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Resumo: Este estudo busca acompanhar a interpretação realizada por Martin Heidegger das duas
epístolas aos tessalonicenses, publicada no volume 60 das obras completas (Gesamtausgabe) sob o título
Fenomenologia da vida religiosa. Como já é sabido, as duas epístolas paulinas foram escritas aos fiéis de
Tessalônica. O filósofo utiliza o método fenomenológico para a apreensão do fenômeno religioso e
analisa como isso se dá na vida fática. O objetivo consiste em compreender o modo de viver a faticidade
da fé no contexto histórico da experiência cristã originária. Assim, pretendemos acompanhar
rigorosamente o modo como Heidegger evidencia a estrutura ontológica da vida fática na comunidade
cristã originária. Para cumprir a meta inicial, este trabalho será dividido em três partes: a primeira diz
respeito aos propósitos de Heidegger em realizar uma interpretação fenomenológica das epístolas
paulinas; na segunda parte serão explicitados os argumentos mais importantes da obra em estudo, ou seja,
especialmente das epístolas aos tessalonicenses interpretadas por Heidegger; por fim, procura-se entender
em que sentido o filósofo busca em Paulo uma genuína filosofia da religião.
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Graduando do curso de filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Endereço eletrônico:
marcosmontagner@gmail.com.
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Doutor em filosofia, professor em cursos de graduação e pesquisador do mestrado em Ciências da
Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. E-mail: renatokirchner@puc-campinas.edu.br.
crucificado. Pregava onde vivia e trabalhava (faticidade da vida), ou seja, nos cortiços
das cidades maiores daquela época.
Sobre sua formação filosófica não se pode afirmar muito do conhecimento de
Paulo: “Minha palavra e minha pregação nada tinham de linguagem persuasiva da
sabedoria” (1Cor 2,4; 2Cor 11,6), sendo não adepto da oratória segundo os padrões
aristotélicos (BROWN, 2010, p. 601).
As cartas paulinas foram os primeiros textos do Novo Testamento a serem
escritos. Foram, portanto, uma literatura imediata com problemas concretos, ou seja, são
fonte primária e complemento dos Atos dos Apóstolos.
A questão inicial de Heidegger é a questão de filosofia como ciência, um modo de
ser filosofia. Ele concebe que “a filosofia surge da experiência fática da vida mesma e
experimentar não significa tomar conhecimento (saber), mas o confrontar-se com (viver
a experiência)”. Segundo o filósofo alemão: “O importante é que a experiência fática da
vida se torne acessível, o como experimentar de cada mundo” (HEIDEGGER, 2010, p.
16). A justificativa de proposta de estudo de Heidegger é:
Esta passagem coloca teses que não podem demonstradas, mas verificadas pela
fenomenologia, de tal modo que devemos proceder interpretativamente como se
estivéssemos escrevendo as epístolas com Paulo, ou seja, vivenciamos com ele a escrita
das epístolas, ou seja, nós propriamente as ditamos ao Apóstolo.
No trecho 1Ts 1,9-10, “Como vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes
ao Deus vivo e verdadeiro”, a virada para Deus é uma opção primária, inicial, pois é
somente a partir dela e com ela que se dá a virada que se afasta dos ídolos. A palavra no
grego clássico tem o significado de alucinação, insconciência, sendo um modo utilizado
por Paulo: “Por nosso Senhor Jesus Cristo que morreu por nós, a fim de que nós, na
vigília ou no sono vivamos em união com ele” (1Ts 5,9-10). “Na vigília e no sono”
significa novamente “vivos ou mortos”. “Definimos, assim, o vir mediante o aceitar e,
além disso, mediante o receber”, escreve Heidegger. E continua:
Para Heidegger, o modo explicado por Paulo é o modo de como vivo o hoje em
função da expectativa do futuro. A angústia no sentido religioso cristão é o modo de
levar até o final o objetivo inicial, descoberto no ter-se-tornado, e o saber dos propósitos
da presença, ou seja, da parusia até o dia decisivo.
aulo aponta o engano dos que compreendem e vivem a parusia sem trabalho e na
ociosidade, na expectativa de algo futuro, perdendo-se o que podemos ler em 1Ts 3,11:
“Ouvimos dizer que alguns dentre vós levam vida à-toa, muito atarefados sem nada
fazer.”
A resposta de Paulo diz respeito a dois modos de vida fática para o que é o
Anticristo. O sentido da proclamaçao do Anticristo é o seguinte: deve-se tomar o
Anticristo como tal. Ele aparece como um deus: “o deus deste mundo” (2Cor 4,4). “Para
os incrédulos , dos quais o deus deste mundo obscureceu a inteligência, a fim de que
não vejam brilhar a luz do Evangelho da Glória de Cristo, que é a imagem de Deus.”
Segundo o entendimento do filósofo alemão: “Para isso faz falta da faticidade do saber.
Saber quem seja verdadeiramente Cristo isso decide-se porque se reconhece o
Anticristo” (HEIDEGGER, 2010, p. 99).
O acontecimento da parusia ordena-se segundo seu sentido de acontecimento, ou
melhor, aos homens que se dividem em chamados (cf. 2,10) e perdidos ou réprobos. Os
que se perdem têm o sentido ofuscado pelo senhor deste mundo. Eles não podem provar.
“Discerni tudo e ficai com o que é bom” (1Ts 5,21). Trata-se de um aceitar que é um
último decidir-se, funda-se no saber e no provar (HEIDEGGER, 2010, p. 101).
Paulo adverte em 2Ts 2,3: “Ninguém deveria deixar enganar-se”. “Os que se
perdem acreditam na mentira, eles não são indiferentes, estão ocupados em grau
máximo, porém, acabam se enganando e sucumbem ao Anticristo” (2Ts 2,11). A opção
pelo exagero com a preocupação pelo futuro faz com que se perca o presente e a graça,
pois para Paulo é no “modo de viver”, de manter-se na graça do “ter-se-tornado”,
mantendo a presença, o saber da proclamação, pois somente por meio da fé e pela
experiência da mudança para o “ter-se-tornado” que é possível compreender e ver o
modo do Anticristo como negação do mundo compartilhado. O engano do Anticristo é o
próprio mundo, somente no saber pode ser reconhecido: “Paulo diz simplesmente:
permanecei firmes e dominai as tradições” (como modo de viver) “as quais vós tendes
experimentado” (ter-se-tornado, sabeis) (HEIDEGGER, 2010, p. 103).
Paulo apresenta a faticidade cristã originária como algo sem nenhum caráter
extraordinário, com nenhuma peculiaridade, é a vida comum que prevalece, pois após a
transformação pela realização da proclamação, a faticidade mundana permanece como
era anteriormente:
Diz Paulo que levamos o tesouro, ou seja, “a faticidade cristã” em vasos de barro.
O complexo realizador é um “saber” (1Cor 2,10), o modo em que somos chamados pela
proclamação e a revelação pessoal a um “ter-se-tornado”, de modo que “a nós Deus o
revelou pelo espírito”, portanto, o “saber” exige, por sua própria essência, “ter espírito”.
Heidegger aponta que na forma paulina não há nenhum “ser espírito”, mas sim um
“ter espírito”, “viver em espírito” ou “ser sujeito a”, mas o espírito não é parte do
homem, sendo uma propriedade adquirida na vida fática.
O ser humano mesmo torna-se Deus, o “espírito no humano” é o divino no
humano , “alma humana” é o humano nele (HEIDEGGER, 2010, p. 110). “O espírito
em Paulo é o fundamento realizador desde o qual brota o saber mesmo” (HEIDEGGER,
2010, p. 111).
Referências
BÍBLIA DE JERUSALÉM.: São Paulo, Paulus 2003.
BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas,
2010.
HEIDEGGER, Martin. Fenomenologia da vida religiosa. Tradução Enio Paulo
Giachini, Jairo Ferrandin e Renato Kirchner. Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis:
Vozes, 2010.
HEBECHE, Luiz. O escândalo de Cristo: ensaio sobre Heidegger e São Paulo.
Ijuí: Editora Unijuí, 2005.
VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso.
Rio de Janeiro: Record, 2004.