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Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 0

3
Direitos
Humanos e
Cidadania

Textos Sobre
Crianças e
Adolescentes

Organização:
Nivia Valença Barros

PROEX / UFF
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 1

362.04 Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e


2005 adolescentes / Nivia Valença-Barros (org.)

Niterói: PROEX/UFF, 2005.

1. Infância. Aspectos sociais - Brasil. I. Título


1ª edição

Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes

Publicação produzida em parceria pelo Núcleo de Direitos Humanos, Sociais


e Cidadania (NUDHESC/ESSN-UFF), Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Prote-
ção Social (NPHPS/ESSN-UFF) e Programa Oficina do Saber (CEG/PROEX-UFF)

Projetos Associados
Ética e Cidadania - Ações Mais Humanas - PROEX-UFF
Formacão de Agentes de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente -
PROEXT/SESu-MEC / PROEX-UFF
Observatório de Violação de Direitos - Hospital Universitário Antônio Pedro - CNPq
Observatório da Violência Social e Intrafamiliar Contra Criança e Adolescente na
Área da Saúde de Niterói - PIBIC-CNPq / PROPP/PROEX - UFF

Organização
Nivia Valença Barros

Colaboração
Jacques Sochaczewski

Participação das Bolsistas


Bruna dos Reis Martins (PROEXT-SESu-MEC)
Juliana Silva Souza (PIBIC-CNPq-UFF)

Apoio
FEC / PROEX / OFICINA DO SABER – UFF
SESu-MEC
COPY&GRAF – São Domingos, Niterói

Editoração
Revista MaisHumana
(21) 2629-2755
mhprojetos@vm.uff.br

Textos disponíveis em versão pdf no site www.uff.br/maishumana


Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 2

OS AUTORES

RITA DE CÁSSIA SANTOS FREITAS –- Professora Adjunta da Escola de Serviço


Social/UFF, Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social
- NPHPS/CRD/ESS/UFF, co-coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos,
Sociais e Cidadania - NUDHESC/ESS/UFF. Doutora e Mestre em Serviço Social.
JOSÉ NILTON DE SOUSA – Professor COPE/UFF. Coordenador do Programa
Oficina do Saber, pesquisador do Núcleo de Direitos Humanos, Sociais e
Cidadania - NUDHESC/ESS/UFF. Doutorando em Economia, Mestre em
Economia e graduado em Matemática.
CARLOS NICODEMOS – Advogado. Especialista em Direitos Humanos pela
Universidade Complutense de Madrid. Doutorando em Direito Penal pela
Universidade Complutense de Madrid. Professor de Direito Penal e Criminologia.
Coordenador da Escola de Direito da Unigranrio. Membro do Conselho Estadual
da Criança do Rio de Janeiro. Membro da Organização de Direitos Humanos -
Projeto Legal.
ANA RIBEIRO – Membro da Secretaria Executiva do Fórum Popular Permanente
de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do município de Niterói,
Conselheira Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente-RJ, Mestranda em
Política Social na Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense.
ELAINE FERREIRA DO NASCIMENTO – Assistente Social do Rio Mulher (PCRJ).
Doutoranda em Saúde Coletiva - IFF/FIOCRUZ, Mestre em Saúde Coletiva,
graduada em Serviço Social.
NIVIA VALENÇA BARROS – Professora da Escola de Serviço Social/UFF,
Doutora em Psicologia, Mestre em Educação, Coordenadora do Núcleo de Direitos
Humanos e Cidadania - NUDHESC/ESS/UFF e Pesuisadora do Núcleo de
Pesquisa Histórica sobre Proteção Social.
MARIA EUCHARES DE SENNA MOTTA – Doutora em Psicologia. Professora do
Departamento de Psicologia - PUC-Rio. Assessora do Núcleo de Direitos
Humanos e Cidadania - NUDHESC/ESS/UFF.
CENIRA DUARTE BRAGA – Professora da Escola de Serviço Social/UFF - Co-
Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social e Pesquisa-
dora do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania - NUDHESC/ESS/UFF.
JACQUES SOCHACZEWSKI – Jornalista, Editor da Revista Mais Humana, Mestre
em Ciência Ambiental, Pesquisador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania -
NUDHESC/ESS/UFF.
SIMONE SANT’ANNA – Advogada. Pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos
e Cidadania - NUDHESC/ESS/UFF.
SANDRA RICARDO CARNEIRO – Psicóloga. Mestranda em Política Social da
Escola de Serviço Social/UFF.
CAMILA FERNANDES PINTO – Acadêmica de Serviço Social. Pesquisadora do
Núcleo de Direitos Humanos, Sociais e Cidadania - NUDHESC - ESSN/UFF.
AMANDA SILVA ARAÚJO – Assistente Social. Pesquisadora do Núcleo de
Direitos Humanos, Sociais e Cidadania - NUDHESC - ESSN/UFF.
ALEXANDRE NASCIMENTO – Psicólogo. Conselheiro Tutelar do I Conselho
Tutelar de Niterói. Mestrando em Psicologia pela Faculdade de Psicologia UFF.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 3

Sumário

Apresentação 5

MESAS

Mesa 1: Mães em Luta - Ética e Cidadania 7

Reflexões Sobre Mães em Luta - Ética e Cidadania 8

Mesa 2: Infância e Juventude na América Latina - Formação de


Agentes de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente 10

Reflexões Sobre a Infância e Juventude na América Latina 12

Mesa 3: A Política de Atendimento Sócio-Educativo para


Adolescentes em Conflito com a Lei - Uma Questão de Direitos
Humanos 13

Reflexões Sobre A Política de Atendimento Sócio-Educativo para


Adolescentes em Conflito com a Lei 14

ARTIGOS

Panorama da Situação de Criança, Adolescente e Jovem na América


Latina 16

Ética e Solidariedade - Mães em Luta 27

Mães que Lutam: Ética e Solidariedade - Imagens e Mitos 31

Violência Contra Criança: Uma Breve História 52

A Infância e Juventude na América Latina - Formação de Agentes de


Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente 56

A Política de Atendimento Sócio-Educativo para Adolescentes em


Conflito com a Lei - Uma Questão de Direitos Humanos 64

Adolescência e Juventude: Sexualidade e Direitos Reprodutivos na


América Latina 68

Direitos Ambientais no Espaço Doméstico 70

Cidadania e Direitos da Criança e do Adolescente 74

A Importância de um Efetivo Fluxo de Atendimento após a


Identificação e Diagnóstico da Violência Doméstica Contra Crianças e
Adolescentes 81

Gravidez na Adolescência 86

O Planejamento Estratégico como Forma de Enfrentamento da


Violência Contra a Mulher e Contra Criança e Adolescente 88

Práticas do Código de Menores na Era do Estatuto da Criança e do


Adolescente: Considerações sobre a Política de Atendimento 91
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 4

Apresentação
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 5

Apresentação

A confirmação e a consolidação dos direitos da criança e do adolescente refletem o


compromisso e a responsabilidade social, tanto ao nível das políticas
governamentais quanto da participação da sociedade em geral, dos integrantes dos
movimentos sociais de defesa da infância e da adolescência e, principalmente, das
Universidades e de seus núcleos de produção acadêmica.
As violações dos direitos de crianças e adolescentes e a violência social e
intrafamiliar são formas de controle e poder construídos historicamente, reproduzi-
dos, aprendidos e confirmados nas relações estabelecidas em nossa sociedade.
Controle e poder estendem-se a vários espaços sociais. O controle social que é
estabelecido nos espaços públicos é reproduzido e/ou redefinido no espaço privado.
O crescimento da desigualdade na sociedade brasileira, não tão diferentemente de
outros contextos latino-americanos, é um aspecto perverso que causa e contribui
para as diversas formas de violações de direitos presentes na sociedade, mas não
pode ser considerado o único vetor existente.
Com a preocupação com estes contextos sociais o Núcleo de Pesquisa Histórica
sobre Proteção Social (NPHPS/ESSN-UFF), o recém-criado Núcleo de Direitos
Humanos, Sociais e Cidadania (NUDHESC/ESSN-UFF) e o Programa Oficina do
Saber (CEG/PROEX-UFF) reuniram-se, em parceria com o Fórum DCA-Niterói e
a Rede Municipal de Atenção Integral a Criança e Adolescente de Niterói com a
proposta de discutir estas questões de forma mais sistemática, aprofundada e
comprometida. Desta inter-relação e decorrente de seu debate surgiu a proposta de
organização das mesas: 1) Mães em Luta: Ética e Cidadania; 2) A Infância e
Juventude na América Latina - Formação de Agentes de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente; e 3) A Política de Atendimento Sócio-Educativo para o
Adolescente em conflito com a lei: uma questão de Direitos Humanos. E em uma
atitude um pouco mais ousada (em virtude dos recursos disponíveis) ponderamos
sobre a necessidade de democratização de informações e publicização de nossas
reflexões, do que resultam os Artigos aqui publicados. Assim, esta coletânea reflete
os estudos, pesquisa e ações de profissionais, grupos e instituições realmente
preocupados com esta séria questão que é a situação da infância, adolescência e
juventude em nosso país e em toda a América Latina. Consideramos que os debates
gerados pelas mesas, como também esta publicação, possam contribuir para os
debates sobre tais questões e para proposições de iniciativas e incorporação de
novos atores, neste cenário de defesa dos direitos humanos, sociais e de cidadania
de nossas crianças, adolescentes e jovens.

Nivia Valença Barros


Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 6

Mesas
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 7

9/11/2005 - 17h
MESA 1: MÃES EM LUTA - ÉTICA E CIDADANIA
Local: Campus do Gragoatá - Instituto de Letras, Bloco D - Sala Paulo Freire

COORDENADORA:
Vilnia Batista de Lira
Assistente Social formada pela Universidade Federal Fluminense, Mestranda do
Programa de Estudos Pós Graduados em Política Social da Escola de Serviço
Social/UFF. Em seu trabalho de Conclusão de Curso estudou o movimento de
mães que tem filhos cumprindo medidas sócio-educativas. Hoje, no mestrado dá
continuidade a esse tema.

MEDIADORA:
Prof. Dra. Rita de Cássia Santos Freitas
Professora Adjunta da Escola de Serviço Social/UFF. Teve como objeto de estudo
em seu doutorado a temática “mães em luta”, ao estudar o movimento que ficou
conhecido como as Mães de Acari.

DEBATEDORES CONVIDADOS:
Vera Lúcia Flores Leite
Representando a AMAR (Associação de Mães e Amigos de Crianças e
Adolescentes em Risco)

Maria da Conceição Andrade Paganele dos Santos


Representante do Movimento MOLEQUE (Movimento de Mães pela Legalidade
do Sistema Sócio-Educativo)

Mônica Suzana da Silva Cunha


Representante das Mães de Acari
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 8

Reflexões sobre Mães em Luta - Ética e


Cidadania
Rita de Cássia Santos Freitas

A violência é uma realidade de nosso dia-a-dia. Ela atinge os mais variados estratos
sociais, sem discriminação de gênero, raça/etnia ou idade. Porém, não se pode
negar que atinge de forma devastadora as camadas mais populares – e mais
carentes – de nossa sociedade. Não se pode dizer que a violência seja algo
essencial à natureza humana, mas não podemos negar que faz parte de nossa
sociedade e temos que, de alguma forma, construir maneiras de lidar com ela. O
tema desta mesa aponta algumas maneiras que a sociedade conseguiu estabelecer
para lidar com essa violência. Estamos trazendo para o debate dentro da
universidade algumas mulheres que – repudiando um destino de classe e gênero –
construíram formas de enfrentamento à violência sofrida por elas.
O massacre de Acari iniciou os anos 90, quando em julho deste ano, 11 jovens
foram seqüestrados e até hoje não se sabe o que aconteceu com eles. Desaparecidos
– mas até quando? Mortos? Mas onde estão seus corpos? Foi na tentativa de buscar
saber o que aconteceu com seus filhos – mesmo que fosse das suas mortes (mas
enfim ter um corpo para enterrar) – que essas mulheres se organizaram e
protagonizaram um movimento que alcançou repercussão internacional. O objetivo
de suas lutas é saber o que aconteceu (quem sabe até encontrar?) com seus filhos.
Nessa luta, seus objetivos se expandiram e hoje continuam na luta, pelos seus
filhos, pelas inúmeras crianças que desaparecem cotidianamente, contra a
impunidade, pela justiça, para que coisas como essas não mais aconteçam com os
filhos de qualquer mulher. As Mães de Acari são, hoje, presença constante nos
movimentos contra a violência e pelos direitos humanos.
O Brasil possui um Sistema de Atendimento Socioeducativo para auxiliar crianças
e adolescentes em conflito com a lei. Entretanto, o dia-a-dia das unidades onde se
encontram esses jovens é marcado por rebeliões e denúncias de maus tratos,
revelando a falência dos modelos de tratamento e de instalação propostos pela
instituição. A Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco
(AMAR) surge em São Paulo em 2000 e possui um papel de fiscalização e de
mediação entre as instituições de atendimento sócio-educativo, as crianças e suas
famílias a partir do fortalecimento social e político das mães dos internos. A
AMAR promove também ações judiciais, individuais ou coletivas, que buscam
compensações financeiras para jovens prejudicados pelo sistema, assim como a
fiscalização e fechamento de unidades de internação sem condições adequadas de
funcionamento.
A experiência de ter um filho cumprindo uma medida sócio-educativa não é uma
experiência nada agradável para nenhuma mãe. Porém, o cotidiano das instituições
de atendimento a jovens cumprindo esse tipo de medida é uma realidade
assustadora. Foi a partir dessa constatação e do entendimento que seus filhos –
mesmo que tenham estado em conflito com a lei – não deixam de serem cidadãos e,
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 9

portanto, devem ter os seus direitos respeitados que algumas mulheres se


organizaram e criaram, no Rio de Janeiro, em 2003, o Movimento MOLEQUE.
Nessas lutas, buscam construir mediações e práticas mais humanas dentro dessas
instituições, assim como têm a preocupação de estar capacitando outras mães para
que estas não desconheçam seus direitos e o de seus filhos.
A idéia dessa mesa surge a partir de nosso entendimento de que, cada vez mais, as
mulheres estão saindo do que seriam os seus papéis tradicionais de gênero e de
seus espaços no mundo privado para adentrarem no mundo público. O crescimento
da violência em nossa sociedade tem contribuído nesse sentido. Nossas pesquisas
nessa área se iniciaram ainda nos anos 90, ao estudar as mulheres que ficaram
conhecidas como as Mães de Acari. Prosseguem nos anos 2000, conhecendo outras
mulheres que, a partir da violência sofrida por seus filhos, partem para um
movimento de contestação e de busca por um mundo melhor. Essa mesa traz
alguns exemplos dessas lutas.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 10

10/11/2005 – 14h
MESA 2: INFÂNCIA E JUVENTUDE NA AMÉRICA LATINA -
FORMAÇÃO DE AGENTES DE DEFESA DOS DIREITOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Local: Campus do Gragoatá - Instituto de Letras, Bloco B - Auditório Ismael Coutinho

COORDENADORA:
Prof. Dra. Nivia Valença Barros
Professora Adjunta da Escola de Serviço Social - UFF. Doutora em Educação,
Mestre em Serviço Social, Graduada em Serviço Social. Coordenadora do Núcleo
de Direitos Humanos, Sociais e Cidadania - NUDHESC/ESSN/UFF. Pesquisadora
do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social - NPHPS/CRD- ESN/UFF.
Coordenadora do Projeto Formação de Agentes de Defesa dos Direitos da Criança
e do Adolescente - SESu/MEC/PROEX/UFF.

MEDIADORA:
Prof. Dra. Deise Gonçalves Nunes
Professora Adjunta da Escola de Serviço Social – UFF. Doutora em Psicologia,
Mestre em Educação, Graduada em Serviço Social. Coordenadora do Núcleo de
Pesquisa e Extensão sobre Poder Local, Políticas Públicas e Serviço Social da
Escola de Serviço Social - UFF

TEMAS E DEBATEDORES CONVIDADOS:

TEMA 1:
Passado partilhado, futuro deslumbrado. Perspectivas educacionais
na América Latina
Maria Euchares de Senna Motta
Professora do Departamento de Psicologia - PUC-Rio. Pesquisadora do Projeto
Formação de Agentes de Defesa dos Direitos da Criança e adolescente. Doutorado
em Psicologia (Psicologia Clínica). PUC-RJ, 1987. Mestrado em Psicologia
Experimental. University of Kansas, KU, Estados Unidos. 1972. Graduação em
Formação de Psicólogos. PUC-RJ, 1965.

TEMA 2:
Análise da questão dos direitos humanos e sociais de crianças,
adolescentes e jovens na América Latina na contemporaneidade
Carlos Nicodemos
Professor Adjunto e Coordenador da Escola de Direito da Universidade do Grande
Rio, UNIGRANRIO. Doutorado em Criminologia pela Universidad Complutense
de Madrid, U.C.M., Espanha. 2003. Especialização em Direito Penal. Universidade
de Salamanca, SALAMANCA, Espanha. 1999. Especialização em Direitos
Humanos. Universidad Complutense de Madrid, U.C.M., Espanha. 1999.
Especialização em Docência para o Ensino Superior. Faculdade Bittencourt da
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 11

Silva, BITTENCOURT, Brasil. 1996. Graduação em Direito. Universidade Gama


Filho, 1990.

TEMA 3:
Reflexões sobre a violência doméstica contra criança e adolescente
na América Latina
Hebe Gonçalves Signorine
Psicóloga da UFRJ e pesquisadora do NIPIAC/UFRJ. Doutorado em Psicologia
(Psicologia Clínica). PUC-RJ, 2001. Mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica).
PUC-RJ, 1993. Especialização em Violência Doméstica Contra Crianças e
Adolescentes. USP, 1997. Especialização em Psicologia Jurídica. UERJ, 1990.
Graduação em Psicologia. USP, 1975.

TEMA 4:
Adolescência e Juventude: Sexualidade e Direitos Reprodutivos na
América Latina
Elaine Ferreira do Nascimento
Doutoranda em Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher. Instituto
Fernandes Figueira Fundação Oswaldo Cruz, IFF/FIOCRUZ. Mestrado em Pós-
Graduação em Saúde da Criança e da Mulher. IFF/FIOCRUZ, 2002.
Especialização em Serviço Social e Política Social. Universidade de Brasília, UNB,
2001. Aperfeiçoamento em Educação e Saúde. Fundação Oswaldo Cruz,
FIOCRUZ, 1999. Graduação em Serviço Social. Universidade Federal Fluminense,
UFF, 1997.

TEMA 5:
O Estatuto da Criança e do Adolescente e a doutrina da Proteção de
Integral - novos paradigmas para a infância e adolescência
Alexandre Nascimento
Conselheiro Tutelar do I Conselho Tutelar de Niterói, psicólogo. Mestrando em
Psicologia pela Faculdade de Psicologia UFF, graduado em Psicologia - UFF.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 12

Reflexões sobre a Infância e Juventude na


América Latina
Nivia Valença Barros

A América Latina se caracteriza por seu pluralismo e multiculturalismo em sua


formação societária. Contraditoriamente, esta pluralidade e o caráter de
diversidades presentes nesta formação sócio-cultural se contrapõem e interage com
intensas desigualdades sócio-econômicas e crescentes ênfase na homogeneização e
padronização cultural. Neste contexto de desigualdades as crianças, adolescentes e
jovens são os principais sujeitos sociais a sofrerem com tal estrutural societária que
tem expressivos indicadores de pobreza e de violëncia. Segundo Bernardo
Kliksberg1 (2005), coordenador geral da Iniciativa Interamericana de Capital
Social, Ética e Desenvolvimento do Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID): “Na América Latina 58% das crianças menores de 5 anos são pobres e 190
mil crianças morrem ao ano vítimas de enfermidades ligadas à pobreza, pela
exclusão social e desrespeito aos direitos humanos e sociais”. Uma das principais
conclusões da mais de 250 especialistas da região latino-americana reunião para a
Consulta para a América Latina sobre Violência contra as Crianças (Buenos Aires -
30 de maio a 1 de junho) que a família e as instituições do Estado são os principais
espaços nos quais as crianças e os adolescentes latino-americanos vivem situações
de violência. “A consolidação das democracias na América Latina só será possível
se as crianças da região forem educadas dentro do respeito, da liberdade e da não-
violência, sendo protegidas contra qualquer violação de seus direitos”, declarou
Paulo Sergio Pinheiro, especialista independente responsável por coordenar o
Estudo mundial sobre violência contra a infância2. E declaracoes3 recentes afirma-
se que a América Latina é uma das regiões mais violentas do mundo e as crianças,
os adolescentes e as mulheres são as principais vítimas.
Assim, a proposta desta mesa e contribuir para a visibilidade das questões
referentes à infância, adolescência e juventude, entre elas a violência, pois estas
têm saído da obscuridade, e passam cada vez mais a chamar a atenção de
profissionais, de grupos e da sociedade civil e torna-se hoje, um tema a ser tratado
em termos de políticas sociais, pois segundo Wieviorka4 (1997:36), a violência
deve ser pensada a partir do político, pois ela está situada no cruzamento do social,
do político e do cultural.

1
Rede Andi América Latina – 19/11/2004.
2
http://www.scslat.org/news/por/noticias.php?_cod_146 Acesso em 29 de outubro de 2005.
3
Declaração de Buenos Aires, maio de 2005.
4
WIEVIORKA, M., O novo paradigma da violência. Tempo Social, 9, 1997.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 13

10/11/2005 – 16h30min
MESA 3: A POLÍTICA DE ATENDIMENTO SÓCIO-EDUCATIVO PARA
ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI - UMA
QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS
Local: Campus do Gragoatá - Instituto de Letras, Bloco B - Auditório Macunaíma

COORDENADORA:
Ana Ribeiro
Membro da Secretaria Executiva do Fórum DCA Niterói - Fórum Popular
Permanente de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do município de
Niterói. Conselheira Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente. Mestranda
em Política Social na Escola de Serviço Social da UFF.

MEDIADORA:
Dra. Nívia Valença Barros
Núcleo de Direitos Humanos, Sociais e Cidadania - NUDHESC - Escola de
Serviço Social / UFF - Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social -
NPHPS - Escola de Serviço Social / UFF.

DEBATEDORES CONVIDADOS:
Dr. Paulo Marques
Coordenador Geral da Subsecretaria de Direitos Humanos e da Subsecretaria de
Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente

Dr. Evandro Steele


Secretário de Estado da Infância e Juventude - RJ

Dra. Eliana Athayde


Coordenadora da Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente

Prof. Tiana Sento Sé


Presidente do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente - RJ

Dr. Leonardo Brandão


Subsecretário dos Direitos Humanos do Município de Niterói
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 14

Reflexões sobre a Política de Atendimento


Sócio-educativo para Adolescentes
em Conflito com a Lei
Ana Ribeiro

Quinze anos após a promulgação da Lei Federal 8069/90 – Estatuto da Criança e


do Adolescente - ECA, a oferta irregular de programas de atendimento sócio-
educativo em meio aberto para os adolescentes em conflito com a lei (autor de ato
infracional e/ou aquele a quem se atribui autoria de ato infracional) tem sido
invocada para a aplicação imediata de medida sócio-educativa de privação de
liberdade, não conferindo o desenvolvimento de uma ação sócio-educativa
sustentada pelos princípios dos Direitos Humanos defendidos pelo ECA.
Esta mesa tem como poposta debater a situação atual das políticas públicas
direcionadas para o adolescente em conflito com a lei, no que diz respeito às
atribuições das instâncias envolvidas no processo de execução das medidas sócio-
educativas especialmente em relação à municipalização das ações e a insuficiência
de programas de formação continuada para o atendimento especializado ao
adolescente cumprindo medidas sócio-educativas e aos seus familiares.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 15

Artigos
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 16

Panorama da Situação de Criança, Adolescente


e Jovem na América Latina
Nivia Valença Barros

As questões inerentes ao processo de violação de direitos e da violência contra


criança e adolescente no Brasil e em toda América Latina implicam-se diretamente
aos contextos situacionais, culturais e socioeconômicos da ordenação societária
extremamente desigual e excludente latino-americana. Quem mais tem sido
penalizada com estas condições é a população infanto-juvenil, cuja
representatividade populacional, entre outros fatores relevantes, mereceria um
olhar especial, pois na “América Latina y el Caribe viven alrededor de 200
millones de personas menores de 18 años, que representan aproximadamente un
35% de la población” (ONU, 2003), mas 82 milhões destas crianças entre 0 a 12
anos e 36 milhões de adolescentes entre 13 e 19 anos são extremamente afetados
pela miséria e pobreza1. “A América Latina é considerada a região do mundo de
maiores desigualdades sociais e econômicas, onde a pobreza e a indigência não
diminuíram apesar do acúmulo de planos e programas implementados para
combatê-las” (SOUZA, 2001: 1).
As desigualdades sociais são apontadas no relatório “Situação Mundial da Infância
2005” publicado pelo Unicef, que relata que “entre os países da América do Sul, a
população do Brasil é apontada como mais pobre que a de Chile, Guiana, Uruguai
e Argentina, e empata com a Colômbia. Países com maior percentual de população
pobre, segundo os critérios internacionais, seriam Bolívia, Paraguai, Venezuela,
Equador e Peru”, o que pode ser melhor visualizado no quadro apresentado neste
relatório.

1
CEPAL, 2005.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 17

Gráfico 1

Fonte: Unicef - Relatório da Situação Mundial da Infância 2005

Ainda segundo este relatório, os índices de mortalidade infantil no primeiro ano de


vida são bastante contundentes, sendo a terceira mais alta da América do Sul. “Em
países vizinhos com menor renda per capita, como Colômbia e Venezuela, 18 em
cada mil crianças morrem antes de completar um ano de vida”. Este dado também
pode ser melhor configurado pelo quadro a seguir:

Gráfico 2

A taxa de mortalidade
de menores de um ano
de idade no Brasil é a
terceira mais alta da
América do Sul.

Fonte: Unicef - Relatório da Situação Mundial da Infância 2005

As violações dos direitos das crianças, dos adolescentes e dos jovens fazem parte
de uma cruel história sócio-político-cultural de toda a humanidade, mas os aspectos
de complexidade e multiplicidade que a violência passou a manifestar de forma
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 18

mais disseminada, banalizada e naturalizada assumem características das mais


perversas na atualidade. De forma mais expressa, somente a partir dos anos 1990
foi dada maior visibilidade aos altos indicadores de morbi-mortalidade que sofre a
população infanto-juvenil, e, de forma geral, a violência passou a ser tema da
agenda da Saúde Pública2.
É inegável, diversos estudos e pesquisas demonstram o fato que a violência contra
criança e adolescente tem sido uma prática constante e conforma-se em múltiplas
expressões através da história de nossa sociedade, mas consideramos que este
processo é uma construção sócio-histórico-cultural que caracteriza o contexto
político, econômico, social e cultural de identificação das relações societárias.
Tais contextos desiguais e de violações de direitos são percebidos em diversas
áreas cuja exploração comercial e sexual é cotidianamente denunciada.
“Atualmente, nos países da América Latina existe um total de 19,7 milhões de
jovens entre 5 e 17 anos que participam de atividades econômicas, o que representa
14,7% dos 133,7 milhões de meninos e meninas que moram na região” (Rede
Andi, 2005). Em termos de exploração sexual, esta “pode ser explicada a partir de
quatro eixos fundamentais: classe social, gênero, etnia e relação adultocêntrica”
(SAFFIOTI, 1995). Segundo matéria publicada pela Folha On-line de 31 de janeiro
de 2005, tendo como base o relatório sobre prostituição infantil produzido pela
ONU, “em 2001, o Brasil ocupa o primeiro lugar em exploração sexual na América
Latina e o segundo no mundo. De acordo com o relatório, existem no país mais de
500 mil meninas e meninos que se prostituem”.

“A desigualdade estrutural da sociedade brasileira é constituída não só pela


dominação de classes, como de gênero e de raça. É também marcada pelo
autoritarismo nas relações adulto/criança. A criança e o adolescente não têm
sido considerados sujeitos, mas objeto da dominação dos adultos, tanto
através da exploração de seu corpo no trabalho, quanto de seu sexo e da sua
submissão. As relações dominantes de gênero e de raça, por sua vez, se
evidenciam pelo fato de que a grande maioria das vítimas de exploração
sexual é do sexo feminino, negras e mulatas”. (CECRIA, 1999)

Ao se tratar de exploração sexual comercial de crianças e de adolescentes, é


bastante pertinente a categorização efetuada no Relatório 1999 desenvolvido pelo
CECRIA, que analisa esta questão por quatro modalidades: prostituição infantil,
pornografia, turismo sexual e tráfico, ressaltando que estas se expressam de
diferentes formas na América Latina.

“A exploração sexual se define como uma violência contra crianças e


adolescentes, que se contextualiza em função da cultura (do uso do corpo), do
padrão ético e legal, do trabalho e do mercado. É uma relação de poder e de
sexualidade, mercantilizada, que visa a obtenção de proveitos por adultos,
que causa danos bio-psico-sociais aos explorados que são pessoas em
processo de desenvolvimento. (...) A prostituição é uma forma de exploração
sexual comercial, ainda que seja uma opção voluntária da pessoa que está

2
Em 1994, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) reconheceu como prioridade a violência
social e doméstica para a elaboração do seu plano de ação regional, Desde então, solicita que os
governos efetivem ações preventivas em relação às violências (1993).
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 19

nesta situação. As crianças e adolescentes por estarem submetidos às


condições de vulnerabilidade e risco social são consideradas prostituídas(os)
e não prostitutas(os). (...) Atualmente, a pornografia infantil é definida como
todo material áudio-visual utilizando crianças num contexto sexual, ou,
segundo a INTERPOL a representação visual da exploração sexual de uma
criança, concentrada na atividade sexual e nas partes genitais dessa criança. É
uma exposição sexual de imagens de crianças incluindo fotografias de sexo
explícito, negativos, projeções, revistas, filmes, vídeos e discos de
computadores. (...) Turismo sexual é a exploração de crianças e adolescentes
por visitantes, em geral, procedentes de países desenvolvidos ou mesmo
turistas do próprio país, envolvendo a cumplicidade, por ação direta ou
omissão de agências de viagem e guias turísticos, hotéis, bares, lanchonetes,
restaurantes e barracas de praia, garçons e porteiros, postos de gasolina,
caminhoneiros e taxistas, prostíbulos e casas de massagens, além da
tradicional cafetina-gem. O tráfico é a promoção da saída ou entrada de
crianças/adolescentes do Território Nacional para fins de prostituição.
(CECRIA, 1999)

Em termos gerais de violações de direitos e violência contra criança e adolescente,


o quadro levantado através de informações obtidas na REDE ANDI – AMÉRICA
LATINA, Resenha América Latina – Infância e Adolescência na Mídia, apresenta
um panorama bastante representativo de diversos países latino-americanos, como
se vê a seguir:

PAÍS CONTEXTO SITUACIONAL LATINO-AMERICANO


ARGENTINA - 60% dos que concluem o ensino médio não conseguem ir para a
universidade, somente um em cada quatro consegue cumprir esse
objetivo.
- Dos 12 milhões de crianças e adolescentes - 35% da população, sete
de cada 10 crianças são pobres, situação que piora no Norte e
Nordeste: três em cada quatro estão nessa situação, e um de cada
três é indigente.
- Quase dois milhões de meninos e meninas com menos de 15 anos
são obrigados a trabalhar e mais da metade (58,2%) dos adolescentes
de 13 a 17 anos que trabalham não freqüentam a escola.
- Do total de 600 mil nascimentos registrados anualmente na Argentina,
um em cada seis corresponde a mulheres com idades entre 15 e 19
anos.
- A taxa de mortalidade materna durante o parto e a gravidez é de 1,2
para cada 10 mil casos na Cidade de Buenos Aires, enquanto que no
Noroeste e Nordeste é de mais de 8 para cada 10 mil.
- Cerca de 2,5 milhões de pessoas na Argentina sofrem do mal de
Chagas, dentre as quais 6,1% são grávidas e mais de 30 mil são
menores de 15 anos.
- Um estudo realizado no Serviço de Adolescência do Hospital Argerich,
da cidade de Buenos Aires, com mais de 200 meninas de classe
média-baixa e baixa de 13 a 16 anos de idade, concluiu que cerca da
metade dessas adolescentes começou a sua vida sexual sob algum
tipo de pressão ou coerção. Do total, 12,4% das meninas mencionram
a existência de violação ou abuso em sua primeira relação sexual;
10,1%, pressão do parceiro; e 5,6% disseram que foram convencidas
pelo namorado.
BOLÍVIA - Maior taxa de mortalidade materna na América Latina e Caribe.
Morrem por dia duas mulheres por complicações ao longo da gravidez,
durante ou depois do parto e por aborto induzido.
- Mais de 100 mil crianças em idade escolar não têm acesso à
educação, a maioria é adolescente de 13 anos (34.028) e a minoria,
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 20

crianças de nove anos (7.221).


- Discriminação – as meninas da área rural permanecem somente 4
anos na escola e de forma descontinuada. Os meninos conseguem
terminar o nível médio. 39,3% das mulheres bolivianas em 2001 não
tinham nenhum nível de instrução.
- Pessoas com deficiências são rejeitadas pela família, estes podem ser
órfãos, abandonados pelos próprios pais ou familiares, o que
demonstra que as pessoas com deficiências são discriminadas pelo
seu meio familiar.
BRASIL - 2,7 milhões de crianças com idade entre 5 e 16 anos trabalham
ilegalmente
- Quase um milhão de crianças e adolescentes estão fora da escola
porque trabalham.
- O período de maior vulnerabilidade às situações violentas e adversas
consiste na faixa-etária de 12 a 14 anos. São registrados os maiores
índices de evasão escolar, trabalho infantil e ingresso em redes de
exploração sexual, pedofilia e tráfico de drogas, entre outras violações
de direitos.
- O homicídio é a incidência da mais grave violação dos direitos infanto-
juvenis.
- Os óbitos subiram de 3,9 para cada 100 mil habitantes, em 1990, para
7,1 em 2002 (dado mais atual disponível).
- Cerca de 16 crianças e adolescentes são assassinados por dia.
- Há quase duas mortes de negros e pardos para cada homicídio
praticado contra brancos entre 15 e 18 anos. A proporção é de 1,7
para 1.
- A mortalidade afrodescendente, entre 15 e 18 anos, é 70% maior do
que a de brancos.
- Os afrodescendentes compõem 46,1% da população e os brancos
perfazem 53,3%.
- Em 2000, morreram 3 mil negros e pardos contra 1,8 mil indivíduos de
cor branca da mesma idade.
- Menos de 3% dos homicídios dolosos e menos de 10% dos atos
criminosos registrados no estado são cometidos por adolescentes.
- A desigualdade social está entre as maiores causas da violência entre
jovens no Brasil.
CHILE - Possui os melhores indicadores sociais em comparação com os outros
países latino-americanos.
- Existem mais de 64 mil jovens com idade entre 12 e 17 anos
trabalhando, sobretudo nas áreas rurais, o que contribui para a evasão
e o abandono escolar.
COLÔMBIA - Alta taxa de mortalidade materna, com 71,4 óbitos para cada grupo de
100 mil nascimentos.
- Mais de um milhão de crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17
anos trabalham.
- A média de estudo da população infanto-juvenil continua precária, de
3,7 anos para as meninas e de 3,8 entre os meninos.
- Ocupa os primeiros postos na América Latina em violência infantil.
- Têm aumentado os casos de abuso sexual. A Colômbia ocupa os
primeiros postos na América Latina em violência infantil.
- Existem, no país, cerca de 30 mil crianças que passam a maior parte
do tempo nas ruas.
- São 2 milhões de crianças que trabalham na Colômbia.
- Em média, chegam ao HUV seis crianças por mês que foram
abusadas sexualmente. Em muitas ocasiões, os agressores são os
pais, tios, primos ou irmãos. As idades das crianças que são atendidas
variam dos 2 aos 15 anos de idade.
- Aumentam os casos de crianças abandonadas
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 21

- O número de crianças abandonadas pelos pais cresceu 80% no último ano.


- A maioria das mães decide abandonar os seus filhos porque foram
vitimas de abuso sexual, vivem em estado de pobreza, estão sob
dependência química ou simplesmente não estão interessadas em ser
mães. A maioria é adolescente entre 12 e 18 anos ou mulheres com
mais de 40 anos que foram abandonadas pelo pai da criança.
- Elevados casos de homicídio e abandono de bebês. As crianças estão
consumindo bebidas alcoólicas, a partir dos 10 ou 11 anos, inicialmente
por curiosidade, mas entre os 12 e 13 anos passam a ingerir álcool com
mais freqüência, a tal ponto que há casos de abuso de consumo,
- As drogas ilícitas também fazem parte do gosto do adolescente, porém
em proporções muito menores, não superando os 4%.
EQUADOR - São 4,8 milhões de meninos e meninas que vivem na pobreza.
- 90% das crianças indígenas e afrodescendentes vivem na pobreza e
apenas 39% completam a educação fundamental, contra 76% dos
outros grupos.
- 430 mil jovens com idade entre 5 e 17 anos trabalham.
- A desnutrição afeta 15% das crianças com menos de 5 anos.
- Meninos e meninas têm acesso igual à escola, mas indígenas e
afrodescendentes, não.
GUATEMALA - As crianças indígenas são as mais prejudicadas.
- Da população indígena, 67% dos meninos e meninas sofrem de
desnutrição crônica.
- A mortalidade infantil entre os indígenas é de 46 óbitos por mil
nascidos vivos, enquanto a média nacional é de 40 por mil.
- Em algumas comunidades, a mortalidade materna das índias chega a
192 mortes por grupo de 100 mil nascimentos, contra 89 por 100 mil
no resto do país.
- Nas áreas urbanas 5 de cada 10 estudantes completam a educação
primária, enquanto somente 2 de cada 10 o fazem na zona rural,
sendo que as crianças do campo representam 60% da população
escolar da Guatemala.
NICARÁGUA - Terceiro país mais pobre das Américas.
- 53% de sua população de 5,1 milhões de habitantes é composta por
menores de 18 anos.
- Mais de 167 mil crianças e adolescentes trabalham.
- Uma de cada três crianças sofre de desnutrição crônica.
- Alta mortalidade materna, com 150 mortes a cada grupo de 100 mil
nascimentos.
PARAGUAI - A desnutrição crônica afeta 35 mil crianças.
- Encontram-se desnutridas 25 mil crianças e 10 mil grávidas no país.
- O segmento infanto-juvenil representa 48,2% da população.
- Da população de jovens com 15 a 19 anos, 42,7% (246.520 pessoas)
não tinham acesso à educação formal em 2002. E nesta faixa etária,
havia 14.965 analfabetos. Entre 10 a 14 anos, eram 27.376 crianças
nesta situação e mais de 164 mil crianças com até 9 anos (12,9% do
total nesta faixa etária) não tinham registro civil de nascimento.
- Três de cada cinco estudantes de 15 a 29 anos não concluem a
educação fundamental; 11,7% dos jovens estão desempregados,
32,5% sub-ocupados; e 4,5% são analfabetos.
PERU - Altos índices de desemprego e de pobreza.
- Os segmentos mais vulneráveis são as crianças e os adolescentes.
- Dos 3,8 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza, criança e
adolescente são 2,1 milhões.
VENEZUELA - Crianças começam cedo o uso de drogas, a partir de dez anos estão
adotando esta prática. A droga não respeita a condição social nem
discrimina o sexo da pessoa.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 22

- Das crianças em situação de rua, 199 (53,9%) eram de rua, excluídos


da família, da escola, da comunidade, e seus vínculos familiares estão
quebrados devido à instabilidade em seus lares. 152 (41,1%)
encontravam-se na rua: passam o dia na rua, mas mantêm laços
familiares. 8 em cada 10 são adolescentes (de 12 a 17 anos), estão na
rua, e 37,3% têm menos de 11 anos.
- 60,1% da população vivem em situação de pobreza e 30,8% são
crianças com idade entre 0 e 9 anos.
- 652 mil crianças não têm acesso à educação pré-escolar; 142 mil não
têm a educação básica e 361 mil jovens são privados do ensino
médio.
- É o primeiro país do mundo no ranking de mortes por armas de fogo,
com 34 mortes por 100 mil habitantes.

Diante deste panorama bastante significativo deve-se tomar cuidado para que as
próprias desigualdades sociais não sejam a forma encontrada para criminalizar as
camadas mais pobres de nossa sociedade latino-americana. É das mais perversas a
associação de pobreza com violência. As noções das violências como derivadas
diretamente da população pobre são amplamente divulgadas em nossa sociedade,
num processo que constitui uma dupla violência: já punidas pelas violências
geradas pela própria pobreza, as camadas pobres de nossa sociedade sofrem por
serem consideradas “classes perigosas”3. Soares (2004) acredita ser preciso
reconhecer que há laços prováveis entre determi-nadas realidades que,
“conseqüentemente, tendem a conviver (ou seja, quando encontrarmos uma delas,
será mais provável que encontremos as demais)”. Estas consonâncias são mais
facilmente evidenciadas em situações de:

“(a) pobreza; (b) menor escolaridade; (c) menor acesso a oportunidades de


trabalho; (d) maior chance de sofrer o desemprego e o desamparo econômico
e social; (e) angústia e insegurança; (f) depressão da auto-estima; (g) alcoo-
lismo; (h) violência doméstica; (i) geração de ambiente propício ao absente-
ísmo, à desatenção e à rejeição dos filhos; (j) vivência da rejeição na infância,
o que fragiliza o desenvolvimento psicológico, emocional e cognitivo, re-
baixa a auto-estima, estilhaça as imagens fami-liares que serviriam de
referência positiva na construção da identidade e na absorção de valores
positivos da sociedade; (l) crianças e adolescentes com esse histórico tendem
a apresentar maior propensão a experimentar deficiências de aprendizado
(tanto por razões psicológicas quanto pelo fato de que as limitações
econômicas dos pais impedem a oferta de acesso a escolas mais qualificadas,
inclusive para lidar com essas deficiências e para estimular os alunos,
valorizando-os); (m) dificuldades na família, na escola e pressão para o
ingresso precoce no mercado de trabalho (mesmo que seja por uma
participação intermitente e informal) tendem a precipitar o abandono da
escola, sobretudo no contexto de desconforto e inadaptação, e de falta de
motivação; (n) a saída da escola reduz as chances de acesso a empregos e
amplia a probabilidade de que o círculo da pobreza se reproduza por mais
uma geração; (o) configurando-se este quadro, aumentam as probabilidades
de que o adolescente experimente a degradação da auto-estima,
especialmente se considerarmos o contexto social e cultural em que
prosperam os preconceitos, o padrão da dupla-mensagem e as artimanhas da
invisibilização.” (SOARES, 2004: 139)

3
Ver: Zaluar (1997), Rua (1998), Wacquant (2001), Castro & Abramovay (2002).
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 23

As representações sociais da população pobre enquanto “classe perigosa”


expressam a singularidade dos espaços sociais no processo de reprodução social,
espaço onde a miséria e a ausência das garantias de cidadania são peculiares,
acrescidas da negação dos padrões próprios culturais e das estratégias de
sobrevivência desenvolvidas. A demonização da família enquanto espaço restrito
da violência contra crianças e adolescentes recai sobre as famílias pobres da
sociedade, que passam a ser destacadas como principais focos de violência
doméstica, ocasionando a punição dos pobres como “nova tecnologia de gestão da
miséria nas sociedades desenvolvidas” (Wacquant, 2001: 6) e ganhando expressão
também nas sociedades menos desenvolvidas. Wacquant (2001) enfatiza que as
elites do Estado, “tendo se convertido à ideologia do mercado-total vinda dos
Estados Unidos”, reforçam prisões e reduzem a segurança à mera dimensão
criminal, política ainda mais funesta quando aplicada em países “ao mesmo tempo
atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e
desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os
choques causados pela mutação do trabalho”.
A história brasileira, como também a de diversos paises latino-americanos, é
marcada por chacinas, extermínio, desigualdade social e miséria. As violências
constituem uma realidade que atravessa classes, porém, principalmente a violência
social explicita seu cunho de classe pelas expressões e pelas formas como atinge as
classes trabalhadoras. Fica, então, claramente definido que se trata de uma
realidade que atinge drasticamente os menos favorecidos, os pobres, os negros, as
crianças e adolescentes, as gentes simples.

“Houve uma impressionante evolução da mortalidade por causas violentas


desde o início da década de 80, quando essas ocupavam o quarto lugar no perfil
geral dos óbitos, passando ao segundo lugar, a partir de 1989. Hoje elas só
perdem para as doenças do aparelho circulatório” (Minayo & Souza: 1999).

Os assassinatos no Brasil e em vários países da América Latina são uma violência


que atinge, sobretudo, os jovens pobres e negros. No Brasil já existe um déficit de
jovens do sexo masculino na estrutura demográfica brasileira, déficit similar
apenas aos de sociedades em guerra (Soares, 2004: 104). São tantas as
vulnerabilidades experimentadas pelos jovens brasileiros que se fala em uma “crise
dos jovens”4. Tal afirmação é confirmada pelos dados obtidos junto aos indicadores
sociais5. Estes apontam que, à medida que o segmento jovem representava, em
2002, 19,5% da população, situava-se também como 47,7% do total de
desempregados, 19,6% dos pobres do país; 40% do total de óbitos por homicídios
ocorreram entre a população de 15 a 24 anos. Com isso, aproximadamente 4% dos
jovens do sexo masculino não completaram 25 anos. Segundo a OMS (2002: 3), a
violência está entre as principais causas de morte de pessoas na faixa etária de 15 a
44 anos, em todo o mundo.

4
Ver: Camarano et al. (2004: 6)
5
Camarano (2004: 6).
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 24

Homicídios com armas de fogo são a forma mais relevante de mortalidade entre a
população de jovens, como também o meio mais freqüentemente utilizado,
incluindo-se acidentes, homicídios e suicídios. A Venezuela ocupa o primeiro e o
segundo lugar em mortes por armas de fogo, segundo dados do BID, 2005.
São fatores determinantes para a violência nas últimas décadas e o aumento
considerável de morbi-mortalidade por causa externas: a vulnerabilidade social de
grandes camadas sociais; as desigualdades socioeconômicas; os baixos salários e as
deficitárias rendas familiares que levam à perda de poder aquisitivo; a ausência de
políticas públicas integradas e condizentes com as necessidades da população em
relação a saúde, falta de condições educacionais, falta de condição de moradia e de
segurança; a prioridade para o desenvolvimento econômico em detrimento do social,
com sacrifício da população e maior ônus para os pobres; o intenso apelo ao
consumo, conflitando com o empobrecimento do país.

“Em 1995, o Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde


(Claves/Ensp/Fiocruz) levantou a produção nacional sobre o tema no país
[violência]. Numa revisão bibliográfica quase exaustiva, encontrou que 85%
de todo o acervo intelectual sobre o assunto no Brasil havia sido escrito a
partir da década de 80, intensificando-se no final da mesma, evidenciando o
fato de que a violência havia se tornado um tema relevante para a consciência
nacional. Mais que isso, porém, os dados epidemiológicos vieram corroborar
a preocupação mostrando que no final da mesma década [1990] a violência
(nomeada na Classificação Internacional das Doenças - CID - como ‘causas
externas’) havia se constituído na segunda causa de mortalidade no país,
apenas abaixo das doenças cardiovasculares. E no caso da população de 5 a
49 anos, as causas externas, desde então, passaram a ocupar o primeiro lugar
no obituário geral. Essa mudança, que significou, sobretudo para a juventude,
a troca de posição com as doenças infecciosas e parasitárias (que
apresentaram uma sensível queda desde os anos 60), vem preocupando as
autoridades públicas, os estudiosos e a sociedade em geral. A violência
enquanto manifestação concreta de mortes, lesões, perdas, sofrimentos,
medos e angústias tornou-se parte inseparável de nosso drama social.”
(MINAYO, 1999: 7)

Os trabalhos de Minayo & Souza (1999) apontam a violência como um fenômeno


complexo, multifacetado e resultante de múltiplas determinações. Portanto,
violências não se reduzem à criminalidade e, somente a questões estruturais sócio-
econômicas, como também diferentes tipologias de violência não constituem
processos exclusivos e excludentes entre si. As diversas modalidades e expressões
de violências podem estar entrelaçadas a outras configurações, e um único ato
violento pode produzir outros tipos de danos. A violência, neste sentido, pode
corresponder a “qualquer ação intencional realizada por indivíduo ou grupo,
dirigida a outro, que resulte em óbito, danos físicos, psicológicos e/ou sociais”
(Franco, 1990).
Neste aspecto vale ressaltar a categoria de intencionalidade, pois se apresenta
como um modo de subjetivação que nem sempre pode ser considerado, apenas,
pelos fatos físicos e de fácil aparência. Muitas das crianças e adolescentes que
sofrem violência não a apresentam em forma de danos físicos. A Organização
Mundial da Saúde define violência como “o uso intencional da força física ou do
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 25

poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um


grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar
em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”
(OMS, 2002: 5). Mesmo que o agente ignore o efeito dos próprios
comportamentos, e que a intenção não seja direta, pode gerar agravos abusivos.
É certo que as violências estão presentes na maioria das sociedades ocidentais
contemporâneas como uma das preocupações centrais, seja na agenda dos cidadãos
comuns, seja na de representantes do poder político ou da sociedade civil,
penetrando, a cada dia, com maior vigor, também o meio acadêmico. Este é um
tema indissociável de estudos sobre a questão da cidadania, sendo as violências
uma das formas mais agudas de manifestação da “questão social”. As violências
são fenômenos de longa data, resultado das várias ordenações sociais construídas
de forma desigual e, comumente, se concretizam contra sujeitos sociais em
desvantagem física, emocional e social, segundo os parâmetros estabelecidos.
Como confirma Gilberto Velho (1996), o fenômeno da violência é um processo
que, na sociedade brasileira e nos diversos países latino-americanos, não ocorre
apenas entre as classes, mas “de um modo dramático” dentro das camadas mais
pobres e vulneráveis da população.

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•Comitê dos Direitos da Criança da ONU
•UNICEF
•Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
•Agências da Rede ANDI América Latina•Argentina Periodismo Social
•Bolívia - Agencia Nacional de Noticias por la Infancia – ANNI
•Costa Rica - Agencia de Noticias de Niñez y Adolescencia – ANNA•Colombia -
Fundación para un Nuevo Periodismo (FNPI)
•Guatemala - Asociación DOSES
•Nicarágua - Dos Generaciones
•Paraguay - Asociación GLOBAL. Infancia
•Venezuela - Centros Comunitários de Aprendizaje (CECODAP)
•ANDI - REDE ANDI – AMÉRICA LATINA, Resenha América Latina – Infância e
Adolescência na Mídia.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 27

Ética e Solidariedade - Mães em Luta


Rita de Cássia Santos Freitas

A violência é uma dura realidade de nosso dia-a-dia. Alguns dizem que ela é bastante
“democrática”, já que atinge os mais variados estratos sociais, sem discriminação de
gênero, raça/etnia ou idade. Porém, seus rebatimentos ferem de forma devastadora as
camadas mais populares – e mais carentes – de nossa sociedade. Viemos de um
século que foi violento ao extremo. Resta saber que tipo de sociedade e de relações
humanas nós queremos para esse século que se inicia.
Minha aproximação com a temática “mães em luta e a violência” se deu no
momento de meu doutorado. Fiquei entusiasmada com a perspectiva de mostrar um
“novo” modelo de mãe e, por implicação, de mulher que estava sendo gestado em
nossa sociedade: mulheres nas ruas, as mães em luta. No ímpeto do envolvimento,
imaginei encontrar verdadeiras “super-mulheres”. Na verdade, encontrei mulheres
simples. Mais tarde é que pude perceber que era exatamente isso que as faziam ser
realmente grandes.
Comecemos falando de Acari. O significado teórico do Caso Acari se estabelece
quando pensamos nas ações (e reações) que suscitou. Fenômenos como esses são
vitais para estudarmos, por um lado, a violência da sociedade em que nos
inserimos. E por outro lado, é interessante para pensarmos em como as pessoas
reagem a um evento desse porte. A reação a uma tragédia – principalmente dessa
magnitude – gera uma infinidade de respostas. Não existe uma reação “única” ou
“certa” para momentos assim. Existe, isso sim, uma infinidade de respostas que
vão sendo construídas.
Especialmente acredito que o Caso Acari colocou como elemento de reflexão a
possibilidade de estabelecimento de novas formas de sociabilidade e novos
componentes para a agenda política.
Cantando uma esperança e apostando na alegria; revirando a noite e rebelando o
dia, noite e dia. Assim, invadiram as ruas. Elas prepararam a tinta e enfeitaram a
praça. Dessas imagens que o poeta me trouxe surgiu a figura dessas mulheres. Foi a
partir desse mote, que começou, para mim, a ganhar sentido minha tese. Tentei
mostrar imagens de mulheres nas ruas. Não porque considerasse esse fato algo
extraordinário, mas porque tal fenômeno ultimamente vem sendo bastante
enfatizado. Por isso, quis me debruçar sobre esse assunto. Retratei, dessa forma,
imagens de uma época. Nesta, uma “nova” figura de mãe surge. Da figura
tradicional ainda encontramos seus grandes traços: a imagem de uma mãe
sofredora, responsável pelos filhos, abnegada e altruísta ainda persiste. De novo,
temos a figura de uma mãe lutadora sendo realçada.
Se as mulheres estiveram sempre nas ruas, lutando, essa imagem, no entanto, nunca
foi muito enfatizada para a construção de um modelo feminino – no entanto, essas
mães invadiram a mídia. Essa é uma das diferenças que nossos tempos vêem
trazendo e que busquei retratar.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 28

Contudo, ao me debruçar sobre esses fatos deparei-me com uma realidade que
ainda não percebera: a formação de redes. Acredito que o modo como essas
mulheres se articulam historicamente suscitou a formação de uma rede de
solidariedades e reciprocidades que apontam para a formação de uma agenda de
valores comuns - valores que determinam um padrão de sociabilidade e de
costumes que tem como substrato idéias e referências acerca da solidariedade e dos
direitos humanos. Tais valores não são muitas vezes verbalizados com toda força
argumentativa; mas eles podem ser buscados aqui e ali ao fazerem referências aos
seus cotidianos.
Uma existência (de longa duração) as levam a ver com extrema naturalidade a
socialização dessas formas de redes de proteção social aos seus. É comum o
intercâmbio e a troca de favores, bem como a circulação de suas crianças. Nesse
sentido, a noção de “circulação de crianças” cunhada por Cláudia Fonseca foi
fundamental para que pudesse entender o cotidiano dessas mulheres pobres, mas
também para ver como isso perpassa igualmente o dia-a-dia das mulheres de nossas
camadas médias urbanas. É essa vivência e (con)vivência que possibilita suas
incursões no mundo público.
É importante enfatizar que as mulheres foram/são vistas como as protagonistas
desses movimentos. E fazem isso a partir da dimensão materna. São como mães e a
partir do que esse papel suscita que elas se lançaram às ruas. Mesmo no espaço
público, é a imagem da mãe, daquela que cuida, que organiza, que é priorizada. E
isso aparece também em seus discursos. A maternidade, assim como o amor
materno aparece como algo determinante em suas vidas. Se elas ressaltam isso, é
essa mesma imagem também que a mídia vem conformando.
Junto com as mães em luta, a palavra chacina surge como um símbolo dos anos
1990. No entanto, mesmo um evento tão negativo pode se transformar em um
encontro fundamental na vida dessas mulheres: o encontro entre elas e de cada uma
consigo mesma. Mães nas praças deve ser visto como um fenômeno de longa
duração.
Minhas pesquisas nessa área se iniciaram ainda nos anos 1990, ao estudar as
mulheres que ficaram conhecidas como as Mães de Acari. Mas essa realidade
prossegue nos anos 2000, conhecendo outras mulheres que, a partir da violência
sofrida por seus filhos, partem para um movimento de contestação e de busca por
um mundo melhor.
Como lidar com essa realidade? Em todos esses casos, a primeira pergunta é o que
eu poderia ter feito para evitar isso? A culpa aparece sempre. Mas o importante é
que elas não aceitaram o papel nem de culpadas nem de vítimas. Essas mulheres
foram às ruas para lutar pelos direitos de seus filhos. Quando começaram, muitas
sequer conheciam o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Foi no dia-a-dia
que se organizaram, que se capacitaram e daí nasceu a preocupação – não mais
individual, afinal não se trata apenas de seus filhos – de construção de políticas e
formas de enfrentamento aos maus tratos sofridos por seus filhos.
Desse processo de dor se dá a criação de laços de solidariedade. Da mãe, nasce a
cidadã. Estranhamente, é como se os filhos parissem novas mães. Mães que
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 29

aprenderam a negociar, a falar, a saber calar, a “enfrentar” problemas e pessoas. E


que aprenderam também a construir aliados, a mobilizar, a planejar e a lutar.
Claro que a entrada das mulheres na luta (nem sua continuidade) não estava dada a
priori. Foram os acontecimentos e suas próprias reações que desencadearam o
processo. Não foi uma dimensão naturalizante que as empurrou para a vida pública.
Foi a maneira, o processo como souberam se utilizar de um saber comum e
partilhado socialmente que possibilitou essa união. A utilização “política” desse
amor foi um instrumento fundamental para suas lutas.
Eu conheci as Mães de Acari, mas conheci outras mulheres, outras Veras, Marias,
Joanas e Anas. Mulheres que da dor resolveram que não poderiam ficar de braços
cruzados. Foram filhos desaparecidos, filhos mortos pelo tráfico ou por policiais,
por motoristas bêbados, alguns atingidos diretamente pelo suposto “direito das
pessoas andarem armadas”, filhos internados em instituições que, teoricamente,
deveriam ser sócio-educativas. Mas esses tempos também trouxeram a
possibilidade de se trazer os homens para esse debate, a universidade entrou
também no diálogo, redes internacionais foram tecidas.
Nunca foi minha intenção reforçar o mito do amor materno. Ao contrário, busquei
datar essa construção histórica e mostrar como em nossa sociedade essa noção
pôde desembocar num fenômeno como as Mães de Acari e em outros movimentos.
Lembro de uma reportagem em que a escritora argentina Matilde Sanches refletia
acerca das mudanças na subjetividade das mulheres no momento da chegada, do
nascimento dos filhos; o momento em que as crianças “irrompem”
inadvertidamente em nossas vidas. Igualmente podemos nos perguntar como agir
no momento em que estas mesmas crianças são bruscamente retiradas de nós;
como responder a esse (outro) tipo de “erupção”? Se a “erupção” desses seres
transforma a vida das mulheres, podemos dizer que o seu desaparecimento também
provoca transtornos e transformações.
A maternidade é uma representação de destaque em nossa sociedade. A noção de
uma solidariedade de interesses unindo todas as mães, em nome dos filhos, é uma
importante representação reforçada por elas – ainda que a solidariedade não seja
“universal”. É da vivência, do cotidiano que esse amor vai se construindo e
assumindo formas as mais variadas.
Em nome dos filhos foi que se aventuraram a sair nas ruas. Nessas “saídas”,
percebe-se a imagem da mãe sofredora, a mater dolorosa ainda profundamente
presente em nosso imaginário. Foi dessa imagem que essas mulheres partiram para,
pouco a pouco, irem construindo uma outra imagem - que não exclui a primeira,
mas convive com esta. Essa “outra” imagem é a da mãe que luta a mãe corajosa
que enfrenta a polícia e a sociedade para saber onde estão e o que aconteceu com
seus filhos. Vale ressaltar que essa imagem se, de um lado, lhes proporciona muita
dor; por outro lado também possibilitou a vivência de momentos bastante ricos de
aprendizado. É verdade que esse processo não atinge a todas indistintamente, mas
de certa forma, as mudanças, a mobilidade que tiveram acesso perpassam o
discurso de todas, como um saber socializado. São valores que podem então ser
restaurados. Talvez seja uma de suas contribuições mais importantes: o
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 30

estabelecimento interclasses de uma rede de interesses e valores comuns que


questionam a violência e a brutalidade desse mundo. Dessa forma elas podem ser
vistas como participantes das lutas contra as diversas formas de desproteção social
em que se apóiam os princípios neoliberais que vem predominando em nossa
sociedade e naturaliza tanto a miséria quanto o genocídio social com o qual temos
convivido.
Se podemos dizer que, atualmente, convivemos com a fragilização das práticas
coletivas, esses tipos de movimentos assentados em valores éticos podem apontar
para formas diferenciadas de inserção social que se contraponham a esta
naturalização e sinalizam para a reinvenção do coletivo. A partir dos fluxos e
refluxos comuns a todos os movimentos sociais, elas seguem em frente. Em nome
dos filhos elas se modificaram e ao mundo a sua volta, tornando-o talvez um pouco
melhor. Se a transformação não foi tão grande, se não atingiu a todas
indistintamente, se perpassa os movimentos hoje muitos discursos divergentes,
nada disso desmerece o alcance do que fizeram. Mulheres, negras e pobres que
foram até onde puderam e persistem avançando seus passos na medida em que
podem.

Bibliografia
FONSECA, Cláudia (1990). Crianças em circulação, Ciência Hoje, nº 66, vol. 11, São
Paulo: Cortez.
FREITAS, R. C. S. Mães de Acari: preparando a tinta e revirando a Praça: um estudo
sobre mães que lutam. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.
NOBRE, Carlos. Mães de Acari: uma história de luta contra a impunidade, Rio de Janeiro:
Relume-Dumará.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 31

Mães que Lutam: Ética e Solidariedade - Imagens


e Mitos
Rita de Cássia Santos Freitas

Quem é essa mulher


Que canta sempre esse estribilho
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar

Quem é essa mulher


Que canta sempre esse lamento
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar
(Chico Buarque)

Mas, afinal, o que é ser mãe? Quem são essas mulheres? O que elas têm a ver com
a figura materna que construímos? Em que esta se constitui? Essas mulheres
aparecem nas praças, invadem nossas televisões, os gabinetes oficiais, até as
embalagens dos supermercados, conversando com autoridades estrangeiras,
buscando seus filhos. Essa é uma história de longa duração: Chico Buarque já
cantava, há tempos atrás, a odisséia de Zuzu Angel, mãe que protestou contra a
ditadura militar, exatamente pelo desaparecimento de seu filho. Zuzu acabou morta
num estranho “acidente” de carro. Edméia, uma das mulheres que ficou conhecida
como “As Mães de Acari” também morreu, em 1993 – assim como a primeira líder
das Madres de la Plaza de Mayo, nos marcos dos anos 70. Podemos dizer, junto
com o poeta, que ontem como hoje, continuamos perplexos perante essas mulheres:
afinal, quem são essas mulheres? O que as fez irromper tão intempestivamente no
espaço público?
Aqui se insere a temática da mesa “Mães em Luta – Ética e Solidariedade” que or-
ganizamos na Semana de Extensão de 2005. Neste escrito, retomo temas da minha
tese onde estudei um movimento de mães (as “Mães de Acari”) e de onde surgiu a
expressão “mães em luta”. Nesta expressão estão incluídas as lutas, as falas, as
dores e as vitórias de muitas mulheres que foram “à luta” depois de um aconteci-
mento violento que atingiu seus filhos. Esta expressão retrata mulheres que apare-
cem “fora” do que seriam os seus espaços ditos normais. São mulheres que estão
nas ruas, que estão no mundo público afirmando uma luta e se colocando na luta.
Na verdade, a imagem socialmente construída para as mulheres possui algumas
características que a realidade sempre demonstrou não serem tão verdadeiras
assim. Penso aqui, por exemplo, no mito da passividade feminina, afinal, estamos
falando de mulheres nada passivas. Fico me perguntando que passividade será
essa? Por que essas “loucas” invadiram as nossas praças? De onde tiraram
legitimidade para suas lutas que conseguem atingir todos os setores sociais? É na
própria idéia de mãe que devemos buscar o entendimento para essas questões. É
comum a associação entre a mulher e a natureza, deslocando-nos do espaço da
cultura, da política e reservando, a nós, mulheres, o espaço privado, o espaço da
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 32

casa. No entanto, vou falar de mulheres que fizeram essa “viagem1” para fora de
suas casas e nada passivamente tomaram as ruas e praças, demonstrando o quanto
esses espaços estão inter-relacionados.
Para uma melhor aproximação da figura da mãe, Lúcia Rito2 (1998) buscou até no
Novo Dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda uma definição para a palavra
mãe:

O que dá existência, força, substância.


Fonte, causa, origem.
País, lugar onde uma coisa começou.
Do latim mater, mulher ou fêmea de animal que gerou algum filho.

Dessa forma, entende-se que mãe não é só aquela que gera os filhos. Ela é a fonte,
a origem de tudo, onde tudo começa e para onde todos se voltam para conseguir
força, substância, vida. No “Aurélio – Século XXI” pude ler que mãe é também
uma “pessoa muito boa, dedicada e desvelada”.
Na verdade, são várias as imagens de mães recorrentes em nossa sociedade. A
imagem da Mãe-terra3 significa proteção. Mas a mãe-d’água vivifica. A imagem da
mãe é contraditória, a mãe que alimenta, que dá abrigo é a mesma que briga, que
faz coisas que, às vezes, parecem incoerentes como os maremotos e os terremotos
(mães também são temperamentais!). As mães, às vezes, se revoltam e soltam
chamas como vulcões - ou ocupam as praças, lançando seus gritos. Podemos
mesmo fazer uma pequena (e incompleta, devo dizer) “incursão” por algumas
imagens através do tempo. Penso por exemplo, em algumas figuras de Goya,
retratando cenas da guerra entre a Espanha e a França; penso especificamente numa
figura em que uma mãe com um de seus braços enfrenta os soldados, tendo no
outro braço, que esconde atrás de si para protegê-lo, o seu filho4. A imagem é de
uma força aterradora. Se olho um pouco acima da mesa onde trabalho, vejo uma
reprodução de Guernica - como esquecer a dor daquela mãe que vejo abraçando
seu filho, possivelmente morto? Como esquecer todos aqueles olhares estupefatos
ante a violência incompreensível que os atingiu?
Se recuarmos no tempo, também encontramos nos mitos relatos sobre mães. Já é
clássica a utilização de Antígona para se reportar à força da mulher, desvirtuando a
razão masculina e política. Mas também temos algumas figuras de mães, basta
pensar em Deméter, destruindo a vida na terra, enquanto não lhe devolvessem sua
filha; penso também em Clitemnestra e toda a tragédia que tem seu ápice quando

1
Termo que tomo por empréstimo à Michelle Perrot (In Perrot e Duby, 1991, vol. 4).
2
Este livro não é propriamente um tratado teórico, mas é uma agradável leitura sobre o tema. E não
deixa de ser demonstrativo da sua atualidade. Na livraria onde fui comprá-lo soube, pela vendedora,
que sua venda foi grande próximo ao dia das mães, em 1999.
3
O mito de Ísis e Osíris é emblemático nesse sentido; a imagem da terra como a mãe; sendo a figura
do pai representada pelo rio Nilo, que a fecunda.
4
Se esse autor pode ser visto como misógino, e de fato, concordo que em muitas situações, essa é
uma interpretação possível, não podemos negar, entretanto, que em algumas de suas gravuras,
especialmente naquelas que fala sobre as desventuras da guerra (a série “Desastres da guerra”), ele
se redime, mostrando fortes - e belas - imagens de mulheres, ainda que em forma alegórica,
simbolizando a terra de Espanha. Dominique Godineau (In Perrot e Duby, 1991, Vol. 4) sinaliza para
outra imagem dessa mesma coletânea, onde, sobre um monte de cadáveres, é uma mulher que se
ergue, acendendo a mecha do canhão, para dar continuidade a guerra.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 33

seu marido entrega sua filha para a morte. Façamos uma pequena pausa para ouvir
esses mitos, não porque os considere “arquétipos” femininos, o que significaria
retirá-los de seus contextos históricos. Mas sim porque retratam imagens que,
efetivamente, foram frutos da imaginação de mulheres e homens em determinados
momentos históricos e que, ainda hoje, possuem a força de nos fazerem refletir
sobre nós mesmos, afinal não seria essa a “função” dos mitos? Talvez seja por isso
que Pauline Schmitt (in Perrot e Duby, 1991) na introdução que tece ao livro
História das mulheres, vol. 1 (que abrange a Antigüidade), coloque em evidência a
necessidade de se estudar os mitos e os modelos antigos que povoaram, e
continuam a povoar, o imaginário ocidental.
Ouçamos a história de Deméter. Ela é a deusa da fertilidade, reforçando a imagem
da mãe (e, por implicação, da mulher) sempre como aquela que dá a vida. Hades, o
Senhor dos Mortos seqüestra Perséfone, sua filha, com o apoio de Zeus (que, na
verdade, é o pai de Perséfone). Inconsolável, Deméter descobre o rapto e se põe a
andar por dias e dias, até encontrar, numa fonte, as filhas do rei de Elêusis a quem
Deméter, fazendo-se passar por mortal, diz que procura trabalho. A rainha lhe
entrega seu filho para criar, sem saber que Deméter é uma deusa. Esta passa a
cuidar do filho da rainha como se fosse seu e a lhe dar tratamento que o
transformariam num imortal. Contudo, numa noite, a rainha descobre e não permite
a continuidade do ritual (ela não deve querer fazer de seu filho um deus, pois sabe
que o perderia, enquanto seu). Mas o gesto de Deméter não deixa de ser pungente;
longe de sua filha, ela busca cuidar de outra criança, um outro filho5. Ao ser
descoberta, ela se mostra então como deusa e se recolhe a um templo criado em sua
honra. Com Deméter enclausurada, nada brota sobre a terra, que ela domina:

Sobre a terra nutridora, ela trouxe um ano mais terrível e mais duro para os
homens, nenhuma semente brotou na terra, pois era escondida por Deméter
em sua linda coroa (...) Ela disse que nunca mais poria os pés no perfumado
Olimpo e nunca permitiria que o grão brotasse na terra enquanto seus olhos
não vissem sua filha de belo rosto6.

Zeus enfim convence Hades (em nome do “bem comum”) a devolver a Deméter
sua filha, para que a vida voltasse a nascer sobre a terra. Seu enclausuramento, sua
revolta ainda que muda, mas implacável, trouxe sua filha de volta7.
Clitemnestra é também um mito forte, mas contraditório. Gosto muito dele. Sua
revolta explode espetacularmente. Vejamos um pouco de sua história. Seu
casamento com Agamêmnon já se inicia sob maus auspícios, pois este matara seu
primeiro marido e um filho recém-nascido. Ela casa-se obrigada e desse casamento
nascem quatro filhos: Ifigênia, Electra, Crisótemis e Orestes (talvez o cuidar desses
filhos - tal como Deméter cuidara do filho de uma mortal - tenha servido para
apaziguar Clitemnestra). Entretanto, devido a malogros durante a guerra de Tróia, e

5
Esse gesto é reatualizado por muitas dessas mulheres, ainda que simbolicamente. Todas apontam
como o fato de cuidar dos filhos de outras mulheres traz, de alguma forma, seus filhos de volta.
6
Homero - Hino a Deméter.
7
É interessante realçar, contudo, que em seu reino, Hades dá um romã para Perséfone comer, o que
faz com que ela tenha que passar um terço do ano com ele. Por isso, durante uma parte do ano, há
seca e morte na natureza; quando Perséfone volta, ela traz a primavera.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 34

na tentativa de alcançar sucesso, Ifigênia, filha de Agamêmnon e Clitemnestra foi


sacrificada para apaziguar a deusa Ártemis. Apesar da relutância inicial de
Agamêmnon em sacrificar a própria filha, este acabou cedendo em nome do “bem
comum”. Assim, Ifigênia foi sacrificada, mesmo com todo o pranto de sua mãe. A
guerra foi vencida, mas Agamêmnon tem seu destino traçado. Clitemnestra se une
a Egisto (inimigo deste) e prepara sua vingança.
Penso que, afinal, era muita mágoa para ser guardada. O assassinato de seu
primeiro marido e filho, um casamento obrigado e ainda o sacrifício de uma jovem
inocente, sua filha. Após o final da guerra de Tróia, Agamêmnon retorna e é
recebido pela esposa com todas as honras, para em seguida, ser morto por ela e
Egisto. Assim, é perpetrada sua vingança. A vingança pela morte de seu primeiro
marido e filho, mas principalmente a vingança pela morte de sua filha. A “gota
d’água” foi a morte de Ifigênia: a morte de Agamêmnon foi a resposta ao sacrifício
de Ifigênia. Foi na sua dimensão de mãe, que Clitemnestra foi mais duramente
atingida e daí, sua resposta, veio implacável. Não vou me prolongar em sua
história, que culminará com sua morte, efetuada por Orestes, seu filho, para vingar
a morte do pai. Conforme Stella Georgoudi (In Perrot e Duby, 1991, Vol. 1), é
comum uma interpretação dicotomizante da Oresteia em termos de um conflito
histórico entre um matriarcado que acabava e um patriarcado que se impunha.
Nesta ótica, a trilogia de Ésquilo seria o testemunho verídico, narrando os ecos de
uma luta obstinada que teria oposto poderosas figuras femininas como Clitemnestra
aos novos dinastas do regime paterno, encarnados por Orestes ou Apolo. Esta luta
teria igualmente visto pender para o lado do partido masculino uma Electra ou uma
Atena, representações dessas mulheres “matriarcais” que se submeteriam
voluntariamente à ordem do Pai, reconhecendo a superioridade do seu direito. O
problema é que essas interpretações possuem sempre como pressuposto, a visão
essencialista de um passado que seria “governado” pelas mulheres, um passado
onde a humanidade estaria mergulhada num universo sem leis ou normas (que o
advento do patriarcado - suas leis - viria sanar). Contudo, relegar o “poder
ameaçador das mulheres” para um tempo primitivo e terminado, caracterizado pela
falta de leis e normas é, como enfatiza essa autora, uma forma de excluir este poder
- e, portanto, as mulheres - da história.
Nicole Loraux (In Perrot e Duby, 1991, Vol. 1) retoma esse mesmo problema
quando analisa a existência ou não de uma deusa-mãe no início dos tempos. Não
vou entrar nessa discussão, mas apenas ressaltar uma indagação desta autora: o que
procurariam os partidários dessa “mãe original” supostamente presente na criação
do Olimpo? Como afirma, na verdade, não importa se nada autoriza a proclamação
da existência dessa Deusa-Mãe nas origens; o fato é que a busca, a pulsão por esta
mãe é muito forte. Isso é interessante na medida em que nos permite perceber a
longa continuidade no tempo dessa noção; ou seja, da necessidade dessa mãe. Mas
necessidade exatamente de quê? O que é essa mãe? O que buscam os seus
“partidários”? Talvez o “Eterno feminino” seja o que procuram - é a hipótese de
Loraux. A mãe se constituiria, então, nessa leitura, como a encarnação ideal de um
“impessoal feminino”, dada a sua existência ou preexistência como um símbolo
que paira sobre as mulheres, que paira acima de tudo, no começo de tudo: assim,
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 35

“fazer profissão de fé na Mãe - porque é mesmo disso que se trata - significa


postular como seu o reino original” (In Perrot e Duby, 1991, Vol. 1: 59). E isso
significa colocar o poder da mãe, e por implicação, das mulheres, num princípio
perdido no tempo, antes da razão surgir na história; portanto, um poder que hoje
estaria superado, ultrapassado.
As Mães de Acari não são imunes a essas interpretações. Quando elas se referem a
uma dimensão intuitiva, meio “mágica” que todas as mulheres teriam, de certa
forma, elas se remetem a essa discussão. Contraditoriamente, vê-se que elas
assumem como seu esse mundo não racional ao mesmo tempo em que se
posicionam politicamente, valorizando suas intervenções na esfera pública como
dotada de um extremo bom senso sendo, portanto, racionais. A um mundo em caos
e sem valores, construído pelos homens, a imagem delas é arquitetada como
aquelas que vem ordenar o caos e construir um mundo melhor. De novo, recaindo
num pensamento dicotomizante, é estabelecida uma outra simetria, mas uma
simetria não tão impermeável: de um lado, a figura da mãe passa a ser vista como
(também) ligada à rua, à luta e aos espaços políticos; uma imagem (idealizada, não
resta dúvida - e que, efetivamente, sobrecarrega a mulher com mais uma
responsabilidade) da mulher enquanto uma musa, da mãe como extremamente
ligada aos ideais de solidariedade e de busca de justiça. De outro lado, temos a
figura do pai. A figura do homem, além da política e dos espaços públicos, dessa
vez vem associada (também) à impunidade, ao abuso da lei, às transgressões e
injustiças8.
Vale destacar que não é apenas nos gregos que encontramos imagens míticas sobre
figuras maternas. Centrais em nossa sociedade (e persistindo numa postura
dicotômica) são as figuras de Eva e Maria. Persistindo nesse raciocínio, é comum a
utilização das figuras da santa e da pecadora para se referir à imagem da mulher.
Para sair da degradação a que se condenara Eva, só caindo em seu extremo oposto:
Maria – que é mãe. São várias as representações sociais que se referem à figura
materna. Exemplar nesse sentido são os versos (que sua mãe cantava para ele
dormir) utilizados por João Grilo para invocar a presença de Nossa Senhora com o
intuito de interceder por ele e por seus outros companheiros:

Valha-me Nossa Senhora,


Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré.
(Ariano Suassuna)

8
No entanto, o que continua faltando é a imagem do homem, do pai, associado mais intimamente ao
privado, aos espaços da casa. Essa é uma dimensão que vem, paulatinamente, aparecendo.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 36

Na hora de seus julgamentos, na presença de Cristo e do diabo, ele invoca por


Maria, “trunfo maior que qualquer santo”, para implorar a misericórdia divina9. Ele
invoca alguém que estaria "mais perto de nós”, alguém que é “gente mesmo”. À
pergunta de Manoel - o Cristo -, se João não estaria se esquecendo que ele é gente
também, João responde que a distância entre eles é grande, “mas sua mãe é gente
como eu, só que gente muito boa”. A Virgem Mãe é a imagem da misericórdia.
Feita também de carne e osso, pode entender melhor os problemas das pessoas
comuns. E sendo mãe age também pelo coração, não representando apenas a Lei;
por isso, João Grilo a chama, uma vez que “esse filho de chocadeira (o diabo é tão
ruim que não tem mãe) quer levar a gente para o inferno. Eu só podia me pegar
com a Senhora mesmo”.
E é ela mesma, a “compadecida”, que vem interceder pelos “pecadores”, por todos
os pecadores, pois tem compaixão por estes. Maria é humana, talvez por isso seja
mais fácil para ela entender as dores e os medos dessa população, e por ela se
compadecer. Porém, o que mais a aproximaria dessas pessoas é sua condição de
mãe; afinal, a mãe sempre perdoa os filhos. Como mãe de Cristo, ela se torna, por
extensão, mãe de todos e responsável pelo perdão universal. Apesar de ser mulher
(e de uma mulher ser a culpada pelo pecado original), a sua maternidade a santifica
e, por extensão, a todas as mulheres que são mães. É a maternidade que salva as
mulheres do pecado original. Do amor de mãe não se questiona. Nem de sua
autoridade: o próprio Manoel diz que “discordar da minha mãe é que não vou”. À
resposta do “encourado” de que isso desmoraliza tudo (um homem ser governado
por uma mulher10); é o cangaceiro Severino que responde: “você só fala assim
porque nunca teve mãe”. Talvez seja isso que explique toda maldade e falta de
humor do demônio. Ele personifica algo que não podemos conceber: alguém que
não tem mãe. Não é à toa que “João Grilo” na hora do sufoco recorre a
misericórdia de Nossa Senhora. Como já havíamos aprendido com Gilberto Freyre,
a nossa relação com os santos sempre foi marcada por uma grande familiaridade. E
o que seria de mais familiar que uma mãe? Se aceita até muita coisa, desde que não
se coloque a mãe no meio; Chico Buarque mesmo já cantava “mas se põe a mãe no
meio, dou pernada a três por quatro e nem me despenteio”. E existe xingamento
pior do que ser o “filho da puta”? E a mãe não deixa de socorrer um filho; prova
desse amor incontestável é que, efetivamente, a Compadecida intercede junto a
Cristo, salvando a todos e dando mais uma chance para o nosso herói.
A imagem de Maria é efetivamente um dos modelos da iconografia feminina. A
mística medieval, segundo Dalarun, levantou vôo junto à figura de Maria, que
reabilitou a mulher, fazendo triunfar a sua dimensão materna, o que prova ser este
um triunfo da mãe; não da mulher. Entendo que todo papel é socialmente
construído e, por implicação, está em constante transformação, podendo ser re-
escrito, remodelado, seguindo as necessidades históricas. Não é a toa que Anne

9
Interessante também é o slogan hoje utilizado por setores da Igreja Católica: “Peça à Mãe, que o
Filho atende”.
10
Mas apesar disso, é à Cristo que cabe a palavra final. A mulher, a mãe é a intermediária, mas quem
detém o poder efetivo é representado por um homem.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 37

Higonnet11 enfatiza que a cultura visual do século XIX produziu um grande número
de imagens de mulheres que, consistentes ou contraditórias, contribuíram para a
definição, “sempre em mudança”, do que significava ser mulher12. No entanto,
estas imagens não devem ser entendidas apenas enquanto refletindo algum “ideal
de beleza”, mas constituíram-se/constituem-se em modelos efetivos de
comportamento; “a sua capacidade de persuasão, embora específica das artes
visuais, era (é) ativada pelo seu contexto cultural” (Higonnet, In Perrot e Duby,
1991, vol. 4: 298). Assim, hoje, a mídia é também responsável pela construção de
uma imagem feminina - uma imagem que não está imune aos acontecimentos reais
onde as mulheres vivem seus cotidianos.
Voltemos a Eva e Maria. Há tempos, Chico Buarque utiliza poeticamente essa
dicotomia, cantando “umas e outras”, mulheres que se cruzam toda madrugada
“olhando-se com a mesma dor”. Uma vem cansada de tanta calçada “pra se
caminhar”; a outra, vem cansada de tanto rezar e sonhar com Deus. Duas imagens,
duas mulheres vivendo realidades opostas, mas intimamente relacionadas. Uma se
reflete na outra. Será bom refletirmos um pouco mais sobre a construção dessas
imagens e o modo como elas influenciaram/ influenciam a condição feminina. Das
imagens que marcam a história das mulheres, principalmente se pensamos no
mundo ocidental, um capítulo essencial é marcado pela figura de Eva. A mulher foi
condenada (e sua maldição afetou toda a humanidade) devido ao “mau passo”
desta. Por muito tempo essa maldição pesou sobre as mulheres, advindo dela, a
sustentação ideológica da menoridade da mulher, seus malefícios e sua suposta
falta de firmeza. As culpas que recaem sobre Eva são inúmeras. Ela seduziu Adão,
e é de certa maneira, também responsável pela morte do Salvador, já que se não
tivesse cometido sua falta, este não precisaria morrer na cruz. Na história da
criação do mundo, a mulher teria sido criada depois do homem. Eva nasceria a
partir de uma costela de Adão13. Só aqui duas desvantagens cercariam o
aparecimento das mulheres. O homem foi criado primeiro, o que demonstraria sua
maior importância. A mulher só veio depois e a partir daquele - e detalhe, criada a
partir da sua costela, um osso curvo, o que levaria à suposta falta de retidão de seu
caráter14. Sobre Eva recai a parte mais pesada dos vaticínios divinos: “Eu

11
Mulheres e imagens. Aparências, lazer, subsistência,. Trabalhei também com outro texto dela
pertencente a essa mesma edição, intitulado Mulher e imagens. Representações. Ambos estão no
volume 4 da Coleção História das Mulheres, organizada por Michelle Perrot e Georges Duby (1991).
Utilizo, ainda, o texto Mulheres, imagens e representações, pertencentes ao volume 5.
12
Segundo a autora, as mulheres, especialmente as mulheres burguesas, pintaram a princípio, o
mundo doméstico, a si próprias e a seus filhos. Já as pinturas ou fotografias sob a ótica masculina
traziam sempre imagens de mulher que pudessem proporcionar algum prazer visual aos homens,
sendo difícil imaginar imagens de mulheres idosas, por exemplo. Foi aos poucos que a fotografia
começou a dar a conhecer as condições de vida e de trabalho da população mais pobre, mas mesmo
assim, continuaram a representar as mulheres proletárias mais como mães e como vítimas do que
como membros ativos e produtivos da força de trabalho (Higonnet, In Perrot e Duby, 1991, vol. 4: 317).
13
No entanto, existem interpretações conflitantes, que afirmam que Adão não teria um sexo definido.
Segundo Phyllis Trible, a palavra hebraica há-‘adam, de onde deriva o nome Adão é na verdade, um
nome genérico para a humanidade. Dessa forma, Adão não seria ainda um homem; é apenas quando
Deus tira sua costela que se cria o homem e a mulher, portanto, os dois nascem juntos. Cf.,
demonstrando a atualidade do tema, a Revista Cláudia, 28/04/99.
14
No entanto, será que isso não caracterizaria que a falta de retidão já está presente no interior do
próprio homem?
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 38

multiplicarei os sofrimentos das tuas gravidezes15, no sofrimento darás à luz os teus


filhos. O teu desejo impelir-te-á para o teu marido e ele dominará sobre ti”.
No pecado original, a falta mais grave é imputada à Eva. É ela que leva Adão a
pecar. Ela é a tentadora ou a própria tentação já que, em muitas imagens, a figura
da serpente possui rosto e formas femininas, fazendo com que todas as mulheres
sejam responsáveis pela falta de Eva. Exemplo disso é a fala de Tertuliano dirigida
às mulheres: “Não sabes tu que és Eva, tu também? A sentença de Deus tem ainda
hoje todo o vigor sobre este sexo, é preciso, portanto que a sua culpa subsista
também. Tu és a porta do diabo (...) foste a primeira a deserdar da lei divina”
(Dalarun, In Perrot e Duby, 1991, Vol. 2: 35). Esta fala não deixa dúvidas. A
mulher é para sempre culpada. A imagem da mulher é assemelhada ao diabo ou à
morte, já que ela é a causa de todas essas coisas; “ela é filha de Eva, que, pela sua
vulnerabilidade à tentação, causou a morte do gênero humano. Ela é a origem da
morte por causa da sua sexualidade e beleza, efêmera e enganadora” (Borin, In
Perrot e Duby, 1991, Vol. 3: 266). A sexualidade e a beleza tornam-se atributos
negativos, sempre associados à figura feminina como algo incontrolável.
O mundo moderno é também um mundo que se pensa dicotomicamente. Por isso,
se contrapondo a essa visão para as mulheres reafirma-se a figura de Maria - é a
imagem de uma mãe que reabilita a mulher e lhe propicia salvação. Afinal, Deus,
para criar o seu filho e salvar o mundo, o fez a partir de uma mulher. E essa mulher
ficou como a imagem da pureza e correção feminina. Maria possui um papel muito
preciso na chamada “economia da salvação”, termo de Dalarun. Se Eva significou
a morte; Maria chega trazendo a vida. Se uma mulher esteve na origem de um
pecado tão grande – o maior de todos –, será outra mulher que estará na origem de
um bem também muito grande. É assim que Maria reabilita a figura feminina.
Contudo, sua imagem será sempre um exemplo, mas também uma exceção, já que
era mãe e virgem16. Cristo, filho de Deus, portanto Deus ele também, nasceu de
uma mulher cuja pureza era atestada pela sua virgindade. Isso torna o exemplo de
Maria muito distante das mulheres comuns, sendo um ideal inacessível. Se a
virgindade e a pureza garantem a salvação, pergunta Dalarun, o que propor para as
mulheres casadas, que querem ser salvas? A resposta é ser uma boa mãe, tal qual
Maria17. É assim que Maria se opõe à Eva; a mãe à puta. O chamado “desafio
mariano” é permanecer virgem e pura. Para quem não consegue isso, resta à
maternidade, o casamento e a obediência. A figura da mãe pode até trazer em si
certa “virgindade”. Ouçamos o poeta:

15
“Darás a luz com dor e muitas vezes com morte”: essa não é uma realidade comum apenas à Idade
Média. Hoje, ainda presenciamos esses fatos.
16
Chiara Frugoni nos fala muito bem dessa mulher imaginada: à Eva com um papel tão ativo no
pecado, opõe-se a Virgem Maria, cuja passividade se exalta no momento de se tornar instrumento da
redenção: o Ave do anjo da Anunciação, tal como é explicado num canto anônimo provavelmente do
século IX, é o inverso de Eva. Maria, que dá o seu filho ao mundo mantendo-se virgem, e que, única do
seu sexo, precisamente porque o seu corpo não conhece a união do matrimônio pode ser exaltada na
sua maternidade, constitui o modelo que cada mulher deve procurar imitar, segundo uma proposta que
nega acima de tudo o corpo feminino e as suas funções (Frugoni, In Perrot e Duby, 1991, Vol. 2: 462).
17
No entanto, existem interpretações que buscam valorizar um cariz revolucionário na vida de Maria,
afinal, ela aceitou ser mãe de um filho sem pai e sem ser casada. A figura de José surge depois; e é
difícil uma leitura mais profunda acerca da família tendo como exemplo a Sagrada Família (Maria, José
e o Cristo). Quando se procura um ideal de esposa é a imagem de Sara que surge: boa esposa, boa
mãe, boa nora. Cf. Silvana Vechio (In Perrot e Duby, 1991, Vol. 2).
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 39

Só mesmo uma mãe...


Só mesmo essa dona
Que apesar de ter
A cara raivosa
Do filho entre os seios,
Marcando-lhe a carne
Sentindo-lhe os cheiros,
Permanece virgem,
E o filho também...
Oh virgens, perdei-vos,
Pra terdes direito
A essa virgindade
Que só as mães têm!
(Mário de Andrade)

Assim, ser mãe santifica, purifica a mulher. Só através da maternidade, esta


(mesmo tendo perdido a virgindade e, portanto, a pureza) pode continuar a ser
digna de salvação.
Não é a toa que todas as mulheres que entrevistamos afirmam não apenas a beleza
inquestionável da maternidade, como também a necessidade desta na vida de uma
mulher para que esta possa ser inteira. A gravidez é tida como um momento ímpar:
nela, a mulher se torna até mais bonita - e a beleza nesse momento não tem uma
conotação sexual, mas engrandecedora. As mulheres grávidas são tidas como
mulheres “plenas”, posto que carregam a vida dentro de si. Mas o sofrimento e a
responsabilidade também estão presentes na figura da mãe; dessa forma, Maria,
“mãe por excelência”, é sempre simbolizada junto à Jesus, pressagiando, “na sua
atitude melancólica e resignada, o futuro suplício do filho” (Frugoni, In Perrot e
Duby, 1991, Vol. 2: 478). A figura da mãe não existe a não ser na relação com seu
filho. Assim como uma das imagens mais usuais de Maria é aquela em que ela
aparece carregando o filho nos braços, na década de 90, as Mães de Acari, na
grande maioria das fotos em que apareciam, traziam perto de si, os retratos de seus
filhos. É como se as fotos justificassem a sua presença. Essa característica
permanece nas fotos dos anos 2000. Quando vamos conversar com essas mulheres,
é rato que não tragam uma foto, um recorte, algo que nos apresente a esse filho
perdido e que as justificavam ali, enquanto uma “Mãe em Luta”. A imagem da
mater dolorosa, a Pietà, caracteriza bem esse emblema.
Uma imagem negativa, outra positiva. De um lado, Eva. De outro, Maria. No
entanto, Eva parece muito mais próxima à mulher real, aquela que peca. Já Maria,
uma mulher idealizada, aparece muito distante das possibilidades concretas das
mulheres comuns. Entre estas, segundo Dalarun, surge Madalena. A figura de Eva
não será apagada, mas compensada pela figura de Maria e também de Maria
Madalena, a prostituta arrependida, que pôde ser salva, justamente porque se
arrependeu. É a Madalena que Cristo primeiro aparece e a ela cabe anunciar a
ressurreição. Para Dalarun, aqui se estabelece o papel de Madalena na “economia
da salvação”: se a mulher trouxe a morte ao mundo; para que se resgatasse o seu
papel, a uma mulher é dado nos revelar a ressurreição. Maria e Madalena estão nos
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 40

pólos opostos à Eva e à bruxa; elas nos resgatam da maldição eterna a que Eva teria
nos levado18. Assim, já que a mulher é pecadora por essência da carne, é o
arrependimento que possibilita a salvação. Arrependimento, obediência, dor -
palavras presentes no universo feminino em todas essas imagens “salvadoras”. A
carne terá que ser castigada, por isso, a dor na hora do parto, o arrependimento e
uma vida de servilidade e inferiorização, arrependimento e penitência. É essa
imagem que resgata a mulher. As mulheres, hoje, têm que passar até pelo suplício
de seus filhos.
Outra imagem recorrente - e também negativa - que envolve a figura feminina é a
da feiticeira, a bruxa: a mulher com poderes ocultos que encanta e seduz os homens
e conhece todos os mistérios da natureza. Nesse tipo de interpretação, toda mulher
teria algo de “oculto”, sobrenatural, posto que ela viveria mais perto da natureza.
Dessa forma, em toda mulher se esconderia uma bruxa, porque esta é sempre
associada à figura feminina. Existem bruxos, mas a maioria é mulher. Segundo
Sallmann (In Perrot e Duby, 1991, vol. 3), foram os inquisidores que lentamente
empurraram a mulher para o culto do diabo, gerando uma degradação ainda maior
na imagem social da mulher. Mesmo quando o crime de feitiçaria19 foi abandonado,
o estatuto cultural da mulher não foi revalorizado20.
Contraditoriamente, no imaginário popular, essa dimensão é afirmada de forma
positiva, como se as mulheres pudessem contar sempre com essa dimensão
“mágica”. Joana, por exemplo, (outra Mãe de Acari), “sentia” as dores que seu
filho sofria. A maioria das mães teve (e algumas ainda têm) sonhos com seus
filhos, e acreditam que esses possuem algum significado oculto. Uma das mães que
entrevistei conta que começou a chorar sem motivos aparentes: “comecei a chorar.
Olha só. Não sabia de nada. Comecei a chorar”; intuição? Mas não podemos
esquecer que uma vida de miséria e violência acompanha essas mulheres desde o
seu nascimento. O atraso de um filho pode muitas vezes significar a diferença entre
a morte ou a vida. Essas incertezas se transformam em certeza no momento em que
a tragédia acontece. Com o passar do tempo, ganham o estatuto de intuição21. A

18
Embora muitos estudiosos não tenham dúvidas em afirmar que Maria Madalena nunca existiu, mas
foi uma personagem criada a partir de outras mulheres na bíblia. Cf. Dalarun (In Perrot e Duby, 1991,
Vol. 2).
19
Que na história dos crimes nem ocupa uma posição tão importante assim, se pensarmos em termos
numéricos. Mas a ênfase que recebeu, principalmente dos historiadores pode ter contribuído não
apenas como forma de denúncia (afinal, efetivamente, um número quatro vezes maior de mulheres
foram processadas), mas também como reforço da mulher como sedutora e traiçoeira (Sallmann, In
Perrot e Duby, 1991, Vol. 3).
20
O crime de feitiçaria foi desqualificado de fato mas não de direito. Por isso, a feiticeira teria deslizado
insensivelmente do domínio da heresia para o da doença. Ela, que outrora tinha feito um pacto com
Satanás, torna-se vítima da sua imaginação. O mito demonológico deu lugar à histeria, um outro mito
criado para a mulher. Resta saber, como diz o autor, se a imagem da mulher ganhou com a “troca”:
quando era feiticeira, a forca ou a fogueira manifestavam, na sua crueldade, a sua total
responsabilidade penal. Vítima da sua imaginação ou tomada de loucura, ela transforma-se (hoje) num
ser juridicamente diminuído, com responsabilidade pessoal limitada (Sallmann, In Perrot e Duby, 1991,
Vol. 3: 533).
21
Rosiska Oliveira, utilizando uma citação de Clarice Lispector (Fora por causa da resposta contínua
que eu, em caminho inverso, fora obrigada a buscar a que pergunta ela correspondia), argumenta que
haveriam respostas que habitam nossos espíritos, antes da pergunta ser formulada; dessa forma, ao
contrário de toda razão, são as respostas que buscariam as perguntas: antes mesmo que se localize
uma questão, ajudando a formulá-la, há uma resposta intuída que nos habita e que se atualiza pouco a
pouco (Oliveira, 1992: 108). Afirma ainda a autora, que quase todas as descobertas científicas passam
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 41

dimensão mágica aparece, assim, na fala de todas como uma dimensão “natural” (e
positiva) da mulher. Por outro lado, não se pode negar que esta imagem de mulher
reafirma a mística de um “eterno feminino”, absolutamente descolada do mundo
masculino, racional por excelência. A imagem de um poder mágico desperta medo,
principalmente num mundo que preconiza a racionalidade, a especialização e a
transparência dos espaços.
E, assim, essas mulheres foram à luta. Como afirma Arlette Farge (in Perrot e
Duby, 1991, vol. 3), historicamente, é necessário se render à evidência de que as
mulheres estiveram presentes em quase todas as revoltas (ainda que apareçam em
maior número nas rebeliões alimentares). No entanto, são poucos os trabalhos que
mencionam a presença das mulheres nesses movimentos e, mes-mos esses
trabalhos, salvo exceções, dedicam poucas linhas para tentar compre-ender o que
tornou possível a atividade “conseqüente” das mulheres nesse período; e ainda
menos palavras gastam para perguntar como se fez e se faz para estas o regresso à
vida quotidiana depois de viver momentos tão “emble-máticos”. Fazer esse retorno
não é uma tarefa fácil. Neste momento, talvez se misture o orgulho por ter
participado de uma experiência das mais ricas de suas vidas, mas também o que a
autora chama de um movimento de “consenti-mento”, de aceitação para que as
coisas continuem como estão, para que permaneça a ordem. A verdade é que é
difícil precisar o que determina essa volta.
De forma pouco otimista, Farge se pergunta, embora ela reconheça que esta é uma
visão demasiado linear da história, se cada revolta não transformaria as coisas,
mantendo, ao mesmo tempo, o consenso tradicional? Essa é uma leitura pessimista,
mas não se pode dizer que seja infundada. Às vezes, olhando para trás, é difícil não
ter a impressão que pouca coisa mudou. Porém, nada melhor que o recurso à fala,
ao dia-a-dia dessas mulheres para tentarmos ver o modo como a participação
nesses movimentos, ainda que de forma diferenciada marcou o cotidiano delas.
Falando de mães, de mulheres-mães, é importante enfatizar a sua existência nesses
múltiplos espaços, da casa e da rua, no trabalho e na família.
Pretendo começar enfatizando o entendimento da história da família como uma
história de transformações contínuas: transformações entre os espaços públicos e
privados, transformações na forma dos relacionamentos, transformações na
construção dos afetos. Devemos pensar a família como um processo de articulação
de diferentes trajetórias de vida, que se constrói a partir de várias relações, como
classe, gênero, etnia, idade; ou seja, um fenômeno em constante transformação.
Ana Maria Goldani nos confirma que

Mudaram as condições de reprodução da população, mudaram os padrões de


relacionamento entre os membros da família, os modelos de autoridade estão
em questionamento, a posição relativa da mulher alterou-se profundamente, e
até mesmo a legislação redefiniu o conceito de família. (Goldani, 1994: 331)

por esse estágio, contudo, quando estas são comprovadas, conta-se uma história linear, em que a
intuição desaparece como um “fato anedótico”.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 42

Este é o estranho mundo novo que vivemos. É importante estudar as dinâmicas


familiares no Brasil, atentando para sua diversidade, ao invés de querer encerrá-la
numa camisa de forças, num modelo do que seria a família burguesa. Ao olhar para
as mulheres protagonistas destas histórias não podemos perder de vista o contexto
social-cultural em que se inserem, com suas práticas e hábitos específicos. Isso
significa a necessidade de construção de um olhar que busque compreendê-las a
partir de sua própria lógica cultural. A família nuclear burguesa estabelece um
ideal-tipo dificilmente seguido pelos grupos populares. Uma das mudanças que
vem ocorrendo na sociedade, e das qual a modernidade é portadora, é o que
Giddens (1993) chama de “transformações da intimidade” e que vem configurando
um novo sujeito moderno, historicamente situado. A imagem desse sujeito é a de
um ser em transição, seja na família, nas relações de trabalho, ou nas relações entre
os sexos. Concordo com Cynthia Sarti, quando esta afirma, em relação à análise
das famílias hoje, que é terrível, mas já não sabemos tão claramente o que somos
(1995: 39). Contudo, não existiria sociedade sem que as pessoas se inter-
relacionassem. Para Cynthia Sarti, a afirmação da individualidade é o que sintetiza
o sentido das mudanças atuais. Gilberto Velho argumenta que o individualismo em
si não é necessariamente nem bom nem mal22; é um fenômeno social que significou
o rompimento com certo tipo de hierarquia que impedia o desenvolvimento não só
de forças produtivas, como de potenciais de desenvolvimento pessoal. Não se pode
negar que existe um crescimento da vida interior dos indivíduos nas cidades; nelas,
vive-se com mais liberdade, mesmo que, em nenhum lugar a pessoa se sinta tão
solitária e perdida quanto na multidão metropolitana23 (Simmel, 1967).
Se para as mulheres idosas entrevistadas por Lins de Barros (1997), o casamento
marcava uma “transformação” em suas lembranças, podemos perceber que essa
realidade também está presente nas mulheres que entrevistamos. O estabelecimento
de uma união estável para estas também significou uma transformação. A chegada
(não programada) do primeiro filho foi o elemento perturbador e instaurador de
uma nova etapa em suas vidas. Se no início do século, as pessoas se esquivavam
aos controles legais, “juntando-se” sem casar, parindo filhos sem certidão de
nascimento, separando-se sem divórcio (Fonseca, In Del Priore, 1997), essa é ainda

22
Vale ressaltar que foi no interior do ideário individualista, que enfatiza os valores da igualdade e da
liberdade, que se desenvolveu como nunca a problemática feminina, demonstrando, assim, os estreitos
laços que unem os processos de liberação da mulher e o individualismo moderno. Boaventura Santos
ressalta a relação contraditória entre capitalismo e movimento feminista: se o capitalismo se aproveitou
do patriarcado para se apropriar do trabalho não pago das mulheres, por outro lado, “liberou
parcialmente a mulher de submissões ancestrais, mesmo se só para a submeter à submissão moderna
do trabalho assalariado (...) Em qualquer caso, a politização do espaço doméstico - e, portanto, o
movimento feminista - é um componente fundamental da nova teoria da democracia” (1994: 234).
Como afirma Bila Sorj, apesar de algumas tendências feministas apostarem numa leitura pós-
modernizante do gênero, existem elementos que aproximam inexoravelmente a discussão do gênero
da modernidade. Cf. Sorj (1992).
23
A vida nas cidades, segundo Georges Simmel, seria inimaginável sem a integração de todas as
atividades e relações mútuas, resultando numa estrutura da mais alta impessoalidade juntamente a
uma objetividade altamente pessoal. Exemplo disso é o que o autor chama de “atitude blasé” (“a
incapacidade de reagir a novas sensações com a energia apropriada” caracterizando um embotamento
do poder de discriminar) e a “atitude de reserva” (uma outra forma de “proteção” que resulta no fato de
que, freqüentemente, nem sequer conhecemos de vista os nossos vizinhos). Podemos pensar, no
entanto, que essas mulheres, com suas práticas, questionam exatamente esses tipos de atitudes, ao
sair da reserva e da atitude blasé, que seria esperada.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 43

uma realidade que podemos perceber nos dias de hoje, demonstrando a persistência
de uma visão de mundo descolada dos aspectos “legais”.
No entanto, ao contrário das mulheres entrevistadas por Lins de Barros ou por
Bosi, Ana, Joana e Teresa não gastam muito tempo de suas memórias para falar da
infância ou juventude. É o advento da tragédia que atinge seus filhos – seja o
desaparecimento em Magé, no caso Acari, seja o assassinato de seus filhos, seja a
descoberta que o filho cometeu uma infração, como no caso das mães de filhos em
conflito com a lei – que se torna o ponto chave de suas vidas; nele se concentram
suas memórias24. O que acontece antes e depois quase não é lembrado ou, quando é
lembrado, é sempre referenciado a esses eventos.
As marcas do gênero estão presentes em seus discursos. O mundo da casa, o espaço
privado é parte permanente de suas memórias. É a partir dessa dimensão que
contam suas vidas. Alguns itens são recorrentes e característicos de um discurso de
gênero - o que não significa uma naturalização desses espaços como espaços das
mulheres. Mas são os espaços onde historicamente vivem as suas vidas e que
deixam marcas nessa vida e na forma como podem narrá-las. Os filhos, o
casamento, a casa, as preocupações com a família – e principalmente o sentimento
de culpa – fazem parte tradicionalmente do discurso feminino. Porém, cada vez
mais, o trabalho, a sociedade, a política vem também fazendo parte desse
repertório. Isso é bastante concreto no que se refere a essas mulheres.
Outros caminhos foram sendo percorridos por essas mães. Nesse caminhar, elas
foram vivendo outras realidades, vivendo novos valores. A morte, a dor, o luto são
experiências indescritíveis. Em torno da dor elas foram reconstruindo suas vidas.
Não é por acaso que a figura da mater dolorosa é extremamente presente em suas
falas. A culpa por ser feliz – ou melhor, por ter momentos felizes – aparece na fala
de todas elas, de qualquer idade e mesmo atravessando classes25.
Marilene é uma das Mães de Acari e para ela, uma das coisas que têm a seu favor é
que se tornaram a presença viva de uma história. É a elas que cabe resgatar essa
memória: “nós somos presenças viva. Nós somos testemunhas, testemunha não do
que aconteceu. Mas somos presença viva de um acontecido. Nós temos na pele
isso”. E o contato com as pessoas passa a não ser uma coisa tão dolorida porque é
assim que conseguem mobilizar as pessoas. A mesma preocupação que
encontramos nas Madres de la Plaza de Mayo (já nos idos dos anos 70) reaparece
nessas mulheres: fazer com que a memória se reproduza e, nesse sentido, ganhar os
jovens para defenderem a bandeira delas é crucial. A juventude é sempre vista
como portadora de uma dimensão positiva. O que as ajuda é, em seu entender, que
são descontraídas, conseguindo minimamente lidar com o riso e a lágrima: “a gente
chora; daqui a pouco a gente está enxugando a lágrima e está rindo, sabe? Está
fazendo rir. A gente consegue mobilizar e sensibilizar”. Essa mesma fala pude

24
Esse não é um fenômeno incomum. No texto de Lins e Barros (1997) encontra-se referências a um
estudo feito junto à mulheres judias imigrantes que enfatizam o momento da imigração, um momento
de mudanças e rupturas como o momento central de suas lembranças.
25
Cf. Freitas (2000).
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 44

ouvir de Mônica Suzana26, quando seu filho estava em privação de liberdade: “eu
botava o prato de comida na minha casa, mas como eu ia comer?” Toda essa
reflexão surge fazendo-nos pensar que a projeção alcançada por elas aparece como
um atenuante para a dor que sentem.
A dor passou a ser uma realidade eternamente presente em suas vidas e, por
implicação, em suas falas. Essa dor se manifesta de várias formas. Joana “sentiu”
em seu corpo as dores que seu filho sofria (ou que ela pensava que ele estava
sofrendo). A culpa também aparece na fala das outras mães: “eu não posso colocar
isso [em público], porque eu ensino as mulheres a não colocar isso para elas, essa
culpa... eu não posso colocar isso para elas, tá?, mas assim,eu não tenho culpa, mas
eu tenho parceria... tenho muita parceria”. A autopunição também se fez presente e
praticamente todas desenvolveram algum tipo de doença.
Todas as mães afirmam que a vivência da maternidade e da tragédia, ou seja, de uma
maternidade estraçalhada gera uma solidariedade e uma união muito forte entre elas
porque, no fundo, suas perdas foram iguais e irreparáveis, já que perderam filhos e
filhas de forma violenta. Porém, existe também a construção de uma relação que é
fruto de uma luta comum: uma relação de amizade; de estar juntas, de jantarem
juntas, de conversar. Esse é um dos lados positivos dessa história que trouxe tantas
coisas ruins.
Em um programa exibido na Rede Record, Vera de Acari aparece séria, afirmando
que “a gente quer encontrar os nossos filhos”. E em tom explicativo, continua: é
um pedaço de mim; é um pedaço de todas as mães. A visão de uma mãe “partida”,
é uma imagem que retorna em quase todas as falas. Vera Carneiro é enfática. Em
tom professoral, resume o drama:

O grito de uma mãe, ele não vem da garganta, ele vem do útero; é um pedaço
da mãe que se vai então, é aquele instante maior, é uma perda muito grande,
porque vai junto aquele pedaço da mãe, vão junto os projetos que a mãe
depositou naquele filho, então, todo o projeto de vida desaparece nesse
momento.

Contudo, a ambivalência também aqui se faz presente. Se junto aquele filho


perdido, também se perdem os projetos de suas mães, a partir da fala de Hebe
Bonafini vemos que novos projetos são delineados. A vida de Hebe Bonafini,
presidente das Madres de la Plaza de Mayo se parece com a de quase todas as
mães, aqui: “eu era uma dona de casa e mal fui à escola (...) Minha vida mudou,
mudaram meus valores. Essa luta me deu um sentido de solidariedade
impressionante (...) aconteceu um milagre, os filhos mortos pariram as mães” (JB,
06/05/92). Dessa forma, da mãe, nasceu à cidadã - essa é uma imagem que volta
sempre quando discutimos essas questões. Marilene, falando de Ana, se confunde
(caindo, quem sabe, num “ato falho”) e afirma que esta (Ana) procura sua mãe;
depois se corrige: procura seu filho. Filhos que, na verdade, estão gerando suas

26
Em ouro extrato social temos uma entrevista de Vera Carneiro (cujo filho morreu em um acidente de
carro envolvendo o ator Felipe Camargo que dirigia embriagado) com Iliane Martins (que teve a filha
morta também em um acidente de carro protagonizado pelo jogador Edmundo) reafirmando essa
mesma questão (JB, 05/04/98).
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 45

mães. A esperança de reencontrar o filho talvez não exista mais para muitas dessas
mulheres, contudo, permanece a luta, nem que seja pelos outros filhos, pelos filhos
de todo mundo, para que isso “não volte nunca mais a acontecer”, para que o
sistema melhore e possa realmente atender as crianças e adolescentes do futuro.
O discurso efetivamente não é mais o de uma “pacata dona de casa”. Os temas já
supõem um conteúdo político e a repetição de alguns “slogans”, como a
socialização da maternidade e a visão de nascimento a partir do filho. Segundo
Marilene, é o amor de mãe o que as impulsiona e que cimenta essas relações. Esse
amor não é em nenhum momento questionado. E se a todo o momento existe a
referência a uma “nova” figura de mãe; desse amor não se questiona as várias
formas que este pode assumir. Esse amor é naturalizado e inquestionável para elas.
É esse amor que justifica. A participação nasce dessa mistura. Do amor de mãe, das
suas dores nasce o lema/mote/a motivação para a ação/a luta. É exatamente isso
que essa fala de Hebe Bonafini reafirma, mostrando que da dor nasce à vontade de
transformar a dor em luta; das tragédias vividas por essas mães é que nasceram as
cidadãs - é como se os próprios filhos parissem suas mães, novas mães-cidadãs.
Claro que este é um processo contraditório. A cidadania não é obtida de
uma vez para sempre, e nem a sua posse significa mudanças em todas as esferas da
vida. Normalmente, a mãe-cidadã continua convivendo com a esposa-escrava, a
mulher oprimida, e mesmo com outros tipos de mães tradicionais: a mãe
autoritária, a mãe boazinha, a mãe vítima27. Aqui se estabelece uma contradição na
vida dessas mulheres. Elas obtiveram, a partir de todo o movimento que
protagonizam um grande aprendizado. Hoje, sabem mais dos seus direitos do que
sabiam há pouco tempo atrás (“eu não conhecia nem o ECA”, é o que nos confessa
Mônica Suzana). Contudo, sofrem a limitação (de classe, gênero, etnia) de não
poder exercê-los em sua plenitude. Marilene e Vera em palestra realizada na Escola
de Serviço Social /UFF são enfáticas ao falarem do modo como transformaram a
dor em ação. A solidariedade das mães nasceria dessa dor partilhada e que se torna
combustível para a luta política. Essa união é celebrada por todas as mães,
atingindo inclusive as mães pertencentes às camadas médias.
Richard Rorty é um autor que vem se preocupando com a questão da solidariedade.
Não vou me deter aqui num estudo exaustivo de sua obra, nem em buscar resgatar
o substrato teórico que permeia o discurso acerca da solidariedade, hoje abundante
em nossos movimentos coletivos28. Quero, contudo, pontuar uma questão.
Efetivamente, a solidariedade aparece como pano de fundo de muitos discursos
hoje, especialmente àqueles voltados para uma leitura crítica da sociedade e
preocupados com uma alternativa política que busque congregar os mais diversos
agentes sociais. Ao apelar para valores universalizantes e humanitários esta noção
consegue “amarrar” as mais diferentes coletividades.

27
Cf, nesse sentido, com o livro de Maria Lúcia Rocha-Coutinho (1994) acerca das diversas formas de
poder direto e indiretos vividos historicamente pelas mulheres.
28
Uma interessante ajuda nesse sentido é a tese do professor-doutor João Bôsco Hora Góis,
“Vestígios da força das palavras: escritos sobre a Aids”, especialmente seu quarto capítulo (“A
reconstrução do Outro e os dilemas da solidariedade). Cf. Góis (1999).
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 46

No entanto, vale ressaltar que apesar de sua perspectiva englobante, esse discurso
surge historicamente a partir de grupos organizados. Se a solidariedade é vista
como um sentimento universal, na prática, ela precisa ser “ativada”. Foi utilizando
a categoria “mãe” e tudo que ela acarreta em termos de significados sociais, bem
como utilizando um saber-fazer que lhe é próximo que essas mulheres construíram
os seus discursos, que não podiam estar alheios às discussões que então se
realizava na sociedade. Por isso, elas partiram de uma conclamação às mães, não a
uma humanidade indiferenciada. Ao invés da universal, a solidariedade aparece
demarcando o pertencimento ou não pertencimento a um grupo (e a uma agenda de
interesses específica, ainda que preocupada com o “todo social”). Ela é vista como
a única forma de garantia de um futuro melhor, de uma união que se afasta dos
valores mais individualistas e repousa numa visão de sociedade (e de futuro) onde
os diferentes sujeitos sociais possam ser respeitados. Como afirma Góis, a
solidariedade tornou-se um verdadeiro “estilo de vida”, estabelecendo parâmetros
tanto para os atos públicos como privados, tornando-se um elemento central para a
construção de uma agenda de interesse público - e que vai além de uma discussão
de interesses meramente materiais (Góis, 1999).
De um lado, a violência que nos circunda, a perda de valores com a qual
convivemos, assim como a descrença em nossas instituições formais contribuiu
para essa busca de alternativas. Por outro lado, as raízes religiosas, bem como essa
cultura de redes de apoio mútuo e de proteção social, assim como a crença em
ideais humanitários (como o apelo à maternidade), podem ser entendidos como um
importante terreno para a disseminação dessa tão alentada solidariedade. Bem
como explica porque foi tão bem assimilada. Nesse sentido, a coletividade ganha
uma importância. A união que se estabelece como uma força ajuda a confiar nos
caminhos futuros; é desse modo, que a solidariedade se coloca como alternativa à
barbárie (Góis, 1999). As palavras ajudam a conformar nossas ações; não estamos
imunes aos seus conteúdos. O fato é que essa preocupação com a solidariedade
surge num momento de vital importância enquanto alternativa para a paisagem
devastadora que a alternativa neoliberal nos coloca enquanto proposta de
sociedade. Falar em solidariedade, falar na união de mães, numa luta contra a
impunidade significa um trabalho em aberto para a reconstrução de valores, tão
caros para a continuidade da vida em sociedade; pois, como afirma Góis, “seja lá
quais forem os chãos intelectuais da construção da solidariedade, trata-se sempre
do esforço de erigir valores sociais ou de inventar tradições ético-morais, algo tão
mais importante quando se pensa no caráter organizador dos valores nas nossas
vidas e sociedades” (1999: 263). Talvez seja esse o viés que devamos perseguir
para o entendimento desses movimentos.
CONCLUINDO: Da mãe, nasce a cidadã: justiça, política e cidadania
Na verdade, o direito mínimo, o mais elementar da cidadania, que é o direito à vida
pouco a pouco vem sendo usurpado. Isso é confirmado por Elisabeth Jelin (1994).
Segundo esta autora, se a cidadania, teoricamente seguiu o caminho dos direitos
civis para os políticos e sociais; dos anos oitenta para cá, mesmos os direitos civis
não estão mais garantidos. Prova disso é que no correr desta década os direitos
humanos básicos e os direitos civis tornaram-se o eixo da militância política. Isso
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 47

porque se nos períodos ditatoriais, os direitos humanos e políticos ficaram em


suspenso; na transição para a democracia, houve o restabelecimento dos direitos
políticos, mas os direitos sociais entraram em crise e mesmo os direitos civis,
ficaram em questão. O processo de constituição da cidadania (vista enquanto uma
realidade em permanente construção) não pode ser entendido seguindo apenas a
linearidade histórica exposta no clássico estudo de Marshall29. Assim, Jelin entende
que o conceito de cidadania refere-se a uma prática conflituosa e histórica30: “mais
que uma lista de direitos específica, que é mutável e historicamente específica, essa
perspectiva implica que o direito básico é o ‘direito a ter direitos’” (1994: 45). A
autora aponta a necessidade de pensar um modelo analítico que considere duas
áreas de fenômenos: primeiro, o processo de aprendizado de direitos e
responsabilidades e, segundo, a criação de um quadro institucional democrático. O
desafio que apontava para o período de transição residia exatamente na capacidade
da sociedade de combinar mudanças institucionais formais com a criação e
expansão de práticas democráticas bem como de uma cultura da cidadania (Jelin,
1994).
Acerca deste tema, a cidadania, ou mais especificamente, acerca de uma nova
concepção de cidadania, será interessante ouvirmos Boaventura Santos (1994).
Este autor trabalha com a idéia de que a construção de uma nova cidadania pode
estar intimamente ligada aos chamados “novos movimentos sociais”. Uma grande
contribuição31 dos “novos movimentos sociais” residiria, segundo Boaventura
Santos, não na recusa da política; mas ao contrário, no alargamento do campo da
política. A politização do social e do pessoal, possibilitado por esses movimentos,
abre espaço para o exercício da cidadania e revela, ao mesmo tempo, os limites da
cidadania liberal:

“sem postergar as conquistas da cidadania social, como pretende afinal o


liberalismo político-econômico, é possível pensar e organizar novos
exercícios de cidadania - porque as conquistas da cidadania civil, política e
social não são irreversíveis e estão longe de ser plenas - e novas formas de
cidadania - coletiva e não meramente individuais.” (Boaventura Santos,
1994: 227 - grifos meus)

29
Cf. nesse sentido, o texto - já clássico de Marshall (1967). Trata-se de algo também confirmado por
Norberto Bobbio (1992), ao mostrar o caráter processual da cidadania e as novas cores com que vem
se emoldurando.
30
Nesse sentido, vale ressaltar também a contribuição de Dagnino (1994), ao salientar o caráter da
cidadania enquanto estratégia política: afirmar a cidadania como estratégia significa enfatizar o seu
caráter de construção histórica, definida portanto por interesses concretos e práticas concretas de luta
e pela sua contínua transformação. Significa dizer que não há uma essência única imanente ao
conceito de cidadania, que o seu conteúdo e seu significado não são universais, não estão definidos e
delimitados previamente, mas respondem à dinâmica dos conflitos reais, tais como vividos pela
sociedade num determinado momento histórico. Esse conteúdo e significado, portanto, serão sempre
definidos pela luta política (p. 107 - grifos meus)
31
Em relação aos novos movimentos sociais, afirma que a novidade maior destes, reside em que
constituem tanto uma crítica da regulação social capitalista como uma crítica da emancipação social
socialista tal como ela foi definida pelo marxismo. Ao identificar novas formas de opressão que
extravasam das relações de produção e nem sequer são específicas delas, como sejam a guerra, a
poluição o machismo o racismo ou o produtivismo, e ao advogar um novo paradigma social menos
assente na riqueza e no bem-estar material do que na cultura e na qualidade de vida, os novos
movimentos sociais denunciam, com uma radicalidade sem precedentes, os excesso de regulação da
modernidade (Boaventura Santos, 1994: 222).
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 48

Importante aqui é destacar, também para este autor, a noção de cidadania como não
monolítica, mas processual. Se a cidadania liberal está assentada na noção de
igualdade, esses movimentos sociais poderiam representar um novo equilíbrio entre
subjetividade e cidadania, ao enfatizarem a noção da diferença. Se nos atemos ao
ideário liberal, a igualdade faz parte constitutiva da noção de cidadania, o que
colidiria, de frente, com a subjetividade, cuja marca é a diferença, o pessoal. A
subjetividade, para este autor, deve abranger, além das idéias de autonomia e
liberdade, as noções de auto-reflexividade e auto-responsabilidade (Boaventura
Santos, 1994).
Importante também nessa discussão, é a sugestão de Paola Cappellin de introduzir
a diferença sexual (uma diferença social e não apenas biológica) na definição da
cidadania. Isso possibilitará perceber de que maneira mulheres e homens entendem
e usufruem dos direitos civis, sociais e políticos (In Pandolfi, 1999). Em pesquisa
realizada por esta autora vemos que as mulheres chefes de família enfatizam mais
que os homens, a importância de uma participação social e política, seja em
associações de moradores seja em outros tipos de movimentos. Segundo a autora,
essas informações ajudam a questionar o senso comum de que essas mulheres,
devido à sobrecarga de atividades que possuem, tenderiam a manter-se afastadas de
qualquer participação social ou política: a pesquisa evidencia, ao contrário, um
envolvimento direto que, às vezes, é mais alto que a média geral. Esta maior
adesão, afirma a autora, parece ter como objetivo a melhoria do padrão de vida32. O
associativismo feminino é uma prática de longa duração. Na nossa história, as
mulheres sempre estiveram presentes, se reunindo aqui e ali para poderem trocar
(confidências, bens simbólicos ou econômicos) ou para reivindicar esses bens. Faz
parte de nossa cultura esse “caminhar conjunto”. Para as Mães de Acari, por
exemplo, o discurso da cidadania é fluido, assim como o dos direitos humanos. É
um símbolo que as unifica entre si e a outras pessoas, mas fora Marilene e Vera –
que podem ser vistas como liderança no movimento – para as outras mães é difícil
estabelecer uma reflexão sobre essas questões. Elas aparecem mais como um pano
de fundo para a unidade do grupo. Uma fala mais do que uma prática vivida.
Entendo que as pessoas vão, pouco a pouco, “se fazendo”. Foi a partir de suas
experiências, suas trajetórias de vida que essas mulheres foram se construindo. É a
partir da vivência do que Manzini-Couvre (1995) chama de “formas fragmentárias
de relações utópicas”, que elas podem ir construindo uma nova vivência da
cidadania. Para isso, a autora aponta a necessidade do rompimento da noção de
identidade enquanto uma categoria fixa. A identidade é histórica; ela é diretamente
relacionada ao momento presente da pessoa, bem como as memórias que traz do
passado. É assim que podemos nos aproximar de uma noção de cidadania
vinculada à experiência concreta das pessoas, uma cidadania aberta às diferenças,
ou seja, sem a preocupação da conversão33 das ditas camadas populares a um ideal
distante de cidadania formal.

32
Sua presença na campanha eleitoral de 1994, maior que a dos homens e mulheres em geral, ajuda-
nos a pensar na complexidade da rede de relações em que ocorre a participação política dos
indivíduos (In Pandolfi, 1999: 218).
33
Cf. Duarte (1993)
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 49

Quando iniciei meus estudos pensava encontrar nesse movimento os indícios de


constituição de uma “nova” cidadania. A realidade, contudo, trouxe-me outros
dados. A cidadania que essas mulheres vêm construindo34 ainda está longe desse
ideal. Ao contrário, às vezes, parece que entre elas circulam noções marshalianas -
suas demandas situam-se, muitas vezes, na esfera dos direitos civis; o direito à
vida. Contudo, vale ressaltar a contribuição que as Mães de Acari proporcionam ao
elencar elementos novos para o examine da noção de cidadania. Aí sim, uma
cidadania enquanto construção, abarcando as particularidades e diferenças. Uma
cidadania fruto de um mundo cada vez mais complexo e que, por implicação, só
pode ser captada a partir de uma maior complexificação do seu significado. Uma
cidadania cuja marca também seja a da busca de laços, de solidariedade, de
respeito e preocupação com a construção de um mundo melhor. Uma cidadania que
dê conta da preocupação política de Marilene, ou seja, de justificar sua participação
no mundo. A cidadania que elas podem construir, deve-se ressaltar, deverá ser
fortemente marcada por um cunho de classe, mas também de gênero. O cuidar, o
proteger, o se responsabilizar pelo outro, é uma dimensão constante desse tipo de
cidadania.
Mãe é uma categoria central na problematização das relações de parentesco. Vários
saberes socialmente existentes construíram uma imagem a partir dessa categoria, o
que demonstra a centralidade que possui em nosso imaginário. O que tentei
enfatizar talvez seja, na verdade, uma figura de mãe, uma figura que talvez não seja
maioria, mas que existe; essas mães estão aí, lançando seus gritos, buscando seus
filhos. É dessas mães que busquei falar, dessa constituição que, acredito,
transforma também o que é ser mãe, que não pode ser entendida como uma
categoria fixa. “Mães em luta” é uma categoria nova que essas mulheres estão
construindo. Nessa construção, elas também reconstroem a sua própria identidade
enquanto mulheres, que não passa apenas pelo viés da maternidade. Elas não são
apenas mães; é preciso conhecer suas outras facetas para poder vislumbrar esse
processo de formação de uma identidade e uma memória comum. Assim, podemos
terminar da mesma forma que começamos, continuando a nos indagar

Quem é essa mulher


Que canta sempre o mesmo arranjo
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar

Quem é essa mulher


Que canta como dobra um sino
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar.

34
Quero ressaltar que devo muito dessas reflexões às discussões desenvolvidas junto ao professor
João Bôsco Hora Góis.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 50

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Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 52

Violência contra Criança: Uma Breve História


José Nilton de Sousa

Na Idade Média, assim como na Grécia e na Roma antiga, as crianças viviam no


anonimato, não havendo preocupação social para com elas como existe hoje. Para
Philippe Ariés, a sociedade medieval não notou a infância. Segundo ele:

“(...) essa sociedade via mal a criança, e pior ainda o adolescente. A duração
da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o filhote do
homem ainda não conseguia basta-se; a criança então, mal adquiria algum
desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus
trabalhos e jogos. De criancinhas pequenas ela se transformava
imediatamente em homem jovens sem passar pelas etapas da juventude (...)”
(Áries, 1978:10)

Ao misturar-se com os adultos, tornava-se uma espécie de “adulto em miniatura”.


Áries demonstrava que, se durante esse período, a criança viesse a falecer, o que
não era tão difícil de ocorrer não se fazia muito caso. Aliás, de acordo com Áries,
era comum o infanticídio – crime praticado em segredo contra criança.
Além do infanticídio, a história da infância é marcada por maus-tratos. Somente no
final do século XVII começa a surgir uma modificação social no que tange à
infância. A partir da transição do Feudalismo para o Capitalismo, a infância passa a
ser considerada um estado separado. Com a Burguesia, nasce a idéia de que as
crianças deveriam ser educadas de forma especial, a fim de se prepararem para
quando fossem adultas. “Se, na sociedade feudal, a criança exercia um papel
produtivo direto (‘de adulto’) assim que ultrapassava o período de alta
mortalidade, na sociedade burguesa,ela passa a ser alguém que precisa ser
cuidada, escolaridade para uma atuação futura”. (Áries, 1978:19).
Diante destas mudanças, a família passa a ser o lugar de uma afeição necessária
entre seus membros, o que não acontecia antes. Tal afeição começa a se exprimir,
de acordo com Áries, através dessa importância que se passou a atribuir à
educação.
Entretanto, apesar de tais alterações sociais e históricas, surge um problema
oriundo desse processo de educação: a criança perde a “liberdade” que possuía até
então, e passa a ser alvo de método punitivos, coercitivos e violentos. Segundo
Áries, prolifera a idéia de castigo corporal.
Guerra, 1998, afirma que no século XVIII, esses castigos contra as crianças se
tornaram mais bárbaros. Didonet, 1994, acrescenta que a vontade do adulto deveria
sempre prevalecer. Em nome dessa autoridade,

“foram praticadas atrocidades contra as crianças, desde a imposição


autoritária de modos de ser, pensar e agir, até os castigos físicos, a escravidão
doméstica, a mutilação de membros, a opressão moral, inclusive o direito
sobre a vida do filho(...) à criança era negado o direito de falar, de opinar, de
ter ‘vontades’. Sua opinião não era levada em consideração, porque se
pensava que ela não sabia nada, não tinha experi6encia. Sua vontade não era
atendida se fosse diferente da vontade do adulto. Os adultos(pais ou
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 53

responsáveis) é que sabiam e determinavam o que ela deveria fazer, quando,


por quanto tempo”. (Didonet.1994:4)

Elas eram vistas, portanto como objetos nas mãos de seus pais/responsáveis. Santos
(1987) ilustra, muito bem, essa questão quando diz que: “Durante muito tempo,
razões de ordem social, política e religiosa negaram e, muitas vezes até hoje,
negam à criança direitos fundamentais como a integridade do corpo, a
independência da mente, controlando-a como uma propriedade privada”. (Santos,
1987:13).
Apesar desta trama de violências - de não direitos -, muitas lutas já foram travadas
para fazerem valer os direitos básicos das crianças e adolescentes.
Cronologicamente, ao longo do século XX, temos:
A grande caminhada dos Direitos da Criança, com início em 1923, quando a União
Internacional “save the children” redigiu e aprovou um documento que ficou
conhecido como Declaração de Genebra. Essa Declaração de cinco pontos continha
os princípios básicos da Proteção à infância.
No ano seguinte, 1924, a quinta Assembléia da Sociedade das Nações aprovou a
Declaração de Genebra e propôs aos países membros que pautassem a sua conduta
em relação à infância pelos princípios nela contidos. Terminada a II Guerra, a
ONU aprova uma declaração que amplia ligeiramente os direitos constantes no
texto de 1924.
A Assembléia Geral, órgão máximo da Organização das Nações Unidas, em 1959,
aprova a Declaração Universal dos Direitos da Criança, um texto contendo dez
princípios, aumentando assim substancialmente, elenco dos direitos aplicáveis à
população infantil.
Em 1978, o Governo da Polônia apresenta à Comunidade Internacional uma
proposta de Convenção dos Direitos da Criança.
A convenção é um instrumento de direito mais forte que uma declaração. A
declaração sugere princípios pelos quais os povos devem orientar-se no que diz
respeito aos direitos da criança. A convenção vai mais além. Ela estabelece
normas, isto é, deveres e obrigações aos países que a ela formalizarem sua adesão.
Ela confere a esses direitos a força de lei internacional.
A comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, em 1979, examina a
proposta da Polônia e cria um grupo de trabalho para, a partir dela, produzir um
texto definitivo.
Durante os dez anos que se seguiram, o texto foi intensamente debatido pela
comunidade internacional. Para participar deste esforço, organizações não-
governamentais criaram Um Grupo de Ad Hoc de ONGs para auxiliar a comissão
encarregada pelas Nações Unidas de elaboras uma proposta de texto final.
Em 1989, o Grupo de trabalho apresenta a redação definitiva do Projeto de
Convenção à Comissão de Direitos da ONU. Em 20 de Novembro desse mesmo
ano, a Assembléia Gera, aprova por unanimidade, o texto da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança. Nesse dia, o mundo comemora os 30 anos de
Declaração Universal de 1959 e o décimo aniversário do Ano Internacional da
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 54

Criança. Mas somente em entra em vigor em 02 de setembro de1990, após ter sido
ratificada por 20 países, a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças.
No Brasil a historia da criança desde o período colonial, foi marcada, por contínuos
descasos, seja em virtude de questões culturais, como acontecia com alguns povos
indígenas, seja em razão do cunho sócio-econômico.
O período escravagista, também, foi marcado pela morte e abandono de crianças.
Os filhos de escravos, que geralmente viviam em péssimas condições nas senzalas
ou em áreas urbanas, nem sempre eram criados por suas mães e costumavam
crescer sem qualquer referência paterna, pois o senhor de escravos separava pais e
filhos como bem entendesse.
No plano mundial, o conceito de infância começa a sofrer alterações no final do
século XVII, entretanto, ganha mais força e visibilidade do século XVIII e no
século XIX. Rizzini afirma que a criança:

“(...) deixa de ocupar uma posição secundária desimportante na família e na so-


ciedade e passa a ser percebida como valioso patrimônio de uma nação; ‘chave
para o futuro’, um ser em formação ‘ductil e moldavél’- que tanto pode ser
transformado em ‘homem de bem’(elemento útil para o progresso útil da
nação) ou num ‘degenerado’(...) (um vício inútil a pesar nos cofres públicos)’.
(Rizzini. 1997:25)

Nesse período, sobre a ótica higienista e saneadora da sociedade, zelar pela criança
passa a significar garantia da ordem social. O homem adquire através das
concepções vigentes o poder de manipular destinos e influir no futuro da
humanidade. Não só isto, a autoridade paterna, instituída pelo Direito Romano-
Pater Famílias - colide com a autoridade do Estado; perde seu caráter de
intocabilidade e passa a ser regulada pelo poder público.
Estas transformações chegam, paulatinamente, ao Brasil, tendo-se instaurado mais
precisamente no período republicano. Também aqui a criança passa a simbolizar a
esperança. Se educada ou retirada do seu meio e reeducada, ela se tornaria útil a
sociedade. Rizzini lembra que “em nome da manutenção da paz e do futuro da
nação, diversas instâncias de intervenção serão firmadas, de modo a classificar
cada criança e colocá-la em seu devido lugar (...) a conexão jurídico-assistencial
atuará visando um propósito comum: ‘salvar a criança’ para transformar o Brasil.”
(Rizzini e Baker, 2001:30).
A elite da época denunciava a situação de abandono da infância inflamando o
cenário político; porém, apesar dos discursos, no plano das ações, a elite, como diz
Rizzini , 1997:”tinha diante de se uma opção a fazer: promover a educação(para
‘civilizar’), sem no entanto, abrir mãos de privilégios ‘herdados’ (Rizzini.
1997:32). Ou seja, como discutem Carvalho (1995) e Rizzini (1997) mantendo o
povo sob vigilância e estrito controle, como uma necessidade política de preservar
a ordem pública.
Desta maneira, proteger ou conter ou, mesmo entender a infância, principalmente a
empobrecida, com em perigo ou perigosa, passa a dominar o imaginário da elite da
época. Com isto a infância passa a ser dividida em dois termos: de um lado, a
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 55

criança mantida sob os cuidados da família e do outro, o menor, mantido sob a


tutela do estado, objeto de leis, medidas filantrópicas, educativas/repressivas e
programas assistenciais, o que compromete a formação de uma consciência ampla
de cidadania da criança e do adolescente no país.
A conduta citada anteriormente só passa a ser contrabalançada quando a doutrina
da proteção integral, preconizada pela ONU, é inserida na ordem jurídica do Brasil,
com o advento da constituição de 1988 e que se materializa no Estatuto da Criança
e do Adolescente - ECA. No contexto social e histórico da sociedade brasileira o
ECA veio garantir proteção integral à criança e ao adolescente, transformando
radicalmente a filosofia do antigo Código de Menores - baseada na doutrina da
situação irregular - passando a considerar a criança/adolescente como pessoa de
direito e em condições peculiares de desenvolvimento.
O ECA e considerado internacionalmente avançado em termos de direitos
humanos, porque acolhe os princípios de organizações mundiais de proteção à
infância e adolescência. O ECA veio não só ratificar a Declaração Universal dos
Direitos da Criança, mas também reconhecer e consagrar a criança e o adolescente
como indivíduos e, portanto, cidadãos.
Infelizmente o reconhecimento e a consagração de crianças e adolescentes
enquanto cidadão, ainda não conseguiu sair do plano da legislação. Há uma grande
dificuldade na sociedade brasileira de fazer valer no plano geográfico e econômico
ações que possam levar a operacionalização do ECA, ou seja estamos no 15º
aniversário do ECA e o mesmo continua contido na forma abstrata da lei.

Bibliografia
ARIES, P. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman, 2° Edição. Rio de
Janeiro: Editora Zahar, 1978, 279 p.
CARVALHO, M. C. B. O lugar da família na política social. In: CARVALHO, M. C. B.
(Org). In: A família contemporânea em debate. 4° Ed. São Paulo: EDUC / Cortez, 2002.
p.15-22.
CARVALHO, M. C. B. A priorização da Família na agenda da política social. In: A família
contemporânea em debate, São Paulo, São Paulo: IEE/PUC - SP e Fapesp, 1995.
DIDONET, V. A Educação infantil na nova LDB. Criança Brasilia (DF) n 27, 1994 p. 13-
16.
DIDONET, V. O direito de brincar. Documento Congresso Brasileiro de Brinquedotecas 2,
São Paulo, 1994.
RIZZINI, I.; BARKER, G. Crianças, adolescentes e suas bases de apoio: Fortalecendo as
bases de apoio familiares e comunitárias para crianças e adolescentes no Rio de Janeiro -
Resultados Iniciais 2000-2001. Rio de Janeiro: CESPI/USU/EDUSU/Instituto
PROMUNDO, 2001.
RIZZINI, I. O século perdido: Raízes históricas das políticas públicas para a infância no
Brasil. Rio de Janeiro: CESPI/USU/EDUSU, 1997.
SANTOS, M. Fim de século e globalização. São Paulo: Hucitec, 1997.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 56

A Infância e Juventude na América Latina -


Formação de Agentes de Defesa de Direitos da
Criança e do Adolescente
Carlos Nicodemos

1. A situação política da América Latina. 2. Os direitos sociais,


econômicos e culturais e a Afirmação da Cidadania Infanto Juvenil na
América Latina. 3. Os direitos das crianças e dos adolescentes na
América Latina. 4. Negação de direitos e processo de criminalização da
infância. 5. Politização do Jurídico – Estratégia para uma Cidadania.

1. A SITUAÇÃO POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA

O processo histórico de afirmação dos direitos das crianças e dos adolescentes na


América Latina está intrinsecamente vinculado aos valores de respeitabilidade de
direitos humanos, da democracia e da condição de Estado de Direito dos países do
referido continente.
Entendemos que não é possível fazer uma análise da situação infanto-juvenil, sem
percebermos no cenário latino americano como se está consolidando os direitos
humanos de uma maneira geral.
Da mesma forma, a democracia, mais do que uma simples orientação deve ser
considerada acima de tudo como um valor político de validação do Estado de
Direito, sob pena de pautarmos verticalmente as reflexões sobre a cidadania
infantil, caso este vetor não seja respeitado.
A ausência de um Estado democrático e de direito, inviabiliza uma investigação de
perspectivas sobre os direitos infantis latino-americanos.
Neste sentido, como uma forma de configurar de que cenário estamos partindo,
convidamos para uma leitura sobre o relatório da 123ª seção da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da OEA - Organização dos Estados
Americanos, que reunidos em Washington DC, no dia 28 de outubro de 2005,
revela os avanços e retrocessos relativos a respeitabilidade dos direitos humanos
dos Estados latinos americanos para com seus jurisdicionados, fazendo especial
menção a condição de democráticos (ou não) e da efetiva legitimidade de serem
respeitadores das normas vigentes.
De uma forma geral, o referido relatório1 registra sobre a América Latina que:

“(...) Lamentavelmente, persisten aún muchos desafios. La debilidad desl


Estado de derecho em varios paises de la región afecta la plena vigencia de
los derechos humanos. La situación socioeconómica de la gran mayoria de
los Estados miembros de la OEA impide del goce efectivo de los derechos
económicos, sociales e culturales. Asimismo, persisten problemas

1
Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA – Organização dos Estados
Americanos. 123ª Seção Ordinária de 25 de outubro de 2005.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 57

estructurales de décadas anteriores referentes a la impunidad em casos de


violaciones graves de derechos humanos, como por ejemplo, em casos de
tortura y ejecuciones extrajudiciales; la denteción arbitária; la fragilida del
Poder Judicial ; haciamiento y otras cvondiciones inhumanas que sufren las
personas privadas de liberdad. ( ...)

Sobre os Estados em particular, referidos neste documento2, por exemplo,


menciona-se a situação do Equador, descrevendo que:

“En Ecuador, la fragilidad institucional del Estado de derecho sigue siendo


motivo de profunda preocupación para a la Comisión Interamericana.”

Não menos diferente da situação do Equador, o Estado da Nicarágua atravessa uma


profunda crise política, tendo a Comissão, mencionado3 que:

“Nicaragua está atravessando por uma grave crisis institucional, situación que
fue objeto de audiencias el marco del presente período ordinario de
sesciones.”

Na contramão do entendimento de que a respeitabilidade dos direitos humanos


passa pela consolidação da estrutura do Estado, especialmente quanto à condição
de democrático e de direito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
OEA, faz constar no relatório da mencionada seção, a situação nos Estados Unidos
da América, e, sobre este país do hemisfério norte, registrou4 que:

(...) La Comisión Interamericana lamenta profundamente la ejecución de


Marin Gray em el estao de Missouri, Estados Unidos de America, a pesar de
que la Comisión Interamericana habia otorgado medidas cautelares em las
que se solicitó que se preservara la vida de dicha persona condenada a muerte
hasta tanto se pronunciase sobre el fondo de petición presentada em su favor.
La negativa de um Estdo miembro de la OEA de preservar la vida de uma
persona codenada a pea de muerte, com lo que hizo caso omiso a la decisión
sobre admisibilidad del asunto y al hecho de que sigue pendiente la revisión
de los méritos por la Comisión Interamericana, resulta contrario a las
obligaciones internacionales de dicho Estado y socava la eficacia del sistema
interamericano. (...)

O flagrante desrespeito dos Estados Unidos da América as recomendações da


Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, revela uma outra face da
violência institucional que estão submetidos milhões de americanos, latinos ou do
norte e, entre eles, crianças e adolescentes.
Entendemos que a respeitabilidade dos direitos das crianças e dos adolescentes,
essencialmente direitos humanos, passa por um profundo processo de revisão dos
paradigmas políticos dos Estados, no sentido de converter as políticas
assistencialistas, meramente compensatórias de atenção à infância, em ações de
afirmação de cidadania, pautadas na órbita do Estado, como condição de

2
idem
3
Idem
4
Idem
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 58

legitimação junto à sociedade no procedimento de auto-afirmação de ser de Direito


e Democrático.

2. OS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS E A


AFIRMAÇÃO DA CIDADANIA INFANTO JUVENIL NA AMÉRICA
LATINA

Tanto no campo jurídico quanto no campo político, a afirmação de uma verdadeira


cidadania, passa necessariamente pela máxima realização da dignidade.
Historicamente o conceito de dignidade tem seu curso de formação na base dos
direitos humanos.
Sobre esse entendimento, Eduardo Novoa Monreal5, contextualiza os direitos
humanos sobre a seguinte percepção:

“A evolução da vida social foi mostrando a humanidade um conjunto de


valores que e desprendem da dignidade humana, ou que ineludivelmente se
inserem nela. São chamados direitos fundamentais do homem ou
simplesmente, direitos humanos.”

Para esta interpretação, é fundamental o resgate no tempo das gerações de direitos


humanos, pautadas no marco europeu, decorrente do processo revolucionário
francês de 1789.
Assim, a partir dos eixos políticos e filosóficos da revolução burguesa francesa, a
liberdade, a igualdade e a fraternidade, surgiram às gerações de direitos humanos.
A liberdade, como um pressuposto dos direitos civis e políticos. Entre eles, o
direito à vida, à liberdade, ao voto e ser votado, entre outros.
Já a igualdade, tornou-se uma referência institucional para os direitos humanos de
segunda geração. Neste universo inserem-se os direitos à saúde, à educação, ao
salário digno, à moradia, etc...
Por fim, temos a fraternidade que é a terceira geração dos direitos humanos que
expressam, especialmente, o direito humano e ao meio ambiente, a auto
determinação dos povos e o direito à solidariedade.
Atualmente, existem vários defensores que apontam a existência de outras gerações
de direitos humanos que cuidaram das novas tecnologias e das futuras questões
como a bioética.
Todas estas gerações de direitos humanos foram contempladas no campo jurídico
internacional, desde 10 de dezembro de 1948 quando da Declaração Universal dos
Direitos Humanos da ONU – Organização das Nações Unidas.
Registre-se ainda que a ONU, em 1966 sistematizou em forma de Pactos, os
Direitos Civis e Políticos e os Direitos Sociais e Econômicos.

5
NOVOA MONREAL, Eduardo. El Derecho como obstáculo al cambio social. Editorial Siglo Veintiuno
Editores. P. 106. Mexico, DF.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 59

A questão da dignidade, elo de ligação dos direitos humanos com a cidadania na


ordem do Estado democrático de direito, está no confronto ideológico universal
sobre a prevalência da primeira geração dos direitos humanos sobre a segunda
geração, ou vice-versa.
Por mais que a Convenção sobre os Direitos Humanos, realizada pela ONU, em
1994, em Viena, tenha proclamado a indivisibilidade e a interdependência dos
direitos humanos quanto as suas gerações, verificamos que existe um grande
abismo entre aquilo que se propõem os Estados Latino–americanos em nível
constitucional sobre os direitos humanos, e aquilo que se efetivam na realidade.
Esta realidade se aprofunda em relação aos direitos humanos de segunda geração,
os direitos econômicos, sociais e culturais, na medida em que a vertente liberal
capitalista conduziu os Estados Latinos Americanos à adotarem estes direitos em
suas constituições de forma programática, ou seja, dependente da iniciativa pública
de elaboração de políticas e programas sociais.
Dita questão atualmente determina um longo processo histórico de negação de
direitos, que reflete na absoluta falta de condições de exercício de cidadania,
desembocando num cenário social vazio de dignidade.

3. OS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES NA


AMÉRICA LATINA

Desta maneira, a fragilidade das instituições dos Estados na América Latina,


somado a total desvinculação de valores como direitos humanos, democracia e
estado de direito, acaba por contribuir de maneira acentuada no processo de
vitimização da sociedade, especialmente, os grupos sociais mais vulneráveis. Neste
contexto estão milhões de crianças e adolescentes da América Latina.
Em recente estudo do Conselho Nacional dos Direitos da Criança do Brasil, sobre a
criação de um sistema nacional de atendimento sócio-educativo, analisando as
variáveis da violência contra crianças e adolescentes, foi apontado que o Brasil
encontra-se atualmente entre os cinco países com a maior taxa de homicídios na
América Latina, senão vejamos:

“O Brasil localiza-se entre os cinco países com maior taxa de homicídios em


relação a sua população jovem ( 15-24). Com uma taxa de 52,2 homicídios
em 100.000 jovens, fica atrás somente de Venezuela, El Salvador, Ilhas
Virgens e Colômbia. Isto evidencia que a nossa adolescência e juventude não
se encontram preservadas e que o problema da violência e da criminalidade
demanda especial atenção do Estado e, sobretudo, força uma agenda de
urgências no âmbito de todas as políticas sociais e amplifica os desafios da
política de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei.

Sobre a passagem do estudo acima mencionado, podemos apontar várias questões


relacionadas ao processo violador de direitos humanos das crianças e dos
adolescentes.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 60

Primeiro, o cenário de pobreza que estão inseridos milhões de jovens latinos


americanos abre duas vertentes criminalizadoras na órbita do Estado.
De um lado é altíssimo o número de adolescentes e jovens que são vítimas de
homicídios. Por outro lado, é flagrante a existência de um processo de
criminalização dos jovens latino americanos, que se inicia com a negação de
direitos humanos.
Corroborando estes dados sociais, recentes estudos sobre mortes provocadas pelo
uso de arma de fogo, desenvolvidas pela UNESCO, em 2005, registrou-se que em
relação aos homicídios em 57 países, a maioria da América Latina, e,
especialmente no Brasil, é alarmante o número de jovens que são assassinados.
Vejamos:

“(...) O estudo, coordenado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfsz,


pesquisador da UNESCO e chefe do escritório da Organização em
Pernambuco, revela que entre 1979 e 2003, as armas de fogo mataram 550
pessoas no País, ou seja, , 35 mil vítimas por ano ou 100 pessoas por dia. A
pesquisa confirma que os jovens, entre 15 e 24 anos, são as principais vítimas
das mortes por armas de fogo: do total de vítimas, 206 mil eram jovens nessa
faixa etária. Só no ano de 2003, 41% dos casos registrados foram de jovens”.

Informa o relatório ainda que, analisando os dados em relação especialmente aos


países da América Latina, temos a seguinte informação:

“Dos 57 países analisados, o Brasil ocupa a segunda posição, logo abaixo da


Venezuela, quando se trata da população total. Entre os jovens, o Brasil
ocupa a terceira posição, logo depois da Venezuela e de Porto
Rico.”

E sobre a América Latina propriamente, apurou a mencionada pesquisa que:

“São poucos os países no mundo nos quais, como o Brasil a mortalidade por
armas de fogo supera as taxas de óbito em acidentes de transporte. Entre os
57 países analisados, só em seis casos isso acontece.”

No plano jurídico internacional, na América Latina, não existe uma convenção


específica sobre os direitos das crianças e dos adolescentes.
Verificamos que a criança e o adolescente se inserem contexto internacional latino
americano de direitos humanos, a partir da Convenção Interamericana de Direitos
Humanos da OEA.
Em nível internacional, a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças
acabou se consolidando como instrumento referência para os direitos humanos
infanto juvenis. Sobre o compromisso dos Estados Partes deste tratado, podemos
destacar:

“Artigo 2.
1. Os Estados Partes respeitarão os direitos enunciados na presente
Convenção e assegurarão sua aplicação a cada criança sujeita à sua
jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de raça, cor, sexo,
idioma, crença, opinião política ou de outra índole, origem nacional, étnica
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 61

ou social, posição econômica, deficiências físicas, nascimento ou qualquer


outra condição da criança, de seus pais ou de seus representantes legais.”

Especialmente, em relação à condição da dignidade da criança e do adolescente,


conforme estudamos aqui, a partir da articulação das gerações dos direitos
humanos, a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças da ONU,
estabeleceu que:

“Artigo 4. Os Estados Partes adotarão as medidas administrativas,


legislativas e de outra índole com vistas à implementação dos direitos
reconhecidos na presente Convenção. Com relação aos direitos econômicos,
sociais e culturais, os Estados Partes adotarão essas medidas utilizando ao
máximo os recursos disponíveis e, quando necessário, dentro de um quadro
de cooperação internacional.”

Assim, por mais que os direitos humanos das crianças e dos adolescentes da
América Latina estejam internacionalmente consagrados pelo Pacto de José da
Costa Rica, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos da OEA-
Organização dos Estados Americanos e, especialmente pela Convenção
Internacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes da ONU – Organização
da ações Unidas, permanecem historicamente os processos de vitimização
institucional nos Estados, onde milhões de crianças são submetidas a toda forma de
violência, sendo até mesmo criminalizadas pela absoluta falta de condições
materiais para o pleno exercício da cidadania.

4. NEGAÇÃO DE DIREITOS E PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO


DA INFÂNCIA

Sobre este processo de criminalização é importante registrar que o mesmo nasce na


estrutura do Estado, que impulsiona milhares de jovens a condição de criminosos,
num evidente processo seletivo.
Este processo de criminalização tem como base inicial, a negação dos direitos
humanos dos jovens latinos americanos. Os Estados negam vários direitos,
especialmente aqueles de segunda geração, como os sociais e econômicos,
colocando na ponta do sistema criminal a população infanto juvenil.
Num segundo momento, a aplicação da norma penal se dirige de maneira
prioritária aos grupos sociais mais vulneráveis. Entre eles encontramos as crianças
e os adolescentes empobrecidos pela negação de direitos dos Estados.
Nesta fase do processo de criminalização, fica evidente que a norma penal não se
aplica de maneira isonômica na sociedade.
Sua aplicação, como bem nos ensina o Professor Juarez Cirino6, detalhando o
processo de criminalização teorizado por Alessandro Baratta, obedece a seguinte
lógica:

6
Dos Santos, Juarez Cirino. A Criminologia Radical. Editora Forense. P. 32. Rio de Janeiro. 1981.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 62

“A aplicação da normas penais criminais depende da posição de classe do


sujeito (variável independente): o lupenproletariado e os grupos
marginalizados reúnem maiores probabilidades de criminalização; a posição
precária no mercado de trabalho (desocupação, sub-ocupação e mão de obra
desqualificada) e a socialização defeituosa (família, escola, etc.) são vaiáveis
intervenientes no processo de criminalização.”

A terceira etapa do processo de criminalização, está na absoluta falta de


compromisso dos Estados na questão da ressocialização ou socialização dos jovens
quando etiquetados pelo sistema criminal.
A execução de pena e medidas sócio-educativas na América Latina, sempre
obedecem a uma lógica de aprofundar o sistema punitivo contra estes jovens,
assegurando que os mesmos continuaram marginalizados, no escopo de cumprir a
agenda de uma sociedade dividida em classes.
É preciso, entretanto, entender que o sentido do encarceramento está na base do
próprio Estado e, especialmente quanto ao modelo que o mesmo adota. E neste
momento estamos tratando do neoliberalismo e suas metas de exclusão social.
Analisando o cenário americano, que através do denominado Movimento de Lei e
Ordem ditou para a América Latina a necessidade do aprimoramento do sistema
punitivo como uma forma de dar continuidade ao controle social e econômico dos
excluídos, entre eles milhões de crianças e adolescentes, identificamos nas
considerações de Loïc Wacquant7:

“A destruição deliberada do Estado social e a hipertrofia súbia do Estado


penal americano durante quarto de século são dois processos concomitantes e
complementares. Cada um a sua maneira, contribuem de um lado, para o
abandono do contrato salarial fordisda e do compromisso keynesiano dos
anos 70 e, de outro, para a crise do gueto como instrumento de confinamento
dos negros após a revolução dos direitos civis e das grandes revoltas urbanas
dos anos 60. Juntos, participam da construção de um “novo governo da
miséria” no qual a prisão ocupa uma posição central e que se traduz por uma
severa imposição de tutela e controle minucioso dos grupos marginais na
base da pirâmide social americana. Assim, desenha-se a figura e um novo
tipo de formação política, espécie de “Estado-centauro”, dotado de uma
cabeça liberal que aplica a doutrina do “laissez-faire, laissez-passe” em
relação às causas da desigualdades sociais, e de um corpo autoritário que se
revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as
conseqüências dessas desigualdades.”

Desta maneira, constatamos que existe em curso o cumprimento de uma agenda


social e econômica na América Latina, distante das necessidades e dos interesses
das crianças e dos adolescentes.
A lógica da exclusão que impregna os modelos de Estados na América Latina
impulsiona milhões de jovens para a condição de não cidadãos.
Desta maneira, é preciso repensar as estratégias de afirmação dos direitos humanos
infanto-juvenis de modo que possamos inibir ou mesmo conter o processo de
vitimização que está em curso.

7
Bourdieu, Pierre e Wacquant, Loïc. De L’É tat Social à L’É tat Pénal. Discursos Sediciosos – Crime,
Direito e Sociedade. Instituto Carioca de Criminologia. Editora Revan. 1998. Rio de Janeiro.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 63

5. POLITIZAÇÃO DO JURÍDICO – ESTRATÉGIA PARA UMA


CIDADANIA

Entendemos que a reverão deste quadro que desenhamos nos parágrafos anteriores
passa necessariamente por uma grande mobilização da sociedade em duas frentes.
A crise do Estado reflete uma crise da própria sociedade civil, organizada ou não.
Mesmo o conjunto das organizações não governamentais, grande parte delas,
especialmente aquelas que desenvolvem ações voltadas para os direitos infanto
juvenis na América Latina são seduzidas e naturalmente conduzidas pela agenda
neoliberal dos Estados e transformadas em agentes do “bem”, dirigidos ao
aperfeiçoamento das superestrutura política e jurídica do Estado.
A falta de um projeto político de Estado, sociedade e ou direitos, que possa
enfrentar o processo de exclusão que está em curso é o principal sintoma da crise
que passamos.
É preciso pautar no conjunto da sociedade civil, uma reflexão sobre que cidadania
e, neste sentido, estamos lutando e trabalhando, como num movimento de
politização do jurídico.
Somado a falta deste projeto, identificamos a minúscula compreensão sobre a,
necessária e indispensável, protagonização das crianças e dos adolescentes na luta
pelos seus próprios direitos.
O protagonismo que esperamos não é aquele pautado numa simples visibilidade
dos direitos infanto-juvenis, mas efetivamente fundado na construção de espaços
que assegurem a viabilidade de direitos por ação própria das crianças e dos
adolescentes.
Estas duas vertentes, a construção de um projeto político de Estado, sociedade e
direitos humanos pela sociedade civil organizada, somado a construção dos
espaços de protagonização da cidadania infantil na América Latina, é a retomada
dos meios da verdadeira transformação social que poderá, certamente neutralizar o
processo vitimizador contra criança e adolescentes na América Latina que está em
curso, e anunciar uma nova ordem, mais justa e fraterna.

Bibliografia
Relatório da Comissão InteramerIcana de Direitos Humanos da OEA – Organização dos
Estados Americanos. 123º Seção Ordinária de 25 de outubro de 2005.
Relatório sobre o Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo da Secretaria Especial
de Direitos Humanos.
Novoa Monreal, Eduardo. El Derecho como obstáculo al cambio social. Editorial Siglo
Veintiuno Editores. P. 106. Mexico, DF.
Dos Santos, Juarez Cirino. A Criminologia Radical. Editora Forense. P. 32. Rio de Janeiro.
1981.
Bourdieu, Pierre e Wacquant, Loïc. De L’É tat Social à L’É tat Pénal. Discursos Sediciosos
– Crime, Direito e Sociedade. Instituto Carioca de Criminologia. Editora Revan. 1998. Rio
de Janeiro.
Convenção Internacional dos Direitos da Crianças da ONU.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 64

A Política de Atendimento Sócio-Educativo para


Adolescentes em Conflito com a Lei - Uma
Questão de Direitos Humanos
Ana Ribeiro

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos valores como a liberdade,


justiça social, paz, responsabilidade e respeito às diversidades passaram a orientar
os ordenamentos jurídicos da construção coletiva dos direitos e deveres dos seres
humanos. A concretização desses direitos inicia-se no plano do discurso jurídico,
mas é na prática do dia a dia que de fato acontece a promoção e garantia de
qualquer ser humano ao seu direito de pessoa humana. No caso dos adolescentes
que estão cumprindo medida sócio-educativa1 é necessário, igualmente, que todos
esses valores sejam conhecidos e vivenciados durante o atendimento sócio-
educativo, superando-se práticas que reduzem o adolescente ao ato infracional a ele
atribuído. A situação do adolescente em conflito com a lei2 não restringe a
aplicação do princípio constitucional de prioridade absoluta à criança e ao
adolescente disposto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
considerada como um dos mais modernos ordenamentos jurídicos da atualidade,
instruindo sobre a responsabilidade do Estado, da sociedade e da família,
principalmente diante dos jovens que se encontram na condição de risco ou de
vulnerabilidade pessoal e social. Assim também acontece com todos os direitos
garantidos pela Lei Federal n° 8069/90, ECA - Estatuto da Criança e do
Adolescente, ou seja: o direito à vida e à saúde (título II, capítulo I); o direito à
liberdade, ao respeito e à dignidade (capítulo II); o direito à convivência familiar e
comunitária (capítulo III); o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer
(capítulo IV) e o direito à profissionalização e proteção no trabalho (capítulo V)
que devem estar contemplados na elaboração da política pública dirigida aos
adolescentes cumprindo medidas sócio-educativas.
Quinze anos após a promulgação do ECA, o quadro da execução da política de
atendimento sócio-educativo para adolescentes em conflito com a lei que é
veiculado através das diversas mídias é o das rebeliões nas unidades prisionais
superlotadas dos grandes centros urbanos com jovens aguardando julgamento ou
cumprindo medidas de internação, vindos de todos os cantos do país, com pouca
oferta de programas de atendimento sócio-educativo em meio aberto em seus
municípios de origem, e diante deste quadro propomos o debate para esta mesa, na
X Semana de extensão da UFF, agradecendo o apoio da FEC, da PROEX e do
Fórum Popular Permanente dos Direitos da Criança e do Adolescente de Niterói.
Alguns pesquisadores nesta área encontram explicação para essa questão no
argumento de que o Poder Judiciário de cada comarca, autoridade competente para

1
“Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as
seguintes medidas: I- advertência; II- obrigação de reparar o dano; III- prestação de serviços à
comunidade; IV- liberdade assistida; V- inserção em regime de semi-liberdade; VI- internação em
estabelecimento educacional” (ECA – art.112- Capítulo IV –Das Medidas Sócio-Educativas)
2
Adolescente autor de ato infracional e/ou aquele a quem se atribui autoria de ato infracional.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 65

aplicar medidas sócio-educativas, superlota as unidades de internação nos grandes


centros urbanos aplicando direto a medida de privação de liberdade porque as
medidas sócio-educativas em meio aberto, que poderiam ser aplicadas para aqueles
adolescentes sem prova suficiente da autoria do ato infracional, não funcionam
corretamente, com raríssimas ofertas de programas de atendimento para as outras
medidas, focados apenas no ato infracional, com práticas humilhantes inadequadas
para a reorientação sócio-educacional do adolescente e principalmente no caso dos
programas de medida de prestação de serviços à comunidade, além de muitas vezes
vexatória, revela-se como de pouca necessidade para a sociedade. Algumas
pesquisas nacionais e estrangeiras voltadas para a violência praticada contra
adolescentes no Brasil através de políticas focadas na segurança executadas por
organismos policiais constatam que aos adolescentes é atribuído um percentual
muito maior de participação nos crimes praticados pelos adultos, tornando esse
segmento populacional muito mais vulnerável à inserção nas redes criminosas,
consolidando a cultura da criminalização da pobreza em nossa sociedade.
Através de nossa experiência como conselheira em quase duas gestões no Conselho
Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do RJ e do levantamento de dados
da participação dos conselhos de direitos da criança e do adolescente na
formulação das políticas públicas para crianças e adolescentes, para nossa
dissertação de mestrado em curso, junto aos 92 municípios que compõem o estado
do Rio de Janeiro, constatamos que muitos municípios sequer discutem medidas
sócio-educativas em meio aberto e muitos dos jovens que cumprem medida sócio-
educativa estão bem longe de seus municípios, geralmente internados nas unidades
prisionais do município do Rio de Janeiro.
Nossos dados partem de uma escuta de atores especialmente envolvidos na área da
promoção e garantia dos direitos humanos da criança e do adolescente no estado do
Rio de Janeiro, mas também da busca de trabalhos de pesquisa e de dados oficiais
nacionais consolidados. É o caso do levantamento estatístico do SIPIA3 que
informa que em janeiro de 2004 havia 39.578 adolescentes cumprindo medidas
sócio-educativas no Brasil, sendo 18.618 na modalidade de atendimento de
liberdade assistida, 9.591 em internação, 7.471 prestando serviços à comunidade,
2.807 em internação provisória e 1.091 cumprido a medida de semi-liberdade. O
total de adolescentes corresponde a 0,2% da população de 25 milhões de
adolescentes entre 12 e 17 anos e 50% estão concentrados na maior área urbana do
país, a região sudeste. Pesquisadores da ONG carioca Observatório de Favelas,
com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, analisando
os mesmos dados, concluíram que:
No que diz respeito à modalidade sob a qual esse total de adolescentes está
inserido, verifica-se que a maior parte está cumprindo pena em sistema aberto.

3
Sistema de Informação para a Infância e Adolescência – sistema nacional de registro e
tratamento de informação criado para subsidiar a adoção de decisões governamentais
sobre políticas para crianças e adolescentes da Subsecretaria de promoção dos Direitos da
Criança e do Adolescente, ligada à Secretaria Especial de Direitos Humanos e ao
CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Disponível em:<
http://www.mj.gov.br/sipia/ > Acesso em 31 de outubro de 2005
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 66

Porém, apesar de ser estatisticamente menor, o número de adolescentes em regime


fechado é significativo, alcançando 34% do total, ou 13.489 pessoas.
Comparativamente, o volume absoluto de adolescentes privados de liberdade pode
parecer baixo em relação ao universo de adolescentes no total da população
brasileira (23,3 milhões de adolescentes- IBGE). Contudo chama-se a atenção
menos para o número e sim para as condições em que estas medidas de internação
vêm sendo executadas junto a adolescentes que estão sob tutela do Estado.

Neste sentido, um aspecto relevante é com relação aos registros das


condições de atendimento, defesa sociojurídica e de proteção dos direitos do
adolescente privado de liberdade que venha a sofrer violência institucional
(por ato, omissão ou negligência do Estado). (DA SILVA e SILVA,2005)

Confirmando ainda essa análise, o relatório dos pesquisadores da Organização


Não-Governamental americana Human Rights Watch em visitas aos cinco centros
de cumprimento de medidas sócio-educativas de internação no município do Rio
de Janeiro, em maio de 2005, concluiu que a situação não havia mudado desde a
última visita, em julho de 2003:

Na verdade, as condições em vários centros de detenção pioraram, sendo


grave a falta de pessoal, gêneros alimentícios e roupas, além da constante
agressão física dos internos e das condições esquálidas de vida...Muitos
abusos nos centros de internação juvenil ocorrem porque são instituições
fechadas, sujeitas a pouco escrutínio do mundo exterior. Os espancamentos e
outros tratamentos cruéis e degradantes são produto de uma falha sistêmica
da responsabilidade perante o público. Em reconhecimento desse fato, as
normas internacionais recomendam um monitoramento independente e
objetivo dos centros de internação juvenil como um salvaguarda essencial
contra os abusos no processo de detenção. É menos provável ocorrerem
abusos se as autoridades souberem que instituições independentes
inspecionarão suas instalações e atrairão a atenção para os possíveis abusos aí
praticados. Um acesso freqüente e garantido às unidades de internação
juvenil por parte de uma variedade de monitores independentes – defensores
públicos , promotores, juízes, grupos de direitos humanos nacionais e
internacionais, além de comissões do legislativo – podem ter um papel
extremamente positivo na prevenção ou minimização dos abusos dos direitos
humanos. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2005)

Por conta da fragilidade na municipalização das ações nessa área e pela


insuficiência de programas de formação continuada para o atendimento
especializado ao adolescente em conflito com a lei e aos seus familiares, o
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA
apresentou um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional para emenda no
ECA definindo as diretrizes da execução das medidas sócio-educativas. Outros
organismos como o Ministério da Saúde também se mobilizou para baixar portaria4
estabelecendo as diretrizes para a implantação da atenção à saúde de adolescentes
em conflito com a lei, em regime de internação e internação provisória, em
unidades masculinas e femininas. Por sua vez o Conselho Estadual de Defesa da

4
Portaria interministerial MS/SEDH/SEPM nº 1.426, de 14 de julho de 2004 no DOU
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 67

Criança e do Adolescente do RJ após intensos estudos com profissionais da área


publicou em 2003 seis deliberações5 definindo o Sistema de Atendimento Sócio-
Educativo no estado do Rio de Janeiro, dispondo sobre a descentralização e
regionalização das medidas sócio-educativas, incluindo as medidas em meio
aberto. Para uma modificação no quadro atual da política de atendimento sócio-
educativo para adolescentes em conflito com a lei, além da divulgação sistemática
do projeto de lei, das portarias e deliberações, faz-se necessário que todos os atores
do Sistema de Garantia de Direitos, previsto no ECA nos artigos 86 e 88, tentem
vencer o desafio de articular e sensibilizar cada vez mais parceiros para que seja
ultrapassado o desafio da questão do respeito aos Direitos Humanos dos
adolescentes cumprindo medidas sócio-educativas desde a formulação até a
execução dessa política, passando pelo monitoramento indispensável da sociedade
civil, o chamado Controle Social.

Fontes de Consulta e Bibliografia:


BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n° 8069/90. Rio de Janeiro: CEDCA,
2003.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de janeiro: DP&A, 2004.
DA SILVA, Helena Oliveira e SILVA, Jailson de Souza. Análise da Violência contra a
Criança e o Adolescente segundo o Ciclo de Vida no Brasil. São Paulo: Global, 2005
HUMAN RIGHTS WATCH, Na escuridão. Abusos ocultos contra jovens internos no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Vol.17, NO.2(B), 2005.
SIPIA – Sistema de Informação para a Infância e Adolescência – sistema nacional de
registro e tratamento de informação criado para subsidiar a adoção de decisões
governamentais sobre políticas para crianças e adolescentes . Disponível
em:<http://www.mj.gov.br/sipia> Acesso em 31 de outubro de 2005.

5
Deliberações do CEDCA publicadas no DO RJ em 30 de maio de 2003.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 68

Adolescência e Juventude: Sexualidade e


Direitos Reprodutivos na América Latina
Elaine Ferreira do Nascimento

A organização Pan-americana de Saúde – OPS (1985) – considera adolescência e


juventude como conceitos distintos, em razão de suas especificidades fisiológicas,
psicológicas e sociológicas.
Em decorrência disto, trata a adolescência como “um processo primariamente
biológico que transcende à área psicossocial e constitui um período durante o qual
se aceleram o desenvolvimento cognitivo e a estruturação da personalidade.
Abrange o período de 10 a 19 anos e compreende a pré-adolescência (10 a 14) e a
adolescência propriamente dita (15 a 19).” (OPS, 1985).
Quanto à juventude, conceitua “como uma categoria fundamentalmente sociológica
que se refere ao processo de preparação para que os sujeitos possam assumir o
papel social adulto, tanto do ponto de vista da família e da procriação, quanto
profissional, com plenos direitos e responsabilidades. Estende-se dos 15 aos 24
anos de idade e compreende também duas faixas distintas: 15 a 19 e 20 a 24 anos.”
(OPS, 1985).
Na esfera do individual, no âmbito da cultura e das organizações sócio-geográficas,
os jovens constroem suas identidades sociais (todas elas e não apenas as
identidades sexuais e de gênero, mas também as identidades de raça, de
nacionalidade, de classe, etc). A estrutura dessas identidades imprime-se de modo
diferente a ambos os sexos, e isso desde a nascença quando os grupos sociais e a
sociedade diferem o comportamento dos sexos, a partir da “matéria-prima
fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas,
pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e
revelações de cunhos religiosos” (Castells, 1999: 23).
Para alguns autores a noção de juventude está muito ligada a significações que essa
categoria imputa no meio social: seja pela imaturidade, ou pela ausência de
independência (manutenção do convívio no mesmo espaço com os familiares ou a
opção por não se casar), no entanto a questão de classes também se configura em
um elemento que influência a identidade dessa categoria.
Nesse sentido, compreender e articular a adolescência e juventude à discussão de
sexualidade requer pensa-los numa perspectiva sócio-histórica de gênero, pois a
interpretação da sexualidade como uma construção social datada chama atenção
para a diversidade das manifestações culturais no exercício da atividade sexual.
A sexualidade, portanto, é uma das dimensões do ser humano que envolve, gênero,
identidade sexual, orientação sexual, erotismo, envolvimento emocional, amor e
reprodução. É experimentada ou expressa em pensamentos, fantasias, desejos,
crenças, atitudes, valores, atividades, práticas, papéis e relacionamentos. Além do
consenso de que os componentes socioculturais são críticos para a conceituação da
sexualidade humana, existe uma clara tendência, em abordagens teóricas, de que a
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 69

sexualidade se refere não somente às capacidades reprodutivas do ser humano,


como também ao prazer.
Neste campo nos deparamos com as políticas de saúde reprodutiva que não tem
acompanhado o conjunto de mudanças que o mundo contemporâneo vem
vivenciando, experimentando e ditando comportamentos. Fica claro, que a
organização do sistema de saúde brasileiro (e mesmo do conjunto de países da
América Latina), fortalecido pelas demais instâncias promotoras de cidadania,
como a educação ainda mantém uma postura binária e ao mesmo tempo
hierarquizada promovendo relações de assimetria entre os sujeitos, conformando
papéis sociais e sexuais que reforçam cerceamento e vigilância dos corpos,
valorizando ou desvalorizando os sujeitos ao longo de suas trajetórias.
Ou seja, políticas de saúde reprodutiva voltada exclusivamente para as mulheres,
pois é um corpo que sofre intervenção historicamente e aos homens relegados ao
esquecimento, esse processo se articula a compreensão que se tem das relações de
gênero que perpassam as nossas políticas.
Um grande desafio está posto, promover relações mais igualitárias de gênero no
âmbito das políticas públicas, para que adolescentes e jovens tenham direito
reprodutivos assegurados em nossa sociedade e possam exercitar uma sexualidade
mais saudável.

Referências Bibliográficas
Castells, M. O poder da identidade S.P, Paz e Terra, 1999.
Organização Panamericana de Saúde/OMS. La salud del adolescente y el joven em las
Américas. Washington DC, 1985 (489).
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 70

Direitos Ambientais no Espaço Doméstico


Jacques Sochaczewski

Em texto recentemente publicado, quando tratamos do direito da criança de crescer


em um ambiente saudável1, defendemos a assunção de papel mais ativo por parte
das escolas – destas enquanto instituição e de seus professores enquanto indivíduos
e educadores. Afirmamos, em síntese, que nas cantinas e lixeiras escolares, por
exemplo, devem-se encontrar tantas ou mais lições que em seus quadros-negros2. A
razão do interesse pelas escolas é o tempo que uma criança passa ali – e também o
tempo que a escola cumpre no processo de formação do indivíduo. Fica evidente,
por conseguinte, que a casa desempenha forte papel nessa formação. É onde, no
mundo atual, a criança passa a maior parte do tempo.
No livro de 1898 A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, transformado em filme de
ficção científica em 1953, uma simples bactéria, “o menor dos seres vivos”, salvou
a vida humana da extinção ao derrotar marcianos
invasores. Depois de promoverem tremenda
destruição, os desagradáveis seres de Marte
mostraram-se completamente incapazes de se
defender de um ser para o qual não desenvol-
veram resistência. Não foi esta a única vez que as
bactérias nos ajudaram. Fora da ficção, trabalham
pela imunidade sistêmica dentro de nossos intes-
tinos (e manter-se-ão trabalhando, a não conti-
nuar o uso excessivo de antibióticos).
Marcianos à parte, os próprios terráqueos torna-
ram-se nesses últimos 52 anos os maiores inimi-
Desenho de um marciano, gos de seu planeta, cujo equilíbrio atacam sob
do próprio H. G. Wells.
preços que começam a ser cobrados. Neste cená-
rio em que parecemos ansiar por nos tornamos os Aliens de nós mesmos,
enfrentamos bactérias como se fossem terríveis inimigas, destruindo-as com desin-
fetantes em doses exageradas e nocivas – a nós. Futuramente, tendo extinguido a
maioria das bactérias de nosso entorno ambiental, correrá o organismo humano o
risco de perder suas defesas naturais e perecer, tal como os marcianos de 1953?
A correlação entre direitos de segunda geração, afirmação da cidadania e dignidade
é límpida e suficientemente tratada por Carlos Nicodemos em artigo deste livro, no
qual afirma que a “dita questão atualmente determina um longo processo histórico
de negação de direitos, que reflete na absoluta falta de condições de exercício de
cidadania, desembocando num cenário social vazio de dignidade”. Junte-se a esse
vazio uma falta de tradições – jurídicas, políticas, lingüísticas etc.

1
“O direito a um meio ambiente equilibrado inscreve-se entre os chamados Direitos [Humanos] de
Terceira Geração”. É, portanto, um direito da humanidade. SOCHACZEWSKI, J. Água de beber ainda
é um direito a conquistar. In Revista MaisHumana, n. 8, nov. 2005, p.7.
2
SOCHACZEWSKI, J. Educação para o ambiente: quadro negro ou mudança de paradigma escolar?.
In VALENÇA-BARROS, SOUSA e SOCHACZEWSKI, 2005.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 71

A resposta de seus setores populares mais combativos tem sido buscar arrancar dos
diferentes governos, dos diferentes níveis de governo, a adoção e a manutenção de
políticas públicas que sejam os trilhos sobre os quais a locomotiva sócio-
econômica movimente-se em nova e acelerada direção. Tal ânsia, justíssima, por
vezes faz-nos esquecer que grandes políticas são, sempre, aplicadas por pessoas,
mesmo que através de mecanismos institucionais.
Este detalhe é particularmente verdadeiro quanto tratamos de questões ambientais.
O macrouniverso, embora potencialmente mais perigoso, por oferecer riscos e
ameaças de maiores proporções, não é sempre o maior poluidor. Exemplo disso é a
aplicação do PDGB (Programa de Despoluição da Baía da Guanabara) no Estado
do Rio de Janeiro, que adotou como foco mais problemático o despejo de esgotos
domésticos não tratados no mar. Em suma, o conjunto de moradias do município
de Duque de Caxias suja mais a Baía que as indústrias de seu entorno. O
microuniverso residencial é de dificílima fiscalização, enquanto um punhado de
grandes ou mesmo gigantescas indústrias pode ser mais facilmente ajustado e
vigiado.
Por que, entretanto, ocuparmo-nos dos chamados ambientes in-door públicos
(escolas, hospitais) ou domésticos quando tantos agentes mais perniciosos infestam
o mundo contemporâneo? É momento desta pergunta.
Para começar, é o principal ambiente da criança. Ademais, resolver ou minimizar
um problema ambiental doméstico, do lar, está próximo ao nosso campo pessoal de
poder – ou seja, é bem possível.
Costumamos temer ameaças de contaminação nuclear, guerra bacteriológica, redes
de alta tensão, antenas de telefonia. Na mesma medida, tendemos a ignorar a
chamada saúde ambiental doméstica in-door, a que invade nossas casas à revelia:
água encanada contaminada ou clorada em excesso; químicas não especificadas ou
acima das especificações, agregadas a alimentos; mas ignoramos também a que
carregamos para lá por opção própria: gás de cozinha, usado em ambiente
impróprio; vapores residuais de aerossóis e de produtos inseticidas e de limpeza em
geral; restos nocivos de detergentes, especialmente deixados por máquinas de lavar
louça. São componentes na maioria novos, cuja quantidade de uso só aumenta e
que quando do filme Guerra dos Mundos eram desconhecidos do organismo
humano.
Contaminantes como esses vêm sendo estudados. Publicações surgem em número
razoável numa consulta a bases de dados como o Medline. Contudo, a maior parte
dos trabalhos dedica-se a estudar os ambientes coletivos; do restante, a maior parte
estuda ambientes in-door de uso público. A pequena porcentagem de estudos que
entra em nossas casas dedica-se na quase totali-dade a investigar a existência deste
ou aquele resíduo (inclusive de metal pesado) no ar, na água, em aparelhos de ar
condicionado, na louça, na comida, nos estômagos. Sobram muito poucos que
tentem relacionar esses contaminantes aos tipos de produto consumidos, ou ainda a
possíveis patologias. Entretanto, acompanhamentos clínicos esparsos e empíricos já
indicam que, além das sabidas alergias, a exposição a certos elementos é capaz de
induzir o aparecimento precoce de doenças degenerativas em seres humanos.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 72

Exemplo: morar em uma casa em obras pode desencadear alergias sérias, além de
contaminação por amianto, chumbo, entre outros materiais utilizados em
construções.
Não faltam motivos que indiquem a necessidade de mais atenção a nossas
moradias. Entre tais motivos, relacionamos: a efetiva possibilidade de
transformarmos nosso habitat sem depender de ações governamentais,
incrementando a partir do privado um aspecto importante de saúde pública; a
grande quantidade de pessoas que podem ser atingidas – no mínimo, todas as que
têm onde morar; o tempo que permanecemos em ambiente doméstico fechado,
tempo que, sem dúvida, é cada vez maior no que diz respeito às crianças e jovens.
Para isso, depende-se de um mesmo ponto de partida: informação.
Entendemos este texto como uma simples reflexão e proposta de reflexão, na qual
fazemos um breve apanhado geral do tema, com pinceladas de desdobramentos.
Instiga-nos, principalmente, a uma futura revisão detalhada do assunto, como base
a estudos futuros que, reiteramos, são cada vez mais necessários à manutenção de
nossa saúde com destaque para as crianças, que já nascem e vivem em ambiente
poluído por nosso excesso de desinfecção.

Bibliografia (Fonte: Medline)


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Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 74

Cidadania e Direitos da Criança e do Adolescente


Nivia Valença Barros, Maria Euchares de Senna Motta, Cenira Duarte Braga,
Jacques Sochaczewski, Simone Sant’Anna

PANORAMA CONTEXTUAL

O Brasil se apresenta hoje como a 10ª economia mundial e, contraditoriamente, é


considerado um dos países mais desiguais do mundo. A concentração de renda re-
flete esta desigualdade: quando 1% dos segmentos mais ricos da população detém
13,9% da renda, 40% dos segmentos mais pobres contam com 8,9% do total da renda
nacional1. Essa injustiça se agrava se considerarmos as desigualdades junto aos
grupos mais vulneráveis de nossa sociedade, principalmente a infância e a juventude.
A vulnerabilidade de crianças e adolescentes é uma questão social, que implica no
compromisso social de enfrentamento frente a estas situações, tanto individual
como coletivamente, tanto nas questões globais quanto nas existentes
cotidianamente nas diferentes esferas em que estão inseridos estes sujeitos sociais –
crianças e adolescentes.
O processo discriminatório das crianças e adolescentes oriundas das comunidades
pobres, e a caracterização de localidades mais carentes como sendo locus
estritamente violentos, são fatores que possibilitam sua criminalização. Para
assegurar proteção integral à infância e juventude é preciso que não haja
discriminações em torno desta população. É claro que as desigualdades sociais, a
ausência de oportunidades, a miséria já são fatores de violência social.
Neste contexto estrutural da sociedade e do Estado brasileiro, os dados disponíveis
sobre a situação das crianças e dos adolescentes ainda revelam um verdadeiro
"apartheid" entre as conquistas jurídicas institucionais e a eficácia das políticas
sociais para efetivar direitos e a proteção integral. As políticas sociais, em sua
maioria, têm reproduzido a desigualdade existente na sociedade, e mesmo com a
descentralização das políticas públicas persiste o assistencialismo como modelo
que fundamenta os programas, reforçando suas características seletivas e o caráter
residual das ações.
A expansão do capitalismo tem gerado profundas contradições sociais, que se
expressam pela sociedade desigual e pela pobreza crescente da grande maioria da
população. Podemos considerar que estas desigualdades são expressas pelas
violações de direitos sociais, pelas condições de privação e pela iniqüidade e
abandono a que estão submetidas crianças, adolescentes e suas famílias.
Nas últimas décadas, as políticas sociais emergem sob o impacto da modernização,
do autoritarismo, da mundialização da economia, da precarização do trabalho, da

1
CECRIA , 2001.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 75

vulnerabilidade social2 e da crescente intolerância às minorias (crianças, idosos,


grupos étnicos, mulheres). As políticas sociais refletem este contexto e trazem em
si as marcas da dominação, da vulnerabilidade e da exclusão. Mas mesmo que estas
situações sejam as hegemônicas, elas não se estabelecem, e são naturalizadas como
processos normais de desenvolvimento. Existem resistências, confrontos e
enfrentamentos contra-hegemônicos, que se dão de diferentes formas, nem sempre
evidentes, mas que estão presentes. Em toda a história da sociedade brasileira
encontram-se histórias de resistência e de lutas muitas vezes não consideradas. A
sabedoria popular reconhece que a história oficial é a dos vencedores, ou melhor,
dos dominadores. A trajetória histórica da infância e da adolescência não foi
fundamentalmente diferente. O marco diferencial neste processo se dá, nos anos de
1980, com o movimento3 pela defesa dos direitos da infância e juventude, que
culmina em 1990 com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069).
Este movimento de luta e reivindicação abarcou vários segmentos da população e
dos movimentos sociais, e contribuiu para a formulação e para a inclusão da
normatização dos direitos do cidadão na Constituição Federal e no ECA, sendo o
resultado do contexto sócio-político que confluía na época, de redemocratização do
país e luta pela consolidação da cidadania.

O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Os anos 1980, no Brasil, constituíram um período marcado por grandes


mobilizações em defesa da redemocratização do país, dos direitos civis e humanos
e de luta pela cidadania. A Constituição Federal de 1988 foi o grande marco
referencial de luta por uma sociedade mais democrática. É considerada a
Constituição Cidadã, pois é uma referência para toda a legislação em prol da
cidadania e do Estado de direito que se instala no país pós-regime de exceção que
vigorou por 21 anos. Esta constituição modela uma relação do Estado e sociedade
com maior participação social, maior controle social e maior descentralização do
poder. No bojo da Constituição foram conquistados o ECA4, o SUS5, a LDB6, a
LOAS7. Estas leis deveriam estabelecer um novo modelo de sociedade e de
proteção social.
O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA completou 15 anos e tem sido
bastante polêmica a sua implementação. Apesar da luta pela transformação na
forma de se perceber e no modo de tratar a infância e a juventude, e apesar das

2
Categoria trabalhada por Castel: "A vulnerabilidade social é uma zona intermediária instável, que
conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de proximidade. A zona de
vulnerabilidade alimenta as turbulências que fragilizam as situações conquistadas e desfazem os
estatutos assegurados. A vulnerabilidade nascia do excesso de coerções enquanto agora aparece
suscitada pelo enfraquecimento das proteções.” (Castel, 1998:24).
3
Destacamos como relevante na pressão exercida para a consolidação do ECA a participação do
MNMMR, o apoio do UNICEF, Pastoral do Menor - CNBB, Centros de Defesa dos Direitos Humanos,
OAB e ONGs em geral. OLIVEIRA, 1999: 44
4
ECA - Lei 8.069 - 13/07/1990
5
SUS - Lei 8.080 - 19/09/1990
6
LDB - Lei 9.394 - 20/12/1996
7
LOAS - Lei 8.742 - 07/12/93
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 76

conquistas efetivadas, ainda é necessária uma constante e permanente afirmação de


sua viabilidade.
Fatores como a naturalização das desigualdades sociais, como a criminalização da
pobreza, como as campanhas segregacionistas veiculadas pela mídia, contribuem
para que haja questionamentos sobre a viabilidade deste Estatuto.
O estabelecimento da Doutrina de Proteção Integral, adotada pelo ECA, representa
um movimento de ruptura com uma organização clientelista-repressiva do Estado e
da sociedade, articulada pelo poder dominante das elites. É com base nessa
doutrina que o ECA volta-se indiscriminadamente à proteção de todas as crianças e
jovens deste país.

CIDADANIA, RELAÇÕES FAMILIARES E A INFÂNCIA E


ADOLESCÊNCIA

A família mantém interações com o contexto social em que está inserida, de forma
dinâmica. É uma organização complexa, espaço de intimidade e socializações,
constitutiva de identidades pessoais e grupais, de conflitos e conquistas. Na família
se organizam, se formam, se produzem e reproduzem as interações de seus
membros e destes com a sociedade em geral.
Os conflitos familiares são permeáveis às experiências individuais e destes com
outros segmentos sociais, permitindo interações sociais e socializações,
caracterizando uma estrutura dinâmica.
A desconstrução de um modelo familiar idealizado e estático pressupõe uma visão
de família como uma unidade dinâmica inserida em relações sociais, que interagem
com as transformações cotidianas da realidade social e não podem ser
uniformizada nem universalizada enquanto paradigma único de funcionamento da
sociedade. A idealização da família faz com que pareça que em seu interior as
relações sejam um bloco, todo harmônico e solidamente construído, as relações
estabelecidas desfiguradas em um todo estruturado, onde as diferenças e conflitos
devem ser camuflados em nome de uma aparente perfeição. E se os conflitos
inerentes a todas as relações sociais são camuflados, as distorções destas relações
são ainda mais veladas.
De acordo com Bilac8, a família pode ser vista na sociedade brasileira de maneira
diversa nos diferentes grupos e classes sociais. Diversidades que, muitas vezes,
foram obscurecidas pelos modelos de análise adotados, principalmente pela
tipologia de família que servia de base a estas análises e explicações. Não existem
apenas modelos diferentes de famílias, mas as relações destas famílias com os seus
Membros, com o Estado, com o Trabalho e com o Consumo são estabelecidas de
forma diferenciada. A partir da constatação dessa diversidade é que podemos
escapar aos perigos de uma naturalização da família, entendendo-a enquanto um

8
Bilac, E. D. 1995.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 77

“grupo social cujos movimentos de organização-desorganização-reorganização


mantêm estreita relação com o contexto sócio-cultural ”.9
As violências ocorridas no interior das famílias ainda são ocultadas, seja pela
própria família ou pela sociedade. A família é, assim, palco de múltiplas
armadilhas, em seu interior as pessoas são ainda mais vulneráveis, pois é
representada como locus de proteção, afeto, acalanto e aconchego. As interações
que deveriam ser de apoio, compartilhamento e crescimento, muitas vezes, tornam-
se de perigo e opressão, sendo, nestes casos, prioritariamente, um ambiente de
estresse, ameaça, perigo e intolerância às diferenças e aos conflitos. A coisificação
dos sujeitos sociais e o aniquilamento da possibilidade de expressão das crianças e
adolescentes, que vivenciam estas situações, passam a ser a marca da dinâmica
familiar, que se manifesta em violência física, social, sexual, emocional e
simbólica.
Em relação à violência intrafamiliar, Rifiotis10 trata da “perspectiva de risco, que
aceita a idéia de que a complexificação da sociedade advém de acordos e
convenções criados a partir de interesses e lógicas coletivas e individuais diferentes
que estão presentes em nossa sociedade. Nesta visão, a violência intrafamiliar não
seria uma anomalia, mas uma possibilidade constantemente colocada, um risco
sobre o qual deveríamos agir preventivamente. A ação social, nesta perspectiva,
passa a ser a de identificação de situações potencialmente de risco, visando a
previsão desses cenários e as correspondentes medidas de proteção”.
As medidas de proteção e prevenção da violência familiar são uma necessidade
social, pois a violência ocorre, geralmente, entre as pessoas mais vulneráveis nas
interações estabelecidas. É um fato a própria vulnerabilidade das crianças e
adolescentes, que não têm como estabelecer relações de igual poder na estrutura
familiar e muitas vezes introjetam, como dificuldades suas, a violência sofrida. É
uma questão social a garantia de vida e sobrevivência a todos os seus membros.
Mas a constatação da existência da violência familiar não deve ser focalizada como
estratégia de controle e poder sobre as famílias, principalmente as famílias mais
permeáveis aos controles sociais e repressivos, isto é, as famílias mais pobres.

“... reconhecer o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes corre


o risco de constituir-se em justificação moral para uma nova investida de
poder sobre o espaço familiar, como veículo de controle”. 11

As representações sociais sobre família são construídas em contextos sócio-


históricos, que a definem como sendo um espaço de prestígio, considerado como o
núcleo central de nossa sociedade e o núcleo de pertencimento mais apropriado
para as crianças e os adolescentes. Mas historicamente, a família patriarcal tem
seus paradigmas centrados no poder do patriarca sobre a mulher, filhos,
trabalhadores, enfim, relações de poder e domínio. A representação social da
família cristã, sacrossanta, foi sendo construída como paradigma único e comum a

9
AFONSO e FILGUEIRAS, 1995: 6.
10
Rifiotis, T., 1999: 155.
11
GONÇALVES, H. 2001: 72.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 78

toda a sociedade. O pertencimento, o papel e a importância da criança em nossa


sociedade, assumiu as formas que conhecemos só recentemente12. Amor e afeto
inerentes às relações familiares são sentimentos recentes na estrutura familiar, que
estabeleciam seus laços baseados em transações patrimoniais, melhores posições
sociais, domínio e opressão.
Pesquisadores analisam alguns traços13 que podem ser observados na família
contemporânea e que contribuem para esta nova representação de espaço perigoso
e violento: a sua dessacralização, com perda de status social e econômico; a
mobilidade das pessoas e perda dos vínculos afetivos; casais que se distanciam de
suas famílias de origem, centrando sua atenção em busca de melhorias no trabalho
e na luta pela sobrevivência de forma mais isolada; a perda do prestígio do papel
feminino, segundo o qual a mãe seria o “esteio do lar”, ao mesmo tempo que cada
vez mais assume sozinha a responsabilidade pela manutenção de toda a família; o
decréscimo da valorização da família como principal espaço de educação das
crianças e busca de novas formas de educar, permitindo a entrada de profissionais
“especialistas da educação” que determinam novos padrões de “normalidade”; a
incorporação de métodos contraceptivos e acentuada diminuição do número de
filhos, e maior independência da estrutura familiar; a maior inserção da mulher no
mercado de trabalho, o que acarreta mudanças na divisão de tarefas domésticas; a
incorporação do discurso médico-higienista nos padrões do que seja a família; a
insegurança na maneira de educar, trazendo para o cenário familiar a figura de
profissionais qualificados (professores, terapeutas, médicos, religiosos); a
acentuada importância do papel econômico dos pais na manutenção da família,
para a garantia de educação dos filhos e seu futuro; a ida precoce das crianças à
escola e aumento da escolaridade da população; o maior intercâmbio entre crianças
devido aos espaços da casa serem, cada vez mais, menores; a grande influência da
mídia, com a presença constante da TV, delineando padrões de comportamento,
pouca conversa e convivência; inserção por mais tempo dos jovens, dependente da
família, principalmente pelo tempo gasto na educação formal; menores punições
físicas (educativas) e mais incentivos.
Algumas famílias tentam se fechar em sua própria estrutura, mas é inegável que as
famílias sofrem a influência do seu tempo e também o influenciam, mantendo um
ativo intercâmbio social. Crises, transformações, organização, reestruturações e
manutenções são fases próprias porque passam as famílias e seus membros
isoladamente ou em conjunto, que lhes permitem crescer, desenvolver-se e
fomentar novas relações. A família tem sempre uma trajetória que a torna única,
tem uma história própria, e seus membros criam sua própria história.
A família também é representada como a própria casa, espaço que permite um
distanciamento do “resto do mundo”, que teria linguagem e comportamentos
próprios, entendidos por seus membros, permitindo um distanciamento, um espaço
reservado somente para seus membros.

12
ARIES, 1978.
13
SCABINI, E., 1992. FIGUEIRA, S. A., 1987. COSTA, J. F., 1983. BIASOLI-ALVES, Z. M. M.;
CALDANA, R.H. L. e DIAS DA SILVA, M. H. G. F. 1997. FUKUI, L., 1989, 12p.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 79

A família pode manter o intercâmbio interior-exterior de forma saudável, que


promova o crescimento de seus membros por contínuas trocas e aprendizados,
mantendo os laços de proteção, afetos, comprometimentos e responsabilidades; ou,
por outro lado, a proteção sentida na família pode dar a sensação que o mundo fora
dela é ameaçador e perigoso, mantendo seus membros presos a sua estrutura ou até
mesmo fazendo-os sentirem-se oprimidos por esse sistema.
O grau de violência a que estamos expostos produziu impactos profundos nos
desenhos das famílias, provocando rupturas e levando-as a reinventar a lógica da
solidariedade – comum às famílias das camadas populares, enquanto estratégia de
sobrevivência necessária à sua reprodução cotidiana.14 Esta lógica redefine valores
e subordina projetos individuais aos interesses e necessidades do grupo familiar.
Falar em família pressupõe pensar as diferenciações por classe também. Por que a
família para o pobre não é a mesma que para a classe média. Família para o pobre é
definida, segundo Sarti15 como aqueles em quem se pode confiar: não havendo
status ou poder a ser transmitido, o que vai definir a extensão da família é a rede de
obrigações construídas: são da família aqueles com quem se pode contar, isto quer
dizer, aqueles que retribuem ao que se dá, aqueles, portanto, para com quem se
tem obrigações.16 A família se define, assim, em torno de um eixo moral; onde a
noção de obrigação sobrepõe-se à de parentesco.17 Consideramos a definição de
definição de família não como um núcleo, mas como uma rede, muito pertinente
para a nossa sociedade. Nesta concepção a família seria uma rede que se ramifica e
envolve a gama de parentes e vizinhos, configurando uma trama de obrigações
morais que enreda os indivíduos em dois sentidos: ao dificultar sua
individualização e ao viabilizar sua existência como apoio e sustentação básicos.
18
No universo cultural dos pobres, não estão dados os recursos simbólicos para a
formulação de um projeto individual que pressupõe condições sociais específicas
de educação e valores sociais também específicos, muitos dos quais alheios a seu
universo cultural. Segundo Sarti, ao invés de um projeto individualista moderno, é
a tradição que se mantém como uma referência fundamental em suas existências, já
que pensam seu lugar no mundo a partir de uma lógica de reciprocidade de tipo
tradicional em que o que conta decisivamente é a solidariedade dos laços de
parentesco e de vizinhança com os quais viabilizam sua existência.19 Se, ao nível
das representações sociais, existe a busca em serem “modernos”, de realizar
projetos individuais, essa é uma busca frustrada, na medida em que sentem o peso
de sua subordinação social. Como afirma a autora20, as potencialidades do mundo
contemporâneo são amplas, mas é árdua a tarefa de realizá-las.

14
SALEM, 1986
15
SARTI, 1995.
16
SARTI, 1995: 52.
17
Utilizando o pensamento de Marcel Mauss, afirma que não há relações com parentes de sangue, se
com eles não for possível dar, receber e retribuir, as três obrigações fundamentais que compõem este
universo moral fundado no princípio da reciprocidade.
18
SARTI, 1995: 49.
19
SARTI, 1995: 47
20
SARTI, 1995
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 80

Para o enfrentamento destas questões, a rede de proteção social são partes


essenciais. As famílias pobres são marcadas por uma grande instabilidade
ocasionada por separações, morte, dificuldades econômicas e pela inexistência de
instituições públicas que substituam eficazmente as suas funções (especialmente
em termos protecionistas); dessa forma, as crianças tornam-se responsabilidade de
toda a rede de solidariedade em que a família está envolvida. Como relembra Sarti,
no universo cultural dos pobres não estão dados os recursos simbólicos para a
formulação de um projeto individual que pressuponha condições sociais específicas
de educação e valores sociais também específicos, muitos dos quais alheios a seu
universo cultural. Segundo Sarti, ao invés de um projeto individualista moderno, é
a tradição que se mantém como uma referência fundamental em suas existências.21

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21
SARTI, 1995: 47.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 81

A Importância de um Efetivo Fluxo de


Atendimento após a Identificação e Diagnóstico
da Violência Doméstica contra Crianças e
Adolescentes
Sandra Ricardo Carneiro, Nivia Valença Barros (Orientadora)

A violência doméstica contra crianças e adolescentes é um grave problema social e


vem se perpetuando ao longo dos anos. Para autores como Lloyd deMause1: “A
história da infância é um pesadelo do qual recentemente começamos a despertar.
Quanto mais regressamos na história, mais reduzido o nível de cuidado com as
crianças, maior a probabilidade de que se houvessem sido assassinadas,
espancadas, aterrorizadas e abusadas sexualmente”. (1975)
Foi apartir do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA – Lei n°8069/90, que a
família, o Estado e a sociedade foram responsabilizados em relação à garantia dos
direitos. Foram estabelecidas políticas públicas com um olhar voltado para o bem-
estar integral da criança e do adolescente. Para autores como Maria Cristina Leal2 a
primeira revolução que o Estatuto promoveu nas áreas jurídica, social e política
reside na mudança da concepção de infância e adolescência, “anteriormente
compreendidas como fases da vida destituídas de direitos e que, portanto,
precisavam simplesmente de tutela. Pela nova concepção, instituída pelo ECA,
crianças e adolescentes passam a ser vistos como sujeitos em situação peculiar de
desenvolvimento”(Maria Cristina Leal, 2004 p.148).
No entanto, se for feita uma séria avaliação das conquistas estabelecidas pelo ECA
no que tange a questão da proteção integral, pouco mudou em relação ao efetivo
cumprimento dos direitos garantidos na lei. Embora o Estatuto garanta no artigo 18
que “ É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os
a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor’’, o que se percebe é o grande número de crianças/adolescentes
tendo seus direitos violados dentro de seus lares. Pois a violência sexual doméstica
contra crianças e adolescentes, que é o recorte desse trabalho, ocorre dentro dos
lares, lugar este que deveria ser de proteção.
Segundo Maria Amélia Azevedo e Viviane Nogueira de Azevedo Guerra3, entende-
se por violência sexual doméstica e incesto:

Todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual entre um ou


mais adultos e uma criança menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular
sexualmente a criança ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre
sua pessoa ou de outra pessoa... Daí devermos substituir na definição acima a
expressão adulto – genérica demais – por pais (biológico, por afinidade),

1
DEMAUSE, L. 1975. “ A história da infância e a história da violência física doméstica contra crianças e
adolescentes” in GUERRA, Viviane N. de A..Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada. São
Paulo: Cortez , 2001.
2
SALES, Mione Apolinário; MATOS, Maurílio Castro de; LEAL (Orgs.) Política Social, Família e
Juventude uma Questão de Direitos.São Paulo: Cortez, 2004.
3
AZEVEDO, Maria A. e GUERRA, Viviane N. de A. Apostila do Curso de Especialização em Violência
Doméstica contra Crianças e Adolescentes. Módulo 2. LACRI-USP
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 82

responsáveis (tutores...), parentes (irmãos, avós, tios, primos...). O fato de se


tratar de uma violência sexual doméstica contra crianças e adolescentes
permite classificá-la como incestuosa entendendo-se por incesto toda
atividade de caráter sexual, implicando uma criança de 0 a 18 anos e um
adulto que tenha para com ela seja uma relação de consangüinidade seja de
afinidade ou de mera responsabilidade. (Azevedo e Guerra, 1988/1989 p.8)

Em pesquisas realizadas no centro Regional aos Maus-tratos na Infância4 percebeu-


se que as famílias incestogênicas, ou seja, onde ocorrem situações de incesto, têm
características bem peculiares, “estas famílias são vistas como estruturas fechadas
em que seus componentes tem pouco contato social, principalmente a vítima. A
obediência à autoridade masculina é incontestável, tem um padrão de
relacionamento que não deixa claras as regras de convivência e a comunicação não
é aberta, o que facilita a confusão da vítima e, conseqüentemente, o complô do
silêncio (como revelar o que não se consegue definir, o que não se comenta, o que
“não aconteceu”, o que não “existe”?) (CRAMI 2002).
No tocante à criança/adolescente, a “quebra do muro do silêncio” pode
proporcionar-lhe um alívio. Por outro lado, Deltaglia5 assinala “que a culpa das
crianças que denunciam os abusos, mesmo em casos de incesto, não é tão evidente
nem freqüente quanto se afirma. Ela acredita que muitas crianças se sentem
aliviadas por falar. O silêncio da criança ou do adolescente é tóxico para eles. Às
vezes, a curto prazo – mas normalmente só a longo prazo – podemos avaliar o
impacto e as conseqüências efetivas do trauma sofrido”. (1990) Paralelamente, a
vítima passa por outro sofrimento que é provocado pela ansiedade perante o que
pode vir a acontecer com sua família, principalmente com o agressor que segundo
Azevedo e Guerra6 geralmente é homem, pai padrasto, parente ou pessoa que tem
proximidade ou afeição para com a vítima e é de sua confiança. “O agressor
incestuoso (...) é tipicamente um Agressor Sexual Situacional do tipo regredido que
abusa de seus próprios filhos...”.
Devido aos danos provocados pela violência sexual contra crianças e adolescentes,
a prioridade é evitar que ocorra. Neste sentido há consenso de que a mais
importante política de enfrentamento dessa problemática é a da prevenção. No
entanto após o fato ocorrido, ou seja, após a violação de direitos humanos
universais, de regras sociais e familiares, deve-se impetrar ações e intervenções
com vistas à resolubilidade da Violência sexual. É nesse contexto que o trabalho
social em rede terá seu papel primordial em consonância com o artigo 86 do ECA7
garantindo que “a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente
far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-
governamentais, da União, dos estados, do distrito Federal e dos municípios”.

4
CRAMI – Centro Regional aos Maus-tratos na Infância. Abuso Sexual Doméstico: Atendimento e
Responsabilização do Agressor. São Paulo: Cortez, 2002.
5
DELTAGLIA, L. “Etude psychosociale de 44 dossiers d’expertise d’enfants victimes d’abus sexuels”.
In GABEL, Marceline. Crianças Vítimas de Abuso Sexual. São Paulo: Summus, 1997.
6
AZEVEDO, Maria A e GUERRA, Viviane N. de A. Crianças Vitimizadas: A Síndrome do Pequeno
Poder. São Paulo: Iglu, 1989.
7
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: CEDCA, 2003
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 83

A rede é uma aliança de atores/forças, num bloco de ação, ao mesmo tempo,


político e operacional . Na rede de enfrentamento dos crimes sexuais contra
crianças e adolescentes, o circuito pelo qual circulam as notificações de situação de
violência sexual até sua resolubilidade não possui um só percurso, mas três
caminhos que são chamados por Vicente de Paula e Eva Teresinha Silveira
Faleiros8 de fluxos:

Nesses fluxos as relações são contraditórias, pois se inscrevem num processo


conflituoso e aberto. O fluxo legal implica o poder dos atores da justiça e sua
interação; no fluxo de atendimento são os profissionais e as redes que
exercem o poder de intervenção dentro das condições existentes. A proteção
da criança e a defesa de direitos envolvem família, sociedade organizada e o
sistema de garantia de direitos. Nesses fluxo o entraves e as facilidades estão
articuladas ás relações de poder, concepções, dispositivos e condições
desiguais. (FALEIROS, 2001 p.27)

Assim neste artigo procuro ressaltar a importáncia de um efetivo fluxo de


atendimento após a identificação e diagnóstico da violência doméstica contra
crianças e adolescentes no município de Niterói. Para os autores Roseli da Fonseca
Rocha e Alexandre Ferreira Nascimento9 “a Rede Municipal de Atendimento à
Criança e ao Adolescente Vítimas de Maus Tratos, ao longo dos seus cinco anos de
existência vem se constituindo numa experiência positiva no que tange à
implementação e integração de políticas públicas. O amadurecimento alcançado ao
longo deste processo de constituição da Rede permite, hoje, que atores envolvidos
avaliem a necessidade de sua ampliação, abrangendo todas as crianças e
adolescentes do município, preservando, no entanto, as peculiaridades de grupos
que demandam atenção específica. Desta forma, o processo de tecer a Rede é
constante e permanente, oferecendo aos atores participantes um novo desafio:
ampliar a atuação da rede, envolvendo novos atores em defesa dos direitos da
criança e do adolescente, tornando-se assim: Rede Municipal de Atenção Integral à
Criança e ao Adolescente”. (ROCHA e NASCIMENTO, 2005 p.71)
Porém não basta tecer a Rede, e sim tirar os “nós” que dificultam o acesso aos
serviços de atendimento terapêutico, para que estes possam prestar um atendimento
digno a toda a família envolvida na situação da violência sexual. Pois “a concepção
jurídico-policial, repressiva e punitiva da resolubilidade da violência sexual,
entendida principalmente como a punição do abusador, tem como conseqüência,
muitas vezes, a negligência e o descuido com a defesa de direitos e o atendimento
das pessoas envolvidas nas situações de violência sexual (vítimas, familiares e
violentadores) e de seus sofrimentos, que são negligenciados, desconsiderados,
descuidados, desatendidos”. (FALEIROS, 2001 p.23)

8
FALEIROS, Vicente de Paula e FALEIROS Eva Teresinha Silveira (Coords.). Circuito e Curtos-
circuitos: Atendimento, defesa e Responsabilização do Abuso contra Crianças e Adolescentes. São
Paulo: Veras, 2001.
9
ROCHA, Roseli da Fonseca e NASCIMENTO, Alexandre Ferreira. Uma Reflexão Acerca do Processo
de Formulação e Implementação da Rede de Atendimento Integrado à Criança e Adolescente de
Niterói. In BARROS, Nívia; SOUSA, José Nilton de; SOCHACZEWSKI, Jacques. Olhares: Criança e
Adolescente. Niterói: PROEX/UFF, 2005
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 84

A Lei está presente apenas nos livros garantindo os direitos, pois as


crianças/adolescentes continuam desprotegidas, tanto na esfera do poder público –
no trato de políticas efetivas, quanto na esfera privada, quando há ocorrência da
violência familiar, ferindo sua integridade física e moral.
A ausência de uma intervenção incisiva e ágil com o objetivo de proteger e tratar a
vítima da violência e paralelamente preservar o núcleo familiar, produz grandes
danos nas famílias e reforça a ineficiência das instituições envolvidas no caso.

“As vítimas do incesto quando não são protegidas e não têm a chance de ser
tratadas, tendem a reproduzir a relação incestogênica, podendo continuar com
o ciclo perpetuador do incesto. Mas se lhes for apresentada a chance de ter
seus direitos respeitados, de serem compreendidas e terem um tratamento
adequado, sua história de vida poderá ser escrita sob outro ponto de vista,
refazendo relações com base na afetividade e não na violência”. (CRAMI,
2002 p.39)

Na realidade são poucas as instituições legítimas para o trato com a questão, que
realizam um efetivo acompanhamento da vítima e promovem o resgate dos
vínculos afetivos familiares desenvolvendo medidas de apoio à reestruturação
familiar como: visitas domiciliares; acompanhamento social; estudo dos casos e
encaminhamento das famílias, em grupo ou individualmente para psicoterapia,
proporcionando às famílias um espaço de reflexão e ação rumo a uma
reestruturação familiar.

“Quando a família tiver se reestruturado a ponto de perceber o que aconteceu


consigo, tiver conseguido entender as interfaces da relação incestogênica que
se formou, quando as vítimas estiverem protegidas, o processo judicial
encerrado e as pessoas mostrarem que podem caminhar sozinhas sem risco de
revitimização e que conseguem lidar com a devastação trazida pelo incesto,
será a hora de encerrar o acompanhamento do caso...se a situação demandar
atendimento psicossocial, este será realizado pontuando-se a necessidade
específica levantada, tomando o cuidado para não caracterizar uma ação
paternalista com a família”. (FALEIROS, 2001 p.38)

Após verificarmos que algumas crianças, adolescentes e famílias, pois não


podemos tratar a vítima isolada do seu contexto familiar, vítimas de violência
sexual, não têm tido o acompanhamento adequado após o diagnóstico da violência
é que resolvemos estudar o fluxo da rede Municipal de Atenção Integral à Criança
e ao Adolescente de Niterói. É nesse campo que este trabalho busca acrescentar,
trazendo à discussão assunto de tamanha relevância social.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 85

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Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 86

Gravidez na Adolescência
Camila Fernandes Pinto

Este artigo trata da temática referente a: “Gravidez na adolescência”. Embora o


tema tenha repercursão recorrente na grande mídia, ainda há muitas questões a
serem vistas e muitos aspectos a serem resolvidos. O próprio conceito de
adolescência implica algumas observações, se hoje em dia uma jovem de 15 anos
engravida, essa gravidez é considerada “precoce”. Há algumas décadas atrás era
comum nesta idade uma jovem já ser casada e ter iniciado sua vida reprodutiva.
Neste ínterim processos históricos e sociais, como as lutas feministas, a saída da
mulher para o espaço público, e as próprias mudanças nas relações de gênero,
remetem a esta questão novas configurações.
Considera-se, de modo geral, como adolescência o período de 10 a 20 anos, sendo
que o Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza a idade de 12 a 18 como
adolescência. Hoje no Brasil a população de jovens nesta faixa etária é de 21% e
encontram-se na faixa dos 10 aos 19 anos. (Fonte: IBGE, 2000). No Programa de
Planejamento Familiar do Hospital Universitário Antônio Pedro é expressiva a
busca de métodos contraceptivos por parte de jovens mães, algumas delas já
cogitaram a possibilidade de laquedura de trompas, por terem decidido não mais ter
filhos. Dados da BENFAM, indicam que 32,8% das (os) adolescentes
brasileiras(os), entre 12 e 17 anos, já haviam tido relações sexuais. Em 1999, o
Brasil possuía 23% de mães menores de 20 anos de idade (Fonte: Ministério da
saúde 2004). Números que revelam um pouco do perfil dos jovens brasileiros, pois
existem especificidades de classe, gênero e etnia, que certamente trazem enfoques
distintos ao debate. Como exemplo da constatação que; “a maior escolaridade
retarda a iniciação sexual, tanto para rapazes quanto para moças” (Fonte: Rede
Feminista de Saúde).
No cerne da discussão, valores culturais entram em voga a respeito das relações
precoces, no entanto, independente do mérito há esses valores adquiridos o grau de
intimidade e maturidade entre os jovens no começo do relacionamento sexual nem
sempre é tomado de segurança relativa a prevenção de DST`s/AIDS e gravidez. Em
geral o conhecimento dos métodos contraceptivos é razoável, como figura principal
está o preservativo masculino. Entretanto apenas 44% das jovens, entre e 15 e 24 anos,
afirmaram ter feito uso de algum tipo de método. Entre os homens a maior parte já
usou camisinha. Percebe-se também um aumento na procura por contracepção de
emergência por adolescentes. O uso deste não provocou abandono ou substituição do
uso de outros métodos contraceptivos. (Fonte: Rede Feminista de Saúde).
Considerando estes números e as inúmeras experiências de profissionais nas áreas
de saúde , educação e afins. Podemos questionar como tem sido pensado e
realizado os programas sociais a este segmento da população. Campo de reflexão
que se encontra na esfera dos direitos sexuais e reprodutivos. Projetos de educação
sexual nas escolas são primordiais, já que os estudos deste tipo associam
fecundidade e escolaridade. No Brasil, 1996, a proporção de mulheres de 15 anos
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 87

que já tinha começado sua vida reprodutiva chegava a 55% entre as que não tinham
nenhuma escolaridade; 19% entre as que tinham de 5 a 8 anos de estudos, e menos
de 10% entre as que tinham de 9 a 11 anos de estudo. (Benfam, 1996). Além do
mais sabe-se que muitas das jovens que engravidam abandonam suas escolas e
projetos pessoais. Formam-se redes sociais informais de suporte ao novo filho.
Caracterizando arranjos domésticos precários e uma forte ausência do Estado na
assistência destas famílias.
Os motivos para a não interrupção de uma gravidez são vários, que vão desde a
ingenuidade, submissão, dificuldade de acesso de obter algum método
contraceptivo, até mesmo a expectativa de mudança de status social, o tornar-se
mãe muitas vezes representa mais respeito e credibilidade diante da comunidade
que se está inserida. Porém há aquelas jovens que optam pelo aborto, e não são
poucas. A maioria feito em condições clandestinas resultam em mortalidade
materna. O número de adolescentes que passam pelos serviços do SUS para
corrigir as seqüelas de um aborto malfeito vem crescendo a cada ano. De 1993 a
1997, as curetagens pós-aborto em adolescentes passaram de 19% para 22%, do
total de procedimentos. Em 1996, o número estimado de abortamentos em jovens
de 10 a 19 anos foi de 241.392 casos. (Fonte: Progama saúde do
Adolescente/ministério da Saúde, 1996.) Mais um indício que reforça a inclusão
dos adolescentes em geral nas pautas dos programas sociais, como também impacta
as discussões sobre aborto no Brasil.
Neste contexto os adolescentes homens devem ser inseridos da mesma forma no
atendimento as suas demandas sexuais e reprodutivas. Discussões sobre
paternidade nas escolas devem ser provocadas. Nos hospitais públicos a apartação
de gênero nos serviços de saúde é brutal. Estudos sobre masculinidades há pouco
tempo realizados revelam esta exclusão dos homens nos serviços de saúde. O que
contribui para apartação nas relações de gênero, e consequentemente no
enfrentamento a uma gravidez na adolescência. Moças e rapazes devem ter
igualdade no acesso aos programas e políticas públicas, mesmo que estes sejam
efetivados de maneiras distintas.
Todas essas informações trazem a tona a urgência de se pensar alternativas para o
trabalho com determinados grupos sociais. Tendo em vista as particularidades das co-
munidades, o perfil do adolescente, e os serviços públicos que estão sendo oferecidos.
Articulando esferas estatais e não estatais, público e privado, para que possamos
realizar nossas ações em sintonia com a realidade social há que estamos inseridos.

Bibliografia
BENFAM – Sociedade Civil bem-estar Familiar no brasil. Adolescentes, Jovens e a
Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde: um estudo sobre fecundidade,
comportamento sexual e saúde reprodutiva. Rio de Janeiro: BENFAM, 1999.
Ministério da Saúde. Programa Saúde do Adolescente. Brasília: Ministério da Saúde, 1996.
Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos. Dossiê Adolescentes
saúde sexual saúde reprodutiva. Belo Horizonte: Rede feminista de Saúde, 2004
BARROS, N.V, SOUZA, J. N, SOCHACZEWSKI, J. (orgs) Olhares: Crianças e
adolescentes - Niterói: PROEX/UFF, 2005.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 88

O Planejamento Estratégico como Forma de


Enfrentamento da Violência contra a Mulher e
contra Criança e Adolescente
Amanda Silva Araújo

Na contemporaneidade, o Planejamento Estratégico tem assumido grande


importância para a implementação de programas e projetos sociais.
O Planejamento Estratégico é um instrumento importantíssimo que possibilita a
qualidade de intervenção dos profissionais que atuam na área da violência contra a
mulher, crianças, adolescentes e jovens e contribui para a efetividade da prática dos
profissionais envolvidos com esta temática, no sentido de proporcionar mais
objetividade, além de permitir maior racionalidade e direcionamento ao trabalho
proposto. O planejamento estratégico é considerado uma ferramenta atual que
oferece dinamicidade, organicidade e contribui para moldar com maior qualidade a
intervenção de diversos profissionais envolvidos com esta temática. O
planejamento estratégico deve ser visto como um meio de vinculação direta com a
visão de modernização, porque contribui para a melhoria do trabalho e das relações
interprofissionais.
Neste contexto, verificamos que o planejamento estratégico torna-se um
instrumento de ação que possibilita que seja utilizado enquanto fundamentação
pelos profissionais que desejam realmente intervir na realidade de forma mais
instrumentalizada e capacitada por isso deve ser utilizado como forma de
enfrentamento das questões que afligem os vitimizados pela violência.
Um dos objetivos que se pode alcançar quando se utiliza este instrumental de
intervenção é a efetivação de melhores resultados, como também obtenção de
soluções alternativas para os processos decisórios e redução de riscos e incertezas,
já que planejar significa pensar o futuro, se organizar.
O profissional atual e determinado em seu ambiente de trabalho necessita
estabelecer propostas e projetos de atuação e para isso é de fundamental
importância que utilize o planejamento estratégico. É uma forma de definir onde se
quer chegar, como se quer chegar, que políticas e diretrizes irão ser usadas. É um
instrumental que define ações e metas objetivas, propondo desafios que visam
alcançar um cenário futuro desejável.
O Planejamento Estratégico pressupõe a efetivação de etapas que se forem bem
fundamentadas, articuladas e participativas; garante, com maior segurança a
viabilidade das ações propostas. Estas etapas podem ser caracterizadas pelo
processo de planejamento; de implementação; de monitoramento; de avaliação e de
correção dos erros do processo, visando a sua replicação.
Esta série de etapas tem como objetivo assegurar que todos o processos sejam
desenvolvidos com maior transparência e resolutividade, que as mudanças
necessárias sejam buscadas e realizadas e que o usuário fique satisfeito com os
resultados obtidos e toda a equipe envolvida também.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 89

Podemos verificar que um dos problemas que mais atingem profissionais que
atuam com políticas sociais públicas, principalmente com as políticas sociais
desenvolvidas como forma de enfrentamento da violência contra a mulher, criança
e adolescentes é a questão da falta de planejamento de trabalho. Não pesquisar e
estudar as demandas reais dos usuários, não conhecer as instituições que prestam
assistência a estes segmentos. Como planejar o trabalho que será feito para atender
de forma mais efetiva aos usuários, é uma questão que está sendo debatida entre
profissionais de diversas áreas. E este debate é de extrema relevância para o
melhoramento destes serviços públicos que são oferecidos à população usuária, em
especial, os que exigem um “olhar” mais apurado e sensível, como é o caso dos
que sofrem violência.
O planejamento pode ser considerado como um conjunto de ações intencionais
coordenadas e orientadas para tornar realidade um objetivo futuro, de forma a
possibilitar a tomada de decisões antecipadamente. Deve ser um processo contínuo
e dinâmico.

ETAPAS DO PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO

Depois que se estabelece a primeira etapa que é a do Planejamento, definindo-se


ações a serem implementadas, isto é, o que irá ser feito, pelos profissionais
inseridos no contexto interventivo parte-se de forma mais embasada para a segunda
etapa que é a execução/implantação. É chegada à hora de por em prática tudo o que
foi esboçado na teoria. Transformar realmente a realidade atual, buscar melhoria
contínua.
É na etapa de monitoramento que os profissionais terão uma visão do que está
funcionando da maneira esperada. É a análise dos resultados alcançados. A
verificação da funcionalidade das idéias que foram implementadas.
O monitoramento é uma etapa muito importante porque este é requisito essencial
para a implementação de um ambiente de melhorias. Esta etapa tem como objetivo
assegurar que as necessidades das vítimas de violência estejam sendo atendidas
pela instituição; ressalta as áreas da instituição ou organização que estejam
necessitando de maior atenção e de outros planos de melhoria e permite que os
profissionais que atuam com a questão da violência visualizem planejamentos
futuros que tenham bases em dados recolhidos das trajetórias passadas dos usuários
e de suas famílias.
A avaliação é um processo que deve ser posto em prática pelos profissionais
envolvidos, durante a implementação do que foi planejado.
A etapa de avaliação e correção dos erros presentes no decorrer do processo é a
parte do trabalho em que os profissionais perceberão quais os procedimentos
tomados não deram o resultado desejado pela equipe. É o momento em que os
profissionais verificarão se o atendimento institucional correspondeu ao que a
criança e o adolescente e sua família demandavam, se alguma instituição que faz
parte da rede de atendimento a estes usuários não conseguiu dar andamento aos
casos encaminhados pela instituição onde foi feito o primeiro atendimento.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 90

Enfim, planejar significa a busca contínua de melhoria dos trabalhos desenvolvidos


e os profissionais da atualidade tem um compromisso ético-social com esta
população.

Referências Bibliográficas
BAPTISTA, Myrian Veras. O planejamento estratégico na prática profissional cotidiana.
In. Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo: Cortez, 1995.
BARROS, D. S. Planejamento em Serviço Social: A dimensão profissional. São Paulo:
Escritor Luz e Silva Editor, 1987.
DEJOURS, C. A Banalização da Injustiça Social. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
FRITSCH, R. Planejamento Estratégico: instrumental para a intervenção do Serviço Social.
In. Revista Serviço Social e Sociedade, 52ª edição. São Paulo: Cortez, 1996.
GUERRA, Y. A Instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez,1995.
IAMAMOTO, M.V. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação
profissional. São Paulo: Cortez, 2001.
MORET, P. A. Como preparar a Empresa para a ISSO 9001:2000. Rio de Janeiro: PAM,
2005.
TAVARES, M. C. Planejamento estratégico: A opção entre o sucesso e fracasso
empresarial. São Paulo: Harbra, 1991.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 91

Práticas do Código de Menores na Era do


Estatuto da Criança e do Adolescente:
considerações sobre a política de atendimento
Alexandre Ferreira do Nascimento, 1

É inegável que a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi


uma grande conquista no campo legal pelos direitos humanos infanto-juvenis.
Fruto da ampla mobilização social ocorrida nos anos 80, conseguiu, convergir no
âmbito nacional, forças dos diversos segmentos preocupados com a situação da
política para a infância e juventude no Brasil da época.
A década de 80 foi período de consolidação legal de discussões travadas no âmbito
nacional e internacional. A Constituição Federal de 1988, a Convenção
Internacional dos Direitos da Criança de 1989 e o ECA de 1990 ratificaram a
criança e o adolescente como cidadãos civis, sujeitos de direitos e deveres, pessoas
em condição peculiar de desenvolvimento; aos quais devem ser garantidos a
proteção integral em caráter de prioridade absoluta.
As normativas legais ratificaram ainda a participação popular na formulação,
deliberação, execução e fiscalização da política de atendimento dos direitos da
infância e juventude, através dos segmentos organizados da sociedade civil: ao
instituir os Conselhos de Direitos (estes nos âmbitos municipal, estadual e
nacional) e o Conselho Tutelar. O primeiro enquanto órgãos de gestão
participativa2, deliberativos e controladores da política de atendimento. O segundo
enquanto órgão autônomo, de representação popular e zelador dos direitos
fundamentais da criança e do adolescente estabelecidos na lei.
A emergência do ECA foi possível naquele momento histórico de luta pela
democratização do Estado Brasileiro, quando a participação popular passou a ser
uma prerrogativa legal. Após 15 anos possuímos a experiência de sua
operacionalização e faz-se importante analisar os efeitos dessa política nas práticas
cotidianas, tomando como parâmetro as diretrizes do Estatuto, dos quais
destacamos três: 1) a desjurisdicionalização da atenção à infância; 2) a
municipalização da política de atendimento de direitos e 3) a participação da
sociedade na gestão dessa política.
Esse texto se propõe a problematizar algumas práticas vigentes na atenção a
infância e juventude sob a perspectiva do atendimento dos direitos desse segmento,
avaliando a consonância das mesmas em relação às diretrizes destacadas acima.
A Doutrina da Proteção Integral vigente com o Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei Federal 8.069 de 1990) pretende fazer uma distinção entre
problemas sociais e jurisdicionais, retirando do âmbito da justiça os ditos casos
sociais. Para isso, cria mecanismos, tal como o órgão Conselho Tutelar,

1
Sob orientação da Profª Drª Cecília Coimbra.
2
Os Conselhos de Direitos possuem formação paritária – metade formada por representantes da
sociedade civil organizada e metade formada por representantes dos órgãos governamentais.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 92

responsável por intervir nesses casos aplicando medidas de proteção3 que devem
restituir os direitos violados ou evitar que assim o sejam. Para tanto, o órgão possui
a prerrogativa de requisitar os serviços públicos nas áreas de educação, saúde,
assistência social, segurança, previdência, dentre outros. Além de esses serviços
ficarem muitas vezes apenas no papel, quero dar visibilidade ao perigo desses
mecanismos, em realidade, poderem estar reproduzindo formas de controles
neoliberais baseadas na gestão da pobreza. Um outro mecanismo foi o atendimento
em meio aberto, ou seja, o funcionamento em rede dos serviços de atendimento,
que deve constituir um conjunto de ações articuladas dos setores governamentais e
não-governamentais das três esferas da federação.
Nos interessa aqui refletir sobre uma forma de controle exercido no âmbito das
relações comunitárias cotidianas, uma vez que os Conselheiros Tutelares são
representantes escolhidos pela comunidade e investidos de um poder legal para
zelar pelos direitos da criança e do adolescente estabelecidos no ECA. Aqui, o
controle pode passar a se exercer em espaços abertos e não mais somente em
instituições disciplinares fechadas.
Foucault (2003) nos mostra como as práticas do inquérito, da prova e do exame
emergiram e se fortaleceram ao longo dos séculos enquanto prática judiciária e se
disseminaram em nossa cultura de produção de conhecimento enquanto método de
produção de verdade presente na sociedade contemporânea. Nos interessa dialogar
com o autor sobre as práticas ditas de proteção à infância e juventude pobres,
enquanto produções ainda fortemente influenciadas pela justiça. Tomo como pano
de fundo, as reflexões suscitadas no âmbito da Rede Municipal de Atenção Integral
à Criança e ao Adolescente de Niterói, campo de minha pesquisa.
Esta Rede se constitui numa ação articulada de diferentes órgãos / serviços focados
na atenção à criança e ao adolescente atingidos pela violência. Destaco que maus
tratos se insere na legislação penal enquanto crime e se corporifica na violência
física, violência psicológica, violência sexual e negligência. Cabe à Rede proteger a
“vítima” e responsabilizar o autor dos maus tratos. Tem-se então aí estabelecida
uma relação, que podemos dizer, entre os campos da proteção social e o da
criminalização. É nessa interface entre os especialistas dessas duas áreas que
tecemos algumas considerações.
Ficamos atentos para o quanto é forte a tendência em oferecermos à criança e ao
adolescente – atingidos pela violência ou não – um “atendimento social” em uma
perspectiva policial e penal. Ao nos referirmos a essa camada da população
atendida pelos “órgãos públicos de proteção”, nós profissionais de psicologia,
serviço social, pedagogia, dentre tantos outros, caímos na tendência da ortopedia
social e somos levados a definir nossa prática a partir das demandas do judiciário
no sentido de reunir provas que vão dar materialidade à acusação. Bem sabemos
que as ditas ciências humanas emergiram e se fortaleceram na perspectiva da
competência do exame, da detenção de saberes que deram sustentação subjetiva à
formação da sociedade capitalista influenciada pelas formas jurídicas de produção

3
As medidas de proteção estão previstas no ECA, nos artigos 101 (aplicadas à criança e ao
adolescente) e 129 (aplicadas aos pais ou responsáveis).
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 93

de verdade (Foucault, 2003). Ainda hoje, e talvez mais fortemente, os ditos


especialistas são chamados a cooperar com os devidos trâmites legais.
As formas se sofisticaram e a colaboração dos especialistas se dá agora em rede
aberta e interinstitucional, onde os serviços na sua missão precípua de proteção à
infância se moldam na perspectiva das práticas jurídicas. Serviços de revelação da
violência são constituídos no âmbito do poder público; inquéritos policiais passam
a se basear nos laudos produzidos pelos operadores sociais; processos judiciais são
abertos a partir das notícias encaminhadas ao Ministério Público e ao Judiciário; os
operadores dos serviços são levados a depor no tribunal. Esses são alguns
exemplos de como as práticas estabelecidas a partir de uma legislação nova,
reproduzem uma lógica da jurisdicionalização das medidas de proteção social.
As situações, em muitos casos, se reduzem a esses procedimentos de recolhimento
de provas que vão alimentar o processo judicial, submetendo crianças e
adolescentes atingidos pela violência a uma bateria de entrevistas e exames que os
levam a re-vivenciar a violência sofrida. E, por fim, não recebem a assistência
necessária ao tratamento da “ferida mexida e remexida” pelos especialistas, pois a
rede pública não conta – ou conta precariamente – com equipamentos sociais
competentes para acolher problemáticas desta natureza. É claro que estamos
falando aqui de uma camada da população dependente dos serviços públicos, cada
vez mais sucateados pela minimização neoliberal dos investimentos sociais.
Outros exemplos de jurisdicionalização das medidas de proteção se referem
àquelas de abrigo em entidades e de internação em clínicas psiquiátricas ou em
clínicas de tratamento de drogadictos. No primeiro caso, em grande maioria dos
municípios do Estado do Rio de Janeiro, o Conselho Tutelar aplica a medida de
abrigo, mas somente, no entendimento de alguns juízes que respondem pela justiça
da infância e juventude, somente o mesmo pode desabrigar, seja para reintegrar à
família ou para colocação em família substituta. O artigo 136 do ECA define como
atribuição do Conselho Tutelar aplicar as medidas específicas de proteção à criança
e ao adolescente previstas nos incisos de I a VII do artigo 101. O inciso VII é a
medida de abrigo em entidade. Diz o artigo 99 que as medidas poderão ser
substituídas a qualquer tempo. Logo, se o Conselho é o órgão competente para
aplicar a medida, lê-se que também o é para substituí-la. No caso de uma
reintegração familiar de uma criança abrigada, poderia o Conselho substituir a
medida de abrigo pela medida de “encaminhamento aos pais ou responsável,
mediante termo de responsabilidade” (artigo 101, inciso I). Contudo, a
determinação dos juízes de infância e juventude é que somente eles podem
autorizar a saída da criança da entidade.
O segundo caso refere-se às internações em estabelecimentos de tratamento
psiquiátrico e de tratamento de drogadição. Uma realidade do Estado do Rio de
Janeiro é que esses tipos de atendimentos públicos são centralizados em serviços
que acolhem toda a demanda existente no Estado. No que diz respeito à internação
psiquiátrica de crianças e adolescentes o atendimento é feito no IMAS Nilse da
Silveira localizado na capital; e no que se refere à internação de adolescentes
usuários de drogas o atendimento é feito nas Clínicas Reviva (adolescentes do sexo
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 94

masculino) e Semente do Amanhã (adolescentes do sexo feminino), ambas na


cidade de Barra Mansa. Em ambas as situações, há a exigência da dita “Carta
Precatória”4, expedida pelo juiz da Comarca de origem do usuário, para que o
serviços aceitem essas crianças ou adolescentes advindos de outros municípios5,
muitas vezes se tornando o único documento exigido, dispensando inclusive a
avaliação de uma unidade de saúde que indique a internação. Ora perguntamos:
essa é uma questão de saúde ou de justiça?
Cabe ressaltar que em ambos os casos apresentados, de abrigamento ou de
internação de crianças e adolescentes, não existem nenhuma determinação escrita
do juiz; no caso da Carta Precatória sequer ela é prevista no ECA. Contudo, a
orientação é expressa e tomada como determinação legal.
Podemos ainda ressaltar os procedimentos tomados no âmbito dos Conselhos
Tutelares que, apesar de sua natureza não-jurisdicional, por vezes assumem
práticas jurisdicionalizantes na intervenção junto a situações de ameaça ou violação
de direitos da criança e do adolescente notificados ao órgão. Citamos como
exemplo os casos que envolvem litígios de casais, quando o Conselho decide em
questões de guarda, regularização de visitas, separação de bens, onde o Conselheiro
assume função jurisdicional, não raras vezes compelido pela morosidade da justiça
frente à urgência da tomada de medidas protetivas em situações de exposição da
criança à violência. Por outras vezes, compelidos pelos próprios agentes de justiça
– promotores, defensores, juízes e técnicos judiciários – que orientam e até
“determinam” os Conselhos Tutelares a tomarem procedimentos que fogem a sua
competência administrativa; tais como: fiscalização de bailes e casas noturnas,
aplicação do Termo de Responsabilidade6 como medida que antecede a guarda, o
registro de ocorrência de atos análogos ao crime ou infração cometidos por
crianças (até 12 anos), busca e apreensão de crianças, dentre outros procedimentos.
Nos interessa aqui apontar como as práticas judiciárias, não somente têm orientado
a ação dos operadores em relação aos direitos da criança e do adolescente, bem
como têm judicializado as medidas de proteção previstas no Estatuto da Criança e
do Adolescente, reproduzindo práticas dos Códigos de Menores7, que tinha na
figura do juiz a autoridade exclusiva para tratar de questões dessa natureza.
Queremos dar visibilidade aos efeitos dessas práticas no cotidiano do atendimento,
o quanto elas estão fortemente enraizadas nos fazeres dos profissionais e, ao
mesmo tempo, naturalizadas.

4
A Carta Precatória é um instrumento utilizado pelo juiz de uma Comarca que aplica uma medida e
solicita a um juiz de outra Comarca para determinar a execução da medida em estabelecimento que
ofereça programa de execução da medida aplicada, por esse atendimento não estar disponível ou
impedido de ser oferecido pela rede do local de origem da criança.
5
Essa exigência também se aplica aos casos de abrigo de crianças e adolescentes fora do município
de origem.
6
Medida de Proteção prevista no artigo 101, inciso I, do ECA.
7
O Código de Menores teve sua primeira versão em 1927 e a segunda em 1979.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 95

AS NOVAS INSTITUCIONALIDADES: O PROJETO DE


CONSELHOS TUTELARES E DE DIREITOS

O ECA rompe legalmente com antigos vícios de nossa cultura política oligárquica,
autoritária e populista ao instituir os Conselhos como espaços de controle social da
política de atendimento. Outrora, a gestão dessa política era prerrogativa quase que
exclusiva do Poder Executivo. Mas, como vêm se consolidando as práticas
instituídas a partir deste novo paradigma? Quais os efeitos destas práticas no
campo político e social?
O Sistema de Garantia de Direitos proposto com o ECA tem os Conselhos
Tutelares e de Direitos como atores estratégicos fundamentais para a
municipalização da política de atendimento. A escolha popular8 dos Conselheiros
Tutelares e a paridade entre governo e sociedade civil na composição dos
Conselhos de Direitos, legitimam esses órgãos como impulsionadores da
transformação da realidade de ameaça e violação dos direitos do segmento em
questão. Contudo, devemos observar como esses órgãos estão sendo
implementados na prática.
Os Conselhos Tutelares têm sofrido com processos de escolha conturbados e de
baixa participação social, com infra-estrutura precária e com a falta de qualificação
para o exercício das funções. Não muito diferente, os Conselhos de Direitos sofrem
com o problema de representatividade de seus Conselheiros; a ausência ou
desligitimação de suas deliberações e as pressões políticas no exercício de suas
atribuições. Em geral, esses órgãos estão localizados na administração municipal
como mais um setor, programa ou projeto governamental e são tratados como tais,
tendo como efeito a “prefeiturização” dos mesmos.
Destacamos ainda, como assinalado acima, a forte influência das práticas
judiciárias nos Conselhos. O projeto de transferência da justiça dos ditos casos
sociais para o Conselho Tutelar tem sofrido resistências de juízes e promotores que
interferem na autonomia do órgão de aplicação e acompanhamento de suas
medidas, tendo como efeito a continuidade da “jurisdicionalização” da atenção à
infância e juventude.

MUNICIPALIZAÇÃO OU “PREFEITURIZAÇÃO” DA POLÍTICA DE


ATENDIMENTO?

Segundo o texto do CONANDA9 que serve de base para as discussões das


Conferências de Direitos da Criança e do Adolescente de 2005:

“Desde o advento da Constituição Federal de 1988 a participação deixou de


ser um fenômeno à margem da legislação para constituir-se um dos pilares da
nova democracia brasileira. Após 20 anos de regime ditatorial, a grande
conquista do povo brasileiro foi o Poder Participativo que consiste na
experiência de co-gestão, ou seja, a sociedade organizada é chamada a

8
Em geral, os Conselheiros são escolhidos em pleito aberto a todos os cidadãos eleitores do município.
9
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 96

participar na formulação das políticas públicas e no controle das ações


governamentais. E isto porque a população deve participar ativamente na
construção de um país cidadão, ficando evidente que o Governo não deve
gerenciar sozinho.

O texto continua fazendo referência a “um novo modelo de democracia


participativa – e não meramente representativa” que ora baliza a política nas três
esferas da federação. Continua dizendo que “o surgimento dos Conselhos de
Direitos, bem como dos Conselhos Tutelares é prova inequívoca da dimensão
participativa da democracia brasileira”.
Mas como andam esses Conselhos ?
A municipalização da política de atendimento à criança e ao adolescente deveria
incorporar essa dimensão da democracia participativa. Após 15 anos do ECA
temos a real dimensão do desafio de exercer o controle social sobre o governo que
historicamente é marcado por uma cultura política clientelista e fisiológica.
Podemos entender como municipalização a ação articulada das diversas instâncias
que atuam no município, inclusive estaduais e federais; não só o Executivo, mas
também o legislativo e o judiciário; bem como, e principalmente, a sociedade civil
organizada. Mas o que observamos ainda é uma preponderância do Poder
Executivo local sobre todos os outros segmentos, utilizando-se do poder de
execução do orçamento para monopolizar e comandar as ações.
Nesse sentido, os Conselhos que deveriam ser de participação popular estão se
tornando verdadeiros aparelhos da máquina burocrática da Prefeitura. Muitas vezes
existem somente porque é exigência legal para obtenção de recursos estaduais e
federais.
Mas qual é o poder que a sociedade civil tem nas deliberações e execuções das
ações? No que se refere aos Conselhos de Direitos é raro encontrar um que tenha
deliberado um Plano Municipal de Atendimento e que tenha em pleno
funcionamento o Fundo da Infância e Adolescência10. O poder deliberativo desses
Conselhos é subjugado, serve quando é para ratificar os interesses do governo
municipal, mas quando suas deliberações assumem caráter contraditório, em geral
por influência do segmento da sociedade civil, simplesmente não são cumpridas,
sendo questionadas quanto à legitimidade.
É bem sabida a influência que o poder econômico da Prefeitura exerce sobre as
organizações civis que compõem os Conselhos de Direitos, que dependem dos
convênios municipais para continuar com suas atividades. E ainda, o quanto
incomoda o governo quando esse segmento consegue se organizar e defender
coletivamente os interesses da sociedade. As administrações municipais seguem a
lógica eleitoral e os interesses imediatos que quase nunca atendem aos interesses
reais e prioritários de nossas crianças e adolescentes.
E quanto aos Conselhos Tutelares como órgão de representação popular no zelo
dos direitos definidos no ECA?

10
Os Conselhos de Direitos das três esferas federativas tem como uma das atribuições a gestão dos
Fundos da Infância e Juventude, que recebe dotações orçamentárias do tesouro, doações de pessoas
físicas e jurídicas, bem como, soldos advindos de multas da Justiça da Infância e Juventude.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 97

CONSELHOS TUTELARES OU TUTELADOS?

Os Conselhos Tutelares como órgãos autônomos definidos em lei (Art. 131 do


ECA) “não se subordina aos Poderes Executivo e Legislativo municipais, ao
Poder Judiciário ou ao Ministério Público” (Art, 5º da Resolução nº 75/2001 do
CONANDA). Todavia, temos coletado em nossa pesquisa inúmeros relatos que
demonstram que o CT vem assumindo, ou sendo forçado a assumir, papel da
Prefeitura, do Judiciário ou da Polícia. E ainda, ou ao mesmo tempo, sendo
subjugado por esses poderes, como são os casos que ilustramos a seguir ocorridos
no Estado do Rio de Janeiro.
Vejamos alguns exemplos de “prefeiturização” dos CTs: no município de São José
de Ubá os Conselheiros Tutelares foram indicados pelo Prefeito sem passar pelo
processo de escolha; no município do Rio de Janeiro o Secretário Municipal de
Assistência Social, o Assistente Social Marcelo Garcia, através da Resolução
07/2005 subordina o funcionamento dos CTs às CRAS11, dentre outras aberrações;
no município de Italva o CMDCA baixa resolução determinando o funcionamento
administrativo do CT, sem previsão legal e ignorando o poder do regimento interno
do órgão; em Magé a Prefeita ignora a prorrogação de mandato do CT pelo
CMDCA e nega oferecer estrutura ao funcionamento do CT, que atualmente
encontra-se com ordem de despejo, sem telefone, sem salários, sem combustível e
sem funcionários. E ainda, em inúmeros municípios o CT é levado a atuar como
um programa de atendimento da Prefeitura, culpabilizando a família ao invés de
cobrar do Poder Executivo os serviços públicos voltados à criança, ao adolescente
e suas famílias.
Vejamos alguns exemplos de “jurisdicionalização” dos CTs: atualmente para se
aplicar uma medida protetiva de tratamento ao adolescente usuário de drogas que
precisa de internação é exigido Carta Precatória, isto é, tem que passar pela justiça;
o mesmo acontece quando se precisa abrigar um menino em outro município,
mesmo quando a situação envolve ameaça de morte da criança ou do adolescente;
em vários municípios do estado o CT aplica a medida de abrigo mas é impedido de
retornar com a criança para a família, pois somente o Juiz autoriza a saída do
abrigo. E ainda, em inúmeros municípios o Promotor, Juiz ou Defensor; somente
recebem determinados casos se passarem antes pelo CT, a exemplo dos casos de
disputa litigiosa de guarda.
Vejamos alguns exemplos de “policialização” dos CTs: em inúmeros municípios
do Rio de Janeiro, principalmente do interior, os CTs recebem determinações do
Juiz e do Promotor de Justiça para proceder fiscalização de bares e bailes públicos;
em Guapimirim o Ministério Público (MP) determina que o CT preencha
formulário de Registro de Ocorrência de atos infracionais praticados por crianças e
os remetam ao mesmo; em inúmeros municípios o CT é determinado pelo MP ou
Juiz a realizar “sindicâncias” e outras ações investigativas a fim de instruir
processos judiciais. E ainda, em inúmeros municípios o CT é chamado a atuar em

11
Coordenadoria Regional de Assistência Social – unidades de atendimento previstas no Sistema
Único de Assistência Social.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 98

ações voltadas ao adolescente infrator, desde registro de ocorrência até transporte


para unidades de internação na cidade do Rio.
Não entrarei aqui na análise desse fenômeno que despotencializa de inúmeras
formas essa instância de representação popular no controle social da política de
atendimento, mas apenas sinalizar como o órgão vem sendo apropriado por outros
órgãos consolidados historicamente, desfigurando a perspectiva transformadora
que os Conselhos Tutelares carregam como potencialidade.

A “ASSISTENCIALIZAÇÃO” DA POLÍTICA DE ATENDIMENTO


DE DIREITOS

A introdução dos direitos humanos de crianças e adolescentes no país se deu numa


perspectiva de reformulação da política menorista de assistência à infância e à
juventude, voltada até então exclusivamente para os desvalidos, infratores e
inadaptados. E, que apesar do projeto legal do ECA expressar a concepção do
direito para todas as crianças e adolescentes, no Brasil ele vai sendo capturado pela
política de assistência social, que se constitui enquanto política suplementar para
quem dela necessite. Cremos que não seria exagero dizer que a totalidade da
população atendida pela política de assistência social é pobre ou pauperizada.
Podemos dizer que a política de atendimento dos direitos da criança e do
adolescente, assim associada à área da assistência social – em sua grande maioria
os Conselhos de Direitos e Tutelares estão vinculados às Secretarias
governamentais desta área - significa que a sua implantação deve obrigatoriamente
passar pela herança assistencialista e punitiva da pobreza que marca a história da
assistência à infância e à juventude. Considerando ainda, a cultura das políticas
setorializadas que não se conectam, quando se localiza na administração pública o
atendimento dos direitos da criança e do adolescente na área da assistência social,
parece que se deixa de problematizar a questão nas demais áreas afeitas, tal como
as áreas da educação, saúde e segurança, sem contar áreas importantes como a de
planejamento, gestão, meio ambiente, orçamento, urbanismo, cultura, dentre outras
que deveriam se ocupar com as questões da infância e juventude.

RESISTIR QUANDO É MAIS FÁCIL CEDER

Os rumos que vem tomando a implantação do ECA são preocupantes e não podem
ser ignorados. Fazemos aqui uma reflexão sobre os efeitos das práticas vigentes
para que diante das análises possamos romper com o nosso passado oligárquico,
clientelista e populista. Não podemos reproduzir as velhas práticas assistencialistas
e punitivas da pobreza que marcaram os Códigos de Menores, porém a mudança da
lei não é suficiente. Vivemos a sofisticação dos mecanismos de criminalização da
pobreza, agora sob o discurso dos Direitos Humanos e da Proteção Integral sob a
tutela da política de Tolerância Zero.
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 99

Devemos combater a lógica do Estado Neoliberal que opta por maximizar os


recursos com polícia e prisão (alimentando o consumo de segurança) e minimizar
os recursos com educação e saúde (alimentando o consumo por escolas particulares
e planos de saúde). Assim, reproduzimos a história da criminalização da pobreza,
pois é mais fácil individualizar o problema da família pobre à cobrar do Estado
políticas sociais eficazes de enfrentamento à desigualdade social. Os adolescentes
que lotam as unidades de internação do DEGASE têm etnia, classe social e
endereço. São negros, pobres e moradores das periferias e favelas.
A simples mudança do aparato institucional com a criação dos Conselhos se
mostraram insuficientes para romper com a nossa história de exclusão. Mas
devemos acreditar no projeto que o ECA nos oferece, contudo, enquanto projeto
deve ser continuamente avaliado e redirecionado. É o que propomos. Temos que
nos redirecionar. Desta forma, levantamos quatro aspectos que consideramos
determinantes para resgatarmos o propósito dos Conselhos de Direitos enquanto
órgãos de gestão participativa, deliberativos e controladores da política de
atendimento e o propósito dos Conselhos Tutelares enquanto órgãos autônomos, de
representação popular e zeladores dos direitos fundamentais da criança e do
adolescente. São eles:

• Regulamentação Legal – as leis que regulamentam os Conselhos devem passar


por profunda análise e debate público, pois precisam ser aprimoradas e
adequadas à realidade de um Estado que se pretendia Democrático de Direito.
• Processo de Escolha – o projeto democrático de participação popular, que passa
pelos processos de escolha dos Conselheiros Tutelares e de Direitos, deve ser
revisto para se ganhar legitimidade. Qualidade, autonomia e reconhecimento da
autoridade são imprescindíveis ao exercício da função de Conselheiro e o
processo de escolha é determinante.
• Infra-estrutura – a estrutura garantida aos Conselhos retrata a sua importância
no cenário político. Não é possível funcionar relegados a salinhas da
administração pública e realizar um trabalho de qualidade. A autonomia
administrativa é também determinante para que os Conselhos tenham autonomia
funcional.
• Formação Continuada – ninguém assume a função de Conselheiro de Direitos
ou Tutelar sabendo exercê-la. O processo de qualificação para a função é político
e como tal deve ser encarado. A quem interessa Conselheiros qualificados? A
formação continuada é sinônimo de processo de reflexão, avaliação e
redirecionamento das práticas.

PARTICIPAÇÃO E CONTROLE SOCIAIS: CAMINHOS PARA


CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA?

O sexto ciclo de Conferências de Direitos da Criança e do Adolescente neste ano


(2005) aponta para a participação e o controle da sociedade civil organizada como
caminhos para a consolidação da democracia participativa no campo da política de
Direitos Humanos e Cidadania: textos sobre crianças e adolescentes 100

atendimento dos direitos da criança e do adolescente no país. A redução de


investimentos sociais e o aumento da penalização próprias da política neoliberal,
tem efeitos funestos quando aplicadas em países ao mesmo tempo atingidos por
fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de
tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados
pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do século (Waquant, 2001).
O que vale nos reunimos em Conferências e aprovarmos propostas se as mesmas
não encontram condições políticas e técnicas para serem executadas. Quando
discutimos participação e controle sociais estamos discutindo o enfrentamento à
tradição política autoritária, clientelista e excludente que sempre marcou o Estado
brasileiro. Não é tarefa simples ou fácil. Nesse sentido defendemos:

• O fortalecimento da participação e controle sociais através dos Fóruns Populares


de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente;
• A autonomia administrativa e financeira dos Conselhos de Direitos de Tutelares
através de leis que garantam o funcionamento desses órgãos de forma menos
vulnerável a cooptação governamental;
• O funcionamento dos Fundos da Infância e Adolescência como forma de
exercício de gestão democrática do orçamento público;
• O uso da mídia como forma de dar transparência às ações voltadas à infância e
juventude; bem como às omissões do Estado e da sociedade;
• A desjurisdicionalização das medidas de proteção aplicadas pelo Conselho
Tutelar e execução das políticas deliberadas pelos Conselhos de Direitos.

Essas são algumas considerações que temos feito no âmbito de nossa pesquisa de
Mestrado, que longe de se constituir pensamento consolidado, é apenas ensaio de
uma reflexão crítica sobre a forma em que vem sendo implementada a política de
atendimento dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, mais
especificamente no Estado do Rio de Janeiro. E, portanto, aberta a intervenção dos
leitores.

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