with the order of the given series of events. In fact, in
his essence; we can get an ever deeper insight into physics we use the clock as something for providing
this eidetic content by the continual addition of a series of events which can be counted. The natural
new experiences, partly in apparent contradiction. sciences, and in particular physics, deal with such
From this arises the empirical character of all our sense perceptions. The conception of physical bodies,
knowledge of reality. in particular of rigid bodies, is a relatively constant
The contents of consciousness do not present complex of sense perceptions as mentioned above. A
themselves simply as being (such as conceptions, clock, a point or line, is also a body, or a system with
numbers, etc.), but as being now filling the form of the additional property that the series of events which
enduring present with a varying content. Time is it counts is formed of elements all of which can be
the primitive form of the stream of consciousness regarded as equal: they serve to represent the complex
(Husserl, 1928, pp. 387-388), so that one does not of our experiences (Einstein, 1953, pp. 1-2).
-

say this is, but this is now, yet now no more. If we The aim of science is, on the one hand, a com-
project ourselves outside the stream of conscious- prehension, as complete as possible, of the connec-
A r t i g o s

ness and represent its content as an object, it beco- tion between the sense experiences in their totality
mes an event happening in time, the separate stages by the use of a minimum of primary concepts and
of which stand to one another in the relations of relations (Einstein, 1936, p. 352).

353 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 350-357, set-dez, 2018
Giorgio Jules Mastrobisi

Life-world and intersubjectivity: the Husserl’s back to a corresponding a priori of the life-world: this
solution. reference-back is one of a founding of validity (Geltun-
gsfundierung) (Husserl, 1954, p. 143).
Husserl in his Crisis book criticizes the dis- If we seek out, simply looking around us, what
dain (Verächtlichkeit) with which everything “me- remains invariant in the life-world throughout all
rely subjective and relative”, and thus the sense ex- alterations of the relative, we involuntarily stop at
perience, is treated by those scientists who pursue what alone determines for us in life the sense of
the modern ideal of objectivity changes nothing of talking about the world: the world is the universe
its own manner of being (Husserl, 1954, p. 128). of things, which are distributed within the world-
In fact, to use the Lebenswelt, life-world, in -form of space-time and are positional in two senses
this way is not to understand it scientifically in its (according to spatial position and temporal posi-
own manner of being. Husserl responds to Einstein tion) - the spatio-temporal onta. Here would thus be
who uses the Michelson experiments and the cor- found the task of a life-world ontology, understood
roboration of them by other researchers without a as a concretely general doctrine of essence for these
careful examination of what enters in there – the onta (Husserl, 1954, p. 145).
persons, the apparatus, the room in the institute, Things, objects are given phenomenologically
etc. But Einstein could make no use whatever of as being valid for us in each case, but in principle
a theoretical psychological-psychophysical cons- only in such a way that we are conscious of them
truction of the objective being of Mr. Michelson; as things or objects within the world-horizon. Each
rather, he made use of the human being who was one is something, something of the world of which
accessible to him, as to everyone else in the pre-s- we are constantly conscious as a horizon, as a fra-
cientific world, as an object of straightforward ex- me-system. On the other hand, we are conscious of
perience, the human being whose existence, with this reference-horizon only as a horizon for existing
this vitality, in these activities and creations within objects (Husserl, 1954, p. 147-148).
the common life-world, is always the presupposi- If I remain purely within the realm of seeing, I
tion for all of Einstein’s objective-scientific lines of find new differences, arising in very manifold form
inquiry, projects, and accomplishments pertaining in the course of any normal seeing, which, after
to Michelson’s experiments. It is, of course, - ac- all, is a continuous process; each phase is itself a
cording to Husserl - the one world of experience, seeing, but actually what is seen in each one is so-
common to all, that Einstein and every other resear- mething different.
cher knows, in which he lives as a human being, This is the phenomenological proof, at a theo-
even throughout all his research activities (Husserl, retical layer, of all Relativity processes. I am directly
1954, pp. 128-129). conscious of the thing existing there, yet changing
But while the natural scientist is involved in from moment to moment, I have the experience (Er-
his activity, the subjective-relative is on the other lebnis) of an exhibiting of although the latter, with
hand still functioning for that scientist, not as some- its remarkable “of” becomes visible only in reflec-
thing irrelevant that must be passed through, but as tion. Implied in the particular perception of the
that which ultimately grounds the theoretical-logi- thing is a whole horizon of nonactive (nichtaktuelle)
cal ontic validity for all objective verification, as the and yet co-functioning manners of appearance and
source of self-evidence, the source of verification. syntheses of validity (Husserl, 1954, p. 162).
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

The visible measuring scales, scale-markings, the Every essence here can be displayed only in
Euclidean space, the rigid bodies and clocks, the relativity, in an unfolding of horizons in which one
homogeneity and congruence in space, and so on, soon realizes that unnoticed limitations, horizons
are used as actually existing things, not as illusions; which have not been felt, push us on to inquire into
but that which actually exists in the life-world, as new correlations inseparably bound up with those
something valid, is only a premise. The knowledge already displayed (Husserl, 1954, p. 162).
of the objective-scientific world is grounded in the The world exists as a temporal, a spatio-tem-
self-evidence of the life-world. If we cease being im- poral world in which each thing has its bodily ex-
mersed in our scientific thinking, we become aware tension and duration and, again in respect to these,
that we scientists are, after all, human beings and its position in universal time and in space (Grel-
as such are among the components of the life-wor- land, 2017, pp. 87-94). (Husserl, 1954, pp. 164-67).
ld which always exists for us, ever pregiven; and
thus all of science is pulled, along with us, into the
merely subjective-relative life-world (Husserl, 1954, Conclusion: Einstein’s answer and the
pp. 129-30). intersubjective essence of the world.
The question then arises: what is the relationship
between the objectively true world and the life-world. In an unpublished manuscript from the same
As we already know, physicists, who are human bein- year as Husserl’s Crisis, Einstein seems to turn to
gs like other human beings, who know themselves as this phenomenological problem using the same
-

living in the life-world, the world of their human in- Husserl’s terminology:
terests, have, under the title of physics, a particular
A r t i g o s

sort of questions and their theories are the practical Science as something existing, confectioned,
results. And this includes, as Husserl has said, every- is more than something of objectivized and,
thing objectively a priori, with its necessary reference at the same time, impersonalized that we as

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Phenomenology and Relativity: Husserl, Weyl, Einstein, and the Concept of Essence

human beings know in general. Science as that allow us to represent an intersubjectively well
something becoming, as destination, is also established series of essences. An intersubjectively
equally subjective, psychologically conditio- determined world of essences in which all sense-
ned as all the other human aspirations. (…) -objects are only a specific and possible manner of
Naturally there are people who affirm that consciousness-givenness in a continuous process
science has produced a too high connection of clarifying and understanding their totality and
among experiencing facts [erlebbaren], so we objectivity. A merely subjective appearance is va-
can deduce from experienced facts other ex- lid as simply what exists in the particularity of its
periencing facts. According to the opinion of manners of givenness in life itself. In this general
some positivists, the possible solution of such intersubjectivity, the concepts of what is, of man-
assignment would be the unique end of scien- ners of givenness, of syntheses, etc., are repeatedly
ce. (…) There is in fact a stronger and, for this relativised (Husserl, 1954, p. 167).
reason, also darker impulse behind these as- Then phenomenological Relativity comes into
siduous disputes: the will of understanding view, and finally, Einstein grants Husserl’s solution
Being, the Reality. However, it seems that we its philosophical and scientific extraordinary rele-
have avoided using such words, since we are vance. In fact, in an unpublished 1941’s manus-
really embarrassed in clarifying what we must cript in response to Prof. McCrady, a philosopher of
properly intend for real [Wirklich] and what the Oxford University in U.S., Einstein affirms that:
we must understand [begreifen] in this gene-
ral affirmation. All these efforts are founded (…) Setting a physical reality, independent
upon the trust that Being in its structure is in from any percipient subject with rigid phy-
complete harmony (Einstein, 1931/1933, p. 1). sical laws of structure, has never been some-
thing lasting. In fact, it seems that also the
But, let us turn our attention to Husserl’s actual theory of quantum physics does not
conviction that in our continuously flowing wor- change anything. This escape, which derives
ld-perceiving we are not isolated but rather have, from a momentary embarrassment in a statis-
within it, contact with other human beings. Thus, tic formulation of the physical laws, is not to
according to this reading, the world exists not only be considered as definitive, although another
for isolated human beings but for the human com- way has not been found yet. Physics on one
munity; and this is due to the fact that even what hand, Psychology, History and Theology on
is straightforwardly perceptual is communalized the other hand, employ concepts of different
(Husserl, 1954, p. 165-166). nature to deduce the connections in the proo-
In this communalization, too, there constantly fs. These two distinguished conceptual worlds
occurs an alteration of validity through reciprocal cannot be fused together in an unitary struc-
correction. In reciprocal understanding, my ex- ture. A thought will be always something of
periences and experiential acquisitions enter into other in comparison to its correlative physical
contact with those of others, similar to the contact event in a nervous system, such as a represen-
between individual series of experiences within my tation of a person will be always something of
(one’s own) experiential life; and here again, for the different in comparison to a linguistic descrip-
most part, intersubjective harmony of validity oc- tion of particularity of the same person (Eins-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
curs, and thus an intersubjective unity also comes tein, 1941, p.1).
about in the multiplicity of validities and of what is
valid through them (Husserl, 1954, p. 166). Referring himself to Husserl’s phenomenology
In this life-world each individual has expe- – as I think – Einstein concludes that:
rienced things, that is, what is seen by that indi-
vidual and, through the seeing, is experienced as (…) In our time a new and original thought
straightforwardly existing and being-such. Each is beginning to emerge. If this time has pro-
individual knows that she, in her actual contact, duced a progress of the epistemological sphe-
is related to the same experienced things in such re, so in fact it seems to me that we could
a way that each individual has different aspects, not give for granted any reasonable ways that
different sides, perspectives, etc., of them but that brings us from the Erleben (experiencing) to
in each case these are taken from the same total the conceptual Erfassen (knowledge) of thin-
system of multiplicities of which each individual gs, since every thought is founded on a free
is constantly conscious as the horizon of possible theoretical construction, which systemati-
experience of this thing (Husserl, 1954, p. 166). cally derives through sense experiences (Ein-
The thing itself, the essence, is actually that stein, 1941, p. 2).
which no one experiences as really seen, since it is
always in motion, always, and for everyone, a unity The world as it is for us becomes understan-
for consciousness of the openly endless multiplici- dable as a structure of meaning formed out of ele-
-

ty of changing experiences and experienced thin- mentary intentionalities. And meaning is never
gs, one’s own and those of others (Husserl, 1954, anything but meaning in modes of validity as rela-
A r t i g o s

p. 166-167). The co-subjects of this experience ted to intending ego-subjects which effect validity.
themselves make up, for me and for one another, Intentionality is the title which stands for the only
an openly endless world of possible instruments actual and genuine way of explaining, making in-

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Giorgio Jules Mastrobisi

telligible (Husserl, 1954, pp. 170-71). In this regard Grelland, H. (2017). The Phenomenology of Space and
we speak about intersubjective constitution of the Time: Husserl, Sartre, Derrida. In: Space, Time, and
world: the world of life, which as a matter of course the Limit of Human Understanding. (Wuppuluri,
takes up into itself all practical structures is, to be S. and Ghirardi, G., Eds.). Heidelberg New York:
sure, related to subjectivity throughout the constant Springer International Publishing, pp. 87-94.
alteration of its relative aspects.
Objective truth belongs exclusively to the attitu- Husserl, E. (1891). Philosophie der Arithmetik. Psycholo-
de of natural human world-life: the world is from the gische und logische Untersuchungen. Halle (Saale):
start taken only as a correlate of the subjective appea- C.E.M. Pfeffer (R. Stricker).
rances, views, subjective acts and capacities through
Husserl, E. (1901). Logische Untersuchungen. Zweiter Teil.
which it constantly has its changeable but unitary
Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie
sense. Now if the phenomenological Husserl’s in-
der Erkenntnis. Halle (Saale): Max Niemeyer Verlag.
quiry initiates, proceeding from the world back to the
essential forms of these appearances and views of it, Husserl, E. (1913a). Ideen zu einer reinen Phänomeno-
the ego-poles become the subject of essential inquiry, logie und phänomenologischen Philosophie. Erstes
they become, in a new and still higher sense, the sub- Buch: Allgemeine Einführung in die reine Phänome-
jective aspect of the world and also of its manners of nologie Jahrbuch für Philosophie und phänomeno-
appearing (Husserl, 1954, p. 174). logische Forschung I/1, pp. 1-323.
But – according to Husserl – precisely herein
lies the difficulty. Universal intersubjectivity, into Husserl, E. (1913b). Logische Untersuchungen. Erster Teil.
which all objectivity, everything that exists at all, is Prolegomena zur reinen Logik. Text der 2. Umgear-
resolved, can obviously be nothing other than hu- beitete Auflage. Halle (Saale): Max Niemeyer Verlag.
manity (Husserl, 1954, p. 183).
Transcendental intersubjectivity, which is Husserl, E. (1928). Zur Phänomenologie des inneren Zeit-
constituted as a relativity in a plurality of egos, exis- bewusstesens. Jahrbuch für Philosophie und phän-
ts with the mode of existence that belongs to some- omenologische Forschung (M. Heidegger, Ed.). Bd.
thing absolute; in the form of an intentional life and IX, pp. 367-498.
for this reason it has an essential capacity to reflect
Husserl, E. (1929). Formale and transzendentale Logik.
on itself, on all its structures that stand out for it, an
Versuch einer Kritik der logischen Vernunft. Halle
essential ability to make itself thematic and produ-
(Saale): Max Niemeyer Verlag.
ce judgments and evidences relating to itself. But
this essence includes the possibility of self-exami- Husserl, E. (1954). Die Krisis der europäischen Wissen-
nation that starts from vague meanings and, by a schaften und die transzendentale Phänomenologie.
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Giorgio Jules Mastrobisi completed his Ph.D. studies at


University of Salento (Italy) on the Phenomenological
foundation of Einstein’s Theory of Relativity, supervised
by Professor Thomas Nenon (Memphis, TN, USA), in
2004. Since then he’s held a post-doc position, carrying
out further research into this area of studies. He also
edited an Einstein’s unpublished manuscript, which he
called “Singapore-Manuscript”, that is now published in
the recent XIII volume of Einstein’s Collected Papers from
Princeton University Press. orcid.org/0000-0002-8054-7932.
Email: jmastrobisi@hotmail.com
-

Received 2017.05.02
A r t i g o s

First Editorial Decision 2017.11.07


Accepted 2018.12.01

357 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 350-357, set-dez, 2018
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.10

FENOMENOLOGIA E RELATIVIDADE: HUSSERL,


WEYL, EINSTEIN E O CONCEITO DE ESSÊNCIA
Phenomenology and Relativity: Husserl, Weyl, Einstein and the Concept of Essence

Fenomenología y Relatividad: Husserl, Weyl, Einstein y el Concepto de Esencia


Giorgio Jules Mastrobisi

Resumo: O objetivo deste artigo é desenhar uma nova concepção de “essência”, a partir da análise das obras de Husserl (por exem-
plo, Filosofia da Aritmética, Investigações Lógicas, Ideias) e comparando com as considerações de Einstein e Weyl (a maioria delas
inéditas) sobre fundamentar um novo método que combina “análise filosófica da essência” e “construção matemática”. A pesquisa
sobre a natureza física do espaço-tempo nos fornece um exemplo de análise fenomenológica pura das essências. Ao desenvolver essa
concepção de essência, a subjetividade e a consciência fenomenológicas desempenham um papel importante para representar uma
representação relativamente objetiva da realidade das coisas. Por essa razão, o objetivo principal deste trabalho é buscar a comple-
mentaridade entre objetividade e subjetividade na consciência representacional e na produção de essências; Além disso, este estudo
tem como objetivo demonstrar como a intersubjetividade fenomenológica atua na constituição das essências, para que possamos
considerar a constituição das essências intersubjetivas como um caso possível de construção de um mundo real.
Palavras-Chave: Fenomenologia, Relatividade, Essência, Consciência, Subjetividade.

Abstract: This paper aims to draw a new conception of “essence”, starting from the analysis of Husserl’s works (e.g. Philosophy
of Arithmetic, Logical investigations, Ideas) and comparing with the Einstein and Weyl considerations (most of them unpublished)
about grounding a new physical method which combines “philosophical analysis of essence” and “mathematical construction”. The
research about the physical nature of space-time provides us with an example of pure phenomenological analysis of essences. In
developing this conception of essence, phenomenological subjectivity and consciousness play an important role in order to depict a
relatively objective representation of thingly reality. For this reason, the principal purpose of this paper is seeking to address the com-
plementarity between objectivity and subjectivity in the representational consciousness and in its production of essences; moreover,
this study aims to demonstrate how phenomenological intersubjectivity acts on the constitution of essences, so that we might consider
the intersubjective essences’ constitution as one possible case of constructing a real world.
Keywords: Phenomenology, Relativity, Essence, Consciousness, Subjectivity.

Resumen: Este trabajo pretende dibujar una nueva concepción de “esencia”, comenzando por el análisis de las obras de Husserl (por
ejemplo, Filosofía de la aritmética, Investigaciones lógicas, Ideas) y comparando las consideraciones de Einstein y Weyl (la mayoría
de ellas inéditas) sobre cómo establecer un nuevo físico método que combina “análisis filosófico de la esencia” y “construcción
matemática”. La investigación sobre la naturaleza física del espacio-tiempo nos proporciona un ejemplo de análisis fenomenológico
puro de las esencias. Al desarrollar esta concepción de la esencia, la subjetividad fenomenológica y la conciencia juegan un papel
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

importante para representar una representación relativamente objetiva de la realidad de las cosas. Por esta razón, el propósito princi-
pal de este artículo es tratar de abordar la complementariedad entre la objetividad y la subjetividad en la conciencia representacional
y en su producción de esencias; además, este estudio pretende demostrar cómo la intersubjetividad fenomenológica actúa sobre la
constitución de las esencias, de modo que podríamos considerar la constitución de las esencias intersubjetivas como un posible caso
de construir un mundo real
Palabras-Clave: Fenomenología, Relatividad, Esséncia, Consciencia, Subjetividad.

Introdução (1929) já havia afirmado que as ciências falham ao


entender a parcialidade essencial de suas produções;
No mesmo ano da publicação de Crise, de Hus- de fato, a ciência relaciona suas pesquisas combi-
serl, em artigo denominado Física e Realidade, Al- nadas à universalidade do ser e a sua unidade es-
bert Einstein (1936) afirmou que os físicos se veem sencial fundamental. A condição atual das ciências
trabalhando com um sistema rígido de conceitos Europeias necessita de investigações radicais sobre
e leis básicas e claramente estabelecidas, mas que o sentido, portanto essas ciências perderam a cren-
isso é um problema sério, em uma época em que as ça maior em si mesmas, em sua significação abso-
bases primordiais da física se tornaram problemá- luta (Husserl, 1974). Mas, a obra Sense-investigation
ticas. Para Einstein, a ciência como um todo não é (die Besinnung) de Husserl representa um esforço
-

mais do que um mero refinamento do pensar coti- em produzir o sentido em si mesmo, o sentido no
diano (Einstein, 1936; Husserl, 1954; Merleau-Pon- modo de uma clareza plena ou de uma possibilidade
A r t i g o s

ty, 1960). Por essa razão, o pensamento crítico do essencial (Husserl, 1974). Presumo que a existência
físico não pode ser restrito à avaliação de conceitos real das coisas, que constitui o objeto da física, só é
do seu próprio campo de trabalho (Einstein, 1936). dada e somente pode ser dada como uma correlação
Em Logica formal e transcendental, Husserl intencional dos processos da consciência de um ego

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Fenomenologia e Relatividade: Husserl, Weyl, Einstein e o Conceito de Essência

puro e dotado de sentido (Weyl, 1918). O mundo fí- Nesse sentido, podemos falar de uma Relatividade
sico, presente em nossas vidas, um mundo objetivo, fenomenológica.
é por necessidade um mundo relativo e que pode ser Na tentativa de resolver essa questão, procuro
representado por números ou outros símbolos, mas mostrar nas duas primeiras seções como e porque
somente depois que um sistema de coordenadas te- o espaço-tempo, às quais a Teoria da Relatividade
nha sido arbitrariamente levado para dentro desse está intimamente conectada, podem ser considera-
mundo. Tempo e espaço intuitivos são o meio ade- das como essências em um sentido fenomenológico
quado no qual a física constrói o mundo externo. As e como podem manter sua objetividade na ciência.
investigações sobre espaço e tempo nos parecem um Afirmo que toda essência relativa a algo físico resul-
bom exemplo da análise das essências (die Wesena- ta de diferentes camadas multifacetadas e oriundas
nalyse) almejada pela filosofia fenomenológica e um de visões distintas, um tipo de essência de uma ca-
exemplo clássico para estes casos nos quais lidamos tegoria diversificada e constituída na minha consci-
com uma essência não imanente. O que resta, em ência. Para esta concepção, os estudos iniciais de
última instância, é uma construção simbólica exata- Husserl são os mais relevantes (Husserl, 1901), por
mente como aquela que Hilbert trabalha na matemá- estarem voltados ao conceito de número, noções de
tica (Weyl, 1949). lógica-matemática de konnective Verbindung e Va-
Por essas razões, a formulação da teoria da riations-Rechnung, tais como a fórmula de Riemann
Relatividade de Albert Einstein, segundo Hermann para uma teoria de multiplicidade n-dimensional
Weyl, um de seus maiores parceiros e colaborado- (Husserl, 1891, p. 232; Becker, 1923, p. 401; Boi,
res, compreende “um método que combina Wese- 1995, pp. 127-172). Procuro também definir o pa-
nanalyse (análise da essência) com a mathematis- pel da subjetividade fenomenológica e, portanto, o
che Konstruktion (construção matemática)” (Weyl, papel do observador, com suas estruturas e funções
1956, p. 26). psicofisiológicas (kinesthesis) (Husserl, 1973, 1992;
Nesse artigo, tenho a intenção de esclarecer Farber, 1940), ou seja, o conhecedor na relação en-
que o conceito de essência, que Einstein e Weyl re- tre percepção e realidade.
ceberam da fenomenologia de Husserl, está estrita- Nas duas últimas seções, busco explicar mi-
mente conectado a esse par de opostos: subjetivida- nhas ideias sobre a importância do Mundo-vida e
de-absoluta e objetividade-relativa, de um lado, mas da intersubjetividade na constituição física das es-
por outro, essa concepção deve ser considerada de sências. Na verdade, o conhecimento do mundo
uma maneira intersubjetiva que se redefine, como científico-objetivo está fundamentado na autoevi-
consequência da irredutibilidade entre Erleben (ex- dência do Mundo-vida. Em outras palavras, coisas e
perienciar) e Erfassen (compreender), no processo objetos nos são dados fenomenologicamente como
de compreensão da realidade das coisas. Para esta sendo válidos para nós, mas de tal modo que este-
interpretação, todos os objetos sensoriais existem jamos conscientes deles como coisas ou objetos no
como essência, no sentido fenomenológico, de um mundo-horizonte. Nesse Mundo-vida, os co-sujei-
modo específico e possível da consciência-dada, e tos desta experiência constituem, eles mesmos, para
em um processo intersubjetivo contínuo, a fim de mim e para o outro, um mundo aberto e de infinitos
esclarecer e compreender sua totalidade e objetivi- instrumentos possíveis, como construções simbóli-
dade (Zahavi, 2003). cas da matemática e da geometria, permitindo-nos
Mas é preciso enfatizar que, para Husserl, representar uma série de essências de maneira in-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
o que o conhecedor pretende não é apenas o que tersubjetiva. A relatividade dessas essências mos-
vivencia diretamente, mas o que é objetivo nesse tra a possível existência de uma consciência dada,
processo, ou seja, o que pode ser experienciado por dentro de um processo de esclarecimento contínuo,
qualquer conhecedor ou uma comunidade de co- redefinindo sua objetividade e validade. A este pro-
nhecedores, na qual cada indivíduo está ciente de cesso denomino constituição intersubjetiva das es-
si mesmo como sendo uma instância meramente fa- sências. Minha conclusão é fundamentada em algu-
lha do processo de conhecimento. Husserl demons- mas reflexões de Einstein, ainda inéditas, mas que
tra também como essas essências, estas estruturas me parecem certas no sentido de responder a esse
formais são relativas, também, no sentido de apon- grande problema de Husserl que é a constituição in-
tar para um tode ti, um objeto individual e concreto tersubjetiva do mundo.
que existe de forma independente das estruturas
formais (Husserl, 1977; Zhok, 2012). Nesse senti-
do, a essência em si mesma depende do indivíduo Essência-eìdos como Realidade, de categoria
concreto. Portanto, cada um dos dois lados dessa diferente, e o papel da Subjetividade
relação, o formal/essencial e o material/individual/
empírico, permanece um em relação ao outro, de Referimo-nos à concepção de essência, não
modo que ambos mantêm a diferença entre si, ao em um sentido metafísico da substância – o con-
mesmo tempo em que demonstram que não podem ceito aristotélico de ousìa –, mas sim considerando
ser compreendidos adequadamente estando sepa- o conceito platônico de eidos, ideia, que envolve
-

rados dessa relação ou em situação de relatividade diretamente o ato de ver. Contudo, nesse sentido,
com o outro lado (Zahavi, 2016). Assim, a relativi- o eidos é um resultado, uma cópia das realidades
A r t i g o s

dade e a subjetividade, mostram-se como alternati- que “eu vi”, em um mundo superior e que se ergue
vas não excludentes, mas sim necessariamente co- sobre o mundo material. Por essa razão, a pesquisa
nectadas uma a outra nessa concepção de essência. sobre essências (Wesensforschung) é a coordenação

359 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 358-365, set-dez, 2018
Giorgio Jules Mastrobisi

perfeita entre a Ideenschau e a Ideenerkenntnis, que menologicamente, podemos dizer que o mundo na-
definimos como um conhecimento a priori (Husserl, tural é pensado como um correlato da consciência,
1988, p.13). e o que as coisas são, são objetos da experiência. A
Husserl (1956) parece aceitar esta caracteri- experiência por si dá sentido a elas: o Erlebnisse,
zação do conceito de essência, mas a concepção de assim como nossas maneiras de viver a experiência,
eidos, livre da relevância platônica transcenden- como percepções de coisas são correlatas de nossas
tal, é profundamente influenciada pela relevância experiências factuais, nas quais o mundo real pare-
transcendental de Kant. Na filosofia kantiana, a ce ser um dos muitos mundos possíveis, correlatos
essência é: “o princípio mais íntimo que trata da de modificações eidéticas possíveis da nossa ideia
possibilidade da existência de algo no geral” (Kant de consciência experiencial (Husserl, 1913a, p. 10).
1973, p. 467). Portanto, o ato psicofisiológico inte- Este eidos deve manifestar completamente to-
rior de ver e o conceito lógico de possibilidade são das as formas de estados mentais em potencial, deve
estabelecidos juntos na concepção fenomenológica estar presente em todas as combinações sintéticas e
da essência e que é a base da nossa experiência e do totalidades auto delimitadas e enclausuradas; pois,
nosso conhecimento. se é para ser pensável, é intuitivamente concebível.
Em Ideias I, Husserl define essência como um A psicologia fenomenológica, não como ingenuidade,
novo tipo de objeto, um objeto individual e que mas como fenomenologia eidética é, portanto, direcio-
confere a si mesmo uma visão eidética. Por essa ra- nada exclusivamente para as formas essenciais inva-
zão, a experiência é uma visão empírica, ou seja, riantes. Por exemplo, a fenomenologia da percepção
é a consciência de um objeto individual: o que é dos corpos será a apresentação de sistemas estruturais
visto quando esse fato ocorre, corresponde à essên- invariantes sem o qual a percepção de um corpo, e a
cia pura ou Eidos, como sendo a categoria mais alta multiplicidade de percepções concordantes de um ou
ou uma particularização da ausência de categorias do mesmo, seria impensável (Husserl, 1997).
– reduzida à concretização plena. A especificidade Nesse sentido, Husserl (1917) diz claramente
de certas categorias de essências é tal que as es- que a experiência de alguma coisa externa e físi-
sências podem ser apenas parciais, mesmo sendo ca é em si mesma, uma experiência mental, mas
diversificadas. Contudo jamais são unilaterais. A relacionada a parte física através de nossas expe-
singularização individual dessas essências pode ser riências intencionais. Naturalmente, a coisa física
experienciada de maneira similar, sendo objetivada vivenciada em si mesma, pressuposta como sendo
apenas em intuições empíricas erroneamente unila- fisicamente real, o real coisificado, com todos os
terais (Husserl, 1913a). seus momentos reais de necessidade, não pertence
Toda essência relacionada a alguma coisa fí- ao nosso inventário próprio de essências, comum
sica é a composição de diferentes camadas diver- no processo de vida experiencial (Husserl, 1976).
sificadas de visão: a Ding não é determinada em si Husserl (1936) afirma que na consciência, os
mesma como constituinte espacial, pois é um tipo órgãos da percepção assumem um papel constante,
de essência diversificada constituída em minha quanto à sua função de perceber, ouvir, etc, junta-
consciência. Por essa razão, os primeiros estudos mente com a motilidade do ego chamada de kines-
de Husserl sobre o conceito de número, além das thesis. Assim, a sensibilidade, o funcionamento
noções de konnective Verbindung (representação ativo do ego de um corpo vivo (Leiblichkeit) ou de
coletiva) e Variations-Rechnung (cálculos de varia- órgãos corporificados, pertence de um modo funda-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

ções) integram a base formal e matemática da sua mental a toda experiência dos corpos. Isso ocorre
concepção de essência, tal como a fórmula n-di- na consciência apenas em combinação com o corpo
mensional plural ou variada de Riemann (Husserl, vivido em funcionamento de modo sinestésico, ou
1983). É especificamente relevante, desse ponto de seja, o ego envolvido em uma atividade específica e
vista, a formulação Husserliana, nos Prolegomena habitual (Husserl, 1954).
para as Investigações Lógicas. Essa formulação trata Sendo assim, em termos de percepção, corpo
de uma teoria ou doutrina plural na qual o matemá- físico e corpo vivido (Körper e Leib) são essencial-
tico teoriza seus objetos pensados como objetos que mente diferentes ‒ o corpo vivido é único e é dado
possuem relações possíveis, determinadas em uma a mim como tal na percepção, meu próprio corpo
ontologia formal (Husserl, 1901, 1913b). vivido (Husserl, 1954, 1992), o observador privi-
Por essa razão, uma essência é consciência de legiado (o Beobachter na Relatividade de Einstein
uma coisa, um objeto, de algo ao qual o olhar intui- como ponto de origem de um sistema modelado).
tivo está direcionado e atribuído a si mesma apenas Entretanto, se é para mostrar sua existência atra-
na intuição; qualquer objeto possível – logicamente vés dos objetos do mundo, eles necessariamente se
falando – e tem prioridade sobre todo pensamen- mostram como corpos físicos, o que não significa
to predicativo; mais precisamente as maneiras de que se mostrem sempre dessa forma; nós, de ma-
se tornar o objeto de uma objetivação, uma consi- neira similar, embora relacionados através do corpo
deração intuitiva que alcança a si mesma, em sua vivido a todos os objetos existentes, não somos rela-
individualidade pessoal, e que tira proveito disso. cionados a eles unicamente como um corpo vivido
-

Ver uma essência equivale a perceber no sentido (Husserl, 1954).


gestacional, não como um mero e talvez vago tor- A consciência do mundo, portanto, está em
A r t i g o s

nar-presente. A percepção é uma intuição original- movimento constante; estamos conscientes do


mente presentiva, tirando proveito da essência em mundo sempre em termos de diferentes maneiras
sua individualidade (Husserl, 1913a, p. 10). Feno- de sermos conscientes.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 358-365, set-dez, 2018 360
Fenomenologia e Relatividade: Husserl, Weyl, Einstein e o Conceito de Essência

Essência e Mundo Real gem do tempo, tornar-se e cessar de ser, existente


em si mesma no tempo; exatamente como o meu
De modo geral, atribuímos uma existência real desejo que age no mundo externo através e além do
a coisas materiais e as aceitamos como constituídas, meu corpo, como uma força motivacional, de modo
modeladas e coloridas, conforme as percebemos que o mundo externo seja, portanto, ativo (Wirken).
(Weyl, 1952). Essas coisas materiais estão imersas De fato, podemos perceber na física como a forma
em uma diversidade de realidades análogas que se do tempo cósmico e forma física estão unidas entre
unem para formar um espaço de mundo único e si. A nova solução para o problema de amalgamar
sempre-presente ao qual eu pertenço, com o meu o espaço e o tempo, dada pela Teoria da Relativida-
próprio corpo. Com Kant, Hermann Weyl (1918), de, segundo Weyl (1952) traz consigo um profundo
em sua grande obra Space, Time, Matter afirma que insight voltado para a harmonia do agir no mundo.
o espaço é apenas uma forma da nossa percepção; Num similar sentido “transcendental”, Eins-
e que no reino da física, talvez apenas a Teoria da tein (1936) afirma que a física trata de forma direta,
Relatividade o tenha tornado quase real, ou seja, as apenas, da experiência sensorial e da compreensão
duas essências, espaço e tempo, não têm lugar no de suas conexões; mas, num primeiro momento,
mundo construído pela moderna física matemática mesmo o conceito do mundo real externo do coti-
(Weyl, 1952). diano se assenta exclusivamente nas impressões
O mundo real, e qualquer um dos seus cons- dos sentidos. Einstein está ciente que de o primeiro
tituintes do mundo real são, e somente podem ser passo para postular um mundo real externo é a pro-
dados, diz Weyl (1952, p. 5), “como objetos in- dução de algum tipo de ordem entre as impressões
tencionais de atos de consciência”. Eu “tenho” a sensoriais, através da criação de conceitos genéri-
percepção, porém só “conheço” algo relativo a ela cos, relações entre esses conceitos e relações entre
quando a tenho, assim como o objeto intencional de conceitos e experiência sensorial. É nesse sentido
uma nova percepção interiorizada. Neste segundo que o mundo das nossas experiências sensoriais é
ato, o objeto intencional é imanente: assim como compreensível. O fato de ser compreensível é um
o ato em si mesmo, é um componente real do meu milagre, na opinião de Einstein (1936, p. 351). A
fluxo de experiências; porém, no ato primário da conexão dos conceitos elementares do pensamen-
percepção, o objeto é transcendente: ele nos é dado to cotidiano com complexos de experiências sen-
na experiência da consciência, mas não é um com- soriais, pode ser compreendida apenas de maneira
ponente real dela. O que é imanente é absoluto, é intuitiva, pois não é adaptável a uma obsessão cien-
exatamente o que é na forma como o tenho em sua tificamente lógica. Na formulação de Einstein há,
essência, através de atos de reflexão. para o indivíduo, um Eu-tempo, ou tempo subjeti-
Por outro lado, objetos transcendentais tem vo, que não é mensurável; porém podemos associar
apenas uma existência fenomenológica no meu flu- números a eventos de modo que números maiores
xo de consciência; eles são essências porque eu os sejam associados ao último evento ao invés do pri-
“vejo” como aparências e porque apresentam uma meiro. Esta associação pode ser definida por meio
diversidade de “gradações”, de diversas maneiras de um relógio, comparando-se a ordem de eventos
(Weyl, 1952). É a natureza de uma coisa real, ines- fornecida pelo relógio com a ordem de uma série de
gotável em sua essência. Podemos ainda obter um eventos dados. De fato, em física, usamos o relógio
insight ainda mais profundo deste conteúdo eidé- como algo para estabelecer uma série de eventos

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
tico através da adição contínua de novas experiên- que possam ser contados. As ciências naturais, em
cias, de onde surge a característica empírica de todo especial a física, lida com essas percepções senso-
o nosso conhecimento da realidade. riais. A concepção de corpos físicos, em especial rí-
Os conteúdos da consciência não se apresen- gidos, é uma complexidade relativamente constante
tam simplesmente como ‘ser’ (tais como concep- de percepções sensoriais como mencionado ante-
ções e números, etc.), mas como um ser agora, pre- riormente. Um relógio, um ponto ou linha, também
enchendo um presente duradouro e de conteúdo é um corpo, ou um sistema com a propriedade adi-
variável. O tempo é a forma primitiva do fluxo de cional que a série de eventos que conta é formada
consciência (Husserl, 1928), de modo que alguém de elementos que podem ser considerados como
não diz que é, mas este é o agora, agora e não mais. iguais: eles servem para representar a complexida-
Se nos projetarmos para fora do fluxo de consciên- de de nossas experiências (Einstein, 1953, pp. 1-2).
cia e representarmos seu conteúdo como um objeto, O objetivo da ciência é a compreensão, a mais
o fluxo torna-se um evento acontecendo no tempo, completa possível, da conexão entre as experiências
os diferentes estágios se posicional um ao outro em sensoriais em sua totalidade, através de um número
relações de antes e depois (Weyl, 1952). Em outras mínimo de conceitos primários e relações (Einstein,
palavras, cada coisa material pode ocupar igual- 1936, p. 352).
mente uma posição diferente no espaço a partir de
sua posição atual, sem mudar seu conteúdo. Esta é
a propriedade da homogeneidade do espaço que é Mundo-Vivido e Intersubjetividade: A solução
-

a raiz da concepção congruente (Rickman, 2005). de Husserl.


A consciência, sem a guarnição de sua ima-
A r t i g o s

nência, torna-se um recorte da realidade. Assim, a Em Crise, Husserl critica o desdém (Verächt-
consciência expande sua rede na forma de tempo, lichkeit) com o qual tudo é “meramente subjetivo
acima da realidade. Mudança, movimento, passa- e relativo” e, portanto, o modo como os cientistas

361 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 358-365, set-dez, 2018
Giorgio Jules Mastrobisi

tratam a experiência sensorial, a partir do ideal mo- do mundo-forma do espaço-tempo e posicional em


derno de que a objetividade não modifica nada em dois sentidos (de acordo com a posição espacial e
sua própria maneira de ser (Husserl, 1954, p. 128). com a posição temporal) – o onta espácio-temporal.
De fato, usar o Lebenswelt, o mundo-vida, não Aqui, pois, poderíamos encontrar a tarefa de uma
significa entendê-lo cientificamente em sua própria ontologia do mundo-vida, entendida como uma
maneira de ser. Husserl responde a Einstein, que usa doutrina geral da essência para estes onta (Husserl,
os experimentos de Michelson e sua corroboração 1954, p. 145).
por parte de outros pesquisadores, sem uma verifi- Coisas e objetos são dados fenomenologica-
cação cuidadosa do que envolve: pessoas, aparatos, mente como válidos para nós, mas apenas se estiver-
a sala no instituto, etc. Mas Einstein não pode fazer mos conscientes deles como coisas ou objetos dentro
qualquer uso da construção teórica psicológica-psi- do mundo-horizonte. Cada qual é uma coisa, algo do
cofísica do ser objetivado do Michelson. Ao invés mundo do qual estamos constantemente conscientes
disso, fez uso do ser humano que era mais acessível como um horizonte, um sistema pré-dado. Por outro
a ele, assim como para todo o mundo pré-científico, lado, estamos conscientes desse horizonte-referência
como um objeto de uma experiência evidente, ou apenas como um horizonte para objetos já existentes
seja, o ser humano cuja existência, vitalidade, em (Husserl, 1954, p. 147-148).
suas atividades e criações do mundo-vida, é sempre Se eu permanecer puramente no domínio da
a pressuposição de todas as linhas de investigação visão, encontro novas diferenças, surgindo da mul-
científico-objetivas de Einstein, projetos e realiza- tiplicidade em curso de qualquer visão normal que,
ções pertencentes aos experimentos de Michelson. afinal, é um processo contínuo; cada fase é em si
É claro que – de acordo com Husserl (1976) – que o mesma uma visão, mas o que é visto em cada uma
mundo da experiência é comum a todos, e que Eins- é algo diferente.
tein e todos os outros pesquisadores o sabem, sendo Esta é a prova fenomenológica, teoricamen-
aquele que ele vive como ser humano, mesmo em te falando, dos processos da Relatividade. Eu sou
todas as suas atividades de pesquisa. consciente da coisa existente, ainda que ela se mo-
Mas, enquanto o cientista natural está envolvi- difique eventualmente. Eu tenho a experiência (Er-
do com sua atividade, a subjetividade-relativa ain- lebnis) de uma exibição de, embora a última, com o
da está funcionando para ele, não como algo irre- seu notável “de’ torna-se visível apenas na reflexão.
levante e que deve ser atravessada, mas como algo Implícita na experiência particular da coisa está
que fundamenta a validade ôntica lógico-teórica todo um horizonte de ações inativas (nichtaktuelle)
para qualquer validação objetiva, como fonte para e ainda maneiras co-funcionais de aparência e sín-
autoevidência, como fonte de verificação. As esca- teses de validade (Husserl, 1954, p. 162).
las de mensuração visíveis, o espaço Euclidiano, os Cada essência pode ser mostrada somente em
corpos rígidos e relógios, a homogeneidade e con- relatividade; em um desdobramento de horizontes
gruência no espaço, são empregadas como coisas nos quais percebemos as limitações não percebidas,
verdadeiramente existentes, não como ilusões: mas horizontes que ainda não foram sentidos e que nos
aquilo que realmente existe no mundo-vida, como levam a questionamentos a partir de novas correla-
algo válido, é apenas uma premissa. O conhecimen- ções inseparavelmente unidas com aquelas já de-
to do mundo científico-objetivo está fundado na mostradas (Husserl, 1954, p. 162). O mundo existe
evidência do mundo-vivido. Se deixamos de estar como algo temporal – um mundo espácio-tempo no
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

imersos em nosso pensamento científico, nos torna- qual cada objeto tem sua extensão e duração corpó-
mos conscientes de que nós, cientistas, somos, afi- rea e sua posição no espaço e no tempo universal
nal de contas, seres humanos e, como tais, estamos (Grelland, 2008). Em uma percepção contínua, o
entre os componentes do mundo-vida que sempre objeto está lá, para mim, na certeza ôntica direta
existe para nós, sempre pré-dado; e assim toda a ci- da presença imediata (Husserl, 1954, pp. 164-167).
ência é levada conosco, para dentro do mundo-vida
meramente subjetivo-relativo (Husserl, 1954).
A pergunta então é: qual a relação entre o Conclusão: Resposta de Einstein e a Essência
mundo verdadeiramente objetivo e o mundo-vivido? Intersubjetiva do Mundo
Como já sabemos, físicos – que são seres humanos
como outros seres humanos, que sabem de si como Em um manuscrito inédito, do mesmo ano da
vivendo no mundo-vida, o mundo dos seus interes- Crise, de Husserl, Einstein parece voltar-se a este
ses – têm, sob o título de físicos, um tipo particular problema fenomenológico usando a mesma termi-
de questionamentos, e suas teorias são os seus resul- nologia de Husserl:
tados práticos. E isto inclui, segundo Husserl, todas
as coisas objetivas a priori, com sua referência neces- A ciência como algo existente e confecciona-
sária a um correspondente a priori do mundo-vivido: do é mais do que algo objetivado e, ao mesmo
essa referência-passada é uma das bases da validade tempo, impessoal, de que nós, seres huma-
(Geltungsfundierung) (Husserl, 1954, p. 143). nos conhecemos. A ciência, como algo que se
-

Se procurarmos, ao nosso redor, pelo que per- constrói, como meta, é também e igualmente
manece invariável no mundo-vida, perpassando as subjetiva, psicologicamente condicionada as-
A r t i g o s

alterações do relativo, involuntariamente paramos sim como todas as outras aspirações huma-
no que determina para nós o falar sobre o mundo: o nas. (...) Naturalmente existem pessoas que
mundo é o universo das coisas, distribuídas dentro afirmam que a ciência produz uma conexão

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 358-365, set-dez, 2018 362
Fenomenologia e Relatividade: Husserl, Weyl, Einstein e o Conceito de Essência

elevada entre fatos experienciados [erlebba- é válida como algo que existente na particularida-
ren], de modo que podemos deduzir, a partir de de seus modos de dar-se na própria vida. Nessa
de fatos experienciados, outros fatos experien- intersubjetividade geral, os conceitos do que é, de
ciados. Segundo alguns positivistas, a solu- modos de doação, de sínteses, etc., são relativizados
ção possível para esta tarefa seria unicamente de forma recorrente (Husserl, 1954, p. 167).
o fim da ciência (...). Existe ainda um fator Então a Relatividade fenomenológica vem à
mais forte e por essa razão também um im- tona e Einstein, finalmente, reconhece a solução de
pulso mais sombrio por trás dessas disputas Husserl na sua relevância filosófica e científica. De
constantes: o desejo de compreender o Ser, fato, em um manuscrito inédito de 1941, em res-
a Realidade; entretanto, parece que temos posta ao Prof. McCrady, filósofo da Universidade de
evitado tais palavras, já que estamos muito Oxford, nos Estados Unidos, afirma que:
envergonhados em esclarecer o que deve-
mos verdadeiramente intencionar como real (...) configurar uma realidade física, indepen-
[Wirklich], e o que devemos entender [begrei- dente de qualquer sujeito perceptivo com rígi-
fen] nesta afirmação mais genérica. Todos es- das leis físicas, nunca foi algo duradouro. De
ses esforços estão baseados na confiança que fato, parece que a teoria atual da física quân-
o Ser em sua estrutura, está em completa har- tica não muda nada. Esse escape, que deriva
monia (Einstein, 1931/1933, p. 1). de um constrangimento momentâneo, em uma
fórmula estatística de leis da física, não deve
Mas, voltemos nossa atenção para a convicção ser tido como definitivo, mesmo que outro
de Husserl de que no fluxo contínuo de percepção- caminho ainda não tenha sido encontrado.
-mundo não estamos isolados, mas inseridos nele e De um lado, a Física e de outro a Psicologia,
em contato com outros seres humanos. Assim, de a História e a Teologia, empregam conceitos
acordo com este texto, o mundo existe não apenas de natureza diferentes para deduzir conexões
para seres humanos isolados, mas também para co- nas evidências. Estes dois mundos conceituais
munidades; pois mesmo o que é diretamente percep- distintos não podem ser fundidos em uma es-
tível também é comunal (Husserl, 1954, p. 165-166). trutura unitária. Um pensamento sempre será
Nessa comunalização, também ocorre uma al- sempre algo do outro, comparado com seu
teração constante da validade através de correções evento físico correlato, em um sistema nervo-
recíprocas. Na compreensão recíproca, minhas ex- so, tal como a representação de uma pessoa
periências e aquisições vividas entram em contato sempre será diferente em comparação à des-
com as experiências dos outros, de modo similar ao crição linguística de uma particularidade dela
contato entre séries de experiências individuais, ao (Einstein, 1941, p. 1).
longo da vida de qualquer um. Novamente, ocorre
uma harmonia intersubjetiva da validação e assim Referindo-se à fenomenologia de Husserl –
a unidade intersubjetiva surge na multiplicidade de acredito – Einstein conclui que:
validações, de tudo o que é validado através delas
(Husserl, 1954, p. 166). (...) Está surgindo, em nosso tempo, um pen-
Neste mundo-vida, cada sujeito já vivenciou samento novo e original. Se esse tempo gerou
coisas, portanto, o que é visto pelo indivíduo, atra- um progresso da esfera epistemológica, então

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
vés da percepção, é vivenciado como existindo di- me parece que não poderíamos dar como cer-
retamente e sendo como é. Cada sujeito sabe que a to nenhum caminho aceitável que nos leve de
percepção se relaciona com as mesmas coisas vi- Erleben (experiência) para o Erfassen (conhe-
venciadas, de modo que cada sujeito tem diferentes cimento) conceitual das coisas, visto que todo
aspectos, lados, perspectivas, e que são levados de pensamento está assentado em uma construção
um sistema total de multiplicidades, no qual cada teórica livre, que sistematicamente decorre de
indivíduo é consciente, como o horizonte de uma experiências do sentido (Einstein, 1941, p.2).
possível experiência (Husserl, 1954, p. 166).
A coisa em si, a essência é, na verdade aque- O mundo, tal como é para nós, se torna com-
la que ninguém vivencia realmente, visto que está preensível como uma estrutura de significados
sempre em movimento, sempre e para todos, uma formada fora de intencionalidades elementares. E
unidade para a consciência da multiplicidade infi- o significado não é nada além de validações rela-
nita de experiências mutáveis e coisas experienci- cionadas aos egos dos sujeitos. Intencionalidade é
áveis, próprias e dos outros (Husserl, 1954, p. 166- o nome que permanece para o único caminho ge-
167). Os co-sujeitos destas experiências, constituem nuíno e atual de explicar, tornar inteligível (Hus-
para mim e para os outros, um mundo infinito e serl, 1954, pp. 170-171). Nesse sentido, falamos de
aberto de possíveis instrumentos, que nos permite constituição intersubjetiva do mundo: o mundo da
representar uma série de essências, intersubjetiva- vida, que logicamente, refere-se a si mesmo dentro
mente estabelecidas. Um mundo de essências inter- de todas as estruturas práticas, relacionado à sub-
-

subjetivamente determinado, no qual todos os ob- jetividade através da alteração constante de seus
jetos sensoriais são um modo específico e possível aspectos relativos.
A r t i g o s

da consciência dada, em um processo contínuo de A verdade objetiva pertence exclusivamente à


esclarecimento e compreensão da sua totalidade e atitude natural do mundo-vivido: o mundo é desde
objetividade. Uma aparência meramente subjetiva o início entendido como correlato das aparências

363 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 358-365, set-dez, 2018
Giorgio Jules Mastrobisi

subjetivas, perspectivas, atos subjetivos e capacida- Husserl, E. (1901). Logische Untersuchungen. Zweiter Teil.
des, através dos quais obtém seu sentido mutável, Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie
porém unitário. Ora, se as investigações da fenome- der Erkenntnis. Halle (Saale): Max Niemeyer Verlag.
nologia de Husserl partem do mundo de volta às
essências destas aparências e perspectivas, os polos Husserl, E. (1913a). Ideen zu einer reinen Phänomeno-
do ego se tornam sujeitos da investigação da essên- logie und phänomenologischen Philosophie. Erstes
cia e, em um sentido novo e superior, tornam-se o Buch: Allgemeine Einführung in die reine Phänome-
aspecto subjetivo do mundo e de suas maneiras de nologie Jahrbuch für Philosophie und phänomeno-
aparecer (Husserl, 1954, p. 183). logische Forschung I/1, pp. 1-323.
Mas – de acordo com Husserl – precisamente
Husserl, E. (1913b). Logische Untersuchungen. Erster Teil.
aqui temos uma dificuldade. A intersubjetividade
Prolegomena zur reinen Logik. Text der 2. Umgear-
universal, na qual toda objetividade e tudo o que
beitete Auflage. Halle (Saale): Max Niemeyer Verlag.
existe é resolvido, pode não ser nada além de huma-
nidade (Husserl, 1954, p. 183). Husserl, E. (1928). Zur Phänomenologie des inneren Zeit-
A intersubjetividade transcendental, que é bewusstesens. Jahrbuch für Philosophie und phän-
constituída como relatividade em uma pluralida- omenologische Forschung (M. Heidegger, Ed.). Bd.
de de egos existe com o modo de existência per- IX, pp. 367-498.
tencendo a algo absoluto; na forma de uma vida
intencional e, portanto, possuindo uma capacidade Husserl, E. (1929). Formale and transzendentale Logik.
essencial para refletir em si mesma, em todas as es- Versuch einer Kritik der logischen Vernunft. Halle
truturas que a sustentam, uma habilidade essencial (Saale): Max Niemeyer Verlag.
para tornar-se temática e produzir julgamentos e
evidências relacionadas a si própria. Mas essa es- Husserl, E. (1954). Die Krisis der europäischen Wissen-
sência inclui a possibilidade de auto avaliação que schaften und die transzendentale Phänomenologie.
começa com significados vagos e que, através de Eine Einleitung in die phänomenologische Philoso-
um processo de descobrimento, volta-se para o ego phie. Husserliana VI. (W. Biemel, Ed.). Netherlands:
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Giorgio Jules Mastrobisi completou seu PhD na


Universidade de Salento (Itália) sobre a fundação
fenomenológica da Teoria da Relatividade de Einstein,
supervisionada pelo professor Thomas Nenon (Memphis,

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
TN, EUA), em 2004. Também editou um manuscrito não
publicado de Einstein, que ele chamou de “Manuscrito
de Cingapura”, que agora é publicado no recente volume
XIII dos Collected Papers de Einstein, da Universidade
de Princeton. orcid.org/0000-0002-8054-7932. Email:
jmastrobisi@hotmail.com

Recebido em 2017.05.02
Primeira Decisão Editorial em 2017.11.07
Aceito em 2018.12.01
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Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.11

SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E A REFORMA


PSIQUIÁTRICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Unified Health System and Psychiatric Reform: challenges and perspectives

Sistema de Salud y Reforma Psiquiátrica: Retos y Perspectivas


Tatiana Benevides Magalhães Braga
Marciana Gonçalves Farinha

Resumo: Este artigo apresenta as transformações no processo de constituição da saúde mental e suas aproximações e
distanciamentos com a Saúde Coletiva no Brasil, em especial entre os movimentos das reformas psiquiátrica e sanitária.
Analisando os paradoxos, lacunas, impasses, desafios e perspectivas da construção da autonomia do sujeito em situação
de sofrimento grave, discute como as dificuldades encontradas na desinstitucionalização psiquiátrica entrelaçam-
se em campos de consonância e conflito. Nesse contexto, torna-se fundamental a desconstrução e desnaturalização
das perspectivas epistemológicas dificultadoras da autonomia do sujeito, cabendo resgatar importantes influências
do pensamento fenomenológico que percorreram o processo de reforma psiquiátrica e continuam a se fazer ouvir na
consideração da totalidade da existência dos sujeitos e no questionamento do determinismo sobre a subjetividade.
A articulação de propostas de problematização e reinvenção das relações humanas nos dispositivos substitutivos
permitem a crítica a uma miscigenação das concepções manicomiais nos próprios serviços de saúde mental.
Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica, SUS, sofrimento existencial

Abstract: This article presents the transformations in the mental health constitution process and their approximations
and distancing with the collective health in Brazil, specially between the Psychiatric and sanitary reform movements.
Analyzing the paradoxes, gaps, impasses, challenges and perspectives of the subject autonomy construction in a grave
suffering situation, discuss how the difficulties found in the psychiatric deinstitutionalization intertwine themselves
on consonance and conflict fields. In this context, it becomes fundamental the deconstruction and denaturalization
of the epistemological perspective that difficult the subject’s autonomy, fitting to rescue important influences of
the phenomenological thought that went through the psychiatric reform process and are still making themselves
to be listened in the consideration of the subjects existence totality and in the questioning of the determinism over
the subjectivity. The proposals articulation of the human relations questioning and reinvention in the substitutive
devices allows the critic to the manicomials conceptions miscegenation in the same mental health services.
Keywords: Mental health, Psychiatric reform, Single Health System, deinstitutionalization, Existential suffering

Resumen: Este artículo presenta los cambios en la constitución del proceso de salud mental y sus similitudes y diferencias
con la salud pública en Brasil, especialmente entre los movimientos de la reforma psiquiátrica y la reforma sanitaria. El
análisis de las paradojas, las lagunas, callejones sin salida, retos y perspectivas de la construcción de la autonomía de la
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persona en situación de peligro grave, discute cómo las dificultades encontradas en entrelazar desinstitucionalización
psiquiátrica en campos de las líneas y los conflictos. En este contexto, es esencial para deconstruir y desnaturalizar
causan dificultades perspectivas epistemológicas de la autonomía del sujeto, dejando de rescate influencias importantes
del pensamiento fenomenológico que pasaron por el proceso de reforma psiquiátrica y continuar con el conocimiento
en consideración de la totalidad de la existencia de los sujetos y cuestión del determinismo sobre la subjetividad.
El interrogatorio conjunto de propuestas y reinvención de las relaciones humanas en los dispositivos sustitutivos
permitió la crítica a un mestizaje de los conceptos de los manicomios en los propios servicios de salud mental.
Palabras-clave: Reforma Psiquiátrica, SUS, desinstitucionalización, sufrimiento existencial

A herança histórica: loucura, purificação e saúde mental e saúde coletiva - em especial entre
exclusão social reforma psiquiátrica e sanitária. Busca-se assim
compreender o pano de fundo da permanência de
O estudo problematiza impasses vividos pela práticas manicomiais na rede substitutiva.
reforma psiquiátrica brasileira a partir de um per- Inicialmente cabe resgatar a construção histó-
curso que realça: 1) a construção histórica de posi- rica do olhar da psiquiatria clássica, já que histori-
cionamentos epistemológicos diversos para o cha- camente a loucura não foi sempre compreendida a
mado terceiro momento da reforma psiquiátrica, partir da noção de doença mental. Na Antiguidade,
que comporta a reformulação das concepções em associava-se com o divino: os oráculos, o destino
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torno do sofrimento existencial grave; 2) a influên- das tragédias gregas, os demônios expulsos na Bí-
cia da perspectiva fenomenológica, relevante e ain- blia (Serrano, 1986), ou a aspectos orgânicos liga-
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da pouco conhecida no Brasil e 3) o cenário político dos aos hábitos e à harmonia com o cosmos, como
brasileiro, tanto em termos de investimento estatal em Hipócrates, Platão e Galeno (Pessotti, 1994; Cos-
quanto de aproximações e distanciamentos entre ta-Rosa, 2000). Na Idade Média, a loucura passa a

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Sistema Único de Saúde e a Reforma Psiquiátrica: Desafios e Perspectivas

ser assimilada nas comunidades ou vinculada ao caráter agudo ou crônico, alternâncias de sintomas.
sobrenatural no chamado de Deus ou na presença Instituem-se, assim, ligações entre sintoma e neu-
do demônio, para a qual eram endereçadas purifi- rohipótese, visando garantir à loucura o status de
cações rituais: exorcismos, peregrinações, orações e doença e à psiquiatria o status de medicina em sua
penitências (Foucault, 2014). lógica clássica: classificação do sintoma, indicação
No fim da Idade Média, o ideal de homem ra- de relações de causa e efeito entre sintoma e agen-
cional e autocontrolado, ligado à organização mone- te causador e, enfim, a delimitação da doença, com
tária, cultural e produtiva do capitalismo nascente, agentes definidos, sintomas relacionados, previsão
operou a exclusão de aspectos desviantes: os afetos, de evolução e definição de tratamento.
a morte, a loucura... Inicia-se então a exclusão dire- Tome-se como exemplo a esquizofrenia. Em
ta: os transportados nas naus dos loucos não conse- 1860, Morel tipifica na demência precoce um grupo
guiam asilo permanente nos burgos e o louco torna- de sintomas que inclui delírios, alucinações, pensa-
-se itinerante, sem pertença fixa (Foucault, 2014). mento bizarro, tem início na juventude e evolui para
Desde a alta Idade Média, os leprosos eram inter- a perda de funções cognitivas. Sustenta a neurohipó-
nados nos leprosários em isolamento permanente tese da degeneração cerebral. Hecker, em 1871, agru-
e sem tratamento. No século XV, junto à errância pa na hebefrenia (do grego, alma infantil) sintomas
dos loucos, a prática de evitar contágio extingue a semelhantes, mas não exige evolução para a demên-
lepra da Europa, tornando a exclusão social meto- cia, destaca a puerilidade e hipotetiza falhas no de-
dologia de saúde: a separação entre doentes e sãos senvolvimento cerebral. Em 1874, Kahlbaum agrupa
na erradicação da lepra gerou bases para uma cisão tais sintomas como catatonia destaca embotamento
dualista entre normal e patológico (Foucault, 2014). afetivo e autismo e associa parte deles à sífilis.
Contida a lepra, os leprosários assumem entre os Com Kraepelin, na virada do século, as neu-
séculos XIV e XVII a internação de doentes vené- rohipóteses migram da anatomia cerebral para a fi-
reos e, posteriormente, degenerados e desviantes de siologia: se de início considera a demência precoce
toda espécie – inválidos e idosos na miséria, pros- processo degenerativo, posteriormente toma-o como
titutas, pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças metabólico (Elkis, 2000). Kraepelin reagrupa os diag-
alienadas’ (Foucault, 2014, p. 6), numa cultura de nósticos anteriores em subtipos da demência precoce
trabalho forçado e disciplinamento pelo castigo e (hebefrênica, catatônica, paranóide e mais tarde ou-
pela ordem. Germina-se um olhar sobre a loucura tros). Separa subgrupos pela perda ou aumento da
como objeto de correção, análise e manipulação, atividade cerebral e os associa a 48 sintomas. Embora
que resultará, no século XIX, em seu diagnóstico e reconhecesse cura em 25% dos casos e propusesse
tratamento. A loucura figura então como o negativo diagnóstico longitudinal, observando a evolução dos
do trabalho e da razão - antítese do ideal humano da sintomas no tempo (Foucault, 2000, Elkis, 2000), rea-
cultura burguesa em constituição. firma seu caráter orgânico. No início do século XX e
Ao fim da Idade Moderna, a Revolução Francesa sob influência de Freud, Bleuler passa a considerar
destitui os sistemas de internação, considerados sím- aspectos psicológicos no diagnóstico do conjunto
bolo do antigo poder autoritário. Porém os mantém patológico que ele renomeia esquizofrenia. A jun-
para o louco, avaliado pela razão iluminista como ção das palavras gregas esquizo (dividido), e frenos
perigoso se liberto (Foucault, 2014). No ideário racio- (alma), aponta para a ênfase bleuriana na cisão entre
nalista, Pinel, ligado ao grupo revolucionário, reor- pensamento, emoção e comportamento nos sujeitos

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ganiza os hospitais franceses e toma o louco como afetados (Elkis, 2000). Haveria sintomas orgânicos e
objeto tanto de disciplina quanto trato médico. Tal psíquicos, todavia considerar aspectos psíquicos não
ato inaugura a psiquiatria clássica, que nasce como significou alterar pressupostos: os sintomas funda-
paradoxal reforma: livre de correntes e punições, o mentais seriam orgânicos, pois refletiriam uma alte-
louco perdura ainda mais assentado ao espaço fecha- ração cerebral, enquanto os sintomas psíquicos são
do (Foucault, 2014; Basaglia, 2001) - sua patologia é denominados “acessórios”, meras reações à condição
tida como inerente, oposta ao normal, seu tratamen- adoecida e expressão secundária dos sintomas primá-
to é um ajuste a modelos sociais de conduta. rios. Além disso, Bleuler considera a possibilidade de
ocorrer agravamento, estacionamento ou regressão
dos sintomas, porém nunca sua remissão completa.
A psiquiatria clássica e a biologização Perdura a tentativa de articular a conduta do louco e
epistemológica da loucura substratos orgânicos correspondentes, ainda que tais
nexos não fossem precisamente demonstráveis. Nesse
No binômio normal-patológico, a psiquiatria paradigma, a loucura é abarcada pela noção de “doen-
estipula elos entre condutas do louco e funciona- ça mental”, que pressupõe um grupo de sintomas de
mento orgânico. À guisa da medicina orgânica, a base orgânica e causas identificáveis por exames e
medicina mental a princípio alocou a essência da acompanhamento clínico (Foucault, 2000).
doença em grupos de sintomas, criando uma sin-
tomatologia e uma nosografia (Foucault, 2000). Na
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sintomatologia, referem-se nexos entre doença e ex- Epistemologias ampliadas: fenomenologia e


pressão mórbida: a alucinação torna-se sintoma de saúde mental
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uma estrutura orgânica delirante; a confusão men-


tal, sintoma de uma estrutura demente. Na noso- No fim do século XIX, já brotavam aborda-
grafia, analisa-se a evolução da doença: variantes, gens psicopatológicas não biologizantes, que bus-

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Marciana Gonçalves Farinha; Tatiana Benevides Magalhães Braga

cavam considerar o sujeito para além do âmbito A acepção de uma racionalidade deficitária de
estritamente orgânico. Breuer e Freud (1895/1990) cunho orgânico permitiu, ainda, o controle moral,
propuseram a relação entre sintomas neuróticos e a deslegitimação e a negação dos discursos daque-
experiências vividas e representadas no psiquismo. les classificados como doentes mentais (Amarante,
Embora haja contribuições da psicologia analítica, 2016; Foucault, 2000). Goffman (2001) descreve di-
de Reich, da psicanálise e de outros autores, o pre- versos mecanismos pelos quais o interno é levado
sente texto discutirá a influência da fenomenologia a assumir a identidade social construída institucio-
no questionamento do olhar da psiquiatria tradi- nalmente no espaço do hospital psiquiátrico: a per-
cional sobre a loucura, menos conhecida no Brasil. da de contato com o mundo externo, a destituição
Pouco depois dos primeiros escritos de Husserl que da identidade civil e assunção ritual da identidade
fundam a fenomenologia, ela fecunda a psicopato- institucional, a perda do estojo de identidade, a per-
logia. Em Psicopatologia Geral (1913/2003), Jaspers turbação da economia, a consideração de quaisquer
desconstrói várias acepções sobre a loucura cimen- reações fora do padrão esperado como sinais inde-
tadas ao longo de sua história de exclusão. Critica léveis que atestam a condição de doente do sujeito.
noções forjadas na Idade Moderna que aproximam Também Basaglia (2010) aponta relações de domina-
loucura e animalidade, reputando a loucura à des- ção baseadas na violência como principal caracterís-
razão; toma o delírio como alteração do juízo e afir- tica das instituições asilares tradicionais. No cená-
ma que apenas aqueles os de julgar seriam capazes rio do hospício, a organização dos espaços-tempos
de delirar, situando a loucura como eminentemente é promotora de identidades cronificadas (Lancetti,
humana; critica ainda a noção estrutural de per- 2011). O modelo forjado pela psiquiatria no fim do
sonalidade, afirmando que o homem não pode ser século XVIII, dominante até a década de 1960 e ain-
concebido como coisa com propriedades, mas como da presente no século XXI, carrega a herança de um
“ser em seu mundo” (Jaspers, 1913/2003, p. 21), em profundo processo de exclusão e assujeitamento dos
desenvolvimento e diferenciação de si; critica o indivíduos considerados desviantes, coopera na de-
método quantitativo de classificação dos sintomas gradação e segregação dos diagnosticados, levando-
como único modo de saber sobre a doença, advo- -os ao aprisionamento social no lugar de estigmatiza-
gando pelo método fenomenológico e pela escuta do e, portanto, cronificado, da doença mental.
dos relatos de pacientes, entre outros temas.
Entre 1930 e 1950, Binswanger (2009, 2013)
cria a Daseinsanalyse, método conjuntamente com- Abordagens ampliadas e o início da reforma
preensivo e terapêutico dos fenômenos psicóticos. psiquiátrica
Influenciado por Husserl e Heidegger, propõe sus-
pender conceitos prévios da psicopatologia e rejeita O advento de críticas teóricas ao binômio sin-
pensar o sofrimento como cisão entre fatores inter- toma-base orgânica não operou a mudança imediata
nos e externos, pois reforçaria a cisão entre sujeito da práxis dominante. Foi sobretudo após a Segunda
e objeto que a noção husserliana de intencionali- Guerra Mundial que o cenário de tratamento e com-
dade procura ultrapassar. Para Binswanger, (2013), preensão do sofrimento humano transformou-se
o homem é existência em sua história de vida e o significativamente (Amarante, 2016, Pessoti, 2006).
fenômeno psicopatológico não é isolado, mas pro- Várias condições socioeconômicas e históricas en-
cessual: existir no mundo articula o sentido dos trelaçaram-se no estabelecimento de novas expe-
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estados psicopatológicos, enquanto alterações nas riências para lidar com a loucura: o contexto de
condições ontológicas da existência – experiência guerra tornou cara a manutenção da estrutura asilar
temporal, espacialidade, corporeidade, etc. (Tatos- e aumentou a demanda psiquiátrica e por reabilita-
sian & Moreira, 2012). Numa fenomenologia genéti- ção em geral, o desmonte dos campos de concen-
ca que toma a existência como presença no mundo, tração levou à desconfiança quanto às instituições
Binswanger descreve os pacientes propondo alguns totais, o crescimento dos movimentos populares e
modos de experiência, como mania, melancolia (Ta- das mudanças na estrutura política aumentou a rei-
tossian & Moreira, 2012), extravagância, excentrici- vindicação por direitos e à formação do Estado de
dade e amaneiramento (Binswnager, 2009), ligan- Bem-Estar Social europeu.
do-os às dificuldades do fluir da experiência. É no contexto da Segunda Guerra Mundial que
O pressuposto somático diretamente ligado à surge a experiência socioterápica, primeiro ensaio
manifestação sintomatológica havia feito persistir, de reestruturação asilar, pelas comunidades tera-
no século XIX e na primeira metade do século XX, pêuticas desenvolvidas por Maxwell Jones na Escó-
a primazia da ótica epistemológica de tratamento cia (Jones, 1972), a partir de 19381. Com a escassez
e intervenção no corpo, excluindo esferas relacio- de recursos e a crescente demanda por atendimen-
nais, condições materiais de vida ou lugares sociais to, Jones passou a propor que os próprios pacientes
dos diagnosticados. A consolidação de um olhar participassem da organização institucional, basea-
negativo sobre a doença mental (o doente mental da no acordo coletivo e em assembleias, e ainda na
como deficitário em relação ao indivíduo são que,
-

portanto, perde algo de sua própria humanidade), 1 Também na primeira metade do século XX surgiram nos Estados Uni-
dos as experiências de Comunidades Terapêuticas de cunho religioso. Seus
forjou bases das relações de violência concreta e
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pormenores não serão discutidos nesse breve histórico apresentado sobre


simbólica instituídas não apenas no espaço asilar, a reforma psiquiátrica no plano internacional, porém sua influência será
mas no convívio entre o então doente mental e os reconsiderada adiante, quando for abordado o problema das comunidades
profissionais, familiares e atores sociais. terapêuticas no panorama da reforma psiquiátrica brasileira, considerando
suas tensões frente à discussão político-epistemológica em torno da resso-
cialização atinente aos dispositivos governamentais e de saúde.

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Sistema Único de Saúde e a Reforma Psiquiátrica: Desafios e Perspectivas

forma grupal de diversas atividades terapêuticas, profilática, privilegiando ainda a epistemologia de


enfatizando a troca de experiências. As comuni- um sofrimento exclusivamente orgânico, muitas
dades terapêuticas adotaram como princípios: uso vezes serviu à patologização das experiências hu-
da organização institucional como método tera- manas. Com a classificação psiquiátrica, indivíduos
pêutico, democratização das relações institucio- com relativa integração a seu contexto passaram a
nais, apreciação do potencial terapêutico de todos vivenciar a deslegitimação social. Com sua expe-
os vínculos desenvolvidos, acepção de que a tole- riência reduzida ao sintoma, ampliaram estatísticas
rância e o acolhimento de experiências disruptivas de internação psiquiátrica ao invés de preveni-las
compõem o ambiente terapêutico, ênfase na quali- e reduzi-las. Revela-se a potência estigmatizante e
dade comunicacional, na realização de atividades e redutora da lógica organicista criando profecias au-
experiências produtoras de sentido e na promoção torrealizadoras no meio social.
de retorno rápido ao meio aberto. Enquanto as propostas de reforma asilar e psi-
Ainda no âmbito asilar, a análise institucio- quiatria profilática voltaram-se à reformulação do
nal buscou transformar as instituições hospitala- atendimento, abordagens mais avançadas de refor-
res aliando teoria e prática pela reflexão sobre os ma partiram do questionamento da própria episte-
procedimentos comuns no interior dos espaços ins- mologia psiquiátrica (Puchivailo, Silva, & Holanda,
titucionais de internamento das pessoas em sofri- 2013). Ao desenvolver alternativas à lógica biolo-
mento existencial, propondo intervenções não cen- gizante sobre a loucura, tais abordagens retomam
tradas no poder autoritário do saber médico (Passos, o caráter historicamente paradoxal dessa lógica,
2009). As experiências de psicoterapia institucional revelando-a como ideologia social que mescla trata-
nas propostas francesas de Jean Oury e François mento e exclusão (Basaglia, 2001, 2010). Propostas
Tosquelles propunham uma mudança efetiva de como a esquizoanálise (Deleuze & Guatarri, 2015),
perspectiva no tratamento. Todavia, mormente se a antipsiquiatria (Laing, 1991; Cooper, 2013) e a psi-
limitaram a sanear os hospitais com maior limpeza quiatria democrática (Basaglia, 2001, 2010) articu-
e organização, ampliar a oferta de serviços externos loam a racionalidade psiquiátrica ao próprio capita-
de assistência aos enfermos, de modo amiúde ainda lismo, afirmando a necessidade de um olhar sobre
autoritário, abrir visitas nas instituições, e diminuir a loucura que não se restrinja ao âmbito biológico e
o tempo de internação (Passos, 2009). individual, mas compreenda a experiência humana
Tais experiências se limitaram a reestruturar na totalidade de suas interfaces de constituição, tra-
o âmbito asilar, visando considerar a perspectiva zendo à baila dimensões de ordem psíquica, social
dos atendidos e muitas vezes integrá-los à gestão e política (Foucault, 2006, Serrano, 1986).
institucional cotidiana. Seu aspecto mais significa- Para a antipsiquiatria (Laing, 1991), a crise seria
tivo residiu na consideração dos sujeitos para além a emergência de vivências caladas pelo sujeito fren-
do lugar da doença, que foi elemento chave para te à necessidade de adaptação social. A psiquiatria,
a ampla melhora dos pacientes, bem como para procurando controlar sintomas, incidiria no mesmo
impedir processos de cronificação frequentes nos processo gerador da crise, cronificando-o. Para a es-
manicômios tradicionais. As propostas socioterápi- quizoanálise (Deleuze & Guattari, 2015), as vivências
cas, posteriormente expandidas para outros locais de crise e sofrimento estão agudamente ligadas à res-
do mundo, demonstraram na prática a presença trição de experiências e laços sociais potencializa-
de uma profecia auto realizadora na racionalidade dores no contexto do capitalismo. Já para Basaglia

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psiquiátrica: ao tomar como prognóstico altamente (2010), a prática psiquiátrica funcionou como dispo-
provável a cronificação considerada exclusivamen- sitivo de opressão das classes pobres, desconsideran-
te orgânica e destituir o interno de qualquer respon- do a gênese multidimensionada do sofrimento e sua
sabilidade, escolha sobre si ou liberdade sobre a articulação com o contexto social mais amplo.
construção de sua subjetividade, o próprio discurso Na Europa, tais experiências levaram a refor-
psiquiátrico produziria cronificação. Refutando tal mulações profundas que deslocaram o debate do
lógica em favor da autonomia e do acordo coletivo âmbito meramente técnico para o campo político,
e assim obtendo melhores resultados, a experiência envolvendo trabalhadores, movimentos sociais e
socioterápica permitiu construir uma base episte- sociedade em geral. Em nossa análise, abarcamos
mológica e prática para a Reforma Psiquiátrica. a perspectiva de Foucault (2006), para quem a an-
A despeito de seus resultados, a reestrutura- tipsiquiatria e a psiquiatria democrática consistiam
ção asilar não alcançava o momento posterior à não apenas em tentativas de melhorar os serviços
internação, gerando amiúde uma situação na qual de saúde, mas em um autêntico rompimento com
os atendidos permaneciam em boas condições en- a lógica disciplinar da psiquiatria clássica. Consi-
quanto estivessem internados, porém voltavam derando ainda que a Psiquiatria Democrática con-
a entrar em crise no contato com as dificuldades sistiu não apenas na experiência de um serviço,
vividas anteriormente à internação. Isso eviden- mas numa ampla alteração da política pública ita-
ciou a necessidade de atenção territorial, gerando liana em saúde mental, muito influente na reforma
experiências como a psiquiatria de setor e a psi- psiquiátrica brasileira, e que seu pensamento teve
-

quiatria preventivo-comunitária, que buscaram a relevante inspiração fenomenológica, optou-se por


profilaxia do sofrimento psíquico, projeto que “não destacá-la. Foi a partir da problematização da ar-
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visa simplesmente à terapêutica e à prevenção das ticulação entre prática psiquiátrica e relações de
doenças mentais, mas constrói um novo objeto: opressão que o caráter de reinserção social foi ins-
a saúde mental” (Amarante, 2016, p. 89). A ótica tituído na reforma psiquiátrica italiana, passando a
constar na lei 180 (Basaglia, 2010).

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Marciana Gonçalves Farinha; Tatiana Benevides Magalhães Braga

Assistência em saúde mental no Brasil: atenção básica e na medicina comunitária e contro-


panorama político e diretrizes epistemológicas le popular da gestão, que se refletem na definição
legal dos princípios de universalidade, integralida-
No Brasil, a reforma psiquiátrica inicia-se no de, equidade, descentralização, regionalização, hie-
final da década de 1970, num cenário em que diver- rarquização e participação popular do SUS. Com a
sos movimentos sociais se entrecruzavam reivindi- abertura política do período, o movimento sanitário
cando o fim da Ditadura Militar (1964-1985), aber- inicia uma estratégia de ocupação dos cargos do Es-
tura política e ampliação de direitos. Para entender tado para efetivar o estabelecimento de um sistema
o atendimento público em saúde mental anterior universal de saúde. A princípio crítico quanto à re-
à reforma, importa destacar que isso consiste num lação entre saúde e sociedade, com questionamen-
hiato de trinta anos em relação à Europa: enquanto tos sobre a cientificidade do saber médico, a neu-
a reforma avança e estatiza-se na Europa nos anos tralidade das ciências, a validade das práticas de
1970, amplia-se o parque manicomial brasileiro saúde não oficiais, etc., (Amarante, 2016), o movi-
na Ditadura Militar. Em 1974, o governo assinou mento sanitário paulatinamente volta-se a sistema-
o Plano de Pronta Ação, convênio com hospitais tizar as ações de saúde, com maior ênfase na admi-
psiquiátricos privados que repassava-lhes recursos nistração do sistema. Simultaneamente, no plano
públicos destinados à assistência psiquiátrica, che- internacional, a expansão das políticas neoliberais
gando a absorver mais de 90% das verbas voltadas a partir da década de 1980 leva a uma desarticula-
à saúde mental no país (Waidman & Elsen, 2006; ção das forças promotoras de uma visão de saúde
Vecchia & Martins, 2009). Com ele, o número de voltada ao contexto social, pressionando pela dimi-
leitos psiquiátricos cresceu exponencialmente: em nuição das ações dos Estados voltadas aos direitos
1961, havia 140 hospitais psiquiátricos, sendo 86 de cidadania, tendendo a tornar filantropia o que
privados; em 1971, esse número subiu para 340, era considerado o direito social (Heimann, 2005).
com 277 hospitais privados; em 1981, só na rede Tal conjuntura contribuirá para as dificuldades de
privada eram 425 hospitais (Messas, 2008, p. 93). ampliação do investimento público em saúde e con-
Nessa expansão, não foi garantida a qualidade do sequente fortalecimento do SUS, refletindo-se so-
serviço prestado, e sobejaram violações aos direi- bre os problemas de abrangência do atendimento
tos humanos: o holoucausto de Barbacena (Arbex, e sobre a escolha por serviços institucionalizados
2013), a internação de foragidos políticos (Arbex, em detrimento de práticas individualizadas e terri-
2013) e a escravização de pessoas em condição de toriais, temas discutidos adiante.
deficiência mental do estado de Goiás (Meirelles, A princípio denominado Movimento dos Tra-
2016) ilustram esse panorama. balhadores de Saúde Mental (MTSM), o Movimento
Na década de 1980 a junção de diversos fatores Antimanicomial tem como marco a crise na Divisão
constrói um panorama histórico propício à Reforma Nacional de Saúde Mental (DINSAM), que adquiriu
Psiquiátrica: na esfera política, a redemocratização projeção nacional, com denúncias e reivindicações
anima a discussão sobre os direitos do usuário de que incluíam problemas como corrupção, violên-
serviços públicos de saúde mental, no campo eco- cia, tortura, negligência, ausência de recursos, etc.
nômico a recessão e a hiperinflação levam à crise do A princípio com um caráter corporativista, reivin-
modelo previdenciário (Jorge, 1997) e à dificuldade dicando melhores condições de trabalho aos pro-
de manter os altos custos estatais com manicômios fissionais da área, o movimento progressivamente
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particulares, favorecendo a reforma psiquiátrica direcionou-se para a reformulação profunda dos


(Andreoli, Almeida Filho, Martins, Mateus & Mari, paradigmas sobre a loucura e sua assistência, em
2007). Nesse cenário, dois movimentos ligados à que a violência das instituições psiquiátricas se
saúde se destacaram: o movimento sanitário, que relaciona de modo mais amplo com a violência do
buscou estabelecer a saúde como direito de toda a Estado militar contra os cidadãos. Diversos auto-
população, criando um sistema amplo e participati- res importantes visitaram o Brasil como Foucault,
vo, e o movimento antimanicomial, que questionou Guattari e Basaglia, influenciando o processo de re-
o paradigma do modelo clássico da psiquiatria. Li- forma psiquiátrica brasileira, e diversos núcleos do
gados a instituições universitárias como o Centro movimento antimanicomial foram formados. Cabe
Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES), a Asso- observar que o próprio movimento antimanicomial
ciação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e é grandemente heterogêneo, não havendo consenso
o Movimento de Renovação Médica (REME), às Co- nem sobre o direcionamento da Reforma Psiquiátri-
munidades Eclesiais de Base e a outras instâncias ca, nem sobre a noção de loucura ou o processo de
redemocratizantes, ambos os movimentos tinham reinserção social. Se por um lado essa diversidade
origens vinculadas e viram sua relevância crescer enriquece as possibilidades de pensar o processo
para além do campo da saúde, alçando a cena polí- terapêutico, enfraquece politicamente a implemen-
tica geral do período. tação de ações.
O Sistema Único de Saúde (SUS) nasce então Do início a meados da década de 1980, surge
da reinvindicação popular por um modelo de assis- o plano de reorientação da Assistência psiquiátri-
-

tência baseado na garantia de direitos, promoção da ca, bem como diversos modelos de gestão compar-
cidadania e perspectiva de integração das diversas tilhada e a constituição dos Sistemas Unificados
A r t i g o s

dimensões de saúde, numa conjuntura nacional de e Descentralizados de Saúde (SUDS), embrião do


fortificação dos direitos sociais. O movimento sa- Sistema Único de Saúde (SUS). Inserido no Estado,
nitário propõe universalização da saúde, ênfase na o movimento sanitário realiza a 8ª Conferência Na-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 366-378, set-dez, 2018 370
Sistema Único de Saúde e a Reforma Psiquiátrica: Desafios e Perspectivas

cional de Saúde, que pela primeira vez conta não Entre o final da década de 1980 e meados da
apenas com técnicos e burocratas, mas com a so- década de 1990, o movimento pela reforma psiquiá-
ciedade civil, e torna a expressão Reforma Sanitária trica distancia-se do Movimento Sanitário, voltan-
“lema nacional” (Amarante, 2016, p.92). Integran- do-se para o viés desinstitucionalizante, adotando a
tes do MTSM também realizam conferências regio- estratégia de problematização da loucura junto à so-
nais e a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental ciedade e preocupando-se não apenas com a siste-
(CNSM). O evento é marcado pela tensão: a DIN- matização dos serviços, mas com a possibilidade de
SAM e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) redirecionar o ato de saúde na própria relação entre
buscam restringir a participação da população e a profissional e usuário. As tensões entre movimento
implantação de novas formas de organização da as- sanitário e movimento antimanicomial são para-
sistência, enquanto as articulações do MTSM pres- digmáticas de algumas questões que envolvem o
sionam por maior voz popular e mudanças estru- campo da saúde mental em sua relação com o SUS.
turais, enfrentando resistências que Basaglia (2010) Embora possamos tomar esse campo como relativo
chegou a denominar de “culto do pessimismo”. à saúde, sua reorientação em direção à reinserção
Assim, a estratégia sanitarista assumia a di- social exige a crítica aos paradigmas sedimentados
reção de realizar pequenas modificações sem uma pela medicina tradicional. Inicialmente, reconhece-
mudança estrutural, que atingisse o âmago da ques- -se que a relação entre sintoma e substrato orgâni-
tão: o paradigma psiquiátrico pautado na relação co, bem como a fragmentação do corpo, presente
entre ajustamento/opressão social e saber médico/ no racionalismo médico, foi o eixo dos processos
especializado. Após a 1ª CNSM, inicia-se o período de exclusão social intermediados pela psiquiatria.
da “desconstrução/invenção” (Amarante, 2016, p. A possibilidade de uma nova relação com a loucura
93). No 2° Congresso Nacional dos Trabalhadores implica a consideração dos “muitos corpos” (Basa-
de Saúde Mental, institui-se o lema “por uma so- glia, 2010) pelos quais somos formados: dimensões
ciedade sem manicômios”, o Dia Nacional da Luta psicológicas, sociais, materiais, culturais, biológi-
Antimanicomial e a intervenção na Casa de Saúde cas que não podem ser considerados elementos se-
Anchieta e a posterior criação do Núcleo de Aten- parados, mas compõem a totalidade da existência.
ção Psicossocial (NAPS), serviço substitutivo que Nesse sentido, substitui-se o termo “doença
visa oferecer atendimento diário a usuários com mental” pelo termo “saúde mental”, visando evitar
sofrimento existencial que precisem de tratamento, o aprisionamento simbólico do indivíduo na condi-
e elabora-se o projeto de lei 3.657/89, embrião da ção de doente e a conotação de disfunção biológica
lei 10.216/2001 (Lei Paulo Delgado), que formaliza presente na noção de doença, bem como enfatizar a
a Reforma Psiquiátrica (Brasil, 2004). promoção de melhores condições de saúde. Porém,
Em 1992, o Brasil assina a Declaração de Cara- ambas as expressões, “doença mental” e “saúde
cas, pactuando com a reestruturação da assistência mental”, precisam ser problematizadas, possuin-
em saúde mental para assegurar direitos dos usuários do dois complicadores: mantêm o binômio saúde-
(Hirdes, 2009) e regulamenta os Centros de Assistên- -doença, que tende a biologizar a loucura buscando
cia Psicossocial pela portaria 224/92 (Brasil, 2004). causas orgânicas nunca claramente identificadas, e
Assim, embora na década de 1990 diversos pontos promovem a separação entre corpo e mente, como
da reforma estivessem já em expansão, assiste-se à se o surto dissesse respeito apenas à “mente”, seja
contradição entre a diretriz prevista no processo e ela compreendida como consciência ou mera ativi-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
sua efetivação. A pressão política do setor privado dade cerebral. Tais termos tendem a desconsiderar o
atrasou a aprovação da lei e levou a alterações de fenômeno multidimensional implicado na loucura,
dispositivos significativos do texto, como a previsão excluindo elementos sociais e mesmo psicológicos.
de extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos A intersecção entre atenção ao sofrimento gra-
privados (Pinto & Ferreira, 2010; Amarante, 2016). ve e sistemas e paradigmas da saúde em geral gera
A demora em oficializar a reforma levou à criação diversos conflitos. Embora o movimento de ques-
de portarias pelo ministério da saúde visando ope- tionamento dos paradigmas da psiquiatria clássica
rar mudanças na estrutura de assistência. Elas de- tenha produzido diversas experiências substituti-
terminavam: inserção de equipes multiprofissionais, vas de cuidado, é a mesma catalogação de sintomas
espaços para recreação, terapias complementares na produzida pela psiquiatria clássica que permane-
internação, parâmetros de adequação das acomoda- ce no Código Internacional de Doenças (CID) e no
ções, restrição do tempo de internação a 60 dias (Ri- Diagnostic and Statiscal Manual of Mental Desor-
beiro, Martins, & Oliveira, 2009), criação de NAPS e ders (DSM). No CID, o grupo das esquizofrenias
ambulatórios de saúde mental com assistência volta- obedece, em grande parte, a classificação de Krae-
da à reinserção social (Brasil, 2004). Todavia, as ten- pelin, mesmo suas neurohipóteses não tendo sido
tativas de implementação da reforma pelo executivo comprovadas, mas estimadas a partir da quantifica-
também encontravam dificuldades, como demonstra ção sintomatológica (Foucault, 2000, Elkis, 2000).
o Programa de Apoio à Desospitalização (PAD), de Assim, a reforma psiquiátrica e os serviços
1992, que pretendia utilizar os recursos economiza- substitutivos trazem uma ambiguidade semântica:
-

dos com a desativação de leitos hospitalares para o ora designam a simples tentativa de recuperação
retorno de pacientes longamente internados às fa- do potencial terapêutico da psiquiatria clássica, ora
A r t i g o s

mílias de origem, repassando um salário mínimo e denotam a intenção de reformulação profunda na


meio a elas, porém nunca foi efetivamente concreti- compreensão das situações de crise existencial gra-
zado (Andreoli et al., 2007). ve e do lugar social ocupado por seus personagens.

371 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 366-378, set-dez, 2018
Marciana Gonçalves Farinha; Tatiana Benevides Magalhães Braga

Vários serviços substitutivos brasileiros surgiram cobertura dos serviços instalados resta insuficiente,
inspirados em processos de reforma psiquiátrica havendo ainda despreparo de profissionais, famílias
no âmbito internacional, tais como experiências de e comunidades para o convívio com pessoas em si-
análise institucional, comunidade terapêutica no tuação de sofrimento grave (Brasil, 2004).
modelo de Maxwell Jones, residências terapêuticas,
programas de geração de renda, centros de atendi-
mento comunitário e de convivência inspirados na Desospitalização, desinstitucionalização e
Psiquiatria Democrática italiana, programas de ação desafios da reforma psiquiátrica
territorial baseados na Psiquiatria Comunitária e na
Psiquiatria de Setor, experiências de acompanha- Ao abordar o desmonte do hospital psiquiá-
mento terapêutico baseadas na proposta argentina. trico de Santos, Lancetti afirma que “a clínica rea-
Outras propostas surgem a partir de demandas bra- bilitativa é imanente ao processo de desmontagem
sileiras, embora sob influxo epistemológico de cor- manicomial” (2011, p. 21), sendo necessário con-
rentes internacionais. Tais experiências convivem templar ações que vão além da centralização no
no atual cenário de cuidado em saúde mental, no modelo biomédico, priorizando tratamento, rea-
qual encontramos desde espaços asilares clássicos, bilitação psicossocial, clínica territorial e projetos
de cunho manicomial, até experiências que articu- terapêuticos individualizados (PTI) (Hirdes, 2009).
lam promoção da saúde e promoção da cidadania, No entanto, no Brasil a diminuição de leitos nos
enfatizando a crise como restrição do compartilha- hospitais psiquiátricos não acompanhou a criação
mento de experiências. de vagas na rede substitutiva; além disso, o sistema
A Reforma psiquiátrica brasileira conhe- possui fragilidades em termos de abrangência, aces-
ce maior avanço após a promulgação da lei sibilidade e diversificação (Alverga & Dimenstein,
10.216/2001 (Brasil, 2004): entre 2002 e 2012, hou- 2006). Por outro lado, dispositivos abertos, embora
ve queda sistemática no número de leitos psiquiá- evitem alguns elementos cronificadores ligados às
tricos (de 51.393 para 29.958) e no percentual de instituições totais, só permitem reabilitação psicos-
gastos com a rede hospitalar (75,24% para 28,91%), social e extinção do preconceito mediante crítica
acompanhados de aumento do número de Centros da lógica organicista, resgatando a diferença entre
de Atenção Psicossocial (CAPS) (de 424 para 1981), desospitalizar e desinstitucionalizar. Longe de sig-
aumento de gastos com serviços abertos (de 24,75% nificar apenas alterações nos serviços, a desinsti-
para 71,09%), aumento de 68% no investimento em tucionalização requer o reposicionamento episte-
CAPS (de 460 milhões para 776 milhões) e aumento mológico da loucura, situando-a nas relações entre
dos recursos destinados à saúde mental (de 619 mi- sujeito e mundo, a fim de “desconstruir/construir
lhões para 1,8 bilhão). Assim, a avanços têm ocor- – o cotidiano das instituições” (Basaglia, 2001, p.
rido, como a instalação de serviços substitutivos, a 94). Reinventam-se os modos de olhar e lidar com
diminuição de leitos em hospitais psiquiátricos e a as questões apresentadas pelos indivíduos, num
criação de leitos em hospitais gerais (Brasil, 2007). “processo ético-estético, de reconhecimento de no-
Além disso, em 2004 foi implantado o Programa vas situações que produzem novos sujeitos, novos
Nacional de Avaliação dos Serviços de Saúde, para sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos”
garantir qualidade mínima das instituições públi- (Amarante, 2016, p. 1).
cas e privadas que recebem verba pública. No geral, Nesse sentido, é fundamenta uma capacitação
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

evolui-se de 13 Núcleos de Atendimento Psicos- profissional focada na desconstrução da concepção


social (NAPS) ou Centros de Atenção Psicossocial fragmentada e biológica de doença mental e do mo-
(CAPS) e 80 mil leitos psiquiátricos em 1989 para delo assistencial dela decorrente, que tome o sujeito
820 CAPS e 45 mil leitos em 2011 (Lancetti, 2011). enquanto constituído nas diversas relações, em seu
A mudança no repasse dos recursos expressa âmbito familiar, social e cultural e inclua o cuidado
solidamente mudanças no modelo de atendimento, em saúde mental em todas as esferas do SUS e da
passando a enfatizar inclusão social e promoção da rede de apoio psicossocial. Cabe lembrar a crítica
autonomia. Nesse quadro se desenvolvem progra- de Rotelli (1991): nos últimos vinte anos, muitos
mas e serviços voltados à desinstitucionalização e à países ocidentais tentaram reformar seus sistemas
criação de estratégias substitutivas em saúde mental. psiquiátricos pela estratégia de construir serviços
Porém, estabelecer novos espaços não significa por externos ao hospital psiquiátrico. Todavia, as mu-
si só reformular o modelo assistencial. Permanecem danças alcançaram poucos resultados em termos
em parte as contradições entre as iniciativas polí- de reabilitação, melhoria da assistência, e redução
ticas e sua efetivação já encontradas na década de da população internada, na Inglaterra, na França,
1990. A Lei 10.708/2003 institui o programa de volta nos países Escandinavos e na Alemanha. No pro-
para casa e a Portaria GM 106/2000 institui residên- cesso estadunidense, a desospitalização dos doen-
cias terapêuticas (Brasil, 2004), porém a ressociali- tes mentais tinha como objetivo reduzir despesas
zação de pessoas institucionalizadas pouco avança: estatais (Kantorski, 2001), não se comprometendo
ao contrário da implementação dos CAPS, os dispo- com a implementação de serviços substitutivos que
-

sitivos envolvidos não chegam a sistematizar uma permitissem avaliar comparativamente sua atua-
rede nacional. Do mesmo modo, a lei 10.216/2001 ção. Para serem efetivas, assim, a discussão sobre
A r t i g o s

prevê a criação de oficinas de trabalho protegido e a pluralidade de dimensões ligadas ao sofrimento


unidades de preparação para a reinserção social, que e o próprio processo histórico de estigmatização
não chegam a ser implantadas sistematicamente. A da loucura deve transcender modelos preestabele-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 366-378, set-dez, 2018 372
Sistema Único de Saúde e a Reforma Psiquiátrica: Desafios e Perspectivas

cidos não em termos apenas organizacionais, mas previstas na Portaria 1169/2005 (Brasil, 2010). Em-
na perspectiva do cuidado, integrando o processo bora a portaria 3088/2011 habilite todos os níveis
terapêutico. Tal transformação exige diálogos junto de atenção do SUS a atuar em saúde mental, situa
ao paciente quanto a critérios sobre a capacidade de apenas o Consultório na Rua, a Atenção Residencial
autonomia dos pacientes e a necessidade de atendi- de Caráter Transitório e os Centros de Convivência
mento fora do setting tradicional (Lancetti, 2011), como serviços voltados à saúde mental na atenção
questionando a hierarquia pautada na relação mé- básica, sendo os dois primeiros mais direcionados
dico-paciente e incluindo de projetos culturais, de à população residente na rua. Na atenção secundá-
geração de renda, etc. ria, a portaria 3088/2011 (Brasil, 2010) institui ape-
No campo da saúde em geral, embora tenha nas os CAPS como serviço especializado, omitindo
possibilitado um planejamento racional do sistema, outros dispositivos voltados à população em sofri-
a hierarquização contribuiu para o enrijecimento e mento existencial grave porém sem crise aguda, tais
burocratização das redes (Campos, 2010), fragmen- como hospitais dia, acompanhantes terapêuticos,
tando o atendimento e dificultando o acesso. No serviços de readaptação laboral e dispositivos de
campo da saúde mental, a hierarquização implica atendimento comunitário intensivo. Assim, usuá-
um agravante: ela contrapõe-se à lógica do CAPS, rios que não se adaptem à proposta institucional,
em que um serviço atua em diferentes níveis, pos- ao ambiente relacional ou aos serviços oferecidos
sibilitando que o usuário em crise grave mantenha no CAPS de sua região têm dificuldades de acolhi-
seus vínculos (Zambenedetti & Silva 2008). Assim, mento nesse nível de atenção.
obriga a classificar tipos de crises, coloca o hospital Na atual sistematização da Rede de Atenção
como gerenciador da crise grave, podendo agravá- Psicossocial, diversos dispositivos já consagrados
-la ao romper vínculos em razão da internação, e em experiências de reforma psiquiátrica são pou-
ainda leva à compreensão do hospital como trata- co explorados nas diretrizes governamentais para
mento mais complexo, quando a maior complexida- a reforma psiquiátrica brasileira. O Acompanha-
de reside em manter o usuário em meio aberto. Há mento Terapêutico, desenvolvido no próprio país,
muitos impasses na interface entre saúde mental e nem mesmo é citado pela portaria do 3088/2011
atenção básica, como priorizar casos graves e ainda (Brasil, 2010) como recurso na construção da rede
atuar em promoção de saúde, estabelecer atendi- de apoio em saúde mental; o diálogo aberto, meto-
mentos compartilhados e evitar práticas que levem dologia de prevenção à internação e psiquiatrização
à psiquiatrização e medicalização frente à grande no contexto da primeira crise amplamente utilizado
demanda e tendência à padronização e autonomiza- em diversos países da Europa, possui apenas expe-
ção dos serviços, entre outras (Brasil, 2011). riências isoladas no contexto brasileiro, geralmen-
Um último aspecto a considerar é que a esco- te ligadas ao campo acadêmico (Kantorski, 2017).
lha governamental, via portaria do Ministério da Ateliês de reabilitação para o trabalho e o recurso
Saúde (Amarante, 2003) dos CAPS como referência a famílias acolhedoras remuneradas pelo estado
de atendimento, em detrimento de propostas como para receber pacientes com alguma autonomia, que
acompanhamento terapêutico, consultórios de rua compõem a rede de saúde mental francesa, não
ou Centros de Convivência e Cultura (CECCO), pri- possuem correspondência sistematizada no Brasil.
vilegiou a instituição como lócus do tratamento, Na Itália, o trabalho é considerado eixo fundamen-
aumentando percalços para desinstitucionalizar e tal da reinserção social, sendo a rede formada não

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
riscos de manicomializar o atendimento, num pro- apenas por centros de tratamento específico, mas
cesso que Amarante (2003) denominou de “capsiza- por cooperativas mistas de trabalho, diretriz que
ção”. A partir de 2011, a portaria 3088/2011 institui não possui a mesma ênfase político-epistemológica
a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que reorien- na reforma psiquiátrica brasileira. Assim como ou-
ta o cuidado em diferentes níveis de assistência. Na tros documentos oficiais voltados à saúde mental,
Atenção Básica, propõe o atendimento a partir dos a portaria 3088/2011 enfatiza diretrizes como “di-
serviços na Unidade Básica em saúde, Equipes de versificação das estratégias de cuidado” (art. 2, VI)
Saúde da Família, Consultório na Rua, Serviços de e “desenvolvimento de atividades no território, que
Atenção Residencial de Caráter Transitório e seus favoreça a inclusão social com vistas à promoção de
serviços de apoio, Centros de Convivência e Cul- autonomia e ao exercício da cidadania” (art. 2, VII),
tura. Já em Atenção Secundária temos os Centros porém pouco explora dispositivos essenciais para
de Atenção Psicossocial (CAPS) em suas diferen- tais diretrizes, promotores de ressocialização mista,
tes modalidades. Compõem a Atenção de Urgência que integram pessoas não usuárias de serviços de
e Emergência: Serviço de Atendimento Móvel de saúde mental no percurso terapêutico do paciente
Urgência (SAMU), Sala de estabilização, Unidade e criam estratégias de autonomia financeira e so-
de Pronto Atendimento (UPA), que funciona 24 ho- cial necessárias para a desinstitucionalização efeti-
ras, hospitais gerais com leitos. O tripé composto va. Dispositivos baseados em experiências exitosas
pelos Serviços de residenciais terapêuticos (SRT), internacionalmente, tais como os supracitados, fo-
pelo Programa de volta para Casa (PVC) e pelo Pro- ram incluídos em documentos elaborados durante
-

grama de Redução de Leitos Hospitalares de Longa o processo de reforma psiquiátrica, mas acabaram
Permanência articula a desinstitucionalização de negligenciados devido à influência política de re-
A r t i g o s

pacientes longamente internados (Brasil, 2008). Fi- presentantes contrários à reforma e nunca foram
nalmente, Iniciativas de Trabalho e Renda com em- sistematizados e oferecidos de maneira abrangente
preendimentos solidários e cooperativas sociais são e contínua na RAPs (Brasil, 2010).

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Marciana Gonçalves Farinha; Tatiana Benevides Magalhães Braga

Elementos subjacentes às tensões da reforma, sicionamento de Basaglia (1980), para quem todos
como a consideração aos fatores socioeconômicos os fenômenos nesse campo requerem um olhar que
envolvidos na situação de crise e o investimento privilegia a relação entre sujeito e mundo, partilhan-
estatal na garantia de direitos possuem grande in- do a mesma crítica epistemológica à noção de doen-
fluência na organização dos dispositivos da rede, ça mental, que fragmenta a existência na sintoma-
havendo experiências em que a lógica manicomial tologia Nesse sentido, o uso de álcool e drogas não
subsiste, apesar da mudança de serviços, devido à é considerado uma experiência à parte no contexto
estrutura ofertada. Por exemplo, embora o Ministé- do sofrimento existencial grave, mas uma de suas
rio da Saúde tenha deliberado um CAPS para cada expressões. Isso não significa desconsiderar aspec-
150/200 mil habitantes, há regiões com um CAPS tos históricos e políticos singulares dos sujeitos e si-
para uma população muito maior, dificultando a tuações, mas compreendê-los na relação eu-mundo.
efetividade da rede substitutiva (Macedo, Abreu, Diante de um mundo em que o consumo e a adicção
Fontelle, & Dimenstein, 2017). Ao atender deman- são elementos cotidianos, pode emergir a vivência
das muito superiores à capacidade dos serviços, do abuso de substâncias psicoativas, assim como
compromete-se a individualização da assistência para Deleuze & Guattari (2010) a fragmentação social
no Projeto Terapêutico Singular e torna-se inviável das experiências liga-se à vivência esquizofrênica.
o que Spohr e Schneider (2009) denominam aten- O processo de disseminação de comunidades
ção integral nas dimensões de vida do sujeito. Nes- terapêuticas no Brasil pode ser situado na própria
se contexto, assiste-se a uma aliança entre o desin- tensão entre concepções disciplinares e promoto-
vestimento do Estado e as concepções de saúde que ras de autonomia. Originalmente, as experiências
trabalham na ótica de distanciamento do sujeito de comunidade terapêutica baseiam-se na concep-
(Puchivailo et al., 2013) e biologização da loucura. ção de autogestão, participação e responsabilidade
No quadro ora delineado, a reforma psiquiá- coletiva, compreendendo o atendimento enquanto
trica brasileira enfrenta uma questão estrutural: a criação de novos modos de relação com o outro e
luta pela extensão da assistência a toda a popula- apropriação do espaço social, apoiado sobre os
ção e pela implementação de serviços para além “pressupostos que tendem a desconstruir o princí-
do tratamento medicamentoso já demanda grande pio da autoridade na tentativa de programar uma
mobilização para tornar-se efetiva, relegando fre- condição comunitariamente terapêutica” (Basaglia,
quentemente a segundo plano a importante discus- 2001, p. 117). No entanto, atuando principalmente
são sobre o olhar epistemológico sobre a loucura. no interior do espaço asilar, mesmo quando pro-
Embora isso seja inteligível como decorrente da põem modos democratizados de interação e a des-
ausência de condições adequadas de assistência e construção das relações de violência, as comunida-
cobertura, é um grande risco, pois ofusca um dos des terapêuticas tendem a criar um espaço paralelo
eixos mais importantes para garantir a promoção e desarticulado do contexto externo de vida dos in-
efetiva de autonomia e inserção social nos serviços ternos, constituindo-se como modelo idealizado de
prestados. Essa questão pode auxiliar a compreen- vida em grupo, à medida que separam o paciente do
der porque, embora muito influente, a contribuição seu mundo social (Serrano, 1986).
fenomenológica na reforma psiquiátrica ainda seja É no contexto do risco disciplinar que a apro-
pouco conhecida no Brasil. Por outro lado, é fator priação das comunidades terapêuticas por insti-
importante para compreender a ambiguidade insta- tuições de forte tradição religiosa pode reproduzir
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

lada nos serviços abertos, nos quais as tentativas de a segregação social ao associar o uso de drogas ao
reformulação do olhar sobre a loucura e de reinser- descrédito moral e à ideia de pecado. As primeiras
ção social convivem com práticas e discursos mani- comunidades terapêuticas religiosas fundam-se nos
comiais, tais como a ênfase na medicação e no diag- Estados Unidos na década de 1930. Da primeira ex-
nóstico e a manutenção da concepção do usuário periência de amplo atendimento realizada pelo gru-
de serviços de saúde mental como “um sujeito que po de Oxford, voltado a restaurar os princípios da
não sabe de si, sem liberdade nem responsabilida- vida comunitária e caritativa cristã, originam-se ex-
de sobre si” (Puchivailo et al., 2013, p. 232). Nesse periências focalizadas na adicção: a Irmandade Al-
sentido, serão discutidos a seguir dois dispositivos coólicos Anônimos e o programa da Synanon, que
paradigmáticos: as Comunidades Terapêuticas e os sistematizou um modelo posteriormente difundido
CAPS. A escolha de tais dispositivos justifica-se em diversos países (Fracasso, 2008). Essa diretriz
pela importância que assumiram na rede substi- religiosa é a mais difundida no Brasil: em pesquisa
tutiva brasileira e por sua vinculação histórica aos na base de dados SCieLO em novembro/2017, foram
debates epistemológicos em torno da loucura e das encontrados 57 artigos sobre comunidades terapêu-
relações de poder na psiquiatria clássica. Os CAPS ticas. À exceção de um artigo histórico, todas as co-
tornaram-se o eixo organizador da assistência em munidades terapêuticas eram voltadas ao tratamento
saúde mental no Brasil. Já as comunidades terapêu- de álcool e drogas e possuíam caráter religioso.
ticas tornaram-se o principal dispositivo das orga- Embora deva-se reconhecer a ampla importân-
nizações da sociedade civil e, em muitas regiões, cia social dessas iniciativas, em geral todas pressu-
-

consistem no principal espaço de institucionaliza- põem o uso de substâncias psicoativas como doença
ção de usuários de álcool e drogas, senão no único. incurável, embora controlável, e a aceitação de uma
A r t i g o s

Embora possamos encontrar diferenças na as- figura divina como elemento constituinte do proces-
sistência ao uso de álcool e drogas frente a outras so de recuperação, assemelhando-se à proposta de
demandas de saúde mental, considera-se aqui o po- Maxwell Jones apenas pelo aspecto de autogestão de

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 366-378, set-dez, 2018 374
Sistema Único de Saúde e a Reforma Psiquiátrica: Desafios e Perspectivas

algumas experiências pontuais. Em meio à tradição trica aliados aos interesses do mercado no campo
social autoritária brasileira, cujas experiências no da saúde mental reintroduzem discursos e práticas
âmbito da saúde mental foram frequentemente ex- manicomiais no cotidiano da assistência à saúde. A
cludentes e repressoras (Antunes, 2014). O modelo massificação dos atendimentos, dificultando a ela-
de autogestão, proposto até mesmo nas comunidades boração desses projetos e uma maior atenção à crise
terapêuticas religiosas originais, foi distorcido pela dos sujeitos acompanhada em seu território, ocorre
larga inserção de práticas manicomiais. A proposta em resposta ao avanço do modelo neoliberal de pro-
de Comunidade Terapêutica de responsabilidade co- dutividade por número de atendimentos na saúde. A
letiva exige refletir constantemente sobre as relações centralidade na medicação psiquiátrica, sob influên-
entre os participantes. A concepção hierárquica do cia do processo de medicalização da sociedade e car-
tratamento e dos saberes permanece atuante numa regando interesses tanto da indústria farmacêutica
sociedade em que as desigualdades se encontram no quanto de desinvestimento do Estado na melhoria
cotidiano. Nesse quadro, a equipe responsável mui- de condições de vida da população, coopera para a
tas vezes determina as atividades, regula interações reprodução de um olhar focado na ideia de doença
com o meio externo, o uso de objetos do cotidiano mental, que destitui a autonomia e muitas vezes gera
e até mesmo as práticas relacionadas às crenças re- dúvidas, entre a equipe, sobre uma atuação voltada
ligiosas ou ideológicas dos internos. Desinvestindo ao cuidado ou à tutela e à disciplina.
num ambiente gerador de autonomia e do sujeito e Há ainda dificuldades de diferentes ordens
contradizendo os propósitos iniciais das comunida- para encaminhar o usuário para outros espaços, o
des terapêuticas, tais práticas podem levar à “a des- que exige o efetivo funcionamento da RAPS. Pri-
qualificação do interno como sujeito responsável, meiramente, a privatização dos aparelhos de saúde
portanto, como um sujeito de direitos” (Conselho mental via organizações sociais que prestam servi-
Federal de Psicologia, 2011, p. 193). ços ao Estado, gera uma fragmentação no direcio-
Assim, muitas instituições que recebem a namento das políticas públicas. A centralidade dos
denominação de comunidades terapêuticas estru- CAPS na rede, anteriormente discutida, relega a
turam relações autoritárias com os internos e por- segundo plano o investimento em importantes dis-
tam-se como “mini-hospícios”, não rompendo com positivos de cuidado no território, abrangendo edu-
a demarcação de espaço para a sanidade e loucura cação, cultura, capacitação e facilitação do acesso
(Conselho Federal de Psicologia, 2011). Estes mo- para o trabalho, esporte e lazer, etc, não havendo
delos de atendimentos comunitários criam dificul- vagas suficientes. Além disso, nem sempre há espa-
dades nos processos de reinserção social: não ha- ços estruturados na rotina de comunicação entre os
vendo um processo de construção da autonomia, CAPS e outros dispositivos da rede, o que facilita-
os indivíduos podem apresentar dificuldades em ria a criação de cuidado no território acompanhada
retomar o cotidiano ao sair da instituição. pelo CAPS conforme uma lógica de corresponsabi-
O CAPS é um serviço ambulatorial especia- lidade. Não havendo um fluxo de encaminhamento
lizado em saúde mental, que visa o tratamento à devido ao estancamento do atendimento no próprio
pessoa em sofrimento existencial em suas diferen- CAPS, o número de pacientes tende a aumentar, in-
tes manifestações. Em sua concepção teórica, pre- tensificando os processos de massificação e dificul-
coniza o cuidado do indivíduo no território que ele tando o cuidado singular.
ocupa, respeitando sua subjetividade, a concretude A longa permanência no CAPs, cronifica as

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
de sua vida com seus problemas, seu trabalho, rela- próprias relações terapêuticas, podendo abrir espa-
ções com a família e a comunidade, seus projetos e ço para uma repetitividade das práticas oferecidas
anseios (Costa-Rosa, 2000). Sob tal prisma, a saúde que leva à perda de seu sentido e sua potencialidade
não é compreendida a partir de normativas externas para promoção da autonomia, reproduzindo apenas
– princípios biomédicos, convenções governamen- o lugar social de “doente” ocupado por usuários e o
tais ou supre governamentais – mas como constru- lugar de saber ocupado por técnicos. É no contexto
ção dialogada com os sujeitos a partir do que lhes da cronificação que assistimos ainda outro fenô-
faz sentido em sua perspectiva de cuidado e socia- meno: as constantes reinternações de pacientes em
bilidade. É nesse contexto que o território emerge hospitais. Avanços de discursos como internação
como uma força viva de relações dinâmicas – con- compulsória e medicalização, que conferem novas
cretas e imaginárias – estabelecidas pelo indivíduo roupagens ao pensamento manicomial e aumento
tanto com outros indivíduos como com dispositivos das reinternações psiquiátricas (Bezerra & Dimens-
de saúde, educação e cultura (Amarante, 2016). As- tein, 2011) frente à escassez de propostas de cuida-
sim, a perspectiva inicial de atendimento no CAPs do efetivo no território. A possibilidade de institu-
se faz na construção de um percurso iniciado num cionalização torna menos urgente a necessidade de
tratamento mais intensivo e que caminha para re- uma crítica das práticas de saúde e das dificuldades
ferências da atenção básica conforme os laços, o de efetividade terapêutica do atendimento. É nesse
apoio psicossocial e as práticas de cuidado vão se sentido que Rotelli (1991) chama a atenção que a
construindo no território. proibição da recuperação em hospital psiquiátrico
-

No entanto, ainda hoje vemos alguns CAPS que italiana relaciona-se diretamente à crítica realizada
atuam em uma lógica que não conseguiu romper ao saber, poder e operacionalidade da psiquiatria
A r t i g o s

com práticas tutelares. Diversos problemas tradu- que historicamente legitimou a exclusão de milhões
zem a multiplicidade de meios pelos quais as bre- de cidadãos, geralmente oriundos de classes menos
chas e interrupções no processo de reforma psiquiá- favorecidas.

375 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 366-378, set-dez, 2018
Marciana Gonçalves Farinha; Tatiana Benevides Magalhães Braga

Considerações finais mais condizentes com um processo de reinserção


social requer um questionamento das relações es-
O movimento da Reforma Psiquiátrica no Bra- tabelecidas e das estruturas classificatórias da con-
sil teve avanços na desinstitucionalização, mas duta que se direciona não apenas ao atendimento
muito ainda precisa se efetivar, numa reavaliação direto, mas também a uma problematização social e
constante das práticas vigentes no sentido de um cultural dos processos de exclusão, em que a Rede
cuidado à pessoa em sofrimento existencial que tra- não é apenas de serviços, mas implica toda rede de
ga para uma efetiva possibilidade de autocuidado e relações da sociedade, criando novas possibilidades
no qual haja instrumentalização dos trabalhadores de vida, cultura, afeto, experiência.
de saúde e saúde mental, políticas que assegurem
direitos e uma contínua preocupação com a qua-
lidade do cuidado. Atuar tendo como perspectiva Referências
a reinserção psicossocial significa promover ações
que intentem repensar as relações entre os dispo- Alverga, A. R., & Dimenstein, M. (2006). A reforma psi-
sitivos institucionais, a equipe e os integrantes da quiátrica e os desafios na desinstitucionalização
comunidade. da loucura. Interface – Comunic., Saúde, Educ.,
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tem à própria dificuldade de se construir relações
pautadas no diálogo e na responsabilização coleti- Amarante, P. (2003) (Org.). Saúde mental, políticas e ins-
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reencontrada em instituições de saúde mental na
argumentação pelo estabelecimento de hierarquias, Andreoli, S. B., Almeida-Filho, N., Martin, D., Mateus,
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no qual aqueles que não correspondem a um ideal histórica sobre sua constituição. São Paulo: Uni-
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adaptativo são considerados socialmente desvian-
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delo único de compreensão das singularidades ne-
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cessita do questionamento das perspectivas socio-
sileira.
culturais que consideram as questões do sofrimento
psíquico em termos de doença ou marginalidade. Basaglia, F. (2001). A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal.
É nesse sentido que a perspectiva fenomenológica
vem a contribuir, no questionamento de interpre- Basaglia, F. (2010). Escritos selecionados em saúde men-
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Tal desconstrução necessita ainda de interven-
ções institucionais que permitam a reelaboração de Bezerra, C. G., & Dimenstein, M. (2011). O fenômeno da
práticas e perspectivas em direção à promoção da reinternação: um desafio à Reforma Psiquiátrica.
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paços que suscitem compreensões e sejam geradas
transformações no modo como é entendida a prá- Binswanger, L. (2009). Tres Formas de La Existencia Frus-
xis, além de novos sentidos para as vivências. Sem trada. Buenos Aires: Amorrortu.
a articulação entre as propostas de problematização Binswanger, L. (2013). Sonho e existência. Rio de Janeiro:
e reinvenção das relações humanas nos dispositivos Via Verita.
substitutivos e a reconstrução das relações sociais
-

no território, corre-se o risco de, paulatinamente, Breuer, J. & Freud, S. (1895/1990). Estudos sobre a his-
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Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.12

A (DES)CONEXÃO CRIANÇA E NATUREZA SOB O


OLHAR DA GESTALT-TERAPIA E ECOPSICOLOGIA
The (dis)connection child and nature depicted by gestalt-therapy and ecopsychology

(Des)conexión niño y naturaleza segun la terapia de la gestalt y la ecopsicología


Fernanda Nascimento Pereira Doca
Marco Aurélio Bilibio

Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão com base na Gestalt-terapia e na Ecopsicologia sobre a conexão natural e
espontânea entre a criança e a natureza – uma atitude EU-TU – e o processo de introjeção dos valores da cultura que
conduzem à desconexão, à perda da reciprocidade e da relação dialógica entre ambos, transformando-a em uma atitu-
de EU-ISSO. Utiliza como substrato para esta reflexão uma história infantil – A árvore generosa – que, com a linguagem
da imaginação, transmite facilmente à criança os valores da sociedade urbana-industrial-capitalista, os quais têm se
enraizado no seu modo de sentir, pensar e agir; definhando, pouco a pouco, a saúde física e mental do homem e da
sociedade em que se insere. Evidencia a importância da awareness acerca da relação interdependente do homem com
a teia da vida para o desenvolvimento de uma nova ética, capaz de nutrir a reconexão entre ambos e reestabelecer uma
relação de respeito, apoio e cooperação mútua entre todos os seres viventes.
Palavras-chave: Terapia Gestalt; Ecologia; Psicologia da Criança; Literatura Infantojuvenil.

Abstract: This article presents a reflection based on Gestalt therapy and Ecopsychology on the natural and sponta-
neous connection between child and nature - an I-THOU attitude - and the process of introjection of cultural values
that lead to disconnection, loss of reciprocity and the dialogical relationship between both, transforming it into an I-IT
attitude. A children’s story is the starting point for this reflection: The giving tree. Using the language of imagination,
it easily transmits to the child values of an urban-industrial-capitalist society, which have been rooted in their way of
feeling, thinking and acting, depleting, little by little, the physical and mental health of man and society. The article
highlights the importance of awareness about the interdependent relationship of man and the life web in the develop-
ment of a new ethic, capable of nurturing the reconnection between both and reestablishing a relationship of respect,
support and mutual cooperation amongst all living beings.
Keywords: Gestalt Therapy; Ecology; Child Psychology; Juvenile Literature.

Resumen: En este artículo se presenta una reflexión basada en la terapia Gestalt y la Ecopsicología sobre la conexión
natural y espontánea entre los niños y la naturaleza - una actitud YO-TU - y el proceso de introyección de los va-
lores culturales que llevan a la desconexión y a la pérdida de la reciprocidad y de la relación de diálogo entre ellos,
convirtiéndola en una actitud YO-ESTO. Se utiliza como sustrato para esta reflexión un cuento para niños - El árbol
generoso - el cual, con el lenguaje de la imaginación, transmite fácilmente a los niños los valores de la sociedad urba-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
no-industrial-capitalista, que han creado raíces en su forma de sentir, pensar y actuar; consumiéndose, poco a poco, la
salud física y mental del hombre y de la sociedad en la cual opera. En el artículo se destaca la importancia del aware-
ness acerca de la relación de interdependencia entre el hombre y la red de la vida para el desarrollo de una nueva ética,
capaz de nutrir la reconexión entre los dos y volver a establecer una relación de respeto, apoyo mutuo y cooperación
entre todos los seres vivos.
Palabras-clave: Terapia Gestalt; Ecología; Psicología Infantil; Literatura Infanto-Juvenil.

Introdução da observação de seu livre funcionamento, extrai o


cerne de sua fundamentação teórica e prática (Lat-
A Gestalt-terapia é uma abordagem, teoria e ner, 1973/1986).
método de psicoterapia, que se fundamenta episte- A Gestalt-terapia compreende o homem como
mologicamente nos pressupostos filosóficos do Hu- uma totalidade integrada ao ambiente em que vive
manismo, do Existencialismo e da Fenomenologia; e com o qual possui uma relação de interdependên-
bem como nos pressupostos teóricos da Psicologia cia, de forma tal que pessoa-mundo constitui uma
da Gestalt, da Teoria de Campo e da Teoria Holística unidade de sentido (Ribeiro, 2012). Reconhece o
Organísmica (Ribeiro, 2012). Constitui uma “abor- vínculo natural e profundo do ser humano com o
dagem original, não deturpada e natural da vida” seu meio ambiente – sendo este compreendido não
-

(Perls, Hefferline, & Goodman, 1969/1997, p. 32) apenas em sua dimensão espacial e geográfica na
por organizar-se em torno de princípios de estru- qual ele vive e age (ser-no-mundo), mas sobretudo
A r t i g o s

tura e funcionamento biológico, retirando deles a em sua condição de organismo vivo ao qual o ho-
inspiração para sua compreensão acerca do sentir, mem pertence. A Gestalt-terapia integra, por con-
pensar e agir do homem (Latner, 1973/1986). Assim, seguinte, o ser humano ao seu ambiente, perceben-
a Gestalt-terapia começa com a natureza e a partir do-os como um campo, ou seja, uma totalidade de

379 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 379-387, set-dez, 2018
Fernanda Nascimento Pereira Doca; Marco Aurélio Bilibio

forças mutuamente influenciáveis e interdependen- Desta forma, guarda sentimentos e afetos inatos de
tes que constituem uma teia sistemática de relacio- pertencimento e respeito para com ela, os quais se
namentos (Yontef, 1993/1998). expressam por meio da postura de encantamento
Esta visão sistêmica e holística da Gestalt-te- da criança com a natureza e, consequentemente,
rapia, focada no contato da pessoa consigo mesma, na vivência de uma relação de reciprocidade e ética
com o outro e com o seu ambiente, contrasta com a entre ambas. Contudo, a cultura conduz a criança
visão limitada às relações intra e interpessoais das ao abandono da ressonância sensível e interessada
demais abordagens psicoterápicas. Ademais, evi- com a natureza, especialmente com os animais, re-
dencia o caráter ecológico ínsito da Gestalt-terapia primindo o inconsciente ecológico e dando lugar à
(Roszak, 1995), a qual traz em sua essência a per- normose (Bilibio, 2013).
cepção da relação pessoa-mundo como uma totali- Independente da terminologia utilizada, fato
dade organizada, articulada e indivisível, ou seja, é que, tanto para a Gestalt-terapia quanto para a
uma gestalt plena (Ribeiro, 2009). Ecopsicologia, ocorre um processo genérico de (de)
Dessa forma, a Gestalt-terapia constitui um formação cultural, por meio do qual a desconexão
campo fértil para o desenvolvimento da Ecopsico- com o mundo se estabelece e perpetua, de tal for-
logia – uma abordagem emergente que busca unifi- ma que o potencial para o engajamento sensível e
car a sensibilidade dos psicólogos ao conhecimento empático inato da criança com o mundo natural se
e experiência dos ecologistas e à ética dos ativistas esvai (Barrows, 1995). A criança transforma então
ambientais (Brown, 1995; Swanson, 1995). A Ecop- a sua relação espontaneamente dialógica com a
sicologia não intenta, em momento algum, criar um natureza, na qual reconhece os demais seres vivos
novo tipo de terapia. Clama apenas pela ampliação como um Outro, digno de consideração, respeito e
da visão individualista das abordagens existentes, afeto – atitude designada por Buber como EU-TU –,
criadas pela sociedade urbana-industrial desconec- em uma relação objetivante e utilitária, na qual o
tada de suas raízes. Busca o estabelecimento de um homem se separa da natureza para servir-se dela –
diálogo profícuo entre a Psicologia e a Ecologia, en- atitude EU-ISSO (Buber, 1974/2001).
fatizando que uma carece da outra (Roszak, 1995). As histórias e contos infantis, oriundos que
Em sintonia com a Gestalt-terapia, a Ecopsi- são da cultura, colaboram na inoculação na crian-
cologia postula a inseparabilidade do homem e da ça destas concepções de separatividade, superiori-
natureza, bem como a conexão profunda e a relação dade e domínio do homem sobre a natureza – in-
sinérgica e autorreguladora existente entre o mun- trojetos tóxicos que conduzem à desconexão. Com
do humano e o mundo natural. Simultaneamente, a suas imagens, metáforas e sentimentos construídos
Ecopsicologia denuncia a desconexão com o meio com a linguagem da imaginação, que é a linguagem
ambiente vivenciada pela sociedade contemporâ- natural da criança, as histórias infantis penetram
nea, como uma resultante do paradigma vigente da facilmente no seu mundo interior (Sunderland,
cultura urbana-industrial-capitalista, por meio da 2000/2005). Desta maneira, falam diretamente ao
qual a natureza é agredida e destruída, estabelecen- seu sentimento e influenciam, por conseguinte, o
do uma crise de sustentabilidade da raça humana seu pensamento e comportamento.
no planeta, que pode gerar o seu próprio colapso Por este motivo, o presente artigo tem por ob-
(Bilibio, 2013). jetivo a reflexão com base na Gestalt-terapia e na
Na perspectiva da Gestalt-terapia, o processo Ecopsicologia, sobre o processo de introjeção dos
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

de alienação e/ou a desconexão da pessoa de seu valores da cultura urbana-industrial-capitalista.


meio ambiente transcorre sorrateiramente desde a Este processo promove a desconexão e a transfor-
infância, na medida em que as crianças vão assimi- mação da atitude espontaneamente dialógica da
lando os valores dos pais, da escola e da sociedade criança com a natureza (EU-TU) em uma atitude
na qual se inserem e, pelo processo de metabolis- objetivante (EU-ISSO), conduzindo ao adoecimen-
mo mental, integra-os à sua personalidade (Perls, to físico e mental tanto dos indivíduos quanto da
1947/2002). sociedade. O substrato desta reflexão foi extraído de
Contudo, dado o seu estágio de desenvolvi- uma história infantil – A árvore generosa – escrita
mento, as crianças não têm a capacidade de discri- em 1964 por Shel Silverstein e traduzida para lín-
minar o alimento intelectual, moral, psicológico e gua portuguesa por Fernando Sabino.
social que ingerem – denominado introjeto – entre
nocivos/tóxicos ou saudáveis e, portanto, não têm
consciência das implicações de suas escolhas, bem No princípio éramos um só: A relação EU-TU
como da sua responsabilidade perante as mesmas. com a natureza
Assim, simplesmente engolem estes introjetos
tal como eles lhe vêm, absorvendo-os com uma A essência do homem se manifesta por meio
grande dose de fé, como uma verdade absoluta, de seus existenciais, ou seja, ele é um animal-racio-
ou seja, “é-assim-que-a-coisa-é” (Polster & Polster, nal-ambiental. Esta última dimensão humana reve-
1973/2001). la que ele é parte da natureza e, junto com o mundo,
-

De forma congênere, a Ecopsicologia acredita constitui uma unidade de sentido, uma gestalt ple-
que o ser humano, desde o seu nascimento, tem em na, uma totalidade organizada, indivisível e articu-
A r t i g o s

sua dimensão psíquica, a presença da natureza que lada (Ribeiro, 2009).


o conecta com a matriz da vida e sua sabedoria in- Para Roszak (2001), o homem abriga, em sua
tegrativa, a qual denomina inconsciente ecológico. subjetividade, a história cósmica do Universo, des-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 379-387, set-dez, 2018 380
A (Des)Conexão Criança e Natureza sob o Olhar da Gestalt-Terapia e Ecopsicologia

de a explosão do Big Bang até os dias atuais. Essa Assim como o homem, enquanto ser humano,
dimensão subjetiva, chamada por ele de inconscien- precisa da árvore para obter o oxigênio, elemento
te ecológico, acolhe a Ipseidade do ser, qual seja, a fundamental para a sua sobrevivência, sem o qual
sua estrutura ontológica, a síntese existencial de um pode viver apenas alguns poucos minutos, a árvore
longo e árduo processo evolutivo por intermédio do precisa do homem para obter o gás carbônico, para
qual cada ser foi individualizado pela força cósmica juntamente com a água e a luz solar, produzir seu
da totalidade, tornando-se único (Ribeiro, 2005). As- próprio alimento pelo processo da fotossíntese. A
sim, o ser humano é fruto do Universo. Seu corpo é experiência de integração com a natureza gera um
constituído pelos elementos da natureza, sendo, por- sentido de pertencimento e uma postura ética de
tanto, o Universo em Pessoa (Ribeiro, 2009). Possui respeito e cuidado com a Mãe-Terra e com todos os
naturalmente uma conexão profunda com o Univer- seres nela viventes. Transcendem-se assim as dife-
so e, como uma rede, conecta-se a todos os demais renças na existência dos seres e encontra-se a igual-
seres vivos – na chamada teia da vida – tendo com dade na essência de criação divina. E, por meio
eles uma relação de interdependência, por meio da dela, pode-se vislumbrar em cada ser, a orla do Tu
qual se afetam mutuamente (Capra, 1996/2006). eterno, sentindo o sopro provindo Dele, encontran-
Desde os primeiros momentos de vida, a crian- do assim a intenção original de Deus, o sentido
ça é sensível não apenas ao contato humano, mas verdadeiro das coisas (Buber, 1974/2001). Logo, a
também ao contato com o seu ambiente, como por conexão profunda e a comunhão com o Universo
exemplo, a brisa, as variações de luz, temperatura deságuam no processo de Espiritualidade, no qual o
e calor, aos sons e tudo o mais que lhe cerca (Bar- homem transcende sua corporeidade e a materiali-
rows, 1995). Especialmente na sua primeira infân- dade das coisas para descobrir o tudo que existe no
cia, ela expressa essa sensibilidade e conexão com Todo e, então, expressa um profundo e harmonioso
a natureza através de uma postura espontânea e in- amor por e pelo Universo (Ribeiro, 2009).
tuitiva de encantamento pela vida que a cerca. Na
ludicidade de sua experiência, a natureza tem voz,
sentimento, pensamento e ação (Roszak, 2001). A Crescemos, desenvolvemos, nos diferenciamos
criança estabelece com ela uma relação animista na e desconectamos da natureza: O papel dos
qual ocorre uma espécie de reconhecimento da alte- introjetos culturais
ridade no não-humano, aliás, no mundo mais-que-
-humano (Bilibio, 2013). Não obstante o instinto natural da criança de
Instintivamente a criança, enquanto um EU, se sentir parte integrante de uma totalidade maior,
transforma todos os seres vivos em um TU e estabe- o processo de desenvolvimento desperta em seu ser
lece com eles uma relação de reciprocidade social a percepção acerca das diferenças entre ela e os de-
e afetiva. Para além de sua forma, da “coisa-em-si”, mais seres vivos ao seu redor. Ao enxergar-se como
a natureza é para a criança um Outro, com o qual um ser único e distinto de seu ambiente, a criança
se encontra face-a-face e entra em contato pleno toma posse de si, do seu EU e profere a palavra-
de aceitação, respeito e cuidado. Uma árvore, por -princípio da separação: EU-ISSO. Esta separação
exemplo, não é apenas um objeto – que tem forma, é necessária uma vez que, somente a partir dela, a
cor e propriedades que podem ser experienciadas criança pode perceber o mundo nas suas dimensões
no tempo e no espaço –, mas sim uma totalidade de espaço e tempo, contemplá-lo, escutá-lo, senti-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
que inclui todas estas características e que se apre- -lo, manipulá-lo, apreendê-lo e, conscientemente,
senta à criança, “em pessoa”, tendo algo a ver com entrar em relação com ele (Buber, 1974/2001).
ela e vice-versa (Buber, 1974/2001). Ademais, em termos gestálticos, crescer sig-
A relação de reciprocidade entre criança e na- nifica assimilar aquilo que é diferente (Perls, Hef-
tureza é poeticamente enunciada na história infan- ferline, & Goodman, 1969/1997). Logo, é o contato
til escrita por Silverstein (1964/2006): com o mundo e com os seres que nele habitam, os
quais são diferentes do EU da criança, que faz sur-
Era uma vez uma árvore que amava um me- gir em seu ser uma configuração única que, em par-
nino. E todos os dias o menino vinha, juntava te, a diferencia dos outros seres e, em outra parte,
suas folhas e com elas fazia coroas de rei; com a faz assemelhar-se a eles. Desta maneira, crescer é
elas brincava de rei da floresta. Subia em seu o resultado da diferenciação que permite à criança
grosso tronco, balançava-se em seus galhos, saber-se única. A consciência ativa dessa unicidade
comia suas maçãs. E brincavam de esconder. é que possibilita à pessoa, em qualquer idade, ser-
Quando ficava cansado, o menino repousava -no-mundo de forma genuína e saudável. Todavia,
à sua sombra fresquinha. O menino amava a a cultura na qual a criança está imersa, transforma
árvore profundamente (p. 6-28)1. a diferenciação em desconexão, ou seja, acaba por
afastá-la do contato com a natureza, atrofiando sua
Nesta relação de amor mútuo e reciprocidade, sensibilidade e promovendo a alienação de sua di-
criança e natureza se entregam e se integram um
-

mensão de ambientalidade. Esse processo ocorre


ao outro, nutrindo-se e autoecorregulando-se orga- pela assimilação dos introjetos da cultura domi-
nísmicamente (Buber, 1974/2001; Ribeiro, 2009).
A r t i g o s

nante, que é transmitida às crianças por seus pais,


1 O livro infantil, ora citado, contém inúmeras páginas com gravu-
sua escola e a sociedade como um todo; não apenas
ras. Diante disto, as páginas aqui indicadas referem-se a um conjunto verbalmente, mas, sobretudo por meio de atitudes e
de textos com imagens, representando, assim, um intervalo mais amplo comportamentos.
que o usual.

381 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 379-387, set-dez, 2018
Fernanda Nascimento Pereira Doca; Marco Aurélio Bilibio

Esta cultura, estabelecida após o capitalismo e, assim, ao poderem ter isto ou aquilo, sentirem-
e a Revolução Industrial, promoveu o deslocamen- -se “pertencentes” à sociedade e “amados” por seus
to das pessoas do campo para a cidade, dando ori- iguais. As crianças não passam imunes a esses va-
gem aos grandes aglomerados urbanos e instituindo lores que são instilados pela cultura. Ao contrário,
um novo paradigma, uma nova ordem ideológica, o público infantil constitui um dos alvos prediletos
econômica, social e política, pautada em crenças da publicidade, por ser vulnerável e facilmente se-
disfuncionais de alienação do homem em relação duzido pela associação de objetos de consumo com
à natureza. personagens da moda. Outrossim, possui a capaci-
Essas crenças disfuncionais são meta-introje- dade de afetar diretamente os adultos, influencian-
ções da cultura dominante e podem ser sintetiza- do cerca de 80% das compras de uma casa2.
das em: (a) o mito da superioridade, como se o ho- Dessa forma, a publicidade adentra sorratei-
mem fosse superior à natureza e, por conseguinte, ramente o mundo infantil camuflada nos filmes,
seu proprietário e dominador absoluto; (b) o mito desenhos, programas de televisão, jogos, entre ou-
do mundo como matéria e, portanto, desprovido de tros. Haja vista que as crianças, nos tempos atuais,
vida e consciência; (c) o mito do homem como es- gastam boa parte do seu tempo na televisão ou em
pécie com direitos divinos que, por ter sido criada outros dispositivos eletrônicos, nos quais a publi-
à imagem e semelhança de Deus, acredita-se com cidade infantil é veiculada, percebe-se o quão ex-
o poder de substituí-Lo; (d) o mito do progresso postas elas são aos introjetos culturais tóxicos que
tecnológico como, necessariamente, atrelado ao da as afastam, tanto física quanto emocionalmente, da
segurança, do bem-estar, da ética e da moral; (e) o experiência sensível de integração com a natureza.
mito do consumo como meio de satisfação de nos-
sas necessidades não apenas básicas, mas também
emocionais e sociais; (f) o mito do crescimento ili- Desconectados, a tratamos como um objeto: A
mitado, como se a quantidade de energia e recur- atitude EU-ISSO com a natureza
sos do planeta fossem infinitos e que o homem não
tivesse de se preocupar com a sustentabilidade da A desconexão, fruto da cultura, faz com que
vida; (g) o mito do livre mercado; (h) o mito da ge- as crianças desenvolvam, ao longo do tempo, uma
ração privilegiada e; (i) o mito da solução pela tec- postura egótica perante a natureza, tratando-a como
nologia, como se esta fosse onipotente para resol- um objeto a ser utilizado e dominado. Dessa forma,
ver todo e qualquer problema (Mendes, 2013; Papa passam a buscar a natureza apenas pelo que ela
Francisco, 2015; Villarraga, 2013). pode lhe oferecer.
Vivendo em sociedade, a criança aceita e en-
gole esses introjetos como “é-assim-que-a-coisa-é”. (...) ‘Você tem algum dinheiro que possa me
Suas necessidades instintivas de conexão com a oferecer?’
matriz da vida, por serem pouco congruentes com ‘Sinto muito’, disse a árvore, ‘não tenho di-
o establishment, passam a ser abjetas e mais tarde nheiro. Tenho apenas minhas folhas e tenho
esquecidas, sendo sua alma exaurida (Polster & minhas maçãs. Mas leve as maçãs, Menino.
Polster, 1973/2001). Silverstein (1964/2006) ilustra Vá vendê-las na cidade. Então terá o dinheiro
de forma clara e simples como essas mudanças vão e você será feliz’. E assim o menino subiu pelo
sendo incorporadas na fala e nos comportamentos tronco, colheu as maçãs e levou-as embora.
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

da criança: (...) ‘Você tem uma casa pra me oferecer?’


‘Eu não tenho uma casa. A casa em que moro é
Mas o tempo passou. O menino cresceu. E a a floresta. Mas corte meus galhos e faça a sua
árvore muitas vezes ficava sozinha. Um dia o casa, e seja feliz’. O menino depressa cortou os
menino veio e a árvore disse: ‘Menino, venha galhos e levou-os embora para fazer uma casa.
subir no meu tronco, balançar-se nos meus ga- (...) ‘Você tem algum barquinho que possa me
lhos, comer as minhas maçãs, repousar à mi- oferecer?’
nha sombra e ser feliz’. ‘Estou grande demais ‘Corte meu tronco e faça seu barco. Viaje pra
para brincar’, o menino respondeu. (...) ‘Quero longe e seja feliz’. O menino cortou o tronco,
comprar muitas coisas, eu quero me divertir e fez um barco e viajou (Silverstein, 1964/2006,
preciso de dinheiro’. (...) ‘Estou muito ocupa- p. 36-39; 41-42; 46-49).
do pra subir em árvores. Eu quero uma casa
pra me abrigar; eu quero uma esposa, eu quero O tratamento da natureza como um ISSO, faz
ter filhos, pra isso é preciso que eu tenha uma com que o homem perca a ressonância sensível
casa’ (p, 31-36;41). para com ela, deixando de encontrá-la como um
Outro e, consequentemente, por não reconhecer a
Essa cultura da valorização do ter em detri- sua alteridade, passa a estabelecer com ela apenas
mento do ser difundida pela publicidade através uma relação utilitária.
dos diferentes tipos mídia, modifica os padrões de Fato é que o homem precisa usar os recur-
-

consumo e o estilo de vida da sociedade. Os desejos sos da natureza para garantir a sua subsistência e,
passam a ser tratados como necessidades e o supér- neste sentido, não pode prescindir de torná-la um
A r t i g o s

fluo como necessário, de tal forma que as pessoas se


tornam escravas do consumo, que as obriga a traba- 2 Criança, a alma do negócio. Documentário de Estela Renner e Marcos
lharem cada vez mais para terem uma renda maior Nisti. Maria Farinha Filmes. Trailer disponível em: http://mff.com.br/filmes/
crianca-a-alma-do-negocio/

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 379-387, set-dez, 2018 382
A (Des)Conexão Criança e Natureza sob o Olhar da Gestalt-Terapia e Ecopsicologia

ISSO. Assim sendo, não se deve concluir que “a que o conhecimento acerca dos problemas ecoló-
atitude EU-ISSO seja algo negativo, inferior ou mal gicos globais causados pelo estilo de vida moderno
(...) ela se torna fonte de mal, na medida em que o se expande todos os dias e, a despeito deste saber,
homem deixa subjugar-se por esta atitude” (Buber, mantém seu padrão de vida, caminhando conscien-
1974/2001, p. 35). te rumo à consumação de sua própria destruição
Deste modo, o problema se instala quando o (Franklin, 2013). Ademais, o ecocídio enquanto um
viés “coisificador” permanente na relação com o fenômeno contemporâneo oriundo da sociedade ur-
mundo natural, estabelecendo assim uma fixação bana-industrial-capitalista também traz em seu cer-
inflexível no modo EU-ISSO (Bilibio, 2013), trans- ne o sofrimento e adoecimento psíquico do homem,
formando o uso em abuso e a ação do homem em os quais refletem o estado de desarmonia relacional
exploração. Neste sentido, a natureza passa a ser consigo mesmo e com o mundo que o cerca.
vista como um grande e inesgotável supermercado,
do qual se podem retirar os produtos das prateleiras
sem se preocupar com os limites de reposição do es- A desconexão com a natureza nos adoece:
toque (Villarraga, 2013). Essa atitude conduz a de- Transtorno de Déficit de Natureza
gradação e a perda da biocapacidade do planeta, ou
seja, a capacidade do mesmo de dar suporte à vida. Segundo Perls (1969/1977), a saúde é o “equilí-
Concomitantemente à ação de exploração da brio apropriado da coordenação de tudo aquilo que
natureza, a fixação no modo EU-ISSO promove somos” (p. 20). É, portanto, em primeira instância,
também ações de poluição do meio ambiente. Isto a consciência cognitiva, sensorial e afetiva – deno-
porque, na medida em que a sociedade fomenta o minada em Gestalt-terapia como awareness (Yontef,
consumo, suscita simultaneamente a cultura do 1993/1998) – de tudo aquilo que define a existência
descarte – usa e joga fora –, gerando uma quanti- do homem. E, sendo o homem um ser-de-relações,
dade imensa de resíduos não biodegradáveis que sua saúde encontra-se diretamente relacionada à
destroem as condições de vida do planeta. Nesta qualidade das relações que estabelece, ou seja, com
perspectiva, a Terra, casa comum de todos os seres a natureza do contato que fez e continua a fazer
vivos, é tratada pelo homem como um imenso de- com o campo (Ribeiro, 2007).
pósito de lixo (Papa Francisco, 2015). As estatísti- De posse da awareness acerca de si e da reali-
cas demonstram que, se todas as pessoas no mundo dade que o cerca, alcançada por meio de um conta-
adotassem o mesmo estilo de vida da minoria que to pleno consigo mesmo e com o campo, o homem
detém o poder econômico e financeiro, o padrão de saudável é capaz de identificar as necessidades
consumo e, consequentemente, de descarga de re- internas e externas vivenciadas no aqui-e-agora,
síduos no meio ambiente, tornaria insustentável a bem como suas capacidades e potencialidades para
vida humana em pouquíssimo tempo. Logo, a pe- lidar com elas; formar figuras claras, completas e
gada ecológica da sociedade urbana-industrial, ou fortes; realizar ajustamentos criativos entre as ne-
seja, a medida de terras produtivas e de área de água cessidades e os recursos disponíveis, num processo
para o seu sustento (Wackernagel & Rees, 1962), im- de autorregulação organísmica; satisfazer estas ne-
prime uma marca de destruição que caminha para cessidades e; por fim, após a resolução das figuras,
a aniquilação dos ecossistemas e das condições de destruí-las (ou transformá-las) para que uma nova
vida na Terra. necessidade possa emergir, num processo dialético

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Esse movimento é diametralmente oposto ao e fluido (Latner, 1973/1986).
funcionamento da natureza, a qual trabalha em ci- Se, por um lado, a concepção de saúde para
clos, usando de forma eficiente os recursos disponí- a Gestalt-terapia envolve a fluidez do contato, de
veis, na medida em que o resíduo de uma espécie maneira oposta, o adoecimento advém de limitação
é o alimento de outra (Villarraga, 2013), tal como e/ou interrupção deste processo, o qual implica em
enunciado na lei de Lavousier: “na natureza nada uma desarmonia relacional e, consequentemente,
se cria, nada se perde, tudo se transforma”. A explo- a adoção de um padrão de funcionamento rígido
ração e o aniquilamento dos recursos da Terra, ge- e repetitivo de comportamento. Neste estado, há
rados pela fixação na postura EU-ISSO do homem perda da totalidade organísmica pela interrupção
perante a natureza, em última instância, culminam do contato com um ou mais dimensões do campo
no risco de extinção de todas as espécies que com- que compõem o espaço vital da pessoa, a saber: geo-
põe a teia da vida, inclusive do próprio homem. biológico, psicoemocional, socioambiental e sacro-
Isso porque o aquecimento global, a diminuição transcendental (Ribeiro, 2009).
dos mananciais de água doce e potável, a poluição Isto posto, inequívoca se torna a compreensão
do ar, entre outros problemas ambientais vivencia- de que a interrupção da fluidez do contato e da tro-
dos na atualidade tornam cada vez mais inóspita as ca com o meio ambiente, ocasionada pela negação
condições de vida na Terra. e/ou a alienação da natureza enquanto parte do ho-
Oportuno salientar que, ao extinguir, dia após mem e vice-versa – fixação na atitude EU-ISSO –,
dia, as condições de sua própria existência, o ho- gera o enfraquecimento do eu e conduz o homem a
-

mem pratica um ato de retroflexão que pode ser um processo de adoecimento.


compreendido como um ecocídio (Bilibio, 2013; A história infantil – “A árvore generosa” – ex-
A r t i g o s

Ribeiro, 2009). Esta metáfora é apropriada na me- pressa de modo simples e límpido este processo de
dida em que o homem tem consciência (ao menos adoecimento. No princípio, o contato genuíno do
cognitiva) das consequências de seus atos, visto menino com a árvore, a relação de reciprocidade e

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Fernanda Nascimento Pereira Doca; Marco Aurélio Bilibio

troca entre ambos fomentavam o amor e a alegria. proporcionados pela interação entre os seres huma-
O gradual processo de afastamento, físico e emocio- nos e seres mais-que-humanos, fazendo-as padecer
nal, do menino guiado pelas necessidades ilusórias do que ele denominou de Transtorno de Déficit de
criadas pela sociedade enferma na qual vive, domi- Natureza.
nada pelo sistema capitalista e consumista que visa Para Louv (2014, 2016), o Transtorno de Défi-
apenas o ter, desvitalizam-no pouco a pouco. cit de Natureza não é um diagnóstico médico, mas
sim uma condição de atrofia do sentido de pertenci-
“Venha, venha, meu Menino”, (a árvore) sus- mento e interdependência com a natureza. Ele con-
surrou: “venha brincar”. duz o homem a insular-se no contato apenas com
“Estou velho para brincar”, disse o menino, “e sua própria espécie e desconectar-se da teia da vida.
estou também muito triste”. Trata-se de “uma tendência civilizacional que vem
(...) “Desculpe, Menino”, a árvore disse, “não sendo gestada por séculos (...) que se expressa na
tenho mais nada pra lhe oferecer. As maçãs já vida sob quatro paredes, com tomadas e uma série
se foram”. de excitantes produtos eletrônicos” (Bilibio, 2013,
“Meus dentes são fracos demais pra maçãs”, p. 110) e “cria a geração mais eletronicamente ‘co-
falou o menino. nectada’, e ao mesmo tempo, a mais desconectada
“Já se foram os galhos pra você balançar”, a do mundo natural, de que se tem notícia” (Bilibio,
árvore disse. 2013, p. 27).
“Já não tenho idade pra me balançar”, falou o Pesquisas indicam que a vivência essencial-
menino. mente urbana e tecnológica, distante e desconecta-
“Não tenho mais tronco pra você subir”, a ár- da do ambiente natural, acarreta grande prejuízo às
vore disse. crianças (Louv, 2016; Profice, 2016). Os ambientes
“Estou muito cansado e já não sei subir”, falou fechados e artificiais nos quais elas ficam restritas,
o menino. bem como as atividades com as quais se ocupam
“Eu bem gostaria de ter qualquer coisa pra lhe (tal como televisão, o vídeo-game e/ou outros brin-
oferecer”, suspirou a árvore. “Mas nada me quedos eletrônicos) privilegiam apenas o seu de-
resta, e sou apenas um toco sem graça. Des- senvolvimento cognitivo e limitam gradualmente o
culpe...”. desenvolvimento de seus sentidos e sua sensibilida-
“Já não quero muita coisa”, disse o menino, “só de. Devido aos perigos da vida urbana, restringem
um lugar sossegado onde possa me sentar, pois a sua mobilidade física, impedindo-as de brincar
estou muito cansado” (Silverstein, 1964/2006, e correr livremente na vizinhança, limitando não
p. 46; 52-54). apenas seu desenvolvimento motor, mas também a
sua autonomia e independência, além de favorecer
Assim como a retirada das matas e florestas no o sedentarismo.
processo de desmatamento deixa o solo vulnerável Ademais, o encarceramento das crianças em
à erosão, a retirada da natureza da vida do homem seus próprios lares e/ou escolas, ambientes consi-
deixa o seu ser exposto e desprotegido, criando derados “seguros e protegidos”, circunscrevem suas
pouco a pouco um vazio existencial. Surge então relações e trocas afetivas apenas aos humanos que
a ansiedade, a depressão, o pânico, o estresse, as fazem parte destes ambientes, impactando o seu de-
doenças psicossomáticas, entre outros adoecimen- senvolvimento psicológico, social e afetivo pleno.
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tos típicos da sociedade moderna. E, com eles, cres- Também tolhe a capacidade da criança de explorar,
ce o uso e abuso das drogas lícitas e ilícitas, que imaginar e criar, por impedir o seu brincar livre e
alienam ainda mais o homem de si mesmo, de tal desestruturado na natureza, o qual naturalmente a
forma a obnubilar sua consciência cognitiva, sen- expõe a desafios, recursos e estímulos variados que
sorial e afetiva (awareness). Nesse estado, o homem enriquecem sua vivência e aprendizagem. A retira-
não percebe que seu adoecimento espelha o adoeci- da da natureza (e do brincar livre nela) da vida da
mento do sistema em que vive (Bilibio, 2013), bem criança causa estes e outros tantos prejuízos ao seu
como o fato de que os sintomas por ele manifestos desenvolvimento e saúde global, pois equivale, se-
camuflam e desviam o foco da matriz dos proble- gundo Louv (2016), a tirar o seu oxigênio, ou seja,
mas, que é a perda da sua totalidade organísmica, um elemento fundamental à vida.
a desconexão e a interrupção da fluidez do contato
com o campo.
Cabe ressaltar que a desconexão do homem Retorno à Natureza: O caminho para a cura
com a natureza tem adoecido não apenas os adultos
e velhos, mas igualmente, e de forma cada vez mais (...) Muito tempo depois o menino voltou.
intensa, as crianças. Patologias antes raras na infân- ‘Desculpe, Menino, não tenho mais nada pra
cia, tais como ansiedade, depressão, transtorno de lhe oferecer. Eu bem gostaria de ter qualquer
déficit de atenção e hiperatividade, além da obesi- coisa pra lhe oferecer. Mas nada me resta e eu
dade, têm se tornado epidemias nos tempos atuais. sou apenas um toco sem graça. Desculpe...’
-

Louv (2016) em seu livro “A última criança na na- ‘Já não quero muita coisa’, disse o menino, ‘só
tureza”, discorre sobre como a perda da experiência um lugar sossegado onde possa me sentar, pois
A r t i g o s

de integração da pessoa com a sociedade e a natu- estou muito cansado.’


reza coloca as crianças fora do contato e da sintonia ‘Pois bem’, respondeu a árvore, enchendo-se de
com os processos regenerativos e de autorregulação alegria, ‘eu sou apenas um toco mas um toco é

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A (Des)Conexão Criança e Natureza sob o Olhar da Gestalt-Terapia e Ecopsicologia

muito útil para sentar e descansar. Venha, Me- uso de matérias-primas e energia, bem como a quan-
nino, depressa, sente-se em mim e descanse’. tidade de material a ser descartado; (2) reutilizar os
Foi o que o menino fez. E a árvore ficou feliz produtos usados dando a eles outras funções e; (3)
(Silverstein, 1964/2006, p. 52-56). reciclar, retornando o que foi utilizado ao ciclo de
produção. Mas, sobretudo, ela deve primar, como
Da mesma forma que a desconexão com a na- parafraseado por Villaraga (2013), pelos seguintes
tureza pode adoecer o ser humano, a sua reconexão 3Rs: (1) respeito por si mesmo; (2) respeito pelo pró-
com o mundo natural o conduz a estados de saúde ximo, seja ele humano ou mais-que-humano e; (3)
e plenitude. Várias pesquisas têm comprovado os responsabilidade por todas as ações.
efeitos benéficos do contato com a natureza para a Para a Gestalt Ecoterapia o surgimento desta
saúde, não apenas das crianças, mas para as pes- nova ética de cuidado para com o meio ambiente
soas de todas as faixas etárias. será estabelecido por meio de experiências de re-
Estes estudos, sumariamente apresentados por conexão; pelo reconhecimento do sentimento pro-
Louv (2014, 2016) e Profice (2016), demonstram fundo de tristeza perante a degradação e perda da
que a natureza é um ambiente restaurador nato que natureza; pela identificação das introjeções que nos
promove o relaxamento, auxiliando na redução do conduzem à desconexão e destruição do meio am-
estresse e da ansiedade e na recuperação do desgas- biente; e, por fim, pelo consequente descarte destes
te psicológico. Alivia o cansaço mental decorrente velhos conceitos repassados pela cultura, os quais
do excesso de atenção dirigida, ajudando o cérebro deverão ser substituídos por conceitos sistêmicos
a restabelecer sua capacidade de atenção, concen- acerca da teia da vida.
tração e processamento de informações. Aguça os Estes conceitos sistêmicos foram detalhada-
sentidos, atiça a curiosidade e favorece o desen- mente enunciados por Fritjof Capra na sua proposta
volvimento da capacidade imaginativa. Convida de alfabetização ecológica, a qual propõe um pro-
ao movimento promovendo o desenvolvimento e cesso de educação para uma vida sustentável com
a coordenação motora. Enseja a alegria, o entusias- base no ensino dos princípios básicos da ecologia
mo e a interação positiva facilitando a socialização (Stone & Barlow, 2005/2006). Por meio dela, o indi-
e o estabelecimento de vínculos afetivos. E, mais víduo deve compreender que todo organismo é um
recentemente, descobriu-se que o contato com a na- sistema vivo, no qual se aninham outros sistemas
tureza ameniza os sintomas do Transtorno de Défi- vivos (suas partes), sendo ele próprio, parte de um
cit de Atenção e Hiperatividade. sistema vivo maior (comunidade). Nesta comuni-
Considerando estes e outros tantos benefícios, dade, as relações estabelecidas entre os diversos
Louv (2014) cunhou a expressão “Vitamina N” para sistemas vivos ocorrem de forma não linear, cons-
designar o tônico e/ou terapia da natureza, um tipo tituindo redes complexas, nas quais um conjunto
de tratamento baseado na conexão mente/corpo/na- comum de propriedades e princípios de organiza-
tureza, que é amplamente acessível, sem custos, li- ção é compartilhado, processos e padrões de rela-
vre de efeitos colaterais e estigmatizantes e que traz cionamento são identificados de forma a sustentar
benefícios substanciais à saúde. Pela sua eficácia a vida como um todo. Pela integração e interdepen-
– empiricamente conhecida há séculos e mais re- dência na rede, tudo o que acontece em um sistema
centemente comprovada pela ciência – este tipo de afeta a sustentabilidade dos demais a ele conecta-
tratamento tem sido cada vez mais recomendado, dos. Desta forma, quanto maior a diversidade da co-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
de forma coadjuvante, pelos profissionais de saúde munidade e a complexidade das interconexões de
sob a forma de prescrição de natureza. seus sistemas, maior a capacidade de recuperação e
Iniciativas cada vez mais frequentes, como sobrevivência diante de adversidades. Isso porque
a da Academia Americana de Pediatria, que criou as espécies com funções ecológicas sobrepostas po-
uma base de dados on-line (DC Park Rx), buscam dem substituir, mesmo que parcialmente, umas às
incentivar o contato da natureza. Na iniciativa DC outras. Além disso, na teia da vida a matéria está
Park Rx3, mais de 350 parques em Washington fo- sempre se reciclando, de forma tal que o detrito de
ram mapeados, no intuito de auxiliar os médicos uma espécie alimenta outra, não gerando assim re-
no momento de prescrever atividades na natureza. síduos, sendo até mesmo a energia transformada e
Pelo endereço do paciente, o profissional pode lo- renovada a todo instante. Por meio deste fluxo con-
calizar o parque mais próximo à sua residência e tínuo o ecossistema se autoecorregula e atinge um
incentivá-lo a realizar atividades neste local. É a equilíbrio dinâmico, e os sistemas se desenvolvem
ciência começando a levar o homem de volta para e coevoluem numa dança contínua (Stone & Bar-
casa, para a natureza. E este retorno urge, pois como low, 2005/2006).
alerta Louv (2014), os benefícios do mundo natural A awareness do homem acerca destes princí-
tornar-se-ão irrelevantes se o homem continuar a pios básicos da ecologia e do seu papel na teia da
destruir a natureza que o cerca. É inadiável, portan- vida modifica os seus sentimentos, pensamentos e
to, o desenvolvimento de uma nova ética existen- comportamentos, além de resgatar a atitude EU-TU
cial e social, por meio da qual o homem reconhe- para com a natureza. Como a água que brota da ter-
-

ça-se como parte do todo e perceba o imperativo de ra, do manancial da awareness pulula a nova ética
cuidar do bem comum (Papa Francisco, 2015). que nutre a reconexão do homem com o Universo e
A r t i g o s

Esta nova ética deve incluir ações de sustenta- reestabelece relações de respeito, apoio e coopera-
bilidade, tal como a proposta dos 3Rs: (1) reduzir o ção mútuos entre todos os seres viventes.
3 http://aapdc.org/chapter-initiatives/dc-park-rx/

385 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 379-387, set-dez, 2018
Fernanda Nascimento Pereira Doca; Marco Aurélio Bilibio

Considerações Finais Bilibio, M. A. (2013). De frente para o espelho: Ecopsico-


logia e sustentabilidade. Tese de Doutorado em De-
A reflexão, ora apresentada, evidencia a con- senvolvimento Sustentável, Universidade de Brasí-
vergência da Gestalt-terapia enquanto abordagem lia, Brasília. Disponível em: http://repositorio.unb.
da Psicologia, que traz em seu arcabouço teórico br/handle/10482/14858.
o conceito de mundo-pessoa como uma totalida-
de indivisível que se autoecorregula mutuamente, Brown, L. R. (1995). Ecopsychology and the environ-
com a Ecopsicologia que evidencia a conexão natu- mental revolution: Na environmental foreword.
ral e profunda do homem com a natureza. Ambas Em T. Roszak, M. E. Gomes & A. D. Kanner (Ed.),
as disciplinas, confluem ainda, embora utilizando Ecopsychology: restoring the earth, healing the
terminologias diferentes, na percepção dos proces- mind (pp. xiii-xvi). San Francisco, CA: Sierra Club
sos que conduzem a criança à perda progressiva do Books.
sentido de pertencimento e integração com a teia da
Buber, M. (2001). Eu e Tu. São Paulo, SP: Centauro Edito-
vida. Outrossim, comungam do entendimento de
ra. (Original publicado em 1974).
que a perda da ressonância sensível e da postura de
encantamento perante o mundo e os seres vivos fo- Capra, F. (2006). A teia da vida. São Paulo, SP: Cultrix
mentam a mudança da atitude natural e espontânea (Original publicado em 1996).
com a natureza (EU-TU) para uma atitude utilitária
e objetivante (EU-ISSO). Neste tipo de relação, a Franklin, D. (2013). Talking ourselves down (to Earth):
desconexão e alienação do homem com o Universo Preventing ecocide. Em K. McKay & J. E. Schlimme
se fazem presentes e, lamentavelmente, vão sendo (Eds.). Making sense of suicide (p. 11-18). Inter-Dis-
transmitidas de geração a geração e se enraizando ciplinary Press. Recuperado em Março de 2016,
no mais íntimo do ser humano. de http://www.inter-disciplinary.net/wp-content/
O olhar da Gestalt-terapia e da Ecopsicologia uploads/2010/10/dfranklinpaper.pdf
acerca da desconexão entre a criança e a natureza
desvela, desta maneira, o abismo que a cultura ur- Latner, J. (1986). The Gestalt therapy book. Gouldsboro,
bana-industrial-capitalista tem criado, sem se dar ME (USA): The Gestalt Journal. (Originalmente pu-
conta do destino comum e entrelaçado da grande blicado em 1973).
teia da vida, na qual o homem é tão somente um
Louv, R. (2014). O princípio da natureza: reconectando-
fio desta complexa trama (Perry, 1854/2006). Neste
-se ao meio ambiente na era digita. São Paulo, SP:
caminho, ilude-se o homem que assimila os mitos
Cultrix.
da cultura dominante como verdades absolutas e
inquestionáveis. A realidade mostra um presente Louv, R. (2016). A última criança na natureza: resgatando
muito diferente do que estes mitos preconizam, nossas crianças do transtorno do déficit de natureza.
além de indicar um futuro ainda mais penoso, visto São Paulo, SP: Aquariana.
que, com desequilíbrio climático, a crise hídrica e o
desflorestamento, bem como com os riscos alimen- Mendes, A. T. (2013). Espiritismo e ecologia. Brasília, DF:
tares decorrentes destas condições, a raça humana FEB.
tem colocado a si mesmo, juntamente com toda a
teia da vida, em risco de extinção. Papa Francisco. (2015). Carta encíclica Laudato Si’ do
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

Imprescindível se faz, portanto, parar e ques- Santo Padre Francisco sobre o cuidado da casa co-
tionar: Como estamos cuidando da Terra e dos Fi- mum. Brasília, DF: Edições CNBB.
lhos da Terra? Porquanto a essência deste cuidado
é tal como a semente lançada no solo que plantada, Perls, F. S. (2002). Ego, fome e agressão: uma revisão da
germina, cresce e frutifica no grande ciclo da vida. teoria e do método de Freud. (3ª ed.) (G. D. J. B. Bo-
Pelas sementes que plantou (e continua plantan- ris, Trad.). São Paulo: Summus (Original publicado
do) o homem colhe agora um fruto aparentemen- em 1947).
te atraente e sedutor, mas que é venenoso em sua Perls, F. S. (1977). Gestalt-terapia explicada. (G. Schlesin-
essência. Um fruto que, ao invés de nutri-lo, into- ger, Trad.). São Paulo, SP: Summus. (Originalmente
xica-o, exaure suas forças e pouco a pouco tira a publicado em 1969).
sua vida. Assim, se quiser preservar a si mesmo,
manter-se vivo e saudável, necessário se faz que ele Perls, F. S., Hefferline, R. & Goodman, P. (1997). Gestalt-
cultive outras sementes, as quais contenham em si -terapia (3ª ed.) (F. R. Ribeiro, Trad.). São Paulo, SP:
o gérmen do respeito, do cuidado e do amor entre Summus. (Originalmente publicado em 1969).
todos os seres.
Perry, T. (2006). A carta do cacique de Seattle. (A. Galeffi,
Trad). Rio de Janeiro, RJ: Versal Editores. (Original-
Referências mente publicado em 1854).
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A r t i g o s

(Ed.), Ecopsychology: restoring the earth, healing the


mind (pp. 101-110). San Francisco, CA: Sierra Club Profice, C. (2016). As crianças e a natureza: reconectar é
Books. preciso. São Paulo, SP: PandorgA.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 379-387, set-dez, 2018 386
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A r t i g o s

387 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 379-387, set-dez, 2018
388
389
R evisão C rítica de L iteratura .......
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.13

PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE A DESOCUPAÇÃO


EM JOVENS RECÉM-GRADUADOS: ANÁLISE
FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL
Academic Production on Unemployement in Young Learning: A Phenomenological-Existential Analysis

Producción Académica en el Desempleo em Jóvenes Recién Graduados: Análisis Fenomenológica-Existencial


Malu Nunes de Oliveira
Cíntia Guedes Bezerra Catão
Elza Maria do Socorro Dutra

Resumo: Este estudo apresenta um levantamento bibliográfico do que se tem produzido sobre a temática da desocu-
pação, tomando como ponto de partida a análise de estudos com recém-graduados que se encontram nessa situação
para possibilitar uma problematização à luz da perspectiva fenomenológico-existencial. A intenção é discutir como
a experiência dos indivíduos é abordada no período de transição entre a universidade e o mercado de trabalho. Para
tal, foram selecionados dez estudos científicos que retratam a temática, no período dos últimos 20 anos. Destaca-se a
escassez de estudos sob a leitura fenomenológico-existencial, sendo mais recorrentes estudos que abordam uma pers-
pectiva sobre o mundo do trabalho, relacionando causa e efeito. Promove-se, portanto, a abertura de um novo pensar,
sob esta perspectiva, num foco maior sobre o pensamento heideggeriano, ótica que permite trazer à luz essas reflexões.
Palavras chave: Desemprego, jovens, ócio, recém-graduados, fenomenologia-existencial.

Abstract: This study presents a bibliographical survey of what has been produced on the issue of unemployment, taking as a starting
point the analysis of studies with recent graduates who find themselves in this situation to enable a problematization in light of the
phenomenological-existential perspective. The intention is to discuss how the experience of individuals is approached in this period
of transition between the university and the labor market. To that end, ten scientific studies were selected that portray the theme in the
period of the last 20 years. There is a shortage of studies under the phenomenological-existential reading, with more recurring studies
that approach a perspective on the world of work, relating cause and effect. Therefore, the opening of a new thinking is promoted,
from this perspective, with a greater focus on heideggerian thought, which allows us to bring these reflections to light.
Keywords: Unemployment, youth, leisure, recent graduates, phenomenology-existential.

Resumen: Este estudio presenta un levantamiento bibliográfico de lo que se ha producido sobre la temática de la desocupación,
tomando como punto de partida el análisis de estudios con recién graduados que se encuentran en esa situación para hacer posible
una problematización a la luz de la perspectiva existencial-fenomenológica. La intención es discutir cómo la experiencia de los indi-
viduos se aborda en este período de transición entre la universidad y el mercado laboral. Con este fin, se seleccionaron diez estudios
científicos que muestran el tema, dentro de los últimos 20 años. Hay una falta de estudios en la lectura existencial-fenomenológica,
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

más estudios recurrentes que abordan una perspectiva sobre el mundo del trabajo, la vinculación de causa y efecto. Promueve, por
lo tanto, la apertura de un nuevo pensamiento en esta perspectiva, en un foco mayor sobre el pensamiento heideggeriano, óptica que
permite sacar a la luz estas reflexiones.
Palabras clave: Desempleo, juventud, ocio, recién graduados, fenomenología y existencial.

Introdução dações feitas pela OIT (Organização Internacional


do Trabalho), órgão que criou a metodologia segui-
A desocupação é um fenômeno que comumen- da pelo IBGE, que define os desempregados como
te é trabalhado em junção com o desemprego. No pessoas que podem também estar desocupadas,
Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portu- mas inclui os indivíduos que já têm um emprego
guesa (2012), desocupação significa: “Ato ou efeito e ainda não iniciaram, assim como os que estão
de desocupar. Falta de ocupação. Ociosidade”. Para exercendo algum tipo de trabalho informal e que
o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís- pretendem oficializar e legalizar tal prática (Kon,
tica), a população desocupada é constituída pelas 2013). Definir trabalho e emprego é importante para
pessoas que não estão economicamente ativas, ou que se possa compreender essa lógica. Para a OIT,
seja, engloba indivíduos que estão disponíveis para trabalho é qualquer atividade econômica do traba-
o mercado e que tomaram alguma providência efeti- lhador em ocupação remunerada ou não, em que
va para conseguir emprego em um período de mais produza bens e serviços ou no serviço doméstico. O
-

ou menos 30 dias. São, portanto, pessoas sem traba- emprego contempla pessoas acima de certo nível de
lho (IBGE, 2016). idade – juvenil dos 15 aos 24 anos e, adulto – que
A r t i g o s

O indicador de desemprego é mais amplo e é trabalharam ou que tiveram um emprego durante


melhor definido pela EUROSTAT (Divisão de Esta- um período específico, incluindo pessoas assalaria-
tística da Comissão Europeia), através de recomen- das, temporariamente ausentes do trabalho, e traba-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 390-401, set-dez, 2018 390
Produção Acadêmica sobre a Desocupação em Jovens Recém-Graduados: Análise Fenomenológico-Existencial

lhadores familiares não assalariados que trabalham objetivação do homem, nos dias atuais, se sobres-
pelo menos uma hora. Em resumo, desocupadas são sai, contribuindo para uma existência alienante, em
as “pessoas sem trabalho” e desempregadas são as que o ser é absorvido pela lógica capitalista de pro-
“pessoas sem emprego” (OIT, 1982, 1998). Clarificar dução e pela máquina veloz do tempo.
isto é crucial porque o desemprego pode englobar A existência humana é atingida por cadeias de
pessoas ocupadas em alguma situação de trabalho causa e efeito, e as respostas precisam ser imedia-
(Kon, 2013). tas, levando o homem a corresponder a papéis e de-
Utilizar a temática do desemprego, nesta for- mandas da vida, de modo automático e irrefletido.
ma de classificação dada pelas estatísticas, para Evidencia-se o predomínio de uma cultura do “ter”,
definir e se trabalhar o significado da desocupação em detrimento do “ser”, em que há o imperativo do
e seus efeitos não engloba este fenômeno em sua acúmulo de bens ou coisas materiais, como se hou-
totalidade, fato que está muito além de pessoas que vesse aí uma associação de valor à pessoa (Dantas,
estão em situação de não ter trabalho, uma vez que 2011). O momento histórico atual, que se tornou o
não há espaços para pensar o tempo livre dos de- destino da humanidade, foi anunciado como a era
sempregados como algo que possa fazer parte da da técnica, que provocou “uma reviravolta de todas
vivência, refletindo seus significados. Há apenas o as representações dominantes (...) uma posição to-
tempo do trabalho. Este estudo visa, portanto, fazer talmente nova do Homem no mundo e em relação
um levantamento bibliográfico do que se tem pro- ao mundo” (Heidegger, 1959, p. 18).
duzido sobre a temática da desocupação, tomando As diversas modalidades da cultura pós-mo-
como ponto de partida, a análise de estudos com derna confirmam aquilo que de Nietzsche a Heide-
recém-graduados que se encontram nessa situação gger foi sinalizado como o advento de um tempo
e possibilitar uma problematização à luz da pers- inautêntico e inumano, fundado e fundador de um
pectiva feomenológico-existencial. profundo desespero existencial do ser humano em
Segundo o IBGE, a taxa de desocupação (que face da voracidade e da velocidade, o qual está mais
engloba tanto indivíduos desocupados quanto de- perto do nada. Nem os apelos à ‘desaceleração’ po-
sempregados) em fevereiro de 2016 foi estimada dem inverter este desconforto, esta sensação de cri-
em 8,2% da população total, o que representa um se constante que os media, incensam todo o tempo
número de 2,0 milhões de pessoas desocupadas (Heller, 2009).
no Brasil. É importante destacar que essa taxa vem A desocupação em recém-graduados precisa
aumentando significativamente, considerando-se ser pensada, considerando-se essas reflexões acer-
o contexto de fragilidade econômica e, por con- ca da era da técnica, dada a repercussão na vida de
seguinte, aumento do desemprego por qual passa um jovem que está desocupado numa sociedade
o país, como se verifica com o acréscimo de 136 em que se prega que tempo vale ouro e que não
mil pessoas desempregadas do mês de janeiro para se pode ficar parado. Verificam-se demandas e
fevereiro do ano de 2016 (IBGE, 2016). Com isso, preocupações quanto a conseguir ou não empre-
ressalta-se a importância do desenvolvimento de go, depois de ter, por exemplo, concluído o nível
pesquisas a esse respeito que possibilitem a pro- superior, como se verifica em aumento na procura
blematização acerca da desocupação e contribuam por assistência psicológica por parte de estudan-
para a construção de conhecimento. tes universitários, nos últimos semestres do curso,
Segundo Arendt (1981), existem três dimen- quando se aproxima a saída da universidade e se

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
sões do fazer humano que são constitutivas do exis- evidencia o receio de ter de ingressar no competi-
tir. O labor, atividade relacionada à necessidade tivo e, muitas vezes, assustador mercado de traba-
biológica, a qual está ligada diretamente ao ciclo de lho (Catão, 2016).
preservação da vida e satisfação das necessidades O crescimento das taxas de desemprego tornou
vitais. O trabalho, que constitui a atividade de criar/ a inserção de jovens no mercado de trabalho um
transformar elementos extraídos da natureza, ge- dos grandes desafios da atualidade, e isto atravessa
rando um mundo compartilhado entre os homens. o modo de estar no mundo desses indivíduos, uma
E a ação, atividade exercida entre os homens, sem vez que não fazer nada pode caracterizar a perda
mediação das coisas ou da matéria. de utilidade, devido à grande exigência pela busca
Logo, o trabalho corresponde a uma necessi- de resultados. Na perspectiva de pensar o homem
dade espontânea do ser humano, base de satisfação privilegiando a dimensão existencial da vida, en-
e realização, em que os indivíduos encontram sua contram-se na filosofia de Martin Heidegger (1889
expressão mais natural, desde que certas condições – 1976), os vários modos de ser-em da existência
de ordem psicológica, moral e social estejam asse- humana, os quais caracterizam a essência do ho-
guradas. Para além de uma fonte de rendimento e mem, isto é, o fato dele existir, em sentido próprio
de sentido para a vida, ele estrutura a sociedade de e em copertecimento ao mundo. Heidegger criou
um modo dialético. Como disse Schnapper (1998), o termo Dasein (ser-aí) ou pre-sença, destacando
“as sociedades modernas constroem-se em torno da que o ser é aí, ou seja, no mundo, rompendo desse
atividade profissional, da cidadania e da articula- modo com perspectivas que restringem a experiên-
-

ção entre as duas” (p. 16). cia humana a explicações de natureza interna, e
O cotidiano vem se estruturando de forma que assim contribuem para a culpabilização e autorres-
A r t i g o s

parece pouco provável haver a possibilidade de que ponsabilização individual a problemáticas relativas
o “ócio” possa ser tratado como parte da vivência ao social (Bauman, 2007). O pensamento heideg-
considerada plena. A tendência à produtividade e geriano se mostra bastante importante para que se

391 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 390-401, set-dez, 2018
Malu Nunes de Oliveira; Cíntia Guedes Bezerra Catão; Elza Maria do Socorro Dutra

possa refletir sobre as repercussões no ser, como no Nesse caminho, pretendeu-se discutir como
tema em tela, do fato de estar desocupado, conside- o sofrimento dos indivíduos é abordado nesse pe-
rando-se a implicação da conjectura sociopolítica, ríodo de transição entre a universidade e o mer-
histórica e cultural, pensando o social e o singular cado de trabalho, analisando os aspectos mais re-
de modo indissociável (Feijoo, 2011). Pode-se dizer levantes elencados nos estudos selecionados. Em
que é através da existência (homem-mundo) que o decorrência das grandes divergências conceituais
Dasein compreende a si e as suas possibilidades de e metodológicas existentes acerca do tema, bus-
ser-no-mundo. cou-se descrever o perfil dos trabalhos publicados
É importante salientar que Heidegger referentes ao fenômeno e como se dá a apresenta-
(1927/2014) discute os modos de ocupação como, ção destas dificuldades encontradas pelos recém-
além de ter o que fazer, produzir, tratar e cuidar de -graduados, por meio de uma revisão integrativa
algo e empreender, também é um modo a desocu- da literatura. A intenção foi apresentar o que vem
pação e o não fazer nada, e com isso pode-se consi- sendo pesquisado atualmente sobre o tema e quais
derar que, para ele, o ser humano nunca estará de concepções são priorizadas dentro da produção
fato desocupado, em um sentido ôntico, visto que, científica atual. Realizou-se, outrossim, um diálo-
ontologicamente, ele é ocupação e preocupação en- go, evidenciando os pontos convergentes e diver-
quanto ser-no-mundo e com os outros. gentes sobre o assunto, como forma de proporcio-
A perspectiva fenomenológico-existencial va- nar uma leitura integradora.
loriza a maneira singular de o indivíduo estar no
mundo, interagir com ele, ser afetado por ele e afetá-
-lo, isto é, preocupa-se com o modo como o homem Método
experiencia e dá sentido a esse mundo. Segundo
Critelli (1996) a fenomenologia não é somente uma O presente estudo foi realizado a partir do mé-
teoria do conhecimento, no sentido de uma teoria todo de revisão integrativa de literatura, que tem
fechada com explicações detalhadas sobre todos os como finalidade reunir e resumir o conhecimento
fenômenos, mas uma reflexão sobre o modo huma- científico já produzido e publicado sobre o tema
no de ser-no-mundo. Na verdade, busca aquilo que investigado, a fim de contribuir para o desenvolvi-
é fundante no ser humano, seus modos de habitar mento do conhecimento sobre a temática (Mendes,
e se instalar nesse mundo. E estar-no-mundo, para Silveira e Galvão, 2008).
essa perspectiva, significa considerar o homem em As etapas para elaboração da revisão foram as
sua historicidade. seguintes: definição da questão norteadora e obje-
Segundo Heidegger (1927/2014), o homem é tivos da pesquisa, estabelecimentos dos critérios
um ser lançado num mundo em que ele não es- de inclusão e exclusão das publicações, busca na
colheu, estando submetido às contingências des- literatura, análise e categorização dos estudos e dis-
te, sendo esta a sua facticidade. O homem não cussão dos resultados. A pergunta disparadora para
está sozinho nesse mundo, pois este é composto o desenvolvimento do estudo foi: o que se tem pro-
por utensílios, animais e outros homens, e assim, duzido sobre a desocupação de jovens recém-gra-
ele é um ser-no-mundo-com-os-outros. Para este duados?
filósofo, existem duas formas principais de se A busca por publicações envolvendo a temá-
relacionar com o mundo: o modo inautêntico e tica foi feita, no período de março e abril de 2016,
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

o autêntico. No primeiro, o homem é completa- nas seguintes fontes: SciELO (Scientific Eletronic
mente absorvido pelo mundo e nele se perde, não Library Online), PePSIC (Periódicos Eletrônicos em
realizando as suas possibilidades; no segundo, o Psicologia), LILACS (Literatura Latino-Americana e
homem se abre para as possibilidades, partindo do Caribe em Ciências da Saúde) e o Portal de Perió-
de si mesmo e das suas relações de sentido que dicos da CAPES. Optou-se por estas bases de dados
constrói no mundo (Bruns & Trindade, 2001). No eletrônicas e biblioteca por entender que atingem a
entanto, esses modos se misturam no decorrer da literatura publicada nos países da América Latina e
experiência. Caribe, como também são referências técnico-cien-
Diversas investigações realizadas em torno de tíficas brasileiras de revistas bem conceituadas na
conflitos psicológicos apontam que indivíduos em área da Psicologia. Foram utilizados os descritores:
situação de desemprego, de uma forma geral, ten- “desemprego” e “jovens recém-graduados”, cruzan-
dem a experienciar níveis elevados de depressão, do com “não-trabalho”, “primeiro emprego” e “ócio”,
ansiedade, estresse e angústia, juntamente com bai- por não se tratarem de descritores diretamente rela-
xa autoestima e baixa confiança (Warr, Jackson & cionados ao tema, mas que podem trazer produções
Banks, 1988). Pode-se perguntar com base no viés relacionadas a temática. Incluiu-se também “feno-
fenomenológico-existencial: Como estão se dando menologia”, “fenomenológico”, “existencial”, “exis-
os estudos relacionados à ausência de trabalho e à tência” e “fenomenológico-existencial”. O descritor
desocupação? Quais os sentidos que o ser atribui a “desocupação” não existe no banco de dados de des-
uma experiência de estar desocupado? Este estudo critores da BVS-Psi, então não foi utilizado.
-

coloca essas questões em discussão a partir do que Os critérios de inclusão definidos para a seleção
pôde ser encontrado na literatura sobre esta temá- dos estudos foram: artigos publicados em português,
A r t i g o s

tica, buscando contribuir para uma melhor com- inglês e espanhol, na íntegra, assim como teses e dis-
preensão acerca da implicação da desocupação na sertações, que retratassem a temática referida e os
vivência do ser humano. indexa­dos nos citados bancos de dados, nos últimos

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Produção Acadêmica sobre a Desocupação em Jovens Recém-Graduados: Análise Fenomenológico-Existencial

vinte anos. Outros artigos sobre o tema foram elimi- à dificuldade de inserção de recém-graduados no
nados pelo fato de serem produções que tratavam de mercado de trabalho, incluídos na situação de de-
fenômenos envolvidos no desemprego, mas que não semprego e/ou “não trabalho”, temática que se inse-
faziam referência direta ou indireta à perspectiva da re no contexto da desocupação.
temática propriamente dita. A busca foi realizada de Os estudos selecionados foram, em sua maio-
forma ordenada, respectivamente, PePSIC e SciELO, ria, brasileiros, e apenas dois internacionais, sendo
e foi realizada uma curta revisão através do buscador um referente aos Estados Unidos e outro ao Méxi-
Google Acadêmico. Desta forma, as publicações que co. As dissertações, os artigos e a tese selecionados
se encontravam inclusas em mais de uma, foram se- foram reunidos a partir de sua titulação e resumo
lecionadas na primeira busca. da temática, através de uma análise qualitativa para
Os resumos foram avaliados e as produções que identificar as contribuições de cada trabalho, verifi-
atenderam aos critérios previamente estabelecidos cando-se a relação com o tema proposto.
foram selecionados e lidos na íntegra para este es- A Tabela 2 apresenta a sistematização das pro-
tudo. Para a obtenção dessas publicações, além das duções, em que, para fins de organização, os artigos
bases de dados e biblioteca elencadas para a revisão, foram numerados de 1 a 10 e serão referidos através
foi utilizado o serviço de computação bibliográfica do seu respectivo número nas tabelas apresentadas
e acervo da Biblioteca da Universidade Federal do na sequência.
Rio Grande do Norte (UFRN). Objetivando descrever Verificou-se um aumento das publicações,
e classificar os resultados, realizou-se a análise, ca- a partir da década de 2000, ocorrendo depois de
tegorização e síntese das temáticas. As publicações 2004, e mais recorrentemente a partir de 2007. Esse
selecionadas para a amostra foram submetidas a recorte de tempo possibilita a reflexão desta época
uma análise qualitativa indutiva e comparativa. Foi contemporânea em que, segundo o IBGE, a partir de
indutiva por possibilitar a constituição de categorias 2008, o país entrou em um forte período de recessão
temáticas derivadas do “contato progressivo com o econômica, o que influenciou diretamente as taxas
material” (Pieta, Castro & Gomes, 2012, p. 132); e, de desocupação. A temática entrou em foco prova-
comparativa por buscar um diálogo entre os diversos velmente devido ao fato de que, no ano de 2009,
textos. A finalidade foi conhecer os conteúdos pro- travou-se um aumento de 18,5% no total de deso-
duzidos, bem como os caminhos de análise e refle- cupados. Significa que cerca de 1,3 milhão de tra-
xão sobre o tema da “desocupação”, possibili­tando balhadores engrossaram a lista dos desempregados,
observar, contar, descrever e classificar os dados, no maior salto desde 2001, e os estudos puderam
com o intuito de reunir o conhecimento dado so­bre ser potencializados.
o tema explorado na revisão. Nesta lógica, reitera-se a importância de se
pôr em questão o sentido de utilidade a partir do
fazer apregoado hodiernamente, ou seja, nada pode
Resultados e Discussão existir sem uma finalidade, característica de um
tempo capitalista e da era da técnica, como esclare-
A presente revisão integrativa encontrou, ao ceu Heidegger (1927/2014), ao expor que o homem
todo, dez estudos relacionados à temática. Quanto moderno entende a si mesmo e ao mundo na razão
aos tipos de produção, sete são artigos publicados direta da sua capacidade de dominar e manipular
em periódicos, dois são dissertações de mestrado e o mundo e os outros. A técnica se constitui assim

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
uma tese de doutorado. Segue um panorama geral como um esvaziamento do ser, o que pode afastar o
das publicações: homem da condição de ser si mesmo.
Ao analisar os delineamentos de pesquisa mais
Tabela 1 frequentes, identificaram-se seis estudos de enfo-
Distribuição das publicações selecionadas nas que qualitativo. Quanto às perspectivas teóricas e
bases de dados e biblioteca eletrônica área de estudos, sete foram produções na área de
Psicologia do Trabalho, sendo os demais estudos re-
Base de Dados e Recém-Graduados/ ferentes à Sociologia, Economia e Ciências Sociais.
Biblioteca Eletrônica Desocupação Apenas um dos estudos encontrados (o estudo 2),
de Teixeira e Gomes (2004), utiliza a perspectiva da
PePSIC 4 Psicologia fenomenológica, abordando uma temáti-
CAPES BR 1 ca mais voltada para a importância da orientação
SciELO 1 profissional na escolha da profissão.
A composição dos dados finais desta revisão
Google Acadêmico 4 permite a possibilidade de observar que a maioria
Total 10 dos artigos encontrados são predominantemente
empíricos. Estes são estudos que buscam possibi-
litar a compreensão, acréscimo ou modificação em
Observa-se que foram predominantes os arti-
um tema, por meio de dados coletados a partir de
-

gos encontrados na base da PePSIC e, de uma forma


fontes diretas (pessoas) que vivenciam ou conhe-
bem esporádica, no buscador do Google Acadêmi-
cem um tema específico, sendo cinco o total da
A r t i g o s

co, o que demonstra a escassez de produção sobre


amostra. Os outros três são teóricos, estudos estes
essa temática. Artigos utilizando o tema da desocu-
que têm como objetivo conhecer ou discutir uma
pação em recém-graduados não foram encontrados
temática, sem utilizar pesquisa de campo, funda-
e, por essa razão, optou-se pelos estudos referentes

393 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 390-401, set-dez, 2018
Malu Nunes de Oliveira; Cíntia Guedes Bezerra Catão; Elza Maria do Socorro Dutra

Tabela 2
Sistematização das produções por tema, autoria, local, ano e tipo de estudo
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
-
A r t i g o s

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Produção Acadêmica sobre a Desocupação em Jovens Recém-Graduados: Análise Fenomenológico-Existencial

mentando-se a partir de uma reflexão que trate de ria (Santiago e Holanda, 2013). Os objetivos de cada
aspectos gerais ou específicos de determinada teo- um são sistematizados na Tabela 3, como se vê:

Tabela 3
Objetivos gerais e específicos das produções selecionadas


1

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
5

7
-

8
A r t i g o s

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Malu Nunes de Oliveira; Cíntia Guedes Bezerra Catão; Elza Maria do Socorro Dutra

Pode-se perceber que os objetivos desses estu- alimenta, pelo estatuto que confere e pelo acesso que
dos, em geral, foram de buscar apresentar como se dá assegura aos direitos e às garantias sociais.
a transição dos jovens recém-graduados para o mer- O estudo de Borges (2008) traz à discussão
cado de trabalho, levando em consideração questões que, por caracterizarem o grupo mais afetado pela
que eles apresentam como sendo de cunho subjeti- reestruturação produtiva do final do século passa-
vo, como o sofrimento dos indivíduos que estão em do, os jovens têm vivenciado a maior taxa de de-
situação de desemprego e também análises dessas semprego dos últimos anos. Principalmente dentro
dificuldades objetivamente, a partir de levantamento desse contexto, a formação profissional ocorreu
de causas e consequências desse fenômeno. Alguns como resposta às demandas surgidas a partir das
se tratam também de dados estatísticos de como isso dificuldades encontradas no âmbito do mercado de
vem ocorrendo nos últimos anos. trabalho. Todavia, afirma Pimentel (2007), tal rela-
A discussão a seguir será apresentada por meio ção atravessou os tempos e as diversas reconfigura-
de tópicos categóricos agrupando os conteúdos que ções da realidade social não acompanharam o seu
foram destacados a partir das temáticas mais tra- sentido inicial, apesar de os jovens se apresentarem
balhadas entre os artigos que se assemelham entre confiantes quanto à crença de que existe lugar no
si, depois de uma análise feita a partir da leitura na mercado para quem é competente e busca oportu-
íntegra dos estudos. nidades, como apresentou a pesquisa de Teixeira e
Gomes (2004).
Desse modo, o diploma pode ser necessário
Formação Profissional e Mercado de Trabalho em nossa sociedade ca­pitalista, mas não constitui
uma garantia para inserção imediata no mercado
Os estudos selecionados indicam, em sua maio- de trabalho. Antes, entendia-se que o diploma era a
ria, as dificuldades do mercado de trabalho e como prevenção contra o desemprego, mas com o passar
elas afetam negativamente os estudantes universi- do tempo, identificou-se que esta não é uma ver-
tários que se preparam para ele. Por se caracterizar dade, pois o aumento dos níveis de formação não
como um momento decisivo na vida do jovem que interfere sobre o aumento geral das taxas de desem-
está nessa fase, a inserção no mercado se torna muito prego (Gomes e Lima, 2010; Yung, 2013).
importante e tem influência direta na vida dos indi- Refletindo sobre o mundo do trabalho contem-
víduos, visto que, além de trazer crescimento indivi- porâneo, é notável que a necessidade de qualifica-
dual e consequente inserção no mundo adulto, traz ção expressa pelos entrevistados no estudo de Yung
contribuições ao crescimento econômico de onde ele (2013) é reveladora das exigências do mercado. A
vive (Valore, 2005; Yung, 2013). adaptação vem se tornando necessária, assim como
Critelli (2006) aponta que o “trabalho” não a resiliência diante dessa nova conjuntura. Torna-se
é ontológico. É ôntico. Ocupar-se é que é ontoló- importante também uma constante adequação do
gico, é constituinte do ser do homem, e é, portan- trabalhador ao mercado de trabalho para se manter
to, existencial. É possível pensar que, valorando a empregado, o que interfere diretamente na qualida-
ocupação por meio apenas do trabalho, os jovens de de vida dos indivíduos que podem se submeter a
estão, em sua maioria, lidando com suas vidas uni- diversas formas de trabalho.
camente como ocupação, havendo uma objetivação No caso dos jovens analisados pelo estudo de
da vida. Este é um advento da era da técnica, tem- Yung (2013), a qualificação permanente surge como
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

po em que, segundo Heidegger (1987/2009), “(...) de estratégia à dificuldade de inserção ocupacional


tudo o que é, só se considera aquilo que é mensurá- que eles enfrentam. A preocupação, portanto, não
vel, quantificável. Dispensam-se todas as outras ca- reside somente em manter o emprego, mas também
racterísticas das coisas” (p. 55). Há, nesse sentido, como em obter uma oportunidade de emprego. E
uma primazia do mundo do trabalho. essa oportunidade tende a aparecer sob a ilusão de
O estudo de Valore e Selig (2010), em sua fun- uma boa e continuada qualificação, fator que con-
damentação, apresenta um pouco do que seria essa tribui para o aumento do estresse e do sentimento
supremacia, explanando que isto se dá porque a ló- de insegurança em relação ao controle dos jovens
gica que rege esse contexto atravessa as demais ins- sobre a própria vida (Melo e Borges, 2007; Valore e
tâncias da vida pessoal dos indivíduos, assim como Selig, 2010).
também o modo de funcionamento do mercado de Borges (2008) explana que a queda na taxa de
trabalho passa a determinar o modo de funciona- ocupação juvenil é a causa das dificuldades enfren-
mento dos homens e as formas em que se consti- tadas pelos jovens para conseguir um emprego, pois
tuem. E não tem como o homem fugir disso, visto é equivalente a elevação acentuada das taxas de de-
que ele é atravessado por sua historicidade (Heide- semprego. Não se trata, portanto, da desqualificação
gger, 1959/2012). desses jovens, como discutido anteriormente. Tanto
Nesse contexto, ter um emprego vai além de o nível de atividade dos jovens, quanto as chances
construir uma estabilidade econômica e financeira. de encontrar um emprego ou ocupação, não estão
Para Pimentel (2007), o emprego garante o estabele- associadas somente à sua escolaridade. O diagnós-
-

cimento de relações sociais, assim como uma organi- tico dominante que remete à baixa escolaridade dos
zação do tempo, do espaço e uma identidade. A im- jovens às dificuldades que eles têm encontrando no
A r t i g o s

portância se dá por permitir a integração econômica mercado de trabalho é negado, o que entra em evi-
e a participação na esfera do consumo, assim como dência é a insuficiência de políticas governamen-
a integração social e cívica pelas relações sociais que tais formuladas neste período contemporâneo.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 390-401, set-dez, 2018 396
Produção Acadêmica sobre a Desocupação em Jovens Recém-Graduados: Análise Fenomenológico-Existencial

Abel, Deitz e Su (2014), concluíram em seu vista desses autores. Lima e Gomes (2010) retomam
estudo que os recém-formados geralmente levam uma propos­ta de estratégias antes desenvolvida por
algum tempo para chegar ao mercado de trabalho, Dejours, Abdouchelt e Jayet (1994, p. 128) em que
principalmente os relacionados à sua área de for- estas “(...) levam à modificação, transformação, e,
mação. O fato é que, mesmo em bons ou maus mo- em geral, à eufemização da percepção que os tra-
mentos econômicos, as relativas taxas elevadas de balhadores têm da reali­dade que os faz sofrer”. De-
desemprego não são incomuns. Porém, os recém gra- senvolver meios para que os indivíduos não sofram
duados estão encontrando empregos mais facilmen- é o que se tem buscado atualmente, demonstrando
te em relação aos que não possuem diploma univer- assim um ideal de controle das condições que são
sitário. Por fim, Valore (2005) entende que a maior inerentes aos seres humanos e não refletindo sobre
dificuldade no cenário atual, tanto educativo quanto como esse sofrimento vem se apresentando.
econômico, é que este momento impõe ao profissio- Percebe-se a tentativa que a ciência faz buscan-
nal no início de carreira um lugar de continuamente do solução para os problemas do homem moderno.
falta, aspecto que resulta tanto de falhas na formação Dutra (2013) ressalta que estes são recursos, técnicas,
profissional, quanto os decantados abismos entre ela produtos, programas que se mostram disponíveis ao
e o mundo do trabalho, deixando-o numa espécie de consumo, garantindo soluções em curto prazo. Con-
limbo subjetivo, segundo a autora. A escolha profis- tudo, a autora questiona as doenças da nossa época,
sional acaba se dando pela expectativa de atender os como a depressão e fobias, suicídio e violência, en-
modos de funcionamento da sociedade, do mercado tendidas como falta de sentido da existência, campo
de trabalho e das profissões. em que as ciências avançadas tem dificuldade de
alcançar; pois “haverá sempre algo que ficará fora
do representado, o imponderável, aquilo que não se
Desemprego, Desocupação e Sofrimento prevê e nem se deixa controlar; melhor dizendo, algo
não dito e cujos sentidos se desvelam à medida que
A vivência da dificuldade de encontrar um em- somos-no-mundo” (Dutra, 2013, p. 207).
prego e o contato com a abertura para possibilida-
des que demandem esforço e escolhas contribuem
para o surgimento de sentimentos como angústia, Fenomenologia
depressão e inutilidade nos jovens. As consequên-
cias desse processo em nível emocional que surgem O único estudo encontrado referente à feno-
durante o desemprego são as frustrações na procura menologia foi o de Teixeira e Gomes (2004), que
da inserção pela população jovem que culminam teve como objetivo descrever as trajetórias de de-
num processo de desqualificação social e, por sua senvolvimento profissional dos estudantes ao lon-
vez, ocasionam fragilidade nas pessoas. É no mo- go da experiência universitária, momento em que
mento de desesperança em encontrar um emprego vivenciam diferentes expectativas e modos de se
estável que emergem sentimentos de inutilidade, preparar para o ingresso no mercado de trabalho, e
apatia, desorganização, inferioridade social, humi- também da conclusão de um curso superior. Para os
lhação, fracasso pessoal e culpabilidade (Pimentel, participantes, a experiência de transição foi enten-
2007; Melo e Borges, 2007). Percebe-se que o traba- dida como um fenômeno que se apresenta à cons-
lho tem um lugar importante, e que na ausência do ciência sob a forma de uma narrativa que articula

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
mesmo, o sofrimento e a falta de sentidos podem experiências passadas e expectativas para o futuro
emergir. Josgrilberg (2004), baseado no pensamento em um todo que carrega em si vários significados
heideggeriano, reflete que essa forma de viver con- (Teixeira e Gomes, 2004).
forme a técnica obscurece a dimensão ontológica do Considerando o foco desta revisão integrativa
ser do homem e o adoecimento se caracteriza como que é a experiência dos indivíduos que já concluí-
a diminuição de seu horizonte de possibilidades. ram o curso, pode-se focalizar nos resultados des-
Lima e Gomes (2010) observaram que outras se estudo que se tratam da visão que os jovens têm
vi­vências dos indivíduos remetem à questão do so- sobre o que ocorrerá após a formatura. Segundo os
frimento nos recém-formados, como o arrependi- autores, é frente à iminência da conclusão do curso
mento e a frustração pela opção de um curso que que os formandos se dão conta de que não sabem
não traz o retorno financeiro esperado. O investi- qual caminho percorrer após a formatura. Este, por
mento, também pessoal, feito durante anos na gra- ser um momento de abertura de possibilidades, pode
duação não se sustenta, e as co­branças e pressões também provocar angústia. Heidegger (1927/2014)
da família para que estes jovens consigam um em- diz: “Por esta angústia não entendemos a assaz fre-
prego é iminente. A vergonha também é presente, quente ansiedade que, em última análise, pertence
por terem que depender financeiramente de outros. aos fenômenos do temor que com tanta facilidade se
Segundo o estudo, isto causa uma diminuição da mostram” (p.39). Em outras palavras, afirma:
autoestima, assim como uma discrimi­nação da so-
ciedade pelo fato de não se ter um emprego e não O porquê a angústia se angustia não é um
-

poder sustentar sua própria família, no caso de modo determinado de ser e uma possibilidade
adultos recém-formados. da presença. A própria ameaça é indetermina-
A r t i g o s

As estraté­gias para que esse sofrimento não da, não chegando, portanto, a penetrar como
seja converti­do em um adoecimento do ponto de ameaça neste ou naquele poder-ser faticamen-
vista físico e psicológico são necessárias do ponto de te concreto. A angústia se angustia pelo pró-

397 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 390-401, set-dez, 2018
Malu Nunes de Oliveira; Cíntia Guedes Bezerra Catão; Elza Maria do Socorro Dutra

prio ser-no-mundo (...). O ‘mundo’ não é mais se pensar o que os jovens da atualidade estão bus-
capaz de oferecer alguma coisa, nem sequer cando de todo modo alcançar, movimento este que
a copresença dos outros. A angústia retira, gera angústia e sofrimento diante da possibilidade
pois, da presença, a possibilidade de, na de- de não encontrar um emprego.
cadência, compreender a si mesma a partir do O sentido de desocupação deste trabalho foi
‘mundo’ e da interpretação pública (Heidegger, em direção ao que foi construído socialmente, de
1927/2014, p. 254). estar ocioso, período em que o indivíduo não está
fazendo nada, não está empregado. Para Heidegger
A contemporaneidade tende a produzir senti- (1927/2014), os modos de ocupação são considerados
dos e ideais a partir de verdades preestabelecidas e em diversas formas, e exemplifica em sua obra, além
justifica a angústia como algo patológico a ser evi- do ter o que fazer com algo, produzir, tratar e cuidar,
tado. O cenário dominante impõe ao homem atual empreender, são também a desocupação e o “fazer
a busca pelo prestígio, pelo reconhecimento, pela nada” presentes nesses modos. Logo, o homem nunca
informação e pelo conhecimento, numa postura está desocupado existencialmente. Entretanto, bus-
passiva ao capitalismo (Dantas, 2011). cando atividades a todo custo, ele pode objetivar de-
O homem é perpassado por sua historicidade mais a sua vida, caráter que interfere no seu poder-ser.
e estando num mundo determinado por certos con- Nesta pesquisa, o conceito de desocupação di-
ceitos, não há como não ser afetado por ele. Para fere-se do significado heideggeriano, que se refere à
Heidegger (2006/1927), ele se projeta em cada pos- desocupação como um modo de ocupação, abrindo
sibilidade de ser-no-mundo. O filósofo cita que “o precedentes para a reflexão que aparentemente não
‘mundo’ é, ao mesmo tempo, solo e palco, perten- vem sendo feita a esse respeito.
cendo, como tal, à ação e à transformação cotidia- No decorrer desta revisão integrativa, é pos-
nas” (p. 480). Para os participantes do estudo, mais sível observar que este fenômeno é pouco estuda-
importante do que os fatores que podem ser favorá- do e, quando o é, associa-se recorrentemente com
veis ou difíceis à inserção no mercado de trabalho é pesquisas dedicadas ao estudo do desemprego. Esta
a maneira como o indivíduo percebe e interpreta es- ênfase traz subsídios para que se possa aproximar
ses fatores e se posiciona frente a isso, ou seja, apro- às questões existenciais do homem cotidianamente,
veitando ou superando (Teixeira e Gomes, 2004). considerando a menção, mesmo que corriqueira da
Silva e Barreto (2015), em seu estudo da con- angústia, do tédio e do sofrimento. A proposta se
temporaneidade sob a perspectiva heideggeriana, deu como possível contribuição para a promoção do
afirmam que se o indivíduo compreende e tem uma pensar sobre essa temática, partindo da perspectiva
postura reflexiva sobre a técnica, no sentido origi- fenomenológico-existencial, realizada neste artigo
nal do termo como techné, há a possibilidade de num foco maior sobre o pensamento heideggeriano,
uma distância da necessidade de controle, do de- diferindo assim de outras leituras mais recorrentes
sejo de tudo dominar, característicos deste tempo. da Psicologia.
Rompendo essas determinações, é possível abrir es- Nesta pesquisa, é notável que a temática da de-
paço para uma livre correspondência com a técnica, socupação se apoia na investigação da experiência
na qual os sentidos podem vir à tona. de desemprego, e este, revela-se como experiência
Pelo fato da angústia promover a inquietação, o recorrente e crescente na sociedade atual. Os as-
homem contemporâneo tende a associá-la com algo pectos quantitativos e qualitativos puderam ser res-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

a ser eliminado. Não reflete que esta inquietação se saltados, assim como, a égide da lógica econômica,
dá pelo caráter de ter-que-decidir em que o Dasein se social e do trabalho, contudo, considerações rela-
encontra, e que o modo de ser próprio, mais autên- cionadas ao humano que se encontra desocupado,
tico, surgirá na decisão (por estarem abertas as pos- inclusive de si mesmo, são rasas, principalmente
sibilidades), momento em que geralmente se pode neste período de transição, onde este se vê desti-
escolher pelo que se é mais próximo, diferente da tuído de um lugar: antes, enquanto estudante uni-
impropriedade (ou inautenticidade) que surge nas versitário; agora, “formado”, “apto”, considerado
determinações e pode causar o adoecimento. O com- “pronto”, para um mercado que não se mostra com
preender impróprio se constitui no que é passível de condições de recebê-lo. Os paradigmas do mundo
ocupação e poder fazer, e por ser urgente nos negó- contemporâneo têm deixado este jovem sem a con-
cios e afazeres cotidianos, vão deixando o homem à dição de empregado, de ocupado, e por vezes con-
margem de si mesmo (Heidegger, 1927/2014). tribuindo para que se observe sem possibilidades
O mecanismo de encobrimento da angústia é de ser-no-mundo.
produzido nos modos de ser e estar que visam o Pensar a dimensão social da experiência huma-
imediatismo, o bem-estar supremo, tornando-a na é importante e a proposta da ontologia heidegge-
pouco vivida e esquecendo que ela convida os seres riana traz elementos para isso. Pensando o homem
humanos à singularização e à reflexão da própria em uma perspectiva que privilegia a dimensão exis-
existência (Dantas, 2011). tencial da vida, encontram-se os vários modos de
ser-em da existência humana, e estes caracterizam
-

a essência do homem, isto é, o fato dele existir, em


sentido próprio. Heidegger criou o termo Dasein
A r t i g o s

Considerações Finais
(ser-aí) ou pre-sença, para se referir a abertura exis-
Problematizar qual é o sentido do lugar de “es- tencial que é condição essencial daquele que ques-
tabilidade” através do trabalho é importante para tiona o sentido do ser-no-mundo.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 390-401, set-dez, 2018 398
Produção Acadêmica sobre a Desocupação em Jovens Recém-Graduados: Análise Fenomenológico-Existencial

A existência do homem é permeada pela his- Constatar a realidade experienciada pelos jo-
toricidade e seus fatores, e suas representações são vens recém-graduados em busca do primeiro em-
interligadas ao contexto social em que se insere, as- prego, e, com isso, evidenciar seus sentimentos e
sinalando a forma como o existente “está-com” os como compreendem esse percurso na contempora-
outros existentes. Nesse sentido, pensar a dimensão neidade, é um caminho que pode se desvelar como
social da experiência humana faz-se necessária, e proposta de pesquisas.
a proposta da ontologia heideggeriana traz elemen- Não se pode negar a pertinência e importância
tos para isso. O desemprego é uma questão social dos estudos citados nesta revisão integrativa, visto
em que também são elevados os números de jovens que foram essenciais para trazer novas reflexões,
desocupados. Numa época em que as vias de consu- porém o intuito de novas pesquisas a partir deste
mo regem os modos de ser, vamos percebendo que ponto seria de buscar não mais focalizar a desocu-
a imposição de preferências da opinião pública tem pação em si, como algo concreto e objetivado, mas
grande força. O indivíduo vai ficando disperso, pro- procurar compreender e lançar um olhar sobre a
tegido, acomodado no geral, aspecto que o empurra vida dessas pessoas, o sofrimento, a angústia e o
à uniformidade e mediocridade (Heidegger, 1981). ócio nas suas dimensões ônticas e existenciais, no
Na contemporaneidade são elevados os núme- seu aspecto limitador, como aquele que diminui as
ros de jovens desempregados. Dutra (2008) reflete possibilidades de relação entre o homem e o mun-
acerca da importância de lançarmos outro olhar do, pondo em risco as redes de significância cons-
para o contexto no qual a existência se apresenta, truídas por ele para lidar com as coisas e conviver
na realização de estudos sobre o homem, bem como com os outros no mundo.
na prática clínica do psicólogo. Nesse sentido, afir-
ma que se deve: “Abordar o social numa prática que
é prioritariamente humana e só acontece num con- Referências
texto de relação, pleno de sentidos, desde então, é
considerar as dimensões ônticas e ontológicas do Abel, J. R., Deitz, R. & Su, Y. (2014). Are Recent College
ser humano” (Dutra, 2008, p.234). Graduates Finding Good Jobs? Current Issues in
A partir do que foi discutindo, percebe-se que Economics and Finance. Volume 20, Number 1.
há uma constante busca de se estudar o “não tra- Electronic copy available at: http://ssrn.com/ab-
balho”, assim como o desemprego, na tentativa de stract=2378472
abarcar as causas e consequências desses fenôme-
nos na sociedade. Todavia, esta vem sendo prática Arendt, H. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo,
que não prioriza os aspectos relacionados ao modo Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1981.
como existem os indivíduos que entram em conta- Bauman, Z. (2007). Tempos líquidos. (Carlos Alberto Me-
to com o fenômeno da desocupação. A maioria dos deiros Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.
estudos se volta para a decodificação de taxas e es-
tatísticas, que analisam o fenômeno como algo fe- Borges, A. M. C. (2008). Deficits Juvenis ou Deficit de Lu-
chado e objetivado e não enquanto um caminho de gares? O Desemprego e a Ocupação dos Jovens nos
compreensão da experiência das pessoas, lançando Mercados de Trabalho das Metrópoles do Nordeste e
luz sobre suas existências e o universo de possibili- do Sudeste. Revista ABET vol. VII — n. 2
dades que há no horizonte de cada um, apesar das

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
dificuldades que se impõem. Bruns, M. A. T. & Trindade, E. (2001). Metodologia feno-
Artigos que tratassem do fenômeno da desocu- menológica: a contribuição hermenêutica da onto-
pação em jovens recém-graduados numa perspectiva logia-hermenÊutica de Martin Heidegger. In Maria
fenomenológico-existencial não foram encontrados e Alves T. Bruns & Adriano F. Holanda (Orgs.). Psico-
a pouca produção existente sobre a temática se deu, logia e Pesquisa Fenomenológica. Reflexões e Pers-
em sua maioria, sob aspectos socioeconômicos ou a pectivas (pp. 67-80). São Paulo: Ômega.
partir de outros referenciais da Psicologia, como a do
trabalho e das organizações. As discussões desses Catão, C. G. B. (2016). A experiência de sofrimento em
estudos, em geral, buscam apresentar como se dá a estudantes de Ciências e Tecnologia da UFRN sob
transição dos jovens recém-graduados para o merca- o enfoque fenomenológico-existencial. Tese de Dou-
do de trabalho, levando em consideração questões torado, Programa de Pós-graduação em Psicologia,
de cunho pessoal, como o sofrimento dos indivíduos Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Na-
que estão em situação de desemprego e também aná- tal, Rio Grande do Norte.
lises dessas dificuldades, a partir de levantamento de
Critelli, D. M. (2006). Analítica do sentido: uma aproxi-
causas e consequências desse fenômeno e estratégias
mação e interpretação do real de orientação feno-
para lidar com essa dificuldade.
menológica. São Paulo: Educ/Brasiliense.
Nesse sentido, pode-se propor um questio-
namento: a importância do indivíduo e o sentido Dutra, E. (2008). Afinal, o que significa o social nas práticas
de sua existência se encontram apenas a partir das
-

clínicas fenomenológico-existenciais? Estudos e Pes-


atividades práticas que ele realiza? Revela-se aqui quisas em Psicologia (Rio de Janeiro), 8 (2), 224-237.
a possibilidade de um novo estudo, que poderá
A r t i g o s

permitir pensar nisto e contribuir mais para uma Dutra, E. (2013). Formação do Psicólogo Clínico na
melhor compreensão acerca da implicação da deso- Perspectiva Fenomenológico-Existencial: Dilemas
cupação na vivência do ser humano. e Desafios em Tempos de Técnicas. Revista da
Abordagem Gestáltica, 19 (2), 205-211.

399 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 390-401, set-dez, 2018
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Malu Nunes de Oliveira possui Graduação em


Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba e
Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte. Endereço: Rua Joaquim
Eduardo de Farias, 213, Ponta Negra – Condomínio
Sun Golden, Torre B, apto. 602. Natal, RN, CEP
59091-130. E-mail: malununes03@gmail.com

Cíntia Guedes Bezerra Catão. Possui Graduação em


Psicologia, Mestrado em Psicologia Social e Doutorado
em Psicologia Clínica. Psicóloga e atual Coordenadora
da Atenção à Saúde do Estudante, da Pró-Reitoria de
Assuntos Estudantis (PROAE), da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). 

Elza Maria do Socorro Dutra, Professora Titular de


Psicologia Clínica Fenomenológica na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Docente-
pesquisadora do PPgPsi, orientadora de Mestrado
e Doutorado. Coordenadora do Grupo de Estudos
Subjetividade e Desenvolvimento Humano-GESDH/
UFRN/CNPq.

Recebido em 23.09.2017
Primeira Decisão Editorial em 17.10.2017
Aceito em 07.11.2017

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402
403
T extos C lássicos .........................
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.14

TEXTOS CLÁSSICOS

SOBRE NORMA, SAÚDE E DOENÇA. SOBRE


ANOMALIA, HEREDITARIEDADE E PROCRIAÇÃO
Kurt Goldstein (1934)*

Um organismo que atualiza suas peculiarida- uma decisão quanto ao conceito de norma. Além
des essenciais ou, o que significa a mesma coisa, disso, tal discussão parece oportuna para o nosso
encontra seu meio adequado e as tarefas que nele principal problema, porque os conceitos de saúde
surgem, é “normal”. Uma vez que essa realização e doença de modo algum dizem respeito apenas ao
ocorra num meio específico, de modo comporta- médico, mas ao campo da biologia por inteiro.
mental ordenado, pode-se indicar o comportamento Pode-se declarar como certo que qualquer
ordenado sob essa condição como comportamento doença é uma anormalidade, mas não que toda
normal. anormalidade é uma doença. Não importa como
nós definimos normalidade, há certamente muitos
desvios da norma que não significam estar doente.
Sobre a determinação da normalidade Mas o que é estar doente? Muitos vão concor-
dar com Albrecht (1) que uma definição geral de
SAÚDE E DOENÇA. Muitas tentativas foram conceitos como normal, saudável e doente não é
realizadas para determinar a normalidade. De acor- possível, e que esses conceitos são determinados
do com uma visão idealista, considera-se uma pes- pela convenção tradicional, assim naturalmente
soa como normal, ou mais ou menos anormal, con- sendo afligidos pelos problemas dessas convenções.
forme o grau em que ela corresponde a um certo Segundo Jaspers (2), doença é um conceito de valor
ideal filosófico. Assim Hildebrand desejaria que o que depende mais da concepção predominante em
conceito de norma fosse formado de acordo com um sua respectiva esfera cultural do que do julgamento
tipo ideal, como o de um herói. Qualquer conceito do médico. A decisão de se um fenômeno é pato-
de norma idealista é de pouca utilidade, porque ele lógico não tem, segundo ele, significância factual.
sempre irá divergir de acordo com a respectiva fi- O psicopatologista cuidadoso, por exemplo, de fato
losofia de vida. Além disso, ele sempre carrega um não daria ênfase a um julgamento tão geral como
caráter extrínseco, porque o seu quadro de referên- “doença”. Eu não gostaria de ter problemas com
cia não é orientado por qualquer realidade, mas esse argumento enquanto ele permanece puramen-
ao invés disso, teria que se justificar na realidade. te acadêmico. No entanto, me parece questionável
Mesmo se o conceito idealista de norma fizesse jus- se a ciência natural poderia ficar sem o conceito de
tiça às “constantes” das espécies, ao formar o ideal doença, o qual, afinal, expressa um fato, por mais
de acordo com essas constantes, ele ainda poderia que seja difícil formular esse fato precisamente. Ou-
falhar no que diz respeito ao individual. tros, Mainzer por exemplo, dizem que a doença é
O que nós precisamos não é apenas um concei- “de modo algum uma categoria da ciência da vida,
to geralmente válido de norma, o qual deve evitar o mas apenas um conceito médico ou pré-médico”.
“subjetivo”, mas um conceito com base no qual os Em nossa discussão, iremos desconsiderar aque-
fatos concretos possam realmente ser compreendi- les que buscam determinar a doença externamente –
dos. Com base nisso, um conceito estatístico da nor- como algo que, por assim dizer, recai sobre o paciente.
ma parece quase mais útil. Este conceito certamen- Nós lidaremos apenas com aqueles que consideram
te pode ser muito valioso para propósitos práticos doença como uma mudança do organismo. Assim nós
específicos que requerem formulações relativas à estamos, de fato, mais interessados com o problema
média. Mas ele não pode ser utilizado para deter- de estar doente e menos com o da doença1.
minar se um determinado indivíduo é considerado
normal ou anormal. O conceito estatístico da norma DOENÇA NÃO DETERMINÁVEL QUANTO
não faz justiça ao indivíduo. Entretanto, de acordo AO CONTEÚDO, NEM COMO DESVIO DE UMA
Te x t o s C l á s s i c o s

com a nossa discussão anterior, nós apenas pode- NORMA SUPER-INDIVIDUAL. Vários estudos co-
mos nos satisfazer com um conceito de norma que mumente buscam determinar doença como um des-
seja adequado a esse propósito. vio, quanto ao conteúdo, da condição do organismo
Antes de poder elaborar isso detalhadamen- durante o estado de saúde, ou como um desvio de
te, nós queremos discutir primeiro, de modo mais uma norma que deve ser determinada em relação ao
aprofundado, outro conceito, ao qual isso está rela- conteúdo. A ambiguidade do conceito de doença se
cionado de diversas formas – o conceito de saúde e, mostra então, como uma consequência da ambigui-
o de seu oposto, doença. Dessa forma, nós espera-
1 Ainda, por uma questão de simplicidade, nós utilizaremos de modo
mos obter o material que nos tornará aptos a tomar geral o termo doença para o fenômeno ao qual estamos nos referindo.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 260-264, set-dez, 2018 404
Adrian L. Van Kaam

dade do conceito de norma. De uma “norma média” liaridade mudada, de um “comportamento desorde-
ou uma “norma idealista”, certamente é, em geral, nado”, a observação do tipo de reação que pertence
impossível derivar uma definição de doença em re- à catastrófica. As mudanças objetivamente verificá-
lação ao conteúdo. Estritamente no que diz respeito veis dos particulares, no pulso, temperatura, etc.,
ao conteúdo, não há, baseado nisso, diferença fun- são para o médico praticamente apenas uma con-
damental de longo alcance entre o organismo sadio firmação da exatidão de sua afirmação. E do mes-
e o doente. Mas é questionável se há justificativa em mo modo, o próprio paciente experiencia a doença
dizer, como Mainzer o fez, que “não há diferença em primariamente como uma mudança básica em sua
relação à vida sadia e a doente”. Em nossa opinião, a atitude com relação ao ambiente, como incerteza e
vida normal tem algo a ver com comportamento or- ansiedade – as manifestações subjetivas da condi-
denado. Nesse caso, seria possível que embora possa ção catastrófica.
não haver diferença entre a vida sadia e a doente, Essa caracterização mostra que o estar doen-
com relação ao conteúdo, ainda poderia haver di- te não é experienciado, nem pelo médico nem pelo
ferença em relação à forma. Possivelmente todas as paciente como uma mudança com relação ao con-
tentativas de determinar a doença até agora estavam teúdo, mas sim como uma perturbação no curso dos
condenadas ao fracasso porque procuravam por processos da vida. Por conseguinte, nem todo des-
determinações em relação ao conteúdo. Estas não vio da norma, quanto ao conteúdo, se mostra uma
podem ser encontradas com base em uma “norma” doença. Ele se torna, realmente, uma doença ape-
super-individual. O possível fracasso ao determinar nas quando, como L. Friedmann afirma corretamen-
a doença por meio desse procedimento nos leva, en- te, carrega consigo dano a e perigo para o organismo
tão, a assumir que a doença não é uma categoria da todo. Usando uma descrição provisória e mais ge-
ciência da vida. Tal resultado deveria tornar suspeita ral, que requer uma determinação mais específica,
a premissa original. Como é possível pensar que e podemos dizer: Uma condição pode ser designada
doença e a saúde poderiam não ser conceitos biológi- como doença quando ela põe em perigo a “existên-
cos! Se nós desconsiderarmos, por um momento, as cia”. Assim, estar doente aparece como uma per-
condições complicadas no homem, essa afirmação turbação da função, através da qual as mudanças
certamente não é válida para os animais, nos quais a quanto ao conteúdo podem meramente ocasionar
doença geralmente decide se o organismo do indiví- o sentimento de adoecimento. Consideradas nelas
duo “será ou não será”. Basta pensar sobre o prejuízo mesmas, as mudanças não precisam ser doença.
que a doença traz para a vida do animal não domesti- Fenômenos patológicos são a expressão do fato de
cado, ou seja o animal que não se beneficia da prote- que relações normais entre organismo e ambiente
ção do homem! Se a ciência da vida é supostamente mudaram por meio de uma mudança no organismo,
incapaz de compreender o fenômeno da doença, de- e de que assim muitas coisas que eram adequadas
ve-se duvidar seriamente da sua apropriação, e em para o organismo normal já não são mais adequadas
verdade, das categorias intrínsecas de uma ciência para o organismo modificado.
assim construída. Doença é choque e perigo para a existência.
Mas, vamos deixar de lado, pelo menos por Assim, uma definição de doença requer uma con-
enquanto, esse problema de definição e vamos ver cepção de natureza do indivíduo como ponto de
como os próprios pacientes e os médicos distin- partida. A doença aparece quando um organismo
guem saúde e doença. Eu acredito que eles proce- é mudado de tal forma que, mesmo em seu meio
dem primeiro não focando no conteúdo. Certamen- “normal” apropriado ele sofre reação catastrófica.
te, o médico assim como o paciente podem ficar Isso se manifesta não apenas em perturbações espe-
desconfiados quanto a saúde, quando reconhecem cíficas da performance, correspondendo ao local do
desvios do comportamento usual no que diz respei- defeito, mas em perturbações bastante gerais por-
to ao conteúdo, como por exemplo, fadiga anormal, que, como vimos, o comportamento desordenado
palpitação do coração, náusea, dor de cabeça, pés em qualquer área coincide sempre com um com-
inchados, etc. Mas nem para o médico nem para portamento mais ou menos desordenado em todo
o paciente essas manifestações são doenças em si, o organismo.
mas no máximo, sinais de que uma doença pode Com essa definição de doença como uma per-
existir. A experiência de estar doente não contém turbação do curso dos processos, nós estamos, em
necessariamente qualquer tipo definido de mudan- geral, em concordância com alguns autores. Assim,
ça quanto ao conteúdo. E o médico, quando deci- por exemplo, nós podemos concordar com Lubarsch
de se está lidando com um caso de doença, é, na (3), que caracteriza a doença como uma perturbação
maior parte, guiado por um critério completamente do equilíbrio vital, ou com Ribbert (4) que a chama
diferente da prova de uma mudança no conteúdo. de o resultado da insuficiência ou completa falta de
No mínimo, o bom médico procederá dessa forma adaptação a influências nocivas, ou com Schilling
Te x t o s C l á s s i c o s

enquanto sua apreensão ingênua de saúde e doença (5), para quem a doença é uma perturbação do curso
não for tendenciada pelo conhecimento de inume- biológico ordenado no organismo, sendo que essa
ráveis detalhes científicos. perturbação não pode mais ser removida por meio
do grau usual de regulação. Nosso ponto de vista é
A DEFINIÇÃO DE DOENÇA PRESSUPÕE particularmente próximo ao de Aschoff (6) e ao de
UMA CONCEPÇÃO DE NATUREZA DO INDIVÍ- Grothe (7). Aschoff define a doença como qualquer
DUO. Agora, qual é a base para o julgamento: “Ele perturbação no curso dos processos biológicos “por
está doente”? Trata-se da observação de uma pecu- meio da qual o organismo é posto em perigo em sua

405 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 260-264, set-dez, 2018
Análise Fenomenal: Exemplificada por um Estudo da Experiência de “Realmente se Sentir Compreendido”

existência biológica”. Com relação a essa definição, pelo aumento do funcionamento de outras. Assim,
parece-nos que a caracterização da existência como a performance total pode permanecer essencialmen-
biológica, no sentido comum da palavra, é muito te inalterada. Mas, essa pressuposição é muito du-
limitada. Entretanto, eu não posso concordar com a vidosa. Seria possível concebe-la apenas enquanto
objeção de Friedmann de que essa definição é mui- se considera as performances do organismo como
to limitada porque o clínico inquestionavelmente compostas por performances partitivas e, enquanto
conhece condições patológicas que não colocam a se assumir, por assim dizer, um agente especial para
existência em perigo. Essa objeção seria válida ape- a regulação do todo com o auxílio do qual uma per-
nas caso se pensasse sempre em morte quando se formance perdida poderia ser substituída por outra.
pensa sobre perigo para a existência. Mas a objeção Porém, caso se considere cada performance como
não se sustenta caso se considere que perigo sem- dependente do todo, como uma expressão especial
pre significa colocar em perigo a atualização das do todo, não é, então de fato, possível assumir uma
“potencialidades de performance” essenciais para o substituição per se. Na verdade, a substituição pa-
organismo do indivíduo. Esse perigo pode se mani- rece ocorrer apenas sob um exame superficial. Nós
festar em perturbações objetivas como também em obtemos essa impressão quando, apesar de um defei-
experiências subjetivas. Mas pode também existir to, o organismo continua a realizar performances um
objetivamente sem que a pessoa se torne subjetiva- tanto adequadas, de modo que o indivíduo não apa-
mente consciente disso. rece mais como estando essencialmente perturbado.

DOENÇA COMO UM “RESPONSIVIDADE A RESTAURAÇÃO DA SAÚDE. Uma análise


DEFEITUOSA”. O nosso ponto de vista, provavel- cuidadosa mostra que o antigo modo de performan-
mente, está mais próximo ao de Grothe. Nós con- ce e o antigo modo de fazer um acordo com o antigo
cordamos completamente com ele quando o autor meio nunca é alcançado pelo paciente. Nós conside-
diz que a doença pode ser determinada apenas por ramos muito importante tornar esse ponto comple-
meio da norma que permite levar a completa indi- tamente claro. O leitor pode estar surpreso por nós
vidualidade concreta em consideração, uma norma rejeitarmos a suposição de qualquer compensação
que faz do indivíduo mesmo a sua medida; em ou- para as performances perdidas (apesar do fato de
tras palavras, uma norma pessoal, individual. Se- nós termos defendido uma relativa independência
gundo Grothe, o indivíduo é a medida de sua pró- de longo alcance das performances de seu substrato
pria normalidade. A saúde é definida pelo fato de normal, e apesar do fato de nós considerarmos qual-
que “a manifestação da vida de um indivíduo se quer performance como uma do organismo todo).
ajusta completamente às suas exigências biológicas Em primeiro lugar, a observação em si torna
que emergem do encontro das “potencialidades de essa conclusão atraente. Mas se opor à ideia de
performance” fisiológicas com sua situação externa compensação não contradiz o nosso ponto de vista
de vida”. Esse “ajustamento” é descrito como res- sobre a relação da performance para o com o subs-
ponsividade. Doença é “uma responsividade defei- trato. Por mais que estejamos convencidos da rela-
tuosa que resulta objetivamente em prejuízos na tiva independência da performance individual de
capacidade e na duração da performance, e subje- um determinado substrato localizado, nós estamos
tivamente, em sofrimento”. Qualquer tentativa de igualmente certos de que as performances normais
determinar saúde e doença sobre essa base torna são limitadas à integridade estrita do organismo
pré-requisito, certamente, a determinação da “na- todo, no que diz respeito à sua organização estru-
tureza” individual da pessoa em questão. Funda- tural. Em uma formação que é qualitativamente e
mentados em nossas exposições anteriores, nós não estruturalmente tão diferenciada quanto o organis-
vemos, nesse ponto, dificuldades para o ponto de mo, não há algo como a compensação. Se as perfor-
vista de Grothe. Mas, outra dificuldade surge. mances perdidas retornam, isso é possível por meio
Se recuperar a saúde consistisse em realizar da restituição do dano ou por meio da execução de
uma suficiente remoção dos desvios da norma do performances que são similares apenas em seu efei-
indivíduo que foram causados pela doença, então to. Mas, nós sempre encontraremos uma simultânea
a saúde poderia ser recuperada apenas por meio de perda de outras performances ou a da restrição do
uma restituição completa do estado normal anterior meio. Recuperar a saúde, enquanto o defeito perma-
(restitutio ad integrum). Isso, todavia, limitaria in- nece, é possível apenas sob certas limitações. Uma
cisivamente o conceito de saúde, se comparado ao vez que o principal critério para recuperar a saúde
uso comum do termo. Além disso, indubitavelmen- é a restituição da ordem, qualquer outra mudança
te há pessoas que não se consideram doentes, por remanescente pode, a princípio, não ser percebida,
mais que o defeito possa permanecer. Grothe escapa enquanto não prejudica ou prejudica apenas em pe-
dessa dificuldade, mas apenas aparentemente, ao queno grau o comportamento ordenado. Nós vere-
Te x t o s C l á s s i c o s

afirmar que o paciente é capaz de compensar, atra- mos mais adiante que essa ordem depende, no en-
vés de adaptação morfológica e funcional, o desvio tanto, de um mínimo de performances essenciais.
de sua norma individual no que diz respeito à ca- A saúde não é restaurada, como Grothe afirma,
pacidade e duração de performance. O paciente fica por meio da compensação ou da substituição das
bem apesar do defeito residual, porque ele substitui perturbações quanto ao conteúdo. Pelo contrário,
as performances perdidas por outras. Essa ideia está ela é restaurada se uma relação entre as performan-
baseada na pressuposição de que a deficiência no ces preservadas e as perturbadas for alcançada, a
funcionamento de uma parte pode ser compensada qual torna (apesar dos defeitos residuais) a “respon-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 260-264, set-dez, 2018 406
Adrian L. Van Kaam

sividade” possível novamente. Essa relação é in- ma norma super-individual, enquanto que a partir
dependente de um ferimento em um determinado da norma individual isso pode ser muito bem feito.
substrato. Se certas mudanças não indicam perigo, Se o indivíduo perdeu conteúdos essenciais, ele se
então elas não geram uma doença, mas são apenas torna doente. Ficar bem novamente, apesar dos de-
desvios que permanecem irrelevantes contanto que feitos, sempre envolve uma certa perda na natureza
o indivíduo esteja apto para lidar com as demandas essencial do organismo. Isto coincide com o reapa-
psicológicas e físicas de seu meio pessoal apesar recimento da ordem. Uma nova norma individual
dessas mudanças – em outras palavras, não esteja corresponde a essa reabilitação.
ameaçado em sua “existência”. O quanto a restauração da ordem é importante
Esse é o caso, para mencionar alguns exem- para a recuperação pode ser visto a partir do fato de
plos de Grothe, quando o coração é muito pequeno, que o organismo parece ter uma tendência primá-
na albuminúria fisiológica ou na vaso-motilidade ria de preservar, ou obter, capacidades que tornem
anormal. Indivíduos com essas mudanças parecem isso possível. O organismo, antes de tudo, parece
saudáveis porque eles estão adaptados a um meio determinado a começar a ganhar constantes nova-
pessoal muito específico. O fato de que a adaptação mente. Nós podemos encontrar na cura (com defei-
ao meio pessoal é o requisito básico para a saúde to residual) mudanças em vários campos quando
deles se mostra quando eles ficam doentes na medi- comparados com a antiga natureza do organismo;
da em que essa adaptação não se faz presente, por mas, o comportamento mostra que o caráter das
exemplo, na medida em que demandas “normais” performances é novamente “constante”. Nós acha-
médias são feitas a eles. De modo similar, mesmo mos constantes tanto no campo corporal quanto no
um indivíduo normal pode ficar doente quando de- mental. Por exemplo, se comparado com o compor-
mandas além de suas potencialidades médias são tamento anterior, nós achamos uma mudança na
feitas a ele. pulsação, na pressão sanguínea, na quantidade de
Não se trata de uma objeção válida contra essa açúcar no sangue, nos limiares, nas performances
definição de doença afirmar que com base nela, por mentais, etc., mas essa modificação é uma das cons-
exemplo, um paciente com uma úlcera no estôma- tantes formadas recentemente nos respectivos cam-
go ou um tumor maligno pode ser designado como pos. Essas novas constantes garantem uma nova
saudável, na medida em que nenhuma perturbação ordem. Nós podemos entender o comportamento
em sua responsividade se tornou óbvia. Primeiro, do organismo recuperado apenas se considerarmos
a afirmação de que não há perturbações pode ser esse fato. Nós não devemos tentar interferir nessas
traçada, até certo ponto, como uma insuficiência novas constantes, porque criaríamos assim novas
de observação por parte do paciente assim como desordens. Nós aprendemos que a febre nem sem-
do médico. Segundo, tal objeção é injustificada a pre deve ser combatida, mas que um aumento da
partir do nosso ponto de vista porque é demasiado temperatura pode ser entendido como uma dessas
míope considerar, como ela faz, o organismo apenas constantes que são necessárias para tornar a cura
em sua situação presente e não considerar que cada possível. Nós aprendemos a tratar de modo similar
fenômeno pode ser devidamente avaliado apenas certas formas de aumento da pressão sanguínea ou
quando relacionados como partes da vida total do certas mudanças psicológicas. Há muitas alterações
indivíduo, particularmente no que diz respeito ao de constantes que, hoje, nós ainda tentamos remo-
seu futuro. Nós podemos designar uma pessoa com ver por sua suposta nocividade, enquanto seria me-
esse estigma como estando saudável apenas se nós lhor não interferir.
não esperamos nenhuma perturbação da responsi- Uma compreensão mais profunda da natureza
vidade no futuro. Se esse for o caso – e decidir isso das neuroses, assim como das lesões cerebrais, tem
é realmente o requisito básico de um diagnóstico nos mostrado que desvios da norma nem sempre são
médico – nós certamente devemos designar o pa- sinais de adoecimento. Ao contrário, alguns deles
ciente como doente. pertencem aos processos no paciente que o prote-
Assim, estar bem significa ser capaz de com- gem de certos perigos naturalmente envolvidos na
portamento ordenado que pode prevalecer apesar mudança para uma nova normalidade. Nós apren-
da impossibilidade de certas performances que demos a considerar certos desvios como uma neces-
eram possíveis antigamente. Mas o novo estado de sidade para o bem-estar. Eles pertencem ao tipo de
saúde não é o mesmo que o anterior. Essa observa- mudança do meio que permite um comportamento
ção marca a principal diferença entre o nosso pon- relativamente ordenado, e, assim, protege o organis-
to de vista e o de Grothe. Assim como uma deter- mo de demandas com as quais ele não possa lidar.
minada condição no que diz respeito ao conteúdo
pertence ao antigo estado de normalidade, também
uma determinada condição no que diz respeito ao Resumo do nosso conceito de saúde e doença.
Te x t o s C l á s s i c o s

conteúdo pertence à nova normalidade; mas, é cla-


ro, os conteúdos de ambas diferem. Essa conclusão, 1. O bem-estar consiste em uma norma indi-
que segue como uma coisa natural a partir do nosso vidual de funcionamento ordenado, expressa em
conceito de organismo que também é determinado constantes definidas, responsividade e em decidi-
quanto a conteúdos, torna-se de extrema importân- damente em modos de comportamento incontesta-
cia para a atitude do médico em quanto àqueles que velmente preferidos (natureza essencial, adequação
recuperaram sua saúde. A doença não pode ser de- individual, média individual de processos de equa-
terminada quanto aos conteúdos a partir de nenhu- lização, etc.).

407 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 260-264, set-dez, 2018
Análise Fenomenal: Exemplificada por um Estudo da Experiência de “Realmente se Sentir Compreendido”

2. Doença é um funcionamento desordenado, perturbações subjetivas, assim como as objetivas,


ou seja, responsividade defeituosa, do organismo reaparecem imediatamente quando o paciente reas-
individual em comparação com a norma desse in- sume a posição antiga, a posição normal do corpo.
divíduo como um todo. Essa desordem é doença na Aparentemente, a anormalidade de postura se tor-
medida em que ameaça a auto atualização. nou um pré-requisito para performances melhores,
3. A mudança no conteúdo não constitui a tornou-se a nova situação preferida. Assim, nós
doença, mas é um indicador da existência de desar- consideramos as anormalidades da postura como
ranjo funcional do todo. processos de compensação, assim como Poetzl as
4. Cura é um estado de funcionamento orde- considerou. Manifestamente, a compensação surge
nado recém-atingido, ou seja, responsividade, arti- em alguns casos por meio de uma inclinação em
culado sobre uma relação especificamente formada direção ao lado adoecido e, em outros, em direção
entre performances preservadas e comprometidas. ao lado saudável.
Essa nova relação opera na direção de uma nova Como esse comportamento pode ser explica-
norma individual, de nova constância e adequação do? Como qualquer outro tipo de defeito, um de-
(conteúdos). feito cerebelar resulta em dois tipos de sintomas.
5. Toda cura com defeitos residuais implica Primeiro, sintomas que consistem em perturbações
em alguma perda na “natureza essencial”. Não há de certas performances; segundo, aqueles que con-
substituição real. sistem em uma desordem geral do comportamento
Em sua tendência de manter performances total que é determinado pelo fenômeno catastró-
ótimas e de obter um novo funcionamento ordena- fico, correspondendo à inadequação das reações.
do, o organismo doente ou se adapta a um defeito Por meio da postura anormal, não apenas as perfor-
menos relevante cedendo a ele ou se ajusta a um mances específicas são melhoradas, mas também
defeito maior ao reorganizar a performance danifi- as reações catastróficas são diminuídas. Uma nova
cada à custa de outras (troca). Em ambos os casos, a ordem existe que pode ser atingida de dois modos.
nova ordem necessita de uma restrição ou diminui- Um deles é o organismo ceder ao puxão do tônus.
ção das potencialidades de performance (natureza Por meio da inclinação do corpo na direção do lado
essencial) e do meio. do puxão, uma posição na qual estímulos iguais
produzem efeitos iguais nos dois lados é atingida2.
OS DOIS TIPOS DE ADAPTAÇÃO A UM DE- Mas essa mudança é de valor para o organismo
FEITO. Ao que parece, a adaptação a um defeito ir- apenas caso essa posição oblíqua não se torne uma
reparável toma, essencialmente, direções opostas. perturbação em si, por exemplo, se tornar impos-
Ou o organismo se adapta ao defeito, ou, por assim sível manter o corpo todo em equilíbrio. Portanto,
dizer, se rende a ele, ou se resigna a performances a inclinação na direção do lado adoecido aparece
defeituosas mas ainda aceitáveis que ainda podem apenas em pacientes com danos pequenos. Apenas
ser realizadas, e se renuncia a certas mudanças do nesses casos o antigo modo de procedimento é pre-
meio que correspondem às performances defeituo- servado. O mesmo ocorre com a hemiambliopia. O
sas; ou o organismo encara o defeito, se reajusta de outro modo é observado quando o dano é tão gran-
forma que o defeito, em suas consequências, é man- de que o paciente cairia imediatamente se ele se in-
tido em cheque. Nós, de fato, mencionamos esses clinasse na direção do lado adoecido. Posteriormen-
dois tipos de comportamento em nossa discussão te, nós temos uma postura anormal na direção do
sobre as sequelas das lesões no sulco calcarino. Lá lado oposto, ou seja, do lado saudável. O, anormal,
nós vimos que os resultados de cada um desses dois puxão do tônus na estimulação do lado adoecido é
tipos de comportamento estão relacionados ao grau equilibrado da tal forma que, devido a postura anor-
do distúrbio. O mesmo pode ser verificado em mui- mal – que, nesse caso, significa esforço anormal – a
tos e diferentes campos. estimulação comum do ambiente no lado saudável,
Nós queremos demonstrar isso, aqui, com um agora, também se torna efetiva com força anormal.
exemplo particularmente instrutivo. Em pacientes Dessa maneira, um estado de equilíbrio é obtido
com lesão em um lado do cerebelo, nós sempre novamente, nesse caso por meio de uma mudança
encontramos um “puxão no tônus” em direção ao no tipo de comportamento, por meio de um novo
lado adoecido. Todos os estímulos que são aplica- ajustamento, como ocorre quando há destruição
dos a esse lado são percebidos com uma intensi- completa da calcarina na hemianopsia. Esse tipo de
dade anormal, com um anormal “voltar-se para o adaptação é mais ativa, mais voluntária. Gradual-
estímulo”. Isso leva a desvios no caminhar, a uma mente, no entanto, ela se torna tanto uma questão
predisposição a cair, apontar em direções erradas, de costume, que então o paciente dificilmente fica
etc., sempre na direção do lado adoecido. Geral- consciente da postura anormal. Ele apenas sabe que
mente, os pacientes exibem simultaneamente uma assim ele se sente melhor.
Te x t o s C l á s s i c o s

anormalidade de postura na forma de uma inclina- Os dois tipos de adaptação não são igualmen-
ção do corpo, especialmente da cabeça. Na medida te importantes para o organismo como um todo. O
em que o paciente permanece nessa postura anor- primeiro envolve mais segurança, é mais automáti-
mal ele se sente relativamente à vontade, tem me- co, e geralmente é acompanhado por uma melhora
nos perturbações subjetivas do equilíbrio, menos não tão grande quanto o outro. O segundo envolve
vertigem, etc. Suas performances objetivas, como menos segurança, requer mais comportamento voli-
caminhar, apontar, etc. são melhores. Os desvios
2 Nós teríamos que ir muito longe para explicar isso mais detalhadamen-
podem desaparecer completamente. No entanto, as te (cf. Goldstein, “Das Kleinhirn” (8).

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(3): 260-264, set-dez, 2018 408
tivo, e por isso leva mais facilmente a flutuações; no que animais, depois da amputação de membros,
entanto, no campo em especial a performance pode não podem lidar com todas as demandas que eles
melhorar mais. Uma vez que, como vimos, o ponto “normalmente” podem encontrar. Essas limitações
principal é atingir um comportamento ordenado, são facilmente esquecidas porque prestamos aten-
nós percebemos que, na medida em que a perfor- ção, antes de tudo, à restauração das performances
mance em um determinado campo seja suficiente particularmente importantes. Por exemplo, presta-
boa, o primeiro, o tipo mais seguro de adaptação, -se atenção à restauração da locomoção nos animais
ocorre. O segundo tipo aparece apenas quando o depois da amputação da perna ou do funcionamen-
primeiro não mais alcança o propósito, ou seja, se to de um certo músculo após um transplante no ho-
ele não atingir uma performance suficientemente mem, etc. Nós sabemos que, após um transplante, a
boa em um determinado campo, ou se como nós energia restaurada é raramente mais que um terço
já dissemos, um comprometimento insuportável do da energia de controle do músculo e que os mús-
todo do organismo venha a ocorrer. culos transplantados sofrem fadiga anormal nas
Nesses dois diferentes tipos de adaptação, performances originalmente “normais”. É fácil ha-
nós estamos lidando com regras gerais às quais é ver enganos em experimentos com animais e uma
preciso estar atento. Somente assim que sintomas adaptabilidade de longo alcance ser presumida de-
aparentemente contraditórios em lesões de mesmo vido ao esquecimento de que os animais não vivem
caráter ser tornam inteligíveis. Isso vale tanto para em sua situação natural. É o cuidado humano que
fenômenos em seres humanos doentes quanto para os salva de certas tarefas, assim a limitação resul-
experimentos com animais. tante não se torna aparente. Então, por exemplo,
Se nós analisarmos os vários tipos de ajusta- nos experimentos de Cannon, os animais não eram
mento e, particularmente, a significância da de- expostos às “normais” variações de temperatura, à
manda do meio para o desenvolvimento da adapta- normal luta por comida, à necessidade normal de
ção, a lei básica que domina a vida do organismo se escapar de inimigos, ao perigo normal de sangrar
torna especialmente clara. É de extrema importân- até a morte (9), porque as condições do laboratório
cia para o organismo atingir uma condição que seja eram favoráveis nesses aspectos. Ainda assim esses
adequada à sua “natureza”, nesse caso à sua natu- animais eram inquestionavelmente defeituosos em
reza modificada. Com base nesse ponto de vista, o muitos aspectos. Eles estavam, na verdade, muito
ajustamento pode ser entendido, porque só então as menos protegidos contra a influência do frio e do
performances são possíveis. Assim, pode acontecer calor, eles não podiam manter uma temperatura
de a adaptação ao defeito não operar muito na di- corporal constante e independente da temperatura
reção de recuperar performances antigas, mas, ao do mundo externo e fenômenos similares.
invés disso, ir na direção de atingir comportamento O reajustamento é possível apenas se, simul-
ordenado. Das performances que em si ainda são taneamente, é feita provisão para a restrição reque-
possíveis, aquelas que podem ser utilizadas dentro rida do meio, de tal forma que nenhum estímulo,
da estrutura do novo comportamento ordenado são que poderia ocasionar uma reação catastrófica,
atualizadas, ou pelo menos as que não o perturbam. possa afetar o organismo. Nós vimos anteriormente
O comportamento ordenado é visado, mesmo à cus- como pacientes com lesões cerebrais gradualmente
ta de certas performances que ainda poderiam ser adquirem esse novo meio, e a forma como eles o
possíveis se fosse um meio diferente. fazem. Mas eles podem obter um novo meio apenas
se um parceiro torne isso possível ao providenciar
A TENDÊNCIA EM DIREÇÃO À PRESERVA- um ambiente adequado para sua nova condição.
ÇÃO COMO UMA EXPRESSÃO DA DECADÊNCIA Produzir esse estado é o objetivo da prática médica
DA VIDA. Nessa condição patológica, a tendência a em geral. Na medida em que a terapia médica não
preservar o estado atual pode se tornar o meio de so- erradica o dano, ela consiste apenas em rearranjo
brevivência. Se o biólogo descansa sua teoria sobre as do meio. Para evitar malentendidos, eu gostaria de
observações dessas condições, então um impulso em pontuar que o termo “rearranjo do meio” deve ser
direção à autopreservação pode aparecer como uma entendido no sentido mais amplo. Assim, ele inclui
característica essencial do organismo, enquanto, na a necessidade de tomar certas drogas continuamen-
verdade, a tendência em direção à autopreservação te, permanecer em um certo modo de vida, evitar
é um fenômeno da doença, da “decadência da vida”. situações de indulgências nos reinos somáticos e
A necessidade de obter um novo meio adequado psicológicos, de renunciar ou de entrar em certas
depende de dois fatores, assim como a vida em geral. relações humanas, etc. Nós iremos ver, na discus-
Ela depende, antes de tudo, da “natureza do organis- são sobre a atuação na esfera biológica, quais difi-
mo” em si, tanto quanto do mundo. Aqui, porém, esta- culdades extraordinárias são encontradas.
mos particularmente interessados no segundo fator, a Antes de nos determos sobre outras conse-
significância do “mundo”. O organismo mudado deve quências de nossa perspectiva, nós temos que co-
encontrar, no “mundo”, um novo “meio”. mentar sobre o caráter individualista que nossa des-
Em nossa discussão sobre os processos na le- crição de saúde parece ter. A adequação, no sentido
são no calcarino nós apontamos que o reajustamen- de “responsividade”, manifesta-se na melhor capa-
to ocasionado pelo defeito é sempre acompanhado cidade de performance do respectivo indivíduo. En-
por uma limitação das performances ou uma restri- quanto nossa descrição se abstém completamente
ção do meio. O mesmo fenômeno ocorre em todas de indicar os conteúdos das performances, ela é,
as curas em que um defeito permanece. É sabido por outro lado, independe de qualquer concepção a

409
priori de homem, permitindo uma ênfase tanto nos CONHECIMENTO BIOLÓGICO E AÇÃO
aspectos de sua natureza individual quanto coleti-
va. Nossa determinação não traz nenhuma decisão Aqui nós encaramos uma das tarefas mais di-
a esse respeito e certamente não é “individualista” fíceis. Nós temos que decidir qual curso deve ser
no sentido de ser egocêntrica. O nosso problema tomado. Obviamente, não é suficiente basear essa
não é a pessoa enquanto um indivíduo, mas a indi- decisão nas mudanças que o paciente as manifes-
vidualidade. É bem possível que a atitude social, o ta. Em vez disso, é imperativo considerar a perso-
caráter da associação concreta a um grupo, pertença nalidade pré-mórbida do paciente por inteira e sua
essencialmente ao homem. Se isso é verdade, então transformação por mudanças irreparáveis.
essa atitude pertence à norma individual dos hu- A imperfeição de todo conhecimento biológi-
manos e a saúde será mantida apenas quando essa co, sua incompletude em princípio, se mostra em
característica essencial, entre as outras, for realiza- toda a sua severidade quando ele se torna a base
da. Eu, pessoalmente, adoto esse posicionamento. de nossas ações. Nós não podemos evitar essa difi-
Caso, porém, essa atitude não pertença à norma, culdade dizendo que a concepção que nós obtemos
então a exigência por comportamento social seria acerca do organismo não é mais do que um símbolo
totalmente inadequada, e iria, portanto, ser incom- e que ela se torna o fundamento de nossas ações
patível com o comportamento ordenado e também como uma ficção, no sentido de uma filosofia do
com a saúde. Não importa qual decisão seja tomada “como se” (Vaihinger).
sobre essa questão, o conceito de norma, que nós Alguns médicos conceberam a prática médi-
desenvolvemos aqui, poderá ser empregado. ca como sendo determinada por tais ficções. Mas
Uma vez que o comportamento ordenado tem ela não pode se dar dessa maneira. Orientada por
uma significância extraordinária para o organismo ficções, não se pode nunca chegar a uma ação defi-
ferido, a restrição do meio sob certas condições pode nida. Nossa cognição, de fato, não é ficção. Embora
ser tornar tão grande que a restrição em si pode, por a cognição seja, é claro, limitada pela extensão do
sua vez, tornar-se uma causa de reações catastrófi- estado de conhecimento e assim estando sujeito a
cas. Esse pode ser o caso se a limitação incapacita o alterações, ela ainda é real. Não há outra realidade
organismo de executar outras performances “essen- para a pessoa em ação. Para a prática médica, o cor-
ciais”. Por exemplo, quando certas atividades men- po de conhecimento, em um dado momento, é na
tais que se mostram indispensáveis ao paciente se verdade a realidade.
tornam impossíveis devido a alguma incapacitação Enquanto, por um lado, a situação nos impele
corporal, então a vida, em tal forma limitada, tor- a agir, por outro lado, a ação em si se torna uma
na-se inadequada a ele. Assim, não raro, pelo que fonte de saber para nós. Não obstante, toda certeza
pode ser chamado de uma medida de proteção da surge da verificação que o conhecimento encontra
natureza, o paciente é poupado de uma catástrofe na ação ou de sua correção por meio da ação. Assim
ao não perceber sua mudança. Por exemplo, essa o conhecimento médico, e provavelmente todo co-
perda da percepção aparece na lesão cortical ou em nhecimento biológico, está estreitamente amarrado
doenças corporais muito sérias como tuberculose, à ação; entretanto, não no sentido de um pragma-
câncer no útero, etc. Nos casos mais sérios, o pa- tismo determinado por normas alheias, mas como
ciente perde a consciência por completo. ação ditada pela realidade, que por sua vez pode
Mas há situações limite nas quais um dano ser alcançada apenas por meio do conhecimento.
corporal severo existe de fato, mas a consciência A relação entre esse tipo de ação e conhecimento
da condição ainda não desapareceu. Nessas situa- não é para ser uma estranha entre dois fatores in-
ções, podem surgir conflitos psicológicos intensos. dependentes, como a comum conexão entre teoria e
Então nós constatamos a tendência em direção à aplicação prática na ciência médica. Antes, conheci-
autodestruição como a possibilidade de adaptação mento e ação estão inter-relacionados de um modo
suprema, apesar de fatal para o indivíduo. E, com dialeticamente determinado. Conhecimento sem
isso, o suicídio ocorre como uma expressão do cho- ação não é conhecimento e ação sem conhecimento
que catastrófico mais sério, causado pela realização não é ação. Ambos se originam mutuamente, no tes-
da impossibilidade de existência. Essa situação de te de suas capacidades de gerar frutos, assim como
conflito se torna muito importante para as delibe- em suas adequações à realidade e suas aptidões
rações em qualquer tratamento médico. Esse trata- para manter a natureza ao invés de perturba-la ou
mento terá sempre que ser guiado pela atenção ao distorce-la. No médico, para dizer concretamente,
fato de se a restrição do meio, que todos os tratamen- conhecimento e ação surgem juntos em suas apti-
tos ocasionam, não limita, para o indivíduo, as pos- dões para ajudar a preservar, o máximo possível, o
sibilidades de auto atualização além do ponto que ser humano vivo em sua natureza específica.
é suportável. Assim, algumas vezes será necessário Essa “ação da cognição” demanda decisão livre
tolerar uma certa perturbação, um “sintoma”, por por causa da incompletude do conhecimento bioló-
ser mais suportável que a redução de performances gico sempre existente. Aqui, a concepção holística
mais essenciais resultante de grandes limitações do manifesta sua significância bastante única para a
meio. Por outro lado, é preciso haver demandas tão medicina na relação entre médico e paciente. Se re-
altas quanto possível, porque apenas assim a res- cuperar a saúde significa perda da essência, isso im-
ponsividade ocorre de fato. Demandas muito baixas plica maior dependência do ambiente, vínculos mais
podem se mostrar um obstáculo para a produção de fortes com os eventos ambientais; um declínio do
performances ótimas (10). comportamento de vida multiforme, para um com-

410
portamento mais limitado, compulsivo e mecânico; paciente, existe de maneira similar quando se lida
uma desintegração de uma organização pessoalmen- com qualquer ser vivo. E visto que estamos tão dis-
te padronizada, unicamente direcionada, para rea- tantes de um conhecimento da natureza essencial
ções governadas pela lei da causalidade. Em resumo, dos animais, nós não deveríamos interferir em seus
isso significa limitação da liberdade. Isso, entretanto, modos de vida sem estarmos conscientes desse pro-
implica que decisões médicas sempre requerem uma blema.
invasão sobre a liberdade de outra pessoa. Nossa discussão nos levou a um assunto que
Assim todo o complexo problema do conceito parece muito distante dos tópicos biológicos co-
de liberdade entra na prática médica. As dificulda- muns. Com os conceitos de liberdade e responsa-
des são agravadas, visto que em qualquer tratamen- bilidade nós entramos em uma esfera espiritual e,
to a livre decisão do paciente em si não deve ser aparentemente, nos removemos da ciência natural.
desconsiderada. Assim, o paciente frequentemente Sem dúvida, essa não é a primeira referência des-
tem a escolha de querer aceitar uma limitação do se tipo que nós fizemos durante nossa tentativa de
meio – correspondente à mudança causada pela compreender o comportamento humano. Afinal, li-
doença – e a resultante limitação da liberdade, ou berdade é meramente a expressão daquele tipo de
uma limitação menor e em vez disso maior sofri- comportamento que a análise de pacientes com le-
mento. Se o paciente suporta mais sofrimento, ele sões cerebrais nos levou a considerar como um atri-
vai ganhar em possibilidades de ações, uma vez que buto essencial da natureza humana. Nós devemos
as medidas terapêuticas podem ser capazes de redu- encontrar estes problemas espirituais na discussão
zir o sofrimento, mas ao mesmo tempo diminuem a seguir sobre o conceito de anomalia.
as performances. Ele deve escolher entre uma falta
de liberdade maior e sofrimento maior. É bastante
óbvio que essa não é uma alternativa superficial, SOBRE ANOMALIA E ESPÉCIES
mas essa decisão toca profundidades metafísicas.
Assim, com frequência, é na doença que o indiví- A suposição de que uma mudança qualitativa
duo revela sua verdadeira natureza. do conteúdo é parte da recuperação com defeitos
Dar conselho ou, o que é ainda mais, orienta- residuais abre caminho para uma discussão sobre
ção, em tal situação, ultrapassa a competência do a relação entre doença e anomalia. Anomalia sem-
médico? Em qualquer ocasião ele estará apto para pre representa um desvio de conteúdo da norma em
fazer isso apenas se ele estiver totalmente convic- alguma forma definida. Também, ao lidar com o
to de que a relação médico-paciente não depende problema da anomalia, nós queremos discutir pri-
apenas do conhecimento da lei da causalidade, mas meiramente as condições no homem. Certamente,
trata-se de um acordo entre duas pessoas, em que há anomalias em animais. Porém em primeiro lu-
uma deseja ajudar a outra a obter um padrão que gar, elas são, normalmente, muito mais difíceis de
corresponde, na medida do possível, à sua natu- descrever porque nós somos muito menos treinados
reza. Essa ênfase sobre o relacionamento pessoal para identifica-las. Essa dificuldade começa mesmo
entre médico e paciente delimita, de modo impres- quando nós somos confrontados com membros de
sionante, o contraste entre o ponto de vista da me- “raças” com as quais estamos menos familiarizados.
dicina moderna e a mera mentalidade das ciências E em segundo lugar, é quase impossível determinar,
naturais dos médicos na virada do século. Por mais em animais, a natureza das espécies tão claramente
que sempre pareça que o médico esteja interferindo para que um desvio dela pudesse ser caracteriza-
apenas em eventos corporais ou mentais, ele deve do com qualquer grau de certeza. Essa dificuldade
ter em mente que qualquer interferência efetiva, ocorre devido à interferência do homem, a exemplo
não importa o quanto aparentemente seja superfi- da procriação, alimentação, etc. A chamada pureza
cial, deve afetar a natureza essencial do paciente. das espécies, que indubitavelmente é em essência
Ele deve lembrar que qualquer interferência, uma um produto de procriação humana, certamente não
vez que brota da liberdade, afeta a liberdade de ou- pode ser considerada um critério.
tra pessoa. Do ponto de vista holístico, essa afirma- Anomalia difere da doença de duas formas.
ção é auto evidente. Ela não necessariamente implica em um choque
Desse modo, a ação nos leva não apenas a uma para o ser do indivíduo. Ela requer para a sua com-
compreensão mais profunda em geral, na medida preensão, além de uma maior referência ao indi-
em que nós verificamos nossas ideias com relação às víduo, também referência a uma unidade social
partes do processo, por meio dos efeitos que nossas maior. Certamente, a individualidade em geral deve
ações têm, mas também a uma compreensão mais ser vista apenas dentro de um quadro maior de re-
profunda da natureza do organismo específico em lações sociais; e sua “responsividade” é, ao mesmo
questão. A impossibilidade de alcançar o fenômeno tempo, determinada por essa relação. Nós vimos
da doença de um modo que não seja introduzindo que a recuperação, apesar do defeito, requer a coo-
o fator da liberdade nos leva ao reconhecimento de peração de homens parceiros ou, em termos mais
um atributo importante do homem, a saber, o reco- gerais, ela deve ser incorporada na comunidade de
nhecimento de sua potencialidade para a liberdade, homens parceiros.
sua necessidade de realizar sua natureza por meio Entretanto, o oposto também pode ser verda-
da livre decisão. deiro: A falta de responsividade pode surgir de uma
No entanto, essa dificuldade de agir, devido perturbação da relação com o campo social mais
à responsabilidade pela natureza específica de um amplo. Tal aspecto desempenha um papel impor-

411
tante, por exemplo, na origem de muitas doenças -científico ingênuo sobre a natureza humana vem
mentais. Para a anomalia, a relação com o campo à tona. Há conflito com essa ideia, aparentemente,
social é ainda mais primário. A anomalia pode ser quando encontramos, em certas “raças” humanas,
compreendida apenas com referência à norma “su- costumes e observâncias que aparentam ser “inu-
per-individual”3. Porém, enquanto essa norma per- manas” para os civilizados e quando várias raças se
manece determinada, por assim dizer, apenas nega- permitem críticas mútuas. É exatamente por meio
tivamente em comparação com a norma individual, de tais exemplos é possível demonstrar que essas
e na medida em que esse conceito “super-indivi- críticas, com frequência, não correspondem aos fa-
dual” é preenchido com conteúdos inerentemen- tos, ou seja, as experiências e motivações em com-
te alienígenas, mais tempo iremos permanecer na portamentos grupais podem ser completamente di-
esfera dessas abordagens atomísticas que nós rejei- ferentes daquelas supostas; ou, em termos gerais,
tamos. Além disso, nesse caso é conveniente visar demonstrar que esses “achados” eram erros que
o protótipo dessa “entidade” mais compreensiva. surgiram de uma abordagem isolante.
Ao nos orientarmos por esse protótipo, a “anoma- Caso, por exemplo, nós destacarmos uma ca-
lia” pode se tornar compreensível como um fenô- racterística de seu contexto natural no padrão de
meno que pode aparecer sob certas circunstâncias vida de um povo “primitivo” e a submetermos a um
que podem ser definitivamente reveladas. Em nossa princípio de mensuração intrinsecamente estran-
tentativa de chegar em tal protótipo compreensivo, geiro a ela, nós deveremos chegar à mesma falsa
nós somos confrontados com dificuldades ainda generalização que ocorre na teoria do reflexo. Para
maiores que na determinação do todo individual. É descrever corretamente e compreender a estrutura
possível, de acordo com Uexkuell, definir as espé- de um fenômeno individual, nós temos que nos vol-
cies como aquele número de diferentes indivíduos tar para o padrão total ao qual ele pertence. Com
que, quando cruzados, ainda podem produzir uma esse quadro de referência em mente, vários fenôme-
prole capaz de viver e se propagar (11). Aqui nós nos “inumanos” se tornaram muito humanos! Essa
notamos, assim como na norma individual, que a descoberta significa que o cuidado é imperativo.
potencialidade “para ser” é a base para a determi- Nesse ponto, ainda estamos nos primeiros passos
nação do protótipo. Não se pode negligenciar que o da pesquisa empírica, embora as últimas décadas
conceito de potencialidade – “para ser” – é de certa de pesquisa antropológica, em especial, tenham
forma indefinido. Particularmente no que diz res- trazido muito avanços. Nós precisamos superar o
peito ao homem, ele requer que a sua complicada hábito de julgar “outros” povos a partir de nossos
natureza psicofísica seja inteiramente levada em padrões, nós deveríamos tentar entender esses fe-
consideração. nômenos mais a partir de sua natureza pertencente;
Com relação ao todo superordenado, conceitos e, então, muitas peculiaridades, que num primei-
como “tribo”, “família”, “espécies”, “raça”, “nação”, ro momento apareçam como diferenças entre nós
“estado” e “humanidade” ainda estão por ser defini- e os “outros”, serão nada mais que modificações de
dos. O problema surge conforme eles podem ser for- aspectos essenciais da natureza humana que ocor-
mas genuínas de Ser, que facilitam a compreensão rem sob certas circunstâncias – como expressão do
do Ser individual – o objeto com o qual nós estamos desenvolvimento especial de traços humanos (12).
preocupados em última instância. Certamente, nós Por exemplo, é muito fácil mostrar que, nos
não podemos acabar com os problemas que aqui es- chamados homens primitivos, vários traços expe-
tão envolvidos. Contudo, uma compreensão da ano- rienciaram um desenvolvimento diferente daquele
malia, seus efeitos no indivíduo e seu manejo pela nos chamados homens civilizados. No entanto, te-
sociedade pode ser obtida apenas através de uma mos que ser cautelosos ao inferir, a partir dessas di-
clarificação desses conceitos. ferenças de desenvolvimento, organizações e raças
Anomalia deve ser considerada em dois aspec- “superiores” ou “inferiores”. Nós discutiremos em
tos: por um lado, do ponto de vista da mais ampla seguida qual significado, caso exista, essas palavras
“entidade” à qual o indivíduo anômalo pertence por podem ter. Na medida em que novas experiências
“natureza”; e por outro lado, do ponto vista da co- nos ensinarão que indivíduos de origens completa-
munidade mais específica em que ele vive. Nesse mente diferentes podem se desenvolver de modos
caso, isso significa: de um lado a “humanidade” e muito parecidos, se forem criados no mesmo am-
do outro as comunidades específicas, a exemplo de biente, as conclusões sobre raças inferiores e su-
“nação”, “raça”, etc. periores serão cada vez mais descartadas. Então o
A primeira classificação, definição da anoma- fenômeno da diferença na cor da pele, com certeza,
lia como desvio da natureza humana em geral, será não será mais motivo para a construção de diferen-
mais simples que a segunda, cujo caráter é bastante ças de valor.
problemático. Certos fenômenos serão imediata- A decisão sobre se e em que grau, se é que
mente considerados como não humanos, como des- há algum, essas diferenças podem existir pode ser
vios do “humano”. Dificilmente há discordância de abordada apenas por meio de uma verdadeiro co-
que certas peculiaridades são traços característicos nhecimento da natureza essencial dos respectivos
de todo ser humano. Aqui um conhecimento pré- grupos. Nós estamos aqui não apenas bem no co-
meço de nosso conhecimento, mas também diante
3 Através da incorporação da existência do indivíduo dentro de um todo
mais compreensivo, o Ser nunca é destacado da natureza do indivíduo e, de uma selva de confusão que é artificialmente pre-
mais ainda, a existência desse todo super-ordenado pode não se manifestar servada por todos os tipos de preconceitos, os quais
em lugar algum, mas sim no indivíduo propriamente dito. Nós queremos em parte são certamente consequência de, e manti-
enfatizar esse ponto expressamente.

412
dos por, deficiências morais. Parcialmente, porém, samente anômalos, age desse modo irresponsável.
eles possuem sua origem nos erros do procedimen- Qualquer procedimento, para ser biologicamente
to isolante. Uma visão adequada, holisticamente justificado, teria que empregar metodologicamente
orientada, com certeza iria revelar muitos erros a referência holística de duas maneiras. Primeiro,
nesse campo. Eu não deveria falhar, nesse ponto, ao decidindo sobre a possibilidade de haver maior ou
enfatizar que muitos autores, na atual controvérsia menor valor de uma raça e, segundo, estimando o
sobre questões raciais, abusam de conceitos como perigo potencial das anomalias para a comunidade:
“natureza essencial” e “referência holística”. esse perigo pode ser mais representado por meio de
O protótipo do organismo e a “natureza essen- sua massa hereditária do que por meio de sua exis-
cial” que estamos apontando em nossas análises tência pessoal. Isso tudo exemplifica o erro que sur-
não tem relação alguma com avaliações doutrina- ge ao tomar como absolutos os fenômenos obtidos
das por alguma ideologia que não seja nada além através de procedimentos isolantes.
de expressão de credo político e preconceito. Todos
os teoremas até agora desenvolvidos para sugerir
inferioridade ou superioridade, como peculiares a HEREDITARIEDADE E PROCRIAÇÃO
um grupo ou entidade particulares, são baseados
em equívocos e abusos daquilo que é de fato ho- Na interpretação atomística dos processos he-
lístico. Em vez de investigar cuidadosamente o que reditários, a tentativa de explicar a origem de um
realmente pertence à natureza essencial de um gru- indivíduo através da soma de fatores hereditários
po – além de padrões histórico-econômicos – eles separados nos apresenta, no processo comum, uma
introduzem axiomas não-científicos, a exemplo do analogia completa com o procedimento da reflexo-
mito do sangue e outros. Todas as noções desse tipo logia. De fato, ninguém falhará ao admirar os expe-
são totalmente injustificadas quando ilegitimamen- rimentos de Mendel e ao apreciar o conhecimento
te ligadas à metodologia e a resultados da pesquisa que adquirimos por meio deles no que diz respeito
empírica moderna ou aos postulados sobre as rela- à hereditariedade e características partitivas – espe-
ções entre o todo e as partes. cialmente quando se adiciona a isso os experimen-
Essas confusões com relação ao julgamento da tos mais recentes que têm mostrado a possibilidade
“natureza” de uma raça, ou até mesmo a decisão so- de destacar, de modos sutis, características circuns-
bre a existência ou não de algo como a raça, tornam critas em experimentos da hereditariedade.
particularmente difícil o julgamento correto da ano- Mas assim como não há um caminho que par-
malia. Esse julgamento exigiria fundamentos cien- ta dos reflexos para alcançar uma compreensão do
tíficos que ainda não possuímos. Geralmente, ele é organismo como um todo, também não há um ca-
orientado em torno de achados acidentais no am- minho direto partindo das características partitivas,
biente concreto. Esses últimos são avaliados confor- que a genética aponta através da análise, para uma
me a média de peculiaridades somáticas e mentais e, compreensão da gênese de um indivíduo! Se nós
também, conforme os preconceitos predominantes. pensamos que essa conexão direta existe, comete-
Por isso, é possível que as mesmas anomalias se- mos o engano de considerar certas peculiaridades
jam avaliadas de formas diferentes com o passar do como características para o indivíduo. Ao contrário,
tempo. Na avaliação de uma anomalia, a questão da peculiaridades especiais obtém sua significância
perturbação por ela está notavelmente em primeiro quando são consideradas dentro de seu “pertenci-
plano. Nesse ponto, nossas considerações coincidem mento” funcional ao todo de um indivíduo. Assim
novamente com o procedimento de decidir sobre o como H. F. Jordan enfatizou, não é verdade que es-
que doença é. Neste último caso, o quadro de refe- tamos lidando com a herança de elementos inde-
rência é o “Ser” do indivíduo, ao passo que nas ano- pendentes, mas ao invés disso com características
malias, trata-se do Ser de uma entidade maior, cuja totais. Segundo ele, o efeito do gene pode ser en-
existência pode ser ameaçada por choques catastró- tendido apenas a partir de sua relação com o todo.
ficos originados por perturbações provenientes do No entanto, mesmo nos resultados do tipo ato-
indivíduo anômalo – agora ou no futuro. místico de experimentos genéticos, características
Se a anomalia é tal que o indivíduo em ques- totais, essenciais, dos respectivos organismos são
tão continuamente encontra, no meio em que vive, manifestas. O mero fato de que fatores dominantes
tarefas que não pode realizar, então, por sua vez, a e recessivos existem indica que alguns fatores estão
anomalia se torna perigosa para ele. Ele é forçado mais vinculados à natureza essencial que outros.
a recuar – a limitar seu meio – ou ele irá perecer Características recessivas provavelmente ocorrem
de contínuas reações catastróficas às quais é ex- devido ao fato de que o cruzamento de uma criatu-
posto. De modo algum, ele será capaz de se “atua- ra com outra que possui outros traços dominantes,
lizar” essencialmente. Na medida que a atualização causa misturas que não possuem o mesmo potencial
for possível, ele muito provavelmente representará hereditário. Ao competir com fatores dominantes,
um fator de perigo para a comunidade, embora isso os recessivos não podem se tornar efetivos, ou po-
possa, frequentemente, ser apenas supostamente o dem apenas com dificuldades e, por isso, aparecem
caso. Então a comunidade chegará a conclusão de apenas quando há um cruzamento com um animal
que tem o direito de se livrar desse indivíduo. Cada que possui uma afinidade com esse traço particular.
teórico de raça que, assumindo a existência de raças Provavelmente, os fatores hereditários domi-
“superiores” ou “inferiores”, deseja excluir os mem- nantes são os traços que estão relacionados com
bros da raça “inferior” considerando-os pernicio- aquilo que chamamos de “constantes”. Mas eles

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constituem o indivíduo apenas na respectiva con- inferiores, deve sua origem particularmente a essa
catenação conforme se dão através da maior ou me- falha ao reconhecer o caráter atomístico do método
nor efetividade dos fatores recessivos. O conheci- de isolamento. A genética praticamente não provou
mento dos fatores e do valor de sua hereditariedade em lugar nenhum ser tão fatal quanto nesse méto-
no procedimento experimental nos oferece, porém, do simplificado de “transferência”. Para começar, os
informações muito preliminares no que diz respei- geneticistas negligenciaram o fato de que os experi-
to à gênese do indivíduo. Geralmente, esse fato é mentos de procriação ocorreram sob condições não
negligenciado porque os experimentos genéticos naturais. Eles estavam preocupados com procriação
exatos são feitos com animais, ou até mesmo com consanguínea planejada, com a criação de “linha-
plantas, nos quais não é apenas difícil, mas quase gens puras” e com a seleção de atributos que não
impossível alcançar algo como a individualidade, foram escolhidos considerando se eles eram rele-
e também porque onde nossa perspectiva é tão in- vantes para a natureza essencial. Logo, foi possível,
fluenciada por nosso interesse em elementos arti- em última análise, gerar criaturas com proprieda-
ficialmente selecionados que, por consequência, o des arbitrariamente destacadas.
experimentador vê apenas isso. Os experimentos que a genética realmente rea-
A decisão sobre o que é uma característica do- lizou não eram experimentos sobre hereditarieda-
minante ou recessiva pressupõe o conhecimento da de, no sentido de uma observação experimental da
natureza do indivíduo ao qual elas pertencem. As- gênese natural, mas experimentos do tipo prático,
sim, não deve surpreender o fato de que a avaliação com todos os seus característicos aspectos positivos
do fenômeno real se torna cada vez mais difícil e e negativos. Enquanto a procriação não está preo-
que novos fatores superordenados têm que ser con- cupada com o conhecimento da natureza essencial
tinuamente introduzidos para que se possa reter o das criaturas e o modo de sua hereditariedade, mas,
conceito atomístico genético original. em vez disso, com a reprodução de características
Algumas citações de artigos recentes podem específicas úteis para o homem, os experimentos
mostrar que nossos comentários críticos estão de úteis – tão úteis quanto a dominação da natureza
acordo com as observações mais recentes de ge- por meio da tecnologia. Os experimentos fornece-
neticistas célebres.4 “Não se deve esquecer que o ram um certo esclarecimento acerca da essência da
gene do indivíduo age apenas em interação com natureza, mas apenas na medida que eles revelaram
os outros elementos constitucionais do genótipo e até onde tal aplicação de força da natureza é supor-
com a situação de vida” (Johannsen (14)). “Todos tável, o que por sua vez revela certas características
os detalhes fenotípicos são determinados pelo tipo das criaturas. Por fim, eles nos forneceram algumas
configuracional ao qual eles pertencem... Provavel- informações a respeito dos cuidados que são neces-
mente não é exagero dizer que cada gene, no germo- sários para tornar a existência nesse “estado frontei-
plasma, influencia várias ou possivelmente muitas riço” possível.
partes do corpo; em outras palavras, o germoplasma Se a tarefa da genética e eugenia humanas
inteiro é ativo no desenvolvimento de cada parte do fosse a procriação de seres humanos com deter-
corpo” (Lloyd-Morgan). “Na drosophila, um grande minadas características, independentemente da
número de fatores, pelo menos cinquenta, partici- natureza essencial do homem, poder-se-ia admitir
pam na formação de uma cor de olho... A obser- que os resultados da experimentação com plantas
vação cuidadosa revelou que cada gene individual seriam aplicáveis aos humanos. Com certeza, esses
não influencia apenas uma característica, mas mui- experimentos em humanos dificilmente renderiam
tas, provavelmente o corpo todo” (Jennings (15). o sucesso esperado. O ser humano provavelmente
Poll (16) escreve: “O caráter atomístico da concep- não poderia viver de fato na situação fronteiriça
ção genética demanda fortemente a compensação em que os experimentos pertinentes têm que colo-
em forma de uma perspectiva holística tal como a cá-los. Os limites de capacidade da existência po-
teoria da diferenciação ou ‘Melistik’. O ‘unio mys- dem ser ultrapassados ao mesmo tempo e muitas
tica’ das unidades não ocorre com base em uma reações catastróficas resultariam das propriedades
união secundária de partículas pré-existentes (‘Me- que a “procriação” pretendida não poderia atingir.
ronten’). Essa ideia assume uma desarticulação pri- A procriação poderia obter os resultados almejados
mária dos membros (‘Melonten’), a independência apenas se ela se voltasse para, e visasse as carac-
da qual pode tornar-se perceptível apenas secunda- terísticas essenciais para o humano. Mas então ela
riamente”. Essas palavras de Poll indicam o conteú- teria que ser completamente diferente.
do holístico da genética moderna. Porque me faltam Em todos esses experimentos, é negligencia-
experiências próprias suficientes sobre esse tema do o fato de que uma das características essenciais
no meu campo, eu não me atrevo a decidir se, a par- para o ser dos humanos é a individualidade e a li-
tir dessa perspectiva, o gene é reconhecido como berdade, e que estas só podem ser encurtadas até
uma “parte” obtida por meio de um determinado um certo ponto sem que haja ameaça à capacida-
método de modo similar ao que apresentamos sobre de de sua existência. A realidade do intelecto, da
os reflexos. autodeterminação, que mesmo em sua forma mais
Um dos muitos erros dos geneticistas, a saber, primitiva representam características essenciais do
aplicar aos seres humanos as leis deduzidas de ex- homem, condenam ao fracasso qualquer experi-
perimentos de procriação em plantas ou em animais mento de procriação do tipo comum.
No entanto, se a regulação das condições da
4 Cf. também as discussões de Uexkuell (13) sobre as espécies, raça, etc.,
com as quais nós estamos em ampla concordância. hereditariedade não visa características específicas,

414
mas aspira aperfeiçoar a raça humana por meio da (3) Lubarsch, O., Allgemeine Pathologie, Wiesbaden, 1905.
eliminação de indivíduos em más condições físicas,
tal esforço pressupõe um conhecimento profundo (4) Ribbert, A., Das Wesen der Krankheit, Bonn, 1909.
da significância das peculiaridades individuais
(5) Schilling, V., “Ueber die Erweiterung des Krankheits-
para as naturezas humanas. E quem se aventuraria
begriffes in der internen Medizin durch die verfein-
a tomar qualquer decisão a esse respeito no atual
erten neuen Untersuchungsmethoden,” Verh. d. Ge-
estado de pesquisa! Mesmo no campo de estudo
sell. f. inn. Med. 41. Kongr., pp. 144-160, 1929.
onde, relativamente, nós conhecemos os efeitos
mais nocivos de mudanças patológicas na progênie, (6) Aschoff, L. Vortraege ueber Pathologie, Jena, 1925.
se nós considerarmos o problema sem parcialidade
perceberemos que nada definido foi determinado. (7) Grothe, A., Grundlagen aerztlicher Betrachtung,
A razão disso é que não foi nem determinado nem Springer, Berlin, 1921.
previsto quando e onde a anormalidade se torna no-
civa, ou, talvez, extremamente valiosa para o indi- (8) Goldstein, K., “Das Kleinhirn,” Handb. d. norm. u.
víduo e a comunidade. path. Physiol., X, pp. 223-317, 1927.
Por exemplo, vamos considerar apenas a dis-
(9) Kroetz, C., “Allgemeine Physiology, etc., “Handb. d.
cussão sobre a esterilização de maníaco-depressi-
norm. u. path. Physiol, XVI, pp. 1729-1821, 1931.
vos, a disposição para a qual a doença é indubi-
tavelmente hereditária em um certo grau. Quem (10) Goldstein, K., “Ueber die Plastizitaet des Organis-
gostaria de duvidar da capacidade – se não supe- mus, etc.,” Handb. d. norm. u. path. Physiol., XV,
rioridade – de muitos indivíduos com maiores ou pp. 1132-1174, 1931.
menores predisposições maníaco-depressivas. Se
alguém se considera justificado em interferir na au- (11) Uexkuell, von, J., Theoretical Biology, Harcourt,
todeterminação humana, mesmo no que se refere à Brace, New York, 1926.
progênie, pode-se fazer isso apenas com risco. Po-
rém nós não deveríamos recorrer à natureza “ine- (12) Goldstein, K., “Die Bedeutung der Psychopathologie
rente” para a justificação de tal procedimento, no der Sprache fuer die Anthropologie und Etnologie,”
que diz respeito à fundamentação do que nós ainda Intern. Kongr. f. Anthrop. u. Ethnol., London, 1934.
não possuímos e podemos dificilmente esperar pos-
suir, conhecimento. (13) Uexkuell, von, J., Theoretical Biology, Harcourt,
Tendo dito tudo isso, deve parecer incomu- Brace, New York, 1926.
mente difícil obter a atitude correta para as nossas (14) Johannsen, W., Exakte Erblichkeitslehre.
condutas com anomalias no sentido de um desvio
da média ou, mais ainda, de um tipo ideal. A situa- (15) Jennings, H. S., Prometheus; or Biology and the Ad-
ção é um pouco diferente se nós considerarmos a vancement of Man, Dutton, New York, 1925.
anomalia do ponto de vista da norma individual.
Será preciso encontrar um meio mais adequado _______, The Biological Basis of Human Nature, Norton,
para o anômalo. A sociedade terá que fazer isso a New York, 1930.
partir do ponto de vista duplo, a saber, proteger-se
dos perigos da anomalia e ao mesmo tempo capa- (16) Poll, H., “Genetik und Melistik als Grundlage des
citar o indivíduo anômalo para existir. Em última aerztlichen Denkens,” in: Einheitsbestrebungen in
análise, não há diferença essencial entre essas duas der Medizin, Dresden und Leipzig, 1933.
perspectivas. Portanto, torna-se necessário para a
sociedade proteger-se somente enquanto o anôma-
lo não viva no meio adequado. Se ele vive em um
meio adequado, ele não é perigoso, porque ele está
em um estado ordenado. Esse resultado parece im-
portante para nós porque ele oferece o critério para
o único modo correto de ação biológica. De fato, Nota Biográfica
pode-se extinguir aquilo que se considera anômalo.
Mas então surge a questão sobre se ao fazer isso, as Kurt Goldstein (1878-1965) nasceu em Katowice,
ações estão de acordo com a “Essência do Ser”, se Silésia. Neurologista e psiquiatra de origem judai-
está sendo feita justiça à liberdade – aquela caracte- ca, foi pioneiro da moderna Neuropsicologia. Fez
rística que nossa discussão do fenômeno da doença sua formação inicial em Filosofia, em Heidelberg
e da anomalia provou ser muito característica da (era primo do filósofo Erns Cassirer); posteriormen-
natureza humana. te Medicina, em Breslau, onde foi assistente de la-
boratório de Ludwig Edinger e estudou com Carl
Wernicke. Seu nome está mais associado à “teoria
Bibliografia organísmica” ou “teoria holística”, derivada de sua
experiência com soldados com lesões cerebrais na
(1) Albrecht, E., “Grundprobleme der Geschwulstlehre”, Primeira Guerra, e de sua principal obra, Der Aufbau
Frankf. Ztschr. F. Path., I, pp. 221-247, 1907. des Organismus (1934). Em 1933, com a ascensão
do NSDAP ao poder na Alemanha, ele é encarcera-
(2) Jaspers, C., Allgemeine Psychopathologie, Springer, do por uma semana em Berlim, onde lecionava, e só
Berlin, 1923. é libertado com a condição de abandonar o país. Foi

415
em Amsterdam, graças ao apoio da Fundação Rock-
feller que escreveu sua principal obra, emigrando
em 1935 para os Estados Unidos, onde lecionou e
foi co-editor do Journal of Humanistic Psychology,
e ali permanecendo até seu falecimento em 1965.

Tradução: Jennifer da Silva Moreira (Universidade


Federal do Paraná)

Revisão: Pedro Luís Tizo Santos (Universidade Fe-


deral do Paraná).

Recebido em 25.07.2017
Aceito em 30.11.2017

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